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Diálogos com o presente: performáticos_inquietos_radicais

Artigo sobre o projeto realizado no Sesc Belenzinho


Autor: Natalia Nolli Sasso
Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Resumo:

Esse artigo parte da experiência de curadoria e organização do


projetoperformáticos_inquietos_radicais (2013 – 2014) para apresentar questões
relacionadas à presença da performatividade no teatro contemporâneo, e como essa
atua frente às dinâmicas de fruição pública e em relação ao trabalho no âmbito de uma
instituição cultural – o Sesc Belenzinho, em São Paulo. Trata-se de estudo de caso de
sete edições (dentre nove realizadas até a data de publicação desse artigo) desse
projeto, que iniciou em fevereiro de 2013, trazendo desde sua proposição até a
realização o objetivo de apresentar e discutir qualidades de ações performáticas, para
dar visibilidade às relações entre obras e público que emergem da cena contemporânea
a partir desse viés.
Palavras chave: curadoria, Sesc Belenzinho, performatividade, dramaturgias
contemporâneas.

Abstract: This article is based on the curatorial and organizational experiences


ofperformáticos_inquietos_radicais Project (2013 – 2014), to bring some issues over the
presence of performativity in contemporary theater, and as well to explore aspects of it
facing public enjoyment, and dynamics within a cultural institution – in this case: SESC
Belenzinho, in São Paulo. Introducing studies of seven editions and seven pieces (of
nine already made up till the date of this publication) which have taken part in the
Project. It started in February 2013, and since the beginning it has tried to fulfill
performativities’ presentation also discussions, to give visibility for relations that
emerging from the contemporary scene from that bias.
Key-words: curating, SESC Belenzinho, performativity, contemporary dramaturgy
Diálogos com o presente: performáticos_inquietos_radicais

Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos, forçando
o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de um
sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando por aí
escapar da representação mimética. O performer instala a ambigüidade de significações, o
deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a
realidade, os signos, os sentidos e a linguagem. (FÉRAL, 2008, p. 7 e 8 )
No começo, o verbo, verbo para o presente, presente não tão simples. Verbo realizar, e a
vontade de criar condições favoráveis para a existência de um projeto regular e
contínuo, capaz de trazer para o centro das atenções questões relativas à presença da
performatividade nas artes cênicas. E trazer ao público. Propor encontros entre obras e
fruidores, entre artistas e pesquisadores, entre esses últimos e o público. Encontros no
interior de uma instituição propícia ao encontro, e a partir de eixo curatorial definido
para as artes cênicas.

E o verbo se fez esboço, conversas longas, depois projeto, muitos ajustes, pesquisas
acerca de obras, artistas e pesquisadores, realizações, e lá se foram sete edições (até a
data de criação desse artigo eram sete, agora, nove!).

Para começar: conversas para encontrar um nome ao que já era um desenho de projeto,
ou termos para sintetizar variadas condutas artísticas inscritas em um tempo que é
ainda presente, passageiro em trânsito. Nome-chave para abrir vias de acesso às artes
cênicas por meio da aproximação ao gesto de seus criadores. Gesto: performático,
inquieto e radical. Três qualidades para definir criadores e criações que desmontam e
desarticulam convenções, ou brincam com a rigidez dessas em cena.

performáticos_inquietos_radicais é também um gesto lúdico de nomeação e repetição – e,


portanto de afirmação – com vistas a reunir sob um mesmo guarda-chuva ações de
artistas e núcleos artísticos brasileiros dedicados à criação de obras que, em grande
medida, traçam pequenos territórios do teatro e da dança favoráveis ao entrosamento
entre cena e fruição. Obras-lugares nos quais fronteiras ora rigidamente estabelecidas
se diluem, seja por proporem a mescla de papeis, ou larga dose de desconforto para a
sustentação desses; ou ainda por exporem ao público e ao corpo institucional alguns
riscos e fragilidades inerentes ao encontro com a arte.
(Interessante brincar com a ideia, que é imagem, da arte tirar seus sapatos, batom e
brincos para encontrar seu público.)

A partir dessa nuvem de considerações definimos, eu e Claudia Garcia, o nome para o


projeto que, de partida, visava também embaralhar campos da dança, teatro e
performance, para grifar a presença (mesmo quando ausente nos discursos de seus
criadores) da performance nas duas velhas artes. A irmã caçula, digamos assim sobre a
performance, nasceu para abalar certezas nas artes; e o teatro e dança não se
mantiveram intocados por esses abalos.

A performance, com bem menos de cem anos às costas, promoveu rebuliço geral nas
artes cênicas. Passando por crises desde o final do século dezenove, mas ainda
confortavelmente assentados sobre convenções acerca da representação e, quase via de
regra, frontalmente postas diante de um público que começava a dar sinais de tédio,
dança e teatro foram contagiados por certo espírito desorganizador da performance.

Como Lehmann aponta é a performance quem coloca para as artes cênicas, e para o
teatro especialmente, a questão da arte como acontecimento, como experiência real. O
autor dedica um capítulo de seu estudo sobre o que nomeia Teatro Pós Dramático, para
desenvolver esse tema a partir da ideia da crise da representação presente nas artes
cênicas. Crise assumida pela performance em seu interior, e como premissa fundante
da sua vontade de ser; e o grau de colaboração dela para a desestabilização de conceitos
do Teatro Moderno – que ainda tentava salvar a representação, até então, via
naturalismo.

Ainda segundo o pesquisador, a década de 70 foi marcada pelo teatro conceitual (ou a
performatividade no teatro), e a década de 80 pela teatralização da performance, para
mais adiante viverem mútua contaminação, teatro e performance art.
A performance se valida nos séculos XX e XXI como arte sem fundamentação em algo
que precisa ser representado, e propõe ao teatro, uma espécie de revisão dada à ênfase
na representação, ou traz um sentido para a arte como objeto autônomo (no sentido de
não se validar apenas ou tão somente por representar algo fora de si, de ser per si).
Se o Teatro Épico foi responsável por realizar a fratura entre o objeto representado e o
processo de representação ilusionista (ao escancarar estrutura física, estilo,
maquinaria, plateia), foi a performance responsável por recriar a noção de presença, e
convocar o público a ser parceiro da cena, detentor de decisões que definem o êxito da
comunicação entre as parte envolvidas ou, dizendo de outro modo: trazê-lo à cena
como interlocutor ativo para a ação artística em curso.

Voltando ao projeto, o formato inicial de performáticos_inquietos_radicais incluía


apresentações de uma peça ou intervenção de dança e de outra peça ou intervenção de
teatro – ambas nitidamente entrelaçadas por conceitos e procedimentos comuns, que
apontávamos em nossas curadorias – seguidas de um bate-papo em que artistas e
público participavam, a partir de provocações e mediações de um(a) pesquisador(a)
convidado(a) para fomentar essa atividade de discussão.
No segundo ano (2014), incluímos um módulo de atividades nesse formato: módulo de
ações com caráter formativo, em prol da desmontagem das obras apresentadas, para
exercícios de compartilhamento de processos e conceitos com participantes
previamente inscritos.

Esse projeto e os dois formatos foram originalmente idealizados por mim em parceria
com a ex-programadora de dança do Sesc Belenzinho, Claudia Garcia, após a percepção
de demandas emergentes para a criação de espaços de curadoria com intuito de
oferecer visibilidade para ações e obras performáticas, e por nosso desejo comum de
estabelecer diálogos entre as artes da cena. Nasceu também da verificação de demanda
por programações que formem público para obras híbridas, situadas em zonas abertas
para diálogos entre linguagens e modos de criar dessas. E, assim, introduzir diálogos
pouco usuais entre obras e público, obras e artistas, artistas e pesquisadores,
pesquisadores e curadoras, curadoras e instituição onde atuam. Esses impulsos se
transformaram em estímulos fundamentais tanto à proposição, quanto para posterior
continuidade do projeto, e serviram como molas de propulsão para arejar modos de
organizar itens como apoio, receptivo de público, comunicação, mediação, divulgação –
considerando em todas etapas desse trabalho outros modos de operar das e nas artes,
com relações móveis que, por assim serem, requerem também de todas instâncias e
profissionais envolvidos nesse processo, outros modos de agir e pensar a viabilização
do projeto.

Na medida em que um projeto ou programação apresenta ações performáticas, sugere


relações não convencionais para seu público; sai de espaços funcionalmente
estabelecidos e estabelece outros espaços objetiva e subjetivamente. Também
reorganiza comportamentos e hábitos de fruição, consequentemente solicitando novos
arranjos para a relação com o corpo arquitetônico e funcional da instituição no qual se
realiza. Instaura, a cada acontecimento, a cada edição, o início de relações novas, ao
propor encontros que requerem modos de operar a serem construídos conjuntamente.
Por consequência, dispara modos singulares de organização, requer procedimentos
para receber e preparar a realização de uma obra, e estabelece outras formas de
comunicação e acolhimento do público, gerando adaptações operacionais e de espaços.
Toda essa flexibilidade requerida implica a criação de discursos de curadoria capazes de
darem conta do material artístico e relacional proposto ao público – peças-chave do
projeto.

Redes de criação são tramadas com redes de comunicação e orientação geral do


público, de modo que se diluem nós e elos entre corpos ao se trazer para o interior de
uma programação ações performáticas. Instituição, profissionais de todas as pontas do
processo, público e sistemas de divulgação estão implicados, conjuntamente, na
realização plena de um projeto com essas características. Novas formas para agir e
pensar no âmbito institucional, e em relação dessa com o público. Porque não mais a
ideia de assistência passiva está em jogo, não mais somente a realização restrita às
condições espaciais e técnicas estabelecidas pela arquitetura de uma caixa preta, não
mais a alimentação de expectativas do público, não mais hábitos de consumo das artes.
A mobilidade viva das redes e interrelações entre arte, corpo institucional e público
propostas por todo ato performativo desencadeia a substituição de papeis rígidos por
dinâmicas de afetos mútuos. A arte, entendida desde o eixo curatorial, não como
material de consumo imediato, agite e use, mas como objeto com o qual se relacionar
no momento da fruição. Por ter o presente como único tempo possível para sua
realização, não mais a mera repetição de costumes e papeis dados.

Tomando apenas essas características como ponto de análise para as ações


performáticas e suas relações derivadas, a criação de uma teia se dá em função da
revisão de relações há muito estabelecidas para curadoria, artistas, produtores, público,
pesquisadores, equipes técnicas, equipes de apoio, gestores, etc.
Desde a aquisição de ingressos até o “como se sairá dessa ação ou peça”, tudo está em
jogo. Jogo aberto, com múltiplas opções de como se dará a relação entre público e obra,
obra e espaço…

Para realizar a primeira e segunda edições, partimos em busca de obras que


respondessem às nossas questões. A partir da terceira edição, materiais e propostas
começaram a chegar até nós, dinamizando o fluxo de pesquisa e busca. Logo, ambas as
vias se consolidaram, com busca e chegada de materiais para participação no projeto.
Conforme pesquisas, e também realizações das edições avançaram, algumas
constatações a respeito de tendências dessa cena bastante contaminada pela
performance vieram à tona. A incorporação de dispositivos e protocolos da
performance no interior da realização dramatúrgica parece ser a marca mais visível, ou
o resultado mais tangível do emaranhamento entre dança, teatro e performance.

(Vou me ater nesse texto a apontar questões sobre obras e artistas de teatro que
participaram do projeto, por ser esse um terreno onde participei mais ativamente como
curadora e pesquisadora do projeto.)

A primeira obra teatral a participar, Anticlássico – uma desconferência e o enigma vazio (de
Alessandra Colasanti), traz para a cena uma personagem supostamente retirada de uma
pintura de Degas (uma bailarina de vermelho), animada com vida própria e muito dona
de si, mulher atual, independente, autônoma. A Bailarina saída da tela imóvel de uma
pintura consagrada do século XIX ganhou estrada, conheceu o mundo, conviveu com
artistas modernos e vanguardistas, para se tornar conferencista dedicada aos estudos
das artes e de suas contradições teóricas. A peça de Colasanti empresta atualidade à
personagem de Degas, porque sua dramaturgia textual e de cena mescla
acontecimentos reais da História da Arte com episódios fictícios, como supostos
romances da Bailarina com figuras consagradas do mundos das artes; e material teórico
com aspectos de uma falsa biografia.
Além da peça apresentada, durante o bate-papo coordenado por Eleonora Fabião,
apresentamos o documentário criado a partir da personagem e obra, A Verdadeira
História da Bailarina de Vermelho – uma espécie de extensão da peça teatral,
desdobramento da obra originalmente criada para palco, em diferente suporte e
linguagem. O vídeo apresenta ações reais da personagem em espaços públicos (em
blocos de carnaval no Rio de Janeiro, ações em ruas de Paris, etc.), e se vale do formato
de documentário para emprestar verossimilhança à narrativa. E revela a possibilidade
de outro diálogo, para além da cena, usando a linguagem do documentário em vídeo
para a expansão da dramaturgia, e porque a personagem é o eixo da obra, e não mais
uma literatura teatral convencional ou a encenação dessa. São as ações da personagem
quem conduz escrita, encenação e fruição; ações reais em cidades do mundo – e serve
como material de base para o vídeo (falso) documentário.
Day by night, segunda obra teatral a participar do projeto (da Cia das Inutilezas, direção
de Emanuel Aragão e Fernanda Felix, dramaturgia de Emanuel Aragão, com Stella
Rabello e atores convidados para a versão paulistana) traz em seu corpo dramatúrgico a
realização múltipla de quatro acontecimentos simultâneos: uma peça, um filme, uma
festa e uma performance. A simultaneidade está dada desde o início, e o público recebe
a opção de participar apenas como assistente (da peça, festa, performance, e material
para posterior filme) – e nesse caso recebe um fone de ouvido para acompanhar uma
narrativa construída a apartir de pontos determinados da plateia; como integrante do
elenco – e, nesse caso, recebe indicações da direção para agir em cena, minutos antes
do início, assim como figurinos; ou ainda, e se decidir por tal, pode participar em duas
situações: como espectador da peça e participante da festa que envolve a peça e, assim,
sem integrar ou atuar junto ao elenco, com indicações e funções previamente definidas.
Nessa obra, a radicalidade da dramaturgia se apoia no desdobramento de uma matriz
dramatúrgica única (narrativa em áudio que orienta a assistência de uma série de
ações, livremente inspirada no filme de Michelangelo Antonioni, A Noite) em micro
dramaturgias, fruídas ou não por completo, em acordo com as escolhas individuais do
público presente a cada sessão.
O pesquisador convidado para essa edição foi Fernando Villar – UnB (Univesidade de
Brasília).

Na terceira edição, a obra O Carvalho (versão brasileira criada pelo grupo [ph2]: estado
de teatro para a obra de Tim Crouch; direção de Rodrigo Batista, ator fixo, Bruno
Caetano; atores convidados: Maíra Gerstner, Isabel Teixeira, Paulo Barcellos e Miriam
Rinaldi) traz a premissa da realização única e, portanto, não passível de repetição, das
orientações de encenação contidas na obra original, criadas por seu autor com apoio de
rubricas e dispositivos internalizados no texto teatral. Incorpora marcas de encenação à
dramaturgia textual para propor a presença do ator como performer, ou quase que
como um mestre de cerimônias a cada realização.
Esse ator age como um personagem que é hipnotizador e, a cada show de hipnose
contida na apresentação da peça, atua em parceria com um ator ou atriz convidado a
cumprir orientações que passará ali, ao vivo, em tempo real, diante da plateia.

A encenação desse texto exige que a cada apresentação participe como parceiro de cena
um ator ou atriz diferente, desprovido de informações prévias a respeito da obra, e
convidado a formar dupla com o ator-regente da cena; esse sim, conhecedor do roteiro,
das marcas e direções apontadas por Tim Crouch e adaptadas pela direção brasileira. A
cena se constrói e a contracena se articula diante da plateia. Processo vivo para o
acontecimento teatral. Ou: a cada sessão, uma peça.

Tim Crouch é dos autores mais radicais atuando na contemporaneidade, por trazer ao
interior da cena elementos tipicamente deixados às escondidas, nos bastidores:
rubricas, marcas, entradas, roteiro, ações previstas e não-previstas e porque é premissa
para a encenação de suas obras a participação de atores aptos a uma qualidade de
presença singular, típica do performer, por exigir disposição e disponibilidade para
lidar e jogar com as intempéries do tempo presente, e se desnudar artisticamente
diante do público.

O frescor, dada a irrepetibilidade de ações, abre em cena em andamento frestas para a


experiência do aqui e agora, conforme as ações se desenvolvem às vistas do público,
sem artifícios ou preparações prévias possíveis – porque sempre pela primeira vez.

Essas condições presentes na dramaturgia situam a direção em um papel de orientação


ou regulação de situações que colaborem para a continuidade e unidade da cena, como
responsável por mediar decisões em meio às irregularidades da encenação. A
instabilidade é elevada a tal grau de radicalidade, que o papel do diretor se confunde ao
de um tradutor da linguagem textual para a cena aberta, incompleta, reticente.

E ao público cabe o papel de entrever, entre marcas fixas e jogos de improvisação, entre
situações móveis, frestas criadas entre performers que atuam a partir da instabilidade
de relações.

A mediação para o bate-papo nessa edição foi feita pela pesquisadora Christine Greiner
– PUC-SP.

Solos impossíveis. Foto: Felipe Stucchi.


Solos Impossíveis (da Cia. dos Outros, texto e direção de Carolina Bianchi, assistência de
direção de Amanda Lyra; solos interpretados por Tomas Decina e Carolina Bianchi)
participou da quarta edição, colaborando com a discussão acerca das cisões e rupturas
do teatro contemporâneo com vias convencionais da teatralidade. Trazem dramaturgias
de cena que apontam para opções de seus criadores por estabelecer relações lúdicas
entre materiais de criação, cena e público. Para tal, criam duas narrativas curtas a
partir da articulação de fragmentos de ficções, materiais biográficos próprios ou de
outros sujeitos, incluindo na composição o movimento de apropriação de objetos
externos à obra, retirados de outros contextos artísticos e da comunicação em massa. A
operação da colagem em prol da narratividade: trechos de vídeos eróticos, materiais de
registros históricos; imagens de séries televisivas e de anúncios publicitários; falsas
genealogias familiares e fotos reais de infância (originalmente organizadas em álbuns
de família seus criadores -integrantes da Cia); imagens jornalísticas e personagens
históricos participam juntos, e em jogo entre suportes e fontes. A presença da colagem
colabora à ideia do ator-performer, apresentada por Josette Féral durante análise de
espetáculos teatrais, na qual:
“O performer confunde o sentido unívoco – de uma imagem ou de um texto – a
unidade de uma visão única e institui a pluralidade, a ambiguidade, o deslize do sentido
– talvez dos sentidos – na cena. Esse teatro procede por meio da fragmentação,
paradoxo, sobreposição de significados (Hotel pro forma), por colagens- montagens
(Big Art Group), intertextualidade (Wooster Group), citações, ready-mades (Weems,
Lepage). Encontramos as noções de desconstrução, disseminação e deslocamento, de
Derrida.” (idem. p. 8 )

Solos sugerem também a opção pelo pastiche, ao compor um conjunto polimórfico para
a cena, disparador da fruição por vias de comunicação que requerem desconfiança
diante do contraste e discordância estilística dos elementos sonoros, visuais, e
narrativos da cena. A comunicação gera comicidade e supõe atitude crítica do
espectador, porque instaura a dúvida constante para o jogo de fruição. Obra híbrida, ao
flertar com expedientes das artes visuais. Participou da edição em que a pesquisadora
Lúcia Romano – Unesp, foi convidada a mediar.
Na última edição de 2013, A Festa (de OPovoEmPé, direção de Cristiane Zuan Esteves),
propõe a internalização da relação obra e fruição para a realização da peça. O texto e a
dramaturgia de cena propõem ao público questões sobre o estar juntos, estar num
mesmo tempo, espaço, compartilhar momentos entre conhecidos e estranhos, sob o
pretexto de se realizar, de um lado, e de ver, de outro, uma mesma peça.
Metalinguagem e o jogo da interação, para construir conjuntamente com o espectador
um questionamento sobre as convenções e categorias básicas do acontecimento teatral:
tempo, espaço, estar, ser em cena, e fora dela.
A festa. Foto: Roberto Setton.

A presença das atrizes-performers é potencializada frente à dinâmica de diálogos com o


público – colaborador fundamental para que o acontecimento se dê nessa festa-peça. A
dramaturgia, nesse caso, aponta para um jogo de mão dupla, de complementariedade,
de parceria profunda entre as partes ali reunidas. Exige do espectador o papel de
cúmplice ativo, de participante real.

E o espaço (marcas, modo de sua ocupação, objetos de cena, cenários) passa a ser um
dispositivo delimitador para as relações que podem ocorrer a cada sessão, operando
como uma espécie de roteiro para as relações que ali se construirão, singularmente, a
cada sessão.

Em 2014, abrimos o segundo ano de realização do projeto com a peça 5 e 45 – ergueu a


mão e soprou um beijo (de Alexandra Campos Tavares e Eduardo Joly, direção de Inês
Aranha). Um convite a entrar, literalmente, numa experiência em que público e atriz
permanecem durante quarenta e cinco minutos confinados num contêiner de navio,
hermeticamente fechado, para vivenciarem dores, pensamentos, sentimentos, ações
físicas, e a dança de uma personagem prestes a ser executada. Espécie de imersão, aqui
não se trata de fruição colaborativa, já que a peça instaura, desde o início, uma situação
de compartilhamento físico de espaço-tempo, e em condições de confinamento coletivo.
A partir de experiência anterior como educadora em presídios femininos, Alexandra
construiu uma peça-experiência com tensões do real e ficional embaralhadas, visto que
seus quarenta e cinco minutos de duração são também os últimos minutos da jornada
de uma personagem, uma presa condenada à morte, dentro de cela solitária. A solitária
como espaço cênico hermético, um container de navio.

Se valendo de expedientes narrativos, mas também da dança indiana e da presença


performática em cena, a autora e atriz cria uma dramaturgia de emergência, onde
signos, significados e significantes estão em profunda fricção, de modo a embaralhar a
noção do que é ficção, real e presente durante a fruição da peça.

A mediação dessa sexta edição do projeto foi feita pelo pesquisador e curador Kil Abreu
– CCSP (Centro Cultural São Paulo).

Recentemente, na segunda edição do ano, e sétima do projeto, uma abertura de


processo ao público, e não uma peça finalizada: Iracema via Iracema – processo
compartilhado (de Susy Lins de Almeida, com Luciana Ramin, e direção de Anderson
Maurício – parceria entre os coletivos Andar 7 e Trupe Sinhá Zózima) e tivemos a
mediação da pesquisadora Cristiane Zuan Esteves – SP Escola de Teatro.
Iracema acontece dentro de um ônibus, onde a personagem vive como ocupadora desse
veículo recém abandonado. Aqui, o espaço é integrante ativo da narrativa e reforça
como condição a presença da atriz-performer, do público, das relações entre as duas
partes, além de se oferecer como ambiente rico em dados sobre a personagem.
O ônibus como espaço cênico modelador das relações de proximidade para a fruição, e
trazendo informações e gestos, como memórias, provocando experiências corporais
propícias para ser e estar em um coletivo, de fato coletivamente. O ônibus urbano
assume nova função em cena, para participar ativa e complexamente do acontecimento
teatral. Ainda em processo de criação e ajustes, as ações que
compõem Iracema mesclam recursos do vídeo e narrativas teatrais, e operam em quatro
partes, ou quatro períodos da biografia dessa personagem que é moradora de rua e
desse ônibus, ex-usuária de crack, “ex-mãe”, “ex-filha”.
A opção por incluir no projeto um processo artístico foi um aceno, um gesto curatorial
no sentido de valorizar procedimentos, pesquisa, andamento e experiência, ao invés da
peça como produto acabado. O risco está dado por propor a quebra de hábitos do
público de teatro, ao convidá-lo a participar de trechos de um processo de criação.

E como a plateia das artes cênicas está, em grade parcela, condicionada a buscar a
satisfação de expectativas prévias, a tentar um encontro com modelos fechados e obras
finalizadas, com vistas à perfeição técnica de desempenho e performance, propõe-se
também o deslocamento dessas expectativas, ao trazer acesso aos meios,
procedimentos e fragilidades dos processos criativos quando em andamento.

A performatividade, nesse caso, faz emergir outra contradição ao espectador, ao negar-


lhe o ato de consumo e de consumação. Requer esforço e participação ativa, requer
tomada de decisões, autonomia e presença viva daquele que se coloca diante dela. A
rigidez de convenções não cabe a nenhuma de suas faces. Todas as partes envolvidas se
movem em direção à reinvenção ou reformulação das relações que sustentaram as artes
cênicas por séculos. Se por um lado essa situação areja antigos modos de agir e pensar,
por outro, provoca desconfortos. Catalisar o desconforto para a ampliação dos modos
de se colocar em relação com pessoas, obras, espaços, operações e procedimentos é
desafio, em última instância, da performatividade e daquilo que a rodeia. Sua presença
traz uma revolução de hábitos e condutas à reboque. Revoluciona posturas, provocando
criadores, públicos, curadores, produtores, instituições.

Realizar um projeto como o performáticos_inquietos_radicais também é, em alguma


instância, abrir espaços para relações de compartilhamento, para reflexões sobre ser e
estar no agora, no presente, com outros, e consigo mesmo, com as dores e delícias
dessas condições; é gesto afetivo, lá em alguma outra instância, ao afetar, ser afetado, e
propor afetos ainda desconhecidos.
Referências bibliográficas:

Textos escritos especialmente para compor material de mediação com o público (para
programa de cada edição do projeto), por pesquisadores convidados:

performáticos_inquietos_radicais ou por que falar sobre performance agora? – primeira


edição (fevereiro e março de 2013) Eleonora Fabião (UFRJ)
Performatividades_inquietudes_radicalidades – outra rodada… – segunda edição (maio de
2013): Fernando Villar (UnB)
Igual (e diferente) a tudo na vida – terceira edição (julho de 2013): Christine Greiner
(PUC-SP)
O sucesso da performance – quarta edição (setembro de 2013): Lúcia Romano (Unesp)
A performance do espectador – quinta edição (dezembro de 2013): Elizabeth Lopes (USP)
Teatro, dança e performance – e Artaud e Brecht e Marina e Alexandra e Claudia… Uma breve
apresentação com perguntas – sexta edição (fevereiro de 2014): Kill Abreu (CCSP)
Para se ler (n)o espaço público - sétima edição (maio de 2014): Christiane Zuan Esteves
(SP Escola de Teatro)
Obras e artigo:

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. São Paulo,
Sala Preta, Vol. 8, 2008.
LEHMANN, Hans-Ties. Teatro Pós-Dramático. São Paulo, Cosacnaify, 2007.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro, Zahar, 1998
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo. Ed. Perspectiva, 2010
Natália Nolli Sasso é mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes – Artes Cênicas do
Instituto de Artes da Unesp, jornalista e programadora de Teatro no Sesc Belenzinho.

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