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INICIAÇAO A HISTORIA DA FILOSOFIA
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recolhidas das tradições dos diversos povos que sucessivamente ocuparam a Grécia
desde o período arcaico (c. 1500 a.C.).
Por ser parte de uma tradição cultural, o mito configura assim a própria visão
de mundo dos indivíduos, a sua maneira mesmo de vivenciar esta realidade. Nesse
sentido, o pensamento mítico pressupõe a adesão, a aceitação dos indivíduos, na
medida em que constitui as formas de sua experiência do real. O mito não se justi-
hca, não se fundamenta. portanto, nem se presta ao questionamento, à crítica ou à
há discusso do mito porque ele constitui a própria visão de mundo
correção. Nao
dos individuos pertencentes a uma determinada sociedade, tendo portanto um
caráter global que exclui outras
perspectivas a partir das quais ele poderia ser dis-
cutido. Ou o indivíduo é parte dessa cultura e aceita o mito como visão de mundo,
ou não pertence a ela e, mito não faz sentido para ele, não lhe diz nada.
nesse caso, o
A possibilidade de discussão do mito, de distanciamento em relação à visão de
que apresenta, supõe já uma transformação da própria sociedade e, portanto, do
mundo
mito como forma
reconhecida de se ver o mundo nessa sociedade. Voltaremos a
este ponto mais adiante.
Um dos elementos centrais
do pensamento mítico e de sua forma de explicar a
realidade éo apelo ao
sobrenatural, ao mistério, ao sagrado, à magia. As causas dos
fenómenos naturais, aquilo
que acontece aos homens, tudo é
realidade exterior ao mundo
humano e natural,
governado por uma
sO Os sacerdotes, os
os iniciados, são
superior, misteriosa, divina, a qual
magos, de interpretar, ainda que
nas
parcialmente. São os deuses, os espíritos, capazes
o destino
apPe
homem, a própria sociedade. Os que governam a natureza, O
como sacerdotes, os rituais religiosos, os oráculos servemn
intermediários, pontes entre o mundo humano e o mundo
divino. Os cultos
FILOSOFIA ANTIGA 21
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paralelamente-
religiao vai
terdo seu papel reduzido, ao
sociedade. A baseada agora em atividadescomercia
secularização da e c o n d m i c a bas.
ordem
de uma nova
ao sobrenatural e aos
mict6
surgimento mitico, c o m
seu apelo
O pensamento
mercantis. n e c e s S i d a d e s da
nova organização social, mai
e satistazer as
deixando de
a atividade politica
mais intens:a e com
vai assim c o n e r e t a , com
realidade
preocupada
coma
pensamento filosótico-cientíhco
fil encontrará
E nesse
contexto que o
comerciais.
trocas nascimento.
o seu
tavoráveis para considerado o primeiro filósofa
as condiçöes Tales de Mileto seja
portanto, que continente
E significativo, não nas cidades do grego
filosófico tenha surgido
e que o
pensamento
aureo posteriormente -, Esparta, Tebas ou
tera seu periodo
como Atenas - que Mediterråneo oriental, no mar Egeu, no queé
colònias gregas do
Micenas, mas nas Essas colðnias, dentre as quais se
da Anatolia na lurquia (hg.1).°
hoje a peninsula e entrepostos comerciais, ponto
Efeso, toram importantes portos
destacaram Mileto e Mesopotâmia, Pérsia, talvez
do Oriente
-
c a r a v a n a s provenientes
de das
encontro mercadorias que eram embarcadas
para la levavam suas
mesmo India e
China-que os gregos cruzavam com
outros pontos
do M e d i t e r r å n e o que
e transportadas para mesmo, nessas
cidades conviviam diferentes
Ora. esse motivo
suas embarcaçoes.
por com que os povos
interesse comercial tazia
forma harmoniosa, pois o
culturas. e de das cidades, fossem bastante
tundadores
encontravam,
sobretudo os gregos onde
que ai se
então cidades cosmopolitas
do mar Jônico e r a m
colónias gregas
tolerantes. As
com a presença
de diversas linguas, tradições,
cultural,
reinava um certo pluralismo diferentes tradições míticas
tenha
assim, que a influência de
cultose mitos. E possivel, da explicação mítica teria
dos mitos. O caráter global, absoluto,
levado à relativização revelando-se assim
mitos e tradições,
confronto entre os diferentes
se enfraquecido no tem sua forma de mundo, suas
ver o
cultural: o fato de que cada povo
sua origem sociedade dedicada às práticas
valores. Ao tempo, em uma
mesmo
míticas e religiosas vão perdendo
tradiçoes e seus
as tradições
interesses pragmáticos,
c o m e r c i a s e aos razoável, de um
Esta é uma hipótese que parece
progressivamente sua importáncia. econömico, para a
ex-
mesmo geográfico e
ponto de vista histórico sociológico,
e e
e pela chamada
do tipo de pensamento inaugurado por Tales
plicação do surgimento contexto.
Escola de Mileto, naquele momento e naquele centrais desse tipo de
características
Passemos agora a examinar algumas das embora
nào só na Escola de Mileto, praticamente,
mas
pensamento, encontradas VI-V a.C.), os
com diferenças, em quase todos os pensadores daquele período (sécs.
terem vivido antes de Sócrates.
assim chamados filósofos pré-socráticos, por
FUNDAMENTAIS DO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-CIENTÍFICO
B. NoçÕES
do
desenvolvimento
A principal contribuiçào desses primeiros pensadores ao
pensamento filosólico, e podemos dizer também cientifico, encontra-se em unn
Conjunto de noçoes que tentam explicar a realidade e que constituirào em grande
parte, como veremos, alguns dos conceitos básicos das teorias sobre a natureza que
EUXINO
(MAR NEGRO)
ITÁLIA TRÁCIA 3izânciu
ADRIÁTIco
Roma MAR DE
MACEDÔNIA MARMARS
LAmpsacoBITINIA
PelaEstagira
Nápols Lemos Tróia
Metapoou ÁSIA MENOR
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Lcouúns Melosc
Sracus
URodes
arago
CHIPRE
Malta
MAR MEDITERRANEO
ÁFRICA
Cueue
CIRENAICA Alexaudri
a. A physis
b. A causalidade
A caracteristica central da
explicação da natureza pelos primeiros filósofos é por-
tanto o apelo à noção de causalidade, interpretada em termos puramente naturais.
O estabelecimento de uma conexão causal entre determinados fenômenos naturais
constitui assim a forma básica da explicação científica e é, em grande parte, por esse
motivo que consideramos as primeiras tentativas de elaboração de teorias sobre o
real como o inicio do pernsamento cientifico. Explicar é relacionar um efeitoa uma
causa que o antecede e o determina. Explicar é, portanto, reconstruir o nexo causal
existente entre os fenómenos da natureza, é tomar um fenômeno como efeito de
uma causa. E a existéncia desse nexo
que torna a realidade e nos inteligível permite
considerá-la como tal.
E importante, entretanto, que o nexo causal se dé entre fenômenos naturais. Isto
porque podemos considerar que o pensamento mítico também estabelece explicações
causais. Assim, na narrativa da guerra de Tróia na Iliada de Homero vemos os deuses
tomar o partido dos gregos e dos troianos e influenciar os acontecimentos em favor
destes ou daqueles. Portanto, fenómenos humanose naturais têm nesse caso causas
sobrenaturais. Trata-se de uma explicaço causal, porém dada através da referénciaa
causas sobrenaturais. E por isso que o que distinguea explicação filosófico-cientifica
da mitica é a referência apenas a causas naturais.
FILOSOFIA ANTIGA 25
Para evitar que isso aconteça, surge a necessidade de se estabelecer uma causa pri-
sirva de ponto de partida
meira, um primeiro principio, ou conjunto principios, que
de
de arqué (apyh).
paratodo o processo racional. E ai que encontramos a noção
d. O cosmo
O signiñcado do termo kosmos (KOGuOS) para os gregos desse período liga-se di-
retamente as idéias de ordem, harmonia e mesmo beleza (já que a beleza resulta da
harmonia das formas daií, alias, o nosso termo "cosmético"). O cosmo é assim o
mundo natural. bem como o espaço celeste, enquanto realidade ordenada de acordo
com certos racionais.' A idéia básica de cosmo , portanto, a de uma orde-
principios
nacão racional, uma ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos,
e que se constitui de forma determinada, tendo a causalidade como lei principal.
O cosmo, entendido assim como ordem, opõe-se ao caoss (KUOs), que seria preci-
samente a falta de orderm, o estado da matéria anterior à sua organização. E impor-
"razão" significando aí
tante notar que a ordem do cosmo é uma ordem racional,
essa realidade. E a
exatamente a existéncia de principios e leis que regem, organizam
entendimento
racionalidade deste mundo que o torna compreensível, por sua vez, ao
humano. E porque há na concepção grega o pressuposto de uma correspond ncia
humana e a racionalidade do real - o cosmo - que este real pode
ser
entre a raz o
compreendido, pode-e tazer ciéncia, isto é, pode-se tentar explicá-lo teoricamente.
fenômenos
Daí se origina o termo "cosmologia, como explicação dos processos e
naturais e como teoria geral sobre a natureza e o funcionamento do universo.
e. O logos
O termo grego logos (oos) significa literalmente discurso, e é com tal acepçao
que o encontramos por exemplo em Heráclito de Efeso. O logos enquanto discurso0,
entretanto, difere fundamentalmente do mythos, a narrativa de caráter poético que
recorre aos deuses e ao mistério na descrição do real. O logos é fundamentalmente
uma explicação, em que razóes são dadas. E nesse sentido que o discurso dos pri-
meiros filósofos, que explica o real por meio de causas naturais, é um logos. Essas
a0
razões são fruto não de umainspiração ou de uma revelação, mas simplesmente
pensamento humano aplicado ao entendimento da natureza. O logos é, portanto,
FHLOSOFIA ANTIGA
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f. O caráter critico
Um dos aspectos mais fundamentais do saber que se constitui nessas primeiras escolas
de pensamento, sobretudo na escola jonica, é seu caráter critico. Isto é. as teorias ai
formuladas não o eram de forma dogmática, não eram apresentadas como verdades
absolutas e definitivas, mas como passiveis de serem discutidas, de suscitarem diver
gências e discordâncias, de permitirem formulações e propostas alternativas. Como
se trata de construções do pensamento humano, de idéias de um filósoto - e não
O que é novo na filosofia grega, o que é acrescentado de novo a tudo isso, parece-me
consistir não tanto na substituição dos mitos por algo de mais "cientiñco, mas sim em
uma nova atitude em relação aos mitos. Parece-me ser meramente uma consequencia
dessa nova atitude o fato de que seu caráter começa entào a mudar.
A nova atitude que tenho em mente é a atitude critica. Em lugar de uma transmissão
dogmática da doutrina (na qual todo o interesse consiste em preservar a tradição autèn-
tica) encontramos uma tradição critica da doutrina. Algumas pessoas começam a fazer
perguntas respeito da doutrina,
a duvidam de sua veracidade, de sua verdade.
A dúvida e a crítica existiram disso. O que é novo, porém, é que a
certamente antes
duvida e a critica tornam-se agora, por sua vez, parte da tradição da escola. Uma tradição
tradicional do Em lugar da teoria tra-
de caráter superior substitui a preservação das teorias dogma. em si mesmas,
domito, encontramos a tradiçio que criticam, que,
dicional,
de nicio, pouco mais são do que mitos. E apenas no decorrer dessa discussão crítica que
(D
(D
FILOSOFIA ANTIGA 29
1987.
VEYNE, Paul. Acreditavam gregos em seus mitos? Lisboa, Ediçoes 70,
os
dadas:
1. Aponte principais caracteristicas do pensamento mítico.
as
características com algumas das principais caracteristicas do
2. Contraste essas
pensamento filosófico-cientifico.
3. Em que sentido e por que razões pode-se dizer que o pensamento filosófico-
cientifico rompe com o pensamento mitico no contexto da Grécia antiga por
volta do séc. VI a.C.?
4. Por que o pensamento mitico passa a ser considerado insatisfatório?
decisiva para de-
5. Qual a principal característica da escola jónica, considerada o