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INSTITUTO DE ARTES
CAMPINAS
2017
GUSTAVO HENRIQUE TORREZAN
CAMPINAS
2017
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180
Título em outro idioma: Between Gilles Deleuze and Michel Foucault, the diagram as a
tool for thinking the game of forces in the arts exhibition
Palavras-chave em inglês:
Deleuze, Gilles, 1925-1995
Foucault, Michel, 1926-1984
Creative process
Contemporary art
Art - Exhibitions
Experiential research
Difference (Philosophy)
Área de concentração: Artes Visuais
Titulação: Doutor em Artes Visuais
Banca examinadora:
Ivanir Cozeniosque Silva
Ricardo Roclaw Basbaum
Paula Cristina Somenzari Almozara
Susana Oliveira Dias
Sylvia Helena Furegatti
Data de defesa: 17-02-2017
Programa de Pós-Graduação: Artes Visuais
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO
MEMBROS:
DATA: 17.02.2017
Para
Angela Maria Torrezan,
Sylvino Luiz Torrezan,
Magali Eliana do Prado Teixeira e
Noel Pedro Teixeira.
“Para escrever um texto que fala das relações
entre a arte e a luta necessitaria de uma língua
estrangeira dentro da própria linguagem, uma
língua de saltimbancos que materialize a
possibilidade de dançar numa corda bamba e de
combater.”
(Claire Fontaine.
Em vista de uma prática Ready-made)
Resumo
Esta pesquisa investiga a exposição de arte como um campo que constrói e se constrói
a partir de relações de força. Para isso, utiliza como ideia o conceito de diagrama, que
é pensado com a criação de um jogo que se apresenta como uma prática experimental
daquilo que problematiza e do conceito que privilegia.
This research investigates the art exhibition as a field that builds and builds itself from
power relationships. For this purpose uses as idea the concept of diagram, which is
thought with the creation of a game that presents itself as an experimental practice of
what is worked.
0 Prólogo 10
1 Convite (Apresentação) 24
2 Regras do Jogo 26
3 Introdução 27
4 Uma estratégia 34
5 Um jogo 37
6 Um jogo como Dispositivo 42
7 Multiplicidade no Jogo 45
8 Dispositivo e Liberdade 48
9 Liberdade e Criação 51
10 Criação e Profanação 54
11 Dispositivo e Diagrama 56
12 Personagens Conceituais no Jogo 60
13 Textos 63
14 Aberturas 252
15 Referências 256
16 Bibliografia Complementar 263
17 Sites 271
10
0 Prólogo
Sobre a ideia de caixa e como este trabalho é encontrado nos bancos de dados
Brincar e criar
A caixa
Ainda que a caixa que guarda o jogo não possa ser tocada pelo leitor,
impedindo-o de jogar o jogo que ela porta, o material da caixa poderá ser apreendido
nas páginas subsequentes, bem como sua importância e funcionamento. Com ele,
12
1. Convite (Apresentação)
A caixa que se tem em mãos é composta por 4 tabuleiros, que serão sobrepostos
uns aos outros, 151 peças, correspondendo a 151 “textos”, que serão sorteadas para
serem dispostas em pontos determinados do tabuleiro, indicando a série de leitura, 1
caderno que apresenta as regras do jogo e traz textos que refletem sobre a sua
construção, que é a própria pesquisa.
Talvez um leitor que não se queira jogador decida ler este caderno antes de
jogar, será uma pena, pois o que aqui está dito e escrito supõe um
experimentador/jogador, um certo tipo de leitor portanto, sem o qual o jogo/a pesquisa
não existem.
Assim, fica o convite para que o leitor/jogador jogue o jogo antes de ler os
textos que aqui seguem.
26
2 Regras do Jogo
3 Introdução
1
Aqui se referência por sistema das artes as articulações em torno de trabalhos de arte ou mesmo dos
fazeres da arte que possuem maior definição e por sequência controle. Sabe-se que “trabalhos de arte” não
é uma definição estrita. Faço uso dela justamente pelas multiplicidades que esse termo pode abarcar,
entre as quais está o próprio fazer artístico, assim como um desdobramento daquilo que pode ser também
chamado de “obra de arte”. Dou especial atenção ao modo como os “trabalhos de arte” ou os “fazeres da
arte” estão implicados em algum tipo de dispositivo, de instituição e por consequência em alguma forma
de controle. Tratarei desses assuntos adiante, cabe aqui enfatizar que entre as principais forças no sistema
de artes está a exposição de artes visuais. Desse modo, o termo aqui empregado remete pouco àquilo que
Hegel indica enquanto sistema da arte, já que, hoje em dia, acredita-se que o sistema das artes, para além
de expor e vender obras de arte, cria uma dinâmica que confere a ele próprio um funcionamento mais
desenvolto e alinhado ao capitalismo contemporâneo, este que é movido por crises.
2
A ideia de perspectiva aqui indicada refere-se à intenção de apontar para a pluralidade de sentidos, uma
certa polissemia que tende ao infinito tal qual propõe Nietzsche em seus estudos para uma teoria do
conhecimento. No aforismo sobre o “infinito” indica o filósofo: “penso que hoje, pelo menos, estamos
distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele pode-se ter
perspectivas. O mundo tornou-se novamente ‘infinito’ para nós: na medida em que não podemos rejeitar a
possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (MOTA, 2010, [s.p.]).
28
3
Nesta pesquisa, além dos textos de artistas e de teoria das artes, foi utilizada como referência a literatura
e estudos da área da filosofia, entre os quais ressalto a filosofia francesa da segunda metade do século
XX, para a qual tem significativa importância os estudos sobre a singularidade. Interessa-nos a ideia
propagada por Gilles Deleuze ao indicar que a filosofia da diferença atém-se à singularidade e não a
identidade de cada pessoa. Por isso, nesta pesquisa, ainda que se tenha como foco a pluralidade de
atuações do artista hoje, aquilo que se apresenta são as forças que atuam sobre cada tipo de material, entre
eles, está o corpo do próprio artista.
4
Pode-se entender o binômio teoria e prática artística como praxis e esta pode ser compreendida como
ação humana a partir da apreensão no e do mundo.
5
Adiante será tratado com minúcia o que é entendido como articulação. Aqui indico um importante
trecho escrito por Luiz B. L. Orlandi (ALLIEZ, 2000, p. 55) sobre as linhas de ação da Diferença na
teoria de Gilles Deleuze: “essa tensão é que parece animar a explícita tematização das linhas de ação da
diferença. Os conceitos que aí se elaboram dizem respeito a uma ‘noção complexa’, à noção de uma dupla
articulação de operações que constituem por exemplo o ‘sistema” da ‘Ideia’, entendida esta como
‘multiplicidade substantiva’ comportando ‘n dimensões’, comportando, pois, o conjunto de ‘variáveis’ ou
coordenadas das quais:, diz Deleuze, ‘um fenômeno depende’. Em sua inteireza, a Idéia é um sistema de
diferenças determinado por uma complexa articulação de ‘diferenciações’ (différentiations) e
‘diferenciações’ (différenciations). Toda e qualquer coisa, seja natural ou artificial, seja física ou social,
seja uma cor ou um poema, até mesmo um conceito, comporta, no mínimo, essa dupla articulação própria
da ideia dita ‘inteira’.”
6
Luiz B. L. Orlandi indica uma outra ideia para pensar a relação da metade de uma ideia (aqui tratada
como meio de um processo) com a diferença (indicada por ele como diferenciação). Diz ele em Linhas de
ação da diferença (ALLIEZ, 2000, p. 56): “As diferenciações acontecem numa das metades da Ideia, no
seu lado ‘distinto-obscuro’, diz Deleuze, subvertendo, com Leibniz, o legado cartesiano: distinto por
29
causa de suas relações diferenciais e suas singularidades e obscuro porque esses elementos não estão
ainda atualizados.”
30
7
O termo exposição aparece várias vezes nesta pesquisa para além do título. Nele podemos assumir
diferentes aspectos, perspectivas, intenções, formatos pois ele carrega consigo as variações desde
sua procedência no campo das artes. Para este trabalho e para a lógica que ele pretende ativar, o
que pode ser pensado como exposição é um determinado funcionamento espaço-temporal,
classificado e nominado como tal, que faz e se faz como um campo de forças. A ideia de campo de
forças será trabalhada adiante com maior clareza, porém aqui quero destacar que vários indivíduos
estão envolvidos para engendrá-lo. Ainda vale ressaltar que, segundo aquilo que será apresentado
adiante, não é uma intenção dessa pesquisa trabalhar dentro da lógica do arquivo e, portanto, não
cabe classificar, contabilizar, hierarquizar, mas, sim, produzir um experimento que lance vistas ao
funcionamento de uma exposição tendo como visada a ideia de diagrama.
8
“Se um desenho – mapa, diagrama – é convocado a servir de ferramenta para a produção de
pensamento, é porque está já posto o desejo de pensar de outra forma – pensar sensivelmente,
sensorialmente, pensar o ainda não-articulado, o impensado” (BASBAUM, 2010, p. 31).
9
Silvio Ferraz propõe o mesmo quando cria manchas em suas composições, estas que para mim podem
ser entendidas como “ruídos”: “Guardando as respectivas especificidades, este processo de gerar uma
mancha foi empregado ao longo da composição de Window. Assim, sobre alguns elementos disformes
foram realizados traços que determinassem contornos locais e instáveis. Esses contornos funcionam como
31
mas construir dinâmicas discursivas que evidenciam temas e conceitos preciosos tanto
para ele quanto para a arte contemporânea, como provocação de experimentos
singulares, tal qual fizeram os artistas que possivelmente fazem parte de suas
referências: Helio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape propuseram a inserção do
espectador como participante indispensável e ativador do trabalho; Allan Kaprow, Piero
Manzoni, George Maciunas e Marcel Duchamp se engajaram na importância da
construção de conceitos e no uso de materiais diferentes daqueles até então tradicionais
das artes plásticas, ampliando o espectro de materiais possíveis de serem utilizados nas
construções artísticas.
Para Basbaum, os diagramas são estruturas cartográficas para “mapeamento
afetivo e relacional” (BASBAUM, 2010, p. 31), que combinam linhas, palavras e outros
elementos gráficos que “indicam a efetivação de processos procurando instaurar
dinâmicas de funcionamento em que há produção” (BASBAUM, 2010, p. 29). Esse
dispositivo de contato “se trata de um plano de composição, cuja guia não é a
ordenação, mas a composição de um bloco de sensações: uma encruzilhada” (FERRAZ,
2004, p. 11), ou melhor, um plano de articulação de forças. Assim, os diagramas
efetivam processos dinâmicos de produção de pensamento e podem ter uma presença
autônoma, já que são uma “plataforma de articulação das dimensões sensorial e
conceitual, concebida como agente intersticial – dispositivo de contato entre uma
situação real e outra potencial” (BASBAUM, 2010, p. 29) – que media a produção de
novos gestos e discursos.
Outro artista que também é referencia para essa pesquisa é o músico,
compositor, professor e pesquisador Silvio Ferraz, que faz uso do conceito de diagrama
para pensar e criar composições que são executadas uma única vez a partir do uso de
softwares de computadores. Para Ferraz (1998), o diagrama busca torcer o espaço de
representação e é um modo de intervir na forma figurativa para desarranjá-la, resultando
em algo cuja natureza difere daquela chamada figura. O que se busca não é tirar o gesto
daquilo que ele representa, mas “retorcê-lo a ponto de tornar obscuro tal índice de
representação” (FERRAZ, 1998, p. 251) e, com isso, abrir-se à diferença e perder-se em
fatores de coesão momentâneos, que dão uma forma mais clara a passagens praticamente caóticas. É o
que se procurou realizar com a inclusão de reiterações de notas e com a incisão abrupta de acordes curtos.
Existe aqui uma equiparação com a ação do diagrama, porém no sentido inverso. De uma figura, busca-se
delinear uma figuração. Porém quando esta vem à tona ela já vem deformada, prevalecendo o aspecto
figural.” (FERRAZ, 1998, p. 13). Este texto foi publicado online e encontra-se disponível em:
<www.silvioferraz.mus.br>. Acesso em: 20 maio 2015.
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cada gesto, de tal maneira que o trabalho final seja impossível de ser refeito.
Ao apresentar esses dois artistas que fazem uso da ideia de diagrama como
possibilidade de construir um bloco de sensação10 sem cair em um plano informativo
(DELEUZE, 2007), o desejo foi dialogar com os estudos de Michel Foucault e de Gilles
Deleuze, buscando desdobrá-los e contribuir, assim, para pensar as
articulações/movimentações que se realizam na exposição.
Da perspectiva que tomo, o diagrama pressupõe a mobilidade, a dinamicidade, a
movimentação para potencializar uma espécie de operação – uma máquina abstrata –
cujo motor conectivo pode estar, entre outros, nas coisas, no pensamento, nos deslizes
identitários, na resistência, na criação, nas articulações que justamente propõem
funcionamentos outros, singulares, que de alguma maneira fogem das normas, das
padronizações e dos engessamentos, fazendo-os fugir.
Desse modo, o diagrama diferencia-se da estrutura, já que suas
[...] alianças tecem uma rede flexível e transversal [...] definem uma
prática, um procedimento ou uma estratégia, distintos de toda
combinatória, e formam um sistema físico instável, em perpétuo
desequilíbrio, em vez de um círculo fechado de troca (DELEUZE,
1988, p. 45).
10
Em essência, bloco de sensação, conceito cunhado por Deleuze e apresentado no livro Lógica da
Sensação (2007) e também no livro O que é a filosofica? (1997) escrito em parceria com Felix Guattari,
refere-se à ideia de que as coisas (no caso as obras de arte) valem por si mesmas, ou seja, possuem uma
certa independência no mundo daquele que a criou, já que catalisam forças que as tornam visíveis. A
noção de força é então a instância que deflagra a sensação e portanto a arte, esta que é criadora de
sensações e é definida por ele como um bloco composto de perceptos e afectos. Deleuze aponta (2007,
p.62): “A tarefa da pintura [aqui podemos dizer da arte] é definida como a tentativa de tornar visíveis as
forças que não são visíveis. [...] Isso é evidente. A força tem uma relação estreita com a sensação: é
preciso que uma força se exerça sobre um corpo, ou seja, sobre um ponto da onda, para que haja
sensação.”
33
4 Uma estratégia
11
Não significa que eixo seja uma amarra ou um centralizador que condiciona, mas que intenciona um
tipo de funcionamento e de operação que gera força no todo.
12
Tirar do artista e colocar no artístico é uma maneira que tomei para mim para fugir do
ensimesmamento que nada produz e nada dialoga.
36
estruturalmente todo novo passo dado. Desse modo, procurei criar regras simples, as
mais básicas possíveis, e produzir o máximo de movimento, assim como, dia após dia,
busquei me movimentar com e no texto. Também tive como meta, ao longo do
caminho, conquistar algum tipo de diversão que animasse a crença de que chegaria ao
fim do doutorado, pois não é fácil acreditar nisso quando se tem apenas as noites para
estudar, após um dia de trabalho exaustivo, “claustrofóbico”, sendo funcionário de uma
instituição. Os textos e os personagens surgiam em meio às vernissages, visitas a
exposições, escritas de editais, participação em exposições, produções, curadorias,
palestras, mandos e desmandos no trabalho – diversas atividades, gozos e aflições.
Nunca é demais ressaltar que os personagens não são reais, assim como suas histórias,
já que o intuito aqui não é retratar ou retomar um acontecido. Os textos escritos e os
personagens criados para o jogo intentam movimentar algum aspecto conceitual, para
fazer a pesquisa se construir e funcionar; mas não posso deixar de dizer que também
funcionavam como uma espécie de bálsamo ou até mesmo uma espécie de operação
xamânica que expurgava a angústia experimentada ao vivenciar um percurso de
doutorado em que o tempo para a pesquisa era escasso.
Segui escrevendo, segui me divertindo, segui criando e segui produzindo o jogo,
fazendo ressoar a alinearidade da produção dos meus dias e da profusão do fazer, ainda
que, como aqui já dito, não quisesse espelhá-lo. Com os textos, ora falava o diretor da
instituição, ora o segurança, ora o dono do bar, ora o artista etc. e produziam uma
dinâmica no dizer – do calar, do aceitar, do contestar, do persuadir, do ordenar, do
esquivar –, nos gestos, no caminhar, nas passagens, engendrando sequências de
variações, onde aquilo que variava era o que estava posto em jogo – embates de forças,
relações de poder. O que acontece em cada texto e nas relações entre os textos procura,
de certa maneira, tirar o foco dos personagens em si e fazer ver aquilo que eles
agenciam a cada passagem: jogo de forças. Ainda que cheia de acidentes, e sustentando
uma unidade fragmentária, esta pesquisa se coloca como prolongamento de minhas
pesquisas em artes e como um experimento prático, artístico, poético para pensar no
plural.
37
5 Um jogo
Por trazer a prática como operação sem a qual os conceitos não se tornam
efetivos, mas apagados ou mortos, como mencionado, esta pesquisa tomou para si uma
estratégia: o jogo. Configurando-se como tal, ela busca se apresentar como movimento
daquilo que ela pretende tratar. Assim, a pesquisa cria o lugar onde ela própria se
engendra como prática, valendo-se de elementos os mais diversos para compor um jogo.
São personagens, materiais, organizações, visões, picturalidades, questões poéticas e
filosóficas, até expositivas, já que, como nos indica Gilles Deleuze, “pode-se fazer
[jogar] com qualquer coisa”13, desde que essa coisa se jogue, se jogue no mundo, pondo
em jogo as forças que a movimentam. A cada passagem, uma nova possibilidade:
movimento que se faz como criação.
A pesquisa-jogo, apresentada como um dispositivo, é formada por regras muito
13
Cf. LINS; GIL, 2008, p. 16.
38
**
Esse jogo é construído a partir dos múltiplos trabalhos que realizo numa
exposição. Assim, desenvolvi 151 “textos”, cujas posições no jogo são variáveis,
funcionando como disparador para uma possível perspectiva que se engendra na
exposição e com o que ela envolve. Desse modo, o jogo é formado por pequenos textos
que podem funcionar sozinhos, mas que, quando articulados em séries aleatórias,
explicitam a potência do jogar, do brincar. Deseja-se com isso intensificar ao máximo as
variações na leitura e no pensamento, de modo que se chegue a experimentar o
funcionamento do diagrama na construção do trabalho, mas sobretudo de entrada nele e
naquilo que ele quer fazer pensar. Seu atravessamento, feito na leitura e na passagem
por cada ponto-texto, em cada tensão, em cada revolteio e ainda em cada
desdobramento que se pode ter, é colocado aqui como um experimento diagramático de
pesquisa. Desse modo, as séries remanejáveis trazem à tona as transmutações dos
fazeres na e com a exposição de arte, e podem ser lidas de diversas maneiras.
A cada leitura feita, a cada passagem realizada, intenciona-se a pluralidade e a
multiplicidade, tendo em vista a invenção de meios próprios e singulares para produzir
um pensamento que tem como propósito trazer consigo a dinamicidade e diversão que
são próprias da vida. De uma vida que não é pré formatada, mas que se inventa a cada
passagem, a cada desvio.
Refletindo sobre o logos, o pensador grego pré-socrático, Heráclito, formulou
com vigor a problemática da unidade permanente do ser diante da pluralidade e
mutabilidade das coisas, e compreendeu a existência a partir de uma aptidão inata para o
jogo. Compreendendo o jogo como uma operação para a justiça, indicava a luta de
inúmeros seres relacionando-os com uma incessante mudança.
39
A ideia é retomada por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra (2012), onde ele
indica que há três momentos do jogo, segundo o que aponta Deleuze em seu livro sobre
esse filósofo. O primeiro e o segundo momentos se conjugam com o terceiro, são
formados pelo jogador, a arte ou a criança. Já o terceiro, por sua vez, é a constante
mudança (devir). Se no primeiro e segundo momentos se dá o lançar-se à vida (para
Nietzsche, por exemplo, é o lançar e o cair de um dado), o terceiro é a própria mudança
que retorna como signo da diferença ou é retomada sempre de uma maneira diferente.
A mudança pode ser pensada, então, como o jogo em que a própria mudança
brinca consigo mesma. E, ainda que retorne “num mesmo jogar”, o faz de uma maneira
diferente, algo muda, por mais imperceptível que seja. Em vista disso, o jogo é sempre
decisão em variação, e como estratégia deste trabalho abre a possibilidade de sempre ser
produzido, efetivado de um modo diferente, tal qual o artista, a obra, a exposição. Vale
lembrar que, embora este jogo tenha um fim ou suas variações de possibilidades
matematicamente grandes se esgotem, o seu sentido a cada nova partida (leitura) se
multiplica ao infinito.
A estratégia do jogo é assim usada para que seja possível olhar diferentemente
para o mundo que perfaz a exposição e as questões habituais que ela traz, a partir da
ênfase nas forças que dão existência a ela.
Afloram aí múltiplas perspectivas, portanto múltiplos mundos por onde o
pensamento escapa – ainda que minimamente – da rigidez, do esperado, do dado seja na
pesquisa, na criação, seja no entendimento que se tem sobre o que vem a ser o artista, a
obra e a exposição hoje, com seus graus máximos e mínimos de institucionalização.
Se, na vida, na exposição, assumimos diferentes papéis e agenciamos diferentes
forças de maneira dinâmica, pensar a exposição através de um jogo onde aparecem as
ações, negociações, contenções, bloqueios, tensões de personagens que nela ganham
algum tipo de existência, a pesquisa se coloca como uma aposta – e, como diz
Dostoévski (1963, p. 122), devemos sempre “fazer novas apostas, ao acaso e sem
cálculo” – ao trazer as variações, as multiplicidades de ações e experimentos que se
produzem numa exposição.
40
O jogo como pesquisa, como estratégia de pensamento, é uma criação que busca
pôr em jogo o sistema dominante, seu funcionamento, sua operacionalidade na dinâmica
das ações, e busca fazê-lo por meio do riso, da brincadeira, da diversão. Pois é próprio
da criação a diversão, isto é, a mudança de direção, e poder fazer isso incessantemente é
alcançar a alegria mais intensa, aquela do jogo dos deuses.
14
LAITMAN, Rav. Michael. Conceitos Básicos da Cabala, p. 18. Livro digital disponível em:
<http://www.kabbalah.info/brazilkab/livros/conceitos_basicos_cabala.pdf>. Acesso em: 14 out. 2016.
41
15
Aqui, a ideia de perspectiva é tratada a partir das proposições de Nietzsche (MARQUES, 2003, p. 120)
quando o filósofo, buscando refletir acerca da infinitude, indica que é possível alcançá-la, já que se pode
partir de diferentes perspectivas.
43
Nesse jogo existe uma certa ordem, tal qual anuncia Huizinga quando se propõe
a pensar o jogo, porém, expandindo o que coloca o autor, considero que o jogar pode ser
sucedido por algo que foge do seu controle e é inesperadamente novo, lançando a ideia
de dispositivo.
O historiador Johan Huizinga, em seu trabalho Homo ludenz: o jogo como
elemento cultural (2000), indica que o jogo refere-se a uma certa “natureza primordial
do humano”, de maneira que o homem é capaz de recriar-se de diversos modos nas
partidas, nas jogadas nas quais se lança. Talvez esse lançar-se seja a possibilidade de
criar o novo, aquilo que se diferencia de tudo o que passou. Mas isso não é algo fácil,
uma vez que o jogo só existe no ato de jogar, e a vida como jogo requer uma entrega.
Esse mesmo pensador assinala que é preciso entregar-se ao jogo, pois é ele que nos
lança nesta ou naquela partida, e é ele que também dita a cadência de cada jogada, e isso
independe do humano, indica ele, pois se joga com qualquer material, com qualquer
coisa. Ainda que possa usá-lo como material para operar, na medida em que é “livre” e
expressão da liberdade e com ele “cria ordem e é a ordem” (HUIZINGA, 2000, p. 13), a
ordem proposta por Huizinga é aqui considerada com algo passageiro, circunstancial,
que se produz em relação aos jogadores, aqueles que jogam. Se todo jogo cria um
mundo, esse mundo, no momento da sua criação, ainda que em meio ao caos, configura
uma certa ordem num dado momento, mas, passado esse momento, as variáveis que
participam dessa mesma ordem se colocam em relação com outras forças, introduzindo
na ordem um pouco de caos, produzindo uma outra ordem, ou seja, o jogo tem por
princípio uma certa anarquia, exibida e valorada pelas crianças (e pelos deuses) e
desconsiderada pelos adultos, que transformam toda regra em regra invariável, e toda
ordem em ordem única e fixa. Ainda que os adultos não levem em consideração essa
dinâmica anárquica do jogo quando jogam, eles a produzem nas relações, nos dias, nas
ações no trabalho, na arte, numa exposição... Nesse ponto, o jogo aqui proposto espelha
o próprio jogo que pode ser a vida ou aquele em que a própria vida está em jogo. Dessa
maneira, se quer que todo jogador siga a regra e se deixe ser conduzido a partir das
variações de regras, tendo o mercado como agente que produz e/ou dita as regras16, por
16
No livro Crise e insurreição, escrito com um grupo de autores anônimos que se autodenomina Comitê
invisível, é possível uma profunda reflexão sobre o assunto. Vejamos: “A profusão cotidiana de
informações – alarmantes para uns, apenas escandalosas para outros – molda nossa apreensão de um
mundo globalmente não inteligível. [...] É por meio de seu aspecto ingovernável que ele é realmente
governável. É aí que está a malícia. Ao adotar a gestão da crise como técnica de governo, o capital não se
limitou apenas a substituir o culto do progresso pela chantagem da catástrofe, ele quis reservar para si a
inteligência estratégica do presente, a visão de conjunto sobre as operações em curso. [...] Para os
44
isso vale dizer que o capitalismo de hoje usa a crise como operação. Foucault (2004, p.
264-266) aponta esse raciocínio de maneira singular quando analisa a constituição das
sociedades atuais não como operadoras de um único processo exaustivo de
disciplinamento. Diz o autor que temos no horizonte
neoliberais, o discurso da crise é um discurso duplo – eles preferem falar, entre si, da “verdade dupla”.
Por um lado, a crise é o momento vivificante da ‘destruição criadora’ que cria oportunidades, inovação
empreendedores, em que só os melhores, os mais motivados , os mais competitivos sobreviverão. [...] O
capitalismo cria um conflito em cada um de nós.” (COMITÊ INVISÍVEL, 2016, p. 19 e 26).
45
7 Multiplicidade no jogo
O Leitor pode deve ter notado que, logo no Convite (apresentação), indiquei a
necessidade de que fosse jogado o jogo antes de se iniciar a leitura desses textos e,
especialmente, que é preciso jogar inúmeras vezes para que seja possível ler todos os
“textos” que compõem o próprio jogo. Há, portanto, algo a ser dito sobre as
combinações envolvidas e a probabilidade delas acontecerem e sobre sua relação com a
multiplicidade.
É preciso explorar, então, primeiro, a ideia da probabilidade em relação ao jogo,
isto é, qual a probabilidade de se repetir uma determinada série de textos no sorteio das
peças. Assim, se tivermos um sorteio, me fiz as seguintes perguntas: quantas
combinações são possíveis com esses “textos”, considerando o sorteio de 30 deles a
cada vez (limite do tabuleiro). E ainda: qual a probabilidade de se repetir uma mesma
combinação?
As tabelas que seguem nos ajudam a melhor compreender a resposta a estas
perguntas, ao mesmo tempo, apresentam-se como exemplos que podem ser utilizados
como variáveis possíveis para leitura dos “textos”, especialmente quando esta pesquisa
estiver na biblioteca e/ou no banco digital de teses, pois nesses locais as regras de
formatação são rígidas, o que inviabiliza a possibilidade de apresentação da pesquisa no
formato proposto. Entendemos que a pesquisa precisa se mostrar disponível e
funcionando também em outros suportes – o banco de teses da universidade e as
prateleiras da biblioteca -, ainda que não carreguem consigo a versatilidade e a força
que este formato traz.
Sorteio 1o 2o 3o 4o 5o 6o 7o 8o 9o 10 o 11 o 12 o 13 o 14 o 15 o
46
Assim, fui atrás dos conhecimentos necessários para descobrir os números que
apontam as combinações possíveis. Na chamada Combinação simples, domínio da
matemática onde é tratado esse tipo de problema, trabalha-se com uma fórmula que
envolve as variantes “C” “n” e “r”, onde “C” é a combinação desejada, “n” é o número
de fatores possíveis e “r” o número de combinações que se escolhe. Mas vale lembrar
que, na fórmula para resolver esse problema, “n” e “r” são números fatoriais, ou seja,
que “n!” e “r!” são o mesmo que n!= n x (n-1) x (n-2) x (n-3) x ... x 1 e que, do mesmo
modo, r! = r x (r-1) x (r-2) x (r-3) x ... x 1. É importante destacar que cada número
fatorial segue multiplicando até o número 1 e não é nunca negativo.
Então, as possibilidades de combinação, considerando 151 “textos” e o sorteio
de 30 deles a cada vez, são assim calculadas:
8 Dispositivo e Liberdade
17
Foucault (1979) aponta que a liberdade aparece enquanto condição de existência do poder. Só se exerce
poder quando há, ainda que mínima, liberdade, já que é nela e através dela que o poder se exerce.
49
ou menor grau, trabalham para isso, e numa certa medida, contra isso. Há numa
exposição um engenho incrível para que ela se configure.
**
irá funcionar ou de que algo dará errado, mas justamente porque, como o capitalismo
(que insistentemente a informa), ela funciona desfuncionando.
Um Assessor de imprensa inventa a resposta que o Coordenador da instituição
quer escutar; um Jornalista arranca frases de efeito do Artista que inventa um novo
modo de dar respostas, divertindo-se com aquilo; um Estudante gruda um chiclete num
canto da parede da exposição; um Educador se apoia num canto e tira um cochilo; o
Artista cria um trabalho que tensiona o sistema e o apresenta dentro de outro; um
Estagiário canta em voz alta enquanto precisa ordenar o ordenador. Algo acontece, uma
ação se realiza ou não, alguém fala e o outro já não diz mais. Estabelece-se um vetor,
um sentido, seja de maneira ativa, criando algo naquilo que se passa, seja de maneira
reativa, neutralizando, separando, limitando, restringindo toda possibilidade18. Sempre
algo se passa.
18
Como força ativa e reativa Deleuze (1976, p. 22) indica: ”Segundo Nietzsche, o problema do
organismo não pertence ao debate entre o mecanismo e o vitalismo. O que vale o vitalismo enquanto crê
descobrir a especificidade da vida entre forças reativas, aquelas mesmas que o mecanicismo interpreta de
um outro modo? O verdadeiro problema é a descoberta das forças ativas, sem as quais as próprias reações
não seria forças. A atividade das forças, necessariamente inconsciente, é o que faz do corpo algo superior
a todas as reações, em particular, a esta reação do eu que é chamada de consciência: [...]. As forças ativas
do corpo fazem do corpo um si e definem o si como superior e surpreendente. [...] A verdadeira ciência é
a atividade”.
51
9 Liberdade e criação
Pode-se partir de qualquer lugar, desde que se saiba a direção para onde se quer
apontar, disse o Educador. Já um Estudante, ainda que interpelado a olhar as
características plásticas de um trabalho de arte, não para de ver naquilo coxinhas,
rissoles e outras coisas que a fome aponta. Há ainda o Atendente de público que, após
experimentar variáveis imensas de emprego, resolve fincar pé naquele cargo pouco
dinâmico para contar histórias, prolongando-as aqui e acolá, e assim ter tempo para
pensar naquilo que lhe importa. Talvez entre essas passagens, e tantas outras, seja
possível pensar algo que se coloca como comum: a liberdade se desdobrando na criação.
Não se trata de qualquer tipo de liberdade, mas de um tipo ou valor que sinaliza, produz,
uma reconfiguração no dado e impulsiona a criação.
O que nos importa aqui é a íntima relação entre liberdade e criação, tendo como
pressuposto a relação de liberdade e ordem conforme já foi exposto anteriormente. Pois
a exposição funciona e funciona com maior ou menor grau de liberdade, e com um forte
movimento de criação. Então ela funciona como um dispositivo de expansão e de
organização da criação em proveito de um certo produtivismo19 – a exposição precisa
abrir para o público, precisa funcionar. Ainda assim, há escapes e é neles que aqui
apostamos com a estratégia desse jogo e ao tentar construir uma reflexão para chegar até
a ideia de diagrama.
Vejamos. O Garçom, ainda que caminhando atento, servil e cordial, como lhe
cabe ser e fazer, encontra espaço para o “algo mais” que toda abertura lhe traz. Estaria
ele aprisionado ao trabalho que realiza ou consegue ele criar variações naquele trabalho
por mais rotineiro que seja? Essa é a questão que relaciona a liberdade e a criação como
um tipo de prolongamento que expande, que torce a ordem e o comum, e por isso é
importante que seja pensada dentro de uma exposição de arte, para além do trabalho do
artista, pois há diferentes níveis de criação acontecendo ali e eles se articulam. Esse
19
Pode-se dizer que a exposição funciona para um mercado, embora o mercado que aqui se indica não se
refere apenas e somente ao dinheiro, mas ao impulso com maior ou menor grau de organização de valores
e de subjetividades.
52
dos aprisionamentos que todo dispositivo produz e da passividade que o desejo de gozo
dispara quando aceitamos as normatizações, as regras que são impostas. O convite à
profanação é um convite especial para brincar e para acender a expectativa de um tipo
singular de imprevisto e dele fazer um uso particular. Profanar aqueles a que se está
servindo, tal como faz o Garçom, profanar as formas existentes na leitura que um
Educador propõe enxergando nelas comida, tal como faz o Estudante; profanar o
problema dado, para que se diga algo de um modo novo, singular, tal como faz o
Artista. Ou seja, profanar a arte, o governo, o sistema, o Estado e até o profanador..., eis
a liberdade que permite expandir e ou reconfigurar o jogar para não fazer dele uma mera
operação de resultados já definidos e esperados.
Profanar para ser livre, para jogar um jogo ideal20 – recordo-me, aqui, de Helio
Oiticica trazendo uma escola de samba para dentro de um museu21 – e assim validar sob
um outro viés uma célebre e emblemática propositura de Mario Pedrosa: a arte como o
exercício experimental da liberdade22.
A liberdade à qual Huizinga, em Homo Ludens (2000), se refere, aqui nos
remete ao acontecimento que não se espera e que engendra o novo, um novo
funcionamento nesse mesmo jogo, ou seja, exprime a potência de criar. Potência de um
novo jogo ainda que seja dentro de um jogo já existente, uma reconfiguração para uma
outra operação. Potência-liberdade que opera a partir da ordem para incessantemente
desfazê-la, é o funcionamento do dispositivo tal como indica Foucault.
20
“O artista pode jogar esse jogo, repetindo e agindo, criando vida que se confunde com arte. Produzindo,
criando o novo, o diferente, não por prazer, mas por necessidade, porque é uma fonte de vida. ‘Um
criador não é um ser que trabalha por prazer. Um criador não faz senão aquilo de que tem absoluta
necessidade’. Como diz Deleuze, o artista é capaz de jogar o jogo ideal: ‘A arte não imita, mas isso
acontece, primeiramente porque ela repete, e repete todas as repetições conforme uma potência interior
[...] onde se joga a nossa liberdade’” (GODINHO, 2008, p. 16).
21
Em 12 de agosto de 1965, Helio Oiticica, na exposição “Opinião 65”, provoca uma grande polêmica
quando é proibido de desfilar dentro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com passistas da
mangueira vestindo seus parangolés. Revoltado, o artista realiza a ação no jardim do Museu.
22
A frase do crítico e curador Mario Pedrosa encontra-se no texto “Por dentro e por fora das Bienais”, de
1970 (AMARAL, 1975).
54
10 Criação e Profanação
“Pode-se fazer com qualquer coisa, diz Deleuze.
Desde que qualquer coisa passe ou desde que
qualquer coisa se jogue”.
A liberdade nos faz desprender, desejar, dispara uma força e movimenta uma
ação, faz nos lançarmos almejando algo. "Um passo à frente e você não está mais no
mesmo lugar"23. Mas o que seria a liberdade senão aquilo que num outro passo pode
voltar a imprimir o desejo de outro passo diferente e até mesmo da volta para o mesmo
que já é outro? Caminhamos, ainda que por caminhos desconhecidos, delineando aquilo
que queremos, aquilo de que participamos e o que validamos. Mas haveria nesses
procedimentos a possibilidade de escapes e de atravessamentos?
Há em maior ou menor grau uma relação entre a liberdade e o dispositivo. Ora
ela pode funcionar como disparadora de uma outra possibilidade, de uma invenção, ora
pode trabalhar como formadora de uma nova ordem que, por sua vez, é o vetor ou a
expressão de um novo dispositivo. Certamente a profanação e o jogo são, digamos,
perspectivas que em relação à operação da liberdade fazem com que ela seja um pouco
mais anárquica, ou melhor, provocativa, e consiga com isso alterar as condicionantes,
produzir mais e mais variações e expansões.
Profanar é um jogo que, em perspectiva, favorece que “o liame entre o discurso
significativo e o rito que o encena [seja] rompido, pois o jogo quebra essa unidade”
(AGAMBEN, 2007, p. 67). Aposta em usar menos definições e, pelo contrário, investir
nas movimentações, já que profanar significa também “abrir a possibilidade de uma
forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso
particular” (AGAMBEN, 2007, p. 66). Um convite para brincar, para jogar na e com a
exposição e fazer desse jogo a pesquisa. Já que para Agamben o jogo é capaz de operar
e de pôr em prática objetivos e/ou finalidades de maneira desativada, as ressignificando,
permitindo uma “encenação” de diferentes abordagens e ou perspectivas, sem abolir ou
cancelar as separações, mas fazendo delas um novo uso, divertido, em que se aprende a
brincar com elas (AGAMBEN, 2007, p. 75), restituindo ao uso comum aquilo que até
então estava restrito, separado, na esfera do sagrado. Por que a exposição não pode ser
um momento de diversão e por que não se pode pensar a exposição para além do rigor
23
Fragmento da música “Passeio No Mundo Livre” de Chico Sciense e Nação Zumbi disponível em
<https://www.letras.mus.br/chico-science/268824/> Acesso em: 14 out. 2016.
55
das análises daquilo que foi feito? Aposto aqui no jogo como uma brincadeira séria e
dinâmica que busca trazer luz e fazer funcionar as dinâmicas que estão em relação numa
exposição24.
É com liberdade que expandimos os dispositivos e produzimos neles o novo,
mas há uma questão em todo dispositivo que precisa ser observada. Nem tudo que nele
opera, que dele participa está, digamos, “incorporado“ ou é classificável, determinado,
matérico, reverenciável. Há uma dimensão ou materiais que entram em funcionamento
no dispositivo e que são da ordem do indizível e pensar neles significa pensar o
diagrama.
24
Agamben (2007) indica que o improfanável é o objetivo do capital. Ainda que na exposição a crítica ao
sistema, ao capital e ao sistema de arte sejam importantes assuntos das artes visuais contemporânea
institucionalizada, cabe aqui ressaltar, como nos convida esse filósofo, que existe uma importância em
arrancar dos dispositivos a possibilidade de uso que os mesmos capturam. “A profanação do improfanável
é a tarefa política da geração que vem” (AGAMBEN, 2007, p. 79), na medida em que se acredita que
também pode ser através da profanação que se criará algum tipo de linha de fuga do dispositivo, que tem
por característica, tal como pensa Foucault, se reinserir enquanto um novo dispositivo.
56
11 Dispositivo e Diagrama
apresentado, é um dispositivo, um certo tipo de sistema que faz operar uma certa ordem,
assegurando um funcionamento, onde há espaços para novas dinâmicas. Dinâmicas que
produzem movimentos como possibilidades: abertura para atravessamentos. Ainda que
diante de um problema ou de uma condicionante, o que se engendra ali é a invenção de
uma nova possibilidade a partir das relações de força que se estabelecem. O Pintor
“transforma” seu rolo de pintura em uma batuta, o Estagiário constrói emaranhados
como desenhos arquitetônicos, o Estudante senta no chão para observar mais um
trabalho de arte. Cada um a seu modo e a partir da relação criada produz algum tipo de
resistência ou mesmo de contrarresistência que amplia, modifica, desvia, dobra as
possibilidades dadas até então. Na passagem e a cada passagem, movimentos
atravessam o esperado, o condicionado, o que se queria moldar, modular, constranger.
Nos funcionamentos das relações entre e nas coisas (pessoas, objetos, materiais)
se forma um sistema de relações, e há forças que fazem operar esse dispositivo cujas
características anunciam o que se diz e também o que não se diz, mas que ainda assim
está ali envolvido, ou seja, é da ordem do dizível, mas também do inaudito ou indizível.
As forças em relação podem ser pensadas como diagrama. Assim, o diagrama se produz
como contornos, com linhas tecidas e que se tecem com e segundo os movimentos e os
atravessamentos engendrados a partir das forças entre diferentes planos, em diferentes
campos.
Um outro Estudante respira fundo e ri. Ri tão alto e com tanta intensidade que
acaba rompendo o silêncio que reinava naquela exposição. É um riso que vai além da
boca e reconfigura aquele lugar, desestabilizando as condicionantes estabelecidas,
indicando uma direção que não se sabe onde ou em que dará. Sabe-se apenas que já não
é a mesma.
Nas indicações das funções exercidas, das disputas travadas, das ações
concretizadas e das tantas outras que ficaram na imaginação, das mudanças de ritmo, da
variação de velocidade e intenção, dos desequilíbrios e ainda dos instáveis equilíbrios,
dos estrondos percussivos à centelha que beira o inaudível, das modulações às
interrupções bruscas, sempre há algum tipo de conexão e tessitura de linhas que nada
mais é que a expressão das forças em relação, e cuja configuração é sempre aberta e está
em constante mutação. A exposição possui um engenho incrível, sempre às voltas com
uma espécie de máquina que informa a ordem e o procedimento do seu funcionamento,
e também com outras tantas máquinas que operam nas relações a partir daquilo que
nelas não tem forma, tal qual a risada solta em meio à exposição que tensiona um certo
58
25
A ideia de ser aqui indicada não se diz diretamente ou restritivamente ao ser humano ou ser vivente.
26
Sobre máquina abstrata podemos considerar que Deleuze, em seu livro sobre Foucault (1988), indica
que o diagrama é uma espécie de máquina abstrata, no sentido de que ela própria produz abstrações das
formas e das funções nas quais ela se efetua. Mas se trata de um tipo especial de máquina abstrata que
executa e exerce funções em máquinas concretas e está sempre em relação a uma ou umas máquinas
abstratas, ou seja, em dispositivos que realizam funções e substâncias qualificadas. Dessa maneira, temos
a máquina prisão, a máquina hospital, a máquina escola e ainda a máquina fábrica e, por outro lado, essas
são operadas e operam substâncias como o preso, o doente, o estudante, o funcionário.
59
força pura, tal como propõem Deleuze e Guattari (2006) quando escrevem sobre a ideia
de personagens conceituais. E forças puras não significa criar algo de uma singularidade
ímpar, mas de produzir a abertura para que o próprio texto, ainda que repetido ou
valendo-se de um mesmo procedimento que retorna, seja diferente a cada vez que é
acionado.
No texto, com os personagens conceituais, é possível instaurar dinâmicas de
experimento da linguagem e com elas desencadear a produção de uma expressividade
que investe em escapar das definições e da estrutura rígida que demarca um único modo
de dizer, um único modo de apresentar alguma coisa, já que os próprios personagens
são diferentes perspectivas e cada perspectiva exprime um mundo (CASTRO, 2015).
Assim, com a utilização dos personagens conceituais é possível lançar uma
visada para uma outra possibilidade de escrita e de produção do texto, que se propõe a
enfrentar o caos com o próprio caos.
Deleuze, no seu livro Diferença e Repetição (2006), avança nos estudos sobre a
produção de uma filosofia prática e investiga o trabalho filosófico de Nietzsche,
encontrando nele a indicação da formação de novos meios de expressão filosófica27 a
partir da criação de personagens conceituais. O filósofo assinala que em Ecce homo
(2009) talvez Nietzsche tenha elaborado Dionísio como filósofo e até como um
heterônimo seu e, em Assim Falou Zaratrusta (2012), Nietzsche usou o anão, a
serpente, o asno, o pastor para movimentar questões conceituais da filosofia. Ou seja, o
filósofo criou histórias, um teatro dramático, para indicar a arte como uma intercessora
da filosofia e o discurso filosófico como a prática de um texto inventivo, e que
apresenta a potência da fabulação como via para fomentar um tipo de estética que faz
uso e, ao mesmo tempo, enfrenta o caos e combate o senso comum e os clichês. Deleuze
acreditava que Nietzsche havia inaugurado um novo modo de fazer, de produzir a
filosofia com operações que se dão através do uso de personagens conceituais,
aproximando a própria filosofia do teatro – e porque não do jogo –, com toda uma
27
A que se considerar que para Deleuze o teatro filosófico de Nietzsche tem base na repetição e é
diferente daquele proposto por Hegel que possui referência na representação. Deleuze indica: “O teatro da
repetição opõe-se ao teatro da representação, como o movimento opõe-se ao conceito e à representação
que o relaciona ao conceito. No teatro da repetição, experimentamos forças puras, traçados dinâmicos no
espaço que, sem intermediários, agem sobre o espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história;
experimentamos uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos
organizados, máscaras antes das faces, espectros e fantasmas antes dos personagens – todo o aparelho da
repetição como ‘potência terrível’.” (DELEUZE, 2006, p. 31).
62
13 Textos
64
Talvez por excelência o museu seja o lugar da parada, do não movimento. Lá, as
coisas entram e devem permanecer para sempre e, na medida do possível, do mesmo
modo como entraram. O museu é o lugar da fixidez, do estabelecido, do ordenado e,
assim, se separa do resto do mundo, onde tudo se movimenta. No mundo, movimentam
os corpos, os desejos, as coisas, os sóis e as sombras que eles produzem.
Mesmo oxidado, todo bronze brilha, reluz como material, para reforçar aquilo
que ele dá forma: a obra do artista. Esta que guarda o embate com a matéria travado
pelo artista, e também outros embates, entre a rigidez e o movimento, entre a fluidez do
movimento e o peso do metal.
O brilho do sol refletido no bronze oxidado é embate com a sombra ou a
escuridão que um larápio usou para produzir outros movimentos, igualmente dançantes
e de embates com o material. No escuro da noite, nas sombras das vistas, o larápio leva
para si, com alguns movimentos, a escultura produzida pelo artista e o desejo da fixidez
e da eternidade da obra no museu.
Da disputa de danças, poderes, quereres e posses, fica o cubo como base e
pedestal que suporta agora um vento que movimentou e ainda movimenta os corpos,
seja dos envolvidos no museu que tentam recuperar a obra, seja do larápio que a leva
para um lugar só seu ou ainda dos nossos corpos, que bailam no espaço institucional
que ficou, produzindo vivacidade de outros embates dos corpos com as matérias. O
pedestal fixo, e agora vazio, assiste então ao movimento das matérias que se dá no seu
entorno.
65
Há quem diga que é preciso subir uma montanha, escalar um morro, se trancar
num monastério ou meditar profundamente para estar em silêncio. Outros dizem que é
preciso o caos extremo para estar consigo, e lugares como a multidão e o fluxo das ruas
de uma grande metrópole é onde se encontra a possibilidade de estar sozinho e, assim,
em silêncio. Ambos os casos buscam o silêncio como potência de estar consigo mesmo.
O mistério do silêncio se faz desafio e busca incessante pela vida toda.
Pode ser que haja tanta busca, pois a vida grita. Grita um grito ensurdecedor, que
nos impele a vivê-la de um determinado modo, moldado, esperado. Há sempre nos
gritos que a vida nos dá a vontade de usar um molde para preencher, de colocar algo
para obter uma resposta já esperada que torna tudo fácil, dócil, domesticado.
Por isso o silêncio e o vazio incomodam. Neles, é possível tentar produzir um
outro tipo de vida, uma vida consigo, uma vida um pouco mais singularizada. A
liberdade do vazio incomoda nossos corpos acostumados a dar respostas prontas a
perguntas definidas, mas incomoda especialmente aqueles que de algum modo desejam
moldar nossos corpos e modular nossa subjetividade.
Igualmente, uma página em branco ou a parede branca de um museu também
gritam. Gritam um grito que ordena uma leitura, uma moldura, uma ordem qualquer
para a continuidade da escrita qualquer que convenha. Mas ainda sim é possível
produzir. Produzir outros tipos de escrita, de visualidades. Então se faz a aposta no
vazio como material e no silêncio como grito mudo para essa produção.
Então é por isso que nas paredes brancas do museu dispõem-se pequenas
cantoneiras que desocupam a moldura e seu condicionamento aprisionante. Com elas
traça-se um espaço, desértico, para ser cruzado. Potência para uma aventura onde se
almeja o novo como possibilidade mais profunda daquilo que é seu, de estar consigo
mesmo.
66
Toda criança cresce e cresce muito rápido. A não ser que algo de errado esteja
acontecendo. Para prever algum tipo de surpresa, mas acima de tudo para inflar o peito
e abrir o sorriso do desenvolvimento que se faz, é comum acompanhar o crescimento de
um pequeno com algum tipo de medição. Entre tantas possibilidades, já vi isso
acontecer nos azulejos da cozinha, fazendo riscos na parede da casa, marcando com a
fita métrica de costura, dando pequenos nós em uma linha de barbante qualquer, e por aí
vai.
Minha mãe, por exemplo, usava a linha de barbante. Esticava-a junto à parede e
a cada mês dava um novo nó, que assim sucediam, mostrando o quanto eu crescera.
Pendurado num prego qualquer, esse barbante ficava lá exposto como uma
reminiscência, uma lembrança de alguém que já não existia mais, pois de algum modo
já havia mudado.
Num prego dourado, símbolo do status quo de um museu, fixado em uma parede
que acumula marcas em camadas de tintas, está enlaçado um simples barbante com as
pontas unidas por um nó. Sabe-se que seu comprimento é o mesmo de um trabalho
desaparecido por conta de um roubo. Tal qual o barbante da infância, esse exposto na
galeria também é reminiscência de outrora.
Ambos, cada qual a seu modo, produzem um certo gigante: do pequeno que
cresce dia a dia e do museu que dura.
67
Entre as lendas da arte, ouve-se dizer que o artista Leonardo Da Vinci colocava
seus discípulos ou aprendizes olhando por horas a parede mais estranha de seu ateliê...
aquela que ele se recusava a pintar. Velha, desgastada, com pequenas camadas caindo,
nela aflora uma enormidade de fungos. Cada qual com sua cor compunham juntos um
território peculiar, onde a vista permanentemente se propunha também proliferar. Na
imersão do olhar, multiplicavam formas, seres, e outras possibilidades de vida. O que de
lá pululava era registrado em desenhos. Para uns, a superfície ficava praticamente vazia
e para esses o tédio era quase mortal, já para outros, saltava tanta vida que era capaz de
inundar os dias e disparar ainda outras possibilidades de deslocamentos.
Ouve-se dizer que essa lenda também é contada nas prisões, onde o tédio mortal
consome os dias daqueles que lá estão. Ante o gotejamento dos dias rumo à morte, os
presos praticam o exercício de Leonardo. Na solidão de estar consigo mesmo no
claustro daqueles poucos metros cúbicos, as paredes se tornam telas em branco que
primeiramente são esvaziadas de tudo aquilo que elas apresentam imediatamente – o
limite da prisão – para então serem povoadas com a produção de vida e diálogos. O
mesmo acontece com as grades, espécies de molduras a serem retorcidas e retiradas na
expansão desses outros mundos cuja possibilidade é o sobreviver.
69
Guarda-se quase tudo. Tudo há de ter algum valor. Se tudo pode ser arte, tudo é
material e tudo de algum modo pode ter valor e fazer parte de um arquivo. Para cada
momento, percebe-se um foco. Há variações, sutilezas entre as continuidades. Ele vê
valor em muita coisa – a dispersão ajuda. Coleta coisas aqui e acolá, pois no coletar há
aprendizado e se faz o exercício da educação. Na dispersão, reúne as coisas. É preciso
construir caixas, arrumar caixas, ganhá-las ou comprá-las de algum modo. As
prateleiras vão se enchendo como os bits dos computadores. No movimento disperso e
no impulso dissonante, busca de algum modo produzir uma harmonia.
Cria pensamentos ou ideias de verdade a serem defendidas. Cura-se a
organização de pastas, subpastas, nomeações, desejos de ordens travestidos em lógicas
de poder. Acredita-se que pode, com ordem, guardar, dizer, consultar, exibir, produzir
algum tipo de veracidade desde o arquivo e, consequentemente, do arquivo. E assim
estabelece limites ao movimento que faz naturalmente na dispersão. Lembrança
paradoxal da obra aberta...
Tal qual a sutileza na mudança de foco daquilo que se guarda ou nas
desarmonias de como guardar, o arquivo se desorganiza. Classificações precisam ser
revistas, nomeações se tornam falhas, pastas imprecisas. Mesmo com limites borrados,
o arquivamento continua, acumula-se ao mesmo tempo em que se aponta para o caos.
Aquilo que é natural no coletar para formar o arquivo, quando disposto dentro dele,
engendra uma potência de dispersão que produz o tintilar de outras tantas dispersões.
Em meio às desordens várias, o novo pode surgir.
72
10
0km - 7h: acordo assustado. já deveria ter levantado. um café preto sem açúcar
rápido, algumas frutas e um banho entre esboços do que será o dia.
0km – 7h40: começo a estudar. entre um dedilhar e outro, um pequeno texto vai
surgindo. o sorriso acompanha, é preciso fazer e fazer sempre. quanto mais tiver prazer
nisso, melhor.
0km – 9h: me troco, recolho algumas frutas da geladeira e me organizo para ir
ao trabalho.
1km – 9h40: metrô até a estação Belém.
13km – 10h30: chego ao trabalho. reforço o café com um pão de queijo. abro
todos os sistemas e começo a fazer os encaminhamentos, responder as demandas e a
agendar reuniões. a lista de tarefas só cresce. nesse tempo, vejo algumas notícias,
artigos sobre a política e sobre os acontecidos nas artes.
0km - 14h: hora de almoçar. uma pausa. ansioso, percebo-me comendo mais que
o necessário.
0km – 15h30: tenho uma reunião cancelada. mistura de frustração e felicidade,
há tempo para trabalhar um pouco mais nas demandas.
0km – 17h: tomo um táxi rumo a Santo André. no caminho como as frutas que
trouxe, será meu jantar do dia.
chego em Santo André. tenho duas reuniões lá, uma de perspectivas pedagógicas
para o trabalho e outra sobre as práticas que podem ser trabalhadas. de Educadores a
Gerentes, sempre há o que ouvir, falar e compartilhar em diálogos carregados de
variações. ter um diálogo próximo e afetivo é imprescindível.
1km – 19h: é abertura de uma exposição que vou acompanhar. converso
intensamente com o curador e com os artistas. A exposição é incrivelmente boa, apesar
de pouco importante politicamente. a alegria de ver os Artistas que a fizeram e o
Curador que a organizou me contagia.
0km – 21h: se faz um brinde simbólico pela exposição e mais conversas sobre
esse tipo de programação na empresa.
0km – 22h: fecha-se a exposição. peço um taxi para voltar pra casa.
29km – 22h40: chega o taxi, atrasado, desculpando-se pela demora.
29km – 23h35: chego em casa. tomo um banho, me troco e ligo a TV para ver
algo que é tema nas conversas do almoço, afinal é preciso conversar algo além dos
estudos, da política, da filosofia e das artes, coisa que dizem que sei fazer pouco no
ambiente de trabalho.
77
...
0km - 6h30: desperta pela primeira vez o relógio.
0km – 8h: me levanto. tomar café preto e comer yogurte com grãos. um banho
rápido e sento novamente em frente ao computador.
0km – 9h30: depois de um pequeno texto a mais, passo rapidamente os olhos por
algumas imagens de uns livros recém-adquiridos e outros que estavam na prateleira. o
pensamento vai longe e é preciso trazê-lo de volta para acertar as dinâmicas para ir ao
trabalho.
0km – 10h: parto para o trabalho.
1km – 10h20: entro no metrô rumo ao bairro do Belém
13km – 11h10: chego ao trabalho. abrir sistemas, criar o check list do dia. uma
lista imensa beirando o infinito se refaz. dia a dia é como o bordado de Penélope.
1km – 16h: uma reunião para recebimento de projeto. tentam a todo modo
vender e sobreviver dignamente fazendo só trabalho de arte.
1km – 18h30: uma reunião com uma equipe de uma unidade da empresa. é
preciso acolher, reconhecer e forçar algum tipo de avanço.
0km – 19h30: o chefe solicita uma rápida conversa para encaminhar pontos e
resolver algum embate político de cuja posição não abro mão e que de algum modo
causa desconforto na empresa.
0km – 20h40: respondo os últimos e-mails e solicitações no sistema. é hora de
caminhar para o metrô.
13km – 21h30: chego na estação próxima de minha casa.
1km – 21h45: em casa. o que mais se deseja é comida, banho e algum tipo de
aventura livre.
0km – 22h20: abro um caderno para anotar ideias, esboços que povoaram minha
mente durante todo o dia. a produção artística resiste e existe de algum modo nesses
lugares de passagem, nos tempos que sobram ou ainda nos deslocamentos mentais
durante reuniões ou tarefas entediantes.
0km – 23h: já não há nenhum nível de concentração. a cabeça agitada não
consegue parar. ligo o computador em uma série qualquer mais como um acalanto para
o sono que já principia.
...
0km - 6h30: desperto, levanto, tomo um banho, café da manhã e fico titubeando
entre umas páginas de livros e o dedilhar dos textos que preciso fazer.
78
0km – 8h45: já de saco cheio por não render nada naquilo que me propus a
fazer, detenho-me em lavar roupas e arrumar algumas coisas dispersas pela casa.
0km – 9h30: me arrumo e parto para o trabalho
1km – 9h50: chego ao metrô e me inspiro em fazer o trajeto lendo algo. alguns
parágrafos são percorridos junto com as estações de metrô.
13km - 10h30: no trabalho. abrir sistemas, fazer check list e ir listando as
realizações. uma fita de Moebius se refaz.
1km – 13h: uma reunião para definir indicativos e realizações de um projeto que
reúne várias unidades da empresa
1km - 14h25: pausa para almoço
1km – 15h10: reinício dos trabalhos, uma reunião com outra equipe de trabalho
para falar de equívocos de entendimento dentro das diretrizes da empresa e
potencialidade de ações conjuntas.
1km – 16h20: reunião com um grupo de proponentes que deseja apresentar e
viabilizar um projeto na empresa.
0km – 17h: reunião com outra equipe de proponentes que deseja apresentar um
projeto para a empresa.
1km – 17h45: retomo a lista dos fazeres, ela cresce em alguns pontos.
0km – 18h30: com fome, faço uma pausa para um rápido lanche.
0km – 20h05: saio correndo do trabalho para casa. caminho apressado para o
metrô. tenho que chegar logo para colocar tudo no carro e partir para um espaço
independente onde farei uma exposição. é preciso montar o trabalho.
13km – 21h40: chego em casa. reúno os materiais, já separados, no carro e
parto.
5,5km – 22h05: chego no lugar e inicio a montagem do trabalho com a ajuda de
um dos integrantes do espaço, que também está exausto, mas colabora com muito bom
humor. estou animado, ansioso com a exposição e preocupado com sua repercussão.
ainda há coisas para fazer e resta pouco tempo para terminá-la.
0km - 1h45: terminamos a montagem. ofereço carona àquele que me ajudou na
montagem. ele mora bem longe, em uma casa de fundos, é o que permite sua
remuneração.
16km – 2h50: deixo-o na sua casa. é hora de partir para a minha.
11km – 3h25: chego, não tomo banho, não como e durmo.
...
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0km – 9h20: levanto. banho e café da manhã. tiro as ferramentas do carro que
ficaram do dia anterior. me arrumo para ir ao trabalho.
1km- 9h50: no metro rumo à estação Belém.
13km – 10h40: chego no trabalho. ligo os sistemas, e a fita de Moebius ganha
algumas voltas, se torna ainda mais infinita, se isso é possível.
2km – 14h: pausa para almoço. aproveito para ir ao banco pagar aluguel, luz,
internet e outras coisas mais que inundam o cotidiano e são imprescindíveis.
0km – 15h15: volto ao trabalho. na parte da tarde tenho uma reunião de equipe e
alguns itens da lista com urgência para fazer.
8km – 18h: vou acompanhar uma atividade em uma das unidades do regional.
1km – 20h30: depois de acompanhar a atividade, tomo um café com o gerente
da unidade. conversas sobre de onde vem para onde vão povoam a encenação.
1km – 21h: peço um taxi para voltar para casa.
17km – 21h40: em casa. tomo um banho e sento em frente ao computador para
escrever um pouco mais sobre a pesquisa de doutorado.
0km – 23h15: exausto, vou dormir.
0km - 8h: desperto. tomo banho e café da manhã. vou à feira e ao supermercado.
4km - 11h: legumes, verduras, frutas são indispensáveis, assim como algum
produtos para a limpeza e higiene.
4km – 11h30: volto para casa e começo a cozinhar a comida da semana. nesses
tempos, comida congelada caseira é a solução para a saúde e bons preços.
0km – 14h: sento para ler, escrever. o doutorado precisa ser produzido.
0km – 17h30: de saco cheio da pesquisa, inicio uma conversa na mensagem
privada de uma rede social com um amigo para pensar um projeto de arte de exposição
conjuntamente. Ao mesmo tempo escrevo um pequeno texto de uma exposição coletiva
da qual participarei daqui a alguns meses. me preocupo com a realização do trabalho: é
preciso tempo e dinheiro pra fazê-lo.
0km – 18h: remexo livros, cadernos de anotações e redes sociais, é preciso ver o
que acontece mundo afora.
8km – 19h: me arrumo para ir a uma abertura de exposição. vou ver trabalhos
novos, prestigiar amigos, “aparecer na cena” e sorrir.
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Prego. Certo que o prego não determina o trabalho, pelo menos não todo prego.
Porque há todo tipo de prego. Pregar o trabalho, tem quem faça todo o dia e até todo o
trabalho, e há trabalho que se coloca alinhado ao prego e à parede ou a um outro
trabalho. Há ainda vezes em que é possível uma combinação até que boa. Essas podem
ser as melhores, ou as desejadas.
Pregar dá trabalho. Tem prego bom e tem ainda prego torto – o pregar é algo que
nunca está inteiro, dado, é um jogo arriscado. Tem uma certa ausência do que pode ser
ali. É uma ação que pode ser boa a beça, que acaba tão logo começa, ou algo tão ruim
que a única solução possível é refazer toda a parede.
Tem prego que busca esconder alguma imperfeição da parede e ainda tem prego
que precisa de toda uma parede lisa para se colocar. Esses últimos são os menos
interessantes, pois se fixam sem nenhuma história, sem nenhum contexto. Bons são
aqueles que entremeiam algo e, por assim estarem, carregam consigo alguma história.
Um tipo desses são os pregos das solas das botas usadas que carregam consigo as
marcas da caminhada. Nesses, há um resto que interessa, o resto de algo que se foi e
pode nunca mais voltar.
Fixar uma ideia pode ser incrível e tem a ver com um certo vislumbre de
eternidade fugaz. E para isso pode pouco importar o material com que foi feito, já que
essa coisa dura, pregada para além do material. Quando ela é boa de fato, pode ainda
ficar cada vez melhor, ali parada, amanhecendo, permanecendo nos dias e até virando
resto. Mas se for ruim, fixar é tudo aquilo que de pior pode acontecer: é tipo chiclete
que vem na sola de uma pisada errada num asfalto quente. Gruda e demora toda uma
vida pra sair. Tem prego que tampa um poro, um possível buraco de circulação. Bom ou
ruim, em ambos os casos o que é preciso ligar se torna aquilo que ficou atravessado nos
dias: pregado ou despregado. Tem ainda gente que prega uma peça. E nisso pode vir
toda uma diversão. Quem sabe junto com ela fique um monte de outras coisas que
transformam os bons combates em bobagenzinhas do cotidiano.
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Da exposição ao arquivo
Infinito menos um
Descartes?
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Um coral de múltiplas vozes pode, se não for bem conduzido, produzir uma
harmonia que para nada interessa. É preciso vozes singulares, cada qual com sua
potência, mas também de um conjunto. Na contagem regressiva para a apresentação
pública, faz-se um check list sem fim - ora mental, ora concreto - dos detalhes a serem
observados e das tarefas a serem cumpridas. Traz algumas coisas, espécie de lampejos
líquidos que umidificam todos os cantos imagináveis. Atêm-se ao detalhe tanto quanto
ao conjunto, pois tudo precisa falar uma língua singular que na confluência produz um
coro forte e audaz.
Trata-se de um certo tipo de harmonia, em que cada um, ao criar e falar a própria
língua, produz uma reverberação.
Há um todo ali, mas ele é o contrário de uma massa homogênea, ele comporta
algumas linhas de partida e, quando é chegada a hora, essas mesmas linhas se soltam
numa espécie de acorde/acordo, indo para outro lugar e dele para outros, e outros mais.
Da linha de partida, produz-se então redondeios, serpenteios, dobras, múltiplas dobras,
espaços, hiatos, silêncios e segue em alguma outra direção, que pode ter maior ou
menor proximidade com aquilo que se havia desejado. Mas isso pouco importa, afinal,
já que há vozes, uma soma aberta de vozes, mesmo quando há silêncio.
É necessária as falas do silêncio, as pausas e os espaços para os inúmeros e
infindáveis silêncios, tanto quanto para os desvios de olhares e para tudo quanto é tipo
de dispersão. Até a dispersão, silenciosa e vagante que, aparentemente, para aquele
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incauto, pode não dizer nada. Ela é ainda em si uma possibilidade de voz
sonante/dissonante que coro daquele todo movente que não para de acontecer, aguarda.
Cabe ao disparador, à linha inicial, provocar o convite para as aberturas – das
mais obvias e possíveis às mais inimagináveis, que talvez beirem a impossibilidade ou o
absurdo – junto a elas, de algum modo sensível, é preciso apontar as nuances, os vazios
e os preenchimentos que podem ser sentidos, vistos, e revistos. Cabe à singularidade de
cada voz e à profusão de vozes a intenção de um todo que nada tem a ver com
totalização, mas, sim, com a reunião daquilo que se faz naquele momento, naquele
acontecimento.
Da fartura de vozes, da polifonia cuja sonoridade é singular, surgem os
possíveis: camadas e mais camadas de vozes que gritam, sussurram, silenciam, falam,
cantam, discutem o que entendem e aquilo que talvez não seja sequer entendido, mas
que de algum modo se percebe ou sente, por mais ínfimo que seja. Da soma coletiva
que converge naquele acontecimento - em escutas e esforços conjuntos, a exposição
vibra.
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Utilizo aqui o termo aberrante a partir da definição que dele dá Claudio Ulpiano, que apresentará uma
distinção entre dois tipos de movimento aos quais Deleuze se refere: “momento importantíssimo para o
entendimento, porque nele já se nota uma diferença entre o MOVIMENTO SUPRALUNAR – que é
uniforme e regular; e o MOVIMENTO SUBLUNAR – que já é um movimento inteiramente aberrante,
pois os procedimentos dele são disformes em relação ao movimento supralunar. E nesse movimento
aberrante, o tempo, que era como uma porta giratória e circulava naquele movimento uniforme e
regular, no mundo sublunar - usando uma expressão do Hamlet – ‘o tempo sai fora dos seus gonzos’. O
gonzo é a dobradiça que existe nas portas; [uma espécie de eixo cilíndrico que permite que a porta abra e
feche]. Então, o tempo sai dos seus gonzos, quer dizer, o tempo escapa] da circularidade e fica como que
enlouquecido! O movimento é aberrante e o tempo perde a sua circularidade. Aí, Deleuze, em sua obra,
faz uma afirmação surpreendente. Que é exatamente por causa deste movimento aberrante, motivado por
ele, e a saída do tempo dos seus gonzos, que os processos vão se inverter. Quer dizer: o tempo - que era
subordinado ao movimento - vai se inverter; e o movimento vai-se tornar subordinado ao tempo.”
(ULPIANO, 25/01/1995, [s.p.]).
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Não se sabe quem é, tampouco de onde veio e quando começou a estar ali.
Aguardado como o produtor da “cereja de um bolo”, pouco se o vê, mas marcadamente
se sabe quando terminou. Invisível ou semi, importante por assim ser. Apresenta-se
através das invisibilidades ou da ausência de rastro, pois passa, ocupa aquele espaço,
transforma-o em um lugar e, ponto a ponto, prego a prego, item a item, configura-o tal
qual indica o Expógrafo. As precisões são cirúrgicas como a polivalência em superar as
adversidades que surgem. Com um prego entortado, é capaz de fazer um suporte para
uma obra, tamanho é seu engenho.
Prego a quadro, base a quadro, peça a peça, montagem a montagem, toda a
exposição passa por suas mãos.
Como muitos outros invisíveis, ganha por diária, mas se orgulha de ser o único
de um campo a tocar nas obras. Assim, subverte aquela grandiosidade material, tamanha
familiaridade que possui com aquilo tudo. Toques certeiros de mãos que deixam marcas
invisíveis.
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Libertária, ainda assim a ideia não pode levantar voo totalmente. Ela deve pairar
levemente sobre a superfície, de maneira que dê caminho ao vento, sendo esperança de
abertura a ele. Ela precisa estar nesse lugar da leveza e por assim estar, possibilitar para
que aqueles que por ela passem voem e voem bem alto e com extrema liberdade. É
preciso então, dar abertura e, ainda, criar dutos, correntes, caminhos de vento. Sinalizar
de algum modo sutil, para que os caminhos de vento não virem meras ruas de algumas
possibilidades limítrofes. Ainda que sejam só possibilidades, devem conduzir
intensamente a outros possíveis: outros sopros e aos percursos de um sopro ao outro,
onde aquilo que sustenta é a suspensão do voo, atravessando de um corpo a outro. Aí
vive o tipo de alegria que interessa, e é aí que há possibilidade de algum tipo de
transbordamento.
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Na exposição, eles chegavam. Quietos, cabisbaixos, tinham pressa. Vestidos de
preto, queriam passar despercebidos, a não ser pelo contraste com as luvas brancas que
utilizavam. Falavam baixo, faziam gestos precisos. Empunhados de parafusadeiras,
martelos, e chaves de fenda, esperavam pelas plantas do Expógrafo e pelo museólogo
que acompanha cada obra. Loucos de vontade de começar, a ansiedade era sentida no
suco do estômago: eles rogavam aos mandatários que os olhassem, os ordenassem, os
movimentassem em meio àquele falatório e tinidos de xícaras e café. Não queriam saber
de qualquer diplomacia, estavam lá para serem usados, e rapidamente usados.
O Expógrafo olhava a parede tentando buscar algum defeito que postergasse
aquela dinâmica. Seu trabalho seria exibido logo ali, naquela sintaxe, assim o Expógrafo
andava em busca do que não conhecia em comparação com suas anotações e que
poderia ali encontrar.
Ansiosos, e ainda com ferramentas em punho, eles seguiam todo e qualquer um
que aparecesse por ali. Precisavam realizar e, já que não podiam falar, diziam com o
corpo.
Até que o primeiro rompeu aquilo tudo com o apertar da parafusadeira. Da
fricção ousou abrir uma caixa e colocar o quadro apoiado na parede que estava indicada
a ele. Aflito com a hora que passou, lançou um sorriso e, para o alto, suas sobrancelhas.
Recebeu um “pode pendurar”. Ele era o Montador.
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Após acordar, o que mais se pensa é quanto tempo consegue ficar sentado.
Assim, do rápido banho, senta-se para um café igualmente rápido e, correndo, vai para o
ponto de ônibus. Passa também rápido pela catraca e senta-se no banco. O cochilo vem
fácil, apesar da trepidação da janela. Sua mochila é apoio, travesseiro e guarda da
marmita feita no dia anterior e do uniforme feito de brim já surrado. Costuma acordar
momentos antes de seu ponto de chegada, está condicionado ao percurso, apesar de
fazê-lo há pouco tempo, desde o início do trabalho naquele lugar, fruto do contrato novo
para a terceirizada e da renovação por mais um ano. Se lembra da garantia de sentir-se
cansado por mais um ano. Esquece-se do contrato que acaba a cada dezembro e sempre
sorri com os seus.
Depois da caminhada, chega ao seu espaço de trabalho e, rapidamente também,
troca de roupa e, num solavanco, coloca o sapatão. Com familiaridade, toma para si seus
instrumentos. As mãos ásperas agarram um trapo e o lançam por um momento sobre o
ombro, enquanto cada uma das mãos se ocupa de um item: um rodo numa e um balde
na outra.
Agora, em pé e arrastando o sapatão um pouco largo, percorre os espaços e os
rastros de outros, buscando dar ao granito a polidez e o brilho que lhe são
característicos. Suas ferramentas viram instrumentos musicais e, naquela repetição, vai
diferenciando nota a nota, assim como cada mancha e seus intervalos. Produz
diferenciação naquilo tudo, e dela extrai música. Para quem passa, parece mais um
balbucio dele para com ele, e balbuciando sua para si mesmo um grunhido em forma de
música, ele percorre lentamente os espaços, sempre com a cabeça abaixada e o foco no
chão. Nesse movimento que exalta a corcunda lombar, fica por algumas horas, até que
um barulho de rádio HT chega perto e, com um olhar de canto, percebe a presença do
Encarregado. A ordem é para limpar a exposição, para que ela continue sempre
impecável.
Nunca questionou nada. Essa foi a natureza que lhe deram. Natureza aprazível
que, sem pestanejar, o faz obedecer, mas antes troca a água do balde por uma limpa, e
parte, novamente em pé, para criar novas partituras, agora em outro ambiente.
Importante para alguns, a exposição é para ele um chão infinito a ser limpo.
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Lá esfrega seu trapo, retirando as marcas que sobraram das construções das
paredes, e continua a grunhir sua diferença em meio a toda aquela repetição, sua
música.
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Perto da rua, e com grandes portas abertas, a exposição recebe fuligem dos
carros, empoeirando-a com uma fina camada de pó preto. Alguns percebem, e estes,
dada a função que têm, pegam logo uma flanela para limpar. Acena um gesto que é
interrompido por algum Superior. Sabe-se que é um Superior pela firmeza com que fala
para não tocar.
– Mas está sujo – disse com a cabeça baixa, tal como o recomendaram a se
portar –, se não pode limpar, como fica?
– Não é qualquer tipo de limpeza que pode ser feita. É preciso alguém
especializado para fazê-la.
Sem entender o que se passava ali, pensou com ele mesmo:
– Quer alguém mais especializado do que quem limpa e limpa e limpa todo dia?
Inquieto, passou a acompanhar aquele pó que se acumulava.
Por ele, aquele Superior passou outras vezes, também vendo e indicando aquele
pó. Ouve uma fala marcante.
– É preciso contratar um Restaurador para higienizar a obra.
Para cada tipo de pó é preciso um especialista. A contra gosto, o Limpador deixa
que aquele pó continue a se acumular. O pó dos especialistas.
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Como recomeçar a anotar traços? O espaço é o meio para o Expógrafo, que não
pode limitar-se à imponência da arquitetura em proveito da comunicação de sua
majestade intelectual. É preciso vazios e considerar os percursos do público de maneira
plural. Cada parede é uma ideia e é preciso colocá-la precisamente para que não falte,
sobre, ou aparente soberba. Na configuração das paredes, dos espaços, materializa-se o
espírito que pode ser leve, quando há o desejo de solturas, ou aprisionado, quando os
espaços são estanques.
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Havia uma penumbra qualquer que ocupava a sequência dos dias. Sem vias, os
dois tentavam se encontrar sem deixar o lugar da partida. Era o início de algo e havia
muito desejo de uma das partes, que falava.
Ambos precisavam caminhar, mas antes de tudo se encontrar.
Esse dizia alguma coisa daqui, e outro, de lá, sugeria desentendimento. A
comunicação não acontecia e esse, que precisava da parceria do outro, se agoniava. Das
silhuetas e dos sussurros do outro, que não saia do seu lugar, descobre-se que havia
algum conforto lá, uma estrutura que queria perpetuar.
Esse se lembrou da vez em que descobriu que a grandiosidade de certos
trabalhos se dá pela quantidade de metros cúbicos no que se constrói, e temeu o que
pensou... Então esboçou, na cabeça, suposições de um combate que adiante viria
acontecer.
O outro pegou a lista mínima de ferramentas e com ela passou a desenhar caixas
que, estanques, produziam uma visibilidade ainda menor que aquela penumbra. Era uma
espécie de parede opaca, claustrofóbica.
Esse sentia na pele que a dificuldade aumentava ali, em íntima proporção com
sua aflição. Mesmo assim, com lampejos de luz, agiu com certa liberdade e, mesmo na
insegurança do caminhar, movimentou-se em alguma direção. Tateou algumas coisas e
passou a emitir flashes, que de algum modo davam a ver determinadas nuances.
Esse dizia outras coisas daqui e o outro, de lá, ainda sugeria desentendimento.
Na impossibilidade da comunicação com ele, consultou amigos que povoavam sua
cabeça e inventou outros tantos amigos para o diálogo frutificar. Com os flashes de luz
que lhe restavam, indicou, em uma página, as silhuetas que tateou naquela penumbra.
Compreendeu o espaço enrijecido onde se encontrava e os limites que cada vez mais
sabia ali se mostravam. Dessas primeiras centelhas figuradas na página, resquício das
conversas com os amigos, passou a esboçar outras, na certeza de um povo desejado que
viria e povoaria aquele vão deixado pela comunicação. Junto com ele, passou a esboçar
traçados mais fortes e afirmativos. Passou a ter certa confiança no caminhar.
E assim desenhou algumas poucas linhas como resguardos necessários para
acolher aquele que viria. Com essas poucas linhas na página, produziu outros flashes de
luz que passaram a refletir a silhueta do outro, que estava ali parado, desfrutando do
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esforço daquele; mas também imobilizado pelo medo da estrutura que se percebia
dentro.
Esse se aproximou do outro. Com a página em mãos, refletiu algum tipo de luz,
tal qual um céu noturno cheio de estrelas. Assim puderam se ver. No olho no olho, algo
se deu. Pelo contraste, aproximaram-se e caminharam juntos na acolhida daquele povo
que passava a vir.
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Quase fechado, a vermelhidão dos olhos passava despercebida até certo ponto.
Era manhã e a responsabilidade do trabalho atravessava o desejo de sono vindo da noite
curta e das horas dançadas no dia anterior.
Andava com uma garrafa d’água nas mãos para hidratar o corpo da voz e resfriar
o calor que exalava de sua pele indicando o esforço para ficar em pé.
Com um sorriso solto, que lhe é característico, e com o charme de quem
descobriu a liberdade na juventude ao sair de casa, abriu os braços e acolheu o grupo de
escolares que chegara. Tinha que falar e ainda falar com altivez.
Então escolheu desprezar seus olhos, ou melhor, manteve-os quase fechados e
passou a ver os brilhos, os reflexos de luzes que apareciam aqui e acolá. Foi pouco a
pouco apontando para cada brilho que aparecia numa parede, numa parte de um
trabalho, num canto de uma vídeo projeção – até pensou que esse não deveria aparecer,
mas lá estando, deveria ser notado –, na janela. Dos brilhos, deu à luz outras pequenas
variações que, lentamente, com a condução da sua voz, faziam acontecer naquela
exposição o novo, aquilo que mais se desejava.
Ao final, feliz, perguntou aos demais Educadores quando seria a próxima festa.
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pesquisando que o levou até ali, o que o trabalho indicava e assim por diante. Mas não
dizer gratuitamente; na verdade, você precisa fazer com que a criança fale por ela
mesma, que ela colha nela mesma as respostas. Você vai perguntando... e oferecendo
algo a partir do que elas dão. É simples e você acolhe todas, e constrói o conhecimento
coletivamente. Entende?
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Queria provar a si mesmo que estava aprendendo a se virar, e a seus pais que
firmava pé na vida adulta, do mesmo modo que queria mais dinheiro para suas coisas, já
que os pais, cautelosos em relação a uma boa conduta do filho, davam a ele apenas o
necessário para uma vida regrada, contida, sem incentivos para quebras de limites que a
universidade ou a vida distante podem oferecer.
Mas a insegurança se mostrava nas mãos. Não contém os estralar dos dedos e o
roer das unhas. Sobravam apenas aquelas partes grudadas na carne. É novo ali, assim
como em tantos outros lugares por onde passa naquela nova cidade. Titubeia nas ações e
na fala, mas tem o desejo de seguir, mesmo que lastreado pelos pais, com quem fala
diariamente ao telefone: às vezes conta coisas, como seu desejo em tornar-se Estagiário
em um educativo de exposição, outras vezes esconde, como as aventuras noturnas no
campus ou nas repúblicas que frequenta. Aprendeu cedo o jogo, onde a regra é medir as
palavras e contar apenas aquilo que o outro deseja saber.
Supõe que pode dar certo o estágio, nele daria prática aos seus estudos, linhas ao
seu incipiente currículo, status em trabalhar em uma instituição de arte e, especialmente,
copos de cerveja para suas festas. Estava ali com certo tremor, e encontrava nos seus
colegas de turma algum tipo de amparo, esquecendo-se que seriam também seus
adversários em poucos minutos.
Nas conversas que antecedem a entrevista, esboça discursos, hipóteses perguntas
e até possíveis respostas. Fala consigo inúmeras vezes. As mãos se agitam ainda mais.
A euforia toma conta e o sorriso tenta esconder... tudo em vão.
Um a um, eles são chamados e convidados a sentar em cadeiras e em círculo.
O silêncio paira e percebe o ar frio que vem do ar-condicionado. Tem um
calafrio que arrepia o corpo. Finge para si mesmo que é do vento gelado percebido.
Sorri para os demais e especialmente para aqueles que estão lá para avaliar, tentando
intuir algo e causar certa empatia.
Lentamente, os avaliadores apresentam-se: Curador, Produtor, Supervisor do
Educativo, Coordenador do Educativo. Em sequência, pedem para cada um se
apresentar. Com uma simpatia que deseja a acolhida ou, ao menos, descontrair aquele
momento do qual ninguém gosta, contam seus caminhos e pelo que passaram até chegar
ali.
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O Educador relaxa com a fala de cada um, sentia-se entre seus, dos quais muitos
falavam sem medir as palavras e disparavam gargalhadas nos demais. Naquele ambiente
de restrição, tudo vira motivo para um escape e para olhares diversos, descomprimiam
os momentos que antecediam sua vez. Talvez ali, entre aqueles olhares diversos, tivera
sua primeira lição sobre o que é a mediação na exposição.
Passada a apresentação, era hora da dinâmica. Foi preciso apanhar um objeto de
uma caixa disposta ao centro e dizer algo sobre ele.
A aflição toma conta, quer pegar algo que lhe seja familiar. As mãos gelam, um
certo tipo de competição se instala. Queria um. Pega outro. Terá que criar ali, naquele
instante e com esse outro.
Sorrindo e com um suspiro resolveu enfrentar tudo aquilo.
Chegada a sua vez, começou com o objeto nas mãos, manuseando-o lentamente.
Rodava-o para um lado e para o outro, mostrava-o por diversos ângulos. Expunha aos
outros da mesma maneira que indicava que estava consigo, nas suas mãos, tal objeto.
Hesitando em começar, ficava exibindo com todo seu corpo aquele objeto e, sem saber
muito bem o porquê e sem saber muito bem como, exalava a mesma familiaridade que
tinha com os da mesma família que desenhava em sua casa: coisas ínfimas que tomava
para si como preciosas, e que eram disparadoras do desenhar íntimo.
Depois daqueles segundos de silêncio que, para o Educador, pareciam um longo
filme de cinema mudo, disse algumas palavras com imensa delicadeza, apesar da
fragilidade. Talvez não dissesse de nenhum lugar, mas seu corpo e sua relação com
aquele objeto formavam um todo, um conjunto que de algum modo suspendia o tempo
ali. E assim foi... Nesse tempo estendido e com a mansidão da fala, mostrou uma
presença indissociável.
O Curador anotou no papel e pediu para finalizar.
Ainda ansioso, estava aliviado porque sua vez tinha passado, apesar de sentir-se
frustrado com sua performance.
Preocupado com o ônibus que precisava tomar para voltar para a universidade,
sai apressado, conversando com os seus sobre o que vivenciaram ali. O que não se
esperava é que todo aquele corpo reverberava também naqueles que lá avaliavam.
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Formas à paulista
pego o Terminal
logo pensei - má ideia
ônibus lotado, todos espremidos
na escola, esvazia um pouco
finda a competição por um assento
Lá ganhei um que é só meu e que nunca posso mudar.
Do outro lado
uma pessoa nos recebe.
Quase da mesma idade, se diz Educador dali.
Em seu pescoço está um fone azul. Ambos são bonitos.
Também há um crachá de identificação.
Nome, materiais, onde nasceu e porque foi escolhido para estar ali. São vários
Artistas.
Tenta focar. Tem muita coisa ali e quase tudo chama atenção.
Sente-se confuso demais com aquilo que vê.
Sobre aquilo que contam.
Penso. só isso.
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– Cada linha dessas aqui é um rio necessário que não deve ser soterrado.
A palavra final foi o que rasgou aquela terra, fundando-a.
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Numa visita, o Educador instaurou uma brincadeira entre os pequenos para que
descobrissem as cores que ali estavam e iniciou:
– Amarelo, azul, vermelho.
– Verde, laranja, violeta.
– Lilás, rosa e roxo.
– Preto, branco.
– Marrom, cinza, verde musgo.
– Vermelho escarlate, azul do céu, verde folha nova
– Azul profundo, marrom claro, cinza azulado,
– Laranja madura, cor de berinjela,
– Rosa choque e verde bandeira. Amarelo ovo...
E assim o Educador produzia uma visita nas diferentes cores que havia na
exposição. Continuou até que um Estudante o interrompe:
– E aquela cor que é a junção de todas as cores? A cor de “burro quando foge”?
Algo aconteceu, e ambos sorriram. Sorriram na intensidade de poder inventar
quaisquer cores ou ao menos quaisquer nomes para elas.
O estudante seguiu, dizendo:
– Verde esmeralda,
– Cinza cabelo da Vó Vanda,
- Azul do céu num dia de futebol,
- Vermelho quase preto, amarelo queimado, cor de ouro, cor de abóbora.
- Cor de abóbora.
Outra vez a mesma cor, disse um.
Logo em sequência, outro aponta.
– Cada abóbora é uma.
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A exposição está cheia de trabalhos, dos mais variados tipos. O Curador havia
pensado minuciosamente nos diferentes públicos que pudessem vir à exposição e no
desejo de provocar diferentes possibilidades de visitas. Ainda sim, não conseguiria
prever o total de possibilidades. Ele tem um tipo de relação com a exposição. Talvez,
uma relação que não é corpórea, de habitat, tal como é para o Educador.
O Educador habita aquele espaço por horas a fio, não tanto quanto um
Segurança, mas é o suficiente para olhar para aquilo tudo de diferentes modos. Elege
alguns trabalhos favoritos e lugares para pausas maiores, assim como tenta inventar,
pouco a pouco, novos caminhos para que aquela estada ainda produza algo mais que as
conversas entre seus pares ou outros agentes daquele projeto.
Certa vez, o Educador resolveu não mais circular pela exposição e fazer todo o
seu trabalho com um grupo em um mesmo lugar. Após recebê-los, foi ao centro da
exposição, acolhendo-os com as falas já costumeiras. De lá, dirigiu-se então a um
trabalho que estava em uma parede daquela exposição. Não era o trabalho mais
chamativo nem o mais sutil, porém, era o trabalho que para ele fazia toda a diferença.
Devagar, foi contando sobre aquele Artista, sobre a proposição do Curador e
chegando ao trabalho. Na produção de um certo tipo de contação que indicava, entre
uma frase e outra, aberturas, e delas, perguntas:
- Quais os materiais que o Curador usa?
- Quais os experimentos que o Artista faz?
- O que ele convoca com essa exposição?
E assim por diante...
Ali, todos olhavam com tamanho interesse que fala nenhuma sucumbiu o contar
do Educador. Eles tateavam o trabalho com os olhos e pareciam ler, de um canto a
outro, aquilo que viam.. Produziam um passeio lá, com aquele trabalho.
O grupo todo e aquele Educador, unidos, prolongavam o tempo que era só deles,
até que pergunta...
– E o fora?
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Perguntou:
– Qual é o corpo do vídeo?
– É a luz que inunda o ar e faz brilhar nossas retinas, respondeu outro.
Ali, a alegria se amplia, prolongando-se tal qual a voracidade da fome em dias
de brincadeira.
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Naquele exato momento, um passo mais forte soa ao seu lado, vindo do coturno
do Segurança, que não diz nada, não gesticula. Apenas para e olha fixamente para o
Estudante.
Um olhar reto na busca do frente a frente que, na diferença de alturas somada às
diferenças físicas e de uniforme, dizem o necessário. As mãos prestes a fazer o gesto se
voltam para a cintura e aquele encantamento ganha outra variação.
O Segurança, depois do olhar de enfrentamento, gira a cabeça e dá alguns paços,
distanciando-se dali, rumo a um ângulo de visão daquele que fica prostrado na porta.
Quando o vê, caminha um pouco mais lento, e acena com o canto dos olhos, produzindo
também uma sutil cova na bochecha direita de seu rosto que é espelhado pelo outro
Segurança com quem silenciosamente dialoga.
A cena é rápida e fugaz para os despercebidos, pois eles num átimo eles
retornam à sua postura padrão, até que alguém passa novamente pela porta...
124
44
Com os olhos e todo o corpo, percebe cada nuance, mesmo estando ali, parado,
em pé: o sol a pino lá fora, as várias camisas do Corinthians, fruto da vitória de ontem, o
amarelar das paredes com o pó dos carros e ônibus, o cheiro do pão de queijo que
acabara de sair no café, o trabalho que nunca é visto, os suspiros diante de algo novo e
até o canto escuro propício para aprontadas.
Está lá parado, em pé, e parece que sempre irá estar: calado, imóvel, inerte, até
que um burburinho vem de um canto, numa conversa sobre um determinado trabalho...
– Como é bonito. É diferente. Interessantes as variações de cores, parece até que
é feito pra isso, mas não foi, não. Acho que o Artista o trouxe pra cá pra falar sobre.
– É mesmo diferente. Do que será que é feito?
– Não sei, não consigo perceber que material é esse. Não é uniforme, mas
mostra todo o trabalho que o Artista teve para produzir aquilo tudo. Parece que ele
percorreu muitos lugares e viveu muitas coisas e delas foi se fazendo, foi fazendo esse
trabalho.
– Gosto dessa variação.
O silêncio de alguns minutos, depois dessa conversa inicial, e sem muito pensar
a mão de um lança-se ao trabalho para tentar olhar de outro modo o que está ali. O dedo
chega a tocá-lo quando, ao fundo...
– Senhor, não é permitido.
– Obrigado.
O silêncio se instala ali na continuidade do olhar e naquela quase resistência,
mas lá fora passa um ônibus com o motor rangendo alto.
VRUUMMM...
125
45
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
Até que alguém pergunta:
- Posso entrar?
- Boa tarde. Sim senhor, pode entrar;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
127
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa tarde;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
128
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Olá, Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite, senhor;
- Boa noite;
- Boa noite, senhor;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Boa noite;
- Oi, boa noite;
- Boa noite;
...
129
46
Em passadas minúsculas que remetem aos passos de uma aranha na sua teia, o
Segurança caminha pela exposição. Caça com sagacidade qualquer coisa estranha que
atravesse aquele espaço e faça algum ruído. Os pequenos bichos que circundam a luz, a
poeira que atravessa a janela, o mano de boné baixo que entra no espaço, o barro no
chão que precisa ser limpo, a mão descontrolada que não se contenta que apenas os
olhos vejam, os Estudantes cantando a música mais tocada no rádio, a conversa de canto
sobre o trânsito, a contabilidade do jogo de bicho do bar da sua comunidade, a
gargalhada alta de um Educador, o bochicho sobre a dura de um Coordenador, a agonia
do salário que não durou o mês todo, o trabalho que mudou de posição e aquele que
quebrou durante a exibição, a chuva que está para cair, o tempo que está seco demais, o
Ladrão que roubou algo num lugar da cidade, o aparecimento de uma nova moda... e
assim quase tudo. Quase.
Por mais que olhe, ouça e esteja diante, lhe foge com força o porquê de objetos
tão banais estarem ali e com tamanho prestígio. Lê “Retrato de um jovem homem”, e
lembra quando o viu pela última vez na sala do general da Gestapo.
130
47
Sorri novamente e esquece-se das outras, volta a olhar para a sua. Afunda
naquela mudez da planilha.
Um grupo novo chega.
132
48
No dispositivo, a planilha das escalas e dos grupos pré-agendados são seu carma
e dividem olhares com a porta de entrada e o espaço expositivo. Do outro lado, na parte
quase escondida, uma mesinha e uma cadeira, de costas para a exposição, na qual se
senta nas horas em que precisa organizar os metadados que teimam em sempre se
desorganizar.
De lá, ajustado o foco, vê um Educador passar entre paredes, com uma das mãos
no bolso e na outra um livro, assobia o que parece um free jazz com tempero pop. O
barulho daquelas notas entra no espaço e, apressado, segue em sua direção.
49
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51
Sabe-se que os esquimós dão nomes a mais de 24 variações de branco que são
comumente identificáveis; aqui, talvez tenhamos algumas com maior ou menor grau de
semelhança, mas, entre os Pintores, a agudeza com que identificam suas variações de
cores é impressionante, seja lá qual for o nome que tenha. Num dado momento ouviu-
se, no calor dos dias que antecediam a abertura da exposição, uma conversa entre dois
Pintores que, apressados, corriam para deixar as paredes prontas para a montagem dos
trabalhos a serem exibidos.
- Tá vendo aquele branco ali?
- Tô.
- Então, não tá muito branco.
- Tá, é preciso então mais branco nele.
- Isso. Tem um espaço em branco ali, precisa preencher bem.
- Tá. Todo espaço em branco precisa estar preenchido de branco.
- Isso. Tem que ficar branco pra ficar bom.
- Beleza! Vou deixar tudo branco.
- Isso. Tudo branco! Tem muitos brancos ali ó..., não dá.
- Certo. Vou deixar só branco.
- Isso, tem que preencher todo espaço branco de branco...
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52
Para os Pintores que não assinam seus atos, a ausência de marcas é tudo que eles
querem. Nenhuma mancha pode ser percebida, nenhum escorrido pode transparecer e a
variação tonal é indesejada. A uniformidade, para eles, é a sina das superfícies. Com
ela, perseguem diversos terrenos, geografias, planificando cada uma com gestos
repetidos... Aquilo que não está plano, masseiam, rebocam como podem, até ficar bem
lisinho.
Os Pintores são daquele tipo que olha com diversos olhos, primeiro olham com
rigor, através das mãos, para comprovar a superfície lisa, prolongada por todo o espaço.
Depois, com os próprios globos oculares, buscam as variações de brilho de cor por onde
passaram seus pincéis. Desdobram-se nas superfícies, para que, ao saírem, não sejam
percebidos... De maneira que vão e voltam não se sabe quantas vezes, até que tudo fique
liso na paridade do impessoal, tão liso que só uma rachadura pode fazer sucumbir.
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Certa vez, um Pintor viu na TV uma orquestra que tocava alguns hinos e
músicas clássicas para pessoas que pareciam ser importantes. No centro dessa orquestra
ficava uma pessoa que, com uma varinha, produzia movimentos repetidos, com uma
certa uniformidade que parecia organizar todos os músicos para que tocassem juntos.
Naquele domingo à noite, largado no sofá da sua sala, ele já pensava na semana
estarrecedora que teria pela frente e os quilômetros de metros cúbicos que teria que
pintar... e, entre uma soada e outra, se atinha àquela varetinha que se movimentava na
mão daquele único homem, produzindo música. Imaginou-se também ali, mas, ao invés
da varetinha, tinha um cabo comprido em suas mãos e na ponta um rolo com tinta
branca, e seus movimentos, quase uniformes, iam e vinham preenchendo
ordenadamente os espaços...
Sorriu com a possibilidade de música silenciosa que poderia fazer no outro dia.
138
54
55
56
Naquela exposição, ficou um burburinho de uma conversa que ouviu-se lá, que
era mais ou menos assim...
- E então?
- Nada.
- Me mostre.
- Não há nada para ser mostrado.
- Vou arejar um pouco...
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Mesmo tentando focar seu pensamento, se solta para vários lados. Ainda que
sentado em frente ao computador, se vê distante daquilo que precisa praticar. Vai então
ao poço escorregadio dos dias atuais, as redes sociais. Passa a escorregar o ponteiro do
mouse na barra de rolagem. Vê fotos, notícias, políticas diversas. Lê algumas coisas, se
diverte com outras e ainda com outras se enfurece. Segue passando até que uma imagem
lhe prende. A imagem era de uma máquina de escrever com um verso recém-escrito
referenciado ao cineasta Alejandro Jodorowsky: “pássaros criados em gaiolas acreditam
que voar é uma doença”.
O Pesquisador pensou na máquina de escrever que estava naquela imagem e
mais ainda na linha escrita. Voltou ao seu teclado e então ao software de edição de
texto. Escreveu algumas linhas, mas antes se pôs a desenhar...
143
59
Com os poros abertos a escorrer sal, fricciona a mão naquele metal. Sabe que
esse mesmo sal produzirá adiante ferrugem, mas pouco se importa, pois aquilo que faz
irá durar pouco. Para o evento, é preciso resistência àquela visibilidade e assim o faz.
Dobra, desdobra, dobra e torce. Esmerilha aqui e solta a volta toda. A peça começa a se
estruturar quase ao meio-dia. Depois das fagulhas vindas dos cortes, o almoço naquele
mesmo chão. Em obras, a exposição vira lugar para tudo, até para o almoço do
apressado Serralheiro que desdobra sua marmita em movimentos que lembram aqueles
feitos momentos antes com os tubos de ferro.
Joga água no rosto e volta decidido a trabalhar o sal do seu suor, terminando a
estrutura integrante de um trabalho que ele não sabe o que é e como será apresentado.
Base para novas visualidades, “pedestal” de outrem, liga um ferro no outro queimando
eletrodos a 120 Amperes e configura o lugar que será palco de ações de intenção
desestruturante.
O mecanismo feito pela liga de metais, de torções e dobras, é como limite de um
campo envolvido no trabalho. Assim, produz certo tipo de suor e linhas, e com elas algo
a mais que passa por aqui e se prolonga para lá. Sinais e ordenamentos para a
arquitetura, para acolher o corpo e levá-lo a uma experiência de corpo: trabalho de arte.
Traçadas nesse espaço pelo Serralheiro, linhas e tubos de ferro compõem um
lugar de sustentação que media aquele espaço para uma experiência outra, a começar
nas mãos suadas e de sal daquele que a edifica.
144
60
Quando muitas partes estão envolvidas é preciso que alguém tome conta para
que cada uma chegue a seu objetivo. Com habilidade, conta as horas, os fluxos de
materiais e suas entregas, as ordens do fazer, as tarefas dos dias, as contas das medidas,
os usos de materiais e as solicitações, as conversas com os Marceneiros, Serralheiros,
Pintores e Eletricistas, mediar a visita do Arquiteto, do Expógrafo, solicitar a constante
limpeza do espaço, as pausas para o café, a hora do almoço, o que pode e ainda o que
não pode fazer ali...
Cada coisa, cada organização, cada mediação é feita com expertise e maestria
por quem há anos trabalha com aquela dinâmica e já passou por quase todas aquelas
outras funções e aprendeu como lidavam com ele, tanto que em brincadeiras e falas por
entre linhas consegue desencadear as ações.
Naquelas tardes de calor e imenso frenesi dos poucos dias que antecediam a
exposição, em que o prazo se apertava mais e mais, foi ouvido esse Supervisor
gargalhando e dizendo para um Marceneiro...
- Meu filho, sua cabeça é dura, o outro lá já me disse, mas não o suficiente pra
ficar sem o capacete. Use-o por favor!
- Oxê, nesse calor tá difícil.
- Tome aqui uma água, descanse por 5 minutos e bota esse negócio na sua
cabeça pra sempre. Vem cá, vem!
- Com água fresca tudo fica mais fácil... e me chamando com todo esse chamego
olha que eu faço e até te convido pro forró dessa noite.
- Eita! Hoje tem forró.
145
61
Certo Pesquisador imaginou-se numa conversa consigo mesmo. Dessa vez, ela
era mais ou menos assim:
- e se?
talvez não fosse uma boa ideia
- e se?
acho que não vai funcionar
- e se?
seria uma boa maneira
- e se?
tem algo aí
- e se?
pode explorar mais
- e se?
isso funcionar
- e se?
ao invés de ponto final, colocar uma vírgula
- e se?
houver um prolongamento a mais
- e se?
o tamanho e a densidade fizer parte
- e se?
for divertido pesquisar
- e se?
fizer sentido escrever assim
- e se?
não ter fim, mas muitos começos
- e se?
a leitura pode ser um jogo
- e se?
talvez pode ser uma boa ideia
- e se?
for experimento
146
- e se?
houver valor no processo
- e se?
brincarmos uma vez mais
- e se...
“sabemos exatamente o que vamos fazer, para quê fazê-lo?”, perguntou Pablo
Picasso.
147
62
O Expógrafo até que tentou fazer tudo como quadrados fechados. Mas seu
Estagiário teimava...
- Quadrado é moderno?
- Sim, você não conhece o cubo branco?
- Claro. Tô ligado. Ouvi dizer que veio do Moma essa ideia.
- Pois é. Ela garante a autonomia do trabalho. Cada som precisa da sua
autonomia. Eles não podem se misturar. Esse é o problema desse projeto. Aqui não tem
só quadro não.
- Mas os trabalhos não querem autonomia. Pelo menos eu acho isso. Acha que tô
louco? Precisamos é de uma boa mistura, tá ligado.
- O visitante ativa, oras.
- Tá, mas não fica bacana, propositivo. Não é pra se sentir acolhido e
convidado? Não é pra dizer algo? Pra instigar? Então... o almoço é bom quando o feijão
tá junto com o arroz e a mistura aparece como algo novo. Tá ligado?
O Expógrafo sorri com irritação e comenta.
- Tudo bem, mas não é essa a questão...
- É sim, tá ligado? Ouvi dizer que é essa a questão da exposição - retruca o
Estagiário sem medir as palavras.
- Pois bem.
- Olha que figura bonita aqui...
E o Estagiário desenha no papel. Alguns traços e pontos, um ou outro espaço
mais fechado e grandes vãos abertos, e umas caraminholas em alguns lugares que mais
pareciam bolas de pelo de gato achatadas.
- É, você gosta de desenhar, não é mesmo?
- Opa!
- Pois é, hora de fazer isso no computador, de ordenar no ordenador - e sorri
com o canto da boca.
Enfadado, o Estagiário coloca seu fone de ouvido e segue em direção ao seu
computador: irá ordenar e se haver com suas músicas. Trabalho é mesmo um saco e, por
um fugaz instante, lembra-se da festa daquela noite que está por vir, dos amigos e dos
bons momentos da universidade, desejoso de encerrar aquela conversa, que não chegava
a lugar algum, com seu chefe, que considera desprezível e acomodado. Ainda assim, e
148
mesmo entendendo sua condição, comenta com a ousadia que lhe cabe nesse tempo da
vida:
- Você ouviu o último disco da Gal?
- Sim! Sou fã dela, comenta o Expógrafo. Fui até no show!
- Então, sabe aquela mistura que ela faz de MPB com funk e música
eletrônica...? Então, se liga... tá na moda!
149
63
Ordenamentos no ordenador:
- 2,20 metros 45o à esquerda;
- 1,80 metros de altura, 3 metros de largura;
Enter.
O mouse segue para o canto. Dois cliques no ícone e o youtube abre na sua área
de trabalho. A mão, já habituada com o teclado, digita: Nina Simone.
Enter.
Olha para o canto de onde tem uma visão panorâmica do escritório. Puxa o fone
de ouvido e o leva a cabeça.
Dois cliques para aumentar o som.
Alt + tab
- 2,50 metros de comprimento, 5 metros de largura;
- 90o e 3 metros de parede;
- aqui é necessária uma adesivação, pensa consigo e indica o ponto;
- 16,0 metros de altura;
- 3 metros de comprimento, 90 centímetros de largura, 2,80 metros de altura;
- 4 metros de comprimento, 90 centímetros de largura, 2,80 metros de altura;
- 9 metros de comprimento, 90 centímetros de largura, 2,80 metros de altura;
- 2,5 metros 90o à esquerda;
- 1,5 metros e 90o à esquerda;
- 8 metros de comprimento, 2,80 metros de altura;
- sempre 90 centímetros de largura;
- 3 metros de comprimento,
- 6 metros de comprimento,
- 10,7 metros de comprimento. Ixi! Isso vai ser difícil para ser validado...
CTRL + S
Escorrega na cadeira e continua a fazer os ordenamentos...
Começa a sussurrar a música de Nina Simone
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Uma vez notaram a fala de um Artista durante uma vernissage. E ela era algo
como:
- Olá!
- Oi querida, tudo bem? Quanto tempo!
- Quanto sucesso está fazendo! Te vejo em vários lugares!
- “Ahan!”
- “Sim, claro!”
- Estou com uma pesquisa ótima, quero muito te mostrar! Vou te escrever para
marcarmos um café.
- Olá!
- “É mesmo!”
- Oi!
- Oi!
- Olá!
- Muito prazer! Sempre ouvi falar de você, que ótimo nos conhecermos ao vivo.
- Que legal!
- Boa noite!
- Tudo bem com você?
- Que bacana!
- Oi!
- Olá!
- Prazer. Gosto muito do seu trabalho. Que legal o que tem feito nos últimos
tempos.
- Boa noite.
- Que ótimo!
- Olá!
- Tá ótimo aqui. Que projeto bacana.
- Oi
- Boa noite.
- ...tudo muito intenso, não é mesmo? Muitos trabalhos, não é ótimo?
- Ah! que legal!
- Oi!
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Existem Artistas que, nas vernissages, conversam sem olhar nos olhos. Esses são
do tipo parecido com os animais em caça numa savana: têm o horizonte como condição.
Olham sempre à frente, ou melhor, ao redor, e com agudeza mapeiam o que é visto:
quem está presente, que conversas fazer, que tipo de diálogo travar, que negócios
produzir ali, o quanto beber, e especialmente com quem será sua próxima conversa ou
para quem será seu próximo cumprimento.
Uma figura de camisa branca e unhas comidas pela ansiedade nos dias, manipula
uma série de objetos com um copo na mão. Percebe-se que os outros ao seu redor nunca
vêem inteiramente seu rosto, mas os lábios não param de se mexer.
- Como está?
- Bem, bom! Eu já...
- Você viu?
- Vi! Eu já...
- Você viu?
- Claro! Eu já...
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- Está sabendo?
- Sim, ouvi dizer. Eu já...
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Ainda que a exposição seja projetada por especialistas, há partes que outro tipo
de especialista, os especialistas na prática, mensuram e realizam. Esse é o caso das
instalações elétricas que, depois de medida a carga pelo Arquiteto, os Eletricistas põem
em prá, ali, na hora, o que é preciso. Nesse momento, ouviram-se dois eletricistas
discutirem o modo de ligação na exposição:
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- Faço um arco aqui e uma parede que chega até lá para circunscrever o trabalho,
dando a ele uma visibilidade potente.
- Mas tem que ter 1,20 metros de largura na porta e no corredor, 1,20 metros na
rota de fuga e a parede tem que aguentar a carga...
- E minha parede curvada?
- Fica no desenho. Aqui é ordenamento.
- “Uma para uma”...., não é Jorge Ben Jor e seu “homem gol”. Uma parede para
uma, comenta sorrindo.
- Certo, mas e a estrutura?
- Fica pro Engenheiro. Cada um que se atenha à sua coisa.
- Veja bem, poderia até ser para uma arquitetura de longa duração, mas aqui,
para este mês só, tu é o engenheiro e é o Expógrafo até um tanto. Aqui neste projeto, é
com você e com o Expógrafo... sabe aquela história “das maió” das artes? Tá na hora de
mostrar...
- Vamos lá. Então é o “homem gol” mesmo... como havia brincado.
E volta a sorrir.
- Isso vai ficar caro, hein?
- Seu serviço ou aquilo que você vai inscrever? Temos o orçamento... ele é o
limite da prancheta!
- Todo orçamento é o limite da prancheta, rs.
E a cabeça voa para outros lugares, inventando o que cabe nisso tudo.
- Vamos lá?!
- Vamos, precisamos marcar com isso tudo aqui. Precisa ser genial.
- Mas tem limite ou não tem?
- Como tudo, não te disse?
158
A cabeça voa.
- Vamos juntá-la às obras. Tô pensando em algo que vai ficar bom.
- Tem um museu lá que fez umas coisas novas, meio dos anos 1960 ou 1970,
quando tudo na arte era inovação e transgressão..., dá uma olhada!
- Ah sim, os anos 1960 e 1970 que promoveram a saída do museu....
E dá uma gargalha alta.
- Vou pensar nisso.
- Poucas paredes, então?
- Fechamos nisso, ou melhor, abrimos com isso!
159
68
- Fez a escala?
- Está vendo aqui? Essa escala?
- Sim.
- Então, ela tem variação.
- De quanto? Me fala, oras.
- Sim, vejamos.
- Pode dar errado, não?
- Hummm. Talvez, depende de como você lê.
- É de perto ou é de longe? Pra que serve?
- Mesmo que para coisas diferentes, tudo deveria estar quase igual aqui... ou
chegar na unidade.
- Na unidade sempre chega.
- É metro ou centímetro?
- Tudo deve estar na uniformidade. Confere?
- Até que sim, menos o zero à esquerda.
160
69
O falante Estagiário do Arquiteto sempre vinha com uma história de seu pai,
arquiteto reconhecido, que fizera muitas obras civis...
- Meu pai dizia que no tempo dele tudo era régua e regra. Dos milímetros às
toneladas, quase tudo era feito à mão... Tinha régua, esquadro, compasso, tira linha e
aquelas mesas inclinadas. Nada desses cliques e mais cliques. Já eu sô dos cliques e dos
Cads. Pra que perder tempo calculando se já tem tudo pronto? Ele conta que havia uma
tal de letra set que se colava nos desenhos das pranchas. Até as máquinas de
datilografar, tudo era meio lento, sabe!? Ele disse que máquinas de escrever continuam
sendo fabricadas.... porque muita gente não usa computador, ele mesmo disse que
depois que aposentou aprendeu de fato a usar bem a máquina de escrever. Ele tem
escrito até sem olhar os botões. Ele tá fazendo um livro, sabe? Não sei se tá ficando
bom, ele não mostra. Talvez só mostre depois de morrer..., quando não terá mais como
escolher. Ele é um sarro, tá contando história com aquilo lá. Diz que as avenidas estão
cheias de automóveis, mas sempre tem uma carroça no meio e mais que a carroça, um
pedestre. Disse que fazia arquitetura assim.... pensando nas temporalidades. Até que faz
algum sentido. Tem até uma coisa de classe social, né? Pois você sabe que vi na TV,
num outro dia, vi que alguém lá num espaço, em uma cidade, tá escrevendo com
máquina de escrever. E era um jovem poeta... Esse alguém dizia que pra apertar aquele
botão duro exigia um tempo e uma certeza que nenhum touch lhe dava. Essa era a
necessidade de uma temporalidade criativa. Faz sentido né? A gente vive escrevendo
kkkkkkkkkk por aí...
161
70
71
Daquela exposição, uma história ficou, e é contada inúmeras vezes por aqueles
que lá estiveram – e lá continuam - nas outras exposições que lá seguiram. Conta-se, na
história, que foi visto na exposição um visitante que ficou tão impressionado com todo
aquele vazio que, praticamente hipnotizado, olhava ininterruptamente, por minutos a
fio, para aquilo que estava na sua frente. Parado, quase imóvel, piscava de vez em
quando. Quem estava ali começou a achar que acontecera algo, até que ele vira a
cabeça, simula um sorriso, pisca com um só olho, e diz:
- Preciso sentar.
Senta ali mesmo, no chão, e com a cabeça agora para cima continua a olhar
aquilo tudo...
163
72
E a lista foi sendo ditada.... e foi ocupando páginas e páginas, sempre seguida de
um balançar da cabeça e de um “ok. farei isso.”, mas num determinado momento, talvez
sem pensar muito, o Coordenador indica como um dos itens deve ser cumprido:
- Tem que ficar bonito.
Rapidamente, aquela resposta aparentemente automática varia:
- Bom gosto não depende só da gente.
165
73
Às vezes, caminha pelos espaços, mas essas vezes são especialmente aquelas em
que precisa figurar. O restante passa em sua sala, entre telefonemas, e-mails e reuniões
para encaminhar processos e dar continuidade à política que eles desejam. Naquela
tarde, surpreende-se com um telefonema:
- Alô.
- Alô, querida!
- Tudo bem?
- Tudo bem. Como estão as coisas por aí?
- Muito bem. Uma ótima perspectiva pela frente. Novos horizontes, coisa nova.
Veja...
- O quê? Veja o quê? Tem gente que desistiu de ver, comentam por aí...
- ...veja que saiu no jornal da manhã, da tarde, de antes da novela e ainda foi
capa dos jornais da região e de um da capital.
- Que maravilha! E como foi isso? Jabá? – gargalha alto – ou vocês são amigos
dos repórteres?
- Sei que você faz essa pergunta para que eu comente o projeto. Ele é bom e tem
trazido muito público. Tem feito sucesso entre nosso público. É uma maravilha.
- Que ótimo, querida. É diferente, né, o que tem aí, não é mesmo? Somente nós
fazemos isso...
- Sim, é. Vê como estamos trabalhando bem?
- Vejo, a cada dia. É um orgulho trabalhar nesse lugar e fazer tudo o que estamos
fazendo. Mas você sabe que tudo isso é porque temos o Diretor que temos...
- Rsrs... Eu sei, querida. Que bom, querida. Mas não se esqueça de divulgar para
os mantenedores. Vou fazer isso por aqui, mas faça chegar os jornais e as matérias a ele.
- Sim, vou fazer. Já pedi à Assessoria de Imprensa que faça o material para
enviarmos.
- Isso, querida. Então tá. Preciso fazer umas coisas aqui. Me ligue sempre com
boas notícias como essa!
- Tudo bem, fico feliz que tenha gostado.
- Sim, gostei. Segue em frente, precisamos manter isso sempre cheio...
- Boa tarde.
- Boa tarde. Tchau!
166
- Tchau!
167
74
Avesso a alguns tipos de público, interessa-se pelas pessoas que têm nomes
fáceis, dessas que sabemos ao ver a cara. Olha para tudo com olhar interessado e
acolhedor, mas atina-se mesmo com os números das planilhas: quer saber das massas e
dos valores. Dá o veredicto pelo peso político de cada coisa, mas, às vezes, também
pelas relações afetivas que traça com sua própria história... Não há espaço para
negativas e para titubeios. Essa espécie de chamada oral tem que ser rápida e precisa,
para mostrar que aquilo que se expõe ali é ágil e digno de estar ao seu lado.
Já é tradicional que, ao iniciar uma reunião, ordene.
- Boa tarde! Gostaria de saber.... está tudo bem com vocês?... os atendimentos...,
quantas atividades fizemos? Quantos contratamos, que áreas, quem são os destaques e
quais os custos disso? Qual foi o custo per capta de cada atendimento? Qual o custo
total? Ficou bom tudo o que fizemos? Vocês avaliam bem? Houve algum tipo de
divulgação? Para quem e onde? Tivemos mídia espontânea? Qual a fixação? Qual mídia
e impacto? Os conselheiros apareceram? Alguém do governo do Estado? E da
prefeitura? Muito bem. Temos meia hora para isso tudo. Obrigado.
168
75
Sem ler qualquer release e, atendendo com prontidão a sua listagem de afazeres
indicados pelo chefe, segue “ticando-os”, valendo-se das artimanhas que, como bom
generalista, todo Jornalista possui. Assim, inicia sua entrevista com o Artista.
1) Qual o nome da exposição? Pode comentar algo a respeito dela?
2) São quantas obras de cada um? Elas têm nome?
3) As obras foram escolhidas ou produzidas especificamente para a exposição?
Se escolhidas, o que levou à escolha das mesmas? Caso tenham sido produzidas, qual
foi o ponto de partida?
4) Elas dialogam em algum sentido?
5) Quando você começou a ser artista? Você escolheu isso ou a arte te escolheu?
Conte-me um pouco da sua história
6) O que o público pode vir aqui conferir? O que ele pode esperar?
O Artista, enfadado com aquele momento da vida e com tudo que a aparição no
jornal representa, olha bem nos olhos do Jornalista e sorri. Dissimulado, pergunta se
pode indicar ainda mais perguntas e, depois da afirmativa do outro, continua:
7) O que está objetivando com a pesquisa?
8) É possível viver de arte?
9) Qual o próximo desafio? Está pensando em uma nova exposição ou projeto?
Enfático, ainda diz:
- Por fim, a mais importante:
10) O que você quer dizer com o trabalho?
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- Depois que ele parou de se debater, e porque o ônibus parou no sinal vermelho,
consegui ver o passarinho ali, esmagado. Tinha vários tipos de vermelho. Uns mais
fortes e outros mais fracos. Escorreu sangue no chão. Deu pra ver o que ele tinha dentro
dele...
- Tá bom. Já chega. Diz em voz alta o Educador.
- Eu não sei que tipo de coisa ele tem dentro, mas aparecia ali, aquela coisa que
parecia uma massaroca, um macarrão de domingo só que mais vermelho escuro.
- Tá... Tenta interromper o Educador, mirando o menino com olhar de desgosto.
- O sinal de trânsito é rápido, na maioria das vezes. Mas dessa vez parece que
demorou muito. Eu fiquei ali vendo pela janela o passarinho morto, esmagado no chão.
Aquela mistura de pele, pena e carne encharcada de sangue. Era horrível, mas não
conseguia parar de olhar.
- Vamos lá? Chega... Tenta de novo o Educador.
- Tinha mais gente do ônibus olhando... todo mundo ficou meio triste.
Passarinho é bonito, né? Ninguém gosta de ver morrer, mesmo quando é aquele de
praça que faz cocô em tudo. Minha mãe não gosta daquele tipo..., mas eu gosto, de
todos os tipos.
- Chega! Insiste mais uma vez o Educador.
- Teve uma pessoa do ônibus que disse que viu até o carro dando uma levantada
na hora que passou em cima. Acredita?
O Educador comenta:
- Ok! Vamos partir para o próximo trabalho...
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Projeto que, pela primeira vez, reúne obras de arte que desafiam a percepção
sensorial dos visitantes. Confira uma programação única que conta com exposição,
cursos, oficinas, mesas de debate, entre outras atrações.
Uma exposição inédita no Brasil, concebida e realizada para esse espaço,
privilégio dado pelo encontro com a arte e que pode promover a interação do visitante
com as obras. Assim, este projeto apresenta instigantes materiais de arte visual
contemporânea.
A mostra reúne trabalhos formando um panorama histórico por meio de obras
conceituais, que trazem novidades ao público interessado. As obras dialogam com a
produção artística da segunda metade do século XX, rompendo não somente com as
mídias tradicionais da pintura e escultura, mas expandindo os limites da arte
contemporânea por meio de novos suportes, indo além da forma, confrontando valores e
comportamentos vigentes de cada época.
Para a abertura, espera-se um grande público e a visitação dos cidadãos dessa
localidade, pois a exposição permite ao visitante produzir experimentos próprios,
instigando-o, portanto, também a criar, já que é um lugar de experiências inesquecíveis,
onde o instante inenarrável de visitá-la nos transforma, e vale não pelo que acontece,
mas pelo que nos acontece.
Para saber mais, venha nos visitar, e, para maiores informações, contate o
Assessor de Imprensa.
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Willian James
Cansado dos dias, da sobrecarga de fazeres, não são poucas as vezes em que o
Pesquisador pensa em parar. Entre o atoleiro de trabalho e o desistir de vez, parar é o
escape dos dias naquelas poucas horas, ou até minutos, em que consegue dedicar-se aos
estudos em meio à agitação da cidade, ao tempo de deslocamento e à rotina de trabalho
anestesiante. Diante dele, tudo fica pesado, e a crítica é uma válvula em meio às
pressões de seu corpo... suporte daquilo tudo que o coage.
Frente ao conturbado cenário dos pequenos ordenamentos diários, uma aposta
no parar para engendrar, dentro daquilo que é obrigado a fazer, outras relações. Mas até
parar pode ter duas faces quando se tem que criar e de trabalhar...
Acorda. Depois de um banho rápido, o café preto forte. Esse já é o primeiro
encontrão que recebe. Ali começa...
Abre seu computador e uma página em branco do editor de texto. Mal digita
pouco mais de duas ou três palavras, para. Vai até seu e-mail... pensa que pode ter
alguma tarefa urgente ali.
Passado um tanto de tempo, volta ao texto. Escreve alguns parágrafos e
novamente para. Entra nos sites de notícia, preocupa-se com tudo que acontece ao seu
redor e com aquilo que esta por vir nos próximos dias.
Faz aquela leitura dinâmica que pouco repara nos meandros das notícias. Então
deixa isso e mais um monte de coisas – inclusive a continuidade da sua pesquisa – para
as horas em que passa no transporte público indo e vindo do trabalho. Para novamente e
volta-se para sua pesquisa, alguns dedilhados mais e novamente para.
Entra na rede social e lá se perde entre uma notícia e outra nos minutos que
antecedem a saída do trabalho. De lá, pega o livro que está lendo, as frutas para o lanche
da tarde que subsidiam a economia diária e parte.
É no transporte público sua principal hora de estudos, já que é nele que
permanece parado boa parte do dia, “sem ter o que fazer”. E naquela parada que vai
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longe, rabisca algumas linhas de diretrizes e ideias. É ali também que lê e, diga-se de
passagem, uma leitura nada parada.
No emprego que paga suas contas, confia que “tudo que respira conspira”. Lá
não para, e o que inspira é a abertura para outros sejam eles quais forem... Ainda assim,
teve que parar e sorrir para um monte de gente que disseram ser importante para alguns
dali, assim como enviar e-mails, organizar planilhas e relatórios. Diluiu-se em reuniões
infindáveis e amargou-se com tanta burocracia. No meio da noite, para ali, naquele dia,
deixando uma lista de afazeres ainda maior...
Volta para casa já tarde da noite. Tem que cozinhar, cuidar da casa e estudar.
Entre uma coisa e outra sempre para, escapa para algum outro lugar seja físico ou
imaginativo... ainda mais se se movimenta.
De tanto movimento, de tanto parar, vê aquela coisa toda que continua ainda lá,
sendo interminavelmente ela mesma. A pesquisa, tal qual “a paciência simbólico-
sacrossanta”, finda aquele dia na esperança e na resistência de acordar, um dia após o
outro, “sob o mesmo céu e no mesmo universo” que ela, para fazê-la, ainda que entre
paradas, um pouco mais.
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- Simbora, o motorista tá lá. Deve tá cansado de ouvir o rádio nesse solão quente
e de ficar esperando. Coitado! Temos o que queremos, e agora é ligar.
- Tô ligado. Oxênti, simbora...
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- Quem são elas? A terra, essa nossa aqui onde caminhamos, é o fogo sob os
nossos pés.
- Não compreendo... Eu estive num lugar onde havia todas, e eram lindas. Lá
não se é a única diferente. Todas eram...
- Se é pra dizer por entre palavras, pois parece que é isso que você me disse
agora, vou te dizer uma coisa na lata!
Então ela pega seu dedo, cutuca o nariz que estava obstruído e acumula aquilo
que lá obstruía na parede da exposição, limpando-o.
- Pronto! Respiro profundo e agora posso rir com mais fôlego.
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Chegando ao bar, após uma extensa jornada de trabalho, dois Seguranças são
recebidos com a seguinte fala pelo Dono do Bar:
- Boa noite, Senhores. Em que posso ajudá-los?
O Segurança, mal humorado e sedento por uma cerveja gelada para aliviar seu
estresse e os calcanhares macerados do dia extenso, diz, sem muito pensar, ao seu
amigo: “Nossa, eu saio da exposição e a exposição não sai de mim... credo!”
- Boa noite!
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- Rapaz, vem cá. Não se avexe não, tome mais uma aqui seu torcedor de titica...
- Ó se tu que é o Dono do Bar tá me falando, vou seguir a sua, mas tu me dá um
chorinho no final, beleza? Eu sou Educador, sabe como é pra gente também...
- Vou dar só pra ver sua cara se transformar e ficar um pouco mais bonita. Eita
bicho feio sô!
- Feio é seu passado!
- Ô seu também, ou você tá fazendo esse seu serviço de peão por que escolheu?
- É, tudo tem seu preço. O meu é baratinho... mas tô bem, veja de onde eu vim...
e pra onde eu vou...
- Acho que você vai é pro forró, isso sim. De resto, acho que estamos todos na
mesma: em óleo bem quente!
- Então vê uma coxinha, e mais uma dessa!
- Rapaz, não tem mais coxinha não! Os oficiais vieram e levaram todas... sabe
como é... eles chegam, perguntam se tá tudo bem, que viram uns bandidos rondando
aqui de noite e que espantaram... que fizeram um favor pra mim... aí ficam aqui, falando
do tempo... esses “espanta clientes” ficam na porta do bar até que a gente ofereça algo
pra eles, as coxinhas, né. Aí eles comem e vão embora...
- Disso não posso falar nada, é a regra. Eu sou dos outros oficiais, de outros
estados. Pra esses, eu só falo bom dia. É osso, poder a gente não disputa se na briga não
se tem chance! Independente, põe mais coxinha no óleo, então, e me vê um kibe aí...
- Tá na mão! “Esse é tipo árabe” – disse o Dono do Bar –, duro por fora e macio
por dentro.
- Então me vê dois. Quem sabe meu pé não fica assim. Tá foda ficar o dia todo
em pé... aliás, quanto tá o jogo mesmo?
- Qual?
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O Bombeiro se aproxima de um Marceneiro que estava com sua camisa de
uniforme aberta, tamanho o calor que sentia. Cumprindo com o trabalho que deveria
realizar ali, precavendo as pessoas de possíveis riscos de acidente, resolve abordar o
Oficial da obra, questionando-o.
- Mestre! Não faz isso, não. Todos nós sabemos da sua competência e
experiência, mas quando menos se espera, acontece. Isso pesa, cê sabe... e pode te
machucar, visse?
- Deixa comigo, seu Bombeiro! O senhor não sabe com quem está falando, eu
domino o negócio aqui.
- Sei o quanto o senhor domina, por isso estou falando... mas, cuidado, a
proteção é melhor pra ti, mestre! O pior acontece quando a gente não espera... e lhe digo
mais: se o senhor domina tanto sabe que estou aqui para além de um foguinho ou de
alguém passando mal... tô aqui pra... bora acertar isso, sô!
- Tá bom, pra você parar de me encher, vou fazer isso. Eita cabra arretado que
fica no pé! Tá pronto, ó! Tudo abotoado.
- As cabeças duras tem que ficar inteiras, ainda que deem cabeçada. Cê fica
bonito assim, ajeitadinho, todo abotoado feito quem vai prum baile. Só a catinga que
não ajuda.
- Ajuda sim, sô. Espanta uns cabras feios como tu, ôxe. Se eu tô aqui nesse calor
todo, imagina tu com essa roupa toda que usa.
- A peãozada acostuma. Pra tudo nessa vida dá-se um jeito, ou pra quase tudo.
- Pois é. Prego batido não volta atrás, inda que se queira endireitar.
- Ih, não vem pregar pra mim não, sô.
- Eu lá tô pregando. Já fiz isso. À noite, lá no bairro, e hoje o dia todo. Não
entortei nada, tá fixo e tudo no seu lugar. Aqui não bambeia não... nem prum baile. A
coisa é séria, pensa o quê.
- Tô vendo, depois que eu disse... deixa eu ir pra lá que tenho mais o que fazer.
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Ainda que sua prática seja mestiça, é no tato com as pessoas que tudo se dá. Os
números estão ali apenas para oferecer respaldo a um sentimento que tem no feeling sua
principal variante e condicionante. A prova disso foi como aquele Gerente, já esgotado
em seus argumentos técnicos, findou uma discussão com o Expógrafo e o Arquiteto
sobre o ajuste na colocação de uma parede. Naquela conversa, ouviu-se...
- Gostaria que mudasse de lugar essa parede. Perceba que aqui não é bom, bate
luz e prejudica a visão.
- Mas senhor Gerente, estamos na direção norte-sul e o sol não tem incidência
aqui. Não se preocupe com isso.
- Gostaria que mudasse de lugar essa parede por conta do fluxo de gente que vai
daqui para lá. É preciso pensar nas outras atividades que acontecem nesse espaço
também.
- Sim, previmos isso. O mínimo para um corredor é 1,10m e nós fizemos aqui
com 4 metros. Fique tranquilo, Gerente.
- Gostaria que mudasse de lugar essa parede porque ali também tem um
banheiro e, quando é grande o volume de público, fica complicada a passagem.
- Previmos isso. É possível a passagem rápida de muita gente do modo como
está.
- Gostaria que mudasse de lugar a parede porque aqui ficará difícil para ler o
texto e ver o trabalho com a amplidão que ele precisa. Esse lugar não é muito bom pra
ler.
- Fique tranquilo, senhor. Temos bastante experiência nisso e garantimos que
ficará bom e de ótima leitura.
- Olha só... meu último argumento (exclamou)! Gostaria que mudasse de lugar
essa parede porque eu sinto que ela não pode estar aqui. E é assim. O que eu sinto, eu
sinto. Feeling não se explica, pelo menos o meu... é a experiência da gerência, sabe?
- Sim, sei. Da gerência...
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O Bombeiro, nas tardes infindáveis que passa ali na exposição, atem-se ao que
acontecem por lá, das pessoas aos detalhes das coisas, mesmo sem saber muito quem ou
o que são. Também conhece bem os trabalhos expostos, porém os analisa de acordo
com suas perspectivas de periculosidade e risco. Depois de várias pessoas terem
passado, naquela tarde, pela exposição, veio um Educador cantando lá do fundo e, ao
chegar perto do Bombeiro, é recebido com um “o que é isso? Uma música sobre
incêndio? Ela fala de sprinklers? Não acredito! Que musica é essa?”
O Educador sorri, e comenta:
- É quase isso, é uma música do Jorge Ben. (risos) Ela quase tem essa última
frase que você disse. (riso mais alto). Só ouve...
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Aquele Atendente de público está sempre em seu posto, ereto e, na maioria das
vezes, parece mudo para o público presente, um tipo de atitude que lhe é solicitada
pelos seus superiores. Mas, na ausência do público, relaxa o corpo e dispara a falar
como poucos. Sorri e conta piadas, causos, comenta a política, as novidades da televisão
e do centro comercial perto de sua casa, o trânsito, o clima e o que mais chamar sua
atenção ou for pauta do dia. Em tudo que comenta, algo é recorrente: sua escolha em
trabalhar nas exposições de arte como atendente. Para todos os outros funcionários que
por lá passam, ele desembesta a contar sua história...
- Sabe menino, já fui estivador, já fui faxineiro, já fui atendente de caixa de
supermercado, frentista de posto de gasolina, estoquista em três lugares diferentes e até
representante comercial. Cheguei a ganhar muito dinheiro, mas resolvi parar aqui, de
atendente, na exposição. Eu gosto daqui, sabe? O trabalho é manso! Você vê gente
passar? É pouca, não é, não? Exposição é coisa pra poucos? Veja aqui à tarde... se não
vem escola, fica assim, meio parado. Entra um ou outro gato pingado... é sossegado!
Mas também, exposição é coisa de rico. Onde já se viu gente que trabalha ir ver uma
exposição no meio da tarde... o povo tem que tá no batente nesse horário... no fim de
semana até que enche um pouco mais, mas nada comparado à loucura de um
supermercado. Comida é comida, arte é arte. Não é mesmo? São necessidades
diferentes, não é não? Uma das minhas é ficar de boa... tô ficando velho... tenho que
ficar tranquilo, meu corpo não aguenta muito mais coisa, não; já sofri muito nessa vida.
Aqui o salário é quase nada, bem baixinho, mas pelo menos vejo pouca gente... coisa de
rico, paga pouco pra gente ficar aqui parado, cuidando. Você viu o tempo? Como tá
difícil de prever? Ora faz frio, ora faz calor... ele tá maluco! Tem que andar com tudo
quanto é tipo de roupa... e faz tempo que não chove, mas eu não tiro meu guarda-chuva
da mochila. Deixo ele lá. Eu comprei esse que é bem pequenininho no centro comercial
que fica do lado do terminal de ônibus. Sabe qual? Aquele cheio de barraquinhas. Tem
uma lá que é...
- Tá vindo alguém ali...
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“Bom dia.
Obrigado por avisar, mas neste tamanho não consigo dizer tudo que desejo.
Um pouco mais é possível?
Obrigado.”
- Acredito que você está sentado e passa o dia quase todo assim. É a posição de
maior conforto, mas vê exposições em pé e, quando as vê, tem as mesmas dinâmicas de
passeio... passar rápido pelas coisas, é assim que fazemos, a maioria... pense, estamos
no tempo das mensagens instantâneas!
- Certo, preciso desligar.
- Então, siga em frente com seu texto, desde que tenha até este tamanho e com a
linguagem que apontei. Antes disso, leia o texto em pé, num ponto de ônibus, com certo
movimento. Se você chegar ao final dele sem desviar sua atenção e ainda entendendo
minimamente o que está dito, me envie.
Disse o Curador após desligar o telefone:
- Porra! Que puta pé no saco...
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O Jornalista tem uma validade que, às vezes, pode ser renovada, ano após ano,
assim como o texto que ele esboça. Isso porque ele se dirige a um determinado
segmento de público. Alguns tendem até a durar um pouco mais e a se tornar históricos,
dado o fato que apresentam. Porém, em sua maioria, fazem a notícia do dia tal qual o
Padeiro o pão fresco da padaria: só serve porque é novo. Quando bom, o Jornalista
consegue indicar o leitor para o seu texto e alinhar o tom daquilo que delineia com o
tipo de leitura a se fazer, de maneira que proporciona uma espécie de mediação, como
aquela realizada pelo Educador na visita a uma exposição. Mas um desavisado
Jornalista acreditou que estava escrevendo para um certo alguém que não se sabe e nem
se imagina quem seja, tanto que ele nunca irá passar pelas linhas por ele delineadas.
Ainda assim, caso se queira tentar, elas estão aqui...
Caro leitor,
Chega ao ciberespaço uma nova Exposição, precedida por uma apresentação
elaborada e por uma inédita reunião curatorial que só os grandes feitos do mundo
moderno é capaz de fazer. E sabemos bem o porquê. Antes de mais nada, vale notar que
a Exposição é uma complexa maravilha da vida que apresenta, mesmo que apressada,
um panorama das proezas e audácias criativas dos Artistas que dela fazem parte e reflete
através das variação e das tendências, temas e assuntos na justa oposição ao momento
histórico-político do país assolado por intempéries. Acompanhando a complexificação
da situação econômica, política e social brasileira, a arte não se alija de sua função
social e apresenta inserções de uma nova e única perspectiva a qual se dá graças a
genialidade com que cada Artista expressa sua existência, e a sua iminente sabedoria
cultural está embasada, entre outros, nos cânones históricos e em profundos referenciais
acadêmicos. Por assim ser, conseguem fazer emergir os subsídios necessários para
brotar poesia naquilo que apresentam. Desejo esse também expresso na tamanha
intencionalidade e ímpeto de perenidade construído. Sem embargo, carrega o laço da
história a partir da inflexão proposta. Veja esse imperdível baluarte inscrito na história,
perder de visitá-la é uma experiência irreparável.
- Oi?
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- Alô?
- Pronto.
- A vida está corrida.
- O tempo está mesmo estranho.
- Não, imagina! Sentimos sua falta... você sabe, claro, teremos uma abertura
incrível aqui. Com trabalhos M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O-S! Você não vai fazer diferente,
ou vai? Todo mundo vem, está muito falada!
- E isso é bom, há burburinhos aqui que não se pode perder... de copos e para os
ouvidos. Venha!
- Nunca estive tão bem e nessas horas...
- ...não é mesmo... é divertido ver e ser visto e sorrir...
- Tenho minhas limitações como qualquer mortal... você sabe que duas taças dão
vigor às maçãs do rosto.
- Sempre, lógico.
- De quem está você está falando?
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Após receber a incumbência do Editor, usa um modo que é só dele para falar
com o Artista, que teima em escrever tal qual faz com seu trabalho: singularmente.
- Ô meu querido, tudo bem? Como estão as coisas por aí? Bem, né? Tenho visto
você trabalhando pelas fotos compartilhadas no Facebook...
- Pois é, tá bem legal. Aos poucos tá virando!
- Sim e como! Aliás, aqui tá um sucesso viu! Todos estão gostando...
- Que maravilha! E vai render mais coisa?
- Acredito que sim! Mas você tem que ver...
- Sim, eu vou!
- Isso, venha, a abertura será incrível. Mas tem uma coisinha que preciso te
falar... veja... teremos um catálogo lindíssimo, parrudo, com um super Design! E ele
tem até um Editor, acredita? Coisa fina! E esse Editor quer deixar o catálogo com cara
de livro. Entende? Aí ele quer que você escreva seu texto num formato...
- Não artístico.
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Sem que outros saibam, o Crítico de Arte vem pela manhã na exposição, num
período em que praticamente não há ninguém, e caminha sozinho pelo espaço.
Silenciosamente, e com semblante pensativo, manda uma mensagem para o Artista:
“Estive na exposição, desejo conversar contigo”.
O Artista, sabendo da importância, logo retorna e marca uma nova visita. Está
empolgado, pois não é sempre que alguém revisita uma exposição.
Dias mais tarde, encontram-se para a visita compartilhada. Caminham juntos
pela exposição e conversam com intimidade, de modo audível, para que nada ficasse
para trás. Depois da exposição, sentam em um café e continuam a conversa.
Pouco a pouco, o Crítico de Arte vai fazendo perguntas, puxando um ponto,
prolongando outro e friccionando ainda outro... Com experiência, conecta
temporalidades, semelhanças e aponta as disparidades. Nomeia as filiações e os
combates, tudo ali, naqueles instantes, enquanto o Artista se atém ao trabalho, mas não
deixa de contar histórias, ao seu modo, pois é assim que ele disse inventar suas coisas.
O Crítico vai anotando palavras-chave, desenha algumas setas que ligam uma
coisa a outra no seu caderninho...
expansão
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Intermitente é a divulgação feita pelo Artista desde que começa a montar uma
exposição. E faz isso para seus diferentes públicos através de um mailing que cultiva tão
bem quanto seu vaso de planta favorito, mas para alguns destinatários dispensa especial
atenção. Dois dias antes de abrir a exposição, e em meio ao caos e à ansiedade que
vivencia, comprime ainda mais sua noite de sono e deixa um tempo para enviar
mensagens para alguns Curadores com quem tem diálogo próximo...
Em casa, sentado no sofá, pega o seu smartphone e, enquanto o café vai se
preparando, envia a primeira mensagem:
“Oi! Tudo bem com você?
Já te contei, nas vezes em que nos encontramos em outras aberturas do projeto
que estou realizando e também já enviei o convite, mas passo aqui pra reforçar. Depois
de amanhã é a abertura da minha exposição e gostaria muito que vc fosse para ver tudo
montado, e para conversarmos. Tem coisa lá que você vai gostar de saber, tem pesquisa
nova...
Nos vemos lá?
Abraços”
A cafeteira apita e ele parte pra cozinha... a noite está só começando...
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Num bar qualquer, depois de um dos vários eventos de arte que o Artista
frequenta semanalmente, algumas pessoas bebem cerveja barata e dão risada da vida,
das festas, enquanto atualizam o que estão fazendo. Lá estão alguns Artistas, e dois
deles conversam mais ou menos assim:
- Você sabe do meu novo projeto, né? Tá tão legal...
- Tô ligado! Você me contou. Tá legal né?! Vai ser muito bom!
- Você vai, né?
- Claro!
- Ah que ótimo, quero te ver lá...
- Tomamos mais uma?
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Existem alguns tipos que possuem uma vida artística e tudo o que fazem, fazem
desse lugar do artista. Esse era o caso do Artista que passava horas a notar e a escrever
sobre uma folha de papel, a olhar para a parede aparentemente branca, para uma
caçamba de lixo posta na rua e com coisas que a primeira vista eram inservíveis, para
uma faixa de pedestre com uma cicatriz de um conserto no asfalto, a ver e se entregar às
cores de uma publicação na rede social, o botão de um elevador da sua casa um pouco
torto, a festejar entre os amigos, a brigar para que algumas ervas daninhas
permanecessem na fresta do muro, a ler repetidamente um parágrafo de um livro de
“outra área”, a festejar até se acabar, a usar a roupa torta, ainda que alguns rissem de si.
Tudo ali parecia desconectado, mas, para ele, do modo como age e segue pensando,
tudo aquilo ali se ligava, e sem fechar as possibilidades de incorporar algo mais que
talvez pudesse ser a coisa mais importante que via e que contaminava a totalidade de
seus dias..., ia pouco a pouco expandindo seu território usado – como dizia Milton
Santos –, para que pudesse usar... Esse artista estava ali, naquela exposição, vendo
tudo... Um Segurança percebera que ele atentava para a fresta entre duas paredes,
observando-a com intensidade tamanha que o Segurança se aproximou e resolveu “se
justificar”:
- Senhor, isso logo será resolvido pelo Pintor que virá concertar ainda esta
semana.
- Obrigado pelo cuidado de avisar. Mas não é possível deixar assim? Os
melhores pães da minha avó eram sempre aqueles que rachavam. De lá saia um
perfume... Disse o artista com suavidade, enquanto o Segurança franzia a testa...
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No metrô, a caminho de mais uma reunião, o Artista segue olhando pela janela
do trem. Ainda que por ela não veja nada além de flashes de luzes daquele túnel
comprido, parecia buscar algo, avistar algo, e fez daquele momento um lugar de
pensamento, assim como outros... Começou a notar as manchas que eram algumas
vezes vista naquele buraco de transportar gente. Pensou no seu trabalho, na exposição
que estava para acontecer e, especialmente, na sua principal questão naqueles dias:
como iria expor e dispor seus trabalhos já que a luz aparecia entre as maiores demandas
com aquele trabalho. Entre uma estação e outra, resolveu que seus trabalhos teriam uma
luz direcional, já que as paredes do espaço expositivo eram um pouquinho tortas e, se
iluminadas de um certo modo, que surgiu ao pensar sobre a janela, poderiam aparecer as
imperfeições da parede, sua textura, o que tornaria o trabalho ainda mais interessante. E
apesar de espremido no trem e da reunião entediante que estava por vir, sorriu com a
nova possibilidade para a sua exposição e pensou consigo mesmo: “Vou ter que falar
com o Iluminador”...
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Dias depois de ficar pensando sobre o modo de dispor e iluminar seu trabalho, o
Artista vai à exposição determinado a alterar a luz uniforme que estava lá colocada.
Sabe que precisará do aval do Iluminador e, para obtê-lo, conversa antes com o
Curador, e pede para que o Produtor vá junto com ele...
- Estive pensando...
- Vocês... sempre pensando. Diga?
- Então. Já falei com todo mundo, falta só falar contigo... veja bem Iluminador, a
luz não pode ser “lavada”.
- Não gosta de “lavada”, não?
- Ahã, prefiro seca, tipo pele no inverno, que dá pra ver as ranhuras.
- Deu frio de pensar, percebe?
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- Estamos com trabalhos ótimos, que fomentam ótimas discussões, tal como
vocês consideraram, Diretor. Mas para que essas discussões se ampliem e deem ainda
mais visibilidade ao projeto, precisamos de uma programação paralela com cursos e
oficinas...
- Pois bem, Curador. A exposição não é só de obras?
- Desejo que também tenha uma “programação paralela”, que te mostro agora.
Vamos ampliar as discussões do campo da arte para outros e trazê-los para cá também.
Não estou inovando – te mostro! – mas apenas fazendo o que já acontece mundo afora...
lá, diferentes agentes criam interconexões. Pense bem... isso amplia a ação, dá
visibilidade e credibilidade... olhe isso...
- Uhmmm... Acontece lá? E lá? Uhmmmmm...
- Então, podemos fazer?
- Custa caro?
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Dance Movement
(movimento da dança)
Auguste Rodin
Fundição em Bronze
7 x 10,8 x 9,2 cm
ca. séc. 19
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14 Aberturas
29
É Virginia Kastrup (2007, p. 27) quem apresenta uma reflexão interessante sobre invenire e de onde
retirei tal referência que deu embasamento à ideia da exposição. Escreve ela: “Buscando lançar luz sobre
253
o que deve ser entendido por invenção, retomo a etimologia da palavra latina invenire, que significa
encontrar relíquias ou restos arqueológicos (STENGERS, I. Quele histoire pour les sciences?. Cahiers de
la Fondaction Archives Jean Piaget, n. 4, Histoire des sciences et psychologenese. genebra: avril, 1983).
Tal etimologia indica o caminho a ser seguido: a invenção não opera sob o signo da iluminação súbita, na
instantaneidade. Esta é somente sua fenomenologia, a forma como ela se dá à visibilidade. A invenção
implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no avesso do plano das formas
visíveis. Ela é prática de tateio, de experimentação, e é nessa experimentação que se dá o choque, mais ou
menos inesperado, com a matéria. Nos bastidores das formas visíveis ocorrem conexões com e entre os
fragmentos, sem que este trabalho vise recompor uma unidade original, à maneira de um puzzle. O
resultado é necessariamente imprevisível. A invenção implica o tempo. Ela não se faz contra a memória,
mas com a memória, como indica a raiz comum a ‘invenção’ e ‘inventário’. Ela não é corte, mas
composição e recomposição incessante.”
254
alcançar algo (uma outra lógica?) só possível em meio à “falação” dos personagens, em
meio às forças que atuam na exposição, produzindo um campo sempre perspectivado
por alguma coisa ou alguém, e cujo movimento é incessante. Por isso aqui não cabe o
descrever tampouco uma definição estrita, ainda que se pudesse considerá-la apenas
como uma perspectiva entre várias, pois há um investimento que se faz, uma
multiplicidade30 da qual se toma partido ao utilizar o jogo como estratégia. Sabe-se,
entretanto, que em cada exposição e em cada lance ou passagem dela se põe uma
questão, dá-se um acontecimento - algo se passa. O que se passou? - que podem estar
em relação com outras tantas questões. Aposto, então, na experimentação, ao invés de
na definição ou na explicação excessiva, com linhas que não delimitam, “mas seguem
direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se
aproximam como se afastam uma das outras. Cada linha está quebrada e submetida a
variações de direção (bifurcada, enforquilhada), submetida a derivações” (DELEUZE,
1990, p. 155), emaranhando-se num dado momento, tal qual se abrem num outro para
mais possibilidades de articulação.
Assim, a exposição invenire está e não está nesta pesquisa, a compõe e dela
escapa sob vários aspectos. Ela é o jogo que se joga no jogo que é criado. Não há nada a
rememorar, nada a historicizar, há apenas um espaço e um tempo de experimentação, no
qual se maquina uma exposição, um modo de escrever e sobre o que escrever, sob a
forma de um jogo, ele mesmo obra, exposição e procedimento que torna possível a
criação de uma abertura ao tirar o foco do artista para colocá-lo no artístico, ou seja, na
produção de algo vivo que a cada lance se divide e se recombina.
Ao indicar o diagrama como questão central dessa pesquisa, vi-me diante de
uma dificuldade de produção da própria pesquisa, pois o diagrama, tal como se propõe
conceitualmente e como aqui se apresentou, é um problema que se coloca a cada
passagem, a cada material, a cada proposição, a cada posição, apontando para as
diversas, e porque não ilimitadas, perspectivas que se pode ocupar. Assim, pensar o
diagrama dentro do programa de poéticas visuais implicava criar a materialidade do seu
funcionamento, experimentando-o como prática artística, como um problema de criação
30
Sobre a ideia de multiplicidade Deleuze indica em seu livro Foucault (1988, p. 25): “O essencial do
conceito é, entretanto, a constituição de um substantivo tal que o ‘múltiplo’ deixe de ser um predicado
que se pode opor ao Um, ou que se pode atribuir a um sujeito referido como um. A multiplicidade
permanece totalmente indiferente aos problemas tradicionais do múltiplo e do um, e, sobretudo, ao
problema de um sujeito que a condiciona, pensaria, derivaria de uma origem, etc. Não há nem um nem
múltiplo o que seria remeter-nos, em qualquer caso, a uma consciência que seria retomada num e se
desenvolveria no outro. [...] A multiplicidade não é axiomática nem tipológica, é topológica.”
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