Você está na página 1de 230

alea

ESTUDOS NEOLATINOS
Alea Conselho editorial
ESTUDOS NEOLATINOS Adja Barbieri Durão
(Universidade Estadual de Londrina)
Revista semestral organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Andrea Mariani
Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que (Universidade Gabriele D’Annunzio – Pescara)
compreende as seguintes áreas de concentração: Estudos Linguís-
ticos Neolatinos (opção em Língua Espanhola, Língua Francesa ou Christophe Bident
Língua Italiana) e Estudos Literários Neolatinos (opção em Literatu- (Universidade de Paris VII)
ras Hispânicas, Literaturas de Língua Francesa ou Literatura Italiana). Cristina Iglesia
A publicação visa à divulgação de trabalhos de pesquisa originais
(Universidade de Buenos Aires)
provenientes das diversas áreas de produção de conhecimento
relacionadas com a área de Letras e Linguística que se articulem Dario Fred Pagel
com as línguas e as literaturas neolatinas. Visa igualmente salientar (Universidade Federal de Santa Catarina)
o caráter comparativista dos estudos linguísticos e literários hoje,
incentivando em particular pesquisas e trabalhos que ponham Diva Damato
em destaque a importância dos estudos de língua portuguesa no (Universidade de São Paulo)
contexto neolatino. A revista se propõe ainda a publicar resenhas
de teses e de dissertações, com o objetivo de divulgar trabalhos
Eneida Maria de Souza
acadêmicos da referida área, bem como de resenhas críticas, para (Universidade Federal de Minas Gerais)
a avaliação e difusão de publicações recentes. Francesco Marroni
Processo de Análise de Pares: os trabalhos adequados ao perfil da (Universidade Gabriele D’Annunzio – Pescara)
revista serão submetidos a pelo menos dois consultores ad hoc,
escolhidos entre especialistas da área. Henri Godard
(Universidade de Sorbonne)
Humberto Lopes-Morales
(Real Academia Espanhola)
Editores Jean-Claude Larrat
Edson Rosa da Silva (Universidade de Caen)
Marcelo Jacques de Moraes Lídia do Valle Santos
(Universidade de de Nova Iorque)
Comissão executiva Lisa Block de Behar
(Universidade de La República)
Andrea Lombardi
Márcio Seligmann-Silva
Angela Corrêa (Universidade de Campinas)
Annita Gullo
Maria Alzira Seixo
Bella Jozef (Universidade de Lisboa)
Celina Maria Moreira de Mello
Marietta Gargatagli
Cláudia Fátima Morais Martins
(Universidade Autônoma de Barcelona)
Cláudia Heloísa I. Luna Ferreira da Silva
Marilena Giammarco
Edson Rosa da Silva
(Universidade Gabriele D’Annunzio – Pescara)
Flora de Paoli Faria
Leticia Rebollo Couto Miriam Viviana Gárate
(Universidade de Campinas)
Marcelo Jacques de Moraes
Márcia Atálla Pietroluongo Neide T. Maia González
(Universidade de São Paulo)
Marco Lucchesi
Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio Piero Boitani
(Universidade de Roma La Sapienza)
Maria Lizete dos Santos
Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold Renato Cordeiro Gomes
Mariluci da Cunha Guberman (Pontifícia Universidade Católica – RJ)
Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina Ricardo de la Fuente Ballesteros
Pierre François Georges Guisan (Universidade de Valladolid)
Silvia Inés Cárcamo Rita de Grandis
Sonia Cristina Reis (Universidade British Columbia)
Tânia Reis Cunha Silvana Serrani Infante
(Universidade de Campinas)
Wander Melo Miranda
(Universidade Federal de Minas Gerais)
ISSN 1517-106X

Solicita-se permuta / Exchange requested

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desta revista poderá
ser reproduzida sem a permissão dos editores.

alea: ESTUDOS NEOLATINOS


Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas
Faculdade de Letras – UFRJ
Av. Horácio Macedo, 2151
Cidade Universitária
cep: 21941-917 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail: revista.alea@uol.com.br
http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas

Editora 7Letras
Rua Goethe, 54
Botafogo
22281-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel/fax: (55 21) 2540-0076
e-mail: editora@7letras.com.br
www.7letras.com.br

Alea: Estudos Neolatinos


Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas/
Faculdade de Letras – UFRJ
v. 11, n. 2. Rio de Janeiro, julho/dezembro de 2009

Semestral.

1. Letras Neolatinas – Periódicos. I. Instituição.

ISSN 1517-106X CDD. 807

INDEXAÇÃO
Scielo
(www.scielo.br/alea)

Redalyc
(www.redalyc.com)

FINANCIAMENTO
Programa de apoio às
Publicações Científicas
Sumário

L’humeur versatile 221


PHILIPPE MARTY
Acerca de Au lecteur, o primeiro soneto francês 238
MARCELO DINIZ
Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 249
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA
A tradução de Guimarães Rosa na França 264
CLAUDIA BORGES DE FAVERI
Best-sellers em tradução:
o substrato cultural internacional 278
MARIE HELENE CATHERINE TORRES
Tradução, relação e a questão do Outro:
considerações acerca de um projeto de tradução
da Trilogia Sul-americana Amazonas, de Alfred Döblin 284
MAURICIO MENDONÇA CARDOZO
Tradução, viagem, literatura:
(re)escrevendo e colonizando uma cultura 296
EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA
Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 309
CONSUELO ALFARO LAGORIO
Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 321
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

Traduções

A tradução e seus discursos 341


ANTOINE BERMAN
O bilinguismo do tradutor 354
ANGELA JESUINO FERRETTO
Dei Sepolcri / Os Sepulcros 361
UGO FOSCOLO

Conferência

D’une traduction amnésique


(à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 387
INÊS OSEKI-DÉPRÉ

Entrevista

Questões sobre tradução a Didier Lamaison 405

Resenhas
Charles Batteux. As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio.
Tradução do francês de Natalia Maruyama, tradução
dos trechos em latim de Adriano Ribeiro
(São Paulo: Humanitas & Imprensa Oficial, 2009) 413
LUIZ ARMANDO BAGOLIN
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução de Maurício
Santana Dias (São Paulo: Cosac Naify / 7Letras, 2009) 419
Patricia Peterle
Fernanda Vieira Fernandes. Um estudo de Roberto Zucco,
peça teatral de Bernard-Marie Koltès (Dissertação
de Mestrado em Letras. Programa de Pós-Graduação
em Letras, Instituto de Letras, UFRGS, 2009) 426
MIRNA SPRITZER
Contents

L’humeur versatile 221


PHILIPPE MARTY
On Au lecteur, the first french sonnet 238
MARCELO DINIZ
Questions of translation in Jorge Luis Borges and Italo Calvino 249
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA
Guimarães Rosa’s translations in France 264
CLAUDIA BORGES DE FAVERI
Best-sellers in translation:
the international cultural substratum 278
MARIE HELENE CATHERINE TORRES
Translation, relation and the question of the Other:
considerations on a translation project of Döblin’s
South-American Trilogy Amazonas 284
MAURICIO MENDONÇA CARDOZO
Translation, travel, literature:
(re) writing and colonizing a culture 296
EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA
Lexicon, dictionaries and translation
during the colonial period in Hispanic America 309
CONSUELO ALFARO LAGORIO
Translation and interculturalism:
the little bird, the cage and the basket 321
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE

Translations

Translation and its discourses 341


ANTOINE BERMAN
The translator’s bilingualism 354
ANGELA JESUINO FERRETTO
Dei Sepolcri / The Sepulchers 361
UGO FOSCOLO

Lecture

Of an amnesic translation
(on Jacques Roubaud’s Algo: Preto) 387
INÊS OSEKI-DÉPRÉ

Interview

Questions about translation to Didier Lamaison 405

Resenhas
Charles Batteux. The Fine Arts reduced to a same principle.
Translated by Natalia Maruyama and Adriano Ribeiro
(São Paulo: Humanitas & Imprensa Oficial, 2009) 413
LUIZ ARMANDO BAGOLIN
Cesare Pavese. Hard labor. Translated by Maurício
Santana Dias (São Paulo: Cosac Naify / 7Letras, 2009) 419
Patricia Peterle
Fernanda Vieira Fernandes. An essay on Roberto Zucco,
a play by Bernard-Marie Koltès (Dissertação
de Mestrado em Letras. Programa de Pós-Graduação
em Letras, Instituto de Letras, UFRGS, 2009) 426
MIRNA SPRITZER
Editorial

Em um mundo em que as distâncias geográficas tendem cada vez mais ao


desaparecimento, um dos debates mais complexos e fecundos gira em torno das
relações entre culturas. Nesse âmbito, evidentemente, por seu papel mediador, a
tradução vem ganhando uma atenção cada vez maior nas pesquisas acadêmicas, em
diversos domínios do conhecimento. Foi com o intuito de constituir uma amostra
do que se vem fazendo mais especificamente nesse campo na perspectiva dos es-
tudos literários e linguísticos que propusemos para este número o tema “Crítica,
cultura e identidade: questões de tradução”, que agora trazemos a público.
Para efeito de organização do volume, dividimos os textos que compõem a
rubrica “Artigos” em dois blocos. Num primeiro grupo, os ensaios mantêm o foco
no problema da linguagem e em questões predominantemente literárias, ao passo
que, num segundo grupo, o problema da tradução é tratado por meio de aborda-
gens mais explicitamente voltadas para a questão do embate entre culturas.
Abre o primeiro grupo de ensaios a reflexão de Philippe Marty, que, a par-
tir do exercício de tradução de um poema de Joseph Eichendorff, e passando por
autores como Aristóteles, Deleuze, Levinas e Agamben, expõe e discute a irremo-
vível tensão entre original e o que ele pretende definir como “versão”, em oposi-
ção a “tradução”. Logo a seguir, Marcelo Diniz reflete sobre a relação da escrita
tradutora com a escrita tout court com base em sua própria tradução de dois sone-
tos do século XVI – Au lecteur, de Nicolas de Herberay, que o poeta Jacques Rou-
baud apresenta numa antologia como o primeiro soneto francês, e Au segneur des
Essars, N. de Herberay, em que o poeta Mellin de Saint-Gelais rende homenagem
ao poeta renascentista como o primeiro tradutor de Amadis de Gaule. Maria Elisa
Rodrigues, por sua vez, nos traz de volta ao século XX com a explicitação das re-
flexões sobre a tradução que se delineiam nos textos ficcionais de Jorge Luis Bor-
ges e Italo Calvino, no intuito de ponderar sobre seus desdobramentos no âmbi-
to da crítica e da teoria literária modernas. Já Claudia Faveri reconstitui as suces-
sivas traduções da obra de Guimarães Rosa na França desde 1961, buscando ava-
liar, com base na análise de algumas traduções, em que medida esse processo de
recepção a transforma. Marie Hélène Torres, por outro lado, reflete sobre a circu-
lação cada vez maior dos best-sellers internacionais, procurando entender critica-
mente o papel da tradução nesse crescimento.
Num ensaio que faz a ponte para o segundo grupo de textos, Maurício Men-
donça Cardozo parte da problematização da oposição entre cultura “primitiva” e
cultura “civilizada”, tal como apresentada por Alfred Döblin em sua trilogia sul-
americana Amazonas, para fundamentar um projeto de tradução dessa obra para o
português do Brasil. A seguir, Eduardo de Oliveira Batista mostra como os textos
produzidos por tradutores e viajantes desde o início da colonização do Brasil, bem
como sua releitura por etnógrafos e acadêmicos ao longo dos séculos XIX e XX,
contribuíram para a construção e a sedimentação de uma representação cultural
eurocêntrica e homogeneizante dos povos retratados, servindo antes de qualquer
outra coisa à sustentação de um discurso de dominação. Consuelo Alfaro, por sua
vez, discute, a partir da ação evangelizadora da administração colonial na Amé-
rica hispânica, as políticas de tradução explicitadas pelos Concílios e seus efeitos
na produção de gramáticas, dicionários bilíngues e propostas ortográficas para as
línguas gerais. José Ribamar Bessa Freire encerra a rubrica “Artigos” discutindo o
papel da tradução na circulação das narrativas orais das mais de 180 línguas in-
dígenas faladas no Brasil.
Na rubrica “Traduções”, apresentamos três textos inéditos em língua por-
tuguesa que constituem contribuições bastante diversas entre si. Primeiramente
o ensaio em que Antoine Berman, certamente um dos mais importantes teóricos
franceses da tradução no século XX, propõe a constituição da “tradutologia” co-
mo um domínio autônomo de reflexão crítica e teórica. Em seguida, a psicana-
lista brasileira radicada na França Angela Jesuino Ferretto parte de sua experiên-
cia de tradução da obra de Jacques Lacan para refletir sobre o bilinguismo do tra-
dutor e sua relação com a escrita e com a voz. Por último, Gleiton Lentz propõe
uma tradução do poema Os Sepulcros (Dei Sepolcri), de Ugo Foscolo, que publi-
camos em versão bilíngue.
Para concluir este amplo espectro de reflexões teóricas e práticas sobre a tra-
dução, publicamos ainda uma conferência e uma entrevista. Na primeira, apre-
sentada em francês, a ensaísta, professora e tradutora Inês Oseki-Depré expõe cri-
ticamente a composição de sua tradução brasileira do livro Quelque chose noir, do
poeta francês Jacques Roubaud. Na segunda, o escritor e tradutor francês Didier
Lamaison responde, entre outras, a questões sobre sua experiência como tradutor
do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Agradecemos aos que nos permitiram montar este volume que, esperamos,
contribuirá para estimular a interlocução neste campo de reflexão que, salvo as
honrosas exceções que confirmam a regra, começa agora a encontrar algum espa-
ço nas universidades brasileiras.

Os Editores
Artigos

alea
L’humeur versatile
je traduis “Frische Fahrt” de Eichendorff
Philippe Marty

1. (pros) Aujourd’hui, je décide que le vers (octosyllabe) “L’air


plus tiède arrive par bandes” est un vers-de-traduction, c’est-à-dire
un vers “tourné vers”. En disant “tourné vers”, je parle-en-version,
je verse: je pense à la préposition grecque “pros” que j’envisage com-
me une version (ou un original) possible du français “tourné-ver”.
J’ai décidé, donc, que “L’air plus tiède arrive par bandes” devenait
un vers “pros”. “Pros”, comme la plupart des prépositions (spéciale-
ment les prépositions grecques), a plus d’un sens. Mais il a un sens
premier sans doute, peut-être “tout près de”, peut-être “en face”.
L’un et l’autre sens convient pour décrire la façon dont une version
se tient par rapport à un (ou “son”) original: une version, particu-
lièrement une version interlinéaire, se tient ou se place “tout près
de” ou “tout contre” l’original; une traduction se place aussi (c’est
la disposition la plus courante) “en regard de” l’original, “en face”,
“vis-à-vis”, “gegenüber” dit l’allemand: à la fois “contre” (“gegen”)
et de l’autre côté (“über”). Sur la double page, lequel des deux tex-
tes regarde, surveille ou veille sur l’autre? Qui a l’œil sur qui? Le
“re” du français “regarder” enveloppe plusieurs mouvements à la
fois: mouvement en arrière, mouvement de répétition, mouvement
en retour, retournement, inversion, conversion, etc. Le même “re”
entre dans “respecter” qui est, en français, le verbe le plus fréquem-
ment et le plus spontanément employé dans le discours sur la tra-
duction: le traducteur “respecte” l’original, les rimes, etc. Pour “res-
pecter”, la même question se pose que pour “regarder”: qui respecte
qui? La traduction l’original? L’original la traduction? L’un l’autre
réciproquement? Quelle est la position que tient et le mouvement
que fait l’un par rapport à l’autre, dans le moment de la traduc-
tion? Est-ce qu’un seul ( le “texte d’arrivée”) bouge et change? Ce
sont quelques-unes des questions qui arrivent appelées par la pré-
position “pros”, et pour lesquelles “pros” ouvre un lieu.
2. (archê) J’ai dit plus haut que le “sens premier” de “pros”
était soit “vers”, soit “tout près”, soit “en face”, soit quelque chose
d’autre encore. Mais l’expression “sens premier” peut s’entendre de
plusieurs façons. Elle peut désigner le sens générique ou général

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 221-237 221


dont les autres sens sont des applications particulières; le sens qui
l’emporte sur les autres et fixe l’essence et les limites de la notion.
“Sens premier” peut vouloir dire aussi le sens archaïque, et “sens ar-
chaïque” s’entend à son tour de deux façons, d’après les deux sens
de “archê” en grec: soit le sens apparu et posé au commencement de
l’histoire du mot (le commencement encore imparfait, informe et
vague, de l’histoire du mot, que les sens suivants perfectionnent et
quelquefois relèguent et recouvrent). Soit au contraire le sens aigu
qui ne cesse pas de régir en tant que commencement jaillisant, ori-
gine, tous les autres sens envoyés par lui: “archê” au sens de ce qui
n’en finit jamais de “mouvoir ce qui se meut et faire changer ce qui
*
(ARISTOTE. Métaphysique,
∆, 1013 a 10; voir, sur archê,
change”, comme dit Aristote.* Si “archê” est présente et survenante
Aubenque, Pierre. Le pro- de cette façon-là, alors il y a naturellement quelque chose du sens
blème de l’être chez Aristo-
te. Paris: PUF, 1997 [1962]: premier de “pros” dans toutes les occurrences de la préposition, et
192-193.)
par exemple dans deux occurrences marquantes auxquelles je pense
en disant que “L’air plus tiède arrive par bandes” devient un vers-
pros. Premièrement, Aristote dit que l’être est un “pros hen legome-
non” (un “dit tourné vers l’un”); deuxièmement, le premier verset
de l’évangile de Jean dit que logos est “pros ton theon” (tourné vers
Dieu, auprès de Dieu). Dans l’une et l’autre occurrence, il est certai-
nement intéressant de chercher quelle position et quel mouvement
sont notés par “pros”(+ accusatif ). Dans le verset, la préposition ex-
prime la médiation conduisant à l’identité ou unité: logos est tour-
né vers Dieu, logos est Dieu. Dans la Métaphysique, “pros” marque
un point de vue sur la question “qu’est-ce que l’être?”: l’être est tel
que ses diverses versions se déploient ou surviennent auprès de ou
tourné vers lui-même ou vers l’un. L’hypothèse que je propose, et
à vrai dire l’expérience que je fais traduisant, est que, dans la rela-
tion de traduction, l’original se comporte par rapport aux versions
comme l’être se comporte par rapport aux modes ou aux catégo-
ries de l’être, ou comme l’être par rapport à l’étant.
3. (vert-) La relation décrite par “pros” est réciproque, ou mu-
tuelle. Elle l’est presque nécessairement si l’on considère l’effet ou
la fonction tautologisante de « pros « dans le verset I, 1 de Jean: x
est pros y revient à: x est y, x et y sont le même. Mais, aussi, le verbe
“être” (x est y) ne convient pas pour décrire la relation-pros, puis-
que l’effet de “pros” n’est pas du tout de faire être ou de fixer une
essence, mais au contraire de faire devenir: deux énoncés (l’un, x, à
partir duquel et l’autre, y, vers lequel se fait la traduction) devien-
nent “versions”, ou, simplement, “deviennent”. L’énoncé en langue

222 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


étrangère que le traducteur veut faire devenir dans une autre langue,
ne s’appelle “original” que par rapport au vœu du traducteur. Mais
en devenant “original” par rapport au vœu, il devient lui-même ver-
sion1 et quitte la place de “l’original”. Le nom de “version” appliqué
à l’opération et à la relation de traduction, n’embrasse donc pas le
même désigné que la dénomination “traduction”. “Traduction” dési-
gne l’opération, et le résultat (le texte dit “d’arrivée”). “Version” dé-
signe l’opération et les deux énoncés qu’elle met en rapport. C’est-
à-dire que la relation “x est y” ne veut plus dire: l’énoncé y est (égal,
équivalent, identique à) l’énoncé x, parce que l’opération de traduc-
tion a été menée à bien; “x est y”, considéré comme relation de ver-
sion, veut dire: x et y ensemble (l’un et l’autre s’appelant “versions”)
sont “tournés vers l’un”, “pros hen”. Tout “se met à tourner”2: tout
ce qui advient dans le moment de la version advient en “se tournant
vers”. Ce vers quoi tout l’advenant se tourne, c’est cela qui s’appelle
“original”. L’original se comporte et parle conformément à son éty-
mologie (“orior”: surgir): survenant, il fait advenir. Il est le principe
ou “archê” commençant et commandant la “gravitation”, le tour.
Si donc je demande de quoi (de quel vers) le vers “L’air plus tiède
arrive par bandes” est la version, la question maintenant se parta-
ge: d’une part, elle cherche l’énoncé (le vers), le x auprès et en ac-
compagnement duquel le vers y se met à tourner; d’autre part, elle
interroge sur le moteur ou “archê”, c’est-à-dire ce à partir ou en re-
gard de quoi le tour tourne, le point par lequel un monde de l’être
(les énoncés, textes, œuvres en tant qu’ils sont ce qu’ils sont et se
tiennent dans leurs limites et dans leur essence) passe dans un mon-
de du devenir (les œuvres s’éveillent versions).

1
“Devenir” et “verser” (“tourner”: “vertere») peuvent se concevoir comme expri-
mant un même acte, un seul phénomène; “werden” (“devenir” en allemand) sort
du même étymon que le latin “vertere”.
2
Le poème “Les amis inconnus” de Jules Supervielle (le premier du recueil por-
tant aussi ce titre) commence par le vers: “Il vous naît un poisson qui se met à
tourner”. Il exprime (ce poème) l’humeur versatile, ou versabile, où je suis en
tant que traducteur-verseur: c’est l’humeur dans laquelle toute naissance, dans
le monde, me concerne, m’intér-esse (la traduction est “l’intér-essant par excel-
lence”, dit Michel Deguy, dans “Traduire”. In: La raison poétique. Paris: Galilée,
2000: 115), où tout ce qui naît et advient, se tourne vers moi, et moi vers “il”.
Voir aussi le poème “Heure grave” (“Ernste Stunde”) de Rilke, dans Le livre des
images: “Qui va en cet instant quelque part dans le monde [...] va vers moi, etc.”.
C’est l’ambiance d’un “pros” universel, ou encore l’épreuve de la “versabilité in-
finie” dont parle Novalis, cité par Antoine Berman (L’épreuve de l’étranger. Paris:
Gallimard, 1984: 31 et 125).

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 223


4. (est / et) Dans la relation de version associant x et y, aucun
des deux n’est l’original. Il n’y a pas: x d’abord et seul en scène,
ensuite y venant traduire x ou venant le “relever”. Il y a d’un seul
coup quelque chose qui pourrait être appelé “mot-valise” (l’anglais
dit: “portmanteau word”). Il n’y a pas, par exemple, d’abord “phu-
sis” (grec), ensuite “natura” (latin) cherchant à traduire (à attirer
vers soi) le premier. Dans cette conception chronologique, le pre-
mier venu dans l’histoire (en l’occurrence “phusis”, dont “natura”
est le calque) est soit hypostasié et soustrait à l’effort de traduction
(“phusis” est “phusis”, et rien d’autre), soit au contraire oblitéré:
puisque “natura” est “phusis”, disons désormais (dans une époque
de l’histoire du monde où le latin l’emporte) “natura”, et ensuite:
“nature” (français, anglais), “Natur” (allemand), “natureza” (portu-
gais), etc., de sorte que “phusis”, remplacé par “natura”, n’est plus
du tout agissant comme archê dans une époque de l’histoire où
le grec a perdu la suprématie. Cette conception peut être appelée
aussi “hegelienne”: le nom par lequel un concept est nommé dans
une langue et dans une époque, est relevé à l’époque suivante dans
une autre langue, et “natura est phusis” se comprend comme “na-
tura relève (relègue, annule et sauve) phusis”. Une autre conception
consiste à considérer que l’histoire ne produit pas du “est” (ce qui
fut “phusis” est passé dans, est, “natura”, et aujourd’hui sans doute
dans l’anglais “nature”),3 mais du “et”: et “natura” et “phusis” et en-
core d’autres mots (par exemple: “règne”)4 ensemble annoncent et
répètent quelque chose qui n’est ni présent, ni passé, ni à venir, mais
qui est précisément “pros”, c’est-à-dire qui est l’archê se tournant et
se détournant et envoyant, en tant qu’original, des versions d’elle-
même ad libitum. Il y a la traduction du côté du “est”, et la version
du côté du “et”, il y a dans l’opération de traduction ou version la
lutte que Deleuze repère dans le langage entre est et et:
Ces deux termes ne s’entendent et ne se combinent qu’en apparen-
ce, parce que l’un agit dans le langage comme une constante et for-
me l’échelle diatonique de la langue, tandis que l’autre met tout en
variation, constituant les lignes d’un chromatisme généralisé. De
l’un à l’autre, tout bascule.
3
Voir la revue de langue anglaise mondialement diffusée Nature.
4
C’est la version proposée (à l’écoute de Heidegger) par Bernard Sichère dans
sa retraduction de la Métaphysique d’Aristote (Métaphysique, Livres A à E. Pa-
ris: Pocket, 2007.); sans doute contestera-t-on cette nouvelle version, mais, du
moins, elle produit l’effet de relancer le tour, de faire faire en français un tour de
plus à “phusis”, au lieu de l’arrêter et de le fixer dans “nature”; elle rouvre, donc,
l’espace de jeu du “et”.

224 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


5. (quilibet et genius et fois) Je cherche donc le vers-et, le x,
“l’ami inconnu” associé auquel le vers “L’air plus tiède arrive par
bandes” fait mot-valise, fait la paire ou rime que fend sans relâche
le “est” ou original. “L’air plus tiède arrive par bandes”, ce vers par-
le de l’arrivée du printemps. Il parle des signes par lesquels elle se
fait sentir à toutes choses; à toutes choses, c’est-à-dire aussi aux cho-
ses qui annoncent ou répètent cette arrivée, qui la sont, par exem-
ple les brises plus tièdes, le zéphyr ou “Favonius” de quelques Odes
d’Horace (I, 4; IV, 7; IV 12), ou du sonnet n° 310 du Canzonie-
re de Pétrarque, et de beaucoup de poèmes en toutes langues. Ce-
pendant, ce n’est pas du latin ni de l’italien que je traduis, mais de
l’allemand. L’odelette de Mörike “Er ists” dit: “Frühling läßt sein
blaues Band / wieder flattern durch die Lüfte”. Dans ces deux vers,
il y a “les brises” (“die Lüfte”), il y a “Band” (“ruban”, ou, homo-
phoniquement, “bande”), il y a l’arrivée du printemps. Les deux
vers de Mörike sont-ils le x que je cherche? Je les traduis plutôt en
disant: “Déjà le printemps ruban bleu / dans l’air flotte”; mais pour-
quoi le vers-version “L’air plus tiède arrive par bandes” ne s’associe-
rait-il pas à plusieurs x? Il s’éveille version, cela veut dire: il se met
à tourner en vue de cela qui fonde le tour, l’archê. L’archê ne peut
pas être un autre vers particulier, mais c’est cela vers quoi se tour-
nent les étants à l’instant où ils adviennent. Le vers-version prend
en vue ou comprend en naissant ce vers-ci, et cet autre, et cet autre
encore etc. Il tourne avec ces autres, mais au regard de ce qui fait
tourner le tour, au regard du Devenir lui-même, tous ces vers en-
trant dans le tour sont des vers quelconques, des “quilibet”. La co-
munità que viene de Giorgio Agamben commence par la phrase:
(Agamben, Giorgio. La co-
“L’essere che viene è l’essere qualunque”,* “l’être qui vient est l’être
*

munità che viene, Bollati Bo-


quelconque”. Si le vers-version survient au regard de et appelé par ringhieri, Torino, 2001, p. 9.)

l’archê (l’original, l’être), il se présente comme “ce quelconque”


(“tode ti”)5 au milieu d’autres quelconques survenant tous afin
d’annoncer et de répéter ce au regard de quoi il sont tous quelcon-
ques et égaux. “Quelconque” ne veut pas dire: compris dans un
5
Le “tode ti”, d’Aristote, par exemple dans Catégories, 3b: “En ce qui concer-
ne les substances premières [par exemple: l’homme individuel, le cheval indivi-
duel], il est incontestablement vrai qu’elles signifient un être déterminé [tode ti],
car la chose exprimée est un individu et une unité numérique” (trad. de J. Tri-
cot, Vrin, 1994); Frédérique Ildefonse et Jean Lallot disent (Points Seuil, 2002)
“un ceci”. “Tode” (“hode”) est le démonstratif correspondant au latin “hic”; “ti”
est un pronom indéfini (“quelque chose”, “quid”). La version est ainsi au regard
de l’original quelconque et singulière, elle ne se montre, ici et proche (“tode”),
que pour montrer l’original.

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 225


genre et équivalents à tous les éléments de ce genre. Regarder un
vers comme vers-version, c’est au contraire le considérer dans sa
singularité insubstituable, dans son “plus propre” et dans son “ge-
nius”, si le “genius” est défini comme le lieu “où le plus propre est
le plus étranger et impersonnel, le plus voisin le plus éloigné et le
(Agamben, Giorgio, Ge-
plus inappropriable”.* À partir de son lieu tout à la fois quelcon-
*

nius, nottetempo, 2004: 10.)


que et “génial”, le vers-version prend en vue l’original en tant qu’il
est l’un, c’est-à-dire en tant qu’il rassemble et fait survenir tous les
vers en un seul. En se présentant comme version, le vers y (“L’air
plus tiède arrive par bandes”) cherche à atteindre dans x (x étant le
vers auquel il s’associe pour faire “vers-valise”) le lieu originel ou
“genius” à partir duquel et tourné vers lequel x, y et tous les autres
surviennent comme vers quelconques. Traduire au sens de la ver-
sion, ce n’est pas traduire tel énoncé (tel vers, par exemple), mais
chercher à répéter la fois,6 le tour ou l’original en tant qu’il est le
vers des vers, c’est-à-dire le vers auprès (“pros”) duquel les autres se
disent. Le vers-version répète ou célèbre l’original en faisant surve-
nir avec lui-même toujours plus de versions, c’est-à-dire en se pré-
sentant comme concomitant du plus grand nombre de vers pos-
sibles (d’Horace, Pétrarque, Mörike, etc.) et en désignant de cette
façon toujours plus exactement l’original comme le lieu où s’ori-
gine le tour. Et réciproquement, plus l’original est original, plus il
appelle à sa place des versions diverses; il se reconnaît à ceci qu’il
se retire à chaque tour de la place de l’un, mandant à sa place tou-
jours quelque autre version, et que, comme la nature, “il aime se
cacher”; la version est le moyen par lequel l’original devient tou-
jours plus l’original.
6. (synesthésie) Chercher “l’original” de y, c’est donc chercher,
parmi les x appelés à la fête des versions (la fête célébrant l’original),
l’invité le plus proche, c’est-à-dire la plus proche version à l’ins-
tant de la survenue de y. “Laue Luft kommt blau geflossen” est le
premier vers du poème “Frische Fahrt” de Eichendorff. Je décide
que c’est vers lui que se tourne, en survenant, “L’air plus tiède arri-
ve par bandes”, et que les deux vers, le français et l’allemand, sont
concomitants, c’est-à-dire qu’ils vont ensemble s’accompagnant l’un
l’autre. La concomitance indique que x ne précède pas y (l’allemand
le français), mais que d’emblée ils font mot-valise, rime, c’est-à-di-

6
“ Volta”, “vez”, “fois”: en italien, portugais, espagnol, français, l’idée de la “fois”,
c’est-à-dire du mouvement de temps par lequel quelque chose agit entéléchique-
ment et cède la place, se dit par le “tour”.

226 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


re une unité césurée. Le même phénomène de concomitance cé-
surée se montre dans l’expression “alter ego” et plus encore peut-
être dans la formulation grecque “heteros autos”; Agamben, dans
L’amitié, lisant et traduisant un passage du livre IX de l’Éthique à
Nicomaque d’Aristote, et en particulier l’expression “heteros autos”
(Nic. 1170 b) comparée à “alter ego”, écrit ceci:
le latin ego ne correspond pas exactement à autos, qui signifie “soi-
même”. L’ami n’est pas un autre moi, mais une altérité immanente
dans la mêmeté, un devenir autre du même. Au point où je perçois
mon existence comme douce, ma sensation est traversée par un con-
* (Agamben, Giorgio.
sentir qui la disloque et la déporte vers l’ami, vers l’autre même.* L’amitié. Trad. de l’italien par
Martin Rueff. Paris: Rivages
Ce qui, dans la citation ci-dessus, s’appelle “con-sentir” dans la poche, 2007: 34-35.)

traduction de l’italien d’Agamben, correspond au “sunaisthanomai”


d’Aristote, au “sentir-avec”, “sentir-partagé”; à l’instant de la sensa-
tion douce de se partager, les deux vers amis (l’allemand et le fran-
çais) vivent ensemble (“suzên”, Nic. 1170 b), partageant un même,
ne partageant rien d’autre que le “sun-”. L’amitié, dit Agamben,
est le partage qui précède tout autre partage, parce que ce qu’elle
(Ibidem: 40.)
départage est le fait même d’exister, la vie même.*
*

C’est de ce partage, qui n’est pas le partage de quelque chose,


que vit la relation de version. “Alter” et “ego”, x et y, tournés l’un
vers l’autre, constituent en tant que paire ou que “centaure”, un seul
signe concomitant tourné vers la césure (l’original) les départageant
et les constituant en deux “natures” distinctes, comme les centaures
sont dits aussi “de nature double” (“diphuês”). Le redoublement de
“cum” qui se remarque dans le verbe concomitor (cum-cum-ire)
convient à décrire la relation de version: x et y, en effet, accompa-
gnent l’accompagnant; ils vont à deux comme les deux disciples sur
la route d’Emmaüs, mais leur “comitance” ne trouve son sens que
par la survenue entre eux d’un troisième (Luc, 24, 15 et suivants).
À l’instant même où, le reconnaissant, ils sont capables de l’appeler
par son nom, le tiers (le Christ) devient invisible. Cet instant de la
reconnaissance et du partage (les disciples sont ou deviennent des
chrétiens, c’est-à-dire s’appellent du nom du tiers), c’est toujours
l’instant 0 de la version, où le tour commence. Les versions, alter
et ego, partagent l’original en tant qu’il est un nom.
7. (vix et acteur et hamartia) Quel est le nom propre que par-
tagent le premier vers de “Frische Fahrt” de Eichendorff, et la ver-
sion française qui me vient? Qu’est-ce qui césure la rencontre? Est-

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 227


ce “lau” (“tiède”)? “kommen” (“venir”)? “fließen” (“couler”)? “fa-
hren” (“aller”, dans le titre), “Frühling” (“printemps”, dans le vers
suivant), etc.? Mais si c’était un seul nom que x et y partageaient,
ce serait l’économie de l’équivalence, de l’échange et de la généra-
lité, et le partage ne serait pas gracieux comme dans l’amitié. C’est
toujours au contraire une série (par exemple la série de mots que je
viens d’énumérer) et un tour, et le nom recherché est toujours une
variable qui s’appelle, de tour en tour, d’une nom chaque fois dif-
férent. Le poème x (dit “de départ” dans la relation de traduction,
que j’oppose à celle de version) ne devrait pas s’appeler “version”, s’il
ne se conduisait pas, en lui-même, selon le point de vue de la ver-
sion, s’il ne tournait pas lui-même en vue et auprès de l’archê mo-
bilisante. Dans le poème même (x), tout s’appelle du nom recher-
ché, ou, réciproquement: la variable hantant le poème prend tour
à tour tous les noms (adjectifs, verbes, pronoms, etc.) sur la ligne
desquels le poème se déplie. Le nom propre (variable, archê, origi-
nal) est le tour (“vix”) relevant à chaque fois les vicissitudes (c’est-
à-dire le sens se déployant de moment en moment, syntaxique-
ment, rythmiquement, etc.) du poème. Le nom propre ou varia-
ble n’accomplit aucun autre acte dans le poème que l’acte de céder
la place,7 de “vicarier”, et le poème n’est à son tour que l’arrange-
ment en série des vicaires du nom propre, chacun se faisant prendre
à son tour pour le nom original ou “puissance invitante”, avant de
s’avérer tout de suite invité au lieu d’hôte invitant. Ce n’est pas un
système hiérarchique. Ce n’est pas l’enveloppement de particuliers
au sein d’espèces, ou d’espèces au sein de genres. C’est plutôt une
répartition anarchique ou “nomadique”, pareille à la distribution
de “l’être univoque”; c’est, selon les termes de Deleuze,
une distribution d’errance et même de “délire”, où les choses se dé-
ploient sur toute l’étendue d’un Être univoque et non partagé. Ce
n’est pas l’être qui se partage d’après les exigences de la représenta-
tion, mais toutes choses qui se répartissent en lui dans l’univocité
(DELEUZE, Gilles. Différen-
de la simple présence (l’Un-Tout).*
*

ce et répétition. Paris: PUF,


2000: 54.)
Le poème tournant dans l’univocité du tour se relève sauf, “in-
tact”; il peut dire “j’avais cessé de me sentir médiocre, contingent,
mortel”, comme écrit Proust décrivant la joie liée au goût de la Pe-
tite Madeleine trempée. La version, c’est-à-dire la joie de l’un, a
7
La fois ou archê du poème se décrit comme la “place toujours cédée”; le mot la-
tin “vix” (inusité au nominatif, cf. “vice versa”) signifie d’abord la “place”, il est
apparenté à l’allemand “weichen”, “céder”, “se retirer”.

228 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


toujours déjà commencé à même le poème x. D’ailleurs, il ne pour-
rait devenir l’hôte d’aucune version (y) s’il ne se déployait lui-mê-
me en tant que tour et devenir. La version (y), maintenant, ne fait
que doubler, mimer ou jouer le tour, ou la tournure prise déjà par
x. Elle “est” x, au sens où l’acteur est le personnage (où Laurence
Olivier est Hamlet). Hamlet, à son tour, qu’est-il? Que veut-il et
que désigne-t-il? Acteur et “personnage” désignent le “même”. Ils
sont l’un et l’autre acteurs de l’événement, de la fois. Le vers “L’air
plus tiède arrive par bandes” désigne l’original, le tour lui-même.
Voulant désigner l’original, il touche nécessairement à côté, puis-
que l’original n’est rien d’autre que la place sans relâche vidée et
cédée. Voulant désigner à l’instant même l’original, je désigne la
version la plus proche à cet instant. Ma version n’est pas équiva-
lente (par exemple, “par bandes” n’est pas “geflossen”). Mais l’écart
(au regard de x) court la chance d’être relevé au regard de l’origi-
nal lui-même. La visée errante, le péché8 d’infidélité, s’interprètent
éventuellement comme envoyés et voulus par le lieu lui-même, ou
tour, ou point, d’où le poème sort.
8. (Ort et éthique) Voici les deux premiers vers de “Frische
Fahrt”:
Laue Luft kommt blau geflossen
Frühling, Frühling soll es sein!

Voici la traduction que je présente:

l’air plus tiède arrive par bandes


le printemps me rencontre-t-il

J’ai indiqué plus haut (§ 5) que le premier vers de ma ver-


sion se détournait certainement du seul vers de Eichendorff afin de
se tourner aussi vers le vers de Mörike “Frühling läßt sein blaues
Band”, c’est-à-dire qu’il voulait appeler et convertir plus d’un vers
en un, et, par ce tour, visait à faire venir le poème lui-même (“Fris-
che Fahrt”) comme le poème du devenir, le tour lui-même: c’est
l’ambition de toute version de se tourner vers le poème étranger
de façon critique, c’est-à-dire de telle sorte qu’il entrerait en pré-
sence comme le poème des poèmes, l’un-tout et le quelconque. Le
deuxième vers, “le printemps me rencontre-t-il”, se tourne peut-
être à son tour vers quelque chose d’Apollinaire, peut-être le pre-

8
“Peccatum” (“péché”) de la Vulgate est la traduction du grec “hamartia”, issu du
verbe “hamartanô”, “manquer le but”.

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 229


mier poème de Vitam impendere amori (“Te souviens-tu de sa ren-
contre [...] / Encore un printemps de passé”) peut-être l’aubade de
“La chanson du mal-aimé”. La version a pris la parole et emporté
l’autre poème dans son tour, sans pourtant présenter rien d’équi-
valent à ce que l’autre présente. Les deux vers allemands (et tout le
poème) sont des tétramètres trochaïques. Ponctués d’allitérations
et d’assonances (Lau-luft-blau-floss, omm-oss; f-f; s-s), ils appar-
tiennent à un type fréquent chez Eichendorff: le type du “Stabrei-
mvers”, le vers allitérant de la poésie germanique originelle. Le
traducteur-verseur n’estime pas que la valeur (“Wert”) du poème
tient à ces traits (allitérations, etc.) et qu’il devrait miser sur des
“trouvailles”9 (par exemple des allitérations équivalentes) comme
étant la seule monnaie d’échange lui donnant le droit d’emporter
ou d’empocher le poème à traduire. Les deux premiers vers fran-
çais sont mus au contraire par une sorte de travail d’aversion, éloi-
gnant d’emblée y de x, comme si le travail de version devait consis-
ter ensuite à combler l’écart, à rentrer vers x quitté dès l’abord et
à “demander pardon” à ce qui a été trahi. Mais c’est une sorte de
fidélité aussi qui commande de s’écarter. Il y a un poème de Höl-
derlin (l’hymne “Die Wanderung”, “La migration”) dont le thème
est cette infidélité-fidélité, ce mouvement d’aversion, de migra-
tion lointaine et de retour. Dans ce poème, le poète est “enfant de
la Souabe”, et la Souabe est dans la position du poème-à-traduire;
chacun de ses traits est aimable et “nulle part il ne fait meilleur vi-
vre” (et dans l’ensemble, elle est comparable à la Lombardie voi-
sine). Mais son trait le plus remarquable est sa fidélité à l’origine
(“Ursprung”) ou encore “lieu” (“Ort”):
c’est pourquoi
t’est innée la fidélité. Difficilement quitte
ce qui près de l’origine [Ursprung] habite, le lieu [Ort].

Dans le dernier vers cité, “Ort” à la fin du vers, au “bout”


(“bout”, “pointe” sont les sens premiers de l’allemand “Ort”), arri-
ve comme version de “Ursprung”, ou inversement. La même cho-
se (peut-être la même) s’appelle tour à tour de deux noms. La lan-
gue se déplace et change auprès de l’un, “pros hen”. Deux noms

9
Il y a une étude à consacrer à la notion de “trouvaille” et à la question de sa-
voir pourquoi elle est limitée apparemment à la description du travail du tra-
ducteur (peut-être Valéry parle-t-il de “trouvaille” à propos de l’élaboration d’un
poème); sur la “trouvaille”, voir Marc de Launay (Qu’est-ce que traduire. Paris:
VRIN, 2006, p. 50).

230 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


se cèdent le place, le tour. Le second pourrait être rendu par “le
point”. La Souabe n’est pas d’abord aimable pour ses splendeurs
(arbres, rivières, villes), mais par le point auprès duquel elles tour-
nent. Considérée comme poème, la Souabe se constitue avant tout
comme fidélité à “Ort”, comme contrée où tour à tour chacun des
arbres, chacune des villes, etc. se tourne vers le seul “lieu” et la seule
“fois”. Le poète de la Souabe (Hölderlin) est le traducteur, c’est-à-
dire le “verseur”, de son pays natal. Verser et chérir le pays natal ne
veut pas dire en observer et en reproduire les traits adorables. Cela
veut dire au contraire s’en détourner, ne pas le voir:
Mais moi je veux me tourner vers le Caucase!

(premier vers de la troisième strophe du poème). L’origine


exige l’aversion ou infidélité. L’infidélité du poète-verseur (voya-
geur) répond à la fidélité du poème à traduire (la Souabe), dans la
mesure où la fidélité de la Souabe était tout entière tournée vers le
point (“Ort”). Ce n’est pas une fidélité visant à reproduire “trait
pour trait”, c’est une fidélité au nom, “Ort”, pour autant qu’il ne
désigne rien que de l’invisible quelconque et ne fait rien d’autre
dans le poème (dans la contrée) que céder sans relâche la place à
ses avatars ou vicaires. C’est une position éthique au sens ou Em-
manuel Levinas dit que
l’accès au visage est d’emblée éthique. C’est lorsque vous voyez un
nez, des yeux, un front, un menton, et que vous pouvez les décrire,
que vous vous tournez vers autrui comme vers un objet. La meilleu-
re manière de rencontrer autrui, c’est de ne pas même remarquer
la couleur de ses yeux! Quand on observe la couleur des yeux, on
n’est pas en relation sociale avec autrui. La relation avec le visage
peut certes être dominée par la perception, mais ce qui est spécifi-
quement visage, c’est ce qui ne s’y réduit pas.* *
(Levinas, Emmanuel. Éthi-
que et infini. Paris: Livre de
Poche, 1988: 79-80.)
9. (forma, version interlinéaire, dire) Ce qui ne se réduit pas à
la perception, c’est “Ort” dont le nom désigne l’imperceptible mê-
me, et la meilleure manière d’être tourné vers le visage de la Souabe
est de le rencontrer dans et par “Ort”. Accès éthique: il faudrait ne
pas même remarquer les allitérations et autres phénomènes remar-
quables (“vains ornements”) dans les deux premiers vers de “Frische
Fahrt”. Ce n’est pas de l’admiration fascinée pour la forme percep-
tible (“forma”) de x que sort le désir de version. L’humeur versatile
s’intéresse à x en tant qu’il se tourne et change, et non pas en tant
qu’il se tient et pose; x, en tant qu’il est apte-à-verser et lui-même
versatile, ne se montre que montrant le point, “Ort”. L’attention

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 231


et la fidélité versatiles vont à ce qui est tourné vers soi-même seu-
lement en tant que point, et à ce qui, en tant que texte-à-verser,
se tourne sans relâche vers autre que lui-même, comme la Souabe
vers “Ort”. D’un côté comme de l’autre, x ne se présente donc pas
paré de beautés, mais dans une “pauvreté essentielle”, comme dit
Levinas à propos de l’exposition du visage d’autrui et de son dé-
*
(Ibidem: 80.)
nuement.* La présentation bilingue sur la double page où le poème
étranger prend la pose sur la page de gauche est trompeuse, de ce
point de vue: soit elle exprime que l’original est irrémédiablement
premier et inaccessible et ne pourra plus jamais, en tant que com-
mencement, être renversé, versé; soit elle indique au contraire que
x et y placés en vis-à-vis se rangent dans un Même et sous un seul
genre, intégration à partir de laquelle il est devenu possible juste-
ment de faire passer x dans y, c’est-à-dire d’élaborer un équivalent.
Le vis-à-vis bilingue rapporte donc éventuellement comment x a
été pris en vue, puis pris et déduit: tra-duit. Au contraire, la dis-
position interlinéaire – ce discours myope où le texte étranger est
rapproché au point que plus rien de cohérent et de formel n’est
vu de lui – interdit la prise et la compréhension de x et de y dans
un même genre (interdit la “totalisation”). La version interlinéaire
s’aventure donc comme réponse immédiate apportée d’un coup au
texte-à-verser, comme le “dire” précédant le “dit”:
le dire, c’est le fait que devant le visage je ne reste pas simplement
là à le contempler, je lui réponds. Le dire est une manière de saluer
autrui, mais saluer autrui, c’est déjà répondre de lui. Il est difficile
*
(Ibidem: 82.)
de se taire en présence de quelqu’un [...]*

L’humeur versatile, dans la mesure où elle advient comme


l’autre de l’émulation concurrente et équivalente, advient dans
le “dire originel ou pré-originel – le propos de l’avant-propos” et
*
(Levinas, Emmanuel. Au-
trement qu’être ou au-delà
“noue une intrigue de responsabilité”.* De même que l’analyse du
de l’essence. Paris: Livre de poème de départ précède la traduction à visée d’équivalence, de
poche, 1996 [1978]: 17.)
même la version interlinéaire arrive comme une préface ouvrant
le lieu de la version et annonçant la vacance du tour; version, ou:
autrement qu’être, être comme fois, détour et avent. Voici “Frische
Fahrt” accompagné d’une version interlinéaire:
Frische Fahrt
fraîche (vive, neuve) excursion

Laue Luft kommt blau geflossen,


tiède air vient bleu coulant (par vagues)

232 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Frühling, Frühling soll es sein!
printemps printemps doit (dit-on) cela être
Waldwärts Hörnerklang geschossen,
vers-forêt son-des-cors tiré
Mut’ger Augen lichter Schein;
(de) courageux yeux (le) clair éclat
und das Wirren bunt und bunter
et le fouillis désordonné-multicolore et plus désordonné-multicolore
Wird ein magisch wilder Fluß
devient un magiquement sauvage fleuve
In die schöne Welt hinunter
dans le beau monde vers-le-bas
Lockt dich dieses Stromes Gruß.
attire t’ de-ce fleuve (courant) le-salut

Und ich mag mich nicht bewahren!


Et je peux (pourrais) moi ne pas prouver-ma-valeur
Weit von euch treibt mich der Wind
Loin de vous entraîne moi le vent
Auf dem Strome will ich fahren,
Sur le fleuve veux moi voyager
Von dem Glanze selig blind!
De l’ éclat bienheureusement aveugle
Tausend Stimmen lockend schlagen,
mille voix attirant éclatent
Hoch Aurora flammend weht,
haut Aurore flamboyant souffle
Fahre zu! ich mag nicht fragen,
Va encore je veux ne-pas demander
Wo die Fahrt zu Ende geht!
où le voyage à (la) fin va

10. (métamorphoses, etc.) Comme “Er ists” de Mörike, “Frische


Fahrt” parle (comme beaucoup d’autres poèmes de Eichendorff ) de
la venue du printemps dans une ambiance d’incrédulité (joyeuse ou
triste); il y a toujours doute sur la survenue du printemps, du “pri-
me time”, de la première fois, de la “fois pour toutes”. Avec (“pros”)
le printemps, tout advient, devient: “kommt blau geflossen” (v. 1);
l’azur lui-même et les brises bleues sont montrés comme “ce qui
vient azurant”. Le premier vers contient (comme tout poème sur
la venue du printemps peut-être) une espèce de “jam” (déjà, à nou-
veau, bientôt, déjà plus). L’adverbe latin “jam” est une espèce de dé-
monstratif montrant le temps, c’est-à-dire la fois, et donc montrant
toujours nécessairement à côté et se trompant, montrant la place
toujours déjà vidée où advient et devient un avatar de la “fois”. Le
printemps venant sur le mode de “jam” (peut-être est-il déjà parti,

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 233


ou encore arrivant), tout dans le monde se met à tourner-devenir:
versabilité universelle. Eichendorff a un verbe pour exprimer cela,
son verbe-clef (absent de “Frische Fahrt”): “wandern” (itératif de
“winden”, “tourner”, “tresser”, cf. l’anglais “wander”), “se mettre en
route et marcher”. Dans “Frische Fahrt”, le voyager se dit par “fa-
hren” (voyager en bateau, voiture, etc.), parce que c’est la descen-
te d’un fleuve dont il s’agit; cela tient aux circonstances romanes-
ques dans lesquelles le poème intervient (le poème est chanté par
un personnage du roman Ahnung und Gegenwart, Pressentiment et
présent, livre II, chap. 12). Mais au regard de la circonstance poéti-
que, “fahren” se présente ici comme un avatar ou un lieutenant de
“wandern”, et “wandern” lui-même comme la version interlinéaire
ou la contrepartie d’un autre verbe allemand, “wandeln”, qui peut
servir à exprimer la venue et la marche des dieux sur terre, et qui
veut dire aussi “changer”. “Wandern” désigne une espèce d’“acte-va-
lise” par lequel les hommes se changeant universellement en voya-
geurs correspondent à la venue sur terre des dieux, c’est-à-dire à la
survenue du printemps, c’est-à-dire de la fois, ou du temps mani-
feste. Cherchant à traduire (verser) “wandern” qu’on trouve tout
le temps dans les poèmes de Eichendorff, je dis en français: voya-
ger et vagabonder et randonner et errer et marcher et aller et arri-
ver et se produire et vaguer et être envoyé et commencer et tourner
et devenir etc. Ce n’est pas du tout que l’équivalent diffère selon le
contexte. C’est bien plutôt qu’à chaque fois le “verseur” veut tour-
ner d’un coup “wandern” comme une seule fois, tous les événe-
ments-wandern comme un seul événement. C’est ce désir tourné
vers l’un qui reçoit à chaque coup sa punition-récompense dans
un nouvel avatar, un nouveau tour, donné et joué, et entrant dans
la ronde10 – une nouvelle métamorphose, en entendant “métamor-
phose” comme Michel Deguy:
par la traduction, une chose (en l’occurrence une “œuvre” sous les
espèces d’un “texte”) peut devenir; devient indéfiniment n’importe
quoi d’autre en ne cessant pas d’être “la même”, liée à son origine
*
(Deguy, Michel. “Tradui-
re”. op. cit.: 115)
fictive, ou “original”.*

11. (tourner, délabrer) Ma version française commence par


deux octosyllabes, et lance ou fait attendre un système de rimes al-
ternativement féminines et masculines. Mais le système se détra-
10
Comme tous les dieux (comme Dionysos en particulier), “wandern” reçoit tous
les noms et du moins plusieurs noms, et le “nom véritable” est l’archê ou le tour
envoyant tous les autres.

234 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


que dès le v. 4, heptasyllabe et non-masculin. Ce qu’il y a à faire
ne relève pas du système. Ce que le “tourneur” a sur les bras, à cha-
que moment, c’est la tâche de se tourner vers le point. La version
mutile son propre visage, mais elle doit être encore assez visage et
forme pour désigner ce qui est à désigner (le visage ne se fait voir
que pour faire voir autre que lui-même), et sa poétique est pour
cette raison souvent voisine de la poétique “délabrée” de la chan-
son, où la rime devient assonance et où le mètre pèche par excès
ou par défaut. Voici ma version de “Frische Fahrt”, déjà se tour-
nant et défaisant:
Départ

l’air plus tiède arrive par bandes


le printemps me rencontre-t-il
des bois partent des cors de chasse
l’ardeur dans les yeux pétille
et toujours plus le clair tumulte
par vague magique sauvage
le monde est beau descends
ce fleuve de la vie t’appelle

et qui ne voudrait s’éprouver


loin de vous le vent m’entraîne
je veux descendre le fleuve
un rayon pur bonheur m’aveugle
mille voix séductrices claquent
de flamme est le vent
et voyage je ne demande pas
où tu vas

Philippe Marty
Agrégé de alemão, é professor de literatura geral e comparada da
Universidade de Nice Sophia Antipolis (France). Sua tese de dou-
torado teve por tema a tradução de poesia e sua tese de habilitação
foi publicada (Le poème et le phénomène. Lectures de noms propres.
Éditions Le Manuscrit, 2007). Tem diversos artigos sobre poesia,
tradução e a relação entre filosofia e poesia, em torno de autores co-
mo Sófocles, Petrarca, Valéry, Rilke, Bobrowski. É ainda tradutor
de Hölderlin, Friedrich Schlegel e de Eichendorff (no prelo), pe-
la editora Grèges (Montpellier, França), e de Georg Simmel, pela
Maison des Sciences de l’Homme, Paris.

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 235


Resumo
Palavras-chave: archê; ver- Neste ensaio, a palavra “tradução” cede aos poucos seu lugar à pa-
são; verter; vertibilidade;
original; ética; devir. lavra “versão”. A grande diferença entre elas é que a palavra “tradu-
ção” só pode servir para designar o que se diz na chegada, na lín-
gua em que se traduz; ao passo que a palavra “versão” pode expres-
sar ao mesmo tempo o original em língua estrangeira e o que dele
decorre na língua do tradutor. Pois o original é descrito aqui como
o que, a cada vez, a cada esforço feito para atingi-lo e encontrá-lo,
cede lugar, retira-se, e indica sempre o que concerne simultanea-
mente ao texto de partida e ao texto de chegada e que é a fonte e o
fim de toda tradução, ou versão. No mundo da versão, tudo “co-
meça a girar”, como diz um verso de Jules Supervielle. É deste “hu-
mor versátil” que este estudo quer fazer a descrição, passando por
Aristóteles, Deleuze, Levinas e Agamben, tomando como exem-
plo um poema de Eichendorff e, mais precisamente, o primeiro
verso do poema sobre o retorno da primavera. Animado, porém,
pelo humor versátil, o tradutor deseja traduzir em um só verso to-
dos os versos do mundo.

Abstract Résumé
Key words: archê; version,
translation; translatability; In this essay the word “transla- Dans cette étude, le mot “tra-
original; ethics; becoming. tion” is gradually replaced by duction” cède la place peu à peu
Mots-clés: archê; version;
verser; versabilité; original;
“version”. The great difference au mot “version”. La grande dif-
éthique; devenir. between them is that “transla- férence entre les deux est que le
tion” can only function to des- mot “traduction” ne peut servir
ignate what is meant in the tar- qu’à désigner ce qui se dit à l’ar-
get language one is translating rivée, dans la langue où l’on tra-
into, whereas “version” may ex- duit; alors que le mot “version”
press both the original in the peut exprimer d’un coup et
foreign language and the end l’original en langue étrangère et
result in the translator’s native ce qui découle de lui dans la lan-
tongue. For the original is here gue du traducteur. Car l’origi-
described as that which, at each nal est décrit ici comme ce qui,
attempt to reach it, to find it, à chaque fois, à chaque effort
withdraws, becomes vacant, and fait pour l’atteindre et le ren-
always indicates what concerns contrer, cède la place, se retire et
simultaneously the original text indique toujours ce qui regarde
and the final one, and which is à la fois le texte de départ et le
the source and end of any trans- texte d’arrivée et qui est la sour-
lation or version. In the world ce et la fin de toute traduction,

236 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


of versions, everything “starts to ou version. Dans le monde de
rotate”, as in a verse of Jules Su- la version, tout “se met à tour-
pervielle. It is this “versatile hu- ner”, comme il est dit dans un
mor” that this study intends to vers de Jules Supervielle. C’est
describe, dealing with Aristotle, cette “humeur versatile” dont
Deleuze, Levinas and Agamben, cette étude veut faire la des-
taking a poem of Eichendorff as cription, passant par Aristote,
example, more precisely its first Deleuze, Levinas et Agamben,
line about the return of spring. l’exemple pris étant un poème
Animated, however, by versa- de Eichendorff, et plus précisé-
tile humor, the translator wishes ment le premier vers de ce poè-
to translate all the verses of the me sur le retour du printemps.
world into one single line. Mais, animé par l’humeur ver-
satile, le traducteur désire tra-
duire dans un seul vers tous les
vers du monde.

Recebido em
22/05/2009

Aprovado em
15/07/2009

PHILIPPE MARTY | L’humeur versatile 237


Acerca de Au lecteur,
o primeiro soneto francês

Marcelo Diniz

1. Nicolas de Herberay

Au lecteur, sonnet de Herberay (1541)

Bening lecteur, de jugement pourveu,


quand tu verras l’invention gentile
de cest autheur: contente toy du stille,
sans t’enquerir s’il est vray ce, qu’as leu.

Qui est celuy, qui peult dire: j’ay veu


blasmer Homere, ou accuser Virgile
pour n’estre vray ainsi que l’Evangile,
en escripvant tout ce qu’il leur pleu?

Quand Appelles nous a painct Jupiter


en Cigne blanc, Thoreau, ou aultre beste:
des anciens il n’a esté repris.

Doncq si tu veois en ce Livre, imiter


l’Antiquité, loue l’effort honneste:
car tout bon oeuvre est digne de bon prix.

Raro leitor, de juízo tão provido,


quando vires o engenho deste esmero,
contenta-te do estilo, pois sincero
e gentil é este autor que terás lido.

Quem é aquele cujo pretendido


fosse acusar Virgílio, ou mesmo Homero
por, tal como o Evangelho, não ser vero
depois de escrever tudo o que é querido?

238 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 238-248


Quando Apeles, a Júpiter, pintara
em Cisne branco, em Touro ou outra besta:
não teve dos antigos desapreço.

Se vires que este livro se compara


à Antiguidade, louva a força honesta:
pois toda boa obra não tem preço.

Saltam aos olhos aspectos muito interessantes acerca da rela-


ção entre a tradução e a escrita poética na escolha feita por Jacques
Roubaud ao selecionar o primeiro soneto francês: Au lecteur, son-
net de Herberay. Um breve estudo sobre esta peça é capaz de levan-
tar ingredientes que intrigam aqueles que se dirigem ao estudo de
uma poética da tradução.
Nicolas de Herberay de Essarts, seigneur des essars, tal como a
ele se refere em um soneto Mellin de Saint-Gelais, fora o tradutor
que verteu para o francês, a pedido do rei François I, o castelhano
Amadis de Gaula. Este soneto é o prefácio au lecteur do segundo li-
vro desta gesta. A localização dialogal em que essa peça se encontra
é singularíssima: o soneto-prefácio do tradutor é o mediador entre
lecteur e autheur de uma narrativa cuja autoria é, por sua vez, polê-
mica e imprecisa.1 Esse entre-lugar em que se encontra o primeiro
soneto francês segundo Roubaud, o lugar crítico por excelência,
metalinguístico e, sobretudo, argumentativo em defesa do imagi-
nário, confere-lhe características muito singulares no que tangem
às categorias de origem e tradição no contexto literário.
A escolha de Roubaud se deve ao fato de este ser o primeiro
soneto désigné, imprimé et original em francês. Segundo a tradição
crítica, a origem do soneto francês é apontada em Clément Ma-
rot; no entanto, ainda que concorde com essa tradição (“toujours
de Marot”), Roubaud considera que os sonetos de Marot ou res-
taram como manuscritos até a publicação do soneto de Herberay,
ou não foram publicados com a designação de sonetos, ou ainda,
1
Um detalhe interessante descoberto numa simples consulta à Universalis: “Quant
à la théorie d’une possible origine française, elle ne repose guère que sur la décla-
ration d’Herberay des Essarts qui traduisit pour François I, em 1540, les huit li-
vres d’Amadis: Herberay des Essarts dit avoir vu lui-même un Amadis médieval
en dialecte picard.” (UNIVERSALIS. Vol 4: Chevalerie en Espagne (Roman de):
218) [Quanto à teoria de uma possível origem francesa, ela repousa sobretudo
na declaração de Herberay des Essarts, que traduziu para François I, em 1540,
os oito livros de Amadis: Herberay des Essarts diz ter visto um Amadis medie-
val em dialeto picardo.]

MARCELO DINIZ | Acerca de Au lecteur, o primeiro soneto francês 239


A princípio a questão do
o que é especialíssimo na tradição do soneto, sobretudo neste pe-
*

primeiro soneto, cujo inte-


resse não é estarrecedor, é, ríodo germinal de sua expansão no século XVI, são traduções do
de qualquer forma, impre-
cisa; e ela não é apenas um italiano Petrarca. Vale-nos a leitura do parágrafo em que Roubaud
caso de cronologia. Deve-
se escolher o primeiro so- apresenta seu argumento:
neto reconhecível como tal,
composto e designado co- D’ailleurs la question du premier sonnet, dont l’intérêt n’est pas
mo soneto? Trata-se, nesse
caso, segundo toda verossi-
bouleversant, est en outre imprécise; et elle n’est pas seulement affaire
milhança, do poema de Ma- de chronologie. Doit-on choisir le premier sonnet reconnaissable
rot, o poema composto para comme tel, composé et désigné comme sonnet? Il s’agit dans ce cas
“le May des Imprimeurs” de
Lyon e publicado em 1538 selon toute vraisemblance du poème de Marot que je reproduis en
em uma edição das Obras; n°1 de ce choix. Mais ce sonnet est resté manuscrit. Si on désire un
mas esse soneto não é anun-
ciado como um soneto; ele
texte imprimé, on trouve, toujours de Marot, le poème composé
aparece no “segundo livro pour “le May des Imprimeurs” de Lyon et publié em 1538 dans une
de Epigramas”. No ano se-
guinte, Marot (ainda ele)
édition des Oeuvres; mais ce sonnet n’est pás annoncé comme un
publica como sendo sone- sonnet; il apparaît au “deuxième livre des Épigrammes”. L’année
tos seis traduções de Petrar- suivante, sans doute, Marot (toujours) publie comme étant des
ca; mas são traduções (o que
uma tradição crítica antiga, sonnets, six traductions de Pétrarque; mais ces sont des traductions
embora pouco estimável, (qu’une tradition critique ancienne, quoique peu estimable, s’obstine
obstina-se a excluir do cam-
po da poesia de uma língua). à exclure du champ de la poésie d’une langue). On en vient alors,
Chega-se então, se assim se si on veut, au premier sonnet français désigné, imprimé et original:
quer, ao primeiro soneto
francês designado, impresso
le voici; il date de 1541.*
e original: ei-lo; ele data de
1541. (ROUBAUD, Jacques Ao fazer alusão a certa tradition critique ancienne que exclui a
(org). Soleil du soleil. An-
thologie du sonnet français tradução como operação poética de uma língua, Roubaud estima o
de Marot à Malherbe. Paris:
Gallimard,1990: 16.)
quanto a tradução deveria ser assumida, sobretudo pelo século XVI,
como um operador poético que não só atendeu à ideologia própria
ao Renascimento voltado ao aprimoramento e à consolidação das
línguas modernas como também serviu à expansão e à consolidação
do soneto como a forma fixa mais difundida na literatura moderna.
No caso da língua portuguesa, vale lembrar o petrarquismo de tra-
*
Oh Apolo! Oh Musas! Pro-
fanar desta maneira as sagra- duções e glosas recorrentes na obra de Sá de Miranda e Camões. A
das relíquias da Antiguida-
de! Mas não falarei mais a
tradução, como forma especializada da imitatio renascentista, seria
esse respeito. Quem quiser um operador poético de ilustração da língua nacional.
fazer obra digna de aplau-
sos em sua língua verná- De 1549, no entanto, data a publicação de Défense et illustra-
cula, que deixe o trabalho
de traduzir, principalmen- tion de la langue française, em que Du Bellay expressa os valores da
te os poetas, para aqueles
que, desta tarefa trabalhosa
ruptura com os antigos sob a escola moderna da Pléiade, e com ela,
e pouco proveitosa, até ouso uma das primeiras pistas de uma espécie de sequestro que sofre a
dizer inútil, e até pernicio-
sa para o desenvolvimento tradução como um operador poético a que se refere Roubaud:
de sua língua, ganham com
toda justiça mais aborreci- O Apollon! o Muses! profaner ainsi les sacrées reliques de l’antiquité!
mento do que glória. (Trad.
Philippe Humblé. In: FAVE-
Mais je n’en dirai autre chose. Celui donc qui voudra faire oeuvre
RI, Cláudia Borges de; TOR- digne de prix en son vulgaire, laisse ce labeur de traduire, principa-
RES, Marie Hélène Catheri-
ne. Clássicos da Teoria da
lement les poètes, à ceux qui de chose laborieuse et peu profitable,
Tradução. Antologia Bilín- j’ose dire encore inutile, voire pernicieuse à l’accroissement de leur
gue. Vol II. Florianópolis: langue, emportent à bon droit plus de molestie que de gloire.*
UFSC, 2004: 29-31)

240 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Profanadora, perniciosa, a tradução encontra-se fadada ao
fracasso diante da grandeza do original. A literatura é a expressão
do intraduzível: quanto às grandes obras dos Antigos ou dos mo-
dernos, portanto, melhor imitá-las do que traduzi-las. La moles-
tie com que é definida a tradução instaura certo desnível quanto
a uma atividade poética de acroissement de la langue. A escolha de
Roubaud soa como um resgate, não somente de Herberay no pa-
radigma da poesia francesa, bem como da tradução como opera-
dor da experiência poética de uma língua.
Apollon, Muse, gloire: a tradução é um fazer sem inspiração,
sem transcendência portanto. Desprovida do valor divino e eter-
nizador, a tradução da poesia é um labor inútil, indigno de preço.
Interessante perceber que tanto no texto de Herberay quanto na
passagem de Du Bellay (digne de bon prix e œuvre digne de prix res-
pectivamente) o mesmo significante se coloque como moeda aos
olhos do lecteur. Em Herberay, le lecteur é bening, de jugement pour-
veu, que saberá avaliar que tout bon œuvre est digne de bon prix. O
interlocutor é benigno pelo juízo de avaliar o bom preço de uma
obra, os versos que iniciam e terminam o soneto de Herberay pa-
recem descrever a relação autor, tradutor, leitor, em um universo
de trocas humanas, despojado do valor neoplatônico da inspiração
de que se investe o argumento de Du Bellay.
O argumento do soneto de Herberay é, por excelência, his-
tórico, reporta-se à tradição e, sobretudo à linguagem: contente toy
du stille. São evocados autores (Homere, Virgile) e personalidades
(Apelles e, subentendido, Alexandre); é evocada uma tradição que
transcende à do evangelho. O rumor do confronto entre o renas-
cer pagão e o cristianismo encontra na tradição o valor maior do
stille, l’effort honeste. O argumento do tradutor remete não só a
uma consciência do valor formal da linguagem poética mas tam-
bém ao seu valor polimórfico, que coloca em perspectiva histórica
a produção inesgotável e incontrolável do imaginário. Afinal, não
há como blasmer Homere, nem accuser Virgile, por n’estre vray. Imi-
tar os antigos é saber avaliar a produção polimórfica do imaginá-
rio humano na linguagem literária. Essa avaliação não se encontra
na autoridade do controle evangélico, tampouco em seu correlato
valor de verossimilhança; ela se afirma na adesão do bening lecteur
ao stille de cest autheur tão provido de juízo quanto les anciens. O
leitor é invocado a ocupar um lugar relevante e emancipado das
autoridades institucionais no jogo histórico com que a literatura
se desdobra segundo a tradição.

MARCELO DINIZ | Acerca de Au lecteur, o primeiro soneto francês 241


Autheur, lecteur e tradutor, no soneto de Herberay, são laicos,
por certo, unidos pela troca do valor humanístico em que tradução
exerce um papel mediador histórico e cultural. Percebe-se o rumor
contra o imaginário medieval, próprio de determinadas linhas assu-
midas pelo Renascimento, mas, sobretudo, confirma-se a defesa me-
diada pela tradução que estabelece a perspectiva histórica adequada
para se avaliar este mesmo imaginário. A tradução é, por excelên-
cia, laica, junto à Corte e não junto à Igreja, encomendada, espe-
cialmente, pelo rei François I, cuja irmã, Marguerite d’Angoulème,
autora do Heptaméron, narrativas ao estilo de Boccaccio, com o au-
xílio de seu protegido, Clément Marot, cultivava um universo le-
trado de relações, inclusive com o próprio Calvino.
Este contexto, a tirar pela argumentação do soneto de Herbe-
ray, parece partilhar de valores muito díspares quanto à receptivi-
dade de Amadis de Gaula. A modéstia do tradutor encontra-se na
sua ausência, a obra vale por si, pelo effort honeste que ela represen-
ta. Seu soneto-prefácio é a inscrição dessa ausência. Não há nele a
menor menção à tradução, mas sim ao valor que faz a obra digne
de prix. Refere-se ao stille de ce qu’as leu, dirigindo-se a um contex-
to em que a receptividade de Amadis já não é unânime como há
dois séculos quando fora publicado pela primeira vez.
Vale lembrar que, algumas décadas depois da publicação do
soneto (1605), publicava-se Del Ingenioso Hidalgo Don Quijote de
Mancha, no qual se encontra a cena em que se decide o destino da
*
(SAAVEDRA, Miguel de
Amadis de Gaula na fogueira dos livros feitos pelo cúria e pelo bar-
Cerbantes. Don Quijote de beiro, amigos do fidalgo adoecido. Amadis de Gaula é salvo por um
la Mancha. Barcelona. Edi-
torial Juventud.1995:67) argumento, na voz do barbeiro e corroborado pelo cúria, que de cer-
*
– Parece coisa de mistério to modo tange o valor histórico e humanístico que se observa no so-
isto: pois, segundo ouvi, es-
te foi o primeiro livro de ca- neto de Herberay. Vale-nos a reprodução dessa breve passagem e da
valaria que se imprimiu na
Espanha, e todos os demais
enunciação desse rumor anticavalheiresco seguida de sua defesa:
tiveram princípio e origem
neste; e assim me parece – Parece cosa de mistério ésta: porque, según he oído decir, este libro
que, como um dogmatiza-
dor de uma seita tão má, de-
fue el primero de caballerías que se imprimió en España, y todos
vemos-lhe, sem desculpa al- los demás han tomado principio y origen deste; y así, me parece
guma, condenar ao fogo. que, como a dogmatizador de uma secta tan mala, le debemos, sin
– Não, senhor – disse o bar-
beiro –, pois também ouvi escusa alguna, condenar al fuego.
dizer que é o melhor de to- – No, señor – dijo el barbero –, que también he oído decir que es
dos os livros que deste gêne-
ro se compôs; e assim, como el mejor de todos los libros que de este gênero se han compuesto; y
único em sua arte, deve-se así como a único em su arte, se debe perdonar.
perdoá-lo.
– De fato é verdade – disse o – Así es verdad – dijo el cura –, y por esa razón se le otorga la vida
cúria – e por esta razão se lhe por ahora.* *
outorga vida por agora.

242 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


O que salva Amadis de Gaula nas páginas de Cervantes do
início do século XVII não é o rumor de ele ser el primero; mas o ru-
mor de ele ser el mejor. O que afirma Amadis de Gaula nos versos
de Herberay também não é o fato de ele ser o primeiro, afinal Ho-
mero, Virgílio, o Sextus Empíricus são referências que o inserem
em uma perspectiva histórica humanística; o que afirma Amadis
de Gaula nos versos desse prefácio de Herberay é o stille. Uma sutil
diferença entre Herberay e Cervantes é o fato de a condenação de
Amadis aos olhos do cúria dever-se a sua condição de el primero,
como uma espécie de livro dogmatizador de um estilo pernicioso.
No soneto de Herberay não aparece o valor do primeiro.
A tirar pelo soneto de Herberay, Amadis de Gaula se encontra
na classificação literária do estilo elevado, afinal, vêm em sua defe-
sa Homere e Virgile. Mas, sobretudo, Amadis se apresenta ao leitor
sob um olhar que lhe considera o valor histórico-antropológico:
o olhar do tradutor, por excelência. Este argumento de ilustração
histórica parece conferir ao soneto a enunciação de certa perspec-
tiva que só é possível ao tradutor, aquele que seleciona, verte e le-
ga ao leitor futuro. O mesmo olhar que espelha a cumplicidade do
antologista Jacques Roubaud ao escolher Au lecteur, sonnet de Her-
beray como o primeiro soneto francês.

2. Mellin de Saint-Gelais

Au segneur des Essars, N. De Herberay


Traducteur du premier livre d’Amadis de Gaule (1540)

Au gran desir, à l’instant requeste


de tant d’amys dont tu peux disposer,
vouldrois tu bien (o amy) t’opposer
par un reffus de chose treshonneste?

Chacun te prie, et je t’en admoneste,


que l’Amadis qu’il t’a pleu exposer
veuilles permettre et au monde exposer:
car par tels faictz gloire et honneur s’acqueste.

Estimes tu que Caesar ou Camille,


doibvente le cour de leur claire memoire
au nombre, au fer, à cyseau ou enclume?

MARCELO DINIZ | Acerca de Au lecteur, o primeiro soneto francês 243


Toute statue ou medaille est fragile
au fil des ans, mais durable gloire
vient de ta main docte e bien disant plume.

Ao grande apelo, então requisitado


por amigos dos quais podes dispor,
ó amigo, é desejo teu te opor
fazendo do que é digno recusado?

Faço coro ao que a ti é encomendado:


este Amadis que a ti apraz expor,
queiras proporcionar e ao mundo expor:
pois tal feito há de ser com glória honrado.

De César ou Camilo, a que se deve


este preclaro curso da memória:
ao número, cinzel, ferro ou bigorna?

Toda estátua ou medalha, tudo é breve


com o tempo, e durável é a glória
justo do que tua douta pluma adorna.

Aponta Curtius dois modos com que a tradição literária con-


cebe a poesia como imortalização. Em um deles, a poesia imorta-
liza o que a inspira; em outro, o poeta. Em um deles, ela é a con-
sequência de um feito que em si já possui o ingrediente da imorta-
lidade; em outro, ela é a própria causa da imortalidade. Em um, o
fato em si já possui a imortalidade de que a poesia se alimenta. Em
outro, a poesia é o próprio poder de imortalizar:
Já os antigos heróis de Homero sabiam que a poesia dá glória eterna
aos que celebra (Ilíada, VI, 359). A poesia imortaliza. Os poetas
gostam de insistir sobre o fato; assim Teógnis (237 ess.) lembra-o
a seu Cirno, Teócrito (XVI) a seu Hierão, Propércio a sua Cíntia
(III, 2, 17) e, sem destinatário certo, Horácio (Carm., IV, 8, 28).
Ovídio também utiliza o argumento (Am., I, 10 ,62). Não devemos
confundi-lo com a asseveração de que o poeta conquistará glória
*
(CURTIUS Ernst Robert.
Literatura europeia e ida-
imortal para si com seu canto, como escreve Horácio.*
de média latina. São Paulo:
HUCITEC, 1996: 579.) Sabe-se bem o quanto o Humanismo do século XVI é res-
ponsável pela continuidade dessa tradição que confere ao feito o
valor de eternização. E, sendo ainda mais específico, o Humanis-

244 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


mo é responsável pela consciência do valor do feito na linguagem
como eternização, justamente o que faz da escrita o instrumento
que considera a eternidade sob a luz dialética de sua condição his-
tórica. Se, para a antiguidade, a imortalização de heróis e aconteci-
mentos é consequência do valor religioso em que está imerso o fazer
poético, de tal modo que a eternidade parece se depositar mais no
feito que merece ser cantado do que no próprio canto, uma sutil
diferença modula a concepção humanista: a poesia há de imortali-
zar o objeto do canto. A sutil modulação que essa concepção des-
dobra corresponde ao senso não somente histórico mas também
o de sua implicação na escrita como forma de produção de conti-
nuidade e paradigma.
Decerto, essa modulação corresponde a uma outra sutil dife-
rença que germina o século XVI quanto à localização social e polí-
tica do poeta ou escritor. Boriaud descreve essa modulação da po-
esia como imortalizadora do poeta como um traço distintivo entre
as duas grandes gerações da poesia francesa deste século:
Le poète de la Pléiade est moins directement attaché à une cour que ne
l’était le Grand Rhétoriqueur. Il dépend encore souvent d’un Grand,
dont il est le “secrétaire”, l’homme de l’intendance, comme Du Bellay
auprès de son oncle cardinal, lors de leur séjour romain. Sa fonction
essentielle n’est plus cependant la célébration de son protecteur.
Changement de perspective: le poète ne chante pas une gloire que *
O poeta da Plêiade está
menos diretamente ligado
préexisterait à son œuvre, c’est lui qui la confère. Son rôle est alors de a uma corte do que estava
donner aux vertus l’éclat qu’elles méritent et selon les critères dont il o Grande Retórico. Ele de-
pende ainda com frequên-
se dit le seul juge. Il donne immortalité à ce qu’il touche: à la femme, cia de um Grande, de quem
que chante son livre (de manière cryptée ou non…), même si elle ne ele seja um secretário, o ho-
mem de intendência, como
doit apprécier que plus tard l’hommage ainsi rendu.* Du Bellay ao lado de seu tio
cardeal durante sua estadia
Se de certo modo essa modulação constitui a consciência da romana. Sua função essen-
cial não é mais, no entanto,
atitude humanista em que já se banha o soneto Au lecteur de Ni- a celebração de seu prote-
tor. Mudança de perspecti-
colas de Herberay, o soneto de Mellin de Saint-Gelais dedicado ao va: o poeta não canta uma
tradutor do Amadis é uma peça cuja data apontada na edição de glória que exista antes de
sua obra, é ele que a confe-
Roubaud parece acrescentar um dado muito interessante ao forte re. Seu papel é então de dar
às virtudes o brilho que elas
argumento humanista que nele se encontra. Anterior ao soneto de merecem e segundo os cri-
térios dos quais se diz o úni-
Herberay, o soneto de Saint-Gelais nunca fora publicado em livro. co juiz. Ele dá imortalidade
Saint-Gelais bem como Clément Marot são elencados por Roubaud ao que ele toca: à mulher,
cantada em seu livro (crip-
como os primeiros sonetistas franceses. Um dado curioso que es- tografada ou não...), mes-
mo que ela só aprecie mais
clarece essa anterioridade não publicada do soneto de Saint-Gelais tarde a homenagem a ela
rendida. (BORIAUD, Jean
é apresentado na pequena biografia que encabeça a antologia que Yves. La littérature française
faz Roubaud a cada poeta apresentado: du XVIe siècle. Paris: Armand
Colin,1995: 90)

MARCELO DINIZ | Acerca de Au lecteur, o primeiro soneto francês 245


Il avait fait imprimer de son vivant fort peu de ses Vers, se contentant
de les faire courir des fois et d’autres par les mains des Courtisans
*
(Ele publicou em vida bem et des dames de la Cour.*
pouco de seus Versos, con-
tentando-se em os fazer cor-
rer por vezes pelas mãos de Este dado biográfico parece acrescentar um elemento ao po-
Cortesãos e Damas da Corte.
ROUBAUD. Ibidem: 23) ema de Saint-Gelais que o situa na transição de valores da poesia
como imortalização. Afinal, no século em que o livro parece en-
carnar o valor próprio da escrita como eternização na história, o
contentamento de Saint-Gelais em faire courir seus poemas de mão
em mão parece descrever um contexto de circulação literária típica
do espírito cortesão dos Grands Réthoriqueurs. No entanto, o argu-
mento presente em seu soneto dedicado a Herberay parece tanger
a concepção de que il donne imortalité à ce qu’il touche, como afir-
ma Bouraud acerca da geração da Pléiade.
Assim como, no soneto de Herberay, encontra-se o contexto
social como principal argumento em defesa do feito escrito, no de
Saint Gelais, a tradução de Amadis é devida au gran désir de tant
d’amys. Percebe-se nos quartetos a insinuação de um imperativo
ético implicado no trabalho da escrita tradutora. A divisão entre
os quartetos, repetida entre os tercetos, que faz do primeiro uma
pergunta retórica e do segundo sua resposta, estrutura o argumen-
to do soneto, fazendo do apelo do gran desir, um apelo de gloire
et honneur. Mas, gloire et honneur de quê? Interessante observar a
ambiguidade que se insinua ao oitavo verso na expressão anafórica
tels faictz, que tanto se refere aos feitos de Amadis quanto à tare-
fa de traduzi-lo. Trata-se de uma ambiguidade que parece situar o
argumento do poema a meio caminho entre as duas tradições des-
critas por Curtius: a poesia tanto imortaliza o fato histórico quan-
to imortaliza o poeta, no caso, o poeta tradutor.
Essa ambiguidade parece se dissipar nos tercetos. A divisão
entre o primeiro terceto, que apresenta a pergunta retórica, e o se-
gundo, que insinua sua resposta, é acentuada pela carga semânti-
ca que distribuem os termos referentes aos modos e instrumentos
de trabalho. Fer, cyseau, enclume são comparados com plume, su-
gerindo a antítese em que o pesado, o resistente, o aparentemente
durável, são superados pelo elemento da leveza e da sutileza como
metonímia da escrita, ela sim provedora de durable gloire. A me-
tonímia do estatuário ou da cunhagem associa-se à referência his-
tórica – César, Camille –, insinuando o argumento da finitude da
ostentação do poder e da efemeridade inerente a tudo que preten-
da se consolidar au fil des ans. O argumento histórico parece diri-

246 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


gir-se ao tema da vaidade e da efemeridade humanas para apenas
reconhecer o valor da main docte capaz do manuseio da bien disant
plume. A escrita e, com ela, a tradução agem em um plano mais
etéreo, mais sutil, no entanto mais eficaz no que diz respeito à dia-
lética entre a condição histórica e a transcendência humana: o pla-
no da linguagem e de sua disseminação.
A ambiguidade de tels faictz que resta em suspenso nos quar-
tetos parece pender seu sentido para a escrita ao fim do poema. E,
especificamente, para a escrita tradutora, ou ainda, para a escrita
como tradução. A douta pluma, tal como traduzida nessa versão,
confere à tradução seu gesto etéreo, seu entre-lugar, em que o sen-
tido se extrai não da solidez com que aparentemente a história se
conserva no tempo, mas da inteligência, da entre-leitura, em que,
seja como stille segundo Herberay, seja como bien disant plume se-
gundo Saint-Gelais, a escrita extrai seu legado mais duradouro. Um
soneto dedicado a um tradutor confere à tradução esse papel histó-
rico especial no que diz respeito à eternização do humano através
da tradição. Um valor que, decerto, a literatura francesa há de cul-
tivar como l’herbe, a um só tempo viva e nascida da morte, eterna
e histórica portanto, como na metafísica proustiana da literatura:
Victor Hugo dit:
Il faut que l’herbe pousse et que les enfants meurent.
Moi je dis que la loi cruelle de l’art est que les êtres meurent et que nous-
mêmes mourions en épuisant toutes les souffrances, pour que pousse
l’herbe non de l’oubli mais de la vie éternelle, l’herbe drue des oeuvres
fécondes, sur lesquelles les générations viendront faire gaîment, sans
souci de ceux qui dorment en dessous, leur “déjeuner sur l’herbe”.* * *
(PROUST, Marcel. Le temps
retrouvé. Paris: Robert La-
ffont, 1987, p. 834)
*
Victor Hugo disse:
É preciso que a erva nasça e
que as crianças morram.
Eu digo que a lei cruel da
arte é que os seres morram
e que nós mesmos morra-
mos consumidos por todos
os sofrimentos, para que a
erva nasça não do esqueci-
mento mas da vida eterna, a
erva árida das obras fecun-
das, sobre as quais as ge-
rações virão fazer, ingenu-
amente, sem se preocupa-
rem com aqueles que dor-
mem abaixo, seu “déjeuner
sur l’herbe”.

MARCELO DINIZ | Acerca de Au lecteur, o primeiro soneto francês 247


Marcelo Diniz
Poeta, letrista, doutor em Ciências da Literatura-Semiologia pela
UFRJ, autor dos livros de poemas Trecho (Aeroplano e Fundação
Biblioteca Nacional: 2002) e Cosmologia (7 Letras: 2004).

Resumo
Palavras-chave: tradução;
tradição; poética. Tradução do primeiro soneto francês segundo Jacques Roubaud e co-
mentário acerca de sua importância para uma poética da tradução.

Abstract Résumé
Key words: translation; tra-
dition; poetics. Translation of the first French Traduction du premier sonnet
Mots-clés: traduction; tradi- sonnet according to Jacques français, selon Jacques Rou-
tion; poétique.
Roubaud and a comment about baud, et commentaire sur son
its importance for a poetic of importance pour une poétique
translation. de la traduction.

Recebido em
18/05/2009

Aprovado em
15/07/2009

248 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Questões de tradução em
Jorge Luis Borges e Italo Calvino
Maria Elisa Rodrigues Moreira

Aprender a falar é aprender a traduzir [...].


Octavio Paz

A tradução tem sido tema de reflexão por parte de inúmeros


estudiosos, que discutem suas possibilidades e limites, suas conse-
quências e desdobramentos nos campos literário e poético. Mas não
é somente aos pesquisadores e teóricos que a questão afeta, sendo que
diversos escritores, para os quais a tradução é parte integrante de seu
processo de trabalho – seja por atuarem também como tradutores,
seja por terem traduzidas muitas de suas próprias obras para outros
idiomas e suportes – também refletiram e escreveram sobre ela.
Octavio Paz, ao pensar a tradução, a aponta como uma fun-
ção especializada da literatura, uma vez que considera qualquer tra-
dução como uma operação literária, uma vez que implica necessa-
riamente transformação do original, ainda que o original reverbe-
re sistematicamente no texto traduzido:
O texto original jamais reaparece (seria impossível) na outra língua;
entretanto, está sempre presente, porque a tradução, sem dizê-lo, o
menciona constantemente ou o converte em um objeto verbal que, *
(Paz, Octavio. Tradução,
mesmo distinto, o reproduz [...].* literatura e literalidade. Tra-
dução de Doralice Alvez de
Corroborando a posição de Paz acerca da imbricação entre o Queiroz. Belo Horizonte:
FALE/UFMG, 2006: 6.)
processo tradutório e o literário procuraremos, ao longo desse texto,
identificar as posições de Jorge Luis Borges e Italo Calvino sobre a
temática da tradução poética, assim como tecer considerações so-
bre possíveis desdobramentos e contribuições dessas reflexões para
as teorias da tradução, e para a crítica literária de maneira geral.
A questão da tradução aparece em vários momentos da obra
de Jorge Luis Borges, tanto em seus ensaios, resenhas, prólogos e
entrevistas quanto em seus contos, embora de maneira assistemáti-
ca. Com Italo Calvino observamos movimento semelhante, ainda
que a reflexão sobre a tradução em sua obra seja menos frequente e
suas concepções, por vezes, sejam bastante diversas das de Borges.
Para ambos, no entanto, não interessa a construção de uma teoria
da tradução, e sim a reflexão acerca de questões concretas e pon-

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 249-263 249


tuais relativas à tradução, seus problemas e possibilidades, a partir
das quais aspectos mais amplos referentes à literatura emergem e
são discutidos. A tradução aparece sempre como uma questão re-
lativa ao fazer literário, e não apenas como um processo técnico de
transposição idiomática.
A relação com a palavra foi marcante na vida de Borges, cuja
família tinha profundos vínculos com a literatura, de modo que o
escritor afirma ter sempre chegado “às coisas depois de encontrá-
*
(Borges, Jorge Luis. Ensaio
autobiográfico: 1899-1970.
las nos livros”.* Escritor prolífico, Borges realizou também inúme-
Tradução de Maria Carolina
de Araújo e Jorge Schwartz.
ras traduções, e reflexões sobre linguagem e literatura perpassam
São Paulo: Companhia das toda sua obra. A reflexão sobre a tradução aparece explicitamen-
Letras, 2009: 20.)
te em diversas ocasiões, tanto em textos de caráter predominante-
mente ensaístico quanto em contos, alcançando outros desdobra-
mentos com os muitos textos críticos dedicados a investigar a tra-
dução na obra do escritor.
Segundo D’Angelo, se pensarmos a tradução como tentativa
de compreensão de uma língua diferente de nossa própria língua e,
com isso, de um universo cultural também diverso, a tradução em
Borges “se torna comentário metafórico por extensão, forma de di-
*
(D’ANGELO, Biaggio. “El
jardín de las versiones que álogo com o mundo (ou os mundos)”.1* A tradução é, assim, uma
se bifurcan. Una nota so-
bre la traducción en la obra
das formas pelas quais Borges realiza a mediação entre o mundo e
de Borges”. In: D’ANGELO, os livros, apresentando-se em sua obra, se pensarmos no quanto a
Biaggio. Borges en el centro
del infinito. Lima: Fondo Edi- mesma é marcada pelo dizer de outra forma o que já foi dito por
torial de la UNMSM/Univer-
sidad Católica Sedes Sapien- outro, de forma quase globalizante.
tiae, 2005: 37.) Para pensar uma obra que parece infinita, pautada em jogos
de espelhos que a multiplicam e embaralham, torna-se necessário
eleger aspectos que funcionem como um fio de Ariadne a nos guiar
pelos inúmeros corredores desse projeto textual labiríntico. Procu-
raremos, assim, seguir três fios condutores na obra de Borges, três
questões pertinentes à temática da tradução: a tradução como mo-
dus operandi do processo de criação literária; a tradução e os papéis
literários – autor/leitor/tradutor –; e a questão da validade e da im-
portância da tradução para a literatura.
Observando a obra borgiana, não é difícil perceber o lugar pro-
eminente ocupado pela tradução em seu processo criativo, uma vez
que ela aparece com frequência seja como tema ficcional, como ati-
vidade prática ou como objeto de reflexão. Jogando constantemente
com o caráter de farsa, de simulação da tradução – o usar uma pa-
lavra no lugar de outra palavra, criar um texto outro que seria uma
1
Todas as traduções apresentadas são da autora.

250 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


versão “exata” do primeiro –, Borges a converte em um de seus pro-
cedimentos ficcionais prediletos. Suas ficções são espelhos invertidos
de outros textos, palavras recheadas de apócrifos, tradutores, ma-
nuscritos originais e citações as mais diversas, uma tradução de sua
biblioteca universal para a composição de uma escrita própria.
Encontram-se no meio de seus textos citações integrais, tra-
duções literais dos mais diversos autores, assim como nas traduções
de seus livros alusões ao fato de que tenham sido pensados origi-
nalmente no idioma para o qual foram traduzidos. É uma tradu-
ção que orienta, por exemplo, “O informe de Brodie”, no qual é
discutida justamente a questão da tradução: “Num exemplar do
primeiro volume d’As mil e uma noites (Londres, 1840), de Lane,
que meu querido amigo Paulino Keins conseguiu para mim, des-
*
(Borges, Jorge Luis. “O
cobrimos o manuscrito que agora vou traduzir para o espanhol”.* informe de Brodie”. In: O
O início do conto já coloca em cena diversas das estratégias narra- informe de Brodie. Tradu-
ção de Davi Arrigucci Jr.
tivas utilizadas por Borges na composição de sua ficção: a mistura São Paulo: Companhia das
Letras, 2008: 85.)
entre real e ficção, a referência a outros textos, as ideias do manus-
crito e da tradução. No caso específico, temos um manuscrito en-
contrado em uma tradução inglesa das Mil e uma noites, que será
por sua vez traduzido ao espanhol.
Mas a questão da tradução não aparece apenas como referên-
cia ampla de estruturação do texto, voltando a ser apontada tema-
ticamente ao longo da tradução do referido manuscrito que cons-
titui a maior parte do conto:
O idioma é complexo. Não se assemelha a nenhum outro dos que eu
tenha notícia. Não podemos falar de partes da oração, já que não há
orações. Cada palavra monossílaba corresponde a uma ideia geral, que
se define pelo contexto ou pelos gestos. A palavra nrz, por exemplo,
sugere a dispersão ou as manchas; pode significar o céu estrelado, um
leopardo, um bando de aves, a varíola, o salpicado, o ato de esparramar
ou a fuga que se segue à derrota. Hrl, ao contrário, indica o apertado
ou o denso; pode significar a tribo, um tronco, uma pedra, um monte
de pedras, o fato de empilhá-las, o congresso dos quatro feiticeiros,
a união carnal e um bosque. Pronunciada de outra maneira ou com
outros gestos, cada palavra pode ter um sentido contrário.* *
(Ibidem: 91.)

Nesse trecho Borges coloca em pauta a relação profunda en-


tre língua e cultura, cujos ecos se desdobram no pensamento tra-
dutório: as dificuldades de traduzir são inúmeras, e a tradução só
“é possível porque se pode recriar a obra, tomar o texto como pre-
texto. Outra forma de tradução, creio que é impossível, sobretu-
do se pensarmos que dentro de um mesmo idioma a tradução é

MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 251
(Borges, Jorge Luis. “Pro-
impossível”.2* A multiplicidade de possibilidades de utilização da
*

blemas de la traducción (El


oficio de traducir)”. Revista língua e seu vínculo com a cultura determinam a impossibilidade
Sur, Buenos Aires, enero-
diciembre 1976. Disponí- de uma tradução literal, uma vez que a criação textual é uma ques-
vel em: www.ndet.org/foro/
showthread.php?tid=2881. tão de escolhas, assim como o é a tradução. Isso implica o reconhe-
Acesso em 21 fev. 2009.) cimento de que qualquer tradução será sempre a criação de outro
texto, linguística e culturalmente diverso do primeiro:
Claro, traduzia pelo dicionário. Porém é o dicionário mesmo que
induz ao erro. De acordo com os dicionários, os idiomas são reper-
tórios de sinônimos, porém não o são. Os dicionários bilíngues,
por outro lado, fazem crer que cada palavra de um idioma pode ser
substituída por outra de outro idioma. O erro consiste em que não
se leva em conta que cada idioma é um modo de sentir o universo
*
(Ibidem) e de perceber o universo.*

Em “O Imortal” a tradução já havia aparecido como mote,


de forma muito semelhante à utilizada por Borges em “O informe
de Brodie”: em 1929, em Londres, um antiquário de Esmirna ofe-
rece à princesa de Lucinge os seis volumes da Ilíada de Pope, sen-
do que no último deles ela encontra um manuscrito, “redigido em
inglês e pródigo em latinismos”, do qual o conto irá oferecer a ver-
são literal. Mais uma vez percebemos a mistura de culturas e idio-
mas perpassando um relato de manuscritos e traduções, babel esta
reafirmada logo no início do conto: “Manejava com fluidez e igno-
rância várias línguas; em pouquíssimos minutos passou do francês
ao inglês e do inglês a uma conjunção enigmática de espanhol de
(Borges, Jorge Luis. “O
Salonica com português de Macau.”*
*

imortal”. In: O Aleph. Tra-


dução de Davi Arrigucci Jr. Esses dois breves exemplos apontam situações específicas em que
São Paulo: Companhia das
Letras, 2008:7.) a tradução aparece como procedimento e tema ficcional nas obras de
Borges, mas é importante destacar o que indicamos anteriormente,
o quanto o caráter de simulação e reprodução da tradução são im-
portantes em toda sua concepção literária:
as muitas palavras, disseminadas por toda sua obra, que descrevem
os mecanismos desta tão denegrida operação do espírito: ler, inter-
pretar, reproduzir, cotejar, copiar, ou suas consequências: versões,
(Gargatagli, Ana; Guix,
fidelidade, literalidade.*
*

Juan Gabriel López. “Ficcio-


nes y teorías en la traducci-
ón: Jorge Luis Borges”. HIS- Em “O Imortal” encontramos também os reflexos da segun-
TAL, enero 2004. Disponí-
vel em: www.histal.umon- da questão que indicamos, afeta à tradução e desdobrada por Bor-
treal.ca/espanol/documen-
tos/ficciones_y_teorias_en_
ges em seus ensaios e contos: a questão dos papéis literários de au-
la_traduccion.htm. Acesso
em: 18 fev. 2009.) 2
Ainda que neste ensaio Borges refira-se especialmente à tradução da poesia, acredi-
tamos ser possível extrapolar seu pensamento para pensar a tradução de maneira mais
geral, uma vez que tal discussão reverbera em diversos outros pontos de sua obra.

252 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


tor, leitor e tradutor, que remete à concepção borgiana da litera-
tura. Em “Las dos maneras de traducir” o escritor argentino afir-
ma acreditar na existência de duas classes de tradução: a primeira,
correspondente às mentalidades românticas, pratica a literalidade;
a segunda, correspondente às mentalidades clássicas, pratica a pe-
rífrase. Tais mentalidades, conforme Borges, equivalem a distintas
concepções de literatura: uma, clássica, à qual sempre interessará
a obra e não o artista, o texto e não seu autor; a outra, romântica,
(Borges, Jorge Luis. “Las
em que importa sempre mais o homem, o autor.*
*

dos maneras de traducir”.


O tom irônico que utiliza para finalizar o trecho deixa antever La prensa, Buenos Aires,
01 ago. 1926. Disponível
qual dessas concepções literárias é mais cara a Borges, e a questão em: http://foro.elapeh.com/
viewtopic.php?p=191100.
de uma maior valorização da obra do que do “homem” reverbera Acesso em 17 fev. 2009.)
em muitos outros de seus textos. Em Borges, o contínuo jogo com
a simulação, assim como seus desdobramentos, afetam também os
papéis de autor, leitor e tradutor, que se intercambiam continua-
mente num processo que implica a perda de posições rígidas e res-
tritas para os mesmos, aspecto muitíssimo explorado em “Pierre
*
(Borges, Jorge Luis. “Pier-
Menard, autor do Quixote”,* no qual a personagem Pierre Menard re Menard, autor do Quixo-
resolve reescrever o Quixote de Cervantes, palavra por palavra. te”. In: Ficções. Tradução de
Davi Arrigucci Jr. São Pau-
Segundo Pastormelo,* nesse conto Borges irá desenvolver fic- lo: Companhia das Letras,
2007: 34-45.)
cionalmente algumas das ideias que já perpassavam seus ensaios
*
(Pastormelo, Sergio.
anteriores, atinentes à temática da tradução, criando com Menard “Borges y la traducción”.
uma representação irônica do que seria o “tradutor ideal”: o Qui- Borges Studies Online, Cen-
tre for Studies & Documen-
xote de Menard pode ser lido, assim, como uma experiência limí- tation. 14 jan. 2001. Dis-
ponível em: http://www.
trofe de tradução, que justamente por isso evidencia os limites de borges.pitt.edu/bsol/pas-
toda tradução. Os textos idênticos de Menard e Cervantes apare- torm1.php. Acesso em 17
fev. 2009.)
cem como alusão à imperfeição subjacente a toda tradução, ao ab-
surdo de se ensejar uma tradução completamente literal, um texto
absolutamente fiel ao original, tornando visível a necessária mar-
gem de infidelidade que deve marcar qualquer processo tradutó-
rio. Menard é, simultaneamente, leitor de Cervantes, tradutor do
Quixote e autor de outro Quixote, por mais que este seja coinci-
dente com o texto de Cervantes:
O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas
o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão
seus detratores; mas a ambiguidade é uma riqueza.) [...] Também é
vivido o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Menard – estran-
geiro, afinal – padece de alguma afetação. Não assim o do precursor,
que maneja com desenfado o espanhol corrente de sua época.* *
(Borges, Jorge Luis. “Pier-
re Menard, autor do Qui-
xote”. In: Ficções. op. cit.:
Voltemos ao conto “O Imortal”, no qual após a introdução re- 42-43.)

cheada de alusões à tradução e à mistura de línguas diversas, à qual

MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 253
nos referimos anteriormente, Borges apresenta a “versão literal” do
manuscrito encontrado. O manuscrito apresenta uma narrativa de
Marco Flamínio Rufo, homem que tem notícias da existência da Ci-
dade dos Imortais e de um rio que possibilita a imortalidade, partin-
do então em busca dos mesmos. Após diversos contratempos con-
segue encontrá-los; vivenciada, a dádiva já não parece maravilhosa,
gerando uma posterior busca pelo retorno à condição de mortal.
Nesse percurso, marcado por labirintos multiplicáveis e pa-
lavras em diferentes idiomas que assomam à memória do narra-
dor sem que ele saiba bem de onde, Rufo identifica entre os imor-
tais Homero, o pai das histórias, figura emblemática em torno da
qual proliferam as mais diversas discussões relativas à questão da
autoria e da criação textuais. Homero, cujas obras traduzidas fo-
(Borges, Jorge Luis. “As
ram discutidas por Borges em “As versões homéricas”,* obras que
*

versões homéricas”. In: Dis-


cussão. Tradução de Josely trazem a marca de uma autoria perdida e talvez anônima, um tex-
Vianna Baptista. São Pau-
lo: Companhia das Letras, to que persiste ao longo dos séculos em suas inúmeras versões, co-
2008: 103-110.)
tejadas pelo argentino; Homero, que, conforme nota incluída no
conto pelo próprio Borges, era tido por Giambattista Vico como
um “personagem simbólico”.
O imortal Homero, que perguntado por Rufo sobre o que
sabia a respeito da Odisseia, responde: “‘Muito pouco’, disse. ‘Me-
nos que o mais pobre dos rapsodos. Já terão passado mil e cem
(Borges, Jorge Luis. “O
anos desde que a inventei.’”* Estamos diante do autor Homero,
*

imortal”. In: O Aleph. op.


cit.: 18.) que desafirma com essa resposta sua própria autoria, sua autori-
dade sobre aquele texto que percorreu mais de um milênio e, ao
mesmo tempo, lança parte da responsabilidade dessa autoria para
aqueles rapsodos, leitores-narradores-tradutores de um texto que
circula de boca em boca ao longo do tempo. Ao que Rufo acres-
centa a seu relato:
Homero compôs a Odisseia; postulado um prazo infinito, com in-
finitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem
uma única vez, a Odisseia. Ninguém é alguém, um único homem
imortal é todos os homens. Como Cornélio Agrippa, sou deus, sou
herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma cansativa
*
(Ibidem: 20.)
maneira de dizer que não sou.*

É esse eco do passado que aparece nas palavras citadas por Ru-
fo ao longo de seu relato, em outros idiomas e rememoradas sem
que o autor saiba de onde: são palavras de Homero. Temos assim
um Rufo que é, ao mesmo tempo, Homero e muitos mais – o que
equivale a dizer que ele não é ninguém:

254 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Quando o fim se aproxima, já não restam imagens da recordação;
só restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido
as que certa vez me representaram com as que foram símbolos
do destino de quem me acompanhou por tantos séculos. Eu fui
Homero; em breve, serei ninguém, como Ulisses; em breve serei
*
(Ibidem: 24.)
todos: estarei morto.”*

Encontramos ainda nos textos de Borges sobre Homero – re-


tomando agora “As versões homéricas” – algumas reflexões do escri-
tor argentino sobre a validade e a importância das traduções para a
literatura, com elas abordando nossa terceira questão e encerrando
essa breve leitura da tradução em Borges. Fica claro ao observarmos
a obra de Borges que a tradução nunca ocupou lugar secundário na
mesma, sendo pensada pelo autor como um dos muitos gêneros da
literatura, tão importante quanto todos os demais:
Pressupor que toda recombinação de elementos é obrigatoriamente
inferior a seu original é pressupor que o rascunho 9 é obrigatoria-
mente inferior ao rascunho H – já que não pode haver senão rascu-
nhos. O conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião
ou ao cansaço. [...] Não há um bom texto que não pareça invariável
*
(Borges, Jorge Luis. “As
e definitivo se o praticamos um número suficiente de vezes.* versões homéricas”. In: Dis-
cussão. op. cit.: 103-104.)
Essa valorização da tradução como possibilidade de maior co-
nhecimento do texto abordado aparece de maneira enfática ainda em
outros momentos, esclarecedores da concepção literária de Borges:
[...] a Odisseia, graças a meu oportuno desconhecimento do grego, é
uma biblioteca internacional de obras em prosa e verso, desde os ver-
sos em rimas emparelhadas de Chapman até a Authorized Version de
Andrew Lang ou o drama clássico francês de Bérard ou a saga vigorosa
*
(Ibidem.)
de Morris ou o irônico romance burguês de Samuel Butler.*

A tradução, assim como todos os elementos que compõem


o livro e acompanham o texto, aparece, para Borges, como parte
daquele texto: a Odisseia é composta, para o escritor, por todas as
suas traduções, pelas discussões acerca de Homero, pelas reflexões
que suscita; o Quixote é também tudo isso, e acredito que ainda
possamos incluir em seu rol de compósitos a versão do mesmo por
Pierre Ménard. Cada nova versão faz apenas acrescentar possibili-
dades ao texto original, e original e traduções situam-se no mesmo
patamar de importância, todos eles textos incompletos à espera de
uma leitura que os atualize, ressignifique, recrie.
Além disso, Borges indica a importância das traduções não
só para a circulação de textos fundamentais à biblioteca univer-

MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 255
sal, mas também por elucidarem aspectos da criação literária que
não se deixam vislumbrar em outras situações – aspecto abordado
também por Italo Calvino. É com essa discussão que ele inicia “As
versões homéricas”:
Nenhum problema tão consubstancial com as letras e seu modesto
mistério como o que propõe uma tradução. Um esquecimento
animado pela vaidade, o temor de confessar processos mentais que
adivinhamos perigosamente comuns, o esforço para manter intacta
e central uma reserva incalculável de sombra velam as tais escrituras
diretas. A tradução, por sua vez, parece destinada a ilustrar a discus-
são estética. O modelo proposto à sua imitação é um texto visível,
não um labirinto inestimável de projetos pretéritos ou a acatada
*
(Ibidem.) tentação momentânea de uma facilidade.*

Na tradução são perceptíveis e passíveis de análise os problemas


técnicos da escritura, os processos de criação, a gênese do texto, en-
fim, a discussão estética que marca a literatura e que, muitas vezes, se
encontra obscurecida na observação das estratégias poéticas de cons-
trução de narrativas. Dessa maneira, Borges reafirma a validade da
tradução no campo literário: apesar de todas as dificuldades ineren-
tes ao processo tradutório, o que conta são “as repercussões incalcu-
*
(Ibidem: 103.)
láveis do verbal”,* suas mil e uma possibilidades de irradiação.
Ao contrário de Borges, não são muitos os textos de Calvino
que abordam diretamente a temática da tradução; entretanto, o as-
sunto aparece em diversos pontos de sua obra, também estreitamen-
te vinculado às concepções literárias que a norteiam. Sua atuação
como tradutor e o longo período de trabalho na editora Einaudi,
além do grande número de traduções feitas de suas próprias obras,
tornam a tradução parte inseparável de sua profunda relação com a
palavra e com o texto literário. Na obra de Italo Calvino, assim co-
mo em Borges, reflexão e ficção se imiscuem de tal modo que não
é possível estabelecer limites rígidos entre os processos criativos e
intelectuais que as direcionam, possibilitando sua leitura como um
compósito de saberes que se articulam reticularmente.
Nesse espaço de múltiplas possibilidades articuladoras, tra-
duzir é, para Calvino, uma forma de conhecer, de criticar, de in-
terpretar o mundo, e nesse processo a literatura tem para o escritor
um lugar especialmente reservado, uma vez que sua relação com o
mundo foi, desde muito cedo, permeada pela palavra escrita, em
especial pela palavra literária. É assim que o Sr. Palomar vai ecoar
na ficção as reflexões do escritor:

256 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


O senhor Palomar pensa que toda tradução requer uma outra tradu-
ção, e assim por diante. Pergunta-se a si mesmo: “Que quereria dizer
morte, vida, continuidade, passagem para os antigos toltecas? E que
poderá querer dizer para esses garotos? E para mim?”. Contudo, sabe
que não poderia jamais sufocar em si a necessidade de traduzir, de
passar de uma linguagem a outra, de uma figura concreta a palavras
abstratas, de símbolos abstratos a experiências concretas, de tecer e
tornar a tecer uma rede de analogias. Não interpretar é impossível,
como é impossível abster-se de pensar.* *
(Calvino, Italo. Palomar.
Tradução de Ivo Barroso.
São Paulo: Companhia das
Se temos em seus textos, por um lado, uma reflexão sobre a Letras, 1994: 90.)

tradução calcada na concretude da prática editorial, como é o caso


de “Sul tradurre”, de 1963, vemos essa reflexão assumir um movi-
mento contínuo, deixando suas marcas nos textos ficcionais e en-
saísticos. Calvino tece sua rede textual, como indica o Sr. Palomar,
utilizando-se dos mais variados elementos e artifícios. Pensar so-
bre a tradução é pensar sobre a linguagem, sobre as formas de co-
municação entre os seres humanos, sobre as relações entre língua
e cultura, sobre o que há de coesão e o que há de liberdade no uso
de uma língua, sobre a literatura e suas possibilidades.
Percorrer essa rede narrativa de Calvino exige – assim como
percorrer os labirintos borgianos – que se destaquem caminhos e
escolham percursos que, se certamente são apenas alguns dentre os
inúmeros possíveis, permitem-nos transitar pela obra sem que fi-
quemos à deriva, perdidos em sua imensidão. Traçaremos, portanto,
outros três trajetos temáticos relativos à tradução que nos parecem
essenciais no pensamento de Calvino sobre a mesma, e que dizem
respeito diretamente às relações entre língua e cultura, às proximi-
dades entre tradução e crítica e à qualidade da escrita.
A relação entre língua e cultura é patente em Calvino, e transpa-
rece em suas reiterações acerca da intraduzibilidade da literatura:
Quem lê literatura traduzida já sabe que está fazendo alguma coisa
aproximativa. A escritura literária consiste cada vez mais num apro-
fundamento no espírito mais específico da língua (em suas pontas
extremas de uma máxima expressividade ou neurose linguística e
de um máximo de anonimidade, de neutralidade ‘objetal’), o que a
torna cada vez mais intraduzível.* *
(Calvino, Italo. “Italiano,
uma língua entre as outras
línguas”. In: Assunto encer-
Em outro texto, afirma: rado: discursos sobre litera-
tura e sociedade. Tradução
Traduzir é uma arte: a passagem de um texto literário, qualquer que de Roberta Barni. São Pau-
lo: Companhia das Letras,
seja o seu valor, para uma outra língua requer sempre algum tipo de 2009: 142.)
milagre. Sabemos todos que a poesia em versos é intraduzível por
definição; mas a verdadeira literatura, também aquela em prosa,

MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 257
trabalha propriamente sobre a margem intraduzível de qualquer
língua. O tradutor literário é aquele que coloca a si mesmo inteiro
*
(Calvino, Italo. “Tradur- em jogo para traduzir o intraduzível.*
re è il vero modo di leg-
gere un testo”. In: Baren-
gui, Mario (org.). Italo Calvi- O texto literário não pode, assim, nunca ser traduzido por
no. Saggi. 1945-1985. Mila-
no: Mondadori, 2001, v. 2: completo, nunca será construída uma tradução idêntica ao origi-
1826-1827.)
nal, uma vez que ambos os textos, original e traduzido, assentam-
se em diferentes solos culturais, tanto em sua produção quanto em
sua recepção. A tradução será sempre uma aproximação, um texto
outro que dialoga com aquele original e com os dois idiomas em
questão. E é na forma como se estabelece esse diálogo que se en-
contraria a principal origem da diferença entre as traduções bem-
sucedidas e as traduções inadequadas.
Se cada idioma apresenta, como afirma Calvino, possibilida-
des e limites exclusivamente seus – “[...] cada língua tem limites,
*
(Calvino, Italo. “Italiano,
uma língua entre as outras
mas também possibilidades que são exclusivamente suas”* –, no jo-
línguas”. op. cit.: 144) go de traduzir o intraduzível o tradutor precisará mais do que do
conhecimento das línguas com as quais trabalha. Ele precisa con-
tactar o espírito de cada uma delas e descobrir como transmitir sua
“essência secreta”. Ou seja, o tradutor precisa conhecer a língua e a
cultura que a formou para que o texto traduzido apresente-se não
só como uma versão dicionarizada de seu original, mas seja capaz
de reproduzir de forma adequada o que aquela obra tem de único,
seus efeitos e peculiaridades narrativas, mantendo suas caracterís-
ticas mais tênues e sutis.
A tradução é, assim, vista por Calvino como um diálogo en-
tre dois idiomas que devem ser explorados pelo tradutor para deles
extrair, com a máxima liberdade e criatividade possível, o que po-
de haver de mais particular em cada texto e contexto de produção,
garantindo sua aproximação com o original e, ao mesmo tempo,
a sensação de que a obra foi produzida diretamente no idioma pa-
ra o qual foi traduzida, “uma prosa que se leia como se tivesse sido
*
(Calvino, Italo. Sul tra-
durre. In: Barengui, Mario pensada e escrita diretamente em italiano”.* É interessante obser-
(org.). Italo Calvino. Saggi.
op. cit.: 1778.)
varmos, em relação a esse aspecto, como o próprio escritor por ve-
zes se embaraça nas traduções de seus textos em virtude dessa va-
riação cultural entre idiomas distintos. Em sua introdução ao livro
Italo Calvino: uno scrittore pomeridiano, William Weaver, que foi
durante muitos anos o tradutor das obras de Calvino para o inglês,
narra alguns episódios relativos ao processo de tradução do livro
Palomar. Weaver afirma que Calvino, em seus últimos livros, pas-
sou a acompanhar de perto e intervir nas traduções para o inglês,

258 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


inserindo modificações “no seu inglês”, que era muito mais teórico
que idiomático. Dentre essas intervenções Weaver destaca o uso da
palavra feedback, pela qual Calvino teria ficado fascinado e que in-
sistia em inserir no texto, ainda que o tradutor percebesse a inade-
quação da mesma para um texto literário na língua inglesa:
Na tradução de Palomar permaneceu fascinado pela palavra feedback.
Continuava a inseri-la no texto, e eu, com muito tato, continuava
a eliminá-la. Não conseguia fazê-lo entender que, assim como cha-
risma, input e bottom line, também feedback, por mais que pudesse
soar bem a um ouvido italiano, não era um termo apropriado para
uma obra literária em inglês.* *
(WEAVER, William; PETTI-
GREW, Damien (orgs.). Italo
Calvino: uno scrittore pome-
É, portanto, nessa fronteira cambiante que se situa a tradu- ridiano. Intervista sulla’arte
ção, é o fato de ser simultaneamente o mesmo texto e outro texto della narrativa. Roma: Mini-
mum Fax, 2003: 28-29.)
completamente diverso que garante sua importância e que possi-
bilita resultados narrativos interessantes e por vezes surpreenden-
tes. É isso que permite que um autor como Calvino afirme que,
por vezes, não se reconhece em sua própria obra traduzida, o que
não implica que essas traduções não tenham tido resultados satis-
fatórios. É isso que garante que a tradução seja um jogo sem ven-
cedores, um jogo com o intraduzível, no qual o melhor resultado
possível será sempre apenas uma aproximação.
Ao mesmo tempo em que aponta a intraduzibilidade de qual-
quer texto literário, Calvino lança a discussão sobre a tradução num
outro campo, não mais restrito à concretude do processo tradutó-
rio. Ao afirmar que traduzir é o verdadeiro modo de se ler um tex-
to, o escritor faz um movimento mais amplo, de aproximação entre
tradução, leitura e crítica. Segundo Calvino, o processo de traduzir
um texto exige que se debruce sobre o mesmo, por vezes trabalhan-
do palavra a palavra na tentativa de descobrir as melhores alterna-
tivas, de encontrar os melhores caminhos diante de grandes difi-
culdades. Esse processo exige uma leitura profunda do texto, uma
leitura que o ressignifique para outro contexto, que o interprete e
possibilite sua recriação numa outra linguagem.
E Calvino amplia ainda mais o campo do movimento tradu-
tório, abrangendo nesse processo não só o ato de traduzir, mas tam-
bém a leitura de traduções como instrumental e método crítico e
analítico. Se num primeiro momento ele afirma que um autor só
é verdadeiramente lido quando traduzido, ele amplifica a questão
ao indicar que a leitura verdadeira ocorre também no momento em
que se confronta o texto original e sua tradução, ou ainda de forma
mais abrangente, várias traduções de um mesmo original:

MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 259
É um exercício, sobretudo, que gostaríamos de recomendar não
apenas aos críticos mas a todos os bons leitores: como é notório,
se lê verdadeiramente um autor apenas quando se o traduz, ou se
confronta o texto com uma tradução, ou se comparam versões em
*
(Calvino, Italo. Sul tra- línguas diversas.*
durre. In: Barengui, Mario
(org.). op. cit: 1779.)
Nesse sentido, com Calvino assim como com Borges, é possí-
vel pensarmos a tradução como um processo que permite desnudar
a criação literária, um processo no qual se coloca em questão, de
forma controlada e precisa, o fazer literário. Com isso, a tradução
pode funcionar como método também para a crítica, que a partir
dela pode vislumbrar as dificuldades, os sucessos, as boas soluções
encontradas pelos escritores para desenvolver seus trabalhos.
É o que se percebe quando, em Se um viajante numa noite de
inverno – romance que poderia ser tratado como um texto de te-
oria da literatura, protagonizado pelo Leitor e pela Leitora, e no
qual são ficcionalmente discutidos os mais diversos aspectos con-
cernentes à literatura, como as ideias de autor, leitor, bibliotecas,
editoras, originais, cópias, falsificações, e inclusive a tradução –, o
professor Uzzi-Tuzii inicia a tradução oral de um texto numa lín-
gua quase desconhecida:
Ademais, o professor Uzzi-Tuzii começara sua tradução oral como se
não estivesse bem seguro do encadeamento das palavras umas com
as outras, voltando ao início do período para reordenar os deslizes
sintáticos, manipulando as frases até moldarem-se completamente,
amarrotando-as, retalhando-as, detendo-se em cada vocábulo para
ilustrar-lhe os usos idiomáticos e as conotações, acompanhando-se
de gestos envolventes como se para convidar você a satisfazer-se com
equivalências aproximativas, interrompendo-se para enunciar regras
gramaticais, derivações etimológicas, citações de clássicos. Mas,
quando você já está convencido de que para o professor a filologia
e a erudição significam mais que a narrativa, percebe que se trata do
contrário: aquele invólucro acadêmico só serve para proteger o que
o relato diz e não diz, o sopro interior sempre a ponto de perder-se
em contato com o ar, o eco de um saber desaparecido que se revela
*
(Calvino, Italo. Se um via-
jante numa noite de inverno.
na penumbra e nas alusões silenciadas.*
Tradução de Nilson Moulin.
São Paulo: Companhia das Calvino explicita nesse trecho de seu romance a tradução co-
Letras, 1999: 74.)
mo o que ele chamou de um trabalho de dúvidas, conceito que
pode ser aplicado também ao processo de criação literária, à escri-
ta, ao que ele identifica em seu processo criativo como “tradução
*
(Calvino, Italo. Seis pro-
postas para o próximo milê- em palavras” de uma imaginação visiva, de um mundo concreto.*
nio. 2. ed. Tradução de Ivo
Barroso. São Paulo: Compa-
Traduzir e dedicar-se à leitura da tradução transformam-se, assim,
nhia das Letras, 1995.) nas reflexões de Calvino, em instrumentos de leitura, em possibi-

260 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


lidade de elaboração crítica e também em uma forma de investigar
a literatura em seus mais variados aspectos.
Nesse ponto, o escritor italiano – de maneira semelhante ao que
indicamos em relação a Jorge Luis Borges – se aproxima da questão
abordada por Octavio Paz ao discutir a tradução poética e sua simetria
inversamente proporcional à criação poética, na qual precisa algumas
diferenciações entre os trabalhos de leitura, crítica e tradução:
O ponto de partida do tradutor não é a linguagem em movimen-
to, matéria-prima do poeta, mas a linguagem fixa do poema. Sua
operação é inversa à do poeta: não se trata de construir com signos
móveis um texto móvel, mas de desmontar os elementos deste tex-
to, pôr de novo em circulação os signos e devolvê-los à linguagem.
Até aqui, a atividade do tradutor é parecida com a do leitor e a do
crítico: cada leitura é uma tradução, e cada crítica é, ou começa a
ser, uma interpretação. Entretanto, a leitura é uma tradução dentro
do mesmo idioma, e a crítica é uma versão livre do poema ou, mais
exatamente, uma transposição. Para o crítico, o poema é um ponto
de partida para outro texto, o seu, enquanto que o tradutor, em
outra linguagem e com signos diferentes, deve compor um poema
análogo ao original. Assim, em um segundo momento, a atividade
do tradutor é paralela à do poeta, com esta diferença marcante:
ao escrever, o poeta não sabe como será seu poema; ao traduzir, o
tradutor sabe que seu poema deverá reproduzir o poema que tem
diante dos olhos. Em seus dois momentos a tradução é uma operação
paralela, ainda que em sentido inverso, à criação poética. O poema
traduzido deverá reproduzir o poema original, que, como já foi dito,
*
(Paz, Octavio. op. cit.:11-
não é sua cópia e sim sua transmutação.* 12.)

Apesar de extensa, a transcrição do trecho acima é elucidadora


para nossa discussão, uma vez que sistematiza questões discutidas
esparsamente por Calvino e aqui apontadas por nós. A tradução
confirma-se como procedimento literário, que ultrapassa em mui-
to uma simples transposição idiomática de textos, e que se desdo-
bra nos estudos literários de muitas e diversas maneiras.
Para finalizarmos nosso percurso pelo pensar a tradução em Italo
Calvino, chegamos a uma questão um tanto polêmica, que é o “escre-
ver bem”. Calvino afirma que escrever bem é condição essencial para
que se seja um tradutor, e que mais importante que os dicionários é
a consecução da harmonia e lógica interna do conjunto textual. Se a
tradução exige o conhecimento da língua e da cultura que a produ-
ziu, e se traduzir é também recriar um texto com possibilidades que
só aquele idioma lhe permite, é fundamental para que se tenha uma
boa tradução que se tenha, também, um bom escritor.

MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 261
Apesar de algumas diferenças entre as abordagens dos dois
autores, interessa-nos destacar a presença da reflexão sobre a tra-
dução poética em suas obras, e os desdobramentos dessas reflexões
no processo criativo dos próprios autores, marcados por um pro-
jeto literário que apresenta muitos pontos de convergência. Ainda
que não tracem uma teoria da tradução, Borges e Calvino apresen-
tam em seus estudos específicos sobre a tradução, em seus textos
ficcionais que têm a mesma por tema, na estruturação de sua obra
e em suas concepções acerca da literatura elementos que em muito
contribuem para que pensemos o lugar ocupado pela tradução no
campo literário, e nas consequências e possibilidades abertas pelos
processos tradutórios para a produção, a teoria e a crítica literárias
e culturais. Valorizando a tradução, eles não deixam de perceber e
apontar suas dificuldades, mas lembram-nos todo o tempo que es-
sas dificuldades são também a matéria-prima para inúmeras e va-
riadas possibilidades narrativas.

Maria Elisa Rodrigues Moreira


Doutoranda em Literatura Comparada e mestre em Teoria da Lite-
ratura pela UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Bol-
sista do CNPq, desenvolve pesquisas sobre as obras de Jorge Luis
Borges e Italo Calvino, tendo publicado o livro Saber narrativo: pro-
posta para uma leitura de Italo Calvino (Tradição Planalto, 2007)
e diversos artigos, como “Jorge Luis Borges e Italo Calvino: disse-
minações e diluições de textos outros” e “Reflexões sobre autoria
em Jorge Luis Borges e Italo Calvino”.

Resumo
Palavras-chave: tradução; li-
teratura; crítica; Italo Calvi-
O presente ensaio procura apontar as reflexões sobre a tradução
no; Jorge Luis Borges. presentes na obras de Jorge Luis Borges e Italo Calvino, identifi-
cando como para estes autores a tradução, assim como suas possi-
bilidades e limites, é pensada em íntima relação com outras con-
cepções de literatura que permeiam suas obras. Ainda que seus es-
critos sobre o tema sejam assistemáticos e não se possa falar de uma
“teoria da tradução” relativamente à obra desses autores, suas refle-
xões sobre os processos tradutórios e os desdobramentos das mes-
mas em suas obras ficcionais certamente produzem ecos na crítica
e na teoria literárias.

262 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Abstract Resumen
The present text aims to present El presente ensayo busca seña- Key words: translation; liter-
ature; criticism; Italo Calvi-
reflections on the translations lar las reflexiones sobre la tra- no; Jorge Luis Borges.

which are included in Jorge ducción presentes en las obras Palabras clave: traducción;
literatura; crítica; Italo Calvi-
Luis Borges and Italo Calvino’s de Jorge Luis Borges e Italo Cal- no; Jorge Luis Borges.
works. It identifies how these vino, identificando cómo para
writers saw translations, as well esos autores la traducción, así
as their possibilities and limits, como sus posibilidades y lími-
in close relationship with other tes, está pensada en íntima re-
literary concepts which perme- lación con otras concepciones
ate their works. Even when their de literatura presentes en sus
works about the theme are not obras. Aunque sus escritos sobre
systematical and it is not possi- el tema sean asistemáticos y no
ble to talk about a “translation se pueda hablar de una “teoría
theory” in relation to these au- de la traducción” relativamente
thors’ works, their reflections a la obra de esos autores, sus re-
on the translation process and flexiones sobre los procesos tra-
the developments of the same ductorios y los despliegues de las
in their fictional works, certain- mismas en sus obras ficcionales
ly produce echoes in criticism ciertamente producen ecos en la
and literary theories. crítica y en la teoría literarias.

Recebido em
11/06/2009

Aprovado em
25/07/2009

MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 263
A tradução de Guimarães Rosa na França
Claudia Borges de Faveri

Abordar a questão das traduções de Guimarães Rosa, para


quaisquer línguas, é tarefa fácil e tarefa difícil. Fácil porque, de al-
guma maneira, algo terá de ser deixado para trás, negociado, omi-
tido ou explicado. Suposta resenha se alimentaria, então, de todos
os obstáculos que, conscientemente ou não, o tradutor não trans-
pôs. Difícil porque, diante desta facilidade primeira, outro olhar
é requisitado para este exercício de transcriação – para utilizar um
termo caro a Haroldo de Campos – que precisa ser uma tradução
de Guimarães Rosa. Os Estudos da Tradução parecem por vezes
se colocar questões absolutas, traduzir o intraduzível é uma delas.
Traduzir o possível pode parecer, e ser, mais ameno. Mas o que é o
possível diante da escrita de Guimarães Rosa? A imensidão literá-
ria de seu texto, suas reverberações rizomáticas, seus multimatizes,
sua verticalidade metafísica, enfim, são silêncio eterno para o tra-
dutor desses espaços infinitos. Barthes nos inspira aqui: o possível
é o que se faz. Tautologia ou não, fiquemos com essa possibilidade,
talvez a única verdadeira que ao tradutor se apresenta.
Neste olhar dirigido ao estrangeiro que traduz e publica lite-
ratura brasileira, guiam-nos reflexões de teóricos que, de diferentes
maneiras, se voltam para a questão do outro, da diferença que ele
institui, de sua aceitação e acolhida, ou, ao contrário, de sua acultu-
ração, questão central no campo da tradução desde Friedrich Sch-
leiermacher (1813). Sendo assim, balizam nossa análise o tradutor
de carne e osso e a intercultura de Anthony Pym (1998), a tradu-
ção ética que é o “albergue do longínquo”, na bela fórmula de An-
toine Berman (1999), acompanhados de Lawrence Venuti (1995)
para quem as traduções são sempre, em certa medida, naturaliza-
das, ou domesticadas. Segundo Venuti (1995), a domesticação de
(VENUTI, Lawrence. The
uma tradução é sua redução aos valores culturais dominantes.* Ele
*

translator’s invisibility: a
history of translation. Lon- não descarta que o texto estrangeiro possa ser traduzido a partir de
don/New York: Routledge,
1995: 81.) um método estrangeirizante, mas esta não é a prática tradicional
da tradução no Ocidente, lembra-nos Berman, que insiste sobre o
*
(BERMAN, Antoine. La
traduction et la lettre ou
caráter destrutivo da prática tradutória em voga desde Roma.*
l’auberge du lointain. Paris: Será este nosso horizonte teórico e metodológico ao estudar
Seuil, 1999: 31-32.)
as traduções de Guimarães Rosa em francês. Em outras palavras,

264 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 264-277


interessa-nos qual Guimarães Rosa a França conhece. Como resol-
veram, se resolveram, seus tradutores, as dificuldades inegáveis tra-
zidas pela originalidade de sua escrita. Ao clássico, e normalmente
esvaziado, conceito de fidelidade preferimos a ideia de “unicidade”
(o termo “conceito” é aqui propositadamente evitado). Berman a
atribui a Boris Pasternak: a característica que faz de uma tradução
um texto autônomo, ligado ao original “como uma planta a seu
broto”, sendo ela mesma uma obra de arte, e não uma “pálida pa-
ráfrase” sem nenhuma força.* *
(BERMAN, Antoine. Pour
une Critique des Traduc-
Com este horizonte, postulamos que traduzir Guimarães Rosa tions: John Donne. Paris:
Gallimard 1995: 28.)
equivaleria, assim, não somente a transpor a inegável especificidade
de temas, palavras e expressões de uma realidade cultural particu-
lar, mas, sobretudo, estar à altura de um texto que se forma a par-
tir de procedimentos de escrita absolutamente inovadores, muitas
vezes desconcertantes.
Passemos, isto posto, ao que se fez com Guimarães Rosa em
francês. Segue, primeiramente, uma breve descrição dos caminhos
trilhados pelas traduções de suas obras, sua ordem de publicação,
quem são seus tradutores e as editoras que as publicaram. Estas in-
formações apenas aparentemente são acessórias. Elas dizem muito,
na verdade, sobre como um sistema literário acolhe determinado
texto, como ele será recebido por público e crítica, como se dará
sua trajetória neste novo ambiente cultural.
O primeiro livro de Guimarães Rosa traduzido para o fran-
cês foi Corpo de Baile, publicado pela Seuil em dois volumes, em
1961 e 1962, sob os títulos de Buriti e Les Nuits du Sertão. Pu-
blicado originalmente no Rio de Janeiro em 1956, Corpo de Bai-
le chega à França pelas mãos de Jean-Jacques Villard. É do mesmo
tradutor a primeira tradução para o francês de Grande Sertão: Ve-
redas, publicado pela Albin Michel, em 1965. Em francês a obra
passa a se chamar Diadorim. Villard traduzirá também, em 1969,
ainda para a Seuil, o terceiro volume de Corpo de Baile, com o tí-
tulo de Hautes Plaines.
Treze anos passarão antes que uma nova obra de Guimarães
Rosa chegue ao mercado editorial francês. Inês Oseki-Dépré traduz
Primeiras Estórias, em 1982: Premières Histoires. A editora é a peque-
na Métailié, que possui uma coleção intitulada “Bibliothèque Brési-
lienne”. Uma retradução de Grande Sertão: Veredas, por Maryvonne
Lapouge-Pettorelli é publicada em 1991, pela mesma Albin Michel
da primeira edição de 1965. Segue Tutaméia-Terceiras Estórias, em

CLAUDIA BORGES DE FAVERI | A tradução de Guimarães Rosa na França 265


1994, para a Seuil, traduzido por Jacques Thiériot. Curiosamente,
Sagarana, publicado no Brasil em 1946, só é apresentado ao pú-
blico francês em 1997, pelo mesmo tradutor: Jacques Thiériot. Ou
seja, lá chega como obra de escritor conhecido e consagrado, aqui,
livro de estreia de um Guimarães Rosa ainda desconhecido. Saga-
rana sai na coleção “Les Grandes Traductions” da Albin Michel, as-
sim como Grande Sertão: Veredas. Jacques Thiériot traduzirá ainda,
em 2000, Meu Tio o Iauaretê: Mon Oncle le Jaguard.
Temos aí quatro tradutores, seis obras traduzidas, uma retra-
dução, e, dado importante, retradução da obra maior do escritor.
Quem são estes tradutores? E por qual razão traduzem Guimarães
Rosa? Jean-Jacques Villard é tradutor profissional, traduz diversas
línguas e nada leva a supor uma relação mais íntima com o cenário
literário brasileiro. Apesar disso, é ele que vai introduzir Guimarães
Rosa no sistema literário francês, com suas traduções de Corpo de
Baile e de Grande Sertão: Veredas. Inês Oseki-Dépré, diferentemen-
te, é brasileira de nascimento, naturalizada francesa, professora de
literatura comparada na Universidade de Aix-en-Provence e tradu-
tora de autores brasileiros e portugueses consagrados: Haroldo de
Campos e Fernando Pessoa, além de Guimarães Rosa. Do mesmo
modo, o tradutor de Sagarana, Jacques Thiériot, parece ter com a
literatura brasileira uma relação bem mais próxima do que aque-
la que teria Villard. Além de Guimarães Rosa, Thiériot traduziu
Mario de Andrade, Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro e Luiz
Ruffato, entre outros. Maryvonne Lapouge-Pettorelli, que retra-
duz Grande Sertão: Veredas em 1991 é, especificamente, tradutora
de obras de autores brasileiros e portugueses.
Parece válido postular, neste cenário, uma mudança na rela-
ção de obras brasileiras traduzidas com o sistema literário francês.
Senão deste com o sistema literário brasileiro, ao menos com a obra
de Guimarães Rosa. E neste ponto é quase irresistível especular se
são esses tradutores que modificaram aquela relação ou se esta úl-
tima, em se transformando, exigiu novos tradutores. Uma relação
dialógica provavelmente despontaria no horizonte. Pym oferece a
hipótese inicial de que tradutores são as causas ativas e efetivas de
traduções, e por isso eles merecem a atenção de pesquisadores, que
frequentemente os deixam de lado, em favor de análises compara-
tivas, literárias ou textuais. À figura abstrata, impessoal e invisível
do tradutor, Pym propõe um tradutor de carne e osso, que tem um
corpo, se move, tem desejos: “I refer to people with flesh-and-blood

266 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


bodies. If you prick them, they bleed”.* Marie-Hélène Torres cha- (PYM, Anthony. Method
*

in translation history. Man-


ma a atenção sobre o ambiente da tradução, que seria “o conjun- chester, UK: St Jerome Pu-
blishing 1998: 161.)
to de fatores interdependentes que vão produzir um certo impac- *
(TORRES, Marie-Hélène
to sobre a tradução”.* A seleção e a iniciativa da tradução, de seus C. Variations sur l’étranger
dans les lettres: cent ans de
editores e tradutores são alguns desses fatores. Quem teve a ideia traductions françaises des
e a iniciativa de traduzir determinada obra? O editor? O tradutor? lettres brésiliennes. Arras:
Artois Presses Université,
O quanto este último está pessoalmente envolvido com determi- 2004: 50.)

nado projeto de tradução?


Quatro tradutores, diferentes trajetos e motivações. Jean-Jac-
ques Villard e Maryvonne Lapouge-Pettorelli parecem correspon-
der muito mais à figura tradicional do tradutor profissional, tra-
duzindo para uma grande editora, influenciando muito pouco no
projeto tradutivo que realizam. Inês Oseki-Dépré e Jacques Thié-
riot, ao contrário, parecem, de maneira muito mais clara, situar-se
no que Pym (1998) chama de intersecção de culturas, com uma
relação muito próxima com o Brasil e sua literatura. Ao que tudo
indica, por exemplo, foi Thiériot quem sugeriu a Antunes Filho a
adaptação teatral de Macunaíma, como o próprio diretor conta em
entrevista à Folha de S. Paulo:
Aí alguém escrevia. A gente avançou assim, cena por cena. Quando
juntou mais ou menos tudo, dava seis horas de espetáculo. Aí a
gente chamou o homem que estava vertendo para o francês, Jacques
Thiériot. “Fica ali na mesinha escrevendo”, outro ficava fazendo a
cena, e foi assim. Foi assim que foi criado, na base da improvisação
o tempo todo. [...] A ideia do Macunaíma sabe quem deu? Foi o
próprio Jacques Thiériot, na mesa do Gigetto (restaurante em São
Paulo). Foi aí que eu fui pegar. Eu peguei e li.1

Esse episódio parece ilustrar a relação de Thiériot com o uni-


verso cultural brasileiro, e esta é uma relação próxima. O mesmo
pode ser dito sobre Oseki-Dépré, que mantém estreita relação com
o sistema literário brasileiro, tanto como tradutora quanto como
pesquisadora da área. A afirmação segundo a qual “an un-specified
number of translators can be seen as members of intercultures or
(PYM, Anthony. Method
as having some degree of interculturality”* circunscreve bastante
*

in translation history. Man-


apropriadamente o lugar e o horizonte destes dois tradutores, re- chester, UK: St Jerome Pu-
blishing 1998: 177.)
lativamente aos sistemas literários francês e brasileiro.
Grande Sertão: Veredas já havia sido traduzido pelos america-
nos, em 1963, e pelos alemães, em 1964, quando chegou pela pri-

1
Entrevista concedida a Nelson de Sá e Marcelo Rubens Paiva para o jornal Fo-
lha de S. Paulo de 6 de fevereiro de 2000.

CLAUDIA BORGES DE FAVERI | A tradução de Guimarães Rosa na França 267


meira vez na França, em 1965. Vinha então como obra já consagra-
da no mercado literário internacional, talvez por isso tenha mereci-
do fazer parte da coleção “Les Grandes Traductions” de uma pres-
tigiada editora como a Albin Michel. A obra-prima de Guimarães
Rosa é retraduzida vinte e seis anos depois, publicada na mesma
coleção e reeditada pelo menos mais duas vezes até o fim da déca-
da. As duas reedições que seguem, em 1995 e 1997, se distinguem
pelo fato de a primeira delas ser publicada numa edição de bolso,
o que atesta seu sucesso comercial, e a segunda merecer uma edi-
ção mais cara em termos editoriais. Em ambos os casos, o sucesso
e a estabilidade da obra no mercado francês se evidenciam. Uma
terceira reedição de Grande Sertão: Veredas (em francês: Diadorim),
em 2006, parece confirmar esta interpretação.
Curiosamente, as traduções para as outras línguas europeias
conservam o título original, ou pelo menos parte dele: Grande Ser-
tao: Roman em alemão, Grande Sertao: Romanzo em italiano e Gran
Serton: Veredas em espanhol. Os dois tradutores franceses preferiram
Diadorim como título. As razões desta escolha não são menciona-
das em parte alguma. Torres (2004) sugere que talvez se tenha que-
rido evitar uma confusão possível com a tradução de Os Sertões, de
Euclides da Cunha, cuja tradução de 1947 havia recebido o título
francês de Les Terres de Canudos – Os Sertões. Ou ainda, sempre se-
gundo Torres (2004), estaríamos diante de uma tentativa de evitar
um título muito estrangeiro e pouco familiar, com termos muito
marcados, como “sertão” e “veredas”. O que é inegável, quaisquer
que tenham sido as razões desta mudança, é que Diadorim, como
título, certamente direciona muito mais a leitura para a trama/ro-
mance/mistério que envolve a personagem Reinaldo/Diadorim do
que faz a obra original ou suas outras traduções europeias.
Os prefácios e textos que acompanham as traduções de Gran-
de Sertão: Veredas, em 1965 e 1991, o que Gérard Genette (1982)
(GENETTE, Gérard. Palimp-
chama de “paratextos”,* podem demonstrar o grau de comprome-
*

sestes. La littérature au second


degré. Paris: Seuil, 1982.) timento do tradutor com sua obra e também, não menos relevante,
qual a importância que a editora empresta a este projeto de tradu-
ção. A tradução de 1965 vem acompanhada tão somente de uma
nota do tradutor, Jean-Jacques Villard, na qual nada se fala de tra-
dução. O tradutor não nos informa sobre sua visão de tradução ou
que estratégias tradutivas empregou, seu projeto e horizonte de tra-
dução permanecem ocultos ou inconscientes. Limita-se a situar a
trama e resumir (!) a obra em poucas linhas. Para uma obra impor-

268 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


tante, como é Grande Sertão: Veredas, e considerando-se que é esta
a tradução que a introduz no cenário literário francês, a ausência
de informações, a não ser por um pequeno texto elogioso na con-
tracapa, faz pensar que o acompanhamento e investimento edito-
rial na obra apresentam lacunas consideráveis.
Duas décadas e meia depois, nova tradução e nova edição pa-
recem evidenciar um outro olhar sobre a obra. Agora há um prefá-
cio de Mario Vargas Llosa que empresta notoriedade à obra, visto
que o escritor peruano é bastante conhecido e apreciado na Fran-
ça. Segue o prefácio um “avant-propos”, que é na realidade um ex-
certo da correspondência de Guimarães Rosa com Edoardo Biz-
zarri, seu tradutor italiano, no qual o autor explica certos termos
topográficos e geográficos: veredas, chapadas, chapadões, cerrado
e outros. Nenhuma alusão é feita ao fato de que este texto foi es-
crito no contexto da tradução de Corpo de Baile, que fazia Bizzarri
à época da correspondência.
Encerra o conjunto dos paratextos que antecedem a obra uma
nota da tradutora, não mais que dois parágrafos, na qual ela expli-
ca sua estratégia de tradução para os numerosos termos relativos
à fauna e flora. Ela explica que segue as recomendações feitas pelo
próprio Guimarães Rosa ao primeiro tradutor francês e também a
seu tradutor italiano, quais sejam: substituir termos brasileiros por
termos franceses familiares, sem preocupar-se muito com a exati-
dão, utilizar procedimentos pouco usuais de criação vocabular mis-
turando as duas línguas (o que a tradutora confessa achar surpreen-
dente) e, finalmente, dar preferência às dimensões poética e míti-
ca, que devem “dans l’esprit des traducteurs, et des lecteurs futurs,
* (LAPOUGE-PETTORELLI,
toujours primer sur celle de l’immédiate réalité”2* Um detalhe des- Maryvonne. “Note de la tra-
ta edição que não pode deixar de surpreender é a fotografia da ca- ductrice”. Em: ROSA, João
Guimarães. Diadorim. Paris:
pa: um vaqueiro gaúcho laçando cavalos. A referência da fotogra- Albin Michel, 1991: 17.)

fia é dada na contracapa: “Adelante cavalos! Gaucho brésilien da la


Campanha (D.R.).” Talvez seja o caso de lembrar: trata-se da tra-
dução da obra maior de um de nossos maiores autores, mundial-
mente reconhecido, e de uma tradução para uma das mais presti-
giadas editoras francesas.
Sagarana, como já dissemos, teve tardia publicação (1997)
em terras francesas. A tradução é publicada pela Albin Michel, na
coleção “Les Grandes Traductions”, como a primeira tradução de
2
[...] no espírito dos tradutores, e dos leitores futuros, sempre primar sobre aque-
la da imediata realidade.

CLAUDIA BORGES DE FAVERI | A tradução de Guimarães Rosa na França 269


Grande Sertão: Veredas trinta e dois anos antes. Como em muitas
outras traduções de autores brasileiros, aparece na contracapa a in-
dicação: “traduit du brésilien par”, o que denota certo cuidado e
interesse dos editores em bem demarcarem que estão conscientes
das diferenças linguísticas e culturais entre Brasil e Portugal, e mais,
que esta tradução específica as leva em conta.
A edição francesa de Sagarana conta ainda com um prefácio
do tradutor e um glossário em fim de volume. A conhecida carta a
João Condé, em que Guimarães Rosa fala de seu trabalho de com-
posição em Sagarana, é também traduzida e figura à guisa de pre-
fácio. O prefácio de Thiériot lança alguma luz sobre sua relação
com o texto de Guimarães Rosa e, citando a correspondência deste
com Edoardo Bizarri, lembra a preocupação do autor com a músi-
ca e a cor dos vocábulos, com sua força expressiva em um sistema
de ecos e ressonâncias. Nota que as novelas e contos de Sagarana
são uma incursão nos diversos caminhos da escrita e que a língua
de Guimarães Rosa “se fraie, dans l’univers à la fois géographique
et métaphysique de Minas Gerais, des voies parfois tortueuses, se-
(THIÉRIOT, Jacques, “No-
mées de pièges”.3* Uma sensação de estranheza espacial e temporal
*

te du traducteur”. Em: RO-


SA João Guimarães. Saga- assalta, segundo ele, o tradutor, que deve procurar seus apoios na
rana. Paris: Albin Michel,
1997: 8.) erudição do escritor – erudição que é, ao mesmo tempo, artesanal
e telúrica, livresca e esotérica – e, também, na ambição de Guima-
rães Rosa pela língua perfeita.
O prefácio de Jacques Thiériot em Sagarana, em muitos as-
pectos, se diferencia daqueles dos tradutores de Grande Sertão: Ve-
redas. Logo de início ele situa a obra em suas origens e explicita,
sem ambiguidades, seu texto de referência: a sexta edição de 1960.
O tom é francamente pessoal, fala de suas dificuldades e desejo.
Aqui, o tradutor se mostra, não é invisível e, através de sua relação
com o autor que traduz, ele se torna a ponte que liga, ou espelho
que mostra o autor ao leitor que o lê:
nous avons jouté, joué, cherchant dans le défi verbal les reflets en
français des éclats, fulgurances et mystères de la langue de João
Guimarães Rosa, mais aussi – téméraire projet – les échos des “ar-
*
(THIÉRIOT, Jacques, “No- chétypes” que celui-ci voulait “traduire” dans son écriture.4*
te du traducteur”. Em: RO-
SA João Guimarães. Saga-
rana. Paris: Albin Michel,
3
[A língua de Guimarães Rosa] abre, no universo ao mesmo tempo geográfico e
1997: 8.) metafísico de Minas Gerais, vias às vezes tortuosas, permeadas de armadilhas.
4
[...] nós duelamos, jogamos, procurando no desafio verbal os reflexos em fran-
cês dos clarões, fulgurâncias e mistérios da língua de João Guimarães Rosa, mas
também – temerário projeto – os ecos dos “arquétipos” que ele queria “tradu-
zir” em sua escrita.

270 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Inês Oseki-Dépré, tradutora de Primeiras Estórias, é profes-
sora de literatura comparada na Universidade de Aix-en-Provence,
pesquisadora da área de Estudos da Tradução e tradutora de autores
brasileiros e portugueses importantes. Sua relação com os sistemas
literários francês e brasileiro acrescenta, portanto, um tom especia-
lizado ao conjunto de tradutores de Guimarães Rosa na França. Em
seu livro Théories et Pratiques de la Traduction Littéraire (1999), ela
relata a experiência de traduzir Guimarães Rosa e apresenta uma
análise crítica de sua própria tradução. Mostrando os limites que
encontrou no seu processo tradutivo, ela abre caminho para des-
vendar em que medida a prosa de Guimarães Rosa, na confluência
de duas línguas, é o lugar do encontro com o outro. Segundo a au-
tora/tradutora, traduzir, neste caso, é muito mais do que dominar
duas línguas ou conhecer profundamente duas culturas:
Il s’agit, par conséquent, de maintenir les écarts ou les rapports en-
tre la “langue” de l’auteur et le portugais “standard”, en ce qui cela
comporte de travail et de recherche, et entre les différents registres
qui différencient les vingt et une histoires les unes des autres, voire
les diverses voix qui se parlent dans chacune d’elles, dans une autre
langue, ici le français, avec tout ce que cela implique de résistences
linguistiques et culturelles.* *
Trata-se, portanto, de man-
ter os desvios ou as correla-
ções entre a “língua” do au-
Dos tradutores e seu universo, seus prefácios, suas análises, tor e o português “standard”,
com tudo o que isso compor-
a profundidade de seu desejo de encontro com uma outra escrita, ta de trabalho e de pesquisa,
voltamos agora aos textos, às traduções propriamente ditas, que nos e entre os diferentes regis-
tros que diferenciam as vin-
falam desse desejo, ou da ausência dele. E também, consequente- te e uma histórias umas das
outras, e mesmo as diversas
mente, do Guimarães Rosa que chegou aos leitores franceses. vozes que se falam em cada
uma delas, em uma outra lín-
Quando Berman defende seu conceito de tradução ética, ele gua, aqui o francês, com tu-
desvenda as tensões subjacentes ao ato tradutório, no qual a noção do o que isso implica de re-
sistências linguísticas e cul-
clássica de bela escrita e a supremacia do sentido, em detrimento da turais. (OSEKI-DÉPRÉ, Inês.
Théories et pratiques de la
forma, são, no mais das vezes, um freio, mesmo que inconsciente, traduction littéraire. Paris: Ar-
ao processo de deixar a prosa literária se manifestar em toda sua he- mand Colin, 1999: 230.)

terogeneidade. A grande prosa “capte, condense et entremêle tout


l’espace polylangagier d’une communauté. Elle mobilise et active
la totalité des “langues” coexistant dans une langue”.5* Ele cita, co- (BERMAN, Antoine. La
*

traduction et la lettre ou
mo exemplo, Balzac, Proust, Joyce, Roa Bastos e Guimarães Rosa. l’auberge du lointain. Paris:
Seuil, 1999: 50.)
Daí, segundo Berman, certa informidade, resultante do cosmos de
línguas e registros atuando na obra. Para ele, homogeneizar o hete-

5
[A grande prosa] capta, condensa e mistura todo o espaço polilinguístico de
uma comunidade. Ela mobiliza e ativa a totalidade das “línguas” que coexistem
em uma língua.

CLAUDIA BORGES DE FAVERI | A tradução de Guimarães Rosa na França 271


rogêneo é trair a obra de arte naquilo que ela tem de mais essencial:
sua polilogia informe. A grande prosa literária apresenta uma estru-
tura que manifesta sua negação da bela forma, da língua padrão san-
cionada culturalmente. Mal traduzir equivale, então, a tornar claro
o que no original não é, explicando, quebrando o ritmo e a sintaxe
originais em nome de certa ideia de ordem do discurso.
A tradução ética é a que deixa falar o estrangeiro, a que aco-
lhe o outro em sua especificidade, o que implicaria a abertura ao
diferente e na descentralização em relação aos próprios valores. À
tradução ética Berman opõe o que ele chama de tradução etnocên-
trica, ou, nos termos de Venuti (1995), a domesticação, que des-
trói o texto original em favor dos valores culturais dominantes. A
tradução etnocêntrica opera em vários níveis do texto, num com-
plexo sistema de deformações que vão pouco a pouco minando o
original, destituindo-o de sua força e especificidade. Saber ouvir
esta força exige do tradutor um trabalho que é bem maior do que
a simples – e, muitas vezes, nem tão simples assim – transposição
entre línguas. Na tradução que criticam Berman e Venuti, é como
se o tradutor esquecesse muito do que provavelmente sabe de li-
teratura, e o que fez brotar nele o desejo de traduzir, seu convívio
com as obras, sua emoção ao ler esta ou aquela passagem, aquilo
que o fez voltar ao texto mais uma vez e compreender, num lapso,
o que é fazer arte com palavras.
Um exemplo disso é o que Berman (1999) chama de des-
truição de sistematismos: a perda de marcas próprias ao original e
que formam um sistema de significações, ultrapassando o nível do
significante, criando ritmo e se mostrando como texto. Pode ser o
uso de um tipo de construção, uma frase, uma palavra que retorna
de tempo em tempo. Sabemos o quanto, em Guimarães Rosa, tais
procedimentos são abundantes, mas escolhemos apenas um que,
em nosso entendimento, ilustra o que viemos dizendo. “Nonada”,
a palavra que abre o Grande Sertão: Veredas. Ali, solitária, forte, por-
ta de entrada, ela volta várias vezes ao longo do texto, ritmando o
solilóquio-avalanche de Riobaldo Tatarana. Não é, portanto, pala-
vra qualquer. Se existe palavra que mereça este adjetivo em Grande
Sertão: Veredas, “nonada” não é certamente uma delas.
As duas traduções francesas selecionam dois modos de trata-
mento diferentes para a palavra. Jean-Jacques Villard se prende ao
sentido, deixando de lado o caráter de negação do termo: ‘foutai-
ses’ (coisa insignificante), ‘bêtises’ (besteira), “quelque peu” (um

272 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


pouco). Maryvonne Lapouge-Pettorelli escolhe, às vezes, um termo
que possui o aspecto de negação: “que nenni” (nada). Outras vezes,
traduz apenas o sentido: “des sornettes” (invencionices), “broutil-
les” (coisa insignificante). Qualquer que fosse a escolha dos tradu-
tores – não nos interessa proceder aqui, a uma “caça à palavra” –
inegável é o fato de que “nonada” se perdeu na tradução francesa.
O sistematismo do texto original desapareceu: “não é mais nada”.
O tradutor à escuta do autor que traduz escolheria um termo que
tivesse a força do termo original (“que nenni”, neste sentido, pare-
ce-nos a escolha mais feliz), e o repetiria à exaustão, se assim fosse
preciso, cada vez que “nonada” despontasse.
Em sua análise sobre a tradução dos neologismos em Grande
Sertão: Veredas, Torres (2004) mostra que ambos os tradutores em-
pregam estratégias de criação lexical, mas que este emprego é pon-
tual. Assim, aparecem, em ambas as traduções, aqui e ali, marcas
da invenção dos tradutores: “jaguncerie” (jagunçagem), “essaim-es-
saimant” (xamenxame), “parlementeries” (parlagem), “désenfoller”
(desendoidecer).* Mas essa criação é tímida, perdendo-se a maioria (TORRES, Marie-Hélène
*

C. Variations sur l’étranger


das palavras criadas por Guimarães Rosa num oceano de um fran- dans les lettres: cent ans de
traductions françaises des
cês absolutamente normal. Esta é, ainda, uma situação de destrui- lettres brésiliennes. Arras:
Artois Presses Université,
ção de sistematismos. A coisa toda se passa como se os tradutores 2004: 240-243.)
não conseguissem ultrapassar certo limite de ousadia em seus tex-
tos. Assim, inventam um pouco, dão um passo a frente em dire-
ção ao seu autor, mas logo voltam à segurança da língua comum,
como se não ousassem transpor um limite de aceitabilidade qual-
quer, limite este que lhes é culturalmente imposto. O resultado é
sempre um texto que não é verdadeiro, não se institui como texto,
não irradia sua própria verdade.
A destruição dos sistematismos faz de uma tradução um não-
texto, mas o que é ainda mais insidioso é que esta destruição per-
manece muitas vezes escondida, “dissimulée par ce qui reste de la
systématicité de l’original”.6* Resta um mal-estar, o leitor que co- *
(BERMAN, Antoine. La
traduction et la lettre ou
nhece Guimarães Rosa não o reconhece, aquele que não o conhe- l’auberge du lointain. Paris:
Seuil, 1999: 63.)
ce, não o conhecerá. O leigo não sabe dizer a razão, mas sente que
falta algo ali, pensa que é porque as línguas são irredutíveis e que
traduzir é trair. Nada mais longe da verdade quando o tradutor sabe
ver num texto sua trama, reconhece seus sistematismos, suas zonas
de força. A tradução atinge, então, relativamente a seu original, o
que Boris Pasternak chama de uma dependência mais real e atinge
6
[...] dissimulada pelo que resta da sistematicidade do original.

CLAUDIA BORGES DE FAVERI | A tradução de Guimarães Rosa na França 273


sua própria unicidade: “Si la traduction est concevable, c’est dans
la nature où, idéalement, elle doit être aussi une œuvre d’art, et at-
teindre, à partir d’un texte commun, le niveau de l’original grâce
(PASTERNAK, Boris, 1990:
à sa propre unicité.”7*
*

1343-1344 apud BERMAN,


Antoine. Pour une Critique O sistema de deformações denunciado por Berman age em
des Traductions: John Donne.
Paris: Gallimard 1995: 28.) vários níveis do texto, podendo ser mais ou menos destrutivo, a de-
pender da esfera em que atua. Não nos parece válido proceder ao
exame de todas as deformações presentes nesta ou naquela tradu-
ção, apontar erros é certamente mais fácil do que propor soluções
viáveis, o que nos faz pensar em Lutero em sua Carta Aberta sobre
a Tradução de 1530: “Quem constrói junto ao caminho tem mui-
(LUTERO, Martinho. “Car-
tos mestres.”* Berman (1995) fala de uma crítica produtiva, aque-
*

ta aberta sobre a Tradução”.


Trad. de Mauri Furlan. Em: la que aponta as inconsistências para aprofundar a autoconsciên-
FURLAN, M. (org.). Clássi-
cos da Teoria da Tradução. cia do ato tradutivo, no esforço de articular os princípios de um
Antologia bilíngue, vol. 4,
Renascimento. Florianópo- novo projeto de tradução.
lis: NUPLITT, 2006: 97.)
Inês Oseki-Dépré, na análise que faz de sua própria tradução,
aponta soluções comprometidas com um projeto tradutivo que se
quer coerente. Respeitar a dinâmica literária do original, seus níveis
de criatividade, tons e nuanças, sem perder a coerência da poéti-
ca profundamente particular do autor, deve constituir o horizonte
do tradutor. Se ela reconhece que nem tudo pode ser transposto,
sendo o francês uma língua muito mais rígida e apegada a padrões
clássicos da boa escrita, ela também propõe uma constante negocia-
ção. Lá onde o francês permite, a inovação deve vir. Segundo a tra-
dutora, os procedimentos puramente poéticos, que não se chocam
com o modelo da língua estabelecida, sendo sobretudo o produto
de um movimento criativo pessoal, permitem ao tradutor uma es-
fera de negociação e inovação bem maior. Entram aí as onomato-
peias (glougloussements, murmurmurs, entretamtemps), alitera-
ções (nous nettoyons nos nettes lunettes), rimas, jogos de palavras,
refrões, etc. Ela, no entanto, admite que uma língua como o fran-
cês, embora muito rica, “est peu permissive en ce qui concerne ses
(OSEKI-DÉPRÉ, Inês. Théo-
structures et les habitudes de lecture-écriture de ses usagers”.8*
*

ries et pratiques de la traduc-


tion littéraire. Paris: Armand A Análise que a tradutora apresenta de sua própria tradução,
Colin, 1999: 234.)
a sua tradução de Primeiras Estórias em si e as traduções de Jacques
Thiériot mostram que Guimarães Rosa vem sendo diferentemente
7
Se a tradução é concebível, é pelo fato de que, idealmente, ela deve ser tam-
bém uma obra de arte, e alcançar, a partir de um texto comum, o nível do origi-
nal graças à sua própria unicidade.
8
[...] é pouco permissiva no que concerne a suas estruturas e aos hábitos de lei-
tura-escrita de seus usuários.

274 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


traduzido para a língua francesa. De suas primeiras traduções, nos
anos sessenta, a estas Premières Histoires até Mon Oncle le Jaguard,
seu universo cultural e poético se desdobra, permitindo ao leitor
francês uma melhor aproximação com sua obra. E este progresso
se deve muito a estes tradutores que fazem seu um projeto, às ve-
zes, francamente desbravador. Este é o percurso de Guimarães Ro-
sa, talvez ainda não o ideal, na língua de Montaigne.
Mas..., paradoxalmente, era o próprio Montaigne que dizia:
“que le gascon y aille, si le français n’y peut aller.”9
Repensando o pensado, à guisa de considerações finais, pare-
ce válido contemplar “autrement” o universo das traduções de Gui-
marães Rosa em francês, e quase não resistimos a perguntar se a tão
propalada “facture classique” do francês não é senão o apego a uma
ideia de língua, que uma cultura cria e recria, à medida que vai re-
forçando suas estruturas culturais e institucionais. É inegável que
a língua francesa, desde o classicismo, e mesmo antes, se construiu
sobre uma ideia de elegância e clareza, mas também é verdade que
os “inventores da língua” também lá existem, como aqui. Raymond
Queneau, Michel Leiris, Jean Genet, Georges Perec torceram e retor-
ceram, com talento e felicidade, para nossa sorte e deleite, esta língua
tão pouco permissiva que dizem ser o francês. É Raymond Queneau,
por exemplo, que, já em 1959, em Zazie dans le métro, abre seu ro-
mance com a emblemática expressão: “Doukipudonktan”.10
O que linguistas já sabem desde algum tempo, e escritores
muito antes deles, é que não é a língua “em si” que impõe rígidas
estruturas ou hábitos de leitura e escrita imutáveis. Simplesmente
porque a língua “em si” não existe. E se ela existir, na rigidez dos
dicionários e gramáticas, e no desejo de controle que engendra o
preconceito dos guardiões da língua padrão – mas aí é língua mor-
ta –, será sempre pela arte e para a arte que se transformará. O tra-
dutor é um dos agentes desta transformação, pois a tradução mu-
da a língua, como também o faz (pode fazer) a literatura. Se no di-
zer de Riobaldo Tatarana “viver é muito perigoso”, traduzir tam-
bém é. E traduzir Guimarães Rosa ainda mais, na medida em que
exige do tradutor esta coragem de forçar a língua, talvez de defor-
má-la, até. Quando Antoine Berman (1999) se insurge contra o

9
Que o gascão vá, se o francês não pode ir.
10
Escrita fonética de: “D’où qui pue donc tant”. Frase por si mesma inusual em fran-
cês significando, literalmente: “onde quem fede tanto”. O leitor que abre Zazie dans
le métro se depara com a frase: “Doukipudonktan, se demanda Gabriel excédé.”

CLAUDIA BORGES DE FAVERI | A tradução de Guimarães Rosa na França 275


que ele chama de figura destrutiva da tradução ocidental, quando
ele demonstra em suas análises o quanto um texto que era literário
transformou-se, tão somente, em um texto correto, são sempre as
mesmas vozes em contrário que se ouvem. Vozes dizendo que a lín-
gua não permite isso e aquilo, que a sintaxe não comporta esta ou
aquela modificação, que o leitor não vai entender por que “aquilo”
não existe na sua língua. Número de razões que reforçam o que já
existe, o que institucionalizado está. A função da tradução é outra,
certamente. “Travessia”.

Claudia Borges de Faveri


Doutora em Sciences et Techniques du Langage pela Université de
Nice – Sophia Antipolis (1995) e professora da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina, no Departamento de Língua e Literatura
Estrangeiras e na Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET).
Atua na área de Teoria, Análise e Crítica da Tradução, com ênfase
nos seguintes campos: teoria, análise e história da tradução, tradu-
ção literária e literatura traduzida. Entre suas últimas publicações
destacam-se Marcel Schwob em tradução. Cadernos de Tradução,
v. XXI, p. 123-134, jan./jun. 2008 e O problema da temporali-
dade em tradução. In: Andréia Guerini; Marie-Hélène Catherine
Torres; Walter Carlos Costa (orgs.) Literatura traduzida e literatu-
ra nacional. São Paulo: 7 Letras, 2008, p. 112-117.

Resumo
Palavras-chave: teoria da tra-
dução; literatura brasileira Guimarães Rosa vem sendo traduzido para o francês desde 1961.
traduzida; França; Guima-
rães Rosa.
Quem são os agentes desta passagem, editores e tradutores, qual
sua relação com a literatura brasileira e como estes aspectos deter-
minam a maneira pela qual a obra do autor é apresentada ao siste-
ma literário francês? A análise de elementos propriamente textu-
ais de algumas traduções também balizam esta reflexão, que busca
compreender como a França recebe a prosa complexa de Guima-
rães Rosa, como e em que medida a transforma.

276 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Abstract Résumé
Guimarães Rosa has been trans- Guimarães Rosa est traduit en Key words : translation
theory; brazilian litera-
lated into French since 1961. français depuis 1961. Qui sont ture in translation; France;
Guimarães Rosa.
Who are the agents of this trans- les agents de ce passage, éditeurs
Mots-clés: théorie de la tra-
position, publishers and trans- et traducteurs, comment se pré- duction; littérature brési-
lators, how do they relate to the sente leur relation avec la litté- lienne traduite; France; Gui-
marães Rosa.
Brazilian literature and how do rature brésilienne et dans quel-
they determine the way the au- le mesure ces aspects vont dé-
thor’s work is presented to the terminer l’insertion de l’oeuvre
French literary system? The de l’auteur dans le système lit-
analysis of textual aspects in it- téraire français. Notre réflexion
self extracted from some trans- est également guidée par l’ana-
lations also guides this con- lyse d’éléments proprement tex-
sideration that tries to under- tuels de certaines traductions,
stand how the complex prose dans le but de comprendre com-
of Guimarães Rosa is received ment la France accueille la pro-
in France, how and to what ex- se complexe de Guimarães Ro-
tent it is transformed. sa et dans quelle mesure elle la
transforme.

Recebido em
20/06/2009

Aprovado em
25/07/2009

CLAUDIA BORGES DE FAVERI | A tradução de Guimarães Rosa na França 277


Best-sellers em tradução: o substrato
cultural internacional

Marie Helene Catherine Torres

Nosso interesse em relação ao best-seller em tradução manifes-


tou-se quando analisamos romances best-sellers internacionais, ou se-
ja, romances traduzidos, e atestamos que o estatuto dos tradutores e
a inexistência do estrangeiro nas ficções eram características compro-
*
(Torres, Marie Helene
C. Variations sur l´étranger
vadas.* O fenômeno do best-seller em tradução pode ajudar os estu-
dans les lettres. Cent ans diosos de tradução a entender melhor o funcionamento das culturas
de traductions françaises
des lettres brésiliennes. Lil- nos mapas-mundi da literatura a partir das estratégias de apresen-
les: Artois Presse Universi-
té, 2004.)
tação dos textos traduzidos. Ademais, a análise dos best-sellers pode
não somente permitir que se apreciem as variações estratégicas de
tradução, mas também servir de teste para avaliar outras traduções
de uma área cultural específica dentro de um sistema literário e cul-
tural determinado. Certa sistematização de modelos parece aplicar-
se particularmente a publicações de best-sellers, muitas vezes perten-
cendo a uma única editora e traduzidos por um só tradutor.
O leitor pode verificar nas contracapas que esses textos foram
traduzidos em várias línguas, o que lhes conferem credibilidade. É
o que ocorreu, por exemplo, com os romances de um autor brasi-
*
(Coelho, Paulo. L’alchi-
miste. Trad. Jean Orecchio-
leiro de best-sellers, Paulo Coelho,* que usamos para nosso propósi-
nni. Paris: Anne Carrière, to como parâmetro comparativo. A apresentação da tradução para
1994: 8.)
o francês de L’Alchimiste revela que, além do resumo da obra, Coe-
lho é um autor muito conhecido na América Latina e que seus li-
vros estão entre os mais vendidos no mundo. Geralmente, os textos
impressos na contracapa dos best-sellers se limitam mesmo a apre-
sentar um resumo da obra, especificando o número de línguas nas
quais foram traduzidos. Nada sobre a tradução ou o trabalho do
tradutor. Outra regra geral para os best-sellers é que o discurso de
acompanhamento, isto é, prefácios, introduções, notas do tradu-
tor e outro pósfacio, é inexistente. A função do discurso de acom-
panhamento bem como a do metatexto (notas e glossários) é de
informar um público leitor específico, e particularmente interes-
sado em precisões culturais, intelectuais, literárias. Mas os leitores
de best-sellers não têm o privilégio de uma apresentação do autor
ou do tradutor pois o próprio do best-seller é ser acessível a um pú-
blico vasto e heterogêneo, tanto social, intelectual, cultural e pro-

278 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 278-283


fissionalmente, quanto do ponto de vista da idade, do sexo, etc. –
público que notas ou prefácios “incomodariam”.
*
(Venuti, Lawrence. The
Venuti,* que dedica um capítulo inteiro aos best-sellers no seu scandals of translations. Lon-
livro The scandals of translation, afirma que, para publicar um best- don/New York: Routledge,
1998: 124.)
seller, a atenção dos editores em relação a textos estrangeiros se volta
para os que já têm um sucesso comercial confirmado na sua cultu-
ra de origem, tendo em vista renovar e perpetuar performances si-
*
(Ibidem: 124.)
milares. E Venuti* acrescenta que “Translation is thus squeezed in a
double bind, both commercial and cultural”. O best-seller beneficia,
com efeito, de uma grande difusão, de uma publicação com gran-
de tiragem, podendo assim atingir um enorme leque de leitores. É a
*
(Ibidem: 124.)
razão pela qual, nos diz Venuti,* “The appeal of translations to a mass
readership invites the cultural elite to dismiss them as ‘popular’ or
‘middlebrow’”. Este julgamento de valor provoca, em nossa opinião,
na realidade dos programas escolares e universitários, uma exclusão
das pesquisas envolvendo best-sellers dos estudos literários.
Na realidade, a abordagem do editor é em primeiro lugar co-
mercial ou até imperialista, no sentido em que o que se espera na
tradução de um best-seller é o reforço dos valores literários, morais,
religiosos ou políticos do leitor potencial. De fato, o best-seller tra-
duzido revela muito mais sobre a cultura que recebe a tradução
do que a cultura estrangeira de origem. As traduções de best-sellers
confirmam dessa forma o princípio da desterritorialização1 das tra-
duções em geral, pois cada tradutor procede a uma apropriação do
texto traduzido, isto é, ele permite que o texto de partida seja lido
por outra cultura, em outra língua, ao traduzi-lo. Essa mobilidade,
esse deslocamento, aumenta sem dúvida o volume das traduções e
cria uma diversificação espácio-temporal delas. As literaturas nacio-
nais não desapareceram, mas mantêm contatos mais assíduos com
outros modelos e tradições, o que as enriquecem porque importam
modelos que ou não existem no seu próprio sistema literário ou são
ainda embrionários. A mobilidade das literaturas através das suas
traduções significa que o texto traduzido é cortado do meio onde
ele foi criado sob a forma do texto de partida para ser projetado em
outra cultura, ou melhor, outro público leitor para o qual o texto
não foi inicialmente concebido. É o que Anthony Pym* chama de (Pym, Anthony. Method in
*

Translation History. Manches-


transferência espacial, pois a tradução para ele é um texto que mu- ter: St Jerome, 1998: 150.)

da em qualidade por deslocar-se no espaço e no tempo.


1
A expressão é de Deleuze e Guattari citados por Venuti em “Translation and Mi-
nority”. The Translator, v. 4, n. 2. Manchester: St Jerome, 1998: 139-41.

MARIE HELENE CATHERINE TORRES | Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional 279
Portanto, sendo o público leitor de best-seller heterogêneo, o
tradutor usa de estratégias discursivas específicas para atingir uma
massa importante de leitores. O sucesso do best-seller depende da
identificação do leitor com as personagens que evoluem numa pro-
blemática social contemporânea. O texto traduzido deve criar um
mundo que o leitor reconhece. Outros critérios de sucesso do best-
seller, tal como a simplicidade da linguagem, as imagens estereoti-
padas, a identificação clara das personagens, permitem que o lei-
tor entre com facilidade no mundo imaginário do texto, porque
os valores que as personagens representam e difundem são natu-
rais e comuns para ele.
*
(Casanova, Pascale. La Casanova* se refere também à importância do público-alvo,
république mondiale des let-
tres. Paris: Seuil, 1999: 173.) o “publico internacional”. Para ela, os editores americanos desven-
daram os segredos do novo best-seller internacional, ou seja, o res-
peito das normas estéticas em vigor (até do século passado) e uma
*
(Ibidem: 174.) visão do mundo ocidental. Esses são, segundo ela,* os critérios co-
merciais mais divulgados. No intuito de tocar esse público inter-
nacional, o best-seller traduzido, sem suas referências originais, será
interpretado e avaliado de maneira diferente do que foi no seu es-
(Venuti, Lawrence. The
tado original. Venuti* diz que para atingir um público tão diverso
*

scandals of translations:
125.) “the treatment offered by a bestselling translation must be intelli-
gible whithin the different, potencially conflicting codes and ide-
ologies that characterize the audience”.
Venuti parte efetivamente da sensação de prazer que produz
a identificação dos leitores às personagens e situações da narrativa.
Para produzir esse prazer, ainda explicita que a narrativa deve ser
imediatamente compreensível para que a linguagem fixe “precise
*
(Ibidem: 126.)
meanings in simple, continuous syntax and most familiar lexicon”.*
A simplicidade da linguagem, da sintaxe do léxico, levou Venuti
a falar de “fluent translations”, traduções nas quais é percebido o
efeito de transparência em relação ao original. Para obter um texto
*
(Ibidem: 126.)
fluente, Venuti* afirma que os tradutores utilizam estratégias apro-
priadas como o sentido unívoco ou o uso comum do vocabulário.
Os tradutores evitam sempre construções não idiomáticas, polisse-
mias, arcaísmos, jargões, e até mesmo palavras que possam chamar
*
(Ibidem: 127.) a atenção do leitor. Essas traduções em “linguagem fluente”* privi-
legiam a linguagem padrão, comum, ou seja, uma linguagem tão
reconhecível que se torna invisível. A naturalização dessas traduções
– o que Venuti chama de “domestication” – é considerável, a ponto
de neutralizar, em nossa opinião, a cultura estrangeira até torná-la

280 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


invisível. Os tradutores de best-sellers sempre tratam os diálogos das
personagens de forma a descaracterizá-los de suas tipologias ori-
ginais, assimilando-os antropofagicamente aos valores da cultura
receptora. Coelho,* por exemplo, constrói seus romances, a nosso *
(COELHO, Paulo. Sur le
bord de la rivière Piedra je
ver, como best-sellers internacionais desde o princípio: sintaxe li- me suis assise et j’ai pleuré.
Trad. Jean Orecchioni. Paris:
near, vocabulário simples, nenhum arcaísmo ou vulgaridade que Anne Carrière, 1995.)

poderia chamar a atenção do leitor, pelo contrário um registro de


língua “pasteurizado”, ou seja, nem elevado nem padrão.
As traduções dos best-sellers reforçam sempre os valores exis-
tentes na sociedade na qual são traduzidos. Portanto, lembramos
que os best-sellers apresentam valores da contemporaneidade, co-
mo por exemplo, a libertação da mulher, a crítica à igreja e à socie-
dade como um todo. O leitor destas traduções de best-seller se re-
conhece em uma ou outra das ideologias transmitidas pelos textos
traduzidos. Ele não tem a sensação de ler uma tradução porque o
texto lhe parece familiar, ou, segundo as palavras de Venuti,* “the *
(Venuti, Lawrence. The
scandals of translations:
foreign text becomes a translated bestseller because it is not so for- 155.)

eign as to upset the domestic status quo”. As traduções dos best-


sellers de Coelho não são tão estrangeiras, não transgridem os va-
lores ideológicos em vigor e seus sucessos parecem originar-se da
forma pela qual os escritores de best-sellers constroem seus roman-
ces. Ademais, a maioria dos best-sellers internacionais do final do
século XX ou início do século XXI tem conotação principalmente
esotérica, verdadeiro fenômeno de sociedade – considerando o su-
cesso internacional –, é escrita com linguagem simples, não repre-
senta uma cultura específica, mas sim todas as culturas e apresenta
temas comuns como o amor, a morte, a religião, a ajuda ao próxi-
mo. São textos que apresentam personagens simbólicas em busca
de espiritualidade, sem cultura específica aparente, invisibilizada
desde o texto original.
O que é certo é que a assimilação desses romances pelos sis-
temas literários estrangeiros constitui o que Casanova* chama de *
(Casanova, Pascale. La
république mondiale des
“literatura internacional” cujo conteúdo segundo ela é desnacio- lettres: 237.)

nalizado por isso entendido e compreendido por qualquer cultura,


sem risco de desentendimentos. Esses best-sellers traduzidos, benefi-
ciando de circulação fácil e rápida no mundo inteiro, quase simul-
taneamente, caracterizam a invisibilidade do tradutor e a transpa-
rência da tradução. Concordamos, portanto, com o que Casanova* *
(Ibidem: 237.)

diz ao afirmar que passamos da internacionalização à importação-


exportação comercial da literatura.

MARIE HELENE CATHERINE TORRES | Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional 281
Acreditamos que o estudo teórico e crítico dos best-sellers levará
a academia a devolver-lhes a visibilidade que existe de fato no mer-
cado dos bens culturais e que representa mais de 70% das traduções
no mundo. Por consequência, no intuito de auxiliar as pesquisas dos
estudiosos de best-sellers traduzidos, podemos formular questiona-
mentos conforme o esquema que elaboramos a partir de hipóteses
prévias, que orientarão as análises de best-sellers traduzidos:
Como aparece a naturalização dos textos?
Quais os registros de linguagem? A linguagem é padrão? in-
formal?
Qual a identificação possível com o público leitor em estudo?
Em qual situação os leitores se reconhecem?
O texto de partida se inscreve dentro dos códigos e ideolo-
gias do sistema receptor?
Alguma ideologia específica perpassa as traduções?
Há passagens textuais não traduzidos? Quais?
Como os tradutores reforçam os valores dominantes da cul-
tura alvo?
A tradução ao ser transparente parece não ser uma tradução
assumida?

Marie Helene Catherine Torres


Doutora em Estudos da Tradução pela Katholieke Universiteit Leu-
ven (Bélgica) desde 2001. Foi a primeira coordenadora da Pós-Gra-
duação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), onde leciona desde 1996 no Departamento de
Línguas e Literaturas Estrangeiras. Coordena atualmente a Pós-Gra-
duação em Formação de Professores de Tradução Literária a Dis-
tância UFSC-MEC. Publicou em 2004 a Antologia Bilíngue Fran-
cês Português Clássicos da Teoria da Tradução e o livro Variations sur
l´étranger dans les lettres: cent ans de traductions françaises des lettres
brésilienne; publicou em 2006, com Guerini e Costa, o primeiro
Dicionário de Tradutores online (DITRA) e o livro Literatura Tra-
duzida/Literatura Nacional em 2008. Traduziu recentemente com
Furlan e Guerini A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, do
teórico francês Antoine Berman (2007).

282 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Resumo
Mostramos neste artigo, de um lado, como texto e metatexto são Palavras-chaves: tradução;
best-sellers; Venuti; Casa-
diferentemente tratados quando se trata de best-sellers internacio- nova.

nais, isto é, best-sellers construídos para serem best-sellers traduzi-


dos e, do outro lado, como, a partir de características específicas,
os best-sellers traduzidos seguem um modelo sistematizado até che-
gar ao que Venuti chama de efeito de transparência.

Abstract Résumé
Key words: translation; best-
On one hand, we have shown Nous avons montré dans cet ar- sellers; Venuti; Casanova.
in this article how text and me- ticle, d’un côté, comment le tex- Mots-clés: traduction; best-
ta-text are treated dissimilarly te et le métatexte sont différem- sellers; Venuti; Casanova.

when referred to international ment traités quand il s’agit de


best-sellers, that is to say, best- best-sellers internationaux, c’est-
sellers which are made to be à-dire, de best-sellers construits
translated best-sellers; and, on pour être des best-sellers traduits,
the other hand, how, through et, de l’autre, comment, à partir
specific features, translated best- de caractéristiques spécifiques,
sellers follow a systematized pat- les best-sellers traduits suivent
tern to achieve what Venuti calls un modèle systématisé jusqu’à
effect of transparency. ce que Venuti nomme l´effet de
transparence.

Recebido em
18/05/2009

Aprovado em
20/07/2009

MARIE HELENE CATHERINE TORRES | Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional 283
Tradução, relação e a questão do
Outro: considerações acerca de um
projeto de tradução da Trilogia Sul-
americana Amazonas, de Alfred Döblin

Mauricio Mendonça Cardozo

O terrível é não ir de encontro ao seu


próprio querer e ainda por cima delinear
isto como terrível e degenerado.
*
(Döblin, Alfred. “O ro-
mance histórico e nós”. Alfred Döblin*
Tradução de Marion Bre-
pohl de Magalhães. Histó- Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e per-
ria: Questões & Debates, no
44. Curitiba: Editora UFPR,
ceber que não se é uma substância homogênea
2006: 36.) e radicalmente diferente de tudo o que não é si
mesmo; eu é um outro.
*
(Todorov, Tzvetan. A Tzvetan Todorov*
conquista da América: a
questão do outro. Tradução
de Beatriz Perrone-Moisés. Em “A marcha do povo das mulheres”, primeira parte do pri-
São Paulo: Martins Fontes,
2003: 3) meiro livro de sua Trilogia Sul-americana, Döblin reconta a narra-
tiva de origem das Amazonas – o povo das mulheres –, que, lide-
radas por Toeza, então uma das mulheres do cacique de sua tribo,
insurge-se contra a condição geral de vida das mulheres, mata os
homens da tribo e sai em guerra contra os povos que encontra ao
longo de sua marcha. Os dois excertos abaixo dão mostra dos even-
tos que alavancam a reviravolta. Na voz de uma índia mais velha, à
noite, em torno da fogueira, o primeiro excerto dá notícia da con-
dição de vida das mulheres na tribo:
Uma jovem casou-se com um marido rico. Todos lhes desejaram
felicidades, trouxeram-lhes presentes. Os pais fingiam chorar. De-
pois da festa, a moça e o marido cruzaram a lagoa. Lá chegando, o
marido a mandou capinar e carpir a roça. Ao terminar, a mulher
ainda tinha de fazer pirão, assar o pão. Não havia lenha. O marido
mandou catá-la na mata. Era época das chuvas, o rio arrastara tudo,
ela não achou muita lenha. O dia se foi, não catara o bastante.
De volta em casa, o marido ralhou com ela. Na manhã seguinte,
levantou-se e caminhou ainda mais longe mata adentro. Os bugios
compadeceram-se dela, trouxeram-lhe lenha. Voltou para casa,
o marido ficou insatisfeito, a mulher chegara tarde. Levantou-se
ainda mais cedo no dia seguinte, os macacos jogavam-lhe os frutos
maduros de cima do cacaueiro. Deliciou-se, catou lenha, os macacos
a ajudaram. Voltou para casa, o marido ficou insatisfeito, a mulher

284 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 284-295


ofegava, ele não gostou. E quando a lenha acabou de novo e ela teve
de voltar outra vez à mata, chorou: – Pra que um marido rico se ele
só me manda trabalhar? Se sou preguiçosa, sou bonita e me manda
pra mata. Se trago lenha, sou feia, ele não me olha.
Contornando a lagoa, a jovem correu até sua mãe: – Por que vocês
me casaram com um homem rico, se ele só me obriga a trabalhar?
Preferia que vocês me tivessem dado em casamento a um bugio.
Eles me dão cacau e me ajudam com a lenha. A mãe temeu que a
filha pudesse juntar-se aos bugios.
Chamou então seu filho. Ele quebrou uma perna do sol. O sol pôs-
se a andar mais lentamente. O dia durou mais. A moça pôde então
catar toda a lenha de que precisava, o marido ficou satisfeito.* *
(Döblin, Alfred. Das Land
ohne Tod. Munique: DTV,
1991: 12, tradução minha)
O segundo excerto dá mostra da relação das mulheres
com Valiarina, o jaguar negro que, ao ser assassinado pelos ho-
mens da tribo, acabaria por se tornar o estopim da revolta:
Onde entre as rochas se encontram as corredeiras, lá fica a gruta
do jaguar negro, Valiarina é seu nome. Dizem que ele produz o
ruído mouco das águas. É ali que as mulheres se banham. Toeza
exclamou: – Os homens se foram. Por que é que eles partiram com
arcos e flechas, escudo e zarabatana e com suas melhores canoas?
Não disseram nada a ninguém. Esses nossos filhos mais jovens devem
ser mais espertos que nós. O que estarão querendo? Foram buscar
escravos e escravas que trabalhem para eles. Nas matas, espancam
os homens até a morte e tomam suas mulheres, seus filhos. Eles
vão ficar ricos e nós teremos de trabalhar ainda mais do que antes.
Seria melhor partirmos logo pras lanças. Quando eles voltarem,
iremos nos rebelar.
As mulheres brincavam na água, Toeza colheu um lírio e ergue-o em
direção à cachoeira: – Ali mora o jaguar negro, meu noivo.
Enfeitou-se então com mais dez moças, armou-se, saiu novamente
à caça.* *
(Ibidem: 13)

Autor de romances históricos que tematizam contextos po-


líticos e culturais tão distintos como a China do século XVIII, no
romance Os três saltos de Wang-lun [Die drei Sprünge des Wang-
lun], de 1915, ou o Quirguistão do século XV, em sua reescritura
do poema épico Manas, de 1927, ao perceber a irreversibilidade
do rumo político que tomava seu próprio país, Alfred Döblin foi
um dos primeiros escritores alemães de sua geração a deixar a Ale-
manha, em fevereiro de 1933, sendo também um dos primeiros a
regressar ao país logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A
opção política pelo exílio na França e nos Estados Unidos, que o
distanciaria da Alemanha por 12 anos, seria um aspecto limitador
de uma recepção mais ampla de sua obra e contribuiria decisiva-

MAURICIO MENDONÇA CARDOZO | Tradução, relação e a questão do Outro 285


mente para que Döblin ficasse conhecido, no mundo da Literatu-
ra, quase que exclusivamente por seu romance Berlin Alexander-
*
(Döblin, Alfred. Berlin
Alexanderplatz: Die Geschi- platz,* publicado em 1929.
chte vom Franz Biberkopf.
Munique: DTV, 2001)
A maior parte de sua obra, em especial o que escrevera a partir
da década de 30, teria uma repercussão bem mais pontual e discre-
ta entre o público em geral. E isso se daria a despeito de sua obra
ter sido contemplada com inúmeros estudos acadêmicos mundo
afora, de ter sido traduzida, ainda que não tão amplamente, para
algumas línguas como o tcheco, o polonês, o francês e o espanhol
– praticamente toda sua obra é ainda inédita em português –, de
ter movimentado algumas polêmicas com intelectuais como, por
exemplo, Thomas Mann e de ter alcançado o respeito e admiração
de escritores como Jorge Luis Borges e Günter Grass.
Uma de suas obras que se enquadra nesse rol de obras ainda
bastante desconhecidas do público leitor em geral – embora relati-
vamente bem estudada, em especial a partir do final da década de
70 – é o romance que Döblin publicaria em 1937 sob o título de
Viagem à terra sem morte [Die Fahrt ins Land ohne Tod], obra que
mais tarde integraria o primeiro dos três livros do que hoje se co-
nhece como sua Trilogia Sul-americana intitulada Amazonas, de que
fazem parte ainda o livro O tigre azul [Der blaue Tiger], de 1938, e
A nova selva [Der neue Urwald], de 1947.
O primeiro livro desenvolve-se no contexto social e mítico
dos povos indígenas que habitam a América do século XVI, em es-
pecial a região norte da Floresta Amazônica, e culmina com a che-
gada a essas terras dos conquistadores europeus, que dizimariam o
Outro com que aí se deparam. O segundo livro desenvolve-se no
contexto utópico das missões jesuíticas e tematiza os embates po-
lítico-econômicos entre as monarquias portuguesa e espanhola e
a igreja católica, que culminariam na destruição das reduções, na
morte dos índios e na expulsão dos jesuítas. O terceiro livro salta
alegoricamente para a Europa da primeira metade do século XX: a
nova selva. No entanto, ainda que perspectivado por uma dimen-
são acontecimental do século XX, esse terceiro livro é fortemente
marcado por uma diluição das temporalidades, em que tanto se dis-
põem analogicamente os conquistadores do século XVI, os “con-
quistadores” da Primeira Guerra Mundial e, com especial desta-
que, o “conquistador” nazista da Segunda Guerra Mundial, como
também figuram os espíritos de Giordano Bruno, Galileu e Co-
pérnico – em diálogo, num mesmo tribunal –, ou ainda, a figura

286 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


mítica do Medievo polonês, espécie de Fausto de Cracóvia: o cha-
mado Senhor Twardowski.
*
(Sperber, George. We-
No abrangente estudo Wegweiser im Amazonas,1* George Sper- gweiser im “Amazonas“:
ber faz uma análise extensiva da gênese textual da Trilogia de Dö- Studien zur Rezeption, zu
den Quellen und zur Tex-
blin, apontando suas diversas fontes e o modo com que o escritor tkritik der Südamerika-Tri-
logie Alfred Döblins. Muni-
as incorpora em seu romance. Esse estudo oferece subsídios sufi- que: Tuduv, 1975)
cientes para pensarmos a escritura döbliniana como sendo forte-
mente marcada pela apropriação, retextualização e ficcionalização
das obras de etnólogos franceses e alemães que estudaram diversos
povos indígenas em suas viagens pelas Américas. Entre nomes co-
mo Métraux, Charlevoix e Murr, figura também o nome de The-
odor Koch-Grünberg, de cuja obra Mário de Andrade também se
utilizara para escrever uma das obras canônicas da literatura brasi-
leira, a rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de 1928.
Ainda que não tenham se servido exatamente do mesmo livro, co-
*
(Sperber, George. “Uma
mo aponta Sperber,* as obras de Mário de Andrade e Döblin en- viagem à terra sem morte:
contram na obra desse etnólogo alemão um ponto de passagem em a Trilogia Amazonas, de Al-
fred Döblin”. Humboldt, no
comum. Já desse ponto de vista, uma tradução brasileira da obra 63. Bonn: Goethe-Institut,
1992: 48-51.)
de Döblin representaria um desafio interessante, uma vez que con-
sistiria: na produção de um texto em português, que tenha em vis-
ta articular uma relação tradutória com um texto em alemão, que,
por sua vez, é produto de um esforço de apropriação, retextuali-
zação e ficcionalização de uma obra de cunho etnográfico, tam-
bém escrita em alemão e que, na perspectiva de um etnólogo eu-
ropeu do século XIX, teve por objeto um universo cultural e natu-
ral que não somente integraria o que hoje identificamos generica-
mente como universo cultural brasileiro (por mais que tal referen-
cial esteja bastante distante de um contexto urbano contemporâ-
neo), como também serviria de referência para a escritura de uma
obra que integra o cânone de nossa literatura e sintetiza, na figura
de seu protagonista “sem caráter”, uma das expressões mais clássi-
cas do ethos brasileiro.
Constituindo uma das fontes mais centrais em especial para
o primeiro livro da Trilogia, a obra de Koch-Grünberg é de inte-
resse não somente como ponto de aproximação, mas também pe-
lo que ela oferece de diferente a Döblin e Mário de Andrade, que
dela selecionam referências bastante distintas. Mário encontra o
mito de Macunaíma na obra Do Roraima ao Orinoco, de 1924, en-
1
Esse importante estudo renderia uma edição revista da Trilogia Amazonas na
Alemanha, em 1988.

MAURICIO MENDONÇA CARDOZO | Tradução, relação e a questão do Outro 287


quanto Döblin toma por base duas outras obras: Dois anos entre
os índios do noroeste do Brasil, de 1909, e Lendas indígenas da Amé-
(Ibidem: 49)
rica do Sul, de 1927. Para Sperber,* essa diferença de recorte resi-
*

diria no fato de que, enquanto Mário de Andrade buscava, como


elemento de ficionalização, um herói “sem caráter”, Döblin privi-
legiaria justamente uma visão mais próxima à do clássico bom sel-
vagem rousseauniano.
No entanto, se por um lado esse bom selvagem é paradigma
de um figura religada à physis, ao mundo natural, por outro lado,
há nessa figura utópica um certo esvaziamento (justificável no con-
texto da discussão rousseauniana) da complexidade e da densida-
de do homem enquanto ser cultural, enquanto alguém a quem se
impõem as complexidades da relação com seu próximo. Para Ma-
*
(Magalhães, Marion Bre-
pohl de. “O ressentimento
rion Brepohl de Magalhães,* a imagem do índio na obra do escritor
do exílio: a estética da perda alemão, em alguma medida, pode até mesmo estar muito próxima
em Alfred Döblin”. In: Bres-
ciani, Maria Stella; Naxa- desse ideal clássico e utópico. Contudo: “No romance, o indígena
ra, Marcia (org.). Memória
e ressentimento: indagações
não é o bom selvagem de Rousseau ou o canibal de tantos viajan-
sobre uma questão sensível, tes e cronistas europeus: é um povo dotado de cultura própria, au-
1 ed. Campinas: Unicamp,
2001: 491-506.) tor da própria história, contra quem, em nome do racismo, os eu-
*
(Ibidem: 502, grifos meus) ropeus arremessam sua violência.”*
Segundo Magalhães, portanto, na obra de Döblin, esse ho-
mem índio dizimado pelo homem branco não se resumiria nem à
figura do primitivo imaculado, nem à figura do antropófago sel-
vagem, extremos tipológicos que impossibilitam a construção de
qualquer relação capaz de aceitar um Outro em sua própria alteri-
dade. Ao contrário, Döblin constrói esse homem índio döblinia-
no como Homem, com a complexidade relacional de qualquer ser
humano, como um Outro que tem cultura e história próprias, com
grande destaque, aí, para o atributo “próprio”.
É nisso que se funda mais centralmente o caráter de “crítica
civilisatória radical” pelo qual sua obra é conhecida, ainda que se-
ja importante, aqui, precisar melhor a dimensão dessa crítica. E é
também nisso que reside a grande diferença dessa obra de Döblin: o
modo como o autor equaciona a dimensão da alteridade enquanto
uma questão. Pois ao construir esse Outro como um Outro a quem
se concede o direito de “ser”, a despeito das diferenças, de “ser dife-
rente”, de “ser à diferença” – em especial na percepção de um euro-
peu – e adensar essa diferença com a complexidade das especifici-
dades culturais que encontra nos registros etnográficos – resistindo
à tendência comum de construir um Outro que não passe de um

288 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


símile de si próprio, de um outro-Eu –, Döblin instaura, também
para esse Outro, uma rede complexa de relações culturais. E ao fa-
zer isso, esse Outro passa a figurar não somente como um Outro
qualquer, mas também como um Outro que se depara com barrei-
ras e dificuldades ao tentar lidar com a complexidade da sua própria
relação com os Outros: com seus Outros mais próximos, como na
relação complexa entre homens e mulheres de uma mesma tribo; e
com seus Outros mais distantes, como na relação com outros povos
indígenas ou até mesmo com o homem branco. E nessas relações,
assim como nas relações de alteridade do homem branco-europeu,
há também malogro e incompreensão, violência e crueldade.
Nesse sentido, podemos entender que esse Outro ameríndio
na obra de Döblin, mais do que simples contrapeso de articulação
de uma crítica à civilização europeia,* seria, antes, elemento cen- *
(Cf. Stauffacher, Wer-
ner. “Nachwort des Heraus-
tral de articulação de uma crítica à própria condição humana de re- gebers” [Posfácio do orga-
nizador da edição]. In: Dö-
lação com o Outro. Pois ao flagrar nesse Outro, tão aparentemente blin, Alfred. Alfred Döblin:
Amazonas Romantrilogie.
distante, um Outro que habita uma complexidade relacional que org. Werner Stauffacher. Mu-
é tão familiar a um homem europeu, e ao perceber nesse Outro, nique: DTV, 1991: 242.)

aparentemente tão diferente, um Outro que não apenas sofre, mas


que, como ele próprio, também faz sofrer, Döblin articula, para além
de sua crítica a um modo de relação do homem europeu, uma espé-
cie de crítica à razão relacional, que coloca, antes, a própria condi-
ção em que se instauram as relações humanas como foco sóciocrí-
tico de sua obra. E é nessa perspectiva que se pode afirmar que a
obra de Döblin antecipa,* em algumas décadas, um certo grau de *
(Cf. Heinze, Dagmar. Kul-
turkonzepte in Alfred Dö-
problematização da questão da alteridade que só passaria a figurar, blins Amazonas-Trilogie: In-
terkulturalität im Spannun-
com comparável densidade, na obra de outros intelectuais (como gsverhältnis von Universa-
lismus und Relativismus.
Adorno, Hannah Arendt, Tzvetan Todorov, entre outros) ao lon- Trier: WVT Wissenschaftli-
go da segunda metade do século XX. cher Verlag Trier, 2003.)

A questão, no âmbito destas considerações preliminares, é pen-


sar numa possibilidade de rearticulação de uma equação relacional
tão complexa – como a que equaciona a questão döbliniana da al-
teridade – no caso de uma tradução brasileira de Amazonas.
É importante destacar a ideia de que Döblin não equaciona
uma relação meramente transitiva, dicotômica e hierárquica entre
uma cultura dita civilizada e outra dita primitiva. Ainda que a nar-
rativa alemã se desenvolva em uma terra distante, às margens do
mundo civilizado europeu, com personagens míticas de uma mi-
tologia completamente estranha a um cidadão europeu comum da
primeira metade do século XX – portanto, em uma atmosfera cul-

MAURICIO MENDONÇA CARDOZO | Tradução, relação e a questão do Outro 289


tural alheia à lógica do logos e da razão ocidental, já que fundada
e estruturada sob o signo do mito, do rito, do simbólico –, a obra
não explora esse “outro mundo” apenas como um mundo exóti-
co. Ao contrário, o escritor constrói um “mundo outro” em que,
a despeito de sua alteridade radical, o homem índio habita uma
condição tão insuspeitavelmente complexa quanto à do próprio
homem branco europeu. Nesse sentido, a obra de Döblin convida
o leitor a descobrir não apenas um Outro radicalmente diferente
e exótico, mas também a descobrir-se nesse Outro aparentemen-
te tão distinto e, nisso, confrontar-se com sua, antes insuspeitável,
proximidade humana. Em outras palavras, ao convidar o leitor pa-
ra um exercício de “tradução do Outro”, Döblin surpreende esse
leitor por oferecer-lhe uma possibilidade de “traduzir-se nesse Ou-
tro”, produzindo o efeito de leitura que dá sustentação a seu exer-
cício de crítica civilizatória. Quanto ao estatuto dessa crítica, tal-
vez possamos afirmar que, de fato, Döblin parece tematizar mais
centralmente os afãs eurocêntricos. No entanto, a dimensão de sua
crítica não se reduz apenas a isso, na medida em que se entendem
tais afãs não como ponto focal, mas sim, como eixo em torno do
qual Döblin promove um movimento crítico que põe em questão
a própria condição humana de relação com o Outro, como já men-
cionado anteriormente.
Para Döblin e para um leitor alemão, esse Outro da relação
é um Outro que, por ser percebido inicialmente como distante e
diferente, cumpre o fim de instaurar uma tensão diferencial que
coloca o leitor em uma condição de suspensão que se projeta pa-
ra um ponto de distensão, para um momento da leitura, epifâni-
co e surpreendente, em que o leitor flagra, nesse Outro, um seme-
lhante, um próximo.
Ao traduzir o romance para o português, esse primeiro ele-
mento de alteridade radical seria amenizado quanto a sua natureza
diferencial, pois, ainda que distante histórica, geográfica e cultural-
mente, esse homem índio, em alguma medida, faz parte do ima-
ginário de um leitor brasileiro comum, até mesmo para um bra-
sileiro urbano, do sul do país, para quem esse referencial cultural
amazônico, ao mesmo tempo que é bastante distante, também se
apresenta como algo, de certo modo, familiar.
Numa tradução brasileira, portanto, a equação döbliniana so-
freria um redimensionamento crítico, na medida em que o movi-
mento de traduzir-se no Outro se daria em função de uma relação

290 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


que não parte, inicialmente, da experiência de uma alteridade radi-
cal, mas sim, da relação com um Outro que se apresenta como uma
dimensão de alteridade de sua própria identidade. Ou seja: da rela-
ção com um Outro que se apresenta com um eu mais distante.
Numa tradução brasileira, a possibilidade de um momento
epifânico da leitura se daria, então, não a partir da percepção de
uma identidade com um Outro radicalmente diferente, mas sim,
a partir da percepção de uma heterogeneidade na constituição de
si mesmo. Para o leitor alemão, a surpresa da identidade na dife-
rença colocaria em xeque sua presunção de alteridade radical. Para
um leitor brasileiro, a surpresa da diferença na identidade poderia
colocar em xeque sua presunção de identidade homogênea.
Um projeto de tradução brasileira da Trilogia de Döblin não
poderia perder de vista, portanto, esse redimensionamento crítico
da equação relacional, que, por sua vez, implicaria inúmeras con-
sequências práticas para o processo de tradução da obra.
Um exemplo muito pontual de implicação prática desse re-
dimensionamento diz respeito ao tratamento da grafia dos topô-
nimos e dos nomes dos povos indígenas citados na obra. Em qual-
quer projeto de tradução de uma obra como Amazonas, seria cer-
tamente importante definir, já de partida, um padrão ortográfico
para a reescritura do campo lexical de línguas indígenas. No ca-
so da definição de um padrão que se orientasse pela discussão crí-
tica apresentada aqui, palavras de origem indígena que começam
com “y” – grafia típica dos textos etnológicos em língua espanho-
la, provavelmente por influência do Guarani, bem como nos tex-
tos de Koch-Grünberg – poderiam ser grafadas com “j”, visto que
tal grafia é mais frequentes tanto na toponímia brasileira quanto
em nossa literatura: yapura seria traduzido então por japurá. Ain-
da que este seja apenas um detalhe mínimo, uma decisão extrema-
mente pontual, optar por um padrão ortográfico que não produ-
za, num primeiro contato, um efeito de distanciamento justamen-
te pela via do exótico, parece ser a estratégia mais produtiva para o
redimensionamento da equação döbliniana numa tradução brasi-
leira e para a consequente eficácia do efeito de flagrar uma dimen-
são de alteridade no corpo de uma identidade percebida aparente-
mente como monolítica.
Mas para que o texto traduzido não pareça meramente exó-
tico aos olhos de um leitor brasileiro, não basta apenas estabele-
cer um padrão ortográfico. Em várias passagens, sobretudo quan-

MAURICIO MENDONÇA CARDOZO | Tradução, relação e a questão do Outro 291


do se refere aos povos indígenas e à toponímia, Döblin opta siste-
maticamente pela paráfrase alemã do termo estrangeiro, em vez de
simplesmente citar o nome na língua indígena de origem – que é
como o termo é registrado, por exemplo, na obra de Koch-Grün-
berg, em que a paráfrase surge como estratégia de tradução do lé-
xico indígena. Ao proceder desse modo, o escritor consegue fazer
com que o leitor alemão vá se aproximando aos poucos do uni-
verso ficcional da obra, minimizando, assim, uma certa estranheza
inicial que pudesse afastar demais um leitor para quem os termos
em tupi e guarani fossem completamente opacos – o que poderia
criar uma tensão diferencial demasiadamente grande, a ponto de
impossibilitar uma eventual distensão e o efeito posterior de iden-
tificação do leitor com esse Outro da relação.
Levando isso em conta, podemos articular criticamente uma
solução possível para um problema bastante recorrente na tradu-
ção para o português de Amazonas, a exemplo do que ocorre com
os termos Krötenloch (Buraco do Sapo) e Entenleute (Povo dos Pa-
tos). A opção de tradução sistemática da forma parafrástica alemã,
usada por Döblin, por uma forma parafrástica em português pode-
ria criar, na tradução brasileira, um tom que nos remetesse menos
a um universo indígena que nos é familiar, do que a um universo
toponímico e antroponímico de que temos conhecimento apenas
a partir de sua forma mais exótica e estereotipada, que ecoa o con-
texto dos filmes americanos de conquista do Velho Oeste, em que,
por exemplo, o antropônimo Tĥatĥaŋka Iyotĥaŋka, em um dialeto
da língua sioux, se transforma em algo como “Touro Sentado”.
Assim, numa tradução brasileira, o topônimo Krötenloch po-
deria ser traduzido por Cururuquara, que além de ser o mesmo
termo de que Döblin parte para fazer a paráfrase alemã e de exis-
tir de fato enquanto localidade, não soa tão exótico aos ouvidos
de um leitor brasileiro acostumado a outros topônimos como Ara-
raquara, Piraquara, etc. Já no caso de Entenleute, que designa um
povo indígena específico, a simples tradução “literal” da paráfra-
se döbliniana para a língua tupi não oferece um resultado muito
produtivo. No entanto, Döblin menciona que este povo habita-
va as margens do Rio Uaupés. Em consulta a um mapa da distri-
buição dos povos indígenas e do tronco linguístico Tupi-Guarani
(Tibiriçá, Luiz Caldas.
no Brasil,* verifica-se que o povo predominante na região mencio-
*

Dicionário Tupi-Português:
com esboço de gramática nada era o povo Tucano, justamente um dos povos estudados por
do Tupi Antigo. Santos: Tra-
ço Editora, 1984, contra- Koch-Grünberg, o que poderia, por essa via, justificar a tradução
capa.)
de Entenleute por povo tucano.

292 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Uma outra questão bastante relevante para a tradução bra-
sileira da Trilogia de Döblin diz respeito ao estilo da escritura dö-
bliniana. Em Amazonas, o escritor constrói seu universo ficcional
como um anatomista. A narrativa se desenvolve a partir da econo-
mia e da precisão de movimentos sintáticos curtos e calculados, e
do uso incessante de uma pausa sintática que mantém presente,
pois em evidência, uma dimensão de silêncio na textura narrativa
döbliniana – elementos estilísticos tão impactantes numa prosa de
língua alemã acostumada a períodos imensos e encadeamentos ló-
gicos de alta complexidade. É como se Döblin não permitisse que
o leitor se limitasse a navegar a superfície de um contínuo narrati-
vo e inebriante de leitura, em que seria maior o risco de esse Ou-
tro passar despercebido pelo leitor. É como se Döblin induzisse o
leitor ao mergulho e, nisso, é como se o forçasse a ir dissecando
aos poucos esse corpo alheio e opaco. É como se o escritor instau-
rasse, a cada hesitação ante às subordinações sintáticas, um ritmo
próprio, que, de tão quebrado e elementar, adquire um poder in-
cisivo, contundente. É justamente esse movimento cirúrgico que
contribui, no plano formal, para a eficácia do exercício de “tradu-
zir-se no Outro”, realizado como uma operação em que, ao lançar
o olhar forçosamente atento em direção a um Outro, o leitor aca-
ba flagrando a si próprio.
Nesses termos, uma tradução brasileira não poderia simples-
mente optar pela pasteurização da sintaxe do texto em prol de uma
leitura mais fluente. Ainda que o potencial de impacto de tal estra-
tégia discursiva seja bem menor em português do que em alemão,
é preciso, também em língua portuguesa, reencenar esse movimen-
to cirúrgico no plano formal, colocando em evidência os períodos
curtos, o movimento constante de esquiva às subordinações e, as-
sim, pensando uma possibilidade crítica de tradução que, em vez
de reduzir-se à dimensão do dito, leve em conta a dimensão do si-
lêncio na tradução dessa narrativa.
A Trilogia de Döblin, se entendida nos termos aqui discutidos,
como obra que tematiza ficcionalmente a condição humana da re-
lação com o Outro, coloca o tradutor diante de uma tarefa que não
se reduz ao equacionamento das relações linguísticas, culturais e es-
téticas mais evidentes de todo trabalho de tradução literária. Cabe-
rá ao tradutor preocupado com as questões levantadas pelo viés de
leitura aqui proposto redimensionar também a própria ordem crí-
tica que movimenta a obra döbliniana e pesar as suas consequências

MAURICIO MENDONÇA CARDOZO | Tradução, relação e a questão do Outro 293


em cada momento de decisão ao longo de todo processo de tradu-
ção. Somente um prática tradutória ciente de sua natureza crítica
será capaz de oferecer ao público leitor brasileiro uma experiência
de leitura digna da densidade e da complexidade com que Döblin
conseguiu articular a questão da alteridade: uma experiência que
abre a possibilidade de nos flagrarmos no Outro, mesmo que esse
gesto nos mova contra nossos próprios quereres. Com Döblin, po-
de-se pensar que esse movimento é muito menos uma ameaça, do
que um gesto de chance e risco que nos move adiante.

Mauricio Mendonça Cardozo


Doutor em Letras – Alemão pela USP e professor do Curso de Gra-
duação e do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPR, em
Curitiba. Como pesquisador, atua na área dos Estudos da Tradu-
ção, desenvolvendo trabalhos nos campos da Tradução Literária,
da Crítica e da Teoria da Tradução. Como tradutor, publicou, entre
outros, A Assombrosa História do Homem do Cavalo Branco (2006)
e O Centauro Bronco (2006), um projeto de dupla tradução da no-
vela Der Schimmelreiter, do escritor alemão Theodor Storm.

Resumo
Palavras-chave: tradução;
relação; questão do Outro;
Em 1937, Alfred Döblin publicava Viagem à terra sem morte, ro-
alteridade; Döblin. mance que mais tarde constituiria o primeiro volume do que hoje
se conhece como sua Trilogia Sul-americana Amazonas. Valendo-se
da obra de etnólogos como Theodor Koch-Grünberg, de cuja obra
Mário de Andrade também se utilizara para criar seu Macunaíma,
Döblin não faz simplesmente uma tradução exoticizante dos regis-
tros etnográficos de uma cultura “primitiva” a partir da perspectiva
de uma cultura “civilizada”. Ao contrário, o autor convida o leitor a
descobrir-se nessa cultura pretensamente primitiva. Em outras pa-
lavras, em vez de simplesmente proporcionar uma experiência de
“tradução do Outro”, Döblin convida o leitor a “traduzir-se nesse
Outro”, flagrando-o em sua antes insuspeitável proximidade huma-
na. Propõe-se aqui a discussão da equação Döbliniana da “relação
com o Outro” em Amazonas, como fundamentação crítica de um
projeto de tradução dessa obra para o português do Brasil.

294 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Abstract Résumé
The Journey to the Land with- En 1937, Alfred Döblin pu- Key words: translation; re-
lation; Otherness; alterity;
out Death (1937) is the first of bliait Voyage à la terre sans mort, Döblin.

the three volumes of Döblin’s roman qui constituerait plus Mots-clés: traduction; re-
lation; question de l’Autre;
South-America Trilogy Ama- tard le premier volume de ce qui altérité; Döblin.
zonas. Based upon the work of est connu de nos jours comme
ethnologists like Theodor Koch- sa Trilogie Sud-américaine Ama-
Grünberg, whose work consti- zonas. S’inspirant de l’oeuvre
tutes also an important refer- d’ethnologues comme Theo-
ence for Mario de Andrade’s dor Koch-Grünberg, oeuvre
Macunaíma (1928), Döblin dont Mário de Andrade s’est
doesn’t simply translate those également servi pour créer son
ethnographic notes of a “prim- Macunaíma, Döblin ne fait pas
itive” culture on the perspective qu’une simple traduction aux
of a culture that pretends to be couleurs exotiques des registres
“civilized”: he invites the reader ethnographiques d’une culture
to discover himself in this oth- primitive à partir de la perspec-
er culture apparently so “primi- tive d’une culture civilisée. Au
tive”. In other words, instead of contraire, il invite son lecteur
simply experiencing a “transla- à se découvrir dans cette cultu-
tion of the other”, Döblin in- re soi-disant primitive. Autre-
vites the reader to “translate ment dit, au lieu de proposer
himself upon this Otherness”, une simple expérience de tra-
finding out an Other that is un- duction de l’Autre, Döblin in-
believably human. This paper vite le lecteur à “se traduire dans
aims at a preliminary discussion cet Autre”, le dévisageant dans
of Döblin’s Alterity equation, son insoupçonnable proximité
i.e. of the way he poses the prob- humaine. Il s’agit ici de la dis-
lem of Otherness in his Trilo- cussion de l’équation döblinien-
gy. This discussion outlines the ne de la question de la relation à
critical principles of a possible l’Autre dans Amazonas, comme
translation project of this work fondement critique d’un projet
to Brazilian Portuguese. de traduction de cette oeuvre
en brésilien.

Recebido em
01/06/2009

Aprovado em
25/07/2009

MAURICIO MENDONÇA CARDOZO | Tradução, relação e a questão do Outro 295


Tradução, viagem, literatura:
(re)escrevendo e colonizando uma cultura
Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista

Introdução

Neste artigo apresentamos um breve levantamento de como o


trabalho dos viajantes, tradutores e acadêmicos vem construindo ao
longo do tempo uma imagem do Brasil vinculada diretamente aos
interesses das nações colonizadoras como justificativa de seu domí-
nio sobre o país (colonial, econômico e cultural), partindo da relação
estreita entre tradução, literatura e identidade cultural. Demonstra-
mos como a estratégia da descrição e da tradução como discurso de
dominação encontra-se presente desde a produção do primeiro do-
cumento escrito sobre o país, a Carta de Caminha, e como esse dis-
curso de dominação apresenta-se de forma recorrente no trabalho
catequizador dos missionários jesuítas no Brasil colônia e na descri-
ção dos viajantes do século XIX, relacionando-o ainda à questão da
discussão de uma poética literária nacional que se inicia no começo
do século XIX com a independência política e repercute contempo-
raneamente nos estudos literários comparatistas internacionais.
A história cultural brasileira, marcada pelo colonialismo eu-
ropeu, desenvolveu-se em boa parte através da ação dos viajantes e
dos tradutores, negociando imagens entre a colônia que se eman-
cipa e se constitui em uma nova nação e entre seus diversos inter-
locutores do Velho e Novo Mundo. Longe de estabelecerem um
diálogo equânime, as relações interculturais, notadamente nas for-
mas da literatura de viagem e da tradução aqui estudadas, têm si-
do marcadas pelas relações de poder, resultando muitas vezes em
verdadeiros atos encobertos de dominação sobre a cultura descrita/
traduzida. Esse discurso de dominação pode se concretizar através
da manipulação e disseminação de imagens dessas culturas onde os
critérios políticos se sobressaem aos estéticos ou científicos. Essa,
por exemplo, é a tese apresentada por Edward Said em Orientalis-
mo, onde o autor demonstra como, através dos tempos, o Ociden-
te foi construindo uma imagem do Oriente através dos escritores,
tradutores, estudiosos, viajantes, artistas, etc., apagando as histórias
locais e divulgando uma imagem diretamente vinculada aos inte-

296 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 296-308


resses imperialistas das nações europeias. Nas palavras do próprio
Said, “o orientalismo pode ser discutido e analisado como a insti-
tuição organizada para negociar com o Oriente – negociar com ele
fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele,
descrevendo-o, colonizando-o, governando-o”.* Se o orientalismo, (SAID, Edward. Orientalis-
*

mo. O Oriente como inven-


de acordo com o ponto de vista de Said, empenhou-se em apagar ção do Ocidente. Trad. To-
más Rosa Bueno. São Pau-
e reescrever as histórias do Oriente como estratégia colonizadora lo: Companhia das Letras,
1990:15.)
valendo-se das práticas da literatura de viagem e da tradução, entre
outras, no caso do Brasil tratou-se antes de tudo de construir essa
história, já que aqui não havia civilizações antigas e desenvolvidas
como as do Oriente, ou mesmo as encontradas em outras regiões
da América, como nos Andes e na América Central, que ofereces-
sem registros escritos de suas próprias histórias.
No decorrer da história brasileira, até praticamente o final do
século XIX, a maior parte do conhecimento sobre o Brasil foi cons-
truída principalmente pelos viajantes estrangeiros que percorreram,
registraram e descreveram o território e seus povos através de seus
textos e imagens. Esses diversos viajantes sobrepuseram suas diferen-
tes versões do Brasil, que, no entanto, apresentam como elemento
recorrente a exuberância da natureza (já encontrada na Carta de
Caminha) como tema principal na definição de um caráter identi-
tário do país. O interesse dos europeus pelo conhecimento do Bra-
sil e suas potencialidades gerou uma extensa bibliografia, que, se
começou a ser construída pelos viajantes, a partir das primeiras dé-
cadas do século XX, vai se especializar no trabalho dos etnógrafos
e posteriormente no dos brasilianistas, estudiosos estrangeiros de
diversas áreas das ciências humanas que se especializam no Brasil.
Essa extensa bibliografia pode ser enquadrada no que José Antônio
Segatto chama de “historiografia do imperialismo”,* e vai refletir (SEGATTO, José Antonio.
*

“Algumas notas sobre a his-


os interesses e as perspectivas das diferentes nações com as quais o toriografia do imperialismo”.
Cadernos de Pesquisa. São
Brasil se relacionou, especialmente as europeias e a estadunidense, Paulo: Brasiliense, 1978.)

que se definiram ao longo da história brasileira como seus princi-


pais interlocutores culturais.

Traduzindo e colonizando o Brasil

A conjunção entre tradução e relato de viagem como estraté-


gia colonizadora já se encontra presente de forma clara na Carta de
Caminha. Além de descrição da terra descoberta e dos índios que
a habitavam, originando uma imagem que vai se propagar através
dos séculos, a Carta também nos apresenta as primeiras dificulda-

EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA | Tradução, viagem, literatura 297


des trazidas pelo desconhecimento linguístico mútuo entre os eu-
ropeus e os nativos, e as estratégias buscadas para enfrentar a si-
tuação. Percebendo a impossibilidade de entendimento da língua
dos indígenas, a primeira preocupação do capitão da expedição é
enviar um degredado para se introduzir entre os índios e trazer in-
formações. Segundo Caminha, o capitão “mandou com eles (os ín-
dios), para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo,
a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de
*
(CAMINHA, Pero Vaz de.
Carta. In: MEDONÇA, Ma-
seu viver e maneira”.* Afonso Ribeiro pode ser considerado como
nuela; VENTURA, Margari- o primeiro intérprete ou mediador cultural entre os habitantes da
da G. (eds.). Mar de letras.
Lisboa: [s.e.], 1999. p.58- terra que seria chamada de Brasil e a Europa. Mas sua introdução
75: 63.)
entre os indígenas sofrerá a resistência dos mesmos, que, descon-
fiados, o devolvem repetidas vezes aos navios portugueses. O capi-
tão pensa então em levar para a Europa alguns índios à força para
servirem de informantes, mas é dissuadido a deixar mais dois de-
gredados para se infiltrarem entre os nativos, estratégia que se tor-
nará recorrente no período colonial:
E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se seria bom
tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa
Alteza, e deixar aqui por eles outros dois destes degredados. Quanto
a isso acordaram que não era necessário tomar por força homens,
porque era geral costume dos que assim levavam à força para alguma
parte dizerem que ali há tudo o que lhe perguntam, e que melhor
e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes
degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem,
por ser gente que ninguém entende. [...] E que, portanto, não
cuidassem de tomar ninguém nem fazer escândalo, para de todos
*
(Ibidem: 66.)
mais os amansar e apacificar (sic) [...]*

A estratégia da substituição do rapto dos indígenas pela in-


filtração de mais dois degredados, apesar de aparentar uma atitude
mais pacífica, não chega a encobrir os verdadeiros interesses de do-
mínio sobre os nativos desejado pelos portugueses, e reforça a ação
estratégica dos intérpretes na persecução desse objetivo:
E, portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar, aprenderem
bem sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa
intenção de Vossa Alteza se hão de fazer cristãos e crerem em nossa
santa fé, a qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo,
esta gente é boa e de boa simplicidade, e imprimir-se-á ligeiramente
*
(Ibidem: 72.) neles qualquer cunho que lhes quiserem dar.*

Nesta declaração o projeto colonialista fica explícito, encober-


to pelo discurso religioso. Ao apresentar os índios como uma folha

298 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


em branco, como um povo sem cultura, sobre o qual se imprimi-
rá facilmente a marca da civilização europeia, Caminha transfor-
ma os nativos no objeto ideal do empreendimento colonialista eu-
ropeu. E ele completa:
segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhe falece
outra cousa para ser cristã senão entender-nos. [...] E para isso, se
alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os baptizar, porque
já então terão mais conhecimento de nossa santa fé pelos dois de-
gredados que aqui entre eles ficam [...].* *
(Ibidem: 74.)

Conhecer a língua e as maneiras dos índios e divulgar as


ideias europeias entre eles – essas, segundo a declaração de Cami-
nha, eram as principais tarefas dos línguas – forma como os degre-
dados e outros europeus deixados na colônia para viverem com os
índios eram chamados.
Essas tarefas e conselhos sobre como civilizar os indígenas, ex-
pressos por Caminha em sua carta, serão levados a cabo com fervor
pelos jesuítas, que chegaram ao Brasil em 1549 e implantaram seu
projeto missionário que se baseava principalmente no desenvolvi-
mento do conhecimento linguístico da cultura indígena e em um
processo de tradução – linguística e cultural – que ajudou a impor
os preceitos da cultura europeia sobre os nativos e apagar suas pró-
prias origens culturais.
*
(MONTERO, Paula (org.).
Como coloca Paula Montero* a respeito dos contatos que se Deus na aldeia. Missioná-
estabeleceram entre os jesuítas e índios a partir de sua chegada à rios, índios e mediação cul-
tural. São Paulo: Globo,
colônia, a “ideia de que esses ‘encontros’ são feitos de violência e 2006: 24.)

desigualdade de forças” é um ponto de partida, e não uma conclu-


são. Essa violência, como foi mencionado, dá-se através do apa-
gamento da tradição cultural, colonizada através da sua reescrita.
Segundo Montero,
o modus operandi da atividade missionária em geral é sua valorização
da inscrição do outro: seja através da gramaticalização das línguas,
da produção/tradução dos catecismos, seja através da descrição dos
modos de ser e pensar indígenas, a atividade da escrita para e sobre
os nativos fixa os acontecimentos em narrativas que vão, progressi-
*
(Ibidem: 59.)
vamente, depositando significações.*

Junto às descrições dos nativos e de sua forma de viver, que


justificam a abordagem civilizatória dos europeus (através de sua
caracterização como um povo sem lei, rei, ou fé), a estratégia tra-
dutória também se impôs como recurso de dominação no trabalho
missionário dos jesuítas. Segundo Montero, através de um proces-

EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA | Tradução, viagem, literatura 299


so de tradução cultural, baseado no discurso religioso, os missio-
nários vão estabelecer uma pedagogia jesuítica que vai se utilizar
de elementos já existentes na cultura nativa como linguagem pa-
ra veicular conteúdos da fé católica, inscrevendo sobre o elemento
cultural indígena o elemento europeu, apagando-o e substituin-
do-o num processo de sobreposição onde o Tupã torna-se o Deus
*
(Ibidem: 123.)
católico, e Tupansy, mãe de Tupã, torna-se Nossa Senhora.* Mais
do que a simples divulgação dos textos sagrados católicos na língua
entendida pelos índios, o processo de gramaticalização da língua
indígena pelos jesuítas, e sua sistematização na língua geral, a par-
tir do tupi e do guarani, que passou a ser adotada pela maioria das
etnias em contato com os brancos, por sua vez, teria sido parte de
um processo para estabelecer uma “unidade normativa, linguística
e cultural indígena, para fundar uma possibilidade interpretativa
(AGNOLIN, Adone. “Cate-
jesuítica (ocidental)” no entender de Adone Agnolin.* Como diz
*

quese e tradução: gramática


cultural, religiosa e linguís- ainda Montero, os textos religiosos traduzidos e escritos na língua
tica do encontro catequéti-
co e ritual nos séculos XVI- geral, os catecismos, vocabulários e artes gramáticas, mais do que
XVII”. In: MONTERO, Pau-
la. (org.) Deus na aldeia. Mis- traduzir palavras, traduziam tradições. É nesse sentido que conver-
sionários, índios e mediação
cultural. São Paulo: Globo,
ter passa a significar traduzir.
2006. p.143-208: 161.)

Relatos de viagem e a natureza como identidade brasileira

Se o projeto missionário jesuítico e sua estratégia linguística e


tradutória de “inscrição do outro”, segundo termo de Montero, são
desbaratados após cerca de dois séculos de atuação, com a interven-
ção do Marquês de Pombal, que expulsou os jesuítas do território
e extinguiu as famosas Missões, o processo de inscrição do outro
continuou a se estabelecer através da literatura de viagem. Reprimi-
da pela proibição da entrada de estrangeiros no território colonial,
proibição que se intensificou com as descobertas de ouro e diaman-
te nas Minas Gerais a partir do fim do século XVII, a literatura de
viagem sobre o Brasil ganha novo alento com a abertura dos portos
em 1808, possibilitando uma verdadeira invasão do território por
um enorme contingente de viajantes de diversas partes do mundo
prontos a descreverem e divulgarem as potencialidades do país.
Esse corpus de relatos de viajantes vai criar e difundir boa par-
te das representações sobre o Brasil, especialmente do século XIX,
representações que, segundo Ilka Boaventura Leite, em sua maior
*
(LEITE, Ilka Boaventura. parte revelam “[...] um conteúdo comprometido com uma visão
Antropologia da viagem.
Belo Horizonte: UFMG,
colonialista e etnocêntrica” europeia,* visão que terá suas repercus-
1996: 40) sões também na literatura nacional então em formação. O inau-

300 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


gurador desse novo ciclo de representações sobre o Brasil foi o ale-
mão Alexander von Humboldt, que, curiosamente, não esteve no
Brasil, proibido pela Coroa Portuguesa de entrar no território co-
lonial. Apesar disso, segundo Mary Louise Pratt, Humboldt, que
percorreu diversas regiões da América do Sul a partir de 1799, e
publicou suas viagens nos famosos Tableaux de la nature, a partir de
1808, foi o responsável por estabelecer as linhas para a reinvenção
ideológica da América do Sul que teve lugar em ambos os lados do
Atlântico durante as primeiras décadas do século XIX.* Através de *
(PRATT, Marie-Louise. Im-
perial eyes: travel writing
seus textos, mapas e desenhos, Humboldt caracterizou um territó- and transculturation. Lon-
don and New York: Routled-
rio que até então se apresentava como um mapa em branco para ge, 1992: 111.)

o norte europeu. Para Pratt, Humboldt reinventou a América an-


tes de tudo como natureza. Segundo ela, não a natureza classificá-
vel e colecionável de Lineus, mas “uma natureza dramática, extra-
ordinária, um espetáculo capaz de oprimir o conhecimento e en-
tendimento humano”.1* Ou seja, uma representação da natureza já (Ibidem: 120.)
*

muito mais comprometida com uma visão romântica do que neo-


clássica. Segundo Pratt, uma característica dos textos de Humbol-
dt sobre a América do Sul é a ausência do elemento humano. Para
a autora, continuando a tradição estabelecida por Colombo e Ves-
púcio, Humboldt “escreveu a América como um mundo primitivo
da natureza, um espaço atemporal e não reclamado, ocupado por
plantas e criaturas (algumas delas humanas), mas não organizado
por sociedades de economias; um mundo cuja única história esta-
(Ibidem: 120.)
va para ser começada” 2* – história a ser começada pelos europeus
*

que traziam a civilização para uma terra de ninguém. Se tal pon-


to de vista, de uma natureza exuberante que sobrepuja a presença
humana nativa, podia ser aceito para a América espanhola, mais
fácil ainda seria estendê-la à América portuguesa, habitada por ín-
dios em estado muito inferior de desenvolvimento material do que
seus vizinhos. A representação da América do Sul como natureza,
despojada da presença humana, oferecia um território virgem pa-
ra o empreendimento europeu. A influência de Humboldt chega-
ria ao Brasil não apenas como referência científica e ideológica dos
diversos naturalistas e estudiosos europeus que percorreram e des-
1
No original: “a dramatic, extraordinary nature, a spectable capable of overwhel-
ming human knowledge and understanding” (esta e outras citações foram tradu-
zidas pelo autor deste artigo).
2
“wrote America as a primal world of nature, an unclaimed and timeless space
occupied by plants and creatures (some of them human), but not organized by so-
cieties and economies; a world whose only history was the one about to begin”.

EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA | Tradução, viagem, literatura 301


creveram o país durante o século XIX, mas também mediada pe-
la atuação do francês Ferdinand Denis, que teria se inspirado em
Humboldt e sua valorização do poder de influência do clima, do
solo e da natureza sobre as artes, em sua proposta poética para a li-
teratura brasileira.

Discurso literário e olhar estrangeiro

Em seu Resumo da história literária brasileira, de 1826, Fer-


dinand Denis não apenas inaugura a historiografia literária brasi-
leira, mas propõe uma poética, baseada na descrição da natureza
tropical e dos costumes tradicionais como modelo pedagógico a
ser seguido pelos escritores brasileiros românticos interessados em
fundar uma literatura nacional para o país recém-independente.
Denis impôs uma imagem do Brasil que deveria ser representada
pelos escritores brasileiros em suas obras, imagem baseada na valo-
rização do pitoresco e do exótico segundo o olhar do viajante eu-
ropeu. Sua proposta foi incorporada na literatura e desenvolveu
uma tradição nacionalista que iria definir por um longo período
os rumos da produção crítica e literária brasileira, como demons-
*
(ROUANET, Maria Hele-
na. Eternamente em berço tra Maria Helena Rouanet.* Para Rouanet, a obra de Denis enqua-
esplêndido. A fundação de
uma literatura nacional. São
drou-se no discurso pedagógico desenvolvido pela França sobre
Paulo: Siciliano, 1991.) a América, especialmente o Brasil, a partir do século XIX, como
uma estratégia colonial. Segundo a autora, a presença da estratégia
pedagógica intensifica-se nos textos dos viajantes franceses sobre o
Brasil no decorrer do séc. XIX, “na medida em que a França perde
terreno, sob este aspecto [da influência sobre o Brasil], não apenas
para as demais nações europeias, mas também para a jovem nação
*
(Ibidem: 90.)
norte-americana”.* Para Rouanet, a acentuação da função coloni-
zadora nos relatos aponta um novo caminho na disputa de influ-
ência, através da substituição da diplomacia e das invasões arma-
das pela “fecunda infiltração da raça e do gênio” – “ao invés do na-
vegador normando ou do corsário [...] homens de letras, de livros,
que possam incumbir-se da preconizada ‘infiltração’ daquela ‘se-
(Ibidem: 94.)
mente francesa’”.* O projeto colonizador francês seria concebido
*

como um projeto pedagógico, e a intenção de Denis seria estender


os “benefícios” do intercâmbio colonizador a um campo que esta-
ria ressentido de sua falta, o das letras. Essa intenção pode ser en-
trevista no Resumé, quando Denis trata da influência francesa so-
bre a literatura brasileira:

302 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


o papel que nos cabe desempenhar nesse país é ainda muito signifi-
cativo, e se os ingleses têm, mais do que nós, a influência comercial
que em toda a parte lhes caracteriza a atividade, devemos contentar-
nos com ver uma nação esplendente de juventude e de engenho
afeiçoar-se às nossas produções literárias, por causa destas modificar
suas próprias produções, e estreitar através dos liames espirituais os
que devem existir na ordem política.* *
(DENIS, Ferdinand. “Re-
sumo da história literária
do Brasil”. Tradução Gui-
Denis pode ser considerado o maior representante dessa estra- lhermino César. In: CÉSAR,
Guilhermino. Historiadores
tégia nesse momento. Sua obra não apenas resgatou e divulgou a nas- e críticos do modernismo.
1. A contribuição européia:
cente cultura nacional brasileira, mas ajudou a formá-la. Apesar da crítica e história literária. São
busca de criação de uma identidade nacional, baseada em caracteres Paulo, Edusp, 1978: 41.)

originais e locais, essa tendência exotista fundada no olhar estran-


geiro acabou limitando o espaço de atuação da literatura brasileira,
como comenta Antonio Candido, reconhecendo a reprodução, na
esfera cultural, de uma dinâmica colonialista socioeconômica:
[...] daí um persistente exotismo, que eivou a visão de nós mesmos
até hoje, levando-nos a nos encarar como faziam os estrangeiros,
propiciando, nas letras, a exploração do pitoresco no sentido euro-
peu, como se estivéssemos obrigados a exportar produtos tropicais
(CANDIDO, Antonio. For-
também no terreno da cultura espiritual.*
*

mação da literatura brasilei-


ra. Belo Horizonte: Itatiaia,
A analogia entre a produção cultural e comercial brasileira es- 1997: 289.)

tabelecida por Candido, apesar de que atualmente tenha perdido


bastante do seu impacto, nos lembra como as relações desiguais de
poder, que regem as relações comerciais entre as nações, invadem
a esfera literária e cultural. Apesar de que aparentemente tenhamos
nos libertado da camisa de força do exotismo e do nacionalismo
como critério de qualidade e originalidade literária, o que permi-
tiu, por exemplo, o desenvolvimento do movimento concretista a
partir da década de 1950, a ideia de propor espaços reservados pa-
ra as literaturas segundo suas posições ocupadas no sistema econô-
mico internacional continua a vigorar. Essa ideia pode ser encon-
trada no texto do teórico da literatura Fredric Jameson, “Third-
(JAMESON, Fredric. “Third-
world literature in the era of multinational capitalism”,* publicado
*

world literature in the era of


em 1986, mas que repercute ainda hoje nos meios literários. Em multinational capitalism”.
Social Text, n. 15. Durham:
seu texto, Jameson propõe uma poética para a literatura produzi- Duke University Press,
1986: 65-68.)
da nos países do Terceiro Mundo, baseada em seu conceito de ale-
goria nacional, segundo o qual toda literatura produzida fora do
Terceiro Mundo “necessariamente projeta uma dimensão política
na forma da alegoria nacional: a história do destino privado indi-
vidual é sempre uma alegoria da situação da sociedade e cultura

EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA | Tradução, viagem, literatura 303


(Ibidem: 69.)
pública do Terceiro Mundo”.3* Resumindo brevemente a ideia de
*

Jameson, ele propõe que os textos literários do Terceiro Mundo,


que se mantêm fora do cânone ocidental, deveriam ser incorpora-
dos através da criação de uma teoria que demonstrasse sua especi-
ficidade frente à literatura do Primeiro Mundo, proporcionando
um espaço para sua inclusão. Como sugestão para essa teoria, ele
oferece o conceito de alegoria nacional, baseando-se num parale-
lismo evolutivo-histórico segundo o qual os intelectuais do Tercei-
ro-Mundo apresentariam, pelo menos naquele momento em que
escreveu seu texto, um “obsessivo retorno” ao nacionalismo, algo
já superado há muito tempo, segundo seu ponto de vista, pelo Pri-
meiro Mundo. Esse atraso histórico se refletiria na literatura pro-
duzida nessas nações:
o romance do Terceiro Mundo não vai oferecer as satisfações de Proust
ou Joyce; mais danoso que isso, talvez, seja sua tendência de nos
relembrar de etapas ultrapassadas de nosso próprio desenvolvimento
cultural do Primeiro Mundo e nos levar a concluir que eles ainda estão
*
(Ibidem: 65.)
escrevendo novelas como Dreiser ou Sherwood Anderson.4*

O texto de Jameson foi amplamente criticado e transformou-


se em uma polêmica nas páginas da Social Text entre seu autor e o
*
(AHMAD, Aijaz. “A retórica
da alteridade de Jameson e
escritor de origem indiana Aijaz Ahmad. Ahmad* criticou o olhar
a ‘alegoria nacional’”. Trad. civilizador de Jameson, baseado no etnocentrismo que apaga as es-
João Moura Jr. Novos Estu-
dos, n. 22, São Paulo: CE- pecificidades de diversas nações a partir de um olhar homogenei-
BRAP, 1988: 157-181.)
zante e que impõe uma perspectiva de fora sobre um enorme con-
tingente de culturas, estabelecendo ainda relações diretas entre sub-
desenvolvimento econômico e produção cultural atrasada. Além da
impropriedade de se basear num critério estritamente econômico
para definir todo um conjunto de literaturas de diferentes tradições,
critica-se o caráter prescritivo da proposta de Jameson, que faz eco-
ar a proposta de Ferdinand Denis aos românticos brasileiros. Como
Denis, Jameson, partindo de um olhar do centro para a periferia,
busca estabelecer, de forma prescritiva, uma teoria poética que, ao
mesmo tempo que procura abrir um espaço para o reconhecimen-
to de uma literatura, a enquadra em uma camisa de força que a re-
3
“necessarely project a political dimension in the form of national allegory: the
story of the private individual destiny is always an allegory of the embattled si-
tuation of the public third-world culture and society”
4
“the third world novel will not offer the satisfactions of Proust or Joyce; what
is more damaging than that, perhaps, is its tendency to remind us of outmoded
stages of our own first world cultural development and to cause us to conclude
that they are still writing novels like Dreiser or Sherwood Anderson.”

304 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


duz a uma reverberação de uma teoria alienada de sua própria re-
alidade interna. Como lembra Ahmad, “afirmar que todos os tex-
tos do Terceiro Mundo são necessariamente isso ou aquilo é afir-
mar, na verdade, que todo texto que se origine nesse espaço social
*
(Ibidem: 166.)
e que não seja isso ou aquilo não é uma ‘verdadeira narrativa’”,* ou
que não é um verdadeiro texto do Terceiro Mundo.
No século XIX a adoção da estética literária proposta por De-
nis, baseada na descrição pitoresca, levou escritores como Machado
de Assis a responderem a pesadas críticas pela ausência do “Brasil”
em sua obra, obstruindo a recepção, tanto nacional quanto inter-
nacional, daquele que seria considerado o maior escritor brasileiro
de todos os tempos. É célebre a polêmica surgida entre Sílvio Ro-
mero e Machado, exatamente pela suposta ausência de “brasilidade”
nos romances de Assis, acostumadas estavam as mentes dos leitores
brasileiros de encontrarem essa “brasilidade” de maneira gratuita e
aparente nas descrições das florestas luxuriantes e dos índios e seus
costumes exóticos. Respondendo a essas críticas e tentando oferecer
um novo paradigma estético literário Machado publica seu “Ins-
tinto de Nacionalidade”, onde procura demonstrar que é possível
produzir uma literatura brasileira e nacionalista sem se ater às des-
crições de aspectos exóticos do país. Assim como enfrentou críticas
no cenário cultural brasileiro, a não adesão de Machado à estética
do exotismo e da descrição também o levou a enfrentar percalços
em sua recepção no exterior. Para isso basta levarmos em conside-
ração que a primeira tradução de uma obra de Assis para o inglês
aconteceu somente em 1952, sessenta e seis anos após a publica-
ção da primeira tradução de uma obra brasileira para o inglês, Ira-
cema, de José de Alencar, em 1886. Machado não oferecia o apelo
do exótico e da descrição do país que mais chamava a atenção do
leitor estrangeiro. Apenas no final do século XX Machado de As-
sis começa a consolidar sua reputação internacional, sendo inclu-
ído por críticos como Harold Bloom entre os cem maiores gênios
*
(BLOOM, Harold. Gênio.
literários da humanidade,* que não o havia incluído em seu ante- Tradução de José Roberto
rior O Cânone Ocidental, ausência justificada posteriormente pe- O’Shea. Rio de Janeiro: Ob-
jetiva, 2003.)
lo crítico americano pela falta de boas versões das obras do autor
brasileiro para o inglês.* Da mesma forma que a estética do exo- *
(MOURA, Flávio. “Leio,
logo existo. O mais polê-
tismo influenciou tanto a produção como a recepção da literatura mico dos críticos literários
diz por que ainda se deve
brasileira, a adoção do conceito de alegoria nacional como defini- ler num mundo dominado
pelas imagens”. Entrevis-
ção das obras produzidas nos chamados países do Terceiro Mundo ta. Revista Veja. São Paulo:
poderia colocar estreitos limites à produção cultural de um vasto Abril, 2003.)

EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA | Tradução, viagem, literatura 305


grupo de nações, excluindo de seu espectro toda produção que fu-
gisse ao conceito, e marginalizando diferentes propostas literárias
que existam ou possam surgir nessas literaturas, como certa crítica
tentou fazer com Machado de Assis.

Conclusão

Será que na proposta de Ferdinand Denis e Fredric Jameson


não podemos encontrar a mesma estratégia dos jesuítas de sistema-
tização da língua geral, para estabelecer uma “unidade normativa,
linguística e cultural indígena, para fundar uma possibilidade inter-
*
(AGNOLIN, 2006:161.)
pretativa [jesuítica] (ocidental)”.* Estabelecer categorias estanques
para a produção cultural do Brasil ou dos países menos desenvol-
vidos através de teorias poéticas não seria uma forma de “inscrição
do outro”, em que se busca apagar suas especificidades frente a uma
categoria externa em nome de uma pretensa integração, quando na
verdade se opera uma mitificação. Mitificação que, segundo Said,
É um discurso, ou seja, não pode ser senão sistemática; o discurso
não é feito quando se quer, nem são feitas declarações no seu inte-
rior sem que antes se pertença [...] à ideologia e às instituições que
garantem a sua existência. Estas últimas são sempre instituições de
uma sociedade avançada que lida com outra menos avançada, de
uma cultura forte que encontra outra mais fraca. A característica
principal do discurso mítico é que ele oculta as próprias origens,
*
(SAID. op. cit: 325.)
bem com as origens daquele que ele descreve.*

Desvendar as origens do discurso mítico e de seu objeto de


descrição, através de uma leitura que Said chama de contrapontu-
al, por levar em conta tanto o processo do imperialismo quanto o
da resistência a ele, pode oferecer uma estratégia para entender co-
mo a tradução e a literatura de viagem vem ajudando na constru-
ção de uma imagem do Brasil, tanto para os estrangeiros como pa-
ra os próprios brasileiros.

Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista


Doutorando em Teoria e História da Literatura, Unicamp. Visiting
Research Assistant, Department of Spanish Studies, Queen Mary
College, University of London, Londres, Reino Unido, no período
de 08 de março a 30 de agosto de 2009. Mestre em Estudos Literá-
rios pela FALE/UFMG. Bacharel em Tradução da Língua Inglesa,
ICHS/UFOP. Artigos publicados: O Modernismo brasileiro como
literatura de exportação: a poesia modernista brasileira traduzida

306 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


por Elizabeth Bishop. Travessias, v.2, p.17, 2008. Representação
cultural brasileira no estrangeiro: a presença da literatura de via-
gem e das traduções nas relações culturais Brasil/EUA. MOARA,
v. 25, p. 176-192, 2006. Poética da representação cultural – uma
ponte conceitual entre a literatura de viagem e a tradução. Tradu-
ção e Comunicação., v.14, p. 17-36, 2005.

Resumo
Palavras-chave: tradução;
As relações interculturais durante um longo período da história fo- literatura de viagem; repre-
ram realizadas em sua maior parte pelos viajantes e tradutores. A sentação cultural.

partir do século XV a expansão colonial europeia utilizou-se das


diversas representações sobre os povos subjugados e seus territó-
rios, criadas por esses agentes, para construir um discurso colonial
que buscava justificar e naturalizar o domínio europeu sobre suas
colônias. Modernamente o trabalho desse corpo de funcionários
foi substituído por, entre outros, o etnógrafo e o acadêmico, e o
poder colonial foi substituído pelo neoimperialismo econômico e
cultural. A violência implícita nessas representações consiste basi-
camente em caracterizar uma suposta incapacidade de autogerên-
cia e desenvolvimento desses povos sem a tutela europeia, além de
vincular a determinação de sua identidade cultural a um discur-
so eurocentrista. Neste trabalho apontamos como algumas dessas
práticas se desenvolveram na história brasileira, demonstrando de
que forma as representações culturais sobre o outro podem trazer
implicitamente um discurso de dominação.

Abstract Résumé
Key words: translation; tra-
The relations between different Les relations interculturelles sur vel literature; cultural repre-
cultures have been developed une longue période de l’histoire sentation.

for a long time in cultural his- ont été menées principalement Mots-clés: traduction; litté-
rature de voyage; représen-
tory by the correlated work of par des voyageurs et des tra- tation culturelle.

translators and travelers. Since ducteurs. Depuis le XVe siècle,


the beginning of the fifteenth l’expansion coloniale européen-
century, the representation of ne a profité de différentes repré-
other peoples and cultures dis- sentations de peuples soumis et
seminated by these agents has leurs territoires, crées par ces
been in service of the European agents, pour construire un dis-
colonial power in order to justi- cours colonial qui a cherché à
fy and naturalize its domination justifier et à naturaliser la domi-
over its colonies. In modern ti- nation européenne sur les colo-

EDUARDO LUIS ARAÚJO DE OLIVEIRA BATISTA | Tradução, viagem, literatura 307


mes the work of academics and nies. Dans les temps modernes
anthropologists has taken pla- le travail de ce corps de fonctio-
ce as a legitimating discourse nnaires a été remplacé par, en-
of economic and cultural neo- tre autres, l’etnologue et cher-
imperialism. The implicit vio- cheur, et le pouvoir colonial a
lence enclosed in the represen- été remplacé par le néo-impé-
tations of other peoples provi- rialisme économique et culturel.
ded by them consists basically La violence implicite dans ces
in demonstrating their preten- représentations apparaît dans
ded incapacity of self-rule and la caractérisation d’une soi-di-
development without European sant incapacité à l’auto-gestion
dominion. In this work we try et au développement de ces peu-
to point out how some of those ples sans la tutelle européenne,
described cultural practices ha- et aussi dans ce lien qui est éta-
ve been present in Brazilian his- bli entre la détermination de
tory, disclosing in which ways leur identité culturelle à un dis-
cultural representations about cours eurocentrique. L’objectif
other peoples can carry an im- de cet étude était de montrer
plicit discourse of domination. comment ces pratiques se sont
développées dans l’histoire bré-
silienne, en soulignant com-
ment les représentations cultu-
relles de l’autre sont susceptibles
d’introduire un discours impli-
cite de la domination.

Recebido em
25/05/2009

Aprovado em
18/07/2009

308 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Léxico, dicionários e tradução
no período colonial hispânico

Consuelo Alfaro Lagorio

Uma das marcas que evidenciam o contato, mais especifica-


mente, a dinâmica das sociedades, se encontra no léxico. Nos pro-
cessos militares de conquista, os elementos da cultura material das
sociedades conquistadas que passam a integrar as práticas sociais
dos conquistadores, por exemplo, plantas e animais, geralmente
são incorporados com os termos que as designam, após um perío-
do de ajustes em razão das dificuldades de tradução. Na língua es-
panhola, termos como canoa,1 axi, hamaca, maiz, são incorpora-
das aos dicionários nos primeiros momentos da Conquista, já no
século XVI. Posteriormente, entradas léxicas como tomate, choco-
late, batata, llama e tantas outras procedentes de América indíge-
na fazem parte de Dicionários, a partir do século XVIII, institu-
cionalizadas como patrimônio léxico. Nos primeiros documentos
de registro ibéricos, contudo, as descrições feitas desses elementos
e os nomes desses objetos se ancoram nas categorias conhecidas
dos cronistas,2 e só após estabilizar o empréstimo se consolida es-
se processo no registro do dicionário.
Essas entradas consignam os itens de materialidade concreta.
No entanto, existem outros desdobramentos para os conceitos e as
categorias de natureza étnica, como aqueles que se referem à orga-
nização social, política ou à cosmogonia das sociedades indígenas,
que não têm correspondências com as categorias das línguas euro-
peias. Na nova ordem social e jurídica, muitas dessas categorias são
ressemantizadas, isto é, ganham outros significados nas línguas de
origem, por força das tensões institucionais.

1
De origem taino, este termo está registrado no Vocabulario español-latino de
Antonio de Nebrija [1495]. Ed. facsimilar de Madrid, Real Academia Españo-
la, 195: f.XXIIIv.
2
No caso das referências ao mundo andino, as primeiras crônicas espanholas se
referem às lhamas como carneros, e até uma Crônica escrita em espanhol por um
índio se refere da mesma forma. (Guamán Poma, Felipe. Nueva Crónica y
buen gobierno.[1616] Historia 16: Madrid, 1987: 270.)

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 309-320 309


Línguas Indígenas e Catequese

Dentre as medidas que fazem parte das decisões políticas da


administração colonial na América Hispânica, uma diz respeito à
tradução. Depois de encerrado o processo de Conquista, organizar
e gerenciar a nova ordem social requer disposições legais, entre as
quais são fundamentais as que se referem às línguas. Esse processo
de intervencionismo e planejamento é acionado pelas duas instâncias
de poder. De um lado, a Igreja – o órgão formulador e executor dessa
política, a partir da práxis das ordens missionárias e, de outro lado, a
instância política –, a Coroa, órgão sancionador através do corpo de
medidas legais, que dão força de lei a essas propostas.
Ao longo da Conquista e em todo o período colonial, a ad-
ministração hispânica se serviu das categorias proporcionadas pe-
los estudiosos das línguas – missionários e cronistas – que usaram
uma classificação funcional: línguas gerais vs. línguas particulares.
A Língua Geral se refere à língua de uma região ou de uma zona
multilíngue, que serve como veículo de comunicação interétnica
entre falantes de línguas particulares. Uma das primeiras providên-
cias dos colonizadores foi identificar aquelas línguas que permitiam
um relativo leque comunicativo, avaliando que o seu uso dispensa-
va a aprendizagem e abordagem das línguas minoritárias.
No caso andino, a língua geral que tinha servido para a ad-
ministração inca era o Quéchua. Após ser avaliada em sua funcio-
nalidade, passa a ser objeto de medidas do que hoje conhecemos
como “planejamento linguístico”, tais como, escolha da norma e
sua implantação, principalmente no processo evangelizador, dei-
xando, neste campo, farta documentação. Nesse sentido, a sua co-
dificação normativa (edição de gramáticas) e ortográfica (com pro-
postas minimizadoras das diferenças dialetais) instrumentalizam a
língua para desempenhar novas funções. Certamente naquela em
que mais se investiu foi na de criar discursos religiosos, com o in-
tuito de substituir as práticas religiosas andinas.
Como subsídio para analisar os pressupostos da política de lín-
guas, cabe assinalar a tradução como uma das práticas mais marcan-
tes na configuração e formação de um corpus na língua escrita. Na
corte de Toledo, no período alfonsino,3 grupos de eruditos, fluentes
nos registros cultos nas línguas clássicas, especialmente hebreu e ára-
3
Refere-se ao período do rei de Castilha e Leon Alfonso X, século XIII, conhe-
cido como Alfonso el sábio, pelas políticas protecionistas em vários campos do
saber, notadamente a literária e a história.

310 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


be, formaram uma espécie de colegiado, para traduzir ao castelhano
a produção literária dessas línguas. A tarefa de traduzir passava por
deliberações sobre “fidelidade” e qualidades textuais das versões ao
castelhano, que configuram uma importante tradição.
Os Concílios Provinciais assumem a responsabilidade de produ-
zir uma traducción auténtica del Catecismo y Doctrina Cristiana para ser
difundida, função que será delegada a personas doctas y hábiles en len-
gua que hiciesen la dicha traducción.* Este é o modelo de política lin- *
(Solano, Francisco. Do-
cumentos sobre Política
guística trazido na bagagem do clero letrado – uma minoria nas hostes Lingüística en Hispanoa-
mérica – 1492-1800. Ma-
conquistadoras. O modelo será implementado nas propostas políticas drid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas,
das bases americanas, norteado pelas diretrizes metropolitanas. 1991: 85.)
Desta forma, planejar a catequese, eixo no ordenamento so-
cial que constitui uma prática importante, requer tomar decisões no
campo das línguas. Em função de sua natureza, uma das primeiras
deliberações institucionais, através dos Concílios, é instaurar uma
linha pastoral para ordenar as práticas de catequese, que já vinham
se desenvolvendo durante cinquenta anos ao longo da ocupação,
tentando estabelecer linhas claras de atuação.
A tarefa da tradução do material catequético para a língua geral
indígena segue os moldes toledanos, acrescidos dos cuidados inqui-
sitoriais no que a Doutrina cristã se refere. O documento “Epístola
da Tradução”, dentro do III Concílio Limense, constitui um mar-
co legal que cria normas para controlar a qualidade ideológica e lin-
guística das traduções, e propõe que para fazê-las: “Se haga juntas de
lenguas de personas doctas y religiosas para que de conformidad se
haga la traducción de este mismo Catecismo.” Assim como “está or-
denado que se use solamente de las traducciones aprovadas por este
(Solano, Francisco. op.
Concilio provincial”.*
*

cit.: 85-86.)
A tarefa de uniformização proposta pelo III Concílio Limen-
se tenta controlar não só a diversificação pastoral, mas, sobretudo,
implica uma intervenção no planejamento da língua. A política
homogeneizante – uma língua, uma versão – exige tomar decisões
frente a esse conjunto de diversidades.
Para este fim, são elaboradas propostas que seguem os line-
amentos do modelo peninsular de “ordenamento” no âmbito das
línguas, especialmente na implementação e escolha de uma língua
geral regional. Entretanto, se abre um grande debate sobre a pos-
sibilidade de línguas indígenas serem capazes de comportar o ide-
ário cristão. Essa questão gera polêmicas acaloradas dentro das or-
dens religiosas, que chegam até aos níveis deliberativos mais altos

CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 311
da Igreja – os Concílios – em que, após argumentações e contra-
argumentações, são submetidas à votação.
Nesse quadro, um dos lados do conflito vê a língua castelhana
como a língua civilizadora e, em contrapartida, vê nas línguas indí-
genas o reduto das idolatrias. A tese contrária, que acabará sendo a
dominante, defende o uso das línguas indígenas, chamadas gerais,
pelas funções de comunicação interétnica, para desempenhar um
novo papel na difusão da doutrina cristã.
Para ilustrar as controvérsias levantadas em relação à termi-
nologia cristã, é representativo o caso da discussão em torno da
tradução do item lexical Dios. A propósito de um Catecismo em
uma língua indígena de Guatemala, publicado pelos franciscanos
no México, os dominicanos promovem uma polêmica que envol-
ve questões teológicas e linguísticas. Uma parte da ordem critica-
ra o catecismo franciscano por traduzir o termo Dios do espanhol,
en el nombre que significaba Dios en la lengua [indígena] com o se-
guinte argumento: como los indios no formaban concepto de lo que
significaba esta palabra “Dios”, andaban desatinados porque no po-
dian concebir a Dios em [língua] romance. No entanto, o próprio
superior dominicano, após uma visita, proibirá o nome “Cabahuil”,
termo indígena escolhido para a tradução, ordenando a sua subs-
tituição pelo nome de Dios, o “verdadeiro”, nas ações de catequese
*
(Ibidem: 56.)
na região.* Este episódio mostra não só as contradições no seio da
própria instituição, mas a relação que se estabelece entre retórica e
ideologia, na representação das línguas.
No mundo andino, as divindades, as práticas religiosas e os
ritos nas línguas indígenas constituem objeto de grande persegui-
ção por serem considerados veículos de idolatrias. A preocupação
e cuidados especiais podem ser observados na composição dos lé-
xicos e vocabulários. Frei Domingo de Santo Tomás compõe o Le-
xicón o Vocabulário de la Lengua General del Peru (1560), seguin-
do as entradas do Vocabulário Hispano-latino de Nebrija (1495).
A tarefa encomendada é a de construir um universo de conceitos
cristãos adequando o léxico quéchua. Y
alli donde las hubiese o por perífrasis y remantizaciones [...] ‘descons-
*
(Torero, Alfredo. “Entre
truir’, paralizar, la tradición andina en todo aquello que contrariase
Roma y Lima; el Lexicon la imposición del Evangelio y del dominio hispano, silenciando el
Quichua de Fray Domingo léxico quechua de contenido religioso indígena cuando no pudiese
de Santo Tomás [1560]”. In:
Zimmermann, Klauss (ed.) ser remantizado...*
La descripción de las lenguas
amerindias en la época colo-
nial. Madrid: Vervuert-Ibero-
A questão de fundo é que o uso das línguas indígenas na tare-
americana, 1997: 283.) fa de catequese implica a decisão de traduzir nelas a doutrina cris-

312 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


tã materializada na produção de Catecismos nas diferentes línguas
gerais, assim como se estava fazendo a tradução do latim às línguas
vulgares europeias, com objetivos de difusão religiosa. Essa deter-
minação representa todo um investimento que envolve, entre ou-
tras, propostas ortográficas para as línguas sem escrita assim como a
elaboração de Artes ou Gramáticas e Dicionários.
Domingo de Santo Tomás observa que deve omitir: “cosas que
no tenian ni se usauan en aquellas tierras [...] muchos términos de
frutas, de aves, animales, officios, vestidos [...] delas cosas de la fe
*
(SANTO TOMÁS, Fray Do-
católica, de ornamento de iglesias....”* Termos enraizados nas tra- mingo. Lexicon o Vocabu-
dições religiosas andinas são também omitidos, por ser objeto de lario de la lengua general
del Perú. [1560] Madrid:
erradicação, como parte da política de extirpação de idolatrias. Agencia de Cooperación
Española, 1994: Prologo
A identificação das idolatrias com a língua consta da “lista” de al lector.)
práticas condenadas no II Concílio. Uma das estratégias delineadas
é a convocação de experts em línguas indígenas para elaborar instru-
mentos catequéticos nas línguas gerais, visando à difusão da doutrina
cristã, segundo a orientação do Concílio de Trento (1545-1563).
Os Vocabulários estão constituídos por dicionários bilíngues,
espanhol-línguas indígenas, que têm por objetivo viabilizar a tradu-
ção de itens lexicais de uma língua a outra e vice-versa, reproduzin-
do o formato dos primeiros dicionários de línguas vulgares, Latim-
Romance, como uma tentativa de estabelecer correspondências de
natureza semântica entre ambas as línguas. Isto para cumprir com
uma das principais tarefas da organização do trabalho de cateque-
se, que consiste na produção de materiais nas duas línguas gerais
mais importantes da área andina: quéchua e aymara.
Os problemas descritivos que se colocam numa Gramática por
se tratar de línguas tipologicamente tão diferentes são escamotea-
dos no Vocabulário, em que os itens lexicais são apresentados iso-
ladamente, como uma lista de palavras plausíveis de apresentarem
equivalências. Itens como no caso das etnocategorias representam
um desafio à tradução, cuja solução geralmente é pelo viés do et-
nocentrismo. Assim, seguindo o modelo de Nebrija, o Vocabulário
quéchua de Frei Domingo de Santo Tomás [1560] desdobra entra-
das lexicais para dar conta do contato. Na parte Espanhol-Quéchua,
para o termo “sacerdote”, por exemplo, formula duas entradas: i)
sacerdote de ydolos traduzida pelo termo quéchua: “homo” e ii) sa-
cerdote de christiano: “runa diospa cococ”, adaptando uma formu-
lação quéchua a partir do cognato dios. Já na parte Quéchua-Es-
panhol do Léxico, o termo homo, que corresponde a “sacerdote”, é

CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 313
traduzido como agorero, hechizero, passando, assim, por resseman-
tizações e diferenciações explicativas entre as concepções cristãs e
as das religiões andinas, indicadoras já da presença da Inquisição.
Da mesma forma, o termo quéchua de divindade: guaca é corres-
*
(Torero, Alfredo. op.
cit: 282.)
pondido pelo termo espanhol ydolo.*
A tradução de discursos eclesiásticos, guardando os princípios
próprios dessa retórica nas línguas indígenas, é considerada uma tare-
fa difícil. A Gramática [da língua quechua] de frei Domingo de Santo
Tomás inclui uma tradução da Plática para todos los Indios, com a ava-
liação que a tradução se hizo con no pequeño trabajo, por la mucha di-
*
(SANTO TOMÁS, Fray Do- fficultad que ay en declarar cosas tan diffíciles y desusadas a los Indios.*
mingo. op. cit. loc. cit.)
Essa avaliação é compartilhada pelo jesuíta José de Acosta, que
após fazer um paralelo entre as lenguas índicas, o hebreu, o grego e
o latim, para provar a sua simplicidade e facilidade em aprendê-las,
e ainda dizer que, apesar dos sons bárbaros, são capazes de modos de
decir tan bellos y elegantes, afirma que essas línguas tienen una gran
penuria de palabras, porque como bárbaros [los índios] carecian del co-
*
(Solano, Francisco. op.
cit.: 99.)
nocimiento de estos conceptos.*
Se bem que as tarefas de codificação, elaboração de gramáti-
cas e propostas ortográficas sejam vistas como de natureza técnica,
no terreno da codificação léxica as implicações sociais e culturais
ganham outra dimensão. No caso do universo andino, esses dicio-
nários desempenham um papel “intervencionista”, porque levam
a uma reformatação da Língua Geral quéchua. Neste processo si-
lencioso e pouco visível que Torero chama de ressemantização, a
cosmogonia e religiões andinas são minadas pela reconceitualiza-
ção de termos tradicionais e ao mesmo tempo, de introdução de
termos novos a partir da criação de novos significantes em quéchua
para categorias cristãs.

A Inquisição e as línguas

O episódio histórico conhecido como de “Extirpação de Ido-


latrias”, um dos mais devastadores para as culturas indígenas, repre-
senta um momento-chave para a guinada, histórica e linguística, da
força desestruturadora, no que se refere à coesão cosmogônica do
mundo andino. Ao final do século XVI, sob o comando do Santo
*
(Taylor, Gerald. Ritos e Oficio, é produzido um manuscrito, como parte do trabalho co-
Tradiciones de Huarochiri
del siglo XVII. Lima: Instituto
nhecido como Ritos e Tradições de Huarochiri.* Trata-se de uma es-
de Estudios Peruanos & Insti- pécie de Relatório, em que informantes narram mitos e descrevem
tuto Francés de Estudios An-
dinos, 1987.) práticas religiosas andinas. Escrito em língua geral quéchua, o ma-

314 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


nuscrito é uma peça dos autos inquisitoriais e, portanto, apresenta
também uma versão em espanhol.
A estratégia ideológica inquisitorial representa as religiões an-
dinas como uma doença idolátrica, da qual esse documento cons-
titui uma prova, por conter termos heréticos em língua indígena.
Em contrapartida, é estabelecida uma “cura” em De procuranda in-
dorum salute, do jesuíta e intelectual José Acosta, que encaminha
a campanha de repressão idolátrica como um remédio para com-
bater a enfermidade.
Esta campanha tem na língua um dos meios de acesso e diag-
nóstico, observável nos interrogatórios e na documentação reco-
lhida, mas também na construção dos “medicamentos” como um
dos instrumentos de reformatação ou construção de um mundo
andino cristão. Dessa forma, as medidas políticas e o planejamento
de línguas estão motivados principalmente pela erradicação dessas
práticas heréticas, inerentes às línguas indígenas.

Anjo bom ou anjo mau?

A ressemantização de alguns itens lexicais ao longo do perí-


odo colonial e a sua dicionarização até o presente constitui uma
pista para entender essa política intervencionista, no que se refere
à cosmogonia e ideologia religiosa.
No Lexicón de La Lengua General del Perú (1560), Fray Do-
mingo de Santo Tomás consigna como traduções do termo çupay:
“ángel bueno o malo”; “demonio, bueno o malo” representando
uma entidade neutra do sistema religioso andino. Já no manuscrito
de Huarochiri (1579?) o termo aparece, tanto em quéchua quan-
to na versão bilíngue, como mana alli supay: “neg. bom espírito”,* *
(Taylor, Gerald. op. cit.:
21.)
alternando com supay para designar demônio, portanto oscilando
entre espírito e demônio.
Originalmente Supay foi traduzido por “sombra” ou “alma dos
antepassados”, já no final do século XVI, a campanha da Inquisição
cristaliza o significado do cristianíssimo “diabo” para essa entidade
andina. Como resultado desse processo, nos dicionários contempo-
râneos Quéchua-Espanhol,4 nas seis variantes da língua quéchua,
constam os seguintes registros para a entrada léxica supay:
4
Série de Dicionários editados pelo Instituto de Estudios Peruanos e o Minis-
tério de Educación, com apoio do Depto de Linguística da Universidad de San
Marcos. Obras de referência na lexicografia quéchua. Cerrón-Palomino,
Rodolfo Diccionario Quechua Junin-Huanca. ME/IEP: Lima, 1976; Cusihua-
mán, Antonio Diccionário Quechua Cuzco– Collao. ME/IEP: Lima, 1976; Pa-

CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 315
Lexicón o Vocabulario de la Lengua General del Perú (1560)
çupay “ángel bueno o malo”

Dicionários –1976 Supay

Diccionario Quechua
s. diablo, espíritu maligno
Ayacucho-Chanca.
s. diablo, demonio. Supay wasi:
Diccionário Quechua
‘Infierno’. Supaypa wawan:
Cuzco-Collao
‘hijo del diablo’.

Diccionario Quechua s. ‘Demonio’. Cf. hupay, shapi,


Ancash-Huaylas shapinku, shapsa.

Diccionario Quechua s.‘Diablo’ // Usase también


Junin-Huanca como insulto.

Diccionario Quechua de s.‘Diablo’. Supayuk adj.


San Martín ‘Endemoniado’

–---------
Diccionario Quechua
esp. Demonio: Shapinku.
Cajamarca-Cañaris
Awqa*, manalli
*
Awqa: s. ‘demonio, enemigo; gato, judío/ adj. Tonto, opa, ignoran-
te, tonto
Pode-se observar como a “divindade” andina foi ressemantiza-
da negativamente, de forma que a sua invocação implicou castigos
de toda natureza, perseguição, tortura e execração pública. Desta
maneira, a entrada léxica cristalizou um significado até o ponto,
como se pode observar em um dos dicionários, de marcar uma das
funções do termo, a de insulto.
Em contrapartida, para a entrada léxica do espanhol Dios na
correspondência quéchua os mesmos dicionários oferecem a tra-
dução a seguir:

rk, M. Weber, N.; Cenepo, V. Diccionario Quechua de San Martín. ME/


IEP: Lima, 1976; Parker, Gary; Chávez, Amancio Diccionario Quechua
Ancash-Huaylas. ME/IEP: Lima, 1976; Soto Ruiz, Clodoaldo. Diccionario
Quechua Ayacucho-Chanca. ME/IEP: Lima, 1976.; Quesada, Félix. Diccio-
nario Quechua Cajamarca-Cañaris. ME/IEP: Lima, 1976.

316 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Dicionário-1976 Dios

Diccionario Quechua
-------------------
Ayacucho-Chanca
Diccionário Quechua
Dyus o Yus; Yaya
Cuzco-Collao
Diccionario Quechua
Dyos, kamakoq
Ancash-Huaylas
Diccionario Quechua
–-----------------
Junin-Huanca
Diccionario Quechua
Dyus
de San Martín
Diccionario Quechua
Amitu, tayta, siñur, yaya
Cajamarca-Cañaris

As equivalências para o quéchua são formadas a partir dos em-


préstimos do léxico espanhol Dios, que ocorre na maioria das variantes
quéchua. Aparecem outras formas castelhanas como “amitu” (amo.
dim.), “tayta” (pai em espanhol antigo), “siñur”, ou as formas quéchua
kamacoc (o fazedor), yaya (pai), compatíveis com o ideário cristão.
Em dois dicionários (Junin e Ayacucho) não consta a entrada.
Esses dados evidenciam o apagamento dos nomes étnicos que
fazem parte dos sistemas nas religiões andinas tradicionais, como
resultado da política tradutória intervencionista das instâncias de
poder, no caso, a Igreja. Apesar dos setores “indianistas” serem vito-
riosos no uso das línguas gerais indígenas na catequese, a ideologia
que representa essas línguas como incapazes de comportar o sagra-
do, monopolizado pelo ideário cristão, acabam predominando:
...los vocabularios servían de instructores y de códigos morales
[...] Eran uma base para transformar el idioma de los autóctonos
y, mediante esto, el pensamiento y la cosmovisión, una meta muy
(Thiemer-Sachse, Ursula.
clara de la evangelización.*
*

“El Vocabulario castellano-


zapoteco de Juan de Cór-
O dicionário representa, assim, uma autoridade que funciona doba”. In: Zimmermann,
Klauss (ed.) La descripción
como uma das instituições sociais na produção e difusão de repre- de las lenguas amerindias
sentações, no caso do dicionário bilíngue, as escolhas na tradução en la época colonial. Ma-
drid: Vervuert-Iberoameri-
acabam sedimentando a reprodução dessa visão dominante. cana, 1997:152.)

CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 317
Dicionários:
Cerrón-Palomino, Rodolfo. Diccionario Quechua Junin-
Huanca. ME/IEP: Lima, 1976.
Cusihuamán, Antonio. Diccionario Quechua Cuzco– Collao.
ME/IEP: Lima, 1976.
Park, M. Weber, N. & Cenepo, V. Diccionario Quechua de
San Martín. ME/IEP: Lima, 1976.
Parker, Gary & Chávez, Amancio. Diccionario Quechua
Ancash-Huaylas. ME/IEP: Lima, 1976.
Nebrija, Antonio de. Vocabulario español-latino [1495]. Ed.
facsimilar de Madrid: Real Academia Española, 1951.
SANTO TOMÁS, Fray Domingo Grammatica: o Arte de la lengua
general de los indios de los reynos del Perú.[1560] Centro de estu-
dios regionles Bartolomé de las Casas: Cuzco, 1995.
Santo Tomás, Fray Domingo. Lexicon o Vocabulario de la lengua
general del Perú. [1560]. Agencia de Cooperación Española:
Madrid, 1994.
Soto Ruiz, Clodoaldo. Diccionario Quechua Ayacucho-Chanca.
ME/IEP: Lima, 1976.
Quesada, Félix. Diccionario Quechua Cajamarca-Cañaris. ME/
IEP: Lima, 1976.

318 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Consuelo Alfaro Lagorio
Doutora em Educação Bilíngue pela Pontifícia Universidade Cató-
lica do Peru (1972), com Pós-Doutorado pela Université de Paris
VII – Université Denis Diderot, França (1983). Professora Asso-
ciada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando no Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – Estudos Linguís-
ticos nos seguintes temas: linguística hispânica, ensino de língua
estrangeira, ensino e aprendizagem. Integra o GT da ANPOLL:
Historiografia Linguística Brasileira.

Resumo
Palavras-chave: tradução;
As decisões políticas da administração colonial na América hispâ- historiografia linguística;
lexicografia; línguas indíge-
nica em relação às línguas têm a ver diretamente com a catequese. nas; política linguística.
Após a escolha das línguas a serem usadas para este fim, no caso as
línguas gerais assim chamadas pelas funções de comunicação inte-
rétnicas, começa um debate dentro das ordens missioneiras sobre a
capacidade de essas línguas comportarem a doutrina cristã.
Para levar adiante a ação evangelizadora, investe-se na produção
de Gramáticas, Dicionários bilíngues e propostas ortográficas para
essas línguas que viabilizam a produção de catecismos. A questão
debatida neste artigo está centrada nas políticas de tradução expli-
citadas pelos Concílios, que implicam, entre outros, a resseman-
tização dos termos étnicos que designam as entidades e as práti-
cas das religiões andinas, num processo de satanização que pode
ser observado nos Dicionários, na tradução à língua espanhola das
entradas léxicas e, ao mesmo tempo, na incorporação de emprés-
timos do castelhano às línguas indígenas.

Abstract Resumen
Key words: translation;
The language policy carried out Las decisiones políticas de la ad- translation, linguistic his-
toriography, lexicography,
by the colonial administration ministración colonial en Amé- indian languages, linguis-
of hispanic America is directly rica hispánica en el campo de tic politics

linked to the catechism of the las lenguas tienen que ver di- Palabras clave: traducción;
historiografia lingüística; le-
Catholic Church. When the rectamente con la catequesis. xicografía; lenguas indíge-
nas; política lingüística.
decision of which languages to Después de optar por las len-
use for catechism was taken (in guas que serán usadas para este
this case the general languages) fín, en el caso las lenguas gene-
a debate arose among the mis- rales, así llamadas por las fun-
sionary orders about whether or ciones de comunicación inter-
not these languages were able étnicas, comienza un debate

CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 319
to transmit the Christian doc- dentro de las órdenes misione-
trine. The evangelization process ras sobre la capacidad de estas
brought about the production of lenguas en comportar la doc-
grammar books, bilingual dic- trina cristiana.
tionaries and spelling sugges- Para llevar a cabo la acción evan-
tions for these languages. gelizadora se invierte en la pro-
This article focuses on the trans- ducción de Gramáticas, Dicio-
lation policies defined by the narios bilingües y propuestas or-
Church Councils. These includ- tográficas para estas lenguas que
ed the resemanticization of eth- viabilicen la producción de ca-
nic terms defining the Entities tecismos. La cuestión debatida
and andean religious practices. em este artículo está centrada en
The Spanish translation of lexi- las políticas de traducción expli-
cal entries in dictionaries of that citadas en los Concilios que im-
period, as well as the adoption plica, entre otros, la ressemanti-
of certain Spanish words into zação de los términos étnicos que
indigenous languages, reveal the designan las entidades y las prác-
nature of the demonizing pro- ticas de las religiones andinas, en
cess that was carried out. un proceso de satanización que se
puede observar en los Dicciona-
rios, en la traducción a la lengua
española de las entradas léxicas y
al mismo tiempo, en la incorpo-
ración de empréstimos del caste-
llano a las lenguas indígenas.

Recebido em
28/05/2009

Aprovado em
20/07/2009

320 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Tradução e interculturalidade:
o passarinho, a gaiola e o cesto1

José Ribamar Bessa Freire

Te mandei um passarinho,
patuá miri pupé,
pintadinho de amarelo,
iporanga ne iaué.

Esses versos fazem parte de uma canção bilíngue recolhida


por Couto de Magalhães, no Pará, em 1874, quando ainda era
cantada por amplos setores da população da Amazônia. Trata-se
de uma expressão da literatura oral bilíngue português-nheenga-
tu. Existem outras canções como essa, de versos compostos simul-
taneamente nas duas línguas, que alternam simetricamente o por-
tuguês e o nheengatu, tendo a métrica e a rima como parte consti-
tutiva da unidade textual. Couto de Magalhães concluiu que elas
foram produzidas no tempo em que ambas as línguas eram “po-
pulares” e conviviam em situação de bilinguismo relativamente
equilibrado, pois – na expressão dele – “as duas línguas entram na
composição, com seus vocábulos puros, sem que estes sofram mo-
dificação”.* Na época em que a Amazônia formava uma comuni- (MAGALHÃES, J.V. Couto
*

de. O Selvagem. Belo Ho-


dade bilíngue, não havia necessidade de traduzir para o português rizonte/São Paulo: Itatiaia/
Edusp, 1975: 89-90.)
os versos em nheengatu.
O nheengatu, “uma das línguas de maior importância histó-
rica no Brasil”,* foi a língua majoritária da Amazônia durante to- ( R O D R I G U E S , A r yo n
*

Dall’Igna. “Prefácio”. In:


do o período colonial, estendendo sua hegemonia até a primeira FREIRE, José Ribamar Bes-
sa. Rio Babel. A história das
metade do século XIX. Manteve contato permanente, através de línguas na Amazônia. Rio
de Janeiro: Eduerj/Atlânti-
seus falantes, com outras línguas indígenas e com o português, o ca, 2004: 13.)
que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Du-
rante três séculos, índios, mestiços, negros e portugueses trocaram
experiências e bens nessa língua que se firmou como língua supra-
étnica, difundida amplamente pelos missionários por meio da ca-
tequese.* Denominada pelos linguistas de Língua Geral Amazôni- *
(FREIRE, José Ribamar Bes-
sa. “Língua Geral: a Histó-
ria de um esquecimento”.
In: FREIRE, José R.B & RO-
1
Artigo elaborado a partir de algumas ideias apresentadas pelo autor na palestra SA, M. Carlota (orgs). Lín-
“Duas línguas: os guarani, o bilinguismo e a tradução intercultural”. I Encontro guas Gerais. Política Linguís-
Internacional 5ª Habilidade Tradução e Ensino. UFES: Núcleo de Pesquisas em tica e Catequese na Améri-
ca do Sul no Período Colo-
Tradução e Estudos Interculturais/Programa de Pós-Graduação em Estudos Lin- nial. Rio de Janeiro: Eduerj,
guísticos e Estudos Literários. Vitória (ES). 2007. 2003: 207.)

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 321-338 321


ca (LGA), para diferenciá-la da Língua Geral Paulista (LGP), ela
foi declarada recentemente língua cooficial em São Gabriel da Ca-
choeira (AM), um município maior que Portugal, onde são fala-
das 23 línguas diferentes. O projeto do vereador indígena Kamico
Baniwa, aprovado em novembro de 2002, levou em consideração
o fato de ser ainda hoje uma língua de comunicação interétnica
(FREIRE, José Ribamar Bes-
naquele município.*
*

sa. Rio Babel. A história das


línguas na Amazônia. Rio Mais de cem anos depois da coleta de Couto de Magalhães,
de Janeiro: Eduerj / Atlânti-
ca, 2004: 18.) um projeto editorial apresentado ao MEC, em 2007,* incluiu os
*
(MACIEL, Ira; FREIRE, J. versos acima citados numa antologia de literatura indígena desti-
Bessa; MONTE, Nieta e ME-
LHEM, Núbia (orgs.). “Te nada a neoleitores brasileiros do Programa de Educação de Jovens
mandei um passarinho: pro-
sas e versos de índios no Bra-
e Adultos, cujos textos são todos de autores índios, em produção
sil”. Brasília: MEC/SECAD, individual ou coletiva. Nesse contexto, numa publicação destina-
2009 (no prelo).)
da a circular em todo o Brasil, torna-se necessário buscar a tradu-
ção ao português dos versos escritos em nheengatu, configurando
um texto agora monolíngue, o que foi feito recorrendo à seguinte
versão de autoria não identificada:
Te mandei um passarinho,
dentro de uma gaiolinha,
pintadinho de amarelo
e bonito como você”

O tradutor, que usou “gaiolinha” como equivalente a patuá


mirim, parece ter entendido que a forma mais apropriada de pre-
sentear alguém com um passarinho é aprisioná-lo dentro de uma
gaiola para evitar sua fuga. Afinal, a cultura regional urbana na-
turalizou a gaiola como o lugar de pássaros que vivem em espaços
domésticos. No entanto, não é o que os índios guarani pensam e
praticam. Essa tradução, submetida a um teste de recepção com
professores bilíngues guarani do Curso de Formação Docente de
vários estados do Sul e Sudeste do Brasil, causou entre eles uma vi-
sível sensação de desconforto. A discussão se deu em torno do ver-
so “dentro de uma gaiolinha”, particularmente com relação à pala-
vra “gaiolinha”. A reação foi unânime. Eles rejeitaram essa tradu-
ção. Um professor guarani sintetizou o pensamento de todos: “Es-
tá errado. O que é que os leitores vão pensar de nós? Que somos
malvados e aprisionamos pássaros? Nós não fazemos isso.” O gru-
po analisou o texto, viu que se tratava de uma “tradução”, enten-
deu que o original está escrito em Língua Geral da Amazônia, cuja
base é o tupinambá antigo – língua aparentada ao guarani – mas
propôs outra palavra para traduzir essa expressão: – “Por que não

322 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


colocamos o passarinho num cestinho?”.* Aceitamos a proposta. (HENTZ, I. e PIOVEZANA,
*

N. “Relatório do teste de re-


Colocamos o passarinho no cestinho, embora conscientes de que cepção realizado em Faxi-
nal do Céu (PR), no dia 6 de
o guarani é outra língua, diferente do nheengatu, e de que os ín- junho de 2007, com alunos
do Curso de Formação pa-
dios proponentes desconhecem a região amazônica, lugar de pro- ra Educação Escolar Guara-
dução dos versos. A versão final do livro proposto ao MEC foi, en- ni na Região Sul e Sudeste
do Brasil”. Curitiba: Seduc,
tão, modificada, e ficou assim: 2007: (mimeo).)

Te mandei um passarinho,
dentro de um cestinho,
pintadinho de amarelo
e bonito como você.

Neste artigo, pretendemos discutir as razões que nos levaram


a tirar o passarinho da gaiola, concordando com a proposta guara-
ni. Para isso, recorremos às informações proporcionadas por atuais
falantes tanto de guarani como de nheengatu, bem como aos ins-
trumentos clássicos de tradução em ambas as línguas: vocabulários,
glossários, dicionários e listagens de palavras. Serão abordadas al-
gumas questões referentes à tradução de línguas indígenas ágrafas,
de forte tradição oral, para o português, e do português para lín-
guas indígenas. Tomaremos como referências reflexões de alguns
tupinólogos e as soluções por eles encontradas para os problemas
de tradução que enfrentaram.

A fada tupi: os etnoconceitos

Qual o papel social e histórico da tradução? Quando no sé-


culo XIII Alfonso X (1221-1284), rei de Castela e Leon, ordenou
a tradução ao espanhol de obras da literatura clássica árabe, lati-
na e grega, explicitou que estava colocando em circulação saberes
e propiciando discursos nobres em língua castelhana. Esse parece
ser também o objetivo da política de estímulo à tradução de textos
de línguas indígenas para o português que o Estado nacional co-
meça a desenhar, hoje, no Brasil, com o objetivo – entre outros –
de atender a uma demanda do sistema nacional de educação, mas
também para se adequar às políticas dos organismos internacionais,
que passaram a valorizar os etnossaberes produzidos pelos índios.
Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Am-
biente (PNUMA) adverte que muitos dos recursos naturais em pe-
rigo são conhecidos exclusivamente por alguns povos cujas línguas
estão ameaçadas de extinção, entre elas mais de 180 línguas faladas
no Brasil, detentoras de conhecimentos vitais sobre as espécies na-

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 323
turais. Cada uma dessas línguas constitui um sistema de cognição
singular e único. Com a perspectiva de resguardar e socializar esse
patrimônio, foi assinada, em 10 de março de 2008, a Lei 11.645
que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática indígena. Os professores do sistema nacional de edu-
cação já começam a cobrar a produção de material didático que in-
corpore os conhecimentos dos índios e sobre os índios.
Dessa forma, uma parte da sociedade brasileira manifesta, ho-
je, interesse em conhecer a literatura, a poesia, as narrativas míti-
cas e os etnossaberes que circulam atualmente nas línguas indíge-
nas faladas no País. No entanto, os brasileiros só poderão ter aces-
so a essa produção que circula oralmente em línguas indígenas se
forem feitas traduções para o português. Acontece que inexistem
tradutores2 e dicionários para a maioria dessas línguas, e quando
existem, as traduções enfrentam pelo menos dois problemas cru-
ciais, que merecem ser aqui destacados: um de afinidade tipológica
das línguas em questão e o outro do tipo de registro.
O processo de tradução já é problemático até entre línguas
aparentadas pertencentes à mesma família ou ao mesmo tronco,
portanto com afinidades tipológicas, históricas e culturais. Mas es-
ses problemas se tornam mais complexos no caso das línguas indí-
genas, que são línguas distantes das europeias, carregadas de con-
ceitos étnicos, que não têm necessariamente correspondências nas
culturas ocidentais. Portanto, a tradução não está relacionada so-
mente à tipologia linguística, isto é, como conseguir efeitos de sen-
tido com ordenamento das partes da oração tão diferentes, mas
apresenta obstáculos de ordem cultural, quase intransponíveis, na
busca de termos equivalentes.
A dificuldade de encontrar equivalência em línguas tão dis-
tantes aflora quando se entra no terreno da cultura material, espe-
cialmente no referente às taxonomias nativas em botânica e zoolo-
gia, mas adquire uma dimensão maior no campo da cultura ima-
terial, envolvendo estrutura de parentesco, religião, mitos. O no-
vo, o estranho e o diferente não podem ser identificados com as
2
Numa iniciativa inédita no Brasil, alguns índios guarani participaram do curso
ministrado pela doutora Lillian DePaula, a partir de 2005, no projeto 5ª. Habi-
lidade: Educadores Indígenas & tradutores em diálogo, desenvolvido pelo Núcleo
de Pesquisas em Tradução e Estudos Interculturais do Programa de Pós-Gradu-
ação em Estudos Linguísticos e Estudos Literários da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES). No curso, os alunos receberam formação teórica e técni-
ca sobre o processo de tradução das narrativas indígenas.

324 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


categorias e valores europeus, condicionadores da capacidade de
percepção. Por isso, missionários e viajantes recorreram a imagens
inteligíveis para seu próprio universo cultural que, por não conse-
guirem transferir toda a carga de significados de uma cultura a ou-
tra, reduziram, simplificaram e até deformaram a diversidade cul-
tural e ambiental. Assim, o cronista da viagem de Orellana (1540-
1542) pelo rio Amazonas, frei Gaspar de Carvajal, relata que viu
“elefantes e perdizes” na floresta amazônica, denominando assim a
“anta e o mutum”, da mesma forma que chama de “aveia” um tipo
(FREIRE, José R. Bessa. “Tra-
de arroz silvestre que cobria as margens alagadas do rio.*
*

dição oral e memória indíge-


Dificuldades similares no campo da cultura imaterial foram na: a canoa do tempo”. Em:
4º. Colóquio UERJ. Améri-
identificadas, entre outros, pelos tupinólogos do século XIX, co- ca: Descoberta ou Invenção.
Rio de Janeiro: Imago Edito-
mo Couto de Magalhães, em dois episódios por ele vividos, antes ra, 1992: 143.)
de aprender o nheengatu. Em 1865, no Tocantins, um tuxaua dos
índios Anambé lhe narrou a história da figura lendária de Ceiuci,
seguida de uma tradução que o deixou insatisfeito, porque a velha
gulosa, que vivia perseguida por eterna fome, aparece em português
como “fada indígena”. Em outra ocasião, um índio contou-lhe uma
série de histórias em que o jabuti era o personagem principal. A
narrativa, em português, era intercalada com expressões e até frases
em nheengatu, que o narrador e os demais participantes, todos bi-
língues, entendiam muito bem, mas que nenhum deles conseguiu
traduzir. “Eram intraduzíveis” – escreveu Couto de Magalhães. Por
isso, o autor decidiu aprender a língua para, de forma mais fidedig-
na, “recolher uma tradição melhor do que esta que coligi em 1865,
*
(MAGALHÃES, J.V. Cou-
quando apenas começara meus estudos desta matéria”.* to de. O Selvagem. op.cit.:
Sua preocupação última era, em realidade, com as manifes- 107 e 131.)

tações literárias. A língua lhe interessava como instrumento de co-


leta, de registro e de compreensão da tradição oral. Na medida em
que não era possível um pesquisador usar intérpretes e tradutores
improvisados, a aprendizagem da língua para ele se fazia indispen-
sável. É quando Couto de Magalhães organiza uma viagem ao Pará
com o objetivo específico de aprender nheengatu. Adquiriu tanta
habilidade em seu uso, que chegou a ser considerado “o mais per-
feito conhecedor do nhihingatú no Brasil” pelo bispo do Amazo-
nas, D. José Lourenço, autor de um catecismo cristão escrito nes-
sa língua. O domínio do nheengatú permitiu a Couto de Maga-
lhães questionar a validade dos textos traduzidos no passado pelos
jesuítas, como algumas orações, que ele condena por serem tradu-
ções literais, sem sentido algum para os índios, quando o que os

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 325
missionários deveriam ter feito era “conservar o sentido fielmente
e traduzi-lo de modo que o selvagem entenda esse pensamento”.
Assim, ele propõe modificações na versão em Língua Geral do Pai
*
(MAGALHÃES, J.V. Couto
de. Curso da Língua Geral
Nosso, feita pelos jesuítas.*
segundo Ollendorf, compre- Os catecismos, sermões, poesia, teatro e demais textos tradu-
endendo o texto original de
lendas tupis. Rio de Janeiro: zidos pelos missionários ao Tupi Antigo – uma língua relativamen-
Typographia da Reforma,
1876: 141.)
te bem documentada num período de dois séculos, de 1550 a 1750
– foram criticados também por outros estudiosos devido à sua arti-
ficialidade e porque versam sobre temas estranhos à cultura indíge-
na. “O que é artificial na literatura missionária é o pensamento ou
quiçá a cultura que se põe na língua do índio, não necessariamen-
te a língua em que se expressa aquele pensamento” – escreve Lemos
Barbosa, professor de Tupi Antigo na PUC/RJ nos anos 1950. Ele
apresenta um sem-número de exemplos ilustrativos mostrando que,
no caso, os dicionários e glossários tiveram serventia limitada:
Os dicionários podem dizer que “anga” significa “alma”. Mas o
conceito de “alma” é diferente do de “anga”, tanto em compreensão
como em extensão. Nós atribuímos à “alma” características (por
exemplo, a imaterialidade) que não cabem no conceito indígena
de “anga”. Por outro lado, um índio animista falará na “anga do
vento”. Diga-se outro tanto de cousas como “ybaka” (céu), “yasy”
*
(BARBOSA, Antônio Lemos. (lua), “ara” (dia ou tempo), “mano” (morrer), etc.*
Curso de Tupi Antigo. Gra-
mática. Exercícios. Textos. Rio
de Janeiro: Livraria São José, Alguns jesuítas se destacaram pelo profundo domínio que
1956: 19, 436-437.)
tinham de várias línguas indígenas e nos deixaram um legado de
muito valor. No entanto, aqui e ali, missionários menos prepara-
dos cometeram, inicialmente, erros primários quase “folclóricos”,
quando em algum lugar traduziram, por exemplo, a oração do Pai
Nosso por Ore Ubá, obrigando os índios a excluírem do seu conví-
vio a figura de um Deus Pai, cuja paternidade era questionável, e
*
(FRANÇA, Ernesto Ferrei-
ra. Chrestomathia da Língua
de um Deus Filho, para sempre incompreendido.*
Brasílica. Leipzig, 1896.) É que o tupi antigo possui dois possessivos: quando o “nos-
so” inclui o interlocutor, usa-se “iandé” ou “nhandé”; mas no caso
em que o “nosso” é exclusivo, emprega-se “ore”, o que não permi-
tia, quando juntos rezavam, que índios e missionários comparti-
lhassem o mesmo Pai. Mas igualmente problemática foi a tradução,
nesse contexto, de “pai” por “ubá”, porque a estrutura de parentes-
co obedece a princípios totalmente diversos dos nossos.
Se, por exemplo, a palavra “ubá”(t) denomina tanto o “pai” como
o “irmão do pai”, é claro que ela não tem correspondente preciso
em português. Do mesmo modo, filho não tem equivalente em

326 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


tupi, desde que por um lado “ayra”(t) significa também “filho do
irmão” = sobrinho paterno e por outro lado não abrange o filho
(BARBOSA, Antônio Le-
pela parte materna.*
*

mos. Curso de Tupi Antigo.


op. cit.: 50-51.)
Quando se tratava do “filho de Deus”, então, a questão se com-
plicava ainda mais, por envolver valores morais, tabus e preconcei-
tos. Um exemplo ilustrativo ocorrido com a tradução de “imagem
do filho de Deus” é relatado por Teodoro Sampaio (1885-1937),
um engenheiro baiano, filho de uma escrava, que estudou a topo-
nímia tupi na geografia nacional. Ele esclarece como devia ser e co-
mo ficou a tradução:
Rigorosamente seria Tupã ray raangaba. Os padres, entretanto,
para contornar o sentido herético, visto como tayra (rayra) significa
propriamente o sêmen, preferiram traduzir Tupã tay raangaba, que
altera o sentido para imagem de Deus Filho, ao invés de imagem
(SAMPAIO, Teodoro. O Tu-
do Filho de Deus.*
*

pi na Geografia Nacional.
São Paulo/Brasília: Brasilia-
Quando se pensava haver contornado alguns desses proble- na/Editora Nacional. Volu-
me 380. 1987:85 (1ª. Edi-
mas, surgiam outros. É Lemos Barbosa que chama a atenção para ção – 1901).)
o fato de que não há, em tupi, o verbo “dever” na acepção de “ter
obrigação de”, da mesma forma que não existe a noção de “peca-
dor”, o que levou os padres a criarem neologismos, no catecismo,
para expressões como: “Deve o pecador envergonhar-se ao dizer
‘Padre Nosso’ a Deus?”. Ignora-se, no entanto, a penetração na lín-
gua corrente dos neologismos criados por missionários.* *
(BARBOSA, Antônio Le-
mos. Curso de Tupi Antigo.
Esses problemas de tradução de/para as línguas indígenas aca- op. cit.: 252.)

baram tendo grande repercussão, no final do século XIX, envol-


vendo também leigos interessados no tema e parte da opinião pú-
blica que lia jornais. Um debate ganhou as páginas dos diários da
capital, quando Couto de Magalhães publicou no jornal Reforma
(10/12/1875) sua tradução em Língua Geral – que D. Pedro II en-
tendia – do auto de batismo do neto do Imperador, filho da Prin-
cesa Isabel e do Conde D’Eu. A palavra “imperador” foi traduzida
pelo vocábulo muruxáua reté (grande chefe), e “batismo” pela ex-
pressão tupi cerúcaçáua (cerimônia de imposição do nome ao re-
cém-nascido), da mesma forma que “conselheiros de estado”, “de-
putados”, “senadores” e “corpo diplomático” passaram a figurar em
nheengatu como “homens de governo da nossa pátria” e “homens
de governo de outras pátrias”, o que lhe valeu duras críticas de fo-
lhetinistas de jornais da época, como Nação e Jornal do Commercio,
que o acusaram de não ser um tradutor fiel. Em sua réplica, Cou-
to de Magalhães justifica o fato de não ter feito uma tradução lite-

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 327
ral, porque “traduzindo em uma língua viva, me não me era lícito
o uso de expressões que nella não são intelligíveis. [...] Também os
mahometanos, budhistas, os antigos romanos, não tinham o casa-
mento christão, e nem por isso a palavra casamento é intraducti-
*
(MAGALHÃES, J.V. Couto
de. Curso da Língua Geral... vel em árabe, chinez, ou latim”.*
op. cit.: 134-137.) Em grande medida, a visão glotocêntrica do colonizador con-
tribuiu para aumentar as dificuldades.
Os antigos missionários pagaram tributo à mentalidade dominante
na época. Considerando a cultura europeia e as línguas clássicas o
tipo ideal de cultura e de linguagem humanas, não lograram compre-
ender o interesse de registrar produções espontâneas de uma língua
de índios. Deixaram-nos inúmeras traduções de livros europeus, de
composições ocidentais; não nos legaram uma só lenda ou narração
(BARBOSA, Antônio Le-
autêntica no idioma nativo.*
*

mos. Curso de Tupi Antigo.


op. cit.: 18-19.)
A crítica é pertinente. Só a partir do século XIX é que um gru-
po de tupinólogos começa a recolher narrativas indígenas em nhe-
engatu, entre eles Couto de Magalhães, Charles Hartt, Barboza Ro-
drigues e Stradelli, o que permitiu ver as línguas indígenas por outra
perspectiva. No caso específico de Couto de Magalhães, ele man-
teve um diálogo com as ciências naturais e com as ciências sociais
nascentes. A sua abordagem da língua, da oralidade e dos mitos se
aproxima bastante dos procedimentos que foram adotados posterior-
mente pela linguística e pela antropologia. Retomou, por exemplo,
as representações de língua do romantismo alemão, em especial de
Humboldt (1767-1835), que considera cada língua como dotada
de uma estrutura própria, reflexo do pensamento e da cultura de
cada povo e, portanto, um elemento crucial de identidade coletiva.
Sua originalidade, porém, consistiu no fato de que ele estendeu es-
sa representação para as línguas indígenas, o que permitiu observar
as situações históricas de línguas em contato até então ignoradas, e
possibilitou abordar o bilinguismo como forma de identidade re-
gional, tomando certo distanciamento da concepção de língua na-
(FREIRE, J. R. Rio Babel. A
cional, hegemônica na época.* Mas para estudar as línguas indíge-
*

história das línguas na Ama-


zônia. op. cit.: 146.) nas, teve de manter intenso debate com os críticos que “chasquea-
ram a propósito de meus estudos de línguas e antiguidades indíge-
nas”, colocando em dúvida a utilidade que podiam ter. Numa carta
dirigida a Joaquim Serra, apresentou três justificativas:
1º. “Qualquer estudo feito com seriedade faz avançar o co-
nhecimento e, por mais abstrato que pareça, cedo ou tarde, traz
seus frutos práticos”;

328 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


2º. Se “até a mais miserável planta de nossos campos” e “o
mais rude e pobre mineral de nossos montes” merecem ser estu-
dados, descritos e classificados, “muito mais nobre e útil é estudar,
descrever e classificar” as línguas indígenas.
3º. O conhecimento das sociedades nativas pode ajudar a in-
tegrar um milhão de índios à economia brasileira, com um custo
muito abaixo do que se gastava com a imigração de colonos euro-
peus. Ele completa:
Eis aí a razão pela qual me dediquei e continuarei a dedicar-me ao
estudo das línguas selvagens e ao de assuntos relativos aos índios. Há
brasileiros que conhecem e estudam entre nós o hebreu, o árabe e o
sânscrito. É, pois, natural, que haja alguns que se dediquem ao estudo
das curiosas e ricas línguas dos selvagens, de sua terra, estudo a que se
prende, como mostrei, à solução de um problema importante. * *
(MAGALHÃES, J.V. Couto
de. O Selvagem. op. cit.:
137-140.)
É assim que Couto de Magalhães vai reivindicar um status li-
terário para a produção de versões bilíngues, como em “Te man-
dei um passarinho/ patuá miri pupé”, reconhecendo que estas fa-
las mistas não são produzidas por “semilíngues”, sem competência
plena em nenhuma das duas línguas, mas constituem “um modo
legítimo de comunicação”, como posteriormente foi reconhecido
pela sociolinguística.* *
(ROMAINE, Suzanne. Bilin-
gualism. Oxford: Basil Bla-
As distâncias tipológicas entre as línguas em questão são poten- ckwell, 1995: 6.)

cializadas pelo segundo problema inicialmente citado, relacionado ao


registro, porque não se trata de traduzir de uma língua com tradição
escrita para outra de igual tradição. No caso aqui discutido, o proces-
so tradutório tem um diferencial: sociedades que produzem e fazem
circular os seus saberes no registro oral usam recursos próprios desse
suporte, que representam um desafio para levá-los ao registro escri-
to, especialmente quando se trata do registro escrito de uma língua
que é “outra”. Esse problema, apesar de relevante, possui desdobra-
mentos, cuja abordagem escapa do foco central desse artigo.
No momento, o que interessa é destacar que estamos diante *
(MELIÁ, Bartomeu. “El gua-
de uma dupla tradução: de uma língua para outra e de um registro rani y su reducción litera-
ria”. Actes - 42 Congrès In-
para o outro, com todos os equívocos que isso pode implicar. Em ternational des Américanis-
tes. v. 4. Paris, 1979: 541-
suas reflexões sobre a língua guarani, Meliá* mostra como a tradu- 581. Ver tb. MELIÁ, B. La
ção implica redução de significados e de significantes, mas espe- lengua Guarini del Paraguay.
Historia, Sociedad y Literatu-
cialmente redução de poesia, o que representa um grande desafio ra. Madrid, 1992.)

para o tradutor, porque, nas palavras de Viveiros de Castro, “tra- *


(CASTRO, Eduardo Vivei-
ros. “Equívocos da Identi-
duzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; dade”. EM: GONDAR, Jô &
DODEBEI, Vera. O que é Me-
é comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro. Traduzir mória Social. Rio de Janeiro:
é instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo”. * Contracapa, 2005: 153.)

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 329
Dicionários: o tupi e o guarani

Conscientes das limitações aqui assinaladas, podemos ago-


ra retornar, já em outro patamar, ao caso da tradução dos versos
inicialmente citados. Consultamos alguns glossários, vocabulários
e gramáticas para tentar resolver o problema identificado no tes-
te de recepção e conferir o significado do termo patuá em línguas
da família tupi-guarani, uma das mais extensas da América do Sul,
abrangendo mais de 50 línguas atuais e distintas, segundo Aryon
*
(RODRIGUES, Aryon. “O
conceito de língua indígena
Rodrigues.* Desta família, as línguas mais conhecidas e documen-
no Brasil: os primeiros cem tadas são o tupi antigo (tupinambá) e o guarani, encaradas de for-
anos (1550-1650) na costa
leste”. Línguas e Instrumentos ma confusa por alguns estudiosos, que desenvolveram no passado
linguísticos. Campinas: Pon-
tes Editores, 1998: 59-78.)
ideias unitárias equivocadas sobre as línguas ou dialetos tupi-guara-
ni, a tal ponto que acabaram transferindo essa ideia unitária para o
senso comum, conforme crítica apropriada feita por Edelweiss, para
quem, em alguns trabalhos, incluindo aqui dicionários, “ombreiam
sem a menor distinção formas tupis, guaranis, e nheengatus, engen-
drando verdadeiras heresias”. Ele cita o caso específico do trabalho
sobre a toponímia do Brasil, de Teodoro Sampaio, cujo “resultado
foi uma colcha de retalhos, desnorteante, de consulta perigosa: nos
*
(EDELWEISS, Frederico G. ensinamentos, na exemplificação e nas conclusões”.*
“Introdução e Notas”. In:
SAMPAIO, Teodoro. O Tu- “A língua tupi, como entidade linguística, não se confunde
pi na Geografia Nacional.
op. cit.: 40.)
com o guarani” – escreve Edelweiss. O parentesco dessas línguas,
com a possibilidade dos seus falantes poderem estabelecer, em mui-
tos casos, níveis satisfatórios de comunicação entre si, acabou for-
talecendo, no imaginário popular, a ideia de uma identidade lin-
guística baseada na existência de uma língua tupi única, espalhada
por toda a extensão dos territórios onde eram faladas as diversas
variedades da família denominada tupi-guarani.
Por outro lado, a própria entidade denominada “língua gua-
rani” é usada indiscriminadamente para designar, pelo menos, cin-
co grupos linguísticos diferenciados: Guarani Criollo, também co-
nhecido como Jopara, Avañeém ou Guarani Moderno, que convi-
ve em situação de bilinguismo com o espanhol na maioria da atual
população do Paraguai, onde foi declarada língua oficial, e no lado
fronteiriço do Brasil; Chiriguano, falado por um grupo na Bolívia, e
Ñandéva (apapokúva), Kaywá (kaiowá) e Mbyá, cujos falantes vivem
em comunidades de países do Mercosul: Brasil, Paraguai, Argentina
e Uruguai. Todas estas variedades foram contempladas, em princí-
pio, na proposta aprovada na XXIII Reunião do Mercosul Cultu-
ral, realizada no Rio de Janeiro, em novembro de 2006, quando o

330 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


guarani foi declarado um dos idiomas oficiais dos países que fazem
parte daquela instituição, “em igualdade de condições com o portu-
guês e o espanhol”, o que, em princípio, obriga a tradução de todos
os documentos do Grupo para, pelo menos, uma das variedades ci-
tadas. Dois anos antes, o Guarani havia sido declarado “idioma ofi-
(DIETRICH, Wolf & SY-
cial alternativo de la Província Argentina de Corrientes”.*
*

MEONIDIS, Haralambos
O guarani moderno, como já mencionado, é a continuação (Eds). Guarani y ‘Maweti-
Tupi-Guarani’.Berlin: LIT,
do guarani antigo. Sua proximidade com a LGA ou nheengatu, ori- 2006: 7.)

ginado do antigo Tupinambá do norte, ou com a LGP cuja base é


o tupi antigo, variou ao longo do tempo. Por isso, Edelweiss cha-
ma a atenção para o uso indiscriminado dos dicionários existentes,
que foram produzidos em épocas diferentes:
Evidentemente, não bastam léxicos para discutir fatos de lingua-
gem, destrinçar procedências ou compor termos novos, tanto mais,
quanto os vocabulários tupis existentes pertencem a épocas e regiões
diversas, representam dialetos vários em estádios entre si remotos.
Se neles há vocábulos iguais, também os há divergentes, de forma
*
(EDELWEISS, Frederico G.
e sentido, em número muito maior.* Estudos Tupis e Tupis-Guara-
nis. Rio de Janeiro: Brasilia-
A propriedade da afirmação de Edelweiss sobre o equívoco na, 1969: 7.)

da representação unitária dessas línguas não anula a observação de


Couto Magalhães, para quem, em meados do século XIX, a diferen-
ça entre o guarani e o nheengatu era a mesma que se notava entre
paulistas e mineiros falando o português. Essas observações foram
confirmadas alguns anos depois pelo major Pedro Luiz Sympson
(1840-1892), amazonense, nascido em Manaus, que estabeleceu,
no entanto, outros parâmetros. Falante de nheengatu, ele circulou
pelo Uruguai, Argentina e Paraguai entre 1865 e 1867, onde “en-
tendia-me perfeitamente com os naturais, com eles conversava sem
o menor embaraço” por serem as duas línguas aparentadas “com
alguma diferença, é verdade, como talvez na proporção em que es-
tá o espanhol para o português.”* *
(SYMPSON, Pedro Luiz.
Grammatica da Língua Brasi-
Nessa época, Sympson participou da Guerra do Paraguai, ao leira (Brasílica, Tupi ou Nhe-
engatu). 4ª. Edição. Rio de
lado de “voluntários” amazonenses, alguns monolíngues em Lín- Janeiro: Commissão Brasilei-
gua Geral e outros bilíngues nheengatu-português. O recrutamento ra de Estudos Pátrios, 1933:
24. (1ª. Edição-1877).)
dos primeiros criou uma situação, no mínimo, insólita, com con-
sequências sobre as marcas identitárias étnicas e nacionais: muitos
soldados amazonenses, pertencentes ao 5º Batalhão de Infantaria,
que sequer podiam entender as ordens em português dadas por
seu comandante, morreram nos campos de batalha do Paraguai,
como “voluntários” da Pátria, falando uma língua, compreendida

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 331
pelo inimigo, mas desconhecida em sua própria trincheira. Do ou-
tro lado, havia situação similar, de soldados paraguaios que caíram
prisioneiros de guerra e, na qualidade de monolingues em guarani
criollo, só podiam ser submetidos a interrogatórios com ajuda de
soldados amazonenses, bilíngues em Língua Geral-Português, que
funcionaram efetivamente como intérpretes e tradutores.3
Portanto, a pretensão dos professores bilíngues guarani, que
traduziram patuá em nheengatu por “cestinho”, não parece assim
tão descabida. Eles são, na sua maioria, falantes da variedade Mbya
e Nhandeva e, em proporção reduzida, de Kayowá. Buscamos, en-
tão, dicionários especializados em diferentes variedades, elabora-
dos em diversas épocas, para verificar a propriedade da tradução:
Montoya (1640), Guasch (1948) e Dooley (1994).
Quem organizou o primeiro corpus guarani sistematizado, sen-
tando as bases da passagem da tradição oral à escrita, foi o jesuíta
Antônio Ruiz de Montoya (1585-1652), que nasceu e morreu em
Lima, mas viveu muitos anos entre os guaranis, havendo fundado
o povoado de Loreto, em Misiones, Argentina. O original da pri-
meira edição, de 1640, custodiado na Biblioteca Nacional de Ma-
drid, foi reeditado no Paraguai e na Argentina, com ortografia mo-
derna do guarani. “En este Vocabulário se ponen los vocablos sim-
plemente. Para saber sus usos y modo de frases, se ha de ocurrir a
la segunda parte (Tesoro).” O Tesoro a que se refere é um comple-
mento do Vocabulário. As duas partes apresentam várias entradas
para diferentes tipos de canastras e cestos: ajaka, panakũ, yruague
(MONTOYA, A. Ruiz. Ar-
e urukuru.* Mas nenhuma das duas obras registra o verbete patuá
*

te, y Bocabulario de la len-


gua guarani. 1640. Edicion ou algo similar no Guarani Antigo, do século XVII.
fac-similada con presenta-
ción, transliteración y no- Mais recentemente, no século XX, o padre Antônio Guasch,
tas de Silvio M. Liuzzi. Ma-
drid: Ediciones de Cultura
jesuíta espanhol, professor de línguas clássicas formado pela Uni-
Hispánica, 1994: xii. (ver
tb. Vocabulario de la len-
versidade Gregoriana, que se dedicou ao estudo da língua guarani
gua guarani, Asunción. CE- desde que chegou ao Paraguai em 1932, publicou o seu dicioná-
PAG. 2002.).)
rio (1948), que se baseia em trabalhos clássicos, desconsiderando
os vocábulos que caíram em desuso e registrando novos que se in-
corporaram à língua nos últimos dois séculos. “Se recogen en él las
3
Esse tópico pode ser aprofundado com a documentação do acervo do Arquivo
Histórico do Exército, especialmente o fundo intitulado Guerra do Paraguai, que
contém relatórios de interrogatórios feitos a prisioneiros e correspondência com o
presidente da Província do Amazonas sobre o envio de recrutas para a Corte. Con-
tém ainda mapa da força do 54º Batalhão de Voluntários da Pátria, que possuía,
além do efetivo normal, uma Companhia de Índios (FREIRE, José R. Bessa.(org.)
Os índios em arquivos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ. 1995/1996: 359).

332 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


voces más tradicionales y comunes de uso ordinario, pero se abren
también las puertas, con discreción, a neologismos que responden
a nuevas realidades sociales y culturales de una lengua viva habla-
da en el siglo XX”, como esclarece Bartomeu Meliá, no prólogo da
13ª edição (2001). Depois que a Constituição do Paraguai decla-
rou o Guarani língua oficial do país, junto com o castelhano, fo-
ram feitas muitas edições deste dicionário, a última delas com gra-
fia adaptada segundo normas mais aceitas e revisão feita pelo jesu-
íta paraguaio Diego Ortiz. Ele também registra várias entradas le-
xicais: ajaka, ajaka’i e panaku e acrescenta mitâmi aorã, mas nele
não constam os outros dois termos presentes em Montoya – yrua-
gue e urukuru – e nem muito menos a palavra patuá.* *
(GUASCH, Antonio e OR-
TIZ, Diego. Diccionario cas-
Finalmente, consultamos o Vocabulário Básico de Mbyá Gua- tellano-guarani, guarani-cas-
tellano. Asunción: CEPAG,
rani (1994), de autoria do linguista Robert Dooley, “elaborado para 2001: 87, 512, 704.)

ajudar os falantes de português que queiram conhecer e até apren-


der a falar o dialeto Mbyá (Mbiá, Mbüá) da língua guarani”. Sem
a pretensão de ser exaustivo, ele incluiu apenas as palavras e radi-
cais mais comuns, totalizando um pouco mais que 3.000 verbe-
tes, a partir de dados coletados nos anos 1970 junto à comunida-
de Mbyá do Posto Indígena Rio das Cobras, no Paraná, com certos
acréscimos de outros lugares. Ele registra ajaka como “cesta mais
funda”, mas não o termo patuá.* *
(DOOLEY, Robert A. Vo-
cabulário Básico do Mbya
Em conclusão, confirmando o que já havia sido afirmado pe- Guarani. Edição revisada.
Arquivo Linguístico no. 195.
los professores bilíngues participantes do teste de recepção, os di- Brasília: Summer Institute of
Linguistics, 1994: 23.)
cionários guarani consultados também não registram o verbete pa-
tuá, com esse sentido, em língua guarani. Algumas questões, en-
tão, se impõem: qual foi o processo que levou os professores gua-
rani a rejeitar a tradução de patuá por gaiola? Como eles chegaram
à palavra cesto? Até que ponto um falante de guarani tem intuição
linguística, competência e legitimidade para opinar sobre a tradu-
ção de outra língua – o nheengatu – que embora próxima ao gua-
rani, da mesma família, com grande parte do léxico em comum,
não possui esse vocábulo?
Recorremos, então, aos dicionários e gramáticas relacionados
historicamente tanto à Língua Geral Amazônica como à Língua
Geral Paulista, para verificar se oferecem elementos que permitam
avaliar a sugestão dos guarani. A primeira gramática que descreve
a variedade do antigo Tupinambá do norte, falado na costa do Sal-
gado, entre São Luís do Maranhão e Belém, é de autoria do padre
Figueira (1621), que manifesta, já no prólogo, uma intuição extra-

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 333
ordinária sobre a aprendizagem de uma segunda língua: “Não he
fácil, pio leitor, aos q. aprendem algũa língua estrangeira, de idade
*
(FIGUEIRA, padre Luis. Ar-
te da Língua Brasílica com- já crecida, alcançar todos os segredos e delicadezas della.”*
posta pelo padre Luis Figuei-
ra da Companhia de Jesus,
Os segredos e delicadezas se tornam maiores diante das difi-
theologo. Lisboa: Manuel culdades já sinalizadas, o que não impediu que diversos cronistas
da Silva, 1621: 3.)
e viajantes, em momentos diferentes, registrassem a palavra patuá,
tanto no Tupinambá do norte e seus derivados, caso de Claude
D’Abbeville (1614) e Martius (1863), como nas variedades do Rio
de Janeiro e da Bahia, casos de Gabriel Soares de Sousa (1587) e Si-
mão de Vasconcellos (1663), esses dois últimos citados por Cunha
em seu Dicionário Histórico. Todos eles também se referem a pa-
tuá ou patiguá como cesto da palha de uma palmeira brava, de ra-
ma pequena e mole, que fornece a matéria-prima para sua confec-
(CUNHA, Antônio Geral-
ção.* No glossário de diversas línguas indígenas elaborado no sé-
*

do da. Dicionário Histórico


das Palavras Portuguesas de culo XIX, em sua viagem pela Amazônia, Martius assinala a exis-
Origem Tupi. São Paulo-Bra-
silia: Melhoramentos-UNB, tência, na Língua Geral, de “patuá – caixa, arca, canastrinha, qua-
1998:229-230.)
se da feição de bahú. Kasten, Kiste, Koffer”.*
*
(MARTIUS, Carl Friedr.
Phil. Von. Glossaria Lingua- Todos os dicionários, vocabulários e glossários consultados
rum Brasiliensium.Glossário
de diversas línguas e dialec-
por nós, feitos por especialistas e até mesmo por diletantes, refe-
tos que falam os índios no rentes às variedades do Tupinambá antigo ou ao nheengatu do sé-
Império do Brasil. Erlan-
gen: Druck Junge & Sohn, culo XIX, registram o verbete patuá. 4 Para Rodolfo Garcia, que es-
1863: 79.)
tudou o tupi da crônica em D’Abbeville, patuá deve ser contração
de patiguá, e se refere tanto ao cesto como à palmeira. O cineasta
Humberto Mauro, que organizou uma longa listagem de vocábu-
los em nheengatu empregados por Couto de Magalhães, anota o
uso de “caixa, canastra”. O verbete consta até mesmo em um vo-
cabulário tupi-português-japonês, elaborado em 1951, que usou
como fontes vários trabalhos aqui citados, entre eles, as crônicas e
gramáticas feitas pelos missionários. O termo patiguá como “ca-
4
Foram mais de trinta os instrumentos consultados, cujas referências não cabem
no espaço desse artigo. Entre eles, o Glossário das Palavras e frases da língua tupi
contidas na crônica de Claude D’Abbeville, de Rodolfo Garcia (RIHGB. Tomo 94,
1923: 64); o Vocabulário dos termos Tupis de O Selvagem de Couto de Magalhães,
de Humberto Mauro (Rio: Ministério da Educação e Cultura. Serviço de Docu-
mentação. 1950: 29); o Vocabulário Tupy-Português-Japonês, de Rocro Kowyamá
(São Paulo: Indústrias de Adubo Jaguaré, 1951: 82); o Pequeno Vocabulário Tupi-
Portugues, do padre Lemos Barbosa (Rio: Livraria São José, 1951: 121); o Voca-
bulário Tupi-guarani português, de Silveira Bueno (São Paulo: Efeta, 1998: 266);
o Vocabulário amazonense – contribuição para o seu estudo, de Alfredo da Matta
(Manaus: IGHA, 1939: 229; o Glossário Paraense. Coleção de Vocábulos Peculiares
à Amazônia e especialmente à ilha do Marajó, de Vicente Chermont de Miranda
(Belém: UFPA, 1968: 340); o Vocabulário etimológico tupi do foclore amazônico
de Anísio Mello ( Manaus: Funcomiz, 1983: 70)

334 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


nastra de folha de palmeira” também foi dicionarizado por Lemos
Barbosa no seu Pequeno Vocabulário Tupi-Português.
A palavra patuá aparece também dicionarizada em obras que
registram palavras de origem tupi incorporadas ao léxico do portu-
guês falado no Brasil ou às variedades regionais. Silveira Bueno dá
conta do verbete “patuguá ou patyguá – cesto feito com as fibras da
palmeira paty, cesto de trazer às costas. Servia também de guardar
roupa ou objetos, correspondendo à canastra, caixa, baú”. Quanto
ao português regional, tanto no Amazonas como no Pará o vocá-
bulo patuá ou patauá é conhecido como a palmeira da Amazônia
que dá um fruto do mesmo nome, com o qual “se prepara aprecia-
do ‘vinho’ de aspecto lactescente e muito oleaginoso”, mas é usado
também para designar “caixa, pequeno baú”, conforme demons-
tram os trabalho de Alfredo da Matta (1939) para o Amazonas e
Chermont de Miranda (1905) para o Pará. Anísio Mello (1983),
em seu dicionário sobre o folclore amazônico, registra patauá co-
mo palmeira e como fruto “do qual fazem uma bebida semelhante
à do açaí”, mas cuja “polpa é roxa e acinzentada”. Informa também
que “da fibra dessa palmeira tecem-se belas cestas, o que pode ter
dado nome à palmeira pelo produto que dela se faz”.
Quanto aos dicionários de Língua Geral Amazônica ou nhe-
engatu, existem duas referências importantes. O primeiro deles foi
elaborado por um conde italiano, Ermano Stradelli (1852-1926),
que viveu 43 anos na Amazônia, onde faleceu. O dicionário, publi-
cado pelo IHGB (1929), registra patuá com o significado de “cai-
xa com tampa, bahú”.* Mas o dicionário publicado sessenta anos (STRADELLI, Ermano.
*

“Vocabulário da língua ge-


depois pela linguista Françoise Grenand (1989), como resultado ral portuguez-nheengatú e
nheengatú-portuguez, pre-
de pesquisa que ela realizou no Instituto Nacional de Pesquisas da cedidos de um esboço de
grammática nheenga-um-
Amazônia (convênio CNPq/CNRS), já não registra o uso do termo buê-sáua-miri e seguidos
como “cesto”, mas apenas como a palmeira alta – patawá ou patauá de contos em língua geral
nheengatú poranduua”. Re-
– que dá os frutos do mesmo nome. Ela contou com a colaboração vista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro,104
de um velho falante de nheengatu.* No nyeengatu da Colômbia não (158): 9-768. Rio de Janeiro,
1929: 593.)
se observa tampouco sua ocorrência, pelo menos não consta no di-
*
(GRENAND, Françoise &
cionário organizado recentemente por Payema.* FERREIRA, Epaminondas
O dicionário técnico de artesanato indígena elaborado por Henrique. Pequeno Dicio-
nário da Língua Geral. Ma-
Berta Ribeiro (1988), que trabalhou alguns anos no Rio Negro, naus: SEDUC, 1989: 129.)

descreve diferentes tipos de trançados, definindo patuá como “cesto *


(PAYEMA, Zoila. Dicciona-
rio de ciencias nyeengatu.
recipiente estojiforme, de conformação elíptica, retangular ou qua- Bogotá: Etnollano, 2002.)
drada, confeccionado segundo a técnica dobrada. De uso pessoal,
presta-se à guarda dos bens mais valiosos, como os adornos plu-

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 335
mários”. Mas sua ocorrência se dá no rio Araguaia, onde os Karajá
produzem um balaio com o mesmo nome e a mesma forma, com
uma “tampa telescópica”. O Museu Nacional possui em seu acer-
vo um exemplar, cujo desenho aparece no dicionário de Ribeiro.
Na descrição das matérias-primas, o verbete volta a ser registrado
como patauá – “palmeira que cresce em terra firme, à margem dos
*
(RIBEIRO, Berta G. Dicio-
nário do Artesanato Indíge-
igarapés e em igapós”.*
na. Belo Horizonte/São Pau- O termo registrado nos anos 1980 por Ribeiro parece ter ca-
lo: Itatiaia/Edusp, 1988: 53-
54 E 64.) ído, hoje, em desuso. Na Wariró – Casa de Produtos Indígenas do
Rio Negro, localizada em São Gabriel da Cachoeira (AM), podem
ser comprados jarras, balaios, urutus, peneiras e todo tipo de arte-
sanato. No entanto, lá não existe nenhum tipo de cesto denomina-
do “patuá”, conforme informações prestadas ao autor em outubro
de 2009 por sua responsável, Gilda da Silva Barreto. Confrontada
com o dicionário de artesanato indígena, Gilda Barreto, da etnia
baré, falante de nheengatu como língua materna, com curso de en-
sino médio completo, afirma a ocorrência do fruto e da palmeira
“patauá”, mas desconhece o tipo de cesto com esse nome. Escla-
rece que aquilo que Berta Ribeiro denomina “patuá” é conhecido
hoje como “panacu”, um tipo de cesto feito de folha dessa palmei-
ra, confeccionado no meio da floresta, quando se precisa improvi-
sar um utensílio para transportar qualquer objeto. Aventa a possi-
bilidade de “caçuá” – cesto com alça sem tampa, feito de fibra de
cipó aimbé – ser uma variante de “patuá”.
No português regional, talvez como resultado do contato com
o mundo urbano, os próprios índios usam “gaiola trançada”, um
termo híbrido registrado por Berta Ribeiro para designar “cestos
bojudos de variadas formas, de traçado hexagonal, para serem mais
leves e permitirem a entrada do ar, com alça para transportar aves
e pequenos animais”. Em artigo com o sugestivo título “Sendo ín-
dio em português”, Tereza Maher conclui que “a língua portugue-
sa acaba mesmo não sendo uma língua meramente emprestada do
branco, já que muitos índios dela se apropriam e a moldam, a fim
*
(MAHER, Tereza Macha-
do. “Sendo índio em portu-
de, através de seu uso, marcar e construir identidades”.*
guês”. In: SIGNORINI, Inês De qualquer forma, penso que para quem reflete sobre o pro-
(org). Língua (gem) e identi-
dade. Campinas: Mercado cesso da tradução é particularmente instigante destacar o fato de os
de Letras, 1998: 135.)
professores guarani chegarem a uma tradução mais adequada, ca-
minhando não necessariamente pelos sendeiros formais da língua,
mas pelos atalhos da cultura e da história.

336 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


José Ribamar Bessa Freire
Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro. Cursou doutorado em Historia na École Des Hautes Études
en Sciences Sociales, EHESS, França. Atua na Pós-Graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Ja-
neiro (UNI-Rio) na linha de Memória e Patrimônio, especialmen-
te com os temas de literatura oral, línguas indígenas e história so-
cial das línguas. Professor da UERJ, onde coordena o Programa
de Estudos dos Povos Indígenas. Ministra cursos de formação de
professores indígenas em diferentes regiões do Brasil. Participa do
GT de Sociolinguística da ANPOLL e é consultor do MEC para
questões de educação indígena.

Resumo
Palavras-chave: tradução;
O artigo parte do pressuposto de que a tradução constitui a única língua geral; guarani, his-
forma de acesso dos brasileiros aos etnossaberes que circulam nas tória social das línguas; le-
xicografia.
narrativas orais existentes em mais de 180 línguas indígenas fala-
das no Brasil. Estuda o caso da tradução de um poema bilíngue
nhengatu-português e, através dele, apresenta as línguas da família
tupi-guarani, especialmente as chamadas Línguas Gerais, propor-
cionando informações sobre os instrumentos clássicos de tradução:
vocabulários, glossários, dicionários e listagens de palavras. A partir
das traduções feitas pelos missionários no período colonial, e pelos
tupinólogos nos séculos XIX e XX, discute os problemas encontra-
dos: a falta de tradutores especializados, a raridade de gramáticas e
de dicionários, a distância tipológica entre as línguas indígenas e as
línguas europeias e, finalmente, as diferenças do tipo de registro, já
que se trata de transferir significados produzidos em línguas ágrafas,
de forte tradição oral, para línguas com tradição de escrita.

Abstract Resumen
Key words: translation; lin-
The article bases itself on the El artículo parte del presupues- guistic historiography, lexi-
notion that the only available to de que la traducción consti- cography, indian languages,
linguistic politics .
gateway to the ethno-knowl- tuye la única forma de acceso de
Palabras clave: traducción;
edge strewn in the oral narra- los brasileños a los etnosaberes lengua general; guarani; his-
toria social de las lenguas;
tives that exist in the more than que circulan en las narrativas lexicografia.

180 indigenous languages spo- orales existentes en más de 180


ken in Brazil is translation. The lenguas indígenas habladas en
article focuses on the translation Brasil. Estudia la traducción de
of a bilingual nhengatu-portu- un poema bilingüe nhengatu-

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 337
guese poem. The study of the portugés y a través de un caso,
poem allows for an introduc- presenta las lenguas de la fami-
tion to the languages of the tu- lia tupi-guaraní, especialmente
pi-guarani family, particularly las llamadas Línguas Gerais, pro-
those called the General Lan- porcionando informaciones so-
guages and provides informa- bre los instrumentos clásicos de
tion on translation tools: dic- traducción: vocabularios, glosa-
tionaries, lexicons, glossaries rios, diccionarios y listas de pa-
and wordlists. Translations pro- labras. A partir de traducciones
duced by missionaries during de misioneros del período colo-
the colonial period and by 19th nial y tupinólogos en los siglos
and 20th century tupinologists XIX y XX, discute los proble-
are background to the analysis mas encontrados: falta de tra-
of certain problems: the lack ductores especializados, la es-
of specialized translators, the casez de gramáticas y de diccio-
scarceness of grammar books narios, la distancia tipológica
and dictionaries, the typologi- entre las lenguas indígenas y las
cal gap between indigenous lan- lenguas europeas y finalmente,
guages and European languag- las diferencias del tipo de regis-
es and finally, the differences tro, ya que se trata de transfe-
in register use: indeed the issue rir significados producidos en
here is translating non-graphic lenguas ágrafas, de fuerte tradi-
languages where the oral tradi- ción oral, para lenguas con tra-
tion pervades, into languages of dición escrita.
the written tradition.

Recebido em
28/06/2009

Aprovado em
30/07/2009

338 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Traduções

alea
Antoine Berman (1942-1991) é considerado um dos mais
relevantes teóricos da tradução da França do século 20. Ampara-
do em sua experiência como tradutor de obras da literatura lati-
no-americana e alemã, desenvolveu reflexões no âmbito da crítica
e da história da tradução. Berman sempre ressaltou que a tradução
é portadora de um saber sui generis sobre as línguas, as literaturas,
as culturas, os movimentos de intercâmbio e de contato e, por is-
so, deveria se configurar como um campo autônomo de pesquisa
e de ensino. Entre as suas obras traduzidas no Brasil estão A tradu-
ção e a letra ou o albergue do longínquo (7Letras/ UFSC, 2007) e A
prova do estrangeiro (Edusc, 2002).
O presente artigo, cujo título original é “La traduction et ses
discours”, foi publicado em 1989 na revista canadense Meta. Ne-
le, Berman retoma os discursos que tratam da tradução no Oci-
dente, aponta suas limitações e propõe uma nova abordagem: a
“tradutologia”.
Marlova Aseff
A tradução e seus discursos1
Antoine Berman

Proponho-me a examinar brevemente aqui os diferentes dis-


cursos sobre a tradução. Analisarei os já existentes e sugerirei um
outro. A pretensão dessa proposta será atenuada, assim espero, pelo
fato de esse “novo” discurso enraizar-se na tradição mais tradicio-
nal. Conduzirei essa reflexão a partir de um triplo horizonte pes-
soal: enquanto tradutor de muitas áreas e línguas, enquanto “teó-
rico” da tradução, ministrando seminários no colégio internacional
de filosofia, e enquanto membro de um organismo governamental
francês, o Comissariado-geral da Língua Francesa, que desenvolve
atualmente uma política da tradução.

O discurso “tradicional” sobre a tradução

Os tradutores geralmente não gostam muito de falar de “teo-


ria”. Consideram-se como intuitivos e artesãos. Entretanto, desde
o início da tradição ocidental, a atividade tradutória é acompanha-
da de um discurso-sobre-a-tradução. Assim, temos ao longo dos
séculos (citando apenas os nomes mais conhecidos) os textos de
Cícero, São Jerônimo, Frei Luis de León, Lutero, Du Bellay, Do-
let, Rivarol, Herder, Humboldt, A.W. Schlegel, Goethe, Schleier-
macher, Chateaubriand, Pouchkine, Valéry, Benjamin, Pound, Ar-
mand Robin, Borges, Bonnefoy, Octavio Paz etc. Esse discurso é
essencialmente dos tradutores, mesmo que se duplique, em cada
época, por aquele dos não tradutores, que não fazem mais do que
refleti-lo e repeti-lo. Eu o chamo de discurso “tradicional”. Ele é
tradicional em dois sentidos. Primeiramente, vem do fundo da tra-
dição da cultura ocidental. Depois, pertence a um mundo no qual
a tradução é considerada como um dos pilares do próprio caráter
da tradição, ou seja, do modo de ser dos homens. Traduzione tra-
dizione, dizem os italianos; unindo passado e presente, próximo e
distante, a tradução semeia a cultura, ela mesma experimentada
como um conjunto de tradições.

1
Os direitos de publicação deste artigo foram gentilmente cedidos pelas Presses
de l’Université de Montréal.

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 341-353 341


Esse discurso tem três características. Primeiramente, é dís-
par: ora analítico e descritivo, ora prescritivo, ora poético, ora es-
peculativo ou polêmico, ele é raramente “teórico”, no sentido mo-
derno. De fato, o primeiro texto “teórico” sobre a tradução é pro-
vavelmente o de Schleiermacher, Sobre os diferentes métodos de tra-
dução (Berlim, 1821).2
Em segundo lugar, esse discurso é de uma magreza espantosa:
poucas obras, uma grande quantidade de notas, de cartas, de pre-
fácios etc.; e se compararmos esse corpus ao de textos “críticos” que
a literatura produziu sobre ela mesma, grosso modo, desde a Renas-
cença, devemos concluir que os tradutores são bastante parcimo-
niosos ao falar de sua atividade. É como se a tradução não ousasse
se afirmar de um modo discursivo. No entanto, apesar da magre-
za, esse discurso é rico, muito rico, e devemos aprender a lê-lo e a
conhecê-lo, pois ainda o conhecemos muito mal.
A terceira característica é a seguinte: o discurso tradicional
é marcado por uma discórdia, a dos partidários da “letra” e a dos
partidários do “sentido”, sendo esses últimos sempre maioria. Essa
discordância (como veremos adiante) tem por fundamento a du-
pla potencialidade do traduzir, e não “preferências” sociais ou sub-
jetivas que poderíamos ter a esse respeito.
Face a esse discurso tradicional, o século 20 viu se constituir
uma multiplicidade de novos discursos sobre a tradução, que são
ora discursos objetivos, ora discursos da experiência. Vejamos ago-
ra os discursos “objetivos”, que podem ser tanto setoriais (ligados a
disciplinas definidas) como gerais (teorias gerais da tradução).

Os discursos objetivos setoriais

São essencialmente os discursos da linguística, da poética (ou


semiótica) e da literatura comparada. Deixo de lado aqui os dis-
cursos sobre a tradução jurídica, técnica e oral (interpretação), os
quais, pragmáticos, ainda estão, salvo diminuto número, pouco
sistematizados.3
As análises que a linguística consagrou à tradução são relati-
vamente pouco numerosas. As mais notáveis são as de Jakobson, de
Catford e de Nida. Na teoria, a linguística afirma que a tradução é
2
Ver minha tradução desse texto-chave em Tours de Babel, Toulouse, ed. Trans-
Europ-Repress, 1985.
3
Mencionemos, contudo, para a tradução técnica, os trabalhos de B. Folkart e,
para a tradução jurídica, os de J.-C.Gemar (Ottawa e Montreal).

342 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


para ela um tema essencial, uma operação na qual ela deve mostrar
sua possibilidade ou, eventualmente, sua impossibilidade. Trata-
se, a priori, de um fenômeno de interação entre duas línguas que
ela define formalizando o conceito corrente sobre tradução. Assim
chegamos a fórmulas, como em Jakobson, a “busca da equivalên-
cia na diferença”. A linguística define o traduzir de forma tão vas-
ta e abstrata que omite quase por completo sua dimensão escrita e
textual, para não falar de suas dimensões culturais, históricas, etc.
Tudo isso parece indicar um certo desinteresse por um “objeto” que
ela insiste em incluir em sua área de competêcia, mesmo que – por
algum acaso – a linguística tenha fornecido o quadro de categorias
para as análises semióticas e estilísticas da tradução. Por que esse
desinteresse? Vale um questionamento a esse respeito.
A poética considera a tradução como uma forma de hipertexto
ou de metatexto. Se a linguística negligencia a dimensão textual da
tradução, a poética negligencia sua dimensão de linguagem. Cons-
tatamos aí, novamente, um certo desinteresse, como está latente em
Palimpsestes, de Gérard Genette, cujas análises da paródia, do pas-
tiche, da imitação são bem mais abordadas do que as da tradução.
Assim, a poética começa somente (na esteira de Lotman) com o es-
tudo das estruturas de traduzibilidade e de tradutividade das obras
literárias, sem falar da estrutura textual das próprias traduções.
A literatura comparada, estudando as interações dos sistemas
literários, não podia, com o passar do tempo, negligenciar a tra-
dução. Com um grande atraso, produz atualmente análises do lu-
gar das mesmas no corpus literário. É aí que encontramos, ao nível
do saber instituído, um interesse crescente pela tradução, o mes-
mo que parece faltar aos linguistas e aos “poéticos”. De qualquer
forma, para a literatura comparada, a tradução não passa de um
dos modos de interação de textos, e ela não pode abordar a área da
tradução enquanto tal, que transcende forçosamente o “literário”,
ainda que esse fosse definido em seu sentido mais amplo.

Os discursos gerais

Trata-se do que hoje em dia chamamos de “teorias” da tradu-


ção. Essas últimas têm uma base dupla: a hermenêutica da com-
preensão do século 19 (é o caso de Steiner) e a linguística (é o caso
de Nida, de Mounin e dos russos). Isso significa, primeiramente,
que essas teorias nunca são autônomas, não são mais do que parte
de um todo mais vasto. Assim, Vinay e Darbelnet situam o estu-

ANTOINE BERMAN | A tradução e seus discursos 343


do da tradução dentro da “linguística aplicada”. Essas teorias, em
segundo lugar, partem também de uma definição a priori da tra-
dução como “processo de comunicação interlinguístico”; a partir
daí, esforçam-se em construir tipologias e desaguam com uma bela
regularidade em proposições de ordem prescritivas e metodológi-
cas. Às vezes, como os discursos setoriais, elas provêm de especia-
listas que não são tradutores: de onde surge o famoso hiato entre
os “teóricos” e os “práticos”, os segundos desdenhando as constru-
ções abstratas dos primeiros, e esses últimos desprezando o empi-
rismo mudo dos segundos. Mas isso não é o essencial porque esses
discursos fundam-se sobre a pressuposição de que se pode cons-
truir uma teoria global e única do traduzir, seja em poesia, teatro,
prosa literária, filosofia, textos técnicos ou jurídicos, línguas pró-
ximas ou distantes, vivas ou mortas, orais ou escritas, comuns ou
dialetais, em primeiras traduções ou em retraduções, heterotradu-
ções ou autotraduções, etc. Elas negligenciam o fato de o espaço
da tradução ser irremediavelmente plural, heterogêneo e não unifi-
cável. De fato, recusam o empirismo ingênuo dos tradutores, para
os quais nenhum discurso geral pode haver sobre a sua atividade.
Mas isso significa que seja possível existir, em um conceito único,
sob o pretexto de “cientificismo”, todos os modos de tradução? E,
se pudéssemos fazê-lo, sobre que bases? A que preço?
É verdade que um outro corpus teórico sobre a tradução vem
sendo desenvolvido há alguns anos: o representado pelo que cha-
mamos de Escola de Tel Aviv (Even-Zohar, Gidéon Toury) e to-
dos aqueles que, de alguma forma, seguem seus eixos programá-
ticos (como José Lambert, em Louvain). Às teorias clássicas, dog-
máticas e prescritivas, a Escola de Tel Aviv opõe uma teoria da “li-
teratura traduzida” e do lugar desta nos “polissistemas” literários.
Even Zohar e Toury recusam-se a partir de um conceito apriorís-
tico do traduzir: dedicam-se a estudar aquilo que em dado sistema
literário (e cultural) é tido como “tradução”. Assim, querem evitar
a armadilha da normatização e constituir uma ciência do traduzi-
do, fazendo ela mesma parte de uma ciência de todas as transfe-
rências interculturais. Podemos, entretanto, nos perguntar se es-
se saber puramente descritivo da tradução é em si suficiente. Por-
que um tal saber, fugindo ao mesmo tempo à abstração das teorias
clássicas, coloca entre parênteses a questão da verdade da tradução.
Quando dissemos, por exemplo, que as “verdadeiras” traduções são
raras, não partimos de um conceito dogmático do traduzir, mas

344 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


de uma experiência na qual está em questão a verdade da relação
com as obras. O descritivismo da escola de Tel Aviv – que permi-
te a constituição de um rico corpus sobre toda a massa do “tradu-
zido” e suas determinantes socioculturais – encontra aí seu limi-
te. Seus pressupostos (como os das teorias anteriores) devem então
ser submetidos a uma crítica sistemática. Talvez (como veremos)
a ideia mesma de uma “teoria” da tradução puramente descritiva4
seja uma ilusão. Isso, certamente, se tomarmos o conceito de “te-
oria” no sentido estrito, tal como se apresenta no campo das ciên-
cias. Nem todo discurso articulado é teoria.

Os discursos de experiência

Dois outros discursos, no século 20, tinham em vista apai-


xonadamente a tradução de um modo que não é teórico, mas que
é, no entanto, conceitual. O primeiro é o da filosofia. Por uma
necessidade que se deve ao destino moderno de suas atuais inter-
rogações, a filosofia é tocada de perto pela tradução, como vemos
em Benjamin, Heidegger, Gadamer, Derrida, Serres e, no campo
do pensamento dito “analítico”, em Wittgenstein e Quine. Não
se trata, no entanto, de “filosofia da tradução”, porém, de algo
mais desviante, de um entrelaçamento do filosofar e do traduzir.
Desse modo, o pensamento de Heidegger é, em boa parte, um
trabalho-de-tradução.
O segundo é o da psicanálise. Ele é duplamente relaciona-
do à tradução. Primeiro, porque está ligado a um texto funda-
dor, o de Freud, cujo “destino da tradução” causa problema. De-
pois, porque o próprio Freud, algumas vezes, definiu em termos
de tradução, de Übertragung, de transferência, que significa tam-
bém “tradução” em alemão. Não há nem “psicanálise da tradução”
nem “teoria psicanalítica” da mesma, mas um corpus crescente de
reflexões tentando aprofundar a ligação de essência da psicanáli-
se com o traduzir no âmbito de toda uma meditação sobre o su-
jeito, o inconsciente, a língua e a letra. Esse corpus não pode ser
ignorado, mesmo que seu desenvolvimento não seja nada além
do que a obra de solitários psicanalistas.

4
Restaria, por outro lado, ver se a teoria descritiva não opera um retorno dis-
creto à normatividade. Cf. Brisset, Annie. “Les théories de la traduction et le
partage de champs discursifs: fonctionnalisme et caractérisation du littéraire.”
Neonelicon. Budapeste, 1986.

ANTOINE BERMAN | A tradução e seus discursos 345


A tradução automática: traductique

Um último discurso, enfim, que ainda é ignorado como tal,


se apresenta hoje no horizonte. Ele é tecnológico e constitui-se atu-
almente no cruzamento da teoria da informação, da teoria da in-
teligência artificial, da terminologia, da linguística e da informáti-
ca. Eu o chamo de tradutique. Para esse discurso, a totalidade dos
processos tidos em vista pela ciência e a técnica constitui um vasto
sistema de comutações, de permutações e de computações que pa-
rece pertinente de ser analisado em termos de tradução, no senti-
do da “mudança” generalizada e formalizada de tudo em tudo, da
“onitradução na qual, idealmente, tudo circula”.5 A traductique é
(será) a teoria computacional dos processos tradutivos que gover-
nam a área tecnológica ou o real tecnologicamente apreendido. En-
contramos suas linhas, entre outros, nas pesquisas que tratam da
tradução assistida pelo computador e na análise informático-lin-
guística das línguas naturais.
Se, a priori, ela diz respeito ao campo tecnológico, é claro que
a traductique já foi bem além. Observemos, por exemplo, o siste-
ma de tradução assistida por computador Weidner, que foi, desde
o início, concebido para traduzir... a Bíblia. O objetivo da traduc-
tique é, evidentemente, o de produzir um discurso teórico-prag-
mático que alcance todos os campos de tradução, inclusive “lite-
rários”. Com esse fim, estamos próximos do dia em que ela toma-
rá da semiótica o estruturalismo e o funcionalismo. Atualmente, a
informática já está mudando os rumos de toda a prática da tradu-
ção em um grau ainda imensurável.
Curiosamente, este elemento computacional do ato de tradu-
zir que contém a tradução corresponde a uma dimensão compu-
tacional do “literário”. Em primeiro lugar, porque um texto é um
sistema que pode e deve submeter-se a procedimentos de tradução,
sendo eles mesmos sistemáticos. Além disso, ressalte-se: de Novalis
e Hölderlin a Poe, Valéry, Musil e os poetas formalistas russos, foi
a própria literatura que se concebeu como um “cálculo”. Assim, o
que a traductique afirma encontra-se secretamente ligado a um cer-
to destino moderno do “ literário”.
No entanto, na mesma medida em que ele se quer “científi-
co”, esse novo discurso é privado de reflexividade própria e, nes-
se caso, não se pode pensar em termos de tecnologia. Isso só será

5
Citado em Immatériaux. Paris: Centre Pompidou, 1985.

346 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


possível após a invenção da “linguagem” da tecnologia. Isso, a tra-
ductique não pode fazer.

A tradutologia

Cabe a um discurso bem diferente o uso, no ato da tradução,


do elemento da reflexividade. Proponho reservar-lhe o termo tra-
dutologia, ainda que alguns já o empreguem para designar um sa-
ber objetivo da tradução.
A tradutologia é a reflexão da tradução sobre ela mesma, a par-
tir de sua natureza de experiência. Tentemos precisar essa definição.
Reflexão e experiência: eis algumas categorias nas quais a filosofia
nunca parou de pensar, com Kant, Fichte, Hegel, Husserl, Benja-
min e Heidegger, e cuja unidade é sempre seu foco de reflexão. Pois
quando a experiência volta-se sobre ela mesma para compreender-
se e tornar-se mais plenamente “experiência”, ela se torna reflexão.
Mais exatamente, a reflexão não é nada mais que tal retorno, que
se efetua no âmbito da língua natural. Tal é a estrutura “especulati-
va” que a filosofia interroga. Mas não somente ela: a partir dos ro-
mânticos, a literatura também. Assim, Proust declara, a propósito
da escrita como memória, que nela o poder de reflexão é tudo. De
fato, esse escritor parece partir de experiências singulares mas, pela
reflexão da escrita, essas experiências se universalizam. Proust de-
(PROUST, Marcel. Le
clara sobre isso que o escritor “se recorda apenas do geral”.* E faz
*

temps retrouvé. tome III.


isso na mesma passagem de Em busca do tempo perdido na qual ele Pléiade. Paris: Gallimard,
1989: 906.)
define o ato de escrever como uma tradução. Para Proust, reflexi-
vidade e tradutibilidade da obra estão ligadas.6
A tradutologia é, pois, a retomada reflexiva da experiência que
é a tradução e não uma teoria que viria descrever, analisar e even-
tualmente reger essa atividade. A experiência realizada na tradução
tem uma tripla dimensão.
Em primeiro lugar, o tradutor experiencia a diferença e o pa-
rentesco das línguas, em um nível que ultrapassa aquilo que a lin-
guística ou a filologia podem empiricamente constatar nesse senti-
do, porque esse parentesco e essa diferença manifestam-se no pró-
prio ato de traduzir. Em segundo lugar, ele experiencia a traduzibi-
6
Distingamos aqui traduzibilidade de tradutividade. A traduzibilidade é uma es-
trutura a priori da obra que a torna “traduzível”, como o criticável faz com que
possamos analisá-lo criticamente. A tradutividade remete ao fato de que o pró-
prio texto é um trabalho de tradução. Pasternak fala a esse respeito da “tensão
tradutora” da grande prosa.

ANTOINE BERMAN | A tradução e seus discursos 347


lidade e a intraduzibilidade das obras. Em terceiro lugar, ele expe-
riencia a própria tradução, estando marcada por duas possibilida-
des antagônicas: ser restituição do sentido ou reinscrição da letra.
Vemos que em cada dimensão há uma estrutura de oposição. É ela
que está na origem das eternas controvérsias sobre o caráter “pro-
blemático” do traduzir. A tradutologia deseja retomar em uma re-
flexão sistemática essas três dimensões da experiência tradutória.
Ela continua, assim, o discurso tradicional no ponto no qual ele se
interrompe, ou seja, no limiar da sistematicidade.
Não é mais um discurso sobre a tradução, mas um discur-
so enraizado nessa experiência triplamente divergente. Nem cien-
tífico, nem literário. Ele não substitui nem ambiciona substituir a
linguística, a semiótica, a literatura comparada, etc. Ele se coloca
ao lado desses saberes. É o equivalente, para a tradução, do discur-
so crítico da literatura sobre ela mesma. Musil dizia que a a crítica
estava “tecida” com a literatura. O discurso tradutológico funda-
se sobre a reflexividade originária do traduzir.
A tradutologia não é um discurso fechado visto que a área das
traduções não é fechada, mas fragmentada, intersticial. Não é uma
área que enfoque um determinado campo do real, pois, justamen-
te, a tradução não é um “campo” no sentido que o conceito tem
nas ciências. Pelo contrário, a tradutologia recusa desde o início a
ideia de uma teoria global e única do traduzir. Uma tal teoria so-
mente é possível no horizonte da restituição do sentido. Ora, es-
sa é uma dimensão real, mas secundária, das traduções. É o único
ponto em comum a todas, mas o mais problemático, porque ocul-
ta uma outra dimensão mais essencial: o trabalho sobre a letra. É
enquanto trabalho sobre a letra que a tradução tem um papel éti-
co, poético, cultural e até religioso na história.

As tarefas de uma tradutologia

Vejamos agora quais são as tarefas possíveis de uma tradu-


tologia.
A primeira é negativa. Visto que − como diz Steiner − 80%
das traduções são “defeituosas”, convém analisar os fatores defor-
mantes que operam na tradução e que a impedem de alcançar seu
puro objetivo. Essa é a tarefa de uma analítica da falha e de uma
analítica da destruição.
A analítica da falha tem em vista aquilo que Freud chama (pa-
ra o psiquismo) “a falha da tradução”, ou seja, o fato de o ato de

348 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


traduzir nunca se realizar (plenamente) mesmo quando isso é pos-
sível. A “falha da tradução” assume múltiplas formas, mas é ine-
rente a toda tradução.
A analítica da destruição tem em vista o fato de que o traduzir,
enquanto restituição do sentido (e ele o é sempre), é um processo
de degradação da letra das obras. Aí, novamente, esse processo ma-
nifesta-se como uma série de tendências deformadoras que operam
durante a tradução (queira o tradutor ou não, obedeça ou não a nor-
mas culturais, literárias, morais, etc.). Essa destruição não é apenas
negativa. Ela tem mesmo sua necessidade, pois uma das relações pos-
síveis do homem com suas obras é precisamente a destruição. Glosa
e tradução, como bem sentia Montaigne, são iconoclastas.
A segunda tarefa da tradutologia consiste em explicitar o que,
na tradução, não tem origem na comunicação dos conteúdos e na
restituição do sentido: o trabalho sobre a letra. É o campo de uma
ética e de uma poética da tradução, na medida em que a ética e a
poesia só existem no respeito (na observância) da letra.
A terceira tarefa relaciona-se à temporalidade e à historicidade
dos atos de tradução. As traduções têm uma temporalidade própria,
que está ligada à temporalidade das obras, das línguas e das culturas.
Essa reflexão sobre o tempo do traduzir abre-se a um estudo de cará-
ter “histórico”: escrever a história da tradução nas áreas nas quais ela
constituiu um dos fatores fundamentais (ainda, como tal, desconhe-
cido) da constituição das línguas e das literaturas. Esse trabalho his-
tórico, comparável ao de Michel Foucault, mostrará que, em todos
os lugares e sempre, tradução e escrita formam uma unidade origi-
nária. O paradoxo central de uma história da tradução encontra-se,
talvez, no fato de a própria história começar com a tradução.
A quarta tarefa consiste em analisar o espaço plural das tra-
duções, sem confundir esse trabalho com a constituição de uma
“tipologia”, tão clara quanto possa ser. Este espaço pode ser apro-
ximado através de eixos totalmente heterogêneos. A tradução de
um livro infantil não obedece às “leis” de um livro para adultos;
a de um texto técnico é diferente da tradução de um texto cientí-
fico, jurídico, publicitário, comercial e, naturalmente, “literário”.
O espaço do “literário” é fundamentalmente heterogêneo e – de
maneira mais especial – dividido entre o que é “obra” e o que, ape-
sar de “literário”, não é obra. Assim, um texto escrito em dialeto
não se traduz como um texto escrito em koiné; um texto escrito
em francês por um estrangeiro não se traduz como um texto es-

ANTOINE BERMAN | A tradução e seus discursos 349


crito em francês por um francês; uma primeira tradução não pode
ser lida como uma “retradução”, uma tradução de língua “distan-
te” não pode ser entendida como uma tradução de língua “próxi-
ma”. Nada disso é unificável.
A quinta tarefa da tradutologia consiste em desenvolver uma
reflexão sobre o tradutor, pois podemos dizer que se trata de um
grande esquecido de todos os discursos sobre a tradução. Para tais
discursos o tradutor é um ser sem espessura, “transparente”, “apa-
gado”, etc. É desse modo como se veem e no qual vivem os tradu-
tores, sejam eles técnicos ou literários. Ora, não é bem assim. Po-
demos pensar aqui nas “biografias” de tradutores como Amyot,
A.W. Schlegel, Armand Robin, análises de “destinos de tradução”
nas quais se esclareceria a ligação do tradutor com a escrita, com a
língua materna e com as demais línguas. Essa analítica do tradutor,
que eu saiba, praticamente não existe. Na mesma linha de pensa-
mento, seria possível estudar como aparecem dentro da literatu-
ra, o tradutor e a tradução; de fato, eles aparecem pouco, mas cada
uma dessas aparições é bastante significativa.
A sexta tarefa consiste em analisar porque, em todos os tempos,
a tradução foi uma atividade ocultada, marginalizada, desvalorizada,
quer seja ela trabalho sobre a letra ou livre restituição do sentido.
A sétima tarefa consiste em explorar, se é que podemos dizer
assim, as fronteiras da tradução. E isso segundo dois eixos. No eixo
horizontal, a área da tradução toca outras áreas: a da leitura, a das
“interpretações”, a das tranferências e mudanças em todos os gêne-
ros e que podem ser literárias, artísticas, científicas, etc. Grande é
a tentação, aqui, de construir uma teoria “generalista da tradução”
que englobaria a “tradução restrita” e os outros modos de “transla-
ção”. Sucumbiram a essa tentação o Romantismo alemão, Steiner,
Serres e, na França, a revista “Change”. A tarefa da tradutologia
consite, sobretudo, em articular todas essas áreas de transforma-
ção, sem confundi-las. Em seus limites “verticais”, a tradução vive
uma mudança de sentido metafórico, quando ela acaba por desig-
nar a essência dos atos de fala, de escrita, de pensamento e mesmo
de existência. Esse emprego metaforizante do “conceito” de tradu-
ção já é constante no discurso cotidiano, mas foi radicalizado por
uma longa linhagem de autores, desde o século 18.
*
(HAMANN, Johann Georg.
“Esthetica in nuce”. Trad. J.-F Hamann
Courtine. Poésie, nº 13. Pa-
ris, 1980: 17.) Falar é traduzir – de uma língua angelical a uma língua humana.*

350 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Marina Tsvetaïeva
Traduzir [...] é refazer o caminho sobre os rastros que a erva invade
num instante, mas [...] também outra coisa. O que fazemos não é
apenas passar de uma língua para outra língua (o russo, por exem-
plo), passamos também o rio. Eu passo Rilke para a língua russa
(Tsvetaïeva, Marina. Cor-
assim como se ele me fizesse passar um dia no outro mundo.* *

respondance à trois. Trad. P.


Jaccottet. Paris: Gallimard,
Proust 1983: 17.)

É provável que se uma tradução completa do universo pudesse ser


*
(PROUST, Marcel. La Ma-
feita, nos tornássemos eternos.* tinée chez la Princesse de
Guermantes, Paris: Galli-
Roa Bastos mard, 1983: 580.)

Há apenas um só volume. Quando um homem morre, isso não


significa que esse capítulo seja arrancado das páginas do Livro.
Isso quer dizer que ele foi traduzido em uma língua melhor. Cada
capítulo é assim traduzido.* *
(ROA BASTOS, Augusto.
Moi le supreme. Trad. A. Ber-
man. Paris: Belfond, 1977.)
Existe aí uma metáfora vertical da tradução que não poderia
ser ignorada: podemos falar de outra tradução que se esconde na
tradução restrita como seu núcleo mais secreto.
A oitava tarefa da tradutologia consiste em fazer uma “críti-
ca da razão traductique”, ou seja, definir os limites de validade da
mesma. Ligada ao movimento imperioso da tecnologização da lín-
gua, a traductique não pode se fixar nas suas indispensáveis frontei-
ras epistemológicas, culturais e mesmo políticas. Isso é ainda mais
necessário hoje, visto que a tradução ingressou plenamente no es-
paço das “políticas” (e do político como tal).
A nona tarefa consiste em definir as relações da tradutologia co-
mo discurso-da-tradução com dois outros modos essenciais de relação
com as obras: o comentário e a crítica. Essa tarefa é ainda mais impor-
tante porque a tradução seguidamente tem sido definida como uma
atividade crítica (é a crítica pela tradução de Pound) ou foi confinada
na atividade crítica (do romantismo alemão a Steiner); além disso,
comentário e tradução têm relações íntimas, como demonstram, no
século 20, as reflexões filosóficas, religiosas e psicanalíticas.
A décima tarefa da tradutologia consiste em definir as condi-
ções de sua própria institucionalização enquanto saber autônomo.
Trata-se de precisar as condições de ensino e de pesquisa. Se con-
sideramos que a tradução é essencial, que nos afeta a todos, “Ba-
bel” é e será um destino-de-tradução, então algo como uma tra-
dutologia deverá existir como um saber instituido, mesmo se esse
saber não resultar em uma ciência, uma Übersetzungwissenschaft.

ANTOINE BERMAN | A tradução e seus discursos 351


Faz parte dessa institucionalização (cujas modalidades concretas de-
vem ser determinadas) o que poderíamos chamar de educação pa-
ra a tradução. Organizar uma tal educação, de uma tal paideia tra-
dutória7 deveria, por sua vez, modificar o estatuto da tradução em
nossa cultura, da figura do tradutor e, naturalmente, de tudo que
diz respeito hoje em dia ao ensino prático da tradução.
A décima primeira tarefa da tradutologia refere-se à ligação que
toda a reflexão sobre a tradução tem com a tradição-da-tradução
particular a que pertence, mesmo se sua ambição é a de constituir
um discurso “universal”. A maneira como aparece a problemática
da tradução não é a mesma na tradição francesa que na tradição ale-
mã, anglo-saxônica, russa, espanhola, ou – a fortiori – do extremo-
oriente. Não é a mesma em um “pequeno país” cuja língua é uni-
camente nacional e em um grande país cuja língua é transnacional
e cujo espaço é, ele mesmo, frequentemente multilíngue.
Cabe também à tradutologia afirmar-se como um discurso
historicamente e culturalmente situado, e estudar, a partir dessa
situação – de sua situação – os demais discursos sobre a tradução.
Assim, por detrás das teorias de Nida, delineia-se uma problemá-
tica da tradução própria do espaço anglo-saxão; por detrás de tal
escrita de Efim Etkind, uma problemática própria do espaço rus-
so; por detrás das reflexões de Yebra, uma problemática própria do
espaço hispânico, por detrás das construções teóricas de Octavio
Paz ou de Haroldo de Campos, uma problemática latino-americana
da tradução, etc. A tradutologia está então sempre ligada ao espa-
ço da língua e da cultura à qual pertence, e é bem evidente que os
grandes eixos de reflexão que propusemos aqui se enraízam, mes-
mo se for para constestá-la, na tradição francesa da tradução. Isso
não diminui em nada sua universalidade, mas abre a necessidade
de um diálogo entre as diferentes tradições de reflexão sobre a tra-
dução. Assim também é, no fundo, para a literatura, o pensamen-
to, o teatro ou a psicanálise.
Tradução de Marlova Aseff
Revisão da tradução de Eleonora Castelli

7
Que nossa época se encaminha a uma tal paideia é o que atestam as criações do
Colégio europeu de tradutores de Strahlen (Alemanha Federal), do Colégio inter-
nacional de tradutores de Arles e, por todo lado, de numerosos “centros de pes-
quisas” sobre a tradução. A tradutologia não é nada mais que a reflexão que vem
sustentar e esclarecer (ao mesmo tempo que se desenvolve e aprofunda) a ativi-
dade desses centros e colégios.

352 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Marlova Aseff
Jornalista, tradutora, com doutorado em Teoria Literária pela
UFSC. Publicou “Três escritores-tradutores no cenário literário
brasileiro contemporâneo” (In: Protocolos Críticos. São Paulo: Ilu-
minuras, 2008), organizou O nome do jogo (Porto Alegre: Sagra Lu-
zzato, 1998), um recorte literário das crônicas esportivas do gaúcho
Ruy Carlos Ostermann, e participou da edição do livro Memória
de Tradutora, com Rosa Freire D’Aguiar (Florianópolis: Escritório
do Livro, NUT/UFSC, 2004).

Resumo
Palavras-chave: tradução;
Neste texto, Antoine Berman analisa os diferentes discursos sobre Antoine Berman; traduto-
logia.
a tradução e propõe uma nova abordagem, a tradutologia. Tam-
bém sugere onze tarefas para a tradutologia, essa última entendida
como “a reflexão da tradução sobre ela mesma, a partir de sua na-
tureza de experiência”.

Abstract Résumé
Key words: translation; An-
In this paper, Antoine Berman Dans ce texte, Antoine Berman toine Berman; traductology.
analyses different discourses examine les différents discours Mots-clés: traduction; Antoi-

about translation and propos- tenus sur la traduction et pro- ne Berman; traductologie.

es a new one, named  traduc- pose un nouveau discours, la


tology. He also suggests eleven traductologie. Il suggère alors
tasks for traductology, which is onze tâches pour la traductolo-
understood as “the translation’s gie,  qui est entendue comme
reflexion about itself, by its own la réflexion de la traduction sur
nature of experience”. elle-même à partir de sa nature
d’expérience.

ANTOINE BERMAN | A tradução e seus discursos 353


O bilinguismo do tradutor
Angela Jesuino Ferretto

Em que sentido a tarefa do tradutor pode ajudar a esclarecer a


questão do bilinguismo, e da subjetividade nele incluída? Ou, mais
precisamente, o que nos ensina o bilinguismo do tradutor, na sua
relação com o texto?
Eis a questão que gostaria de examinar hoje, a partir da prática
de tradução de Lacan, uma prática que devo, por um lado, ao gru-
po trilingue (francês, português, espanhol), criado pelo Cartel de
l’Amérique Latine em 1995 e dedicado à tradução de Lituraterre,1
e, por outro lado, aos colegas do grupo de tradução francês/portu-
guês que, dando seguimento a esse primeiro trabalho, traduziu a
Troisième,2 que acaba de ser publicada no Brasil.
Os tradutores profissionais certamente não concordariam
com o que pretendo dizer aqui hoje, mas também para nós – tra-
dutores improvisados da psicanálise – toda tradução já é uma teo-
ria da tradução, e é portanto nosso dever pensar essa tarefa a partir
das contribuições da teoria lacaniana da linguagem, ou seja, a par-
tir do discurso psicanalítico.
Gostaria de abordar essa questão a partir de duas observações,
que surgiram da minha prática. A primeira é a seguinte: o bilinguis-
mo do tradutor é variável. Num primeiro momento, examinarei as
condições dessa variabilidade.
Minha hipótese é que o bilinguismo do tradutor varia em
função da posição subjetiva do tradutor nas duas línguas. A tradu-
ção depende dessa posição, uma posição que não está petrificada,
que pode mudar. E é essa posição subjetiva em relação ao Outro
da língua que vai determinar a forma como o tradutor privilegiará
a língua fonte ou a língua-alvo (termos do jargão de tradutor per-
tinentemente criticados por Henri Meschonnic).

1
Lacan, Jacques. D’un discours qui ne serait pas du semblant. Seminário inédito,
lição do 12 de maio de 1971. Texto publicado em outubro deste mesmo ano no
n°3 da revista “Littérature” consagrada ao tema “Literatura e Psicanálise”.
2
Lacan, Jacques. Conferência feita em Roma em novembro de 1974 por oca-
sião do Congresso da Ecole Freudienne de Paris: O Real, a ética, a supervisão. In:
Interventions de J. Lacan extraites des Lettres de l’Ecole. Documento de trabalho,
Association freudienne internationale.

354 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 354-360


Podemos nos perguntar sobre a forma de traduzir quando o
tradutor está imerso em sua língua materna, quando a língua Ou-
tra é não apenas uma língua estrangeira mas também uma língua
do mestre que não deve ser traída. A tradução pode se revelar en-
tão boba e disciplinada. É o caso de algumas traduções de Lacan
em português, repletas de galicismos, de palavras em francês entre
parênteses e incontáveis notas de pé de página. Falo aqui com co-
nhecimento de causa pois foi nessa posição que traduzi La naissan-
ce de l’Autre. Com esse belo título, inaugurei o que, ao longo dos
anos, foi-se revelando um verdadeiro corpo a corpo literal.
Uma outra situação é a do tradutor que deixa o seu país, sua
língua materna, e torna-se tradutor no país para o qual imigrou.
Nesse caso, será que o melhor que ele poderia fazer não seria justa-
mente fazer-se adotar por esse Outro da língua, ao qual agora ele
deve se dirigir? Será que o melhor que ele poderia fazer não seria
então lhe declarar seu amor, mesmo que o preço a ser pago por isso
seja que o texto na sua língua materna se torne letra morta? Seria
por essa razão que aceitei traduzir, pouco depois de chegar à Fran-
ça, l’Amour de la langue de Jean Claude Milner?
O que se torna a tradução quando o tradutor faz análise na lín-
gua da imigração? Quando algo da dívida ao Outro se paga também
nessa língua, e que, para além da declaração de amor, uma subjeti-
vação passa também a ser possível? Quais são os efeitos na tradução
desse tipo de bilinguismo que passa pela língua da análise?
O que tento mostrar através dessas questões um tanto abruptas
é o fato de o bilinguismo do tradutor ser tributário da relação do su-
jeito com o Outro, e que é essa relação com o Outro que determina
a variabilidade desse bilinguismo, para além das questões relaciona-
das ao conhecimento das línguas, e de toda teoria construída a par-
tir do velho debate em torno do privilégio a ser concedido à língua-
alvo ou à língua fonte, como já mencionado anteriormente.
Essa primeira observação dá conta do aspecto imaginário, ou
da imaginarização desse lugar Outro, aspecto esse que, por ter con-
sequências, não deve ser menosprezado.
A segunda observação a ser feita é que o bilinguismo do tra-
dutor tem como característica particular o fato de ser confrontado
de maneira mais imediata à escrita, ao texto e, dessa forma, à ques-
tão da instância da letra.
Foi o exercício de tradução do texto Lituraterre que abriu um
campo de trabalho completamente diferente do anterior. Isso se

ANGELA JESUINO FERRETTO | O bilinguismo do tradutor 355


deve sem dúvida alguma, por um lado, ao próprio texto, mas, por
outro, é consequência do método de tradução implementado. En-
fatizo aqui dois aspectos em especial: essa tradução foi feita a mui-
tas mãos, em grupo, e – aspecto ao meu ver muito importante – o
texto era lido, em voz alta, nas três línguas referidas.
O texto de Lacan demanda tal leitura por conta do seu pró-
prio estilo, “uma escrita que não poupa a fala, que utiliza constan-
(Wahl, François. “La mi-
temente o que se pronuncia, mais do que o que se lê”.* Para Lacan,
*

se en page de la psychanaly-
se“. La célibataire n°6. Paris: “a fala, o dizer, é preponderante em relação ao escrito, ou mais exa-
EDK, 2002: 281)
tamente, o escrito é ele próprio um dizer”.*
*
(Ibidem: 282.)
Mas não somos os únicos a ler em voz alta para traduzir. Es-
se método aproxima o nosso trabalho do de alguns tradutores de
textos literários. Paulo Ronai, por exemplo, traduziu as mil e du-
zentas páginas da Comédia Humana de Balzac utilizando essa mes-
(Cf. Ronai, Paulo. A Tradu-
ma abordagem.*
*

ção Vivida. Col. Logos. Rio


de Janeiro: Nova Fronteira, Aproximamo-nos assim também de Henri Meschonnic, se-
1981: 196.)
gundo quem “num texto literário é a oralidade que deve ser tra-
*
(Meschonnic, Henri. Po-
étique du traduire. Paris: Ver-
duzida”.*
dier, 1999: 29) Mas o que faz o tradutor quando dá voz ao texto, quando em-
presta a sua própria voz ao texto?
Farei aqui referência aos estudos sobre a antropologia da lei-
tura na Grécia Antiga, e em especial a Jesper Svenbro, que em seu
( S venbro , J e s p e r.
livro Phrasikleia* destaca elementos que nos poderão ser úteis aqui.
*

P h r a s i k l e i a . Pa r i s : L a
Découverte,1988: 53-72) Num capítulo dedicado ao leitor e à voz leitora, o primeiro ponto
sublinhado pelo autor é que o escrito é incompleto se a ele não for
acrescentada uma voz, e que a leitura em voz alta faz parte do tex-
to, ela está inscrita no texto.
Uma outra observação diz respeito ao leitor. E, mais uma vez,
a posição do autor pode nos interessar. E ele é incisivo:
– O leitor deve ceder sua própria voz ao escrito.
– No momento da leitura a voz não pertence ao leitor.
– O leitor permanece instrumental. Ao ler ele se define como
o instrumento sonoro da escrita.
– A voz deve seguir o rastro da escrita. O leitor segue os sinais
tangíveis da escrita para guiar a sua voz.
– A voz do leitor é instrumento que distribui aos ouvintes – e
também a ele próprio – o conteúdo do texto. Graças à sua voz ele
poderá levar aos seus próprios ouvidos as palavras da inscrição.
Esse trabalho em grupo em torno do texto Lituraterre nos en-
sinou a ler, a levar aos nossos próprios ouvidos as palavras da ins-

356 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


crição. Aprendemos também que para traduzir é preciso começar
por ceder algo, por ceder sua própria voz ao texto.
O trabalho de tradução se transforma radicalmente com a
introdução da voz objeto a – objeto de gozo – e com o endereça-
mento que essa leitura restitui. No entanto, dar a voz não basta. É
preciso ainda que essa voz não seja uma pura substância de gozo e
*
(Cf. Bergès, Jean. “La voix
que ela possa também servir como vetor para a letra.* aux abois”. Discours Psycha-
Se cada língua organiza o seu próprio recalque no ponto em nalytique n°2, Paris: J.Clims,
1989.)
que letra e voz se articulam, o tradutor não pode fugir ao exercício
dessa articulação. Sobre isso, gostaria de dar alguns exemplos prá-
ticos de maneira a mostrar o que pode ser o trabalho do tradutor
nessa articulação. Submeto assim essa tradução à crítica dos leito-
res. Trata-se de uma frase de Lacan em a Troisième:
“Je pense donc je souis”, que traduzimos por: Penso logo gossou.
Descreverei aqui as etapas que nos levaram a optar por essa
tradução: Jouir = gozar e suis = sou.
Diante do neologismo de Lacan, poderíamos permanecer num
estado de sideração e optar por uma nota explicativa de pé de pá-
gina. Mas fizemos uma escolha diferente. Partimos do passado do
verbo gozar (“gozou”) e forçamos a ortografia para encontrar nes-
sa palavra o verbo ser conjugado na primeira pessoa: “gosou”. Mas
nessa escrita (“gosou”) não se ouvia o verbo ser, o “sou”. Podia-se
ler, mas não ouvir, e com isso a versão em português acabava por
enfatizar a parcela de “gozo”. Ora, na escrita proposta por Lacan, o
que se lê não é exatamente o que se ouve, mas o que ecoa nos ouvi-
dos é antes de tudo o “suis”. Para permanecermos fiéis a essa opera-
ção (aliás, a única fidelidade que podemos estampar), duplicamos
o “s”, de maneira a poder ouvir em português “gossou”.
Nesse neologismo criado em português, buscamos seguir de
perto o que foi operado por Lacan em francês, e logo não há de-
calque nem equivalência, mas antes uma operação da língua, um
trabalho da letra.
Mas a questão que ainda nos preocupa é a dos efeitos de trans-
missão que esse tipo de tradução pode permitir, ou não. Fará ela
transmissão ou resistência à psicanálise? Ainda não se pode saber.
Em todo caso, no que diz respeito à Troisième, nosso obje-
tivo era o de restituir ao texto o seu caráter enunciativo. Restituir
ao leitor brasileiro a virulência significante do texto de Lacan. Fa-
bricar um texto em que as marcas desse trabalho de Lacan com a
linguagem não fossem apagadas, de maneira que o leitor brasilei-

ANGELA JESUINO FERRETTO | O bilinguismo do tradutor 357


ro pudesse, como o francês, experimentar o mesmo sentimento de
vacilação diante do texto.
Talvez sejamos obrigados a perceber, com Lacan, que a tradu-
ção não é apenas uma questão de passagem de uma língua à outra,
um questão de equivalências, de fidelidade, de sentido, mas tam-
bém de literalidade, de letra, e ao mesmo tempo de submissão ao
significante e aos seus efeitos.
O bilinguismo do tradutor, por conta da sua relação com o
texto, o obriga a um exercício de perda. Mas essa perda é da or-
dem do real da letra. Ou seja, isso não impõe ao tradutor adotar
um posição de luto, mas sim constatar que o lugar do impossível
é diferente em cada língua, o que o obriga, eventualmente, a in-
ventar alguma coisa.
O bilinguismo do tradutor teria essa particularidade de ter
que articular letra e voz, ter que navegar entre fala e escrita, en-
tre um texto e outro. Seria portanto um bilinguismo marcado pe-
la erosão da letra, pela voz como objeto a ceder e pelo gozo que o
leva a recomeçar.
Percebam que eu deixei prudentemente o gozo para o fim.
Porque essa prática da letra – ou por que não esse manuseio da le-
tra? – é uma prática de gozo. Não sei no entanto se isso bastaria
para dar conta da origem do gozo do tradutor. Seria essa articula-
ção propriamente dita da letra? São por enquanto apenas questões
especulativas, cujo desenvolvimento ainda está por ser feito.
Uma última questão para concluir: o bilinguismo do tradu-
tor o leva a saber o quê?
Em francês, diz-se: “impossível não é francês”. Tenho vontade
de dizer que também não é brasileiro, pois o impossível não é uma
questão de língua, o impossível é uma questão de letra, portanto de
efeito de discurso, uma questão que diz respeito à linguagem.
Isso o tradutor deve saber se não quiser permanecer atrelado
ao que é o imaginário de cada língua.

tradução de Daniela Cerdeira

358 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Angela Jesuino Ferretto
Brasileira radicada em Paris, psicanalista membro da Association
Lacanienne Internationale (Paris) e do Tempo Freudiano Associa-
ção Psicanalítica (Rio de Janeiro). Vários artigos publicados em
francês, português e espanhol. No que concerne a questão da tra-
dução: “Tradouire”, “Le bilinguisme du traducteur”, “Lacan deve
falar português?”, “Tradouire, quel rapport au texte?”.

Resumo
Palavras-chave: bilinguismo
O bilinguismo do tradutor é tributário da relação do sujeito com do tradutor; posição subjeti-
o Outro, o que vem determinar a variabilidade desse bilinguismo va; letra; voz; psicanálise.

para além das questões relacionadas ao conhecimento das línguas,


e de toda teoria construída a partir do velho debate em torno do
privilégio a ser concedido à língua-alvo ou à língua fonte.
O bilinguismo do tradutor é confrontado de maneira mais imedia-
ta à escrita, ao texto e, dessa forma, à questão da instância da letra.
Isso o obriga a um exercício de perda que é da ordem do real da le-
tra. Essa perda não implica adotar uma posição de luto, mas cons-
tatar que o lugar do impossível é diferente em cada língua, o que
leva o tradutor, eventualmente, a inventar alguma coisa.
A experiência de tradução de Lacan no que ela exige levar em conta
a “oralidade do texto” nos ensina que o bilinguismo do tradutor te-
ria essa particularidade de ter que articular letra e voz, fala e escrita.
Este bilinguismo seria portanto marcado pela erosão da letra, pela
voz como objeto a ceder e pelo gozo que o leva a recomeçar.

Abstract Resumé
Key words: translator’s bi-
The translator’s bilingualism is Le bilinguisme du traducteur lingualism; subjective po-
a result of his or her relation- est redevable de la relation du sition; letter; voice; psycho-
analysis.
ship with the Other, which ul- sujet à l’Autre ce qui détermine Mots-clés: bilinguisme du
timately determines the vari- la variabilité de ce bilinguisme traducteur; subjectivité; let-
tre; voix; psychanalyse.
ability of such bilingualism be- au delà de toute question liée à
yond issues related to knowl- la connaissance des langues ou
edge of languages and all the- à toute théorie concernant le
ories based on the old debate vieux débat autour du privilège
on the privilege of the target or à accorder à la langue cible ou à
source language. la langue source.
The translator’s bilingualism is Le bilinguisme du traducteur
more immediately confronted aurait ceci de particulier d’être
with writing, with the text, and confronté à l’écrit, au texte et

ANGELA JESUINO FERRETTO | O bilinguismo do tradutor 359


as such with the issue of the in- du même coup à la question
stance of the letter itself. This de l’instance de la lettre peut-
leads to an exercise in losing that être d’une façon plus immédia-
partakes of the real of the letter. te. Cela l’oblige à un exercice
Such loss does not imply a po- de perte mais cette perte est de
sition of mourning, but the ac- l’ordre du réel de la lettre. Cette
knowledgment that the location perte impose au traducteur non
of the impossible is different in pas à adopter une position de
each language, which forces the deuil mais à constater que le lieu
translator to invent something de l’impossible n’est pas situé à
on occasion. la même place dans chaque lan-
The experience of translating gue. Cela l’oblige le cas échéant
Lacan in that it demands that à inventer quelque chose.
one takes into consideration the L’expérience de la traduction
“oral nature of the text” teaches de Lacan en ce qu’elle exige de
us that the translator’s bilingual- prendre en compte « l’oralité du
ism has this peculiarity of hav- texte » nous apprend que le bi-
ing to articulate letter and voice, linguisme du traducteur a ce-
speech and writing. This bilin- ci de particulier, s’il y concède,
gualism is then characterized by d’avoir à articuler la lettre et la
the erosion of the letter, by the voix, la parole et l’écrit. Ce bi-
voice as an yielding object and linguisme serait donc marqué
by the enjoyment that makes par le ravinement de la lettre,
the translator start afresh. par la voix comme objet à céder
et par la jouissance qui le pousse
à recommencer.

360 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Para uma tradução d’Os sepulcros,
de Ugo Foscolo
O poema Os Sepulcros (Dei Sepolcri), um dos mais célebres
textos de Ugo Foscolo, composto entre os anos de 1806 e 1807,
e publicado pela primeira vez na primavera de 1807, desenvolve
o tema dos cemitérios e dos sepulcros. Tema que, na época do es-
critor, fora fruto de uma série de polêmicas, originadas a partir de
um decreto napoleônico, difundido na Itália em setembro de 1806,
que impunha que os cemitérios fossem construídos fora dos limi-
tes da cidade e que sobre as tumbas fossem colocadas lápides co-
muns e de igual tamanho para todos. Por trás do decreto havia um
motivo de saúde pública e também um motivo político, resultan-
te do princípio de igualdade entre todos os cidadãos, sancionado
pela Revolução Francesa.
O fato suscitara inúmeras controvérsias, e os católicos, assim
como o poeta Ippolito Pindemonte – com o qual Foscolo iniciara
a discussão sobre o tema dos sepulcros e a quem dedicara o poema
–, defendiam, sob o viés religioso, tanto o culto aos mortos quan-
to a instituição das sepulturas. Foscolo, ateu e materialista, em um
primeiro momento, se mostrou a favor da lei, mas depois refletiu
acerca do tema da morte, reconhecendo que os sepulcros (e, nes-
ta lista, incluem-se tumbas, túmulos, cenotáfios, mausoléus, jazi-
gos, lápides, lousas, urnas), se não são de proveito aos mortos, en-
tão o são aos vivos.
Deteve-se, para isso, sobre o significado e a função que os se-
pulcros assumem para os vivos, impostando o “carme” – compo-
sição tipicamente italiana que remonta à tradição romana – como
uma celebração daqueles valores e ideais que podem dar um sig-
nificado à vida humana. A publicação do poema, no entanto, não
fez com que Foscolo mudasse suas convicções materialistas acer-
ca da morte, por ele considerada nada mais que o desfalecimento
da vida. Pelo contrário, à visão materialista da morte como “nada
eterno”, contrapôs a ilusão de uma sobrevivência garantida pelos
sepulcros que, se de um lado, preservam os vínculos familiares e os
valores, isto é, aqueles valores que inspiram os homens a cumprir
“nobres empresas” (pátria, glória, heroísmo), por outro, se consti-
tuem em matéria de poesia, poesia imortal que “vence o silêncio
de incontáveis séculos” e a própria morte, consentindo uma sobre-
vivência ideal aos mortos.

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 361-381 361


Essa é a visão clássica de Foscolo, mas própria de um poeta ne-
oclássico, e onde reside também a proposta d’Os Sepulcros, pois se
desde a Antiguidade clássica os sepulcros já eram considerados tes-
temunhos de feitos gloriosos e como tais considerados sagrados, nos
últimos séculos, sobretudo a partir do século XVIII, com a instituição
dos campos-santos, se converteram em objeto de culto religioso.
E Foscolo o sabia, e a partir disso desenvolveu o tema dos se-
pulcros, discutindo, sob o viés filosófico, a relação entre a ideologia
e a moral laica e materialista, nascida com o Iluminismo e patro-
cinada pela revolução, e do qual era favorável, com os grandes te-
mas tradicionalmente abordados pela religião, entre os quais a du-
alidade suprema: vida e morte. Isso porque, para o escritor, havia
duas possibilidades: negar a importância dos sepulcros e da mor-
te, ou então redefinir, desde um ponto de vista laicizante, o valor
da morte e dos cultos que a acompanharam historicamente desde
o surgimento da civilização. Era preciso, uma vez adotada essa se-
gunda via, reescrever as coordenadas de uma antropologia laica que
tomasse o lugar daquela cristã até então predominante. Aqui, por-
tanto, reside a proposta inovadora d’Os Sepulcros, enquanto texto
literário e filosófico.
Ao longo dos 295 hendecassílabos (decassílabos brancos, na
métrica portuguesa) d’Os Sepulcros, alternados estilisticamente com
versos de outras medidas por anisossilabismo, rico de enjambements
e de licença sintática, a meditação sobre a morte se transforma em
um hino de lembrança à vida e de memória à morte, além de ad-
quirir um significado de política ressurgimental e de mensagem so-
cial, reflexos diretos de uma época que, dir-se-ia, parece pairar sob
uma atmosfera sombria, se não fosse, anos mais tarde, chamada de
o Século das Luzes. O texto traduzido segue a edição: Dei Sepolcri.
Brescia: Officina Tipografica Bettoni, 1808: 1-14.

Gleiton Lentz

362 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Dei Sepolcri
Ugo Foscolo

A Ippolito Pindemonte

Deorum manium iura sancta sunto.


(XII Tab.)

All’ombra de’ cipressi e dentro l’urne


confortate di pianto è forse il sonno
della morte men duro? Ove piú il Sole
per me alla terra non fecondi questa
bella d’erbe famiglia e d’animali, 5
e quando vaghe di lusinghe innanzi
a me non danzeran l’ore future,
né da te, dolce amico, udrò piú il verso
e la mesta armonia che lo governa,
né piú nel cor mi parlerà lo spirto 10
delle vergini Muse e dell’amore,
unico spirto a mia vita raminga,
qual fia ristoro a’ dí perduti un sasso
che distingua le mie dalle infinite
ossa che in terra e in mar semina morte? 15
Vero è ben, Pindemonte! Anche la Speme,
ultima Dea, fugge i sepolcri: e involve
tutte cose l’obblío nella sua notte;
e una forza operosa le affatica
di moto in moto; e l’uomo e le sue tombe 20
e l’estreme sembianze e le reliquie
della terra e del ciel traveste il tempo.

Ma perché pria del tempo a sé il mortale


invidierà l’illusïon che spento
pur lo sofferma al limitar di Dite? 25
Non vive ei forse anche sotterra, quando
gli sarà muta l’armonia del giorno,
se può destarla con soavi cure

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 363


nella mente de’ suoi? Celeste è questa
corrispondenza d’amorosi sensi, 30
celeste dote è negli umani; e spesso
per lei si vive con l’amico estinto
e l’estinto con noi, se pia la terra
che lo raccolse infante e lo nutriva,
nel suo grembo materno ultimo asilo 35
porgendo, sacre le reliquie renda
dall’insultar de’ nembi e dal profano
piede del vulgo, e serbi un sasso il nome,
e di fiori odorata arbore amica
le ceneri di molli ombre consoli. 40

Sol chi non lascia eredità d’affetti


poca gioia ha dell’urna; e se pur mira
dopo l’esequie, errar vede il suo spirto
fra ‘l compianto de’ templi acherontei,
o ricovrarsi sotto le grandi ale 45
del perdono d’lddio: ma la sua polve
lascia alle ortiche di deserta gleba
ove né donna innamorata preghi,
né passeggier solingo oda il sospiro
che dal tumulo a noi manda Natura. 50

Pur nuova legge impone oggi i sepolcri


fuor de’ guardi pietosi, e il nome a’ morti
contende. E senza tomba giace il tuo
sacerdote, o Talia, che a te cantando
nel suo povero tetto educò un Lauro 55
con lungo amore, e t’appendea corone;
e tu gli ornavi del tuo riso i canti
che il lombardo pungean Sardanapalo,
cui solo è dolce il muggito de’ buoi
che dagli antri abdüani e dal Ticino 60
lo fan d’ozi beato e di vivande.
O bella Musa, ove sei tu? Non sento
spirar l’ambrosia, indizio del tuo nume,
fra queste piante ov’io siedo e sospiro
il mio tetto materno. E tu venivi 65
e sorridevi a lui sotto quel tiglio

364 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


ch’or con dimesse frondi va fremendo
perché non copre, o Dea, l’urna del vecchio
cui già di calma era cortese e d’ombre.
Forse tu fra plebei tumuli guardi 70
vagolando, ove dorma il sacro capo
del tuo Parini? A lui non ombre pose
tra le sue mura la citta, lasciva
d’evirati cantori allettatrice,
non pietra, non parola; e forse l’ossa 75
col mozzo capo gl’insanguina il ladro
che lasciò sul patibolo i delitti.
Senti raspar fra le macerie e i bronchi
la derelitta cagna ramingando
su le fosse e famelica ululando; 80
e uscir del teschio, ove fuggia la luna,
l’úpupa, e svolazzar su per le croci
sparse per la funerëa campagna
e l’immonda accusar col luttüoso
singulto i rai di che son pie le stelle 85
alle obblïate sepolture. Indarno
sul tuo poeta, o Dea, preghi rugiade
dalla squallida notte. Ahi! su gli estinti
non sorge fiore, ove non sia d’umane
lodi onorato e d’amoroso pianto. 90

Dal dí che nozze e tribunali ed are


diero alle umane belve esser pietose
di se stesse e d’altrui, toglieano i vivi
all’etere maligno ed alle fere
i miserandi avanzi che Natura 95
con veci eterne a sensi altri destina.
Testimonianza a’ fasti eran le tombe,
ed are a’ figli; e uscían quindi i responsi
de’ domestici Lari, e fu temuto
su la polve degli avi il giuramento: 100
religïon che con diversi riti
le virtú patrie e la pietà congiunta
tradussero per lungo ordine d’anni.
Non sempre i sassi sepolcrali a’ templi
fean pavimento; né agl’incensi avvolto 105

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 365


de’ cadaveri il lezzo i supplicanti
contaminò; né le città fur meste
d’effigïati scheletri: le madri
balzan ne’ sonni esterrefatte, e tendono
nude le braccia su l’amato capo 110
del lor caro lattante onde nol desti
il gemer lungo di persona morta
chiedente la venal prece agli eredi
dal santuario. Ma cipressi e cedri
di puri effluvi i zefiri impregnando 115
perenne verde protendean su l’urne
per memoria perenne, e prezïosi
vasi accogliean le lagrime votive.
Rapían gli amici una favilla al Sole
a illuminar la sotterranea notte, 120
perché gli occhi dell’uom cercan morendo
il Sole; e tutti l’ultimo sospiro
mandano i petti alla fuggente luce.
Le fontane versando acque lustrali
amaranti educavano e viole 125
su la funebre zolla; e chi sedea
a libar latte o a raccontar sue pene
ai cari estinti, una fragranza intorno
sentía qual d’aura de’ beati Elisi.
Pietosa insania che fa cari gli orti 130
de’ suburbani avelli alle britanne
vergini, dove le conduce amore
della perduta madre, ove clementi
pregaro i Geni del ritorno al prode
cne tronca fe’ la trïonfata nave 135
del maggior pino, e si scavò la bara.
Ma ove dorme il furor d’inclite gesta
e sien ministri al vivere civile
l’opulenza e il tremore, inutil pompa
e inaugurate immagini dell’Orco 140
sorgon cippi e marmorei monumenti.
Già il dotto e il ricco ed il patrizio vulgo,
decoro e mente al bello italo regno,
nelle adulate reggie ha sepoltura
già vivo, e i stemmi unica laude. A noi 145

366 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


morte apparecchi riposato albergo,
ove una volta la fortuna cessi
dalle vendette, e l’amistà raccolga
non di tesori eredità, ma caldi
sensi e di liberal carme l’esempio. 150

A egregie cose il forte animo accendono


l’urne de’ forti, o Pindemonte; e bella
e santa fanno al peregrin la terra
che le ricetta. Io quando il monumento
vidi ove posa il corpo di quel grande 155
che temprando lo scettro a’ regnatori
gli allòr ne sfronda, ed alle genti svela
di che lagrime grondi e di che sangue;
e l’arca di colui che nuovo Olimpo
alzò in Roma a’ Celesti; e di chi vide 160
sotto l’etereo padiglion rotarsi
piú mondi, e il Sole irradïarli immoto,
onde all’Anglo che tanta ala vi stese
sgombrò primo le vie del firmamento:
– Te beata, gridai, per le felici 165
aure pregne di vita, e pe’ lavacri
che da’ suoi gioghi a te versa Apennino!
Lieta dell’aer tuo veste la Luna
di luce limpidissima i tuoi colli
per vendemmia festanti, e le convalli 170
popolate di case e d’oliveti
mille di fiori al ciel mandano incensi:
e tu prima, Firenze, udivi il carme
che allegrò l’ira al Ghibellin fuggiasco,
e tu i cari parenti e l’idïoma 175
désti a quel dolce di Calliope labbro
che Amore in Grecia nudo e nudo in Roma
d’un velo candidissimo adornando,
rendea nel grembo a Venere Celeste;
ma piú beata che in un tempio accolte 180
serbi l’itale glorie, uniche forse
da che le mal vietate Alpi e l’alterna
onnipotenza delle umane sorti
armi e sostanze t’ invadeano ed are

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 367


e patria e, tranne la memoria, tutto. 185
Che ove speme di gloria agli animosi
intelletti rifulga ed all’Italia,
quindi trarrem gli auspici. E a questi marmi
venne spesso Vittorio ad ispirarsi.
Irato a’ patrii Numi, errava muto 190
ove Arno è piú deserto, i campi e il cielo
desïoso mirando; e poi che nullo
vivente aspetto gli molcea la cura,
qui posava l’austero; e avea sul volto
il pallor della morte e la speranza. 195
Con questi grandi abita eterno: e l’ossa
fremono amor di patria. Ah sí! da quella
religïosa pace un Nume parla:
e nutria contro a’ Persi in Maratona
ove Atene sacrò tombe a’ suoi prodi, 200
la virtú greca e l’ira. Il navigante
che veleggiò quel mar sotto l’Eubea,
vedea per l’ampia oscurità scintille
balenar d’elmi e di cozzanti brandi,
fumar le pire igneo vapor, corrusche 205
d’armi ferree vedea larve guerriere
cercar la pugna; e all’orror de’ notturni
silenzi si spandea lungo ne’ campi
di falangi un tumulto e un suon di tube
e un incalzar di cavalli accorrenti 210
scalpitanti su gli elmi a’ moribondi,
e pianto, ed inni, e delle Parche il canto.

Felice te che il regno ampio de’ venti,


Ippolito, a’ tuoi verdi anni correvi!
E se il piloto ti drizzò l’antenna 215
oltre l’isole egèe, d’antichi fatti
certo udisti suonar dell’Ellesponto
i liti, e la marea mugghiar portando
alle prode retèe l’armi d’Achille
sovra l’ossa d’Ajace: a’ generosi 220
giusta di glorie dispensiera è morte;
né senno astuto né favor di regi
all’Itaco le spoglie ardue serbava,

368 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


ché alla poppa raminga le ritolse
l’onda incitata dagl’inferni Dei. 225
E me che i tempi e il desio d’onore
fan per diversa gente ir fuggitivo,
me ad evocar gli eroi chiamin le Muse
del mortale pensiero animatrici.
Siedon custodi de’ sepolcri, e quando 230
il tempo con sue fredde ale vi spazza
fin le rovine, le Pimplèe fan lieti
di lor canto i deserti, e l’armonia
vince di mille secoli il silenzio.
Ed oggi nella Troade inseminata 235
eterno splende a’ peregrini un loco,
eterno per la Ninfa a cui fu sposo
Giove, ed a Giove diè Dàrdano figlio,
onde fur Troia e Assàraco e i cinquanta
talami e il regno della giulia gente. 240
Però che quando Elettra udí la Parca
che lei dalle vitali aure del giorno
chiamava a’ cori dell’Eliso, a Giove
mandò il voto supremo: – E se, diceva,
a te fur care le mie chiome e il viso 245
e le dolci vigilie, e non mi assente
premio miglior la volontà de’ fati,
la morta amica almen guarda dal cielo
onde d’Elettra tua resti la fama. –
Cosí orando moriva. E ne gêmea 250
l’Olimpio: e l’immortal capo accennando
piovea dai crini ambrosia su la Ninfa,
e fe’ sacro quel corpo e la sua tomba.
Ivi posò Erittonio, e dorme il giusto
cenere d’Ilo; ivi l’iliache donne 255
sciogliean le chiome, indarno ahi! deprecando
da’ lor mariti l’imminente fato;
ivi Cassandra, allor che il Nume in petto
le fea parlar di Troia il dí mortale,
venne; e all’ombre cantò carme amoroso, 260
e guidava i nepoti, e l’amoroso
apprendeva lamento a’ giovinetti.
E dicea sospirando: – Oh se mai d’Argo,

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 369


ove al Tidíde e di Läerte al figlio
pascerete i cavalli, a voi permetta 265
ritorno il cielo, invan la patria vostra
cercherete! Le mura, opra di Febo,
sotto le lor reliquie fumeranno.
Ma i Penati di Troia avranno stanza
in queste tombe; ché de’ Numi è dono 270
servar nelle miserie altero nome.
E voi, palme e cipressi che le nuore
piantan di Priamo, e crescerete ahi presto
di vedovili lagrime innaffiati,
proteggete i miei padri: e chi la scure 275
asterrà pio dalle devote frondi
men si dorrà di consanguinei lutti,
e santamente toccherà l’altare.
Proteggete i miei padri. Un dí vedrete
mendico un cieco errar sotto le vostre 280
antichissime ombre, e brancolando
penetrar negli avelli, e abbracciar l’urne,
e interrogarle. Gemeranno gli antri
secreti, e tutta narrerà la tomba
Ilio raso due volte e due risorto 285
splendidamente su le mute vie
per far piú bello l’ultimo trofeo
ai fatati Pelídi. Il sacro vate,
placando quelle afflitte alme col canto,
i prenci argivi eternerà per quante 290
abbraccia terre il gran padre Oceano.
E tu onore di pianti, Ettore, avrai,
ove fia santo e lagrimato il sangue
per la patria versato, e finché il Sole
risplenderà su le sciagure umane. 295

370 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Os Sepulcros
Ugo Foscolo
tradução e notas de Gleiton Lentz

A Ippolito Pindemonte

Deorum manium iura sancta sunto.1


(XII Tab.)

À sombra dos ciprestes, numa urna


banhada pelo pranto, é talvez menos
duro o sono da morte? Quando eu não
mais contemplar a luz do sol e vê-la
cobrir a terra de animais e plantas, 5
e as horas futuras não mais passarem
diante de mim cheias de ilusões,
e não mais ouvir, caro amigo,2 a triste
harmonia que o teu verso desvela,
e não mais sentir em meu coração 10
a poesia do amor e das sacras Musas,
que confortam a minha vida errante,
qual paz terei eu senão uma lousa
que distingua meus ossos entre outros
que na terra e no mar semeia a morte? 15
É certo, Pindemonte! Até a Esperança,
última Deusa,3 foge dos sepulcros:

1
“Que os direitos dos deuses manes sejam sagrados”, expressão latina de Cícero
(106-43 a.C.), encontrada em De Legibus, obra composta provavelmente em 52
a.C. A citação, colocada como epígrafe d’Os Sepulcros, é a interpretação de uma
das leis romanas das Doze Tábuas, a XII Tábua, que, segundo a historiografia,
tratava de temas Complementares da antiga legislação romana, entre os quais,
provavelmente, os sepulcros.
2
Ippolito Pindemonte (1753-1828), escritor italiano, célebre pela tradução da
Odisseia, a quem Foscolo dedica os Sepulcros. Um ano após a publicação do po-
ema de Foscolo, Pindemonte publicou um homônimo poema, intitulado I Se-
polcri, onde o tema cemiterial é tratado sobre um plano particularmente afetivo,
enquanto que em Foscolo o poema adquire um caráter civil.
3
A Esperança, deusa romana, foi a última divindade a permanecer na terra quan-
do todos os deuses a abandonaram para subir ao Olimpo.

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 371


e o Olvido envolve tudo na sua noite;
e alguma força operosa atormenta
a natureza sem cessar. E o tempo 20
transforma o homem, suas tumbas, seus vultos
e vestígios, quer na terra ou no céu.

Mas por que, antes do tempo, o mortal


negará, a si mesmo, a ilusão que morto
ainda o mantém no limiar de Dite?4 25
Se viver no subsolo, mesmo quando
a harmonia da vida lhe for muda,
poderá avivá-la, com nobres zelos,
na memória dos seus? Celeste é esta
correspondência de doces sentidos, 30
dom divino há nos humanos; e muitas
vezes vivemos com o amigo morto
e o morto com nós, se a piedosa terra
que acolheu o infante e o alimentou,
dando o último refúgio em seu ventre 35
materno, suas relíquias invioláveis
torna dos nimbos e dos pés profanos
do vulgo, e se alguma lousa conserva
o nome, junto a um maço de flores,
as cinzas consola com suaves sombras. 40

Somente quem não legou bons afetos


olhará as urnas com tristeza; e após
as exéquias verá errar seu espírito
no lamento dos templos aquerônticos5
ou refugiar-se sob as grandes asas 45
do perdão de Deus: mas deixa suas cinzas
às urtigas de uma terra deserta
onde nem rogará mulher cativa,
e nem peregrino ouvirá os suspiros
que a Natureza nos manda dos túmulos. 50
4
Referência a Dite ou Plutão, o deus dos infernos, do submundo e da mor-
te, na mitologia romana. Na Divina Comédia de Dante, Dite é a cidade infer-
nal onde se situa o sexto círculo e também pode ser entendida como a personi-
ficação de Lúcifer.
5
Referência a Aqueronte, um dos rios do Inferno, através do qual o barqueiro
Caronte conduzia os mortos.

372 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Hoje uma nova lei6 impõe os sepulcros
fora da cidade, e o nome aos mortos
nega. E sem túmulo algum jaz o teu
poeta, ó Talia,7 que, inspirando-se em ti,
em sua pobre casa escreveu uma obra 55
com longo amor, e pôs-te uma guirlanda;
e inspiravas com teu sorriso os cantos
que pungiam o lombardo Sardanapalo,8
a quem somente o mugido dos bois
dos antros do Adda e do Ticino é suave 60
e que o fazem beato do ócio e iguarias.
Ó bela Musa, onde estás? Não sinto
a Ambrósia exalar, sinal de teu nume,
entre essas plantas onde eu suspiro
pela minha terra natal. E aqui vinhas 65
e rias ao poeta9 naquela tília
que agora com folhas caídas freme
porque não cobre, ó Deusa, a urna do velho
ao qual já oferecia calma e sombra.
Buscas talvez em cemitérios plebeus 70
onde repousa os restos sagrados
de Parini? A cidade,10 engendradora
de evirados cantantes, não deixou
para ele entre seus muros nem sombra,
nem lápide ou epígrafe; e o ladrão 75
que decapitado pagou seus crimes
talvez lhe cobre de sangue os restos.
Entre arbustos e ruínas roer ouves
a cadela perdida enquanto vaga
em meio às fossas e uiva famélica; 80

6
Um decreto napoleônico de Saint-Cloud, que entrara em vigor na Itália em
5 de setembro de 1806, obrigava, por razões de saúde pública, que os sepulcros
fossem construídos fora das cidades e proibia, por razões de igualdade, que ne-
les fossem colocados epígrafes com o nome dos mortos, além da exigência de lá-
pides iguais para todos.
7
Talia, musa da comédia e da poesia satírica.
8
Referência a Sardanapalo ou Assurbanipal (690-621 a.C.), último rei da Assíria.
9
O poeta é o italiano Giuseppe Parini (1729-1799), citado mais adiante, no
verso 72.
10
Milão, a cidade em que viveu Parini.

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 373


e vê a poupa,11 quando fugia da lua,
sair de um crânio e voar sobre as cruzes
dispersas em torno ao lúgubre campo,
lamentando-se com sinistro canto
do fulgor que os luzeiros vertem sobre 85
os sepulcros esquecidos. Em vão
sobre o teu poeta, ó Deusa, rogas chuva
à árida noite. Ai! por sobre os mortos
não cresce uma flor, se não for mantida
por rezas e por prantos amorosos. 90

Desde que os tribunais, o matrimônio


e os altares deixaram o homem bestial
ser piedoso, consigo e com os outros,
os vivos tomaram do ar e das feras
os míseros restos que a Natureza 95
transforma eternamente em outras formas.12
Monumentos de glória eram as tumbas,
e aras aos filhos. Dali pressagiavam
os Lares,13 e o juramento nas cinzas
dos ancestrais foi honr
do sagrado. 100
Religião que, com inúmeros ritos,
a virtude pátria e a piedade unia,
sendo por longos anos conservada.
Nem sempre cobriram o pavimento
dos templos as lápides sepulcrais, 105
nem o odor dos cadáveres mesclado
ao fumo do incenso, se respirou.
Nem as cidades choraram efígies
de esqueletos, nem as mães despertavam
do sono trementes, tendendo os braços 110

11
Ave migratória, encontrada na Europa, caracterizada por Foscolo como um
pássaro noturno, pelo canto lúgubre que emite, quando, na realidade, trata-se
de um pássaro diurno.
12
Entre os versos 90-96, Foscolo retoma o pensamento do filósofo napolitano
Giambattista Vico (1668-1744) ao afirmar que o culto dos mortos iniciara com
o surgimento da própria civilização, aqui exemplificada pela instituição do casa-
mento, pela formulação das leis e pelo surgimento da religião.
13
Lares, divindades protetoras das casas. Entre os antigos romanos, representa-
vam também os antepassados que cada família venerava.

374 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


à cabeça do infante que em seus seios
jazem, até que o lamento das almas
mortas não despertasse a oração
do santuário. Mas cedros e ciprestes,
impregnando os ventos de puro eflúvio, 115
sobre as lápides espalhavam folhas
em memória eterna, e em preciosos vasos
continham as lágrimas derramadas.
Para alumbrar a subterrânea noite,
os amigos pegavam uma chispa 120
do Sol, pois os olhos dos moribundos
buscam a sua luz; e os peitos um último
suspiro exalam ao fugente Sol.
As fontes, vertendo águas lustrais,
regavam amarantos e violetas 125
na funérea terra; e quem se sentava
para libar leite ou narrar suas penas
aos caros finados, sentia ao redor
fragrância igual às auras dos Elíseos.
Piedosa insânia esta que faz as jovens 130
inglesas estimar os suburbanos
jazigos, para onde as conduz o amor
perdido da mãe, e onde os Gênios14 clementes
pregaram pelo retorno do herói15
que após conquistar o navio cortou 135
o mastro, e dali fez o seu caixão.
E se o anseio de ínclita gesta dorme
enquanto a riqueza e o medo governam
o viver social, surgem monumentos
marmóreos por inútil pompa além 140
de execrandos cenotáfios do Orco.16
Já o douto, o rico e o patrício vulgar,
decoro e orgulho do reino italiano,
possuem, ainda em vida, em seus palácios,
14
Deuses tutelares da pátria.
15
Referência ao comandante Horatio Nelson (1758-1805), oficial inglês da Ma-
rinha Real Britânica, que em 1805, na Batalha de Trafalgar, derrubou a mastro
principal de um dos navios da frota franco-espanhola.
16
Na mitologia greco-romana, Orco significa ora o deus dos infernos ora uma
personificação da morte. Na poesia italiana, sobretudo em Foscolo, símbolo da
morte e do além-túmulo.

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 375


sepulturas, e brasões como lauda. 145
Que a morte nos prepare um bom refúgio
quando, de uma vez, a sorte cessar
de nos perseguir, e a amizade obter
como herança não tesouros, mas nobres
paixões e o exemplo de uma poesia livre. 150

As urnas dos grandes, ó Pindemonte,


instigam o ânimo a nobres empresas;
fazem a terra que as acolhe santa
ao peregrino. Eu, quando vi o jazigo
onde repousa
o corpo daquele homem17 155
que, ao reforçar o cetro dos príncipes,
logo o despojou, revelando ao povo
com que lágrimas e sangue está cheio;
e a tumba daquele18 que um novo Olimpo
ergueu em Roma aos Deuses; e o sepulcro 160
daquele19 que viu os mundos girarem
no etéreo pavilhão e o sol imóvel,
e que ao imortal inglês20 revelou
as vias do antes ignoto firmamento:
– Ditosa te chamei, beata cidade21 165
de auras vitais, banhada por torrentes
que o Apenino lança desde seus cumes!
A Lua, feliz pela atmosfera, alumbra
com uma luz mui clara tuas colinas,
para a colheita festiva, e os convales 170
povoados de casas e de oliveiras
mandam milhares de aromas ao céu.
E tu, Florença, que ouviste primeiro

17
Referência a Niccolò Machiavelli (1469-1527), historiador e poeta italiano,
autor de O príncipe.
18
A tumba de Michelangelo Buonarroti (1475-1564), pintor, escultor e arquiteto
renascentista italiano que projetou a cúpula da Basílica de São Pedro.
19
A tumba de Galileu Galilei (1564-1642), físico, astrônomo e filósofo italiano,
que afirmou e demonstrou, cientificamente, que o sol era o centro do sistema so-
lar e que os planetas giravam ao seu redor.
20
Ao físico inglês Isaac Newton (1643-1727), que a partir das descobertas de Ga-
lileu sondou os mistérios do universo para lhe formular leis.
21
Florença.

376 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


o canto do exilado gibelino,22
e que nos deste os caros pais e à língua 175
aquele doce lábio de Calíope,23
o qual, adornando com um véu cândido
o amor, nu pela Roma e pela Grécia,
voltou ao ventre de Vênus Celeste;
e mais feliz, pois num templo conservas 180
as glórias da Itália, talvez as únicas,
depois que a queda dos Alpes e a instável
onipotência do destino humano
te arrebataram as armas, riquezas,
altares e a pátria; salvo a memória.24 185
Que a esperança de glória renasça
nos nobres corações e que anunciemos
um novo presságio. Por estas tumbas
Alfieri25 soía vir a se inspirar.
Com os pátrios Numes irado, errava 190
mudo onde o Arno é mais deserto, e os campos
e o céu olhava insatisfeito; e como
ninguém lhe abrandava o pensar, o Austero
por aqui ficava; e tinha na fronte
o palor da morte e a cor da esperança. 195
Com os grandes repousa eternamente:
e seus ossos tremem à voz da pátria.
Ah, sim! da paz das tumbas fala um Nume:
o que nutriu a ira e o valor dos gregos
contra os persas em Maratona quando 200
Atenas consagrou aos seus heróis
troféus. O navegante que sulcou
o mar rumo à Eubeia, viu na escuridão
cintilar elmos e espadas e piras

22
Referência ao poeta Dante Alighieri (1265-1321), que embora pertencesse ao
partido político dos “Guelfos Brancos”, ideologicamente se aproximava dos Gi-
belinos, outra facção de florentinos da época.
23
Referência ao poeta e humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1474). Ca-
líope, musa grega da poesia heroica.
24
Referência à destruição e devastação causada por contínuas invasões estrangei-
ras na Itália, desde a queda de Carlo VIII (1470-1498), ocorrida em 1495, até a
invasão francesa, em 1796.
25
Vittorio Alfieri (1749-1803), escritor italiano, a quem fora construído, após sua
morte em Florença, um grandioso sepulcro na Igreja de Santa Croce.

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 377


fumegar ígneo vapor, e fantasmas 205
de guerreiros cheios de armas férreas
cercar a guerra; e no horror do silêncio
noturno ouviu ecoar pelos campos
um tumulto de falanges e trompas,
e um relincho de cavalos volantes 210
pisoteando os elmos dos moribundos
e o pranto, os hinos e o canto das Parcas.26

Feliz de ti, Ippolito, que ao império


dos ventos partiste em teus tenros anos!
E se o timoneiro te levou além 215
das ilhas egeias, de antigos feitos
por certo ouviste falar no Helesponto,
e ondas rugirem como as que trouxeram
as armas de Aquiles ao promontório
Reteu até a tumba de Ájax:27 só a morte 220
dispensa com justiça eterna glória;
nem a astúcia, nem o favor de reis
conservou os árduos despojos do Ítaco,
porque foram arrastados pela onda
incitada por deuses infernais. 225

Eu, que os tempos e o desejo de glória


fazem andar fugitivo a evocar
os heróis, sou chamado pela musas,
animadoras do mortal pensar.
Elas velam os sepulcros, e quando 230
o tempo com suas frias asas ousa
tocá-los, as Pimpleias28 com seu canto
tornam alegre o deserto, e a harmonia
vence o silêncio de incontáveis séculos.
E hoje um lugar na Troas desolada 235
resplende eternamente aos peregrinos,

26
Parcas, divindades que na mitologia clássica romana determinavam o curso
da vida humana.
27
Aquiles e Ájax, heróis da guerra de Troia.
28
As musas são chamadas de “pimpleias” devido ao monte Pimpleia, a elas consa-
grado, localizado na Piéria, região da Tessália, nas encostas do monte Olimpo.

378 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


eterno pela Ninfa29 que de Júpiter30
foi esposa e que deu a vida a Dárdano,31
que ergueu Troia, de onde provêm Assáraco,32
os tálamos e o reino dos Romanos. 240
Quando Electra ouviu o decreto da Parca,33
que da aura vital aos coros Elíseos
a conduzia, a Júpiter dirigiu
uma última súplica: – E se nunca
minha beleza ou as doces vigílias 245
te estimaram, e a vontade do Fado
não me oferta prêmio melhor, ao menos
desde os céus protejas a minha morte
até que de tua Electra reste a fama. –
Pregando assim morria. E fez tremer 250
o Olimpo: e o imortal brandindo fez cair
dos cabelos ambrósia sobre a Ninfa,
e tornou sagrado seu corpo e tumba.
Ali jaz Erictônio, e repousa o corpo
do justo Ilo;34 ali as troianas faziam 255
sacrifícios, querendo em vão deter,
ai!, o fado iminente dos maridos;
ali veio Cassandra,35 quando o Nume
fê-la vaticinar a destruição
de Troia, e às sombras cantar um belo hino; 260
e guiando os sobrinhos, lhes ensinava
o canto fúnebre da pátria, enquanto
suspirando, exclamava: – Oh, se o céu
não vos conceder o retorno de Argos,
onde dareis de pastar aos cavalos 265
de Tideu e Laertes,36 em vão vossa pátria

29
Electra.
30
Na mitologia romana, Júpiter, o senhor dos Deuses.
31
Dárdano, filha de Zeus e de Electra, que, de acordo com a mitologia clássica,
construiu a cidade de Troia.
32
Assáraco, rei troiano, descendente de Enéas.
33
Átropos, uma das três Parcas.
34
Erictônio e Ilo, heróis míticos troianos.
35
Cassandra, filha de Príamo, que possuía o dom da profecia e que vaticinou a
destruição de Troia.
36
Tideu, herói da Etólia, antiga província da Grécia, e Laertes, pai de Ulisses.

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 379


buscareis! Os muros, obra de Febo,37
arderão abaixo de suas relíquias.
Mas os penates38 de Troia terão
lugar nessas tumbas; pois nas desditas 270
os Numes conservam todo o recordo.
Oh, palmeiras e ciprestes, que as noras
de Príamo plantaram, e que, ai!, logo
crescereis com o pranto das viúvas,
protegei meus antepassados, pois 275
quem afastar a secure39 das sacras
folhas, não terá luto entre os parentes,
e tocará com reverência o altar.
Protegei meus antepassados. Um
dia vereis um pobre cego errante40 280
vagar entre vossas antigas sombras,
penetrar nas urnas e interrogar
os sepulcros. Os antros gemerão
e cada tumba narrará o destino
de Ilión, duas vezes ao pó reduzida 285
e duas reerguida com glória nova
para adornar o último troféu
do Pelides fatal.41 O sacro vate,
aplacando as sombras com o seu canto,
eternizará os príncipes argivos 290
pelas terras todas que o Oceano abraça.
E tu, Héctor,42 terás honras de pranto,
onde santo e sofrido será o sangue
pela pátria vertido, até que o Sol
resplenderá sobre a miséria humana. 295

37
Febo, deus do Sol, na mitologia latina.
38
Deuses do lar, os antepassados da cidade de Troia.
39
Secure, espécie de machado rodeado de fasces que na antiga Roma os guar-
das, chamados de litores, carregavam adiante dos magistrados, como símbolo
de poder.
40
Referência ao poeta Homero que, segundo a tradição literária, era cego.
41
Para os gregos, “Pelides” são propriamente Aquiles e seu filho Pirro, também cha-
mado de Neoptôlemo, descendentes de Peleu, que aqui representa todos os gregos.
42
Héctor, o mais valoroso herói troiano, morto em duelo por Aquiles.

380 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Gleiton Lentz
Mestre em Estudos da Tradução e doutorando em Teoria da Lite-
ratura, pela UFSC. Tradutor de Dino Campana (Cantos Órficos,
2004), Delmira Agustini (Líricas, 2005), entre outros, dedica-se ao
estudo e tradução da poesia simbolista italiana e hispano-americana
e integra a comissão editorial da revista Scientia Traductionis.

Resumo
Palavras-chave: poesia ita-
Apresenta-se a tradução integral do poema Os Sepulcros, do escri- liana; tradução literária; Ugo
Foscolo.
tor e poeta italiano Ugo Foscolo (1778-1827), precedida de uma
breve contextualização histórica.

Abstract Riassunto
Key words: Italian symbolist
We present a full translation of Si presenta la traduzione inte- poetry; literary translation;
Ugo Foscolo.
the poem “Os Sepulcros” by grale del poema Os Sepulcros,
Parole chiave: poesia ita-
the Italian poet and writer Ugo dello scrittore e poeta italia- liana; traduzione letteraria;
Foscolo (1778-1827), preced- no Ugo Foscolo (1778-1827), Ugo Foscolo.

ed by a brief historical contex- preceduta da un breve contesto


tualization. storico.

UGO FOSCOLO | Dei Sepolcri / Os Sepulcros 381


Conferência

alea
A conferência que publicamos a seguir foi proferida por Inês
Oseki-Depré, em setembro de 2009, na Casa das Rosas, em São
Paulo, durante o II Encontro de tradutores de obras francesas no Bra-
sil, organizado por docentes da USP no âmbito das atividades do
ano da França no Brasil.
Inês Oseki-Depré é tradutora e professora de Literatura Com-
parada da Universidade da Provença, no sul da França. Brasileira,
estudou na USP nos anos 1960 e fez seu doutorado na França, on-
de se estabeleceu. Tem trabalhos importantes sobre a tradução lite-
rária – em especial Traduction et Poésie (dir., Maisonneuve & Laro-
se, 1996), Théories et Pratiques de la traduction littéraire (Armand
Collin, 1999) e De Walter Benjamin à nos jours (Honoré Champion,
2006) – e longa prática como tradutora, do francês para o português
– realizou, por exemplo, a primeira tradução para o português dos
Escritos de Jacques Lacan –, e sobretudo do português para o francês
– traduziu José de Alencar, Guimarães Rosa, Ligia Fagundes Telles,
Antonio Vieira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa,
Haroldo de Campos (sua tradução de Galáxias ganhou o prêmio
Roger Caillois do melhor livro estrangeiro em 1999). Nos últimos
anos tem atuado como professora visitante em algumas universi-
dades brasileiras e é gestora, junto à Universidade da Provença, de
convênio entre o Centro de Pesquisa em Literatura Geral e Com-
parada e em Tradução Literária, dessa universidade, e o Programa
de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ.
A conferência aqui apresentada é uma reflexão sobre sua tradu-
ção do livro Quelque chose noir (Algo: preto), do poeta contemporâ-
neo francês Jacques Roubaud, que Inês publicou em 2005 pela edi-
tora Perspectiva, em coleção dirigida por Haroldo de Campos. Inês
apresenta as dificuldades de transposição de toda a memória poética
de Roubaud para a língua portuguesa, trabalho que, como conclui
o ensaio, faz surgir “em nossa língua uma poética inédita, herdeira
de formas e tradições diversas, ausentes em nossa memória”.

Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ)

385
D’une traduction amnésique (à propos de
Algo: Preto, de Jacques Roubaud)
Inês Oseki-Dépré

Dans “Quelques thèses sur la poétique”,* Jacques Roubaud *


(ROUBAUD, Jacques.
“Quelques thèses sur la poé-
affirme: “toute littérature est mémoire, et code, d’une langue, et tique”. Change, n.6. Paris:
Seuil, 1970: 12)
du langage”. C’est la thèse centrale de sa poétique.
Par ailleurs, comme l’a dit quelqu’un (peut-être Ponge?), “le
poème est étranger dans sa langue”, ce qui en constitue l’antithèse.
Il s’agit d’examiner l’œuvre roubaldienne sous cet angle et de
commenter la cohérence de sa poétique, en particulier en ce qui
concerne Quelque chose noir, paru en 1986. Est-il tributaire d’une
tradition? Est-il simplement un poème roubaldien? Qu’en est-il de
sa traduction brésilienne?
Je commencerai par une brève présentation de l’auteur, qui
sera suivie d’un résumé de sa poétique (ses œuvres) et terminerai
par l’œuvre en question et sa traduction portugaise (brésilienne).
J’essaierai ainsi d’envisager le texte original de Algo: Preto, en
français Quelque chose noir, dans son rapport à la langue, à la tra-
dition et à la rupture, et d’y apporter quelques réflexions concer-
nant ma traduction.

Introduction: Jacques Roubaud et son œuvre

Ma présentation de Jacques Roubaud sera brève. Brève pour


respecter le temps de ma conférence, mais aussi parce je tenterai
d’aller à l’essentiel, étant donné l’immensité de la personne du poè-
te et donc de son œuvre.
Considéré actuellement comme l’un des poètes les plus impor-
tants de la littérature française contemporaine, Jacques Roubaud, né
en 1932 dans le sud-ouest de la France, est à la fois poète, traduc-
teur, mathématicien, et a été jusqu’à date récente directeur d’études
à l’Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales après être passé par
l’Université de Paris X, comme professeur de mathématique.
Marqué par une éducation ouverte à la philosophie, à l’his-
toire, à la littérature, à l’entomologie... Jacques Roubaud a été pris
très tôt, selon sa fille Florence, par le “ice cube syndrom”, hérité de sa
grand-mère, qui consiste à ne pas parler de soi ni de ses sentiments.

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 387-402 387


Comme d’autres grands poètes (Borges, Pessoa, Baudelaire), il a
publié ses premiers poèmes à l’âge de 12 ans (Poésies juvéniles) mais
son premier livre important, Signe d’appartenance, date de 1967,
début d’une phase “japonaise”. Mono no aware date de 1970.
Coopté par l’Oulipo (Ouvroir de la Littérature Potentiel-
le) en 1966 sur proposition de Raymond Queneau et François Le
Lionnais, Jacques Roubaud a toujours associé une grande rigueur
formelle à un profond savoir de la littérature française et étrangè-
re, dont il fut également traducteur et dont témoigne grande part
de son œuvre. Sur le versant oulipien, on peut citer Autobiographie
chapitre X (1977), dans laquelle le poète démonte et recrée des poè-
mes de Reverdy, Cendrars, Desnos, Eluard. Ce procédé sera utili-
sé également, entre autres, dans Voyage d’Hiver, écrit après Geor-
ges Perec (1997). Co-fondateur de l’Alamo avec Paul Braffort, il a
ouvert en 1989 avec le Grand Incendie de Londres un long cycle de
prose, entreprise qui constitue son “projet, regardé et raconté par
[lui]”. Inventeur de plusieurs contraintes (dont le “baobab” et le
“haïku oulipien généralisé”), il est l’auteur du premier “voyage”,
suite du Voyage d’hiver perecquien, le Voyage d’hier, préparant la
voie au premier roman collectif de l’Oulipo.
A côté de cette formation mathématico-oulipienne, une autre
source de sa poésie provient des troubadours occitans, poètes qui
associent le thème de l’amour et de la femme à un formalisme tout
aussi important, qu’ils imbriquent à la musique et auxquels le poète
(Banana Split, no. 16, oct.-
est attaché pour des raisons territoriales. Dans un entretien,* Rou-
*

déc. 1985/janvier 1986.)


baud explique sa relation à Ezra Pound, autre amoureux de la poésie
troubadouresque, mais dont l’un des apports principaux pour lui a
été de lui faire découvrir les poètes du groupe Noigandres... Sur les
(Les Troubadours. Paris: Se-
troubadours, ce dernier propose une précieuse anthologie bilingue,*
*

guers, 1971.)
*
(Graal théâtre avec Floren-
en plus du le cycle du Graal,* dans lequel les aventures des héros sont
ce Delay. Paris: Gallimard, racontées selon plusieurs schémas narratifs est construit sur des tex-
1977; Graal fiction. Paris,
Gallimard, 1978.) tes de Gauvain Lancelot, Perceval, Guenièvre, et une étude.*
*
(La Fleur Inverse, étude sur Des essais sur le vers, sur l’alexandrin (La Vieillesse d’Alexan-
l’art formel des troubadours.
Paris: Ramsay, 1986.) dre, 1978), sur le sonnet en particulier (Soleil du soleil, 1990), sur
la mémoire (L’Invention du fils de Léoprépès, 1993), sur la poésie en
général (Poésie, etcétéra: ménage, 1995, La ballade et le chant royal,
1998), parsèment cette œuvre riche et volumineuse dont je ne don-
ne que quelques exemples.
En tant que poète, son œuvre contient des textes poétiques en
vers ou en prose narrative. Des premiers sont connus Mono no awa-

388 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


re (1970), Trente et un au cube (1973), Quelque chose noir (1986),
La Forme d’une ville change plus vite, hélas, que le cœur des humains
(1991-1999), une anthologie Churchill 40 et autres sonnets de voya-
ge (2004), 128 poèmes (2006). La plupart de ses poèmes en vers ou
en prose et de ses récits sont constitués de textes dont beaucoup à
contraintes formelles, comme la trilogie des Hortense (La Belle Hor-
tense, 1985, L’Enlèvement d’Hortense, 1987, L’Exil d’Hortense, 1990),
ou Le Grand Incendie de Londres (1989), La boucle (1993), plus ré-
cemment La Bibliothèque de Warburg (2002), Parc Sauvage (2008) et
Impératif catégorique (2008). C’est dire que le poète assure une pro-
duction continue et variée. Au Brésil, pourtant, il est peu traduit.
On ne pourrait finir cette énumération partielle sans évoquer
ses travaux de traduction, qui s’insèrent à l’intérieur de sa produc-
tion in progress suivant la même trajectoire, le même projet. Comme
traducteur, en effet, son premier travail a été fait en collaboration
avec d’autres poètes. Renga (1971) a été traduit/ recréé du japonais
en collaboration avec Octavio Paz, Edoardo Sanguinetti, Charles
Tomlinson, le renga étant une forme poétique collective (apparue
durant la période Heian 794-1192), dotée comme le dit Claude
Roy “d’une extrême et complexe rigueur”. Claude Roy ajoute des
remarques sur ce travail mû par “le goût commun des formes com-
posées, des règles du jeu combinatoires” qui laissent néanmoins à
chacun “ce jeu qui signifie à la fois la liberté, l’aisance de mouve-
(ROY, Claude. Préface. In:
ment et la rigueur des règles”,* bref, comme le dira Jacques Rou-
*

Renga. Paris: Gallimard,


baud, “le sentiment de l’unité changeante”. Roubaud lui-même l’ex- 1971: 9-18.)

plique, dans sa description de cette tentative, et nous verrons que


c’est fondamental pour la compréhension de son œuvre:
La liaison des chainons, des strophes, en un tout qui est le renga,
poème de poèmes, est soumise à des règles destinées à assurer que
le double mouvement simultané de continuité et de rupture est
*
(Ibidem: 33.)
conforme à l’esthétique de la forme.*

Le masterpiece à huit mains a été suivi plus loin d’une traduc-


tion à plusieurs mains avec Michel Deguy, entre autres, autre grand
nom de la poésie française. Ainsi, en 1981, apparaît Vingt poètes
américains, en édition bilingue dirigée par les deux poètes. Dans
cette année aussi, est publiée sa fameuse traduction du Snark, de
Lewis Carroll, autre mathématicien, en sizains.
En 1988, avec Florence Delay, il publie Partition rouge (tra-
duction de poèmes des indiens d’Amérique). En 2000, il participe
à une traduction collective de la Bible, connue comme la “Bible

INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 389
Bayard”, d’où se détache particulièrement une traduction du Qo-
hélet, traduit aussi en portugais par Haroldo de Campos.
La traduction apparaît ici comme un exercice poétique, inté-
grant une pratique également créatrice (“transcréation” dirait Ha-
roldo), dans laquelle on retrouve les mêmes principes ou program-
me: tradition et rupture, rigueur formelle, dialogue entre ancien
et moderne (le “makeitnewisme”, comme il le dit). Traduction et
écriture se complètent, faisant partie d’une même attitude com-
mune, où l’histoire joue un grand rôle, l’histoire comme fond sur
lequel s’enchaînent évènements et textes.

Une poétique originale

L’histoire, le politique, le lien social n’ont, en effet, jamais été


absents du projet roubaldien. Dès les années 1968, avec d’autres
poètes, Jacques Roubaud fait partie du collectif Change, revue ca-
ractérisée par un esprit avant-gardiste (le comité est constitué de
Jean-Pierre Faye, Jean-Claude Montel, Jean Paris, Léon Robel et
Jacques Roubaud).
En 1970, initiateur du volume La poétique, la mémoire, il
propose ses thèses sur la poétique qui inscrivent la poésie dans le
fonds commun, la langue. Reprenant sa réflexion à un travail pré-
senté au cercle Polivanov, dont il est l’un des fondateurs (Cercle de
poétique comparée) en mai-juin 1969, s’appuyant sur les derniers
travaux de Chomsky, du Barthes du Degré Zéro, de John Thomp-
son, de Meschonnic (avec qui il sera brouillé plus tard), Roubaud
propose comme hypothèse le rapport intrinsèque entre le discours
de l’écrivain et la littérature (Barthes), le discours de l’écrivain et le
langage (Thompson). Bref, la littérature parle du langage tout en
parlant d’autre chose, mais la littérature parle “de ce que le langa-
ge dit d’autre chose, du ce que et du comment.”
C’est ainsi qu’il en vient à dire que la littérature est mémoi-
re, et code, non seulement d’une langue particulière, mais aussi du
(Roubaud, Jacques.
langage, de son fonctionnement, de ses lois.* Par mémoire, faute de
*

“Quelques thèses sur la poé-


tique”. op. cit.: 12.) mieux, il désigne “tout ce qui est préservation, détermination sé-
mantique” (le “ce que”); par code, “ce qui est préservation, déter-
mination des lois formelles, à différents niveaux, du langage (sons
et phrases, rythme, discours, etc., le “comment”)”.
La littérature “parle de cette langue dans cette langue”, en
fixant son originalité, ses traits particuliers, ses sons, sa syntaxe; tou-

390 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


tefois elle “tendra toujours à rendre compte de ce qui, dans l’objet
langue, a changé, parce que du nouveau tend à apparaître”.* *
(Ibidem: 13.)

Bref, le rapport entre littérature et langage est un rapport néces-


saire, l’un n’existe pas sans l’autre, le langage vit de la mémoire de la
littérature. Les modifications, les innovations littéraires permettent
la survie du langage tout en le préparant à de nouvelles lois, tout en
ouvrant le chemin à de nouvelles découvertes conceptuelles.
On voit ici la théorisation de sa pratique, qui le rapproche
des grands poètes: le regard vers la tradition, vers le fonds littéraire
dans sa langue et dans d’autres langues, par rapport auquel la poé-
sie opérera des ruptures, dans laquelle la poésie introduira des for-
mes nouvelles, modifiant la langue et ouvrant de nouveaux terri-
toires de la pensée. Ce qui s’observe aisément dans son travail de
poète et de traducteur.
D’abord les formes japonaises, le renga en particulier, régi par
les shikimokué: prescriptions formelles relatives au vocabulaire, aux
formes grammaticales accompagnées de prescriptions thématiques
(choses ou concepts dont il est donné une liste). Sa règle la plus
importante est donnée par le sarikiren, continuité et rupture: thè-
me saisonnier (trois ou cinq strophes s’il s’agit du printemps ou de
l’automne, trois s’il s’agit de l’été ou de l’hiver).
Les troubadours ensuite, ancêtres en quelque sorte de ce poè-
te occitan, et on verra que cette source n’est pas étrangère à notre
poème. On peut lire dans l’introduction à son anthologie:
L’amour (“premier principe” qui gouverne le monde) inspire le chant,
et le chant trouve son incarnation la plus élevée la plus “fine” (pure),
dans la canso, qui chante l’amour, qui est le lieu, la chambre de l’inven-
tion, poésie [...] l’art triple-un du trobar est l’unité parfaite à laquelle
aspire le troubadour, à la fois don imposé par l’amour, inspiration et
métier inexorable, exigeant, tous deux nécessaires pour fabriquer, for-
*
(Roubaud, Jacques. Les
ger, limer, l’objet sonore, poétique et musical, qui chante l’amour.* Troubadours. op. cit.: 27.)

Après la description des caractéristiques principales de cette


poétique: le lieu (Proensa), les principaux troubadours et ses dames,
les thèmes des amors, la beauté de la dona, le regard, les sentiments
(dezir, joï, sofrirs), la mezura, la merce, Jacques Roubaud définit la
canso, le poème: constitué sur la strophe, lieu où le poème s’élabore,
dont le troubadour est l’architecte. La formule de la canso est triple:
elle concerne la métrique, les rimes et la mélodie. Il fait remarquer
la grande richesse de la versification troubadouresque: entre une et
14 syllabes suivant plusieurs schémas, avec ou sans césure, avec des

INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 391
vers rimés, parfois au moyen de la rime riche ou de la rime “hirsu-
te” (voir allusion dans Quelque chose noir), celle dont la sonorité est
heurtée, explosive, sèche qui s’oppose aux grandes sonorités douces
(rimes caras). Parfois on retrouve le même mot répété à la rime.
Toute cette combinatoire produit un jeu rythmique d’une
grande complexité et d’une grande variété. Selon Istvan Frank, cité
par le poète, il existerait 900 types de rimes différents sur 2600 tex-
tes. L’organisation des poèmes est tout aussi complexe: chaque cobla
d’une canso a la même formule qui détermine pour chaque chant la
mélodie et la disposition des mètres et des rimes. On va retrouver
donc des cansos unisonans, dans lesquelles les coblas seront capfini-
das (reprise dans une strophe en dehors de la première d’un mot du
dernier vers de la précédente), capcaudadas (reprise de la dernière
rime). En somme, trobar est un métier. Traduire les troubadors un
autre, que Jacques Roubaud partage avec Augusto de Campos.
L’autre composante de la poétique roubaldienne est, on l’a dit,
la mathématique. Le goût de la rigueur, de la formule, des codes se
retrouve satisfait dans ce courant poétique, fait d’invention et de
liberté (chaque œuvre possède ses propres contraintes).

Quelque chose noir/ Algo: Preto

Qu’en est-il de Quelque chose noir? Et, par conséquent, de


Algo: Preto?
En fait, Quelque chose noir fuit en quelque sorte la règle. C’est
une œuvre d’exception, à commencer par le titre. Ecrit en 1986,
après la mort prématurée de sa femme, la photographe Alix Cleo
Roubaud, et malgré le soin prosodique et la haute teneur poéti-
que des poèmes qui le composent, le livre dépasse la question des
procédés et des règles de construction – tout en les maintenant –
pour atteindre un très haut degré de création dans le désir de dire
la mort de la personne aimée.
Dans un entretien accordé à Manuel da Costa Pinto, pour la
Folha de São Paulo du 16 avril 2005, Jacques Roubaud s’exprime:
“Les poèmes de ce livre portent les vestiges d’un effort pour
vaincre le silence imposé par la mort. La parole rythmique, inscrite
dans la poésie et dans le vers, était pour moi un signe de vie. De-
vant la mort, toutefois, j’ai été frappé par une incapacité de parler
*
(Cf. le poème “Afasia”.
Algo: Preto. Coleção Sig-
de poésie, par une aphasie.”*
nos. São Paulo: Perspectiva, En tant que traductrice et lectrice de Roubaud, je l’ai choisi
2005: 130.)
parce que justement il se présentait sous une forme assez libre de

392 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


contraintes (qui auraient nécessité une réélaboration hypertextuelle
pas toujours aisée en portugais, moins pour la continuité paradig-
matique que pour la continuité chez un seul poète, les frères Cam-
pos ou Décio Pignatari constituant une exception), donc assez tra-
duisible, et parce que j’ai été très touchée par le texte qui parle de
la mort. J’ai rencontré peu de difficultés, mais quelques-unes de
taille. Je commencerai par le titre “Quelque chose noir”, qui, com-
me j’ai déjà eu l’occasion de le dire, est pratiquement agrammatical
en français, où il aurait fallu dire “quelque chose de noir” ou “quel-
que chose noire” au féminin. Haroldo de Campos, mais avant lui
Nelson Ascher, avaient suggéré “negro” qui, comme on le sait, est
plus “littéraire”, plus “noble” en portugais. J’ai tenu tête, “noir” fait
partie de l’expression française “en noir et blanc” pour parler de la
photo (comme dans la chanson Retrato em branco e preto...). C’est
alors que Haroldo de Campos (directeur de la collection) a pro-
posé qu’on ajoute les deux points, pour qu’on maintienne l’étran-
geté, ce qui a entrainé en portugais “Algo: preto”. Ces deux points
ouvrent la signification du recueil vers quelque chose qui va arri-
ver, créent une sorte de suspense. Pour le reste, parfois j’ai accen-
tué un peu plus la signification d’un mot, “noirceur” traduit par
“preto” et non “pretura”, “encombrements”, traduit par “excessos”,
et non “entulhos”...
La mort est vacuité, solitude, perte. Dans ce poème en neuf
sections, le poète tente d’exprimer la sécheresse du vide comme à
travers des instantanés (d’où le “noir et blanc”), adoptant le ton de
l’immobilité suggestive du photographe et en dialogue avec l’œu-
vre de sa femme, Alix, photographe, pour fixer en même temps le
néant, l’irréversible, mais captant simultanément l’instant où de
deux il ne reste qu’un qui souffre.
Pour Jacques Roubaud, ce poème n’offre pas de solutions de
continuité évidente avec son œuvre, bien que bâti sur une série de
contraintes autour du chiffre neuf, qu’il associe au deuil. On se
rappellera l’importance du chiffre neuf pour Borges qui, dans la
nouvelle “La demeure d’Astérion” (“La casa de Asterion”), associe
le chiffre neuf à l’infini.
Or, cette clé, la formule “neuf ”, qui apparaît dès le départ,
dans le premier poème de la première section “Méditation du 12/
5/ 85” est restée intraduisible en portugais:
“Cette image se présente pour la millième fois à neuf ”.* Ce *
(ROUBAUD, Jacques.
Quelque chose noir. Paris,
mot polysémique en français ne l’est pas en portugais, et sa traduc- Gallimard, 1986: 11.)

INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 393
tion pose problème. On a vu qu’il indique la structure du poème,
de la “neuvine”... Ma proposition a été:
“Essa imagem se apresenta pela milésima vez novamente”, où
“novamente” ne traduit pas tout à fait le mot “neuf ”, qui signifie
“novo”, “nove” et ici peut signifier “à nouveau”, “de novo”, “no-
vamente”, et, qui plus est, rime avec “veuf ” (viúvo). L’allusion au
*
(Algo: Preto. op. cit.: 65.)
“neuf ” apparaît également dans “Vou me afastar”,* sous forme de
multiple (3 fois 3 fois 3):
São três vezes tu três dos irredutivelmente separados
deslocados reais de ti perdidos numa diáspora que une
somente esse pronome: tu

Dans tout l’ouvrage, par ailleurs, les formes et les tons va-
rient, fragments, visions, pensées et la progression suit le proces-
sus de la disparition: le corps mort, les souvenirs, la fin de la mort,
la fin (“Quand ta mort sera finie, je serai mort”, “Quando tua mor-
te acabar, estarei morto”). De la première à la deuxième partie, aux
questions lancinantes (“où es tu?”, “onde estás?”), au constat de la
vacuité excessive du quotidien (voir le poignant poème sur la pré-
paration du bol de café), d’une douleur inégalable, l’image de la
femme se dessine, est présente, nue, pour atteindre une dynamique
dans la section suivante sous forme de roman-photo où la photo
est toujours présente, comme un leitmotive, une obsession qui re-
lie les mots à l’image (en noir et blanc).
Le sofrir des Troubadours, l’évocation de Dante et Pétrarque
survolent le poème, devenu “hirsute” en partie IV, mais la logi-
que, Wittgenstein, apparaît ici dans une intertextualité pas forcée.
La mort, si présente dans le livre, sera, par ailleurs, évoquée dans
Le Grand Incendie de Londres (1985-1987), belle prose du grand
troubadour aux accents japonais. Mais peu à peu la mort traverse
le poème et les mots, et, de noire, devient opaque, devient blanche
et claire, lumière, jusqu’à la mort du poète, qui s’est vidé jusqu’à la
non-vie, Orphée revenant seul des enfers, puis “rien”, un rien qui,
à l’instar de Fernando Pessoa, est tout.
Des pièces, par conséquent, où le soin, l’attention prêtée au
dire se répètent et s’équilibrent avec l’amour, la complicité avec la
femme aimée et les instants vécus, jamais pathétiques et cependant
si précis comme une douleur aiguë, étonnants, dont la forme cise-
lée produit une grande émotion esthétique et affective: “Quelque
chose noir qui se ferme et se tait, une déposition pure, inachevée”
(“Algo preto que se fecha e se cala, uma deposição pura, inacabada”).

394 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Inachevée comme la mort, qui dure toujours. Ceci pour la mémoi-
re, pour le “ce que” dit le poème.
Mais qu’en est-il du code? que dit le poème de la langue et
de la poésie?
On peut rappeler ici que si l’attribution d’un chiffre à une
idée provient de Pythagore, la neuvine est déjà la forme utilisée
par Roubaud pour chanter Pétrarque (“Tombeau de Pétrarque”),
sorte de sextine amplifiée, utilisée par Dante, Pétrarque et Arnault
Daniel et reprise par Raymond Queneau (la sextine oulipienne, la
“quenine”). Ce qui fait que si le vers est libre, la forme n’est jamais
prosaïque. Ces indications, en plus de la “contrainte” de la neuvine,
variante de la sextine, qui comporte ici neuf parties, chacune com-
portant neuf poèmes, nous font penser que même si le poète n’en
a pas le projet, sa mémoire rappelle aussi bien l’amour, la perte de
la femme aimée, que son souvenir de la poésie. Pour Stéphane Ba-
quey, critique roubaldien, le livre est ainsi “une transposition for-
melle du sonnet de méditation compte tenu de la destruction de
la tradition et de l’apport de poètes américains comme Gertrude
Stein et David Antin”. Il ajoute: “ainsi la forme du livre n’est plus
trente un au cube, mais neuf au cube (à l’instar du Grand Incendie
de Londres, commencé en 1985)”, rappelant les sextines de Pétrar-
que. Ici, mémoire de la langue et mémoire du poète ne font qu’un:
sa mémoire de poète lui rappelle la poésie et la langue dans laquelle
*
Voir la thèse : Possibles
il écrit, la poésie dans la langue dans laquelle il écrit.* de la poésie: Michel De-
Benoït Conort, poète, autre critique, consacre tout une partie guy, Denis Roche, Jacques
Roubaud, dir. Jean-Claude
de son article “Tramer le deuil” à la question des séries et des trous Mathieu, Université Paris 8,
2006, à paraître en 2010 aux
dans l’œuvre roubaldienne. Pour lui, “il faut rappeler que le chiffre éditions Classiques Garnier.
est aussi architecture parce qu’il porte sens autre que mathématique,
parce qu’il est mot et donc code chiffré”.* Il fait remarquer que si le (CONORT, Benoït. “Tramer
*

le deuil”. La Licorne. Revue


jeu avec les chiffres fait partie du programme oulipien, chez Rou- de langue et littérature fran-
çaise. Presses universitaires
baud, dans le recueil qui nous concerne, il joue avec l’arbitraire, tout de Rennes, 2006: 2.)

en en faisant une clef, ce qui fait penser qu’il fonctionne plutôt ici
comme trompe-l’œil. Ceci entraîne comme conséquence que, pour
le critique, “la contrainte se trouve confrontée à ses propres limi-
tes”, poussant et freinant le mouvement à la fois. Pour preuve, elle
apparaît en opposition à millième (“Cette image se présente pour
la millième fois... à neuf avec la même violence...”/ “Essa imagem
se apresenta pela milésima vez... de novo com a mesma violência”),
signifiant à la fois l’arrêt de quelque chose qui se répète, une “fin
double”: la fin de la femme aimée, et la fin du silence.

INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 395
Le recueil est donc à la fois bâti sur le “neuf ” et sur la répéti-
tion. Il créé sa propre structure, n’est plus mémoire de la langue.
Répétition du chiffre-nom, répétition des titres des poèmes à
l’intérieur des neuf séries mais aussi répétition de vers, de fragments
ou de mots, répétition des blancs (la mise en page).
Ainsi, au début du recueil nous rencontrons une méditation
(“la méditation est un vice solitaire”, dit Paul Valéry), dont la signi-
fication philosophique et religieuse désigne le recueillement mais
aussi l’étude, la réflexion, qui se poursuit sur deux mois de l’année
1985. La seconde partie reprend la méditation durant le mois de
la première méditation (capfinida?). La quatrième partie revient sur
la méditation mais cette fois à travers l’intermédiaire du “portrait”
(“Portrait de méditation”, iii, iv, v), mais elle revient trois fois en V
partie, partie centrale du recueil, pour ne plus revenir.
Les titres répétés sont significatifs. On a évoqué la “médita-
tion” comme une forme de “médecine” chez les Indiens d’Amé-
rique. Stéphane Baquey fait remarquer qu’elle rejoint la pratique
poétique de Gertrude Stein (Stanza in Meditation) et de David An-
*
(Stéphane Baquey, pp.
630-631)
tin (Meditations), “sorte d’exercice logique”.*
On peut insister aussi sur la répétition du “roman-photo”,
qui attire l’attention sur le leitmotive du livre, sur la photo, sur le
noir et blanc, l’image de la photo, la photo de l’image, sur laquelle
on reviendra. Conort souligne l’importance de ce qu’il rappelle la
tentation du roman, de la prose, contre laquelle le poète travaille.
Il souligne également l’importance des répétitions accompagnées
de variations et dans ce sens, dit-il:
Le livre, cette déposition (à prendre aussi dans le sens d’un témoi-
gnage, comme on fait une déposition auprès d’un tribunal, par
exemple), s’accomplit à l’intérieur d’un mouvement contradictoire,
la boucle, qui revenant à son point de départ donne l’impression de
ne pas avancer; le dernie poème c’est encore le premier qui revient,
(CONORT, Benoït. “Tramer
et c’est toujours le même...*
*

le deuil”. op. cit.: 4.)

Comme dans C.R.A.Po.Po (en français C.R.A.Pi.Po.):


Eu olhava para ti. o escuro. o preto. o preto posto no ponto vivo.
de teu ventre.

Eu batia o pé na relva. os doze pombos se alçavam


um metro acima e depois se pousavam de novo.

Eu batia o pé na relva. os doze pombos se alçavam


um metro acima e depois se pousavam de novo.

396 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Eu batia o pé na relva. os doze pombos se alçavam
um metro acima e depois se pousavam de novo.

Eu olhava para ti. o escuro. o preto. o preto pousado espesso no


*
(ROUBAUD, Jacques. Algo:
ponto. vivo. de teu ventre.(...)* Preto. op. cit.: 49.)

De même le critique fait-il remarquer le lien entre Quelque


chose noir et le reste de l’œuvre de Jacques Roubaud. Encadré par
Dors, Les Tombeaux de Pétrarque, où le poète puisera la forme (pro-
che aussi de l’anthologie des troubadours) et par Le Grand Incendie
de Londres (roman), il appelle également La Pluralité des mondes de
Lewis (“Echanges de la lumière”), La Boucle, ce qui lui permet de
penser que notre recueil représente la pierre de touche de l’œuvre
roubaldienne, celle qui va la réorienter, dans ce grand tissage. Par
ailleurs, mis à part cet élément métalinguistique essentiel, le recueil,
d’avoir été provoqué par une situation personnelle, la mort de la
femme aimée, de l’aveu de Jacques Roubaud lui-même, est exempté
de contraintes (“restrições”) intraduisibles. Il fait un clin d’œil aux
Mondes possibles de Lewis (autre œuvre de Jacques Roubaud): “Elle
*
(“Roman II”. Quelque cho-
appelle d’un monde possible...”* Il est dialogue muet avec le Jour- se noir. op. cit.: 53.)
nal d’Alix, paroles pour des photos restées sans suite.
L’intertextualité s’étend vers l’extérieur aussi, non seulement
par rapport aux modèles classiques: Orphée et Eurydice chez Vir-
gile, puis chez Dante. Conort en voit la référence dans le poème
I, 7, “Point vacillant” (“Je ne t’ai pas sauvée de la nuit difficile”/
“Não te salvei da noite difícil”), où apparaissent la nuit, le regard en
arrière, la lune. Aussi bien dans IV, 1, le poème dit “Je vais me dé-
tourner”/ “Vou me afastar”, poème où le critique voit le lieu où la
femme apprend au poète qu’il est mortel. Il contient des allusions,
des adresses à Georges Perec, à Wittgenstein.
Et Conort conclut: “Les deux touts, arithmétique et référen-
tiel, sont tissus qui, à la manière des appareils que l’on pose sur
une blessure, aident au travail cicatriciel”.* Pour le critique, Jac- (CONORT, Benoït. “Tramer
*

le deuil”. op. cit.: 5.)


ques Roubaud interroge la mort à partir de la représentation de la
morte, en ajoutant “l’interrogation qui fut souvent formulée par la
poésie moderne et à laquelle chaque poète a apporté sa réponse”.
Ainsi, le poème de Jacques Roubaud s’il appartient au corpus de la
modernité, fonctionne comme un poème à part, qui reflète tel un
miroir, l’œuvre passée et l’œuvre à venir du poète.
On ne pourrait pas achever cette présentation sans évoquer le
dialogisme de ce recueil, écrit a priori, en réponse à un livre d’Alix
Cléo Roubaud, photographe.

INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 397
Ainsi, de son côté, le critique Jean-François Puff distingue deux
phases, deux projets à l’intérieur de l’œuvre roubaldienne. L’une qui
“se manifeste comme une mise en mémoire de la tradition poétique...
c’est-à-dire d’une poésie conçue comme entrebescar, entrelacement
des mots et des sons, réglé par des principes issus de la théorie du
rythme qu’il a développée avec Pierre Lusson, ce qui signifie la créa-
tion de formes nouvelles qui font mémoire de la forme ancienne”.*
(PUFF, Jean François.
Le paradoxe est qu’un nouvel état de poésie à la fois détruit un état
*

“L’écriture photographique
de Quelque chose noir”. La de poésie antérieur et se constitue comme sa mémoire.
Licorne. Revue de langue et
littérature française. Pres- Le projet de Roubaud commence alors après la rencontre
ses universitaires de Ren-
nes, 2007:1.) avec Alix Cléo (1979) et se trouve dans le poème “Une logique”,
III, 5 (“Une sorte de logique pour laquelle tu aurais construit un
sens moi une syntaxe, un modèle, des calculs/ Le monde d’un seul,
*
(Quelque chose noir. op.
cit.: 49)
mais qui aurait été deux; pas un solipsisme, un bipsisme...”/* “Uma
espécie de lógica para a qual terias construído um sentido eu uma sin-
taxe, um modelo, cálculos/ O mundo de um só, mas que teria sido dois:
*
(Algo: Preto. op. cit.: 53.)
não um solipsismo, um biipsismo”);* ce projet devait être mené à
deux, comme le relate Alix dans son Journal. Dans le Journal, on
trouve des séquences comme “la dernière chambre” et “si quelque
chose noir”. Alix se prend elle-même en photo et par un travail de
surimpression afin de “dégager l’âme des choses. Leur double in-
corporel”, l’objet de la photographie se donne comme mémoire,
comme “image dans la mémoire”. Or, explique le critique, la mort
d’Alix abolit le projet d’un travail à deux: ce qui était image la re-
production d’un corps sans vie. (“Il me passait devant les yeux des
séquences vitrifiées mais égales, en désaccord violent avec ton im-
*
(VII,6. Quelque chose noir.
op. cit.: 114.)
mobilité”/* “Passavam diante dos meus olhos sequências vitrificadas
*
(Algo: Preto. op. cit.: 113.)
mas iguais, em desacordo violento com tua imobilidade”.)* Dès lors,
de la femme aimée il ne subsiste plus que des photographies où elle
s’est photographiée morte, étant vivante. La troisième dimension
n’existe plus, seules restent les surfaces. (“Tu n’étais pas blanche et
noire plate l’étais-tu?/ Tu n’étais pas découpée en rectangle dans le
*
(III, 9. Quelque chose noir.
op. cit.: 57)
monde”/* “Não eras branca e preta plana. eras?/ Não eras recortada
*
(Algo: Preto. op. cit.: 61.)
em retângulo no mundo”.)*
De ce projet bipsiste, reste une douleur non solipsiste, puis-
que le poète parvient à s’orienter à l’intérieur de la contradiction
entre le projet et l’imprévisible. Selon Conort, “cette image de la
photographie, image de l’image, va innerver la totalité du livre, et
lui donner son mouvement. Il s’agit de “révéler” progressivement
l’étendue du désastre, il s’agit que le négatif, l’inverse de l’image

398 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


quand noir et blanc sont inversés, à la fin, par le bain d’acide, ap-
paraisse, c’est-à-dire en réalité, à la fin “rien”.* L’image nous conduit *
(CONORT, Benoït. “Tramer
le deuil”. op. cit.: 6.)
à Wittgenstein, sur lequel Alix préparait un ouvrage, et, par consé-
quent, à la logique dont Jacques Roubaud va emprunter la tautolo-
gie. “Tu étais morte. et cela ne mentait pas.”/ “Estavas morta. e isso
não mentia.” Plus loin: “la mort même même. identique à elle-mê-
*
(I, 4. Quelque chose noir.
me.”/* “a morte mesma mesma. idêntica a ela mesma.”* La tautolo- op. cit.: 17)
gie énonce que si “la proposition montre ce qu’elle dit”, “la tauto- *
(Algo: Preto. op. cit.: 26.)
logie résulte de toutes les propositions: elle ne dit rien”.* Ce “rien”, *
(CONORT, Benoït. “Tramer
c’est justement le poème final, l’équivalent de 0. De plus “dans la le deuil”. op. cit.: 7.)

tautologie les conditions d’accord avec le monde – les relations de


représentation – se suppriment mutuellement de telle sorte qu’el- *
(Ibidem: 63.)
le ne se trouve en aucune relation de représentation à la réalité”.*
D’où l’impossibilité démontrée de représenter la mort dont on
n’aura que l’image de l’image. Pour Conort, la tautologie objecti-
vise la morte, seul moyen de dire la mort.
“Vice logique, selon le Robert, consistant à présenter, comme
ayant un sens, une proposition dont le prédicat ne dit rien de plus que
le sujet.” Vice qui rejoint le vice de Valery, figuré par la méditation.
La mort est identique à elle-même, donc rien n’est dit. En mê-
me temps, “la tautologie doit être considérée comme un modèle logi-
que de vérité. La tautologie est inconditionnellement vraie.”* Mais la (WITTGENSTEIN. Tracta-
*

tus, 4, 461, cité par Hoc-


tautologie, tout modèle de vérité qu’il soit, est aussi le contraire d’un quard, Emmanuel, Les Ba-
bouches vertes. Marseille:
principe de réalité. “La tautologie n’est pas une image de la réalité. CipM, 2009.)

Elle ne représente aucun état possible des choses. (...) Dans la tauto-
logie, les conditions d’accord avec le monde – les relations de repré-
sentation – se neutralisent les unes les autres, de telle sorte qu’elle ne
*
(WITTGENSTEIN. Tracta-
se trouve en aucune relation de représentation avec la réalité.”* tus, 4, 462 Hocquard, Em-
Or, pour Emmanuel Hocquard, une relation existe entre un manuel, Les Babouches ver-
tes. op. cit.)
nom et la réalité qui se caractérise par le refus de la représenta-
tion. L’énoncé tautologique n’explique rien et, en même temps,
il dit tout, dit Hocquard. La tautologie en vient à être “une apo-
rie du discours”.* (Ibidem.)
*

On pourrait continuer indéfiniment à gloser, à expliquer le


poème de Roubaud. On peut aussi conclure partiellement que fi-
nir sur rien (donc par zéro) n’enlève rien au neuf. La mort “ne dit
rien”, mais ne peut pas non plus s’abolir (“Je ne peux pas parler de
rien, / sans que ce rien,/ Fasse effet d’un retour,/ Et ne cesse qu’avec
moi de m’occuper.”/* “Não posso falar de nada,/ sem que esse nada,/ *
(VII, 8. Quelque chose noir.
op. cit.: 130).
Tenha efeito de um retorno,/ E cesse de só comigo me ocupar”).* *
(Algo: Preto. op. cit.: 129.)

INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 399
On s’en doute, le poème porte l’empreinte de la langue, à tra-
vers les formes qui s’y sont inscrites à travers le temps. Le formes
de la poésie troubadouresque, d’un côté, mais aussi les formes qui
s’y sont inscrites par la traduction, de l’autre.

Conclusion provisoire

De ce qui vient d’être dit, montré, le traducteur peut en reti-


rer deux conclusions. La première est que le poème est un poème
à part dans la production roubaldienne, étant construit de façon
assez libre, au gré de l’évocation des images et des paroles.
La deuxième est que le recueil peut être compris et expliqué à
l’intérieur de la poétique de Jacques Roubaud, en tant que pierre de
touche de son parcours, qui a orienté son travail précédent vers autre
chose. Et quand on évoque la poétique de Jacques Roubaud, on veut
parler de la poétique française contemporaine qui suit une ligne al-
lant de la tradition vers la rupture. Le poète devient, de ce fait, un
ressourceur, ou un pourvoyeur de mots-formes, qu’il convertit dans
la langue, qu’il renouvelle du même coup. La langue est toujours le
fond, la toile sur laquelle se greffent d’autres formes, d’autres mé-
moires, d’autres codes. Révéler et innover, voici le programme que
Jacques Roubaud, grâce à sa propre mathématique, réussit à accom-
plir de la meilleure manière tel “il miglior fabbro” de Dante.
Pour en revenir à mon hypothèse de départ, si Jacques Rou-
baud s’écarte de ses thèses de 1970,* (mudei o nous en je) il n’en
abandonne pas pour autant les notions de mémoire et de code. Il les
complexifie. A partir de et contre Wittgenstein, il construit, selon
Stéphane Baquey, un paradoxe: “d’un côté l’expérience de la poésie
et avant tout une expérience privée, suscitant des images-mémoire
qui sont purement singulières, mais, d’un autre côté, la poésie se
*
(BAQUEY, Stéphane. Les
possibles de la poésie. op.
fonde sur des images-langue publiques”.* Pour Jacques Roubaud:
cit: 638.) “la poésie est mémoire externe et mémoire interne”.*
*
(Roubaud, Jacques. Poé- Dans les deux cas, toutefois, le poème est nourri de poésie, de-
sie, etcetera, ménage. Paris:
Stock, 1995: 107.) puis la poésie japonaise, en passant par la poésie médiévale, la poésie
américaine contemporaine, bref la route de la poésie d’aujourd’hui.
“La poésie est ainsi une “forme de vie” singulière, survivance d’un art
*
(BAQUEY, Stéphane. Les
possibles de la poésie. op.
de la mémoire désormais perdu et résistance à cette destruction.”*
cit: 639.) Lorsque le poème tend vers la prose, le rythme le récupère. J’ai
partout cherché autant que peu se faire à maintenir le rythme, la
disposition en vers, les échos, rimes internes et répétitions dans ce
texte où la poésie résiste à la poussée de la prose qui, comme disait

400 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Fernando Pessoa, alias Bernardo Soares, “em prosa é mais difícil de
se outrificar”... Le langage apparemment dépouillé du texte original
propose des défis au traducteur, des étrangetés, à commencer par les
homophonies, des expressions typiquement françaises (“à l’identi-
que”, “quelque chose noir”), en plus de l’ice cube émotion.
Au terme de ce parcours, le poète a fini de dire la mort, il l’a
apprise, il va mourir, après avoir tenté tous les possibles. Le recueil
s’achève sur “Nada”, mais c’est un “Rien” désormais posé, écrit.
Ainsi, le poème Nãovida, qui se termine par:
Diz será que eu vou morrer diz
Morrer que eu não saberei mais diz
Ressaca do espaço imperceptível
Vem raspando o instante da sobrevida
Diz da onda de tempo e de quê
De luzes de nuvens de tudo o que faz tudo
Apertando minha mão afastando um pouco a noite
A porta rechaçava luz
*
(Algo: Preto. op. cit.: 141.)
Reconheci tua morte e a vi.*

Pour revenir à l’intitulé de ma communication, je voudrais


ajouter quelques mots en guise de conclusion. Je crois qu’après cette
tentative critique sur l’œuvre du poète, à la fois inscrit et novateur
dans sa langue, dans sa poétique, on peut comprendre l’amnésie
de la traduction brésilienne. Si la mémoire interne (singulière) de
quelques poètes brésiliens (Carlos Drummond, Haroldo de Cam-
pos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Vinícius de Moraes...)
a ouvert des chemins de convergence avec le poète français, à mon
avis, tel n’est pas le cas de la mémoire publique, commune. Sauf
pour les grandes traductions, à travers celles d’Haroldo de Cam-
pos pour la Bible, Homère, la poésie japonaise, celles d’Augusto
de Campos pour les troubadours, le sol de la littérature brésilien-
ne, sa mémoire de langue, n’est pas comparable à la mémoire de la
littérature française, façonnée depuis longue date. La traduction
brésilienne de Quelque chose noir fait surgir donc dans notre lan-
gue une poétique inédite, héritière de formes et traditions diver-
ses, absentes dans notre mémoire.
Ce qui fait de Algo: Preto “quelque chose: neuf ” dont la tra-
duction – amnésique – s’est efforcée de keep it new.

INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 401
Resumo
Palavras-chave: tradução; A autora apresenta o trabalho do poeta contemporâneo francês Jacques
poesia francesa; Jacques
Roubaud. Roubaud e comenta sua tradução brasileira de Quelque chose noir.

Abstract Résumé
Key words: translation; The author introduces the work L’auteur présente le travail du
French Poetry; Jacques Rou-
baud. of the contemporary French po- poète contemporain français
Mots-clés: traduction; poé- et Jacques Roubaud and com- Jacques Roubaud et commente
sie française; Jacques Rou-
baud. ments on her Brazilian transla- sa traduction du recueil Quel-
tion of his Quelque chose noir. que chose noir.

402 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Entrevista

alea
Questões sobre tradução
a Didier Lamaison
Didier Lamaison é Professor de Letras Clássicas, ensaísta e dra-
maturgo. Seu primeiro contato com a língua portuguesa se deu atra-
vés do “Soneto da Fidelidade”, de Vinícius de Moraes, e do poema
“José”, de Carlos Drummond de Andrade, quando trabalhava como
Professor Leitor de francês na Universidade Federal de Pernambu-
co, em 1980. É tradutor de Carlos Drummond de Andrade, Fer-
reira Gullar, Augusto dos Anjos, Mário Pontes, Machado de Assis,
Fernando Pessoa assim como de letras de músicas de Caetano Ve-
loso e Chico Buarque. Pelo trabalho de tradução da obra poética
de Carlos Drummond de Andrade – na França, editada pela Galli-
mard –, recebeu em 1991 o prêmio Nelly Sachs. Didier Lamaison
é também autor do  romance noir  Édipo Rei – traduzido do mito,
de 1994. Foi eleito, no dia 4 de junho de 2009, para Cadeira nº 1
do Quadro dos Sócios Correspondentes da Academia Brasileira de
Letras, sucedendo o escritor português Antônio Alçada Baptista.

Edmar Guirra (Mestrando do Programa de


Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ)

1. Quais os maiores desafios que o senhor enfrentou ao traduzir a obra


do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade?
Do ponto de vista formal, primeiramente, foi conseguir compreen-
der, sentir a multiplicidade de tons e de registros de Drummond.
O poeta passa o tempo todo de uma língua coloquial a uma metá-
fora muito rebuscada. É muito difícil, para estrangeiros, perceber e
entender essas mudanças de tom. Contudo, o mais difícil do ponto
de vista da forma foi a tradução dos textos de inspiração mais sim-
ples e popular, por exemplo, o poema “José”, em que, mudando
uma só palavra na tradução, obtinha-se outro sentido. Cito tam-
bém “O caso do vestido” que é um exercício de poesia popular de
Drummond, em heptassílabos. Nesses casos, o ritmo é, igualmen-
te, uma questão difícil na tradução.
Do ponto de vista cultural, foi menos difícil porque eu sem-
pre tinha um amigo brasileiro, não muito distante, para me expli-
car o contexto de tal poema, a alusão a um fato ou a um detalhe
geográfico de Itabira, por exemplo.

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 405-409 405


2. Jean-Michel Massa já havia traduzido uma seleção de poemas de
Drummond. Qual a relação de sua tradução com esta tradução? O se-
nhor a evitou ou a considerou?
Eu conhecia a tradução de Massa, embora não o tenha conhecido
pessoalmente. Posso dizer que, quando via que Jean-Michel Massa
havia traduzido um poema para sua antologia, eu aproveitava pa-
ra não retomá-lo na minha tradução. Eu pensava que se tal poema
já havia sido traduzido para a língua francesa, poderia aproveitar
para traduzir outros. Porém, alguns poemas foram retomados. Os
mais célebres, por exemplo, como “No meio do caminho”, eu não
poderia deixar de retraduzir. Não concordava com as traduções de
Jean-Michel Massa. Achava que o público francês poderia ter uma
segunda tradução. Não que a minha tradução fosse melhor ou de-
finitiva, mas era outra.

3. Que especificidades o senhor vê na tradução de poesia? Que perdas


lhe parecem mais graves? A edição bilíngue, de alguma maneira, in-
terfere na atitude do tradutor?
No caso da poesia, o tradutor goza de maior liberdade. Não que ele
fique mais à vontade, mas há um jogo na tradução da poesia que é
prazeroso. Sabendo que é impossível traduzir poeticamente uma lín-
gua na outra, por diversas razões que muitos já analisaram, o deses-
pero que o tradutor encontra em relação à impossibilidade de tradu-
zir tal verso é compensado pela tradução do verso seguinte. A língua
francesa permite fazer uma tradução dando uma expressão colorida
que não existiria no original. Quero dizer que se, em um primeiro
verso, o francês fica muito distante do português, no verso seguinte
o francês oferece mais possibilidades do que o português para dizer
a mesma coisa. Esse jogo de compensação é muito interessante. Is-
so não ocorre, ou pouco ocorre, na tradução da prosa.
A respeito da edição bilíngue, posso dizer que seu efeito é o
da liberação do tradutor que, quando não consegue traduzir uma
imagem ou um verso, tem na versão original uma forma de com-
pensação da insuficiência do seu trabalho.

4. O senhor tem eventualmente a sensação, como tradutor, de desen-


volver ou mesmo de superar o original?
Superar, melhorar, não. Isso entra no tal jogo de compensações. Mas
confesso que, às vezes, temos algumas alegrias. Penso: “Se Drum-
mond tivesse cogitado essa tal possibilidade que a língua francesa

406 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


oferece, ele teria gostado e escolhido a versão francesa.” Mas não
devemos exagerar. O resultado é sempre uma frustração para o tra-
dutor. O texto original sempre é o ideal a atingir. Às vezes aconte-
cem essas compensações que são, geralmente, uma sorte no traba-
lho da tradução da poesia.

5. Como tradutor literário, o senhor se depara frequentemente com o


intraduzível? O que seria o intraduzível?
A intraduzibilidade é uma situação que se encontra a cada passo no
trabalho de tradução. Como disse, a questão do ritmo é um exem-
plo. O problema das denotações também. Quando Drummond
nomeia realidades brasileiras que não existem em francês, depara-
mo-nos com o intraduzível. A palavra cachaça é, a esse respeito,
exemplar. Temos em francês o equivalente eau de vie, mas que não
tem nada a ver com cachaça. Então, o tradutor se pergunta: o que
fazer nesses casos? Particularmente, opto por manter a palavra “ca-
chaça” e acrescentar uma nota. Às vezes, esse problema da deno-
tação pode ser resolvido quando se encontra uma realidade fran-
cesa exatamente equivalente, mesmo não sendo idêntica. Percebo
que muitos tradutores têm pavor dessas palavras, dessas realidades
do país estrangeiro que não podem encontrar equivalente na lín-
gua de chegada. Para mim não há problema, procuro sempre ou-
tros recursos. Acrescento que o intraduzível é tudo aquilo que faz
parte do patrimônio imaginário de cada cultura, e isso não se po-
de traduzir. Por exemplo, a palavra borboleta tem mais ou menos
as mesmas conotações em português e em francês. Já a palavra mar
e tudo ao seu redor não têm as mesmas conotações nas duas lín-
guas. Na França, o mar foi o espaço de combate, de guerras, sem-
pre visto como um inimigo do país. E esse sentido quase não exis-
te no português do Brasil, onde o mar é o aliado, o natural. Há,
então, um mundo de conotações ao redor da palavra mar que não
é o mesmo nas culturas francesa e brasileira. Esse mundo imagi-
nário não pode ser recriado numa tradução, e constitui, portanto,
um exemplo de “intraduzível”.

6. Qual o lugar da tradução, e mais especificamente da tradução lite-


rária, no âmbito da cultura globalizada?
Essa é uma questão interessante e difícil que se pode responder de
diversas maneiras. Primeiramente, poderia dizer que o império da
língua inglesa acaba com toda tradução. Quero dizer que tudo o que

Questões sobre tradução a Didier Lamaison 407


dá valor ao exercício da tradução é o confronto entre duas culturas;
como duas culturas podem, digamos, se amar, do ponto de vista da
tradução. O inglês, nesse aspecto, acaba com a globalização de uma
língua. Podemos dizer que um tailandês falando inglês, enquanto
uma língua global, é como se fosse, metaforicamente, um “deses-
peranto”. Quando o estrangeiro de qualquer lugar do mundo fala
esse “desesperanto”, não há tradução. O estrangeiro “passa as coi-
sas” de um “lugar”, de sua cabeça e cultura, para outro, sem haver
uma comunicação nesse caminho. O “desesperanto” é tão pobre e
rudimentar que pesquisas asseguram que, com menos de mil pala-
vras dessa língua, podemos nos comunicar em qualquer lugar no
mundo. É uma língua que responde a necessidades muito simples.
Portanto, falar o “desesperanto”, a língua inglesa franca, hoje, aca-
ba com possibilidades de tradução. Tendo falado sobre o império
linguístico que essa língua exerce hoje no mundo, defendo a im-
portância da tarefa de tradução no mundo globalizado: a tradução
é uma ferramenta para preservar a diversidade cultural do mundo,
encenando um papel de urgência para salvar o que ainda se pode
salvar das culturas, da multiculturalidade.

7. Qual o lugar da literatura brasileira – e, mais genericamente, da


língua portuguesa – em sua formação como escritor?
Nos meus trabalhos, a língua portuguesa tem o mesmo papel que
a língua latina ou a língua grega, das quais sou tradutor também.
Penso que, fundamentalmente, escrever é traduzir. Não há nenhum
escritor que não seja um tradutor. Não tomo, aqui, a palavra tra-
duzir como sinônimo de exprimir.
Por exemplo, o título do meu romance Oedipe roi é seguido da
inscrição “traduit du mythe”, que não foi compreendida por mui-
tos. Quis dizer que existe a língua do mito e, a partir dessa língua
original, faço a tradução francesa da língua do mito grego de Édi-
po Rei. Sófocles também foi tradutor dessa língua do mito. O mi-
to existia antes de Sófocles; veja a multiplicidade de vozes que ele
admite. O que fiz foi uma tradução dessa língua global do mito.
Quero dizer, com esse exemplo, que toda literatura que existe
antes de se começar a escrever vive no escritor que está escrevendo.
Se ele escreve sobre o amor, já existem na sua memória muitas his-
tórias parecidas com a que escreve. O que o escritor faz é uma es-
colha de elementos na sua memória para criar uma obra nova cujo
resultado é uma tradução dessa língua original falada e transmitida

408 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


pela nossa cultura, pelo conhecimento da condição humana que
resultou dessa cultura, desse passado e da leitura de obras. Concluo
dizendo que meu trabalho de tradutor é sempre ligado ao meu tra-
balho de escritor. Traduzir um verso de Drummond é como tradu-
zir uma ideia que tenho que exprimir e dar uma versão dessa ideia,
como dou uma versão a um verso de Drummond.

Resumo
Palavras-chave: Lamai-
O tradutor e romancista Didier Lamaison responde a questões so- son; tradução; tradução
de poesia.
bre sua experiência como tradutor do poeta Carlos Drummond de
Andrade, o intraduzível, a tradução como forma de mutação e reno-
vação do texto original e as especificidades da tradução de poesia.

Abstract Résumé
Key words: Lamaison; trans-
The translator and novelist Di- Le traducteur et romancier Di- lation; translation of poetry.
dier Lamaison answers to ques- dier Lamaison répond à des Mots-clés: Lamaison; traduc-
tion; traduction de poésie.
tions about his experience as questions sur son expérience en
a translator of the poet Carlos tant que traducteur du poète
Drummond de Andrade, the Carlos Drummond de Andrade,
untranslatable, the translation sur l’intradusibilité, sur la tra-
as a form of change and origi- duction comme forme de chan-
nal’s renewal and features in the gement et de renouvellement du
translation of poetry. texte originel et sur les spécifici-
tés de la traduction de poésie.

Questões sobre tradução a Didier Lamaison 409


Resenhas

alea
As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio. Charles Batteux (São
Paulo: Humanitas & Imprensa Oficial, 2009)

O princípio primeiro
As doutrinas artísticas antigas, refundadas em algum neoaris-
totelismo, assim como em obras poéticas também pertencentes à
antiguidade, a aristotélica e a horaciana, principalmente, serviram à
composição do ensaio intitulado As belas artes reduzidas a um mes-
mo princípio, de Charles Batteux, professor de retórica, filosofia e
de poesia grega e latina no Collège Royal de Paris, em fins do século
XVIII. Sucedem o Les beaux-arts outras obras fundamentais escri-
tas por Batteux ao longo do tempo em que desempenhou as refe-
ridas funções, de professor e reitor, tais como o volumoso Cours de
Belles-Lettres ou Principes de la Littérature, de 1753, ou o Les Qua-
tre Poétiques, d’Aristote, d’Horace, de Vida, de Despreáux, avec les tra-
ductions & des remarques, de 1771, Histoire des Causes Premières, de
1769, além de outros. Não se trata aquele, no entanto, de um tra-
tado de execução para as artes nem tampouco pode ser proposto
como obra precursora quanto à emergência de estéticas que funda-
mentam o fazer artístico segundo a noção de vida subjetiva do ar-
tista, principal critério, conforme aquelas, para o desenvolvimento
das artes na chave do progresso e do devir. Convertido ao concei-
to de “princípio unificador”, das artes, o princípio a que se refere o
título da obra não é redutor quanto à implicação das técnicas e dos
modelos de imitação, essencializando-os, ao mesmo tempo em que
se amplifica a atuação da subjetividade e da individualidade como
principais móveis da criação poética e artística. Não pertence, ca-
so se queira dizer de outro modo, à Estética ou à Filosofia da Arte,
mas às doutrinas poético-retóricas que pensam as artes, em termos
de comparação, paragone, na chave da imitação e do decoro, con-
forme, preceito aristotélico. Confirma-o a própria exposição feita
por Batteux no prólogo do As belas-artes: “Após tantas buscas inú-
teis e não ousando entrar sozinho em uma matéria que, vista de
perto, parecia tão obscura, atrevia-me a abrir Aristóteles, do qual
eu havia escutado exaltarem a Poética. [...] A máxima de Horácio
se achou verificada pelo exame: ut pictura poesis. Constatou-se que
a poesia era em tudo uma imitação, assim como a pintura. Eu ia
mais longe: tentava aplicar o mesmo princípio à música e à arte do
gesto, e espantou-me a justeza com a qual lhes convinha. Foi is-

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 413-418 413


so que produziu esta pequena obra, onde se pressente que a poesia
deve ocupar a posição principal, tanto por causa de sua dignidade,
quanto por ter sido sua ocasião.” Ao invocar o kairos, a ocasião, ou
“o momento oportuno”, para a poesia, Batteux subordina a imita-
ção operante em todas as artes àquela produzida pela poesia, cons-
truindo o seu discurso mediante outros princípios, embora não de-
clarados no ensaio, advindos da retórica aristotélica. Apta menos
a persuadir do que a desenvolver os meios exigidos para cada ca-
so, com vistas à persuasão, esta retórica provê para Batteux as pro-
vas inartísticas, fornecidas pelas leituras de Aristóteles, Horácio, e
de outros, assim como as artísticas, com as quais o autor informa
o leitor sobre a motivação do ensaio, para o esclarecimento de su-
as ideias sobre as belas-artes e a poesia, ou para prestação de contas
a si mesmo, conforme o que ele relata, encontrada por método ou
inventada por cogitação própria. De acordo com o mesmo, a natu-
reza fornece o melhor modelo a ser imitado para quem saiba imitá-
la bem, quer dizer, convenientemente, sendo, por outro lado, um
despropósito imitá-la “servilmente”, tal como ela é. O convenien-
te é o bom que, por sua vez, é “digno de ser escolhido em si e por
si”, segundo Aristóteles, ou aquilo que, “pela sua presença, outorga
bem-estar e autossuficiência, [...] ou o que produz e conserva esses
bens” (Retórica, I,6). O bom é belo, e é útil, sendo conveniente,
por exemplo, que o “mais fácil seja maior que o mais difícil” por-
quanto sendo em geral “o mais difícil maior que o mais fácil”, to-
davia, é a este último que sempre desejamos. Reduzir as artes a um
mesmo princípio implica simplificar as regras, tendendo-se à con-
veniência do “mais fácil” ou do mais simples, uma vez que o mo-
delo a ser imitado por todas as artes é sempre o mesmo, ou seja, a
natureza, em si, bela, boa e útil. Para Batteux o “juiz nato de todas
as belas-artes é o gosto”, uma vez que o bom gosto nas artes, a par
da imitação da bela natureza, é regrado pelo sentimento, ou pelo
“gênio”, sendo este o sentimento em conformidade com as coisas
naturais. O gosto é para as artes o que a inteligência é para as ciên-
cias, estas interessadas pelo verdadeiro, aquelas, pelo que é belo e
bom, enquanto expressão do verossímil. “Agradar”, “levar ao pra-
zer”, sempre foi o seu objeto, constituindo-se as artes os seus “no-
vos objetos”, embora o gosto sempre permaneça constantemente o
mesmo, uma vez que procede da imitação do “modelo da nature-
za”. Os objetos apresentados pelas artes, segundo Batteux, devem
ter “uma relação íntima conosco”, despertando o nosso interesse à

414 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


medida que nosso espírito prova da variedade, assim, multiplican-
do em nós os sentimentos e as ideias. À arte cabe a função de do-
tar as diferentes partes desses objetos de um “grau requintado de
força e de elegância”, fazendo-os parecer como novos, porquanto
apresentados de maneira singularíssima, para a audiência ou espec-
tadores, que, por sua vez, compartilham das mesmas doutrinas do
“legislador”, e julgam o êxito da ficção.
As definições de Batteux sobre “o gosto” coincidem também
com as de Montesquieu, que foi incumbido de escrever um verbete
sobre este conceito para a Enciclopédia de D’Alembert e Diderot,
anotadas em um ensaio inacabado iniciado em 1753. Para Mon-
tesquieu, o “gosto é aquilo que nos liga a uma coisa por meio do
sentimento”. O gosto, adquirido, cultivado, dá a conhecer, para o
sentimento, as regras particulares que o “gênio” do artista utilizará
na invenção e disposição de seu discurso, comportando-se todas
as artes particulares como formas discursivas consoantes à poesia,
que é exemplo para Batteux de imitação do belo natural, estendido
ao gosto, e, assim, a todas as artes. Sendo o “gênio” uma aptidão e
uma disposição do ethos do artista na contrafação do modelo na-
tural, por meio da imitação, o “gosto”, para Batteux, consequente-
mente está subordinado ao mesmo princípio, sendo em relação ao
mesmo não uma aptidão produtiva, como o “gênio”, mas somente
apreciativa e legislativa. O “gênio”, por sua vez, é uma tópica que
também corresponde às doutrinas, não investido ainda da subjeti-
vidade psicologizada que o projetará no “romantismo” como prin-
cipal expoente de arte que se apresente como expressão autônoma
e intimista. Para Batteux, a sua função consiste “não em imaginar
o que pode ser, mas encontrar o que é”, inventando, isto é, achan-
do um objeto já existente com o propósito de imitá-lo. Trata-se de
uma aptidão apropriada ao exercício, principal, de reconhecimen-
to, feito também pelo “gosto”, uma vez que na natureza, onde tu-
do existe, pode ser encontrado o modelo prototípico para as ar-
tes que nunca sobrevêm do nada. Ao servir como meios de trans-
porte dos “traços que estão na natureza e apresentá-los em objetos
que não são naturais”, as artes assumem a direção da produção do
verossímil, e não da busca pelo verdadeiro, servindo-se da maté-
ria que a natureza efetivamente lhe oferece. Tal tópica se apresenta
em muitos outros lugares, por exemplo, em Kant, na terceira crí-
tica, obra do final do século XVIII, quando este analisa a relação
entre “bela-arte, gênio e gosto”. Para Kant, do mesmo modo, a ar-

Luiz Armando Bagolin | O princípio primeiro 415


te, usando a matéria da natureza, é capaz de criar como uma outra
natureza, e em vista disso propõe: “Uma beleza natural é uma bela
coisa; a beleza artística é a bela representação de uma coisa” (Crí-
tica do Juízo, 48). Batteux é mais explícito. “O que é uma pintu-
ra?”, pergunta ele, para em seguida responder: “Uma imitação dos
objetos visíveis. Ela nada tem de real, nada tem de verdadeiro. Tu-
do nela é aparência, e sua perfeição só depende de sua verossimi-
lhança com a realidade.”
Divergem os dois autores, sutilmente, quanto à direção de-
terminada para o conceito de “gênio”, aptidão natural para ambos,
porém, voltada mais à invenção de “ideias estéticas” ou daquelas
“ricas em imaginação”, segundo Kant, do que algo que se apresenta
como uma acurada capacidade investigativa, segundo o autor fran-
cês. Talvez possa se propor, aqui, a captura do conceito de “gênio”
pela filosofia do final do século XVIII, pelo que Kant o determina
como a “disposição natural inata” ativa no sujeito, enquanto natu-
reza reflexionante, de onde provém toda regra necessária à produ-
ção da bela-arte, dispensando outras regras que lhe sejam alheias.
Contingentes, as leituras que se fizeram, sobretudo no século XIX
e início do século XX, destas e de outras proposições kantianas, ser-
viram às definições mais recentes de arte para as quais a expressão e
a criação, principais chaves de entendimento destas, rondam sub-
terraneamente o autor subjetivo. Batteux, porém, deve ser lido ain-
da em concordância com as doutrinas neoaristotélicas circulantes à
época. Para estas, as artes pertencem ao Intelecto Ativo que é parte
da Razão Universal, conduzindo-se como hábitos factivos ou con-
forme uma recta ratio factibilium, “a reta razão dos factíveis”, sen-
do o gênio uma aptidão que imita, emula e aperfeiçoa, pelo com-
posto imitado, o modelo da natureza, sem deixar o referido com-
posto “de ser natural”. É, ao lado do “gosto”, o “gênio”, um dos
critérios da produção artística, não determinante, mas imitativo,
por isso condutor quanto à natureza das artes e seus pressupostos,
retóricos, de decoro e elegância. Em outras palavras, o “gênio” es-
colhe e organiza entre os inúmeros objetos naturais, aqueles que
são convenientes à invenção e à imitação, na composição das par-
tes da arte à qual o artista se dedica. Por isso, Batteux afirma: “O
gênio é como a terra que não produz nada de que não tenha rece-
bido a semente.” Servindo-lhe de apoio e alimento, a natureza dis-
põe a ele as suas riquezas, encarecendo a imitação como operação
de reconhecimento destas, “naquilo que é propriamente arte”, ou

416 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


como construção de um “fundo de verdade,” misturada habilmen-
te à ilusão. Lendo Aristóteles, possivelmente a partir da edição co-
mentada da Poética, publicada por André Dacier, em 1692, Bat-
teux redita a comparação entre poesia e história, esta ligada ao ver-
dadeiro, aquela, ao verossímil: “O historiador dá os exemplos tais
como são, frequentemente imperfeitos. O poeta os dá tais como
deveriam ser. E é por isso que, segundo o mesmo filósofo, a poe-
sia é uma lição muito mais instrutiva do que a história.” A imita-
ção prevê a seleção das partes da natureza e também dos fatos as-
sim ditos verdadeiros na efetuação de uma ficção baseada no ver-
dadeiro, vera fictio, associada à composição do pleno artifício, fal-
sa fictio, operação também retórica que, para o autor, é exemplifi-
cada pela tópica “inscrição de similitudes”. Operante em Plínio o
Velho, que é referência para Batteux e todos os outros autores do
período, esta tópica é reapresentada pelo nosso autor no exemplo
da seleção de belezas, feita por Zêuxis para a pintura de uma deu-
sa, ou pela pintura das batalhas de Alexandre, por Le Brun, ou ain-
da nas Musas de Hesíodo, etc.
A imitação, contudo, somente se completa como perfeição
de arte, se o estado do gênio, excitando-se, no momento em que
se completa a composição, preenche-o como se fosse uma “ideia
viva”, que o faz se esquecer de si mesmo. Extasiado, o gênio tem,
na chave do entusiasmo platônico, redito por Cícero, condições de
se unir ao seu objeto, vivendo pelo sentimento os artistas os per-
sonagens de suas invenções, “colocando-se no meio das coisas que
queiram representar”, transportando-se, por exemplo, os pintores,
para as cenas de batalha que desejam pintar. Para Batteux, as artes
consistem na imitação da bela natureza, que em si é boa e útil, “re-
presentada”, assim, “ao espírito no entusiasmo”. Divididas em três
espécies, as “artes mecânicas”, as “belas-artes”, e as da “eloquência
e arquitetura”, são as de segunda espécie a receber tratamento que
as articula em torno do princípio de imitação poética. Assim, lo-
go após tratar da natureza do gênio e do gosto, Batteux lança-se a
analisar a operação do “mesmo princípio” à poesia, suas divisões e
gêneros, “à pintura, à música e à dança”. Homólogas à poesia, es-
tas artes estão destinadas a se mostrarem juntas ou reunidas, prin-
cipalmente a primeira, seguida das duas últimas, porquanto a elas
cabe a tarefa de “apresentar a imagem das ações e paixões humanas”,
aristotelicamente. Uma vez que a natureza criou os seus princípios,
com o fim de mantê-los unidos, este é o princípio fundamental ou

Luiz Armando Bagolin | O princípio primeiro 417


o primeiro princípio. À arquitetura, escultura e pintura, por outro
lado, caberia a missão de armar a cena para o espetáculo ou para a
exposição do composto imitado. Para tanto, Batteux propõe para
esta última, a pintura, também uma homologia com a poesia, ex-
tensível às demais artes. Basta, segundo ele, que se substituam os
nomes “poesia, fábula, versificação” pelos nomes “pintura, desenho,
colorido”. Vistos hierarquicamente como partes da pintura, “dese-
nho e colorido”, neste último incluso o claro-escuro, são remissivos
à divisão da pintura que circula pelos tratados a ela dirigidos desde
pelo menos meados do século XV. Pense-se, por exemplo, na arti-
culação “desenho/claro-escuro/cor”, operante em Alberti, depois
vigente nas academias de Bologna, Roma e França, e alhures. Ar-
ticulação que também se instalará mais tarde na Instituição acadê-
mica brasileira, do século XIX, à luz de reflexão quase sempre es-
tatutária, legível em decretos de nossa burocracia oficial.

Luiz Armando Bagolin


(Instituto de Estudos Brasileiros /USP)

418 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Trabalhar Cansa. Cesare Pavese. Tradução de Maurício Santana
Dias. (São Paulo: Cosac Naify / 7Letras, 2009.)

O caminho solitário e a intensa reflexão:


Trabalhar cansa, de Pavese
Trabalhar cansa (Lavorare Stanca, 1935) chega ao mercado bra-
sileiro numa parceria das editoras Cosac Naify e 7Letras, com tradu-
ção de Maurício Santana Dias. É o primeiro livro do poeta e escritor
Cesare Pavese, considerado uma das grandes vozes italianas no perío-
do entre as duas guerras mundiais. As obras de Pavese traduzidas no
Brasil são: O belo verão (1987, pela Brasiliense), A lua e as fogueiras
(1988, pelo Círculo do Llivro, e 2003 pela Berlendis&Vertecchia),
Ofício de viver (1988, pela Bertrand Brasil), Mulheres só (1988, pela
Brasiliense) e Diálogos com Leucó (2001, pela Cosac Naify).
Pavese faz parte do panorama da literatura italiana do século
XX, não só como poeta, mas também como escritor de romances
e contos e tradutor. Nessa lista não é possível esquecer da sua par-
ticipação na famosa equipe, composta também por Elio Vittorini,
Italo Calvino e Natalia Ginzburg, que atuou ativamente no merca-
do editorial italiano por meio do trabalho na Editora Einaudi.
Apesar de seu distanciamento da política, faz parte do grupo de
intelectuais antifascistas piemonteses, formado por Giulio Einaudi,
Massimo Mila, Leone Ginzburg, Giulio Carlo Argan, Norberto Bo-
bbio. Tal grupo é lembrado pelo crítico literário Giuseppe Petrônio
como o “fior fiore dell’antifascismo liberalsocialista”. Como Leone
Ginzburg e tantos outros, Pavese também passa pela experiência do
cárcere durante o fascismo, um período de reclusão na Calábria que
lhe proporciona um contato maior com a literatura (fruto desse mo-
mento é o breve romance Il carcere) e inicia o seu diário, Ofício de
viver, que o acompanhará até o trágico suicídio em 1950.
De retorno a Turim, Pavese continua o trabalho iniciado nos
anos anteriores de tradução de autores americanos e ingleses. Al-
guns dos autores traduzidos são Sinclair Lewis, Herman Melville,
Sherwood Anderson, James Joyce, John dos Passos, John Steinbe-
ck, Willian Faulkner, Daniel Defoe, Charles Dickens. Como se vê,
há uma imersão na literatura americana, principalmente a daque-
les anos. Seguindo o título de um texto de Calvino “Traduzir é a
verdadeira forma de se conhecer um texto”, Pavese adentra, apesar
de nunca ter-se deslocado para o outro continente, no diversifica-

ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 419-425 419


do universo dos EUA. Um mundo, “o outro”, que vai sendo des-
coberto a partir das viagens literárias mediadas pela leitura e de-
pois pelo trabalho de tradução. Em um artigo publicado no jornal
L’Unità, de 20 de maio de 1945, dirá Pavese:
Nos nossos esforços para compreender e para viver sorriram para
nós vozes estrangeiras: cada um de nós buscou e amou a literatura
de um povo, de uma sociedade distante, e falou dela, a traduziu,
fez dela a pátria ideal. Tudo isso na linguagem fascista chamava-se
esterofilia [...] Naturalmente não podiam admitir que estávamos
procurando na América, na Rússia, na China, e quem sabe onde,
um calor humano que a Itália oficial não nos dava. Menos ainda
que estávamos procurando simplesmente nós mesmos. Na verdade
foi assim mesmo. Lá embaixo nós procuramos e encontramos nós
mesmos. Das páginas bizarras daqueles romances, das imagens da-
queles filmes veio a primeira certeza, a de que a desordem, o estado
violento, a nossa inquietação e a de toda a sociedade que estava ao
redor, podiam ser resolvidos e apaziguados num estilo, numa ordem
nova e deviam transfigurar numa nova lenda do homem.

Com efeito, é uma descoberta que aos poucos se revela e con-


duz o olhar pavesiano para além dos traços americanos. É, na ver-
dade, lendo e relendo, decodificando e recodificando com a ativi-
dade tradutória, que o poeta de Santo Stefano Belbo passa a ver de
uma outra perspectiva o contexto piemontês e italiano no qual es-
tava inserido. A ligação com a própria terra de origem é para Ce-
sare Pavese não só afeto e memória, mas é essa relação que alimen-
ta o espírito do poeta e apresenta-se como um dos temas mais re-
correntes em seus textos. É, portanto, a partir da leitura do outro
que Pavese (re)define o seu foco: as colinas, as Langas, os dias de
ócio, o rio Pó, camponeses, proletários; questões que estão tam-
bém condensadas no binômio campo X cidade. Imagens que po-
dem ser identificadas em todo o seu percurso e, consequentemen-
te, na sua produção literária. Nesse livro de estreia, Trabalhar can-
sa, por exemplo, elas permeiam todos os poemas.
A edição brasileira é baseada na segunda edição da obra data-
da de 1943, publicada pela editora Einaudi. É composta por uma
apresentação de Maurício Santana Dias, pelos 70 poemas que for-
mam o livro e um apêndice com dois textos assinados por Pavese:
“O ofício de poeta” e “A propósito de alguns poemas ainda não es-
critos”. Nessa mesma edição de 1943, é possível identificar peque-
nas mudanças e acréscimos em relação à primeira, como aponta
Maurício Santana Dias no texto de introdução. Pavese acompanha
de forma ativa esse processo de reedição: insere poemas antes censu-

420 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


rados pelo regime e outros inéditos, altera algumas pontuações, faz
pequenas modificações e, ainda, acrescenta dois textos de reflexão
sobre a temática, a forma, a métrica das poesias ali contidas.
A apresentação de Maurício Santana Dias dá um panorama
bastante detalhado da vida e da atividade de Cesare Pavese, pouco
conhecida no Brasil, mas em alguns momentos, quando trata das
poesias, pode parecer para o leitor comum um pouco técnica. Os 70
poemas do livro são agrupados em seis seções: Antepassados (Antena-
ti), Depois (Dopo), Cidade no campo (Città in campagna), Maternida-
de (Maternità), Lenha verde (Legna verde), Paternidade (Paternità).
A primeira, Antepassados, é formada por 11 poemas e as ima-
gens presentes nestas poesias serão o símbolo da narrativa pavesiana:
o retorno à região geográfica das Langas, a infância – um momento
feliz da vida –, o silêncio e a não comunicação. Temas que podem
ser mais tarde realocados nos binômios campo x cidade e infância
x vida adulta. Esta seção é aberta com o paradigmático poema “I
mari del Sud”. Na segunda seção, Depois, o leitor encontra 15 po-
esias que, como definiu Calvino, apresentam um “motivo amoroso
e sensual num tom de contemplação e melancolia” – pode-se pen-
sar aqui nas complicadas relações e decepções amorosas de Pavese.
Os títulos de algumas poesias dessa seção são: “Agonia”, “Mulhe-
res apaixonadas”, “Mania de solidão” e “A puta camponesa”. A ter-
ceira seção, Cidade no campo, é aquela com mais poemas, no total
19, e parece ser a mais “empenhada” de todo o livro. Os persona-
gens principais são o camponês e o operário que, mesmo em am-
bientes diferentes, trabalham duro e fadigam. “O cansaço do dia
os empurra pro sono/ e as pernas estão destroçadas. Alguns só ima-
ginam/ e comer sonolentos, quem sabe sonhando” são alguns ver-
sos de “Crepúsculo de areeiros”. Esta parte se conclui com a poesia
que dá título ao livro “Trabalhar Cansa”, iniciando com a oposição
já mencionada infância x vida adulta: “Travessar uma rua fugindo
de casa/ só um menino o faria, mas este homem que passa/ todo o
dia nas ruas não é mais menino/ e não foge de casa”. Maternidade
é a quarta seção e tem 10 poesias. Aqui a imagem da mulher retor-
na, mas não mais como algo sensual e sim como a provedora, quer
dizer, o símbolo de fertilidade. A quinta seção, Lenha verde, apre-
senta 7 composições, e é possível observar que há o predomínio da
temática social e política como, por exemplo, nos versos contidos
em “Geração”: “Numa tarde de luzes distantes ouviram-se tiros/
na cidade, e acima do vento, medonho,/um clamor descontínuo.

Patricia Peterle | O caminho solitário e a intensa reflexão: Trabalhar cansa, de Pavese 421
Calaram-se todos/ [...] há operários calados e alguns estão mortos”.
A sexta e última seção, Paternidade, é composta por 8 poesias e se
contrapõe pelo próprio nome à seção Maternidade. Aqui são pri-
vilegiados os temas relacionados à solidão e à incomunicabilidade.
“Fala pouco o amigo, e esse pouco é estranho” é o primeiro verso
de “Mediterrânea”, poesia que abre essa parte.
A tradução de Maurício Santana Dias tem escolhas bem pre-
cisas. Professor de literatura italiana da USP, ele vem cada vez mais
se destacando como um importante elo de ligação entre Brasil e
Itália. O trabalho tradutório pode ser concebido aqui como um di-
álogo de múltiplas faces que proporciona, haja vista a própria ex-
periência pavesiana, uma série de relações entre os dois sistemas li-
terários envolvidos. Na parte “Traduzir Trabalhar cansa”, Santana
Dias oferece ao leitor algumas motivações de suas escolhas:
Antes de finalizar este estudo, é necessário examinar a constituição
formal dos poemas de Lavorare Stanca e, por conseguinte, explicitar
as minhas próprias opções de tradução. A tarefa deve começar ob-
viamente pala análise de “I mari del Sud”, o primeiro e mais longo
poema do livro, aquele que estabeleceu o padrão pelo qual Pavese se
guiaria durante a década de 1930 e 1940. Porém, antes de passar à
leitura dos textos, cabe reiterar que todas as composições do livro se
originam a partir de um verso básico: o verso quantitativo de ritmo
anapéstico, constituído de uma unidade mínima formada por duas
sílabas breves e uma longa. Não por acaso, o anapesto é o verso que
inicia o livro e lhe dá a cadência” (p. 54-55)

Ao iniciar com esse fragmento a reflexão sobre o processo tra-


dutório, é possível identificar uma opção inicial que norteará todo
o trabalho de tradução das 70 poesias: a preferência e o privilégio
dado à métrica. É como se o olhar do tradutor fosse quase sugado
pelos elementos formais – a matriz rítmica e a linguagem – e pelo
tom monocórdio pavesiano. Tal predileção também fica clara nas
mais de dez páginas dedicadas a essa questão na apresentação. Para
finalizar, Maurício Santana Dias cita traduções de Lavorare stanca
em outras línguas (a francesa Travailler fatigue, de Gilles de Van;
a inglesa Hard labour, de William Arrowsmith; a catalã Trabalhar
cansa, de J.M. Miñoz Pujol; a portuguesa Trabalhar cansa, de Car-
los Leite) e algumas antologias que incluem essa obra de Pavese.
Todas essas traduções citadas e consultadas têm uma escolha di-
ferente, como pontua o tradutor, elas não mantiveram na “língua
de chegada a métrica e o ritmo de Pavese: seus poemas foram ver-
tidos quase sempre em versos livres e não raro tornados mais líri-
cos e melodiosos do que de fato o são” (p. 72-74).

422 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Tanto já se discutiu e se vem debatendo sobre os inúmeros e
complexos aspectos, positivos e negativos, que envolvem o proces-
so tradutório. Ora, fazer uma tradução significa também fazer es-
colhas e, por sua vez, escolher comporta sempre, de alguma forma,
ganhos e perdas. O último parágrafo de Santana Dias aponta o que
para ele seriam as perdas dessas traduções consultadas:
Pelo que foi exposto, pode-se deduzir que traduções dessa natureza
não sejam as mais adequadas aos poemas em questão. Afinal, o pró-
prio Pavese havia rejeitado o verso livre por considerá-lo impróprio
à sua poesia, ou seja: “Pela desordenada e caprichosa abundância
que ele costuma solicitar à fantasia.” Desse modo, uma tradução
em versos livres – ou que simplesmente não acompanhe de perto o
ritmo sempre igual e monótono dos versos pavesianos –, por mais
feliz que seja, terá perdido de vista o projeto do autor, ou seja, o ato
mais radical e característico do poeta piemontês: a busca incessante
de “apreender o real”, de dar uma forma e um sentido próprios a um
mundo que em última instância lhe pareceu alheio. (p. 73)

O privilégio dado à métrica, que é sem dúvida um ganho da


tradução brasileira, pode provocar certas perdas. Alguns pequenos
exemplos estão na primeira poesia “Os mares do Sul”:
mi ha detto “...ma hai ragione. La vita va vissuta
lontano dal paese: si profetta e si gode

Disse ele, “...tens razão. A vida só é vivida


Distante de sua casa: se aproveita e se goza
(p. 78-79, grifo nosso)

E mais adiante
Mio Cugino ha una faccia recisa. Comprò un pianterreno
nel paese e ci fece riuscire un garage di cemento
con dinazi fiammate la pila per dar la benzina
e sul ponte ben grossa alla curva una targa-réclame.
Poi ci mise un meccanico dentro a ricevere i soldi
e lui girò tutte le Langhe fumando
S’era intanto sposato, in paese. Pigliò una ragazza

Ele tem uma cara obstinada. Comprou um terreno


na aldeia e ergueu uma sólida garagem
que ostentava, brilhante, uma bomba para a gasolina
e, na ponte, bem grande, na curva, um cartaz chamativo.
Contratou um mecânico que recebia o dinheiro
e foi passear nas Langas, fumando.
Entretanto casara, na aldeia. Pegou uma garota
(p. 78-79, grifo nosso)

Patricia Peterle | O caminho solitário e a intensa reflexão: Trabalhar cansa, de Pavese 423
Nesses trechos, um elemento que chama a atenção é a pala-
vra italiana paese, traduzida, na mesma poesia, com dois signifi-
cados diferentes: o primeiro casa, no sentido figurado de lar e de
tudo o que é familiar, e o segundo denotativo que é realmente al-
deia, vilarejo. Uma situação análoga também acontece com o vo-
cábulo em português serena, que nesta mesma poesia é traduzido
com o seu correspondente serena – notti serene/noites serenas, mas
em “Agonia”, sétimo poema da seção Depois, aparece serena como
correspondente do vocábulo italiano stessa, cujo significado seria
mesma: ogni volto che passa e restare la stessa/ cada rosto que passa e
manter-me serena (p.138-139).
Ainda, recuperando os outros grifos do segundo fragmento
acima, há um equívoco na tradução da palavra pianterreno. Na lín-
gua italiana também existe a palavra terreno que é escrita e tem o
mesmo significado que em português. Todavia, a palavra escolhi-
da por Pavese, pianterreno, possui um outro signifcado, isto é, an-
dar térreo. O que interfere, consequentemente, na continuação do
verso seguinte. De fato, não é necessário erguer ou construir uma
garagem, na verdade, um espaço que já existia e localizava-se no
andar térreo foi transformado em uma garagem. Essa transforma-
ção fica clara na expressão “ci fece riuscire”.
Um outro aspecto que é importante lembrar consiste nas re-
ferências poéticas de Cesare Pavese. Todo o percurso do poeta é
marcado pela leitura e estudo de alguns clássicos como Leaves of
Grass de Walt Whitman, Les fleurs du Mal de Charles Baudelaire e
a Ilíada de Homero – é bom lembrar que o próprio Pavese organi-
zou e prefaciou uma edição dessa obra. Trabalhar cansa, portanto,
apresenta-se como uma obra de exploração, mas não experimental,
que pode ser vista e lida a partir de três momentos. O primeiro é
caracterizado por aspectos da cultura e literatura americana, como
já dito, fruto da atividade de tradução, principalmente em relação
às paisagens e à redescoberta do Piemonte, terra natal de Pavese.
No segundo momento, as imagens, sempre presentes, recebem um
novo tratamento e são incorporadas à narrativa; para tal Pavese cria
um sistema de analogias. Enfim, o terceiro momento é assinalado
por uma espécie de imersão na subjetividade. Tais questões são co-
locadas e discutidas nos dois textos contidos no apêndice.
A produção de Cesare Pavese, marcada pela disciplina, refle-
xão e estudo, pode ser vista como uma terceira via diante do con-
texto literário e cultural promovido pelo fascismo de um lado e o

424 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


grupo da poesia hermética do outro. O poema-narrativo escolhi-
do pelo autor, que recusa o verso-livre como é colocado nos textos
finais, é a marca pavesiana dos poemas iniciais. O que se apresen-
ta é uma poesia caracterizada por um estilo límpido e coloquial.
Aspecto que algumas vezes não foi muito bem compreendido pe-
la crítica literária, que só (re)conhecia Pavese pelas traduções feitas
que não estavam de acordo com a linha determinada pela cultu-
ra oficial fascista. Escritor, poeta, tradutor, diretor de uma edito-
ra: são esses os perfis que vão se delineando ao longo do seu solitá-
rio percurso. Trabalhar cansa é um conjunto, fruto de um intenso
processo de reflexão intelectual, que expressa o rigor, a dedicação e
a fadiga do poeta diante do trabalho com a palavra.

Patricia Peterle

Patricia Peterle | O caminho solitário e a intensa reflexão: Trabalhar cansa, de Pavese 425
Um estudo de Roberto Zucco, peça teatral de Bernard-Marie Kol-
tès. Fernanda Vieira Fernandes (Dissertação de Mestrado em Le-
tras. Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras,
UFRGS, 2009. Orientador: Robert Ponge).

Cabe ao palco o que é efêmero,


à literatura o que é eterno
A presente Dissertação é oportuna e apropriada sob muitos
aspectos. Ela apresenta um mergulho profundo sobre uma obra,
seu autor, contexto e possibilidades. E este é um de seus grandes
trunfos. Ao quase esgotar o estudo sobre a obra, ao contrário, ela
abre um profícuo caminho de possibilidades para quem quiser es-
tudar Koltès, suas peças e o panorama do teatro contemporâneo.
Ou ainda, para quem desejar encontrar neste trabalho um exercí-
cio modelar de abordagem do texto teatral seja como estudo lite-
rário, seja como estudo da cena contemporânea.
A autora faz um trabalho bastante similar ao do Dramaturg
(no Brasil chamado Dramaturgista), figura criada na Alemanha e
que se espalhou por inúmeras realizações teatrais, que é o elemen-
to designado a tratar de tudo que diz respeito à obra dramatúrgica,
aplainando os caminhos para a encenação. Ou provocando, ques-
tionando e inquietando.
A escrita equilibra as exigências acadêmicas de um texto cor-
reto, estruturalmente bem desenhado e repercutindo uma pesquisa
feita com rigor, e a paixão vislumbrada a cada momento, da atriz
encantada com o objeto de seus estudos.
A leitura do trabalho é encantadora, reveladora e inquietan-
te. Fazemos o caminho que ela nos propõe: conhecer o fascinante
Koltès, imaginar sua África, seus temores, suas doenças, seu mun-
do para então conhecer o irresistível Zucco, adocicado pelo autor
e pela autora, para nos provocar ainda mais. Queremos subir ao
telhado e nos (des)equilibrarmos ao sol, artistas que somos desejo-
sos de voar para além de nossas raízes.
Há na leitura desta Dissertação um antigo prazer redescoberto,
o do “trabalho de mesa”,1 da aventura de se aproximar de um novo
texto teatral, com tudo que ele nos traz de possibilidades. Estudar
cena a cena, entender as intenções de cada palavra, tecer, a partir
1
Tipo de ensaio em que direção e elenco trabalham sobre o texto dramático e
sua análise, antes de partir para a prática no palco.

426 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009 p. 426-430


do texto, novas texturas de situações e emoções. E, portanto, uma
ampliação da potencialidade de análise do texto dramático.
Logo de início, Fernanda aponta que seu estudo parte da op-
ção de estudar o texto abrindo mão de verificar possibilidades de
encenação e complementa: “A escolha de estudar o texto foi feita
considerando que o espetáculo tem sua presença primordial, mas
a riqueza da literatura dramática sem a verificação prévia dos efei-
tos na plateia não pode ser ignorada. Cabe ao palco o que é efême-
ro, à literatura o que é eterno” (p. 10).
Uma escolha acertada sem dúvida, pelos motivos apontados
por ela. E também porque o texto nos oferece um prazer que ul-
trapassa a repercussão na cena. Ele existe por si, até porque na sua
constituição está implícita a imaginação da cena. Há um prazer da
palavra que se imagina falada, um prazer da rubrica vislumbrada,
dos espaços, dos tempos. Durante algum tempo, o teatro contem-
porâneo abriu mão da palavra e do texto teatral. Era uma resposta a
anos de submissão do espetáculo ao autor. Passada esta necessidade
de se contrapor, o teatro redescobre a palavra concebida de todas
as formas. E o texto escrito para a cena é novamente acreditado e
valorizado como propulsor do acontecimento, um reconhecimen-
to de que no seu interior pulsa a vida da encenação.
E aqui, em Roberto Zucco, como em toda obra de Bernard-
Marie Koltès, temos o novo texto teatral. Que se liberta da ação li-
near, que se apropria da fragmentação da contemporaneidade.
Fernanda constrói o percurso da biografia do autor, trazen-
do aspectos fascinantes que mais adiante reencontraremos em sua
dramaturgia. Como é o caso do profundo desejo de viajar que vá-
rios autores reconhecem em Koltès e que ele levará também a seus
personagens. Não qualquer viajante, mas aquele para quem, como
lembra Tomáz Tadeu da Silva,* *
(SILVA, Tomaz Tadeu. “A
produção social da iden-
tidade e da diferença”. In:
a viagem proporciona a experiência do ‘não sentir-se em casa’ que, SILVA, Tomaz Tadeu (org.).
na perspectiva da teoria cultural contemporânea, caracteriza, na ver- Identidade e Diferença. A
dade, toda identidade cultural. Na viagem, podemos experimentar, perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis: Vozes,
ainda que de forma limitada, as delícias – e as inseguranças – da 2000: 88.)
instabilidade e da precariedade da identidade.

Identidade precária ou a invisibilidade de Zucco. E como Fer-


nanda afirma mais adiante, também do autor que amava a errância
e ridicularizava a ideia de se ter raízes.
Zucco é um itinerante, em fuga, em viagem. Da mesma forma
que o ator é este “viajante”. O ator oferece sua bagagem para vestir
qualquer personagem. O provisório e o transitório no ofício do ator

Mirna Spritzer | Cabe ao palco o que é efêmero, à literatura o que é eterno 427
de teatro referem-se ao seu corpo instrumento, o lugar de muitas
identidades, quase todas transitórias. E à ação no tempo presente,
e, portanto provisória, qualidade fundamental do teatro.
(BROOK, Peter. O teatro e
Peter Brook,* encenador fundamental do século XX, trabalha
*

seu espaço. Petrópolis: Vo-


zes, 1970.) com a noção de precariedade no que diz respeito à ideia de constru-
ção. Refere-se ao senso comum em teatro relacionado à construção
do personagem. Para ele, o personagem não pode ser erguido passo
a passo como uma parede. Ao contrário, o personagem deve nascer
e não ser construído, já que o papel construído é sempre o mesmo
e a cada noite se desgasta. É este ator talhado para viver Zucco, que
renasce a cada cena, ou estação como nos apresenta Fernanda.
Adiante, a autora enfatiza a relação de Koltès com os clássicos.
Em especial Dostoiewski e Shakespeare. No caso de Shakespeare,
na abertura de Roberto Zucco já nos deparamos com os dois guardas
conversando e logo associamos com Hamlet, de Shakespeare. Se lá
há um espectro do rei e se discute sua aparição, aqui temos Zucco se
equilibrando pelo telhado, ele também de certa forma um espectro
uma vez que os guardas não o veem. Em vários momentos do tra-
balho, Fernanda nos aponta referências a Shakespeare. Se fizermos
uma leitura com este único objetivo encontraremos inúmeras possi-
bilidades. É como se Koltès necessitasse antes apropriar-se dos clás-
sicos reinventando-os, para então ousar sua própria escritura.
Um aspecto interessante marcado por Fernanda é a relação
do dramaturgo com a iluminação. Suas construções revelam indi-
cações precisas sobre a luz da cena. Percebe-se em Zucco, um jogo
interessante entre luz e sombra, entre claro e escuro. Determina-
das situações necessitam de uma luz singular para que aconteçam.
E assim evidencia-se um olhar debruçado sobre as palavras, mas
que jamais perde de vista a cena.
Há um intenso estudo das passagens de cena em termos de sua
localização e do momento em que ocorrem. É um minucioso exercí-
cio de observação e reflexão, como se a autora tentasse compreender
os motivos do autor para sua determinação. Como por exemplo:
A cozinha da casa da garota e a delegacia, que deveriam ser lugares
tranquilos e seguros, não o são. Por sua vez, o Petit Chicago deveria
ser uma zona de risco, por onde circularia a escória da sociedade.
Pelo contrário, a realidade se mostra outra: o bairro é calmo e suas
dependências acolhem aqueles que ali chegam em busca de consolo
ou abrigo. (p. 51)

428 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Quando reconhece no espaço um determinante da ação e
mesmo das relações entre as personagens, ela está reconhecendo
no texto aquilo que é caro ao teatro e devolvendo a ele uma aná-
lise que o amplia.
É um tipo de informação que em termos da literatura revela
intenções, propõe hipóteses e faz articulações entre as caracterís-
ticas dos personagens e sua ação no espaço. Em termos de teatro,
traça um mapa do andamento da ação fazendo-nos compreender
que estamos diante de uma composição singular, de uma drama-
turgia que fragmenta e quer desenhar o mundo contemporâneo
através da sua estrutura.
Assim, Fernanda nos mostra um dramaturgo que, além de es-
crever com maestria sobre a alma de seu tempo, explora a capaci-
dade do teatro de ir a muitos lugares em pouco tempo, de cambiar
espaços sem sair do espaço do palco, sem compromisso com o re-
alismo, como no caso do cinema que exige locações.
Em Personagens, vemos esmiuçados o caráter e a imagem dos
personagens, agrupando-os, incluindo, separando, fazendo no-
vos conjuntos. Mais uma vez podemos imaginar como este mate-
rial reagiria nas mãos dos artistas do palco. Pois, assim como Kol-
tès, Fernanda é do teatro. E é seu olhar cênico que guia a trajetó-
ria da dissertação. Como está dito no texto do trabalho: “Somente
no palco Koltès pôde criar os universos que desejava propor, dese-
nhando o real sem confundir-se com ele, pois o teatro não passa
de convenção.” (p. 90)
Fernanda nos demonstra em vários momentos que, para Koltès,
a ação está em lugar da motivação dos personagens. Eles agem. E fa-
lam. Personagens que se constroem na fala, na linguagem. Não se trata
apenas de construir um texto vocalizado organicamente, mas em criar
condições em que a fala signifique mesmo a existência do personagem. *
(PESSOA, Fernando. Livro
Como Fernando Pessoa,* que diz, “desde que vivo, narro-me”. do Desassossego. São Pau-
lo, 1999: 501)
Brecht,* apresenta seus personagens na medida em que agem
*
(BRECHT, Bertolt. Estudos
em relação aos outros: sobre teatro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1978: 123)
A aprendizagem de cada ator deve-se processar em conjunto com a
dos outros atores, e, da mesma forma, a estruturação de cada perso-
nagem tem de ser conjugada com a das restantes. É que a unidade
social mínima não é o homem, e sim dois homens. Também na vida
real nos formamos uns aos outros.

Mirna Spritzer | Cabe ao palco o que é efêmero, à literatura o que é eterno 429
Koltès, segundo Fernanda, também afirma através de seus per-
sonagens que eles estão no centro do confronto de forças e choques
entre eles, ou seja, que eles se constituem na relação com o outro.
Ainda que o trabalho não siga até a encenação, nos são apre-
sentados vários aspectos que denunciam a profunda teatralidade
na obra de Koltès, como a presença do coro, recriado, ou as esta-
ções como no teatro medieval.
A seguir, a autora elege autores contemporâneos e os apre-
senta ao seu leitor para comentar, concordar ou contrapor traços
do trabalho de Koltès já delineados por ela. São vozes reconheci-
das e respeitáveis que, ao seu lado, nos deixam mais fascinados pe-
la figura singular do autor e a dimensão de sua obra. Ainda aqui, a
forma com que a Dissertação está construída auxilia sobremaneira
o caminho que vamos trilhando na descoberta de Bernard-Marie
Koltès, Roberto Zucco e a nós próprios nesse emaranhado que nos
é designado como mundo em que habitamos.
Salienta-se ainda o anexo, em que se desenha um panorama
histórico do teatro francês do final do século XIX até o Nouveau
Théâtre. Uma excelente contribuição incluída no trabalho de ma-
neira a compreender a inserção da obra de Koltès no contexto da
criação artística.
* (LAROSSA, Jorge. La ex-
periência de la lectura. Es-
Jorge Larrosa* discute as questões e relações entre leitura e
túdios sobre literatura e for- formação. Diz o autor que pensar a leitura como formação im-
mación. Barcelona: Laer-
tes, 1996.) plica perceber não apenas o que o leitor sabe, mas aquilo que ele
é, sua subjetividade. A leitura como algo que nos forma e trans-
forma, que nos põe em questão, como algo que nos constitui. Ao
mesmo tempo, ver a formação como leitura implica pensá-la co-
mo uma relação de sentido, como se tudo o que nos acontece pu-
desse ser considerado um texto, algo que põe em alerta nosso sen-
tido de escuta. Ou seja, não importa somente o texto, mas a rela-
ção com o texto.
Ao estudar com tamanha profundidade o texto de Roberto
Zucco, Fernanda nos oferece a possibilidade de, como ela mesma
diz, reter um processo de criação no teatro. Se o espetáculo não
permanece para além da memória de quem o viu, o texto literário
fica, ainda e sempre, exposto a quem o quiser ler ou traduzir pa-
ra o espaço da cena.

Mirna Spritzer (UFRGS)

430 ALEA VOLUME 11 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2009


Revista alea: estudos neolatinos
A Revista Alea: Estudos Neolatinos foi criada pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1999, e con-
ta, desde 2001, com o apoio do Programa de Apoio às Publicações Científicas do
CNPq. A revista é indexada pela SciELO (Scientific Electronic Library Online) e
pela RedAlyc, sua versão on-line pode ser encontrada nos endereços http://www.
scielo.br/alea e http://www.redalyc.com.

Próximos números
alea 12/1 (janeiro/junho 2010)
Tema geral – Desacordos do tempo
Prazo para envio dos trabalhos: encerrado (número em preparação)

alea 12/2 (julho/dezembro 2010)


Tema geral – Literatura e ciências humanas
Prazo para envio dos trabalhos: 30 de junho de 2010
Instruções para envio de artigos

A Revista aceita os seguintes tipos de trabalho:


a) artigos inéditos em língua portuguesa que tenham relação com a área de letras
(mínimo de 25.000 e máximo de 40.000 caracteres com espaço);
b) resenhas críticas de dissertações, teses e livros de interesse para a área de letras
(mínimo de 10.000 e máximo de 15.000 caracteres com espaço). Os livros devem
ter sido publicados nos últimos 4 anos, no caso de edições estrangeiras, e nos
últimos 2 anos, no caso de edições brasileiras;
c) traduções de textos literários, com a devida autorização do autor e/ou editor
(até 15.000 caracteres com espaço).
Os trabalhos deverão ser inéditos e vir acompanhados de resumos (de até 150
palavras) em português, em inglês e na língua relacionada com o seu conteúdo
(espanhol, francês ou italiano) e de três a cinco palavras-chave em português e
em inglês. O título do trabalho deve vir também em inglês. O autor deve mandar
também pequena apresentação biográfica (até seis linhas), com nome completo,
titulação, instituição, cargo e publicações mais relevantes, bem como endereço
para correspondência e e-mail.

Formato, dados e citações


Os trabalhos devem ser enviados por e-mail (revista.alea@uol.com.br) em arquivos
compatíveis com a plataforma Windows, margens laterais de 3 cm, corpo 12 e
espaço 1,5).
De acordo com o formato da revista, há dois tipos de nota: a) notas de conteúdo,
que devem vir formatadas como notas de rodapé; b) notas bibliográficas, referentes
aos textos citados, que devem vir entre parênteses no corpo do texto, contendo
o nome do autor, o nome da obra ou do artigo e da obra em que está inserido, o
local, a editora e a data de publicação e o número da(s) página(s). Na impressão, as
notas bibliográficas figurarão como notas laterais. As citações em língua estrangeira
devem vir acompanhadas de tradução para o português.

Exemplo de livro:
Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986: 118-119.
Exemplo de artigo de livro:
Guilhaumou, J. & Maldidier, D. “Da enunciação ao acontecimento em Análise do
Discurso”. Em: Guimarães, E. (org.). História e sentido na linguagem. Campinas:
Pontes, 1989:66.
Exemplo de artigo de periódico:
Candido, Antonio. “Literatura e sociedade”, Letra no 2, Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras da UFRJ, 1984:239.

Direitos
O envio dos trabalhos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos de pu-
blicação para a revista. O autor continua a deter todos os direitos autorais para
publicações posteriores do artigo, devendo, se possível, fazer constar a referência à
primeira publicação na revista. Com a publicação do artigo o autor receberá dois
exemplares da revista. No caso de resenhas, 1 exemplar.
Para a remessa de trabalhos ou outras informações, entrar em contato com:
revista.alea@uol.com.br

alea: ESTUDOS NEOLATINOS


Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas
Faculdade de Letras / UFRJ
Av. Horácio Macedo, 2151
Cidade Universitária CEP 21941-917
Rio de Janeiro – RJ
e-mail: revista.alea@uol.com.br
alea 11/1
JANEIRO / JuNHO de 2009

Sumário

Identité et résistance: fondements et enjeux philosophiques 13


Jean-Pierre Zarader
Aimé Césaire et la lutte inachevée 24
Françoise Vergès
Afetos e arquivos da escravidão 35
Eurídice Figueiredo
A força de um olhar a partir do sul 48
Laura Cavalcante Padilha
Pensar a partir da literatura – da importância
dos estudos ibero-americanos 62
Margarida Calafate Ribeiro
Como Drummond constrói “Nosso tempo” 73
Marlene de Castro Correia
Un théâtre de “l’hypothèse communiste”? 87
Olivier Neveux
Da política à literatura: o percurso de Ignazio Silone 99
Patricia Peterle
A literatura como passagem: reflexões
em torno das ficções em desassossego 111
Lucia Helena
Grande Sertão: Veredas como gesto testemunhal e confessional 130
Márcio Seligmann-Silva
Língua, discurso e política 148
José Luiz Fiorin
Conferência

Malraux en Mai: crisologie du “temps des limbes” 171


Joël LoeHr

Resenhas
Fabio Akcelrud Durão. Modernism and Coherence –
Four chapters of a negative aesthetics [Modernismo e
coerência – Quatro capítulos de uma estética negativa].
(Frankfurt: Peter Lang, 2008) 183
José Carlos Felix
Primo Levi. A chave estrela. (São Paulo: Companhia
das Letras, 2008) 188
AndrÉia Guerini & Patricia Peterle
Maria Helena Valentim Duca Oyama. O Haiti como locus
ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais
em Carpentier, Césaire e Glissant. (Tese de doutorado,
Universidade Federal Fluminense, 2009) 193
Jovita Maria Gerheim Noronha

Você também pode gostar