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ANDREW FEENBERG

ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA


ENTRE A RAZÃO
E A EXPERIÊNCIA
Ensaios sobre tecnologia e modernidade

ANDREW FEENBERG
Prefácio
Brian Wayne
Posfácio
Michel Callon
Tradução
Eduardo Beira
com
Cristiano Cruz e Ricardo Neder

2017
Equipa do projecto:
Eduardo Beira
Cristiano Cruz
Ricardo Neder

Capa e grafismo:
Ana Prudente

Composição:
Adelino Pereira e Ana Cabral

Edição Original:
Between Reason and Experience. Essays in Technology and Modernity.
© 2010, MIT Press, Massachusetts, Institute of Technology

2017
ISSN 1979980039

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução em qualquer


forma electrónica ou mecânica sem aotorização do editor
ENTRE A RAZÃO
E A EXPERIÊNCIA
Ensaios sobre tecnologia e modernidade

ANDREW FEENBERG

Tradução
Eduardo Beira
com
Cristiano Cruz e Ricardo Neder

2017
ÍNDICE

ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA 9


CRISTIANO CRUZ

PRÓLOGO 49

PREFÁCIO 59
B RIAN WYNNE

PARTE I
PARA ALÉM DA DISTOPIA 73

1. RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA:
TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE
Os limites da teoria democrática 75
Modernidade distópica 78
Determinismo tecnológico 79
Constructivismo 81
Indeterminismo 83
Interpretando a tecnologia 87
Hegemonia tecnológica 90
Teoria do aspeto duplo 93
A relatividade social da eficiência 95
O código técnico 97
A "essência" da tecnologia em Heidegger 101
Racionalização democrática 104

2. PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE


Introdução 109
Custos e benefícios 110
Presupostos básicos 114
Dois exemplos históricos 119
Valores ambientais 123
Conclusão 128

3. DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO:


A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA
Utopia e distopia 131
Filosofia distópica e a política 136
O impacto da internet 139
Novas formas de agência 143
Intervenções democráticas 146
Conclusão 150
PARTE II
CONSTRUTIVISMO SOCIAL 155

4. TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA PRESPETIVA GERAL


Tecnologia e cultura 157
Autonomia operacional 161
Teoria da instrumentalização 164
Estratégias de recontextualização 170
Tecnologia e Democracia 173
Conclusão 178

5. DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO:
A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO
Informação ou comunicação? 181
A experiência de um novo meio de comunicação 184
Modernização 185
Voluntarismo 186
Oposição 188
Comunicação 190
O sistema 193
O conflito de códigos 195
Construtivismo social 195
Uma utopia tecnocrática 199
O sujeito espetral 201
A construção social do Minitel 205
Cablar o interior da burguesia 205
Redes ambivalentes 208
Conclusão: do Teletel à internet 211
6. TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL
Introdução 213
Dois tipos de desenvolvimento tecnológico 214
A globalização do desenvolvimento 219
A teoria do mundo global, de Nishida 222
A filosofia japonesa da tecnologia 230
Conclusão: tecnologia e valores 234

PARTE III
MODERNIDADE E RACIONALIDADE 239

7. TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS: REFLEXÕES


SOBRE COMOAS APROXIMAR
O problema 241
Ciência da sociedade e história da ciência 244
Sistema ou prática 250
A lógica da simetria 256
Separar a diferença 264
Outra vez a instrumentalização: des-mundanização e revelação 269
Sujeitos últimos 272
Conclusão: por uma síntese 277

8. DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE


À CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE
Racionalidade social 279
A crítica social da razão 283
Marxismo e a política da tecnologia 290
Teoria geral da instrumentalização 295
Função e significado 303
Códigos de projeto 308
Conclusão 310

9. ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA


Introdução 313
Um quadro cultural 315
Heidegger: a crítica da tecnologia 320
Marcuse: a nova tecnhé 332
Tecnologia estética 341
Ciência, tecnologia e mundo da vida 348
A complementaridade da natureza e da experiência 354
Conclusão 361

POSFÁCIO 365
MICHEL CALLON

NOTAS DO AUTOR 375

NOTAS DO TRADUTOR 387

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 403


ANDREW FEENBERG E A TEORIA
CRÍTICA DA TECNOLOGIA
Cristiano Cordeiro Cruz

O propósito fundamental desta introdução à tradução de Between


Reason and Experience, do norte-americano Andrew Feenberg, é
oferecer uma breve apresentação da sua biografia ao/à leitor(a)
não conhecedor(a) do autor e/ou não familiarizado/a com as
suas ideias bem como um apanhado geral, ainda que simplifica-
do, de algumas das suas ideias centrais.
Tendo isso em mente, na primeira parte deste capítulo, apre-
sentaremos alguns dados relevantes da vida e da produção bibli-
ográfica de Feenberg, destacando, adicionalmente, tanto os
contactos já existentes entre ele e autores ou públicos lusófonos,
quanto traduções de textos seus para língua portuguesa. Na se-
gunda parte, a mais longa desta introdução, procuraremos apre-
sentar alguns dos elementos centrais da compreensão de
Feenberg sobre o fenómeno técnico – e que ele chama “teoria crí-
tica da tecnologia”, evidenciando a sua vinculação à reflexão de
esquerda e à tradição da Escola de Frankfurt.
Apesar da limitação imposta, entre outras coisas, pelo espaço

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CRISTIANO CRUZ

disponível para este texto e, também por isso, pelos recortes e


simplificações (ou não matizações) que tiveram que ser adotados,
esperamos que as próximas páginas possam contribuir para que
o/a leitor(a) se aproprie da discussão desenvolvida neste livro de
uma forma mais profunda e sistemática. E não apenas para se
apropriar dela, mas quem sabe, mesmo para se envolver de al-
gum modo no processo de conformação democrática da realida-
de social e técnica (ou sociotécnica) em que nos é dado viver.
Parece-nos, com efeito, que a intenção central de Feenberg
não é senão a de, munindo-nos de uma afiada reflexão crítica so-
bre a técnica, capacitar-nos e aliciar-nos para participar ativa-
mente no processo político da contínua (re)construção da
tecnologia que criamos (ou que nos é proporcionada). Processo
que não nos opõe necessariamente à técnica em si, mas que nos
revela que ela não é destino, e sim – e em boa medida – o resulta-
do da configuração de forças dos distintos atores sociais que con-
seguem fazerem-se ouvir nas múltiplas fases do seu projeto e
implementação.
Seja como for, e já adiantando algo que se desenvolverá me-
lhor na segunda parte desta introdução, é impossível – ou inevi-
tavelmente condenado ao insucesso –, no entendimento que
Feenberg sustenta sobre a tecnologia, lutar-se por qualquer
transformação valorativa da sociedade (e.g., empoderamento po-
pular, equidade, justiça social etc.), sem que se lute, também ou
prioritariamente, pelo desenvolvimento de tecnologias (ou siste-
mas técnicos) capazes de sustentar tais transformações (ou, de
maneira mais apropriada, tais valores).
*****
Por fim, antes de passarmos à apresentação da biografia e
bibliografia de nosso autor, cabe ressaltar que os substantivos
“técnica” e “tecnologia”, assim como os adjetivos “técnico/a” e
“tecnológico/a” serão tomados como sinônimos ao longo deste

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ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

texto. Tais palavras, ademais, referem-se, na teoria de Feenberg,


tanto a objetos materiais (como ferramentas e máquinas), quanto
a procedimentos, metodologias ou heurísticas imateriais (como
os adotados na gestão pública ou privada, na gestão da economia
e nos inumeráveis métodos ou procedimentos adotados na nossa
vida quotidiana, e que visam assegurar, facilitar ou otimizar a
obtenção de algum resultado previamente esperado por quem o
emprega, seja ele sucesso profissional, realização amorosa, disci-
plinar as pessoas com quem se trabalha, ou o que for).
Vida e obra
Andrew Lewis Feenberg nasceu em Nova York, nos Estados
Unidos, em 1943. Filho de um proeminente físico teórico, esteve
desde muito cedo em contato com a ciência, com cientistas e com
os aparatos técnicos por eles utilizados. Não obstante, os seus in-
teresses nas áreas de humanidades (marcadamente em filosofia e
literatura) levaram-no a trilhar a formação em filosofia. Iniciou-a
na Universidade John Hopkins, na qual se graduou (1965), se-
guindo, então, para a Universidade da Califórnia, em San Diego,
onde obteve o título de mestre (1967). Os anos seguintes, passou-
os em França (na Universidade de Paris), onde a sua filiação ao
pensamento de esquerda podia encontrar terrenos mais férteis
para se desenvolver, fora do macartismo dos Estados Unidos
nessa época. Estava lá, assim, em 1968, o que lhe deu a oportuni-
dade não apenas de testemunhar os eventos do Maio de 68, como
de tomar parte ativa neles. Segundo seu próprio testemunho, isso
marcaria para sempre a sua vida – e a sua compreensão do fenô-
meno técnico e do imbricamento entre tecnologia e sociedade.
De volta aos Estados Unidos, Feenberg retorna a San Diego e
à Universidade da Califórnia para se doutorar sob orientação de
Herbert Marcuse, um dos grandes nomes da Nova Esquerda de
então. Obtém o título de doutor em 1973, aos 30 anos.
Profissionalmente, para além das inúmeras atuações como

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CRISTIANO CRUZ

conferencista e professor visitante em instituições de prestígio em


diferentes países, Feenberg trabalhou como professor na Univer-
sidade Estadual de San Diego de 1969 a 2003. Mudou-se então
para Vancouver, Canadá, assumindo a posição de professor na
Universidade Simon Fraser (posição que ocupa desde então) e a
cátedra (“Canada Research Chair”) em filosofia de tecnologia.
Dentre as muitas publicações de Feenberg, podem-se citar os
seguintes livros: Lukacs, Marx and the Sources of Critical Theory
(Rowman and Littlefield, 1981; Oxford University Press, 1986),
Critical Theory of Technology (Oxford University Press, 1991), Al-
ternative Modernity (University of California Press, 1995), Questio-
ning Technology (Routledge, 1999), Heidegger and Marcuse: The
Catastrophe and Redemption of History (Routledge, 2005), Between
Reason and Experience: Essays in Technology and Modernity (MIT
Press, 2010), The Philosophy of Praxis: Marx, Lukacs and the Frank-
furt School (Verso Press, 2014) e o seu livro mais recente, Tech-
nosystem: The Social Life of Reason (Harvard University Press,
2017).
Em português, adicionalmente ao presente livro, podem-se
encontrar as traduções dos seguintes textos (todas disponíveis no
site do autor1 ): capítulos 1 e 7 de Transforming Technology; Teoria
Crítica da Tecnologia (artigo); Andrew Feenberg: Racionalização De-
mocrática, Poder e Tecnologia (coletânea de artigos); A fenomenologia
de Marcuse: lendo o capítulo seis de o homem unidimensional (artigo);
Tecnologia e finitude humana (conferência); capítulo 4 de Lukács,
Marx, and the Sources of Critical Theory; A libertação de natureza (ar-
tigo); O que é filosofia da tecnologia? (conferência); Da psicologia à
ontologia (artigo); Simondon e o construtivismo: uma contribuição re-
cursiva à teoria da concretização (artigo); A realização da filosofia:
Marx, Lukács e a Escola de Frankfurt (capítulo de Lukács, Marx,
and the Sources of Critical Theory). Estão igualmente disponíveis
duas entrevistas realizadas com o autor – “Entrevista com An-
drew Feenberg” (Scientiae Studia, 2009) e “Teoria Crítica, velhos e
novos desafios: entrevista com Andrew Feenberg” (Revista Ideias ,

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ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

2016) –, além da edição especial dedicada a ele da Revista de Filo-


sofia Aurora (2015).
A interação de Feenberg com público de língua portu-
guesa deu-se (ou tem se dado) também por meio da participação
dele, dentre outras coisas, em eventos realizados no Brasil (como
o “Fórum Social Mundial” (2008), a “Conferência Internacional
da Rede de Tecnologia Social” (2009) e o “Colóquio sobre a filo-
sofia da tecnologia de Andrew Feenberg: democracia, racionali-
dade e invenção” (2013)) e em Portugal (XXXXXXX).
Entretanto foi publicada em Portugal uma nova coletânea de
ensaios mais recentes de Andrew Feenberg, Tecnologia, Moderni-
dade e Democracia, organizada e traduzida por Eduardo Beira
(Inovatec, 2015). Uma versão brasileira dessa obra está em prepa-
ração (Editora UnB) e a versão em língua inglesa está em publi-
cação (Rowman & Littlefield International). Este livro inclui
ensaios posteriores e complementares à presente obra.

Elementos centrais da teoria crítica da tecnologia


As principais contribuições de Feenberg referem-se à área da
filosofia da tecnologia. Em linhas muito gerais, o seu entendi-
mento é que, ainda que encerre em si uma dimensão irredutivel-
mente singular, toda solução técnica é sempre – e não tem como
não sê-lo – uma combinação ou articulação entre essa dimensão,
por assim dizer instrumental, e uma outra, social. Com isso, Fe-
enberg procura evidenciar que:
1) o desenvolvimento tecnológico só é possível por meio
de valores sociais que nos farão, seja projetar, seja
selecionar (dentre as múltiplas alternativas técnicas
eventualmente disponíveis ou possíveis para um
mesmo problema ou desafio) a tecnologia que melhor
incorpora ou encarna determinados valores

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CRISTIANO CRUZ

considerados essenciais para os atores que conseguirem


fazer valer os seus interesses no momento do projeto.
Trata-se aqui da já clássica questão da subdeterminação
do desenvolvimento técnico, que argumenta que diante
de uma mesma questão a ser resolvida tecnicamente, é
logicamente possível (e historicamente corroborável)
conceberem-se distintas soluções tecnológicas (cf. Pinch
& Bijker, 1989; Winner, 1986). Assim, por exemplo, em
face da questão da produção agrícola, pode-se optar
tanto pela solução adotada pelo agrobusiness
(latifúndios, monoculturas, uso intensivo de fatores de
produção e agrotóxicos, menor procura de mão de obra
etc.) como pela solução da agroecologia popular
(pequenas propriedades, diversidade de culturas,
ausência de agrotóxicos, uso intensivo da mão de obra e
do saber dos agricultores etc.); diante da necessidade de
se produzir energia elétrica, pode-se tanto optar pela
macro quanto pela microgeração, tanto por métodos
sustentáveis, quanto por formas que impactam mais
profundamente o meio ambiente etc.; e relativamente
ao problema do destino dos resíduos sólidos urbanos,
pode-se escolher tanto uma solução articulada em torno
de cooperativas de recolha de resíduos, quanto uma
liderada por grandes empresas do setor de limpeza
urbana (seja para reciclagem ou reuso, seja para
incineração). É inegável, qualquer que seja a solução
escolhida, que os valores sociais (sustentados por atores
poderosos) precisam ser considerados para que tal
escolha possa ter lugar. É apenas, ou
fundamentalmente, isso que nos permitirá, por fim,
escolher dentre as múltiplas alternativas à nossa
disposição (ou passíveis de serem desenvolvidas);
2) os mesmos valores que nos vão possibilitar a escolha

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ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

dentre as diferentes alternativas tecnológicas para um


mesmo desafio constituem também parte das condições
fronteira ou métricas (incorporadas aos códigos
técnicos2) com que a eficiência da tecnologia será
medida. Ou seja, a própria eficiência técnica é, em certa
medida, tributária de elementos não técnicos, como bem
ilustram alguns exemplos históricos que Feenberg
apresenta neste livro: o desenvolvimento das caldeiras
nos Estados Unidos, que passará a ser marcado pela
imposição do valor social da segurança (capítulo 1); e o
banimento do trabalho infantil nas tecelagens inglesas,
que terá que passar a responder ao valor de se
preservarem as crianças desse tipo de atividade
(capítulo 3). Assim, considerar apenas a maior ou menor
eficiência (diante de códigos técnicos já estabelecidos)
para se escolher ou preterir uma solução técnica não é
capaz de eliminar o fator social da escolha (que está
imiscuído nos códigos técnicos tornados canónicos para
o tipo de solução que se procura). É por isso que
caldeiras menos seguras e fábricas operadas por
crianças, tidas como eficientes (e aceitáveis) até certa
época, deixam de ser vistas ou aceites como tais a partir
da mudança na sensibilidade social da população (ou
nalguns dos seus valores);
3) não são apenas os valores sociais caros aos atores que,
em alguma medida,conseguem fazer-se ouvir no
processo de desenvolvimento tecnológico que atuam na
conformação ou na escolha da solução técnica projetada.
Esses mesmos valores, além disso, uma vez que essa
tecnologia é posta em uso, são difundidos, emulados ou
sustentados socialmente. Com efeito, a opção, por
exemplo, por um modo de produção agrícola baseado
na agroecologia popular produz ou reforça socialmente

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CRISTIANO CRUZ

os mesmos valores – de sustentabilidade ambiental,


empoderamento dos agricultores e das suas
comunidades, fixação da população rural no campo, etc.
– que levaram à escolha dessa solução técnica em
detrimento da outra solução do agrobusiness. É essa
relação de influência ou conformação mútua que se
chamada unidade ou realidade sociotécnica (cf. Dagnino
et al., 2004, p. 25-6). Ela significa que, em boa medida, a
tecnologia é aquilo que a sociedade em que ela foi
desenvolvida quer que ela seja (ou alguns dos seus
atores particularmente poderosos), da mesma forma que
a sociedade (ou os valores a permeiam e estruturam) é
(são) aquilo que a sua base tecnológica permite que ela
(eles) seja(m).

Sendo assim, o desenvolvimento técnico mostra-se como


sendo uma arena política, seja porque, pela subdeterminação da
tecnologia, as soluções podem, ao menos em tese, ser feitas com
sensibilidade aos valores sociais que se queiram fazer respeitar,
seja porque, por conta da unidade sociotécnica, o tipo de socie-
dade que se possa querer desenvolver (e os valores passíveis de
serem avançados ou suportados nela) é conformado ou limitado
por aquilo que a sua base tecnológica permite sustentar. Com is-
so, mesmo em face da ordem tecnocrático-capitalista desempo-
deradora em que nos achamos metidos, e que se impõe
socialmente através das soluções técnicas (desempoderadoras)
que ela produz, é sempre possível opor-lhe resistência, lutando e
avançando em direção a uma ordem (sociotécnica) mais empo-
derada, democrática ou popular. É por isso urgente a construção
ou desenvolvimento de uma teoria crítica da tecnologia3. Porque,
sem democratizar a técnica, conformando-a aos valores que de-
mocraticamente podemos (ou poderemos vir a) sustentar, sere-
mos incapazes de democratizar a sociedade (conformando-a a
esses mesmos valores que democraticamente podemos (vir a)

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ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

sustentar).
Por esse caminho de práxis, consciencialização e atuação po-
lítica – também, ou eventualmente sobretudo, com relação à tec-
nologia e aos sistemas técnicos – Feenberg acredita que seremos
capazes de ir gradualmente aproximando-nos de uma ordem so-
cial que permita o florescimento das múltiplas potencialidades
humanas (na superação da unidimensionalidade denunciada por
Marcuse (2002 [1964])). Essa ordem é, para ele, o socialismo de-
mocrático (cf. Feenberg, 2002, p. 24-7, 54-8, 148), o ideal social
pretendido por Marx (cf. Feenberg, 2002, p. 62), e que deveríamos
perseguir.
No restante desta introdução, apresentaremos com maior
detalhe alguns dos elementos centrais dessa compreensão geral
de Feenberg.
Teoria da dupla instrumentalização
Na sua teoria da dupla instrumentalização, Feenberg procu-
ra articular o aspecto singular (ou instrumental) de toda tecnolo-
gia com a sua face ou dimensão social. Para isso, alia elementos
da compreensão de Heidegger sobre o fenómeno técnico moder-
no (instrumentalização primária) com as modernas compreen-
sões sociológicas da tecnologia, que dão conta da dimensão social
desta (instrumentalização secundária). Assim, como iremos de-
senvolver melhor na segunda seção desta parte, no desenvolvi-
mento técnico há uma conjugação de, por um lado, algo parecido
com aquilo que uma boa parte da Escola de Frankfurt identifica
com a racionalidade técnica, tecnológica ou instrumental – que
rege o desenvolvimento técnico e que, ao transbordar para o
mundo da vida, ou colonizá-lo, concorre para a nossa desumani-
zação (ou unidimensionalidade) –, com, por outro lado, uma ine-
vitável contaminação ou contágio dessa racionalidade por
valores sociais. Dessa forma, os significados construídos no mun-
do da vida conformam, de uma maneira ou outra, o âmbito tec-

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CRISTIANO CRUZ

nológico da sociedade (o qual engloba as esferas do governo e da


administração, do mercado e das tecnologias como correntemen-
te as entendemos), de sorte que é um equívoco falarmos em “ra-
cionalidade tecnológica”, sendo mais apropriado, ao invés disso,
falarmos em “racionalidade sociotécnica”.
No nível da instrumentalização primária, temos uma tecno-
logia que, ao descontextualizar e reduzir, dispõe de tudo e todos
como matérias primas ou mercadorias, subsistindo unicamente o
sentido instrumental do ser-no-mundo. É a compreensão de um
modo de ser que, nos termos de Heidegger, conduz-nos ao en-
quadramento, isto é, a uma vida decaída, mecanizada, e que,
uma vez mergulhada nessa forma tecnológica de ser e significar a
existência, torna-se incapaz de voltar a ser vivida de um modo
autêntico (cf. Heidegger, 1977 [1955]). Como, entretanto, a tecno-
logia não é desenvolvida para máquinas, mas precisa necessaria-
mente de ser inserida num mundo propriamente humano, ou
fazer parte dele, o processo de desenvolvimento tecnológico tem
também de contextualizar aquilo que produz, de introduzir os
seus artefatos na rede de significados que caracterizam o nosso
modo de ser-no-mundo. Estamos, então, em face da instrumenta-
lização secundária, processo de conformação da tecnologia, que
se aproxima da compreensão sociológica moderna desse fenôme-
no (cf. Feenberg, 2002, p. 175-6).
Se na instrumentalização primária estamos diante daquilo
que é invariável na tecnologia, na instrumentalização secundária,
também ela mandatória, somos lançados para o mundo das con-
tingências. Num caso, está-se no reino dos imperativos lógicos;
no outro, vive-se o mundo das disputas e das construções social-
mente dependentes. E como a realidade social e existencial cons-
truída ou possibilidade tecnicamente não é um resultado ou
desvelamento ontológico (produzido pelo Ser) sobre o qual não
temos qualquer poder (Heidegger), mas sim uma construção em
boa medida política, superar a condição de menos vida em que
nos podemos ver metidos não é uma impossibilidade ou impon-

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ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

derabilidade (Heidegger), mas é algo ao nosso alcance e resul-


tante das nossas mobilizações e lutas sociais.
Se são duas, e distintas, as instrumentalizações, isso não sig-
nifica que elas sejam autónomas, uma em relação à outra. Na
verdade, elas interpenetram-se e afetam-se mutuamente, sendo
unicamente distinguíveis ao nível da análise (cf. Feenberg, 2002,
p. 176-7). Desse modo, por exemplo, o corte de uma árvore e a la-
minação da madeira (instrumentalização primária) estão também
relacionados com a finalidade que se dará a essa madeira (instru-
mentalização secundária), que implica no tipo de árvore que será
cortada, assim como no tipo de corte que deverá ser feito. Seme-
lhantemente, a construção de uma casa de madeira (instrumenta-
lização secundária com relação à madeira cortada) deverá
obedecer às possibilidades que sua matéria-prima traz consigo
(cf. Feenberg, 2010, p. 71).
O nível causal está relacionado à construção de obje-
tos e sujeitos enquanto natureza [...], ou seja, enquanto
submetidos a regras e leis que regulam seus comporta-
mentos como materiais. O nível cultural tem a ver com
os significados que os artefatos adquirem no mundo da
vida ao qual pertencem. [...] Esses significados não lhes
são meramente atribuídos após o nível causal ter tido
lugar, mas guiam a escolha e a configuração da concate-
nação causal, que é aquilo em que consiste o projeto. [...]
As duas fases juntas identificam potenciais que são sele-
cionados e combinados na concretização do projeto. As
camadas se interpenetram no sentido de que uma rela-
ção causal se materializa apenas na medida em que ela
foi investida com significado cultural (Feenberg, 2016, p.
297-8).
Em termos mais detalhados, as duas instrumentalizações
processam-se em quatro estágios. Na descrição abaixo, esses es-

19
CRISTIANO CRUZ

tágios estão agrupados em pares que unem a etapa da instru-


mentalização primária à etapa que lhe é complementar na instru-
mentalização secundária. Os dois primeiros pares referem-se
àquilo que Feenberg chama objetificação, dizendo acima de tudo
respeito ao artefacto produzido e da relação que se estabelece, a
partir disso, com o mundo natural4. Os dois pares seguintes refe-
rem-se à subjetivação, ou seja, ao impacto da ação técnica sobre o
agente humano, na sua relação com as outras pessoas e o mundo
natural (cf. Feenberg, 2016, p. 298-301).
DESCONTEXTUALIZAÇÃO E SISTEMATIZAÇÃO (cf. Fe-
enberg, 2002, p. 177-80; 2010, p. 72-6, 170-1). A descontextualiza-
ção (instrumentalização primária) significa isolar as
matérias-primas do contexto mais amplo em que elas vivem ou
são encontradas – uma floresta, o subsolo, um ecossistema, etc. –,
de modo a torná-las apropriáveis e úteis para o desenvolvimento
técnico. Para serem incorporadas, porém, no meio social, tais ma-
térias-primas, descontextualizadas e transformadas pela ação
técnica, precisam ser introduzidas numa rede de significados: a
madeira para construção, a lâmpada para iluminação, o carro pa-
ra transporte e para assegurar estatuto social, etc. Esse processo,
próprio da instrumentalização secundária, e que impacta e é im-
pactado por aquilo que se pode isolar ou extrair da natureza,
chama-se sistematização.
REDUCIONISMO E MEDIAÇÃO (cf. Feenberg, 2002, p. 180;
2010, p. 72-6, 170-1). Não basta, entretanto, descontextualizar a
matéria-prima do ambiente e das ligações em que ela se encontra
mergulhada na sua ocorrência natural no mundo. O seu empre-
go, em cada uso técnico específico, vai precisar, por via de regra,
que apenas uma ou algumas das suas múltiplas potencialidades
seja(m) considerada(s): a árvore que providencia material de
construção (e não lenha, sombra, frutos, bela paisagem, lugar de
encontro com a divindade etc.); o terreno que providencia espaço
para se construir um lago artificial (e não lugar para cultivo, para
culto sagrado, construção de uma cidade, pasto, reserva florestal

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ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

etc.); e assim por diante. Contudo, para ser integrado ao mundo


da vida, outras qualidades, para além da sua utilidade ou função
imediata, precisam normalmente de ser incorporadas no artefato
técnico: o acréscimo de elementos decorativos à casa de madeira;
o desenvolvimento de designs atraentes para máquinas do nosso
convívio direito (de eletrodomésticos a automóveis), etc. Isso se-
ria a mediação (instrumentalização secundária). Tem impacto e é
impactada pelos tipos de materiais apropriados, selecionando
aqueles que dispõem das qualidades mais úteis – para a função
pretendida e para os acréscimos que precisará receber, de modo a
poder ser incorporado no meio social – e estando limitada aos
acréscimos suportados pelo artefato (por conta de sua constitui-
ção e de sua(s) funcionalidade(s)/uso(s)).
A atribuição de função requer mais do que uma cren-
ça geral na adequação causal; também precisa de um ti-
po específico de operação cognitiva, uma mentalidade
técnica que vai além da forma imediata do objeto e que
o revela à luz do seu potencial técnico num contexto
cultural específico. Na teoria da instrumentalização, os
correlativos iniciais dessa operação pelo lado do objeto
são chamados descontextualização e redução. O poten-
cial técnico é descoberto através do isolamento do objeto
em relação ao seu contexto natural e da sua redução às
qualidades úteis (Feenberg, 2016, p. 299-300).
A realização tem lugar nos contextos técnico e social que
guiam a descontextualização e a redução. Eu chamo tais contex-
tos sistematização e mediação. [...] Nesse nível, o objeto pertence
ao mundo da vida, no qual ele está imbricado com vários outros
aspectos da natureza e da vida humana. Assim, o objeto não po-
de entrar no mundo social, sem adquirir sentidos diferentes das
sistematizações causais e econômicas. Esses outros sentidos con-
sistem nas várias associações do objeto com mediações estéticas e

21
CRISTIANO CRUZ

éticas do projeto. Desse modo, os objetos técnicos não apenas


perdem qualidades quando são reduzidos, como adquirem qua-
lidades [novas] quando são integrados ao mundo social (Idem, p.
300).
AUTONOMIZAÇÃO E IDENTIDADE (cf. Feenberg, 2002, p.
180-2; 2010, p. 172). A ação técnica é assimétrica, por excelência,,
no sentido de que o agente da ação impacta o mundo natural ou
humano com a sua ação, muito mais do que é por ela impactado.
Assim, o caçador recebe, como resultado de apertar o gatilho, no
tiro morteiro desferido, um mero solavanco; o administrador que
faz a gestão de forma fria e dura da sua equipe angaria, com isso,
apenas a não simpatia (ou o ódio) dos seus gerenciados, com os
quais, porém, não estabelece qualquer vínculo social (outro que
não o de gestor-gerido); o motorista que dirige um autocarro pre-
cisa simplesmente mover o pé para pôr em movimento uma má-
quina com peso várias vezes maior do que o seu próprio etc. A
isso, Feenberg chama de autonomização (da ação técnica, em re-
lação às consequências dela).
A teoria da instrumentalização identifica uma atitude
técnica básica que permite aos objetos no mundo serem
vistos como artefactos ou componentes. [...] A atitude
básica é autônoma, no sentido de que ela impede sim-
patia e identificação, atitudes associadas às relações hu-
manas, i.e. relações com um outro sujeito. Na relação
técnica, o sujeito não está envolvido em interações recí-
procas. Ele é protegido do feedback dos seus objetos
(Feenberg, 2016, p. 300).
Em contraposição, entretanto, o agente vai sendo moldado
pela ação ou postura reiterada que assume no seu dia a dia, ad-
quirindo ou conformando parte de sua identidade com isso. Des-
ta forma, aquele que conduz profissionalmente será um

22
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

motorista, do mesmo modo que o administrador será um gestor


(vendo as pessoas à sua volta como “recursos humanos”). É o
que Feenberg chama de identidade (cf. Feenberg, 2016, p. 300).
Além disso, se estendemos o âmbito da análise das consequênci-
as da ação técnica sobre o mundo, em termos temporais e de âm-
bitos da vida, tal como o propõe Ellul (cf. 2008 [1954], p. 399),
poderemos perceber, em repetidas situações, que o impacto dela
sobre o agente pode ser bem mais profundo e severo do que apa-
renta inicialmente. Exemplos disso seriam o advento da poluição,
do barulho, da exaustão dos recursos naturais etc. gerados pelo
desenvolvimento técnico em geral (cf. Ellul, 1990, p. 50-51); a
ameaça de superpopulação, por conta da melhoria das condições
de saúde nas sociedades humanas (cf. Ellul, 1962, p. 417; 2008, p.
400-401; 1990, p. 51-54); e a perda de postos de trabalho provoca-
do pela automação (cf. Ellul, 1962, p. 415-417).
Também, nesse nível, a interdependência das fases primária
e secundária está presente, seja porque a ação técnica conforma e
impacta sobre o agente, seja porque o agente limita a sua autono-
mia ( o seu impacto sobre o mundo humano e natural), restrin-
gindo-a àquilo que o mundo dá conta de suportar, ou àquilo que
nós, seres humanos, definimos como suportável.
POSICIONAMENTO E INICIATIVA (cf. Feenberg, 2002, p.
182-3; 2010, p. 172). A ação técnica também é, por excelência, con-
troladora, manipuladora. E isso, tanto na relação com o mundo
natural, quanto na relação que se estabelece com sujeitos huma-
nos vistos como trabalhadores (a serem geridos), cidadãos (a se-
rem governados), alunos (a serem disciplinados), etc. Há, assim,
naquilo que se refere à relação técnica com outras pessoas, uma
tendência à hierarquização, ou à sua possibilidade. Isso seria o
posicionamento. Contudo, tal controlo nunca é total, ficando
sempre subjacente alguma margem de manobra, que permite aos
governados/geridos/consumidores subversões no ordenamen-
to/uso pretendido pelo governo/gestor/fabricante. Isso seria a
iniciativa. Nesse nível, a relação entre essas duas dimensões da

23
CRISTIANO CRUZ

instrumentalização é direta, no sentido de que o aumento de uma


delas implica na redução da outra e que o posicionamento de-
pende, seja do que os geridos/governados/consumidores dão
efetivamente conta de se submeterem, seja do quanto estão dis-
postos a fazê-lo.

Racionalidade sociotécnica
Apresentada nesses termos, a teoria da dupla instrumentali-
zação permite a Feenberg dar um passo em relação à teoria críti-
ca. Tal passo procura mostrar que a solução para os problemas
trazidos com a modernidade e identificados com o que se cha-
mou de racionalidade instrumental não pressupõe a eliminação
ou a delimitação da técnica, a partir de fora, como pode – e deve!
– ser dado também a partir da técnica e de modo interno a ela
própria. Esse seria o caso porque, por um lado, a racionalidade
que preside ao desenvolvimento técnico não é puramente instru-
mental, como seríamos levados a crer se reduzíssemos tal proces-
so apenas à instrumentalização primária, mas, dado que há que
se considerar também a instrumentalização secundária, envolve e
pressupõe valores sociais. Além disso, por outro lado, como a
técnica traduz e estabiliza os valores sociais que conseguiram
prevalecer no momento do seu projeto (unidade ou realidade so-
ciotécnica), se tentamos transformar a sociedade sem fazer o
mesmo com respeito ao substrato técnico que a conforma, estare-
mos condenados ao insucesso.
Ou seja, a técnica é regida por uma racionalidade sociotécni-
ca que, como apresentado na teoria da dupla instrumentalização,
procura resolver desafios técnicos que definimos (ou que encon-
tramos), de acordo com os princípios instrumentais da descon-
textualização, da redução e do controle, mas que necessita, para
tanto, de condições fronteira providas pela cultura – através de
significados, limites aceitáveis e múltiplos valores sociais contin-
gentes.

24
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

A tradição crítica, diante da qual a racionalidade sociotécnica


teria a pretensão de representar um passo adiante, tem suas raí-
zes em Weber. Para este, a racionalidade manifesta-se segundo
duas formas autónomas, a partir da modernidade: a formal –
aquela que busca os meios mais eficientes para se alcançar deter-
minado fim assumido – e a substantiva – que analisa a correção
ou adequação dos fins que assumimos (cf. Habermas, 1984, p.
170-1). Para além disso, o processo de racionalização por que
passará o mundo a partir daí vai-nos conduzir sempre mais à
convicção de que tudo é, ou poderá vir a ser, passível de ser co-
nhecido (pela nossa ciência) e controlado (pela nossa técnica), li-
bertando-nos do império das forças misteriosas e imprevisíveis
que moviam a realidade dos grupos primitivos (cf. Weber, 2004
[1919], p. 12-13). É isso que nos conduzirá à intelectualização, isto
é, à racionalização da vida e do mundo como uma realidade de-
sencantada (cf. Weber, 2004, p. 85-6), na qual não existem mais
interditos a manipular, ou para nos apropriarmos de tudo o que
existe, de acordo exclusivamente com a utilidade que isso possa
ter para a otimização ou racionalização de toda a nossa vida (cf.
Weber, 2005 [1904-5], p. 13-4, 58). Trata-se, noutros termos, do
progressivo império da racionalidade formal, isto é, da eficiência
e do controle assumidos como princípios não negociáveis e váli-
dos por si mesmos (cf. Feenberg, 2002, p. 65).
Com isso, as múltiplas esferas da vida – economia, política,
ciência etc. – que se vão diferenciando e autonomizando social-
mente, passam a operar segundo materializações próprias desses
princípios, imunes a quaisquer controles substantivos (cf. Haber-
mas, 1984, p. 158-165; Stump, 2006, p. 3-4) (em movimento que
significará a cisão da unidade clássica entre bom, belo e verda-
deiro, e que nos conduzirá a distintas encarnações da separação
entre facto e valor). A modernidade, assim, acaba transformando
“relações sociais e instituições em objetos de troca e gestão” (Fe-
enberg, 2015b, p. 270). Chega-se, por esse meio, à gaiola de ferro
de uma gestão burocrática sempre mais total e imobilizadora da

25
CRISTIANO CRUZ

ação política (ou imune a ela, porque exercida de forma tecnocrá-


tica), ou cerceadora da liberdade individual (ou seja, não sensível
à contingência representada pela singularidade de cada indiví-
duo). E isso, que é exatamente o oposto da liberdade prometida
ou pretendida pelo iluminismo, seria uma realidade inapelável
no mundo regido pela eficiência e pelo controle formais, ou seja,
pela racionalização e otimização tomadas como fins por si mes-
mos5 (cf. Weber, 1978 [1922], p. 979-80; Habermas, 1984, p. 247-51;
Feenberg, 2010, p. 4-5).
De Horkheimer e Adorno a Habermas, passando por Marcu-
se, permanecerá esse diagnóstico de que a modernidade nos con-
duziu à perda progressiva do poder de ação social
transformadora, por estar fundamentada numa forma específica
de racionalidade – a racionalidade formal, como chama Weber,
ou racionalidade instrumental/tecnológica, como lhe chamará a
Escola de Frankfurt –, que se ocupa unicamente com os meios –
mais precisos (controlo) e mais eficientes – sem se permitir qual-
quer controlo ou conformação substantiva.
Para os autores de a Dialética do Esclarecimento, a causa esta-
ria na progressiva restrição da racionalidade teórica, em cada no-
vo passo que o esclarecimento dava no Ocidente, na procura por
garantir a segurança e por nos libertar das forças e fantasias que
a nossa imaginação supunha existirem (cf. Horkheimer & Ador-
no, 2002 [1944], p. 1-4). Porém, o esclarecimento acaba, com isso,
por nos interditar a possibilidade de conceptualizar, isto é, de
transcender dialeticamente aquilo que é imediato e cientifica-
mente enunciável (aquilo que o positivismo afirmava ser o único
conhecimento possível de construção) e acabamos por nos con-
formar a um conhecimento – e a uma prática – apenas instru-
mentais do/no mundo (cf. Idem, p. 15-21). Ou seja, como paga
por esse processo, vemo-nos não libertados da determinação do
destino, na sua reinstituição cíclica interminável – como nos mi-
tos que foram sendo superados pelo esclarecimento – mas, exata-
mente ao contrário, aprisionados como dantes. Mas, agora, num

26
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

determinismo cíclico, identificado com as imutáveis (e inalterá-


veis) leis da natureza, a que se soma a coerção social, que nos
destitui de qualquer individualidade (cf. Idem, p. 7-9).
Marcuse, de sua parte, em movimento que ecoa Horkheimer
e Adorno, identificará na racionalidade instrumental – por ele
chamada de tecnológica – que coloniza a nossa vida, a causa da
perda da nossa capacidade de transcender o status quo, sonhan-
do e construindo outros ordenamentos sociais possíveis (cf. Mar-
cuse, 2002 [1964], p. 14). Há, na sua concepção, uma pluralidade
de potencialidades individuais e coletivas que, em rigor, podem
florescer em múltiplos modos (cf. idem, p. 224-6). Contudo, vive-
mos num tempo de tal integração à racionalidade tecnológica, de
tal conformação à tecnologia instituída, que as tensões clássicas
existentes entre indivíduo e sociedade, entre as classes, etc. desa-
parecem e impedem-nos de superar problemas claros do nosso
tempo (como a permanência da miséria, do trabalho extenuante,
da guerra, etc., quando nada disso, por si, seria mais mandatório
ou necessário) (cf. idem, p. 3-20; 230-1). Ou seja, o ordenamento
vigente adequa-nos a um modo de vida rígido, destituindo-nos
dessa nossa dimensão “transgressora”, dialeticamente negadora
do estabelecido e condição de possibilidade de transpô-lo, atuali-
zando parte daquilo que se traz ou se construiu como potenciali-
dade (cf. Lopes, 2015, p. 123). É a unidimensionalidade, ou seja, a
eternização do já dado (cf. Marcuse, 2002, p. 14) que, com a mas-
sificação, é também aquilo que a arte passará a produzir ou re-
forçar em nós (cf. idem, p. 59-74).
Já Habermas conceberá dois grandes espaços da vida social,
cada qual regido por uma racionalidade específica. De uma par-
te, haveria o sistema que compreende o mundo da produção ma-
terial e da administração pública e que se rege pela racionalidade
instrumental (ou, nos seus termos, racional-intencional) (cf. Ha-
bermas, 1984, p. 71-2). De outra, porém, haveria o mundo da vi-
da, aquele dos acordos que estabelecem significados e horizontes
norteadores da vida em comum, também racionalizado, mas, ao

27
CRISTIANO CRUZ

contrário do que propunha Weber, segundo uma forma de racio-


nalidade distinta e comunicativa (cf. Habermas, 1987, p. 153-97).
A “gaiola de ferro” de Weber manifestar-se-ia, para Habermas,
não na realização da racionalidade própria dessa parte da vida
humana, mas no transbordamento da racionalidade instrumental
para o mundo da vida, na colonização deste por aquela (cf. Ha-
bermas, 1987, p. 183, 195-6, 305, 332-73). Com isso, a solução para
a distopia do controlo progressivo e inexorável da vida social de
Weber seria não a transformação ou a eliminação do sistema e de
sua racionalidade própria, mas a contingência desta ao espaço
que lhe diz respeito. A técnica – nas suas manifestações produti-
va e administrativa – seguiria a sua normatividade instrumental.
E isso, em si mesmo, não seria um mal (cf. Habermas, 1987, p.
153-97).
Marcuse, por seu turno, apontará como saída do aprisiona-
mento, que também diagnostica, a superação da unidimensiona-
lidade. Isso é possível porque Eros, a força, pulsão ou tendência
que está por trás do nosso impulso por superar as restrições, con-
tenções ou limitações (impostas, em última análise, pela socieda-
de), na busca dialética pela realização, subsiste no ser humano
unidimensional , ainda que de forma latente,(cf. Marcuse, 2002,
p. 131, 150, 170-1). Seja como for, a transformação do status quo
exige dois elementos. De uma lado, a liberdade de que necessita-
mos para construir o novo que se procura só pode emergir da lu-
ta consciente contra o estabelecido (cf. idem p. 227-228), ou seja,
da conjugação entre o Eros e o Logos, como estava presente, por
exemplo, na dialética platónica, na sua tensão entre o “é”, empi-
ricamente verificável, e o “dever ser”, idealizado ou intuído, di-
ante do qual a realização presente se mostrava repetidamente
limitada ou aquém do que poderia vir a ser (cf. idem, p. 129-31,
170-1). De outra parte, a transformação só é possível se, ao lado e
em decorrência desse mesmo exercício dialético de tomada de
consciência e libertação, produzirmos uma ordem técnica que
permita o novo buscado:

28
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

Se a realização de um projeto tecnológico [alternati-


vo] envolve uma ruptura com a racionalidade tecnoló-
gica prevalecente, a ruptura, pelo seu lado, depende de
que continue a existir a própria base técnica. Porque é
essa base que tornou possível a satisfação de necessida-
des e a redução da fadiga [humanas], de modo que per-
manece a base de todas as formas de liberdade humana.
A mudança qualitativa encontra-se, assim, [não na des-
truição, mas] na reconstrução dessa base, ou seja, no seu
desenvolvimento com vistas a diferentes fins (Marcuse,
2002, p. 236).
Já para Horkheimer e Adorno, a superação da opressão soci-
al, da “gaiola de ferro”, requer que se volte a conquistar o concei-
to, isto é, aquilo que pode nos permitir ter alguma distância da
ordem dada e medir o grau de injustiça do ordenamento instituí-
do (cf. Horkheimer & Adorno, 2002, p. 30-32). Ou seja, a mudan-
ça do status quo exige que a razão seja reassumida nas suas
possibilidades teóricas, para além da vertente calculadora que
impera hoje em dia. “O respeito científico mítico dos povos pela
realidade dada, que eles próprios criam constantemente, torna-
se, por fim, um fato positivo, uma fortaleza diante da qual até
mesmo a imaginação revolucionária se sente envergonhada, co-
mo se fosse utopia, e se degenera em confiança [compliant trust]
na tendência objetiva da história.” (Idem, p. 33). Dessa forma, o
esclarecimento, sem o qual a liberdade e a autodeterminação são
impossíveis, só se realizará plenamente quando renegar esse pa-
pel de produzir a adequação de tudo e todos a essa ordem assu-
mida como objetiva e necessária (cf. idem, p. 32-34).
*****
Esse diagnóstico de que, apesar do iluminismo, a moderni-
dade, que se configura também em consequência dele, não trou-

29
CRISTIANO CRUZ

xe um aumento de liberdade e autodeterminação mas sim um


progressivo desempoderamento do ser humano e, com isso, um
crescente cerceamento de suas múltiplas possibilidades de flores-
cer, é um diagnóstico com que Feenberg também concorda. Isso,
para Feenberg, manifestar-se-ia na construção dos diversos códi-
gos técnicos6, que fundamentam a atuação autónoma dos tecno-
cratas. Ao mesmo tempo, como vimos, para ele é inegável que a
tecnologia desempenha um papel fundamental nesse processo
(de desempoderamento) e que, por via de regra, ela é blindada,
em seu desenvolvimento, contra ponderações substantivas (i.e.,
valorativas) de todo o tipo. De igual forma, a dinâmica própria
de nosso tempo naturaliza o ordenamento social instituído, ao
cristalizar os condicionamentos sociais que conformaram os múl-
tiplos projetos técnicos nos referidos códigos canónicos que bali-
zam sua construção, funcionalidade e uso. Como consequência,
torna-nos a todos progressivamente menos aptos a pensar ou
mesmo enunciar aquilo que é diferente.
Entretanto, para Feenberg, a falha mais fundamental de to-
das essas análises é tomar a racionalidade que preside ao desen-
volvimento técnico em todos os âmbitos daquilo que Habermas
chamou sistema como algo, em si mesmo, neutro e impermeável
a valores sociais7. Aquilo que, na verdade, tais autores analisam
não é a racionalidade técnica pura, mas a conformação que ela
adquire sob o ordenamento (substantivo/valorativo) capitalista
hegemónico em que nos encontramos (cf. Feenberg, 1999, p. 9-10;
2010, p. 13-5, 219-21). Desse modo, não foi o surgimento de uma
racionalidade técnica que nos conduziu ao império do controlo e
da eficiência (reduzindo-nos a uma vida “apenas” sempre mais
racionalizada, controlada, otimizada, desencantada), mas sim a
conjugação do enorme aumento da nossa capacidade de conhe-
cer cientificamente e de incidir tecnicamente sobre o mundo com
a perspectiva capitalista dessa incidência (o que nos conforma a
uma vida mais racionalizada, controlada..., com vista a maximi-
zar o lucro e a minimizar as nossas possibilidades de insurreição

30
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

contra esse quadro de coisas). O controlo e a subjugação do mun-


do natural e humano não decorreriam do ser próprio da técnica
em si (i.e., essa racionalidade calculadora e controladora), mas
sim da sua manifestação capitalista. Fossem outros os valores a
permearem e conformarem tal construção e teríamos uma outra
configuração resultante.
Com isso, a grande dificuldade para transformarmos essa
ordem que parece tornar-se cada vez mais totalitária e desumani-
zante não advém propriamente de uma colonização do mundo
da vida por uma racionalidade que lhe é estranha, porque não
comunicativa. De um modo mais fundamental, essa dificuldade
resulta do predomínio hegemónico da ideologia capitalista, que
se desdobra na produção de uma ordem técnica que a reforça e
estabiliza e na entronização de uma racionalidade formal (ou ins-
trumental) que está ao pleno serviço de sua perspectiva substan-
tiva (ou seja, dos valores do controlo e do lucro que presidem à
visão capitalista).
Além disso, exceptuando-se Marcuse, esses autores não te-
matizam a questão de a técnica ser,, conformadora da ordem so-
cial, por si mesma. Com isso, o risco que se tem é não
conseguirmos mudar a realidade, de facto, por mais que a procu-
remos conhecer e analisar criticamente.
Por fim e como consequência dos limites anteriores, não se
vê que o ordenamento sociotécnico em que nos encontramos en-
volvidos não só seja democratizável, ou seja, passível de ser con-
formado por outros valores que não a submissão ou o controlo
(com vistas ao lucro), como, na prática, isso já tem mesmo ocorri-
do, ainda que marginalmente (como os exemplos utilizados ao
longo desta introdução o ilustram). Para tanto, não foi – nem é –
necessária uma transformação profunda no modo de pensar dos
agentes ou, de forma ainda mais radical, um novo desvelamento
do Ser (Heidegger). Ao contrário, bastam, em alguma medida,
como veremos na sequência, interesses ou uma causa comum a

31
CRISTIANO CRUZ

unir e mover um grupo de pessoas suficientemente fortes em ter-


mos políticos (em sentido amplo, que transcende a política insti-
tucional).
Em síntese, então,
[a] teoria da instrumentalização fornece uma alterna-
tiva ao reducionismo, ao mostrar a racionalidade da in-
tervenção cultural na configuração do aspecto causal do
sistema técnico. Esse contra-argumento ao determinis-
mo abre espaço para a luta social e para a política no
desenvolvimento tecnológico. Em suma, a teoria da ins-
trumentalização é politicamente significativa não por-
que advoga ou apoia qualquer política pública em
particular, mas porque ela torna a política pensável no
mundo do sistema técnico (Feenberg, 2017b, p. 156).
Democratização da tecnologia
Para Feenberg, existem essencialmente três modos de inci-
dência social ou democratizante sobre a técnica (cf. Feenberg,
1999, p. 121-9). Ela pode:
1) ser apropriada criativamente ou subvertida, ou seja, ser
operada de forma diferente daquela em que foi original-
mente projetada. Exemplo clássico disso é o caso do sis-
tema francês de telemática Minitel, inicialmente
projetado para prover acesso dos utilizadores a bases de
dados, mas que acabou por se popularizar como uma
rede de comunicação entre os assinantes do serviço a
partir do desenvolvimento, por hackers, de uma funcio-
nalidade suportada pelo equipamento, mas que inicial-
mente não estava disponível para ser usada (cf.
Feenberg, 1995, p. 144-66; 2010, p. 79-104);

32
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

2) ter seu desenvolvimento submetido a regulações/con-


trolos – decididos, formalmente ou não, pelos governos
ou pelos consumidores – que emergem de controvérsias
técnicas, em geral. Exemplos disso vão desde a transfor-
mação dos procedimentos de teste de fármacos, por
ocasião da eclosão da epidemia de AIDS nos Estados
Unidos (cf. Colins & Pinch, 1998, cap. 7) e da alteração
das normas de conduta nos partos norte-americanos (cf.
Feenberg, 2015a), até regulamentações ambientais (em
torno, por exemplo, de questões como a conservação da
camada de ozono ou da redução na emissão de gases de
estufa), passando por situações como a mobilização de
consumidores da Apple, nos países ocidentais da Euro-
pa e América do Norte, contra as condições de trabalho
dos funcionários da empresa chinesa Foxconn, onde os
produtos da multinacional são fabricados8, e pela me-
lhoria das condições técnicas de trabalho de categorias
profissionais inteiras (cf. Rosner & Markowitz, 1987;
Markowitz & Rosner, 2002); ou
3) ser projetada em associação com grupos de atores soci-
ais, incorporando, com isso, pelo menos parte dos valo-
res que eles partilham. Um dos exemplos desse tipo de
democratização na Europa é o projeto participativo (cf.
Shculer & Namioka, 1993; Hoven et al., 2015); no Brasil,
a tecnologia social e aquilo que vem sendo chamado de
engenharia popular (cf. Cruz, 2017) constituem outros
exemplos.
Um aspecto que todos esses casos mostram é que, apesar da
autonomização e do posicionamento próprios da instrumentali-
zação primária e sustentados pelos diversos códigos técnicos
(que procuram não apenas cristalizar os significados, funcionali-
dades e usos das várias mediações técnicas como, ao mesmo

33
CRISTIANO CRUZ

tempo, blindar o seu desenvolvimento e a sua operação relativa-


mente a interferências externas de todo o tipo), apesar disso, sub-
siste sempre, como já havíamos destacado, algum espaço para a
iniciativa ou democratização. É o que Feenberg (1999, p. 112-4)
chama de margem de manobra.
Além disso, o primeiro tipo de democratização estaria tam-
bém muitas vezes associado àquilo que Simondon chama de su-
perabundância funcional (cf. Simondon, 2008 [1965-6], p. 171-3;
Barthélémy, 2014, p. 91): um excedente de funcionalidades nas
mediações técnicas que construímos, que muitas vezes permite
que possam ser apropriadas para usos ou operações original-
mente não intencionados. Por outro lado, em algo que se verifica
sobretudo nos outros dois tipos de democratização, o desenvol-
vimento técnico, por conta da sua insuperável subdeterminação,
permite soluções distintas, que serão assim preferidas ou conce-
bidas em função das condições fronteira sociais prevalecentes no
momento do seu projeto.
Grosso modo, então, isso que Feenberg chama de democrati-
zação da tecnologia e/ou do seu desenvolvimento refere-se, em
uma primeira aproximação, à
1) seleção da solução técnica, dentre as múltiplas disponí-
veis, ou à customização daquela solução única que se
tem à disposição para se obter algo que responda me-
lhor às necessidades e/ou aos valores que o grupo quer
ver respondidos/respeitados; e
2) definição das questões ou problemas que devem mere-
cer atenção, segundo as condições fronteira trazidas pe-
lo grupo e que serão, assim, passíveis de serem mais
bem conhecidos técnica e cientificamente e de obterem,
a partir daí, uma solução (mais) adequada.
Este último aspecto, quando se refere a produções técnicas

34
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

do tipo da tecnologia social, engenharia popular ou mesmo pro-


jeto participativo tem implicações epistemológicas bastante séri-
as, que têm a ver com as metodologias que serão utilizadas no
processo de construção (participativa) da solução tecnológica pe-
lo grupo que a procura (cf. Cruz, 2017b). Esse seria, assim, o ter-
ceiro âmbito de incidência/atuação de uma procura
democratizante, a sensibilização de cientistas e engenheiros/as
para operarem profissionalmente segundo perspectivas ou méto-
dos distintos de boa parte daquilo que está atualmente estabele-
cido.
Para além, não obstante, dessas três áreas ou dimensões da
democratização da técnica e do seu desenvolvimento, existiria
ainda uma quarta e última, e que seria a mais básica de todas - a
busca por, pura e simplesmente, se ter acesso à tecnologia.
A despeito, porém, do tipo ou do âmbito da democratização
procurada, será preciso, por via de regra, um motor ou dispara-
dor político, alguma força social que, por assim dizer, seja capaz
de a fazer acontecer. Feenberg, a partir dos estudos de caso e dos
referenciais teóricos de que parte, reconhecerá hoje tal força na-
quilo que ele chamará de redes de interesse. Assim, no restante
desta seção, detalharemos o que são e como se constituem, para
ele, essas tais redes.

As redes de interesse não são mais do que coletivos de pes-


soas que se articulam em função de algum interesse ou agenda
comum. Historicamente, para Feenberg, elas derivam dos movi-
mentos de democratização da técnica que emergem, no pós-se-
gunda guerra mundial, com a tomada de consciência do aumento
exponencial do poder de controlo e de infligir danos (a indivídu-
os, comunidades e/ou meio ambiente) propiciado pelo avanço
tecnológico (cf. Feenberg, 2015a, p. 18-21). Na sua primeira etapa,
transcorrida na década de 1960, tais movimentos questionavam o
poder altamente centralizado dos governos. O auge dessa fase foi

35
CRISTIANO CRUZ

o Maio de 68 na França. Legou-se desse período uma nova forma


de militância, que será mobilizada na fase seguinte. Nesta, que
teve lugar nas décadas de 1970 e 80, o foco passa a ser o meio
ambiente, a medicina e o género.
O terceiro estágio, aquele em que nos encontramos hoje, ini-
cia-se na década de 1990, com o advento da internet e das lutas
ou subversões com respeito ao uso e às funcionalidades que se
vão desenvolver para ou a partir dela. É a etapa em que efetiva-
mente surgem as redes de interesse, grupos que usualmente se
articulam apenas durante algum tempo e em torno de exigências
pontuais sem que, em termos mais amplos ou em outros contex-
tos,os seus participantes necessariamente partilhem, por exem-
plo, valores comuns ou uma mesma ideologia (cf. Feenberg,
2015a, p. 18-21). Seriam exemplos desse tipo de organização os
grupos que lutaram por várias democratizações exemplificadas
ainda há pouco: homosexuais nos Estados Unidos (na batalha
pela mudança dos procedimentos de teste de novos medicamen-
tos); consumidores dos países centrais do capitalismo (na batalha
contra as péssimas condições de trabalho dos funcionários da
Foxconn, que fabrica produtos da Apple); utilizadores do Minitel
(que o transformaram numa ferramenta de comunicação para a
interação entre si), etc.
Assim, na constituição das redes técnicas há, fundamental-
mente, um despertar para uma condição que se mostra ou que se
torna não (mais) aceitável; ou, o que seria o mesmo, há a tomada
de consciência de uma potencialidade que não aceitamos mais
reprimir. E isso é seguido por uma associação de pessoas em tor-
no dessa causa, de modo a procurar transformar esse aspecto es-
pecífico da realidade (cf. Feenberg, 2015a, p. 9-10; 2015c, p. 13).
A tecnologia, desse modo, opera em dois níveis na constitui-
ção de tais redes. Por um lado, é quase sempre através de alguma
mediação técnica (para além da linguagem) que tais mobilizações
podem ter lugar. De fato, esses movimentos procurarão quase
sempre algum meio de suporte à comunicação (como material

36
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

impresso, rádio, TV, Internet, telefone etc.) para atrair e/ou infor-
mar os seus participantes. Por outro lado, e isso é o mais impor-
tante aqui, são os efeitos de alguma técnica, potencialidades suas
não apropriadas ou soluções alternativas (ao padrão estabeleci-
do) não perseguidas que proverão a segmentos da sociedade civil
uma agenda ou identidade em torno da qual se unir (ou com a
qual se identificar), na luta por as concretizar.
São essas agendas ou identidades que constituem os interes-
ses dos participantes numa rede qualquer. Exemplos delas pode-
riam ser a contaminação ambiental da região em que se vive (que
pode congregar moradores, ambientalistas e demais interessa-
dos/afetados, na luta por transformar esse quadro); questões re-
lacionadas com efeitos indesejados na cadeia produtiva de algum
produto (que podem dar oportunidade a boicotes ao produto ou
à empresa, da parte dos consumidores, até que o problema seja
superado); e aspectos associadas a uma doença ou condição de
saúde específica (que podem mobilizar pacientes, familiares e
demais interessados ou afetados para se garantir mais investiga-
ção na área ou para alterar procedimentos médicos, por exem-
plo).
Em suma, então a técnica possibilita e provoca mobilizações
sociais que têm nela o seu objeto (ou objetivo). Tais mobilizações
permitem não só que certas potencialidades não intencionadas,
mas presentes, sejam apropriadas ou desenvolvidas, como tor-
nam possível antecipar ou direcionar o desenvolvimento técnico
numa direção que não seria escolhido por si, se não fosse essa
pressão política,.
Não obstante, e naquilo que constitui parte das críticas en-
dereçadas a Feenberg e à sua teoria, ainda que o ordenamento
sociotécnico seja passível de reconfigurações ou, nos seus termos,
democratização, o dado empírico disponível é que, onde quer
que tais democratizações tenham tido êxito, no geral uma de três
coisas veio na sequência: ou elas acabaram por ser cooptadas pe-
la tecnocracia capitalista (como nas grandes explorações de pro-

37
CRISTIANO CRUZ

dução orgânica); ou elas paradoxalmente permitiram um contro-


lo e dominação ainda maiores (como no caso da internet, cujo de-
senvolvimento, por exemplo, permite/possibilita/subsidia tanto
eventos revolucionários, como a Primavera Árabe, quanto o con-
trole mais completo de cidadãos, do tipo daquele desenvolvido
pela NSA nos EUA); ou permaneceram largamente marginais
(como os cultivos agroecológicos populares, os empreendimentos
autogestionários de economia solidária, as fábricas recuperadas
por trabalhadores, etc.).
Pela sua parte, Feenberg não nega tais observações, que dão
conta de um agenciamento ou, no sentido oposto, contingencia-
mento da técnica inicialmente subversiva construída, reconhe-
cendo que uma transformação profunda no nosso modo de vida,
que conduza ao socialismo democrático que ele defende como
horizonte ideal a ser perseguido, só terá lugar após uma ampla
crise sistémica, que permita a ruptura com o status quo capitalis-
ta-tecnocrático. O seu ponto, de qualquer modo, é procurar mos-
trar tanto a razoabilidade da sua racionalidade sociotécnica,
quanto a viabilidade da sua democratização (que é testemunha-
da, como se acabou de mostrar, por múltiplos eventos em todo o
mundo).
Para além disso, há dois aspectos fundamentais relacionados
com a democratização da técnica nas suas múltiplas possibilida-
des e que não devem ser esquecidos. Por um lado, tais processos
são potencialmente formadores de consciência crítica, por mais
que eles sejam movidos por grupos de pessoas ligadas entre si
apenas pelo interesse técnico que têm em comum. Quanto menos
não seja, de facto, esses processos ajudam (ou podem ajudar) os
participantes da rede de interesse tanto a desconstruírem os mi-
tos da neutralidade e unilinearidade do desenvolvimento técni-
co9, quanto a descobrirem mecanismos eficientes de superação,
mesmo que pontual, do ordenamento tecnocrático vigente.
Por outro lado, e naquilo que vale principalmente para solu-
ções que dão conta de sustentar um ordenamento sociotécnico

38
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

mais democrático, socialmente justo e ambientalmente sustentá-


vel, de pouco vale enfrentar uma crise sistémica do tipo que pode
derrubar o capitalismo, sem que tenhamos para oferecer, para o
lugar da tecnologia convencional atual (que é desempoderadora
da ação política, não sustentável etc.), seja um arsenal mínimo de
tecnologias alternativas já implementadas (afinadas com os valo-
res que queiramos fazer avançar) e que possam vir a ser reaplica-
das noutras partes, sejam metodologias testadas e eficazes para
desenvolvê-las.

Notas

1) Cf. https://www.sfu.ca/~andrewf/translations.html.
2) Os códigos técnicos determinam os padrões a serem seguidos na
construção de qualquer artefato ou tipo de solução técnica
estabilizada. Eles normatizam o trabalho técnico e materializam-se
em regras que asseguram que as funcionalidades consideradas
essenciais para esse tipo de solução, assim como os valores que lhes
estão subjacentes, serão mantidas e preservadas de alterações que as
subvertam. Tais códigos seriam, nesses termos, o equivalente
tecnológico dos paradigmas descritos por Kuhn na ciência, no
sentido de, uma vez estabelecidos, cessar a disputa entre
significados (e suas respectivas visões de mundo), cristalizando-se
funcionalidades a serem garantidas e os valores a serem perseguidos
no seu desenvolvimento posterior (cf. Feenberg, 2010, p. 51-58).
Enquanto o paradigma em vigor não sofrer contestações, o processo
seguirá inalterado, impassível. Quando contestações ou usos
subversivos se impuserem, terá que ser reformulado, de modo a
incorporar sentidos (ou usos) e funcionalidades anteriormente não
contemplados, com os respectivos valores sociais que tais sentidos,
usos ou funcionalidades suportam, servem ou emulam. Assim,
quando os valores da produtividade, da submissão da natureza e do

39
CRISTIANO CRUZ

lucro se tornam hegemônicos, por exemplo, na conformação das


soluções técnicas agrícolas (relativizando os valores da
sustentabilidade ambiental, do empoderamento popular, da não
concentração de renda etc.), os códigos técnicos a regerem tais
soluções tendem a focar essencialmente a produtividade e os lucro
brutos, desconsiderando tanto os impactos ambientais não locais ou
de médio/longo prazo dessas soluções, quanto as suas
consequências sociais sobre terceiros (e.g., agricultores e
comunidades rurais ancestralmente fixados na região dos
empreendimentos). Nesse cenário, tais impactos serão considerados
externalidades, de modo que soluções não canónicas que possam vir
a ser propostas – como as soluções agroecológicas populares – serão
desacreditadas como ineficientes ou menos eficientes do que as
canônicas (e, por isso, tecnicamente inferiores), sendo propostas
apenas porque contam com algum tipo de cegueira ideológica ou de
obscurantismo anti tecnológico e/ou anticientífico. Apenas quando
se logra romper a hegemonia dos valores que conformam o código
técnico é que soluções alternativas àquelas prescritas por tais códigos
podem sair da marginalidade social e novos códigos, incorporando
outro conjunto de valores sociais, podem, eventualmente, ser
erigidos e socialmente sustentáveis. (Casos históricos de reescrita dos
códigos técnicos – e subsequente alteração dos critérios de eficiência
técnica –, em resposta à mudança nos valores sociais conformadores
da tecnologia, são ilustrados no exemplo do desenvolvimento das
caldeiras nos Estados Unidos e no do banimento do trabalho infantil
nas fábricas inglesas, ambos mencionados um pouco mais à frente
neste mesmo item 2.)
3) A teoria crítica, do modo como Horkheimer (cf. 1989 [1937]) a define,
busca não apenas construir um conhecimento mais verdadeiro sobre
a sociedade, mas contribuir para a transformação ou superação da
ordem em grande nível redutora ou desumanizante instituída,
encaminhando-nos para uma realidade verdadeiramente mais
humana e realizadora (onde não exista mais opressão nem
alienação). Trata-se, por essa razão, de um conhecimento que só pode

40
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

ser construído na interação ativa do/a investigador(a) com a


realidade social, por meio da reflexão acerca das atuações
transformadoras intentadas e do impacto delas sobre o mundo –
reflexão que é chamada de práxis. Cresce-se, com isso, em grau de
conscientização e, como consequência, em capacidade de atuação
política. Feenberg, quando chama a sua teoria sobre a tecnologia de
“teoria crítica da tecnologia”, procura inserir-se não apenas na
tradição dessa linha de pensamento da Escola de Frankfurt (da qual
Marcuse, seu orientador de doutoramento, é um dos membros mais
conhecidos), como evidenciar o tipo de conhecimento que quer
produzir, assim como a intenção fundamentalmente transformadora
e libertadora que ele busca com tal construção.
4) Na verdade, Feenberg sustenta em diversos sítios, como em 2010 (p.
170-1), que a objetificação se aplica, no nível da produção técnica,
também ao trabalhador. Com efeito, alega ele, no trabalho o
indivíduo deve atuar desligado de todos os seus outros espaços de
pertença e vinculação social (que é, como se verá, a
descontextualização) e, além disso, apenas segundo a sua condição,
por assim dizer, trabalhadora, desconsiderando os aspectos
religiosos, políticos e outros (o que seria reducionismo). Contudo, de
uma parte, nessas análises não fica muito claro se tal coisa estaria no
contexto da produção técnica ou antes no da gestão burocrática (no
caso, a gestão do trabalho). De outra parte, ademais, ele deixa de
explicar – e será complicado de imaginar – no que consistiriam os
complementares desses dois elementos da instrumentalização
primária, ou seja, os que viriam a ser, respectivamente, a
sistematização e a mediação desse trabalhador reduzido, nos termos
de Heidegger, a “reserva à disposição”. Por conta disso, não
incorporamos o ser humano nos dois primeiros pares que
apresentaremos,.
5) Trata-se aqui da perspectiva da qual não nos afastamos hoje em dia,
com o ordenamento tecnocrático da vida social, pela qual ações que
vão em direção distinta, por exemplo, daquelas ditadas pelos

41
CRISTIANO CRUZ

grandes atores econômicos (i.e., FMI, Banco Mundial, OMC etc.) são
reputadas como irracionais ou ideológicas. Dos governos nacionais
não se espera, nesse contexto, outra coisa senão a concretização
dessas diretivas. Com isso, a “gaiola de ferro” do mundo globalizado
torna-se, também ela, globalizada.
6) Cf. nota 2.
7) Marcuse, a bem da verdade, reconhece a não neutralidade da
racionalidade tecnológica, mas, na compreensão de Feenberg (cf.
2017a, p. 638-9), a sua crítica, por ser demasiadamente abstrata, não
permite que sejam dados os passos teóricos que o foram com a
incorporação de contribuições importantes do campo de ciência,
tecnologia e sociedade (CTS).
8) http://recode.net/2015/04/06/where-apple-products-are-born-a-rare-
glimpse-inside-foxconns-factory-gates/
9) O mito da neutralidade da tecnologia e/ou do seu desenvolvimento
sustenta que toda solução técnica é neutra, não incorporando nem
sustentando socialmente qualquer conjunto de valores sociais. Para
essa compreensão ingénua (ou ideológica) da tecnologia, o único
elemento a guiar o desenvolvimento técnico é o aumento de
eficiência por si mesmo, sendo que esta, ou os códigos técnicos em
referência aos quais ela é medida, tampouco incorporam qualquer
valor social. Como consequência disso, e sustentando o igualmente
indefensável entendimento de que os projetos técnicos dão conta de
sempre encontrar a solução ótima de cada problema com o qual se
defronta (cf. Simon, 1981 [1969]), o desenvolvimento tecnológico
evoluiria de forma unilinear, de modo que o passo posterior do
avanço técnico em qualquer momento da nossa história só poderá
ser um único: aquele da única solução ótima e mais eficiente para os
problemas em questão. Da articulação (ideológica) desses dois mitos,
obtém-se blindagem (adicional) para os códigos técnicos
estabelecidos e, nisso, para o ordenamento sociotécnico (tecnocrático-
capitalista) que eles sustentam ou emulam.

42
ANDREW FEENBERG E A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

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45
ENTRE A RAZÃO
E A EXPERIÊNCIA
Ensaios sobre tecnologia e modernidade
PRÓLOGO
Brian Wynne

A obra de Andrew Feenberg é pioneira na exploração dos vários


enigmas e oportunidades nas inter-relações entre ciência,
tecnologia e democracia. Os seus trabalhos filosóficos têm-se
envolvido de forma consistente num debate construtivo com a
sociologia do conhecimento científico e da tecnologia, conhecida
como estudos sobre ciência e tecnologia (ECT). Na realidade,
usando uma abordagem construtivista em que os ECT foram
pioneiros, muitas vezes à margem das principais correntes da
filosofia, Feenberg produziu muitas explicações perspicazes que
mostram como ambiguidades endêmicas, incompletudes e
diferenças de significado ou de propósito nas construções sociais
da tecnologia, que implicam negociação e flexibilidade, ou seja,
são situações políticas, que são habitualmente reduzidas e
explicadas como sendo descobertas de especialistas e como
constituindo “factos”. Mas a sua contribuição mais importante
não é crítica apenas nesse sentido. Feenberg construiu
pacientemente um trabalho considerável inspirado na filosofia

49
BRYAN WYNNE

que identifica os fundamentos de uma autêntica política


democrática da tecnologia - ou da tecnociência, como preferem os
ECT - como uma alternativa cada vez mais urgente da “não
política” manifestamente falida que a tecnociência supostamente
encarnaria.
Quanto mais não fosse por estas razões, é para mim uma
honra ter sido convidado para escrever uma introdução a este li-
vro de ensaios. Ao formular alguns desafios esclarecidos aos ECT,
Feenberg também se lhes associa para demolir alguns dos edifí-
cios mais sacrossantos da infiltração generalizada do moderno
capitalismo global na ciência, na tecnologia e na inovação. Esta
infiltração tem envolvido a construção mútua da ciência e da po-
lítica segundo trajetórias “dadas”, mas silenciosas, de inovação
tecnológica - e da correspondente regulação e avaliação redutoras
de riscos, tudo promovido em nome da ciência.
Segundo as palavras de Feenberg na sua introdução ao capí-
tulo 9:
Nos tempos modernos, o novo conceito mecanicista da nature-
za destruiu a harmonia entre a experiência e a racionalidade
científica... O mundo dividiu-se em duas esferas incomensurá-
veis: uma relativa à natureza, racional mas sem significado, e a
outra relativa ao ambiente humano, todavia rico de significado
mas sem fundamento racional. Nos séculos desde a revolução
científica, não se encontrou maneira persuasiva de validar a
experiência ou de reunir esses dois mundos, apesar das repeti-
das tentativas dos filósofos, de Hegel a Heidegger. Este não é
apenas um problema teórico... Uma vez que as lições da expe-
riência já não moldam o avanço técnico, este é guiado exclusi-
vamente pela procura da riqueza e do poder. O resultado põe
em questão a viabilidade da modernidade.
Esta experiência comum do mundo da vida precisa de voltar
a estar ligada com os mundos diferenciados da razão (e do poder)

50
PRÓLOGO

instrumental dos especialistas, tanto de forma abstrata como in-


teressada, para explorar as possíveis direções sociotécnicas e a
distribuição da inovação através de uma política global que seja
genuinamente democrática.
Quase que se assume que as tecnologias modernas, comple-
xas, geralmente distribuídas e altamente coordenadas, quando
estabelecidas definem trajetórias materiais e imaginativas mas
também condicionantes que limitam o que pode ser considerado
como susceptível de desenvolvimentos futuros. No entanto, co-
mo mostra Feenberg, aqui em excelente companhia intelectual e
política, isso não pode nem deve poder conduzir a uma lógica fa-
laciosa (“non sequitor” (a) ), em particular a perversa e persistente
teologia do determinismo tecnológico, apesar de há muito desa-
creditada. Langdon Winner (1977) mostrou como essa falsa teo-
logia conduz inadvertidamente à ideia cultural, muito comum
mas redutora, de que a tecnologia está “fora do controlo huma-
no”. Nestes ensaios (cf. capítulo 2) Feenberg dá ênfase, com a de-
vida profundidade crítica, ao facto de que até mesmo a
abordagem “ambientalista” ainda dominante em relação aos de-
safios ambientais contemporâneos ter acabado por cair no mesmo
beco sem saída do determinismo tecnológico. Sugere que a sus-
tentabilidade ambiental exige reversão mais do que inovação so-
cial e tecnológica democraticamente imaginativa e distribuída
contra a concentração e concomitante exclusão - quer no conheci-
mento como nas competências, na tecnologia e nos recursos - que
o capitalismo global baseado no Estado exige. Feenberg descreve
esta explicação conservadora, mas ainda influente, das realidades
ambientais como uma “teoria de trocas compensatórias”, que
argumenta que precisamos de escolher entre ambientalismo e in-
dustrialismo.
Feenberg critica justamente a economia por ter encorajado
muito este falso determinismo tecnológico, pelo menos por omis-
são. Um dos poucos economistas que desafiou essa explicação
determinista da inovação tecnológica foi Brian Arthur (2009). Tal

51
BRYAN WYNNE

como se descreve no programa de investigação (www.anewma-


nifesto.org) do STEPS, um centro do Economic & Social Research
Council britânico, a economia da inovação tem-se sempre focado
em como conseguir mais inovação, e mais depressa; mas ao decli-
nar seguir as pistas dos ECT para considerar a tecnologia ou a ci-
ência como mundos sociais (e económicos) em si mesmos, a
economia fechou-os em caixas pretas, através de “variáveis mis-
tério”. Por isso nunca foi capaz de fazer, expressiva e honesta-
mente, perguntas fundamentadas do tipo normativo acerca das
flexibilidades não reconhecidas nas formas de tecnologia com que
poderíamos viver, assim como sobre quais são as direções ao longo
das quais a tecnologia se deve desenvolver em sociedades demo-
cráticas e globalmente sustentáveis.
Estas questões correspondem inteiramente à agenda de Fe-
enberg. No entanto, onde ele tem sido algo reservado e ambíguo
acerca de quanto isso mesmo também se aplica ao conhecimento
científico, eu seria aí mais assertivo, e sugiro que durante muito
tempo a sociedade tem dirigido seletivamente não só a direção da
tecnologia mas também (embora porventura menos diretamente)
a inquirição e a produção de conhecimento científica - não obs-
tante o facto de uma persistente compreensão científica da natu-
reza se ter desenvolvido e acumulado em paralelo com essa
atividade de investigação tecnocientífica mais seletiva na imagi-
nação de aplicações.
Juntaria por isso aqui uma questão adicional à rica perspeti-
va intelectual e política de Feenberg. Mesmo onde se reconhecem
os sérios desafios ambientais tais como eles são, a permanente
obsessão tecnológica e científica tende a distorcer muito a imagi-
nação das respostas da sociedade, dirigindo-as apenas na direção
de (sofisticadas) inovações tecnológicas . Muitas vezes isso também
significa uma focagem seletiva exclusivamente sobre a grande
tecnologia e respostas cientificamente muito intensivas; o que
muitas vezes significa, por si mesmo, inovações pelo lado da
produção, distintas de inovações pelo “lado da procura” através

52
PRÓLOGO

de contributos sociais (ou técnicos, mas lideradas pelo social). Po-


de-se argumentar que este síndroma de concentração na ciência,
na tecnologia e na inovação é, por si, uma função intrínseca da
modernidade; mas pode também ser visto como uma função das
exigências do capitalismo moderno por uma maior concentração
como condição para a extração de mais valias numa era económi-
ca baseada no conhecimento. As inovações humanas e sociais que
poderiamm reduzir o valor da produção e o processamento da
natureza, ao mesmo tempo que fazem uma contribuição positiva
para o ambiente e para a cultura, são cada vez mais excluídas do
imaginário dominante na sociedade, a favor de “soluções” alta-
mente concentradas de tecnologia. Ultrapassar esta trajetória pro-
funda e instigar em seu lugar culturas racionais de inovação,
distribuídas e com fundamentos diversificados, pluralistas e hí-
bridos, seria uma alternativa democrática de modernidade.
Feenberg argumenta, numa posição simpática, que os ECT
são um recurso essencial para essa possível libertação; mas apela
para que se adote um ponto de vista normativo mais ambicioso
para fazer essa contribuição histórica. O seu desapontamento
com os ECT é porque, apesar de todos o seu trabalho importante
para mostrar as múltiplas indeterminações do desenvolvimento
tecnológico, e as correspondentes flexibilidades que passasram
despercebidas para outras direções da inovação, têm-se mantido
afastados da teoria da modernidade como tal, incluindo o neo-
marxismo. Considera que os ECT têm corrido o risco de um co-
lapso imprevidente numa regressão anti-modernidade, ou num
solipsismo pós-moderno, ao contrário daquilo que Feenberg de-
seja, ou seja, uma luta frontal por uma alma cosmopolita e demo-
crática da modernidade, incluindo as suas dimensões tecnológicas
cada vez mais constitucionais e cruciais. Tal como muito trabalho
dos ECT, ele ilumina as oportunidades democráticas que foram
historicamente suprimidas na ciência e na tecnologia, apontando
para as vias em que os valores e as necessidades sociais e demo-
cráticas podem colidir com a imaginação, escolhas e projetos da

53
BRYAN WYNNE

tecnologia, trazendo a razão e os processos modernos de raciona-


lização para encontros deliberadamente mais construtivos com as
experiências e significados democráticos do mundo da vida em
toda a diversidade dos seus fundamentos. O seu caso de estudo
(capítulo 5) sobre a experiência coletiva francesa com o videotex-
to e o Minitel é um clássico a esse respeito. A ênfase no caráter
essencialmente arbitrário das estruturas tecnológicas e sociais em
que nos descobrimos “acorrentados” pelo artifício político tam-
bém enconta eco profundo nos ECT e nos trabalhos avançados de
economia da inovação (Arthur 2009).
Nesta exposição filosófica, explicitamente comprometida,
baseada com discernimento crítico em Heidegger, Weber, Marcu-
se, Adorno e Habermas, entre outros, Feenberg deixa algumas
ambiguidades intrigantes acerca da forma como entende o agente
crítico - a ciência. Até que ponto é que a ciência também é objeto
das mesmas considerações democráticas que Feenberg traz para
a tecnologia e para as suas direções, limites e possibilidades? Tal-
vez se possa responder indiretamente(b) a esta difícil questão final
- bastará tentar as revisões e as inovações políticas e económicas
a respeito da tecnologia, que Feenberg advoga, e a ciência tomará
depois conta disso? Em qualquer dos casos, a ciência sempre es-
teve imbuída com o seu próprio “social” e “cultural”, mesmo
quando opera nas suas especialidades diferenciadas da sociedade
e da política em geral. A procura agora prevalecente por uma pa-
vorosa proliferação do financiamento da ciência que proporcione
um “quid-pro-quó” de impactos sociais e económicos benéficos
apenas intensifica a economia política das promessas, da qual a
investigação científica é a moeda principal. Fantasias ignorantes e
inexplicáveis de futuros êxitos, necessidades e prioridades sociais
conformam os compromissos materiais científicos e tecnológicos,
assim como as trajetórias de aprendizagem, na medida em que se
apropriam antecipadamente e estiolam outros compromissos e
trajetórias que poderiam ter sido seguidos. Uma democratização
dessas fantasias orientadoras, algo a que Feenberg apenas alude,

54
PRÓLOGO

constituiria também uma agenda importante de investigação e de


experimentação coletiva para seguir uma política e uma filosofia
da tecnologia democráticas. Os perfis epistémicos na cultura da
investigação científica - por exemplo, a precisão e o controlo (e,
por conseguinte, as suas silenciosas externalizações concomitan-
tes) assumidos como mais prioritários na “boa ciência” do que a
abrangência e o âmbito, ou uma focagem sobre aquilo que é ma-
nipulável e edificável, logo explorável dentro dos horizontes teó-
ricos correntes, mais do que aquilo “que está por trás” do
conhecimento corrente - tudo isso são questões técnicas, mas tam-
bém são questões sociais . Podem ser adequadamente submetidas ao
debate e à influência social; e têm consequências sociais.
Logo, o papel da ciência, tal como acabou por ter um papel
crucial na definição dos idiomas capitalistas da “economia do co-
nhecimento” e nas relações sociais fraturadas e inseguras assim
produzidas, funciona cada vez mais como um porteiro na entrada
de ideias democráticas para possíveis mudanças. Para além disso,
tanto na sua forma científica social (modelos economicistas e de
escolha racional) como na sua forma científica da natureza, tor-
nou-se também um autor poderoso das compreensões dominan-
tes nas relações e potencialidades humanas, subordinadas como
estão a políticas definidas por perspetivas científicas excessiva-
mente estreitas e por modelos comerciais de “inovação” e “racio-
nalidade” normativos. Até que ponto, e de que maneiras, é que
uma política democrática da tecnologia e da inovação poderá re-
configurar aquilo que conhecemos como ciência, mesma na sua
forma dita pura ou básica, essa continua a ser uma questão em
aberto. Mas podemos dizer, com alguma confiança, de que um
(re)desenho(c) deliberadamente democrático dessa ciência seria fú-
til; talvez seja preferível deixar as fronteiras entre ciência e tecno-
logia entregues a si mesmas, e deixar que a ciência se acomode
por si mesma, com as suas ideias ponderadas normativamente, e
as suas próprias culturas epistémicas, depois de termos adquiri-
do formas de tecnologia democraticamente mais maduras, aber-

55
BRYAN WYNNE

tas e dinâmicas.
Uma questão final, que talvez Feenberg venha a iluminar em
trabalhos futuros, diz respeito à sua ideia de tecnologia democra-
tizada, não só em relação ao conhecimento científico e ao seu po-
der normativo não neutro, mas sim em relação aos próprios
mundos da vida humana. Ele fala do reducionismo sistemático
envolvido nas “instrumentalizações primárias” das escolhas, có-
digos e projetos técnicos, antes de se encontrarem com os mun-
dos sociais dos utilizadores e as suas reações, ocorrendo então
“instrumentalizações secundárias” ou um refazer do projeto, para
usar os seus próprios termos. Analisa então, e exemplifica de for-
ma valiosa, as oportunidades para a reconfiguração democrática
que tal experiência e tais valores do mundo da vida podem tra-
zer, e trazem, para fundamentar as tecnologias em questão (e os
seus códigos e padrões técnicos). Isto é importante e abre muitas
portas aos académicos dos ECT, assim como a iniciativas práticas
e democráticas. A questão que continua aqui por resolver diz res-
peito à forma como uma inovação democrática e ambientalmente
sustentável pode ter que incluir não só novas direções e projetos
tecnológicos influenciados por compromissos normativos mais
esclarecidos, mas também novas direções sociais que, de facto,
requerem menos atividade tecnológica, logo menores concentra-
ções de recursos e desigualdades, menor uso ou consumo de re-
cursos e também menor destruição ambiental. A questão de saber
como uma melhoria democrática também poderia incluir, ou tal-
vez exigir, uma menor agregação de atividade tecnológica, assim
como um aumento do bem estar social parece continuar a ser um
desafio para a teoria democrática da tecnologia de Feenberg. Este
pode também ser um ponto em que a tentativa de Latour de re-
construir as próprias categorias da modernidade, da natureza e
da cultura pode ter algum valor, mesmo sendo uma tentativa que
Feenberg critica. Os exemplos mais óbvios seriam as alterações
no estilo de vida e nas relações sociais em resposta às mudanças
climáticas e às excessivas emissões de gases de efeito de estufa, o

56
PRÓLOGO

que reduziria o consumo de energia, mas seria diferente das alte-


rações ou redesenhos da tecnologia apenas pelo lado da produ-
ção. Por outras palavras, não é claro como a inovação
democrática da tecnologia possa, quando apropriado, desinven-
tar-se a si própria, como tecnologia, no interesse de uma democra-
cia melhor, mais justa e ambientalmente sustentável.
Especialmente num mundo globalizado em que não podemos
ver ou sentir os impactos distantes das nossas ações locais - e on-
de a resposta favorita a quase toda as questões que enfrentamos
parece ser consumir mais - então esta questão torna-se cada vez
mais urgente.
O importante movimento conceptual de Feenberg para dar
maior ênfase aos significados, como distintos das funções (a que
são tipicamente reduzidos pelos filósofos, como ele faz notar cor-
retamente, e eu acrescentaria também pelos cientistas sociais, as-
sim como pelos especialistas técnicos) parece oferecer aqui algum
espaço construtivo para a resposta. É tempo de tirar à ciência a
autoria dos significados públicos, que tem feito este papel pela
ausência acumulada da política(d) no final do século vinte, e de
ela voltar a ser uma responsabilidade democrática. Hannah
Arendt (2005) reconheceu esta ausência, e os riscos para a demo-
cracia que esta forma exagerada e subtilmente diferente de de-
pendência da modernidade em relação à ciência pode infligir.
Aguardo com interesse futuros trabalhos que tratem estes desafi-
os, não só por filósofos, analistas de ECT e outros que trabalhem
em conjunto, mas também pelos praticantes da política democrá-
tica, dentro e fora das nossas instituições políticas existentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Arendt, Hannah. 2005. The Promise of Politics . Nova Iorque:
Schocken Books.
Arthur, W. Brian. 2009. The Nature ofTechnology: What It Is and
How It Evolves . Nova Iorque: Free Press

57
BRYAN WYNNE

Winner, Langdon. 1977. Autonomous Technology. Cambridge,


MA: MIT Press.

58
PREFÁCIO

A criação técnica envolve uma interação entre a razão e a experi-


ência. É necessário conhecer a natureza para construir um dispo-
sitivo que funcione. Este é o elemento da atividade técnica que
consideramos como racional. Mas o instrumento precisa de fun-
cionar num mundo social, e as lições da experiência nesse mesmo
mundo influenciam o projeto.
Nas sociedades pré-modernas, o desenvolvimento técnico
era moldado pela experiência através de tradições artesanais que
combinavam muitos registos diferentes dos fenómenos: proibi-
ções religiosas, lições práticas, gostos e papéis sociais da idade e
do género. A técnica era conduzida por caminhos compatíveis
com as crenças religiosas locais e com os costumes que preser-
vavam as lições da experiência. O artesanal combinava também,
sem problemas, o conhecimento da natureza com aquilo que a
comunidade tinha aprendido sobre o potencial de rutura das suas
conquistas técnicas. Embora tenham ocorrido alguns fracassos
importantes, como a gradual desflorestação das terras que cir-

59
PREFÁCIO

cundavam o Mediterrâneo, de uma maneira geral essa atividade


técnica era compatível com sociedades estáveis que se reprodu-
ziam, de uma forma mais ou menos imutável, ao longo de gera-
ções.
O mundo moderno desenvolve uma tecnologia cada vez
mais alienada da experiência quotidiana. Este é um efeito do ca-
pitalismo, que reserva o controlo do projeto para uma pequena
classe dominante e para os seus funcionários técnicos. A aliena-
ção tem a vantagem de abrir novos e vastos territórios para a ex-
ploração e a invenção, mas há uma perda correspondente de
sabedoria na aplicação do poder tecnológico. Os novos donos da
tecnologia não são condicionados pelas lições da experiência e
aceleram as mudanças até ao ponto em que a sociedade fica em
agitação constante.
Não só é reduzido o papel da experiência nos assuntos téc-
nicos, como até mesmo onde ela ainda tem impactos, estes são
frequentemente invisíveis. A tecnologia é vista como autónoma e
as disciplinas técnicas apresentam os efeitos de influências sociais
passadas como especificações puramente racionais. Muitos
padrões técnicos dependem do gosto, mas raramente temos
consciência da sua origem até visitarmos um país com padrões
diferentes. Não há qualquer lógica técnica nas diferenças em coi-
sas como arquitetura doméstica, iluminação, altura normal das
mesas e cadeiras, a disposição dos vários itens no painel dos au-
tomóveis. Outros padrões mudam à medida que as preocupações
com a saúde e com o ambiente se articulam e a legislação regula
os processos industriais. Rapidamente esquecemos as exigências
públicas que estiveram na origem dos novos métodos e disposi-
tivos.
Até mesmo os procedimentos médicos evoluem sob o impac-
to da experiência. Consideremos as enormes variações na obste-
trícia, de lugar para lugar e ao longo do tempo. Ainda há pouco
tempo os maridos andavam nervosamente para a frente e para
trás nas salas de espera enquanto as suas mulheres davam à luz

60
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

sob anestesia. Os maridos de hoje são convidados para o trabalho


nas salas de parto enquanto que as mulheres são encorajadas a
confiar menos nos anestésicos. Resultados das descobertas cientí-
ficas? Dificilmente. Mas, em ambos os casos, o procedimento é
medicamente prescrito, e os movimentos feministas da década de
1970 que lutaram pelo parto natural são esquecidos. Um inconsci-
ente tecnológico esconde a interação entre razão e experiência.
Esse inconsciente mascara outro aspecto importante da insti-
tuição moderna da tecnologia. Nas sociedades tradicionais, as i-
dentidades sociais são estáveis, porque o mundo social é estável.
Mas as sociedades modernas constroem e destroem mundos e as
identidades associadas ao ritmo da mudança tecnológica. O grau
de dependência dos grupos sociais relativamente às tecnologias
subjacentes ao seu mundo torna-se subitamente visível no mo-
mento do colapso, mas depois rapidamente se desvanece. Isto
torna-se mais óbvio quando as mudanças na tecnologia eliminam
competências de ofícios ou reestruturam organizações. Os mun-
dos mudam com a tecnologia e rapidamente as identidades órfãs
só continuam vivas nas memórias das vítimas.
Ainda mais obscuros são os processos que geram grupos a-
larmados com novos riscos tecnológicos, que se têm tornado cada
vez mais importantes para o futuro das sociedades tecnologica-
mente avançadas. Considere-se o caso exemplar do Love Canal.
Os habitantes dessa zona a norte do estado de Nova Iorque des-
cobriram que suas doenças eram causadas por um novo elemento
de seu mundo, um elemento tóxico que se emana da lixeira sobre
a qual estavam construídas as suas casas. Esta descoberta acerca
do seu mundo também foi uma descoberta de si mesmos. De re-
pente esses vizinhos tornaram-se atores numa rede de novas re-
lações com cientistas, o governo e o autor empresarial dos seus
infortúnios. Compreender o mundo e a identidade andam juntos.
Nas sociedades modernas são ambos fluidos e entrelaçados com
a tecnologia.
Estes exemplos ilustram o caráter social da tecnologia. A

61
PREFÁCIO

ideia de uma pura racionalidade tecnológica independente da


experiência é essencialmente teológica. Imagina um autor hipo-
teticamente infinito capaz de “construir a partir do nada” (1). Deus
pode atuar sobre os seus objectos sem qualquer reciprocidade.
Ele cria o mundo sem sofrer qualquer efeito de recuo, efeito late-
ral ou consequência colateral. Está no topo da hierarquia prática
definitiva, numa relação unidirecional com o seu reino, sem se
envolver com as coisas nem ficar exposto ao seu poder. Não tem
nada parecido com aquilo que chamamos “experiência”.
A filosofia moderna toma essa relação imaginária como o mo-
delo da racionalidade e da objetividade, o ponto em que a huma-
nidade se transcende a si própria em puro pensamento. Mas, na
realidade, nós não somos deuses. Os seres humanos só podem agir
num sistema a que pertencem. Esta é a significância prática da en-
carnação e implica a participação num mundo de significados e de
poderes causais que não controlamos. A finitude aparece como a
reciprocidade da ação e da reação. Cada um dos nossos atos volta a
nós como um retorno(a) dos objectos das nossas ações. Isto é óbvio
na comunicação do dia-a-dia onde a cólera normalmente evoca
ainda mais cólera, a gentileza evoca gentileza e assim por diante.
O sujeito técnico também é finito, mas a reciprocidade da
ação finita é dissipada ou é diferida de modo a criar o espaço de
uma ilusão necessária de transcendência. Dizemos que uma ação
é “técnica” quando o impacto do ator no objeto não tem qualquer
proporção com a retroação que afeta o ator. Mas isso parece só ser
verdade a partir de uma visão restrita do processo. Num contexto
mais amplo, ou num espaço de tempo mais dilatado, há sempre
muita retroação. Esse é certamente o caso em impactos causais
como a poluição. As identidades e os significados estão também
em jogo na ação técnica.
Por exemplo, batemos com o martelo nos pregos que, por
sua vez, transformam uma pilha de madeira numa mesa, mas nós
não nos transformamos. Tudo que experimentamos é um peque-
no cansaço. Este exemplo típico de ação técnica é aqui enquadra-

62
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

do de forma restrita para destacar a aparente independência do


ator relativamente ao objeto. No grande esquema das coisas, o
autor é afetado pela sua ação: torna-se um carpinteiro ou um
amador de carpintaria(b). A sua ação tem impacto sobre a sua
identidade, mas esse impacto não é visível na situação técnica
imediata em que grandes mudanças ocorrem na madeira en-
quanto que a pessoa que maneja o martelo não é afetada.
Esse exemplo pode parecer trivial mas, do ponto de vista dos
sistemas, nada diferencia entre fazer uma mesa ou uma bomba
atómica. Quando J. Robert Oppenheimer fez explodir a primeira
bomba atómica no local dos testes em Trinity, recordou subita-
mente uma passagem do Bhagavad Gita(c): “Tornei-me na morte,
destruidor de mundos”. Neste caso a semelhança entre o trabalho
técnico e a ação divina é muito clara. A tecnologia parece tornar
possível uma fuga parcial da condição humana. Mas Oppenhei-
mer rapidamente estava a tentar negociar o desarmamento com os
russos. Compreendeu que o destruidor podia ser destruído. Pro-
vavelmente Shiva, o deus da morte, não tem este problema.
Sem pretender voltar aos arranjos tradicionais podemos, no
entanto, apreciar a sua sabedoria, baseada numa visão a longo
prazo de um contexto mais amplo da tecnologia do que aquele a
que estamos habituados hoje em dia. A tradição foi derrubada
nos tempos modernos e a sociedade exposta a todas as con-
sequências do avanço técnico rápido e sem restrições,com bons
ou maus resultados. Os bons resultados foram celebrados como
progresso, enquanto as consequências inesperadas e indesejáveis
da tecnologia foram ignoradas desde que fosse possível isolar e
esconder as vítimas e as suas queixas. O retorno dissipado e dife-
rido da atividade técnica, os tais efeitos lamentáveis, como a po-
luição e a desqualificação do trabalho industrial, foram
considerados como o preço do progresso. A ilusão da técnica tor-
nou-se a ideologia dominante.
O filósofo Martin Heidegger entendeu essa ilusão como a es-
trutura da experiência moderna, a maneira como “ser” nos é re-

63
PREFÁCIO

velado. Enquanto que os objetos entram na experiência apenas na


medida em que são úteis no sistema tecnológico, o sujeito huma-
no aparece como pura racionalidade desencarnada, a controlar e
a planear metodicamente como se fosse exterior ao seu próprio
mundo. Nesta obra relato aquilo que Heidegger chamou de “re-
velação tecnológica”, não para a história do ser, mas para as con-
sequências das divisões persistentes entre classes e entre
governantes e governados, nas múltiplas instituições tecnica-
mente mediadas das sociedades modernas.
Estas divisões culminam numa tecnologia em larga medida
isolada da experiência dos que vivem com ela e a usam. Mas à
medida que se torna mais potente e habitual, a tecnologia tem
consequências para todos, que não se podem negar. Em última
análise, é impossível isolar a tecnologia das exigências da popula-
ção subjacente. O retorno de informação dos utilizadores e víti-
mas da tecnologia acaba por afetar os códigos técnicos que
presidem ao projeto. Exemplos iniciais emergiram no movimento
laboral, em torno de questões da saúde e da segurança no traba-
lho. Mais tarde, temas como segurança alimentar e poluição am-
biental assinalaram o alargamento do círculo de públicos
afetados. Hoje, estas interações estão a tornar-se rotina, e novos
grupos emergem frequentemente à medida que os “mundos” vão
mudando.
Na literatura dos estudos de tecnologia, isso chama-se a “co-
construção” da sociedade e da tecnologia. Os exemplos aqui cita-
dos mostram como a tecnologia e a sociedade se “co-constroem”
mutuamente em ciclos de retroação cada vez mais estreitos, como
as “mãos que desenham” no famoso quadro de M. C. Escher(d).
Quero usar esta imagem para discutir a estrutura subjacente da
relação entre tecnologia e sociedade.
As mãos de Escher, que se desenham a si próprias, são em-
blemáticas dos conceitos de “laço estranho” (e) ou de “hierarquia
entrelaçada” (f), introduzidos por Douglas Hofstadter no seu livro
Gõdel, Escher, Bach (Hofstadter 1979, 10-15). O laço estranho surge

64
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

FIGURA 1.1
“Mãos que desenham”, M. C. Escher
(c) 2009, The M. C. Escher Company - Holland, www.mcescher.com.
Todos os direitos reservados.

quando, ao mover-se para cima ou para baixo numa hierarquia


lógica, se volta paradoxalmente ao ponto de partida.
As relações entre atores e os seus objetos, tais como ver e ser
visto, ou falar e ouvir, são hierarquias lógicas nesse sentido. O lado
ativo fica no topo e o lado passivo fica na base dessas hierarquias.
Na gravura de Escher, o paradoxo é ilustrado de uma forma
visível. A hierarquia entre o “sujeito desenhador” e o “objeto de-
senhado” está “entrelaçada” pelo facto de cada mão exercer as
duas funções relativamente à outra (Hofstadter, 1979: 689-690).
Se dissermos que a mão à direita está no topo da hierarquia

65
PREFÁCIO

ao desenhar a esquerda, teremos que a mão à esquerda desenha a


mão à direita e portanto também está no nível do topo. Assim, ou
nenhuma das duas mãos está no topo, ou então ambas, o que é
contraditório.
Tal como a descrevi, a relação entre razão técnica e experiên-
cia é uma hierarquia entrelaçada. Os grupos sociais formam-se à
volta de tecnologias que funcionam como mediadores das suas
relações, tornam possível a sua identidade comum e moldam a
sua experiência. Todos nós pertencemos a muitos de tais grupos.
Alguns são categorias sociais definidas e a importância da tecno-
logia para as suas experiências é evidente. É o caso dos trabalha-
dores fabris, cuja organização e emprego depende da tecnologia
que utilizam. Outros grupos são latentes, inconscientes de suas
comunalidades até que o desastre aconteça. Os habitantes de Lo-
ve Canal podem ter sido vizinhos indiferentes, mas quando o lixo
tóxico foi descoberto nos terrenos que habitavam, ficaram alerta
para um perigo que partilhavam. Como um coletivo consciente,
convocaram cientistas para os ajudarem a compreender o que
acontecia e exigiram ação do governo. Tais encontros entre os in-
divíduos e as tecnologias que os ligam em grupos proliferaram,
com consequências de todos os tipos. Em todos os casos,
emergem em conjunto identidades sociais e mundos que formam
a espinha dorsal de uma sociedade moderna(2).
Uma vez formados e conscientes das suas identidades, os
grupos mediados pela tecnologia influenciam o projeto técnico
através das suas opções e protestos. Esta retroalimentação(g) entre
sociedade e tecnologia é paradoxal. Da mesma maneira que o
grupo é formado pelos elos técnicos que associam os seus mem-
bros, o seu estatuto será o de objeto “desenhado”, segundo o es-
quema de Escher. Mas retroatua(h) sobre esses elos em função da
sua experiência, “desenhando” aquilo que o desenha. Nem a so-
ciedade nem a tecnologia podem ser compreendidas isoladas
uma da outra.
Mas o esquema de Hofstadter tem uma limitação que não se

66
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

aplica no caso da tecnologia. O laço estranho nunca é mais do que


um subsistema parcial num universo consistente e concebido ob-
jetivamente. Hofstadter escapa ao paradoxo definitivo posicio-
nando-o num “nível inviolável” (i) de relações estritamente hi-
erárquicas, acima do laço estranho que o torna possível. Chama
esse nível “inviolável” porque não está logicamente entrelaçado
com a hierarquia entrelaçada que cria. No caso do desenho de Es-
cher, o paradoxo só existe por causa da atividade não paradoxal
do verdadeiro gravurista Escher, que o desenhou da maneira ha-
bitual, mas sem ser desenhado por alguém. Escher, tal como
Hofstadter o apresenta, aparece como uma espécie de Deus em
relação à sua própria produção artística, não envolvido nas con-
tradições do mundo que cria.
Porém, não há qualquer equivalente desse “Escher” no mun-
do real da co-construção, nenhum deus inviolado que crie a tec-
nologia e a sociedade a partir do exterior. Toda a atividade cri-
ativa acontece num mundo que é ele próprio criado por essa
atividade. Só nas nossas fantasias transcendemos os “laços estra-
nhos” da razão e da experiência. No mundo real não há escapa-
tória à lógica da finitude.
Os nove capítulos deste livro interessam-se pelos os vários
aspectos do nexo entre tecnologia e experiência. Introduzem os
temas principais da teoria crítica da tecnologia, a abordagem que
tenho desenvolvido durante os últimos vinte anos. A teoria crítica
da tecnologia recorre às contribuições de Heidegger, de Foucault,
da escola de Frankfurt e da sociologia construtivista da tecnolo-
gia. Cada uma dessas fontes contribui com elementos para uma
melhor compreensão da relação entre tecnologia e experiência.
Esta primeira parte explora a crítica distópica da tecnologia
que surge quando, no século XX, o “progresso” acabou por ser
identificado com burocracia, propaganda e genocídio. A raciona-
lidade científica e técnica domina assim a distopia que não deixa
espaço para a liberdade e para a individualidade. Mas esta visão
está a desvanecer-se à medida que o paradigma da tecnologia do

67
PREFÁCIO

nosso tempo passa dos mamutes industriais do século passado


para as novas tecnologias da informação, especialmente a inter-
net. A internet não é ainda um produto completo, antes continua
está em desenvolvimento. A iniciativa dos utilizadores tem tido
um papel importante para transformar o seu projeto. O movi-
mento ambientalista tem também dado origem a intervenções
democráticas na tecnologia. Esses dois setores só prometem aca-
bar com a distopia se pudermos encontrar uma maneira de pro-
teger e desenvolver o seu potencial libertador.
A segunda parte apresenta aplicações metodológicas da teo-
ria crítica da tecnologia. O caso do Minitel francês ilustra a con-
formação social da tecnologia. Inicialmente uma rede de com-
putadores domésticos, o Minitel foi subvertido por “piratas” (j) e
foi transformado de um utensílio de informação num meio de co-
municação. Esta parte trata também das relações entre a cultura
nacional e o desenvolvimento técnico, concentrando-se no Japão
como um caso exemplar. A discussão centra-se no impacto da glo-
balização sobre a modernização japonesa e também nas teorias fi-
losóficas que a acompanharam antes da segunda guerra mundial.
A terceira parte trata, ao nível filosófico, dos temas deste li-
vro. A modernidade e a tecnologia estão indissoluvelmente liga-
das, mas as disciplinas que deveriam colaborar no estudo dessa
ligação têm falhado na comunicação entre si. O tema central refe-
re-se à compreensão da racionalidade tal como tem sido institu-
cionalizada nas tecnologias e nos sistemas sociais modernos.
Compreender estas peculiares instituições modernas obriga a re-
pensar a ligação entre a razão e a experiência. Esse processo já
começou onde é mais urgente, em relação com as temáticas am-
bientais. A reflexão filosófica pode contribuir para essa tendência.
O capítulo final apela para que as especialidades aprendam com
a sabedoria adquirida quando se vive com as tecnologias e os
seus impactos. Num contexto moderno, isso não pode ser obtido
pela tradição, mas requer um regime tecnológico mais democrá-
tico. A gradual extensão da democracia à esfera técnica é uma das

68
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

grandes transformações políticas do nosso tempo.


Os capítulos seguintes deste livro foram revistos de artigos
já publicados:
"Subversive Rationalization: Technology, Power and
Democracy," Inquiry, Set./Dez. 1992.
"From Information to Communication: the French
Experience with Videotex," in M.Lea, ed., Contexts of Computer-
Mediated Communication , Harvester-Wheatsheaf, 1992.
"Looking Forward, Looking Backward: Reflections on the
20th Century," Hitotsubashi Journal of Social Studies , vol. 33, no. 1,
July 2001.
"Modernity Theory and Technology Studies: Reflections on
Bridging the Gap," in Modernity and Technology, MIT Press, 2003.
"Technology in a Global World," in Science and Other
Cultures: Issues in Philosophies of Science and Technology, R.
Figueroa and S. Harding eds., Routledge, 2003.
"Critical Theory of Technology: An Overview," Tailor-Made
Bio--Technologies , vol. 1, no. 1, Abril-Maio 2005.
"Between Reason and Experience," Danish Philosophical
Yearbook, vol. 42, 2008.
"From the Critical Theory of Technology to the Rational
Critique of Rationality," Social Epistemology, vol. 22, no. 1, 2008.
Agradecimentos
Muitas pessoas ajudaram-me de várias maneiras a produzir
os ensaios aqui reunidos. Gostaria de agradecer a Yoko Arisaka,
Michael Benedikt, Catherine Bertho, Alison Cassells, Jean-Marie
Charon, Gerald Doppelt, Arne Elias, Anne-Marie Ramberg,
Simon Glynn, Marc Guillaume, Alastair Hannay, Douglas
Kellner, Clive Lawmn, Andrew Light, Marie Marchand, Tom
Mica, Steven Moore, Robert Pippin, Hans Radder, Mayuko
Uehara e Tyler Veak.

69
- Parte I -
PARA ALÉM DA DISTOPIA
- Parte I -
PARA ALÉM DA DISTOPIA

O primeiro capítulo desta parte inicial apresenta os temas cen-


trais deste volume: distopia e democracia, a dupla dimensão -
técnica e social - da tecnologia, a reforma ambiental dos sistemas
técnicos e a contribuição do construtivismo social para a filosofia
da tecnologia. Contra os determinismos tecnológico e económico,
este capítulo argumenta que o projeto da sociedade industrial é
politicamente contingente. No futuro, os que estão hoje submeti-
dos aos ritmos e exigências das tecnologias serão capazes de as
controlar e determinar sua evolução. A esta transformação eu
chamo “racionalização democrática”, na medida em que exige
avanços tecnológicos impostos por uma ampla participação pú-
blica no processo de construção da tecnologia. Os “custos” e “be-
nefícios” desta transformação fundamental são incalculáveis.
O segundo capítulo rejeita a visão do ambientalismo baseado
na noção de inevitáveis trocas compensatórias, por sua vez base-
adas em cálculos de custos e benefícios, e propõe uma abordagem
cultural da politica ambiental. As tecnologias existentes não são o

73
resultado de decisões puramente racionais acerca da melhor ma-
neira como fazer coisas, mas dependem antes de escolhas sociais
entre trajetórias alternativas que resultam em diferentes con-
sequências ambientais. Incorporar valores sociais alterados em
futuros códigos técnicos não é necessariamente ineficiente, ao
contrário do que afirma a crítica anti ambientalista. A regulamen-
tação pode conduzir a mudanças tecnológicas que favoreçam as
atividades económicas, em vez de as prejudicar. Pode alterar a
compreensão da economia de tal forma que possa mesmo dis-
pensar as supostas trocas compensatórias(a).
O terceiro capítulo apresenta uma discussão sobre o hori-
zonte distópico. As utopias e as distopias dos séculos XIX e XX
imaginaram que o destino da humanidade seria viver numa soci-
edade onde as relações sociais fossem mediadas pela tecnologia
industrial. As narrativas utópicas descreviam os limites do alcan-
ce dos sistemas técnicos ao mesmo tempo que aplicam a riqueza
por eles gerada para melhorar o lazer e suportar a individualida-
de. Mas não há formas de ampliar o controlo técnico sem incluir a
presença de seres humanos no sistema. A nova agenda democrá-
tica é a recuperação das formas de agência(b) nas instituições da
sociedade que são tecnicamente mediadas. A internet representa
avanços para esta agenda porque facilita a interação e a partici-
pação num grau sem precedentes no passado. As expectativas da
racionalização democrática deste sistema técnico são fomentadas
pela nova tecnologia, cujo desenho foi, ele próprio, objeto de in-
tervenções públicas muito significativas.

74
Capítulo I
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA:
TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

OS LIMITES DA TEORIA DEMOCRÁTICA


A tecnologia é uma das principais fontes do poder público nas
sociedades modernas. No que diz respeito às decisões que afetam
o nosso dia a dia, a democracia política é largamente obscurecida
pelo enorme poder exercido pelos donos dos sistemas técnicos: os
líderes empresariais e militares e as associações profissionais de
grupos como os médicos e os engenheiros. Estes detêm muito
mais controlo sobre os padrões de crescimento urbano, o projeto
das habitações e dos sistemas de transporte, a seleção das inova-
ções e sobre a nossa experiência como empregados, pacientes e
consumidores do que todo o conjunto de instituições governa-
mentais da nossa sociedade.
Marx deparou-se com o início de tal processo em meados do
século XIX. Argumentou que a tradicional teoria democrática es-
tava errada ao tratar a economia como um domínio extra-político,
regido por leis naturais como a lei da oferta e da procura. Afir-

75
CAPÍTULO I

mava que continuaremos alienados e privados de direitos en-


quanto não tivermos uma voz ativa no processo de tomada das
decisões industriais. A democracia precisa de ser alargada ao
mundo do trabalho, a partir do domínio político. Esta é a exigên-
cia fundamental subjacente à ideia de socialismo.
As sociedades modernas têm sido desafiadas por essa exi-
gência, ao longo de mais do que um século. A teoria da política
democrática não oferece qualquer razão convincente de princípio
para a rejeitar. De facto, muitos teóricos democráticos endossam-
na (Cunninghan, 1987). Mais do que isso: num certo número de
países, as vitórias parlamentares dos socialistas ou as revoluções
levaram ao poder partidos dedicados a alcançá-la. Porém, ainda
hoje não parece estarmos mais perto da democratização do in-
dustrialismo do que nos tempos de Marx.
Esse estado de coisas é habitualmente explicado por um de
dois tipos de argumentos.
A tecnologia é determinante. Por um lado, o senso comum
argumenta que a tecnologia moderna é incompatível com a de-
mocracia no local de trabalho. A teoria democrática não pode
pressionar, de forma consistente, por reformas que poderiam
destruir as fundações económicas da sociedade. Para o provar,
consideremos o caso soviético: embora fossem socialistas, Lenine
e os seus sucessores não democratizaram a indústria e, até mes-
mo na sua versão mais liberal, a democratização da sociedade
soviética foi apenas levada até ao portão da fábrica. Hoje, na ex-
União Soviética, todos continuam a concordar com a necessidade
de uma administração industrial autoritária.
A tecnologia é neutra. Por outro lado, uma minoria de teóri-
cos radicais afirma que a tecnologia não é responsável pela con-
centração do poder industrial. Esta é uma questão política que
está relacionada com a vitória do capitalismo e das elites comu-
nistas nas lutas com as populações subjacentes. Sem qualquer
dúvida, a tecnologia moderna conduz a uma administração au-
toritária, mas num contexto social diferente também poderia

76
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

acontecer que fosse operacionalizada de forma democrática.


No que se segue, vou argumentar em prol de uma versão
qualificada desta segunda posição, algo diferente tanto da versão
marxista habitual como das formulações democráticas radicais.
Essa qualificação diz respeito ao papel da tecnologia, que eu não
vejo nem como determinante, nem como neutra. Argumentarei
que as formas modernas de hegemonia se baseiam num tipo es-
pecífico de mediação técnica de uma variedade de atividades so-
ciais, sejam elas na produção ou na medicina, na educação ou nas
forças militares e, por consequência, a democratização exige tan-
to mudanças técnicas radicais como mudanças políticas.
Esta é uma posição controversa. Os teóricos políticos limitam
habitualmente a aplicação apropriada da democracia ao poder do
Estado. Em oposição, eu acredito que. a menos que a democracia
se possa estender aos domínios tecnicamente mediados da vida
social, para além dos seus limites tradicionais, o valor do seu uso
continuará a diminuir, a participação vai-se esvanecer e as insti-
tuições que identificamos como sendo parte de uma sociedade
livre irão desaparecer gradualmente.
Voltando aos fundamentos do meu argumento, começarei
por apresentar um sumário das várias teorias que afirmam que as
sociedades tecnologicamente avançadas exigem uma hierarquia
autoritária. Tais teorias pressupõem uma forma de determinismo
tecnológico que é refutado por argumentos históricos e socioló-
gicos, que resumirei de forma breve. Apresentarei então o esboço
de uma teoria não determinística da sociedade moderna, a que
chamo "teoria crítica da tecnologia." Esta abordagem alternativa
enfatiza o impacto dos aspectos contextuais da tecnologia sobre o
seu projeto, que são ignorados pela visão dominante. Argumen-
tarei que a tecnologia não é só o controlo racional da natureza;
tanto o seu desenvolvimento como o seu impacto são intrinseca-
mente sociais. Mostrarei que essa perspectiva enfraquece subs-
tancialmente a confiança habitual na eficiência como uma
explicação do desenvolvimento tecnológico, tanto nas narrativas

77
CAPÍTULO I

otimistas como nas narrativas distópicas da modernidade. Tal


conclusão, por sua vez, abre largas possibilidades de mudanças
que foram excluídas pelo entendimento habitual da tecnologia.
Esse argumento será mais desenvolvido nos capítulos seguintes.

MODERNIDADE DISTÓPICA
A famosa teoria de Max Weber sobre a racionalização é o argu-
mento original contra a democracia industrial. O título deste ca-
pítulo insinua uma inversão provocadora das conclusões de
Weber. Ele definiu racionalização como o papel crescente do cál-
culo e do controlo na vida social, uma tendência que conduz
àquilo a que ele chamou a “gaiola de ferro” da burocracia (Weber
1958, 181-182). Racionalização “democrática" é, assim, uma con-
tradição de termos.
Com o fracasso da luta do tradicionalismo contra a racionali-
zação, uma resistência adicional num universo weberiano só po-
de reafirmar impulsos irracionais contra a rotina e a previ-
sibilidade enfadonha. Esse não é um programa democrático, mas
um programa romântico distópico, já previsto nas Memórias do
subsolo de Dostoievsky(a) e em várias ideologias naturalistas.
O meu título pretende significar a rejeição da dicotomia entre
a hierarquia racional e o protesto irracional implícito na posição
de Weber. Se a hierarquia social autoritária é verdadeiramente
uma dimensão contingente do progresso técnico, tal como eu
acredito ser, e não uma necessidade técnica, então deve haver
uma racionalização alternativa da sociedade que leve à democra-
cia e não a formas centralizadas de controlo. Não precisamos de
voltar às cavernas ou ao mundo indígena para preservar valores
ameaçados, como a liberdade e a individualidade.
Mas as críticas mais contundentes à moderna sociedade tec-
nológica seguem diretamente os passos de Weber, rejeitando essa
possibilidade. Estou a pensar na formulação de Heidegger sobre

78
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

“a questão da tecnologia” e na teoria de Ellul sobre "o fenómeno


técnico" (Heidegger 1977; Ellul 1964). De acordo com estas teori-
as, nós tornamo-nos em pouco mais que objetos da técnica, in-
corporados no mecanismo que criamos. A única esperança é uma
vaga evocação de renovação espiritual, que é demasiado abstrata
para poder dar forma a uma nova prática técnica.
São teorias interessantes, importantes pelo seu contributo
para abrir um espaço de reflexão sobre a tecnologia moderna.
Voltarei ao argumento de Heidegger nas conclusões deste capítu-
lo e na parte final deste livro. Para aprofundar o meu argumento,
concentrar-me-ei primeiro na falha principal do distopianismo: a
identificação da tecnologia em geral com sendo as tecnologias es-
pecíficas que se desenvolveram nos últimos dois séculos no Oci-
dente. São tecnologias de conquista que aparentam ter uma au-
tonomia sem precedentes; mas com as origens sociais e impactos
escondidos. Argumentarei que esse tipo de tecnologia é uma ca-
racterística particular da nossa sociedade e não uma dimensão
universal da modernidade como tal.

DETERMINISMO TECNOLÓGICO
O determinismo baseia-se na suposição de que as tecnologias têm
uma lógica funcional autónoma, que se pode explicar sem qual-
quer referência à sociedade. Presumivelmente, a tecnologia é so-
cial apenas em relação ao propósito que serve, e os propósitos
estão na mente do observador. Assim, a tecnologia assemelhar-se-
ia à ciência e à matemática pela sua intrínseca independência com
o mundo social.
No entanto, ao contrário da ciência e da matemática, a tec-
nologia tem impactos sociais imediatos e poderosos. Pode parecer
que o destino da sociedade diante da tecnologia é parcialmente
dependente de um fator não social, que atua no meio social sem
que, entretanto, sofra uma influência recíproca. Isto é aquilo que

79
CAPÍTULO I

significa o "determinismo tecnológico". Uma visão determinística


da tecnologia é habitual nos negócios e no governo, onde se assu-
me muitas vezes que o progresso técnico é uma força exógena
que influencia a sociedade, mais do que uma expressão de mu-
danças na cultura e nos valores.
As visões distópicas da modernidade também são determi-
nísticas. Se quisermos afirmar as potencialidades democráticas do
industrialismo moderno, então teremos que desafiar as suas pre-
missas deterministas, a tese do progresso unilinear e a tese da de-
terminação pela base.
1. Segundo o determinismo, o progresso técnico parece seguir
um curso unilinear e fixo, desde as configurações menos avança-
das até às configurações mais avançadas. Embora essa conclusão
possa parecer óbvia a partir de um olhar retrospectivo sobre o de-
senvolvimento técnico de qualquer objeto que nos seja familiar, de
facto, tal conclusão baseia-se em duas asserções de plausibilidade
desigual: primeiro, que o progresso técnico procede a partir dos
níveis mais baixos de desenvolvimento para os mais altos; segun-
do, que esse desenvolvimento segue uma sucessão única de eta-
pas necessárias. Como veremos, a primeira asserção é indepen-
dente da segunda e não é necessariamente determinística.
2. O determinismo também afirma que as instituições sociais
têm que se adaptar aos “imperativos” da base tecnológica. Esta
visão tem, sem nenhuma dúvida, a sua origem numa certa leitura
de Marx, e é agora parte do senso comum nas ciências sociais
(Miller 1984, 188-195). No próximo capítulo discutirei em detalhe
uma de suas implicações: a suposta troca compensatória entre
prosperidade e valores ambientais.
Essas duas teses do determinismo tecnológico apresentam
uma versão descontextualizada da tecnologia, que se gera a si
mesma, como o fundamento da sociedade moderna. O determi-
nismo implica assim que a nossa tecnologia e as suas correspon-
dentes estruturas institucionais são universais, na verdade até
mesmo de âmbito planetário. Pode haver muitas formas de socie-

80
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

dade tribal, muitos feudalismos, até mesmo muitas formas de


capitalismo primitivo, mas há só uma modernidade, e está
exemplificada na nossa sociedade, para o bem ou para o mal. As
sociedades em desenvolvimento devem tomar nota: como Marx
disse uma vez, chamando a atenção dos seus compatriotas ale-
mães para o seu atraso relativamente aos avanços britânicos: “ De
te fabula narratur” - é de vós que esta história fala (Marx 1906
reimpressão, 13).

CONSTRUCTIVISMO
As implicações do determinismo parecem tão óbvias que é sur-
preendente descobrir que nenhuma das suas duas teses consegue
resistir a um escrutínio rigoroso. Porém a sociologia contempo-
rânea desqualifica a primeira tese do progresso unilinear, en-
quanto que os precedentes históricos mostram a inadequação da
segunda tese da determinação pela base.
A recente sociologia construtivista da tecnologia emerge dos
estudos sociais da ciência (Bloor 1991, 175-179; Latour 1987). Uso
o termo “construtivismo” num sentido amplo, para me referir à
teoria dos grandes sistemas técnicos, ao construtivismo social e à
teoria dos atores em rede. Estas correntes têm em comum uma
ênfase sobre a contingência social do desenvolvimento técnico.
Desafiam a visão tradicional da autonomia da tecnologia e estu-
dam-na tal como fariam com uma instituição ou uma lei. As es-
pecificidades metodológicas não são aqui relevantes, mas sim o
facto desta abordagem geral oferecer um fundamento à teoria
crítica da tecnologia.
O construtivismo desafia a nossa tendência para dispensar
as teorias científicas do tipo de exame sociológico a que subme-
temos as crenças não científicas. Afirma o “princípio de sime-
tria”, segundo o qual todas as crenças em disputa estão sujeitas
ao mesmo tipo de explicação social, independentemente de se-

81
CAPÍTULO I

rem verdadeiras ou falsas. Um tratamento semelhante para a tec-


nologia rejeita a suposição habitual de que o sucesso das tecnolo-
gias resulta de bases puramente funcionais.
O construtivismo defende que as teorias e as tecnologias são
subdeterminadas por critérios científicos e técnicos. Concreta-
mente, isso significa duas coisas: em primeiro lugar, há geral-
mente muitas soluções possíveis para um certo problema, e os
atores sociais fazem a escolha final entre diversas opções viáveis;
e em segundo lugar, a definição do problema muda frequente-
mente ao longo do próprio processo de resolução.
Trevor Pinch e Wiebe Bijker ilustram estes pontos com o ex-
emplo da bicicleta. Em finais do século XIX, antes da forma atual
da bicicleta estar bem definida, o seu desenho foi pressionado em
diferentes direções. Um segmento de utilizadores percebeu a bi-
cicleta como um desporto competitivo, enquanto outro grupo ti-
nha nela interesse como um meio de transporte. Os projetos
correspondentes ao primeiro objetivo apresentavam uma grande
roda dianteira, o que foi rejeitado como inseguro pelo segundo
grupo de utilizadores. Estes preferiram a “segurança” com duas
rodas baixas e de igual tamanho. Com a introdução dos pneus de
câmara de ar, a bicicleta com rodas baixas venceu, e toda a histó-
ria subsequente da bicicleta até aos nossos dias deriva dessa linha
de desenvolvimento técnico. A tecnologia não é determinante
neste exemplo; pelo contrário, “as diferentes interpretações sobre
os conteúdos do artefacto, pelos grupos sociais, conduziram,
através de diferentes cadeias de problemas e de soluções, a dife-
rentes desenvolvimentos futuros” (Pinch e Bijker 1989, 42).
Pinch e Bijker dão o nome de "flexibilidade interpretativa" a
esta variabilidade de objetivos. Aquilo que uma tecnologia é de-
pende daquilo para que vai servir, e isso muitas vezes está em
disputa. A flexibilidade das tecnologias é maior no seu estádio
inicial, e diminui à medida que a competição entre alternativas se
vai resolvendo. No fim de contas, o seu “encerramento” final é
alcançado por meio da consolidação de um projeto padrão capaz

82
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

de prevalecer por um período longo. Foi isso que aconteceu com


a bicicleta, e também com o automóvel e com a maioria das tec-
nologias mais familiares que nos cercam.
No caso da bicicleta, o projeto “seguro” saiu vencedor e be-
neficiou de todos os avanços posteriores. Visto em retrospetiva,
parece que a bicicleta com as rodas grandes representou uma fase
grosseira e menos eficiente de um desenvolvimento progressivo
que levou até aos modelos atuais através da antiga bicicleta “se-
gura”. Na verdade, a bicicleta com a roda maior e a bicicleta “se-
gura” compartilharam o mesmo terreno durante anos e nenhuma
delas pode ser considerada como uma fase do desenvolvimento
da outra. A bicicleta com a roda maior representa uma possível
via alternativa de desenvolvimento de uma bicicleta, direcionada,
na sua origem, para resolver diferentes problemas. Há aqui uma
ilusão típica do progresso, como se a alternativa abandonada ti-
vesse sido mantida congelada no tempo como um fóssil de di-
nossauro, e assim aparece agora obviamente como inferior.
O determinismo é uma espécie de história “ whig” (b), que con-
ta a história como se o seu fim fosse inevitável, projetando no
passado a lógica técnica abstrata de um objeto acabado da atuali-
dade, como o telos do desenvolvimento(c). Esta abordagem con-
funde a nossa compreensão do passado e sufoca a imaginação de
um futuro diferente. O construtivismo pode abrir esse futuro,
embora os seus seguidores tenham hesitado, até agora, em com-
prometerem-se nas questões sociais mais amplas que estão implí-
citas no seu método(1).

INDETERMINISMO
Se a tese do progresso unilinear perde sentido, o colapso da no-
ção de determinismo tecnológico não pode ficar muito atrás. Po-
rém, a tese ainda é frequentemente invocada em debates políticos
contemporâneos.

83
CAPÍTULO I

Voltarei a esses debates mais adiante, neste capítulo. Por


agora, consideremos a notável antecipação das atitudes atuais
nos movimentos de luta sobre a extensão do trabalho diário e so-
bre a mão-de-obra infantil, em meados do século XIX, na Ingla-
terra. Os debates sobre a lei fabril de 1844(d) foram inteiramente
estruturados em torno da oposição entre imperativos tecnológi-
cos e ideologia. Lord Ashley, o principal líder a favor da regula-
mentação, protestou que “a tendência para os vários aperfei-
çoamentos das máquinas caminha no sentido de substituir o
emprego de homens adultos e de colocar o trabalho de crianças e
mulheres no seu lugar. Qual será o efeito sobre as gerações futu-
ras se a sua frágil constituição ficar subordinada, sem limitações
ou controlo, a essas ações destrutivas?” (2).
Continuou deplorando o declínio da família decorrente do
emprego de mulheres, o que “perturba a ordem da natureza” e
priva as crianças de uma educação apropriada. “Não importa que
seja príncipe ou camponês, pois tudo o que há de melhor e de
duradouro no caráter de um homem foi aprendido aos pés da sua
mãe”. Lord Ashley indignou-se ao descobrir que “as mulheres
não só trabalham como também ocupam os lugares dos homens;
elas também estão a formar clubes e associações e a chegar gra-
dualmente a todas as posições que se consideram como sendo
próprias do sexo masculino...elas encontram-se para beber, dan-
çar e fumar; e diz-se que usam a mais baixa, a mais brutal e a
mais repugnante das linguagens que se possa imaginar...”.
As propostas para abolir o trabalho infantil depararam-se
com a consternação por parte dos donos das fábricas, que consi-
deravam os pequenos trabalhadores como um “imperativo” das
tecnologias criadas para os empregar. Denunciavam a “ineficiên-
cia” de utilizar trabalhadores adultos para fazer tarefas que po-
deriam ser tão bem feitas, ou ainda melhor, por crianças, e
previram todas as usuais consequências catastróficas - aumento
da pobreza, desemprego, perda da competitividade internacional
- devido à sua substituição por trabalho adulto mais caro. Por is-

84
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

so, um eloquente porta-voz, Sir J. Graham, pedia cautela: “Che-


gamos a um estado da sociedade em que sem comércio e manu-
faturas não se poderá continuar a manter esta grande co-
munidade. Permitam-nos, tanto quanto for possível, mitigar os
males decorrentes deste estado muito artificial da sociedade; mas
sejamos cautelosos para não darmos passos que poderão ser fa-
tais para o comércio e para as manufaturas”.
Explicava ainda que uma redução da jornada de trabalho
das mulheres e crianças entraria em conflito com o ciclo de de-
preciação da maquinaria, acarretando salários ainda mais baixos
e problemas de comércio. Concluiu que “com a intensa competi-
ção que as nossas manufaturas atualmente enfrentam dos con-
correntes estrangeiros ... um tal passo seria fatal ...”. Ele e os seus
pares defenderam, em palavras que ainda hoje fazem eco, que a
regulamentação se baseia num “falso princípio de humanidade
que, no final, será certamente derrotado por si próprio". Quase
que se acredita que um novo Ludd voltava a emergir na figura
do Lord Ashley: a regulamentação do trabalho não parece ser o
problema real, “mas é, em princípio, um argumento para elimi-
nar todo o sistema de trabalho nas fábricas ". Ouvimos atualmen-
te protestos semelhantes por parte das indústrias ameaçadas por
aquilo a que chamam "ludismo” (e) ambiental.
Porém, o que é que aconteceu, de facto, quando os legislado-
res impuseram limites à duração da jornada de trabalho e tiraram
as crianças das fábricas? Será que os imperativos violados da tec-
nologia regressaram para os assombrar? De forma alguma. A re-
gulamentação conduziu a uma intensificação do trabalho nas
fábricas que era, de outra maneira, incompatível com as condi-
ções anteriores. As crianças deixaram de ser trabalhadores e fo-
ram socialmente redefinidas como aprendizes e consumidores.
Consequentemente, passaram a entrar no mercado de trabalho
com maiores níveis de qualificações e de disciplina, que rapida-
mente passaram a ser pressupostos do projeto tecnológico.
Abriu-se um vasto processo histórico, parcialmente estimulado

85
CAPÍTULO I

pelo debate ideológico sobre como é que as crianças deveriam


crescer e, parcialmente, pelas questões económicas, que eventu-
almente conduziu à atual situação histórica, em que ninguém so-
nha voltar ao trabalho infantil barato a fim de reduzir custos, pelo
menos nos países desenvolvidos.
Este exemplo mostra-nos a enorme flexibilidade do sistema
técnico. Não é rigidamente constrangido, mas, pelo contrário,
pode-se adaptar a uma variedade de exigências sociais. Tal con-
clusão não deveria ser surpreendente, dada a capacidade de res-
posta da tecnologia à redefinição social previamente discutida.
Em suma, a tecnologia é apenas mais uma variável social depen-
dente que, embora de importância crescente, não é a chave para o
enigma da história.
O determinismo, como já argumentei, é caracterizado pelos
princípios do progresso unilinear e da determinação pela base; se
o determinismo estiver errado, então a investigação sobre a tec-
nologia deve ser guiada por dois princípios contraditórios. Em
primeiro lugar, o desenvolvimento tecnológico não é unilinear,
mas ramifica-se em muitas direções e pode alcançar níveis glo-
balmente superiores ao longo de várias vias diferentes. Em se-
gundo lugar, o desenvolvimento tecnológico não é determinante
para a sociedade, mas é sobre determinado tanto por fatores téc-
nicos como sociais.
O significado político desta posição também deve estar agora
claro. Numa sociedade em que o determinismo está de guarda às
fronteiras da democracia, o indeterminismo “amplia o campo do
possível” (3). Se a tecnologia tem muitas potencialidades inexplo-
radas, nenhum imperativo tecnológico pode ditar a hierarquia
social corrente. Em lugar disso, tecnologia é um campo de luta
social, uma espécie de "parlamento das coisas", onde concorrem
as alternativas civilizacionais (Latour 1993).

86
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

INTERPRETANDO A TECNOLOGIA
Nas próximas secções deste capítulo, gostaria de apresentar al-
guns temas importantes de uma abordagem não determinista da
tecnologia. O quadro esboçado, até agora, implica uma mudança
significativa na nossa definição da tecnologia. A tecnologia não
pode continuar a ser considerada nem como uma coleção de dis-
positivos nem, de um modo mais geral, como a soma de meios
racionais. Essas são definições tendenciosas suscitam a questão
da significância social e dos envolvimentos da tecnologia.
Enquanto objeto social, a tecnologia precisa de estar sujeita a
uma interpretação, como qualquer outro artefato cultural, mas
geralmente é excluída das ciências humanas. Asseguram-nos que
a sua essência reside numa função tecnicamente explicável, em
vez de um significado interpretável por via hermenêutica. No
máximo, os métodos das ciências humanas apenas podem trazer
alguma luz aos aspetos extrínsecos da tecnologia, como a questão
das embalagens e da publicidade, ou às reações populares às ino-
vações consideradas controversas, como a energia nuclear. O de-
terminismo tecnológico extrai a sua força a partir dessa atitude.
Se ignorarmos a maioria das ligações entre tecnologia e socieda-
de, não é surpresa que a tecnologia nos possa aparecer como algo
gerador de si próprio.
Os objetos técnicos têm duas dimensões hermenêuticas, a
que eu chamo o seu significado social e o seu horizonte cultu-
ral(4). O papel do significado social está claro no caso da bicicleta.
Vimos que o projeto da bicicleta foi decidida por uma disputa
entre interpretações: deveria ser um brinquedo de desportistas
ou um meio de transporte? As características do seu projeto, co-
mo o tamanho da roda, serviram para lhe atribuir um significado
como um ou outro tipo de objeto, ao mesmo tempo que o ade-
quavam à função.
Pode-se objetar que isso é uma mera discordância inicial so-
bre funções, sem qualquer significação hermenêutica. Uma vez

87
CAPÍTULO I

estabilizado o objeto, o engenheiro tem a última palavra em rela-


ção à sua natureza, e o intérprete humanista é deixado de lado - é
esta a visão da maioria dos engenheiros e gestores, que rapida-
mente se apercebem do conceito de “função”, mas que não têm
qualquer uso para o de “significado”.
Na realidade, a dicotomia entre função e significado é um
produto das modernas culturas técnicas, que estão, por sua vez,
arraigadas na estrutura da economia moderna. O conceito de
“função” despe a tecnologia dos seus contextos sociais, focando os
engenheiros e os gestores só naquilo que precisam de saber para
fazerem o seu trabalho. Porém, obtém-se uma imagem mais com-
pleta quando se estuda o papel social dos objetos técnicos e os es-
tilos de vida que tornam possíveis. Essa imagem coloca a noção
abstrata de "função" no seu contexto social concreto. Torna as cau-
sas e as consequências contextuais da tecnologia visíveis, em vez
de as obscurecer por detrás de um funcionalismo empobrecido(5).
O ponto de vista funcionalista produz um corte temporal-
mente descontextualizado na vida do objeto. Como vimos, o de-
terminismo argumenta, de forma implausível, que consegue, a
partir de uma configuração momentânea de um determinado
objeto, passar para a sua configuração seguinte através de termos
puramente técnicos. Mas, no mundo real, aparecem todos os ti-
pos de atitudes imprevisíveis que cristalizam em torno dos obje-
tos técnicos e que influenciam alterações posteriores do seu
projeto. O engenheiro pode pensar que são extrínsecas ao dispo-
sitivo em que está a trabalhar, mas são a sua própria substância
como fenómeno histórico em desenvolvimento.
Esses fatos são reconhecidos, até certo ponto, nos próprios
domínios técnicos. Com os computadores, temos uma versão
contemporânea do dilema da bicicleta, discutido anteriormente.
O tipo de progresso generalizado em velocidade, potência e me-
mória avança muito rapidamente, enquanto que os gestores em-
presariais se debatem com a questão de compreender a utilidade
de tudo isso. O desenvolvimento técnico, definitivamente, não a-

88
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

ponta para qualquer caminho em particular. Pelo contrário, abre


ramificações, e a determinação final da ramificação “certa” não
está dentro da competência da engenharia, porque isso simples-
mente não está inscrito na natureza da tecnologia.
Estudei um exemplo particularmente claro da complexidade
da relação entre a função técnica e o significado do computador
no caso do videotexto francês(6). O sistema, chamado "Teletel", foi
projetado para levar a França para a era da informação, dando
acesso a bases de dados através de um terminal não inteligente
estandardizado aos subscritores do telefone. Temendo que os
consumidores rejeitassem qualquer coisa que fosse semelhante a
um equipamento de escritório, a companhia telefónica tentou re-
definir a imagem social do computador; que não deveria mais
aparecer como um dispositivo de arquivo e cálculo para profissi-
onais, mas devia antes tornar-se numa rede pública de informa-
ção.
A empresa telefónica projetou um novo tipo de terminal, o
Minitel, para ser parecido e percebido como um suplemento do
telefone doméstico. O disfarce telefónico sugeriu a possibilidade,
a alguns utilizadores, de falarem uns com os outros através da
rede. Rapidamente o Minitel sofreu uma redefinição adicional
nas mãos desses utilizadores, muitos dos quais passaram a utili-
zá-lo para conversar anonimamente entre si, online, à procura de
diversão, amizades e sexo.
Assim, o projeto do Minitel incentivou aplicações de comuni-
cações que os engenheiros da empresa não tencionavam incluir
quando se propuseram melhorar o fluxo de informação na socie-
dade francesa. Essas aplicações, por sua vez, deram ao Minitel a
conotação de um meio para encontros pessoais, completamente
oposto ao projeto racionalista para o qual tinha sido originalmen-
te criado. O computador "frio" transformou-se num novo meio
"quente".
Nessa transformação esteve em questão não só a limitada
conceção da função técnica do computador, mas também a pró-

89
CAPÍTULO I

pria natureza da sociedade que o computador torna possível. Se-


rá que as redes abrem as portas para a era da informação, onde
nós, consumidores racionais famintos por informação,
procuramos estratégias de otimização? Ou será uma tecnologia
pós-moderna que emerge do colapso da estabilidade institucio-
nal e emocional? Neste caso, a tecnologia não é apenas o servo
de um propósito social predefinido; é um ambiente dentro do
qual se constrói um modo de vida.
Em suma, as diferenças no modo como os grupos sociais in-
terpretam e usam objetos técnicos não são meramente extrínse-
cas, mas diferenciam na natureza dos próprios objetos. Aquilo que
o objeto é para os grupos que vão decidir o seu destino, em últi-
ma instância, determina aquilo em que ele se tornará à medida que é
redesenhado e melhorado ao longo do tempo. Se isto for verda-
de, então só poderemos entender o desenvolvimento tecnológico
pelo estudo do seu significado para os vários grupos que o influ-
enciam.

HEGEMONIA TECNOLÓGICA
Para além dos pressupostos acerca dos objetos técnicos individu-
ais que temos vindo a discutir, os significados que pertencem ao
horizonte cultural da sociedade também configuram as tecnolo-
gias. Esta segunda dimensão hermenêutica da tecnologia é a base
das formas modernas de hegemonia social, o que é particular-
mente relevante para a nossa questão original acerca da inevita-
bilidade da hierarquia numa sociedade tecnológica.
O conceito que usarei de hegemonia diz respeito a uma for-
ma de dominação tão profundamente enraizada na vida social
que parece ser natural para aqueles que domina. Poderíamos
também defini-la como o aspeto da distribuição de poder social
que tem, por trás de si, a força da cultura.
O termo “horizonte”, usado no primeiro parágrafo desta sec-

90
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

ção, refere-se aos pressupostos culturalmente genéricos que for-


mam a base inquestionável para qualquer aspecto da vida(7) e que,
em alguns casos, suportam a hegemonia prevalecente. Por exem-
plo, nas sociedades feudais, a “cadeia dos seres” definia a hierar-
quia estabelecida na estrutura do universo divino e protegia as
relações de casta da sociedade de possíveis desafios. Sob esse ho-
rizonte, os camponeses até se revoltavam (contra os barões), mas
em nome do rei, a única fonte imaginável de poder. A racionaliza-
ção é nosso horizonte moderno, e o projeto da tecnologia é a chave
para a sua eficiência como a base das hegemonias modernas.
O desenvolvimento tecnológico é condicionado por normas
culturais com origem na economia, ideologia, religião e tradição.
Discuti anteriormente como é que pressupostos sobre a estrutura
etária da força de trabalho entraram no projeto das tecnologias de
produção do século XIX. Tais suposições parecem tão naturais e
óbvias que, geralmente, permanecem abaixo do limiar da apreen-
são consciente.
Esse é o ponto da importante crítica de Herbert Marcuse à
teoria da racionalização de Max Weber (Marcuse 1968). Marcuse
mostra que Weber confunde o controlo do trabalho pela gestão
com o controlo da natureza pela tecnologia. A procura pelo con-
trolo da natureza é genérica, mas a gestão só surge a partir de um
quadro social específico, o sistema capitalista. Nele, os trabalha-
dores não têm qualquer interesse imediato na produção, na me-
dida em que os seus salários não estão essencialmente vinculados
ao volume de negócios da empresa. O controlo dos seres humanos
torna-se de suma importância, nesse contexto. Outra maneira de o
dizer é afirmar que a gestão do topo para a base é “racional” sob o
horizonte do capitalismo, mas Weber não faz esta qualificação.
Através da mecanização, algumas das funções de controlo
são eventualmente transferidas dos supervisores humanos e de
práticas laborais fracionadas para as máquinas. O projeto das
máquinas é, assim, socialmente relativo, de uma forma que We-
ber jamais reconheceu, e a “ racionalidade tecnológica” que incorpo-

91
CAPÍTULO I

ra não é universal, mas sim particular ao capitalismo. De facto, é


o horizonte de todas as sociedades industriais existentes, tanto
das comunistas quanto das capitalistas, na medida em que elas
são administradas de cima para baixo.
Se Marcuse estiver certo, deve ser possível reconstituir as
marcas das relações de classe no próprio desenho da tecnologia
de produção, como foi na realidade demonstrado por estudiosos
marxistas do processo laboral, como Harry Braverman e David
Noble (Braverman 1974; Noble 1984). A linha de montagem ofe-
rece um exemplo particularmente claro, porque o seu projeto
atinge objetivos tradicionais da gestão, como a desqualificação e
fragmentação do trabalho. A sua disciplina de trabalho imposta
tecnologicamente aumenta a produtividade e os lucros através
do aumento do controlo. Porém, a linha de montagem só aparece
como progresso técnico num contexto social específico. Não seria
percebida como um avanço numa economia baseada em coope-
rativas de trabalhadores, onde a disciplina do trabalho foi mais
autoimposta do que imposta por cima. Numa tal sociedade, uma
racionalidade tecnológica diferente ditaria formas diferentes de
aumentar a produtividade.
Este exemplo mostra que a racionalidade tecnológica não é
uma mera crença, uma ideologia, mas está efetivamente incorpo-
rada na estrutura das máquinas. O projeto das máquinas reflete
os fatores sociais que operam na racionalidade predominante. O
facto do argumento a favor da relatividade social da tecnologia
moderna ter tido origem num contexto marxista obscureceu as
suas implicações radicais mais importantes. Não estamos aqui a
lidar com uma mera crítica ao sistema de propriedade, mas esta-
mos a estender a crítica em direção à “base” técnica e às forças da
produção. Esta abordagem ultrapassa a velha distinção económi-
ca entre capitalismo e socialismo, mercado e planeamento. Pelo
contrário, chega-se a uma distinção muito diferente entre as soci-
edades nas quais o poder está na mediação técnica das atividades
sociais e as sociedades que democratizam o controlo técnico e, de

92
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

forma correspondente, o projeto tecnológico.

TEORIA DO ASPETO DUPLO


O argumento para este ponto pode ser resumido como uma rei-
vindicação de que o significado social e a racionalidade funcional
são dimensões inextricavelmente entrelaçadas da tecnologia. Não
são ontologicamente distintos, com o significado na mente do
observador e a racionalidade na tecnologia apropriada. São, em
lugar disso, aspetos duplos do mesmo objeto técnico básico, cada
aspecto sendo revelado por um contexto específico. (8)
A racionalidade funcional isola os objetos do seu contexto
original para os incorporar num sistema teórico. As instituições
que dão suporte a esse procedimento – tal como laboratórios e
centros de investigação e de projeto – formam, elas próprias, um
contexto especial com práticas próprias e ligações com vários
agentes sociais e áreas de poder. A noção de racionalidade “pura”
surge quando o próprio trabalho de descontextualização não é
suficientemente compreendido como sendo uma atividade social
que reflete interesses sociais.
Esses interesses selecionam as tecnologias por entre
múltiplas configurações possíveis. Na orientação do processo de
seleção estão códigos sociais estabelecidos pelas lutas culturais e
políticas que definem o horizonte cultural sob o qual a tecnologia
vai atuar. Uma vez introduzida, a tecnologia oferece uma valida-
ção material da ordem social para a qual foi pré-formada. Isso
pode ser chamado de "enviesamento" da tecnologia: a racionali-
dade funcional, aparentemente neutra, é alistada na defesa de
uma hegemonia. Quanto mais a sociedade emprega tecnologia,
mais significativo é esse apoio(9).
Como Foucault discutiu na sua teoria sobre "poder/conheci-

93
CAPÍTULO I

mento", as formas modernas de opressão baseiam-se não tanto


em ideologias falsas, como também em “verdades” técnicas que
fundamentam e reproduzem a hegemonia dominante (Foucault
1977). Enquanto a contingência da escolha da “verdade” perma-
nece escondida, projeta-se a imagem determinística de uma or-
dem social justificada tecnicamente.
A eficiência legitimadora da tecnologia depende da falta de
consciência do horizonte cultural inconsciente sob o qual ela foi
projetada. Uma crítica recontextualizadora da tecnologia pode
revelar esse horizonte, desmistificar a ilusão da necessidade téc-
nica e expor a relatividade das escolhas técnicas predominantes.
Uma política da tecnologia pode exigir modificações que reflitam
essa crítica.
A possibilidade de uma tal política reside numa característi-
ca peculiar do aspeto duplo da tecnologia. Embora função e sig-
nificado sejam aspetos analiticamente distintos em qualquer
corte temporal, interagem externamente ao longo do tempo his-
tórico. Estabelecem o que se pode chamar uma “relação de dupla
entrada”, na qual paradoxalmente os dados de cada um invadem
e operam no campo do outro. A experiência quotidiana, o domí-
nio do significado social, é governada por uma lógica diferente
da racionalidade científica e da engenharia que preside à lógica
funcional da tecnologia. Sempre que estes dois contextos estão
desalinhados, emergem tensões que são resolvidas ao longo da
história por meio de alterações e ajustamento num dos campos,
ou em ambos.
Embora metodologicamente seja intrigante, este relaciona-
mento de dupla entrada é óbvio em certos casos específicos. Por
exemplo, o conhecimento do risco entra na experiência como me-
do ou ansiedade, ou seja, como um aspeto do significado dos ob-
jetos associados. A energia nuclear é um caso desse tipo. O
significado social da tecnologia é informado em parte pelo co-
nhecimento científico do risco. Entretanto, as camadas mais anti-
gas de significado cristalizam em torno de receios invisíveis e de

94
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

medos do desconhecido. Enquanto isso, os cientistas e os enge-


nheiros respondem às perceções de risco do público com novos
projetos que prometem aumentar a segurança. Desta forma, o
significado social da tecnologia influencia a especificação racional
do dispositivo. Noutros campos, como no da informática, novas
funcionalidades são por rotina introduzidas em resposta a mu-
danças de significado.

A RELATIVIDADE SOCIAL DA EFICIÊNCIA


Estas questões aparecem com especial força no movimento ambi-
entalista. Muitos ecologistas clamam por mudanças técnicas que
protegeriam a natureza e, ao mesmo tempo, melhorariam a vida
humana. Tais mudanças aumentariam a eficiência em termos
mais amplos através da redução dos efeitos colaterais prejudiciais
e custosos da tecnologia. Isso, no entanto, é muito difícil de im-
plementar numa sociedade capitalista. Há uma tendência para se
desviar a crítica dos processos tecnológicos para os produtos e
para as pessoas, de uma prevenção a priori para uma limpeza a
posteriori. Tais estratégias são caras e reduzem, no curto prazo, a
eficiência. Tudo isso tem consequências políticas.
Reduzir os efeitos laterais e restabelecer o meio ambiente são
formas de consumo coletivo, financiadas por impostos ou preços
mais altos. Estas abordagens dominam a consciência pública. É
por isso que o movimento ambientalista é geralmente percebido
como um custo que envolve trocas compensatórias e não como
uma racionalização que aumenta o bem estar geral. Mas numa
sociedade obcecada pelo consumo privado, esta visão é amaldiço-
ada. Os economistas e os empresários gostam de explicar o preço
que precisamos de pagar, com a inflação e com o desemprego, pe-
lo culto ao santuário da Natureza, em vez do culto a Mammon(f).
A pobreza espera por aqueles que não ajustam as suas expectati-
vas sociais e políticas aos imperativos da tecnologia.

95
CAPÍTULO I

Este modelo de trocas compensatórias coloca os ambientalis-


tas numa situação difícil para propor uma estratégia. Alguns têm
uma esperança piedosa de que as pessoas trocarão os valores
económicos pelos valores espirituais diante da progressão dos
problemas da sociedade industrial. Outros esperam que ditado-
res esclarecidos imponham uma reforma tecnológica a uma po-
pulação irracional. É difícil decidir qual dessas soluções é a mais
improvável, mas ambas são incompatíveis com os valores demo-
cráticos básicos (Heilbroner 1975).
O modelo de trocas compensatórias confronta-nos com dile-
mas – tecnologia com uma sólida base ecológica versus prosperi-
dade, satisfação dos trabalhadores e controlo versus produtividade,
etc. – onde precisamos de sínteses. A menos que os problemas do
industrialismo moderno possam ser resolvidos de forma que
tanto protejam a natureza como consigam conquistar o apoio pú-
blico, há poucas razões para esperar que sejam alguma vez resol-
vidos. Mas como é que uma reforma tecnológica se pode re-
conciliar com a prosperidade quando impõe vários limites novos
à economia?
O caso do trabalho infantil mostra como dilemas aparentes
surgem nas fronteiras da mudança cultural, especialmente quan-
do a definição social das principais tecnologias está em transição.
Em tais situações, os grupos sociais excluídos do projeto original
articulam politicamente os seus interesses não representados. No-
vos valores que os excluídos acreditam que aumentariam o seu
bem-estar aparecem como sendo meras ideologias aos incluídos,
que estão adequadamente representados pelo projeto existente.
Esta é uma diferença de perspetiva, não de natureza. No en-
tanto, a ilusão de um conflito fundamental renova-se sempre que
as principais mudanças sociais afetam a tecnologia. No princípio,
satisfazer as exigências dos novos grupos tem custos visíveis e,
sendo feita de maneira descoordenada, na verdade reduz a efici-
ência até que novos projetos sejam encontrados. Mas, normal-
mente, encontram-se projetos melhores e o que parecia ser um

96
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

obstáculo insuperável para o crescimento dissolve-se face às mu-


danças tecnológicas.
Esta situação indica a diferença fundamental entre troca eco-
nómica e técnica. Trocas são sempre compensatórias: mais de A
significa menos de B. Mas o objetivo do avanço técnico é precisa-
mente evitar tais dilemas, por meio daquilo que Simondon cha-
ma “concretizações”, projetos elegantes que otimizam diversas
variáveis em simultâneo. Um único mecanismo, inteligentemente
concebido, pode corresponder a muitas exigências sociais dife-
rentes, uma estrutura com muitas funções. O projeto não é um
jogo económico de soma zero, mas um processo cultural ambiva-
lente que serve a multiplicidade de valores e de grupos sociais
sem necessariamente sacrificar a eficiência(10).

O CÓDIGO TÉCNICO
Estes conflitos sobre o controlo social de tecnologia não são no-
vos, como se pode ver no interessante caso das “caldeiras explo-
sivas” (Burke 1972). As caldeiras dos barcos a vapor foram a
primeira tecnologia que o governo dos Estados Unidos regula-
mentou. Nos princípios do século XIX, o barco a vapor era a for-
ma mais importante de transporte, semelhante ao automóvel ou
aos aviões hoje em dia. Os Estados Unidos eram um grande país
sem estradas pavimentadas, mas com muitos rios e canais, daí a
dependência dos barcos a vapor. Mas os navios a vapor explodi-
am com frequência, quando pediam demasiado esforço às caldei-
ras fragilizadas pela idade. Depois de vários acidentes altamente
mortais em 1816, a cidade de Filadélfia decidiu consultar os peri-
tos acerca do projeto mais seguro de caldeiras a vapor. Foi a pri-
meira vez que uma instituição governamental americana se
interessou pelo problema. Em 1837, a pedido do Congresso, o
Instituto Franklin publicou um relatório detalhado e recomenda-
ções com base no estudo rigoroso da construção de caldeiras. O

97
CAPÍTULO I

Congresso estava tentado a impor um código de caldeiras segu-


ras à indústria, mas tanto os construtores de caldeiras como os
proprietários dos barcos a vapor resistiram, e o governo hesitou
em interferir com a propriedade privada.
Foi preciso passar o tempo, desde a primeira inquirição em
1816 até ao ano de 1852, para o Congresso passar leis com uma
regulamentação efetiva da construção de caldeiras. Nesse perío-
do de tempo, cinco mil pessoas morreram em acidentes em bar-
cos a vapor. São muitas ou poucas vítimas? Os consumidores,
evidentemente, não ficaram assim tão alarmados, pois continua-
ram a viajar nos rios e o número de passageiros foi crescendo
sempre. Compreensivelmente, os donos de barcos interpretaram
isso como um voto de confiança e protestaram contra o custo ex-
cessivo dos projetos mais seguros. Por outro lado, os políticos
também iam ganhando votos por exigirem mais segurança.
A taxa de acidentes caiu drasticamente desde que passaram
a ser obrigatórias paredes mais espessas nas caldeiras e válvulas
de segurança. A legislação não deveria teria sido necessária para
alcançar esse resultado, se este fosse determinado por via técnica.
Mas, na realidade, o projeto das caldeiras estava relacionado com
um julgamento social sobre a segurança. Esse julgamento poderia
ter sido feito estritamente a partir das leis de mercado, como
pretendiam os empresários dos barcos, ou politicamente, mas
com diferentes resultados sobre o projeto técnico. Em qualquer
dos casos, esses resultados constituíram o que viria a ser uma cal-
deira correta. O que “é” uma caldeira foi, portanto, definido por
um longo processo de lutas políticas que, em última instância,
culminou nos códigos uniformes emitidos pela ASME(g).
O exemplo mostra como a tecnologia se adapta às mudanças
sociais. O que eu chamo de “código técnico” do objeto faz a me-
diação do processo e responde ao horizonte cultural da sociedade
ao nível do projeto técnico. Parâmetros técnicos muito básicos,
como a escolha e o processamento de materiais, são especificados
socialmente pelo código. A ilusão da necessidade técnica surge do

98
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

facto de que o código é, por assim dizer, literalmente “moldado


no ferro”, pelo menos no caso de caldeiras.
A posição conservadora anti regulamentação baseiam-se nu-
ma ilusão, e ignora que o processo de projeto incorpora sempre
padrões de segurança e de compatibilidade ambiental; de modo
semelhante, todas as tecnologias suportam um certo nível básico
de iniciativa do trabalhador ou do utilizador. Um objeto técnico
feito corretamente deve simplesmente obedecer a tais padrões,
para ser reconhecido como tal. Não consideramos essa conformi-
dade como um custo adicional, mas sim como um custo intrínse-
co. Elevar os padrões significa alterar a definição do objeto, mas
não pagar um preço por um bem alternativo ou por um valor
ideológico, como afirma o modelo da troca compensatória.
Mas o que é que muda no muito discutido cálculo de custos
e benefícios das alterações do projeto, por exigências da legisla-
ção ambiental e de outras similares? Estes cálculos têm alguma
aplicação em situações transitórias, antes que os avanços tecno-
lógicos que respondem aos novos valores alterem fundamental-
mente os termos do problema. Mas, com frequência, os
resultados dependem de estimativas muito grosseiras de econo-
mistas sobre o valor monetário de coisas como um dia de pesca
às trutas ou um ataque de asma. Quando feitas sem preconceitos,
tais estimativas podem ajudar a priorizar alternativas políticas,
mas não se pode generalizar legitimamente a partir de tais apli-
cações da política para se chegar a uma teoria universal dos cus-
tos de regulamentação. (11)
Tal fetichismo da eficiência ignora o nosso entendimento co-
mum do conceito, que por si só é relevante no processo de toma-
da de decisões pela sociedade. No bom senso do dia-a-dia, a
eficiência diz respeito a uma gama restrita de questões com que
os agentes económicos lidam por rotina. Os aspetos não proble-
máticos da tecnologia não estão aí incluídos. Teoricamente, uma
pessoa pode decompor qualquer objeto técnico e explicar cada
um de seus elementos em termos dos objetivos que cumpre –

99
CAPÍTULO I

como a segurança, a rapidez, a confiança, entre outras coisas;


mas, na prática, ninguém está interessado em abrir a “caixa pre-
ta” para ver o que está lá dentro.
Por exemplo, uma vez estabelecido o código das caldeiras,
aspetos como a espessura de sua parede ou o projeto de uma vál-
vula de segurança aparecem como essenciais para o objeto. O
custo destas características não se decompõe como um “preço”
específico de segurança, nem é comparado desfavoravelmente
com uma versão mais “eficiente”, mas menos segura, da tecnolo-
gia. Violar o código para baixar os custos é um crime, não uma
troca compensatória. E, como todo o progresso posterior tem lu-
gar a partir do novo padrão de segurança, em pouco tempo
depois ninguém mais se lembra dos bons velhos tempos dos pro-
jetos mais baratos e inseguros.
Os padrões dos projetos da tecnologia são apenas controver-
sos quando estão em curso. Os conflitos já solucionados sobre a
tecnologia são rapidamente esquecidos. Os seus resultados, uma
massa confusa de padrões técnicos e legais tidos como certos, são
incorporados num código estável e formam a base acumulada de
regulamentos contra a qual os agentes económicos manipulam os
aspetos não estabilizados da tecnologia na procura da eficiência.
O código não varia nos cálculos económicos do mundo real, mas
é considerado como uma variável fixa.
Antecipando a estabilização de um novo código, podemos
geralmente ignorar os argumentos contemporâneos, que serão
logo silenciados pelo aparecimento de um novo horizonte de cál-
culos de eficiência. Foi o que aconteceu com o modelo da caldeira
e o trabalho infantil; presumivelmente, os debates atuais sobre
ambientalismo terão uma história semelhante e zombaremos da-
queles que hoje se opõem a um ar mais limpo, afirmando que se
trata de um "falso princípio de humanidade" que viola imperati-
vos tecnológicos.
Os valores não económicos intersetam a economia no código
técnico. Os exemplos com que lidamos ilustram isso de forma

100
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

muito clara. Os padrões legais que regulam a atividade económi-


ca têm um impacto significativo em todos os aspetos das nossas
vidas. No caso do trabalho infantil, a regulamentação ajudou a
alargar as oportunidades educacionais com consequências hu-
manas que não são de caráter meramente económico. No caso do
barco a vapor, os americanos preferiram níveis mais altos de se-
gurança e o projeto das caldeiras veio a refletir essa escolha. Ao
fim e ao cabo, não foi uma “troca compensatória” de um bem por
outro, mas sim uma decisão não económica sobre o valor da vida
humana e as responsabilidades governamentais.
A tecnologia não é, assim, um mero meio para se chegar a
um fim; os padrões do projeto técnico definem partes importan-
tes do ambiente social, tais como espaços urbanos e construções,
ambientes de trabalho, atividades e expetativas médicas, estilos
de vida e assim por diante. O significado económico da mudança
técnica geralmente empalidece perante as suas implicações hu-
manas mais amplas, ao estruturar um modo de vida. Em tais ca-
sos, a regulamentação define o quadro cultural da economia; não
é apenas um ato praticado na economia.

A "ESSÊNCIA" DA TECNOLOGIA EM HEIDEGGER


A teoria esboçada sugere a possibilidade de uma reforma geral
da tecnologia. Mas os críticos distópicos objetam que, pelo sim-
ples fato de se buscar a eficiência ou a eficácia técnica, já se está a
fazer uma violência inadmissível sobre os seres humanos e sobre
a natureza. A funcionalidade universal destrói a integridade de
tudo o que existe. Como argumenta Heidegger, um mundo “sem
objetos” formado por meros recursos, substitui um mundo de
“coisas” tratadas com respeito pelo seu próprio modo de existir
como espaços de reunião dos nossos múltiplos compromissos co-
mo "ser"(12).
Esta crítica reforça-se com os perigos reais com que a tecno-

101
CAPÍTULO I

logia moderna ameaça o mundo de hoje. Mas o famoso contraste


de Heidegger entre uma barragem no Reno e um cálice grego
desperta as minhas suspeitas. Seria difícil encontrar uma compa-
ração mais tendenciosa. Sem dúvida, a tecnologia moderna é
imensamente mais perigosa do que qualquer outra. Sem dúvida,
invalida os significados tradicionais, sem proporcionar uma al-
ternativa adequada. E Heidegger tem razão em argumentar que
os meios não são verdadeiramente neutros, que o seu conteúdo
substantivo afeta a sociedade, independentemente das finalida-
des que servem. Mas este conteúdo não é essencialmente destruti-
vo; na verdade, o seu significado é antes uma questão de projeto
e de inserção social.
No entanto, Heidegger rejeita qualquer diagnóstico mera-
mente social dos males das sociedades tecnológicas e reivindica
que a fonte dos seus problemas remonta a Platão, pelo menos, de
modo que as sociedades modernas apenas concretizam um telos
imanente desde o início da metafísica ocidental. A sua originali-
dade consiste em apontar que a ambição para controlar o ser é
um modo de ser, por si mesma, e que, portanto, está subordina-
da, a um nível mais profundo, com uma entrega ontológica que
está além do controlo humano. Mas o efeito global da sua crítica
é condenar a agência humana, pelo menos nos tempos modernos,
e de confundir diferenças essenciais entre tipos diferentes de de-
senvolvimento tecnológico.
Heidegger e os seus seguidores distinguem entre o problema
ontológico da tecnologia, que só pode ser tratado conseguindo
aquilo que eles chamam uma “relação livre” com a tecnologia, e
meras soluções ônticas propostas pelos reformadores que preten-
dem modificar a própria tecnologia. Esta diferença pode ter já
parecido mais interessante do que é hoje. Com efeito, Heidegger
está a pedir nem mais nem menos do que uma mudança na ati-
tude para com o mesmo mundo técnico. Mas isso é uma solução
idealista, no mau sentido, e que uma geração de ativismo ambi-
ental refuta decisivamente.

102
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

Confrontados com este argumento, os defensores de Hei-


degger geralmente assinalam que a sua crítica da tecnologia não
se prende apenas com atitudes, mas com a forma como o ser se
”revela” a si próprio. Traduzindo aproximadamente esta lingua-
gem de Heidegger, significa dizer que o mundo moderno tem
uma forma tecnológica, algo no mesmo sentido em que, por ex-
emplo, o mundo medieval tinha uma forma religiosa. A forma
não é uma mera questão de atitude, mas ganha uma vida própria
por si: as centrais de energia são as catedrais góticas do nosso
tempo. Mas esta interpretação do pensamento de Heidegger cria
a expectativa de uma proposta de critérios para uma reforma da
tecnologia. Por exemplo, a sua crítica da tendência da tecnologia
moderna para acumular e armazenar os poderes da natureza su-
gere a superioridade de outra tecnologia que não desafie a natu-
reza de uma forma prometeica.
Mas Heidegger não segue esta linha. Em vez disso, desen-
volve o seu argumento até um nível tão elevado de abstração
que, literalmente, não consegue discriminar entre eletricidade e
bombas atómicas, técnicas agrícolas e holocausto. Numa confe-
rência em 1949, argumentou: “A agricultura é agora a indústria
alimentar mecanizada, em essência a mesma coisa que a trans-
formação de corpos em câmaras de gás e campos de extermínio, o
mesmo que o bloqueio de nações e a sua morte pela fome, a mes-
ma coisa que a produção de bombas de hidrogénio” (citado em
Rockmore 1994, 241). Todos são meras expressões diferentes de
um “enquadramento” (h) idêntico que nós somos chamados a
transcender recuperando uma relação mais profunda com o ser.
Como Heidegger rejeita a regressão tecnológica, sem deixar qual-
quer espaço para a reforma da tecnologia, é difícil ver em que é
que essa relação pode consistir para além de uma simples mu-
dança de atitude.
Heidegger não pode considerar seriamente a noção de refor-
ma tecnológica porque reifica a tecnologia moderna como algo
separado da sociedade, como uma força sem contexto, por ine-

103
CAPÍTULO I

rência, que procura o puro poder. Se isto é a “essência“ da tecno-


logia, então a sua reforma seria meramente extrínseca. Mas neste
ponto a posição de Heidegger converge com o espírito prometei-
co que ele próprio rejeita. Tanto este quanto Heidegger depen-
dem de uma definição restrita de tecnologia que, pelo menos
desde Bacon e Descartes, tem enfatizado o seu destino para con-
trolar o mundo, mas excluindo o seu contexto de inserção, igual-
mente essencial. Esta definição reflete o ambiente capitalista no
qual a tecnologia moderna se desenvolveu inicialmente.
O exemplo moderno de senhor da tecnologia é o empreen-
dedor, dotado de uma mente focada apenas na produção e no lu-
cro. A empresa é uma plataforma radicalmente descontextualizada
e voltada para a ação, sem as tradicionais responsabilidades para
com os indivíduos e os lugares que acompanhavam o poder téc-
nico no passado. É a autonomia da empresa que torna possível
distinguir tão nitidamente entre as consequências intencionais e
as não intencionais, entre objetivos e efeitos contextuais, e ignorar
estes últimos.
O foco restrito da tecnologia moderna satisfaz as necessida-
des de uma hegemonia particular; não é uma condição metafísi-
ca. Sob essa hegemonia, o projeto técnico é, de forma pouco
habitual, descontextualizado e destrutivo. Não é a tecnologia,
mas sim essa hegemonia que precisa de ser explicada quando as-
sinalamos que, hoje em dia, os meios técnicos formam um ambi-
ente cada vez mais ameaçador para a vida. É essa hegemonia, tal
como materializada na tecnologia, que deve ser questionada na
luta por uma sociedade melhor.

RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA
Ao longo de várias gerações, a fé no progresso apoiou-se em duas
convicções muito difundidas: a primeira é que a necessidade téc-
nica dita o caminho do desenvolvimento, e a segunda é que a

104
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

procura pela eficiência fornece uma base para a identificação


desse caminho. Argumentamos anteriormente que ambas as con-
vicções são falsas e que, para além disso, são ideologias empre-
gues para justificar restrições a oportunidades de participação em
processos de tomada de decisões na sociedade industrial. Con-
cluo que uma reforma da sociedade tecnológica pode suportar
um amplo leque de valores. A democracia é um desses valores.
O que significa democratizar a tecnologia? O problema não é
primordialmente de direitos legais, mas sim de iniciativa e parti-
cipação. As formas legais podem eventualmente rotinizar as rei-
vindicações iniciais feitas de forma informal, mas tais formas
permanecerão vazias, a menos que sejam uma emergência da ex-
periência e das necessidades dos indivíduos que resistem a uma
hegemonia tecnocrática.
Essa resistência assume muitas formas, desde as lutas sindi-
cais pela saúde e pela segurança em unidades nucleares ou as lu-
tas comunitárias pela eliminação de lixos tóxicos, até às
exigências políticas pela regulamentação das tecnologias de re-
produção. Esses movimentos alertam-nos para a necessidade de
se ter em conta as externalidades tecnológicas assim como exi-
gem mudanças de projeto capazes de responder ao contexto mais
amplo revelado nessa explicação.
Tais controvérsias tecnológicas tornaram-se uma característi-
ca inevitável da vida política contemporânea, definindo os parâ-
metros para a "avaliação da tecnologia" oficial (Cambrosio e
Limoges 1991; Callon et al. 2009), que sugerem a criação de uma
nova esfera pública que inclua o contexto(i) técnico da vida social,
e um novo estilo de racionalização que internalize os custos não
contabilizados suportados pela “natureza”, ou seja, suportados
por algo ou alguém que pode ser explorado, em busca do lucro.
Aqui o respeito pela natureza não é antagónico à tecnologia, mas
abre uma nova via de desenvolvimento.
Conforme essas controvérsias se tornam lugares comuns,
vão emergindo novas formas surpreendentes de resistência e no-

105
CAPÍTULO I

vas exigências. O exemplo do Minitel é um modelo desta nova


situação. Em França, o computador foi politizado logo que o go-
verno ofereceu um sistema de informação altamente racionalista
ao público em geral. Os utilizadores "piratearam" a rede na qual
estavam inseridos e alteraram o seu funcionamento, introduzin-
do a comunicação humana em grande escala onde tinha sido
apenas prevista a distribuição centralizada de dados. A internet
também deu origem a muitas dessas reações públicas inovadoras
da tecnologia.
Os indivíduos incorporados nestas novas redes técnicas
aprenderam a resistir através da própria rede, para influenciarem
os poderes que a controlam. Não se trata de uma competição por
riqueza ou por poder administrativo, mas sim de uma luta para
subverter as práticas, os procedimentos e os projetos que estrutu-
ram a vida de todos os dias.
É instrutivo comparar este caso com os movimentos de paci-
entes com sida por uma assistência médica melhorada. Tal como
uma conceção racionalista dos computadores tende a obstruir as
suas potencialidades de comunicação, também na medicina as
funções de assistência tornaram-se meros efeitos colaterais do
tratamento, que é entendido exclusivamente em termos técnicos.
Os pacientes tornam-se objetos dessa técnica, mais ou menos
"complacentes" com a gestão por parte dos médicos. A incorpo-
ração de milhares de pacientes incuráveis com sida desestabili-
zou o sistema e expô-lo a novos desafios (Feenberg 1995, cap. 5;
Epstein 1996).
O assunto chave era o acesso aos tratamentos experimentais.
A investigação clínica é um modo pelo qual um sistema médico
altamente tecnologizado pode cuidar daqueles que ainda não po-
de curar. Mas, até muito recentemente, o acesso às experiências
médicas foi severamente restringido por preocupações paternalis-
tas com o bem-estar dos pacientes. Os doentes com sida consegui-
ram ter acesso a esses tratamentos porque as redes de contágio em
que foram apanhados encontraram um paralelo nas redes sociais

106
RACIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: TECNOLOGIA, PODER E LIBERDADE

que já estavam mobilizadas a favor dos direitos dos homossexu-


ais, no momento em que a doença foi inicialmente diagnosticada.
Em vez de participarem individualmente na medicina, como
objetos de uma prática técnica, os pacientes com sida desafiaram-
na coletiva e politicamente. "Piratearam" o sistema médico e di-
recionaram-no para novos propósitos. A sua luta representa uma
tendência oposta à organização tecnocrática da medicina, uma
tentativa de recuperação da sua dimensão simbólica e das fun-
ções assistenciais.
Como no caso do Minitel, não é óbvio como avaliar esse de-
safio pelos conceitos habituais da política. Nem estas lutas subtis
contra o crescimento do silêncio nas sociedades tecnológicas pa-
recem ser significativas do ponto de vista das ideologias reacio-
nárias que, hoje em dia, competem ruidosamente com o mo-
dernismo. Todavia a procura pela comunicação que esses mo-
vimentos representam é tão fundamental que pode servir como
pedra de toque para a adequação das teorias políticas da idade
tecnológica.
Tais resistências, tal como o movimento ambientalista, desa-
fiam o horizonte de racionalidade sob a qual se projecta
atualmente a tecnologia. A racionalização na nossa sociedade
responde a uma definição particular de tecnologia como um
meio para obter lucro e poder. Uma compreensão mais abran-
gente da tecnologia sugere uma noção muito diferente de raciona-
lização, baseada na responsabilidade da ação técnica em relação aos
contextos humanos e naturais. Chamo a isso "racionalização demo-
crática", porque requer avanços tecnológicos que só podem ocorrer
em oposição à hegemonia dominante. Representa uma alternativa
tanto à celebração contínua da tecnocracia triunfante, quanto à obs-
cura contrapartida heideggeriana segundo a qual "apenas um Deus
nos pode salvar" (Heidegger 1993a).
Neste sentido, a racionalização democrática será socialista?
Há certamente espaço para discutir a ligação entre esta nova
agenda tecnológica e a ideia antiga de socialismo. Acredito que

107
CAPÍTULO I

existe uma continuidade significativa. Na teoria socialista, a vida


e a dignidade dos trabalhadores ergueram-se, mesmo em contex-
tos mais amplos que a tecnologia moderna ignora. A destruição
dos seus espíritos e corpos nos locais de trabalho era visto como
uma consequência contingente do projeto técnico capitalista. A
implicação de que as sociedades socialistas devem projetar uma
tecnologia muito diferente, sob um horizonte cultural diferente,
foi apenas considerada marginalmente, mas pelo pelo menos foi
formulada como um objetivo.
Podemos hoje argumentar, de modo semelhante e com maior
urgência, sobre uma gama mais ampla de contextos e uma varie-
dade mais abrangente de configurações institucionais, com muito
maior urgência. Estou inclinado a chamar uma tal posição como
“socialista”, esperando que, com o tempo, esta venha a substituir
a imagem do socialismo projetada pela fracassada experiência
comunista.
Mais importante do que a questão da terminologia é a ques-
tão substancial. Porque é que a democracia não foi alargada para
os domínios tecnicamente mediados da vida social, apesar de um
século de lutas? É porque a tecnologia exclui a democracia, ou
porque é que a primeira foi antes usada para suprimir a segunda?
O peso dos argumentos apoia a segunda conclusão. A tecnologia
pode produzir mais do que um tipo de civilização tecnológica.
Ainda não esgotamos o seu potencial democrático.

108
Capítulo II
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS:
VALORES E AMBIENTE

INTRODUÇÃO
Neste capítulo vou desenvolver o argumento apresentado na in-
trodução, tal como ele se relaciona com a política ambiental. As
questões ambientais implicam a questão da mudança tecnológi-
ca. Mas quanto flexíveis são os sistemas e os projetos hoje preva-
lecentes? Será economicamente viável adequar a tecnologia a
padrões ambientais cada vez mais rigorosos? Este capítulo trata
estas questões do ponto de vista da filosofia da tecnologia. Argu-
mentarei que muitos ativistas ambientais, assim como os seus
adversários, partilham um conceito pouco esclarecido da tecno-
logia, que os bloqueia numa oposição sem possibilidades de me
termos do debate.

109
CAPÍTULO II

CUSTOS E BENEFÍCIOS
No início dos anos 1970, Paul Ehrlich argumentou que a crise
ambiental era causada tanto pelo crescimento económico como
populacional. Recomendou o controle populacional e o “des-de-
senvolvimento” das sociedades avançadas a fim de reduzir o
consumo excessivo (Ehrlich e Harriman 1971). Esta sugestão en-
controu apoio em Os limites do crescimento, um estudo famoso so-
bre as perspectivas de colapso industrial devido à exaustão dos
recursos e à poluição (Meadows et al. 1971). Esta ideologia do
não crescimento influenciou muitas das discussões iniciais sobre
tecnologia e ambiente.
Os ecos destes primeiros argumentos iniciais reaparecem
agora em resposta à mudança climática. As previsões mais extre-
mas mostram uma redução da parte habitável da Terra e da sua
população. A indústria desaparece à medida que os combustíveis
fósseis se vão esgotando. As cidades colapsam e a raça humana
retorna às comunidades locais auto-suficientes através da agri-
cultura e do trabalho dos artífices.
É evidente que as alterações climáticas são reais, mas as suas
consequências não são fáceis de antecipar. Podemos ter esperança
em que a resistência política que confronta as suas implicações
dará lugar a envolvimentos mais ativos à medida que as crises e
os problemas se acumulam. Logo todo o engenho do planeta será
dedicado a evitar as consequências catastróficas previstas pelo
pessimismo ambientalista. Uma forma diferente de sociedade in-
dustrial poderá emergir, mais frugal nalguns aspectos, mas pro-
vavelmente também enriquecida sob novas formas.
Esta expectativa mais esperançosa implica a possibilidade de
sistemas industriais alternativos com diferentes impactos ambi-
entais. Ao negar esta possibilidade, a afirmação de que precisa-
mos de escolher entre a sociedade industrial e a vida primitiva é
essencialmente determinista. Exclui uma reforma do industrialis-
mo moderno que conduza à invenção de tecnologias alternativas

110
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

compatíveis com a boa saúde do ambiente.


O que está em questão neste debate vai para além da econo-
mia e da ecologia. O individualismo e a liberdade, que nós tanto
valorizamos, dependem não apenas da democracia política mas
também dos avanços tecnológicos que suportam as comunica-
ções e os transportes e que deixam tempo livre para a educação
durante a infância e depois disso. Modernidade e tecnologia são
mutuamente interdependentes. É inconcebível que uma comuni-
dade que vive em aldeias empobrecidos possa manter a forma de
vida que associamos à modernidade. Os críticos que valorizam
mais o trabalho dos artífices do que a tecnologia moderna, a al-
deia e as trocas locais mais do que a cidade e o comércio mundi-
al, estão implicitamente a questionar a nossa identidade como
seres humanos modernos.
Será que pode haver um problema pior do que este, se a so-
lução tiver que ser mesmo uma regressão ao estilo de vida tradi-
cional das aldeias? Esta é a reação da maioria das pessoas à ideia
de des-desenvolvimento. O seu principal efeito é dar munições
aos conservadores que se opõem à “excessiva” regulação ambi-
ental. O preço da reforma é obviamente demasiado elevado se o
fundamento da nossa sociedade tiver que ser sacrificado a favor
da qualidade ambiental. Por isso o senso comum diz que é prefe-
rível manter o sistema atual e viver com as suas consequências,
mais do que renunciar aos avanços da vida moderna por causa
de receios exagerados de desastres remotos.
Note-se na estrutura subjacente a este contra-argumento. A
premissa determinista mantém-se. A única diferença está na ava-
liação do custo da reforma ambiental. Dizem-nos ainda que pre-
cisamos de escolher entre duas variáveis, o sistema industrial e o
meio ambiente. Este é o esquema básico da teoria das trocas
compensatórias, que emergiu como a resposta padrão dos con-
servadores ao ambientalismo.
Esta teoria pretende ser uma aplicação da economia, e de
facto, alguns de seus defensores são economistas. Contudo, a te-

111
CAPÍTULO II

oria faz uma aplicação incompetente do campo que diz represen-


tar ao ignorar o caráter dinâmico do desenvolvimento económico
e o papel da tecnologia nas alterações periódicas dos termos da
equação económica. Mas os economistas não intervêm tão ativa-
mente quanto poderiam para protestar contra o uso abusivo das
suas ideias no discurso popular. Como resultado, a teoria das
trocas compensatórias assume um papel principal na política e
nas políticas públicas, e por isso merece uma discussão séria.
Apesar de sua roupagem moderna e neoliberal, os argumen-
tos conservadores têm um passado. Põem o mesmo dilema de
que, já no final do século XVIII, Mandeville fazia troça num famo-
so texto burlesco. No prefácio do seu poema, Mandeville(a) de-
nunciava os suficientemente insensatos para reclamar contra o
mais grave problema ambiental de então, a imundíce das ruas de
Londres. Ao exigirem limpeza, estavam a afastar a prosperidade
da cidade, que era a causa da imundíce. No poema, Mandeville
conclui que:

...Só os tolos se esforçam por viver numa colmeia decente.


A virtude simples não pode construir o esplendor das nações.
Aqueles que aspiram por fazer renascer uma idade de ouro,
precisam de ser tão livres para apanhar bolotas como para ser honestos.
(Mandeville, 1970) (b)

A análise custo-benefício das regulamentações é suposta-


mente capaz de quantificar com precisão e comparar alternativas
ao longo do contínuo que vai desde o “esplendor” de Mandeville
até uma dieta de bolotas. Por exemplo, cada aumento incremental
na limpeza do ar produz uma redução incremental no número de
doenças respiratórias. A escolha da política pública é clarificada
pela comparação de dois números: a estimativa do custo de pa-
drões mais rigorosos das emissões e a estimativa da redução dos
custos médicos.

112
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

Mas quanto credíveis são os resultados? Há muitos proble-


mas com esta abordagem, os quais deixam dúvidas sobre os seus
créditos, pelo menos em aplicações tão gerais como esta. O valor
corrente que atribuímos aos vários elementos de uma troca com-
pensatória pode não fazer muito sentido científico ou em termos
humanos. As organizações tendem a esconder ou a exagerar os
custos que possam interferir com os seus planos, e é difícil saber
como atribuir um valor monetário a coisas como a beleza natural
ou uma boa saúde, mas esses valores precisam de ser traduzidos
em termos monetários para poderem entrar nos cálculos. Argu-
mentos do tipo compensatório são, por isso, frequentemente ba-
seados em estimativas pouco sólidas de custos e benefícios,
quando não são mesmo expressões ideológicas de interesses obs-
curos.
A alternativa principal é a imposição de padrões ambientais.
Naturalmente, os custos vão aparecer no debate sobre os pa-
drões, mas serão avaliados de forma mais flexível, e arranjos al-
ternativos projetados para lidar com eles serão discutidos mais
livremente, se as questões não forem reduzidas a cálculos pseu-
do-científicos.
A questão que tratarei no resto deste capítulo é se a análise
custo-benefício pode suportar uma filosofia ambiental. Quando a
questão é assim generalizada, ela tem sido usada, sob os aspectos
antecipados por Mandeville, para argumentar que o excesso de
ambientalismo acabará por empobrecer a sociedade. Mas será
que realmente compreendemos essas questões quando partimos
da ideia de que existem trocas compensatórias entre ambiente e
valores económicos? Embora a análise custo-benefício tenha cla-
ras aplicações práticas, argumentarei que falha como base para
uma filosofia ambiental. Nisto estou de acordo com uma extensa
literatura crítica focada sobre o problema da quantificação(1). A
esta literatura acrescentarei uma discussão sobre os aspetos tec-
nológicos da abordagem das trocas compensatórias.
Vou argumentar que quando aplicada não só localmente a

113
CAPÍTULO II

problemas específicos, mas também de forma generalizada para


projetos civilizacionais como a transformação ambiental, as tro-
cas compensatórias implicam o determinismo tecnológico e a
neutralidade da tecnologia. Mas estes princípios da filosofia da
tecnologia foram, há muito, superados por abordagens mais so-
fisticadas. Quando essa filosofia falha, os limites da análise custo-
benefício tornam-se mais visíveis. Discuto aqui estas implicações
em relação aos exemplos históricos introduzidos no capítulo 1.
Nas minhas conclusões argumento que o ambientalismo não é
essencialmente sobre trocas compensatórias. A questão que põe
diz respeito ao tipo de mundo em que queremos viver, não sobre
quanto estamos dispostos a pagar por isto ou aquilo.

PRESSUPOSTOS BÁSICOS
A economia baseia-se na proposição de que não se podem otimi-
zar múltiplas variáveis ao mesmo tempo. Para otimizar A, algo
de B precisa de ser sacrificado. Embora isto possa pareçer óbvio
no dia-a-dia, envolve alguns pressupostos questionáveis quando
transposto para as políticas públicas .
Em primeiro lugar as opções de uma troca compensatória
precisam de ser definidas com clareza. Mas definidas por quem?
Há uma ambiguidade infeliz acerca deste ponto. O conceito de
trocas compensatórias tem uma origem óbvia na experiência co-
mum, onde o agente que faz a escolha das opções também as de-
fine. Mas quando incorporada na economia, vai buscar a plau-
sibilidade à experiência comum enquanto, ao mesmo tempo,
ultrapassa os seus limites. Os economistas podem recorrer a re-
cursos técnicos que lhes permitem alargar a noção de troca com-
pensatória para incluir alternativas puramente teóricas que não
fazem parte de qualquer cálculo real de bem-estar. Isto pode con-
fundir as questões num debate público sobre alternativas de vida.
Por vezes há boas razões para os economistas alargarem o

114
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

conceito, mas é fundamental não misturar o uso quotidiano e a


aplicação técnica de trocas compensatórias. A maioria das pesso-
as não consideraria a possibilidade ganhar dinheiro através da
prostituição como uma troca compensatória de princípios morais
por dinheiro, pela simples razão de estar fora das suas opções de
vida. De forma semelhante, padrões bem estabelecidos sobre o
ambiente e a segurança não estão em disputa, e o seu custo teó-
rico, embora possa parecer impressionante, é irrelevante para as
preocupações em causa.
Há um segundo pressuposto subjacente à abordagem da troca
compensatória. Falar de troca compensatória só faz sentido se to-
das as outras coisas permanecerem iguais. Este pressuposto é cha-
mado “ ceteris paribus ”. Se a lei mudar, se os preços mudarem, se a
relação entre bens se alterar, então não faz qualquer sentido falar
em troca compensatória. Ceteris paribus pode ser plausível nalgu-
mas decisões económicas de curto prazo. Quando se está a prepa-
rar um orçamento pessoal é razoável assumir que todas as outras
coisas se vão manter iguais, que não vamos ganhar a lotaria, nem
tampouco vamos ser atingidos por um raio, ou vamos descobrir
dependências mútuas inesperadas entre bens diferentes. Mas se
ampliarmos o horizonte temporal para períodos históricos mais
longos, então não é de forma alguma plausível assumir que essas
coisas permanecerão iguais. Assim não é surpreendente consta-
tarmos que a abordagem da troca compensatória falha na explica-
ção de casos como o da abolição do trabalho infantil, o qual se
parece com a regulação ambiental contemporânea. As mudanças
envolvidas não se podem entender pelo modelo do orçamento
pessoal.
Há uma boa razão para isto: o argumento ceteris paribus é
perturbado nos casos em que, enquanto se procura realizar um
certo bem, inesperadamente isso torna possível obter um outro
bem competitivo. Nesses casos felizes aquilo que parece ser um
troca compensatória é algo muito diferente. Isto é um lugar co-
mum da história pois os obstáculos ao progresso linear, como a

115
CAPÍTULO II

escassez de recursos e a regulamentação, levam muitas vezes à


emergência de novas trajetórias de desenvolvimento e de novas
relações entre bens. Por exemplo, a resposta inicial dos fabrican-
tes de automóveis à legislação de controlo da poluição reduziu a
eficiência do combustível, uma compensação indesejável. Inova-
ções posteriores culminaram com o desenvolvimento da injeção
eletrónica, que combina com sucesso o controlo de emissões e a
eficiência do combustível. É claro que neste caso nem todas as
coisas são iguais, e a troca compensatória dissolve-se perante o
avanço tecnológico.
Quando aplicado acriticamente, ceteris paribus negligencia a
possibilidade de tais avanços. Logo implica que o desenvolvi-
mento siga um percurso fixo, de um estádio para o seguinte, sem
a possibilidade de ramificação para novas direções inspiradas
pelas intervenções de regulamentação. O determinismo tecnoló-
gico esconde-se por trás deste tipo de abordagem.
As aplicações determinísticas da teoria das trocas compensa-
tórias servem para desafiar não só o ambientalismo mas também
muitas outras reformas tecnológicas. Por exemplo, até muito re-
centemente, a maioria dos teóricos da gestão estavam convenci-
dos de que havia uma troca compensatória entre a participação
dos trabalhadores e a produtividade. Supostamente, imperativos
tecnológicos condenavam-nos à obediência no trabalho (Shaiken
1984). Na medicina, argumentos semelhantes mantêm os pacien-
tes num papel passivo. Nos princípios dos anos 1970, a resposta
aos pedidos das mulheres por mudanças nos procedimentos dos
partos era que estavam a colocar em perigo a sua própria saúde e
a das suas crianças. Atualmente, muitas das alterações mais polé-
micas tornaram-se rotina como, por exemplo, a presença dos
companheiros nas salas de parto. Quando os pacientes com sida,
nos anos oitenta, procuraram ter acesso a um tratamento experi-
mental alternativo, foi-lhes dito que isso impediria o progresso na
busca da cura da doença. As suas intervenções não impediram a
rápida descoberta do famoso “coquetail de drogas” que hoje em

116
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

dia mantem vivos muito pacientes (Feenberg 1995, cap. 5). Muitas
e muitas vezes, a reforma tecnológica é condenada como sendo
talvez moralmente desejável, mas impraticável. Muitas e muitas
vezes os resultados desmentem os argumentos plausíveis contra a
reforma.
O determinismo é frequentemente acompanhado pela crença
na neutralidade da tecnologia. Como puro meio, o único valor
que conforma a tecnologia é o valor formal da eficiência. A tese
da neutralidade é familiar a partir do debate sobre o controlo das
armas de fogo, onde se exprime pelo divisa “as armas não matam
as pessoas, as pessoas é que matam pessoas”. As armas são neu-
tras e os valores estão na cabeça daqueles que escolhem os alvos.
Em conjunto, o determinismo tecnológico e a tese da neutra-
lidade suportam a ideia de que progresso ao longo de uma única,
e só uma, trajetória possível de avanço depende exclusivamente
de julgamentos racionais acerca de eficiência. Como só os especi-
alistas estão qualificados para fazer tais juízos, os ambientalistas
estão a obstruir o progresso quando impõem os seus objetivos
“ideológicos” no processo de desenvolvimento. Quando os obje-
tivos entram em conflito, uma ou outra das opções precisa de ser
sacrificada: ou proteção ambiental ou avanço tecnológico - nos
termos de Mandeville, virtude ou prosperidade.
O capítulo anterior apresentou uma visão alternativa. Argu-
mentei que o desenvolvimento tecnológico pode alterar trajetóri-
as em resposta a condicionalismos. Na sua nova trajetória, pode
atingir objetivos que estavam inicialmente em conflito ao longo
da trajetória anterior. Quando o avanço para uma nova trajetória
responde a valores articulados na esfera pública, então tem lugar
uma revolução tecnológica democrática.
Esta abordagem da tecnologia faz lembrar a famosa teoria da
revolução científica de Thomas Kuhn, que mostrou que impor-
tantes avanços científicos podem parecer puramente racionais, ou
seja, unicamente determinados por evidência e argumentos, mas
na realidade são subdeterminados pela racionalidade, na medida

117
CAPÍTULO II

em que respondem a mudanças na própria ideia de evidência e


argumentos (Kuhn 1962).
Com a tecnologia acontece algo parecido. No capítulo ante-
rior discuti vários exemplos. A regulação do trabalho infantil pa-
recia ter custos inaceitáveis mas, uma vez colocada em prática,
abriu novas fontes de riqueza. O código para as caldeiras parece
puramente racional - é claro que uma caldeira mais segura é pre-
ferível, sob o ponto de vista da engenharia. Mas a história mostra
que a decisão de se construírem caldeiras mais seguras levou
quarenta anos num processo em que a força transformadora não
foi a engenharia, mas sim a política. Logo, temos o mesmo tipo
de problema para entender o desenvolvimento da tecnologia que
Khun teve com o desenvolvimento científico: o progresso não é
redutível a uma sucessão de escolhas racionais porque os critéri-
os de racionalidade estão, eles próprios, em fluxo.
A solução de Kuhn para este enigma foi a noção de paradig-
mas, com os quais pretendia significar um modelo para a investi-
gação. Tais modelos têm uma enorme influência sobre os que
vêm depois. Por exemplo, os físicos encontraram em Newton não
apenas uma teoria correta da gravidade, mas também uma forma
de fazer física que prevaleceu durante centenas de anos.
Ciência normal, argumentou Kuhn, é investigar dentro do
paradigma estabelecido. O equivalente tecnológico é a busca de
eficiência em conformidade com o que chamei “códigos técni-
cos”, os códigos que governam a prática técnica (Feenberg
1999:87-89). Estes códigos materializam valores nas disciplinas
técnicas e no projeto.
As revoluções, sejam em ciência ou em tecnologia, envolvem
mudanças fundamentais nos valores refletidos nos paradigmas
ou códigos que controlam a procura normal da verdade ou da
eficiência. O progresso avança dentro de um paradigma através
de avanços contínuos da investigação e desenvolvimento, mas há
descontinuidade entre paradigmas. Esses paradigmas abrem
mundos incomensuráveis.

118
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

Esta abordagem tem consequências para a nossa compreen-


são da racionalidade e da autonomia das profissões técnicas. Em
qualquer etapa na história da sua disciplina, os especialistas her-
dam os resultados das revoluções anteriores, que nasceram de
controvérsias técnicas e lutas. Os estudantes de engenharia não
precisam de aprender como esta ou aquela regulamentação foi
traduzida numa especificação de projeto. Os resultados são tec-
nicamente racionais por si mesmos e apresentados como tal. Isto
dá origem a uma característica ilusão de autonomia. Mas, de fac-
to, a autonomia destas disciplinas é limitada. O seu passado não
foi uma sucessão de decisões para identificar “o melhor cami-
nho” validado cientificamente, mas sim o resultado de uma esco-
lha social entre vários caminhos bons com diferentes conse-
quências sociais. Existe, portanto, aquilo que se poderia chamar
um “inconsciente tecnológico” por trás dessas disciplinas. É isso
o que torna tão plausível o determinismo, mas também aquilo
que o deixa vulnerável à refutação histórica.

DOIS EXEMPLOS HISTÓRICOS


Nesta seção retornarei à discussão anterior sobre o trabalho in-
fantil e as caldeiras a vapor, à procura de evidências para uma
posição não determinística. Recordemos que Sir J. Graham, o
opositor da regulamentação do trabalho, acreditava que os impe-
rativos tecnológicos exigiam o trabalho de mulheres e crianças.
Há uma famosa fotografia antiga de Lewis Hine(c) que nos ajuda
a entender as suas preocupações(2). Mostra uma rapariga jovem
diante do equipamento que ela usa numa fiação de algodão. Pa-
rece ter cerca de dez anos de idade, ali de pé com um vestido
branco, em frente de fileiras de máquinas a perder de vista. À
primeira vista, a imagem parece bastante vulgar. Mas depressa
percebemos que há algo de estranho: as máquinas estão construí-
das para a altura da jovem. A fiação foi projetada para ser opera-

119
CAPÍTULO II

da por crianças até um metro e trinta de altura. A tecnologia in-


dustrial, tal como as cadeiras numa sala de aula da escola primá-
ria, foi projetada para pessoas pequenas. As máquinas ficariam
obsoletas sem crianças para as operar. Logo os imperativos tec-
nológicos precisavam, sem dúvida, do trabalho infantil. O erro
deste argumento é óbvio, hoje em dia. A regulamentação do tra-
balho não resultou num colapso económico, mas sim no emprego
de adultos mais produtivos com máquinas adaptadas às suas al-
turas.

FIGURA 2.1. (original)


Jovem trabalhadora em fiação de algodão
(Biblioteca do Congresso)

O determinismo perde de vista a dimensão cultural dessa


mudança histórica. Nos países desenvolvidos, o trabalho infantil
viola os pressupostos fundamentais acerca da natureza da infân-
cia. Hoje vemos as crianças como consumidores, não como pro-
dutores. A sua função é aprender, se é que têm mesmo alguma
função, e não ganharem o seu próprio sustento. Esta mudança na

120
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

definição da infância é o avanço essencial criado pela regula-


mentação do trabalho.
Em suma, embora a abolição do trabalho infantil tenha sido
promovida por razões ideológicas, fazia parte de um processo
mais vasto que redefiniu a direção do progresso. No caso do tra-
balho infantil, nenhuma das outras coisas era igual porque emer-
giu uma nova trajetória de desenvolvimento. Nesta nova traje-
tória, a regulação contribuiu efetivamente para aumentar a
prosperidade social. A tecnologia não foi neutra nesse caso. In-
corporou o significado da infância nas máquinas. Foi uma revo-
lução tecnológica.
O caso da caldeira a vapor revela outro aspecto do problema.
Para nós, parece óbvio que a regulamentação era necessária. Mas
aparentemente isto não era nada óbvio nos princípios do século
XIX. A situação era intrigante. Os consumidores continuavam a
comprar passagens de barco, apesar de acontecerem cada vez
mais incidentes. Ao mesmo tempo, as pessoas votavam a favor
de políticos pró-regulamentação. Era razoável perguntar às pes-
soas aquilo que realmente queriam: viajar barato ou segurança.
Esta ambiguidade pode ser entendida como um caso de flexibili-
dade interpretativa, no sentido construtivista. A conclusão da
definição do problema ainda não tinha sido atingido. Mas, para
haver uma troca compensatória, as opções precisam de estar es-
tabilizadas. No caso dos barcos a vapor, as opções ainda não es-
tavam estabilizadas. Havia duas definições diferentes e
concorrentes do problema: uma no plano individual e outra no
plano coletivo, e não era claro qual era o problema.
A ambiguidade foi finalmente resolvida e a controvérsia ul-
trapassada quando o problema foi definido por um agente com
autoridade, o governo americano, que deu prioridade à preven-
ção dos acidentes. Evidentemente ninguém estava a favor dos
acidentes, mas o seu significado e a importância da sua preven-
ção dependiam do contexto em que eram vistos.
Na vida quotidiana, os nossos objetivos agrupam-se por hie-

121
CAPÍTULO II

rarquias de camadas. Mas, às vezes, algumas ações ou objetos


que perseguimos pertencem a várias hierarquias diferentes, onde
podem ter significados de algum modo diferentes. Nesses casos,
uma decisão individual pode muito bem diferir de uma decisão
coletiva porque a comunidade relaciona, melhor do que os indi-
víduos, as opções com objetivos diferentes. As trocas compensa-
tórias são ainda mais complicadas quando estes objetivos estão
associados a diferentes procedimentos para tomada de decisão,
cada procedimento introduzindo um enviesamento diferente na
escolha. Esta complicação é relevante no caso dos barcos a vapor.
As decisões individuais tomadas com base no mercado conduzi-
am a conclusões diferentes das decisões políticas coletivas, por-
que indivíduos e governos situavam a segurança em hierarquias
diferentes de objetivos.
Os viajantes individuais queriam simplesmente chegar aos
seus destinos pagando mais barato. Tal como os motoristas que
atualmente não apertam os cintos de segurança, ignoravam o ris-
co pessoal que corriam. Mas a política introduziu outras conside-
rações para além dos riscos pessoais. A base para a regula-
mentação é a cláusula de comércio da Constituição, sob a qual o
governo controla os transportes interestaduais. Este não é um as-
sunto estritamente económico, mas também de unidade nacional.
Tal como os sistemas atuais de autoestradas, os canais e os rios
unificavam o território dos Estados Unidos nos princípios do sé-
culo XIX. O movimento de pessoas, ideias, bens e tropas - todas as
coisas que definem uma nação - dependem dos transportes e, na-
quele período, dependiam especialmente de navios a vapor. A
unidade nacional não é uma preocupação económica individual,
mas uma questão de política coletiva. Transportes seguros têm
óbvios benefícios individuais e, sem dúvida, muitos dos debates
no Congresso preocupavam-se com esses benefícios, mas também
era uma questão nacional legítima. Por exemplo, os senadores da
costa oeste argumentavam que não deviam ter que temer pelas
suas vidas nas viagens entre a capital nacional e os seus consti-

122
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

tuintes.
De um ponto de vista individual, a imposição da regula-
mentação trocava o preço dos bilhetes pela segurança, mas no
plano coletivo estava em jogo algo totalmente diferente. A infra-
estrutura para a unidade nacional estava muito para além das
fronteiras da economia. Não se podia trocar por nada. Uma vez
tratada a segurança dos transportes como essencialmente políti-
ca, deixou de fazer parte da rotona dos cálculos económicos. Não
faz mais sentido preocupar-se com um pequeno aumento no
preço das passagens, uma vez estabelecido o princípio do inte-
resse nacional em transportes seguros. Tal como não nos preocu-
pamos com o dinheiro que poderíamos ter ganho se
comercializassemos o nosso corpo para sexo, também não
aparece contabilizado nos livros de ninguém o custo de garantir
um determinado nível mínimo de segurança nos transportes.
Assim, neste caso, a decisão acerca de qual o tipo de tecno-
logia a empregar não se podia tomar com base na eficiência, por
duas razões. Em primeiro lugar, porque a eficiência é relativa a
um objetivo conhecido. Se esse objetivo está em questão, as efici-
ências não se podem comparar. Em segundo lugar, porque a efi-
ciência não é relevante para as questões de unidade nacional.

VALORES AMBIENTAIS
Retorno agora ao problema da relação entre os valores ambien-
tais e a economia, tendo em mente o argumento construtivista.
Identifiquei vários problemas com a abordagem da troca com-
pensatória.
Em primeiro lugar, ignora o significado das fronteiras móveis
na economia. Não lamentamos o custo de usar a mão de obra
adulta em vez da infantil, pela simples razão de que as crianças
estão culturalmente excluídas da categoria dos trabalhadores.
Em segundo lugar, a abordagem da troca compensatória as-

123
CAPÍTULO II

sume um pano de fundo fixo, ceteris paribus , mas a mudança tec-


nológica ao longo de períodos históricos mais longos invalida este
pressuposto. Nada é igual na história desde que alterações cultu-
rais e avanços tecnológicos alterem os termos do problema.
Em terceiro lugar, a lógica da troca compensatória obscurece
as diferenças entre a definição dos problemas e as metas, as quais
refletem contextos diferentes de decisão. Não existe um contexto
absoluto a partir do qual seja possível uma avaliação não envie-
sada. É por isso enganador comparar situações tais como o risco
de vida num acidente automobilístico com o risco de vida num
acidente nuclear, porque um caso envolve responsabilidade indi-
vidual e o outro envolve responsabilidade coletiva.
Em quarto lugar, a abordagem da troca compensatória con-
funde considerações económicas de curto prazo com questões ci-
vilizacionais. Estas últimas dizem respeito à identidade: quem
somos e como queremos viver. Isto é uma proposição diferente
de “obter mais de A à custa de B”.
Por todas estas razões precisamos de uma outra perspectiva
para pensar acerca dos valores ambientais. Vejamos uma aborda-
gem construtivista para um exemplo relativo a um tema ambien-
tal atual: o caso da poluição do ar e da asma. Os ataques de asma
são tratados como um custo nos cálculos de custos e benefícios.
Um estudo do Clean Air Act revisto valorizou um ataque de as-
ma em $32 dólares, em média (Rowe and Chestnut 1986). Evi-
dentemente, quanto mais baixo for o custo de um ataque de
asma, menor será o benefício recuperado pela redução da sua
frequência. Embora cálculos deste tipo sejam ofensivos para
qualquer pessoa com asma, esta abordagem faz algum sentido,
na medida em que a nossa sociedade não está totalmente com-
prometida na luta contra esta doença, que tem custos médicos
modestos(3).
Mas é inteiramente possível responder ao aumento da inci-
dência da asma, e ao crescimento associado de mortes, tentando
eliminar a poluição como fator de causa. Isto corresponderia a

124
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

tratar a asma do mesmo modo que tratamos habitualmente do-


enças transmitidas pela água, como a cólera e a disenteria. Nesse
caso, os padrões de saúde colocariam a asma para além das fron-
teiras da controvérsia económica e eventualmente chegaríamos a
uma situação que pareceria óbvia e necessária, tanto técnica co-
mo moralmente.
Os processos poluidores relevantes seriam gradualmente
substituídos por outros não-poluidores. As peças de substituição
para os antigos equipamentos poluidores deixariam de estar dis-
poníveis e estes seriam gradualmente postos fora de serviço, se o
seu uso não se tornasse mesmo ilegal. Depois de algum tempo, os
substitutos seriam melhores em muitos aspectos, e não só do
ponto de vista ambiental, porque todo o progresso posterior seria
projetados para eles. Não ocorreria aos nossos descendentes pou-
par dinheiro voltando às máquinas poluidoras para embaratecer a
produção industrial ou os transportes. Diriam: “Não somos gente
capaz de trocar a saúde dos nossos filhos por dinheiro”, tal como
rejeitariam de imediato a sugestão de s suplementar o orçamento
familiar mandando as nossas crianças trabalhar numa fábrica. Is-
so seria um avanço civilizacional no domínio ambiental.
O que nos leva à questão de saber por que é que, em primei-
ro lugar, os valores ambientais aparecem como valores. De fato,
porque é plausível argumentar que o ambientalismo é uma ideo-
logia que se está a intrometer na economia? Isto explica-se pelo
facto da nossa civilização ter sido construída por gente indife-
rente ao ambiente. As considerações ambientais não estavam in-
cluídas nas disciplinas e códigos iniciais, e por isso hoje parecem
vir de fora da economia. É esta herança de indiferença que nos
obriga a formular as preocupações com o ambiente como um va-
lor e a impor regulação na indústria.
Esta acusação de indiferença não implica necessariamente
um juízo muito severo sobre os nossos predecessores. Não só so-
mos mais ricos e mais capazes de poder proporcionar proteção
ambiental, mas também acontece que os imensos efeitos colate-

125
CAPÍTULO II

rais de tecnologias poderosas que se tornaram proeminentes des-


de a segunda guerra mundial, tornaram imperativa a regulação
ambiental (Commoner 1971)(4). Porém, isto implica um julga-
mento severo sobre os contemporâneos que justificam com argu-
mentos ilusórios para bloquear e desmantelar a regulamentação
que hoje podemos proporcionar sem dificuldade e de que preci-
samos desesperadamente. Por mais poderosos que estes ideólo-
gos conservadores possam parecer neste momento, esperamos
que a sua ofensiva atual venha a fracassar à medida que a severi-
dade dos problemas ambientais tornar cada vez mais óbvio o ri-
dículo das suas afirmações.
Desse ponto de vista, parece provável que a forma ideológi-
ca dos valores ambientais seja temporária. Estes valores serão in-
corporados nas disciplinas e códigos numa revolução tecnológica
que estamos a viver, mesmo sem termos consciência clara disso.
O ambientalismo não irá empobrecer a nossa sociedade. Conti-
nuaremos a enriquecer-nos a nós mesmos, mas a nossa definição
de prosperidade e as tecnologias instrumentais para isso irão
mudar e tornar-se-ão mais racionais no julgamento dos nossos
descendentes, que aceitarão o ambientalismo como um avanço
autoexplicativo. Tais como as imagens de Dickens(d) numa fábrica
de graxa para sapatos testemunham o atraso da sua sociedade,
assim também as imagens de crianças asmáticas em cidades en-
cobertas pela poluição irão aparecer de modo semelhante aos que
virão depois de nós.
O que vimos com o trabalho infantil e com os padrões de se-
gurança é igualmente válido para os padrões ambientais. Uma
vez estabelecidos, as opções antigas desaparecem. Ninguém
pensa, hoje em dia, em economizar dinheiro retirando os cintos
de segurança dos automóveis e poucos motoristas desligam os
dispositivos de controlo de poluição para melhorar o desempe-
nho. A única troca compensatória em que maus projetos do pas-
sado têm um papel é na cabeça dos comentadores conservadores.
Como contabilistas zelosos podem insistir que devemos moneta-

126
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

rizar todas essas considerações e reduzi-las a despesa. Contudo,


o deslocamento da fronteira da economia tem tantas consequên-
cias culturais e técnicas que não faz sentido voltar a olhar para
trás, sob um ponto de vista de custos e benefícios. No único sen-
tido em que os efeitos sobre a riqueza social são significativos
para as políticas públicas, devem ser medidos com respeito pela
concretização das nossas aspirações atuais, não pela
concretização de construções teóricas.
Certamente que nos devemos interessar pelos cálculos dos
economistas sobre riscos de que as pessoas são temporariamente
ignorantes, como as consequências de fumar. Mas isso diz respei-
to a um futuro em que se pode esperar que apareçam novas op-
ções aceitáveis. Uma vez resolvido o caso, as opções irreconci-
liáveis deixam de ser relevantes. E como é impossível atribuir um
preço às mudanças revolucionárias na direção do progresso, as
análises de custos e benefícios podem apenas ter um papel se-
cundário nesses debates.
Alguém pode objetar que não dando valor às trocas com-
pensatórias teóricas estamos a ignorar as realidades económicas,
mas isso é uma ponto de vista curto. Este tipo de mudança cultu-
ral é eventualmente imposto por meio de desenvolvimentos téc-
nicos(5). Por exemplo, em abstrato, alguém pode recalcular os
custos do trabalho considerando as poupanças que se poderiam
fazer recorrendo ao trabalho infantil barato, porém isso é um ab-
surdo económico porque as economias desenvolvidas pressu-
põem os produtos instruídos e disciplinados da educação escolar,
e não poderiam ser operacionalizadas por crianças. As priorida-
des também mudam, por isso é impossível comparar o valor de
algo como uma água ou um ar mais puro com outros bens, numa
base constante ao longo de um período histórico longo.
É, portanto, uma deturpação argumentar que estamos a gas-
tar uma certa soma específica, como 100 bilhões de dólares por
ano em proteção ambiental, como se esse dinheiro pudesse ficar
disponível para outros propósitos. Não há dúvida de que a maior

127
CAPÍTULO II

parte desses recursos tem sido aplicada para melhorar os padrões


de projetos que atualmente consideramos assegurados como, por
exemplo, sistemas apropriados de depósito de lixos tóxicos, fon-
tes de abastecimento de água mais seguras, etc. A economia con-
sidera-os como “bens” e, de facto, têm custos que inicialmente
podem ser controversos mas, uma vez integrados na cultura e no
ambiente técnico predominante, deixamos de pensar nesses cus-
tos, tal como os habitantes de Nova Iorque não concebem o Cen-
tral Park como uma peça imobilária que se possa vender para
comprar uma outra coisa, como uma troca. Em resumo, a econo-
mia pode-nos ajudar a navegar no fluxo da riqueza, mas não nos
pode dizer onde construir as barragens que alteram o curso des-
ses fluxos.

CONCLUSÃO
As revoluções tecnológicas parecem irracionais numa primeira
avaliação mas, de facto, estabelecem um outro quadro de refe-
rência de racionalidade, um outro paradigma. Assim, em sentido
absoluto, não é nem racional nem irracional construir uma cal-
deira mais segura. Os construtivistas diriam que essa decisão é
“subdeterminada” por puras considerações de eficiência técnica
porque depende também de uma decisão acerca do significado
atribuído ao transporte e à segurança. Como vimos, este é um
valor alcançado através do debate político. Da mesma maneira,
retirar crianças do processo de trabalho e colocá-las nas escolas
foi uma enorme transformação, uma mudança civilizacional.
Uma mudança desse tipo está destinada a gerar uma trajetória
diferente de desenvolvimento tecnológico. Com o ambientalismo,
estamos uma vez mais a assistir à abertura de uma nova trajetó-
ria.
O ambientalismo, embora seja um processo lento e com re-
vezes, tem a temporalidade de uma revolução. As revoluções re-

128
PARADIGMAS INCOMENSURÁVEIS: VALORES E AMBIENTE

presentam-se a si próprias como realidades plenas no futuro e


criticam o presente a partir desse resultado imaginário. O revolu-
cionário francês Saint-Just perguntava o que diria a “fria posteri-
dade” sobre a monarquia, mesmo enquanto reivindicava a sua
abolição (Saint-Just 1968, 77)(e). Com a história como nosso guia,
também nós podemos ultrapassar os obstáculos ideológicos para
criar um futuro melhor, percebendo dos valores ambientais nos
arranjos técnicos e económicos da nossa sociedade.

129
Capítulo III
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO:
A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

UTOPIA E DISTOPIA
No ano de 1888, Edward Bellamy publicou um romance profético
de ficção científica intitulado Looking backward: 2000-1887 (Bel-
lamy 1960)(a). O herói de Bellamy é um cidadão rico da cidade de
Boston que sofre de insónias e que dorme hipnotizado num
quarto subterrâneo onde sobrevive a um incêndio que lhe destrói
a casa. Ficando por descobrir entre as ruínas, fica suspenso no
sono durante mais do que um século e finalmente desperta no
ano 2000, numa cidade de Boston transformada numa utopia so-
cialista. A maior parte do livro gira em torno do seu espanto di-
ante da sua nova vizinhança e das lúcidas explicações do seu
anfitrião sobre o funcionamento de uma sociedade ideal.
O livro de Bellamy estará hoje esquecido, salvo pelos especi-
alistas, mas tornou-se rapidamente uma das obras mais popula-
res de todos os tempos, lida por milhões de americanos, desde os
finais do século XIX até à segunda guerra mundial. O romance

131
CAPÍTULO III

articulou, para os leitores de várias gerações, a esperança numa


sociedade racional.
Em 1932, menos de cinquenta anos depois do livro de Bel-
lamy aparecer, Aldous Huxley(b) publicou Admirável Mundo Novo,
uma espécie de refutação a Daqui a cem anos: revendo o futuro. Nu-
ma nota à margem do livro de Huxley, o filósofo russo Berdiaeff
lamenta que “as utopias parecem ser muito mais realizáveis do
que se costumava acreditar”. Berdiaeff continua: “está-se a iniciar
um novo século em que os intelectuais e as classes cultas sonha-
rão com os meios de evitar utopias e de voltar para uma socieda-
de não utópica, menos “perfeita” e mais livre” (Huxley 1969). Ao
contrário de Daqui a cem anos , o livro de Huxley ainda hoje é
muito lido. Foi o modelo para muitas “distopias” posteriores, fic-
ções de sociedades totalmente racionalizadas nas quais, como foi
dito uma vez por Marshall McLuhan, nós, humanos, nos torna-
mos os “órgãos sexuais do mundo das máquinas” (McLuhan
1964, 46).
Hoje podemos literalmente “olhar para trás”, para o século
XX e, ao fazê-lo, ver como o contraste entre a utopia de Bellamy e
a distopia de Huxley é útil para estimular a reflexão sobre o que
correu mal. É claro que algo muito importante correu mal para se
ter chegado ao ponto de frustar as esperanças razoáveis dos ho-
mens e mulheres dos finais do século XIX. Enquanto esperavam
que o progresso técnico e social avançassem em paralelo, na reali-
dade, todos os grandes avanços tecnológicos foram acompanha-
dos por catástrofes que colocam em questão a própria
sobrevivência da raça humana.
O que aconteceu para se terem frustrado essas esperanças?
Estamos, evidentemente, muito conscientes dos grandes aconteci-
mentos do século, como as duas guerras mundiais, os campos de
concentração, a perversão do socialismo na União Soviética e,
mais recentemente, as ameaças de ódios capazes de provocar ge-
nocídios, a poluição ambiental e a guerra nuclear. Mas subjacente
a estes acontecimentos terríveis e às suas consequências para o

132
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

futuro, deve existir alguma falha mais profunda, que barrou a tra-
jetória brilhante para a utopia, tão nitidamente traçada por Bel-
lamy.
Poderia uma insuficiência espiritual da natureza humana ou
da modernidade ser responsável pelo triunfo da ganância e da
violência no século XX? Não há dúvida de que tanto a natureza
humana quanto a modernidade têm problemas, mas isso são no-
tícias antigas. Bellamy e os seus contemporâneos sabiam tudo
acerca dos apetites insaciáveis, do orgulho e do ódio que se es-
condem nos corações das pessoas. Entendiam a batalha entre
Eros e Tanatos tão bem – ou tão mal – quanto nós. O que se alte-
rou não foi a nossa avaliação da natureza humana ou da moder-
nidade, mas sim o ambiente técnico, o que provocou a ruptura do
equilíbrio delicado entre os instintos, que ainda deixava espaço
para a esperança entre os contemporâneos de Bellamy, sem dúvi-
da para previsões ainda confiantes num futuro melhor.
Podemos começar a entender este deslocamento técnico con-
siderando o que falta na descrição de Bellamy sobre a sociedade
do ano 2000. A sua utopia é completamente industrializada, com
máquinas a fazer todo o trabalho árduo: o aperfeiçoamento da
tecnologia e das economias de escala enriqueceram a sociedade.
Os trabalhadores são recrutados para um “exército industrial”
onde uma combinação de comando por especialistas e igualdade
de remunerações responde às necessidades técnicas e à morali-
dade. Ainda que seja uma concepção claramente autoritária, é
importante ter em conta que a obediência é motivada eticamente
por um equivalente económico do patriotismo, e não imposta por
técnicas de gestão. Os trabalhadores podem escolher livremente
os seus empregos, após um breve período de trabalho manual no
final da fase normal de escolarização. A oferta de trabalho é ajus-
tada voluntariamente com a procura através da oferta de jorna-
das de trabalho mais curtas para os empregos menos procurados(1).
Os trabalhadores aposentam-se com 45 anos e depois dedicam-se
à auto educação e às atividades de cidadania completa que co-

133
CAPÍTULO III

meçam com a aposentação.


A utopia de Bellamy é essencialmente coletivista mas, para-
doxalmente, os membros da sociedade são apresentados como
indivíduos altamente diferenciados, cada um a desenvolver as
suas próprias ideias, gostos e talentos no generoso tempo livre
viabilizado pelo avanço tecnológico. A individualidade florescia
em torno da livre escolha de passatempos, jornais, música e arte,
religião, participação democrática no governo e aquilo a que hoje
chamaríamos “educação contínua”. A invenção é também uma
expressão da individualidade e uma fonte de dinamismo social.
Nenhuma dessas atividades é organizada pelo exército in-
dustrial, porque não têm uma base científico-tecnológica, logo
também não há tecnologia que exija uma administração por es-
pecialistas, nem tão pouco critérios objetivos de desempenho. As
economias de escala que tornam a tecnologia industrial tão pro-
dutiva no cenário desenhado por Bellamy, não têm lugar nas ati-
vidades que dependem da criatividade individual.
Os que desejam intervir na esfera pública através de ativida-
des como o jornalismo, a propaganda religiosa, a produção artís-
tica, ou invenções, podem-se retirar do exército industrial à me-
dida que acumulem um número suficiente de “subscritores” dos
seus serviços, que justifique o pagamento de um salário regular
de trabalhador, pelo Estado. O Estado providencia os recursos
básicos para esses criativos culturais, como meios de impressão,
sem ter em consideração os conteúdos das suas atividades.
Como este imaginário socialista é diferente da coisa real, tal
como estabelecida na União Soviética, apenas uma geração de-
pois de Bellamy ter publicado o seu livro! A sua sociedade é bi-
polar, metade orientada pela racionalidade tecnocientífica, a
outra metade devotada à formação (bildung, em alemão), à busca
racional e reflexiva da liberdade e da individualidade. Mas esta
bipolaridade é justamente aquilo que não apareceu no século XX,
seja sob o capitalismo, seja sob o socialismo. No seu lugar, a raci-
onalização total transformou os indivíduos em objetos de contro-

134
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

lo técnico, em todos os domínios, mas especialmente em tudo o


que diz respeito ao estilo de vida e à política.
Na visão de Bellamy, estandardização e controlo estavam
confinados à luta com a natureza. Aparentemente, Bellamy não
podia conceber aquilo que Norbert Wiener chamou “o uso hu-
mano de seres humanos”. Mas os meios de comunicação social de
massas continuaram o padrão industrial da eficiência através de
economias de escala. O século XX assistiu à substituição da alta
cultura na consciência pública por uma cultura de massas dedi-
cada ao hábito desenfreado do consumo e às paixões políticas
violentas.
É interessante verificar como Bellamy conseguiu antecipar a
sociedade de massas, embora tenha sido incapaz de ver os peri-
gos. Num tempo em que existiam apenas alguns milhares de te-
lefones, imaginou uma espécie de rede de difusão baseada no
telefone, que poderia difundir transmissões de atos religiosos e
atuações musicais. Cada casa teria uma sala de audição, sendo os
programas anunciados em guias impressos periódicos. Bellamy
antecipou que tocar música em casa iria diminuir, à medida que
fosse substituída pelas transmissão de profissionais. Até neste
ponto as suas extrapolações são notáveis como antevisões; contu-
do, em momento algum, Bellamy antecipou a emergência de au-
diências gigantescas submetidas a propaganda comercial e po-
lítica. Também não suspeitou que as pequenas edições publicadas
na sua época, a produção artística individual e a prática da pre-
gação seriam tão marginalizadas no futuro, incapazes de susten-
tar a individualidade, que ele considerava ser o objetivo último
da vida social.
Admirável Novo Mundo, por outro lado, foi escrito uma déca-
da depois das primeiras transmissões comerciais de rádio, que já
permitiam vislumbrar um futuro de manipulação pelos meios de
comunicação social. A visão de Huxley foi extrapolada a partir do
aparecimento da publicidade moderna, das ditaduras populares e
da produção em massa. Em Admirável Novo Mundo, os seres hu-

135
CAPÍTULO III

manos são servos voluntários de uma ordem mecânica. A espe-


rança marxista, que Bellamy partilha, do ser humano como se-
nhor da tecnologia, deixa de fazer sentido uma vez que os
próprios seres humanos se transformam em meras engrenagens
da máquina. Esta mesma visão está subjacente a muito do pensa-
mento no século XX, por exemplo, nas teorias de pessimismo
social, como a de Marx Weber, e nas várias filosofias determinis-
tas da tecnologia influenciadas por Martin Heidegger.

FILOSOFIA DISTÓPICA E A POLÍTICA


A filosofia de Heidegger sobre a tecnologia é uma combinação
enigmática entre a nostalgia romântica de uma imagem idealiza-
da do mundo pré-moderno e um olhar profundo sobre a moder-
nidade. A sua originalidade reside em tratar a técnica não como
um mero meio funcional, mas como um modo de “revelação”
através do qual se conforma um “mundo”. “Mundo”, em Hei-
degger, não diz respeito ao conjunto dos objetos existentes, mas
sim a uma estrutura de experiência organizada e com significado.
Tais estruturas dependem de práticas básicas que caraterizam as
sociedades e eras históricas completas. Constituem uma “abertu-
ra” em que “ser” é revelado ao “ Dasein ” humano, ou seja, em que
a experiência acontece.
A modernidade é caracterizada por aquilo que Heidegger
chama “enquadramento” (c). Este conceito descreve um estado das
coisas em que tudo, sem exceção, se tornou um objeto da técnica.
As coisas e as pessoas são agora definidas pelo seu lugar num
sistema de ação metodicamente planeado e controlado. Para as
pessoas modernas, tudo são matérias-primas em processos técni-
cos, e nada existe perante o ser enquanto lugar de consciência.
Ameaça-nos um vazio completo e sem sentido quando o estatuto
único do ser humano é assim completamente negado.
Heidegger poderia ser considerado como o filósofo de O

136
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

Admirável Mundo Novo, salvo que negaria que aquilo que temos
diante de nós seja um “mundo”, no sentido completo do termo.
Estamos antes cercados por um amontoado de coisas fungíveis
“sem finalidade”, qual nos inclui a nós próprios.
O filósofo Herbert Marcuse, da Escola de Frankfurt, foi um
estudante de Heidegger. A sua crítica da “sociedade “unidimen-
sional” assemelha-se à teoria de seu professor, mas numa perspe-
tiva marxista. Heidegger distinguia entre o trabalho artesanal, o
qual é capaz de exibir a “verdade” dos seus materiais, e a tecno-
logia moderna, que incorpora os objetos no seu mecanismo, sob
uma vontade e um plano. Em Marcuse esta abordagem heideg-
geriana continua como a diferença entre as potencialidades in-
trínsecas, que podem ser realizadas por uma arte ou técnica
apropriada, e os valores extrínsecos a que as coisas se subordi-
nam como matérias-primas na produção moderna. Tal como Hei-
degger, Marcuse lamenta a extensão desta última abordagem das
coisas para os seres humanos.
Diferente, porém, de Heidegger, Marcuse propõe a possibili-
dade, em princípio, se não mesmo a esperança, de criar uma nova
tecnologia que respeite as potencialidades dos seres humanos e
da natureza. Esta “tecnologia de libertação” seria um “produto de
uma imaginação científica livre para projetar e desenhar as for-
mas de um universo humano sem exploração e sem trabalhos
pesados” (Marcuse 1969, 19). Este ainda é um objetivo meritório,
embora talvez deva ser descrito como um horizonte em regres-
são: hoje parecemos tão longe de o alcançarmos como quando
Bellamy escrevia.
Estas são aquilo que eu chamo “filosofias distópicas da tec-
nologia.” Na terceira parte do livro falarei mais acerca destas fi-
losofias. Elas foram surpreendentemente influentes nas décadas
de 1960 e 1970, apesar da sua notória obscuridade e pessimismo.
Os temas distópicos apareceram não apenas na política, mas
também em filmes e outros meios de comunicação social popula-
res, desacreditando o liberalismo e infiltrando gradualmente o

137
CAPÍTULO III

conservadorismo. A política contemporânea ainda continua for-


temente influenciada pelas versões vulgarizadas deste tipo de
sensibilidade distópica, tal como a desconfiança da intervenção
do governo em grande escala. Estas mudanças foram acompa-
nhadas por uma alteração dramática da atitude perante a tecno-
logia. Em finais dos anos 1960, a tecnofobia já tinha substituído,
em grande medida, o entusiasmo do pós guerra pela energia nu-
clear e pelo programa espacial. Sem dúvida que a arrogância da
tecnocracia e o absurdo da guerra no Vietname desempenharam
um papel importante nesta mudança.
A consciência distópica transformou-se à medida que se foi
difundindo. Já não só uma crítica teórica da modernidade na óti-
ca de uma elite cultural, mas inspirou um movimento populista.
A questão da tecnologia era agora uma questão política. A Nova
Esquerda(d) reformulou a ideologia socialista numa síntese tensa
entre o marxismo tradicional e uma posição anti-distópica (Feen-
berg 1995, cap.3).
Os acontecimentos de Maio de 1968, em França, foram o
ponto alto desta notável mudança na sensibilidade da esquerda.
Este foi, de longe, o mais poderoso movimento da Nova Esquer-
da e o único com um apoio maciço da classe trabalhadora(e). Os
acontecimentos de Maio foram um movimento anti tecnocrático,
hostil tanto ao estilo soviético de socialismo quanto ao capitalis-
mo avançado. Estudantes e trabalhadores militantes propunham
a autogestão como uma alternativa ao planeamento centralizado
e aos mercados. Não mais rodas dentadas de uma máquina, exi-
giam liberdade. A sua posição foi sintetizada num panfleto de
grande circulação: “O progresso será o que nós quisermos que
seja” (Feenberg and Freedman 2001,84).
Os acontecimentos de Maio foram um entre muitos outros
movimentos similares que desafiaram a ideia convencional de
progresso. Estes movimentos abriram espaço para as novas polí-
ticas técnicas das últimas décadas, que se envolveram em lutas
concretas em diversos domínios, como o dos computadores, da

138
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

medicina e do meio ambiente.

O IMPACTO DA INTERNET
Embora os movimentos dos anos 1960 tenham debilitado o de-
terminismo tecnológico, tanto na prática quanto no plano teórico,
continuaram a utilizar uma retórica distópica em resposta à ame-
aça tecnocrática. Porém, nos finais do século XX, o distopianismo
perdeu muita da sua autoridade e a utopia voltou com uma nova
aparência. A tecnologia desempenha um papel central em Bel-
lamy e Huxley, mas os avanços que ambos descrevem são símbo-
los de tendências sociais grandiosas ou desastrosas, mais do que
previsões de tecnologias específicas. As utopias contemporâneas
apresentam-se por meio de frios relatórios de fronteira sobre a
I&D(f) mais recente. Estas novas utopias são habitadas por
“transhumanos” criados pela bioengenharia, estimulados por
drogas e ligados a uma mente universal ou descarregados para
um hardware mais resistente do que o corpo humano. O deter-
minismo volta à medida que as consequências sociais são dedu-
zidas a partir da tecnologia futura. Os pensadores sérios ficam
perplexos diante do ressurgimento deste tipo de especulação
horrorosa e levantam, mais uma vez, barreiras éticas pouco sóli-
das ao “progresso”. O humanismo antidistópico luta por salvar o
espírito das fábricas diabólicas da tecnologia avançada. Mas ago-
ra toda essa disputa parece ser uma rotina e não ser muito credí-
vel.
Entretanto emergiram novas tendências, muito mais interes-
santes, entre os investigadores que evitam a especulação e que
estudam a tecnologia como um fenómeno social. Estes investiga-
dores consideram a crítica distópica da modernidade e a ideolo-
gia humanista como uma saudade nostálgica de um passado
perdido para sempre e que, em qualquer dos casos, nem sequer
foi assim tão grandioso. De acordo com esta perspectiva, nós es-

139
CAPÍTULO III

tamo,s total e completamente integrados, na rede tecnológica e


não representamos, nem o devemos esperar, uma alternativa re-
primida em que o “homem” ou o “ Dasein ” poderia alcançar o re-
conhecimento independentemente das suas ferramentas.
Pensadores pós-humanistas ou transmodernos(g) como Bruno
Latour e Donna Haraway têm desenvolvido esta abordagem com
uma energia singular em livros e ensaios com títulos sugestivos
como Nunca fomos modernos (Latour 1993) e O Manifesto Ciborgue
(Haraway 1991). O próprio tom destes títulos anuncia uma agen-
da para o novo milénio. De acordo com estes autores, passamos
pela experiência da distopia e daí saímos pelo outro lado. O nos-
so envolvimento com a tecnologia é agora o horizonte inultra-
passável da nossa existência. Não mais opostos à tecnologia,
juntamo-nos agora a ela como se fôssemos um ser “ciborgue”
mais ou menos indiferenciado. É tempo para deixar para trás a
resistência e adotar a tecnologia de uma vez por todas, dando
uma direção benigna ao seu desenvolvimento futuro.
A internet propicia o pano de fundo social que é fundamen-
tal para o grande interesse em torno desta perspectiva pós-hu-
manista. É claro que os autores não precisaram de desenvolver as
suas ideias “online”, mas a credibilidade popular da sua visão
inovadora depende da emergência de redes de computadores e
da nova função de subjetividade que estabelecem. Sem a ampla
experiência de interação através de computadores é pouco pro-
vável que a sua influência se tivesse alargado para além de um
círculo restrito de investigadores em estudos sociais da ciência.
Mas dada esta experiência, articulam uma mudança fundamental
na relação dos seres humanos com máquinas, do antagonismo
para a colaboração.
O que é que existe com as redes que ameniza a consciência
distópica? O medo da distopia resulta da experiência de uma or-
ganização social em larga escala que, sob as condições modernas,
tem uma aparência alienante de racionalidade. A dominação tec-
nocrática foi exemplificada pelas audiências de massas do século

140
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

XX, até que a chegada das redes de computadores rompeu com


este padrão. Ao invés da passividade associada à difusão radio-
fónica ou televisiva, o sujeito online é constantemente solicitado
para “interagir”, quer fazendo escolhas, quer respondendo a pe-
didos de comunicação. Esta relação interativa com o meio de co-
municação e com os outros utilizadores através dele, aparece
como não-hierárquica e libertadora. Tal como o automóvel, esse
fetiche da modernidade, a internet abre muito mais janelas do
que fecha. Mas, ao contrário do automóvel, a internet não trans-
porta só indivíduos de um local para o outro; antes constitui um
mundo “virtual” em que a lógica da ação é participativa e a inici-
ativa individual é apoiada pela tecnologia, mais do que suprimi-
da.
Vale a pena assinalar que esta evolução deve-se mais aos uti-
lizadores do que aos projetistas originais da rede, os quais pre-
tendiam apenas facilitar processos de tempo partilhado em
computadores e a distribuição de informação. Refutando na prá-
tica o determinismo tecnológico, os utilizadores “interagiram”
com a rede para melhorar o seu potencial de comunicação. Esta
foi a verdadeira “revolução” da “era da informação”, que trans-
formou a internet num meio para comunicação pessoal. Tal situ-
ação é parecida com a rede de telefones, onde as grandes
empresas que geriam a comunicação têm pouco, ou nenhum,
controlo sobre o que se comunica. Tais sistemas, chamados “por-
tadores comuns”, ampliam a liberdade de reunião e, por isso, são
inerentemente libertadores.
Mais do que isto, como as redes de computadores asseguram
comunicações em grupo, a internet pode abrigar uma grande va-
riedade de atividades sociais, desde o trabalho até à educação e
até às trocas sobre passatempos e gostos pessoais de cada um, in-
cluindo a procura de parceiros para encontros amorosos. Estas
atividades sociais acontecem em mundos virtuais construídos
com palavras. O “mundo das palavras escritas” da internet é, sem
dúvida, um lugar onde humanos e máquinas parecem reconcili-

141
CAPÍTULO III

ar-se (Feenberg, 1989b).


Chegados a este ponto, é preciso fazer uma nota de cautela.
O discurso entusiástico sobre as “autoestradas da informação”
tornou-se previsível e enfadonho. Levanta um ceticismo imedia-
to, em certa medida justificado. É pouco provável que o século
XXI realize o sonho de uma sociedade perfeitamente transparente
e libertária, na qual toda a gente possa trabalhar a partir da sua
residência, publicar o seu próprio livro, escolher múltiplas iden-
tidades e géneros, encontrar um parceiro de vida pela internet,
comprar bens personalizados numa loja eletrónica e terminar os
seus estudos no tempo livre através do seu computador pessoal.
Parece razoável suspeitar desta visão. A crítica distópica encontra
aqui uma mera incorporação mais refinada e disfarçada do indi-
víduo no sistema.
Tanto a visão utópica como distópica são exageradas. Com
certeza que a internet vai ter impacto na sociedade, mas é ridícu-
lo comparar este processo com a Revolução Industrial, que tirou
quase toda a gente dos campos e os atirou para um ambiente ur-
bano radicalmente diferente. A minha “migração” para o ciberes-
paço, ao longo dos últimos trinta anos, dificilmente se pode
comparar com a migração dos meus avós, desde uma aldeia na
Europa Central para Nova Iorque. Por mais preocupante que seja
a “barreira digital”, ela é muito mais facilmente superável do que
a diferença entre a cidade e o campo numa sociedade sem telefo-
nes, televisão ou automóveis. A menos que apareça algo muito
mais inovador do que a internet, o século XXI será uma continu-
ação do século XX e não uma ruptura radical ou disruptiva. O
significado real da internet não reside em ser o alvorecer de uma
nova era, mas antes nas mudanças sociais e tecnológicas mais
pequenas que torna possível dentro de um quadro largamente
familiar(2).

142
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

NOVAS FORMAS DE AGÊNCIA


A mais importante destas mudanças tem a ver com a agência, ou
ação, democrática. As comunidades técnicas têm sido capazes de
usar a internet para coordenar as suas exigências por uma melhor
representação dos seus interesses. Apesar de desenvolvimentos
desencorajantes noutros domínios, a agência na esfera técnica es-
tá a aumentar. A nova política online não vai substituir a política
eleitoral, mas a sua existência ampliou a esfera pública e abarca
agora questões técnicas antes consideradas neutras e entregues,
sem outras consultas, aos especialistas para decirem. Isto criou
um ambiente técnico e social em que a agência no domínio tradi-
cional da política começou a recuperar da passividade induzida
pelo uso permanente dos meios de difusão.
Há muitos exemplos de ativismo político online: o uso da in-
ternet pelo movimento Zapatista no México, os protestos contra a
OMC (Organização Mundial do Comércio) e contra o FMI (Fundo
Monetário Internacional), a oposição à guerra no Iraque, as cam-
panhas de Howard Dean e de Barack Obama e muitas outras in-
tervenções semelhantes. A internet quebrou o quase monopólio
da imprensa oficial e das redes de televisão dominadas pelos go-
vernos e pelas grandes empresas, ao facilitar que os ativistas se
organizem e falem diretamente a milhões de utilizadores da in-
ternet (McCaughey and Ayers 2003; Milberry 2007).
Mas a agência online não está confinada à política e este facto
é importante para avaliar o seu significado. Afinal de contas, es-
tes exemplos políticos poderiam ser exceções bizarras, e a inter-
net poderia ser definida principalmente como um centro
comercial eletrónico, como afirmam os seus críticos. Acredito que
seja o oposto e que os usos políticos da internet são exemplos de
um fenómeno muito mais amplo, que é a emergência de novas
formas de agência em comunidades virtuais de todos os tipos
(Bakardjieva 2009).
O primeiro movimento desse tipo formou-se em redes pro-

143
CAPÍTULO III

prietárias, antes que o público tivesse acesso à internet, embora a


internet tenha aumentado muito a sua variedade e influência. Os
utilizadores de programas para computadores formam uma co-
munidade invisível que, até recentemente, estava indefesa peran-
te empresas gigantes como a Microsoft, caracterizasadas por uma
notória indiferença aos pedidos dos utilizadores. Mas o negócio
do software é muito recente. Nos primeiros tempos dos compu-
tadores centrais da IBM(h), eram os utilizadores que desenvolvi-
am os programas, mais do que fornecedores comerciais. Os
hábitos de livre intercâmbio então adquiridos fundiram-se gra-
dualmente com um movimento ideológico pelo software aberto e
livre, iniciado por Richard Stallman e muitos outros. O seu de-
senvolvimento rápido deste campo, tem tido um impacto enorme
sobre a internet. Cada um destes projetos de código aberto reúne
uma comunidade virtual que testa os programas e que sugere
melhoramentos, ou que os codifica. Os utilizadores e produtores
de programas já não estão mais separados pela barreira dos ne-
gócios comerciais mas, tal como os leitores e escritores noutros ti-
pos de fóruns online, podem trocar de papéis e envolverem-se
mutuamente.
A medicina é outro campo daquilo que Maria Bakardjieva
chama “subativismo”. Os pacientes reúnem-se online para se a-
poiarem mutuamente, para trocarem conselhos e experiências, e
ainda para fazer exigências à comunidade médica. Em 1995, es-
tudei um exemplo anterior, um fórum de discussão para pacien-
tes com uma doença neurológica rara, ELA (esclerose lateral
amiotrófica, ou doença de Lou Gehrig). Os pacientes trocavam
apoios sociais entre si, aprendiam a viver com a doença e parti-
lhavam informações sobre experiências médicas. Este tipo novo
de organização de pacientes desafiava os pressupostos padrão
acerca do papel dos doentes. Ao invés de esperar isoladamente
pela ajuda individual da profissão médica, os pacientes trabalha-
vam em conjunto para promover os seus interesses. Eventual-
mente pressionaram a sociedade americana de ELA para exigir

144
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

orçamentos maiores e conseguiram alterar as políticas do Natio-


nal Institutes of Health. Hoje em dia, proliferam fóruns seme-
lhantes de pacientes na internet que criam um ambiente social
muito diferente para a medicina (Feenberg et al. 1996).
Os videojogos oferecem um exemplo surpreendente de inici-
ativa dos utilizadores. Este setor é agora maior do que Hollywood
e mobiliza milhões de subscritores em jogos online multi jogado-
res. As atividades dos jogadores são estruturadas pelo próprio
jogo, mas as comunidades online organizam-se em relações in-
formais que a indústria não controla. Estes fóruns online são
pontos de encontro para várias apropriações inesperadas do am-
biente dos jogos. Os jogadores, por exemplo, podem leiloar itens
do jogo em troca de dinheiro real. Os piratas(i) têm modificado jo-
gos e, ocasionalmente, as versões modificadas têm-se tornado
populares. Nesses casos, levantaram-se questões legais, pois os
jogadores, ao subscreverem as condições gerais de adesão ao jo-
go, concordam habitualmente com políticas extremamente restri-
tivas. Em muitos casos, a resposta inicial das empresas às vio-
lações tem sido geralmente agressiva mas, em muitos casos,
rapidamente acabam por ignorar os infratores ou modificam as
suas políticas para os acomodar. O mundo dos jogos online apoia
assim um certo grau de interação entre utilizadores e fornecedo-
res, diferente do que seria de esperar na televisão e no cinema
(Grimes 2006; Grimes and Feenberg 2009; Kirkpatrick 2004).
Seria fácil multiplicar os exemplos. O mundo académico está
especialmente ativo. Por exemplo, as bibliotecas têm lutado para
redefinir o seu papel como fornecedores de informação, face à
competição da internet, e começaram a cruzar a linha entre
arquivar a informação e publicá-la. Muitas apoiam agora a cria-
ção de publicações periódicas online com acesso aberto, num es-
forço para manter as suas funções tradicionais como
intermediários não-comerciais da informação. As comunidades
académicas que antes dependiam de serviços comerciais caros de
editoras, podem agora organizar-se por conta própria, com a aju-

145
CAPÍTULO III

da de bibliotecas (Willinsky 2006).


Estes e muitos outros casos semelhantes de agência na inter-
net situam o ativismo político online no seu contexto. Estamos a
testemunhar o fim da distopia, à medida que as tecnologias defi-
nidoras do nosso tempo passam dos grandes sistemas centraliza-
dos, como a energia elétrica e a radiodifusão, para o mundo
menos estruturado do computador.

INTERVENÇÕES DEMOCRÁTICAS
Langdon Winner descreve a tecnologia como um tipo de estrutu-
ra, uma espécie de constituição, na medida em que determina o
quadro de referência das nossas vidas e decide questões políticas
importantes pela forma que dá às nossas relações sociais à medi-
da que a usamos (Winner, 1986: 47 passim). Dada a sua varieda-
de, a tecnologia talvez possa ser comparada mais precisamente
com um código de leis. Tal como a legislação, a tecnologia serve
melhor os interesses e preocupações de uns do que dos outros.
Tal como é possível reconstituir as ligações entre as leis e aqueles
que representam, também é possível dizer que as tecnologias re-
presentam os seus utilizadores. Esta é uma razão para preferir
um regime tecnológico democrático que, tal como a democracia
política, nos permite uma representação o mais ampla possível.
Mas também há diferenças importantes entre a política e a
tecnologia. A ideia de representação está tradicionalmente asso-
ciada a um território geográfico, sob o pressuposto de que aque-
les que aí vivem compartilham interesses comuns e são capazes
de se encontrarem para os discutir. Haverá, certamente, desacor-
dos mas, desde que a comunicação seja possível, então os confli-
tos podem ser resolvidos por meios legítimos, como o voto.
À medida que avançamos para uma fase mais complexa do
desenvolvimento tecnológico, esta definição bastante estreita de

146
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

política, herdada do passado pré-industrial, é cada vez menos


plausível. Há cada vez mais aspetos da vida social condicionados
por comunalidades entre pessoas que partilham uma relação se-
melhante com os vastos sistemas técnicos que conformam a vida
social. As sociedades tecnologicamente avançadas envolvem os
seus cidadãos numa grande variedade de redes técnicas que de-
finem carreiras, educação, lazer, assistência médica, comunicação
e ambientes daevida. Estas redes são administradas por especia-
listas e gestores, mais do que administradas democraticamente.
Sobrepõem-se às comunidades territoriais e competem com elas
quanto ao seu significado na vida dos cidadãos. Chamo “interes-
ses participantes”a essas preocupações compartilhadas, que
emergem neste contexto (Feenberg 1999, cap.6).
Obter representação adequada destes interesses estava, nos
dias anteriores à internet, muito para além dos meios de quase
todas as populações organizadas tecnicamente. Apenas os grupos
organizados em torno da política, no seu sentido tradicional,
eram também capazes de funcionar efetivamente como grupos de
pressão técnica. O movimento operário, por exemplo, foi capaz
de influenciar governos sobre a importância das regras de saúde
e segurança para a indústria. O movimento pelos direitos dos
homossexuais foi capaz de influenciar o sistema de saúde com
exigências pelo acesso a medicamentos experimentais para a sida.
Mas a maioria dos participantes nas redes técnicas continuou
desmobilizada e parecia que os avanços tecnológicos iriam cul-
minar numa ordem tecnocrática.
Já na década de 1920, John Dewey antecipou os problemas
que daí resultariam. Estava preocupado com o facto das comuni-
dades locais tradicionais estarem a perder a sua integridade nu-
ma sociedade moderna com grande mobilidade. Seriam ne-
cessárias novas formas de comunidades mediadas tecnicamente
para repor ou complementar o localismo, mas não eram fáceis de
criar. Os novos vínculos em construção pelo avanço dos sistemas
técnicos ainda estavam pouco articulados. Dewey ficou preso no

147
CAPÍTULO III

dilema que tinha identificado profeticamente, entre as redes téc-


nicas em grande escala, como uma forma de vida social moderna,
e a comunidade local, como terreno de autênticas deliberações
democráticas (Dewey 1980, 126).
Este dualismo contraditório de uma sociedade moderna é
bem capturado pela distinção de Habermas entre sistema e mun-
do da vida (1984, 1987). Habermas analisa os mercados e a gestão
como “sistemas” que coordenam objetivamente a ação social. Os
potenciais conflitos de intenções dos indivíduos são harmoniza-
dos não por acordos explícitos, mas sim por um quadro instituci-
onal tecnicamente racional e por simples regras de
procedimentos. Compradores e vendedores, por exemplo, atuam
em conjunto no mercado, para seu benefício mútuo, com um mí-
nimo de cooperação. Precisam apenas de reconhecer os termos de
troca como preço, compra e venda. Os sistemas tornam possível a
organização em larga escala das sociedades modernas.
O mundo da vida, pelo contrário, consiste em sujeitos que
comunicam entre si e cuja ação é coordenada por um entendi-
mento mútuo de uma grande variedade de códigos sociais e sig-
nificados complexos. A produção está organizada primariamente
através do sistema, e a reprodução social através do mundo da
vida. A crítica distópica da modernidade pode ser reformulada
nesses termos, como a predominância crescente do sistema sobre
o mundo da vida, com consequências potencialmente desastrosas
para a coesão social e para a sobrevivência da individualidade.
O esquema de interpretação de Habermas, embora fecundo,
está cheio de problemas. O seu esquema deixa de fora a tecnolo-
gia, embora objetivamente ela também coordene ações. Para além
disso, oscila entre tratar os seus conceitos de sistema e mundo da
vida como puras categorias analíticas, comuns a todas as insti-
tuições e atividades, e identificá-las com instituições específicas,
como o mercado e a família. Como resultado destas omissões e
ambiguidades, perde-se algum sentido da complexidade das in-
terações reais entre sistema e mundo da vida.

148
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

Vejamos um exemplo do domínio das tecnologias da comu-


nicação. A internet é um sistema, no sentido de Habermas, gerido
de acordo com a racionalidade administrativa e distribuído num
mercado. Como tal, suporta agências governamentais e grandes
empresas com imenso poder político e económico. Contudo, as
atividades que a internet facilita são essencialmente atividades de
comunicação. No mundo da vida, a internet envolve significados
e conotações que têm a ver com situações de intimidade, contatos
humanos, auto-promoção das pessoas, criatividade, etc. A inter-
net não é meramente instrumental para estas finalidades do
mundo da vida; pertence ao próprio mundo da vida como um
artefato rico de significados. Isto é mais do que uma questão de
associações subjetivas, pois afeta a evolução e o projeto da rede e
da interface, que não podem ser entendidos em termos de uma
ideia abstrata de eficiência. Este ponto tornou-se claro na luta em
torno da neutralidade da rede. O entrelaçamento da função e sig-
nificado, exemplificado pela internet, é algo generalizado nas so-
ciedades modernas.
A evolução do projeto técnico revela a agência daqueles que
são tratados como objetos de gestão no código técnico dominante.
A distinção entre sistema e mundo da vida parece desfazer-se. Mas
seria um equívoco abandoná-la totalmente. O “pensamento sisté-
mico” não é uma prerrogativa exclusiva da crítica social, mas antes
cresce com a experiência atual de gestão das organizações moder-
nas. De forma semelhante, o mundo da vida não é apenas uma ca-
tegoria analítica ou uma esfera separada, tal como a família, mas
sim uma perspectiva exercida sobre os sistemas por aqueles que se
encontram aí inseridos. Enquanto tal, reflete o caminho em que a
alienação é vivida e resistida pelos atores técnicos subordinados.
Michel de Certeau desenvolveu uma abordagem para des-
crever a interação entre sistema e mundo da vida que preserva
tanto a essência da diferença como captura as interações que pa-
recem anómalas no quadro de referência de Habermas. Eu apli-
quei essa abordagem à tecnologia. De Certeau distingue entre

149
CAPÍTULO III

estratégias de grupos, com uma base institucional a partir da qual


exercem o poder, e as tácticas dos que estão sujeitos a este poder e
que, não dispondo de uma base para agir de forma contínua e le-
gítima, manobram e improvisam resistências micropolíticas (de
Certeau 1980). O ponto de vista estratégico privilegia o controlo e
a eficiência, enquanto o ponto de vista táctico dá significado ao
fluxo da experiência conformada pelas estratégias. No quotidia-
no do mundo da vida, as massas de indivíduos improvisam e re-
sistem à medida que encontram as limitações colocadas pelos
sistemas técnicos aos quais se encontram vinculadas. Estas resis-
tências influenciam o projeto futuro dos sistemas e seus produ-
tos.
Interpretar a relação entre sistema e mundo da vida em ter-
mos de estratégias e tácticas ultrapassa tanto a condenação da
distopia como a celebração transhumanista e acrítica da tecnolo-
gia. A ótica distópica adota o ponto de vista estratégico sobre a
tecnologia, enquanto que o condena. A tecnologia é concebida
exclusivamente como um sistema de controlo e o seu papel no
mundo da vida é ignorado. É por isso que a resistência parece ser
impossível ou impotente, segundo essa opinião. Mas a introdu-
ção de diferenças entre sistema e mundo da vida também corrige
a imagem transhumanista excessivamente optimista da tecnolo-
gia e recupera o papel do significado e das relações humanas nos
sistemas tecnológicos modernos. A contradição entre o sistema e
o mundo da vida dos seus utilizadores e vítimas explica o au-
mento de lutas na internet, na esfera pública técnica emergente.

CONCLUSÃO
A Internet apoia uma visão harmoniosa de coexistência entre os
homens e as suas máquinas. Mas estas considerações teóricas
apontam para algo bastante diferente, que foi bem entendido pe-

150
DAQUI A CEM ANOS, REVENDO O FUTURO: A IMAGEM VARIÁVEL DA TECNOLOGIA

los pensadores distópicos. Argumentam que a tecnologia é uma


fonte de poder sobre os seres humanos e não um mero instru-
mento para a satisfação de necessidades humanas. Porque esse
poder é essencialmente impessoal, governado por procedimentos
tecnicamente racionais, mais do que por caprichos ou mesmo por
interesses, no sentido habitual do termo, então parece estar acima
do bem ou do mal. Esta é a sua dimensão distópica.
Aquilo que Marcuse chamou de “unidimensionalidade” re-
sulta do desaparecimento dos agentes externos de mudança e da
sua crítica transcendente. Mas o exercício do poder técnico evoca
resistências imanentes à sociedade unidimensional. O avanço
tecnológico liberta tensões sociais sempre que desconsidera as ne-
cessidades humanas e naturais. Dado que o sistema não é uma ex-
pressão auto-contida de pura racionalidade técnica, mas emergiu
de dois séculos de desqualificação(j) e abuso do meio ambiente, es-
sas desconsiderações acontecem com frequência. Vários públicos
técnicos combativos aparecem à volta dos problemas resultantes.
As exigências por mudança refletem aspectos humanos e naturais
negados pelo código técnico do sistema. A internet proporciona
um cenário em que a distopia é superada num movimento de de-
mocratização cuja extensão ainda não podemos medir.
As visões utópicas e distópicas de finais do século XIX e
princípios do século XX foram tentativas para compreender o
destino da humanidade num tipo radicalmente novo de socieda-
de, em que a maioria das relações sociais são mediadas pela tec-
nologia. A esperança de que esta mediação pudesse enriquecer a
sociedade, enquanto protegia seres humanos, foi desapontante.
Os utópicos esperavam uma sociedade que controlasse a tecnolo-
gia moderna, tal como os indivíduos controlam as ferramentas
tradicionais, mas há muito que passamos o ponto para além do
qual a tecnologia toma conta dos controladores. Mas os distópi-
cos não anteciparam que, uma vez no interior da máquina, os se-
res humanos poderiam ganhar novos poderes que podem usar

151
para mudar o sistema que os domina. Hoje podemos constatar
indícios tímidos de uma tal política da tecnologia. Quanto o seu
desenvolvimento será efetivamente possível, isso é assunto mais
para a práctica do que para profecias.
- Parte II -
CONSTRUTIVISMO SOCIAL
- Parte II -
CONSTRUTIVISMO SOCIAL

O primeiro capítulo desta parte combina contributos da filosofia


da tecnologia e dos estudos construtivistas da tecnologia numa
teoria crítica da tecnologia. As tecnologias são analisadas a dois
níveis que atravessam todos os dispositivos e sistemas. Num ní-
vel primário, as pessoas e as coisas são descontextualizadas para
identificar potencialidades (a). Embora seja essencial para tudo o
que é tecnológico, o nível primário por si só não é suficiente para
constituir uma tecnologia. Ao nível secundário, os elementos
descontextualizados são recontextualizados para se adaptarem
aos seus ambientes natural, técnico e social. Este processo de re-
contextualização é também essencial. O código técnico é a regra
sob a qual as tecnologias se concretizam num contexto social,
com enviesamentos que refletem uma distribuição desigual do
poder. Os grupos subordinados podem desafiar o código técnico,
influenciando a evolução do projeto técnico.
O segundo capítulo aplica estes conceitos à primeira rede de
computadores doméstica bem sucedida, o sistema francês Mini-

155
tel. O sistema foi projetado para distribuir informação de acordo
com as previsões de uma “idade da informação” pós industrial,
mas transformou-se em algo inesperado à medida que os utiliza-
dores o redirecionavam para a comunicação humana. A primeira
grande rede de computadores desvia-se, portanto, claramente
das teorias que eram a sua razão inicial. Um olhar mais cuidado
sobre este caso mostra o papel da agência dos utilizadores no
contraponto ao enviesamento tecnocrático da conceção dominan-
te da sociedade pós industrial.
O terceiro capítulo foca-se no Japão, o primeiro país não oci-
dental a modernizar-se. O Japão representa um caso de teste para
a universalidade dos sucessos modernos. Este capítulo mostra a
relevância da experiência japonesa através da análise de vários
exemplos de transferência de tecnologia e através de uma discus-
são de Kitaro Nishida, o principal filósofo japonês do período
anterior à guerra. O capítulo introduz os conceitos de desenvol-
vimento tecnológico por “ramificação” (b) e por “camadas” (c) e
aplica-os à teoria do “lugar” de Nishida (basho). O caso japonês
não resolve as nossas questões acerca da natureza da modernida-
de, mas mostra que a racionalidade tecnológica assume formas
complexas que são culturalmente relativas. Precisamos de globa-
lizar a nossa conceção de tecnologia, que não se pode continuar a
identificar exclusivamente com os feitos ocidentais.

156
Capítulo IV
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA:
UMA VISÃO GERAL

TECNOLOGIA E CULTURA
Nas explicações padrão da tecnologia, a eficiência serve como
princípio de seleção entre as iniciativas técnicas bem e mal
sucedidas. Porque a eficiência é uma quantidade calculável, a
tecnologia aparece dotada das virtudes da necessidade e
universalidade geralmente atribuídas à racionalidade científica. A
teoria crítica da tecnologia desmistifica esta imagem ao apontar
que a tecnologia não é meramente instrumental para fins
específicos, mas conforma um modo de vida. Este impacto mais
amplo pode ser intencional ou não; pode resultar de escolhas
específicas no projeto ou de efeitos laterais. De qualquer forma, o
impacto da tecnologia não é uma quantidade, mas sim uma
qualidade, e nada tem a ver com racionalidade universal. Precisa
de um tipo muito diferente de explicação.
A sociologia construtivista da tecnologia mostra que
diferentes configurações dos recursos podem resultar em versões

157
CAPÍTULO IV

alternativas do mesmo dispositivo básico capazes de


desempenhar com eficiência as suas funções. Os diferentes
interesses dos vários atores envolvidos no projeto refletem-se em
diferenças subtis na função e nos efeitos laterais daquilo que é
nominalmente o mesmo dispositivo. A eficiência não é, portanto,
decisiva para explicar o sucesso ou o fracasso de projetos
semelhantes, pois geralmente há várias opções viáveis a
competir no início de uma linha de desenvolvimento. A
tecnologia é “subdeterminada” pelo critério de eficiência e
responde aos vários interesses particulares e ideologias que
fazem a seleção entre essas várias opções. As escolhas sociais
intervêm tanto na fase de definição do problema como na sua
solução. A tecnologia não é “racional” no sentido antigo do
positivismo, mas é socialmente relativa. Isto explica como o
resultado das escolhas técnicas pode ser um mundo que apoia o
modo de vida de um ou outro grupo social influente.
Introduzi o conceito de “código técnico” para articular a
relação entre o projeto técnico e social (Feenberg 2002:74–80). Um
código técnico é a realização de um interesse ou ideologia numa
solução tecnicamente coerente para um problema. Embora
alguns códigos técnicos sejam formulados explicitamente pelos
próprios tecnólogos, o termo, tal como eu o uso, refere-se a uma
ferramenta mais geral de caráter analítico, que pode ser aplicada
mesmo na ausência de tais formulações. Mais precisamente, um
código técnico é um critério que seleciona entre vários projetos
técnicos viáveis, mas alternativos, em termos de um objetivo
social, e concretiza esse objetivo no projeto. “Viável”, neste caso,
significa tecnicamente viável. Os objetivos são “codificados” no
sentido de escalonar os itens como eticamente permitidos ou
proibidos, esteticamente melhores ou piores, ou mais ou menos
desejáveis sob o ponto de vista social. “Socialmente desejável”
refere-se não a um critério universal, mas sim a um bem
geralmente valorizado, como a saúde ou o lucro. Os códigos
técnicos são formulados pelo teórico social em termos de tipos

158
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

ideais, ou seja, como uma simples norma ou critério. Um caso


exemplar na história da industrialização é a necessidade
imperativa de desqualificar o trabalho através da mecanização
em vez de preservar ou melhorar competências.
Em qualquer caso, um código técnico descreve a congruência
entre a exigência social e uma especificação técnica. Geralmente
materializa-se em dois registos ontológicos diferentes: o
discursivo e o técnico. Um processo de tradução liga os dois
registos. Exigir mais atenção, por exemplo, sobre a segurança dos
veículos traduz-se em cintos de segurança e balões individuais de
segurança; em termos operacionais, estas funcionalizações são o
significado de segurança. Logo, tecnologia e sociedade não são
domínios alheios um do outro, tal como são factos e valores nos
tratados de filosofia. Antes comunicam constantemente através
da realização de valores no projeto e pelo impacto do projeto
sobre os valores. Esta fluidez da técnica - sublinhada por Bruno
Latour no seu conceito de delegação -   explica porque é que a tão
propalada troca compensatória entre eficiência e ideologia, tão
cara aos comentadores conservadores da economia e dos
negócios, é largamente um mito (Latour 1992).
Os códigos técnicos estão sempre enviesados, em certa
medida, pelos valores dos atores dominantes. A teoria crítica da
tecnologia procura pôr a nu esses desvios. O enviesamento
técnico, no entanto, é difícil de identificar dado que as
consequências sociais injustas das decisões técnicas parecem ser
meros efeitos colaterais do “progresso”. Onde os códigos técnicos
são reforçados pela percepção individual do auto-interesse dos
indivíduos e pela lei, a sua importância política normalmente
passa despercebida. Isto é o que significa chamar um certo modo
de vida como “culturalmente protegido” e um poder
correspondente como “hegemónico”.
Esse tal poder hegemónico é apoiado pela noção liberal
segundo a qual o capitalismo democrático é um sistema neutro
de valores em que todos podem seguir a sua concepção privada

159
CAPÍTULO IV

de bem. Demonstrar que o sistema é inerentemente enviesado


exige um tipo de argumento pouco familiar, que tem sido usado
com frequência por certos filósofos da tecnologia. Eles rejeitam a
alternativa -   racionalidade técnica ou enviesamento social - e
argumentam que este último aparece na racionalidade técnica
através do conteúdo social das escolhas técnicas. Exemplos
desses argumentos podem ser encontrados na noção de Marcuse
de que a neutralidade da tecnologia a coloca ao serviço dos
grupos sociais dominantes, assim como na crítica que Albert
Borgmann faz das implicações mútuas entre o liberalismo e o
“paradigma do dispositivo”, numa cultura enviesada na direção
do consumo privado (Marcuse 1964; Borgmann 1984).
A teoria crítica da tecnologia generaliza estes argumentos
por meio da distinção entre tipos de enviesamentos (Feenberg
2002, 80 ff; ver também cap. 8). A noção de enviesamento (a), tal
como aparece no senso comum, atribui uma discriminação injusta
ao preconceito e à emoção. Este “enviesamento substantivo”
baseia-se em convicções factualmente questionáveis. Decisões
enviesadas substantivamente no domínio tecnológico, onde a
racionalidade fria deveria prevalecer, conduzem a ineficiências e
rupturas evitáveis. Mas as operações eficientes são muitas vezes
injustas, até mesmo em casos onde o enviesamento, neste sentido
comum, é evitado. Logo a teoria crítica da tecnologia introduz o
conceito de “enviesamento formal” para compreender como é
que um sistema ou dispositivo técnico racionalmente coerente,
bem projetado e corretamente operado pode, apesar disso,
discriminar num dado contexto social. O conceito de
enviesamento formal também lança luz sobre noções como o
racismo institucional e serve o mesmo propósito, isto é, facilita
uma crítica de atividades socialmente racionais que parecem
justas quando abstraídas do seu contexto, mas que têm
consequências discriminatórias nesse contexto. Hoje, a justiça
exige a identificação e a alteração de códigos técnicos enviesados
formalmente.

160
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

AUTONOMIA OPERACIONAL
Para muitos críticos da sociedade tecnológica, Marx agora é
um autor irrelevante, um advogado de teorias económicas
ultrapassadas. Mas Marx teve contributos importantes para a
filosofia da tecnologia, que não se devem perder em conjunto
com a sua desacreditada abordagem económica.   Ele focou-se de
uma forma assim tão exclusiva sobre a economia porque, no seu
tempo, a produção era o principal domínio de aplicação da
tecnologia. Com a penetração da mediação técnica em todas as
esferas da vida social, as contradições e os potenciais semelhantes
aos que ele identificou na fábrica tiveram o mesmo destino.
Na visão de Marx, o capitalista é, em última instância,
alguém que se distingue não só por deter a posse da riqueza, mas
também pelo controlo das condições de trabalho. O proprietário
tem interesse técnico, tanto quanto económico, no que acontece
dentro da sua fábrica. Reorganizando o processo de trabalho,
pode aumentar a produção e os lucros. O controlo do processo de
trabalho, por sua vez, dá origem a novas ideias para a
maquinaria, e daí segue-se, a curto prazo, a mecanização da
indústria.
Ao longo do tempo, isso conduz à invenção de tipos
específicos de maquinaria que desqualificam trabalhadores e que
exigem gestão. A gestão age tecnicamente sobre as pessoas,
estendendo a hierarquia dos sujeitos e objetos técnicos às relações
humanas, na procura da eficiência. Afinal os gestores
profissionais representam, e em certo sentido substituem, os
proprietários no controlo das novas organizações industriais.
Marx denomina isto de “dominação impessoal” inerente ao
capitalismo, em oposição à dominação pessoal das anteriores
formações sociais. Materializa-se no projeto de máquinas e na
organização da produção. Num estádio final, que Marx não
antecipou, as técnicas de gestão e organização e os tipos de
tecnologia inicialmente aplicadas no setor privado são exportadas

161
CAPÍTULO IV

para o setor público, onde influenciam a gestão governamental, a


medicina e a educação. Todo o ambiente da vida em sociedade
fica sob o domínio da técnica. Desta forma, a essência tecnológica
do sistema capitalista pode ser transferida para os regimes
socialistas construídos sobre o modelo da União Soviética.
Todo o desenvolvimento das sociedades modernas é,
portanto, marcado pelo paradigma do controlo não qualificado
sobre o processo de trabalho em que assenta o industrialismo
capitalista. O desenvolvimento técnico está orientado no sentido
de reduzir o poder dos trabalhadores e de massificar o público.
Esta é a “autonomia operacional”, a liberdade do proprietário ou
seus representantes para tomar decisões autónomas sobre como
conduzir os negócios da organização, independentemente dos
pontos de vista ou dos interesses dos atores subordinados e da
comunidade vizinha. A autonomia operacional da gestão e
administração posiciona-se numa relação técnica com o mundo,
mas a salvo das consequências das suas ações. Estas
consequências podem ser sombrias quando a empresa trata com
desprezo os interesses do trabalhador e da comunidade, mas
desde a supressão dos luditas e até aos dias de hoje, os
representantes empresariais têm sido normalmente protegidos do
clamor resultante. Soma-se a isto o facto da autonomia
operacional lhes permitir reproduzir as condições de sua própria
supremacia em cada alteração nas tecnologias sob o seu
comando. A tecnocracia é uma extensão de tal sistema para a
sociedade como um todo, como resposta à difusão da tecnologia
e da gestão para todos os setores da vida social. A tecnocracia
blinda-se a si mesma contra as pressões públicas, sacrifica os
valores da comunidade e ignora as necessidades incompatíveis
com a sua própria reprodução e com a perpetuação das suas
tradições técnicas.
A tendência tecnocrática das sociedades modernas
representa uma via possível de desenvolvimento, uma trajetória
conformada pelas exigências do poder. Ao submeter seres

162
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

humanos ao controlo técnico, à custa dos modos tradicionais de


vida, enquanto restringe fortemente a participação no projeto, a
tecnocracia perpétua as estruturas de poder das elites herdadas
do passado em formas tecnicamente racionais. O processo mutila
não só os seres humanos e a natureza, mas também a tecnologia.
A tecnologia possui potencialidades benéficas que são suprimidas
sob o capitalismo e sob o socialismo de estado. Estas
potencialidades poderiam ser realizadas ao longo de trajetórias
diferentes de desenvolvimento em que o poder fosse distribuído
mais equitativamente.
A teoria crítica da tecnologia identifica os limites dos códigos
técnicos elaborados sob o domínio da autonomia operacional.
Exactamente o mesmo processo que libertou capitalistas e
tecnocratas para tomar decisões sem levar em conta as
necessidades dos trabalhadores e das comunidades gerou uma
riqueza de novos “valores”, exigências éticas forçadas a procurar
uma voz discursiva. A democratização da tecnologia reside em
encontrar novos caminhos que privilegiam estes valores
excluídos e que os realizam nos arranjos técnicos.
Uma realização mais plena da tecnologia é possível e
necessária. Somos alertados, com uma frequência cada vez maior,
para esta necessidade pelos ameaçadores efeitos colaterais do
avanço tecnológico. Estes efeitos colaterais constituem ciclos de
retroalimentação (b) dos objetos sob o nosso controlo técnico sobre
nós, como sujeitos desse controlo. Normalmente a
retroalimentação é reduzida ou diferida de tal maneira que o
sujeito da ação técnica fica segura relativamente às forças
desencadeadas pelas suas próprias ações. Mas a tecnologia pode
“morder-nos na volta”, como Edward Tenner nos recorda, com
consequências assustadoras à medida que os ciclos de
retroalimentação que ligam sujeito e objeto se tornam cada vez
mais obstrusivos (Tenner 1996). Hoje estamos obviamente mais
conscientes deste facto a partir do exemplo da mudança climática,
uma consequência não intencional de quase tudo aquilo que

163
CAPÍTULO IV

fazemos. O próprio sucesso da nossa tecnologia assegura que


estes ciclos se tornarão cada vez mais curtos à medida que
perturbamos mais violentamente a natureza enquanto a tentamos
controlar. Numa sociedade como a nossa, que está
completamente organizada em torno de tecnologias cada vez
mais poderosas, as ameaças à sobrevivência são claras.

TEORIA DA INSTRUMENTALIZAÇÃO (1)


Embora a teoria crítica da tecnologia procure identificar os
aspetos sociais da tecnologia, esta abordagem não impede o
reconhecimento da importância da funcionalidade simples. As
tecnologias devem realmente “funcionar” para servir no âmbito
de estratégias sociais, e um desiderato não pode ser reduzido ao
outro.
Assim, a teoria crítica da tecnologia distingue analiticamente
entre o aspeto da tecnologia que decorre da relação funcional
com a realidade, a que eu chamo “instrumentalização primária”,
e o aspeto decorrente dos seus envolvimentos sociais e da sua
implementação, a que eu chamo “instrumentalização
secundária”. Juntos, estes dois aspetos da tecnologia constituem o
“mundo”, num sentido próximo daquele que Heidegger dá ao
termo (2).
A instrumentalização primária inicia o processo de
construção do mundo pela desmundialização (c) dos seus objetos,
revelando as suas potencialidades (d). Extrai-as dos seus contextos
originais e expõe-os à análise e à manipulação, enquanto
posiciona o sujeito técnico para o controlo à distância. A
desmundialização reduz os elementos da realidade que podem
ser implementados para as características funcionais e situa-os
num contexto novo, em que servem um tipo de propósito.
A teoria complica-se, entretanto, pelo facto dos dispositivos
técnicos e os sistemas serem construídos a partir de elementos

164
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

simples com uma grande variedade de potencialidades. O


processo que combina esses elementos consiste em sucessivas
descontextualizações e recontextualizações, através das quais são
impostas limitações crescentes aos materiais. A
instrumentalização primária é iterativa: os elementos individuais
configurados para servir a um dado propósito podem ser ainda
mais descontextualizados e reunidos com outros elementos em
combinações que servem outros propósitos. Por exemplo: pode-
se apanhar uma pedra e usá-la para abrir uma concha. No
processo, ela perde as ligações com o seu ambiente original; mas
a mesma pedra pode depois perder a sua nova função e ser
recontextualizada como um componente de uma entidade
superior quando se junta com um pau para criar um martelo, útil
para trabalhos de construção.
As escolhas sociais contribuem para determinar as
especificidades do processo. Outro exemplo simples: uma árvore
é derrubada e são retirados os ramos e a casca, para ser cortada
em madeira. Todas as suas ligações com outros elementos da
natureza são eliminadas, exceto as relevantes para o seu uso para
construção. Mas este aspecto do processo de produção não é
puramente negativo. Incorpora muitas decisões motivadas
socialmente. Por exemplo, especificações elementares, como a
espessura padrão das placas de madeira, variam de país para
país. Mas não se pode fazer nada com a árvore antes dessas
especificações estarem definidas. Este processo de determinação
social é a “instrumentalização secundária”. Estabelece o
significado social do artefato.
Ao nível secundário, os objetos técnicos integram-se entre si
como a base de um modo de vida. O nível primário simplifica os
objetos para incorporação num dispositivo, enquanto o nível
secundário integra o objeto simplificado num ambiente social.
Isso envolve um processo que, seguindo uma vez mais
Heidegger, chamarei “aparecimento” (e) ou “revelação” de um
mundo. A revelação qualifica a funcionalização original

165
CAPÍTULO IV

orientando-a para o mundo para cuja criação contribui.


O social aparece no domínio técnico sob duas formas
principais, que denomino “sistematizações” e “mediações
valorativas”. “Sistematização” refere-se ao sistema de
significados, estabelecidos socialmente, que determina a natureza
das tecnologias e as interligações entre as suas várias partes e os
ambientes técnico, humano e natural. Na medida em que não
existe uma única lógica causal a determinar as interligações
ótimas, o estudo empírico descobre qual a escolha social neste
aspecto técnico. As mediações valorativas governam aspectos da
tecnologia que se situam nos campos da ética, dos critérios
estéticos ou de outras normas sociais gerais. Estes aspectos não se
limitam a proibições e aparências externas, mas penetram no
próprio coração do objeto. Formam o horizonte cultural da
sociedade ao mesmo tempo que configuram os artefatos técnicos.
Os automóveis exemplificam ambos os aspectos, pois são
projetados para ser   propriedade privada, mas para usar e operar
com tipos específicos de estradas e combustíveis (sistematização);
estilisticamente apelam a vários gostos estéticos (mediação), e
estes últimos, por sua vez, influenciam características técnicas tais
como as dimensões e a posição do motor. A interação destes dois
aspectos com a engenharia automóvel é um processo iterativo em
que o significado que as tecnologias assumem no mundo da vida
retroalimenta o seu projeto, em cada fase do seu desenvolvimento
para a fase seguinte.
A evolução do frigorífico ilustra a relatividade do projeto,
quer em relação ao significado como ao horizonte cultural, tal
como exemplificadas pelas considerações de género e de
ambiente. A especificação do volume padrão do frigorífico reflete
o tamanho da família, enquanto que a forma externa se foi
“simplificando” a partir dos anos 1930 por incorporação no
espaço do trabalho doméstico das mulheres (Nickles 2002) (3).
Numa fase mais recente, a descoberta que o refrigerante destrói a
camada de ozono levou a um redesenho como resposta às

166
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

preocupações ambientais. Nenhum dispositivo é demasiado


banal para o estudo social da tecnologia.
É importante ter em conta que as duas formas de
instrumentalização, na maioria dos casos, apenas se diferenciam
analiticamente. Não interessa quanto abstratas sejam as
potencialidades identificadas no nível primário, elas incluem um
conteúdo social do nível secundário na sua abordagem aos
materiais. De forma semelhante, as instrumentalizações
secundárias, tais como os requisitos estéticos do projeto,
pressupõem a identificação das potencialidades a reunir e
concretizar. Derrubar uma árvore para fazer madeira e construir
uma casa com essa madeira não são, respectivamente, a
instrumentalização primária e a instrumentalização secundária.
Tal como mencionei antes, derrubar uma árvore
“descontextualiza-a” mas de acordo com várias especificações
que determinam o tamanho e a forma das tábuas. Para além
disso, considerações de ordem técnica, legal e estética
determinam quais os tipos de árvores que se podem converter em
pranchas de madeira. O ato de cortar as árvores não é, portanto,
simplesmente instrumentalização “primária” mas envolve ambos
os níveis, tal como seria de se esperar de uma diferenciação
analítica.
Os impactos das instrumentalizações secundárias aumentam
à medida que acompanhamos o artefato, desde o seu princípio e
ao longo das fases sucessivas do seu desenvolvimento, até ao
dispositivo final. Seja o processo de derrube das árvores: a árvore
é cortada e derrubada, mas apenas a árvore legal. A fase de
processamento: a árvore transforma-se em tábuas de madeira de
acordo com as especificações de um sistema de construção em
particular. A fase da construção: a casa é construída com base nas
tábuas de madeira, segundo um código de construção e uma
estética arquitetural. Até mesmo depois de entregue, um
dispositivo técnico continua sujeito a transformações adicionais,
ou por iniciativa do proprietário ou devido à regulamentação

167
CAPÍTULO IV

governamental: as casas são remodeladas. O mundo da vida em


que os artefatos têm origem, e para onde retornam, tem o poder
de lhes dar forma e de os modificar. Neste sentido limitado,
podemos dizer que são socialmente conformados ou
“construídos”.
As duas instrumentalizações caracterizam a produção técnica
em todas as sociedades, mas só nos tempos modernos é que são
claramente distintas. Isso criou a ilusão de que os dois processos
são completamente separados, embora externamente
relacionados. De facto, ainda hoje em dia a diferença é
primariamente analítica, embora as grandes organizações as
separem com frequência, como o empacotamento e as operações
de engenharia. Logo a função estética, uma importante
instrumentalização secundária, pode ser isolada e atribuída a
uma “divisão de projeto corporativo”. Assim os artistas
trabalharão, lado a lado, com os engenheiros. Esta separação
institucional parcial das instrumentalizações estimula a convicção
de que são completamente distintas. A existência de disciplinas
técnicas parece confirmar a ideia do senso comum segundo a qual
tecnologia e sociedade são entidades separadas, mas estas
disciplinas mostram traços de escolhas sociais passadas que
cristalizaram em padrões e materiais. Há um inconsciente
tecnológico que dissimula essa história.
Mesmo assim, as versões radicais do construtivismo estão
erradas ao insistir em que não existe literalmente diferença entre
o técnico e o social. Se isso fosse verdade, então não existiriam
disciplinas técnicas e os produtores e utilizadores dos produtos,
mesmo dos mais simples, comunicariam mais facilmente. Seria
mais rigoroso afirmar que a tecnologia moderna é uma expressão
particular do social nos artefatos e sistemas, mediada por
disciplinas técnicas diferenciadas. As convicções e
comportamentos sociais correntes são muito diferentes,
misturando promiscuamente as dimensões técnicas e não
técnicas. Os significados guiam a ação de improviso na vida do

168
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

dia-a-dia, formando padrões que se intersectam dificilmente com


os produtos da engenharia, tal como Lucy Suchman argumenta
persuasivamente (Suchman 2007).
Uma filosofia da tecnologia adequada deve oferecer uma
explicação tanto da instrumentalização primária como
secundária. A tradição existencialista focou-se exclusivamente na
instrumentalização primária. As suas reflexões sobre o que
Verbeek chamou de pré condições “transcendentais” da
tecnologia formam a base de uma crítica da modernidade
(Verbeek 2005). Segundo esta crítica, a “essência” da tecnologia é
a orientação para o controlo e para a dominação. As sociedades
modernas submetem tudo à ação técnica e assim negam as
potencialidades e o valor intrínseco de tudo o que existe.
Esta abordagem excessivamente negativa ignora a
instrumentalização secundária, que complementa a
funcionalização inicial a que os objetos foram submetidos quando
entraram no domínio técnico. O mundo continua a ter significado
até mesmo na idade da tecnologia, embora os significados
tenham certamente mudado e se tenham tornado mais fluidos. A
instrumentalização secundária é estudada pelos cientistas sociais
e pelos historiadores, que se focam precisamente naquilo que os
filósofos negligenciam, as forças sociais concretas ativas no
processo de projeto. Mas sem uma teoria sobre a estrutura
intrínseca do técnico, falta-lhes uma perspectiva normativa sobre
os limites próprios da tecnologia.
Estes limites precisam de ser respeitados porque a
instrumentalização primária é, de facto, incompatível com muitos
aspectos da vida e da natureza humanas. Os objetos introduzidos
nas redes técnicas carregam a marca da funcionalização a que
foram submetidos. Nem todo o valor pode sobreviver a essa
transformação. Consequentemente, rejeitamos a ideia de que
meios, mais ou menos eficientes sob o ponto de vista técnico,
possam ser capazes de coisas como fazer amizades e apreciar um
jantar natalício. As descontextualizações e reduções da

169
CAPÍTULO IV

instrumentalização primária têm, no máximo, um lugar


subordinado no pano de fundo das relações humanas mais
próximas e das ocasiões festivas.

ESTRATÉGIAS DE RECONTEXTUALIZAÇÃO
As sociedades pré-modernas e modernas atribuem pesos
relativos diferentes à sistematização e à mediação. Nas
sociedades pré-modernas, como assinala Latour, as redes técnicas
eram relativamente curtas e os seus nós ligados de forma frágil
(Latour 1993). No entanto, mediações valorativas muito
elaboradas controlam todos os aspetos da vida técnica; aqui, a
técnica é inseparável daquilo que nós, modernos, chamamos arte
e religião. Logo, armas tribais e palhotas podem ter um mesmo
simbolismo, mas não estão sistematicamente relacionados por
especificações técnicas de grande precisão, tal como estão as
tecnologias modernas. Como resultado, as sociedades pré-
modernas têm um alcance espacial limitado - as suas redes
confinam-se a regiões locais - mas conquistam o tempo, no
sentido em que podem ser reproduzidas com sucesso ao longo de
milhares de anos.
As sociedades modernas enfatizam a sistematização e
constroem redes de grande dimensão através de ligações fortes a
grandes distâncias entre tipos muito diferentes de coisas e
pessoas. Isto exige que o artefato seja despojado da maior parte
das mediações valorativas. O excesso resultante de ênfase, sobre a
instrumentalização primária e a sistematização, torna possível
tanto as organizações hierárquicas de grande dimensão como as
disciplinas técnicas. Mas, a despeito do poder sobre os seres
humanos e sobre a natureza, ou talvez por causa disso, as
sociedades modernas têm tão pouco controlo do tempo que é
incerto se irão sobreviver para além este novo século.
Até há pouco tempo, era moda os críticos sociais

170
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

condenarem a tecnologia por si mesma. Essa atitude perdura e


inspira um certo desdém arrogante pela tecnologia entre os
intelectuais que, apesar disso, a usam constantemente nas suas
vidas diárias. Porém, cada vez mais a crítica social tem-se virado
para o estudo e para a defesa das reconfigurações e
transformações possíveis da tecnologia a fim de a acomodarem
aos atores excluídos das redes originais de projeto. Esta
abordagem emergiu primeiro no movimento ambientalista, que
tem tido sucesso na alteração do projeto de tecnologias através da
regulação e da litigação. Hoje, continua a manifestar-se nas
propostas para transformar a biotecnologia e a informática.
A crítica construtivista da tecnologia tenta concentrar-se nas
deficiências da instrumentalização secundária, pois é aí que o
projeto recebe enviesamentos específicos. Isto é particularmente
claro sob o capitalismo, onde estratégias bem sucedidas de
negócios implicam frequentemente romper com várias
condicionantes na busca pelo lucro. As recontextualizações
técnicas favorecidas tendem a ignorar os valores e os interesses
de muitos dos envolvidos, sejam eles trabalhadores,
consumidores, ou a comunidade que acolhe as unidades de
produção. Por exemplo, no caso do corte das árvores para a
produção de madeira tem sido difícil convencer, até agora, as
grandes empresas a prestarem atenção à saúde das florestas e à
beleza da natureza. Estes são bens que apelam às comunidades
locais, aos desportistas e aos ambientalistas, mas habitualmente
estes atores não são convidados para participar no planeamento
deste tipo de projetos.
Uma modernidade alternativa, digna desse nome, deveria
restabelecer o poder mediador da ética e da estética. O que se
poderia conseguir não por um retorno ao tradicionalismo cego,
mas através da democratização das instituições tecnicamente
mediadas. O poder seria devolvido aos membros das redes
técnicas, ao invés de permanecer concentrado no topo das
hierarquias administrativas. À medida que mais atores

171
CAPÍTULO IV

ganhassem acesso ao projeto, um espectro cada vez mais amplo


de considerações valorativas passaria a informar as escolhas
técnicas. Estas mudanças formais resultariam em novos projetos
técnicos e em novas formas para alcançar as eficiências que
caracterizam a moderna atividade tecnológica. Em que medida é
que este tipo de sociedade é possível? Aí está algo que divide os
críticos da tecnologia.
As controvérsias do mundo real que envolvem a tecnologia
dependem frequentemente de uma suposta oposição entre os
padrões correntes da eficiência técnica e os valores. Esta oposição,
no entanto, é falsa, tal como argumentei no capítulo 2. Os
métodos ou padrões técnicos correntes foram outrora formulados
como valores e depois traduzidos nos códigos técnicos que agora
tomamos como bem reconhecidos. Este ponto é muito importante
para responder às habituais objeções práticas aos argumentos
para uma reforma social e tecnológica, como se a melhor maneira
de fazer qualquer trabalho ficasse comprometida por se prestar
atenção a aspetos externos, como a saúde e a beleza natural. Mas
a divisão entre aquilo que aparece como uma condição da
eficiência técnica e aquilo que aparece como um valor externo ao
processo técnico depende de decisões políticas e sociais
anteriores, que estavam enviesadas por desequilíbrios de poder.
Todas as tecnologias incorporam os resultados de tais decisões e,
desta forma, favorecem ou uns ou outros dos valores dos atores
ou, no melhor dos casos, combinam os valores de múltiplos
atores por meio de combinações inteligentes capazes de atingir
objetivos múltiplos.
Esta última estratégia envolve o que Gilbert Simondon (f)
denominou “concretização”, a multiplicação das funções servidas
em simultâneo pela estrutura de uma tecnologia (4).   As suas
ilustrações deste conceito são casos politicamente neutros de
inovações, como o motor arrefecido a ar, que combina duas
funções, arrefecimento com contenção do espaço, numa estrutura
única , elegante e eficiente. Modifiquei esta abordagem para ter

172
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

em conta aquilo que aprendemos do construtivismo acerca das


forças sociais por trás das funções técnicas. Tal como vimos no
capítulo 1, o pneu insuflável permitiu uma bicicleta
inerentemente mais estável, apesar de menos veloz, que
ultrapassa as suas desvantagens nas corridas de bicicletas, ao
mesmo tempo que retém a estabilidade que a tornou atrativa
para o transporte (Pinch and Bijker 1989, 44–46). A troca
compensatória entre velocidade e estabilidade dissolveu-se à
medida que esta inovação reconciliou dois grupos sociais
diferentes: os jovens desportistas, interessados nas corridas, e os
cidadãos comuns, utilizadores da bicicleta para as suas atividades
quotidianas.
O conceito de concretização explica como contextos mais
amplos, ou ignorados, se podem implementar num projeto
tecnológico, sem perda de eficiência. Um frigorífico equipado
para usar um refrigerante protetor da camada de ozono atinge
propósitos ambientais com as mesmas estruturas que servem
para manter o leite frio. Bram Bos e colaboradores (2003)
argumentam que a produção animal à escala industrial pode ser
reorganizada de forma a respeitar as necessidades dos animais,
usando os seus comportamentos espontâneos num ambiente
adequadamente reconfigurado para proteger a saúde animal e,
consequentemente, a eficiência da operação. O que é verdade
para animais e para dispositivos é ainda mais verdadeiro para
seres humanos envolvidos em redes técnicas. As suas
capacidades plenas podem ser empregues produtivamente num
sistema técnico projetado para respeitar o corpo humano e para
tirar partido da inteligência e competências.

TECNOLOGIA E DEMOCRACIA
A teoria crítica da tecnologia é uma teoria política da

173
CAPÍTULO IV

modernidade com uma dimensão normativa. Pertence a uma


tradição que se estende desde Marx até Foucault, passando pela
Escola de Frankfurt. Nesta tradição, o progresso é analisado
como um processo contraditório. Os avanços no reconhecimento
formal dos direitos humanos assumem um papel central,
enquanto que a centralização insidiosa de instituições públicas e
organizações privadas, cada vez mais poderosas, impõe uma
ordem social autoritária.
Marx atribuiu esse padrão à racionalização capitalista da
produção. Atualmente está presente em muitas instituições, para
além das fábricas e de todos os sistemas políticos modernos,
incluindo os chamados sistemas socialistas. Este padrão emergiu
para manter o domínio sobre uma força de trabalho
desqualificada e destituída de poder, mas prevalece sempre que
as massas estão organizadas, seja nas prisões de Foucault ou na
sociedade unidimensional de Marcuse. O projeto e o
desenvolvimento tecnológico são moldados por este padrão para
servirem como a base material de uma ordem social distinta.
Marcuse chamou a isto o “projeto” na base da “racionalidade
tecnológica”. Libertar a tecnologia deste projeto é uma tarefa da
política democrática.
De acordo com esta abordagem geral, a teoria crítica
considera que as tecnologias mais como um ambiente do que
como uma coleção de ferramentas. Vivemos hoje com as
tecnologias que organizam a nossa forma de viver, ou até mesmo
dentro dessas tecnologias. Com as pressões constantes para
construir centros de poder, inscrevem-se muitos outros valores e
significados no projeto tecnológico. No seu conjunto, todas estas
influências formam um mundo. Uma hermenêutica da tecnologia
precisa de tornar explícitos os significados implícitos nos
dispositivos que usamos e nos rituais que estabelecem. As
histórias sociais da tecnologias como a bicicleta e a luz elétrica,
assim como os estudos sobre consumo e projeto de produtos, têm
dado contribuições relevantes sobre este tipo de análise (5). A

174
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

teoria crítica da tecnologia tenta construir uma abordagem


metodológica com base nas lições desses relatos.
Como um mundo, as tecnologias moldam os seus habitantes.
A este respeito são comparáveis às leis e aos costumes que, na
antiguidade, eram consideradas como influências quase parentais
sobre os cidadãos, levando-os a conformarem-se de acordo com
um certo tipo humano desejado. Pode-se dizer que leis, costumes
e tecnologias tanto conformam como representam os que vivem
sob o seu controlo, privilegiando certas dimensões da sua
natureza humana. As leis da propriedade representam o interesse
de posse e controlo. Costumes como o casamento representam o
interesse da família na continuidade geracional e no apoio
mútuo. Da mesma maneira, um automóvel representa os seus
utilizadores enquanto interessados na mobilidade. Interesses
como estes constituem a versão da natureza humana sancionada
pela sociedade.
A representação tecnológica torna-se proeminente quando os
indivíduos descobrem que certos aspectos importantes de sua
humanidade não são bem servidos pelo ambiente tecnológico.
Emergem assim controvérsias, como no caso de leis e costumes
considerados como injustos ou ultrapassados. Estas controvérsias
têm como objetivo alterar os projetos tecnológicos para garantir
uma melhor representação da humanidade dos utilizadores e,
nalguns casos, vítimas da tecnologia. As lutas em torno da
tecnologia assemelham-se, em muitos aspectos importantes, às
lutas políticas. De facto, no mundo contemporâneo, as lutas em
torno da tecnologia são muitas vezes as lutas políticas mais
importantes.
Também porque os fundamentos das nossas filosofias
políticas e constituições foram elaborados nos séculos XVII e
XVIII, ainda há uma tendência para uma separação nítida entre
política e tecnologia, a primeira supostamente baseada em
direitos, e a segunda no conhecimento. Muita da teoria política
argumenta que o consenso pode ser alcançado por meio do

175
CAPÍTULO IV

exercício democrático desses direitos. Na realidade, o consenso


político é largamente conformado pela disponibilidade de formas
tecnológicas de vida, mais do que por deliberação racional.
As escolhas tecnológicas são, na sua maioria e hoje em dia,
decisões privadas e estão protegidas do envolvimento público
pelos direitos de propriedade e pela ideologia tecnocrática. O que
se pode fazer para reverter esta tendência? A democratização da
tecnologia exige, em primeira instância, uma difusão do
conhecimento mas, por si só, isso não é suficiente para fazer a
diferença. Para além disso, o espetro de interesses representados
por quem controla a tecnologia deve ser alargado para tornar
mais difícil a descarga de externalidades da ação técnica sobre os
grupos com menos poder. Apenas uma aliança democrática de
atores, capaz de abarcar todos os que são afetados, está
suficientemente exposta às consequências da sua própria ação
para que possa resistir a projetos nocivos, desde o seu início. Tais
alianças técnicas mais alargadas teriam em consideração os
efeitos destrutivos da tecnologia sobre o meio ambiente assim
como sobre os seres humanos. Os movimentos democráticos na
esfera técnica procuram construir essas alianças. O que exige
uma segunda condição de democratização técnica, mais política,
mas num sentido mais restrito.
Os movimentos democráticos de todos os tipos confrontam-
se com um ambiente hostil dominado pela manipulação dos
meios de comunicação social. Têm que ultrapassar as
dificuldades com os meios de comunicação social para conseguir
pôr novas questões na agenda pública. Conseguir mudar essa
agenda tem sido o sucesso mais importante dos movimentos
feministas e ambientais. Agora é chegada a hora de uma
mudança semelhante sobre o lugar da tecnologia na esfera
pública.
A teoria crítica da tecnologia projeta um futuro em que a
política da tecnologia é reconhecida como sendo um aspeto
normal da vida pública. Tal como em todos os movimentos

176
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

democráticos anteriores, a democracia gera democracia: os


públicos técnicos, como todos os grupos anteriores sem poder,
podem aprender, pelo exercício da agência, a entender os seus
interesses e a pressionar as instituições públicas para os servirem.
Os meios de expressão democrática das questões técnicas já estão
a ser antecipados em muitas práticas correntes, como audiências
públicas, júris populares, controvérsias técnicas, protestos,
boicotes e disputas judiciais, pirataria e outras formas criativas de
apropriação de tecnologias, para além, é claro, dos métodos mais
familiares, como campanhas eleitorais e regulação governamental
(Callon et al. 2009).
Numa democracia técnica, o trabalho técnico assumiria um
outro caráter. O projeto seria conscientemente orientado para
valores humanos politicamente legitimados, mais do que sujeito
aos caprichos das organizações com fins lucrativos e das
burocracias militares. Estes valores seriam instalados nas
próprias disciplinas técnicas, tal como os valores da cura
prevalecem sobre o conhecimento biológico do corpo humano, na
medicina.
A teoria crítica clássica esteve acima de tudo dedicada à
interpretação do mundo, à luz das suas potencialidades. Estas
potencialidades são identificadas por meio do estudo sério
daquilo que existe e, especialmente, através do estudo dos
protestos e formas de resistência que apontam para além do
horizonte atual. Logo a investigação empírica pode, portanto, ser
mais do que um mero reunir de factos e, com o tempo, pode
informar um argumento. A filosofia da tecnologia pode unir os
dois extremos - potencialidade e atualidade, normas e factos - de
uma forma que nenhuma outra disciplina pode rivalizar. Precisa
de desafiar os preconceitos disciplinares, que confinam a
investigação e o estudo, e precisa de abrir perspectivas para o
futuro.

177
CAPÍTULO IV

CONCLUSÃO
Toda a tecnologia aponta para um operador, por um lado, e
para um objeto, por outro lado. Quando tanto o operador como o
objeto são seres humanos, a ação técnica é um exercício de poder.
Onde, para além disto, a sociedade se organiza em torno da
tecnologia, o poder tecnológico é a principal   forma de poder na
sociedade. Realiza-se por projetos que reduzem o leque de
interesses e preocupações e que podem ser representados pelo
funcionamento normal da tecnologia e das instituições
dependentes. Este estreitamento distorce a estrutura da
experiência e causa sofrimento humano e danos ao ambiente
natural.
O exercício do poder técnico evoca resistências de um novo
tipo, imanentes ao sistema técnico unidimensional. Os excluídos
do processo de projeto sofrem eventualmente as consequências
indesejáveis da tecnologia e protestam. Abrir a tecnologia para
um leque mais amplo de interesses e preocupações levaria a um
novo esforço de projeto com vista a uma maior compatibilidade
com os limites e poderes humanos e naturais. Uma
transformação democrática, a partir da base, pode reduzir os
ciclos de retroalimentação a partir dos prejuízos nas vidas
humanas e na natureza e dirigir uma reforma radical da esfera
técnica.
Uma compreensão adequada da substância da nossa vida
comum não pode continuar a ignorar a política da tecnologia. A
maneira como vivemos é largamente moldada pela forma como
configuramos e projetamos cidades, sistemas de transportes,
meios de comunicação e a produção industrial e agrícola.
Estamos a fazer, cada vez mais, escolhas sobre saúde e
conhecimento ao projetarmos as tecnologias de que dependem a
medicina, a investigação e a educação. Para além disso, os tipos
de coisas que parece plausível propor como avanços ou

178
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

alternativas são, em grande parte, condicionadas pelas carências


das tecnologias existentes e pelas possibilidades que elas
sugerem. A controvérsia polémica do passado, segundo a qual a
tecnologia é política, parece agora óbvia.

179
Capítulo V
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO:
A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

INFORMAÇÃO OU COMUNICAÇÃO?
Noções como “sociedade pós-industrial” e “era da informa-
ção” são antecipações - ficções da ciência social - de uma ordem
social baseada no conhecimento (Bell 1973). O antigo mundo do
carvão, do aço e dos caminhos de ferro vai-se evaporando numa
nuvem de fumo industrial à medida que vai nascendo um mun-
do novo baseado nas comunicações e nos computadores. Os vul-
garizadores desta visão rejubilam com muitas das mesmas
tendências que são lamentadas pela crítica distópica, tal como os
níveis cada mais elevados de organização e integração da econo-
mia e a importância crescente das especialidades.
Os computadores têm um papel especial nestas antevisões,
porque a gestão das instituições sociais e das vidas humanas de-
pende cada vez mais do acesso fácil a dados. Os computadores
não só arquivam e processam dados, como também podem ser
ligados em rede para distribuir os dados. No futuro pós-industri-

181
CAPÍTULO V

al, a comunicação mediada por computadores (CMC) penetrará


em todos os aspetos da vida diária e servirá a procura crescente
por informação.
No final dos anos sessenta, estas previsões eram assumidas
pelos líderes políticos e empresariais como tendo o poder de
transformar o mundo. Aprende-se muito acerca de uma visão a
partir das tentativas para a realizar. Quando, como neste caso, os
resultados ficam aquém das expectativas, as teorias inspiradoras
das previsões originais são postas em questão. Este capítulo ex-
plora o hiato entre a teoria e a prática num caso particularmente
importante de computorização em massa: a introdução do video-
texto em França.
O videotexto é um tipo de software projetado para facilitar o
acesso a dados em redes de computadores. Os sistemas de video-
texto funcionam como bibliotecas online que arquivam “páginas”
de informação na memória de um computador, informação essa
acessível por utilizadores equipados com um terminal e um mo-
dem. Hoje em dia a internet faz essa função, mas o videotexto foi
originalmente pioneiro de um sistema semelhante. Esta foi, por-
tanto, uma primeira grande concretização da ideia de uma socie-
dade pós-industrial.
A teoria da era da informação prometia um mercado emer-
gente de videotexto. A experiência com videotexto, por sua vez,
testou na prática alguns dos seus pressupostos principais. As pri-
meiras previsões antecipavam que toda a gente se ligaria aos ser-
viços de videotexto ainda antes dos anos noventa. Nos finais dos
anos setenta, os ministérios das telecomunicações e as empresas
estavam preparados para enfrentar com confiança essa previsão do
futuro através de novos sistemas interativos. Lançaram-se sistemas
experimentais para testar diferentes configurações da tecnologia.
Mas muitas dessas experiências resultaram em tristes insucessos.
Este resultado pode ter sido devido, em parte, às regulamen-
tações “anti trust” que impediam as empresas gigantes de telefo-
nes e de computadores de fundirem as suas tecnologias com-

182
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

plementares em sistemas públicos em grande escala. A incapaci-


dade da FCC(a) impôr um padrão para os terminais agravou a si-
tuação. Sem os recursos e o conhecimento das grandes empresas,
e com os seus esforços sem qualquer coordenação pelo governo,
não surpreende que as empresas editoras e de entretenimento, de
menor dimensão, tenham sido incapazes de transformar o video-
texto comercial num sucesso (Branscomb 1988).
Os resultados desapontadores nos Estados Unidos foram
confirmados por todas as experiências com videotexto no estran-
geiro, com a exceção do sistema francês Teletel. O sistema inglês
Prestel(b) tinha introduzido o videotexto três anos antes dos fran-
ceses entrarem em cena. Ironicamente, os franceses entraram em
grande escala no videotexto, em parte pelo medo de ficarem atrás
dos ingleses.
O Prestel tinha a vantagem do apoio estatal, que nenhum sis-
tema americano podia ter. Mas também tinha uma desvantagem
correspondente: a sobre centralização. Inicialmente, os fornecedo-
res de informação não podiam ligar sistemas remotos(c) ao sistema
do Prestel, o que limitava muito o crescimento dos serviços. Mais,
o Prestel obrigava os utilizadores a comprarem um descodificador
para as suas televisões, uma peça de hardware cara que punha o
videotexto em competição com a programação televisiva. A base
de subscritores cresceu com uma lentidão patética, tendo chegado
apenas aos setenta e seis mil utilizadores nos primeiros cinco anos
(Charon 1987, 103-106; Mayntz and Schneider 1988, 278).
Entretanto, as aplicações bem sucedidas de CMC foram to-
das organizadas por, e para, empresas privadas, universidades e
entusiastas dos computadores. O público em geral tinha ainda
pouco, ou nenhum, acesso a essas redes e não tinha qualquer ne-
cessidade de usar serviços especializados, tal como pesquisas bi-
bliográficas e software bancário. Depois de uma fase inicial de
entusiasmo breve pelo videotexto, as CMC eram vistas primaria-
mente como adequadas para o trabalho, mas não para o prazer;
esperava-se que serviriam as necessidades dos profissionais, mais

183
CAPÍTULO V

do que o consumo ou o lazer (Ettema 1989).


Como explicarei adiante, a história do Teletel é bastante dife-
rente. Entre 1981, data dos primeiros testes do sistema francês, e
o final da década, o Teletel tornou-se, de longe, o maior sistema
público de videotexto no mundo, com milhares de serviços, mi-
lhões de utilizadores e centenas de milhões de dólares em recei-
tas. Até ter sido eclipsado pela internet, o Teletel era o ponto mais
brilhante da imagem então pouco impressionante do videotexto
comercial (o Teletel ainda existe, mas foi substituído pela internet
para a maioria das finalidades) (d).
Este resultado deixa-nos perplexos. Os franceses seriam di-
ferentes de todos os os outros? Essa explicação tola torna-se me-
nos plausível na medida em que a CompuServe e a Prodigy, da
IBM/Sears, cresceram até ao milhão de subscritores nos inícios
dos anos oitenta. A dimensão desses sistemas iniciais confirmou
a existência de um mercado habitacional para o videotexto mas,
no princípio, só os franceses souberam como o explorar. Como
explicar o surpreendente sucesso do Teletel, e quais são as suas
implicações sobre a teoria da era da informação, que inspirou a
sua criação?
O Teletel é especialmente interessante pois empregava
apenas tecnologia facilmente disponível em todos os outros paí-
ses em que o videotexto foi tentado e falhou. O seu sucesso só
pode ser explicado identificando as invenções sociais que desper-
taram um grande interesse do público pelas CMC. Uma observa-
ção mais cuidada destas invenções mostra as limitações não só
das primeiras experiências com o videotexto, mas também da te-
oria da era da informação (Feenberg 1991, cap. 5).

A EXPERIÊNCIA DE UM NOVO MEIO DE COMUNICAÇÃO


Embora o Teletel incorpore descobertas válidas acerca das CMC
domésticas em geral, também é um caso peculiarmente francês.

184
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

Muito do seu caráter único deriva da confluência de três fatores:


(1) uma política especificamente francesa de modernização; (2) a
ideologia voluntarista da burocracia no serviço público nacional;
e (3) uma forte cultura de oposição política. Cada um destes fato-
res contribuiu para um resultado que nenhum grupo na socieda-
de francesa tinha inicialmente antecipado. Em conjunto, abriram
o espaço de experimentação social que o Teletel tornou tecnica-
mente possível.

MODERNIZAÇÃO
A questão da modernidade está muito viva em França, de
uma maneira que é difícil de imaginar nos Estados Unidos. Os
americanos experimentam a modernidade como um direito de
nascença; a América não se esforça pela modernidade, antes defi-
ne-a, ou pelo menos eles assim acreditam. Por isso os Estados
Unidos não tratam a sua própria modernização como uma ques-
tão política, mas antes confiam no caos criativo do mercado.
A França, pelo seu lado, tem uma longa tradição de preocu-
pações teóricas e políticas com a modernidade. Primeiro na som-
bra da Inglaterra, e depois da Alemanha e dos Estados Unidos, a
França tem lutado por se adaptar, por si mesma, a um mundo
moderno que sempre sentiu, em certa medida, como sendo um
desafio externo. O extraordinário atraso do seu sistema telefónico
era um símbolo desse conservadorismo em geral e, por isso, a sua
modernização rápida, sob o presidente Giscard d’Estaing, signifi-
cava uma vontade de ir ao encontro do desafio. Este é o espírito
do famoso Relatório Nora-Minc, que Giscard encomendou a dois
quadros públicos de topo, para definir os meios e objetivos de
uma política concertada de modernização da sociedade francesa
nos últimos anos do século (Nora e Minc 1978).
Nora e Minc apelaram para uma ofensiva tecnológica em
“telemática”, o termo que cunharam para descrever o casamento

185
CAPÍTULO V

entre computadores e comunicações. A revolução telemática, ar-


gumentavam, mudaria a natureza das sociedades modernas, de
forma tão radical como a revolução industrial. Mas, adicionavam,
“a telemática, ao contrário da eletricidade, não transporta uma
corrente inerte, mas antes informação, o que significa poder”.
“Dominar a rede é, portanto, um objetivo importante. O seu qua-
dro de referência precisa, por isso, de ser concebida segundo o
espírito do serviço público” (1978, 11, 67). Em suma, tal como a
guerra é demasiado importante para que se deixe só ao cuidado
dos generais, também o desenvolvimento pós-industrial é dema-
siado importante para que se deixe apenas ao cuidado dos em-
presários, e deve se tornar antes num assunto político.
Nora e Minc prestaram uma atenção especial à necessidade
de ganhar a aceitação pública da revolução telemática, para ter
sucesso na nova divisão internacional do trabalho através dos
mercados emergentes de telemática (1978, 41-42). Argumentaram
que um serviço nacional de videotexto podia ter um papel central
para atingir esses objetivos. Este serviço podia sensibilizar o pú-
blico francês, ainda atrasado, para as maravilhas da idade da in-
formação, ao mesmo tempo que criava um enorme mercado
protegido para terminais de computadores. Alavancando o mer-
cado interno, a França poderia eventualmente tornar-se num lí-
der exportador de terminais e assim beneficiar da esperada
reestruturação da economia internacional, em vez de ficar ainda
mais para trás (1978, 94-95). Estas ideias estão na origem do pro-
jeto Teletel que, como uma mistura peculiar de propaganda e de
política industrial, teve um aroma distintamente estatizante, des-
de a sua origem.

VOLUNTARISMO
Assim concebido, o projeto caíu naturalmente nas mãos do servi-
ço público. Mas a escolha, que pode parecer estranha para os

186
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

americanos sempre desconfiados da inaptidão da burocracia, fa-


zia todo o sentido em França, onde as empresas tinham ainda pi-
or imagem do que o governo.
Quando é a burocracia, mais do que as empresas, a difundir
a modernização então o espírito de corpo da administração pú-
blica deixa a sua marca nos resultados. Em França isso não é as-
sim tão mau. Os burocratas franceses definem a nação em termos
da oferta uniforme de serviços como os correios, os telefones, as
estradas, as escolas, etc. O funcionamento desses serviços é uma
missão moral incluída no ideal republicano do igualitarismo. Os
franceses chamam “voluntarista” a esta abordagem da burocracia
porque, para o melhor e para o pior, ignora as situações locais e
as restrições económicas ao servir o interesse público universal.
É preciso ter em mente este sentido voluntarista de missão
para compreender como é que uma companhia francesa de tele-
fones, propriedade do Estado, e encarregada do desenvolvimento
do Teletel, pode ter concebido e implementado um serviço nacio-
nal de videotexto, sem qualquer garantia de uma operação rentá-
vel. De facto, o Teletel era menos um plano para ganhar dinheiro
do que uma ligação na cadeia da identidade nacional. Como tal,
pretendia chegar a cada habitação francesa como parte de uma
infra estrutura de unidade nacional, tal como o telefone e o cor-
reio (Nora e Minc 1978, 82).
Para chegar a este resultado, a companhia dos telefones dis-
tribuiu gratuitamente milhões de terminais, chamados “Mini-
tel” (d). Embora a publicidade inicial fosse dirigida diretamente
para as zonas habitacionais mais prósperas, qualquer pessoa po-
dia requisitar um Minitel. Eventualmente todos os subscritores de
telefones seriam equipados com um terminal. A França poderia
ultrapassar a sua posição de país industrial com o sistema telefó-
nico mais arcaico e passar diretamente para uma tecnologia do
século seguinte.
Uma companhia americana de telefones teria certamente co-
brado por uma melhoria tão sofisticada nos equipamentos dos

187
CAPÍTULO V

utilizadores. Até mesmo o governo francês estava preocupado


com a justificação desta liberalidade sem precedentes. A desculpa
foi a criação de um diretório eletrónico da rede telefónica nacio-
nal apenas acessível por Minitel mas, de facto, o ponto fulcral do
exercício foi simplesmente instalar um número enorme de termi-
nais tão depressa quanto possível (Marchand 1987, 32-34). A dis-
tribuição gratuita dos terminais precedeu o desenvolvimento de
um mercado de serviços, que era suposto trazer. Tal como os ne-
gócios à berma da estrada seguem as estradas, também se espe-
rava que os negócios telemáticos seguissem a distribuição dos
terminais Minitel.
Os primeiros quatro mil terminais Minitel foram entregues
em 1981 (Marchand 1987, 37); dez anos depois, mais de cinco mi-
lhões de terminais tinham sido distribuídos. A rapidez e a escala
deste processo são pistas para a economia da grande aventura te-
lemática. O programa ambicioso de modernização da companhia
dos telefones tornou-a no maior cliente individual da indústria
francesa nos anos setenta. O programa brilhante de telemática foi
desenhado para ocupar a capacidade disponível na produção de
telefones, que certamente se seguiria à saturação desse mercado,
evitando assim o colapso de um importante setor industrial.

OPOSIÇÃO
Tal como foi inicialmente concebido, o Teletel estava desenhado
para trazer a França para a idade da informação através de uma
grande variedade de serviços. Mas será que aquilo que cada uma
das habitações precisa é realmente de mais informação (Iwaasa
1985, 49)? E quem estava mais qualificado para oferecer serviços
de informação numa democracia (Marchand 1987, 40ff)? Essas
questões receberam uma variedade de respostas antagónicas du-
rante os primeiros anos do videotexto francês.
A modernização através do serviço nacional define o progra-

188
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

ma de um Estado altamente centralizado e controlador. Para tornar


as coisas ainda piores, o projeto Teletel foi iniciado por um gover-
no conservador. Esta combinação começou por inspirar uma des-
confiança generalizada e acordou o fraccionismo bem conhecido
de importantes setores da opinião. O padrão familiar do controlo
central e da resistência popular repetia-se, uma vez mais, com o
Teletel, um programa que caiu de paraquedas sobre um público
que não suspeitava de nada, e que depressa se transformou de
uma forma que nunca tinha sido imaginada pelos seus criadores.
A imprensa liderou a luta contra o controlo governamental
do videotexto. Quando o chefe da empresa francesa de telefones
anunciou o advento da sociedade sem papel (em Dallas, entre to-
dos os lugares possíveis), os editores reagiram negativamente,
com medo de perder as receitas publicitárias e a independência.
As implicações distópicas de uma sociedade dominada por com-
putadores não passaram sem notícia. Um editor, muito irritado,
escreveu que “Quem deitar a mão ao fio ficará poderoso. Quem
deitar a mão ao fio e ao écran ficará muito poderoso. Quem um
dia deitar a mão ao fio, ao écran e ao computador terá o poder do
próprio Deus” (citado por Marchand 1987, 42).
A imprensa sentiu-se triunfante com a chegada de um go-
verno socialista, em 1981. Para evitar a interferência política com
os conteúdos online, a própria companhia dos telefones só foi
autorizada a oferecer a versão eletrónica do diretório dos telefo-
nes. Entretanto, as portas do Teletel continuavam muito abertas,
pelos padrões de então: qualquer editor com licença podia ligar-
se ao sistema. Em 1986 até mesmo essa restrição foi abandonada;
agora qualquer pessoa com um computador podia ligar-se ao
sistema, listar um número de telefone no diretório e receber uma
fração do rendimento gerados pelos serviços na companhia dos
telefones.
Porque os pequenos computadores onde alojar os conteúdos
eram relativamente baratos e o conhecimento de videotexto era
tão acessível às empresas pequenas como às grandes, essas deci-

189
CAPÍTULO V

sões tiveram inicialmente um efeito altamente descentralizador.


O Teletel tornou-se um vasto espaço de experimentação desorga-
nizada, um “mercado livre” de serviços online que se aproximava
muito mais da ideia liberal do que muitos outros mercados de
comunicação nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Este exemplo de sucesso do mercado tem grandes implica-
ções, mas não tão amplas como os advogados da desregulação
imaginam. O facto dos mercados, por vezes, mediarem a procura
de mudança técnica não os torna numa panaceia universal. Mui-
tas vezes os mercados são manipulados por grandes empresas,
para venderem tecnologias bem estabelecidas e para fazerem
murchar a procura de produtos existentes, ou para recanalizar
essas exigências para domínios onde não são precisas mudanças
técnicas básicas. No entanto, os consumidores podem voltar a
abrir o seu projeto através do mercado. Esta é certamente uma
razão para ver os mercados como instituições ambivalentes e com
um papel potencialmente dinâmico no desenvolvimento de um
nova tecnologia.

COMUNICAÇÃO
Surpreendentemente, embora os subscritores de telefones esti-
vessem agora equipados para a era da informação, fizeram rela-
tivamente pouco uso da riqueza de dados disponíveis no Teletel.
Consultavam regularmente o diretório eletrónico, mas não muito
mais. Mas, em 1982, os piratas(e) transformaram um serviço cha-
mado “Gretel” num sistema de mensagens (Bruhat 1984, 54-55).
Depois de uma resistência inicial fraca (ou talvez simulada), os
operadores deste serviço institucionalizaram a invenção dos pi-
ratas e fizeram uma fortuna. Logo se seguiram, rapidamente, ou-
tros serviços com nomes como “Désiropolis”, “La Voix de
Parano”, “SM”, “Sextel”. As mensagens “cor-de-rosa” tornaram-
se famosas pelas conversas picantes e pseudo anónimas em que

190
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

os utilizadores procuravam gente com ideias semelhantes para


conversas e encontros.
Depois das mensagens assumirem uma escala nacional, as
pequenas empresas de telemática reconstruíram o Teletel como
um meio de comunicação. Desenharam programas para gerir
grande número de utilizadores em simultâneo, emitindo e rece-
bendo informação, e inventaram um novo tipo de interface. Ao
entrar no sistema, era pedido de imediato aos utilizadores um
pseudónimo e um currículo sumário (carte de visite). Eram então
convidados a consultar os currículos daqueles já online e a iden-
tificar parceiros de conversa com ideias “parecidas”. Os progra-
mas usavam a capacidade gráfica do Minitel para dividir o écran,
atribuindo um espaço separado para as mensagens de cada uma
dos utilizadores, até meia dúzia. Era aí que as energias criativas
despertadas pela telemática chegavam aos franceses, e não nos
obscuros desafios técnicos tão queridos aos corações dos buro-
cratas governamentais, tal como assegurar a influência francesa
na configuração dos mercados internacionais de bases de dados
então emergentes (Nora e Minc 1978, 72).
Os planos originais do Teletel não excluíam completamente a
intervenção humana, mas a sua importância para a disseminação
de dados, transações online, até mesmo jogos, foi certamente su-
bestimada. Os serviços de mensagens quase que não foram cita-
dos nos primeiros documentos oficiais sobre telemática (por
exemplo, Pigeat et al 1979). A primeira experiência com Teletel,
em Vélizy, revelou um entusiasmo inesperado pela comunicação.
Originalmente concebido como um mecanismo de retorno(f) para
ligar os utilizadores com a equipe de projeto em Vélizy, o sistema
de mensagens depressa se transformou num espaço geral e aberto
de discussão livre (Charon e Cherky 1983, 81-92; Marchand 1987,
72). Mesmo depois dessa experiência, ninguém imaginava que a
comunicação humana viesse a ter um lugar principal num sistema
maduro. Mas foi precisamente isso que aconteceu.
No verão de 1985, o volume de tráfego na Transpac, a rede

191
CAPÍTULO V

francesa de transmissão por comutação de pacotes(g), excedeu a


sua capacidade e o sistema colapsou. O campeão orgulhoso da
alta tecnologia francesa foi posto de joelhos perante os bancos e
as agências governamentais, obrigados a passar para offline por
centenas de milhares de utilizadores que mudavam de um servi-
ço de mensagens para outro, à procura de entretenimento. Foi a
demonstração última da distribuição do uso da nova telemática
(Marchand 1987, 132-134). Embora só uma minoria de utilizado-
res estivesse envolvida, por volta de 1987 cerca de 40% das horas
de tráfego doméstico eram usadas por serviços de mensagens
(Chabrol e Perin 1989, 7).
As mensagens “cor-de-rosa” podem parecer um resultado
trivial de uma geração de especuladores sobre a era da informa-
ção, mas transformaram-se num caso sério, candidato a uma
avaliação mais positiva. Mais importante, o sucesso dos serviços
de mensagens mudou o imaginaire(1) da telemática, da informação
para a comunicação. Isto, por sua vez, encorajou uma grande va-
riedade de experiências em domínios como a educação, saúde e
notícias (Marchand 1987; Bidou et al 1988). Alguns exemplos:
Os programas de televisão ofereceram serviços para os
espectadores acederem a informação suplementar ou
trocarem opiniões, adicionando um elemento interativo à
difusão unidirecional;
Políticos em diálogo com os seus constituintes, e movi-
mentos políticos, abriram serviços de mensagens para
comunicar com os seus membros;
Experiências educacionais juntaram alunos e professores
em aulas eletrónicas e tutoriais, como, por exemplo, nu-
ma escola médica de Paris;
Um serviço de psicologia oferecia a oportunidade de
pessoas discutirem anonimamente problemas pessoais e
procurarem ajuda;

192
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

O serviço de mensagens do jornal Libération coordenou


uma greve nacional de estudantes em 1986. Talvez o caso
mais interessante das experiências de mensagens, o ser-
viço oferecia informações acerca de controvérsias e lutas,
grupos de discussão online, atualizações horárias de no-
tícias, e até mesmo um jogo que ridicularizava o ministé-
rio da educação (Marchand 1987, 155-158). Terá sido uma
das primeiras, senão mesmo a primeira, aplicação de
uma rede eletrónica em protestos públicos.

Estas aplicações revelaram o potencial insuspeito da CMC


para criar novas formas surpreendentes de sociabilidade. Mais
do que imitar o telefone ou a escrita, as CMC jogam na capacida-
de única da telemática para mediar uma comunicação altamente
pessoal e, muitas vezes, também anónima. Estas experiências
prefiguram uma organização muito diferente da vida privada e
pública nas sociedades avançadas, cuja dimensão começa agora a
ser visível com a Web 2.0 (Feenberg, 1989a: 271-275; Jouet and
Flichy, 1991)(h).

O SISTEMA
Embora ninguém tivesse planeado previamente todos estes ele-
mentos, eventualmente acabou por emergir um sistema coerente
a partir do jogo das várias forças. Composto de elementos cor-
rentes, formou um todo único que finalmente rompeu as barrei-
ras da aceitação pública da CMC.
O sistema caraterizava-se por cinco princípios básicos:
1. Escala. Só um governo, ou uma empresa gigante, teria os
meios para iniciar uma experiência como o Teletel, com uma es-
cala suficiente para garantir um teste adequado do sistema. Pro-
jetos piloto mais pequenos soçobraram todos num dilema do ovo

193
CAPÍTULO V

e da galinha: criar um mercado de serviços quando os utilizado-


res precisassem dele, mas não se podiam atrair os utilizadores
sem um mercado de serviços a funcionar. A solução, demonstra-
da em França, foi fazer um enorme investimento inicial em facili-
dades de transmissão e em terminais, que atraísse um número
suficiente de utilizadores num estádio inicial e justificasse uma
massa crítica de proveitos(2).
2. Gratuitidade. Talvez a característica mais revolucionária do
sistema tenha sido a distribuição gratuita dos terminais. A rede de
comutação de pacotes e os terminais eram tratados como um todo
único, ao contrário de todas as outras redes nacionais de computa-
dores. Foi a gratuitidade que ditou as decisões sobre a qualidade
dos terminais. A ênfase era sobre a durabilidade e sobre uma in-
terface com grafismo simples. Assegurava também aos fornecedo-
res de serviços uma base ampla desde o princípio, ainda antes
mesmo do público ter percebido o interesse de um sistema pouco
familiar e de ter investido num terminal ou numa subscrição cara.
3. Estandardização. A posição monopolista da companhia
francesa de telefones e a distribuição gratuita dos terminais Mi-
nitel asseguravam a uniformidade em diversas áreas vitais. O
equipamento e os procedimentos de entrada(i) eram padroniza-
dos, e foi implementada uma interface simples de navegação no
teclado do terminal, semelhante à de um browser da internet. A
maior parte do serviço era oferecida a partir de um único número
nacional de telefone e a um preço único, independente da locali-
zação. A empresa dos telefones usava o seu sistema de faturação
para cobrar todos os débitos, partilhando os recebimentos com os
fornecedores de serviços.
4. Liberalismo. A decisão de facilitar a ligação dos compu-
tadores à rede de pacotes foi tomada contra a tradição da empre-
sa de telefones controlar todos os aspetos do seu sistema técnico.
No entanto, uma vez tomada a decisão, abriu as portas a um flo-
rescimento notável de criatividade social. Embora o Minitel tenha
sido projetado primariamente para acesso à informação, também

194
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

podia ser usado para muitas outras coisas. O sucesso do sistema


deve muito ao encontro do mercado livre de serviços com a flexi-
bilidade do terminal.
5. Identidade. O sistema adquiriu uma imagem pública
através da sua identificação com um projeto de modernização e
através da distribuição maciça de terminais distintivos. Uma
imagem telemática única também foi moldada pelo diretório es-
pecial dos telefones, através de um estilo gráfico associado ao
mosaico alfa numérico do Teletel, pela adoção da gestão de é-
crans do videotexto, em vez de écrans deslizantes(j), e pelo fenó-
meno social das mensagens “cor-de-rosa”.

O CONFLITO DE CÓDIGOS
Estas interpretações do Teletel contradizem os pressupostos de-
terministas acerca do impacto social dos computadores, que ins-
pirou Nora, Minc e muitos outros teóricos do pós-industrialismo.
A lógica da tecnologia simplesmente não ditou uma solução níti-
da para o problema da modernização; em vez disso, foi um pro-
cesso muito confuso de conflitos, negociação e inovação, que
produziu um resultado socialmente contingente. Quais eram es-
ses fatores, e como é que influenciaram o desenvolvimento da
CMC em França?

CONSTRUTIVISMO SOCIAL
A evolução do Teletel confirma a abordagem do construtivismo
social, introduzida nos capítulos precedentes. Ao contrário do
determinismo, o construtivismo social não explica o sucesso de
um artefato pelas suas caraterísticas técnicas. De acordo com o
“princípio da simetria”, há sempre alternativas que poderiam ter
sido desenvolvidas em vez da alternativa que teve sucesso. O que

195
CAPÍTULO V

carateriza um artefacto não é uma propriedade intrínseca, como a


“eficiência” ou a “eficácia”, mas sim as suas relações com o am-
biente social.
Como vimos no caso do videotexto, esta relação é negociada
entre inventores, administradores do serviço público, empresári-
os e empresas, consumidores e muitos outros grupos sociais, num
processo que acaba por definir, em última instância, um produto
específico adaptado a uma combinação específica de exigências
sociais. Este processo termina num “encerramento” (k) que produz
uma “caixa negra” estável , um artefato que pode ser agora trata-
do como um todo acabado. Antes de uma tecnologia nova chegar
ao encerramento final, o seu caráter social é evidente; mas, uma
vez bem estabelecida, um olhar ingénuo sobre o passado pode
sugerir que o seu desenvolvimento terá sido puramente técnico,
até mesmo inevitável. Tipicamente, os observadores posteriores
esquecem a ambiguidade original da situação em que, pela pri-
meira vez, se encerrou a “caixa preta” (Latour 1987,2-15).
Esta abordagem tem várias implicações para o videotexto:
Primeiro, o desenho de um sistema como o Teletel não é
determinado por um critério universal de eficiência, mas
sim por um processo social que julga as alternativas téc-
nicas de acordo com critérios diversos.
Segundo, esse processo social não é acerca da aplicação
de uma tecnologia de videotexto pré-definida, mas diz
respeito à própria definição de videotexto e à natureza
dos problemas a que se dirige.
Terceiro, diferentes definições concorrentes refletem vi-
sões sociais da sociedade moderna, em conflito entre si, e
que se concretizam em diferentes escolhas técnicas..
Quarto, emergem novos grupos sociais e categorias à
volta da apropriação da nova tecnologia ou da resistência
aos seus impactos, o que conduz a modificações do seu
projeto.

196
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

Estes quatro pontos indicam a necessidade de uma revolu-


ção no estudo da tecnologia. O primeiro ponto alarga a amplitu-
de do conflito social para passar a integrar questões técnicas que,
tipicamente, tinham sido tratadas como os objetos de um consen-
so puramente “racional”. Os dois pontos seguintes implicam que
os significados entram na história não só através da produção
cultural e da ação política, mas também através da esfera técnica.
Compreender a perceção social ou a definição de uma tecnologia
exige uma hermenêutica dos objetos técnicos. O último ponto in-
troduz a co-construção da sociedade e da tecnologia.
As tecnologias são objetos com significado. A partir do ponto
de vista do dia a dia, há dois tipos de significados que lhes estão
associados. Em primeiro lugar têm uma função e, para a maior
parte dos seus fins, o significado reflete a sua função. No entanto,
também reconhecemos uma penumbra de “conotações” que as-
sociam os objetos técnicos com outros aspetos da vida social, in-
dependentemente da função (Baudrillard 1968, 16-17). Assim, os
automóveis são meios de transporte, mas também significam o
dono como sendo mais ou menos respeitável, rico, atraente, etc.
No caso de tecnologias bem estabelecidas, a distinção entre
função e conotação é habitualmente clara. Há uma tendência pa-
ra projetar esta clareza sobre o passado e imaginar que a função
técnica precedeu o objeto e o criou. O programa de construtivis-
mo social argumenta, pelo contrário, que as funções técnicas não
estão pré definidas, mas que são descobertas no decurso do de-
senvolvimento e uso do objeto. Certas funções vão ficando gra-
dualmente bloqueadas(l) pela evolução do ambiente social e
técnico. Por exemplo, as funções de transporte do automóvel fo-
ram institucionalizadas nos planos urbanos de baixa densidade,
que criam uma procura que os automóveis satisfazem. O encer-
ramento final depende, em parte, da criação de ligações firmes
numa rede técnica mais ampla.
No caso das novas tecnologias, não há uma definição inicial
clara da sua função. Em consequência, não há uma definição cla-

197
CAPÍTULO V

ra entre os diferentes tipos de significados associados à tecnolo-


gia. Recorde-se o exemplo de Pinch e Bijker sobre a bicicleta, dis-
cutido no capítulo 1. As conotações de um projecto podem ser
funções, quando vistas de outro ângulo. Estas ambiguidades não
são meramente conceituais se o dispositivo ainda não estiver
“encerrado” e se nenhum bloqueio institucional o ligar decisiva-
mente a um de entre vários usos. Assim, as ambiguidades na de-
finição de uma nova tecnologia precisam de ser resolvidas
através do próprio desenvolvimento técnico. Projetistas, compra-
dores e utilizadores têm todos um papel no processo pelo qual o
significado de uma nova tecnologia é finalmente estabelecido (3).
O encerramento tecnológico é eventualmente consolidado
num código técnico. Os códigos técnicos definem o objeto em
termos estritamente técnicos, de acordo com os significados soci-
ais adquiridos. Com as bicicletas, isto foi conseguido na década
de 1890. Uma bicicleta segura para o transporte apenas se podia
produzir de acordo com um código técnico que ditava um assen-
to posicionado muito atrás de uma roda dianteira pequena.
Quando os consumidores encontraram uma bicicleta produzida
de acordo com este código, imediatamente a reconheceram por
aquilo que ela era: uma “segurança”, na terminologia desse tem-
po. Esta definição, por sua vez, associou-se a ciclistas femininos e
idosos, com as viagens à mercearia, etc. e excluiu as associações
com jovens desportistas à procura de emoções.
Os códigos técnicos são interpretados através dos mesmos
procedimentos hermenêuticos usados para a interpretação de
textos, obras de arte e ações sociais (Ricoeur 1979). Mas o trabalho
complica-se quando os códigos se tornam em apostas em disputas
sociais significativas. Nesse caso, as visões ideológicas consoli-
dam-se no desenho ou projeto. Daí o “isomorfismo, a congruência
formal entre as lógicas técnicas dos aparelhos e as lógicas sociais
dentro das quais se difunde” (Bidou et al 1988, 18). Estes padrões
de congruência explicam o impacto do ambiente sociocultural
mais amplo nos procedimentos de encerramento final (Pinch e

198
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

Bijker 1989, 46). O caso do videotexto é um caso impressionante.


No que se segue tentarei reconstituir esse padrão, desde o nível
macro das visões do mundo até aos detalhes do desenho técnico.

UMA UTOPIA TECNOCÁTRICA


Neste caso, a questão é a própria natureza da sociedade pós-in-
dustrial. A era da informação foi originalmente concebida como
uma sociedade mais de cientistas, uma visão que legitimou as
ambições tecnocráticas de governos e empresas. Os pressupostos
racionalistas acerca da natureza humana e da sociedade, subja-
centes a esta fantasia, já eram familiares, há um século ou mais,
como um tipo de utopia positivista.
Os seus traços mais importantes são familiares. O pensa-
mento científico e técnico torna-se na lógica de todo o sistema
social. A política é uma mera generalização dos mecanismos
consensuais da investigação e do desenvolvimento. Os indiví-
duos integram-se na ordem social através da prosperidade, não
através da repressão. Este bem estar atinge-se através do domí-
nio técnico do ambiente pessoal e natural. Logo, o poder, a li-
berdade e a felicidade baseiam-se todos no conhecimento.
Esta visão global suporta a generalização dos códigos e
práticas associadas com a engenharia e a gestão. Não é preciso
partilhar explicitamente uma fé utópica para acreditar que as
abordagens profissionais dessas disciplinas são úteis fora dos
contextos em que são habitualmente aplicadas. A difusão das
ideias de engenharia social baseadas na análise de sistemas, te-
oria da escolha racional, análise do risco e do benefício, etc., tes-
temunha este avanço na racionalização da sociedade. Supo-
sições semelhantes influenciaram os patrocinadores do Teletel, o
que não surpreende, dado o culto da engenharia na burocracia
francesa.
Ao nível micro, estes pressupostos funcionam na tradicional

199
CAPÍTULO V

interface do computador, com os seus menus claramente hierár-


quicos, consistindo em descritores com uma só palavra para as
“opções”. Um espaço lógico formado por essas alternativas cor-
relaciona-se com um “utilizador” individual empenhado numa
estratégia pessoal de otimização. Projetada na sociedade como
um todo, na forma de um serviço público de informação, esta
abordagem implica um certo mundo.
Nesse mundo, a “liberdade” é a escolha mais ou menos in-
formada entre opções pré-selecionadas, que foram definidas por
uma instância universal, tal como uma autoridade tecnocrática.
Essa instância reivindica ser um meio neutro, e o seu poder é
precisamente legitimado pela sua transparência: os dados são
precisos e são classificados com lógica. Mas não deixa de ser um
poder acerca disso.
Os indivíduos são aprisionados precisamente num sistema
deste tipo, nas suas interações com as instituições empresariais,
governamentais, médicas e escolásticas. O videotexto simplifica
este universo tecnocrático. De facto, alguns dos serviços mais
bem sucedidos no Teletel ofereciam informação sobre regras bu-
rocráticas, planeamento de carreiras ou resultados de exames.
Estes serviços jogam sobre o “efeito de ansiedade” da vida numa
sociedade racional: a individualidade como um problema de au-
togestão pessoal (Bidou et al 1988,71). Mas o papel da ansiedade
revela o lado negro desta utopia. O sistema parece incorporar um
elevado grau de racionalidade social, mas é um pesadelo de
complexidade e arbitrariedade, confuso para aqueles cujas vidas
molda. Este é o “palácio de cristal” tão temido e odiado nos
“subterrâneos” de Dostoievski ou na Alphaville de Godard(m), em
que a regra benigna dos computadores é a suprema opressão de-
sumanizante.

200
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

O SUJEITO ESPECTRAL
O Teletel foi apanhado numa disputa sobre qual o tipo de experi-
ência pós-industrial que deveria ser projetado tecnologicamente
através da computação doméstica. Como vimos, a definição de
interatividade, em termos de um código técnico racionalista, en-
controu uma resistência imediata a partir dos utilizadores que ig-
noraram o potencial de informação do sistema e que, em vez
disso, o utilizarampara fins de comunicação humana e anónima.
Esta aplicação inesperada revelou toda uma outra dimensão
da experiência do dia-a-dia nas sociedades pós-industriais, mas-
carada pela utopia positivista. Como o hiato entre pessoas indivi-
duais e o papel social se vai alargando, e os indivíduos são a-
panhados pelas “massas”, a vida social reorganiza-se cada vez
mais à volta de interações impessoais. O indivíduo facilmente
desliza entre papéis diferentes e não se identifica inteiramente
com nenhum deles, entra e sai diariamente de várias massas ou
multidões, e não pertence completamente a qualquer uma das co-
munidades. A solidão da “multidão solitária” consiste numa mul-
titude de encontros ambíguos e triviais. Os códigos simplificados
de interação no “sistema” oferecem poucas possibilidades de au-
to expressão pessoal ou de ligação aos outros. O anonimato tem
um papel central nesta nova experiência social e dá origem a fan-
tasias de sexo e violência que estão representadas na cultura das
massas e que, em menor grau, se realizam nas vidas individuais.
Tal como o videotexto permite ao indivíduo personalizar
uma pergunta anónima a uma agência de planeamento de carrei-
ras ou a uma burocracia governamental, agora também a relação
com textos eróticos, até aqui não articulada, pode agora alcançar
uma personalidade, e até mesmo reciprocidade, graças ao Mini-
tel. A privacidade da habitação assume agora funções previa-
mente atribuídas a espaços públicos, como bares e clubes, mas
com uma alteração importante: o écran não liga apenas os inter-
locutores, mas também protege as suas identidades.

201
CAPÍTULO V

Tal como os “anúncios pessoais” dos classificados dos jor-


nais, os indivíduos têm a impressão que o Minitel lhes dá um
controlo total de todos os sinais que emitem, ao contrário dos ar-
riscados encontros face a face, em que o controlo é incerto, na
melhor das hipóteses. Um controlo melhorado, através das auto-
apresentações escritas que viabiliza jogos elaborados de identi-
dade. “Em vez da identidade ter um estatuto de dado inicial (com
que a comunicação geralmente se inicia), torna-se antes num su-
porte, um produto da comunicação” (Baltz 1984, 185).
A experiência de comunicação pseudoanónima faz recordar a
dupla definição de ego por Erving Goffman, como “imagem” ou
identidade e como “objeto sagrado” a quem é devida considera-
ção:
“o ego como uma imagem reunida a partir das implicações ex-
pressivas do fluxo completo de acontecimentos de um evento;
e o ego como uma espécie de jogador num jogo ritual, que lida
com as contingências dos juízos da situação, com ou sem hon-
ra, com ou sem diplomacia” (1982,31).

Ao aumentar o controlo sobre a imagem enquanto reduz o risco


de embaraço, o sistema de mensagens altera a relação sociológica
das duas dimensões da identidade e abre um novo espaço social.
A dessacralização relativa do sujeito enfraquece o controlo
social. É difícil fazer pressão de grupo sobre alguém que não
consegue ver o olhar severo da desaprovação. A CMC aumenta,
portanto, o sentido de liberdade pessoal e de individualismo, ao
reduzir o compromisso “existencial” do ego nas suas comunica-
ções. “Flamejante” - a expressão das emoções online sem censura
- é uma consequência negativa deste sentimento de libertação.
Mas o sentido alterado da realidade do outro também pode
aumentar a carga erótica da comunicação (Bidou et al 1988,33).
Marc Guillaume introduziu o conceito de “espetralidade”

202
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

para descrever estas novas formas de interação entre indivíduos


que estão reduzidos ao anonimato na vida social moderna e que
usam esse anonimato para proteger e afirmar as suas identidades.
As teletecnologias, consideradas como uma esfera cultural,
respondem a um desejo maciço e incontrolado de escapar, par-
cial e momentaneamente, tanto das restrições simbólicas que
persistem na sociedade moderna como da funcionalidade tota-
litária. Escapar, mas não na forma ainda ritualizada dos perío-
dos breves de celebração e de desordem permitidos pelas
sociedades tradicionais, mas antes escapar conforme a conve-
niência do sujeito, que paga essa liberdade com uma perda.
Torna-se um espetro ... no sentido triplo do termo: desaparece
para vaguear livremente como um fantasma numa ordem sim-
bólica que se lhe tornou transparente (1982:23)

O avanço social aparece aqui não como a difusão de elementos


tecnocráticos através de toda vida quotidiana, mas sim como gene-
ralizações da lógica comutativa do sistema telefónico. As redes na-
cionais de computadores, como o Teletel, baseiam-se no standard
X.25, que permite aos computadores servirem “clientes” distantes
através de linhas telefónicas(n). Embora essas redes possam ligar
todos os seus computadores, tal como o sistema telefónico liga to-
dos os seus assinantes, isso não é bem aquilo para que foram inici-
almente projetadas. Eram antes supostas facilitar grupos de
utilizadores na partilha de tempo em computadores especializa-
dos(o). Habitualmente, os utilizadores desses sistemas não estão em
comunicação uns com os outros.
O Teletel começou como uma rede X.25 corrente, em que o
utilizador é um ponto numa interação na forma de estrela, estrutu-
rada hierarquicamente a partir do centro, o computador central (p).
Mas, na prática do sistema, o utilizador tornou-se num agente de
interligação horizontal e generalizada (Guillaume, 1986, 177ff). Es-

203
CAPÍTULO V

ta mudança simboliza a emergência das redes como uma alternati-


va, tanto à organização formal como à comunidade tradicional. O
sistema de computadores proporciona um ambiente particular-
mente favorável onde se pode experimentar esta nova forma social.
Na CMC, a pragmática dos encontros pessoais está radical-
mente simplificada, de facto reduzida, aos protocolos de ligação
técnica. De forma correspondente, a facilidade de passagem de
um contato social para outro aumenta muito, uma vez mais se-
guindo a lógica da comutação. As mensagens “cor-de-rosa” são
um mero sintoma desta transformação, pontuando um processo
gradual de mudança na sociedade em geral. Uma vez mais, para
compreender esta alternativa é útil olhar para as metáforas técni-
cas que invadem o discurso social.
O colapso generalizador dos últimos rituais que bloqueiam
os indivíduos no reduto do eu sagrado, é acompanhado por uma
retórica de libertação. A vida pessoal torna-se uma questão de
gestão de redes, enquanto a família e outras estruturas estáveis
colapsam. Os novos indivíduos pós-modernos são descritos co-
mo flexíveis, adaptáveis, capazes de encenar as suas próprias
performances em cenários múltiplos e cambiantes, de um dia pa-
ra o outro. A rede multiplica o poder dos seus membros, unindo-
os em contratos sociais temporários ao longo de vias digitais de
confiança mútua. O resultado é uma “atomização pós-moderna
da sociedade em redes flexíveis de jogos de linguagem” (Lyotard
1979, 34).
O Teletel alterou profundamente as coordenadas espaciais e
temporais da vida diária, acelerando os indivíduos para além da
velocidade do papel, que era então a velocidade máxima conse-
guida pelos confusos dinossauros empresariais e políticos. Os
utilizadores atingiram uma libertação relativa: se não se pode es-
capar do pesadelo pós-industrial da administração total, pelo
menos que se multiplique o número de ligações e de contactos,
para que o seu ponto de interseção se torne num local de escolha,

204
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

rico e sumarento. Ser é conetar-se. Começa, assim, a luta pela de-


finição da idade pós-industrial.

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO MINITEL


O compromisso peculiar que tornou o Teletel num sucesso foi a
resultante destas forças em tensão. Reconstitui os termos desse
compromisso, ao nível macro da definição social do videotexto
em França, mas a sua marca pode também ser identificada no có-
digo técnico da interface do sistema.

CABLAR O INTERIOR DA BURGUESIA


O Minitel é um índice sensível dessas tensões. Os responsá-
veis pelo projeto tinham medo da rejeição pública de qualquer
coisa que fosse parecida com um computador, máquina de escre-
ver ou outros equipamentos profissionais, e esforçaram-se por o
encaixar no ambiente doméstico. Consideraram cuidadosamente
os “fatores sociais” envolvidos, assim como os fatores humanos,
para persuadir milhões de pessoas a aceitarem um terminal em
sua casa (Feenberg 1989b, 29).
Este problema do projeto tem uma história longa e interes-
sante. O seu pressuposto é a separação entre o público e o priva-
do, o trabalho e a casa, que começa, de acordo com Walter
Benjamim, sob a chamada Monarquia de Julho (q): “Para uma pes-
soa singular, o espaço onde vive torna-se, pela primeira vez, anti-
tético do espaço de trabalho. O primeiro é constituído pelo
interior (da casa); o escritório é o seu complemento. A pessoa sin-
gular que reconcilia as suas relações com a realidade, no seu es-
critório, exige que a aparência do interior seja mantida”
(Benjamim 1978, 154).

205
CAPÍTULO V

A história do projeto mostra como essas aparências familiares


são conformadas gradualmente por imagens extraídas da esfera
pública, através da contínua invasão do espaço privado pelas ati-
vidades públicas e pelos artefactos. Tudo, desde a iluminação a
gás até ao uso do crómio no mobiliário, começa no domínio pú-
blico e vai gradualmente penetrando no lar (Schivelbusch 1988;
Forty 1986, cap. 5). O telefone e os meios de comunicação eletró-
nicos intensificam essa penetração, ao mudarem decisivamente as
fronteiras entre as esferas pública e privada.
O desaparecimento final daquilo a que Benjamim chama o
“interior burguês” aguarda pela generalização da interatividade.
As novas tecnologias da comunicação prometem atenuar, e talvez
até mesmo dissolver, a distinção entre as esferas doméstica e pú-
blica. Espera-se que o teletrabalho e o telemarketing fundam os
dois mundos num só. “A casa não pode continuar a pretender ser
o lugar da vida privada, privilegiando as relações não económi-
cas, autónomas do mundo comercial” (Marchand 1984, 184).
O Minitel é uma ferramenta para se alcançar essa desterrito-
rialização final. O seu projeto modesto é um compromisso sobre
qual a via para um tipo radicalmente diferente de interior das ha-
bitações. Os primeiros sistemas de videotexto empregavam ter-
minais dedicados, muito elaborados e caros, ou adaptadores de
televisão, ou computadores equipados com modems. Nos Estados
Unidos, as CMC domésticas baseavam-se em computadores. A
sua difusão teve que esperar pela generalização da posse dos
computadores. Até aí ficou largamente confinada à subcultura
dos passatempos e do lazer. Não havia princípios de projeto a
aprender dessas pessoas, que não se sentiam incomodadas pelo
aparecimento incongruente de um grande equipamento eletróni-
co no seu quarto ou na mesa da sala de jantar. Funcionalmente, o
Minitel até nem é um autêntico computador. É apenas um “ter-
minal estúpido”, ou seja, um écran de vídeo e um teclado com
uma memória e capacidades de processamento mínimas e com
um modem incorporado. Esses dispositivos existiam há décadas,

206
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

primariamente para uso dos engenheiros na operação de grandes


computadores(r). Eram geralmente grandes, caros e feios. Obvia-
mente, esses desenhos não se qualificavam para uma decoração
atrativa de interiores.
Os projetistas do Minitel romperam com todos esses prece-
dentes e associaram o Minitel a um melhoramento do telefone,
mais do que a um computador ou a um novo tipo de televisão
(Giraud 1984, 9). Camuflado como um dispositivo telefónico
atraente, o Minitel era uma espécie de cavalo de Tróia para os có-
digos técnicos racionalistas.
O terminal era pequeno e com um teclado, que se pode rodar
e fechar sobre o écran. Primeiro estava equipado com um teclado
alfabético, para o distinguir de uma máquina de escrever. O te-
clado não agradava nem aos datilógrafos nem aos que não esta-
vam treinados em dactilografia, e foi eventualmente substituído
por um teclado standard; mas, mesmo assim, o aspeto geral do
Minitel continuava a ter pouco de uma imagem de negócios ou
empresarial (Marchand 1987, 64; Norman 1988, 147). Mais impor-
tante, não tinha discos nem disquetes, era fácil de encontrar o bo-
tão para o ligar, e não havia cabos intimidatórios e desagradáveis
à vista, a sair da parte traseira do equipamento - apenas o fio ha-
bitual do telefone.
O terminal Minitel domesticado adotou uma abordagem te-
lefónica, mais do que de computador, relativamente às capacida-
des técnicas assumidas para os seus utilizadores. Os programas
de computadores tipicamente oferecem um grande número de
opções, trocando facilidade de uso por potência. Mais, até ao su-
cesso do Windows, a maior parte dos programas tinham interfa-
ces tão diferentes que cada uma delas exigia uma aprendizagem
própria. Quem usou os primeiros softwares de comunicação em
DOS, com os seus écrans iniciais para definir uma dúzia de parâ-
metros obscuros, pode compreender bem como eram inapropria-
dos para um uso doméstico generalizado. Os projetistas do Minitel
conheciam bem os seus clientes e ofereceram um procedimento

207
CAPÍTULO V

de ligação extremamente simples: marcar o número no telefone,


ouvir o sinal de ligação e carregar num único botão.
O projeto das teclas funcionais também contribuiu para a fa-
cilidade de uso. Estavam destinadas a operar o diretório telefóni-
co eletrónico. Primeiro, houve alguma discussão sobre atribuir a
cada tecla um nome muito específico, adequado para o seu pro-
pósito, por exemplo, “cidade”, “rua”, etc. Mas foi antes decidido
dar-lhes um nome geral, como “guia”, “écran seguinte”, “para
trás”, em vez de as ligar a um serviço específico (Marchand 1987,
65). Como resultado, o teclado impõe uma interface de navegação
standard para o utilizador, não muito diferente da world wide
web, algo que só muito mais tarde se atingiu no mundo dos
computadores e com equipamentos muito mais elaborados.
O Minitel é um testemunho do ceticismo original dos proje-
tistas relativamente às aplicações comunicacionais do sistema: as
teclas funcionais eram definidas para a interrogação de bases de
dados, orientada pelo écran, e o teclado, com as suas teclas não
esculpidas, tipo “chiclete”, era tão desajeitado que desafiava as
tentativas de teclar. Aqui os franceses pagaram o preço de se ba-
searem num modelo telefónico: os fornecedores cativos da Tele-
com eram ignorantes dos mercados de consumo eletrónicos e
forneceram um teclado de qualidade abaixo dos padrões interna-
cionais, até mesmo para a mais barata das máquinas de escrever
portátil. Será escusado dizer que a exportação de tal terminal era
quase impossível.

REDES AMBIVALENTES
Assim desenhado, o Minitel é um objeto paradoxal. Com o seu
disfarce telefónico, pensado como necessário para o sucesso nas
casas, introduz ambiguidades na definição da telemática e convi-
da para aplicações comunicacionais não antecipadas pelos proje-
tistas (Weckerlé 1987, I, 14-15). Para eles, o Minitel continuaria

208
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

sempre como um terminal de computador para acesso a dados,


mas o telefone doméstico, a que o Minitel estava ligado, é um
meio social, não um meio de informação. A definição técnica ofi-
cial do sistema entra, portanto, em contradição com as práticas
telefónicas que imediatamente o colonizaram, uma vez instalado
nas casas (Weckerlé 1987, I, 26).
Na medida em que o Minitel não exclui completamente a
comunicação humana, como aconteceu em muitos outros siste-
mas de videotexto, pode ser subvertido do seu propósito origi-
nal, apesar das suas limitações. Por exemplo, embora as teclas
funcionais originais não tenham sido desenhadas para aplicações
de mensagens, puderam ser incorporadas nos programas de
mensagens e os utilizadores adaptaram-se ao teclado inadequado
através de uma estenografia online rica de um calão novo e de
abreviações inventivas. O Minitel tornou-se então num dispositi-
vo de comunicações.
Os muros de Paris ficaram rapidamente cobertos de cartazes
a publicitar serviços de mensagens. Uma iconografia totalmente
nova do Minitel reinventado substituiu o modernismo sóbrio da
propaganda oficial dos PTT. Nesses cartazes, o dispositivo já não
é mais um terminal banal de computador, mas está agora associ-
ado a uma flagrante provocação sexual. Nalguns anúncios, o Mi-
nitel anda, fala, acena; o seu teclado, que pode mover-se para
cima ou para baixo, transforma-se numa boca, e o écran numa fa-
ce. O silêncio da telemática utilitária é quebrado por uma cacofo-
nia bizarra.
Ao fragilizar as fronteiras entre o privado e o público, o Mi-
nitel abre uma via de dois sentidos. Numa direção, as habitações
tornam-se cenários de atividades até aí públicas, como consultar
horários dos comboios ou contas bancárias. Mas, na outra dire-
ção, a telemática liberta uma verdadeira tempestade de fantasias
privadas, num mundo público insuspeito. O indivíduo continua
a exigir, na frase de Benjamim, que a “ a aparência do interior se-
ja mantida”. Mas agora essas ilusões tomam um aspeto agressi-

209
CAPÍTULO V

vamente erótico e são difundidas por toda a rede.


A mudança técnica no Minitel implicada por esta mudança
social é invisível, mas essencial. O Minitel foi desenhado como
um nodo cliente, ligado aos computadores da rede, e sem inten-
ção de ser usado como um sistema universal de comutação que,
tal como a rede telefónica, permitisse uma ligação direta de um
subscritor com outro. À medida que a imagem do sistema muda-
va, a empresa de telecomunicações respondeu criando um servi-
ço de correio universal e eletrónico, chamado “Minicom”, que
oferecia uma caixa de correio a quem tivesse um Minitel. Mas,
infelizmente, faltava ao novo grupo de burocratas que geriam o
sistema a imaginação e a ousadia dos projetistas originais. O Mi-
nicom baseava-se nas habitações. A menos que se vivesse sozi-
nho, era impossível envolver-se em trocas de mensagens
privadas nesse serviço. Escusado será dizer que nunca teve um
sucesso como o do correio eletrónico pela internet.
Apesar dos proveitos ganhos por estas aplicações de comu-
nicações, a telecom francesa queixava-se que o seu sistema estava
a ser mal usado. Curiosamente, um século antes, aqueles que in-
troduziram o telefone tiveram uma luta semelhante com os utili-
zadores acerca da sua definição. O paralelo é instrutivo. Primeiro,
o telefone foi comparado com o telégrafo e foi primariamente
publicitado como uma ajuda ao comércio. Por oposição a esta
identificação “masculina” do telefone, as mulheres foram-no gra-
dualmente incorporando nas suas vidas diárias, como um instru-
mento social (Fischer, 1988b). Apareceu então uma crítica ge-
neralizada ao uso social do telefone, e houve mesmo uma
tentativa para restringir o seu uso exclusivamente aos negócios
(Fischer 1988a; Attali e Stourdzé 1977). Tal como um funcionário
de uma companhia de telefones protestava em 1909:
“O telefone está a ir para além do seu projeto original, e é um
facto positivo que uma grande percentagem dos telefones hoje
em dia em uso, numa base de renda mensal, seja usada mais

210
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

para entretenimento, diversão, relações sociais e acolhimento


dos outros do que em casos efetivos de negócios ou necessida-
des da habitação” (citado por Fischer 1988a, 48).
Em França, as conotações eróticas agruparam-se à volta des-
tes primeiros usos sociais do telefone. Era preocupante que estra-
nhos pudessem intrometer-se em casa, enquanto o marido e o pai
estavam fora, a trabalhar. “Na imaginação de um francês da Belle
Epoque, o telefone era um instrumento de sedução” (Bertho 1981,
243). A companhia dos telefones estava tão preocupada com a
virtude das suas operadoras femininas que as substitui durante a
noite por operadores masculinos, presumivelmente mais à prova
das tentações (Bertho 1981; 242-243).
Apesar destas dificuldades iniciais, por volta de 1930 a soci-
abilidade tinha-se tornado um referencial inegável do telefone,
nos Estados Unidos. (Em França demorou mais um bocado). Lo-
go, o telefone é uma tecnologia que, tal como o videotexto, foi in-
troduzida com uma definição oficial que depois foi rejeitada por
muitos utilizadores. E como o telefone, o Minitel adquiriu novas
e inesperadas funções à medida que se foi tornando num instru-
mento privilegiado de encontros pessoais. Em ambos os casos, o
jogo mágico da presença e da ausência, da voz ou texto desencar-
nados, cria possibilidades sociais inesperadas, inerentes à própria
natureza da comunicação mediada.

CONCLUSÃO: DO TELETEL À INTERNET


Na sua configuração final, o Teletel foi largamente moldado pelas
preferências dos utilizadores (Charon 1987, 100). A imagem que
emerge é muito diferente das expectativas iniciais. Quais são as
lições deste resultado? A imagem racionalista da sociedade pós-
-industrial não sobreviveu sem mudanças ao teste da experiência.
O Teletel não é só um mercado de informação. Para além das

211
CAPÍTULO V

aplicações esperadas, os utilizadores inventaram uma forma nova


de comunicação humana, adequada às necessidades dos jogos
sociais e dos encontros numa sociedade impessoal e burocrática.
Ao fazê-lo, pessoas comuns passaram por cima das intenções dos
projetistas e converteram um recurso de informação num ambi-
ente social pós-moderno(o).
O significado da tecnologia de videotexto foi irreversivel-
mente modificado por esta experiência. Quando a internet abriu
ao público, iniciativas semelhantes de utilizadores resultaram na
proliferação de novas formas sociais num sistema originalmente
desenhado para partilha de tempo em grandes computadores.
Se a internet acabou por ser mais bem sucedida, isso deve-se
ao seu desenho técnico original. Ao contrário das redes X.25 cria-
das pelas empresas de telecomunicações nacionais, a internet
permitia que cada computador ligado ao sistema pudesse gerir os
seus próprios dados. O sistema difundiu-se onde existissem
computadores pessoais, sem considerações de padrões locais do
tipo imposto pela telecom francesa e outras. O resultado foi a
emergência de um sistema de comunicação global que suporta
uma variedade de aplicações sem precedentes.
Para além destes particulares, há, no entanto, uma cenário
mais vasto em formação(s). Em qualquer caso, a dimensão huma-
na da tecnologia da comunicação apenas emerge gradualmente,
em oposição aos pressupostos culturais daqueles que a origina-
ram e que lhe deram, primeiro lugar, um significado público
através de códigos racionalistas. Este processo revela os limites
da ideologia pós-industrial.

212
Capítulo VI
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

INTRODUÇÃO
O Japão sempre foi visto como o caso de teste para a universali-
dade da cultura ocidental. Os japoneses foram o primeiro povo
não ocidental a modernizarem-se com sucesso. Construíram uma
economia poderosa baseada na ciência e na tecnologia. Mesmo
assim, a sociedade japonesa continua significativamente diferente
dos modelos ocidentais que imita. Estas diferenças não são meros
vestígios superficiais de uma tradição moribunda, mas são visí-
veis na própria estrutura da ciência e da tecnologia japonesas
(Traweek 1988). O Japão é suficientemente diferente para se qua-
lificar como uma “modernidade alternativa”? Refuta ou confirma
as reivindicações do universalismo? São questões que o Japão nos
levanta, hoje em dia. Uma primeira resposta a essas questões vem
do próprio Japão. Nos anos trinta, o fundador da moderna filo-
sofia japonesa, Kitaro Nishida, propôs uma teoria inovadora para
a modernidade multicultural. Neste capítulo irei considerar o ca-

213
CAPÍTULO VI

so japonês e introduzir a notável teoria de Nishida, uma das pri-


meiras tentativas para compreender as implicações filosóficas da
globalização. Na conclusão mostrarei como a resposta japonesa à
modernização tecnológica antecipa problemas futuros no Oci-
dente.

DOIS TIPOS DE DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO


O Japão cortou quase todas as relações com o resto do mundo
desde os princípios do século XVII até quando o país foi obriga-
do a abrir-se ao comércio, pelos navios de guerra americanos, em
1854. A partir daí o Japão modernizou-se com uma rapidez incrí-
vel. O processo de modernização tocou todos os aspetos da vida,
incluindo o modo de fazer compras.
Os grandes armazéns comerciais(a) foram introduzidos no
Japão no período tardio da era Meiji (1868-1912), pela família
Mitsui. O armazém Mitsukoshi teve um grande sucesso e expan-
diu-se até se tornar tão grande como os armazéns ocidentais que
imitava (Seidensticker 1983).
No entanto, há um aspeto em que o grande armazém japo-
nês era bastante diferente dos seus modelos: no Mitsukoshi o pa-
vimento era de esteiras de tatami(b), o que criava alguns pro-
blemas únicos. Os compradores japoneses habitualmente não
tiravam os sapatos para entrar nas pequenas lojas tradicionais,
onde estavam habituados a fazer as compras. Antes caminhavam
sobre a calçada ou plataformas perto da entrada e enfrentavam
os balcões atrás dos quais os vendedores, em cima de esteiras de
tatami, aviavam as suas compras. Ainda hoje é possível encontrar
algumas dessas lojas. Embora as esteiras de tatami dos pisos do
Mitsukoshi não fossem adequadas para sapatos, os clientes ti-
nham que entrar no armazém para fazer compras. E entravam
muitos milhares por dia.

214
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

À entrada, um funcionário do vestiário encarregava-se dos


sapatos dos clientes e entregava-lhes chinelos, para serem usa-
dos nos pavimentos frágeis do armazém. À medida que o nú-
mero de clientes ia aumentando, também aumentava a pressão
sobre o sistema. Um dia enganaram-se na troca de quinhentos
pares de sapatos, e o historiador de Tóquio, Edward Seidenstic-
ker, especula que este desastre pode ter reduzido o ritmo de
aceitação dos métodos ocidentais de distribuição, até depois do
tremor de terra de 1923, quando os pavimentos de madeira fo-
ram finalmente introduzidos.
A evolução do Mitsukoshi diz-nos algo que agora já devía-
mos saber, acerca da tecnologia: não é um mero meio para um
fim, uma ferramenta neutra, mas reflete cultura, ideologia, polí-
tica. Neste caso, competiram duas técnicas muito diferentes de
revestimento enquanto ocorria uma alteração, aparentemente
sem relação, nos hábitos de compras. Nem os pavimentos de
madeira, nem os de esteiras de tatami, se podem considerar co-
mo tecnicamente superiores, mas cada um deles tem implicações
para a compreensão do “dentro” e do ”fora” em qualquer área da
vida social, incluindo, como é óbvio, as compras. Eventualmente
tornou-se claro para o Mitsukoshi que os métodos ocidentais de
distribuição exigiam pavimentos ocidentais.
O conflito entre estas técnicas para pavimentos foi há muito
resolvida a favor dos métodos ocidentais na maioria dos espaços
públicos do Japão, exceto em restaurantes, estalagens e templos
tradicionais, onde ainda se tiram os sapatos antes de entrar. Ape-
sar disso, as esteiras de tatami conservam uma poderosa carga
simbólica para os japoneses e muitas casas têm washitsu (quartos
no estilo japonês) e yoshitsu (quartos em estilo ocidental). Esta
dualidade tornou-se emblemática do ecletismo cultural japonês.
Aí, a globalização significou conservar, em larga medida, os as-
petos da técnica, artes, ofícios e costumes tradicionais japoneses,
a par de uma massa crescente de equivalentes ocidentais. Pri-
meiro, pareceu que um ramo ocidental tinha sido enxertado no

215
CAPÍTULO VI

tronco da árvore japonesa. Hoje podemos também perguntar se


não será um ramo japonês a sobreviver de forma precária numa
árvore importada do Ocidente.
Esta história ilustra a ideia de um ramo de desenvolvimento
especificamente nacional. A ramificação é uma característica geral
do desenvolvimento social e cultural. As ideias e os costumes cir-
culam facilmente, mesmo entre as sociedades primitivas, mas re-
alizam-se de uma forma muito diferente à medida que circulam.
Embora o desenvolvimento técnico seja condicionado, numa cer-
ta medida, por uma lógica causal, o seu projeto é subdetermina-
do, e há uma variedade de possibilidades a explorar no início de
uma certa linha de desenvolvimento. Cada projecto corresponde
aos interesses ou visão de um grupo diferente de atores. Nalguns
casos as diferenças são consideráveis e vários projetos distintos
podem coexistir durante um período longo. No entanto, nos
tempos modernos, o mercado, as regulamentações políticas ou o
domínio empresarial, ditam a decisão por um ou por outro dos
projetos. Uma vez consolidada a decisão, o ramo vencedor trans-
forma-se numa caixa negra(c) e permanece para além das contro-
vérsias e polémicas.
Até à pouco tempo, foi precisamente este último passo que
não teve lugar nas relações entre os ramos nacionais do projeto.
Más comunicações e dificuldades de transportes significavam
que os ramos nacionais podiam coexistir durante séculos, até
mesmo milénios, sem muita consciência um do outro e sem qual-
quer possibilidade de uma vitória decisiva para um ou outro dos
projetos. A globalização intensifica a interação entre os ramos na-
cionais, levando a conflitos e decisões como a que exemplifica-
mos com os pavimentos de Mitsukoshi.
No entanto, conflitos e decisões não são as únicas conse-
quências de um mundo globalizado.Uma segunda história ilustra
um outro padrão, a que chamo desenvolvimento “em estratos”
(Malm 1971).
Pouco depois da abertura do Japão ao mundo, o domínio

216
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

Satsuma (d) contratou um chefe de banda inglês, William Fenton,


para treinar a primeira banda militar japonesa. Fenton notou a
falta de um hino nacional japonês e propôs-se criar um. Identifi-
cou um poema, que ainda hoje continua a ser cantado como a lí-
rica do hino nacional japonês, e fez a música. Este hino não oficial
começou em 1870, mas era quase impossível de cantar e rapida-
mente caiu em desuso.
A falta de um hino era especialmente sentida na marinha. Os
oficiais japoneses ficavam embaraçados pela sua incapacidade de
cantar o seu próprio hino durante as cerimónias da bandeira, no
mar. Por isso, a marinha convidou músicos da corte para treinar a
banda da marinha na música tradicional japonesa, com a esperan-
ça que aparecesse um compositor entre os intérpretes. Mas o pro-
cesso era muito lento, e a marinha finalmente acabou por pedir aos
próprios músicos da corte para fazerem uma composição adequa-
da. Uma vez mais os resultados foram desapontantes. Os músicos
da corte apareceram com uma peça num modo antigo, com um ar-
ranjo para um conjunto tradicional, que era o tipo de coisa que di-
ficilmente se poderia esperar encontrar num navio da marinha!
Por essa altura, Fenton foi substituído por um chefe de ban-
da alemão, Franz Eckert, que esteve à altura da ocasião. Fez um
arranjo do hino proposto pelos músicos da corte, para uma banda
ocidental, com as adaptações adequadas para ser fácil de tocar.
Em 1880, o Japão tinha finalmente o seu hino nacional, ainda atu-
al.
Esta história é muito diferente da história do Mitsukoshi. Tal
como o pavimento, a música desenvolveu-se, no Japão e no Oci-
dente, segundo ramos diferentes; no entanto, o hino nacional ja-
ponês não é nem japonês nem ocidental, mas inspira-se em
ambas as tradições. Neste caso, as relações entre tradições são
muito complexas. A própria ideia de hino nacional é ocidental.
Um hino é uma auto afirmação que implica a existência de tercei-
ros perante quem afirmar o ego nacional. Mas isso não existia pa-
ra o Japão, durante os 250 anos de isolamento num mundo

217
CAPÍTULO VI

fechado sobre si próprio. Com a abertura do país, a auto afirma-


ção tornou-se um problema e foi preciso um hino. Mas como po-
dia o hino afirmar o Japão, a não ser que refletisse o estilo musical
japonês? Logo, a composição tinha que ser japonesa. Isto era mais
fácil de dizer do que fazer, porque o hino era para ser tocado por
instrumentos ocidentais e em cerimónias inspiradas pelo Ociden-
te. Assim, no estádio final, uma camada de composição japonesa
original teve que ser sobreposta com mais uma camada ocidental.
Aqui não temos quartos de estilos diferentes, lado a lado,
mas sim uma verdadeira síntese. Esta fusão de tradições tem lu-
gar num processo de estratificação, que também é caraterístico de
muitos tipos de desenvolvimentos sociais, culturais e tecnológi-
cos. Muitas vezes, vários ramos podem-se combinar por camadas
que se organizam segundo as exigências dos vários atores sobre
um projeto básico único. No processo, aquilo que parecia ser um
conflito de concepções acaba por se mostrar conciliável, apesar de
tudo. O hino soa vagamente japonês quando tocado por uma
banda de música. De forma semelhante, a moderna política, lite-
ratura, pintura, arquitetura e filosofia japonesas emergiram, na
era Meiji, como uma síntese de técnicas e visões nativas e ociden-
tais.
A estratificação por camadas não deve ser entendida como
um modelo de compromisso político, embora construa alianças
entre grupos com posições inicialmente diferentes, ou até mesmo
hostis. O compromisso político envolve cedências mútuas em
que cada parte cede nalguma coisa para obter uma outra coisa
qualquer. Não há dúvida que no desenvolvimento tecnológico,
tal como na composição musical e nas atividades criativas com
algum tipo de base técnica, as alianças nem sempre exigem com-
promissos de trocas. Idealmente, as invenções inteligentes dão a
volta aos obstáculos para combinar funções e o produto estratifi-
cado é melhor em tudo o que faz, não comprometendo a sua efi-
ciência por tentar fazer demasiadas coisas em simultâneo. Isto é o
que o filósofo francês da tecnologia, Gilbert Simondon, chama

218
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

“concretização” (Simondon 1958). A concretização dá origem à


tecnologia global combinando muitos sucessos nacionais num
único fundo de invenção mundial.

A GLOBALIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
Ramificação e estratificação são dois padrões fundamentais do
desenvolvimento. As suas relações alteram-se à medida que a
globalização continua. Noutro local descrevi dois tipos de proje-
tos correspondentes a diferentes estádios deste processo. O está-
dio inicial carateriza-se por um “projeto centrado na mediação”,
em que cada nação desenvolve a sua tecnologia de uma forma
relativamente independente das outras (1). O peso esmagador das
tradições nacionais específicas garante que as ideias, mesmo as
ideias de origem estrangeira, são incorporadas de modo diferente
nos dispositivos, em contextos diferentes. Estas diferenças são
devidas, em larga medida, a mediações éticas e estéticas, que são
específicas de cada país, e que moldam o projeto. Portanto, cada
projeto exprime o fundo nacional contra o qual se desenvolve.
A globalização impõe um padrão muito diferente, a que cha-
mo “projectado centrado no sistema”. A economia globalizante
desenvolve-se em torno de um mercado internacional de bens de
capital, onde cada nação procura os elementos que precisa para
construir as tecnologias de que necessita. Este mercado mo-
vimenta módulos construtivos como engrenagens, eixos, fios elé-
tricos, chips de computadores, etc., que podem ser montados em
muitos padrões diferentes(2).
O mercado dos bens de capital é um recurso de tal modo
formidável que, uma vez intensificadas as trocas entre as nações,
rapidamente se torna indispensável. Mas quando o projeto se ba-
seia na montagem de partes pré-fabricadas, deixa de poder aco-
modar as diferentes culturas nacionais com facilidade. Em vez de
exprimir um contexto cultural, os produtos tendem cada vez

219
CAPÍTULO VI

mais a ser projectados de forma a ajustarem-se harmoniosamente


ao sistema já existente de peças e dispositivos. A acomodação à
cultura nacional continua a existir, mas partilha esse campo com
um imperativo de sistematização que não conhece fronteiras na-
cionais. Entretanto, a cultura nacional exprime-se, indiretamente,
na contribuição que faz para a inovação nos mercados de bens de
capital.
Esta mudança para o projeto centrado em sistemas tem impli-
cações para o papel das mediações valorativas na estrutura da tec-
nologia moderna e globalizada. As tecnologias tradicionais ge-
ralmente ajustam-se bem. O pavimento japonês de esteiras de
tatami, a arquitetura tradicional, os hábitos de comer e dormir, e os
sapatos, tudo isso faz parte de uma peça. Como tal, exprimem uma
escolha bem definida de modo de vida, um quadro de referência(e)
enraizado na cultura japonesa. No entanto, em termos puramente
técnicos, as ligações entre estes artefatos são relativamente distan-
tes. É verdade que as casas japonesas precisam de entradas onde se
possam deixar os sapatos, que os “futons” (f) se devem estender so-
bre as esteiras de tatami, etc., mas adaptar cada um destes artefatos
aos outros não é muito restritivo. A grande margem de escolha fa-
cilita a implementação dos valores culturais nos projetos técnicos.
A globalização da tecnologia altera tudo isto. Quando o de-
senho é baseado em sistemas, tem que trabalhar com componen-
tes técnicos ligados de forma muito apertada. Os fios elétricos e
as fichas não se podem desenhar de forma independente dos
utensílios que vão usar a eletricidade. Rodas, engrenagens, poli-
as, etc., vêm em tamanhos e tipos fixados por decisões que foram
tomadas nos seus pontos de origem. Um dispositivo que as
utilize precisa de acomodar os resultados dessas decisões.
O projeto centrado em sistemas impõe muitas restrições na
sua fase inicial, restrições essas com origem nos países centrais do
sistema mundial. Estas restrições são impostas sobre as nações
periféricas por um processo globalizante, sem consideração pelas
suas culturas nacionais. Mais, a própria disponibilidade de certos

220
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

tipos de bens de capital reflete a evolução tecnológica e as priori-


dades dos países centrais, não dos seus beneficiários últimos. Lo-
go, o efeito da globalização é passar para segundo plano as
restrições culturais, senão mesmo eliminá-las completamente. À
primeira vista, os produtos resultantes parecem ser culturalmen-
te “neutros”, embora, de facto, continuem a incorporar pressu-
postos culturais que se tornam evidentes no seu uso generalizado
em contextos periféricos.
O computador é um exemplo óbvio. Para nós, ocidentais, o
teclado parece ser tecnicamente neutro. Mas se, em primeiro lu-
gar, os computadores tivessem sido inventados e desenvolvidos
no Japão, ou qualquer outro país com uma linguagem ideográfi-
ca, é pouco provável que, durante muito tempo, os teclados ti-
vessem sido seleccionados como dispositivos de entrada, durante
muito tempo. Pela mesma razão porque as máquinas de fax
prosperaram no Japão, onde facilitavam a comunicação em ca-
racteres chineses, também os computadores teriam sido inicial-
mente projetados com entradas (g) gráficas ou de voz ou de
qualquer outro tipo. A chegada dos computadores ocidentais ao
Japão foi um encontro alienante, um desafio à linguagem nacio-
nal. Foi preciso investir uma inteligência considerável para do-
mesticar o teclado para os usos japoneses (Gottleib 2000).
Estas observações indicam a fraqueza das culturas nacionais
num sistema tecnológico globalizante; no entanto, há um outro
lado da história. Os países distantes do centro, tal como era o Ja-
pão, podem não contribuir tanto como os países centrais, mas
contribuem com alguma coisa. E essas contribuições serão mar-
cadas pelo seu fundo cultural nacional. No caso do Japão, a am-
plitude destas contribuições cresceu até ao ponto em que se
tornaram significantes para os países do centro original. A tecno-
logia global contém uma camada japonesa e apresenta um pa-
drão verdadeiramente global, não simples relações de
dependência entre o centro e a periferia.
É difícil dar exemplos desse efeito de retorno (h) a partir da

221
CAPÍTULO VI

cultura nacional. A realização técnica de um impulso cultural é


semelhante a qualquer outro artefacto técnico. Mesmo assim,
uma abordagem hermenêutica deve ser capaz de encontrar os
traços culturais no domínio técnico.
Talvez se possa citar a miniaturização como uma contribuição
que reflete a cultura japonesa. Pelo menos esse é o argumento de
O-Young Lee, cujo livro Smaller is Better: Japan’s Mastery of the Mi-
niature argumenta que o triunfo da microeletrónica japonesa tem
as suas raízes em impulsos culturais antigos (Lee 1984). A prática
da miniaturização, que é caraterística do bonsai, da poesia haiku e
de outros aspetos da cultura japonesa, também aparece nos arte-
fatos técnicos. Lee cita o caso inicial da ventoinha desdobrável. Os
leques planos, inventadas na China, chegaram ao Japão durante a
idade média. O leque desdobrável, que parece ter sido inventada
no Japão pouco depois, foi exportado de volta para a China, e
inaugurou um padrão familiar. A tecnologia básica do rádio tran-
sistor e do gravador de vídeo veio dos Estados Unidos, em ambos
os casos, mas a miniaturização desses dispositivos, que foi essen-
cial para o seu sucesso comercial, teve lugar no Japão, de onde fo-
ram exportados de volta para os Estados Unidos.
É claro que, uma vez inundados os mercados de bens de ca-
pital com componentes miniaturizados, cada país do mundo po-
de fazer produtos pequenos, sem considerações culturais. Mas se
Lee estiver certo, a origem desta tendência estaria numa cultura
nacional específica. Aspetos dessa cultura são difundidos à volta
do mundo através das especificações técnicas dos seus produtos.

A TEORIA DO MUNDO GLOBAL, DE NISHIDA


Na primeira parte deste capítulo ilustrei uma tese acerca da glo-
balização da tecnologia com histórias do Japão. Na parte restante
tentarei extrair implicações desta tese para o contributo mais im-
portante da filosofia japonesa para a compreensão da globaliza-

222
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

ção: a teoria do mundo global, de Nishida, anterior à segunda


guerra.
O argumento de Nishida foi formulado no contexto da auto-
afirmação crescente do Japão nos inícios do século XX. Para mui-
tos japoneses, essa era, acima de tudo, uma questão de expansão
nacional, mas para intelectuais como Nishida o que estava em
jogo era a liderança cultural no mundo. Esses dois aspectos da as-
censão japonesa estavam relacionados, mas não eram idênticos.
Por um lado, o Japão tinha-se tornado suficientemente forte para
poder conquistar os seus vizinhos. Por outro lado, este facto mos-
trava, por si mesmo, que uma nação asiática como o Japão, podia
participar completamente na modernidade cultural, assimilando
os sucessos ocidentais e orientando-os para os seus próprios inte-
resses. Nesta base, Nishida argumentou que a Ásia podia final-
mente ocupar o seu lugar no mundo moderno como um parceiro
cultural, igual ou mesmo superior ao Ocidente (Nishida, 1991, 20).
A ligação entre a posição de Nishida e o imperialismo japo-
nês é portanto complexa e controversa. Já contribuí para esse de-
bate com diversos artigos e voltarei brevemente a este tópico na
conclusão deste capítulo (Feenberg 1995, cap. 8). No entanto, o
meu interesse principal neste momento está no paralelo que en-
contro entre a estrutura da globalização tecnológica, tal como a
expliquei anteriormente, e o conceito de um “mundo global”
(sekaiteki sekai) em Nishida (Nishida 1965c, 291-292, 249). Mostra-
rei que o contraste entre ramificação e estratificação está subja-
cente a esta conceção, embora Nishida não tenha desenvolvido as
implicações tecnológicas da sua própria abordagem.
Nishida argumentou que, até aos tempos modernos, o mun-
do tinha aquilo que ele chamou uma estrutura “horizontal”, ou
seja, consistia em nações lado a lado num planeta que as separa-
va mais do que as unia. O conceito de “mundo” era necessaria-
mente “abstrato” durante o longo período que precedeu os tem-
pos modernos. Com isto Nishida significava que “mundo” era
apenas um conceito, não uma força ativa nas vidas das nações.

223
CAPÍTULO VI

Esta condição foi anormalmente longa no caso do Japão, que per-


maneceu desligado do mundo crescente do comércio e das comu-
nicações até aos anos sessenta do século XIX.
O comércio internacional transformou este mundo horizon-
tal ao pôr todas as nações em contacto intenso umas com as ou-
tras. O resultado foi a emergência daquilo a que Nishida chamou
um mundo “vertical”, um mundo em que as nações lutam pela
proeminência. Cada nação passa então a participar ativamente na
vida dos seus vizinhos através do comércio e dos movimento de
pessoas e de ideias. Não há uma fusão harmoniosa mas antes um
fortalecimento das identidades, o que em última instância leva à
guerra. Neste contexto, o nacionalismo emerge como uma res-
posta de sobrevivência à ameaça de dominação estrangeira.
Nishida tinha várias terminologias sugestivas para esta mu-
dança. Apresentava uma multiplicidade de quadros conceituais,
cada um deles inadequado por si para descrever a realidade soci-
al, mas capaz de o fazer em conjunto, num sistema mutuamente
corretor de categorias. A complexidade do argumento de Nishita
é suposta corresponder, portanto, à dificuldade atual em pensar a
sociabilidade global.
Nishida desenvolveu o contraste entre os mundos horizontal
e vertical em termos da relação entre “muitos” e “um”, no espaço
e no tempo. As múltiplas nações dispersas no espaço entram em
interação no mundo moderno. Interação, na história, implica
mais do que o contacto mecânico com coisas relacionadas exter-
namente. Cada nação precisa de se “exprimir” no mundo, no
sentido de representar os significados da sua cultura. Isto pode
levar ao conflito, à medida que as nações tentam impor as suas
próprias perspetivas. Mas interação também exige comunalidade.
Duas entidades completamente estranhas não podem interagir.
Em cada etapa, na história moderna, há um referencial comum
dado pela nação dominante, que se define a si própria como um
“mundo” unificador para todos os demais. A unificação envolve
a imposição de um formato geral para as lutas das nações parti-

224
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

culares. Nishida dá o exemplo da imposição da Grã Bretanha no


mercado mundial do século XIX (Nishida 1991, 24). As múltiplas
nações em conflito estão, portanto, ligadas num mundo, a um ní-
vel mais profundo.
A passagem de muitos para um só também se reflete nas re-
lações de espaço e tempo. A dispersão das nações no espaço, a sua
“multiplicidade”, é complementada pela simultaneidade da sua
coexistência numa dimensão temporal unificada. As lutas entre as
nações têm um resultado, que é essa unidade. Logo, nos tempos
modernos, a geografia está subordinada à história. A nação unifi-
cada representa o tempo para esse mundo e, como tal, perde-se a
si própria no processo de unificação que impõe. A Grã Bretanha é
absorvida no mercado mundial que criou e torna-se na cena em
que opera a economia mundial. A particularidade da nação, a
Grã-Bretanha, é transcendida pela ordem universal que instituiu.
O mecânico e o orgânico formam outro par que a terminolo-
gia que Nishida explora. O mundo mecânico é feito de coisas re-
lacionadas externamente, mas dispersas no espaço. As coisas
relacionadas mecanicamente podem ser adequadamente chama-
das “indivíduos” (i). A sua multiplicidade forma “indivíduos múl-
tiplos” (kibutsuteki ta) (Nishida 1991, 29-31). O mundo orgânico
consiste em totalidades orientadas para um telos no tempo. O todo
é, portanto. um sujeito da ação, uma “unidade holística” (zentaikei
ichi) (Nishida 1991, 37-38). A sociedade não é bem descrita como
mecânica porque forma um todo, mas, contudo, também não é
orgânica, porque os seus membros são indivíduos completamente
independentes, não um rebanho. A dificuldade de decidir entre o
mecânico e o orgânico sugere a originalidade do mundo social,
que não pode ser representada por qualquer um desses conceitos,
porque na realidade abrange aspetos de ambos.
Nishida introduziu o conceito de “lugar” (basho) numa ten-
tativa final de conceitualizar este mundo globalizado e “auto-
contraditório”. Lugar, no sentido técnico do termo em Nishita, é
o “terceiro” elemento ou meio “em” que se encontram os agentes

225
CAPÍTULO VI

em interação. Mas uma entidade separada precisaria, ela própria,


de um local para interagir com os atores. O basho não é, portanto,
algo externo à interação, mas uma estrutura da própria interação.
Esta estrutura aparece à medida que cada ator “se nega a si pró-
prio”, para se tornar no “mundo” para o outro, ou seja, o lugar da
interação (Nishida 1991, 30).
Esta formulação obscura não é fácil de interpretar. Parece
significar que, ao agir, o eu se transforma em objeto para o outro.
No entanto, o eu não é só um objeto, mas o ambiente a que o ou-
tro deve reagir ao afirmar-se a si próprio como sujeito. À medida
que o outro reage, redefine-se a si próprio e, portanto, a sua iden-
tidade depende da ação do eu. Mas a determinação do outro pelo
seu próprio eu é apenas metade do ciclo; a ação do outro tem um
impacto equivalente no eu. A interação é a troca desses papéis,
permanente e infinita, uma circulação de realizações autotrans-
formadoras (jikaku ) conseguidas através do contacto com um ou-
tro eu (Tremblay 2000, 99-101).
Nishida tinha duas maneiras de falar acerca do papel do
lugar no mundo moderno. Umas vezes escreve como se a nação
globalizante servisse como o “lugar” de interação para todas as
outras nações, o palco da interação. Este lugar pode ser imposto
por dominação, ou pode ser livremente consentido como supre-
macia cultural, a diferença que Nishida assumiu entre o papel
da Grã Bretanha no passado e do Japão no futuro (Nishida 1991,
99, 77; Nishida 1965c, 373, 349). Outras vezes afirmou que a ida-
de moderna é sobre a emergência de um lugar global, na forma
de uma cultura mundial de encontros nacionais (Nishida 1970,
78-79, 134-135; Ohashi 1997). Nishida não viu qualquer contra-
dição entre estes dois discursos porque assumia que a cultura
japonesa era uma espécie de “vazio” capaz de acolher todas as
outras culturas. Mas, como veremos, esta ambiguidade mos-
trou-se muito importante.
Com base nesta análise, Nishida afirmava a importância de
todas as culturas modernas. O domínio ocidental é apenas uma

226
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

fase passageira, que dará lugar a uma idade de autoafirmação


asiática. O destino da raça humana é combinar frutuosamente as
culturas ocidental e oriental numa “autoidentidade contraditó-
ria”. Este conceito refere-se a uma síntese da individualidade (na-
cional) com a totalidade (global) em que a cultura emergente do
mundo é suposta consistir.
Há um sentido em que este mundo global constitui um ser
único, que se altera através de uma dinâmica interior. Logo, o
mundo “determina-se a si próprio”. Mas as identidades das na-
ções particulares não se perdem nesta unidade. A cultura mundial
resultante não vai substituir as culturas nacionais. Há algo mais
subtil envolvido. Nishida escreveu que “uma verdadeira cultura
mundial só se formará se as várias culturas preservarem os respe-
tivos pontos de vista, mas se simultaneamente se desenvolverem
através da mediação global” (Nishida 1970, 254). A cultura mun-
dial é uma forma pura, um “lugar” ou campo de interação, e não
uma alternativa particular às culturas nacionais existentes. Persis-
tem e são uma fonte contínua de progresso e mudança. O proces-
so de autodeterminação é portanto livre, no sentido de ser
internamente criativo; não é determinado por forças extrínsecas
ou por leis atemporais. Não há nada “fora” do mundo que o possa
influenciar ou controlar. Até mesmo as leis da ciência natural pre-
cisam de ser localizadas dentro do mundo como atos particulares
de pensamento condicionados historicamente (Nishida 1991, 36).
Uma passagem em que Nishida descreve o mundo global, tal
como ele o via:
“Toda a nação / povo estabelece-se com um fundamento his-
tórico e possui uma missão na história no mundo, tendo por
isso uma vida histórica por si mesmo. Para que as nações /
povos formem um mundo global através da sua própria reali-
zação e auto-transcendência, cada um deles precisa primeiro
de formar um mundo particular, de acordo com a sua própria
tradição regional. Estes mundos particulares, cada um deles ba-

227
CAPÍTULO VI

seado num fundamento histórico, unem-se para formar um


mundo global. Cada nação / povo vive a sua vida histórica
única e, ao mesmo tempo, une-se a um mundo global através
da realização de uma missão histórica mundial” (Nishida
1965a, 428; Arisaka 1996, 101-102).
No entanto, este argumento cosmopolita culmina estranha-
mente na afirmação de que o Japão é o centro da tendência unifi-
cadora da cultura global. Tal como a Grã Bretanha tinha uni-
ficado o mundo através do mercado mundial, com o espírito do
utilitarismo individualista, o que conduziu a uma competição e
luta sem fim, também o Japão unificará o mundo à volta da sua
cultura espiritual, única sob o ponto de vista de capacidade de
acomodação, conduzindo assim a uma idade de paz. O Japão se-
rá o “lugar” em que o mundo se moverá para além dos limites
ocidentais e se tornará verdadeiramente global. O Japão pode li-
derar espiritualmente o mundo porque a sua cultura única cor-
responde à estrutura real do mundo global:
“É quando descobrimos os princípios da autoformação do
mundo, contraditório mas idêntico a si mesmo, no coração do
nosso desenvolvimento histórico, que devemos oferecer a nos-
sa contribuição ao mundo. Isto resulta na prática do caminho
imperial e é o verdadeiro sentido de “oito cantos debaixo de
um teto” “ (hakkoo ichiu ) (Nishida 1991, 70).

O caráter vago desta conclusão é perturbador. Nishida con-


denou explicitamente o imperialismo e argumentou que o Japão
não podia ser o lugar da unidade do mundo se atuasse como um
“sujeito” em conflito com as outras nações. Em vez disso, precisa
de “se negar a si próprio” e tornar-se o “mundo” para todas as
outras nações (Nishida 1991, 70, 77). Ainda assim, também reco-
nheceu a fatalidade inevitável do conflito mundial e aceitou o
papel militar do Japão dentro desse contexto, como nesta parte

228
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

do seu discurso ao imperador:


“quando diversos povos entram nessa relação histórica
mundial (sekaishiteki), podem existir conflitos entre eles, tais
como vemos hoje em dia, mas isso é natural. A nação mais
mundialmente histórica (sekaishiteki) deve então servir como o
centro para estabilizar este período turbulento” (Nishida
1965b, 270-271).

Como vimos anteriormente, Nishida empregou slogans ultra-


nacionalistas, aparentemente na esperança de conseguir aí insinuar
novos significados. O mínimo que se pode dizer é que os seus es-
forços eram ingénuos e acabaram por dar apoio a um sistema im-
perialista que estava em conflito com a sua própria filosofia.
Tal como podemos questionar a profundidade da ligação en-
tre o nazismo e o pensamento de Heidegger, o nacionalismo de
Nishida é igualmente ambíguo. Não há uma ligação lógica clara
entre as suas afirmações acerca do Japão e o seu conceito de uni-
dade global. Ao menos os britânicos criaram um mercado mun-
dial para unificar o mundo. O que é que o Japão tinha para
oferecer? Que mediação podia oferecer que o qualificasse como
centro de uma nova era?
Tanto quanto eu possa dizer, Nishida não estava preocupado
com essa questão, embora devesse estar. Afirmava que o Japão
era o arquétipo da unidade global pela sua habilidade para assi-
milar tanto a cultura oriental como a ocidental. Embora isso pos-
sa ser admirável, sem dúvida, não é claro como qualifica o Japão
como o lugar da unidade global. Para isso ser verdade, o Japão
precisaria de fazer algo mais positivo no cenário mundial do que
simplesmente existir como um modelo. Nishida anuncia a signi-
ficância histórica mundial da libertação da Ásia relativamente ao
imperialismo ocidental. Mas isso não é certamente o equivalente
do mercado mundial como uma força unificadora, mas antes uma

229
CAPÍTULO VI

das suas consequências desagregadoras. No fim, a questão conti-


nua sem resposta(3).
Apesar dos seus defeitos e limitações, a teoria da globaliza-
ção de Nishida continua verdadeiramente interessante. Nishida
afirmava que o mundo se tinha alterado de uma estrutura hori-
zontal para uma estrutura vertical, da coexistência indiferente no
espaço para o envolvimento mútuo no tempo, num processo glo-
bal de unificação, conflituoso mas criativo. A unidade emergente
não apaga as diferenças nacionais, mas incorpora-as numa cultu-
ra mundial em evolução, que é melhor definida como um “lugar”
de encontro e de diálogo. Um quadro concetual subjacente torna
possível a comunicação das nações por entre os seus conflitos.
Esta afirmação faz precisamente um paralelo com a análise
da passagem do desenvolvimento por ramificação para o desen-
volvimento por estratificação, apresentados na primeira parte
deste capítulo. Os vários ramos da tecnologia, num mundo dis-
perso espacialmente, encontram-se finalmente no mundo global
dos tempos modernos. Aí afirmam-se por si próprios e entram
em conflito, mas aí também se informam mutuamente com ideias
e invenções extraídas de diversas tradições nacionais. O resulta-
do, a tecnologia global, forma uma espécie de lugar, no sentido
de Nishida, um cenário em que o encontro entre nações prosse-
gue sem eliminar a originalidade e a diferença das culturas naci-
onais constitutivas. O processo de estratificação, em que cada
cultura se exprime e ao mesmo tempo contribui para um fundo
único de invenção, é, assim, congruente com a conceção de cul-
tura mundial de Nishida.

A FILOSOFIA JAPONESA DA TECNOLOGIA


Será que Nishida podia ter concretizado a sua abordagem através
de uma reflexão sobre a tecnologia? Esteve perto de fazer essa li-
gação. Compreendeu que a ação histórica está inextricavelmente

230
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

interligada com a criação técnica. Explicou que a “cultura inclui a


técnica” (Nishida 1991, 61). A técnica é uma expressão do espírito
do povo à medida que interage com o ambiente e, através dessa
interação, forma-se a si próprio (Nishida 1991,57; Nishida 1965 c,
328). “Criamos coisas através da técnica e, ao criá-las, estamos a
criar-nos a nós próprios” (Nishida 1991,33; Nishida 1965c, 297).
Embora Nishida não o tenha feito, podemos construir sobre estas
observações e dar um passo adiante relacionando esta conceção
social de técnica com a noção de interação cultural global no sé-
culo XX (Murata 2003, 232-235).
Foi isto que um dos estudantes mais brilhantes de Nishida
tentou, numa contribuição maior para a filosofia da tecnologia,
mas que é quase desconhecida no Ocidente. Kiyoshi Miki foi um
marxista não ortodoxo que se tornou num nacionalista japonês
durante a segunda guerra mundial(4). Foi influenciado pelos en-
sinamentos de Nishida e pode muito bem ter influenciado os
pontos de vista de Nishida sobre história e tecnologia, anterior-
mente citados. Publicou em 1934 o seu trabalho mais importante,
The Logic of the Imagination , em que explica a sociedade como o
produto do poder conformador da imaginação. A tecnologia tem
um papel central neste processo, como uma expressão da imagi-
nação no mundo.
Deste ponto de vista, a tecnologia não pode ser explicada em
termos puramente científicos. Está na interseção da ciência e da
cultura, causalidade e teleologia. Na sua Philosophy of Technology
(originalmente publicada em 1942), Miki escreveu que:

As invenções verdadeiramente novas não só empregam meios


novos como também criam novos fins. Um inventor não deve
ser pensado como estando meramente a inventar novos meios
... Logo, as máquinas não seguem só o princípio da causalida-
de. É claro que o seguem na medida em que a ciência é um
fundamento da tecnologia. Mas, ao mesmo tempo, também

231
CAPÍTULO VI

são teleológicas. As máquinas, na sua construção e na sua fun-


ção, incorporam uma teleologia... A tecnologia pode, portanto,
ser concebida como uma unidade da causalidade e teleologia.
(Miki 1967, vol. 7, 309-310).

A tecnologia é “subjetiva-objetiva”. É subjetiva no sentido em


que precisa da razão humana, criatividade e “logos” (j), enquanto
que também é objetiva, no sentido que se manifesta numa forma
concreta que nos confronta como uma realidade independente e
tangível. A história não é mais do que este “movimento” através
da criação tecnológica. “Como ação formativa, as nossas ações são
históricas. As ações históricas são tecnológicas. Na realidade, a
história é criada tecnologicamente; a historicidade não pode ser
concebida aparte da tecnologia” (Miki, 1967, vol. 7, 211).
Mas, se isto é verdade, então a tecnologia deve incorporar as
formas da cultura que a criou. E, de facto, Miki argumentou que
a tecnologia que o Japão recebeu do Ocidente era uma expressão
da cultura ocidental e devia ser reconfigurada para se adequar ao
“espírito” japonês. Era preciso criar uma cultura nova que com-
binasse o melhor do Ocidente e do Oriente. Tal como Nishida,
Miki acreditava que a solução para este problema seria de im-
portância mundial e histórica. O Ocidente tinha chegado a um
impasse que o Japão poderia ultrapassar. “A nova cultura”, es-
creveu, “por um lado precisa de ter raízes na tradição oriental,
com os seus soberbos elementos espirituais e, por outro lado,
precisa de respeitar a tecnologia moderna, baseada na ciência
moderna desenvolvida no Ocidente” (Miki 1967, vol. 7, 319).
Qual deveria ser o conteúdo desta nova cultura? Miki ob-
servou que o termo grego techne se aplicava igualmente àquilo a
que chamamos arte e também tecnologia, o que é apropriado
porque ambos envolvem elementos subjetivos e objetivos. A se-
paração entre arte e tecnologia, nos tempos modernos, á artifici-
al. “O princípio da nova cultura deve assentar em [uma com-
binação] das mundivisões tecnológica e estética... A “orga-

232
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

nicização” da tecnologia também é uma “esteticização” ” (Miki


1967, vol. 7, 329)(5).
Podemos imaginar um desenvolvimento desta abordagem
nos termos do conceito de autocriação, de Nishida, através da
mediação de uma cultura tecnológica especificamente nacional.
Mas Miki não seguiu esta linha de argumento para a sua conclu-
são lógica. Em vez disso, mudou o foco da síntese da arte com a
tecnologia para uma dependência das ciências sociais. Um pouco
como Dewey, argumentou que a crise da tecnologia ocidental po-
dia ser ultrapassada mediante uma melhor compreensão da soci-
edade. O resultado desta tentativa para criar uma autêntica
filosofia japonesa da tecnologia é, portanto, bastante desaponta-
dor. Miki acabou com uma mistura peculiar de nacionalismo e
pragmatismo que, na sua estrutura subjacente, podera muito bem
ter sido inventada em Chicago. Tal como os pontos de vista se-
melhantes de Dewey, os argumentos de Miki parecem cada vez
menos persuasivos depois de várias gerações de esforços, sem
sucesso, para criar uma ciência social capaz de completar a mis-
são que lhe atribuíram.
Nishida e Miki testemunharam o processo de modernização
à medida que se foi desenrolando no Japão. Estavam cercados
por rápidas mudanças sociais, culturais e tecnológicas, que aco-
lheram e acreditaram poder ser o meio para a expressão de um
autêntico espírito japonês. Rejeitaram a insistência ultranaciona-
lista de manter a pureza do ramo japonês na era da interação
global e insistiram que o Japão devia entrar na cena mundial e
andar para a frente. Nisto foram os teóricos do seu momento na
história, um momento em que o Japão parecia estar a combinar
com sucesso os estilos ocidental e oriental em todos os domínios
da vida. Nishida e Miki viveram intensamente esses momentos.
Talvez tenham mesmo perdido os seus sapatos no Mitsukoshi.
Certamente cantaram o hino nacional e foram arrastados, junta-
mente com o seu país, pela modernização sincrética do governo,
cidades, escolas e produção cultural japonesas. Conjeturo que is-

233
CAPÍTULO VI

so alicerçou a sua conceção de um mundo global e a sua confian-


ça no futuro.

CONCLUSÃO: TECNOLOGIA E VALORES


Nishida e Miki tentaram reconciliar a especificidade dos seus
modos de vida japoneses com um novo quadro material da vida,
importado do Ocidente. Deram a este problema um significado
filosófico geral através de uma conceção original da imbricação
da tecnologia e da cultura. A sua razão para o fazer era a convic-
ção de que a hegemonia ocidental, e com ela a cultura ocidental,
tinham atingido um limite histórico. Os resultados do Ocidente
seriam agora absorvidos numa nova era histórica organizada à
volta da cultura asiática. À sombra do declínio ocidental, levan-
tava-se um novo sol que iria reinterpretar a natureza da própria
racionalidade. Como é claro, esta expectativa foi um desaponta-
mento. O Japão não encontrou uma nova era de supremacia asiá-
tica. Mas a descoberta da contingência sócio cultural da tec-
nologia ocidental viria a ter ecos significativos, muitos anos
depois, e à volta de questões diferentes.
O caso japonês é um subconjunto de um problema mais ge-
ral, o problema da relação dos valores com a racionalidade técni-
ca, que agora enfrentamos à volta de questões como o ambi-
entalismo e as técnicas de vigilância. As ameaças da tecnologia
precisam de ser equilibradas pelo potencial democrático da
agência dos utilizadores, que se tornou visível no desenvolvi-
mento da internet. Ambos, as ameaças e os potenciais, trouxeram-
nos o mesmo fenómeno perplexante que confrontou os pensado-
res japoneses. Tal como eles, somos confrontados com a
particularidade paradoxal de sucessos técnicos supostamente
universais.
A perplexidade deles, tal como a nossa, é devida a pressu-
postos iluministas acerca da natureza da racionalidade. A noção

234
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

de uma civilização racional foi inicialmente proposta num con-


texto polémico, em oposição a convicções tradicionais, religiosas
e feudais. A oposição da razão à “superstição”, ou seja, à autori-
dade do passado, é tão fundamental para a auto compreensão
moderna que não há maneira de romper com ela que não traga
consigo um risco de regressão. No entanto, quando aplicada à
tecnologia, esta dicotomia rígida é enganadora. A tecnologia não
é uma pura realização da racionalidade, mas, como vimos, con-
solida aspetos técnicos e sociais. Estes dois aspetos da tecnologia
exigem um estilo de análise e de crítica muito diferente da abor-
dagem iluminista. Pelo menos nas suas realizações técnicas, a ra-
zão não é universal, mas apenas tão particular como outra
expressão qualquer de cultura.
Os japoneses encontraram um enviesamento nacional espe-
cífico quando importaram a tecnologia ocidental. É mais provável
sentir os enviesamentos técnicos em questões como o acesso e
uso, ou então nos perigos e injustiças graves. Este paralelo per-
mite-nos colocar as questões levantadas na parte inicial deste ca-
pítulo num contexto mais amplo.
Os desenvolvimentos por ramificação correspondem a um
mundo em que o rasto dos valores aparece claramente nas cara-
terísticas do projeto dos artefatos técnicos. Não há dúvidas que
nos sistemas técnicos tradicionais não há uma distinção clara en-
tre a compreensão técnica e aquilo a que chamaríamos “valores
éticos e estéticos”. Há uma “maneira correta” de fazer as coisas,
que inclui todos estes fatores num conjunto único de práticas.
Este é o mundo que o racionalismo iluminista criticou e der-
rubou. Ao fazê-lo, libertou o desenvolvimento económico e téc-
nico das restrições estabelecidas na cultura tradicional. A era
moderna inicia-se com a luta pela liberdade nesse sentido peculi-
ar do termo. Durante séculos, o progresso no Ocidente significou
eliminar, o mais possível, as mediações valorativas das institui-
ções racionalizadas, e isto foi confundido com a emergência da
racionalidade pura a partir de uma herança de restrições e limi-

235
CAPÍTULO VI

tações irracionais.
Mas, tal como vimos, os valores entram nas escolhas técnicas
através de outras formas mais subtis, que eram invisíveis para os
ocidentais, mas tornaram-se imediatamente óbvias quando a tec-
nologia ocidental foi transferida para o Japão. A tecnologia oci-
dental foi conformada pelas sistematizações que eram os fun-
damentos de uma forma de vida incorporada no seu próprio
projeto, e este modo de vida era muito diferente do modo de vida
japonês. A suposta pureza da racionalidade técnica não precisava
de uma desmistificação elaborada no Japão, porque era obvia-
mente falsa. A interpretação culturalista da tecnologia, de Nishi-
da e Miki, fazia perfeito sentido nesse contexto e antecipou as
conclusões dos estudos contemporâneos da tecnologia. A síntese
dos valores orientais e da tecnologia ocidental, que eles imagina-
ram, tem o seu paralelo, hoje em dia, na estratificação da tecnolo-
gia com os objetivos ambientais, democráticos e outros, que
foram excluídos do processo original de projeto.
Hoje, quando o Ocidente se confronta com as limitações da
sua própria tecnologia, é como se todo o mundo começasse a pa-
recer-se com a modernização no Japão. Estamos ameaçados pela
nossa tecnologia de formas que não podemos mais ignorar e con-
frontados com a nossa própria responsabilidade e também com
poderes insuspeitos, numa inversão surpreendente de pressu-
postos até então óbvios. A ameaça é sistemática e resiste aos mo-
dos familiares de crítica contra a superstição, que temos usado
desde o iluminismo. Precisamos de novas formas de compreen-
der e criticar a tecnologia que nos permitam separar o centro ra-
cional dos nossos sucessos tecnológicos e dos aspetos
indesejáveis que poderiam ser eliminados sob um diferente ar-
ranjo político. O crescimento de uma esfera técnica pública abre
novas possibilidades para intervenções democráticas no desen-
volvimento tecnológico. A filosofia da tecnologia assume toda a
sua significância nesta situação sem precedentes.

236
- Parte III -
MODERNIDADE E RACIONALIDADE
- Parte III -
MODERNIDADE E RACIONALIDADE

O primeiro capítulo desta parte trata da relação entre a teoria da


modernidade e os estudos tecnológicos. Ambos tratam o impacto
da tecnologia na sociedade, uma em termos do processo geral de
racionalização, o outro em termos do desenvolvimento de dispo-
sitivos específicos. Mas, no entanto, não há qualquer comunica-
ção entre eles. Este capítulo tenta explicar esta desconexão
peculiar e conclui com uma tentativa de síntese à volta de abor-
dagens hermenêuticas comuns .
O segundo capítulo explora o sentido em que se pode dizer
que as sociedades modernas são racionais. A racionalidade social
descreve sistemas e instituições que têm alguma semelhança com
as noções correntes de racionalidade, tal como a equivalência
matemática. Os mercados são socialmente racionais, nesse senti-
do. Este capítulo desenvolve uma estratégia crítica para lidar
com a resistência da racionalidade social à crítica racional. Esta
estratégia aparece primeiro em Marx, na sua análise das econo-
mias capitalistas. A teoria das mais valias baseia-se num quadro

239
concetual semelhante à noção de subdeterminação nos estudos
contemporâneos de ciência e tecnologia. Mas algures no processo
diluiu-se o impulso crítico. A teoria crítica da tecnologia tenta re-
cuperar esse impulso. Generalizamos aqui essa abordagem para
cobrir as três formas principais de racionalidade social.
O terceiro e último capítulo conclui esta parte e trata do tema
central deste livro: a relação entre a experiência quotidiana e a
racionalidade tecnológica. Nas sociedades tradicionais não há
uma grande divisão entre os domínios do conhecimento e da ex-
periência, mas nos tempos modernos prevalecem a especializa-
ção e a diferenciação, e nenhuma cultura une os disjecta membra.
Heidegger e Marcuse identificaram esta condição com a tecnolo-
gia moderna. Marcuse propôs uma transformação radical da tec-
nologia através da união das compreensões técnica e estética. As
suas formulações são ambíguas e têm sido muito mal compreen-
didas. Uma clarificação do seu argumento leva a uma reflexão
mais ampla sobre a reforma das disciplinas técnicas e da sua re-
lação com as lições da experiência.

240
Capítulo VII
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS
TECNOLÓGICOS: REFLEXÕES SOBRE COMO
AS APROXIMAR

O PROBLEMA
As teorias da modernidade e os estudos da tecnologia fizeram
grandes avanços nos últimos anos mas ainda continuam isoladas,
apesar da sobreposição óbvia dos seus objetivos. Como é que se
pode compreender a modernidade sem uma explicação adequada
para os desenvolvimentos tecnológicos que a tornaram possível,
e como é que podemos estudar tecnologias específicas sem uma
teoria mais ampla da sociedade em que se desenvolvem? Estas
questões não têm sido postas de forma persuasiva, e muito me-
nos respondidas, pelos autores mais relevantes desses domínios.
A questão básica que pretendo tratar é o porquê e a razão desta
ignorância mútua peculiar(1).
Na primeira metade deste capítulo passarei em revista as
posições de algumas das figuras mais importantes de cada um
desses domínio. Depois de definir brevemente o problema, nessa
secção, esboçarei o pano de fundo do impasse atual relativamente

241
CAPÍTULO VII

às contribuições originais de Marx e de Kuhn. Considerarei de-


pois os obstáculos que cada um dos domínios coloca à comu-
nicação com o outro. Na segunda parte deste capítulo proponho
uma possível resolução do dilema, preenchendo a lacuna entre os
dois campos através de uma síntese de algumas das suas con-
tribuições mais importantes. Tanto a teoria da modernidade co-
mo os estudos da tecnologia recorrem a abordagens hermenêuticas,
sobre o que elaborarei com uma explicação vagamente heideg-
geriana da inovação. Nas secções finais sumario a minha própria
teoria da instrumentalização e mostro como pode ser aplicada ao
caso da computorização da sociedade.
A teoria da modernidade baseia-se na ideia chave da racion-
alização para explicar o caráter único das sociedades modernas.
“Racionalização” refere-se à generalização da racionalidade téc-
nica como uma forma cultural, especificamente a introdução do
cálculo e do controlo em processos sociais, com um aumento
consequente da eficiência. Ao expor o mundo social tradicional à
manipulação técnica, a racionalização também reduz a sua ri-
queza normativa e qualitativa. As teorias da modernidade afir-
mam com frequência que esta redução empobrece a experiência e
desencadeia forças violentas. Mas, argumentam os teóricos, mes-
mo podendo ser empobrecedora e ameaçadora, a racionalidade
técnica dá poder sobre a natureza, suporta organizações em
grande escala e elimina muitas restrições espaciais à interação
social. Esta visão ambivalente da modernidade é caraterística de
um estilo normativo de crítica cultural que, no entanto, é um an-
átema para os estudos contemporâneos da tecnologia. A teoria do
“paradigma do dispositivo”, de Albert Borgmann, é um exemplo
brilhante desta abordagem (Borgmann 1984).
A racionalização depende de um padrão mais amplo de
desenvolvimento moderno descrito como a “diferenciação” da
sociedade. Esta noção tem implicações óbvias para a separação
da propriedade e do poder político, escritórios e pessoas, religião
e estado, etc. Mas uma racionalidade diferenciada da sociedade

242
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

parece ficar para além do alcance dos estudos sociais. Se a tecno-


logia é um produto dessa racionalidade, então deve escapa à de-
terminação sociocultural.
Os estudos da tecnologia rejeitam esta aproximação global.
Evitam as teorias gerais e baseiam-se antes em estudos de casos
para mostrar a complexidade social da tecnologia, os múltiplos
atores envolvidos na sua criação e a consequente riqueza dos
valores incorporados no seu projeto. Os seus princípios de si-
metria lançam a dúvida sobre a própria ideia de racionalidade
pura. Deste ponto de vista, a teoria da modernidade está errada
ao afirmar que toda a sociedade assenta sobre valores de algum
modo específicos a uma ciência e tecnologia diferenciadas das
outras esferas. Se tecnologia e sociedade não são “coisas” sub-
stanciais que pertencem a esferas separadas, então não faz sen-
tido reivindicar que a tecnologia domina a sociedade e trans-
forma os seus valores.
Mas os estudos da tecnologia perdem parte da verdade
quando dão ênfase apenas à complexidade social e àquilo que as
tecnologias incorporam, mas minimizam a ênfase distintiva sobre
o controlo de cima para baixo que acompanha a racionalização
técnica. Essa tendência depende da diferenciação de instituições
como as empresas que manejam a racionalidade técnica sem
muita preocupação com trabalhadores, tradições e costumes. Por
mais limitada que a diferenciação possa ser, apesar de tudo
permite considerar um valor concreto ou uma coisa como uma
variável manipulável, o que inclui os próprios seres humanos.
Onde o trabalho artesanal tradicional exprimia um investimento
vocacional de toda a personalidade, a organização moderna do
trabalho abstrai os empregos desqualificados do seu caráter e
crescimento pessoais para melhor expor o trabalhador a controlos
externos. Do mesmo modo, a arquitetura tradicional condensava
expressão histórica e estética com estabilidade e durabilidade,
enquanto que hoje a construção estritamente “utilitária” constitui
a regra geral. É verdade que outros valores preenchem o vazio

243
CAPÍTULO VII

deixado pela diferenciação da esfera técnica - por exemplo, o


lucro - mas a diferenciação é uma caraterística real da modernid-
ade, com imensas consequências sociais.
É possível encontrar alguma verdade em ambas as posições,
ou serão mutuamente exclusivas, tal como certamente o parecem
ser à primeira vista? Acredito que uma síntese é possível, mas
apenas se o conceito de racionalidade técnica for revisto de modo
a libertá-lo de pressupostos positivistas implícitos. É este positiv-
ismo que leva a teoria da modernidade ao erro de assumir que a
diferenciação impõe uma forma puramente racional aos pro-
cessos sociais quando, de facto, tal como os estudos da tecnologia
demonstram, a tecnologia é inteiramente social.
Mas também precisamos de encontrar uma forma de preser-
var os contributos da teoria da modernidade acerca da singular-
idade da modernidade e dos seus problemas. Precisamos de
explicar como é que a racionalidade opera, mesmo quando entre-
laçada com a sociedade. Esta tecnologia, ou aquele mercado, ser-
ão sempre socialmente específicos e inexplicáveis segundo os
termos de um conceito de razão filosoficamente purificado(2). Mas
também serão inexplicáveis sem uma referência à sua forma ra-
cional. Na próxima secção esboçarei o pano de fundo de duas
formas muito diferentes de compreender a racionalidade na teor-
ia da modernidade e nos estudos da tecnologia.

CIÊNCIA DA SOCIEDADE E HISTÓRIA DA CIÊNCIA


Os escritos de Marx são seguramente a fonte singular mais influ-
ente de teorias da modernidade. O seu pensamento é geralmente
identificado com uma fé universalista no progresso. No seu
centro está uma intuição que partilhava com o seu século, a ideia
de uma grande separação entre as sociedades pré-modernas e
modernas. Todos os contrastes posteriores de Gesellschaft com Ge-
meinschaft, solidariedade orgânica versus mecânica, sociedade

244
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

tradicional versus pós-tradicional, e outros, devem alguma coisa


à formulação canónica desta ideia por Marx em textos como o
Manifesto Comunista e O Capital(3). Depois da segunda guerra
mundial, a teoria da modernização emergiu como o principal
concorrente do marxismo, mas continuando a partilhar o univer-
salismo progressista de Marx.
O sentimento de descontinuidade radical nos textos de Marx
envolve mais do que uma teoria da sociedade. A sua noção da-
quilo que Max Weber mais tarde chamará “racionalização” não só
inclui as alterações nos sistemas económicos e sociais que Weber
identifica, mas também inclui uma nova forma de individualid-
ade liberta da ideologia e da religião. Neste sentido, a individu-
alidade é fácil de ver nas novelas do século XIX contemporâneas
dos trabalhos de Marx, que assume a sua generalização às classes
inferiores porque, sob as condições do capitalismo moderno, os
trabalhadores não têm um teto fixo e não estão sujeitos à autorid-
ade paternalista dos nobres e do clero. Tal como o mercado põe
em movimento as placas teutónicas da cultura, as classes inferi-
ores são libertadas da fé ingénua nos seus “superiores” e conse-
guem uma apreciação irónica dos hiatos entre ideais e realidades.
Nestas condições, ganham uma independência mental e tornam-
se, nas palavras de Engels, “foras da lei que são livres” (Engels
1970, 230). A teoria social de Marx fundamenta-se, portanto, não
só em hipóteses cognitivas, mas também na ironia existencial
deste indivíduo moderno. O seu método é fundamentalmente
hermenêutico e desmistificador, tanto quanto analítico. Esta du-
alidade explica o contraste entre o método da crítica da ideologia
por Marx e a sua teoria económica positiva. Manifesta-se de vári-
as formas na teoria da modernidade e é especialmente clara em
Habermas que, como se verá mais adiante neste capítulo, em-
prega tanto os métodos hermenêuticos como os métodos analíti-
cos para estudar a sociedade moderna.
Se há figura que teve um papel comparável nos estudos da
tecnologia contemporânea, é Thomas Kuhn. É verdade que o caso

245
CAPÍTULO VII

de Kuhn como fundador desse pensamento é menos claro. Mui-


tos estudos de ciência e tecnologia evitaram os erros positivistas
criticados por Kuhn, mesmo antes do aparecimento de The
Structure of Scientific Revolutions (Kuhn 1962). No entanto, o
grande sucesso de Kuhn contribuiu para a legitimidade filosófica
desses estudos e encorajou outros a seguirem-lhes os passos. Os
métodos não positivistas da historiografia triunfaram nos estudos
da ciência e subsequentemente influenciaram a nova onda de
estudos da tecnologia que apareceu a partir desses estudos da
ciência durante os anos oitenta. Ao contrário de Marx, Kuhn é
talvez menos uma origem do que um símbolo de uma abord-
agem radicalmente nova(4).
É claro que nem Marx nem Kuhn são seguidos servilmente
pelos académicos contemporâneos, mas não ficaremos surpreen-
didos por descobrir que muitos dos seus pressupostos de fundo
continuam a funcionar em muitas das contribuições atuais da
teoria da modernidade e dos estudos da tecnologia. Gostaria de
começar por considerar vários destes pressupostos, que podem
ajudar a explicar o hiato entre esses dois campos.
Tal como todos os historiadores e teóricos sociais modernos,
Kuhn escreve algures na longa sombra de Marx, como se pode
deduzir das referências à “revolução” no título do seu livro mais
importante, mas a sua abordagem da história é muito diferente da
abordagem de Marx. A visão do passado em Kuhn, tal como em
Marx, é conformada pela ideia de descontinuidades radicais na
história. Mas onde Marx tomou como garantida a existência de
um gradiente de racionalidade mais ou menos idêntico ao nível
dos resultados científicos, capaz de transcender culturas particu-
lares e de as ordenar numa sequência de desenvolvimento, Kuhn
desconstrói a própria ideia de um padrão universal de racionalid-
ade. O impulso desmistificador ainda continua presente, mas di-
rige-se para a crença no progresso caraterística da modernidade.
Agora o olhar irónico volta-se para si próprio, minando a auto
confiança cognitiva implícita nessa posição de ironia ingénua(a) .

246
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

A abordagem de Kuhn teve consequências importantes para


um maior acolhimento dos estudos sobre ciência no mundo
académico. Mostrou que não há uma tradição científica contínua
mas sim uma sucessão de diferentes tradições, cada uma das quais
com os seus próprios métodos e padrões de verdade e com os seus
próprios “paradigmas”. A ilusão de continuidade resulta de um
aplanar das complexidades e ambiguidades da mudança científica
e da sua reconstrução como se fosse um progresso que conduz
diretamente até nós. Se voltarmos para trás, até aos momentos de-
cisivos da revolução científica, e examinarmos o que na realidade
ocorreu, do ponto de vista dos participantes, das suas posições
competitivas, dos seus argumentos e resultados experimentais,
veremos que o caso não é, de forma alguma, assim tão claro.
Esta abordagem orientada para a prática é capturada de
forma muito nítida na sugestão de Latour de que a ciência parece
ser um Janus a olhar para o passado com um espírito completa-
mente diferente daquele com que olha para o futuro (Latour 1987,
12). Latour sugere que a ciência é uma soma de resultados que se
“aguentam” sob certas condições, tais como a repetição de testes
experimentais. O olhar para trás mostra a natureza a confirmar os
resultados da ciência, enquanto que o olhar para a frente ap-
resenta uma imagem muito diferente em que os resultados que se
aguentam são chamados “natureza”. Olhando para trás, pode-se
dizer que se verificaram as condições da verdade porque as
hipóteses da ciência eram verdadeiras. Olhando para a frente,
devemos antes dizer que verificar essas condições define aquilo
que os cientistas vão usar para verdade. Olhar para trás regista
um progresso evolutivo do conhecimento acerca da forma como
as coisas são independentes da ciência; o olhar para a frente fala
da total contingência do processo em que a ciência decide sobre
como é que as coisas são.
Duvido que Kuhn tivesse apreciado esta volta nietzcheana
em torno da sua contribuição original, sobre a qual infelizmente se
retratou em escritos subsequentes. O próprio Kuhn nunca de-

247
CAPÍTULO VII

safiou a noção de modernidade ou de progresso material a ela as-


sociado. Mas o ponto é oferecer não tanto uma interpretação de
Kuhn, mas da sua significância nos mapas da teoria. Há uma crít-
ica de Marx implícita na sua noção de revolução científica, na me-
dida em que este último acreditava que o seu próprio trabalho era
científico e, mais profundamente, que o progresso na racionalid-
ade carateriza as instituições e formas da modernidade, por con-
traste com formações sociais anteriores. Logo, precisamente
porque Kuhn mina as pretensões da ciência para aceder a ver-
dades trans históricas, o seu trabalho também afeta o marxismo e
a teoria da modernidade que, por sua vez, herdaram muitos dos
pressupostos marxistas. Desse ponto de vista, é claro que Kuhn é,
num certo sentido, a nemésis de Marx e o prenúncio daquilo a que
se veio depois a chamar “pós-modernismo”. Na medida em que
muitos estudos de tecnologia refletem as inovações metodológicas
de Kuhn, também assumem uma certa afinidade eletiva pelo pós-
modernismo ou, pelo menos, por uma crítica pós-moderna da
herança marxista.
O conflito implícito veio à superfície em várias formulações do
pós-modernismo, mas parecia ser ainda um mero desacordo epi-
stemológico. Filósofos, sociólogos e cientistas envolveram-se em
debates acalorados sobre a natureza da verdade, mas estes debates
tiveram pouco eco na teoria da modernização, tal como a crítica de
Habermas a Foucault. As coisas mudaram agora que o conflito
emergiu dentro do par malfadado que estamos aqui a considerar:
teoria da modernidade e estudos da tecnologia. Como não é pos-
sível uma explicação completa da modernidade sem uma abord-
agem à tecnologia e vice-versa, o desacordo filosófico aparece a-
gora como uma tensão entre os dois campos. Já não é mais sobre a
posição na grande questão do realismo versus relativismo, mas diz
respeito às categorias e métodos básicos em teoria social.
Consideremos as implicações dos estudos de tecnologia para
a noção de progresso. Se o relativismo kuhniano tem o poder de
dissolver a auto certeza da ciência e da tecnologia, então que sen-

248
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

tido tem falar de “racionalização”? Na maioria das teorias da


modernidade, a racionalização aparece como uma consequência
espontânea da procura da eficiência, uma vez removidas as ha-
bituais obstruções ideológicas. Os estudos da tecnologia, pelo
contrário, mostram que a eficiência não é um motivo único con-
dicionante do projeto e do desenvolvimento, mas sim que muitas
forças sociais desempenham aí um papel. A tese da “subde-
terminação” afirma que não existe uma única solução racional
para os problemas técnicos, o que abre a esfera técnica a estas
várias influências. O desenvolvimento técnico não é uma flecha a
atingir o seu alvo, mas sim uma árvore que se ramifica em muitas
direções. Mas se os próprios critérios de progresso estão em
fluxo, as sociedades não se podem localizar ao longo de um con-
tínuo único, desde o menos avançado até ao mais avançado. Tal
como a teoria de Kuhn das revoluções científicas, mas agora à es-
cala da sociedade como um todo, os estudos construtivistas da
tecnologia complicam a noção de progresso e correm o risco de a
dissolverem completamente.
Na explicação de Latour, uma racionalidade científica e téc-
nica contingente só pode ganhar força na sociedade em geral at-
ravés das práticas sociais em que é ativamente “exportada” para
fora dos laboratórios e vai para as quintas, ruas e fábricas (Latour,
1987: 249 ff). Os teóricos exportam o seu método relativista à me-
dida que registam os movimentos do seu objeto. Dissolvem todos
os padrões estáveis de progresso em resultados contingentes de
“efeitos de escala” (b) ou de controvérsias. Os fenómenos institu-
cionais ou culturais passam a não ter identidades estáveis, mas
precisam de ser entendidos através do seu processo de con-
strução. Esta abordagem acaba por eliminar as próprias categori-
as da teoria da modernidade, como universal e particular, razão e
tradição, cultura e classe, que se transformam de explicações em
coisas a explicar. Sob estas condições, não se pode nem subir
acima do nível das histórias de casos nem falar de forma signi-
ficativa acerca da essência e do futuro da modernidade.

249
CAPÍTULO VII

A teoria da modernidade sofre desastres no seu próprio ter-


reno quando encontra a nova abordagem. Se não há uma via de-
terminada de evolução técnica a guiar o desenvolvimento social
para estádios superiores, se a mudança social pode tomar camin-
hos diferentes que conduzem a diferentes tipos de sociedade
moderna, então as antigas certezas da teoria colapsam. Não se
pode ter mais a certeza de que dimensões essenciais da mod-
ernidade, como a racionalização e a democratização, sejam na
realidade tendências universais e progressivas das sociedades
modernas ou simples consequências locais de vias particulares
seguidas pelo desenvolvimento ocidental recente. A menos que
enfrente diretamente estas dificuldades, a teoria da modernidade
vai-se tornar tão abstrata que até mesmo essa objeção deixará de
a preocupar, com a correspondente perda de utilidade, ou então
deixará de ser uma teoria e transforma-se num estudo descritivo
de casos específicos. Seguem-se dois exemplos que mostram a
profundidade destes problemas.

SISTEMA OU PRÁTICA
Modernidade como diferenciação
No seu todo, a teoria da modernidade ou continua a ignorar a
tecnologia ou reconhece-a num quadro concetual determinístico
já antiquado. O mais revelador é o caso extremo, mas instrutivo,
de Jürgen Habermas, um dos principais teóricos sociais dos nos-
sos tempos. Todavia, elaborou uma teoria da modernidade com
uma arquitetura sofisticadíssima, mas sem qualquer referência à
tecnologia. Essa indiferença beatífica ao que, seguramente, de-
veria ser uma preocupação focal de qualquer teoria da mo-
dernidade requer uma explicação, especialmente porque
Habermas é fortemente influenciado por Marx, para quem a
tecnologia tinha uma importância central.

250
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

A abordagem de Habermas é também influenciada pela teor-


ia da racionalização weberiana. De acordo com Weber, a mod-
ernidade consiste essencialmente na diferenciação das várias
“esferas culturais”. Estado, mercado, religião, lei, arte, ciência,
tecnologia transformam-se cada um em domínios sociais difer-
entes, com a sua própria lógica e identidade institucional. Nestas
circunstâncias, a ciência e a tecnologia assumem a sua forma fa-
miliar pós tradicional como disciplinas independentes, onde a ra-
cionalidade científica e técnica é purificada dos elementos
religiosos e dos costumes. De modo semelhante, os mercados e os
governos(c) libertaram-se da mistura de preconceitos religiosos e
de ligações familiares a que estavam ligadas no passado. Emer-
gem como aquilo a que Habermas chama “sistemas” governados
por uma lógica interna de trocas equivalentes. Tais sistemas or-
ganizam uma parte cada vez maior da vida quotidiana das so-
ciedades modernas (Habermas 1984, 1987). Onde antes os indi-
víduos discutiam em conjunto como atuar, para o seu próprio
benefício mútuo, ou seguiam rituais e papéis baseados nos cos-
tumes, nós, os modernos, coordenamos as nossas ações com um
mínimo de comunicação através do funcionamento quase au-
tomático dos mercados e dos governos.
De acordo com Habermas, a difusão desses sistemas diferen-
ciados é o fundamento de uma moderna sociedade complexa.
Mas a diferenciação também liberta a interação comunicativa do
dia a dia do peso esmagador de coordenar toda a ação social. A
esfera comunicativa, a que Habermas chama o “mundo da
vida” (d), emerge agora também como um domínio de direito
próprio. O mundo da vida inclui a família, a esfera pública, a
educação e todos os vários contextos em que os indivíduos são
moldados como membros relativamente autónomos da so-
ciedade. Também está sujeito, de acordo com Habermas, a uma
racionalização específica que consiste na emergência de institu-
ições democráticas e liberdades pessoais. Por mais contestável
que seja esta explicação da modernidade, há algo de significativo

251
CAPÍTULO VII

que ela consegue capturar. As sociedades modernas são real-


mente diferentes, e a diferença parece estar relacionada de perto
com o funcionamento impessoal de instituições como os merca-
dos e os governos, e com o aumento da liberdade pessoal e polít-
ica que resulta da nova liberdade de comunicação.
Primeiro Habermas argumentou que a racionalização do sis-
tema prenunciava intrusões tecnocráticas na interação comunica-
cional no mundo da vida, e esta referência parecia ligar a sua
teoria ao tema da tecnologia, tema familiar desde a primeira ger-
ação da Escola de Frankfurt (Habermas 1970; Feenberg 1995, cap.
4). No entanto, a sua formulação madura da teoria ignora a
tecnologia e foca-se exclusivamente no crescimento dos mercados
e governos. A arbitrariedade desta exclusão aparece claramente
no seguinte sumário da teoria de Habermas:
Porque somos fundamentalmente animais que tanto usam a
linguagem como usam ferramentas, a representação da razão
como essencialmente instrumental e estratégica é fatalmente
unilateral. Por outro lado, não há dúvida que esses tipos de ra-
cionalidade atingiram uma certa dominância na nossa cultura.
Os subsistemas em que estão institucionalizados centralmente,
a economia e a administração governamental, têm progressi-
vamente invadido outras áreas da vida que transformam à sua
própria imagem e semelhança. A “moneterização” e a “buro-
cratização” da vida resultantes são aquilo a que Habermas se
refere como a “colonização do mundo da vida” (McCarthy
1991, 52).
O que aconteceu ao animal “utilizador de ferramentas” da
primeira frase desta passagem? Será que o dinheiro e o poder
são as suas únicas ferramentas? Como é possível ignorar as fer-
ramentas tecnológicas numa sociedade como a nossa? A incapa-
cidade dos teóricos críticos habermasianos para pôr estas
questões, e ainda menos responder-lhes, indica uma fraqueza fa-

252
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

tal na sua abordagem. Mas o pior vem a seguir.


A reformulação da teoria da diferenciação de Weber, por Ha-
bermas, neutraliza os sistemas racionais, reduzindo-os ao seu pa-
pel funcional. Isto tem implicações políticas conservadoras. Em
muitas das formulações de Habermas, por exemplo quando con-
sidera o controlo de trabalhadores, as exigências radicais são tra-
tadas como desdiferenciação(e), logo, como irracionais (Habermas
1986, 45, 91, 187). Mas não oferece sugestões concretas, pelo me-
nos em The Theory of Communicative Action , para reformar os mer-
cados e os governos mas, em vez disso, sugere antes limitações à
sua influência social.
No caso da ciência e da tecnologia, esta regressão perplexante
de uma explicação social é levada ao ponto de caricatura. Haber-
mas diz que ciência e tecnologia baseiam-se muito simplesmente
numa “atitude objetivante” não social relativamente ao mundo
natural (Habermas 1984, 1987, I, 238). Isto pareceria não deixar
qualquer lugar para a dimensão social da ciência e da tecnologia,
que tem sido repetidamente mostrado que conformam a formula-
ção dos conceitos e dos projetos. É claro que se os cientistas e tec-
nólogos estão numa relação puramente objetiva com a natureza,
então não há interesse filosófico em estudar o fundo social dos seus
conhecimentos. Na visão de Habermas, é difícil ver como é que
uma racionalidade bem diferenciada poderia incorporar valores e
atitudes sociais a não ser como fontes de erro ou como objetivos
extrínsecos que governam o seu “uso”. Isto também implica um
problemático dualismo metodológico em que uma explicação
quase fenomenológica do mundo da vida coexiste com explica-
ções teóricas de sistemas objetivistas de mercados e administra-
ções governamentais. Não há dúvida que existem objetos que são
melhor analisados por estes métodos diferentes, mas qual é o mé-
todo mais adequado para analisar as interações entre eles? Haber-
mas tem pouco a dizer acerca disto, para além da sua explicação
das deslocações das fronteiras e a definição dos objetivos, que são
os únicos pontos de interseção neste seu quadro concetual.

253
CAPÍTULO VII

O efeito desta abordagem é libertar a teoria da modernidade


de todos os detalhes do estudo sociológico e histórico das instân-
cias atuais da racionalidade. Seja qual for a história que sociólo-
gos e historiadores tenham para contar acerca de um mercado,
administração governamental, ou, afortiori, tecnologia, em parti-
cular, isso é incidental para as formas filosóficas abstratas da ra-
cionalidade diferenciada. A questão real não é se este ou aquele
acontecimento contingente poderia ou não ter levado a resultados
práticos diferentes, pois tudo o que interessa à teoria social é o
alcance de sistemas racionais e a extensão das suas intrusões no
terreno próprio da ação comunicativa (Feenberg 1999, cap. 7).
Poderá ser que a diferenciação mais importante para Haber-
mas é a que separa a sua teoria de certas disciplinas sociológicas e
históricas, cujo material ele acha que deve ignorar para perseguir
o seu próprio caminho como filósofo? Mas quando se comparam
os resultados com teorias anteriores da modernidade, torna-se
claro que paga um preço enorme para ganhar um espaço para a
filosofia. Marx tinha uma crítica concreta das instituições revolu-
cionárias da sua época, o mercado e o sistema fabril, e a teoria
posterior da modernização antecipou todo um conjunto de con-
sequências sociais e políticas do desenvolvimento económico.
Mas as queixas de Habermas acerca das fronteiras da adminis-
tração do estado social parecem muito distantes das fontes mais
importantes do desenvolvimento social atual, da resposta à crise
ambiental, da revolução nos mercados globais, das desigualdades
planetárias, do crescimento da internet e outras tecnologias que
estão a transformar o mundo. No seu trabalho, a teoria da mo-
dernidade já não se preocupa com essas questões materiais, mas
opera antes a um nível superior, um nível onde infelizmente
pouco está a acontecer.
É claro que alguns teóricos sociais fizeram contribuições para
a teoria da modernidade que tocam de forma interessante na tec-
nologia(5). Ulrich Beck propôs uma teoria da “modernidade refle-
xiva” em que o papel da tecnologia é discutido em termos de

254
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

transformações na natureza da racionalidade social (Beck 1992).


Beck começa a partir do mesmo conceito weberiano de diferenci-
ação, tal como Habermas, mas considera-o apenas como um es-
tádio daquilo a que chama “modernidade simples”, que cria uma
tecnologia que tanto é poderosa como fragmentada. As intera-
ções não controladas entre fragmentos reificados têm consequên-
cias catastróficas(6). Beck argumenta que hoje em dia está a
emergir uma “sociedade do risco”, especialmente visível no do-
mínio ambiental:
“A sociedade do risco ... aparece na continuidade dos proces-
sos autónomos de modernização, que são cegos e surdos aos
seus próprios efeitos e ameaças, e que produzem, de forma
cumulativa e latente, ameaças que põem em questão, e even-
tualmente destroem, os fundamentos da sociedade industrial”
(Beck 1994, 5-6)

A sociedade do risco é, por inerência, reflexiva, no sentido


em que as suas consequências contradizem as suas premissas. À
medida que se consciencializa da ameaça que põe à sua própria
sobrevivência, a reflexividade torna-se auto reflexão, conduzindo
a novos tipos de intervenção política destinada a transformar o
industrialismo. Beck coloca a sua esperança de uma modernid-
ade alternativa numa fungibilidade radical das esferas diferen-
ciadas, que ultrapasse o seu isolamento e, assim, a tendência para
tropeçarem em crises inesperadas.
“A teoria rígida da modernidade simples, que concebe sistem-
as de códigos exclusivos e que atribui cada código apenas a
um subsistema, e só um, bloqueia o horizonte das possibi-
lidades futuras .. Este reservatório só é descoberto e aberto
quando se imaginam, compreendem, inventam e experi-
mentam combinações de códigos, as suas misturas e sínteses”.
(Beck 1994, 32)(7).

255
CAPÍTULO VII

Voltarei a esta sugestão no capítulo final.


Esta revisão da teoria da modernidade é audaciosa e suges-
tiva, mas continua assente numa noção de diferenciação que seria
seguramente contestada por muitos estudiosos contemporâneos
da ciência e tecnologia. O seu principal objetivo tem sido mostrar
que a “diferenciação” é uma ilusão - a “purificação” de Latour é
algo semelhante - e que as várias formas da racionalidade mo-
derna pertencem a um contínuo de práticas diárias, mais do que
a uma esfera separada (Latour 1993, 81).
Porém o fenómeno principal identificado pela teoria da mo-
dernidade certamente que existe e requer explicação. Atingiu-se
um impasse curioso nas relações interdisciplinares acerca deste
problema, o que nos deixa perplexos. As explicações orientadas
para a prática de casos particulares não se podem generalizar pa-
ra explicar o caráter sistémico da modernidade, enquanto que a
teoria da diferenciação parece ser invalidada por aquilo que te-
mos aprendido acerca do caráter social da racionalidade, a partir
dos estudos da ciência e tecnologia. Acredito que uma boa parte
da razão para este impasse seja o continuado poder das fronteiras
disciplinares que, mesmo onde não se tornam num fundamento
teórico, como em Habermas, continuam a dividir teóricos e in-
vestigadores. Longe de enfraquecer, estas fronteiras tornaram-se
ainda mais rígidas na sequência da onda de forte empirismo nos
estudos de ciência e tecnologia e do ceticismo crescente neste do-
mínio em relação à teoria da modernidade, em todas as suas for-
mas. Passarei agora para dois exemplos dos estudos de tec-
nologia que ilustram este ponto.

A LÓGICA DA SIMETRIA
O “princípio da simetria” construtivista é suposto assegurar que
o estudo das controvérsias não seja enviesado(f) pelo conheci-
mento do resultado (Bloor 1991,7). Tipicamente, o enviesamento

256
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

toma a forma de uma avaliação “assimétrica” dos dois lados da


controvérsia, atribuindo “razão” aos vencedores e “preconceito”,
“emoção”, “teimosia”, “venalidade”, ou outro motivo irracional,
aos perdedores. Conceitos básicos da teoria da modernidade, co-
mo racionalização e ideologia, também pressupõem um enviesa-
mento semelhante, que se correlacionam com os seus opostos,
caraterizados normativamente, os arranjos sociais irracionais e o
conhecimento científico. Estes conceitos parecem anular-se pelo
princípio da simetria.
A preocupação principal dos construtivistas sociais é conse-
guir uma visão equilibrada das controvérsias, em que a racionali-
dade não é atribuída, como um prémio, apenas a um dos lados,
mas sim reconhecida onde quer que apareça e onde os motivos e
métodos não técnicos não são ignorados como distorções, mas
sim tomados em consideração ao lado dos motivos e métodos
técnicos, como aspetos normais das controvérsias. Os perdedores
têm muitas vezes excelentes razões para as suas convicções, e os
vencedores por vezes prevalecem, pelo menos em parte, através
de demonstrações dramáticas ou de vantagens sociais. O princí-
pio da simetria orienta o investigador para uma avaliação impar-
cial, por contraste com o inevitável preconceito a favor dos
vencedores, que dá colorido ao ponto de vista retrospetivo dos
observadores metodologicamente pouco sofisticados.
Mas há um risco nessa imparcialidade quando envolve a tec-
nologia: se o resultado não pode ser invocado para julgar as par-
tes da controvérsia, e se todos os vários motivos e méritos de
retórica são avaliados sem preconceitos, como é que então pode-
mos criticar erros e atribuir responsabilidades? Considere-se, por
exemplo, a análise do acidente do Challenger por Harry Collins e
Trevor Pinch (Collins e Pinch 1998, cap. 2). Recorde-se que vários
engenheiros da Morton Thiokol, a empresa que desenhou os
“space shuttle”, recusaram-se inicialmente a apoiar um lança-
mento com tempo frio. Tinham medo que os anéis de vedação(g)
que selavam as secções do foguetão de lançamento não funcio-

257
CAPÍTULO VII

nassem bem a baixas temperaturas. Acontece que os aconteci-


mentos mostraram que estavam certos, mas a gestão ultrapassou-
os, e o lançamento foi para a frente, com os resultados conheci-
dos. A descrição padrão desta controvérsia é assimétrica, opondo
a razão (os engenheiros) à política (os gestores).
Coolins e Pinch pensam de outra maneira. Mostram que os
anéis de vedação eram simplesmente um dos muitos problemas
conhecidos no projeto do Challenger. Como não havia evidência
sólida que justificasse o cancelamento do voo fatal, era razoável
continuar e não fazer uma ostentação acéfala de um aviso presci-
ente. As necessidades de planeamento, assim como as considera-
ções de engenharia, influenciaram a decisão não por irres-
ponsabilidade da gestão, mas antes como uma forma de resolver
uma controvérsia de engenharia numa situação de impasse. Pa-
rece que ninguém foi responsável pelo trágico acidente que se se-
guiu, pelo menos no sentido de ser um caso em que pessoas
normalmente prudentes teriam tomado a mesma decisão infeliz
num curso normal de acontecimentos.
Mas a evidência podia ter suportado uma conclusão bastante
diferente, se Collins e Pinch a tivessem avaliado num contexto
mais amplo. A sua explicação simétrica obscurece o tratamento
assimétrico de diferentes tipos de evidências dentro da comuni-
dade técnica que estudam. É claro, da sua apresentação, que a
controvérsia na Morton Thiokol era irresolúvel devido à exigên-
cia imperativa de dados quantitativos e à denegação da observa-
ção, até mesmo a de um engenheiro experiente. Pode uma análise
do incidente abstrair da crítica deste enviesamento?
Roger Boisjoly, que foi um dos que mais argumentou contra
um lançamento com tempo frio, baseou os seus argumentos na
evidência dos seus próprios olhos. Isto não vai ao encontro da-
quilo que Collins e Pinch definem respeitavelmente como “pa-
drões técnicos prevalecentes” (Collins e Pinch 1998, 55). O facto
de Boisjoly estar provavelmente correto não se pode descartar co-
mo um mero acidente. Antes diz algo sobre as limitações de um

258
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

certo paradigma de conhecimento e sugere a existência de uma


problemática ideológica dissimulada pelo princípio da simetria.
Pode ter acontecido que as observações de Boisjoly tenham sido
ignoradas e que tenham sido pedidos dados quantitativos para se
poder manter o planeamento da NASA? Ou, dito de outra ma-
neira, será que a necessidade por dados quantitativos teria sido
igualmente obrigatória na ausência dessa pressão? Ao assimilar
este caso a qualquer outro risco de projeto, sem considerar as ob-
servações de Boisjoly como uma razão adicional para uma pru-
dência reforçada, Collins e Pinch parecem fazer capitular a razão
crítica aos ditos padrões técnicos prevalecentes(8).
Não posso dizer que tenha feito um estudo independente
deste caso, e Collins e Pinch talvez possam ter razões mais fortes
para as opiniões do que as que exprimem na sua exposição(9). No
entanto, nós sabemos por experiência que as medidas quantitati-
vas são facilmente manipuladas para suportar as políticas estabe-
lecidas. Por exemplo, considerou-se durante muito tempo que os
estudos quantitativos “provavam” a irrelevância da dimensão da
turma para os resultados da aprendizagem, ao contrário do teste-
munho de professores profissionais. Essa “prova” era muito con-
veniente para os legisladores, ansiosos por cortar nos orçamentos,
mas resultou num desastre educacional que não se pode negar, tal
como o acidente do Challenger. Abusos semelhantes das análises
custo/benefício são familiares a todos. Como pode a razão crítica
assentar em casos como estes, sem aplicar noções sociológicas co-
mo “ideologia”, o que pressupõe assimetria?
Há um problema relacionado, que atormenta os estudos da
ciência com a suposta oposição entre análises locais e globais. Os
académicos dos estudos da ciência afirmam, por vezes, que uma
análise puramente local que se estenda cada vez mais é suficiente
para o estudo da sociedade, sem necessidade de recorrer a cate-
gorias globais “não fundamentadas” (h). Esta é, com certeza, uma
dicotomia embaraçosa. Se a análise local é suficientemente ampla,
então não se torna não local, mesmo global? Por que não genera-

259
CAPÍTULO VII

lizar simplesmente dos exemplos locais para categorias macro,


como na teoria da modernidade?
Para Bruno Latour, a análise das disputas contingentes pelo
poder dentro de redes específicas é suficiente e a introdução de
termos como “cultura”, “sociedade” ou “natureza” simplesmente
iria dissimular as atividades que, em primeiro lugar, estabelecem
estas categorias. “Se não falo de “cultura”, é porque esta palavra
está reservada apenas a uma das unidades esculpidas pelos oci-
dentais para definir o homem. Mas as forças não se podem
partilhar entre “humanos” e “não humanos”, salvo localmente e
para reforçar certas redes” (Latour, 1984, 222-223, tradução mi-
nha) (10). Latour continua nesta passagem a reduzir, de forma se-
melhante, os termos “sociedade” e “natureza” a ações locais.
Esta “simetria entre humanos e não humanos” elimina qual-
quer diferença fundamental entre eles. O “social” e o “natural”
precisam agora de ser entendidos nos mesmos termos. As atri-
buições do estatuto de social e de natural são resultados contin-
gentes de processos entabulados a um nível mais fundamental.
Mas então as distinções que fazemos entre o estatuto atribuído a
coisas tais como um protesto de estudantes em Paris e uma mor-
tandade de peixes no Mississipi, a representação política dos
agricultores americanos e a representação das forças nucleares
pelos cientistas, são todas produtos da rede a que pertencem, não
são pressupostos (11).
Esta posição parece ter implicações políticas conservadoras,
pois em qualquer situação de conflito passa a ser a parte mais
forte que estabelece a definição dos termos básicos, “cultura”,
“sociedade” e “natureza”, e os vencidos não podem, quand-même,
apelar para uma essência objetiva para validar as suas reivindi-
cações. Hans Radder argumenta que a teoria dos atores em rede(i)
inclui um enviesamento implícito a favor dos vencedores (Law
1989; Radder 1996, 111-112). A conhecida análise de John Law so-
bre a rede de navegadores portugueses(j) parece confirmar isto,
na medida em que ignora o destino dos povos conquistados, de-

260
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

pois incorporados na rede colonial.


Subjacente à dificuldade de Latour com a resistência está o
operacionalismo estrito que funciona como uma lâmina de
Ockham (k), deixando de fora gerações de concetualizações socio-
lógicas e políticas acumuladas ao longo do tempo. As teorias so-
cial e política foram moldadas pelo avanço histórico de vários
grupos oprimidos, da impotência à participação plena na vida
social e política. Se natureza e sociedade são definidas exaustiva-
mente pelos procedimentos através dos quais emergem como ob-
jetos, então não é claro como é que os concorrentes mal sucedidos
para o papel definidor possam ganhar qualquer controlo sobre a
realidade, até mesmo o fraco controlo da exigência ética. Por ex-
emplo, numa sociedade aristocrática, os cidadãos com aspirações
podem querer apelar para a igualdade “natural”, contra distin-
ções de castas impostas pelo “coletivo” a que pertencem. Mas se
a natureza é definida pelo coletivo, não apenas ideológica ou teo-
ricamente, mas na realidade, então o seu apelo não terá funda-
mento. Ou consideremos as exigências de justiça dos fracos e
oprimidos. O conceito de justiça aparece aqui como uma organi-
zação alternativa da sociedade, assombrando a sociedade atual
como o seu melhor ego. Mas o que é que pode fundamentar o
apelo para esses princípios transcendentes, se o próprio signifi-
cado de sociedade é definido pelas forças que efetivamente a or-
ganizam e dominam?
Argumentei algures que, sem uma teoria social global, será
difícil estabelecer aquilo a que eu chamo “simetria do programa e
do anti programa”, ou seja, o igual valor analítico das intenções
dos atores principais, realizadas com mais ou menos sucesso na
estrutura da rede, e das intenções das partes mais fracas que
aqueles dominam (Feenberg 1999, cap. 5). Em particular, a sime-
tria entre humanos e não humanos bloqueia o acesso ao conceito
essencial da teoria da modernidade: a extensão do controlo técni-
co da natureza aos próprios humanos. Embora a preferência em-
pirista pelo local possa parecer suficientemente inocente, ao

261
CAPÍTULO VII

excluir todas as explicações baseadas nas categorias tradicionais


de teoria social, tais como classe, cultura, ideologia e natureza,
um localismo verdadeiramente rigoroso bloqueia o estudo im-
parcial de conflitos sociais.
A redução operacional da sociedade e da natureza parece eli-
minar paradoxalmente a contingência do fenómeno. O caso é se-
melhante ao da produção artística. Uma composição musical
depende das decisões do compositor, que podiam ter sido diferen-
tes, embora, quando terminada, esteja perfeitamente definida por
si mesma. Não há uma autoridade máxima para quem apelar con-
tra ela. A Quinta Sinfonia de Beethoven é um produto necessário
das contingências da sua criação. De forma semelhante, as redes de
Latour definem-se a si próprias como necessárias no decurso da
sua auto criação, sem uma autoridade superior capaz de pôr a sua
definição em dúvida. A hipótese contrária, segundo a qual a natu-
reza não é simplesmente aquilo que o coletivo considera ser e que
a sociedade transborda dos limites que lhe são impostos por aque-
les que têm influência e poder, parece violar o operacionalismo de
Latour. No entanto, sem tal hipótese, acaba-se inevitavelmente no
mais acrítico dos conformismos. Como é que pode aceitar uma tal
hipótese sem que a sua teoria rebente pelas costuras?
O livro de Latour sobre ecologia política tenta lidar com este
tipo de criticismo (Latour 1999). Enfrenta o desafio de explicar a
agência de oposição, ou seja, a resistência à definição dominante
da rede em que o sujeito está alistado. A moralidade política exige
que encontre um lugar para essa resistência nas sua teoria. Mas a
consistência exige que o faça sem reintroduzir uma natureza
transcendente ou uma moralidade.
Latour descobriu como ter o seu bolo operacionista (m) e tam-
bém como o comer. Argumenta que as condições necessárias para
a oposição podem-se atingir sem se invocarem princípios trans-
cendentes. A solução é uma vez mais operacional: não olhar para
os objetos transcendentes, mas sim para os procedimentos con-
testatários pelos quais o coletivo é desafiado e transformado. Es-

262
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

tes procedimentos podem prevenir totalizações prematuras ou


encerramentos (l) que ignoram a agência dos fracos e violam os
direitos humanos. Em suma, Latour substitui uma doutrina de-
mocrática do debate legítimo pela natureza e moralidade como o
fundamento último da resistência (Latour 1999, 156, 172-173).
Mas esta solução é ambígua. A alegação de Latour deve ser
interpretada como um princípio constitucional anti tecnocrático:
“não interromper a conversa coletiva com descobertas autoritári-
as”. Ele pode estar a dizer que isto é tudo o que a filosofia pode
reivindicar persuasivamente sem pré julgar o conteúdo do discur-
so democrático. Segundo os termos da filosofia política contempo-
rânea, isto implicaria uma distinção entre o bem e o mal, um
universalmente válido, o outro contencioso e racionalmente im-
possível de refutar. Essa interpretação deixa ainda em aberto a
possibilidade de atores comuns poderem legitimamente apelar
para uma natureza ou sociedade transcendente. Mas isto não pa-
rece satisfazer Latour. Ele quer expulsar os objetos transcendentes
não só da teoria como também da prática. Isto é uma consequência
da ontologização da rede e de a tratar como o fundamento real dos
objetos que contém. À falta de propor um discurso duplo, um ver-
dadeiro, para os teóricos, e o outro falso, para as massas, Latour é
obrigado a introduzir as suas inovações teóricas na conversação
coletiva como uma alternativa ao discurso antiquado da transcen-
dência.
Estas inovações teóricas consistem em técnicas de análise lo-
cal que reconstituem a co-emergência da sociedade e da natureza
nos processos de desenvolvimento social, científico e tecnológico.
Como estes processos são históricos, aquilo a que chamamos
“natureza” desenvolve-se agora e muda tanto como “sociedade”.
A descoberta das leveduras do ácido lático por Pasteur é um
grande acontecimento, não só na vida de Pasteur como também
na vida das leveduras. Latour refere-se à filosofia do processo, de
Whitehead, para uma sanção metafísica para a supressão da dife-
rença entre natureza e sociedade dar lugar a um terceiro termo de

263
CAPÍTULO VII

onde ambos emergem (Latour 1994, 212). Isto é interessante e


provocador como filosofia, mas será que essas ideias ficam dis-
poníveis para as pessoas comuns, em geral, como um substituto
para o recurso, agora desqualificado, a fundamentos transcen-
dentes para a resistência? Isso promete ser difícil, exigindo que o
próprio senso comum se torne latouriano! Presumivelmente, o
recurso tradicional a uma “natureza” existente, por exemplo,
igualdade natural, daria lugar, numa sociedade latouriana, a um
apelo por uma evolução favorável da própria natureza. Se bem o
compreendi, Latour está confiante que isto venha a ocorrer, mas
parece pouco provável (Latour 1999, 32-33). Concluo que a sua
tentativa para escapar às implicações conformistas da sua posi-
ção mostra mais boa vontade do que plausibilidade prática.
Não há uma razão intrínseca pela qual os estudos de ciência
devam procurar fazer explodir todo o quadro concetual da teoria
social, e nem todas as abordagens correntes conduzem a essas
conclusões radicais. Mesmo assim, a tendência para o fazer é in-
fluente nos círculos de estudos de ciência. Chamo a atenção para
isso porque leva ao limite uma consequência de certas escolhas
metodológicas originais aplicadas à tecnologia e, através da tec-
nologia, à vida social moderna. Os resultados são intrigantes,
mas no final acabam por ser insatisfatórios.

SEPARAR A DIFERENÇA
Interpretação e mundaneidade (n)
Pretendo agora sugerir uma resolução parcial do conflito entre a
teoria da modernidade e os estudos da tecnologia. O ponto chave
sobre o qual me quero focar é o papel da interpretação nesses
dois campos. Onde a sociedade não é estudada como um domí-
nio de interações causais governado por leis, então é geralmente
considerada como um domínio de significados, que envolve in-
divíduos de um certo tipo e que interagem entre si, por exemplo,

264
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

indivíduos que partilham entre si alguma forma específica de en-


tender a consciência ou a linguagem. A compreensão interpretati-
va da sociedade é, portanto, uma alternativa às explicações
determinísticas, e a hermenêutica aparece como um modelo ex-
plicativo mais adequado para a sociedade do que a abordagem
nomológica imitada a partir da ciência física.
O lugar da interpretação nos estudos de tecnologia deveria
ser óbvio dada a sua crítica ao determinismo. As tecnologias não
falam sem ambiguidade, mas precisam de ser interpretadas, e es-
te facto põe em questão o seu suposto papel determinante, pois
evoluem em função da sua interpretação. Ao impacto social da
tecnologia corresponde, portanto, um impacto técnico da socie-
dade. Esta circularidade tem implicações sociais ontológicas. A
tecnologia serve necessidades, e ao mesmo tempo também con-
tribui para a emergência das próprias necessidades que serve; os
seres humanos fazem tecnologias que, por sua vez, conformam o
que significa ser humano. Isto é a “co-construção” dos seres hu-
manos e da sociedade.
Estas relações circulares são familiares na hermenêutica. O
famoso “círculo hermenêutico” descreve a natureza paradoxal da
compreensão interpretativa: podemos compreender só aquilo
que, até um certo grau, já compreendemos. Um objeto completa-
mente não familiar continuaria impenetrável. No entanto, esta
circularidade não é viciosa porque podemos iniciar o nosso cami-
nho para um entendimento mais completo a partir de uma “pré
compreensão” mínima, tal “como usar as peças de um enigma ou
quebra cabeças (o) para a sua própria compreensão” (Palmer 1969,
25).
A análise da bicicleta, por Pinch e Bijker, ilumina o papel da
“flexibilidade interpretativa” na evolução do projeto (Pinch e
Bijker 1989). No princípio, a bicicleta tinha dois significados dife-
rentes para dois grupos sociais diferentes. Essa diferença na in-
terpretação de uma montagem de peças em grande medida
coincidentes conduziu a projetos com significância e consequên-

265
CAPÍTULO VII

cias sociais distintas. Pinch e Bijker concluíram que “diferentes


interpretações do conteúdo dos artefactos por grupos sociais
conduzem, através de diferentes cadeias de problemas e de solu-
ções, a diferentes desenvolvimentos posteriores” (Pinch e Bijker
1989, 42). Vimos algo de semelhante com o exemplo do Minitel
no capítulo 5. Estava em jogo o seu significado como um disposi-
tivo ou informacional ou comunicacional. Mas isto significa que
não existe um telos estável, pré definido, do desenvolvimento
tecnológico, porque os objetivos são variáveis, não constantes, e
os dispositivos técnicos não têm um propósito próprio evidente
por si mesmo. Claramente, estamos aqui muito longe da antiga
conceção determinista da tecnologia em que as mudanças no
projeto resultam da lógica técnica da inovação. O significado é
agora central.
A interpretação tem um papel igualmente importante para os
teóricos da modernidade, como Habermas e Heidegger. Ambos
os pensadores baseiam-se num contraste entre a racionalidade ci-
entífica e tecnológica e a abordagem fenomenológica para a arti-
culação da experiência humana. Privilegiam o “mundo da vida”
de todos os dias como um domínio original dentro do qual a
identidade humana e o significado do real se encontram em pri-
meiro lugar e com maior profundidade. A interpretação, mais do
que a lei natural, prevalece no estudo deste domínio.
Para Heidegger, os mundos são domínios de significado e de
práticas correspondentes, e não coleções de objetos, como no uso
convencional. Um mundo “revela-se” (p), de acordo com Heideg-
ger, no sentido em que a orientação do assunto abre uma perspe-
tiva coerente da realidade. Os mundos heideggerianos pa-
recem-se, portanto, com o nosso conceito metafórico de um
“mundo do teatro” ou de um “mundo chinês”. Aqui, a interpre-
tação não é uma atividade intelectual especializada, mas antes a
própria base da nossa existência como seres humanos (Spinosa et
al 1997, 17)(12).
No seu trabalho tardio, Heidegger desenvolveu uma crítica

266
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

radical da tecnologia devido aos seus poderes para “des-munda-


nizar” (q), ou seja, despojar os objetos das suas potencialidades
inerentes e reduzi-los a meras matérias primas. Esta volta na aná-
lise de Heidegger parece anular o seu sentido hermenêutico, uma
vez que a mensagem da tecnologia é sempre a mesma, aquilo a
que Heidegger chama o “enquadramento” (r) (Heidegger 1977).
Embora esta teoria da tecnologia seja sempre negativa, alguns
dos seus seguidores tentaram modificá-la de uma forma interes-
sante.
O conceito heideggeriano inicial de mundo da vida foi apli-
cado à inovação por Charles Spinosa, Fernando Flores e Hubert
Dreyfus. Como veremos, o foco principal do seu livro é a lideran-
ça, e não a tecnologia, mas isso acaba por ser uma questão de ên-
fase fácil de corrigir. O ponto de partida dos autores é, em
qualquer caso, a noção de revelação(s), central o pensamento de
Heidegger. Disclosing New Worlds (1997) parte dos conceitos bási-
cos de Heidegger no contexto de uma teoria da história. O livro
trata do problema de como é que as atividades reveladoras mu-
dam o mundo em que vivemos, abrindo-nos para perspetivas no-
vas ou diferentes e reorganiza as nossas práticas em torno de um
significado diferente do que é real e importante. O livro passa em
revista três tipos de práticas reveladoras, correspondentes a três
tipos de atores históricos.
“Articulações” reorientam os valores e práticas centrais de
uma comunidade. Esta é primariamente uma tarefa dos líderes
políticos. Os autores citam, como exemplo, a capacidade de John
Kennedy para gerar entusiasmo pela corrida ao espaço, à volta de
temas como a Nova Fronteira. As “articulações cruzadas” (t) entre-
laçam valores e práticas de diversos domínios da vida social em
novos padrões que alteram a estrutura do nosso mundo. Este é o
trabalho de movimentos sociais como as MADD (u) (Mães contra a
condução embriagada, em inglês), que transpuseram ideias acerca
do comportamento responsável do domínio do trabalho para o
domínio do lazer. Finalmente, e mais significativo, “reconfigura-

267
CAPÍTULO VII

ção” é o processo pelo qual uma prática marginal se transforma


numa prática dominante. Os empreendedores são os agentes da
reconfiguração, que realizam através da introdução de novos pro-
dutos que sugerem um novo estilo de vida. O foco de Disclosing
New Worlds não é sobre os produtos, mas sim sobre os empreen-
dedores. No entanto, os autores escrevem explicitamente que “é o
produto ou o serviço, não o estilo de vida virtuoso do empreende-
dor, que faz mudar o mundo...” (Spinosa et al 1997, 45).
Embora não mencionem os estudos de tecnologia, os
exemplos ilustra bem a flexibilidade interpretativa. A introdução
das lâminas de barbear descartáveis pela Gillette é um caso exem-
plar. A lâmina de barbear tradicional pertencia a um mundo em
que os homens cuidavam e apreciavam objetos produzidos com
todo o cuidado. A Gillette sentiu a possibilidade de uma redefini-
ção da relação masculina com os objetos, em termos de controlo e
descartabilidade, e aprofundou essa mudança com um novo tipo
de lâmina de barbear. Por outras palavras, a Gilette não serviu
apenas a necessidade já existente por lâminas mais afiadas(13).

A questão para o empreendedor era: o que é que este ataque à


monotonia significa? Significava que apenas queria uma
lâmina de barbear mais bem trabalhada, que mantivesse a
lâmina afiada por mais tempo? Ou queria uma nova forma de
lidar com as coisas? Nós argumentamos que os genuínos
empreendedores são sensíveis às questões históricas, não às
questões pragmáticas, e que o que é interessante nas suas in-
ovações é mudarem o estilo das nossas práticas nesse domínio,
como um todo. (Spinosa et al 1997, 42-43)

O conceito de estilo aqui introduzido é uma caraterística


muito geral dos mundos, relevante para o projeto de artefactos.
Encontramos ferramentas mais precisas para discutir o trabalho
reconfigurativo dos artefactos nas noções de “atores” e de

268
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

“guião” (v) nos estudos da tecnologia (Akrich 1992; Latour 1992).


Em particular, a multiplicidade de atores identificada em muitas
histórias de casos oferece um corretivo útil ao individualismo
implícito no livro. A tendência para um heróico poder revelador
em poetas, filósofos e estadistas, que se presume estarem em
contacto com o “ser”, foi já anteriormente notada por Heidegger
e pelos seus seguidores. Talvez o excesso de entusiasmo com os
empreendedores seja uma expressão modesta dessa tendência.
Em qualquer caso, a ênfase individualista confirma a tendência
das teorias da modernidade para se abstraírem do mundo das
coisas. Mas, desta vez, há uma diferença: por uma vez, uma teo-
ria leva, por si mesma, a uma mudança de ênfase, para ter em
consideração a tecnologia, porque, de facto, a tecnologia já está
no seu centro. Os autores escrevem que “um mundo, para Hei-
degger,... é uma totalidade de partes inter relacionadas de equipa-
mentos , cada uma deles usado para executar uma tarefa
específica, como martelar um prego. Estas tarefas realizam-se pa-
ra se atingirem certos propósitos , como construir uma casa. Final-
mente, esta atividade permite que os que a desempenham
tenham identidades , tal como ser um carpinteiro” (Spinosa et al
1997, 17).

OUTRA VEZ A INSTRUMENTALIZAÇÃO:


DES-MUNDANIZAÇÃO E REVELAÇÃO
Temos agora duas premissas complementares, a partir de duas
tradições teóricas que estamos a tentar reconciliar. Por um lado, a
evolução das tecnologias depende das práticas interpretativas
dos seus utilizadores. Por outro lado, os seres humanos são es-
sencialmente intérpretes conformados por tecnologias revelado-
ras do mundo (w). Os seres humanos e as suas tecnologias estão
envolvidos numa co-construção sem origem. A teoria da moder-

269
CAPÍTULO VII

nidade trata do papel das disciplinas técnicas diferenciadas no


“controlo humano dos seres humanos”. Os estudos de tecnologia
mantêm-nos focados na natureza essencialmente social da racio-
nalidade técnica empregue nessas disciplinas. A perspetiva her-
menêutica constrói uma ponte entre estas duas abordagens
diferentes.
Uma síntese deve habilitar-nos a compreender o papel cen-
tral da tecnologia na vida moderna, tanto como tecnicamente ra-
cional na forma como rica em conteúdos socialmente específicos.
Assim, o programa é este: explicar o impacto social e cultural da
racionalidade técnica, sem perder de vista a sua incorporação so-
cial concreta em dispositivos e sistemas reais. O conceito de reve-
lação do mundo pode aqui ser útil, na condição de a análise
prosseguir, não só em termos da questão de estilo, mas, mais es-
pecificamente, em termos da constituição prática dos objetos téc-
nicos e das disciplinas.
A teoria da instrumentalização tenta fazer essa síntese, anali-
sando a tecnologia a dois níveis. A primeira instrumentalização é
o processo de desmundialização inerente à ação tecnológica. Os
materiais envolvidos nos processos técnicos pertencem sempre a
um mundo que deve ser destruído à medida que os materiais são
libertados para o uso técnico. O efeito específico da desmundiali-
zação da ação técnica diz respeito não só ao objeto como também
ao sujeito. O ator técnico fica numa posição externa, isolada, rela-
tivamente ao seu objeto. Logo, distinguimos entre a manipulação
técnica e as relações recíprocas da comunicação quotidiana. Os
modelos filosóficos de racionalidade instrumental baseiam-se ge-
ralmente neste aspeto da coisa técnica. Por exemplo, é central na
distinção entre sistema e mundo da vida, por Habermas, e na crí-
tica do enquadramento, por Heidegger.
A maioria das teorias da modernidade identifica a desmun-
dialização com a essência da tecnologia, sem cuidar da complexi-
dade da dimensão reveladora conseguida pela instrumentalização
secundária. Conjeturo que isto é devido a duas caraterísticas da

270
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

esfera técnica moderna. Por um lado, as próprias disciplinas téc-


nicas apenas incorporam fatores sociais de uma forma abstrata e
simplificada. Por exemplo, o mais humano dos valores, a com-
paixão pelos doentes, exprime-se tecnicamente em especificações
objetivas como os protocolos de tratamento médico. O facto do
protocolo poder ser seguido sem compaixão sugere que as espe-
cificações objetivas são na realidade auto suficientes e formam
um universo fechado de onde os valores foram excluídos. Por
outro lado, a tecnologia moderna foi estruturada à volta do alar-
gamento da dominação impessoal aos seres humanos e à nature-
za, com uma profunda indiferença para com as suas necessidades
e interesses. Este tipo de desenvolvimento técnico depende de
restringir a gama de considerações sociais que podem apoiar o
projeto. Assim a desmundialização avulta muito mais nos mun-
dos revelados nas sociedades modernas. Estes mundos diferem
dos mundos das sociedades pré-modernas pelo facto de não
esconderem os vestígios da sua violência fundadora através de
estratégias compensatórias.
Ao demonstrar a contingência do desenvolvimento técnico,
os estudos de tecnologia encorajam-nos a acreditar na possibili-
dade de outras formas de projetar e usar a tecnologia, que tenham
um maior respeito pelas necessidades dos humanos e da natureza.
Mas uma tecnologia alternativa é aparentemente inimaginável a
partir da expectativa externa dos teóricos da modernidade, que
estão geralmente distantes de qualquer envolvimento com o pro-
cesso real, confuso e complexo, da realidade do desenvolvimento
técnico. Os teóricos não reconhecem que a desmundialização as-
sociada à tecnologia é necessária e simultaneamente uma entrada
noutro mundo. Os problemas da nossa sociedade não são devidos
à tecnologia como tal, mas sim devidos aos defeitos e limitações
da revelação que suporta sob a forma existente de modernidade.
A dualidade dos processos técnicos reflete-se na divisão en-
tre a teoria da modernidade e os estudos da tecnologia, cada um
deles dando ênfase a uma das metades do processo. A desmun-

271
CAPÍTULO VII

dialização é uma caraterística saliente das sociedades modernas,


que estão constantemente envolvidas na desmontagem dos obje-
tos naturais e dos modos tradicionais de fazer as coisas e na sua
substituição por novas formas tecnicamente racionais. Focar-se
exclusivamente nos aspetos negativos deste processo resulta na
crítica distópica que associamos a pensadores como o Heidegger
tardio. Mas a desmundialização é apenas o outro lado de um
processo de revelação que precisa de ser compreendido em ter-
mos sociais. Os estudos de tecnologia dão ênfase a este aspeto do
processo. A antinomia resulta do caráter inerentemente dialético
da ação técnica, mal compreendida unilateralmente em cada um
dos casos.
SUJEITOS ÚLTIMOS
Quero concluir estas reflexões com um exemplo que espero possa
ilustrar a fecundidade de uma síntese entre a teoria da moderni-
dade e os estudos da tecnologia. Tenho andado envolvido com a
evolução da comunicação por computador desde os inícios dos
anos oitenta, tanto como participante ativo como investigador.
Cheguei a esta tecnologia com experiência na teoria da moderni-
dade, em especial Heidegger e Marcuse, de quem fui estudante,
mas rapidamente me apercebi que ofereciam pouca orientação
para a compreensão da computorização. As suas teorias davam
ênfase ao papel das tecnologias na dominação da natureza e dos
seres humanos. Heidegger repudiou o computador como o tipo
puro de maquinaria de controlo da modernidade. O seu poder de
desmundialização atinge a própria linguagem, que se reduz a
uma mera posição de um interruptor (Heidegger 1998, 140).
Mas o que estávamos a testemunhar no princípio dos anos
oitenta era algo completamente diferente, a emergência contesta-
da de novas práticas comunicativas da comunidade online. Sub-
sequentemente, vimos críticos culturais inspirados pela teoria da
modernidade que reciclaram a abordagem antiga para essa nova

272
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

aplicação, denunciando, por exemplo, uma suposta degradação


da comunicação humana na internet. Albert Borgmann argumen-
ta que as redes de computadores desmundializam a pessoa, re-
duzindo os seres humanos a um fluxo controlável de dados
(Borgmann 1992, 108). O utilizador final é basicamente um mons-
tro associal, apesar do aparecimento da interação online. Mas esta
crítica pressupõe que os computadores são, na realidade, um
meio de comunicação, mesmo se inferior, precisamente a mesma
questão de há trinta anos atrás. A questão prévia que deve ser
posta diz, por isso, respeito à emergência do próprio meio. Não
se pode compreender a internet sem considerar o desenvolvi-
mento da comunidade online como a sua inovação social mais
caraterística. Voltarei a esta inovação tal como afetou a educação
superior, onde as propostas para a aprendizagem online automa-
tizada têm encontrado a resistência dos docentes. Entretanto, a
educação online está atualmente a emergir como uma forma nova
de prática comunicativa (Feenberg 2002, cap. 5).
O padrão destes debates pode ser analisado nos termos da
teoria da instrumentalização. O computador simplifica uma pes-
soa completa num “utilizador”, para a incorporar na rede. Os u-
tilizadores são descontextualizados, no sentido em que são
despojados do corpo e da comunidade em frente do terminal e
posicionados como sujeitos técnicos isolados, puros atores racio-
nais. Ao mesmo tempo, revela-se um mundo altamente simplifi-
cado em que são confrontados com escolhas de menus e são
chamados a exercitar a iniciativa nesse mundo.
Posicionamento e iniciativa, tal como descritos aqui, estão
correlacionados com as instrumentalizações primária e secundá-
ria, intervenções que desmundializam e revelam. “Posicionamen-
to” é o termo geral para ocupar a localização específica a partir da
qual é possível a ação técnica: o “lugar do condutor”. Assim loca-
lizado, o sujeito encontra-se perante um “mundo” de possibilida-
des (x) que convida a iniciativas de um ou outro tipo. O grau de
iniciativa aberto por qualquer posicionamento indica a liberdade

273
CAPÍTULO VII

permitida ao sujeito no contexto técnico dado.


As abordagens baseadas na teoria da modernidade apontam
para a pobreza do mundo virtual. Isto parece ser uma função da
desmundialização profundamente radical envolvida na compu-
tação. Contudo, veremos que essa crítica não é totalmente corre-
ta, ainda que existam tipos de atividade online que a confirmem,
e que certos atores poderosos procurem, de facto, um maior con-
trolo através da informatização. Mas os teóricos da modernidade
ignoram as contendas e as inovações dos utilizadores envolvidos
na apropriação do meio para criar comunidades online ou expe-
riências educacionais. Ao ignorar ou recusar estes aspetos da
computorização, acabam por voltar a cair no determinismo.
A abordagem “pós humanista” ao computador, inspirada
por comentadores em estudos sociais, sofre de problemas relacio-
nados. Esta abordagem conduz muitas vezes a um foco singular
sobre os aspetos mais desumanizantes da computorização, como
a comunicação anónima, a dramatização online e o cibersexo
(Turkle 1995). Paradoxalmente estes aspetos da experiência online
são interpretados a uma luz positiva, como o fim da modernida-
de centrada sobre o ego e a emergência de um novo ego do futu-
ro, mais fluido e múltiplo (Stone 1995). Mas um tal pós hu-
manismo é cúmplice, em última instância, com a crítica
humanista da computorização, a qual pretende transcender, ao
aceitar uma definição semelhante dos limites da interação online.
Uma vez mais, o que falta é compreender as transformações que
a tecnologia sofre às mãos dos utilizadores, muitos dos quais se
movem por visões mais tradicionais do que se suspeitaria a partir
desta escolha de temas (Feenberg e Bakardjeiva 2004).
O mundo da vida da tecnologia é o meio dentro do qual os
atores se envolvem com o computador. Os processos de interpre-
tação são aqui centrais. Os recursos técnicos não estão simples-
mente pré-definidos, mas adquirem o seu significado através
destes processos. Na linguagem de Latour, o “coletivo” é re-for-
mado à volta da constituição contestada do computador, com este

274
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

ou aquele tipo de mediação a responder a este ou àquele progra-


ma dos atores. Mas sob a influência de teóricos como Latour, os
estudos de tecnologia tornaram-se desconfiados dos próprios ter-
mos dos debates atuais à volta da informatização. Sem dúvida, o
princípio da simetria de Latour, entre humanos e não humanos,
torna difícil reconhecer as disputas entre controlo e comunicação
que emergem em inovações como o Minitel e a internet. Tal como
vimos no capítulo 5, as funções de comunicação foram introduzi-
das pelos utilizadores, em vez de tratadas como potencialdades(w)
normais do meio pelos projetistas dos sistemas. Para esta história
fazer sentido, as versões concorrentes dos projetistas e dos utili-
zadores precisam de ser introduzidas como uma força conforma-
dora significativa.
Considere-se a disputa sobre o futuro da educação online (Fe-
enberg 2002, cap. 5). Em finais dos anos noventa, os estrategas em-
presariais, os legisladores estaduais, os administradores de topo
das universidades e os “futurologistas” alinharam-se por trás de
uma visão da educação online baseada na automação e na redução
das competências(x). O seu objetivo era substituir (pelo menos para
as massas) o ensino face a face com docentes profissionais por um
produto industrial, infinitamente reprodutível a um custo decres-
cente por unidade, como CDs, videodiscos ou software. As despe-
sas gerais da educação baixariam dramaticamente, e o “negócio” da
educação tornar-se-ia finalmente lucrativo. Isto é “modernização”
com uma vingança.
Em oposição a esta visão, os docentes mobilizaram-se em defe-
sa do toque humano. A oposição humanista à computorização to-
mou duas formas muito diferentes. Os que se opunham em
princípio a qualquer mediação eletrónica da educação não tiveram
qualquer impacto na computorização em si mesma, mas apenas no
seu ritmo de implementação. Mas também aconteceu que muitos
docentes favoreceram um modelo de educação online baseado na
interação humana em redes de computadores. Deste lado do debate
prevaleceu um conceito muito diferente de modernidade, em que

275
CAPÍTULO VII

ser moderno é multiplicar oportunidades e modos para comunicar.


O significado do computador muda de uma fonte de informação
para um meio de comunicação, um suporte para o desenvolvimen-
to humano e para comunidades online. Esta alternativa pode ser
reconstituída até ao nível do projeto técnico, por exemplo, na con-
ceção do software educacional e no papel dos fóruns de discussão.
Estas aproximações à educação online podem ser analisadas
em termos do modelo de desmundialização e revelação, introdu-
zidos anteriormente. A automação educacional descontextualiza
tanto quem aprende como o “produto” educacional, ao isolá-los
do mundo existente da universidade. O mundo revelado nesta
base confronta o aluno como sujeito técnico com menus, exercíci-
os e questionários, em vez de outros seres humanos envolvidos
num processo de aprendizagem partilhado.
O modelo alternativo da educação online envolve uma ins-
trumentalização secundária bem mais complexa do computador,
na revelação de um mundo muito mais rico. O posicionamento
original do utilizador é semelhante: a pessoa face à máquina. Mas
a máquina não é uma janela sobre um centro de informações mas,
antes, abre um mundo social. O sujeito final está envolvido, como
uma pessoa, num novo tipo de atividade social e não está limita-
do, por um conjunto de opções de menus enlatados, ao papel de
consumidor individual. O software correspondente abre uma va-
riedade muito maior de iniciativas do sujeito do que um projeto
automatizado. Esta é uma conceção mais democrática de ligação
em rede, que a envolve numa gama muito mais ampla de neces-
sidades humanas.
A análise da disputa sobre as redes educacionais revela pa-
drões que aparecem em toda a sociedade moderna. No domínio
dos meios de comunicação social, estes padrões envolvem com-
binações diferentes das instrumentalizações primária e secundá-
ria que privilegiam ou um modelo tecnocrático de controlo ou
um modelo democrático de comunicação. Uma noção tecnocráti-
ca de modernidade inspira um posicionamento do utilizador que

276
TEORIA DA MODERNIDADE E ESTUDOS TECNOLÓGICOS:
REFLEXÕES SOBRE COMO PREENCHER A LACUNA

restringe muito a sua iniciativa potencial, enquanto que a conce-


ção democrática aumenta a iniciativa em mundos virtuais mais
complexos. Análises paralelas da tecnologia de produção ou dos
problemas ambientais revelariam padrões semelhantes que po-
dem ser clarificados, de forma similar, por referência às perspeti-
vas dos atores.

CONCLUSÃO: POR UMA SÍNTESE


Permitam-me que conclua voltando rapidamente ao meu ponto
de partida. Comecei por contrastar as revoluções teóricas de
Marx e Kuhn e prometi juntá-las através de um método de análi-
se que reconciliaria a teoria da modernidade com os estudos da
tecnologia. Pode uma fenomenologia dos mundos técnicos con-
seguir uma síntese? Recordemos que Marx enfatizava a desconti-
nuidade introduzida na história por aquilo que viria a ser
chamado “racionalização”, a emergência das sociedades moder-
nas baseadas nos mercados, burocracias e tecnologias. Esta visão
parecia implicar um universalismo que apagava toda a diferença
cultural. Por contraste, Kuhn, ou pelos menos alguns dos seus se-
guidores, subverteram a noção de progresso implícita na visão de
Marx, como um processo social cada vez mais racional, e oferece-
ram-nos uma história subordinada à cultura.
Argumentei que a racionalização descreve a generalização de
um tipo particular de desmundialização envolvida na ação técni-
ca. É claro que essas desmundializações desenraízam a natureza e
os modos tradicionais. Mas, de acordo com esta explicação, a ra-
cionalização não se opõe à cultura como tal, mas aparece antes
como uma sua expressão mais ou menos criativa. Na prática, isto
significa que podem existir muitos caminhos de racionalização,
cada um relativo a um quadro cultural diferente. A racionalidade
não é uma alternativa à cultura que possa funcionar isolada, co-

277
CAPÍTULO VII

mo princípio de uma ordem social, para o melhor ou para o pior.


Antes pelo contrário, a racionalidade, na sua forma técnica mo-
derna, faz a mediação entre expressões culturais por formas que,
em princípio, podem concretizar uma grande variedade de valo-
res. A pobreza da tecnocultura atual deve ser reconstituída não a
partir da essência da tecnologia mas sim de outros aspetos da
nossa sociedade, tais como as forças económicas que dominam o
desenvolvimento tecnológico, o projeto e os meios de comunica-
ção. Esta explicação desafia-nos para nos envolvermos no que
Terry Winograd e Fernando Flores chamaram “projeto ontológi-
co”, uma construção consciente, por si própria, de mundos tec-
nológicos que suportam uma conceção desejável daquilo que é
ser-se humano (Winograd e Flores 1987, 179).
Podemos combinar frutuosamente a teoria da modernidade e
os estudos de tecnologia numa abordagem crítica e informada em-
piricamente. A trivialidade que ameaça uma abordagem estrita-
mente descritiva e empírica de fenómenos técnicos humanamente
significantes, como a experimentação sobre sujeitos humanos, a
energia nuclear, ou a educação online, pode ser evitada sem se cair
no erro oposto da especulação a priori. A alternativa - a condenação
global, o empirismo estreito - não é exaustiva. Existem formas de
recuperar alguma da riqueza normativa da critica da modernidade
dentro de um quadro sociológico mais concreto. Conceitos como
“racionalidade”, que os estudos de tecnologia têm desmistificado,
podem ser empregues de uma forma nova, e a intenção emancipa-
tória implícita dessa desmistificação pode vir à superfície como um
objetivo explícito. Talvez em breve os discípulos de Marx e Kuhn
possam descansar juntos nos campos do Senhor.

278
Capítulo VIII

RACIONALIDADE SOCIAL
Tipos de racionalidade
As sociedades modernas são ditas racionais, mas num sentido
muito especial que as distingue das sociedades pré-modernas. As
teorias da racionalização e da modernização consideram esta di-
ferença como central para o pensamento social do século XX. É
claro que as sociedades modernas não são racionais no sentido
científico apropriado do termo. Mas há algo acerca da estrutura
da modernidade que se assemelha às disciplinas científicas, e
muito tem sido dito sobre essa semelhança nas ideologias que a
justificam ou criticam. A questão é: “qual é a natureza dessa se-
melhança?”.
Uma resposta auto congratulatória é que somos mais racio-
nais do que os nossos antecessores porque chegamos a um co-
nhecimento científico da natureza, enquanto que eles apenas

279
CAPÍTULO VIII

tinham mitos. Há alguma verdade nisso, mas não muita. Mesmo


nos países avançados, persistem e florescem as crenças mais bi-
zarras. Por exemplo, uma maioria dos americanos acredita em
anjos, mas isso não os impede de fazerem negócios de uma forma
moderna e eficiente, que nós consideramos como racional. Em
qualquer caso, a própria ciência já não se analisa, hoje em dia, pe-
los mesmos termos dos antigos modelos positivistas dos métodos
de racionalidade pura, mas agora estuda-se como uma instituição
social. Mais: as pessoas eram capazes de fazer descobertas, e de
melhorar tecnologias, muito antes de Galileu ou de Newton. Ha-
via um certo tipo de racionalidade não científica envolvida no
progresso técnico pré-moderno. Finalmente devemos ter em conta
que a racionalidade não é necessariamente boa, nem sequer foi
necessariamente bem sucedida. No seu uso social, o conceito des-
creve um tipo de prática, não um fim em si mesmo, nem mesmo
uma garantia de eficiência. A Alemanha de Hitler exibia um alto
grau de racionalidade organizacional, com consequências tanto
moralmente diabólicas como instrumentalmente desastrosas.
Por todas estas razões, os académicos já não aceitam a antiga
noção evolucionista, formulada de modo imperfeito por Comte
como uma sucessão de estádios - religioso, metafísico e científico
- no progresso da civilização. Embora esta noção se tenha torna-
do senso comum, sobrestima muito a extensão em que a ciência
e, especialmente a tecnologia, são independentes das influências
sociais. Em reação contra esta visão, os próprios conceitos de ra-
cionalidade e de modernidade têm vindo a tornar-se tabu em
muitos dos estudos contemporâneos de ciência e tecnologia e na
crítica pós-moderna, o que dá origem a estratégias de retórica por
vezes inconvenientes e enganadoras. Podemos nunca ter sido
modernos ou racionais, no sentido do termo proposto por Comte,
mas certamente temos sido modernos e racionais noutro sentido
que continua por especificar adequadamente. O desafio é chegar
a uma nova compreensão destes conceitos que evite as armadi-

280
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

lhas da visão evolucionista.


O estado de espírito atual afeta a avaliação do conceito we-
beriano de racionalização, que muitas vezes é recusado como
sendo acriticamente racionalista. Mas isto é compreender mal o
aspeto mais importante da contribuição de Weber, que de forma
alguma depende de uma visão idealizada da razão. Em vez disso,
o que interessava a Weber era a importância crescente do “cálculo
e controlo” nas organizações modernas, como administrações
governamentais e empresas. Weber assinalou que estas organiza-
ções se adaptam aos princípios ou empregam métodos que en-
volvem precisão na medida, contabilização e conhecimento técnico.
É verdade que o seu conceito de “desencantamento” sugere uma
razão purificada das influências sociais tradicionais, mas há no-
vas influências que emergem com o triunfo da modernidade.
Embora este quadro tenha implicações evolutivas, não são do ti-
po comtiano e não diminuem o significado real da sua teoria
(Weber 1958).
No que se segue, irei desenvolver uma abordagem da racio-
nalização que depende significativamente de Weber. No entanto,
não sou um weberiano e antecipo que uma identificação muito
próxima dessa posição possa sobrecarregar o meu argumento
com associações que não são bem-vindas. Por isso, introduzo o
termo “racionalidade social” para referir o fenómeno que Weber
tratou sob a rubrica de “racionalização”. O que retenho de Weber
é a ênfase nas formas de pensamento e ação que têm algumas se-
melhanças com os princípios e práticas científicas, e o papel das
organizações modernas na generalização dessas formas na socie-
dade em geral. Muitos outros aspetos do pensamento de Weber,
como as suas teses sobre a ética protestante ou a investigação de
valor neutro, não são relevantes para o meu argumento.
A racionalidade social, no sentido que dou ao termo, depen-
de de três princípios importantes:
1. troca de equivalentes;
2. classificação e aplicação de regras;

281
CAPÍTULO VIII

3. otimização do esforço e cálculo dos resultados.


Cada um destes princípios parece “racional”, tal como habi-
tualmente entendemos o termo. O cálculo é uma troca de equiva-
lentes: os dois lados do sinal de igualdade são precisamente
equivalentes. Todo o trabalho científico faz-se pela classificação
dos objetos e pelo seu tratamento uniforme, segundo regras de
um certo tipo. E a ciência mede os seus objetos cada vez com
mais cuidado. Os negócios, como a tecnologia, baseiam-se em es-
tratégias de optimização. A vida social dos nossos tempos parece,
portanto, espelhar os procedimentos científicos e técnicos.
Note-se que a ausência de racionalidade social não implica,
de forma alguma, a presença de irracionalidade individual, no-
meadamente o mero preconceito ou emoção. Essa visão antiqua-
da das atitudes pré-modernas foi há muito abandonada a favor
de uma apreciação mais matizada de outras culturas. Onde quer
que existam seres humanos, observamos um comportamento in-
dividual, mais ou menos racional, e um comportamento coletivo,
mais ou menos eficaz sob o ponto de vista instrumental. O que é
distintivo acerca da racionalidade social é o papel dos meios de
coordenação, como o mercado (princípio 1), a organização formal
e a tecnologia (princípios 2 e 3). Logo, embora os três princípios
da racionalidade estejam sempre a funcionar, nas sociedades mo-
dernas são implementados, numa escala sem precedentes, pelos
mercados, pelas organizações burocráticas e pelas tecnologias.
Consideremos esta diferença com mais detalhe.
Com algumas exceções, os pré-modernos geralmente
trocavam presentes ou permutavam bens e, quando
existiam, os mercados eram bastante marginais, (Mauss
1980). Sob o feudalismo, os impostos e as rendas, mais do
que as trocas, representavam a maioria dos movimentos
de bens. Por contraste, a economia moderna está organi-
zada à volta da troca de dinheiro por um valor equiva-
lente de bens ou trabalho.

282
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

As sociedades tradicionais aplicam classificações e regras


que resultam de uma tradição cultural. As organizações
modernas, como as empresas e as agências governa-
mentais, constroem as classificações e aplicam as regras.
Isso dá-lhes uma grande flexibilidade: o sistema pode
mudar do dia para a noite, em vez de evoluir lentamente
à medida que a cultura muda. É desenhado de forma
consciente, não herdado do passado (Guillaume 1975,
cap. 3).
Alguns indivíduos, em qualquer sociedade, tentam
tornar as suas atividades e técnicas mais eficientes, mas
só na nossa sociedade é que este é o trabalho primário de
organizações guiadas por disciplinas técnicas e cientí-
ficas, e só nós procuramos o progresso constante, tanto
na eficiência como na medida. O que torna isto possível é
o grau invulgar com que as sociedades modernas isolam
os empreendedores e os inovadores relativamente às
consequências das suas ações sobre os outros e sobre a
ordem social (Latour 1993, 41-43).
Em suma, uma sociedade socialmente racional é estruturada
por mercados, organizações e tecnologias à volta dos três princí-
pios da racionalidade. Nisso contrapõe a troca de iguais com a
regulação por sistemas de dominação e subordinação, as classifi-
cações culturais informais com as formais, e as regras empíricas
tradicionais com as estratégias e técnicas otimizadas por cálculos
cuidadosos.

A CRÍTICA SOCIAL DA RAZÃO


Tal como assinalado por Habermas, a racionalidade social tem
uma dimensão técnica assim como uma dimensão normativa. Is-
so é particularmente claro no caso do mercado. Ao obedecer ao

283
CAPÍTULO VIII

princípio da troca, os mercados respeitam a igualdade, tanto no


sentido matemático como moral:
“A instituição do mercado... promete que as relações de troca
respeitarão e respeitam unicamente a equivalência ... O princí-
pio da reciprocidade é agora o princípio organizador da esfera
da produção e da própria reprodução” (Habermas 1970, 97)

Esta forma particular de “justiça” é essencial para a sobrevi-


vência do capitalismo no mundo de desigualdades que ele cria. O
crítico que denuncia as consequências do sistema é silenciado,
ironicamente, pelo apelo à justiça daqueles que lucram com isso,
à custa de outros seres humanos, seus companheiros.
O facto do capitalismo ser legitimado racionalmente tem im-
plicações importantes para o desenvolvimento da ideologia nas
modernas sociedades liberais. Cria um padrão em que todas as
instituições modernas enfatizam o caráter racional das suas ativi-
dades. A ciência exemplifica a ideia de comunidade racional. As
instituições racionalizadas também se justificam a elas próprias
com referências à razão, embora de forma alguma tão fortes como
as que os cientistas aduzem para as suas teorias. Convincenmte
ou não, o mero facto da legitimação racional ser considerada ne-
cessária e útil acaba por exagerar o papel da razão na vida social.
O apelo à razão é ambivalente. Por um lado, justifica o sistema
como justo, governado por leis imutáveis e gerido por especialistas
imparciais. Por outro lado, sugere princípios muito diferentes de
racionalidade, como a crítica reflexiva e o acordo sem coação. Estes
princípios podem ser rastreados até à Grécia antiga, pelo menos.
Sublinham as noções mais amplas de racionalidade invocadas pela
Escola de Frankfurt inicial, por Habermas, e também neste capítu-
lo. Estas noções de “racionalidade comunicativa”, como lhes cha-
ma Habermas, não se baseiam em semelhanças formais com o
raciocínio científico, mas antes na ideia de conhecimento de si

284
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

próprio e nas condições pragmáticas da argumentação e da com-


preensão racional. Mas a racionalidade comunicativa nunca estru-
turou as instituições centrais das sociedades modernas.
A crítica social da racionalidade emergiu no fim do século
XVIII, quando os princípios da racionalidade começaram a ser
aplicados sistematicamente aos seres humanos, em grande escala
(Foucault 1977). Cada vez mais, a população começou a aparecer
como um recurso para ser usado com eficiência pelas organiza-
ções. Os mercados foram gradualmente tomando precedência so-
bre outras formas mais pessoais de apropriação e troca. A tec-
nologia apareceu como uma força independente, à medida que
perdeu os sistemas de valores e as instituições tradicionais que a
contextualizavam nos tempos anteriores.
À medida que os critérios económicos e técnicos determinam
cada vez mais os aspetos da vida social, as capacidades e as neces-
sidades sem significado económico ou tecnológico vão sendo pro-
gressivamente desvalorizadas. As instituições dominantes dos
primeiros tempos ainda eram mais indiferentes aos indivíduos,
mas de forma inocente e sem significado, como eram estranhas à
vida interior das pequenas comunidades que constituíam o mun-
do social. Agora, pela primeira vez, uma ordem social começa por
ser organizada até aos mais pequenos detalhes enquanto que as
reivindicações da comunidade são fragilizadas pela crescente mo-
bilidade social e geográfica da população. Na medida em que o
sistema não consegue abarcar todos os aspetos das vidas que con-
trola, os indivíduos tornam-se conscientes de si próprios como di-
ferentes da sua identidade social. O social e o individual ficam de
lados opostos, ou melhor, a funcionalização do social torna possí-
vel ser um indivíduo, num sentido novo oposto a toda a função.
A racionalização apela à crítica romântica exemplificada pela
afirmação altiva de Vautrin, o anti herói de Balzac(a), quando diz
que “eu pertenço à oposição chamada vida” (citado por Picon
1956, 114). A imagem da vida em oposição a mecanismo reapare-
ce constantemente na crítica da racionalidade social, não só em

285
CAPÍTULO VIII

relação à tecnologia, mas também aos mercados e burocracias,


que aparecem metaforicamente como máquinas sociais. Esta
imagem culmina na literatura e na filosofia distópicas do século
XX. Mas o romantismo nunca teve grande sucesso em convencer
um grande número de pessoas a abandonar os benefícios da mo-
dernidade, apesar do facto do capitalismo, o sistema económico
que generalizou a racionalidade social, se ter tornado profunda-
mente opressivo e injusto.
Outra crítica da racionalidade social vem de Marx. Enquanto
que muitos socialistas estavam de acordo com Prudhon quanto à
ideia que “a propriedade é um roubo” e, portanto, não é uma
troca de equivalentes reais, Marx recusou as queixas morais e
analisou os mecanismos do mercado em termos económicos. De-
senvolveu uma crítica imanente da teoria económica da troca,
sua contemporânea. De acordo com essa teoria, o valor dos bens
era avaliado pelo seu conteúdo de trabalho e negociado, na mai-
or parte das vezes, em equivalentes. O problema com que Marx
se confrontou foi como explicar as desigualdades da economia
capitalista com base neste princípio, sem recorrer a noções im-
plausíveis de mérito ou mitos sobre a origem, como o contrato
social.
É bem conhecido como Marx resolveu este problema com a
sua teoria das mais valias. Argumentou que, segundo este princí-
pio de trocas iguais, o valor da força do trabalho é medido pelo
custo da sua reprodução, tal como qualquer outra mercadoria.
Mas o poder produtivo do trabalho é aplicado durante uma jor-
nada de trabalho mais longa do que a necessária para produzir
os bens equivalentes a esse custo. A diferença, a mais valia, acu-
mula-se para o capitalista e gera as desigualdades observáveis,
sem os roubos ou fraudes que muitos socialistas assumiam. Marx
concluiu que este arranjo da exploração é uma caraterística con-
tingente da sociedade industrial, que poderia ter sido projetada
de forma diferente, sob um sistema económico diferente.
O que ainda nos pode interessar acerca desta teoria não é

286
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

tanto o conteúdo questionável, mas a forma: a demonstração de


que os princípios racionais da organização social podem dar ori-
gem a um resultado enviesado. Marx mostrou que os capitalistas
jogam de acordo com as regras de troca equivalente, mas depois
continuou e desmontou a sua pretensão de equidade. Reconhe-
ceu a racionalidade do sistema, afirmando assim a sua coerência,
pelo menos dentro de certos limites históricos, ao mesmo tempo
que revelava o seu enviesamento, separando, assim, as dimen-
sões técnica e normativa(1).
Mas mesmo à medida que as sociedades ocidentais absorvi-
am gradualmente os elementos da crítica de Marx, apareceram
mistificações semelhantes para esconder o enviesamento de ou-
tros sistemas racionais. A ideologia tecnocrática, reforçada pelo
consumismo, despolitizou as questões públicas e apresentou uma
face racional aceitável para uma sociedade dominada pela pros-
peridade. Estas novas mistificações são, ainda hoje eficazes.
Por que é tão difícil desenvolver uma crítica da racionalidade
de instituições modernas, como os mercados e a tecnologia? O
nosso sentido intuitivo de enviesamento está moldado pela luta
do iluminismo contra a ordem social tradicional, baseada em mi-
tos. A crítica dessa ordem social identificou aquilo a que eu cha-
mo “enviesamento substantivo”, o enviesamento na atitude
social e psicológica. O enviesamento substantivo designa alguns
membros da sociedade como inferiores, por qualquer tipo de ra-
zão ilusória, como falta de inteligência, autodisciplina, “sangue”
ou educação, pronúncia ou forma de vestir, etc. O iluminismo
questionou estas pseudo razões quando aplicadas a elementos
masculinos das classes inferiores. As falsas reivindicações subs-
tantivas da ideologia dominante foram desmistificadas, e a igual-
dade estabeleceu-se nessa base. Esta aproximação definiu um
padrão depois adotado na crítica da discriminação contra as mu-
lheres, escravos, colonizados, homossexuais e, potencialmente,
qualquer outro grupo subordinado.
Marx focou-se no que ficou por criticar pelas ideologias suas

287
CAPÍTULO VIII

contemporâneas que reivindicavam estar a continuar o trabalho


do iluminismo, precisamente no facto monumental da desigual-
dade económica. Como os mercados são sérios, e o elemento de
cálculo racional que os carateriza se confunde com a nossa noção
de conhecimento científico, universal e neutro, a racionalidade
económica escapa à crítica das suas consequências enviesadas. A
revolução metodológica de Marx consistiu em rodear este obstá-
culo através de uma análise mais profunda da dimensão social
desta forma de racionalidade. O enviesamento mais fundamental
do sistema capitalista não é devido a práticas irracionais, como as
da religião e do feudalismo, mas sim à forma particular como
implementa o princípio racional das trocas iguais.
Introduzi o conceito de “enviesamento formal” para descre-
ver tais arranjos sociais prejudiciais. O enviesamento formal pre-
valece sempre que a estrutura ou o contexto dos sistemas ou das
instituições racionalizadas favorecem um certo grupo social em
particular. A teoria económica de Marx oferece um primeiro ex-
emplo moderno de análise de um arranjo social formalmente
enviesado(2).
Há vários tipos diferentes de enviesamento formal. Por ve-
zes, refere-se a valores incorporados na natureza ou no projeto de
um sistema teórico ou de um artefacto e, outras vezes, aos valores
concretizados através de contextualizações. Ao primeiro caso
chamo um “enviesamento constitutivo” e ao segundo caso chamo
um “enviesamento de implementação”. Alguns exemplos,
apresentados para clarificar a distinção.

Enviesamento constituvo
Os sistemas de vigilância são enviesados pela sua pró-
pria natureza. Com algumas exceções, o seu efeito é au-
mentar o poder de uma minoria à custa de uma maioria,
os vigiados.

288
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

Uma calçada, cujo projeto bloqueia um acesso igual para


os deficientes, também exibe um enviesamento constitu-
tivo.
Máquinas desenhadas para ter a altura certa para uma
criança também estão enviesadas a favor do trabalho in-
fantil. Como vimos, pode-se argumentar que, numa so-
ciedade que usa essas máquinas, o trabalho infantil é
tecnicamente necessário e eficiente. Mas é claro que sa-
bemos que esse mesmo tipo de máquinas poderiam ser
redesenhadas para adultos.
A ciência representa um caso especial de enviesamento
constitutivo. Como Gerald Doppelt argumentou, a cons-
tituição de um objeto da ciência depende de decisões va-
lorativas sobre métodos epistémicos (Doppelt 2008). O
capítulo precedente discutiu um exemplo de tal decisão
no caso do acidente do Challenger.

Enviesamento de implementação
Um teste escrito na língua dominante de uma comuni-
dade multilíngue pode ser justo por si mesmo, mas tem
impactos discriminatórios sobre os que falamlínguas mi-
noritárias. Neste caso, não há nada de erradocom o teste
que não se consiga corrigir por uma simples tradução.
Os planos urbanos que concentram as lixeiras perto de
minorias raciais estão enviesados pela forma como os
depósitos de lixo se relacionam com o contexto, não pela
sua natureza ou projeto.
A divisão digital é outro caso em que a implementação
tem consequências discriminatórias: reforça os ricos em
detrimento dos pobres, mas apenas porque os artefactos
estão distribuídos num contexto específico de riqueza e

289
CAPÍTULO VIII

pobreza, não porque os computadores sejam inerente-


mente maus para os pobres. De facto podem até ser um
meio de avanço social, quando os pobres lhes conseguem
aceder.
Os mercados e administrações governamentais assemelham-
se a artefactos na medida em que também podem ser estruturados
de maneiras diferentes. Pagar às mulheres menos do que aos ho-
mens, pelo mesmo trabalho, seria um caso de enviesamento cons-
titutivo. Um leilão, num local e a horas a que os compradores le-
gítimos não possam estar presentes, exibiria um enviesamento de
implementação. Basear as admissões de alunos no ensino superior
em certas métricas específicas que reduzem as admissões de mi-
norias é enviesamento constitutivo. Um plano diretor de uma ci-
dade que privilegia as autoestradas nas proximidades de
vizinhanças pobres mais do que nas ricas está enviesado na imple-
mentação.

MARXISMO E POLÍTICA DA TECNOLOGIA


O método crítico de Marx não foi aplicado à tecnologia nos anos
a seguir à publicação de O Capital. O próprio Marx focou-se pri-
mariamente no primeiro princípio da racionalidade, a troca de
equivalentes. Mas aí já sugere o caráter de classe da tecnologia
(Marx, 1906 reimpressão: I, parte IV). A crítica do enviesamento
formal dos mercados é aqui estendida, de uma forma menos ri-
gorosa, à divisão do trabalho e à mecanização. Por exemplo, es-
creve Marx, “seria possível escrever uma boa história das
invenções, desde 1830, só com o único objetivo de fornecer ao ca-
pital armas contra as revoltas das classes trabalhadoras” (Marx,
1906 reimpressão: I, 476; Feenberg 2002, 47-48). Argumenta aqui
que a forma assumida pelo progresso técnico, sob o capitalismo,
está mais de acordo com as necessidades das empresas do que

290
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

com as necessidades da sociedade como um todo. Só nos anos


setenta do século XX é que a teoria do processo laboral recuperou
este aspeto do pensamento de Marx e o atualizou (Braverman
1974).
Os socialistas do século XIX estavam tão fascinados pela
ideia de leis históricas que ignoraram a crítica de Marx à tecnolo-
gia e focaram-se antes na sua teoria económica. Embora usando a
noção de Marx sobre a modernidade, Weber fundou o campo da
sociologia organizacional em pressupostos capitalistas que não
foram objeto de crítica. Estava mais interessado no segundo prin-
cípio da racionalidade, a classificação e aplicação de regras, na
medida em que estes procedimentos caraterizam a burocracia e
as organizações empresariais. Mas Weber não aproveitou o dis-
cernimento de Marx sobre o papel da tecnologia e das classes.
Sucessores influentes, como Parson, agravaram o seu erro. No
entanto, a contribuição de Weber é importante como a tentativa
mais bem sucedida, entre as primeiras, para tematizar o proble-
ma da racionalidade social como tal (Weber 1958). A “gaiola de
ferro” da burocracia weberiana teve eco no importante trabalho
inicial de Lukács, História e consciência de classe. Aí Lukács tentou
unificar a noção de Marx sobre o “fetichismo das mercadorias ” e
a teoria da racionalização de Weber numa teoria inovadora da
reificação (Lukács 1971).
Lukács providencia uma ligação entre Marx e a Escola de
Frankfurt. Obras como Dialética do Iluminismo (Adorno e Horkhei-
mer 1972) e One-dimensional Man (Marcuse 1964) são muitas vezes
recusadas como irracionalistas e românticas, quando, de facto,
tentam fazer uma crítica racional de um novo objeto. Esse objeto,
a tecnologia omnipresente, baseia-se no cálculo e na otimização e
conforma não só os dispositivos técnicos e os sistemas sociais,
mas também as consciências dos indivíduos. Organizações, tec-
nologias e cultura estão interligadas de forma inexorável, cada
qual dependendo das outras para os seus projetos e, sem dúvida,
até mesmo para a sua própria existência. De acordo com a Escola

291
CAPÍTULO VIII

de Frankfurt, a sociedade industrial avançada é “totalmente ad-


ministrada” como um sistema burocrático e técnico.
Esta visão extremamente negativa da modernidade resulta
de uma ênfase distópica excessiva sobre os limites da agência nos
sistemas socialmente racionais. Como resultado, a Escola de
Frankfurt serve muitas vezes uma versão esquerdista de Heideg-
ger. Mas, em Heidegger, o social está completamente absorvido
na esfera técnica e deixou de oferecer qualquer base para a resis-
tência. Usando a sua terminologia, as forças sociais não técnicas,
se fossem concebíveis nas condições modernas, seriam mera-
mente ônticas e subordinadas aos fundamentos ontológicos reve-
lados na funcionalização técnica do mundo. Por contraste, a
Escola de Frankfurt propôs uma conceção dialética em que o téc-
nico e o social são momentos de uma totalidade, não situados
numa hierarquia mais ou menos fundamental.
Isto é aparente em comentários ocasionais de Adorno e em
análises mais longas na obra de Marcuse. Numa passagem sur-
preendente, que parece contradizer a “crítica da razão instru-
mental” em Dialética do Iluminismo, Adorno escreve:

“Não é a tecnologia que é calamitosa, mas o seu emaranha-


mento com as condições societárias a que está agrilhoada. Re-
cordaria apenas que a consideração dos interesses do lucro e
da dominação têm aberto o caminho ao desenvolvimento téc-
nico: agora, coincide fatalmente com as necessidades de con-
trolo. Não é por acidente que a invenção de meios de
destruição se tornou no protótipo da nova qualidade da tecno-
logia. Por contraste, murcham os seus potenciais que divergem
da dominação, centralismo e violência contra a natureza, e que
poderiam muito bem permitir que muitos dos danos feitos pe-
la tecnologia, literal e figurativamente, fossem minorados”.
(Adorno 2000, 161-162, nota 15).

292
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

Esta passagem não é mais do que uma nota promissória que


Adorno nunca concretizou, mas Marcuse chegou muito mais
longe, ao argumentar que a tecnologia poderia ser redesenhada
para servir, sob condições sociais diferentes, em vez de dominar
dominar a humanidade e a natureza (Marcuse 1964, cap. 8). Este
será o assunto do próximo capítulo.
Embora a primeira geração da Escola de Frankfurt tenha
procurado uma versão da abordagem de Marx sob as novas con-
dições do capitalismo de gestão e do socialismo de estado, as
suas formulações não são inteiramente satisfatórias. Algumas
ambiguidades dão credibilidade às acusações de irracionalismo
romântico. Habermas e os seus seguidores abandonaram a crítica
ousada de Lukács, e os seus ecos na fase inicial Escola de Frank-
furt, evitando qualquer discussão da tecnologia e exprimiram um
claro ceticismo acerca do controlo pelos trabalhadores e da re-
forma ambiental radical. Os habermasianos parecem aceitar que
os especialistas podem resolver correta e adequadamente todas
as questões técnicas, desde que não ultrapassem os limites da sua
autoridade e não “colonizem o mundo da vida” (Habermas 1986,
45, 91, 187). Com esta concessão à autonomia dos especialistas,
atiraram a criança junto com a água do banho. E fizeram-no pre-
cisamente quando a tecnologia se tornou numa das questões
políticas mais importantes.
Desde os anos sessenta, uma nova política da tecnologia tem
refutado gradualmente a convicção antiga segundo a qual as
controvérsias técnicas devem ser resolvidas através do consenso
científico. Em vez disso, assistimos à rápida proliferação de ações
judiciais, demonstrações e campanhas políticas sobre todos os ti-
pos de questões técnicas. Os estudantes de Marx não devem ficar
surpreendidos, pois muitos desses conflitos repetem, em novas
arenas, lutas semelhantes àquelas que ele encontrou nas fábricas
do século XIX. A tecnologia invadiu todos os aspetos da vida so-
cial. Medicina, educação, jogos, desporto, projeto urbano, trans-
portes estão todos altamente tecnologizados, e a tecnologia têm

293
CAPÍTULO VIII

efeitos amplos, não só sobre os seres humanos, mas também


sobre a natureza. Existem controvérsias e conflitos em todas essas
áreas, tal como nas fábricas estudadas por Marx, sobre como or-
ganizar uma forma “racional” de vida.
Hoje em dia, já não esperamos que o progresso técnico se
assemelhe à imagem antiga de cientistas debruçados sobre um
aparelho experimental e a abanar a cabeça. Na realidade já não
acreditamos que os cientistas cheguem a acordo de uma forma
tão simples. O nosso modelo de avanço técnico aproxima-se cada
vez mais da prática corrente da política. Diversos interesses
rivalizam agora pela influência sobre o projeto das tecnologias,
do mesmo modo como sempre lutaram por influenciar a legis-
lação. Cada projeto alternativo de tecnologias médicas, sistemas
de transporte, internet, tecnologias educacionais, etc. tem os seus
próprios advogados, cujas ideologias, modo de vida ou
prosperidade dependem do controlo dos projetos técnicos. Estas
controvérsias surgem nas primeiras páginas dos jornais diários, à
medida que entramos numa nova era da política técnica.
É por isso que eu reformulei a abordagem da Escola de
Frankfurt como a “crítica racional da racionalidade”, tal como
tinha intenção de ser. Os recentes estudos construtivistas da
tecnologia foram úteis para esse propósito. É possível combinar
as perspetivas da Escola de Frankfurt com os recentes estudos
sobre a tecnologia, pois esses estudos assemelham-se à crítica da
racionalidade social de Marx, que inspirou Adorno, Horkheimer
e Marcuse. Mesmo que muitos deles não tivessem consciência, ou
apreciassem, a contribuição de Marx, a sua própria investigação
reproduz involuntariamente a própria estrutura do seu argu-
mento. Os estudos da tecnologia estão empenhados numa crítica
do enviesamento formal enquanto reconhecem a significância
política destas controvérsias e contendas.
A generalização dos contributos dos estudos da tecnologia
no contexto de uma teoria crítica da racionalidade social sugere a
possibilidade de transformações radicais através da ação política.

294
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

No entanto, esta abordagem promissora exige uma teoria da luta


social sobre o projeto da tecnologia, o que não foi desenvolvido
nem pela Escola de Frankfurt, nem pelos estudos contem-
porâneos sobre a tecnologia. A teoria crítica da tecnologia pre-
enche esse hiato.

TEORIA GERAL DA INSTRUMENTALIZAÇÃO


As instrumentalizações
A teoria da instrumentalização aplica-se não só à tecnologia,
como também, com modificações adequadas, a qualquer sistema
ou instituição socialmente racional. Cada um realiza um ou mais
dos três princípios da racionalidade social, sob certas condições
sociais, culturais e políticas específicas.
Os dispositivos situam-se portanto em dois contextos radic-
almente diferentes, mas essencialmente interligados: o contexto
técnico da racionalidade e o contexto do significado do mundo da
vida. Esta dualidade é evidente nas esferas da burocracia e da eco-
nomia. A crítica da sociedade moderna deve, portanto, funcionar a
dois níveis, o nível das operações socialmente racionais e o nível
das condições socioculturais que determinam projetos específicos.
Como explicado no capítulo 4, chamo instrumentalização
“primária” e “secundária” a estes dois níveis. A relação entre eles
não é externa: os dispositivos não pré existem relativamente às
determinações sociais do seu projeto. Não há relações puras de
mercado ou classes naturais preexistentes às operações pelas
quais os mercados e as classificações são configuradas. A so-
ciedade e os seus sistemas racionais não são entidades separadas.
A distinção entre eles é primariamente analítica e metodologica-
mente útil. Não é uma distinção entre coisas que existem inde-
pendentemente umas das outras(3).
Apresentei muitos exemplos tecnológicos nos capítulos an-

295
CAPÍTULO VIII

teriores. Mas encontramos as mesmas estruturas noutras institu-


ições racionalizadas. As burocracias configuram-se em torno de
sistemas de classificação. Estes sistemas refletem a abstração da-
quilo que chamamos “casos”, a partir do fluxo concreto do mun-
do da vida. Uma situação complexa da vida humana torna-se
num caso quando é descontextualizada e reduzida precisamente
à forma como um objeto natural é percebido em termos de po-
tencialidades(b) na esfera técnica. Reunir casos numa classe gov-
ernada por uma regra corresponde aproximadamente à
funcionalização dessas potencialidades no trabalho técnico. Tal
como na tecnologia, a burocracia perde muita da riqueza do
mundo da vida, tendo como resultado o aparecimento de tensões
entre a burocracia e os seus clientes.
A mesma ilusão de uma racionalidade pura aparece quer
com a burocracia, quer com a tecnologia. A classificação de coisas
como crimes, doenças ou qualificações educativas permite à
burocracia agir com coerência naquilo que os seus membros
consideram ser uma base objetiva. Contudo, muitos problemas
racionalmente subdeterminados precisam de ser resolvidos du-
rante a construção desses sistemas. Muitas vezes não há razão
decisiva que possa ser aduzida para justificar uma solução re-
lativamente a outra. De facto, os sistemas de classificação são o
resultado de negociações, conflitos e exclusão de alternativas,
eventualmente sugeridas por partes interessadas mas demasiado
fracas para fazerem ouvir as suas vozes (Bowker e Star 2002, 44).
De modo semelhante, um sistema como o mercado envolve
operações de equivalência que têm um caráter racional, mas o
quadro(c) dentro do qual se processam estas operações não é, ele
próprio, uma troca de equivalentes, antes tem origem nas con-
dições sociais e políticas que governam o mercado. Estas con-
dições proporcionam as regras de decisão que permitem resolver
as escolhas subdeterminadas do projeto. Um exemplo desse tipo
de escolha é a fronteira da economia que determina precisamente
o que é que pode ser uma mercadoria e aquilo que está excluído

296
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

da compra e venda. No capítulo 2 mostrei como a política do am-


biente é configurada por essas considerações.
As propriedades socialmente racionais dos vários sistemas
expõem-nos à mediação de uns pelos outros. A racionalidade
burocrática leva ela própria à mediação técnica, por exemplo, a-
través da informatização das pastas de arquivo, clara e distinta-
mente etiquetadas. Do mesmo modo, a comodificação é muitas
vezes apoiada por mediações técnicas, como no caso atualmente
contencioso das marcas de água digitais na música e nos filmes. A
sobreposição dos modos de racionalização em casos como estes
cria uma rede(d) aparentemente contínua de instrumentalidades.
No resto desta secção esboçarei as várias instrumentalizações
que conformam os objetos e as instituições nas sociedades mo-
dernas. Estes processos de racionalização afetam o objeto, o su-
jeito e a perceção.
1. O objeto. O discernimento inicial que nos abre um objeto
para a incorporação num sistema racional pressupõe duas oper-
ações conceptuais. Primeiro, o objeto precisa de ser descontextu-
alizado, isolado do seu ambiente original. E, segundo, precisa de
ser reduzido ou simplificado, para evidenciar precisamente a-
queles aspetos que podem ser funcionalizados em termos de um
objetivo. Estas operações descrevem a visão imaginativa original
do mundo em que são identificados os indícios de potenciais usos
que expõem os objetos e as pessoas à tecnicização, à mercantiliza-
ção(e) e ao controlo burocrático. Por exemplo, uma árvore cortada
é despojada das suas ligações complexas com outras coisas vivas
e com a terra. Uma pessoa entra no domínio da burocracia como
um “caso”, abstraída da totalidade do seu processo de vida e
simplificada dos seus elementos alheios. Os bens tornam-se mer-
cadorias através de uma interpretação que os despoja das co-
nexões humanas e os lança em circulação. “Em sumário, a ra-
cionalização pode ser definida como a destruição ou não con-
sideração de informação para facilitar o seu processamento”
(Beniger 1986, 15).

297
CAPÍTULO VIII

O capitalismo introduz a racionalização mais extensiva da


história, descontextualizando e simplificando radicalmente uma
grande variedade de elementos naturais e sociais, para os incor-
porar num sistema de produção e distribuição. As coisas tratadas
como matérias primas são retiradas de forma avulsa do seu sítio
natural e despojadas, ou processadas, para expor apenas o seu as-
peto utilitário no contexto da produção. No processo de produção
adquirem novas qualidades que as adequam ao contexto humano,
a cujo consumo se destinam. As pessoas também são processadas.
São removidas do seu contexto de trabalho doméstico tradicional
e recolocadas em fábricas. É claro que não podem ser despojadas
dos seus aspetos não produtivos, como as árvores ou os minerais,
mas podem ser obrigadas a expor apenas as suas qualidades
produtivas, segundo as regras do local de trabalho.
A comodificação é a operação chave através da qual estas
transformações têm lugar. De acordo com a explicação de Paul
Thompson, um bem transforma-se numa mercadoria (f) quando:
1. A alienabilidade é permitida (a capacidade de separar
um bem de outro, ou da pessoa de um ser humano.
2. Há um aumento da possibilidade de exclusão (o custo
de evitar que os outros usem o bem ou o serviço).
3. Há um aumento na rivalidade (na medida em que
usos alternativos dos bens são incompatíveis)
4. Os bens são estandardizados (há um aumento no grau
com que uma amostra de uma dada mercadoria é
tratada como equivalente a uma outra amostra
qualquer) (Thompson 2006).
Cada um dos processos de comodificação pode ser descrito
sob categorias da teoria da instrumentalização. A alienação e a
exclusão descontextualizam os objetos, enquanto que a rivalid-
ade e a estandardização os simplificam. Uma vez descontextual-
izados e simplificados, os objetos podem ser incorporados num

298
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

sistema racional, neste caso o mercado, através de sistematiza-


ções apropriadas, por exemplo, atribuindo-lhes uma forma e um
preço distintivo. Assim configurados, os bens e o trabalho circu-
lam nos mercados, livres das supostas incrustações irracionais na
economia de uma sociedade tradicional em que as obrigações re-
ligiosas e familiares se intrometem com a produção.
Passar de um nível de funcionalização inicial para o fabrico
atual de um dispositivo, ou configuração de um mercado ou de
uma burocracia, traz consigo novas restrições e possibilidades
que refletem o ambiente técnico e social existente. Em cada fase
da elaboração de um dispositivo ou sistema técnico, desde a cri-
ação original dos seus elementos até à sua forma final acabada,
tomam-se cada vez mais decisões subdeterminadas sobre o pro-
jeto, em resposta aos constrangimentos sociais.
Estes constrangimentos são de dois tipos principais. Antes de
poder ser implementado, o objeto descontextualizado precisa de
ser recontextualizado no quadro de referência de uma forma de
vida. A “sistematização”, tal como eu chamo a este processo, con-
cede ao artefacto ou a qualquer outro sistema racional um signi-
ficado específico dentro de um sistema de significados que
constitui o “mundo” da sociedade (4). Nessa base, as sistematiza-
ções ligam o artefato, ou o sistema, com o seu ambiente. Por ex-
emplo, uma forma de vida que separa o trabalho e a residência
atribui um lugar ao automóvel, ou uma investigação que define
“pobreza” define o papel e as regras da burocracia no trabalho so-
cial. Para além disso, as reduções que o objeto sofreu precisam de
ser compensadas por novas mediações valorativas a partir dos re-
gistos ético, estético e outros normativos da sociedade em que vai
funcionar. Estas mediações intervêm no processo de projeto e de-
terminam um objeto capaz de entrar num mundo social específico.
2. Sujeito. As operações de racionalização são executadas
por um sujeito autónomo, independente, que está estrategica-
mente posicionado para fazer uso das propriedades causais dos
seus objetos. Tal como Bacon escreveu, “para se comandar a

299
CAPÍTULO VIII

natureza, é preciso obedecer-lhe”. O ator com uma postura do-


minante tem dois requisitos aparentemente contraditórios. Por
um lado, o ator deve ser capaz de diferir o efeito de retorno (g) da
sua ação, ou de reduzir o âmbito desse retorno; por outro lado,
deve obedecer à lógica independente do sistema para poder con-
cretizar o seu fim. Exemplos técnicos do primeiro ponto são ób-
vios. Martelar num prego tem um grande impacto no prego, mas
a energia de retorno sobre o carpinteiro não tem consequências.
Disparar sobre um coelho pode ser fatal para o coelho, mas tem
um efeito trivial no caçador, etc.. É neste sentido que o ator pode
ser considerado autónomo. Exemplos económicos do segundo
ponto também são óbvios: como investidor, eu não tento mudar o
mundo, mas antes ocupar uma posição de mercado onde a mul-
tidão de investidores tardios possa descobrir a minha pro-
priedade e subir o seu preço.
O capitalista exemplifica a autonomização do sujeito nos sis-
temas racionais. O capitalista individual provavelmente não é
muito diferente das outras pessoas, mas quando atua a partir de
um novo tipo de base institucional, a sua prática tem uma carac-
terística notável: a indiferença perante o ambiente social e natural
dentro do qual procura a otimização. Falta “humanidade”, no
sentido tradicional, ao capitalista como sujeito. É um sujeito in-
dependente, em larga medida, livre do controlo social e posicion-
ado estrategicamente para fazer lucros. Nesta condição consegue
o controlo técnico efetivo da natureza, do trabalho e dos merca-
dos.
Mas isto não é o fim da história. O ator independente encon-
tra-se ele mesmo envolvido com os seus objetos de uma forma que
determina a sua identidade e é chamado a exercer a sua iniciativa
ao manipulá-los. Tal como anteriormente se fez notar, o caçador
não é muito afetado fisicamente por matar um coelho, mas as suas
ações definem-no como um caçador e, como tal, ele toma as inici-
ativas implícitas na caça. O capitalista pode ser indiferente a cada
investimento e a cada trabalhador, mas é um capitalista com tudo

300
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

o que isso implica. O consumidor está separado de cada mer-


cadoria e, mesmo assim, um padrão de consumo conforma uma
identidade e correspondente atividade. O que é diferido ao nível
causal retorna depois ao nível do significado. Isto tem o efeito
prático de “configurar” consumidores e utilizadores e de “form-
atar” (h) o seu comportamento (Woolgar, 1991).
3. Cognição. As atividades associadas aos sistemas social-
mente racionais são complementadas por relações cognitivas que
também refletem os dois níveis de instrumentalização anterior-
mente esboçado. Ao sugerir que as relações cognitivas estão as-
sim estruturadas, não quero entrar num debate epistemológico
sobre a racionalidade, mas continuar apenas ao nível fenomen-
ológico. A esse nível, o que está em jogo é como os sujeitos exper-
imentam o mundo, não a natureza da verdade e da realidade.
A experiência descontextualizada e reduzida do encontro
inicial com os indícios de potencialidades envolve uma percepção
da causalidade, ou um raciocínio acerca dela. A ideia de empilhar
pedra sobre pedra para construir uma parede depende obvia-
mente de um pensamento causal. Mas para construir uma estru-
tura complexa, como uma casa, começando por estes princípios
simples, os atores precisam de integrar uma experiência muito
mais vasta. Essa maior variedade é um mundo de significados,
um “mundo da vida”. Em qualquer sociedade, uma casa incor-
pora uma gama específica de significados que lhe são atribuídos
pela cultura que determina o seu projeto.
O projeto dos sistemas racionais modernos não é, a esse re-
speito, diferente das técnicas artesanais primitivas. Precisa de in-
tegrar um significado no mundo da vida e a compreensão técnica
para que seja inteligível aos membros da sociedade. Ao mesmo
tempo, os trabalhos técnicos institucionalmente diferenciados e as
disciplinas técnicas formais dependem da manutenção de uma
certa distância concetual entre abstrações funcionais e o seu con-
texto no mundo da vida. Esta operação está geralmente ausente
nas sociedades pré-modernas. É feita por abstração das medi-

301
CAPÍTULO VIII

ações valorativas, de modo a permitir ligações sistemáticas com-


plexas elaboradas pelo pensamento.
O objeto descrito pelo seu aspeto puramente técnico pode ser
configurado de forma diferente em resposta a condicionantes so-
ciais diferentes. É isto que dá um sentido à ideia técnica, como tal.
Mas o conhecimento formal de engenharia acerca destas carater-
ísticas comuns não é um dispositivo, tal como uma partitura mu-
sical não é uma sinfonia. De modo semelhante, a ciência eco-
nómica e administrativa descreve uma abstração, não uma
realidade. O objeto da descrição formal não existe independente-
mente da sua realização socialmente condicionada.
Embora as disciplinas técnicas abstraiam dos contextos do
mundo da vida, há aspetos de instrumentalizações secundárias
traduzidos em especificações técnicas que aí aparecem e que re-
fletem um estado anterior da sociedade. Outras instrumentaliza-
ções secundárias permanecem externas a estas disciplinas, como
expressões discursivas de utilizadores contemporâneos e de par-
ticipantes que pretendem mudanças no projeto. Estas alterações
podem um dia vir a ser padrões técnicos. Logo, considerados sob
o ponto de vista histórico, os sistemas racionais não são au-
tónomos, mas são totalmente atravessados pela lógica do mundo
da vida, que configuram e por quem são configurados.
A tabela 8.1 resume todas as relações envolvidas na teoria da
instrumentalização, tal como anteriormente apresentada.
Tabela 8.1
Teoria da instrumentalização (adaptado de Feenberg 1 999, 208)

Funcionalização Realização
Objectivação descontextualização sistematização
redução mediação
Subjetivação automatização identidade
posicionamento iniciativa
Relação cognitiva causalidade significado
natureza mundo da vida

302
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

FUNÇÃO E SIGNIFICADO
O conceito de função biológica e técnica tem a peculiaridade de
ficar na interseção entre a causalidade e teleologia. Cada uma
dessas funções pode ser descrita em ambos os termos: “o propó-
sito de X é Y” é aproximadamente equivalente a uma forma do
tipo “X causa Y”. Logo, “o propósito deste interruptor é fazer ar-
rancar o motor” pode ser reformulado como “este interruptor
causa o arranque do motor”. Os filósofos têm argumentado sobre
a extensão da dependência dos vários tipos de funções relativa-
mente às pré condições causais. As funções estabelecidas por me-
ra convenção, como o significado das palavras, ficam num dos
extremos e coisas como martelos e pregos ficam no outro extre-
mo. No entanto, muito fica ignorado nestes debates. A ênfase nos
propósitos obscurece outro aspeto dos objetos funcionais, a que
chamo “significado”. A dualidade função e significado está sub-
jacente aos “aspetos duplos” da teoria da instrumentalização.
A distinção entre função e significado é ignorada na literatu-
ra filosófica recente. Searle, por exemplo, constrói a sua ontologia
social à volta do contraste aparentemente exaustivo entre as qua-
lidades naturais e funcionais dos objetos (Searle 1995). “Função”
refere-se a qualquer interação humana intencional com uma coi-
sa. Uma inflação semelhante do conceito de função atinge as con-
tribuições interessantes de Preston (1998) e Kroes e Meijers
(2002). Reconhecem que a gama de propriedades dos objetos téc-
nicos é muito mais vasta do que a função no sentido técnico res-
trito (Preston 1998, 246; Kroes e Meijers 2002, 36). No entanto,
eles aplicam a palavra “função” a todas essas propriedades, com
vários sentidos difusos. É claro que tudo o que entra no processo
social está relacionado, na prática, com seres humanos, mas cha-
mar “funções” a todas essas relações é enganador, dada a sua va-
riedade, e confunde, dada a noção mais restrita de função nos
domínios técnicos.

303
CAPÍTULO VIII

Nesses domínios, função é o propósito designado por um


conjunto de indícios para uso potencial(b) orquestrado numa certa
característica. Quando se diz aos trabalhadores a função que o
seu trabalho deve servir, eles olham à sua volta por materiais com
potencialidades que se possam combinar e mesmo conformar
para esse fim. A instrumentalização secundária intervém na con-
cretização da função em características. Os indícios de potenciali-
dades devem ser configurados numa forma aceitável para os
eventuais utilizadores situados num certo contexto social defini-
do. Como os trabalhadores técnicos geralmente partilham muito
desse contexto, muitas instrumentalizações secundárias podem
ocorrer de forma mais ou menos inconsciente. Outras são o re-
sultado do uso de materiais previamente projetados, que incor-
poram os efeitos de anteriores intervenções sociais. Outras ainda
são ditadas por leis e regulamentos, ou por decisões de gestão. É
claro que os trabalhadores técnicos estão conscientes de que estão
a construir um produto para uma comunidade de utilizadores
específica e, em certa medida, projetam de acordo com uma soci-
ologia amadora do utilizador. Este trabalho sociologizante pode
ser atribuído a outros nas organizações em que trabalham.
Esta imbricação mútua da função e do significado distingue
a minha abordagem da proposta por Habermas. Na sua teoria,
sistema e mundo da vida representam esferas sociais distintas.
Mas esta diferenciação entre os sistemas e o mundo da vida nun-
ca é tão completa como ele assumiu (Feenberg 1999, cap. 7). A
penetração, por rotina, dos sistemas pelos significados do mundo
da vida mostra-se nas questões de projeto e de configuração que
não se podem tratar de forma adequada pela teoria dos sistemas,
e isso apenas recebe uma atenção marginal na teoria da ação co-
municativa de Habermas. Em vez de uma distinção nítida, indi-
ca-se uma escala móvel de diferenciação, desde as relações entre
objetos semanticamente mais pobres até às relações mais ricas. O
significado não é algo extrínseco ao domínio da racionalidade
social.

304
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

Os filósofos negligenciam o significado, em parte porque os


exemplos que introduzem na discussão da função são geralmente
ou órgãos biológicos ou ferramentas, o que tende a simplificar
algo que é mais complicado. Considere-se um tipo de exemplo
muito diferente, como roupa ou utensílios de mesa. A roupa tem
a função técnica óbvia de proteger o corpo contra os elementos,
mas sabemos que também faz muitas outras coisas, tais como
projetar a imagem da própria pessoa e esconder a nudez. Não há
dúvida que estes usos mais complexos também podem ser des-
critos como funções, mas isso falha o alvo. Projetar uma imagem
e esconder a nudez só podem ser compreendidos no contexto de
um sistema cultural, que dá sentido a “imagem” e “nudez”. Os
utensílios de mesa têm um caráter semelhante. A sua função téc-
nica óbvia de levar a comida do prato para a boca é apenas um
dos aspetos dos usos rituais que os rodeiam. Tudo, desde o seu
desenho até à sua posição correta na mesa e até a tarefa específica
que lhe está atribuída, tudo é especificado culturalmente. Chamar
função a cada um destes aspetos estica o termo até ao ponto de o
tornar sem sentido.
Os sistemas culturais não são redutíveis a uma coleção de fun-
ções individuais porque definem um mundo da vida dentro do qual
emergem as funções. Como tal englobam símbolos, sentimentos, ta-
bus, mitos, estruturas sociais, e muitas outras coisas que apenas têm
uma ligação remota com aquilo que usualmente queremos significar
pela palavra “função”. Interpretar e descrever mundos neste sentido
hermenêutico é essencial para explicar como é que os objetos funcio-
nais são compreendidos e usados.
A significância da distinção entre função e significado é clara na
sociologia do consumo de Cowan (Cowan 1987) e nas histórias sociais
da tecnologia, como o estudo de Schivelbusch sobre a industrializa-
ção da luz (Schivelbusch 1988) e o estudo de Armstrong sobre o vidro
no século XIX (Armstrong 2008). Em comum com outros sociólogos e
historiadores sociais, realçam a complexidade hermenêutica da mu-
dança técnica, em vez de a reduzir a um único conceito abstrato.

305
CAPÍTULO VIII

A importância da perspetiva hermenêutica é evidente no ca-


so do Minitel, discutido no capítulo 5. A função original servida
pelo Minitel, a distribuição da informação, respondia não só a
uma necessidade específica mas também a um conceito global de
vida numa sociedade moderna. Essa conceção era pelo menos
parcialmente válida. O mundo moderno põe problemas a todos,
que apenas podem ser resolvidos por um acesso rápido à infor-
mação relevante. Ser um membro bem sucedido de uma socieda-
de moderna é ser um consumidor de informação. A subversão
comunicacional do Minitel correspondeu a uma conceção muito
diferente de modernidade em que a atomização da sociedade
apareceu como um problema pelo menos tão importante como a
necessidade de informação. Ultrapassar o isolamento social en-
volvia não o consumo mas sim a produção, especificamente a
produção de discurso e imagem partilhadas em salas virtuais de
conversa (i) na rede. Estas duas tendências combinaram-se para
quebrar a separação tradicional dos domínios público e privado,
abrindo a habitação ao mundo exterior e vice versa. Aconteceu
uma mudança cultural através da apropriação do Minitel que
continua, hoje em dia, numa escala ainda maior com a internet.
Muito do que é de interesse na história do Minitel diz res-
peito às questões sociais mais vastas e a padrões de experiência e
de autocompreensão que não são essenciais para o funcionamen-
to técnico do sistema. Mesmo assim, estas dimensões culturais ti-
veram um papel essencial na sua disseminação e evolução. Isto
não quer dizer que a função do Minitel fosse irrelevante para a
história. Pelo contrário, esta aproximação mostra o significado
dessa dimensão funcional e como esse mesmo significado foi
modificado pelo seu contexto social.
As ligações entre o significado cultural e função não podem
ser explicadas de um ponto de vista funcional. Seria mais correto
dizer que a função é abstraída do significado, que é um sistema
mais complexo de relações no mundo da vida (5). Emprego aqui o
termo “abstração” no seu sentido hegeliano, referindo-se a tomar

306
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

uma parte por um todo complexo. A função é aquele aspeto do


todo descrito pelo “significado”, que está tecnicamente especifi-
cado (ou “traduzido”) nas caraterísticas(6).
Mas para compreender culturalmente um objeto funcional,
ou sistema, é preciso desfazer o trabalho de abstração e conceber
a sua função como a via pela qual um aspeto do mundo da vida
se exprime numa forma racional e como funciona por si próprio.
Certamente que um automóvel é um meio de transporte, mas es-
sa definição é abstraída a partir de uma quadro de referência cul-
tural dentro do qual o espaço tem uma qualidade particular.
Nesse contexto, o transporte automóvel significa a liberdade do
indivíduo num mundo em que a residência está separada do tra-
balho, da distribuição dos bens e de muitos outros destinos. Em
suma, o significado de “transporte” e, portanto de “meio de
transporte”, é relativo ao mundo da vida que determina a distri-
buição espacial das coisas.
O aspeto mais enigmático da racionalidade moderna é a
existência de disciplinas técnicas purificadas, baseadas em abs-
trações funcionais que, apesar da sua purificação, continuam a
interagir com o mundo da vida do qual se diferenciaram. Ambos
os lados desta equação precisam de ser mantidos, por mais difícil
que isso possa ser. A estratégia desmistificadora das tendências
mais importantes dos estudos da ciência e tecnologia tenta redu-
zir o hiato e mostrar que a racionalidade é muito menos pura do
que parece ser. Esta é uma lição importante que resulta de muita
da investigação feita nos últimos trinta anos. Mas também é im-
portante reconhecer que as abstrações construídas pelas discipli-
nas técnicas não são uma ilusão, mas sim intervenções que
mudam a realidade no mundo da vida.

307
CAPÍTULO VIII

CÓDIGOS DE PROJETO
As formas estandardizadas de compreender e fazer dispositivos
são chamadas “caixas negras” nos estudos construtivistas da tec-
nologia. Muitos desses padrões refletem exigências sociais espe-
cíficas que conformam o projeto. No capítulo 1 introduzimos o
conceito de código técnico para explicar este fenómeno. Uma es-
tandardização semelhante do projeto acontece noutros domínios
socialmente racionais. Os mercados e as burocracias são obvia-
mente mais sociais do que a tecnologia, mas os padrões subja-
centes aos seus projetos tendem a ser tão invisíveis como
subjacentes a esta. Estes padrões sociais podem ser analisados
nos mesmos termos que os do código técnico. Chamo “código de
projeto” ao conceito generalizado que se refere à estandardização
de sistemas racionais. Os códigos de projeto são duráveis, mas
podem ser revistos em resposta a alterações na lei, condições
económicas, sentimento público e gostos.
A este respeito, os códigos de projeto são semelhantes à lei
num estado democrático. Muita política democrática parece-se
com a versão institucionalizada das interações entre a codificação
inicial pelos especialistas e a recodificação do mundo da vida. O
estado democrático moderno é essencialmente um vasto sistema
administrativo que responde mais ou menos ao mundo da vida
através da atividade de cidadãos na esfera pública e dos seus re-
presentantes eleitos numa assembleia que, em certa medida, es-
pelha essa esfera. As leis, como os códigos de projeto, esta-
belecem regularidades na vida social. As leis dependem, em
primeira instância, da identificação de classes de fenómenos. Es-
sas classes são, elas próprias, abstraídas de contextos do mundo
da vida, tal como os indícios para uso potencial. As tensões e os
conflitos emergem onde a abstração deixa para trás aspetos da
vida social. Estas tensões podem levar a protestos e eventual-
mente a mudanças, fechando o ciclo democrático.
Os códigos de projeto são por vezes explicitamente formula-

308
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

dos nas especificações ou regulamentos. Mas, em geral, estão im-


plícitos na cultura, treino e projeto e precisam de ser extraídos
pela análise sociológica. O investigador formula o código como
um tipo ideal de norma que governa o projeto mas, na realidade,
existem duas instâncias muito diferentes desse tipo ideal: especi-
ficações formuladas por especialistas, por um lado, e expressões
de desejos e reclamações por utilizadores leigos ou vítimas, por
outro lado. Faz parte do trabalho dos especialistas assegurarem-
se de que as especificações realizam as expectativas dos leigos, o
que precisa de um processo de tradução entre o discurso técnico
e os discursos social, cultural e político. O processo de tradução é
um processo contínuo e cheio de dificuldades mas, apesar disso,
bastante eficaz. Este processo torna-se visível nas formulações
dos tipos ideais do código de projeto pelo investigador.
As implicações democráticas da tradução são mais fáceis de
alcançar agora do que no passado. À medida que os sistemas ra-
cionais invadem cada vez mais os meios sociais, o mundo da vi-
da resiste e gera instrumentalizações ainda mais secundárias. No
meu trabalho anterior verifiquei esta dinâmica em três domínios:
na educação online, na comunicação humana em redes de com-
putadores e ainda na medicina experimental.
No primeiro caso, as inovações introduzidas por atores lei-
gos foram colonizadas por especialistas de computadores e por
administradores orientados comercialmente. As limitações da
tecnologia e a resistência dos utilizadores geraram um sistema
híbrido (Feenberg 2002, cap. 5). Nos outros dois casos, um etos
tecnocrático ou científico presidiu à construção de um novo am-
biente e, em cada um deles, atores leigos trouxeram-lhe uma
compreensão muito diferente das expectativas dos projetistas. Da
confrontação entre utilizadores e sistemas técnicos emergiu um
projeto com várias camadas, que serviu uma gama de necessida-
des humanas mais ampla do que inicialmente se pretendia (ver
cap. 5; Feenberg et al, 1966; Feenberg 1995, cap. 5)(7). Essas mu-
danças são de caráter democrático e progressivo. São essenciais

309
CAPÍTULO VIII

para se manter a abertura do mundo social racionalizado.

CONCLUSÃO
As sociedades modernas são únicas quanto ao papel exorbitante
que atribuem à racionalidade social. Isso tem sido um obstáculo
significante ao desenvolvimento da consciência crítica, desde as
primeiras versões da ideologia do mercado livre até à presente
legitimação tecnocrática das sociedades avançadas. É muito mais
difícil identificar e criticar o enviesamento formal dos artefactos e
instituições socialmente racionais do que legitimações míticas e
tradicionais herdadas. Uma variedade de estratégias tem sido
tentada com este propósito, cada uma a partir do foco numa ou
noutra instituição racionalizada. A teoria da instrumentalização
baseia-se em estratégias críticas desenvolvidas em relação à tec-
nologia. Fazemos aqui uma tentativa para a generalizar a outras
esferas racionalizadas.
Esta discussão breve da teoria da instrumentalização pode
ser sumariada em sete proposições:
1. A teoria é uma crítica da racionalidade social que é
paralela, em termos gerais, à crítica de Marx à racio-
nalidade do mercado.
2. A teoria baseia-se na análise do enviesamento formal
de sistemas e artefactos socialmente racionais.
3. Este enviesamento é reconstituído na permanente
combinação, no projeto, de instrumentalizações pri-
márias e secundárias, que são distintas sob o ponto de
vista analítico.
4. Os indícios para uso potencial são descobertos ao nível
da instrumentalização primária, com condicionantes
sociais mínimas.

310
DA TEORIA CRÍTICA DA RACIONALIDADE À
CRÍTICA RACIONAL DA RACIONALIDADE

5. Essas potencialidades combinam-se em sistemas for-


malmente enviesados e em dispositivos, que incorpo-
ram uma vasta gama de condicionantes sociais que
foram descritas na instrumentalização secundária.
6. Os códigos determinam regularidades estáveis no
projeto ou configuração de sistemas e artefactos soci-
almente racionais.
7. As tensões entre projeto e os contextos do mundo da
vida dão origem a exigências que eventualmente se
traduzem, por fim, em novos códigos e projetos.
Esbocei um certo número de adaptações da teoria da
instrumentalização a outras formas de racionalidade social, mas é
claro que continua a haver muito trabalho para ser feito. Os ter-
mos da teoria da instrumentalização e as noções de código técni-
co e função precisam de ser reconstruídos nos diferentes
contextos diferentes da burocracia e do mercado. Uma teoria da
formalização precisa de ser desenvolvida para explicar a relação
entre disciplinas técnicas e o mundo da vida. Outros sistemas so-
cialmente racionais, como os jogos, precisam de ser estudados
(Feenberg 1995, cap. 9; Grimes e Feenberg 2009). Precisa de ser
elaborada uma explicação fundamentada da diferença entre soci-
edades pré-moderna e moderna, que evite tanto os excessos raci-
onalistas das teorias anteriores da modernização como a
polémica rejeição do marxismo e da tradição sociológica carate-
rística de muitos dos estudos de ciência e tecnologia. Esta é a
agenda de um programa de investigação futuro sobre racionali-
dade social.

311
Capítulo IX
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

INTRODUÇÃO
A experiência do dia a dia tem um caráter teleológico que a ciên-
cia antiga elevou ao nível de princípio ontológico. Nos tempos
modernos, o novo conceito mecanicista da natureza destruiu a
harmonia entre a experiência e a racionalidade científica
(Whitehead 2004, 30-32). O mundo dividiu-se em duas esferas
incomensuráveis: uma relativa à natureza, racional mas sem sig-
nificado, e a outra relativa ao ambiente humano, todavia rico de
significado mas sem fundamento racional. Nos séculos desde a
revolução científica, não se encontrou maneira persuasiva de va-
lidar a experiência ou de reconciliar esses dois mundos, apesar
das repetidas tentativas de filósofos, de Hegel a Heidegger. Este
não é apenas um problema teórico. A experiência ensina-nos a ser
prudentes e a respeitar as pessoas e as coisas. A experiência traz o
reconhecimento de que o Outro tem os seus próprios poderes, li-
mites e objetivos. Uma vez que as lições da experiência já não

313
CAPÍTULO IX

moldam o avanço técnico, este é guiado exclusivamente pela


procura da riqueza e do poder. O resultado põe em questão a vi-
abilidade da modernidade. Aos genocídios do século XX segue-
-se agora um novo século de crises ambientais.
A tecnologia fica no cruzamento de todos estes desenvolvi-
mentos. Tanto é uma aplicação da racionalidade técnica e cientí-
fica como é o pano de fundo do mundo da experiência. A
comunicação entre os dois domínios deveria ser possível, pelo
menos à volta dos problemas técnicos. Logo, a filosofia da tecno-
logia tem um ponto de vista único de onde considerar o dilema
moderno. Este ponto de vista já foi ocupado por Heidegger, com
frutos, e cujo conceito de mundo está profundamente compro-
metido com a sua noção de prática técnica. Mas o próprio Hei-
degger não conseguiu extrair as consequências mais importantes
dessa coincidência. Marcuse estudou com Heidegger e, embora
tenha rejeitado cedo a doutrina do seu professor, a sua influência
subtil continuou a fazer-se sentir ao longo da sua carreira. A sua
formulação, mais social e concreta, de uma crítica da tecnologia
abre caminho para uma nova abordagem, que esboçarei na con-
clusão deste capítulo(1).
A questão filosófica diz respeito à relação entre normas deri-
vadas da experiência concreta e a prática técnica racionalizada. A
expulsão da teleologia da racionalidade científica e técnica dei-
xou-a desprovida dos seus elementos mais normativos. Enquanto
os princípios éticos e estéticos continuarem externos à técnica,
continuarão a parecer que se intrometem de uma forma impo-
tente numa esfera auto suficiente, com as suas próprias leis e com
a sua própria lógica de desenvolvimento. Hoje em dia, nada é
mais urgente do que incorporar esses princípios na estrutura das
disciplinas técnicas, como restrições ao desenvolvimento do seu
poder destruidor cada vez maior. Será que isto se pode conseguir
num quadro progressivo? Será possível restaurar a normativida-
de dentro de um domínio técnico, sem o re-encantamento regres-
sivo da natureza ou um empobrecimento geral?

314
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

Estas são as questões levantadas pelo pensamento de Hei-


degger e de Marcuse. Não é fácil recuperar a força potente da sua
crítica, num ambiente em que muitas das suas ideias se transfor-
maram em estereótipos. A sua linguagem filosófica complexa
torna a tarefa ainda mais difícil. Tanto Heidegger como Marcuse
acreditavam que a questão da tecnologia diz respeito não só aos
problemas sociais que eles criticam, mas também à própria natu-
reza do racional e do real. Para romper no nevoeiro à volta das
suas ideias, começarei por construir um quadro cultural de inter-
pretação que depois aplicarei para explicar os seus argumentos.
Não pretendo que este quadro seja adequado como uma inter-
pretação de Heidegger e de Marcuse, mas vou usá-lo antes para
iniciar a discussão, a partir de pressupostos correntes, e tentar
ajudar à compreensão do seu pensamento difícil.

UM QUADRO CULTURAL
A cultura fornece os significados que as coisas adquirem no
mundo social. Diferencia as nossas ações e os acontecimentos na-
turais, tornando possível, para nós e para os outros, “ler” o nos-
so significado e propósito. Noutro sentido, a cultura
assemelha-se significativamente com a natureza. Na realidade, os
nossos pressupostos culturais mais básicos são aquilo que toma-
mos por natureza, habitualmente as premissas não questionadas
e inquestionáveis do nosso pensamento, ação e fala. Na maior
parte dos casos operamos na base dessas premissas, mesmo sem
as formular conscientemente.
Os pressupostos culturais são mais estáveis e mais ampla-
mente partilhados do que as questões de opinião. Mas também
podem ser postos em questão, embora sempre contra um fundo
de outros pressupostos que não são tematizados nem desafiados.
Não pode existir uma “visão a partir de lado algum” por detrás

315
CAPÍTULO IX

da nossa cultura. A cultura evolui mas, geralmente, não o faz por


confronto direto, mas sim através de mudanças graduais nas
práticas e nos gostos, de que as pessoas raramente estão consci-
entes, . A cultura está mais ou menos protegida contra confrontos
e mudanças, dependendo da natureza do sistema social. É mais
provável uma sociedade tribal isolada e estável conservar a sua
cultura do que uma sociedade moderna em rápida mutação e em
contacto global com outras sociedades modernas. Por con-
sequência, sob as condições modernas, a cultura é muito mais fá-
cil de questionar, portanto é bem menos “cultural”.
No senso comum, o “artesanal” pré moderno é contrastado
com a “tecnologia” moderna. Ambos são maneiras de fazer arte-
factos usando ferramentas, mas diferem na escala das suas ativi-
dades e nas suas bases cognitivas. O artesanal emprega ferra-
mentas manuais em pequenas oficinas, enquanto que a tec-
nologia moderna opera em larga escala e tem um impacto
correspondente sobre a natureza e a sociedade. Os ofícios artesa-
nais tradicionais servem e exprimem a sua cultura, enquanto que
a nossa tecnologia está em constante mutação, perturbando as
instituições sociais e desestabilizando a vida cultural. A diferença
é, em larga medida, uma função da aplicação do conhecimento
científico e de engenharia, ao qual as pessoas do artesanal não ti-
nham acesso no passado.
Embora importantes, essas distinções ignoram uma diferen-
ça ainda mais fundamental entre os papéis culturais da tecnolo-
gia e dos ofícios artesanais. O que distingue a tecnologia é
fundamentalmente a diferenciação da atividade técnica em rela-
ção aos outros tipos de atividade social. Especificamente, o co-
nhecimento técnico separa-se dos valores estéticos e éticos preva-
lecentes. A separação dessas categorias pode-nos parecer óbvia.
Não esperamos que o conhecimento técnico envolva a criativida-
de artística, ou que construa coisas envolvendo a ética. Mas no
artesanal tudo isso forma um complexo único. O artesão sabe a
“maneira certa” de fazer as coisas, e isso envolve realizar a “es-

316
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

sência” do artefacto nos materiais apropriados.


Conhecimento técnico e competências hábeis (a) são ambos
necessários, mas os princípios estético e ético também contribu-
em para o resultado. Sem a sua contribuição é impossível especi-
ficar um artefacto culturalmente aceitável. Considerações como a
beleza não são, portanto. concebidas como valores subjetivos na
cabeça do artesão, mas como factos objetivos acerca do mundo,
tal como outras convicções asseguradas culturalmente. A orna-
mentação superficial adicionada aos artefactos para fins comerci-
ais e as embalagens motivadas por essas mesmas razões são
invenções modernas que refletem a distinção moderna entre va-
lores e factos.
Max Weber introduziu a noção de diferenciação, que descreve
o aspeto distintivo da modernidade. Weber observou a tendência
das sociedades modernas para diferenciar funções que estavam
juntas em tempos anteriores. Por exemplo, os escritórios e as pes-
soas deixaram de estar indissoluvelmente ligados no serviço pú-
blico moderno. As funções sociais deixaram de ser herdadas mas,
em vez disso, passaram a ser “preenchidas” por pessoal qualifica-
do. A modernidade envolve a generalização de tais diferenças. A
diferenciação é mais ou menos completa conforme o domínio.
A diferenciação entre o conhecimento da natureza e as outras
esferas culturais leva ao desenvolvimento da ciência moderna,
baseada em procedimentos racionais e experiências, e validada
por uma comunidade de especialistas. À medida que a ciência
avança, a natureza é “desencantada”, usando a expressão de We-
ber, despida das qualidades antropomórficas e espirituais e redu-
zida a um mecanismo sem significado. Sob esta repartição, a
ciência adquiriu uma independência considerável em relação às
outras instituições sociais.
Com o conhecimento técnico acontece algo de semelhante.
Gradualmente, vai-se formalizando em disciplinas técnicas pare-
cidas com a ciência, e por ela enriquecidas, o que cria a impressão
de que a tecnologia é tão autónoma como a ciência mas, de facto,

317
CAPÍTULO IX

a tecnologia é muito menos diferenciada. Toda a atividade técni-


ca é profundamente marcada pela cultura e isto tanto é verdade
para a tecnologia moderna como para as práticas artesanais das
sociedades pré modernas. Mas a marca da cultura na tecnologia é
muito mais difícil de identificar, pelo menos para nós, que per-
tencemos ao mundo moderno.
Em primeiro lugar, o contexto cultural mostra-se no projeto.
Como o projeto moderno dá ênfase à função, e as funções pare-
cem-nos evidente por si próprias, é fácil omitir a sua dependên-
cia da cultura. Mas as limitações culturais tornam-se óbvias
quando os dispositivos se transferem para culturas estranhas.
No capítulo 6 dei o exemplo de computadores com um teclado
romano exportados para o Japão, onde a linguagem não pode
ser facilmente representada pelo nosso alfabeto. A necessidade
de adaptação testemunha a relatividade cultural do projeto oci-
dental dos computadores.
Mas há uma forma mais paradoxal pela qual a tecnologia
moderna depende da cultura: a chamada liberdade dos valores.
A tecnologia moderna cai sob a norma formal da eficiência, mas a
eficiência não determina os particulares do projeto e do uso, tal
como faziam as antigas essências asseguradas culturalmente. Li-
berta dessas constantes culturais, a tecnologia pode ser desenha-
da para servir propósitos temporários e em mutação, o que se
adequa à criação de emprego por organizações, outra constante
cultural da modernidade. Tal como as tecnologias, as organiza-
ções modernas geralmente também se definem por objetivos for-
mais bastante restritos, como a rentabilidade. Tal como a efi-
ciência, estes objetivos não são, por si, capazes de determinar
uma forma particular de produção. Para isso, os líderes das orga-
nizações precisam de se basear na sua compreensão das contin-
gências do mercado e na sua interpretação das regras legais e
administrativas. Na ausência de uma direção cultural específica,
estas considerações decidem o que fazer e como fazer. Na medida
em que falta uma base estável na cultura para essas decisões, a

318
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

tecnologia persegue fins que parecem mais ou menos arbitrários.


Este estranho vazio cultural é ele próprio a cultura da tecnologia,
que dificilmente questionamos.
Para nós tal parece ser universal mas, na realidade é unica-
mente compatível com a nossa cultura. Isso é claro, por exemplo,
da descrição de Lauriston Sharp sobre os efeitos da distribuição
de machados de aço por missionários numa comunidade aborí-
gene da Austrália (Sharp, 1952). A comunidade valorizava os
machados de pedra feitos pelos seus membros masculinos adul-
tos. Esses machados não estavam apenas disponíveis como um
puro meio, no nosso sentido utilitário, mas estavam também li-
gados a vários rituais de propriedade e uso. Pelas tradições da
tribo apenas os homens estavam autorizados a possuir e a em-
prestar os machados às mulheres e crianças, para os seus usos
habituais. Quando os missionários distribuíram machados de aço
para todos os que ajudavam no trabalho da missão, o sistema co-
lapsou. A hierarquia social, as relações comerciais e sociais, até
mesmo a cosmologia da tribo, colapsaram e os seus membros
desmoralizaram. Logo, substituir um produto de artesanato por
tecnologia moderna implicou uma alteração cultural profunda e
não um mero aumento na eficiência.
A crítica da tecnologia a que estamos habituados foca-se ge-
ralmente no uso da tecnologia para atingir fins particulares com
que não concordamos. Gostaríamos de poder reformar as organi-
zações que comandam a tecnologia e fazê-las servir fins esclare-
cidos. Os movimentos sociais e as regulamentações sociais pro-
curam atingir esses fins. Mas a crítica filosófica da tecnologia vai
muito para além disso. Embora os filósofos em geral não usem a
minha terminologia sociológica, identificam aquilo a que chamei
“diferenciação” e o desencantamento da natureza, que é a sua
consequência, como sendo o problema a tratar.
Enquanto que a diferenciação da tecnologia pertence essen-
cialmente à cultura moderna, esta crítica pode parecer estranha.
Será que os filósofos nos querem fazer voltar para o passado pré

319
CAPÍTULO IX

moderno? É claro que não! A razão para o seu descontentamento


generalizado não é assim tão difícil de perceber. As sociedades
modernas estão cheias de falta de sentido, de manipulação e de
violência racionalizada. A distopia e o apocalipse espreitam en-
quanto que as tecnologias de vigilância e nuclear avançam. As
mudanças climáticas derretem os pólos, enquanto que as nações
tremem. A sobrevivência da sociedade moderna, a longo prazo,
está muito em dúvida. Será que a nossa tecnologia, ou pelo me-
nos a maneira como nós somos tecnologicamente, nos ameaça
com uma auto destruição precoce? Esta é a questão da crítica ra-
dical da tecnologia.

HEIDEGGER: A CRÍTICA DA TECNOLOGIA


A crítica de Heidegger à tecnologia é ontológica, não sociológica.
Embora eu tenha feito uma tradução do seu argumento em ter-
mos sociológicos, na secção anterior, não é minha intenção subs-
tituir a ontologia pela sociologia. Espero antes que a tradução
sociológica possa servir como uma ponte para a compreensão do
seu pensamento. A ontologia de Heidegger é tão contrária ao
senso comum que se torna necessária uma ponte. A rejeição da
epistemologia é o seu ponto contra intuitivo mais alto. Tendemos
a pensar que a realidade está “aí fora”, enquanto que a nossa
consciência é um domínio interior que consegue aceder às coisas
através dos sentidos. Heidegger rejeita esse modelo e inventou o
seu próprio vocabulário, em que termos como “revelação”, “de-
socultação”, “ Dasein ” e “mundo” substituem conceitos familiares
como “perceção”, “consciência”, “cultura” e “natureza”.
Como Heidegger explica, a nossa relação mais básica com a
realidade não é a perceção, tal como nós habitualmente a enten-
demos. Isso é uma construção teórica. Abstraindo da nossa expe-
riência efetiva, dizemos a nós próprios que coisas como os raios
luminosos entram no olho e ativam a retina, que as ondas sono-

320
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

ras causam vibrações nos tímpanos dos nossos ouvidos, etc.. Nós
não encontramos originalmente o nosso mundo através da inte-
ração causal entre a natureza e os nossos sentidos, mas antes
através da ação dirigida para objetos com significado. Mais tarde
refletiremos sobre estes encontros primordiais com objetos, mas
Heidegger rejeita a noção de que os podemos explicar, com um
sentido filosoficamente relevante, a partir desse ponto de vista.
Em vez disso precisamos de partir do que existe em primeiro lu-
gar, a nossa experiência atual, e tratar isso como uma base onto-
lógica irredutível(2).
Heidegger argumenta que o sujeito da ação não é a consci-
ência ou a mente, mas sim aquilo que ele chama “ Dasein ”, o ser
humano como o lugar da experiência. É todo o nosso ser que se
envolve com a realidade, não uma função mental especializada.
Heidegger chama “à mão” (b) às coisas que Dasein encontra na
ação. Esta locução refere-se à forma como essas coisas são dadas
no contexto específico em que podem ser usadas, as potenciali-
dades(c) que oferecem. Os seus exemplos são ferramentas que en-
contramos em uso depois de pegar nelas e de as utilizar. Neste
contexto não nos focamos nas propriedades objetivas das ferra-
mentas mas antes na forma correta de as usar. Os significados
emergem originalmente a partir do seu uso e constituem a base
do nosso conhecimento das coisas.
Embora Heidegger rejeitasse certamente o conceito de cultu-
ra anteriormente introduzido como sendo subjetivista, este é útil
para compreender o seu conceito de significado. Um martelo só é
um martelo desde que culturalmente tenha esse significado. Fora
de um contexto cultural, é apenas uma peça estranha de metal e
madeira. Assim, o significado do martelo é, de facto, constitutivo
do seu ser enquanto martelo. Isto é óbvio no caso do papel moe-
da. Uma nota de cem dólares apenas vale cem dólares porque o
significado do dinheiro está estabelecido culturalmente. Até mes-
mo uma definição legal da nota falharia se não compreendêsse-
mos o dinheiro como dinheiro. Heidegger usa um argumento

321
CAPÍTULO IX

paralelo para uma explicação ontológica dos objetos da experiên-


cia. Nesta explicação, aquilo que habitualmente se chama cultura
- significados partilhados - não é uma mera coincidência de esta-
dos subjetivos, mas fundamenta um mundo.
Numa tentativa para evitar qualquer ponta de subjetivismo,
Heidegger substitui o conceito usual de experiência pelo de
“mundanidade” (d). Dasein está essencialmente “em” um mundo
de coisas à mão. Esses mundos são contingentes das preocupa-
ções humanas, sem que sejam subjetivos. Os mundos emergem
do encontro humano com a realidade, mas esse encontro não po-
de ser entendido em termos causais, porque nenhum mundo
aparece nesses termos, mas apenas estímulos isolados e respos-
tas. “Mundo” deve ser antes entendido como a ratificação exis-
tencial do significado, não como o objeto da perceção. Mas apesar
da rejeição de uma explicação causal, Heidegger descreve o en-
contro com o mundo em termos mais ou menos passivos como
uma revelação(e), uma abertura(f), não como uma construção.
Embora seja difícil representar este encontro, temos experiên-
cias que nos dão uma pista para das intenções de Heidegger. Con-
sideremos o que acontece quando um guia de museu aponta para
a significancia de um padrão numa pintura. O padrão é “revela-
do”, mas assinalar que um certo número de raios de luz estão a
entrar nos nossos olhos e a serem convertidos em imagens no nos-
so cérebro dificilmente ajudaria a compreender aquilo que desco-
brimos. De modo semelhante, quando reconhecemos que um
grupo de sintomas que estamos a experimentar corresponde a
uma doença em particular, o reconhecimento do seu significado
pode ser descrito como uma “desocultação” (g) em que tanto o su-
jeito como o objeto estão envolvidos. Embora estas sejam ocorrên-
cias relativamente invulgares, Heidegger pensa que se passa algo
de semelhante em cada encontro com o significado. O mundo é
uma rede de coisas à mão reveladas (h) num sistema de tais signifi-
cados. A sua linguagem esforça-se por evocar esta revelação, que é
assumida como natural e que na realidade deve ser tida como na-

322
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

atural para que a vida do dia a dia possa continuar.


Estes são aspetos familiares do pensamento inicial de Hei-
degger, mas parece-me que se tem sido dado uma atenção insufi-
ciente à natureza do ato de ratificar (i) em que emergem os
mundos. Creio que esta negligência relativa é devida ao entrela-
çamento do argumento de Heidegger, desde o início, com um
conceito fenomenológico da técnica. O seu trabalho promete uma
nova base para compreender a vida humana através de uma rea-
valiação radical da estrutura e relevância da experiência quotidi-
ana nos seus aspetos técnicos. Desafia a filosofia a abandonar a
sua torre de marfim e a envolver-se com a realidade social con-
creta. Por um momento breve, o existencialismo e o marxismo
ocidental exploraram esse caminho, mas não foram bem sucedi-
dos em conseguir transformar a filosofia de uma forma perma-
nente.
O encontro mais próximo de Heidegger com o concreto foi
desastroso. Em 1933 imaginou que podera realizar a sua própria
filosofia através da colaboração com o regime nazi. A infame Aula
Reitoral(j) contém uma ambiguidade intrigante, que é relevante
para o meu argumento. O assunto dessa aula é “ Wissenschaft” (k) e
o seu lugar na universidade. Heidegger tinha a esperança de esti-
mular uma reforma da universidade que renovasse as suas disci-
plinas segundo uma nova versão da relação original dos “gregos”
com o mundo. Descreveu essa relação como sendo uma relação
sem medo de questionar a realidade, combinada com uma sub-
missão ao “destino”. De uma forma muito característica, Heideg-
ger não conseguiu dar orientações concretas para o realizar na
Alemanha moderna. Mesmo mantendo-se num elevado grau de
abstração pouco eficaz, o seu argumento invoca a técnica como o
domínio de encontros ontológicos decisivos .
Heidegger cita um dito atribuído a Prometeus que, diz ele,
“exprime a essência do conhecimento”. O texto lê-se “ techné
d’anangkes asthenestera makro”, traduzido por “mas o conheci-
mento é muito menos poderoso do que a necessidade” (Heideg-

323
CAPÍTULO IX

ger, 1993b:31).Note-se que Heidegger traduz “ techné” po conhe-


cimento, e assim parece confundir o conhecimento prático de
como fazer as coisas (techné) com o Wissenschaften (l) (epistemai)(m)
dos professores universitários. E insiste! Nos parágrafos se-
guintes, rejeita a noção familiar segundo a qual os gregos teri-
am idealizado a contemplação desinteressada e escreve antes
que, para eles,
a “teoria” não acontece para si própria; acontece só como um
resultado da paixão por se manter próximo do que é, tal como
é, e de ser envolvido por ele. No entanto, por outro lado, os
gregos lutavam por compreender e manter esse questionar
contemplativo como um - na realidade, como o - modo superi-
or de energeia do homem, do homem “estar a trabalhar”. Não
era intenção deles alinhar a prática com a teoria, mas antes pe-
lo contrário: compreender a teoria como a realização suprema
da prática genuína (Heidegger, 1991:31-32).

Esta formulação obscura deve ter confundido a sua audiên-


cia. Apenas os seus alunos terão entendido o que Heidegger quis
dizer com essas referências a techné e energeia e esta explicação
pouco convencional da ciência grega como dependente da práti-
ca. Nas suas aulas contemporâneas, Heidegger explicava que o
conceito metafísico de energeia significa o “ir aparecendo” (n) do
objeto trabalhado. Energeia é a atualidade, no sentido de realizar
a essência no trabalho. A atualidade plena do homem é a realiza-
ção das suas capacidades, a sua “ dynamis ”, em “estar a trabalhar”
na prática de uma techné. Heidegger argumenta que é dessa prá-
tica que emergem as ciências nas origens do pensamento grego,
quando o envolvimento técnico com os seres evolui para o es-
panto. Heidegger escreveu:
é claro que esta perceção dos seres na sua desocultação(o) não é
um mero ficar boquiaberto, e que o espanto acontece antes num

324
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

procedimento contra os seres, mas de tal modo que estes, eles


próprios, se mostram precisamente a si próprios. Isso é o que
techné significa: compreender os seres como emergindo de si
próprios na forma como se mostram por si mesmos, na sua
aparência exterior, eidos , ideia e, de acordo com isso, cuidar dos
próprios seres e deixá-los crescer, ou seja, colocando-se a si
mesmo no meio dos seres como um todo através de produções
e de instituições (Heidegger, 1994b, 155).

Em suma, Heidegger parece estar a dizer que o conhecimen-


to científico da natureza das coisas não é uma atividade essenci-
almente contemplativa, mas desabrocha do conhecimento prático
artesanal(3). Mas conhecer implica mais do que fazer. Ao conhecer,
o significado daquilo que é torna-se explícito como ideia, essên-
cia, e é alcançado com espanto, assegura-nos Heidegger. Esta ati-
tude respeitável encontra-se na base das ciências e precisa de ser
recapturada para que a universidade regresse ao seu papel corre-
to na sociedade.
A identificação de conhecimento com techné é familiar desde
o pragmatismo, mas Heidegger não reduz a verdade às suas con-
sequências. O conhecimento tem raízes numa atividade instru-
mental, no seu sentido mais lato, mas não naquele seu aspeto que
serve para dominar o ambiente. O poder técnico preocupa cada
vez mais Heidegger mas, pelo menos até meados dos anos trinta,
a forma da prática técnica teve uma grande significado para a sua
filosofia. O que lhe interessava era o facto da atividade instru-
mental fazer aparecer, trazer para fora(p) algo prefigurado numa
imagem, uma eidos (q). No seu curso sobre a Metafísica de Aristóte-
les, Heidegger oferece essa explicação de techné, explicando a
conceção teleológica do ser do pensador grego como uma gene-
ralização da prática artesanal (Heidegger 1994, 76-77).
A crítica de Heidegger contrasta a tecnologia moderna com a
prática artesanal. A techné grega é uma prática indiferenciada. Os
significados subjacentes são estabelecidos pela cultura de uma

325
CAPÍTULO IX

forma tão segura que não são nem modificados nem questiona-
dos. Estes significados não são estritamente funcionais, no nosso
sentido moderno, mas incluem o que chamaríamos valores “esté-
ticos” e “éticos” assim como considerações técnicas. Os gregos
inventaram uma terminologia filosófica com que se referem ao
significado complexo em que se juntam todas estas considera-
ções, chamando-lhe a “essência” da coisa. Nos termos da teoria
da instrumentalização, este conceito tanto se refere à instrumen-
talização primária como à instrumentalização secundária, não di-
ferenciadas e concebidas como uma entidade única.
Nós temos tendência para pensar o conceito de essência co-
mo pré-científico, mas os nossos artefactos também têm muitas
vezes significados muito ricos, de um modo muito semelhante.
Por exemplo, uma casa também é uma habitação. Para além do
bem funcional de abrigo, proporciona acolhimento e privacidade,
um local para os rituais da vida familiar e um testemunho do
gosto do proprietário. O pensamento tecnológico isola a função
deste complexo, e esta atitude é confirmada pelo facto da função
poder ser especificada numa disciplina técnica que guia a cons-
trução da casa. A dimensão instrumental parece ser uma entida-
de separada, uma infra estrutura a que se anexam associações
super estruturais de carácter valorativo. Embora seja uma abstra-
ção da totalidade da coisa, a função substitui o todo, numa siné-
doque(r) ontológica caraterística da modernidade.
Por contraste, Heidegger explica a estrutura unificada da es-
sência em termos das quatro causas de Aristóteles. A causa final é
o propósito do artefacto. A sua causa formal é a forma que deve
assumir no decurso da produção. A causa material são os materi-
ais usados. E a causa eficiente é a atividade do artesão. No seu
conjunto, definem o trabalho artesanal.
Isto parece trivial, mas Heidegger argumenta que pensamos
assim porque estamos equivocados acerca dos termos modernos.
Insiste que a causa eficiente não é, em absoluto, uma causa no
nosso sentido moderno. O artesão não faz o objeto de acordo com

326
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

as suas intenções numa relação de causa e efeito, tal como diria o


senso comum moderno. Pelo contrário, o artesão “junta” as ou-
tras três causas e assim faz aparecer(s) o objeto das suas ações.
Heidegger argumenta que artesanal é a forma como as coisas se
tornam naquilo que verdadeiramente são (Heidegger 1977, 8-10).
O que é que significa na realidade esta complicação, bastante
obscura, da teoria aparentemente simples de Aristóteles? Para
compreender a resposta de Heidegger a esta questão, precisamos
de mudar de foco. Como vimos, para Heidegger aquilo que as
coisas são, a sua essência, consiste primeiro e acima de tudo no
seu significado. Heidegger insiste então que se olhe para o fazer
técnico primariamente como a realização de um significado no
mundo. Segundo esta explicação, todo o artefato é aquilo que é
ao conformar-se à sua finalidade e forma.
Esta forma de pensar sobre a atividade produtiva leva a re-
sultados paradoxais, ou pelo menos assim nos parecem. A essên-
cia é imanente na prática de fazer e guia essa prática na
transformação dos materiais. A transformação responde à priva-
ção específica que os materiais sofrem na sua condição original,
no início do trabalho. Aquilo em que o material se torna, às mãos
do artesão, não é arbitrário, mas corresponde a um destino ins-
crito na sua própria natureza. Heidegger escreve que, por exem-
plo, para os gregos, a argila do oleiro toma forma sob as suas
mãos mas, mais significativo, perde a sua ausência de forma(s)
(Heidegger 1995, 74). É como que se a argila atingisse o seu ver-
dadeiro fim ao tornar-se num vaso.
Isto explica a rejeição, por Heidegger, da nossa noção mo-
derna de causalidade, tal como a aplicaríamos à atividade artesa-
nal. O artesão não faz o artefacto, mas deixa-o vir a ser. Não entra
no mundo pelo fazer mas sim por um cultivar, desbastar, direcio-
nar que permite que a sua tendência interior se realize. Como
Heidegger escreveu, “o fim que termina, no entanto, está na sua
essência, fronteira, peras (t). Produzir algo é, por si mesmo, mol-
dar algo nas suas fronteiras... Cada trabalho é, na sua essência,

327
CAPÍTULO IX

“exclusivo” (um facto para o qual nós, bárbaros, há muito per-


demos a capacidade)” (Heidegger 1995, 118). Em suma, para os
gregos, o artesanal não se cria através da interação causal com os
materiais, como acontece na tecnologia moderna, mas antes re-
vela coisas que a natureza, sem ajuda, não consegue trazer para
o mundo.
Este conceito de artesanal está de acordo com uma história
antiga acerca de Miguel Ângelo. Quando lhe perguntaram como
tinha feito a sua estátua de David, respondeu “limitei-me a reti-
rar tudo aquilo que não era David”. Sentimos que isto é parado-
xal, porque pressupõe a existência da estátua ainda antes da sua
produção atual, mas é algo assim que descreve a versão de
Heidegger sobre a mundivisão grega. Tal como a estátua de Da-
vid, as essências, na interpretação de Heidegger sobre os gregos,
não se realizam através de um ato positivo de produção, mas
através da exclusão do que não é essencial, do que se desvia da
natureza da coisa que aguarda a sua realização. Logo o conceito
de essência pode ser pensado como um limite que especifica a
coisa, o negativo de um positivo. A visão grega da natureza era
teleológica e atribuía essências, nesse sentido, não só a artefactos,
mas também à própria natureza. O cosmos era uma ordem criada
a partir de um caos primordial, por limitação (Heidegger 1995,
118). Neste modelo grego, a cultura, como um sistema de signifi-
cados, existe através da imposição de um limite às infinitas pos-
sibilidades da ação e dos objetos.
Há no entanto um perigo associado à techné, que Heidegger
foi enfatizando cada vez mais, à medida que o seu trabalho foi
amadurecendo. Techné “é executada ... num procedimento contra
os seres” (Heidegger 1994, 155). Há aqui um risco de arbitrarie-
dade, de se impor violentamente uma ordem meramente subjeti-
va às coisas, em vez de as revelar na sua verdade(4). Esta noção de
arbitrariedade pode ser interpretada de duas maneiras diferentes.
Primeiro, o arbitrário pode manifestar-se, por si mesmo, como
um erro, em termos da cultura, um desvio do padrão essencial

328
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

que a produção deve procurar atingir. Segundo, a própria cultura


pode ser concebida como arbitrária. Afirmar a arbitrariedade,
neste segundo sentido, envolve relativizar todo e qualquer signi-
ficado. Os gregos de Heidegger estavam apenas conscientes da
primeira forma de arbitrariedade. O Heidegger tardio argumen-
tou que a modernidade se baseia na segunda forma, que agora
prevalece como a “revelação tecnológica”.
Heidegger contrastou este entendimento grego de fabrico
com a nossa tecnologia moderna. A tecnologia também é um mo-
do de revelação, mas não revela as coisas na sua natureza essen-
cial. Em vez disso, aquilo que é revelado é um mundo de re-
cursos e de componentes. O significado dos artefactos modernos
é simplesmente a sua conexão funcional com outros artefactos,
num sistema de produção e consumo. Heidegger chamou a este
sistema o “enquadramento” (u) do ser. Na revelação tecnológica,
não se descobrem as essências. O lugar do significado é agora as-
sumido pelo planeamento, e fica assim reduzido às intenções hu-
manas. Isso pode ser descrito como excesso de confiança embora,
à medida que o sistema tecnológico vai ganhando ímpeto, tam-
bém humilhe os seus criadores humanos, incorporando-os nos
seus dispositivos. Também os humanos se tornam peças mecâni-
cas em sistemas que os ultrapassam e que lhes atribuem a sua
própria função (Heidegger 1977). Começam a interpretarem-se a
eles próprios como um tipo especial de máquina. A proliferação
de manuais operativos para todos os aspetos da vida humana,
desde a educação das crianças ao divórcio e às escolhas de carrei-
ra, testemunham o enquadramento do humano. O papel dos hu-
manos na revelação do ser é ocluído. Deixamos de nos admirar
com a falta de significado das coisas. O sistema parece ser autó-
nomo e imparável. Esta crítica da tecnologia não estava explícita
nos escritos de Heidegger até meados dos anos trinta, mas já aí
assumia os seus pontos principais.
A crítica de Heidegger à tecnologia moderna não se dirige a
qualquer tecnologia em particular. O seu objeto é a revelação tec-

329
CAPÍTULO IX

nológica resultante da ambição moderna de dominar todo o ser.


Heidegger argumenta que este impulso tecnológico é anterior à
ciência. Com isso ele pretendia significar que olhar o mundo com
um objeto de dominação é uma condição para o compreender
nos termos da ciência moderna. Porquê? Porque o pensamento
tecnológico elimina as essências que precederam a ciência mo-
derna, e reduz o significado à função. Abrem-se novos caminhos
cognitivos quando o fabrico dos artefactos é assim reduzido e di-
ferenciado das outras dimensões da cultura. Com a eliminação
da teleologia e do significado ritual , a natureza fica disponível
para análise e quantificação, e é finalmente possível uma mate-
mática moderna e uma ciência experimental.
Heidegger é mais convincente ao argumentar que o conheci-
mento está em última instância enraizado na ratificação (i) dos
significados na prática do dia a dia. Este argumento fenomenoló-
gico contra a neutralidade e autonomia do conhecimento tem eco
na epistemologia e na sociologia contemporânea. A noção de que
os significados não se encontram primariamente na mente, como
mapas conceptuais, mas na ação, como princípios orientadores
do comportamento prático, é especialmente sugestiva(5).
Mas há um risco embaraçoso de contradição, por referência a
si mesma, na abordagem de Heidegger. Só na idade da tecnologia
é possível adotar uma visão sinótica da história do ser, como a de
Heidegger. O que é que há de tão especial acerca desta época? A
resposta habitual é a que foi dada na primeira parte deste capítu-
lo: nós, modernos, sabemos como diferenciar cultura e natureza.
Há um mundo “em si mesmo” que pode ser conhecido pela sua
verdade científica, mas que é apreendido, de um ou outro modo
arbitrário, numa subjetividade coletiva, numa cultura. Mas esta
visão retoma uma mera compreensão tecnológica do ser como
matérias primas sujeitas a um plano. Em suma, podemos articu-
lar uma teoria geral da origem local da cultura, uma “história do
ser”, porque estamos situados numa cultura que entende todos
os significados como redutíveis ao sujeito.

330
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

Heidegger devia estar consciente do paradoxo reflexivo im-


plícito nesta posição. Não há dúvida que foi por isso que rejeitou
os termos culturais em que o seu pensamento se torna acessível e
insistiu na sua própria linguagem ontológica. Mas o problema
histórico não se resolve com uma mudança de linguagem: conti-
nuamos a precisar de uma resposta para a pergunta, a partir do
ponto de vista priveligiado de Heidegger. Ele tentou ultrapassar
o paradoxo em termos quase hegelianos, a “coruja de Minerva”
erguendo-se no crepúsculo da modernidade. Um “novo começo”
põe a Alemanha em contato com uma nova ordem de significa-
dos, o que permite a Heidegger pensar a delimitação da moder-
nidade como uma cultura específica.
Qual poderia ser a nova fonte de significado? Seguramente
que não o pavonear arrogante desses “respeitáveis arianos” into-
xicados pelos jornais e pela cerveja, que Nietzsche já tinha de-
nunciado cinquenta anos antes (Nieetzsche 1956, 294-295)! A
reivindicação essencialmente dogmática de Heidegger, segundo a
qual tinha começado uma nova era, é insustentável, sendo facil-
mente refutável pelo próprio pensamento moderno que ele pre-
tendia ultrapassar. O colapso de toda esta construção levou o
Heidegger tardio a uma nova posição baseada no pensamento
poético. Mas essa nova posição anula a intenção reformista origi-
nal da sua filosofia inicial.
Embora a sua crítica da tecnociência seja dura, Heidegger
não propõe um retorno à visão grega do mundo. Reconhece a va-
lidade da ciência moderna, mas contesta o seu esquecimento de
uma outra ordem de verdade, a verdade da revelação. Mas se a
regressão não é a solução, será que existe uma outra forma de ir
para além da era tecnológica? Uma tentativa ativa de o fazer, diz
Heidegger, seria mais do mesmo, mais tecnologia. Sugere a pos-
sibilidade de renovar o poder da arte para transformar o mundo
e sugere que a gravidade extrema do desastre a que a tecnologia
nos está a levar pode inspirar uma mudança. Os seus apelos fi-
nais por uma “relação livre” com a tecnologia podem não impli-

331
CAPÍTULO IX

car resignação, mas não são certamente um programa de reforma


tecnológica. Na sua última entrevista, Heidegger parece desespe-
rar, ao dizer que “só um deus nos pode salvar” (Heidegger,
1993a).

MARCUSE: A NOVA TECHNÉ


Passarei agora para uma consideração da reforma tecnológica, tal
como Marcuse a concebeu. Estudar o seu pensamento ajuda a ver
o que está errado nas análises académicas contemporâneas sobre
Heidegger, que lutam heroicamente com os textos do mestre em
prol de certos tipos de políticas de esquerda. Trata-se, sem dúvi-
da, duma visão minoritária, mas tem advogados interessantes. A
influência de Derrida e de Foucault é importante nessa ligação,
assim como a plausível analogia entre a Gelassenheit(v) heidegge-
riana e algum tipo de filosofia ambiental (Schurmann 1990; Foltz
1995). O ambientalismo, o anarquismo e algumas interpretações
pós modernas são propostas nessa base.
Mas a improbabilidade de todas estas interpretações é clara
desde a última entrevista de Heidegger, em que ele repudia a de-
mocracia e elogia a revolução nazi, a qual ainda considera que
confrontou os problemas reais, embora de uma forma demasiado
limitada para os resolver (Heidegger 1993a, 104, 111). Se existe al-
go com valor em Heidegger, e eu acredito que existe, apenas po-
de ser extraído sacrificando a fidelidade à sua doutrina. A forma
para se chegar a essa contribuição, que possa valer a pena, é pela
via crítica, não por simples exegese.
Foi precisamente isso que Marcuse fez durante os seus anos
como assistente de Heidegger. Em certa medida, a influência de
Heidegger ainda continuou no pensamento tardio de Marcuse.
No que se segue, tentarei esboçar a transformação que o argu-
mento de Heidegger foi sofrendo nos escritos de Marcuse. Isto
não pode ser um procedimento linear, pois Marcuse reagiu tão

332
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

violentamente contra Heidegger que substituiu as ideias do seu


professor por ideias semelhantes, mas de outras origens. A in-
fluência de Heidegger sobrevive, como uma espécie de estrato
arqueológico por baixo dessas outras fontes, apenas emergindo
ocasionalmente à vista.
O que é que havia em Ser e Tempo que inspirou Marcuse a
regressar à universidade como estudante de Heidegger? Mais
tarde ele explicou que foi a promessa de uma filosofia “concreta”
(Olafson 2007, 116). Esta promessa acompanhou a revolta contra
o cientismo, que teve lugar nos princípios do século XX. Enquan-
to que os românticos do século XIX protestavam contra a razão
em nome da paixão, os fenomenologistas desenvolveram uma
analítica da experiência em primeira pessoa, que interpretavam
como o fundamento das abstrações que constituem a ciência.
Fundar essas abstrações na experiência implicava um limite ao
seu âmbito de significância, e garantia à experiência, mais do que
à natureza, o papel ontológico fundamental. Para muitos filóso-
fos, a fenomenologia era a inovação metodológica essencial que
permitia a viragem para uma ontologia concreta. Era esta vira-
gem que atraia Marcuse.
O que era pouco habitual em Marcuse, eram as suas fortes
simpatias políticas. Era um socialista revolucionário, desencanta-
do do partido e da esperança, depois do insucesso da revolução
alemã de 1919. Não podia aderir ao partido social democrático
reformista pois este tinha esmagado a revolução e adotado o ci-
entismo prevalecente como filosofia.
Havia muitos diagnósticos diferentes da doença do socialis-
mo alemão, mas o que atraía Marcuse foi exposto muito persua-
sivamente em 1923, no famoso livro de Georg Lukács, History and
Class Consciousness . Aí Lukács introduz o conceito de reificação,
para alargar a crítica original de Marx sobre a racionalidade do
mercado a uma crítica mais radical da racionalidade técnica e ci-
entífica, como a forma cultural dominante na sociedade capita-
lista moderna. A reificação de Lukács envolve uma má

333
CAPÍTULO IX

interpretação objetivista do mundo social, como composto por


coisas governadas por leis sujeitas à representação teórica e à
manipulação técnica.
Lukács assinalou a semelhança entre conhecimento científico
e as leis do mercado, criticadas por Marx. O mercado constitui
uma “segunda natureza”, com leis tão impiedosas e matematica-
mente precisas como as do cosmos. Lukács escreve que
O que é importante é reconhecer com clareza que todas as re-
lações humanas (vistas como objetos da atividade social) assu-
mem cada vez mais as formas objetivas dos elementos abs-
tratos de sistemas conceituais das ciências da natureza e do
substrato abstrato das leis da natureza.
Tal como o trabalhador confrontado com a máquina, tam-
bém o agente, numa sociedade de mercado, apenas pode mani-
pular essas leis, mas não as pode mudar, para ter alguma
vantagem
O homem ... é uma peça mecânica incorporada num sistema
mecânico. Encontra-o já pré existente e auto suficiente, a fun-
cionar independentemente dele, e tem que se conformar com
as suas leis, quer goste ou não (Lukács 1971, 89).

Não estamos aqui longe da crítica tardia de Heidegger à tec-


nologia, como um modo universal de pensamento e de ação na
modernidade. Mas, ao contrário de Heidegger, Lukács considera
a possibilidade de uma política de desreificação. Como marxista,
argumenta que a realidade humana subjacente às formas reifica-
das pode voltar a afirmar-se e transformar a sociedade (Feenberg
2005, cap. 4). De forma semelhante, Marcuse assume a promessa
de uma transformação radical através da ação política. Mas Mar-
cuse também assume muita da análise de Heidegger sobre o
pensamento grego antigo. Embora não empregue a terminologia

334
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

de Heidegger, tem uma visão semelhante sobre o papel do signi-


ficado na definição de um mundo. E parece estar implicitamente
de acordo com Heidegger em que a ideia grega de fabrico se ba-
seava numa noção específica de significado enquanto essência(6).
Tanto Heidegger como Marcuse argumentam que a dimensão
normativa da techné é eclipsada pela tecnologia moderna. Nos
seus primeiros cursos, Heidegger explicava que o conhecimento
associado à produção não diz apenas respeito aos meios mas tam-
bém, e mais fundamentalmente, ao resultado legítimo da ativida-
de produtiva. Esse resultado, o ergon (w) ou trabalho acabado, está
presente nos meios e dirige-os para a realização de um eidos (q) ou
essência. Ao contrário da tecnologia moderna, techné não é um co-
nhecimento neutro em valores, mas transcende a oposição entre o
que é e o que deve ser. Esta diferença voltou depois da guerra com
a Question Concerning Technology (x), de Heidegger.
Parece provável que a compreensão da tecnologia em Mar-
cuse tenha sido influenciada por estes conceitos e, de facto, há
várias referências positivas a este aspeto do pensamento de Hei-
degger nos trabalhos tardios de Marcuse (por exemplo, Marcuse,
1964: 153-154; Marcuse 1989, 123). Há, no entanto, uma diferença
significativa na ênfase destes últimos trabalhos. Enquanto que
Heidegger dava ênfase ao aspeto ritual da essência, Marcuse
identificava essência com potencialidade. Sob a influência de He-
gel, Marcuse explica o conceito de essência como a realização su-
perior daquilo que aparece imperfeito no mundo. Quando
Aristóteles afirma que “o homem é um animal racional”, está a
definir o que um ser humano pode ser no seu melhor, não a con-
dição segundo a qual nós somos. Logo, as essências são, em certo
sentido, ideais, mas não meramente subjetivas.
Nesta versão da visão grega do mundo, o ser tem duas di-
mensões: uma primeira dimensão empírica, os objetos tal como
são dados pela experiência, e uma segunda dimensão essencial,
relativa à forma ideal. A tensão entre as duas dimensões é uma
caraterística permanente da existência. As coisas existem e de-

335
CAPÍTULO IX

senvolvem-se no tempo, esforçando-se por realizar a sua nature-


za essencial. A nossa compreensão desse esforço depende do
nosso poder imaginativo sobre aquilo em que as coisas se podem
tornar. Não se pode limitar à observação empírica daquilo que
elas já são. Logo o conceito de verdade aplica-se não só a propo-
sições, mas também às coisas, que podem ser mais ou menos
verdadeiras relativamente à sua natureza essencial.
Marcuse argumentou que os gregos se equivocaram ingenu-
amente sobre as tendências essenciais, a partir dos pressupostos
culturais relativos ao seu tempo, o que impunha limites à com-
preensão das potencialidades das mulheres e dos escravos, que
nós hoje em dia podemos transcender facilmente. No entanto, a
ideia de potencialidade sobrevive à descoberta dessas limitações
e continua a ser vital para compreender o mundo moderno. Sem
isso não pode haver razão crítica.
A descoberta moderna do poder construtivo dos sujeitos in-
terpõe-se no caminho de um retorno para uma relação acrítica com
a cultura, pelo menos na filosofia, se não mesmo na vida quotidia-
na. Este poder construtivo é agora exercido não apenas no domínio
espiritual das ideias e das convicções, mas também materialmente,
através da tecnologia, que transforma o ambiente de acordo com os
planos e os propósitos humanos. A sociedade moderna rejeita as
essências da antiguidade, vistas como obstáculos ao exercício livre
dos poderes humanos. Os meios técnicos são despojados de qual-
quer relação com uma “verdade” objetiva do objeto que criam. As
novas normas sob as quais a tecnologia opera reduzem-se às ne-
cessidades formais de dominação.
Esta formulação retoma, numa forma socialmente concreta, o
ponto básico da crítica da tecnologia por Heidegger, ou seja, o dei-
xar de ser no mundo(y) alcançado pela modernidade, que aparece
na reificação da sociedade a que os indivíduos são chamados a
submeter-se. O novo conformismo não consiste na obediência a um
líder, ou aos costumes, mas, mais insidiosamente, na submissão aos
“factos da vida”, interpretados unidimensionalmente, como a única

336
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

organização possível de uma sociedade moderna. Ao adaptarem-se


a isso, os indivíduos caem no culto do que está estabelecido.
Por contraste com a conceção grega, a racionalidade tecnoló-
gica reduz tudo a uma única dimensão. O mundo superior das
essências colapsa na existência de todos os dias. De acordo com
Marcuse, a unidimensionalidade carateriza cada vez mais as so-
ciedades modernas à medida que elas vão avançando. O cientis-
mo leva a uma rejeição da relação imaginativa com a realidade
pela qual se descobre a verdade essencial. Sem uma referência
transcendente, a sociedade existente torna-se o horizonte de todo
o progresso possível. As tensões entre as duas dimensões são re-
definidas como problemas técnicos para os quais existem solu-
ções disponíveis nos termos de um dado sistema. Por exemplo, a
democracia é definida pelas instituições existentes, mas não é um
ideal contra o qual elas se possam medir com vista ao seu melho-
ramento. A sociedade unidimensional assemelha-se ao mundo
enquadrado(z) de Heidegger, na medida em que aparece como um
sistema fechado de ação técnica que exclui qualquer mudança
fundamental a partir de dentro.
Este sistema, de acordo com Marcuse, tem as suas origens no
capitalismo. A empresa capitalista impede o desenvolvimento
autónomo dos seus materiais humanos e naturais a fim de lhes
extrair o lucro máximo. O sistema que evolui a partir dessas ori-
gens é essencialmente alienado, quer tome a forma capitalista ou
comunista. É um sistema de dominação tecnocrática que mani-
pula com rudeza a população através da propaganda e do consu-
mismo. À medida que os indivíduos vão sendo absorvidos nas
organizações em grande escala de uma sociedade moderna é a
sua própria sobrevivência que depende cada vez mais do confor-
mismo irracional.
Posto o problema desta maneira, Marcuse acredita que pode
encontrar soluções que estavam fechadas para Heidegger. A sua
ênfase na cumplicidade da tecnociência com o capitalismo sugere
a possibilidade de uma mudança radical sob um sistema econó-

337
CAPÍTULO IX

mico diferente. Marcuse acredita que o socialismo poderia res-


taurar a segunda dimensão.
Marcuse desenvolveu este argumento como uma explicação
histórica para o destino da razão. Esta explicação foi partilhada
por outros membros da Escola de Frankfurt, embora só ele tenha
proposto uma alternativa positiva. Em Horkheimer, o equivalente
da techné em Heidegger é chamadu “razão objetiva”, uma razão
que incorpora objetivos substantivos (Horkheimer 1947). É clara a
origem da razão nas necessidades práticas da vida, nesta sua for-
ma objetiva original. Marcuse podia, portanto, argumentar que,
desde o início, a razão estava baseada num juízo de valor, uma
preferência pela vida sobre a morte (Marcuse 1964, 220)(7). A mo-
derna racionalidade técnica e científica, a “razão subjetiva” de
Horkheimer, é uma redução da forma anterior de racionalidade.
Quando se retiram os objetivos substantivos da estrutura da raci-
onalidade, ficam apenas os meios: a razão torna-se instrumental.
Esta transformação da razão reflete-se na metodologia das ci-
ências e eventualmente em todas as disciplinas académicas. A re-
alidade é analisada exclusivamente sob esses aspetos empíricos
que a expõem ao cálculo e ao controlo. O conceito teleológico de
essência é expulso da ciência; a natureza revela-se como um objeto
da tecnologia e, com isso, também os seres humanos são incorpo-
rados num funcionamento tranquilo da máquina social. Esta é a
base do mundo que Heidegger esperava reformar com o seu novo
começo. Marcuse olhou para a frente, em vez de um retorno para
a dimensão “objetiva” da razão numa futura sociedade socialista.
Onde Heidegger se retirou da história, depois do seu desa-
pontamento com Hitler, Marcuse persistiu em tentar repensar a
alternativa socialista em termos filosóficos. Os objetivos humanos
devem, uma vez mais, passar a ser intrínsecos à razão, se não na
forma das antigas essências, então em alguma forma nova apro-
priada para a época moderna. Estes objetivos não podem ser me-
ramente subjetivos, mas precisam de ser revelados ao sujeito, no
sentido de que devem ser validados num fundamento que a ra-

338
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

zão conformada pela modernidade possa reconhecer e aceitar.


Parece termos voltado à problemática de Heidegger em 1933, à
procura de uma solução melhor do que o Führer. Terá Marcuse
encontrado a solução?
O que ele propôs foi a reconstrução da base técnica da socie-
dade. Argumentou que isso seria a chave para restaurar a unida-
de dos fins e dos meios num contexto moderno. Seria o
equivalente à criação de uma techné moderna e, de facto, Marcuse
argumentou que o elo entre a arte e o artesanal na antiguidade
poderia ser recuperado de uma nova forma. Pode-se imaginar
uma tecnologia que persiga estratégias idealizantes semelhantes
às da arte. Miséria, injustiça, sofrimento e desordem não só de-
vem ser retirados da imagem artística do belo, mas devem ser re-
Esta é a noção de rutura com o contínuo da dominação, a dife-
rença qualitativa do socialismo como uma nova forma de vida,
não só o desenvolvimento racional das forças produtivas, mas
também o redirecionamento do progresso para a extinção da
luta competitiva pela existência; não apenas a abolição da po-
breza e da labuta, mas também a reconstrução do ambiente so-
cial e natural como um universo pacífico e belo: uma
transformação total dos valores, uma transformação das necessidades
e dos objetivos . Isto implica ainda um outro desafio no conceito de
revolução, uma rutura com a continuidade do aparelho técnico
da produtividade que, para Marx, se alargaria (libertada do
abuso capitalista) para a sociedade socialista. Uma tal continui-
dade “tecnológica” constituiria uma ligação fatal entre capitalismo e
socialismo, porque o seu aparelho, na sua própria estrutura e
âmbito, tornou-se um aparelho de controlo e dominação. Que-
brar essa ligação significaria não regredir no progresso técnico,
mas sim reconstruir o aparelho técnico de acordo com as ne-
cessidades do homem livre (Marcuse 1970, 280).

339
CAPÍTULO IX

movidos da existência, em termos práticos, através de soluções


tecnológicas apropriadas para os problemas humanos.
Mas será que Marcuse consegue uma saída com estas pro-
postas? Não muito. Os seus argumentos dependem da noção de
que os valores de paz, beleza e realização que ele advoga serem
não só simplesmente preferíveis aos seus opostos, sob o ponto de
vista normativo, como também essa normatividade tem algum ti-
po de fundamento na realidade. Tal como o bocado de argila que
o oleiro precisa de transformar para realizar o seu potencial como
um vaso, um mundo caraterizado pela violência, pelo desagradá-
vel e pela opressão não consegue atingir a sua essência natural.
Mas esta abordagem exige uma noção de privação, à qual uma
techné racional responderia com remédios apropriados e isso, por
sua vez, implica uma ontologia que Marcuse não desenvolveu. O
naturalismo científico não é apropriado para este propósito, nem
é plausível regressar a Aristóteles. A alternativa que Marcuse su-
geriu era uma fenomenologia da experiência estética, num senti-
do muito mais lato. Mas embora haja indicações de como é que
poderia ter desenvolvido essa alternativa, não a trabalhou com
suficiente profundidade e detalhe para desafiar com sucesso o
pessimismo de Adorno e de Heidegger.
Em vez disso, Marcuse voltou-se para um argumento mais
formal, baseado na validade existencial de uma nova sensibilidade
estética, pelo menos para certos grupos marginais. Acreditava que
a base desta nova sensibilidade era uma crítica imanente da socie-
dade que contrastasse os seus ideais e as suas realizações. Como
Marcuse assinalou, esta diferença torna-se ainda mais escandaloso
à medida que a produtividade crescente da tecnologia remove os
álibis materiais para a pobreza, discriminação e guerra.
Este argumento fundamentou a nova techné num juízo racio-
nal, capaz de proporcionar os critérios para um “projeto trans-
cendente”, um desenvolvimento progressivo para além da
sociedade existente. Os critérios incluem a viabilidade técnica, ao
nível dado do conhecimento e da tecnologia, e conveniência mo-

340
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

ral, em termos da preservação e melhoramento da liberdade e fe-


licidade humanas. Mais, a racionalidade do projeto transcendente
teria que ser demonstrada através de uma análise persuasiva e
crítica da sociedade existente (Marcuse 1964, 220).

TECNOLOGIA ESTÉTICA
Olhando para trás, a partir da perspetiva do novo século, a posi-
ção geral de Marcuse continua convincente, principalmente como
análise e crítica. One-dimensional Man continua sem igual, apesar
de toda uma geração de esforços para elaborar a teoria crítica ha-
bermasiana e as filosofias da “diferença” com base no pós estru-
turalismo e em Adorno. O recuo do concreto que essas análises
representam recorda de forma perturbadora as falsas promessas
sobre o concreto nos trabalhos de Heidegger.
O que se mostrou fatal para a reputação de Marcuse foi o seu
argumento esperançoso por uma radical transformação social e
técnica. Porém, este aspeto do seu trabalho é relevante num novo
período de crise e protesto largamente focados sobre as questões
técnicas como a poluição ambiental, a política energética e a glo-
balização do mercado e das doenças. Na parte restante deste ca-
pítulo considerarei alguns pontos de partida para dar conti-
nuidade à linha geral de argumento que Marcuse desenvolveu
sob as influências contraditórias de Heidegger, do marxismo e da
Nova Esquerda.
Heidegger e Marcuse argumentaram que a compreensão dos
seres em geral, aquilo a que normalmente chamamos “cultura”,
tem as suas raízes na relação instrumental com a realidade. Essa
relação evolui historicamente e na sua última encarnação toma
um aspeto particularmente destrutivo. O perigo não é meramente
físico, mas diz antes respeito à substituição da racionalidade tec-
nológica por qualquer outro tipo de pensamento. Numa socieda-
de unidimensional, o sujeito não compreende nem o seu

341
CAPÍTULO IX

envolvimento essencial no seu mundo, nem as potencialidades


com que esse mundo está cheio.
Visto de dentro da cultura tecnológica, parece que tudo o que
se perdeu no desencantamento do mundo foram preconceitos e
mitos arbitrários. De acordo com esta visão, a ciência moderna
fornece toda a verdade de que os seres humanos possam even-
tualmente precisar. O mundo da vida é uma fonte pobre de co-
nhecimento até que os seus dados sejam refinados para remover
os elementos subjetivos ilusórios. A procura da eficiência técnica
substitui uma compreensão da estrutura do significado, que é o
que constitui os mundos experimentados. O foco exclusivo sobre
os meios deixa de fora dimensões humanamente significativas da
experiência que parecem ser funcionalmente irrelevantes.
Tanto Heidegger como Marcuse estavam tentados, pelo me-
nos retoricamente, a aceitar essa tal visão reducionista como um
facto estabelecido, embora lhe tenham dado, em simultâneo,
uma volta distópica: o triunfo do “admirável mundo novo”.
Contudo, no fim, nenhum dos dois acreditava que a experiência
pudesse ser completamente desencantada. Heidegger afirmava
que por trás das aparências funcionais da modernidade está um
novo significado misterioso, ainda escondido de nós, mas que
um dia poderá ser revelado. Marcuse concluiu que a própria falta
de significado da tecnologia moderna situa-a dentro do projeto
de uma classe dominante. A destruição de todo significado tradi-
cional, que é a condição do avanço técnico e económico, é sim-
plesmente o outro lado da moeda da reinterpretação do signi-
ficado na forma degradada da ideologia consumista.
No seu trabalho tardio, Marcuse argumentou que o socialis-
mo teria que transformar não só as ordens cultural, económica e
política, mas também a tecnologia subjacente, indiferente à natu-
reza, à vida humana e ao desenvolvimento das capacidades hu-
manas. Não partilhava a convicção de Heidegger de que a relação
com a tecnologia pudesse ser “livre”, de modo independente do
seu projeto. Marcuse cita exemplos de tecnologias destrutivas, in-

342
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

cluindo a linha de montagem, os meios de comunicação social de


massas e o armamento. Se estas tecnologias continuarem no cen-
tro da vida moderna, não há alteração da nossa relação com elas
que nos possa salvar. Mas Marcuse apenas podia sugerir, muito na
generalidade, com que é que a nova tecnologia se poderia parecer.
Porque ambos os pensadores enfrentavam um mundo sem al-
ternativas apropriadas, ao nível técnico, procuraram forças de re-
sistência noutros domínios, como a política nazi ou como os
protestos da Nova Esquerda. Mas não explicaram adequadamente,
ou justificaram, este desvio do papel ontologicamente fundamental
que a prática técnica tem nas suas filosofias. Acabaram com essas
conclusões insatisfatórias porque não conseguiam encontrar uma
via para regressar ao domínio da experiência técnica do dia a dia,
para descobrir aí o aparecimento de novos significados que apelam
a uma base moderna, ao mesmo tempo que apontam para além
das limitações correntes das sociedades modernas. Se for possível
encontrar uma ligação mais próxima entre política e tecnologia,
então poderá aparecer uma alternativa mais convincente.
Marcuse, pelo menos, projeta uma solução técnica para o di-
lema moderno. Apela por uma reunificação das esferas culturais
diferenciadas numa racionalidade científica e técnica reformada.
Tecnologia, estética e ética devem-se reunir novamente numa
cultura unificada. Estava especialmente preocupado com a divi-
são entre ciência e arte. A arte extrai ideais possíveis a partir real,
e assim conserva as esperanças negadas pela penúria e pela
opressão. A imaginação traz a segunda dimensão para a vida
através da arte. Eis como Marcuse explicou a sua posição num
importante ensaio não publicado:
Só se as vastas capacidades da ciência e da tecnologia, da ima-
ginação científica e artística orientarem a construção de um
ambiente sensível, só se o mundo do trabalho perder as suas
carateristicas alienantes e se transformar num mundo de rela-
ções humanas, só se a produtividade se transformar em criati-

343
CAPÍTULO IX

vidade, é que as raízes da dominação secarão nos indivíduos.


Não um retorno ao fabrico artesanal pré capitalista e pré in-
dustrial, mas antes pelo contrário, o aperfeiçoamento dessa
nova ciência e tecnologia, mutiladas e distorcidas, para a for-
mação do mundo dos objetos de acordo com as “leis da bele-
za”. E “beleza” aqui define uma condição ontológica - não de
uma obra de arte (oeuvre d’art) isolada da existência real... mas
daquela harmonia entre o homem e o seu mundo, que daria
forma à sociedade” (Marcuse 2001, 138-139).

Este parágrafo é surpreendente. Surpreendente pelo seu uto-


pismo selvagem e pela sua indiferença total para com a opinião
académica dominante, e especialmente as ortodoxias filosóficas
anglo americanas. É também um conjunto de proposições pro-
fundamente atrativas para aqueles que procuram uma alternativa
civilizacional radical para a sociedade existente. Mas atrativa não
quer dizer necessariamente convincente. Marcuse podia contar
com uma audiência simpatizante para essas ideias nos anos se-
tenta, quando escreveu este texto e outros parecidos com este. Es-
tamos a ler esta passagem muito mais tarde - trinta e oito anos
depois, à altura de eu estar a escrever isto - muito depois da exci-
tação da Nova Esquerda ter morrido. Hoje em dia, especulações
como essas ressoam com a nossa nostalgia, mais do que com as
nossas convicções. Mas no seu posfácio ao livro de Marcuse,
Towards a Critical Theory of Society, Habermas avisa-nos para não
sermos presunçosos, situados como estamos no interior de um
futuro sempre superior. Diz-nos para “fazer justiça ao verdadeiro
conteúdo das análises de Marcuse” (Marcuse 2001, 237). Está-se a
referir à crítica de Marcuse à sociedade industrial avançada, mas
creio que também vale a pena tentar a mesma aproximação à ideia
positiva de uma ciência e tecnologia redimidas.
Não é fácil interpretar os pontos de vista de Marcuse de uma
forma que comunique diretamente connosco, nos dias de hoje.

344
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

Como nota Habermas, Marcuse apresentou o “verdadeiro con-


teúdo” das suas análises em “conceitos que se tornaram estra-
nhos para nós” (Marcuse 2001, 237). Tentarei reformular algumas
das suas visões, correndo o risco de as modificar. Começarei no
entanto por elucidar o significado do texto que citei, nos meus
próprios termos.
A noção de que uma nova tecnologia pode seguir as “leis da
beleza” é uma citação direta dos Manuscritos de Marx, 1844. Marx
afirma aí que enquanto que os animais se apropriam da natureza
para satisfazer as suas necessidades, “o homem constrói também
de acordo com as leis da beleza” (Marx 1963, 128). Marcuse re-
corre à teoria do erótico, por Freud, para desenvolver esta breve
menção da beleza em Marx. Argumenta que o impulso erótico é
dirigido para a preservação e avanço da vida. Não é um mero
instinto ou impulso, mas opera no encontro sensual com o mun-
do. Mas este impulso é reprimido pela sociedade, sendo parcial-
mente sublimado, parcialmente confinado à sexualidade. A perda
do acesso sensorial imediato ao belo dá origem à arte como um
enclave especializado, em que percebemos o traço da afirmação
da vida erótica.
O conceito de estética é ambíguo, como Marcuse assinalou,
“pertencendo aos sentidos e pertencendo à arte” (Marcuse 2001,
132). Esta ambiguidade não é meramente semântica, mas resulta
de uma estrutura comum. Marx afirmava que os sentidos “tor-
nam-se diretamente teóricos na prática” (Marx 1963, 160). Não
são apenas passivos, como referido pelo empirismo, mas envol-
vem-se ativamente com os seus sujeitos. Como a prática de fazer
arte, a “prática” da sensação envolve, por um lado, objetos ricos
em significado e, por outro lado, sujeitos capazes de receber esse
significado. Há uma hierarquia da sensação, que vai desde um
encontro bruto e mínimo com o objeto até à compreensão com-
pleta da sua complexidade. Um cão pode ouvir uma sinfonia,
mas não ouvirá a mesma coisa que o seu dono ouve. O conteúdo
da experiência é gradualmente revelado à medida que a civiliza-

345
CAPÍTULO IX

ção avança. O ser humano num mundo sob o socialismo encon-


trará mais na natureza do que o trabalhador alienado e empobre-
cido sob o capitalismo(8).
De acordo com Marcuse, a forma estética é uma forma de re-
dução e idealização que revela as verdadeiras essências das coisas
pela via dos sentidos, coisas tal como seriam redimidas num
mundo melhor. A forma também é ativa na sensação, dando ori-
gem não só à apreciação da beleza como à repulsão crítica relati-
vamente a tudo aquilo que destrói e desfigura a vida. Marcuse
argumentou que a Nova Esquerda e a contracultura nos deram
uma pista para o que seria um sensório(aa) esteticizado.
Arte e tecnologia têm origem em faculdades diferentes. A
tecnologia é um produto da razão, enquanto que a arte tem as su-
as raízes na imaginação erótica. No passado, a razão procurava
chegar não só ao que é dado por via empírica, mas também à
compreensão discursiva da forma ideal dos seus objetos, as suas
essências, ou seja, as potencialidades realizadas do objeto, tal co-
mo concebidas pela imaginação. Logo, arte e razão não são com-
pletamente estranhas entre si, pois cada uma revela essências à
sua própria maneira (Marcuse 1964, 220, 228). Mas foram separa-
das pelas pressões da vida na sociedade de classes. Enquanto que
a arte foi confinada a um domínio marginal da “cultura afirmati-
va”, a razão foi reduzida a um instrumento na luta contra a es-
cassez. Este resquício é o que nós erradamente tomamos pela
verdadeira natureza da racionalidade.
Correspondente a esta redução da razão, a tecnologia é redu-
zida a uns meios livres de valores que servem fins funcionais.
Mas a liberdade de valores é simplesmente uma maneira tenden-
ciosa de significar a diferenciação da tecnologia relativamente à
ética e à estética, que a limitavam a projetos e objetivos cultural-
mente seguros nas sociedades pré modernas. Assim diferenciada,
a tecnologia está disponível para qualquer uso. Os fins vêm agora
dos utilizadores e são subjetivos. Isto parece significar que a ciên-
cia e a tecnologia modernas estão inocentes das suas aplicações

346
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

mais tenebrosas.
Mas Marcuse argumenta que só parecem inocentes quando
artificialmente separadas do seu contexto social. Nesse contexto
mais amplo, os meios que oferecem estão ligados com a prática e
com os fins do sujeito social dominante. Concretamente, a neu-
tralidade de valor significa a eliminação de todas as limitações ao
poder. Logo,
é precisamente o seu carácter neutro que relaciona objetivida-
de com um sujeito histórico específico. ... A razão teórica, con-
tinuando pura e neutra, pôs-se ao serviço da razão prática. A
fusão mostrou-se benéfica para ambas. Hoje, a dominação per-
petua-se e alarga-se não só através da tecnologia, mas como
tecnologia, e esta última dá uma forte legitimação ao poder
político crescente, que absorve todas as esferas da cultura.
(Marcuse 1964, 156, 158)

O aparente paradoxo de fundir liberdade de valores e domi-


nação dissolve-se na ontologia bidimensional de Marcuse. Neu-
tralidade entre o desenvolvimento potencial de objetos e objetivos
arbitrários não é verdadeira neutra. Uma racionalidade que não
consegue distinguir entre o crescimento e o desenvolvimento hu-
mano essenciais de seres humanos e naturais e os fins restritos,
como o poder militar ou o lucro, presta-se ao projeto capitalista
de dominação. A dita razão neutra está de facto destinada a servir
aqueles que detêm poder para a usar para os seus fins arbitrários.
A sua forma é apropriada aos seus fins. Neste sentido, a sua apa-
rente neutralidade é, de facto, um enviesamento para a domina-
ção (Marcuse 1964, 132, 146-148).
Temos agora os elementos no seu lugar para uma revisão ra-
dical do conceito de tecnologia. Marcuse projeta um futuro possí-
vel em que o telos da arte e razão, garantes da vida, se podem
juntar sob a égide de uma sensibilidade erotizada. O resultado

347
CAPÍTULO IX

seria uma transformação da tecnologia e, portanto, do ambiente


da vida, que cada vez mais é mediado pela tecnologia. Diferentes
seres humanos habitariam este mundo, com diferentes perceções
e preocupações. Isso seria um socialismo que mudou não apenas
superficialmente algumas formações políticas e económicas, mas
a estrutura da razão, arte, tecnologia e da própria experiência.
Sumariando, a arte e a tecnologia da sociedade existente
desviam-se das formas originais, que eram mais ricas e unifica-
das. Arte e tecnologia já estiveram fundidas em práticas dirigi-
das para à realização das formas mais elevadas dos seus objetos,
das essências e da beleza. A experiência e a razão já foram infor-
madas pela imaginação e sensíveis aos impulsos eróticos que as
reuniam na apreciação do essencial nas coisas. O potencial e-
mancipador destas formas originais não se poderia realizar sob
as condições pré modernas de escassez. Hoje, uma revolução so-
cialista pode revivê-las e realizar esse potencial nas sociedades
modernas e ricas.

CIÊNCIA, TECNOLOGIA E MUNDO DA VIDA


Este sumário terá deixado claro o que Habermas significava
quando afirmava que os conceitos de Marcuse “tornaram-se es-
tranhos para nós”. É difícil aceitar um argumento baseado numa
noção de origens, tal como este. A referência freudiana é também
menos convincente hoje do que costumava ser. Para além disso,
em Freud, o erótico é um impulso subjetivo baseado na fisiologia
humana, enquanto que em Marcuse revela estruturas objetivas do
ser. A noção teleológica de razão, em Marcuse, também pressu-
põe uma ontologização semelhante de categorias antropológicas.
A afirmação da vida é uma categoria existencial e não simples-
mente um impulso instintivo. Logo uma razão que incorpore a
afirmação da vida na sua estrutura está em harmonia com a na-
tureza das coisas, de uma forma que uma razão neutra de valores

348
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

não está.
Para que estas ideias façam sentido, o conceito de essência
precisa de ser reconstruído e reanimado. A forma empírica dos
seres humanos e das coisas não pode ser a última palavra sobre a
sua natureza. Estão assombradas por uma negatividade que nos
remete para as suas potencialidades. O erótico, a imaginação, a
afirmação da vida, tudo isso aponta para dimensões do ser que
transcendem a realidade. Hegel permite a Marcuse interpretar o
conceito de essência numa veia moderna, como as potencialida-
des reveladas no processo histórico. Marcuse acredita que chega-
mos à fase em que o hiato entre existência e essência pode ser
fechado por uma nova tecnologia sensível a valores.
Por estranho que possa parecer, os seus elementos, tomados
um a um, não são inteiramente estranhos a tendências fenome-
nológicas que ainda representam uma alternativa influente ao
naturalismo e ao kantismo. O elemento chave que falta na apre-
sentação destas ideias por Marcuse é a noção fenomenológica de
“mundo da vida”. Embora, em várias ocasiões, mencione algo a
que chama um “ Lebesnwelt(bb) estético”, nunca elabora o seu fun-
do fenomenológico (Marcuse 1969, 31). Esse fundo é útil para se
reconstruir a visão redentora de Marcuse.
O problema chave é o estatuto ontológico da experiência vi-
vida. A natureza da ciência natural está totalmente desencantada,
sem espaço para teleologia, para o erótico, para qualquer prefe-
rência pela vida sobre a morte. Tal como a baleia branca de Mel-
ville, está esterilizada de valor e, por isso, convida a projeções
subjetivas de todo o tipo, na forma de tecnologias cada vez mais
poderosas, ao serviço de fins cada vez mais violentos. Contra este
fundo, a experiência é, nos tempos modernos, desvalorizada re-
lativamente à imagem científica da natureza.
Marcuse rejeita o privilégio da natureza neste sentido cientí-
fico. A experiência não é uma camada subjetiva sobre a natureza
da ciência natural. Revela dimensões da realidade que a ciência
não pode apreender na sua forma atual. Estas dimensões, como

349
CAPÍTULO IX

beleza, potencialidades, essências, vida como um valor, são tão


reais como os eletrões e as placas teutónicas. A imaginação que
projeta estas dimensões não é, portanto, uma faculdade mera-
mente subjetiva, mas revela aspetos do real.
Até aqui, tudo bem. Mas há uma ambiguidade na aborda-
gem de Marcuse que aparece na sua procura bastante vaga por
uma ciência nova, capaz de descobrir valor na própria estrutura
dos seus objetos. Sem mais por onde continuar, ficamos suspen-
sos entre duas formulações possíveis do seu programa (Marcuse
1964, cap. 9).
Desejará Marcuse reencantar a natureza desencantada da fí-
sica e da biologia para lhe atribuir qualidades, como a beleza,
que atualmente não reconhecem? Presumivelmente estas quali-
dades apareceriam como fenómenos para a ciência do futuro. Po-
deria isto ser o significado do seu apelo enigmático para re-
conhecer a verdade “existencial” da natureza? Continua, afir-
mando que “a emancipação do homem envolve o reconhecimento
de tais verdades nas coisas, na natureza” (Marcuse 1972, 69).
Noutro local, leva este argumento, sem hesitações, até à conclu-
são surpreendente de que existem “forças na natureza que foram
distorcidas ou suprimidas - forças que poderiam suportar e me-
lhorar a libertação do homem” (Marcuse 1969, 66). Marcuse esta-
va a pensar primariamente na beleza visível da natureza, que via
como um símbolo e um portador da paz e da felicidade. Mas é
difícil imaginar a beleza, ou qualquer outra “força” afirmativa da
vida, como uma variável nas equações dos físicos. Estas afirma-
ções parecem exigir uma rutura completa com a ciência, tal como
a conhecemos, mas Marcuse rejeita explicitamente qualquer re-
torno a uma “física qualitativa”, ou seja, para uma forma pré mo-
derna de conhecimento (Marcuse 1964, 166).
É óbvio que a noção de natureza para Marcuse é intencional-
mente provocadora. Embora ela própria conduza a equívocos, é
possível fazer uma leitura bondosa. Talvez se possa encontrar um
equivalente menos romântico, para a sua ontologia estética, nos

350
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

aspetos do mundo natural que suportam a vida, direta ou imedi-


atamente. Alguns deles são tão óbvios que parecem triviais - ar
puro, água abundante, um clima adequado para a agricultura e
para a vida humana - mas, apesar de tudo, estão a ser destruídos
pelo desenvolvimento não controlado. Estas forças naturais be-
nignas foram reconhecidas como tal e celebradas pelos povos
primitivos. O respeito por essas forças ainda nos é solicitado, a
nós modernos. Marcuse argumenta que a violência contra a na-
tureza reflete a violência das relações sociais numa sociedade re-
pressiva. O ambientalismo e a teoria crítica de Marcuse são
portanto aliados naturais.
De acordo com esta interpretação, a experiência é revalori-
zada, não em oposição à ciência, mas como um campo ontológico
coexistente que reclama os seus próprios direitos e significância.
Presumivelmente, as “verdades existenciais” reveladas na expe-
riência podem inspirar novas direções da investigação científica e
do desenvolvimento tecnológico numa sociedade socialista, sem
substituir a ciência corrente por um sucessor problemático.
Esta segunda interpretação é mais plausível, mas continua
sem se ver como difere de uma mera mudança no uso da ciência,
do tipo que tanto Heidegger como Marcuse teriam certamente
rejeitado como insuficientemente crítica. Seria desapontador re-
tornar, depois de todas estas complexidades, para uma posição
de senso comum. Na realidade, de acordo com os seus argumen-
tos, nada de fundamental mudaria se as organizações continuas-
sem a usar tecnologias neutras no interesse de objetivos ar-
bitrários, ainda que defensores da vida. O pessimismo de
Heidegger pareceria confirmado por tão magro resultado da vi-
são crítica de Marcuse.
Não encontro uma resolução clara para esta ambiguidade
em Marcuse. Mais do que interpretá-lo neste pondo difícil, tentarei
reformular o seu argumento de uma maneira que se conforma va-
gamente com a sua intenção. Posso apenas esboçar aqui breve-
mente essa solução, mas quero pelo menos introduzi-la, para

351
CAPÍTULO IX

mostrar que o caminho que temos estado a seguir com Heidegger


e com Marcuse não é um beco sem saída.
Estes dois pensadores bloqueiam as soluções óbvias do gé-
nero que levam ao dogmatismo cultural ou ao reencantamento de
uma nova era. Ambos estão de acordo que não podemos retornar
às essências eternas, do tipo das que guiaram os gregos. A tradi-
ção já não tem essa força nas sociedades modernas e, em qualquer
caso, as essências estabelecidas culturalmente parecer-nos-iam, a
nós modernos, como restrições arbitrárias à nossa liberdade.
Também não podemos recriar o significado perdido através de
um esforço da vontade. Isso apenas confirmaria o enquadramen-
to tecnológico, criando uma tecnologia a partir da cultura. Preci-
samos de um modelo diferente que não seja nem pré moderno
nem moderno, no sentido usual destes termos.
Esta terceira alternativa corresponde à abordagem fenome-
nológica, tal como explicada em pensadores como Gadamer e
Merleau-Ponty, que não endossam um re-encantamento regressi-
vo da natureza, mas defendem a experiência contra o reducionis-
mo naturalista. No conceito fenomenológico de Lebenswelt(bb), o
mundo vivido, valor e facto juntam-se, como vimos na discussão
de Heidegger. O nosso encontro original com a natureza, tanto a
natureza externa como a natureza humana, não é objetivista, mas
prático. Na experiência quotidiana, nós trabalhamos sempre com
“materiais” que possuem significado e que buscam a forma. Este
aspeto da fenomenologia de Heidegger é semelhante à observa-
ção de Marx, segundo a qual os sentidos são “diretamente teóri-
cos na prática” e suportam a ontologia bidimensional da ex-
periência, de Marcuse.
Uma tradução fenomenológica semelhante pode salvar a no-
ção do erótico, que precisa de ser libertado da sua formulação fi-
siológica na teoria de Freud, para que possa servir os objetivos de
Marcuse. O “erótico” de Marcuse assemelha-se ao conceito de
“sintonia” (cc) ou “estado de espírito” (dd) de Heidegger . Estes con-
ceitos referem-se ao facto da experiência sensorial ser sempre co-

352
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

lorida por uma qualidade geral de perceção, como medo ou an-


siedade, alegria ou esperança. Estas qualidades revelam o mundo
nos seus vários aspetos e não são meramente subjetivas. O eróti-
co parece fazer o mesmo trabalho no argumento de Marcuse, co-
mo uma das possíveis sintonias de que os seres humanos são
capazes. Mas, ao contrário dos equivalentes em Heidegger, como
a ansiedade ou o tédio, o erótico revela a negatividade do mundo
contra um fundo normativo. Uma perceção informada erotica-
mente é sensível não só ao que afirma a vida, mas também aquilo
que nega a vida.
Neste contexto fenomenológico, faz sentido afirmar que as
potencialidades percebidas dos objetos têm uma espécie de reali-
dade. Existem domínios importantes da experiência para os
quais trazemos uma consciência normativa, muito diferente de
opiniões e construções intelectuais. Quando encontramos um
panorama belo, percebemos imediatamente a sua beleza, sem
com isso formar um juízo racional. Uma pessoa doente parece,
para as nossas perceções, não estar dentro das normas de saúde
relativamente às quais nós esperamos uma conformidade visível.
Os exemplos poderiam ser multiplicados indefinidamente. Mos-
tram que a experiência vivida do real não se confina apenas ao
que é dado empiricamente, mas refere-se frequentemente, para
além disso, a potencialidades essenciais que essa experiência
mais ou menos alcança.
Esta “bidimensionalidade” da experiência tem significância
política para Marcuse. A maneira como vemos o mundo condici-
ona as nossas ações. Onde os centros comerciais aparecem como
convenientes, são aceitáveis. Onde aparecem como desfigurações
disformes das vizinhanças, aparece a resistência. A tortura perce-
bida como uma necessidade prática não é o mesmo que a tortura
percebida como um assalto hediondo à humanidade que todos
partilhamos. A imagem de trabalhadores numa linha de monta-
gem pode evocar pensamentos de eficiência ou pode revelar a
ordem desumanizante de um sistema económico explorador. Em

353
CAPÍTULO IX

cada um destes exemplos, uma perceção unidimensional das rea-


lidades contemporâneas sanciona-as, enquanto que uma perceção
bidimensional contrasta-as com potencialidades que excluem. Na
ausência de uma classe revolucionária com uma consciência do
tipo da de Marx, Marcuse vira-se para uma tal sensibilidade que
afirma a vida, como uma nova base para a resistência política.

A COMPLEMENTARIDADE DA NATUREZA
E DA EXPERIÊNCIA
Estas reformulações da abordagem de Marcuse levantam mais
uma questão acerca da relação entre os dois mundos, o mundo
natural da ciência e o mundo da vida da experiência. Marcuse ti-
nha esperança que o mundo da vida, sob o socialismo, pudesse
dar uma nova direção à ciência e à tecnologia, mas não explicou
como é que isso seria feito. Hoje, depois de tantas lutas à volta da
tecnologia, que Marcuse não viveu o suficiente para poder ver,
podemos ir para além de meros gestos para responder a esta
questão.
O mundo da vida que experimentamos e a natureza da ciên-
cia natural não só coexistem, lado a lado, mas interatuam de
muitas maneiras. Em primeiro lugar, a ciência pressupõe uma
ação humana com significado, através da qual se reúnem os da-
dos científicos. As experiências, que criam domínios fechados
dentro dos quais se podem observar as leis em operação, elas
próprias dependem dessa ação. Mas a ação apenas é compreensí-
vel como tal, ou seja, como significativa, a partir de um ponto de
vista da experiência, diferente do da ciência natural. Quando a
ação é reduzida às suas condições naturais, por exemplo, a certos
reflexos musculares, é des-mundaneizada(ee) e deixa de fazer sen-
tido. Se apenas as explicações científicas são válidas, como propõe
o reducionismo naturalista, então a ação, no sentido habitual da
palavra, é eliminada e a possibilidade da compreensão científica

354
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

torna-se ela própria ininteligível. Karl-Otto Apel argumenta, nes-


se sentido, que a ação é uma precondição quase transcendental
do conhecimento (científico). Em oposição ao reducionismo na-
turalista, Apel postula a “complementaridade” da compreensão
hermenêutica e da explicação científica (Apel 1984, 63-64).
Mas o argumento de Apel está incompleto. De acordo com a
sua tese, ação com significado é uma pré condição para o conhe-
cimento científico, mas isso depende da tese ainda mais funda-
mental segundo a qual a pré condição para a ação é o mundo
como uma rede de objetos com significado. Para que a ação faça
sentido, precisa de se dirigir a objetos que, eles próprios, tenham
significância. A estrutura essencial da ação precisa de se correla-
cionar com as estruturas essenciais dos objetos, tal como são en-
contrados na experiência vivida. A saudação do soldado não tem
maior significado do que o seu uniforme. A mesa da sala de aula
fala de educação, precisamente como o automóvel significa o es-
tatuto do dono, a chave fala da propriedade e o telefone significa
contacto humano. O mundo da vida inclui todo o domínio práti-
co, não apenas a ação. Mas isto significa que não é só a ação, mas
também as coisas, que escapam à redução.
Esta observação tem implicações para a tecnologia, a qual, tal
como a experiência científica, existe de ambos os lados da linha
separadora entre o mundo da vida e a ordem da causalidade na-
tural. As tecnologias são ao mesmo tempo significativas, dentro
do mundo da vida, e funcionais, como mecanismos causais. A
existência destes dois lados é essencial para o seu próprio ser e
não é uma combinação externa de sentimentos subjetivos e coisas
objetivas. Significar é, portanto, a pré-condição não só da racio-
nalidade científica como também da própria existência da tecno-
logia dentro de um mundo em que se vive(9).
A tentativa de Marcuse para unir arte e tecnologia num con-
ceito de racionalidade tecnológica orientada pelo valor encontra
apoio nestas ideias. As implicações tecnológicas desta abordagem
poderiam ser desenvolvidas independentemente da esperança nu-

355
CAPÍTULO IX

ma nova ciência que parece comprometê-lo com um reencanta-


mento da natureza de que ele não precisa para apoiar o seu argu-
mento político por uma sociedade não repressiva (10). O argumento
reivindicaria então que as disciplinas técnicas possam ser reestru-
turadas sob a égide de valores, como a beleza, que se revelam na
experiência. As artes apareceriam não como antagonistas da tec-
nologia mas, antes, como informando-a através da revelação das
potencialidades dos seus objetos. Algo como a “educação estética”
de Schiller estaria aqui a funcionar, mas não estaria confinada ao
caráter, como em Schiller, mas estender-se-ia ao ambiente tecnoló-
gico em que, e através do qual, os indivíduos vivem.
Será que, hoje em dia, ainda faz sentido esta visão de uma
tecnologia esteticizada? Surpreendentemente, a resposta a esta
questão é “sim”. De facto, podemos agora desenvolver melhor esta
ideia do que nos tempos de Marcuse. Isto porque a noção tradicio-
nal de tecnologia como um meio puramente racional para “fins”
subjetivos foi definitivamente refutada pela filosofia e pela socio-
logia da tecnologia. Já não acreditamos que a tecnologia é neutra.
Pelo contrário, muitos estudos contemporâneos da tecnologia ar-
gumentam que o projeto tecnológico incorpora sempre valores
através das escolhas feitas entre as múltiplas alternativas possíveis
com que os projetistas se confrontam. As tecnologias não são me-
ros meios, mas conformam o ambiente, em termos de uma conce-
ção implícita da vida humana. São inerentemente políticas. Mas se
isso é assim, o argumento de Marcuse ganha plausibilidade.
Como vimos, Marcuse afirmava que o problema com a tec-
nologia moderna resultava da sua neutralidade a valores, um
efeito da diferenciação. Embora não tenha desenvolvido uma ex-
plicação histórica apropriada, parece que acreditava que a ativi-
dade técnica pré moderna se guiava por valores incorporados
nos padrões e práticas artesanais, valores que refletiam uma
grande variedade de necessidades humanas. Livre destas restri-
ções, a tecnologia moderna transformou-se num instrumento de
dominação pelos poderosos.

356
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

Esta crítica da neutralidade de valor não é inteiramente


compatível com os pontos de vista contemporâneos, mas pode
ser reformulada de forma a preservar o ponto essencial de Mar-
cuse. A neutralidade de valor não é um estado de pureza que se
atingiu, mas sim uma tendência com uma história. Os imperati-
vos do mercado capitalista estão subjacentes a esta tendência pa-
ra libertar a tecnologia dos valores artesanais, com vista a per-
mitir um desenvolvimento exclusivamente orientado para o
lucro. Naturalmente, a procura do lucro serve de mediador às
exigências reais que configuram as disciplinas e os projetos técni-
cos. Nunca se atinge uma completa neutralidade de valores, mas
as condicionantes dos valores sobre o projeto vão sendo cada vez
mais simplificadas e vão-se tornando cada vez mais efémeras e
controláveis. Quanto menos a tecnologia se envolver com valores
pré estabelecidos, mais facilmente se pode adaptar às condições
mutáveis do mercado. Daí a aparência de neutralidade aos valo-
res na produção moderna, com as suas disciplinas técnicas puri-
ficadas, a que correspondem peças padronizadas, disponíveis
para combinação em muitos padrões diferentes e com implica-
ções diferentes sobre os valores.
Reformulado nestes termos, o argumento de Marcuse leva à
conclusão de que as disciplinas técnicas e as tecnologias devem
ser condicionadas por valores relacionados não só com a rentabi-
lidade mas, de uma forma mais geral, com as necessidades hu-
manas e naturais reconhecidas pela experiência e validadas pelo
debate político. A situação antevista por Marcuse é antecipada
pela regulação da tecnologia, na qual se impõem padrões de afir-
mação da vida independentes do mercado. O socialismo repre-
sentaria um deslocamento da balança em direçãoa a uma
regulação muito mais extensiva, baseada em procedimentos mui-
to mais democráticos e participativos.
Esta conclusão precisa de especificação mais completa, no
contexto mais amplo do argumento ontológico radical de Marcu-
se. Recorde-se que, de acordo com Heidegger, as essências são a

357
CAPÍTULO IX

forma e o propósito dos materiais. Mas forma e propósito são


precisamente aquilo que foi substituído por planos arbitrários,
nos tempos modernos. No entanto, há uma dimensão da essência
que não está sujeita à manipulação arbitrária, peras . Para os gre-
gos, as essências são limitações aos materiais sem forma, a partir
dos quais a coisa produzida é feita. O significado resulta da sele-
ção. O artefacto é “forjado... nas suas fronteiras” (Heidegger 1995,
118). O que é excluído é o passo errado que desvia do eidos essen-
cial da coisa produzida.
Para nós, modernos, que perdemos a discriminação essencial
dos gregos, é possível um outro tipo de exclusão. Hoje, os limites
emergem no mundo da vida como ameaças à saúde humana ou à
natureza que depois retornam à tecnologia e inspiram pedidos
por projetos menos destrutivos. A descoberta de um limite revela
a significância daquilo que está ameaçado para além dele. Esta
dialética da limitação junta os dois mundos. Por um lado, o mun-
do experimentado assegura uma base no respeito para com cer-
tos objetos, como o corpo humano ou um sistema natural
ameaçado. Por outro lado, uma resposta técnica concreta, basea-
da no conhecimento do mundo objetivo, emprega os meios dis-
poníveis em novas combinações ou inventa novos meios.
Esta é a forma em que o mundo vivido, que descobrimos no
pensamento de Heidegger e de Marcuse, se torna ativo na estru-
tura de uma racionalidade que ainda tem por missão a explicação
da natureza objetiva. Mesmo se este mundo não tem estatuto ci-
entífico, os conceitos normativos que o moldam, como a saúde
humana ou o equilíbrio da natureza, não contradizem os avanços
cognitivos da ciência moderna mas, antes pelo contrário, precisam
do conhecimento científico para avaliar as reivindicações em con-
flito. É aqui que encontramos a entrada peculiar da objetividade
na experiência, que corresponde à explicação de Apel para o pa-
pel fundacional da experiência na ciência. A complementaridade
da objetividade e da experiência que ele identifica não é apenas
cognitiva, mas também tem implicações políticas e tecnológicas.

358
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

Não há retorno possível ou necessário a uma ciência qualita-


tiva. A ciência moderna objetifica e reifica pela sua própria natu-
reza, mas podia ter em consideração os limites que substituem as
essências perdidas da antiguidade e, tal como elas, remeter-nos
para uma verdade irredutível da experiência. Embora o caráter
do processo e toda a complexidade da realidade não se possam
refletir imediatamente nas disciplinas científicas e técnicas, po-
dem ser usadas em combinações fluidas que refletem a comple-
xidade da realidade, à medida que esta entra na experiência
através das ameaças e dos desastres de todos os tipos provocados
pelo homem e, através da inovação, oferece novas perspetivas
sobre a realidade. A especialização e a diferenciação não desapa-
receriam, mas seriam tratadas como metodologicamente úteis,
mais do que ontologicamente fundamentais. A rutura das fron-
teiras daí resultante, entre disciplinas e entre o mundo técnico e o
mundo da vida, responde à crise da sociedade industrial. Pode-
mos aprender a delimitar o cosmos em formas modernas, dando
atenção aos limites que emergem a partir das interações de do-
mínios tocados por poderosas tecnologias modernas.
Há um risco de resignação nesta conceção, que se manifesta
nos múltiplos apelos para a simplicidade voluntária e para a re-
gressão tecnológica. Mas a limitação, no sentido grego, não é
apenas negativa; está implícita no ato positivo de produção: telos
é o outro lado de peras . Precisamos de exercer uma restrição pro-
dutiva que conduza a um processo de transformação, não a uma
recusa passiva de um sistema reificado. À medida que o projeto se
move em direções diferentes por atores que tentam impor as suas
diferentes exigências, as inovações devem reconciliar funções
múltiplas em estruturas simples e elegantes, capazes de servir a
todas essas exigências. Isto é o que Gilbert Simondon chama
“concretização”, projetos que acomodam uma grande variedade
de influências e fatores contextuais(11). Os exemplos abundam:
motores híbridos para os automóveis, fluidos refrigerantes e pro-
pulsores que não afetam a camada de ozono, substitutos para o

359
CAPÍTULO IX

chumbo nos produtos de consumo, etc. No processo de desenvol-


vimento destas tecnologias são exercidas sobre o projeto preocu-
pações ambientais, médicas e outras, por novos atores excluídos
do regime tecnológico original. É claro que estes pequenos refina-
mentos não podem, por si, resolver a crise ambiental, mas o facto
de serem possíveis remove a ameaça de regressão tecnológica co-
mo um álibi principal para não se fazer nada.
O objetivo mais importante não é meramente enfrentar pro-
blemas particulares, à medida que vão aparecendo, mas recons-
truir a tecnologia moderna à volta de um novo modelo de ri-
queza que seja ambientalmente compatível e que use as ca-
pacidades humanas suprimidas ou ignoradas na presente
situação. Marcuse interpretou isto em termos do “ hazard objectif”
surrealista, a noção bastante fantástica de um mundo formado
esteticamente, em que as “faculdades e os desejos humanos ...
aparecem como parte do determinismo objetivo da natureza -
coincidência da causalidade através da natureza com a causali-
dade através da liberdade” (Marcuse 1969, 31).
Esta reformulação do projeto de Marcuse recupera alguns
aspetos do conceito tradicional de essência, mas sem a sua rigi-
dez cultural. O lado negativo da essência, a noção de peras , é as-
segurado pelo nosso conhecimento dos limites do corpo humano
e da natureza, o que estabelece os limites dentro dos quais a ati-
vidade criativa deve continuar. Os novos limites fazem sentido
em termos científicos modernos, mas não se podem derivar ape-
nas da ciência. Poderão estes limites tomar o lugar anteriormente
ocupado pela essência, como uma mediação entre a experiência e
a racionalidade? Em parte. Podemos determinar cientificamente
o que não fazer para salvar uma floresta ou um recife de coral,
mas a ciência não nos pode dizer o que fazer com os recursos en-
tão libertados. A tradição também não pode informar a nossa de-
cisão. Nisso nós, modernos, estamos só com nós próprios.
Precisamos de decidir em termos da nossa sensibilidade imagi-

360
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

nativa às exigências de uma vida boa. Esta é a pré condição para


a liberdade e para o desenvolvimento livre dos seres humanos na
história.
CONCLUSÃO
Em conclusão, gostaria de sumariar o cerne da linha de argu-
mento que temos vindo a seguir ao longo deste capítulo. O con-
ceito de essência que prevaleceu até à revolução científica deu
forma racional à estrutura teleológica da experiência de todos os
dias. Nos tempos modernos, a diferenciação entre a racionalidade
científica e técnica e a experiência quotidiana separou esses dois
domínios, anteriormente entrelaçados, mas agora fragmentos de
um todo inatingível. Sob esta nova organização, significados e
fins parecem subjetivos, natureza e meios parecem objetivos, e
não há mediação que os possa reconciliar. Uma forma anterior de
racionalidade, baseada numa interpretação teleológica da experi-
ência, está irrecuperavelmente perdida, salvo como lembrança
dessa reconciliação impossível.
Hoje em dia, confrontamos um mundo de artefactos tão ela-
borado e complexo que ofusca as nossas vidas em todos os do-
mínios. Mas este mundo não é conformado por essências. As suas
estruturas correspondem às várias disciplinas e organizações que
formam as sociedades modernas. Até recentemente, era possível
imaginar que a lógica fragmentada da modernidade refletia a na-
tureza da realidade e as condições do progresso. Não mais. A cri-
se ambiental que resulta da interferência entre domínios frag-
mentados revela a complexidade do mundo real, que não respeita
as fronteiras entre as disciplinas e organizações que evoluíram
historicamente.
O problema, reduzido aos seus termos mais simples, é o co-
lapso de qualquer noção de fins racionais, uma vez que as essên-
cias já não guiam a prática para resultados sancionados. Mas esta
formulação mascara a questão mais profunda da natureza dessas

361
CAPÍTULO IX

essências, em que já não podemos acreditar. Nas sociedades pré


modernas, o conceito de essência derivava do fabrico de artefac-
tos de acordo com regras culturalmente aceites. As essências as-
sociaram-se então à experiência, à medida que esta foi vivida
numa sociedade em particular, com práticas tecnicamente racio-
nais. Os próprios artefactos enfrentaram ambas as direções, por
um lado participando no mundo da experiência do dia a dia, in-
formado normativamente e, por outro lado, implementando
compreensões racionais da natureza. Os dois lados fundiram-se
em sociedades pré modernas menos diferenciadas. Nós, nos tem-
pos modernos, articulamos as práticas técnicas no conhecimento
teórico enquanto que ao mesmo tempo eliminamos, das nossas
teorias, a dimensão da experiência dos artefactos .
Não podemos recuperar a normatividade da técnica por um
simples ato da vontade. As normas só podem emergir a partir da
experiência partilhada por uma comunidade com o seu mundo.
Os mundos, neste sentido mais ou menos heideggeriano, devem
ser entendidos como domínios de prática, mais do que como
uma natureza observada passivamente à qual são atribuídos
“valores”. Os mundos são constituídos a partir de uma miríade
de conexões descobertas no decurso da experiência do dia a dia,
como Heidegger explicou na sugestiva primeira parte de Ser e
Tempo. Esses mundos formam um horizonte dentro do qual as
ações e os objetos assumem significado. Os significados não são
coisas que temos ao nosso dispor, mas quadros estruturais, pers-
petivas que habitamos e que contribuem para nos fazer naquilo
que somos e quem somos. Não são escolhidos mas antes “cha-
mam por nós”, por “trás de nós” (Simpson 1995, 47). Qual pode-
ria ser a fonte desses significados hoje em dia?
Marcuse argumentou que a própria razão devia fazer esse
papel. A razão sempre pressupôs um juízo de valor, a preferência
pela vida sobre a morte. Ao ignorarem este juízo de valor, as so-
ciedades modernas tornam-se irracionais na sua própria raciona-
lidade. Esta formulação invoca um quadro estrutural utilitário e

362
ENTRE A RAZÃO E A EXPERIÊNCIA

bastante limitado, mas o problema é ainda muito mais profundo.


A eliminação de qualquer juízo de valor da estrutura da raciona-
lidade tecnológica moderna, a neutralização da razão, conduz ao
colapso da exclusividade, que é uma condição para a ação, no
sentido correto da palavra. A racionalidade tecnológica prevale-
cente é pois deficiente, não só pela sua indiferença para com a vi-
da, mas também na sua própria estrutura, subjacente a essa
indiferença. Dito de outra maneira, quando os significados se
tornam dispositivos de marketing, então qualquer coisa serve e a
racionalidade fica ameaçada. Esta ameaça aparece na crescente
manipulação da ciência com vista a vantagens empresariais, as
quais, levadas ao limite, significam o fim da própria ciência (Mi-
chaels 2008).
Um sentido crescente do perigo das instituições reificadas e
das tecnologias cada vez mais poderosas, legadas por vários sé-
culos de progresso capitalista, confronta-nos com escolhas no re-
fazer do mundo técnico. No alvorecer da era moderna, pensadores
como Descartes e Bacon esperavam que a nova ciência e tecnolo-
gia fossem enquadradas por uma sensatez que limitasse as ambi-
ções humanas. Tal como a tecnologia, também a sensatez se
localiza entre a razão e a experiência. Estes dois modos de pensa-
mento precisam um do outro. Esta era a visão original dos filóso-
fos que destronaram a antiga teleologia. Mas foram incapazes de
encontrar um substituto para a essência capaz de servir no seu lu-
gar. Talvez agora, num ponto decisivo no caminho que abriram,
nós possamos ser capazes de completar o seu projeto.

363
POSFÁCIO
Michel Callon

Pode a tecnologia - muitas vezes acusada, muito justamente, de


perpetuar silenciosamente o domínio de uma maioria por uma
minoria - contribuir para enriquecer a vida democrática? Para
responder a esta questão, repetidamente levantada, Andrew Fe-
enberg interpreta, com perspicácia, autores influentes como Hei-
degger e Habermas. Permite-nos compreender porque é que estes
pensadores respeitados estavam errados e em que direção é que a
sua reflexão filosófica deve ser continuada ou revista. Ao fazê-lo,
mostra-nos a possibilidade de uma filosofia da tecnologia que
não está limitada por um criticismo estéril e repetitivo da moder-
nidade e que se abre a novas perspetivas teóricas e práticas. A
perseverança de Feenberg e o seu constante rigor permitiram-lhe
repor a filosofia da tecnologia no caminho certo. Livre dos seus
falsos acentos humanistas, é surpreendentemente próxima dos
estudos de ciência e tecnologia (ECT)(a). Este posfácio é uma dis-
cussão breve dos pontos de convergência entre os dois.
Não existe um caminho melhor do que os outros para o de-

365
MICHEL CALLON

senvolvimento tecnológico: este é o primeiro resultado em que há


um largo acordo inquestionável entre a filosofia de Feenberg e o
trabalho de ETC, assim como da ciência política e da economia
da inovação. Em qualquer ponto do tempo, abre-se uma multi-
plicidade de trajetórias aos atores. Se uma dessas trajetórias aca-
ba por prevalecer e assim excluir as opções alternativas
inicialmente percebidas e consideradas, a razão disso são prova-
velmente fatores historicamente contingentes e não as suas quali-
dades intrínsecas. A história realmente conta. Se a opinião fi-
nalmente escolhida parece superior a outras (por exemplo, o
motor de combustão, que tornou o desenvolvimento dos veículos
elétricos difícil ou mesmo impossível, ou uma padrão técnico que
prevalece devido a uma rede de externalidades criadas pelos pri-
meiros utilizadores), é porque beneficiou de um muito maior in-
vestimento técnico, científico, económico e político do que as
alternativas. Como dizem os economistas da inovação, não é por
ser superior que uma tecnologia é escolhida mas, antes, tornou-se
superior porque foi a escolhida. Isto não quer dizer que todas as
tecnologias são de igual valor mas simplesmente que ninguém
pode dizer, a priori e com uma certeza inquestionável, qual é a
mais adequada para a situação. Para remover esta incerteza é
preciso investir, e o simples facto de se investir numa determina-
da direção destrói a possibilidade de comparação, sendo todo o
resto igual. Feenberg exprime estes fenómenos de dependência
da trajetória (b) e de bloqueio (c) da tecnologia, factos agora solida-
mente estabelecidos, de uma forma original, elegante e verdadei-
ramente filosófica, com as noções de “estratificação” e de “rami-
ficação”. Estratificação descreve os mecanismos pelos quais os
códigos culturais são permanentemente incorporados nas tecno-
logias, enquanto que ramificação denota todas as virtualidades
sócio culturais que, num certo momento, precisam simplesmente
de ser atualizadas. Manter o futuro aberto, evitando decisões ir-
revogáveis que se possam vir a lamentar, exige vigilância, refle-
xão e sagacidade permanentes. A política, sendo a arte de

366
POSFÁCIO

preservar a possibilidade de escolhas e do debate sobre essas es-


colhas está, por isso, no centro da dinâmica tecnológica.
O desenvolvimento tecnológico - e este é o segundo ponto de
convergência - sempre teve o efeito de despoletar a criação de gru-
pos que se sentem afetados pelas suas consequências. A diversida-
de das configurações sociotécnicas que podem ser atualizadas num
determinado momento depende da existência e expressão de múl-
tiplas expectativas, projetos, problemas a resolver e reivindicações
feitas e expressas por esses grupos, que incansavelmente criticam,
analisam e interpretam as tecnologias existentes para mostrar os
seus limites e efeitos indesejáveis. Ao fazê-lo, estes grupos realçam
certas possibilidades e identificam potenciais linhas de desenvol-
vimento que até aí tinham sido negligenciadas ou simplesmente
negadas. As suas análises e interpretações por vezes resultam nu-
ma exploração de soluções e configurações concebíveis. Podem
também organizar experiências, testes e tentativas desenhadas pa-
ra avaliar o realismo e as vantagens das várias alternativas identi-
ficadas. Estes estão obviamente dependentes do estado das
tecnologias existentes mas, como resultam da ação crítica dos gru-
pos envolvidos, não são automaticamente determinados por elas.
Se estes grupos estão preocupados acerca das tecnologias ou, se
pelo contrário, as celebram, em cada caso envolvem-se num pro-
cesso real de avaliação alimentado pelos problemas que eles per-
cebem existir, pelos projetos que acarinham e pelos valores que
não estão dispostos a negociar.
A mobilização das identidades formadas neste processo e na
interpretação que implica, é constitutiva da tecnologia, daquilo
que poderíamos chamar a sua essência. Feenberg recorda-nos no
capítulo 9 que quando perguntaram a Miguel ngelo como tinha
feito a estátua de David, ele respondeu que “simplesmente retirei
tudo o que não era David”. Feenberg continua e diz que “tal co-
mo a estátua de David, as essências, na interpretação de Heideg-
ger sobre os gregos, realizam-se não tanto através de um ato
positivo de produção, mas também pela exclusão do que não é

367
MICHEL CALLON

essencial, daquilo que se desvia da natureza essencial, que


aguarda pela sua realização. Logo, o conceito de essência pode ser
pensado como um limite que especifica a coisa, o negativo de um positi-
vo” (itálicos da minha responsabilidade). Parafraseando Feenberg
a comentar Heidegger, diríamos que a forma assumida pelas tec-
nologias deriva não só da intervenção dos especialistas mas tam-
bém dos grupos interessados que conseguiram contribuir para a
sua configuração. Tal como existem bons e maus escultores que
são mais ou menos competentes para ver o que não é essencial na
pedra que estão a esculpir, assim também existem boas e más
maneiras de identificar e envolver (ou não envolver) os grupos
interessados. Para eliminar o que não é essencial, a maneira certa
não seria antes permitir - ao contrário do que se acredita - ou até
mesmo encorajar e facilitar a intervenção de todos os grupos que
se consideram afetados e preocupados, tão cedo quanto possível?
A missão dos especialistas seria, então, propor esboços de proje-
tos para serem rapidamente criticados e redesenhados. A mensa-
gem central de Feenberg neste livro é que a essência das coisas
obtém-se não pela purificação, mas sim por sucessivos arranjos e
compromissos. Os proponentes de ECT estarão de acordo com
ele acerca deste ponto.
Esta análise - e Feenberg dá ênfase a esta ideia - naturalmen-
te que transforma a tecnologia num objeto central da filosofia. O
trabalho de interpretação e proposição mencionada acima não te-
ria interesse, e seria provavelmente inexistente, se as suas origens
e aplicações não estivessem nas próprias tecnologias, nas suas
materialidades. Tornam possível articular e implementar as dife-
rentes representações, aspirações e exigências normativas através
das quais os grupos sociais se singularizam e definem a si pró-
prios: um valor que não está incorporado num artefacto é um ór-
fão, que rapidamente desaparece e perde a sua eficácia. Mas há
mais: é pela sua própria crítica às tecnologias que lhe são propos-
tas que um grupo começa a existir. São as tecnologias existentes
que tornam possível a explicação do trabalho interpretativo des-

368
POSFÁCIO

ses grupos, que o sugerem e que o tornam visível, explorável e


pensável; em suma, que o estruturam e alimentam. É precisa-
mente neste ponto que o trabalho de Feenberg é estratégico para
o pensamento filosófico: para apanhar a essência de uma tecno-
logia é necessário, com os grupos envolvidos, mergulhar no seu
centro e estudar as suas carateristicas técnicas, as opções alterna-
tivas, as suas avaliações e as escolhas subjacentes. Feenberg vira o
pensamento filosófico de cima para baixo. Em vez de se afastar
das tecnologias concretas e de se virar para as definições univer-
sais, a-históricas, abstratas e desencarnadas de tecnologia, decide
aproximar-se do tangível e considerar as tecnologias na sua sin-
gularidade irredutível. Tal como os estudos de ciência e
tecnologia (ECT), põe-se exatamente no mesmo lugar em que as
tecnologias foram desenhadas, testadas, criticadas, revistas e re-
direcionadas. Mas ainda vai mais longe. Feenberg acredita - e so-
bre este ponto os académicos dos ECT não podem deixar de se
convencerem pelos seus argumentos - que a tecnologia permite a
coexistência (até mais do que isso: a coordenação) de diversos
mundos, que torna compatíveis (e ainda mais do que isso: com-
plementares). A tecnologia, ou melhor, as tecnologias como um
conjunto diferenciado de configurações sociotécnicas, configura-
ções conformadas coletivamente, podem ser analisadas como sis-
temas de tradução em ação. Esta convicção na possível existência
de um mundo único pode tornar-se, pelo menos potencialmente,
numa ilusão perigosa, diz-nos Feenberg. Ao tomar a posição
oposta a uma certa tradição humanista da filosofia, adiciona: tu-
do deve ser feito para que não resulte num único mundo comum!
Quando bem projetadas, as tecnologias libertam-nos dessa ilusão.
Em princípio, permitem que cada um de nós exponha e ponha
em prática aquilo que singulariza um indivíduo e diferencia a sua
pessoa das outras. As tecnologias - pois isto é a sua essência - vi-
vem da diversidade das intervenções, da pluralidade dos códigos
culturais e dos esquemas interpretativos que contribuem para a
sua evolução e conformação. Não só suportam esta diversidade,

369
MICHEL CALLON

mas também asseguram, pela sua simples existência, que cada


posição, cada identidade é tida em consideração por todos os ou-
tros. O caso extremo do Minitel francês, inventado por especialis-
tas e tecnocratas que sonhavam com uma ferramenta universal,
neutra e eficiente para fazer circular informação, testemunhou o
desenvolvimento inesperado e não planeado de uma prática co-
municacional que tirava partido das tecnologias propostas para
as transformar e imaginar outras inovações e usos. Graças aos
seus utilizadores, o Minitel tornou-se num arranjo, um
agencement, capaz de simultaneamente tanto produzir informação
como comunicação. Organizou uma coexistência pacífica entre os
mundos diferentes, mas interdependentes, de especialistas e de
utilizadores. Assim redesenhado, o Minitel atuou como um mun-
do comum, sem que a existência desse mundo fosse imposta fos-
se por quem fosse!
Esta análise da tecnologia e da sua evolução leva diretamente
a uma reinterpretação das suas ligações com a política em geral e
com a democracia em particular. A ciência e a tecnologia, que
tendemos a considerar como constituindo uma esfera autónoma
da atividade, controlada essencialmente por especialistas envol-
vidos em diálogos fechados com as elites políticas e económicas,
entram irresistivelmente na esfera pública. Estes domínios tor-
nam-se o tema de debates e são apanhados em controvérsias em
que se discutem as suas dimensões políticas, éticas, culturais,
económicas e outras. Se a ação pública tem esse interesse nas tec-
nologias, não é porque o seu conteúdo ou a sua essência tenha
subitamente mudado. Feenberg diz-nos que qualquer tecnologia,
por constituição, apela para um debate resultante da existência de
um processo de instrumentalização dual. A primeira instrumen-
talização tende a circunscrever as interações, discussões e oposi-
ção aos especialistas e peritos, que se focam nas funcionalidades
do artefacto que projetam. A segunda instrumentalização alarga
este debate para incluir grupos que se consideram preocupados e
afetados por essas tecnologias, os seus usos, os seus efeitos e sig-

370
POSFÁCIO

nificado. Estes grupos esforçam-se por conformar essas tecnolo-


gias com vista à resolução dos problemas causados e em defesa
dos valores e normas interpretativas que esses próprios grupos
promovem. Ao estruturar o trabalho de projeto e integração soci-
al das tecnologias, esta instrumentalização dual torna-as acessí-
veis aos não especialistas. Mas, junta Feenberg, há várias formas
de organizar as instrumentalizações. Porque está bem integrado
na sociedade à sua volta, o artesão, enaltecido por Heidegger,
tanto é capaz de definir as funcionalidades técnicas como de
acompanhar a integração social dos artefactos que faz. As socie-
dades modernas, tal como descrito por Habermas, em particular,
confinam a primeira instrumentalização a uma esfera que lhe está
devotada, a dos técnicos: uma esfera cuja influência está contida
noutra esfera, a que organiza o mundo da vida dos seres huma-
nos e em que os não especialistas, separados dos especialistas,
tratam do seu trabalho de interpretação e integração. Feenberg
não acredita nem na solução de Heidegger (voltar para o artesa-
nal) nem na de Habermas (diferenciar a sociedade para proteger
os leigos dos técnicos) e considera que estas soluções são analítica
e teoricamente falsas. Ao contrário de Heidegger, mantém que o
artesão não é a única figura que integra com sucesso estas duas
instrumentalizações. Ao contrário de Habermas, reafirma que
não podem ser dissociadas. A única solução que respeita a essên-
cia da tecnologia é a que torna ambas as instrumentalizações ex-
plícitas, sem as procurar confundir ou dissociar. Feenberg
mantém a ideia de Heidegger segundo a qual a criação tecnoló-
gica é feita simultaneamente de descontextualizações (que Hei-
degger chama desmundanização (d)), que retira os elementos do
seu mundo original, e recontextualizações (que Heidegger chama
revelação (e)), que rearranjam esses elementos em artefactos, de
modo que recompõem um dos mundos novos (1). Como se fez
notar acima, a recontextualização apela à intervenção e empe-
nhamento dos grupos relacionados. É a exclusão desses grupos -
que simplesmente repete o mesmo processo feito espontanea-

371
MICHEL CALLON

mente pelos especialistas - que leva Heidegger, Habermas e de-


pois Marcuse a um beco sem saída. E é o facto de os ter em consi-
deração, por contraste, que leva Feenberg à única solução
possível: a colaboração entre os grupos envolvidos e os especialis-
tas profissionais, uma colaboração que assegure a exigência dual
de descontextualização e recontextualização e que simultanea-
mente garanta que cada uma delas está ligada à outra. Não é pre-
ciso voltar à figura do artesão para manter a verdadeira essência
da tecnologia! Não é preciso esferas distintas que impõem uma
fratura artificial às tecnologias, algo que impede o seu desenvolvi-
mento! Não à tentação de convocar os códigos mistos propostos
por Beck! A democracia técnica é a única solução que respeita a
verdadeira essência da tecnologia. Cada grupo mobiliza diligênci-
as para promover o que considera ser a tecnologia certa, ou por
outras palavras, a configuração sociotécnica correta; cada grupo
empenha-se num trabalho organizado de investigação e de expe-
rimentação; cada grupo é chamado a comprometer-se com os ou-
tros com vista e a procurar soluções que sejam igualmente
satisfatórias para todos. Este trabalho de criação e de avaliação in-
ter relacionados (em que todos afirmam preferências individuais,
mas em que também têm que ter as dos outros em consideração)
implica procedimentos adequados em que os atores, na realidade,
possam contribuír para inventar e para implementar, de várias
formas diferentes. Feenberg mostra que quando se aceita a demo-
cracia técnica, o resultado é preferível ao que teria sido obtido se a
segunda instrumentalização tivesse sido dissociada da primeira,
de acordo com o princípio da separação das esferas, removendo o
trabalho técnico do debate político.
Ao contrário dos discursos da meritocracia, a essência da
tecnologia é democrática, o que se revela nestes processos zigue-
zagueantes em que cada escolha é uma oportunidade para expe-
rimentação e reflexão normativa que testa estas configurações
para estabelecer quais é que são simultaneamente viáveis e dese-
jáveis. Podemos estar de acordo com Feenberg em que a raciona-

372
POSFÁCIO

lidade não está ausente deste tipo de abordagem que, para além
do mais, tem a vantagem de respeitar a diversidade de expectati-
vas e de pontos de vista. Ninguém está proibido de criticar, rein-
terpretar e experimentar em qualquer uma das fases: a razão está
presente no próprio centro do processo. E como esta atividade
nunca é interrompida e não exclui ninguém, as tecnologias resul-
tantes do caldeirão(f) democrático são temporárias e, num certo
sentido, sempre falsificáveis e abertas à mudança - dando novo
material para pensar à máquina democrática. Podemos assim ver
porque é que Feenberg fala de democratização racional e de raci-
onalização democrática. Em todos estes pontos, fico encantado
por ver que a análise que propõe é muito próxima da que apre-
sentamos em Acting in an Uncertain World.
Este novo regime de inovação tecnológica não leva a um
empobrecimento, deterioração ou amputação da tecnologia e do
seu formidável poder para produzir mundos inesperados e cada
vez melhores. Pelo contrário, é totalmente orientado para o seu
enriquecimento e melhoria. Abre-se uma perspetiva nova: não se
trata mais de uma questão de oposição a uma modernização que
se acredita ser sinónimo de insucesso, ou de ameaças para elimi-
nar ou de riscos para controlar. Pelo contrário, será uma moder-
nização mais profunda - ou seja, reconhecendo o do poder
criativo e moralizador das tecnologias quando conformadas de-
mocraticamente - em que as dificuldades encontradas e as injus-
tiças, justamente denunciadas, poderão ser ultrapassadas. Não
menos modernização, ou outra modernização, mas, permitam-me
o paradoxo, até mesmo mais modernização! A melhor tecnologia
é aquela em cujo projeto estão representados os grupos interessa-
dos e aí participam.
Se adotarmos seriamente o discurso filosófico proposto por
Feenberg, não temos escolha: a democracia, que nos é tão queri-
da, só pode sobreviver organizando-se à volta das inovações tec-
nológicas; e, inversamente, pode ser que o ideal de racio-
nalização, que tanto estimamos, não tenha significado e futuro, a

373
MICHEL CALLON

menos que se baseie no operador formidável da democracia que


a tecnologia pode ser. Não há democracia boa sem democracia
técnica! Inversamente, não há boa técnica sem democracia! Tal
como Feenberg mostra, esta democracia, que os ECT e a filosofia
poderiam ajudar a estabelecer, favorece uma diversidade que,
por sua vez, a alimenta. Logo, podemos invalidar o prognóstico
sombrio de Tocqueville. O pior nunca está assegurado: a demo-
cracia não leva inexoravelmente ao reino da uniformização e à ti-
rania da mediocridade que o acompanha.

374
NOTAS DO AUTOR

PREFÁCIO
(1) A referência implícita é ao conceito de um ser divino “visto a partir
do nada”. Se não fosse tão atraente, poderíamos reformular este pon-
to como “fazer a partir do nada”, ou seja, a ação compreendida como
tão indiferente aos seus objetos como um conhecimento autónomo.
(2) Esta é a visão da teoria dos atores em rede de Bruno Latour e Michel
Callon. Ver Callon et al. (2001).

CAPÍTULO 1
Racionalização democrática: tecnologia, poder e liberdade
(1) Ver a crítica exagerada de Langdon Winner sobre as limitações cara-
teristicas da posição, intitulada “Upon opening the black box and
finding it empty: social constructivism and the philosophy of techno-
logy” (Winner 1991)

375
NOTAS DO AUTOR

(2) Hansard’s Debates , 1844 (22 fevereiro - 22 abril). As passagens citadas


encontram-se nas páginas 1088-1123.
(3) A frase foi usada por Jean Paul Sartre num discurso durante os acon-
tecimentos de maio de 1968 em Paris, para descrever o efeito do mo-
vimento.
(4) Mais sobre a hermenêutica da tecnologia no capítulo 7.
(5) Voltarei a esta questão no capítulo 8.
(6) Este exemplo é analisado com detalhe no capítulo 5.
(7) Para uma abordagem à teoria social baseada nesta noção (chamada,
no entanto, “ doxa” pelo autor), ver Bourdieu (1977).
(8) Estudos recentes da “natureza dual” dos artefactos técnicos chegam
a conclusões semelhantes (Kroes e Meijers 2002).
(9) O conceito de enviesamento da tecnologia é mais desenvolvido no
capítulo 8.
(10) Para mais sobre o conceito de concretização, de Simondon, ver o
capítulo 4.
(11) Voltarei a uma consideração detalhada deste tema no capítulo se-
guinte.
(12) Os textos de Heidegger aqui discutidos são, por ordem, The Question
Concerning Technology, “The thing” e “Building Dwelling Thinking”
em Poetry, Language, Thought, A. Hofstadter (trad.) (Nova Iorque: Har-
per & Row, 1971). Voltarei a considerações sobre Heidegger na última
parte deste livro.

CAPÍTULO 2
Paradigmas incomensuráveis: valores e ambiente
(1) Ver, por exemplo, Venkatachalam (2004) e Kopp et al. (1997).

376
NOTAS DO AUTOR

(2) Ver “Girl Worker in Carolina Cotton Mill,” http://www.geh.org/ar/


lechild/m197701810015_ful.html#topofimage.
(3) Mais estranha é a noção de que, como que a riqueza individual está
correlacionada positivamente com a expectativa de vida, a regulação
“induz” mortes ao reduzir a renda disponível. Este “custo” da regu-
lação foi levado à barra dos tribunais como um desafio ao Clean Air
Act [Lei para o ar limpo] , nos Estados Unidos, mas o juíz não se dei-
xou impressionar. Para mais discussão sobre o custo da asma, ver
“The benefits and costs of the Clean Air Act, 1990 to 2010” pela US.
Environmental Protection Agency.
(4) Para mais detalhes sobre o argumento de Commoner acerca deste
ponto, ver Commoner (1971) e Feenberg (1999, cap.3).
(5) Este é um argumento para uma versão culturalmente mais bem infor-
mada da noção de trajetória dependente (Arthur 1989).

CAPÍTULO 3
Daqui a cem anos, revendo o futuro: a imagem variável da tec-
nologia
(1) Esta projeção implica a aplicação de uma noção primitiva de utilida-
de marginal sob condições de rendimento igual que, note-se, não é
uma aspiração ou desiderato marxiana. A preferência variável pelo
lazer mantém-se como uma base para a alocação racional do traba-
lho. Infelizmente, isto parecer criar um círculo vicioso: os empregos
menos populares teriam as jornadas mais curtas de trabalho, exigin-
do o recrutamento de um grande número de trabalhadores a quem
seria preciso oferecer ainda menos horas marginais, e assim sucessi-
vamente ad infinitum . De qualquer modo, uma bela tentativa para
1888!
(2) Isto é o que está errado com muitas polémicas contra os exageros da
era da informação. Os filósofos deixam-nos mal quando não discu-
tem a realidade das tecnologias que estudam, mas respondem mera-

377
NOTAS DO AUTOR

mente às profecias mais tolas dos entusiastas. Se acontecer uma está-


tua de santo começar a lacrimejar, ficamos afinal a pensar no que está
realmente a acontecer. Para uma análise mais cuidadosa, ver Feen-
berg and Barney (2004) e a seção especial sobre “a teoria crítica das
tecnologias da comunicação” em The Information Society Journal 25 (2).

CAPÍTULO 4
A perspectiva da teoria crítica da tecnologia
(1) Esta descrição breve da teoria apenas nos permite um olhar de relan-
ce sobre desenvolvimentos que descrevi de forma mais completa em
vários de meus livros (Feenberg 1999; Feenberg 2002). O capítulo 8,
neste volume, também apresenta uma discussão mais detalhada da
teoria.
(2) Para uma compreensão mais avançada deste conceito de mundo em
relação ao pensamento de Heidegger, ver capítulo 7.
(3) Para uma revisão das abordagens feministas dos estudos da tecnolo-
gia, ver Wajcman (2004). A teoria crítica da tecnologia pode situar es-
tas abordagens no contexto de uma crítica social geral da
racionalidade (ver Glazebrook 2006).
(4) Para uma discussão mais aprofundada sobre concretização, ver Feen-
berg (1999, 216 passim) e capítulo 9.
(5) Ver, por exemplo, Schivelbusch (1988) e Cowan (1987).

CAPÍTULO 5
Da informação à comunicação: a experiência francesa com vi-
deotexto
(1) Sobre o conceito de imaginaire technique, ver Flichy (2007)
(2) A solução alternativa para o crescimento natural lento que construiu
a internet exigia computadores muito mais potentes dos que estavam

378
NOTAS DO AUTOR

disponíveis, e a um custo razoável, nos primeiros ano do Teletel.


(3) Oudshoorn e Pinch (2005)

CAPÍTULO 6
Tecnologia num mundo global
(1) Anteriormente chamei a isto “projeto expressivo” (Feenberg 1995, 25)
(2) Para mais sobre o mercado de bens de capital, ver Rosenberg (1970).
Junichi Morata desenvolveu a significância da análise de Rosenberg
para a filosofia da tecnologia. Ver Murata (2002)
(3) Para uma análise do debate acerca da política de Nishida e de um dos
principais textos sob disputa, ver Arisaka (1996). Para uma variedade
de posições, ver Heisig e Maraldo (1995)
(4) O lugar de Miki no marxismo japonês é discutido em Hitoshi (1967)
(5) Marcuse argumentou de modo semelhante (ver capítulo 9).

CAPÍTULO 7
Teoria da modernidade e estudos tecnológicos:
reflexões sobre como as aproximar
(1) Antes de entrar no meu tema, devo dizer que não faço intenção de
passar em revista toda atividade destes dois domínios muito ativos.
Uma revisão da imensa literatura que geraram é um tema por si mes-
mo, mas não o meu assunto aqui. Em particular, deixo de fora muitos
académicos que trabalham em problemas concretos com uma gama
de ferramentas de ambos os campos. A minha justificação para essa
omissão é dupla: não encontrei nesses trabalhos cruzados uma medi-
ação teórica satisfatória entre os dois campos; e os autores mais influ-
entes sobre teoria nesses campos não procuram essa mediação mas,

379
NOTAS DO AUTOR

antes pelo contrário, ignoram ou excluem as contribuições alheias. É


claro que esta situação merece tratamento nos seus próprios termos.
(2) A noção de racionalidade como uma forma cultural é sugerida pelo
conceito de racionalização de Weber. A teoria da reificação de Lukács
refinou o conceito com a identificação das tensões entre o tipo de ra-
cionalidade caraterística da sociedade capitalista e o mundo da vida
que enquadra. Ver Feenberg (1986 cap. 3).
(3) Para explorações da relação entre marxismo e teoria da modernidade,
ver Berman (1982) e Frisby (1986).
(4) Há uma enorme literatura acerca de Kuhn. Para uma interessante crí-
tica recente, ver Fuller (2000).
(5) Eu reformulei a posição de Habermas para ter a tecnologia em consi-
deração (Feenberg 1999, cap. 7).
(6) Lukács, um marxista dos primeiros tempos, já tinha identificado este
resultado plausível da diferenciação, a que chamou “reificação”. De
acordo com Lukács, a sociedade capitalista carateriza-se pela racio-
nalidade das “partes” - empresas individuais, por exemplo - e pela
irracionalidade do todo, levando a crises recorrentes (Feenberg 1986,
69-70).
(7) Eu propus, de forma independente, algo semelhante em Feenberg
(1992) e Feenberg (1991, 191-198). O que eu chamo “subversivo” ou
“racionalização democrática” assemelha-se à “sub política” de Beck,
e o seu “código de síntese” é semelhante à interpretação social da te-
oria da concretização. Parece, no entanto, existir uma diferença na
nossa relação com o campo dos estudos da tecnologia, que se tornará
clara para os leitores de Beck naquilo que se segue.
(8) Richad Feynman defende o ponto de vista padrão do acidente, que
ajudou a conformar. As suas observações não se baseiam nos méto-
dos construtivistas, mas sim no senso comum. A descrição de Feyn-
man é devastadora para a gestão da NASA. Considere-se, por
exemplo, a reação dos programadores ao seu orgulho relativamente

380
NOTAS DO AUTOR

aos programas exaustivos de testes: “Um tipo murmurou acerca dos


gestores de topo da NASA quererem cortar nos testes para poupar
dinheiro: “Dizem que passamos sempre nos testes, logo qual é a utili-
dade de fazer tantos testes?” ” (Feynman 1988, 194).
(9) Eles responderam à minha crítica em Studies in the History and Philo-
sophy of Science 38 (2006), onde não parecem tratar do meu argumen-
to, mas antes enfatizar a expectativa irrealista de fiabilidade com que
a NASA rodeou o programa do “space shuttle”. Sobre esse ponto, es-
tamos de acordo.
(10) “Si je ne parle pas de “culture”, c’est parce que ce nom est reservé à
une seulement des unités découpés par les Occidentaux pour définir
l’homme. Or, les forces ne peuvent pas être partagés en “humaines”
et “non-humaines”, sauf localement et pour renforcer certains rese-
aux.”
(11) No seu livro recente Reassembling the Social (Oxford University Press,
2006), Latour tenta moderar esta posição, e consegue torná-la muito
mais inteligível. Mas continua a apresentar essencialmente as mes-
mas visões que aqui se criticam.
(12) Para uma discussão interessante da relação da hermenêutica com os
estudos fenomenológicos e construtivistas da ciência, ver Egger
(2006, cap. 3)
(13) Note-se a semelhança entre esta visão e a visão de Miki apresentada
no capítulo 6.

CAPÍTULO 8
Da teoria crítica da racionalidade à crítica racional da
racionalidade
(1) Estes limites aparecem nas crises periódicas que revelam a irraciona-
lidade do sistema como um todo. Um tipo completamente diferente
de irracionalidade, julgada em termos das noções de capacidades e
liberdade, condena o sistema a outros limites, como as consequências

381
NOTAS DO AUTOR

humanas do trabalho fabril.


(2) Gorgias , de Platão, contém um exemplo muito anterior, na refutação
da igualdade civil por Calicles. Ver Platão (1952, 51).
(3) O caso oferece um paralelo interessante com a relação entre sexo e gé-
nero na teoria do género antiessencialista de Judith Butler (1990). Bu-
tler argumenta que o sexo não precede e encontra o género porque a
nossa compreensão do sexo, mesmo na sua forma concreta puramen-
te anatómica, já está conformada por pressupostos acerca do género.
Creio que ela estará de acordo que os dois são distinguíveis de uma
forma significativa - caso contrário, não poderia existir uma ciência
do sexo - mas não são ontologicamente distintos. Tal como os híbri-
dos de Latour, o corpo, como um ator vivo, é ontologicamente funda-
mental, mais do que os dois aspetos, natureza e cultura, abstraídos a
partir dele nos discursos modernos. Se há um problema com esta vi-
são, está na tendência dos seus advogados para ignorar a forma raci-
onal, internamente coerente, das abstrações pelas quais a ciência
constrói a natureza.
(4) Nas discussões anteriores sobre a teoria da instrumentalização inclui,
por vezes, relações causais entre dispositivos e entre dispositivos e
natureza sob o título de “sistematização”. Verifico agora que isso
confunde a questão. Toda a relação causal estabelecida ao nível pri-
mário tem um paralelo em significados no nível secundário. Estes
significados constituem sistematizações na teoria da instrumentaliza-
ção. Por exemplo, a substituição de refrigerantes que reduzem o ozo-
no por uma alternativa segura é uma mudança na relação causal da
refrigeração com a natureza que depende de uma mudança no nível
do que significa a importância da proteção da camada de ozono.
Apenas esta última mudança é uma sistematização, nos termos da
teoria da instrumentalização.
(5) A função também é abstraída de uma vasta gama de relações causais,
chamadas “efeitos” na teoria da instrumentalização, onde se incluem
as consequências não intencionais. Ver Feenberg (1995, 81).

382
NOTAS DO AUTOR

(6) Este é um exemplo de significado como conotação. Sobre a relação


entre os conceitos semióticos de denotação e conotação com a herme-
nêutica da tecnologia, ver Baudrillard (1968)
(7) Estes casos são discutidos nos capítulos 7, 5 e 1 deste livro.

CAPÍTULO 9
Entre a razão e a experiência
(1) Ver também a minha exposição da relação entre o pensamento de
Heidegger e Marcuse em Feenberg (2005)
(2) A exposição seguinte baseia-se primariamente em Being and Time
(1962); no entanto as linhas principais dessa obra da fase inicial fo-
ram assumidas por Heidegger até ao fim, e portanto esta descrição
muito geral do seu pensamento também se aplica para o ensaio mais
tardio Question Concerning Technology (1977).
(3) Esta noção tem o seu paralelo na derivação do presente-para-usar a
partir de pronto-a-usar em Being and Time.
(4) A “reforma” da universidade defendida por Heidegger pretendia
bloquear ambas as formas de arbitrariedade, ligando o conhecimento
aos limites de uma techné. Nessa altura, Heidegger considerava que
os homens de estado pertenciam a uma ordem superior de produto-
res (ver Todorov 2007). Portanto, a techné em questão só poderia ser a
formação do estado nazi. A universidade deveria manter a sua auto-
nomia precisamente através da subordinação da sua compreensão do
mundo às necessidades intrínsecas e aos limites da restauração naci-
onal trazida por Hitler. Na mente do próprio Heidegger, isto era
muito diferente da politização de Wissenschaft pela sua infusão com
propaganda política.
(5) Como realização prática, o significado tem uma dimensão “material”
que pode ser explorada numa fenomenologia da prática técnica e da
tecnologia. Isto tem implicações para a viragem discursiva na filoso-
fia contemporânea. Na medida em que a realidade é compreendida

383
NOTAS DO AUTOR

como estruturada por, ou como, a linguagem, é difícil explicar o as-


peto passivo do conhecimento. A falha de ter em consideração a re-
sistência do objeto e a facticidade do sujeito leva a teoria do discurso
para um relativismo implausível. Mas se os significados forem com-
preendidos como estabelecidos por uma prática, não podem ser me-
ramente subjetivos, mas devem antes manter uma relação com uma
materialidade de algum tipo (Angus 2000, 13). Desenvolver esta
abordagem daria sentido ao momento da recetividade em noções de
Heidegger como desocultação ou aparecimento.
(6) A discussão seguinte baseia-se em One-dimensional Man , de Marcuse,
capítulos 5 e 6.
(7) Curiosamente, Adorno e Horkhaimer assinalam negativamente um
ponto semelhante, que atribuiem razão ao medo da natureza, o outro
lado da afirmação positiva de Marcuse sobre a afirmação da vida.
(8) Esta teoria corresponde ao que Adorno refere como uma teoria da
“mediação” da sensação, em que tanto o objeto como o sujeito contri-
buem para a conformação da experiência. Para uma descrição da teo-
ria de Adorno, ver O’Connor (2005, capítulos 2 e 3)
(9) Esta é a contribuição da teoria da instrumentalização, explicada com
mais detalhe nos capítulos 4 e 8.
(10) Isto não quer dizer que a ciência não seja afetada pela sociedade.
Tanto a ciência como a tecnologia são orientadas nas suas escolhas
dos problemas pelo ambiente social, e muitas das suas suposições
fundamentais dependem de um fundo cultural mais vasto. Mas é im-
portante assinalar a diferença de grau em que os conteúdos e o método
do conhecimento científico e tecnológico são vulneráveis à influência
pública direta e à regulamentação governamental. Não há dúvida
que essa diferença se encontra algures num ponto de um contínuo,
da ciência para a tecnologia, que estão fortemente imbricados, mas a
diferença não deixa de ser real e politicamente significante (Feenberg
2002, 170-175)

384
NOTAS DO AUTOR

(11) O conceito de concretização é mais discutido no capítulo 4. Impor-


tantes contribuições para compreender como a experiência dos não
especialistas pode melhorar a decisão técnica são Collins e Evans
(2002) e Wynne (1989).

POSFÁCIO
Michel Callon
(1) Em Acting in an Uncertain World (Callon et al, 2009), nós propomos
uma análise semelhante distinguindo três traduções, a primeira das
quais corresponde à descontextualização e a terceira à recontextuali-
zação.

385
NOTAS DOS TRADUTORES

PRÓLOGO
(a) non sequitur: conclusão que na realidade não se pode inferir dos argu-
mentos, como uma falácia que resulta da conversão simples de uma
proposição afirmativa e universal ou da transposição de condição e
da sua consequente.
(b) [by default]
(c) [re(design)]
(d) [political default]

PREFÁCIO
(a) [feedback]
(b) [hobbyst]
(c) Bhagavad Gitaa, escritura hindu que apela à ação desprendida e que
inspirou muitos lideres do movimento independentista da Índia.
(d) Maurits C. Escher (1898-1972), artista gráfico holandês conhecido pe-

387
NOTAS DOS TRADUTORES

las suas obras inspiradas em ideias matemáticas e objetos impossí-


veis. Ver http://www.mcescher.com. O seu famoso desenho sobre
“as mão que desenham” (1948) reflete os múltiplos níveis da realida-
de na arte, pelo contraste e continuidade simultâneos entre as ilusões
bi e tridimensionais das mãos no papel e das mãos humanas que aí
desenham.
(e) [strange loop]
(f) [entangled hierarchy]
(g) [feedback]
(h) [reacts back]
(i) [inviolate]
(j) [hackers]

PARTE I
Para além da distopia
(a) [trade-off]

CAPÍTULO 1
Racionalização democrática: tecnologia, poder e liberdade
(a) Pequeno romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), publicado em
1864, por vezes considerado como uma das primeiras obras do exis-
tencialismo. Toma a forma de um excerto das memórias de um
funcionário civil aposentado e solitário. O nome do protagonista
nunca é mencionado e a primeira parte é um monólogo em que o
narrador diz ser um homem mau, ou agir como tal, mas que pode ser
visto como uma pessoa de bem, para depois concluir que "o melhor é
não fazer nada". Boris Schnaiderman (1917-2016), que foi professor
da Universidade de São Paulo, traduziu esta obra.
(b) A historiografia whig é uma abordagem que apresenta o passado co-

388
NOTAS DOS TRADUTORES

mo um progresso inevitável para a liberdade e o iluminismo, a cul-


minar na democracia liberal ou na monarquia constitucional, e dan-
do ênfase ao crescimento de formas constitucionais de governo,
liberdades pessoais e progresso científico.
(c) telos : fim ou objetivo último, raiz do termo “teleologia” (grego anti-
go).
(d) [Factory Bill]
(e) ludismo: filosofia oposta a muitas das formas da tecnologia moderna,
baseada no movimento britânico dos luditas (1911-1816), trabalhado-
res da indústria têxtil liderados por Ned Ludd, um nome que se tor-
nou então emblemático dos ativistas destruidores de máquinas.
(f) Mammon: demónio do mal e das riquezas materiais, em geral associ-
adas à ganância e avidez.
(g) ASME: American Society of Mechanical Engineers, a Sociedade Ame-
ricana de Engenheiros Mecânicos
(h) [enframing]
(i) [background]

CAPÍTULO 2
Paradigmas incomensuráveis: valores e ambiente
(a) Bernard Mandeville (1670-1733) sobre uma situação vivida pelos ha-
bitantes de Londres, no prefácio do seu poema A Fábula das Abelhas
(publicado em 1714)
(b) Trecho final da nota de Mandeville sobre a moral do poema A Fábula
das Abelhas . Importa reter que o sentido geral da citação de Mande-
ville, feita pelo autor, refere-se ao facto do poema defender o luxo
positivo (assim entendido enquanto a melhoria das condições de vi-
da, da alimentação, das roupas e das habitações). Desta forma, Man-

389
NOTAS DOS TRADUTORES

deville combatia os críticos que afirmavam que o luxo é sempre vici-


oso, como se não houvesse problemas suficientes com a sujeira e a
poluição na cidade... Mandeville foi um dos primeiros autores (em
1714, antes dos economistas clássicos) a levantar a suspeita de que o
consumo é virtuoso, ou no mínimo neutro, para defender o estado
das coisas então vigente num futuro sistema económico ainda por
nascer. Do circuito virtuoso do luxo nasceria a sociedade do comércio
e da indústria, que valorizaria a produtividade da tecnologia.
A tradução proposta é de Eduardo Beira. Para outras traduções de
partes do longo poema de Mandeville, ver, por exemplo,
http://economiapoliticabrasil.blogspot.pt/2009/03/fabula-das-abe-
lhas-de-bernard.html
e também
https://economianostra.wordpress.com/2013/06/12/a-fabula-das-
abelhas-de-bernard-mandeville
(c) Lewis Hine (1874-1940), sociólogo norte americano que se dedicou a
registar, em ensaios fotográficos, a vida quotidiana da classe traba-
lhadora nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX. Tor-
nou-se famoso pelas suas fotografias sobre as más condições de
trabalho e de habitação e, sobretudo, pela denúncia do trabalho in-
fantil. Ver, por exemplo, http://www.historyplace.com/unitedsta-
tes/childlabor/index.html,
https://www.archives.gov/education/lessons/hine-photos ou ainda
http://www.geh.org/ar/letchild/let-
chil_idx00001.html#77:0184:0001
(d) Charles Dickens (1812-1870), porventura o maior novelista da era vi-
toriana, que retratou as difíceis condições de vida das massas urba-
nas, em especial a estratificação social na cidade de Londres
(e) Saint-Just (1767-1794), líder político e militar durante a revolução
francesa que encabeçou o movimento para executar o rei Luís XV. Foi
um dos mentores do chamado “reino do terror” nesse período, reino
que terminou quando ele próprio foi executado (com o seu amigo
Robespierre).

390
NOTAS DOS TRADUTORES

CAPÍTULO 3
Daqui a cem anos, revendo o futuro:
a imagem variável da tecnologia
(a) Edward Bellamy (1850-1898), autor socialista norte americano famoso
pela sua obra utópica Looking forward 2000-1887, publicada em 1888 e
que foi uma das obras mais vendidas no século XIX. A obra foi tradu-
zida para português com o título Daqui a cem anos revendo o futuro
(Record, Rio de Janeiro, 1960, tradução de Myriam Campello).
(b) Aldous Huxley (1894-1963), escritor e filósofo inglês, autor de Brave
New World (publicado em 1932), uma novela distópica passada na ci-
dade de Londres durante o ano de 2540. Existem duas traduções, am-
bas publicadas com o mesmo título, Admirável Mundo Novo, uma de
Mário Henrique Leiria (em português) e outra de Lino Vallandro e
Vidal Serrano (em brasileiro).
(c) [enframing]: enquadramento, armação (gestell em alemão)
(d) [New Left] Movimento político dos anos 1960 e 1970, nos EUA, que
defendeu reformas profundas nos direitos cívicos, direitos dos ho-
mossexuais, aborto, papel dos géneros, legislação sobre drogas. Ver
http://historyproject.ucdavis.edu/lessons/view_lesson.php?id=43
(e) Cerca de dez milhões de trabalhadores interromperam o seu trabalho
e fecharam as ruas, ao mesmo tempo em que greves irrompiam por
toda a economia e parte considerável das atividades governamentais.
Foi uma clara ameaça ao sistema capitalista como um todo. Estes
eventos do Maio de 1968 francês foram um dos movimentos mais ra-
dicais e poderosos da Nova Esquerda, e o único com o apoio maciço
da classe trabalhadora.
(f) I de investigação e D de desenvolvimento (I&D)
(g) [nonmoderns]
(h) [mainframes]
(i) [hackers]

391
NOTAS DOS TRADUTORES

(j) [deskilling]

PARTE II
Construtivismo social
(a) [affordances]
(b) [branching]
(c) [layered]

CAPÍTULO 4
A perspectiva da teoria crítica da tecnologia
(a) [bias]: enviesamento, predominância de um valor em detrimento de
outros, desvio
(b) [feedback]
(c) [de-worlding], descontextualização
(d) [affordances]
(e) [disclosure]
(f) Gilbert Simondon (1924-1989), filósofo francês.

CAPÍTULO 5
Da informação à comunicação: a experiência francesa com
videotexto
(a) FCC: Federal Communications Commission (www.fcc.gov). A FCC
regula as comunicações interestaduais por radio, televisão, fio, satéli-
te e cabo em todos os territórios dos Estados Unidos da América. É
uma agência independente do governo americano, controlada pelo
Congresso, e constitui a principal autoridade para as leis, regulação e
inovação tecnológica em comunicações. A sua atividade centra-se so-
bre as oportunidades económicas e os desafios associados aos avan-

392
NOTAS DOS TRADUTORES

ços rápidos nas telecomunicações globais.


(b) Prestel, sistema interativo de videotexto lançado comercialmente em
1979 pelo Post Office e vendido a um consórcio privado em 1994, du-
rante o processo de privatização e desmembramento da BT British
Telecom. O serviço acabou depois vendido a uma empresa Financial
Express, com o objetivo de vender dados sobre o mercado mobiliário
e depois fechado definitivamente. Embora os serviços de teletexto
fossem grátis e codificados como parte das transmissões regulares de
televisão, os dados das bases de dados do Prestel eram transmitidos
através de linhas telefónicas para uma caixa de ligação (“set-up box”)
associada a um terminal, ou para um computador, ou então para um
terminal dedicado, obrigando o utilizador a suportar os custos eleva-
dos da subscrição mensal e também o custo das chamadas telefónicas
(que, no entanto, eram facilmente vulneráveis à interferência de ruí-
do, por ausência de qualquer protocolo de correção de erros, especi-
almente com modems acústicos). Vale a pena rever os anúncios
comerciais para televisão do serviço de teletexto Prestel, contemporâ-
neos do seu lançamento (ver https://youtu.be/mipluyeX4Gs e
https://www.youtube.com/watch?v=rmjKAM1NVWE). No primei-
ro comercial, para o mercado residencial, explica-se que Prestel usa
uma televisão especial, comprada ou alugada, que permite receber
informação em casa através de uma ligação, por linha telefónica, com
um computador com mais de 150 mil páginas de informação perma-
nentemente atualizada - mas, “por favor, não tenham medo, porque
o sistema é cordial e amistoso”. No segundo comercial, para o merca-
do empresarial, pretende-se mostrar como o Prestel pode ser útil
“aos humanos” com todos os seus dados de gestão e de negócios pa-
ra ajudar ao sucesso das empresas e dos negócios, e a resolver os
seus problemas - uma fonte de informação para as empresas, barata e
constantemente atualizada.
(c) [hosts]
(d) O serviço Teletel/Minitel só foi encerrado a 30 de junho de 2012.

393
NOTAS DOS TRADUTORES

(e) [hackers]
(f) [feedback]
(g) Transpac era a designação para a rede francesa de telecomunicações
por comutação de pacotes [packet switching network], cuja operação
começou em 1978. A comutação por pacotes encaminha e transfere os
dados através de pacotes de dados endereçados que ocupam o canal
durante o processo de transmissão dos dados, mas que depois fica li-
vre para a transferência de outro tráfego.
(g) Transpac era também o nome da filial da empresa francesa de teleco-
municações, France Telecom, especializada em fornecer o acesso a re-
des de telecomunicações para fins empresariais, inicialmente
baseadas na comutação de pacotes e que era utilizada para a rede Te-
letel utilizada pelos terminais Minitel, então distribuídos pela France
Telecom.
(h) Web 2.0 é a designação habitual dada à nova geração de sítios com
ênfase na facilidade de uso colaborativo e inter operacionalidade, as-
sim como conteúdos gerados pelos utilizadores, em especial através
de redes sociais e comunidades virtuais.
(i) [sign in]
(j) [scrolling]
(k) [closure]
(l) [locked in]
(m) Alphaville: a estranha aventura de Lemmy Cautiion , do realizador fran-
cês Jean-Luc Godard, é um filme negro de ficção científica que ofere-
ce uma visão distópica de uma futura Paris modernista, a partir das
aventuras de uma agente secreto numa ditadura tecnocrática em que
um computador dotado de sentiência (o Alfa 60) controla totalmente
uma sociedade alienada. O filme estreou em maio de 1965.
(n) X.25 é um protocolo padrão para redes de telecomunicações baseadas
em comutação de pacotes sobre linhas telefónicas da rede telefónica

394
NOTAS DOS TRADUTORES

tradicional, dedicadas ou não, que foi muito popular na década de


1980. Este protocolo foi depois largamente substituído pelo protocolo
de internet (IP). O serviço francês Transpac baseava-se no protocolo
X.25, assim como a rede portuguesa Telepac, criada em 1985.
(o) Grupos [clusters] de utilizadores locais recorrendo a técnicas de tem-
po partilhado [time sharing] em grandes computadores centrais es-
pecializados. A partilha de recursos de um computador através de
multiprogramação e de múltiplas tarefas simultâneas foi introduzida
nos finais dos anos 1960 e, na década seguinte, representou uma vi-
ragem importante na arquitetura de sistemas de computação, com
reduções importantes de custos para os utilizadores. Suscitou tam-
bém o aparecimento de softwares interativos numa base textual.
(p) [host computer]
(q) A chamada Monarquia de Julho foi um período de monarquia liberal
e constitucional em França, entre 1830 e a revolução de 1848, o reina-
do de Luís Filipe I. O período foi dominado por políticas conserva-
doras apoiadas pela burguesia rica e por muitos oficiais da era
napoleónica. Walter Benjamim (1892-1940) foi um autor e filósofo
alemão, de origem judia, associado à Escola de Frankfurt.
(r) [mainframe]
(s) Para discussão adicional acerca do caso Teletel/Minitel, ver também
cap. 1 (p. 57 a 60) de Feenberg, A., “ Tecnologia, modernidade e democra-
cia”, Org. e trad. Eduardo Beira, Inovatec (Portugal), 2015.

CAPÍTULO 6
Tecnologia num mundo global
(a) [department stores]. Estabelecimentos de retalho com uma enorme
variedade de diferentes categorias de produtos de consumo (os “de-
partamentos”), estabelecidos a partir de meados do século XIX. Estes
estabelecimentos alteraram os hábitos de compras e até mesmo a de-
finição de serviço e de luxo. Alguns formaram cadeias de unidades

395
NOTAS DOS TRADUTORES

de retalho. Nos USA, o caso da Sears foi pioneiro, não só com as suas
lojas, mas também pela enorme escala da operação de venda pelo
correio que manteve e pela integração vertical com unidades de pro-
dução dos produtos que vendia nas lojas.
(b) [Tatami] é um tipo de esteira usada como pavimento nos quartos das
habitações tradicionais no Japão. Originalmente, eram feitos a partir
da palha de arroz. A forma como se organizam as esteiras tem um
significado próprio na tradição japonesa, mais ou menos auspicioso.
(c) [black box]
(d) O domínio Satsuma era um dos domínios (território) japonês do
período Edo (1603-1868)
(e) [framework]
(f) [futons]: roupas de camas tradicionais japonesas, com uma esteira
acolchoada e um edredon, ambos fáceis de dobrar e arrumar durante
o dia, libertando então o uso do quarto para outros fins
(g) [inputs]
(h) [feedback]
(i) [individuals]
(j) logos : palavra grega que significa ordem e conhecimento em filosofia.

CAPÍTULO 7
Teoria da modernidade e estudos tecnológicos:
reflexões sobre como as aproximar
(a) [naive]
(b) [scaling up]
(c) administrations
(d) [lifeworld]
(e) dedifferentiation

396
NOTAS DOS TRADUTORES

(f) [biased]
(g) [O-rings]
(h) [ungrounded]
(i) [actor network theory]
(j) John Law publicou vários trabalhos sobre a navegação portuguesa e a
construção do império colonial, em especial no Oriente, uma das
primeiras aplicações da teoria dos atores em rede numa das primei-
ras aplicações da teoria. Um dos primeiros trabalhos de John Law so-
bre o tema aparece no conhecido livro editado por Bijker, Hughes e
Pinch (1993), The social construction oftechnological systems . O seu capí-
tulo, intitulado “Technology and heterogeneous engineering: the case
of portuguese expansion” (p. 111-134) discute as componentes huma-
nas e não humanas (daí a referência a “engenharia heterogénea” no
título: pessoas, competências, artefactos e fenómenos naturais) na ba-
se do sucesso da expansão portuguesa, numa perspetiva sistémica de
rede de atores capaz de criar um sistema que assegurasse uma nave-
gação segura de longo curso e no mar alto e que garantisse também o
seu regresso e da sua carga preciosa. Neste trabalho, o autor quer
mostrar acima de tudo a relevância de uma abordagem baseada na
rede de atores proposta por Callon e Latour para a análise da inova-
ção técnica. Já em 1986, Law tinha publicado um trabalho mais ex-
tenso sobre o assunto: “On the Methods of Long Distance Control:
Vessels, Navigation and the Portuguese Route to India” publicado
em John Law (ed), Power, Action and Belief: A New Sociology of Kno-
wledge? Sociological Review Monograph 32, Routledge, Henley, 1986.
Num trabalho mais recente (“Actor network theory and material se-
miotics”, in Turner, B. (ed), The Blackwell Companion to Social Theory
(2009)), Law volta ao caso da expansão portuguesa como um dos ca-
sos para discutir a teoria dos atores em rede como uma ferramenta
para compreender as histórias e “as práticas confusas de racionalida-
de e materialidade no mundo”. Aí refere: “Como é que os portugue-
ses chegaram à Índia e preservaram o controlo imperial? As histórias

397
NOTAS DOS TRADUTORES

convencionais falam de especiarias, comércio, riqueza, poder militar


e cristandade. Raramente tratam a tecnologia como uma infraestru-
tura essencial, embora pouco interessante". Em 1986, Law reuniu as
duas narrativas, procurando esclarecer a rede que permitiu então aos
portugueses controlar metade do mundo. A resposta foi que "barcos,
velas, marinheiros, navegadores, armazéns, especiarias, ventos cor-
rentes, astrolábios, estrelas, canhões, efemérides, prendas e contratos
de comércio se traduziram numa rede. Esta rede, por precária que
fosse, conformou cada componente de uma forma particular que per-
durou por mais de cento e cinquenta anos e que foi crucial para o su-
cesso do sistema”. John Law é agora professor emérito da Open
University (ver http://www.heterogeneities.net)
(k) lâmina de Ockham: princípio de resolução de problemas que diz que,
no caso de várias hipóteses concorrenciais, deve-se escolher a hipóte-
se com menor número de suposições. Guilherme de Ockham (1285-
1347) era um religioso franciscano, teólogo e filósofo escolástico.
(l) [closures]
(m) operacionismo é uma doutrina que diz que o significado das coisas
são as “operações” em que estão envolvidas. Logo, não há essências.
(n) [puzzle]
(o) [disclosed]: divulgar, revelar, descobrir, expor, abrir
(p) [de-world]
(q) [enframing]
(r) [disclosure]
(s) [cross-appropriations]
(t) [Mothers Against Drunk Driving], http://www.madd.org, A missão
do grupo é terminar com a condução sob efeito do álcool e das dro-
gas, apoiar as vítimas destes crimes violentos e prevenir a condução

398
NOTAS DOS TRADUTORES

antes da idade legal.


(u) [script]
(v) [world disclosing]
(w) [affordances]
(x) [deskilling]

CAPÍTULO 8
Da teoria crítica da racionalidade à crítica racional da
racionalidade
(a) Vautrin, o anti herói de Balzac (1799-1850), aparece na novela Le Père
Goriot (1834) e noutras obras da série Comédie Humaine. Era um crimi-
noso condenado que se tinha escapado. Balzac ter-se-á inspirado
num criminoso que depois chegou a chefe da polícia em Paris.
(b) [affordances]
(c) [framework]
(d) [web]
(e) [commodification]
(f) [commodity]
(g) [feedback]
(h) [scripting]
(i) [chat rooms]

CAPÍTULO 9
Entre a razão e a experiência
(a) [skills]
(b) [ready to hand]

399
NOTAS DOS TRADUTORES

(c) [affordances]
(d) [worldhood]: termo relativo do sentido do mundo em geral, que de-
termina e é determinado por todos os outros significados e modalida-
des do mundo
(e) [revealing]
(f) [opening]
(g) [disclosure]
(h) [disclosed]
(i) [enactment]: aval /endosso / aprovação /adoção/ reconhecimento
(j) [Rectoral Address]
(k) ciência, em alemão
(l) ciências, em alemão
(m) plural de episteme, conhecimento (por convicção profunda), teoria
(grego).
(n) [standing forth]
(o) [unconcealedness]
(p) [brings forth]
(q) Eidos (grego): forma, essência, tipo, espécie; conteúdo formal de uma
cultura.
(r) Sinédoque: uma figura de linguagem, similar à metonímia. Consiste
na atribuição da parte pelo todo, ou do todo pela parte.
(s) [formlessness]
(t) peras (em grego): limite
(u) [enframing]
(v) serenidade, em alemão
(w) érgon (grego): trabalho ou trabalhador que atinge um propósito

400
NOTAS DOS TRADUTORES

(x) “Question Concerning Technology”


(y) [de-worlding]
(z) [enframed]
(aa) sensório: parte do cérebro que se julga ser o centro comum de todas
as sensações; conjunto formado pelo sistema nervoso central e pelas
suas ligações aos órgãos sensoriais.
(bb) Lebesnwelt: mundo da vida, em alemão
(cc) [attunement]
(dd) [state of mind]
(ee) [deworlded]: descontextualizada

POSFÁCIO
(a) [STS]
(b) [path dependency]
(c) [lock in]
(d) [de-worlding]
(e) [disclosure]
(f) [melting pot]

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