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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E

PROFISSÃO
AULA 3

Profª Giovana Fonseca Madrucci


CONVERSA INICIAL

Anteriormente, pudemos discutir um pouco sobre as origens da


psicanálise. Também pudemos situar que o fazer do psicanalista (independente
se na psicanálise em intensão ou extensão) é a escuta do inconsciente, e a
associação livre é o principal recurso técnico para o acesso a ele. Agora, faz-se
necessário que possamos discutir a psicanálise enquanto uma ciência. O que a
torna uma ciência? Ela é mesmo uma ciência? Quais suas relações e
interlocuções principalmente com as ciências humanas e a psicologia? Creio que
é de grande importância que possamos situar a psicanálise no cenário das
ciências e das práticas psicológicas da atualidade.
Há, atualmente, uma tendência, no campo psicológico em geral (no Brasil
e no mundo), de um direcionamento para o comportamentalismo e para as
terapias do ego (por uma influência das escolas americanas e da psicologia
experimental, berço da psicologia no mundo). Ter em mente qual é o lugar da
psicanálise dentro desse contexto mais geral nos ajuda a entender sua
relevância e sua contribuição para o campo psicológico e para a medicina (pois,
como já sabemos, é no furo do discurso médico que surgiu a psicanálise). É de
fundamental importância essa discussão epistemológica (da ciência como
ciência), pois somente assim teremos subsídios para compreender o que torna
a psicanálise uma ciência e não uma pseudociência.
Nesta aula, portanto, começamos o percurso de discussão da psicanálise
como ciência. Para tanto, é necessário um retorno à teoria das ciências: como
ela surge? O que torna algo científico? O que é e qual é o lugar das ciências
humanas no contexto geral das ciências? Sendo assim, retornaremos ao início
de tudo: qual foi a primeira forma de o homem explicar a sua realidade? Nesta
aula, aprenderemos que o homem, para resolver sua angústia diante de um
mundo desconhecido e assustador, encontra uma explicação mágica: os mitos.
O mito, portanto, foi a primeira forma do homem explicar o seu entorno. É com
base na consciência mítica que o homem compreende inicialmente o mundo e
como ele funciona. A racionalidade vai se tornando importante, e a consciência
reflexiva passa a substituí-la com o tempo, e com isso ganha espaço a ciência
como a conhecemos.

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Nesta aula e em conteúdo posterior, discutiremos as relações entre
psicanálise e ciência, psicanálise e psicologia, psicanálise e psicoterapia e
psicanálise e medicina. Passemos então às construções teóricas sobre o tema.

TEMA 1 – CONSCIÊNCIA MÍTICA E ATITUDE FILOSÓFICA: A NASCENTE DA


CIÊNCIA

O mito pode ser considerado como a pré-história da filosofia. É o primeiro


conhecimento que o homem adquire de si mesmo e de seu entorno e pode ser
considerado como a forma pela qual esse conhecimento se estrutura. O mundo,
que até então precisava adquirir um tipo de sentido, adquire este por meio do
mito. Portanto, o mito é uma forma de dar sentido e significado àquilo que ainda
não o possui. Chamamos a forma de entender o mundo com base nas narrativas
míticas de consciência mítica. O mito explica a realidade por meio de uma
narrativa fabulosa, o que o tornou pouco considerado pela filosofia, que
priorizava o pensamento racional. O mito se afirma como uma forma espontânea
do ser no mundo. Não se caracteriza nem como teoria, nem como doutrina, mas
apropriação das coisas, dos seres e de si mesmo: condutas, atitudes, inserção
do homem na realidade.

Um dos elementos centrais do pensamento mítico e de sua forma de


explicar a realidade é o apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado,
à magia. As causas dos fenômenos naturais, aquilo que acontece aos
homens, tudo é governado por uma realidade exterior ao mundo
humano e natural, superior, misteriosa, divina, a qual só os sacerdotes,
os magos, os iniciados, são capazes de interpretar, ainda que apenas
parcialmente. São os deuses, os espíritos, o destino que governam a
natureza, o homem, a própria sociedade. Os sacerdotes, os rituais
religiosos, os oráculos servem como intermediários, pontes entre o
mundo humano e o mundo divino. Os cultos e sacrifícios religiosos
encontrados nessas sociedades são, assim, formas de se tentar
alcançar os favores divinos, de se agradecer esses favores ou de se
aplacar a ira dos deuses. (Machado, 1997, p. 19, grifo nosso)

A existência humana carrega consigo um sentimento constante de


angústia e insegurança, e o homem encontrou no mito uma resposta para suas
angústias, bem como uma forma de explicar aquilo que o circundava, a sua
realidade. Mais do que explicar essa realidade, a função do mito é, portanto,
acomodar e tranquilizar o homem num mundo desconhecido e assustador. Na
narrativa mítica, há uma forte presença dos deuses, semideuses e heróis. O que
narrava o mito? Chauí (1994) nos situa que o mito narrava a origem das coisas
tendo como ponto de partida uma ação ordenadora de um deus ou de um rei

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mago. Segundo a filósofa, essa ação pode ser considerada como uma vitória do
deus ou do rei mago sobre outras coisas colocaria ordem na realidade. O mito
se constituiria, portanto, essencialmente como uma narrativa mágica, não tendo
por definição apenas pelo tema ou objeto dessa narrativa, mas por uma forma
mágica de narrar, tendo por base narrativas, analogias, metáforas e parábolas.
Sua função é resolver, num plano imaginativo, tensões, conflitos e antagonismos
sociais cuja resolução não foi possível no plano da realidade.

Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem a


autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que
lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a
origem de todos os seres e todas as coisas para que possa transmiti-
las aos ouvintes. Sua palavra – o mito – é sagrada porque vem de uma
revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. (Chauí,
2000, p. 43)

Levando-se em conta a concepção de que o mito é uma narrativa, de que


maneira então o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?
Chauí (2000) nos esclarece que:

1. Encontrando o “pai e a mãe” das coisas e dos seres, o mito é uma narrativa
da geração das coisas, dos seres etc. por seus pais e/ou antepassados;
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que fazem
surgir alguma coisa no mundo;
3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem lhes
obedece ou a quem lhes desobedece.

O mito, por regular condutas e estabelecer padrões, acaba por


necessariamente estabelecer uma repetição para as coisas e os fenômenos.
Para a consciência mítica, um objeto ou um ato apenas se torna real na medida
em que imita ou repete um arquétipo. Uma vez que a realidade se alcança

exclusivamente por repetição ou participação, tudo aquilo que não tem


um modelo exemplar está desprovido de sentido, vale dizer, carece de
realidade. Os rituais do homem primitivo reatualizam os mitos
primordiais. O pensamento mítico é contemporâneo à cosmogonia, o
que significa dizer que os mitos estão estreitamente atrelados às
explicações de origem cosmológica. No mito, nada se pode
acrescentar ou criar. As explicações já estão dadas e são estáticas. O
mito responde a toda e a qualquer pergunta antes mesmo de sua
formulação. Impede a formulação da pergunta. O exemplarismo mítico
dá ao fato a caução semelhante à do direito. O costume, que se
beneficia assim com a segurança do valor que o mito proporciona, fica
imobilizado para sempre. (Gusdorf, 1912)

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TEMA 2 – ATITUDE FILOSÓFICA E OS PRIMÓRDIOS DA CIÊNCIA: A
CONSCIÊNCIA REFLEXIVA

Com base na aquisição de uma maior consciência de si e da capacidade


de interiorização, o homem passa a investigar o mundo por meio da razão, e a
explicação mítica perde sua força. A consciência reflexiva faz com que o humano
adquira maior autonomia para investigar o mundo, e disso advém a filosofia. A
organização social do homem torna-se mais complexa, e com isso surgem a
moeda, o calendário, o desenvolvimento de novas técnicas para a agricultura,
dentre outras coisas. Tal complexificação torna esse homem mais consciente do
ambiente e de si mesmo, e isso abre espaço para um novo tipo de relação
homem-ambiente: o racionalismo ou a razão. A filosofia, retomando as questões
postas pelo mito, é uma explicação racional da origem e da ordem do mundo. A
filosofia nasce como uma racionalização e laicização da narrativa mítica,
superando-a e deixando-a como passado poético e imaginário

Os primeiros filósofos não pretenderam explicar apenas a origem das


coisas e da ordem do mundo, mas também e sobretudo as causas das
mudanças e repetições, das diferenças e semelhanças entre as coisas,
seu surgimento, suas modificações e transformações e seu
desaparecimento ou corrupção e morte. (Chauí, 1994)

Afirma-se que a filosofia, percebendo as contradições e limitações dos


mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as
numa explicação inteiramente nova e diferente pautada no racionalismo. O que
tornou possível o surgimento da filosofia na Grécia? Quais foram as condições
materiais (econômicas, sociais, políticas e históricas) que permitiram o
surgimento da filosofia? As viagens marítimas, a invenção do calendário, a
invenção da moeda, o surgimento da vida urbana, a invenção da escrita
alfabética, a política.
A consciência mítica tem origem na teogonia e na cosmogonia, enquanto
a filosofia se origina da cosmologia:

• Teogonia: narra por meio das relações sexuais entre os deuses o


nascimento de todos os deuses, heróis, titãs e coisas do mundo natural;
• Cosmogonia: narra a geração da ordem do mundo pela ação e pelas
relações sexuais entre forças vitais que são entidades concretas e divinas;

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• Cosmologia: forma inicial da filosofia nascente, é a explicação da ordem
do mundo, do universo pela determinação de um princípio originário e
racional que é origem e causa das coisas e de sua ordenação.

TEMA 3 – O QUE É A CIÊNCIA?

Chauí (2000) nos situa que a ciência é aquela que nos faz desconfiar de
nossas certezas. Ela também nos diz que devemos desconfiar da adesão
imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade com relação
àquilo que nos circunda. Onde o senso comum vê fatos, coisas e
acontecimentos, a ciência vê problemas a serem resolvidos e obstáculos, ou
seja, “verdades” a serem explicadas ou até mesmo destituídas. Segundo a
autora, as principais características do conhecimento científico são as seguintes:

1. É objetivo (procura as estruturas universais e necessárias daquilo que é


investigado);
2. É quantitativo (ou seja, procura medidas, padrões, critérios de
comparação entre coisas supostamente distintas etc.);
3. É homogêneo (busca leis gerais de funcionamento para os fenômenos);
4. Reúne individualidades sob as mesmas leis;
5. Não reúne nem generaliza por semelhanças aparentes, distingue o que
parece igual;
6. Só estabelece relações causais após investigar a natureza ou estrutura
do fato estudado;
7. Não se posiciona como algo da ordem da magia, mas sim como algo que
pode libertar o homem das angústias e medos;
8. Evita tornar-se doutrina, renovando-se e questionando-se
constantemente.

Chauí (2000) reitera ainda que os fatos e objetos da ciência não são dados
obtidos com base em nossa experiência direta com o objeto, mas sim
construídos por trabalho de investigação científica sobre eles. Para isso, são
realizadas por meio de um método. Historicamente, três têm sido as principais
concepções de ciência ou de ideais de cientificidade: o racionalista, cujo modelo
de objetividade é a matemática; o empirista, que toma o modelo de objetividade
da medicina grega e da história natural do século XVII; e o construtivista, cujo

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modelo de objetividade advém da ideia de razão como conhecimento
aproximativo.
De acordo com Chauí (2000), a concepção racionalista afirma que a
ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a
matemática, portanto capaz de provar a verdade necessária e universal de seus
enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível. A concepção
empirista afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em
observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao
serem completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas
leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos
experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de
verificar e confirmar conceitos, mas tem a função de produzi-los.
Ainda de acordo com Chauí (2000), a ciência era uma espécie de raio-X
da realidade. A concepção racionalista (hipotético-dedutiva) definia o objeto e
suas leis, deduzindo assim suas propriedades, efeitos posteriores, previsões. A
concepção empirista (hipotético-indutiva) apresentava suposições sobre o
objeto, realizava observações e experimentos. Com base nisso, eram
estabelecidas definições dos fatos: suas leis, propriedades, efeitos posteriores e
previsões.
Ainda segundo a autora, a concepção construtivista considera a ciência
uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma
representação da própria realidade. O cientista combina dois procedimentos –
um, proveniente do racionalismo, e outro, do empirismo – e a eles acrescenta
um terceiro, vindo da ideia de conhecimento por aproximação e corrigível. O
cientista construtivista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si
mesma, mas que ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade,
explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma
verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida,
modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as
exigências de seu ideal de cientificidade:

1. Que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios
que orientam a teoria;
2. Que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam
construídos com base na observação e na experimentação;

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3. Que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos,
mas também alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a.

Historicamente, houve também uma transformação da ciência antiga para


a ciência moderna ou tecnológica. A primeira era uma ciência teorética, isto é,
apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou
sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado a práticas necessárias à vida
e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. A ciência moderna nasce
vinculada à ideia de intervir na natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela,
para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas contemplação da verdade,
mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a natureza.
Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e
progride. Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em
relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, por exemplo, os
europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índios, a física
galileana-newtoniana seria superior à aristotélica, a física quântica seria superior
à de Galileu e de Newton. Supunha-se que as mudanças científicas indicavam
evolução ou progresso dos conhecimentos humanos (Chaui, 2000)

TEMA 4 – CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS

Chauí (2000) nos situa que a primeira classificação sistemática das


ciências foi estabelecida por Aristóteles, que empregou três critérios principais
para classificar os saberes:

1. Critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados,


levando à distinção entre as ciências teoréticas (conhecimento dos seres
que existem e agem independentemente da ação humana) e ciências
práticas (conhecimento de tudo quanto existe como efeito das ações
humanas);
2. Critério da imutabilidade ou permanência e da mutabilidade ou movimento
dos seres investigados. Esse critério leva à distinção entre metafísica
(estudo do Ser enquanto Ser, fora de qualquer mudança), física ou
ciências da natureza (estudo dos seres constituídos por matéria e forma
e submetidos à mudança ou ao movimento) e matemática (estudo dos
seres dotados apenas de forma, sem matéria, imutáveis, mas existindo
nos seres naturais e conhecidos por abstração);

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3. Critério da modalidade prática, levando à distinção entre ciências que
estudam a práxis (a ação ética, política e econômica, que tem o próprio
agente como fim) e as técnicas (a fabricação de objetos artificiais ou a
ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente).

Com pequenas variações, essa classificação foi mantida até o século


XVII, quando, então, os conhecimentos se separaram em filosóficos,
científicos e técnicos. A partir dessa época, a Filosofia tende a
desaparecer nas classificações científicas (é um saber diferente do
científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras
classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas
por filósofos franceses e alemães do século XIX, baseando-se em três
critérios: tipo de objeto estudado, tipo de método empregado, tipo de
resultado obtido. (Chauí, 2000, p. 330)

De acordo com Chauí (2000), atualmente a classificação existente das


ciências é a seguinte:

1. Ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria,


álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura etc.);
2. Ciências naturais (física, química, biologia, geologia, astronomia,
geografia física, paleontologia etc.);
3. Ciências humanas ou sociais (psicologia, sociologia, antropologia,
geografia humana, economia, linguística, psicanálise, arqueologia,
história etc.);
4. Ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de
tecnologias para intervir na Natureza, na vida humana e nas sociedades,
por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura, informática etc.)

Aqui seguimos com um ponto bastante importante para que possamos


inserir a psicanálise no contexto das ciências. Como se inserem as ciências
humanas no campo geral das ciências? Quais as diferenças entre as ciências
humanas e a psicanálise? Há uma interface entre elas? No próximo item,
discutiremos acerca de como se inserem as ciências humanas no ínterim das
ciências, e assim, posteriormente, poderemos estabelecer interfaces e
interlocuções entre a psicanálise e a psicologia.

TEMA 5 – CIÊNCIAS HUMANAS: DISCUSSÕES EPISTEMOLÓGICAS

De acordo com Chauí (2000), a expressão ciências humanas refere-se


àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto: “O homem como
objeto científico é uma ideia surgida apenas no século XIX. Até então, tudo

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quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia” (p. 345). As ciências
humanas surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam
constituídas e já haviam definido a ideia de cientificidade. Surgiram no período
em que prevalecia a concepção empirista e determinista da ciência e também
procuraram tratar o objeto humano usando os modelos hipotético-indutivos e
experimentais de estilo empirista, buscando leis causais necessárias e
universais para os fenômenos humanos.
Sendo os fenômenos humanos complexos e pouco matematizáveis, é
visível a inviabilidade de realizar uma transposição integral e perfeita dos
métodos, das técnicas e das teorias naturais (tidos como científicos) para os
estudos dos fatos humanos. Sendo assim, nas ciências humanas acaba-se
trabalhando por analogia com as ciências naturais. Por isso, seus resultados
tornaram-se bastante contestáveis e considerados, portanto, pouco científicos.
Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de
ciências que tivessem o homem como objeto. Para Chauí (2000, p. 345), quais
seriam então as principais objeções feitas à possibilidade das ciências
humanas?

1. A ciência lida com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos


que, nas condições especiais de laboratório, são objetos de
experimentação. Como observar-experimentar, por exemplo, a
consciência humana individual, que seria o objeto da psicologia? Ou uma
sociedade, objeto da sociologia? Ou uma época passada, objeto da
história?
2. A ciência busca as leis objetivas, gerais, universais e necessárias dos
fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente
subjetivo, como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais
para algo que é particular, como é o caso de uma sociedade humana?
Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez,
como é o caso do acontecimento histórico?
3. A ciência opera por análise (decomposição de um fato complexo em
elementos simples) e síntese (recomposição do fato complexo por
seleção dos elementos simples, distinguindo os essenciais dos
acidentais). Como analisar e sintetizar o psiquismo humano, uma
sociedade, um acontecimento histórico?

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4. A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio
do determinismo universal. O homem é dotado de razão, vontade e
liberdade, é capaz de criar fins e valores, de escolher entre várias opções
possíveis. Como dar uma explicação científica necessária àquilo que, por
essência, é contingente, pois é livre e age por liberdade?
5. A ciência lida com fatos objetivos, isto é, com os fenômenos, depois que
foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as
qualidades sensíveis, de todas as opiniões e todos os sentimentos, de
todos os dados afetivos e valorativos. Ora, o humano é justamente o
subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo, o opinativo. Como transformá-
lo em objetividade, sem destruir sua principal característica, a
subjetividade?

Ainda segundo Chaui (2000), do século XV ao início do século XX, a


investigação do humano realizou-se de três maneiras diferentes:

1. Período do humanismo: inicia-se no século XV com a ideia renascentista


da dignidade do homem como centro do Universo – O humanismo não
separa homem e Natureza, mas considera o homem um ser natural
diferente dos demais, manifestando essa diferença como ser racional e
livre, agente ético, político, técnico e artístico;
2. Período do positivismo: inicia-se no século XIX com Augusto Comte, para
quem a humanidade atravessa três etapas progressivas, indo da
superstição religiosa à metafísica e à teologia, para chegar, finalmente, à
ciência positiva, ponto final do progresso humano – A sociologia é a
ciência que estuda o humano;
3. Período do historicismo: desenvolvido no final do século XIX e início do
século XX por Dilthey, filósofo e historiador alemão – Os fatos humanos
são históricos, dotados de valor, sentido, significação e finalidade e devem
ser estudados com essas características que os distinguem dos fatos
naturais. As ciências do espírito ou da cultura não podem e não devem
usar o método da observação-experimentação, mas devem criar o método
da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, encontrando
a causalidade histórica que os governa.

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O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser
resolvidos por seus adeptos: o relativismo e a subordinação a uma filosofia da
História:

• Relativismo: as leis científicas são válidas apenas para uma determinada


época e cultura, não podendo ser universalizadas;
• Filosofia da história: os indivíduos humanos e as instituições
socioculturais só são compreensíveis se seu estudo científico subordinar-
se a uma teoria geral da história que considere cada formação
sociocultural, seja como visão de mundo particular, seja como etapa de
um processo histórico universal.

A constituição das ciências humanas como ciências específicas


consolidou-se com base nas contribuições de três correntes de pensamento,
que, entre os anos 20 e 50 do século passado, provocaram uma ruptura
epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades.
A fenomenologia introduziu a noção de essência ou significação como um
conceito que permite diferenciar internamente uma realidade de outras,
encontrando seu sentido, sua forma, suas propriedades e sua origem. A
psicologia como ciência humana do psiquismo tornou-se possível a partir do
momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados à consciência
(sensação, percepção, motricidade, linguagem etc.) puderam ser definidos como
dotados de significação objetiva própria.
O estruturalismo permitiu que as ciências humanas criassem métodos
específicos para o estudo de seus objetos, livrando-as das explicações
mecânicas de causa e efeito, sem que por isso tivessem que abandonar a ideia
de lei científica. Os fatos humanos assumem a forma de estruturas, isto é, de
sistemas que criam seus próprios elementos.
O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições
sociais e históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos
indivíduos, mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento
humanos devem realizar-se.

Graças ao marxismo, as ciências humanas puderam compreender que


as mudanças históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares
de alguns indivíduos ou grupos de indivíduos, mas de lentos processos
sociais, econômicos e políticos, baseados na forma assumida pela
propriedade dos meios de produção e pelas relações de trabalho.
(Chauí, 2000, p. 350)

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NA PRÁTICA

Ter em mente qual é o lugar da psicanálise como ciência é algo muito


importante em termos práticos, principalmente quando estamos em ambientes
de interlocução com outros saberes como um hospital, uma escola, um tribunal
etc. A comunicação com os outros saberes tem que ocorrer sobre um pilar de
sustentação da ética e da práxis da psicanálise. Uma certa perda de espaço da
psicanálise para as psicologias do ego e as comportamentais (devido à onda
positivista que tomou conta do âmbito das ciências) nos levam à necessidade de
saber sustentar e argumentar muito bem sobre o que é ser científico e onde a
psicanálise se encaixa nesse cenário, pois o debate intersaberes depende da
capacidade de arguição.
É cada vez mais comum e recorrente que os médicos e outros
profissionais (da saúde, da educação etc.) procurem por soluções que se dizem
mais imediatas e que requerem pouco ou nenhum esforço na resolução de
problemas e conflitos. O que se vê no campo da saúde mental são as pessoas
cada vez menos tolerantes a qualquer tipo de sofrimento, como se a falta não
pudesse ser tolerada, e para isso recorrem ostensivamente ao uso de
medicações psicotrópicas e classificações da psiquiatria. Pode-se perceber que
o sentir e a incompletude inerente à condição humana não pudessem mais ser
tolerados nessa sociedade em que se prioriza o trabalho e o rendimento
financeiro.
O apagamento do sujeito nessa organização social atual nos leva à
necessidade de discutir em que bases estão fundadas as condutas sociais em
vigência. O lugar da psicanálise como ciência e profissão diante desse cenário
na qual o assujeitamento é cada vez maior e gera mais sofrimento é o de poder
trazer à tona esse apagamento do sujeito, discutindo amplamente com outros
saberes (a educação, a medicina etc.) sobre a necessidade de trazer de volta
esse sujeito. Dessa forma, ela coloca em pauta e discute o quanto há de
sofrimento nessa organização social em que impera um tipo de superficialidade
e alienação ao desejo aos quais estamos submetidos nessa lógica de produção
e consumo que é o capitalismo.
Ter uma postura crítica e não alienada diante do cenário no qual estamos
inseridos como analistas leva à necessidade de discutir as bases que sustentam
os posicionamentos sociais vigentes. Sendo assim, temos que entender os

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pilares que sustentam esses posicionamentos, pois entender um pouco melhor
a teoria das ciências nos permite ter uma postura mais crítica.

FINALIZANDO

Nesta aula, discutimos a teoria das ciências. Essa discussão é de extrema


relevância para que possamos compreender como as ciências relativas ao
humano e a psicanálise se situam no cenário das ciências. Sendo assim, são
esses os principais pontos a serem memorizados:

1. Tanto a ciência quanto o mito são formas que o homem encontrou para
explicar o mundo ao seu redor;
2. O mito é uma narrativa fantástica, que parte da existência de deuses e
semideuses para explicar os fenômenos – seus humores, seus conflitos,
seus desejos são as explicações daquilo que acontece à natureza e ao
homem;
3. A consciência que narra a realidade pela via do mito é a consciência
mítica;
4. Com uma maior capacidade de observação e crítica, a explicação da
realidade pela via do mito vai perdendo espaço, cedendo espaço para a
atitude filosófica e a consciência reflexiva;
5. Com a aquisição de uma consciência reflexiva, o ser humano passa a
sistematizar as formas de conhecer e explorar o mundo, e a isso
denominamos de atitude científica e o surgimento da ciência;
6. Os fatos e objetos da ciência não são obtidos da experiência direta com o
objeto investigado, mas sim construídos por trabalho sistematizado de
investigação científica sobre eles. Para isso, são realizadas por meio de
um método;
7. Atualmente, a classificação existente das ciências são: ciências
matemáticas ou lógico-matemáticas, ciências naturais, ciências humanas
ou sociais e ciências aplicadas;
8. Sendo os fenômenos humanos complexos e pouco “matematizáveis”, é
inviável a realização de uma transposição integral e perfeita de tais
métodos, técnicas e teorias naturais tidos como “científicos”. Por isso,
seus resultados tornaram-se bastante contestáveis e considerados,
portanto, pouco científicos;

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9. Do século XV ao início do século XX, a investigação do humano realizou-
se de três maneiras diferentes: humanismo, positivismo e historicismo;
10. A constituição das ciências humanas como ciências específicas
consolidou-se em função das contribuições de três correntes de
pensamento: fenomenologia, estruturalismo e marxismo.

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REFERÊNCIAS

CHAUÍ, M. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1994.

_____. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

GUSDORF, G. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio, 1912.

MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1997.

PERINE, M. Mito e filosofia. Philósophos – Revista de Filosofia, v. 7, n. 2,


2008.

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