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COLÉGIO PEDRO II

LICENCIATURAS INTEGRADAS EM HUMANIDADES

FILOSOFIA – 2020

FILOSOFIAS ANTIGAS – PROF.ª MARIANA MONTEIRO CONDE

A situação da Poesia na obra platônica

Lucas Antônio Braga Silva

INTRODUÇÃO

Queremos apresentar aqui a situação da poesia na filosofia de Platão. Prevemos, pelo


menos, dois casos em que essa investigação deveria ser feita. Primeiro, devemos identificar
qual seria a disposição epistêmica do poeta, no sentido de saber como se justifica o conteúdo
que transmite e de que maneira ele o alcança 1. Segundo, devemos analisar a crítica platônica à
poesia, enquanto associada à velha tradição e à sofística, verificando os pressupostos que ele
tem para querer fundar outra tradição, a filosófica 2. Ainda quanto à segunda situação,
devemos investigar como se realiza o outro discurso, o filosófico, que não deixa de combinar
a “lógos” com o “mýthos”, mas os utiliza como complementares para um mesmo ideal
formativo e epistemológico. Com efeito, o que estaria em jogo é a integralidade do discurso,

1
Platão tratou de expor suas considerações sobre a Sofística nos diálogos Górgias e Protágoras. É
especialmente neste último onde há uma associação entre a poesia e a sofística e a tentativa socrática de
realizar uma nova tradição pedagógica, que seria a filosofia. Ali há um discurso epidítico de Sócrates, em que
ele faz uma exegese completa da chamada Ode a Escopas, de Simônides; é por conta dessa exegese que algo
(ou, alguns dizem, o todo) do poema sobreviveu para os dias atuais. A pesquisa mais completa do assunto que
encontrei é de Daniel R. N. Lopes.
2
Além do supracitado Daniel Lopes, o pesquisador Christian Schäfer (Léxico de Platão) analisa a presença dos
mitos nos discursos socráticos e como eles servem a um determinado lógos. O que chamamos de “discurso
epidítico”, que são aqueles exercícios de explanar um argumento, necessita necessariamente do “mythos”,
além de outros recursos retóricos, a fim de atingir o seu público. São nesses momentos em que mais se precisa
do mito, e é como se vê na maioria dos diálogos, nos quais um mito termina ou interliga argumentos e a
“cabeça” desses mitos está justamente na argumentação. Por isso que importa sempre fazer uma exegese do
papel dos mitos nos diálogos.
que não é um todo límpido e puramente racional, mas um todo “orgânico” (Fedro 264c), que
serve à integralidade da alma3.

2. Do estado entusiástico

Como caracterizar o discurso poético? Sabemos que todo discurso se caracteriza pelo
uso do idioma vertido oral ou graficamente; também costumamos notar quais são os
discursos: a fala se adapta a um tipo de discurso que ela toma como exemplo, ela se enrique
de referências socias e culturais para expressar aquele sentido último que tem consigo.
Sócrates realiza sua filosofia buscando o que é, os objetos cognoscíveis. Tal empreendimento
se corresponde com estabelecer a verdade das coisas que são. O primeiro passo é reconhecer o
objeto almejado, e tal se revelaria pelo nome, que é uma vaga presença daquilo que a coisa é;
a presença mesmo só se alcançará por uma locução da verdade da coisa; fazer isso é já ter a
presença do objeto, é já ter presente o nomeável e, portanto, é já poder lhe dar uma definição.
Então, o que Sócrates realiza na sua investigação é não saber que se diz mas saber do que se
diz. E isso é recuperar seu sentido, por vezes perdido na fala habitual, que adapta os conceitos
dos termos às situações pragmáticas. Portanto, o que ele realiza é desvelar a essência das
coisas, aquilo que as torna serem o que são, sem variedade de uso ou costume, mas pela
precisão conceitual.

O discurso poético, aparentemente, pecaria por não reconhecer a necessidade de tal


precisão e por seguir outra motivação discursiva. Platão, reconhecendo isso, preocupou-se
com o caso no seu diálogo Íon, no qual Sócrates discorre, com o interlocutor que dá nome ao
texto, a respeito do caráter epistêmico da poesia. Íon é um rapsodo que explica que é o maior
intérprete de Homero, mas que jamais conseguiu interpretar e declamar outros poetas sem que
lhe atingisse uma sonolência. O que acontece com ele já fora explicado por Sócrates no
Mênon (99c) e na Apologia (22a-c): o poeta não possui conhecimento, ele o transmite por
meio da poesia, enquanto está em estado de “entusiasmo” (“enthousiazontes”, Apol. 22c1);
seu conhecimento veio “de outro”, da Musa ou deus que o inspirou.

Desse modo, admitir-se-ia ao poeta uma técnica interpretativa que se submete à


inspiração, qual seja a de conseguir deixar-se conduzir por ela à maneira dos metais que se

3
Esta primeira parte debruça-se sobre o problema do estado “inspirado” do poeta. Tivemos como texto base o
Íon e houve referências ao Mênon e à Apologia de Sócrates. Um artigo que pesquisa profundamente o
problema é o de Carolina Delgado: “‘Inspiración’ y ‘entusiasmo’ en la poetología platónica: expresiones
relativas al estado epistémico del poeta”, Nuevo Itinerário, n.º 14, 2019.
colocam junto à magnetita; assim, o rapsodo ao tomar contato com o poeta épico recebe da
Musa da poesia épica a sua fonte de inspiração e, por decorrência, de conhecimento. Isso está
muito conforme ao que o poeta Femio dizia a Odisseu, quando do seu retorno, na Odisseia
(XXII, 340-354): “Fiz-me por mim, tão somente, que um deus em minha alma ditou-me
muitas canções.” (347-48, tradução de Carlos Alberto Nunes). A primeira oração dita sua
condição autodidata, de quem se instruiu por aprender a cantar, e a segunda oração, a
explicativa, argumenta que só pode cantar por conta de um deus.

Ademais, o que se deve concluir faz parte do restante da obra platônica. O poeta está
num estado de crença, por ocasião (do entusiasmo) verdadeira, que só se justifica por ser sua
mensagem divina -- da mesma forma que no Fedro se justificará os que são arrebatados por
Eros ou pelas Musas e daí seguem numa “mania divina” ou “mania erótica”. Por conta disso,
seu estado epistêmico é inferior ao do filósofo; por analogia, ocorre como no Mênon (97a-c),
onde se diz que a pessoa que seguiu o caminho de Larissa tem conhecimento do caminho por
força da experiência, enquanto uma pessoa que nunca foi, mas crê na opinião de um outro que
foi, tem conhecimento pela ocasião de ter acreditado na opinião certa. Embora falte a este a
correção de suas crenças (que ficaria a cargo do filósofo), suas crenças verdadeiras são
justificadas por procederem de outro, da ação divina da inspiração.

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