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quando, por que e como surgiu essa realidade que, ao longo tem relação como surgimento da filosofta, em
que, muito pelo
de
vinte e cinco séculos, foi qualificada como “filosofia”? contrário, a essência do relato consistia em comunicar-nos
Há muitas décadas, vêm-se afirmando que o nascimen- uma verdade de tão alto valor e transcendente às nossas
to da filosofia coincide, na sua essência, com a passagem do capacidades ordinárias, ou seja, tão sublime, que não cabia
mito ao logos ou, se é preferível, com a substituição do pri- expressá-la senão de maneira simbólica.
meiro pelo segundo. Heidegger, ao contrário, adverte
“Mythos e logos de nenhuma maneira entram reciprocamen-
te em conflito no âmbito da filosofia, como crê a historiogra-
Atendendo
a
essa característica, Pieper pôde afirmar
categoricamente: “Platão atribui sempre aos relatos míticos,
em sua acepção mais cabal, uma verdade incomparavelmen-
fia corrente (...). Pensar que o mythos foi destruído pelo lo- te válida, singularíssima e inatingível que está por cima de
80s é um prejuízo da historiografia e da filosofia toda dúvida”.
O assunto foi tratado com especial competência
por
Josef Pieper, atendendo de maneira prioritária o sentido dos b) Os autênticos mitos
mitos na filosofia de Platão, que sem dúvida, o autor em
que a relação entre um e outro é mais patente. Nas páginas objeto da presente epígrafe resulta bastante claro: o
O
que seguem, vamos expor algumas das idéias desse pensa-
dor alemão, uma vez que contrastaram com investigações
que se
acaba de afirmar sobre a “verdade” intocável dos mi-
tos só pode aplicar-se aos “verdadeiros” mitos, aos qualifi-
posteriores a respeito do mesmo problema, cados como mitos em sentido estrito.
Nem tudo o que costumamos nomear com este termo
a) O significado do termo em Platão merece entrar no âmbito dos autênticos mitos. Sem
Antes de qualquer coisa, é oportuno esclarecer o que ir mais longe e por mais que possa causar assombro, o tão
se entende por “mito” no presente contexto, que é o de sua conhecido “mito” da caverna, talvez a mais famosa das ale-
relação com o surgimento da filosofia. E, para fazê-lo, con-
vém revisar outros significados que talvez hoje sejam mais
gorias
a.
narradas nos Diálogos, ficaria excluída de tal catego-
a esfera divina. Tratam da ação dos deuses na medida em aparente ineficácia dos seus descobrimentos com as conquis-
que tal ação afeta o homem, e da ação dos homens enquan- tas inegáveis que oferecia à humanidade o que, desde en-
to se referem aos deuses”?, tão, chamou-se de ciências "exatas", “positivas”, "experi
Ademais, entendendo-o de forma ainda mais preci- mentais”, a filosofia sentiu como que vergonha de si mes-
+
Sa e sempre nesse contexto deuses-criaturas, o mito costu- ma. Ante tais contrastes, mais aparentes e superficiais que
mma estar referido às
origens ou ao destino final do homem ou reais, alguns filósofos se propuseram a construir uma fito-
do conjunto do universo. Caso levemos em conta esta sofia inédita que pudesse competir em eficiência e rigor com
segun-
da condição, essencial para a constituição do mito, os esses outros saberes. Para alcançá-lo, foram tomando, como
ficam na obra de Platão, entre a multidão de fábulas, em
que
que modelo justo, as ciências que, em um momento concreto,
nelas tais mitos nos são apresentados, resultam relativamente estavam mais em voga: a matemática, a física newtoniana,
Poucos, À saber, “a história referida em Timeu, em torno da a sociologia e a psicologia.
criação do mundo;
originária e a queda do
o
relato do Banquete acerca da forma
homem, latente no discurso de Aris-
O resultado final de tal processo, em que haveria de
incluir não poucas exceções, foi a elevação da "verdade ci.
tófanes; e, antes de tudo, também os
mitos escatológicos
sobre o outro mundo, o juízo e o destino dos mortos, os quais
entífica” a exclusivo saber autêntico, junto com a elimina-
ção de outros tipos de conhecimento, entre os quais consta
aparecem no final do Górgias, da República e do Fédon"?, vam a filosofia e a teologia. Esses últimos deixaram de ser
considerados como modos válidos de chegar à realidade,
consequência, ao relacionar os mitos com o surgir
a
Em
da
filosofia, referimo-nos de forma excludenteàs narrações que sendo que passaram ser conceituados como opiniões, pos-
preenchem as duas condições acima mencionadas. Os rela- turas subjetivas e não comunicáveis, fantasias com mais ou
tos alheios a semelhante contexto afastariam nossa análise menos influxo na própria vida, mas em nenhum caso como
da autêntica natureza do problema que se tenta decifrar. conhecimento fidedigno, como “verdade”, Aquilo que não
tivesse o aval de um estrito e correto rigor lógico e/ou não
fosse suscetível de comprovação experimental, deixaria de
€) A verdade dos mitos existir como procedimento aceitável para conhecer o mun-
do e atuar sobre ele e para reger a própria existência.
Estando já situados na esfera dos autênticos mitos, Ante o ocorrido nos melhores momentos do saber clás-
imediatamente surge uma pergunta: em que sentido cabe
sico, nos quais cada realidade determinava o procedimento
atribuir-lhes o valor de verdade? Ou, jogando um pouco com
mais apto para chegar a ela, acabou por consolidar-se a idéia
as palavras: por que e até que limite lícito sustentar que os de que, para conhecer, existia um único método válido, o
verdadeiros mitos" são “mitos verdadeiros”, capazes de
comunicar uma verdade? que se dava já quando sec tratasse de elevar-se até Deus, ou
Também neste extremo, com o desenvolvimento da penetrar na alma humana, descrever o mapa dos nossos
filosofia e da cultura nos últimos séculos, embaralhou-se um sentimentos, analisar a linguagem, classificar as espécies
animais e vegetais, medir e quantificar a energia etc. Junto
Pouco a questão, tornando mais problemática a resposta. É à chamada "verdade científica”, dava-se uma única possibi-
sabido por todos que, há alguns séculos, ao comparar a
lidade, a do falso ou, pelo menos, “in-significante” a partir
do ponto de vista cognitivo. E como a ciência lógico-expe-
rimental só pode aplicar-se comrigor a determinados âm-
2. bidem. pp, 19-20. bitos do corpóreo, ao exceder esse domínio, terminou por
3: Teidemn, p. 28, declarar-se incognoscível.
4s INICIAÇÃO À FILOSOFIA A FILOSOFIA NA HISTÓRIA 4
Tudo isso tem muita relação com
se vem dando desde
a a
interpretação que
filosofia clássica e, de maneira muito
particular, com a questão que agora nos ocupa, Como lem-
de que, em
verdadeira”,
tais histórias, afirma-se algo de forma intangível
4.
Ibidem, p. 41 (grifo do autor).
6. Tbídem, pp. 55.
5: Cf, Ibidem. pp. 14-15. 7.
Cf. Ibidem. pp. 59-80.
so INICIAÇÃO À FILOSOFIA A FILOSOFIA NA HISTÓRIA
mesma forma que o soldado “que volta à vida na pira mor. Existe uma grande semelhança de fundo entre os prin-
tuária, 'poderia também salvar-nos, se cremos nele' (Repú- cipais mitos escatológicos e os que a fé cristã ensina: que,
blica, 621 e 1)"º,
depois da morte, existe outra vida na qual cada pessoa, se-
ao longo
que a fé cristã ensina) e o exercício cabal do nosso entendi- guma de exaustividade, principalmente quando,constituirá
mento. Pelo contrário, desde as mesmas origens, à especu- de todo o livro, o melhor do pensamento grego
lação filosófica concebeu a inspiração divina como ajuda uma recorrente referência para o esclarecimento
dos distin-
essencial para sua própria tarefa. Os primeiros filósofos gre- tos problemas. Antes, pretendem lembrar alguns extremos
gos nunca pretenderam substituir o que ensinavam "os an-
tigos” por um conhecimento baseado de modo exclusivo e
que
a
historiografia recente - devedora do racionalismo, do
influxo de Hege! e, mais tarde, do positivismo - não tran:
excludente no poder da razão do homem, tida como autô- mitiu e que, entretanto, mostram-se essenciais para penetrar
noma
e
soberana. Exerceram esse poder com a confiança de
compreender a natureza das coisas, sem dúvida, mas sem
na essência do filosofar.
contemplação das realidades mais altas, que não são desse No melhor dos discípulos platônicos, Aristóteles, a di-
mundo e que se nos oferecem depois de mortos. O filósofo imonsão científico-teorética se eleva até cumes sublimes, sem
se prepara nesta vida para a contemplação celeste. Por ou- bandonar por isso o seu apego à realidade concreta e coti-
tra parte, Platão insiste muito na função purificadora da moral: (iana. Mais ainda, é justamente a penetração “teórica” nas
para ser sábio, é mister antes ser justo. O injusto não pre- está
conhecer a realidade tal como é, refleti-la nos seus ensina- O assunto não acaba aí. Aristóteles é o primeiro pen-
mentos orais, nos silêncios e nas mensagens de seus escri- sador que, ao aprofundar na concepção do objeto da ati-
tos, com a finalidade de fazer com que ela chegue aos que vidade filosófica como sabedoria, assinala nas dimensões do
se aproximaram dele, Mas isso não é tudo. Platão não es- (tico e do político (filosofia “prática”), distinguindo-as, sem
crevia simplesmente para expor o conteúdo da sua doutri- separá-las, do saber teorético mais estrito, representado prin-
na. Havia nele um tipo de desejo mais profundo, que o dirt- cipalmente pelas filosofias “primeira” e “segunda”, mais
gia a buscar e encontrar, a fazer visível a dúvida e o conflito tarde qualificadas como metafísica e filosofia da natureza,
nessa perseguição do verdadeiro, “não como uma mera ope- com tudo quanto incluem uma e outra.
ração intelectual, senão que como uma luta contra a pseudoclên- Mas semelhante distinção não diminui de nenhum mo-
cia, o poder político, a saciedade e seu próprio coração - pois o do o caráter “encarnado” do pensamento aristotélico. E não
espírito da filosofia de Platão se chocava necessariamente só porque, de forma mais pronunciada que Platão, o filóso-
comtodas essas forças. Adequando à sua maneira pessoal fo de Estagira atenda expressamente às condições e às reper-
de vê-la, a filosofia é (só) uma esfera dê descobrimentos teo-
não
cussões vitais da teoria, mas por outros dois motivos de igual
éticos, mas (também) uma reorganização de todos os elementos ou maior alcance: i) porque, ao contrário de Platão, não
fundamentais da vida"! - ainda que, tampouco agora, del- subordina a atividade ética e política a uma classe de teoria
xe de ser verdade que, nesse empenho, o Filósofo das Idéias utópica e sem matizes, senão que sabe ter em conta as con-
se mostra menos atento às circunstâncias mutáveis e con- cretas configurações do existente humano e da vída na 'po-
tingentes do seu entorno, pretendendo ainda adequar a re- lis"; ii) ademais, porque toda a sua doutrina se configura como
alidade histórica ao modelo ideal que ele concebeu em ra- uma unidade íntima, cujo fim último é a felicidade, onde
zão sobretudo da especulação. teoria e práxis se conjugam numa harmonia buscada. As-
sim, para Aristóteles, como todo o saber gira em torno do
conhecimento da realidade levando a termo a filosofia pri-
16. SaNGUINEm, Juan José, fntroduzíone alfa filosofia, * Roma:
University Press, 1992, p. 29. eder Usbanta
18. p.
E INICIAÇÃO À FILOSOFIA AA FILOSOFIA NA HISTÓRIA
meira", toda a atividade do homem deve ser encaminha- priental), as estruturas e instituições surgidas em seu seio,
'
Sua felicidade. Inefável na vida dos homens. Não obstante e no que diz res-
Em resumo, como sustenta Reale, toda “a 'contem- pelto à filosofia, o tremendo e inegável influxo de quanto esse
plação' grega leva consigo, de maneira estrutural, uma determi-
9.
Íuto leva consigo não impõe uniformidade alguma ao perío-
(lo que agora nos ocupa. Nele persistem escolas filosofia
de
nada atitude em relação com a vida. Não era, pois, a theoria
grega uma simples doutrina de índole intelectual e abstra- jtega, que continuam assim o trabalho dos pensadores ai
ta, mas também e sempre uma doutrina de vida; ou, dito de tes citados, sendo tocadas somente de leve pela revelação
outro modo, uma doutrina que reclama intrinsecamente sobrenatural, sendo inclusive, às vezes, opostas a ela, como
uma verificação existencial, encontrando-se, comumente, !iuns neoplatônicos. Adverte-se também o influxo da an-
ipa e multifacetada tradição judaica, mais em autores do calibre
acompanhada por ela”. Estendendo o seu juízo para além tarde, filósofos e
dos autores que brevemente consideramos, acrescenta: “O de um Fílon de Alexandria. Surgem,
permanente na filosofia grega é o theorein, por vezes louva- movimentos que unem as verdades do pensamento clássico
do em seu valor especulativo, por vezes no prático, mas sem- com o que introduz a doutrina árabe ou judaica (Maimôni-
(les, Avicebron, Avicena e Averróes). E, no seio da filosofia
pre de forma que essas duas instâncias se impliquem uma e ou-
tra de modo estrutural. Além disso, o assunto fica comprova- de inspiração cristã, na qual se integram quase todas as
do enquanto se adverte que os gregos, ao longo de toda a influências citadas até o momento, a resultado é uma plura-
Jiídadede visões da realidade, no âmbito filosófico estrito, que
Sua história, somente consideram como um autêntico filó-
sofo aquele que demonstrava a capacidade de unir, com investigação dos últimos decênios colocou cada vez mais
em evidência: Agostinho de Hipona, Anselmo de Aosta,
11
coerência, pensamento e vida; em conseqitência, a quem Boaventura de Bagnoreto, Tomás de Aquino, Duns Escoto.
Sabia ser mestre não só de reflexão, mas de vida vivida”,
e
Guilherme de Ockham tantos outros. Todos estes, ainda
que animados de um mesmo espírito e de
idêntica fé, dão
3. A filosofia potencializada pela revelação lugar a doutrinas filosóficas tão diversas como as que os histo-
riadores de um século atrás tinham já descoberto entre os
O extenso e rico período que transcorre-desde o início
autores modernos e contemporâneos.
da era cristã até o que normalmente se conhece como Idade Por isso, a denominada Idade Média não seria uma
Moderna não pode ser sintetizada em poucas linhas, Nete espécie de parêntese entre dois momentos filosoficamente
teve lugar, sem dúvida, um acontecimento-chave, que mar- significativos: o apogeu grego e o Renascimento na Europa.
cará não somente a especulação posterior até os nossos dias,
Não é tampouco um tipo de planície sem relevo, homogê-
o
mas também inteiro desdobramento da cultura ocidental nea e anódina, medida por um mesmo padrão brumoso e
gris. Não. Nela se destacam autênticos gigantes do pensa-
mento, cada um com personalidade própria, sendo dignos
de um estudo preciso e pormenorizado, É justamente essa
ia variedade abundante, e não o contrário, o que talvez justi-
fique a decisão de assinalar agora tão somente um par de
-
1997. pp. 106 ess.
Pamplona
Cf., entre outros, ARISTÓTELES. Ética Eudemia. VIII, b 16-20.
traços gerais sobre o que a revelação judaico-cristã pressu-
3,
Milano:
1249
21. REALE, Giovanni. Storia della fliosofia antica. vol. Vi Pens
2) Enriquecimento da filosofia grega gência humana; e que, portanto, goza de um claro valor de
verdade, que pode ser acolhido sem problema, com as reti
Abordando a questão em seu conjunto, o panorama ficações que sejam do caso, e prosseguindo até levá-lo a al-
se apresenta bastante nítido. Ainda que o cristianismo seja cançar alturas antes inexploradas. Por isso, os melhores entre
propriamente uma religião, uma mensagem de salvação, e não os pensadores cristãos, na medida em que a sua própria si-
uma filosofia, contém um repertório de verdades que conferem ção cultural e a maturidade do seu entendimento o per-
uma resposta mais
que suficiente às questões mais árduas cogi- mitissem, incorporam o que de positivo se encontrava no
tadas pelos clássicos. Por isso, contra o que se sentenciou pensamento grego, fazendo-o frutificar ao contato com a luz
durante algum tempo, pode-se dizer que não seria de estra- inefável que a revelação irradia,
nhar que a contribuição do cristianismo para a filosofia no Dessa maneira, esta continuidade recíproca entre ra-
Ocidente tenha sido a de maior alcance em toda a história 7ão e fé, que ultimamente tem sido qualificada como "cir-
da humanidade. cularidade”, bem como a sua relação com os problemas reais que
Em
que consiste basicamente esta contribuição? ) Por afetam a vida do homem e especialmente do cristão, provoca-
uma parte, os conteúdos revelados confirmam e outorgam o rão, como antecipava o título desta epígrafe, um evidente
seu verdadeiro valor a descobrimentos que os pensadores crescimento não somente da teologia, mas também dafilo-
precedentes tinham aventurado de uma maneira menos cla- sofia, que normal e quase inevitavelmente amadurece em seu
Ta e certa - por exemplo, tudo
quanto é relativo ao espírito, selo.
às relações entre alma e corpo e à existência de um além
após
a morte, ii) Por outra, dão vida a novas categorias, ignoradas b) Originalidade da filosofia realizada à luz da fé
por completo ou apenas vislumbradas em tempos anterio-
res - entre elas, a realidade da pessoa, a da criação ex níhilo, Ainda que durante bastante tempo tenha sido coloca-
a compreensão de Deus como Ser e Amor e a do homem do em dúvida, ou inclusive se negou obstinadamente, sob o
como realidade destinada à entrega de si, bem como outras
ponto de vista histórico, a questão se encontra demonstra-
asMas a
muitas, capazes de enriquecer teoria e a práxis dos povos da por princípio: comparando-se as posições fundamentais
que acolhem,
o pensamento cristão, embora o supere, não im-
da chamada filosofia moderna com as da filosofia clássica
Plica em ruptura alguma com o grego. Por quê? Em essên-
grega, não as perceberemos em estrita continuidade, tal como
Se não tivesse existido especulação entre uma e outra; muito pelo
cia, porque também esse admitia, segundo sugerimos
dos mitos, um “mais além” da razão - ao falar contrário, observa-se tão desproporcionado enriquecimen-
para o cristão, a fé to, este acúmulo de avanços, que antes poderia sustentar,
revelada - e, portanto, a possibilidade de estender o vigor
do entendimento, de seguindo o francês Éttienne Gilson, que a filosofia moderna
per se restrito, aplicando-o a questões liga-se à medieval, como se a filosofia antiga nunca tivesse exis-
que, sem essa ajuda, resultar-lhe-iam alheias, tido.
Pois bem, no fundo desta assunção do grego por par-
te do cristianismo, encontra-se uma convicção essencial Segundo confirma o cardeal Joseph Ratzinger, “tam-
para bém as filosofias modernas, que estavam convencidas da au-
a fé dos primeiros Padres e de todo o crente em geral: a da
bondade da natureza humana, ainda que quebrantada, bem tonomia da razão e consideravam essa autonomia como cri-
como
a do valor, ainda que recortado mas real, do entendi-
mento. Entre os filósofos-teólogos dos primeiros séculos,
tério último do pensar (...), mantiveram-se devedoras dos
grandes temas do pensamento a que a fé cristá foi dando à
filosofia: Kant, Fichte, Hegel, Schelling não seriam imaginá-
acaba por impor-se a persuasão de que também o conheci-
do à margem da fé responde à bondade natural da intell- veis sem os antecedentes da fé, e inclusive Karl Marx, no co-
E!
e INICIAÇÃO À FILOSOFIA A FILOSOFIA NA HISTÓRIA
ração da sua radical reinterpretação, vive do horizonte de tudo isso será estudado no
esperança que havia assumido da tradição judaica”,
Do
ponto vistade teórico,
Capítulo Agora interessa insistir que os melhores pensa-
V.
Em suma,
o
assunto hoje já não é discutido, exceto por
algumas pessoas que, movidas mais ou menos consciente-
dores cristãos, ainda que amiúde realizem a sua tarefa no
seio da teologia, dão origem a um modo de pensar natural, a
mente por preconceitos anticristãos, seguem afirmando,
contra toda a evidência, a irrealidade de uma fecunda e cabal
uma filosofia, que, sem romper a continuídade com grega, goza
de uma personalidade própria até o ponto de que deve ser quali-
a
filosofia durante os séculos que sucedem o helenismo e ante- ficada como distinta e, em muitos casos, superior à especulação
cedem
o Renascimento moderno. Talvez a obra que mais
claramente manifesta as inegáveis melhoras dessa filosofia,
clássica,
Atendamos por alguns instantes a estas novas pala-
com respeito à grega, siga sendo O espírito da filosofia medi vras de Gilson: “Quando, no início do século XII, foi proibi-
eval, do antes citado Gilson, obra essa escrita do o ensino dos escritos de Aristóteles donec corrigantur, de
expressamen-
te com o desejo de mostrar tal avanço... e imediato, tornou-se manifesto que nunca seriam corrigidos.
que alcança ca.
balmente o seu objetivo? Nem podiam ser. Foi então que Tomás de Aquino fez a úni-
São muitos os exemplos com
os quais esse adianta- ca coisa que lhe cabia fazer: nova filosofia que te-
criou uma
mento poderia ilustrar-se. Mas talvez o mais notável seja a ria assombrado Aristóteles se esse a tivesse conhecido, pos-
noção de “pessoa” e a realidade que nela está subjacente. to que já não era sua filosofia senão a de Tomás", São
Os filósofos
gregos não tinham chegado a considerar de for. Como se conseguiu semelhante novidade? À nossa
ma clara o homem em sua índole pessoal, semelhante cate- tarefa consiste em assinalar, se queé existe, o progresso es-
goria, inevitável no momento presente para entender o que tritamente especulativo, resultado óbvio de um movimento
é o ser humano e fundamentar os seus direitos, brilha nele. Com palavras mais
por psicológico, mas que não se resolve
sua ausência nos escritos clássicos gregos. O pensamento claras, trata-se de descobrir se, na doutrina de Santo Tomás,
cristão, pelo contrário, deve tentar compreender e expres- existem princípios, “categorias” ou como se prefira chamar,
sar de algum modo o que a fé lhe diz, que, no único Deus os quais são ausentes no pensamento de Platão ou Aristóte.
verdadeiro, convivem-três Pessoas, e que a segunda delas, o Tes e que lhe permitam conhecer a realidade melhor que eles,
Verbo, assumiu no tempo uma natureza humana, de modo resposta é, para qualquer mediano conhecedor do
“A
que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. pensamento do Ocidente, sem dúvida, afirmativa. Por uma
Tudo isso o leva a aprofundar-se, sobretudo filosoficamente, parte, estão as questões de estrita teologia natural, que supe-
na condição da pessoa, em seu constitutivo radical, em suas ram amplamente as pouquíssimas, ainda que significativas,
relações com o ser e a natureza etc. Elabora-se assim uma linhas que Aristóteles dedica à descrição do que é Deus. Mas,
filosofia que muita dificilmente poderia ser levada a cabo sem tomemos por exemplo, o universo filosófico de um Agostinho
que houvesse o influxo positivo da fé. E o mesmo sucede em de Hipona é bastante mais rico que o de Platão, como tam-
outras questões também transcendentais e antes anuncia-
das, como são a natureza espiritual da alma humana, sua
bém
o de Tomás de Aquino é muito mais profundo e dilata-
do que os de Platão e Aristóteles juntos, sobretudo ao pres-
dade e da atividade ética. a
união fortemente íntima com o corpo ou essência da liber- tarmos atenção nas dimensões mais puramente metafísica
antropológico-éticas), que são as que definem, no fim das
(e
contas, o valor e o alcance de uma filosofia.
22. RaTzINGER, Joseph. "Fe, verdad y cultura. Madrid: 16 fev 2000,
23:
Guson, Étienne, Et espíeitu de fa fiosafa medieval. Madrid: Ristp, 1981,
24. Idem, amor a Ja ssbiduria cit. p. 38. (O itálico é do autor).
INICIAÇÃO À FILOSOFIA
A FILOSOFIA NA HISTÓRIA 65
do poder harmonizá-las, coisa que não é tão difícil insistência em que o homem é radicalmente original, distin-
para uma
doutrina que supere um certo intelectualismo derivado
concepção do ato como forma. Além disso, o pensamento
da to e contraposto a
tudo o que o rodeia - o 'eu' se transforma
Inicialmente em puro pensamento - o cogito cartesiano -, e
de Tomás de Aquino permite também aclarar a diferente à
sua única relação possível com uma natureza mecaniza-
valoração do bem técnico e do bem moral, sem abandonar, dae alheia consiste na percepção do próprio poder sobre ela,
por isso e totalmente, os fecundos terrenos da filosofia primeira, que fica reduzida a simples objeto de manipulação ilimita-
já que ação técnica e operação ética não são, afinal, senão da.
distintas modulações do mesmo ato de ser; este não somen- Sobre esse fundo comum de aceitação do antropocen-
te “suporta”, mas exige considerar a diversidade de
suas trismo, as valorações são muito distintas. Há quem veja em
distintas manifestações sem suprimir por isso a unidade do semelhante mudança de acento o requisito inevitável para
idêntico ato que aparece diversificado em umas e outras. complementar visões precedentes e realizar um estudo,
as
sobre o “obrar” ou, com pala- dirá Ockham - não existe, posto que Deus, ao criar e gover-
vras mais claras, da atividade (científico-) técnica,
de à transformação e ao domínio do que ten- nar o mundo, "não poderia estar sendo coagido” por ne-
cosmos, sobre a tarefa nhum tipo de lei, nem sequer pelas que derivam de sua In-
ético-política, que conduz o homem
à sua plenitude enquan-
to pessoa. 5) O mito do progresso indefinido,
que converte,
teligência e Verdade infinitas, mas atua em todos os casos
em dependência exclusiva de um decreto não necessaria-
de modo automático, tudo o
que vem após, o “moderno”, mente razoável de sua Vontade. O que Deus quer, portan-
11
68 INICIAÇÃO À FILOSOFIA. A FILOSOFIA NA HISTÓRIA
Ee
própriavidafilosofia como para o exercício da tarefa do filo. em um tipo de todo onipresente que, mais que fundamen-
daqueles que são afetados por semelhante tar, elimina e substitui os restantes, os quais, no final, “não
são mais que” esse elemento previamente absolutizado. À
Resumindo e simplificando dentro do limi; riqueza multiforme do real se vê reduzida sucessivamente
vel, a realidade do homem, bem
como do resto dos seres nes - a “cogito”, a “sentio”, a “conceito”, a "vontade de poder”, a
deu
teoricamente a unidade que de fato possui e se viu distrl. “sentimento”, a “matéria que se põe a si própria” através
buída em compartimentos do trabalho, a “libido”, a "linguagem", a “tempo” e a
estanques, não comunicados, para
os quais, de imediato, iniciou-se a busca “nada”.
conexão" ou de tangência, pelos “pontos de
Contra todas estas disjunções e simplificações, vê-se a
O caso mais claro,
- que talvez seja um pouco engraça- reação dos mais notáveis filósofos estritamente contempo-
tâneos. Mas, por enquanto, interessa ressaltar tão somente
converter o corpo e a “alma” em duas substâncias tima, talvez a mais influente no posterior desenvolvimento
tas, pura matéria e puro espírito, distin.
propõe como ponte de do pensamento. Poderíamos qualificá-la como “absolutiza-
união a famosa e um pouco cômica
glândula pineal. Mas 6 ção da razão”. À filosofia, o conhecimento da realidade,
deslocamento afetou muitas outras
realidades, de onde ainda pretende-se, durante bastante tempo, como conquista exclu-
padecemos as suas sequelas: a unidade da humana siva de uma inteligência ou “razão” hipostasiada, que atua
ção, na qual a inteligência penetra toda a percep.
terna e externa, cede o seu posto sensibilidade 1a. de forma autônoma, independente de qualquer influxo e,
culdades” para um conjunto de “fa. mais em concreto, do sujeito no qual semelhante faculdade
mais ou menos isoladas,
que somente uma tarefa
em boa parte artificial permite se encontra integrada. De maneira mais clara, a filosofia é
conectar de novo (como no fruto da razão e só da razão, separada do resto da pessoa.
empirismo de/Locke ou Hume); e a inteligência,
que fica Não quer isso dizer que, entre os filósofos, enquadra-
separada vontade
da e do conjunto da vida afetiva.
risco também a antiga harmonia do Corre dos em semelhante tendência, exclua-se qualquer tentativa
do-se barreiras insuperáveis universo, estabelcen. de “aplicação” do próprio saber à existência do homem.
entre os seus distintos compo. Melhor dizendo, ocorre o contrário. Desde o próprio Des-
nentes e, sobretudo, um abismo infinito
é concebido a partir deste entre o homem, que cartes, passando pelos empiristas, por Spinoza e muitos
momento como “sujeito”, e 6 res. outros, até desembocar em Marx e seus continuadores, a
to das realidades, as quais são conceituadas agora filosofia mais pura, de forma pretensiosa, perde o singular
objetos”, sendo transformadas em mera matéria como
Contudo, há algo ainda mais passiva, caráter teorético que lhe corresponde (o qual analisaremos
dade que vibra no mais profundo da grave. À ânsia de uni: no Capítulo II) e começa a subordinar-se a fins que são, de
com brio na inteligência
realidade que opera certo modo, alheios a ela; ao domínio da natureza, ao bem-
- pois, somente graças a ela. tema
Se compreensível de algum modo estar humano e à conservação da saúde; à constituição de
o universo e cada um de um estado intocável; à educação de um homem não conta-
Seus componentes -, aplicada a esse mundo
desmembrado, minado pelo influxo do ambiente; à reforma dos costumes;
não
Te INICIAÇÃO À FILOSOFIA AFILOSOFIA NA HISTÓRIA vB
à liberação do ser humano; à construção de um paraíso in- nem, sobretudo, as características apontadas esgotam o es-
traterreno, pírito inspirador - muito mais rico, sem dúvida - de cerca
Mas nada disto impede que, pelo contrário, boa parte de quatro séculos de pensamento. Afinal de contas, o balanço
dos autores de semelhantes doutrinas as apresentem como da modernidade pode ser senão positivo - há conquistas e
resultado inevitável de um processo da inteligência não-con- avanços inegáveis, aos quais jamais poderíamos renunciar,
taminada, livre, por fim, dos preconceitos que a fé, ou qual- sob pena de empobrecer de forma drástica a marcha da
quer outro influxo de caráter extra-racional, poderia impor- cultura no Ocidente. Não obstante e também como nos pe-
The.Situam-se assim fora da grande tradição do pensamento ríodos que a precederam, existe na filosofia moderna um certo
ocidental e imprimem ao conhecimento humano uma dire- friso de déficits que obrigam a seguir indagando, buscando acre;
ção que, com o correr dos séculos, acabará por tornar-se centar uma nova tessela ao magnífico mosaico de conhecl-
problemática, Mas o mais curioso é que, em sua presumida mentos que a tradição, ainda que não de uma maneira line-
Pureza, a intervenção de fatores extra-racionais nos pensadores armente progressiva, pôs a nosso servi
desse período é mais operativa que no resto da história do
pensa- AA filosofia
estritamente contemporânea é muito exube-
mento; ademais, semelhante intromissão, longe de preservar o rante, a sua excessiva proximidade proíbe inclusive que se
candor do olhar contemplativo, arrasta o pensamento em ocasi- cogite a possibilidade de um tratamento completo e ponde-
ões muito distantes das metas que aparentemente tenta alcançar. rado dela, Mas, interessa aqui conhecer as correntes e auto-
Por isso, não estranha que autores, mesmo do porte res que colaboraram, de forma mais significativa, para su-
de um Pascal, advirtam, com ênfase, a necessidade de de-
volver para a filosofia o estatuto humano em sua forma perar algumas das aporias que uma maneira de pensar um
pouco oblíqua - ou racionalismo ou empirismo, como ponto
enriquecida, pessoal, que lhe corresponde por natureza, de partida sem dúvida simplificador - fez chegar a nós.
estando afastada dessa assepsia “objetiva” e um pouco “ci- Para sermos justos, seguindo Aristóteles e Tomás de
entificista” que se lhe tenta impor de modo pretensioso. Aquino, qualquer esforço leal de penetração cognitiva na re-
Como tampouco assombra que, no momento presente, alidade que nos circunda pode ser instrumento para melho-
multipliquem-se as reações contra essa dissociação entre fi- rar o conhecimento que dela temos. Inclusive, aqueles que
losofia e vida cotidiana, entre pensamento abstrato e conhe-
se equivocaram, assegura Aristóteles, contribuem para fa-
cimento encarnado na pessoa concreta.
zer fecundo o conhecimento, ao menos na medida em que
devemos aprofundar em nosso saber sobre o universo para
5. Contribuições contemporâneas desentranhar e superar os seus erros. Vendo por essa ótica, os
mesmos modos de pensar relativista, o positivismo, o histo-
Como foi
com o pensamento clássico e com filósofos e
ismo, os distintos modelos de irracionalismo, os cientifi-
teólogos de inspiração cristã, o esboço da modernidade, fei-
cismos, as derivações niilistas, profusamente presentes nas
to no capítulo precedente, não busca ser completo nem
exaustivo de fato, nem todos os filósofos dessa etapa acei- últimas décadas, auxiliam o nosso trabalho como filósofos.
tam o conjunto de traços qualificáveis como “modernos” Quanto a alguns deles, como os relacionados com o
(assim, coloquemos, como exemplos, Nicolau de Cusa, Mar- desenvolvimento científico dos últimos tempos, faremos refe-
Sítio Ficino, Malebranche, Vico e, até certo ponto, Leibniz”); rência nos capítulos sucessivos. Agora bastará aludir às cor-
rentes que, de maneira direta, fizeram uma clara contribuição
ao desdobramento da inteligência humana; para todas,
não
Cf. PossenT:, Vittorio. Filosofia pois ainda estas serlam numerosas em demasia, desde a ana-
27, rivelazione. Roma: er Nuova, 1999,
sã
e
lítica e demais filosofias da linguagem, passando pela feno-
7 INICIAÇÃO À FILOSOFIA A FILOSOFIA NA HISTÓRIA
75
E
d
cêm.a mesmos si
, centrado-nos em cada caso naquel: quela que talvez
e
ao
impróprios a uma Introdução
cisun
nano:
1) sua pretensão de acessar
novamente sofopropugna é, simplesmente, o “saber olhar” a realidade
descobrir algo de
io é em mesma, depois de sécu alos de um racio- h
auto. é
Ã
oeos
de flexibilizar o método de aproximação ao que se mostra” a nós quando
observamos o mundo com um
Iplementar de matizes
Legemonta que empobrece a racionalidade olhar alerta e livre de preconceito, algo dotado
fica, levado a desconhecer, por exempl. o, o metódicos próprios e inegáveis no pensamento de seu au-
riquíssimo mundo da vida vivida cotidianamente pelo fome
levade
tor, mas não muito afastado do que
tradicionalmente se
o
'dado')
a) A fenomenologia “tudo o que se nos oferece à nossa experiência (o ofere-
ostenta direito original a ser acolhido tal como se nos
À expressão efeito se oferece”. O que,
paradigmática
ligmática de do que expressa o parágra- ce e dentro dos limites nos quais em
á
a sustentar que
precedente dos maiores com palavras talvez mais simples, equivale
fofo
encontramos
dente
encontramos em em um um jaio! filósofos tó:
força à
à começo de qualquer filosofia autêntica remete por
à
1
lança um grito, que ao mesmo tempo, um pouco nós.
Portanto, o termo “fenômeno”, traduzido corrente-
sentido
mente por “aparência”, não se deve interpretar no oculto
falsear um fundo
corZA, Deforma consciente e voluntária, a perspect iva que hoje vem sendo
do que induz ao erro por cobrir e
aparência”). Pelo
CA Ao
de
o
terminada, senão que, de uma forma mais universal, como sentidos,
e
voco, preciso e sem ambigiiidades, sem duplos apto
oão e Som", mostra que, em sua percepção, não atratar a realidade inteira com o paradigma do conhecimen-
Epenar
é
somente ex tem aspectos individuais mas também um con- to “científica” de matiz matemático, considerado como o
deles. É o que Husserl! chama- único verdadeiro. No final, semelhante pretensão se domons-
trou repleta de problemas. O que merece pelo contrário
Husserl rechaça, desse modo, o empirismo e oferece: nossa solicitude é justamente a reação que surgiu ante a
-nos crítica radical ao relativismo, talvez ainda não su-
uma
pobreza de semelhante projeto e que levava consigo, de for-
perada, que esboçaremos em capítulo posterior, Por essa ma muito similar à fenomenológica, o esforço por devolver a
ão, loga ao pensamento e à cultura dos últimos decênios filosofia à vida real, refletida justamente na linguagem ordiná-
um
instrumento irrenunciável. Seguramente, a filosofia não é ria,
redutível à fenomenologia, e aí se encontra talvez deé Sem dúvida, houve excessos entre os seguidores das
o
quebra do iniciador desse movimento. No entanto, oponto
momer várias correntes da filosofia “analítica”, que é o nome mais
to fenomenológica de observação
sem preconceito da realida. comum com o que se designa o conjunto de estudiosos da
de de "ouvido atento ao ser das coisas", constitui,
por u linguagem. Entre os mais claros, a postura que se encerra
lado, o começo inevitável de todo o filosofar; ademais, deve
nas expressões lingúísticas que as absolutiza, fazendo delas
A
se manter como pedra de toque e ponto de referência duran. a única realidade verdadeiramente existente. À análise da
te todo o processo em
que o conhecime ento filosófico se de- linguagem não se configura então como o caminho que tor-
il
s &
os
des às quais um e outro se referem. Daí que a análise lin-
gúística induziu alguns de seus cultivadores a rejeitar não
relativamente distantes e a figuras de grande densidade À. só a metafísica, mas qualquer outra disciplina que preten-
á
Iosófica, entre as quais cabe destacar Frege e Moore. Trata- desse afirmar algo significativo sobre a realidade (humana
e uma nova maneira de defrontar-se com
os problemas ou infrapessoal).
de
78 INICIAÇÃO À FILOSOFIA A FILOSOFIA NA HISTÓRIA
“filosofia hermenêu-
Como contrapartida, o interesse pela linguagem levou vosso século, o que se conhece como a
amiúde
a pôr sob censura certos “abstracionismos” e tica”, tal como à apresentam os seguidores de Ricoeur ou
—
tor-
e conclusões. Muito influenciados pelo último Heidegger e leneloso respeito” *, Com outras palavras, a linguagem se
com fundamentos diversos dos analíticos, os filósofos aos 114 insuficiente quando não remete, para
além de si mesma, ao
quais aludimos correm
entretela ou no fundo
o risco de transformar a palavra na
último que constitui a realidade. Tudo
pensamento do qual procede e
nhecimento.
à realidade que fecunda esse co-
tradição ou em oposição ao que opinam os ouvintes. «des humanas, especialmente a moral, a política e o direito,
São três, ao menos, as vantagens claras «ue pretende um alcance valorativo, em vez de simplesmente
que oferece a
retórica-dialética. i) Permite atuar no campo da ética, da deserever, como as ciências sociais, na verdade aspira ditar
política e do direito, quer dizer, na esfera das questões media- normas que dirijam o agir humano nesses âmbitos "práti-
das pela liberdade, nas quais não cabe a necessidade e exa-
io próprias do saber Segundo explica Millán-Puelles, “uma boa parte da
estritamente teórico. ii) Apela para
uma racionalidade aberta e não constritiva, que é capaz de filosofia analítica - a de matiz positivista ou o neopositivis-
considerar a opinião de todos, experts ou não, facilitando ta havia reduzido a ética à lingúística da moralidade, e o
assim a comunicação, a compreensão recíproca e a colabo- papel da razão (...) a uma análise da linguagem ética. Isto
ração para resolver os problemas práticos. iii) Toma nota dos €, segundo esses analistas, a ética seria (...) um mero estudo
condicionamentos mais variados, desde os culturais, soclais
da
em biologia, em matemática ou em geral dentro das disci- fa de conhecimento não propriamente cognitivo nos domí-
plinas que, na terminologia analítica, denominam-se descr; nios da moral, isso com base em certos critérios, que inclust-
tivas, senão também nas prescritivas - nas que dão normas ve caberia declará-los como “irracionais” desde a perspec-
ou preceitos”, tiva própria da razão pura.
AA
referida distinção entre práxis e teoria era clássica
desde Aristóteles e esteve mais ou menos vigente até já bem 1 Em direção ao futuro
iniciado o século XVIII. Mas, no final desse século, o prático
se colocou sob o domínio das ciências sociais, abandonan- Segundo sugerimos, as correntes filosóficas aludidas
do o terreno próprio da filosofia e se empobrecendo de ma- não esgotam nem o conjunto do pensamento desenvolvido
neira muito determinante. Na já passada década de 1970 nos últimos decênios, nem sequer o daqueles cujo influxo
teve lugar uma.decidida “reabilitação” da filosofia prática, merece ser destacado por suas contribuições diretas ao
talvez para dar uma resposta não-ideológica aos problemas «desenvolvimento do conhecimento humano. Ficou de fora,
apresentados pela escola de Frankfurt, isto é, para superar para não mencionar mais que um, o variado conjunto de
filósofos conhecidos genericamente como “personalistas”,
essa fecnocracia que, estando de acordo no que se
refere aos
meios, às soluções técnicas, abandonava a questão do fim e com expoentes do porte de um Buber ou um Lévinas, de um
do sentido à mera subjetividade e às decisões racionalmen- Marcel ou um Mounier, e tantos outros que recuperaram
te infundadas. para o ser humano as dimensões estritamente pessoais (di
O movimento cresceu desde então, sendo que a ele se úlogo, amor, encontro), relegadas pela maior parte dos
somaram representantes de quase todas as outras correntes “modernos”, apesar de seu declarado antropocentrismo.
atualmente em vigor - desde o já citado Habermas, passan- 'ampotuco foram mencionados relevantes discípulos de
do por Gadamer e os onipresentes Eco e Vattimo, até o neo- Husserl, atentos também à condição pessoal, como Scheler,
hegeliano Ritter, alguns fenomenólogos e certos analíticos Dietrich von Hildebrand ou Edith Stein, cuja ascendência e
de origem anglo-saxônica. Às conquistas que seguem obten- influxo no milênio recém inaugurado nunca poderemos
do, as quais se situam na linha da explicação de Millán- alentar com o vigor que lhes corresponde.
Puelles, são cada vez mais abundantes. Contudo, da mes- De qualquer forma e agora com maior conhecimento
ma forma que a retórica, em muitos de seus representantes de causa, importa sublinhar a dupla e relacionada conquis-
continua atuando uma sorte de preconceito, pelo qual a fi- ta que o melhor do pensamento contemporâneo supôós para
losofia não seria capaz de transcender a esfera do prático, à marcha da filosofia :
1) Por um lado, um notável enriquecimento dos temas
resignando-se a "outorgar à racionalidade científica o mo-
suscetíveis de tratamento e conhecimento mediante a reflexão f-
nopólio do teorético”*.
Talvez seja possível ver, nesta negativa e em parte do osófica, de modo que esta se aproxima notavelmente do
anteriormente exposto, a herança da cisão da razão levada universo daquilo que realmente existe ao nosso redor, sem
à termo por Kant, em virtude da qual os princípios da ra- reservas originadas por rijezas metódicas.
Por outro lado e conforme a última observação, o
ii)