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ESTUDOS NEOLATINOS
Alea Conselho editorial
ESTUDOS NEOLATINOS Adja Barbieri Durão
(Universidade Estadual de Londrina)
Revista semestral organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Andrea Mariani
Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que (Universidade Gabriele D’Annunzio – Pescara)
compreende as seguintes áreas de concentração: Estudos Linguís-
ticos Neolatinos (opção em Língua Espanhola, Língua Francesa ou Christophe Bident
Língua Italiana) e Estudos Literários Neolatinos (opção em Literatu- (Universidade de Paris VII)
ras Hispânicas, Literaturas de Língua Francesa ou Literatura Italiana). Cristina Iglesia
A publicação visa à divulgação de trabalhos de pesquisa originais
(Universidade de Buenos Aires)
provenientes das diversas áreas de produção de conhecimento
relacionadas com a área de Letras e Linguística que se articulem Dario Fred Pagel
com as línguas e as literaturas neolatinas. Visa igualmente salientar (Universidade Federal de Santa Catarina)
o caráter comparativista dos estudos linguísticos e literários hoje,
incentivando em particular pesquisas e trabalhos que ponham Diva Damato
em destaque a importância dos estudos de língua portuguesa no (Universidade de São Paulo)
contexto neolatino. A revista se propõe ainda a publicar resenhas
de teses e de dissertações, com o objetivo de divulgar trabalhos
Eneida Maria de Souza
acadêmicos da referida área, bem como de resenhas críticas, para (Universidade Federal de Minas Gerais)
a avaliação e difusão de publicações recentes. Francesco Marroni
Processo de Análise de Pares: os trabalhos adequados ao perfil da (Universidade Gabriele D’Annunzio – Pescara)
revista serão submetidos a pelo menos dois consultores ad hoc,
escolhidos entre especialistas da área. Henri Godard
(Universidade de Sorbonne)
Humberto Lopes-Morales
(Real Academia Espanhola)
Editores Jean-Claude Larrat
Edson Rosa da Silva (Universidade de Caen)
Marcelo Jacques de Moraes Lídia do Valle Santos
(Universidade de de Nova Iorque)
Comissão executiva Lisa Block de Behar
(Universidade de La República)
Andrea Lombardi
Márcio Seligmann-Silva
Angela Corrêa (Universidade de Campinas)
Annita Gullo
Maria Alzira Seixo
Bella Jozef (Universidade de Lisboa)
Celina Maria Moreira de Mello
Marietta Gargatagli
Cláudia Fátima Morais Martins
(Universidade Autônoma de Barcelona)
Cláudia Heloísa I. Luna Ferreira da Silva
Marilena Giammarco
Edson Rosa da Silva
(Universidade Gabriele D’Annunzio – Pescara)
Flora de Paoli Faria
Leticia Rebollo Couto Miriam Viviana Gárate
(Universidade de Campinas)
Marcelo Jacques de Moraes
Márcia Atálla Pietroluongo Neide T. Maia González
(Universidade de São Paulo)
Marco Lucchesi
Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio Piero Boitani
(Universidade de Roma La Sapienza)
Maria Lizete dos Santos
Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold Renato Cordeiro Gomes
Mariluci da Cunha Guberman (Pontifícia Universidade Católica – RJ)
Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina Ricardo de la Fuente Ballesteros
Pierre François Georges Guisan (Universidade de Valladolid)
Silvia Inés Cárcamo Rita de Grandis
Sonia Cristina Reis (Universidade British Columbia)
Tânia Reis Cunha Silvana Serrani Infante
(Universidade de Campinas)
Wander Melo Miranda
(Universidade Federal de Minas Gerais)
ISSN 1517-106X
Editora 7Letras
Rua Goethe, 54
Botafogo
22281-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel/fax: (55 21) 2540-0076
e-mail: editora@7letras.com.br
www.7letras.com.br
Semestral.
INDEXAÇÃO
Scielo
(www.scielo.br/alea)
Redalyc
(www.redalyc.com)
FINANCIAMENTO
Programa de apoio às
Publicações Científicas
Sumário
Traduções
Conferência
Entrevista
Resenhas
Charles Batteux. As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio.
Tradução do francês de Natalia Maruyama, tradução
dos trechos em latim de Adriano Ribeiro
(São Paulo: Humanitas & Imprensa Oficial, 2009) 413
LUIZ ARMANDO BAGOLIN
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução de Maurício
Santana Dias (São Paulo: Cosac Naify / 7Letras, 2009) 419
Patricia Peterle
Fernanda Vieira Fernandes. Um estudo de Roberto Zucco,
peça teatral de Bernard-Marie Koltès (Dissertação
de Mestrado em Letras. Programa de Pós-Graduação
em Letras, Instituto de Letras, UFRGS, 2009) 426
MIRNA SPRITZER
Contents
Translations
Lecture
Of an amnesic translation
(on Jacques Roubaud’s Algo: Preto) 387
INÊS OSEKI-DÉPRÉ
Interview
Resenhas
Charles Batteux. The Fine Arts reduced to a same principle.
Translated by Natalia Maruyama and Adriano Ribeiro
(São Paulo: Humanitas & Imprensa Oficial, 2009) 413
LUIZ ARMANDO BAGOLIN
Cesare Pavese. Hard labor. Translated by Maurício
Santana Dias (São Paulo: Cosac Naify / 7Letras, 2009) 419
Patricia Peterle
Fernanda Vieira Fernandes. An essay on Roberto Zucco,
a play by Bernard-Marie Koltès (Dissertação
de Mestrado em Letras. Programa de Pós-Graduação
em Letras, Instituto de Letras, UFRGS, 2009) 426
MIRNA SPRITZER
Editorial
Os Editores
Artigos
alea
L’humeur versatile
je traduis “Frische Fahrt” de Eichendorff
Philippe Marty
1
“Devenir” et “verser” (“tourner”: “vertere») peuvent se concevoir comme expri-
mant un même acte, un seul phénomène; “werden” (“devenir” en allemand) sort
du même étymon que le latin “vertere”.
2
Le poème “Les amis inconnus” de Jules Supervielle (le premier du recueil por-
tant aussi ce titre) commence par le vers: “Il vous naît un poisson qui se met à
tourner”. Il exprime (ce poème) l’humeur versatile, ou versabile, où je suis en
tant que traducteur-verseur: c’est l’humeur dans laquelle toute naissance, dans
le monde, me concerne, m’intér-esse (la traduction est “l’intér-essant par excel-
lence”, dit Michel Deguy, dans “Traduire”. In: La raison poétique. Paris: Galilée,
2000: 115), où tout ce qui naît et advient, se tourne vers moi, et moi vers “il”.
Voir aussi le poème “Heure grave” (“Ernste Stunde”) de Rilke, dans Le livre des
images: “Qui va en cet instant quelque part dans le monde [...] va vers moi, etc.”.
C’est l’ambiance d’un “pros” universel, ou encore l’épreuve de la “versabilité in-
finie” dont parle Novalis, cité par Antoine Berman (L’épreuve de l’étranger. Paris:
Gallimard, 1984: 31 et 125).
6
“ Volta”, “vez”, “fois”: en italien, portugais, espagnol, français, l’idée de la “fois”,
c’est-à-dire du mouvement de temps par lequel quelque chose agit entéléchique-
ment et cède la place, se dit par le “tour”.
8
“Peccatum” (“péché”) de la Vulgate est la traduction du grec “hamartia”, issu du
verbe “hamartanô”, “manquer le but”.
9
Il y a une étude à consacrer à la notion de “trouvaille” et à la question de sa-
voir pourquoi elle est limitée apparemment à la description du travail du tra-
ducteur (peut-être Valéry parle-t-il de “trouvaille” à propos de l’élaboration d’un
poème); sur la “trouvaille”, voir Marc de Launay (Qu’est-ce que traduire. Paris:
VRIN, 2006, p. 50).
Philippe Marty
Agrégé de alemão, é professor de literatura geral e comparada da
Universidade de Nice Sophia Antipolis (France). Sua tese de dou-
torado teve por tema a tradução de poesia e sua tese de habilitação
foi publicada (Le poème et le phénomène. Lectures de noms propres.
Éditions Le Manuscrit, 2007). Tem diversos artigos sobre poesia,
tradução e a relação entre filosofia e poesia, em torno de autores co-
mo Sófocles, Petrarca, Valéry, Rilke, Bobrowski. É ainda tradutor
de Hölderlin, Friedrich Schlegel e de Eichendorff (no prelo), pe-
la editora Grèges (Montpellier, França), e de Georg Simmel, pela
Maison des Sciences de l’Homme, Paris.
Abstract Résumé
Key words: archê; version,
translation; translatability; In this essay the word “transla- Dans cette étude, le mot “tra-
original; ethics; becoming. tion” is gradually replaced by duction” cède la place peu à peu
Mots-clés: archê; version;
verser; versabilité; original;
“version”. The great difference au mot “version”. La grande dif-
éthique; devenir. between them is that “transla- férence entre les deux est que le
tion” can only function to des- mot “traduction” ne peut servir
ignate what is meant in the tar- qu’à désigner ce qui se dit à l’ar-
get language one is translating rivée, dans la langue où l’on tra-
into, whereas “version” may ex- duit; alors que le mot “version”
press both the original in the peut exprimer d’un coup et
foreign language and the end l’original en langue étrangère et
result in the translator’s native ce qui découle de lui dans la lan-
tongue. For the original is here gue du traducteur. Car l’origi-
described as that which, at each nal est décrit ici comme ce qui,
attempt to reach it, to find it, à chaque fois, à chaque effort
withdraws, becomes vacant, and fait pour l’atteindre et le ren-
always indicates what concerns contrer, cède la place, se retire et
simultaneously the original text indique toujours ce qui regarde
and the final one, and which is à la fois le texte de départ et le
the source and end of any trans- texte d’arrivée et qui est la sour-
lation or version. In the world ce et la fin de toute traduction,
Recebido em
22/05/2009
Aprovado em
15/07/2009
Marcelo Diniz
1. Nicolas de Herberay
2. Mellin de Saint-Gelais
Resumo
Palavras-chave: tradução;
tradição; poética. Tradução do primeiro soneto francês segundo Jacques Roubaud e co-
mentário acerca de sua importância para uma poética da tradução.
Abstract Résumé
Key words: translation; tra-
dition; poetics. Translation of the first French Traduction du premier sonnet
Mots-clés: traduction; tradi- sonnet according to Jacques français, selon Jacques Rou-
tion; poétique.
Roubaud and a comment about baud, et commentaire sur son
its importance for a poetic of importance pour une poétique
translation. de la traduction.
Recebido em
18/05/2009
Aprovado em
15/07/2009
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 251
(Borges, Jorge Luis. “Pro-
impossível”.2* A multiplicidade de possibilidades de utilização da
*
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 253
nos referimos anteriormente, Borges apresenta a “versão literal” do
manuscrito encontrado. O manuscrito apresenta uma narrativa de
Marco Flamínio Rufo, homem que tem notícias da existência da Ci-
dade dos Imortais e de um rio que possibilita a imortalidade, partin-
do então em busca dos mesmos. Após diversos contratempos con-
segue encontrá-los; vivenciada, a dádiva já não parece maravilhosa,
gerando uma posterior busca pelo retorno à condição de mortal.
Nesse percurso, marcado por labirintos multiplicáveis e pa-
lavras em diferentes idiomas que assomam à memória do narra-
dor sem que ele saiba bem de onde, Rufo identifica entre os imor-
tais Homero, o pai das histórias, figura emblemática em torno da
qual proliferam as mais diversas discussões relativas à questão da
autoria e da criação textuais. Homero, cujas obras traduzidas fo-
(Borges, Jorge Luis. “As
ram discutidas por Borges em “As versões homéricas”,* obras que
*
É esse eco do passado que aparece nas palavras citadas por Ru-
fo ao longo de seu relato, em outros idiomas e rememoradas sem
que o autor saiba de onde: são palavras de Homero. Temos assim
um Rufo que é, ao mesmo tempo, Homero e muitos mais – o que
equivale a dizer que ele não é ninguém:
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 255
sal, mas também por elucidarem aspectos da criação literária que
não se deixam vislumbrar em outras situações – aspecto abordado
também por Italo Calvino. É com essa discussão que ele inicia “As
versões homéricas”:
Nenhum problema tão consubstancial com as letras e seu modesto
mistério como o que propõe uma tradução. Um esquecimento
animado pela vaidade, o temor de confessar processos mentais que
adivinhamos perigosamente comuns, o esforço para manter intacta
e central uma reserva incalculável de sombra velam as tais escrituras
diretas. A tradução, por sua vez, parece destinada a ilustrar a discus-
são estética. O modelo proposto à sua imitação é um texto visível,
não um labirinto inestimável de projetos pretéritos ou a acatada
*
(Ibidem.) tentação momentânea de uma facilidade.*
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 257
trabalha propriamente sobre a margem intraduzível de qualquer
língua. O tradutor literário é aquele que coloca a si mesmo inteiro
*
(Calvino, Italo. “Tradur- em jogo para traduzir o intraduzível.*
re è il vero modo di leg-
gere un testo”. In: Baren-
gui, Mario (org.). Italo Calvi- O texto literário não pode, assim, nunca ser traduzido por
no. Saggi. 1945-1985. Mila-
no: Mondadori, 2001, v. 2: completo, nunca será construída uma tradução idêntica ao origi-
1826-1827.)
nal, uma vez que ambos os textos, original e traduzido, assentam-
se em diferentes solos culturais, tanto em sua produção quanto em
sua recepção. A tradução será sempre uma aproximação, um texto
outro que dialoga com aquele original e com os dois idiomas em
questão. E é na forma como se estabelece esse diálogo que se en-
contraria a principal origem da diferença entre as traduções bem-
sucedidas e as traduções inadequadas.
Se cada idioma apresenta, como afirma Calvino, possibilida-
des e limites exclusivamente seus – “[...] cada língua tem limites,
*
(Calvino, Italo. “Italiano,
uma língua entre as outras
mas também possibilidades que são exclusivamente suas”* –, no jo-
línguas”. op. cit.: 144) go de traduzir o intraduzível o tradutor precisará mais do que do
conhecimento das línguas com as quais trabalha. Ele precisa con-
tactar o espírito de cada uma delas e descobrir como transmitir sua
“essência secreta”. Ou seja, o tradutor precisa conhecer a língua e a
cultura que a formou para que o texto traduzido apresente-se não
só como uma versão dicionarizada de seu original, mas seja capaz
de reproduzir de forma adequada o que aquela obra tem de único,
seus efeitos e peculiaridades narrativas, mantendo suas caracterís-
ticas mais tênues e sutis.
A tradução é, assim, vista por Calvino como um diálogo en-
tre dois idiomas que devem ser explorados pelo tradutor para deles
extrair, com a máxima liberdade e criatividade possível, o que po-
de haver de mais particular em cada texto e contexto de produção,
garantindo sua aproximação com o original e, ao mesmo tempo,
a sensação de que a obra foi produzida diretamente no idioma pa-
ra o qual foi traduzida, “uma prosa que se leia como se tivesse sido
*
(Calvino, Italo. Sul tra-
durre. In: Barengui, Mario pensada e escrita diretamente em italiano”.* É interessante obser-
(org.). Italo Calvino. Saggi.
op. cit.: 1778.)
varmos, em relação a esse aspecto, como o próprio escritor por ve-
zes se embaraça nas traduções de seus textos em virtude dessa va-
riação cultural entre idiomas distintos. Em sua introdução ao livro
Italo Calvino: uno scrittore pomeridiano, William Weaver, que foi
durante muitos anos o tradutor das obras de Calvino para o inglês,
narra alguns episódios relativos ao processo de tradução do livro
Palomar. Weaver afirma que Calvino, em seus últimos livros, pas-
sou a acompanhar de perto e intervir nas traduções para o inglês,
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 259
É um exercício, sobretudo, que gostaríamos de recomendar não
apenas aos críticos mas a todos os bons leitores: como é notório,
se lê verdadeiramente um autor apenas quando se o traduz, ou se
confronta o texto com uma tradução, ou se comparam versões em
*
(Calvino, Italo. Sul tra- línguas diversas.*
durre. In: Barengui, Mario
(org.). op. cit: 1779.)
Nesse sentido, com Calvino assim como com Borges, é possí-
vel pensarmos a tradução como um processo que permite desnudar
a criação literária, um processo no qual se coloca em questão, de
forma controlada e precisa, o fazer literário. Com isso, a tradução
pode funcionar como método também para a crítica, que a partir
dela pode vislumbrar as dificuldades, os sucessos, as boas soluções
encontradas pelos escritores para desenvolver seus trabalhos.
É o que se percebe quando, em Se um viajante numa noite de
inverno – romance que poderia ser tratado como um texto de te-
oria da literatura, protagonizado pelo Leitor e pela Leitora, e no
qual são ficcionalmente discutidos os mais diversos aspectos con-
cernentes à literatura, como as ideias de autor, leitor, bibliotecas,
editoras, originais, cópias, falsificações, e inclusive a tradução –, o
professor Uzzi-Tuzii inicia a tradução oral de um texto numa lín-
gua quase desconhecida:
Ademais, o professor Uzzi-Tuzii começara sua tradução oral como se
não estivesse bem seguro do encadeamento das palavras umas com
as outras, voltando ao início do período para reordenar os deslizes
sintáticos, manipulando as frases até moldarem-se completamente,
amarrotando-as, retalhando-as, detendo-se em cada vocábulo para
ilustrar-lhe os usos idiomáticos e as conotações, acompanhando-se
de gestos envolventes como se para convidar você a satisfazer-se com
equivalências aproximativas, interrompendo-se para enunciar regras
gramaticais, derivações etimológicas, citações de clássicos. Mas,
quando você já está convencido de que para o professor a filologia
e a erudição significam mais que a narrativa, percebe que se trata do
contrário: aquele invólucro acadêmico só serve para proteger o que
o relato diz e não diz, o sopro interior sempre a ponto de perder-se
em contato com o ar, o eco de um saber desaparecido que se revela
*
(Calvino, Italo. Se um via-
jante numa noite de inverno.
na penumbra e nas alusões silenciadas.*
Tradução de Nilson Moulin.
São Paulo: Companhia das Calvino explicita nesse trecho de seu romance a tradução co-
Letras, 1999: 74.)
mo o que ele chamou de um trabalho de dúvidas, conceito que
pode ser aplicado também ao processo de criação literária, à escri-
ta, ao que ele identifica em seu processo criativo como “tradução
*
(Calvino, Italo. Seis pro-
postas para o próximo milê- em palavras” de uma imaginação visiva, de um mundo concreto.*
nio. 2. ed. Tradução de Ivo
Barroso. São Paulo: Compa-
Traduzir e dedicar-se à leitura da tradução transformam-se, assim,
nhia das Letras, 1995.) nas reflexões de Calvino, em instrumentos de leitura, em possibi-
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 261
Apesar de algumas diferenças entre as abordagens dos dois
autores, interessa-nos destacar a presença da reflexão sobre a tra-
dução poética em suas obras, e os desdobramentos dessas reflexões
no processo criativo dos próprios autores, marcados por um pro-
jeto literário que apresenta muitos pontos de convergência. Ainda
que não tracem uma teoria da tradução, Borges e Calvino apresen-
tam em seus estudos específicos sobre a tradução, em seus textos
ficcionais que têm a mesma por tema, na estruturação de sua obra
e em suas concepções acerca da literatura elementos que em muito
contribuem para que pensemos o lugar ocupado pela tradução no
campo literário, e nas consequências e possibilidades abertas pelos
processos tradutórios para a produção, a teoria e a crítica literárias
e culturais. Valorizando a tradução, eles não deixam de perceber e
apontar suas dificuldades, mas lembram-nos todo o tempo que es-
sas dificuldades são também a matéria-prima para inúmeras e va-
riadas possibilidades narrativas.
Resumo
Palavras-chave: tradução; li-
teratura; crítica; Italo Calvi-
O presente ensaio procura apontar as reflexões sobre a tradução
no; Jorge Luis Borges. presentes na obras de Jorge Luis Borges e Italo Calvino, identifi-
cando como para estes autores a tradução, assim como suas possi-
bilidades e limites, é pensada em íntima relação com outras con-
cepções de literatura que permeiam suas obras. Ainda que seus es-
critos sobre o tema sejam assistemáticos e não se possa falar de uma
“teoria da tradução” relativamente à obra desses autores, suas refle-
xões sobre os processos tradutórios e os desdobramentos das mes-
mas em suas obras ficcionais certamente produzem ecos na crítica
e na teoria literárias.
which are included in Jorge ducción presentes en las obras Palabras clave: traducción;
literatura; crítica; Italo Calvi-
Luis Borges and Italo Calvino’s de Jorge Luis Borges e Italo Cal- no; Jorge Luis Borges.
works. It identifies how these vino, identificando cómo para
writers saw translations, as well esos autores la traducción, así
as their possibilities and limits, como sus posibilidades y lími-
in close relationship with other tes, está pensada en íntima re-
literary concepts which perme- lación con otras concepciones
ate their works. Even when their de literatura presentes en sus
works about the theme are not obras. Aunque sus escritos sobre
systematical and it is not possi- el tema sean asistemáticos y no
ble to talk about a “translation se pueda hablar de una “teoría
theory” in relation to these au- de la traducción” relativamente
thors’ works, their reflections a la obra de esos autores, sus re-
on the translation process and flexiones sobre los procesos tra-
the developments of the same ductorios y los despliegues de las
in their fictional works, certain- mismas en sus obras ficcionales
ly produce echoes in criticism ciertamente producen ecos en la
and literary theories. crítica y en la teoría literarias.
Recebido em
11/06/2009
Aprovado em
25/07/2009
MARIA ELISA RODRIGUES MOREIRA | Questões de tradução em Jorge Luis Borges e Italo Calvino 263
A tradução de Guimarães Rosa na França
Claudia Borges de Faveri
translator’s invisibility: a
history of translation. Lon- não descarta que o texto estrangeiro possa ser traduzido a partir de
don/New York: Routledge,
1995: 81.) um método estrangeirizante, mas esta não é a prática tradicional
da tradução no Ocidente, lembra-nos Berman, que insiste sobre o
*
(BERMAN, Antoine. La
traduction et la lettre ou
caráter destrutivo da prática tradutória em voga desde Roma.*
l’auberge du lointain. Paris: Será este nosso horizonte teórico e metodológico ao estudar
Seuil, 1999: 31-32.)
as traduções de Guimarães Rosa em francês. Em outras palavras,
1
Entrevista concedida a Nelson de Sá e Marcelo Rubens Paiva para o jornal Fo-
lha de S. Paulo de 6 de fevereiro de 2000.
traduction et la lettre ou
mo exemplo, Balzac, Proust, Joyce, Roa Bastos e Guimarães Rosa. l’auberge du lointain. Paris:
Seuil, 1999: 50.)
Daí, segundo Berman, certa informidade, resultante do cosmos de
línguas e registros atuando na obra. Para ele, homogeneizar o hete-
5
[A grande prosa] capta, condensa e mistura todo o espaço polilinguístico de
uma comunidade. Ela mobiliza e ativa a totalidade das “línguas” que coexistem
em uma língua.
9
Que o gascão vá, se o francês não pode ir.
10
Escrita fonética de: “D’où qui pue donc tant”. Frase por si mesma inusual em fran-
cês significando, literalmente: “onde quem fede tanto”. O leitor que abre Zazie dans
le métro se depara com a frase: “Doukipudonktan, se demanda Gabriel excédé.”
Resumo
Palavras-chave: teoria da tra-
dução; literatura brasileira Guimarães Rosa vem sendo traduzido para o francês desde 1961.
traduzida; França; Guima-
rães Rosa.
Quem são os agentes desta passagem, editores e tradutores, qual
sua relação com a literatura brasileira e como estes aspectos deter-
minam a maneira pela qual a obra do autor é apresentada ao siste-
ma literário francês? A análise de elementos propriamente textu-
ais de algumas traduções também balizam esta reflexão, que busca
compreender como a França recebe a prosa complexa de Guima-
rães Rosa, como e em que medida a transforma.
Recebido em
20/06/2009
Aprovado em
25/07/2009
MARIE HELENE CATHERINE TORRES | Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional 279
Portanto, sendo o público leitor de best-seller heterogêneo, o
tradutor usa de estratégias discursivas específicas para atingir uma
massa importante de leitores. O sucesso do best-seller depende da
identificação do leitor com as personagens que evoluem numa pro-
blemática social contemporânea. O texto traduzido deve criar um
mundo que o leitor reconhece. Outros critérios de sucesso do best-
seller, tal como a simplicidade da linguagem, as imagens estereoti-
padas, a identificação clara das personagens, permitem que o lei-
tor entre com facilidade no mundo imaginário do texto, porque
os valores que as personagens representam e difundem são natu-
rais e comuns para ele.
*
(Casanova, Pascale. La Casanova* se refere também à importância do público-alvo,
république mondiale des let-
tres. Paris: Seuil, 1999: 173.) o “publico internacional”. Para ela, os editores americanos desven-
daram os segredos do novo best-seller internacional, ou seja, o res-
peito das normas estéticas em vigor (até do século passado) e uma
*
(Ibidem: 174.) visão do mundo ocidental. Esses são, segundo ela,* os critérios co-
merciais mais divulgados. No intuito de tocar esse público inter-
nacional, o best-seller traduzido, sem suas referências originais, será
interpretado e avaliado de maneira diferente do que foi no seu es-
(Venuti, Lawrence. The
tado original. Venuti* diz que para atingir um público tão diverso
*
scandals of translations:
125.) “the treatment offered by a bestselling translation must be intelli-
gible whithin the different, potencially conflicting codes and ide-
ologies that characterize the audience”.
Venuti parte efetivamente da sensação de prazer que produz
a identificação dos leitores às personagens e situações da narrativa.
Para produzir esse prazer, ainda explicita que a narrativa deve ser
imediatamente compreensível para que a linguagem fixe “precise
*
(Ibidem: 126.)
meanings in simple, continuous syntax and most familiar lexicon”.*
A simplicidade da linguagem, da sintaxe do léxico, levou Venuti
a falar de “fluent translations”, traduções nas quais é percebido o
efeito de transparência em relação ao original. Para obter um texto
*
(Ibidem: 126.)
fluente, Venuti* afirma que os tradutores utilizam estratégias apro-
priadas como o sentido unívoco ou o uso comum do vocabulário.
Os tradutores evitam sempre construções não idiomáticas, polisse-
mias, arcaísmos, jargões, e até mesmo palavras que possam chamar
*
(Ibidem: 127.) a atenção do leitor. Essas traduções em “linguagem fluente”* privi-
legiam a linguagem padrão, comum, ou seja, uma linguagem tão
reconhecível que se torna invisível. A naturalização dessas traduções
– o que Venuti chama de “domestication” – é considerável, a ponto
de neutralizar, em nossa opinião, a cultura estrangeira até torná-la
MARIE HELENE CATHERINE TORRES | Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional 281
Acreditamos que o estudo teórico e crítico dos best-sellers levará
a academia a devolver-lhes a visibilidade que existe de fato no mer-
cado dos bens culturais e que representa mais de 70% das traduções
no mundo. Por consequência, no intuito de auxiliar as pesquisas dos
estudiosos de best-sellers traduzidos, podemos formular questiona-
mentos conforme o esquema que elaboramos a partir de hipóteses
prévias, que orientarão as análises de best-sellers traduzidos:
Como aparece a naturalização dos textos?
Quais os registros de linguagem? A linguagem é padrão? in-
formal?
Qual a identificação possível com o público leitor em estudo?
Em qual situação os leitores se reconhecem?
O texto de partida se inscreve dentro dos códigos e ideolo-
gias do sistema receptor?
Alguma ideologia específica perpassa as traduções?
Há passagens textuais não traduzidos? Quais?
Como os tradutores reforçam os valores dominantes da cul-
tura alvo?
A tradução ao ser transparente parece não ser uma tradução
assumida?
Abstract Résumé
Key words: translation; best-
On one hand, we have shown Nous avons montré dans cet ar- sellers; Venuti; Casanova.
in this article how text and me- ticle, d’un côté, comment le tex- Mots-clés: traduction; best-
ta-text are treated dissimilarly te et le métatexte sont différem- sellers; Venuti; Casanova.
Recebido em
18/05/2009
Aprovado em
20/07/2009
MARIE HELENE CATHERINE TORRES | Best-sellers em tradução: o substrato cultural internacional 283
Tradução, relação e a questão do
Outro: considerações acerca de um
projeto de tradução da Trilogia Sul-
americana Amazonas, de Alfred Döblin
Dicionário Tupi-Português:
com esboço de gramática nada era o povo Tucano, justamente um dos povos estudados por
do Tupi Antigo. Santos: Tra-
ço Editora, 1984, contra- Koch-Grünberg, o que poderia, por essa via, justificar a tradução
capa.)
de Entenleute por povo tucano.
Resumo
Palavras-chave: tradução;
relação; questão do Outro;
Em 1937, Alfred Döblin publicava Viagem à terra sem morte, ro-
alteridade; Döblin. mance que mais tarde constituiria o primeiro volume do que hoje
se conhece como sua Trilogia Sul-americana Amazonas. Valendo-se
da obra de etnólogos como Theodor Koch-Grünberg, de cuja obra
Mário de Andrade também se utilizara para criar seu Macunaíma,
Döblin não faz simplesmente uma tradução exoticizante dos regis-
tros etnográficos de uma cultura “primitiva” a partir da perspectiva
de uma cultura “civilizada”. Ao contrário, o autor convida o leitor a
descobrir-se nessa cultura pretensamente primitiva. Em outras pa-
lavras, em vez de simplesmente proporcionar uma experiência de
“tradução do Outro”, Döblin convida o leitor a “traduzir-se nesse
Outro”, flagrando-o em sua antes insuspeitável proximidade huma-
na. Propõe-se aqui a discussão da equação Döbliniana da “relação
com o Outro” em Amazonas, como fundamentação crítica de um
projeto de tradução dessa obra para o português do Brasil.
the three volumes of Döblin’s roman qui constituerait plus Mots-clés: traduction; re-
lation; question de l’Autre;
South-America Trilogy Ama- tard le premier volume de ce qui altérité; Döblin.
zonas. Based upon the work of est connu de nos jours comme
ethnologists like Theodor Koch- sa Trilogie Sud-américaine Ama-
Grünberg, whose work consti- zonas. S’inspirant de l’oeuvre
tutes also an important refer- d’ethnologues comme Theo-
ence for Mario de Andrade’s dor Koch-Grünberg, oeuvre
Macunaíma (1928), Döblin dont Mário de Andrade s’est
doesn’t simply translate those également servi pour créer son
ethnographic notes of a “prim- Macunaíma, Döblin ne fait pas
itive” culture on the perspective qu’une simple traduction aux
of a culture that pretends to be couleurs exotiques des registres
“civilized”: he invites the reader ethnographiques d’une culture
to discover himself in this oth- primitive à partir de la perspec-
er culture apparently so “primi- tive d’une culture civilisée. Au
tive”. In other words, instead of contraire, il invite son lecteur
simply experiencing a “transla- à se découvrir dans cette cultu-
tion of the other”, Döblin in- re soi-disant primitive. Autre-
vites the reader to “translate ment dit, au lieu de proposer
himself upon this Otherness”, une simple expérience de tra-
finding out an Other that is un- duction de l’Autre, Döblin in-
believably human. This paper vite le lecteur à “se traduire dans
aims at a preliminary discussion cet Autre”, le dévisageant dans
of Döblin’s Alterity equation, son insoupçonnable proximité
i.e. of the way he poses the prob- humaine. Il s’agit ici de la dis-
lem of Otherness in his Trilo- cussion de l’équation döblinien-
gy. This discussion outlines the ne de la question de la relation à
critical principles of a possible l’Autre dans Amazonas, comme
translation project of this work fondement critique d’un projet
to Brazilian Portuguese. de traduction de cette oeuvre
en brésilien.
Recebido em
01/06/2009
Aprovado em
25/07/2009
Introdução
Conclusão
Resumo
Palavras-chave: tradução;
As relações interculturais durante um longo período da história fo- literatura de viagem; repre-
ram realizadas em sua maior parte pelos viajantes e tradutores. A sentação cultural.
Abstract Résumé
Key words: translation; tra-
The relations between different Les relations interculturelles sur vel literature; cultural repre-
cultures have been developed une longue période de l’histoire sentation.
for a long time in cultural his- ont été menées principalement Mots-clés: traduction; litté-
rature de voyage; représen-
tory by the correlated work of par des voyageurs et des tra- tation culturelle.
Recebido em
25/05/2009
Aprovado em
18/07/2009
1
De origem taino, este termo está registrado no Vocabulario español-latino de
Antonio de Nebrija [1495]. Ed. facsimilar de Madrid, Real Academia Españo-
la, 195: f.XXIIIv.
2
No caso das referências ao mundo andino, as primeiras crônicas espanholas se
referem às lhamas como carneros, e até uma Crônica escrita em espanhol por um
índio se refere da mesma forma. (Guamán Poma, Felipe. Nueva Crónica y
buen gobierno.[1616] Historia 16: Madrid, 1987: 270.)
cit.: 85-86.)
A tarefa de uniformização proposta pelo III Concílio Limen-
se tenta controlar não só a diversificação pastoral, mas, sobretudo,
implica uma intervenção no planejamento da língua. A política
homogeneizante – uma língua, uma versão – exige tomar decisões
frente a esse conjunto de diversidades.
Para este fim, são elaboradas propostas que seguem os line-
amentos do modelo peninsular de “ordenamento” no âmbito das
línguas, especialmente na implementação e escolha de uma língua
geral regional. Entretanto, se abre um grande debate sobre a pos-
sibilidade de línguas indígenas serem capazes de comportar o ide-
ário cristão. Essa questão gera polêmicas acaloradas dentro das or-
dens religiosas, que chegam até aos níveis deliberativos mais altos
CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 311
da Igreja – os Concílios – em que, após argumentações e contra-
argumentações, são submetidas à votação.
Nesse quadro, um dos lados do conflito vê a língua castelhana
como a língua civilizadora e, em contrapartida, vê nas línguas indí-
genas o reduto das idolatrias. A tese contrária, que acabará sendo a
dominante, defende o uso das línguas indígenas, chamadas gerais,
pelas funções de comunicação interétnica, para desempenhar um
novo papel na difusão da doutrina cristã.
Para ilustrar as controvérsias levantadas em relação à termi-
nologia cristã, é representativo o caso da discussão em torno da
tradução do item lexical Dios. A propósito de um Catecismo em
uma língua indígena de Guatemala, publicado pelos franciscanos
no México, os dominicanos promovem uma polêmica que envol-
ve questões teológicas e linguísticas. Uma parte da ordem critica-
ra o catecismo franciscano por traduzir o termo Dios do espanhol,
en el nombre que significaba Dios en la lengua [indígena] com o se-
guinte argumento: como los indios no formaban concepto de lo que
significaba esta palabra “Dios”, andaban desatinados porque no po-
dian concebir a Dios em [língua] romance. No entanto, o próprio
superior dominicano, após uma visita, proibirá o nome “Cabahuil”,
termo indígena escolhido para a tradução, ordenando a sua subs-
tituição pelo nome de Dios, o “verdadeiro”, nas ações de catequese
*
(Ibidem: 56.)
na região.* Este episódio mostra não só as contradições no seio da
própria instituição, mas a relação que se estabelece entre retórica e
ideologia, na representação das línguas.
No mundo andino, as divindades, as práticas religiosas e os
ritos nas línguas indígenas constituem objeto de grande persegui-
ção por serem considerados veículos de idolatrias. A preocupação
e cuidados especiais podem ser observados na composição dos lé-
xicos e vocabulários. Frei Domingo de Santo Tomás compõe o Le-
xicón o Vocabulário de la Lengua General del Peru (1560), seguin-
do as entradas do Vocabulário Hispano-latino de Nebrija (1495).
A tarefa encomendada é a de construir um universo de conceitos
cristãos adequando o léxico quéchua. Y
alli donde las hubiese o por perífrasis y remantizaciones [...] ‘descons-
*
(Torero, Alfredo. “Entre
truir’, paralizar, la tradición andina en todo aquello que contrariase
Roma y Lima; el Lexicon la imposición del Evangelio y del dominio hispano, silenciando el
Quichua de Fray Domingo léxico quechua de contenido religioso indígena cuando no pudiese
de Santo Tomás [1560]”. In:
Zimmermann, Klauss (ed.) ser remantizado...*
La descripción de las lenguas
amerindias en la época colo-
nial. Madrid: Vervuert-Ibero-
A questão de fundo é que o uso das línguas indígenas na tare-
americana, 1997: 283.) fa de catequese implica a decisão de traduzir nelas a doutrina cris-
CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 313
traduzido como agorero, hechizero, passando, assim, por resseman-
tizações e diferenciações explicativas entre as concepções cristãs e
as das religiões andinas, indicadoras já da presença da Inquisição.
Da mesma forma, o termo quéchua de divindade: guaca é corres-
*
(Torero, Alfredo. op.
cit: 282.)
pondido pelo termo espanhol ydolo.*
A tradução de discursos eclesiásticos, guardando os princípios
próprios dessa retórica nas línguas indígenas, é considerada uma tare-
fa difícil. A Gramática [da língua quechua] de frei Domingo de Santo
Tomás inclui uma tradução da Plática para todos los Indios, com a ava-
liação que a tradução se hizo con no pequeño trabajo, por la mucha di-
*
(SANTO TOMÁS, Fray Do- fficultad que ay en declarar cosas tan diffíciles y desusadas a los Indios.*
mingo. op. cit. loc. cit.)
Essa avaliação é compartilhada pelo jesuíta José de Acosta, que
após fazer um paralelo entre as lenguas índicas, o hebreu, o grego e
o latim, para provar a sua simplicidade e facilidade em aprendê-las,
e ainda dizer que, apesar dos sons bárbaros, são capazes de modos de
decir tan bellos y elegantes, afirma que essas línguas tienen una gran
penuria de palabras, porque como bárbaros [los índios] carecian del co-
*
(Solano, Francisco. op.
cit.: 99.)
nocimiento de estos conceptos.*
Se bem que as tarefas de codificação, elaboração de gramáti-
cas e propostas ortográficas sejam vistas como de natureza técnica,
no terreno da codificação léxica as implicações sociais e culturais
ganham outra dimensão. No caso do universo andino, esses dicio-
nários desempenham um papel “intervencionista”, porque levam
a uma reformatação da Língua Geral quéchua. Neste processo si-
lencioso e pouco visível que Torero chama de ressemantização, a
cosmogonia e religiões andinas são minadas pela reconceitualiza-
ção de termos tradicionais e ao mesmo tempo, de introdução de
termos novos a partir da criação de novos significantes em quéchua
para categorias cristãs.
A Inquisição e as línguas
CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 315
Lexicón o Vocabulario de la Lengua General del Perú (1560)
çupay “ángel bueno o malo”
Diccionario Quechua
s. diablo, espíritu maligno
Ayacucho-Chanca.
s. diablo, demonio. Supay wasi:
Diccionário Quechua
‘Infierno’. Supaypa wawan:
Cuzco-Collao
‘hijo del diablo’.
–---------
Diccionario Quechua
esp. Demonio: Shapinku.
Cajamarca-Cañaris
Awqa*, manalli
*
Awqa: s. ‘demonio, enemigo; gato, judío/ adj. Tonto, opa, ignoran-
te, tonto
Pode-se observar como a “divindade” andina foi ressemantiza-
da negativamente, de forma que a sua invocação implicou castigos
de toda natureza, perseguição, tortura e execração pública. Desta
maneira, a entrada léxica cristalizou um significado até o ponto,
como se pode observar em um dos dicionários, de marcar uma das
funções do termo, a de insulto.
Em contrapartida, para a entrada léxica do espanhol Dios na
correspondência quéchua os mesmos dicionários oferecem a tra-
dução a seguir:
Diccionario Quechua
-------------------
Ayacucho-Chanca
Diccionário Quechua
Dyus o Yus; Yaya
Cuzco-Collao
Diccionario Quechua
Dyos, kamakoq
Ancash-Huaylas
Diccionario Quechua
–-----------------
Junin-Huanca
Diccionario Quechua
Dyus
de San Martín
Diccionario Quechua
Amitu, tayta, siñur, yaya
Cajamarca-Cañaris
CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 317
Dicionários:
Cerrón-Palomino, Rodolfo. Diccionario Quechua Junin-
Huanca. ME/IEP: Lima, 1976.
Cusihuamán, Antonio. Diccionario Quechua Cuzco– Collao.
ME/IEP: Lima, 1976.
Park, M. Weber, N. & Cenepo, V. Diccionario Quechua de
San Martín. ME/IEP: Lima, 1976.
Parker, Gary & Chávez, Amancio. Diccionario Quechua
Ancash-Huaylas. ME/IEP: Lima, 1976.
Nebrija, Antonio de. Vocabulario español-latino [1495]. Ed.
facsimilar de Madrid: Real Academia Española, 1951.
SANTO TOMÁS, Fray Domingo Grammatica: o Arte de la lengua
general de los indios de los reynos del Perú.[1560] Centro de estu-
dios regionles Bartolomé de las Casas: Cuzco, 1995.
Santo Tomás, Fray Domingo. Lexicon o Vocabulario de la lengua
general del Perú. [1560]. Agencia de Cooperación Española:
Madrid, 1994.
Soto Ruiz, Clodoaldo. Diccionario Quechua Ayacucho-Chanca.
ME/IEP: Lima, 1976.
Quesada, Félix. Diccionario Quechua Cajamarca-Cañaris. ME/
IEP: Lima, 1976.
Resumo
Palavras-chave: tradução;
As decisões políticas da administração colonial na América hispâ- historiografia linguística;
lexicografia; línguas indíge-
nica em relação às línguas têm a ver diretamente com a catequese. nas; política linguística.
Após a escolha das línguas a serem usadas para este fim, no caso as
línguas gerais assim chamadas pelas funções de comunicação inte-
rétnicas, começa um debate dentro das ordens missioneiras sobre a
capacidade de essas línguas comportarem a doutrina cristã.
Para levar adiante a ação evangelizadora, investe-se na produção
de Gramáticas, Dicionários bilíngues e propostas ortográficas para
essas línguas que viabilizam a produção de catecismos. A questão
debatida neste artigo está centrada nas políticas de tradução expli-
citadas pelos Concílios, que implicam, entre outros, a resseman-
tização dos termos étnicos que designam as entidades e as práti-
cas das religiões andinas, num processo de satanização que pode
ser observado nos Dicionários, na tradução à língua espanhola das
entradas léxicas e, ao mesmo tempo, na incorporação de emprés-
timos do castelhano às línguas indígenas.
Abstract Resumen
Key words: translation;
The language policy carried out Las decisiones políticas de la ad- translation, linguistic his-
toriography, lexicography,
by the colonial administration ministración colonial en Amé- indian languages, linguis-
of hispanic America is directly rica hispánica en el campo de tic politics
linked to the catechism of the las lenguas tienen que ver di- Palabras clave: traducción;
historiografia lingüística; le-
Catholic Church. When the rectamente con la catequesis. xicografía; lenguas indíge-
nas; política lingüística.
decision of which languages to Después de optar por las len-
use for catechism was taken (in guas que serán usadas para este
this case the general languages) fín, en el caso las lenguas gene-
a debate arose among the mis- rales, así llamadas por las fun-
sionary orders about whether or ciones de comunicación inter-
not these languages were able étnicas, comienza un debate
CONSUELO ALFARO LAGORIO | Léxico, dicionários e tradução no período colonial hispânico 319
to transmit the Christian doc- dentro de las órdenes misione-
trine. The evangelization process ras sobre la capacidad de estas
brought about the production of lenguas en comportar la doc-
grammar books, bilingual dic- trina cristiana.
tionaries and spelling sugges- Para llevar a cabo la acción evan-
tions for these languages. gelizadora se invierte en la pro-
This article focuses on the trans- ducción de Gramáticas, Dicio-
lation policies defined by the narios bilingües y propuestas or-
Church Councils. These includ- tográficas para estas lenguas que
ed the resemanticization of eth- viabilicen la producción de ca-
nic terms defining the Entities tecismos. La cuestión debatida
and andean religious practices. em este artículo está centrada en
The Spanish translation of lexi- las políticas de traducción expli-
cal entries in dictionaries of that citadas en los Concilios que im-
period, as well as the adoption plica, entre otros, la ressemanti-
of certain Spanish words into zação de los términos étnicos que
indigenous languages, reveal the designan las entidades y las prác-
nature of the demonizing pro- ticas de las religiones andinas, en
cess that was carried out. un proceso de satanización que se
puede observar en los Dicciona-
rios, en la traducción a la lengua
española de las entradas léxicas y
al mismo tiempo, en la incorpo-
ración de empréstimos del caste-
llano a las lenguas indígenas.
Recebido em
28/05/2009
Aprovado em
20/07/2009
Te mandei um passarinho,
patuá miri pupé,
pintadinho de amarelo,
iporanga ne iaué.
Te mandei um passarinho,
dentro de um cestinho,
pintadinho de amarelo
e bonito como você.
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 323
turais. Cada uma dessas línguas constitui um sistema de cognição
singular e único. Com a perspectiva de resguardar e socializar esse
patrimônio, foi assinada, em 10 de março de 2008, a Lei 11.645
que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática indígena. Os professores do sistema nacional de edu-
cação já começam a cobrar a produção de material didático que in-
corpore os conhecimentos dos índios e sobre os índios.
Dessa forma, uma parte da sociedade brasileira manifesta, ho-
je, interesse em conhecer a literatura, a poesia, as narrativas míti-
cas e os etnossaberes que circulam atualmente nas línguas indíge-
nas faladas no País. No entanto, os brasileiros só poderão ter aces-
so a essa produção que circula oralmente em línguas indígenas se
forem feitas traduções para o português. Acontece que inexistem
tradutores2 e dicionários para a maioria dessas línguas, e quando
existem, as traduções enfrentam pelo menos dois problemas cru-
ciais, que merecem ser aqui destacados: um de afinidade tipológica
das línguas em questão e o outro do tipo de registro.
O processo de tradução já é problemático até entre línguas
aparentadas pertencentes à mesma família ou ao mesmo tronco,
portanto com afinidades tipológicas, históricas e culturais. Mas es-
ses problemas se tornam mais complexos no caso das línguas indí-
genas, que são línguas distantes das europeias, carregadas de con-
ceitos étnicos, que não têm necessariamente correspondências nas
culturas ocidentais. Portanto, a tradução não está relacionada so-
mente à tipologia linguística, isto é, como conseguir efeitos de sen-
tido com ordenamento das partes da oração tão diferentes, mas
apresenta obstáculos de ordem cultural, quase intransponíveis, na
busca de termos equivalentes.
A dificuldade de encontrar equivalência em línguas tão dis-
tantes aflora quando se entra no terreno da cultura material, espe-
cialmente no referente às taxonomias nativas em botânica e zoolo-
gia, mas adquire uma dimensão maior no campo da cultura ima-
terial, envolvendo estrutura de parentesco, religião, mitos. O no-
vo, o estranho e o diferente não podem ser identificados com as
2
Numa iniciativa inédita no Brasil, alguns índios guarani participaram do curso
ministrado pela doutora Lillian DePaula, a partir de 2005, no projeto 5ª. Habi-
lidade: Educadores Indígenas & tradutores em diálogo, desenvolvido pelo Núcleo
de Pesquisas em Tradução e Estudos Interculturais do Programa de Pós-Gradu-
ação em Estudos Linguísticos e Estudos Literários da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES). No curso, os alunos receberam formação teórica e técni-
ca sobre o processo de tradução das narrativas indígenas.
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 325
missionários deveriam ter feito era “conservar o sentido fielmente
e traduzi-lo de modo que o selvagem entenda esse pensamento”.
Assim, ele propõe modificações na versão em Língua Geral do Pai
*
(MAGALHÃES, J.V. Couto
de. Curso da Língua Geral
Nosso, feita pelos jesuítas.*
segundo Ollendorf, compre- Os catecismos, sermões, poesia, teatro e demais textos tradu-
endendo o texto original de
lendas tupis. Rio de Janeiro: zidos pelos missionários ao Tupi Antigo – uma língua relativamen-
Typographia da Reforma,
1876: 141.)
te bem documentada num período de dois séculos, de 1550 a 1750
– foram criticados também por outros estudiosos devido à sua arti-
ficialidade e porque versam sobre temas estranhos à cultura indíge-
na. “O que é artificial na literatura missionária é o pensamento ou
quiçá a cultura que se põe na língua do índio, não necessariamen-
te a língua em que se expressa aquele pensamento” – escreve Lemos
Barbosa, professor de Tupi Antigo na PUC/RJ nos anos 1950. Ele
apresenta um sem-número de exemplos ilustrativos mostrando que,
no caso, os dicionários e glossários tiveram serventia limitada:
Os dicionários podem dizer que “anga” significa “alma”. Mas o
conceito de “alma” é diferente do de “anga”, tanto em compreensão
como em extensão. Nós atribuímos à “alma” características (por
exemplo, a imaterialidade) que não cabem no conceito indígena
de “anga”. Por outro lado, um índio animista falará na “anga do
vento”. Diga-se outro tanto de cousas como “ybaka” (céu), “yasy”
*
(BARBOSA, Antônio Lemos. (lua), “ara” (dia ou tempo), “mano” (morrer), etc.*
Curso de Tupi Antigo. Gra-
mática. Exercícios. Textos. Rio
de Janeiro: Livraria São José, Alguns jesuítas se destacaram pelo profundo domínio que
1956: 19, 436-437.)
tinham de várias línguas indígenas e nos deixaram um legado de
muito valor. No entanto, aqui e ali, missionários menos prepara-
dos cometeram, inicialmente, erros primários quase “folclóricos”,
quando em algum lugar traduziram, por exemplo, a oração do Pai
Nosso por Ore Ubá, obrigando os índios a excluírem do seu conví-
vio a figura de um Deus Pai, cuja paternidade era questionável, e
*
(FRANÇA, Ernesto Ferrei-
ra. Chrestomathia da Língua
de um Deus Filho, para sempre incompreendido.*
Brasílica. Leipzig, 1896.) É que o tupi antigo possui dois possessivos: quando o “nos-
so” inclui o interlocutor, usa-se “iandé” ou “nhandé”; mas no caso
em que o “nosso” é exclusivo, emprega-se “ore”, o que não permi-
tia, quando juntos rezavam, que índios e missionários comparti-
lhassem o mesmo Pai. Mas igualmente problemática foi a tradução,
nesse contexto, de “pai” por “ubá”, porque a estrutura de parentes-
co obedece a princípios totalmente diversos dos nossos.
Se, por exemplo, a palavra “ubá”(t) denomina tanto o “pai” como
o “irmão do pai”, é claro que ela não tem correspondente preciso
em português. Do mesmo modo, filho não tem equivalente em
pi na Geografia Nacional.
São Paulo/Brasília: Brasilia-
Quando se pensava haver contornado alguns desses proble- na/Editora Nacional. Volu-
me 380. 1987:85 (1ª. Edi-
mas, surgiam outros. É Lemos Barbosa que chama a atenção para ção – 1901).)
o fato de que não há, em tupi, o verbo “dever” na acepção de “ter
obrigação de”, da mesma forma que não existe a noção de “peca-
dor”, o que levou os padres a criarem neologismos, no catecismo,
para expressões como: “Deve o pecador envergonhar-se ao dizer
‘Padre Nosso’ a Deus?”. Ignora-se, no entanto, a penetração na lín-
gua corrente dos neologismos criados por missionários.* *
(BARBOSA, Antônio Le-
mos. Curso de Tupi Antigo.
Esses problemas de tradução de/para as línguas indígenas aca- op. cit.: 252.)
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 327
ral, porque “traduzindo em uma língua viva, me não me era lícito
o uso de expressões que nella não são intelligíveis. [...] Também os
mahometanos, budhistas, os antigos romanos, não tinham o casa-
mento christão, e nem por isso a palavra casamento é intraducti-
*
(MAGALHÃES, J.V. Couto
de. Curso da Língua Geral... vel em árabe, chinez, ou latim”.*
op. cit.: 134-137.) Em grande medida, a visão glotocêntrica do colonizador con-
tribuiu para aumentar as dificuldades.
Os antigos missionários pagaram tributo à mentalidade dominante
na época. Considerando a cultura europeia e as línguas clássicas o
tipo ideal de cultura e de linguagem humanas, não lograram compre-
ender o interesse de registrar produções espontâneas de uma língua
de índios. Deixaram-nos inúmeras traduções de livros europeus, de
composições ocidentais; não nos legaram uma só lenda ou narração
(BARBOSA, Antônio Le-
autêntica no idioma nativo.*
*
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 329
Dicionários: o tupi e o guarani
MEONIDIS, Haralambos
O guarani moderno, como já mencionado, é a continuação (Eds). Guarani y ‘Maweti-
Tupi-Guarani’.Berlin: LIT,
do guarani antigo. Sua proximidade com a LGA ou nheengatu, ori- 2006: 7.)
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 331
pelo inimigo, mas desconhecida em sua própria trincheira. Do ou-
tro lado, havia situação similar, de soldados paraguaios que caíram
prisioneiros de guerra e, na qualidade de monolingues em guarani
criollo, só podiam ser submetidos a interrogatórios com ajuda de
soldados amazonenses, bilíngues em Língua Geral-Português, que
funcionaram efetivamente como intérpretes e tradutores.3
Portanto, a pretensão dos professores bilíngues guarani, que
traduziram patuá em nheengatu por “cestinho”, não parece assim
tão descabida. Eles são, na sua maioria, falantes da variedade Mbya
e Nhandeva e, em proporção reduzida, de Kayowá. Buscamos, en-
tão, dicionários especializados em diferentes variedades, elabora-
dos em diversas épocas, para verificar a propriedade da tradução:
Montoya (1640), Guasch (1948) e Dooley (1994).
Quem organizou o primeiro corpus guarani sistematizado, sen-
tando as bases da passagem da tradição oral à escrita, foi o jesuíta
Antônio Ruiz de Montoya (1585-1652), que nasceu e morreu em
Lima, mas viveu muitos anos entre os guaranis, havendo fundado
o povoado de Loreto, em Misiones, Argentina. O original da pri-
meira edição, de 1640, custodiado na Biblioteca Nacional de Ma-
drid, foi reeditado no Paraguai e na Argentina, com ortografia mo-
derna do guarani. “En este Vocabulário se ponen los vocablos sim-
plemente. Para saber sus usos y modo de frases, se ha de ocurrir a
la segunda parte (Tesoro).” O Tesoro a que se refere é um comple-
mento do Vocabulário. As duas partes apresentam várias entradas
para diferentes tipos de canastras e cestos: ajaka, panakũ, yruague
(MONTOYA, A. Ruiz. Ar-
e urukuru.* Mas nenhuma das duas obras registra o verbete patuá
*
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 333
ordinária sobre a aprendizagem de uma segunda língua: “Não he
fácil, pio leitor, aos q. aprendem algũa língua estrangeira, de idade
*
(FIGUEIRA, padre Luis. Ar-
te da Língua Brasílica com- já crecida, alcançar todos os segredos e delicadezas della.”*
posta pelo padre Luis Figuei-
ra da Companhia de Jesus,
Os segredos e delicadezas se tornam maiores diante das difi-
theologo. Lisboa: Manuel culdades já sinalizadas, o que não impediu que diversos cronistas
da Silva, 1621: 3.)
e viajantes, em momentos diferentes, registrassem a palavra patuá,
tanto no Tupinambá do norte e seus derivados, caso de Claude
D’Abbeville (1614) e Martius (1863), como nas variedades do Rio
de Janeiro e da Bahia, casos de Gabriel Soares de Sousa (1587) e Si-
mão de Vasconcellos (1663), esses dois últimos citados por Cunha
em seu Dicionário Histórico. Todos eles também se referem a pa-
tuá ou patiguá como cesto da palha de uma palmeira brava, de ra-
ma pequena e mole, que fornece a matéria-prima para sua confec-
(CUNHA, Antônio Geral-
ção.* No glossário de diversas línguas indígenas elaborado no sé-
*
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 335
mários”. Mas sua ocorrência se dá no rio Araguaia, onde os Karajá
produzem um balaio com o mesmo nome e a mesma forma, com
uma “tampa telescópica”. O Museu Nacional possui em seu acer-
vo um exemplar, cujo desenho aparece no dicionário de Ribeiro.
Na descrição das matérias-primas, o verbete volta a ser registrado
como patauá – “palmeira que cresce em terra firme, à margem dos
*
(RIBEIRO, Berta G. Dicio-
nário do Artesanato Indíge-
igarapés e em igapós”.*
na. Belo Horizonte/São Pau- O termo registrado nos anos 1980 por Ribeiro parece ter ca-
lo: Itatiaia/Edusp, 1988: 53-
54 E 64.) ído, hoje, em desuso. Na Wariró – Casa de Produtos Indígenas do
Rio Negro, localizada em São Gabriel da Cachoeira (AM), podem
ser comprados jarras, balaios, urutus, peneiras e todo tipo de arte-
sanato. No entanto, lá não existe nenhum tipo de cesto denomina-
do “patuá”, conforme informações prestadas ao autor em outubro
de 2009 por sua responsável, Gilda da Silva Barreto. Confrontada
com o dicionário de artesanato indígena, Gilda Barreto, da etnia
baré, falante de nheengatu como língua materna, com curso de en-
sino médio completo, afirma a ocorrência do fruto e da palmeira
“patauá”, mas desconhece o tipo de cesto com esse nome. Escla-
rece que aquilo que Berta Ribeiro denomina “patuá” é conhecido
hoje como “panacu”, um tipo de cesto feito de folha dessa palmei-
ra, confeccionado no meio da floresta, quando se precisa improvi-
sar um utensílio para transportar qualquer objeto. Aventa a possi-
bilidade de “caçuá” – cesto com alça sem tampa, feito de fibra de
cipó aimbé – ser uma variante de “patuá”.
No português regional, talvez como resultado do contato com
o mundo urbano, os próprios índios usam “gaiola trançada”, um
termo híbrido registrado por Berta Ribeiro para designar “cestos
bojudos de variadas formas, de traçado hexagonal, para serem mais
leves e permitirem a entrada do ar, com alça para transportar aves
e pequenos animais”. Em artigo com o sugestivo título “Sendo ín-
dio em português”, Tereza Maher conclui que “a língua portugue-
sa acaba mesmo não sendo uma língua meramente emprestada do
branco, já que muitos índios dela se apropriam e a moldam, a fim
*
(MAHER, Tereza Macha-
do. “Sendo índio em portu-
de, através de seu uso, marcar e construir identidades”.*
guês”. In: SIGNORINI, Inês De qualquer forma, penso que para quem reflete sobre o pro-
(org). Língua (gem) e identi-
dade. Campinas: Mercado cesso da tradução é particularmente instigante destacar o fato de os
de Letras, 1998: 135.)
professores guarani chegarem a uma tradução mais adequada, ca-
minhando não necessariamente pelos sendeiros formais da língua,
mas pelos atalhos da cultura e da história.
Resumo
Palavras-chave: tradução;
O artigo parte do pressuposto de que a tradução constitui a única língua geral; guarani, his-
forma de acesso dos brasileiros aos etnossaberes que circulam nas tória social das línguas; le-
xicografia.
narrativas orais existentes em mais de 180 línguas indígenas fala-
das no Brasil. Estuda o caso da tradução de um poema bilíngue
nhengatu-português e, através dele, apresenta as línguas da família
tupi-guarani, especialmente as chamadas Línguas Gerais, propor-
cionando informações sobre os instrumentos clássicos de tradução:
vocabulários, glossários, dicionários e listagens de palavras. A partir
das traduções feitas pelos missionários no período colonial, e pelos
tupinólogos nos séculos XIX e XX, discute os problemas encontra-
dos: a falta de tradutores especializados, a raridade de gramáticas e
de dicionários, a distância tipológica entre as línguas indígenas e as
línguas europeias e, finalmente, as diferenças do tipo de registro, já
que se trata de transferir significados produzidos em línguas ágrafas,
de forte tradição oral, para línguas com tradição de escrita.
Abstract Resumen
Key words: translation; lin-
The article bases itself on the El artículo parte del presupues- guistic historiography, lexi-
notion that the only available to de que la traducción consti- cography, indian languages,
linguistic politics .
gateway to the ethno-knowl- tuye la única forma de acceso de
Palabras clave: traducción;
edge strewn in the oral narra- los brasileños a los etnosaberes lengua general; guarani; his-
toria social de las lenguas;
tives that exist in the more than que circulan en las narrativas lexicografia.
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE | Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto 337
guese poem. The study of the portugés y a través de un caso,
poem allows for an introduc- presenta las lenguas de la fami-
tion to the languages of the tu- lia tupi-guaraní, especialmente
pi-guarani family, particularly las llamadas Línguas Gerais, pro-
those called the General Lan- porcionando informaciones so-
guages and provides informa- bre los instrumentos clásicos de
tion on translation tools: dic- traducción: vocabularios, glosa-
tionaries, lexicons, glossaries rios, diccionarios y listas de pa-
and wordlists. Translations pro- labras. A partir de traducciones
duced by missionaries during de misioneros del período colo-
the colonial period and by 19th nial y tupinólogos en los siglos
and 20th century tupinologists XIX y XX, discute los proble-
are background to the analysis mas encontrados: falta de tra-
of certain problems: the lack ductores especializados, la es-
of specialized translators, the casez de gramáticas y de diccio-
scarceness of grammar books narios, la distancia tipológica
and dictionaries, the typologi- entre las lenguas indígenas y las
cal gap between indigenous lan- lenguas europeas y finalmente,
guages and European languag- las diferencias del tipo de regis-
es and finally, the differences tro, ya que se trata de transfe-
in register use: indeed the issue rir significados producidos en
here is translating non-graphic lenguas ágrafas, de fuerte tradi-
languages where the oral tradi- ción oral, para lenguas con tra-
tion pervades, into languages of dición escrita.
the written tradition.
Recebido em
28/06/2009
Aprovado em
30/07/2009
alea
Antoine Berman (1942-1991) é considerado um dos mais
relevantes teóricos da tradução da França do século 20. Ampara-
do em sua experiência como tradutor de obras da literatura lati-
no-americana e alemã, desenvolveu reflexões no âmbito da crítica
e da história da tradução. Berman sempre ressaltou que a tradução
é portadora de um saber sui generis sobre as línguas, as literaturas,
as culturas, os movimentos de intercâmbio e de contato e, por is-
so, deveria se configurar como um campo autônomo de pesquisa
e de ensino. Entre as suas obras traduzidas no Brasil estão A tradu-
ção e a letra ou o albergue do longínquo (7Letras/ UFSC, 2007) e A
prova do estrangeiro (Edusc, 2002).
O presente artigo, cujo título original é “La traduction et ses
discours”, foi publicado em 1989 na revista canadense Meta. Ne-
le, Berman retoma os discursos que tratam da tradução no Oci-
dente, aponta suas limitações e propõe uma nova abordagem: a
“tradutologia”.
Marlova Aseff
A tradução e seus discursos1
Antoine Berman
1
Os direitos de publicação deste artigo foram gentilmente cedidos pelas Presses
de l’Université de Montréal.
Os discursos gerais
Os discursos de experiência
4
Restaria, por outro lado, ver se a teoria descritiva não opera um retorno dis-
creto à normatividade. Cf. Brisset, Annie. “Les théories de la traduction et le
partage de champs discursifs: fonctionnalisme et caractérisation du littéraire.”
Neonelicon. Budapeste, 1986.
5
Citado em Immatériaux. Paris: Centre Pompidou, 1985.
A tradutologia
7
Que nossa época se encaminha a uma tal paideia é o que atestam as criações do
Colégio europeu de tradutores de Strahlen (Alemanha Federal), do Colégio inter-
nacional de tradutores de Arles e, por todo lado, de numerosos “centros de pes-
quisas” sobre a tradução. A tradutologia não é nada mais que a reflexão que vem
sustentar e esclarecer (ao mesmo tempo que se desenvolve e aprofunda) a ativi-
dade desses centros e colégios.
Resumo
Palavras-chave: tradução;
Neste texto, Antoine Berman analisa os diferentes discursos sobre Antoine Berman; traduto-
logia.
a tradução e propõe uma nova abordagem, a tradutologia. Tam-
bém sugere onze tarefas para a tradutologia, essa última entendida
como “a reflexão da tradução sobre ela mesma, a partir de sua na-
tureza de experiência”.
Abstract Résumé
Key words: translation; An-
In this paper, Antoine Berman Dans ce texte, Antoine Berman toine Berman; traductology.
analyses different discourses examine les différents discours Mots-clés: traduction; Antoi-
about translation and propos- tenus sur la traduction et pro- ne Berman; traductologie.
1
Lacan, Jacques. D’un discours qui ne serait pas du semblant. Seminário inédito,
lição do 12 de maio de 1971. Texto publicado em outubro deste mesmo ano no
n°3 da revista “Littérature” consagrada ao tema “Literatura e Psicanálise”.
2
Lacan, Jacques. Conferência feita em Roma em novembro de 1974 por oca-
sião do Congresso da Ecole Freudienne de Paris: O Real, a ética, a supervisão. In:
Interventions de J. Lacan extraites des Lettres de l’Ecole. Documento de trabalho,
Association freudienne internationale.
se en page de la psychanaly-
se“. La célibataire n°6. Paris: “a fala, o dizer, é preponderante em relação ao escrito, ou mais exa-
EDK, 2002: 281)
tamente, o escrito é ele próprio um dizer”.*
*
(Ibidem: 282.)
Mas não somos os únicos a ler em voz alta para traduzir. Es-
se método aproxima o nosso trabalho do de alguns tradutores de
textos literários. Paulo Ronai, por exemplo, traduziu as mil e du-
zentas páginas da Comédia Humana de Balzac utilizando essa mes-
(Cf. Ronai, Paulo. A Tradu-
ma abordagem.*
*
P h r a s i k l e i a . Pa r i s : L a
Découverte,1988: 53-72) Num capítulo dedicado ao leitor e à voz leitora, o primeiro ponto
sublinhado pelo autor é que o escrito é incompleto se a ele não for
acrescentada uma voz, e que a leitura em voz alta faz parte do tex-
to, ela está inscrita no texto.
Uma outra observação diz respeito ao leitor. E, mais uma vez,
a posição do autor pode nos interessar. E ele é incisivo:
– O leitor deve ceder sua própria voz ao escrito.
– No momento da leitura a voz não pertence ao leitor.
– O leitor permanece instrumental. Ao ler ele se define como
o instrumento sonoro da escrita.
– A voz deve seguir o rastro da escrita. O leitor segue os sinais
tangíveis da escrita para guiar a sua voz.
– A voz do leitor é instrumento que distribui aos ouvintes – e
também a ele próprio – o conteúdo do texto. Graças à sua voz ele
poderá levar aos seus próprios ouvidos as palavras da inscrição.
Esse trabalho em grupo em torno do texto Lituraterre nos en-
sinou a ler, a levar aos nossos próprios ouvidos as palavras da ins-
Resumo
Palavras-chave: bilinguismo
O bilinguismo do tradutor é tributário da relação do sujeito com do tradutor; posição subjeti-
o Outro, o que vem determinar a variabilidade desse bilinguismo va; letra; voz; psicanálise.
Abstract Resumé
Key words: translator’s bi-
The translator’s bilingualism is Le bilinguisme du traducteur lingualism; subjective po-
a result of his or her relation- est redevable de la relation du sition; letter; voice; psycho-
analysis.
ship with the Other, which ul- sujet à l’Autre ce qui détermine Mots-clés: bilinguisme du
timately determines the vari- la variabilité de ce bilinguisme traducteur; subjectivité; let-
tre; voix; psychanalyse.
ability of such bilingualism be- au delà de toute question liée à
yond issues related to knowl- la connaissance des langues ou
edge of languages and all the- à toute théorie concernant le
ories based on the old debate vieux débat autour du privilège
on the privilege of the target or à accorder à la langue cible ou à
source language. la langue source.
The translator’s bilingualism is Le bilinguisme du traducteur
more immediately confronted aurait ceci de particulier d’être
with writing, with the text, and confronté à l’écrit, au texte et
Gleiton Lentz
A Ippolito Pindemonte
A Ippolito Pindemonte
1
“Que os direitos dos deuses manes sejam sagrados”, expressão latina de Cícero
(106-43 a.C.), encontrada em De Legibus, obra composta provavelmente em 52
a.C. A citação, colocada como epígrafe d’Os Sepulcros, é a interpretação de uma
das leis romanas das Doze Tábuas, a XII Tábua, que, segundo a historiografia,
tratava de temas Complementares da antiga legislação romana, entre os quais,
provavelmente, os sepulcros.
2
Ippolito Pindemonte (1753-1828), escritor italiano, célebre pela tradução da
Odisseia, a quem Foscolo dedica os Sepulcros. Um ano após a publicação do po-
ema de Foscolo, Pindemonte publicou um homônimo poema, intitulado I Se-
polcri, onde o tema cemiterial é tratado sobre um plano particularmente afetivo,
enquanto que em Foscolo o poema adquire um caráter civil.
3
A Esperança, deusa romana, foi a última divindade a permanecer na terra quan-
do todos os deuses a abandonaram para subir ao Olimpo.
6
Um decreto napoleônico de Saint-Cloud, que entrara em vigor na Itália em
5 de setembro de 1806, obrigava, por razões de saúde pública, que os sepulcros
fossem construídos fora das cidades e proibia, por razões de igualdade, que ne-
les fossem colocados epígrafes com o nome dos mortos, além da exigência de lá-
pides iguais para todos.
7
Talia, musa da comédia e da poesia satírica.
8
Referência a Sardanapalo ou Assurbanipal (690-621 a.C.), último rei da Assíria.
9
O poeta é o italiano Giuseppe Parini (1729-1799), citado mais adiante, no
verso 72.
10
Milão, a cidade em que viveu Parini.
11
Ave migratória, encontrada na Europa, caracterizada por Foscolo como um
pássaro noturno, pelo canto lúgubre que emite, quando, na realidade, trata-se
de um pássaro diurno.
12
Entre os versos 90-96, Foscolo retoma o pensamento do filósofo napolitano
Giambattista Vico (1668-1744) ao afirmar que o culto dos mortos iniciara com
o surgimento da própria civilização, aqui exemplificada pela instituição do casa-
mento, pela formulação das leis e pelo surgimento da religião.
13
Lares, divindades protetoras das casas. Entre os antigos romanos, representa-
vam também os antepassados que cada família venerava.
17
Referência a Niccolò Machiavelli (1469-1527), historiador e poeta italiano,
autor de O príncipe.
18
A tumba de Michelangelo Buonarroti (1475-1564), pintor, escultor e arquiteto
renascentista italiano que projetou a cúpula da Basílica de São Pedro.
19
A tumba de Galileu Galilei (1564-1642), físico, astrônomo e filósofo italiano,
que afirmou e demonstrou, cientificamente, que o sol era o centro do sistema so-
lar e que os planetas giravam ao seu redor.
20
Ao físico inglês Isaac Newton (1643-1727), que a partir das descobertas de Ga-
lileu sondou os mistérios do universo para lhe formular leis.
21
Florença.
22
Referência ao poeta Dante Alighieri (1265-1321), que embora pertencesse ao
partido político dos “Guelfos Brancos”, ideologicamente se aproximava dos Gi-
belinos, outra facção de florentinos da época.
23
Referência ao poeta e humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1474). Ca-
líope, musa grega da poesia heroica.
24
Referência à destruição e devastação causada por contínuas invasões estrangei-
ras na Itália, desde a queda de Carlo VIII (1470-1498), ocorrida em 1495, até a
invasão francesa, em 1796.
25
Vittorio Alfieri (1749-1803), escritor italiano, a quem fora construído, após sua
morte em Florença, um grandioso sepulcro na Igreja de Santa Croce.
26
Parcas, divindades que na mitologia clássica romana determinavam o curso
da vida humana.
27
Aquiles e Ájax, heróis da guerra de Troia.
28
As musas são chamadas de “pimpleias” devido ao monte Pimpleia, a elas consa-
grado, localizado na Piéria, região da Tessália, nas encostas do monte Olimpo.
29
Electra.
30
Na mitologia romana, Júpiter, o senhor dos Deuses.
31
Dárdano, filha de Zeus e de Electra, que, de acordo com a mitologia clássica,
construiu a cidade de Troia.
32
Assáraco, rei troiano, descendente de Enéas.
33
Átropos, uma das três Parcas.
34
Erictônio e Ilo, heróis míticos troianos.
35
Cassandra, filha de Príamo, que possuía o dom da profecia e que vaticinou a
destruição de Troia.
36
Tideu, herói da Etólia, antiga província da Grécia, e Laertes, pai de Ulisses.
37
Febo, deus do Sol, na mitologia latina.
38
Deuses do lar, os antepassados da cidade de Troia.
39
Secure, espécie de machado rodeado de fasces que na antiga Roma os guar-
das, chamados de litores, carregavam adiante dos magistrados, como símbolo
de poder.
40
Referência ao poeta Homero que, segundo a tradição literária, era cego.
41
Para os gregos, “Pelides” são propriamente Aquiles e seu filho Pirro, também cha-
mado de Neoptôlemo, descendentes de Peleu, que aqui representa todos os gregos.
42
Héctor, o mais valoroso herói troiano, morto em duelo por Aquiles.
Resumo
Palavras-chave: poesia ita-
Apresenta-se a tradução integral do poema Os Sepulcros, do escri- liana; tradução literária; Ugo
Foscolo.
tor e poeta italiano Ugo Foscolo (1778-1827), precedida de uma
breve contextualização histórica.
Abstract Riassunto
Key words: Italian symbolist
We present a full translation of Si presenta la traduzione inte- poetry; literary translation;
Ugo Foscolo.
the poem “Os Sepulcros” by grale del poema Os Sepulcros,
Parole chiave: poesia ita-
the Italian poet and writer Ugo dello scrittore e poeta italia- liana; traduzione letteraria;
Foscolo (1778-1827), preced- no Ugo Foscolo (1778-1827), Ugo Foscolo.
alea
A conferência que publicamos a seguir foi proferida por Inês
Oseki-Depré, em setembro de 2009, na Casa das Rosas, em São
Paulo, durante o II Encontro de tradutores de obras francesas no Bra-
sil, organizado por docentes da USP no âmbito das atividades do
ano da França no Brasil.
Inês Oseki-Depré é tradutora e professora de Literatura Com-
parada da Universidade da Provença, no sul da França. Brasileira,
estudou na USP nos anos 1960 e fez seu doutorado na França, on-
de se estabeleceu. Tem trabalhos importantes sobre a tradução lite-
rária – em especial Traduction et Poésie (dir., Maisonneuve & Laro-
se, 1996), Théories et Pratiques de la traduction littéraire (Armand
Collin, 1999) e De Walter Benjamin à nos jours (Honoré Champion,
2006) – e longa prática como tradutora, do francês para o português
– realizou, por exemplo, a primeira tradução para o português dos
Escritos de Jacques Lacan –, e sobretudo do português para o francês
– traduziu José de Alencar, Guimarães Rosa, Ligia Fagundes Telles,
Antonio Vieira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa,
Haroldo de Campos (sua tradução de Galáxias ganhou o prêmio
Roger Caillois do melhor livro estrangeiro em 1999). Nos últimos
anos tem atuado como professora visitante em algumas universi-
dades brasileiras e é gestora, junto à Universidade da Provença, de
convênio entre o Centro de Pesquisa em Literatura Geral e Com-
parada e em Tradução Literária, dessa universidade, e o Programa
de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ.
A conferência aqui apresentada é uma reflexão sobre sua tradu-
ção do livro Quelque chose noir (Algo: preto), do poeta contemporâ-
neo francês Jacques Roubaud, que Inês publicou em 2005 pela edi-
tora Perspectiva, em coleção dirigida por Haroldo de Campos. Inês
apresenta as dificuldades de transposição de toda a memória poética
de Roubaud para a língua portuguesa, trabalho que, como conclui
o ensaio, faz surgir “em nossa língua uma poética inédita, herdeira
de formas e tradições diversas, ausentes em nossa memória”.
385
D’une traduction amnésique (à propos de
Algo: Preto, de Jacques Roubaud)
Inês Oseki-Dépré
guers, 1971.)
*
(Graal théâtre avec Floren-
en plus du le cycle du Graal,* dans lequel les aventures des héros sont
ce Delay. Paris: Gallimard, racontées selon plusieurs schémas narratifs est construit sur des tex-
1977; Graal fiction. Paris,
Gallimard, 1978.) tes de Gauvain Lancelot, Perceval, Guenièvre, et une étude.*
*
(La Fleur Inverse, étude sur Des essais sur le vers, sur l’alexandrin (La Vieillesse d’Alexan-
l’art formel des troubadours.
Paris: Ramsay, 1986.) dre, 1978), sur le sonnet en particulier (Soleil du soleil, 1990), sur
la mémoire (L’Invention du fils de Léoprépès, 1993), sur la poésie en
général (Poésie, etcétéra: ménage, 1995, La ballade et le chant royal,
1998), parsèment cette œuvre riche et volumineuse dont je ne don-
ne que quelques exemples.
En tant que poète, son œuvre contient des textes poétiques en
vers ou en prose narrative. Des premiers sont connus Mono no awa-
INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 389
Bayard”, d’où se détache particulièrement une traduction du Qo-
hélet, traduit aussi en portugais par Haroldo de Campos.
La traduction apparaît ici comme un exercice poétique, inté-
grant une pratique également créatrice (“transcréation” dirait Ha-
roldo), dans laquelle on retrouve les mêmes principes ou program-
me: tradition et rupture, rigueur formelle, dialogue entre ancien
et moderne (le “makeitnewisme”, comme il le dit). Traduction et
écriture se complètent, faisant partie d’une même attitude com-
mune, où l’histoire joue un grand rôle, l’histoire comme fond sur
lequel s’enchaînent évènements et textes.
INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 391
vers rimés, parfois au moyen de la rime riche ou de la rime “hirsu-
te” (voir allusion dans Quelque chose noir), celle dont la sonorité est
heurtée, explosive, sèche qui s’oppose aux grandes sonorités douces
(rimes caras). Parfois on retrouve le même mot répété à la rime.
Toute cette combinatoire produit un jeu rythmique d’une
grande complexité et d’une grande variété. Selon Istvan Frank, cité
par le poète, il existerait 900 types de rimes différents sur 2600 tex-
tes. L’organisation des poèmes est tout aussi complexe: chaque cobla
d’une canso a la même formule qui détermine pour chaque chant la
mélodie et la disposition des mètres et des rimes. On va retrouver
donc des cansos unisonans, dans lesquelles les coblas seront capfini-
das (reprise dans une strophe en dehors de la première d’un mot du
dernier vers de la précédente), capcaudadas (reprise de la dernière
rime). En somme, trobar est un métier. Traduire les troubadors un
autre, que Jacques Roubaud partage avec Augusto de Campos.
L’autre composante de la poétique roubaldienne est, on l’a dit,
la mathématique. Le goût de la rigueur, de la formule, des codes se
retrouve satisfait dans ce courant poétique, fait d’invention et de
liberté (chaque œuvre possède ses propres contraintes).
INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 393
tion pose problème. On a vu qu’il indique la structure du poème,
de la “neuvine”... Ma proposition a été:
“Essa imagem se apresenta pela milésima vez novamente”, où
“novamente” ne traduit pas tout à fait le mot “neuf ”, qui signifie
“novo”, “nove” et ici peut signifier “à nouveau”, “de novo”, “no-
vamente”, et, qui plus est, rime avec “veuf ” (viúvo). L’allusion au
*
(Algo: Preto. op. cit.: 65.)
“neuf ” apparaît également dans “Vou me afastar”,* sous forme de
multiple (3 fois 3 fois 3):
São três vezes tu três dos irredutivelmente separados
deslocados reais de ti perdidos numa diáspora que une
somente esse pronome: tu
Dans tout l’ouvrage, par ailleurs, les formes et les tons va-
rient, fragments, visions, pensées et la progression suit le proces-
sus de la disparition: le corps mort, les souvenirs, la fin de la mort,
la fin (“Quand ta mort sera finie, je serai mort”, “Quando tua mor-
te acabar, estarei morto”). De la première à la deuxième partie, aux
questions lancinantes (“où es tu?”, “onde estás?”), au constat de la
vacuité excessive du quotidien (voir le poignant poème sur la pré-
paration du bol de café), d’une douleur inégalable, l’image de la
femme se dessine, est présente, nue, pour atteindre une dynamique
dans la section suivante sous forme de roman-photo où la photo
est toujours présente, comme un leitmotive, une obsession qui re-
lie les mots à l’image (en noir et blanc).
Le sofrir des Troubadours, l’évocation de Dante et Pétrarque
survolent le poème, devenu “hirsute” en partie IV, mais la logi-
que, Wittgenstein, apparaît ici dans une intertextualité pas forcée.
La mort, si présente dans le livre, sera, par ailleurs, évoquée dans
Le Grand Incendie de Londres (1985-1987), belle prose du grand
troubadour aux accents japonais. Mais peu à peu la mort traverse
le poème et les mots, et, de noire, devient opaque, devient blanche
et claire, lumière, jusqu’à la mort du poète, qui s’est vidé jusqu’à la
non-vie, Orphée revenant seul des enfers, puis “rien”, un rien qui,
à l’instar de Fernando Pessoa, est tout.
Des pièces, par conséquent, où le soin, l’attention prêtée au
dire se répètent et s’équilibrent avec l’amour, la complicité avec la
femme aimée et les instants vécus, jamais pathétiques et cependant
si précis comme une douleur aiguë, étonnants, dont la forme cise-
lée produit une grande émotion esthétique et affective: “Quelque
chose noir qui se ferme et se tait, une déposition pure, inachevée”
(“Algo preto que se fecha e se cala, uma deposição pura, inacabada”).
en en faisant une clef, ce qui fait penser qu’il fonctionne plutôt ici
comme trompe-l’œil. Ceci entraîne comme conséquence que, pour
le critique, “la contrainte se trouve confrontée à ses propres limi-
tes”, poussant et freinant le mouvement à la fois. Pour preuve, elle
apparaît en opposition à millième (“Cette image se présente pour
la millième fois... à neuf avec la même violence...”/ “Essa imagem
se apresenta pela milésima vez... de novo com a mesma violência”),
signifiant à la fois l’arrêt de quelque chose qui se répète, une “fin
double”: la fin de la femme aimée, et la fin du silence.
INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 395
Le recueil est donc à la fois bâti sur le “neuf ” et sur la répéti-
tion. Il créé sa propre structure, n’est plus mémoire de la langue.
Répétition du chiffre-nom, répétition des titres des poèmes à
l’intérieur des neuf séries mais aussi répétition de vers, de fragments
ou de mots, répétition des blancs (la mise en page).
Ainsi, au début du recueil nous rencontrons une méditation
(“la méditation est un vice solitaire”, dit Paul Valéry), dont la signi-
fication philosophique et religieuse désigne le recueillement mais
aussi l’étude, la réflexion, qui se poursuit sur deux mois de l’année
1985. La seconde partie reprend la méditation durant le mois de
la première méditation (capfinida?). La quatrième partie revient sur
la méditation mais cette fois à travers l’intermédiaire du “portrait”
(“Portrait de méditation”, iii, iv, v), mais elle revient trois fois en V
partie, partie centrale du recueil, pour ne plus revenir.
Les titres répétés sont significatifs. On a évoqué la “médita-
tion” comme une forme de “médecine” chez les Indiens d’Amé-
rique. Stéphane Baquey fait remarquer qu’elle rejoint la pratique
poétique de Gertrude Stein (Stanza in Meditation) et de David An-
*
(Stéphane Baquey, pp.
630-631)
tin (Meditations), “sorte d’exercice logique”.*
On peut insister aussi sur la répétition du “roman-photo”,
qui attire l’attention sur le leitmotive du livre, sur la photo, sur le
noir et blanc, l’image de la photo, la photo de l’image, sur laquelle
on reviendra. Conort souligne l’importance de ce qu’il rappelle la
tentation du roman, de la prose, contre laquelle le poète travaille.
Il souligne également l’importance des répétitions accompagnées
de variations et dans ce sens, dit-il:
Le livre, cette déposition (à prendre aussi dans le sens d’un témoi-
gnage, comme on fait une déposition auprès d’un tribunal, par
exemple), s’accomplit à l’intérieur d’un mouvement contradictoire,
la boucle, qui revenant à son point de départ donne l’impression de
ne pas avancer; le dernie poème c’est encore le premier qui revient,
(CONORT, Benoït. “Tramer
et c’est toujours le même...*
*
INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 397
Ainsi, de son côté, le critique Jean-François Puff distingue deux
phases, deux projets à l’intérieur de l’œuvre roubaldienne. L’une qui
“se manifeste comme une mise en mémoire de la tradition poétique...
c’est-à-dire d’une poésie conçue comme entrebescar, entrelacement
des mots et des sons, réglé par des principes issus de la théorie du
rythme qu’il a développée avec Pierre Lusson, ce qui signifie la créa-
tion de formes nouvelles qui font mémoire de la forme ancienne”.*
(PUFF, Jean François.
Le paradoxe est qu’un nouvel état de poésie à la fois détruit un état
*
“L’écriture photographique
de Quelque chose noir”. La de poésie antérieur et se constitue comme sa mémoire.
Licorne. Revue de langue et
littérature française. Pres- Le projet de Roubaud commence alors après la rencontre
ses universitaires de Ren-
nes, 2007:1.) avec Alix Cléo (1979) et se trouve dans le poème “Une logique”,
III, 5 (“Une sorte de logique pour laquelle tu aurais construit un
sens moi une syntaxe, un modèle, des calculs/ Le monde d’un seul,
*
(Quelque chose noir. op.
cit.: 49)
mais qui aurait été deux; pas un solipsisme, un bipsisme...”/* “Uma
espécie de lógica para a qual terias construído um sentido eu uma sin-
taxe, um modelo, cálculos/ O mundo de um só, mas que teria sido dois:
*
(Algo: Preto. op. cit.: 53.)
não um solipsismo, um biipsismo”);* ce projet devait être mené à
deux, comme le relate Alix dans son Journal. Dans le Journal, on
trouve des séquences comme “la dernière chambre” et “si quelque
chose noir”. Alix se prend elle-même en photo et par un travail de
surimpression afin de “dégager l’âme des choses. Leur double in-
corporel”, l’objet de la photographie se donne comme mémoire,
comme “image dans la mémoire”. Or, explique le critique, la mort
d’Alix abolit le projet d’un travail à deux: ce qui était image la re-
production d’un corps sans vie. (“Il me passait devant les yeux des
séquences vitrifiées mais égales, en désaccord violent avec ton im-
*
(VII,6. Quelque chose noir.
op. cit.: 114.)
mobilité”/* “Passavam diante dos meus olhos sequências vitrificadas
*
(Algo: Preto. op. cit.: 113.)
mas iguais, em desacordo violento com tua imobilidade”.)* Dès lors,
de la femme aimée il ne subsiste plus que des photographies où elle
s’est photographiée morte, étant vivante. La troisième dimension
n’existe plus, seules restent les surfaces. (“Tu n’étais pas blanche et
noire plate l’étais-tu?/ Tu n’étais pas découpée en rectangle dans le
*
(III, 9. Quelque chose noir.
op. cit.: 57)
monde”/* “Não eras branca e preta plana. eras?/ Não eras recortada
*
(Algo: Preto. op. cit.: 61.)
em retângulo no mundo”.)*
De ce projet bipsiste, reste une douleur non solipsiste, puis-
que le poète parvient à s’orienter à l’intérieur de la contradiction
entre le projet et l’imprévisible. Selon Conort, “cette image de la
photographie, image de l’image, va innerver la totalité du livre, et
lui donner son mouvement. Il s’agit de “révéler” progressivement
l’étendue du désastre, il s’agit que le négatif, l’inverse de l’image
Elle ne représente aucun état possible des choses. (...) Dans la tauto-
logie, les conditions d’accord avec le monde – les relations de repré-
sentation – se neutralisent les unes les autres, de telle sorte qu’elle ne
*
(WITTGENSTEIN. Tracta-
se trouve en aucune relation de représentation avec la réalité.”* tus, 4, 462 Hocquard, Em-
Or, pour Emmanuel Hocquard, une relation existe entre un manuel, Les Babouches ver-
tes. op. cit.)
nom et la réalité qui se caractérise par le refus de la représenta-
tion. L’énoncé tautologique n’explique rien et, en même temps,
il dit tout, dit Hocquard. La tautologie en vient à être “une apo-
rie du discours”.* (Ibidem.)
*
INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 399
On s’en doute, le poème porte l’empreinte de la langue, à tra-
vers les formes qui s’y sont inscrites à travers le temps. Le formes
de la poésie troubadouresque, d’un côté, mais aussi les formes qui
s’y sont inscrites par la traduction, de l’autre.
Conclusion provisoire
INÊS OSEKI-DÉPRÉ | D’une traduction amnésique (à propos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud) 401
Resumo
Palavras-chave: tradução; A autora apresenta o trabalho do poeta contemporâneo francês Jacques
poesia francesa; Jacques
Roubaud. Roubaud e comenta sua tradução brasileira de Quelque chose noir.
Abstract Résumé
Key words: translation; The author introduces the work L’auteur présente le travail du
French Poetry; Jacques Rou-
baud. of the contemporary French po- poète contemporain français
Mots-clés: traduction; poé- et Jacques Roubaud and com- Jacques Roubaud et commente
sie française; Jacques Rou-
baud. ments on her Brazilian transla- sa traduction du recueil Quel-
tion of his Quelque chose noir. que chose noir.
alea
Questões sobre tradução
a Didier Lamaison
Didier Lamaison é Professor de Letras Clássicas, ensaísta e dra-
maturgo. Seu primeiro contato com a língua portuguesa se deu atra-
vés do “Soneto da Fidelidade”, de Vinícius de Moraes, e do poema
“José”, de Carlos Drummond de Andrade, quando trabalhava como
Professor Leitor de francês na Universidade Federal de Pernambu-
co, em 1980. É tradutor de Carlos Drummond de Andrade, Fer-
reira Gullar, Augusto dos Anjos, Mário Pontes, Machado de Assis,
Fernando Pessoa assim como de letras de músicas de Caetano Ve-
loso e Chico Buarque. Pelo trabalho de tradução da obra poética
de Carlos Drummond de Andrade – na França, editada pela Galli-
mard –, recebeu em 1991 o prêmio Nelly Sachs. Didier Lamaison
é também autor do romance noir Édipo Rei – traduzido do mito,
de 1994. Foi eleito, no dia 4 de junho de 2009, para Cadeira nº 1
do Quadro dos Sócios Correspondentes da Academia Brasileira de
Letras, sucedendo o escritor português Antônio Alçada Baptista.
Resumo
Palavras-chave: Lamai-
O tradutor e romancista Didier Lamaison responde a questões so- son; tradução; tradução
de poesia.
bre sua experiência como tradutor do poeta Carlos Drummond de
Andrade, o intraduzível, a tradução como forma de mutação e reno-
vação do texto original e as especificidades da tradução de poesia.
Abstract Résumé
Key words: Lamaison; trans-
The translator and novelist Di- Le traducteur et romancier Di- lation; translation of poetry.
dier Lamaison answers to ques- dier Lamaison répond à des Mots-clés: Lamaison; traduc-
tion; traduction de poésie.
tions about his experience as questions sur son expérience en
a translator of the poet Carlos tant que traducteur du poète
Drummond de Andrade, the Carlos Drummond de Andrade,
untranslatable, the translation sur l’intradusibilité, sur la tra-
as a form of change and origi- duction comme forme de chan-
nal’s renewal and features in the gement et de renouvellement du
translation of poetry. texte originel et sur les spécifici-
tés de la traduction de poésie.
alea
As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio. Charles Batteux (São
Paulo: Humanitas & Imprensa Oficial, 2009)
O princípio primeiro
As doutrinas artísticas antigas, refundadas em algum neoaris-
totelismo, assim como em obras poéticas também pertencentes à
antiguidade, a aristotélica e a horaciana, principalmente, serviram à
composição do ensaio intitulado As belas artes reduzidas a um mes-
mo princípio, de Charles Batteux, professor de retórica, filosofia e
de poesia grega e latina no Collège Royal de Paris, em fins do século
XVIII. Sucedem o Les beaux-arts outras obras fundamentais escri-
tas por Batteux ao longo do tempo em que desempenhou as refe-
ridas funções, de professor e reitor, tais como o volumoso Cours de
Belles-Lettres ou Principes de la Littérature, de 1753, ou o Les Qua-
tre Poétiques, d’Aristote, d’Horace, de Vida, de Despreáux, avec les tra-
ductions & des remarques, de 1771, Histoire des Causes Premières, de
1769, além de outros. Não se trata aquele, no entanto, de um tra-
tado de execução para as artes nem tampouco pode ser proposto
como obra precursora quanto à emergência de estéticas que funda-
mentam o fazer artístico segundo a noção de vida subjetiva do ar-
tista, principal critério, conforme aquelas, para o desenvolvimento
das artes na chave do progresso e do devir. Convertido ao concei-
to de “princípio unificador”, das artes, o princípio a que se refere o
título da obra não é redutor quanto à implicação das técnicas e dos
modelos de imitação, essencializando-os, ao mesmo tempo em que
se amplifica a atuação da subjetividade e da individualidade como
principais móveis da criação poética e artística. Não pertence, ca-
so se queira dizer de outro modo, à Estética ou à Filosofia da Arte,
mas às doutrinas poético-retóricas que pensam as artes, em termos
de comparação, paragone, na chave da imitação e do decoro, con-
forme, preceito aristotélico. Confirma-o a própria exposição feita
por Batteux no prólogo do As belas-artes: “Após tantas buscas inú-
teis e não ousando entrar sozinho em uma matéria que, vista de
perto, parecia tão obscura, atrevia-me a abrir Aristóteles, do qual
eu havia escutado exaltarem a Poética. [...] A máxima de Horácio
se achou verificada pelo exame: ut pictura poesis. Constatou-se que
a poesia era em tudo uma imitação, assim como a pintura. Eu ia
mais longe: tentava aplicar o mesmo princípio à música e à arte do
gesto, e espantou-me a justeza com a qual lhes convinha. Foi is-
Patricia Peterle | O caminho solitário e a intensa reflexão: Trabalhar cansa, de Pavese 421
Calaram-se todos/ [...] há operários calados e alguns estão mortos”.
A sexta e última seção, Paternidade, é composta por 8 poesias e se
contrapõe pelo próprio nome à seção Maternidade. Aqui são pri-
vilegiados os temas relacionados à solidão e à incomunicabilidade.
“Fala pouco o amigo, e esse pouco é estranho” é o primeiro verso
de “Mediterrânea”, poesia que abre essa parte.
A tradução de Maurício Santana Dias tem escolhas bem pre-
cisas. Professor de literatura italiana da USP, ele vem cada vez mais
se destacando como um importante elo de ligação entre Brasil e
Itália. O trabalho tradutório pode ser concebido aqui como um di-
álogo de múltiplas faces que proporciona, haja vista a própria ex-
periência pavesiana, uma série de relações entre os dois sistemas li-
terários envolvidos. Na parte “Traduzir Trabalhar cansa”, Santana
Dias oferece ao leitor algumas motivações de suas escolhas:
Antes de finalizar este estudo, é necessário examinar a constituição
formal dos poemas de Lavorare Stanca e, por conseguinte, explicitar
as minhas próprias opções de tradução. A tarefa deve começar ob-
viamente pala análise de “I mari del Sud”, o primeiro e mais longo
poema do livro, aquele que estabeleceu o padrão pelo qual Pavese se
guiaria durante a década de 1930 e 1940. Porém, antes de passar à
leitura dos textos, cabe reiterar que todas as composições do livro se
originam a partir de um verso básico: o verso quantitativo de ritmo
anapéstico, constituído de uma unidade mínima formada por duas
sílabas breves e uma longa. Não por acaso, o anapesto é o verso que
inicia o livro e lhe dá a cadência” (p. 54-55)
E mais adiante
Mio Cugino ha una faccia recisa. Comprò un pianterreno
nel paese e ci fece riuscire un garage di cemento
con dinazi fiammate la pila per dar la benzina
e sul ponte ben grossa alla curva una targa-réclame.
Poi ci mise un meccanico dentro a ricevere i soldi
e lui girò tutte le Langhe fumando
S’era intanto sposato, in paese. Pigliò una ragazza
Patricia Peterle | O caminho solitário e a intensa reflexão: Trabalhar cansa, de Pavese 423
Nesses trechos, um elemento que chama a atenção é a pala-
vra italiana paese, traduzida, na mesma poesia, com dois signifi-
cados diferentes: o primeiro casa, no sentido figurado de lar e de
tudo o que é familiar, e o segundo denotativo que é realmente al-
deia, vilarejo. Uma situação análoga também acontece com o vo-
cábulo em português serena, que nesta mesma poesia é traduzido
com o seu correspondente serena – notti serene/noites serenas, mas
em “Agonia”, sétimo poema da seção Depois, aparece serena como
correspondente do vocábulo italiano stessa, cujo significado seria
mesma: ogni volto che passa e restare la stessa/ cada rosto que passa e
manter-me serena (p.138-139).
Ainda, recuperando os outros grifos do segundo fragmento
acima, há um equívoco na tradução da palavra pianterreno. Na lín-
gua italiana também existe a palavra terreno que é escrita e tem o
mesmo significado que em português. Todavia, a palavra escolhi-
da por Pavese, pianterreno, possui um outro signifcado, isto é, an-
dar térreo. O que interfere, consequentemente, na continuação do
verso seguinte. De fato, não é necessário erguer ou construir uma
garagem, na verdade, um espaço que já existia e localizava-se no
andar térreo foi transformado em uma garagem. Essa transforma-
ção fica clara na expressão “ci fece riuscire”.
Um outro aspecto que é importante lembrar consiste nas re-
ferências poéticas de Cesare Pavese. Todo o percurso do poeta é
marcado pela leitura e estudo de alguns clássicos como Leaves of
Grass de Walt Whitman, Les fleurs du Mal de Charles Baudelaire e
a Ilíada de Homero – é bom lembrar que o próprio Pavese organi-
zou e prefaciou uma edição dessa obra. Trabalhar cansa, portanto,
apresenta-se como uma obra de exploração, mas não experimental,
que pode ser vista e lida a partir de três momentos. O primeiro é
caracterizado por aspectos da cultura e literatura americana, como
já dito, fruto da atividade de tradução, principalmente em relação
às paisagens e à redescoberta do Piemonte, terra natal de Pavese.
No segundo momento, as imagens, sempre presentes, recebem um
novo tratamento e são incorporadas à narrativa; para tal Pavese cria
um sistema de analogias. Enfim, o terceiro momento é assinalado
por uma espécie de imersão na subjetividade. Tais questões são co-
locadas e discutidas nos dois textos contidos no apêndice.
A produção de Cesare Pavese, marcada pela disciplina, refle-
xão e estudo, pode ser vista como uma terceira via diante do con-
texto literário e cultural promovido pelo fascismo de um lado e o
Patricia Peterle
Patricia Peterle | O caminho solitário e a intensa reflexão: Trabalhar cansa, de Pavese 425
Um estudo de Roberto Zucco, peça teatral de Bernard-Marie Kol-
tès. Fernanda Vieira Fernandes (Dissertação de Mestrado em Le-
tras. Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras,
UFRGS, 2009. Orientador: Robert Ponge).
Mirna Spritzer | Cabe ao palco o que é efêmero, à literatura o que é eterno 427
de teatro referem-se ao seu corpo instrumento, o lugar de muitas
identidades, quase todas transitórias. E à ação no tempo presente,
e, portanto provisória, qualidade fundamental do teatro.
(BROOK, Peter. O teatro e
Peter Brook,* encenador fundamental do século XX, trabalha
*
Mirna Spritzer | Cabe ao palco o que é efêmero, à literatura o que é eterno 429
Koltès, segundo Fernanda, também afirma através de seus per-
sonagens que eles estão no centro do confronto de forças e choques
entre eles, ou seja, que eles se constituem na relação com o outro.
Ainda que o trabalho não siga até a encenação, nos são apre-
sentados vários aspectos que denunciam a profunda teatralidade
na obra de Koltès, como a presença do coro, recriado, ou as esta-
ções como no teatro medieval.
A seguir, a autora elege autores contemporâneos e os apre-
senta ao seu leitor para comentar, concordar ou contrapor traços
do trabalho de Koltès já delineados por ela. São vozes reconheci-
das e respeitáveis que, ao seu lado, nos deixam mais fascinados pe-
la figura singular do autor e a dimensão de sua obra. Ainda aqui, a
forma com que a Dissertação está construída auxilia sobremaneira
o caminho que vamos trilhando na descoberta de Bernard-Marie
Koltès, Roberto Zucco e a nós próprios nesse emaranhado que nos
é designado como mundo em que habitamos.
Salienta-se ainda o anexo, em que se desenha um panorama
histórico do teatro francês do final do século XIX até o Nouveau
Théâtre. Uma excelente contribuição incluída no trabalho de ma-
neira a compreender a inserção da obra de Koltès no contexto da
criação artística.
* (LAROSSA, Jorge. La ex-
periência de la lectura. Es-
Jorge Larrosa* discute as questões e relações entre leitura e
túdios sobre literatura e for- formação. Diz o autor que pensar a leitura como formação im-
mación. Barcelona: Laer-
tes, 1996.) plica perceber não apenas o que o leitor sabe, mas aquilo que ele
é, sua subjetividade. A leitura como algo que nos forma e trans-
forma, que nos põe em questão, como algo que nos constitui. Ao
mesmo tempo, ver a formação como leitura implica pensá-la co-
mo uma relação de sentido, como se tudo o que nos acontece pu-
desse ser considerado um texto, algo que põe em alerta nosso sen-
tido de escuta. Ou seja, não importa somente o texto, mas a rela-
ção com o texto.
Ao estudar com tamanha profundidade o texto de Roberto
Zucco, Fernanda nos oferece a possibilidade de, como ela mesma
diz, reter um processo de criação no teatro. Se o espetáculo não
permanece para além da memória de quem o viu, o texto literário
fica, ainda e sempre, exposto a quem o quiser ler ou traduzir pa-
ra o espaço da cena.
Próximos números
alea 12/1 (janeiro/junho 2010)
Tema geral – Desacordos do tempo
Prazo para envio dos trabalhos: encerrado (número em preparação)
Exemplo de livro:
Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986: 118-119.
Exemplo de artigo de livro:
Guilhaumou, J. & Maldidier, D. “Da enunciação ao acontecimento em Análise do
Discurso”. Em: Guimarães, E. (org.). História e sentido na linguagem. Campinas:
Pontes, 1989:66.
Exemplo de artigo de periódico:
Candido, Antonio. “Literatura e sociedade”, Letra no 2, Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras da UFRJ, 1984:239.
Direitos
O envio dos trabalhos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos de pu-
blicação para a revista. O autor continua a deter todos os direitos autorais para
publicações posteriores do artigo, devendo, se possível, fazer constar a referência à
primeira publicação na revista. Com a publicação do artigo o autor receberá dois
exemplares da revista. No caso de resenhas, 1 exemplar.
Para a remessa de trabalhos ou outras informações, entrar em contato com:
revista.alea@uol.com.br
Sumário
Resenhas
Fabio Akcelrud Durão. Modernism and Coherence –
Four chapters of a negative aesthetics [Modernismo e
coerência – Quatro capítulos de uma estética negativa].
(Frankfurt: Peter Lang, 2008) 183
José Carlos Felix
Primo Levi. A chave estrela. (São Paulo: Companhia
das Letras, 2008) 188
AndrÉia Guerini & Patricia Peterle
Maria Helena Valentim Duca Oyama. O Haiti como locus
ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais
em Carpentier, Césaire e Glissant. (Tese de doutorado,
Universidade Federal Fluminense, 2009) 193
Jovita Maria Gerheim Noronha