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FILOSOFIA – 2020
INTRODUÇÃO
1
Platão tratou de expor suas considerações sobre a Sofística nos diálogos Górgias e Protágoras. É
especialmente neste último onde há uma associação entre a poesia e a sofística e a tentativa socrática de
realizar uma nova tradição pedagógica, que seria a filosofia. Ali há um discurso epidítico de Sócrates, em que
ele faz uma exegese completa da chamada Ode a Escopas, de Simônides; é por conta dessa exegese que algo
(ou, alguns dizem, o todo) do poema sobreviveu para os dias atuais. A pesquisa mais completa do assunto que
encontrei é de Daniel R. N. Lopes.
2
Além do supracitado Daniel Lopes, o pesquisador Christian Schäfer (Léxico de Platão) analisa a presença dos
mitos nos discursos socráticos e como eles servem a um determinado lógos. O que chamamos de “discurso
epidítico”, que são aqueles exercícios de explanar um argumento, necessita necessariamente do “mythos”,
além de outros recursos retóricos, a fim de atingir o seu público. São nesses momentos em que mais se precisa
do mito, e é como se vê na maioria dos diálogos, nos quais um mito termina ou interliga argumentos e a
“cabeça” desses mitos está justamente na argumentação. Por isso que importa sempre fazer uma exegese do
papel dos mitos nos diálogos.
que não é um todo límpido e puramente racional, mas um todo “orgânico” (Fedro 264c), que
serve à integralidade da alma3.
2. Do estado entusiástico
Como caracterizar o discurso poético? Sabemos que todo discurso se caracteriza pelo
uso do idioma vertido oral ou graficamente; também costumamos notar quais são os
discursos: a fala se adapta a um tipo de discurso que ela toma como exemplo, ela se enrique
de referências socias e culturais para expressar aquele sentido último que tem consigo.
Sócrates realiza sua filosofia buscando o que é, os objetos cognoscíveis. Tal empreendimento
se corresponde com estabelecer a verdade das coisas que são. O primeiro passo é reconhecer o
objeto almejado, e tal se revelaria pelo nome, que é uma vaga presença daquilo que a coisa é;
a presença mesmo só se alcançará por uma locução da verdade da coisa; fazer isso é já ter a
presença do objeto, é já ter presente o nomeável e, portanto, é já poder lhe dar uma definição.
Então, o que Sócrates realiza na sua investigação é não saber que se diz mas saber do que se
diz. E isso é recuperar seu sentido, por vezes perdido na fala habitual, que adapta os conceitos
dos termos às situações pragmáticas. Portanto, o que ele realiza é desvelar a essência das
coisas, aquilo que as torna serem o que são, sem variedade de uso ou costume, mas pela
precisão conceitual.
3
Esta primeira parte debruça-se sobre o problema do estado “inspirado” do poeta. Tivemos como texto base o
Íon e houve referências ao Mênon e à Apologia de Sócrates. Um artigo que pesquisa profundamente o
problema é o de Carolina Delgado: “‘Inspiración’ y ‘entusiasmo’ en la poetología platónica: expresiones
relativas al estado epistémico del poeta”, Nuevo Itinerário, n.º 14, 2019.
colocam junto à magnetita; assim, o rapsodo ao tomar contato com o poeta épico recebe da
Musa da poesia épica a sua fonte de inspiração e, por decorrência, de conhecimento. Isso está
muito conforme ao que o poeta Femio dizia a Odisseu, quando do seu retorno, na Odisseia
(XXII, 340-354): “Fiz-me por mim, tão somente, que um deus em minha alma ditou-me
muitas canções.” (347-48, tradução de Carlos Alberto Nunes). A primeira oração dita sua
condição autodidata, de quem se instruiu por aprender a cantar, e a segunda oração, a
explicativa, argumenta que só pode cantar por conta de um deus.
Ademais, o que se deve concluir faz parte do restante da obra platônica. O poeta está
num estado de crença, por ocasião (do entusiasmo) verdadeira, que só se justifica por ser sua
mensagem divina -- da mesma forma que no Fedro se justificará os que são arrebatados por
Eros ou pelas Musas e daí seguem numa “mania divina” ou “mania erótica”. Por conta disso,
seu estado epistêmico é inferior ao do filósofo; por analogia, ocorre como no Mênon (97a-c),
onde se diz que a pessoa que seguiu o caminho de Larissa tem conhecimento do caminho por
força da experiência, enquanto uma pessoa que nunca foi, mas crê na opinião de um outro que
foi, tem conhecimento pela ocasião de ter acreditado na opinião certa. Embora falte a este a
correção de suas crenças (que ficaria a cargo do filósofo), suas crenças verdadeiras são
justificadas por procederem de outro, da ação divina da inspiração.