Você está na página 1de 2

MOTIVOS DA INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA DOS MITOS

Com esta evidência linguística, que considera basicamente a linguagem como 'interpretatio', são
dados, no entanto, apenas os primeiros passos para uma teoria explícita da interpretação. Ela
ainda não constitui nenhuma hermenêutica em qualquer sentido sistemático.
O problema da compreensibilidade só se tornará agudo para si próprio, quando a mesma já não
der certo. A necessidade de uma reflexão explícita sobre a interpretação, sobre o acontecimento
originário da linguagem como 'interpretatio', como reprodução dos pensamentos, deve-se – e
nada é mais humano – à experiência da incompreensibilidade.
Esta reflexão só emergiu quando a ação de compreender se viu colocada ante o desafio de
passagens da tradição religiosa, que se tornaram chocantes. Sobretudo no período helenístico,
quando o divino foi progressivamente equiparado ao lógos racional até este ponto o tinha
conduzido a filosofia —, já não parecia conveniente a Deus, ou à razão, falar de ocorrências
demasiado humanas, como o logro e o ciúme no Olimpo dos deuses, como era o caso no
período épico (Epos).
A linguagem mítica já não podia mais ser concebida ao pé da letra ou em seu sentido literário.
Ela exigia uma interpretação "alegórica". Os seus inícios são geralmente detectados na filosofia
estóica, que elaborara uma interpretação sistemática, racionalizante e, por conseguinte,
alegórica dos mitos.
Enquanto ela servia à finalidade de adaptar um antigo patrimônio espiritual à mentalidade de
épocas posteriores, a práxis da alegoria é, certamente, mais antiga, uma vez que Platão e
Aristóteles já haviam produzido interpretações racionais de mitos. Até mesmo os rapsodos,
embora fosse apenas no estilo declamatório ('hermênêia'), satisfizeram o gosto do público de
sua época. Também na interpretação pré-rabínica da Sagrada Escritura ocorreram desvios do
sentido literário, 15 0 qual, eventualmente, provocava escândalo. Esta praxe está, por assim dizer,
na base da essência da ermênêia, como mediação de sentido. A partir do conceito pleno de
'hermenêuein', fica claro que, atrás do que é expresso literalmente, se encontra algo diverso,
algo ulterior, que necessita muito mais de um esforço hermenêutico, uma vez que o sentido
imediato, literal, é incompreensível.
Esta práxis só foi sistematizada e elevada à consciência metódica na Stoa. No entanto, é
problemático e, em vista do caráter lacunoso da tradição (que não conservou à posteridade
nenhum tratado completo dos estoicos), é difícil de estabelecer.com certeza, se a Stoa também
não avançou até uma teoria da alegoria. A própria expressão otiinyoptoc inexiste entre os
estóicos. Era, porém, usual o termo de significado correspondente, 07tOVOWv, que Xenofonte e
Platão já empregavam em sentido alegórico. A UTtOV010t é uma forma de comunicação
indireta, que diz algo', para dar a entender algo diverso — um procedimento que o verbo
ctÀÀTIYOPEIV conduzirá ao conceito que literalmente significa afirmar (ocyopEDEtv) algo
diverso (CLIXOO), e isso publicamente (o termo ocyopot pode ser escutado aqui). Atrás do
sentido da 'ágora' existe um outro, mais profundo, que à primeira vista parece estranho à 'ágora',
à interpretação pública.
A práxis de uma interpretação alegorizante dos mitos consistia, pois, no seguinte: em encontrar,
atrás do chocante sentido literal, um significado mais profundo. O aspecto escandaloso ou
absurdo do sentido imediato é precisamente um aceno de que se pensava num sentido
alegórico, que o ouvinte ou leitor avisado devia descobrir. Mas, em que consiste este significado
de natureza diversa? A gente não se precipita na arbitrariedade, quando abandona o sentido
literal? Embora este risco não fosse contornável e já na antigüidade tivesse gerado descrédito
para a alegorese, os intérpretes alegóricos acentuavam que sempre se devia partir do sentido
literal, para ordená-lo corretamente. O recurso preferido para este fim era a etimologia. Pois os
estoicos eram de opinião que os humanos mais antigos ainda carregavam em si o Logos não
falsificado, podendo, por isso, penetrar na essência das coisas. Esta práxis é especialmente
visível no segundo livro 'De natura deorum', de Cícero, onde é feito o relato de um discurso
atribuído ao estoico Balbus. Balbus queria provas que os gregos tinham transformado qualidades
morais, ou forças naturais benéficas, em deuses. Assim, com o nome Saturno deve-se entender
o tempo, já que Saturno significa "saturado de anos" (quod saturetur annis). 18 Desta forma, a
etimologia podia fornecer esclarecimentos sobre a direção do significado oculto que ultrapassa o
sentido literal.
Sucede que a expressão ctÀÀnyopt0'v provém, propriamente, da Retórica e foi cunhada por um
gramático, o Pseudo-Heráclito (1 9 séc. D.C.) Ele definiu a alegoria como um 'tropos' retorico, que
possibilita dizer algo e, ao mesmo tempo, aludir a algo diverso. 19 A alegoria não é a primeira a
designar o ato intelectual da interpretação, pois este já está domiciliado na linguagem. Ele
também é inerente à função declarativa da linguagem, à sua capacidade de evocar, por algo
afirmado, algo diferente. É indubitável que a distinção estoica entre um 'lógos proforikós' e um
'lógos endiáthetos' abriu caminho para esta formação conceitual retórica. 20 0 discurso
expressado não basta a si próprio, ele indica algo diverso, de que é sinal. Na interpretação e na
compreensão trata-se, evidentemente, deste Lógos interior, e não da palavra em si. A linguagem
convida, portanto, a reconhecer o Lógos literário em suas limitações e a ultrapassá-las. Antes
que ela se tornasse uma técnifca da interpretação, a alegoria era simplesmente uma forma de
discurso (o que também vale para a 'upónoia'), de natureza retórica, já que o fazer retórico tem a
ver com a mediação de sentido. Dessa forma, tornou-se usual, na pesquisa, estabelecer uma
distinçà021 entre a alegoria, como figura discursiva originária, direcionada ao supra-literáno, e a
alegorese, que significa o processo explícito de interpretação, a recondução da letra à vontade
de sentido que nela se comunica (a rigor: a conversão da alegoria).
Os motivos da interpretação alegórica dos mitos, ou seja, da alegorese, são triplos. 22 0 primeiro
é de natureza moral: ela devia ajudar a eliminar o aspecto escandaloso da literatura mítica. De
acordo com a feliz palavra do PseudoHeráclito, a alegorese funcionava como uvtu.pocpgoxov
010EPEtO'vO, como panacéia contra a impiedade. O segundo motivo, semelhante ao
primeiro, era de ordem racional. A Stoa queria demonstrar que a interpretação racional do
mundo se coadunava com o mito, de certa maneira como testemunho para a sua convicção de
que o Lógos universal é o mesmo em toda a parte 23 Finalmente, associava-se a estas uma
motivação talvez utilitarista. Nenhum autor da época queria dispensar a autoridade dos antigos
poetas. Para a Stoa foi sempre importante manter a autoridade do mito. Anteriormente, a
suspeita de impiedade podia levar à simples rejeição da poesia mítica, como foi o caso em
Xenófanes24 e, não raro, em Platão. 25 A Stoa já não podia concederse este direito. Ela
necessitava do apoio da tradição para manter sua cosmovisão, apesar da relação fragilizada
com o mundo grego mais antigo. Quanto mais problemática e distante se tornara a tradição,
tanto mais premente era salvá-la, embora artificialmente com ajuda da alegorese.
Nenhum destes três motivos está basicamente ultrapassado. Também hoje é eventualmente
mobilizada uma interpretação alegórica, para reinterpretar moralmente o sentido de passagens
condenáveis, para pôr a razão em consonância com a poesia, ou para manter intocável a
autoridade dos clássicos. Enquanto brotou desta motivação, a concreção estoica da doutrina do
Lógos interior e exterior na explicação alegórica dos mitos deu um impulso substancial para o
desenvolvimento da hermenêutica.

Você também pode gostar