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Resumo:
Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos, forçando
o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de um
sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando por aí
escapar da representação mimética. O performer instala a ambigüidade de significações, o
deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a
realidade, os signos, os sentidos e a linguagem. (FÉRAL, 2008, p. 7 e 8 )
No começo, o verbo, verbo para o presente, presente não tão simples. Verbo realizar, e a
vontade de criar condições favoráveis para a existência de um projeto regular e
contínuo, capaz de trazer para o centro das atenções questões relativas à presença da
performatividade nas artes cênicas. E trazer ao público. Propor encontros entre obras e
fruidores, entre artistas e pesquisadores, entre esses últimos e o público. Encontros no
interior de uma instituição propícia ao encontro, e a partir de eixo curatorial definido
para as artes cênicas.
E o verbo se fez esboço, conversas longas, depois projeto, muitos ajustes, pesquisas
acerca de obras, artistas e pesquisadores, realizações, e lá se foram sete edições (até a
data de criação desse artigo eram sete, agora, nove!).
Para começar: conversas para encontrar um nome ao que já era um desenho de projeto,
ou termos para sintetizar variadas condutas artísticas inscritas em um tempo que é
ainda presente, passageiro em trânsito. Nome-chave para abrir vias de acesso às artes
cênicas por meio da aproximação ao gesto de seus criadores. Gesto: performático,
inquieto e radical. Três qualidades para definir criadores e criações que desmontam e
desarticulam convenções, ou brincam com a rigidez dessas em cena.
A performance, com bem menos de cem anos às costas, promoveu rebuliço geral nas
artes cênicas. Passando por crises desde o final do século dezenove, mas ainda
confortavelmente assentados sobre convenções acerca da representação e, quase via de
regra, frontalmente postas diante de um público que começava a dar sinais de tédio,
dança e teatro foram contagiados por certo espírito desorganizador da performance.
Como Lehmann aponta é a performance quem coloca para as artes cênicas, e para o
teatro especialmente, a questão da arte como acontecimento, como experiência real. O
autor dedica um capítulo de seu estudo sobre o que nomeia Teatro Pós Dramático, para
desenvolver esse tema a partir da ideia da crise da representação presente nas artes
cênicas. Crise assumida pela performance em seu interior, e como premissa fundante
da sua vontade de ser; e o grau de colaboração dela para a desestabilização de conceitos
do Teatro Moderno – que ainda tentava salvar a representação, até então, via
naturalismo.
Ainda segundo o pesquisador, a década de 70 foi marcada pelo teatro conceitual (ou a
performatividade no teatro), e a década de 80 pela teatralização da performance, para
mais adiante viverem mútua contaminação, teatro e performance art.
A performance se valida nos séculos XX e XXI como arte sem fundamentação em algo
que precisa ser representado, e propõe ao teatro, uma espécie de revisão dada à ênfase
na representação, ou traz um sentido para a arte como objeto autônomo (no sentido de
não se validar apenas ou tão somente por representar algo fora de si, de ser per si).
Se o Teatro Épico foi responsável por realizar a fratura entre o objeto representado e o
processo de representação ilusionista (ao escancarar estrutura física, estilo,
maquinaria, plateia), foi a performance responsável por recriar a noção de presença, e
convocar o público a ser parceiro da cena, detentor de decisões que definem o êxito da
comunicação entre as parte envolvidas ou, dizendo de outro modo: trazê-lo à cena
como interlocutor ativo para a ação artística em curso.
Esse projeto e os dois formatos foram originalmente idealizados por mim em parceria
com a ex-programadora de dança do Sesc Belenzinho, Claudia Garcia, após a percepção
de demandas emergentes para a criação de espaços de curadoria com intuito de
oferecer visibilidade para ações e obras performáticas, e por nosso desejo comum de
estabelecer diálogos entre as artes da cena. Nasceu também da verificação de demanda
por programações que formem público para obras híbridas, situadas em zonas abertas
para diálogos entre linguagens e modos de criar dessas. E, assim, introduzir diálogos
pouco usuais entre obras e público, obras e artistas, artistas e pesquisadores,
pesquisadores e curadoras, curadoras e instituição onde atuam. Esses impulsos se
transformaram em estímulos fundamentais tanto à proposição, quanto para posterior
continuidade do projeto, e serviram como molas de propulsão para arejar modos de
organizar itens como apoio, receptivo de público, comunicação, mediação, divulgação –
considerando em todas etapas desse trabalho outros modos de operar das e nas artes,
com relações móveis que, por assim serem, requerem também de todas instâncias e
profissionais envolvidos nesse processo, outros modos de agir e pensar a viabilização
do projeto.
(Vou me ater nesse texto a apontar questões sobre obras e artistas de teatro que
participaram do projeto, por ser esse um terreno onde participei mais ativamente como
curadora e pesquisadora do projeto.)
A primeira obra teatral a participar, Anticlássico – uma desconferência e o enigma vazio (de
Alessandra Colasanti), traz para a cena uma personagem supostamente retirada de uma
pintura de Degas (uma bailarina de vermelho), animada com vida própria e muito dona
de si, mulher atual, independente, autônoma. A Bailarina saída da tela imóvel de uma
pintura consagrada do século XIX ganhou estrada, conheceu o mundo, conviveu com
artistas modernos e vanguardistas, para se tornar conferencista dedicada aos estudos
das artes e de suas contradições teóricas. A peça de Colasanti empresta atualidade à
personagem de Degas, porque sua dramaturgia textual e de cena mescla
acontecimentos reais da História da Arte com episódios fictícios, como supostos
romances da Bailarina com figuras consagradas do mundos das artes; e material teórico
com aspectos de uma falsa biografia.
Além da peça apresentada, durante o bate-papo coordenado por Eleonora Fabião,
apresentamos o documentário criado a partir da personagem e obra, A Verdadeira
História da Bailarina de Vermelho – uma espécie de extensão da peça teatral,
desdobramento da obra originalmente criada para palco, em diferente suporte e
linguagem. O vídeo apresenta ações reais da personagem em espaços públicos (em
blocos de carnaval no Rio de Janeiro, ações em ruas de Paris, etc.), e se vale do formato
de documentário para emprestar verossimilhança à narrativa. E revela a possibilidade
de outro diálogo, para além da cena, usando a linguagem do documentário em vídeo
para a expansão da dramaturgia, e porque a personagem é o eixo da obra, e não mais
uma literatura teatral convencional ou a encenação dessa. São as ações da personagem
quem conduz escrita, encenação e fruição; ações reais em cidades do mundo – e serve
como material de base para o vídeo (falso) documentário.
Day by night, segunda obra teatral a participar do projeto (da Cia das Inutilezas, direção
de Emanuel Aragão e Fernanda Felix, dramaturgia de Emanuel Aragão, com Stella
Rabello e atores convidados para a versão paulistana) traz em seu corpo dramatúrgico a
realização múltipla de quatro acontecimentos simultâneos: uma peça, um filme, uma
festa e uma performance. A simultaneidade está dada desde o início, e o público recebe
a opção de participar apenas como assistente (da peça, festa, performance, e material
para posterior filme) – e nesse caso recebe um fone de ouvido para acompanhar uma
narrativa construída a apartir de pontos determinados da plateia; como integrante do
elenco – e, nesse caso, recebe indicações da direção para agir em cena, minutos antes
do início, assim como figurinos; ou ainda, e se decidir por tal, pode participar em duas
situações: como espectador da peça e participante da festa que envolve a peça e, assim,
sem integrar ou atuar junto ao elenco, com indicações e funções previamente definidas.
Nessa obra, a radicalidade da dramaturgia se apoia no desdobramento de uma matriz
dramatúrgica única (narrativa em áudio que orienta a assistência de uma série de
ações, livremente inspirada no filme de Michelangelo Antonioni, A Noite) em micro
dramaturgias, fruídas ou não por completo, em acordo com as escolhas individuais do
público presente a cada sessão.
O pesquisador convidado para essa edição foi Fernando Villar – UnB (Univesidade de
Brasília).
Na terceira edição, a obra O Carvalho (versão brasileira criada pelo grupo [ph2]: estado
de teatro para a obra de Tim Crouch; direção de Rodrigo Batista, ator fixo, Bruno
Caetano; atores convidados: Maíra Gerstner, Isabel Teixeira, Paulo Barcellos e Miriam
Rinaldi) traz a premissa da realização única e, portanto, não passível de repetição, das
orientações de encenação contidas na obra original, criadas por seu autor com apoio de
rubricas e dispositivos internalizados no texto teatral. Incorpora marcas de encenação à
dramaturgia textual para propor a presença do ator como performer, ou quase que
como um mestre de cerimônias a cada realização.
Esse ator age como um personagem que é hipnotizador e, a cada show de hipnose
contida na apresentação da peça, atua em parceria com um ator ou atriz convidado a
cumprir orientações que passará ali, ao vivo, em tempo real, diante da plateia.
A encenação desse texto exige que a cada apresentação participe como parceiro de cena
um ator ou atriz diferente, desprovido de informações prévias a respeito da obra, e
convidado a formar dupla com o ator-regente da cena; esse sim, conhecedor do roteiro,
das marcas e direções apontadas por Tim Crouch e adaptadas pela direção brasileira. A
cena se constrói e a contracena se articula diante da plateia. Processo vivo para o
acontecimento teatral. Ou: a cada sessão, uma peça.
Tim Crouch é dos autores mais radicais atuando na contemporaneidade, por trazer ao
interior da cena elementos tipicamente deixados às escondidas, nos bastidores:
rubricas, marcas, entradas, roteiro, ações previstas e não-previstas e porque é premissa
para a encenação de suas obras a participação de atores aptos a uma qualidade de
presença singular, típica do performer, por exigir disposição e disponibilidade para
lidar e jogar com as intempéries do tempo presente, e se desnudar artisticamente
diante do público.
E ao público cabe o papel de entrever, entre marcas fixas e jogos de improvisação, entre
situações móveis, frestas criadas entre performers que atuam a partir da instabilidade
de relações.
A mediação para o bate-papo nessa edição foi feita pela pesquisadora Christine Greiner
– PUC-SP.
Solos sugerem também a opção pelo pastiche, ao compor um conjunto polimórfico para
a cena, disparador da fruição por vias de comunicação que requerem desconfiança
diante do contraste e discordância estilística dos elementos sonoros, visuais, e
narrativos da cena. A comunicação gera comicidade e supõe atitude crítica do
espectador, porque instaura a dúvida constante para o jogo de fruição. Obra híbrida, ao
flertar com expedientes das artes visuais. Participou da edição em que a pesquisadora
Lúcia Romano – Unesp, foi convidada a mediar.
Na última edição de 2013, A Festa (de OPovoEmPé, direção de Cristiane Zuan Esteves),
propõe a internalização da relação obra e fruição para a realização da peça. O texto e a
dramaturgia de cena propõem ao público questões sobre o estar juntos, estar num
mesmo tempo, espaço, compartilhar momentos entre conhecidos e estranhos, sob o
pretexto de se realizar, de um lado, e de ver, de outro, uma mesma peça.
Metalinguagem e o jogo da interação, para construir conjuntamente com o espectador
um questionamento sobre as convenções e categorias básicas do acontecimento teatral:
tempo, espaço, estar, ser em cena, e fora dela.
A festa. Foto: Roberto Setton.
E o espaço (marcas, modo de sua ocupação, objetos de cena, cenários) passa a ser um
dispositivo delimitador para as relações que podem ocorrer a cada sessão, operando
como uma espécie de roteiro para as relações que ali se construirão, singularmente, a
cada sessão.
A mediação dessa sexta edição do projeto foi feita pelo pesquisador e curador Kil Abreu
– CCSP (Centro Cultural São Paulo).
E como a plateia das artes cênicas está, em grade parcela, condicionada a buscar a
satisfação de expectativas prévias, a tentar um encontro com modelos fechados e obras
finalizadas, com vistas à perfeição técnica de desempenho e performance, propõe-se
também o deslocamento dessas expectativas, ao trazer acesso aos meios,
procedimentos e fragilidades dos processos criativos quando em andamento.
Textos escritos especialmente para compor material de mediação com o público (para
programa de cada edição do projeto), por pesquisadores convidados:
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. São Paulo,
Sala Preta, Vol. 8, 2008.
LEHMANN, Hans-Ties. Teatro Pós-Dramático. São Paulo, Cosacnaify, 2007.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro, Zahar, 1998
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo. Ed. Perspectiva, 2010
Natália Nolli Sasso é mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes – Artes Cênicas do
Instituto de Artes da Unesp, jornalista e programadora de Teatro no Sesc Belenzinho.