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“Toda a filosofia ocidental”, segundo Alfred.

N Whitehead, é “uma nota de rodapé a


Platão”.Entretanto, como em todo tipo de literatura, há algo que é próprio de Platão nos seus
diálogos que não necessariamente constitui uma característica essencial da filosofia,mas que ,
pelo contrário, se conforma àquilo que constitui o ato de filosofar. Para melhor explicar essa
questão dissertarei brevemente sobre a relação entre a filosofia de Sócrates e a escrita de Platão,
e então tomarei como exemplo O Banquete, diálogo este em que podemos enxergar com clareza
aquilo que torna o diálogo platônico um texto propriamente filosófico, e aquilo que o diferencia
dos outros tipos de literatura filosófica, tanto de sua época, quanto da posteridade.

Para começar, antes, é importante notar que todo diálogo platônico descende, em última
instância , do método dialético socrático. Foi Sócrates quem formou Platão para a filosofia,
principalmente no que diz respeito à sua prática. Para Sócrates a filosofia verdadeiramente é um
modo de vida, vinculado a um discurso (HADOT, p. 48) que só é possível por meio da oralidade,
sendo impossível descrevê-la por meio de textos. Platão, por sua vez, acreditava no mesmo, e por
isso não tentou dar explicações sistemáticas acerca das realidades últimas nos seus textos, mas
apenas registrar como que um método filosófico a ser replicado na realidade. Aquilo que seu
mestre fazia através do diálogo oral, Platão se propôs a mimetizar ( que aqui significa imitar,
fazer presente) nos seus diálogos escritos para que , então, fosse mais uma vez mimetizado na
realidade. Em específico, ele quis eternizar o processo constituído pela maiêutica ( o
“partejamento” de ideias ) e a refutação, presente no debate socrático, em todos os seus diálogos.
E é exatamente a partir desse processo que surge uma característica única do texto platônico
enquanto gênero filosófico: o caráter heurístico dos textos, ou seja, a sua capacidade de levar o
leitor a descobrir por si mesmo as suas consequências de cada proposição. Platão torna o leitor
num participante do diálogo escrito para que, da mesma maneira que Sócrates engajava seu
interlocutor a refletir e “parir” ideias, ele possa “conceber” aquilo que está sendo discutido de
forma autônoma. Isso, na verdade, diz respeito não só à heuristicidade mas à própria
dramaticidade dos diálogos, que só ganham verdadeiro sentido quando lidos performaticamente
(BLONDELL, p.22), outra característica única de Platão, enquanto filósofo. Para que isso fosse
possível era preciso que não só a própria forma dialógica de construção do pensamento de
Sócrates se fizesse presente no texto, mas também que ele fosse aberto à interpretação. Para isso,
Platão fará um texto não só dramático como, em certo sentido moderno, poético. Platão ainda
que não gostasse da linguagem poética de sua época, ( vide seu comentário na República),
escreveu seus textos , principalmente os de sua maturidade ( O Banquete, Fédon e A República),
com certa abertura de sentido e estilo próprio, de maneira a nos remeter àquilo que atualmente
chamamos de poesia.
Dito isso, podemos avançar em direção à análise do O Banquete ( Symposium, em grego).
Resumidamente, a história se desenvolve em torno de um banquete, celebrado por Agatão, onde
Sócrates e outros convidados ilustres disputarão para ver quem pode realizar um melhor elogio a
Eros, o deus do amor. Entretanto, o texto é contado por um personagem de fora da festa, que
apenas ouviu sobre o que havia ocorrido nela, através de um outro convidado que tudo
viu.Inicialmente já se pode constatar duas coisas: como todo texto filosófico, a trama parte de
uma pergunta específica ( o que é o Eros ou o Amor ?) , e como um texto platônico ele nasce de
um processo mimético. Toda atitude verdadeiramente filosófica nasce não de uma certeza mas
de uma dúvida, seja ela metódica, como a cartesiana, ou não.É próprio da literatura filosófica,
portanto, ser uma tentativa de responder a pergunta que absorve o filósofo a refletir. Platão faz
isso ao colocar seus personagens debatendo entre si, de forma dialética, qual seria a verdadeira
realidade do amor. Como cada personagem tem algo próprio a dizer sobre o deus em voga, ele
acaba por criar um diálogo polifônico, tomando aqui o termo de Bakhtin. Tem se no texto "uma
pluralidade de vozes e consciências independentes e não fundidas, uma polifonia genuína de
vozes plenamente válidas" (BAKHTIN, p.6-7), cada uma com algo a acrescentar ou refutar a
partir do que disse o outro. Toda a estrutura do diálogo torna-se ,então, uma grande dialética
acerca do que é o amor.
Ora, como já foi dito, Platão não tem intenção de definir mas imitar, algo que já existe na
realidade, no caso o método Socrático, que é justamente aquilo que acabamos de ver. Não só faz
isso de forma implícita, no meio como decorrem os diálogos, como explicitamente ao citar,
através da alusão a repetição de um discurso de outrem, aquilo que ele mesmo está fazendo, isto
é, tentar repetir um discurso oral dialético. Essa metalinguagem denota como a mimese é tão
própria ao diálogo platônico, quanto a dúvida é à filosofia. Mas esse não é o único recurso
metalinguístico usado por Platão nesta obra, já que os próprios discursos são referências a tipos
de gêneros textuais diferentes de sua época, de maneira que se tenha uma verdadeira luta de
estilos textuais e formas de construção epistêmica. Isso é de grande importância já que, segundo
Victor Sales, na leitura dos diálogos platônicos “ deve-se lembrar a aguçada consciência poética
de Platão, que, no Fedro (264c), considera o discurso perfeito como um organismo vivo, um
corpo, no qual cada parte relaciona-se estruturalmente à arquitetura do todo.” ( SALES, 2011) O
Banquete então , só pode ser plenamente compreendido estruturalmente, se analisarmos cada
uma dessas referências. Todavia, para que este texto seja breve me atentarei a apenas dois deles :

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