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ABSfRACr

When Fiction Is Historicized and Hlstory; Fictionalized Encontro Suspeito: História e Ficção*
The article revisits Machado de Assis through a politicai reading of Esaú e Jacó. Some
interpretations (those relevant to the argument) are first summarized in order to show
that the discussion of the role of History in Machado de Assis' fiction has not yet been
exhausted. 1t is then a:rgued that Machado de Assis' understanding of History is linked
to his literary program and that it is this 'V'kltanschauung which lends his fictional text Helena Bomeny
its unity. It is the triad History-fiction-narrative which supports and lends unity to his
text.

RESUME
Quand la Fiction Devient Histoire et Quand l'Histoire Devient Fiction

Cet article a pour but de présenter une révision de l'oeuvre de Machado de Assis à travers
une lecture politique d'Esaú e Jacó. I.:auteur développe son raisonnement sur deux plans.
Sur un premier plan, il décrit en détail quelques interprétations seulement celles qui
intéressent son raisonnement - dans le but de montrer que la discussion concernant
la fonction de l'Histoire dans la fiction machadienrte n'est pas encore dose. Sur un se- as histórias por contar, aconselha-nos a prudência abrir com aquelas já
cond plan, ii montre comment la vision que Machado avait de l'Histoire était associée
à son programme littéraire et que c'est cette cosmovision qui donne au texte de fiction
D contadas. Até porque, o enredo de uma pode ter sido ou ainda ser a con-
clusão de outra que, recusada por uma terceira, acaba revelando a singularida-
son unité. C'est la triade Histoire-fiction-narrative qui constitue le support du texte et de da quarta. Tudo se passa no reino de coisas afins que outrora se mistura-
lui donne son unité.
ram em rotina complementar, separaram-se por artifício da razão, namoraram-se
na tentativa tímida de recuperação da unidade perdida e hoje, com a seguran-
ça de quem viveu muito e intensamente, questionam a legitimidade da sepa-
ração do que seria inseparável. Do que se trata, afinal? Do sempre e, desde
sempre posto junto, ainda que para diferenciar, História e ficção.

De novo a prudência aparece a sugerir cautela. O traje imagístico pode sugerir


um equívoco: a suposição de que se trata de uma questão simples que capri-
chos humanos e vaidades intelectuais trataram de complicar. E, com isto, joga-
ríamos ao mar nada menos que a tradição do pensamento ocidental, protago-
nista fundamental do desenrolar dessa trama. Na verdade, um drama que re-
vela convicções, estabelece heresias, afirma prioridades, hierarquiza conheci-

*Este artigo integra minha pesquisa de tese sobre mineirídade, a ser defendida no
Iuperj. Trata-se de um texto pensado e escrito em Berkeley Stanford, onde morei no pe-
ríodo de setembro de 1987 a setembro de 1988, atendendo ao convite do Center for Latin
American Studies e beneficiada por uma bolsa da Comissão Fulbright. Desde então, no-
vas reflexões foram publicadas no Brasil, mas não foram aqui incorporadas. O texto foi
mantido na versão original entregue para publicação em dezembro de 1988, e as ques-
tões aqui anunciadas deverão ainda ser aprofundadas.

dados - Revista de Ciêndas SÓdais, Rio de Janeiro, Vol. 33, n.l, 1990, .PP· 83 a 118.
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mentos e, por vezes até, esforça-se na criação de formas conciliatórias à convi- dadas e, de toma-viagem, encontrar uma saída teórica possível à sua própria
vência do que, em princípio, para muitos, define-se como diferenças inconci- sustentação como problema legítimo das Ciências Sociais. A aventura consiste
liáveis. Em tão longo trajeto, pode-se acompanhar momentos em que tais con- na aposta de que, não obstante se constituam em indagações de direção (e não
figurações são mais ou menos temati.Zadas. de natureza) distinta, o pensar a História como uma forma de discurso ficcio-
nal e o pensar a História a partir da ficção podem ser reflexões complementa-
Momentos precisos, densos, em que se revive dramaticamente todo o enredo
res no preciso sentido de que nos obrigam o retorno à raiz, ou séja, aos funda-
da história da Ciência Social. Não é possível tomar uma coisa pela outra, ou
mentos da História como ciência social.
seja, História por ficção, se o que se tem em mente é a ambição de ciência.
Outros momentos há em que o inverso é igualmente realçado: não há ciência
possível do humano que despreze aquilo que mais caracteristicamente traduz AS LETRAS, A HISTÓRIA E AS LETRAS DA HISTÓRIA
a humanidade, isto é, a liberdade de expressão dos sentimentos do mundo,
revelados nas formas ficcionais. Afora todo o valor intrínseco do conjunto de obras que passaram à categoria
permanente dos "clássicos", uma característica muito especial as distingue: a
Arriscamo-nos mais uma vez ao reducionismo que nos joga em mais equívo- beleza e leveza com que freqüentemente estes textos são escritos. O prazer que
cos. São redes complexas a exigir qualificações. Do que se está falando? Da pro- a leitura nos traz é fruto bem-aventurado dos amantes da boa literatura. Por
ximidade entre História e ficção, no sentido de que ambas são formas narrati- que escrevem tão bem os clássicos? Que "aurá' é essa de que fomos tão drasti-
vas? Da proximidade entre ambas na dimensão formal do discurso, distintas, camente privados nas nossas oficinas acadêmicas?
porém, pelo compromisso com o real que marca a primeira e o descompro-
misso da ficção com os chamados "fatos reais"? Da separação entre História Retomemos a primeira imagem deste artigo. Para eleger alguém que possa dar
e imaginação gerada exatamente por tal compromisso prévio? Ou estamos su- início à discussão, fiquemos, por enquanto, com Hayden White, que em um
gerindo incorporar a ficção ao discurso histórico como possível matriz revela- de seus muitos escritos se dispõe a relatar, ligeiramente, como a noção de
dor? do que se passa no mundo real? É possível pensar a História a partir da opposition da História para a ficção cres.:eu e por que ela permaneceu inalte-
ficção? Se esta é a intenção, é preciso saber como, e saber isto é saber também rada no pensamento ocidental por tanto tempo. 1
quando isto não é possível. Ou seja, nenhuma dessas indagações é autônoma
Antes da Revolução Francesa, a historiografia era vista, convencionalmente,
no sentido de poder desprezar referência às outras. Elas integram um conjun-
como arte literária. Mais especificamente, nos diz Hayden, como um ramo da
to de questões referidas ao problema epistemológico que fundamenta as Ciên-
retórica. Sua natureza "ficcional" era, pois, geralmente reconhecida. Apesar
cias Humanas.
de estabelecerem distinção rígida entre "fatd' e "fantasiá' (fads e fancy), os
teóricos do século XVIII, e Hayden White traz como exemplos de Bayle a Vol-
Este artigo é prisioneiro de uma delas em particular: como é possível pensar
taire e De Mably, reconheciam a inevitabilidade de utilização dos recursos téc-
a História a partir da ficção? Indagação geral e teórica que surgiu no ofício da
nicos da ficção na representação dos eventos reais na forma de discurso histó-
pesquisa que tem como hipótese pensar a formulação de identidade coletiva
rico. Ou seja, o conhecimento histórico tinha como objeto o estudo das rela-
a partir da literatura. Neste caso, a minemdade como fruto de construção inte-
ções que se dão no mundo real. Havia, no entanto, o reconhecimento de que ,
lectual de uma geração específica de literatos da Belo Horizonte de início do
sua representação, na forma de discurso, não poderia dispensar o arsenal téc-
século. Dizendo melhor: a hipótese norteadora desta pesquisa é que a formu-
nico que compõe o discurso ficcional. A conseqüência muito interessante é que
lação de uma mentalidade coletiva que traduz a forma específica de definir o
muitos trabalhos do período são escritos para distinguir entre o estudo da His-
grupo mineiro teve na Literatura fonte permanente de veiculação e até, eu di-
tória, de um lado, e a escrita da História, de outro: 'The writing was a literary,
ria, de construção. Ainda que esteja disposta a defender a idéia mais geral de
specifically rhetorical exercise, and the product of this exerdse was to be asses-
que a Literatura pode ser fonte de reflexão história, no caso em que me debru-
sed as much on literary as on sdentific principles:'z
ço acredito ser tal tese fortalecida por dois fatores: a particular ligação dos inte-
lectuais com a política e a História em Minas Gerais e, especialmente, a forma
singular pela qual a questão da subjetividade é revestida na tradição literária A distinção se marc:ava entre "verdade" e "errd' e nada impedia que o relato
mineira. Q desafio que me imponho é integrar essa questão às outras já anun- sobre a verdade se apresentasse na forma de relato ficcional, ou seja, através

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de técnicas ficcionais de representação. Técnicas que consistiam em mecanis- pelos fatos, a recuperação do passado em cada evento assume dimensão fun-
mos de retórica, figuras de linguagem, esquemas de palavras e pensamento s damental, uma busca que, unífocalmente dirigida, sacrifica a amplidão da com-
que, como descritos pelos retóricos clássicos e renascentistas, eram idênticos preensão, passando à esfera da verificação e comprovação de onde, afinal, se
às técnicas da poesia em geral. A verdade, ideal perseguido pelos teóricos, não extrai sua autoridade como disciplina científica. A marca de tal desdobrame n-
se reduzia ao fato, mas era alcançada pela combinação do fato com uma matriz to aparece na forma como artistas do fin-de-siede se referem à História, no
conceituai, formando o todo na forma de discurso. E, o que nos interessa de declínio vertiginoso de sua autoridade como fonte iluminadora dos processos
perto: de ação humana. Hayden White traz para o centro das manifestaçõ es o argu-
mento, que está em Nietzsche e nos artistas, da limitação de uma cultura que
"[ ... ]The' imagination no less than the reason had to be engaged in any adequate valora o passado no desprezo incompreen sível pelo presente. Desprezo que
representation of the truth; and this meant that the techniques of fiction-making isola o instinto e joga o homem dentro de "sombras" e "abstrações ", na refe-
were as necessary to the composition of a historical discourse as erudition might rência direta a Nietzsche.
be:'3

Por que é possível e legítimo que se faça à História tais cobranças? Haveria,
Um deslocamen to do olhar, no entanto, redefiniria fundamenta lmente o cená-
em momento anterior, espaço para tais hostilidades ? Seria esperado que a fon-
rio. A identificação da verdade com o fato alteraria dramaticam ente a relação
te de autoridade residisse na capacidade de explicação fato por fato, ocorrên-
entre História e discurso ficcional. Do momento em que tal identificação é esta-
cia por ocorrência? São indagaÇôes que não mais abandonara m a reflexão his-
belecida, uma outra se lhe segue com desdobrame ntos fatais: o considerar a
toriográfica.
ficção como o oposto da verdade, e por isso obstáculo à compreensã o da reali-
dade mais do que uma forma de apreendê-la . "History carne to be set over
against fiction, and specially the nove!, as the representati on of the 'actual' to Um compromis so exacerbado com o relato dos fatos aprisiona o passado ao
the representati on of the 'possiblé or only 'imaginable:'4 presente, sem lhe conferir a autonomia que o particulariz a como momento (le-
gado de que somos tributários do Romantism o corno filosofia), e, mais, agora
É ao que assistimos, pelo menos entre os historiadores, no início do século XIX.
novamente com Hayden White, fornece os elementos da hostilidade contra a
Estamos, na verdade, falando da academização da História, da profissionali-
História por não ser ela um conhecimen to nada iluminador da experiência pre-
zação do que seria uma arte nascida de uma vocação.
sente, ou seja, em nada educativo, no sentido de que não pode, na ótica dos
É improvável que tradição tão longa tenha sido dizimada de um só golpe. O que questionam a autoridade da História, ser capaz de prevenir desastres hu-
decreto de academização não apagaria completame nte as marcas originadas. manos de dramaticida de radical. A Primeira Guerra foi decisiva para destruir
da rotina complemen tar que se estabelecia historicamente entre a busca da ver- o que restava do prestígio da História entre artistas e cientistas sociais. Ela pa-
dade e a maneira de melhor representá-l a. Até porque o entendimen to, o con- recia confirmar o que Nietzsche profetizara duas gerações antes. A História,
vencimento e a permanênci a de tais discursos estavam profundam ente asso- que supostamen te proveria algum treinamento para a vida, que supostamen te
ciados à maestria com que se combinavam o conteúdo e a forma de apresenta- seria a filosofia cuja maestria se constituiria pelos exemplos, fez pouco para
ção. Este, me parece, é um dos componente s básicos da reflexão de Hayden preparar os homens para a guerra iminente. Não só não ensinou aos homens
White naquela que talvez seja sua obra mais conhecida, Metahistory_ a propó- o que deles era esperado como, ao final, não apresenta nada de significativa-
mente diferente dos proclamas oficiais. De um lado, então, o questionam en-
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sito da estrutura poética que caracteriza a imaginação histórica dos clássicos
no século XIX. 5 to sobre a autoridade de um campo de conhecimen to que,_ fundado na preten-
são de veracidade, revela o quanto débil pode se mostrar corno fonte ilumina-
Mas, ainda que a prosa narrativa seja informada por uma estrutura poética, dora (ou pedagógica) da ação humana. De outro, a preocupaçã o pela perda
o compromiss o com a verdade e a identificação da verdade com o fato criam da elegância que a tal ofício esteve associada e que contingênci as externas fize-
para a História expectativa de explicação e, mesmo, de previsão do curso dos ram por comprometer.
eventos ruja conseqüênc ia não antecipada pode ser vislumbrad a na hostilida-
Jacques Barztin é dos que se ocupam da ligação, nem sempre permitida, entre
de com que a História vai sendo tratada no relato de escritores,· dos clássicos
a História e as letras. Ele elege o ano de 1756, ano de publicação do Essay on
da literatura. Se o ofício do historiador é buscar incessantem ente a verdade
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the Manners and Customs of Nations de Voltaire, como marco do que vai c_ha- Ele nos diz mais. Quando nos envolvemos com a reflexão comparativa, perce-
mar o artesanato da História como arte liberal. Na verdade, diz ele, Voltaire bemos o quanto é crucial e difícil apreender o senso comum. Porque este se
como que propicia o re-nascimento da História como uma arte liberal, uma constrói sobre pressuposições que derivam não de uma experiência humana
vez que os antigos realmente a cultivaram com parte das letras humanas. 8 O universal, mas de uma estrutura conceituai compartilhada que informa e de-
final do Império Romano assistiria à crônica gradualmente ocupando o lugar termina o que foi registrado como experiências de comunidades distintas. A
da genuína História. Pelas mãos dos cronistas e através de sua arte a História distinção entre "História " e "ficçãó' - e acrescento, entre as filhas legítima
ia se revelando em forma de narrativa literária. O Renascimento, no entanto, e bastarda - é um dos itens compartilhados pelo senso comum como uma
faria com que a História substituísse a crônica num sentido muito especial particularidade da cultura ocidental, pelo menos desde a literatura popular.
razão porque Barzun é chamado para esta discussão de encompassamento "Todo mundo sabe" que a História est~ comprometida com o relato da verda-
da atividade do cronista e do histori~dor pelos problemas da construção do de, da representação verdadeira do passado. A ficção, distintamente, deman-
Estado e da monarquia, o que joga a crônica para dentro do campo _da História da suspensão do tempo (e até do espaço, se quisermos ir mais além).
militar, diplomática e governamental: "When to these interests was added the
restraining influence of royal pensiorts and royal prisons, the historians' narra- Tanta convicção impede, no entanto, que o senso comum suspeite de quão pró-
tive could become pretty thin and meaningless:' 9 ximas poderiam estar a narrativa histórica da ficcional. O fundamento de tal
proximidade, segundo Mink, é que a narrativa como tal não é só um problema
Ou, por outra, com os tempos modernos, em especial com o Renascimento, de técnica para escritores e críticos, mas a forma primária e irredutível da co-

l
reverte-se o processo; agora, é a História que vai abruptamente deslocando a municação humana, parte integrante na constituição do senso comum. Evi-
crônica, ao mesmo tempo em que refaz seu próprio estilo como narrativa. Co- dentemente que no processo de construção de tais narrativas interferem variá-
mo resultado, "[ ... ] all of history tended to acquire a uniform appearance, a veis diferentes. Os historiadores denunciariam de imediato que a diferença entre
frozen monarchicallook and the conviction that history consisted of kings, bat- História e ficção pode não ser tanto a questão da verdade, mas de evidências.
tles and dares took firm hold upon the p~blic mind:' lO Ou também que, embora a recuperação do passado integre as atividades do
senso comum e da História, a narrativa histórica é analítica, enquanto que a
As histórias escritas sob a égide desta era política como que perdem a aura do senso comum é relato de experiências comuns irrefletidas. Nós sabemos
da variedade, da diversidade e a massa dos detalhes, sem o que, nos diz Bar- disso, diria Mink. Os compromissos de ambas são distintos. Sabemos distin-
zun, o sentido histórico morre ou atrofia. Mas Voltaire estaria a salvo. Educado guir uma da outra porque podemos comparar ficção com História sem duvi-
por jesuítas com toda a minuciosa formação clássica, e independente política dar, em prinópio, de quem é quem. História e ficção são semelhantes na me-
e religiosamente, escapou ao jugo da Igreja e do Estado, relativizando a influên- dida em que são stories e narrativas de eventos e ações. Mas, para a História,
cia restritiva que ambos pudessem exercer sobre sua criação intelectual e lite- tanto a estrutura da narrativa como seus detalhes são representações da reali-
rária. Despida da política, da religião e da profissionalização, a História pode- dade passada. E mais: fundamentalmente pretende que a narrativa seja uma
ria finalmente recuperar seu sentido de arte liberal. Estaria livre da obsessão representação verdadeira. Assim é entendido por ambos, concluiria Mínk, es-
de um tempo e um espaço imediatos. No entanto, a politização do ofício do critor e leitor. A ficção não tem tal pretensão: "[ ... ] nothing in the fictional nar-
historiador e a redefinição epistemológica que reduz a verdade ao fato acaba- rative marks out the difference between the true and the imaginary:' 12
ram se traduzindo em vetos à narrativa histórica, uniformizando e congelando
um estilo que antes se alimentava com as cores da técnica ficcional (e por que Disso também sabem escritor e leitor. Mas, se falamos de narrativa, na Histó-
não dizer, do imaginativo?). ria ou na ficção, temos de lidar com critérios que são comuns a ambas. É preci-
so que haja nela algo que a faça inteligível ao leitor. É preciso que se combinem
em sua estrutura elementos que, articulados, confiram sentido ao que se pre-
Mas, afinal, o que distingue a "filha bastarda" da '1egítima"? O senso comum tende comunicar. Uma e outra estarão subordinadas a critérios de coerência
vem a nosso auxílio. Nada é mais maravilhoso que o senso comum, nos diria ~ adiculação, sem o que se instaura a incomunicabilidade. De que forma o au-
Louis Mink: "The confortable certainty of what 'everybody' knows have been tor vai organizar os elementos que tem - quer seja para a ficção, quer seja pe-
since Socrates a more natural field for philosophical reflection than eclipses, lo compromisso com a verdade - , como vai dispor em forma de narrativa os
prophedes, mostruosities, and the irruption of unintelligible forces:' 11 dados que acumulou, as relações que estabeleceu, tudo isso integra o campo

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da imaginação individual. Nesse sentido, "[ ... ] narrative form in history, as in Quadro 1
fiction, is an artifice, the product of individual imagination". 13 Ou, de outra Grupos Intelectuais e Questão da Narrativa
maneira, o campo do artesanato intelectual.
Filósofos analíticos anglo-america- Estabelecer status epistêmico da nar-
Mas, tão óbvia associação parece não justificar toda a polêmica e mesmo a ce- ratividade. Narrativa co~oforma de
nos: Walsh; Gardiner; Dray; Gallie;
leuma em tomo da questão da narrativa histórica e ficcional. A afinidade téc- explicação especialmente para even-
Morton White; Danto; Louis Mink.
nica na construção de uma ou outra como preliminarmente .forma narrativa tos e processos históricos "as against
não responde ou parece nãp tocar a questão de fundo que de fato deu origem
natural".
a todo esse processo. Que ambas, História e ficção, tenham de se valer da nar-
rativa como forma discursiva é, salvo melhor justificativa, decorrência natural Historiadores Annales: Braudel; Fu- Historiografia narrativa como
do fato de se veicular a comunicação humana escrita. 14 Mas da contingência ret; Le Goff; Le Roy Ladurie. não-científica: estratégia de represen-
de compartilharem a forma não se pode inferir semelhanças de fundo a ponto tação ideológica a ser extirpada em
de sugerir intercambialidade entre ambas. Ou, por outra, e mais diretamente: nome da genuína ciência.
se a questão é meramente de forma, por que tanto esforço, tanta discussão e
Teóricos literários semiologicamente Estudam a narrativa em todas as suas
tanto tempo despendido?
orientados: Barthes; Foucault; Julia manifestações. Consideram-na um
É que forma pode ser fundo aparecendo... E quando nos debruçamos sobre Kristeva; Derrida; Todorov. "código discursivó' entre outros que

l
a produção intelectual que vem lidando com tais questões, nos damos conta podem ou não ser apropriados para
de que não se trata de "palavrórió' estéril ou de formalidades abstratas. Há representação da "realidade': depen-
certas questões que, expostas ao debate intelectual, são capazes de provocar dendo apenas do objetivo pragmá-
um verdadeiro mapeamento de posições, combinações e divergências teórico- tico do que fala o discurso.
epistemológicas e, não raro, políticas. Este poder, por si mesmo, confere a elas Filósofos hermeneutas: Gadamer; Narrativa como manifestação em dis-
o estatuto de legitimidade como questões. A narrativa já serviu de motivo para Ricoeur. curso de uma forma específica de
sofisticado e denso exercício teórico em que Hayden White, através da posição tempo-consciência ou estrutura de
de intelectuais renomados frente à questão da narrativa, acaba oferecendo ao
tempo.
leitor um painel de algumas das correntes fundamentais da historiografia e fi-
losofia contemporâneas. 15 A simples menção dos atores listados no texto quase Historiadores sem qualquer persua- Defensores de craft notion dos estu-
que bastaria para nos convencer do significado atribuído à questão da narrati- são filosófica ou metodológica. Fa- dos históricos. Narrativa como forma
va no debate histórico contemporâneo. Negando-lhe estatuto epistemológico, lam do ponto de vista do doxa da respeitável de "fazer" História. Para
reclamando pela ausência de 'status epistêmico, definindo-a como "estratégia profissão: J. H. Hexter; Isaiah Berlin; este grupo, a representação narrati-
de representação ideológicá: atribuindo a ela uma forma "respeitável" de fa- Geoffrey Elton. va não corporifica um problema teó-
zer História ou, ainda, tomando-a como "manifestação em discurso de uma rico significativo.
forma específica de tempo-consciência ou estrutura de tempó: encontramos
na síntese de Hayden nada menos que cinco grupos representativos das prin- Isto porque a reação das correntes teóricas contemporâneas frente à questão
cipais correntes filosófico-historiográficas contemporâneas. A sintetização em da História como discurso narrativo é mais do que uma reação à construção
quadro, ressalvado o perigo de reducionismo, pode ajudar-nos a dimensionar formal de um relato, senão que um posicionamento frente à possibilidade ou
melhor a profundidade da análise de White (ver Quadro 1). não de se fazer da História, ciência.

Com a síntese de Hayden White podemos retomar o fio de nossa reflexão. A A História das Ciências Sociais é exemplar da intensidade com que estas têm
posição desses autores reflete mais do que preferências pessoais ou caprichos sido obrigadas a encarar o dilema de se fazer ciência do social, do contingente,
intelectuais. Ela nos joga de volta à questão do início, quando tentávamos lo- do fragmentar. A Antropologia, por exemplo, talvez antes que as outras ciên-
calizar o momento em que se problematiza a relação da História com a ficção. cias, nos ensina Luiz Eduardo Soares, viveu de forma aguda a questão do rela-

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tivismo, uma resposta problemática, mas sempre instigante, aos modelos uni- por excelência faz dela parceira problemática no ato de construção da ciên-
versalistas que com tal força impactaram a trajetória da Ciência Social. O fato . da. Mas, é preciso que dois reparos se façam de imediato. Primeiro, tal proble-
de ter como projeto o conhecimento do Homem, no singular, obriga a Antro- rnatização é datada, como já vimos no início deste artigo. E, segundo, a pró-
pologia ao contato com as diferenças vividas pelos homens como seres sociais. pria atividade ficcional foi sujeita a vetos, imposições e constrangimentos que
"Diferenças que representariam, em breve, um obstáculo aparentemente insu- lhe alteraram, não menos dramaticamente, o perfil e até mesmo o conteúdo
perável para a reafirmação teórica do postulado da unidade humana essen- imaginativo. E mais, a própria afirmação de que o discurso ficcional é domínio
cial:'16 do sujeito, por excelência, precisa ser historicizada, como veremos a seguir.

Brilhantes investidas teóricas e modelares como a de Lévi-Strauss, por exem-


SUBJETIVIDADE E INTERDIÇÃO
plo, arrefeceram momentaneamente o apelo do relativismo como alternativa
No princípio era o Verbo
legítima. No entanto, "há, hoje, um razoável col)senso entre os antropólogos
E o Verbo era Deus.
de que as posições universalistas conhecidas são lacunares e precárias, na me-
O princípio é a fala
lhor das hipóteses - daí a preferência pela crítica ao relativismo e não pela E a fala é o homem.
defesa de uma teoria positiva que se lhe oponha [... ]" 17 Uma crítiéa que po-
de negar-lhe valor teórico, desconsiderar-lhe importância a ponto de justificar Por que foi possível atribuir à História e à ficção critérios de confiabilidade e,
investimento denso, ou mesmo questionar-lhe os pressupostos e, sobretudo, por vezes, até admitir entre ambas intercambialidade na função de representar
alertar para as conseqüências, do ponto de vista da ciência, que adviria da prática o mundo real? Esta é nossa questão que volta agora pelo outro lado.
do relativismo. Tudo isso, no entanto, antes e acima de tudo, acaba por admitir
a existência da questão enquanto tal, e principalmente mantém viva a necessi-
dade de aprofundar o questionamento dos modelos universalistas que tão de-
cisivamente marcaram a tradição das Ciências Sociais. Portanto, trata-se de per-
manência que exige mais e mais reflexão, depuramento e precisão.
I O início deste artigo é uma tentativa de localizar o momento em que a História
se separa da ficção por razões que dizem respeito à construção da História co-
mo ciência, na forma que a ela lhe imprime a perspectiva modema. O mo-
mento em que, na definição de ciência, não era mais possível integrar técnicas
e relatos ficcionais. Deixada desta maneira, porém, reduzimos ao exclusivo cam-
O desafio teórico de lidar com a questão da narrativa nos conduz a viagem po da História e da ciência toda a noção de movimento, negando à ficção qual-
semelhante. Porque, como forma de representação do mundo das relações so- quer participação no que, afinal, se constituiu em interação. Ou seja, tal inte-
ciais, a narrativa traz, inevitavelmente, para o corpo da ciência, a figura ativa gração foi possível não apenas por razões e deliberações da História, senão
do sujeito. Reconhecer a História como discurso narrativo é reconhecer a pre- que, também, pela particular configuração do discurso ficcional. Se nos per-
sença do sujeito no ato da formulação científica. Negar à narrativa legitimida- guntamos, até aqui, o que havia de particular ao discurso histórico para que
de de representação do mundo real é reificar o projeto de uma ciência sem su- admitisse a proximidade ao discurso ficcional, é hora de nos indagarmos so-
jeito. Uma História sem sujeito, centrada no objeto, prefiguraria o ideal cientí- bre que particularidade oferecia a ficção para que tal integração fosse legítima.
fico do positivismo, do estruturalismo e quem sabe até dos prisioneiros de uma
Filosofià da História, no sentido preciso de um te/os que amarraria vontades A reflexão de Luiz Costa Lima é não só útil como iluminadora dos processos
e instintos às leis gerais objetivas que determinam as relações sociais. Sociais aos quais o discurso ficcional foi submetido quando da construção da moder-
mais que relações (humanas), pelo espaço negado às contingências e delibera- nidade ocidental. 19 No trajeto, a questão permanente da verdade, pontuando
ções dos homens. ~ como se, na frase de Marx, "os homens fazem a História, e qualificando o discurso. Não por acaso, Costa Lima traz a crónica para o cen-
mas não a fazem como querem'~ só prevalecesse a segunda párte; só fosse cien- tro de sua reflexão. Em Sociedade e Discurso Ficcional, ele pretende recuperar
tificamente legítimo o enunciado pelo encompassamento da primeira parte pela a trajetória da inserção do sujeito na prática discursiva. Se no princípio era o
segunda. A questão da narrativa, portanto, nos joga no centro de uma discus- Verbo e o Verbo era Deus, a modernidade irá reimprimir esse significado: ago-
são que absolutamente é nova ou recente. Porque, se de um lado corre-se o ra, o prinppio é a fala, e a fala é o homem. Não mais só o relato da verdade,
risco de anunciar uma História sem sujeito, de outro corre-se um risco não me- mas a evidência de um estilo daquele que conta a verdade. A crônica deixando
nos drástico de uma História sem objeto. 18 O fato de a narrativa estar na ori- de se escrever por si e dependendo cada vez mais da interpretação de quem
gem vinculada à poética, à literatura, à ficção - domínio que seria do sujeito a es<:n!"Ve. Antes, o verdadeiró estava "inscrito" nas coisas (a autoridade do Verbo

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imanado ); agora, passa pelas mãos do "intérprete". E quando entra o intérpre-
Mas, não só desta maneira. Porque também a História é desafiada com a emer-
te, nos lembra Costa Lima, estamos falando da "territori alidade discursiva': gência da subjetividade. A verdade, ideal persegui do pela ciência, não está mais
ou
seja, a verdade não reside intempor almente na palavra como imanênc ia dare- insCrita nas coisas como revelação de alguma instância acima dos homens, mas
velação divina, mas no intermed iário entre o documen to e a palavra discursi- é uma conquista resultant e do esforço de descober ta, seleção, classificação,
va: o cronista. or-
denamen to e interpret ação de dados empírico s extraídos de fontes documen
-
tais diversas por um pesquisa dor que imprimir á ao trabalho estilo, enredo
e
"Para o homem medieval não há qualquer marca distintiva entre História e fic-
ordenam ento particular.
ção. Desde que não se oponham às verdades religiosas, ambas são confiáveis
,
porque ambas são tomadas como verdadeiras:' 20
Esta última afirmação, todavia, já é elaboração e avanço teórico em relação
às
discussõ es que a História teve de errlrenta r a partir do momento em que
Mas, não sem perdas. E o que sugere abertura é, de fato, fruto da ~terdição foi
. desafiad a pela presença do sujeito. De um lado, então, todo o processo custo-
A crônica pode desempe nhar o papel da História, cumprin do a missão infor-
so de liberação da subjetivi dade no discurso ficcional; de outro, e simultan
mativa, porque ela própria, como ficção, está moldada e amordaç ada pelo ve- ea-
mente, a tentativa hercúlea de proteger a ciência dos desvarios da fantasia,
to documental. É sobretud o a impessoa lidade da crônica medieval que lhe con- da
imaginação, da subjetivi dade. Por isso a equação verdade= fato foi recebida
fere autoridad e. Impessoa lidade que resulta do veto à subjetivi dade, ou a uma e
reforçada com tal convicção. Ela cria a certeza necessár ia ao convenci mento
outra autorida de discursiva que não seja derivada da Ordem Divina ou que de
que o campo eleito à manifest ação da razão não será maculad o com intempé-
não apresent e o selo da validade documen tal. A verdade histórica, de um
Ia- ries da irrazão, da ilusão, do falso, do subjetivo ou do ficcional. Como a inter-
do, e a moral cristã, de outro, são fontes de censura ao ficcional na atividade
dição da subjetivi dade permitiu ao ficcional o reconhec imento da legitimid
do cronista e dos literatos. Tal repulsa quase passa desperce bida porque tanto ade
de conhecim ento, a mesma censura conferirá à História o troféu da veracida
os humanis tas do Renascimento quanto os represen tantes da Contra-Reforma de
e da objetividade. É, portanto, a subjetividade que provoca a definição do campo
exaltavam a bela escrita, a linguage m ''literária': ao mesmo tempo em que
re- de conhecim ento específico que se constitui rá no poder com relação ao qual,
cusavam o ficcional não-domesticado. 21 Essa é a modelag em que impede a
di- diria Cassirer, nenhum outro, no mundo moderno , lhe faria frente: o poder
versificação do discurso, só possível quando a fala é dada ao sujeito que a
ela da ciência. A grande questão aí envolvid a é que a ciência fornece o padrão
imprime características próprias, portanto, diferenciáveis. Quando isto acon- de
um mundo comum, comparti lhável. E dificilmente, nos adverte Hayden Whi-
tece, elege-se aquele que passaria a ser o campo legítimo à manifestação
da te, a História cumpriri a, na hierarqu ia das ciências, o ideal prefigura do de
razão: a historiografia, e não mais a ficção. es-
tabelecer o "mundo comum" mencion ado por Cassirer como uma descober
ta
confirma da diariame nte pela ciência. 23
"[ ... ]desde que o critério de diferenciação discursiva deixou de ser comandad
o
por um absoluto prisma religioso; desde que a razão humana, apoiada na con- O admitir ou não a participa ção do sujeito no discurso histórico e, de fato,
o
sulta ao subjetivo, passou a concorrer ou a suplemen tar o prisma religioso, o fo- admitir ou não a existência de um discurso em forma narrativa têm se consti-
co uno da razão veio a privilegiar uma forma discursiva, a historiográfica que, tuído no mot em tomo do qual historiad ores, filósofos e epistemó logos defi-
enquanto autônoma, poucos séculos atrás sequer existia e que demorará outros nem posições e constroe m argumen tos que alimenta m e dão vida ao debate
para se afirmar genericamente como tal:' 22 historiográfico. Para permane cermos com a crônica, por exemplo, podemos
ar-
riscar a afirmação de que há um consenso razoavel mente grande na sua dis-
Portanto, parece que chegamo s a um paradoxo: só é possível admitir a relação tinção com relação à História. A crónica é um relato ordenado de eventos
entre História e ficção pela inexistência da ficção como tal, ou seja, como ma- do
qual não se espera interpretação, ou aos quais (eventos) não se atribui signifi-
nifestação da sujetivid ade que a descomp romete do aprisiona mento às cercas cado. Se pelo lado da definição da crónica é possível obter razoável consenso
da empiria documen tável e comprovável. A relação entre ambas é problema ,
ti- 0 que daí se pode derivar para o discurso histórico provoca reações dos mais
zada no momento em que se pode falar de uma ficção e, portanto, também, variados matizes. Como controlar a atribuição de significado numa análise que
no momento em que se estabelece a legitimid ade da historiografia como cam- deve ser isenta, fria e imparcial? Essa a questão que mobiliza, por exemplo,
po de realização da razão. O que garantia a intercom unicabili dade era exata- os integrant es da Ecole des Annales. Uma saída possível é não admitir a His-
mente o fato de um dos pares da relação inexistir como tal. tória como forma de narrativa, já que a narrativa implica, necessariamente,
en-
94 95
cadeamento dotado de significado. Ou seja, não considerar o discurso históri- nela acabou se dando entre o historicismo e a forte tradição positivista france-
co como discurso construído por um sujeito. sa, o que marcou profundamente a produção do grupo. E o resultado de tal
cruzamento acaba se revelando na tensão entre a busca de compreender um
Aos historiadores dos Annales, muitas e severas críticas vêm sendo dirigidas fenômeno como singularidade e a compulsão de submetê-lo às leis gerais, uni-
nas discussões sobre a natureza do conhecimento científico e, ainda, a respei- versais e explicativas das ocorrências que corporificam tal fenômeno. A tradi-
to da melhor forma de interpretar o mundo social. É possível mesmo dizer que ção francesa testemunha a força e permanência da noção durkhéimiana de que
tais críticas ocupam boa parte do cenário historiográfico no século XX. Georg o indivíduo não pode ser pensado sem referência ao social; e mais, que esse
Iggers nos chama a atenção sobre aspectos importantes da história dessa esco- social se impõe de forma coercitiva, externa e independente das consciências
la. Já em 1900, diz ele, com a fundação da Revue de Synthese Historíque por individuais, o que o transforma em objeto, quem sabe, tão natural quanto aque-
Henri Berr, nascia o que depois, em 1920, se consubstanciaria no jornal Anna- les das ciências exatas. Tão forte é a ~arca positivista que, mesmo concordan-
les d'Histoire Economique et Sodale. Lucien Febvre em 1907 e Marc Bloch em do com a diferença entre a História e as ciências naturais, ainda que definindo
1912 vinham iniciar, em colaboração, a Revue, projeto que ganharia corpo e o objeto da primeira. entre aqueles que reclamam interpretação, por se tratar
se firmaria em meados dos anos 20. Iggers vai dividir a história dos Annales de relações humanas, os historiadores dessa tradição sucumbem ao postulado
em dois períodos fundamentais: até 1945, quando predomina a História quali- de que eles, historiadores e dentistas sociais, "[ ... ) were not primarily concemed
tativa, e de 1945 em diante, período em que vem dominando a História de con- with the content of the consciousness of isolated individuais or even the cons-
junturas, no marco quantitativo, sem que, todavia, se eliminasse inteiramente ciousness of groups of individuais but with concrete social modes of behaviour
a primeira tradição. Após 1947, agora com o nome Annales: Economies, Socié- in which social norms are reflected:' 25
tés, Civilisatíons, foi estabelecida a interconexão com a Sixieme Section de l'Ecole
Pratique des Hautes Etudes, instituição fundada em 1947 sob a direção de Feb- ·Porque uma idéia não é uma entidade abstrata nascida já em forma madura.
vre e dirigida por Fernand Braudel de 1956 a 1972. Ela vai se formando gradualmente e se desenvolve em contexto específico. O
contexto, as interconexões institucionais, os constrangimentos sociais, estes sim,
O grupo francês que criou a escola mantivera estreita ligação com a tradição são a matriz reveladora do que se passa no mundo social e a matriz formadora
alemã, especialmente com o grupo da escola científica alemã que, criada no das idéias e mentalidades que povoam e distinguem o mundo das ciências hu-
início do século XIX, teria em Ranke sua figura exponencial e irradiaria para manas. E, acima de tudo, a ambição da compreensão abrangente do curso da
além da fronteira germânica a concepção de História que ainda muito forte- História. Não só à História não convém a forma narrativa (e, agora sim, vale
mente se mantém na tradição historiográfica. A História não integra o rol das repetir, porque em tal modelo de ciência a presença do sujeito é problemáti-
ciências naturais, reafirmavam constantemente, e terá de balizar seu método ca), como a História política é objeto de desconfiança por estar constrangida
de forma específica, adequada à compreensão dos fenômenos humanos. A es- ao tempo de curta duração. Eventos políticos são como poeira, efémeros, irra-
cola científica alemã nasce, portanto, com a marca da hermenêutica, ou seja, cionais. E a História narrativa conduz, segundo Braudel, à interpretação pró-
da ciência de interpretar e traduzir o sentido que está impresso nos documen- xima de uma Filosofia da História. Para os historiadores narrativos, a vida do
tos. No entanto, a orientação para o singular e a preocupação com o entendi- homem é dominada por acidentes dramáticos, por atos daqueles agentes ex-
mento estão submetidas à ambição final da explicação. Compreender fenôme- cepcionais que emergem ocasionalmente e que freqüentemente são mestres e
nos sociais não exclui, mas ao contrário, exige explicações causais. Desta fonte condutores de seus próprios destinos. São relatos que mais combinariam com
beberá a Ecole des Annales, caracterizando-se pela procura do meio-termo en- as formas novelísticas e dramatizadas. Não prefiguram as exigências de um tra-
tre tratar singularidades e inseri-las em contexto mais abrangente e a necessi- tado científico. O problema é que a narrativa é o modo de discurso comum
dade de ultrapassar o conhecimento imediato, chegando ao estabelecimento tanto às culturas "históricas" quanto às "não-históricas", além de predominar
das relações causais que o prefiguram. Este o traço geral que permanece no tanto no discurso ficcional quanto no mítico, o que faz dela suspeita como for-
grupo, responsável por grande parte das críticas a ele dirigidas pelos herme- ma de falar sobre eventos "reais". A maneira não narrativa mais comum às ciên-
neutas ou mesmo pelos historiadores de mentalidades, entre os quais - nos cias exatas parece mais apropriada à representação dos eventos "reais". 26
lembra Patrick Hutton - Philippe Arles, Norbert Elias e Michel Foucault. 24
Talvez, no outro extremo, pudéssemos trazer a tese de Humboldt, segundo
Um ponto interessante para compreender a Ecole des Annales é a junção que a qual a tarefa do historiador é apresentar o que realmente aconteceu, o que,

96 97
de novo, integraria outro exemplo de razoável consenso. Contudo, um evento qual tecemos JUntos vários conceitos e proposições gerais que são logicamente
é apenas parcialmente visível no mundo dos sentidos. O mais tem de ser acres- independentes e os trazemos para fundamentar uma dada situação. "The ca-
cido pela intuição, inferência, peloguesswork. Porque os eventos se manifes- pac•ty to do this successfully, the ability to 'weave together', 'bring to bear' var-
tam de forma dispersa, desconexa, isolada. Como ordenar, então, esse mundo ious concepts is an intuitive (and empirical) knack often called judgment which
32
de eventos? Pela observação direta: "[ ... ] Historical truth is, as it were, reather electronic brains cannot be given by their- manufacturers:'
like the clouds which take shape for the eye only at a distance [... ]".v
A História, contudo, não se confunde com a literatura, com a poesia ou mes-
mo com a arte. Ela tem o compromisso com a revelação da verdade. Há uma
Não só pela mera intuição o historiador poderia perceber o que realmente acon-
teceu. Diferentemente do poeta, mas de uma forma similar à dele, o historia- idéia não perceptível diretamente nela mesma, em tudo que acontece, mas tal
dor "must work the collected fragments into a whole': nos diz Humboldt. Com idéia só pode ser reconhecida nos eventos. O historiador não pode negligen-
ciar sua existência, mas tem ao mesmo tempo de cuidar para não atribuir à
uma diferença crucial, no entanto: "[ ... ] the historian subordinates his imagi-
nation to experience and the investigation of reality". 28 realidade idéias de sua própria cabeça e, também, para não sacrificar quais-
quer dos ricos processos vivos em nome de um padrão coerente do todo. Se
A imaginação, parceira indispensável, não age como pura fantasia. Dois méto- alguma companhia é aconselhável nesta aventura, que seja a arte, porque, ao
dos se complementam. O primeiro é a investigação exata, imparcial e crítica contrário da filosofia, não sacrifica a descoberta e a criação a um telos que apa-
dos eventos; o segundo é a conexão dos eventos explorados e sua compreen- ga, pela modelação unívoca, particularidades vivas que compõem o mundo
são intuitiva, que não poderia ser alcançada pelos primeiros meios. real. 33 Esta a matriz da qual o historicismo viria se alimentar.

"To follow only the first path is to roiss the essence of truth itself; to neglect this
'A História, mais que qualquer ciência, é a prova em vida da complementari-
path, however, by overemphasizing the second one is to risk falsification of truth
dade entre arte e ciência. São complementares na exata medida em que se cons-
in its details:' 29
tituem em gramáticas profundamente diferentes. 34 Cientista e artista comuni-
E por que é possível a compreensão em História? Porque há um antecedente cam o que entenderam através da linguagem, mas com estruturas de pensa-
quase óbvio, nos diz Humboldt. Tudo que existe no mundo da História é fami- mento precisas e distintas. A História, nos diz Hugues, partilha de ambos os
liar ao coração humano. Uma vez mais Humboldt: códigos porque não pode dispensar a imputação de meaning, o que vale di-
zer, o artesanato de conectar coisas, de criar sentido ao que chega desconecta-
"Understanding always is the application of a pre-existent general idea to some- do às mãos do historiador. A História se fará no balanço permanente de co-
thing new and specific [... ] In the case of history that antecedent of understand-
nhecimento e interpretação.
ing is quite obvious since everything which is active in world history is also mov-
ing within the human heart:' 30 "What we conventionally call an 'event' in history is simply a segment of the end-
less web of experience that we haveltorn out of context for purposes of clearer
Humboldt aqui está corroborando a tradição alemã, que desde muito cedo per-
understanding:' 35
cebeu a diferença entre História e ciências naturais e manteve viva a concep-
ção de Vico segundo a qual a História humana será sempre distinta da natural É esse balanço que faz possível o projeto intelectual que incorpora a subjetivi-
porque nós fazemos a primeira, mas não a segunda. O abismo mais profundo dade, desafio imposto aos que acreditam na possibilidade da ciência, portan-
que separa a História de outros estudos científicos é o que se dá entre a visão to, da comunicação universalizável e na particularidade das ciências humanas,
do observador externo e aquela do ator. Isto fÓi o que fez emergir pelo contras- a impor desde o início a presença da relação entre sujeito e objeto, problema
te entre inner e outer que Vico iniciou e, depois dele, os alemães continuaram, diante do qual os profissionais reagiram, curvaram-se ou mesmo "esqueceram'
entre as questões "comd' e "o que" ou, "qual)dd: de um lado, e "por que': no gesto de escondê-lo no quarto dos fundos. Hoje, todavia, ele volta pela porta
"a. partir de que regras", "em direção a que objetivd: "surgida de que motivd: da frente, fortalecido pelo fato de ter resistido a golpes violentos de toda uma
de outro. 31 E por isso é possível dizer, com Mink, que nada nos ensina me- tradição que construiu modelos em cima da negação, modelos vigorosos e po-
lhor como iniciar a questão que o senso comum. É também por isso e neste derosos que, no entanto, diante do tempo e da experiência, vêm esmaecendo
sentido que Isaiah Berlin defende a idéia de que o que realmente ocorre no e perdendo a autoridade que a crença na certeza lhes conferia. Mas, não se
pensamento histórico é muito próximo a uma operação do senso comum;. na trata de tradição de fácil arrebate! Ela formou gerações, estabeleceu fronteiras

98 99
e, acima de tudo, construiu a imagem ciência=hnpessoalidade, a qual, quem constrangidas pelo veto documental, estão presas ao relato da verdade, na equa-
ção que, consagrada no século XIX; reduz a verdade ao fato mas que, em Mi-
sabe, a arte caberá liberar.
nas, parece constituir, desde antes, pouso seguro e confortável.

ANIMUS NARRANDI E A TRILHA DO GAUCHE Martins de Oliveira, com sua História da Uteratura Mineira, publicada em 1958,
vem nos auxiliar na tarefa de demonstrar tal impressão. Já no prefácio o autor
Das histórias já contadas, chama-nos a prudência: hora de fechar com aquela
nos alerta:
por contar. Aquela que provocou todas as lembranças aqui ~gistradas e que
tem a responsabilidade pelo enredo da aventura em que nos envolvemos. "A título de orientação doutrinária que se ajuste ao presente trabalho, convém
se esbocem breves, brevíssimas considerações, de natureza estritamente teórica,
Bom lembrar: não foi casual a referência à História no tópico anterior, dedica- no tocante ao problema da história em relação à chamada critica literária. E que,
do ao discurso ficcional. Temos um problema a tratar, mencionado no início nesse aspecto, e exclusivamente nele, semp~e se impôs a necessidade de distin-
deste artigo, que, a meu ver, muito estreitamente se vincula à problemática até ção entre o que se admite comumente por ensaio e o que em rigor se entende
aqui rascunhada: a ligação muito particular que se estabelece em Minas Ge- por história [... ]".36
rais entre História e Literatura, o que é responsável, me parece, pela forma co-
mo lá se expressaram tanto a História como a ficção. Gostaria de defender a E o que se entende por História? O critério tradicional, adianta Oliveira, nos
idéia de que o discurso da mineiridade sintetiza o esforço de formulação inte- joga no animus narrandi, "mera exposição de fatos, através de indicações cir-
lectual de uma geração que dramaticamente colocará em outros termos o que cunstanciais (lugar, tempo etc.)". 37 Mas, se predomina a preocupação de pes-
a tradição mantivera desde o início. Ele pode ser lido como um discurso que quisas, "dentro do que seria propriamente crítica, em sentido puro, tem-se co-
traduz a tentativa intelectual de integrar não só uma geração, senão que toda mo certo um plano a mais, que altera de maneira ·total o problemá'. 38 Seria esta
uma produção intelectual no "concerto da modernidade", no que esta teria de última a base do ensaio. Ensaio, portanto, distancia-se da História, pelo me-
liberadora para as fórmulas convencionais que até então cimentavam a Litera- nos no que esta tradicionalmente reclama como método. Uma tradição que já
tura e a História mineiras. Vejamos como. foi tentativamente adentrada por um "cientificismo um tanto anômalo [... ] desde
o velho plano do 'desenvolvimento da razão' [ ... ] até a noção sociológica de
Quem viaja pela História Política de Minas Gerais e depois passa pela História força atuante, viva [... )", mas mantém-se ainda em nossos dias como autorida-
da Literatura mineira depara-se com um fato notável: estão em ambas os mes- de a qual o brilho de certas investidas novas não foi capaz de alterar.
mos personagens e tocam-se ambas por um enredo comum. Em certos mo-
"[ ... ] Em que pese o brilho de muitas teorias, vinga, ainda, em nossos tempos,
mentos ficamos mesmo perplexos ao não distinguirmos mais entre História e
o consenso de que a boa história será a que siga a maneira de Tuddídes, a
Literatura. Uma mescla de que a biografia dos personagens é evidência mais
qual, além do fascínio da exposição, se vale da noção pura, da beleza perene,
espetacular: são poetas/jornalistas; historiadores/deputados constituintes; ro- ou então, o método de Tacíto, sempre sintéticoo e lampejante:'
39

mancistas/sociólogos; ensaístas/críticos literários e, por último, mas não me-


nos importante, chefes de gabinete de governantes. Acumulam, na impressio- O brilho de certas teorias pode ser um tributo de vassalagem à fábula, à sedu-
nante maioria, as funções de literatos e historiadores. E não sabemos mais, du- ção, ao subjetivismo, que retiram da História a autoridade que o rigor metodo-
rante o percurso, se estamos lendo História Política, História Cultural ou His- lógico lhe confia.
tória da Literatura ...
"[... ] o historiador que não busque assentar a exposição em dados concretos, reais,
O que acontece ao discmso político quando a Literatura nele se imbrica? O que positivos, dos acontecimentos, dando à critica o sentido de axiologia literáriai co-
se passa com a ficção se ela é informada o tempo todo pelos acontecimentos? lhendo o material em fontes puras, estará apenas prestando vassalagem à fábu-
Este é o ponto a que esta reflexão final se dirige. Que Literatura é essa que com la, à utopia ou, em termos rudes, aos próprios sentimentos pessoais, subalterni-
40
tal intimidade pe!'ffiÍte a penetração da História e que História é essa que pode zando tudo e tudo subvertendo [...]".
ser possuída desta maneira? Minha hipótese é a de que tal cruzamento se deu
na curva da interdição, e os desdobramentos que se seguiram ilustra~ ~m­ Que encruzilhada! O énsaio oferece "um plano a mais", o da crítica, ou, quem
plarmente o sentido de tal interQição. Tanto a HistÓria como a Literatura estão sabe, o da interpretação! Como garantir que tal campo de incerteza possa ser

100 101
transformado em ciência? E caímos, assim, dentro da reflexão de Lukács sobre a verdade na obsessão dos fatos. O mesmo critério do "bem fazer'' a História
o significado do ensaio e a característica muito particular que o distingue de orienta a avaliação do "bem fazer" a Uteratura. Literatura-verdade, Literatura
outras obras de arte. Uma coisa é certa, no entanto: distingue-se daqueles es- que se constrói no relato, cuja fonte de autoridade reside na precisão com que
critos que não nos oferecem mais do que informação, fatos e conexões entre retrata o real. Escritores que são testemunhas oculares do social e que o trazem
fatos. O ensaio vai além e por isso se distingue dos outros procedimentos, co- à forma de relato, quer pela poesia, quer pela prosa, com a fid~dignidade mo-
mo hipóteses das ciências naturais substituíveis a cada nova descoberta. En- delar dos que buscam incessantemente a verdade. E Martins de Oliveira é evi-
saios são perenes, permanentes e não vulneráveis frente à urgência de uma dência exe.mplar da forma como, na crítica literária (feita à luz do compromis-
descoberta empírica ime3iata. Não se trata de trocar algo por algo mais recen- so historiográfico), tal critério se manteve com o rigor que forte tradição esti-
te. Porque, "in the works of the essayists form becomes destiny, it is the destiny- mularia. O lema de Júlio Ribeiro, sintetiza ele, foi "consagrar a vida à verdade;
creating principie [... ] destiny lifts things up outside the world of things, eis em resumo o que foi". 44 O mérito de Demóstenes Martins de Oliveira foi
accentuating the essential ones and eliminating the inessential; but form sets "penetrar os fenômenos psíquicos, estudando-os com argúcia, dentro de rigo-
limits round a substance which otherwise would dissolve like air in the All". 41 rosos prfucípios científicos". 45 De Oscar Negrão de Lima, "[ ... ] Taquari (é o tí-
Mas joga o produto no campo da incerteza, da areia movediça da atribuição tulo do romance) vem para a galeria mineira das obras de ficção de valor au-
do significado por um intérprete arquiteto da.construção ensaística, retrucaria têntico. Ficção seria uma fórmula ou maneira de dizer. O que se percebe no
nosso cientista de plantão. Que então nos proteja a ciência, e que nos livre do belo trabalho do autor é uma intensa fase, servida de nobres pensamentos que,
tormento da utopia, dos fetiches, da fantasia. E se levamos a ciência à crítica embora idos, foram ardentemente vividos [... ]".46 E, finalmente, para não es-
literária, contrabalançamos o encontro sempre perigoso do projeto de objetivi· tender demasiado, a referência a Eduardo Frieiro: "Acima de tudo, em Eduar-
dade e imparcialidade com a força da criação literária, reino e pouso de um do Frieiro cintila o espírito de honradez a toda prova. Se é amigo de Platão,
sujeito incontrolado. "[ ... ] Assim, em relação à construção histórica de edifí- nunca deixou de ser amigo da verdade:' 47
cios literários, em cronologia uniforme, a análise não deveria fugir ao animus
narrandi, por vezes necessário ou imprescindivel:' 42 o constrangimento do cientificismo cria embaraços a autores como Martins de Oli-
veira (mas, não só a ele, entre os que se dedicam à análise da produção intelec-
Não se trata de encruzilhada tão clara e de tão simples resolução pelo recurso tual mineira). Rendendo rigoroso tributo à teoria, em geral nos prefácios,
à advertência metodológica. Porque já no cruzamento foram avariadas as par- descolam-se de tal rigidez no curso do livro, desenvolvendo um estilo muito
tes interessadas. Nem o projeto de análise fria, imparcial e objetiva seria possí- particular, freqüentemente marcado por "elogios" e atribuições de valor ao ~~­
vel, nem o espaço da manifestação subjetiva seria preservado: Ao primeiro se jeto tratado. É curioso porque a atitude do prefácio como que :ecusa a poss~b~­
aplica como remédio a solução de mapeamento exaustivo, minucioso, o inven- lidade ensaística que implicaria interpretação, em nome do ngor metodologt-
tário completo de todos os personagens que deveriam, em nome do método, co. Algo, no entanto, teria de ligar e dar sentido à listagem exaust~va d~s ~or­
ser incluídos no rol dos literatos mineiros. Procedimento que rendeu ao autor, rências e personagens. O recurso ao "elogio" parece ser o substituto a mter-
Martins de Oliveira, críticas severas, no sentido de que a compulsão pelo animus pretação. 0 gesto de "tomar partido a favor da coisa tratada" _simboliza, _me
narrandi fez da listagem rol imperfeito, com a inclusão de nomes cujas obras parece, a tensão de um sujeito que se impõe a tarefa de analisar um objeto
seriam depreciadas à luz da crítica literária. Ao que ele responde num misto do qual não consegue se separar, estando ao mesmo tempo constrang~do ao
de decepção e defesa de um valor real que injustamente aos literatos era nega- distanciamento exemplar. Chegamos, então, a uma situação singular: o se Isentar
do. Afinal, como sujeito em nome de um objeto neutralizado transforma todo o exercício
num ato de indistinção entre sujeito e objeto. A negação da subjetividade, em
"[. .. )tal é o propósito'dos presentes estudos. Propósitos de fidelidade absoluta, nome da ciência, transforma a relação sujeíto/objeto em subjetivismo, agora
sem reservas a nomes, entre vivos e mortos, partam de onde partirem [... ] Uns sim ideológico. Uma armadilha que captura o agente que a criou. A forte tradi-
são ilustres, admiráveis. Fulgem intensamente, à maneira de astros de primeira ção do pensar a ciência em termos de busca incessante da verdade pelos fatos
grandeza. Outros oferecem brilho menos intenso e alguns se apagam na humil- reifica, em primeiro lugar, o compromisso ritualístico com a teoria, distanciando-
dade:'43 a do corpo do trabalho de pesquisa. E, em segundo, dificulta a libertação dos
analistas para 0 tratatnento da tensão, sempre presente na produção intelec-
A obra literária não escaparia à extensão de tal olhar historiográfico que busca tual das d~ndas sociais, entre o particular e o universal ou entre o sujeito e

102 103
o objeto por ele eleito. Este é um ponto importante para a conclusão a que quero e que muito estreitamente, me parece, se liga à questão da ficção. A tensão
chegar com este artigo: o sentido da libertação teórica e metodológica que teria entre particular e universal, entre a fala de um sujeito e a recorrência a um
nos anos 20 seu momento crucial e que talvez não tenha podido ainda se trans- gênero literário (memória) no qual o agente criador, falando de si, na verdade
formar em rotina exemplar. fala do conjunto, e onde o próprio sujeito é também personagem de uma ação
já não identificada com particularidades daquele que escreve, ainda que escre-
Mas não só a luneta da História como verdade informaria a avaliação literária. vendo a partir de suas próprias memórias. A tradição memortalística em Mi-
A Literatura, ela própria, reforça tal padrão ao privilegiar o evento como moti- nas é mais forte do que a tradição do ensaio. Muito provavelmente, a eleição
vo da construção literária. Acompanhando a História da Literatura mineira e a maneira como lá se desenvolve tal gênero tenham a ver com o prolonga-
percebemos a marca historiográfica nela perpassada. Desde os poetas da Co: mento da tradição de uma Literaturq comprometida desde o início com o rela-
lônia, nos cantos e hinos, à história das minas, dos heróis, da terra e dos már- to de episódios da vida social e política. São sujeitos/testemunhas de aconteci-
tires. Este o traço de permanência, a linha que liga passado e presente criando mentos em forma de prosa literária.
a continuidade da produção literária, ao mesmo tempo que perpetuando uma
tradição que, em muitos aspectos, se traduz numa espécie de ritualização, e E o memorialismo pode estar envolvido num duplo limbo, adverte Costa Lima,
nisso, mais formal que ficcional. Quando a Literatura é invadida pela História,
"pois nem estaria sujeito ao critério de verdade objetiva, própria do que se pre-
e sobretudo por uma perspectiva factual de História, a fala do sujeito é interdi-
tende contido no fato histórico, nem muito menos se colocaria naquela esfera
tada na obsessão do testemunho da verdade. E não é o fato de tomar como
a que se não aplica a dicotomia 'verdadeiro/falso (=houve/não houve certa coi-
objeto da criação o que se passa no mundo real, senão que o aprisionamento
sa): onde habita o ficcional [... ):' 48
da criação a um tempo, um espaço, um cenário e a personagens determina-
dos. Quando tudo está localizado, instaura-se a previsibilidade, inimiga mor- Uma dialética particular envolve o memorialismo, traduzida nos termos "me-
tal da ficção. A ficção suspende tempo, indetermina espaço e faz dos persona- móriá' e "ficçãd'. O filão memorialístico, tão acentuado na Literatura mineira,
gens o ser humano comum incorporável a qualquer sujeito empírico de qual- como que materializa a relação que vimos privilegiando entre Histqria e Litera-
quer realidade, em qualquer tempo. Ela eternaliza na intemporalidade, na in- tura em Minas. O meio caminho entre História e ficção que, no transcurso,
espacialidade, na generalidade. Este o sentido da obra de arte, feita possível pode ter interditado a ambas o pleno vôo. Estamos, pois, diante de uma fron-
no movimento ficcional. É movimento especial que se transforma em arte pela teira que pode reduzir o gênero à negatividade permanente, ou seja, ao fracas-
"aura" que envolve o comum feito arte, retirando-o da esfera mais corriqueira so de, em estando na fronteira, não conseguir realizar qualquer dos dois. E
do dia-a-dia seqüencial, ao mesmo tempo que alimentando-se desse dia-a-dia é neste preciso sentido que poderíamos trazer agora aquele que, emblematica-
transformando-o em mágica só possível pelas mãos do artista. Quando 0 event~ mente, rompe com a tradição, esta sim comprovadora da negatividade a que
toma a obra literária, e todo ~gente da escrita é transformado em artista, algo se refere Costa Lima e que dramaticamente recoloca em Minas a questão da
se passou no percurso que violou profunda e essencialmente 0 milagre da cria- ficção, a possibilidade de liberação e o sentido de modernidade que de forma
ção. Se a arte está em todo lugar e em todo agente, é possível que ainda não original e única equaciona a relação do sujeito criador com a universalidade
esteja em lugar algum. É que o compromisso com o animus narrandi impede da obra criada.
a seleção; interdita a descoberta do que não é rotina; enverniza 0 que seria ilu-
minado pela "aurá' no sentido que a ela atribui Walter Benjamin. É a atitude Não é que Carlos Drummond de Andrade abandone o filão memorialístico;
que cria, na História, o compromisso com a explicação que impregna também tampouco porque ele se recuse a falar do mundo real e, muito menos, porque
o discurso literário, imprimindo-lhe muitas ve~es aquela aparência uniforme em Drummond desapareça a tensão entre sujeito particular e universalismo
e em certo sentido congelada a que se referia Barzun. Se é verdade que o dis- da obra de arte. O filão memorialístico está em toda obra drummondiana, já
curso ficcional se caracteriza por uma não-pontuação entre 0 que é verdade nos disse Costa Lima, mas não só ele; a vida presente perpassa toda a obra
e o que é imaginário, podemos concordar com Costa Lima e sugerir que a Lite- do poeta e a febre da contenção, na precisão das palavras, foi sempre sua ob-
ratura mineira, também ela, esteve marcada pelo veto à ficção. sessão. "Escrever é cortar palavras': repetiria ele ao longo da vida. Mas, princi-
palmente, Drummond rompe com o ritualismo, com o saudosismo, com a ro-
Antonio Candido já chamou a atenção para uma característica da Literatura mi- tina petrificada e congelada de um discurso uniforme e, acima de tudo, com
neira que talvez amplie nossa perspectiva a respeito da tensão nela constante a temporalidade circunscrita a um momento específico que rotiniza a criação

104 105
e vulg~. aquilo que nasceu das fibras da arte. E não é que Drummond rejei-
te a Htstona em nome da ficção; ao contrário, ele redimensiona a História no de encarar o nacional e a cultura, referidos talvez à intemporalidade e inespa-
ato mágico de libertar a ficção. Por isso, aliás, por tudo isso, proponho que se cialidade que o nacional de Mário de Andrade talvez não pudesse incorpo-
pense ~arlos Drummond como figura emblemática da questão que envolve rar. 50 Por agora, o importante é registrar a maneira como Drummond trans-
a pesquisa sobre mineiridade, na forma como pretendo conduzi-la. forma o presente em algo maior que o factual e mais duradouro que o momen-
to do registro. O clássico é permanente porque sempre presente. Muda, então,
Drummond vai eleger o cotidiano, vai se alimentar do cotidiano. Com muita essencialmente, a direção do olhar em relação ao evento. Não 'mais a passivi-
convicção sugere aos poetas que procurem no cotidiano suà inspiração. Se es- dade documental como veto, mas o social vivo na poesia pelo contingente re-
t~ lhes parecer pobre, adverte, não o culpe. Culpe a si como poeta pela incapa- cuperado, pela luz que sobre ele lança a interpretação (o que vale dizer, a cria-
Cidade de extrair dele a riqueza de que é portador inesgotável. Mas, 0 cotidia- ção).
no pode também deprimir ("Stephane Mallarmé esgotou a taça do desconhe-
ci.do/ ~ada nos sobrou além do cotidiano/ que empobrece, deprime"). E dessa Entre os _atributos de um verdadeiro clássico, diz Merquior retomando T. S.
dialética podemos tirar a lição de que não é o objeto que é extraordinário se- Eliot, estão a consciência histórica, a capacidade de abarcar toda uma gama
nã~ que a arte o transforma de cotidiano, de matéria corriqueira, em exce~cio­ de sentimentos e a "catolicidade': o que quer dizer, a superação de "toda ótica
nah~a~e. O olhar vigilante de quem guarda o passado não como relíquia que provinciana, inclusive a daquele provincialismo não do espaço senão do tem-
se reiftca no congelamento, mas como referência permanente iluminadora do po, ao qual tantas vezes o espírito moderno se entregou, perdendo assim o
presente: "Não serei poeta de um mundo caduco/ Meu tempo é 0 tempo pre- sentido da universalidade do humand'. 51 Em Drummond as letras brasileiras
sente/ Os homens presentes/ A vida presente". Ou seja, nem necrofilia nem encontraram seu clássico, a quem, prossegue Merquior, se pode atribuir, em
antiquarismo, mas atitude de liberação do ato de construção da consc;ênda grau iminente, cada uma dessas três qualidades.
do tempo, do lugar, do ser-no-mundo.
Fundamentalmente, o caráter emblemático da figura de Drummond se cons-
Um tempo presente, ele próprio sujeito à rotinização, golpe de morte da cria- trói no fato de ser um representante exemplar do cruzamento a que chamei
ção. "E como ficou chato ser moderno/ Agora serei eternd: com 0 que 0 poeta atenção entre História e Literatura em Minas. Poeta, jornalista, cronista e chefe
ultrapassa o tempo cronológico do evento pós-evento, e atravessa tempo e es- de gabinete do ministro Gustavo Capanema, além de memorialista das coisas
paço transformando a obra em arte. O modernismo já saindo do momento de e experiências das Minas Gerais, transformadas pelas suas mãos em universo
explosão carismática e entrando na rotinização. A ritualização estéril. Ficou chato, aberto à identificação por um sujeito de qualquer lugar. Portanto, Drummond
ficou pobre, ficou pequeno. Como chato, pobre e pequeno pode ser 0 relato cumpre o trajeto da tradição e é de dentro dela que retira os elementos para
sucessivo e imotivado de cada fato. Então, será eterno. 0 "clássico modernd' a ruptura.
na apropriada terminologia de José Guilherme Merquior. É tal ruptura com ~
''[. .. ) y solo un poeta interiormente liberado de las muecas de cualquier vanguardia
temporalidade circunscrita a um momento que faz de Drummond um clássi-
es capaz de dar a su pueblo aliado de tantos versos libres memorables [... ] En
co. E que o leva, já na maturidade, a dizer simples e profundamente: "Não
Drummond, clásico moderno, el modernismo se consuma y se justifica en una
faças versos sobre acontecimentos'~ Mas, sim, dê ao cotidiano 0 tratamento de
doble universalidad: la de hablar de nosotros a los otros y la de posibilitar que
arte. A indiscutível habilidade do poeta para relacionar
un tiempo histórico emocione al hombre de cualquier tiempo:'52

"[ ... )la doble herencia dei 'archivo' de tradición poética occidental con la dicción
Drummond mantinha a fixação no tempo presente através não só do que Ha-
coloquial que fue implantada en ellenguaje de la poesía brasilena en Ia primera
generación modernista r... ]:'49 roldo de Campos chamaria "a luta corpo a corpo com a palavrá: 53 fonte e ra-
zão de sua perene juventude espiritual, como pelo contato diário com o cir-
~ão se trata, portanto, de "macaquear a linguagem lusíadá: mas da recupera- cunstancial nas crónicas de periódicos. Flora Süssekind lembra os versos do
çao, no coloquial brasileiro, da forma capaz de transcender 0 próprio brasilei- poeta, já consciente do que seria o impulso a que responderia pela crônica:
ro. É possível que aqui resida o ponto em torno do qual Mário de Andrade "A poesia saiu dos livros, agora está nos jornais". A cumplicidade com o leitor
se ~ateu com Drumm~nd. O Andrade paulista defendia o universal porque sempre renovada com a conversa diária sobre o cotidianp. E, neste sentido, o
nacmnal, porque particular. Drummond já anunciava uma nova perspectiva trabalho de cronista foi uma chave fundamental na formação "desse pacto de
não estranhamento, de uma maneira de ver as coisas, o cotidiano, semelhante
106
107
a de qualquer leitor potencial do Diário de Minas, da Tribuna Popular, de A Não se trata de confundir Literatura com História, nem de tomar uma pela ou-
Manhã, do Correio da Manhã e do jornal do Brasil". 54 E, no pacto de cumpli- tra. A História não é ficção, aprendemos com o senso comum, na lembrança
cidade e não estranhamento, Drummond redimensiona a própria crônica que, de Louis Mink. Trata-se de outro aprendizado do custo que a separação incon-
por suas mãos, deixa de ser impessoal sendo relato; referida ao tempo, vai além dicional, que a intolerância imposta pelo cientificismo positivista nos rendeu
da sucessão cronológica, porque dotada de meaning, e, muitas delas, ainda quando separou a História da cultura, criando o gap entre a p~fissionalização
que circunstancialmente referidas, atravessam a urgência de um tempo deter- da História, de um lado, e a consciência histórica como componente da cultu-
minado. ra, de outro.ss Separação que sacrificou ambas, História e ficção, no sentido
de que extirpa da primeira a possibilidade imaginativa em nome da objetivi-
dade científica e reduz a segunda à, esfera do imaginário falseador, alienado
Pela crônica ou pelo memorialismo, Drummond passeia na arte sem sucumbir
e incapaz de revelar redes interativas do mundo. social, representações reais
à sucessão cronológica ou ao saudosismo subjetivista. Atribuindo significado
em forma de imaginário. Divórcio que começa a ser questionado pelo que em-
à crônica, ele rompe com o animus narrandi literário; libertando-se do saudo-
pobrece a avaliação tanto da produção intelectual das Ciências Sociais, quanto
sismo, percebe intuitivamente que "a maneira de se manter vivo no espaço da
da própria Literatura. Impede que vejamos, por exemplo, que a sociedade na
ficção consistia em não se congelar em saudade, mas transformá-la na proprie-
ficção de Balzac e a ficção na sociedade de Marx são simultaneamente imagi-
dade móvel de um 'fazendeiro do ar' ". 55 ltabira é um retrato na parede e dói,
nário e real. 59 E por isso Engels afirmaria, em 1888, que aprendera mais sobre
não só ao poeta, mas aos que têm armazenadas experiênç:ias, dores, emoções
a sociedade francesa e sua história com Balzac "than from all the professed
e lembranças de um tempo que o tempo levou. A memória poética, pois, pode
historians,· economists ~nd statisticians of the period together". É possível,
60
não ser um veto à ficção, nem esta, nos lembra Costa Lima, se nutre do fanta-
então, que Hayden White esteja correto quando focaliza o problema na ques-
siar. "Nutre-se, sim, da violência com que as coisas vivem em nós, condição
tão metodológica. A pouca ousadia do método historiográfico, motivada, em
para que se convertam em palavras, que já não designarão as coisas mas serão
grande parte, pelo fato de os historiadores terem uma concepção de arte e de
elas próprias coisas signifir:antes, lastreadas pela história, não a ela sub-
dênda já ultrapassada. E, mais ainda, quando os historiadores proclamam que
missas:'56
História é uma combinação de ciência e arte, eles geralmente se referem à com-
binação de ciência social do final do século XIX com a arte do meio do século
Ampliemos um pouco mais o sentido do clássico em Drummond. Rompendo XfX.61 Uma concepção de arte que não vai muito além do paradigma da no-
com o formalismo temporal e ·espacial, Drummond pode falar dos mesmos ob- vela do século XIX e, não por acaso, da novela, ainda naquele momento mar-
jetos, retomar o mesmo espaço de referência e libertá-los das cercas provin- cada e circunscrita à representação do que acontece na realidade.
ciais. Porque foi capaz de com eles fazer ficção, ou porque foi capaz de impri-
mir a eles significado. Fazendo narrativa, portanto, o poeta mostra como é pos- A História, no entanto, não se confundindo nem se reduzindo à ficção, pode
sível, por ser clássico, dotar sua obra de significado, ou seja, como é possível aprender, no contato com esta, a incorporar em seu próprio método noções
revelar subjetividade sem resvalar ou sucumbir ao particularismo subjetivista. e técnicas liberadoras sem que com isso abandone o que, afinal, é a razão de
Nada mais distante da conclusão do historiador da literatura: "[ ... ] se não se ser da História como tal, ou seja, a busca de uma forma de recuperação do
achava acostumado ao meneio da arte, tinha pelo menos a segurança na ex- passado. Pode, por exemplo, aprofundar o sentido do questionamento da per-
pressão. E basta". 5 7 Não bastaria ao poeta, ainda que sempre "torturado pelo cepção do passado como prólogo e levar adiante, na escrita da História, o que
termo certó'. A precisão do técnico que a Marc Bloch obcecaria, porque através na ficção é básico: a percepção do passado como movimento descontínuo. Des-
dela seria possível recuperar os processos básicos das eras passadas e far-se-ia contínuo mas não inacessível a ponto de justificar o projeto de unidade meto-
do historiador o reconstrutor da verdade e não o narrador de experiências his- dológica da ciência baseada no modelo formal de explicação através de leis ge-
tóricas,. ao poeta clássico e moderno escaparia. Porque não se trata de recons- rais que, do presente, puxam um contínuo passado, violentando qualquer sin-
truir cada momento do passado, não se trata de recuperar todo o inventário gularidade de que é portador.
dos acontecimentos, senão que dar ao passado o sentido de presente, e de fu-
turo quando ultrapassa a fronteira da continuidade cronológica, flexibilizando A Literatura mineira teve com os primeiros modernistas e especialmente com
lembranças e memórias que dão sentido ao tempo presente no movimento de Carlos Drummond de Andrade seu momento de liberação, a chance ímpar de
ampliação dá consciência. decolar para o vôo livre do imaginário. Foi aquela geração que abraçou o proje-

109
108
to de modernidade, traduzindo-o em versão muito própria. Angustiada e re- "Those who receive the sarne impressions during their formative years form a
flexiva, foi uma geração que teria de encarar a vida sem mitificação. Teria de generation. In this sense, a generation consists of a dose circle of individuais who
abrir a porta da província a uma experiência que fosse capaz de ultrapassá-la. make up a holistic unit through their dependence upon the sarne historical events
De pensar-se como grupo geracional fora do confinamento regional e do urba- and çhanges which they experienced during their formative years in spite of other
no provincialesco da Belo Horizonte daquele momento. Se a realidade era res- differences:'67
tritiva, o olhar teria de ousar o infinito. Ser mineiro, portanto, será escapulir
a fronteira do pensar regional, piegas, subjetivista ou mesmo ufanista. Seriam A geração intelectual dos anos 20 em Minas será marcada intensamente por
outras as categorias que comporiam aqUilo que a rotina discursiva definiria co- um convívio e um momento não só intelectual (e daí a importância que teria),
mo identidade coletiva. O racionalismo, a prudência, a moderação, 0 sentido mas cultural e político, na integração que não mais se reproduziria. Este o mo-
da liberdade e a dimensão dialógica da política. Uma geração que por um mo- mento e os atores que, angustiados cóm o tempo presente e com sua própria
mento cruza política com Literatura na ambição de entrar no nacional e, quem inserção nele, traçarão o que seriam as linhas de definição do perfil não só ge-
sabe, ser modelo ao nacional. racional, como social. Era uma geração e uma cidade a se modernizarem; era
o estado a se apresentar à Primeira República, senão como o mais desenvolvi-
Convívio estreito de uma geração densamente especial, já mesclada de políti- do, pelo menos como o que poderia oferecer modelo de discurso capaz de trá-
ca e Literatura, do oficialismo público ("a geração de chefes de gabineté: nas duzir a mentalidade de uma região que a si própria ambicionava ultrapassar.
palavras de Cyro dos Anjos, ele mesmo ministro do Tribunal de Contas do Essa dialética de construir a identidade regional e ao mesmo tempo superá-la
Distrito Federal) ao jornalismo: traduz, a meu ver, a particularidade do discurso da mineiridade, particulari-
dade que nos oferece pontos para reflexão que precisam ser aprofundados. Ela
"[ .. ·] no escritório da estrada de ferro, Abgar Renault; na secretaria do Tribunal
nos joga de volta à questão levantada por Antonio Candido da tensão entre
de Justiça, Mílton Campos; na Saúde Publica, o Pedro Nava; na repartição das
particular e universal; também através dela é possível perceber a particulari-
Finanças do Estado, o João Alphonsus [... ] À tarde passavam pela Livraria Fran-
dade da versão modernista mineira e já os sinais que a distinguirão da paulis-
cisco Alves, na Rua da Bahia, assistindo à abertura dos caixotes de novidades
francesas, que iam de Anatole France a Romain Rolland, passando por Gour- ta. A modernidade em Minas vem já mesclada das categorias e referências clás-
mant".62 sicas. A ligação entre catolicismo e pensamento clássico tem em Minas exem-
plo de já indiscutível divulgação. O que talvez se possa fazer mais é tentar reti-
Uma geração e um momento; ambos densos porque imbricados de História e rar de tal ligação alguns desdobramentos interessantes. Por exemplo, o discur-
cultura, de espaço, tempo e consciência. "Toda minha geração misturava isto: so construído para traduzir a identidade de uma região acabará sendo, porque
ceticismo e ironia. Com umas tinturas de romantismo, acentuadas no Emílio balizado pelo universalismo clássico racional, um discurso não regional, mui-
e no Abgar. Sendo que este fez aliança rara: romantismo e classicismo:'63 Tam- to embora nele apareça todo o tempo a lembrança de que se trata do "ser mi-
bém a ~~ond já se .atribuiu tal aliança rara. 64 Drummond sabe perfeita- neird'. O modernismo mineiro, diferente do paulista, traduzirá muito pouco
~en~ o Significado daquele momento geracional. "Eles fizeram história polí- da região e, ao contrário, sintetizará o esforço intelectual de universalização,
tica, fizeram administração, criaram literatura, destacaram-se em ciências jurí- o que se refletirá nas formas muito distintas de pensar o nacional presentes
dicas, na Medicina, em numerosos departamentos do saber e da inventivida- em Mário e Carlos Drummond de Andrade. Questão a ser aprofundada, mas
de';,65 O "~uart~l general do modernismo mineird' era o Diário, "o primo po- que pode ser lançada, é a de que o peso da tradição católica teve de se defron-
bre doMinas, JOrnal de pouca circulação mas lido nas rodas políticas. "Esses tar em São Paulo com outras forças que a neutralizaram a ponto de poder emer-
literatos oficiais, esses cretinos escrevendo besteiras à sombra do Palácio!': co- gir ali, como nas leis de um mercado mais poderoso, manifestações diversifi-
mentavam "alguns invejosos': nos diz Drummond. 66 cadas, marcadas por acentuado tom local. O modernismo paulista, pelo me-
nos na versão de Mário de Andrade, está muito mais próximo do regional, e
Geração que t:alvez possa corroborar o que Dílthey qualificaria como conteúdo ainda que ambicione o nacional, o traço regionalista será mais evidente. Uni-
qu~itativo da definição geracional, ou seja, que a absorção de impressões for- versal porque particular, diria Mário de Andrade. Universal se geral, talvez re-
m~bvas durante a adolescência tenderia a transmitir para a vida de um deter- trucasse Drummond. Há, portanto, na tradição mineira, a possibilidade de uma
mmado grupo de indivíduos de mesma idade padrões, guias relativamente ho- uniformização que .o racional favorece, dificilmente possível na diversidade da
mogêneos no nível cultural, social e psicológico. sociedade e das manifestações do mercado cultural paulista. A tradição católi-

110 111
ca teve de encarar a multiplicidade dos interesses leigos e de
mercado em São
Paulo, e talvez em Minas tenha sido ela um dos principais agentes NOfA S
na defini-
ção de interesses.
Como passar despercebido o fato de que o livro mais import ante
sobre a cons- 1.
trução do discurso da mineiri dade foi escrito por Alceu Amoro Hayden White, "The Historical Text as Literary Artifact", in R.
so Lima, que H. Canary e M. I<ozickí,
não era mineiro e que foi sempre identificado com o catolicismo, eds., The Writíng of History, The University of Wisconsin Press,
quer na pri- 1978.
meira quer na segund a fase de sua vida, como Alceu Amoro so 2.
Lima ou como
Tristão de Ataíde? Por que é possível e até explicável que isso Idem, p. 123
tenha ocorrido?
Exatamente, me parece, pelo fato da não especificidade, pela 3.
abstração, pela
racionalização, e até pelo que o próprio Alceu ressaltaria como Idem, íbídem.
o eterno, con-
temporâneo de todos os tempos, o que facilita sobremaneira a traduçã 4.
o do pen-
sament o de um grupo por alguém que a ele não pertenç a. Não Idem, ibidem.
é preciso ser
mineiro para descrever o que é ser mineiro; mas, talvez seja indispe 5.
nsável ser Hayden White, Metahistory: The Historical Imagination in Ninetee
paulista para se traduzi r o pensam ento paulist a na forma como nth Century Europe,
foi constru ído Baltimore, Johns Hopkin s University Press, 1973.
e, a partir daí, universalizá-lo, de acordo com o sentido de univers
alização que
lhe atribuiu o modern ista paulista. 6.
Hayden White, "The Burden of History ': History and Theory,
vol. V, n.2, 1966.
Essa digressão, no entanto, não tem neste artigo outra razão
de ser que não 7.
a de trazer a chave com a qual espero concluir esta história do
encont ro inter- Idem.
ditado. Por razões económicas, diriam alguns; por embaraços
políticos, argu-
mentar iam outros; ou mesmo por veto ao ficcional, o fato é 8.
que o projeto de Jacques Barzun, "History as a Liberal Art", foumal of the History
modern idade do pensam ento levado pela geração modern ista of Ideas, vol. VI, jan .-
dos anos 20, es- out., 1945.
pecialmente por Carlos Drumm ond de Andrade, sucumb iu a uma
tradição uni- 9.
formizadora, incapaz de se fazer penetra r por algo que fugisse
ao que estava Idem, p. 81.
estabelecido como regra de condut a intelectual, que escapa sse
à rotina já en- 10.
durecid a mas previsível e não ameaçadora. A experiência de
denso convívio Idem, p. 82.
geracional, e mesmo o estreitamento de laços de cumpli cidade
que se amarra- 11.
vam no "Bar do Pontd~ ou nos cafés, ponto final ou inicial da Louis o. Mink, Historical Understanding, editado por Brian Fay,
rotina de traba- Eugene Golob e Richard
lho em algum jornal ou repartição, não foi capaz de evitar a T. Vann, Ithaca/Londres, Cornell University Press, 1987, p.
rotinização que 182.
iria limitar e empobrecer o que nascera da ousadi a e da irreverê
ncia. Chegou
o tempo em que não era mais possível ser moder no porque o 12.
que nascera do
impuls o da arte inovadora começara a ritualizar-se. O que viera Idem, p.183.
para romper
com a tradição intelectual e possivelmente criar outra mais livre, 13.
modern a, ex-
pressão da subjetividade libertada, acabaria prisioneira do formali Idem, p. 199.
smo, da uni-
formização. 'lkncia, portanto, o animus narrandi. E, como não
era este o traço 14.
.
que do clássico seria recupe rado para a traduçã o do modern o, Dito desta forma, corremos o risco de afirmar como consens -
resta a Drum- ualment e acetto o que nao
mond, então, renunc iar ao modern o e se separar da tradição '. o aceitar a História como narrativa já define uma posição teórica que disputa com
no trajeto solitá-
rio da trilha do gauche, cumpri ndo assim a profecia por ele traçada :utras que não admitem tal assertiva. O desenvo lviment o desta
: "Quan do reflexão deverá qualifi-
nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, car melhor tais divisões. O Quadro 1 adiante, que sintetiza o painel
Carlos! ser gau- traçado por Hayden
che na vida''. E não sem consciência, e não certam ente sem o sentido White, é ilustrativo do que estou alertando.
de derro-
ta, acaba confessando: "Minas não há mais''. 15.
Hayden White, "The Questio n of Narrative in Contem porary
Historical Theory'', His-
(Recebido para publicação em deze!Lbro de 1988) tory and Theory, vol. XXIII, n.1, 1984.

112 113
16. 31.
Isaiah Berlin, ''History and Theory: The Concept of Sdentific History': History and Theory,
Luiz Eduardo Soares, "Luz Baixa sob Neblina: Relativismo, Antropologia, Interpretaçãá:
neste número, p. 6. vol. I, n. 1, 1960, p. 28.
1Z 32.
Idem. p. 11; grifo meu. Idem, p. 11.
18. 33.
W. Von Humboldt, "On the Historians' Task .. :', op. dt.
O esforço de Luiz Eduardo Soares na reflexão que mencionei anteriormente orienta-se
no sentido de encontrar um equilíbrio teórico possível que seja capaz de evitar os extre- 34.
H. Stuart Hugues, History as Art andas Science, Chicago, Midway, 1975.
mos quer de uma ciência sem sujeito, quer de uma ciência sem objeto.
35.
19.
Idem, p.·7.
Luiz Costa Lima, Sociedade e Discurso Ficcional, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1986.
20. 36.
Martins de Oliveira, História da Literatura Mineira, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1958, p. 13.
Idem, p. 23.
37.
21.
Idem, ibidem.
Este ~ ~m po~to interessante para acrescentarmos ao comentário de Hayden White a
38.
propos1to da mcorporação, pela História, de técnicas do discurso ficcional. Poderíamos
Idem, ibidem.
~nsa_r, talv~z, no contra-exemplo da afirmação de que forma é fundo aparecendo. Ou
seJa, e possiVel usar a forma ficcional exatamente porque há um conteúdo interditado 39.
Seria a ausência da subjetividade na ficção o que liberaria o trânsito historiográfico-ficdon~ Idem, p. 14.
tal como salientado por Hayden White? 40.
22. Idem, p. 15.
Luis Costa Lima, Sociedade e Discurso Ficcional... , op. cit., p. 24. 41.
Georg Lukács, Soul and rorm, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1974, p. 55.
23.
Hayden White, "The Burden of History.. :•, op. cit. 42.
Martins de Oliveira, Hist6ria da Literatura Mineira ..., op. dt., p. 15.
24.
43.
Patrick H. Hutton, "The History of Mentalities: The New Map of Cultural History': His- Idem, pp. 17-8. Eis dois exemplos das críticas que lhe foram dirigidas (referência ao "Triunfo
tory and Theory, vol. XX, n.3, 1981. Eucarísticá' e "Áureo Trono Episcopal"): "Nega-lhes Mário de Lima valor literário, e a
25. sua expressão é um tanto forte: medíocre valor literário. Peças que visam mais a posteri-
Georg G. Iggers, New Directions in European Historiography, Middletown, Connecticut dade que ao sentido artístico, escritas, assim, com animus narrandi (isto lhes abona a
Wesleyan University, 1984, p. 50. ' finalidade histórica), se não apresentam o selo de arte pura, foram, entretanto, redigidas
26. por quem revelava razoável trato do idioma. De fato, a pena que as traçou, se não se
Hayden White, "The Question of Narrative.. :', op. cít. achava acostumada ao meneio da arte, tinha pelo menos segurança na expressão. E bas-
27. ta:' (idem, p. 52). E ainda: ''AD presente livro foi dada a censura de acolher espantosas
Wilhelm \bn Humboldt, "On the Historians' Task': Hístory and Theory, vol. VI, n. 1, mediocridades, como se ao historiador coubesse apenas o dever de citar categorias altas
1967, p. 58. e sumidades literárias [... ]" (idem, p. 329).
28. 44.
Idem, ibidem. Idem, p. 207.
29. 45.
Idem, p. 59. Idem, p. 317.

30. 46.
Idem, p. 65. Idem, p. 325; grifos meus.

115
114
47. 60.
Idem, p. 387 Citação retirada do artigo de Sandy Petrey, "The Reality.. :', op. dt. A citação de Engels
encontra-se em Karl Marx e Friedrich Engels, Marx and Engels on Literatute and Art,
48.
Luiz Costa Lima, "Carlos Drummond de Andrade: Memória e Ficçãó~ in Frederick G. Moscou, 1984, p. 91.
Williams e Sergio Pachá, eds., Carlos Drummond de Andrade and His Generation, Santa' 61.
Hayden White, "The Burden of History.. :: op. dt.
Barbara, University of California/Bandanna Books, 1986, p. 67.
49. 62.
Carlos Drurnmond de Andrade, Tempo, Vida, Poesia, Rio de Janeiro, Record, 1986, p. 44
Horácio Costa, "Presencia de Carlos Drummond de Andrade': Vuelta, n. 136, março de
1988, p. 42. 63.
50. Idem, p. 46.
O encontro de Mário e Carlos Drummond de Andrade revela mais do que o encontro 64.
Oaude L. Hulet, "Carlos Drummond de Andrade, the Romantíc", in Frederick G. Wil-
de dois grandes personagens que se inquietaram com o Brasil de seu tempo. Indica a
possibilidade de restaurar, no debate intelectual, a idéia de modernidade não como algo liams e Sergio Pachá, eds., Carlos Drummond ... , op. dt.
que se defina univocamente, mas como vivência que supõe versões alternativas e admi- 65.
Carlos Drummond de Andrade, 'Jempo, Vida, Poesia ..., op. dt., p. 46. O poeta mineiro
te matizes ao fénômeno da perplexidade do homem ocidental moderno diante de seu
acrescenta: "[ ... ] Um sujeito como o Luís Camilo de Oliveira Neto valia tanto quanto
tempo. Encontro que deixa perplexos aqueles que, prisioneiros de modelos universalis-
uma biblioteca atualizada, ou mais. Sem fumaças de magister, Mário Casassanta carre-
tas excludentes, não podem ler nem ver a multiplicidade que implica a inserção do ho-
gou nas costas 0 peso glorioso de uma frutífera reforma estadual de ensino, imaginada
mem no mundo. Um encontro que contraria rnaniqueísmos ou postulados a príorí
por Francisco Campos, da geração anterior. Capanema foi o grande Ministro da Cultura
construídos a respeito do curso do debate, da produção e da compreensão do sentido
cuja obra resiste a todas as desfigurações ulteriores. Gabriel Passos lutou com ~avu_:a
que ser moderno pode traduzir. Esta, no entanto, é urna discussão em torno da qual
por esta coisa simples e difícil: o direito do Brasil explorar se~ recursos natura~. Joao
me ocuparei na pesquisa de tese.
51.
José Guilherme Merquior, "Nuestro Clasico-Modernó~ Vuelta, n. 136, março de 1988,
p. 44.

52.
l Alphonsus viveu só 43 anos, o bastante para deixar uma coleçao de contos que sao dos
melhores da literatura nacional. O anjo-Emílio com sua poesia; Abgar, o futuro e notá-
vel educador[ .. .]" (idem, p. 47).
66.
Idem, p. 82.
Idem, p. 45. 67.
53. Citação de Dilthey retirada de Hans Jaeger, "Generations in History", Hístozy and Theozy,
Haroldo de Campos, "Drummond, Maestro de Cosas'~ Vuelta, n. 136, março de 1988, p. 45. vol. XXIV, n. 3, 1985.
54.
Flora Süssekind, "Un Poeta Invade la Crónicá', Vuelta, n. 136, março de 1988, p. 48.

55.
Luiz Costa Lima, "Carlos Drummond .. :', op. cit., p. 81.
56.
Idem, p. 82.
57.
Martins de Oliveira, História da Literatura Mineira ... , op. cit., p. 52.

58.
Ver Louis O. Mink, Historiea/ Understanding.. ., op. cit., e Owen Barfield, The Redisco-
vezy of Meaning and Others Essays, Wesleya Paperback, 1985.
59.
Sandy Petrey, "The Reality of Representatíon: Between Marx and Balzac", Critica/ Inquiry,
vol. 14, n. 3, primavera, 1988, p. 468.

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ABSTRACf Debates e ~mbates na Antropologia:
Suspicious Encounter: History and Fíction
o Diálogo India-Europa*
The article deals with a general question How can history be exarnined through fic-
tion? which guides and underlies a more specific hypothesis: How can the shaping
of a collective identity be exanúned through literature? The discourse of mineiridade (qual-
ities and traits characteristic of Minas Gerais) is proposed as an example of the shaping
of a collective identity, and the first modemist generation of Minas Gerais during the Mariza G. S. Peirano
twenties is identified as the literary group involved in this shaping. ln developing the
argument, special attention is placed on the relationship which has historically been drawn 'We have, then, this problem of 'communication' - or gap in communica-
between history and literature in Minas Gerais and to the selection of the poet Carlos tio_n - among those who are contributors to the sociology of India. [... )
Drummond de Andrade as an emblematic figure in the shaping of a collective identity The establishment of a common ground for díscussion, therefore, remains
for that generational group. as ímportant a task now as it has been in the past and as difficult as Du-
mont says he found u:'1
RESUME
Rencontre Suspecte: Histoire et Fiction
ão foi pelo consenso, mas sim através de controvérsias ~ue a antropolo-
Cet article traite une question générale mais qui en oriente une autre, elle-même plus
spécifique: comment penser l'Histoire à partir de la fiction? Cet énoncé, dont la nature
N gia, como outras disciplinas, desenvolveu sua tradição. Emile Durkheim
contra Gabriel Tarde, depois Radcliffe-Brown contra Frazer, seguidos de Mali-
est générale, sert de base à une hypothêse spécifique: est íl possible de concevoir la défi-
nowski e Radcliffe-Brown até chegar a Lévi-Strauss contra todos. Estes episó-
nition d'une identité collective à partir de la littérature? I.:auteur propose, comme exem-
ple de définitíon d'une identité collective, le discours de la mineiridade (ce qui est pm-
dios de dificuldade de comunicação e entendimento ficaram conhecidos e fo-
pre à Minas Gerais) et emet une hypothêse selon laquelle la premiêre génération mo- ram muitas vezes mitificados. Qualquer aprendiz de antropólogo toma conhe-
derniste de Minas Gerais a été, au cours des années 20, Ie groupe littéraire directement cimento deles e é então que descobre que o sucesso de um dos protagonistas
lié à ce genre de définition. Afin de développer son raisonnement, elle met particuliêre~
ment en relief les rapports historiques qui, a Minas Gerais, se sont établis entre l'Histoi- * Este é o último de uma série de artigos, todos publicados na revista Dados ("A Índia
re et la littérature et l'élection du poête Carlos Drummond de Andrade comme person- das Aldeias e a Índia das Castas: Reflexões sobre um Debate", vol. 30, n.1, 1987,. pp. 109-21,
nage emblématique dans la définition d'une identité collective pour cette génération. e" 'Are You Catholicr Relato de Viagem, Reflexões Teóricas & Perplexidades Éticas': vol.
31, n.2, 1988, pp. 219-42), resultado de uma pesquisa sobre o desenvolvimento da antro-
pologia na Índia. Aproveito a oportunidade para registrar os agradecimentos acumula-
dos nos últimos três anos: a David Maybury-Lewis, da Universidade de Harvard, e a
T. N. Madan, da Universidade de Délhi, devo o apoio generoso que me permitiu reali-
zar, respectivamente, a pesquisa bibliográfica e levar adiante as discussões com cientis·
tas sociais indianos; ao Programa Fulbright-CAPES e à Fundação rord, o financiamento
da pesquisa, e ao CNPq a bolsa para elaboração dos resultados. Peter Silverwood-Cope,
que não viu este último artigo, acompanhou o desenvolvimento da pesquisa passo a passo
e colocou os desafios que estimularam a sua realização; Bruce Bushey, também não mais
aqui, acreditou na sua possibilidade. Agradeço a Roberto Cardoso de Oliveira o apoio
de sempre; a Simon Schwartzman, o diálogo; a Peter Fry, a confiança; a Otávio ~lho,
o interesse amigo. Elisa Reis e Luíz Antonio de Castro Santos foram leitores exigentes
e rigorosos, a cujas sugestões procurei atender. Sou grata a Wanderley Guilherme dos
Santos pelo estímulo e a Charles Pessai:tha pela tolerância com as minhas preferências
estéticas.

dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 33, n.l, 1990, pp. 119 a 146.

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