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A VERDADE DA RETÓRICA:
Discurso e convencimento na sabedoria ateniense
ZEIDAN, L. D.
* PILZ, Werner. Der Rhetor im attischen Staat (Weida 1934) apud SCHIAPPA, 1990, p. 458.
** DUNBAR, Henry. A Complete Concordance to the Comedies and Fragments of Aristophanes (Oxford
1883) apud SCHIAPPA, 1990, p. 459.
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* HANSEN, H. Mogens. Initiative and Decision: the separation of powers in fourth-century Athens
(GRBS 22 1981), apud SCHIAPPA, 1990, p. 457.
** WILCOX, Stanley. “The Scope of Early Rhetorical Instruction”, HSCP 53 (Cambridge 1942).
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(...) τινὲς ἐπιτιμῶσι τῶν λóγων τοῖς ὑπὲρ τοὺς ἰδιώτας ἔχουσι καἰ λίαν
ἀπηκριβωµένοις καἰ τοσοῦτον διηµαρτήκασιν, ὣστε τοὺς πρòς ὑπερβολἠν
πεποιηµένους πρòς τοὺς ἀγωνας (...), σφᾶς µὲν διορῶντας τὰς µετριότητας, τòν δ'
ἀκριβῶς ἐπιστάµενον λέγειν ἁπλῶς οὐκ ἂν δυνάµενον εἰπεῖν. (BERTACCHI 2014:60)
(...) Alguns censuram os discursos que estão além dos homens comuns e que são
extremamente elaborados, cometendo o grave erro de julgar os discursos que foram
compostos com o máximo de cuidado (...), como se eles distinguissem como falar de
modo ponderado, enquanto o que sabe falar com precisão não fosse capaz de fazê-lo com
simplicidade. (BERTACCHI 2014:94)
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Edward Schiappa discorda dessa tese, propondo uma outra cronologia ao panfleto
de Alcidamas que, esta sim, corrobora à sua argumentação inicial de que ῥητοριϰή foi
primeiramente mencionado nos diálogos platônicos. Na leitura de Schiappa, “Panegírico
(11) não responde à diferença entre falar e escrever, mas sim à diferença entre estilos de
escrita planos e elegantes” (SCHIAPPA 1990:462); contudo, conforme argumenta o
autor, Isócrates para sim responder diretamente a Alcidamas, só que no Antídose (6:46-
49). Neste último, realmente parece haver uma referência direta à descrição alcidâmica
do estilo de Isócrates como “tendendo à poesia” (SCHIAPPA 1990:462), sendo assim, há
maiores evidências para sugerir que o panfleto de Alcidamas foi escrito em réplica ao
Panegírico do que o contrário e, por isto, deve ser datado entre a publicação deste último
(380 a. C.) e a do Antídose, entre 354 e 353, que lhe serviria de resposta.
De qualquer forma, é também interessante notar que, no trecho citado, Isócrates
se utiliza dos epítetos λóγων referindo-se a “discursos” e λέγειν para o que A. R.
Bertacchi traduz como aquele “que sabe falar com precisão” – isto reflete uma clara
preferência do logógrafo pelo “uso de λóγως e λέγειν para designar o que estava
ensinando (...), [descrevendo] a educação que fornecia como λóγων παιδεíα”
(SCHIAPPA 1990:461). Na verdade, esta tendência de Isócrates se observa claramente
nas literaturas anteriores que, a exemplo de sua rara recorrência a palavras como
rethoreía, rethorikoús ou rhetoreúesthai, demonstram uma “escassez de todos estes
termos [que] testifica sua novidade” (SCHIAPPA 1990:461) no período em questão.
Com efeito, em As Nuvens de Aristófanes, em contrapartida da já mencionada
ausência do termo “retórica”, “λέγειν é utilizado frequentemente como ‘oratória’, λóγως
como ‘argumento’ ou ‘discurso’, e ‘sofista’ – não ῥήτορ – como orador treinado”
(SCHIAPPA 1990:459). Em acréscimo a isto, é no mínimo curioso que Heródoto, ele
mesmo discípulo de um conhecido légein, Hecateu de Mileto, também não haja utilizado
epítetos dessa classe etimológica, ainda que tenha instituído uma nova tekhné sob o nome
de Ιστορίε e não possa em momento algum ser considerado retórico como tantos outros,
a quem a associação do adjetivo já é extremamente discutível. Nem mesmo daquele que
é recordado como o primeiro dos Sofistas (um dos Sete Sábios), Protágoras, há qualquer
registro de emprego da palavra rhetoriké, nem mesmo no diálogo platônico batizado em
sua homenagem. Por fim, à luz deste primeiro argumento de Schiappa, tudo parece
indicar que, por mais que o termo “retórica” seja bastante comum na literatura pós-
aristotélica e as referências ao conceito de réthor tenham se tornado cada vez mais
comuns ao longo dos séculos V e IV, durante a maior parte deste período, seus usos são
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Sócrates — (...) Há outra classe de artes que realizam todo o seu propósito através do
discurso e, por assim dizer, requerem ou nenhuma ação para auxiliá-las, ou muito pouca;
por exemplo, a aritmética, o cálculo, a geometria, o jogo de damas, e muitas outras artes:
algumas destas possuem os discursos em igual proporção que as ações, mas a maioria os
possui como a maior parte, ou absolutamente toda sua operação e efeito é por meio do
discurso. É uma arte desta classe que imagino que te referes como retórica.
Barbara Cassin, Platão nos apresenta “não exatamente duas retóricas, mas dois usos – um
mau e outro bom – de uma mesma técnica axiologicamente neutra ou indiferente”
(CASSIN 2005:156), a qual, desta forma, está em ambas sofística e filosofia. No mesmo
sentido, a autora demonstra em sua análise da dicotomia entre o Górgias e o Fedro que,
contraditoriamente a como é concebido no primeiro deles, o conceito de rhetoriké aparece
no último diálogo sob elogio, no concernente ao discurso do belo e do ético. Desta forma,
para Cassin, entre estes diálogos, os dois usos possuem distinções de finalidade, porém
não de abordagem, ou seja, delimitam entre si nada mais que duas naturezas morais, de
teor psicológico, segundo apresenta o esquema abaixo:
Górgias Fedro
retórica = sofística retórica = filosofia
mau uso bom uso
retórica = sofística retórica = filosofia
Górgias no Gorg. Fedro no Górgias
(CASSIN 2005:157)
86). No entanto, podemos sim, através da análise dos fragmentos e obras que nos foram
legados, buscar compreender ao máximo como estes pensadores que foram eternizados
como sofistas concebiam suas próprias formas de saber e educação. Górgias, deve-se
recordar, foi mestre de Isócrates que, por sua vez, como já mencionado, compreendia seus
ensinamentos como os de uma lógon paidéia, uma educação dos discursos que passava,
antes de mais nada, por uma assimilação técnica da divina Peithó, isto é, como vimos, do
poder de persuasão, de convencimento da palavra. Os princípios lógicos desta forma de
razão, profundamente inspirada nas contradições da democracia e criticada em Platão por
seu relativismo e por sua subjetividade, eram na realidade “nada menos do que as mais
importantes práticas públicas de discurso em Atenas (SCHIAPPA 1990:465). De fato,
como mostra o historiador Marcel Detienne em Mestres da Verdade na Grécia Arcaica,
a própria concepção da Verdade, a ἀλήθεια de que comentamos há pouco, para os
cidadãos gregos, “implica outras potências que contribuem para definí-la, (...) são elas:
Díke, Pístis, Peithó” (DETIENNE 2013:65), ou seja, Justiça, Crença e Persuasão.
Portanto, este conceito ao qual se associa toda uma atmosfera sacro-mitológica e, de
forma geral, tudo aquilo que pode ser considerado como afirmação válida segundo os
critérios de veradicidade da Grécia Antiga, se constitui na articulação de três fatores: de
um lado, num âmbito moral coletivo, a correção daquilo que se profere, seu caráter como
justo ou não; de outro, no âmbito particular do ouvinte, a viabilidade ou a razoabilidade
em se acreditar naquilo que é proferido; e por fim, da parte específica do emissor, a
capacidade de convencer, de persuadir a seus receptores.
Se devemos nos referir diretamente aos tratados e fragmentos de Górgias que
chegaram até nós, é conspícuo notar, numa análise geral de sua obra, que o maior projeto
de seus apontamentos lógicos parece ser o de enfatizar o poder do discurso, em suas
perigosas ambiguidades e todo seu poder de de indução ao ouvinte. O Elogio de Helena,
talvez a contribuição teorética mais importante do século V para nosso mérito em seu
tratamento do lógos persuasivo, significa uma preocupação especial precisamente neste
sentido. Isto torna-se evidente, sobretudo, nas considerações finais do escrito, quando o
logógrafo assume o discurso elogioso à odiada Helena de Troia como, para ele, um
simples jogo: “com o discurso retirei a má reputação da mulher, permaneci na lei que
fixei no princípio do discurso” (GÓRGIAS 2016:21). O que se parece demonstrar aí, sob
auxílio de um arquétipo de rejeição bem conhecido da mitologia, é senão o potencial
enganador e a capacidade de distorção dos discursos, o fato de que, sem prejuízo ao
sentido, as palavras podem guiar a caminhos opostos aos da realidade; em um só termo,
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Se, por meio das palavras, a verdade dos fatos surgisse pura e evidente aos que ouvem, a
sentença seria fácil a partir do que já foi dito; uma vez que não é assim, vigiai o meu
corpo, aguardai mais tempo e decretai a sentença de acordo com a verdade. (Defesa de
Palamedes 35 apud CAVALCANTE 2016:215)
O trecho das sentenças finais de defesa do pária acusado de traição por Odisseu,
herói cultural dos gregos, nos revela um aspecto essencial das proposições lógicas
gorgianas: como já colocamos, uma separação radical entre realidade, pensamento e
discurso; isto é, o princípio basilar em Górgias, de que aquilo que é de fato real não
necessariamente pode ser imaginado, e menos necessariamente ainda pode ser formulado
em palavras. Esses apontamentos, especialmente este último, são o principal ponto do
lógico em seu mais reconhecido tratado, Sobre o Não-Ser ou Sobre a Natureza, onde se
demonstra, em debate aberto com Parmênides, as aporias do ser formuladas em três
grandes teses, em suma: nada é; mesmo que seja, não pode ser conhecido; mesmo que
seja conhecido, não pode ser comunicado. O movimento autodestrutivo – na medida em
que questiona-se uma tese já postulada como caminho de apontamento para uma outra –
da análise de Górgias, além de demonstrar seu astuto viés argumentativo – possivelmente
aquilo que inspirou Platão a nomeá-lo retórico –, nos permite inferir que, mais importante
do que o questionamento existencial de se as coisas que são realmente são, ou se elas
realmente podem ser acessadas por nossas mentes e propriamente conhecidas, o principal
argumento do texto, e talvez do pensador de um modo geral, é a cisão definitiva entre
discurso e realidade. A questão da verdade fica, assim, suspensa de julgamentos, tudo o
que nos cabe é falar, de forma que qualquer apontamento passa, de forma semelhante à
que interpreta Detienne, pela égide da Πειθώ e, mais ainda, pela vontade do ouvinte.
Em conclusão, se a despeito das poucas informações que temos sobre a “filosofia”
do século V, pudermos nos fiar especificamente no material bibliográfico legado a nós de
Górgias, podemos aferir que a arte ou ofício, senão de todos aqueles que neste período
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denominam-se λέγειν, pelo menos deste que se destaca como grande precursor e
ensinador da retórica em Platão, é tão simplesmente a arte ou o ofício do λóγoς, do
discurso, ou mesmo, da razão. Ao contrário da assimilação platônica em sua pretensão de
uma “retórica sofística”, as abordagens logográficas dos opositores da philosophia em
seu nascimento e de seus mestres dava ênfase à Persuasão não com o intuito de enviezar
deliberadamente os debates na assembleia e nos tribunais, mas sim, e principalmente no
caso de Górgias, sob uma clara advertência de cuidado, de prevenção ao engano, ao
encanto (magería) das palavras. Por fim, resta que neste, em seu discípulo Isócrates, em
Protágoras e ainda muitos de seus predecessores nisto que se delimitará posteriormente
como paidéia sofística, há senão uma arte do lógos persuasivo, cujo nascimento se vê
intimamente associado aos debates na ágora, mas cujo maior benefício é o simples
reconhecimento da palavra como ferramenta de poder em um contexto democrático e,
mais ainda, como fonte de equívocos e distorções. Há, senão uma das muitas que
circulavam pela polis de Atenas, a primeira e mais importante λóγων παιδεíα que, deve-
se salientar, em nada deve a um conceito como rhetoriké, cujo uso, por simples assunções
históricas, como vimos, não é de forma alguma adequado para referir-se a tempos pré-
socráticos e, com exceção de Platão e poucos exemplos assaz tardios e localizados, nem
mesmo à filosofia do século IV a. C.
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Referências Bibliográficas
BRANDWOOD, Leonard. A Word Index to Plato, p. 809. Leeds: Maney and Son: 1976.
CASSIN, Barbara. “De uma sofística a outra: boas e más retóricas” e “O valor da retórica:
de Platão a Perelman” in O Efeito Sofístico, ps. 143-149. São Paulo: Editora 34, 2005.
DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, p. 65. São Paulo: Martins
Fontes, 2013.
INSCRIPTIONES GRECAE. SEG 34-15. Athens. Decree concerning the colony at Brea,
ca. 445 B.C (IG i.³ 46, 25), in Supplementum Epigraphicum Graecum (consultado online
em 07 de dezembro de 2017).
GUTHRIE, William K. C. History of Greek Philosophy, vol. IV, ps. 284 e 285.
Cambridge: Cambridge University Press, 1975.
HOMERO. Ilíada, livro IX, vs. 440-443. Tradução: Frederico Lourenço. São Paulo:
Penguim, 2005.
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HOOK, LaRue Van. Alcidamas. On the Sophists or On the Writers of Written Discourses
in “Alcidamas versus Isocrates”, CW nº12 (1919), ps. 89-94 apud SCHIAPPA 1990, p.
461.
PLATÃO (em grego). Górgias in Platonis Opera (ed. John Burnet), 449a-453a. Oxford:
Oxford University Press, 1903.
PLATÃO (em português). Plato in Twelve Volumes, vol. 3. Tradução ao inglês: W.R.M.
Lamb. Cambridge: Harvard University Press, 1967. Tradução ao português: L. D. Zeidan.
PILZ, Werner. Der Rhetor im attischen Staat. Alemanha: Weida, 1934 apud SCHIAPPA,
1990, p. 458.