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Para começar, antes, é importante notar que todo diálogo platônico descende, em última
instância , do método dialético socrático. Foi Sócrates quem formou Platão para a filosofia,
principalmente no que diz respeito à sua prática. Para Sócrates a filosofia verdadeiramente é um
modo de vida, vinculado a um discurso (HADOT, p. 48) que só é possível por meio da oralidade,
sendo impossível descrevê-la por meio de textos. Platão, por sua vez, acreditava no mesmo, e por
isso não tentou dar explicações sistemáticas acerca das realidades últimas nas suas obras, mas
apenas registrar como que um método filosófico a ser replicado na realidade. Aquilo que seu
mestre fazia através do diálogo oral, Platão se propôs a mimetizar ( que aqui significa imitar,
fazer presente) nos seus diálogos escritos para que , então, fosse mais uma vez mimetizado na
realidade. Em específico, ele quis eternizar o processo constituído pela maiêutica ( o
“partejamento” de ideias ) e a refutação irônica, presente no debate socrático, e em todos os seus
diálogos. E é exatamente a partir desse processo que surge uma característica única do texto
platônico enquanto gênero filosófico: o caráter heurístico dos textos, ou seja, a sua capacidade
de levar o leitor a descobrir, por si mesmo, as consequências de cada proposição. Platão torna o
leitor num participante do diálogo escrito para que, da mesma maneira que Sócrates engajava seu
interlocutor a refletir e “parir” ideias, ele possa “conceber” aquilo que está sendo discutido de
forma autônoma. Isso, na verdade, diz respeito não só à heuristicidade mas à própria
dramaticidade dos diálogos, que só ganham verdadeiro sentido quando lidos performaticamente
(BLONDELL, p.22), outra característica única de Platão enquanto escritor filosófico. Para que
isso fosse possível era preciso que não só a própria forma dialógica de construção do pensamento
de Sócrates se fizesse presente no texto, mas também que ele fosse aberto à interpretação. Para
isso, Platão fará um texto não só dramático como, em certo sentido moderno, poético. Platão,
ainda que não gostasse da linguagem poética de sua época, ( vide seu comentário na República),
escreveu seus textos , principalmente os de sua maturidade ( O Banquete, Fédon e A República),
com certa abertura de sentido e estilo próprio, de maneira a nos remeter àquilo que atualmente
chamamos de poesia.
Ora, como já foi dito, Platão não tem intenção de definir mas imitar, algo que já existe na
realidade, no caso o método Socrático, que é justamente aquilo que acabamos de ver. Não só faz
isso de forma implícita, no meio como decorrem os diálogos, como explicitamente ao citar,
através da alusão à repetição de um discurso de outrem, aquilo que ele mesmo está fazendo, isto
é, tentar repetir um discurso oral dialético. Essa metalinguagem denota como a mimese é tão
própria ao diálogo platônico, quanto a dúvida é à filosofia. Mas esse não é o único recurso
metalinguístico usado por Platão nesta obra, já que os próprios discursos dos convivas são
referências a tipos de gêneros textuais diferentes da antiga Grécia, de maneira que se tenha uma
verdadeira luta de estilos textuais e formas de construção epistêmica. Isso é de grande
importância já que, segundo Victor Sales, na leitura dos diálogos platônicos “ deve-se lembrar a
aguçada consciência poética de Platão, que, no Fedro (264c), considera o discurso perfeito como
um organismo vivo, um corpo, no qual cada parte relaciona-se estruturalmente à arquitetura do
todo.” ( SALES, 2011). O Banquete então , só pode ser plenamente compreendido
estruturalmente, se analisarmos cada uma dessas referências. Todavia, para que este texto seja
breve me atentarei a apenas dois deles : o discurso “naturalista” de erixímaco, que representa os
filósofos da physis, e a apresentação dialética de Diotima, que representa a filosofia
socrática/platônica. O contraste entre estas duas perspectivas é muito propício ao nosso objetivo,
visto que denota as diferenças entre dois conceitos diferentes de filosofia ao mesmo tempo que
explora duas características literárias de Platão: a “máscara” socrática e o uso do mito.
Ou seja, Eros não é um deus mítico pessoal como os deuses olimpianos, mas é uma divindade
enquanto força cósmica que orienta os fenômenos da realidade. Eros no entanto não é um
princípio unívoco, mas duplo: sendo um bom e o outro mal. Existe o Eros que associamos ao
Belo e a Bondade , e existe o seu contraposto, que leva o homem ao mal e ao feio. O primeiro
traz consigo a harmonia entre elementos a princípio dissonantes( uma referência às ideias de
Héraclito, um dos maiores filósofos da natureza), enquanto o segundo é o princípio da desordem
cósmica. O trabalho do médico,por exemplo, está atrelado a esse Eros do bem, já que a medicina
nada mais é que a “ciência dos fenômenos amorosos do corpo com relação à repleção e à
vacuidade”( PLATÂO, XII 186 C ). Vê -se então que a filosofia que prática erixímaco tem a
sabedoria (sophos) enquanto um conhecimento dos princípios regentes da realidade fenomênica.
O filósofo é, portanto, aquele que conhece esses princípios cósmicos, sendo capaz de criar uma
arte ( tékhne) a partir deles ( como a medicina, a astronomia, a matemática,etc).
Partindo para o discurso de Sócrates/ Diotima, não só o Eros, mas também a filosofia ganha
uma nova perspectiva. Sócrates, após debater com Agatão começa a repetir ( mimetizar) o
discurso de Diotima, Sacerdotisa da Mantineia. Nesse discurso, a origem mítica de Eros está na
relação “unilateralmente consentida” entre a Pobreza (Pênia) e a Opulência ( Poros ). Aquela se
usa deste para gerar um filho que diminuísse sua carestia, mas acaba por gerar uma espécie de
daimon ( figura mítica comum da filosofia socrática) que não é nem é deus, nem é mortal; nem é
sábio nem ignorante; não é bom nem é mau, mas é o desejo de possuir sempre o que lhe falta,
nesse caso a beleza, a sabedoria e a bondade. Diotima então começa a comparar o Eros ao
filósofo, já que segundo ela “sendo Eros amante do belo, necessariamente será filósofo ou
amante da sabedoria, e, como tal, se encontra colocado entre os sábios e os ignorantes”. Daí
pode-se atestar: a philosophia como o nome diz ( philia (afeição) + sophos (sabedoria ) ) é uma
relação erótica com a sabedoria, e que, ao contrário da filósofo da physis, o “verdadeiro” filósofo
não possui a sabedoria, mas, ao mesmo tempo, não a ignora, de forma a sempre desejá-la . Mas
se nos filósofos da arché a sabedoria está nos fundamentos da realidade, onde ela está nessa nova
visão erótica ? Ora, não está senão em conhecer aquilo que é Belo e Bom e agir segundo eles,
isto é, está atrelado às realidades da virtude. Sócrates funda uma filosofia voltada para o agir do
homem, e pouco se preocupa com as origens da realidade, estando muito mais focado em como
ser melhor e promover a melhora na vida de outrem. O filósofo é um homem não da cosmologia
mas da ética.
Sócrates, levava isso tão radicalmente a sério que até chegava a rejeitar muito daquilo que os
poetas míticos propunham, vendo no mito um discurso pernicioso à cidade ( algo que
possivelmente contribuiu para a sua condenação). Então porque, colocar aquele que se opunha ao
mito a louvar um discurso mítico? A resposta está no uso da figura de Sócrates nos diálogos
como um personagem distinto da realidade. O Sócrates platônico e o real são pessoas diferentes.
Na verdade, o primeiro é muito mais Platão que Sócrates em si. Ele serve de “máscara” para o
autor, que coloca seu mestre a falar daquilo que mais lhe faz sentido. Para muitos comentadores,
as ideias platônicas se limitam às falas de Sócrates nos diálogos, enquanto o resto do diálogo se
compunha de uma preparação para a mesma. O uso do mito na fala de Sócrates, corrobora de
certa maneira com esta ideia já que é uma característica da filosofia de Platão,segundo aponta
Giovanni Reale. O professor italiano explica que o mito em Platão é “ uma expressão de fé e de
crença” racionalizada (REALE, p.132), que entra em jogo no momento em que a razão chega aos
seus limites. O discurso de diotima é expressão clara disso,pois se estrutura numa dialética, mas
tem fundamento naquilo que é inspirado pelo “mistério”, ou seja, no sagrado. A apreciação do
Bem segundo Platão portanto não pode se limitar ao simples agir corretamente; é preciso ir além,
para o supra humano, para as Formas, como ele mesmo irá dizer em seus outros diálogos. Ele
sabia que não se pode alcançá-las, mas, como em toda busca erótica, se esforçou em mimetizá-
las junto ao discurso e o método de seu mestre, não como deboche, mas como uma verdadeira
homenagem a quem mais achava belo e bom. Com isso em vista, afere-se, que embora Sócrates,
Platão e muitos de seus posteriores, concordem que a filosofia é uma busca pela sabedoria,
discordam por outro lado no que significa sabedoria, de forma a buscá-la de em objetos
diferentes, mas sempre agindo de forma erótica.
Conclui-se de tudo isso, que Platão escreveu verdadeiramente de forma genuína, com
características únicas, mas que são ,fundamentalmente, frutos do seu conceito erótico de
filosofia. Todo o seu esforço mimético só faz sentido quando nos atentamos ao seu amor à figura
de Sócrates, seu querido mestre e exemplo do verdadeiro filósofo e à Sabedoria (as Formas), a
quem era devoto. Isso ,de fato, faz de O Banquete uma ótima obra introdutória a Platão e à arte
de filosofar. Por fim, digo que : se amar é , como se diz no fim do discurso de Diotima, gerar no
Bem, Platão de fato é pai na beleza de toda a filosofia ocidental, como diz Whitehead , já que
está se desenvolveu em torno do filósofo erótico , legando ao mundo grandes nomes que
exploraram a vastidão da existência, tendo em comum o mesmo desejo pelo verdadeiro saber,
enquanto os estudiosos da natureza, como Erixímaco, tiveram que se limitar ao campo da
ciência.