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Lições de história
O caminho da ciência no longo século XIX
Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).
1a edição — 2010
Coedição EdiPUCRS
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-0833-4
ISBN: 978-85-7430-999-6
1. Historiografia. 2. História — Séc. XIX. 3. Historiadores — Séc. XIX.
I. Malerba, Jurandir. II. Fundação Getulio Vargas.
CDD — 907.2
“Eu acredito que é chegada a hora de o público tomar mais gosto pela histó-
ria do que por qualquer outra leitura séria. Talvez esteja na ordem da civi-
lização que, depois de um século que sacudiu fortemente as ideias, advenha
outro que sacuda os fatos; pode ser que estejamos cansados de falar mal do
passado como de uma pessoa desconhecida; talvez seja apenas uma incli-
nação literária. A leitura dos romances de Walter Scott virou muitas imagi-
nações para essa Idade Média da qual antes nos afastávamos com desdém;
e se hoje acontece uma revolução no modo de ler e escrever a história, essas
narrativas, aparentemente frívolas, para isso contribuíram de modo singu-
lar. Foi ao sentimento de curiosidade que elas despertaram em todo tipo de
leitores por séculos, e em homens tidos por bárbaros, que devemos o sucesso
inesperado de publicações mais sisudas.”
Augustin Thierry, Lettres sur l’histoire de France (carta de 1820)
“velha sob a forma embrionária de narrativa, durante muito tempo atra-
vancada de ficções, durante mais tempo ainda vinculada aos eventos mais
imediatamente perceptíveis, a história é, como empresa refletida de análise,
novíssima.”
Marc Bloch, Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien
Iggers, Wang e Mukherjee, 2008.
Usei aqui a tradução francesa (Fueter, 1914:2).
Sato, 2006; Iggers, Wang e Mukherjee, 2008; Torstendahl, 2000; Kramer e Maza, 2002; Kelley,
2003. Para uma abordagem eminentemente comparativa e não eurocêntrica das diversas cul-
turas históricas abordadas, ver Woolf (2005) e seu dicionário (1998), global na melhor acepção
do termo.
Ver livro clássico de Meinecke (1982) e também Berlin (1976).
nifesta e garantida pelo método crítico. Este será a ordem do dia dos his-
toriadores metódicos, ditos “positivistas”. Mas há outro movimento que
não se pode desconsiderar: a civilização ocidental experimenta, ao longo
do século, um dos mais traumáticos processos de desestruturação social,
com o desenvolvimento do capitalismo industrial, a migração em massa da
população rural para as cidades, a eclosão da luta de classes sob o capita-
lismo, que culminaria na “primavera dos povos” e na “comuna de Paris”.
Marx surge como pensador e artífice desse movimento.
Os autores aqui coligidos são expressivos da trajetória da historiogra-
fia ocidental naquele longo século XIX, que reverbera nas primeiras déca-
das do século XX. Nosso intento foi coligir peças importantes do pensa-
mento historiográfico desse período, mantendo sempre plena consciência
dos limites incontornáveis à nossa intenção, estabelecidos pela irresistível
força excludente contida no conceito de “antologia”. Havíamos pensado,
de início, escrever um ensaio mais extenso sobre nosso tema, tarefa que
se tornara inócua por duas razões. Primeiramente, as introduções a cada
peça traduzida constituem um texto em muitas mãos, que fornecem um
quadro informativo e interpretativo sem precedentes. Em segundo lugar, o
capítulo com que François Dosse presenteou esta obra fornece, com raras
profundidade e elegância, uma síntese perfeita como guia de leitura ao
conjunto que se segue.
Por fim, é quase desnecessário lembrar — mas a prudência contra
a má-fé o recomenda — que jamais nos passou pela cabeça “re-habilitar”
qualquer um dos autores aqui coligidos. Entendemos ser pertinente voltar
a esses mestres — e a outros —, sine ira et studio, pois que nos legaram
lições importantes. São nossos mestres, nesse sentido. Porém, depois de
Popper e Kuhn, ninguém será ingênuo o bastante para voltar aonde esses
mestres pararam. Há muito já fomos além. Só não podemos apagar a lem-
brança do caminho percorrido, para nos situarmos com senso no presente,
ante os caminhos que se abrem a nossa frente.
Há um sem-número de obras de síntese, manuais e grandes balanços
da historiografia moderna. Todas essas excelentes obras de glosa, que cons-
tituem o pão de cada dia de todo docente das disciplinas teóricas e histo-
Sobre a “primavera dos povos”, ver Hobsbawm (1999b). Para a revolução industrial, ver Cole-
man (1992); Hobsbawm (1999).
contendo uma direção endógena, que ia além da vontade dos agentes his-
tóricos. A história se transubstanciava assim na narrativa da marcha dos
seres humanos em direção ao melhor, ao progresso, a uma sociedade do
bem-estar para além das provações vividas. Essa história do século XIX
nasceu também dos impactos do Século das Luzes, da ascendência do rei-
no da razão entre filósofos como Kant, Hegel e Marx, que veem na história
a realização, o desdobramento mesmo da racionalidade vivenciada nessa
época. É igualmente necessário destacar, nessa emergência, o grande papel
da ruptura, da fratura decisiva, constituída em pensar e em restituir a uma
temporalidade mais longa a Revolução Francesa e seu eco internacional.
Ela não apenas vai distrair Kant de seu passeio cotidiano, porém vai balan-
çar seriamente as linhas, pois, ao sair do período revolucionário e ao fim do
período imperial, enquanto os exércitos europeus em coalizão restauraram
a monarquia, a interpretação da Revolução Francesa se torna uma questão
central. Como, efetivamente, integrar essa ruptura reivindicada que subi-
tamente aboliu instituições seculares? Foi um acidente, um parêntese que
se podia fechar, ou então o produto do movimento da sociedade, a conse
quência de uma evolução necessária e irreversível que qualquer governo
tem que considerar, como pensavam seus adversários liberais?
Diante da fragilidade dos governos e das instituições políticas, da repe-
tição compulsiva do gesto revolucionário que opõe até mesmo os herdeiros
da revolução entre si, os historiadores reconhecem para si um magistério
formidável: aquele de enunciar a verdade da nação. Por uma reviravolta
singular, o especialista do passado faz figura de profeta. A envergadura
da tarefa, sua importância, suas consequências são poderosos estímulos
para que se renove a forma de escrever a história. Essa já não pode mais
se contentar em ser a crônica dos grandes feitos, nem a produção erudita
amadurecida longe das paixões, muito menos uma grande síntese moral.
Ela tem que articular, a fim de convencer seus leitores, o entendimento do
impulso do movimento histórico e as novas formas de licenciatura com
uma nova forma de narrativa.
É nesse contexto que nasceu na França a escola liberal e romântica, que
teve por figura máxima aquele a quem Charles Péguy chamava de o “gênio
da história”, Jules Michelet. A contribuição dessa escola pode ser declinada
em três pontos: a definição do que são o olhar e as ambições da história,
que marca uma ruptura decisiva com os conceitos e as práticas anteriores
Hartog, 2003.
Chateaubriand, 1831:7.
Mas o século XIX não cabe inteiramente nesse face a face entre história e
literatura, nem na vontade dos historiadores de usar da narrativa e de pensar
sua relação pessoal com a história, ainda que afirmem a especificidade de sua
abordagem. A originalidade dessa história também está ligada ao lugar dado
a uma segunda fonte que alimenta e marca igualmente o discurso histórico:
a filosofia. Como aliar ao mesmo tempo a preocupação erudita, a vontade de
dar vida à história e a de compreender seu movimento? Desse ponto de vista,
há de fato uma tentativa “de unificação do campo histórico” sustentada pela
ambição de produzir uma história total, quer dizer, uma história que ligue o
conjunto das dimensões sociais, pois, como afirma Michelet, “tudo influen-
cia tudo” e, portanto, nenhum elemento pode ser isolado.
Isso toma formas diferentes, conforme cada um dos autores. Em Thier-
ry, traduz-se na adoção da luta como princípio motor da história e na von-
tade, ao término de narrativas em que indivíduos desempenham um grande
papel, de se alçar ao nível coletivo e de definir tipos. Guizot, por seu lado, se
atribui o objetivo de estudar não apenas os fenômenos materiais e visíveis,
mas também de dar lugar aos “fatos morais, escondidos, que não são menos
reais”, aos fatos gerais, para os quais é impossível uma datação precisa e que
não podem ser excluídos da “história sem mutilá-la”. Ele dá o exemplo atra-
vés dos seus desenvolvimentos sobre a mentalidade burguesa ou sobre a luta
de classes: “o que se costuma chamar de porção filosófica da história, as rela-
ções dos acontecimentos, o elo que os une, suas causas e seus resultados, são
os fatos, é a história, tanto quanto as narrativas de batalhas e acontecimentos
visíveis”. A história deve, para que seja plenamente ela mesma, incorporar,
portanto, o que antes era contemplado apenas pelas preocupações da filo-
sofia. Esse desejo de compreensão global do movimento da história não está
menos presente em Quinet do que em Michelet, que dão seus primeiros
passos ao publicar traduções dos filósofos da história: Herder, no que tange
a Quinet, e Vico, no que concerne a Michelet.
A historiografia da primeira metade do século XIX se inscreve numa
relação complexa entre três polos a que podemos chamar de recursos: a
erudição, a filosofia, a literatura. Cada obra oferece delas uma trama par-
ticular. Essa configuração é fonte de riqueza, mas também de fraqueza,
Guizot, 1985:58.
Ibid.
vo, a França deve, como a Prússia depois da derrota em Iena (1806), ser
refundada intelectualmente.
A comparação com a Alemanha se torna um lugar-comum, e a estada
nas universidades alemãs, já estimulada por Victor Duruy, uma etapa ne-
cessária no currículo dos mais brilhantes estudantes franceses, a começar
por Ernest Lavisse, Gabriel Monod, Charles Seignobos ou Camille Jullian,
para ficarmos apenas nos historiadores. O que surpreende na Alemanha
é a luz que várias universidades irradiam, enquanto na França é apenas a
Sorbonne que tem um peso esmagador, sem que, por isso, se tenha cons-
tituído num polo inovador. Essa característica da geografia universitária
germânica é o produto paradoxal da fragmentação desse espaço, durante
a maior parte do século XIX, em uma pluralidade de Estados dos quais
cada soberano se esforçou em desenvolver um núcleo universitário. Disso
resulta um “mercado acadêmico” caracterizado pela mobilidade. Esse no-
madismo dos professores e dos estudantes em busca de melhor situação
ou de melhor formação não para de impressionar os universitários fran-
ceses seduzidos por esse liberalismo temperado, saídos de um sistema em
que a tutela do Estado e, portanto, do poder político se exerce sobre as
nomeações dos professores e pesa até na definição do programa tratado.
Ao contrário da França, onde os estudantes são ouvintes livres, onde os
cursos atraem um público com motivações variadas e onde os próprios
campos disciplinares só são definidos na ausência de ementas específicas,
as universidades alemãs operaram precocemente uma mutação discipli-
nar. Victor Duruy em 1868 e, depois, Ernest Lavisse opõem o público
das universidades alemãs ao público um tanto mundano da Sorbonne.
Além desse público assíduo que se dedica à ciência como a um sacerdó-
cio, que na descrição de Lavisse se destaca pela pobreza do vestuário, a
força da Universidade alemã reside em formar um corpo. Seignobos se
mostra atento a tudo o que facilita a formação de um sentimento de per-
tencimento a um grupo específico. Assim, ele observa que na saída dos
seminários, realizados na casa do professor, os estudantes costumam ir
juntos à cervejaria, onde se cria um laço pessoal entre os alunos de um
mesmo professor. A sociabilidade, é claro, não é o único benefício dos
seminários. Sua primeira virtude é formar os estudantes para manejar os
métodos críticos: “o seminário [...] é, na Alemanha, a verdadeira escola
dos historiadores. Aluno de um professor é não aquele que assistiu a suas
Seignobos, 1934:90.
Humboldt, 1985:67.
Humboldt, 1985:67.
Ranke, 1994:336.
Ranke, 1994:337.
10
Droysen, 2002.
11
Jullian, 1897:304.
12
Lavisse, 1879:48.
13
Apud Hartog (1988:340).
história defendido por Ranke e sua escola: “o indivíduo não possui portan-
to uma liberdade absoluta, ele se move encerrado em seu tempo [...] e tem
somente a liberdade de que dispõe o passageiro a bordo de um navio”.14
Ele pretende fundar a história sobre a noção englobante de cultura. Outros
autores, muitas vezes filósofos, insistem, ao contrário, no fato de que o
conhecimento histórico é o conhecimento de fatos idiográficos. A história
é a “ciência do individual, do que ocorre uma vez, em contraste com o
que acontece nas ciências naturais, que têm por objeto o universal, o que
ocorre sempre com as mesmas características”.15
Como Humboldt já fazia, eles dão ênfase à subjetividade em curso na
escritura da história, à compreensão (verstehen) que o diálogo entre duas
subjetividades pressupõe: a do passado, tal como transparece através dos
documentos, e a do próprio historiador. Eles aprofundam o antigo con-
ceito de hermenêutica (interpretação) e destacam que a especificidade das
“ciências da mente” diante das ciências da natureza se deve, exatamente,
à compreensão da ação humana como sendo dotada de sentido. Essa filo-
sofia crítica da história, qualificada de “historicismo”, é formulada — com
nuanças — por filósofos como Wilhem Windelband, Georg Simmel, Wi-
lhem Dilthey ou Heinrich Rickert.
Diferentemente do que ocorria nos anos 1870, agora é uma reserva
que, de preferência, se manifesta diante das teorias alemãs. Berr insiste nes-
se ponto durante sua exposição. Dessa forma, a virada do século é marcada
por uma relativa autonomização em relação à Alemanha, cujos debates
são lidos através dos enfrentamentos que opõem, na França, os durkhei-
mianos e os metódicos. Essa instrumentalização que amalgama posições
muito diferentes para reconstruir uma oposição simples entre partidários
de uma ciência monotética, calcada nas ciências da natureza, e historicistas
idiográficos foi por muito tempo capaz de encobrir a complexidade das
questões levantadas além-Reno. Daí para a frente é o estilo nacional da
historiografia, tal como se constitui no momento de fundação da disci-
plina, que se impõe e sobredetermina as trocas entre os historiadores dos
diferentes países.
14
Lamprecht, 1900:26.
15
Rickert, 1901:123.
16
Le savant et le politique, de Max Weber, só foi traduzido para o francês em 1959 por Julien
Freund; Les essais sur la théorie de la science, apenas em 1965; e L’éthique protestante et l’esprit du
capitalisme, em 1964.
17
Mesure, 1993.
* A vastidão da bibliografia sobre Voltaire ainda pode ser inferida pelo hoje clássico artigo de Barr
(1951). Limitando-nos aqui a indicar algumas obras relevantes sobre a atuação de Voltaire como
historiador, tais como o estudo pioneiro de Brumfitt (1958) e a recente análise de Volpilhac-Auger
(2009). A melhor edição das obras literárias de Voltaire continua a ser Voltaire (1958).
A data do nascimento de Voltaire não é ponto pacífico. Ainda que hoje se aceite o dia 21 de novem-
bro de 1694, é importante lembrar que contemporâneos de Voltaire, como seus secretários Long-
champ e Wagnière, e como seu biógrafo Condorcet, além do próprio Voltaire, insistiam na data de
20 de fevereiro, alegando que nascera muito frágil e que fora batizado, por decisão da família, apenas
em novembro do mesmo ano. Ver Longchamp e Wagnière (1826:2); Condorcet (1789:3).
Rowbotham, 1932:1.051.
Duvernet, 1786:55; Condorcet, 1789:17.
Para uma relação das obras de Bayle que Voltaire possuía em sua biblioteca em São Petersbur-
go, comprada por Catarina a Grande após sua morte, ver Havens e Torrey (1929:4).
Para um breve levantamento das referências elogiosas de Voltaire a Bayle ao longo de sua obra,
ver Haxo (1931:461). Haxo se concentra na localização de pontos de contato entre ambos até
1726 e comenta detalhadamente possíveis influências de Bayle no poema Henriade.
Bayle, 1692:35 (todas as citações de trechos de obras que na bibliografia se encontram em
francês ou inglês foram traduzidas pela autora).
Ibid., p. 35.
Para uma versão abreviada do dicionário, ver Moréri (1701). Voltaire não se refere, no entanto,
a essa edição em seu artigo Histoire.
Ver Meyer (1958:67-68). Para um comentário sobre as críticas de Voltaire a Bayle e a Bernard
Fontenelle (1657-1757), escritor francês que defendia a ciência e a tradição cartesiana, ver
Brumfitt (1958:26).
10
Duvernet, 1786:62.
11
Ver Morley (1906:306-307).
12
A pressa se justifica: eram vários os poemas e panfletos sobre a batalha que disputavam a
atenção do público, tanto na Inglaterra quanto na França. Na Inglaterra, por exemplo, eram pu-
blicadas sátiras sobre a batalha (ver Fontenoy, a new satyric...), assim como traduções de relatos
franceses do evento (ver The Journal of the...).
13
A edição mais criticada por Desfontaines é a primeira. Ver Voltaire (1745).
14
Voltaire (1757:242) encerra o capítulo destinado à batalha de Fontenoy assim: “entramos nes-
se longo detalhamento da batalha de Fontenoy porque sua importância o merece. Esse evento
determinou o destino da guerra, pavimentou o caminho para a conquista dos Países Baixos, e
serviu como contraponto para todos os desapontamentos. A presença do rei e de seu filho, e
o perigo a que esses dois príncipes e a França estavam expostos aumentaram grandemente a
importância desse para sempre memorável dia”.
15
Duvernet (1786:48) criticou Desfontaines nesses termos: “um dos mais desprezíveis e piores
homens pelos quais a república já fora envenenada”.
16
Desfontaines, 1745:3.
17
Voltaire, 1765:220-225.
18
Ver especialmente Rowbotham (1932:1053, 1057 e 1063). Para uma análise da falta de orien-
tação historicista no modo como Voltaire tratava a moderna cultura chinesa, ver Rosenthal
(1958:172).
19
Ao discorrer sobre os turcos, Voltaire condenava vivamente a existência dos eunucos, de-
monstrando uma preocupação pelo tema característica dos pensadores iluministas. Cf. Goss-
man (1982:40-50).
20
Brumfitt, 1958:129.
21
Griffet, 1769:82.
22
Meyer, 1958:51.
23
Voltaire, 1831:223-224.
24
Newman, 1977:1349.
25
Buckle, 1862:591-592.
26
Morley, 1906:307.
27
Meyer, 1958:52.
28
Brumfitt, 1958:1.
História29
29
Voltaire, 1765:220-225 (tradução e notas de Daniela Kern).
30
As lendas de Rômulo, fundador de Roma, de Tarquínio o Velho e da vestal são narradas pelo
historiador romano Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) em A história de Roma (Ab Urbe Condita).
31
Cláudio Ptolomeu (c. 100-c. 170): matemático, geógrafo e astrônomo grego, autor da Grande
sintaxe matemática (140), importante obra sobre astronomia em que desenvolve o sistema geo-
cêntrico, e que será chamada pelos árabes de Almagesto.
32
Situada em território que hoje pertence ao México, era uma nação independente no período
pré-colombiano, que nunca foi dominada pelos astecas.
33
Colecionados por Thomas Howard, conde de Arundel (1585-1646), compreendiam várias pe-
ças gregas catalogadas já em 1628; Voltaire menciona especificamente aquelas referentes às crô-
nicas de Paros (c. 260 a.C.), que contam a história de Atenas entre 1582 e 354 a.C., e que foram
publicadas pela primeira vez em 1763, em edição bilíngue (grego/latim), sob o título de Arunde-
lian marbles, Marmora Oxoniensia, pelo antiquário inglês Richard Chandler (1737-1810).
34
Com a ajuda de Joana d’Arc, Carlos VII (1403-1461) foi sagrado rei da França em 1429.
Aperfeiçoou o sistema fiscal, reestruturou os exércitos e expulsou os ingleses de quase todo o
território francês.
35
Antoine Gaubil (1689-1759): jesuíta que se instala em Pequim em 1722 e lá vive até o final da
vida, sob o nome de Sun Kiun-yung. Traduziu para o francês diversas obras chinesas, entre as
quais aquela a que Voltaire se refere, a Historie de Gentchiscan et de toute la dynastie des mongous,
ses successeurs, conquérans de la Chine (Paris, 1739).
36
Menés: faraó que unificou o alto e o baixo Egito, fundando, assim, a primeira dinastia
(c. 3100 a.C.). Thot: deus egípcio, considerado o inventor da escrita. Quéops: segundo faraó da
quarta dinastia, governou o Egito entre 2589 e 2566 a.C. Ramsés II ou o Grande: terceiro faraó
egípcio da nona dinastia, reinou entre 1279 e 1213 a.C.
37
Antiga cidade grega localizada junto ao monte Parnaso.
38
Antigo reino da Ásia Menor que se situava na atual província turca de Manisa.
39
Il Milione: O livro das maravilhas, relato da viagem à China escrito em 1298 e reescrito entre
1310 e 1320 por Marco Polo (1254-1324).
40
Último rei lídio (?-680 a.C.) da dinastia heráclida; segundo Heródoto, colocou o amigo Giges
secretamente no quarto da esposa para que a visse nua e desfrutasse de sua beleza. O restante
da história é resumido por Voltaire. Giges opta por matar Candaulo, iniciando assim uma nova
dinastia, a mermnada.
41
Último rei lídio (596-547 a.C.) da dinastia mermnada, tornou-se famoso pela imensa riqueza.
Foi derrotado por Ciro.
42
Charles Rollin (1661-1741): historiador francês, escreveu ao final da vida obras históricas,
como a famosa História antiga (1730-1738) e a História romana. Já em sua época, como se per-
cebe pelo irônico comentário de Voltaire, Rollin era conhecido por reunir acriticamente fatos e
mitos em suas compilações.
43
Ciro o Grande (c. 556-530 a.C.): fundador do império persa, foi o responsável por grandes
conquistas, entre as quais a da Babilônia, em 539 a.C.
44
Região do Irã antigo ocupada pelos descendentes de Elam, primeiro filho de Sem.
45
Povo cita governado pela rainha Tomiris, a qual, segundo Heródoto, teria assassinado Ciro.
46
Voltaire refere-se à Ciropédia (A educação de Ciro), obra em que Xenofonte apresenta, sob luz
muito positiva, a vida de Ciro o Grande.
47
Rei persa (c. 519- c. 466 a.C.), filho de Dario I, travou com os gregos as guerras médicas.
Venceu a batalha das Termópilas e arrasou Atenas, mas teve sua frota destruída em Salamina.
48
Antiga capital do Elam, foi destruída por Assurbanipal em 646 a.C., transformada em capital
do império aquemênida por Dario I e ocupada por Alexandre em 331 a.C., tornando-se, a partir
de então, um centro de cultura helenística.
49
Antiga região a que hoje corresponde parte do Afeganistão, e cuja capital era Bactros.
50
Bósforo: estreito localizado na Turquia, que limita a Europa e a Ásia ligando o mar Negro
ao mar de Mármara. Trácia: antiga região do sudeste da Europa, cujo território corresponde a
partes das atuais Grécia, Turquia e Bulgária.
51
Ou seja, o Usbequistão.
52
Antiga cidade fenícia, era uma grande potência comercial na época de Alexandre e correspon-
de à atual Sur, no Líbano.
53
Região da Grécia central, conhecida na época de Homero como Eólia.
54
Região da Grécia localizada na costa norte do Peloponeso.
55
Batalha naval de Lepanto: em 7 de outubro de 1571 o império otomano foi derrotado em
Lepanto, na Grécia, pela Liga Santa (reino de Espanha, República de Veneza, Estados pontifícios
e cavaleiros de Malta), sob o comando de d. João da Áustria (1547-1578), estrategista militar,
filho bastardo de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano. Batalha de Salamina: em
setembro de 480 a.C. os gregos liderados por Temístocles venceram, em Salamina, os persas
conduzidos por Xerxes.
56
Marcantonio Colonna (1535-1584): almirante italiano, foi capitão-geral da frota da Liga Santa
conduzida por d. João da Áustria na batalha de Lepanto.
57
Temístocles (c. 524-459 a.C.): homem de Estado e general ateniense, foi o responsável pela
estratégia que levou os gregos à vitória na batalha de Salamina. Euribíades: general espartano
que, juntamente com Temístocles, dirigiu a frota grega na batalha de Salamina.
58
Bispo de Tours e historiador (c. 539-594), cuja principal obra, originalmente chamada de
Dez livros de história, mais tarde recebeu o nome de História dos francos. Tal obra, que narra a
história desde o surgimento do mundo até o reinado dos francos, em 572, era muito malvista na
época de Voltaire, entre outros motivos devido ao latim em que fora escrita, considerado pouco
elegante quando comparado àquele das obras de Cícero e Virgílio.
59
Rei (1312-1377) da Inglaterra, transformou seu reino em uma grande potência militar e em
1340, ao reivindicar também o trono da França, deu início à Guerra dos Cem Anos.
60
Rei (1423-1483) da França, sob seu reinado é encerrada a Guerra dos Cem Anos com a In-
glaterra. O Tratado de Picquigny (1475), que possibilitou tal desfecho, envolveu uma grande
soma de dinheiro para que os ingleses abandonassem a França, e é a esse evento que Voltaire
fará referência.
61
Gabriel Daniel (1649-1728): padre jesuíta e historiador francês, foi autor de vasta obra. Vol-
taire aqui se refere a sua obra mais famosa, a Histoire de France depuis l’établissement de la mo-
narchie française (1713).
62
Antiga província do sudoeste da França, tinha como capital a cidade de Bourdeaux e, junta-
mente com a Gasconha, formava desde o século XII o ducado de Aquitânia. Tornou-se inglesa
em 1154 e retornou à França em 1453, do modo como Voltaire irá relatar.
63
Rei (1338-1380) da França, recuperou boa parte do território que ela perdera para a Ingla-
terra após a assinatura do Tratado de Brétigny pelos reis Eduardo III da Inglaterra e João II de
França, em 1360.
64
Rei (1442-1483) da Inglaterra, foi ele o beneficiado do Tratado de Picquigny, assinado com
Luís XI da França, seu principal inimigo.
65
Henrique IV (1553-1610), rei da França. Huguenote, tornou-se rei em 1589 com o auxílio
de Elizabeth I da Inglaterra, que o apoiou no combate à Liga Católica da França, contrária a
sua coroação. Converteu-se ao catolicismo e assinou em 1598 o Édito de Nantes, assegurando
liberdade religiosa aos protestantes franceses.
66
Batalha de Creci: parte da Guerra dos Cem Anos, ocorreu em 1346 entre as tropas de Edu-
ardo III da Inglaterra e Filipe de Valois. Batalha de Poitiers: também parte da Guerra dos Cem
Anos, foi travada entre França e Inglaterra em 19 de setembro de 1356. Batalha de Azincourt:
ocorreu em 25 de outubro de 1415, no norte da França, igualmente como parte da Guerra dos
Cem Anos, e foi travada entre Henrique V da Inglaterra e as tropas comandadas por Charles I
d’Albret. Batalha de Saint-Quentin: ocorrida em 10 de agosto de 1557, resultou na vitória da
Espanha de Filipe II sobre a França.
67
Maurice de Saxe (1696-1750): filho ilegítimo de Augusto, rei da Polônia, em 1743 tornou-se
marechal da França. Um dos maiores estrategistas militares da época, deixou uma obra sobre a
arte da guerra, Mes réveries (1757).
68
Disputa de postos.
69
Rei (1527-1598) do então vasto império espanhol.
70
Sébastien le Preste, de Vauban (1633-1707), audacioso engenheiro militar, nomeado comissá-
rio das fortificações em 1678, sob Luís XIV, construiu mais de 160 fortes, sobretudo nas regiões
de fronteira da França, e é a isso que se refere Voltaire.
71
Aqui Voltaire critica Montesquieu (1689-1755), autor de Considérations sur les causes de la
grandeur des romains et de leur décadence (1734). Mais tarde Marmontel, amigo de Voltaire, irá
se valer dessa original aproximação entre Justiniano e Luís XIV ao conceber sua famosa peça
Bélisaire (1767).
72
Rei (1682-1718) da Suécia e militar talentoso, lutou contra Pedro o Grande da Rússia e Au-
gusto II da Polônia. Derrotado, refugia-se no império otomano, mais especificamente na cidade
turca de Bender, em 1709, lá permanecendo com cerca de 40 soldados até 1714. Voltaire a ele
dedicou uma de suas primeiras obras históricas, Charles XII (1731).
73
Do turco Yeni Tcheri, ou “nova força”, soldados de origem cristã que compunham a elite do
exército dos sultões otomanos e que, quando crianças, foram sequestrados, transformados em
escravos e convertidos ao Islã. Essa prática permaneceu até o início do século XX.
74
Voltaire trata disso no capítulo 25 de Le siècle de Louis XIV (1751).
deve corrigir o outro, e se aqui for encontrado algum erro, ele deve ser
corrigido por um homem mais esclarecido.
Incerteza da história. Distinguimos os tempos em fabulosos e his-
tóricos. Mas os tempos históricos deveriam ter sido distinguidos eles
mesmos em verdades e em fábulas. Não falo aqui das fábulas reconhe-
cidas hoje em dia como tais; não se trata, por exemplo, dos prodígios
com os quais Tito Lívio embelezou ou mimou sua história. Mas nos fa-
tos mais aceitos que razões haveria para duvidar? Que atentemos para
o fato de que a república romana ficou cinco séculos sem historiado-
res, e que o próprio Tito Lívio deplora a perda dos anais dos pontífices
e dos outros monumentos que pereceram quase todos no incêndio
de Roma, pleraque interiere,75 que sonhemos que nos 300 primeiros
anos a arte da escrita era muito rara, rarae per eadem tempora litterae.76
Seria permitido então duvidar de todos os acontecimentos que não
estão na ordem ordinária das coisas humanas. Teria sido bem provável
que Rômulo, neto do rei dos sabinos, tivesse sido forçado a raptar as
sabinas para ter mulheres. A história de Lucrécio seria mesmo veros-
símil? Pode-se crer facilmente na palavra de Tito Lívio, que o rei Por-
sena77 fugiu cheio de admiração pelos romanos porque um fanático
teria querido assassiná-lo? Não seríamos levados, ao contrário, a crer
em Políbio,78 anterior a Tito Lívio em 200 anos, que diz que Porsena
subjugou os romanos? A aventura de Regulus,79 encerrado pelos car-
75
“Quase inteira”. Citação extraída do início do Livro VI da História de Roma desde sua fundação,
de Tito Lívio, em que descreve o incêndio de Roma.
76
“E pela raridade da escrita nesse tempo recuado”, frase de Tito Lívio extraída do mesmo pa-
rágrafo mencionado na nota anterior.
77
Lars Porsena (séc. VI a.C.): rei etrusco que, em auxílio ao rei romano deposto Lucius Tar-
quinus Superbus, teria invadido Roma. Voltaire aponta uma famosa divergência quanto ao su-
cesso ou não nessa invasão existente entre os autores que tratam desse episódio (Tito Lívio e
Políbio).
78
Historiador (c. 203-120 a.C.) grego que, refém dos romanos, viveu 16 anos na Itália. Sua obra
mais importante são As histórias, em quarenta volumes, dos quais restam os cinco primeiros.
Nessa obra narra a transformação de Roma na maior potência do Mediterrâneo, abarcando o
período que vai de 264 a 146 a.C.
79
Marcus Atilius Regulus (?- c. 250 a.C.): general romano na Primeira Guerra Púnica (256 a.C.),
foi tomado como prisioneiro pelo general espartano mercenário Xantipo e conduzido a Cartago,
onde foi morto. Várias versões sobre o modo como morreu mais tarde passaram a circular em
Roma, talvez como propaganda contra Cartago. Segundo uma delas, Regulus teria sido colo-
cado em uma cesta costurada com pontas de ferro; segundo outra, teria sido jogado em uma
masmorra escura e então, depois de ter as pálpebras cortadas, obrigado a olhar para o sol.
80
Louis Moréri (1643-1680): padre francês, autor da enciclopédia de orientação católica Le
grand dictionaire historique, ou le mélange curieux de l’histoire sacrée et profane (1674). Obra muito
consultada e criticada no século XVIII, dela Voltaire possuía a edição holandesa em cinco volu-
mes, de 1740, e o suplemento francês em dois volumes, de 1749.
81
Johann Freinsemius (1608-1660), literato que se tornou professor honorário na Universidade
de Heidelberg até sua morte. Seus suplementos à história romana de Tito Lívio representam
uma tentativa de preencher suas lacunas.
82
Colunas rostratas de Duilius (Columnae Rostratae Duilii): erigidas no Fórum Romano por
Caius Duilius Nepos em homenagem a sua vitória na batalha de Mylae, contra os cartagineses,
em 260 a.C. — primeira batalha naval vencida pelos romanos. Delas subsiste apenas uma.
83
Attus Navius: adivinho durante o reino de Tarquinius Priscus, quinto rei de Roma (616 -578
a.C.), opôs-se à tentativa do imperador de duplicar o número das centúrias equestres (divisão
do exército romano composta de 80 a 100 legionários, com direito a voto no senado), e para
mostrar seu poder teria cortado um calhau com uma navalha.
84
Ceres, a deusa romana que ensinou à humanidade a agricultura, fora muito bem recebida em
Elêusis pelos pais de Triptolemo. Em retribuição, ofereceu a Triptolemo uma carruagem com
dragões alados, para que pudesse viajar pelo mundo semeando grãos de trigo.
85
Legendário sacerdote troiano que alertou os troianos quanto ao cavalo de Troia. Irado pelo fato
de os troianos não haverem considerado seu alerta, atirou seu cajado contra o cavalo. Minerva,
que apoiava os gregos, enviou serpentes do mar que estrangularam Laocoonte e seus dois filhos.
Foi essa a cena retratada na famosa estátua de Laocoonte, do período helenístico, recuperada
pelo romano Felice de Fredi em 14 de janeiro de 1506. Tal estátua era alvo de grande atenção
no período em que Voltaire colaborava com a Enciclopédia: sobre ela escreveram Winckelmann
e Goethe, e a ela Gotthold Lessing dedicou o fundamental ensaio Laocoonte (1766).
86
Exímio tocador de lira da ilha de Lesbos, após haver seduzido um golfinho com a beleza de
sua música, teria sido transportado por ele.
87
Rainha lídia, filha de Iardanus, um deus-rio, que comprou Hércules ao deus Mercúrio e o
manteve como escravo por três anos. Com Hércules teve um filho, Lamos.
88
Denominadas lupercalia, do latim lupus (lobo) e hircus (animal impuro), festejavam-se na
Roma antiga no dia 15 de fevereiro (ante diem XV Kalendas Martias).
89
Segundo o calendário romano, nome dado ao 15o dia dos meses de 31 dias, ou ao 13o dia
dos outros meses. Os idos correspondiam ao período de lua cheia e contavam com oito dias.
Conforme o cálculo detalhadamente explicado por Diderot em sua Enciclopédia, o dia 5 dos idos
de maio corresponderia a 11 de maio.
90
Júpiter, Netuno e Mercúrio ejacularam ou urinaram sobre a pele do boi, conforme o mito.
91
Edward Vernon (1684-1757): oficial naval inglês, liderou o ataque a uma possessão espanho-
la, Cartagena, em 1741, mas a operação foi um desastre. Houve forte resistência no porto de
Cartagena, os ingleses sofreram com doenças e mau tempo, e foram obrigados a se retirar para
a Jamaica.
92
Edward Hyde, conde de Clarendon (1609-1674): historiador e homem de Estado inglês, a
partir de 1667, ano em que cai em desgraça junto ao rei da Inglaterra e em que é obrigado a
exilar-se na França, dedicou-se à escrita de History of the rebellion and civil wars in England, obra
de referência sobre o tema. Voltaire despertava polêmica quando julgava os ingleses superiores
aos franceses, como neste caso em que compara um historiador inglês (Clarendon) a um his-
toriador francês (Retz).
93
Françoise d’Aubigné Scarron (1635-1719): viúva do dramaturgo Paul Scarron, recebeu em
1678 o título de marquesa de Maintenon. Exercia grande influência sobre Luís XIV e é provável
que tenha se casado em segredo com ele entre 1685 e 1686.
94
Historiador grego (60 a.C.-8 d.C.) que viveu em Roma. Publicou em 8 a.C. as Antiguidades
romanas, que trata da história de Roma, da origem vinculada aos gregos até as Guerras Púnicas,
e é a ela que se refere Voltaire.
É tão fácil fazer uma coletânea de gazetas quanto é difícil hoje escrever
a história.
Exige-se que a história de um país estrangeiro não seja de modo
algum lançada na mesma forma que a de sua pátria.
Se você faz a história da França, não é obrigado a descrever o curso
do Sena e do Loire; mas, se você dá ao público as conquistas dos portu-
gueses na Ásia, exige-se uma topografia dos países descobertos. Deseja-
se que você conduza seu leitor pela mão ao longo da África, e das costas
da Pérsia e da Índia; espera-se de você instruções sobre os hábitos, as
leis, os costumes dessas nações novas para a Europa.
Nós temos 20 histórias do estabelecimento dos portugueses nas
Índias; mas nenhuma nos fez conhecer os diversos governos desse país,
suas religiões, suas antiguidades, os brâmanes, os discípulos de Jean, os
guebros, os baneanes.95 Essa reflexão pode se aplicar a quase todas as
histórias dos países estrangeiros.
Se você não tem outra coisa a nos dizer a não ser que um bárbaro
sucedeu a um outro bárbaro às margens do Oxus e do Iaxarte,96 em que
você é útil ao público?
O método conveniente à história de seu país não é apropriado para
escrever as descobertas do novo mundo. Você de modo algum irá escre-
ver sobre uma cidade como sobre um grande império; de modo algum
você irá narrar a vida de um particular como escreverá a história da
Espanha ou da Inglaterra.
Essas regras são bastante conhecidas. Mas a arte de bem escrever
a história será sempre muito rara. Sabemos bem que é preciso um
estilo grave, puro, variado, agradável. Há leis para escrever a história
como aquelas de todas as artes do espírito; muitos preceitos, e poucos
grandes artistas.
95
Voltaire interessou-se cada vez mais pelos hindus e pelos povos do Oriente Próximo ao final
da vida. Aos guebros, “adoradores de fogo”, antigos habitantes da Pérsia que seguiam a religião
reformada por Zoroastro, chegou a dedicar a tragédia Les guebres: ou la tolerance (1769).
96
Oxus: antigo nome grego do rio atualmente chamado Amu Darya, que corre pelo Afeganistão,
Tajiquistão, Turcomenistão e Usbequistão e que é considerado o maior da Ásia Central. Iaxarte:
atual rio Syr-Daria, constituía a fronteira oriental da Pérsia aquemênida.
Não tardou para que Daunou tentasse se firmar também no meio li-
terário. Assim, em 1785 venceu o concurso da Academia de Nîmes, que
ofereceu como tema o Éloge de Boileau. O elogio que Daunou escreveu so-
bre o poeta Nicolas Boileau (1636-1711), no entanto, não teve aprovação
unânime. O periódico Année Littéraire (1754-1790), fundado por um dis-
cípulo direto de Pierre Desfontaines (1685-1745), um dos grandes críticos
de Voltaire, publicou em 1787 uma forte crítica ao texto. Os argumentos
são os mais variados. O articulista, além de lamentar o excessivo apego ao
pensamento de Voltaire (Daunou, diga-se de passagem, permaneceria fiel à
filosofia voltairiana até o final da vida), questiona a estrutura da obra: “seu
plano é mal distribuído e descosido, as observações, superficiais [...]; nada
de aprofundado, nada de luminoso; seu estilo é seco e frio [...]”. Questio-
na, ainda, o status do autor: “o nome do senhor Daunou não é de modo
algum ainda suficientemente importante no mundo literário para que lhe
seja dado peso e crédito”.
Diante da polêmica que se formava, o crítico francês Jean-François de
La Harpe (1739-1803) saiu em defesa de Daunou e escreveu um elogio a sua
obra. O favor não foi esquecido: muitos anos depois, em 1826, Daunou o
retribuiria preparando uma edição anotada da obra de La Harpe.
Daunou se tornou padre ainda em 1787 e, como boa parte dos ora-
torianos, abraçou com entusiasmo a causa revolucionária, após a queda
da Bastilha, e se envolveu rapidamente com questões políticas. Em 10 de
agosto de 1789 foi eleito deputado na Convenção Nacional pelo distrito
de Boulogne, e se aliou aos girondinos. Paralelamente, foi convidado a as-
sumir o posto de vigário metropolitano do bispo de Paris. Sua carreira de
vigário, contudo, seria curta. Em 1792, por decreto da Assembleia Legisla-
tiva, a Congregação do Oratório é suprimida.
Com o fim da carreira religiosa, Daunou voltou todas as suas energias
para a política. Nesses primeiros anos de convenção defendeu veemente-
mente que ela não tivesse poderes de justiça. Derrotado, passou então a
tentar garantir o direito de ampla defesa dos acusados.
A próxima grande discussão que enfrentou foi a do julgamento de
Luís XVI. Opondo-se frontalmente a Robespierre, que defendia a morte
Lettre V (n. 48, 27 nov. 1787). Influence de Boileu sur la littérature française. L’ Année Litté-
raire..., p. 98 (todas as citações de trechos de obras que na bibliografia encontram-se em francês
ou inglês foram traduzidas pela autora).
Ibid., p. 108.
do rei, Daunou lutava por sua extradição. Seu voto foi explicado em um
documento publicado pela convenção, a Opinion de P. C. F. Daunou, sur le
jugement de Louis Capet (1793): “não lerei as páginas sangrentas de nosso
código, uma vez que vocês descartaram todas aquelas em que a humani-
dade traçara as formas protetoras da inocência. [...] Mas não é da natureza
de uma medida administrativa recorrer à pena capital. Essa pena seria útil?
A experiência dos povos que fizeram com que seu rei morresse prova o
contrário. Voto então pela deportação e pela reclusão provisória até que
se atinja a paz”. Ainda que seu discurso tenha causado grande impacto à
época, mais uma vez Daunou foi voto vencido. Em 21 de janeiro de 1793
Luís XVI foi morto na guilhotina.
Entre as muitas tarefas políticas que Daunou precisou cumprir na-
quele ano de 1793, uma foi bastante inusitada: juntamente com seu amigo
Joseph Lakanal (1762-1845), também deputado, foi encarregado pela con-
venção, em 12 de julho, de testar o telégrafo do abade e inventor Claude
Chappe (1763-1805). Conseguiu, com muito sucesso, enviar uma mensa-
gem para seu colega Lakanal através da linha telegráfica recém-instalada
em Paris. A convenção financiou o experimento porque precisava de meios
mais velozes de comunicação.
Ao longo do ano, após a morte do rei, o poder jacobino cresceu, os gi-
rondinos protestaram e, em 3 de outubro, 135 deputados girondinos foram
presos ou levados ao tribunal. Daunou estava entre os presos, e foi das cinco
prisões diferentes pelas quais passou que acompanhou o rápido desenrolar
dos acontecimentos: a proclamação do governo revolucionário pela conven-
ção em 10 de outubro, a morte de Maria Antonieta na guilhotina, em 16 de
outubro, e as sucessivas mortes de vários deputados condenados. A situa-
ção das prisões de Robespierre era extremamente precária, e a possibilidade
de uma morte próxima, para os presos, muito real. Enquanto aguardava,
Daunou estudou os clássicos, principalmente aqueles que, segundo a leitura
iluminista, combatiam a tirania, como Cícero e Tácito.
Daunou já estava na prisão havia quase um ano quando, em 28 de
julho de 1794, Robespierre foi morto na guilhotina. A notícia chegou
Apud Mignet (1854:390).
Daunou e Condorcet, 1794:vii.
Sobre esse episódio, ver Koyre (1948:151).
Daunou, 1907:11.
Essa posição pode ser encontrada em Boissier (1907:79).
Sobre o pensamento dos ideólogos, ver Staum (1987).
esse respeito. Daunou não teve muito tempo para trabalhar em Roma, pois
uma nova convocação do Diretório, ainda em 1798, o fez retornar a Paris.
A república romana, incipiente e frágil, foi derrubada em 1799.
Daunou, em 18 de agosto de 1798, foi novamente eleito presidente
do Conselho dos Quinhentos, a assembleia legislativa que passara a fun-
cionar em 1795. A situação política não estava tranquila. Havia ainda o
medo, entre os girondinos, de que os jacobinos tornassem ao poder por
meio de um golpe. Desse modo, um grupo de girondinos — muitos deles
ideólogos, amigos de Daunou — preparou um golpe que a princípio se
anunciava como preventivo. Em 9 de novembro de 1799, ou 18 brumá-
rio, de acordo com o calendário revolucionário, Napoleão aplicou o golpe
dentro do golpe, dissolvendo o Conselho dos Quinhentos presidido por
Daunou e substituindo o Diretório pelo Consulado.
Daunou, republicano convicto, ao que tudo indica estava ciente de toda
a trama liderada por Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), mas não parti-
cipou diretamente dela e, após o golpe, não escondeu, para os próximos, seu
desapontamento — ainda que em um primeiro momento tenha se envolvido
na redação da Constituição do Consulado, a chamada Constituição do ano
VIII. É importante lembrar que Daunou e Napoleão já se conheciam havia
muito tempo: chegaram a disputar, no início da década de 1790, um prêmio
proposto pela Academia de Lyon com o tema “que verdades e que sentimen-
tos mais importa inculcar nos homens para a sua felicidade?”. Daquela vez
Daunou venceu. As coisas, no entanto, haviam mudado. Napoleão, que cada
vez mais centralizava o poder, tentou manter Daunou sob controle, junto de
si, como conselheiro de Estado. Daunou recusou o primeiro convite, prefe-
rindo ser presidente do Tribunat, onde entrou eleito pela maioria em 1o de
janeiro de 1800. De lá Daunou passou a combater quase todos os projetos de
Napoleão, na tentativa de impor limites legais a seu poder. Em 1o de janeiro
de 1801, por exemplo, combateu a criação de tribunais especiais. Desgosto-
so com a oposição, Napoleão o convidou mais uma vez para ser conselheiro
de Estado e ouviu nova recusa — ofereceu-lhe ainda o cargo de directeur
général de l’instruction publique, também recusado. Diante das insistentes ne-
gativas, Napoleão, irritado, rompeu com Daunou.
A reação no plano político logo se fez sentir: Napoleão, em 7 de março
de 1802, expurgou do Tribunat Daunou e 19 outros opositores, entre os
quais os ideólogos De Tracy e Benjamin Constant. O Senado tentou preser-
Em Langlois (1894:512) encontramos a seguinte análise desse evento: “o império era hostil à
ciência, porque a ciência é ao mesmo tempo um resultado e uma causa inspiradora da liberda-
de”. A interpretação de Boissier e colaboradores (1907:136), um pouco posterior, vai no mesmo
sentido: “o olhar do primeiro cônsul vai além dos fatos para ver o futuro. Ele leu sem ruído
o que mais tarde poderia ter sido levado à realização com escândalo. Ele sentiu uma absoluta
discordância entre seu princípio e aquele da filosofia política”.
10
Para menção ao método de classificação de documentos elaborado por Daunou, ver Edwards
(1848).
11
As amargas reflexões de Daunou sobre sua destituição deste cargo podem ser lidas em Gerard
(1855:98-99).
12
Para uma relação dos professores que atuavam junto com Daunou no collège, ver Collège de
France (2007).
13
Taillandier, 1847:243. Uma descrição da aula inaugural pode ainda ser encontrada em Gerard
(1855:101); Thierry (1835:216-217). O artigo de Thierry fora originalmente publicado no Cen-
seur Européen de 5 de julho de 1819.
14
Daunou, 1844.
15
Para comentários sobre o conjunto do curso de história de Daunou, ver Taillandier (1847:243-
252); Sainte-Beuve (1855:55-59); Gerard (1855:149-155).
16
Sobre o modo como Sainte-Beuve critica Daunou, ver Chadbourne (1965).
17
Sainte-Beuve, 1855:56.
18
Sainte-Beuve (1855:53) parece ter achado a crítica de Daunou a Thierry demasiado severa.
19
Daunou, 1827:721-722.
20
Sainte-Beuve, 1855:68.
21
Daunou, 1842 (tradução e notas de Daniela Kern).
22
Constantin François de Chassebœuf, conde de Volney (1757-1820): historiador, filósofo e
político francês, professor da École Normale (criada durante a Revolução Francesa, em 1794),
autor de obras como Les ruines, ou méditations sur les révolutions des empires (1791), fazia par-
te, assim como Daunou, do grupo de filósofos iluministas que se envolveu com a Revolução:
Condorcet, Helvétius etc. Todos eles eram grandes admiradores de Voltaire, e Volney levou essa
admiração mais longe ao cunhar seu próprio nome: Volney mistura Voltaire e Ferney, a famosa
residência em que Voltaire redigiu muitos de seus manifestos em prol da tolerância, a partir da
década de 1760.
23
Volney, 1810.
de poder quase sempre apagar todos os traços dos erros que dissiparam,
enquanto a história tem a necessidade de conservar entre as lembranças
que reúne aquela mesma das fábulas das quais se liberta, porque o crédito
que essas fábulas obtiveram e a influência que exerceram são fatos que
não lhe é permitido omitir. Ela é, assim, de todas as ciências, a mais inde-
finida em seus objetos, a mais limitada em seus meios; aquela que menos
admite observações imediatas e métodos rigorosos; aquela que tem mais
dificuldade em superar seus erros e que menos pode simplificar-se pelos
seus progressos. É preciso convir, a luz da natureza não brilhou em abso-
luto sobre ela; sua penosa rota, na noite dos tempos passados, foi ilumi-
nada apenas pelos dias artificiais cuja luz se enfraquece, e cujo número
diminui à medida que nos distanciamos do tempo presente.
Todas essas desvantagens da história, eu as tornarei ainda mais sen-
síveis ao ensiná-la no seio de uma escola em que os outros conhecimentos
humanos se destacam ao mesmo tempo pelo vasto brilho que adquiriram
e pelas luzes que a eles acrescentam aqueles que os professam.24 Uns aper-
feiçoam os métodos, enriquecem os detalhes, estendem as aplicações das
ciências matemáticas e físicas: tanto dela esclarecem mesmo a história, ze-
losos em torná-la exata como essas próprias ciências;25 quanto obtêm, por
meio de experiências e de novas análises, os resultados mais apropriados
para confirmar, completar ou retificar as opções adquiridas; preencher, na
descrição da natureza e na teoria de suas leis, as lacunas que apenas eles
perceberam. Os outros, aplicando métodos não menos severos e não me-
nos fecundos ao estudo das línguas do Oriente e da Grécia, fazem brotar,
das profundezas da ciência gramatical, luzes vivas e puras, dignas de escla-
24
Collège de France: escola criada em Paris, no Quartier Latin, por Francisco I em 1530, de
orientação humanista, para competir com a Sorbonne. Seu lema é docet omnia, isto é, “ensinar
tudo”. Desde a fundação, essa escola, ainda hoje uma das mais prestigiadas da França, conta
com professores considerados brilhantes em suas especialidades. Quando Daunou assumiu a
cátedra de história e moral, passou a ser colega de cientistas renomados como Georges Curvier
(1769-1832), encarregado da cátedra de história natural entre 1800 e 1830, e pioneiro nos es-
tudos paleontológicos; e Jean-Baptiste-Joseph Delambre (1749-1822), que ocupou a cátedra de
astronomia de 1807 a 1822 e foi um dos responsáveis pelo estabelecimento do sistema métrico
decimal durante a Revolução Francesa — ele também publicaria uma Histoire de l’astronomie
moderne (1822).
25
Delambre continuava então seu curso de história da astronomia.
26
D’Alembert (Réflexions sur l’histoire).
ela lhes sugere, os grandes traços com os quais ela enriquece suas produ-
ções, quanto todos os talentos, quanto o próprio gênio ainda teria de graças
a lhe render! Com pouquíssimas exceções, os escritores mais ilustres e mais
ricos em recursos próprios são precisamente aqueles que mais se aprazem
em fazer uso dos recursos da história. Cícero, Montaigne, Montesquieu,
Voltaire27 associam a cada instante suas lembranças a seus próprios pen-
samentos, introduzem todas as suas partes em suas concepções, e a fazem
brilhar em suas obras-primas. Não é dela que a poesia toma de empréstimo
o germe ou os detalhes de suas composições mais ousadas? E, sem falar
da epopeia, cujas ficções se enlaçam de algum modo no seio da história,
acaso a cena trágica tem outra origem, e não é nos anais dos povos que ela
sabe descobrir o esboço da maior parte de seus quadros, colher os grandes
traços das figuras que ela anima, reencontrar César e Brutus, Augusto, Nero
e Tibério?28 Aqueles, então, que querem relegar a história ao grupo das
27
Marcus Tulius Cicero (103 a.C.-43 d.C.): advogado, filósofo e homem de Estado romano, foi
autor de obras como as Verrinas (sete discursos contra Verres), as Catilinárias (discursos contra
Catilina), os tratados filosóficos Re publica, De legibus, De natura, e tratados sobre oratória como
De oratore. Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592): escritor francês, consagrou o ensaio
como gênero literário por meio de sua influente obra Ensaios (1580), na qual trata também de
temas históricos. Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689-1755):
filósofo francês, autor de obras importantes como Do espírito das leis (1748) e Considerações
sobre as causas da grandeza dos romanos e sua decadência (1734), esta última histórica, bastante
influente em sua época. François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-17): uma das
principais figuras do Iluminismo francês, publicou vasta obra, dedicada às mais variadas áreas:
teatro, poesia, história, física. Seu trabalho como historiador, com obras como Charles XII, O
século de Luís XIV etc., era bastante respeitado por Daunou.
28
Gaius Julius Caesar (100-44 a.C.): estadista romano que governou Roma, a partir de 49 a.C.,
como ditador, ainda que dentro de um sistema legal republicano. Político hábil e ditador vita-
lício muito poderoso e popular, foi, no entanto, assassinado no Senado romano, em uma cons-
piração armada por Cássio e por Bruto. Marcus Junius Brutus (85-42 a.C.): sobrinho de Catão,
o Jovem, aproximou-se de César, obtendo a posição de pretor urbano (45 a.C.). Descontente
com a aspiração de César à monarquia, une-se a Cássio em um complô para assassiná-lo (44
a.C.). Quando Bruto, juntamente com Cássio, perde a batalha de Filipos para Antônio e Ota-
viano, sucessores de César, suicida-se. Caesar Augustus (63 a.C.-14 d.C.): sobrinho-neto e filho
adotivo de César, foi imperador de Roma entre 31 a.C. e 14 d.C. Conhecido como o imperador
da paz, trocou a política romana de conquistas pelo fortalecimento das fronteiras, assim como
financiou grandes obras públicas. Nero Claudius Caesar Augustus Germanicus (37-68): impe-
rador romano entre 54 e 68, filho de Agripina, que envenenou o marido, o imperador Cláudio,
para que assumisse o poder, manda assassinar a mãe em 59. Persegue os cristãos com violência
e, muito impopular, diante de uma revolta de vários governadores de província, acaba por se
suicidar. Tiberius Julius Cesar (c. 42-37 a.C.): general e diplomata sob o império de Augusto,
foi adotado pelo imperador, com cuja filha, Júlia, se casou e, por sua vez, adotou o sobrinho
Germânico. Reinou de 14 a 37, e o final do império foi marcado por um regime de terror que
atingiu a família real e o Senado.
conduzidos pelo relato das guerras, das conquistas, das usurpações, dos
conflitos interiores, das revoluções, dos golpes de Estado, das catástrofes.
Sem dúvida a história deve abraçar também a origem e o desenvolvimento
das ciências, os progressos das artes, as instituições e as leis, os costumes
e os usos das nações: é mesmo verdade que esses objetos, muitas vezes
considerados acessórios, são os mais importantes de todos; mas eles es-
tão ligados também mais ou menos imediatamente às ideias políticas; de
modo que, à exceção de alguns detalhes biográficos, de ações puramente
privadas, é o quadro dos impérios e dos governos que estará sem cessar sob
nossos olhos. A matéria de nossos estudos nos está dada, não está em nosso
poder desnaturá-la ou modificá-la; e se chegarmos, com efeito, a reduzi-
la ao que não interessa de modo algum ao sistema social, conseguiremos
apenas torná-la estéril, e substituir por pesquisas ociosas os conhecimentos
essencialmente proveitosos.
Assim, não tememos observar estudiosamente o jogo dos interesses e
das paixões políticas; desembaraçar, se nos for possível, as causas secretas dos
mais vastos movimentos; recolher, enfim, através dos séculos passados, todas
as lições da experiência, a fim de que, em nosso próprio tempo, nossa expe-
riência imediata torne-se mais real e mais instrutiva. Cabe à história começar
o que acaba o hábito dos negócios, lançar nos espíritos atentos os primeiros
elementos do conhecimento dos homens e os germes dessa verdadeira sabe-
doria que se compõe de prudência e de probidade, muito experiente para se
deixar enganar, muito esclarecida para enganar ela mesma. Os senhores hão
de reconhecer que as mais leais máximas são precisamente aquelas que a
história ensina; as melhores leis, aquelas que ela recomenda; as práticas mais
imparciais, aquelas que ela indica como mais hábeis e menos perigosas. Não
duvidemos que a arte social lhe deva uma grande parte de seus progressos:
ela revelou ao monarca esclarecido que nos governa29 os princípios dessa lei
fundamental, em que são aproveitados todos os conselhos da experiência,
29
Em plena Restauração, Daunou não deixa de se valer de ironia nesse comentário sobre Luís
XVIII (1755-1824), irmão de Luís XVI e então governante da França, ao chamá-lo de “monarca
esclarecido”. Daunou, republicano, que na Convenção de 1795 qualificara a monarquia de
“governo tão vil quanto absurdo”, fora bastante prejudicado durante o notoriamente reacioná-
rio governo de Luís XVIII, ao ser destituído, em 1816, da função de garde général des archives
du royaume. Até mesmo a sua indicação como professor do Collège de France demorou a ser
autorizada pelo rei.
não deve resultar nenhuma ciência útil, nem mesmo usual. A cronologia
pode ser dividida em três partes: uma técnica, outra sistemática, e a ter-
ceira, positiva. A primeira se liga, de uma parte, à astronomia, de outra,
às instituições que diversamente concorreram para a divisão do tempo
em diferentes séries, pequenas ou grandes, definidas e se renovando pe-
riodicamente depois de haverem atingido seu termo, ou ainda ilimitadas
e destinadas a se prolongarem no curso inteiro dos séculos. Todos esses
ciclos e todas essas eras, depois de haverem formado quadros distintos,
reuniram-se em um único quadro comparativo e geral em que deverão se
distribuir os fatos históricos; e, conforme essa distribuição seja mais ou
menos determinada por monumentos, por relações originais e precisas, a
cronologia se tornará ou constante ou problemática. Depois de havermos
exposto algumas das questões que permanecem, com efeito, difíceis de
resolver, nós nos aplicaremos a recolher indicações positivas; e se não pu-
dermos levar suficiente luz sobre as idades mais recuadas, tentaremos ao
menos vincular a cada um dos 28 séculos que transcorreram de Homero a
nossos dias o que existe de lembranças preciosas, ao mesmo tempo por sua
própria consistência e pela brilhante celebridade dos acontecimentos e das
personagens que evocam. Assim serão preenchidos não todos os pontos do
quadro de que acabo de falar, mas aqueles que podem iluminar os outros
e em torno dos quais deverão se acumular detalhes inumeráveis de todos
os anais gerais e particulares. Virá o tempo em que verificaremos com rigor
cada um dos artigos reunidos nesse manual de história universal: enquanto
isso, ele nos servirá de guia; e se puder nos deixar entrever os traços distin-
tivos de cada época, se puder nos indicar a origem das instituições funestas
ou benemerentes, o curso dos erros ou das luzes, o progresso da desordem
ou da civilização; esboçar, enfim, a imagem dos destinos do gênero huma-
no, ele nos fará pressentir a alta importância dos estudos dos quais nos terá
traçado o plano.
Quando os fatos tiverem sido verificados com exatidão, escolhidos
com discernimento, dispostos com método; quando o historiador tiver as-
sim se tornado mestre de uma matéria sã, rica e fecunda, teremos o direito
de esperar que, por meio de um outro trabalho, ainda difícil, mas prepara-
do de modo tão feliz, ele saberá revesti-la com as formas mais convenientes
e por vezes mais brilhantes. É raro que a força do talento abandone a razão
e o verdadeiro saber. Um estilo obscuro, incorreto, sem movimento e sem
30
Daunou se refere às seguintes obras: de Tucídides (c. 460-c. 395 a.C.), História da guerra do
Peloponeso; de Xenofonte (c. 431-355 a.C.), Ciropédia; de Júlio César (100-44 a.C.), Comentários
sobre a guerra gálica e Comentários sobre a guerra civil; de Salústio (86-35 a.C.), Conspiração de
Catilina; e de Tácito (c. 55-c. 120), Histórias.
31
Daunou refere-se ao artigo “Histoire”, de Voltaire, publicado no oitavo volume da Encyclopédie
(1765).
para que sua memória permaneça para sempre presente: o sr. Clavier32 faz
falta todos os dias àqueles que o frequentaram, como eu, a cada dia, duran-
te vários anos. Ele muitas vezes me entreteve com essa mesma função que
acabo de assumir depois dele, e nunca previ que suas reflexões sobre seus
próprios trabalhos viessem a me servir para dirigir, um dia, os meus. Ele
de modo algum me legou sua ciência vasta e profunda, mas me deixou ver
por quais cuidados assíduos, por quais estudos ele a adquirira e continuava
a enriquecê-la. Vi, sobretudo, como ela nele se aliava a uma razão forte, a
hábitos doces, às mais honrosas afeições. Suas virtudes privadas e públicas
se confundiam a tal ponto com suas luzes, que se podia colocar em dúvida
se ele devia à natureza ou ao estudo um caráter moral ao mesmo tempo tão
simples e tão nobre. Jamais os conhecimentos históricos foram mais bem
recomendados pelas ações e hábitos de uma vida consagrada a cultivá-los;
e se é verdade, senhores, que eles tiveram tal influência sobre o espírito e o
coração daqueles que melhor sabem adquiri-los, não devemos ter medo de
fazer a mais alta ideia de sua utilidade. Não, não haverá mais exagero nos
magníficos elogios que demos à história: é verdadeiro dizer que, ao formar
homens tão virtuosos e tão benemerentes, ela é, como o afirmaram os anti-
gos, a benfeitora universal do gênero humano.
32
Étienne Clavier (1762-1817): magistrado e historiador, tradutor de Plutarco, Pausânias e
Pseudo-Apolodoro, autor de Histoire des premiers temps de la Grèce, depuis Inachus jusqu’à la chute
des Pisistratides (1809), foi titular da cátedra de história e moral do Collège de France de 1812
até sua morte, em 1817.
Michelet, que viveria, então, entre a França e a Itália, é também considerado o inventor do
termo Renaissance, o qual foi empregado nas obras de 1855-1858, significando a descoberta
do mundo pelo homem, no século XVI. O historiador Jakob Burckhardt, no seu The civilization
of the Renaissance in Italy (1860), ampliou a concepção de Michelet. Para ele o Renascimento
estaria localizado na Itália de Giotto e Michelangelo, e representava a época de nascimento da
modernidade.
A feitura dessa obra — como certa feita disse Roland Barthes — coin-
cide com a própria vida de Michelet. A tarefa que fora iniciada em 1833
só é terminada em 1867, e o historiador morre em 1874. Dessa maneira,
pode-se dizer, sem medo de errar, que a “história” de Michelet coincide
com a História da França que o historiador empenhara-se tanto em reali-
zar. Mas nessa grande saga, longe dos heróis ou dos bandidos, dos reis ou
dos nobres, o grande figurante é a nação francesa e seu povo. O povo e o
camponês franceses surgem na cena política e cultural nacional, para não
perderem mais seus lugares, e a Revolução é ela própria vivida como um
caso de amor. Não a revolução do terror, ou das ditaduras, consideradas
desvios enganosos. Mas a Revolução que anunciava a igualdade e a fra-
ternidade, e que efetivamente convulsionou o mundo ocidental. Aí está a
interpretação romântica desse autor que definitivamente conferiu ao povo
não só a sensibilidade, mas a generosidade e a sagacidade dos grandes
agentes históricos.
A História da Revolução Francesa foi escrita em volumes separados,
que ganharam um tom mais elevado, próprio daquele que testemunha e
procura pouco arbitrar; a despeito de não conseguir se afastar, totalmente,
da tentação. Michelet era um escritor ligeiro e se começou a tarefa em 26
[...] Uma palavra sobre como se fez este livro. Ele nasceu no seio dos
Arquivos. Escrevi-o por seis anos (1845-1850) nesse depósito central onde
eu era chefe da seção histórica. Depois do 2 de dezembro, precisei ainda
de dois anos, e terminei-o nos arquivos de Nantes, bem perto da Vendeia,
de onde explorei também as preciosas coleções.
Armado das próprias atas, das peças originais e manuscritas, pude
julgar os impressos, e sobretudo as memórias que são defesas, por vezes
engenhosos pastiches (por exemplo, os que Roche fez para Levasseur).
Avaliei dia a dia Le Moniteur, muito seguido pelos senhores Thiers,
Lamartine e Louis Blanc.
Desde a origem, ele é arranjado e corrigido a cada noite pelos podero-
sos do dia. Antes do 2 de setembro, a Gironda o altera, e no 6, a Comuna.
Assim como em toda grande crise. As atas manuscritas das assembleias
ilustram tudo isso, desmentem Le Moniteur e seus copistas, a Histoire par-
lementaire e outras, que muitas vezes estropiam ainda mais esse Moniteur
já estropiado.
Uma raríssima vantagem que talvez nenhum arquivo do mundo apre-
sentasse no mesmo grau que eu encontrava nos nossos, para cada aconte-
cimento capital, relatos muito diversos e inúmeros detalhes que se comple-
tam e se verificam.
Para as federações, tive relatos às centenas, vindos de outras tantas
cidades e aldeias (arquivos centrais). Para as grandes tragédias da Paris
Michelet, 1989.
Trata-se de dezembro de 1851, data do golpe de Luís Bonaparte, então presidente da Repúbli-
ca, do qual resultou — dali a um ano — ele tornar-se imperador com o nome de Napoleão III.
A repressão aos republicanos fez-se por demissões, prisões, banimentos. (N. do E.)
Le Moniteur Universel foi o jornal oficial criado por Napoleão I e publicado pela primeira vez
em 1789, tendo durado até 1901. (N. do E.)
entanto um raio de luz, tudo isso tocou, e um dos meus amigos, de partido
contrário, confessou-me que ao ler verteu lágrimas.
Nenhum desses grandes atores da revolução me deixou frio. Não vivi
com eles, não acompanhei cada um deles, no fundo de seu pensamento,
em suas transformações, como companheiro fiel? Com o tempo, eu era um
dos seus, um familiar desse estranho mundo. Eu me dera olhos para ver
entre essas sombras, e creio que elas me conheciam, viam-me só, com elas
nessas galerias, nesses vastos arquivos raramente visitados. Algumas vezes
eu encontrava o marcador no lugar em que Chaumette ou um outro o pôs
no último dia. Tal frase, no rude registro dos cordeliers, não foi terminada,
cortada bruscamente pela morte. A poeira do tempo permanece. É bom
respirá-la, ir e vir através desses papéis, desses dossiês, desses registros.
Eles não estão mudos, e tudo isso não está tão morto quanto parece. Eu
jamais os tocava sem que certa coisa deles saísse, despertasse... É a alma.
Na verdade, eu merecia isso. Não era autor. Estava a 100 léguas de
pensar no público, no sucesso: amava, eis tudo. Ia aqui e ali, obstinado e
ávido; aspirava, escrevia essa alma trágica do passado. [...]
Os cordeliers (franciscanos), também conhecidos como Clube dos Cordeliers ou, formalmente,
Sociedade dos Amigos dos Direitos do Homem e do Cidadão, eram uma sociedade de caráter
populista à época da Revolução Francesa. Ganharam essa alcunha porque as reuniões do clube
aconteciam no mosteiro dessa ordem. (N. do E.)
Esta seção consiste numa espécie de introdução ao livro III (6 de outubro de 1789-14 de julho
de 1790), onde Michelet revela os fundamentos de sua abordagem, seu entendimento sobre o
conhecimento histórico, que procura rapidamente sistematizar no “Prefácio de 1868”.
mente o fundo sobre o qual a era moderna hoje constrói. Pudemos apre-
ciar, melhor talvez do que se faz com um olhar rápido, onde está a base
sólida, onde estariam os pontos ruinosos.
A base que menos engana, estamos felizes de dizê-lo àqueles que vi-
rão depois de nós, é aquela de que os jovens eruditos mais desconfiam, e
que uma ciência perseverante acaba por descobrir tão verdadeira quanto
forte, indestrutível: a crença popular.
Verdadeira no total, embora seja, no detalhe, carregada de ornamentos
legendários, estranhos à história dos fatos. A lenda é uma outra história, a
história do coração do povo e de sua imaginação.
Demos, na cena do 6 de outubro (tomo I), um notável exemplo desses
ornamentos legendários que de maneira alguma são mentiras do povo, que
então afirma apenas o que viu com os olhos do coração.
Afastai os ornamentos; o que resta, na crença popular, especialmente
no que concerne à moralidade histórica, é profundamente justo e verda-
deiro.
Não é preciso que nossa confiança em uma cultura superior, em nos-
sas pesquisas especiais, nas descobertas sutis que acreditamos ter feito,
faça-nos desdenhar facilmente a tradição nacional. Não é preciso que levia-
namente empreendamos alterar essa tradição, criar-lhe, impor-lhe uma ou-
tra. Ensinai o povo em astronomia, em química, tanto melhor; mas quando
se trata do homem, isto é, de próprio, quando se trata de seu passado, de
moral, de coração e de honra, não receeis, homens de estudos, deixar-vos
ensinar por ele.
Quanto a nós, que de modo algum temos negligenciado os livros, e
que, ali onde os livros se calavam, temos buscado, encontrado recursos
imensos nas fontes manuscritas, não temos deixado, em toda coisa de mo-
ralidade histórica, de consultar antes de tudo a tradição oral.
E essa palavra não quer dizer para nós o testemunho interessado
de tal ou tal homem de então, de tal protagonista importante. A maior
parte dos depoimentos desse gênero tem muito a lucrar com a história
para que ela possa neles encontrar guias confiáveis. Não, quando digo
“tradição oral” entendo “tradição nacional”, aquela que permanece gene-
ralizadamente difundida na boca do povo, o que todos dizem e repetem,
os camponeses, os homens de cidade, os velhos, os homens maduros, as
mulheres, mesmo as crianças, o que podeis aprender se entrardes à noite
Isso não contradiz em nada o que dissemos no capítulo 9 do livro IV. Ali se tratava do público,
aqui, do povo. Seria insultar a inteligência do leitor explicar a diferença.
A Batalha de Austerlitz — ou Batalha dos Três Imperadores — foi uma das maiores vitórias mi-
litares de Napoleão, na qual destruiu definitivamente a Terceira Coalizão que se levantara contra
o império francês. Em 2 de dezembro de 1805, sob o comando de Napoleão I, uma armada
francesa subjugou o exército austro-russo comandado pelo czar Alexandre I, numa batalha san-
grenta de quase 10 horas. Essa batalha aconteceu nas imediações de Austerlitz, cerca de 10 km
de Brno, na Morávia. A batalha de Austerlitz entrou para a história como uma obra-prima de
tática de guerra. A ilha de Santa Helena era uma colônia britânica onde os ingleses encarceraram
Napoleão após sua derrota, de onde ele não saiu até 1821, ano de sua morte. (N. do E.)
Sir William Pitt, ou o “segundo Pitt”, líder político inglês que inspirou e financiou as sucessivas
campanhas contra a França revolucionária e napoleônica, até sua morte em 1806. Frederico
Josias, duque de Saxe-Coburgo, foi um general austríaco nas campanhas contra a França revo-
lucionáiria, e a expressão “Pitt e Coburgo” tornou-se célebre para designar as monarquias ini-
migas da Revolução e os traidores internos. Os chouans foram os contrarrevolucionários bretões
dos primeiros anos da Revolução, católicos, monarquistas, sobretudo na Vendeia. Coblença,
cidade renana alemã, foi o ponto onde os emigrados se reuniram para formar o exército que
invadiria a França em 1792. Goddem (ou les goddamns ou les goddams) é um tratamento pejo-
rativo com que os franceses se referiam aos ingleses (especialmente os da infantaria) desde a
Guerra dos Cem Anos — e em muitos outros conflitos entre Inglaterra e França desde a Idade
Média. (N. do E.)
10
Prairial foi o nome dado ao nono mês do calendário da Revolução Francesa: de 20 de maio a
18 de junho. (N. do E.)
11
Referência à locução francesa em que “sob o olmo” é o lugar de uma espera vã. (N. do T.)
12
Literalmente: “e agora compreendeis, ó reis; instruí-vos, vós que governais a Terra”. São pala-
vras do salmo II, versículo 10, do Livro Santo, citadas para ensinar que devemos ser humildes
e aproveitar da experiência alheia. (N. do E.)
13
Num belíssimo artigo em que o jornal La Fraternité (outubro de 1847) coloca o verdadeiro
ideal da história, ele reduz muito, contudo, a parte do gênio individual.
quero, ordeno que me conteis o que não vistes, que me ensineis meu pen-
samento secreto, que me digais pela manhã o sonho esquecido da noite”.
Grande missão da ciência e quase divina! Ela jamais bastaria para
isso se fosse apenas ciência, livros, penas e papel. Não se adivinha uma
tal história senão ao refazê-la com o espírito e a vontade, ao revivê-la, de
modo que não seja uma história, mas uma vida, uma ação. Para redes-
cobrir e relatar o que esteve no coração do povo só há um meio: é ter o
mesmo coração.
Um coração grande como a França! O autor de tal história, se algum
dia for realizada, será, com certeza, um herói.
Que admirável equilíbrio de justiça magnânima se encontrará nesse
coração! Que sublimes balanças de ouro! Pois, afinal, ser-lhe-á necessário,
na grande justiça popular, que decide em geral, avaliar nos indivíduos a
justiça de detalhe, redescobrir em cada um, por uma benevolente equida-
de, suas circunstâncias atenuantes, e, mesmo sobre o mais culpado, condu-
zindo-o ao tribunal, dizer ainda: “foi homem também”.
Essas reflexões nos detiveram muitas vezes, muitas vezes nos fizeram
sonhar por longo tempo. Sentíamos bem demais o que nos faltava, em pu-
reza, em santidade, para atingir esse equilíbrio.
O que podemos dizer, ao menos, é que, digno ou não, nós tocamos
essa balança com mão atenta e escrupulosa.14 Jamais esquecemos que pe-
sávamos vidas de homens... de homens, ah, que viveram tão pouco. E uma
circunstância grave no destino dessa geração, que nos obriga, para sermos
justos, a nos tornar indulgentes: ela tombou em um momento único, em
que se acumularam séculos; coisa terrível, jamais vista: não mais sucessões,
não mais transições, não mais duração, não mais anos, não mais horas nem
dias, suprimido o tempo!
Alguém, em 1791, na Assembleia Nacional, lembrava 89: “sim”, como
se diz, “antes do dilúvio”. Camille Desmoulins, falando em 1794 de um ho-
mem de 92: “um patriota antigo na história da Revolução”. O mesmo, ca-
sado no final de 1790, escreve em 93: “das 60 pessoas que vieram ao meu
casamento, restam duas, Robespierre e Danton”. Ele não tinha acabado a
linha, e dos dois só restava um.
Não temos, nesta história, nenhum interesse além da verdade. Não seguimos às cegas nenhu-
14
Ozouf, 1999.
A citação foi retirada do prefácio do autor à edição de 1826 (p. xxii).
Reis, 2007:207.
Sua Excelência decidiu que a obra cuja reimpressão vós demandais, por não
ter sido publicada na França, deverá ser submetida às formalidades pres-
critas pelos decretos imperiais concernentes à imprensa. Em consequência,
senhor, vós deveis, vós ou vosso editor, fazer à direção geral da imprensa a
declaração de querer imprimi-la, e ali depositar simultaneamente a edição
da qual vós demandais a reimpressão, a fim de que ela possa passar pela
censura (Paris, 24-11-1812).
Estudos históricos sobre a queda do império romano, o nascimento e o progresso do cristianismo e a
invasão dos bárbaros (1831). As obras de Chateaubriand foram em diversos momentos reunidas
em edição coletiva. A edição de 1839, por Firmin Didot, em cinco volumes, foi a primeira em
que seus escritos diversos e esparsos foram classificados num sistema bibliográfico composto de
partes completas e independentes entre si. A primeira delas reuniu as Obras históricas: Études
historiques, Essai historique sur les révolutions anciennes... e Histoire de France. A segunda parte
compreende suas Obras políticas: Mélanges historiques, Mélanges politiques, Opinions et discours,
Polémique. A terceira parte, Obras morais, é composta de Le genie du christianisme e Les mar-
tyrs. A quarta parte se compõe de viagens: Itinéraire de Paris à Jérusalém, Voyages en Italie, en
Amérique etc., Les natchez, Atala, Le dernier des abencerages. Na quinta parte, Obras literárias,
aparecem Essai sur la littérature anglaise, Le paradis perdu, Mélanges littéraires, Poésies. As obras
foram traduzidas em grego, inglês, alemão, russo, italiano e espanhol, e amplamente difundidas
nas bibliotecas europeias.
Analyse raisonnée de l’histoire de France.
de exegese dos textos que deveriam ser submetidos ao crivo da dúvida para
certificação de seu valor como testemunhos.
Não pode passar desapercebida a atração sentida por Chateaubriand
pela escola histórica alemã, da qual possuía conhecimento precário. Além
dos avanços em erudição e método, encontrou ali oposição à Revolução
Francesa e aos filósofos que a legitimavam. Além de se ocupar mais da
experiência vivida dos homens do que da filosofia para ajudar a compre-
ensão da história, essa historiografia buscava no passado uma justificativa
para a permanência de instituições feudais ainda existentes à época. Com
ela Chateaubriand compartilhou a paixão pelo passado medieval e o gran-
de interesse pelas narrativas populares, pelas lendas, pela poesia antiga e
pelas gestas escandinavas como fontes históricas, alargando o horizonte do
historiador para além da história política estritamente considerada. Trata-
va-se de uma adequação da base empírica à narrativa poética, centrada na
intuição e na imaginação, que caracterizou os historiadores românticos,
também produtores de romances históricos.
Em Chateaubriand a associação entre escrita da história e a vida pú-
blica assumiu os contornos mais profundos e dramáticos, com repercussão
significativa em seu trabalho. Sua vida e sua obra retratam os tempos vio-
lentos da revolução: trauma e fragmentação social, assassinatos, oportunis-
mo e terror. Amante da aventura, de espírito romântico, leitor de novelas
de cavalaria, defensor da monarquia liberal, seus escritos revelam uma vi-
são de mundo romântica, religiosa e aristocrática da França que oscilou
entre restauração e república até a guerra franco-prussiana (1870/1871).
Bourdé e Martin, 1983.
Alcañiz, 2006.
Chateaubriand, 1843.
Sem ter os talentos desses historiadores, posso imitar seu exemplo; posso
dizer, como Heródoto, que escrevo para a glória de minha pátria, e porque
vi os males dos homens. Mais livre que Tácito, não amo nem temo os tira-
nos. Agora isolado sobre a Terra, não esperando nada de meus trabalhos,
encontro-me na posição mais favorável para a independência do escritor,
pois já convivo com as gerações das quais evoquei as sombras.
As sociedades antigas perecem; de suas ruínas saem sociedades no-
vas: leis, costumes, usos, hábitos, opiniões, princípios mesmo, tudo mu-
dou. Uma grande revolução aconteceu, uma grande revolução se prepara:
a França deve recompor seus anais, para colocá-los em contato com os
progressos da inteligência. Nessa necessidade de uma reconstrução sobre
um novo plano, onde buscar materiais? Quais foram os trabalhos exe-
cutados antes do nosso tempo? Que existe a louvar ou a lamentar nos
escritores da antiga escola histórica? Deve a nova escola ser inteiramente
seguida, quais são os autores mais notáveis dessa escola? Seria tudo ver-
dadeiro nas teorias religiosas, filosóficas e políticas do momento? Eis o
que me proponho examinar neste prefácio. Eu trabalhava havia anos em
uma história da França, da qual estes estudos não representam senão a
exposição, as visões gerais e os destroços. Falta minha vida à minha obra:
no caminho onde o tempo me retém, eu aponto com a mão aos jovens
viajantes as pedras que eu havia acumulado, o solo e o lugar onde eu
queria construir meu edifício.
Os antigos haviam concebido a história de modo muito diferente do
nosso; eles a consideravam um simples ensinamento, e, sob esse aspecto,
Aristóteles a colocou num patamar inferior ao da poesia: eles concediam
pouca importância à verdade material; e isso lhes bastava, ainda que hou-
vesse nela um fato verdadeiro ou falso a relatar, que esse fato oferecesse
um grande espetáculo ou uma lição de moral e de política. Liberados
dessas imensas leituras sob as quais a imaginação e a memória são igual-
mente esmagadas, eles tinham poucos documentos para consultar; suas
citações são quase nada, e quando eles remetem a uma autoridade, é qua-
se sempre sem indicação precisa. Heródoto contentou-se em dizer em seu
primeiro livro, Clio, que escrevia conforme os historiadores da Pérsia e da
Fenícia; em seu segundo livro, Euterpe, ele falava conforme os sacerdotes
egípcios que lhe leram seus anais. Ele reproduziu um verso da Ilíada, uma
passagem da Odisseia, um fragmento de Ésquilo: não fizeram falta a He-
ródoto outras autoridades, nem aos seus ouvintes nos Jogos Olímpicos.
Tucídides não fez uma única citação: mencionou somente alguns cantos
populares.
Tito Lívio nunca se apoiou sobre um texto: autores, os historiadores
relatam; é sua maneira de proceder. Em sua terceira Década, ele lembrou os
dizeres de Cintius Alimentus, prisioneiro de Aníbal, e de Coelius e Valerius
sobre a guerra púnica.
Em Tácito as autoridades são menos raras, ainda que bem pouco nu-
merosas; não se podem contar senão 13 referências: são elas, no primeiro
livro dos Annales, Plínio, historiador das guerras da Germânia; no quarto
livro, as Memórias de Agripina, mãe de Nero, obra cuja perda nunca será
suficientemente lamentada; no terceiro livro, Fábio Rústico, o historiador
Plínio e Cluvius; no 14o livro, Cluvius; no 15o, Plínio. No terceiro livro de
Histórias, Tácito mencionou Massala e Plínio, e remeteu às Memórias que
tinha em mãos; no quarto livro, ele se referiu aos sacerdotes egípcios; nos
Costumes dos germânicos, escreveu um verso de Virgílio modificado. Com
frequência ele dizia: “os historiadores destes tempos relatam”: temporum
illorum scriptores prodiderint; ele explicou seu sistema declarando que não
mencionava os nomes dos autores a não ser quando divergiam entre si.
Assim, duas citações vagas em Heródoto, nenhuma em Tucídides, duas
ou três em Tito Lívio e 13 em Tácito formam todo o corpo de autoridades
desses historiadores. Alguns biógrafos como Suetônio e Plutarco, sobre-
tudo, leram um pouco mais das Memórias; mas as numerosas citações são
deixadas aos compiladores, como Plínio, o naturalista, Ateneu, Macróbio e
São Clemente de Alexandria, em seus Stromateis.
Os analistas da Antiguidade não faziam entrar em seus relatos o qua-
dro dos diferentes ramos da administração; as ciências, as artes, a educação
pública eram rejeitadas do domínio da história; Clio caminhava agilmente,
desembaraçada da bagagem pesada que arrasta hoje atrás de si. Com fre-
quência o historiador era apenas um viajante relatando o que havia visto.
Agora a história é uma enciclopédia; é preciso tudo incluir nela, da astro-
nomia à química; da arte das finanças à da manufatura; do conhecimento
do pintor, do escultor e do arquiteto até a ciência do economista; do estudo
das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis políticas. O historiador
moderno abandona-se ao relato de uma cena de costumes e de paixões, a
Armazém de venda de sal. (N. do T.)
10
Canto dos bardos; canto guerreiro. (N. do T.)
11
Coleção de poemas escritos em norueguês antigo e recolhidos no manuscrito islandês Codex
Regius. Constitui a principal fonte sobre a mitologia nórdica e os heróis lendários germânicos.
(N. do T.)
logia e pela filosofia, eles nos superam atualmente, eles estão ainda longe
de chegar em história ao ponto em que estávamos quando nossos tumultos
explodiram.
Rendamos justiça aos sábios da Alemanha, mas saibamos que os po-
vos setentrionais são, como povos, muitos séculos mais jovens do que nós;
que nossas cartas remontam muito mais no tempo que as deles; que os
imensos trabalhos dos beneditinos de Saint-Maur e Saint-Vannes começa-
ram bem antes que os trabalhos históricos dos professores de Gottinguer,
Iena, Bonn, Dresden, Weimar, Brunswick, Berlim, Viena, Bresgurg etc.; que
os eruditos franceses, superiores pela clareza e precisão aos eruditos de
além-Reno, os ultrapassam ainda pela solidez e universalidade das pes-
quisas. Os alemães não nos superam verdadeiramente senão na codifica-
ção; ainda os grandes legistas, Cujas, Domat, Dumoulin, Pothier, sejam
franceses. Nossos vizinhos têm sobre as origens das nações bárbaras algu-
mas noções particulares, que eles devem às línguas faladas na Dalmácia,
Hungria, Sérvia, Boêmia, Polônia etc.; mas um espírito sadio não deve dar
muita importância a tais estudos que terminam por degenerar em uma
metafísica de gramática, que parece tanto mais maravilhosa quanto está
afogada na obscuridade.[...] Falemos do que nos pertence e indiquemos
nossas próprias riquezas. Rendamos de início uma brilhante homenagem
a essa escola dos beneditinos que nada jamais substituirá. Se eu não fosse
agora um estrangeiro no solo que me viu nascer; se eu tivesse o direito de
propor alguma coisa, eu ousaria solicitar o restabelecimento de uma ordem
que tem tantos méritos nas letras. Eu queria ver reviver a congregação de
Saint-Maur e Saint-Vannes na abadia de Saint-Denis, à sombra da igreja de
Dagoberto, junto desses túmulos cujas cinzas foram jogadas ao vento no
momento em que se dispersava a poeira do Trésor des Chartes: não eram
necessárias às crianças12 de uma liberdade sem lei e, consequentemente,
sem mãe senão bibliotecas e sepulcros vazios. [...]
E, no entanto, posto que não somos tocados senão pelos fatos, nós
deveríamos reconhecer que o passado é um fato, um fato que nada pode
destruir, enquanto o futuro, tão caro a nós, não existe. Existem para um
povo milhões de milhões de futuros possíveis. De todos esses futuros um só
12
No original, enfants de la liberté, referência ao verso da Marselhesa. (N. do T.)
13
Jean Mabillon (1632-1707), monge beneditino e historiador francês a quem se atribui o
estatuto de fundador da paleografia e da diplomática como auxiliares importantes da pesquisa
histórica, na medida em que pretendia construir instrumentos para discernir os documentos
verdadeiros dos falsos. (N. do T.)
escola moderna, que maravilha! Mas e aqueles aos quais o céu não atribuiu
esse conjunto de talentos, dos quais um apenas seria suficiente para a glória
de muitos homens? Cada um escreverá como vê, como sente; não se pode
exigir do historiador senão o conhecimento dos fatos, a imparcialidade do
julgamento e o estilo, se puder.
Famosa escola criada no século XV, onde lecionou, por exemplo, Friedrich W. Nietzsche entre
1858 e 1864.
Segundo Gay (1990:71), “foi a filologia clássica, e não a história, que atraiu Ranke”.
Schulin, 1966:584.
Iggers, 1988:65.
Gadamer (2003:271) indica, contudo, que o caminho seguido por Ranke se inspira, mas não
se fundamenta na hermenêutica de Schleiermacher. Para ele a escola histórica buscou apoio na
“teoria romântica da individualidade”; embora os “historicistas” tomem a realidade histórica
como um texto a ser compreendido, eles procuram compreender a totalidade dos nexos da
história da humanidade, inspirando-se em Herder e Chladenius.
A tão citada frase “wie es eigentlich gewesen”.
Para muitos, como Fontana (2004:225), “a frase foi tirada do contexto injustificadamente e
interpretada como uma declaração metodológica”.
Iggers, 1988:66-69.
A este respeito ver Baur (1998).
10
Laue, 1950:34.
11
Bildung significa formação e Wissenchaft, ciência. Na Alemanha do século XIX, ambas são a
expressão máxima do espírito que animava as artes, a cultura e o pensamento. Pressupunham
a formação plena do homem e valorizavam a pesquisa e a cultura como instrumentos decisivos
para isto.Ver a respeito Gilbert (1990).
12
Iggers, 1997:24.
13
Sob a iniciativa do conde von Bernstorff, ministro do Exterior, que pretendia, sobretudo,
defender a burocracia prussiana das críticas de liberais e de partidários da esquerda. Ver Iggers
(1988:70).
14
Laue, 1950.
15
Apud Guilland (2001:64).
16
Iggers, 1988:72.
17
Reichstag, termo que significa Dieta Imperial, é a instituição que representa o parlamento ale-
mão, remontando a Carlos Magno e ao Sacro Império Romano-Germânico no século IX.
18
Dinastia real formada na região de Brandenburgo a partir de 1415, depois sob o ducado da
Prússia a partir de 1525, originária de condes da Suábia, que governou a Prússia até o fim da
I Guerra Mundial, da qual fazia parte Frederico II.
19
Iggers, 1988:70.
20
Gildherhus, 2007:47; Iggers, 1962.
21
Vierhaus, 1987.
22
Não foram poucos a desmitificar o equívoco: Iggers (1962); Braw (2007); Holanda (1979);
Vierhaus (1987).
23
Para Collingwood (1989:133), os historiadores do século XIX teriam aceitado a primeira eta-
pa do método positivo, a recompilação de fatos, mas não a segunda, o descobrimento de leis.
24
Gooch, 1935:97.
25
Marrou [s.d.]:37.
26
Para Gadamer (2003:287), “uma vez que todos os fenômenos históricos são manifestações do
todo da vida, participar deles é participar da vida”.
27
Para Gay (1990:75), esse é um de seus méritos: com seus esforços, não deixou dúvidas quan-
to ao fato de que os documentos detêm a chave da verdade histórica, embora necessitem da
intervenção por parte do historiador que os acolhe, seleciona e analisa.
28
Ver o brilhante ensaio de Rüsen (1990).
29
“Em Ranke, a mão modeladora do artista literário nunca se distancia do labor construtivo do
historiador” (Gay, 1990:63).
30
Para Guilland (2001:13), Ranke conferia extrema importância à forma e escrevia com viva-
cidade e graça.
31
Conta-se a anedota de que, num congresso, um colega teria dito a Ranke que, como ele,
era historiador e cristão; ao que retrucou Ranke: “sou historiador, não apologeta” (Holanda,
1979:13).
32
A este respeito ver, sobretudo, Vierhaus (1990:64-65).
33
Não resta dúvida quanto à influência da apreensão organicista, relacional do processo históri-
co, tal como proposta por Herder. Maior discussão a respeito em Baur (1998).
34
“Sobre tudo flutua a ordem divina das coisas, difícil por certo de demonstrar, mas que sempre
se pode intuir. Dentro da ordem divina, assim como na sucessão dos tempos, os indivíduos
importantes ocupam seu lugar; assim é como os há de conceber o historiador” (apud Fontana,
2004:227).
35
Nestes seminários notabilizou seu método de estudo crítico das fontes (Quellenkritik), ao
formar duas gerações de historiadores alemães. Ver Stern (1973:54).
36
Gilbert, 1990.
37
White, 1995:91.
38
Iggers, 1988:25.
39
Ibid.
40
Para uma síntese de suas principais concepções, ver Braw (2007).
41
Iggers, 1988:77.
F Geschichte der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514
(1824). 2v.;
F Die serbische Revolution. Aus serbischen Papieren und Mittheilungen
(1829);
F Die römischen Päpste in den letzten vier Jahrhunderten (1834-1836). 2v.;
F Deutsche Geschichte im Zeitalter der Reformation (1839-1847). 2v.;
F Neun Bücher preussischer Geschichte (1847-1848). 3v.;
F Französische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahr-
hundert (1852-1861). 5v.;
F Englische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahrhun-
dert (1859-1869). 3v.;
F Die deutschen Mächte und der Fürstenbund (1871-1872);
F Ursprung und Beginn der Revolutionskriege 1791 und 1792 (1875);
F Hardenberg und die Geschichte des preussischen Staates von 1793 bis 1813
(1877);
F Serbien und die Türkei im neunzehnten Jahrhundert (1879);
F Weltgeschichte — Die Römische Republik und ihre Weltherrschast. (1886) 2v.
42
O texto “Idee der Universalhistorie” foi pela primeira vez editado por Eberhard Kessel e pu-
blicado na Historische Zeitschrift, CLXXVIII em 1954. A versão aqui traduzida foi publicada em
Iggers e Moltke (1973:33-46).
43
Não há dúvida quanto à influência decisiva de Humboldt nesta sentença (ver Humboldt,
2001). Compartilha dessa opinião Gervinus (2010). (N. do T.)
44
A esse respeito, há profunda semelhança do pensamento de Ranke com o de Gervinus, que
escreveu seu Grundzüge em 1837. (N. do T.)
45
É este também o pensamento de Droysen (2009). Lembro, contudo, que Ranke via no fenô-
meno uma totalidade, uma realidade espiritual. (N. do T.)
46
Instituto oratoria X, I, 31: “a história é aparentada ao poema; é, por assim dizer, um poema
em prosa”. Solutum nesse contexto significa liberdade das restrições métricas (nota de Iggers e
Moltke, 1973).
47
Há aqui uma crítica direcionada a Kant e, em maior grau, a Hegel, pois Ranke tinha restrições
em relação a uma filosofia da história que procurasse aprisionar a história como também um
domínio do pensamento especulativo. Cf. Iggers, 1988. (N. do T.)
Mas é possível que uma ou outra seja mais pronunciada. Em cursos a histó-
ria pode, é claro, aparecer somente como ciência. Só por esse motivo faz-se
necessário compreender o momento para lidar com a ideia de história.
A arte repousa em si mesma: sua existência prova sua validade. Por
outro lado, a ciência pode ser totalmente desenvolvida fora de sua verda-
deira concepção e ser clara em seu núcleo.
Consequentemente, eu gostaria de iluminar a ideia de história do
mundo em algumas leituras preliminares — tratando sucessivamente do
princípio histórico, do alcance e da unidade da história mundial.
48
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), filósofo alemão, um dos representantes do romantismo.
(N. do T.)
49
Hegel é este filósofo. (N. do T.)
50
No original, splitting concepts. (N. do T.)
51
Como se teologicamente a história já estivesse dada e cujo fim seria algo conhecido, tal como
na escatologia de João em seu Apocalipse. (N. do T.)
52
É evidente o afastamento em relação ao idealismo de Hegel nesse ponto. Sem contar que em
Ranke não há em nenhum momento o apelo ao conceito de destino (ver Hyppolite, 1970:48-
62). (N. do T.)
53
Ranke aqui quase reproduz o pensamento de Herder a respeito da historicidade, em contra-
posição ao de desenvolvimento teológico e necessário da humanidade. (N. do T.)
54
No original, begreift sie unter der anderen Erscheinung — sentido pouco claro (nota 6 de Iggers
e Moltke, 1973:38).
55
A influência da teologia em Ranke é inegável, sua hermenêutica glosa com o divino. Mais a
respeito, ver Gay (1990). (N. do T.)
não obstante, professar que todos os nossos esforços provêm de uma fonte
maior, religiosa.56
Deve ser rejeitada a ideia de que mesmo os esforços históricos são
dirigidos unicamente para a busca desse princípio maior nos fenômenos.
Assim, a história aproximar-se-ia demasiado da filosofia, já que pressuporia
antes de tudo contemplar esse princípio. A história eleva, confere signifi-
cado e abarca o mundo dos fenômenos, em e por si mesma, devido àquilo
que contém. Ela devota seus esforços ao concreto, não apenas ao abstrato
que pode estar contido nisso.
Agora que justificamos nosso princípio supremo, temos de considerar
as exigências que resultam disso para a prática histórica.
1. A primeira exigência é o puro amor à verdade.57 Reconhecendo algo
sublime no evento, na condição, ou na pessoa que desejamos investigar, ad-
quirimos certo apreço por aquilo que aconteceu, passou ou surgiu. O pri-
meiro propósito é reconhecer isso. Se procurássemos antecipar esse reco-
nhecimento com nossa imaginação, contrariaríamos nosso propósito elevado
e investigaríamos somente o reflexo de nossas noções e teorias subjetivas.
Com isso, entretanto, não queremos simplesmente dizer que o indivíduo
deva permanecer atrelado à aparência, ao seu quando, onde ou como. Pois,
assim, somente tomaríamos o domínio de algo externo, apesar de nosso pró-
prio princípio nos dirigir para o interior.
2. Consequentemente, um estudo documental, penetrante e pro-
fundo faz-se necessário. Antes de tudo, esse estudo deve ser devotado ao
fenômeno em si mesmo, à sua condição, seu ambiente, principalmente
pela razão de que nós, de outra maneira, seríamos incapazes de conhecer
a sua essência, seu conteúdo; pois, em última análise, como cada unida-
de é uma unidade espiritual, ela pode somente ser apreendida através da
percepção espiritual.58 Essa percepção clara repousa sobre a aceitação das
leis, de acordo com o que a mente observadora procede com aquelas que
determinam o surgimento do objeto em observação. Aqui, já é possível ser
56
Holanda (1979) e Gay (1990) são categóricos em afirmar a influência da religiosidade no
pensamento de Ranke. (N. do T.)
57
Ranke distingue a história da ficção, a narrativa histórica como antagônica à ficcional em
relação ao princípio da referência ao real, semelhantemente a Humboldt. (N. do T.)
58
Fritz Stern (1973:56-57) analisa essa questão, relacionando-a com o círculo hermenêutico.
59
No original, die wissenschaftlichen Richtungen — sentido não muito claro nesse contexto (nota
9 de Iggers e Moltke, 1973:40).
existe, não obstante. Ele existe, e porque ele existe devemos tentar reorga-
nizá-lo. Esse tipo de observação da história, que deriva efeitos de causas,
chama-se pragmática;60 mas gostaríamos de compreendê-la não na maneira
usual, mas de acordo com nossos conceitos.
Desde o desenvolvimento da historiografia contemporânea, a escola
pragmática de pensamento, tal como aplicada às ações, tinha introduzido
um sistema de acordo com o qual egoísmo e sede de poder seriam a mola
principal de todas as ações.61 O que é usualmente requerido é explicar as
ações observáveis dos indivíduos como o resultado de paixões que deriva-
mos dedutivamente do nosso conceito de homem. O ponto de vista resul-
tante tem uma aparência de aridez, irreligiosidade e falta de sensibilidade
que nos conduz ao desespero. Não posso negar que o egoísmo e a sede de
poder podem ser motivos muito poderosos e tiveram grande influência,
mas nego que eles sejam os únicos.62 Antes de mais nada, temos que inves-
tigar a informação genuína tão precisamente quanto possível para determi-
nar se podemos descobrir os motivos reais. Fazer isso é bem possível, mais
do que frequentemente se pode pensar. Somente quando esse caminho não
nos conduz mais além, é-nos permitido conjecturar. Que ninguém acredite
que essa limitação pode restringir a liberdade de observação. Não! Quanto
mais documentada, mais exata e mais frutífera a pesquisa, mais livremente
pode se desdobrar a nossa arte, que só floresce no elemento da imediata e
irrefutável verdade! Motivos apenas inventados são estéreis. Os verdadei-
ros, derivados de observações pontuais, são diversos e profundos. Assim
como o conhecimento em geral, mesmo nosso pragmatismo é documen-
tal. Ele pode mesmo ser muito reticente e ainda muito essencial. Onde os
eventos falam por si, onde a composição pura manifesta a conexão, não é
necessário falar dessa vinculação detalhadamente.63
60
Ranke faz a distinção que também será feita posteriormente por Bernheim (1903) entre his-
tória genética e história prática. (N. do T.)
61
De certo modo, há uma referência implícita aos historiadores iluministas, como Voltaire,
adeptos desse modo de pensar a história. (N. do T.)
62
Agentes da história. (N. do T.)
63
Aqui fica claro onde Ranke sugere que os fatos possam falar por si e, como se pode ver, não
parece ser algo amplo, mas muito específico, que ocorre em casos particulares de grande com-
provação empírica e de evidência espiritual. (N. do T.)
64
Partidos que expressam as forças da ordem e da desordem, “que constituem as condições
primeiras do processo do mundo” (White, 1995:181). (N. do T.)
65
Aqui se evidencia uma defesa radical pela não tomada de posição, pelo não julgamento, pela
ausência de juízos de valor em relação às ações humanas no passado, expressão da imparciali-
dade rankiana. (N. do T.)
66
A divinação é uma das operações iniciais do método compreensivo, tal como se apresenta na
hermenêutica de Schleiermacher. (N. do T.)
novas coisas, mas que espelha em seu caráter verdadeiro aquilo que conse-
guiu apreender e compreender, ela iria, como dissemos no início, unir de
maneira peculiar ciência e arte ao mesmo tempo.
67
Esta é uma sentença incompleta no original alemão. Nota 14 de Iggers (1988:45).
68
Passagem que evoca a abertura das Histórias de Heródoto: “Heródoto de Halicarnasso apre-
senta aqui sua historíe, para impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, se apague
da memória e para que grandes e maravilhosas obras, produzidas tanto pelos bárbaros, quanto
pelos gregos, não cessem de ser retomadas” (apud Hartog, 1999:17). (N. do T.)
a Terra. Em nosso método, não revelamos nada sobre esses tópicos; permi-
tamo-nos confessar nossa ignorância.69
Como para os mitos, não quero negar categoricamente que eles sequer
contenham um elemento histórico ocasional. Mas a coisa mais importante
é que eles expressam o olhar de um povo sobre si mesmo, sua atitude dian-
te do mundo etc. Eles são importantes, sobretudo, como uma característica
subjetiva de um povo ou como seus pensamentos foram expressos neles,
não por causa de algum fato objetivo que possam conter. Em um primeiro
aspecto eles possuem um firme fundamento e são muito confiáveis para a
pesquisa histórica, mas não em última instância.
Finalmente, não podemos devotar maior atenção àqueles povos que
ainda hoje permanecem em um tipo de estado de natureza e que nos le-
vam a supor que aquilo que eles foram desde o início mantivera-se, que a
condição pré-histórica tinha sido preservada neles. Índia e China reivindi-
cam uma era de ouro e têm uma longa cronologia. Mas até o mais arguto
cronologista não pode compreendê-la. Sua antiguidade é lendária, mas sua
condição é antes um caso para a história natural.
69
Ranke prenuncia a distinção feita por Wilhelm Windelband (1848-1915) que, em discurso
famoso de 1894, insistiu na separação entre história e a história natural, aproximando esta últi-
ma das ciências naturais, devido ao seu caráter nomotético. (N. do T.)
É o que afirmam, entre outros, Reis (2007:36) e Iggers (1988).
Iggers, 1988, esp. cap. 5.
Rüsen, 2001:27; Blanke, Fleisher e Rüsen, 1984.
Gooch, 1935.
Iggers, 1988:90.
A partir de então Historik passou a ser utilizado com essa acepção, ao passo que Geschichte
identificava tanto a disciplina história quanto os estudos sobre o passado. A respeito da trajetó-
ria do conceito, ver Koselleck (2004:47 e 2006).
Schlosser se interessava pela história recente, como atestam seu Geschichte des 18ten Jahr-
hunderts de 1823, ampliado posteriormente para seis volumes intitulados Geschichte des 18ten
Jahrhunderts und des 19ten bis zum Sturz des französischen Kaiserreichs (1836-1848).
Iggers, 1988:105.
Thomas, 1951.
10
Göttingen era uma universidade nova e de vanguarda. Fundada em 1734, havia abraçado o
espírito humanista, enfatizando os estudos clássicos, a Bildung e a filologia. Opunha-se ao racio-
nalismo da universidade de Halle, que se voltava para os estudos administrativos e burocráticos,
cheia de funcionários públicos, teólogos e pastores protestantes (Ringer, 2000:35).
11
Gervinus, 1962:49-103.
12
Gervinus, 1893.
13
Ansel, 1990; Carl, 1969; Unger, 1935.
14
Schulze, 1930:12-13.
15
Moritz, 2005; Gervinus, 1893.
16
Hübinger, 1984.
17
Friedrich Engels dirá que Gervinus foi o autor do projeto para a Constituição do Estado ale-
mão, que previa a unificação sob a forma de uma monarquia constitucional liderada por Frede-
rico IV. Não poupará críticas ao projeto político desses historiadores liberais, que anteriormente
já havia sido alvo de dura apreciação na Ideologia alemã. Cf. Engels (1983:34).
18
Iggers, 1988:91.
19
Armotage, 1981:1.
20
Guilland, 2002:2.
21
Excluindo a representação nacional e os expedientes revolucionários, o governo prussiano
tomou a dianteira de realizar o processo de unificação utilizando-se da exaltação do espírito
nacionalista, promovendo guerras externas para efetivar a delimitação do território prussiano.
Assim, de 1864 a 1871, três batalhas foram decisivas para a formação do Estado germânico:
a Guerra dos Ducados (1864), a Guerra Austro-Prussiana (1866) e a Guerra Franco-Prussiana
(1870/1871). Mais a respeito, Farmer e Randall (2001).
22
Iggers, 1988:90.
23
Southardt, 1995.
24
Mais a respeito em Rüsen (1977).
o que revela que, embora tivesse simpatia pela democracia, não era, em si,
um democrata avant la lettre.25
Diante do fracasso das reformas e após os distúrbios ocorridos em
Heidelberg, a Assembleia Constituinte foi dissolvida, aumentando a tensão
política. No início da noite do dia 13 de maio de 1848 e durante o dia
14, pedras foram atiradas contra as janelas de muitos professores liberais,
como Häusser, Gervinus e Welcker.26 Tais fatos pesaram em sua decisão de
deixar o país e viajar novamente à Itália. Regressou à Alemanha somente
no segundo semestre de 1849, quando publicou suas traduções e análises
da obra de William Shakespeare. Em 1850, Gervinus finalmente conseguiu
tornar-se professor efetivo em Heidelberg, universidade onde permanece-
ria até sua morte em 1871.
Em 1853 publicou-se a quarta edição de sua História da literatura e
da poesia nacional alemãs. Foi também o ano em que saiu sua Introdução à
história do século XIX. Por causa do teor desse livro foi processado em 1854
pela corte de Mannheim. No dia 24 de fevereiro, Gervinus compareceu
perante o tribunal, que o acusava de alta traição por criticar a monarquia
constitucional e por colocar em risco a ordem pública. Lida a acusação,
Gervinus defendeu-se:
25
Wagner, 1995.
26
Durante a revolução de 1848, Gervinus estava entre os líderes do Partido Constitucional.
Era grande orador e exercia considerável influência sobre aqueles que estavam encarregados
de confeccionar a Constituição para o império alemão, defendendo a unificação liderada pela
Prússia. Ver Hübinger (1984).
A acusação que pesa sobre minha cabeça é absurda (…). Essa acusação não é
contra a história em si, mas contra uma narrativa escrita, uma representação,
através da qual a história aparece na maneira pela qual ela é compreendida por
um ser humano.27
27
Gervinus [s.d.], p. xi-xii.
28
Ibid., p. xiii.
29
Ibid., p. xiv.
30
“Meu livro é sobre o plano estritamente filosófico e busca compreender questões históricas
que, propriamente, julgamento de valor algum pode ser pronunciado contra, salvo por um his-
toriador confesso, de que há não mais que duas dúzias em toda a Alemanha” (Ibid., p. xv).
31
Gervinus [s.d.], p. xv-xvi.
32
De acordo com Gadamer (2003, v. 2, p. 162), Gervinus alcançou plenamente a compreensão
desse fenômeno, pois “a verdade da consciência histórica parece alcançar sua perfeição quando
percebe o devir no passar e o passar no devir e quando extrai do fluir incessante das transfor-
mações a continuidade de um nexo histórico”.
33
Southardt, 1995:11.
34
Segundo Iggers (1988:91), “a história da Alemanha e a história do liberalismo alemão não
poderiam ser escritas sem devotar considerável espaço à participação decisiva daqueles histo-
riadores”.
35
Para levar a cabo a reforma militar e o projeto de unificação alemã, Bismarck teria dito: “os
problemas de hoje não se decidem com discurso, nem tampouco com o voto das maiorias. Esse
foi o grande erro de 1848 e 1849. Decidem-se com ferro e sangue” (apud Farmer e Randall,
2001:37).
36
Gervinus, 1853.
37
Essa passagem revela o peso da filosofia da história de Hegel no pensamento de Gervinus.
(N. do T.)
38
É altamente sugestiva essa percepção do tempo, dividindo-o no tempo curto dos aconteci-
mentos, no tempo conjuntural de uma época e no tempo longo dos séculos, articulados por um
princípio condutor; tripartição semelhante seria feita, posteriormente, por Fernand Braudel.
(N. do T.)
39
Ver Aristóteles (2006, esp. livro 1). (N. do T.)
Tirania grega
40
Dinastia fundada em Castela por Henrique II, governou entre 1369 e 1516 e teve um novo
ramo inaugurado por Fernando de Antequera, filho de João I de Castela, neto de Henrique II
(Valdeón Luque, 2001). (N. do T.)
41
A Guerra das Rosas (1455-1485) foi um longo e intermitente conflito dinástico em torno da
coroa da Inglaterra, entre as casas de York e de Lancaster, opondo famílias rivais dos descen-
dentes de Eduardo III. (N. do T.)
42
Carlos VII (1403-1461), rei da França a partir de 1422 e sucedido por Luís XI. (N. do T.)
43
Henrique VII (1457-1509), rei da Inglaterra a partir de 1485. Em seu reinado teve fim a
Guerra das Rosas. (N. do T.)
44
Fernando II de Aragão (1452-1516), rei de Aragão, Castela, Sicília, Nápoles e Navarra. (N.
do T.)
45
O autor refere-se a Maximiliano II de Habsburgo (1527-1576), rei da Boêmia, Hungria e
Croácia. Imperador do Sacro Império Germânico a partir de 1564. (N. do T.)
Segundo informação veiculada por sua filha Eleanor, Karl foi influenciado
por seu sogro, o barão Ludwig Von Westfaphalen. Karl passou da admira-
ção por Voltaire e Racine para a verdadeira devoção por Homero e Shakes-
peare. Eleanor fala dessa modificação na perspectiva de Karl como uma
manifestação de “entusiasmo pela escola romântica”.
É possível, sem dúvida, discutir sobre o romantismo em Marx; o
exemplo, contudo, não foi bem escolhido. Homero e Shakespeare, para
Marx, não eram expressões do romantismo. Esse tipo de mal-entendido se
encontra no ensaio que David McLellan escreveu para a história do mar-
xismo, organizada por Eric J. Hobsbawm, cujo primeiro volume saiu no
Brasil em 1979.
Diversos críticos, com bons argumentos, sempre enxergaram algum
romantismo na teoria hegeliana das contradições. Com sua teoria, o filóso-
fo dava conta de seus conflitos pessoais, internos e externos (conciliando
posições de direita e uma metodologia de esquerda), mas também dava
conta da sua atitude crítica, porém simultaneamente conservadora. As
contradições constituíam a verdadeira chave que abria a discussão fecunda
sobre os problemas do mestre e da época.
Kapp, 1980.
McLellan, 1979.
Wheen, 2001.
Balzac inspirou-se em Vidocq para criar seu personagem Vautrin, que também era um ban-
dido, e tão talentoso que o romancista não conseguia fazê-lo fracassar; por isso encaminhou-o
para ser absorvido pela polícia, ocupando, como seu modelo, um alto cargo no aparelho de
repressão.
Há traduções recentes de três livros clássicos de Marx, lançados pela editora Boitempo: A ide-
ologia alemã (2007) tem tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavine Marto-
rano; A crítica da filosofia do direito de Hegel (2005) tem tradução de Rubens Enderle e Leonardo
de Deus; A sagrada família (2003) tem tradução de Marcelo Backes.
Marx-Engels Werke... v. 1, p. 279.
Marx-Engels Werke... v. 2, p. 212.
Ibid., v. 3, p. 32.
Ibid., v. 3, p. 34.
10
Ibid., v. 3, p. 569.
11
Braudel, 1969.
12
Pogrom é uma palavra russa que significa “pôr abaixo, destruir violentamente”. Historica-
mente, o termo se refere aos violentos ataques antissemitas tanto no império russo como em
outros países. Diz-se que o primeiro incidente dessa natureza denominado “pogrom” foi um
tumulto antissemita ocorrido na cidade russa de Odessa em 1821. A partir de então, a palavra
tornou-se de uso comum para caracterizar as grandes revoltas antissemitas que tomaram lugar
na Ucrânia e no sul da Rússia, entre 1881 e 1884. Durante o período do nazismo na Alemanha
e no Leste europeu, como na Rússia czarista, os pretextos para os pogroms eram ressentimentos
16
Os anarquistas falavam deles mesmos como socialistas libertários, referindo-se ao pensamen-
to de Marx como expressão de um “socialismo autoritário”.
17
Termo de origem marxista que designa a população situada abaixo do proletariado, do ponto
de vista de suas condições de trabalho e vida, constituído de elementos degradados, desclas-
sificados e não organizados do proletariado urbano, assim como aquela parcela da população
que, para garantir a sobrevivência, desenvolve atividades à margem da legalidade (delinquência,
prostituição etc.). Aparece pela primeira vez em A ideologia alemã (1845) e é aplicado e concei-
tuado em O 18 brumário de Luís Bonaparte. (N. do E.)
tudo é casual, tudo é livre-arbítrio. Ou, então, tudo está prescrito e tudo
obedece ao destino (Maktub).18
Os socialistas que apareceram após a derrota dos jacobinos na Revo-
lução Francesa assumiram posições filosóficas e políticas bastante diversas.
Graco Babeuf, decepcionado com o movimento revolucionário, sustenta-
va que outras cabeças deveriam ter sido cortadas pela guilhotina. Robert
Owen, inglês, achava possível uma saída positiva e relativamente pacífica
para os problemas derivados da desigualdade, e que os cientistas poderiam
abordar onde a revolução falhara. Henri de Saint-Simon, francês, organiza-
va os recém-convertidos cristãos para cobrarem reformas administrativas
modernizadoras. E François Fourier, também francês, desiludido com a
Revolução Francesa, passou a concentrar suas esperanças na construção de
um falanstério, um prédio no qual um grupo pioneiro mostraria à humani-
dade que a vida podia ser melhor e a sociedade podia ser mais justa.19
Marx assumia um ponto de vista bastante sutil: por um lado, reiterava
sua condição de revolucionário; por outro, procurava conduzir os radicais
à flexibilidade e ao realismo das negociações imprescindíveis da ação po-
lítica. Essa combinação era difícil de ser mantida. Mesmo divergindo de
Fourier, Marx o apreciava muito por sua criatividade e chegou a dizer que
o pensador francês era tão forte na dialética quanto Hegel.
A perspectiva de Marx era visceralmente hostil a algumas cabeças
quentes da política do seu tempo. Em alguns casos, ele realmente se enco-
lerizava. Irritou-se muito com as posições de Weitling, que, como agitador
socialista, preconizava a libertação de todos os presos que estavam cum-
prindo pena nas penitenciárias, alegando que eles passariam espontanea-
mente da condição de criminosos à condição de genuínos revolucionários.
O advogado Ferdinand Lassalle, que pregava reformas moderadas, carac-
terizava a situação histórica da Europa como o confronto entre a classe
operária e todas as outras classes, que constituíam uma massa reacionária
mobilizada contra os trabalhadores. Marx também se aborreceu com a vi-
são paranoica de Lassalle.
18
Expressão de origem mulçumana, que designa o fatalismo, uma forma extremada de determi-
nismo. Quando algo acontece, é que já estava programado no além.
19
Fourier procurou esclarecer todos os elementos constitutivos do falanstério, pois acreditava
que o projeto era essencial na reanimação do socialismo, já que o fracasso da Revolução Fran-
cesa tinha desmoralizado o caminho revolucionário.
20
Marx-Engels Werke... passim.
21
Kapp, 1980.
22
Marx, 1965.
23
Ibid.
24
Marx-Engels Werke... v. 8, p. 117.
25
Ibid., v. 8, p. 412.
26
Ibid., v. 23, p. 25.
27
Marx-Engels Werke... v. 8, p. 42.
28
Ibid., v. 33, p. 209.
29
Kapp, 1980.
30
Carteggio Marx-Engels...
31
Marx-Engels Werke... v. 22, p. 69.
32
Andreucci, 1979:15-73.
33
Ibid.
34
Carteggio Marx-Engels....
35
Paul Lafargue fez grande sucesso com seu livro O direito à preguiça.
36
Carteggio Marx-Engels...
37
Souvernirs sur Marx et Engels...
Ulisses, que não admite ser excluído de nada, resolve tornar-se o úni-
co mortal que ouviu o canto das sereias e não morreu. Manda seus mari-
nheiros taparem os ouvidos com cera e manda também que eles o amar-
rem firmemente ao mastro da embarcação. Recomenda, além disso, que,
aconteça o que acontecer, eles não o desamarrem por mais que ele possa
esbravejar.
Marx, ao longo da sua caminhada, identificou-se bastante com o
Odisseu. Talvez se possa sublinhar e até desenvolver essa identificação,
observando que Ulisses precisou lutar em Troia durante 10 anos e na volta
para casa, na sua navegação para Ítaca, levou outros 10 anos, porque caiu
em desgraça em face de um deus, Poseidon, que era ninguém menos que
o deus do mar. Desse modo, Ulisses podia ensinar a Marx como sobreviver
a muitos naufrágios e continuar sua participação na guerra pela liberdade
e pela justiça.
Ainda há outro ponto de contato entre o Ulisses de Homero e Karl
Marx. Capturado com seus homens por um gigantesco ciclope, que lhe
pergunta como ele se chama, o herói grego responde: “ninguém”. Depois,
aproveitando o sono do inimigo, fura-lhe o único olho. O gigante informa
aos seus parceiros que o responsável pela desgraça era Ninguém. Ulisses
tinha se inserido na história para poder vencer uma batalha desigual. A
história permite até reviravoltas como essa.
Em seu On the choice of the books, há um longo ensaio biográfico escrito por Richard Herne
Shepherd (1881). Seu maior biógrafo, James Anthony Froude, publicou também a correspon-
dência de Jane Carlyle. Ver também Collins (1971); Kaplan (1983); Lequesne (1982). Também
o verbete “Thomas Carlyle”, da Encyclopaedia Britannica (disponnível em: <www.britannica.
com/eb/article-1132/Thomas-Carlyle>).
Jessop, 1997.
Apud Larkin (1970).
Neff, 1964; Harris, 1978; Sanders e Clubbe, 1976.
Rosenberg, 1985.
Levine, 1968.
Harrold, 1963.
Há tradução brasileira (Carlyle, 1963).
Ben-Israel, 1958; Ryals, 1987. Sobre o estilo narrativo de Carlyle, analisado de uma perspec-
tiva pós-moderna, ver Schoch (1999).
10
Grierson, 1930.
11
Froude, 1970.
12
Carlyle, 1881.
Sobre a história13
13
Publicado originalmente na Frazer’s Magazine, n. 10, 1830. Ver Carlyle (1893). Tradução e
notas de Jurandir Malerba.
14
Do espanhol quipo, do quéchua khipu: instrumento feito de uma corda principal com cordões
multicores menores atados e amarrados, usado pelos antigos habitantes do Peru (para calcular,
por exemplo).
15
Rosário de conchas polidas amarradas em cintos ou xales e usado pelos índios norte-ameri-
canos como dinheiro, ornamento ou como vestes cerimoniais.
16
David Hume (1711-1776): filósofo, economista e historiador do Iluminismo escocês, uma
das mais importantes personagens da história do pensamento moderno. Autor de A tratise of
human nature (1739) e An inquire concerning the human understanding (1748), sua History of En-
gland (1778), em seis volumes, é considerada um marco da historiografia inglesa.
17
William Robertson (1721-1793): clérigo e historiador escocês, foi um dos primeiros a abor-
dar a história como uma ciência empírica. Sua History of Scotland during the reigns of Queen Mary
and King James VI (1759) consiste numa história factual e pragmática e foi aclamada por autores
como Edmund Burke, David Hume e outros. Foi reitor da Universidade de Edinburgo (1762) e
historiógrafo real (1764). Entre suas obras destacam-se The history of the reign of Charles V (3v.,
1796), e History of the discovery and settlement of America (1777).
18
Jean Froissart (c.1337-1410?), cronista, poeta e cortesão francês. Embora ordenado padre,
teve uma vida mundana. Tornou-se um protégé da rainha Filipa da Inglaterra, visitou a corte de
David II da Escócia e acompanhou Eduardo, o Príncipe Negro, em sua campanha na Gasconha.
Sua crônica, que continua a de Jean le Bel, cobre a história da Europa ocidental do início do
século XIV até 1400, praticamente a primeira metade da Guerra dos Cem Anos. No mérito
literário, a crônica de Froissart é considerada muito superior a qualquer trabalho similar em
qualquer língua.
19
Cidades italianas por onde marchou vitorioso o exército napoleônico durante o bloqueio
continental.
20
A Batalha de Maratona (490 a.C.) foi o ápice da maior tentativa do rei Dario da Pérsia de con-
quistar o resto da Grécia e incorporá-la ao império persa, visando proteger a parte mais fraca de
sua fronteira ocidental. É basicamente conhecida graças ao legado de Heródoto.
21
Batalha de Morgarten: travada em 15 de novembro de 1315 entre a Confederação Helvética
e os exércitos da casa dos Habsburgos, liderada pelo duque Leopoldo I da Áustria. Ela marca a
independência da Suíça, constituída então apenas de três cantões: Uri, Unterwalden e Schwz,
que haviam assinado a Carta de Aliança em 1291, na qual se comprometiam a se ajudar mu
tuamente em caso de ataques estrangeiros.
22
Draco foi o primeiro legislador da Atenas antiga, no século VII a.C., que escreveu sua primeira
Constituição.
23
John Hampden (c.1595-1643): nascido em Londres, filho de um grande proprietário rural de
Buckinghamshire e Middlesex, era primo de Oliver Cromwell por parte de mãe. Formou-se em
direito no Magdalen College, Oxford (1610) e, depois, no Inner Temple (1613). Várias vezes
ministro do parlamento inglês, contemporâneo de outros famosos legisladores ingleses como
John Elliot e John Pym, Hampden é considerado um dos principais motivadores da guerra civil
inglesa, na qual teve ativa participação, em função das posições que assumiu em dois episódios,
em geral relacionados com a ilegalidade de impostos e leis.
com todos os seus trabalhos diligentes, mas não com o fruto deles, jazem
sepultados.
Tão imperfeita é aquela mesma experiência, pela qual deve a filosofia
ensinar. Mais ainda, mesmo em relação àquelas ocorrências que permane-
cem registradas, as quais em sua origem pareciam dignas de registro, e o
sumário das quais constitui o que nós agora chamamos história, acaso não
é inteiramente incompleto nosso entendimento delas? Será mesmo possível
representá-las como elas de fato ocorreram? A velha estória de Sir Walter
Raleigh24 olhando da janela de sua cela um tumulto da rua, que logo depois
três testemunhas reportaram de três maneiras diferentes, a dele diferindo
de todas as demais, ainda é uma verdadeira lição para nós. Considere como
é que os documentos e registros históricos se originam; mesmo registros
honestos, onde os informantes são imparciais por pessoal motivação; um
caso que, ainda que nada mais desejável, deve estar entre os mais raros. Os
reais traços dominantes de um documento histórico, aqueles movimentos
que o caracterizam essencialmente, e que por si sós merecem ser registra-
dos, não são de modo algum os primeiros a serem notados. Em primeiro
lugar, entre as várias testemunhas, que são também partes interessadas,
há apenas vaga surpresa, e medo ou esperança, e o burburinho do rumor
de milhares de línguas; até que, depois de uma temporada, o conflito de
testemunhas decantou-se em alguma questão geral; e então está assentado,
por decisão da maioria, que tal e qual “travessia do Rubicão”, “impeachment
de Strafford”, “convenção dos notáveis” são épocas na história do mundo,
pontos cardeais sobre os quais grandes revoluções mundiais se dobram.
Suponha, contudo, que a decisão da maioria estava toda errada; que os
pontos cardeais jazem muito mais profundos; e que passaram despercebi-
dos, porque nenhum adivinho, mas apenas um mero espectador, aconte-
ceu de estar ali! Nosso relógio badala quando a hora muda; mas nenhum
martelo do cronômetro do tempo ressoa pelo universo quando há uma
mudança de uma era a outra. Os homens nada entendem do que está em
suas mãos: essa mansidão é característica de força, de modo que as causas
de maior peso podem ser também as mais silenciosas. Não é, em caso al-
24
Walter Raleigh (1552-1618): famoso explorador, cortesão, poeta e escritor inglês, responsável
pelo estabelecimento da primeira colônia inglesa na América, em 1584, onde hoje é a Carolina
do Norte.
25
Jacob Brücker: nascido e falecido em Augsburgo (1696-1770), professor em Iena, e pastor em
sua cidade natal. Autor de Historia philosophica doctrinae de ideis (1723) e Historia critica philoso-
phiae a mundi incunabilis ad nostra usque aetatem deducta (5v., Leipzig, 1742-1744) é considerado
o iniciador da história da filosofia.
26
Johann Gottlieb Bühle (1763-1821): filósofo e acadêmico alemão, nasceu em Brunswick
e estudou em Göttingen, onde tornou-se professor, tendo lecionado também em Moscou e
Brunswick. Entre seus principais trabalhos destacam-se o Handbuch der Geschichte der Philoso-
phie (8v., 1796-1804) e a Geschichte der neueren Philosophie (6v., 1800-1805).
27
The history of philosophy, from the earliest times to the beginning of the present century; drawn up
from Brucker‘s Historia critica philosophiae (1791), de William Enfield, foi um manual de filosofia
adotado em inúmeras universidades da Europa e dos Estados Unidos durante a primeira me-
tade do século XIX.
28
Johann Gottfried Eichhorn (1752-1827): teólogo protestante do Iluminismo e antigo orien-
talista, professor em Iena e Göttingen, autor de extensa obra (que inclui uma Weltgeschichte, de
1819), é considerado o fundador da moderna crítica do Velho Testamento.
29
Thomas Warton, o Jovem (1728-1790): nasceu em Basingstoke, Hampshire, Inglaterra, filho
do poeta Thomas Warton, o Velho. Foi professor em Oxford e crítico e historiador literário,
além de poeta.
30
Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu (1698-1755): historiador, político e filó-
sofo iluminista francês, um dos mais conspícuos enciclopedistas, foi o formulador da moderna
tripartição dos poderes, atualmente vigente em muitas constituições nacionais. Teve formação
iluminsta com padres oratorianos, desde cedo mostrando-se crítico severo e irônico da monar-
quia absolutista decadente, assim como do próprio clero. Entre suas obras destacam-se Cartas
Persas (1721), Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos (1734) e O espírito das leis
(1748).
31
Henry Hallam (1777-1859): historiador e literato whig formado no Christ Church em Oxford.
Sua primeira grande obra, The view of the State of Europe during the Middle Ages, foi publicada em
1818, seguida por Constitutional history of England (1827) e Introduction to the literature of Europe
in the 15th, 16th and 17th centuries (1838/1839).
32
Antoine Yves Goguet (1716-1758): jurista, literato e historiador francês, estudou nas faculda-
des de Beauvais, de Plessis e de Harcourt, e chegou a chanceler no parlamento de Paris. Interes-
sado na história dos povos primitivos, escreveu muitos trabalhos que foram usados como fonte
para a primeira Enciclopedia Britannica. Sua obra mais conhecida é De l’origine des loix, des arts,
et des sciences; et de leurs progres chez les anciens peuples (3v., 1758).
33
Johann Beckmann (1739-1811): cientista alemão que cunhou o termo “tecnologia”, formou-
se na universidade de Göttingen, onde dedicou-se ao estudo de teologia, matemática, física,
Macaulay, 1843.
Para traçar o perfil de Macaulay, utilizei um apanhado de ensaios biográficos: Canning (1882);
Stephen (1893); MacGregor (1901); Morison (1901); Pattison (2008); Stirling (1868); Strunk
Jr. (1895); The Dean of St. Paul’s (1862); Trevelyan (1876 e 1907); Watrous (1900).
Macaulay, 1957:721-724.
Gilley, 1999:746-747.
nas eleições de 1852, para que fosse reeleito para o parlamento, Macaulay
aceitou candidatar-se sob a condição de não fazer campanha e de não se
comprometer com nenhuma questão política. Foi eleito, apesar das con-
dições. Entretanto, devido à saúde ruim, mal permaneceu na Câmara nos
anos que se seguiram. O trabalho no parlamento evidentemente havia se
tornado pesado demais, e Macaulay deixou o cargo vago em 1856, sacrifi-
cando sua carreira política e até mesmo seu convívio social para se dedicar
à sua obra histórica. Apesar de ter sido agraciado com o título nobiliárqui-
co de barão de Rothley em 1857, raramente esteve presente na Câmara dos
Lordes, a instituição superior bretã.
Os escritos políticos de Macaulay, famosos pelo seu estilo brilhante
de prosa autoconfiante, às vezes dogmático, enfatizavam um modelo pro-
gressivo para a história britânica, em acordo com a articulação de uma
cultura provisional e da crença na liberdade de expressão. Os ensaios
que publicou, notadamente na Edinburgh Review, tornaram célebre um
homem de origem simples. Em 1855, a publicação do terceiro e quarto
volumes de sua History of England alcançou o mesmo sucesso dos volu-
mes anteriores. Nos Estados Unidos, suas vendas apenas não excederam
a Bíblia e alguns livros escolares. Posteriormente, a obra foi traduzida
para vários idiomas, como o alemão, o dinamarquês, o sueco, o italiano,
o francês, o holandês, o espanhol, o húngaro, o russo, o persa. O sucesso
foi imediato, os leitores se deixaram cativar-se pela obra histórica como
o faziam pela ficção, pois sua arte narrativa evocava a qualidade cênica e
dramática para os eventos históricos.
O estilo empírico, formal e impositivo de Macaulay era muito admi-
rado em sua época. A escrita era clara e impressiva, com uma narrativa
poderosa e rica em detalhes. Contudo, sua perspectiva mostra-se inega-
velmente influenciada por preconceitos protestantes e com a tendência do
exagero e da pomposidade. Além de sua forma de escrever a história ter
sido bastante criticada por historiadores posteriores, foi acusado de mani-
pular a narrativa para conformá-la a seus pontos de vista e, portanto, de
subestimar os fatos que contrariavam suas opiniões. Karl Marx se refere
Ward et al., 2000.
Gilley, 1983.
Sobre a estilística literária de Macaulay e sua historicidade, ver Gay (1990).
Marx, 1906.
Macaulay, 1828:361.
10
Ibid., p. 363. Ver Davies (1939).
11
Powell, 2007.
12
Macaulay, 1828:362.
13
Gilley, 1983.
14
Nixon, 2002; Clive, 1973.
15
Fitch, 1912.
16
Adrian, 1963.
Macaulay morreu em 1859, sem nunca ter se casado e sem filhos. Dei-
xou sua History of England incompleta, cujo último volume foi publicado
após sua morte, em 1861. Seu corpo foi enterrado em Abadia de West-
minster, na cripta dos poetas, sob o epitáfio “o seu corpo jaz em paz/ mas
o seu nome viverá para sempre”.17
Principais obras de Macaulay:
História18
17
Ruas, 1940:32.
18
Publicado originalmente na Edinburgh Review (n. 47, p. 331-367, 1828), em resenha ao livro
The romance of history England (London, 1828), do literário inglês Henry Neele (1798-1828).
Traduzido de Macaulay (1889). Tradução, edição e notas de Sérgio Campos Gonçalves.
19
Mantive os destaques em itálico do autor estritamente de acordo com a primeira versão do
texto, publicada na Edinburgh Review.
20
Proeminente orador e estadista ateniense (385-322 a.C.).
21
De acordo com o Dicionário Houaiss (Objetiva, 2001), é a ação ou o efeito de pronunciar as
consoantes /s/ e /z/ como interdentais.
22
Considerada por muitos a última peça escrita por William Shakespeare, provavelmente em
1610/1611. Embora sua primeira publicação tenha sido listada como comédia, muitos editores
modernos catalogam a peça como romance.
23
Tirano (c.540-478 a.C.) de Gela e Siracusa, colônias fundadas pelos gregos na Sicília.
24
Aristides, o Justo, general e estadista ateniense. Em 482 a.C., sofreu a pena do ostracismo,
provavelmente, por fazer oposição a Temístocles. No entanto, foi requisitado a voltar para aju-
dar a derrotar os persas nas batalhas de Salamina e Plateia. Em 478 a.C., colaborou com os alia-
dos do leste de Esparta para formar a Liga de Delos, que, aliada à cidade de Atenas, efetivamente
se tornou uma espécie de império ateniense.
25
Político e general-estrategista naval ateniense (525-460 a.C.) que liderou o Partido Democrá-
tico Ateniense. Sua principal medida foi criar uma frota naval capaz de rechaçar uma possível
invasão persa. A vitória sobre a frota persa de Xerxes I na batalha de Salamina lhe deu grande
fama. No entanto, em razão de seu caráter belicista, foi lançado no ostracismo por seus adver-
sários, que tentaram lhe imputar uma acusação de alta traição. Refugiou-se no reino persa antes
do julgamento e, ironicamente, foi aceito no reino que derrotou, pois os persas aceitavam os
homens experientes que pudessem ajudá-los na expansão de seu império.
26
Poetas ou cantadores de versos épicos e heroicos. O termo remete a uma tribo celta que viveu
onde hoje é a Irlanda.
27
Creso (?-546 a.C.), último rei da Lídia, morto em 546 a.C., famoso pela sua imensa riqueza.
28
Sólon (c.638-c.559 a.C.), legislador e estadista da antiga Atenas.
para ser ouvida. Não foi na circulação vagarosa de algumas cópias, as quais
apenas alguns ricos poderiam possuir, que o ambicioso autor procurou
assegurar sua recompensa. O interesse pela narrativa e a beleza do estilo
foram auxiliados pelo majestoso efeito da declamação, pelo esplendor do
espetáculo, pela forte influência da empatia. Um crítico que solicitasse au-
toridades no meio de tal cena deveria ser de uma natureza fria e cética; e
poucos críticos estavam lá. Como era o historiador, assim também eram os
ouvintes, inquisitivos, crédulos, facilmente movidos pelo temor religioso
ou pelo entusiasmo patriótico. Com igual prazer escutariam os romances
graciosos de seu próprio país. Eles agora ouviam falar da realização de
predições obscuras, da punição de crimes sobre os quais a justiça do Céu
parecia ter ignorado, de sonhos, presságios, avisos dos mortos, de prince-
sas para quem nobres pretendentes se afirmavam através de cada exercício
generoso de força e habilidade, de crianças estranhamente protegidas da
lança do assassino, para cumprir grandiosos destinos.
Como a narrativa aproximou-se da sua época, o interesse se tornou
ainda mais atraente. O cronista tinha agora que contar a história daquele
grande conflito do qual a Europa data sua supremacia intelectual e política,
uma história que, mesmo com a distância no tempo, é a mais incrível e a
mais emocionante dos anais da raça humana, uma história abundante de
tudo que é espantoso e admirável, com tudo que é patético e animado;
com caprichos gigantescos de fortunas infinitas e poder despótico, com
poderosos milagres de sabedoria, de virtude e de coragem. Qualquer coisa
que desse um forte tom de realidade à narrativa tão bem calculada para
inflamar paixões, e para lisonjear o orgulho nacional, certamente seria re-
cebida favoravelmente.
Entre o tempo em que se diz que Heródoto compôs sua história e o
final da Guerra do Peloponeso transcorreram aproximadamente 40 anos
— 40 anos coroados de grandes eventos políticos e militares. As circuns-
tâncias do período produziram um grande efeito na personalidade grega;
e em parte alguma esse efeito foi tão extraordinário como na ilustre demo-
cracia de Atenas. Um ateniense, de fato, mesmo no tempo de Heródoto,
dificilmente poderia ter escrito um livro tão romântico e eloquente como
aquele de Heródoto. Enquanto civilização avançada, os cidadãos daque-
la famosa república tornaram-se ainda menos visionários, e ainda menos
ingênuos. Ambicionaram saber, enquanto seus ancestrais contentavam-se
29
Dramaturgo ateniense (c.447-c.385 a.C.), considerado o maior representante da comédia
antiga.
30
Nessa peça (423 a.C.), Aristófanes compara Sócrates aos sofistas, mestres da retórica, e acusa
o filósofo grego de exercer uma influência nefasta sobre a sociedade.
31
“Argumento contra a pessoa”. Significa uma falácia ou erro de raciocínio que é identificado
quando alguém responde a algum argumento com uma crítica contra quem apresentou o argu-
mento, isto é, questiona a pessoa que argumenta ao invés do argumento.
32
Edmund Burke (1729-1797), filósofo e político anglo-irlandês famoso por sua oratória. Autor
de An inquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful (1757), defendeu a causa
dos colonos americanos no parlamento e também o sistema parlamentarista.
33
Trata-se do retrato de Charles James Fox (1749-1806), pintado pelo seu amigo próximo
Joshua Reynolds, em 1782. Político britânico, Fox foi um líder dos whigs na Câmara que se des-
tacou por sua campanha antiescravista, por defender a independência americana da Inglaterra
e por ser a favor dos preceitos da Revolução Francesa.
34
Sir Joshua Reynolds (1723-1792), um dos mais importantes e mais influentes pintores ingle-
ses do século XVIII. Especializado em retratos, foi um dos fundadores e primeiro presidente da
Royal Academy.
35
Em 1773, Reynolds pintou Count Ugolino and his children in the dungeon, inspirado na descri-
ção que Dante Alighieri fez de Ugolino della Gherardesca (c.1220-1289), comandante naval e
nobre italiano, no canto 33 de O inferno,
36
Cardinal Beaufort é o título do “retrato histórico” que Reynolds fez de Henry Beaufort (c.1375-
1447), clérigo medieval inglês e bispo de Winchester.
37
Samuel Johnson (1709-1784), lexicógrafo e escritor de destaque no cenário intelectual da
Inglaterra no século XVIII. Autor do Dictionary of the English language (1755) e da crítica literária
Lives of the most eminent English poets (1779-1781, 10v.), também escreveu em periódicos como
The Gentleman’s Magazine, The Universal Chronicle e The Rambler, além de narrativas de viagem,
como A journey to the Western Islands of Scotland (1775).
38
Considerado um dos melhores retratistas ingleses (1769-1830) de sua geração. Sucedeu Sir
Joshua Reynolds como pintor principal de George III, que lhe concedeu o título de Sir em
1815.
39
Habitantes da terra imaginária de Brobdingnag em As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan
Swift (1667-1745).
40
Edward Hyde (1609-1674), primeiro conde de Clarendon, historiador e estadista inglês, con-
selheiro de Charles I e de Charles II, que lhe concedeu o título nobiliárquico. Escreveu History
of the rebellion and civil wars in England, publicada após sua morte em 1704.
41
Oliver Goldsmith (1728-1774), escritor de novelas, poesias, peças e ensaios. Inglês de origem
irlandesa, fez parte do Clube Literário fundado por Samuel Johnson e Joshua Reynolds.
42
Richard Lovelace (1618-c.1657), poeta e nobre cavaleiro inglês.
43
Jules Mazarin (1602-1661) foi cardeal, estadista e diplomata papal aos 26 anos de idade. En-
volvido no cenário político italiano, serviu como primeiro-ministro na França a partir de 1642,
quando sucedeu seu mentor, o cardeal Richelieu.
44
Armand Jean du Plessis de Richelieu (1585-1642), cardeal-duque de Richelieu, foi primei-
ro-ministro de Luís XIII, de 1628 até sua morte. Além de ter sido uma liderança francesa na
Europa, colaborou para a construção do absolutismo na França.
45
Xenofonte (c. 427-355 a.C.), soldado, mercenário e discípulo de Sócrates. Autor de Anábase,
Helênicas, A educação de Ciro (370 a.C.), Agesilau (360 a.C.) e de obras socráticas.
46
Geógrafo e historiador grego (c. 203-120 a.C.), famoso por sua obra Histórias, que tratava do
mundo Mediterrâneo entre o período de 220 a 146 a.C.
47
Lucius Flavius Arrianus Xenofonte, ou Arriano (c. 92-c. 175), historiador romano da língua
grega, comandante militar e filósofo. Nasceu em Nicomédia, capital da província da Bitínia,
onde hoje é o noroeste da Turquia. Embora fosse cidadão romano, Arriano falava e escrevia em
grego. Seu trabalho constitui um importante relato sobre Alexandre, o Grande.
48
Historiador romano (59 a.C.-17 d.C.) que escreveu a monumental história de Roma, em 142
volumes, desde sua fundação em 753 a.C.
49
Quintus Curtius Rufus ( ? -53 d.C.), historiador romano que escreveu durante o reinado do
imperador Cláudio. Autor de História de Alexandre Magno.
50
Plutarco de Queroneia (c. 46-120 d.C.), filósofo e biógrafo grego. Estudou na Academia de
Atenas, fundada por Platão.
51
Madeleine de Scudéry (1607-1701), também conhecida como Mademoiselle de Scudéry, foi
uma escritora e novelista francesa. Seu nome é encontrado grafado também como Scuderi.
52
Conforme a interpretação tradicional, essa expressão em latim foi usada no Institutio Ora-
toria, por Marcus Fabius Quintilianus (c.35-c.95), professor de retórica na Roma antiga, para
caracterizar o estilo da prosa de Tito Lívio. Assim, a expressão de Quintiliano faria referência à
“patavinidade”, isto é, à latinidade provinciana do modo de falar que é próprio dos moradores
de Patavium, como Tito Lívio. Muito provavelmente, é a esta interpretação que Macaulay se
referiu. Contudo, outra possibilidade de entendimento foi levantada por Steve Hays (1986:107-
116), para quem a melhor compreensão da frase de Quintiliano é a seguinte: que os escritos
de Tito Lívio são “nutritivos”, ou seja, são tão apropriados para os bons estudantes de retórica,
por fornecer um bom modelo, quanto o leite é bom para o desenvolvimento dos bebês. Hays
argumenta que a metáfora do leite, no contexto da educação, é encontrada em Quintiliano, em
vários escritores gregos do século primeiro e até na Bíblia.
53
Anormalidade, pessoa ou coisa deformada, monstruosa.
54
Gaius Julius Caesar (100-44 a.C.), general, estadista e ditador romano. Teve papel decisivo na
transformação da Roma republicana em império.
55
Caio Salústio Crispo (86-34 a.C), historiador romano e um dos grandes escritores e poetas
da literatura latina. Escreveu sobre a decadência do povo romano e descreveu dois grandes
momentos do fim da república romana, a conjuração de Catilina e a guerra de Jugurta. Salústio
fez de suas narrativas um pretexto para criticar os erros políticos cometidos por aqueles que
detiveram o poder em Roma, principalmente por Cícero, seu inimigo político e pessoal.
56
Lucius Sergius Catilina (? -109 a.C), político romano. Tentou ser nomeado cônsul, sem su-
cesso. Irritado e pressionado por dívidas, iniciou uma conspiração, a conjuração de Catilina,
na qual reuniu jovens nobres falidos. Sua tentativa de assassinar os dois cônsules falhou, e sua
pretensão ao consulado não obteve sucesso.
57
Publius Cornelius Tacitus (55-120), historiador romano, foi questor, pretor, cônsul e ora-
dor. Considerado um dos maiores historiadores da Antiguidade, suas principais obras foram
os Anais, onde contou a história do império romano do século primeiro, desde a chegada do
imperador Tibério ao poder, até a morte de Nero, e Histórias, em que trata da morte de Nero
até a de Domiciano.
58
No original, “th’extravagancy/ and crazy ribaldry of fancy”; é uma citação de Hudibras (1663-
1678), poema narrativo em forma de sátira heroica escrito por Samuel Butler (1612-1680), no
qual faz escárnio do fanatismo, pedantismo, hipocrisia e arrogância da militância puritana. É
considerado o poema burlesco mais memorável da língua inglesa e a primeira sátira inglesa que
atacou ideias em vez de personalidades.
59
No capítulo 6 da mais famosa obra de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), enquanto
dom Quixote repousava na cama, doente, depois de sofrer um espancamento, um padre e um
barbeiro vasculham sua biblioteca à procura das obras que teriam provocado a loucura do fidal-
go, leitor de romances de cavalaria.
60
Jean Froissart (c.1333-c.1405), cronista, poeta e cortesão francês. Seus escritos cobrem o
período entre 1322 e 1400, e descrevem as preparações e o progresso da primeira metade da
Guerra dos Cem Anos.
61
Niccolò Machiavelli (1469-1527), diplomata, historiador e teórico político florentino. Autor
do tratado O príncipe (1513), é reconhecido como o fundador da ciência política moderna.
62
Francesco Guicciardini (1483-1540), cronista e diplomata italiano. Amigo e crítico de Ma-
quiavel, é considerado o maior escritor político da Renascença italiana. Devido ao uso de do-
cumentos para a verificação em sua História da Itália (1514), é considerado o pai da história
moderna.
63
Lourenço de Medici (1449-1492), estadista florentino. Foi mecenas de Leonardo da Vin-
ci (1452-1519), do pintor e escultor Michelangelo (1475-1564) e do artista Sandro Boticelli
(1444-1510).
64
Papa Leão X (1475-1521), cujo nome original é Giovanni de Medici, foi o segundo filho de
Lourenço de Medici. Seu pontificado, um dos mais extravagantes da Renascença, durou de
1513 até sua morte.
65
Elizabeth I (1533-1603), filha de Henrique VIII e sua segunda esposa, Ana Bolena (c.1501-
1536), foi rainha da Inglaterra de 1558 a 1603.
66
Gaius Julius Caesar Octavianus (63 a.C.-14 d.C.), primeiro imperador romano.
67
Poeta épico grego do século 9 a.C., a quem se atribui a autoria da Ilíada e da Odisseia.
68
Principal cidade da Fenícia no segundo milênio antes da era cristã. Na Antiguidade, foi suces-
sivamente dominada por assírios, babilônios e persas. Por volta de 330 a.C., foi conquistada por
Alexandre, o Grande. Sob domínio romano, no século I a.C., desempenhou a função de importan-
te centro de fabricação de vidro e corantes. Durante as Cruzadas, mudou de mãos várias vezes até
cair sob domínio muçulmano em 1291. Depois de 1517, passou à tutela dos otomanos.
69
Segundo o Dicionário Houaiss, “na antiga Roma, conjunto formado por feixe de varas em torno
de um machado, que, carregado pelos lictores que acompanhavam os cônsules, representava o
direito que tinham os últimos de aplicar punições”.
70
Paulus Aemilius Veronensis (c. 1455-1529), historiador italiano.
71
Lucius Cornelius Sulla (c.138-78 a.C.), general e estadista romano.
72
Publius Vergilius Maro (70-19 a.C.), o maior dos poetas romanos. Seu poema épico Eneida (ini-
ciado em c. 29, mas inacabado) é considerado uma das obras-primas da literatura mundial.
73
Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), poeta e crítico literário francês. Escreveu A arte
poética (1674), um tratado didático em verso que estabelece as regras da composição poética
na tradição clássica.
74
Titus Pomponius Atticus (c.110-32 a.C.), nobre da classe equestre, intelectual e negociante
romano. Nasceu e foi criado em Roma, mas se mudou para Atenas para se afastar da erupção
de violência causada pelo retorno de Sila e seu exército. Apaixonado pela cultura helênica, ele
próprio se apelidou de “Atticus”. Excelente estudante, fez de sua passagem pela Grécia (85-65
a.C.) um momento de imersão na filosofia e na literatura gregas, cultivando seus interesses
artísticos, antiquários, literários e filosóficos. Pompônio é recordado como grande amigo de
Cícero, que lhe dedicou um tratado sobre a amizade, De amicitia; a correspondência entre os
dois está preservada nos 16 volumes das Epistulae ad Atticum (Cartas a Ático). No ano 32, após
sofrer doente por meses, Pompônio acelerou sua própria morte ao se abster da alimentação.
Deixou uma brevíssima história de Roma, Annalis, além de uma narrativa em grego sobre o
consulado de Cícero.
aprimoramento. Cada parte dele foi iluminada com a luz refletida de suas
outras partes. A competição tem produzido atividade onde o monopólio
poderia ter produzido letargia. O número de experimentos em ciência
moral que o especulador tem a oportunidade de testemunhar aumentou
além de todas as expectativas. A sociedade e a natureza humana, em vez
de serem consideradas de um único ponto de vista, lhe são apresentadas
sob 10 mil aspectos diferentes.Observando as maneiras das nações em
volta, estudando sua literatura, comparando-a com aquela de seu próprio
país e das repúblicas antigas, ele pode corrigir aqueles erros nos quais os
homens mais finos incorrem quando raciocinam de uma única espécie
para um gênero. Aprende a distinguir o que é local do que é universal:
o que é transitório do que é eterno; a discriminar entre as exceções e as
regras; a identificar a ação das causas perturbadoras; a separar aqueles
princípios gerais que sempre são verdadeiros e aplicáveis em toda parte
das circunstâncias acidentais com as quais, em cada comunidade, eles se
misturam, e com as quais, em uma comunidade isolada, são confundidos
pela mente mais filosófica.
Daí que, por generalização, os escritores dos tempos modernos supe-
raram em muito aqueles da Antiguidade. Os historiadores de nosso próprio
país são inigualáveis em profundidade e precisão da razão; e, mesmo nas
obras de nossos meros compiladores, frequentemente encontramos espe-
culações além do alcance de Tucídides ou Tácito.
Mas, ao mesmo tempo, deve-se admitir que eles têm falhas caracterís-
ticas, tão ligadas a seus méritos característicos, e de tal magnitude, que bem
se poderia duvidar se, no todo, esse departamento da literatura ganhou ou
perdeu durante os últimos 22 séculos.
Os melhores historiadores dos últimos tempos se deixaram seduzir
pela verdade, não por sua imaginação, mas pela sua razão. Superaram em
muito seus predecessores na arte de deduzir princípios gerais de fatos.
Mas infelizmente têm incorrido no erro de distorcer os fatos para justi-
ficar princípios gerais. Chegam à teoria através da observação de certos
fenômenos; e distorcem ou reduzem os fenômenos restantes para satis-
fazer a teoria. Para tanto não é necessário que afirmem o que é absolu-
tamente falso; pois todas as questões morais e políticas são questões de
comparação e grau. Qualquer proposição que não envolva contradição de
75
O título de poeta laureado é concedido na Inglaterra pelo mérito da excelência poética. Foi
criado em 1616 e formalmente estabelecido desde 1668.
76
John Lingard (1771-1851), padre católico inglês, publicou The history of England, from the first
invasion by the Romans to the accession of Henry VIII (1819), em oito volumes.
77
George Brodie (1786?-1867), advogado e historiador escocês. Autor de A history of the British
Empire (1822) e A constitutional history of the British Empire (1866).
78
David Hume (1711-1776), economista, filósofo e historiador escocês. Autor de A treatise of
human nature (1739-1740), Treatise as an enquiry concerning human understanding (1758) e Dia-
logues concerning natural religion (1779). Sua History of England (1778) é considerada um marco
da historiografia inglesa.
79
William Mitford (1744-1827), descendente de uma antiga família do norte da Inglaterra,
autor de History of Greece (1784). Foi alvo de pesadas críticas de Macaulay (1824).
80
François-Marie Arouet Voltaire (1694-1778), filósofo, dramaturgo e literário francês, foi figu-
ra central do Iluminismo. Exilado na Inglaterra em 1726, retornou à França em 1728-1729.
81
Jean-François Marmontel (1723-1799), escritor, gramático, filósofo, romancista e historiador
francês, participou do movimento Enciclopedista.
82
James Boswell (1740-1795), advogado, renomado linguista, escritor escocês e biógrafo de
Samuel Johnson. Seu nome foi incorporado à língua inglesa (Boswell, Boswellian, Boswellism)
como sinônimo de observador e biógrafo devotado.
83
Robert Southey (1774-1843), poeta laureado e historiador inglês membro do “Lake Poets”.
Além de sua História do Brasil (1810), publicou diversas biografias, como The life of Nelson
(1813), sobre Horatio Nelson (1752-1805), almirante naval inglês que derrotou as tropas de
Napoleão e foi fatalmente ferido na batalha de Trafalgar.
84
Richard Watson (1781-1833), teólogo metodista inglês, uma das figuras mais importantes
do metodismo no século XIX. A passagem a que Macaulay se refere localiza-se no cap. 20 da
primeira parte de sua obra Theological institutes, publicada a partir de 1823.
85
Trata-se da guerra dos Estados Unidos pela sua independência do Reino Unido, entre 1775
e 1783.
86
George Augustus (1683-1760), nascido em Hanover, foi rei no Reino Unido a partir de
1727.
87
Ordem militar criada pelo rei inglês Edward III (1312-1377).
88
Ao se tornar príncipe regente com a abdicação de seu pai, o rei George III, em 1811, uma das
primeiras ações do futuro George IV foi tentar reformar o caminho para seu palácio, o Carlton
House, de acordo com sua admiração pelo planejamento urbano napoleônico de Paris. Planeja-
da pelo arquiteto John Nash (1752-1835) durante uma década, a Regent Street é um boulevard
localizado na área central de Londres.
89
Catedral anglicana do bispado de Londres que data do século XVII.
90
Hospedaria estabelecida em 1307, situada em Southwark, Londres, onde se reuniam aqueles
que peregrinavam ao Santuário de Thomas Beckett, na Catedral de Canterbury. É famosa por
sua descrição em Canterbury Tales (1387), coleção de histórias escrita pelo filósofo e diplomata
inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400). Foi demolida em 1873.
91
Luxuosa casa de campo elisabetana construída sobre as ruínas de um convento destruído por um
incêndio em 1567 e projetada em estilo renascentista italiano por Robert Smythson (1535-1614).
92
As ruínas do castelo de Burleigh, na Escócia, com suas duas famosas torres, datam dos sécu-
los XV e XVI.
Pezzimenti, 2001; Butterfield, 1961:169; Woodward, 1939.
um livro para uma série histórica alemã famosa, declinou. Nunca escreveu
um livro. Até onde se sabe, jamais proferiu uma lecture até os 60 anos de
idade. Seus escritos devem ser procurados nas duas revistas que editou na
juventude (na Home and Foreign Review e na Rambler) e nos textos da ma-
turidade que publicou em vários periódicos, alguns dos quais publicados
na North Britsh Review, na Quarterly Review e, sobretudo, em The English
Historical Review. A estes, somam-se a introdução que fez à edição de Burd
de O príncipe de Maquiavel (1891) e sua leitura inaugural em Cambridge
(traduzida neste capítulo).
De modo que, não obstante o reconhecimento universal de sua enor-
me erudição e sabedoria, o valor de Acton como historiador não chega a
ser consensual. O historiador inglês Geoffrey Elton, por exemplo, coloca
Acton no “honorável esquecimento que esse monumento improdutivo
merece”. De fato, alguns dos próprios contemporâneos de Acton tinham
dificuldade em compreendê-lo. Mas essa não era a regra. Não poucos
autores notaram a grande lucidez de expressão e discernimento crítico
que se encontram em sua obra de juventude. Contudo, a pesada crítica
vinda de autoridades eclesiásticas católicas e historiadores iria afetar o
modo como escrevia. A clareza de opinião daria lugar ao estilo cifrado,
tortuoso e cheio de contorcionismos da maturidade. Com o passar dos
anos, Acton tendeu para um estilo defensivo, apropriado para um ho-
mem que se acreditava “absolutamente sozinho” em sua “posição ética
essencial”. Como afirma John Vella, qualquer estudo sério sobre Acton
deve levar em consideração sua trajetória intelectual, assim como seu
estilo de escrita cada vez mais cifrado.
Em um dos primeiros grandes ensaios post-mortem dedicados a Lord
Acton, o subeditor da English Historical Review Reginald Poole lembrava
que John Emerich era familiar a todas as línguas estrangeiras. De fato, aos
10 anos de idade, Acton escrevia para sua mãe relatando seus progressos
acadêmicos:
Chadwick, 1987:386.
Russel Kirk (1954:603) afirma que o primeiro Acton apresenta características de um “verda-
deiro gênio juvenil, incisivo, imaginativo, um verdadeiro mestre do ensaio”.
Kochan, 1954:35-36.
Brinton, 1919.
Vella, [s.d.]:256. Ver também o clássico estudo de Himmelfarb (1952).
Apud Figgs e Lawrence (1917:1-2).
Poole, 1902.
Hill, 2000:416.
10
Brinton, 1919; Himmelfarb, 1952.
11
Macdougall, 1964:18.
12
Ibid. Ver também Butterfield (1946).
13
Hill, 2000:333.
História e religião
14
Poole, 1902; Butterfield, 1948.
15
Não será essa uma discussão da filosofía da história que atravessa os séculos, chegando até
os grandes teóricos atuais como Rüsen e Koselleck? Ver Oakeshott (2003); Heller (1997); Ko-
selleck (1993); Rüsen (2001).
“Liberty”
16
Fasnacht, 1952:21.
17
Murray, 1998; Fisher, 1920; Paul, 1913.
“Moral law”
18
Não cabe aqui entrar no campo da filosofia política de Acton, que não é nossa especialidade
e que exigiria muito mais deste ensaio de que ele pode oferecer.
19
Gooch, 1947:629; Chadwick, 1987:400.
de lei moral de Acton fez com que também condenasse a inclinação de des-
culpar os erros ou toda uma época devido ao “espírito do tempo”. Épocas
diferentes não podem ter padrões morais diversas; o que é errado em uma
época deve ser errado em outra, porque a lei moral é intemporal. Acton é
um anti-Nietzsche, por assim dizer.
De fato, Acton nunca perseguiu suas ideias até seu limite lógico. Sua
vida mostra uma apreciação do caráter evolucionário da mudança, um
reconhecimento do lugar do novo na ordem das coisas. É somente uma
questão de ênfase que nos permite acreditar que ele se prendeu um pouco
mais com as coisas estabelecidas do que com coisas que estão procurando
se estabelecer, e ainda um pouco mais com o passado do que com o pre-
sente — em suma, que se ele era um liberal, era dos mais conservadores.
Apesar desta atitude de conservadorismo, as ideias de Acton são para-
doxalmente progressistas em sua essência. É porque ele tinha algo a ensinar
ao mundo que seu nome permanece. Sua influência não ficou restrita a seu
trabalho escrito. Sua influência mais poderosa foi sentida pelos homens
que estudaram com ele em Cambridge. Embora somente algumas gera-
ções de pupilos mantiveram-se em contato com ele, estes foram suficientes
para pegar a linha de seu pensamento e levá-la adiante. Tanto que, dentre
seus antigos alunos, uma escola considerável dos historiadores deixaram
registros contundentes de sua capacidade como professor. Estes homens
olharam o mundo de pontos de vista diferentes. Em muitos casos, modifi-
caram profundamente os ensinamentos de Acton. À sua ideia fundamental,
sobre a qual jaz o valor de sua contribuição para o mundo, eles aderiram
fielmente.
Como disse Acton, ao longo da história os homens incluíram sob o
termo liberdade muitos e conflitantes ideiais. Contudo, se a história sig-
nifica qualquer coisa além do conflito sem propósito de desejos cegos ou
do jogo igualmente vão que o absoluto de Hegel escolhe jogar consigo
mesmo, ela deve ser interpretada como o avanço gradual do indivíduo
rumo à expressão completa e desembaraçada de seu ser moral. Era esse o
trabalho de Acton, que nunca cessou de insistir sobre o significado verda-
deiro da história, numa época que parecia tê-lo esquecido. As descobertas
de Darwin, mal-entendidas e mal-aplicadas, serviram ao século XIX como
a prova do fato de que o sucesso se justifica sempre, não importa como
alcançado. De encontro a essa filosofia perigosa que, dos sofistas a Nie
20
Apud Kochan (1954:173 e segs.).
Do estudo da história21
21
Dalberg-Acton (Lord Acton), 1906. Aula-magna proferida em Cambridge, em junho de 1895.
Na edição original, a extensão do corpo das notas (dispostas ao fim de cada capítulo) é cerca
de três vezes maior que o próprio corpo do texto. Para viabilizar esta edição, suprimi as notas
da primeira edição, compostas exclusivamente de referências bibliográficas e longos excertos
transcritos por Lord Acton nas línguas nativas dos autores citados. Não há, nesse texto de Ac-
ton, qualquer nota explicativa. Inúmeras edições contemporâneas elidem as notas. Disponível
em: <http://socserv.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/acton/modernhistory.pdf>. Acesso em: 20 jul.
2008. Tradução e notas de Jurandir Malerba.
22
John Robert Seely nasceu em Londres, filho de um editor. Desde jovem interessou-se por
assuntos religiosos e históricos. Estudou na City of London School de Londres e no Christ’s Col-
lege de Cambridge, onde foi eleito fellow e tornou-se professor clássico de seu College. Relata a
Enciclopédia Britânica que, em 1897, a biblioteca de história da Universidade de Cambridge foi
batizada de Seeley Historical Libray em sua homenagem.
23
A Guerra Franco-Prussiana (1870/1871) foi um conflito armado entre a França de Napo-
leão III e um conjunto de Estados germânicos liderados pela Prússia, que culminou na Comuna
de Paris e na unificação da Alemanha sob Bismarck.
24
A floresta herciniana (Hercynian forest) é uma floresta da Alemanha central que se estende
desde o Reno até as montanhas dos Cárpatos; descrita por César como a nove dias de viagem de
largura e 60 de comprimento, pertence hoje ao distrito das montanhas de Harz.
25
Arcana imperii. Tácito, Annales 2.36: Os segredos do governo. Os segredos de Estado.
26
Henry Hallam (1777-1859), historiador inglês formado no Christ Church, de Oxford.
27
John Lingard (1771-1851), padre católico inglês e autor de The history of England, from the first
invasion by the Romans to the accession of Henry VIII, obra em oito volumes publicada em 1819.
mesmos, o registro de uma vida que é a nossa própria, dos esforços ain-
da não abandonados ao repouso, dos problemas que ainda complicam os
passos e afligem os corações dos homens. Cada parte dela é carregada de
lições inestimáveis que nós devemos aprender por experiência e a elevado
preço, se soubermos tirar proveito do exemplo e do ensinamento daqueles
que vieram antes de nós, em uma sociedade que muito se assemelha a essa
em que nós vivemos. Seu estudo cumpre sua finalidade mesmo se apenas
nos faz mais sábios, sem produzir livros, e nos dá o dom do pensamento
histórico, que é melhor do que a aprendizagem histórica. É um ingrediente
muito poderoso na formação do caráter e no treinamento do talento, e nos-
sos julgamentos históricos têm tanto a ver com esperanças celestiais quanto
com a conduta pública ou privada. As convicções que foram arrancadas por
meio de exemplos e das comparações dos tempos modernos diferem inco-
mensuravelmente em solidez e força daquelas que cada fato novo perturba,
e que são frequentemente pouco melhores do que ilusões ou preconceito
infundado.
A primeira das preocupações humanas é a religião, e ela é a caracterís-
tica marcante dos séculos modernos. Estes estão assinalados como o cenário
dos desdobramentos protestantes. Partindo de um momento de indiferen-
ça, ignorância e declínio extremos, eles foram de súbito ocupados por esse
conflito que iria devastar tanto, e do qual nenhum homem poderia ima-
ginar as infinitas consequências. A convicção dogmática — para eu evitar
falar da fé em relação a muitos personagens daqueles dias —, a convicção
dogmática emergiu para ser o centro do interesse universal, e permaneceu
até Cromwell como a influência e o motivo supremos da política pública.
Até chegar um tempo em que a intensidade do conflito prolongado e até a
energia da ousadia antagônica diminuíram um pouco, e o espírito polêmico
começou a dar espaço para o científico; e como a tempestade amainou, e a
área de questões resolvidas emergiu, muito da disputa foi abandonada ao
toque sereno e reconfortante dos historiadores, investidos como são com a
prerrogativa de redimir a causa da religião de muitas censuras injustas, e dos
males mais graves das censuras que são justas. Ranke costumava dizer que
os interesses da Igreja prevaleceram na política até a Guerra dos Sete Anos,
e marcaram uma fase da sociedade que terminou quando os anfitriões de
Brandeburgo entraram em ação em Leuthen, cantando seus hinos luteranos.
Aquela audaz proposição seria questionada mesmo se aplicada à época atual.
Depois que Sir Robert Peel28 esfacelou seu partido, os líderes que o seguiram
declararam que nenhum papismo seria a única base sobre a qual ele poderia
ser reconstruído. Por outro lado pode ser sublinhado que, em julho de 1870,
na eclosão da guerra francesa, o único governo que insistiu na abolição do
poder temporal foi a Áustria; e nós temos testemunhado desde então a queda
de Castelar, porque tentou reconciliar a Espanha com Roma.
Logo após 1850, muitos dos homens mais inteligentes da França, per-
plexos com a estagnação do crescimento de sua própria população e com
as impressionantes estatísticas da distante Bretanha, pressagiaram o pre-
domínio da raça inglesa. Eles não previram, o que ninguém poderia então
prever, o ainda mais súbito crescimento da Prússia, ou que os três países
mais importantes do globo, ao fim do século, seriam aqueles que perten-
ciam principalmente às conquistas da Reforma. De modo que em religião,
como em tantas coisas, o produto desses séculos favoreceu os elementos
novos; e o centro de gravidade, movendo-se das nações mediterrâneas para
as oceânicas, do ramo latino para o teutônico, passou também do católico
para o protestante.
Destas controvérsias originaram-se tanto a ciência política como a ci-
ência histórica. Foi na fase puritana, antes da restauração dos Stuarts, que
a teologia, se misturando com a política, efetuou uma mudança fundamen-
tal. A Reforma essencialmente inglesa do século XVII foi menos uma rusga
entre igrejas do que entre facções, divididas frequentemente por questões
de disciplina e autorregulação mais do que pelo dogma. Os sectários não
tinham qualquer finalidade ou projeto de prevalecer sobre as nações; e
estavam preocupados com o indivíduo mais do que com a congregação,
com conventículos, não com igrejas estatais. Sua visão estreitou-se, mas sua
vista aguçou-se. Pareceu-lhes que os governos e as instituições são feitos
para passar, como coisas da Terra, enquanto as almas são imortais; que não
há mais proporção entre a liberdade e o poder do que entre a eternidade e
o tempo; que, consequentemente, a esfera do comando férreo deveria ser
restrita a limites fixos, e aquilo que tinha sido feito antes pela autoridade,
pela disciplina externa e pela violência organizada devia ser agora tentado
28
Sir Robert Peel (1788-1850), eminente político inglês que ocupou por duas vezes o cargo de
primeiro-ministro, criando, por exemplo, a polícia metropolitana de Londres (1829) — que
deu o apelido de bobby aos policiais londrinos, o qual até hoje perdura.
29
Laelius Socinus é considerado o fundador do movimento de antitrinitariano, e Faustus So-
cinus, o principal intelectual da igreja unitária (sociniana) estabelecida na Polônia. Pertencem,
respectivamente, à primeira e segunda geração de reformistas italianos.
30
Laissez-faire é uma corruptela da expressão em francês, laissez faire, laissez aller, laissez passer,
que significa literalmente “deixai fazer, deixai ir, deixai passar”. Remete às doutrinas colbertistas
que deram origem à teoria econômica clássica no século XVIII, que defendia o não intervencio-
nismo estatal nas relações comerciais internacionais, em oposição às práticas intervencionistas
do mercantilismo que então ainda se praticavam no fim do antigo regime.
31
Historiador francês, presente nesta antologia.
inumanas, ele já não reina mais; que o comércio tendo se levantado contra
a terra, o trabalho contra à riqueza, o Estado contra as forças dominantes na
sociedade, a divisão do poder contra o Estado, o pensamento dos indivíduos
contra a prática das épocas, nem autoridades, nem minorias, nem maiorias
podem comandar a obediência implícita; e, onde houve uma experiência
longa e árdua, uma trincheira de convicção experimentada e conhecimento
acumulado, onde há um nível justo de moralidade geral, de instrução, de co-
ragem, e de autocontrole, lá, e apenas lá, poder-se-á encontrar uma sociedade
que exiba a condição de vida em direção à qual, por eliminação das falhas, o
mundo se tem movido através do espaço designado. Você sabê-lo-á por força
de sinais externos: representação, a extinção da escravidão, o domínio da
opinião etc.; e mais ainda por evidências menos aparentes: a segurança dos
grupos mais fracos e a liberdade de consciência, que, efetivamente assegura-
da, garante todo o resto.
Aqui chegamos a um ponto em que meu argumento ameaça tocar
numa contradição. Se as conquistas supremas da sociedade são frequente-
mente logradas mais por meio da violência do que pelas artes pacíficas; se
a tendência e o curso das coisas são para as convulsões e catástrofes; se o
mundo deve a liberdade de religião à revolução holandesa, o governo cons-
titucional aos ingleses, o republicanismo federal aos americanos, a igual-
dade política aos franceses e seus sucessores, o que estará reservado a nós,
dóceis e dedicados estudantes do passado absorvente? O triunfo do revo-
lucionário aniquila o historiador. Por seus autênticos expoentes, Jefferson
e Sieyes, a revolução do século passado repudia a história. Seus seguido-
res renunciaram a seu conhecimento e estavam prontos para destruir seus
registros e abolir seus inofensivos professores. Mas a verdade inesperada,
mais estranha do que a ficção, é que esta foi não a ruína, mas a renovação
da história. Diretamente e indiretamente, pelo processo de desenvolvimen-
to e pelo processo da reação, um impulso foi dado que a fez infinitamente
mais eficaz como um fator da civilização do que jamais o fora antes, e teve
início um movimento no mundo das mentes que foi mais profundo e mais
sério do que o renascimento da antiga aprendizagem. O desígnio divino
sob o qual nós vivemos e trabalhamos consiste primeiramente no rechaço
do espírito negativo que rejeitou a lei do crescimento, e em parte no esforço
para classificar e ajustar a revolução, e explicá-la por meio da ação natu-
ral das causas históricas. A linha conservadora de escritores, denominada
32
Segunda guerra de independência italiana, também chamada de Guerra Franco-Austríaca,
Guerra Sardo-Austríaca, Guerra Austro-Piemontesa, ou ainda Guerra Austro-Franco-Sarda;
auge do processo que culminou na unificação da Itália.
Tais assuntos não nos concernem agora. Para nosso propósito, a prin-
cipal coisa a aprender não é a arte de acumular material, mas a arte mais
sublime de investigá-lo, de discernir a verdade da falsidade, e a certeza,
da dúvida. É por meio da solidez da crítica mais do que pela plenitude da
erudição que o estudo da história fortalece, organiza e abre a mente. E a as-
censão do crítico no lugar do compilador infatigável, do artista na narrativa
colorida, o hábil retratista do personagem, o advogado persuasivo do justo,
ou de outras causas, equivalem a uma transferência de governo, a uma
mudança de dinastia, no domínio histórico. Pois o crítico é alguém que,
quando detecta uma afirmação interessante, começa por suspeitar dela. Ele
permanece em suspenso até que tenha submetido sua autoridade a três
operações. Primeiramente, ele se pergunta se leu a passagem como o autor
a escreveu. Pois que o compilador, o editor e o censor oficial ou oficioso
acima do editor usaram estranhos artifícios, e têm muito que explicar. E se
não se deve culpá-los, pode ser que o autor escreveu seu livro duas vezes,
e que você consiga descobrir a primeira versão, as variações progressivas,
as coisas adicionadas e as coisas subtraídas. Em seguida vem a questão de
onde o escritor conseguiu sua informação. Se de um escritor precedente,
isso pode ser verificado, e o inquérito tem que ser repetido. Se de papéis
inéditos, estes devem ser rastreados, e quando a fonte é alcançada, ou a
trilha desaparece, surge a questão da veracidade. O caráter do escritor res-
ponsável, sua posição, antecedentes e os motivos prováveis têm que ser
examinados; e isso é o que, num sentido diferente e adaptado da palavra,
pode ser chamado da crítica superior, em comparação com o trabalho ser-
vil e frequentemente mecânico de perseguir as declarações até sua raiz. Pois
que um historiador tem que ser considerado como uma testemunha, e não
merecer crédito a menos que sua sinceridade seja estabelecida. A máxima
de que um homem deve ser considerado inocente até que sua culpa esteja
provada não foi feita para ele.
Para nós, então, a avaliação das autoridades, o exame do testemu-
nho são mais importantes do que a descoberta potencial de uma matéria
nova. E a história moderna, que é o mais amplo campo de aplicação, não
é a melhor para aprender nosso ofício; pois que ela é demasiado vasta, e a
colheita não foi tão joeirada como na Antiguidade ou até mais adiante, nas
Cruzadas. É melhor examinar o que foi feito para as questões compactas
e circunscritas, como as fontes do Péricles de Plutarco, os dois tratados no
recebe e emprega com o selo de sua mente nela estampado, ele permane-
ce incomparável. Eu o vi pela última vez em 1877, quando estava fraco,
magro e quase cego, mal podendo ler ou escrever. Ele expressou seu adeus
com amável emoção, e eu temi que o que eu ouviria sobre ele em seguida
seria a notícia de sua morte. Dois anos mais tarde ele começou uma história
universal que não está isenta de sinais de fraqueza, mas a qual, composta
depois dos 83 anos, e recuando, em 17 volumes, até a Idade Média, encerra
a mais extraordinária carreira vista na literatura.
Seu rumo tinha sido determinado, na juventude, por Quentin
Durward.33 O choque da descoberta de que o Luís XI de Scott era incom-
patível com o original em Commynes34 fê-lo decidir que seu objetivo a
partir de então deveria ser antes de tudo seguir, sem desviar-se, com rigo-
rosa subordinação e entrega, a orientação de suas autoridades. Ele decidiu,
com efeito, reprimir o poeta, o patriota, o partidário religioso ou políti-
co, não sustentar nenhuma causa, afastar-se de seus livros e não escrever
nada que agradasse seus próprios sentimentos ou revelasse suas convicções
pessoais. Quando um impetuoso clérigo, que, como ele, tinha escrito so-
bre a Reforma, saudou-o como um camarada, Ranke repeliu seus avanços.
“Você”, disse, “é em primeiro lugar um cristão; eu sou em primeiro lugar
um historiador. Há um golfo entre nós”. Foi o primeiro escritor eminente
que mostrou o que Michelet chamou “le desinteressement des morts”. Foi
um triunfo moral para ele quando pôde abster-se de julgar, e mostrar que
muito pode ser dito de ambos os lados, deixando o resto à Providência. Ele
sentiria simpatia pelos dois famosos médicos de Londres de nossos dias, de
quem se diz que não conseguiam decidir-se sobre um caso e que opinavam
dubiamente. O chefe da família insistia numa opinião positiva. Responde-
ram que eram incapazes de dar-lhe uma, mas ele facilmente encontraria 50
doutores que o fariam.
Niebuhr havia chamado a atenção para o fato de que os cronistas
que escreveram antes da invenção da imprensa geralmente transcreviam
33
Quentin Durward é um romance histórico do escritor romântico inglês Walter Scott, cuja
primeira edição é de 1823 e que inaugurou o gênero do romance de cavalaria, tão popular na
primeira metade do século XIX. Trata-se da estória de um arqueiro escocês a serviço do rei da
França Luís XI.
34
Philippe de Commynes (1447-1511), autor de célebres Memórias que retratam as cortes eu-
ropeias na passagem para o século XVI, era oficial de Luís XI.
35
Sir Robert Stawell Ball (1840-1913), astrônomo irlandês, escritor de livros de divulgação
científica, tornou-se professor de matemáticas aplicadas no Royal College of Science em Dublin,
em 1867. Em 1874 Ball foi nomeado astrônomo real da Irlanda e professor de astronomia na
Universidade de Dublin, no Observatório Dunsink.
36
John Hunter (1728-1793), médico cirurgião escocês considerado um dos mais distintos cien-
tistas de sua época. Foi um dos pioneiros na defesa da observação cuidadosa e da aplicação do
método científico em medicina. A Hunterian Society de Londres foi assim nomeada em sua
homenagem.
salve a Europa por meio de seu exemplo.” Em 1814, quando esta esperança
havia sido realizada, o último discurso do grande orador foi lembrado, e
uma medalha lançada, na qual aquela sentença inteira foi gravada, em qua-
tro palavras de resumido latim: Seipsam virtute, Europam exemplo. Agora,
foi justo na ocasião de sua última aparição em público que o sr. Pitt tomou
conhecimento do esmagador sucesso dos franceses na Alemanha e da ren-
dição da Áustria em Ulm. Seus amigos concluíram que a luta em terra seria
vã, e que era hora de abandonar o Continente ao conquistador e recuar
para o nosso novo império do mar. Pitt não concordou com eles. Disse que
Napoleão encontraria com um obstáculo sempre que se deparasse com
uma resistência nacional; e declarou que Espanha seria esse lugar, e que
então a Inglaterra interviria. O general Wellesley, recém-chegado da Índia,
estava presente. Dez anos mais tarde, quando ele havia realizado aquilo que
Pitt tinha lucidamente antecipado em seus últimos dias, relatou em Paris o
que eu não hesitaria em denominar a mais espantosa e profunda predição
de toda a história política, onde tais coisas não têm sido raras.
Eu certamente nunca mais terei a oportunidade de expressar meus
pensamentos para uma audiência como esta, e numa ocasião assim tão pri-
vilegiada um palestrante pode muito bem sentir-se tentado a refletir se ele
sabe de qualquer verdade negligenciada, de qualquer proposição cardeal que
possa servir como seu epitáfio escolhido, como um último sinal, talvez mes-
mo como uma meta. Não estou pensando naqueles brilhantes preceitos que
são a marca registrada de cada escola; ou seja — aprenda tanto escrevendo
quanto lendo; não se satisfaça com o melhor livro; procure outras luzes nos
outros; não tenha nenhum favorito; mantenha os homens e as coisas se-
parados; previna-se contra o prestígio dos grandes nomes; certifique-se de
que seus julgamentos são seus mesmos, e não fuja da discordância; nunca
confie sem testar; seja mais rigoroso com as ideias do que com as ações;
não negligencie a força da causa má ou a fraqueza da boa; nunca se deixe
surpreender pela queda de um ídolo ou pela exumação de um esqueleto;
julgue o talento no que ele tem de melhor, e o caráter, no que tem de pior;
duvide do poder mais do que do vício, e estude problemas de preferência
aos períodos; por exemplo: a origem de Lutero, a influência científica de
Bacon, os predecessores de Adam Smith, os mestres medievais de Rousseau,
a consistência de Burke, a identidade do primeiro whig. A maior parte deles,
suponho, é inquestionável e não reclama nenhum complemento. Mas o peso
Isso está associado àquela filosofia que Catão atribui aos deuses. Pois
que nós temos uma teoria que justifica a Providência pelo evento; para
a qual nada é tão meritório quanto o sucesso; para a qual não pode ha-
ver vitória por uma má causa; prescrição e duração legitimam-se; e o que
quer que exista é direito e razoável; e porque Deus manifesta Seu arbítrio
por meio daquele que Ele tolera, nós devemos nos conformar ao decreto
divino, vivendo para dar forma ao futuro de acordo com a imagem ratifica-
da do passado. Outra teoria, menos confiantemente propalada, considera
a história como nossa guia, tanto mostrando os erros a evitar quanto os
exemplos a seguir. Ela desconfia das ilusões do sucesso e, embora possa
haver uma esperança do triunfo final do que é verdadeiro, senão por sua
própria atração, pela gradual extinção do erro, ela não admite nenhuma
promessa correspondente para o que é eticamente certo. Ela considera mais
perigosa a canonização do passado histórico do que a ignorância ou a ne-
gação, porque perpetua o domínio do pecado e admite a soberania do erro,
e considera que faz parte da verdadeira grandeza saber estar e cair sozinho,
estancando, por toda uma vida, a torrente contemporânea.
Ranke relata, sem adornos, que Guilherme III ordenou a eliminação
de um clã católico, e comenta a desculpa hesitante de seus defensores.
Mas quando ele morre e o elevam à posição de libertador internacional,
Glencoe é esquecido, a imputação de assassinato cessa, como algo indigno
de atenção. Johannes Mueller, uma grande celebridade suíça, escreve que
a Constituição britânica ocorreu a alguém, talvez a Halifax. Esta afirma-
ção rudimentar não seria aprovada por rígidos advogados como uma fiel e
oportuna indicação da evolução misteriosa das eras, desde começos obscu-
ros, que jamais havia sido profanada pela intrusa observação do homem;
mas ela é menos grotesca do que parece. Halifax era o mais original escritor
de libelos políticos na multidão panfletária entre Harrington e Bolingbroke;
e na campanha da exclusão ele produziu um quadro de demarcações que,
em substância, senão na forma, prenunciou a posição da monarquia nos
últimos reinados hanoverianos. Embora Halifax não acreditasse na trama,
insistiu em que vítimas inocentes deveriam ser sacrificadas para satisfazer
a multidão. Lord William Temple37 escreve: “nós discordamos somente em
37
Sir William Temple (1628-1699), diplomata e autor inglês.
um ponto, que era deixar alguns padres para a lei sob a acusação de serem
padres somente, porque a Casa dos Comuns assim havia desejado; o que
eu entendi ser completamente injusto. A respeito desse ponto Lord Halifax
e eu tivemos um debate tão acirrado nos aposentos de Lord Sunderland,
que ele me disse que, se eu não cooperasse em pontos que eram tão neces-
sários para a satisfação das pessoas, ele diria a todos que eu era um papista.
E declarou que a trama deveria ser tratada como se fosse verdadeira, quer
fosse, quer não, naqueles pontos que eram geralmente mais acreditados”.
Apesar desta passagem acusatória, Macaulay, que prefere Halifax a todos os
homens de Estado de sua época, elogia-o por sua misericórdia: “sua aver-
são aos extremos, e o temperamento clemente e compassivo de que parecia
ser naturalmente dotado preservaram-no de toda participação nos piores
crimes de seu tempo”.
Se, em nossa incerteza, frequentemente erramos, às vezes pode ser
melhor correr o risco do excesso no rigor do que na indulgência, porque
então ao menos não causamos nenhum estrago por perda de princípio.
Como disse Bayle, é mais provável que os motivos secretos de uma ação
indiferente sejam maus do que bons; e esta conclusão desanimadora não
depende de teologia, porque James Mozley38 defende o cético por outro
flanco, com toda a artilharia do tratadista de Oxford. “Um cristão”, diz, “é
forçado por seu próprio credo a imaginar a maldade, e não pode libertar-
se. Ele a vê onde os outros não conseguem; seu instinto é divinamente
fortalecido; seu olho é sobrenaturalmente aguçado; ele tem uma percepção
espiritual e os sentidos exercitados para discernir. Ele tem a doutrina do
pecado original; essa doutrina o põe necessariamente em guarda contra
as aparências, mantém sua apreensão sob perplexidade, e o prepara para
reconhecer em qualquer lugar o que ele sabe estar em toda parte.”
Há um dito popular de madame de Stael, segundo o qual perdoamos
tudo aquilo que realmente compreendemos. O paradoxo foi judiciosamen-
te expurgado por seu descendente, o duque de Broglie, nas palavras: “pre-
cavenha-se de demasiada explicação, a fim de que não terminemos nos
desculpando demais”. A história, diz Froude, ensina que certo e errado
são distinções reais. As opiniões alteram-se, as maneiras mudam, os credos
38
James Bowling Mozley (1813-1878), teólogo e jornalista.
39
Sir Thomas Browne (1605-1682) nasceu em Londres e foi educado na faculdade de Winches-
ter e Pembroke, Oxford. Estudou a medicina em Montpellier e em Pádua. É autor, entre outros,
de Religio medico; Pseudodoxia epidemica (vulgar errors); Hydriotaphia; Urne burial; e The garden
of Cyrus or the quincuncial.
Na cultura histórica ocidental, até o século XVII, não havia uma concep-
ção de ações humanas orientadas para o futuro. A história como um tipo
de saber sobre o passado mirava sempre o presente, e os historiadores
pretendiam orientar as ações necessárias a seu mundo focando exemplos
pretéritos grandiosos, sobretudo as façanhas dos homens ilustres. Sob esse
aspecto, o início da época moderna marca a era de glória dos varões de
Plutarco, que a história ultraprogressista de Louis Bourdeau tende a rejei-
tar como um dos aspectos centrais de sua singular modernidade. Então,
o que se concebe atualmente como ações planejadas para as posteridades
sucessivas foram inovações propostas no decorrer do século XVIII, sobre-
tudo a partir de sua segunda metade. De início, objeto de reflexão isolada
por parte de algumas mentes brilhantes, a ideia de progresso integrou-se
à consciência coletiva do Ocidente, espraiando-se pelo século XIX e abar-
cando praticamente toda a reflexão teórica nos países europeus em que a
história se tornou relevante como fonte de conhecimento.
Segundo Louis Bourdeau, Turgot teria sido o primeiro e grande arauto
da modernidade, ao abrir o caminho à escalada da ideia de progresso. A
partir de meados do século XVIII, o progresso foi a força desencadeadora
Acerca da ideia de progresso ver, entre outros, Bury (1971); Nisbet (1985); Le Goff (1984b).
Meinecke, 1982.
Nesse espírito das tradições herdadas, o próprio Comte é apresentado por Bourdeau (1888:375)
como um legatário: “Auguste Comte sistematizou a lei indicada por Turgot, segundo a qual as
concepções gerais do espírito humano, expressas inicialmente sob a forma de símbolos teoló-
gicos, chegam em seguida a uma fase de interpretações metafísicas e se constituíam, enfim, no
estado de conhecimentos positivos. A religião, a filosofia e a ciência representavam os graus de
iniciação dos espíritos na verdade”.
Lefebvre, 1971.
da pelo trabalho coletivo parece singularizar muito bem a sua visão sobre o
caminho a ser trilhado pelos povos. Dessa forma, qualquer descontinuida-
de dos ganhos descaracterizaria a moderna ideia de um desenvolvimento
sem escalas. Nada disso parece afetar a otimista concepção de Bourdeau.
Segundo ele, o progresso tornou-se a força desencadeadora de uma trajetó-
ria ininterrupta de desenvolvimento para as sociedades humanas.
Ao longo do século XIX, a história dominou a cena intelectual europeia
a ponto de se falar no “século da história”. Alguns autores compararam esse
seu papel de proa àquele ocupado pela filosofia no século anterior. “Tudo
toma, hoje”, declarou Chateubriand já nos inícios da quarta década do XIX,
“a forma da história: polêmica, teatro, romance, poesia”. Isso porque, dada
a conjunção de certas influências histórico-culturais, como o romantismo e
o nacionalismo, houve uma ebulição da pesquisa histórica, o que fez dela
uma atividade multiforme, capaz de constituir um público numeroso e di-
versificado. Mas, as correntes historiográficas quase sempre são apresentadas
de forma meio mutilada, haja vista que apenas as celebridades e, na melhor
das hipóteses, alguns de seus epígonos mais destacados aparecem represen-
tados nas visões altamente seletivas dos manuais. Pode ser esse o verdadeiro
black-out que obscurece por completo o nome e a obra de Louis Bourdeau,
representante talvez solitário do gênero história positiva em seu sentido mais
fiel e restrito. Isso para afirmar que o livro de Bourdeau, L’histoire e les his-
toriens, antes que reflexões sobre uma prática ou um ofício de especialistas,
parece muito mais uma declaração filosófica jactanciosa de sua novidade,
uma aposta largamente concebida nos seguintes termos: a história é uma
ciência que deve voltar-se para o estudo do “reino humano”, cuja maior sin-
gularidade em relação ao restante da natureza é o exercício da razão. Aqui
permito-me aplicar ao autor uma imagem irônica daquele que, no sécu-
lo XIX, talvez tenha escrito mais ferozmente contra a história como progres-
so: ao cantar louvores às suas próprias descobertas (é preciso lembrar que até
aquela altura a história científica ainda não existia), Bourdeau assemelha-se
a uma daquelas “galinhas estafadas”, cacarejando demasiadamente ao redor
de um minúsculo ovo. Aos estudos históricos caberia, portanto, distinguir
Apud Carbonell (1981:120).
Acerca de outros sentidos da referida história positiva, ver Palmade (1988:48).
“A objetividade e a cientificidade da história” (Nietzsche, 2005:295).
as leis que estabelecem uma dinâmica que o autor caracteriza como a “con-
tínua metamorfose”. A história, com as suas especificidades de ciência do
homem, estaria capacitada para alcançar o sentido da história humana. O
mais curioso na concepção de Bourdeau é que há um núcleo diretor a guiar
os passos dos fenômenos estudados pela história. Essa espécie de dínamo
que desencadeia as ondas de acontecimentos é também o seu princípio di-
retor. Sim, porque a razão humana promove e orienta os fatos, sendo, pois,
o elemento que estabelece a diferença essencial entre a história dos homens
e a do mundo natural. Paralelamente ao emprego de conceitos de notável
vaguidão, como a própria ideia de história positiva, o método de Bourdeau
destoa, por exemplo, daquele proposto por Langlois-Seignobos, que inves-
tem num método associativo da erudição e da narrativa, passando muito
longe de julgamentos e previsões, e que só afirmam algo a partir do que está
registrado nos arquivos. Portanto, contra o império dos fatos reunidos em
vasta e confiável documentação, modelo propugnado por Ranke e acatado
por 10 entre 10 historiadores eruditos da segunda metade do século XIX,
Bourdeau opôs a supremacia das leis da história. Sua pesquisa filosófica para
o estabelecimento de leis fundamenta-se em autores de diferentes tradições
literárias, o que o afasta das formas consagradas de se fazer história em seu
próprio tempo. Como o comtismo, sua proposta despencou num abismo
de silêncio. De fato, em seu próprio país, poucos historiadores de ofício se
ocuparam de sua obra. Até os literatos o renegaram. Anatole France escreveu
uma elegante nota acerca de L’histoire e les historiens, mas declarou que, entre
a verdade aí defendida pela história científica de Bourdeau e a beleza da his-
tória literária herdeira de Heródoto e de Tucídides, ficava com esta.
De fundamental na definição de Louis Bourdeau da história como
dimensão dos acontecimentos está a veemente recusa da tradicional teoria
dos grandes homens. Nesse ponto, Bourdeau lança mão de Voltaire. Numa
de suas célebres cartas, o autor de Candide havia se queixado do grosso vo-
lume de heróis existentes nos livros de história. Mas, olhando com cuida-
“Como bom discípulo de A. Comte, L. Bourdeau situa-se num plano filosófico. A história,
segundo ele, é a ‘ciência dos desenvolvimentos da razão’; ela tem por objeto ‘a universidade dos
fatos que a razão dirige ou da qual sofre a influência’. [...] Por outro lado, esta disciplina pode
negligenciar os acontecimentos singulares e os personagens ilustres. [...] Em síntese, trata-se de
uma filosofia da história, resolutamente determinista, que a uma só vez pretende reconstituir o
passado e prever o futuro” (Bourdé e Martin, 1997:205).
do, esses maiorais não passavam de uns tantos loucos a povoar as páginas
dos livros de maneira artificial, por absoluta falta de mérito. Esses numero-
sos arremedos e falsificações implicaram o fato de que, para canonizar os
santos, passou a ser necessária uma longa espera, para que se apagassem
todos os testemunhos das tolices que cometeram. A imagem voltairiana
dos grandes homens fabricados por engenhos de inteligência interessada é
utilizada por Bourdeau para argumentar que a história do gênero humano
deveria coincidir, tanto quanto fosse possível, com a história da humani-
dade. Nesse ponto Bourdeau saca um novo exemplo, o da carteirada que
alguns deputados norte-americanos quiseram aplicar na multidão que lhes
roubava visão privilegiada num evento público. “Deem passagem aos re-
presentantes do povo dos Estados Unidos”, diz o líder do grupo, no que
foi interpelado por um popular que o adverte discretamente nos seguintes
termos: “nós somos o povo dos Estados Unidos”. A hilaridade de tal réplica
produz um efeito de recusa às notoriedades falsificadas, para ele algo tão
contrário ao espírito da ciência histórica como um geógrafo que, ao estudar
a Terra, se dedicasse apenas à descrição das cadeias de montanhas. Ora,
reitera Bourdeau, os historiadores suprimem os exércitos e se põem a falar
dos generais. Portanto, é chegada a hora de extinguir os pontos culmi-
nantes, as celebridades artificiais, porque a humanidade só pode ser bem
representada por ela mesma. Isso porque toda a capacidade de progresso
que caracteriza a espécie humana não reside em alguns homens ilustres.
A elaboração do progresso se faz pela indústria de uma multidão de traba-
lhadores anônimos, que se aplicam em um diversificado leque de tarefas.
E o autor conclui a sua definição de história: um grande homem poderá
ser criatura, mas não o criador de uma sociedade. A ideia de que a socie-
dade era superior ao indivíduo não foi uma descoberta de Bourdeau. Seu
rechaço ao individualismo vem de uma tradição já solidamente assentada,
da qual Comte foi um dos avalistas. A ciência nova de Comte, a sociologia,
desenvolvida em seu Curso de filosofia positiva, pretendia assegurar a feli-
“...a ideia do homem comum desfrutou de um grande sucesso. Convencidos que os seres
humanos não podem fugir das leis universais de causalidade, Henry Thomas Buckle, Grant
Allen e Louis Bourdeau insistiram na força de limites externos, particularmente os geográficos,
e descreveram os seres humanos como formigas que tecem a vida social (do mesmo modo que
células reconstituem o tecido orgânico) de maneira anônima” (Loriga, 2008).
cidade do gênero humano pela compreensão das leis que regem a socie-
dade. A história até então fora história literária, e os historiadores apenas
narradores de fábulas. Para se tornar história científica, ela deveria estudar
as ações diárias dos homens comuns. A história, por meio da observação
positiva, ou seja, baseada numa certa teoria inovadora capaz de perceber
as alterações das sociedades no tempo, deveria ocupar-se das necessidades
dos homens porque são eles, em conjunto, os que verdadeiramente atuam
na determinação do sentido dos acontecimentos. O principal compromis-
so intelectual da história era decompor a vida coletiva em toda a sua com-
plexidade e estudá-la por peças. Essa seria a nova história, e a estatística
ocuparia nela um papel central.10
Das reflexões de Bourdeau o que fica mais evidente é a ideia de um
sentido histórico definido em termos próximos a um historicismo abso-
luto. Isso porque há uma razão humana que desequilibra tudo a favor de
uma humanidade pensante, razão que é a força motriz de uma potência
irresistível conhecida como progresso. Como creio ter afirmado, essa no-
ção dominou de tal modo o campo das ciências no século XIX, como se
tratasse de uma obsessão salutar. Ora, a ciência portava a verdade liber-
tadora, uma promessa tão garantida de um futuro radiante a ponto de
se tornar uma religiosidade substitutiva, um credo secularizado ou, nas
palavras de Nietzsche, uma “teologia disfarçada”. A maquinaria moderna,
o encurtamento das distâncias, o domínio da natureza, o enriquecimento
das sociedades, o fortalecimento do Estado,11 todos esses eram indícios de
que a história operava no sentido cumulativo. As maquinações da ciência
haviam permitido todas as excelências desses novos tempos. As tentativas
de organização racional do mundo triunfaram sem qualquer traço de ambi-
guidade. A razão promovera todas as benesses de uma forma de organização
social que não deixava dúvidas acerca de suas virtudes transformadoras. A
10
“Todo o futuro dos estudos históricos depende dessa ciência nova” (Bourdeau, 1888:289).
11
Por falar nessa palavra-chave do vocabulário oitocentista, Bourdeau (1888:161) concebeu
sua história positiva como uma “biografia das nações”, que incluiria em seu campo de pesquisa
científica desde as mais desenvolvidas às mais atrasadas dentre elas. A ele talvez não tivesse
ocorrido que o cientista também era parte do Estado-nação e compartilhava com ele uma série
de interesses. Acerca das “relações carnais” entre os historiadores e os Estados liberais emergen-
tes ao longo do século XIX, ver os comentários de Carbonell (1981) e, sobretudo, a crítica ácida
de Nietzsche (2005), contemporâneo de Bourdeau.
12
De autoria de Ernest Renan, a obra foi concebida em 1848. Ver Lefebvre (1971).
13
A história filosófica concebida por Bourdeau, fiel às pegadas comtianas, permite certa previ-
são de seus acontecimentos posteriores. Chamamos isso, hoje, futurologia.
14
A bibliografia acerca do tema é bastante espessa, e o assunto é tratado em textos do sécu-
lo XVI, nas obras de Maquiavel, de Montaigne, entre outros autores. Citamos, por paradigmá-
tico dos tempos modernos, o pequeno ensaio de Voltaire (1985) “Les anciens et les modernes, ou
la toilette de Madame de Pompadour”. A seguir, alguns títulos contemporâneos que desenvolvem
a questão: Abbagnano (1997); Le Goff (1984a); Gillot (1968); Lacerda (2003).
15
Da lavra de contemporâneos, um contraste vigoroso foi, por exemplo, estabelecido por Nie
tzsche (2005:266) em alguns de seus textos sobre a história e os historiadores. A mero título de
ilustração, vejamos uma de suas estocadas mais agressivas contra tais concepções: “a humanida-
de não representa de maneira nenhuma uma evolução para melhor, para o que é mais forte, para
o que é mais elevado, no sentido em que se acredita agora. O ‘progresso’ é somente uma ideia
moderna, quer dizer, uma ideia falsa”.
16
“Sem cólera nem parcialidade” (a expressão é de Tácito, historiador romano do século I).
17
Ver a respeito o ensaio de Shaff (1986).
18
“Pôr suas ideias no estudo dos textos é um método subjetivo [...]. Vários pensam que é útil
e bom ter preferências, ideias ‘mestras’ que dão às obras mais vida e mais encanto; é o sal que
Acima das leis comuns, que organizam os fatos por séries em virtu-
de de sua semelhança, e das leis de relação, que ligam as séries umas às
outras por um vínculo de casualidade, as ciências visam estabelecer uma
lei suprema que resume as precedentes e as reduz à unidade, deixando
perceber que sua especialidade resulta da diferença dos casos em que o
corrige a insipidez dos fatos. Pensar assim é enganar-se muito sobre a natureza da história. Ela
não é uma arte, é uma ciência pura, como a física ou a geologia [...]; o melhor historiador é o
que mais se atém aos textos” (Coulanges, 2000:94).
19
“Existem cem maneiras de escrever a história.” Ver Carbonell (1981).
20
Nietzsche, 2005:288.
21
Bourdeau, 1888:355-364. O livro de Louis Bourdeau (1824-1900) foi publicado quando o
autor tinha 64 anos. Obra organizada em quatro unidades temáticas, cada qual contendo vários
capítulos, os dois trechos aqui traduzidos foram extraídos do “Quarto livro” intitulado “Lois de
l’histoire”. Trata-se mais especificamente de dois subtítulos do parágrafo II, por sua vez incluí-
dos no capítulo 2 intitulado “Indication des lois en histoire”. (N. do T.)
22
Bourdeau se refere à tradicional concepção de história exemplar, ou magistra vitae, cujo in-
teresse nas ações passadas, normalmente cometidas por grandes vultos, voltava-se exclusiva-
mente para a orientação dos comportamentos no presente. Com efeito, até os meados do sécu-
lo XVIII, foram escassas as noções da história orientada para o futuro. (N. do T.)
23
Este trecho é paráfrase de uma passagem do Curso de filosofia positiva (1839), de Auguste
Comte. Mas Bourdeau é bastante crítico em relação ao mestre. Critica-o, sobretudo, por algu-
mas limitações, como ter concebido uma história bem pouco diferente dos modelos de ciência
política propostos por figuras como Aristóteles, Maquiavel e Montesquieu. De um ponto de
vista estritamente temático, Comte teria sido impreciso quanto ao que entraria e quanto ao que
seria excluído em sua nova ciência. (N. do T.)
24
Gênese, caps. 2 e 3.
25
Ibid., cap. 6.
26
Código das leis de Manu. Do sânscrito, Manu simboliza o primeiro homem, o progenitor da
humanidade. (N. do T.).
27
Os trabalhos e os dias.
28
Metamorfoses.
29
Odes.
30
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.
31
A ciência nova.
32
Religião monoteísta surgida na Pérsia, fundada pelo profeta Zaratustra. (N. do T.).
33
Xaçna.
34
Mateus.
35
Epístola aos Efésios.
36
Commonitorium. Vincent de Lérins viveu na Gália ao longo da primeira metade do século V.
Em seu Commonitorium discutiu os critérios para a verificação da natureza herética ou ortodoxa
de uma doutrina teológica. Divergiu de Santo Agostinho quanto à questão da graça. (N. do T.)
37
Prometeu.
38
De rerum natura.
39
Écloga.
40
De Legibus.
41
Acadêmicas.
42
História natural.
43
Questões naturais.
44
Cidade de Deus.
45
Suma Teológica.
46
Fábulas.
47
Novum organum. O paradoxo relativo à antiguidade do homem moderno e à mocidade do
homem antigo não era novidade nos séculos XVI e XVII. Mas foi Francis Bacon quem fixou e
consagrou, em latim, essa ideia por meio da máxima “ancient times are the youth of the world”, ou
“as épocas antigas são a juventude do mundo”. (N. do T.)
48
“O homem parece poder chegar à perfeição.” Segundo a concepção de Leibniz, todo progresso
tende a Deus, isto é, ao Ser Infinito, fonte de todos os seres. Nessa cadeia universal, o homem
revela, de maneira singular, a perfectibilidade de todas as criaturas, uma vez que, por si próprio, é
altamente perfectível. Ver The Boston Quartely Review (v. 5, 1842), digitalizado pelo Google. Acerca
do pensamento de Leibniz, ver verbete correspondente em Huismann (2001). Para análises mais
específicas de suas obras mais importantes, ver também Huismann (2003). (N. do T.)
Entretanto, foi preciso chegar a meados do século XVIII para ver estas
vagas noções de progresso, tão longamente incertas e discutidas, tomarem
corpo, erigirem-se em sistema e pretenderem constituir uma lei formal. A
honra dessa orientação decisiva pertence a Turgot, que, em dois discursos
pronunciados na Sorbonne (1750), teve o mérito de expor, com uma for-
ça e uma clareza soberanas, a evolução progressiva do gênero humano.49
Ele fez a aplicação dessa evolução a todo o desenvolvimento da história, a
todos os elementos da civilização (a palavra foi criada por ele). Adotando
essas largas perspectivas, Condorcet desenvolveu-as, exagerando-as.50 Her-
der extrai da ideia de progresso toda uma filosofia da história51 e Lessing
nela encontra até a revelação religiosa.52
A teoria de uma lei de progressão entrou, daí para frente, no domí-
nio das ideias gerais. Ela é ressaltada, com uma evidência crescente, pelo
estudo de todos os tipos de acontecimentos e, quanto mais conhecemos a
história, mais sua verdade se impõe. A ciência da humanidade deve buscar
nela seu coroamento e sua realização.
49
História dos progressos sucessivos do espírito humano e Esboço dos dois discursos sobre a história.
50
Esboço dos progressos do espírito humano. Comte também havia repreendido Condorcet por
expressar em sua teoria do progresso preconceitos políticos típicos da cultura de seu tempo,
portanto indignos da filosofia positiva. (N. do T.)
51
Ideias sobre a filosofia da história.
52
Educação do gênero humano.
53
Aristóteles, Política.
54
Aqui o autor também se distancia um pouco das picadas abertas por seu tutor espiritual.
Com efeito, Comte pensava numa lei de perfectibilidade relativa da espécie humana. Os limites
da progressão se verificariam a partir do estabelecimento da sociedade positiva, retratada na
terceira parte de seu Curso. Ao que parece, Bourdeau acreditou numa progressão mais alargada.
(N. do T.)
55
Essa é praticamente uma paráfrase de Comte, que havia afirmado que, na história da huma-
nidade, os mortos eram bem mais numerosos do que os vivos. Por isso mesmo, a influência dos
primeiros era sempre tão decisiva. (N. do T.)
passada e funciona cada vez melhor, com maior liberdade de ação e natu-
ralidade. Os descendentes nascem mais produtivos, mais talentosos, mais
inteligentes, mais éticos e mais sociáveis do que o foram os predecessores.
A espécie humana obedece, portanto, à lei de um contínuo crescimen-
to, de um porvir sem final previsto. O progresso é a regra dos aperfeiçoa-
mentos da razão. Não que o progresso da razão seja a única regra admissí-
vel; na natureza, o progresso está por toda parte; mas em nenhuma outra
parte ele se revela com tanta grandeza e repercussão. O mundo psíquico o
realiza, apesar da cegueira de seus atores, por meio da infalibilidade de suas
leis; o mundo animado aspira por tais leis por meio de instintos incons-
cientes; apenas a humanidade as cumpre com inteligência e moto próprio.
O progresso está para a atividade da razão como a gravitação está para os
movimentos dos corpos; e, da mesma forma que, sob a influência de suas
mútuas atrações, os astros acabam por se situar em certa ordem descreven-
do determinadas órbitas, do mesmo modo os seres dotados de razão devem
progredir com o tempo e melhorar sua condição de vida. Longe de estar
em desacordo com a ordem da natureza, seus progressos se confirmam e se
completam. Seu princípio vincula-se à lei de viver56 que rege o conjunto do
mundo animado: “o verdadeiro estado de natureza, para todos os seres, é o
ponto mais elevado de desenvolvimento que se possa atingir”.57
56
Epicuro.
57
J.-B. Say. Como se pode observar, para explicar as transformações que levam ao incremento
de progresso, o autor prefere referir-se à vida intelectual, a mesma regra utilizada por Comte.
(N. do T.)
Apud Hartog (1988:356-357).
Coulanges, 1975 e 1984.
A base desse argumento encontra-se em Momigliano (1977:325-343).
empenho que, mais que uma simples preocupação, para ele isso tornou-se,
com o transcorrer do tempo, uma verdadeira ruminação ou mesmo uma
obsessão. Ou seja, Fustel de Coulanges também refletiu sobre a história,
suas possibilidades, seus limites, sobre o que ela deveria ser — uma ciência
— e o que ela não poderia ser — arte.
Quem foi, afinal, Fustel de Coulanges? Numa-Denis Fustel de Cou-
langes nasceu em Paris no dia 18 de março de 1830. Em 1850, ingressa na
prestigiosa Escola Normal Superior para estudar história, influenciado pelas
aulas do historiador François Guizot. Três anos depois, parte para a Escola
Francesa de Atenas, onde redige uma monografia sobre a ilha de Quio, em
que procura reconstituir a história das suas supostas origens à atualidade.
Retorna para a França e assume, em 1855, o cargo de professor do liceu de
Amiens e, em seguida, do liceu Saint-Louis em Paris, onde fica de 1858 a
1860. Ainda em 1858, na capital francesa, defende suas teses de doutorado:
a latina, sobre o culto de Vesta, e a francesa, intitulada Políbio ou a Grécia
conquistada pelos romanos. Entre ambas é que se gesta A cidade antiga.
Pouco tempo depois, em 1862, Fustel de Coulanges inicia sua carreira
de professor universitário na Faculdade de Estrasburgo. Sua aula inaugu-
ral, sobretudo o fragmento relativo à teoria histórica, encontra-se traduzida
neste capítulo. Em 28 de fevereiro de 1870, volta a Paris, nomeado mestre
de conferências na Escola Normal Superior em função, segundo ele expli-
ca, da “natureza de seu trabalho e seu gosto pela ciência pura”.10 No en-
tanto, não fica muito tempo na instituição, pois em 1875 assume a cátedra
de história antiga na Sorbonne e, três anos depois, a de história medieval,
na mesma instituição. Finalmente, em 1880, Fustel de Coulanges retorna
à Escola Normal para assumir sua direção, uma tarefa, segundo ele, árdua,
que exerce até 1883, quando retorna à Sorbonne. Doente, morre, aos 59
anos, no dia 12 de setembro de 1889.
Hartog, 1988:103.
Guiraud, 1896:2.
Ilha do mar Egeu, próxima à atual Turquia, que disputa, com outras cidades gregas, o privilé-
gio de ter sido o local de nascimento de Homero.
Qui Vestae cultus in institutis veterum privates publicisque valuerit? (1858).
Ver Coulanges (1893).
Hartog, 2001:34-39.
10
Ibid., p. 54.
11
Koselleck, 1997:15-119.
12
Sobre a querela, ver Fumaroli (2001:7-218); Kriegel (1996b:269-280).
13
Sobre essa questão, ver Momigliano (1983:244-293); Kriegel (1996b:221-264).
14
Rousseau, 1966:311.
15
Mably, 1988.
16
Ibid., p. 323-324.
17
Ibid. Para Dionisio de Halicarnasso, “desse modo Tucídides violava os critérios, estabelecidos
por ele mesmo, para justificar a inclusão de discursos na sua própria obra” (apud Ginzburg,
2002:16).
18
Neste mesmo contexto, um pouco antes e na Alemanha, Johann Martin Chladenius publica
em 1752 Allgemeine Geschichtswissenschaft (Ciência da história), um importante tratado sobre o
método histórico, no qual lança as bases de um modelo hermenêutico para uma historiografia
cujo curso do tempo estimula sua reescritura incessantemente e também para uma certa “rela-
tividade” das interpretações históricas. Ver Chladenius (1988).
19
A expressão filosofia da história surge em 1765, quando Voltaire, sob o pseudônimo de abade
Bazin, publica em Amsterdã La philosophie de l’histoire (ver Voltaire, 1963). Em 1774, Herder pu-
blica a crítica à filosofia voltairiana em Auch eine philosophie der geschichte (ver Herder, 1992).
20
Voltaire, 1829:191-192.
21
Ibid., p. 220-223.
22
Apud Kriegel (1996a:289).
23
Kriegel, 1996a:298.
24
A influência de Voltaire não se limita ao século XIX. Kriegel (1996a:292-293) chega a falar
que suas concepções equivalem “quase” ao programa dos Annales. Jacques Le Goff (1988:47-
48) confirma esta impressão ao colocar Voltaire como um dos pais da nouvelle histoire francesa,
representada pelas diversas gerações dos Annales.
25
Escreve Luciano (2001): “portanto, assim deve ser para mim o historiador: sem medo, incorrup-
tível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame os figos
de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade;
que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com
todos até o ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros, apátrida, autônomo,
sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou”.
26
Ranke, 1824; Humboldt, 1985; Humboldt, 1988; Langlois e Seignobos, 1992.
27
Gauchet, 2002:9-38.
28
Flickinger, 1995:6.
29
Quillien, 1985:10.
30
Humboldt, 1985:67.
31
Humboldt, 1985:68-69.
32
Ibid., p. 69.
33
Ibid., p. 71.
34
Ibid., p. 72.
35
Ibid., p. 77.
36
Graceffa, 2008:94-96; Garcia, 1999:72-73.
37
Coulanges, 1901:243.
38
Coulanges, 1888:33.
39
Hartog, 2005:147-151.
40
Coulanges, 1888:32.
41
Coulanges, 1997:282-284.
42
Hartog, 2001:152-153.
43
Hartog, 2001:158-159.
44
Sobre o uso político da obra de Fustel de Coulanges por Charles Maurras e o movimento de
direita francês chamado Ação Francesa, ver Hartog (2001:175-195) e Valenti (2006:49-64).
45
Coulanges, 1901:243-245. Tanto para este quanto para o texto seguinte, foram selecionadas
as partes relativas à teoria e à metodologia da história, conforme sugestão que se encontra na
coletânea da historiadora francesa S.-A. Leterrier (1997).
Ela é e deve ser uma ciência. Seu objeto é seguramente um dos mais
belos que podem ser propostos ao trabalho do próprio homem, que, para
ser conhecido por inteiro, exige-lhe diversas ciências: o fisiologista estuda
seu corpo; o psicólogo e o historiador dividem-se no estudo de sua alma, o
primeiro constata o que nela há de imutável, sua natureza, suas faculdades,
sua força intelectual, sua consciência, o segundo observa aquilo que muda
e aquilo que é móvel nessa alma, as crenças, o movimento e a sucessão das
ideias, e tudo aquilo que se transforma com as ideias, quer dizer, as leis, as
instituições, a arte, a ciência.
[...] O homem não é hoje aquilo que foi há 3 mil anos, ele não pensa
mais aquilo que pensava então e não vive mais como vivia. Segue-se daí
que, para conhecer completamente esta natureza variável e perfectível, é
necessário tê-la observado em todos os períodos de sua existência; podem-
se estudar os outros seres pela simples observação; o homem somente pode
ser conhecido pela história.
Mas a história assim proposta não pode se contentar em examinar, em
detalhe, uma única época, em contar uma biografia brilhante, em escolher,
enfim, entre os eventos aqueles cuja exposição nos agradará ou nos tocará
mais. Ela tem necessidade de remontar à Antiguidade, de conhecer as insti-
tuições dos povos que não existem mais, de reavivar pelo sopro estas velhas
gerações que não são mais nem poeira. Onde os monumentos escritos lhe
faltam, é preciso que ela solicite às línguas mortas seus segredos, e que em
suas formas e em suas próprias palavras adivinhe os pensamentos dos ho-
mens que as pronunciaram. É fundamental escrutar as fábulas, os mitos, os
sonhos da imaginação, todas estas velhas falsidades sob as quais ela deve
descobrir alguma coisa de muito real: as crenças humanas. Onde o homem
passou, onde deixou algum frágil vestígio de sua vida e de sua inteligência,
aqui está a história. Ela deve abraçar todos os séculos, posto que é o livro
tradicional onde a alma humana inscreve suas variações e seus progressos.
46
Coulanges, 1997.
47
Montesquieu, Considérations sur les Romains, p. XI.
48
Tito Lívio relata que Tarquínio, o Antigo, quinto rei romano e primeiro etrusco, em guerra
com os sabinos, indaga ao áugure Attus Navius o que fazer antes de organizar sua tropa. Este
audaciosamente responde que, nesta matéria, nada se podia mudar nem acrescentar sem obter
a sanção dos auspícios. O rei sentiu-se agastado com a ousadia do sacerdote; e relatam que,
em escárnio pela sua ciência, lhe disse: “olha lá, adivinho, consulta então os teus presságios e
diz-me se o que eu agora estou a pensar é possível de ser feito”. O adivinho interrogou os pres-
ságios, que lhe teriam respondido que sim. “Muito bem! — exclama o rei — Pensei eu que tu
havias de cortar esta pedra com uma navalha. Pega pois nela e faz o que essas aves te declaram
ser possível.” Então, sem sequer hesitar, Nevius, ao que dizem, cortou a pedra. A estátua deste
Attus, representando-o de cabeça coberta, erguia-se no mesmo local onde o sucesso se deu,
sobre os degraus, à esquerda, da cúria do Senado. Diz-se que também a pedra ali foi colocada,
na intenção de perpetuamente consagrar a memória deste prodígio. O certo é que a partir de
então os áugures adquiriram tal crédito, e o seu sacerdócio tanta consideração, que nada mais
se ousou empreender, nem na guerra nem na paz, sem previamente consultá-los. Ver Tito Lívio,
História romana, I, 36.
primeiro movimento é crer, e acredito tanto mais quanto suas ideias são
distantes das minhas.
A compreensão retrospectiva
Envolveu a França e os Estados germânicos encabeçados pela Prússia. Ocorreu no contexto
da unificação do império alemão, liderada pelo chanceler Otto von Bismarck e visou à incorpo-
ração de territórios franceses a esse novo Estado. Após a derrota de Sedan, o imperador Napo-
leão III foi feito prisioneiro, gerando-se assim condições para a proclamação da Terceira Repú-
blica francesa.
Monod, 1872.
O manifesto foi republicado na íntegra pela revista em 1978 (v. 17, n. 518).
Gustave Fagniez (1842-1927), um dos fundadores da Revue Historique, formou-se na École
des Chartes e seguiu cursos de Monod na École des Hautes Études. Tornou-se especialista em
história medieval e moderna e trabalhou como arquivista.
Monod, 1895.
Carbonell, 1978:344.
Den Boer, 1998:334.
Den Boer, 1998:334. A respeito do tipo de história divulgada pela Revue Historique, ver tam-
bém Dosse (1992); Bourdé e Martin (1983).
Ribérioux, 1992.
10
Ribémont, 2005.
11
O affaire Dreyfus consistiu num erro judiciário que resultou na condenação do capitão Alfred
Dreyfus (1859-1935). Em 1894 ele foi acusado de ter agido como espião e entregado documen-
tos secretos do Exército francês aos alemães. Julgado por traição, foi deportado para a ilha do
Diabo, na Guiana Francesa. Em 1898, o escritor Émile Zola assumiu publicamente a defesa de
Dreyfus com a denúncia intitulada J’accuse, que motivou a reabertura do processo. Em Rennes,
em 1899, um novo julgamento reafirmou a condenação, desta vez a 10 anos de trabalhos força-
dos. Somente em 1906 a inocência de Dreyfus foi reconhecida, motivando sua reabilitação. O
centro do julgamento final foi a prova de perícia do dossiê que o incriminara, e nela foi conclu-
siva a constatação da falsidade dos documentos por historiadores especialmente convidados.
12
Driault, 1898; Ter Minassian, 2008; Andoniam, 1913.
13
Monod, 1876.
14
Esta exposição do progresso dos estudos históricos na França é ao mesmo tempo a introdução
e o programa de nossa revista.
15
Aqui como em outras expressões, foi feita uma atualização da grafia no que diz respeito ao
uso de maiúsculas/minúsculas, conforme as formas consagradas na atualidade no Brasil. Os
nomes próprios e toponímicos foram traduzidos sempre que se trata de referências conhecidas,
conservando-se no idioma original as demais. (N. do T.)
16
O termo está relacionado à obra Centuries de Magdebourg, a primeira história protestante da
Igreja, que utilizou a periodização em séculos como recurso indispensável para situar eventos
no passado. O início desse procedimento metodológico recua a 1559, quando historiadores
reunidos em torno de Faccius Illyricus publicaram o primeiro volume das Centuries, nome re-
sumido e consagrado de uma obra dividida em volumes segundo os séculos. (N. do T.)
17
O galicanismo constituiu uma tendência da Igreja Católica na França de procurar tornar-se
independente de Roma e do papa. O termo origina-se de Gália, antigo nome da França. No
contexto do absolutismo, expressou a busca de autonomia do poder real em relação à autori-
dade temporal do papado. Em 1692 o rei Luís XIV promoveu uma assembleia do clero francês
que afirmou as liberdades religiosas da Igreja em seu território. Opôs-se à autoridade do papa
e às teses ultramontanas que defendem a submissão de toda a Igreja à Santa Sé, inclusive em
assuntos temporais. (N. do T.)
18
A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) consistiu em diversos conflitos entre reinos europeus,
motivados por rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais. O Sacro Império Romano
Germânico e a casa de Habsburgo constituíram seu centro principal, mas também foram envolvi-
dos a Suécia, os Países Baixos e a França. Terminou com a Paz de Vestfália (1648). (N. do T.)
19
O Concílio de Trento (1545-1563) consistiu num dos momentos fundadores da Igreja Católica.
Foi convocado pelo papa Paulo III para garantir a unidade da fé e da disciplina eclesiástica em
reação à Reforma protestante. Também conhecido como Concílio da Contrarreforma. (N. do T.)
20
O jansenismo foi um movimento religioso e político na França e na Bélgica, nos sécu-
los XVII e XVIII, de inspiração calvinista. Expressou uma reação ao absolutismo real e a aspec-
tos da Igreja Católica, sendo seu ponto fundamental a crença de que o pecado original implicou
a corrupção irremediável da natureza humana e a inclinação do homem para o mal. (N. do T.)
21
Os membros do clero regular seguem, como o nome diz, as regras de uma ordem ou congre-
gação religiosa, vivendo em mosteiros. Já o clero secular vive no “século”, pois está submetido
apenas à autoridade de um bispo, trabalhando a serviço exclusivo de uma diocese. Vive a vida
cotidiana em contato com o mundo dos leigos. (N. do T.)
22
Charles Marguetel de Saint-Denis, senhor de Saint-Évremond (1613-1703), político e escritor
francês, pertenceu ao libertinismo, movimento cultural ocorrido no século XVII e relacionado
ao conceito de “espírito livre”, sobretudo em reação a crenças estabelecidas, de caráter religioso.
Defendeu os conceitos de liberdade de costumes, vida natural e na natureza como perfeição
divina, ausência de restrições aos instintos, busca de prazer físico, sem aceitar a noção de pe-
cado. (N. do T.)
Diz-se do papa Clemente XIII que, ao ser instado a fazer mudanças drásticas nos estatutos da
24
Ordem Jesuíta, teria assim respondido: Sint ut sunt aut non sint (que seja como é, ou não seja de
modo algum). (N. do T.)
nal pela ideias gerais, onde eles não queriam ver senão fantasias ou frases,
e se refugiaram com uma espécie de preconceito em minúcias e detalhes de
fatos muitas vezes sem interesse. Os homens que verdadeiramente ilustra-
ram a ciência histórica não a compreendiam assim. Augustin Thierry não
acreditava transgredir seu talento literário quando consagrava seus esforços
a classificar os documentos relativos à história do Terceiro Estado;25 Miche-
let procurava conter sua imaginação não avançando nada que não pudesse
apoiar sobre textos, e considerava os arquivos como o verdadeiro laborató-
rio do historiador; ninguém fez mais que Guizot pela publicação de textos
e documentos históricos. Mas esses homens eminentes não puderam se
opor às consequências fatais da falta de um ensino superior bem organiza-
do, no qual a juventude viesse adquirir ao mesmo tempo uma cultura geral
e hábitos de método, de crítica e de severa disciplina intelectual.
Hoje, no entanto, se a França tem a infelicidade de ver desaparece-
rem, um após outro, sem que sejam substituídos, todos os historiadores
que fizeram sua glória por seu gênio de pensadores e de escritores, temos
ao menos esta consolação de ver os sadios métodos de trabalho e de crítica
se difundirem cada vez mais, o antagonismo entre a literatura e a erudição
diminuir, e uma concepção mais justa da ciência histórica aparecer gra-
dualmente. Aproximam-se as escolas por tanto tempo rivais. Compreen-
deu-se o perigo das generalizações prematuras, dos vastos sistemas a priori
que têm a pretensão de tudo abarcar e de tudo explicar. Compreendeu-se
também o pequeno interesse que oferecem as pesquisas de pura curiosi-
dade, que não são guiadas por nenhuma ideia de conjunto, por nenhum
plano traçado com antecedência. Sente-se que a história deve ser objeto
de uma investigação lenta e metódica, em que se avança gradualmente do
particular ao geral, do detalhe ao conjunto; em que se esclarecem suces-
sivamente todos os pontos obscuros, a fim de ter quadros completos e de
poder estabelecer, sobre os grupos de fatos bem constatados, ideias gerais
suscetíveis de prova e verificação. É pouco provável que a segunda metade
do século veja surgir obras históricas tão deslumbrantes quanto as que ilus-
25
Terceiro Estado foi uma classificação da sociedade francesa durante o Antigo Regime, até a Revo-
lução Francesa. Indicava os que não pertenciam ao clero (Primeiro Estado) nem à nobreza (Segun-
do Estado). Trata-se de uma categoria heterogênea, tanto econômica como socialmente considera-
da, incluindo a burguesia, os camponeses, artífices e operários de manufaturas. (N.do T.)
traram a primeira, mas podemos afirmar que a atividade histórica será nela
fecunda. Todos os eruditos estão ao mesmo tempo persuadidos de que o
estilo e a forma literários estão longe de serem ornamentos supérfluos; que
eles acompanham quase sempre os trabalhos maduramente elaborados, e
que somente eles lhes dão um valor durável. O estilo não consiste em ar-
redondar as frases sonoras, mas em revestir o pensamento da forma que
lhe convém; a crítica histórica, assim como a história narrativa comportam
cada qual formas literárias especiais, e o talento de escrever e de compor se
exerce tanto numa como na outra. A crítica, de resto, não trabalha senão
para preparar as vias da história narrativa e mesmo, em certa medida, da
história filosófica. Nesses quadros mais vastos, o talento e o gênio podem
naturalmente se desenvolver mais amplamente.
Apesar de todos os progressos alcançados, estamos ainda, portanto,
em um período de preparação, de elaboração de materiais que mais tarde
servirão à construção de edifícios históricos mais vastos.
Os progressos alcançados até agora nada mais fizeram do que iluminar
as condições de uma investigação verdadeiramente científica, e esta investi-
gação está apenas começando. Todos os que se dedicam a ela são solidários
uns com os outros; trabalham na mesma obra, executam partes diversas do
mesmo plano, buscam o mesmo objetivo. É útil, é mesmo indispensável
que eles se sintam todos unidos, e que seus esforços sejam coordenados
para serem mais poderosos. Diversos meios podem contribuir para isso.
Um ensino superior bem organizado contribuiria mais que qualquer outra
coisa. As sociedades eruditas sérias, como as muitas que possuímos, servem
para isso poderosamente. A Revue Historique, que surge hoje, quer trabalhar
no mesmo objeto. Ela quer não apenas favorecer a publicação de trabalhos
de detalhes originais e sérios, mas também e acima de tudo servir de elo
entre todos os que consagram seus esforços à vasta e múltipla investigação
da qual a história é o objeto; fazer-lhe sentir sua solidariedade, fornecer-lhe
as informações precisas e abundantes sobre tudo o que se realiza atualmen-
te nos campos variados das ciências históricas. Queríamos contribuir para
formar pelo exemplo de um bom método os jovens que querem ingressar
na carreira histórica, encorajar e manter no bom caminho os que já nele
estão, servir a todos de centro de reunião e informação.
Há nove anos, uma revista foi fundada com intenções análogas às
nossas, a Revue des Questions Historiques. O sucesso que ela alcançou, os
26
La Popelinière (Premier livre de l’idee de l’histoire accomplie, p. 66).
O ministro adotou o jovem professor como seu “filho espiritual”, e os dois cultivaram uma
relação de amizade até a morte de Duruy, em 1894. Sobre a atuação de Duruy no ministério,
ver Lavisse (1895).
Coleção de documentos alemães publicados a partir de 1826.
Estudos sobre a história da Prússia, (1879); Estudos sobre a Alemanha imperial (1881); Três impe-
radores da Alemanha (1888) e Frederico, o Grande (1891).
Lavisse, 1881.
Apud Nora (1962:73). Sobre Lavisse, ver também Delacroix, Dosse e Garcia (2007).
À queda do segundo império de Napoleão III, em 1870, seguiu-se a proclamação da Terceira
República, que durou até 1940.
Deve-se ressaltar que a preocupação em fazer avançar os estudos históricos na França e fun-
damentá-los em fontes primárias já era uma preocupação de Guizot, Mignet, Thierry e outros,
nas décadas de 1820 e 1830.
O termo “positivismo” surgiu na língua francesa para designar o sistema de pensamento de
Auguste Comte e dos seguidores da “filosofia positiva”. Para os historiadores da escola metó-
dica, entretanto, um estudo positivo era aquele fundamentado em documentos autênticos, e
não fruto de uma reflexão especulativa. O uso da expressão “positivo” não significa, portanto,
uma filiação à filosofia positiva de Comte, pois os metódicos eram contrários a qualquer tipo de
filosofia da história. Posteriormente, a expressão “positivismo” seria empregada genericamente,
em sentido pejorativo, para designar uma corrente de pensamento que defendia a aplicação de
procedimentos elaborados nas ciências naturais a todos os domínios do saber, como única ma-
neira de se obter um conhecimento objetivo. A partir da década de 1970, foram considerados
“positivistas” os historiadores que defendiam a possibilidade de uma história “objetiva”. Sobre o
assunto, ver Carbonell (1976); Delacroix, Dosse e Garcia (1999); Noiriel (2005).
Na época, era usual referir-se à escola metódica como “nova escola” ou “nova história”. Os
críticos dessa nova tendência historiográfica, aqueles que repudiavam a recém-adquirida auto-
nomia da disciplina e defendiam uma história subordinada à literatura e à filosofia, falavam da
“barbárie da nova Sorbonne”, aludindo aos professores da universidade reconstruída e inaugu-
rada em 1889. Ver Mayeur (1973).
10
Febvre, 1992a:41.
11
Lavisse, ao lado de Ernest Renan e outros intelectuais, foi membro ativo da Sociedade do
Ensino Superior e escreveu uma quantidade significativa de artigos na Revue Internationale de
l’Enseignement Supérieu, revista criada pela sociedade em 1878.
12
Laloi, 1892.
13
Lavisse, 1890.
14
Apud Nora (1962:102).
15
Lavisse, 1885:39.
16
Nora, 1962:332.
17
Hartog, 2001:15.
18
De 1892 a 1933: “Examen de conscience d’une historie et d’une historien” (Febvre, 1992a).
19
Lavisse, 1885 e 1891.
20
Entre o período de 1874-1888 e 1909, a publicação de livros de história aumentou de 18,7%
para 30,3%, e criaram-se inúmeras sociedades de estudos históricos e revistas especializadas.
Entre 1870 e 1900, o número de disciplinas na área de história, na Sorbonne, duplicou, e entre
1880 e 1899, um terço das teses de doutorado daquela universidade foi defendido por historia-
dores. Ver Boer (1998) e Noiriel (2005).
21
Sobre essa questão, ver Malerba (2006).
22
Ver Marion (1880).
23
Lavisse, 1879.
reação, por meio dos quais se manifesta a originalidade moral. Mas o his-
toriador reivindica um espaço bem maior para os efeitos do costume, pois o
costume é o meio histórico.
Um capítulo mais longo seria necessário para descrever a influência
desse meio. Por mais difuso que seja, ele é muito forte. Isto será constatado
quando se tiver realizado a história da inteligência humana. Selecionem-se
escritores que em determinadas épocas manifestaram sua inteligência em
várias obras; apreendam-se, por meio de uma análise profunda, os móveis
de seu pensamento. Depois de multiplicarem-se estudos dessa natureza nas
mais diversas épocas, teremos alguns elementos de uma história da inteligên-
cia e, consequentemente, da moral humana. Então o poder do meio histórico
aparecerá em toda sua extensão.
A máxima — verdade aquém dos Pirineus, mentira além — é falsa, se
a tomamos no sentido absoluto que lhe deu Pascal.24 Uma montanha não é
tão poderosa, mas o tempo o é, certamente: verdade em tal século, mentira
em outro.
Quando o império romano se retirou do Ocidente e os povos bár-
baros ocuparam as províncias, um romano governava o reino da Itália de
Teodorico: Cassiodoro.25 Ele aplicou toda a inteligência em suas cartas e
tratados, nos quais tratou de omni re scibili. Tudo o que a Antiguidade soube
ele sabia, e tudo era um pretexto para dizê-lo. Uma ordem para a restaura-
ção de um monumento era motivo para ele escrever uma história da arqui-
tetura. O fabrico de um instrumento de música ou de um relógio para ser
oferecido a algum rei bárbaro inspirava-o a escrever um tratado sobre mú-
sica e relojoaria. Cassiodoro conhecia os filósofos e os poetas. Era um bom
cristão com imensa erudição pagã. Introduziu no governo uma visão ampla
e liberal e seria um grande ministro se estivesse em uma grande monarquia.
Ora, esse homem dividiu um tratado em 12 capítulos, porque 12 eram as
constelações criadas por Deus; outro, em 33 capítulos, porque Jesus Cristo
viveu 33 anos. Em um tratado sobre ortografia, ele celebrou a profissão
24
Blaise Pascal (1623-1662), filósofo e matemático francês, autor das obras Pensamentos e As
provinciais. (N. do T.)
25
Teodorico (c.454-526), rei ostrogodo, venceu Odoacro em 493 e dominou a região da Itália
até sua morte. Promoveu a cultura romana na corte de Ravena. Cassiodoro (c.485-580), conse-
lheiro do rei Teodorico, é autor da obra Instituições e fundou o mosteiro Vivarium, importante
centro de copistas. (N. do T.)
26
Georgius Florentius Gregorius (c.538-594), bispo de Tours a partir de 573, escreveu a famosa
História dos francos ou Decem libri historiarum. (N. do T.)
27
Clóvis (c.466-511), rei franco, expandiu seus domínios sobre quase toda a antiga província
romana da Gália. Converteu-se ao catolicismo. (N. do T.)
28
Chilperico (c. 539-584), rei merovíngio, cujos reinado e vicissitudes políticas foram narrados
e condenados por Gregório de Tours. (N. do T.)
29
Felipe IV ( 1268-1514), rei de França, conhecido como Felipe, o Belo. Seu reinado caracterizou-
se pelo fortalecimento da soberania régia, pela transferência da residência dos papas para a cidade
de Avignon, pela eliminação dos Templários e pela reorganização das finanças. (N. do T.)
30
Tradicionalmente, a flor de lis era tecida nas tapeçarias e nos mantos reais por mulheres. (N.
do T.)
31
Louis de Rouvroy, duque de Saint-Simon (1675-1755), abandonou o exército pela vida na
corte de Luís XIV, em Versalhes. Entre 1739 e 1751, escreveu suas Memórias, baseadas em suas
observações sobre a vida cortesã. O autor era hostil à política do rei, voltada para o enfraqueci-
mento da nobreza. Suas Memórias foram publicadas somente em 1879. (N. do T.)
sobre toda a nossa inteligência, sobre toda a nossa conduta. Mas, feita essa
ressalva, como ela é poderosa! Se tivéssemos vivido no tempo de Calígula,
diz o cardeal de Retz, o consulado do cavalo nos teria assombrado menos
do que imaginamos.32
Desaprovo o sr. Marion por não ter acentuado suficientemente essa
força do meio, sobretudo por não tê-la demonstrado com exemplos dispos-
tos cronologicamente. Ele nos traça a história de um indivíduo que vive em
um meio geográfico e histórico indeterminado. Eu temo que sr. Marion o
conceba mais livre do que ele é na realidade.
O sr. Marion examina em seguida o indivíduo na sociedade organi-
zada. A propósito da solidariedade no Estado, ele sublinha a importância
moral da forma de governo e insere em páginas excelentes uma passagem
notável de Stuart Mill. Mas o historiador julga que seu procedimento é ex-
tremamente abstrato. Alguns governos são comandados por determinadas
latitudes, e todos dependem do meio histórico. O historiador contesta ao
filósofo o direito de legislar sobre o governo popular e o governo abso-
luto. Governo popular e governo absoluto não existem in abstratcto; não
há dois governos populares ou absolutos que se assemelhem. Um deter-
minado governo popular surge naturalmente como término de um longo
desenvolvimento histórico anterior; é o ponto de chegada de uma marcha
contínua do privilégio em direção à igualdade; do despotismo em direção
à liberdade. Outro surge porque outras formas de governo, tentadas umas
depois das outras, foram irremediavelmente condenadas. A razão de ser
do primeiro é positiva; a do segundo, negativa. Isso vale para os governos
absolutos. A antiga monarquia francesa teve sua razão de ser. Ela nasceu de
uma necessidade percebida no primeiro dia da dinastia dos Capetos.33 Ao
contrário, a monarquia imperial romana nasceu depois que outras formas
de governo foram sucessivamente estabelecidas. Ela não teve nenhum dos
méritos da antiga monarquia francesa, nem uma existência assegurada; po-
rém, conservou uma paródia das instituições republicanas: César recusou
a faixa real, e seus sucessores sequer ousaram tornar a monarquia hereditá-
32
Jean François Paul de Gondi, cardeal de Retz, autor do século XVII, conhecido pelas suas
memórias e máximas. (N. do T.)
33
A dinastia dos Capetos ou capetiana iniciou-se com Hugo Capeto (c.938-996), rei dos fran-
cos, e compreende os reis que governaram entre 987 e 1328. (N. do T.)
34
Cornellius Tacitus (c. 55-120) escreveu várias obras, entre as quais se destacam Historiae, a
história do império romano no século I, e Germania. (N. do T.)
35
Dinastia franca que governou a antiga Gália da metade do século V a 751. (N. do T.)
efetiva do progresso moral. Isso significa que ela desapareceu? Não. A so-
lidariedade histórica é muito poderosa. O fato de povos que viveram tanto
tempo sob o governo de Roma formarem hoje na Europa uma categoria à
parte, diferente em pontos essenciais dos povos germânicos ou eslavos, é
um efeito prodigioso dessa solidariedade. Tudo isso é para apoiar, como se
vê, a tese do sr. Marion: “a solidariedade compreende tanto avanços como
recuos; ela explica as interrupções, parciais ou temporárias, as grandes
quedas de determinados povos e os repentinos avanços de outros”.
A partir da prova de que houve, apesar das interrupções, um progresso
moral no passado, pode-se concluir, com grande probabilidade, a existência
de progresso moral no futuro, reservando sempre a possibilidade de graves
acidentes. É com essa disposição de espírito que o leitor chega às últimas pá-
ginas do livro. Mas eis que, de repente, encontra-se o sonho de uma humani-
dade “tão boa quanto possível, boa e feliz, pois, no limite, trata-se da mesma
coisa”. E o que se deve entender por isso é explicitado no final do texto: é a
cessação de toda injustiça, de toda violência, o fim do crime nos Estados, do
crime entre os Estados, a paz social, a paz internacional.
Na verdade, há aí um abuso da lógica. O autor tem o cuidado de
admitir que a etapa final desse progresso está longe, muito longe, e faz
algumas reservas. “O progresso só será alcançado (tanto quanto podemos
dar como realizado um ideal) no dia em que a Terra inteira estiver povoada
de homens que tiverem individualmente alcançado toda a perfeição que
comporta a natureza humana, todos unidos, todos habituados e dispostos
a se considerarem mutuamente como fins.” Essa reserva era necessária.
Se acontecesse de uma nação, “conhecida por não lhe faltar nem orgulho
nem fé nela mesma”, como diz o sr. Marion, dar o salutar exemplo no nos-
so Ocidente de “renunciar resolutamente a todo espírito de represálias”,
eu temeria muito as ações dos vizinhos para com essa nação. Se todo o
nosso Ocidente se tornasse pacífico, eu começaria a me preocupar com as
predições que anunciam a conquista futura da Europa pela raça amarela.
Os chineses possuem ao mesmo tempo muitos canhões e muitos tanques:
duas condições da glória militar. Já não estão seduzindo o império da Ale-
manha? Os jornais militares alemães não calcularam a ajuda que poderiam
obter da China no caso de uma guerra com a Rússia? Não foi assim que se
introduziram outrora os bárbaros nos assuntos da Europa? Mas não é ne-
cessário insistir nesses temores de aparência paradoxal. Supõe-se que nós
36
Ferdinand de Lesseps, diplomata francês, mentor da ideia da construção do canal de Suez,
inaugurado em 1869. Em 1880 negociava-se a construção do canal do Panamá, também sob a
iniciativa de Lesseps. (N. do T.)
o que resta de istmos está em perigo. Mas que concurso de boa vontade
será suficiente para suprimir a ação do meio geográfico? Será possível redu-
zir a noite nos polos? Será possível atenuar o ardor do sol do equador? Terá
toda Terra a mesma capacidade de produzir? Será menos vigoroso o braço
do pomerano, que arranca seu alimento da terra; menos flexível o do india-
no, que a natureza torna sóbrio e ao mesmo tempo o sobrecarrega com seus
dons? Será possível fazer com que a terra nutridora não dê mais àqueles
que necessitam de menos? Essa eterna diferença do meio, o homem não
a suprimirá jamais. Ora, enquanto houver diferenças, haverá desentendi-
mentos. Enquanto houver desentendimentos, haverá guerra.
Além disso, essa fusão universal em uma humanidade ideal é desejá-
vel? Pode-se duvidar. Para afirmá-lo, seria necessário realizar um balanço
das perdas e dos ganhos que resultariam disso. O desenvolvimento da so-
lidariedade internacional leva a uma espécie de fusão. Se as vantagens são
visíveis, os inconvenientes também o são. As importações intelectuais e
morais são frequentemente perigosas porque o objeto importado se desna-
tura. Por exemplo, temos o hábito singular de nos apropriarmos de uma
palavra da língua alemã e depreciá-la. A palavra que designa o cavalo entre
nossos vizinhos é aplicada entre nós ao mau cavalo. Da mesma maneira,
um determinado produto alemão se deteriora em nossas mãos; um produto
francês, nas mãos de alemães. Que tristes efeitos não produziram a imita-
ção dos nossos clássicos na Alemanha!
O maior perigo de imitação internacional é enfraquecer o gênio do
imitador. A conservação dos gênios nacionais é pelo menos útil e desejá-
vel. Quanto mais originais, mais fortes. Quanto mais fortes, mais servem.
Esses indivíduos da humanidade, que são as nações, são mais ativos para
o bem da humanidade do que o seria a própria humanidade, depois de
ter absorvido os indivíduos. Trabalha-se para todos os homens, quando,
na realidade, acredita-se trabalhar apenas para o seu país. Quanto menos
se é cosmopolita, mais se ajuda o progresso geral do mundo. É assim que
se concilia o patriotismo com o amor à humanidade.
Enquanto a humanidade estiver dividida em nações, resignemo-nos
à guerra. Mas acrescento: consolemo-nos, pois a guerra não é um mal sem
compensação. O sr. Marion, a quem não escapou nenhuma objeção, discu-
te a questão. Ele sabe que a supressão da guerra suprimiria algumas “dessas
altas manifestações de nossa energia”, fonte de nossas alegrias, “as mais
vivas e mais nobres”. Ele propõe substituí-las por outras: fala de regiões
longínquas a explorar, hospitais a visitar... Trata-se de equivalentes para
a guerra? Não teríamos essas ilusões. O perigo da viagem e da visita ao
hospital é problemático: o do campo de batalha é certo. Nada mais preciso,
de contorno mais bem determinado que um furo de uma bala ou o perigo
do corte do sabre. Além disso, nem todo mundo pode ir ao polo Norte ou
visitar hospitais. Todo mundo hoje, pelo menos na França e na Alemanha,
faz a guerra. Felizmente, pois a guerra tornou-se um meio de educação
nacional.
É preciso, nos tempos felizes em que vivemos, quando a riqueza se
multiplicou e há bem-estar quase por toda parte; quando o camponês retira
a palha do teto da sua casa para colocar ardósia, quando seu leito se torna
mais macio, quando sua garagem abriga o carro que o conduz ao mesmo
mercado ao qual seu avô ia à pé, com o cesto às costas; é necessário, quan-
do essas comodidades de todo tipo facilitam e suavizam a vida, que haja,
na existência de cada um, esse momento no qual se deita sobre a terra nua
e se dobra ao peso da mochila e do fuzil. Além disso, o mundo político se
transforma. A hierarquia de nascimento e de direito divino cede em todo
o lugar, mais ou menos rapidamente, à hierarquia do mérito. O eleitor é
juiz desse mérito; o homem situado abaixo na hierarquia sabe que essa
hierarquia provém dele, procede da sua vontade; ao antigo respeito, in-
condicional, que absolutamente passou, sucedeu um respeito condicional,
a prazos renováveis. Ninguém comanda mais do alto em virtude de um
direito inato, por conseguinte superior ao consentimento; o próprio pai de
família, menos armado pela lei e desarmado pelos costumes, adoça a voz ao
falar com a criança rebelde. É por isso que é necessário que todo cidadão
ouça, pelo menos durante alguns meses da sua juventude, a voz breve e
dura de um sargento. O progresso da riqueza e das instituições democráti-
cas torna necessário o regime militar, que ensina a disciplina e torna visível
a todos um grande dever que exige grandes sacrifícios. Tomar o jovem no
momento em que se torna homem, arrancá-lo do estudo, seja ele feliz ou
não, reunir na caserna todas essas existências diversas e, quando necessá-
rio, jogá-las no campo de batalha para defender a honra e a pátria, não será
esse o único meio que nos resta de fazer sentir a todos que não estamos na
terra apenas para viver cada um à sua maneira? E, para concluir, que lição
de solidariedade!
isso, se deixam com frequência esmagar por elas. O sr. Marion não pensa
contra os governos ou contra as religiões: ele pensa sobre as religiões e os
governos. Esse não é o menor dos elogios que lhe devemos, entre os quais
ficamos embaraçados de escolher. É preciso que eu diga ainda, embora se
tenha servido muito desse tipo de elogio, que esse livro faz bem. O autor
conserva, até na conclusão incômoda, uma moderação delicada; ele encara
todas as objeções; evita o absoluto, esse grande obstáculo. Essa maneira de
defender a liberdade, fazendo ver todos os limites, é a verdadeira. Ama-se
ainda mais o que nos resta, enxerga-se mais claramente. As pessoas tor-
nam-se mais dispostas a usá-la para o bem.
Em geral, método histórico ou escola metódica designam uma única realidade, ou seja, uma
tendência metodológica legitimamente aceita e admitida, num determinado momento, pelos
profissionais dessa área. No entanto, algumas nuanças podem ser detectadas. “Método” é um
procedimento ou uma técnica, um conjunto de regras e práticas normativas para descobrir e
demonstrar a verdade. Já a palavra “escola” envolve a noção de redes, de amizade, de afinidades,
de ideologia, e implica a ideia de uma “filosofia” comum do ofício do historiador.
Com a Terceira República, no final do século XIX, a Revolução Francesa torna-se objeto de
estudo. É criado um curso na Sorbonne em 1886, dirigido por Albert Mathiez.
Dosse, 2000:25
Protestante republicano, Charles Seignobos foi um dos assinantes do manifesto dos intelectu-
ais no caso Dreyfus.
Seignobos, 1906:39.
Fundada em 1821, é especializada no ensino aprofundado em história, filologia e paleografia
para a formação de arquivistas, bibliotecários ou professores universitários.
menos históricos são singulares. “Os fatos são únicos”, e toda a história
dos acontecimentos é, consequentemente, o encadeamento inevitável de
acidentes.
A excessiva valorização do documento, negando a pertinência da subje-
tividade na operação histórica, lhes rendeu críticas e amálgamas; após 1906,
esses historiadores passaram a ser identificados pejorativamente como “posi-
tivistas”. Uma tese publicada em 1976 por Charles Olivier Carbonell, seguida
por trabalhos de historiadores, tenta discordar da etiqueta de “ingenuidade”
atribuída a Seignobos e reabilitar alguns pontos da escola metódica.
Antoine Prost reexamina a “história metódica” à luz de novos paradig-
mas intelectuais: a perda da hegemonia dos Annales e a introdução de um
questionamento epistemológico na história. Em primeiro lugar, ele nega as
teses (atribuídas a Seignobos) segundo as quais a história é uma ciência ob-
jetiva. Para Prost, o controle da subjetividade do autor não invalidava a cons-
ciência de que a história é construção. A ausência de documentos obriga o
historiador a utilizar a imaginação. A citação de Seignobos, abaixo, segundo
Prost, seria a negação mesma dessas críticas.
De fato, na ciência social, agimos, não sobre os objetos reais, mas sobre as
representações desses objetos. Não enxergamos os homens, os animais, as
casas que inventariamos, não enxergamos as instituições que descrevemos.
Somos obrigados a imaginar os homens, os objetos, os atos que estudamos.
A matéria prática da ciência social é constituída por essas imagens. São es-
sas imagens que analisamos. Algumas podem ser objetos que observamos
pessoalmente; mas uma lembrança se torna somente uma imagem. A maior
parte, aliás, nem foi obtida através da lembrança, nós a inventamos à ima-
gem de nossas lembranças, ou seja, pela analogia com imagens obtidas por
meio da lembrança.
Prost, 1994.
Apud Prost (1996:170).
Apud Delacroix, Dosse e Garcia (2007:98).
10
Apud Prost (1996:149).
11
“O ídolo político, ou seja, o estudo dominante ou, pelo menos, a eterna preocupação da histó-
ria política, dos fatos políticos, das guerras etc., que acabam por conceder a esses acontecimen-
tos uma importância exagerada [...]. O ídolo individual ou o hábito inventariado de conceber
a história como uma história dos indivíduos, e não como uma história dos fatos [...]. O ídolo
cronológico, ou seja, o hábito de se perder nos estudos de origens, nas investigações de diversi-
dades particulares, em vez de estudar e compreender inicialmente o tipo normal procurando-o
e determinando-o na sociedade e na época em que ele se encontra [...]” (apud Delacroix, Dosse
e Garcia, 2007:193).
12
Paul Vidal de la Blache (1845-1918), geógrafo francês, inspirou o movimento dos Annales.
13
Burguière, 1979.
Advertência14
Fundado em Paris no final de 1895, período de ascensão das ciências sociais, esse estabeleci-
15
mento tem como principal preocupação o ensino e a análise dos fatos sociais.
A primeira parte desta atual obra trata do mesmo assunto que a In-
trodução aos estudos históricos16 (edição de 1903), composta em colaboração
com meu colega e amigo Charles-Victor Langlois, a qual é um tratado su-
mário de método histórico, mas não se trata aqui de sua reprodução. Não
só resumi as partes inteiramente teóricas, abreviei aquelas que só interessa-
vam aos historiadores e introduzi exemplos extraídos das ciências sociais,
mas creio também ter retificado e completado a teoria fundamental.
A segunda parte da obra, sobre o método histórico e a história social,
é quase inteiramente nova; trata de um assunto pouco estudado até agora,
pois ocupa um terreno intermediário entre a história e as ciências sociais;
assim, destina-se ao mesmo tempo a dois públicos diferentes, mas penso
que deve interessar mais aos especialistas das ciências sociais do que aos
historiadores.
Introdução
16
Langlois e Seignobos, 1898. Existe tradução em português (São Paulo: Renascença, 1946).
mente, pois ele deixou de existir. Não existe um caráter histórico inerente
aos fatos, somente é histórica a maneira de conhecê-los. Consequentemen-
te, a história não pode ser uma ciência, ela é, unicamente, um procedimen-
to de conhecimento.
Coloca-se, então, a pergunta preliminar a todo estudo histórico.
Como é possível conhecer um fato real que não mais existe? Por exemplo,
a tomada da Bastilha: insurgentes, todos mortos nesse momento atual, con-
seguiram retirar das mãos de soldados, também mortos, uma fortaleza que
hoje não existe mais. Ou, tomemos um exemplo econômico: operários, já
mortos, dirigidos por um ministro também morto, fundaram o estabeleci-
mento dos Gobelins.17 Como explicar um fato cujos elementos não podem
mais ser observados? Como conhecer atos cujos atores e cujo teatro não
podem ser mais vistos?
Aqui está a solução para essa dificuldade. Se os atos que devem ser
conhecidos não tivessem deixado nenhum rastro, seria impossível o conhe-
cimento dos mesmos. Mas, não raro, os fatos desaparecidos deixaram ras-
tros, por vezes diretamente, sob a forma de objetos materiais, e na maioria
das vezes indiretamente, sob a forma de escritos redigidos por pessoas que
presenciaram esses fatos.
Esses rastros são os documentos, e o método histórico consiste em
examinar os documentos para conseguir determinar os fatos antigos cujos
rastros são esses próprios documentos. Seu ponto de partida é o documen-
to estudado diretamente. Em seguida, o método retorna, através de uma
série de raciocínios complicados, ao fato antigo que deve ser conhecido.
Consequentemente, ele difere, radicalmente, de todos os outros métodos
das outras ciências. Ao invés de observar os fatos diretamente, ele opera
indiretamente pela reflexão sobre documentos. Todo conhecimento histó-
rico sendo indireto, tem-se que a história é essencialmente uma ciência de
raciocínio. Seu método é um método indireto, por meio do raciocínio.
Trata-se, evidentemente, de um método inferior, um método conve-
niente: evitamo-lo quando podemos utilizar o método normal, ou seja, a
observação direta. Ele não é utilizado em nenhuma das ciências gerais, física,
química, biologia, aquelas que buscam leis gerais, ou melhor, permanentes
dos fenômenos: nesse caso, basta experimentar e observar.
17
A Manufacture des Gobelins é um ateliê de tapeçaria criado em Paris, em 1601, e que ainda
hoje é dependente do Mobiliário Nacional e das Fábricas Nacionais de tapetes e tapeçarias.
18
Diz Seignobos: “de fato, na ciência social, operamos não somente com objetos reais, mas com
as representações que fazemos desses objetos. Não vemos nem os homens, nem os animais,
nem as casas que enumeramos, não vemos as instituições que descrevemos. Somos obrigados a
imaginar os homens, os objetos, os atos, os motivos que estudamos. São essas imagens que são
a matéria prática das ciências sociais; são essas imagens que analisamos. Algumas delas podem
ser lembranças de objetos que pessoalmente observamos; mas, uma lembrança nada mais é que
uma imagem. Aliás, a maioria delas nem mesmo foram obtidas por lembrança, nós as inventa-
mos à imagem de nossas lembranças, quer dizer, por analogia com as imagens obtidas por meio
da lembrança. [...] Para descrever o funcionamento de um sindicato, nós nos representamos os
atos e as démarches dos membros” (Apud Prost, 1996:169-170).
19
Filósofo francês, Auguste Comte (1798-1857) cria o positivismo a partir de uma abordagem
científica, tendo por fundamento três estágios do espírito humano: o teológico ou fictício, o
metafísico ou abstrato e o positivo. Associando uma teoria progressista da história a um interes-
se prático pelos problemas de organização social e política, Comte pretende aplicar o método
científico ao estudo da sociedade de maneira radical.
20
Filósofo e sociólogo inglês, Herbert Spencer (1820-1903) elaborou Principles of sociology entre
1876 e 1897. Ele é conhecido como um dos maiores defensores da teoria da evolução, influen-
ciado por Darwin.
21
Sociólogo alemão, Georg Simmel (1858-1918) é autor, entre outros, de Os problemas da filo-
sofia da história, publicado em Leipzig em 1892.
fazem parte do estado “político”. Nesse sentido, a história social seria o es-
tudo das classes, de seus privilégios, de seu recrutamento, de suas relações,
e a história das associações privadas, como a família.
Na segunda metade do século, a palavra tendeu a adquirir outro sen-
tido. Pouco a pouco, ela foi transportada a novos domínios de estudos da
sociedade humana, que começavam a se constituir. Vários domínios tinham
se formado antes mesmo de termos uma concepção precisa do sentido de
sociedade e de fenômenos sociais. Elas nasceram respectivamente: da histó-
ria — estudo ainda confuso dos atos e das instituições políticas, misturado
à erudição e à arqueologia; e de alguns estudos práticos que se tornaram,
pouco a pouco, históricos: a teologia se tornou história das religiões, a juris-
prudência se tornou história do direito, a retórica e a filosofia se tornaram
histórias das literaturas e das doutrinas, a arte se transformou em história
da arte. Tendo, desde o início, seus professores e seus especialistas, cada um
desses estudos tinha se organizado em uma ciência independente, com um
nome específico.
Os estudos sobre a sociedade, que foram os últimos a se organizar, no
século XIX, adotaram o nome de “sociais”, pois essa palavra ainda encon-
trava-se disponível. É por essa razão que esse termo adquiriu um sentido
tão restrito. Se, do conjunto das ciências que estudam os fenômenos so-
ciais, no sentido amplo do termo, retiramos todos os domínios de estudos
constituídos anteriormente, o resíduo (o que resta) compreende as “ciên-
cias sociais”, no sentido atual do termo.
Três grupos de estudos, de origem bem diferente, convergiram para
formar as “ciências sociais”.
Um desses grupos se constituiu através da criação de uma estatística
baseada em um método científico. Os primeiros ensaios remontam ao final
do século XVII, com os trabalhos de Petty22 e as tabelas de mortalidade.
Porém, foi preciso dispor de números suficientemente completos, re-
lativos a fenômenos bastante variados, para que surgisse a ideia de estudar,
de maneira metódica, essas séries de números e delas retirar conclusões
gerais. Esse trabalho só pôde ser iniciado quando os outros domínios já
tinham sido constituídos em histórias especiais; ele começou fora das uni-
22
O inglês William Petty (1623-1687) foi um dos precursores das ciências econômicas e con-
tribuiu para a surgimento da demografia estatística.
23
Lambert Adolphe Jacques Quételet (1786-1874), belga, matemático, naturalista, astrônomo
e estatístico, é considerado o precursor dos estudos demográficos. É autor de vários trabalhos
nesta última área, assim como em sociologia, matemática etc.
24
O americano Richmond Mayo Smith (1854-1901), professor de economia na Columbia Uni-
versity e conhecido por seus trabalhos em estatísticas, publicou Sociology and statistics (1895) e
Statistics and economics (1899).
25
Inaugurado em 1895, o objetivo desse museu era conservar e expor os documentos do pa-
vilhão de Economia Social da Exposição Universal de 1889. O conde de Chambrun, entre
outros, consagrou sua fortuna a essa fundação, que se transformou em verdadeiro instituto de
pesquisa.
26
Imperador romano que viveu entre 63 a.C. e 14 d.C.
27
Diz Seignobos: “a impressão especial produzida pelas cifras é particularmente importante nas
ciências sociais. A cifra possui um aspecto matemático que fornece a ilusão do fato científico.
Espontaneamente, tendemos a confundir ‘preciso e exato’; uma noção vaga não pode ser intei-
ramente exata, da oposição entre vaga e exata concluímos a identidade entre ‘exata’ e ‘precisa’.
Esquecemos que uma informação bem precisa é, muitas vezes, muito falsa. Se eu digo que em
Paris existem 526.637 almas, será uma cifra precisa, muito mais precisa que 2 milhões e meio
e, portanto, muito menos verdadeira. Dizemos, de maneira coloquial, ‘brutal como uma cifra’,
mais ou menos no mesmo sentido que ‘a verdade brutal’, o que subentende que a cifra é a for-
ma perfeita da verdade. Dizemos também: ‘isso são cifras’, como se toda proposição se tornasse
verdadeira desde que adquirisse uma forma aritmética. A tendência é ainda mais forte quando,
no lugar de uma cifra isolada, vemos uma série de cifras ligadas por operações de aritmética. As
operações são científicas e certas; elas inspiram uma impressão de confiança que se estende aos
dados sobre os quais operamos; é preciso um esforço de crítica para distinguir, para admitir que
em um cálculo justo os dados podem ser falsos, o que retira todo valor aos resultados” (apud
Prost, 1996:32).
Nas traduções publicadas no Brasil pelas editoras Ensaio (1992) e Edusc (2003) e na tradução
brasileira do livro de François Dosse (1992), o nome do historiador também aparece grafado
como Pierre Lacombe.
Daix, 1999:202. Com as datas apresentadas por Daix, trata-se do bibliotecário da Biblioteca
Nacional, bibliófilo e colecionador, membro da sociedade dos amigos dos livros e da sociedade
dos bibliófilos franceses. Conferir no catálogo da Biblioteca Nacional da França.
Berr, 1935:57-58 (a primeira edição dessa obra data de 1921).
Berr, 1935:60-61.
Outro livro nessa linha, ainda que de forma mais moderada, é o de Paul
Lacombe, De l´histoire como science, em que se busca tal cientificidade por
outra via, a de um substrato comum explicativo a todos os atos da história,
que Lacombe crê encontrar na psicologia. Com relação às leis do desenvol-
vimento histórico, nas quais Lacombe também acredita, observa que é um
erro confundir evolução com progresso necessário.
Aróstegui, 2006:116.
A história não seria mais senão a dimensão diacrônica, útil em certos casos
para a explicação de fenômenos sociais residuais. A história promovida à
dignidade científica era de fato uma história dissipada na grande ciência
do social que lhe dava seu objeto e lhe prescrevia os meios de seu conheci-
mento. Assim pensavam no fundo não somente seus inimigos sarcásticos,
mas também seus benévolos conselheiros, os economistas e os sociólogos da
escola durkheimiana.
Ranciére, 1994:14.
Simiand, 1960:83-119. Em rodapé a redação justifica: “Os Annales publicam hoje um débats et
combats que tem cinquenta anos de idade: o artigo clássico de François Simiand, publicado na
Revista de Síntese Histórica de 1903 (com a autorização da atual Revista de Síntese). Ele é bem co-
nhecido de todos aqueles que fizeram sua formação antes de 1939. Nós o publicamos pensando
sobretudo nos jovens historiadores para lhes permitir avaliar o caminho percorrido em meio
século e melhor compreender este diálogo da História e das Ciências Sociais, que permanece o
fim e a razão de ser da nossa revista. (N.D.L.R)”.
Braudel, 1990.
Lacombe, 1930:1-25.
duo singular. E cada um dos seus atos está marcado por esta triplicidade.
As ações históricas, como os atos ordinários, podem ser consideradas seja
pelo aspecto que as faz semelhantes a outras, seja pelos aspectos que as
faz únicas. No primeiro caso são as instituições; no segundo caso são os
acontecimentos. O acontecimento em si é impróprio para converter-se no
objeto de um conhecimento científico, posto que não se presta à assimila-
ção, que é o primeiro passo da ciência.
Se se pergunta aos homens: o que é a história? A maioria responderia:
segundo nosso conhecimento, é tudo o que foi feito pelos nossos antepas-
sados. Em consequência, mediante a palavra história, a linguagem designa
uma realidade composta por inúmeros fenômenos. Somente outra palavra
supera esta em compreensão: a palavra natureza.
Por outra parte, a simplicidade do termo nos engana. Porque a pala-
vra é única, a realidade designada nos produz o efeito de ser homogênea,
enquanto é tão desconexa como grandiosa.
Quando se reconheceu que a palavra história é um rótulo cômodo,
ainda que equivocado, o problema de saber se a história é ou pode chegar
a ser uma ciência aparece sob uma luz nova. Sendo heterogênea a realidade
histórica, se disse que estas suas partes poderiam se prestar ao conheci-
mento científico, refutando-se outras. E se compreende que é necessário
examinar doravante a história adotando este ponto de vista.
Posto que se trata de discernir na história as partes que comportam o
conhecimento científico das outras partes que não o comportam, pelo me-
nos por hipótese, inicialmente é necessário formular uma ideia clara disto
que chamamos ciência.
Denomina-se ciência um conjunto de verdades, isto é, de proposições
que enunciam que existe uma semelhança constante entre tais e tais fenôme-
nos. Exemplo: todas as quedas de corpos sobre a superfície da Terra se
assemelham neste ponto: que o corpo cai seguindo a vertical do lugar. Por
oposição, saber que um determinado corpo, o capitel da catedral de X, caiu
destruindo muitas casas, não é próprio da ciência: é simplesmente noção
ou conhecimento da realidade.
Contudo, constatar uma semelhança não é o fim último da ciência.
Uma semelhança, com efeito, não é mais que a realidade. Para que a seme-
lhança ascenda à categoria de verdade, é necessária uma nova condição.
Retomemos o exemplo precedente: a queda semelhante dos corpos se tor-
sidades inelutáveis do corpo não permitem, nem permitirão jamais, que elas
sejam diferentes senão dentro de estreitos limites. A identidade do aparelho
nervoso, em todos os homens, nos dá ainda uma semelhança capital. Todos
os homens formam suas sensações, suas percepções, recordam suas lembran-
ças e constroem, enfim, suas imaginações, seguindo modos uniformes. Há,
pois, grandes semelhanças psicológicas e grandes semelhanças corporais.
Também se pode constituir uma psicologia geral do homem cujas constata-
ções formam também volumes, como, por exemplo, a obra de Bain.10
Esforcemo-nos agora por destacar as diferenças e teremos uma contra-
prova. Eu não falo senão de diferenças psíquicas. Demos um nome conhe-
cido e, aliás, consagrado a isto que faz com que um homem seja diferente
de outro; chamemos isso de caráter. O que é o caráter? Uma observação
sobre aquilo com que se está de acordo deve ser anunciada inicialmente.
Entre os sentimentos humanos que a psicologia geral constata, não há um
que seja absolutamente estranho a um homem qualquer; e, reciprocamen-
te, o homem não experimenta nenhum sentimento que seja estranho ao
resto da espécie. Igualmente as faculdades intelectuais, de um homem a
outro, não diferem jamais senão pelo grau. O caráter consiste, pois, em
uma combinação particular de elementos comuns, combinação onde as
proporções recíprocas de elementos são únicas no mundo, mas isso é tudo.
Experimente representar um caráter e você será obrigado a empregar ex-
pressões que designem, de início, os elementos comuns — ambição, orgu-
lho, simpatia etc. —, e depois indicará, por assim dizer, a dose de cada um
deles. Finalmente, uma pintura de caráter está feita com expressões gerais,
modificadas por termos que correspondem a mais e a menos.
Fixemos este primeiro resultado: entre os homens existem traços co-
muns, uma sorte de natureza humana universal; isto está provado, inicial-
mente, pela possibilidade de formular proposições que se consideram ver-
dadeiras para todos os homens e também pela impossibilidade de formular
o que faz diferir os homens se não se usa uma linguagem onde precisamen-
te os traços comuns estejam compreendidos.
Nós colocamos frente a frente o homem universal e o homem sin-
gular, invariavelmente contidos em todo indivíduo, mas assim temos mu-
10
Alexander Bain (1818-1903), filósofo escocês partidário do empirismo e do pragmatismo, e
idealizador de uma psicologia científica. (N. do T.)
11
Essa frase é de autoria do filósofo, moralista e contrarrevolucionário Joseph de Maistre (1753-
1821), recusando-se a acreditar na ideia de um homem universal e em uma natureza humana
abstrata. (N. do T.)
12
Dito de outra maneira, os homens, enquanto universais, são absolutamente equivalentes.
Enquanto temporários, é visível que eles se equivalem em um domínio mais ou menos extenso.
Sua semelhança faz desses homens uma espécie de causa única, mais ou menos ampla. Diz-se:
a humanidade é comparável a um homem atemporal. Nestes termos absolutos, é um erro que
produziu muitos raciocínios falsos; isso é verdade unicamente para a humanidade considerada
de certa maneira, a humanidade universal. Acrescentemos: a humanidade vista nos seus atos
temporários institucionais é comparável a um homem que viveria muitos séculos.
sados, partimos ainda nos primeiros olhares sobre este tema. Ao invés
do final, os meios falam somente a nosso espírito, o resultado se dirige à
nossa sensibilidade; é a parte emocionante como a ponta de uma espada.
Naturalmente, os historiadores carregam nos seus estudos esta inclinação
de homem privado.
Outra inclinação, também naturalmente, determinou a direção final.
Somos estimulados a pensar que os fatos mais emocionantes são o que há
de mais determinado. Que uma catástrofe imprevista, uma morte surpre-
endente choca em particular, nosso espírito se recusa à ideia do acaso: ele
supõe, quase inevitavelmente, uma causa profunda. Todos nós nos pare-
cemos com madame de Sévigné, que vê a bala de Turenne vir do fundo
do tempo. Quando contemplamos estas grandes catástrofes que castigam
os povos, a tendência natural é ainda mais forte. Esta causa profunda, que
nós desejamos sempre, nos parece aqui, em relação a estes grandes seres,
rigorosamente exigível.
Para os que creem na Providência, a causa se oferece como se fosse
dela mesma; o desenho de Deus aparece, ele vem explicar a queda de Roma
a Bossuet, como ele explica tanta gente e seus infortúnios particulares. Os
que não creem mais encontram logo uma ideia sucedânea, a do mérito;
cada um faz seu destino, se diz em toda parte. Montesquieu, demonstran-
do que Roma deveria vencer por seus costumes, não faz senão justificar o
adágio popular.
Providência ou mérito, o mesmo atrativo nos liga a estas ideias. De-
sagrada-nos ser o jogo da contingência, seja individualmente ou como cor-
pos. Isto nos assegura que falta uma causa profunda para nos destruir, ao
mesmo tempo que ela nos favorece.
A falsa via onde se engajou a filosofia histórica vem manifesta quando
se considera a que segue, ao contrário, a sociologia, esta recém-chegada.
A sociologia não visa penetrar o segredo dos destinos particulares de cada
povo. Ela busca constatar as instituições, a semelhança de um povo com
outro ou sua consequência em um povo considerado. Graças à escolha de
seu objeto, a sociologia chegou a estabelecer generalidades empíricas, que
são de fato da ciência em primeiro grau. Ao contrário, a sociologia parece
ignorar bastante os acontecimentos, o acidental da história. Ela deverá ter
mais em conta e determinar com exatidão a parte da influência que os
acontecimentos exercem sobre as instituições.
Febvre, 1992b; Revel, 1990.
Burguière, 2006.
Ver a redefinição e ampliação do sentido da expressão nouvelle histoire proposta em Reis
(2004:65).
Revel, 1990; Dumoulin, 1986.
muito a-histórica, mas com ela concordava em que não há ciência sem
generalização. Para ele, “sem teoria não há ciência, e isto valia também para
a história”. O objetivo da RSH foi promover uma discussão teórica sobre
a história-ciência, que deveria contribuir para a elaboração de uma teoria
da história afastada da filosofia da história e orientada para a observação
empírica. Sua nova teoria da história propunha:
Chartier e Revel, 1979.
tanto para enfatizá-las quanto para não deixar dúvidas sobre elas. Seu ob-
jetivo é o mesmo dos durkheimianos: tornar a história uma ciência social,
fazendo-a passar à generalização, a partir da erudição. Mas Berr não é po-
sitivista e ainda defende a especificidade do conhecimento histórico, mais
ou menos na linha dos historistas alemães, o que o tornaria intolerável ao
grupo dos Annales, tanto pelo seu germanismo quanto pelo seu discurso
“filosófico”. Braudel considera que Berr “traiu-se”, como intelectual, ao ati-
rar-se de corpo e alma à filosofia da história. Mas, nem tudo que Braudel
afirmou deve ser recebido sem contestação: por que alguém pode se “trair”
ao se dedicar à filosofia da história? Afinal, dedicar-se à “filosofia” é uma
“traição intelectual”? Então, todos os filósofos são “traidores intelectuais”?
Será que é porque os maiores nomes da filosofia da história são alemães?
Mas o inventor da expressão “filosofia da história” é um ilustre e fascinante
filósofo-historiador francês, François-Marie Arouet, vulgo conde de Voltai-
re! Se considerarmos tudo o que Berr ofereceu aos fundadores dos Anna-
les, Braudel é que deveria responder à pergunta: “quem traiu a quem?”
Berr foi excluído dos Annales porque tinha um defeito: “era muito
teórico!” Contudo, foi a sua reflexão teórica que procurou aproximar a
história das ciências sociais, que ousou problematizar a epistemologia da
história tradicional, que tornou possível a Escola dos Annales! Em sua obra
La synthèse historique, ele procurou mostrar os limites da história erudita,
base da história “historizante”, e demonstrar a necessidade da síntese. Ele
argumenta: a erudição estava superavançada, mas ela não era ainda a ciên-
cia verdadeira. A erudição, quando apareceu, ganhou um status científico,
pois se opôs à filosofia da história e à arte. A obra histórica de um filósofo
ou artista é inverificável, incriticável, pois original, ao passo que a mono-
grafia de um erudito estabelece dados para sempre. Daí o otimismo presen-
te nos historiadores historizantes, que acreditavam poder chegar a alguma
certeza. Mas, prossegue o filósofo Berr, essa satisfação é vã, porque esses
fatos não têm valor, são apenas os materiais de uma ciência a construir. A
erudição é só um trabalho preparatório que permite a elaboração do geral.
A erudição não é um fim em si. A história não desperta o mesmo interesse
que um museu. O erudito tem medo da filosofia da história, acha cedo
Braudel, 1972.
Reis, 2004.
mo, embora também ele estivesse contaminado por essa atmosfera do seu
tempo. Sua influência sobre Febvre e Bloch foi considerável. Ele procurou
ultrapassar as fronteiras entre as disciplinas, preocupado em situar a his-
tória no cruzamento das ciências humanas, preparando o caminho para os
Annales. Para Febvre, o otimismo era a sua força e o seu belo segredo. Berr
não acreditava que a guerra fosse o único meio de gerar um mundo novo.
Ele acreditava na unidade humana, na humanidade, na solidariedade dos
grupos humanos, que seriam capazes de superar os conflitos e guerras do
passado. Sua ação mediadora era quase religiosa, de uma ingênua e gene-
rosa “religiosidade laica”: religava, reunia, congregava, aproximava, dia-
logava, organizava encontros, promovia debates, colóquios e seminários
pluridisciplinares.
Hoje, em 2010, a revista Annales: Histoire, Sciences Sociales não centra-
liza mais a pesquisa histórica nem na França nem no mundo. Ironicamen-
te, a École des Hautes Études en Sciences Sociales realiza o projeto-profecia
científica de Berr: tornou-se um “Centro Internacional Inter/transdiscipli-
nar (Síntese)”! E, felizmente, a discussão teórica voltou à ordem do dia na
historiografia em novas revistas, em novas instituições, em novos autores,
e de forma interdisciplinar, reunindo, como no início do século XX, filóso-
fos, sociólogos, historiadores, antropólogos, teóricos da literatura. No exte-
rior, em revistas como History and Theory, Rethinking History, The Journal of
Theory and Practice, Contributions to the History of Concepts, Intellectual His-
tory Newsletter, Philosophy of History Archive, Left History, Quaderni Storici; em
instituições como Wesleyan University, York University, Institut d’Histoire
du Temps Present, nas universidades de Cambridge, Oxford, California, Bo-
chum, Bielefeld, Gronigen, entre tantas; em historiadores, sociólogos e filó-
sofos como Ginzburg, Elias, Hartog, Chartier, Ankersmit, Rüsen, Koselleck,
Habermas, Ricoeur. No Brasil, em revistas como Varia Historia, Topoi, Tempo,
Anos 90, Estudos Históricos, Revista Brasileira de História, Síntese-Nova Fase,
História, Pós-História, Locus e revistas eletrônicas como História da Histo-
riografia e Cantareira; em instituições como PUC-Rio, PUC-RS, Unicamp,
Unesp, UFRGS, UFRJ, UFF, UFMG, ICHS-Ufop; em historiadores, sociólo-
gos, teóricos da literatura e filósofos como Ciro Cardoso, Jurandir Malerba,
Dumoulin, 1986.
Burke, 1991.
10
Berr, 1911. Notas do texto original.
11
Bernheim, 1903:9.
12
É o que os alemães chamam de Methodik ou Historik. Sobre a contribuição dos franceses a esta
técnica, ver Grotenfelt (1903).
13
A 3a e a 4a edição do Método histórico, em que a expressão filosofia da história foi introduzida
no título, são de 1903 (18891ª,18942ª). Uma 5a e uma 6a edição revista e ampliada, que seguimos
em nossas citações, apareceram em 1908. A “Introdução” é de 1898.
14
Bernheim, 1903:246-255. Os senhores Ch. e V. Mortet redigiram de forma bastante elogiável
o artigo “História” na Grande Enciclopédia (t. XX, p. 132 e segs.), distinguindo dois tipos de
sínteses, a reconstituição dos conjuntos e o estabelecimento dos fatos gerais; eles distinguem
as duas sínteses da pesquisa das causas gerais ou das leis às quais eles aplicam a velha palavra
“filosofia da história” (p. 134, 142).
A síntese erudita
15
“Advertência”, p. vi.
16
O capítulo 5, Auffassung (p. 562-776), contém outras subdivisões. Foi o sr. Bernheim quem
traduziu a palavra Auffassung por síntese, construção dos fatos históricos. Ver p. 186, nota 1, e
p. 566, nota 1.
17
Seignobos, 1909:99-100.
18
Langlois e Seignobos, 1992:198.
19
L’avenir de la science: pensées de 1848, p. 122, 232, 248-249.
20
Ver Manuel de bibliographie historique, 1901-1904 (sobretudo a 2a parte: História e organiza-
ção dos estudos históricos, que não deixa de contribuir para estes progressos, e as Questões
de história e ensino (1902). Ver também Ch. e V. Mortet, artigo citado, sobretudo p. 137; G.
Desdevises du Dezert e L. Bréhier. Le travail historique (1907). Para a organização do trabalho
relativo à história moderna na França, ver o excelente opúsculo de P. Caron e Ph. Sagnac L’etat
actuel des études d’histoire moderne en France (1902), e para o estado dos estudos relativos às
regiões da França, minha “Introdução geral às regiões da França”, que abre De la Gascogne, de
Barrau-Dihigo (1903).
21
Um exemplo de engenhosidade que se desenvolve neste sentido. Nos Arquivos Nacionais,
cada trabalhador tem um boletim de pesquisas ou uma sequência de boletins trazendo um
número único em que estão inscritas todas essas demandas: “esses boletins (há hoje mais de
34.000) são conservados; um quadro sobre as fichas dos trabalhadores, assim como um quadro
das pesquisas são mantidos com cuidado; pode-se assim beneficiar os pesquisadores novos dos
trabalhos antigos ou lhes evitar publicações que fariam duplo emprego”. Ver Ch. Schmidt. Les
sources de l’histoire de France depuis 1789 aux Archives Nationales (1907), p. 13, nota 1.
ou tal período da história? Qual é o valor dos resultados obtidos? São eles
esparsos ou já mais ou menos reunidos em sínteses provisórias? Houve
alguma aliança entre os trabalhadores? Como poderíamos estreitar o acor-
do e quais lacunas importaria preencher o mais breve para que a síntese
começasse a fazer progressos?
No segundo número da Révue de Synthèse Historique, um colaborador
comentava, satisfeito, a oportunidade das “revistas gerais” que ela vinha
inaugurar, “em que cada um de nós, ele dizia, em plena consciência de
causa, com imparcialidade e de forma judiciosa, resumirá os trabalhos ver-
dadeiramente úteis e os acréscimos reais de nossos conhecimentos em seu
compartimento especial”. E ele mostrava como cada uma dessas revistas,
preciosas para um grupo de historiadores, devia contribuir, além disso,
para estabelecer o contato entre as diversas equipes especiais: “a comple-
xidade sempre crescente dos estudos históricos e a superprodução dos
trabalhos de detalhes nos obrigam, uns e outros, a nos acantonar sem-
pre mais no domínio especial que nós cultivamos. Entretanto, os estudos
históricos dos diversos tempos e dos diversos meios são solidários. Nada é
mais funesto do que se aprisionar em sua pequena propriedade e ignorar
o resto do mundo. É o modo mais seguro de mal compreender o que se
estuda com uma dedicação tão exclusiva. Como escapar a essas condições
contraditórias de um trabalho frutuoso? É ajudando-se mutuamente. Que
cada um de nós forneça aos colegas dos domínios vizinhos informações
sóbrias, mas seguras, sobre o estado e os progressos de seus estudos espe-
ciais para permitir-lhes assim manterem-se a par dos trabalhos que eles não
têm tempo de ler eles mesmos. Os príncipes e os ministros têm secretários
que pesquisam para eles os jornais e as revistas e que condensam, para uso
deles, em algumas páginas, tudo o que é útil para saberem das notícias do
dia, das descobertas, da vida diária do mundo. Sejamos os secretários uns
dos outros. Formemos uma verdadeira sociedade de socorros mútuos para
informações históricas.22
22
Estas linhas são do saudoso Jean Réville. Em sua lição de abertura do Collège de France, ele
falou também da síntese em termos excelentes (ver Revue d’Histoire des Religions, mar./avr. 1907
e Revue de Synthèse Historique, v. 14, p. 362, juin, 1907). Les Régions de la France, que publica a
Revue de Synthèse Historique, tem mais ou menos o mesmo caráter dessas revistas gerais. A Revue
d’Histoire Moderne et Contemporaine publicou, em seu domínio e sobre assuntos voluntariamen-
te restritos, alguns estudos críticos concebidos segundo o mesmo plano. É um trabalho análogo
ao L’état actuel..., de P. Caron e Ph. Sagnac, sobretudo na segunda parte: o estado dos trabalhos
nas diversas especialidades (p. 31-88).
23
A Révue de Synthèse Historique insistiu frequentemente sobre o que ainda resta a ser feito para
a boa organização do trabalho e o aperfeiçoamento do instrumental. Ela conduziu uma ampla
pesquisa sobre o ensino superior de história (1904/1905, questionário e conclusões de Barrau-
Dihigo); publicou uma série de estudos sobre a organização dos arquivos, bibliotecas e museus;
notas sobre a organização do trabalho bibliográfico e dos congressos internacionais.
24
P. Caron e Ph. Sagnac, op. cit., p. 89-90. Nós fazemos questão de citar igualmente as pri-
meiras linhas deste opúsculo que é todo inspirado pela preocupação com a síntese erudita: “a
organização dos estudos históricos está ainda em todo lugar em um estado infantil. É de ontem
apenas que data, na França sobretudo, a história científica e objetiva. Também não é espantoso
que o trabalho não seja concebido e organizado em história como o é nas ciências físicas e
naturais. Especialização, primeiro, depois, a síntese, tal é o caminho que segue a elaboração de
todo conhecimento, mas estudos especiais e estudos sintéticos devem concorrer, combinar-se,
caminhar de alguma forma no mesmo passo, orientar-se em certas direções gerais, para que
tais grandes assuntos não sejam tratados pela metade, que tais outros não sejam estudados
diversas vezes, e que não haja tempo nem esforços perdidos. É preciso que o trabalho se torne
coletivo, que os trabalhadores, em vez de produzir isoladamente, se conheçam mais, saibam
a todo momento o que se faz ao seu lado ou longe deles, que eles sejam realmente solidários
uns com os outros, não somente em cada país, mas no mundo inteiro. É preciso também que
esta solidariedade, esta coletividade dos esforços se manifeste o mais possível por colaborações.
Na França, desde alguns anos, um movimento se produziu neste sentido, e a memória que nós
redigimos aqui, a dois, ajudados pelas informações de diversos de nossos colegas e amigos, é,
ao mesmo tempo que um exemplo, uma prova nova da necessidade do trabalho coletivo” (p. 5).
O grupo de bons historiadores — dos quais P. Caron foi a alma — que criou a Révue d’Histoire
Moderne et Contemporaine (1899), o Repertoire Méthodique de l’Histoire, a Bibliothèque d’Histoire
Moderne, embora especializado no tempo, influenciou amplamente o trabalho histórico, através
de exemplos e conselhos. Ver na Révue de Synthèse Historique (1904) a nota de P. Caron sobre a
Sociedade de História Moderna: “contribuir para fixar o método em seus princípios, vulgarizar
o emprego, elaborar o plano geral da vasta pesquisa a realizar; esforçar-se para assegurar uma
boa direção ao trabalho, dar aos trabalhadores o sentimento da solidariedade que deve uni-los
e conduzi-los a praticá-la; facilitar as pesquisas, fazendo conhecer a matéria, manuscrita ou
impressa, sobre a qual eles devem tratar”: tal é a parte da tarefa que se preocupou em executar
esta viva e laboriosa sociedade. Ela publicou em 1902 um relatório que incluiu a organização
do trabalho na província. Ela tinha projetado uma “instrução destinada a facilitar os trabalhos
de história moderna na província, com conselhos e práticas e a indicação de assuntos a tratar, a
qual devia ser impressa e amplamente divulgada.
Gothein, 1931:148.
Lepsius e Mommsen, 1994:70.
Todo esse prestígio ajuda a entender por que entre os alunos das suas preleções no semestre de
inverno 1909/1910 encontrava-se um jovem historiador francês de 23 anos, Marc Bloch.
Nietzsche dedicou sua pouco lembrada Primeira consideração intempestiva a um embate com as
posições do autor de A vida de Jesus.
Harnack, 1906:12-15.
Rendtorff, 1992:274.
Dumont, 1991:60.
Meinecke, 1969:234. Quem se referiu ao “delicioso humor” de Troeltsch foi Marianne Weber
(2003:336).
Troeltsch, 1977b:509.
10
É recorrente o mal-entendido sobre um suposto “providencialismo” na obra desses autores.
Para uma abordagem interessante, ver Howard (2000). Uma formulação original e profunda
dessa problemática está em Moyn (2003). Um estudo ainda útil é o clássico de Heine (1991).
11
Iggers, 1982.
12
Apud Drescher (1991:74).
13
Apud Wolgast (1986:121).
14
Sobre a cientificidade da teologia, ver Heidegger (1978).
15
Troeltsch, 2003c:7-8.
16
Troeltsch, 2003c:20.
17
Ibid. 1913.
“sem a intromissão de nossas próprias avaliações”. Uma tarefa que deve ter
por baliza o que ele neokantianamente chama de “teleologia objetiva”.18
Troeltsch situa sua problemática na encruzilhada da tradição do idea-
lismo alemão com a démarche epistemológica de Windelband e Rickert. “A
questão de Hegel permanece”, admite ele. “Mas ela tem de ser resolvida de
uma outra forma”.19
Contra Hegel, era necessário refutar definitivamente a tese apologéti-
co-evolucionista sobre o “caráter absoluto”, bem como substituir a mística
histórico-filosófica do conceito de progresso (Fortschritt) pelo conceito his-
toricista de desenvolvimento (Entwicklung). Troeltsch se dedicou a isso em
seu livro O caráter absoluto do cristianismo e a história das religiões, onde de-
fende uma concepção menos autocongratulatória do cristianismo — não
etnocêntrica, diríamos hoje —, e que fosse capaz, simultaneamente, de
preservar seus valores fundamentais. O desafio é tentar construir uma ter-
ceira via, uma alternativa conciliatória entre a rigidez do “absoluto” e a
fluidez extrema de um relativismo desagregador.
A fim de concretizar seu intento, Troeltsch baseia-se na extensa lite-
ratura teórico-metodológica produzida na passagem do século, sobretudo
em Heinrich Rickert. Em um ponto decisivo, porém, ele se afasta de Ri-
ckert. Para Troeltsch, o “a priori lógico” deixa sem resposta uma questão
crucial: saber como o conhecimento das configurações valorativas do pas-
sado permitiria articulá-las de maneira produtiva com o presente. Como
elaborar novos padrões valorativos e normativos a partir dos padrões que
a ciência histórica identifica no passado?20
A Ilustração legou-nos uma concepção integralmente histórica das
coisas humanas. De tal forma que a história, em última análise, culminaria
na dissolução de quaisquer verdades e dogmas. Eis aí, formulado em toda
a sua rude clareza, o principal “problema do historicismo”, contra o qual se
debateram alguns dos principais historiadores e filósofos do século XX. Ao con-
trário de muitos deles, Troeltsch não pretende abandonar a história, e sim
— para empregar suas célebres palavras — superar a história pela história:
“para a gênese de normas, valores e ideais universalmente válidos a partir
18
Troeltsch, 1977a:179.
19
Troeltsch, 1903:28.
20
Ibid., p. 26.
não exclui de modo algum que nestas formações individuais surjam valores
de uma orientação fundamental comum e suscetíveis de serem confrontados
entre si, e que, através dessa confrontação, dão origem a uma opção última,
fundada na verdade e na necessidade internas.23
21
Troeltsch, 1979:59.
22
Ibid., p. 74.
23
Ibid., p. 77.
24
Ibid., p. 82.
25
Carta de Weber ao medievalista Georg von Below, 23 de agosto de 1905 (apud Hennis,
1996:132).
26
Como demonstrou de maneira cabal Graf (1988).
27
Troeltsch, 1951:54-81.
28
“Hierocracia” é um termo técnico usado por Weber em Economia e sociedade. Refere-se a
formas de dominação em que o poder religioso se sobrepõe ao poder político, ou o expropria,
por assim dizer.
29
Troeltsch, 2003a.
30
Para uma análise mais abrangente, ver Mata (2008b).
fia da religião para o da historiografia. O ponto alto dessa nova fase é atin-
gido em 1912, com a publicação de As doutrinas sociais das Igrejas e grupos
cristãos. O ensejo para escrevê-lo havia partido de um convite de Edgar
Jaffé para que Troeltsch resenhasse um livro de Martin von Nathusius sobre
a Igreja e a “questão social” no Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik.
Nos dois maciços volumes das Soziallehren, ele articula brilhantemente a
perspectiva histórica com o método sociológico.
Troeltsch quer entender ali como a formação e trajetória histórica do
cristianismo tinham sido “determinadas sociologicamente” e como, por
outro lado, o cristianismo produziu transformações na esfera política, eco-
nômica e familiar.31 Uma problemática que continua a manter toda a sua
pertinência — pense-se nos debates em torno do islamismo nas últimas
décadas —, qual seja: a efetividade histórica de uma ética religiosa, bem
como os influxos que ela recebe do seu invólucro histórico-social.
Influenciado pelos trabalhos de Simmel, Weber e Marx, Troeltsch pre-
tende escrever uma “história da civilização eclesiástico-cristã” análoga à de
Harnack.32 Distintamente do autor da Dogmengeschichte, porém, Troeltsch
admite fazer uma pesquisa histórica fora dos padrões usuais. Ele se vê
como um não especialista, um pesquisador cujo mérito não está no tra-
balho crítico com as fontes, mas na elaboração de uma teoria das relações
entre as esferas religiosa e político-social.33
Troeltsch viu na sociologia uma possibilidade de identificar e descre-
ver, simmelianamente, as distintas formas de socialização produzidas pelo
cristianismo ao longo da história. Esforça-se ainda por dotar seu estudo
daquela aura de “objetividade” tão cara a Weber, e por elaborar de maneira
definitiva os tipos ideais weberianos de “igreja” e “seita” (aos quais acres-
centa o de “mística”). Troeltsch reconhece até mesmo o valor heurístico da
tese de Marx sobre as relações entre “infraestrutura” e “superestrutura”, o
que demonstra que a noção ritschliana de uma autonomia da esfera reli-
giosa era agora devidamente matizada (mas não abandonada) em sua obra.
31
Troeltsch, 1994:viii.
32
Troeltsch, 1925:11-12.
33
“Ich bin ja kein Fachmann, Quellenleser, aber nicht Quellenforscher. Für meine Zwecke habe ich das
Nötige herausgebracht” (carta a Bousset, 28 de dezembro de 1917; apud Drescher, 1991:484-
485). Ver também Troeltsch (1994:15).
34
Troeltsch (1913:13, nota 2) inclui as Soziallehren entre seus “historical writings”. A sociologia
seria apenas “eine neue Art zu sehen” (Troeltsch, 1925:11). Fórmula análoga havia sido emprega-
da por Simmel (1999:16). Estamos de acordo com Dumais (1992:186), para quem “il refuse de
céder aux visées impérialistes de la sociologie”. Com uma ressalva: era o modelo de sociologia de
Comte e Spencer que Troeltsch repudiava, não o de Simmel e Tönnies. Ver Troeltsch (1916).
35
Dumont, 1991.
36
Troeltsch, 2003b:318.
37
Ibid., p. 341.
38
Rickert sempre foi um ponto de partida importante para Troeltsch, mesmo quando este pas-
sou a criticar o formalismo excessivo de seu sistema. Sobre Rickert, ver Mata (2006).
39
Troeltsch, 2003d.
40
Para uma tentativa de defesa do historicismo, ver Mata (2008a).
41
Schulin considera menos significativos os livros de Friedrich Meinecke e Otto Hinze sobre
o tema (apud Rendtorff, 1992:272). Em 1924, Karl Mannheim (1952) via no Historismus de
Troeltsch o “ponto de partida para uma teoria do historicismo”.
42
Carta ao seu editor Paul Siebeck, 2 de janeiro de 1919 (apud Drescher, 1991:487).
43
Below, 1923. Ver também Mannheim (1952:106).
44
Isso implica um questionamento profundo do preceito weberiano da “neutralidade axiológi-
ca” (Wertfreiheit) na análise histórico-social. Sobre a relação cada vez mais crítica de Troeltsch
em relação a Weber, ver Hübinger (2006:80).
45
Troeltsch, 1977b:113.
46
Troeltsch, 1922:1-11 (seção inicial do primeiro capítulo).
47
Ver a sistematização de todos os meios técnicos e científicos com os quais trabalha a pes-
quisa histórica no compêndio, muito utilizado pelos historiadores, de E. Bernheim (Lehrbuch
der historischen Methode und der Geschichtsphilosophie, 1908); seus correlatos francês e inglês:
Ch. V. Langlois e Ch. Seignobos (Introduction aux études historiques, 1898) e E. A. Freeman
(The methods of historical study, 1886); e Friedrich von Bezold (Zur Entstehungsgeschichte der
historischen Methodik, in Internationale Monatschrift VIII, 1914). Das apresentações gerais so-
bre o desenvolvimento das ciências históricas, cabe citar: Benedetto Croce (Zur Theorie und
Geschichte der Historiographie, versão alemã de Pezzo, 1915); Morit Ritter (Die Entwicklung der
Geschichtswissenschaft, 1919); Eduard Fueter (Geschichte der neueren Historiographie, 1911); G. P.
Gooch (History and historians in the 19th century, 1913). Mais recentemente, e com mais ênfase
no contexto filosófico, ver Wilhelm Bauer (Einfürung in das Studium der Geschichte, 1921). Dos
trabalhos mais antigos são ainda hoje utilizáveis: Wachler (Geschichte der historischen Forschung
und Kunst seit der Wiederherstellung der literarischen Kultur in Deutschland, 1812-1820); F. X.
Wegele (Geschichte der deutschen Historiographie, 1885) é apenas erudito.
48
Ordem religiosa surgida na França no século XVII e responsável pela edição dos escritos
patrísticos. (N. do T.)
do ofício, sem os quais a mais elevada e nobre arte e maestria são impossí-
veis. Certamente, é de se imaginar que tenhamos chegado a um ponto em
que a tarefa de tal forma está simultaneamente aprimorada e dilatada que
ultrapassa nossas forças, e que uma grande ciência ainda passível de ser do-
minada quando de seus inícios não mais o seja, de maneira tal que repousa
hoje como um grande torso. Nas artes, da mesma forma, a tradição e a es-
tabilidade dos ofícios ao longo dos séculos, da baixa Idade Média até a Re-
volução Francesa, foram quebradas e postas abaixo, abrindo espaço para a
experimentação e a perspectiva mais pessoais ou para as demandas do mer-
cado e do jornalismo. Na própria atividade da pesquisa histórica, contudo,
tal fadiga e esmigalhamento não se fazem notar ainda. Todavia, os perigos
da especialização naturalmente aumentaram muito. Eles são inevitáveis em
toda ciência que se expande e aprofunda, e que repercute as concepções de
seus mais antigos fundadores, ainda homogêneas àquela época. Mas contra
tais perigos podem contrapor-se a vontade de concentração e a organiza-
ção planejada do trabalho. As academias e associações de historiadores, os
mestres influentes em seus seminários e círculos de alunos podem dividir
os problemas entre si e reunir pessoal. Contemplados com os elevados do-
tes da criação, os grandes mestres podem processar e dar forma à massa de
dados, e deste modo indicar os caminhos de novas áreas de trabalho. Assim
faz hoje a ciência histórica. Um homem como Mommsen era um mestre em
ambas as coisas. Não existe qualquer limitação intrínseca em se ampliar esta
sistemática sempre e cada vez mais. A redação de livros de forma arbitrária
e sem um planejamento prévio torna-se cada vez mais rara, a síntese fica
reservada aos mestres e é discutida por seus discípulos. A mera fábrica de
teses de doutorado e livros didáticos pode ser restringida, se bem que para
o talento e a dedicação nunca faltam oportunidades de trabalho, a sorte na
pesquisa e a alegria da descoberta. A ciência torna-se um tanto impessoal,
mas esta é a sua essência. O esboço e o olhar espontâneos tornam-se cada
vez mais raros, os resultados precisam ser esperados mais pacientemente.
Mas isto é inseparável de uma ciência madura e plenamente desenvolvida.
Nas ciências naturais as coisas não se dão de outro modo.
Não é aí que reside a crise. Porque não haveria como ser de outra
forma, e estes caminhos de forma alguma foram trilhados até o fim. Pode
ser difícil digerir tanto conhecimento e manter sob domínio o dilatado
material. Mas a produção sem sentido de livros e a enorme quantidade de
49
Gotik, no original. Compreende o período de vigência do estilo gótico, de meados do sécu-
lo XII ao fim do século XV. (N. do T.).
50
Ver meu ensaio “Die Revolution der Wissenschaft”, in Schmollers Jahrbuch, 1922. Para a expres-
são máxima desta crítica, vejam-se o livreto de Max Picard (Der letzte Mensch, 1921); e também
o singular livro de R. Pannwitz (Die Krise der europäischen Kultur, 1917).
51
Da mesma forma que E. Spranger (Der gegenwärtige Stand der Geisteswissenschaften und die
Schule, 1922).
52
A esse respeito, ver A. C. Bouquet (Is christianity the final religion?, 1921). Aqui, a típica expli-
cação na p. 1: “the Anglo-Saxon temperament is expansive rather than intensive, and it takes more
naturaly to missionary enterprise than to the examination of belief”. Da mesma forma Sidney Low
em seu Governance of England (1916, p. 4): “we have had no revolution for two hundred years: we
have not been compelled to clean the state, or examine the foundations of belief, and we are proud
of being an illogical people. So we have carefully avoided systematization; we provide for immediate
necessities”. Isso lembra o balanço de Burke em suas Reflections sobre a Revolução Francesa.
Em amplos círculos mantém-se até hoje essa tendência para a associação de historismo e livre
resignação diante de momentos de transformação. Contudo, ali se percebe o historismo na crise
do cristianismo, como mostram Bouquet e, aliás, também o Outline de Wells. Para os Estados
Unidos, ver William Adams Brown (The essence of christianity, 1904), cuja posição é próxima à
de Bouquet. Uma interessante observação sobre a posição atual dos franceses em relação à ideia
de uma crise geral da cultura pode ser encontrada em E. R. Curtius (Der Syndikalismus der Geis-
tesarbeiter in Frankreich, 1921). Segundo ele, o francês está pouco inclinado a reconhecê-la, seja
porque ele se acha o eterno cérebro do mundo, seja porque depois da guerra ele pensa apenas
em tudo reter e estabilizar e percebe a guerra como reordenação, e não como crise mundial,
seja ainda porque, por princípio, ele protege a tradição, a forma e a herança latina: “do que o
francês precisa é de um máximo de obstinação, daí a grande resistência ao bergsonianismo na
França de hoje” (aliás, depois de Bergson ter prestado os mais importantes serviços ao surgi-
mento do esprit nouveau). Contudo não se deve, além disso, esquecer os críticos radicais, de
La Rochefoucauld e Chamfort a Saint-Simon, Stendhal e os românticos modernos, pelos quais
Nietzsche deixou-se inspirar. Também nos dias de hoje, pessoas como André Gide e Romain
Rolland conhecem perfeitamente bem a crítica situação mundial. Veja-se também o ensaio de
Paul Valéry (“La crise de l’esprit”. In: Nouv. Rev. Fr., 1919), que todavia Curtius considera ser
um caso totalmente isolado. Em todo caso, uma crise do historismo foi, também na França,
uma crise do esprit nouveau da nova juventude. Esta não foi, porém, percebida como uma crise
europeia. Sobre o grande significado de Ernest Seillère e sua “filosofia do imperialismo”, ver O.
Grautoff (Zur Psychologie Frankreichs, 1922). Trata-se de um grande modelo histórico-filosófico
que representa o imperialismo moderadamente racional da história francesa com base no élan
vital de Bergson, e que gostaria de relacioná-lo culturalmente ao classicismo do século XVII.
Relacionado a isso está a rejeição de Rousseau e do romantismo como os corruptores de uma
concepção histórica sadia. Tal rejeição pressupõe uma nova consciência da filosofia da história,
se bem que, de fato, não muito profunda.
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Daniela Kern
François Dosse
Julio Bentivoglio
Jurandir Malerba
Leandro Konder
Sérgio da Mata
Temístocles Cezar
Teresa Malatian