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Curso de Pedagogia

Disciplina : Didática

Título do Texto: Obra toda

Autor: Paulo Ghiraldelli Jr.

Título: Didática e teorias educacionais

Cidade: Rio de Janeiro

Editora: DP&A

Ano: 2000

Este é um livro não só de didática, mas de "didática e teorias educacionais'. É

um livro voltado para que o professor possa desempenhar melhor seu trabalho

de "organização das atividades de ensino e aprendizagem na escola" e, também, um

livro que pretende dar condições, ao seu leitor, de refletir com

profundidade os vínculos entre a didática, as teorias sociais, a filosofia da

educação e, em outra palavras, as teorias educacionais.

Trata-se de um Livro curto, mas nem por isso de leitura rápida. Ele depende do

Leitor. Ele visa um leitor que esteja curioso em saber que rumos pode tomar o

ensino, na sala de aula, agora, no limiar do século XXI, em uma sociedade que

muitos vem admitindo como sendo uma sociedade pós-moderna. Muitos

acreditam que os problemas de ensino desapareceriam se todas as escolas tivessem

dinheiro para as suas atividades. Este é um livro que acredita nisso, é

claro, mas que acredita que sem um estudo das teorias educacionais muito do

dinheiro que pudesse ser empregado nas escolas talvez se perdesse.

Paulo Ghiraldelli Jr. é professor de filosofia contemporânea e filosofia da

educação na Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Manha. Trabalhou em

várias outras universidades no Brasil e, mais recentemente, como professor

convidado na Auckland University, na Nova Zelândia. É autor de vários livros,


sendo que os mais recentes são Richard Rorty a filosofia do Novo Mundo em busca de
mundos novos (Vozes, 1999) e O que é Filosofia da Educação? (DP&A, 2000). É um
dos coordenadores do GT-Pragmatismo da Associação Nacional de Pós-Graduação
em Filosofia (ANPOF) e coordenador do GT-Filosofia da Educação na

Associação Nacional de Pós-graduação em Educação (ANPEd), onde esta coleção foi

idealizada.

[o que você precisa saber sobre...]

Didática e teorias educacionais

Título:

Didática e teorias educacionais

Paulo Ghiraldelli Jr.

Coleção

Paulo Ghiraldelli Jr. e Nadja Herman

Esta coleção é urna iniciativa do GT-Filosofia da Educação da Anped

na gestão de Paulo Ghiraldelli Jr. e Nadja Herrnan

FICHA TÉCNICA

Revisão de provas:
Paulo Telles Ferreira

Projeto gráfico e diagramação:

Maria Gabriela Delgado

Capa:

Rodrigo Murtinho

CIP-BRASIL. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Paulo Ghiraldelli Jr.

De Paulo Editora Ltda.

Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer

meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico,

gráfico, microfilmagem, etc. Estas proibições aplicam-se

também às características gráficas e/ou editoriais.

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com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610i98 - Lei dos Direitos

Autorais - arts. 122,123, 124e 126).

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Impresso no Brasil

2000

Para os professores que amam a liberdade.

Sumário

Introdução 9

Capítulo 1

As teorias educacionais na modernidade e no mundo contemporâneo:

humanismo e sociedade do trabalho 15

O discurso educacional humanista

O discurso educacional na sociedade do trabalho

As crises do mundo moderno e contemporâneo: o mundo pós-moderno

Capítulo II

As teorias educacionais e as didáticas

na modernidade e pós-modernidade 39

Herbart, Dewey, Paulo Freire e a postura pós-narrative turn

Uma teoria educacional e uma didática pós-modernas:

a educação pós-narrative tum

Conclusão

Sugestões de leitura 75

Apêndice
Teorias da educação na história da filosofia da educação 77

Amélie Oksenberg Rorty

Referências bibliográficas 99

Introdução

O TERMO "DIDÁTlCA" É DE USO COMUM ENTRE NOS, brasileiros e falantes do

português, em geral. Seu

equivalente entre franceses é didactique, entre alemães, Didaktik e entre

ingleses e norte-americanos

didactic. Se conversarmos com alemães e franceses, eles, como nós, farão

referência aos seus termos

equivalentes usando as idéias de "arte de ensinar" ou "estratégias e técnicas de

ensino" ou, ainda,

mais sofisticadamente, "organização e otimização de processos de ensino-

aprendizagem". Todavia, se

falarmos com ingleses e norte-americanos, veremos que eles têm certa dificuldade

com o uso do termo

didactic. O termo, quando reconhecido, é muitas vezes tomado pejorativamente,

como um tipo de

ensino que não muda, repetitivo. Para os falantes de língua inglesa,

principalmente os norte-

americanos, a "organização e otimização de processos de ensino-aprendizagem" é

algo ligado ao que

eles chamam de educational theory ou philosophy of education ou, em alguns


casos, pedagogy. Eles têm ampliado a noção de currículo, de modo que, não raro,
aquilo que chamamos de didática também pode, numa determinada universidade
norte-americana, estar sendo objeto de exame por um Ph.D. em Education:
Curriculum Tkeory - uma área que vem recebendo a contribuição de

autores que escrevem com um tom sociológico, nos Estados Unidos.

No mundo ocidental moderno, principalmente entre alemães, italianos, espanhóis,

portugueses e povos eslavos, o termo generalizou-se a partir da obra do pastor


luterano J. A. Comenius, a Diclactica magna, de 1630. Ela foi publicada com o célebre
e sugestivo subtítulo de "Arte

de ensinar tudo a todos". Comenius, ele próprio, foi um reformador educacional


prático, tendo dirigido, na Europa, a convite de governantes, a estruturação

pág.10

de sistemas de ensino público, em vários e diferentes lugares. Em geral, os

manuais de didática, na maioria dos países do mundo ocidental hoje, e os livros

de

educação, referem-se a ele como "o pai da didática moderna

Na tradição dos estudos em educação, no Brasil, o termo didática corresponde a

uma região intermediária entre as tradicionais áreas da Sociologia da

Educação, História da Educação, Filosofia da Educação e Psicologia da Educação,

e os campos da Prática de Ensino, Administração Escolar, Educação

Especial e outros, ainda mais específicos. O senso comum pedagógico de

professores e estudantes que se dedicam aos estudos da educação no Brasil toma o

termo didática como apontando para o centro de um conjunto que reúne o que, em

geral, é denominado de "disciplinas básicas" e "disciplinas aplicadas" em

educação. Assim, a didática seria o campo que se informa através das

"disciplinas básicas" de modo a estabelecer a "organização e otimização dos

processos

de ensino-aprendizagem" e, assim, nutrir aqueles que se formam como professores

do ensino básico e médio, diretores de escola, supervisores de ensino,


animadores culturais, pedagogos e assim por diante, ou seja, aqueles que vão

lidar diretamente com o que foi traduzido nas "disciplinas aplicadas". Uma

pessoa com didática é alguém que "sabe dar aula" ou que "explica bem um

determinado assuntos' ou, mais sofisticadamente, alguém que, em circunstâncias

diversas, "sabe organizar e otimizar processos de ensino-aprendizagem". Sendo

assim, optando por uma definição ou por outra, é impossível aceitar um

professor do ensino básico ou médio "sem didática". O mesmo vale para um diretor

de escola, um animador cultural ou mesmo um educador de rua (como

são chamados os que atuam em trabalhos como o Projeto Axé, na Bahia, entre

outros) etc. Sem didática, nestes casos, significaria "sem qualquer coisa", ou

seja, alguém sem a capacidade que seu diploma profissional diz que ele detém.

introdução

pág.11

Ou sem as condições de efetivação daquilo a que se propõe, que é educar. Assim,

o senso comum de estudantes e professores, e isso para além daqueles que

estudam educação, admite que os educadores possam até mesmo não entender
muito

de "filosofia da educação" ou " sociologia da educação'', por exemplo,

mas tem dificuldade em aceitar um professor do ensino básico ou médio sem

didática. Um educador que desconhece "áreas básicas da educação" é tolerado,

na nossa sociedade. Um professor sem didática é bem menos querido.

Não discuto, diretamente, se as formulações do senso comum apontadas acima estão

certas ou erradas. Elas têm sua razão de existir e evidenciam

bastante o que se diz e o que se faz na área de educação. O que pretendo é

mostrar como considero "o campo de saberes necessários àqueles que estudam

educação tomado como didática".


Não qualifico a didática como uma prática, embora não despreze este seu lado.

Muito menos, tendo a vê-la como uma "teoria geral da educação", estando

ou não travestida com o nome de "pedagogia" - esta megalomania teórica deveria

estar afastada de nós desde há muito. Prefiro, neste trabalho, vê-la como um

campo de saberes. Então, chamarei de didática um lugar, ao qual cabe estudar as

principais teorias educacionais dos nossos tempos.

A filosofia da educação também faz o mesmo. Mas ela o faz a partir da linguagem

técnica da filosofia. Aqui, usarei uma linguagem eclética - histórica,

sociológica e filosófica -' mas não técnica, não específica de cada uma das

áreas das humanidades. Porque as questões que a didática coloca exigem a

confluência de saberes, num patamar de articulação entre o que se deve fazer e o

que se deve saber.

Mas o que dizem as teorias educacionais dos nossos tempos

- os tempos modernos e pós-modernos? Basicamente, nos tempos

pág.12

DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

modernos, elas são discursos que se desenvolvem em torno de três elementos: uma

noção de infância, uma finalidade da educação (e da escola, portanto) e, por

fim, um papel específico para o educador (o professor ou figura semelhante). Nos

tempos pós-modernos, conforme a linha de avaliação que adotarmos neste livro,

isto sofre uma certa variação. Nos tempos pós-modernos - a nossa época - muitos

dos objetivos educacionais considerados modernos permanecem válidos para

um bom número de professores e pais, mas já não seria mais possível vê-los como

objetivos factíveis, utilizando os mesmos pressupostos e justificativas das

teorias modernas. Veremos, no decorrer deste livro, tal variação, e, como a

tríade criança-objetivos-professor, sai de cena em favor de um discurso menos

fácil de caracterização, de tipificação variadíssima. Dizer que "não há somente


uma didática pós-moderna" é uma frase que deve ser vista de modo muito

mais complexo do que a frase "não há somente uma didática moderna". Mas não me

furtarei de mostrar uma possibilidade de didática pós-moderna

Pragmaticamente, acredito que um educador e, mais especificamente, um professor

que sabe se posicionar - teórica e praticamente - diante das teorias

educacionais e suas implicações atuais é alguém que está equipado para ser

chamado de professor que "tem didática". Pois é alguém que deverá saber,

segundo as suas próprias convicções, o que os autores modernos pensam sobre a

criança, os objetivos do ensino na sociedade moderna e sobre a sua própria

posição atual no contexto da tarefa de "organização e otimização das relações de

ensino-aprendizagem". Se for um professor pós-moderno, talvez, mas não

necessariamente, dispense uma única concepção de infância, de homem etc., mas,

ainda assim, terá que fixar objetivos e posicionar-se frente à "organização e

otimização das relações de ensino-aprendizagem". Em ambos os casos, lendo este

livro, ele deverá - assim espero - melhorar sua capacidade de descrever

pág. 13

seu próprio posicionamento. Mas, se ainda assim ele for uma pessoa qualificada

como "sem didática", isso estará fora do meu controle e boa vontade como

autor.

Por que digo isso? No final do livro o leitor ficará sabendo - pois a verdadeira

didática, no meu entender, deve muito à capacidade geral de se dispor para

o outro, na troca de olhares e "cortejamento" entre educador e educando. Este é

o tema que aparece num texto de Richard Rorty, no final deste livro.

Por fim, faço, ainda, um breve comentário sobre a dedicatória desse livro -

"para os professores que amam a liberdade". É a primeira vez que faço uma

dedicatória genérica. Mas ela tem sua razão de ser. Mesmo depois dos movimentos

libertários dos anos 1960, do fim do sovietismo e, no Brasil, mesmo após


o fim da Ditadura Militar, ainda encontro professores cultuando a "igualdade" -

para se esquecerem da liberdade - ou, ainda, admirando ditadores, regimes

políticos autoritários e, num campo mais específico, defendendo medidas

elitistas e endurecidas - como aquelas que querem ver a formação dos professores

e pedagogos fora da universidade, em guetos. Ainda encontro aqueles que se

"esquecem" de preparar suas aulas. E aqueles que, mesmo sabendo-se novatos e

inexperientes, pagam para publicar seus próprios livros, fazendo uma carreira

falsa e burocratizada na universidade, ansiosos para se verem reconhecidos e, em

geral, querendo utilizar o aparato público em benefício próprio. Cresce em nosso

meio esse tipo de gente. Essas pessoas são reacionárias. Algumas são

perversas.

Não escrevo este livro de didática para os reacionários, muito menos para os

perversos, e, sim, para os amantes de mundos jamais sonhados, para os

professores que querem aventuras e que seus alunos tenham mais imaginação e

esperança do que dogmas. Este livro é para aqueles professores que gostam de

alunos curiosos mais do que os politicamente engajados, e não para os que fazem

política pela política. Este livro é para aqueles

pág.14 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

que, gostando da liberdade, querem que todos a tenham e que estão dispostos a

fazer o tipo de política de que gosto: aquela que busca proteger os fracos da

humilhação dos poderosos, sem, no entanto, qualquer paternalismo ou populismo.

Este é um livro para professores que ainda preparam suas aulas, que

estudam para as ministrar, e não para aqueles que, menosprezando seus ouvintes,

dissertam aqui e ali sobre todo e qualquer assunto (mas sempre pela mesma

cartilha!). Para esses, de que vale um livro de didática? Aliás, de que vale um

livro para essas pessoas? Elas já têm um discurso pronto e não mudariam em

nada a partir da leitura deste ou de qualquer outro livro! Muitas dessas pessoas
procuram livros apenas para confirmar seus dogmas - chamam a isto coerência.

A didática, aqui, no seu percurso histórico, é o campo da incoerência. Aliás,

como é a vida. Ter uma vida coerente nem sempre é uma virtude - muitas vezes, é

apenas sinônimo de limitação da inteligência e falta de coragem para mudar.

Assim, da maneira como a encaro, a didática não se refere ao ensino repetitivo,

nem às técnicas chatas que muitos estudantes temem encontrar nas

faculdades de educação - e encontram! Para mim, ela é um fim de arco-íris, o qual

não se sabe ao certo onde começa e nem se há mesmo, no seu término, um

pote de ouro.

Pág.15

CAPÍTULO 1

As teorias educacionais na modernidade

e no mundo contemporâneo:

humanismo e sociedade do trabalho

O discurso educacional humanista

O DISCURSO DOS INTELECTUAIS A RESPEITO DA EDUCAÇÃO, no Ocidente, nos


tempos

modernos e contemporâneos, possui três estágios:

o primeiro estágio compreende o longo período de construção e vigência do

humanismo, em suas vertentes iluminista e romântica, entre os séculos XVI e

XVIII, e também no século XIX; o segundo estágio compreende o período de

emergência dos diversos discursos a respeito da sociedade do trabalho, ou seja,

os séculos XIX e XX; o terceiro estágio compreende a multiplicidade e, talvez, a

unidade no interior das formulações que podem ser aglutinadas sob a rubrica

de "pós-moderno", que irá caracterizar, principalmente, os últimos trinta anos


do século XX e, certamente, ainda caracterizará parte do século XXI.

O que diz o discurso dos intelectuais humanistas sobre a educação?

No advento dos tempos modernos, nos séculos XVI, XVII e XVIII, geramos a noção

de infância. No que consistiu tal noção? Os intelectuais começaram

a deixar de ver a criança através da teoria do homúnculo", isto é, começaram a

abandonar mais ou menos rapidamente a idéia de que a criança era apenas um

pequeno adulto, um ser menor e menos perfeito. Uma parte dos intelectuais

começou a dizer que havia duas fases na vida humana e que ambas eram

importantes, a fase à qual pertencem

pgá.16 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

os adultos e a fase à qual pertencem as crianças - a infância. Durante esse

primeiro período da vida humana, o homem, então criança, se apresentaria de modo

mais próximo à própria natureza humana. Assim, observando a infância, saberíamos

qual deveria ser o nosso destino como humanos. E o que seria a "natureza

humana"? Em contraposição à natureza dos animais e das coisas, o natural no

homem seria a liberdade, pois, afinal, a característica básica da infância seria

a despreocupação e a felicidade encontradas na liberdade. É claro que a liberdade da


criança e do adulto eram liberdades tomadas qualificadamente. Na criança,
manifestar-se-ia, sempre, uma determinada liberdade, que desapareceria no adulto, se
este não pudesse adquirir uma outra forma de liberdade. Enquanto na criança a
liberdade aparecia como despreocupação feliz, no adulto a despreocupação e a
felicidade e, portanto, a liberdade se perderiam se ele não pudesse, com o tempo,
transformar a "liberdade infantil" em "liberdade adulta" - a liberdade de se
autodeterminar, de fazer opções ou de, pelo menos, ter capacidade para avaliar suas
opções e as dos outros e, mais que isso, ter consciência a respeito dos limites de suas
próprias opções individuais frente às opções dos outros indivíduos e frente ao bem
comum. O ser humano estaria dotado de uma faculdade fantástica - a

razão que, uma vez trabalhada, educada, o levaria da vida infantil para a

vida adulta, transformando a liberdade infantil em liberdade adulta, isto é, o

levaria a ser um verdadeiro indivíduo - aquele que pensa e age segundo a razão,

podendo, então, viver livre como ser inteligente (sujeito epistemológico), como
pessoa (sujeito moral) e como cidadão (sujeito político). Assim, o homem,

enquanto indivíduo, seria alguém capaz de, conscientemente, reconhecer o

verdadeiro e o falso, julgar o certo e o errado e discernir entre seus deveres e

direitos enquanto habitante da cidade (membro do Estado), além de comentar o belo e


o feio (papel do sujeito estético).

AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÁNEO...

Pág.1 7

Segundo o discurso humanista, o papel da educação seria o de fazer com que o

homem se reencontrasse consigo mesmo; isto é, a educação deveria fazer

com que o homem pudesse, uma vez adulto, ser efetivamente livre, cumprindo,

assim, o seu destino. Para tal, a boa educação seria a educação da razão e pela

razão. Uma educação que prezasse a racionalidade como meio e fim não falharia na

criação de crianças que se tornariam homens bem pensantes, capazes de

agir corretamente e de cumprir suas funções políticas.

E sobre o professor, o que dizia o discurso humanista?

Montaigne, no Da educação das crianças, escrito no século XVI, respondeu a essa

pergunta de um modo bem claro. Falando a respeito da criança que está sendo

educada, escreveu:

Se seu preceptor for como eu, forma-lhe a vontade para que sirva seu Príncipe

com lealdade, afeição e coragem; mas o desviará de se prender a ele senão

por dever cívico. (...) Que a consciência e a virtude brilhem em suas palavras e

que só a razão tenha por guia. Ensinar-lhe-ão que confessar o erro que

descobriu em seu raciocínio, ainda que ninguém o perceba, é prova de

discernimento e sinceridade, qualidades principais a que deve aspirar.


Para intelectuais do tipo de Montaigne, como tantos outros na vaga humanista, na

linha do iluminismo ou do romantismo, até o século XIX, o professor

falharia quando tivesse levado alguém a colocar sua vontade a serviço do

Príncipe (o Estado) para além do exclusivo "dever cívico". Ou que tivesse levado

seu aluno, uma vez adulto, a ter o hábito de esconder um erro de raciocínio que

sabia ter cometido (o aluno teria ficado incapaz de aliar a lógica à

sinceridade).

Em ambos os casos, o professor não teria cumprido a sua tarefa. Não teria

conseguido fazer da criança um autêntico indivíduo, aquele que não deixa a sua

própria razão - sua liberdade e sua natureza - ser nublada.

pág.18 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

O discurso educacional na sociedade do trabalho

A partir do século XIX, o panorama em que o discurso sobre a educação passou a

se mover alterou-se profundamente. Em tudo, passou-se a seguir as

diretrizes da então nascente "sociedade do trabalho". Mas o que é ela?

A noção de sociedade do trabalho refere-se à sociedade ocidental erigida sobre

três elementos. O primeiro é a empresa industrial privada ou estatal (cujo

modelo é a fábrica), que, como instituição separada da antiga unidade produtiva

familiar, organiza a produção de acordo com critérios de eficiência

(racionalidade econômica). O segundo elemento é o trabalhador assalariado,

alguém duplamente liberado: ele é livre de quaisquer laços como os que

observamos no feudalismo, ou seja, aquelas obrigações para com a terra e o


senhor feudal; e também é alienado dos meios de subsistência. O terceiro elemento é
a ética do trabalho, isto é, um conjunto de preceitos que vão se tornando legitimados e
que não só querem justificar a necessidade e o dever de trabalhar mas que, também,
criam uma série de valorizações que permeiam o tecido social na busca de lhe dar
coesão, funcionalidade e sentido. A sociedade do trabalho é

aquela em que os homens que nela vivem conferem sentido ao mundo a partir do

trabalho e dos acontecimentos e valores ao redor deste. E uma sociedade na

qual os indivíduos se enxergam como "autênticos indivíduos" na medida em que são

trabalhadores. E numa sociedade deste tipo, que são justamente as

sociedades ocidentais que tiveram seu apogeu durante o século XX, que o discurso

humanista sobre educação será remodelado. A infância, a educação

(escola) e o papel do professor serão requatificados.

Na sociedade do trabalho, a infância continuou a ser vista cada vez mais como

uma fase especial da vida humana e, também, como um indicador do que

seria a verdadeira natureza humana. Todavia, na sociedade do trabalho, a

natureza humana foi

AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO... 19

redefinida pelos intelectuais. O que seria natural nos homens? Sem dúvida, não

mais a liberdade tomada genericamente, mas uma liberdade específica: a

capacidade humana de se automodificar, na medida em que o homem pode


transformar

o mundo, transformando o meio em que vive ou, em outras palavras,

trabalhando sobre o meio em que vive. A infância continuou a ser o indicativo da

natureza humana. Só que, agora, olharíamos para as crianças e veríamos

não só despreocupação feliz - liberdade -, como viram os antigos humanistas, mas


veríamos, principalmente, algo essencial por eles mencionado mas sobre o

qual não teriam atribuído a devida importância: a criança é ativa, é um ser do

movimento, que pega e muda as coisas ao seu redor - a criança é um ser prático

e,

como tal, evidencia sua inteligência humana. No adulto, tal capacidade prática e

disposição para a atividade se transformariam em trabalho.

O discurso sobre a educação na sociedade do trabalho, tal como o discurso

humanista, achava que o seu papel era fazer o homem "reencontrar-se consigo

mesmo". Todavia, diferentemente do discurso humanista, no novo discurso o homem

deveria reencontrar não a Liberdade enquanto capacidade de

autodeterminação racional, mas sim enquanto capacidade de se manter ativo,

prático, construtor, empreendedor - trabalhador. A própria noção de "ser

racional" foi alterada: menos que a capacidade de autodeterminação, a razão

seria a capacidade de nos colocarmos calculadamente diante do meio

circundante, moldando-o segundo o que seriam nossas necessidades. A educação da

razão e pela razão seria, assim, a educação de um tipo de racionalidade em

favor deste mesmo tipo de racionalidade: a racionalidade da atividade e, num

certo sentido, do trabalho.

E sobre o professor? O que dizia o discurso sobre a educação vindo das

diretrizes da sociedade do trabalho no que diz respeito ao mestre?

Pág.20DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

Bergson, em O pensamento e o movente, publicado em 1934, responde a essa

pergunta de modo muito claro:

Homo faber, homo sapiens, diante de um e diante do outro, que aliás, tendem a se

confundir, inclinamo-nos. O único que nos é antipático é o homo Loquax cujo


pensamento, quando ele pensa, não é mais que uma reflexão sobre o que fala. A

formá-lo e aperfeiçoá-lo tendiam, outrora, os métodos de ensino. E não tendem

um pouco, ainda hoje? Certamente, o defeito é menos grave entre nós do que em

outros países. Em nenhum lugar, mais do que na França, o professor provoca

tanto a iniciativa do aluno. Entretanto, resta-nos muito a fazer. Não vou falar

aqui do trabalho manual, da função que ele poderia desempenhar na escola.

Somos levados facilmente a ver nele apenas um passatempo. Esquecemos que a

inteligência é essencialmente a faculdade de manipular a matéria, que ele ao

menos começou assim, que tal era a intenção da natureza. Como, então, não se

beneficiaria a inteligência da educação das mãos? Vamos mais longe. A

mão da criança tenta naturalmente construir. Ajudando-a nisto, fornecendo-lhe,

ao menos, ocasiões, obter-se-ia, mais tarde, do adulto, um rendimento

superior; faríamos singularmente crescer o que há de inventividade no mundo. Um

saber imediatamente livresco comprime e suprime atividades que

querem apenas desenvolver-se. Exercitemos a criança no trabalho manual e não

abandonemos este ensino a pessoas não especializadas. Apelemos para um

verdadeiro mestre, para que aperfeiçoe o tocar aponto de tomá-lo tato: a

inteligência elevar-se-á das mãos à cabeça.

Para uma boa parte dos intelectuais dos séculos XIX e XX, que, de alguma forma,

estiveram inseridos no grande movimento de culto ao industrialismo,

iniciado com Saint Simon, e que teve eco no "Manifesto Comunista" de Marx e

Engels, o mau professor seria aquele que falhou na tarefa de proporcionar às

crianças, uma vez adultas, as condições de inserção social. "Inserir-se

socialmente" significava, então, integrar-se ao mundo, transformando-se em

trabalhador, ou, dito eufemisticamente, em um profissional. O "indivíduo

autêntico", no século XX, tornou-se sinônimo de "bom profissional". Õ termo

variou

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As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO...

segundo as divisões classistas, é claro: um operário podia ser um profissional;

um advogado podia ser um profissional - um profissional liberal; um dono de

empresa podia ser um profissional, por exemplo, um administrador de empresas. Os

próprios professores passaram por isto: almejaram deixar de serem vistos

como missionários, filósofos, preceptores, divulgadores, educadores,

intelectuais e, cada vez mais, reivindicaram, junto com outros setores, o posto

de "trabalhadores da educação".

É no contexto da transição entre o modo de falar sobre a educação a partir do

humanismo e o modo de falar sobre a educação a partir das diretrizes e

símbolos da sociedade do trabalho que podemos pensar o surgimento do movimento

de renovação educacional, que começou, na prática, com o advento das

chamadas "escolas novas" (partindo de Tolstói, no século XIX até as escolas

experimentais de vários países, no século XX) e, no plano teórico, com as

inúmeras teorias educacionais que incentivaram o chamado "ensino ativo" (Dewey,

Kilpatrick e Piaget à frente). Entretanto, é preciso cuidado, pois vários

teóricos - a exemplo de John Dewey - foram criadores e incentivadores dos

métodos ativos em educação e, ao mesmo tempo, críticos da sociedade do trabalho

e da escola submetida à racionalidade desenfreada do mundo industrial.

Voltaremos especificamente a este ponto mais adiante.

As teorias educacionais do século XX, como as teorias educacionais humanistas,

falaram em criar o homem para ser indivíduo, sujeito, mas entenderam

esse termo como algo um pouco diferente da concepção humanista. O ser pensante e

inteligente, o sujeito epistemológico, aquele que reconhece o verdadeiro

e o falso, passou a ser o sujeito ativo. A verdade passou a pertencer à ordem

prática e, assim sendo, seu reconhecimento dar-se-ia ativamente, por experiência


e experimentação. A pessoa, o sujeito moral, aquele que julga o certo e o errado,
passou a ser aquele que faz julgamentos a partir dos valores postos pelo

pág.22 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

trabalho - uma ética do trabalho, que passou a punir duramente uma figura

inexistente até então: o "vagabundo" - aquele que não trabalha (na transição do

século XIX para o XX, sociólogos como Veblen criaram a teoria do desprezo às
antigas

elites, os nobres, a quem se chamou de "classe ociosa", que não teria a

mesma virtude das classes industriais). E, por fim, o cidadão, o sujeito

político, passou a ser aquele que reconhecia direitos e deveres a partir de um

discurso

dos partidos trabalhistas (de esquerda e de direita). Aliás, no século XX, se

observarmos atentamente, veremos que, de certo modo, todos os partidos se

tornaram trabalhistas; fossem eles comunistas, social-democratas ou fascistas,

seus objetivos explicitados nas suas cartas de intenções eram a melhoria do

mundo do trabalho, a melhoria do cidadão-trabalhador, a alteração das condições

de trabalho, a obtenção da sociedade do pleno emprego etc.

As crises do mundo moderno e contemporâneo:

O mundo pós-moderno

Vivíamos, até há bem pouco tempo, na sociedade do trabalho. Todavia, desde o

pós-Segunda Guerra, particularmente, após os anos 1970, sentimos o nosso mundo

mudar de maneira nunca vista. Nos últimos trinta anos, aconteceram duas crises

que, inclusive, se auto-alimentaram. Sociologicamente falando, tivemos a crise


da sociedade do trabalho. Em termos de filosofia social, tivemos a crise da

individualidade moderna. Muitos dos pensadores que identificaram e analisaram

essas crises preferiram chamar o mundo que vem emergindo a partir delas de

"mundo pós-moderno".

O que seria este "mundo pós-moderno"? A modernidade

teria dois pilares característicos: do ponto de vista sociológico,

a vigência da sociedade do trabalho e, do ponto de vista filosófico,

a justificativa da idéia da existência da "individualidade", nome

dado ao homem enquanto "sujeito", isto é, o ser consciente de

pág.23

AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO...

seus pensamentos e responsável por seus atos (ser inteligente:

sujeito epistemológico pessoa: sujeito moral; cidadão: sujeito político). Tudo o

que emergisse de diferente, após a crise desses dois pilares característicos -

esta crise está em curso -, seria o "mundo pós-moderno".

Falaremos sobre cada uma dessas questões abaixo e, em seguida, veremos como
isso

afetou a nossa conversação sobre a educação.

O ponto de vista sociológico: a crise da sociedade do trabalho Segundo a

inspiração que vem de um tipo de discurso

sociológico - em geral, como o que é desenvolvido a partir das idéias de Clauss

Offe, teórico ligado à Nova Escola de Frankfurt1 -'a crise da sociedade do


trabalho teria começado desde a sua própria instituição. A desconfiança de

certos libertários dos séculos XIX e XX a respeito da idéia de que o trabalho

traria

para todos realização pessoal, e a desconfiança de que, mesmo que trouxesse, não

seria para todos, pois nem todos conseguiriam trabalho, teriam se tornado

uma realidade no final do século XX.

Segundo essa sociologia, a inserção social passou a se desvincular do trabalho.

Não seria mais possível falar em inserção social como sinônimo de

integração à sociedade do trabalho.

rodapé

Em boa parte dos meus textos recentes venho chamando de "Velha Escola de

Frankfurt" aquela ligada aos impasses gerados com Horkheimer, Adorno, Benjamin,

Marcuse etc., e de "Nova Escola de Frankfurt" os

teóricos ligados a Habermas, principalmente o Habermas que abandonou o marxismo,

passando a endossar as idéias da "virada lingüística" e da "virada lingüístico-

pragmática". A Velha Escola de Frankfurt era

uma escola de indignação moral - como a indignação moral de Marx -, mas se

envolveu em dilemas filosóficos de que não conseguiu dar conta. Já, a Nova

Escola de Frankfurt tentou resolver aqueles dilemas

filosóficos, principalmente escapando tanto do paradigma humanista quanto do

paradigma da sociedade do trabalho para, enfim, deixar de lado noções como

"natureza humana" e caminhar para a análise do nosso

mundo, que, antes de ser do "homem" (sujeito metafísico), é um mundo de falantes

- que não receberam nenhum dom natural -, mas que usam ruídos e sinais e que,

com o tempo, passaram a dar significado a esses

usos.

Pág.24 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS


No final do século XX, e agora, no limiar do século XXI, as pessoas teriam

diminuído suas esperanças de alcançar alguma realização pessoal no trabalho ou

através dele,

como também teriam diminuído ainda mais sensivelmente suas esperanças nas

utopias do século XIX e do início do XX, todas elas criadas a partir de

propostas

de reorganização da vida através da reorganização do trabalho (as propostas de

comunistas, fascistas e social-democratas, cada uma a seu modo). No trabalho,

raramente encontraríamos alegria - nunca felicidade - e não mais encontraríamos

a nós mesmos. E poucos estariam acreditando, como acreditaram as pessoas

do século XIX e em algumas fases do XX, que, se reorganizássemos o mundo do

trabalho, seríamos felizes e nos encontraríamos com nós mesmos. E,

mesmo que acreditássemos, ainda, nas utopias da total reorganização do trabalho,

teríamos de enfrentar O fato de o trabalho, ele próprio, estar deixando de

poder marcar presença em boa parte do tempo de nossas vidas, pois se tornou

escasso e transitório em uma sociedade que abrigou, mundialmente, nos anos

1990 do século XX, oitocentos milhões de desempregados

- o "desemprego estrutural", como chamaram os economistas ao fenômeno crescente

do desemprego causado pelo surgimento das novas tecnologias.

Assim, segundo a sociologia que tomo como referência, uma das características

básicas da crise da sociedade do trabalho é a crise da noção de

"indivíduo" tal como foi gerada nesta mesma sociedade. A consciência de ser

trabalhador 11ã0 é mais a consciência par excellence. Ser indivíduo não é mais

ser "profissional".

O que teríamos, então? Uma volta à individualidade tal qual foi definida pelos

humanistas? Não. Na verdade, Clauss Offe menos, e Habermas mais,

tendem a dizer que a crise atingiu também o próprio conceito de individualidade

num sentido amplo, abarcando não só a noção de indivíduo, na sociedade do


pág.25

As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO...

trabalho, mas também a noção geral de indivíduo moderno - a própria noção de

sujeito moderno. Esta é, então, a segunda crise: a crise da individualidade

moderna ou, em termos mais filosóficos, a crise da subjetividade moderna.

O ponto de vista da Filosofia:

a crise da individualidade moderna

A filosofia social frankfurtiana e a crise da individualidade: a consciência

enquanto "corpo" e suas conseqüências para o discurso educacional

A crise da individualidade moderna, em termos da filosofia social inspirada na

Velha Escola de Frankfurt, é um fenômeno que pode ser visto desde o final do

século XIX, quando as elites generalizaram a prática de colocar espelhos em suas

casas e, com as primeiras caracterizações das pessoas estritamente pelo

aspecto físico; mais ainda, durante o pós-Segunda Guerra, com a crescente

associação da identidade, não mais com o que chamávamos de consciência, mas

com o que chamávamos, e ainda chamamos, "corpo". Tratou-se de deslocar a

subjetividade-identidade da consciência para o corpo. Uma completa

naturalização da visão a respeito das relações entre os homens e o meio

ambiente.

Segundo esse tipo de análise, hoje, muitos teriam se acostumado a se

autoqualificar como sujeitos na medida em que se achem capazes de satisfazer

alguma carência ligada ao corpo. Nossa identidade pouco se referiria a ideários

organizados racionalmente como no passado recente, quando nos

qualificávamo5 como "católicos", "comunistas" etc. Ou, mais amplamente quando

nos qualificávamos como "burgueses", "trabalhadores", "comerciantes",


playboys etc. No Ocidente, desde o começo das décadas finais do século XX, cada

vez mais nossa identidade teria passado a fazer referência ao corpo.

Estaríamos nos descrevendo, cada vez mais, como "brancos",

Pág.26DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

negros", "doentes", "sadios", "gordos", "magros"," belos", "feios", "altos",

"baixos", "gays" (os que usam o corpo homossexualmente),

e assim por diante. Sinonimizaríamos o eu ao 'corpo" e, assim,

consideraríamos como condição de realização pessoal e felicidade íntima as

situações onde o corpo estivesse envolvido prazerosamente. Por isso, as várias e

mais presentes situações onde a felicidade é associada ao prazer do consumo e

este, por sua vez, associado ao consumo de objetos, apetrechos e programas

vinculados ao corpo - tudo o que se refere à beleza, à saúde, e assim por diante
estaria ganhando fantástica importância.

Há quem diga, inclusive - como o sociólogo francês, Lucien Sfez - que, se temos

ainda uma grande utopia, ela poderia ser chamada de "A Grande Saúde". Em uma

entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 1996, Sfez declarou:

Na classe média alta e nas elites [americanas], as pessoas desprezam os

fumantes, conversam sobre colesterol, dicas de comidas Livres de gordura,

not fat. Fala-se disso como, na Europa, se conversa sobre política. Um dia encontrei
uma amiga, que faz parte desse meio chique, o novo meio radical chique, universitário
e elegante da Costa Leste americana. A conversa, a mesma de sempre, a comida
certa. Perguntei como ia. Não muito bem, um problema de saúde. Era grave?

"Poderia ser, virtualmente". Ela tinha pedido para o médico tirar-lhe os ovários

preventivamente! Porque a mãe e a tia tiveram problemas com os ovários, mas ela

não tinha nada.

Fiquei estupefato e perguntei como o médico tinha concordado com uma coisa

dessas, pois na França isso jamais seria feito. Ela me disse que negociou com os
médicos:

se tirassem os ovários ela não tiraria os seios! Foi então que descobri que uma

prática comum nos meios "in" americanos é tirar os seios preventivamente.

(...).O termo

A Grande Saúde se aplica a este homem novo, que estaria além da nossa infeliz

existência humana, que atingiria a imortalidade, que não precisa em nada de

Deus, da moral e da metafísica. O mal estaria no corpo, seria tratado pela

ciência, sem mediações políticas.

O que vale a pena ser observado no comentário de Sfez é menos o seu pessimismo e

saudosismo e, inclusive, suas conclusões,

pág.27

As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO...

que lembram um certo ascetismo presente em boa parte das análises das

sociologias marxistas, e mais sua arguta capacidade em contar como um encontro

cotidiano estampou mais do que uma idiossincrasia de uma amiga rica; um

comportamento que, em geral, muitos de nós assumimos, e que seria impossível se

achássemos que nosso verdadeiro eu está na "razão", na "consciência" ou, ainda,

ligado a um ideário previamente racionalizado com fins sócio-políticos.

Nosso verdadeiro eu teria passado a ser o corpo. Mas é claro que, numa análise

de inspiração frankfurtiana, diferentemente do que falou Sfez, esse "corpo"

continuaria sendo uma determinada descrição, uma determinada representação de

corpo. E essa representação não estaria desligada da religião, moral,

metafísica e política, como disse Sfez. O "corpo" seria, muito mais: uma

representação que pode, em nossos tempos, estar associada à metafísica e à


política, pois o que chamamos "corpo" é uma nova entidade que não suprime o que
chamamos "consciência", mas se mostra como um novo elemento básico da vida,

portanto, uma nova entidade metafísica (a Física pode muito bem ser uma

metafísica, a Biologia também!). De igual maneira, não há supressão da política,

mas esta passou a ter o corpo como referência, como nos ensinou Foucault em sua

análise da modernidade - e que, a meu ver, é muito mais um retrato da própria

pós-modernidade.

Quais as conseqüências disso tudo para o discurso educacional?

Isso tudo vem reformulando nossa noção de infância, de educação (ensino, escola)

e de professor. Mas aqui é preciso ver os dois lados das mudanças do

que vem sendo entendido como "mundo pós-moderno" Por um lado, temos uma

justificativa para discursos educacionais que se transformaram em apoio a

meros treinamentos Todos sabemos quantos Ph.Ds em "qualidade total" e similares

apareceram nos últimos anos. Por outro lado, temos também justificativas

para discursos educacionais que

pág.28 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

caminham para a reconstrução do agir pedagógico num sentido compatível com

anseios liberais, democráticos e de maior reflexão. Vou me ater ao primeiro

tópico do mundo pós-moderno.

Segundo uma análise herdeira da Velha Escola de Frankfurt, nas novas condições,

tanto as noções humanistas de infância quanto as noções ligadas à

sociedade do trabalho, que descrevem a criança, respectivamente, como ser

naturalmente livre e como ser ativo e prático, estariam desqualificadas. A

infância ter-se-ia volatilizado. Na medida em que cada indivíduo é o que é o seu corpo,

ou mais exatamente, cada indivíduo é um corpo que consome, também a

criança é vista de outra maneira: ela é o "pequeno corpo" que ganha identidade

no ato do consumo. Quais são as coisas que esse corpo consome? O que ele
faz? Este "corpo" é o "corpo que consome o danoninho" ou o "corpo que se mexe

como a Xuxa e similares" ou, ainda, o corpo que realiza os movimentos

estereotipados e violentos de heróis da TV e de outros meios de comunicação.

Muitos heróis da TV são apenas um conjunto de movimentos, sem idéias ou

ideais - o que chamamos de asiatização dos heróis da TV: sai de cena o novo

Capitão América, de Stan Lee, que nos anos 1960/1970 foi ao Vietnã e teve a

coragem de não lutar contra os vietnamitas, pois não viu a Guerra como uma

guerra justa, e entram em cena os vários elementos saltitantes asiáticos, que

apenas Lutam, por nada e para nada, contra monstros tão imbecilizados quanto

eles próprios (às vezes, lutam para "salvar a Terra"!).

Ainda segundo essa análise, herdeira dos velhos frankfurtianos, como atua o

discurso educacional que endossa, direta ou indiretamente, tal situação?

Se cada um de nós é um "corpo", então, a educação mais adequada a nossa condição

é o treinamento, o adestramento. E se a criança só é criança dentro

daquilo que os meios de comunicação autorizam, definindo sua condição a partir

da

pág.29

As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO...

imposição do que deve ser consumido pelo seu corpo, então, devemos, para fazer

existir crianças na escola, reproduzir ali todo o esquema de adestramento,

acoplado à forma-padrão de comunicação determinada pela TV. A escola passaria a

ter como modelo a academia de ginástica. Mas não a academia de fato, e

sim, aquela montada pela TM a que cristaliza a própria vida em uma academia: por

exemplo, na novela "Malhação", da Rede Globo, toda a vida transcorre, e só

pode transcorrer, na medida em que associada à Academia, onde está o único

elemento subsistente: o corpo.


E sobre o professor? O que diz, direta ou indiretamente, esse novo discurso

educacional, sobre o professor?

O professor não seria mais alguém que visa tornar o jovem conscientemente livre,

como o ideal do professor humanista. Também não mais seria aquele

que deveria colaborar, de forma substancial, para que o jovem, tornando-se um

"profissional", pudesse conseguir inserção social, como deveria ser o

professor articulado às diretrizes da sociedade do trabalho. O professor estaria

se posicionando, sim, como alguém que lida com "corpos". Por isso seu

trabalho consistiria em adestrar os jovens para atividades circunscritas - já

que os empregos fixos tendem a desaparecer - que devem ser realizadas segundo

um padrão de performance previamente estabelecido pelo mercado ou por

autoridades externas aos indivíduos. Cada professor, então, estaria sendo apenas

um detentor de técnicas agendadas segundo o adestramento que deve promover: as

técnicas ditas necessárias para determinado tipo de domínio de um idioma;

as técnicas para manipulação, num determinado e específico nível, de uma máquina

qualquer (computador, fumadora etc.); e até mesmo as técnicas para a

leitura de um texto de... Filosofia! Assim, estariam aparecendo diversos

estudantes e professores de Filosofia que saberiam minúcias a respeito de um

texto

filosófico, mas que nunca leram um manual de História da

pág.30 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

Filosofia que lhes desse uma visão geral sobre o que fizeram e fazem os

filósofos.

A nova tarefa dos professores consistiria, então, em avaliar as performances

alcançadas por seus alunos, destinados a viverem naquilo que o Ministro do


Trabalho da primeira gestão do Presidente norte-americano Bill Clinton, Robert

Reich, definiu como "sociedade do futuro". Em 1996, em entrevista ao jornal

Folha de S. Paulo, Robert Reich explicou que todos viveríamos numa sociedade sem

empregos fixos, uma "sociedade de freelancers", e deu alguns conselhos

para evitar a exploração do trabalhador:

A melhor proteção é possuir habilidades e conhecimentos para os quais há

demanda. Nada substitui você ser alguém de quem o mercado precisa. O papel

do governo mudou. Nas décadas de 30 e 40,o governo estabeleceu padrões mínimos

para que as pessoas pudessem receber um salário mínimo. (...) Hoje, o

papel do governo é construir pontes entre a economia velha e a economia nova.

Ainda há pessoas demais que não possuem as habilidades necessárias,

educação suficiente [para a nova economia]. (...) Estágios e aprendizados feitos

enquanto os jovens estão ainda na escola, para que os jovens que não vão

fazer faculdade tenham qualificações úteis, aprendidas no próprio trabalho [são

as tais pontes].

Robert Reich foi bastante preciso: falou em "habilidades". E isto mesmo: o

professor desenvolveria habilidades, e essa linguagem que Reich usou é a que

melhor se adapta à idéia do sujeito enquanto "corpo". Reich ainda fala em

mercado de trabalho, mas não mais como algo que possibilitaria aos indivíduos

integrarem-se socialmente, e muito menos como o lugar de realização pessoal, mas

como algo onde, se adquirirmos "habilidades", poderemos de vez em

quando entrar e, talvez, viver de uma maneira menos sofrida do que os outros,

por algum tempo, nos padrões da nova economia. Assim, o professor não seria

mais alguém capaz de "preparar para a vida", como no discurso humanista, ou

"ensinar a viver", como no discurso mais

pág.31 As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO...
ligado à sociedade do trabalho; estaria sendo apenas um socorro à sobrevivência.

A filosofia neopragmatista e a crise da subjetividade moderna: a naturalização

das relações entre o eu e o "mundo" e a emergência de uma noção forte de

educação

A filosofia social herdeira da análise da Velha Escola de Frankfurt e o

neopragmatismo concordam em um ponto: a crise da individualidade moderna ou a

crise da subjetividade moderna são, no plano estritamente filosófico, o

desenvolvimento do naturalismo enquanto uma postura filosófica que vem

penetrando

cada vez mais nos meios acadêmicos. Porém, se a Velha Escola de Frankfurt via

isso segundo óculos marxistas, como reificação, fruto das condições industriais

e do capitalismo tardio, mais recentemente, o neopragmatismo viu em tudo isso uma


solução intelectual também válida para um problema que aquela Escola

nunca resolveu: se não confiamos mais no "sujeito", se não nos consideramos mais

como indivíduos, o que devemos colocar no lugar? Qual é a nova

descrição das relações entre o nos e o "mundo" que vem sendo assumida, sem

deixar de respeitar essa naturalização inevitável de toda e qualquer descrição

filosófica?

Se olharmos não só para as análises vindas do marxismo, mas também para as novas

correntes filosóficas que vieram para respeitar Darwin - de Daniel

Dennett a Rorty, passando por Donald Davidson -, a fisicalização de nosso

entendimento da subjetividade pode ser tomada de forma muito mais ampla. Por um

lado, talvez não possamos negar que ela tenha a ver com transformações negativas

que robotizam nossa vida. Há razão de ser para o pessimismo frankfurtiano.

Por outro lado, ela é uma conquista do processo de melhoria de nossa capacidade

de descrever a nós mesmos - um processo de desencantamento (no sentido

weberiano do termo) de certas noções, o que nos


32 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

colocou, do ponto de vista da filosofia, num caminho saudável de poder descrever

a subjetividade e a individualidade de uma nova, melhor e mais coerente maneira

-o

naturalismo historicista e uma forma renovada de nominalismo. Tal enfoque vem

sendo explicitado através de um modelo fisicalista, porém não redutivista da

noção das

relações entre "indivíduo", "subjetividade" e realidade. Essa redescrição tem

conseguido ganhos filosóficos, pois coloca a filosofia num plano coerente, no

qual, até então, ela

não conseguia mais se situar (a perda de credibilidade da metafísica diante da

ciência, do darwinismo etc.) e, além disso, oferece também justificativas para

as novas teorias

educacionais, mais condizentes e, talvez, mais capazes de desafiar os problemas

postos na pós-modernidade.

Para exemplificar o fisicalismo não redutivista, irei expor, brevemente, como o

neopragmatismo de Richard Rorty descreve as relações entre o eu e o mundo.

Rorty faz um contraponto entre a sua posição e as noções metafisicas que, de

certo modo, estão presentes tanto no ideal humanista quanto nas diretrizes da

sociedade do

trabalho, na medida em que em ambos advogava-se algum tipo de "natureza humana"

para, então, tirar conclusões a respeito da infância, da educação e do

professor.

Segundo o neopragmatismo, poderíamos dizer que as noções adotadas pelo

humatiismo e pela sociedade do trabalho são derivadas dos modos de pensar de

Platão e de

Kant. Platão, na visão neopragmática, teria apresentado os seres humanos como


possuidores de dois eus: um eu animal, que estaria em contato, por meio dos

sentidos e das

paixões, com o mundo material e um eu nobre, distintivamente humano, imaterial.

Na tradição que se seguiu a Platão, teria ocorrido uma associação entre a

universalidade e a

razão, próprias do segundo eu, o do altruísmo e da justiça, e a associação entre

a particularidade e a emoção,

pág.33

As TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO...

próprias do primeiro eu, o do egoísmo e da injustiça. O modelo neokantiano, que

ter-se-ia acoplado ao modelo platônico, por sua vez, complexificou um pouco mais

subjetividade, mas não teria alterado essa noção a ponto de tirá-la da visão

própria e dual da metafísica. O homem, a subjetividade individual ou, ainda, o

"eu" teria sido visto

pelos neokantianos segundo um modelo que contém três esferas concêntricas, cada

camada de cada uma dessas esferas desempenhando um papel especial. A primeira

camada, a exterior, consistiria nas crenças e desejos empíricos e contingentes;

a segunda camada, a do meio, consistiria nas crenças e desejos a priori,

exatamente as crenças

e desejos que "estruturariam" ou "constituiriam a camada exterior; por

terceiro, o núcleo, onde estaria o inefável - a residência do Imutável, do

Verdadeiro, o lugar do

órgão noumênico, de Fichte, da Vontade, de Schopenhauer, da Vivência, de

Dilthey, da Intuição, de Bergson, mais popularmente, a Voz da Consciência, ou,

ainda mais
vulgarmente, o lugar que permitiria insinuações sobre a Imortalidade.

Do modo como o neopragmatismo vê as coisas, concepções deste tipo, se tomadas

sob as conquistas do olhar filosófico, trazem problemas para a educação.

Seguindo-as,

a educação teria, necessariamente, que se entender como um processo limitado de

transformação da subjetividade, do homem. Um processo que, se pretende construir

homem, já de início deveria se saber parcialmente incapaz. Pois se seguimos

essas concepções, o homem tem, em seu íntimo, enquanto "eu", um núcleo que não

se pode

alterar, seja por si mesmo seja por qualquer outro agente - tanto o "eu" nobre

de Platão quanto a "esfera central" da consciência neokantiana estão para além

do mundo

natural, histórico e lingüístico e, portanto, para além de alterações. Por isso,

a educação, do grego Platão ao frankfurtiano Adorno, ainda que com um sem-número

de

variações, sempre teria sido entendida, segundo o neopragmatismo, como um

trabalho cuja

34 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

esperança é a de que, em algum momento da vida do educando, surjam elementos

internos que poderão ser chamados de corretos, válidos, não-bárbaros etc.; e

tais elementos

seriam assim reconhecidos, na medida em que sempre foram inerentes ao núcleo

distintivamente humano. Daí a idéia, presente no discurso educacional humanista

e no da

sociedade do trabalho, de que a educação é o trabalho de fazer o homem

"reencontrar-se consigo mesmo", ou seja, encontrar aquele núcleo interno

"humano" que haveria em

cada um de nós.
Assim, a educação em Platão dependeu fundamentalmente de rememoração -

rememoração do "mundo das Idéias"

como está no célebre A República. Em Adorno, por exemplo, ela era auto-reflexão

crítica, isto é, um movimento de autodespertar da consciência que, até então,

estava sob o

império de processos de reificação, robotização e similares, como foi visto no

famoso texto Educação após Auschwitz, dos anos 1960. Aliás, para corroborar essa

análise

neopragmática, lembramos que a própria palavra educação guardou essa marca

metafisica. Em uma dada interpretação etimológica, educação vem do latim e-

ducere, que

significa conduzir (ducere) para fora (e). De Platão a Adorno, o papel da

educação, segundo uma interpretação inspirada no neopragmatismo, que sempre

teria estado

articulado à idéia de que há um Locus central, de consistência bastante distinta

do resto do campo subjetivo; e este locus deveria dar as cartas do caminho

correto do

processo educacional. Assim, efetivamente, esse processo poderia levar as

pessoas a serem capazes de ficar com o autêntico e descartar o falso, a ficar

com o bem em

detrimento do mal e com o belo secundarizando o feio. A educação, de Platão a

Adorno, não poderia ser nunca um processo completamente radical de

autoconstrução, mas

somente um processo que se limitaria a poder dar manifestação a esse núcleo

imutável residente no íntimo de cada um que é o íntimo de cada um.

35
AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO...

O neopragmatismo se acredita como traçando um perfil mais plástico do "bípede

sem penas", adequado a uma noção menos limitada do processo educacional.

O novo modelo das relações entre o eu e o mundo proposto pelo neopragmatismo é

construído teoricamente em três passos:

O primeiro passo é o de aplicação do holismo. Qualquer organismo - inclusive o

"bípede sem penas" - é trazido para um campo único e homogêneo. Assim, na

interpretação neopragmatista, não há dois mundos, como na descrição metafísica:

há um único mundo, natural, histórico e lingüístico, submetido a somente um tipo

de

relação: as relações causais do mundo natural. Assim, o "bípede sem penas"

apresenta-se como um organismo, um corpo, que vive em todos os seus aspectos e

situações, no

âmbito das regularidades e contingências do mundo, completamente desencantado e

naturalizado.

O segundo passo é o da adoção do ponto de vista da terceira pessoa e,

consequentemente, o abandono de qualquer método filosófico introspectivo ou

semi-

introspectivo, como o de Platão, Descartes e mesmo Kant e Rousseau. Assim, os

organismos e, portanto, também o "bípede sem penas são observados pelo seu

comportamento. Como o "bípede sem penas tem o comportamento particular de


lançar

barulhos e ruídos no ar, causando outros barulhos e ruídos, além de situações, o

que

deve ser observado é exata e particularmente esse comportamento

- o seu comportamento lingüístico. Fazendo isso, os eventos que ocorrem no

que se pressupõe ser o interior do "bípede sem penas" (para um terceiro

observador da
atividade comunicacional deste ser) devem seguir as leis de causação do mesmo

modo que os eventos que ocorrem no seu exterior, ou seja, "no mundo". Podem-se,

então,

observar e/ou postular elementos internos ao "bípede sem penas" que podem ser

chamados de causas internas da sua conduta. Tais causas, diz o neopragmatismo,

incluem

elementos que descrevemos através de tipos diferentes

36 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

de vocabulário - um vocabulário da ordem dos chamados eventos mentais e um

vocabulário da ordem do que chamamos físico. Assim, podemos falar em hormônios,

sinapses, múltiplas personalidades, pósitrons, crenças, desejos, estados de

ânimo, enfermidades.

O terceiro passo é o seguinte: o que se observa, insiste o neopragmatismo, é

que temos de manter uma neutralidade ontológica: as crenças e os desejos são

estados

fisiológicos mas expressos num vocabulário da ordem do mental, da mesma maneira

que certos relatos neurais são estados psicológicos descritos num vocabulário da

ordem

do físico. Isso não autoriza trocarmos os vocabulários, pois cada um é melhor

para uma função prática de descrição e não para a outra.

Feito tudo isso, ou seja, assumindo o "bípede sem penas" como imerso em um

quadro completamente natural e histórico, e tendo assumido a perspectiva do

observador

(a perspectiva da terceira pessoa), podemos, então, usar a palavra "sujeito" sem

medo (não precisamos mais pensar no sujeito como um ponto de conexão entre o

mundo

natural, que conhecemos, e o mundo transcendente e/ou transcendental, que só


alguns filósofos conhecem). Se quisermos manter a palavra "sujeito", poderemos

fazê-lo, mas

a definiremos, agora, como "a rede de crenças e desejos que devemos postular

como causas internas da conduta lingüística de um determinado organismo". Uma

definição

completamente naturalizada, pertencente ao movimento pós-virada lingüística, e

que dispensa qualquer metafísica. Afinal, do ponto de vista da terceira pessoa,

todo o

comportamento lingüístico do "bípede sem penas" é visto como a causação de

ruídos e barulhos no mundo, e tais ruídos provocam outros ruídos e outras

situações no mesmo

e único mundo (mundo ao qual o "interior" deste ser pertence integralmente); não

se poderiam portanto, estabelecer hierarquias metafísicas ou epistemológicas

sobre esses

ruídos, podendo-se apenas chamá-los de jogos de

37

AS TEORIAS EDUCACIONAIS NA MODERNIDADE E NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO...

linguagem que têm utilidades diferentes. Por exemplo, o jogo de linguagem da

Física pode ser muito bom para falar de uma maçã que está na nossa frente, sob o

ponto de

vista do microcosmo da matéria; chamaríamos, então, essa maçã de "um conjunto de

átomos". Mas para comê-la, nós a solicitaríamos ao vendedor através de um jogo

de

linguagem que nada tem a ver com "conjunto de átomos", mas apenas com "maçã".

Mas se a comunicação é assistida por um terceiro observador, o ruído "maçã" não

pode
ser hierarquizado metafísica e epistemologicamente em relação ao ruído "conjunto

de átomos". Em razão disto não se pode afirmar que um jogo de linguagem "diz

mais

sobre a realidade que o outro". Um conjunto de átomos chamado "maçã", como os

físicos a descrevem, não é nem mais nem menos real do que "maçã", o nome de uma

fruta

para o vendedor de maçãs (e também para os físicos, quando eles saem do

laboratório e comem uma maçã" - aliás, duvido que eles consigam ter a fome

saciada com um

"conjunto de átomos").

O sujeito assim considerado, ou seja, tomado como uma rede de crenças e desejos,

os quais postulamos como causas internas de sua conduta, é, certamente,

homogêneo.

Suas crenças e desejos diferem entre si única e exclusivamente por graus e não

por espécie. Nenhum sujeito individual, portanto, deteria crenças e desejos tão

especiais,

capazes de formar outras crenças e desejos, sem terem sido, por sua vez, também

formados por crenças e desejos, ou sem terem sido tocados de alguma maneira. O

lugar

dessas crenças especiais, o "eu nobre" platônico, ou o locus central do sujeito

neokantiano, desaparece completamente. Então, nesta concepção, a educação ganha

uma

incrível força. Uma força jamais vista. Ela é tomada como um processo sem

limites - o processo pelo qual podemos, infinitamente, nos redescrever e, assim,

construirmo-nos

e reconstruirmo-nos indefinidamente. No neopragmatismo cai por terra a idéia de

fazer da educação o processo de nos reencontrarmos com nós


38 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

mesmos, a idéia platônica de nos vermos novamente diante daquilo que vimos no

"mundo das Idéias", ou a idéia tanto rousseauniana quanto adorniana de fazer

emergir um "elemento íntimo", bondoso e correto, que estava abafado por


mecanismos sociais

ou psicossociais - a educação como desideologização, desalienação etc. Assim, no

neopragmatismo, a educação deixaria de ser tomada como um processo de eficácia

duvidosa, que deveria, sempre, vir de chapéu na mão pedir à filosofia, ou às

ciências da

educação, "fundamentos" (metafísicos, epistemológicos, científicos etc.). A

educação poderia, então, assumir o sentido que Dewey lhe conferiu: unicamente,

um processo de

crescimento contínuo. Podemos empurrar esse crescimento para um lado ou para o

outro - isso dependerá de nossas redescrições, de nós mesmos e do mundo (da

sorte, em

grande medida). Nossas redescrições são, portanto, construtoras de vocabulários

de deliberação moral e política de transformação social. A educação, no

neopragmatismo,

ganha uma conotação que depende menos da filosofia, tradicionalmente falando,

passando a ser uma intervenção discursiva nitidamente política. Neste caso, a

didática

enquanto um campo que deve preparar pessoas para "organizar e otimizar processos

de ensino-aprendizagem", pode olhar para a filosofia e para as ciências da

educação sem

solicitar fundamentos - mas como atividade colaboradora em atos lingüístico-

políticos de redescrição de nós, por nós mesmos, e do mundo, por nós mesmos.

39
CAPÍTULO II

As teorias educacionais e as didáticas

na modernidade e pós-modernidade

Herbart, Dewey, Paulo Freire e a postura pós-narrative turn

TENDO EM MENTE O PANORAMA GERAL exposto no item anterior, passo aos


principais

modelos de teorias educacionais dos tempos modernos e contemporâneos, e às

possibilidades das teorias educacionais e didáticas no mundo pós-moderno.

A maioria dos livros que dissertam sobre didática é feita a partir do que eu

chamaria de pensamento classificatório. Coloca várias tendências e correntes em

didática e,

obviamente, finaliza com a tendência que o autor classificaria como

"correta". Vários textos sobre o assunto, produzidos na década de 1980, no

Brasil, na onda do que chamei de "marxismo pedagógico ou pedagogicista"2

seguiram esta

fórmula e, não raro, criaram um público que, ao ouvir falar de didática (ou

mesmo de filosofia da educação!), espera exatamente esse tipo de comportamento:

um rol de

tendências seguido por uma proposta "superadora". A meu ver, esse tipo de

trabalho, que veio na esteira de uma vasta produção de teses geradas nos

programas de pós-

graduação em Educação durante os anos 1980, atrapalhou mais a discussão em

teoria educacional e didática do que ajudou. Tratava-se de trabalhos

rodapé
2 Em minha tese de livre docência, nomeei Dermeval Saviani, em virtudes e

defeitos, como o mentor maior desse tipo de marxismo, nos anos 1980: Educação e

razão histórica. São Paulo: Cortez, 1994.

40 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

produzidos por um pensamento classificatório envolto em marxismo.

O roteiro aqui é outro. Serão apresentados somente três grandes paradigmas

(no sentido de Kuhn) de teorias da educação e, adicionada a eles, a descrição de

um

procedimento pedagógico que poderia ser visto como típico de uma das

possibilidades da consciência pós-moderna, mas que devido à sua pouca

consistência interna, talvez

não possa ser chamado de teoria educacional. Aliás, dado as próprias

características do discurso pós-moderno, talvez essa postura nunca venha a poder

se configurar como

uma verdadeira teoria educacional. Todavia, para efeito comparativo, eu a

tomarei sob a forma de cinco passos e lhe atribuirei, forçadamente, um estatuto

de teoria

educacional. Inclusive irei denominá-la "teoria educacional pós-moderna" ou

"teoria educacional pós-narrative turn" (afinal, há vários professores, no

Ocidente, hoje em

dia, trabalhando dentro dessa Linha) .~

As teorias educacionais aqui desenvolvidas são a dos seguintes autores: o alemão

J. E Herbart, o norte-americano John Dewey, e, o brasileiro Paulo Freire. Por

sua

vez, o procedimento pedagógico pós-moderno está configurado no que chamo de

narrative turn ("virada" em favor das narrativas), e se pudesse estar ligado a

algum
pensamento seja em filosofia seja em filosofia da educação, estaria, a meu ver,

articulado às contribuições de Richard Rorty e Donald Davidson. Abaixo, segue um

quadro,

que visa estabelecer um elo, ainda que nem sempre possível de ser tomado ao pé

da letra, entre os complexos discursivos analisados no item anterior e as

teorias da educação

e didáticas aqui apresentadas.

rodapé

Entre outros artigos que exemplificam essa postura, o leitor poderá localizar

tanto o meu texto quanto o texto de Nick Burbules, no livro O que é filosofia da

educação? Rio de Janeiro: DPA, 2000. Poderá, também,

consultar: BLAKE, NIGEL e outros. Thinking again - education afterpostmodernism.

Londres: Bergin & Garvey, 1998.

Pág. 41

As teorias educacionais

humanistas são muitas. Escolhi a de Herbart porque é a forma pela qual o

humanismo se

cristalizou, em termos pedagógicos, no século XIX, já num período avançado da

sua trajetória. Parece que Herbart apresenta a teoria educacional humanista em

sua forma

mais acabada. Escolhi J ohn Dewey não exclusivamente porque foi o maior e mais

influente filósofo e teórico da educação do século XX, mas também porque

transitou entre

valores humanistas, princípios da sociedade do trabalho e, ao mesmo tempo,

aderiu às críticas ao industrialismo e às injustiças dessa mesma sociedade, no

ambiente onde o

industrialismo mais se desenvolveu: os Estados Unidos. Escolhi Paulo Freire


porque substituiu John Dewey, no final do século XX, tanto no pertencimento às

diretrizes da

sociedade do trabalho quanto nas críticas a esta, mas levando em conta os povos

pobres, os desenraizados, e a partir dos fenômenos de urbanização e fim do

neocolonialismo,

no espaço emergente do que recebeu o nome de Terceiro Mundo. Além disso,

sincreticamente, muito do vocabulário de Paulo Freire ainda se mantinha no tom

humanista,

dando características bastante amplas ao seu discurso - não por acaso, mesmo

falando a partir do Terceiro Mundo, ele foi ouvido em todo o Ocidente. Por fim,

tento

estabelecer o que seria uma postura pedagógica de professores

42 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

mais envolvidos com o clima pós-moderno. Não se trata de dizer que esta postura

é melhor do que as anteriores, mas apenas de constatar sua existência num

discurso

pedagógico que passa, acentuadamente, pela importância de considerarmos os

saberes como sendo saberes narrativos; estes, para vários professores, não podem

mais ser

hierarquizados epistemologicamente e, portanto, se apresentar no ambiente da

escola sob a forma hierárquica moderna, isto é, com as ciências que consideram

que

"apreendem o real" tendo importância a priori sobre as narrativas ficcionais e

históricas. Além do mais, da maneira que Rorty e eu lemos Davidson, penso que

estamos

vivendo, na filosofia da educação, na teoria educacional e na didática, um


momento especial para a metáfora, segundo um entendimento não tradicional desta

palavra.

Assim, não cabe, em "teoria educacional pós-moderna", no veio da postura "pós-

narrative tum", uma reformulação explícita sobre o que são a criança (infância),

homem, o professor, os objetivos educacionais, etc. Todos esses elementos

próprios da didática, muitas vezes, são os mesmos que vigoraram em diversas

fases da

modernidade. O que realmente muda na adoção da teoria educacional pós-narrative

turn, é que ela constrói um discurso educacional que não depende de

epistemologia e

cuja filosofia da semântica possui um entendimento davidsoniano da metáfora -

este é seu grande trunfo e sua novidade (e sua despedida da ontologia).

Teorias educacionais modernas: Herbart, Dewey e Freire

O quadro abaixo explicita uma comparação entre o modelo de teoria

educacional humanista, em seus procedimentos didáticos, e o modelo de teoria

educacional

sob a influência dos valores da sociedade do trabalho, levando em conta também

os seus procedimentos didáticos.

43

AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS


MODERNIDADE

Para Herbart, o processo de ensino deveria cuidar da moralidade. Esse seria o

objetivo do ensino. A moralidade era, para ele, "liberdade, perfeição, boa

vontade, direito e

retribuição". Ela poderia vingar se o ensino fizesse do homem um ser


autodeterminado. Em suas palavras, "um homem bom comanda a si próprio". Em

termos

da psicologia, sua doutrina do interesse foi o ponto mais significativo, a

contribuição mais sofisticada e marcante e, depois, seu calcanhar de Aquiles. O

interesse seria uma

tendência íntima, que ocasionaria a retenção de um objeto de pensamento na

consciência ou o seu retorno a ela. Essa retenção e retorno ficariam sempre em

débito

para com as idéias (conceitos). As idéias, pela sua própria natureza, gostariam

sempre de voltar à consciência, se nela já tivessem estado alguma vez. Poder-se-

ia facilitar

o interesse fazendo presentes as idéias e estas, por sua vez, estariam presentes

através da maior freqüência e associação.

Herbart não admitia qualquer distinção entre instrução e educação. Sua doutrina

era a da "instrução educativa": quanto mais idéias claras e verdadeiras na

consciência,

mais teríamos uma criança e, posteriormente, um homem, com boa conduta.

44 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

Ou, nas palavras do próprio Herbart: "a disposição do coração (...) tem sua

fonte na mente (...), sentir e desejar são condições e, na maior parte,

condições mutáveis

de conceitos". Assim, fazendo da ética humanista (a autodeterminação para ser

bom) a finalidade da educação, e da psicologia, o meio (massas de

pensamento - idéias e conceitos - dirigem o interesse), Herbart fixou seus

procedimentos didáticos em cinco passos: preparação, apresentação, associação,

generalização e aplicação.
Os cinco passos de Herbart podem ser vistos no quadro abaixo:

Preparação

Momento em que as idéias passadas, relacionadas com a presente lição, são

trazidas para o centro das atenções. Assim, surge o interesse vital pelo novo

material e o aluno pode

estar preparado para dar atenção ao conteúdo da nova lição.

Apresentação

Momento da "clareza", ou seja, da apresentação nítida da idéia em termos os mais

concretos possíveis.

Associação

Momento de assimilação da idéia nova, o que ocorre na percepção da idéia nova

pela antiga. Momento de

comparação - diferenças e semelhanças entre o velho e o novo conteúdo,

preparando a indução.

Generalização

Momento em que o raciocínio é posto para trabalhar no sentido de sair do campo

do individual, e formular

Aplicação

Exercício do novo conhecimento, o que significa que toda idéia nova deve

constituir uma parte da mente funcional.

Como disse, o ponto central da teoria educacional de Herbart era a doutrina do

interesse. Ela se tornou seu calcanhar de Aquiles, quando a nova psicologia veio

negar qualquer teoria na qual o sentir e o querer fossem funções secundárias do

processo ideativo. Entre outros, John Dewey formulou isso de modo

exaustivo, podendo, então, ser comparado a Herbart, em termos de passos

psicológicos, psicopedagógicos e didáticos.

45 As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE
O raciocínio não funcionaria como Herbart apontou, mas, através de uma outra

seqüência, o que determinaria uma outra estrutura didática, como no quadro

abaixo:

1. Atividade e Os estudantes são colocados em atividade, pois é dela

pesquisa que emerge o primeiro passo da aprendizagem: a

consciência de uma dificuldade, de um problema, de

uma necessidade.

2. Escolha e/ou Os estudantes são instigados a examinar a situação, como

formulação de é próprio da mente humana, que, ao defrontar-se com

problemas um problema, analisa seus vários elementos, e localiza o

cerne das dificuldades e o fator de importância mais

3. Arrolamento O estudante é solicitado a fornecer elementos para a de dados

formulação de hipóteses.

4. Construção Professor e estudante formulam hipóteses. de hipóteses

5. Avaliação de As hipóteses são postas à prova, por experimentação direta

hipóteses e/ou ou indireta.

experimentação

Portanto, a seqüência do raciocínio e, ao mesmo tempo, do procedimento de

ensino-aprendizagem - valendo também para o procedimento de pesquisa - estaria,

para

Dewey, em oposição ao método de Herbart, na medida em que os interesses não

apareceriam senão quando temos uma dificuldade, um problema, uma necessidade. E

isto,

um tanto independentemente do quanto temos de idéias claras e nítidas sobre a

dificuldade experimentada.

Aqui, abro parêntese. Vários autores criticaram Dewey, dizendo que substituíra o

processo de ensino pelo processo de pesquisa, e Herbart, não. Então, Dewey


estaria

errado. Porém, errado estava quem pensou assim. E simples constatar que tanto

Herbart quanto Dewey derivaram suas didáticas a partir de suas

46 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

teorias a respeito do funcionamento psicológico. Ambos viram os homens, e a

criança em especial, como seres que pesquisam, e por isso, aprendem. O

problema é que Dewey queria mostrar que a pesquisa, era a mesma que o moderno

cientista de laboratório fazia, ou qualquer outro intelectual que seguisse

uma heurística, e que isso estava mais condizente com a modernidade do que a

maneira como Herbart via a mente atuando.

Mas não foi só nessas coisas que Dewey divergiu de Herbart e do seu projeto

humanista. Valorizou e, ao mesmo tempo, criticou a modernidade e, no seu

interior, o

industrialismo ou, dito em termos específicos, o capitalismo.

Vou ao ponto em que Dewey valorizou o industrialismo. Ele valorizou o mundo da

sociedade do trabalho na medida em que colocou a atividade e o esforço ativo

diante

de problemas como o ponto de partida da educação. Valorizou o mundo da sociedade

do trabalho no que este tinha de mudancista: sua teoria educacional, ao

contrário da de Herbart, não colocava um tipo fixo de homem a ser alcançado. A

sociedade do trabalho, como uma sociedade dinâmica, deveria estar se

transformando continuamente e, nesse sentido, Dewey viu a educação como "o

processo de reconstrução da experiência, dando-lhe um valor mais socializado

por meio do aumento das capacidades individuais". Assim, pode-se dizer, os cinco

passos didáticos de Dewey são, em verdade, seis passos: há um passo que é o

próprio processo: o aprender a aprender. Mais do que a conclusão de cada lição


do processo de ensino-aprendizagem, o que valeria a pena, é que ele estaria

treinando os indivíduos para a pesquisa, para o que seria o trabalho natural da

mente - resolver problemas novos. Ser um bom ser humano, para Dewey, não era ser

alguém com erudição, mas alguém capaz de resolver problemas. Daí que, neste

aspecto, Dewey não podia divergir daqueles que viam o seu método de ensino

- o ensino ativo - como estando em comunhão com a idéia de que o homem é

naturalmente ativo,

47

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE

em uma palavra, transformador. Em termos socioescolares: alguém que deveria se

tornar integrado socialmente na medida em que continuasse a ser ativo. O adulto

continuaria a ser ativo na medida em que, enquanto adulto, fosse industrioso,

trabalhador

- um profissional.

Agora, a sua crítica à sociedade do trabalho. Dewey, como já adiantei, não foi o

filósofo da sociedade do trabalho, e, sim, "o filósofo da democracia". Sabia

muito bem que o industrialismo e o capitalismo poderiam corroer o espírito de

aventura que a sociedade do trabalho colocava, em contraposição aos tempos

estagnados da mentalidade pré-moderna, feudal e medieval.

O problema da teoria educacional de Dewey foi, então, o de poder conciliar o

dinamismo da sociedade do trabalho com a sua própria e eterna capacidade de

interferir neste dinamismo sufocando a democracia. Sem democracia não haveria

educação, dado que a democracia é a diversidade, e, a educação, para

Dewey, é o processo de crescimento para a obtenção de possibilidades de novas

experiências. Por isso mesmo, o filósofo norte-americano, contemporâneo de

Dewey, Sidney Hook, escreveu, em 1939, no livro John Dewey - an Intellectual

Portrait:
A situação histórica, hoje, na América, é que os educadores têm um número de

tarefas importantes para realizar. Uma vez que as condições efetivas do ensino

dependem, em larga medida, do que acontece fora da sala de aula, os educadores

devem se opor vigorosamente diante de qualquer medida que tenda a restringir ou

proibir seus direitos civis como membros da comunidade. A crença de que os

professores são ou deveriam ser eunucos políticos é de morte difícil, numa

sociedade onde

eles são selecionados, entre outras razões, pelo fato de serem considerados como

estando "a salvo". Ao mesmo tempo, devem combater a introdução de qualquer


dogma

que determine o conteúdo da instrução. Alguns desses dogmas são, obviamente,

políticos, especialmente onde aparecem vestidos com as assim chamadas verdades

"nacionais", raciais ou classistas

48 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

Alguns são filosóficos, começam a partir de aparentes truísmos e terminam como

absurdos perigosos. Os truísmos consistem sempre em declarações sobre a

desejabilidade da ordem e da razão nas coisas humanas. As declarações são

inegáveis porque seus principais termos não estão definidos ou, quando estão,

revelam-se

como tautologias. Os absurdos perigosos são encontrados em deduções cuja

pretensão é a identificação da ordem como um conjunto particular de crenças - a

ordem

particular e as crenças particulares de uma era longínqua e passada cuja

aceitação seria bem útil para algum partido ou igreja, no presente. A evidência

dessas crenças

não é tirada de investigações empíricas, pois estas podem, resultar somente em


opinião sem valor, mas da introdução de truísmos sobre a necessidade de ordem e

razão, no abstrato. (...)

O comportamento imediato da teoria educacional de Dewey é o mesmo de sua

teoria moral e social. Elas clamam por uma dedicação à luta, em termos práticos,

pela

ampliação da democracia, por meio de métodos da inteligência, ou seja, métodos

de investigação científica que vençam o princípio da autoridade para resolver

problemas humanos, até agora exercido pelo dogma, sagrado ou não, pelo poder

econômico e pela força física.

Hook estava certo na avaliação da teoria educacional de Dewey. E seu acerto

significa o momento propício para apontar o erro de muitos críticos, em

particular, no Brasil, que procuraram ver em Dewey alguém que teria levado o

culto à técnica e à prática cega - certamente frutos da sociedade do trabalho -

para o âmbito

educacional, esquecendo-se da educação como elemento político. No Brasil dos

anos 1980 -já declarei isto em outros textos:4 tanto os educadores considerados

de direita

(José Mário Pires Azanha, à frente)

O leitor poderá encontrar essas minhas críticas de um modo mais detalhado,

inclusive do ponto de vista da filosofia, entre outros, na coletânea: MONARCHA,

CARLOS. História da educação brasileira -formação do

campo. Ijuí: Editora da UNIJUI, 1999.

49

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE
quanto os que se auto-reivindicavam como pertencentes àesquerda marxista (José

Carlos Libâneo e Dermeval Saviani àfrente) ,~ fizeram a leitura de Dewey -

justamente o

filósofo da democracia - como um "tecnicista" ou alguém que teria dado margem

para o "tecnicismo" em educação. Mas a fala de Hook é adequada: a teoria

educacional de

Dewey era política, em favor da ampliação da democracia. Rorty, por sua vez,

chega a dar um passo a mais que Hook, levando em conta essa passagem final do

trecho citado:

para Rorty, Dewey acreditava menos na ciência do que Hook pensou; a ciência

seria só um instrumento negativo nas mãos de Dewey para fustigar os dogmas.

Se Levarmos em conta o que Hook e Rorty escreveram deveremos, então, considerar

com olhos atentos a postura de Paulo Freire: sendo aquele que enfatizou

a educação como ato político, teria sido mais herdeiro de Dewey do que ele mesmo

quis admitir em alguns momentos de sua vida, principalmente naqueles em que o

liberalismo e a postura democrática de Dewey estavam em baixa, no Brasil. Mas

Paulo Freire, no final da vida, declarando-se seguidor de Anísio Teixeira,

redimiu-se e mostrou uma face mais justa de sua

rodapé

Avalio que Saviani e Azanha interpretaram Dewey, e todo o movimento de renovação

educacional, como dando margem ao que eles chamaram de tecnicismo em


educação,

por causa de uma compreensão aligeirada

do pragmatismo (talvez um preconceito contra a filosofia norte-americana -

conhecemos o xenofobismo de "direita" e de "esquerda" no mundo todo, e, no

Brasil, não foi diferente). Já no caso de José Carlos


Libâneo, avalio que se deixou levar pelas palavras - e não pelo espírito - do

livro de Vanilda Paiva, Educação popular e educação de adultos, que chamava os

pioneiros da educação nova de "técnicos". Ora,

Vanilda Paiva assim o fez para mostrar que eram especializados em estudos

educacionais, e não para dizer, como interpretou Libâneo, a meu ver erradamente,

que tinham um pensamento estreito ou despolitizado.

O "pioneiro da educação nova", Anísio Teixeira, foi, no Brasil, o filósofo da

democracia, a exemplo do seu mestre, Dewey, em todo o Ocidente.

50 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

teoria educacional: sua herança em relação ao pragmatismo norte - americano. 6

Paulo Freire: educação libertadora versus educação bancária

Paulo Freire, como Dewey, via a educação imbricada na política. Ao mesmo tempo,

em termos de didática, aceitou de Dewey os pressupostos do ensino

ativo. Todavia, diferentemente de Dewey, Paulo Freire construiu uma teoria

educacional não a partir de um lugar que caminhava em direção ao Welfare State

keynesiano,

mas a partir de um descaminho de um possível Welfare State que se insinuou em

vários países do Terceiro Mundo, mas que, até hoje, não se tornou realidade.

Por essa razão, a teoria educacional de Paulo Freire tornou-se uma outra face,

também com momentos bastante críticos, do industrialismo e das diretrizes

mais perversas da sociedade do trabalho. Os passos didáticos de uma teoria

educacional inspirada na prática de Paulo Freire só podem ser entendidos na sua

concorrência com o que ele qualificou de "educação bancária"

- talvez uma primeira tentativa, depois de Dewey, de identificar o que estaria

ocorrendo com a pedagogia e a didática na derrocada do humanismo e na


emergência da sociedade do

rodapé

Paulo Freire, em determinado momento, gostava mais de ser identificado

como marxista do que como alguém que tinha a ver com os métodos pedagógicos de

Dewey. Como homem político (que, inclusive, chegou

a ocupar cargos na política brasileira, a exemplo de secretário da educação do

Partido dos Trabalhadores, na prefeitura de São Paulo durante a gestão

Erundina), Paulo Freire caminhou ao sabor dos ventos

ideológicos do seu país e dos países onde esteve. A aproximação com o marxismo

de tipo jacobinista foi uma fase de sua vida que acabou nublando seu maior

comprometimento com a herança pragmatista. Numa de

suas últimas entrevistas, em Nova York, Paulo Freire elogiou abertamente Anísio

Teixeira. No livro Paulo Freire -urna biobibliografia, publicado pela Cortez, em

1996, há uma clara admissão das ligações entre

Paulo Freire e Dewey. Os autores do livro, todos discípulos de Freire, àquela

altura, já não precisavam se desculpar por serem "escolanovistas", e, portanto,

não mais precisaram ocultar a ligação saudável entre Paulo

Freire e o americanismo.

51

AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE

trabalho. Algo que, no item anterior, levamos ao limite, expondo as críticas da

Velha Escola de Frankfurt à educação transformada em mero adestramento. Nos

termos do que afirmei anteriormente, diria que, para Paulo Freire, a educação

bancária era o adestramento do corpo, a idéia de que, sendo o homem "corpo", é


objeto manipulável, uma caixa onde se depositam saberes. Como saberes nunca

devem ser depositados, o que se deposita, na verdade, são coisas, dogmas.

Em seus primeiros escritos, Paulo Freire via o homem como possuindo uma vocação

para sujeito da história e não para objeto, mas, nas condições do Terceiro

Mundo,

esta vocação não estaria se explicitando, dado que as populações mais pobres

teriam sido vítimas de uma mentalidade paternalista e autoritária, herança do

colonialismo,

neocolonialismo e escravismo. Fazia-se necessário, segundo Freire, romper com

isso, "libertar o homem popular" de seu tradicional mutismo. A educação deveria,

então,

folar uma nova mentalidade, trabalhando para a "conscientização do homem" de

cada país do Terceiro Mundo, frente aos seus problemas nacionais, e engajar este

homem na luta política.

Tal concepção denunciou a educação vigente como colaboradora do mutismo do


povo.

A escola oficial, além de autoritária, estaria a serviço de uma

estrutura excessivamente burocratizada e anacrônica incapaz de colocar-se "ao

lado dos oprimidos". Procurando identificar-se com os oprimidos - aqueles que

"não têm voz na sociedade, mas que, obviamente, ao contrário do que diziam as

elites, "também produzem cultura" -'Freire buscava uma educação comprometida

com a solução dos problemas da comunidade. A idéia de comunidade permaneceu

então, como um ponto de partida e um ponto de chegada da teoria educacional

freireana (como em Dewey e Anisio Teixetra). Daí as teses do ensino articulado

aos regionalismos ao comunitarismo, aos costumes e à cultura do local de vida

da população a ser educada. Diga-se de passagem, que em alguns

52 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS


momentos, isso seguiu por vias radicais, causando problemas de interpretação, no

Brasil. Neste país, ao contrário dos Estados Unidos, a história da escola fez-se

através da ligação das elites com o Estado, seguindo os modelos francês e

alemão. Nos Estados Unidos, a escola sempre foi paroquial, comunitária. Paulo

Freire, como Anísio, no passado, adotando o comunitarismo, nem sempre forneceu

ao Brasil uma pedagogia capaz de ter êxito em alguns lugares com total falta de

tradição comunitária (embora em alguns locais, com certa tradição no

comunitarismo, colônia de imigrantes, por exemplo, ela tenha caminhado de modo

mais fácil, como foi o caso do Rio Grande do Sul).

Na visão de Paulo Freire, a industrialização e a urbanização, enfim, o

progresso, trouxeram a preocupação com as populações migrantes - as levas de

pessoas que deixavam a vida rural e migravam para as cidades, ficando, então, à

mercê da "demagogia dos políticos" e da "manipulação através dos meios de

comunicação de massa". Contra tal manipulação, Freire propôs a "desalienação do

povo" através da instauração de uma "pedagogia do diálogo", que deveria ter por

regra a horizontalidade entre educador e educando. Tal diálogo, em suas próprias

palavras, deveria ser o "diálogo amoroso - o encontro de "homens que se amam e

que desejam transformar o mundo". Este diálogo deveria partir de situações

vividas pelo educador e pelo educando, na comunidade deste último. Depois,

deveria ser aprofundado através do esforço intelectual da "problematização",

colocando, assim, os educandos em condições de alcançarem uma "visão critica"

de suas realidades. Esse processo, na sua completude, recebeu a denominação de

"conscientização".

A conscientização seria a arma contra a "educação bancaria"


- a educação defensora do status quo vigente, calcada numa "ideologia de

opressão" que, segundo Freire, considerava o aluno como alguém despossuído de

qualquer saber e, por isso mesmo,

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE 53

destinado a se tornar depósito dos dogmas do professor. Assim, como Dewey, Paulo

Freire visou à educação contra o dogmatismo. Também como Dewey, recusou a idéia

de uma educação onde os alunos fossem passivos diante da ação pedagógica. Contra

o que seria a educação bancária, Paulo Freire elaborou um procedimento que, para

efeito de comparação com Herbart e Dewev, ilustro sob a forma de cinco passos

didáticos:

Vivência e pesquisa: Momento em que o educador vive, realmente,

na comunidade do educando, participando de

sua linguagem e de seus problemas. Neste passo,

Paulo Freire quer que a dicotomia educador-

educando desapareça, dando lugar ao educando-

educador-educador-educando. E neste momento

em que o educador começa a recolher o que serão

os "temas geradores" ou "palavras geradoras".

Eleição dos temas geradores: A partir da vivência, o educador recolhe temas

e palavras e passa a organizar junto com os

educandos os "círculos de cultura", o grupo onde

aconteceria o "diálogo amoroso , humilde,


horizontal entre educando-educador e educador-

educando. O "método dialógico" aqui empregado,

consistiria na explicitação do relato dos

participantes a respeito de suas experiências de vida,

suas dificuldades e problemas. O "animador" do

"centro de cultura", uma vez tendo vivido na

comunidade, estaria apto a resgatar, nesse momento,

os "temas geradores" e as "palavras geradoras", já

previamente "sentidos" por ele próprio na

comunidade, como que espelhando dificuldades.

"Problematização através do diálogo ": A "problematização" implicaria a idéia de


que "ninguém educa ninguém", e também de que

ninguém se educa a si mesmo", mas "os homens se

educam em comunhão", "mediatizados pelo

mundo". Como escreveu Paulo Freire: a

problematização se faria, assim, através do esforço

pelo qual educadores e educandos iriam

percebendo, criticamente, como "estão sendo no

mundo com que e em que se acham".

"Conscientização" : Através da "problematização", educador-educando e educando-

educador poderiam fixar o ponto de partida para a "conscientização". Caberia ao

educador-educando problematizar a visão de mundo dos educandos-educadores que,

por uma série de razões, poderiam não estar aptos a entender a realidade

criticamente. A "conscientização" exigiria o "pensar crítico", capaz de procurar

a "causalidade profunda" dos acontecimentos, fazendo o "desvelamento da

realidade".

Ação social e política: A "conscientização" se completaria na ação social e

política - na "práxis social" de busca de "libertação de todos os homens da opressão".


Uma teoria educacional e uma didática pós-modernas: a educação pós-narrative turn

A seguir, apresentarei as quatro teorias educacionais: a de Herbart, Dewey,

Freire e a "teoria educacional pós-moderna" ou, melhor, "pós-narrative turn".

Feito isso, irei explicar os passos desta última.

Hebart: Preparação ,Apresentação e Associação

Dewey: Atividade, problemas e dados

Freire: Vivência, Temas geradores e ProbLematização

Pós-Narrative tum: Apresentação de problemas , Articulação entre os Problemas

Apresentados e os problemas da vida cotidiana, Discussão dos problemas através de


narrativas tomadas sem hierarquização epistemológica

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE 55

Generalização: Aplicação

Hipóteses: Experimentação

Conscientização: Ação política

Formulação de novas narrativas: Ação cultural, social e política

Os passos que seguem dizem respeito à postura pós-moderna ou à teoria

educacional pós-narrative turn. Seu ponto central, em termos de filosofia da

educação é a valorização da narrativa e, no seu interior, o uso da metáfora -


segundo o novo entendimento dado por Davidson, como Rorty e eu o lemos.

Passo 1. O início do processo ensino-aprendizagem, segundo a postura pós-

moderna, se dá pela apresentação direta de problemas e situações problemáticas,

ou mesmo situações curiosas e difíceis. Mas que tipo de problemas e/ou situações

problemáticas? Problemas culturais, éticos, étnicos, de convivência entre

gêneros, mentalidades e modelos políticos diferentes, desafios ecológicos,

problemas de pauperização de determinados setores sociais, de violência contra

os mais fracos, etc. Esses problemas são apresentados pelo cinema e pelo romance

passando pelo conto, comic books, música, poesia e teatro, reportagem

jornalística, novos meios de comunicação como a Internet e apêndices etc.

Todavia, há de se lembrar, esses meios serão tomados como mais do que simples

veículos:

serão levados a sério como nunca, pois os problemas não existiriam sem eles.

Passo 2. Na seqüência, o processo ensino-aprendizagem visa relacionar as

situações problemáticas e os problemas propriamente ditos com os problemas da

vida cotidiana dos estudantes, dos seus avós e pais, enfim, do seu grupo social

ou familiar ou de amigos, e até mesmo do seu país - presente, passado e futuro.

Aqui, o estudante é convidado a ser um personagem da narrativa contada no passo

anterior e, ao mesmo tempo, um filósofo, isto é, segundo Nietzsche, um juiz dos

desdobramentos

56 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

internos da narrativa. Segundo Richard Rorty, em discussão com Carol Nicholson:7

há um momento na educação, ainda em sua fase puramente socializadora, no qual já


podem ir ocorrendo a individualização e a educação para a liberdade - isto se dá

quando as crianças e jovens são convidados a ver suas vidas individuais e

cotidianas inseridas numa espécie de "romance nacional". Se o estudante aprende

a ver sua vida inserida em um romance nacional pode, ele próprio, desejar ser um

dos heróis nacionais que darão continuidade à luta pela liberdade, como fizeram

os heróis do passado (toda cultura possui seus heróis libertários). O problema,

diante das crianças, é saber distinguir quem é o herói: seria saudável, diz

Rorty, que as crianças aprendessem que ser americano é ser menos parecido com

John Wayne do que com Martin Luther King. Eu diria, para o caso brasileiro:

seria melhor que as crianças brasileiras gostassem mesmo de Tiradentes, e que

não levassem ao extremo a idéia do Duque de Caxias como necessariamente o único

e grande herói nacional. Seria melhor que as crianças brasileiras gostassem

mesmo de gente como Florestan Fernandes enquanto deputado, mas que fossem

céticas quanto à utilidade de um Jânio Quadros, de um Castelo Branco, de um

Maluf ou de um "Ratinho" (que foi deputado e passou a ser animador de TV).

Passo 3. O terceiro momento é o de redescrição das narrativas nas quais os

problemas estavam inseridos; dá-se através de outros tipos de narrativa - de

ordem ficcionaL, histórica, científica e filosófica. O importante é que o

estudante perceba que essas narrativas que redescrevem as primeiras não estão

hierarquizadas epistemologicamente. Não há uma narrativa que apreende a

realidade como ela é. Mas há, em cada uma, jogos de

rodapé

7Traduzi os textos do debate educacional de Rorty e Nicholson, e outros, nos

volumes 1 e 2 de Filosofia, sociedade educação - publicação do Grupo de Estudos e


Pesquisas em Pragmatismo e Filosofia Americana - (wwwfilosofia.pro.br).
As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-
MODERNIDADE 57

linguagem distintos que estão aptos, pragmaticamente, para uma coisa e não para

outra. Se quero saber como uma nave espacial funciona, então, um bom vocabulário

é o dos físicos, mas se quero dizer para minha namorada como a nave atravessa os

céus, numa noite estrelada, creio que seria melhor um vocabulário ficcional -

acho que seria pedante e inútil para o namoro a explicação da Física! Penso que,

neste caso, deveríamos ir de Júlio Verne! Mas o erro seria achar que, no segundo

caso, estou no campo metafórico, e no primeiro, no campo literal, e que ambos os

campos estão nitidamente delimitados. Trata-se de vocabulários incomensuráveis

cuja distinção se dá pela utilização lingüística que o "bípede sem penas" faz

deles. A redescrição de um filme ou de uma história em quadrinhos não

necessariamente precisa ser outro filme ou outra história em quadrinhos, pode

ser um texto filosófico ou científico - até é bom que seja assim, contanto que

não façamos a sociologização de Machado de Assis, como fez uma geração de

marxistas, denegrindo a obra.

O importante é o entendimento de que essa redescrição não está ali para

desvendar o que havia de essencial e de verdadeiro na primeira narrativa. Não há

uma chave para se chegar mais próximo da realidade, como não há uma chave para

desvendar a interpretação correta. Aliás, neste passo, há uma maior distinção

entre a didática pós-moderna e a didática herdeira das tendências críticas como

a de Paulo Freire. Trata-se da desvinculação entre o pensamento educacional pós-

moderno e o movimento crítico em educação. A idéia de crítica, no seu sentido

forte, pressupõe a idéia metafísica de que existiria uma realidade última capaz
de ser desvelada, justamente, pela crítica. Em razão disso, educação, nessa

perspectiva, seria "iluminação", "desideologização", "desalienação" etc. (a

catequização invertida!). Na tradição "crítica", a educação sempre foi derivada

do platonismo: sempre esteve ligada à idéia da fuga do prisioneiro da caverna

que, ao ver a luz do sol, encontra a "verdadeira

58 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

realidade" e se livra do "mundo das sombras" - como na Alegoria da Caverna, que

está na República, de Platão. No movimento pós-moderno, esse chão metafísico é

considerado inútil, pois todas as narrativas são distinguíveis não por estarem

umas mais, outras menos enganchadas no "mundo", mas sim, por serem umas mais

úteis, e outras menos úteis segundo nosso expediente. Dispensa-se a ontologia,

portanto. Não há uma narrativa que tocaria o chão ontológico mais que outra.

Assim, a educação, na didática pós-moderna, fornece passos através dos quais

professores e alunos podem realmente caminhar juntos, aplicando as narrativas a

uma agenda de expedientes construída em comum, sem que o professor tenha a

missão de "desalienar" o aluno.

Passo 4. Neste estágio, o estudante é convidado, ele próprio, a propor suas

narrativas de redescrição das narrativas em que estavam inseridos os problemas,

e a discutir a sua pertinência com os colegas, com o professor, com os livros e

outros meios. Este é o momento da criação, da imaginação e, portanto, pode se

tornar o auge do processo de surgimento de metáforas. A metáfora - isto é

importante - é o momento da quebra da comunicação. Ela interrompe o fluxo


comunicacional e, mesmo não tendo mensagem alguma (pois, é isto mesmo que ela
é:

algo sem mensagem), deve fazer tremer a linguagem estabelecida. Agora, se ela

vai provocar situações boas ou ruins, vai depender única e exclusivamente de

como será adotada em um jogo de linguagem, ou como forjará um novo jogo de

linguagem. O professor pós-moderno é alguém atento ao momento metafórico. Se for

esperto, pode conseguir levar as metáforas para caminhos interessantes, bons -

em favor da democracia. Mas que fique claro: nem sempre a metáfora acontece; por

isso, nem sempre estamos no passo 4 quando queremos estar. A metáfora pega-nos

de surpresa.

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE 59

Passo 5. Por fim, o que se tem, é a coleta das idéias e sugestões vindas das

narrativas e suas redescrições, para a condução intelectual, moral e estética,

no campo cultural, social e político de cada um. Cabe aqui, a ação moral e

pessoal, mas, também, a ação política organizada, inclusive a ação político-

partidária. No entanto, é necessário lembrar que a própria formulação de uma

narrativa e sua divulgação, a criação de uma nova metáfora que, não só garanta

direitos democráticos, mas invente outros direitos, já é uma ação política.

Redescrever é um ato que afeta a polis. Talvez o único ato que sempre fez o

mundo mudar, quando ele mudou!

Se os professores pós-modernos e os teóricos da educação quiserem uma

justificativa para esses procedimentos, vão facilmente encontrá-la, no passado,


em germe, nas formulações da filosofia da linguagem e do pragmatismo de

Nietzsche e de William James. Afinal, foram eles os pioneiros na argumentaçao

que borrou a nítida linha que separava o que é metafórico do que é literal. Foi

Nietzsche quem, no final do século XIX, colocou a linguagem num plano articulado

ao plano social, e definiu a própria verdade como metáfora. Mas se os

professores pós-modernos e os teóricos da educação quiserem elaborar melhor uma

filosofia da educação adequada aos procedimentos dos cinco passos acima, e para

tal, quiserem utilizar a linguagem atual da filosofia, penso que a leitura dos

textos de Donald Davidson é o suficiente. Principalmente, na formulação dada por

Richard Rorty.

O segredo aqui, para entendermos a postura pós-moderna, a teoria educacional

pós-narrative tu'rn, é perguntarmos: o que e metáfora, para Davidson?

Se tomamos a metáfora na sua definição tradicional, veremos que é apenas a

cobertura de um bolo. Seria a maneira de descrever as coisas de uma forma tal

que, uma vez clarificada, analisada, traria a verdade, o essencial. A metáfora

teria uma

60 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

mensagem a ser decodificada, que poderia ser apreendida pela investigação da

semântica, o que deixaria evidente o núcleo literal que toda metáfora

esconderia. Assim, a metáfora teria um conteúdo cognitivo e poderia ser

explicada.
A objeção de Davidson a essa formulação aparentemente tranqüila da metáfora é

que a metáfora não pode ser parafraseada. E que se quisermos explicá-la,

certamente estaremos sujeitos a fazer alguma construção teórica sofrível, de

gosto duvidoso. Sendo assim, Davidson se vê na obrigação de entender a metáfora

para além dos cânones tradicionais. Para ele, como Rorty e eu o lemos, a

metáfora não é uma mensagem, não tem um conteúdo cognitivo a ser decodificado.

Ela não é um outro modo de dizer as coisas". Ela é, sim, um ato inusitado no meio do
processo comunicacional que, embora tenha efeitos de grande impacto sobre o

ouvinte, não pretende dizer-lhe coisa alguma. E claro que uma metáfora, depois

de algum tempo, se for saboreada e não cuspida e esquecida, pode adaptar-se a um

jogo de linguagem existente ou forjar um novo jogo de linguagem e, então, se

literalizar, ou seja, ganhar valor de verdade. Aliás, diga-se de passagem, como

Rorty lembra, nossa linguagem é, na maioria das vezes, um monte de metáforas

mortas. Mas, num primeiro momento, a metáfora não é uma explicação nem tem valor

de verdade, na medida em que não está nos quadros do jogo semântico tradicional.

Por isso mesmo, sua utilização numa conversa é muitas vezes espontânea, e quem a

utilizou pouco sabia o que significava (pois ela não significava!). Duvido que

Galileu soubesse o que estava dizendo - da mesma forma que nós o sabemos hoje -

quando falou diante dos padres da Igreja, "a Terra se move". Assim, duvido que o

Movimento Negro pudesse, no seu auge, explicar o que era Black is beautiful. Do

mesmo modo que agora seria uma péssima idéia tentar explicar o que é Gay is

good. Não há paráfrase nem explicações; qualquer tentativa neste sentido

destruiria

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE 61
rapidamente a metáfora e todo o movimento de impacto que causa na mentalidade

conservadora. Todavia, apesar de não veicular nenhuma mensagem, ela é forte o

suficiente para estar envolvida com a busca de criação de novos direitos

democráticos, como, por exemplo, a discussão, em vários países, sobre a

legitimidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo... pois, afinal, "gay is

good"! Mas, num futuro próximo, essa expressão talvez possa ser explicada da

mesma forma que explicamos hoje "a Terra se move". Ou como contamos hoje, para

os mais jovens, como era a reação dos conservadores diante de "Black is

beautiful", explicando, assim, o que é "Black is beautiful". Neste futuro

próximo, a expressão Gay is good seria uma metáfora morta, estaria inserida num

jogo de linguagem bastante utilizado, normal, e já teria, então, desempenhado

seu papel em favor de mudanças necessárias à ampliação da democracia. Teria

gerado novos direitos.

Quem recebe a metáfora, segundo Rorty, recebe algo que é como uma foto

repentinamente tirada do bolso no meio de uma conversa, ou um beijo no fluxo de

uma discussão, ou, ainda, um tapa na cara. Em outras palavras, a metáfora, no

entendimento de Davidson, é um lance que se joga para além do processo de

comunicação, no qual há uma semântica prévia, que estaria implícita. Porém, não

existe semântica, e a metáfora vai se definir como elemento da linguagem através

de seu uso - por nos.

Essa nova filosofia da educação em nada solapa os ideais democráticos das

filosofias da educação modernas, pelo contrário, ela os potencializa. Podemos

contar várias histórias para garantir direitos mais ou menos consensuais. As

histórias que garantem direitos consensuais não precisam de metáforas, precisam

apenas ser histórias empolgantes, narrativas que sensibilizem os ouvintes. Mas


para criar novos direitos, precisamos de impacto - precisamos da metáfora. Quem

faz metáforas em prol da criação de novos direitos está, certamente, colaborando

62 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

com a idéia humanista de que a educação é aquisição de autodeterminação, como em

Herbart. Também está favorecendo a diversidade e a liberdade e, portanto, está

se alinhando com Dewey (ou, hoje, com Habermas), na valorização da democracia. E

pode fornecer "autoridade semântica" para os grupos oprimidos se redescreverem

e, assim, ganhar vez e voz na sociedade, na medida em que possam colocar seus

vocabulários alternativos, seus jogos de linguagem - até então, secundarizados

ou mesmo considerados loucos -, como elementos também contáveis, na sociedade.

Com isso, colabora-se com Paulo Freire, na luta por uma educação em favor do

oprimido e pelo fim da opressão. A "teoria educacional pós-moderna", nessa

filosofia da educação, é a busca da realização dos melhores ideais modernos. A

didática pós-moderna, por sua vez, é a garantia de uma melhor concretização

desses ideais.

O que é 11aula", na teoria educacional pós-moderna ou pós-narrative turn?

A praxe dos textos que falam sobre didática, diria que eu deveria dissertar

sobre temas como métodos de ensino, tipos de visões da psicologia educacional,

pedagogias tradicionais e pedagogias novas etc. Entretanto, este livro não segue

a praxe. Este livro está cansado da praxe. Escrevi este livro porque eu mesmo já
não suportava mais a velha cantilena dos autores de livros sobre didática. Por

isso, "detalhes", neste livro, irão remeter o leitor para um campo exterior à

fraseologia dos manuais das vanguardas, seja de direita ou de esquerda.

O que chamo de "detalhes" é o que o senso comum chama de "aula". Assim,

"métodos", "psicologias" etc., estarão servindo ao discurso sobre teoria

educacional - no caso, sobre teoria educacional em um mundo pós-moderno.

Didática, na minha acepção, tem a ver com a nossa capacidade de organizar e

otimizar os processos de ensino-

AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE 63

aprendizagem. Esses processos, em termos da educação escolar, são resumidamente

entendidos pelo senso comum, tanto de educadores como de não-educadores, como

"aula". Isto é certo? Sim e não.

Há toda uma literatura em estudos educacionais que buscou mostrar que a noção de

"aula", por mais ampliada que seja, é sempre uma redução, e que a didática

prática não ocorre dentro do que o senso comum chama de "aula", mas dentro do

que os norte - americanos, generalizadamente, chamam de "currículo". No entanto,

a força da palavra "aula" permanece entre nos. Quando se fala em nova teoria

educacional e em nova didática, não há quem não pergunte: "mas, e a aula, como
fica?" Muitas vezes, essa pergunta é ridicularizada, pois vem de um sentimento

muito prático dos professores. Mas mesmo quem a critica, muitas vezes, no

íntimo, já perguntou: "e a aula, nesta pedagogia, como fica?"

Assim, não se pode fugir do assunto. Temos que admitir, num determinado nível

discursivo, que utilizamos algo parecido com "aula" - e que, no limite, é ela

que deve ser alterada quando falamos em novo tipo de educação.

Segundo as convenções, a aula possui cinco componentes. Esses componentes são

divididos em quatro elementos e um processo. Os elementos são: o estudante

(aluno, educando), o professor (educador), o assunto (matéria, conteúdo, lição)

e os meios (estratégias, técnicas, procedimentos didáticos). O processo é o que

se resume na seguinte frase: o desdobramento no tempo e no espaço da relação

ensino-aprendizagem. Ora, cada uma das teorias-modelo citadas nas páginas

anteriores pensou e organizou a aula diferentemente, como foi mostrado nos

vários quadros. No entanto, por que isso ocorreu? Por razões filosóficas? Bem

menos. Na minha leitura, ocorreu devido ao aparecimento de elementos socialmente

emergentes distintos para cada uma das teorias. Mudamos nossa didática porque

mudamos nossa vida, inteiramente. Assim, as teorias educacionais e as didáticas

64

DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

dependeram, a meu ver, de nossa comunicação alterada, que localizou alguns

termos e não outros, nos discursos que se importavam com a educação, em

determinados tempos e espaços.


Na verdade, o que assistimos, nos tempos modernos e pós-modernos - do século

XVII aos nossos dias, em termos educacionais -' é o desdobramento de quatro

revoluções no discurso educacional. E elas modificaram substancialmente a aula.

As pessoas dos séculos XIX e XX, no Ocidente, assistiram a três grandes

revoluções em teoria educacional. Nós, da transição do século XX para o XXI,

estamos assistindo a uma quarta revolução. As três primeiras, na minha

perspectiva e na de outros historiadores da filosofia da educação, encontraram

seus melhores representantes em Herbart, Dewey e Paulo Freire. A quarta

revolução pode encontrar justificativas em Richard Rorty e Donald Davidson. As

três primeiras foram revoluções modernas, em teoria educacional. A quarta é uma

revolução pós-moderna. Cada uma dessas revoluções girou em torno da emergencia

de uma palavra-chave na discussão entre os filósofos da educação. Em Herbart, a

emergência da mente. Em Dewey, a emergência da democracia. Em Paulo Freire, a

emergência do oprimido. A quarta revolução, por sua vez, segue em torno da

emergência da palavra metáfora - entendida segundo as novas visões de Davidson

lido por Rorty.

As revoluções do passado não perderam em importância diante da revolução que

está ocorrendo agora. Pertencem ao passado, num sentido cronológico e não

valorativo, em vista do qual teriam assistido à perda da real relevância de suas

palavras-chave. Afinal, hoje em dia, avançamos muito em filosofia da mente e não

poderíamos fazer teoria educacional sem considera-la. Assim, a herança de

Herbart está viva. No caso de Dewey, temos ainda mais a sensação de algo vivo:

não passaria pela maioria das cabeças dos filósofos da educação, no Ocidente,

preferirem a educação autoritária em lugar- da educação

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE 65
democrática, e talvez, poucos ainda acreditem que poderia haver verdadeira

educação numa situação social não dinâmica e não livre. Fora alguns ressentidos

da direita e da velha guarda marxista, aqui e ali, a maioria dos filósofos da

educação considera a democracia um chão necessário para toda e qualquer

educação. Paulo Freire, por sua vez, está presente, na medida em que os países

ricos se tornaram mais ricos, e os países pobres, mais pobres, e que o fenômeno

do aparecimento do "desenraizado", seja ele o pobre ou o pertencente a grupos

minoritários é, agora, também visível mesmo onde estava prometido que

desapareceria ou não surgiria: nas democracias ricas da América do Norte e

Europa. As três primeiras revoluções, portanto, não se distinguem da revolução

pós-moderna, em termos da teoria da educação, pelo pretenso fato de que esta

última revolução teria superado tudo o que foi pensado em educação

anteriormente. O que ocorre é que a revolução pós-moderna em teoria educacional,

está acoplada a uma maneira de conversar, em termos técnicos de filosofia e

filosofia da educação, que desloca as filosofias da educação que justificavam as

teorias educacionais modernas, representadas aqui por Herbart, Dewey e Freire.

O que quero dizer é que as teorias educacionais modernas estiveram

articuladas à filosofia da educação pré -linguistic turn. Por sua vez, a teoria

da educação que melhor se insere no campo pós-moderno e, com sorte, talvez possa

vir a manter o nosso apreço pela democracia, está articulada às formas de

conversação que adquirimos, em filosofia, após a virada lingüística e após a

virada neopragmática. Mas as teorias educacionais não diferem apenas em suas

justificativas filosóficas. Diferem também em seus aconselhamentos e

procedimentos didáticos. Como bom rortyano, não acredito que a filosofia da

educação seja o fundamento da teoria educacional. Creio que ela é apenas uma
forma de discurso ad hoc, que permite melhorar nossa coerência

66 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

prática e, talvez, com sorte, potencializar o que estamos fazendo. Assim, as

diferenças propriamente ditas, como o senso comum exige, devem aparecer, de

fato, na "aula".

Se o leitor prestou atenção aos quadros expostos até aqui, viu claramente que

cada teoria educacional permite, e mesmo obriga, que suas respectivas "aulas"

sejam bem diferentes. E isso passa pela própria arquitetura que envolve a

organização e potencialização dos processos de ensino-aprendizagem.

Volto aos meus modelos de teoria da educação e, portanto, de didática - Herbart,

Dewey, Freire e o pós-narrative tuvn.

Ao falarmos em Herbart, podemos pensar que a "aula" tenderia a ocorrer em uma

sala, com a arquitetura tradicional, como as muitas escolas que vimos no

Ocidente no decorrer dos séculos XIX e XX, forjadas na expansão das redes

públicas de ensino. São salas em forma de paralelepípedo, com carteiras e

cadeiras dispostas em fileiras e Linhas, de modo que o estudante fique

sistematicamente olhando para o lugar destinado ao professor. As carteiras podem

estar pregadas ao chão ou soltas. Podem ser grandes, ou simples cadeiras

universitárias. O que há de comum, é a disposição: devem estar dispostas de modo

a que o professor se transforme no centro dos olhares. Este, por sua vez, pode

estar atrás de uma mesa, na frente ou um pouco ao lado das fileiras e linhas. Ou

apenas estar de pé, em frente ao quadro~negro. Ou, ainda, estar de posse de um


projetor de slides ou de uma tela de computador (ele próprio pode estar "dentro"

do computador). Essa disposição arquitetônica está de acordo com a psicologia de

Herbart: todos os olhares devem estar voltados para o local onde irá aparecer,

expor a idéia, o conceito, pois ele é o carro-chefe da aula. Essa disposição

arquitetônica não combina com a teoria deweyana. É difícil que alguém possa

desenvolver um processo de ensino-aprendizagem segundo a teoria da educação de

Dewey, em um lugar assim, como a sala convencional. Nesse Lugar, para a teoria

De Dewey, a aula não

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-


MODERNIDADE 67

poderia acontecer, não poderia se realizar. Por quê? Pela simples razão de que,

na psicologia de Dewey, o conceito não pode, ao contrário de um ator no palco,

pular dos bastidores e se apresentar, dando início ao processo de ensino-

aprendizagem. Na psicologia de Dewey (como na de Piaget, e outros da mesma

escola), entre as noções a serem aprendidas e o aprendizado propriamente dito,

há o "interesse". E este é extremamente sofisticado, de modo que, não surge em

qualquer lugar. Em Dewey, perde importância a sala e ganha importância o

"ambiente escolar" ou o "ambiente de ensino-aprendizagem" (em parte, trata-se da

idéia ampliada de "currículo" suplantando a noção de "aula"), que deve favorecer

o surgimento do "interesse". A aula não ocorreria numa determinada sala - mas em

todo o ambiente (mesmo fora da escola) previamente organizado para o início e o


desdobramento do processo de ensino-aprendizagem. A escola deweyana pode e
deve

ter salas convencionais, é claro, mas seria incompreensível que ela tivesse "a"

sala na qual ocorreria a" aula. A teoria de Dewey é, antes de tudo, uma teoria

educacional que transformou a didática em um campo vasto de criação, na medida

em que insistiu no fator motivacional no ensino, e na idéia de que o estudante

não deve só aprender, mas aprender a aprender. O "aprender a aprender" deveria

contar com uma arquitetura ampliada, não só no sentido físico do termo, mas no

sentido metafórico da palavra arquitetura: a aula deweyana é, antes de tudo, uma

aquisição da capacidade de redescrição de experiências. A experiência, como

Dewey a pensou, não enclausuraria a aula num paralelepípedo.

Paulo Freire ampliou as idéias deweyanas. Sabe-se que os "círculos de cultura",

onde ocorreria a aula, estão completamente livres da organização arquitetônica

das escolas, mas articulados à organização arquitetônica da alma do educador,

que deve se transformar em educador-educando - na medida em que vive na

comunidade onde atua -, e do educando, que deve se

68 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

transformar em educando-educador - na medida em que é ele quem fornece os


"temas

geradores". Na verdade, a aula, na didática freireana, é dependente de um acerto

otimizado do funcionamento do círculo de cultura. Essa idéia recebeu inúmeras

modificações, dependendo do lugar e do uso da pedagogia freireana, tanto no


exterior quanto no Brasil - mais recentemente, houve o surgimento do "educador

de rua", como é conhecido o educador que tem como "sala de aula" a arquitetura

da cidade; o "Projeto Axé", em Salvador, é um exemplo disto.

Mas e a aula, nas diretrizes da teoria educacional pósnarrative turn?

Aqui, a sala, o ambiente ou a comunidade são componentes secundários. Richard

Rorty, em momento bastante feliz de um texto de 1989, refeito mais recentemente,

numa publicação de 1999 - Educação como socialização e individualização8 -'

explicita esse encontro, que chamaríamos "aula". O texto refere-se mais à

atividade na Universidade, mas eu o considero pertinente a qualquer grau de

ensino:

A única importância de se ter professores reais vivos, em vez de terminais de

computadores, videoteipes e notas de lições mimeografadas, é que os estudantes

necessitam ter seus olhos comprometidos livremente, antes de qualquer coisa, por

meio de seres humanos. Esta é a razão pela qual liberdade de cátedra e liberdade

acadêmica são mais importantes do que apenas o que os sindicatos reivindicam.

Professores fixando suas próprias agendas - colocando suas especialidades

individuais, longamente preparadas, à disposição, na cafeteria curricular, sem

considerar qualquer fim grandioso, muito menos qualquer plano institucional - é

tudo o que é a educação superior não profissionalizante. Tais compromissos de

liberdade são as ocasiões de relacionamentos eróticos entre professor e aluno,

que Sócrates e Allam Bloom

rodapé

8Traduzi esse texto e o inseri no volume Filosofia da Educação, da Coleção "O

que você precisa saber sobre...", a qual pertence o presente livro.


AS TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓS-
MODERNIDADE 69

celebraram, e que Platão, infelizmente, tentou capturar na teoria da natureza

humana e no currículo das artes liberais. Mas, o amor é, notoriamente, não

teorizável. Tais relacionamentos eróticos são ocasiões de crescimento, e sua

ocorrência e seu desenvolvimento são tão imprevisíveis quanto o próprio

crescimento em si, ainda que nada de importante aconteça na educação superior

não profissionalizante sem eles. A maioria desses relacionamentos são com os

professores já mortos que escreveram os livros que os estudantes estão lendo,

mas alguns serão com os professores vivos, que estão ministrando as lições. Em

ambos os casos, o cortejamento que vai e volta entre professor e aluno,

conectando-os num relacionamento que tem pouco a ver com a socialização, e muito

com a autocriação, é o meio principal pelo qual as instituições de uma sociedade

Liberal conseguem ser transformadas. A menos que tais relacionamentos sejam

criados, os estudantes nunca perceberão que as instituições democráticas são

boas para, nomeadamente, tornar possível a invenção de novas formas de liberdade

humana, conversando sobre liberdades nunca antes conversadas.

O ponto de destaque é a percepção de Rorty de que o processo de

Ensino-aprendizagem, ou, como o senso comum quer, a aula, só se realiza,

efetivamente, se acontece um jogo erótico entre dois elementos imprescindíveis:

o professor (ou o conteúdo, ou o meio - caso se trate do professor, do autor, já

mortos) e o estudante. O erotismo envolve tudo o que já sabemos dele, de bom e

de ruim: o momento da sedução, o momento da paixão, o momento da extenuação, o


momento do ciúme, o momento do rompimento, o momento da amizade, o momento
do

respeito, a volta da paixão. Sem esse "cortejamento" entre professor e

estudante, não há "aula". Portanto, nem sempre a aula acontece quando ela parece

acontecer, no espaço e no tempo determinados pela instituição escolar, ou por

qualquer outro tipo de instituição que acolhe a educação. Muitas vezes, ela só

acontece quando o professor e o aluno já, há muito, estão distantes. Eis então

que, mais uma vez, se manifesta um dos elementos do jogo erótico:

70 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

a saudade. Quantas vezes, percebemos que é na saudade de uma sedução que não

volta mais que está ocorrendo a educação, que o ensino está se efetivando? E não

é verdade que são exatamente os grandes rompimentos entre mestre e discípulo, na

saudade que se manifesta na crítica do discípulo ao mestre, que fazem os

momentos da aula, ocorrendo, muitas vezes, anos após aquela "aula"

institucional?

Tudo isso pode ser ilustrado, em parte, por um conselho de Durkheim: só

aprendemos o pensamento de um filósofo ou de um autor se emprestarmos nossa

cabeça para que ele pense através dela. Ou seja, temos que nos deixar dominar,

por um momento, pelo pensamento do outro. Por um momento, ainda que breve,
temos

de ser seduzidos. Aqui, vale uma observação de Nietzsche: temos de fazer

experiências com o nosso pensamento. Ora, emprestar a cabeça (e o coração vai

junto, e vice-versa!) ou fazer experiências com o pensamento, está, sim,


articulado ao que Rorty chama de "cortejamento que vai e volta" entre professor

e aluno, aluno e livro, estudante e "lição" -"cortejamento" que inaugura e

desenvolve o jogo erótico, que é a aula. Para tal, como Rorty aponta, o chão é a

liberdade - a mesma liberdade que Sócrates necessitava para que o agon dialético

se desenvolvesse e o ensino, enfim, a aula, ocorresse.

Assim, a arquitetura de que precisa a didática pós-moderna não é a da sala, a do

ambiente escolar ou a da comunidade do "círculo de cultura", mas sim a

arquitetura que se forma na geometria da troca de olhares humanos livres. Assim,

a liberdade está nos dois pólos da aula pós-moderna, porque ela é um jogo

erótico, que sem liberdade não pode ocorrer (Rorty), e porque ela é o locus da

metáfora (Davidson), que não pode ser saboreada sem liberdade, nem pode produzir

um jogo de linguagem capaz de ser usado por nós a fim de gerar novos direitos

democráticos.

O procedimento didático aconselhado pela teoria educacional pós-moderna ou pós-

narra tive turn depende,

As TEORIAS EDUCACIONAIS E AS DIDÁTICAS NA MODERNIDADE E PÓs-


MODERNIDADE 71

portanto não só de seus cinco passos expostos no último quadro, mas depende,

sobremaneira, da troca de olhares. A aula, agora, no momento em que parece

ocorrer, ou no futuro, quando se manifesta como saudade, compreensão e crítica

do mestre, está sempre amarrada à troca de olhares humanos. Sendo assim, na

concepção pós-moderna, a aula é um momento perigosíssimo, no qual muitos jamais

suportariam viver. Ela ocorre quando a sedução recíproca entre mestre e

discípulo está se desenvolvendo. Não ocorre quando mestre e discípulo não se


abrem para uma tal possibilidade. Sendo assim, são raros os momentos em que a

aula efetivamente ocorre, pois o cortejamento recíproco entre estudantes e

professores, aparentemente uma coisa fácil, raramente ocorre no meio

burocratizado. Ela ocorre quando menos esperamos e em lugares inusitados,

como... o amor!

Amor? Essa palavra, nas mãos dos hipócritas e dos medíocres, é distorcida

rapidamente, por isso vou adiante: de maneira alguma essa concepção de "aula"

pós-moderna pode ser tomada como uma proposta piegas. Para compreendê-la, é

preciso uma certa, digamos, sensibilidade filosófica. Outros diriam, talvez mais

ao gosto pós-moderno, sensibilidade artística, ou melhor ainda, sensibilidade

estética. E preciso estar apto, como Nietzsche, a perceber o que é fazer

experiências com o pensamento de um modo profundo e amplo. Ninguém pode fazer

experiências com o pensamento se o pensamento é já o pensamento pensado e a

linguagem aquilo que já foi dito. A experiência, aqui, é menos o experimento e

mais a vivência: é o trabalho corajoso de se deixar levar por um discurso

perigoso, pelo espanto, pela aventura, pelo caminho que ainda não está de todo

aberto e que necessita do estudante, junto como mestre ou com o livro, para

poder ser aberto. Há pessoas que dizem:

"não caio nesta armadilha, não sou vítima deste ou daquele

pensamento ou discurso, eu nunca me deixo enganar - eu sou

crítico". Os pós-modernos têm razão em dizer que pessoas assim

72 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS


jamais saberão o que é "a aula". Nunca saberão o que é "saber uma coisa,

aprender". A sensibilidade filosófica e/ou artística não depende de ser ou não

ser crítico; ao contrário, depende de ingenuidade. Depende de ser radicalmente

não-crítico. Os grandes filósofos, como Platão, Descartes, Hegel, o "primeiro"

Wittgenstein e o "segundo" Wittgenstein foram, antes de tudo, ingênuos. Eles

acreditaram em coisas inacreditáveis. Quando lemos seus escritos, muitas vezes

temos a sensação de que eles eram tão ingênuos quanto os personagens femininos

de Henry J ames (penso aqui, entre outros, em Daisy Miller). Como um

nietzschiano bem notaria, todos eles esperavam dar cabo de problemas milenares e

viver em um mundo sem a contingência. Nietzsche, por ser tão ingênuo quanto

eles, nos faz espantar com a ingenuidade deles, denunciando-a. Essa ingenuidade

é que permite o encontro para o ensino e para a aprendizagem. Penso que os

grandes filósofos, como os grandes romancistas e os grandes artistas, sempre

souberam o que era aula, nessa acepção pós-moderna, que pode ser resumida no

seguinte: é o momento em que a força de uma idéia ou de uma imagem arrasta o

peito e os neurônios para profundezas de sentimentos, idéias e ideais com as

quais não concordamos. A aula é uma guerra onde só os ingênuos e, portanto, os

corajosos, podem entrar. E só eles conseguem sair e emergir dela. Mas a aula, na

acepção pós-moderna, como Rorty descreve o jogo erótico entre estudante e

professor, é também a paz. É a paz cansada mas satisfeita dos amantes que

tentaram de tudo para um ajuste, para uma acomodação de sentimentos e corpos,

para o... casamento. "A aula" é a sensação que temos de um casamento dando

certo! Nele, a sedução brinda os parceiros com paixão de fogo e serenidade

intelectual ao mesmo tempo. Assim, para a didática pós-moderna, não há aula onde

as palavras e os corpos foram reificados. As palavras e os corpos devem estar

vivos - só assim é possível falarmos em "organizar e otimizar as relações de

ensino-aprendizagem".

73
Conclusão

O LEITOR PODE ESTAR INQUIETO COM ESTE LIVRO, achando que muita coisa
não foi

dita. Afinal, onde estão Piaget, Emília Ferreiro, Vygotsky? E o marxismo -

Gramsci & Cia.? E alguns filósofos da educação, que propuseram teorias

educacionais célebres, como Rousseau? Ou mesmo educadores práticos


consagrados,

como Pestalozzi? E não caberia um capítulo especial sobre o feminismo? E um

capítulo especial sobre o multiculturalismo? E sobre "formação de professores"?

E o tradicional capítulo falando de Comenius? E as velhas e muitas vezes

preconceituosas divisões entre "teorias progressistas" e "teorias

tradicionais", ou coisa similar?

A opção que fiz foi a de trabalhar com modelos paradigmáticos

- no sentido em que Thomas Kuhn usou esta palavra - de teorias educacionais que,

atravessando os tempos modernos e contemporâneos, e adentrando a pós-

modernidade, pudessem ser suficientemente representativos do que ocorreu com a

didática efetiva nos últimos duzentos anos. Mas não se deixe enganar, leitor: a

palavra que acabei de utilizar - ocorreu - não implica que este seja um livro de

História da Educação. Trata-se de um trabalho que acredita que fizemos

revoluções nos nossos vocabulários a respeito do assunto educação, e que essas

revoluções, na transição dos séculos XIX para o XX e, agora, do XX para o XXI,

podem ser entendidas, se prestarmos atenção mais a determinados discursos do que

a outros. Assim, para falar da teoria humanista, preferi Herbart e não Kant,

pois achei que num trabalho sobre didática, um passo maior seria dado se

ficássemos com as teorias educacionais propriamente ditas, e não com as

filosofias da educação. Para a teoria da educação democrática, no apogeu e crise


da sociedade do

74

DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

trabalho, preferi Dewey e não Habermas. Este Último é tão defensor da democracia

quanto Dewey, e em termos semelhantes, mas Jamais teve disponibilidade para

formular um teoria da educação propriamente dita. Para falar sobre educação

libertadora, optei por Paulo Freire e não por qualquer outro teórico de

esquerda, porque Paulo Freire encarnou, de modo mais universal a emergência do

Terceiro Mundo em termos educacionais do que qualquer outro pensador da

educação, no Ocidente, durante o século XX. Finalmente, para falar da teoria

educacional pós-moderna - ou uma de suas possibilidades -, preferi não evocar

Lyotard, Foucault, Deleuze e Derrida, ou seja, os pós-estruturalistas, e fiquei

com os norte-americanos, porque o neopragmatismo tem muito mais a ver com a

teoria educacional propriamente dita do que o pós-estruturalismo Este, como

diria Rorty, multas vezes, é excessivamente filosofante e pessimista, com uma

dívida ainda grande para com o marxismo. Não vejo porque meu livro teria de ser

pessimista. Desde o início, eu queria que fosse um livro que propusesse uma

postura. E nele há sugestões para uma nova postura pedagógica. Muitos jovens

professores do mundo todo têm aderido a esta postura e colaborado na sua

construção - alguns teorizando mais, outros teorizando menos sobre as mudanças

que estão em curso. Mas, certamente, os professores pós-modernos, no limiar do

século XXI, já não podem ser vistos pela velha guarda marxista, como não-
alinhados com a luta por um mundo melhor. Ao contrario, segundo a perspectiva

pós-narrative turn, estão empenhados na construção de um mundo muito melhor do

que aquele que os marxistas desejaram, pois almejam, além da justiça social,

também a liberdade para todos - como os bons filósofos gregos, querem que a

teoria educacional e a didática ajudem os estudantes a ser.., simplesmente

felizes.

75

Sugestões de leitura

FAÇO ALGUMAS INDICAÇÕES DOS MEUS LIVROS QUE, acredito, podem Levar o
leitor para outras paragens, outros autores e outros temas.

Por ordem de prioridade de leitura:

GHIRALDELLI JR., Paulo. Richard Rorty - A filosofia do novo mundo em busca de

mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999.

_________ Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, Coleção "O que você

precisa saber sobre..."

_________ O que é filosofia da educação? 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

_________ Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez, 1994.

Sugiro, ainda, que o leitor esteja atento aos sites (www.filosofia.pro.br) e

(www.educacao.pro.br). O primeiro é o site Filosofia e Filosofia da Educação,

editado por mim e Pedro Angelo Pagni (UNESP), e o segundo é o site da


Encyclopedia of Philosophy of Education, editado por mim e MichaeL Peters

(Auckland University), em colaboração com sociedades de filosofia da educação de

todo o mundo.

76

vazia

77

APÊNDICE

Teorias da educação na

história da filosofia da educação9

Amélie Oksenberg Rorty - Brandeis University

Tradução: Amélia Siller

Os FILÓSOFOS TÊM PRETENDIDO TRANSFORMAR o modo pelo qual vemos e


pensamos,

agimos e interagimos; sempre tomam a si próprios como os educadores últimos da

humanidade. Mesmo quando acreditam que a filosofia deixa tudo como está, mesmo

quando não apresentam a filosofia como uma atividade exemplarmente humana,

pensam que interpretando o mundo corretamente - compreendendo-o e


compreendendo

nosso lugar dentro dele - nos livrariam da ilusão, nos direcionariam para
aquelas atividades (vida cívica, contemplação da ôrdem divina, progresso

científico ou criatividade artística) que melhor nos convêm. Mesmo a filosofia

"pura - metafísica e lógica é implicitamente pedagógica. Pretende-se corrigir a

miopia do passado e a imediata.

A reflexão filos5fica sobre a educação, de Platão a Dewey, tem sido direcionada,

naturalmente, para a educação dos governantes, daqueles que supostamente

deveriam preservar e transmitir - ou redirecionar e transformar - a cultura da

Este texto foi cedido pela professora Amélie Rorty. Foi publicado com

diferentes títulos, em inglês. Optei pela tradução de Amélia Siller, a partir de

The Ruling History of Education, publicado no journal of the encyclopedia of

philosophy ofeducation (www.educacao.pro.br).

78 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

sociedade, seu conhecimento e seus valores.10 Cada época histórica é marcada por

uma luta pelo poder, que pode ser a autoridade da tradição ou o poder manifesto

do conhecimento filosófico, espiritual ou científico, da criatividade artística,

da produtividade tecnológica ou mercantil. Apenas tardiamente, na história das

democracias liberais, a política educacional foi formulada para, e dirigida a

indivíduos presumidamente autônomos, que determinam seus próprios fins, que

estruturam suas próprias vidas. Em lugar nenhum, a filosofia da educação é mais

importante, a educação em si mesma é mais crucial - e em lugar nenhum é mais

negligenciada - do que numa democracia participativa liberal cujos compromissos


igualitários tornam cada indivíduo legislador e sujeito.

Eis as disputas que estão no centro da discussão contemporânea da política

educacional: quais são as direções e limites da educação pública, numa sociedade

pluralista liberal? Como podemos assegurar melhor uma distribuição eqüitativa da

oportunidade educacional? A qualidade da educação deveria ser supervisionada por

padrões e avaliações nacionais? As escolas públicas deveriam oferecer educação

moral e religiosa? Tais questões restabelecem as controvérsias que marcaram a

História da Filosofia desde Platão até o positivismo lógico. Discussões

responsáveis e proveitosas de política educacional, inevitavelmente,

rodapé

A etimologia mostra que "educação" deriva de e-ducare: extrair, fazer sair por

instigação, e de e-ducere: extrair, conduzir para fora. Sua dupla etimologia

sugere extrair algo do aprendiz e conduzi-lo a um novo lugar. Erudire,

tipicamente, sugere tirar alguém ou algo de uma condição rude ou crua. Nossos

termos "doutrina" e "doutrinar" vêm de docere, ensinar; é claro, disciplina

abriga ambos os sentidos da palavra inglesa "discipline". "Instrução" vem de in-

struere: "construir dentro de". Daí deriva a palavra alemã Bildung: desenvolver,

formar, cultivar. A palavra alemã erziehen remete a: educar ou treinar. O verbo

"to school" [ensinar] deriva das palavras gregas schole:

discutir livremente, e scholion: comentário, interpretação. O francês usa tanto

"formation" quanto "education". O grego tem os termos gerais, trophe, edificar,

e paideia, que se refere à educação de crianças jovens, ambos surpreendentemente

limitados.

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 79


direcionam-5e para questões filosóficas mais amplas que as estimulam e informam.

Essas questões são muito mais agudamente articuladas e examinadas na teoria

política e moral, na epistemologia e na filosofia da mente. Quais são os

objetivos próprios da educação? Preservar a harmonia da vida cívica? Salvação

individual? Criatividade artística? Progresso científico? Capacitar os

indivíduos a escolher com sabedoria? Preparar os cidadãos para ingressarem na

força de trabalho produtiva? Quem deveria arcar com a responsabilidade básica de

formular a política educacional? Filósofos, autoridades religiosas, governantes,

elite científica, psicólogos, pais ou conselhos locais? Quem deveria ser

educado? Todos, igualmente? Cada um de acordo com seu potencial? Cada um de

acordo com sua necessidade? Como a estrutura do conhecimento afeta a estrutura e

a seqüência da aprendizagem? A experiência prática, a matemática ou a história

deveriam fornecer o modelo para a aprendizagem? Quais interesses deveriam guiar

a escolha de um currículo? A realização de uma vantagem competitiva, no mercado

econômico internacional? A representação étnica, política e religiosa? A

formação de uma sensibilidade cosmopolita? Como as dimensões intelectuais,

espirituais, cívicas, morais, artísticas, físicas e técnicas da educação

deveriam ser relacionadas umas às outras?

É porque somos os herdeiros da história das concepções de objetivos e direções

próprios da educação que a História permanece ativamente introjetada e expressa

em nossas crenças e práticas. Ela fornece a compreensão mais clara das questões

que atualmente nos preocupam e dividem. A maioria das teorias do conhecimento -

particularmente de Descartes e Locke -pretenderam, entre outras coisas, reformar

as práticas pedagógicas. A maioria das teorias éticas - nomeadamente as de Hume,

Rousseau e Kant - tencionaram redirecionar a educação moral. O significado

prático das teorias políticas - de


80

DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

Hobbes, Miii e Marx - é não apenas direcionar para a estrutura das instituições,

mas também para a educação dos cidadãos. Os sistemas metaftsicos compreensivos


-

os de Leibniz, Spinoza e Hegel - fornecem modelos para investigação; e assim,

implicitamente, estabelecem rumos e padrões para a educação dos privilegiados.

Alguns filósofos - Locke, Rousseau, Bentham e Miii, por exemplo - fizeram dos

programas educacionais uma caracterls.tica central dos seus sistemas

filosóficos. Outros -Descartes, Spinoza e Hume - tiveram boas razões para não

tornar explícito o significado educacional dos seus sistemas.

Se a política educacional fica cega sem a orientação da filosofia, a filosofia

soa falsa sem dar atenção crítica para seu significado educacional. Uma

filosofia da educação vital e densa inevitavelmente incorpora, na prática, o

conjunto da filosofia; e o estudo da história da filosofia organiza a reflexão

sobre suas implicações para a educação. A força plena da revolução leibniziana e

cartesiana tem como conseqüência o papel da matemática na educação dos

cientistas; o ponto de vista de Locke e dos enciclopedistas sobre epistemologia

é expresso na insistência em que a aprendizagem bem-sucedida começa na

experiência e na prática; o impacto pleno da visão de Hume e de Rousseau sobre a

imaginação é revelado no papel que eles atribuem à imaginação na formação de


hábitos do pensamento e da ação. A transformação da filosofia empreendida por

Hegel marca o estudo da História, amplamente concebida como uma parte essencial

da educação. Uma vez que a política educacional é formulada por aqueles que

aconselham os governantes, que a aplicam e implementam, a filosofia da educação

é tipicamente dirigida aos governantes e seus conselheiros.

Podemos reconstruir de forma proveitosa as características da dramatis Personae

desta história: a batalha contínua entre as declarações dos legisladores

cívicos, de um lado (Platão e Aristóteles) e dos diretores espirituais, do outro

(Santo Agostinho

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 81

e Loyola); as artes do estadismo da Renascença (Maquiavei e Castiglione); a

afirmação de autodeterminação espiritual (Lutero e Erasmo); o primeiro

Esclarecimento, que enfoca conhecimento tecnológico e científico (Descartes,

Locke e Diderot); as reflexões posteriores do Esclarecimento sobre a prioridade

de desenvolver sentimentos sociais ou fortalecer uma vontade racional autônoma

(Hume e Kant); as reflexões sobre os benefícios humanos e cívicos da educação

universal (Adam Smith, Condorcet, Bentham, Miii); a ênfase do Romantismo na

sensibilidade estética do poeta como legislador último do mundo (Goethe e

Schiller); a educação dos indivíduos como cidadãos livres (Rousseau e Dewey). Em

outras tradições filosóficas, o Shi'ite prioriza a educação de um Muilah como

intérprete do Alcorão, e a tradicional educação de um Yeshiva como intérprete da

Torah e do Taimud. Embora raramente mencionem figuras históricas, as teorias


contemporâneas da educação continuam a tradição: Goldman considera os efeitos da

epistemologia social sobre a política educacional, e Gaiston direciona as

questões de princípios que surgem num estado liberal pluralista.

Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) tomam a educação dos

cidadãos-governantes como um objetivo básico da polis. Ela permeia todos os

aspectos da atividade cívica e éinfinita. Garante a segurança, continuidade e

harmonia da cidade e expressa o caráter distintivo da sua forma de vida. Platão

argumenta que os governantes (tanto homens quanto mulheres) deveriam ser

selecionados por suas capacidades para engajar-se, devendo ser orientados pela

investigação filosófica

- como o auge de um regime prolongado -, no qual a educação intelectual e moral

são fundidas. A verdade ligada ao mito, à música, à ginástica e à formação

militar avaliada com seriedade, prepara os cidadãos para a philia política; a

matemática e a

82 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

harmonia - as ciências das proporções próprias - fornecem o fundamento teórico e

as habilidades práticas para a justiça; a astronomia revela os princípios

ordenadores do cosmos que servem como um modelo para a Polis. Além das

qualificações óbvias de uma boa memória, de um amor pela investigação,

apaixonado, não-combativo e persistente, os filósofos-governantes deveriam ser

capazes de pensar critica e dialettcamente, ordenando suas crenças em um sistema


unificado. Criticamente, porque devem avaliar as hipóteses que orientam suas

questões; dialeticamente, porque devem ser capazes de julgar e conciliar o que,

aparentemente, evoca Oposição; sistematicamente porque devem se ocupar com

"todas as coisas consideradas" como raciocínio, levando em conta as conexões

entre as conseqüências de longo alcance de suas políticas. Devem aprender a

pensar a cidade como uma espécie de cosmos precário cujas partes são mantidas em

harmonia estável umas com as outras, e o todo unido pelo reconhecimento da força

ordenadora da Forma do Bem.

Como Platão, Aristóteles considera que as instituições da polis - suas leis e

estruturas políticas, seus costumes e cumprimento da lei - são seus instrumentos

educacionais centrais, formando a mentalidade, os motivos e hábitos típicos dos

cidadãos (Pol. 3.15 1286 a 23.ff; NE 10.9 1180 a 33ff). Platão e Aristóteies

concordam que "aqueles que comandam.., teriam primeiro que aprender a obedecer"

(Pol. l333a2); e que "três coisas fazem os homens bons e virtuosos: o caráter, o

hábito e a razão" (Pol. 133 lal 1). Mas, enquanto Platão considera que os

governantes deveriam ser distinguidos por suas habilidades filosóficas,

Aristóteles descobre um equilíbrio diferente entre as respectivas contribuições

da razão e do hábito para uma vida de virtude pratica. Não há garantia de que

uma vida melhor e mais elevada

- a vida da theoria direcionada para verdades eternas - possa fornecer uma

direção para a virtude orientada para a prática.

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 83

O raciocínio prático que auxilia a virtude e a deliberação política não está


modelado na investigação científica, mas esta introjetado em hábitos bem

consolidados e disciplinados de percepção, emoção, pensamento e ação. Adquirido

por experiência auditiva e imitação, ele envolve a habilidade para discernir e

alcançar o que é melhor e mais razoável em circunstâncias radicalmente

diferentes. Ainda que as virtudes sejam exercidas em seu próprio benefício, elas

são essencialmente direcionadas para o bem da eudaimonia. A despeito do papel

central da razão na boa vida, theoria e praxis têm objetivos distintos, e

requerem o desenvolvimento de tipos diferentes de habilidades.

Embora os primeiros estudos educacionais de Santo Agostinho (354-430) estivessem

centrados em trabalhos retóricos e literários romanos e gregos, ele passou do

estudo da retórica para a filosofia, para os neoplatonistas e estóicos; e, às

Sagradas Escrituras, eventualmente, com sua conversão ao Cristianismo, em 386.

Essas mudanças marcam uma revisão radical em suas concepções sobre as direções

próprias de uma vida humana; elas também redirecionam suas concepções sobre os

objetivos da educação. E porque todo indivíduo é essencialmente um cidadão da

Cidade de Deus, e, apenas acidentalmente, um cidadão da sua polis, que sua

educação deveria ser direcionada para devolver a alma à harmonia com a ordem

divina. O neo-platonismo e o estoicismo dos primeiros trabalhos de Santo

Agostinho, inicialmente, projetaram a convergência da filosofia com a educação

espiritual: ambas envolvem um movimento progressivo relativamente direto

decifrando as intenções da divindade, como elas são significadas e introjetadas

na ordem cósmica. Como as Sagradas Escrituras, o mundo é um texto codificado

divinamente, que expressa e revela a Palavra de Deus. A análise semântica -Lendo

o mundo e a Sagrada Escritura corretamente, interpretando suas analogias

significantes - é um modo de iluminação espiritual.

84 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS


Mas depois de sua passagem pelo maniqueísmo, a explicação da educação moral e

espiritual em Santo Agostinho tornou-se mais complexa e sombria. O pecado

original bloqueia o acesso direto da alma a Deus: não apenas os nossos desejos,

mas também nossas percepções e interpretações do mundo são oblíquas, centradas

de modo idólatra na pessoa. A educação adequada requer não apenas a redireção,

mas a reconstituição da alma: a Graça divina deve interceder para fornecer uma

nova Vontade. A Sagrada Escritura e os dirigentes espirituais, a filosofia e a

interpretação astuta podem, quando muito, fornecer as ocasiões, os momentos à

iluminação da Graça. Mas Santo Agostinho não entregou sua confiança a uma

educação clássica sólida: embora a capacidade para pensar e falar clara e

criticamente não possa trazer a salvação, continua a ser uma aliada essencial da

Boa Vontade. Parece não ter enfrentado a tensão implícita entre as diretrizes

educacionais e seu cosmopolitismo helenista e a ênfase pós-maniqueísta na

preparação espiritual do indivíduo para a Graça.

A Citta da Renascença recupera a estrutura clássica e as diretrizes da educação.

Maquiavel (1469-1527) representa o político, Castiglione (1478-1529), o social.

Em The Prince11 (1513), Maquiavel descreve a disciplina do governante bem-

sucedido; em The Discourses (1517), ele se volta para as instituições políticas

que formam as virtudes cívicas dos cidadãos e a glória do Estado. É porque seu

primeiro dever é assegurar a segurança e continuidade da Citta, que o Príncipe

deve ter a virtú do conhecimento para alcançar e deter o poder. O estadismo

requer um sentimento perspicaz de timing, uma habilidade destemida e cruel para

agarrar as oportunidades, habilidade para inspirar obediência temerosa, assim

como controlar aparências, comandar sua milícia, manipular tanto aliados quanto

inimigos,
rodapé

"Os títulos foram mantidos conforme o texto em inglês (N. da T).

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 85

até mesmo para desenvolver um estilo retórico lacônico. Mas como seu poder é

exercitado para a glória e para a segurança da cidade, o Príncipe deve também

saber como conquistar a admiração e a obediência dos cidadãos. Uma vez que

éimprudente para ele delegar responsabilidade, deve ser capaz de controlar a

administração ordinária do Estado, planejar sua economia e agricultura. Tornar-

se um homem exemplar da Renascença é uma necessidade prática do Príncipe

maquiavelianO: identificando-se a si próprio com sua Citta, sua disciplina e sua

virtü são direcionadas para alcançar a glória, assim como para garantir a

segurança do poder cívico.

The Courtier (1528), de Castighone, serviu como modelo -para gerações - de

manuais de educação do cavalheiro bem-formado. Deixando os assuntos de governo

para o Príncipe, o cortesão serve para ilustrar um sentido transformado da

Graça:

as excelências humanas exercitadas por causa da beleza de sua perfeição. Ele é,

de certo modo, a jóia preciosa da corte; e a corte é, na verdade, a

representação da ordem cósmica. As artes de guerra tornam-se ornamentos:

equitação, arco e flecha, esgrima. O cortesão deve colocar seus dotes mentais e
corporais no trabalho de arte: deve vestir-se elegantemente, dançar bem, compor

versos brilhantes e dedicar-se à conversação graciosa, refinada. Longe de ser

uma máscara superficial e pomposa, todo o charme do cortesão manifesta sua

honra, abastece o mundo com um modelo de integridade.

De um modo radicalmente diferente, Loyola (1491-1556), Lutero (1483-1546) e

Erasmo (1469-1536) trazem novos parâmetros de integridade, novos critérios à

unidade interior e exterior do homem. Mais que produzir um livro-guia para

adquirir virtuosidade na expressão da virtú, eles projetam um regime que

pretende retificar e redirecionar a alma/mente. Mas diferem dramaticamente em

suas concepções de salvação e de educação disciplinar, que ela requer. Do mesmo

modo, psicologicamente

86 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

sutil e politicamente astuto, o documento educacional da Ordem Jesuíta divide-se

em duas categorias. Spiritual Exercises (15 26-1556), de Loyola, é um manual

para dirigentes espirituais acusados de corromper as mentes - os sentidos, a

imaginação, o desejo e a vontade - dos fiéis. Os exercícios tomam a forma das

tradicionais meditações encenadas, cada uma precedida de oração: o contemplador

sofre um período de privação sensorial rigorosa, durante a qual ele imagina, em

detalhes específicos tanto quanto possíveis, cada um dos estágios da Paixão de

Cristo. Ele sofre com o Cristo carregando a cruz, compartilha seu momento de

desespero. A concepção de educação espiritual de Loyola inverte a de Santo

Agostinho: ao invés da Graça de uma nova vontade permeando e reformando os

sentidos, a imaginação e o desejo, Loyola trabalha dos sentidos para a mente e a

vontade. Ironicamente, preparou o caminho para o romanticismo posterior,


introduzindo a educação da imaginação, para realizar o tipo de identificação

empática essencial à moralidade. The Constitution, da Ordem da Sociedade de

Jesus (1556), prescreve a seleção e o caráter dos alunos e professores da Ordem,

assim como o currículo e os métodos pedagógicos das escolas. A Ordem é em

princípio aberta para todos, sua educação adequou-se às suas capacidades

espirituais e intelectuais. Mas como os futuros soldados e diplomatas da Igreja

Militante são bem-sucedidos em influenciar Príncipes, a hierarquia da Sociedade

deve ser talentosa: bem-nascida, eloqüente, inteligente e, preferentemente, de

uma presença altiva e graciosa. A educação em filosofia, idiomas, retórica,

Sagrada Escritura, teologia e teoria moral deve ser cuidadosamente controlada

por sua ortodoxia: São Tomás de Aquino e Aristóteles, em filosofia, o Conselho

de Trento e a Bíblia, na teologia, Cícero em retórica, versões expurgadas de

Tucídides, Homero e Hesíodo e "outros desta natureza", na aprendizagem geral.

Autores hostis à Cristanc4~açle são lidos

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 87

frugalmente, e somente sob cuidadosa supervisão: os servos de Cristo devem ser

completamente obedientes às regras da Ordem.

Lutero, ele mesmo educado na Ordem Agostiniana, lança, ainda, outra revolução,

em seu Letter to Mayors... On Behalf of Christian Schools/Carta aos poderosos...

em defesa das Escolas Cristãs (1524), e On the Duty of Sending Children to

School/Sobre a obrigação de mandar as crianças à escola (1530). Uma vez que a

Sagrada Escritura é a autoridade única em moralidade e religião, as crianças

devem aprender a ler. Considerando a extensão que suas habilidades e situações


permitem, a elas deveria ser ensinado Hebraico, Grego e Latim. Apesar da

primazia que ele concede à preparação espiritual em favor da Graça da fé, Lutero

atribui a responsabilidade pela educação às autoridades civis, antes que às

religiosas. Elas estão sob o compromisso de obrigar os cidadãos a enviar as

crianças para a escola, e de fornecer um currículo que abarque ciências e artes,

jurisprudência e medicina, crônicas e História. A expressão própria da Graça

espiritual estende-se, basicamente, para a vida cívica: o homem de boa vontade é

um cidadão bom e construtivo. A intervenção luterana produziu o desdobramento

dramático da educação: embora seus objetivos permanecessem espirituais, ela foi

obrigatória, universal e regulada pela autoridade cívica.

De uma forma mais cética, Education of the Prince (1516), de Erasmo, fornece um

contraponto a seus predecessores. As virtudes do Príncipe não são vícios

exercitados para nobres fins: são as virtudes simples da Cristandade original,

devendo ser exercitadas por todos da mesma forma. Harmonia cívica e paz, em vez

de glória ou força sagaz fornecem a melhor segurança do Estado. As fraquezas e

debilidades da natureza humana - ignorância, medo recíproco, diversidade e luta

de paixões - atribuem limites severos às esperanças de reformas revolucionárias

dramáticas. A controvérsia entre Erasmo e Lutero sobre a liberdade e o poder da

vontade foi a mais inflamada porque eles estiveram de acordo

88 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

sobre a corrupção da Igreja Romana, seu abuso de autoridade. Aquele debate - De

Libero Arbitrio (1524), de Erasmo, a resposta de Lutero, em Qn the Bondage of

the Will (1525), contraditada por Erasmo, em Hyperaspistes (1526) - teve


implicações de longo alcance para a educação. Enquanto ambos atribuíram

àconsciência individual a tarefa de preparar para a salvação, discordaram sobre

os recursos aos quais o indivíduo pode recorrer. Embora Erasmo acredite que a

consciência é o guardião último da alma do indivíduo, aconselha os cristãos a

permanecerem sob a tutela de uma Igreja Romana reformada convenientemente.

Cosmopolita, à vontade em Lowlands, Paris, Inglaterra, Louvam, Roma, Basel,

Freiburg e Breisgau, Erasmo estabeleceu um modelo de precisão em suas traduções

e comentários sobre o Novo Testamento e os escritos patrísticos originais. Como

são difíceis de aplicar, as regras da sabedoria foram simples e diretas:

analisar e testar variantes manuscritas, presentes em ambos os lados de inúmeras

controvérsias, admitir ignorância e não reivindicar mais do que se pode provar.

Em suas mãos, clareza e amplidão da mente, retidão da conduta e simplicidade da

fé foram instrumentos morais encorajadores. Ironicamente, Erasmo forneceu as

diretrizes e o apoio textual às mudanças dramáticas da Reforma, que ele próprio

considerou tão excessivas quanto perigosas.

Embora Descartes (1596-1650) não discutisse expiicitamente

a educação, Regulae (1628) e Principia Philosophiae (1644) têm

conseqüências pedagógicas poderosas: o método analítico fornece

a base e o modelo para a investigação; o cientista matemático é

a nova autoridade. Como a vontade não pode por si mesma

corrigir paixões maíformadas - isto é, confusas, desinformadas -a educação moral

requer o desenvolvimento de hábitos de

pensamentos sólidos (Passions de EÂme, 1.45, III. 15 2-3, 1649).

Estime de soi même e générosité - as paixões disposicionais,

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 89


que são as virtudes da mente - trazem à memória a vontade para sustar o

julgamento face a idéias obscuras e indistintas. A descoberta científica -

interpretada como a descoberta da ordem divina - é a atividade essencial da

mente; felizmente, isto também fornece a maior parte da procedência fidedigna de

idéias que podem, em princípio, extrair paixões corretivas compensatórias.

Embora tome a verdade científica para fornecer a nova autoridade moral,

Descartes, entretanto, adere a uma moralidade provisória: obedecerá às leis do

seu país e seguirá a orientação da Igreja, provavelmente, na esperança, não

manifesta, de que os avanços científicos poderiam, eventualmente, melhorar

aquelas instituições e suas leis.

Some Thoughts Concerning Education (1693), de Locke (1632-1704) é uma mistura


de

liberalismo antiautoritário com conservadorismo econômico. Um manual para a

educação dos filhos de cavalheiros, isto é, um contraste notável em relação a

suas Proposals for the Bringing up of ChiLdren of Paupers. Os filhos dos

cavalheiros eram educados por tutores que podiam moldar os hábitos e direcionar

a mente de seus pupilos para ocupações práticas. Aprender fazendo é a grande

inovação pedagógica:

os idiomas eram adquiridos pela conversação e pelas viagens mais que pelo estudo

dos clássicos; a educação científica era, tanto quanto possível, fundamentada em

observação e experiência direta em vez de exposta como sistema dedutivo. Embora

Locke pensasse que a Divindade tivesse dotado o homem com idéias morais e

matemáticas, acreditava que o conhecimento moral poderia ser melhor conduzido

pelo estudo da História, de biografias e pela Sagrada Escritura, em vez de pela

teologia ou pela casuística. Uma vez colocado no caminho certo do senso comum e

da responsabilidade social, o cavalheiro era destinado a trazer a ordem ao resto

da sociedade: as crianças pobres aprendiam o ofício de modo a que pudessem


tornar-se independentes e reembolsar seus benfeitores.

90 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

Defensores eloqüentes em favor da instrução pública universal, Adam Smith (1723-

90) e Condorcet (1743-94) argumentaram que ela é um bem intrínseco; e que ela

conduz a uma sociedade amável, moderada, reflexiva, e "discursiva", capaz de

deliberação cívica prudente. Moderando os extremos de -e a separação entre - uma

educação clássica de elite e uma educação focada no treinamento ocupacional, os

autores justificaram a educação pública como uma atividade liberal e humanizada,

por não significar meramente um instrumento econômico para aumentar o "capital

humano

Hume (1711-1776) reintroduz a imaginação como um protagonista central na

educação moral. As paixões do amor-próprio e do egoísmo são nossas razões

primárias; felizmente, o mecanismo da simpatia - um dom natural da mente humana

-torna as necessidades, paixões e, até certo ponto, o pensamento dos outros

imaginativarnen~~ vívidos para nós, como se fossem os nossos próprios. Embora

tenhamos alguns sentimentos morais naturais - benevolência, caridade,

generosidade para com as crianças - eles são, em si mesmos, insuficientemente

fortes para promover os sentimentos de confiança de uma vida moral saudável.

Como as outras virtudes artificiais, a justiça surge quando tomamos "um ponto de

vista geral", ampliando-o pela imaginação e informando..0 pela compreensão, a

fim de considerar se uma ação ou um traço de caráter é tipicamente útil ou

agradável para nossos iguais. As convenções de justiça sao, inicialmente,


formadas por considerações egoístas, "mas uma simpatia pelo interesse público é

a fonte da aprovação moral que atende àquela virtude" (Treatise of Human Nature,

111.2.2, 1739-40). Ela é, argumenta Hume, facilmente movida por uma compreensão

simpática dos interesses dos iguais, numa sociedade homogênea. Mas até mesmo

numa sociedade diversa a educação moral pode alargar o escopo da imaginação para

assumir o "ponto de vista geral"; aquela simpatia pode ser bem-sucedida ao

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 91

estimular idéias de bem comum, com a força e a vivacidade das paixões motivadas.

Preliminary Discourse, de Diderot (1713-1784), para a Encyclopédie ou

Dictionaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (1751-1772) anuncia

velhos temas em combinações radicalmente novas. O conhecimento é duplamente

progressivo:

é cumulativo e serve, simultaneamente, à virtude e à felicidade; a compreensão

vincula as faculdades interdependentes do sentido, da imaginação, da razão e da

memória; todo conhecimento, incluindo conhecimento moral e espiritual, surge da

reflexão sobre a experiência dos sentidos, que é, aproximadamente, a mesma em

todos os homens; isto é, deve ser igualmente disponível para todos, e todos são

igualmente obrigados a contribuir para seu avanço; o conhecimento forma um

sistema logicamente coerente, que abarca a atividade produtiva e a investigação

científica; as artes e ofícios fornecem contribuições essenciais tanto à moral

quanto às ciências teóricas. Resistindo ao que considera as pretensões vazias

das deduções metafísicas da ciência e da moralidade, Diderot elogia a confiante


e resignada abordagem do conhecimento de Bacon (1560/1-1626). Em contraste com
o

espírito metafísico abstrato do sistema, que procede formal e dedutivamente, o

espírito sistemático de Bacon começa estabelecendo fatos e procede prática e

construtivamente rumo à organização substantiva do conhecimento.

Kant (1724-1804) volta ao espírito do sistema, agora, formulado em termos

igualitários. Enquanto seu racionalismo não nega a propriedade e utilidade moral

do sentimento - na verdade, ele considera que o respeito à lei moral é o pivô

central da vida moral -, a moralidade estrita requer que se seja capaz de querer

fazer o que é correto, somente porque é correto. Em princípio, qualquer um que

compreende a lei da não contradição pode determinar o que é correto: a máxima que

92 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

direciona um dever moral pode, sem contradição, ser legada como uma lei

universal. A tarefa da educação moral é a de induzir as crianças a compreender e

seguir o que a razão, adequadamente compreendida, demanda. A criança não deve

ser atraída à moralidade pelo desejo de agradar, ou pelo medo de punição, ou até

mesmo porque a virtude é o melhor caminho para a felicidade. Enquanto o

exercício de racionalidade crítica autônoma não pode, como tal, ser

implementado, o educador moral pode fornecer as condições para o seu despertar:

a criança desenvolve hábitos de autoconfiança, enquanto também reconhece que

"ela só pode atingir seus próprios fins permitindo aos outros atingir os seus"

(KANT, Education, trans. Annette Churton. Ann Arbor: University of Michigan


Press, 1960, p. 28). As crianças estão sendo tomadas como modelos de respeito e

auto-respeito; as máximas que são incorporadas àqueles exemplos devem ser

articuladas e aplicadas honesta e igualmente para todos, sem exceção.

Embora as visões de Kant sobre a moralidade fossem, como ele próprio admitiu,

profundamente influenciadas por Rousseau (1712-1778), é este último que parece

ser, ao menos, superficialmente, nosso congênere contemporâneo: reconhecendo

completamente a inevitabilidade da ambivalência moral, descreve tanto o regime

político quanto o regime educacional como promotores da moralidade entre os

homens livres. O dois concordam que a moralidade requer autonomia racional;

também concordam que a liberdade consiste em tratar a si próprio como sujeito à

lei moral e como seu legislador universal. Mas Rousseau projeta nossa condição

natural como muito mais benigna e nossa condição social como muito mais

problemática do que Kant. Em razão de seus escritos estarem focados na política

e na psicologia, em vez de na lógica da moralidade, imaginamos que ele provê o

educador moral com uma orientação clara.

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 93

Os escritos de Rousseau sobre educação moral desdobram-se em três categorias:

1) The Two Discourses (1750, 1755) e a Letter to D'Alembert (1758) são contos

preventivos, atacam as causas que debilitam e corrompem a sociedade e suas

artes. Não deveriam, então, atacar as causas? Rever como elas inflamam a

imaginação e desenvolvem paixões irregulares, perturbadoras. 2) Emite (1762)

delineia os estágios da formação psicológica de um homem livre e uma mãe


amorosa. A educação vem "ou da natureza ou dos homens ou das coisas" (Emite, 1);

a educação básica consiste, em grande parte, em permitir à criança pequena a

liberdade de sua atividade natural. Ao invés de se tornar passiva sendo

ensinada, ou ressentida, sendo punida, a criança deve aprender por experiência,

vendo as conseqüências naturais das suas ações. Para ter certeza, o tutor

freqüentemente manipula o mundo da criança: Emílio adquire a compreensão da

propriedade e da injustiça vendo os resultados do seu trabalho arbitrariamente

despojados; ele aprende sobre promessas sendo colocado em situações onde ele

próprio propõe um acordo mutuamente satisfatório (Emite, II). Em vez de

responder às perguntas de Emílio sobre os fenômenos naturais, o tutor está

empenhado em sua atividade de descobrir os modelos que eles exemplificam. Emílio

se mantém afastado da sociedade tanto quanto possível:

introduzindo hábitos de dependência, transforma o amour de soi ativo e não

autoconsciente em amour propre servil. Quando a adolescência desperta o poder

das emoções sexuais, Emílio -que é, neste período, um jovem saudável e sensato -

pode ser enviado para aprender como o mundo funciona. Sofia, que será sua esposa

e mãe de seus filhos, tem um tipo completamente diferente de educação, focada no

trabalho e no sentimento familiar, em vez de na autonomia racional. Embora sua

educação pretenda ser moralmente igual e beneficamente complementar, a educação

sentimental de Sofia bloqueia sua racionalidade

94 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

imparcial. Como não está qualificada para ser uma cidadã ativa, apenas por
cortesia ambígua para com a pureza dos seus sentimentos é que ela pode ser

considerada um ser moral.

3) The Social Contract (1762) fornece uma descrição das condições políticas

em que os homens podem ter, um em relação ao outro, a expectativa da moralidade.

Bruscamente distinta da dependência social, a vida política ativa tanto forma

quanto expressa as capacidades morais dos homens. Tornando-se sujeito soberano

do corpo político, legislando os princípios gerais das leis às quais submete-se

por vontade própria, é que o indivíduo obtém a promessa de sua natureza. Um novo

conjunto de sentimentos cívicos habilita os cidadãos a identificar seus

interesses com a Vontade Geral: a formação desses sentimentos é alimentada pelos

rituais da religião cívica.

Letters on the Education of Manking (1794-95), de Schiller (1759-1805) endossa a

visão de Kant de que a experiência estética fornece uma sugestão de liberdade

tanto da receptividade da sensação quanto das categorias preconcebidas da

compreensão; ele também concorda com Kant que a liberdade é uma precondição
para

a moralidade. Colocando essas duas visões juntas, ele surge com uma conclusão

completamente não kantiana. A moralidade é a manifestação do jogo espontâneo da

expressão estética; transcende as necessidades governadas pela razão. O

construtivismo progressivo dos enciclopedistas é preservado, mas radicalmente

reinterpretado: o legislador moral último é o poeta divertido e inventivo ou o

compositor, em lugar do artesão e do cientista. A moralidade não é provida pela

habilidade técnica ou pelo conhecimento objetivo; nem é adquirida pela imitação

de exemplos. Schiller foi tão crítico das tentativas de Goethe em assimilar

"gênios" científicos, artísticos e morais, como foi do racionalismo de Kant. Um

sentido vigoroso e robusto de agenciar o dom natural de improvisação espontânea,

que é a marca da verdadeira moralidade - não pode ser adquirido


TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 95

pelo estudo da natureza ou pela imitação de exemplos. Ele só pode ser

desenvolvido permitindo-se a tentativa criativa e espontânea da mente em

adquirir a forma e a estrutura da expressão objetiva.

Bentham (1748-1832) e J.S. Miii (1806-1873) concordaram que o objetivo último da

educação era a promoção da felicidade, de um modo geral, interpretada como a

satisfação de um desejo crítica e amplamente informado. Foi precisamente porque

a doutrina do seu utilitarismo era complexa e qualificada que tomaram seriamente

tanto a educação dos desejos quanto o cálculo das conseqüências. A lógica, a

matemática e as ciências foram estudadas por sua atenção intransigente ao

detalhe empírico, seu acolhimento liberal à contra-evidência: todos três

serviram como modelos de raciocínio autocrítico rigoroso. Bentham declarou

abertamente o push-pin tão bom quanto a poesia; Miii ampliou a educação para

além dos fatos e da lógica - para a educação do sentimento social e cívico -, tanto
como um bem humano

quanto como um instrumento para formação da política pública sábia. A educação

incluí a história, os clássicos e a literatura. A história é o registro da

experiência política; os clássicos fornecem modelos de argumento retórico e de

raciocínio dialético; a literatura desenvolve sentimentos sociais e fortalece a

capacidade da imaginação simpática. Todas essas vias da educação, tomadas em

conjunto e adequadamente ordenadas, são intrínseca e instrumentalmente valiosas.

Fortemente influenciado pelos estudos de Hegel (1770-1831) e Rousseau, Dewey

(1859-1952) acreditou que a educação moral coincide com a educação cívica

democrática, e que ambas envolvem a capacidade para mediar as infinitas tensões


entre a expressão espontânea da subjetividade individual e o trabalho objetivo e

cooperativo da cidadania. O trabalho da moralidade começa com os problemas

práticos que emergem do conflito social; envolve o exercício de um conjunto de

habilidades para

96 DIDÁTICA E TEORIAS EDUCACIONAIS

a solução de problemas de segunda ordem que são adquiridos atraves da

experiência; e flui no desenvolvimento de hábitos inteligentes e continuamente

adaptáveis. O cidadão democrático é o novo governante; a atividade inteligente

torna-se o alvo e a expressão da moralidade. As recomendações de Dewey para a

educação moral seguem o modelo de suas propostas educacionais gerais. Direcionam

a sociedade para fornecer as condições materiais - físicas, psicológicas,

sociais e políticas -que permitem ao indivíduo educar-se a si mesmo: ele

próprio, espontaneamente, tentará ampliar o escopo, refinar as habilidades e

enriquecer o repertório da sua atividade cooperativa. A análise de Goldman sobre

os modos pelos quais os processos sociais estruturam o conhecimento desenvolve

um lado do legado de Dewey. O outro lado é desenvolvido pela discussão de

Galston sobre a educação cívica numa sociedade multicultural.

Mesmo se desejamos, não podemos colocar esta História aquém de nós; ela forma e

informa as concepções de nossos objetivos e necessidades. Mas enquanto países

europeus e anglo-americanos compartilham alguns objetivos educacionais muito

gerais, suas histórias políticas e religiosas distintas, suas condições

socioeconômicas diferentes atribuem a eles problemas educacionais e morais

completamente distintos. Pelo fato de as questões que são a substância das

controvérsias educacionais contemporâneas estarem moralmente oneradas, tendemos


a supor que sua solução é filosófica e geral. Essas controvérsias - a disputa

sobre o lugar da educação religiosa em escolas públicas, sobre a representação

das diferenças étnicas, raciais, de gênero e culturais no currículo, sobre se a

música e as artes deveriam representar um papel significante na educação

pública, sobre se a política educacional deveria ser federal ou local, sobre a

separaçao entre um treinamento profissional e técnico e uma educação liberal e

humanística compartilhada - levantam

TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 97

questões políticas e morais fundamentais. Assim como os detalhes dos problemas

da educação moral naturalmente varian com as circunstâncias nacionais, também o

fundamento filosófico para suas soluções deve variar. A visão de Aristóteles

sobre a educação moral tem um significado radicalmente diferente a Grã-Bretanha

e na Alemanha unificada do pós-guerra; as diferenças entre Loyola, Lutero e

Erasmo têm conseqüências distintas sobre os sistemas educacionais da Irlanda,

Suécia e Holanda. Os princípios cartesianos da educação, da maneira como são

introduzidos na França ou em Portugal, mantêm uma pequena semelhança com sua

introdução nos Estados Unidos; úma educação moral focada na primazia do

sentimento sociil toma, numa nação cujos cidadãos compartilham uma cultura

comum, uma forma diferente da que toma onde uma cultura dominante se depara com

uma população multicultural em crescimento. A educação kantiana apresenta uma

configuração na Áustria e outra completamente diferente na Austrália. E todas

essas configurações, ainda sem que se comece por refletir sobre como a história
da educação moral emerge no Segundo e no Terceiro Mundo, ou como ideais

educacionais islâmicos, judaicos ou chineses se apóiam - e conflitam com - o

momento da economia global que os aguardam. Como é freqüente, a teoria

filosófica caminha para a História e termina com a geopolítica.

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