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Hua Senacc? Pinhoino, 304 - Cx. R 13
CEP: t».0Dl-»70 - Passo Fundo - RS
Font: (OxaM) 3045-3277

Título original:
The Aesthetic Dimension
(Die Permanenz der Kunst)
© Carl Hanser Verlag, Munique, 1977

Tradução de Maria Elisabete Costa

Revisor da tradução: João Tiago Proença

Capa de Edições 70

Depósito legal n.° 131175/99

ISBN 972-44-0194-4

Todos os direitos reservados para a língua portuguesa por


Edições 70
EDIÇÕES 70, LDA.
Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.° Ésq.° - 1069-157 LISBOA /
Portugal
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procedimento judicial.
AGRADECIMENTOS

INSTITUTO DE FILOSOFIA BERTHIER


Biblioteca Pe. Berthier

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Erica Sherover acompanhou criticamente o


manuscrito, desde os primeiros rascunhos à sua
versão definitiva, discutiu comigo cada parágrafo e
animou-me a aperfeiçoá-lo. A ela — minha esposa,
amiga e colaboradora — dedico este pequeno livro.
AÍ discussões intensivas que tive com os meus
amigos Leo Lowenthal e Reinhard Lettau foram, na
verdade, tão úteis quanto agradáveis. Leo
Lowenthal voltou a dar provas da sua reputação de
leitor e crítico temível; Reinhard Lettau
demonstrou que a verdadeira literatura - a
literatura como resistência - ainda é hoje possível.
Os meus enteados Osha e Michael Neumann
contribuiram com sugestões estimulantes: Michael
com os seus comentários encorajadores, Osha com
as suas conversas animadas sobre o seu próprio
trabalho no campo da arte.
O meu filho Peter, cujo trabalho no planeamento
. ..7. _ - ....... ... . 7. 7_ _ _ _ ___ __ C..
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HERBERT MARCUSE

Estou particularmente grato a Catherine


Asmann, que dactilografou cerca de meia dúzia de
versões deste ensaio - sempre com prazer.
A minha dívida à teoria estética de Theodor W.
Adorno (*) dispensa-me de qualquer

(*) T. W. Adorno, Teoria Estética, n.° 14 da col. Arte &


Comunicação,
Edições 70, Lisboa. (N. do E.)

10
PREFACIO

INSTITUTO DE FILOSOFIA BERTHIER


Biblioteca Pe. Berthier
Registro:
Entr,da:
Rua Prestes Guinwães. 3S6 • Passo Funcio - RS
Fone: (0xx54) 313-1352 - Cx. Postal 13

Este ensaio pretende contribuir para a estética marxista, mediante


a impugnação da sua ortodoxia predominante. “Por ortodoxia
compreendo uma estética que interpreta, segundo a sua concepção,
a qualidade e a verdade de uma obra de arte no contexto das
respectivas relações de produção existentes, e fá-lo de tal modo que
a obra de arte configura, mais ou menos validamente, interesses de
determinadas classes sociais.
A minha crítica desta ortodoxia baseia-se na teoria marxista, na
medida em que esta também encara a arte no contexto das relações
sociais e atribui à arte uma função política e um potencial político.
Mas, ao contrário dos estetas marxistas ortodoxos, vejo o potencial
político da arte na própria arte, como qualidade da forma estética.
Além disso, defendo que, em virtude da sua forma estética, a arte é
absolutamente autônoma perante as relações sociais. A arte protesta
contra estas relações na medida em que as transcende. Nesta
transcendência, rompe com a consciência dominante, revoluciona a
experiência.
Algumas observações preliminares: embora este ensaio fale da
«arte» em geral, a minha discussão foca essencial

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HERBERT MARCUSE

mente a literatura e, sobretudo, a literatura dos séculos XVIII e XIX.


Não me sinto habilitado para falar da música e das artes visuais,
embora esteja convicto de o que se aplica à literatura, mutatis
mutandis, também se pode aplicar a estas artes. Em segundo lugâr,
relativamente à selecção das obras discutidas, a objecção de que eu
opero com uma hipótese autofundamentada, parece justificada.
Considero «autênticas» ou «grandes» as obras que satisfaçam os
critérios estéticos previamente definidos como constitutivos da arte
«autêntica» ou «grande arte». Como argumento, diria que, ao longo
da história da arte, apesar de todos os critérios se transformarem,
permanece fixa uma valoração, que não só nos permite distinguir
entre literatura “alta” e “trivial”, ópera e opereta, comédia e farsa,
como também, no interior dos gêneros, entre boa e má arte. Há uma
diferença qualitativa demonstrável entre as comédias de
Shakespeare e a Comédia da Restauração, entre os poemas de
Goethe e os de Schiller, entre a Comédie Humaine de Balzac e o
Rougon-Mcicquart de Zola.

A arte pode ser «revolucionária» em muitos sentidos. Num sentido


restrito, a arte pode ser «revolucionária» se apresenta uma mudança
radical no estilo e na técnica. Tal mudança pode ser empreendida por
uma verdadeira vanguarda, antecipando ou reflectindo mudanças
substanciais na sociedade em geral. Assim, o expressionismo e o
surrealismo anteciparam a destrutividade do capitalismo monopolista
e a emergência de novas metas para uma mudança radical. Mas, a
definição

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A DIMENSÃO ESTÉTICA
meramente «técnica» da arte revolucionária nada diz da qualidade
da obra, nem da sua autenticidade e verdade.
Para além disto, uma obra de arte pode denominar-se
«revolucionária» se, em virtude da configuração estética,
apresentar a ausência de liberdade do existente e as forças que se
rebelam contra isso no destino exemplar do indivíduo, romper a
realidade mistificada (e reificada) e der a ver o horizonte de uma
transformação (libertação).
Neste sentido, toda a verdadeira obra de arte seria
revolucionária, na medida em que subverta as formas dominantes
da percepção e da compreensão, apresente uma acusação à
realidade existente e deixe aparecer a imagem da libertação. Isto
verifica-se tanto no drama clássico como nas peças de Brecht, tanto
nas Afinidades Electivas de Goethe como nos Anos de Cão de
Günther Grass, tanto em William Blake como em Rimbaud.
A diferença óbvia na apresentação do potencial subversivo
deve-se à diferença de estrutura social com que estas obras se
confrontam: a distribuição da opressão entre a população, a
composição e a função da classe dominante, as possibilidades
existentes de mudança radical. Estas condições históricas estão
presentes nas obras de arte de vários modos: explicitamente ou
como pano de fundo e horizonte, na linguagem e nas imagens. Mas
são expressões e manifestações históricas específicas da mesma
substância trans-histórica da arte: possuem uma dimensão própria
de verdade, protesto e promessa, uma dimensão que reside na sua
própria forma estéticat Assim, o Woyzeck de Büchner, as peças de
Brecht, mas também os romances e as narrativas de Kafka e de
Beckett são revolucionários em virtude da

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HERBERT MARCUSE

forma dada ao conteúdo. Na verdade, o conteúdo (a


realidade existente) aparece nestas obras apenas
transformado, alienado e mediatizado. A verdade da arte
reside no facto de o mundo, na realidade, ser tal como
aparece na obra de arte.
Esta tese implica que a literatura não é revolucionária
por ser escrita para a classe trabalhadora ou para «a
revolução». Se tem algum sentido falar de arte
revolucionária, então só se pode fazê-lo em referência à
própria obra de arte, como forma que deveio conteúdo. O
potencial político da arte baseia-se apenas na sua própria
dimensão estética. A sua relação com a práxis é
inexoravelmente indirecta, mediatizada e frustrante.
Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais
ela reduz o poder de afastamento e os objectivos radicais e
transcendentes de mudança. Neste sentido, pode haver mais
potencial subversivo na poesia de Baudelaire e de Rimbaud
do que nas peças didácticas de Brecht.

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Capítulo I

Numa situação histórica em que a realidade pobre só


pode modificar-se através da práxis política radical, a
preocupação com a estética exige uma justificação.
Seria inútil negar o elemento de desespero inerente a
esta preocupação: a evasão para um mundo de ficção
onde as condições existentes só se alteram e se
suplantam no mundo da imaginação. No entanto, esta
concepção puramente ideológica da arte começa a ser
posta em causa cada vez mais frequentemente. Parece
adequada à arte enquanto arte uma verdade, uma
experiência, uma necessidade que não é a práxis
transformada, mas pertence essencialmente à revolução.
Nesta perspectiva, a concepção básica da estética
marxista, que é o seu tratamento da arte como ideologia
e a ênfase no carácter de classe da arte, torna-se uma vez
mais tópico do reexame crítico (’).
Esta discussão é orientada para as seguintes teses da
estética marxista:
1. Existe uma relação definida entre a arte e a base
material, entre a arte e a totalidade das relações de
produção. Com a modificação das relações de produção,
a própria arte transforma-se como parte da
superestmtura, embora, tal como outras formas da
ideologia, possa ficar para trás ou antecipar a mudança
social.
HERBERT MARCUSE

2. Há uma conexão definida entre arte e classe social.


A única arte autêntica, verdadeira e progressista, é a arte
de uma classe em ascensão, que exprime a tomada de
consciência desta classe.
3. Consequentemente, o político e o estético, o
conteúdo revolucionário e a qualidade artística tendem a
coincidir.
4. O escritor tem a obrigação de articular e exprimir
os interesses e as necessidades da classe em ascensão.
(No capitalismo, esta seria o proletariado).
5. A classe declinante ou os seus representantes só
podem produzir uma arte.
6. O realismo (em vários sentidos) é considerado a
forma de arte que corresponde mais convenientemente
às relações sociais, constituindo assim a forma de arte.
Cada uma destas teses implica a exigência de que as
relações de produção fundadas nos contextos sociais se
expressem na obra literária - não impostas exteriormente
à obra, mas como resultado de si própria, da “matéria”
configurada e da forma que lhe é adequada.
Este imperativo estético deriva da concepção de
base- -superestrutura. Em contraste com as formulações
mais dialécticas de Marx e Engels, a concepção
tornou-se um esquema rígido, uma esquematização que
teve consequências devastadoras para a estética. O
esquema implica uma noção normativa da base material
como a verdadeira realidade e uma desvalorização
política de forças não materiais, particularmente da
consciência individual, do subconsciente e da sua
função social. Esta função tanto pode ser regressiva
como emancipatória. Em ambos os casos, pode tomar-se
uma força social. Se o materialismo histórico não dá
conta do

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A DIMENSÃO ESTETICA

papel da subjectividade, adquire a aparência do


materialismo vulgar.
A ideologia torna-se mera ideologia, apesar das
enfáticas qualificações de Engels, e toma lugar uma
depreciação de todo o mundo da subjectividade, uma
depreciação não só do sujeito como ego cogito, o sujeito
racional, mas também da interioridade, das emoções e da
imaginação. O indivíduo na sua subjectividade não
reduzida, na sua própria consciência vale apenas como
“elemento” da consciência de classe. Assim, é
minimizado um importante pré-requisito da revolução,
nomeadamente, o facto de que a necessidade de
mudança radical se deve basear na estrutura psíquica dos
indivíduos, na sua consciência e no seu inconsciente, nos
objectivos dos seus instintos. A teoria marxista
sucumbiu à própria reificação que expôs e combateu na
sociedade como um todo. A subjectividade tornou-se um
átomo da objectividade; mesmo na sua forma rebelde,
rendeu-se e tornou-se um órgão executivo. A
componente determinista da teoria marxista não reside
no seu conceito de relação entre existência social e
consciência, mas no conceito reducionista de
consciência que põe entre parênteses o conteúdo
específico da consciência individual e, assim, descura o
potencial revolucionário contido na própria
subjectividade.
Este desenvolvimento foi intensificado pela
interpretação da subjectividade como uma noção
«burguesa». Do ponto de vista histórico, isto é duvidoso
(2). Mas em que sentido pode a insistência na verdade e
no direito da interioridade ser válida como valor da
sociedade burguesa? O contrário é que parece ser o caso.
Com a afirmação da interioridade da subjectividade, o
indivíduo emerge do emaranhado das

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HERBERT MARCUSE

relações de troca e dos valores de troca (os verdadeiros


valores da sociedade burguesa!), retira-se da realidade
da sociedade burguesa e entra numa dimensão
essencialmente diferente (a da sua própria
subjectividade). Na verdade, esta evasão da realidade
levou a uma experiência que podia (e pôde) tornar-se
uma força poderosa na invalidação dos principais
valores burgueses, nomeadamente, desviando o foco da
realização individual do âmbito do princípio do
rendimento e do motivo do lucro para o dos recursos
íntimos do ser humano: contemplação, sentimento e
imaginação. Além disso, a retirada e a evasão não eram
definitivas. A subjectividade lutou por sair da sua
interioridade para a cultura material e intelectual. E
hoje, no período totalitarista, tornou-se um valor
político tentando contrabalançar a socialização
agressiva e exploradora.
» Esta subjectividade libertadora constitui-se na
história íntima que é adequada ao indivíduo - da sua
própria história, que não é idêntica à sua existência
social. É a história particular dos seus encontros,
paixões, alegrias e tristezas - experiências que não se
baseiam necessariamente na sua situação de classe e
que nem sequer são compreensíveis a partir dessa
perspectiva. Sem dúvida, as manifestações concretas da
sua história são determinantes pela sua situação de
classe, mas esta situação não é a causa do seu destino -
do que lhes acontece na vida. Especialmente nos seus
aspectos não materiais, o contexto de classe é
ultrapassado. E muito difícil relegar o amor e o ódio, a
alegria e a tristeza, a esperança e o desespero para o
domínio da psicologia8 removendo assim estes
sentimentos da preocupação da práxis radical. Na
realidade, em termos de economia política, eles
A DIMENSÃO ESTETICA

talvez não sejam efectivamente «forças de produção»,


mas são decisivos e constituem a realidade de cada ser
humano.
Mesmo nos seus representantes mais notáveis, a
estética marxista preconizou a desvalorização da
subjectividade. Daí a preferência pelo realismo como
modelo da arte progressista; a difamação do romantismo
como simplesmente reaccionário; a denúncia da arte
«decadente» - em geral, o seu embaraço quando
confrontados com a tarefa de avaliar as qualidades
estéticas de uma obra em termos diferentes dos das
ideologias de classe.
A tese que defendo é a seguinteAas qualidades radicais
da arte, em particular da literatura, ou seja, a sua acusação
da realidade existente e da “bela aparência” da libertação
baseiam-se precisamente nas dimensões em que a arte
transcende a sua determinação sociaEè se emancipa a
partir do universo real do discurso e do comportamento,
preservando, no entanto, a sua presença
esmagadora/Assim, a arte cria o mundo em que a
subversão da experiência própria da arte se torna
possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como
uma realidade reprimida e distorcida na realidade
existente. Esta experiência culmina em situações
extremas (do amor e da morte, da culpa e do fracasso, mas
também da alegria, da felicidade e da realização) que
explodem na realidade existente em nome de uma
verdade normalmente negada ou mesmo ignorada. A
lógica interna da obra de arte termina na emergência de
outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a
racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas
instituições dominantes.
Sob a lei da forma estética, a realidade existente é
necessariamente sublimada: o conteúdo imediato é
estilizado,

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HERBERT MARCUSE

os «dados» são reformulados e reordenados de acordo


com as exigências da forma artística, a qual requer que
mesmo a representação da morte e da destruição invoque
a necessidade de esperança - uma necessidade arreigada
na nova consciência personificada na obra de arte.
A sublimação estética dirige-se à componente
afirmativa, reconciliadora da arte (3), embora seja ao
mesmo tempo um veículo da função crítica, negadora, da
arte. A transcendência da realidade imediata destrói a
objectividade reificada das relações sociais estabelecidas
e abre uma nova dimensão da experiência: o
renascimento da subjectividade rebelde. Assim, na base
da sublimação estética, tem lugar uma dessublimação na
percepção dos indivíduos - nos seus sentimentos, juízos,
pensamentos; uma invalidação das normas, necessidades
e valores dominantes. Com todas as suas características
afirmativo-ideológicas, a arte permanece uma força de
resistência.
Podemos tentar definir provisoriamente a “formação
estética” como o resultado da transformação de um dado
conteúdo (facto actual ou histórico, pessoal ou social)
num todo independente: um poema, peça, romance, etc.
(4). A obra è assim do processo constante da realidade e
assume um significado e verdade próprios. A
transformação estética é conseguida através de uma
remodelação da linguagem, da percepção e da
compreensão, de modo a revelarem a essência da
realidade na sua aparência: as potencialidades reprimidas
do homem e da natureza. A obra de arte representa assim
a realidade, ao mesmo tempo que a denuncia (5).
A função crítica da arte, a sua contribuição para a luta
pela libertação, reside na forma estética. Uma obra de
arte é
~A DIMENSÃO ESTEJICA z. , ~
autentica ou verdadeira nao pelo seu conteúdo (i.e. a apresentaçao
“correcta” das relações sociais), não pela «pureza» da sua forma, mas
pela forma tornada conteúdo.
E verdade que a forma estética desvia a arte da imediatidade da luta de
classes - da imediatidade pura e simples. A forma estética constitui a
autonomia da arte relativamente ao «dado». No entanto, esta dissociação
nao produz uma «falsa consciência» ou mera ilusão, mas antes uma
contraconsciencia: a negação da atitude realístico- -conformista.
Forma estética, autonomia e verdade encontram-se interligadas.
Constituem fenômenos socio-históricos, transcendendo cada um a arena
socio-histórica. Embora esta última limite a autonomia da arte, fá-lo sem
invalidar as verdades íra/is-históricas configuradas na obra. A verdade
da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade
estabelecida (i. e., dos que a estabeleceram) para definir o que é real.
Nesta ruptura, que é a formação estética, o mundo fictício da arte aparece
como a verdadeira realidade.
A arte empenha-se na percepção do mundo que aliena os indivíduos
da sua existência e actuação funcionais na sociedade - está
comprometida numa emancipação da sensibilidade, da imaginação e da
razão em todas as esferas da subjectividade e da objecti vidade. A
transformação estética torna-se um veículo de reconhecimento e de
acusação. Mas, essa transformação pressupõe um grau de autonomia que
a subtrai ao poder mistificador do monopólio da realidade e possibilita a
figuração da sua própria verdade. Enquanto o homem e a natureza não
existirem numa sociedade livre, as suas potencialidades reprimidas e
distorcidas só podem ser
HERBERT MARCUSE

representadas numa forma alienante. O mundo da arte é o de outro


Princípio da Realidade, de alienação - e só como alienação é que a
arte cumpre uma função cognitiva: comunica verdades não
comunicáveis noutra linguagem; contradiz.
No entanto, as fortes tendências afirmativas para a reconciliação
com a realidade estabelecida coexistem com as de rebelião.
Tentarei demonstrar que elas não se devem à determinação de
claSsb. específica da arte, mas antes ao carácter redentor da
catarse. A própria catarse baseia-se no poder que a formai estética
tem de chamar o destino pelo seu nome, de desmistificar a sua
força, de dar a palavra às vítimas - o poder do conhecimento que
proporciona ao indivíduo um pouco de liberdade e de realização no
seio da servidão. A interconexão entre a afirmação e a denúncia do
que existe, entre a ideologia e a verdade, é imanente à estrutura da
arte (6). Mas, nas obras autênticas, a afirmação não exclui a
denúncia: a reconciliação e a esperança preservam ainda a
memória do passado.
O carácter afirmativo da arte tem ainda outra origem: é o
empenhamento da arte no Eros, a afirmação profunda dos Instintos
de Vida na sua luta contra a opressão instintiva e social. A
permanência da arte, a sua imortalidade histórica ao longo dos
milênios de destruição, dá testemunho deste empenhamento.
A arte submete-se à lei do dado concreto, ao mesmo tempo que
a transgride. O conceito de arte como uma força produtiva
essencialmente autônoma e negadora contradiz a noção que vê a
arte como desempenhando uma função essencialmente
dependente, afirmativo-ideológica, isto é, de

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A DIMENSÃO ESTÉTICA

glorificação e absolvição da sociedade existente (7). Mesmo a


literatura burguesa militante do século XVIII permanece
ideológica: a luta da classe ascendente com a nobreza centra- -se
sobretudo em temas de moralidade burguesa. As classes inferiores
desempenham, quando muito, um papel marginal.' Com algumas
excepções notáveis, esta literatura está afastada da luta de
classes.üe acordo com este ponto de vista, a função ideológica da
arte só pode hoje ser superada, fundamentando a arte na práxis
revolucionária e na Weltanschauung do proletariado. *
Tem-se apontado, muitas vezes, que esta interpretação da arte
não corresponde inteiramente ao pensamento de Marx e de Engels
(8). Sem dúvida, tal interpretação também admite que a arte visa a
figuração da realidade na sua essência - não na sua manifestação
imediata. A realidade é tomada pela totalidade das relações sociais
e a sua essência é definida como as leis que determinam estas
relações no «complexo da causalidade social» (9). Assim, a obra de
arte é concebida de antemão como uma totalidade, e os seus
protagonistas são apresentados não na sua particularidade casual,
mas como tipos, que representam «as tendências objectivas do
desenvolvimento da sociedade, de todo o desenvolvimento da
humanidade» (l0).
Tais formulações suscitam a questão se à literatura não é assim
assinalada uma função, que só podia ser realizada mediante a teoria.
A representação da totalidade social requer uma análise conceituai,
que dificilmente se pode transpor para o domínio da sensibilidade.
Durante o grande debate sobre a estética marxista, no princípio dos
anos trinta, Lu Márten sugeriu que a teoria marxista possui uma
forma

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HERBERT MARCUSE

teórica própria, que milita contra toda a tentativa de lhe atribuir uma
forma estética (").
Mas, se a obra de arte não pode ser compreendida em termos de
teoria social, também não o pode ser em termos de filosofia. Na sua
discussão com Adorno, Lucien Goldmann rejeita a afirmação de
Adorno de que, para compreender uma obra literária, « há que
transcender em direcção à filosofia, à cultura filosófica e ao
conhecimento critico». Ao contrário de Adorno, Goldmann insiste na
concreticidade imanente à obra, que a torna uma totalidade (estética)
por direito próprio: «A obra de arte é um universo de cores, sons e
palavras e caracteres concretos. Não há morte, só há Fedra moribunda»
(12).
A reificação da estética marxista deprecia e distorce a verdade
expressa neste universo - minimiza a função cognitiva da arte como
ideologia. Pois, o potencial radical da arte reside precisamente no seu
carácter ideológico, na sua relação transcendente com a «base». (A
ideologia nem sempre é mera ideologia, falsa consciência. A
consciência e a figuração de verdades que aparecem como abstractas
em relação ao processo de produção estabelecido também são funções
ideológicas. A arte é uma destas verdades. Como ideologia, opõe-se à
sociedade existente. A autonomia da arte contém o imperativo
categórico: «as coisas têm de mudar». Se a libertação dos seres
humanos e da natureza tem de ser possível, então, o nexo social da
destruição e da repressão deve ser rompido. Isto não significa que a
revolução se torne temática; pelo contrário, nas obras esteticamente
mais perfeitas, isso não acontece. Parece que, nessas obras, a
necessidade da revolução é pressuposta como o a priori da arte. Mas, a
revolução é como que também ultrapassada e

24
A DIMENSÃO ESTÉTICA

questionada sobre até que ponto responde à miséria do ser humano,


sobre até que ponto leva a cabo uma ruptura com o passado.
Comparada com o optimismo frequentemente unidimen- sional da
propaganda, a arte está impregnada de pessimismo, não raro entremeado
com a comédia. O seu «riso libertador» lembra o perigo e a calamidade
que passou - desta vez! Mas, o pessimismo da arte não é
contra-revolucionário. Serve para advertir contra a «consciência feliz»
da práxis radical: como se tudo o que devém figura na arte pudesse
resolver-se através da luta de classes. Tal pessimismo impregna mesmo
a literatura em que a própria revolução se afirmou e torna-se temático; a
peça de Büchner, A Morte de Danton, é disso um exemplo clássico.
« A estética marxista pressupõe que toda a arte é de alguma forma
condicionada pelas relações de produção, pela posição de classe*, e
assim por diante. A sua primeira tarefa (mas, apenas a primeira) é a
análise específica deste «de alguma forma», isto é, dos limites e formas
deste condicionamento. A questão de saber se há qualidades de arte que
transcendam as condições sociais específicas e de como estas qualidades
estão relacionadas com as condições sociais específicas continua em
aberto. Aestética marxista deve ainda perguntar: quais são as qualidades
da arte que transcendem o conteúdo e a forma social específica e dão à
arte a sua universalidade? A estética marxista deve explicar por que
razão a tragédia grega e a epopeia medieval, por exemplo, ainda hoje
nos dão a sensação de serem literatura «autêntica», «grande», embora
pertençam à velha sociedade da escravatura e do feudalismo,
respectivamente. A observação de Marx, no fim
HERBERT MARCUSE

da Introdução à Crítica da Economia Política, é pouco persuasiva;


não é possível explicar a atracção que a arte grega exerce hoje sobre
nós como a alegria da ingenuidade bela, do desabrochar da «infância
social da humanidade».
Por muito correctamente que se tenha analisado um poema, uma
peça ou um romance em termos do seu conteúdo social, as questões
sobre se determinada obra é boa, bela e verdadeira, ficam ainda por
responder. Mas, as respostas a estas questões não podem ser
novamente dadas em termos das relações específicas de produção
que constituem o contexto histórico da respectiva obra. A
circularidade deste método é óbvia. Para mais, torna-se vítima de
um fácil relativismo que é contrariado de maneira bastante clara pela
permanência de certas qualidades da arte ao longo de todas as
mudanças de estilo e de períodos históricos (transcendência,
distanciamento, ordem estética, manifestações do belo).
O facto de uma obra apresentar verdadeiramente os interesses ou
a visão do proletariado ou da burguesia não faz dela uma verdadeira
obra de arte. Esta qualidade «material» «rfpode facilitar o seu
acolhimento, pode fortalecê-la esteticamente, pode torná-la mais
concreta, mas de modo nenhum é constitutiva. A universalidade da
arte não pode radicar no mundo e na imagem do mundo de uma
determinada classe. A arte articula uma humanidade concreta,
universal (.Menschlichkeit), que não pode ser personificada por uma
classe particular, nem mesmo pelo proletariado, a «classe universal»
de Marx. O tecido inexorável de alegria e de tristeza, celebração e
desespero, Eros e Thanatos, não podem dissolver-se em problemas de
luta de classes. A história também radica na natureza. E a teoria
marxista de nenhum

26
A DIMENSÃO ESTÉTICA

modo se justifica por ignorar o metabolismo entre o ser humano e a


natureza, e por denunciar a insistência neste solo natural da sociedade
como uma concepção ideológica regressiva.
A emergência de seres humanos como «seres genéricos» - homens
e mulheres capazes de viver nessa comunidade de liberdade que é o
potencial da espécie - eis a condição de possibilidade subjectiva de
uma sociedade sem classes. A sua realização pressupõe uma
transformação radical dos impulsos e necessidades dos indivíduos: um
desenvolvimento orgânico dentro do socio-histórico. A solidariedade
teria um fundamento muito escasso se não mergulhasse na estrutura
instintiva dos indivíduos. Nesta dimensão, os homens e as mulheres
são confrontados com forças psicofísicas que têm de tornar suas, sem
conseguirem superar a naturalidade destas forças. Este é o domínio
dos impulsos primários: da energia libidinal e destrutiva. A
solidariedade e a comunidade têm a sua base na subordinação da
energia destrutiva e agressiva à emancipação social dos instintos de
vida.
O marxismo negligenciou, durante muito tempo, o potencial
político radical desta dimensão, embora a revolução da estrutura
instintiva seja um pré-requisito para uma mudança no sistema de
necessidades, o sinal de uma sociedade socialista como diferença
qualitativa. A sociedade de classes conhece apenas a aparência, a
imagem da diferença, do poder ser outro; esta imagem, divorciada da
práxis, tem sido preservada no domínio da arte. Na forma estética, a
autonomia da arte constitui-se a si própria. Foi imposta à arte através
da separação do trabalho mental e material, como resultado das
relações de poder prevalecentes.

27
HERBERT MARCUSE

A dissociação do processo de produção tornou-se um refúgio e um


ponto de mira a partir do qual é possível denunciar a realidade
mediada pela dominação.
No entanto, a sociedade continua presente no mundo autônomo
da arte de várias maneiras: primeiramente, como «matéria-prima»
para a representação estética que, passada ou presente, se transforma
nesta apresentação. Esta é a historicidade do material conceptual,
linguístico e sensível que a tradição transmite aos artistas e com o
qual ou contra o qual têm de trabalhar; em segundo lugar, como o
campo de possibilidades concretamente disponíveis de luta e
libertação; em terceiro lugar, como a posição específica da arte na
divisão social do trabalho, especialmente na separação do trabalho
intelectual e manual, mediante a qual a actividade artística e, em
grande medida, também a recepção da arte se tornam privilégio de
uma «elite» afastada do processo material de produção.
O carácter de classe da arte consiste apenas nestas limitações
objectivas da sua autonomia. O facto de o artista pertencer a um
grupo privilegiado não nega nem a verdade nem a qualidade estética
da sua obra. O que é verdade para «os clássicos do socialismo»
também é verdade para os grandes artistas: irrompem através das
limitações de classe da sua família, das suas origens, do seu
ambiente. A teoria marxista não é investigação da família. O
carácter progressista da arte, a sua contribuição para a luta pela
libertação não se pode medir a partir das origens do artista nem pelo
horizonte ideológico da sua classe. Tão pouco pode ser determinado
pela presença (ou ausência) da classe oprimida nas suas obras. Os
critérios do carácter progressista

28
A DIMENSÃO ESTÉTICA

da arte são dados apenas na própria obra como um todo: no que diz e
no modo como diz.
Neste sentido, toda a arte é “l ’artpour Vart” apenas na medida em
que a forma estética revela dimensões da realidade interditas e
reprimidas: aspectos da emancipação. A poesia de Mallarmé é um
exemplo extremo; os seus poemas evocam modos de percepção,
audição, gestos - uma festa de sensualidade que destrói a experiência
de todos os dias e antecipa um princípio de realidade, uma
sensibilidade, radicalmente diferentes.
O grau a que a distância e o afastamento da práxis constituem o
valor emancipatório da arte torna-se particularmente claro nas obras
literárias que parecem fechar- -se rigidamente contra tal práxis. Walter
Benjamin rastreou isso nas obras de Poe, Baudelaire, Proust e Valéry.
Elas exprimem uma «consciência de crise» (Krisenbewusstsein): um
prazer na decadência, na destruição, na beleza do mal; uma exaltação
do associai, do anómico - a rebelião secreta da burguesia contra a sua
própria classe. Benjamin escreve sobre Baudelaire:

Parece irrelevante atribuir à sua obra uma posição nos mais


avançados baluartes da luta humana pela libertação. Desde o
princípio, parece muito mais prometedor segui-lo nas maquinações
em que, sem dúvida, se sente à vontade: no campo inimigo. Estas
maquinações são uma bênção para o inimigo apenas nos casos mais
raros. Baudelaire foi um agente secreto, um agente do
descontentamento secreto da sua classe com as suas regras
próprias. Quem confrontar Baudelaire com esta classe obtém mais
dele do que aquele que o rejeitar como não interessante, de um
ponto de vista proletário ( ).

29
HERBERT MARCUSE

O protesto «secreto» desta literatura esotérica reside no ingresso


das forças erótico-destrutivas primárias que destroem o universo
normal da comunicação e do comportamento. A sua verdadeira
natureza é associai, constituindo uma rebelião subterrânea contra a
ordem social, pois esta literatura revela o domínio de Eros e
Thanatos para além de todo o controlo social, invoca as
necessidades e as satisfações que são essencialmente destrutivas.
Em termos da práxis política, esta literatura permanece elitista e
decadente. Não contribui em nada para a luta pela libertação -
excepto ao desvendar as zonas interditas da natureza e da
sociedade em que mesmo a morte e o diabo se incluem como
aliados na recusa de se submeterem à lei e à ordem de repressão.
Esta literatura é uma das formas históricas de transcendência
estética crítica. A arte não pode abolir a divisão social do trabalho
que veda aos explorados o acesso a esta dimensão, mas também
não se pode “popularizar”, sem tornar inofensivo ou ocultar todo o
âmbito da emancipação.

30
Capítulo II

A separação da arte do processo da produção material deu- -lhe


a possibilidade de desmistificar a realidade reproduzida neste
processo. A arte desafia o monopólio da realidade que o existente
possui e fá-lo criando um mundo fictício que, no entanto, é mais
«real do que a própria realidade» (14).
Atribuir as qualidades críticas, autônomas da arte à forma
estética é colocá-las fora da literatura de tendência, fora do
domínio da práxis e da produção. A arte tem a sua própria
linguagem e ilumina a realidade através desta outra linguagem.
Além disso, a arte tem a sua própria dimensão de afirmação e
negação, uma dimensão que não se pode ordenar relativamente ao
processo social de produção.
Sem dúvida, é possível transferir a acção de Hamlet ou de
Ifigênia do mundo palaciano das classes superiores para o mundo
da produção material; também se pode mudar o enquadramento
histórico e modernizar a intriga de Antígona\ até os grandes temas
da literatura clássica e burguesa podem ser representados por
personagens da esfera da produção material falando uma
linguagem actual (Gerhart Hauptmann em Os Tecelões). Mas esta
tradução tem de estar sujeita à estilização estética, caso queira
mediar a verdade que abala

31
HERBERT MARCUSE

(e compreende) a realidade: deve ser transformada num


romance, numa peça ou numa história em que cada frase tem o
seu próprio ritmo, o seu próprio peso. Nesta estilização, a obra
deixa que se manifeste o universal em todo o particular social, o
elemento indispensavelmente subjectivo em todo o objectivo, o
que permanece em tudo o que é revogável. A revolução
encontra os seus limites e resíduos nesta permanência que é
preservada na arte - preservada não como uma posse, não como
um pedaço de natureza inalterável, não como uma recordação
de algo que de contrário seria reprimido: recordação de uma
vida entre a ilusão e a realidade, entre a falsidade e a verdade,
entre a felicidade e a morte.
O denominador social específico, «datado» numa obra de
arte e ultrapassado pelo desenvolvimento social, é o milieu, o
mundo da vida dos protagonistas. É precisamente este mundo
da vida que é transcendido pelos protagonistas - tal como os
príncipes de Shakespeare e de Racine transcendem o mundo da
corte do absolutismo, tal como os burgueses de Stendhal
transcendem o mundo burguês, os pobres de Brecht o mundo
do proletariado. Esta transcendência ocorre na colisão com o
seu mundo da vida, através de acontecimentos que aparecem no
contexto de condições sociais particulares, enquanto revela ao
mesmo tempo forças não atribuíveis a essas condições
específicas. Humilhados e Ofendidos de Dostoievsky, Os
Miseráveis de Victor Hugo sofrem não só a injustiça de uma
determinada sociedade de classes como estão a favor da
humanidade e contra a desumanidade de todos os tempos. O
universal que aparece no seu destino está para lá da sociedade
de classes. De facto, esta é em si mesma parte de um mundo em
que a natureza faz explodir a

32
A DIMENSÃO ESTÉTICA

coesão social. Eros e Thanatos afirmam o seu próprio poder dentro


e contra a luta de classes. Evidentemente, a luta de classes nem
sempre é «responsável» pelo facto de os «amantes não ficarem
juntos» (l5). A convergência da realização e da morte preserva a sua
verdadeira força apesar de toda a exaltação romântica e de toda a
explicação sociológica. O inexorável enredamento humano na
natureza conserva a sua própria dinâmica nas relações sociais
existentes e cria a sua própria dimensão metassocial.
A grande literatura conhece a culpa inocente, que encontra a sua
primeira expressão autêntica em Rei Édipo. Aqui está o domínio do
que é mutável e do que não muda. Evidentemente, há sociedades
em que as pessoas já não acreditam em oráculos e talvez haja
sociedades em que o incesto não é tabu, mas é difícil imaginar uma
sociedade que tenha abolido aquilo a que chamamos a sorte ou o
destino, o encontro nas encruzilhadas, o encontro dos amantes, e
também o encontro com o inferno. Mesmo num sistema totalitário
tecnicamente quase perfeito, só as formas do destino mudariam. As
máquinas operariam não só como maquinismos de controlo, mas
também como maquinismos do destino que continuariam a mostrar
a sua força nos resíduos da natureza ainda por conquistar. A
natureza inteiramente controlada privaria as máquinas da sua
matéria- -prima, da sua substância, de cuja objectividade e
resistência dependem.
A dimensão metassocial é, em grande parte, racionalizada na
literatura burguesa; a catástrofe ocorre na confrontação entre o
indivíduo e a sociedade. No entanto, o conteúdo social permanece
secundário em relação ao destino dos indivíduos.

33
HERBERT MARCUSE

Balzac (o exemplo favorito) pintará realmente na Comédia


Humana a dinâmica das finanças e do capitalismo empresarial,
apesar dos seus próprios preconceitos e preferências políticas
«reaccionárias»? Certamente, a sociedade do seu tempo é
retratada na sua obra, mas a forma estética e transformou a
dinâmica social e fez dela a história de determinados indivíduos -
Lucien de Rubempré, Nucingen, Vautrin. Estes agem e sofrem na
sociedade do seu tempo - a sociedade pós-napoleónica -, são, na
verdade, representantes dessa sociedade. No entanto, a qualidade
estética da Comédia Humana e a sua verdade reside na
individualização, através da qual o universal no seu destino,
transcendendo a função social dos indivíduos, se torna forma.
A vida e a morte dos indivíduos: mesmo quando o romance ou
a peça articulam a luta da burguesia contra a aristocracia e o
incremento das liberdades burguesas (Emilia Galotti de Lessing,
Egmont de Goethe, o Sturm und Drang, Intriga e Amor de
Schiller), é o destino pessoal que dá forma - o destino dos
protagonistas, não como participantes na luta de classes, mas
como amantes, vilões, tolos, e assim por diante.
No Werther de Goethe, o suicídio é duplamente determinado.
O amante descobre a impossibilidade do amor (uma tragédia que
não é meramente imposta pela moralidade burguesa
predominante), e o burguês sofre o desprezo que lhe é votado pela
nobreza. Os dois motivos estarão relacionados na estrutura da
obra? O conteúdo de classe está nitidamente articulado: Emilia
Galotti de Lessing, um drama sobre a burguesia militante,
encontra-se aberto na mesa do quarto em que Werther se suicida.
Mas, a obra como um

34
A DIMENSÃO ESTÉTICA

todo é a história dos amantes e do seu mundo e os elementos


burgueses não passam de acidentais.
Esta privatização do social, a interiorização da realidade, a
idealização do amor e da morte são muitas vezes estigmatizados
pela estética marxista como ideologia conformista e repressiva.
Condena a transformação dos conflitos sociais em destino
pessoal, a abstracção da situação de classe, o carácter elitista dos
problemas, a autonomia ilusória dos protagonistas.
Tal condenação ignora o potencial crítico que se afirma
precisamente nesta forma «sublimada». Dois mundos colidem,
possuindo cada qual a sua própria verdade. A ficção cria a sua
própria realidade que permanece válida mesmo quando negada
pela realidade estabelecida. O bem e o mal dos indivíduos
confronta-se com o bem e o mal social. Mesmo nas obras mais
políticas, esta confrontação não é puramente política; ou antes, as
confrontações sociais integram-se no jogo de forças metassociais
entre um indivíduo e outro, entre homem e mulher, entre a
humanidade e a natureza. A mudança no modo de produção não
alteraria esta dinâmica. Uma sociedade livre não podia
«socializar» estas forças, embora pudesse emancipar os
indivíduos da sua cega sujeição em relação às mesmas.
A história projecta a imagem de um novo mundo de
libertação. O capitalismo avançado revelou autênticas
possibilidades de libertação, que ultrapassam todos os conceitos
tradicionais. Estas possibilidades suscitaram novamente a ideia
do fim da arte. As possibilidades radicais de liberdade
(concretizadas no potencial emancipatório do progresso técnico)
parecem tornar obsoleta a função

35
HERBERT MARCUSE

tradicional da arte, ou, pelo menos, aboli-la como um ramo


especial da divisão do trabalho, através da redução da separação
entre o trabalho mental e manual. A aparência do belo e da
realização desaparecería ao deixar de ser recusada pela sociedade.
Numa sociedade livre, as aparências tornam- -se aspectos do real.
Mesmo agora na sociedade estabelecida, a acusação e a promessa
preservadas na arte perdem o seu carácter irreal e utópico na
medida em que informam a estratégia de movimentos
antagônicos (como aconteceu na década de sessenta). Embora o
façam de forma imprecisa e tosca, indicam mesmo assim a
diferença qualitativa de períodos anteriores. Esta diferença
qualitativa aparece hoje no protesto contra a definição da vida
como trabalho, na luta contra toda a organização do trabalho
própria do capitalismo e do socialismo de estado (cadeia de
montagem, o sistema Taylor, a hierarquia), na luta pelo fim do
patriarcado, pela reconstrução do ambiente natural destruído e
pelo desenvolvimento e criação de uma nova moralidade e de
uma nova sensibilidade.
A realização destes objectivos é incompatível não só com um
capitalismo drasticamente reorganizado, mas também com uma
sociedade socialista competindo com o capitalismo nos mesmos
termos. As possibilidades que hoje se revelam são mais as de uma
sociedade organizada sob um novo princípio da realidade: a
existência deixaria de ser determinada pela necessidade do
trabalho e do repouso alienados e vitalícios, os seres humanos
deixariam de estar sujeitos aos instrumentos do seu trabalho,
deixariam de ser dominados pelas tarefas que lhes são impostas.
Todo o sistema de repressão e renúncia material e ideológica se
tornaria absurdo.

36
A DIMENSÃO ESTÉTICA

c Mas, mesmo uma tal sociedade não significaria o fim da arte,


a superação da tragédia, a reconciliação do dionisíaco e do
apolíneo. A arte não pode separar-se das suas origens. Dá
testemunho dos limites internos, ‘naturais’ da liberdade, da
plenitude. Em toda a sua idealidade, a arte testemunha a
verdade do materialismo dialéctico - a insuperabilidade da
oposição entre sujeito e objecto, homem e natureza, indivíduo e
indivíduo.
Em virtude das suas verdades trans-históricas, universais, a
arte apela para uma consciência que não é apenas a de uma
classe particular, mas a dos seres humanos enquanto «seres
genéricos», desenvolvendo todas as suas faculdades de
valorização da vida. Quem é o sujeito desta consciência?
Para a estética marxista, este sujeito é o proletariado que,
como classe particular, é a classe universal. A ênfase está no
particular: o proletariado é a única classe na sociedade
capitalista que não tem interesse pela preservação da sociedade
existente. O proletariado é livre em relação aos valores desta
sociedade e, por conseguinte, livre para a libertação de toda a
humanidade. Nesse caso, seria também no proletariado que a
arte seria superada, sem que lhe fosse anulado o seu conteúdo,
que transcende a práxis social. Segundo esta concepção, a
consciência do proletariado seria também a consciência que
valida a verdade da arte. Esta teoria corresponde a uma situação
que já não é (ou ainda não é) a que prevalece nos países
capitalistas avançados.
Lucien Goldmann viu que o problematentral da estética
marxista se situa no período do capitalismo avançado. Se o
proletariado não é a negação da sociedade existente, mas se
encontra, em grande parte, integrado nela, então, a estética

37
HERBERT MARCUSE

marxista confronta-se com uma situação em que «as formas


autênticas das criações culturais» existem, «embora não
possa, religar-se com a a consciência - mesmo potencial - de
um determinado grupo social». A questão decisiva é, pois:
como «se estabelece o nexo entre as estruturas econômicas e
as manifestações literárias numa sociedade onde tal nexo
ocorre fora da consciência colectiva», isto é, sem se basear
numa consciência de classe progressista, sem exprimir tal
consciência? (16)
Adorno respondeu: em tal situação, a autonomia da arte
afirma-se de uma forma extrema - como distanciamento
intransigente. Tanto para a consciência integrada como para a
consciência marxista reificada, as obras alienadas podem
muito bem surgir como elitistas ou como sintomas de
decadência. Mas são, no entanto, formas autênticas da
contradição, acusando a totalidade da sociedade que tudo
arrasta, mesmo as obras alienantes, para o seu campo de
acção. Isto não invalida a sua verdade nem nega a sua
promessa. Certamente, as «estruturas econômicas» afirmam­
-se a si próprias. Determinam o valor de uso (e, com ele, o
valor de troca) das obras, mas não o que elas são e o que
dizem.
O texto de Goldmann refere-se a uma condição histórica
específica - a integração do proletariado sob o capitalismo
monopolista avançado. Mas, mesmo que o proletariado não
estivesse integrado, a sua consciência de classe não seria a
força principal ou a única que podia preservar e reconstituir a
verdade da arte. Se alguma arte «existe» para qualquer
consciência colectiva, é a dos indivíduos unidos na sua
consciência da necessidade universal de libertação - qualquer

38
A DIMENSÃO ESTÉTICA

que seja a sua posição de classe. A dedicatória de Nietzsche no


Zaratustra «Für Alie und Keinen» (Para Todos e Ninguém)
também se pode aplicar à verdade da arte.
O capitalismo avançado constitui uma sociedade de classes
como um universo administrado por uma classe monopolista
corrupta e poderosamente armada. Em larga medida, esta
totalidade inclui também as necessidades socialmente
coordenadas e os interesses da classe trabalhadora. Se é de algum
modo significativo falar de uma base de massas para a arte na
sociedade capitalista, esta só podia referir-se à ‘arte pop’ e aos
‘bestsellers’. Presentemente, o sujeito a que a verdadeira arte
apela é socialmente anônimo; não coincide com o sujeito
potencial da prática revolucionária. E quanto mais as classes
exploradas, «o povo», sucumbem aos poderes existentes, tanto
mais a arte se distanciará do «povo». A arte pode preservar a sua
verdade, pode tornar consciente a necessidade de mudança, mas
apenas quando obedece à sua própria lei contra a da realidade.
Brecht, que não era exactamente um partidário da autonomia da
arte, escreve: «Uma obra que não mostre soberania e que não
outorgue ao público soberania perante a realidade de modo
nenhum é uma obra de arte» (17).
Mas, o que na arte parece distante da práxis da mudança deve
ser reconhecido como um elemento necessário numa práxis
futura de libertação - como a «ciência do belo, a ciência da
redenção e da realização». A arte não pode mudar o mundo, mas
pode contribuir para a mudança da consciência e impulsos dos
homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo. O movimento
dos anos sessenta levou a uma transformação radical da
subjectividade e da natureza, da

39
HERBERT MARCUSE

sensibilidade, da imaginação e da razão. Abriu uma nova visão


das coisas, permitiu o ingresso da superstrutura na base. Hoje,
o movimento está enclausurado, isolado, na defensiva e uma
burocracia esquerdista embaraçada apressa-se a condenar o
movimento como elitismo estético, impotente. Na verdade,
prefere-se a regressão segura à figura paternal colectiva de um
proletariado que não está (compreensi- velmente) muito
interessado nestes problemas. Insiste-se no empenhamento da
arte njima Weltanschauung proletária orientada para «o povo».
A arte revolucionária deve, por suposição, falar a «linguagem
do povo». Brecht escreveu nos anos trinta: «Só existe um
aliado contra o barbarismo crescente, são as pessoas que sob
ele sofrem. Só delas podemos esperar alguma coisa. Por isso, o
escritor deve virar- -se para o povo». E é mais necessário do
que nunca falar a sua linguagemC8). Sartre compartilha estes
sentimentos: o intelectual deve «recuperar tão depressa quanto
possível o lugar que o aguarda entre o povo» (l9)/'
Mas, quem é «o povo»? Brecht dá uma definição muito
rígida: «as pessoas que não só participam totalmente no
desenvolvimento, mas na realidade o usurpam, o forçam, o
determinam. Temos diante dos olhos um povo que faz a história,
que transforma o mundo e se transforma a si mesmo, v Temos
diante dos nossos olhos um povo lutador...» (20). Mas, nos países
capitalistas avançados, esta «parte do povo», não é «o povo»,
não é a grande massa da população dependente. Pelo contrário,
«o povo», tal como Brecht o define, seria uma minoria de
pessoas, opostas a esta massa, uma minoria militante. Se se parte
do princípio de que a arte deve estar comprometida não só com
esta minoria mas com o povo,

40
A DIMENSÃO ESTÉTICA

então, não se percebe por que razão o escritor deve falar a sua
linguagem - não seria ainda a linguagem da libertação.
É característico que os textos mencionados comprometam a
arte com «o povo», que «o povo» apareça como o único aliado
contra o barbarismo. Tanto na estética marxista como na teoria
e propaganda da Nova Esquerda, há uma forte tendência para
falar do «povo» em vez do proletariado. Esta tendência exprime
o facto de, sob o capitalismo monopolista, a população
explorada ser muito maior do que o «proletariado» e de
compreender uma grande quantidade de estratos da classe
média anteriormente independentes. Se «o povo» é incorporado
no sistema prevalecente de necessidades, então só a ruptura
com este sistema pode transformar «o povo» num aliado contra
o barbarismo. Antes de tal, o escritor não pode tomar
simplesmente um «lugar entre o povo», que previamente lhe
estava reservado. Os escritores devem, antes de mais, criar esse
lugar, e isto é um processo que talvez exija que se oponham ao
povo, que talvez os impeça de falar a sua linguagem. Neste
sentido, hoje, a palavra «elitismo» pode bem ter um conteúdo
radical. Trabalhar para a radicalização da consciência e das
necessidades significa tomar o material explícito e consciente
bem como a discrepância ideológica entre o escritor e «o povo»,
em vez de a obscurecer e camuflar. A arte revolucionária pode
realmente tornar-se «O Inimigo do Povo».
A tese básica de que a arte deve ser um factor de
transformação do mundo pode facilmente tornar-se no
contrário, se a tensão entre a arte e a práxis radical diminuir de
modo a que a arte perca a sua própria dimensão de

41
HERBERT MARCUSE

transformação. Um texto de Brecht exprime muito claramente


esta dialéctica (2I). O próprio título revela o que acontece
quando as forças antagônicas da arte e da práxis se
harmonizam. (O texto intitula-se: «A Arte de Representar o
Mundo de Modo a Dominá-lo».) Mas, mostrar o mundo
transformado como dominado significa mostrar a continuidade
na mudança, significa obscurecer a diferença qualitativa entre o
novo e o velho. O objectivo não é o mundo dominado, mas o
mundo libertado. Como que reconhecendo este facto, o texto de
Brecht começa: «As pessoas que querem mostrar o mundo
como um possível objecto de dominação são aconselhadas à
partida a não falar de arte, a não reconhecer as leis da arte, a não
aspirar à arte.» Porque não? Será porque não diz respeito à arte
retratar o mundo como objecto possível de dominação? A
resposta de Brecht é: porque a arte é «um poder equipado com
instituições e especialistas eruditos que só relutantemente
aceitariam algumas das novas tendências. A arte não pode ir
mais longe sem deixar de ser arte». No entanto, diz Brecht, «os
nossos filósofos» não precisam de renunciar por completo ao
uso dos serviços da arte, «porque será sem dúvida, uma arte de
representar o mundo de forma a dominá-lo». A tensão essencial
entre a arte e a práxis é assim resolvida através do jogo
magistral sobre o duplo significado da «arte»: como forma
estética e como técnica.
A necessidade da luta política foi, desde o princípio, um
pressuposto da crítica da estética marxista aqui levada a cabo.
E um truismo que esta luta deve ser acompanhada por uma
mudança de consciência. Mas, deve lembrar-se que esta
mudança é mais do que o desenvolvimento da consciência

42
A DIMENSÃO ESTÉTICA

política - que aponta para um novo «sistema de necessidades».


Tal sistema incluiría uma sensibilidade, imaginação e razão
emancipadas do domínio da exploração. Esta emancipação e as
vias que a ela conduzem, subtraem-se à propaganda. Não são
traduzíveis de forma adequada para a linguagem da estratégia
política e econômica. A arte é uma força produtiva
qualitativamente diferente do trabalho; as suas qualidades
essencialmente subjectivas afirmam-se contra a dura
objectividade da luta de classes. O escritor, que, na sua obra, se
identifica com o proletariado, continua a ser marginal - por
muito que renuncie à forma estética a favor da expressão e da
comunicação directa. Continua a ser marginal, não por causa da
sua origem e educação não- -proletária, do seu afastamento do
processo de produção material, do seu «elitismo», mas devido à
transcendência essencial da arte que torna o conflito entre a arte
e a práxis política inevitável. O surrealismo, no seu período
revolucionário, atestou este conflito inerente entre a arte e o
realismo político. A possibilidade de uma aliança entre «o
povo» e a arte pressupõe que os homens e as mulheres
administrados pelo capitalismo cosmopolita desaprendam a
linguagem, os conceitos e as imagens desta administração, que
experimentem a dimensão da mudança qualitativa, que
reivindiquem a sua subjectividade, a sua interioridade.;;
O escárnio da interioridade, da ‘dissecação da alma’ na
literatura, que Brecht apontava como sinal da consciência
revolucionária, não está muito afastado do desprezo dos
capitalistas perante uma dimensão não lucrativa da vida. Se a
subjectividade é uma aquisição da era burguesa, é pelo menos
uma força antagônica na sociedade capitalista.

43
HERBERT MARCUSE

Referi que o mesmo se aplica à crítica do individualismo da


literatura burguesa, oferecida pela estética marxista. Na verdade, o
conceito do indivíduo burguês tornou-se o contraponto ideológico
do sujeito econômico competitivo e do chefe de família autoritário.
Sem dúvida, o conceito do indivíduo que se desenvolve livremente
em solidariedade com outros só pode tornar-se realidade numa
sociedade socialista. Mas, o período fascista e o capitalismo
monopolista mudaram decididamente o valor político destes
conceitos. A «fuga para a interioridade» e a insistência numa esfera
privada podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que
administra todas as dimensões da existência humana. A
interioridade e a subjectividade talvez venham a tornar-se o espaço
interior e exterior da subversão da experiência, da emergência de
outro universo. Hoje, a rejeição do indivíduo como um conceito
«burguês» lembra e pressagia actuações fascistas.AA solidariedade
e a comunidade não significam a absorção do indivíduo.
Originam-se antes na decisão individual autônoma; unem
indivíduos livremente associados, e não massas.11
Se a subversão da experiência própria da arte e a rebelião contra
o princípio da realidade estabelecida contida nesta subversão não
puder ser traduzida para a práxis política e se o potencial radical da
arte reside precisamente nesta transcendência, então levanta-se a
questão: como pode este potencial encontrar representação válida
numa obra de arte e como pode ela tornar-se um factor de
transformação da consciência?

44
Capítulo III

Como pode a arte falar a linguagem de uma experiência


radicalmente diferente, como pode ela representar a diferença
qualitativa? Como pode a arte invocar imagens e necessidades de
libertação que penetram na profunda dimensão da existência humana,
como pode ela articular a experiência não só de uma classe particular,
mas de todos os oprimidos?
A diferença qualitativa da arte não se constitui a si própria na
selecção de um campo determinado, onde a arte pode preservar a sua
autonomia. Nem o faria para procurar uma área cultural ainda não
ocupada pela totalidade existente. Têm-se feito tentativas para afirmar
que a pornografia e a obscenidade são campos de comunicação
não-conformista. Mas, essas áreas privilegiadas não existem. A
obscenidade e a pornografia há muito que foram integradas. Como
mercadorias mediatizam também o existente.
A verdade da arte também não é apenas uma questão de estilo. Há
na arte uma autonomia abstracta, ilusória: invenção arbitrária privada
de algo novo, uma técnica que permanece estranha ao conteúdo ou
técnica sem conteúdo, forma sem

45
HERBERT MARCUSE

matéria. Tal autonomia vazia perde a realidade própria à arte, que


paga tributo ao que existe, mesmo na sua negação. Nos seus
verdadeiros elementos (palavra, cor, tom), a arte compartilha-o com
a sociedade existente. E por muito que a arte subverta os
significados normais das palavras e das imagens, a transfiguração é
ainda a de um dado material. É também esse o caso quando se
destroem as palavras, quando se inventam outras novas - de outro
modo, toda a comunicação seria cortada. Esta limitação da
autonomia estética é a condição sob a qual a arte pode tornar-se um
factor social.
Neste sentido, a arte faz inevitavelmente parte do que existe e só
como parte do que existe fala contra o que existe. Esta contradição é
preservada e resolvida (aufgehoben) na forma estética, que dá ao
conteúdo familiar e à experiência familiar o poder de afastamento. E
essa contradição que decide sobre a qualidade da obra de arte, da sua
verdade.
A forma estética não se opõe ao conteúdo, nem mesmo
dialecticamente. Na obra de arte, a forma torna-se conteúdo e
vice-versa.

O preço de ser artista é experimentar o que os não—artistas


chamam forma como conteúdo, como «a verdadeira coisa» (die
Sache selbst). Então pertence-se de qualquer modo a um mundo
invertido; porque agora o conteúdo, incluindo a nossa própria
vida, toma-se uma coisa meramente formal. (22)

Uma peça, um romance tornam-se obras literárias em virtude da


forma estética que incorpora em si, que figura, metamorfoseando, «a
matéria». Esta última pode ser o «ponto de partida da transformação
estética» (23). Talvez contenha o

46
A DIMENSÃO ESTÉTICA

«motivo» desta transformação, talvez seja determinado pela classe -


mas, na obra, este «assunto», despido da sua imediatidade, torna-se
algo qualitativamente diferente, parte de outra realidade. Mesmo onde
um fragmento da realidade ficou por transformar (por exemplo, frases
de um discurso atribuído a Robespierre), o conteúdo é mudado pela
obra como um todo; o seu sentido pode até tornar-se no oposto.
+A «tirania da forma»: numa autêntica obra prevalece a necessidade
de não se poder mudar uma linha, um som (que, em última análise,
não existe). Esta necessidade interior (a qualidade que distingue a obra
autêntica das inautênticas) é, na verdade, tirania porquanto suprime a
imediatidade da expressão. Mas, o que aqui é suprimido é a falsa
imediatidade: falsa na medida em que arrasta a realidade mistificada
irreflectida.
Em defesa da forma estética, Brecht escreve em 1921:

Observo que começo a tornar-me num clássico. Todos aqueles


esforços extremos [do expressionismo] para vomitar por todos os
meios certo conteúdo (banal ou, em breve, banal) ! Acusam-se os
clássicos
1 Jdaz24\
suaJsujeição
3 à forma e esquece-
A -se que
A é a forma queA
se submete. ( )

Brecht relaciona a destruição da forma com a banalização. Na


realidade, esta conexão não faz justiça ao expressionismo, muito do
qual de nenhum modo é banal. Mas o veredicto de Brecht relembra a
relação essencial entre a forma estética e o efeito de distanciamento: a
expressão deliberadamente privada da forma «banaliza», porquanto
suprime a oposição ao universo estabelecido do discurso - uma
oposição que se cristaliza na forma estética.

47
HERBERT MARCUSE

A submissão à forma estética é o veículo da sublimação


não-conformista, que acompanha a dessublimação que já referi. A sua
unidade constitui-se na obra. O ego e o id, os objectivos e emoções
instintivos, a racionalidade e a imaginação são removidos da sua
socialização por uma sociedade repressiva e lutam pela autonomia -
embora num mundo fictício. Mas, o encontro com o mundo fictício
reestrutura a consciência e torna sensível uma experiência
contra-societal. A sublimação estética liberta e valida assim os sonhos
de felicidade e tristeza da infância e da idade adulta.
Não é só a poesia e o drama, mas também o romance realista, que
deve transformar a realidade, a qual constitui o seu material, de forma
a deixar que ela se manifeste na sua essência ordenada pela arte.
Qualquer realidade histórica pode transformar-se no «palco» de tal
mimese. A única exigência é que deve ser estilizada, submetida à
«formação» estética. E é precisamente esta estilização que permite a
transvalorização das normas do princípio da realidade estabelecida -
dessublimação na base da sublimação original, dissolução dos tabus
sociais, da dominação social de Eros e de Thanatos. Homens e
mulheres falam e agem com menos inibição que sob a repressão da
vida quotidiana; têm menos vergonha (mas, também menos
à-vontade) no seu amor e no seu ódio; são leais às suas paixões
mesmo quando destruídos por elas. Mas também são mais
conscientes, mais reflectidos, mais adoráveis e mais desprezíveis. E
os objectos do seu mundo são mais transparentes, mais independentes
e constrangedores.
A mimese é distanciamento, subversão da consciência. A
experiência é intensificada até ao ponto de ruptura; o mundo aparece
do mesmo modo que a Lear e Antônio, a Berenice, a

48
A DIMENSÃO ESTÉTICA

Michael Kohlhaas, a Woyzeck e aos amantes de todos os tempos.


Experimentam o mundo desmistificado. A intensificação da
percepção pode ir ao ponto de distorcer as coisas de modo que o
indizível é dito, o invisível se toma visível e o insuportável
explode. Assim, a transformação estética transforma-se em
denúncia - mas também em celebração do que resiste à injustiça e
ao terror, e do que ainda se pode salvar.
A mimese ocorre na literatura por meio da linguagem;' esta
torna-se mais tensa ou mais solta, forçada a produzir pensamentos
profundos de outro modo obscurecidos. A prosa é sujeita ao seu
próprio ritmo. Diz-se aquilo que habitualmente se cala, não se diz o
que habitualmente se repete ocultando o que é essencial. A
reestruturação toma lugar através da concentração, do exagero, da
ênfase sobre o essencial, da reordenação de factos. O portador
destas qualidades não é a frase particular, nem as suas palavras,
nem a sua sintaxe; o portador é o todo. Só o todo é que concede a
estes elementos o seu significado e função estética.
A mimese crítica encontra expressão nas formas mais variadas.
Encontra-se tanto na linguagem de Brecht, formada pela
imediatidade da necessidade de mudança, como na linguagem
esquizofrenicamente diagnostica de Beckett, onde não se fala de
mudança. A denúncia está tanto na linguagem sensual, emocional,
do Werther como nas Fleurs du Mal ou na dureza de Stendhal e de
Kafka.
A denúncia não se esgota a si mesma no reconhecimento do
mal; a arte é também a promessa da libertação. Esta promessa é,
também, uma qualidade da forma estética ou, mais precisamente,
do belo como uma qualidade da forma

49
HERBERT MARCUSE

estética. A promessa é arrancada da realidade estabelecida. Conjura a


dominação do poder, a aparência (Schein) da libertação. Mas só a
aparência; naturalmente, a realização desta promessa não está dentro
das possibilidades da arte.
Será que há ou poderá haver obras autênticas em que as Antígonas
destroem finalmente os Creontes, em que os camponeses derrotam os
príncipes, em que o amor é mais forte do que a morte? Esta inversão
da história é uma ideia reguladora da arte, na lealdade mantida (até à
morte) à visão de um mundo melhor, uma visão que mesmo na
derrota permanece autêntica. Mas sem a ideia de um progresso
inexorável, contra a cega confiança numa humanidade que
eventualmente se afirmará. De outro modo, a obra de arte e a sua
pretensão de verdade seriam falsas.
Na mimese transformadora, a imagem da libertação só se
manifesta como algo quebrado pela realidade. Se a arte fosse
prometer que, no fim, o bem triunfaria sobre o mal, tal promessa
seria refutada pela verdade histórica. Na realidade, é o mal que
triunfa, e apenas existem ilhas de bem onde nos podemos refugiar
durante algum tempo. As verdadeiras obras de arte têm disso
consciência; rejeitam as promessas fáceis; recusam o aliviante final
feliz. Devem rejeitá-lo, pois o reino da liberdade é inabarcável pela
mimese, esta não consegue dar-lhe forma. O final feliz é «o
contrário» de arte. Onde, no entanto, aparece, como em Shakespeare,
como na Ifigênia de Goethe, como no final do Fígaro, como em
Falstajf, como em Proust, parece ser negado pela obra no seu
conjunto. No Faustoo final feliz acontece pura e simplesmente no
paraíso e a grande comédia não se pode libertar da tragédia que tenta
banir. A mimese persiste como representação da realidade,
A DIMENSÃO ESTETICA

representação transformadora. Esta sujeição resiste à qualidade


utópica da arte: a infelicidade e a servidão ainda se reflectem na
mais pura imagem da felicidade e da liberdade. Contêm o protesto
contra a realidade em que são destruídos.
* Na realidade, a questão não está no final feliz', o que importa é a
obra como um todo. Ela preserva a lembrança da tristeza passada.
Esta pode ser superada (anfgehoben) na resolução do conflito e é
como superada que permanece. Como também permanece na
angústia perante o futuro. Um exemplo de Ibsen: o mais «burguês»
dos grandes dramaturgos faz A Dama do Mar voltar ao seu
casamento por sua própria decisão; afasta-se do “Estrangeiro ” com
quem viveu a aventura do mar e procura então realizar-se no seio da
família. Mas, a peça no seu conjunto contraria essa solução. A
liberdade de Ellida tem o seu limite na impossibilidade de desfazer
o passado. Tal impossibilidade nada tem a ver com a sociedade de
classes; baseia-se antes na irreversibilidade do tempo, na
objectividade inconquistável e na legalidade
da natureza.__________________
A arte não pode cumprir a sua promessa e a realidade não
oferece promessas, mas apenas possibilidades. Voltamos ao
conceito tradicional da arte como ilusão (Schein): embora talvez
seja mais bela, não é a realidade. E um facto, mas a estética
burguesa sempre entendeu a aparência (Schein) como a
manifestação da verdade, uma verdade própria da arte e despojou a
realidade concreta da sua pretensão à legitimação total. Assim, há
duas realidades e dois tipos de verdade. A cognição e a experiência
são antagonicamente divididas, pois a arte como ilusão (Schein) tem
um conteúdo e uma função

51
HERBERT MARCUSE
cognitivos. A verdade única da arte rompe com a realidade de todos
os dias e das férias, que bloqueia toda a dimensão da sociedade e da
natureza. A arte é a transcendência para esta dimensão onde a sua
autonomia se constitui como autonomia na contradição. O combate
contra esta transcendência, na qual se impõe a autonomia histórica da
arte - e com isso o seu protesto contra a sociedade existente - entrega
a arte àquela realidade para cuja transformação devia servir. Embora
o abandono da forma estética possa proporcionar o espelho mais
imediato de uma sociedade em que se destroem, se atomizam, se
destituem das suas palavras e imagens, sujeitos e objectos, a rejeição
da transformação estética transforma tais obras em pedaços e
fragmentos da verdadeira sociedade, cuja «antiarte» pretendem ser.
A antiarte nega à partida as suas próprias intenções.
As várias fases e tendências da antiarte ou da não-arte
compartilham uma assumpção comum - a saber, que o período
moderno se caracteriza por uma desintegração da realidade, que
torna toda a forma fechada em si mesma, toda a intenção de
significado (Sinngebung) falsa, se não impossível (25). Afirma-se que
a colagem, a montagem com vários meios ou a renúncia a qualquer
mimese estética são a forma da realidade; essa forma reflectiria a
realidade destroçada que contradiría toda a formação estética. Antes,
o oposto é que acontece. Experimentamos, não a destruição de cada
todo, de toda a unidade, de todo o significado, mas antes o domínio e
o poder do todo, a unificação sobreposta, administrada. A catástrofe
não é a desintegração, mas a reprodução e a integração do que existe.
E na cultura intelectual da nossa sociedade é a forma estética que, em

52
A DIMENSÃO ESTÉTICA
virtude da sua alteridade, se pode opôr a esta integração.
Significativamente, o recente livro de Peter Weiss tem o título
Aesthetik des Widerstands (Estética da Resistência).
O esforço do artista para a superação da separação entre arte e vida
não pode ultrapassar esta separação. Wellershoff aponta o facto
decisivo: «existem diferenças sociais intransponíveis entre a fábrica
de conservas e o estúdio do artista: a fábrica de Warhol» (26); entre a
pintura gestual e os gestos “vivos” do trabalho fabril. Estas diferenças
tão pouco se podem transpor deixando acontecer as coisas (ruídos,
movimentos, conversa fiada, etc.) e incorporando-as, inalteradas,
numa determinada estrutura (por exemplo, num livro, num concerto).
A imediatidade, que significa aqui a abstracção de mediações, assim
adquirida é com isso mistificada: não aparece como o que é e o que
faz - é uma imediatidade artificial.
A libertação (Entschrdnkung) e a dessublimação que ocorrem na
antiarte renegam assim a realidade (e falsificam- -na), porque lhe
falta o poder cognitivo e incisivo da forma estética; são a mimese sem
transformação. A colagem, a montagem e a deslocação não alteram
este facto. A exibição de uma lata de sopa nada diz da vida do
trabalhador que a produziu nem da do seu consumidor. A renúncia à
forma estética não anula a diferença entre a arte e a vida - mas anula a
que existe entre essência e aparência, na qual reside a verdade da arte
e que determina o valor político da arte. A dessublimação da arte
pretende libertar a espontaneidade - tanto do artista como do receptor.
Mas assim como, na práxis radical, a espontaneidade só pode fazer
avançar o movimento de libertação como espontaneidade
mediatizada, isto é,

53
HERBERT MARCUSE

resultante da transformação da consciência - o mesmo acontece na


arte. Sem esta dupla transformação (dos sujeitos e do seu mundo), a
dessublimação da arte só pode levar o artista a tornar-se supérfluo
sem democratizar e generalizar a criatividade.
Neste sentido, a renúncia à forma estética da negação resulta na
renúncia à responsabilidade. Priva a arte da verdadeira forma em
que pode criar essa outra realidade dentro da estabelecida - o
mundo da esperança.
O programa político da abolição da forma autônoma conduz a
um «nivelamento dos graus da realidade entre a arte e a vida» e
desse modo à paralisia da força de resistência da arte. Só esta
rendição da sua condição autônoma é que permite à arte infiltrar-se
no «conjunto dos valores de uso». Este processo é ambivalente.
«Pode tão facilmente significar a degeneração da arte na cultura de
massas, comercializada, como, por outro lado, transformar-se numa
contracultura subversiva.» (27) Mas, esta última alternativa parece
duvidosa. Hoje em dia, só se concebe uma contracultura subversiva
em contradição com a indústria da arte prevalecente e a sua arte
heterónoma. Ou seja, uma verdadeira contracultura teria de insistir
na autonomia da arte, na sua própria arte autônoma.
Consequentemente, uma arte que se revoltasse contra a integração
no mercado não aparecería necessariamente como «elitista»? «Face
à dimuição do valor de uso de uma literatura completamente
comercializada, a noção anacronico-elitista do Ditchen como uma
‘arte superior’ distinta volta a assumir um carácter que é
subversivo.» (28)
A obra de arte só pode obter relevância política como

54
A DIMENSÃO ESTÉTICA
obra autônoma. A forma estética é essencial à sua função social. As
qualidades da forma negam as da sociedade repressiva - as
qualidades da sua vida, do seu trabalho, o seu amor.
A qualidade estética e a tendência política estão inerentemente
relacionadas, mas a sua unidade não é imediata. Walter Benjamin
formulou a relação interna entre tendência e qualidade na tese: «A
tendência da obra literária só pode ser politicamente correcta se
também for correcta pelos padrões literários» (29). Esta formulação
rejeita com suficiente clareza a vulgar estética marxista. Mas, não
soluciona a dificuldade implícita no conceito de «correcção» literária
de Benjamin - nomeadamente, a sua identificação da qualidade
literária e política no domínio da arte. Esta identificação harmoniza a
tensão entre forma literária e conteúdo político: a forma literária
perfeita transcende a tendência política correcta; a unidade da
tendência e da qualidade é antagônica.

55
Capítulo IV

O mundo significado na arte nunca é de modo algum apenas


o mundo concreto da realidade de todos os dias, mas também
não é um mundo de mera fantasia, ilusão, e assim por diante.
Não contém nada que também não exista na realidade concreta:
as acções, pensamentos, sentimentos e sonhos de homens e
mulheres, as suas potencialidades e as das coisas. No entanto, o
mundo de uma obra de arte é «irreal», no sentido vulgar da
palavra: é uma realidade fictícia. Mas é «irreal» não porque seja
inferior em relação à realidade existente, mas porque lhe é
superior e qualitativamente «diferente». Como mundo fictício,
como ilusão (Schein), contém mais verdade do que a realidade
de todos os dias, pois, esta última, é mistificada nas suas
instituições e relações, que fazem da necessidade uma escolha e
da alienação uma auto-realização. Só no «mundo ilusório» as
coisas parecem o que são e o que poderiam ser. Em virtude desta
verdade (cuja representação sensível é própria somente da arte),
o mundo é invertido - é a realidade concreta, o mundo vulgar
que agora aparece como realidade falsa, ilusória, fragmentada.

57
HERBERT MARCUSE

O mundo da arte como aparência da verdade, a realidade


quotidiana como ilusória, enganadora; esta tese idealista
permanece uma provocação:

... toda a esfera da realidade interior e da realidade exte­


rior empíricas se deve chamar, num sentido mais forte do
que o reservado à arte, o mundo de mera ilusão e amarga
decepção, e não mundo da realidade. A verdadeira realidade
só se encontra para lá da imediatidade da sensação e dos
objectos externos. ( )

A lógica dialéctica pode fornecer um significado e uma


justificação a estas pretensões no reino do conceito. A sua
verdade materialista assenta na análise marxista da aparência da
sociedade mercantil. Mas, na confrontação entre a arte e a
realidade, elas tornam-se ridículas. Os Auschwitz e My Lai de
todos os tempos, a tortura, a fome e a morte - poderá supor-se
que todo este mundo não passe de «mera ilusão» e «amarga
decepção»? Persistem antes como a realidade «amarga» e
«inimaginável». A arte não pode representar este sofrimento
sem o sujeitar à forma estética e assim à catarse mitigadora, à
fruição. A arte está inexoravelmente infestada com esta culpa.
No entanto, isto não liberta a arte da necessidade de evocar
repetidamente o que pode sobreviver mesmo em Auschwitz e
que talvez um dia se torne impossível. Se mesmo esta memória
houvesse de ser silenciada, então o «fim da arte» teria realmente
chegado. A autêntica arte preserva esta recordação apesar de e
contra Auschwitz; esta recordação é o solo onde a arte tem
desde sempre a sua origem: na necessidade de a imaginação
deixar aparecer o outro (possível) nesta realidade. A decepção,
a

58
A DIMENSÃO ESTÉTICA
ilusão e a aparência são qualidades da realidade dada, antes de o
serem da arte. E a mistificação não é apenas uma característica da
sociedade capitalista. A obra de arte, por outro lado, não encobre
o que ela é - revela-o.
Este Outro possível permanece fiel à história real na medida
em que é válido transcendentemente a cada situação histórica
específica. A tragédia existe sempre em todo o lado enquanto a
peça satírica a segue sempre e em toda a parte; a alegria
desaparece mais depressa do que a dor. Este conhecimento,
inexoravelmente expresso na arte, talvez abale a fé no progresso,
mas também pode manter viva outra imagem e outro objectivo da
práxis, nomeadamente, a reconstrução da sociedade e da natureza
sob o princípio do aumento do potencial humano de felicidade e
da diminuição do sofrimento. A revolução existe por amor à vida,
não à morte. Aqui se situa talvez o mais profundo parentesco
entre a arte e a revolução. A resolução de Lenine de não ouvir as
sonatas de Beethoven, que tanto admirava, atesta a verdade da
arte. O próprio Lenine o sabia - e rejeitava este conhecimento.
... muitas vezes não consigo ouvir música. Age sobre os
meus nervos. Uma pessoa gostaria de dizer tolices, de acariciar
as cabeças da gente que vive num inferno de sujidade e que, no
entanto, pode criar tal beleza. Mas, hoje em dia, não se pode
acariciar a cabeça de ninguém - a nossa mão seria mordida.
Devemos bater nas cabeças, bater impiedosamente - embora
idealmente sejamos contra toda a violência. ( )
Na verdade, a arte não se situa sob a lei da estratégia
revolucionária. Mas, talvez esta última um dia incorpore algo da
verdade inerente à arte. A expressão de Lenine «gostaria»

59
HERBERT MARCUSE
não exprime uma preferência pessoal, mas uma alternativa
histórica - uma utopia que deve ser traduzida para a realidade.
Há na arte inevitavelmente um elemento de hybris: o mundo
criado pela arte não pode ser transposto para a realidade.
Permanece um mundo «fictício», embora como tal visione e
antecipe a realidade. Assim, a arte corrige a sua idealidade: a
esperança nela apresentada não deve e nem pode permanecer um
ideal (o oculto imperativo categórico da arte!), a sua realização,
porém, permanece exterior à arte. Na realidade, a «pura
humanidade» da Ifigênia de Goethe realiza-se na cena de
despedida da peça - mas só aí, na própria peça. É absurdo
concluir que precisamos de mais Ifigénias que preguem o
evangelho da pura humanidade, e de mais reis que a aceitem.
Além disso, sabemos há muito tempo que essa pura humanidade
não redime todos os crimes e sofrimentos humanos: torna-se
antes sua vítima. Assim, ela permanece ideal: as condições para
a sua realização geram- -se na luta política contra a realidade
dada. O ideal entra nesta luta apenas com o fim, telos\ transcende
a práxis concreta. Mas, as imagens do próprio ideal mudam com
a mudança da luta política. Hoje em dia, a «pura humanidade»
(tanto quanto hoje pode ser um ideal) encontrou talvez a sua
representação literária mais verdadeira na filha surda-muda de
Mãe Coragem, que é morta por um grupo de soldados enquanto
salva a cidade com o seu tambor.
Surge agora a questão: os elementos críticos, transcendentes,
da forma estética também serão operativos nas obras de arte
predominantemente afirmativas, conformistas? E vice-versa: a
negação extrema na arte conterá ainda afirmação?

60
A DIMENSÃO ESTÉTICA
A forma estética, em virtude da qual uma obra se opõe à
realidade estabelecida é, ao mesmo tempo, uma forma de afirmação
através da catarse reconciliadora. Esta catarse, na qual a afirmação
se impõe, é um acontecimento mais ontológico do que psicológico.
Baseia-se nas qualidades específicas da própria forma, na sua
ordem não repressiva, no seu poder cognitivo, na sua imagem de
sofrimento que chegou ao fim. Mas a «solução», a reconciliação,
que a catarse oferece, também preserva o irreconciliável. A relação
interna entre os dois pólos pode ser ilustrada por dois exemplos de
extrema afirmação e extrema negação - a «Tümerlied» (Canção da
Torre) no Fausto de Goethe:

Ihr glücklichen Augen, Felizes, vós olhos


Was je ihr geseh ’n Que tudo o que
Es sei wie es wolle, vistes, Não importa
Es was doch so schón. (32) o quê, Foi um

E as últimas palavras na última cena da Caixa de


Pandora de Wedekind:

O verflucht! Oh, maldição!

Dificilmente podemos falar de sublimação e afirmação nesta


cena. No sótão nojento onde Jack o Estripador actua, o horror
atinge o auge. Será que a catarse tem ainda aqui a força de
afirmação? As últimas palavras da duquesa Geschwitz antes de
morrer («O verflucht!») são uma maldição pronunciada em nome
do amor - amor brutalmente destruído e humilhado. O grito final
é de

61
HERBERT MARCUSE
rebelião: afirma nesse total horror a impotente força do amor.
Mesmo aqui, nas mãos do assassino e ao lado do corpo
despedaçado da querida Lulu, uma mulher exprime o grito pela
eternidade da felicidade: «Mein Engel! - Lass dich noch einmal
sehen! Ich bin dir nah - in Ewigkeit!... O verflucht!» (Meu anjo! -
Deixa-me olhar-te mais uma vez! Estou junto de ti! Estarei junto de
ti - na eternidade!... Maldição!). De modo semelhante, nas peças
mais aterrorizadoras de Strindberg, onde homens e mulheres
parecem viver apenas de ódio, tédio e maldade, ressoa o grito de O
Sonho: «Es ist schade um die Menshen.» (Pobres seres humanos!).
Esta unidade de afirmação e negação prevalecerá também na
afirmação apolínea da «Canção da Torre»? O verso «não importa o
quê» invoca o sofrimento (do cantor e dos outros) que entrou na
felicidade. A felicidade tem a última palavra, mas é uma palavra de
recordação. E, no último verso, a afirmação tem um tom de tristeza
- e de desafio.
Na sua análise do poema de Goethe Überallen Gipfeln... (33),
Adorno revelou como a mais sublime forma literária preserva a
memória da dor no momento de paz:

As maiores obras líricas devem a sua dignidade precisamente


à força-com que nelas o Ego, afastando-se da alienação, invoca a
aparência da natureza. A sua pura subjectividade, que nelas
parece intacta e harmoniosa, comprova o contrário: o sofrimento
numa existência alheia ao sujeito, bem como o amor desta
existência. Na verdade, a sua harmonia nada é realmente senão o
acordo entre tal sofrimento e tal amor. Mesmo o Warte nur,
balde / ruhest du auch» (espera somente, em breve / repousarás
também) tem o gesto de consolo: a sua beleza abissal não se
pode separar

62
A DIMENSÃO ESTÉTICA

da que guarda em silêncio - a imagem de um mundo que


recusa a paz. Só porque o tom do poema simpatiza com esta
/34\
tristeza, é que pode insistir em que devia haver paz. (3 )

63
Capítulo V

A formação estética segue a lei do belo e a dialéctica da


afirmação e da negação, da consolação e da tristeza, é a dialéctica
do Belo.
A estética marxista tem rejeitado firmemente a ideia do Belo, a
categoria central da estética «burguesa». Parece realmente difícil
associar este conceito à arte revolucionária; a insistência na
conexão interna entre beleza e libertação soa snob, elitista, quando
não é risível, perante as duras realidades do combate político.
Além disso, as instituições produziram e venderam
sistematicamente beleza, sob a forma de pureza sintética e
sexualidade plástica - uma extensão dos valores de troca em
relação à dimensão estético-erótica. No entanto, em contraste com
tais realizações conformistas, a ideia da Beleza aparece
frequentemente em movimentos progressistas, como um aspecto
da reconstrução da natureza e da sociedade. Onde reside o
potencial radical do Belo?
Primeiro que tudo na qualidade erótica do Belo, que persiste ao
longo de todas as mudanças no «juízo de gosto». Como
pertencente ao domínio do Eros, o Belo representa o princípio do
prazer. Assim, revolta-se contra o predominante

65
HERBERT MARCUSE

princípio de realidade. [Na obra de arte, o Belo fala a linguagem


libertadora, invoca as imagens libertadoras da sujeição da morte e
da destruição, invoca a vontade de viver. Este é o elemento
emancipatório na afirmação estética, j
No entanto, em certa medida, o Belo parece ser «neutro». Pode
ser uma qualidade de uma tonalidade (social) tanto regressiva
como progressista. Pode falar-se da beleza de uma festa fascista
(Leni Riefensthal até filmou uma!). Mas, a neutralidade do Belo
revela-se como decepção se se reconhecer o que está suprimido
ou oculto. A directividade e imediatidade da apresentação visual
impede este reconhecimento; pode reprimir a imaginação.
Pelo contrário, a representação do fascismo torna-se possível
na literatura porque a palavra, não silenciada nem apagada pela
imagem, medeia o conhecimento e conduz à denúncia. Mas, a
mimese cognitiva só pode atingir os protagonistas e seus
acompanhantes - não o sistema que incorporam, nem o horror do
conjunto, que estão para lá do poder castigador da mimese
catártica. Assim, a estilização petrifica os senhores do terror em
monumentos que sobrevivem - blocos de memória que não se
renderão ao esquecimento.
Numa série de obras (por exemplo, nos poemas de Brecht, A
Resistível Ascenção deArturo Ui e em Terror e Miséria no
Terceiro Reich\ em Os Sequestrados de Altona de Sartre; nos
Anos de Cão de Günter Grass; na Fuga da Morte de Paul Celan),
a mimese transformadora termina no reconhecimento da infame
realidade do fascismo, na sua realização diária, por baixo da sua
manifestação histórica mundial. E este reconhecimento é um
triunfo: na forma

66
A DIMENSÃO ESTÉTICA
estética (da peça, do poema, do romance), o terror é evocado,
chamado pelo seu nome, para testemunhar, para se denunciar. E
apenas um momento de triunfo, um momento na corrente da
consciência. Mas a forma capturou-o e deu-lhe permanência. Em
virtude desta realização da mimese, estas obras contêm a
qualidade de Beleza na sua forma talvez mais sublime: como Eros
político. Na criação de uma forma estética, em que o grito sobre o
horror do fascismo não se asfixia - apesar de todas as forças de
repressão e obliteração, os instintos vitais rebelam-se contra a
fase global sado- masoquista da civilização contemporânea. O
regresso do recalcado, conseguido e preservado na obra de arte,
pode intensificar esta rebelião.
A obra de arte conseguida perpetua a memória do momento de
prazer. E a obra de arte é bela na medida em que opõe a sua
própria ordem à da realidade - a sua ordem não-repressiva, onde a
própria maldição é proferida em nome do Eros. Aparece nos
breves momentos de realização, de tranquilidade - no belo
«momento» que suspende a dinâmica incessante e a desordem, a
necessidade constante de fazer tudo o que deve ser feito para se
continuar a viver.
O Belo pertence às imagens da libertação:

Ao subir ontem pelo vale acima, vi duas jovens sentadas


numa pedra: uma atava o cabelo, a outra ajudava-a; o cabelo
dourado caía, o rosto pálido muito sério, e contudo era tão
jovem, o vestido preto, e a outra, solícita, querendo ajudar...
Por vezes, desejaria ser uma cabeça de Medusa para poder
transformar em pedra um espectáculo destes que todos
pudessem ver. As jovens levantaram-se, a bela imagem
desfez- -se; mas, enquanto desciam por entre as rochas, vi
desenhar-se
HERBERT MARCUSE
outro quadro. Os mais belos quadros, os tons mais cheios
reagrupam-se, dissolvem-se. Só uma coisa fica: uma beleza
infinita, que passa de uma forma a outra. ( )
Neste constante «reagrupar e dissolver» dos belos momentos,
cada um deles perde-se irremediavelmente quando passa. Ao
passar, invoca a chegada de mais outro momento de realização, de
paz. Assim, a lembrança desafiadora é mitigada e o Belo torna-se
parte da catarse afirmativa, reconciliadora. A arte é impotente
contra esta reconciliação com o irreconciliável: é inerente à
própria forma estética. Sob a sua lei, «mesmo o grito de
desespero... paga ainda tributo à infame afirmação» e uma
representação do mais intenso sofrimento «ainda contém o
potencial de onde se pode extrair prazer» (36). Assim, mesmo a
cena da prisão no Fausto é bela, tal como a lúcida loucura no Lenz
de Büchner ou a história de Teresa sobre a morte de sua mãe em
América de Kafka ou o Fim de Partida de Beckett.
A substância sensível do Belo é preservada na sublimação
estética. A autonomia da arte e o seu potencial político
manifestam-se no poder cognitivo e emancipatório desta
sensibilidade. Não é, portanto, surpreendente que, historicamente,
o ataque à arte autônoma se una à denúncia da sensibilidade em
nome da moralidade e da religião.
Horst Bredekamp mostrou que a mobilização sistemática da
populaça contra a emancipação da arte do rito religioso tem as
suas raízes nos movimentos ascéticos da Alta Idade Média. A arte
autônoma é condenada como sensualidade infame. A «libertação
de estímulos estético-

68
A DIMENSÃO ESTÉTICA
-sensuais», o «prurido artístico dos sentidos» são apresentados
como «condições básicas para a autonomização da arte». O
queimar pinturas e estátuas não é uma «expressão de um
fanatismo cegamente violento», mas antes uma «consequência de
um mesquinho ideal de vida burguês, anti-intelectualista;
Savonarola é o seu representante intransigente» (37). Também
Adorno diz que a «hostilidade em relação à felicidade, o
ascetismo, essa spécie de ‘ethos’ que constantemente balbucia
nomes como Lutero e Bismarck, não pretende a autonomia
estética» (38). Adorno encontra aqui traços do «mesquinho ódio
burguês ao sexo».
No meio da sensibilidade constitui-se a relação paradoxal da
arte com o tempo - paradoxal porque o que é experimentado
através da sensibilidade é presente, embora a arte não possa
mostrar o presente sem o mostrar como passado. O que se tornou
forma na obra de arte já aconteceu: é recordado, re-apresentado. A
mimese traduz a realidade para a memória. Nesta recordação, a
arte reconheceu o que é e o que podia ser, dentro e fora das
condições sociais. A arte retirou este conhecimento da esfera do
conceito abstracto e implantou-o no domínio da sensualidade.
O seu poder cognitivo extrai a sua força deste domínio. A força
sensual do Belo mantém a promessa viva - a memória da
felicidade passada, que procura regressar.
Embora o universo da arte esteja permeado pela morte, a arte
repudia a tentação de dar um significado à morte. Para a arte, a
morte é uma infelicidade constante, uma ameaça constante mesmo
nos momentos de felicidade, triunfo e realização. (Mesmo em
Tristãio, a morte não deixa de ser um

69
HERBERT MARCUSE
acidente, um duplo acidente da poção do amor e do ferimento. O
hino à morte é um hino ao amor.) Todo o sofrimento se torna
doença de morte - embora a doença em si se possa curar. La
Mortdes Pauvres pode bem ser redenção; a pobreza pode ser
abolida. No entanto, a morte permanece a negação inerente à
sociedade, à história. É a lembrança final das coisas passadas - a
última lembrança de todas as possibilidades abandonadas, de tudo
o que podia ter sido dito e não foi, de cada gesto, e cada carinho não
realizado. Mas, a morte também lembra a falsa tolerância, a pronta
submissão à necessidade da dor.
No trágico da grande arte está o caveat à tese segundo a qual
chegou o tempo de mudar o mundo. Embora a arte dê testemunho
da necessidade de libertação, também atesta os seus limites. O que
foi feito não pode ser desfeito; o que passou não pode ser reavido.
A história é culpa, mas não redenção. Eros e Thanatos não são
apenas adversários, como também amantes. A agressão e a
destruição podem estar, cada vez mais, ao serviço de Eros, mas o
próprio Eros actua sob o signo do sofrimento, do que passa. A
«eternidade do prazer» constitui-se através da morte dos
indivíduos. Para eles, esta eternidade é um universal abstracto. E,
talvez a eternidade não dure muito tempo. O mundo não foi feito
por amor ao ser humano e não se tem tornado mais humano.
Enquanto a arte preservar, com a promessa de felicidade, a
memória dos objectivos inatingidos, pode entrar, como uma ideia
«reguladora», na luta desesperada pela transformação do mundo.
Contra todo o feiticismo das forças produtivas, contra a
escravização contínua dos indivíduos pelas condições objectivas
(que continuam a ser as do domínio), a

70
A DIMENSÃO ESTÉTICA

arte apresenta o objectivo derradeiro de todas as


revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo.

71
Conclusão

A teoria marxista compreende o existente como uma realidade


social que deve ser radicalmente transformada. Em todo o caso, o
socialismo podia ser, pelo menos, uma sociedade melhor em que
os seres humanos gozariam de mais liberdade e mais felicidade.
Na medida em que os seres humanos administrados reproduzem
hoje a própria repressão e renunciam à ruptura com a realidade,
nessa medida a teoria revolucionária adquire um carácter
abstracto. O objectivo, o socialismo como uma sociedade melhor,
também parece igualmente abstracto - ideológico em relação à
práxis radical que necessariamente opera dentro da concreticidade
da sociedade existente.
Nesta situação, a afinidade e a oposição entre a arte e a teoria e
práxis revolucionária tornam-se surpreendentemente claras.
Ambas visam um mundo que, embora provenha das relações
sociais existentes, também liberta os indivíduos destas relações.
Esta visão aparece como o futuro permanente da práxis
revolucionária. A noção da continuação da luta de classes no
socialismo exprime este ponto, embora de uma forma distorcida.
A transformação permanente da sociedade

73
HERBERT MARCUSE
sob o princípio da liberdade não é apenas exigido pela existência
contínua dos interesses de classe. As instituições de uma sociedade
socialista, mesmo na sua forma mais democrata, nunca poderíam
resolver todos os conflitos entre o universal e o particular, entre os
seres humanos e a natureza, entre os indivíduos em si. O socialismo
não liberta o Eros da dominação da morte, nem poderia fazê-lo. Este
é o limite que impele a revolução para além de todo o estado de
liberdade conseguido: é a luta pelo impossível, contra o
inconquistável cujo domínio talvez possa, no entanto, ser reduzido.
A arte reflecte esta dinâmica na sua insistência na verdade de um
mundo por ela criado, que não é o mundo da realidade social nem o
tem por solo. A arte abre uma dimensão inacessível a outra
experiência, uma dimensão em que os seres humanos, a natureza e
as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade, hoje
dominante. Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa
autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O encontro com a
verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras,
que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não
é percebido, dito e ouvido na vida diária.
A autonomia da arte reflecte a ausência de liberdade dos
indivíduos na sociedade sem liberdade. Se as pessoas fossem livres,
então a arte seria a forma e a expressão da sua liberdade. A arte
continua presa da ausência de liberdade; ao contradizê-la, adquire a
sua autonomia. O nomos a que a arte obedece não é o do princípio da
realidade estabelecida, mas o das suas transformações - até à sua
negação. Mas, uma mera negação seria abstracta, «má» utopia. A
utopia,

74
A DIMENSÃO ESTÉTICA

que vem à manifestação na grande arte, nunca é a simples negação


do princípio da realidade, mas a sua preservação transcendente
(Aufhebung) em que o passado e o presente projectam a sua
sombra na realização. A autêntica utopia baseia-se na memória.
«Toda a reificação é um esquecimento» (39). A arte combate a
reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar o mundo
petrificado. O esquecer os sofrimentos do passado e a felicidade
passada torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade
repressiva. Pelo contrário, a lembrança quer o desvanecimento do
sofrimento e a eternidade do prazer - contra o princípio da
realidade. A sua vontade é impotente: a própria felicidade está
ligada ao sofrimento. Inexoravelmente? O horizonte da história
ainda está aberto. Quando a lembrança intervém no combate pela
transformação, também se luta por uma revolução que sempre foi
reprimida nas revoluções precedentes.
NOTAS
(') Especialmente entre os autores dos periódicos Kursbuch
(Francoforte; Suhrkamp, mais tarde Rotbuch Verlag), Argument
(Berlim), Literaturmagazin (Reinbek, Rowohlt). No centro desta
discussão, está a ideia de uma arte autônoma em confronto com a
indústria de arte capitalista, por um lado, e a parte da propaganda
radical, por outro. Ver especialmente os excelentes artigos de
Nicolas Born, H. C. Buch, Wolfgang Harich, Hermann Peter
Piwitt e Michael Schneider nos volumes I e II da Literaturmagazin,
o volume Autonomie der Kunst (Francoforte, Suhrkamp, 1972) e de
Peter Bürger in Theorie der Avantgarde (Francoforte, Suhrkamp,
1974). . ,
(2) Ver Eric Kõhler em Ideal und Wirklichkeit in der Hòfischen Epik
(Tübingen, Niemeyer, 1956), especialmente o capítulo V.
(3) Ver pp. 56 e segs.
(4) Ver, da minha autoria, Counterrevolution and Revolt (Boston,
Beacon Press, .1972, p. 81).
(5) Ernst Fischer in Aufden Spuren der Wirklichkeit; sechs Essays
(Reinbek, Rowohlt, 1968) reconhece na «vontade da forma»
(Wille zur Gestalt) a vontade de transcender o concreto: negação do
que e e pressentimento (Ahnung) de uma existência mais livre e
mais pura. Neste sentido, a arte e o «irreconciliavel, a resistência
do ser humano ao seu desaparecimento na ordem e nos sistemas
(estabelecidos)».
(6) «Duas atitudes antagônicas em relação ao poder que
prevalecem na literatura: resistência e submissão. A literatura não e,
certamente, mera ideologia e não exprime apenas uma
consciência social que invoca a ilusão da harmonia assegurando
aos indivíduos que tudo esta como devia estar e que ninguem tem
o direito de esperar que o destino lhe conceda mais do que aquilo
que recebe. A verdade e que a literatura,

77
muitas vezes, justificou as relações sociais estabelecidas; no entanto,
sempre manteve bem vivo aquele grito humano que nao pode
satisfazer- -se com a sociedade existente. A magoa e a dor sao
elementos essenciais da literatura burguesa.» (Leo Lowenthal, Das
Bild des Menschen in der Literatur, Neuwid, Luchterhand, 1966, pp. 14 e
segs.).
(7) Ver o meu ensaio «The afirmative Character of Culture» em
Negations (Boston, Beacon Press, 1968).
(8) No seu livro Marxistische Ideologie und allgemeine Kunst theorie
(Tübingen, Mohr, 1970), Hans-Dietrich Sander apresenta uma
analise exaustiva dos contributos de Marx e Engels para uma teoria
da arte. Conclusão algo provocante: a maior parte da estetica marxista
é não só uma grosseira vulgarização, mas a inversão total das
opiniões de Marx e de Engelsi Escreve ele: Marx e Engels viram «a
essencia de uma obra de arte precisamente não na sua relevância
social ou política» (p. 174). Estão mais próximos de Kant, Fichte e
Schelling do que de Hegel (p. 171). A documentação de Sander para
esta tese pode ser demasiado selectiva e minimizar afirmações de
Marx e Engels, que contradizem a interpretação de Sander. No
entanto, a sua analise mostra realmente com muita clareza a
dificuldade da estética marxista em abordar os problemas da teoria da
arte.
O Bertolt Brecht, «Volkstümlichkeit und Realismus» in
Gesammelt
/I0\
Werke (Francoforte, Suhrkamp. 1967), volume VIII, p. 323.
( ) Georg Lukacs, «Es geht um den Realismus», in Marxismus und
Literatur, organizado porFritz J. Raddatz (Reinbek, Rowohlt, 1969),
volume II, p. 77.
(") In Die Linkskurve III, 5 (Berlim, Maio de 1931, p. 17.
(12) Colloque International sur la sociologie de la littérature
(Bruxelas, Instituto de Sociologia, 1974), p. 40.
(13) Walter Benjamin, «Fragment über Methodenfrage einer
Marxistishen Literatur-Analyse» in Kursbuch 20 (Francoforte,
Suhrkamp, 1970), p. 3. reimpresso em 1970), p. 9.
(14)Leo Lowenthal, Das Bild des Menschen in der Literatur p. 12.
(15) Reinhard Lettau em «Nashville Skyline» de Bob Dylan
in Der Spiegel, 1974-73, p. 112.
(16) Lucien Goldmann, Towards a Sociology of the Novel
(Londres, Tavistock, 1975), pp. 10 e segs.
(17)Brecht, Gesammelt Werke, vol. VIII, ob. cit., pp. 324 e segs.
O Ibid., p.,323. , ,FF
() Jean-Paul Sartre, On a raison de se rèvolter (Paris,
Gallimard, 1974), p. 96.

78
(20) Brecht, Gesammelt Werke, ob. Cit., pp. 324 e segs.
(21) Brecht, Gesammelt Werke, volume VII, pp. 260 e segs.
^^(22)Friedrich Nietzsche, Der Wille zur Macht (Estugarda, Kroner,

(23 )K. A. Wittfogel in Die Linkskurve, II (Berlim, Novembro de


1930), p. 9. ,
(24) Tagebiicher, 1920-1922, (Francoforte, Suhrkamp, 1976), p.

(25) Ver a análise crítica de Dieter Wellershoff in Die Auflõsung des


Kunstbegriffs (Francoforte, Suhrkamp, 1976).
(26) Wellershoff, Die Auflõsung des Kunstbegriffs, p. 39.
(27) Jürgen Habermas, Legitimation Crisis (Boston, Beacon Press,
1975), pp. *86 e segs.
(28) Mischael Schneider in Literaturmagazin II (Reinbek,
Rowohlt 1974), p. 265.
(29) Walter Benjamin, «Der Autor ais Produzent», in Raddatz,
Marxismus und Literatur, vol. II, p. 264.
(30) Hegel, «Vorlesunden über dir Aesthetic» em Samtliche Werke
XII (Estugarda, Fromnann, 1927), p. 28.
(31) «Erinnerungen an Zeitgenossen» de Gorki in Sander,
Marxistiche Ideologie und allgemeine Kunsttheorie, p. 86.
(32) Goethe, Faust, II parte (Baltimore, Penguin Books, 1965),
p. 260.
(33) Reina a paz no cume dos montes,
Nem um murmúrio nas árvores,
As aves calaram-se no bosque.
Também tu, em breve,
Estarás em paz.
(34) Theodor W. Adorno, Noten zur Literatur (Francoforte,
Suhrkamp, 1958), pp. 80 e segs.
(35) Georg Büchner, Samtliche Werke undBriefe (Munique, Carl
Hanser, 1974), p. 87.
(36) Adorno, Noten zur Literatur III, pp. 17 e 126.
(37) Horst Bredekamp, «Autonomie und Askeses», in Autonomie
der kunst, pp. 121 e 133.
(38) Adorno, Noten zur Literatur III, p. 132.
(39) Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, Dialectic of
Enlightenment (Nova Iorque, Herder and Herder, 1972), p. 230.

79
Bibliografia

Adorno, Theodor W., Noten zur Literatur (Francoforte,


Suhrkamp, 1958).
Benjamin, Walter, «Der Autor ais Produzent», in Marxismus und
Literatur, vol. II, organizado por Fritz J. Raddatz (Reinbek,
Rowohlt, 1969).
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Marxistishen Literatur Analyse», in Kursbuch 20
(Francoforte, Suhrkamp, 1970).
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Suhrkamp, 1967).
Bredekamp, Horst, «Autonomie und Askese», in Autonomie der
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(Reinbek, Rowohlt, 1968).
Goethe, Johenn Wolfgeng, Faust, II Parte, (Baltimore, Penguin
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Goldmann, Lucien, Colloque international sur la sociologie de la
littérature (Bruxelas, Institute de la Sociologie, 1974).

81
Goldmann, Lucien, Towards a Sociology of the Novel (Londres,
Tavistock Publisher, 1975).
Habermas, Jürgen, Legitimation and Crisis (Boston, Beacon
Press, 1975).
Horkheimer, Max e Theodor W. Adorno, Dialectic of
Enlightenment (Nova Iorque, Herder and Herder, 1972).
Kòhler, Erich, Ideal und Wirklichkeit in der Hõfischen Epik
(Tübingen, Niemeyer, 1956; segunda edição em 1970).
Lowenthal, Leo, Literature and the Image ofMan (Boston,
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Lukács, Georg, «Es geht um den Realismus», in Marxismus und
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Mãrten, Lu, Die Linkskurve III, 5 (Berlim, Maio de 1931).
Nietzsche, Friedrich, Der Wille zur Macht (Estugarda, Kroner,
1930).
Sander, Hans-Dietrich, Marxistiche Ideologie undallgemeine
Kunsttheorie (Tübingen, Mohr, 1970).
Sartre, Jean-Paul, On a raison de se révolter (Paris, Gallimard,
1974).
ÍNDICE

PREFACIO........................................................... 10

CAPÍTULO 1........................................................ 15
CAPÍTULO II........................................................ 31
CAPÍTULO III........................................................45
CAPÍTULO IV....................................................... 57
CAPÍTULO V........................................................ 65

CONCLUSÃO....................................................... 73
NOTAS................................................................. 77
BIBLIOGRAFIA.................................................... 81

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