Você está na página 1de 16

Luy Zeidan Duarte | 16/0135125

Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

A VERDADE DA RETÓRICA:
Discurso e convencimento na sabedoria ateniense
ZEIDAN, L. D.

Resumo: Na linha das proposições defendidas pelo comunicólogo e estudioso da


retórica clássica Edward Schiappa, em seu artigo Did Plato Coin Rhétoriké?, o presente
ensaio parte da afirmação de que o termo do grego antigo ῥητοριϰή foi provavelmente
cunhado por Platão em seu diálogo Górgias, na primeira parte do século IV a.C. A
investigação se inicia com uma ambiguidade de fundo que a serve de título e,
convenientemente, traduz seu movimento duplo de análise: a expressão pode indicar,
simultaneamente, “a verdade sobre a retórica” – um debate verossímil, ou o mais factual
possível, acerca do conceito duro de retórica (dentro dos limites de nosso objeto, a exata
noção de ῥητοριϰή); e “a verdade para a retórica” – os critérios e procedimentos de
veradicidade inerentes a esta arte ou técnica de discurso (ainda que não propriamente uma
τεχνέ), pela qual se assimila a posteriori o ofício dos λέγειν.
Sendo assim, o esforço aqui empreendido se pretende à compreensão mútua,
atravpes da iluminação recíproca entre os dois vieses de análise contornados acima. Em
um primeiro momento, dedicando-se à discussão cuidadosa dos argumentos de Schiappa,
buscar-se-á uma delimitação melhor do conceito em questão sob a luz do fato histórico
de sua invenção na obra platônica, em contraste com as nomenclaturas e formas de saber
de fato praticadas pelos chamados sofistas e, em especial, por Górgias. Mais adiante, sob
um estudo mais cuidadoso da obra deste último e do comentário da filóloga Barbara
Cassin sobre o diálogo homônimo, voltando-se à compreensão teórico-epistemológica
destes saberes lidos, a partir de Platão, enquanto “sofísticos” ou “retóricos”, se intenderá
apontar as reais perspectivas lógicas da obra de Górgias frente à sua arquetipização no
diálogo que leva seu nome, bem como a seus reais princípios discursivos, como πεíθω
(peithó) e λóγος (lógos), epítetos anteriores, mas do mesmo campo conceitual a que se
refere a palavra “retórica” em seu nascimento.
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

Existe uma “retórica sofística”?


Muito embora com o avanço da filosofia do discurso ao final do século XX,
sobretudo no eixo das contribuições de Michel Foucault, a noção de retórica tenha
reaparecido fortemente na atualidade como objeto de análise, o termo vem sendo desde
sua aparição utilizado de forma pouco crítica na interpretação de textos e fragmentos de
diferentes períodos, e raramente escapando à primordial oposição platônica entre a “má
retórica” e a “boa dialética”. Segundo o cientista da comunicação e helenista Edward
Schiappa, é por esta razão que muitos “estudiosos anteriores entenderam mal a filosofia
do século V” (SCHIAPPA 1990:469). Talvez melhor descrita simplesmente como
sabedoria da polis, assimilar a esta σοφια (sophia) como “retórica sofística” é, como
defende Barbara Cassin em O Efeito Sofístico (2005:143), “no sentido tanto cronológico
quanto lógico do advérbio, ser platônico ou, pelo menos, pagar tributo ao platonismo”.
Este saber, contudo, dedicado à política e ao discurso, e anterior à philosophia da tradição
socrática, era, como defende Jean-Pierre Vernant, a síntese, o espelho da vida social e das
múltiplas relações entre os gregos a partir do aparecimento das chamadas cidades-Estado
entre os séculos VIII e VII a. C., acontecimento decisivo na história intelectual desta
civilização.
Segundo o historiador, a polis helênica implica primeiramente a preeminência da
palavra como instrumento de poder e, por outro lado, um cunho de plena publicidade
impelido sobre a vida social, o que, por sua vez, pressupunha uma progressiva adaptação
dos interesses e condutas individuais em proveito do grupo, colocados assim, sob o olhar
de todos. Assim, “a palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate
contraditório, a discussão, a argumentação” e, ainda assim, “o meio de comando e de
domínio sobre outrem”, dotando-se desta forma de certa eficácia, certo poder “de que os
gregos farão uma divindade: Peithó, a força de persuasão” (VERNANT 2005:54).
Portanto, de aquilo que se subscreve em um primeiro momento, ainda nos séculos VI e
V, como sophistica é consequência natural do movimento de democratização e submissão
da arché ao debate na ágora e, historicamente, é ela que abre caminho à filosofia
platônico-aristotélica, na medida em que insere, neste contexto social e epistemológico,
“uma técnica de persuasão, regras de demonstração e (...) uma lógica do verdadeiro,
própria do saber teórico” (VERNANT 2005:54-55).
O que há de curioso, contudo, é que embora seja tentador associar esta análise das
formas do discurso como instrumentos de vitória nas lutas da assembleia e dos tribunais,
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

em um só termo, esta arte da oratória, à nossa concepção contemporânea de retórica, já


se observou com bastante frequência, desde Werner Pilz*, que tal epíteto legado a nós do
vocabulário grego não aparece antes de Platão, como defende Cassin. Segundo ela,
contudo, “nunca se tentou verdadeiramente examinar isso antes de Schiappa” e este, por
sua vez, em seu artigo Did Plato Coin Réthoriké? – Platão Cunhou a Retórica? – “tem,
senão razão, pelo menos interessantes razões para responder que sim” (CASSIN
2005:145-146). Para Schiappa, as evidências para a proposição de que “a palavra
ῥητοριϰή foi provavelmente forjada por Platão no processo de composição do Górgias
por volta de 385 a.C. (...) são surpreendentemente claras” (SCHIAPPA 1990:457); em
suporte a isto, o autor oferece dois principais argumentos: o primeiro é o de que “as
ocorrências sobreviventes do termo demonstram que seu uso no Górgias de Platão é uma
novidade” e o segundo consiste na ideia de que este mesmo possuía certa “inclinação para
inventar palavras terminadas em –ιϰή” (SCHIAPPA 1990:457) e, num espectro mais
social e cultural de análise, parecia também ter boas motivações para um tal esforço. Em
um primeiro momento deste estudo, buscaremos destrinchar estes argumentos de forma
cuidadosa, apresentando o mais claramente possível o corpus de evidências que sustenta
a cada um deles e refletindo sobre as consequências históricas destas suposições.
O primeiro deles é facilmente comprovável na medida em que, de fato, ῥητοριϰή
não aparece em nenhuma das fontes do século V onde se esperaria um uso popular, ou
mesmo especializado, do termo; isto é o que demonstra a pesquisa conduzida pelo
classicista Theodore F. Brunner em 1989 no banco de dados Thesaurus Linguae Grecae,
que aponta para a constatação de “que o uso documentado mais antigo do epíteto é do
século IV” (SCHIAPPA 1990:458). Por outro lado, os sophistés eram bem conhecidos
em suas teorias e práticas educacionais no contexto social de Atenas, por esta razão,
houvesse existido um uso característico de ῥητοριϰή associado a eles, este deveria ter
sido notado por seus críticos tradicionais, como o comediógrafo Aristófanes que,
conforme demonstra Henry Dunbar**, não a menciona uma vez sequer em sua famosa
diatribe contra a educação sofística na peça As Nuvens, apresentada pela primeira vez em
423 a. C. Além disso, ainda, “nem ῥητοριϰή nem ῥητορεíα aparecem no trabalho de
Heródoto, que era bastante familiar com os ensinamentos sofísticos” (KENNEDY
1963:44-47 apud SCHIAPPA 1990:459) e se mantêm a priori distantes do vocabulário
da primeira historiografia. Sendo assim, é realmente difícil justificar qualquer outra
conclusão que não a de que as palavras deste campo semântico, como rhétoriké e rhétor-

* PILZ, Werner. Der Rhetor im attischen Staat (Weida 1934) apud SCHIAPPA, 1990, p. 458.
** DUNBAR, Henry. A Complete Concordance to the Comedies and Fragments of Aristophanes (Oxford
1883) apud SCHIAPPA, 1990, p. 459.
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

eía (comumente traduzido por oratória), originam-se, no arcabouço linguístico do grego


arcaico, somente no início do século IV.
É verdade, todavia, que o termo ῥήτορ – rhétor: segundo M. H. Hansen*, termo
técnico que designa políticos, oradores, cidadãos que levam à frente moções na ágora –
pode ser encontrado já em Homero, na Ilíada (IX:443); porém, deve-se destacar, refere-
se aí à posição, muito bem delimitada, do herói épico na “guerra maligna” e nas
“assembleias, onde os homens se engrandecem” (HOMERO 2005:IX:440-443). Ora, não
é à toa que o emissor destas palavras na epopeia é Ulisses, em seu encontro com Aquiles
no Hades, e ainda que seu discurso possua sim uma função educadora, na medida em que
assume sua intenção de atender ao pedido de Peleu de que “ensinasse” (HOMERO
2005:IX:442) a Aquiles, aí o que se observa são muito mais os ensinamentos de um hérōs
reconhecido por sua astúcia (métis), do que os de um sophós dotado dos saberes
especializados de uma suposta “arte da oratória”, noção que estritamente só irá se
desenvolver séculos depois.
Em todo caso, conforme argumenta Stanley Wilcox**, “o uso sobrevivente mais
antigo de ῥήτορ está no Decreto de Brea, circa 445 a. C.” (SCHIAPPA 1990:457), ofício
ateniense concernindo à polis na Trácia, presente nos acervos atuais de inscrições
históricas gregas (I.G. i.³ 46:25). Além disso, da mesma forma que nos épicos homéricos,
no tempo do Górgias de Platão, a designação de rhétor era reconhecida nos limites de um
grupo social muito específico: “políticos que comumente se pronunciavam nos tribunais
ou na assembleia” (PILZ 1934 apud SCHIAPPA 1990:458). Sendo assim, a despeito do
peso de suas conexões etimológicas com nosso objeto de ataque – a palavra ῥητοριϰή
em seu sentido platônico –, em um primeiro momento, pelo menos até meados do século
IV, este radical réthor não parece ter estado muito claramente associado aos planos de
sentido da posterior concepção de rhétoriké.

Antes de Platão, mais alguém?


De toda forma, se como já comentado ῥητοριϰή não aparece nos textos do século
V, em reforço à hipótese de sua criação no século seguinte, seu uso na literatura deste
último é bastante raro, novamente não constando onde esperado. Com exceção das
contribuições de Platão e Aristóteles, as duas fontes mais conhecidas em que se esperaria
uma utilização comum ou pelo menos mais rebuscada do termo, “são o Retórica para
Alexandre de Anaxímenes e os trabalhos de Isócrates. Ῥητοριϰή não aparece em nenhum

* HANSEN, H. Mogens. Initiative and Decision: the separation of powers in fourth-century Athens
(GRBS 22 1981), apud SCHIAPPA, 1990, p. 457.
** WILCOX, Stanley. “The Scope of Early Rhetorical Instruction”, HSCP 53 (Cambridge 1942).
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

deles” (SCHIAPPA 1990:460). O primeiro, do físico milésio, é considerado um dos mais


antigos tratados que chegou completo até nós sobre a “teoria sofística da retórica”, no
entanto, nenhuma das variações linguísticas do epíteto réthoriké está presente no texto
em qualquer lugar que não seu título, e este por sua vez “foi quase certamente adicionado
posteriormente, quando o trabalho foi reorganizado e endereçado de Aristóteles a
Alexandre” (SCHIAPPA 1990:460). Já ao logógrafo, Isócrates, é atribuído o primeiro uso
documentado da palavra réthoreía, sob a significação de “oratória”, em um de seus
primeiros tratados, Contra os Sofistas (11), por volta de 392 a.C e, portanto, anterior ao
diálogo Górgias; e a posteriori, o emprego de ῥητοριϰοὐς (rhétorikoús) nos discursos
Nicocles (374 a. C.) e Antídose (circa 354/353 a. C.) e, por fim, ῥητορεύεσθαι
(rhetoreúesthai) no escrito endereçado A Filipe. Todavia, é conspícuo concluir que,
anteriormente a 385, não há ocorrência de nenhuma derivação do termo em sua
terminação –iké, como formulado na obra platônica.
Uma possível exceção a esta afirmativa, no entanto, seria o panfleto Sobre os
Sofistas ou Sobre os Escritores dos Discursos Escritos de Alcimadas, que foi
originalmente datado por LaRue Van Hook entre 391 e 380 a. C., supondo que havia sido
escrito em resposta ao Contra os Sofistas (392 a. C.) de Isócrates e que este, por sua vez,
o faz réplica em seu Panegírico (380 a. C.). “O texto [de Alcidamas] usa ῥητοριϰής duas
vezes (1:5, 2:5)” (SCHIAPPA 1990:461). A controvérsia entre os tratados consistiria no
fato de que um trecho do panfleto (6:12-13) – que, segundo esta tese, teria sido escrito
em resposta à diatribe de Isócrates aos sofistas – atacava aqueles que ensinam a escrita
do discurso em detrimento da fala extemporânea, cujo aprendizado ele defendia ser mais
espontâneo e difícil, resultando no domínio de ambos falar e escrever. O argumento de
Hook sobre a datação baseia-se na hipótese de que o seguinte excerto do Panegírico (11)
responde aos ataques de Alcidamas acerca das oposições entre as artes da fala e da escrita:

(...) τινὲς ἐπιτιμῶσι τῶν λóγων τοῖς ὑπὲρ τοὺς ἰδιώτας ἔχουσι καἰ λίαν
ἀπηκριβωµένοις καἰ τοσοῦτον διηµαρτήκασιν, ὣστε τοὺς πρòς ὑπερβολἠν
πεποιηµένους πρòς τοὺς ἀγωνας (...), σφᾶς µὲν διορῶντας τὰς µετριότητας, τòν δ'
ἀκριβῶς ἐπιστάµενον λέγειν ἁπλῶς οὐκ ἂν δυνάµενον εἰπεῖν. (BERTACCHI 2014:60)
(...) Alguns censuram os discursos que estão além dos homens comuns e que são
extremamente elaborados, cometendo o grave erro de julgar os discursos que foram
compostos com o máximo de cuidado (...), como se eles distinguissem como falar de
modo ponderado, enquanto o que sabe falar com precisão não fosse capaz de fazê-lo com
simplicidade. (BERTACCHI 2014:94)
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

Edward Schiappa discorda dessa tese, propondo uma outra cronologia ao panfleto
de Alcidamas que, esta sim, corrobora à sua argumentação inicial de que ῥητοριϰή foi
primeiramente mencionado nos diálogos platônicos. Na leitura de Schiappa, “Panegírico
(11) não responde à diferença entre falar e escrever, mas sim à diferença entre estilos de
escrita planos e elegantes” (SCHIAPPA 1990:462); contudo, conforme argumenta o
autor, Isócrates para sim responder diretamente a Alcidamas, só que no Antídose (6:46-
49). Neste último, realmente parece haver uma referência direta à descrição alcidâmica
do estilo de Isócrates como “tendendo à poesia” (SCHIAPPA 1990:462), sendo assim, há
maiores evidências para sugerir que o panfleto de Alcidamas foi escrito em réplica ao
Panegírico do que o contrário e, por isto, deve ser datado entre a publicação deste último
(380 a. C.) e a do Antídose, entre 354 e 353, que lhe serviria de resposta.
De qualquer forma, é também interessante notar que, no trecho citado, Isócrates
se utiliza dos epítetos λóγων referindo-se a “discursos” e λέγειν para o que A. R.
Bertacchi traduz como aquele “que sabe falar com precisão” – isto reflete uma clara
preferência do logógrafo pelo “uso de λóγως e λέγειν para designar o que estava
ensinando (...), [descrevendo] a educação que fornecia como λóγων παιδεíα”
(SCHIAPPA 1990:461). Na verdade, esta tendência de Isócrates se observa claramente
nas literaturas anteriores que, a exemplo de sua rara recorrência a palavras como
rethoreía, rethorikoús ou rhetoreúesthai, demonstram uma “escassez de todos estes
termos [que] testifica sua novidade” (SCHIAPPA 1990:461) no período em questão.
Com efeito, em As Nuvens de Aristófanes, em contrapartida da já mencionada
ausência do termo “retórica”, “λέγειν é utilizado frequentemente como ‘oratória’, λóγως
como ‘argumento’ ou ‘discurso’, e ‘sofista’ – não ῥήτορ – como orador treinado”
(SCHIAPPA 1990:459). Em acréscimo a isto, é no mínimo curioso que Heródoto, ele
mesmo discípulo de um conhecido légein, Hecateu de Mileto, também não haja utilizado
epítetos dessa classe etimológica, ainda que tenha instituído uma nova tekhné sob o nome
de Ιστορίε e não possa em momento algum ser considerado retórico como tantos outros,
a quem a associação do adjetivo já é extremamente discutível. Nem mesmo daquele que
é recordado como o primeiro dos Sofistas (um dos Sete Sábios), Protágoras, há qualquer
registro de emprego da palavra rhetoriké, nem mesmo no diálogo platônico batizado em
sua homenagem. Por fim, à luz deste primeiro argumento de Schiappa, tudo parece
indicar que, por mais que o termo “retórica” seja bastante comum na literatura pós-
aristotélica e as referências ao conceito de réthor tenham se tornado cada vez mais
comuns ao longo dos séculos V e IV, durante a maior parte deste período, seus usos são
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

consideravelmente esparsos e a noção específica de uma “arte de ser um réthor” –


rhetoriké, por excelência – só aparece propriamente formulada em Platão e Aristóteles.

Mas por que logo Platão?


Até então as evidências demonstradas para hipótese de que foi Platão quem forjou
o conceito de retórica são indiretas, tudo que fizemos foi clivar o escopo de ocorrência
do termo analisando as principais referências nas proximidades da data aproximada de
seu aparecimento, excluindo possibilidades alheias à nossa tese inicial. Uma análise
linguístico-etimológica mais cuidadosa, no rigor do segundo argumento de E. Schiappa,
permitirá erigir apontamentos mais sólidos acerca da autoria platônica sobre termos como
ῥητοριϰή. Em primeiro lugar, o uso desta palavra e de suas variantes ao longo da
totalidade dos diálogos platônicos aponta fortemente para seu caráter pioneiro no
Górgias: “a despeito bem conhecida reputação de Platão por sua controvérsia com os
sofistas e a retórica, ῥητοριϰή aparece de forma surpreendentemente rara em seus
trabalhos” (SCHIAPPA 1990:463). Isto é o que demonstra o estudo de Leonard
Brandwood em A Word Index to Plato (1976:809), a respeito do qual Schiappa conclui:
Ῥητορεíα aparece somente uma vez (O Político 304a). Exemplos de várias
formas de ῥητοριϰή são curiosamente distribuídas. Nos diálogos intermediários e tardios,
Eutidemo, Titeto, Crátilo e O Político, ῥητοριϰή aparece um total combinado de apenas
cinco vezes. A palavra está notavelmente ausente em Protágoras, Hípias Maior e Menor
e O Sofista. Até no Fedro a palavra aparece pouco mais de uma dúzia de vezes. O mais
antigo uso documentado da palavra ῥητοριϰή está no Górgias – que é também a mais
extensa utilização encontrada em Platão. Gorgias utiliza a palavra quase noventa vezes
(SCHIAPPA 1990:463).

Desta análise quantitativa, talvez o mais importante a se levar em consideração é


que o primeiro uso de que se tem registro do termo rhetoriké é também, curiosamente, a
primeira vez em que este é definido e examinado filosoficamente. Ora, de fato, no
Górgias, Platão parece se ocupar especialmente de duas principais tarefas em relação à
construção deste conceito: por um lado, de fazer um uso consciencioso da noção que
transmitisse ao leitor a impressão de estar já completamente realizada, como algo dado;
e por outro lado, de esclarecer prontamente, neste bojo, as conformidades lógicas deste
conceito, simultaneamente o explicando e o associando à figura de Górgias. Desta forma,
como aponta Barbara Cassin, se deduziria, “portanto, do Górgias, e da própria analogia,
que a retórica não é, no fundo, nada mais do que a realidade concreta e contingente, a
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

atualidade da sofística” (CASSIN 2005:153). Para Schiappa, este formato curioso da


exposição platônica no Górgias nos permite embasar seu segundo argumento em duas
principais evidências: uma mais concreta e indutiva, que diz respeito a uma peculiar
tendência de Platão para a cunhagem de palavras terminadas em -ιϰή; e outra, de natureza
inferencial e argumentativa, associada ao cenário cultural e político em que o diálogo é
concebido e com o qual necessariamente está articulado.
A primeiras destas evidências pode ser bem introduzida pelo que demonstra o
historiador e linguista Eric Havelock, em seu volume Prefácio a Platão, a criatividade
platoniana no uso a linguagem grega e sua necessidade de estabelecer um vocabulário
filosófico próprio aos seus intentos, na verdade, fatores já bem estabelecidos na literatura
platonista ocidental. É notável que Platão seja um prolífico inventor de termos e, em
particular, muitos acompanhados deste final -iké, -ica como transliteramos para a língua
portuguesa: retórica, dialética, antilógica, erística etc. Como defende Schiappa, este
sufixo denota “arte de” ou, melhor dizendo, “techné de”, palavra que, em sua adequada
acepção hermenêutica, pressupõe necessariamente todo um arcabouço teorias, regras e
métodos – como se poderia supor de uma ciência moderna, embora o paralelo seja de fato
um anacronismo. Para o autor, “a invenção de tais termos é uma parte essencial da análise
filosófica de Platão da relação entre τέχνη e ἐπιστήμ – arte ou habilidade e conhecimento
(...), [ele] cunha literalmente dúzias de termos terminados em –ιϰή, (...) para as artes
verbais em particular” (SCHIAPPA 1990:464). Em razão de tais inovações, ao filósofo
deve-se atribuir uma grande ruptura conceitual, na medida em que conecta
linguisticamente no universo grego as concepções, antes bem distintas, de conhecimento
e de habilidade técnica, relacionando-as ainda com um arranjo de atividades e profissões.
Finalmente, como bem sintetiza Barbara Cassin sobre o trabalho de Schiappa, “é portanto
bem verossímil que o Górgias, escrito por volta de 385, nos faça assistir à invenção da
palavra [rhetorike], assim como daquelas, conhecidas e glosadas: eristike, antilogike,
dialektike, talvez até mesmo sophistike” (CASSIN 2005:146).
Por outro lado, no início do diálogo, já em sua décima seção, antes mesmo de se
definir em linhas gerais a ideia de retórica, o Sócrates platônico indaga a Górgias de que
modo ele deveria ser chamado: “ὡς τίνος ἐπιστήμονα τέχνης?” (PLATÃO 1903:449a)
– “como conhecedor/cientista de que técnica/arte (epistémona técnés)?”. Um dos
discípulos de Górgias, Polo, outro interlocutor desta fala, já havia respondido, a
Querefonte, amigo de Sócrates, a mesma pergunta acerca da arte que ensinava seu mestre
– em particular, na exata maneira que se esperaria do arquétipo platônico de um sofista –
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

: “ἡ καλλίστη” (PLATÃO 1903:448e) – “a mais bela” das tekhnés. Longe de uma


resposta tão evasiva, ou mesmo tão persuasiva, Górgias replica curta e secamente “τῆς
ῥητορικῆς, ὦ Σώκρατες” (PLATÃO 1903:449a) – “de retórica, ó Sócrates”. Em
momento algum se demonstra, da parte desta última personagem, qualquer dúvida de que
a tekhné da qual se ocupava, formulada já nesse termos e portanto pressupondo todo um
arcabouço teórico e métodos, é a ῥητοριϰή. É claro que este conjunto de teorias, regras
e métodos que, por definição, deveria acompanhar qualquer saber formulado sob a
alcunha de τέχνη, como vimos, não encontra referências na literatura sofística no período
a que remete-se o texto (século V) e, portanto, não pode ser atestado historicamente;
entretanto, é precisamente assim que a concepção de “retórica” é apresentada nos
primeiros capítulos do Górgias, como uma arte, ou uma técnica de discurso
completamente formatizada e atuante no contexto epistemológico de Atenas:
Σωκράτης — ἕτεραι (...) γέ εἰσι τῶν τεχνῶν αἳ διὰ λόγου πᾶν περαίνουσι, καὶ ἔργου
ὡς ἔπος εἰπεῖν ἢ οὐδενὸς προσδέονται ἢ βραχέος πάνυ, οἷον ἡ ἀριθμητικὴ καὶ
λογιστικὴ καὶ γεωμετρικὴ καὶ πεττευτική γε καὶ ἄλλαι πολλαὶ τέχναι, ὧν ἔνιαι
σχεδόν τι ἴσους τοὺς λόγους ἔχουσι ταῖς πράξεσιν, αἱ δὲ πολλαὶ πλείους, καὶ τὸ
παράπαν πᾶσα ἡ πρᾶξις καὶ τὸ κῦρος αὐταῖς διὰ λόγων ἐστίν. τῶν τοιούτων τινά μοι
δοκεῖς λέγειν τὴν ῥητορικήν.

Γοργίας — ἀληθῆ λέγεις. (PLATÃO 1903:450d-e)

Sócrates — (...) Há outra classe de artes que realizam todo o seu propósito através do
discurso e, por assim dizer, requerem ou nenhuma ação para auxiliá-las, ou muito pouca;
por exemplo, a aritmética, o cálculo, a geometria, o jogo de damas, e muitas outras artes:
algumas destas possuem os discursos em igual proporção que as ações, mas a maioria os
possui como a maior parte, ou absolutamente toda sua operação e efeito é por meio do
discurso. É uma arte desta classe que imagino que te referes como retórica.

Górgias — Estás certo. (PLATÃO 1967:450d-e)

Pode-se observar claramente, na passagem citada acima o movimento duplo da


abordagem filosófica de Platão: por um lado, delimitar minuciosamente o conceito e, por
outro, naturalizá-lo como algo que já fosse corrente na época. Colocado desta forma, este
esforço platônico nos parece contraditório; como coloca Schiappa: por que logo Platão,
de todas as pessoas, “inventaria um termo para uma habilidade da qual ele obviamente
desconfiava?” (SCHIAPPA 1990:464). Ora, para responder a este questionamento, o que
se deve levar em consideração é o contexto cultural que envolve a obra ao tomar forma,
e que necessariamente lhe serve molde, para além da própria originalidade platônica.
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

Nas palavras de William K. C. Guthrie no quarto volume de seu History of Greek


Philosophy o jogo cênico dos diálogos, e sobretudo do Górgias, documentavam a
crescente desilusão de Platão com a vida pública e a democracia ateniense, em muito
resultada de uma “crise emocional” (GUTHRIE 1975:IV:299) que o filósofo experimenta
após a morte de seu mestre. De fato, em 385, ainda era vívida a lembrança do ambíguo
processo de Sócrates, que ocorrera aproximadamente quinze anos antes motivado, em boa
medida, por intrigas pessoais, além de políticas, com cidadãos ricos e influentes,
especialmente Anito e Licon – como mostra o discurso do réu na Apologia de Sócrates
(XXII) –, e que culminou em sua condenação por uma maioria quase irrisória de juízes.
Mas sobretudo, pelo cenário mesmo das contradições acadêmicas e epistemológicas entre
os pensadores e escolas filosóficas na Atenas do século IV, é possível inferir que, tanto
num sentido mais prático – porque era seu principal projeto estabelecer no contexto
intelectual da cidade sua própria lógos paidéia, aquela dos philosophós –, quanto num
sentido estritamente filosófico – “para delimitar a arte sofística do λóγος aos discursos na
assembleia e nos tribunais” (SCHIAPPA 1990:466), subsumindo a sofística à função do
rhétor – haveria, da parte de Platão, senão grandes interesses, no mínimo motivações
bastante razoáveis para dedicar-se à invenção de termos como ῥητοριϰή. Sendo assim,
“por ambas, razões pragmáticas e filosóficas, Platão queria estabalecer uma distinção
entre sua própria arte filosófica do λóγος e aquela de seus rivais” (SCHIAPPA 1990:466).

Se não retórica, então o que?


A despeito do esforço platônico de diferenciação, uma atenta leitura de diálogos
como O Sofista, O Banquete e principalmente do próprio Górgias pode confirmar que a
distinção essencial, talvez a única diferença de fato significativa, entre as abordagens
lógico-argumentativas do filósofo e do sofista figura somente no registro da moral, da
mera intenção. Isto se torna especialmente evidente no Górgias, na medida em que a
própria noção de retórica como ali formulada funda-se sobre uma ambivalência
ontológica: se por um lado, o diálogo já carrega o subtítulo sugestivo de “Sobre a retórica,
diálogo demolidor”, pretendendo desvelar a ineficiência e as finalidades nefastas da
educação sofística; por outro, estabelece a possibilidade de servir-se dela de forma
correta, evitando a adulação e a injustiça, como recomenda o Sócrates platônico – ainda
que pretenda não conhecê-la –, a “ retórica (...) usada sempre para um propósito, apontar
ao que é justo” (PLATÃO 1967:527c), visando “ao melhor”. Sendo assim, como conclui
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

Barbara Cassin, Platão nos apresenta “não exatamente duas retóricas, mas dois usos – um
mau e outro bom – de uma mesma técnica axiologicamente neutra ou indiferente”
(CASSIN 2005:156), a qual, desta forma, está em ambas sofística e filosofia. No mesmo
sentido, a autora demonstra em sua análise da dicotomia entre o Górgias e o Fedro que,
contraditoriamente a como é concebido no primeiro deles, o conceito de rhetoriké aparece
no último diálogo sob elogio, no concernente ao discurso do belo e do ético. Desta forma,
para Cassin, entre estes diálogos, os dois usos possuem distinções de finalidade, porém
não de abordagem, ou seja, delimitam entre si nada mais que duas naturezas morais, de
teor psicológico, segundo apresenta o esquema abaixo:

Górgias Fedro
retórica = sofística retórica = filosofia
mau uso bom uso
retórica = sofística retórica = filosofia
Górgias no Gorg. Fedro no Górgias
(CASSIN 2005:157)

Assim, quando almejando o caminho às “virtudes da alma” (A República 518d


apud SCHIAPPA 1990:468), justa filosofia, quando um “artífice de persuasão” – πεíθὁυς
δημιουργός (PLATÃO 1903:453a) –, sofística funesta; em todo caso, contudo, uma só
lógon tekhné, uma só retórica. Portanto, ao que tudo indica, se de fato Platão cunhou e
elaborou conceitualmente termos como rethoriké e eristiké, não foi no sentido de fazer
falar a sabedoria de seus antecessores e tanto menos para homenageá-los, mas sim para
fornecer uma distinção clara entre o projeto intelectual destes e o seu próprio,
implicitamente atacando-os, ainda que ciente de que, a rigores metodológicos e mesmo
teóricos, se tratavam da mesma coisa: de retórica; ou antes, de λóγος. Com efeito, o
Górgias platônico não se atrela a nenhuma personalidade, não se posiciona de fato,
servindo ali simplesmente como a contraparte menos interessada de Sócrates, a quem, ao
longo da maior parte da obra, o sofista parece simplesmente condescender com
expressões como “ἀληθῆ λέγεις” – alethé légeis: “falas com verdade”. É difícil de
acreditar, no entanto, que o Górgias histórico em si recorresse com tanta frequência a essa
mesma noção de verdade, ἀλήθεια (Alétheia), já que seu projeto essencial parece ser
justamente a destituição, ou pelo menos a suspensão, deste conceito como algo absoluto
e, em último caso, a completa dissociação entre o que é pensado, o que é dito e o real.
É certo que, como afirma Kathy Eden em Hermeneutics and the Ancient
Rethorical Tradition, “não temos evidência substancial para discussões teóricas acerca
das estratégias nem retóricas, nem interpretativas de antes do século IV” (EDEN 1998:59-
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

86). No entanto, podemos sim, através da análise dos fragmentos e obras que nos foram
legados, buscar compreender ao máximo como estes pensadores que foram eternizados
como sofistas concebiam suas próprias formas de saber e educação. Górgias, deve-se
recordar, foi mestre de Isócrates que, por sua vez, como já mencionado, compreendia seus
ensinamentos como os de uma lógon paidéia, uma educação dos discursos que passava,
antes de mais nada, por uma assimilação técnica da divina Peithó, isto é, como vimos, do
poder de persuasão, de convencimento da palavra. Os princípios lógicos desta forma de
razão, profundamente inspirada nas contradições da democracia e criticada em Platão por
seu relativismo e por sua subjetividade, eram na realidade “nada menos do que as mais
importantes práticas públicas de discurso em Atenas (SCHIAPPA 1990:465). De fato,
como mostra o historiador Marcel Detienne em Mestres da Verdade na Grécia Arcaica,
a própria concepção da Verdade, a ἀλήθεια de que comentamos há pouco, para os
cidadãos gregos, “implica outras potências que contribuem para definí-la, (...) são elas:
Díke, Pístis, Peithó” (DETIENNE 2013:65), ou seja, Justiça, Crença e Persuasão.
Portanto, este conceito ao qual se associa toda uma atmosfera sacro-mitológica e, de
forma geral, tudo aquilo que pode ser considerado como afirmação válida segundo os
critérios de veradicidade da Grécia Antiga, se constitui na articulação de três fatores: de
um lado, num âmbito moral coletivo, a correção daquilo que se profere, seu caráter como
justo ou não; de outro, no âmbito particular do ouvinte, a viabilidade ou a razoabilidade
em se acreditar naquilo que é proferido; e por fim, da parte específica do emissor, a
capacidade de convencer, de persuadir a seus receptores.
Se devemos nos referir diretamente aos tratados e fragmentos de Górgias que
chegaram até nós, é conspícuo notar, numa análise geral de sua obra, que o maior projeto
de seus apontamentos lógicos parece ser o de enfatizar o poder do discurso, em suas
perigosas ambiguidades e todo seu poder de de indução ao ouvinte. O Elogio de Helena,
talvez a contribuição teorética mais importante do século V para nosso mérito em seu
tratamento do lógos persuasivo, significa uma preocupação especial precisamente neste
sentido. Isto torna-se evidente, sobretudo, nas considerações finais do escrito, quando o
logógrafo assume o discurso elogioso à odiada Helena de Troia como, para ele, um
simples jogo: “com o discurso retirei a má reputação da mulher, permaneci na lei que
fixei no princípio do discurso” (GÓRGIAS 2016:21). O que se parece demonstrar aí, sob
auxílio de um arquétipo de rejeição bem conhecido da mitologia, é senão o potencial
enganador e a capacidade de distorção dos discursos, o fato de que, sem prejuízo ao
sentido, as palavras podem guiar a caminhos opostos aos da realidade; em um só termo,
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

a palavra enquanto φάρμᾰκον (phármakon). Referência já muito bem conhecida na


literatura grega – podem ser citados como exemplos clássicos o parricídio de Zeus na
Teogonia de Hesíodo, ou o êxtase de Penteu no desfecho trágico d’As Bacantes de
Eurípedes –, a figura do phármakon remete a esta ambiguidade primordial, do fármaco
em si e, neste caso, do discurso, de servir ora como remédio e ora como veneno, de ser
ora a cura e ora o vício. De todo modo, é exatamente este o mesmo esforço, do
desvelamento da Peithó no lógos, que se observa também na Defesa de Palamades, talvez
neste sob palavras que encaminham mais explicitamente as concepções de Górgias:

Se, por meio das palavras, a verdade dos fatos surgisse pura e evidente aos que ouvem, a
sentença seria fácil a partir do que já foi dito; uma vez que não é assim, vigiai o meu
corpo, aguardai mais tempo e decretai a sentença de acordo com a verdade. (Defesa de
Palamedes 35 apud CAVALCANTE 2016:215)

O trecho das sentenças finais de defesa do pária acusado de traição por Odisseu,
herói cultural dos gregos, nos revela um aspecto essencial das proposições lógicas
gorgianas: como já colocamos, uma separação radical entre realidade, pensamento e
discurso; isto é, o princípio basilar em Górgias, de que aquilo que é de fato real não
necessariamente pode ser imaginado, e menos necessariamente ainda pode ser formulado
em palavras. Esses apontamentos, especialmente este último, são o principal ponto do
lógico em seu mais reconhecido tratado, Sobre o Não-Ser ou Sobre a Natureza, onde se
demonstra, em debate aberto com Parmênides, as aporias do ser formuladas em três
grandes teses, em suma: nada é; mesmo que seja, não pode ser conhecido; mesmo que
seja conhecido, não pode ser comunicado. O movimento autodestrutivo – na medida em
que questiona-se uma tese já postulada como caminho de apontamento para uma outra –
da análise de Górgias, além de demonstrar seu astuto viés argumentativo – possivelmente
aquilo que inspirou Platão a nomeá-lo retórico –, nos permite inferir que, mais importante
do que o questionamento existencial de se as coisas que são realmente são, ou se elas
realmente podem ser acessadas por nossas mentes e propriamente conhecidas, o principal
argumento do texto, e talvez do pensador de um modo geral, é a cisão definitiva entre
discurso e realidade. A questão da verdade fica, assim, suspensa de julgamentos, tudo o
que nos cabe é falar, de forma que qualquer apontamento passa, de forma semelhante à
que interpreta Detienne, pela égide da Πειθώ e, mais ainda, pela vontade do ouvinte.
Em conclusão, se a despeito das poucas informações que temos sobre a “filosofia”
do século V, pudermos nos fiar especificamente no material bibliográfico legado a nós de
Górgias, podemos aferir que a arte ou ofício, senão de todos aqueles que neste período
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

denominam-se λέγειν, pelo menos deste que se destaca como grande precursor e
ensinador da retórica em Platão, é tão simplesmente a arte ou o ofício do λóγoς, do
discurso, ou mesmo, da razão. Ao contrário da assimilação platônica em sua pretensão de
uma “retórica sofística”, as abordagens logográficas dos opositores da philosophia em
seu nascimento e de seus mestres dava ênfase à Persuasão não com o intuito de enviezar
deliberadamente os debates na assembleia e nos tribunais, mas sim, e principalmente no
caso de Górgias, sob uma clara advertência de cuidado, de prevenção ao engano, ao
encanto (magería) das palavras. Por fim, resta que neste, em seu discípulo Isócrates, em
Protágoras e ainda muitos de seus predecessores nisto que se delimitará posteriormente
como paidéia sofística, há senão uma arte do lógos persuasivo, cujo nascimento se vê
intimamente associado aos debates na ágora, mas cujo maior benefício é o simples
reconhecimento da palavra como ferramenta de poder em um contexto democrático e,
mais ainda, como fonte de equívocos e distorções. Há, senão uma das muitas que
circulavam pela polis de Atenas, a primeira e mais importante λóγων παιδεíα que, deve-
se salientar, em nada deve a um conceito como rhetoriké, cujo uso, por simples assunções
históricas, como vimos, não é de forma alguma adequado para referir-se a tempos pré-
socráticos e, com exceção de Platão e poucos exemplos assaz tardios e localizados, nem
mesmo à filosofia do século IV a. C.
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

Referências Bibliográficas

BERTACCHI, André R. O Panegírico de Isócrates: tradução e comentário, ps. 60 e 94.


São Paulo: USP, 2014.

BRANDWOOD, Leonard. A Word Index to Plato, p. 809. Leeds: Maney and Son: 1976.

BRUNNER, Theodore F. Thesaurus Linguae Grecae data bank search (1989); in


SCHIAPPA, Edward. Protagoras and Logos: A Study in Greek Philosophy and Rethoric,
appendix. Columbia: S. C., 1991.

CASSIN, Barbara. “De uma sofística a outra: boas e más retóricas” e “O valor da retórica:
de Platão a Perelman” in O Efeito Sofístico, ps. 143-149. São Paulo: Editora 34, 2005.

CAVALCANTE, Gabrielle. Górgias. “Defesa de Palamedes” in Archai, nº 17, mai-ago,


ps. 201-218. Brasília: Cátedra UNESCO Achai, 2016.

DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, p. 65. São Paulo: Martins
Fontes, 2013.

EDEN, Kathy. "Hermeneutics and the Ancient Rhetorical Tradition, in Rhetorica, nº 5


(1988), ps. 59-86. Lanham: R. A., 1988.

GÓRGIAS. Elogio de Helena e Sobre o Não-Ser ou Sobre a Natureza in


CAVALCANTE, Gabrielle. Sobre Górgias: Nem ser nem não-ser. Dissertação de
mestrado. Brasília, PPGFIL – UnB, 2016.

INSCRIPTIONES GRECAE. SEG 34-15. Athens. Decree concerning the colony at Brea,
ca. 445 B.C (IG i.³ 46, 25), in Supplementum Epigraphicum Graecum (consultado online
em 07 de dezembro de 2017).

GUTHRIE, William K. C. History of Greek Philosophy, vol. IV, ps. 284 e 285.
Cambridge: Cambridge University Press, 1975.

HANSEN, H. Mogens. “Initiative and Decision: the separation of powers in fourth-


century Athens”, GRBS nº 22 (1981), ps. 369-370 apud SCHIAPPA, 1990, p. 457.

HAVELOCK, Eric. Preface to Plato. Cambridge: Belknap Press, 1963.

HOMERO. Ilíada, livro IX, vs. 440-443. Tradução: Frederico Lourenço. São Paulo:
Penguim, 2005.
Luy Zeidan Duarte | 16/0135125
Filosofia Clássica | Profª Gabrielle Cavalcante

HOOK, LaRue Van. Alcidamas. On the Sophists or On the Writers of Written Discourses
in “Alcidamas versus Isocrates”, CW nº12 (1919), ps. 89-94 apud SCHIAPPA 1990, p.
461.

PLATÃO (em grego). Górgias in Platonis Opera (ed. John Burnet), 449a-453a. Oxford:
Oxford University Press, 1903.

PLATÃO (em português). Plato in Twelve Volumes, vol. 3. Tradução ao inglês: W.R.M.
Lamb. Cambridge: Harvard University Press, 1967. Tradução ao português: L. D. Zeidan.

PILZ, Werner. Der Rhetor im attischen Staat. Alemanha: Weida, 1934 apud SCHIAPPA,
1990, p. 458.

SCHIAPPA, Edward. “Did Plato Coin Rhetoriké?” in The American Journal of


Philology, vol. 111, nº 4, ps. 457-470. Maryland: The John Hopkins University Press,
1990.

VERNANT, Jean-Pierre. “O universo espiritual da polis” in As Origens do Pensamento


Grego, p. 53-55. Rio de Janeiro: Difel, 2005.

WILCOX, Stanley. “The Scope of Early Rhetorical Instruction” in Harvard Studies in


Classical Philology, vol. 53, pp. 121-155. Cambridge: Harvard University Press, 1942.

Você também pode gostar