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Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216

ANÁLISE DO TEXTO “NASCER NO CAIRO, SER FÊMEA DE CUPIM” DE


RUBEM BRAGA

Caroline Soares Nogueira Cardoso


Franciele Aparecida Gonçalves de Oliveira
Vanessa Varasquim
(Gdas – CLCA – UENP/CJ)
Marilúcia dos Santos Domingos Striquer
(Orientadora – CLCA- UENP/CJ)

Introdução

Para muitos, Língua Portuguesa é simplesmente uma infinidade de regras,


mas quando se tem um melhor conhecimento dela, podemos entender que muito além de seu
conjunto de regras, ela é um instrumento de interação entre as pessoas e que é impossível
compreender que seus usuários não sabem utilizá-la. Como pode existir um pensamento que
uma pessoa que interagiu com outros, por exemplo, cinquenta anos de sua vida, usando a
língua materna e não soube utilizar a língua de forma correta?
A visão de que a língua é um simples conjunto de regras, sinônimo de
gramática normativa é que constitui esse pensamento sobre a língua e sobre os falantes da
língua. Contudo, é a maneira como a língua é ensinada nas escolas, a metodologia adotada,
ainda, por alguns livros didáticos do ensino fundamental nas escolas do Brasil é ajuda a
provocar esse tipo de posicionamento. Contudo, considerando que o intuito é de ensinar e
preparar o aluno, percebe-se uma grande falha no modo de aplicar o “português”, porque
utilizando somente a gramática normativa, o aluno começa a odiar a gramática da Língua
Portuguesa, acreditando que não sabe falar corretamente e que não é um bom usuário da
língua.
Quando se aborda o ensino de uma gramática contextualizada, uma
gramática integrada aos textos em estudo, aberta às variantes, assim como é o caso da
gramática internalizada que “é um conjunto de regras que é dominada pelos falantes”
(TRAVAGLIA, 2002, p.32), isto é, quando considera-se o que o aluno já sabe, o que ele
trouxe para escola, fazendo-o compreender que existem outras muitas formas de se relacionar
com as pessoas por meio da língua, além da variante que ele já possui, o ensino se torna mais
significativo, e com certeza, mais prazeroso. Os aprendizes entenderiam que as variações que
trazem para escola também são importantes, tão quanto as mais formais que ele poderá
utilizar em situações comunicativas diferentes daquelas do seu cotidiano familiar.

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Concordamos que aprender gramática normativa é indispensável, pois a


utilizamos em muitos momentos formais, e para que possamos construir nossos enunciados de
acordo com nossa intenção comunicativa, mas ela deve ser entendida como participante do
conjunto de elementos que formam a língua, não apenas como o único e mais importante
elemento. Por isso, é de fundamental importância que nós, professores em formação, alunos
do curso de Letras, realizemos pesquisas referentes ao ensino atual da língua portuguesa e
consequentemente do ensino gramatical realizado nas escolas, para que com base nisso
estejamos aptos a desempenhar nosso papel em sala de aula e buscar sempre o melhor para o
aluno e para nossa formação profissional.
Para tanto, especificamente, nos propomos a analisar o texto “Nascer no
cairo, ser fêmea de cupim” de Rubem Braga, em uma visão sobre as reflexões a respeito da
gramática realizada pelo autor nesse texto.

“Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim” –Rubem Braga

Analisando os parágrafos de introdução do texto “Nascer no Cairo, ser


fêmea de cupim”:

Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de


póstumo? Como se chama o natural do Cairo?
O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente
em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode
servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste
modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.
Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de
Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que
vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Podemos entender que o autor chama a atenção para o fato de não acreditar
não é necessário sabermos os significados e sinônimos de certas palavras que não usamos no
nosso cotidiano, as quais o autor confessa também não saber, embora seja um conceituado
cronista e bom usuário da língua. Ou seja, o falante da língua, usa a língua, interage com ela,
consegue se relacionar com as pessoas por meio da língua, e é isso o que mais importa. Nesse
sentido, podemos relacionar essa visão ao conceito de gramática internalizada, a qual,
segundo Possenti (1996), é um “conjunto de regras que o falante domina” (p. 69). Isto é, todo
o falante sabe utilizar-se da língua para seus interesses.
É Nesse sentido que o autor critica os elaboradores das provas de
vestibulares e concursos públicos, pois conhecer certas palavras como “escardinchar”,
“pulcritude” (variantes históricas ou expressões de época), bem como os significados de

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nascer no Cairo e fêmea de cupim, isto é, de palavras, expressões ou até mesmo construções
que não utilizamos no cotidiano, não provam a inteligência do candidato, tão pouco provam
que o usuário da língua é um bom conhecedor dela.
No quarto parágrafo continua o autor:

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de
ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte
de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar
um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia,
um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom
vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" — mas não
o fiz para não entristecer o homem. (BRAGA, 1960, P. 197)

Essa ‘confissão’ nos remete ao fato do autor se referir a não conhecer a


gramática normativa que é um “conjunto de regras que devem ser seguidas” (POSSENTI,
1996, p.64). Pode não conhecer todas as regras da língua, o que provoca, segundo ele, críticas
de leitores cultos através de telegramas, muitos até mandam recortes da crônica escrita por
ele, apontando erros de português. Mas é evidente que o autor conhece as regras e as utiliza, o
que ocorre é que ele não se preocupa em adequar as suas construções às regras padrões, à
língua padrão. Sua preocupação é interagir com as pessoas, o que ele faz muito bem, sem
dúvida.
Ainda expõe o autor em seu texto:

Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios
— me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos
abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de
pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa
dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é
pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).
(BRAGA, 1960, P. 197)

O que ocorre nesse trecho é uma explicitação de ironia ao dizer que estando
em um hospital ou na cadeia, depois de aposentado, teria tempo suficiente para estudar as
regras da Língua Portuguesa e não mais praticar abusos contra a sua “pulcritude”, ou seja, sua
pureza e beleza. Ou seja, seu interesse na língua, hoje, enquanto escritor que se relaciona com
as pessoas por meio da língua, é com que a língua pode lhe oferecer, com a naturalidade da
língua que promove com que ele se relaciona com as pessoas. Não preocupa-se em saber
palavras, expressões regras, as quais, por vezes, as pessoas nem conhecem, e nem precisariam
mesmo conhecer.

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Através do que expressa o autor, podemos desconsiderar que mesmo não


utilizando expressões como pulcritude, mesmo não sabendo qual é a construção para fêmea de
cupim, a língua que utilizamos é pura. Pura no respeito a suas transformações. Do contrário
estaríamos falando Latim que foi a nossa língua-mãe.
Contudo, no trecho:

Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de


cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me
terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o
feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

Vimos um radicalismo de Braga ao dizer que prefere morrer sem saber o


que seria o feminino de cupim e ainda revela-se preconceituoso a quem sabe, ou seja, aquelas
pessoas que conhecem profundamente as regras e normas da língua, quando diz que este nem
deveria cumprimentá-lo, porque ele acha que se dedicar a esse estudo seria o mesmo que
perder tempo, e quem o faz é desocupado.
Compreendemos também que Braga faz, nesse texto, uma forte crítica social
a respeito dos funcionários públicos, e o pior é que generaliza, ou seja, inclui professores e
outros trabalhadores que cumprem seu papel frente à sociedade, não perdem seu tempo com
palavras cruzadas. Critica também os gramáticos por tornarem a Língua Portuguesa odiosa,
mas a função do gramática é mesmo estudar as regras da língua, e nem por isso o gramático é
o culpado pela metodologia utilizada para se ensinar a língua, ou a gramática, nas escolas.
Evidentemente existe uma fala popular de que a língua portuguesa é difícil, na verdade o que
é difícil é decorar todas as regras que a gramática normativa impõe, conforme se apregoou nas
escolas por um período considerável de tempo. E por esse motivo, e não pelos estudos que os
gramáticos realizam é que estudiosos da língua, como Bagno (1999) afirmam que “Se tanta
gente continua a repetir que o português é difícil é porque o ensino tradicional da língua no
Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português” (p.52).
Nós concordamos, porque precisamos sim conhecer as regras, pois
precisamos estar aptos a lidar com diversas situações, como por exemplo, escrever textos
científicos, falar em público em ocasiões formais, etc.; mas, por outro lado, entendemos que
as regras não deveriam ser aplicadas de uma maneira tão descontextualizada, como acontece,
muitas vezes, na escola. Obrigando o aluno a decorar e a falar do jeito que se escreve,
deixando assim, um sentimento de inferioridade quando ele não consegue atingir o objetivo
esperado, sendo vítima de insultos e risos.

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No texto fica clara a opinião do autor sobre a gramática normativa, contudo


é contraditório quando se mostra a favor da primeira concepção de linguagem: “a linguagem é
a expressão do pensamento” (GERALDI, 1984), expressa no trecho: “No fundo o que esse
tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual
as pessoas se entendam”, que se relaciona a visão de língua como conjunto de regras apenas e
se baseia nos estudos tradicionais: “Se concebemos a linguagem como tal, somos levados a
afirmações – correntes – de que as pessoas que não conseguem se expressar, não pensam”
(GERALDI, 1984). Assim, podemos ver que o autor elabora sua crônica usando a linguagem
para expressar seu pensamento, que, no caso é a sua revolta e indignação a respeito das
instituições que ainda cobram que seus candidatos conheçam essas palavras “mortas”, sem
uso nos cargos a serem ocupados.
Analisando a época em que foi escrita a crônica, por volta dos anos 60,
observamos que naquele tempo o ensino da gramática normativa era muito rigoroso, pois
também existiam professores que além de criticar aqueles que não a entendiam, também
castigavam suas alunos por isso. Assim, podemos imaginar que o autor critica muito o ensino,
por ter passado por situações rigorosas de cobrança da gramática normativa, aliás já discutiu
com um professor que o chamou de burro (http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp).
Então vimos que mesmo na década de 60, já haviam pessoas que discordavam do ensino da
gramática normativa nas escolas e que defendiam um ensino mais aberto às variantes.
De acordo com as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná de Língua
Porruguesa, com a democratização do ensino, foram levadas às escolas as pessoas de classe
menos favorecidas e por isso houve um conflito entre a linguagem ensinada nas escolas
(classes mais favorecidas) e a linguagem, por elas, utilizada (variedades lingüísticas). Nessa
época, o ensino era baseado apenas em regras e visava à qualificação para o trabalho, dessa
forma não se preocupava em formar um cidadão ativo e crítico na sociedade, acarretando
muitas falhas: “a pedagogia da formação de hábitos, memorização e reforço era adequada ao
contexto autoritário que cerceava a reflexão e a crítica no ambiente escolar, impondo uma
formação acrítica e passiva” (PARANÁ, 2008, P. 43).
Somente na década de 70, esse assunto começou a ser discutido, embasado
em estudos Sociolingüísticos (variações lingüísticas), Análise do Discurso (sujeito –
linguagem – história), Semântica (natureza, função e uso dos significados) e Lingüística
Textual (mecanismos de textualização), a partir disso, surgiu um grande questionamento a
respeito da autoridade e da eficácia da gramática, porém os livros didáticos continuavam
trazendo a gramática normativa. Até as aulas de Literatura eram baseadas em exercícios de

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gramática. Em 1990, o Currículo de Língua Portuguesa passou a orientar os professores a um


trabalho focado na leitura e na produção textual, tentando acabar de vez com o ensino
tradicionalista: “optamos por um ensino não mais voltado à teoria gramatical, ou ao
reconhecimento de algumas formas de língua padrão, mas ao domínio efetivo de falar, ler e
escrever” (PARANÁ, 1990, p. 50.)
Nas Diretrizes Curriculares de 2008, podemos observar que é proposto um novo
sistema de ensino, com uma visão interacionista,

Cabe, entretanto, reconhecer que a norma padrão, além de variante de prestígio


social e de uso das classes dominantes, é fator de agregação social e cultural e,
portanto, é direito de todos os cidadãos, sendo função da escola possibilitar aos
alunos o acesso a essa norma. (...) Dessa forma, o aluno terá condições de se
posicionar criticamente diante de uma sociedade de classes, repleta de conflitos e
contradições. (PARANÁ, 2008, P. 66).

Porém, admite –se que não se deve supervalorizar a escrita:

Pensar que o domínio da escrita é inato ou uma dádiva restrita a um pequeno


número de sujeitos implica distanciá-la dos alunos. Quando a escrita é
supervalorizada e descontextualizada, torna-se mero exercício para preencher o
tempo, reforçando a baixa auto-estima lingüística dos alunos, que acabam
compreendendo a escrita como privilégio de alguns. Tais valores afastam a
linguagem escrita do universo de vida dos usuários, como se ela fosse um processo
à parte, externo aos falantes, que, nessa perspectiva, não constroem a língua, mas
aprendem o que os outros criaram. (PARANÁ, 2008, P. 68)

Consta também que em atividades, o professor deve usar as variedades


lingüísticas, pois fala que deve ser avaliado cada linguagem para cada personagem, ou seja,
situações formais: linguagem formal, situações informais: linguagem informal.
Aqui um parágrafo que tenta derrubar de vez o mito já abordado no
início dessa análise:

Para que as propostas das Diretrizes de Língua Portuguesa se efetivem na sala de


aula, é imprescindível a participação pró-ativa do professor. Engajado com as
questões de seu tempo, tal professor respeitará as diferenças e promoverá uma
ação pedagógica de qualidade a todos os alunos, tanto para derrubar mitos que
sustentam o pensamento único, padrões pré-estabelecidos e conceitos
tradicionalmente aceitos, como para construir relações sociais mais generosas e
includentes. (PARANÁ, 2008, P.83)

Diante de tais fatos, podemos chegar à conclusão de que devemos ensinar as


regras, porém não a regra pela regra, mas em uma contextualização. Por isso defendemos que
o ensino deve ser baseado em explicações, produções textuais e muita leitura, sem

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humilhações e chacotas, despertando o interesse do aluno pela sua língua materna e mostrar
que o que muitas vezes ele acha tão difícil e odioso, pode ser tão simples e de fundamental
importância em sua vida.

Referências Bibliográficas:

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 51ª edição. São Paulo, março
de 2009.
GERALDI, João Wanderley: O texto na sala de aula. Cascavel. PR: Assoeste, 1984.
JÚNIOR, Arnaldo Nogueira. Rubem Braga. Disponível em:
<http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp>. Acesso em: 17 ago. 2010.
PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Educação Básica.
Curitiba: SEED, 2008.
PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Currículo Básico para Escola Pública do
Paraná. Curitiba: SEED, 1990.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas-SP: Mercado das
Letras, 1996.
TRAVAGLIA, L. C. Gramática e Interação: uma proposta para o ensino da gramática no 1º e
2º graus. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

Anexo 1

Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim


Rubem Braga

Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de


póstumo? Como se chama o natural do Cairo?
O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em
nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode servir de algum
consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu
semelhante e seu irmão.
Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de
Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de
escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.
Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de
ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica
anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama,
felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português;
acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de
responder: "Mera coincidência" — mas não o fiz para não entristecer o homem.
Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios —
me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que
tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por
acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se

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eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu


marido me descesse a mão?).
Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia
você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua". Mas acho que isso é
exagero.
Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos
cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e
estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que
fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz,
mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.
Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de
cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a
saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a
bondade de não me cumprimentar.
Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer
do estudo da língua portuguesa unia série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que
uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei,
caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar
um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já
gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da "Última Hora" ou
lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de "O Globo?".
No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não
alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, ruas um instrumento de suplício e de
opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.
Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea
de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro,
honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!

Rio, novembro, 1951

(Texto extraído do livro "Ai de Ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960,
pág. 197).

Para citar este artigo:

CARDOSO, Caroline Soares Nogueira; OLIVEIRA, Franciele Aparecida Gonçalves de;


VARASQUIM, Vanessa. Análise do texto “nascer no Cairo, ser fêmea de cupim” de
Rubem Braga. In: VII SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS -
Estudos Linguísticos e Literários. 2010. Anais... UENP – Universidade Estadual do Norte do
Paraná – Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2010. ISSN – 18089216. p.
367 – 374.

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