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Linguagem

e conhecimento
em platão
Estudo Sobre a Correção
dos Nomes no Crátilo
Paulo Pinheiro*
• Análise da relação proposta por Platão entre linguagem e conhecimento a
partir da leitura do Crátilo, diálogo pertencente à primeira fase dos escritos
de Platão, período em que o autor estava muito próximo a Sócrates. O
diálogo é, portanto, inconclusivo e extremamente refutativo. Platão nos
apresenta a refutação das duas hipóteses vigentes em sua época sobre a
função e a formação das palavras ou dos nomes: (a) os nomes são forma-
dos em função de uma convenção, e (b) os nomes se formam em função
de uma natureza que, por assim dizer, orientaria o trabalho daquele que
tem por função dar nomes às coisas. A investida platônica deverá mudar
inteiramente o eixo desta discussão, capacitando a linguagem à tarefa do
conhecimento. Presume-se, portanto, neste artigo, a existência de uma
teoria da linguagem em Platão.
> Filosofia - Teoria da Linguagem - História do Pensamento Antigo - Retórica Antiga
- Platão e Sofistas

É característico ao texto filosófico confrontar-se, repetidas vezes,


com o problema da representação. Entre os gregos do Séc. IV a.C.,
esta questão encontra-se intimamente ligada ao conceito de mímesis,
que deve se compreendido como um dos tópicos funda­mentais ao
1
entendimento da filosofia de Platão . Em relação à discus­são platô­
nica sobre a correção dos nomes (onomáton orthótetos), a míme­sis surge
apenas ao fim de uma longa polêmica travada entre as posições
antagônicas de uma ‘teoria convencional’ dos nomes, defen­dida
por Hermógenes, e uma ‘teoria natural’ dos nomes, em que Crátilo
procura assegurar-se da existência natural de uma justa denominação

* Professor (Instituto Villa-Lobos e Pós-graduação do Centro de Letras e Artes/


Unirio). Doutor em Filosofia Antiga (Université de Paris I/Sorbonne).

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para cada ente . A resposta articulada por Platão a estas duas vertentes
implicou na reavaliação das hipóteses até então admi­­tidas pelas escolas
sofísticas e pelos pensadores vinculados à tradi­ção física pré-socrática.
De fato, a questão da correção dos nomes em Platão não se limita
ao exclusivamente lingüístico. O que está em jogo é o projeto de sua
filosofia como um todo. O que nos permitiria afirmar que, a partir
de uma discussão sobre a função dos nomes (ou das palavras) e do
lógos, Platão irá remeter o seu leitor a problemas lógicos - como a
questão do verdadeiro e do falso - e ontológicos - como o problema
do ser e do não-ser. Podemos admitir que essa remissão ao onto-lógico,
uma vez referida ao conhecimento, constituirá o núcleo genuinamente
platônico de uma análise da linguagem e da comunicação.
A reflexão platônica sobre o conhecimento e a conseqüente
indagação a respeito do fundamento - ou do objeto - da atividade
cognos­cível viabilizam um verdadeiro redimensionamento no sentido
dos nomes e das frases (lógoi). Se antes a linguagem e, de uma forma
específica, o ato de nomear se referiam direta ou indire­tamente ao
objeto empírico (prágma) - a exceção começou a se estabelecer nas
escolas eleáticas e pitagóricas -, com Platão os nomes passam a se
referir, ainda que imperfeitamente, à própria subs­tância (ousía), que
tenderá a se desdobrar numa espécie de paradigma para a consti-
tuição dos nomes. Em sua reflexão, o nome (a palavra que designa um
objeto) deverá ser tomado como a imagem que traz em seu interior
a possibi­lidade de representar, ainda que falivelmente, uma ousía.
Esta questão é bastante polêmica. Postular qualquer relação entre
nomes, lógos e ousía constitui uma difícil tarefa da filosofia proposta
por Platão. Sabemos que em sua reflexão os nomes e as sentenças
ocupam os patamares mais baixos de uma hierarquia que visa o
3
conhecimento absoluto das formas . Esse tipo de tratamento levou
alguns intér­pretes a tomar Platão como um pensador pouco preo-
cupado com os problemas da linguagem, ou ao menos como um
filósofo interessado em efetivar a passagem do domínio lingüís­tico
para o universo noético (inteligível). Na verdade, as relações entre
lógos e noûs nunca se torna­ram inteiramente explícitas em Platão.
O fato é que ele estabelece diferenças entre esses dois domínios,

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mas sempre que diferencia postula, em contrapartida, os critérios


de uma relação, de uma parti­cipação ou de uma representação. Se
isto realmente ocorre, e nesse caso a questão lingüística teria o seu
lugar de destaque no pensamento platônico, então, podemos nos
referir a uma teoria da linguagem em Platão. Se não ocorre, e nesse
caso o platonismo estaria interessado em efetuar unicamente a pas-
sagem do lingüístico ao noético, então devemos tão-só nos afastar da
questão lingüística, nos fixando num mundo de formas inteligíveis
(noéticas), sem configuração lingüística relevante. Nesse último caso
seria praticamente impossível postular uma teoria da linguagem
4 
em Platão . No decorrer deste artigo procu­rarei demonstrar como
a reflexão sobre o sentido de ousía, termo usado de forma ambígua
por Platão, pode indicar o caminho de uma nova “referência” para a
atividade cognoscível, determinando, por sua vez, uma nova ‘referência’
para os nomes. São esses nomes, enfim, que devem servir à dialética
que Platão buscou concretizar em deus diálogos.
Tudo nos leva a crer que foi no rastro de uma indagação sobre
os nomes que Platão pôde aprimorar a sua noção peculiar de ousía. E
foi em função de uma reavaliação deste termo que ele pôde fornecer
suas respostas às diferentes tendências físicas e sofísticas que cogi-
tavam sobre a função e o estatuto dos nomes. Com efeito, Platão
polemiza sobre aquilo que fundamenta as concepções lingüísticas do
seu tempo, a saber: a relatividade sofística e o recurso ao elemento
natural entre os físicos. Quando essas duas hipóteses se revelam
contraditórias, ele se vê na iminência de elaborar, ou ao menos de
sugerir, uma nova hipótese. Como vimos, tal hipótese implica no
redimensionamento socrático-platônico da compreensão de ousía,
que deverá, doravante, nos remeter à noção de forma, eîdos. No Crátilo
essa “hipótese” fica apenas sugerida. Como sabemos, o Crátilo é um
diálogo aporético: a dialética socrática conduz Hermógenes à consta-
tação de que existe uma ‘natureza’ condicionando o ato de nomear,
mas, em discussão com Crátilo, o hábil dialético leva esse último
a persuadir-se sobre a impossibilidade de ocorrer uma impli­cação
direta entre as palavras e as coisas. É preciso admitir, portanto, um
certo nível de arbitrariedade e convencionalismo no ato de nomear.

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Desta forma, o diálogo termina numa aporia (dificul­dade) que se


agrava, ainda mais, quando Sócrates decide remeter Crátilo às pró-
prias coisas, no que elas são em si mesmas, e não a seus nomes. Mas
o que são as coisas em si mesmas, isto é, em que medida este objeto
empírico, referente absoluto dos nomes em uma leitura cratiliana,
pode ser problematizado em sua acepção platônica?
Ao final do Crátilo, os nomes serão tratados como imagens,
representações, mas aquilo que é representado torna-se o objeto
de uma outra polêmica na medida em que a natureza representa-
da tende a se distinguir de sua essência verdadeira. Como afirma
Monique Dixsaut: “Nos diálogos platônicos a natureza de uma
5
coisa é sinônimo de sua forma (eîdos) ou de sua essência (ousía)” .
A verdadeira ‘ciên­cia’, em sentido platônico, será aquela capaz de
prestar conta de uma natureza interna e verdadeiramente existente.
Em Platão, o filósofo deve se distinguir pela natureza específica do
seu objeto de pesquisa, ou seja, em função da sua atenção voltada
para as formas. Ele não lança o olhar ao céu como Tales de Mileto
nem se detém demasiadamente ao fluxo de tudo o que vem a ser e
se presentifica no devir. De um mesmo modo, como homem que se
serve da língua, não deve se igualar ao sofista em seu uso persuasivo
do discurso. Se faz uso das antilogias, será apenas quando motivado
pela necessidade de desembaraçar o objeto da sua pesquisa de uma
série de entraves que, por assim dizer, impedem sua apreensão di-
reta. O verdadeiro objeto da paidéia (cultura) platônica consiste na
formação do dialético, e é justo pensar que essa “ciência dialética”
inicia pela definição do seu próprio objeto. Mas o objeto do discur-
so filosófico não é tão flexível quanto a dóxa (opinião) com a qual
trabalha o sofista nem se confunde com os elementos naturais que
emergem e se movimentam, como bem surgere o verbo phýein, cujo
radical serve a phýsis (natureza). O “objeto” requerido pelo filósofo
deve se diferenciar ainda dos pontos, das retas, das figuras planas e
das equações numéricas com as quais trabalha o matemático. Diante
de todos esses campos de saber que ganham expressão no século de
Péricles, o filósofo platônico tende apenas a especificar a natureza
de sua pesquisa. Assim, ao trabalhar com os nomes, o pensador

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socrático-platônico inicia pela problematização daquilo que até então


se tomava como evidente, enquanto introduz, concominantemente,
o seu verdadeiro objeto de interesse, isto é, a ousía e a forma inte-
ligível. O Crátilo é um desses diálogos aporéticos e refutativos que
caracterizam bem a fase socrática do platonismo - período em que o
autêntico thaûma (assombro) da filosofia de Platão surge apenas como
uma sugestão que ainda pede uma verificação futura. A palavra que se
torna instrumento (órganon) e imagem (eikón), e que por essas duas vias
deixa para trás o tratamento que recebera outrora, ou seja, enquanto
convenção ou natureza (nómos ou phýsis), constitui apenas o indício,
a premonição do filósofo, já envolvido pela intenção de alcançar a
definição precisa, mas ainda inconsciente quanto às conseqüências de
sua pergunta essencialista. O estado de assombro, tão necessário ao
pensamento filosófico que Sócrates pretende desenvolver, é alcan­çado
quando a refutação dos nomes enquanto nodos e phisis se concretiza,
dando vez a essa “sugestão” que ainda precisa ser verifi­cada e que
ganha expressão nesse diálogo platônico inteiramente voltado para
a formação dos nomes: a de que os nomes são instru­men­tos, ou seja,
que são como objetos produzidos para uma finali­dade específica e
que, assim sendo, se comportam como imagens, ícones, de algo que
cabe a Sócrates nos ajudar a descobrir a natureza. Pelo que podemos
perceber, trata-se de perceber que as palavras e as frases (lógoi) estão
como que a serviço de uma teoria geral do conhecimento.
Podemos afirmar que a questão dos nomes em Platão se subs­
creve, por intermédio do conceito de mímesis, a uma indagação sobre
a natureza do objeto representado. E é justamente este objeto que
se encontra problematizado pelas noções complementares de eîdos
e ousía. Assim, o início de uma discussão sobre a função dos nomes
e das sentenças em Platão poderia ser facilitada pela elaboração de
um esquema em que se procurasse prestar conta de quatro termos,
a saber: o nome, a sentença, a coisa (objeto empírico) e a essência (objeto
noético). Como a princípio a análise das sentenças é dependente
da análise dos nomes, esses quatro termos podem ser reduzidos a
três: ónoma, prágma e ousía. Com isto estaríamos definindo as partes
envolvidas na elaboração de uma possível teoria da linguagem em

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Platão. Mas se por um lado cuidamos de definir as partes, por outro


devemos nos preocupar em estabelecer, entre elas, as suas conexões
implícitas. Nessa tarefa, a mímesis constitui-se como o esforço mais
significativo apresentado por Platão no afã de relacionar esses dife­
rentes domínios. Afinal, o que Platão verifica, em sua avaliação dos
nomes, é a possibilidade de vincular a palavra não apenas a uma
espécie de “campo de imanência”, tal como faziam os seus contem­
porâneos, mas a essências tomadas como os modelos sobre os quais
trabalha o artífice dos nomes, ou seja, aquele que forja no nome a
imagem de um modelo; essa operação é sem dúvida transcendente.
Com efeito, um nome (palavra) está destinado a ser apenas a cópia
falível de um original que se distancia. O nome deve interessar por
tudo aquilo que nele chega a transparecer. A verdadeira tarefa do
estudioso, que se debruça sobre a questão dos nomes e a organi-
zação do lógos, não é a de apresentar a significação de cada nome,
elucidando as possibilidades de organizá-los em uma frase, mas a de
descobrir e desvelar a presença (ou a essencialidade) deste “referente”
remoto que justifica tanto a aplicação dos nomes às coisas quanto às
combi­nações - sintaxe - postas em questão no lógos. O nome já deve
6
operar uma primeira forma de anámnesis , assim como a frase, ao se
confundir com o pensamento, deve reproduzir, em sua estrutura
7 
interna, as possibilidades de combinação das próprias essências .
Podemos afirmar que o esforço no sentido de estabelecer a relação
entre o nome (imagem) e o modelo (essência) esbarra na dificuldade
inicial que encontramos na definição de ousía. O termo é utilizado
em diferentes acepções e o seu significado tende a se dispersar
sem a orientação positiva de um sentido básico. O que se assiste,
na sucessão dos diálogos platônicos, é uma autêntica transfor­mação
do significado deste conceito, que gerou, posteriormente, uma das
discussões mais polêmicas na história do pensamento ocidental. Com
o termo ousía, o que vem à tona é o próprio sentido do ser que se
consubstancializa como o objeto noético da meditação “metafísica”.
Mas antes de servir à ontologia e à própria epistemologia platônica,
o termo é empregado em sentido pouco preciso. Na refutação da
tese convencionalista, antes de propor a Hermógenes a hipótese

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de um nome-instrumento, Sócrates se refere à existência de um ser


permanente que não é nem relativo a nós nem dependente de nós
8
mesmos (ousía echonta tína bébaion ). Mas ele não chega a aprofundar
essa concepção; mesmo porque ainda não dispunha inteiramente de
sua ‘hipótese’ mais autêntica: a Teoria da Formas. Na tradução do
Crátilo que procuramos seguir (Louis Méridier – Les Belles Lettres) a
maior parte das vezes em que Platão utiliza a palavra ousía, o tradutor
opta por essência (essence). Mas quando se refere ao significado de
9
ousía? Victor Goldchmidt prefere falar de uma ‘existência estável’ . O
próprio Sócrates, ao invés de aprofundar com Hermógenes a noção
metafísica de essência, prefere se voltar para Crátilo, remetendo o
leitor a uma longa lista de etimologias onde se pretende descobrir
o elemento natural que subsiste por trás de todo nome, sílaba e até
mesmo letra. O fato é que o conceito de ousía suscita dúvidas não
apenas entre os intérpretes e tradutores, mas dentro do próprio
contexto dos diálogos platônicos. Quanto a nós, a ousía será trata-
da, a princípio, como o indício de que Sócrates pretendia trocar o
eixo da discussão sobre a correção dos nomes. O que surge após a
problematização socrática das teses defen­didas por Hermógenes e
Crátilo é a idéia de que nómos e phýsis (norma e natureza) são termos
que se implicam mutuamente. O que parece faltar ao conceito de
nómos é o critério de uma ordenação ou de uma táxis capaz de fixar
os nomes a partir de uma ‘natureza’ própria, não relativa; e o que
parece faltar ao conceito de phýsis é a noção complementar de es-
sência, remetendo à noção de eîdos.
Uma boa opção para o desenvolvimento desse artigo seria a de
apresentá-lo em duas etapas: a primeira, relativa aos nomes e aos lógoi;
a segunda, à natureza e à essência. Não resta dúvida de que tal divi-
são poderia constituir uma opção para o estudioso preocupado em
verificar o uso destas noções no vocabulário grego, mas certa­mente
implicaria no afastamento da questão tal como surgiu. A verdadeira
questão envolvida na análise dos nomes não pode ser apresentada
sem que se estabeleça, de imediato, uma reflexão sobre a natureza
do objeto designado pelo nome. Sabemos que no período em que
se legitimam as grandes narrações míticas, a palavra manifesta os

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próprios elementos; ela se identifica com o objeto, determina a ação,


é a face luminosa da alétheia (verdade desvelada). Na medida em
que persuade e sugere, a palavra de Zeus é continuada na ação. Sua
palavra se identifica com a ordem dos acontecimentos, “conhe­ce” o
10
destino das coisas . No que diz respeito aos filósofos pré-socráticos,
no momento em que passam às questões implícitas na phýsis, ou seja,
na medida em que refletem sobre o devir dos elementos da natu-
reza, os nomes são colocados em relação direta com esses mesmos
11
elementos . Apenas no período em que as técnicas de persuasão
desenvolvida pelos sofistas e pelos mestres de retórica atingem um
elevado nível de difusão é que se pode falar da linguagem como um
domínio autônomo diante do real. Como pretendia Górgias: como
um ser entre os seres. Para este sofista, as palavras não devem reve-
lar nada, não podem expressar nada por si mesmas, a menos que o
artifício humano estabeleça uma relação extrínseca entre as palavras
12
e as coisas . Ainda assim, sofistas e retóricos não pretendem depor
contra a experiência, ou contra a phýsis, mas simplesmente revelar o
caráter relativo dessa percepção dos objetos que varia de sujeito a
sujeito. O fato derradeiro é que o grego reflete sim sobre a lingua-
gem, sobre o uso das sentenças, a significação dos nomes e talvez,
acima de tudo, sobre isto que é percebido, sentido ou intuído e sobre
qual se diz algo. Esta reflexão ocorreu de tal modo que nos permite
afirmar que foi no rastro de uma discussão sobre as coisas que o
pensador grego, em suas mais diversas tendências, pôde apri­morar
suas concepções sobre a linguagem. Não creio, portanto, que seja
uma boa opção separar a análise dos nomes de uma reflexão sobre
a natureza das coisas. A opção mais coerente é a de nos atermos ao
tipo de relação que pôde ser estabelecida entre esses domínios que
a princípio poderíamos chamar de campos/estratos distintos.
Mas para que se possa conduzir a bom termo a relação entre
noções tão distintas como as de ónoma, lógos, phýsis e ousía (ou eîdos),
devemos procurar não confundir a história do desenvolvimento
destas noções com a análise dos próprios conceitos a partir de suas
definições. Em certo sentido, a dialética platônica viabiliza este tipo
de confusão. O que se procura é uma definição capaz de satisfazer a

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integridade do argumento, mas isto é feito a partir do levantamen-


to de todas as hipóteses em questão. O diálogo, enquanto gênero
filosófico, facilita este projeto, principalmente pela possibilidade
de apresentar outros personagens, fictícios ou reais, que se tornam
defensores de teses submetidas à prova, à refutação e à conseqüente
reelaboração. Para se atingir uma definição, ou para que se possa
chegar a uma conceituação que satisfaça às exigências apresentadas
por Sócrates, é necessário seguir a ordem das indagações, a histórica
polêmica de teses que se confrontam. Assim, deveríamos falar da
emergência e do surgimento de certas hipóteses que atingem um
termo no decorrer do diálogo platônico. O que está realmente ocor-
rendo é uma reavaliação das certezas e das crenças; as definições
estão sendo aprimoradas, as hipóteses verificadas. Mas tudo isto é
feito sem que se reduza o problema à sua mera configuração histó-
rica. Como afirma J.M. Benoist: “Existe talvez uma história daquilo
que, precisamente pela sua eternidade e racionalidade, é um desafio
  13
à história, uma antítese da história ” .
O fato concreto é que Platão efetua o levantamento das teses
em questão. No Crátilo, antes de arriscar uma definição ou uma con-
ceituação sobre os nomes, ele prefere reconstituir a ‘história’ destas
teses que se confrontam É óbvio que elas não são ouvidas em seus
próprios contextos. O que podemos dizer é que entram no diálogo
a serviço do platonismo. Estar a serviço do platonismo não signi-
fica, no entanto, dizer que ocorra uma má apropriação. Ao menos
no momento em que surgem no diálogo são bastante fidedignas
às suas escolas de origem. O fato de Crátilo não ter se convencido
diante das evidências que Sócrates acredita ter apresentado, ou seja,
diante de uma notória refutação daquilo que Goldschimidt decidiu
14
chamar de “teoria da linguagem natural” , pode revelar a resistência
de algumas escolas à dialética platônica. O que não se pode negar é
a intenção de se efetuar o levantamento das hipóteses. O diálogo é, a
princípio, problematização das opiniões admitidas e, por essa razão,
a leitura de qualquer trabalho de Platão pode ser iniciada com uma
série de perguntas que mesclam o desejo propriamente platônico de
dar partida ao processo dialético com o levantamento histórico das

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questões que determinaram o debate estabelecido em sua contempo­


raneidade. Eis algumas perguntas que poderíamos fazer no início
da leitura do Crátilo: Quais as hipóteses que concorrem entre si? O
que visam sustentar? No que implica a aceitação ou a recusa de uma
delas? A partir do que se justificam?
Na primeira fase do platonismo, no período conhecido como
“socrático”, a busca de definições determina a problematização das
teses em debate ou em franco confronto. O que Sócrates pretende
é retirar de cada hipótese sugerida a sua conseqüência imediata. Ele
praticamente obriga seus defensores a participarem do “confronto”.
Mas enfim, quais são os temas que entram no debate no instante
em que Platão reflete sobre a orthótes (correção) dos nomes? Antes
de simplesmente enumerá-las, devemos tentar relacioná-las com
aquilo que, em última instância, as justifica. Sabemos que por trás
da tese exposta por Crátilo afirma-se a phýsis como o conjunto dos
elementos que estão submetidos ao movimento e ao devir; a pala-
vra cratiliana é uma expressão do fluxo perpétuo dos elementos. A
filosofia de Antístenes concorre para este tipo de análise. Sobre a
teoria conven­cionalista de Hermógenes, podemos facilmente detec-
tar as influências de sofistas como Protágoras, Górgias e Pródico e
de filósofos como Demócrito de Abdera. Apesar de desenvolver a
teoria atomista, Demócrito se referia às impressões sensoriais como
passíveis de convenção. “Por convenção, afirma ele, existe o doce
e o amargo, o quente e o frio; por convenção existe a cor; mas na
15
verdade o que existe realmente são os átomos e o vazio . Como
os sofistas seus contemporâneos, Demócrito estudou a linguagem;
compôs uma ono­mástica e se dedicou a orthoépeia. Um dos tópicos
estudados, que lhe permitiu apoiar a tese convencionalista, foi a
pesquisa que efetuou na área da homonímia. Segundo este pensador,
o fato de muitos objetos poderem ser designados por um só nome
prova que os nomes não podem ser um produto da natureza e sim
da mera convenção (nómos) estabelecida entre os homens de uma
determinada cultura.
Como podemos notar, a primeira antinomia que se estabeleceu
não opôs o físico ao metafísico. A primeira oposição constituiu-se

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entre as noções de phýsis e nómos (natureza e convenção). Procurou-


se, então, o estabelecimento das diferenças entre o que é dado
diretamente pela natureza e o que, para ser postulado, depende do
livre arbítrio de cada indivíduo em sua relação com outro indivíduo.
Só posteriormente a reflexão socrático-platônica pôde penetrar nesse
contexto, apresentando a hipótese de um nome-instrumento, em função
do qual se efetiva um ato (práxis) de nomear. Esse ato só pode ser
realizado a partir da fixação de um modelo. Sócrates se serve, nessa
passagem, do paradigma do artesão que precisa fixar a ‘imagem’ do
objeto ou do utensílio que deseja produzir. Essa imagem, por sua
vez, não será tomada apenas como o dado expressivo que se apresenta
aos sentidos. A imagem é de outra ‘natureza’; ela constitui-se como
início de um processo que capta no objeto empírico a sua significação
remota, o seu significado noético para usar uma expressão que não
se consumou em absoluto no continente filosófico grego, mas que
nos ajuda a compreender o que se passou entre os gregos que, por
assim dizer, socratizaram. A imagem, na medida em que distingue o
objeto de sua representação, e na exata medida em que determina o
grau de sua representatividade, constitui-se como a expectativa de
uma reminiscência. Reminiscência esta fundamental, no ponto de vista
platônico, a qualquer processo cognoscível ou de entendimento.
A questão que pode despertar imediata curiosidade diz respeito
à opção tomada por Sócrates no início do Crátilo. A princípio, no
confronto que se estabelece entre convencionalismo e naturalis-
mo, ele parece fazer uma opção a favor do naturalismo. Isso não
implica em afirmar que Sócrates seja adepto da teoria cratiliana
sobre os nomes. Ele realmente não se coloca como defensor desta
semântica-naturalista apresentada por Crátilo, mas certamente a hi-
pótese cratiliana desperta maior interesse no percurso filosófico de
um pensador extremamente preocupado com a definição precisa e
com os problemas envolvidos na nascente teoria do conhecimento.
O motivo que pode ter gerado a aproximação de Sócrates a Crátilo
se deve ao fato de a tese cratiliana estar vinculada a uma concepção
do conhecimento. Para este pensador, o nome implica a revelação
imediata do objeto nomeado. E isto acontecia de tal forma que o

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conhecimento dos nomes implicava no conhecimento das próprias


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coisas (aquele que conhece os nomes conhece as próprias coisas) .
Sabemos que a questão epistemológica é de vital importância para o
entendimento da teoria platônica dos nomes. Apresentar o problema
da linguagem em termos de conhecimento e os problemas do conhe­
17
cimento em termos de linguagem, eis ao que pretende Platão .
De fato, Platão tem algo de novo a acrescentar a toda essa discussão
sobre a linguagem. No período em que se dedicou ao Crátilo, o que ele
parecia trazer em mente era a vontade de se opor à antinomia criada
entre nómos e phýsis, vinculando a análise dos nomes ao problema
do conhecimento. É óbvio que, nesse trajeto, a aproximação aos
natura­listas era inevitável. Ao menos estes pensadores chegavam
a ‘conhe­cer’ algo, muito embora o conhe­ci­mento não tivesse para
eles uma função ativa. Conhecer para um naturalista era perceber a
maneira de ser da phýsis. O que Sócrates realmente procurava, em suas
definições, não era unicamente o objeto empírico, mas a sua possi­
bilidade de ser conhecido; o que para ele não se resume à existência
factual. Sócrates busca a evidência teórica (contemplativa), a qual
poucos homens têm acesso. Podemos dizer que no período em que
redigiu o Crátilo, a preocupação socrático-platônica com a questão
do conhecimento já era bastante relevante, embora não inteiramente
explícita. É possível mesmo que a indagação sobre a epistéme tenha
sido o que realmente orientou a reflexão platônica sobre a função
dos nomes. O filósofo ateniense parecia disposto a revelar o tipo de
distinção possível entre os nomes e as coisas, relacionando tanto os
nomes quanto as coisas à atividade cognoscível. Este projeto envolve,
decididamente, uma reflexão sobre a linguagem.
Por um lado encontramos um Platão convicto de que não
poderia endossar a tese defendida por Crátilo. Conhecer e nomear,
para ele, constituem campos distintos. Como veremos mais adiante,
Platão via sérios problemas nesta relação direta entre as palavras e
as coisas. Por outro lado, ele não podia se entregar ao relativismo
sofístico que, ao tomar todas as impressões como o produto de uma
convenção, inviabilizava qualquer indagação epistemológica relativa
ao conhecimento de um “objeto”. Platão, como sabemos, não chega

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a aderir a nenhuma dessas teses. É certo que olha com maior atenção
a tese exposta por Crátilo, mas faz isto apenas enquanto articula os
argumentos necessários à refutação do convencionalismo, ou seja,
que o ato de nomear algo se constitui apenas em função de uma
convenção. O que ele realmente procura é uma nova opção, uma
nova hipótese, que resultará num modelo de diferenciação entre uma
estrutura formal, correspondendo às essências, e uma outra estrutura
mais instável, corespondendo aos objetos que nos são apresentados
pela via dos sentidos. A princípio os nomes e os lógoi estão referi-
dos a esses objetos empíricos, mas em função da problematização
da noção de phýsis, Platão irá remeter o seu leitor a uma reflexão
sobre essa ‘natureza verdadeira e realmente existente’. Em suma, o
problema lingüístico em Platão só se torna relevante quando damos
início à reflexão sobre o sentido de eîdos e ousía.
Mas antes de contar com sua hipótese mais autêntica, ou seja,
a Teoria das Idéias, e portanto antes de aprimorar o seu critério de
fundamento para a atividade cognoscível, Platão teve que lançar
mão de uma convertida teoria de mímesis, que lhe permitiu relacionar
o nome ao objeto representado. Na parte final do Crátilo, o nome
será apresentado como aquilo que deve imitar a essência de um
objeto por meio de sílabas e letras (mimeisthai... tén ousían grammasi te
18
kaí syllabais) . Afinal, que tipo de relação pode existir entre o nome
e a ousía que lhe serve de modelo? Platão nos fala de uma relação
mimética, mas aquilo que é representado no nome só pode realmente
ser esclarecido após uma reflexão sobre o sentido de ousía. Devemos
saber se se trata de uma aparência, de uma natureza constitutiva,
de uma forma, de um tipo, de uma espécie ou mesmo de uma idéia
metafísica. A discussão sobre a correção dos nomes indica o período
em que Platão estava prestes a expor o tipo de relação viável entre
as diversas partes de um todo que se orienta segundo o princípio da
sua maior inteligibilidade. Platão estava prestes a separar o existencial
do essencial; sua orthótes torna-se cúmplice desta passagem. Sabe-
mos que no Crátilo Sócrates insistirá na distinção entre os nomes e
as coisas nomeadas, e que, em 430a, Crátilo concordará, ao menos
por alguns instantes, que o nome é uma coisa distinta daquilo que

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está sendo representado. É em função desta distinção que Sócrates


pôde se referir à relação entre nome e essência (ousía) como algo que
pertence à ordem do mimético. Mas ainda não possuímos os dados
necessários para afirmar que esta essência, da qual nos fala Sócrates,
seja uma forma inteligível. A parte do diálogo em que Sócrates se
encarrega de refutar a tese naturalista pode, por sua vez, nos fornecer
os indícios de que Platão estava se afastando de um conceito de ousía
fundado unicamente sobre impressão dos nossos sentidos.
É exatamente no momento em que Sócrates nota a possibilidade
do nome ser mal aplicado à coisa por ele designada, que a noção
de mímesis pode tomar o seu sentido realmente platônico. A mímesis
implica na representação de uma determinada ousía, e não simples­
mente numa implicação direta entre os nomes e coisas. Ao supor o
nome como uma imitação, Sócrates está procurando se opor à tese
naturalista e, por via indireta, ao relativismo sofístico. Uma leitura
detalhada do Crátilo pode nos levar à constatação de que, por trás da
refutação de Hermógenes e de Crátilo, Sócrates pretende apresentar,
por intermédio de sua concepção de mímesis, a viabilidade de um
discurso falso que se apresenta como inadequação entre modelo e
cópia. De fato, Sócrates se opõe tanto ao naturalismo quanto ao con-
vencionalismo, afirmando, contra estas duas “escolas”, a viabili­dade
do erro, do falso e da imprecisão. Contra Hermógenes, ele precisa
afirmar que o que diz as coisas tais como são afirma o verdadeiro;
19
o que diz as coisas tais como não são, o falso . Contra Crátilo, ele
levanta a hipótese de um nome-imagem que lhe permite, em função
da mau adequação existente entre o nome e a coisa nomeada, afir-
mar a possibilidade do erro e do falso, isto é, de uma inadequação
20
entre modelo e cópia . Nesta inadequação, que se apresenta como
imagem falsa, o que se verifica é a possibilidade de se afirmar um
nome ou um lógos que pertence a uma outra ousía. No Crátilo podemos
sentir as dificuldades que acarretam o emprego do nome tomado
como imagem. A imagem jamais reproduz inteiramente o modelo;
essa representatividade não pode se dar inteiramente a critério de
um sujeito particular que opta por um nome em detrimento de um
outro. O nome deve se vincular a um modelo preciso, mas ainda que

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esse modelo permaneça intacto, as formas de representá-lo serão tão


diversas que Sócrates se verá na iminência de admitir, na elaboração
dos nomes, ou seja, no trabalho do nomoteta (o artífice dos nomes),
uma parcela de convencionalismo.
Também eu prefiro que os nomes sejam, na medida do pos-
sível, semelhantes aos seus objetos; mas temo que, em realidade,
não seja aqui necessário, para usar uma expressão de Hermógenes,
apurar laboriosamente a semelhança, e que nos vejamos forçados
a recorrer ainda, para correção dos nomes, ao recurso do conven-
21
cionalismo .
A aporia sobre os nomes está lançada. Sócrates nota que entre
os nomes e seus objetos deve haver unicamente uma representação
falível, que abre, novamente, o caminho para o convencionalismo.
Em sua especulação a mímesis cede lugar ao convencionalismo. Mas
que modalidade de convenção é esta que não pode prescindir de
uma referência, ainda que indireta, à própria essência do objeto
nomeado? O artífice dos nomes pode variar no que diz respeito à
escolha das letras, das sílabas e das palavras; só não pode divergir no
que se refere ao objeto ou à essência que ele fixa como modelo de sua
‘arte’. A princípio o nomoteta se confunde com o sofista. Ao contrário
de Crátilo, ele não pode admitir uma relação direta e imediata entre
as palavras e as coisas. Ligar os nomes a uma simples convenção
parece ser a única alternativa. Mas logo a reflexão platônica sobre a
essência se faz notar e Sócrates percebe que existe algo que se fixa
em função dos nomes, não importando realmente quais foram as
letras que se uniram em sua formação. Como esclarece Goldchimdt:
“É a forma do nome que interessa, a matéria (sons e sílabas) sobre o
22
qual trabalha o nomoteta não chega a importar” .
A palavra, fixada pelo nomoteta (ou pelo dialético como alguns
intérpretes preferem), deve ser capaz de desencadear no filósofo o
processo que tornará possível o reconhecimento de um modelo.
Em Platão, o nome será tratado como o signo lingüístico de caráter
convencional capaz de representar uma determinada ousía. Essa
essência não pode ser compreendida apenas como um fenômeno
empírico e, obviamente, não pode ser relativa a cada homem em

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particular. Como afirmei anteriormente, a reflexão platônica sobre os


nomes passa pela análise desse objeto nomeado anterior ao próprio
nome. O que Platão nos oferece no Crátilo são os indícios de sua
pretensão de efetuar a passagem da análise do objeto empírico para
o “objeto” noético. A verdadeira função dos nomes em Platão seria
a de nos remeter à sua própria essência, à sua própria natureza. Essa
“essência” Platão fixa, a princípio, nos limites da pretensão socrática.
No diálogo, ela surge como modelo abstrato que o nomoteta apreende
antes de iniciar a sua tarefa de artesão de nomes. Nesse caso, seria
pertinente a questão: Pois então basta possuirmos um nome para
temos acesso à sua essência? É evidente que a resposta seria uma
imediata negação. Um nome, puro e simplesmente, pode facilmente
desenca­dear falsos relacionamentos. Nem sempre é fácil estabelecer
a cadeia que leva de um nome a sua idéia última. O naturalista, ao
relacionar o nome exclusivamente aos objetos empíricos, estaria
cometendo um erro. A palavra que se liga unicamente ao fenômeno
natural não pode servir inteiramente à atividade cognoscível. Ainda
que o conhecimento dependa de uma experiência, isso não implica
que ele possa se reduzir a um fenômeno. Ainda que toda predicação
seja possível apenas em função das possibilidades concretas de uma
determinada substância, ainda assim Platão não se dá por satisfeito.
Para ele, o conhecimento ocorre paralelamente à experiência dos
fenômenos. Ele não pode reduzir o conhecimento ao fenômeno,
como pretendia Crátilo, nem limitar a gênese do conhecimento a
uma experiência sensorial. O erro do naturalista seria justamente o de
finalizar sua hipótese na relação nome-objeto. Com isso não estaria
percebendo a existência, ou melhor, a essencialidade dos ‘objetos
noéticos’, as Formas. A verdadeira questão posta pelo platonismo na
análise dos nomes seria a seguinte: “Afinal, o que se chega a conhe­cer
com os nomes? Os objetos empíricos? Perceber um objeto pode signi-
ficar o mesmo que conhecê-lo? Para Platão esta posição pode conduzir,
provavelmente, ao mesmo tipo de erro a que chegou Teeteto ao definir
23
o conhecimento como sensação, aísthesis . Para que um nome possa
realmente nos remeter a uma essência, ou seja, à intuição noética de
um modelo abstrato, ele deve passar por um longo exercício lógico e

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discursivo, dialético. O nome deve sugerir a definição do objeto que ele


designa e isso não pode se dar sem a análise do lógos. Decididamente,
à margem de toda a onomástica platônica, que estabelece o estudo
iconográfico dos nomes, estão se colocando, para o filósofo atenien-
se, os problemas lingüísticos da definição e da significação. Questões
estas que lhe permitirão passar, na seqüência de sua própria dialética,
da análise dos nomes ao uso do lógos.
Como vimos, a relação direta entre nomes e coisas propostas
pela mímesis cratiliana leva à impossibilidade de se dizer o falso.
Como julgamos saber, tanto a tese convencionalista quanto a natu-
ralista sustentavam a impossibilidade do discurso falso. Na opinião
dos convencionalistas isso se dava em função do caráter relativo
das impressões humanas. O falso não ocorria porque toda dóxa é
verdadeira. Hermógenes partilhava com os sofistas a tese de que a
natureza não designa nome algum como próprio a um determinado
objeto, pois se trocamos um nome, aplicando um outro a um mes-
mo objeto percebido, esse segundo nome será tão correto quanto o
primeiro. Para Hermógenes, a correção dos nomes reduz-se a uma
questão de convenção ou de acordo entre os homens. Para Crátilo,
por sua vez depositário de uma tradição que remonta a Heráclito
e ao socrático Antístenes, o falso não é o viável porque a relação
entre o nome e o objeto-referente é direta, não podendo existir um
nome sem o objeto do qual o próprio nome parece emanar. Nesse
caso, o conhecimento manifesta-se diretamente na natureza e o falso
corres­ponderia a afirmar aquilo que simplesmente não se apresenta
em absoluto. A palavra que designa o que não existe está fadada a
transformar-se nem mero ruído sem significação.
Mas devemos voltar ainda a essa discussão que se estabeleceu
entre as palavras e as coisas. Como sabemos, a opinião do sofista
pressupõe uma experiência, mas essa experiência não pode ser in-
teiramente transposta em linguagem como pretendia Crátilo. O mo-
mento mais radical desta incompatibilidade entre os nomes e coisas
pode ser encontrado em Górgias. Em seu livro sobre o problema
do ser em Aristóteles, P. Aubenque acaba assimilando a tese de Her-
mógenes à do sofista Górgias de Leôncio. Parece existir, realmente,

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muita afinidade entre Hermógenes e Górgias. Em seu Tratado Sobre


o Não Ser, o sofista se esforça em revelar a função ímpar do discurso
como um ser entre os seres, ou seja, como uma estrutura autônoma
que não se liga diretamente às coisas. Seja qual for o alcance do
Tratado de Górgias, ele parece estar baseado na incomunicabilidade
24
dos sentidos . Os sentidos não se comunicam entre si e isso se dá
de tal forma que uma realidade audível, como o discurso, não pode
manifestar coisas que só são reais aos outros sentidos. Os corpos
visíveis são completamente diferentes das palavras, pois o meio pelo
qual se capta o visível é completamente distinto daquele pelo qual se
capta a palavra. Sendo assim, o discurso não revela de modo algum
a maioria das coisas a que se refere, da mesma forma que uma coisa
25
não revela a natureza da outra .
A incomunibilidade dos sentidos parece assegurar a Górgias a
incompatibilidade entre as palavras e as coisas. O discurso torna-se
uma realidade própria, independente em relação às coisas por ele
designadas, e, por conseguinte, pode ser tomado como uma realidade
autônoma, incapaz de remeter a outra coisa senão a si própria. Mas
se esse discurso não tem a função de comunicar o ser ou as coisas,
ele deve, ao menos, viabilizar o campo de relacionamento entre os
homens. Nesse caso, o discurso termina por se tornar uma criação,
uma produção, que diz respeito ao próprio homem. Segundo Au-
benque, o Tratado sobre o Não-Ser não tem por objetivo estabelecer
a impossibilidade do discurso, mas apenas a especificidade do seu
campo que é o das relações humanas e não da comunicação do
26
ser . Com a discussão gorgeana o discurso se separa da sua possível
relação com as coisas e termina por se tornar um ser entre outros.
A conclusão parece óbvia:
Górgias levou às últimas conseqüências uma concepção e uma
prática da linguagem que ignora a sua função significante: mas
não por isso a linguagem perde valor, mas como não é lugar de
relações significativas entre o pensamento e o ser, resulta apenas
em um instrumento de relações existenciais (persuasão, ameaça,
27  
sugestão) entre os homens .
Tudo nos leva a crer que foi em posse deste feedback fornecido

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pela paideía sofística que Hermógenes pôde chegar à hipótese que


procurou defender no Crátilo. O nome-convenção retira dos nomes
a tutela das coisas. Para o sofista, de um modo geral, deve ocorrer
entre as palavras e as coisas a simples arbitrariedade das convenções
humanas. A phýsis não se desvela como um corpo de leis necessárias
que caberia ao homem explicitar, mas é, antes, submetida às diversas
perspectivas que afirmam a relatividade deste sujeito que observa
atentamente. O que se apresenta ao sofista não é o lógos que desvela
o modo de ser da phýsis, mas o nómos a partir do qual ele afirma a
inconstância e a ambigüidade da sua dóxa (opinião). Para o sofista, o
campo do discurso e da palavra está delimitado pela tensão de pelo
menos duas teses antagônicas sobre cada impressão particular. Nesse
plano de pensamento orientado pelo desejo de contradizer, o sofista
nos surge como o “teórico” que torna lógico o ambíguo, e faz desta
“lógica”, como bem afirma Detienne, “O instrumento próprio para
28
fascinar o adversário” . O lógos é tratado como uma realidade em si.
Não é, de modo algum, um discurso que desvela, necessariamente,
um objeto que deve ser conhecido. O fim da sofística, como o da
retórica, é a persuasão (peithó) e não o conhecimento (epistéme).
De fato, a sofística e a retórica, que aparecem com a cidade grega,
são formas de pensamento, tanto uma como outra, funda­mentalmente
orientadas para o ambíguo, seja por se desen­volverem na esfera da
política, que é o próprio mundo da ambigüidade, ou por se definirem
como os instrumentos que, por um lado, formulam, num plano racional,
a teoria, a lógica da ambigüidade, e, por outro lado, permitem agir com
29
eficácia nesse mesmo plano de ambi­güidade .
A palavra que persuade e que se estabelece a partir de uma con-
venção não pode se prestar ao falso. Na verdade, não pode existir o
falso entre esses ‘sábios’ que legitimam a cidade democrática fundada
sobre o valor da persuasão. Tudo o que pode haver no plano do dis-
curso é uma fala menos eloqüente ou menos persuasiva do que outra.
O único compromisso na estipulação dos nomes seria o de postulá-los
em conformidade com os interesses do dêmos, pois, afinal, os homens
precisam de um vocabulário comum. Mas isto não significa, em
hipótese alguma, que exista um nome mais autêntico ou verdadeiro do

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que outro. O nome fornecido por acordo ou convenção é inteira­mente


correto e a possibilidade de um nome falso, que diga a coisa determinada
tal como não é, ou que se adeqüe mal a um objeto dado, fica com-
pletamente excluída. Para o subjetivismo relativista instalado pelos
sofistas, todos os nomes são corretos. Tudo se resume a uma questão
de argumentação ou de estabelecimento de uma convenção.
O mais interessante em toda esta polêmica trazida à tona no
Crátilo é que a tese naturalista, embora seguindo uma via completa­
mente distinta, chega à mesma conclusão dos sofistas, ou seja, a de
que não é possível dizer o falso. Para uma melhor compreensão das
questões envolvidas na tese naturalista devemos nos referir, ainda
que sucintamente, às concepções sobre a linguagem em Antístenes.
Não nos restaram muitos fragmentos da obra deste pensador cínico,
mas o pouco que possuímos conta com o aval de autoridades como
Platão, Aristóteles, Próclos e Diógenes Laércio entre outros. Suas
idéias tornaram-se notórias na Antigüidade, principalmente por causa
dos problemas éticos e morais abordados. Mas, para um estudo em
que se pretende verificar as bases de uma discussão sobre a lingua-
gem, não é bem a sua moral de simplicidade e desprendimento que
chegam a nos provocar interesse. O que nos importa saber é que
este pensador, que sofreu tanto a influência de Sócrates como a de
Górgias, desenvolveu a análise dos nomes e das sentenças numa via
bastante distinta do subjetivismo sofístico. Antístenes afastou-se
da incomuni­cabilidade do discurso gorgeano em relação às coisas e
passou a postular relações diretas e mais efetivas entre as palavras, as
defini­ções e as coisas, caindo, desta forma, no que alguns intérpretes
30
consi­deram um ‘ultra objetivismo’ .
Para Antístenes o ato da fala implica na referência imediata
a um objeto (pragma). Não se trata, portanto, de falar de algo por
intermédio de uma intricada rede de predicações que tenderiam, a
exemplo das categorias aristotélicas, a se afastarem do objeto ou
do substrato, mas dizer imediatamente este hypokemenon (substrato).
Para este pensador deve existir entre as palavras e as coisas uma
aderência natural e indissolúvel e isto deve ocorrer de tal forma que
a possibi­lidade de contradição ou de discurso falso fica completa-

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mente excluída. Somente a própria definição pode ser predicada de


um determinado objeto. Em seu sistema, predicar significa aplicar
um nome ou uma seqüência de nomes a um objeto. Assim sendo,
o objeto de uma lógica antistênica seria o próprio objeto empírico
que se apresenta aos órgãos dos sentidos. Predicar equivaleria uni-
camente a atribuir nomes aos objetos reais. De um objeto simples
teríamos apenas um nome, de um objeto composto um lógos ou uma
definição. Nesse caso, não é necessário estabelecer uma distinção
precisa entre os nomes e os lógoi. Com isso, o sistema antistênico
pode, realmente, jogar um pouco de luz sobre o tratamento semelhante
que Platão emprega no seu Crátilo ao lidar com as noções de ónoma
e lógos. De fato, o que serve de fundamento para os nomes deve
servir, tanto no sistema antistênico quanto no cratiliano, também
ao lógos; no caso, as próprias coisas. Ou bem os falantes se referem
a um mesmo objeto e em conseqüência devem emitir um mesmo
nome, ou bem estão falando de coisas completamente distintas.
Seu sistema de predicação é simples, tautológico: a=a. Nesse caso,
o primeiro a deve corresponder ao objeto; o segundo, ao nome pelo
qual se designa o objeto.
Em Antístenes a função primária dos nomes não é outra senão
a de distinguir os objetos entre si. Coube a Antístenes a definição
do lógos como aquilo que deve revelar o que era e o que é. Como
podemos perceber, esta sentença nada tem a ver com as conside-
rações sofís­ticas, pois ele proclama, para o discurso, uma afinidade
direta com o objeto. A função do lógos é a de revelar a objetividade
das coisas que existem no passado e que continuam existindo no
presente. Mas ao estabelecer as diferenças entre os nomes e o lógos,
Antístenes continua ligando essa duas categorias lingüísticas ao objeto
que, em primeira instância, as determina. O lógos é um desvelamento
do objeto; a maneira de apresentar lingüisticamente tudo o que se
apresenta de fato. Mas ao contrário dos sofistas, Antístenes preten-
31 
dia ligar o lógos e o nome à atividade cognoscível. Goldschmidt
considera Antís­tenes o primeiro filósofo da linguagem e isso se dá,
justamente, porque ele pensa a linguagem a partir do que ela leva a
conhecer, ou seja, às próprias coisas.

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O fato é que o paradoxo de Antístenes, segundo o qual não é


possível a contradição, é o seu conseqüente desdobrado em duas
outras aporias: (1) apenas a definição própria pode ser predicada
de um objeto e (2) não é possível afirmar o falso, estão em direta
32
oposição com as teses sofísticas . Protágoras, por exemplo, assumia
a existência de dois discursos antagônicos para cada objeto percebido.
Górgias, por sua vez, tomava o discurso como um ser entre os seres e,
desta forma, separava o logos dos objetos sensíveis. Quanto a Antís­
tenes, no entanto, objeto e linguagem estabelecem um vínculo tão
preciso que a linguagem só pode servir ao seu objeto próprio. O
mais interessante em toda esta discussão é observarmos como teses
tão antagônicas como as de Protágoras, Górgia e Antís­tenes con-
duzem, por vias diversas, à mesma constatação: é impos­sível haver
um discurso falso.
No Crátilo é possível mesmo estabelecermos uma relação en-
tre Górgias e Hermógenes por um lado e Crátilo e Antístenes por
outro. Para os últimos, o nome forma um só corpo com a coisa
que expressa, em outras palavras: é a coisa mesma se expressando.
Para os primeiros, o discurso é ele mesmo um ser, uma coisa entre
as coisas e assim como uma coisa não revela de modo algum a na-
tureza de outra, o discurso não pode revelar nada sobre um objeto
que lhe é externo. Sobre essa questão Aubenque se expressa da
seguinte forma:
Por um lado (Antístenes e Crátilo) o lógos é o ser; do outro (Hermó­
genes e Górgias) o lógos é um ser (...). Em ambos os casos as
teses desembocam, por diferentes razões, na mesma conclusão
paradóxal segundo a qual é impossível equivocar-se e mentir: em
um caso porque há coincidência natural entre as palavras e as
33
coisas, no outro porque há identidade convencional .
A princípio Sócrates procura alertar aos partidários da polêmica
nómos (vs) phýsis sobre as conseqüências que implicam a aceitação
de suas ‘hipóteses’. Ao exercício de pura convenção arbitrária,
ele opões o trabalho do técnico que executa sua tarefa a partir de
um modelo. Ao convencionalista opõe-se, portanto, o artífice que
conhece a finalidade de sua téchne (arte). Mas será que este modelo

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fixado pelo artífice deve ser tomado como um existente submetido,


como bem explicita a máxima heraclítica, ao pánta reî, “tudo flui”?
Ao nome que se reduz à instabilidade do corpo, Sócrates apresenta
a hipótese de um nome-imagem, e paralelamente à discussão sobre
a orthótes, instaura-se a polêmica entre o original e a cópia, a partir
da qual se pode introduzir a indagação sobre o sentido metafísico
de ousía e de mímesis. Toda representação constitui-se a partir de algo.
O valor da ‘imagem’ deverá ser medido segundo a semelhança com
o modelo, que determina, para a imagem, o seu estatuto de cópia
(imagem que se assemelha ao original) ou simulacro (imagem que
distorce o original). No caso do Crátilo, os nomes serão tratados
apenas como uma imagem, um eikón. Esse eikón é avaliado segundo
o que ele leva a conhecer e, como sabemos, desde o início de sua
carreira Platão parece muito pouco propenso a reduzir o conheci-
34
mento a uma sensação aísthesis .
Devemos afirmar que resta-nos apenas uma hipótese: a de que o
nome-imagem não revele apenas um existente, mas também uma essên-
cia ou, como alguns certamente iriam preferir, uma ousía - essência. O
Crátilo é, de fato, o diálogo onde Platão se preocupa com a significa-
ção dos nomes. De um lado, seguindo a especulação sofística, ele nos
apresenta um nome tomado como um instrumento de relações entre
os homens; de outro, seguindo a especulação natu­ralista, temos um
nome que representa imediatamente uma determi­nada substância.
Platão se preocupa com esse nome que representa e significa algo.
Esse nome representativo deve ser tomado como uma produção, ou
seja, o resultado de uma técnica ou uma arte e, para ele, uma técnica
se efetiva partir do conhecimento de um modelo. Se a orthótes dos
nomes em Platão se reveste de uma preocupação epistemológica, en-
tão, ele não deve ter se limitado unicamente a uma substância material.
A alétheia que transparece nos nomes é a sua própria signi­ficação
essencial, ou melhor, a significação que justifica a definição de uma
essência. Mas no período em que redigiu o Crátilo, Platão ainda não
estava inteiramente consciente de que uma discussão sobre a verdade
e a falsidade deveria pertencer ao domínio do lógos, e que os nomes
deveriam apenas designar ou significar. Nesse estágio de sua pesquisa,

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os nomes significam imediatamente e já remetem a um objeto que se


presta ao conheci­mento. Essa forma de conhecimento que se dá pela
via dos nomes é, por sua vez, imperfeita e deve ser pensada como uma
representação falível de uma forma original que tende a ser tomada
como uma substância noética, abstrata, ou seja, como uma Idéia. Se
quisermos usar um vocabulário que se aproxime mais da experiência
contemporânea, podemos certamente nos referir a Platão como
um pensador que, ao se dedicar aos manuscritos do Crátilo, estava
mais interessado em “semiologia” do que propriamente em lógica.
O que se avalia no nome é a afinidade com o modelo. A autêntica
transformação operada pela filosofia de Platão diz respeito à “na-
tureza” deste objeto tomado como modelo; em seu sistema a ousía
deixa de ser tomada como um elemento natural, sensível e passa a se
identificar com as caracte­rísticas de um eîdos, uma idéia. Com efeito,
a onómatos orthótes é o ponto de partida para uma discussão sobre as
propriedades do lógos e o lógos platônico sempre tentará representar
as possibilidades de combinação e disjunção das próprias idéias.
Mas isto constitui um tema que será desenvolvido nos diálogos da
última fase de sua obra, ou seja, no período em que se dedicou ao
Parmênides, ao Teeteto, ao Sofísta e ao Político entre outros. Enfim, as
questões abordadas até aqui permitem-nos apenas avaliar o porquê
de Platão nos ter apre­sentado a hipótese de um nome-imagem,
vinculado ao trabalho de um artífice que, por assim dizer, apreende
o modelo de uma palavra e, justamente por isso, chega a produzi-la.
O que nos parece evidente é que o significado de mímesis em Platão
envolve questões eminen­temente epistemológicas, como o conhe­
cimento do modelo e a diferenciação entre objeto de conhecimento
e experiência senso­rial. O que está em questão na mímesis platônica
é a caracterização do objeto que será tomado como modelo; esse
objeto, que deve ser conhecido, deve ser pensado cada vez mais como
uma forma abstrata, um eîdos. Ao refletir sobre o objeto da linguagem,
Platão já está refletindo sobre as Formas, e nisso ele se distingue
tanto dos físicos quanto dos sofistas.
Notas
1. Sobre a importância do conceito de mímesis em Platão, ver o que diz W.
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Linguagem e Conhecimento em Platão

J. Verdenius no artigo Plato’s Doctrine of Artistic Imitation, em Modern


Studies in Philosophy - Plato II - Vlastos (University of Notre Dame
Press, l978).
2. A designação “Teoria da linguagem convencional” e “Teoria da linguagem
Natural” não foi estabelecida, em absoluto, por Platão. Esta duas designações
foram cunhadas por V. Goldschmidt, Essai sur le Cratyle - Une contribution à
l’histoire de la pensée de Platon.
3. Platão, Carta VII, 342a-343c.
4. Se há ou não uma teoria da linguagem em Platão. A. Diés (Autor de Platon - p. 482/
485), defende a mesma hipótese de L. Meridier. Em sentido contrário encon-
tramos o trabalho de B. Parain (Essai sur le logos platonicienne) e V. Goldschmidt
(Essai sur le Cratyle). P. Aubenque comenta esta mesma questão em Le Problème
de l’être chez Aristote, sobretudo na p. 106.
5. Sobre esta questão ver em M. Dixsaut, Le Naturel Philosophe, pp. 100-105.
6. A noção de anámmesis ou da compreensão platônica de reminiscência é analisada
por Platão no Menon 81c, 85d e 98a. A questão é abordada também no Filebo
34b e no Teeteto 198d.
7. Esta questão é analisada no Sofista - 252c/ 253b, quando o estrangeiro de Eléia
elabora uma analogia entre as letras e um espécie de “alfabeto noético”, que
consistiria em expor as possibilidades ou não de combinação entre as Formas
(eîdos). Ver também, Sofista 259e.
8. Platão, Crátilo,386c
9. Goldschmidt, V.G., op.cit., pp. 57-90 (análise da teoria da linguagem ideal).
10. Detienne, M aborda genericamente esta questão em Os mestres da verdade
na Grécia arcaica, cap.IV (A ambigüidade da Palavra), p. 33.
11. Heidegger, M. desenvolve esta questão no texto que escreveu sobre o frag. n.º
50 de Heráclito, Essai et Conférence, Gallimard, p. 249.
12. Górgias, Tratado sobre o não- ser. Aubenque trabalha com esta questão no cap.
II (Ser e linguagem) em Le problème de l’être chez Aristote, p.105.
13. Benoist, J.M., Tyrannie du logos, p. 24.
14. Goldschmidt, V.G., op.cit., p. 57.
15. Demócrito de Abdera, Os filósofos pré- socráticos, Kirk, G.S. e Raven, J.E., p.
415.
16. Platão, Crátilo, 435d.
17. Joly, H., Le Renversement Platonicienne, p. 97.
18. Platão, Crátilo, 423c.

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Paulo Pinheiro

19. Ibid., 385b/c.


20. Ibid., 430d.
21. Ibid., 434a/b.
22. Goldschmidt, V. G., op.cit., p. 171.
23. Platão, Teeteto, 1ª definição do conhecimento enquanto aisthesis (sensação),
151d.
24. Ibid., p.102.
25. Dupréel, E., trata esta questão em Les sophistes, p. 66.
26. A destinação entre nomes e sentenças (lógoi) ainda não havia sido inteira-
mente postulada. Por esta razão, nos sentimos bastante livres para passar do
domínio dos nomes ao dos lógoi como se realmente estivéssemos tratando de
uma mesma questão.
27. Aubenque, P., op. cit., p. 102, nota n.26.
28. Detienne, M., op.cit., p. 62.
29. Ibid., p. 61.
30. Aubenque, P., op. cit., p.100, quando se refere especificamente a Antístenes.
31. Goldschmidt, V. G., op. cit., Introduction Historique, p.05.

• Analysis of the relation between language and knowledge, proposed by


Plato in his Cratyl, dialogue of the first phase of his writings, period in which
he was very close to Socrates. The dialogue is inconclusive and extremely
refutative. Plato presents the refutation of two hypothesis on the function
and the formation of words or nouns: (a) nouns are formed on the basis of
a convention, and (b) nouns are formed on the basis of a nature which, so
to say, would guide the task of the one whose function is to name things.
Plato’s charge would change the axis of this discussion, enabling language
to the task of knowledge. This article supposes the existence of a language
theory in Plato’s works.
> Philosophy - Language Theory - Ancient Though History - Ancient Rhetoric - Plato
and Sophists

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