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V . 14 N .

2 JUL / DEZ 2 0 1 7 I S S N 2 1 7 9 - 6 4 8 3
devires, belo horizonte, v. 14, n. 2, p. 01-307, jul/dez 2017
periodicidade semestral – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
À memória de Henrique Codato, que deixa aqui uma parte de si.
ORGANIZAÇÃO DOSSIÊ Cristina Melo Teixeira (UFPE)
CINEMA E ESCRITAS DE SI Denilson Lopes (UFRJ)
Roberta Veiga Eduardo de Jesus (​PUC-MG​)​
Carla Italiano Eduardo Morettin ​(​USP​)
Ilana Feldman Eduardo Vargas (UFMG)
Erick Felinto (​UERJ​)​
EDITORES Erly Vieira Júnior (​UFES​)
Anna Karina Bartolomeu Fernando Resende​(UFF)​
André Brasil Henri Gervaiseau​(USP)​
Clarisse Alvarenga Ismail Xavier (USP)
Cláudia Mesquita Jair Tadeu da Fonseca (UFSC)
César Guimarães Jean-Louis Comolli (Paris VIII)
Eduardo de Jesus João Luiz Vieira (UFF)
Mateus Araújo José Benjamin Picado (UFBA)
Roberta Veiga Leandro Saraiva (UFSCAR)
Ruben Caixeta de Queiroz Márcio Serelle (PUC/MG)
Marcius Freire (Unicamp)
DIAGRAMAÇÃO Mariana Balta​r (UFF)
Leonardo Câmara Maurício Lissovsky (UFRJ)
Maurício Vasconcelos (USP)
PRODUÇÃO EDITORIAL Osmar Gonçalves​ (​​UFC)​
Carla Italiano Patrícia Franca (UFMG)
Hannah Serrat Paulo Maia (​UFMG)
Letícia Marotta Phillippe Dubois (Paris III)
Luís Felipe Duarte Flores Phillipe Lourdou (Paris X)
Thiago Rodrigues Lima Ramayana Lira​(UNISUL)​
Réda Bensmaïa (Brown University)
REVISÃO GRÁFICA Regina Helena da Silva (UFMG)
Gustavo Jardim Renato Athias (UFPE)
Leandro Lopes Ronaldo Noronha (UFMG)
Leonardo Amaral Sabrina Sedlmayer (UFMG)
Pedro Rena Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa)
Tomyo Costa Ito Stella Senra
Susana Dobal (UnB)
CONSELHO EDITORIAL Suzana Reck Miranda (UFSCar)
Alessandra Brandão​(UNISUL)​ Sylvia Novaes (USP)
Amaranta César​(UFRB)​
Ana Luíza Carvalho (UFRGS) CAPA E PROJETO GRÁFICO
Andréa França​(PUC-Rio)​ Bruno Martins
​Ângela Prysthon​ (UFPE)​ Carlos M. Camargos Mendonça
Anita Leandro​(UFRJ)
Beatriz Furtado​(UFC)​ APOIO
Cezar Migliorin​(UFF)​ Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência
Consuelo Lins (UFRJ) Grupo de Pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas
Cornélia Eckert (UFRGS) FAFICH – UFMG

Publicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH)


Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Programa de Pós-Graduação em Comunicação / Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3409-5050
Lançamento: novembro de 2020.

D 495 DEVIRES – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas


Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
(Fafich) – v.14 n.2 (2017) –

Semestral
ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)

1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Filosofia. 5.


Fotografia. 6. História. 7. Letras. I. Universidade Federal de
Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Sumário

11 Apresentação
Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman

CINEMA E ESCRITAS DE SI
18 Identidade em deslize: o registro autrobiográfico na obra de Chantal Akerman
Alisa Lebow

30 Autobiografia, exílio e alteridade: o cinema de David Perlov,


Avi Mograb e Elia Suleiman
Ilana Feldman

58 Perdido entre lampejos de beleza: paisagem, território e política em


Lost Lost Lost (1976) e As I was moving ahead I saw brief glimpses of beauty (2000)
Laís Ferreira Oliveira

82 A invenção de uma tradição: autobiografia no cinema experimental norte-americano


Patrícia Mourão de Andrade

104 Filmo, logo vivo _ modulações do filme-diário em Jonas Mekas e David Perlov
Carla Italiano

124 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti


Gabriela Kvacek Betella

146 A escrita de si nas praias de Agnès Varda


Lúcia Castello Branco e Maria Fernanda Machado

162 Sentir a imagem: performatividade e mise-en-scène no cinema de Naomi Kawase


Henrique Codato e Eduardo dos Santos

184 Helena Solberg: entre o pessoal e o político


Karla Holanda
204 Já visto jamais visto: devir memória ou a potência histórica na escrita de si
Roberta Veiga

226 Documental y Experiencia Introspectiva: relaciones, correspondencias y tensiones


para explorar el espacio de las prácticas cinematográficas autorrepresentacionales
Paola Lagos Labbé

FOTOGRAMA COMENTADO
252 Catar imagem se limita com escrever (seus grãos mais vivos, à moda de João Cabral)
Carlos Adriano

FORA DE CAMPO
264 Memórias de uma catástrofe em andamento: testemunhos em vídeo de violência
policial na periferia
Felipe Polydoro

284 A vida-lazer como vontade de futuro


Vinicios Kabral Ribeiro
Apresentação

Como o cinema pode ser autobiográfico se a exterioridade e


a alteridade lhe são imprescindíveis? Se a câmera precisa capturar
algo fora do sujeito, uma imagem do mundo, para que haja filme?
A literatura há muito já instituiu, e desconstruiu, o que seria o topos
do gênero com o “pacto autobiográfico” formulado por Philippe
Lejeune, que se concretizaria na coincidência entre autor, narrador
e personagem. Como tal coincidência é inatingível – uma vez que
o personagem será sempre uma versão ficcional, textual e parcial,
forjado por marcas e traços, portanto, um outro do autor que por
sua vez não existiria enquanto um “em si” passível de ser decalcado
no discurso –, tal topos da autobiografia literária aponta para um
horizonte de expectativas do gênero, nos permitindo transportar essa
formulação ideal ao universo cinematográfico, de modo a pensarmos e
problematizarmos como ela se manifesta. No cinema, o autor, cineasta
que escreve com as imagens, seria também o narrador de sua própria
história, bem como o personagem filmado: quem filma e sobre quem
se filma. Para isso, o gesto autobiográfico, confessional por princípio,
exigiria, no limite, que o diretor virasse a câmera para si e produzisse
algo como uma espécie de monólogo interior. Aparentemente, tal
feito traria a concretização daquilo que na literatura o leitor sempre
pode crer, mas nunca comprovar: a homonímia autor, narrador e
personagem, graças ao registro cinematográfico que geraria a ilusão
indicial de atingir o ideal do pacto, em que aquele que filma, narra e
é filmado seria um só. Grande potência e, ao mesmo tempo, grande
engodo do cinema, cuja ilusão de “realismo”, ao ser revelada, revelaria
também a impossibilidade autobiográfica nos termos de Lejeune.
Se, para a literatura, o espaço entre a crença e a dúvida do leitor
na atestação do eu se expande na ficção que o texto sempre será,
no cinema documentário, a autobiografia, essa inscrição do autor-
cineasta na imagem – apesar da indicialidade fotográfica tão aclamada
por André Bazin – também só pode se dar como recriação, uma vez
que a imagem do eu é sempre artifício, construção na linguagem e
por meio da linguagem, que de um si só poderia reter o traço. Ainda
assim, o documentário dito subjetivo, narrado na primeira pessoa, em
sua força de testemunho, por mais variadas e multiformes que sejam
as estratégias de inscrição imagética de si próprio, de sua vida e suas
memórias, dos seus ou de si mesmo entre os seus, levaria ainda mais
longe a crença na, e o desejo pela, verdade íntima do outro.

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É dessa força do testemunho de si que surge certo temor
de que o cinema autobiográfico possa vir a estimular um lugar
narcísico, de autoexposição, por parte de quem filma, e um desejo
voyeur pela intimidade alheia, por mundos privados, por parte
de quem vê. Por isso, caberia perguntar: uma vez visivelmente
concretizado o pacto do gênero confessional, o cinema se manteria
cinema quando aquele que deveria abrir a câmera para o mundo
a retorna para si mesmo, num gesto autorreferente? Perderia ele
a sua potência, tornando-se uma narrativa de imagens narcísicas
e atos solipsistas? Malograria seu lastro com mundo, dimensão
que lhe é constituinte, como nos alertou Deleuze sobre o cinema
moderno desenvolvido no pós-guerra? Esvaziaria sua dimensão
coletiva, seu vínculo com a consciência de classe, como acalentou
Benjamin? Estaria fadado a não mais alcançar a alteridade da
“inscrição verdadeira”, como acreditou Jean-Louis Comolli, em
sua aposta no documentário?
A questão que motiva a produção deste dossiê, Cinema
e escritas de si, reside exatamente aí: como o cinema
autobiográfico, inscrito no regime documental e entendido em
seus diversos dispositivos de elaboração e encenação do eu,
resiste enquanto experiência de partilha, em sua relação com
a alteridade, em sua vocação política? Desde a idealização do
dossiê, nos mobilizava a certeza de que é justamente em suas
variadas estratégias de autoinscrição e performance de si que o
cinema não só extrapola o gesto de virar a câmera para aquele
que filma (procedimento, aliás, supercodificado em lives e selfies
que abundam em redes sociais), como tensiona e ressignifica
esses gestos hoje automáticos e viralmente disseminados, os
quais, na conjuntura digital, tendem a celebrar a vida pessoal
de forma a privatizar as imagens e espetacularizar o eu.
Assim, o cinema autobiográfico poderia, no avesso da evasão
da privacidade, da hipertrofia da intimidade e da atrofia do
político, vir a problematizar e fazer pensar em que medida o
pessoal é político, a experiência de si coletiva, a inscrição do
eu histórica. Como tem nos ensinado a linguística, a psicanálise
e as filosofias do sujeito, não há sujeito senão já aí no mundo,
assim como não há um eu fora de uma relação com um outro,
já que todo relato de si constrói-se na e pela linguagem. É
precisamente nessa busca por um eu, que nunca se concretiza
ou se estabiliza imageticamente, que o sujeito pode vir a

12 Apresentação / Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman


se elaborar, uma vez que colocar-se em obra é um processo
sem fim construído na relação com os dispositivos e com a
linguagem do cinema _ constituintes da subjetividade por uma
relação de exterioridade e alteridade.
Visando compreender como, no âmbito do cinema, a
experiência de si jamais prescindirá do aparato e da matéria
do mundo, que, juntos, congregam a imagem e suas relações,
apostamos que o eu cinematográfico será de saída um eu partilhado,
dividido, parcial, posto em cena de forma perspectivada e
relacional. Diante disso, gostaríamos de tratar neste dossiê de uma
amplitude de modos de engajamento dos e das cineastas: dos mais
diretamente “confessionais”, com seus filmes caseiros, domésticos
e seus diários filmados, aos mais indiretamente autobiográficos,
com suas memórias de tempos históricos, reflexões metodológicas
e inquietações políticas. Porém, na impossibilidade de abarcar
todos os gestos e autorias, contemplamos uma modesta amostra
dos procedimentos e das formas de autoinscrição no cinema, com
suas estratégias de abordagem e variações estilísticas permeadas
por contextos socioculturais específicos, os quais instituem os
diferentes dispositivos de escritas de si.
Dos diaristas do cinema, o dossiê traz dois nomes fundadores:
o lituano Jonas Mekas e o brasileiro radicado em Israel David
Perlov. Além da obra Diário 1973-1983, de Perlov, Ilana Feldman
abre o gesto de escrita de si aos filmes Vingue tudo, mas deixe
um dos meus olhos, do israelense Avi Mograbi, e O que resta do
tempo, do palestino Elia Suleiman, nos convidando a perceber
as diferentes figuras que os cineastas mobilizam a partir da
experiência do exílio. Também tendo o exílio como tropos comum,
Carla Italiano, em seu artigo, investiga as modulações de sujeito no
filme-diário a partir da relação entre as obras de Perlov e Mekas,
enquanto Laís Ferreira Oliveira foca no trabalho do lituano, de
modo a destacar a dimensão criativa da paisagem e do território
em Lost Lost Lost e As I was moving ahead occasionally I saw brief
glimpses of beauty. Passando por Mekas, porém abarcando outros
notórios cineastas independentes dos Estados Unidos, como
Stan Brakhage, Hollis Frampton e Ed Pincus, Patrícia Mourão
de Andrade propõe uma abordagem histórica para pensar como
as questões próprias da autobiografia reconfiguraram o cinema
experimental norte-americano a partir dos anos 1960. A noção
de cinema diário, assim como de autoficção, são igualmente

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tensionadas por Gabriela Kvacek Betella, que aborda a filmografia
do italiano Nanni Moretti, principalmente através de seu clássico
Caro diario, por meio do humor, do atravessamento ficcional e da
contestação do cinema italiano por dentro.
A escrita feminina de si figura neste dossiê nas obras de Agnès
Varda, Chantal Akerman, Naomi Kawase e Helena Solberg, com
artigos dedicados exclusivamente a cada uma delas. Os gestos e
performances de Varda, cineasta precursora do filme-ensaio no
feminino, aparecem, pela chave da psicanálise, no artigo de Lucia
Castello Branco e Maria Fernanda Machado, e, em sua dimensão
plástica, no belo fotograma-comentado de Carlos Adriano. As
práticas performativas da japonesa Kawase são acompanhadas pelo
saudoso Henrique Codato, junto a Eduardo dos Santos Oliveira,
com o propósito de ressaltar o modo como a cineasta inscreve seu
próprio corpo na materialidade de seus filmes Em Seus Braços e
Céu, Vento, Fogo, Água, Terra.
E tal qual um ato de profissão de fé no cinema autobiográfico,
apresentamos o artigo de Alisa Lebow – originalmente publicado
na edição da Camera Obscura em homenagem póstuma à Chantal
Akerman e traduzido especialmente para este número –, no qual
fica evidente a constante dobra entre viver e filmar que sustenta a
obra da cineasta belga. Desenhando por meio de seu último filme,
No home movie, um percurso pelo que há de mais confessional na
trajetória de Akerman, em um movimento metarreflexivo, Lebow
confidencia o “deslize” de seu gesto que, ao adentrar a obra, não irá
somente convocar a vida, mas “psicanalisar” a cineasta. Contudo,
ao elaborar essa confissão, a autora reconhece se tratar de um
efeito da filmografia de Akerman – o chamado para a intimidade –
que reforça, sobre uma teoria do cinema de escrita de si, a relação
inextricável entre vida e obra.
Apesar de um notável crescimento no Brasil, a partir dos anos
2000, de realizadoras dedicadas às escritas de si, ainda que de forma
indireta, ou seja, dizendo de si ao dizer de um outro (ente próximo ou
acontecimento histórico), como Flávia Castro, Maria Clara Escobar,
Petra Costa, Letícia Simões, Safira Moreira, Dandara de Morais,
entre várias outras, Karla Holanda identifica traços autobiográficos
na pioneira do cinema feminista nacional, Helena Solberg, não só
em sua obra de 1994, Carmen Miranda: bananas is my business, mas
também no seu curta-metragem que inaugura o cinema moderno de
autoria feminina no país, A Entrevista, de 1966.

14 Apresentação / Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman


A dimensão mais fortemente memorialística do gesto
autobiográfico ou, mais precisamente, o devir memória do cinema,
como sugere o artigo de Roberta Veiga, está presente em Já visto
jamais visto, de Andrea Tonacci, em que não apenas recolhe e monta
sua própria obra como reelabora certa história do cinema brasileiro,
grande parte dela construída de forma engajada e atuante pelo
cineasta. Já o único artigo que não se atém a cineastas específicos
vinculados às escritas de si, o de Paola Lagos Labbé, publicado
aqui em sua língua original, busca percorrer os eixos conceituais
centrais acerca das formas autobiográficas e autorrepresentacionais
do documentário, bem como as disputas que as convocam em um
contexto dominado por plataformas digitais.
Por fim, na seção intitulada Fora de campo, Vinicios Kabral
Ribeiro investiga a ideia de “vida-lazer” em filmes brasileiros
contemporâneos, em especial O céu de Suely (2006), Praia
do Futuro (2014) e Tatuagem (2013), de modo a pensar as
possibilidades de pertencimento, felicidade e futuro em vidas
marcadas pela precariedade e por sexualidades fora da norma
heterossexual. Nesta mesma seção, Felipe Polydoro trata dos
testemunhos em vídeo, difundidos nas redes, da violência policial
nas periferias brasileiras. Apesar de, evidentemente, não estarmos
aqui diante de uma “escrita de si” propriamente dita, esses relatos,
muitas vezes produzidos pelas próprias vítimas da violência de
Estado, dão testemunho de vidas a um só tempo marcadas pela
experiência traumática e mediadas pela imagem.

Roberta Veiga, Carla Italiano, Ilana Feldman

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 11-15, JUL/DEZ 2017 15


CINEMA E ESC
CRITAS DE SI
Identidade em deslize:
o registro autobiográfico na obra
de Chantal Akerman*

Alisa Lebow
É documentarista, pesquisadora e escritora. Doutora em Estudos de Cinema pela
New York University, atualmente é professora em Estudos de Cinema na University
of Sussex, Reino Unido.

Traduzido por Roberta Veiga e Carla Italiano.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 18-29, JUL/DEZ 2017


* Publicado originalmente Sua mãe era o fio tênue que a mantinha em equilíbrio.
em: LEBOW, Alisa. “Identity
Slips: The Autobiographical Esther Orner1
Register in the Work of
Chantal Akerman”, Film
Quarterly, v. 70, n. 1, 2016,
p. 54-60. Agradecemos à A perda de Chantal Akerman, em outubro de 2015, foi
autora e à Film Quarterly por
autorizarem esta publicação. um choque. Não era segredo que ela lutava contra uma doença
mental, em particular, um distúrbio bipolar, diante da qual
1. Orner foi uma amiga cada superação diária representava uma vitória. No entanto, a
próxima da família Akerman.
OMER, Esther. “A Last visão, a vitalidade, e o volume de sua obra faziam crer que ela
Conversation with Chantal tinha muito mais dias de vida. A julgar apenas pela obstinação
Akerman”, Senses of
Cinema, Dezembro de 2015.
de suas imagens e determinação de seu estilo, ela era uma
Disponível em: http:// potência. Mas determinação e obstinação são, por si mesmas,
sensesofcinema.com/2015/
indicadores indeterminados. E o que o seu último filme, No
chantal-akerman/a-last-
conversation-with-chantal- Home Movie (2015), revelou – já aludido em Là-bas (2006) e
akerman/. outros – foi que a brilhante cineasta se agarrava a um fio tênue,
e extremamente frágil, de vida.
Assistir No Home Movie após a morte de Akerman é um
2. [N.T.] No original, trata-se exercício que se dá num estado a posteriori2 – tradução estranha
da expressão psicanalítica
“the state of afterwardness”,
do que Freud chamou de Nachträglichkeit (ou après coup em
derivada da tradução francês) – com todas suas temporalidades anacrônicas em jogo.
corrente de “Nachträglich”,
O trauma da sua morte é sobreposto à experiência do ver, e o
nas formas de adjetivo
ou advérbio, como “a próprio filme, apesar de finalizado meses antes de sua morte,
posteriori”, “só depois” só pode ser visto agora através do véu de seu suicídio, como um
(mais usado na França), ou
ainda “retrospectivamente”. adeus consciente ou não. Não há mais como assistir a essa obra
Na forma substantivo, numa sequência antes e depois, um momento em um contínuo
“Nachträglichkeit” se refere
ao “tempo do a posteriori”. temporal que terá seus antecedentes e seus decorrentes. O filme
Portanto optamos pelo surge como uma sentinela no portão de passagem da cineasta,
substantivo “a posteriori”
como tradução para sem nada além de um passado através do qual olhá-lo, e sem
afterwardness que, na obra o consolo de que seu discurso perturbado e perturbador possa,
de Sigmund Freud, designa
conceitualmente como as algum dia, ser reparado por um outro mais estável.
primeiras experiências de
excitação corporal não são No Home Movie deixa a impressão que essa cineasta, desde
assimiladas em todos seus sempre minimalista, reduziu seu conjunto de instrumentos ao
sentidos no momento em
que são vivenciadas, daí o
mínimo do básico: não há mais necessidade de artifícios ou
sentido da compreensão substitutos, de sets ou atores, de múltiplas telas, ou até mesmo
retrospectiva, posterior.
de um roteiro. O filme aparece enganosamente como uma nota
de rodapé na carreira de uma autora bem mais ambiciosa e
complexa, ainda que não possa ser descartado tão facilmente.
Que seja um filme sobre a morte da mãe é óbvio. Que seja
autobiográfico, em um sentido expandido, também é evidente.

20 Identidade em deslize / Alisa Lebow


Contudo, No Home Movie finalmente revela em si mesmo todo o
esforço pregresso da cineasta de reenquadrar a mãe3 [a outra] 3. [N.T.] Em inglês: (m)other,
para se referir tanto a palavra
como autorretratos de um estranho-familiar4 (interpretação
mãe, como a outra, em
para o “no home” do título) e de uma metempsicose devastadora uma mesma conjugação, e
– aspecto que vale a pena investigar mais a fundo. remeter à noção da mãe, ela
mesma, como outra.
No Home Movie começa com uma cena de quatro minutos
4. [N.T.] Un-heimlich –
de uma delicada copa de árvore sendo ferozmente golpeada por conceito freudiano que
um insistente vento desértico. O vento forte a golpear as folhas designa a estranheza do que
é familiar, ou seja, o que é
frágeis que se agarravam desesperadamente àquela precária
inquietante, ou o inquietante
árvore só pode agora ser entendido como uma dupla metáfora da estranheza.
palimpséstica, representando, ao mesmo tempo e de um mesmo
modo, a mãe – que primeiro agarra-se à sua força vital e depois a
deixa escapar – e, igualmente, a cineasta que, mal se segurando,
assiste impotente à mãe se entregar para, então, menos de um
ano depois, entregar-se ela mesma. Com seus galhos fracos,
impiedosamente agitados pelo vendaval que persiste, a árvore
não tem chance diante de uma força contrária tão decisiva. Por
fim, ela também deve ceder à pressão que a empurra rápida e
furiosamente contra sua corajosa, porém, já derrotada, vontade.
Mãe e filha sucumbem à intrusão de uma morte tão certa quanto
inegociável: a primeira pelas vicissitudes da idade e da doença,
a segunda pela força de uma perda intratável. Esse colapso
duplo e definitivo da metáfora efetivamente torna ambas as
mortes inevitáveis, a perda esmagadora da filha como a de
um “eu” analiticamente irmanado ao ponto de uma completa
identificação com a mãe.
No Home Movie é claramente bem mais que uma
homenagem à mãe à beira da morte, e também mais que um
canto do cisne. Ele pode ser visto, em parte, como a destilação
de uma obra inteira, honesta e verdadeiramente reduzida à
sua forma mais elementar, contendo quase todos os tropos de
quatro décadas de carreira – fronteiras, exílio, duração, espera,
transitoriedade, judaísmo, casa – e nenhum acima do tropo
da mãe. Como Akerman mesma reconhece no documentário
de Marianne Lambert, I don’t belong anywhere: the cinema of
Chantal Akerman (2015), realizado no ano de sua morte, e um
ano após a de sua mãe: “Eu compreendi que no fundo minha
mãe era o coração do meu trabalho”. E acrescenta friamente, “É
por isso que estou com medo. Acho que agora que minha mãe
não está mais aqui, nada sobrou”.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 18-29, JUL/DEZ 2017 21


Então quando a cineasta, famosa por não amarrar os
sapatos, amarra seus sapatos ao final de No Home Movie, a
cena resolve falsamente aquilo que nunca seria resolvido, ou
quem sabe resolve bem demais. Com a morte da mãe e musa
de Chantal Akerman, veio o fim do cinema e da vida da filha.
E ainda que seja verdade que a obra de Akerman foi, desde o
começo e o tempo todo, motivada e obcecada pela figura da mãe,
estando ela presente ou não, até esse último filme, o espectador
quase nunca foi devidamente admitido nessa dinâmica tensa e
impossível, apenas em seus substitutos e em seus efeitos.
No Home Movie oferece uma relação de doçura e afeição,
extremamente exagerada, entre duas partes relativamente
inaptas para tal. Akerman, que poderia ser bastante irascível,
inconstante e, no mínimo, impaciente, adota inconscientemente
em relação à mãe a persona de uma filha/mãe paciente e
atenciosa. Sua mãe, Nelly (Natalia Akerman), retribui com
uma afeição perplexa porém fluida, através de distâncias que,
apesar do uso dos meios tecnológicos, nunca foram totalmente
superadas. Chantal filma as sessões de Skype e, quando a mãe a
questiona duas vezes sobre o porquê de sempre filmar a conversa
entre elas, Chantal dá duas respostas: a primeira, “porque eu
quero mostrar que não há distância no mundo”, e a segunda, “eu
filmo todo mundo”, mas, “é claro que você especialmente, mais
que outras”. A mediação dupla (o Skype e a filmagem dele) na
verdade não atenua a distância, ao contrário, a amplia, contudo
a segunda resposta, “é claro que você mais que outras”, soa bem
mais verdadeira.
Na realidade, a distância que Akerman diz querer apagar
permanece ali teimosamente. É a distância que de fato parece
permitir uma intimidade efusiva entre elas. O modo como as
duas mulheres se relacionam por meio dos canais de fibra ótica
é bem diferente de quando estão no mesmo espaço físico. O
fluxo da afeição entusiasmada, os apelidos e o tom indulgente
ocorrem principalmente nos períodos de distância física e de
dupla mediação: Chantal repetidamente chama sua mãe de
“Mamiko”, e fala com uma voz docemente carregada, como
se falasse para uma criança amada, e quando a filha sorri de
um certo modo, a mãe diz: “eu quero apertar você em meus
braços”. Essa enxurrada de afetos evapora numa gota quando
elas estão próximas.

22 Identidade em deslize / Alisa Lebow


Face a face elas tendem a ser mais reservadas, tomando a
medida da outra e mantendo uma distância física e emocional.
Pode-se deduzir que se trata precisamente da mesma distância
(nem tão perto, nem tão longe) que vai caracterizar o estilo
autoral de Akerman.5 5. Estou intencionalmente
parafraseando a citação
Janet Bergstrom reconheceu desde cedo, em um dos célebre de uma antiga
entrevista, na qual Akerman
melhores ensaios sobre a obra de Akerman, que esse celebrado descreve seu modo de
“manter a distância” é muito mais que um simples elemento enquadrar Jeanne Dielman
como mantendo uma
formal.6 Ela o viu, com toda razão, como um sinal do processo
distância respeitosa, o que
de “rompimento”, insistindo que havia um motivo inconsciente permitiu à personagem “viver
e não apenas estritamente estético. Para explicar a distância no centro do quadro. Eu não
me aproximava demais, mas
sintomaticamente, Bergstrom evoca a teoria da “mãe morta”, não estava muito longe. Eu a
do psicanalista André Green, que se refere à mãe que não está deixava em seu espaço”. In:
“Chantal Akerman on Jeanne
morta de fato, mas que é tão emocionalmente debilitada e sem Dielman: Excerpts from
afeto que a criança a vivencia fisicamente como se estivesse. an interview with Camera
Obscura, Nov. 1976”, Camera
Bergstrom faz uma longa citação de Green: Obscura 2, Outono de 1977,
p. 119.

6. BERGSTROM, Janet.
Depois de ter vivenciado a perda do amor da mãe e a ameaça
“Invented Memories”,
da perda da mãe ela mesma, e depois de ter lutado contra a Identity and Memory: The
ansiedade por meio de vários métodos ativos, entre os quais Films of Chantal Akerman,
são indícios a agitação, a insônia e os terrores noturnos, o Gwendolyn Audrey Foster
ego irá mobilizar uma série de defesas de outro tipo... A (org.). Trowbridge: Flicks
primeira e a mais importante consiste em um movimento Books, 1999, p. 99.
único de dois aspectos: a decatexia do objeto maternal e a
identificação inconsciente com a mãe morta.7 7. Idem, p. 105 (itálicos no
original).

Como se para reiterar de que modo a teoria pode ser


adequadamente aplicada a Akerman, Green ainda explica,
em entrevista, que a maioria de seus pacientes que sofrem da
síndrome da mãe morta tem dificuldade de se relacionar com
outros, mesmo que geralmente sejam muito criativos. Ele diz:

8. “The Greening of
Esses sujeitos escolheram a criatividade no lugar da relação Psychoanalysis: André Green
in Dialogues with Gregorio
amorosa, talvez para se tornarem independentes do objeto;
Kohon”. In: KOHON,
o objeto, afinal, pode parar de lhe amar; num momento, Gregorio (org.). The Dead
o objeto está lá, no outro, já se foi. Há um contentamento Mother: The Work of André
na criatividade, mas penso que há essa ameaça de não ser Green. Londres: Routledge,
capaz de ir além.8 1999, p. 57.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 18-29, JUL/DEZ 2017 23


Akerman, ela mesma, não desconhecia a aplicabilidade
dessa teoria em seu próprio caso. Em 2011, em entrevista para
Elisabeth Lebovici, filha do famoso psicanalista Serge Lebovici
(colega de Green), ela menciona que considera a teoria da “mãe
morta” de Green perfeitamente pertinente aos seus traumas
9. “No Idolatry and Losing psicológicos.9 O que a teoria de Green não é capaz de explicar é
Everything that Made
o impacto da verdadeira morte da mãe para aqueles que sofrem
You a Slave”, entrevista
com Chantal Akerman por dessa síndrome. E embora, de fato, haja diferentes respostas,
Elisabeth Lebovici, Mousse todas variando em grau ou intensidade, parece que o fardo da
Magazine, n. 31, Novembro,
2011. Disponível em: http:// morte dupla (imaginária e real) pode ser, para alguns, num
moussemagazine.it/articolo. sentido bem verdadeiro, simplesmente demais para suportar.
mm?id=7.
O que fica claro quando olhamos de perto a obra de Akerman,
especialmente os projetos mais explicitamente autobiográficos,
tanto os documentários quanto as instalações, e até mesmos suas
entrevistas, é que ela fornece todas as ferramentas necessárias
para o espectador se engajar em seu estado emocional e psíquico,
10. Embora claramente toda instigando-o objetivamente a fazê-lo.10
a sua obra possa, de alguma
forma, ser interpretada como Estou consciente de ter me juntando aqui à fila dos
autobiográfica, a própria
teóricos do cinema que cruzaram a linha para psicanalisar a
Akerman assume tal leitura
em uma entrevista em vídeo cineasta através de seus filmes. Ainda que me encontre em
para Terrie Suleman na companhia de muitos estimados comentadores do trabalho
abertura de “Moving in Space
and Time”, uma retrospectiva de Akerman, gostaria de fazer uma consideração sobre meu
dos trabalhos de Akerman próprio deslize. Se estou escorregando entre esses registros,
organizada no List Visual Art
Center, MIT, Cambridge, MA, talvez muito pessoalmente lendo este último filme como um
em 1 de Maio de 2008. Ela presente, eu vejo isso na verdade como um efeito da obra
sugere que até mesmo seu
ritmo deve ser tomado como dela (e não somente desse filme) tanto quanto um excesso
autobiográfico, no sentido de minha parte. Pois o cinema de Akerman convoca um tipo
de que deriva de seu modo
de ver e estar no mundo. peculiar de intimidade, conduzindo tanto espectadores quanto
Disponível em: http://video. críticos a uma relação que não apenas é sentida como um-para-
mit.edu/watch/chantal-
akerman-moving-through-
um, como se fôssemos diretamente endereçados, mas também
time-and-space-9370/. nos incita a querer abraçar e conter suas vulnerabilidades.
Enquanto o teórico do cinema é treinado para ler e interpretar
o filme e não o cineasta, acredito que mesmo o mais preparado
e contido pensador pode, apesar das restrições disciplinares
contrárias, ser perdoado por detectar intencionalidade autoral
e mesmo estados psíquicos no trabalho de Akerman.
A visão de Akerman é particular e particularmente pessoal.
Ela é uma cineasta sem disfarces, que opera como que por instinto
mais do que de forma planejada, nunca trabalhada ou estudada,
apesar da grande habilidade. Seu cinema fala ao espectador, ao

24 Identidade em deslize / Alisa Lebow


menos àqueles pacientes o bastante para ouvi-lo, como uma
conversa íntima e profunda com um velho e querido amigo. É uma
das razões dela ser tão amada, e claramente o porquê daqueles
que amavam seu trabalho estarem tão sentidos com a sua morte.
É como se um confidente, um interlocutor, uma alma gêmea, se
perdesse. Porque é a sua própria alma que ela revela em seus filmes
de ficção e, ainda mais, em seus documentários e instalações, e,
com o tempo, isso ocorre com frequência e pungência crescentes.
As imagens de Akerman sempre registram uma visão única
enquanto seu texto, usualmente encenado em sua voz arranhada,
exprime aspectos de sua vida íntima quase como se ela estivesse se
confidenciando ao analista. Ela comunica algo desses pensamentos
recônditos, quando diz francamente em Là-bas:

Eu não me sinto pertencer. E isso é sem dor real, e sem orgulho.


Não, eu apenas sou desconectada. De praticamente tudo. Tenho
algumas âncoras. E às vezes as deixo ir ou elas me deixam ir
e eu derivo. É assim na maior parte do tempo. Às vezes, eu
aguento. Por poucos dias, minutos, segundos. Então, deixo-me
ir novamente.

Na instalação que inaugura sua entrada à galeria de


arte, Bordering on Fiction: D’Est (1995), Akerman elegante e
convincentemente desconstrói seu documentário D’Est em 24
monitores de tevê. Contudo, é o último monitor (a tela 25),
localizado na câmara interna da instalação, que inicia o encontro
com algo mais próximo do Real do que jamais antes visto na
imagem em movimento.11 Sobre as imagens abstratas de luzes e 11. O título Bordering on
Fiction: D’Est se refere à
ruas – exteriores indistintos – ela fala da cena primeva, aquela que instalação de três câmaras,
retorna em todos os seus filmes sem seu conhecimento: a cena da com curadoria de Kathy
Halbreich, apresentada pela
evacuação, de pessoas à beira da extinção, arrastadas pela força
primeira vez no Walker Art
da história a não estar mais em casa em nenhum lugar, a estar Center em Minneapolis,
na eminência do desastre. “Não há nada o que fazer”, ela diz, em 1995, enquanto o título
D’Est faz referência ao filme
“é obsessivo e eu estou obcecada”. Ela diz que, até que se tenha original, lançado em 1993, no
terminado, não se percebe que no fundo se faz sempre o mesmo qual a instalação foi baseada
e que também foi incluído na
filme, revisitando os mesmos temas de novo e de novo. sua primeira câmara.

Os temas e tropos recorrentes têm o efeito de um retorno


contínuo, e nenhum tanto quanto o da mãe. Enquanto Akerman
reivindica que a cena primeva do exílio está “bem atrás ou
sempre à frente” de qualquer imagem que ela traga, o exílio

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 18-29, JUL/DEZ 2017 25


é, factualmente, o da sua mãe sobrevivente do Holocausto, o
mesmo que a cineasta parece vivenciar e representar como se
fosse dela própria. Essa apropriação de uma memória que não
é dela pode ser vista como uma instância de “pós-memória”
ou – para ir mais longe, tomando livremente de empréstimo de
alguns comentaristas ciosos do trabalho inconsciente de Akerman
(em particular Bergstron, Longfellow e Mamula) – como um
deslizamento completo e radical das relações entre sujeito-objeto,
onde não pode haver sujeito, nem um “eu” articulado por si só,
12. [N.T.] Em inglês: m/other nem limite entre o “eu” e o outro/mãe.12
(cf. nota 4).
Na obra de Akerman, há cenas chave nas quais esse
deslizamento pode ser lido de modo bem evidente. Os primeiros
sinais aparecem em News From Home (1976), no qual a filha lê
em voz alta as cartas escritas para ela, pela mãe. Ela se dirige a si
mesma como “minha filha querida”, ventrilocando as palavras da
mãe, ainda que a banda imagética garanta uma distância irônica
do que está sendo dito, e denote um ponto de vista distinto. Não
obstante, tem se observado que suas identidades “se juntam”,
como destacado em uma recente nota de programação para o
13. Notas do programa filme: “quem se dirige a quem não é uma questão simples”.13
criado pelo coletivo A Nos
Amours para a exibição de No entanto, é no trabalho de Akerman dos anos de 1990 que
News from Home no ICA, em
essa fusão, ou incorporação, se torna ainda mais intratável. As
Londres, em 23 de Janeiro de
2016. Disponível em: www. alusões ao exílio de seus pais em D’Est (na versão cinematográfica)
ica.org.uk/whats-on/nos- são evidentes logo abaixo da superfície, ao retraçarem em reverso
amours-chantal-akerman-4-
news-home. a marcha dos exilados numa forma ensaio corporificada que
permite à cineasta fazer dela o seu próprio exílio. Em duas obras
explicitamente autobiográficas – Chantal Akerman par Chantal
Akerman (1996), feito para a tevê francesa, e na pouco vista e
raramente discutida instalação Selfportrait/Autobiography: a
work in progress (1998), exibida inicialmente em Nova York na
galeria Sean Kelly, os deslizamentos de identidade simplesmente
não podem ser ignorados.
Chantal Akerman par Chantal Akerman é um esforço de,
na autobiografia, substituir a obra pela vida, ou melhor, de
permitir que o trabalho cinematográfico fale da vida de seu
criador mais eficientemente e efetivamente do que se poderia
conseguir com palavras. Antes de começar a seção com sua
obra remontada, intitulada “autorretratos”, Akerman fala
longamente para a câmera. Ela apresenta a ideia de sua avó
como artista, uma pintora proto-feminista rebelde que fazia

26 Identidade em deslize / Alisa Lebow


enormes retratos de mulheres, que foi morta em Auschwitz,
e de quem Akerman sugere ter herdado a alma. A ausência
de delimitações identitárias remonta não apenas uma, mas
duas gerações, como se, através de seus próprios retratos
fílmicos, em larga escala, de personagens femininos, ela fosse
a atualização de sonhos ancestrais adiados. Depois de quinze
minutos dessa sabatina inicial, que é mais uma forma de chegar
à autobiografia do que ser autobiográfico per se, Akerman passa
a expressar sua autobiografia como uma mistura de cenas de
seus próprios filmes.
Na metade do filme, há uma longa cena de Portrait d’une
jeune fille de la fin des années à Bruxelles (1993) no qual a jovem
do título (Circé Letham), matando aula, forja vários bilhetes
de autorização que começam sempre com: “Por favor perdoem
minha filha Michelle (um homônimo óbvio de Chantal), ela
não pode ir à escola...” e que terminam, cada um, com uma
desculpa diferente. No primeiro, ela diz que está resfriada. No
segundo, sua tia morreu. No terceiro, ela mata seu tio, então seu
pai, e no último que, operando por eliminação, provavelmente
implicaria a morte de sua mãe, ela mata a si mesma: “elle est
mort” (“ela está morta”).
Logo depois, ela corta para uma cena de Jeanne Dielman,
23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) no qual uma mãe
ficcional, Jeanne Dielman (Delphine Seyrig), entra na cozinha
e se prepara para lustrar os sapatos do filho. A mãe vive para
servir o menino, mesmo que apenas pela força do hábito e da
repetição. O filho, na cena subsequente, é Akerman com 18
anos, atuando em seu primeiro filme Saute ma ville (1968),
imitando exageradamente os gestos da mãe. Colocada nessa
ordem, imediatamente após Jeanne Dielman, a cena funciona
mais como uma extensão da ação levada à sua conclusão lógica,
ou ilógica. A filha está canalizando os gestos da mãe e fazendo
destes os seus, externalizando com suas ações a histeria absoluta
mascarada pelos gestos extremamente controlados da mãe.
O autorretrato se move para uma breve cena de Toute
une nuit (1982) onde uma mulher – interpretada pela mãe de
fato de Chantal, Nelly Akerman – fuma um cigarro do lado de
fora da casa. Akerman, como muitos sabem, foi até o fim uma
fumante excepcional e engajada, celebrando o ato no centro
de sua instalação Femme d’Anvers en Novembre (2007), ato esse

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 18-29, JUL/DEZ 2017 27


destacado na maioria de seus filmes. Enquanto Nelly aproveita seu
momento solitário, sua filha (literalmente, uma vez que se trata
da voz de Chantal Akerman) tenta chamá-la do seu esquecimento
privado com um insistente “mãaee... Mamãaae” vindo do fora de
campo. Colocado no centro dessa obra, o chamado opera com
um punctum nesse autorretrato: uma momentânea exibição da
dinâmica em jogo no cenário da “mãe morta”. Cenas tiradas desses
diversos filmes, justapostas desse modo, alteram a sintaxe de sua
obra, reescrevendo-a num esforço de expressar não só os temas
silenciosos desenvolvidos em (então) trinta anos de prolífica
produção cinematográfica, mas para expressar algo profundo
das identificações e preocupações de Akerman que começam e
terminam com a mãe.
A instalação de seis monitores, baseada em quatro filmes da
Akerman (D’Est, Jeanne Dielman, Toute une nuit e Hotel Monterey
(1972)) novamente num tipo de mistura, revisita cenas que
buscam sugerir um registro autobiográfico, no qual o trabalho
do sujeito se coloca metonimicamente no lugar de si próprio. No
entanto, desta vez, ao invés de um longo preâmbulo que recusa
precisamente o que promete (i.e. uma narrativa autobiográfica),
há uma faixa de áudio simultânea na qual Akerman lê trechos
14. AKERMAN, Chantal. A de seu primeiro livro autobiográfico, A Family in Brussels.14 A
Family in Brussels, Nova York:
instalação cria um tipo de perseguição de gato e rato entre os
Dia Art Foundation, 2003.
Originalmente publicado em registros em áudio e os visuais. Quando sentado, o espectador
francês como Une famille à pode ouvir o áudio sem propriamente ver as imagens, pois os
Bruxelles, editora L’Arche,
1998. monitores estão em cima de blocos. Assim, há uma tensão entre o
que é dito e o que pode ser visto, forçando o visitante a escolher,
a qualquer momento, um ou outro. Para os que são familiarizados
com os trechos dos filmes apresentados, o que os compele é a
novidade do registro em áudio.
A narração em primeira pessoa de Akerman conduz o visitante
a presumir que ela está dizendo seus próprios pensamentos.
Ainda que sem anunciar um deslocamento, ela discretamente
desliza para a perspectiva de sua mãe. O deslizamento vai e volta,
sem que o ouvinte tenha certeza de quais pensamentos estão
sendo vocalizados em cada momento. A narração que começa
com o “eu” da filha, dissolve-se imperceptivelmente no “eu” da
mãe, voltando de vez em quando para a primeira. Que Akerman
tenha escrito uma autobiografia em grande parte na voz da mãe,
assumindo os pensamentos dela como seus próprios, é intrigante

28 Identidade em deslize / Alisa Lebow


o suficiente. Encená-la acrescenta outra camada de identificação
íntima, com a voz reconhecível da cineasta falando de uma só
vez como ela mesma e como uma outra. E chamar esse gesto
de autobiografia ou de autorretrato sugere um deslimite que o
deslizamento vocalizado acentua.15 Esse deslizamento, de fato, 15. Lembremos, por exemplo,
de A Autobiografia de Alice
dá um passo além do mero ventriloquismo das palavras da mãe,
B. Toklas (1993) de Gertrude
como nas cartas de News from Home, em direção a uma migração Stein, mas enquanto esse
total da alma. Esse movimento é levado a cabo, vertiginosamente, título pretendia chamar
atenção para o paradoxo, os
pela voz, uma estranha projeção do “eu” que é, de uma só vez, deslizamentos de Akerman
intrinsicamente associada à uma fonte, emitida por um corpo permanecem não sinalizados
e, portanto, consideravelmente
determinado e, no entanto, desprovida de existência material mais perturbadores. Eu
própria: flutuando no ar, como se em busca de um lar. havia escrito mais sobre este
deslizamento: Alisa Lebow,
Não resta dúvida alguma de que a figura materna é “Memory Once Removed”,
p. 47. Amy Taubin, uma
aquela que se repete ao longo da obra de Akerman. Brenda crítica usualmente precisa
Longfellow proclamou, já em 1989, que “se existe um núcleo e cuidadosa, lembrou
erroneamente desse aspecto
fantasmagórico no trabalho de Chantal Akerman, ele reside no em sua crítica original da
desejo de reconstituir a imagem da mãe, a voz da mãe”.16 Se, instalação para o Village Voice.
Ela escreveu que “o texto seria
como escreve Tijana Mamula, Akerman, em “praticamente todo puramente autobiográfico
seu trabalho, mantém sua mãe muito viva”, então, No Home com a exceção do narrador em
primeira pessoa, que não é
Movie aparece como uma tentativa de reconciliar-se com o fato
Akerman e sim sua mãe”. Amy
de que sua obra não poderia mais fazer isso.17 Vazia e inerte, a Taubin, Village Voice, 12 de
última tomada do apartamento da mãe enquadra para fora da Maio de 1998.

tela, ameaçadoramente, como um memento mori, a combinação 16. Brenda Longfellow, “Love
ornamental das urnas a assumir a aparência de dois ossuários. Letters to the Mother”,
Canadian Journal of Political
Ela sugere em silêncio o que ninguém havia considerado, o and Social Theory 13, n. 1-2,
que ninguém ousaria contemplar: o que aconteceria quando 1989, p. 73.
ela não pudesse mais manter sua mãe viva com seus filmes? 17. MAMULA, Tijana.
Com Akerman, supostamente, não há cinema sem a mãe, e “Matricide, Indexicality and
Abstraction”, Studies in
isso é irrefutável, como o final lamentavelmente irreversível
French Cinema 8, n. 3, 2008,
evidenciou, que não haveria mais filmes sem ela. A questão de p. 273.
quem estava mantendo quem viva com esses filmes parece mais,
em seus efeitos, uma reviravolta no emaranhado de identidades
deslizantes que percorrem do início ao fim a obra de Akerman.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 18-29, JUL/DEZ 2017 29


Autobiografia, exílio e alteridade:
o cinema de David Perlov,
Avi Mograbi e Elia Suleiman

Ilana Feldman
Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais
da Escola de Comunicações e Artes da USP. É pós-doutora em Teoria Literária pela
UNICAMP e doutora em Cinema pela ECA-USP, com passagem pelo Departamento
de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris 8.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017


Resumo: As escritas de si no cinema, seja ele em primeira pessoa, autobiográfico
e/ou autoficcional, têm problematizado de forma cada vez mais instigante o modo
pelo qual a subjetividade, constituindo-se por meio da linguagem e da imagem,
pode tornar-se condição para a relação com a alteridade. Nesse panorama, as obras
autobiográficas e autoficcionais do cineasta brasileiro, radicado em Israel, David
Perlov (Diário 1973-1983, 1985), do israelense Avi Mograbi (Vingue tudo, mas deixe
um dos meus olhos, 2005) e do palestino Elia Suleiman (O que resta do tempo,
2009) interrogam as interseções entre as esferas pública e privada, a história
coletiva e a memória pessoal, a familiaridade e a estrangeiridade, fazendo da escrita
de si uma das mais potentes formas de escrita do outro. Como discutiremos a partir
de três sequências privilegiadas para análise, se Perlov encarna a figura da angústia
e do mal-estar, Mograbi a figura do confronto e Suleiman a figura da perplexidade,
a identidade de cada um dos realizadores vai se confundir com a alteridade de seus
próprios personagens: todos eles de alguma forma exilados em meio a um contexto
político explosivo e fraturado.
Palavras-chave: autobiografia; alteridade; exílio; David Perlov; Avi Mograbi; Elia
Suleiman

Abstract: Self-writing in the cinema, whether first person, autobiographical and/


or autofictional, has increasingly problematized the way in which subjectivity,
constituting itself through language and image, can become a condition for the
relationship with alterity. In this panorama, the autobiographical and self-fictional
works of the Brazilian filmmaker, living in Israel, David Perlov (Diary 1973-1983,
1985), the Israeli Avi Mograbi (Avenge But One of My Two Eyes, 2005), and the
Palestinian Elia Suleiman (The time that remains, 2009) question the intersections
between public and private sphere, collective history and personal memory,
familiarity and foreignity, making self-writing itself one of the most powerful form
of writing of the other. As we will discuss through the analysis of three selected
sequences, if Perlov embodies the figure of anguish and uneasiness, Mograbi the
figure of confrontation, and Suleiman the figure of perplexity, the identity of each of
the directors will be merged with the otherness of their own characters: in the midst
of the same explosive and fractured political context, all of them are, somehow,
exiled.
Keywords: autobiography; alterity/otherness; exile; David Perlov; Avi Mograbi; Elia
Suleiman

32 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


A emoção não diz “eu”. (...) Se está fora de si. * O presente artigo retoma e
desenvolve as comunicações
Gilles Deleuze apresentadas no âmbito do
IV Colóquio “Cinema, estética
O exílio é a vida levada fora da ordem habitual. É nômade, descentrada, e política”, organizado pelo
Programa de Pós-graduação
contrapontística, mas, assim que nos acostumamos a ela, sua força
em Comunicação da
desestabilizadora entra em erupção novamente. Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Sociais da UFMG e
Edward Said realizado em Belo Horizonte,
de 24 a 26 de junho de 2015,
bem como no Colóquio
Internacional “Chamar as
As narrativas performativas no âmbito do cinema, seja ele chamas: imagens, gestos,
levantes”, promovido pelo
autobiográfico ou autoficcional,1 em geral narrado na primeira MAR – Museu de Arte do
pessoa, têm problematizado de forma cada vez mais instigante Rio e UFRJ, de 23 a 26 de
o modo pelo qual a subjetividade, constituindo-se por meio da novembro de 2015.

linguagem e da imagem, pode tornar-se condição para a relação


1. Cunhado por Serge
com a alteridade. Afinal, como vêm postulando a linguística e as Doubrovsky na década de
filosofias do sujeito e da enunciação que lhe são tributárias, essa 1970 em relação à literatura,
o termo “autoficção”
primeira pessoa que parece encerrada em sua particularidade só compreende a subjetividade
adquire seu verdadeiro sentido quando consegue tocar e elaborar como produção e se
inscreve no coração de um
a experiência coletiva, quando consegue, por meio de operações paradoxo: o desejo de falar
narrativas de desvio, montagem e mise en scène, fazer reverberar de si e o reconhecimento
da impossibilidade de
sobre o eu o tu, sobre o familiar o estrangeiro, sobre o íntimo o
exprimir uma verdade. Neste
êxtimo2 – âmbito que, segundo a psicanálise, sendo tão próprio artigo, procuramos pensar
ao sujeito, só poderia apresentar-se fora dele, na relação com o a autoficção no cinema
como intensificação, ou
outro, na exterioridade da linguagem. explicitação, da dimensão
ficcional que a própria escrita
“O ‘eu’ que escreve sua história não escreve somente sobre autobiográfica já comporta
si mesmo, porque não há nada de menos substancial que esse em si mesma, seja por meio
de diversas formas de mise
próprio si”, formula Jeanne Marie Gagnebin no ensaio “Entre en scène e encenação do
moi et moi-même (Entre eu e eu-mesmo)” (2005, p.138), sobre eu, seja por meio do humor,
da paródia de gêneros
as contribuições do filósofo francês Paul Ricoeur a propósito do narrativos e da capacidade de
conceito de “identidade narrativa”. Pensando a identidade como autoderrisão do cineasta.
“ipseidade” (ipséité) em oposição à “mesmidade” (mêmeté),
2. De acordo com Miriam
isto é, como uma identidade subjetiva não essencializada, não
Debieux e Tiago Sanches
substancialista, mas descontínua e fragmentada no decorrer Nogueira, foi em seu
de sua duração temporal, Ricoeur, na esteira da linguística de seminário intitulado “A
ética da Psicanálise” que
Benveniste, defende um conceito de sujeito simultaneamente Jacques Lacan usou o termo
dessubstancializado e radicalmente responsável: é sujeito “extimidade” pela primeira
vez, ao discorrer sobre a
aquele que se diz e se constrói a si mesmo pela elaboração de Coisa freudiana (das Ding).
sua própria história, pela ação de tomar a palavra e dizer “eu”, “Desse modo, o centro do
homem, o mais íntimo de si
pois é na linguagem e pela linguagem que um sujeito se constitui mesmo, estaria fora dele e
(Benveniste, 1988, p.286). Porém, esse “eu” sempre se define em sua busca estaria voltada

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017 33


para o reencontro desse das relação a um “tu”, já que as instâncias de enunciação e destinação
Ding, desse ‘Outro absoluto
de um discurso são inseparáveis, assim como são entrelaçadas e
do sujeito’” (2017, p.192,
grifo nosso), cf. bibliografia. complementares, como numa fita de Moebius, a identidade e a
alteridade, o dentro e o fora, o próprio e o alheio.
Assim, seguindo as reflexões de Gagnebin e de seus
antecessores, como Benveniste, Ricoeur e Jean Starobinski,
uma autobiografia somente se realiza quando rompe com o
enquadramento privado e individual que parecia constituí-la
enquanto gênero específico. Afinal, no âmbito das escritas de si,
um escritor ou cineasta, cuja escritura aparentemente versa sobre
si mesmo, escreveria mais a respeito das transformações pelas
quais passou, ou está passando, do que sobre esse “si mesmo”
supostamente estável e permanente. Mais ainda: “é porque ele
passou por essa transformação que sente a possibilidade, muitas
vezes a exigência, de contar, é porque ele se tornou outro que
toma a palavra” (Gagnebin, 2005, p.138, grifo nosso). Como bem
sabe a experiência psicanalítica, distante do outro que se era, um
sujeito se torna “ele mesmo” no ato de narrar.
Tomando então distância das ilusões de permanência
substancial da identidade pessoal, da redução do coletivo
ao primado do indivíduo e da “hipertrofia do eu” que marca
grande parte das narrativas midiáticas e expressões artísticas
contemporâneas, as obras autobiográficas e autoficcionais do
cineasta brasileiro radicado em Israel, David Perlov; do israelense
de origem síria Avi Mograbi; e do palestino residente na França
Elia Suleiman – todos os três de alguma forma exilados em meio
a um contexto político explosivo e fraturado –, interrogam as
interseções entre as esferas pública e privada, a história coletiva
e a memória pessoal, a familiaridade e a estrangeiridade, fazendo
da escrita de si uma das mais potentes formas de escrita do outro.
Afim de dar a ver como tal dinâmica se expressa de forma
singular em cada gramática cinematográfica, analisaremos
sequências de Diário 1973-1983 (Perlov, 1985), Vingue tudo,
mas deixe um dos meus olhos (Mograbi, 2005) e O que resta do
tempo: crônica de um presente ausente (Suleiman, 2009), tendo
sido as três obras realizadas em Israel e Cisjordânia, região
marcada por dissensos políticos e conflitos milenares – e que vem
fomentando uma das mais expressivas e combativas produções
cinematográficas da atualidade. Como discutiremos por meio
dessas de três distintas formas de exílio, de três distintos modos de

34 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


enunciação e subjetivação,3 se Perlov encarna a figura da angústia 3. Lembremos que a
subjetivação, o tornar-se
e do mal-estar, Mograbi a figura do confronto e Suleiman a figura
sujeito, implica sempre um
da perplexidade, a identidade de cada um dos realizadores vai se processo de desidentificação,
confundir com a alteridade de seus próprios personagens: pois um descolamento de uma
identidade supostamente
é apenas a partir desse lugar que o radicalmente outro pode ser fixa e essencializada. De
evocado, ouvido, entrevisto ou figurado, mesmo quando o mundo acordo com Jacques Rancière,
em O desentendimento,
parece estar prestes a se convulsionar. essa “desidentificação”
(1995, p.47) se relaciona à
emergência de uma cena
política, desfazendo e
David Perlov e a figura do mal-estar recompondo as relações
entre os modos do fazer, do
ser e do dizer que definem
Considerado o precursor do cinema moderno israelense, a organização sensível da
comunidade (1995, p.51), cf.
o brasileiro David Perlov construiu uma filmografia singular, bibliografia.
caracterizada pela tensão entre o público e o privado, o
cotidiano e o sagrado, o poético e o político, a história coletiva
de uma geração e sua fascinante jornada pessoal, marcada, no
pleno sentido de uma cicatriz, por uma série de deslocamentos
geográficos e por uma forte sensação de não pertencimento.
“Estranho aqui, estranho lá, estranho em todo lugar. Eu poderia ir
para casa, querida, mas ainda sou um estranho lá”, afirma Perlov
citando uma canção de Odetta Holmes, enquanto observa, através
da janela de um carro e depois de 20 anos de ausência do Brasil,
passantes em uma rua quieta de São Paulo.
Judeu laico, filho de um mágico itinerante original da
então Palestina e de uma mãe iletrada, imigrante da Bessarábia,
Perlov nasce no Rio de Janeiro em 1930, mas passa sua primeira
década de vida em Belo Horizonte, onde é criado pela negra Dona
Guiomar, neta de escravos e fervorosamente protestante. Aos 10
anos muda-se com o irmão para o bairro da Vila Mariana, em São
Paulo, abandonando uma infância sofrida, extremamente pobre
e nada protegida. Entre os estudos em um colégio estadual e as
4. Empregamos a palavra
viagens de bonde, Perlov dedica-se ao desenho e ao movimento hebraica “Shoah”, que
juvenil socialista-sionista Dror, onde conhece Mira, judia polonesa significa desastre e
destruição, em lugar do
sobrevivente da Shoah,4 que será produtora de Diário 1973-1983 usual “Holocausto”, termo
(1985) e sua companheira por toda a vida. problemático devido a
sua conotação religiosa e
Antes, porém, de fixar-se em Israel no final dos anos 1950, sacrificial. “Shoah” nomeia
assim a aniquilação em
como muitos jovens judeus de sua geração mobilizados pelo massa dos judeus, sobretudo
trauma da Segunda Guerra, é a estada de seis anos em Paris, europeus, no decorrer da
Segunda Guerra Mundial
entre 1952 e 1956, que leva Perlov a abandonar a aspiração (1939-1945) e, sobremaneira,
às artes visuais. O cinema se apresenta então como uma nova a partir da Solução Final (1941).

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paixão, pelas possibilidades estéticas, humanas e críticas que esse
meio lhe oferece. Pelas possibilidades, por meio da montagem de
fragmentos filmados, de recompor a história, dando à cronologia
5. Perlov parece colocar das datas uma fisionomia.5
em prática o postulado
desenvolvido por Walter Em 1958, deixando para trás a vida de assistente de Joris
Benjamin em seu projeto
das Passagens, segundo o
Ivens e Henri Langlois, o jovem cineasta muda-se definitivamente
qual, “escrever a história para Israel, indo ao encontro de Mira e refazendo o caminho
significa dar às datas a sua
de sua diáspora originária. No kibutz Bror Hayil, comunidade
fisionomia”. (2006, p. 518),
cf. bibliografia. agrícola baseada no trabalho coletivo, nascem em 1959 suas
filhas, as gêmeas Yael e Naomi, presenças fundamentais em
sua obra autobiográfica, a qual vai se estender até início dos
anos 2000. Em 1961, a família transfere-se para a urbana e
cosmopolita Tel Aviv, onde Perlov, anos mais tarde, desenvolve
um aguçado senso de observação e precisão formal por meio
das janelas de seu apartamento.
A partir da realização de seu média-metragem Em Jerusalém
(1963), obra influenciada pela Nouvelle Vague francesa e
considerada a pioneira do cinema moderno israelense, mas
muito pouco apreciada pelo status quo israelense, Perlov se vê
isolado pelas autoridades políticas e sistemas de financiamento
locais. Nesse contexto, não consegue realizar seus projetos de
documentário e passa a viver uma espécie de exílio forçado em
seu próprio apartamento. Como se percebe em Diário 1973-
1983, Perlov busca liberdade estética e política em um momento
histórico em que o cinema é visto pelo Estado como instrumento
de propaganda ideológica, sendo valorizados e financiados
apenas os filmes edificantes, solenes e comemorativos – e não
as experiências formais empenhadas em dar espaço ao humano.
Ele quer fazer filmes sobre pessoas, sobre as vidas dos imigrantes
que constroem o país, enquanto eles, as autoridades estatais da
época, querem filmes sobre ideias.
Para sair de um estado depressivo e colocar o olhar em
movimento, Perlov dá início, a partir de 1973, a um diário
cinematográfico. Em plena eclosão da Guerra de Yom Kippur,
o cineasta reivindica a liberdade de um escritor e a precisão de
um atirador para filmar e mirar a realidade do mundo exterior
através dos enquadramentos de suas janelas, janelas do
apartamento, janelas da televisão. “Maio de 1973. Eu compro
uma câmera 16 mm. Eu começo a filmar para mim mesmo e

36 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


por mim mesmo. O cinema profissional não me interessa mais”,
diz ele no primeiro capítulo de seu diário, recusando a partir de
então um cinema de tramas, intrigas e dramas, um cinema de
ilusões, trapaças e mistificações – embora mais adiante admita
que, em diversos momentos, recaia nos dramas que a própria
realidade lhe oferece.
Filmado, escrito e montado durante mais de 10 anos e
divido em seis capítulos (cuja narrativa desloca-se entre Tel
Aviv, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Lisboa),
o Diário 1973-1983 de Perlov, dentre os diversos filmes por
ele realizados, constitui sua obra mais importante e vigorosa,
acrescida dos também autobiográficos Diários revisitados
1990-1999 (2001) e do ensaio fílmico Minhas imagens 1952-
2002 (My Stills, 2003), seu filme-testamento. Intercalando
com extrema precisão e força poética os eventos do cotidiano
familiar, os traumas vividos no passado brasileiro e os
dramáticos acontecimentos políticos de Israel, Perlov relaciona
a escritura de seu diário fílmico a um ato de guerra, assim como
de desespero, conferindo ao gênero uma radicalidade que não
existia no cinema israelense de então. Em Diário 1973-1983 é
a primeira vez, nessa cinematografia, que a investigação sobre
si e sobre o olhar político daquele que filma se torna uma
questão cinematográfica. É a primeira vez que a enunciação
em primeira pessoa toma forma, situada na voz corporificada e
ritmada do próprio cineasta.
Entretanto, esses anos da vida de Perlov não nos são
apresentados a partir de um prisma estritamente confessional.
De modo contrário, sua trajetória biográfica nos é revelada
aos fragmentos, ainda que organizados cronologicamente,
e sua subjetividade emerge não de uma interioridade
essencializada, mas da observação da exterioridade do mundo
e da interrogação das imagens que capta, cujos sentidos são
construídos por meio de um potente trabalho de narração,
reflexão metodológica e montagem. Assim, a imbricação entre
história, política e experiência subjetiva faz de seus diários um 6. “Qu’est-ce que le moi?
caderno de notas audiovisuais, atravessados e perfurados pela Un homme qui se met à
la fenêtre pour voir les
presença do outro, pelo mundo, por uma experiência de radical passant”, citado por Gérard
extimidade. Como perguntava-se Pascal alguns séculos antes: Wajcman em Fenêtre.
Chroniques du regard
“O que é o eu?”, para ele mesmo responder: “Um homem que et de l’intime (2004), cf.
se põe à janela para ver os passantes”.6 bibliografia.

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Batucada

Ao longo do Diário, não são poucas as vezes em que o olhar


de Perlov migra da observação sobre a família e o cotidiano, do
comentário político e social e do cultivo de um estado de espírito,
muitas vezes marcado pelo mal-estar, para uma radicalização
formal, em que a linguagem, por meio da montagem, é estremecida
e convulsionada. O momento mais intenso acontece no terceiro
capítulo, quando a montagem intercala uma harmoniosa dança
entre amigos na sala de estar do cineasta com a paisagem da
cidade em “convulsão”, filmada através da janela por uma câmera
na mão agitada e frenética. Durante a dança, com amigos recém-
chegados do Brasil, ao som de uma música brasileira, Perlov se
recorda dos momentos de penúria em sua infância:

Essa dança em casa é muito repentina. Quantos momentos do


passado ela revela? Quantos carnavais perdidos? Eu pressinto
o início de uma longa jornada a caminho de casa. Minha casa,
a casa e o quintal em Belo Horizonte. Feijão sem arroz. Uma
ou duas bananas por semana. Nada mais.

A partir desse comentário, a montagem corta da situação


da dança (desfrutada por Mira e pelo casal Julio e Fela) para
a paisagem da cidade ao som de um batuque de carnaval, o
qual continua sobre a imagem da sala de estar agora vazia. O
batuque cede progressivamente ao silêncio, quando é tomado
por um agudo som de apito, seguido pela gravidade de tambores
abafados, como um anúncio ou presságio do que está por vir. Em
seguida, estamos já dentro de um quarto (supomos que de Perlov)
submersos em uma intensa batucada que ritma demoradamente
o estremecimento de fotografias, postais, pinturas e recortes de
jornal afixados sobre uma parede. Alguns minutos depois, ao som
de apitos, cuícas e tambores, a câmera na mão, ainda agitada
e tremulante, deixa o quarto para ir ao encontro da paisagem
da cidade em convulsão, vista através da janela – como quem
vive e testemunha um estremecimento a um só tempo interior e
exterior. A sequência se encaminha para o fim e estamos de volta
à sala de estar onde antes dançavam alegremente os amigos, que
agora encenam uma longa, e por vezes cômica, despedida.

38 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


Como vemos nessa sequência a que chamamos de “Batucada”,
tal entreato caótico que vem interromper a dança, com a duração
de quase dez minutos, insere outras temporalidades no interior
de uma suposta unidade espaço-temporal e opera no Diário como
uma vertiginosa paisagem interior de Perlov: espécie de fluxo
de consciência, porém com palavras estancadas, carregado de
agitação, inquietude e angústia. Dessa forma, a narração inicial
de Perlov não apenas relaciona o presente da filmagem à sua
penosa e pobre infância vivida em Belo Horizonte, ao longo de
muitos carnavais, como vê nesses momentos passados pontes com
sentimentos, sensações e presságios que habitam seu presente.
Como se, como queria Benjamin (2006, p. 503) em seu método
desenvolvido nas Passagens, na análise do pequeno momento
individual – a dança com os amigos –, Perlov encontrasse uma
angústia subterrânea, o traço de uma tragédia iminente, “o cristal
do acontecimento total”.
Assim, a imagem atuaria nessa sequência como o espaço e
o tempo em que o ocorrido (o passado da filmagem) encontraria
o agora (o presente da narração e da montagem, realizadas
alguns anos depois da captura das imagens) como num lampejo,
estremecimento ou convulsão. Entre o plano da imagem e o
plano da narração, entre sua traumática experiência pessoal no
passado e seus sentimentos negativos pelo futuro próximo de
Israel, existiria uma espécie de tumulto existencial, de tremor, de
terremoto – situação subjetiva expressa pelo modo como Perlov
filma, com uma câmera convulsa, a paisagem da cidade através
da janela. Aqui, não podemos esquecer que estamos em 1981, a
menos de um ano da Guerra do Líbano e de todo o sofrimento
que ela provocará, guerra que será então tematizada no capítulo
seguinte. Como se vê, em Perlov o trauma – da penúria, da
loucura – é parte de um evento pessoal e fundador, mas sua
dor faz perpetuamente a passagem à dimensão coletiva de uma
história que só pode ser entrevista, à maneira benjaminiana, como
fragmento, presságios e catástrofe.
Logo, se na Tel Aviv de Perlov o traumático passado pessoal
do cineasta se liga ao dramático futuro coletivo de Israel, é porque
existe um potente trabalho de montagem que, a todo o tempo, abre
o espaço doméstico da família a um fora – o “fora” das janelas
do apartamento, o “fora” de suas referências artísticas e afetivas.
Fazendo um uso singular de seus arquivos pessoais (composto por

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fotografias, pinturas, postais e desenhos), Perlov filma seu “mural
warburguiano” de maneira convulsiva e tremulante, fundindo
referências da história da arte, do cinema e de sua própria família
e trajetória biográfica, em uma espécie muito particular de “Atlas
7. Referência ao “Atlas Mnemosyne”7 para uso diário. Entre recortes de jornal com imagens
Mnemosyne” de Aby
do pai prestigiador, encenando seus números de mágica, vê-se
Warburg. Ver a contribuição
de Georges Didi-Huberman nesse mural uma recorrente imagem de A paixão de Joana D’arc,
em “ATLAS ¿Cómo llevar el de Carl Dreyer (1928), com ênfase no rosto em primeiro plano da
mundo a cuestas?”, 2011,
p.2-3, cf. bibliografia. personagem em súplica; uma reprodução da litografia Sorrow, de
Van Gohg (1882); uma polaroide caseira de um corpo de mulher
nu e destituído de cabeça (provavelmente Mira); e manchetes de
periódicos com o apelo “Meu filho, meu filho!”, como quem grita
de pavor diante da partida de um filho para guerra.
Ao longo de seus diários, David Perlov não cessou de abrir
janelas, de filmar através delas, de fechá-las, de tornar a abri-las,
dando forma à matéria informe de si e do mundo, pois as janelas
constituem a mediação concreta e a figuração simbólica por
meio das quais o âmbito pessoal e autobiográfico é atravessado
8. Para maior pelo público e pelo político.8 Assim, aproximando-se do que lhe é
aprofundamento da análise,
estranho e distanciando-se do que lhe é extremamente próximo,
ver nossa publicação
anterior “As janelas de David Perlov desenvolve em Diário 1973-1983 uma espécie de política
Perlov: autobiografia, luto e das imagens e alça suas imagens pessoais à condição de operadores
política” (Feldman, 2017), cf.
bibliografia. da política, na medida em que, através das janelas, a alteridade do
mundo vem rebater sobre o eu, expondo-o ao que o ultrapassa.
Em lugar de uma narcísica e tão banalizada hipertrofia do
“eu”, em que se confunde e superpõe o sujeito do discurso com
o indivíduo que fala, estamos diante aqui de uma experiência
9. Para autores como marcada pelo exílio subjetivo e pela não-identidade.9 Em um país
Blanchot, Derrida e Levinas, o
judaísmo só existe como um
que escolheu como lar, escolha carregada de sonhos, mas também
dos nomes do não idêntico, de frustração e ativo inconformismo, Perlov, poderíamos dizer,
condição que não se define nunca se sentiu em casa na própria casa.
por nenhuma propriedade
intrínseca, exceto aquela
que se dá no devir, sempre
errante e estrangeiro. A esse
respeito, ver as importantes
Avi Mograbi e a figura do confronto
contribuições de Betty
Fuks (2000, p. 73-76), cf.
bibliografia. Avi Mograbi é o cineasta que hoje melhor incorpora, já
que ele mesmo se faz corpo em sua obra, a contundência do
documentário israelense. Ousado e inventivo, Mograbi tem
construído uma obra contundente do ponto de vista estético e
político, interrogando os fundamentos da sociedade israelense

40 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


e questionando radicalmente os códigos da prática documental
tradicional. Nesse movimento, o documentarista Mograbi,
alçado a personagem de seus próprios filmes, coloca-se a si
mesmo em questão, de maneira explicitamente autoficcional
e autoirônica, quando não cáustica e mordaz. Assim tem sido,
com importantes variações de tom e de estratégia, desde Como
eu aprendi a superar meu medo e amar Ariel Sharon (“Comment
j’ai appris à surmonter ma peur et à aimer Ariel Sharon”, 1996),
Feliz aniversário, Sr. Mograbi (“Joyeux anniversaire, Monsieur
Mograbi”, 1998), Agosto, antes da explosão (“Août, avant
l’explosion”, 2001), Vingue tudo, mas deixe um de meus olhos
(“Pour un seul de mes deux yeux”, 2005), Z32 (“Z32”, 2008),
Em um jardim eu entrei (“Dans un jardin je suis entré”, 2012) e
Entre cercas (“Entre les frontières”, 2016).
Nascido em 1956 em Tel Aviv, no seio de uma família judia
original de Damasco, na Síria, radicada na Palestina em uma
época ainda pré-nacional, isto é, antes da criação do Estado de
Israel e da eclosão dos nacionalismos árabes, Mograbi tornou-
se um crítico contumaz dos fundamentalismos nacionais.
Posicionando-se criticamente às correntes hegemônicas do
sionismo10 desde os tempos de estudante e defensor de um Estado 10. É preciso lembrar que
o sionismo contempla um
de Israel laico, binacional e inclusivo, o engajamento estético e
amplo espectro de correntes
político de Mograbi deveu-se, segundo o crítico Ariel Schweitzer ideológicas, inclusive
(2014, p.134), a dois encontros. O primeiro se deu com o cinema: divergentes. A corrente
sionista que pavimentou
seu avô Ibrahim fora proprietário de uma das salas de cinema a formação do Estado de
mais antigas de Tel Aviv, inaugurada em 1930, a qual portava seu Israel foi, do final do século
XIX a meados da década de
nome: “Cinema Mograbi”. É lá que, em criança, ele é iniciado às 1970, alinhada à ideologia
imagens em movimento e descobre a força do cinema de gênero. socialista e a diversas frentes
no campo da esquerda. A
O segundo com a política: em 1983, em plena Guerra do Líbano partir dos anos 1970, com o
eclodida no ano anterior, Mograbi, então estudante de filosofia e término da Guerra dos Seis
Dias (1967), a subida da
artes plásticas, é convocado para realizar seu serviço de reserva direita ao poder (1977) e a
no Exército. Fortemente contrário à guerra, ele se recusa a servir implementação de políticas
de anexação e ocupação
no Líbano, transformando-se em porta-voz de um grupo de militar dos territórios
jovens, como ele, resistentes ao serviço militar. Mograbi é então palestinos, o termo sionismo
condenado a trinta e cinco dias de prisão. vai se irmanando ao caráter
nacionalista e colonialista
do Estado israelense, desde
A partir desse evento biográfico marcante, Mograbi torna-se
2009 sob liderança do
membro de diversos grupos militantes contra a ocupação e pela ultraconservador premiê
defesa dos direitos dos palestinos, não podendo mais dissociar Benjamin Netanyahu.

sua obra como cineasta do ativismo e inconformismo político.


À sua radicalidade política, soma-se o trabalho de interrogação

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017 41


e desconstrução de uma suposta neutralidade ou autenticidade
do dispositivo documental, atravessando as fronteiras do
gênero, tensionando seus limites e lançando mão de variadas
estratégias ficcionais. Ao se valer da arma corrosiva do humor
(em alguns momentos até do cinismo), Mograbi tem realizado
filmes ancorados na encenação do “eu”, no jogo com os códigos
da autobiografia e no embaralhamento entre documentário e
ficção, nos quais sua própria figura de documentarista engajado e
militante de esquerda é radicalmente ironizada – como acontece
de maneira explicita em Como aprendi a superar meu medo e amar
Ariel Sharon (1997), Feliz aniversário, Sr. Mograbi (1999), Agosto,
antes da explosão (2001) e Z32 (2008).
Mograbi então realiza, de diferentes maneiras, uma espécie
de genealogia da violência e dos traumatismos que conformam
a vida dos israelenses e dos palestinos sob a ocupação, filmando
inimigos (como Ariel Sharon), amigos (como seu professor de
árabe Ali Al-Azhari ou a voz de seu amigo palestino confinado
em Ramallah), soldados atônitos (em checkpoints entre Israel e
a Cisjordânia), imigrantes africanos (encenando suas histórias
em um campo de refugiados), concidadãos à beira de um
ataque de nervos e a si próprio desempenhando o papel de
documentarista, de produtor e de sua própria esposa em vias de
separação. Como afirma Schweitzer (2014, p.135): “A subversão
dos procedimentos cinematográficos caminha assim, lado a
lado, com um trabalho de problematização e desconstrução dos
mitos fundadores da sociedade israelense”. Mas é em Vingue
tudo, mas deixe um dos meus olhos (2005), séria cartografia
da cultura da violência no Oriente Médio, dos mitos bíblicos
aos homens-bomba, passando, claro, pela ocupação militar
israelense impingida aos territórios palestinos, que Mograbi
investiga a fundo as históricas e míticas matrizes fundadoras de
seu país, assumindo o lugar do confronto.
Por meio da observação de duas situações cotidianas,
uma visita de jovens norte-americanos à fortaleza de Massada
e uma aula para crianças da escola primária, Mograbi flagra
e interroga a transmissão de dois mitos fundadores judaicos:
o suicídio coletivo dos 960 judeus zelotas abrigados na
fortaleza de Massada, que, cercados por dez mil soldados
romanos, recusaram-se a se render no ano de 73, e o suicídio
vingativo do herói bíblico Sansão, que teve seus dois olhos

42 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


arrancados pelos filisteus e se vingou destruindo as colunas
do templo onde estava, matando a si mesmo e a todos os
inimigos. Relacionando essa violência mítica à realidade
israelo-palestina no momento da Segunda Intifada11 – o título 11. A Segunda Intifada
nomeia uma série de
do filme, inclusive, faz referência à oração que Sansão dirige eventos que deram corpo
a Deus antes de recuperar suas forças e realizar seu “ataque à revolta da população
suicida” –, Mograbi capta uma série de “rituais de violência”, civil palestina contra a
política de administração
descreve uma sociedade sob tensão, à beira da autodestruição, e ocupação israelense, no
e personaliza seu tema respondendo à agressão militar com contexto do fracasso dos
acordos de Camp David, do
sua própria agressividade e disposição ao confronto. recrudescimento de ataques
terroristas e de sucessivos
confrontos entre o exército
israelense e os palestinos. O
Do outro lado da linha telefônica conflito durou de setembro
de 2000 até o início de 2005,
deixando milhares de mortos.
Diferentemente de seus filmes anteriores, em Vingue tudo,
mas deixe um dos meus olhos o documentarista assume outro
tom: no lugar de seu humor cáustico, da encenação paródica
de si mesmo e da construção de dispositivos ficcionais, Mograbi
opta pela discrição, por uma observação mais distanciada, mas
sem deixar de abrir mão de sua presença, ainda que pontual.
Aqui, o fio condutor da narrativa, aquilo que une a diversidade
das situações filmadas, mesmo que de forma discreta, são as
conversas telefônicas que o cineasta estabelece com um amigo
palestino, confinado em Ramallah, na Cisjordânia, território
ocupado por Israel. Nessa situação, o cineasta coloca-se diante
de sua câmera, no exíguo espaço de um quarto, em realidade
uma ilha de edição caseira, como quem precisa deixar claro que
a política e o cinema se fazem em todos os lugares, inclusive no
espaço privado da casa. Injetando seu corpo e sua voz na matéria
fílmica, Mograbi não chega a falar em primeira pessoa, não
chega a dizer “eu”, mas inventa uma subjetividade estilhaçada,
que vai progressivamente impregnando os pedaços da realidade
que captura e produz – até chegar o momento em que, perdendo
o controle sobre sua própria fúria, faz o filme sair de si.
“Acredite em mim, não me importo se eu morrer. Meu
problema é como viver”, diz a voz do amigo palestino, por
telefone, a Mograbi. “Bom, eu não quero morrer”, responde
Mograbi em primeiro plano diante de sua câmera fixa, enquanto
ao fundo e sob a penumbra vemos uma figura feminina, supomos
que sua esposa, passar, arrumar alguns livros e se instalar diante

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de seu computador, na normalidade da vida cotidiana. “Na
realidade eu quero viver, mas a linha entre viver ou morrer não é
tão complicada para mim, não é um grande problema”, continua
o amigo palestino, em um diálogo que dá início à penúltima
sequência do filme, dividida em duas partes. Não desprovida
daquele humor corrosivo bastante judaico, a conversa continua
sobre vida e morte, céu e inferno, a existência palestina sob
ocupação, a falta de vontade de viver, Deus, vinhos franceses e
garotas holandesas. E então o amigo palestino desabafa: “Estou
dormindo até às 11h da manhã todos os dias. Eu não sei como
vou retornar para uma vida normal”. Corta.
Mograbi coloca-se agora diante de uma fronteira militar que
divide Israel dos territórios ocupados. Sua câmera está na mão,
instável, e flagra crianças palestinas do outro lado de uma cerca
viajada. Diante de si, um jipe militar e alguns jovens soldados
israelenses. A equipe que está a seu lado (não os vemos, mas
ouvimos uma voz de mulher) pergunta a que horas o portão será
aberto para que as crianças passem. “Devemos responder a você?
Fale com meus superiores”, eles dizem. Mograbi se aproxima.
Eles pedem para o documentarista se afastar. Um dos soldados,
filmado agora em plano muito próximo, pede novamente para
que Mograbi se afaste e pare de filmar, mas o realizador insiste.
O grau de tensão da conversa vai progressivamente aumentando.
Empunhando sua câmera na posição de arma, Mograbi interpela
o soldado de maneira nervosa, pede para ver onde está a ordem
superior que impede as crianças palestinas de voltarem para
casa depois da escola, chama o soldado de teimoso, manda-o
crescer e, num tom de voz cada vez mais agressivo, diz para
o grupo de jovens militares que eles são um bando de inúteis,
que suas ordens são ilegais, até que grita, com o dedo em riste,
exigindo que abram o portão. Então um dos soldados pontifica
discretamente: “Ele está tentando conseguir material para
uma história”. E Mograbi lhes pergunta, aos berros: “De onde
vocês vêm? De que buraco vocês saíram? De que lixeira vocês
foram transportados?”. Os soldados não reagem. As crianças
continuam aguardando e assistem de longe a cena. Até que um
dos jovens militares diz: “Eu espero que você tenha um filho que
um dia ouça o que você está dizendo agora”. Mas Mograbi não
desiste nem arrefece seu tom de voz, continuando em fúria: “De
onde o seu povo vem?”. “Nós viemos de seu país”, um deles lhe
responde fechando a porta do jipe.

44 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


Com duração de quase 10 minutos, é terrível toda a sequência
assim instalada. A violência, por todos os lados, é presente e
iminente. O amigo palestino está do outro lado da linha telefônica
e sua ausência física impõe uma presença ao modo do fantasma.
Já as crianças palestinas estão do outro lado da cerca viajada
e suas presenças parecem invisíveis, como se não existissem. A
linha telefônica e a cerca são os limites que relacionam os dois
mundos e radicalmente os separam. As experiências subjetivas
dos israelenses e palestinos não se tocam, ou se tocam unicamente
através da montagem, como se não compartilhassem nada além
de um território em litígio e de um filme que as abriga. A sensação
de aporia, imobilidade e exílio é total. Diante disso, o que pode o
cineasta? Humilhar jovens soldados, representantes do Estado, no
exercício de ordens tão perversas quanto arbitrárias? Reproduzir
o circuito de violência que ele próprio denuncia ao longo de todo
o filme, expondo-se e colocando-se em posição de confronto?
Afinal, por que encerrar dessa maneira uma obra dedicada a
fazer uma espécie de genealogia da violência, cuja estratégia
documental era até então tão sóbria?
Como comenta o crítico Cyril Neyrat (2014, p.142), em
um texto sobre o desvio do cinema direto operado por Mograbi
em seu trabalho, o efeito de “válvula de escape” da cena com os
soldados funcionaria em dois níveis: de um lado, a frontalidade
do confronto liberaria a tensão acumulada até então; de outro,
ela faria o filme derrapar, perder-se de si mesmo, preservando-o
do risco da “boa consciência objetiva” e assimilando o corpo do
realizador ao corpo social doente do qual é parte integrante. Como
vemos ao longo de seu percurso, Mograbi sempre se implicou e
se engajou naquilo mesmo que filma, mas afastando-se da figura
do cineasta como “sujeito suposto saber”, isto é, como aquele
que tudo sabe em sua superioridade moral, autorizada pela boa
consciência do “documentarista engajado”. Recusando certa
posição estável e superior daquele tipo de documentário movido
pelo gosto e pelo gesto da denúncia, tão habitual no contexto do
conflito israelo-palestino, o realizador reprova veementemente a
ideologia sionista vigente na mesma medida em que critica certo
cinema dito de esquerda, colocando-se a si mesmo como uma
figura deslocada e em certa medida exilada, ainda que seja parte
do problema. Nós viemos do mesmo país que você, da mesma
violência originária e cotidiana, parecem dizer em coro, ao final
do filme, os soldados.

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Quando Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos termina,
a tela escurece e uma cartela informa que o filho de Mograbi,
como o pai décadas antes, se recusou a servir na guerra, se
recusou a “aprender a matar”. A resposta do realizador ao
conflito parece estar dada – e advém tanto do cinema dissensual
que pratica quanto do âmbito privado, do pequeno levante
singular, da ínfima insubordinação pessoal, mas que deslocam
com força toda a realidade.

Elia Suleiman e a figura da perplexidade

Se David Perlov encarna a figura da angústia e do


mal-estar e Avi Mograbi a figura do confronto, o cineasta
palestino Elia Suleiman, um dos realizadores mais originais
e talentosos da atualidade, é pura perplexidade. Em sua
“trilogia do desaparecimento”, composta pelos filmes Crônica
de um desaparecimento (“Chronicle of a Disappearance”, 1996)
Intervenção divina (2002) e O que resta do tempo: crônica de um
presente ausente (2009), Suleiman cria para si um personagem
que porta seu nome próprio e carrega sua experiência biográfica,
marcada pelo autoexílio no exterior e pela tentativa de retorno
à terra de origem, sempre uma terra estrangeira. Vivendo essa
12. A Guerra de espécie de absurdo que consiste “em voltar sempre sem nunca
Independência de Israel
em 1948-1949, considerada
ter partido”, para usarmos uma formulação de Maurice Blanchot
a primeira guerra árabe- (2005, p. 137), em seu penúltimo filme, O que resta do tempo,
israelense, foi declarada
pelos estados árabes que
Suleiman, após duas décadas vividas nos Estados Unidos e na
rejeitaram o Plano da ONU França, retorna à Palestina de seu avô, de seu pai e de sua infância,
para a partilha da Palestina em uma espécie de epopeia autobiográfica e autoficcional,
de 1947, segundo o qual a
Palestina, ainda sob mandato fazendo da história de uma vida uma burlesca ficção histórica.
britânico, seria dividida
em um Estado árabe e um Palestino cristão nascido em 1960 e original de Nazaré, onde
Estado judeu. A guerra foi seu avô fora prefeito até a Guerra de Independência12 de Israel em
vivida pelos palestinos como
uma catástrofe (“Nakba”, 1948 e seu pai membro da resistência palestina, Suleiman encarna
em árabe), resultando na uma figura duplamente minoritária, sendo cristão na Palestina
expulsão direta ou indireta
de aproximadamente 800 e cidadão árabe-israelense em Israel. Mas, no lugar de uma
mil palestinos, que deixaram representação estanque do conflito israelo-palestino, Suleiman
as áreas incorporadas pelo
recém-criado Estado de Israel propõe uma figuração performativa de si próprio e do outro,
e se dispersaram por campos através de parábolas e alegorias. Rompendo com as compreensões
de refugiados no Líbano,
Síria, Jordânia, Cisjordânia e
binárias, com o naturalismo supostamente documental e com as
Faixa de Gaza. imagens que costumam associar o corpo palestino a uma ruína,

46 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


o cineasta desmancha o clichê midiático da vítima sofredora,
humilhada, em fuga, conferindo dignidade e ternura, capacidade
de resistência e resiliência, a seus diversos personagens, mesmo
quando agressivos ou autodestrutivos – como o vizinho bêbado
de pijama que ameaça diversas vezes colocar fogo no próprio
corpo, apenas para ser dissuadido por um gesto amigo; como os
personagens que, na última cena do filme, transitam pela entrada
do hospital onde está internada a mãe do diretor, com suas
histórias absurdas de violência incontida e agressões gratuitas.
Aos olhos perplexos de Suleiman, essas emoções desmesuradas, à
flor da pele e longe de toda racionalidade, dão testemunho de uma
situação insustentável, de uma sociedade à beira da implosão.
Em toda sua obra, incluindo seu último filme, O paraíso
deve ser aqui (2019), em que o cineasta parece estar à procura de
um novo lar antes de se dar conta que seu país lhe segue como
uma sombra, pois a Palestina está em todo lugar,13 Suleiman faz 13. Em entrevista ao veículo
France 24 English, em 03
coincidir poesia, humor burlesco e política. Por meio de estruturas
de dezembro de 2019, por
narrativas episódicas, de enquadramentos sempre fixos, ocasião da estreia mundial
frequentemente frontais, e de uma encenação que desnaturaliza de O paraíso deve ser aqui,
Suleiman vaticina: “The
cada gesto, o diretor explicita tanto a mediação cinematográfica world today has become a
como a distância que o separa do universo filmado. “Estrangeiro global Palestine”. (“O mundo
hoje se tornou uma Palestina
num mundo que parece já não ter lugar para ele”, “estrangeiro global”.)
numa terra que teria sido sua”, como comenta Peter Pál Pelbart
(2014) a respeito de O que resta do tempo, Suleiman é um exilado
sem nostalgia ou melancolia, ainda que perplexo e abismado,
como se tal posição lhe fornecesse uma liberdade de perspectiva,
uma espécie de exterioridade, de desapego à essencialista – e não
raro fanática – lógica da identidade.
Na condição de autor, narrador e personagem de si mesmo,
em um “pacto autobiográfico” (Lejeune, 2014) que orienta toda
a sua obra, o cineasta deixa claro que o que é visto por nós é
mediado por seu olhar frontal, perplexo, abismado, provido
daquela apatia cômica e terna com a qual olha demoradamente
seu pai a dormir no banco do carona do carro, após ter saído do
hospital, e, décadas depois, ereto e imóvel, contempla sua mãe já
idosa sentada na varanda do apartamento, tomando um chá em
uma noite de Réveillon, mas indiferente aos fogos de artifício que
estouram em sua janela, como quem dá de ombros à passagem
do tempo. Em Suleiman, a experiência do exílio não está assim
fora de sua Palestina natal, mas habita seu próprio olhar, como

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017 47


aquele que em lugar de se apegar a uma posição melancólica, que
tudo quer reter e fixar, consegue estabelecer uma distância, se
separar, fazer o luto do tempo perdido e lançar seu olhar ao que
dele ainda resta. Seu filme fala assim do passado e do presente,
mas seu título, “o que resta do tempo”, olha para o futuro, para o
devir-Palestina do mundo.
Separado de suas origens como o intelectual palestino Edward
Said, para quem, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (2003),
o exílio foi justamente o que alimentou o sentimento de identidade
nacional dos palestinos, Suleiman não é um daqueles exilados
tomados pelo ressentimento que, à margem, afaga uma ferida, mas
aquele que, mesmo quando retorna, ao se sentir um estrangeiro em
seu próprio lar, faz da condição do exílio um lugar ético e político.
Segundo Said, ao darmos como certas a pátria e a língua, como se
fossem a nossa “natureza”, com frequência retrocedemos para o
dogma e a ortodoxia, enquanto o exilado, ocupando uma posição
alternativa e dotado de perspectiva crítica, sabe que “num mundo
secular e contingente, as pátrias são sempre provisórias” (2003,
p.57). Em um dos momentos mais tocantes de seu ensaio, Said
menciona uma reflexão de Theodor Adorno em Minima Moralia, sua
autobiografia escrita no exílio imposto pela ascensão do nazifascismo.
Para o filósofo judeu alemão, o único lar realmente disponível agora,
embora frágil e vulnerável, estaria na escrita, pois “a casa é passado”
e “elas agora servem apenas para serem jogadas fora, como latas
velhas” (apud Said, 2003, p.57). Se o exílio se apresenta então
como uma força desestabilizadora, como um lugar ético e político, é
porque, de acordo com Adorno (ibid), “faz parte da moralidade não
se sentir em casa na própria casa”.
Fazendo de sua terra de origem uma terra estrangeira e de
sua escrita fílmica uma espécie de lar, o cinema de Elia Suleiman
não corresponde, portanto, às imagens violentas dos noticiários,
14. Em entrevista publicada aos encadeamentos didáticos de documentários convencionais,
no jornal O Estado de S.
Paulo, por ocasião do aos esforços autoritários de reeducação e denúncia pela imagem.
lançamento de O paraíso “Faço filmes para compartilhar o prazer pelas imagens, não em
deve ser aqui no Brasil, em
20 de dezembro de 2019. prol da educação política. Sempre acreditei que o diretor que se
Disponível em: https:// coloca na posição de quem vai ensinar está destinado ao fracasso”,
www.terra.com.br/diversao/
cinema/elia-suleiman-fala- explicita o cineasta.14 Baseado em um relato em forma de diário,
sobre-seu-novo-filme-o- que, a pedido de Suleiman, seu pai fez enquanto lutava contra um
paraiso-deve-ser-aqui,1d12ab
600f418e7b8b96e55a559301
câncer, bem como nas cartas de sua mãe enviadas no período, O
65zlbjfnng.html que resta do tempo nos mostra paisagens luminosas, casas límpidas

48 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


com janelas amplas, a família terna, a graça, o charme, o silêncio
e o humor, sem com isso mascarar, apaziguar ou despolitizar a
violência e a arbitrariedade da ocupação israelense. Seja em
Nazaré (cidade árabe-israelense onde vive a família de Suleiman)
ou Ramallah (na Cisjordânia, território ocupado, que Suleiman
vai visitar), estamos diante de uma paisagem que também é
íntima, memorialística, evocada com ternura e com aquele humor
silencioso, ora grave, ora burlesco, já característico do personagem
que o cineasta faz de si mesmo e que desloca de forma tão
desconcertante quanto radical a realidade de um conflito que tem
constituído o próprio “ser palestino”.
Mas quem são os palestinos? O que é um povo?, parece
perguntar-se Suleiman, a um só tempo cidadão deslocado e
cineasta dissidente: “Os árabes jamais apoiaram realmente os
palestinos, com exceção de Nasser, e sou com frequência atacado
por esse tipo de reflexão”, declara o cineasta. “Mas a ‘causa
palestina’ serviu, sobretudo, aos interesses daqueles que dela se
apossaram. O problema é saber quem são os palestinos. Fizeram
deles um povo de marionetes, caricato, ideológico”.15 Tomando 15. Declarações de Elia
Suleiman citadas por Peter
então distância de toda ortodoxia ideológica, fixação identitária
Pál Pelbart em intervenção
e do risco do ressentimento, esse afeto reativo e negativo de que realizada na Casa Povo, São
padece o homem carregado de memórias, como não cansou de Paulo, em 26 de julho de
2014, a propósito da exibição
alertar Nietzsche, a memória em Suleiman não deve ser vista pública de O que resta do
como estritamente psicológica, como a faculdade de evocar tempo em evento por nós
organizado.
lembranças; nem mesmo como exclusivamente coletiva, como
a faculdade de evocar um povo existente. A memória, como já
postulava Gilles Deleuze (2005) a respeito do cinema moderno, é
a estranha faculdade que põe em contato o dentro e o fora, o eu e
o outro, a experiência histórica e a narração que é possível fazer
dela, inventando inclusive um povo: contido na figura solitária,
muda e perplexa de Suleiman; contido naquela afetividade
bruta de seus amigos; contido nas reações destemperadas, ora
passivas ora agressivas, de seus vizinhos. Assim, é ali mesmo, na
singularidade de uma fabulação na qual o pessoal e o coletivo
se reenviam constantemente, que o personagem de Suleiman
e seu filme jamais dissociam o assunto privado do poético, o
poético do político, pois, nem mito impessoal, nem ficção pessoal,
“a fabulação é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual o
personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu
assunto privado da política, e produz, ele próprio, enunciados
coletivos” (Deleuze, 2005, p.264).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017 49


“Onde estou? Onde estou?”

Testemunha ocular da história de sua família e do destino


de seus conterrâneos, isto é, “o terceiro em uma cena de litígio”
(testis), Elia Suleiman é também aquele que testemunha
a partir de sua própria experiência biográfica, a partir dos
fragmentos de uma vida, em alguma medida, mutilada
16. Para um aprofundamento (superstes).16 Por meio de um ponto de vista excêntrico, ainda
dessas duas modalidades
que familiar, ele está, por assim dizer, dentro e fora, incluído e
testemunhais, testis e
superstes, assim como excluído da cena, em um jogo de olhares, decupagem frontal,
definidas por Émile quebra da continuidade, mise en scène e montagem que alterna
Benveniste, ver o artigo de
Márcio Seligmann-Silva, “O entre o que vê e como é visto. Ser testemunha das mitologias
testemunho e a política da nacionalistas israelense e palestina, da ocupação e opressão
memória: o tempo depois
das catástrofes” (2005), cf. exercida pelo aparato militar de Israel, das relações e reações
bibliografia. de violência e destempero em sua própria comunidade, enfim,
ser testemunha de toda sorte de absurdo e arbitrariedade, mas
também de resistência e resiliência, faz de seu testemunho
cinematográfico uma tarefa das mais necessárias, ainda
que possa parecer de difícil realização. É então por meio do
humor como recurso poderoso – desnaturalizando as situações
cotidianas, deslocando-as de sua compreensão habitual e
desmanchando clichês já tão enraizados – que Suleiman
constrói essa possibilidade.
Como uma espécie de Buster Keaton ou Jacques
Tati, Suleiman incorpora um personagem burlesco, cuja
perplexidade de sua figura muda, com seu olhar fixo e seu
corpo inerte, diz respeito a uma condição coletiva, à posição
daquele que, diante de uma realidade absurda, não realista
ou surrealista, não consegue enunciar ou nomear. Em uma
das sequências mais ousadas do filme, já em seu terço final,
Suleiman observa por trás de um muro um jovem da classe
média alta de Ramallah que sai de casa para jogar fora o lixo
enquanto conversa pelo celular, ao mesmo tempo em que um
tanque israelense o acompanha com seu canhão, seguindo
horizontalmente o movimento de ir e vir do rapaz. Mas o rapaz
ignora a mira apontada sobre sua cabeça, em uma indiferença
de efeito cômico, e combina com seu interlocutor telefônico
de ir dançar mais tarde nos “Stones”. Ao final da sequência,
é Suleiman e a própria câmera, isto é, nós espectadores, que
estamos no mesmo sentido da caçamba de lixo, a qual será

50 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


explodida pelo tanque de guerra, sabemos pelo som de rajadas,
no fora de campo da cena. Observadores privilegiados, nem
o personagem de Suleiman nem nós espectadores estamos
imunes a nos tornar o próximo alvo.
O barulho de rajadas no final da cena anterior faz a passagem
para a música eletrônica ouvida na boate “Stones”, onde jovens
palestinos dançam através de um vidro visto por nós frontalmente.
Um jipe do exército israelense chega e anuncia aos moradores de
Ramallah o toque de recolher obrigatório. Mas os jovens dançam
compenetradamente e alheios a tudo, coletivamente indiferentes.
O igualmente jovem soldado insiste com seu megafone inaudível,
mas nada acontece. Até que, num contraplano, vemos através
da janela gradeada do jipe que seu próprio corpo passa a ser
mobilizado e afetado pelas batidas ritmadas da música. Sem
perceber, o soldado “dança”. O que Suleiman quer aqui nos dizer?
Estaríamos diante do devir-palestino do soldado israelense?
Seriam todos, israelenses e palestinos, partes de um mesmo corpo
social, de uma mesma forma de afetar e ser afetado, de uma
mesma emoção? “A emoção não diz ‘eu’”,17 diria Deleuze, pois não 17. Em entrevista concedida
a Hervé Guilbert para o
é algo que se possua como uma propriedade privada e individual. jornal Le Monde, a propósito
A emoção é da ordem do acontecimento, de um movimento para da publicação de seu livro
Francis Bacon - Logique de
“fora de si” que nos ultrapassa e que, no filme, parece constituir o
la sensation (1981), Deleuze
verdadeiro vínculo social a ligar, ainda que de maneira rarefeita, diz: “A emoção não diz ‘eu’.
as sociedades palestina e israelense. (...) Se está fora de si. A
emoção não é da ordem do
Como está claro no encadeamento dessas duas sequências, eu, mas do acontecimento”.
A íntegra da entrevista
em Suleiman o corpo burlesco, seja o seu próprio, seja o corpo encontra-se no volume Dois
coletivo, desafia toda ordem consensual por meio de uma regimes de loucos: textos
e entrevistas (1975-1995),
comicidade que faz colidir o caráter maleável da vida com os p.189-194, cf. bibliografia.
automatismos sociais, os afetos indomesticáveis com as repetições
maquínicas, a indiferença estratégica dos oprimidos com a
indiferença mecânica dos opressores. Os soldados israelenses
aparecem aqui diminuídos em seu poder, personagens que, como
escreve Maria Inês Dieuzeide, “não são muito mais do que corpos
que fazem funcionar a máquina da ocupação, inconscientes
de seus gestos” (2015, p.216). Em O que resta do tempo, o
caráter episódico da narrativa acompanha assim o “estado de
ser descontínuo” próprio ao exilado (Said, 2003, p.49), curto-
circuitando poderes estabelecidos e desnaturalizando situações
cotidianas então normalizadas, sempre através de coreografias e
alegorias visuais. Suleiman confere desse modo uma visibilidade

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017 51


para a situação palestina que desafia não apenas a lógica da
ocupação, mas também a lógica das representações habituais,
inventando uma forma cinematográfica emancipada tanto da
tutela de um cinema militante como do jugo histórico de que ele
próprio é alvo.
Observador atento e perspicaz desde menino, a despeito
de sua timidez e discrição, como nos mostra O que resta do
tempo, Suleiman não emite um único vocábulo ao longo de todo
o filme, mas nem por isso seria uma figura “impotente” ou um
personagem “melancólico”, como algumas leituras apontam. De
modo contrário, Suleiman olha com o próprio corpo, enxerga,
se exprime sem palavras, como quem não acredita naquilo que
vê, como quem suspeita do que vê, mas também como quem
lembra, sonha, imagina, transformando a desaparecimento em
reaparição poética, transformando o inimaginável em imaginação
política. Na penúltima sequência do filme, imediatamente após
a cena da dança nos “Stones”, é o corpo de Suleiman que está
imóvel, inerte, diante do monumental muro de concreto que
separa Israel dos territórios ocupados. Em um contraplano
frontal, ele surge agora com uma vara em mão, daquelas para
salto em altura. Suleiman então corre – é a primeira vez no filme
em que seu corpo aparece em movimento – e consegue, com o
apoio da vara, saltar o muro da segregação.
“Onde estou? Onde estou?”, poderia perguntar-se Suleiman
após pular o muro, assim como o faz o motorista de taxi israelense
na alegórica sequência de abertura do filme. Perdido e atônito
em meio a uma tempestade noturna que desaba sobre o carro
onde ele e Suleiman se encontram, o taxista não consegue achar
a estrada que, desde o aeroporto, levaria Suleiman de volta à
Nazaré, de volta à casa. Parados na pista deserta debaixo de um
dilúvio bíblico, o caminho de retorno à origem, de reencontro
com uma identidade idealizada e perdida, parece desde o início
impedido, bloqueado.

Fora de si, fora de casa

Sabemos que uma vida jamais explica uma obra e as


análises que buscam exclusivamente coerência biográfica
e autoral tendem a ser empobrecidas e reducionistas. Como

52 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


defende Michel Foucault em “O que é um autor?” (2003, p.
36), na impossibilidade de uma origem essencializada, estável
e fixa, a autoria não é mais do que a singularidade de uma
ausência: gesto que deixa como traço atrás de si uma lacuna
constitutiva. Como vimos até aqui em distintas escrituras
autobiográficas e autoficcionais, estamos diante de múltiplas
origens e ausências figuradas nas obras de David Perlov
(imigrante judeu brasileiro em Israel), Avi Mograbi (judeu
oriental, israelense de origem síria) e Elia Suleiman (palestino
cristão, cidadão árabe israelense): cineastas minoritários,
exilados de diversos modos e isolados em seus meios, alheios a
uma efetiva interlocução com seus pares ou alijados do debate
político e social mais amplo no qual deveriam estar inseridos.
Nas três obras analisadas, acompanhamos três cineastas
que se incluem naquilo mesmo que filmam por meio do olhar,
da voz e do próprio corpo, três formas de regime performativo,18 18. Grande parte do cinema
três modos de inscrição testemunhal e três possibilidades de autobiográfico e dos
documentários subjetivos
passagem da autobiografia à alteridade: gesto político que contemporâneos, narrados
nasce do ínfimo, do pequeno, do menor, face à grande política, na primeira pessoa, filiam-se
a um regime performativo
mas que, de distintas formas, desloca e faz estremecer o status da imagem, pautado pela
quo das repartições, representações e segregações habituais. instabilidade de pontos
de vista, pela permanente
Após o gesto-limítrofe maravilhosamente cristalizado por inclusão daquele que filma
Suleiman, cuja imaginação o leva a saltar o muro da segregação, e pela coincidência entre o
sujeito e o objeto do olhar.
a realidade tem sua ordenação perturbada e as habituais A esse respeito, ver nossa
divisões entre vida e obra, pessoal e coletivo, privado e político tese de doutorado, Jogos
de cena: ensaios sobre o
são ultrapassadas face à criação, pelo cinema, de uma vida em documentário brasileiro
comum, de uma vida em comunidade. contemporâneo (Feldman,
2012, p.110-115), cf.
Porém, entendamos bem: essa comunidade não pressupõe bibliografia.
unidade, substância, território ou a prisão da identidade, mas
um espaço comum – entre o eu e o outro, o nós e o eles –
em que as distâncias e diferenças não são suprimidas, sendo
constitutivas. Essa, aliás, seria a própria definição de política
e de arte para um autor como Jacques Rancière (1996; 2010),
segundo o qual a política, longe do consenso, se constrói sobre
um hiato entre mundos, como dissenso e desentendimento. Do
mesmo modo, a arte não produziria conteúdos, mensagens ou
representações para a política, mas reconfiguraria a experiência
comum, estabelecendo novas formas de visibilidade, novos
modos de subjetivação e novas maneiras de reunião e de
solidão (idem, 2010, p.46).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017 53


Assim, face a uma conjuntura histórica e política marcada
pela fratura e iminente convulsão social, as distintas formas de
autobiografia e exílio que caracterizam as obras de Perlov, Mograbi
e Suleiman tornam-se figuras de uma enunciação subjetiva e de
uma narrativa em trânsito constante, para as quais o deslocamento
e a errância, não sendo apenas geográficos, percorrem o caminho,
como numa rua de mão dupla, da identidade à alteridade, do
próprio ao alheio, do familiar ao estrangeiro. Reconfigurando a
experiência coletiva, os três cineastas alçam assim as escritas de
si a um espaço comum em que o âmbito supostamente privado e
pessoal é atravessado pelo público e pelo político, pela história
e pela memória, fazendo surgir, por meio da linguagem e da
imagem, uma expressão radicalmente singular.
Se, de acordo com Benveniste (1988, p.286), o fundamento
mesmo da subjetividade está no exercício e na apropriação que
cada um faz da língua, sempre coletiva, o singular, no âmbito
da autobiografia, não deve ser pensado como o primado do
indivíduo, mas como efeito da marca que cada sujeito – com
19. Ao perguntar-se o que, seu “ativo da dor”,19 com seu estilo – inscreve no coletivo. Nesse
de uma experiência vivida, sentido, as escritas autobiográficas podem tornar-se também
se faz experiência de escrita,
Roland Barthes defende em formas privilegiadas de “escritas do luto”, pois a experiência
A preparação do romance, da dor e da separação, vivida por cada um como intransferível
vol. I, que, para que algo se
escreva, é preciso um “ativo e irreparável, é a condição mesma para o estabelecimento de
da dor”, “aquele momento toda relação. Como tem afirmado a psicanálise (Freud, 2011),
em que se descobre a morte
como real” (2005, p.7-8), cf. o trabalho do luto não implica o esvaziamento de si presente na
bibliografia. melancolia, caracterizada pela sensação de ausência de lugar
social e subjetivo e pela dificuldade de abandono e desligamento
de um objeto perdido, o que faria do melancólico um ser queixoso
e autopunitivo. Antes, o trabalho do luto apresenta-se como um
trabalho de elaboração e narração cujo fim último é a afirmação
da própria vida e de sua capacidade imaginativa.
Lembremos de Blanchot (1987, p.16), para quem escrever
é romper com o laço que une a palavra a si mesmo, isto é, como
no processo do luto, deixar ir, consentir com a perda, separar-se
do objeto perdido e de si. Lembremos de Deleuze, segundo o qual
escrever é tornar-se outra coisa, exilar-se, estar fora de si, já que o
desafio de uma escritura é o de levar a vida a “a uma potência não
pessoal” (1998, p.63), promovendo um encontro com a alteridade.
Nessa perspectiva, sendo toda obra uma escritura inacabada, ela
está sempre em vias de se fazer e extravasa qualquer matéria
vivível ou vivida, qualquer matéria chamada de “autobiográfica”.

54 Ilana Feldman / Autobiografia, exílio e alteridade


Por isso, para aqueles que tomam a palavra e a câmera porque
– mesmo falando em nome próprio – tornaram-se outros, como
David Perlov, Avi Mograbi e Elia Suleiman, o exílio geográfico ou
subjetivo, mais do que um destino, constitui-se como um princípio
ético e formal, uma vez que, relembrando Adorno, faz parte da
moralidade não se sentir em casa na própria casa.

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DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 30-57, JUL/DEZ 2017 57


Perdido entre lampejos de
beleza: paisagem, território
e política em Lost Lost Lost
(1976) e As I was moving ahead
occasionally I saw brief glimpses
of beauty (2000)

Laís Ferreira Oliveira


Graduanda em medicina na Unesp. Mestra em Comunicação, com ênfase em
Estudos do Cinema e do Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense
(2018). Bacharela em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo,
pela UFMG (2016).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017


Resumo: Este artigo discute a paisagem, o território e as formas políticas em Lost
Lost Lost (1976) e As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty
(2000), de Jonas Mekas. Pensamos como narrativa e paisagem se relacionam,
considerando o pensamento de Aumont (2006), Lefebvre (2006) e Gunning (2006).
Analisamos o discurso de Mekas sobre si, a partir de Bachelard (1993) e Corrigan
(2015). Retomamos Deleuze e Guattari (2004) e Rancière (2005), em uma análise
política. Nosso trabalho é pensar como a relação com a paisagem e com o território
reverberam em um gesto criador.
Palavras-chave: Paisagem; Território; Política; Cinema experimental; Filme-diário.

Abstract: This article discusses landscape, territory and political forms in Lost
Lost Lost (1976) and As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of
beauty (2000), by Jonas Mekas. We think how narrative and landscape are related,
considering the theories by Aumont (2006), Lefebvre (2006) and Gunning (2006). We
analyze Mekas’ discourse about himself, recurring to Bachelard (1993) and Corrigan
(2005). We return to Deleuze and Guattari (2004) and Rancière (2005) from a political
perspective. Our effort is to think how the relationship between landscape and
territory reverberate in a creative gesture.
Keywords: Landscape; Territory; Politics; Experimental cinema; Film diary.

60 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


Introdução

Na abertura de As I was moving ahead occasionally I saw brief


glimpses of beauty (2000), a narração de Jonas Mekas afirma:

Eu nunca fui capaz de determinar onde a minha vida começa


e onde termina. Nunca fui capaz de entendê-la, o que é, o
que significa. Então, quando comecei agora a juntar esses
rolos de filmes, a uni-los, a ideia inicial era mantê-los em
ordem cronológica. Mas então eu desisti e comecei a juntá-
los ao acaso, da maneira que os encontrei na prateleira.
Porque eu realmente não sei onde cada pedaço da minha
vida pertence.1 1. “I have never been able
to figure out where my life
begins and where it ends. I
have never, never been able
Enquanto isso, há uma sequência de planos fugidios, breves to figure it all out. What it’s
all about, what it all means.
lampejos, em que vemos cenas de acesso à paisagem urbana e
So, when I began now to put
fragmentos de interiores de casas. Sem a pretensão de organizar all these rolls of film together,
os acontecimentos da vida por ordem cronológica, o cineasta to string them together, the
first idea was to keep them
realiza uma obra em que há experimentalismo na montagem, na chronological. But then I gave
tomada dos planos e na narrativa que se desenvolve. up and I just began splicing
them together by chance,
the way I found them on the
shelf. Because I really don’t
know where any piece of my
life really belongs” (tradução
nossa).

Fig. 1-2: As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty

Algo semelhante acontece em Lost Lost Lost (1976), obra


dividida em seis partes constitutivas de diários que o diretor
filmou entre 1949 a 1963. Esse é um filme em que o acaso,
a força das circunstâncias sobre aquilo que é registrado, é
principiado pela condição do exílio. Em 1949, Jonas Mekas
e seu irmão Adolfas chegam aos Estados Unidos exilados
da Lituânia, após terem passado por diversos campos de
prisioneiros e, após libertos, não poderiam retornar ao país
de origem com o fim da Segunda Guerra Mundial. Quando
chegam ao país, os irmãos Mekas adquirem uma câmera 16mm

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 61


e passam a fazer registros a partir daí. Esse gesto é rememorado
em uma das cartelas iniciais de Lost Lost Lost: “uma semana
após pousarmos na América (Brooklyn), pegamos dinheiro
emprestado e compramos nossa primeira Bolex”.

Fig. 3: Lost Lost Lost

Esse interesse imediato dos irmãos pelo cinema não


se resumiu apenas ao procedimento de tomada da imagem.
Associado ao período underground do cinema norte-americano,
Jonas Mekas teve ações importantes no pensamento crítico e
reflexivo sobre o cinema. Destacamos, por exemplo, o trabalho
com a revista Film Culture, fundada em 1955, e a coluna do Movie
Journal, veiculada em um jornal nova-iorquino independente,
criada por iniciativa de Jonas. O uso da câmera Bolex
possibilitou ao cineasta lituano uma portabilidade favorável
ao registro de acontecimentos cotidianos e o desenvolvimento
de uma linguagem cinematográfica com algumas recorrências.
Segundo Mourão,

ele explora variações na velocidade, foco, mudanças de


luz, superposições, zoom e câmera na mão como formas de
resposta imediata aos estímulos do mundo, mantendo na
edição tudo tal qual filmado (…). Mekas produz imagens
que operam por saltos, intermitências, vazios. São imagens
em staccato, nas quais se vê, um a um, cada fotograma
passando e então desaparecendo (2013, p. 16).

62 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


Esse registro rotineiro e habitual do vivido contribuiu
para que não somente Mekas se tornasse dono de um grande
arquivo de imagens, como, também, que a vida do cineasta se
misturasse – e fosse retida em algum grau – por seus filmes. Essa
organização tem a estrutura de um filme-diário. David E. James
discute a necessidade da tipologia do filme-diário para analisar os
procedimentos fílmicos existentes em Walden, de Mekas. O autor
coloca, sobre a trajetória do cineasta:

[ela] culminou numa série de ‘filmes-diário’, cujo imenso


significado teórico estamos apenas começando a enxergar
por trás da ambição obstinada que os motiva. Levando-se em
consideração a complexidade dos temas compactados nesta
obra, nenhum vocabulário específico pode ser suficiente para
descrevê-la (JAMES, 2013, p. 167).

James analisa, ao longo da carreira do cineasta, uma mudança


na produção de diários em filme para filmes-diários. Em um diário feito
em filme, teria mais importância o lugar do autor, em detrimento de
um pensamento estético de montagem das partes que o compõe. O
diário em filme colocaria uma prática da vida privada em contato com
o mundo, ao passo que “o filme-diário devolveu tal prática privada
a um contexto público e à produção de um produto, uma obra de
arte esteticamente autônoma” (JAMES, 2013, p. 167). O filme-diário
teria uma preocupação maior com a montagem, em que o desejo de
mostrar o cotidiano só poderia estar associado à uma fruição estética
das imagens, não mais possíveis de serem pensadas de forma isolada
como aconteceria no diário em filme. James sintetiza: “no diário
escrito, os acontecimentos e seu registro costumam ser separados,
mas, no filme, eles coincidem” (2013, p. 175). Em Walden, fica
evidente a necessidade do desenvolvimento de uma forma fílmica
em que coincida o gesto de filmar a vida enquanto ela acontece, ao
mesmo tempo em que a escolha estética dos planos aponta para uma
montagem posterior. James argumenta:

Na produção de Walden e dos filmes-diário subsequentes, todos os


componentes da prática do diário em filme foram transformados:
a montagem substituiu a filmagem como o momento crucial da
percepção; fragmentos de filme substituíram a textura visual da
vida cotidiana como objeto privilegiado do olhar; a inscrição

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 63


da subjetividade assumiu a forma, não do quadro individual
somaticamente ajustado e da manipulação da íris na visualização
pela câmera, e sim nos cortes e no acréscimo de intertítulos e
trilhas sonoras na sala de montagem. Juntas, estas mudanças
voltaram à prática no sentido da projeção, que antes mal tinha
sido vislumbrada (2013, p. 185).

Ao discorrer sobre a estética do filme-diário, Mekas aponta a


fugacidade do tempo na tomada da imagem:

[...] ao manter um caderno de notas com a câmera, o maior


desafio consiste em como reagir com a câmera no instante,
durante o acontecimento; como reagir de modo que a filmagem
reflita o que senti naquele exato momento. Se escolho filmar
certo detalhe no decorrer da minha vida, deve haver boas razões
pelas quais separei esse detalhe específico de milhares de outros.
Seja no parque, na rua ou numa reunião de amigos – há razões
pelas quais escolho filmar certo detalhe (MEKAS, 2013, p. 132).

Essa observação do que acontece se relaciona a uma


observação da paisagem e à construção de sentidos a partir do
espaço. O cineasta prossegue:

A rua está lá. A neve está caindo. Não sei como, mas está lá. Ela
leva sua própria vida, é claro. O mesmo com a Lituânia. Então,
agora, entro na imagem. E com a câmera. Quando caminho com
a minha câmera, algo cai em meus olhos. Quando caminho pela
cidade, não conduzo meus olhos conscientemente disso para
aquilo e para aquilo. Ao contrário, caminho e meus olhos são
como janelas abertas, e vejo coisas, as coisas caem lá dentro. Se
ouço um som, claro, olho para a direção do som. O ouvido se
torna ativo, e direciona o olho; o olho está buscando aquilo que
fez o barulho (MEKAS, 2013, p. 134).

Ao analisarmos Lost Lost Lost e As I was moving ahead, notamos


que há pouca distinção de sentido entre o espaço interior das casas e
aquilo que acontece nas ruas. O espaço, o mundo e os outros passam
a ser partes constitutivas de uma resposta que não é dada antes da
experiência, antes da partilha do cotidiano. Se não há pretensão
de começo, fim ou progressão, a vida passa a ser construída não
por fragmentos – a visão de dentro, a visão de fora –, mas pelos

64 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


acontecimentos em um determinado espaço. Considerando
esses elementos, propomos, com este artigo, pensar as noções de
paisagem, território, espaço e política. Nossa proposta é entender
como a relação com o mundo e com essas imagens dizem de um
discurso de Mekas sobre si e sobre os outros.

Espaço, paisagem e passeio

Em Landscape and film, organizado por Martin Lefebvre,


Jacques Aumont afirma:

Quando começamos a estudar a representação do espaço, é


porque buscamos encontrar alguns princípios que respondam
pelas relações entre os homens e as coisas ao seu redor. Quando
tentamos definir, por um período específico, o que é a noção do
espaço, tentamos determinar a regra convencional pela qual um
determinado entendimento do espaço se materializa em um
sistema de pensamento e representação (AUMONT, 2006, p. 8).2 2. “When we set out to study
the representation of space,
it is because we wish to
find some principles that
Ao pensarmos as noções de representação, é possível account for the relations
between man and his
compreendê-las em relação aos modos narrativos, ao surroundings. When we try
experimentalismo da imagem e ao uso de cartelas no filme. Esses to define, for a given era,
the notion of what a place
elementos são importantes para que compreendamos como a
is, we try to determine the
paisagem se relaciona a um desenvolvimento narrativo e a um conventional rule by which
lugar atracional. Nesse sentido, Lefebvre recorda o pensamento a certain understanding of
space embodies itself in a
de André Gaudreault e Tom Gunning e convoca o estabelecimento system of thought and of
de outra análise: representation” (trad. nossa).

Gunning e Gaudreault chamaram o ‘sistema do cinema narrativo,


3. “Gunning and Gaudreault
entre os modos de espectatorialidade ‘narrativo’ e ‘espetacular’.
have called the ‘system of
Então eu tento mostrar como a paisagem se relaciona com o narrative cinema’, between
segundo desses modos e como depende de um certo tipo de olhar ‘narrative’ and ‘spectacular’
cujas primeiras manifestações parecem datar da Renascença modes of spectatorship.
(LEFEBVRE, 2006, p. XIX).3 I then try to show how
landscape relates to the
second of these modes and
how it relies on a certain
Em conjunto com François Jost, Gaudreault escreveu A type of gaze whose earliest
manifestations seem to be
narrativa cinematográfica (2009) no qual os autores estabelecem traceable to the Renaissance”
que a análise da narrativa e da enunciação deve estar relacionada (trad. nossa).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 65


às seguintes categorias: tempo, narração, ponto de vista;
o desenvolvimento da “mostração” no filme; a forma da
enunciação; as relações entre narrativa e realidade; o que é
mostrado em quadro. Reconhecido pelas teses em torno do
primeiro cinema, Gunning afirma que o cinema de atrações
“solicita diretamente a atenção do espectador, incitando
curiosidade visual e fornecendo prazer através de um
4. “directly solicits spectator espetáculo excitante” (2006, p. 285).4 Em detrimento a uma
attention, inciting visual
orientação narrativa, o cinema de atrações convocaria uma
curiosity, and supplying
pleasure through an exciting afetação sensível do espectador e um desejo tátil de interagir
spectacle” (trad. nossa). com aquilo que é visto. Essas características influenciaram a
forma como se apresentam os agentes no filme, uma vez que,
como aponta Gunning, um cinema com caráter atracional:

[...] gasta pouca energia, criando personagens com motivações


psicológicas ou personalidade individual. Utilizando atrações
ficcionais e não ficcionais, a sua energia se movimenta em
direção a um espectador específico, ao invés de se adentrar
em situações baseadas em personagens essenciais para a
5. “spends little energy narrativa clássica (GUNNING, 2006, p. 385).5
creating characters with
psychological motivations
or individual personality.
Making use of both fictional Na história das teorias do cinema, as linhas de pensamento
and non-fictional attractions,
das atrações e do cinema narrativo se estabeleceram de modos
its energy moves outward
an acknowledged spectator não antitéticos. Nesse sentido, o estudo da paisagem é uma das
rather than inward towards maneiras de se compreender elementos atracionais integrados
the character-based situations
essential to classical ao desenvolvimento narrativo. Lefebvre questiona:
narrative” (trad. nossa).

[...] tipicamente, de uma perspectiva da narrativa fílmica ou


de uma economia baseada em eventos – em outras palavras,
do ponto de vista narratológico – o espaço exterior enquadra
a ação e é subordinado a ela. Então devemos concluir que
o cinema narrativo é incompatível como uma ideia de
6. “typically, from the paisagem? (2006, p. 24).6
perspective of a film’s
narrative or event-based
economy – in other words,
from the narratological point Ao pensarmos Lost Lost Lost e As I was moving ahead, as
of view – exterior space
frames the action and is
relações entre paisagem e narrativa parecem ser estabelecidas
subordinate to it. Should por meio de uma memória que se ensaia. Diante das imagens
we therefore conclude cotidianas, corriqueiras, passageiras, em que as ações não são
that narrative cinema is
incompatible with the idea of condicionadas ao enquadramento, mas estimulam o ato de
landscape?” (trad. nossa). tomada, não é constituída uma narrativa fixa ou encerrada,

66 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


e a maior parte dos acontecimentos é revelada sem que haja
conexões claramente estabelecidas entre eles. Esses breves
lampejos de beleza estabelecem uma dimensão atracional com
o espectador: os movimentos rápidos de um bebê, de um gato,
a luz que cintila em um parque. Nessas cenas, paisagem e ações
não se desassociam: há algo que se vê, que não se explica e que
atrai por essa fugacidade, não coordenado pela narrativa.

Fig. 4-5: As I was moving ahead

Ao rememorar o passado, Jonas Mekas ensaia uma memória


incompleta. A narração em voice over e o uso de cartelas
parece organizar a experiência daqueles acontecimentos. O
distanciamento temporal entre o ato de tomada e a montagem
favorece o olhar de revisão e reflexivo acerca do vivido e da
própria subjetividade.
Para entendermos essa relação entre a tomada de uma
imagem e seu emprego reflexivo, podemos retomar o conceito
de filme-ensaio, cuja forma propicia a uma colocação subjetiva e
reflexiva por parte do cineasta. Timothy Corrigan observa que, no
caso do filme-ensaio, a presença da subjetividade tornaria mais
complexa a relação com o real. Segundo o autor, a forma como as
percepções dos sujeitos se encontram com a realidade “parecem
se diferenciar significativamente no ensaístico, como um tipo de
fragmentação que perturba de forma dramática a subjetividade e
a representação” (CORRIGAN, 2015, p. 23). O filme-ensaio seria
responsável por tensionar os mecanismos de expressividade e a
experiência do sujeito por meio de formas específicas de montagem,
que reordenariam a vivência pública e o discurso de si. Ao olharmos
para os objetos deste artigo, podemos pensar que o gesto ensaístico
presente nos mecanismos da montagem e no emprego da narração
por Mekas torna mais complexa a relação afetiva do cineasta com
os espaços em que transita e com suas recordações.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 67


Quando pensamos em Lost Lost Lost e As I was moving
ahead, há questionamentos da representação do tempo, dos
lugares e das paisagens significadas. Há algo que escapa à
identificação por cartelas ou dos nomes desses lugares. Em Lost
Lost Lost, por exemplo, há uma determinada sequência em que
Mekas reflete sobre a vontade de produzir imagens de uma
mulher que caminha na chuva. Não há a identificação do seu
nome, sua história ou o motivo pelo qual ela percorre aquele
espaço. Apenas vemos partes do seu corpo, os fragmentos
da paisagem de um parque, as gotas que caem no chão. E,
ao comentar aquelas imagens, Mekas nos diz que a mulher
caminha, sente-se bem e que não há nada além disso. Essa
observação do mundo se orienta, assim, em contiguidade com
uma percepção da própria história do cineasta: em situação
de exílio, é possível caminhar pela rua, tomar chuvas, fazer
imagens e sentir-se melhor, mas pouco se explica ou ultrapassa
a dimensão frugal do tempo.

Fig. 6-8: Lost Lost Lost

Essas paisagens e ações que se apresentam de maneira


incompleta constituem uma narrativa que se estrutura de
maneira lacunar. O prazer de ver as pequenas belezas nos
reflexos de uma poça d’água, na luz que atravessa os galhos
de uma árvore ou dos pés anônimos entre folhagens estabelece
outras maneiras de se conceber as relações entre paisagem e
narrativa. Para Martin Lefebvre:

68 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


[...] espectadores assistem ao filme em alguns momentos
no modo narrativo e em outros no modo espetacular,
permitindo-os seguir a história e, quando necessário,
contemplar o espetáculo fílmico (…). É necessário,
porém, enfatizar que alguém não pode, ao mesmo tempo,
contemplar a paisagem fílmica através dos mesmos modos,
ao mesmo tempo (…). Isso porque podemos dizer que
o espetáculo impede a progressão da narrativa para o
espectador (…). Enquanto eu contemplo um pedaço de
filme, paro de acompanhar a história por um momento
(2006, p. 29).7 7. “spectators watch the
film at some points in the
narrative mode and at others
in the spectacular mode,
É curioso, porém, como não parece sequer ser o interesse allowing them both to follow
the story and, whenever
de Mekas desenvolver progressões narrativas nos filmes. Em
necessary, to contemplate
As I was moving ahead, por exemplo, repetições de cartelas the filmic spectacle (...). It
como “Nothing happens in this film”, em diferentes trechos da is necessary, however, to
emphasize that one cannot
obra, parecem não só alterar o ritmo de progressão narrativa watch the same filmic
do longa-metragem, mas, sobretudo, explicitar que não há passage through both modes
at the exact same time (…).
qualquer grande pretensão com aquelas imagens. This is why it can be said
that the spectacle halts the
progression of narrative for
the spectator (…). When I
contemplate a piece of film, I
stop following the story for a
moment” (trad. nossa).

Fig. 9: As I was moving ahead

Há, nessas obras, uma certa crença na potencialidade


daquilo que pode ser visto enquanto se está em trânsito, a
passeio, caminhando. Para estudarmos o trabalho de Mekas,
podemos voltar ao que diz Adam Sitney em Visionary film:

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 69


O filme lírico postula o realizador atrás da câmera como o
protagonista em primeira pessoa do filme. As imagens do
filme são o que ele vê, tomadas de forma que nós nunca
esquecemos a sua presença e sempre sabemos que ele está
reagindo à sua visão. No filme lírico, não há mais herói; ao
invés disso, a tela é preenchida com o movimento, e esse
movimento da câmera e da edição reverbera a ideia de uma
8. “the lyrical film postulates pessoa que observa (2002, p. 160).8
the film-maker behind the
camera as the first-person
protagonist of the film. The
images of the film are what he O pensamento de Sitney acerca do cinema lírico é associado
sees, filmed in such a way that
especialmente ao trabalho de Stan Brakhage, que dirigiu centenas
we never forget his presence
and we know how he is de filmes e é um dos diretores mais importantes para o cinema de
reacting to his vision. In the vanguarda norte-americano. Autor do ensaio Metáforas da visão, o
lyrical form there is no longer
a hero; instead, the screen cineasta propõe outras formas de ver e ter atenção:
is filled with movement,
and that movement, both
of the camera and editing,
reverberates with the idea of a Imagine um olho não governado pelas leis fabricadas da
person looking” (trad. nossa). perspectiva, um olho livre dos preconceitos da lógica da
composição, um olho que não responde aos nomes que a tudo
se dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida
através da aventura de percepção. Quantas cores há num
gramado para o bebê que engatinha, ainda não consciente
do “verde”? Quantos arco-íris pode a luz criar para um olho
desprovido de tutela? Que consciência das variações no espectro
de ondas pode ter tal olho? Imagine um mundo animado por
objetos incompreensíveis e brilhando com uma variedade infinita
de movimentos e gradações de cor. Imagine um mundo antes de
“no princípio era o verbo” (BRAKHAGE, 1983, p. 341).

O pensamento de Brakhage sobre o cinema, de forma próxima


ao que aponta Sitney sobre o filme-lírico, sublinha a importância do
olhar para esses filmes. Há uma aposta numa dimensão sensível do
mundo, no que pode ser apreendido não por uma palavra ou ação
facilmente compreendida, mas por aquilo que estimula a percepção
sensorial. As ideias de Sitney nos ajudam a compreender o cinema
de Jonas Mekas, quando pensamos em suas variações formais e na
maneira pela qual engaja os sentidos de um observador sem uma
construção narrativa encerrada.
O conceito de lampejo de beleza, que nomeia um dos filmes
de Mekas, aproxima-se da estética do flicker, em uma imagem
piscante. O flicker é uma estética da fotografia que convoca uma
experiência sensorial dos elementos filmados. É uma forma muito
comum nos filmes de Mekas, marcados por abrir e fechar a lente
da câmera com velocidade, produzindo espécies de “piscadas” no

70 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


filme. Estilística recorrente no cinema estrutural e no experimental,
a técnica flicker tensiona a ilusão de movimento do cinema. Segundo
Michaud, a potência desse recurso reside “agindo num outro nível do
dispositivo que ele subverte as convenções ilusionistas do espetáculo
cinematográfico, a saber, dissociando velocidade da gravação da
velocidade de projeção” (MICHAUD, 2014, p. 139). Colocando
um tempo de transição maior na passagem de uma imagem para
outra que o modelo de 24 frames por segundo estabelece, o flicker
torna desiguais os tempos entre a exibição e projeção. Retomando
Michaud, é possível dizer que o emprego do flicker:

produz efeitos sensoriais imediatos, que já não passam pela


invenção de uma espacialidade fictícia: a tela não mais é aquilo
através do que se vê, mas aquilo no qual se vê; não funciona
mais como uma janela, porém como um esconderijo, e o mundo
secreto que se situa além da projeção, e que a projeção revela
deve ser ignorado em prol da consideração da própria superfície
(MICHAUD, 2004, p. 140).

Essa forma de olhar parece ser aquela possível ao devaneio,


àquele que caminha sem grandes destinos. Dessa maneira, é
construída uma relação com o espaço não delimitada por fronteiras e
limites geográficos. Em A poética do espaço, Gaston Bachelard afirma:
“desde que se ama uma imagem, ela não pode mais ser a reprodução
de um fato” (1993, p. 263). Em ambos os filmes que analisamos, é
estabelecida uma relação com a imagem que não objetiva apenas
mapear ou representar os espaços, mas concebê-los a partir de suas
experiências afetivas. Na sequência de abertura de Lost Lost Lost, a
narração em off caracteriza o filme como a história de um homem
que nunca quis deixar a sua casa e de homens que moram em um
lugar onde não dominam a língua local. Perdidos, os irmãos Mekas
parecem não somente reter imagens da vida comum – os jantares
de anônimos no interior das casas, as imagens de piqueniques
desconhecidos nos parques –, mas performar, a si e a própria vida,
a partir da presença da câmera. Bachelard afirma que “o poeta,
pela multiplicidade de imagens, nos torna sensíveis aos poderes dos
diversos refúgios” (1993, p. 256). Em situação de exílio, os irmãos
Mekas se refugiam na invenção da própria imagem, na observação da
vida dos outros, construindo afetos comuns à condição de apátridas.
Os lampejos de beleza também são imagens cujas formas não se
definem, mas estabelecem outras maneiras de observar o cotidiano.

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Fig. 10-13: As I was moving ahead

O passeio, a travessia de Mekas pelas ruas estabelecem


movimentos em que há algo sempre a ser descoberto na vida
cotidiana. Para David E. James:

A obra de toda uma vida de Jonas Mekas, expulso da Lituânia


rural pela II Guerra Mundial e vivendo desde então como
imigrante em Nova York, propõe um cinema utópico deste tipo.
Suas negociações com o cinema foram determinadas por vários
esquemas sobrepostos que se influenciaram mutuamente: sua
maneira de ver a narrativa suprema do modernismo, a história
da expulsão do orgânico e do rural pelo industrial e o urbano;
sua tentativa de resgatar uma identidade perdida do confronto
entre os imperialismos americano e soviético; a contínua
circulação entre escrita e filme em sua obra, com os recursos
de um suporte sendo regularmente trazidos para o outro; e
seu compromisso com um cinema verdadeiramente populista
(2013, p. 167).

Esse cinema utópico é construído por um cineasta que se


aproxima de um flâneur. Nesse caso, podemos pensar como vagar
pelas ruas e pelas paisagens com um câmera pode ser uma ação
produtora de significados. Dimitris Eleftheriotis pontua sobre
esse modo de circulação pela cidade: “dotado de excepcional

72 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


habilidade para capturar o eterno no efêmero, a mobilidade 9. “Endowed with the
exceptional ability to
do flâneur se torna uma ajuda crucial para a sua sensibilidade
capture the eternal in the
superior” (2010, p. 33).9 Essa mobilidade parece ser o que ephemeral, the flâneur’s
permite a Mekas registrar anos de sua vida em diários, consciente mobility becomes a
crucial aid to his superior
que, mesmo nos gestos mais cotidianos, há alguma novidade, sensitivity” (trad. nossa).
uma pequena beleza fortuita ainda não vista. A apreensão do
mundo se faz antes pela experiência que por um desejo de cinema
prévio ao ato de tomada. Esse movimento não trata, porém, de
um isolamento dos outros. Nesse sentido, podemos retornar ao
que discorre Charles Baudelaire a respeito do flâneur:

Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso


quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de
consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa
a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos
da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o
revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria
vida, sempre instável e fugidia (2001, p. 21).

Como pontua Walter Benjamin, o flâneur atua entre os


homens “como se fosse uma personalidade” (1991, p. 81). No
caso de Mekas, não há a construção de uma celebridade, mas a
possibilidade de circular pela multidão como aquele que segura
a câmera e, em meio à vida comum, a transforma em registro,
imagem audiovisual. Em meio à multidão, Mekas reorganiza
a experiência da vida urbana – dos lampejos de beleza ao
registro, da errância do exílio à memória. Dessa maneira,
passam a existir outras formas de se conceber os sentidos de
território, política e comunidade.

Território, paisagem e política

A forma como Mekas transita pela cidade determina


maneiras de se conceber e se relacionar, politicamente, com um 10. “Landscape, we have
seen, is a representation of
determinado território. Segundo Lefebvre, “paisagem, como space. It is a form of spatial
vimos, é a representação do espaço. É uma forma de predicado predicate. Another way of
saying it would be to say
espacial. Outra forma de dizê-lo é que a paisagem é uma forma that landscape is a form of
de ser do espaço externo de nossas mentes” (2006, p. 51).10 Ao being of external space in our
minds” (trad. nossa).
analisarmos Lost Lost Lost e As I was moving ahead, percebemos

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 73


que aquilo que desperta a atenção de Mekas na paisagem são
justamente quaisquer elementos que respondam a algum estado
afetivo interno, seja pelo visionamento da beleza, seja pela
constatação da impossibilidade do lugar que se encontrar constituir
a Lituânia. Em As I was moving ahead, há uma sequência em que
Mekas se desloca de uma situação caseira para imagens do centro
da cidade. Não há, a princípio, concatenamento narrativo ou
ligação entre o realizador e aquelas pessoas, apenas a observação
do ambiente e dos corpos que ali ocupam.

Fig. 14-16: As I was moving ahead

Há poucas informações sobre aquele espaço e aquelas


pessoas. O pouco que sabemos é de que se trata do centro da
cidade, em que transitam desconhecidos e crianças observam o
próprio reflexo em um chafariz. Se a paisagem, como abordamos a
partir de Lefebvre, pode ser compreendida como algo que tensiona
o lugar da narrativa no cinema, ela também estabelece com o
território uma relação não definida. Essa paisagem que parece estar
sempre em descoberta, sempre encontrada pela beleza e em que
acontecimentos efêmeros parecem reinventar o mais corriqueiro –
a praça do centro, os parques onde se encontram outros exilados
lituanos –, favorece a contínuos processos de territorialização. É
necessário que entendamos esses processos inseridos nas relações
do cineasta com outras pessoas e implicados na produção e criação
de imagens. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari afirmam:

74 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


[...] jamais nos desterriorializamos sozinhos, mas no mínimo
com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto paisagem.
E cada um dos termos se reterritorializa sobre o outro. De
forma que não se deve confundir a reterritorialização com
um retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga:
ela implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos
quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve
de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua
(DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 40).

Ao caminhar ou estar perdido, Mekas não tem pertencimento


ou objetivo maior que circular pelas ruas e pelas casas. O cineasta
estabelece relações não territorializadas com os lugares e sujeitos.
E isso se torna uma invenção de outras formas de partilha sensíveis
do cotidiano. Sobre esse processo, podemos retomar o trabalho dos
geógrafos Rogério Haesbaert e Glauco Bruce:

Pensar é desterritorializar. Isto quer dizer que o pensamento


só é possível na criação e para se criar algo novo, é necessário
romper com o território existente, criando outro. Dessa forma,
da mesma maneira que os agenciamentos funcionavam
como elementos constitutivos do território, eles também vão
operar uma desterritorialização. Novos agenciamentos são
necessários. Novos encontros, novas funções, novos arranjos
(BRUCE; HAESBAERT, 2012, p. 9).

Por meio desses autores, podemos tentar entender que


é somente pelos processos de desterritorialização que Mekas
consegue dizer e filmar um espaço diferente daquele que
nasceu e ver o que há de diferente nos lugares que habita
cotidianamente. Quando o cineasta chega a Nova Iorque e não
se reconhece naquela cidade, ou se atém à brevidade da beleza
enquanto vive, agencia novas relações com aqueles espaços,
produzindo imagens que não são de alguém que ali pertence,
mas que está, a todo momento, criando formas de viver e
entender aquele espaço.
Em situação de exílio, os irmãos Mekas em Lost Lost Lost
parecem estabelecer não somente um nova concepção acerca
do espaço estadunidense que passam a ocupar, mas questionar
– e pensar de outras formas – os eventos políticos em curso. A
narração de Jonas reafirma a solidão e o deslocamento provocado

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 75


pelo exílio, ao mesmo tempo em que reflete sobre o cotidiano
no Brooklyn. A observação de casas que lembram a atmosfera
de Lituânia é acompanhada pelo comentário “isso é apenas
11. “This is only temporary” temporário”,11 contrastando com a narração que diz “enquanto isso,
(trad. nossa).
nossa vida no Brooklyn prosseguia”,12 sustentada pelo trabalho em
12. “Meanwhile, our life in qualquer função. Essa vida de pequenos deslocamentos, dúvidas e
Brooklyn went on”
(trad. nossa).
medos pessoais parece se tornar mais urgente e reconhecível que
a guerra. Um letreiro se insere e duvida: “houve uma guerra?”.13
13. “was there a war?” (trad. Em seguida, a narração comenta que tudo é normal, a família
nossa).
janta, o pai trabalha. Em processo de desterritorialização, Mekas
comunga com aqueles que, embora não estejam em situação de
exílio, vivem distanciados dos grandes conflitos políticos. Os
eventos bélicos parecem não ter a mesma força nas mesas de
jantar, já que tudo segue como antes, todos comem no mesmo
lugar e desempenham a mesma função em suas famílias.
Essa forma de partilhar algo comum com cidadãos
quaisquer pode ser compreendida como um gesto político e uma
configuração da vida sensível. Em As I was moving ahead, há uma
constante inserção da cartela “This is a political film”. Em uma
determinada sequência, essa cartela é seguida de um plano em que
Hollis Melton, com quem o cineasta se casou em 1974 e manteve
14. Em texto sobre a obra um relacionamento por vinte anos,14 segura Oona Mekas, filha do
e vida do diretor lituano, o
casal, ainda bebê. Se, em um contexto global, estaríamos vivendo
curador e crítico Aaron Cutler
menciona a separação do as consequências da Guerra do Vietnã, a dinâmica armamentista e
casal após duas décadas: a Guerra Fria, Mekas persiste na produção de imagens da própria
https://www.villagevoice.
com/2013/04/24/ família, consciente de que uma possível resistência tangia manter-
jonas-mekas-out-takes- se no mundo, relacionando-se de forma afetiva e dando atenção
from-the-life-of-a-happy-
man-features-previously- ao crescimento e ao cotidiano de sua família. Nesse gesto, ao
private-glimpses-of-a-life/. mesmo tempo em que o diretor se atém ao registro e à recordação
Acesso em 01/08/2020.
da sua vida privada, coexiste uma intenção de partilha no mundo
público, em que uma memória pessoal pode ser atualizada em
contato com um possível espectador. Em Políticas da escrita,
Jacques Rancière elucida:

[...] pelo termo de constituição estética, deve-se entender


aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade.
Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto
e, inversamente, a separação e distribuição em quinhões. Uma
partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina
no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e
a divisão de partes exclusivas (1995, p. 7).

76 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


Nesse caso, a possibilidade de dividir a memória com o
desconhecido – um futuro espectador, o outro tempo da exibição,
o espaço do esquecimento – possibilita o surgimento de relações
comuns. De repente, o que seria da lembrança de um sujeito-cineasta
ao recordar anos de gravações, filmes feitos no passado e fragmentos
filmados sem propósito inicial passa a ter sentido ao ser colocado em
circulação comum.
Quando vemos os amigos e parentes de Mekas, não conseguimos
ter, com aquelas imagens e lembranças, as mesmas relações vividas
no momento de tomada. Não nos é possível apreender os pequenos
momentos de beleza na mesma dimensão e mesmo sentimento
vividos pelo cineasta lituano. Podemos conhecer aqueles parques,
ver como aquelas pessoas dividem o cotidiano, admirar a forma
como se movimentam, as pétalas das flores escolhidas. No entanto,
nossa percepção daquelas histórias nunca será a mesma notada pelo
cineasta: diferenças temporais, culturais e de contextos nos separam.
Ainda assim, algo é partilhado: em outras vidas, também se convive
com um bebê que aprende a andar, com um parceiro afetivo, ou se
senta em outros gramados para saborear alimentos. Dessa forma,
é possível aos espectadores dividir algo de uma memória que se
apresenta lacunar e fluída no filme; há, no entanto, algo dos dias
vividos que escapa à visão externa. O sentido político é construído a
partir do momento em que se convoca, em um filme endereçado ao
outro, a reconfiguração do que é privado, do que é partilhado e do
que é particular no cotidiano. Os lampejos de beleza parecem existir
– e iluminar – não apenas a vida de um só, mas a vida de cada um ao
refletir e olhar para o próprio cotidiano.

Fig. 17-18: As I was moving ahead

De forma semelhante, Mekas apresenta em Lost Lost Lost


imagens de um encontro de lituanos exilados e de um time de
futebol de jogadores conterrâneos. No filme, há a oferta de outros
sentidos de agrupamento e de formas políticas. Temos contato e

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 77


somos convidados a prestar atenção não mais na figura de alguém
isolado em decorrência da guerra, mas a ver como essas pessoas
reconfiguram, no cotidiano, relações de grupo e de convivência.
Distanciado da Lituânia, um time de futebol possibilita que, em
uma breve irrupção, aquelas pessoas estejam outra vez próximas
de seus conterrâneos, o que seria possível em sua terra natal.

Fig. 19-20: Lost Lost Lost

Em A partilha do sensível, Rancière denomina o sistema


que intitula a obra como aquele “que revela, ao mesmo tempo,
a existência de um comum partilhado e partes exclusivas” (2000,
p. 12). Isso se torna importante na medida em que, se a obra
de Mekas parte de um registro memorial cotidiano e privado,
também pode-se encontrar correspondências com a vida de outras
pessoas. Há, em As I was moving ahead, a divisão das alegrias
efêmeras: o bebê que aprende a andar, os amigos que se reúnem
para beber e celebrar, a visão da mulher que fotografa, a paisagem
das folhas caídas no outono e da neve acumulada onde crianças
brincam. Nenhum desses elementos, porém, parece corresponder
a um início, explicação ou justificativa para a vida de Mekas. Algo
permanece distante e inexplicado. Há ocorrências semelhantes
em Lost Lost Lost. Exilado, Mekas se detém na observação da vida
daqueles sem grandes participações políticas no lugar em que se
encontram; eles, porém, não produzem imagens ou atravessam
aqueles espaços pelos motivos que ele e seu irmão. O discurso
de Mekas sobre si, sobre os trajetos de errância, as anotações da
paisagem, só é estabelecido, assim, a partir do contato – e da
existência – de um outro.
A partir do trabalho de Rancière, Ângela Marques afirma
que “a comunidade de partilha envolve a produção de um público
que é diferente daquele que é visto, comentado e considerado
pelo Estado. Um público definido pela manifestação de um

78 Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


‘dano’ causado no momento da constituição de um ‘comum’”
(MARQUES, 2011, p. 147). Em Lost Lost Lost, a vida de Mekas
não interessa ao Estado lituano, que o exila. Tampouco é da
ordem da preocupação das autoridades a vida de outros membros
da comunidade lituana no Brooklyn ou no que pode acontecer
em uma festa de aniversário, ou no instante em que um gato
sobe numa mesa em As I was moving ahead. Ambos os filmes
são políticos, na medida que propõem uma reconfiguração do
tempo e do espaço. Como pontua Rancière,

A arte não é política em primeiro lugar pelas mensagens e


pelos sentimentos que transmite sobre a ordem do mundo.
Ela também não é política pelo seu modo de representar as
estruturas da sociedade, os conflitos ou as identidades dos
grupos sociais. Ela é política pela distância que toma em
relação a essas funções, pelo tipo de tempo e de espaço que
institui, pelo modo como recorta esse tempo e povoa esse
espaço (2010, p. 20).

Se, como aponta o filósofo, a política é “a configuração


de um espaço específico, a partilha de uma esfera particular
de experiência” (RANCIÈRE, 2010, p. 20), Mekas estabelece
parte de um território indefinido, de paisagens fugazes, para
reconfigurá-las a partir de gestos e afetos partilhados. Perdido
ou encantado pela beleza, o realizador consegue estabelecer
algo de comum entre eles e os outros. Essa é, para aquele que
caminha, uma grande potência política.

Conclusão

Ao longo deste artigo, analisamos as formas como o estudo


da paisagem em As I was moving ahead when occasionally I saw
brief glimpses of beauty e Lost Lost Lost é uma ferramenta de
compreensão dos elementos narrativos do filme, bem como tais
elementos se relacionam com o espaço. A análise da paisagem
favorece à uma compreensão dos elementos atracionais
presentes nos filmes – o uso dos planos rápidos, o emprego do
flicker, dentre outros aspectos – associados à uma integração
narrativa. Essa relação entre paisagem e narrativa aporta para

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 79


a compreensão das escolhas subjetivas de Mekas ao abordar
pequenos acontecimentos fugazes em seu cotidiano, que se
organizam de forma lacunar e ensaística. Nesse pensamento,
podemos compreender as dinâmicas de desterritorialização
nesses filmes, as quais são necessárias ao processo de criação
do cineasta. Compreendida como gesto político, essa estética
estabelece formas de partilha comum entre o cineasta e a vida
dos anônimos – reunidos pela beleza, pelo distanciamento do
Estado ou pelo afeto.

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FILMES

As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty. Dir.: Jonas
Mekas. EUA, 1970-99/2000, 16 mm, cor, 288 min.
Lost Lost Lost. Dir.: Jonas Mekas, 1976, 16mm, cor, 180 min.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017 81


A invenção de uma tradição:
autobiografia no cinema
experimental norte-americano

Patrícia Mourão de Andrade


Pós-doutoranda no Departamento de Artes Visuais da ECA-USP; Doutora em
Meios e Processos Audiovisuais pela mesma universidade.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 82-103, JUL/DEZ 2017


Resumo: Partindo da constatação de que a autobiografia transforma-se em um
campo de interesses para o cinema independente norte-americano a partir do final
dos anos 1960, pretende-se abordar o papel do gênero na transformação de um
panorama artístico e criativo. Focado principalmente na relação entre autobiografia
e historicização do cinema experimental, o artigo propõe ainda algumas pontos
de diferenciação entre as emergentes tendências do documentário pessoal e
das autobiografias experimentais a partir das relações que essas novas formas
estabelecem com o cinema verdade e o cinema lírico e pessoal.
Palavras-chave: história do cinema experimental; autobiografia; cinema lírico.

Abstract: On the threshold of the seventies, the autobiographical genre emerged as


one of the main tendencies of the north-american avant-garde film. Understanding
that it becomes a field of interest for filmmakers, critics and public alike only at this
moment in time, we intend to broach how autobiography is fashioned by filmmakers
into a form viable for cinema. Relying on a vast documentation we will demonstrate
the role played by the genre in the transformation of a creative and artistic
environment.
Keywords: experimental film; autobiography, history of experimental film.

84 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


Em março de 1973, cineastas, escritores e pesquisadores
reuniram-se na State University of New York, na cidade de
Buffalo, para um seminário de quatro dias sobre autobiografia
no cinema independente americano, o “Buffalo Conference on
Autobiography in the Independent American Cinema”. Entre os
cineastas presentes estavam Jonas Mekas, Stan Brakhage, Hollis
Frampton, Andrew Noren, Ed Emshwiller, Bruce Baillie, Scott
Bartlett, Michael Stewart, Will Hindle, Ed Pincus e Robert Frank.
No cartaz da conferência – um dos poucos documentos que
restaram de sua realização – informa-se que o objetivo do evento
era investigar “a tradição emergente da autobiografia no cinema
independente contemporâneo”. O recuo histórico de quase quatro
décadas dificulta uma delimitação precisa do que se entenderia
por emergente: trinta anos?, cinco anos? A dúvida é pertinente:
embora estivessem exibindo obras recentes ou em processo, havia
homenagens a cineastas já falecidos com a exibição de filmes
realizados vinte anos antes (Beat, de Christopher Maclaine). Além
disso, a inflexão autobiográfica é um dos aspectos mais evidentes
do cinema independente, ou ao menos de seu ramo experimental,
desde Maya Deren, cujo filme Meshes of the Afternoon, de 1943,
é tido, com razão, como o marco inaugural dessa tradição no
pós-guerra. Mas até então falava-se em psicodrama, cinema
pessoal e lírico; e embora cineastas como Stan Brakhage já
viessem documentando sua vida familiar desde 1959, a ideia de
autobiografia como um gênero, uma prática ou uma forma não
entrara no léxico da crítica nem dos cineastas até os anos 1970.
No seminário, entretanto, não só se falava em “autobiografia”,
como havia um esforço notável para pensá-la como uma tradição
e em relação ao gênero literário. Esse esforço ecoou entre os
presentes e, nos meses seguintes, Jonas Mekas dedicou algumas
de suas colunas quinzenais no jornal independente nova-iorquino
Village Voice a um balanço do evento:

Com metade da comunidade do cinema experimental


presente, o tema da autobiografia no cinema estava por todos
os lados. Enquanto antes dos anos 1960 os aspectos diarísticos
e autobiográficos entravam no cinema apenas indiretamente
(Lumière, Vertov, Chaplin), nos anos 1960 começa uma
expansão radical no uso da autobiografia. (…) Encontramos
aqui as formas da autobiografia filmada; autobiografia

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 85


confessional; o diário e o caderno de notas; e formas mais
complexas de autobiografia. (...) Nos próximos anos cada uma
dessas direções vai crescer e se expandir. A maior diferença no
uso da autobiografia antes dos anos 1960 e depois é que agora
nós temos consciência da autobiografia como uma forma de
cinema em todas as suas variedades; antes, essa consciência
não existia (MEKAS, 1973, p. 73).

Permito-me citar uma longa passagem, porque ela reúne pelo


menos três aspectos que nos são interessantes neste momento.
Primeiro, o esforço demonstrado para se pensar e propor uma
história para a autobiografia no cinema (Lumière, Chaplin e Vertov
como pontos de ancoragem). Segundo, um empenho ainda maior
para compreender o fenômeno a partir das convenções de um gênero
(a tentativa de classificar a produção entre vários subgêneros). E,
terceiro, condensando todas as outras, a ideia de que a novidade
do fenômeno está na sua consciência como forma, mais do que
na prática propriamente dita. Ou seja: a prática ou a forma da
autobiografia não seria em si uma novidade, mas a consciência e o
debate sobre ela sim.

1.1 O despertar do gênero

Antes da conferência, o debate sobre a autobiografia já se


fazia subterraneamente em correspondências entre os cineastas.
Brakhage, por exemplo, um missivista obsessivo, abordará o assunto
em diversas cartas escritas a amigos no início dos anos 1970. Um
filme autobiográfico de Jerome Hill, Film Portrait (1972), será
muito importante para ele. No filme, Hill usa uma variedade grande
de materiais que inclui fotografias, filmes de família, trechos de
filmes, animação e algumas encenações para narrar sua vida de
seu nascimento até sua morte imaginada. A reflexão de Brakhage
sobre a autobiografia no cinema será largamente estimulada pelo
encontro com o processo do filme de Hill, ao qual acompanhou de
perto em inúmeros cortes. Em uma carta ao amigo, ele escreve: “É
a primeira autobiografia consciente – a primeira ARTE enquanto tal
(…) Você acabou de completar uma obra de arte e inventou (do
início) uma grande forma para o cinema” (BRAKHAGE, 1972, p. 2).
Durante os anos 1970, o cineasta voltará ao assunto em várias de
suas correspondências, sem nunca conseguir de fato definir aquilo

86 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


que entende por autobiografia, mas sua insistência demonstra que
ela se torna um problema central para ele. Na verdade, ele é explícito
sobre isso em uma carta a Jerome Hill: “Tenho a sensação que os
cineastas estão se movendo em direção à autobiografia – biografia
também. (…) O que parece AGORA mais necessário é a Biografia e
a Auto-biografia e ALGUM sentido de processo criativo humano e
psicológico” (BRAKHAGE, 1970, p. 1).
Nos meses e anos seguintes ao seminário, uma série de
programações em Nova York chamam a atenção para a nova
tendência, referendando em seus títulos tradições literárias ou
pictóricas de autorrepresentação e escrita de vida.1 Paralelamente,
P. Adams Sitney, o crítico mais importante do cinema de vanguarda
e autor de um livro seminal sobre a produção, Visionary Film, ainda 1. “Portraits”, no Whitney
Museum, em 1974;
hoje a principal referência sobre o tema, publica, na Millennium “Autobiographical/Diary
Film Journal, o texto “Autobiography in Avant Garde Film”. Sitney Films”, no Film Forum, em
começa o artigo reconhecendo a singularidade e a concretude do 1975; “Autobiographical/
Diaristic Experience in
fenômeno no panorama do cinema de vanguarda: Cinema”, em 1979 no
Anthology Film Archives,
com curadoria de Jonas
Mekas. Houve ainda uma
Por vinte anos o termo “pessoal” foi atribuído à grande maioria grande retrospectiva no
dos filmes experimentais. Pode-se presumir que algum sentido Canadá,“Autobiography: film,
dentro de uma variedade que inclui tanto o hermético quanto o video, photography”, em
espontaneamente íntimo sustente essa longevidade. No entanto, 1978, resultado de um curso
mais uma vez uma coincidência de padrões estruturais nos filmes que o curador, John Katz,
de vários grandes artistas nos últimos dez anos exige uma nova deu na New York University
análise histórica. Desta vez, eu sigo mais confortavelmente as (NYU).
declarações de vários cineastas e críticos, e uma conferência na
Universidade Estadual de Nova York em Buffalo: o nascimento da
autobiografia em filme é o meu assunto (SITNEY, 1977-78, p. 66).

Para Sitney, as autobiografias apontavam para um novo


momento do cinema de vanguarda, distinto do que se convencionou
chamar de “pessoal”. A singularidade da autobiografia e o que
a diferenciaria da produção anterior estaria, para ele, na sua
capacidade autorreflexiva, especialmente no que concerne à relação
com a linguagem e à inscrição do tempo:

O ponto mais importante, que faz com que a autobiografia seja


um dos desenvolvimentos mais vitais do cinema experimental
no final dos anos 1960 é que o simples ato de fazer uma
autobiografia constitui uma reflexão sobre a natureza do cinema,
e frequentemente, sobre sua ambígua relação com a linguagem.2 2. Ibidem, p. 70.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 87


Há, como se pode notar, um consenso entre os diferentes
agentes do cinema independente sobre a novidade do fenômeno
da autobiografia que vem associado a um esforço de pensá-lo
criticamente e historicamente em relação ao cinema pessoal
que o precedera. Como já sugerido anteriormente, a inflexão
autobiográfica existira no ramo experimental desde Maya
Deren, sem que o termo autobiográfico fosse antes usado.
O que há de novo, portanto, para que os filmes passem a ser
vistos como autobiografias ou para que a autobiografia como
conceito se torne operante para críticos e cineastas? Partindo
dessa questão e da constatação de que há um consenso sobre
a emergência de um novo fenômeno, pretendo aqui investigar
como a autobiografia surge como uma forma possível para o
cinema de vanguarda.
Antes de prosseguir, talvez seja o caso de deixar claro que
não se trata aqui de definir um gênero, com suas subdivisões
(diário, confissão, memorial), temas eleitos ou estilos de
abordagem, mas de pensar, junto com os cineastas, como a
autobiografia surge como um campo de interesse e um conceito
operante para suas práticas. Meu percurso passará, assim, pela
distinção entre práticas e tendências pregressas ao interesse
pela autobiografia e as novas questões que começam a ocupar
cineastas no final dos anos 1960. Mapeio, nesse sentido, um
processo de mudança que se reporta a um campo específico e
que no seu caráter nascente não tem ambições de definir balizas
conceituais a serem expandidas para outros cinemas. É certo
que o cinema de Brakhage e Mekas é hoje incontornável em
qualquer abordagem da autobiografia no cinema. Em outros
momentos trabalhei com seus filmes tentando retirar, a partir
de análises imanentes, características temporais, temáticas e
estilísticas da autobiografia, aqui, no entanto, interessa-me,
uma abordagem histórica da emergência do interesse pelo tema.

1.2 O psicodrama e o cinema lírico

O cinema de vanguarda norte-americano sempre


alimentou-se das vidas de seus autores e buscou formas para
expressá-las, primeiro, com o psicodrama ou o filme de transe,
no qual o cineasta dramatizava suas perturbações interiores

88 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


e, depois, com o cinema lírico, no qual registrava sua vida
cotidiana, mas abrindo mão do drama, da narrativa e, mesmo,
da representação de seu próprio corpo.
Inaugurado por Meshes of The Afternoon, de Maya Deren
e Alexander Hammid, e perseguido por cineastas como Stan
Brakhage, Kenneth Anger e Curtis Harrington, o filme de
transe, ou psicodrama, dramatiza a busca pela realização
erótica e o processo de autodescobrimento identitário de
um(a) protagonista invariavelmente interpretado(a) pelo(a)
diretor(a). Nesses filmes, a(o) protagonista era sempre uma
mediação fílmica entre o espectador e a visão a qual tínhamos
acesso, de forma que o estado de sonho no qual entrávamos
era atribuível a um(a) personagem identificável.
O grande salto para o filme lírico acontece quando
Stan Brakhage, depois de um conjunto de filmes de transe
ao longo dos anos 1950, abre mão do corpo do protagonista
como mediador para fazer do filme uma apresentação da sua
visão subjetiva. Nesse processo, abandona-se também todo o
drama ou a narrativa que estruturavam os primeiros filmes da
vanguarda.
O filme que marca mais evidentemente esta passagem é
Anticipation of the night, de 1958. Lá ainda há um protagonista,
mas dele vemos apenas traços metonímicos, como a sombra ou
partes de seu corpo – e essas imagens identificam-no ao cineasta
por contiguidade e indicialidade, não por similaridade. A busca
não é mais pela autonomia do ego, ou pela resolução de dramas
internos do protagonista-cineasta como era no psicodrama,
mas, como propõe Sitney, por uma “visão absolutamente
autêntica, renovada, e não educada [untutored]” (SITNEY,
2000, p. 60). Nos filmes posteriores de Brakhage, não haverá
mais protagonista central nem drama, apenas o cineasta, cuja
presença se faz sentir pelo movimento da câmera e da edição.
Sitney chamará esse cinema de lírico:

“O filme lírico postula o cineasta atrás da câmera como o


protagonista em primeira pessoa do filme. As imagens são
aquelas que ele vê, registradas de uma tal maneira que nunca
nos esquecemos de sua presença e sabemos como ele está
reagindo a sua visão”.3 3. Ibidem.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 89


A observação dos eventos íntimos e privados transforma-se em
uma fonte inesgotável para Brakhage. Pela primeira vez na história,
inaugurando a forma do “filme de parto” [birth film], em Window
Water Baby Moving (1959), um artista documenta a gravidez de sua
mulher e o parto da primeira filha – nos anos seguintes, ele ainda iria
registrar o nascimento de todos os outros quatro rebentos do casal.
Relações sexuais ou brigas conjugais também seriam registradas
(Cat’s Cradle, 1959, Wedlock House, 1959, Dog Star Man, 1961-64).

1.3 O filme de família

Apesar do conteúdo abertamente autobiográfico de quase


todos esses filmes, nenhum deles era, até o final dos anos
1960, considerado por seus autores ou pela crítica como uma
autobiografia. Se a crítica falava em cinema lírico e pessoal, para
os realizadores, as comparações mais frequentes eram, na verdade,
com o filme de família ou o cinema amador. Alguns cineastas assim
nomearam seus filmes – Taylor Mead (My Home Movies, 1964) e
Brakhage (Stan Brakhage: An Avant-Garde Home Movie, 1962).
Maya Deren, Brakhage, Mekas, três cineastas cuja produção crítica
ou teórica tinha (e tem) tanto fôlego quanto sua produção fílmica,
produziram textos em defesa da potência estética do cinema amador
4. Cf. BRAKHAGE, Stan. “In e de família.4 Brakhage e Mekas, por exemplo, chegaram a declarar
Defense of the Amateur”.
In: MCPHERSON, Bruce.
que tomaram o cinema amador ou o filme de família como modelo
Essential Brakhage. para filmes. Em uma apresentação de 23rd Psalm Branch (1967),
Nova York: McPherson
Brakhage afirmou: “Venho trabalhando em uma série de filmes em
& Company, 2001;
DEREN, Maya. “Amateur 8mm chamada Songs retirando inspiração, tanto quanto possível, no
versus Professional”. amador” (BRAKHAGE, 1982, p. 110); e Mekas, no primeiro rolo de
In: MCPHERSON, Bruce.
Essential Brakhage. Nova Walden (1969), reafirmou sua filiação ao filme de família, quando,
York: McPherson & Company, apropriando-se da máxima cartesiana, cantou “faço filmes de família,
2001. MEKAS, Jonas. “Movie
Journal”, Village Voice, Nova portanto vivo”.
York, 11 mai 1960, 4 out 1962,
25 out 1962, 18 abr 1963, 9 Para esses cineastas, no horizonte da apropriação de uma
abr 1964, 23 abr 1964, 14 mai poética familiar ou amadora está o cinema comercial, industrial
1964, 17 dez 1964, 24 jun
1965, 22 jul 1965, 7 dez1967 e artificioso, em oposição ao qual o cinema independente
e 17 jul 1969. americano gostaria de se colocar em seu primeiro momento.
“Não queremos mais filmes falsos, polidos, lisos – os preferimos
ásperos, mal-acabados, mas vivos; não queremos filmes cor-de-
rosa –; os queremos cor de sangue” (MEKAS et al: 2013, p. 55),
lê-se na “Declaração do Novo Cinema Americano”, de 1963, da
qual Mekas era um dos redatores e signatários. O contingente de

90 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


“vida” viria, eles apostavam, de uma forma nova, indistinta da 5. O cinema amador e o
filme de família não são
vida e da experiência cotidiana dos cineastas. Uma forma que se
equivalentes e uma distinção
inventa in acto: entre as motivações e
ambições do cineasta bem
como entre temas e imagens
pode ser feita. Roger Odin,
Um amador é aquele que realmente vive sua vida – e não por exemplo, propõe em
simplesmente “executa” uma tarefa –, de modo que ele Le film de famille: usage
vivencia seu trabalho enquanto trabalha (...). Ao invés de ir privé, usage public que
para a escola, aprender o seu trabalho para que possa passar para o cineasta amador
o resto da vida fazendo-o obedientemente, o amador está, está em jogo fazer um
portanto, eternamente aprendendo e crescendo através do cinema de qualidade, e o
cineasta pode, por exemplo,
seu trabalho (BRAKHAGE, 2004, p. 145).
se inspirar e se reportar
a gêneros estabelecidos
bem como a tendências do
cinema comercial. O cineasta
No elogio do amador preza-se também a liberdade de familiar, por outro lado, não
experimentação – “use sua liberdade para experimentar: seus ambiciona nem mesmo fazer
um filme, para ele importa
erros não causarão sua demissão” (DEREN, 2004, p. 17), escreve
principalmente registrar,
Maya Deren – e a ausência de regras ou critérios preestabelecidos para uso privado e futuro,
distinguindo o bom do ruim, o permitido do não permitido. eventos familiares. Apesar
da escolha terminológica
pelo “cinema amador” não
Há, portanto, uma questão estética e outra ética na tomada
acredito, no entanto, que
do filme de família ou amador5 como modelo. Do ponto de as diferenças entre a figura
vista estético, ele é uma forma possível na medida em que não do amador e do cineasta de
família sejam operacionais
é uma forma dada, estagnada, aprendida. Do ponto de vista nos textos de Brakhage,
ético, ele vira um modelo porque permite um contingente Deren e Mekas. Ao contrário,
para esses cineastas parece
de verdade inexistente no cinema comercial, industrial e haver uma equivalência e
artificioso.6 Essa verdade, claro, não deve ser confundida com o confluência entre a figura
do amador e do cineasta
caráter documental dos filmes caseiros, mas com o afeto que os familiar: ambos significam
engendra. No filme de família, quem filma, filma a quem ama e um campo possível de
liberdade e experimentação,
porque ama. descolonizado dos preceitos
do cinema comercial. É
Enquanto o cinema comercial e industrial vigora como importante lembrar aqui que
modelo negativo de comparação, o caráter autobiográfico estou trabalhando com textos
de artistas, sem ambição de
latente no conteúdo dos filmes terá pouca relevância. A atenção validade universal.
estará em outros aspectos, tais como a ausência de narrativa, a
dimensão poética, a energia plástica e visionária, a aparência
6. Há claro, um paradoxo
inacabada e imperfeita (segundo os códigos do cinema inicial no fato de que tanto
comercial) e a reflexividade na relação com a materialidade o cinema caseiro quanto o
amador são invenções da
da película. A inscrição da subjetividade e a evidenciação da indústria, produtos de sua
primeira pessoa eram, claro, notadas. Mas neste primeiro necessidade de expandir
mercados consumidores com
momento sua importância residia no fato de que elas traziam o lançamento de câmeras
a verdade do homem, permitindo, portanto, demarcar sua para uso doméstico e com
anúncios que inseriam a
distância do caráter falso, mecânico do cinema comercial e da prática cinematográfica
sociedade industrial e capitalista como um todo. dentro de um contexto

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 91


familiar e não profissional. 1.4 Do filme de família à autobiografia
Este paradoxo não é
considerado por nenhum
dos cineastas defensores do
cinema amador, que o viam No final dos anos 1960, o filme de família ou amador não
sempre como uma alternativa era mais um modelo de inspiração útil no confronto com o cinema
à indústria. Cf. ARTHUR, Paul.
Routines of emancipation. comercial. Isso se dá por dois motivos: primeiro porque, posto em
JAMES, David E. (org). Free prática pelos artistas, ele é alterado, transmutado e converte-se em
the Cinema: Jonas Mekas and
the New York Underground.
uma poética; segundo porque o próprio cinema comercial deixa de
Princeton University Press, ser uma referência ou um alvo.
1992, p. 17-49.
Compreende-se com naturalidade que ainda hoje o público
desavisado possa associar o cinema de Brakhage, Mekas ou Carolee
Schneemann a filmes de família, mas um olhar um pouco mais
atento também encontrará nesses cineastas um apuro formal e
um estilo pessoal oriundos da depuração, via exercício insistente
e dedicado, das “não-técnicas” associadas ao modo. O filme
de família tal como praticado por esses artistas não é o simples
produto do acaso, resultado do erro e da ignorância, ao contrário,
ele é a elaboração estética de um modelo por meio do exercício,
como seria, por exemplo, a pintura naïf para Miró, ou o desenho
infantil para Picasso ou Klee.
Ora, a transformação do modelo em uma poética permite a
história; história inventada pelas obras, escrita nos deslizamentos
e transmutações de motivos, gestos ou proposições formais entre
um filme e outro, um artista e outro. Depois de Brakhage ou Ken
Jacobs, os cineastas da vanguarda não fazem filme de família tendo
em mente as imagens fora de foco mostradas pelo tio no último
Natal, ou o pôr do sol filmado por uma dona de casa. Doravante, a
referência é concreta e está nos filmes da vanguarda.
A esta altura, o cinema de vanguarda já tem suas obras
“clássicas” e elas constituem a história em relação ou oposição à
qual a nova produção pode, a partir de então, se colocar. Entre
1943 e 1967 o cinema experimental tornara-se uma realidade
histórica concreta: o número de cineastas e de filmes produzidos
anualmente aumentava, sua circulação não era mais restrita a um
pequeno circuito e expandia-se para universidades em todo o país,
festivais internacionais, museus e cinematecas. Tudo isso contribui
para gerar e alimentar um circuito autônomo no qual cineastas
dialogam entre si, respondendo e opondo-se aos filmes e propostas
uns dos outros e não mais a um cinema distante, realizado em outro
contexto e com outros propósitos, como seria o caso do cinema
comercial e industrial.

92 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


De fato, no final da década de 1960, havia já uma nova
geração fazendo filmes tendo como referência o próprio cinema
experimental e não o comercial. Neste contexto, delineiam-se
duas reações à produção anterior. A primeira, de ruptura, negará
a dimensão processual, a inscrição da subjetividade e a afirmação
da primeira pessoa do cinema lírico em detrimento de uma forma
simples, minimalista, resultante da execução estrita de um projeto
inicial. A segunda reação, de continuidade, irá dialogar com o
cinema lírico; a subjetividade do autor continuará importante,
mas nos novos filmes há uma abertura maior ao mundo, ao real
e à história, sobretudo a dos seus autores. É daí que, acredito,
surge a autobiografia e parte do que permite este movimento é a
transformação do filme de família em documento.
Nesse momento, os filmes de família não são mais um
modelo ou uma prática desejada, eles contêm uma memória,
são o arquivo mnemônico dos que passaram a vida a filmar. Para
que exista autobiografia é necessário que exista história; o filme
de família, primeiro como modelo, depois como poética, gera os
documentos necessários a essa história. Em outras palavras, a
desoperacionalização da equação filme de família versus cinema
comercial e o conseguinte estabelecimento de uma relação
endógena, modernista, do experimental com a própria história,
permitem, acredito, o surgimento da autobiografia.

1.5 Os filmes

Mas é claro que, para que a autobiografia de fato vire uma


tendência e uma questão a ser debatida em cartas, conferências
e programações, são necessárias obras, e na década de 1970
uma leva de novos filmes irá fomentar a intuição de um cinema
autobiográfico. Uma breve lista: em 1971, Film Portrait, de
Jerome Hill, é finalmente exibido e Robert Frank lança About me:
a musical; Hollis Frampton, (nostalgia), Stanton Kaye, Brandy
in the Wilderness; e Ed Pincus dá início ao seu projeto Diaries,
que só seria finalizado dez anos mais tarde, já que cinco anos
seriam dedicados ao registro, e a montagem seria feita apenas
cinco anos depois de finalizada aquela etapa. Em 1972, temos
Reminiscences of a Journey to Lithuania, de Mekas; Serving Time,
de John Voorhees; (1970), de Scott Bartlett, e Miriam Weinstein
começa sua trilogia, que incluiria: My Father, the Doctor (1972);

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 93


Living with Peter (1973); We Get Married Twice (1973). Em 1973,
Brakhage exibe os primeiros capítulos de Sincerity, parte de seu
longo projeto autobiográfico chamado The Book of Film, um ciclo
que compreenderia um total de oito filmes; Freude Bartlett,
My Life in Art; Richard P. Rogers, Elephant. Em 1974, James
Broughton lança Testament; e Amalie Rothschild, Nana, Mom
and Me. Em 1975, temos Lost Lost Lost, de Mekas, mais capítulos
de Sincerity; Family Focus, de Ed Emshiller, Kitch’s Last Meal, de
Carolee Schneemann; Family Portrait Sittings, de Alfred Guzzetti;
e Not a Pretty Picture, de Martha Coolidge.
Bastante distintos entre si, esses filmes são devedores de dois
ramos separados do cinema independente americano: o cinema
lírico da vanguarda experimental, da costa Leste ou Oeste, e o
documentário observacional, particularmente a vertente americana
do cinema direto. É evidente que apenas o recuo histórico de quase
quarenta anos permite-me tratar o cinema direto ou documental
e o de vanguarda como dois ramos inteiramente separados do
cinema independente. Entretanto, por mais artificial que possa
parecer, e tomadas as devidas precauções para que não se faça da
generalização uma regra, algumas distinções podem ser inferidas
do conjunto de filmes. A primeira delas diz respeito à idade dos
cineastas e, consequentemente, a seu percurso artístico. A maioria
dos cineastas da vertente experimental a fazer autobiografias tinha
em média uma década de produção atrás de si, de modo que a prática
da autobiografia vinha em um momento já mais amadurecido de
suas carreiras. No outro grupo, estavam cineastas que debutavam na
realização com filmes autobiográficos, entre eles: Miriam Weinstein,
Amalie R. Rothschild, Stanton Kaye, Martha Coolidge, Richard P.
Rogers, Alfred Guzzetti.
Do ponto de vista formal, o primeiro grupo privilegiava a
imagem; o som, quando presente – alguns eram silenciosos –, era
acrescentado depois, em geral em voz over. No segundo grupo,
invariavelmente recorria-se ao som direto, ainda que a voz over
também pudesse ser utilizada. Tematicamente, há também algumas
linhas mestras. Com frequência, embora não necessariamente,
no grupo dos cineastas veteranos, a investigação autobiográfica
passava pela história pessoal dos realizadores enquanto cineastas e
abordava seu amadurecimento artístico; ao passo que, no segundo,
as investigações direcionavam-se para histórias e relações familiares,
em geral em momentos de crise que revelavam conflitos geracionais,
ligados aos debates de gênero e feministas.

94 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


Frequentemente chamados de “documentários pessoais”, os
filmes do segundo grupo reagiam aos princípios de imparcialidade
e não intervenção particularmente fortes na vertente americana do
cinema direto. Muitos dos cineastas eram egressos de faculdades de
cinema ou viviam em cidades como Nova York, Boston e Cambridge,
onde filmes experimentais e documentários observacionais eram
exibidos com frequência. Assim, a familiaridade e proximidade com
a produção da década anterior permitia-lhes questionar o projeto
do direto a partir da presença da subjetividade no cinema lírico e
pessoal. No plano social, a ideia comum ao debate feminista de que
o pessoal é político manifesta-se fortemente nesses filmes.
As primeiras autobiografias do cinema experimental
passam ao largo dos debates feministas ou dos direitos civis.
Artistas como Jonas Mekas, Stan Brakhage e Jerome Hill, cujos
projetos autobiográficos marcam o início dessa tendência,
estavam atraídos, naquele momento, por suas histórias pessoais
como artistas, a evolução de suas sensibilidades e seu lugar na
história da arte que haviam escolhido: o cinema experimental,
de vanguarda.
Nos três projetos iniciais dessa tendência, Diaries, Notes and
Sketches; The Book of Film e Film Portrait, vê-se uma ambição maior
no que diz respeito ao arco temporal com que os cineastas lidam
no filme. Enquanto o cinema lírico ou o home movie privilegiava
“momentos”, retirando de situações pontuais suas potências
plásticas e poéticas, agora havia um movimento no sentido de
incluir a passagem do tempo, ou de representar períodos maiores
de tempo na vida do cineasta. Os filmes abrem-se, desse modo, ao
domínio da história: história de seus realizadores, história de seu
processo, e, mais importante, história de uma forma artística.
Esta abertura à história é evidenciada em três operações.
Primeiro, com a inclusão de materiais heterogêneos: fotografias,
home movies, trechos ou descartes de outros filmes já finalizados.
Depois pelo uso do som (exceção para Brakhage), e mais
especificamente a narração em voz over. Agora comenta-se a
imagem, aponta-se para ela. No cinema lírico e nos home movies
praticamente não havia narração e isso, entre outros fatores,
contribuía para uma sensação de eterno presente evocada. Mas
agora a voz surge como um ponto de contato e separação entre o
dentro da imagem e seu fora, o presente (da narração) e o passado
(contido na imagem), aquele que narra e o que é narrado.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 95


A última forma de inclusão da história se dá pelo modo com
que o cineasta se representa nas autobiografias; nestas ele deixa de
ser apenas o corpo cuja presença se podia sentir pelo movimento
da câmera ou da montagem para apresentar-se como um cineasta-
montador. A imagem do corpo do cineasta, claro, não estava ausente
no cinema lírico – Brakhage, por exemplo, aparece em alguns filmes;
a diferença é que agora ele surge como imagem e intelecção, como
energia e trabalho. Quero dizer, pela primeira vez, vê-se ou comenta-
se sobre o trabalho da montagem – Brakhage e Hill, por exemplo,
aparecem em sua mesa de montagem e os comentários de Mekas
frequentemente aludem à distância temporal entre a narração/
montagem e o registro. Isso institui uma outra relação com o tempo
e com a imagem, uma divisão: o cineasta está dentro e fora da
imagem, no passado e no presente, ele é visto ao mesmo tempo que é
o vidente vendo-se e, sobretudo, organizando uma cronologia dentro
da qual deve ser visto. Antes, ele era o visionário partilhando com o
espectador sua visão, agora ele é ao mesmo tempo aquele que é visto,
o objeto de uma especulação e o ordenador dessa especulação. Não
por acaso, os três filmes trazem, em seu início, planos especulares, de
olhares devolvidos à câmera. Film Portrait começa com Jerome Hill
barbeando-se, olhando para a câmera como se ela fosse um espelho.
Sobre essas imagens, na banda sonora, o cineasta diz: “Este é o mim
que foi” (This is the me that was), uma sentença que, em sua variação
temporal provocada pela divisão pronominal, explicita a decalagem
irreparável entre aquele que vê e aquele que é visto.
Se Hill começa seu filme já introduzindo o problema central
da autobiografia em cinema – a divisão entre o eu da enunciação
e o do enunciado – Mekas e Brakhage começam referendando a
imagem icônica do cinema lírico visionário: os olhos do cineasta.
As três primeiras páginas de Metaphors on Vision, o livro onde
Brakhage postula seu novo sentido da visão e que viria a se
transformar no texto mais importante e incontornável para o
cinema experimental norte-americano nos anos 1960, trazem três
fotos iguais de seu rosto, cada uma ocupando uma página inteira
e sem margem. Ao escolherem começar suas autobiografias com
um comentário direto ao cinema visionário de cuja história são
protagonistas – Brakhage, postulando-o e praticando-o, Mekas,
promovendo-o entusiasticamente e sentindo-se influenciado por
ele –, ambos colocam-se em posição de comentar não apenas suas
próprias histórias, mas também a história de um movimento.

96 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


Metaphors on Vision, Stan Brakhage (1963).

Walden (aka Diaries Notes and Sketches), Jonas Mekas (1969).

Film Portrait, Jerome Hill (1971).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 97


De fato, para além de inventarem modos para abordar
a história de seus realizadores, esses filmes afirmam-se como
tentativas pessoais de elaborar a história do experimental a partir
de um ponto de vista pessoal. Por razões distintas, os três cineastas
a quem atribuo o início da autobiografia no cinema experimental
são figuras essenciais para essa história até aquele momento:
Brakhage é o cineasta modelo, de certo modo o pai de quem os
filhos precisam se libertar; Mekas é o agitador, o aglutinador do
movimento; e Jerome Hill é, além de um artista trabalhando desde
os anos 1930, o mecenas que acudiu instituições e artistas nos
momentos em que problemas de ordem financeira ameaçavam
a paralisação ou desarticulação do movimento. Temos, portanto,
três cineastas maduros, cujas trajetórias pessoais são indissociáveis
da história do experimental.

1.6 Autobiografia e história da vanguarda

É curioso que até o momento não se tenha chamado


a atenção para a relação entre as primeiras autobiografias
e diários e o processo de historicização da vanguarda que
começava a se delinear naquele momento. A partir de 1967
começam a ser publicados os primeiros livros de história do
cinema experimental. No final da década também multiplica-se
o número de universidades abrindo cursos de cinema – o que
abre um novo campo de trabalho para os cineastas e coloca-
lhes os desafio de pensar em termos históricos e sistemáticos.
Paralelamente, começam os preparativos para a abertura do
Anthology Film Archives. Idealizado por Mekas, e financiado por
Jerome Hill, ele pretendia ser um arquivo voltado inteiramente
para a preservação e difusão do cinema de vanguarda. Entre seus
projetos mais ambiciosos estava a criação do “Essential Cinema”,
uma coleção que pretendia reunir as obras mais importantes
para uma “história do cinema como arte”, selecionadas por
um comitê composto por cineastas e críticos dentre os quais
encontrava-se Brakhage.
Não terei tempo de me alongar nesse ponto, especialmente
sobre o “Essential Cinema”, mas gostaria de chamar a atenção
para o fato de que todos esses três processos implicam diretamente
Mekas e Brakhage, que se viram obrigados a rever e repensar uma
história que não só os incluía, mas da qual eles foram agentes

98 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


principais. Em 1971, Mekas lança uma compilação dos textos que
escreveu para a Movie Journal e vê P. Adams Sitney reunir em
uma publicação textos que saíram na Film Culture, a revista que
ele fundara em 1955 e da qual ainda era o editor. Brakhage, por
sua vez, começa a lecionar no Institute of Arts of Chicago, onde
escolhe nada menos que o formato das biografias de cineastas
como método para suas aulas. No período de dois anos, ele
redigirá biografias de cineastas do cânone como Eisenstein,
Dreyer, Méliès, Griffith, Murnau, Vigo, e experimentais, tais como
Jerome Hill, James Broughton, Marie Menken, Kenneth Anger,
entre outros. Essas biografias seriam posteriormente publicadas
em Film at Wit’s End (dedicado aos cineastas experimentais) e The
Brakhage Lectures (reunindo biografias dos cineastas canônicos),
os dois livros de maior fôlego teórico de Brakhage desde Metaphors
on Vision, seu livro que, lançado como um número especial da
Film Culture em 1963, havia fornecido a imagem modelar e
emblemática do cineasta lírico que enquadraria toda a recepção
do cinema experimental ao longo daquela década.
É absolutamente revelador que Brakhage tenha escolhido
o formato das biografias para a transmissão da história do
cinema. Em uma carta a Jay Leyda, a quem enviara o exemplar
de The Brakhage Lectures, o autor escreveu: “Eu sei que depois
das conferências meus alunos em Chicago conseguiram uma
aproximação maior com figuras imponentes como, por exemplo,
Sergei Eisenstein, vendo seus filmes como feitos por uma pessoa.
Em suma, as conferências ajudaram a criar uma relação mais
humana com os filmes” (BRAKHAGE, sem data).7 7. BRAKHAGE, Stan. Carta
a Jay Leyda, sem data. JSB
Para Brakhage, a defesa de uma forma nova de narração Collection.
da história, mais individualizada, pessoal ou subjetiva sustenta-
se sobre um desconforto com a academia e a história oficial.
Em uma entrevista concedida a Mekas em 1973, publicada
ao longo de um mês na Movie Journal, Brakhage discutiu o
problema da academicização:

Escolas estão começando a ensinar o cinema como uma arte.


Então, agora, o cinema herda todos os problemas das outras
artes, e em primeiro lugar, tal como vejo, está o fato que a palavra
Arte que, como você sabe, tentei defender todos esses anos,
vem sendo usada por acadêmicos como se ela representasse
uma presunção de visão. Acho que eles pressupõem a palavra
com A maiúsculo, como se agora devessemos assumir que

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 99


alguns filmes são uma herança cultural. O que quer dizer que
todo mundo deve ver mais ou menos como aqueles filmes.
E, no lugar de se deixar inspirar pelo fato de que uma pessoa
pôde ver individualmente – com todas as particularidades de
sua visão individual, e então formalizar aquele modo de ver
relacionado à toda a história dos modos de ver –, eles estão
apenas amontoando qualquer novo modo de ver sobre essa
história como um modo que todo mundo deveria ver. E claro
que isso só transforma a arte em um tipo de gracejo fascista
(BRAKHAGE, 1973, p. 77). [grifos meus]

Vê-se que para Brakhage era importante defender a arte


como visão pessoal, individual e não como um sistema cujas
formas evoluem e transformam-se autonomamente, como se
tendências, estilos ou movimentos fossem em si forças criativas.
Na verdade, desde muito cedo o depoimento pessoal dos
cineastas teve um papel importante para a imagem que o cinema
experimental construiu de si próprio. Os primeiros autores a
fornecerem um repertório crítico para o cinema experimental
foram cineastas: Maya Deren, Stan Brakhage nos anos 1950
e 60. Posteriormente, no final da década de 1960 e nos anos
1970, Hollis Frampton e Paul Sharits juntaram-se aos outros.
O fenômeno não é de se espantar: os termos do debate crítico
hegemônico parecia-lhes insuficientes para dar conta dos novos
trabalhos, de modo que coube aos artistas inventarem novos
termos e instituírem um novo campo. Para esses cineastas,
tratava-se de inventar do zero um lugar de existência e um novo
repertório crítico – “O cinema, como a América, ainda não foi
descoberto”, dizia Brakhage em Metaphors on Vision. Mekas, por
sua vez, tinha como política editorial privilegiar a palavra dos
cineastas em detrimento de sua voz crítica. Assim, a Film Culture,
além das críticas e resenhas tradicionais, publicava declarações,
correspondências, manifestos, projetos em andamento, notas de
trabalho de artistas, etc. E seus textos, tanto na Movie Journal
quanto na Film Culture, frequentemente eram elaborados como
uma colagem de citações de cineastas.
Essa política teve por efeito a constituição de uma relação
extremamente personalista e heroicizante com as obras e os
cineastas; fazendo com que a biografia e a personalidade dos
artistas desempenhasse um importante papel na sua recepção.
Ora, em um meio como o do experimental, no qual a biografia
pessoal do artista desempenhou um papel tão importante para

100 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


a imagem que o movimento fazia de si próprio, não é de se
espantar que um processo de historicização também assumiria
a forma da narrativa de vida. Quero dizer, seria possível pensar
a autobiografia como uma das formas naturais da elaboração
e reelaboração da história do meio no momento em que essa
questão se torna central para ele.

**

Para terminar, gostaria de trazer um trecho do obituário


escrito por Jonas Mekas para seu amigo Jerome Hill:

Jerome Hill se foi, seu corpo. O cinema experimental é um


capítulo na história do cinema. (...) É possível que estejamos
no fim de um grande período de criatividade no cinema
Americano; é possível que a morte de Jerome Hill marque o
começo de uma nova era: a de preservar para a posteridade
tudo o que foi criado (MEKAS, 1972, p. 75).

É muito provável que as palavras de Mekas aí tenham sido


motivadas pela lembrança de Hill como um mecenas e seu papel
para o Anthology, informações que ele já havia dado no texto.
Mas o obituário também começa com um longo elogio a Film
Portrait, de modo que a sugestão de que a vanguarda entra
em uma nova fase de preservação para a posteridade pode ser
interpretada também como uma referência à autobiografia.
Se aceitamos essa ambiguidade, entendemos que os gestos
de preservar e narrar autobiograficamente seriam marcos
temporais apontando para duas direções: para o futuro, na
medida em que inauguram uma nova fase da produção e de suas
instituições, e para o passado, posto que essa fase é pontuada
pela lembrança constante do seu próprio passado.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 101


REFERÊNCIAS

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____________. Carta a Jay Leyda, sem data. [JSB Collection]
____________. Carta a Jonas Mekas, 9 abr 1972. [JSB Collection]
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Journal” [continuação da Brakhage interview]. Village Voice, 3 jul de 1973.
p 77.
____________. “In defense of the amateur”. In: McPHERSON, Bruce (org).
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____________. Metáforas da Visão. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do
cinema. São Paulo: Graal, 2008. p. 344.
____________. On 23rd Psalm Branch. In: HALLER, Robert (Org). Brakhage
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ODIN, Roger. (Ed.). Le film de famille: usage privé, usage public. Paris: Méridiens
Klincksieck, 1995
MEKAS, Jonas. Movie Journal. Village Voice, Nova York, 5 abr. 1973, p. 73.
_____________. “Movie Journal”, Village Voice, Nova York, 7 dez 1972, p.75
MEKAS, Jonas et al. “Declaração do Novo Cinema Americano”. In: MOURÃO,
Patrícia (org). Jonas Mekas. São Paulo, 2013, p. 55.
SHARITS, Paul. “Postscript as Preface”. Film Culture, n. 65-66, Winter, 1978. p.
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ZIMMERMANN, Patricia. Mining the home movie: excavations in histories and
memories. Berkeley: University of California, 2008.
______________. Reel families: a social history of amateur film. Bloomington:
Indiana University, 1995.

102 A invenção de uma tradição / Patrícia Mourão de Andrade


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 4, P. 82-103, JUL/DEZ 2017 103
Filmo, logo vivo –
modulações do filme-diário em
Jonas Mekas e David Perlov

Carla Italiano
Doutoranda em Comunicação Social pelo PPGCOM da Universidade Federal
de Minas Gerais, com mestrado pela mesma instituição. Curadora de mostras e
festivais, integrante da associação Filmes de Quintal.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017


Resumo: Este artigo propõe um diálogo entre os filmes Diário 1973–1983 (1983), de
David Perlov, e Walden – Diários, notas e esboços (1969), de Jonas Mekas, tomando
como ponto de partida o singular imbricamento entre viver e filmar que conforma as
propostas. Investigamos como esses filmes, em suas modulações do filme-diário,
nos permitem ver as imagens como formas produtoras de sujeitos distintos, que
elaboram e desfiguram facetas do eu a partir de estilísticas particulares. A análise
aponta ainda como um pathos próprio ao exílio, ligado à trajetória de deslocamento
desses realizadores, atravessa esteticamente a criação diarística resultando em
diferentes modos de engajamento político.
Palavras-chave: filme-diário; exílio; David Perlov; Jonas Mekas

Abstract: The present article proposes a dialogue between the films Diary 1973–1983
(1983), by David Perlov, and Walden – Diaries, notes and sketches (1969), by Jonas
Mekas, using as a starting point the singular overlap between life and film that
drives both proposals. We investigate how these films, in their modulations of the
diary film, allow us to see images as forms that produce distinct subjects, which
elaborate and disfigure aspects of the self on their particular stylistics. The analysis
also indicates how a pathos proper to exile, linked to the filmmakers’ displacement
trajectory, crosses the diary creation aesthetically, resulting in different modes of
political engagement.
Keywords: diary film; exile; David Perlov; Jonas Mekas

106 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


Ver todo o Mundo num grão * Este artigo é resultado
e um céu em ramo que enflora da pesquisa de mestrado
É ter o infinito na palma da mão “Senti que me partia em mil
pedaços: aproximações entre
E a eternidade numa hora. as escrituras fílmicas de
David Perlov e Jonas Mekas”,
desenvolvida sob orientação
William Blake, Auguries of innocence do Prof. Dr. André Brasil e
defendida junto ao PPGCOM-
UFMG em junho de 2015.

“Vivo, logo faço filmes. Faço filmes, logo vivo”,1 anuncia a 1. “I live, therefore I make
films. I make films, therefore I
célebre declaração de Jonas Mekas no primeiro rolo de Walden
live” (trad. nossa).
(Diários, notas e esboços) (1969). Quando o “penso” da máxima
cartesiana se torna “fazer filmes no longa-metragem do realizador
lituano, o que se explicita é o caráter reversível entre existir e
filmar, sua mútua constituição. O que tampouco significa que
as instâncias se tornaram equivalentes. Longe de um ideal de
cinema que almeja apreender uma realidade a ele externa, os
filmes que caminham em conjunto ao desenrolar de uma vida
assumem, antes de tudo, um caráter processual de experiência
estética expandida por regimes de enunciação – autobiográfico,
documental, performático –, apresentando-se como tateantes,
lacunares, poéticos.
Uma inquietação elementar, mas de difícil resposta, move o
presente artigo: quando a “frágil fronteira entre a vida e a arte”2 2. PERLOV, 2011, p. 199.
se torna quase indissociável, qual cinema daí resulta? Quais
mecanismos e formas o configuram? Quais efeitos ele têm na
vida dos que estão atrás e à frente da câmera? Quais relações se
estabelecem entre o universo visto em tela (privado? íntimo?) e o
mundo que o filme – a um só tempo, prática e produto – constitui
e é por ele constituído? Partindo dessas indagações, propomos
uma aproximação entre dois notórios cineastas-diaristas: David
Perlov, e as seis partes de seu Diário 1973-1983 (1983); e Jonas
Mekas, com seu longa-metragem de estreia Walden (Diários,
notas e esboços) (1969).3 A intenção é investigar como essas obras, 3. Do original: Diaries, Notes
and Sketches (also known
em suas modulações do diário no cinema e com suas estilísticas
as Walden). A expressão
particulares, nos permitem ver as imagens como formas produtoras “diários, notas e esboços”,
de sujeitos distintos, elaborando e desfigurando facetas do eu. originalmente concebida para
designar toda a sua obra
Frente ao desafio de abordar tais cineastas em conjunto, é após Walden, retornaria em
filmes seguintes: Lost Lost
importante destacar como suas trajetórias (fílmicas, biográficas) Lost (1976) e In Between
são opostas. Da ascensão do nazismo à queda do World Trade (1978).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 107


Center, da Lituânia de origem a Nova York que transformou em
lar, a história pessoal de Jonas Mekas (1922-1919), registrada em
película, é indissociável do conturbado século XX. Para o cineasta,
cada filme abria um novo capítulo em sua obra serial, arquitetada
em quase sessenta anos no meio cinematográfico, entre as esferas
da crítica, preservação e difusão. Captado entre 1964 e 1968
e montado em 1968/1969, Walden (Diários, notas e esboços) é
um marco de fundação para o cinema diário do realizador. Seu
estilo particular, marcado por fluxos de imagens e sons e pela
influência de tradições visionárias do cinema independente,
registra a passagem de uma vida através de gestos rotineiros,
momentos fugidios, fragmentos de beleza que demonstram como
o extraordinário integra o cotidiano em suas miudezas – algo que
seus filmes vêm afirmando há décadas.
Já a filmografia de David Perlov (1930-2003) apresenta
uma gravidade crítica engajada nos eventos do cotidiano, seu e
de seu país (ou, dos países que toma como seus), que o compele
ao ato de filmar. Nascido no Rio de Janeiro e falecido em Tel
Aviv, residente em Paris e São Paulo na juventude, e em Belo
Horizonte na infância, ele foi um dos pioneiros dos cinemas
moderno e documental em Israel, ainda que suas obras seguissem
na contramão do cinema financiado à época. Sob um “estado de
busca permanente” (GUTIÉRREZ, 2011, p. 105), seu apurado rigor
formal, de notável influência moderna, revela uma sensibilidade
poética imiscuída a um evidente posicionamento político.
Lançado em 1983, o monumental Diário 1973-1983, dividido em
seis capítulos autônomos, ainda que interligados, abrange dez
anos de trajetória pessoal e comunitária. Nele, eventos próprios
ao âmbito privado, como cenas no apartamento da família (com
sua esposa, Mira, e as filhas gêmeas do casal), reencontros com
4. O diretor afirma ter amigos e viagens que reinventam as cidades de outrora se aliam
iniciado Diário 1973-1983
“a partir dos sentimentos
ao desejo de documentar os ambivalentes signos de guerra que
confusos e melancólicos que cruzam o seu caminho, de agir no seu tempo histórico e fazê-lo
acompanham uma guerra”
por meio das imagens.4
(PERLOV, 2011, p. 186), sendo
o conflito em questão a
Guerra do Yom Kippur (1973).
Como os títulos dos filmes indicam, ambos mobilizam o
O investimento diarístico termo diário enquanto uma escolha discursiva carregada de
de Perlov se desdobraria
pressupostos. Desprovido de modelo ou temática prévia, o diário
em outros dois longas-
metragens: Diário revisitado escrito pode abarcar de sonhos a lembranças longínquas, desejos
1990–1999 (2001) e Minhas recônditos, crônicas de um dia comum; a datação, cronologia
imagens 1952–2002 (2003),
seu último filme. e serialização da escrita são suas características fundantes.

108 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


“Escrever um diário íntimo é colocar-se momentaneamente sob a
proteção dos dias comuns”, lembra-nos Blanchot (2005, p. 270).
Enquanto hábito, ele permite examinar as mudanças no que se
observa e no próprio modo de olhar, no eu que escreve a obra e
que nela se inscreve, em uma extensão de tempo que capta certo
contorno da vida. Na passagem para o cinema esses pressupostos
se complexificam. Nesse sentido, a categoria diary film (filme-
diário), como pensada por David E. James a partir de Walden, é
fundamental. No filme-diário, a prática da notação filmada dá
lugar a uma práxis, a um complexo método de criação no qual
a montagem assume o lugar da tomada como momento crucial
de conformação, criando um produto artístico autônomo no qual
“fragmentos de filme substituem a textura visual da vida cotidiana
como objeto privilegiado do olhar” (JAMES, 2013, p. 185).
Como escreve Kafka sobre as vantagens de se manter um
diário, é nele que o diarista encontrar provas de ter vivido (1988,
p. 98). O mesmo parece acontecer com Jonas Mekas e David
Perlov. Contemporâneos, embora não tenham se conhecido,5 eles 5. Em entrevista à Jeu de
Paume, em 2011, Yael Perlov,
compartilharam o uso da bitola 16mm, além de uma condição
ao ser indagada sobre a
central a permear suas trajetórias: a estrangeiridade. Para o poeta possível influência de Mekas
lituano, ser estrangeiro se vincula à mudança para os Estados sobre os diários de seu pai,
aponta que ele não conhecia
Unidos ao final dos anos 1940 e à impossibilidade de retorno não os filmes do realizador
só ao vilarejo de origem, Semeniskiai, mas a todo um estado de lituano, embora tenha lido
seus escritos sobre cinema.
mundo anterior à devastação da Segunda Guerra. Essa ideia de Disponível em http://
origem, de pertencimento, será buscada e reconstruída de diversas lemagazine.jeudepaume:org
/2011/12/%C2%AB%C2%A0-
maneiras ao longo da sua filmografia. Já para o documentarista am-i-making-a-home-movie-
judeu nascido no Brasil, ser estrangeiro se refere a seu histórico %C2%A0%C2%BB/. Acesso
em 01/07/2020.
pessoal de deslocamentos (mesmo no país natal), e à decisão
reafirmada de transformar Israel em seu lar e no de sua família.
Mais do que um dado extra-fílmico, tais condições transbordam
para o campo filmado, tornando-se força motriz à criação e parte
constitutiva de suas obras.
Guardadas as (fundamentais) diferenças, os dois cineastas
carregam um pathos próprio ao exílio que permeia as escritas
fílmicas, possibilitando compreender cada trajetória pessoal
como indissociável das mudanças sócio-históricas. Conforme
se altera o motivo do deslocamento, seja forçado (no caso de
Mekas) ou voluntário (para Perlov), mudam suas consequências
e a possibilidade de enraizamento no novo país. A condição
de exilado pode ser entendida sob uma perspectiva dupla; por

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 109


um lado, o exílio como uma fratura intransponível “entre o
6. SAID, 2015, p. 46. eu e seu verdadeiro lar”,6 desse modo, evocando “o perigoso
território do não pertencer” (SAID, 2003, p. 49). Não pertencer
a uma sociedade é não se encaixar, viver à margem dos que
compartilham certo status quo, com seus modos aceitáveis de
pensar e proceder. Por outro, a experiência pode fazer emergir
certa resistência no olhar; a capacidade de não ver a realidade
como estática, evocando formas de ser e agir vivenciadas em
outros contextos. Nessa perspectiva distanciada, o lar estaria
não somente no lugar de origem, mas também naquele que se
escolheu viver, em uma permanente duplicidade. Nas obras aqui
analisadas, o pathos do exílio se vincula à escrita diarística a
fim de conferir sentido à experiência vivida. “Cada dia anotado
é um dia preservado”, nos diz Blanchot, sendo essa “uma
dupla e vantajosa operação. Assim, vivemos duas vezes. Assim,
protegemo-nos do esquecimento e do desespero de não ter nada
a dizer” (2005, p. 273).
Em seus filmes-diários, tanto Mekas quanto Perlov
questionam a pretensa unidade do eu autobiográfico, seu
poder sobre os relatos e as experiências. Aos moldes de um
dispositivo, suas obras mobilizam “um método de controle
protocolar que o cineasta domina e segue à risca, e ao mesmo
tempo pode instituir um eu que escapa ao controle: singular,
indeterminado e aberto à alteridade” (VEIGA; ITALIANO,
2015, p. 710). Os realizadores respondem ao presente vivido
a partir do aparelho cinematográfico, empregando-o não só
como modo de documentar situações, mas de processá-las, ao
7. Optamos pelo termo filmar. Nesses casos, aquele que registra torna-se o “filmador”7
“filmador” de modo
em vida, tendo que arcar com o peso – familiar, social – de
a sublinhar o peso da
mediação do aparato, assumir tal papel. Dentre as escritas de si cinematográficas, o
além de remeter ao particular dessas obras reside na capacidade de serem também
longa-metragem de
Alain Cavalier, Le Filmeur produtoras do cotidiano, o que demanda um processo de
(2005), outro notório feitura de anos para que a dimensão, e a forma, de cada filme
realizador das escritas de si
contemporâneas. seja realmente vislumbrada.
Em nossa lida com as obras, propomos analisar três instâncias
de construção do eu: a posta em cena dos corpos dos realizadores
através de autorretratos; a presença de uma voz over em primeira
pessoa; e a inscrição de um ponto de vista pela composição de
enquadramentos que conformam os filmes, conferindo-lhes
ritmo, estrutura, vida.

110 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


Fig. 1: Diário 1973-1983

Um jogo de sorte

É com a proposta de se aproximar do dia a dia que Perlov


inicia Diário 1973-1983. “Sem histórias inventadas, sem enredos.
Nada artificial, nem mesmo aos truques profissionais que
tanto me agradavam”, enuncia.8 Ecos de seu longa-metragem 8. “No more stories, no more
arguments. Nothing artificial.
fantástico,9 das mágicas de seu pai, da ilusão de ótica que None of the professional
acompanha a arte cinematográfica. O plano que começa Diário tricks that pleased me so
1 mostra um quadrado luminoso – a janela de um apartamento much either” (trad. nossa).

– recortado em uma sala escura, tal qual o espaço privilegiado 9. The Pill (1967).
de fruição fílmica. Mas essa tela específica não exibirá os feitos
grandiosos do cinema hegemônico, e sim aquilo que lhe é mais
próximo: uma parcela da cidade onde se habita (uma criança
no portão, a sinagoga à direita, os trabalhadores na calçada); e
o espaço de uma casa partilhado em seus pormenores. No filme
de Perlov, tanto o ambiente urbano quanto o doméstico são
segmentados em “sobrequadros”,10 vistos através das molduras 10. AUMONT, Jacques (et al.).
O olho interminável – Cinema
existentes no mundo; “filmo os ângulos vivos de minha casa”, e pintura. São Paulo: Cosac
anuncia no primeiro capítulo. Naify, 2004, p. 127

Diário 1973-1983 corresponde a certo ideal de sinceridade


esperado do diário escrito; “Meu Diário é minha carteira de
identidade”, declara o realizador (PERLOV, 2011, p. 199).
Isso é reforçado pela assinatura de Perlov a abrir cada um dos

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 111


capítulos, ecoando a homonímia (autor-narrador-personagem)
que sustenta o “pacto autobiográfico” (LEJEUNE, 2008), ou
pelas cartelas com marcações de lugares, nomes e datas que
evocam o calendário em sua dupla função, de protetor e vigilante
(BLANCHOT, 2008). Certo didatismo de Perlov na narração do
início, a reverberar a faceta de professor que conheceremos
no decorrer do filme, aos poucos se transforma em onisciência
narrativa: sua voz dita a ordem das imagens, perscruta seus
detalhes, indaga os sentimentos detrás de cada plano. Ancorada
no presente, mas oscilando entre temporalidades, permite-se
convocar pedaços de histórias e biografias que só ele conhece,
assumindo, com isso, uma dimensão premonitória.
Nas seis partes de Diário 1973-1983, é frequentemente pela
11. Uma das diferenças entre interação com suas filhas, Yael e Naomi, que o diretor revela a
o “filme de família” e o diário construção de uma subjetividade fílmica que o demarca e, em
em filme remete às suas
lógicas comunicacionais certa medida, o ultrapassa. Em determinado momento, surpreso
distintas. Embora ambos com o amadurecimento delas, ele chega a afirmar que elas
se dediquem ao universo
doméstico, como aponta estariam dominando o diário que tentava compor; talvez seja
Roger Odin, não é com a o sintoma da abertura que lhes foi concedida e que transforma
mesma ideia de privado
que trabalham: no filme de o filme em andamento numa empreitada familiar: Mira assina
família, o privado é mais a produção, Yael se tornaria uma das montadoras. Mas não se
institucionalizado, sob
um olhar que se pretende
trata propriamente da categoria “filme de família”11 uma vez que
neutro – registram-se os a instância enunciativa permanece atrelada à figura do diretor.
eventos importantes para
toda a família, como festas, Antes de ser opção cinematográfica, imbricar a própria
nascimentos e viagens, em
que a tônica não é poder
vida ao filme é, para Perlov, uma escolha ética tomada
filmar, mas, antes, dever conscientemente. O impasse entre viver e filmar, elementar aos
(1995, p. 1949). Já o diário
cineastas do eu, é explicitado pelo realizador frente à mesa do
em filme não escapa à
expressão do sujeito que jantar, ao declarar que “a sopa é tentadora, mas sei que agora
o escreve; entramos em devo escolher entre tomar a sopa e filmá-la”.12 Desse modo, em
sua intimidade, seu desejo
está latente em todas as dez anos de filme, sua câmera vai se tornando mais um dentre
imagens, que também se os objetos da casa, uma nova integrante do convívio familiar.
abrem para momentos não
celebratórios, de melancolia, A relativa indiferença com que suas filhas passam a reagir ao
depressão, tédio. In: ODIN, seu chamado detrás do aparelho revela o quanto o registro
Roger. Du filme de famille
au journal filmé. Le je filmé. filmado se tornou parte do cotidiano, assim como o cineasta se
Paris: Editions du Centre transformara no “pai com a câmera” – ou o marido, o professor,
Pompidou, 1995.
o amigo... A indispensabilidade de empunhá-la culmina no
peso dessa mediação, que pode tanto viabilizar uma observação
12. “The warm soup is
tempting, but I know that I mais detida da realidade (passível de se operar com zoom,
must choose from now on, congelar, reenquadrar), quanto distanciar quem se deseja mais
to eat the soup or to film the
soup” (trad. nossa). próximo – como no reencontro com Fawzi, seu primeiro amigo

112 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


de infância em São Paulo, em Diário 6, no qual o realizador
permanece todo o tempo atrás do aparelho. Ou na cena em
que Naomi retorna a Tel Aviv pela primeira vez após mudar-
se para Paris; ela entra pela porta e explora as mudanças na
casa que lhe é tão familiar, enquanto Perlov a filma do outro
lado da sala. Ela fala em francês, sem a exaltação que lhe é
característica: “Ça va, papa?”. Ele segue filmando. Só depois
ele se aproxima, sendo finalmente recebido por um abraço por
detrás da câmera.
Para Perlov, o imperativo de registrar os eventos de sua vida
o obriga a seguir filmando mesmo nos momentos de debilidade,
quando o único peso que consegue carregar é o da câmera. Isso
ocorre, por exemplo, nos episódios de depressão registrados
em Diário 4, nos quais o seu estado de espírito toma a forma
de imagens tremidas, borradas, e posteriormente interpeladas
pela voz over no processo de montagem. O compromisso de
filmar pode ser custoso, mas não implica, necessariamente,
uma maior transparência – algo que retoma o pensamento de
Paul De Man em Autobiografia como des-figuração (2012). A
respeito da autobiografia na literatura, o escritor defende que
o tropo que melhor caracteriza o “momento autobiográfico”
seria o da prosopopéia, entendido como a personificação de
um ser ausente (morto, não-humano), e o ato de atribuir-lhe
voz, sentimentos. Na sua etimologia, prosopon seria, a um só
tempo, “o rosto e a máscara, o homem e a personagem, uma
superfície e o que esta esconde”.13 Na esteira de DeMan, Nora 13. CATELLI, 2007, p. 224.
Catelli (2007) sublinha a presença de dois sujeitos coexistentes
à narrativa autobiográfica, em que “um ocupa o lugar do relato,
o outro, o lugar da máscara que desfigura”.14 Assim, a escrita 14. Idem, p. 232.
de si se construiria no intervalo entre o sujeito que escreve e a
máscara que o deforma ao mesmo tempo em que comprova a
sua existência. O eu que se formula não seria, então, um ponto
de partida, mas o resultado das linhas de força que atuam no
relato da própria vida.
Em seu filme-diário, Perlov evidencia esse caráter de
desfiguração, e de máscara, atrelado à escrita de si sobretudo
em seus autorretratos. Em momentos pontuais da obra, ele
registra a si próprio em planos breves nos quais seu rosto nunca
é totalmente visível, utilizando espelhos ou outras superfícies
refletoras. O gesto de se filmar é atravessado pelas mudanças

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 113


em si e no entorno, semelhante ao processo do autorretrato
na pintura, no qual “ao pintar uma mão, esta também deve
15. “The image resists visual se movimentar”.15 Em Diário 1973-1983, tais autorretratos
analysis; as he moves to
que pouco, ou nada, revelam do corpo do realizador frustram
paint the hand, the hand
must also move” (trad. uma expectativa de apreensão da sua presença “real”. Além de
nossa). HOWARTH, William acessarmos apenas recortes do seu corpo, as únicas imagens
L. Some principles of
Autobiography. In: OLNEY, J. que correspondem ao sujeito que escreve a obra pertencem ao
(org.). Autobiography: Essays seu reflexo, fragmento, virtualidade.
theoretical and critical.
Princeton University Press, O compromisso em empunhar o aparelho pode, contudo,
1980.
acarretar maior liberdade. É o caso de uma longa passagem
em Diário 5; no último ano registrado em filme, Perlov sofre
um acidente em Londres e é hospitalizado às pressas. Após
a cirurgia, hospeda-se com Yael, em Paris, por um longo
período de convalescência. Sua debilidade impõe reclusão à
estadia, restringindo o seu campo de visão ao que consegue
ver da janela do apartamento. A partir dessa restrição, a voz
over nos propõe um jogo ditado pelo acaso. Enquadrando a
parte superior da área interna do edifício, ele nos indaga se
conseguirá capturar algo em seu pequeno quadro; enquanto
isso, no pátio do edifício, a filha do concierge português
brinca de boneca, à direita do plano. “Minha pequena vizinha,
ensaiando para a maternidade, sabe perfeitamente quando a
16. “My little neighbor, estou observando”,16 enuncia. O aparelho de filmar o permitiu
rehearsing for motherhood,
knows very well when I’m
se aproximar dessa comunidade diversa (turca, africana, grega,
watching” (trad. nossa). caribenha), e a resposta veio por meio de sorrisos tímidos,
interações não-verbais sustentadas pela câmera. No filme, esse
tipo de abertura vem sempre atrelada a certo distanciamento,
buscando respeitar esses sujeitos em suas intimidades, agora
publicamente invadidas. Assim, nas seis partes da obra,
a escrita de si é inseparável do encontro com esses ilustres
desconhecidos, sejam figuras públicas – como governantes,
documentados através do aparelho televisor –, ou anônimas,
nos rostos que povoam as cidades. Dessa maneira, como aponta
Ilana Feldman sobre o cinema de Perlov, sua “autobiografia se
torna biografia do outro, biografia de todos nós” (2011, p. 33).
De janela de Yael, em Paris, o realizador experimenta
enquadramentos; usa como moldura o cruzamento entre
o parapeito e a janela, a quina da parede com a lateral do
portão. E quando esses quadros logram capturar os pés de um
passante, são considerados bem sucedidos. Sua voz declara o

114 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


mote do jogo, que é também o de seu cinema emaranhado na
vida: “observar se tornou a essência de meu ser. Não busco um
enredo, uma história. É a imagem de um homem correndo que
me fascina, não porque ele corre, ou para onde”.17 Retomando 17. “Watching has often
become the essence of my
a declaração contrária ao artifício do início do filme (mesmo
being. Not in search of a plot,
reconhecendo, ao longo da obra, que o drama parece emanar a story. It is the image of a
da própria vida), a atenção é para a imagem ela mesma – algo man running that fascinates
me, not why he runs or where
que está no cerne de toda a sua empreitada cinematográfica. to” (trad. nossa).
Assim, o filme se permite abrir-se para o imponderável,
para a sorte e o azar de seu jogo de quadros. As diversas
restrições que afligem sua trajetória – culturais, profissionais
– são transformadas em opção estética, acompanhando o rigor
formal de sua estilística. Investindo pacientemente em um
mesmo ponto de vista, os movimentos do mundo cruzarão seu
“pequeno quadro”; e somente o olhar de um estrangeiro em
todo lugar parece se dedicar com tanta sensibilidade a essas
sutis alterações.

Em cada passo do caminho

Foi com o lançamento de Walden (Diários, notas e esboços),


em 1969, que Jonas Mekas consolidou seu investimento
no cinema diário. Em sua heterogeneidade, o longa abarca
desde excertos de curtas-metragens anteriores18 ao registro de 18. Como Report from
Millbrook (1965/1966), Hare
eventos do cotidiano: encontros com amigos (muitos também
Krishna (1966), Notes On The
cineastas e críticos, fazendo do filme um raro documento da Circus (1966) e Cassis (1966).
cena artística da época), passando por celebrações e rituais
em comunidade – casamentos, jantares, reuniões da Film
Makers Cooperative –, filmagens de livros e trechos de cartas,
além de passagens encenadas especificamente para o filme. E
tão importante quanto o registro de amigos e conhecidos é a
presença em imagem de Nova York ao final dos anos 1960,
com suas ruas, seus habitantes, as marcas das estações na
cidade que se transformava, gradualmente, em lar. Sua banda
sonora é preenchida por sons de materialidades diversas, como
barulhos do metrô ou canções de épocas distantes, tal qual
retalhos de momentos guardados pela memória. A voz over de
Mekas é econômica; sem buscar se sobrepor às imagens ou
explicar seus contextos, ela anuncia seu mote celebratório de
cinema emaranhado em vida.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 115


Fig.2-4: Walden (Diários, notas e esboços)

O caráter heterogêneo do material diz respeito ao método


sui generis desenvolvido pelo cineasta, articulando a necessidade
de responder ao imediatismo da vida com uma filmagem
subjetiva. Com o passar dos anos, Mekas percebeu que o que
conferia sentido às suas imagens era a impressão do seu olhar;
“eu destaquei aquele detalhe com todo o meu ser, com o meu
passado total” (MEKAS, 2013a, p. 68). Ele também justifica seu
método, de uma forma um tanto irônica, como decorrente da sua
pouca disponibilidade, entre compromissos profissionais:

tive apenas pedaços de tempo que me permitiram filmar


apenas pedaços de película. Todo o meu trabalho pessoal
tomou a forma de notas (...). Eu estava me preparando, ou
tentando manter o contato com a minha câmera, de modo
que, quando chegasse o dia (...) faria então um filme “de
verdade” (MEKAS, 2013a, p. 131).

116 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


Essa prática gerou uma grande quantidade de fragmentos
originalmente reservados ao âmbito privado, em que importava
mais a escritura em si do que a busca por um “todo” uníssono, aos
moldes de um diário escrito.
Mas, diferente de seus filmes posteriores, em Walden
não há uma menção direta aos primeiros anos de exílio nos
Estados Unidos. Esse aspecto é apenas insinuado em letreiros
como “Laukas, um campo, tão vasto quanto a infância”, sendo
Laukas o termo lituano para campo, ou na cartela “Na fazenda
Tabor, lituanos dançam até o amanhecer”.19 Está presente em 19. “Laukas, a field, so vast”;
e “At Tabor farm, lithuanians
passagens da voz over, ao indagar a si (e a nós): “Estou mesmo
danced till sunrise” (trad.
perdendo lentamente tudo que trouxe comigo de fora?”.20 Da nossa).
mesma maneira que a referência ao país natal é enviesada, certa
20. “Am I really losing
condição melancólica surge em breves indicações; na cartela
everything I brought with
“Dias mórbidos de NY e melancolia”,21 em determinadas escolhas me from the outside?” (trad.
musicais, no teor soturno do terço final. Afirma o diretor: nossa).

21. “Morbid days of NY and


gloom” (trad. nossa).
(...) Quando você é arrancado dessa maneira, sempre quer
voltar para casa, o sentimento fica, nunca desaparece. Você
pensa na sua antiga casa, a romantiza, isso cresce e cresce.
(...) Você tem de deixar a sua casa pela segunda vez. Então o
sentimento começa a mudar. Por isso em Walden eu filmava
Nova York, mas era sempre como se filmasse minha antiga
casa (MEKAS, 2013a, p. 140).

Em Mekas, a melancolia constitui o “outro lado da moeda” da


felicidade, e o filme possui um passado distante nunca esquecido,
retomado nas mudanças de tom articuladas pela montagem. E
é principalmente por se construir subterraneamente que o eu
ligado ao exílio é de grande importância para a formulação da
subjetividade engendrada em filme.
No cinema do lituano, a perspectiva em primeira pessoa se
revela sobretudo na sua dança com a câmera, em uma postura que
posiciona o aparelho mais perto do coração do que da cabeça. Foi o
que P. Adams Sitney denominou câmera “somática”, originalmente
para se referir à estilística da realizadora Marie Menken (SITNEY,
2008, p. 23). É um método que radicaliza o uso da câmera na mão,
de modo a identificar os movimentos vistos em imagem com os
corporais de quem filma, uma contribuição abraçada por muitos
dos cineastas experimentais que a sucederam. Em diferentes

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 117


graus, todos os filmes-diário de Mekas colocam em operação
esse modo de se relacionar com o aparelho. Isso está presente
na correspondência de cada passo, cada respiração, com os
movimentos do quadro, numa câmera que se torna uma ampliação
do corpo do cineasta situado na experiência, no imbricamento
entre viver e filmar. Outra dimensão fundamental a seu método
é o emprego de procedimentos anti-naturalistas no momento da
filmagem. Intervenções como a captura de fotogramas únicos,
velocidade acelerada de quadros ou superexposição da película,
recorrentes ao cinema underground da época, questionam o
caráter indicial das imagens, de certo modo conectando-as. Isso é
latente no filme, com suas imagens breves como um clarão; está
nos pedaços de flores, calçadas e páginas de livros que permeiam
a obra, ou nos fragmentos de corpos e situações que se organizam
em fluxos. Assim, a composição de um “ponto de vista” emerge
mais das correntes de sons e imagens do que exatamente de
planos isolados, em uma aposta no glimpse (ou lampejo) como
uma espécie de unidade a nível formal.
Derivado dessas escolhas, em Walden, o que se apreende
do instante filmado é o seu movimento, sua transformação. O
que lembra a concepção de Michel de Montaigne a respeito da
modalidade do ensaio: “o mundo não passa de um movimento
perene. Todas as coisas estão em constante movimento...
Não posso manter meu assunto imóvel... Eu não retrato o ser,
22. In: The complete works retrato a passagem” (MONTAIGNE apud RENOV, 1992, 2017).22
of Montaigne (1948) apud
Acompanhando o fluxo rítmico do corpo, os enquadramento do
RENOV, 1992, p. 217. Assim
como o diário, a modalidade cineasta parecem retomar a homenagem feita aos irmãos Lumière
ensaística é dotada de um nas cartelas iniciais de Walden – ao fato de que, nos primeiros
caráter indeterminado que
a permite ponderar sobre cinematógrafos, ainda não havia uma forma de “ver” o plano no
sua própria forma e sobre o momento da tomada; o quadro era planejado por instinto, feeling,
sujeito que nela se inscreve;
como afirma Jean Starobinski: e, com isso, deixava a imagem transbordar.
“para satisfazer plenamente
à lei do ensaio é preciso Assim, Mekas nos apresenta um eu fragmentado, em
que o ‘ensaiador’ ensaie a constante transformação. Desde o primeiro rolo do filme, fica
si mesmo” (STAROBINSKI,
2011, p. 19). Mas uma claro que o recurso elegido para se remeter ao sujeito que
dimensão que distancia o assina” a obra não é uma cartela com o seu nome, e sim a
diário do ensaio é o vínculo
do primeiro com o dia a dia, presença do seu corpo em cena. Isso é notável nos vários retratos
seu compromisso com o (e autorretratos) do cineasta no longa, a evocar diferentes
calendário – algo que pode
ser subvertido, mas deve
construções de si. A primeira imagem do filme, inserida após
residir, em alguma dimensão, as cartelas iniciais, mostra os olhos de Mekas a mirar levemente
na gênese do projeto.
para cima, para além do quadro, incorporando a figura do autor

118 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


que contempla o filme porvir. Outra imagem recorrente mostra
o realizador tocando acordeom, um dos símbolos pessoais da
Lituânia, a evocar um eu ligado ao exílio. Ou, ainda, o plano que
o mostra incapaz de dormir, sozinho em seu pequeno quarto
no Chelsea Hotel – como um diarista a refletir sobre os eventos
de seu dia. Mas, aqui, ao invés de uma caneta, ele opera a sua
bolex. Esses autorretratos reaparecem no filme intercalados a
imagens de diferentes contextos e formatos, sugerindo outras
associações entre tempos e espaços. E assim como o seu rosto,
outras partes de seu corpo são enquadradas: as mãos a pegar
uma flor, os pés a caminhar; pedaços de si no lugar de um todo
cuja completude é justamente o alvo de questionamento.
Subjaz essas escolhas de filmagem uma concepção
filosófica, eminentemente sensorial, de relação com o mundo.
Ela remete à influência dos escritores Ralph W. Emerson
e Henry D. Thoreau, autor de Walden; or life in the woods
(1854) no cinema experimental estadunidense do pós-guerra,
marcando a poética de Mekas.23 Em sua jornada de pouco mais 23. P. Adams Sitney (2008)
aponta a influência de
de dois anos à beira do lago Walden, Thoreau defende uma
Emerson no cinema
vida resiliente em que cada ato de criação deve sublinhar as experimental norte-
marcas de quem o inscreveu, na busca por uma experiência americano da época a partir
de três eixos centrais: a
estética atravessada pelos signos da natureza (entendendo-a “primazia do visível” refletida
em um sentido amplo). Para Emerson, “ambas a natureza e na importância do olho
e da percepção visual da
a arte, todos os outros homens e o meu próprio corpo devem realidade; a relação do artista
ser categorizados sob esse nome, Natureza” (EMERSON, 1982, com aquilo que o rodeia no
momento da criação; e o
p. 36). Para os escritores, a existência de cada indivíduo seria potencial transformador do
indissociável dessa ideia de natureza, de um “universal” que o movimento veicular (SITNEY,
2008, p. 5). In: Eyes upside
constitui ao mesmo tempo que o ultrapassa. down – Visionary filmmakers
and the heritage of Emerson.
Essa ideia de comunhão com a natureza é uma das Oxford University Press,
principais forças moduladoras de Walden. Está presente na sua 2008.
atenção a jardins, matas e estações do ano, como na sequência
de quase dezoito minutos, no quarto rolo de filme, de visita
à casa da família Brakhage no campo, no auge do inverno. A
chegada de Mekas é apresentada com a cartela “Um dia como
outro qualquer”,24 embora esta seja uma visita importante; a 24. “One day like any other”
(trad. nossa).
seu mentor e amigo, Stan Brakhage, em um espaço campestre
que parece materializar o imaginário do Walden, de Thoreau.
A casa está isolada no meio da floresta, como a cabana do
protagonista do livro, e o branco e a vastidão da neve a desloca
ainda mais de seu contexto histórico.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 119


Em determinado momento, Mekas (possivelmente filmado
por Jane Wodening, companheira de Brakhage), dá saltos na
neve em sinal de comemoração. Em seguida, Jane é filmada em
uma postura cômica, tirando água de um poço com seu pesado
casaco de cor clara. Na banda sonora, a música clássica se torna
mais intensa, enquanto planos abertos se intercalam a imagens
de detalhes de árvores, galhos, pés, neve, céu e cachorro, entre
zooms e fotogramas únicos. Tais fluxos de imagens conectadas
sublinham uma inscrição em primeira pessoa; são, como sugere
Thoreau, esculpidas “no sopro de sua vida” (2010, p. 44). Essa
passagem sinaliza um ápice celebratório no bosque, com a
afirmação do eu fílmico composto tanto pelos corpos em cena
quanto pelas formas de expressão atrás da câmera. O minimalismo
da paisagem atemporal, resumida ao branco da neve e ao cinza
das árvores, acompanhada da filmagem de uma experiência
em família, afastada da convivência urbana, parece sublinhar a
peculiar relação com a natureza que permeia o longa de Mekas,
além da invenção de um espaço mítico que se tornaria Walden.
No filme, a construção de uma subjetividade multifacetada,
permeada pelos seres (humanos e não-humanos) que rodeiam o
sujeito, revela também a abertura da experiência vivida, e do seu
registro filmado, a seus pares – companheiros de cinema underground,
demais exilados lituanos, a natureza que o cerca e constitui. Assim,
no cinema de Mekas, identificar o universal no particular é como ver
“o mundo num grão”; em um ou entre dois fotogramas.

Medidas e desmedidas do eu

Os filmes-diários pioneiros de Jonas Mekas e David Perlov


revelam a existência de duas linhas de força associadas ao pathos
do exílio. De um lado, forças que buscam cercear os sujeitos,
destituí-los de território, origem, poder de fabulação. Na obra
de Mekas, isso é latente desde o deslocamento que deu início
à sua Odisseia particular, com a saída forçada do vilarejo natal,
Semeniskiai, e que também se faz presente no novo país com os
seu cinema hegemônico de moldes industriais a determinar os
padrões a serem seguidos. Tais aspectos são retrabalhados em
sua filmografia de modo a se tornarem vigorosas frentes criativas.
Seu deslocamento forçado impulsiona um “sentir-se em casa

120 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


em qualquer lugar” que possibilita uma subjetividade fílmica
multifacetada, porosa, a partilhar aspectos de sua construção com
as pessoas e as paisagens filmadas; é o caso de Walden.
Já na filmografia de Perlov, as forças coercitivas se vinculam
ao estado de tensão que permeia a sociedade onde vive, amplificada
pelo desenraizamento daqueles que são strangers – estranhos
e estrangeiros – em todo lugar; judeu no Brasil e brasileiro
em Israel, ele foi igualmente apresentado ao antissemitismo
europeu.25 Se, para Mekas, o pathos do exilado o faz remeter à 25. Como na canção de
Odetta retomada por Perlov
Lituânia, inicialmente, sob a tônica da perda, no cinema de Perlov
no primeiro episódio de
a experiência parece influenciar o “devir de um ‘puro’ ponto de Diário, enquanto revê as
vista” (BLUHER, 2011, p. 97). Os deslocamentos de sua trajetória ruas de São Paulo através da
janela de um carro: “Stranger
o possibilitam conferir o estatuto de lar a diversos momentos e here, stranger there, stranger
lugares: a dormir mais e melhor quando está no Brasil; ao ensino everywhere. I could go home,
honey, but I’m a stranger also
de cinema na universidade, seu “abrigo seguro”; à cambiante luz there”.
paulistana e à áspera luminosidade de Tel Aviv. Sentir-se em casa
é também encontrar amigos, recentes e de longa data, muitos dos
quais também estrangeiros. Incluí-los em seu filme-diário é uma
maneira de reconstituir laços, sustentar filmicamente lembranças
que se encaminhavam para o esquecimento.
Por fim, as duas obras sinalizam diferentes engajamentos de
viés político em suas maneiras de estar no mundo filmicamente. Em
Diário 1973-1983, Perlov transforma o “contraponto” em modo de
intervenção na realidade, utilizando aquilo que está ao seu alcance:
sua câmera 16mm, sua família, suas memórias. Essa postura de
“vigília” (GUTIERREZ, 2011) posiciona Perlov no polo oposto de
Mekas e o lema proferido pelo lituano, em Walden: “dizem que
eu deveria sempre estar buscando, mas estou apenas celebrando
o que vejo. Eu não busco nada, sou feliz”.26 Essa declaração 26. “They tell me I should be
always searching. But I’m only
reverbera uma das passagens mais conhecidas dos escritos de
celebrating what I see. I am
Emerson (1892), aproximando-o do cinema do lituano: “terminar o searching for nothing. I am
momento, encontrar o final da jornada em cada passo do caminho, happy” (trad. nossa).

viver o maior número de boas horas, é sabedoria”.27 Já para Perlov,


27. “To finish the moment,
o caminho não é exatamente o da celebração da situação vivida to find the journey’s end in
e filmada, como sugere a fala de Mekas, mas a interpelação das every step of the road, to
live the greatest number of
imagens do mundo, preservando-as em suas multiplicidades. good hours, is wisdom” (trad.
nossa).
Ambos os filmes tensionam o cinema diário a partir de
caminhos ímpares, às voltas com aquilo que é mais habitual: os
gestos, sentimentos e lugares que constituem o passar dos dias,
semelhantes e sempre renovados. Para Mekas, a postura de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 121


“lírico do cotidiano” (SITNEY, 2002, p. 160) matiza o universo
filmado a partir de seu olhar, em uma “utópica revolução das
sensibilidades” (MOURÃO, 2013, p. 22). Já, no filme de Perlov,
são as “epifanias do cotidiano” (FELDMAN, 2011) que se revelam
na investigação de cada imagem particular; e é na refinada
urdidura entre registro documental, voz e memória que o diálogo
entre esferas doméstica e pública se manifesta. Os dois apostam
na brevidade desses momentos de caráter revelatório, destacados
no fluxo de tempos e materiais articulados pela montagem. Eles
seguem na construção de um lar – urbano, familiar, fílmico –, em
obras artesanais que olham para si sem esquecer dos outros, às
voltas com diferentes ideias de exílio, partilha e comunidade.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BLUHER, Dominique. Perlov, Mekas, Morder, Lehman e os outros: à procura de
imprevisíveis agitações do cotidiano. In: FELDMAN, I; MOURÃO, P. (org.).
David Perlov: epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica,
2011.
CATELLI, Nora. En la era de la intimidad; El espacio autobiográfico. Rosario:
Beatriz Viterbo Editora, 2007.
DE MAN, Paul. Autobiografia como Des-figuração. Revista Sopro, Florianópolis,
n. 71, Maio 2012. Disponível em www.culturaebarbarie.org/sopro/n71.html;
acesso em 07/07/2020.
EMERSON, Ralph W. Selected Essays. New York: The Penguin American Library,
1982.
FELDMAN, Ilana. David Perlov: epifanias do cotidiano. In: FELDMAN, I; MOURÃO,
P. (org.). David Perlov: epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura
Judaica, 2011.
GUTIÉRREZ, Gregorio M. (org.). David Perlov e a vigília do cotidiano. In:
FELDMAN, I; MOURÃO, P. (org.). David Perlov. São Paulo: Centro da Cultura
Judaica, 2011.
JAMES, David E. (org.). Diário em filme/ Filme-diário: prática e produto em
Walden, de Jonas Mekas. In: MOURÃO, P. (org.). Jonas Mekas. São Paulo:
CCBB; Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP, 2013.
KAFKA, Franz. Diaries 1910–1923. New York: Deckle Edge, 1988.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. In: ______. O pacto autobiográfico –
de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MOURÃO, Patrícia. A “ordem” do cinema – Jonas Mekas underground. In: Catálogo
forumdoc.bh.2013. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2013a.

122 Filmo, logo vivo / Carla Italiano


PERLOV, David. Entrevistas. In: FELDMAN, I; MOURÃO, P. (org.). David Perlov:
epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica, 2011. p. 169-
203.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
SITNEY, P. Adams. Eyes upside down – Visionary filmmakers and the heritage of
Emerson. Oxford University Press, 2008.
______. Visionary Film: The American Avant-Garde 1943-2000. Oxford: Oxford
University Press, 2002.
STAROBINSKI, Jean. The style of autobiography. In: OLNEY, J. (org.).
Autobiography: Essays theoretical and critical. Princeton: Princeton University
Press, 1980.
THOREAU, Henry D. Walden – a vida nos bosques. Porto Alegre: L&PM, 2010.
VEIGA, Roberta; ITALIANO, Carla. O diário como dispositivo e o efeito de eu no
cinema: Akerman e Perlov. Contemporanea - Comunicação e Cultura, v.13,
n.03, set-dez 2015, p. 708-724.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 104-123, JUL/DEZ 2017 123


O sujeito ético no cinema de
Nanni Moretti

Gabriela Kvacek Betella


Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São
Paulo. Professora Assistente (RDIDP) no Departamento de Letras Modernas da
Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Assis.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017


Resumo: Os limites da autobiografia e da autoficção são fecundos para a
representação literária e audiovisual contemporânea. Os filmes de Nanni Moretti
produzidos até 1993 rompem a objetividade e ao mesmo tempo conservam um
ponto de vista narcísico, com significativo enfrentamento do real, utilizando a
primeira pessoa para confrontar o estado do cinema italiano, as questões cívicas e a
vida privada. A instabilidade dos gêneros é afirmada por meio de uma autoexposição
como mecanismo estético, ético, crítico e autocrítico.
Palavras-chave: Autobiografia; Autoficção; Primeira pessoa; Literatura e cinema;
Nanni Moretti.

Abstract: The limits of autobiography and autofiction are fecund for the contemporary
literary and audiovisual representation. Nanni Moretti’s films produced until 1993
break with the objectivity and at the same time keep a narcissistic point of view, with
a substantial confrontation with the real, using the first person to face the state of the
Italian cinema, the civic questions and the private life. The instability of the genres is
asserted by means of self-exposition as an esthetical, ethical, critical and autocritical
mechanism.
Keywords: Autobiography; Autofiction; First person; Literature and cinema; Nanni
Moretti.

126 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


1. Ficção e confissão: primeira pessoa e autobiografia

Se a literatura e o audiovisual podem compartilhar um eixo


comum definido pela narrativa, as categorias literárias normalmente
são utilizadas para descrever e analisar elementos da obra
cinematográfica, guardando-se as particularidades da forma de
discurso e da linguagem. Em estudos comparados, sobretudo, a
narrativa fílmica pode ser encarada por meio do ponto de vista que
descreve as personagens em suas ações num determinado espaço e
tempo. Portanto, e sem pretender reduzir as questões que envolvem a
base linguístico-literária, é possível encarar a filmografia do cineasta
italiano Nanni Moretti como herdeira de um cinema moderno que
valoriza a marca autoral com vocação para um discurso em primeira
pessoa. Dessa forma, podemos tratar o ponto de vista no cinema de
Moretti como um percurso que vai da desconstrução do sujeito para
a exposição de sua fragilidade, até o fortalecimento do ponto de vista
pela assimilação da primeira pessoa e do discurso indireto livre, com
valorização dissimulada da subjetividade da autoria.
Nosso objetivo aqui é analisar determinadas etapas da trajetória
de uma postura contestatória e, ao mesmo tempo, integrativa. Para
Jean Gili (2001, p. 49), Moretti utilizou o cinema para entender,
testemunhar, reagir e se posicionar diante de uma crise dos
sentimentos e das ideologias num país à deriva. O início e boa parte
dessa trajetória trazem uma questão fundamental no ponto de vista
dos filmes: além de escrever e dirigir, Moretti atua como personagens,
sujeitos que se interrogam e a cada filme parecem começar do
zero para confrontar a inépcia com uma vontade de senso crítico,
conflito transferido para o espectador. Afirmando-se como autor e
emprestando sua imagem aos seus protagonistas, Moretti reforça a
perspectiva determinante que deseja oferecer à sua obra, e passa a
ocupar um lugar no cinema italiano, que se reforça a partir de 1986,
com a fundação de sua produtora, com as atividades de distribuição,
promoção de mostras, organização de premiações e debates. Moretti
parece ter sempre desejado uma posição incômoda, seja na autoria,
na direção ou na interpretação dos personagens recobertos por seu
alter ego ou não. Contudo, o que nos interessa aqui são os momentos
dos filmes que constroem essa perspectiva, unificados por uma
proposta pessoal ou autobiográfica de exposição das obsessões do
diretor por meio da autoironia.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 127


O início da carreira de Moretti coincide com um período
que antecede uma crise econômica e artística do cinema na
península, nos anos de 1980. Se o país viveu um período de
poucas inovações e um esquecimento do cinema por parte
da política, de acordo com Peter Bondanella (2001, p. 240), a
tradição de grandes diretores, atores e filmes italianos sempre foi
reconhecida internacionalmente e, nos anos de 1980 e 1990, uma
nova geração de realizadores ganhou proeminência, com alguns
expoentes que puderam ser vistos como representantes de uma
terceira renascença do cinema italiano, seguindo os passos do
Neorrealismo e da geração de Bernardo Bertolucci e Pier Paolo
Pasolini – são nomes, além de Nanni Moretti, como Maurizio
Nichetti, Gabriele Salvatores, Giuseppe Tornatore, Gianni Amelio,
Roberto Benigni, Francesca Archibugi, Carlo Carlei.
Com Caro diario (1993) o diretor que sempre atuou
e escreveu seus filmes tornou-se ícone dos italianos seus
contemporâneos, e também passou a ser considerado a partir
de uma poética. O filme venceu o prêmio de direção em Cannes
com o retrato autobiográfico que levou alguns críticos a rotular
Moretti como “o Woody Allen italiano”, por sua marca cerebral
de comédia (BONDANELLA, 2001, p. 241). As análises do filme
de 1993 nos levam a pensar, desde a época do lançamento, numa
forma original de autobiografia de um personagem quixotesco
ou moldado no Príncipe Míchkin dostoievskiano. Entretanto,
o que se pode inferir imediatamente é que esse personagem
condutor de Caro diario é dotado de uma curiosidade ingênua,
porém aguda, e um espírito crítico tolerante, embora cáustico
em determinados momentos.
A poética que passou a definir os filmes de Nanni Moretti
normalmente é vista como uma “visão do mundo e do cinema”.
Contudo, as interpretações que incluem a pesada nota pessoal
são frequentes no meio crítico. É comum falar de diário pessoal,
memória ou autobiografia como classificação da obra do diretor
como um único filme, ou seja, um longo diário de memórias,
intervenções oníricas, avanços e recuos no tempo, confissões de
paixões e ódios, perfis de personagens que atravessam a vida.
Moretti já declarou algumas vezes suas intenções autobiográficas
nos filmes, reforçando os comentários que frequentemente
classificam sua obra a partir desse teor. Assim, Michele Apicella
(cujo sobrenome é o da mãe do cineasta) é protagonista de quase

128 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


todos os primeiros longas1 e, sempre interpretado por Moretti, 1. O protagonista, em
princípio apenas Michele,
ganha o status de alter ego do diretor e apresenta algumas
recebe o sobrenome e o
atuações extravagantes, especialmente as influenciadas por mantém em quatro dos cinco
teorias psicanalíticas. No entanto, considerar a construção da longas que seguem Lo sono
un autarchico (1976). Em
sua filmografia como um longo diário de quatro décadas parece Caro diario (1993) e Aprile
às vezes condicionar a obra à ideia de que os filmes podem (1998), Nanni Moretti passa
a ser o nome do personagem
reconstituir a história escondida pelos fatos de uma vida e, com central. Giovanni (primeiro
isso, abre-se a possibilidade de uma interpretação que inclui nome de Moretti) é o
protagonista em La stanza
uma “autobiografia da ficção” morettiana, além de um conjunto del figlio (2001), também
específico de símbolos caracterizadores da obra do cineasta2 interpretado pelo diretor.
Em Il caimano (2006), o
contribuir para um mosaico pouco produtivo. Perde-se ou diretor se distancia de elos
desconsidera-se boa parte do valor político-social que uma análise identitários e interpreta
Silvio Berlusconi. Em
de cada filme individual pode trazer, investigando as nuances Habemus papam (2011), seu
para além da postura crítica autorreferente. personagem é o psicanalista
Prof. Brezzi. Giovanni retorna
Acreditamos na discussão do caráter autobiográfico como nome do protagonista
interpretado por Moretti em
no cinema de Moretti no intuito de estudar as medidas de Mia madre (2015).
incorporação do discurso de si para uma reflexão sobre o sujeito
e também sobre o cinema. A partir da unidade de alguns dos 2. Algumas marcas dos
primeiros longas, graças à criação de um personagem com o protagonistas dos filmes
tornaram-se elementos
mesmo nome, assumindo diversos perfis, ampliamos o foco de recorrentes para a crítica:
análise, verificamos que os resultados transcendem o “filme de si” a intransigência moral e
intelectual, a intolerância
e atingem efeitos habilidosos na exposição de uma aguda crítica com modismos, o
sociopolítica por meio de uma estética profundamente conduzida individualismo, a recusa de
pela ironia, em que a arte cinematográfica também é objeto de fazer parte de uma geração,
o narcisismo, o apelo quase
procedimentos que vão da celebração ao pastiche. Seguindo essa infantil à família. Algumas
orientação, o diretor parece estabelecer uma coerência em sua manias e gostos também
entraram para o recorte que
obra, pois a condução dos enredos incide sobre a reavaliação dos comumente cruza os dados
princípios individuais e coletivos, de um grupo ou da sociedade. de criador e criatura, como os
doces (o creme de avelã e a
Em razão da própria condução da pesquisa, tratamos de torta austríaca de chocolate),
os sapatos, a dança, bem
alguns conceitos elucidativos a respeito dos discursos de aspecto como se juntam ao perfil
autobiográfico e da amplitude assumida em formas e conteúdos. do qual o próprio Michele
Apicella parece querer se
Tendo em mente a mistura entre ficção e autobiografia como livrar, ou ao menos superar.
uma das características marcantes da prosa contemporânea,
constatamos a sua valorização e a incorporação pela linguagem
cinematográfica em trabalhos competentes, por isso seguimos
estimulados pelas relações possíveis entre a crítica do audiovisual
e a crítica literária. Beatriz Sarlo (2005), por exemplo, chamou de
“guinada subjetiva” o fenômeno marcante das manifestações que
reforçam a referência individual na literatura contemporânea.
Para a autora, bastante voltada para a análise do testemunho,

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 129


autobiografias e ficções em primeira pessoa possuem a força do
pacto referencial ilusório, ou seja, tanto em um quanto em outro
caso nada pode garantir “uma relação verificável entre um eu
textual e um eu da experiência vivida” (SARLO, 2005, p. 31).
Por outro lado, autores como Gérard Genette (1991) e Philippe
Lejeune (2008) tentaram sistematizar uma profusão de textos,
porém não deram conta de uma dimensão importante de uma
ficção considerada autobiográfica: a ambiguidade que resulta da
negação do pacto referencial pelo autor, mesmo este expondo
impudentemente fatos biográficos.
De outro ângulo, Bakhtin (2003) poderia ser considerado, já
nos anos de 1920, um dos primeiros a instigar o debate quando
nos lembramos de que é dele a ideia de que nunca há coincidência
total entre autor e personagem, nem mesmo na autobiografia.
Justamente esse ponto é retomado por Leonor Arfuch (2010) para
discutir o caráter fragmentário e caótico da identidade. Assim, o
“espaço autobiográfico” passa a receber atenção, no sentido de
constituir uma instância capaz de integrar o registro referencial
e ficcional, na qual o leitor ou espectador vivencia não somente
os pactos biográficos, mas também as inquietações da identidade,
com a possibilidade de leitura mais abrangente, disposta a
perceber ressignificações do sujeito em processos de subjetivação
plurais e dinâmicos, inclusive no diálogo com a experiência do
3. O termo autoficção foi outro e no autorreconhecimento. Em meio à crítica extensa e
criado pelo escritor francês preocupada com as relações entre subjetividade e representação,
Serge Doubrovsky em 1977,
numa espécie de resposta
hoje uma confluência de estudos colabora para desvendar a “busca
a Philippe Lejeune, cujas de um meio-termo entre desconstrução e hipóstase do sujeito”
reflexões deixavam duas
questões em aberto no que
(KLINGER, 2012, p. 31). Sendo assim, esse estado de coisas pode
diz respeito ao pacto ficcional levar a considerar a autoficção3 como uma possibilidade para as
com coincidência de autor definições contemporâneas de formas de discurso biográfico, na
e narrador-personagem,
e no tocante ao pacto literatura e no audiovisual. No caso dos filmes de Nanni Moretti,
autobiográfico com autor e podemos mencionar autoficção como contribuição para uma certa
narrador de nomes diferentes.
Doubrovsky percebe a mitologia que compõe uma figura de protagonismo que confessa
necessidade de escrever e recria, numa atitude autoral voltada para discussões maiores
uma obra de ficção com um
narrador identificado ao autor, que a própria vida. Contudo, sabemos que é insuficiente falar de
e considera a autoficção como autoficção como estratégia predominante da primeira pessoa de
recriação de experiências
individuais do autor, uma Moretti em seus filmes. E isso se deve, sobretudo, não somente aos
estratégia que assume o fato limites da teoria da literatura, mas ao alcance das análises sobre
de que o texto recria uma
realidade autobiográfica,
a enunciação cinematográfica, que toma proporções diversas das
mediada pela subjetividade. análises literárias.

130 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


Tomando como exemplo uma das cenas de Nanni Moretti, no
início de Aprile, ouvimos a voz over do protagonista explicando que
naquele momento, um ano e meio depois das eleições de 1994 e
da queda do governo de direita, ele está preparando um filme. A
câmera mostra apenas fotos de atores dispostas uma a uma sobre a
mesa. O protagonista descreve o filme ambientado nos anos 1950,
e nessa altura já reconhecemos a voz de Nanni Moretti, enquanto
o plano cresce. Percebemos inúmeras fotos dispostas em pilhas
sobre a mesa e o protagonista, em camisa xadrez, aparece ao lado
esquerdo da tela, graças a um discreto movimento da câmera, que
se desvia em plano médio até revelar o rosto do personagem Nanni.
Há uma aparente contradição instaurada por essas duas instâncias,
a voz (que não é absoluta no comando do ponto de vista) e a
câmera (que revela o “narrador narrado” e também se coloca como
sujeito da enunciação), numa situação que torna difícil aceitar a
figura de um narrador à maneira convencional da literatura.
Em Caro diario e Aprile, Moretti compõe narrativas
imagéticas explorando o risco de tratar o discurso com alguns
parâmetros literários, especialmente o que diz respeito ao
sujeito que narra nem sempre corresponder ao sujeito narrado e,
portanto, o resultado é uma narrativa com vários sujeitos. Como
no exemplo acima, em várias cenas dos dois filmes a enunciação
cinematográfica desterritorializa o espectador ao revelar uma visão
da câmera que coincide com a visão do personagem em cena,
num primeiro momento, mas que passa a se identificar com a do
próprio espectador. A variação de ângulo que segue e a voz que
narra estabelecem uma mudança súbita, porém muito integrada do
ponto de vista, cujo comando de uma primeira pessoa permanece.
Contudo, é possível adotar uma estratégia de aproximação às
considerações básicas dispostas a compartilhar noções literárias de
4. Em 1965, Pasolini
modo eficaz para os filmes realizados a partir dos anos de 1960. apresentou pela primeira
Pier Paolo Pasolini estabeleceu uma leitura original para o cinema vez as ideias do ensaio
Cinema di poesia, na
moderno, graças a formulações sobre as diferenças sentidas pelo Mostra Internazionale del
espectador e sobre as marcas autorais no cinema.4 Assim como na Nuovo Cinema di Pesaro.
No mesmo ano, quando
poesia e na prosa, cujas nuances do uso da língua são claras para Marco Bellocchio estreia na
o leitor, o espectador pode notar aspectos formais determinantes direção com o filme I pugni
in tasca, Pasolini escreve
para um cinema de poesia ou de prosa, assim como pode visualizar ao diretor e retoma algumas
a utilização de um estilo de filmar com a presença de um discurso considerações que havia
elaborado no famoso texto
indireto livre, na medida em que este é possível no cinema, melhor que seria publicado em
nomeado por subjetiva indireta livre, na prática, uma combinação Empirismo eretico, em 1972.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 131


de movimentos de câmera e enquadramentos. Se o protagonista
do filme é o estilo (PASOLINI, 2010, p. 178), marcado pelo uso da
câmera subjetiva indireta livre, capaz de superar tanto o caráter
objetivo quanto o subjetivo, vemos cinema de poesia e, quando
uma história começa a se contar pelo seu conteúdo, predomina no
filme a condição de cinema de prosa.
A câmera subjetiva indireta livre é marca autoral no cinema.
Pasolini considerava a imersão do autor no personagem e na adoção
da psicologia e da língua deste no discurso (PASOLINI, 2010,
p. 179). Portanto, o cinema de poesia é adequado para mostrar
situações mais perturbadoras, isto é, o cineasta pode mostrar
explorar o estilo servindo-se de um ponto de vista. Essa utilização
propicia uma sutileza no discurso, que pode ser tomado quase
inteiramente pela perspectiva do personagem, graças à subjetiva
indireta livre, mas está submetido ao comando do diretor.
Uma análise preliminar nos leva a considerar os protagonistas
de Moretti como variações da subjetiva indireta livre, e a câmera
nos permitiria visualizar, de modo geral, o personagem em
situação, “narrado” e utilizando-se da palavra. Nesse sentido,
em parâmetros literários correspondentes, teríamos um discurso
em terceira pessoa, com sábia utilização do discurso indireto
livre pelo narrador onisciente intruso. No modo pasoliniano, a
câmera subjetiva indireta livre nos fala indiretamente por meio
de um álibi narrativo em primeira pessoa, portanto, a linguagem
adaptada para um monólogo interior é a linguagem em “primeira
pessoa” que vê o mundo segundo uma inspiração irracionalista
(PASOLINI, 2010, p. 187).
5. É preciso dizer que o Osservazioni sul piano sequenza5 é homenageado na última
texto também é recolhido no
cena da primeira parte de Caro diario. No pequeno ensaio, de
volume Empirismo eretico,
de 1972, embora tenha sido grande repercussão, Pasolini trata de elementos determinantes na
composto anos antes. linguagem cinematográfica para as categorias de tempo, duração,
espaço. Pasolini considera o plano-sequência uma forma de
subjetiva indireta livre que, por sua vez, é o limite realista máximo,
pois a realidade é vista a partir de um só ângulo visual, ou seja, do
ângulo de um sujeito (PASOLINI, 2010, p. 240).
Seria possível dizer que o plano-sequência chega a reproduzir
uma visão mais subjetiva que a câmera subjetiva indireta livre,
assim como podemos considerar que ambos os recursos da
linguagem audiovisual chegam muito perto de uma “escrita de

132 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


si”, na primeira ou terceira pessoa. A montagem, que diferencia
o olhar do cineasta, corta e reorganiza, oferecendo novo sentido
à narrativa. Na sequência de Caro diario, o protagonista visita
o local do assassinato de Pier Paolo Pasolini, e o percurso até
o ponto exato de Ostia tem apenas uma fala, quando a voz do
protagonista exprime: “Não sei porque nunca estive no local
onde Pasolini foi assassinado”.6 O percurso, ao qual voltaremos 6. “Non so perché, ma non
ero mai stato nel posto dove
adiante, atesta a manifestação da subjetividade numa distensão è stato ammazzato Pasolini”
de perspectiva acompanhada pelo espectador, que pode ser (tradução nossa).
levado a algumas reflexões sobre o estado do cinema e sobre o
efeito autobiográfico que deixa em segundo plano a questão da
autenticidade do ponto de vista, da veracidade dos elementos
autobiográficos. O espectador tem a impressão de assistir à vida
do autor do filme (MAZIERSKA e RASCAROLI, 2006, p. 25), e
está acompanhando episódios de uma exposição de identidade
particular enquanto pode ter a oportunidade de interrogar-se a
respeito das suas convicções.
Utilizar-se de um alter ego é determinante para o primeiro
cinema de Nanni Moretti, para que o diretor pudesse assinalar sua
posição além do cinema moderno, noutras palavras, para superar
as lições de subjetividade. Pasolini pensou numa subjetividade
estilística, enquanto Moretti se expõe, confrontando-se com o
espectador em seus primeiros filmes. Ao longo de sua filmografia
o discurso parece se expandir, escapando do risco de se fechar
no autorreferencial. A subjetiva indireta livre de Moretti vai se
afirmando a partir de Caro diario.

2. Pobres garotos...

Interessam-nos algumas considerações oportunas para as


definições de sujeito no discurso fílmico de Nanni Moretti, pelo
menos em seus dois primeiros longas – Io sono un autarchico (1976)
e Ecce bombo (1978) – com marcas de assimilação da figura do
sujeito apenas como um efeito da linguagem, ou seja, se depois
de Nietzsche não é mais possível acreditar no sujeito cartesiano e
muito menos no sujeito como atuante, como ser por trás do fazer,
o agente é uma ficção. Para Nietzsche, “‘o agente’ é uma ficção
acrescentada à ação – e a ação é tudo” (apud KLINGER, 2012,
p. 27). Sendo assim, torna-se mais compreensível a instância do

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 133


sujeito criada pelos dois longas, e a crítica mais profunda quando
se adota o ponto de vista da ação. Caso o sujeito fosse considerado
o ser atuante, o ponto de vista do discurso fílmico, teríamos uma
boa justificativa para interpretar suas ações fracas e inconclusivas
como liberdade. Contudo, muito provavelmente não é esta a
direção que Moretti deseja oferecer ao espectador, para confortá-
lo com a noção de uma espécie de dádiva da existência e do ser,
resumida na liberdade do autoengano.
Moretti parece assimilar muito bem o sujeito desconstruído
que se refaz ao longo de um percurso em direção ao contemporâneo,
em certa sintonia com a investigação filosófica que procura um
meio-termo entre desaparição e ressurgimento do sujeito. Com
isso, talvez ele tenha pretendido afirmar, desde os seus primeiros
filmes, uma ética para os princípios estéticos, sobretudo para a
enunciação, ainda que sua obra reflita novos experimentos com o
ponto de vista e com a sua participação como personagem. Uma
das ideias que podemos utilizar é a de que:

O sujeito – assim como o autor, como a vida dos homens


infames – não é algo que possa ser alcançado diretamente
como uma realidade substancial presente em algum lugar;
pelo contrário, ele é o que resulta do encontro e do corpo-
a-corpo com os dispositivos em que foi posto — se pôs —
em jogo. Isso porque também a escritura — toda escritura,
e não só a dos chanceleres do arquivo da infâmia — é um
dispositivo, e a história dos homens talvez não seja nada mais
que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles
mesmos produziram — antes de qualquer outro, a linguagem.
E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e,
no entanto, precisamente desse modo testemunha a própria
presença irredutível, também a subjetividade se mostra e
resiste com mais força no ponto em que os dispositivos a
capturam e põem em jogo. Uma subjetividade produz-se onde
o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo
sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade a
ela. Todo o resto é psicologia e em nenhum lugar na psicologia
encontramos algo parecido com um sujeito ético, com uma
forma de vida (AGAMBEN, 2007, p. 56-57).

É no mínimo sintomática desse quadro a escolha de uma


canção para abrir e encerrar o filme de estreia de Nanni Moretti.
Poor boy, composta por Roger Hodgson e Rick Davies, vem de
um álbum controverso da banda britânica Supertramp, Crisis?

134 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


What Crisis?, de 1975. Poor boy é uma canção aparentemente
singela de autocomiseração que tenta fazer prevalecer a pureza
de sentimentos, a lealdade e o valor da sensação de liberdade e da
vida simples, bem como parece abominar a valorização material,
a negatividade, o descontentamento. Poderíamos concordar com
uma visão otimista ou mesmo dizer, como os ingleses, que o poor
boy pode ser um holy fool, contudo pensamos na hipótese de
uma leitura voltada para o autoengano, mantendo o eu lírico da
canção em acordo com o protagonista de Io sono un autarchico.
Dois fragmentos podem ser destacados no texto da canção:
um refrão que pode representar a resposta do interlocutor ou da
sociedade, ao entoar “Pobre garoto, se é desse modo que vai ser
/ Pobre garoto, é você por você e eu por mim / Pobre garoto”7 7. “Poor Boy, if that’s the way
it’s gotta be / Poor Boy, it’s
e o verso “Eu nunca vou mudar meu ponto de vista”,8 como um
you for you and me for me /
diálogo em que temos a opinião disposta a encobrir, por meio da Poor Boy”.
acusação irônica de fragilidade mantida no adjetivo “pobre”, a
8. “I’m never gonna change
crueldade das diferenças de caráter, além de assumir falsamente
my point of view”.
a condescendência. Por outro lado, o verso isolado, índice de
teimosia do sujeito, disfarça a fraqueza do eu lírico com o efeito
de uma frase disposta a revelar uma atitude firme, incorruptível –
típica do sujeito que se apoia no caráter inflexível para não revelar
a incapacidade de diálogo, entendimento e aceitação de ideias
diferentes. Seria ousado dizer algo como Pasolini, quando, ao
condenar os jovens de 1968, descrevia a aparência contestatória
como “máscaras de uma integração subserviente e inconsciente
que não provoca piedade” (PASOLINI, 2009, p. 20).
De certo modo, o filme desenvolve as nuances de
perspectivas da canção que se inicia com a voz de Roger Hodgson
imitando um aerofone, corneta ou trompete. Em sua primeira
aparição na obra de Moretti, Michele é um jovem desempregado,
membro de uma companhia de teatro experimental, dependente
financeiramente do pai, abandonado pela mulher, com a
qual trava diálogos desesperados ao telefone, sem qualquer
maturidade para cuidar do filho Andrea. Io sono un autarchico
se inicia e termina com uma aparente atitude desafiadora, que
se revela inconclusa: Michele não se reconciliará com Silvia,
que irá embora definitivamente com o filho; a companhia
teatral estreia a peça, que terá público a cada dia mais escasso,
e o diretor ficará sozinho ao propor um debate com a plateia,
empreitada não menos frustrante do que havia sido o exercício

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 135


com a trupe (um training ao ar livre, numa espécie de trilha, na
qual alguns membros são eliminados) e a caçada a um crítico
disposto a assistir à estreia e que discorrerá sobre vários temas,
menos o enredo da peça. O filme inicia e termina ao som da
canção do Supertramp, não por acaso, reafirmando o desdém
pela realidade e ressaltando certas preferências adaptativas que
minimizam os efeitos do que a psicologia denomina dissonância
cognitiva, que acontece no impacto da realidade. Assim, os
personagens ostentam uma postura autossuficiente, muito
embora só consigam fechar-se em supervalorizações disfarçadas
de simplicidade. Não seria exagero dizer que poderiam assoviar
Poor boy como uma espécie de hino de geração.
Ecce bombo, realizado em seguida, traz a continuidade e o
aprofundamento dos temas, incluindo a ironia sobre as posições
dos personagens, a partir do título, cuja inspiração teria sido o
bordão de um catador de material reciclado, representado no
9. A aparição do homem filme.9 Ao lado dessa referência latente da expressão, vinda do
que apregoa “Ecce bombo”
no filme não é casual. Ele
cotidiano, também se mantém o ar de superioridade quando a
representa a origem do associamos ao título do livro de Nietzsche (Ecce homo, de 1908),
título e faz referência à por sua vez escrito com o objetivo de o autor ser lembrado
antiga figura do trapeiro,
imortalizado pelo poema com “mais gosto em ser tomado como sátiro do que santo”.
de Baudelaire (Le vin des Pode-se inferir que há uma reinvenção da sátira de Nietzsche
chiffonniers, analisado
primorosamente por Walter com a troca do segundo termo. Assim, homo (homem) torna-se
Benjamin), e aos vendedores bombo, que pode se referir a um inseto (um tipo de abelha, a
de material usado de todo
tipo, parte da paisagem mamangava) e ser traduzido do italiano como som intenso,
urbana em muitas cidades. grave, tenebroso, mas o verbo bombare (io bombo, na primeira
pessoa do presente) significa contornar com curva, encurvar,
ou ainda bloquear drasticamente algum processo funcional do
computador (algo como “eu entravo”).
Portanto, desde o título e seguindo a trama, forma-se um
contraste entre alto e baixo, como se o filme tornasse cada
vez mais expostas a fragilidade e a aparência de certezas, com
certa comicidade: os personagens não compartilham atitudes
produtivas em relação à alienação exaltada pelos jovens, a
não ser sua redundância. A cultura popular representada
pela música, pelas imagens cotidianas, pelas idiossincrasias,
reorienta o ponto de vista para distanciá-lo de uma perspectiva
de cinema de autor no sentido estrito. A frase-chave de
Ecce bombo sintetiza a alienação dos jovens aparentemente
empenhados e parece girar em falso, improdutiva: “Passeio,

136 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


vejo gente, me movimento, conheço, faço umas coisas”.10 10. “Giro, vedo gente, mi
muovo,conosco, faccio delle
A imprecisão característica de uma geração que não tem
cose” (trad. nossa).
perspectivas é a tônica dos que não têm lado, opinião, em suma,
são levados. O empenho não passa de um vazio intelectual,
enquanto o ponto de vista parece ironizar essa postura.
Se Pasolini acusava os jovens no início dos anos de 1970
por serem mais cooptados pelo sistema capitalista do que
imaginavam, ele enxergou, até certo momento, pelo menos
uma hipótese de redenção – os jovens poderiam ter se desviado
desse novo fascismo, se fossem apresentados à cultura, às
artes. Nanni Moretti preferiu fechar as possibilidades de saída
para os jovens daquele final de anos de 1970. Um movimento
semelhante é realizado na década seguinte pelo cineasta,
ao focalizar a esquerda italiana por meio de um dirigente
do Partido Comunista Italiano às voltas com a sua perda de
memória, com o campeonato de polo aquático do qual participa
e com um mundo que literalmente está prestes a desabar –
Palombella rossa (1989) estreia meses antes da queda do muro
de Berlim e do PCI, com Nanni Moretti recuperando seus tempos
de atleta na interpretação de um jogador. Se preferimos não
apostar na premonição, podemos nos deter sobre o declínio da
linguagem que contribui efetivamente para a sensação de limite
de possibilidades. Não por acaso, é o último filme com Michele
Apicella como protagonista.
No plano dos conteúdos, em Ecce bombo a supervalorização
dos sentimentos-chave dos personagens nos leva a concluir
que o mecanismo é proposital e arma-se contra si mesmo.
Dizendo de outro modo, a exacerbação dos “defeitos sociais”
chama a atenção para as mazelas reais e, especialmente, para
a dificuldade de superação das dificuldades individuais. Nem
mesmo a simples consciência das mesmas é possível, nem
será partida para um processo de mudança, tamanho é o grau
de obscuridade, esta que a poética morettiana ironiza e quer
revelar, provocando o espectador com a sua identificação com
um falso estado de liberdade.
Conforme se percebe, antes de manipular o ponto de vista na
enunciação cinematográfica com os artifícios da primeira pessoa
por meio da voz, mantendo os movimentos de câmera dispostos
a retomar a subjetiva indireta livre (recursos profícuos a partir de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 137


Caro diario), Moretti incorpora marcas da contemporaneidade
em seu cinema e exerce uma crítica sobre elas. Parece cumprir
as exigências de novos movimentos e linguagens para consolidar
uma leitura mais adequada ao tempo. Ao mostrar uma geração
em processo de abandono e ao refletir sobre ela, repensando
também os modos de filmar, o seu cinema, o cinema italiano, o
diretor exerce uma prática renovada disposta a repensar a teoria,
ou seja, ainda que não seja totalmente inovador, o procedimento
ajusta ética e estética. Portanto, podemos dizer que a arte de
Nanni Moretti é essencialmente política, se lembramos da
argumentação de Giorgio Agamben: “A arte é em si própria
constitutivamente política, por ser uma operação que torna
inoperativo e que contempla os sentidos e os gestos habituais
dos homens e que, desta forma, os abre a um novo possível uso”
(AGAMBEN, 2008, p. 34).
Se existe algo que percorre a obra de Nanni Moretti,
de Io sono un autarchico (1976) a Mia Madre (2015), é uma
instância moral disposta à obstinação, se necessário. Em todos
os filmes, o ponto de vista fundamental é indignado e incrédulo.
O sentimento de inadequação é uma constante, por vezes
dilacerado pela aflição, pela irritação e pelo egocentrismo,
porém é dessa forma que se mantém ainda mais provocativo, na
tentativa de colocar em discussão um sofrimento comum, uma
aflição compartilhada, mesmo que a exposição dos defeitos seja
a forma de discussão dos efeitos do presente. O que importa
reter é a impossibilidade de considerar em separado o poder
estético de dizer e o poder político de agir em nossos tempos.

3. Pelo menos três pontos de vista

O cinema de Nanni Moretti contribui para o aspecto mais


proveitoso das discussões acerca das hibridizações de gêneros,
discursos e linguagens. A despeito da metaficção que se apresenta
quase sempre elevada a uma crítica do estado de coisas na Itália
e no cinema italiano, o fato autobiográfico em si tem considerado
a distância adequada entre autor/ator e personagem, pontuada
pela ironia e autocrítica, observada na intransigência moral
e intelectual que enfrenta uma recusa de pertencimento à sua
geração, no narcisismo, na relação quase infantil com a família.

138 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


A manifestação do personagem “em primeira pessoa”
em Caro diario pode representar o rompimento dos laços
com os constrangimentos de seu tempo e uma nova guinada
crítica, que terá continuidade em Aprile. Além disso, o estilo
da montagem muda sensivelmente, de uma justaposição de
cenas sem ligação causal ou temporal precisa, com a inserção
de recordações destacadas pelo caráter anticonvencional, para
uma montagem mais próxima da linearidade.
A escrita do diário organiza o sétimo longa de Moretti,
dividido em três capítulos ou episódios relativamente
autônomos: In Vespa, Isole e Medici são “narrados” por um
diarista que utiliza a voz para percorrer o texto que escreve
em seu diário, ou o que supostamente está formulando. A
escrita costura e uniformiza, o protagonista escreve nas três
situações – sentado no café ao revisar a crítica que elogiava o
filme americano de gosto discutível, viajando pelas ilhas e na
rotisseria em que nos conta sua saga com médicos. Além disso,
o empenho nas anotações e a divisão dos capítulos, em tinta
vermelha, escrita à mão, ocupando toda a tela em cada intervalo
pressupõem mais que uma organização de diarista. Como um
diário não é organizado em capítulos, somos levados a pensar
que há um desejo de unidade entre os episódios, concisão
mais próxima do romance do que do diário. Evidentemente, é
possível considerar a escrita do protagonista como um romance
em forma de diário, entremeado por narrativa de viagem. A
organização configura um exemplo válido de gênero híbrido.
Na mise-en-scène, o filme estabelece relações com gêneros
contemporâneos impregnados de realidade ou simuladores
desta. As definições de vida ficcionalizada, documentário
estendido pela imaginação ou registro do miúdo poético cabem,
sem dúvida, para o filme, porém seu discurso assimila o paradoxo
da forma que o diretor passa a utilizar com método rigoroso:
a aparente espontaneidade encobre uma estrutura calculada,
com objetos de crítica que incluem a desilusão da geração pós-
68 até a especulação imobiliária e descaracterização da cidade,
passando ao confronto com o papel do crítico cinematográfico
e, finalmente, ao réquiem utilizado para questionar o próprio
ponto de vista. Todos esses movimentos estão no primeiro
episódio do filme. Voltaremos a ele.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 139


O segundo episódio (Isole) traz algumas referências e
implicações críticas sobre as mesmas. O protagonista segue para
a ilha de Lipari (onde irá questionar seus métodos de composição
criativa) para encontrar um amigo, estudioso de James Joyce, que
não vê televisão há 30 anos. Em seguida, a viagem segue para
Salina, a ilha dos filhos únicos, proporcionando uma excelente
crítica às famílias contemporâneas, depois para Stromboli, onde
se constata a falência de um idealismo, para Panarea, que assiste
à recusa da alienação e, finalmente, para Alicudi, com a crítica
funda e cômica ao intelectual que tenta sem sucesso se afastar da
cultura popular e de massa. Em cada ilha, portanto, o filme revela
índices de degradação material e moral: o espaço antes retratado
por Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni é destituído ao
turismo de massa (FABRIS, 2008), com algumas idiossincrasias
morettianas elevadas a superação.
O terceiro capítulo retrata um episódio autobiográfico
autêntico, a experiência dos sintomas, do complicado diagnóstico e
da cura de um linfoma de Hodgkin. A estrutura faz uso do flashback,
a partir do protagonista escrevendo em seu diário, cercado de
receitas médicas e medicamentos. No corte, a cena seguinte
é uma tomada de 16mm da última sessão de quimioterapia. O
episódio prossegue, sempre em retrospectiva, com a encenação
do longo percurso de especialistas até o diagnóstico definitivo.
A montagem evidencia a aparente segurança dos médicos e a
ineficácia de cada tratamento, com o sintoma principal (uma
coceira intensa) piorando, em efeito cômico, reforçado pela
filmagem limpa, essencialmente com enquadramentos fixos. De
volta ao cenário inicial (uma cafeteria), o protagonista pede o
café da manhã e um copo de água.
Há efeitos de estranhamento oportunos em Caro diario.
O diretor optou por manter uma descontinuidade entre sua
pessoa como personagem e como narrador, ou seja, as instâncias
se confundem ao longo do filme, como se desejasse explorar
a subjetiva indireta livre em novas capacidades de distensão
e de encolhimento. A voz narrativa que por sua vez não se
fixa em nenhum personagem contribui ainda mais para um
distanciamento emotivo, ao mesmo tempo em que impede um
realismo autobiográfico que se esperaria graças aos pactos com
o espectador. O olhar do protagonista direto para a câmera na
última cena, em que ele toma o copo de água, determina uma

140 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


retomada da situação de quase absurdo do episódio e do filme
como um todo. O autor é protagonista de seu diário, porém está
exposto e observado e, não obstante fazer parte de um gênero
que evoluiu nesse sentido, torna-se observador nesse final aberto,
incrédulo e convicto, que o filme nos deixa.
Caro diario se abre com a caligrafia miúda do “diarista”, que
escreve no alto da página-tela: “Caro diário, há uma coisa que
gosto de fazer mais que tudo”.11 Moretti assume uma definição 11. “Caro diario, c’è una
cosa che mi piace fare più di
pasoliniana segundo a qual a realidade pertence à dimensão oral
tante!” (trad. nossa).
(viva, extemporânea, mutável), enquanto o cinema é dimensão
escrita (mumificada, programada, fixa), ou seja, o cinema para
Moretti também é a “língua escrita da realidade” (PASOLINI,
2010). A cena é cortada e a Vespa percorre incansavelmente as
ruas de bairros de Roma, sem o apelo aos clichês dos monumentos
tão marcados em outros filmes como Roman Holiday (A princesa
e o plebeu, William Wyler, 1953). A voz do protagonista é ouvida
com as declarações que parecem não dar conta das imagens,
que por sua vez precisam da língua oral, da “narrativa” para
complementá-las. Moretti aproveita algumas convenções (como
o tratamento familiar que os diaristas utilizam para tratar o
“caro” confidente personalizado), reinventa o diário e a narrativa
dos filmes de memória, ou autobiográficos, com a adoção de
um “diário fílmico” para equilibrar as tensões. O protagonista
percorre bairros muito populares, com alguma nostalgia e
“tomando posse” de sua cidade, reconquista o espaço atual. A
cidade está vazia, provavelmente porque é verão. No interior
do episódio, vários assuntos aparecem: a beleza paisagística e
arquitetônica, as modificações e a decadência de alguns bairros,
o cinema hollywoodiano, a crítica cinematográfica. De Garbatella
a Ostia, o percurso recebe as confissões do protagonista, como o
desejo de aprender a dançar, à guisa de diário sem data e com
peso de reflexão sobre as próprias fraquezas.
Caro diario traz golpes certeiros, como o discurso sobre as
maiorias e minorias em duas cenas: na primeira, a resposta a um
filme que o protagonista assiste, no cinema vazio de Roma, com
a cena de um grupo de pessoas concluindo que o tempo passou e
ninguém melhorou, todos são cúmplices. O protagonista interrompe
várias vezes a cena para exprimir sua indignação contra a fixação
pelo “todos”, e sua resposta aparece na narrativa elaborada no
silêncio e na solidão do passeio na Vespa – se um dos personagens

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 141


da cena diz que em seu passado todos gritavam coisas violentas,
horrorosas, e ainda se enfearam, o protagonista repete a conclusão
amarga e acrescenta: “(...) eu gritava coisas justas e agora sou um
12. “(...) Io gridavo cose esplêndido quarentão”,12 para que o espectador, imediatamente em
giuste e ora sono uno
seguida, se divirta com o efeito de I’m your man, de Leonard Cohen,
splendido quarantenne”
(trad. nossa). e com a flagrante autoestima elevada do protagonista-diarista,
matizada pela ironia provocada pela inserção da canção. Outro
par de frases exemplar como subjetivação aparece na abordagem
de um homem em seu conversível, poderoso símbolo de status, e
o protagonista se dirige ao desconhecido: “Sabe o que eu estava
pensando? (...) Eu acredito nas pessoas, porém não acredito na
maioria das pessoas. Penso que ficarei sempre à vontade e de
13. “Sai cosa stavo pensando? acordo com uma minoria”.13
(...) Io credo nelle persone,
però non credo nella De todas as confissões para o diário, talvez as mais
maggioranza delle persone.
Mi sà che mi troverò sempre a
contundentes estejam voltadas para o papel do crítico de cinema e
mio agio e d’accordo con una para a memória (ou falta dela). O protagonista lê para um crítico o
minoranza” (trad. nossa).
texto que parece preencher o espaço impresso com considerações
calculadamente elaboradas sobre Henry, pioggia di sangue (Henry,
portrait of a serial killer, John McNaughton, 1986). Como um
fragmento de imaginação inserido em meio às reflexões do diarista
que resolve transcrever em seu diário a crítica recém lida acerca
de Henry, o protagonista se vê ao lado do crítico de cinema, no
quarto, ao pé da cama, lendo o que parecem ser fragmentos de
seus textos carregados de citações. O protagonista dispara as
expressões cortantes, cuja força de sentido passa do efeito cômico
à amarga constatação da superficialidade, do desserviço e do
transtorno vindos da crítica nesse momento. Se o efeito vinha sendo
preparado desde as cenas exibidas de Henry, cuja violência não
tem o conteúdo que o texto da resenha quer lhe atribuir, o crítico
desesperado, vítima de suas próprias frases, é o retrato da moderna
rede que envolve as produções sem qualquer profundidade poética,
representativa, reflexiva.
No que diz respeito à memória coletiva, o plano-sequência
filmado em Ostia fecha o primeiro episódio e nos oferece as
dimensões possíveis num único plano. The Köln Concert de Keith
Jarrett começa a ser ouvida ao mesmo tempo em que vemos jornais
folheados e uma coleção de recortes trazendo como assunto a morte
de Pasolini, em novembro de 1975. A música começa exatamente
no plano que corta a sequência anterior, do implacável diarista a
fuzilar o crítico de cinema com suas próprias frases sem sentido.

142 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


O silencioso percurso, ao som exclusivo da música
de Jarrett, segue a via dell’Idroscalo nos dois sentidos, até
concluir-se em frente ao monumento degradado, em terreno
abandonado. A cena traz uma direta referência ao cineasta
bolonhês, é uma homenagem, conforme a crítica constata,
porém, segundo Mariarosaria Fabris, “(...) Moretti demonstrava
ter compreendido o ensaio ‘Cinema de poesia’, de 1965, em que
Pasolini afirma que a vida se reproduz no plano-sequência, cujo
significado é dado pelo corte que interrompe o fluxo contínuo
de imagens, assim como a morte dá um sentido à trajetória
humana” (FABRIS, 2008, p. 98-99). O plano que antecede
a silenciosa decepção com a memória de Pasolini intensifica
a ação sem palavras que atira para o espectador uma espécie
de alegoria do contemporâneo com a delícia e a desgraça da
relação com o passado. Contudo, Gian Piero Brunetta (2004)
afirmou que as deambulações do personagem levam-no a uma
nova percepção do eu, a uma diferente capacidade de medir o
mundo e de medir-se em relação ao mundo.
Entendemos que Moretti desenvolve uma percepção de seu
tempo e espaço sem sentimentalismos, criando uma medida de
atualidade, que se afirma com as relações estabelecidas no seu
próprio processo criativo, filme a filme. Assim, se distinguimos
um parentesco temático e formal entre Io sono un autarchico
e Ecce bombo, entre Aprile e Il caimano, entre La stanza del
figlio e Mia madre, existem conexões mais estimulantes para
além de setores da obra do diretor. O acerto de escolher
categorias contemporâneas, como os impasses da juventude no
enfrentamento dos problemas de geração, o empenho político
e as questões que envolvem as esquerdas se junta à busca pela
instância narrativa ideal para cada conflito, para cada situação
desarmônica, para a inadequação. Nesse sentido, conforme
nossa exposição tentou demonstrar, o sujeito da enunciação nos
filmes de Nanni Moretti tende a ser sempre ético.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 143


REFERÊNCIAS

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___________. O autor como gesto. In: Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São
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Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem; Os gêneros do discurso. In: Estética
da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp.
3-20; 261-306.
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FABRIS, Mariarosaria. O cinema italiano contemporâneo. In: BAPTISTA, Mauro e
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etnográfica. 3. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita
Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte:
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SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad.
Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2005.

FILMES

APRILE. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni Moretti; Silvio


Orlando; Silvia Nono. Itália, DVD, color., legendado, 78 min., 2008.

144 O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti / Gabriela Kvacek Betella


CARO DIARIO. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni Moretti;
Renato Carpentieri; Antonio Neiwiller, Jennifer Beals. Itália, DVD, color.,
legendado, 96 min., 2008.
ECCE BOMBO. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Itália, DVD, color., legendado,
103 min., 2008.
IO SONO UN AUTARCHICO. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni
Moretti; Luciano Agati; Simona Frosi; Fabio Traversa. Itália, DVD, color.,
legendado, 95 min., 2008.
PALOMBELLA ROSSA. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni
Moretti; Asia Argento; Silvio Orlando; Fabio Traversa. Itália, DVD, 89 min.,
color., legendado, 2008.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 124-145, JUL/DEZ 2017 145


A escrita de si nas praias de
Agnès Varda

Lucia Castello Branco


Psicanalista e professora permanente da POSLIT - FALE e do PPLitCult - UFBA.

Maria Fernanda M achado


Psicanalista e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UFMG.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017


Resumo: Da morte do autor a seu terno retorno na forma de biografema (que faz da
bio – vida –, grafia – letra) proposta por Barthes, passando por Wenders e a noção
da câmera como abrigo das sombras, e por Comolli, a se ocupar do resíduo do
real, infere-se que do sujeito na tela resta a mancha. Assim como na psicanálise, o
que se transmite no cinema não será uma representação da realidade perceptível
no espectro sensível, mas o que se apresenta alhures. Procura-se então aí, nesse
“fora do espectro” – que resiste na fissura da filmagem – a possibilidade de pensar
a singularidade da abordagem biografemática do cinema documentário. Para tal
conceituação, toma-se, como uma espécie de referencial cinematográfico, a abertura
do belíssimo filme As praias de Agnès (2008), de Agnès Varda.
Palavras-chave: Cinema-biografema; Psicanálise; Agnès Varda.

Abstract: From the author’s death to his tender return in the form of biographème
(which makes bio - life -, spelling - letter) proposed by Barthes, passing by Wenders
and the notion of the camera as a shelter from the shadows, and by Comolli, dealing
with residue of the real, it is inferred that from the subject on the canvas the stain
remains. As in psychoanalysis, what is transmitted in the cinema will not be a
representation of perceived reality in the sensitive spectrum, but what is presented
elsewhere. Then, it is sought in this “out of the spectrum” - which resists the fissure
of filming - the possibility of thinking about the singularity of the biographical
approach of documentary cinema. For this concept, the opening of the beautiful film
The beaches of Agnès (2008), by Agnès Varda, is taken as a kind of cinematographic
reference.
Keywords: Cinema-biographème; Psychoanalysis; Agnès Varda.

148 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
Moi, si on m’ouvre, on trouvera des plages.

Agnès Varda

Talvez tenha sido necessária a morte do autor, preconizada


por Roland Barthes, em seu memorável “A morte do autor”,
e mais tarde problematizada por Foucault, na conferência
“O que é um autor?”, para que pudéssemos, alguns anos
depois, realizar um certo retorno ao autor, um retorno com
ternura, como quer o próprio Barthes, através de sua noção de
biografema.
Já em “A morte do autor”, é nítida a proposta de Barthes
de que a figura do autor deveria ser substituída por uma outra,
a do leitor: “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte
do Autor” (BARTHES, 1988, p. 70),1 ele escreve, ao fim do 1. Original de 1968.
texto. Mas é Foucault, um ano depois, quem problematiza
a questão, trazendo para a discussão a noção de discurso,
tributária da psicanálise, ao pensar o autor como uma função,
como um “fundador de discursividade”. Por isso, já de início
Foucault assinala que “não basta, evidentemente, repetir como
afirmação vazia que o autor desapareceu”. O que Foucault
propõe é, antes, que se localize “o espaço assim deixado vago
pela desaparição do autor”, para então “espreitar os locais, as
funções livres que essa desaparição faz aparecer” (FOUCAULT, 2. Original de 1969.
2011, p. 91).2
Trata-se, portanto, de funções, locais, lugares discursivos,
noções com que a psicanálise vem lidando, desde Freud, e
acentuadamente no “retorno a Freud”, realizado por Lacan,
com ajuda da linguística, da literatura, da antropologia e
sobretudo da topologia. E talvez seja mesmo a noção de sujeito,
trazida pela psicanálise, o que tenha amparado Foucault em
seu pensamento, quando ele afirma: “Seria igualmente falso
buscar o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado
do locutor fictício; a função autor é efetuada na própria cisão
– nessa divisão e nessa distância” (FOUCAULT, 2001, p. 98).
Podemos inferir, então, que talvez tenha sido não só a
psicanálise, mas a própria formulação de Foucault o que tenha
possibilitado a Barthes o seu retorno com ternura à noção de
autor, através do biografema:

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 149


Pois se, pelo artifício de uma dialética, é necessário que haja
no Texto, destrutor de qualquer sujeito, um sujeito que se deva
amar, esse sujeito está disperso, um pouco como as cinzas que
se lançam ao vento depois da morte (...). Se fosse escritor, e
morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos
cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns
pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos:
“biografemas”, em que a distinção e a mobilidade poderiam
deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como
átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma
3. Original de 1971. dispersão! (BARTHES, 1979, p. 14).3

Aqui, novamente, temos a figura do leitor, desta vez


não em lugar do autor, mas ao lado do escritor, como “corpo
futuro” daquele outro corpo que já foi transformado em cinzas
pelo trabalho de um outro leitor, o “amigável e desenvolto
biógrafo” que foi capaz de transformar a vida – a bio – em letra
– em grafema –, esvaziando-a de todo o conteúdo romanesco
e, talvez, reduzindo-a ao mínimo de um corpo – as cinzas –,
o mais impessoal e, ainda assim, o mais singular (já que as
cinzas de um corpo jamais poderão ser trocadas pelas cinzas
de outro corpo). Ou seja: se aquele corpo já não pode ser mais
reconhecido como uma pessoa em sua pessoalidade, ainda
assim é da singularidade absoluta de um sujeito que se trata.
Eis que nos acercamos, enfim, da noção de sujeito, tão cara
à psicanálise. Noção que já não se confunde com a de autor,
tampouco com a de leitor, mas que não dispensa o corpo, como
é nítido na formulação de Barthes. E talvez seja esta noção
que nos auxilie aqui para pensarmos em uma proposta do que
chamaremos, numa referência direta a Roland Barthes, mas
tributária de Freud e Lacan, de cinema-biografema. O sujeito
que se apresenta entre o autor e o leitor seria o que contagia?
Seria esse o sujeito, então, que é transmitido na porosidade de
uma tela de cinema?
Justamente nos tropeços do dito que o fazem dizer, na
ausência de um espectador definido, do Outro que dá forma à
mancha do olhar, o sujeito talvez possa ser melhor capturado.
O olhar, que não distingue a escrita do Outro, tenta alcançar
um grunhido que soa e ressoa borrado. No olhar, como objeto
escópico, Lacan localiza um objeto opaco que resta do rasgo da
linguagem sobre um corpo.

150 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
O olhar, como resto incorporado do Outro, ganha lugar
de objeto a. O objeto a é compreendido aqui como uma “certa
função de resto, que sustenta e move o desejo” (LACAN, 2005,
p. 253).4 Desejo este marcado pela falta, pois só se é olhado a 4. Original de 1963.

partir de uma perspectiva que faz mancha: o Outro me olha


de onde eu não me vejo. “A função da mancha e do olhar é o
que (...) comanda o sujeito mais secretamente e o que escapa
sempre à apreensão da visão” (LACAN, 1998, p. 75).5 5. Original de 1964.

Na falta da representação da imagem que o outro vê quando me


olha, me situo a partir de um ponto que invento sobre a visão daquele
que me tenta a ver. E é nessa invenção que o sujeito se apresenta,
mas não encontra uma representação que lhe dê consistência. O
olhar abriga o sujeito em sua mancha, em seu intervalo.
Com o intuito de promover uma aproximação desta
construção lacaniana para a produção cinematográfica, podemos
utilizar uma elaboração de Wim Wenders (2013), quando o
cineasta ressalta que “a câmera, portanto, é um olho capaz de
olhar para frente e para trás ao mesmo tempo. Para a frente,
ela de fato ‘tira uma foto, para trás, registra uma vaga sombra’”
(WENDERS, 2013, p. 64). Neste caso, poderíamos inferir que, no
cinema, a câmera abrigaria o sujeito em sua sombra.
Também na mancha e na sombra, o cineasta Jean-Louis
Comolli (2008) esclarece que, “longe da ficção totalizante do todo”,
o cinema documentário só pode se construir a partir de sua fricção
com o mundo e, dessa forma, cede espaço ao real que o provoca
e o habita. Diferentemente do controle que marca os roteiros do
cinema de ficção, o filme documentário não pode acontecer sem
suas fraquezas, tropeçando em várias realidades que não quer
negligenciar e sobre as quais não pretende ter um domínio, pois o
documentário “tem a chance de se ocupar apenas das fissuras do
real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o
excluído, a parte maldita” (COMOLLI, 2008, p. 172-173).
Com Lacan, temos que é no equívoco que toca o real que a
psicanálise opera e, para isso ocorrer, é “preciso que haja alguma
coisa no significante que ressoe” (2007, p. 18).6 A transmissão em 6. Original de 1975.
psicanálise – e também no cinema como sugere Walter Benjamin
(1993)7 – pode ser nada mais “do que o curto-circuito passando 7. Original de 1940.

pelo sentido” (LACAN, 2007, p. 118). Há, assim, uma orientação


que não é o sentido, mas sim sua quebra produzida pelo real, que

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 151


pode ser aludida, aqui, pelo neologismo do poeta Francis Ponge,
citado por Lacan (2011, p. 85): “r.é.s.o.n”, uma outra “razão”, que
evoca outro tipo de pensamento, aquele que “ressoa”.
No pensamento que ressoa, pode-se dizer que “a copulação
do simbólico e do imaginário” é o que faz consistir um sentido,
sendo que a “orientação do real (...) foraclui o sentido” e promove
a transmissão de um certo saber que ecoa (LACAN, 2007, p.
117). Em outras palavras, esta outra razão ressoa quando algo
do real promove uma quebra do registro. Registro este já dado
por uma representação resultante do encontro entre o simbólico
e o imaginário. Esta concepção de algo que se produz fora do
registro e tem efeito de transmissão parece se aproximar do
que propõe Walter Benjamin. Ao pensar em uma tentativa de
representação do homem pela câmera, Benjamin sugere que a
câmera no cinema, com seus inúmeros recursos de imersões e
emersões:

[...] nos abre, pela primeira vez, a experiência de um


inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos
abre a experiência do inconsciente pulsional. De resto,
existem entre os dois inconscientes as relações mais estreitas.
Pois os múltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da
realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma
percepção sensível normal (BENJAMIN, 1993, p. 189-190).

Haveria, nesta proposição de Benjamin, um inconsciente


ótico composto por espectros que o olho humano normalmente
não seria capaz de captar, mas que ainda assim promoveria
um certo registro da realidade. Desta forma, torna-se possível
deduzir que, tal como na psicanálise, o que se transmite no
cinema não seria uma representação da realidade perceptível no
espectro sensível, mas algo que se apresenta alhures .
Nesta inversão de perspectiva, que focaliza o que se
apresenta “fora do ––espectro” e resiste na própria fissura da
filmagem, buscaremos pensar na singularidade da abordagem
biografemática do que aqui chamamos de cinema documentário.
Tomaremos, como uma espécie de referencial cinematográfico
do que pretendemos conceituar, a abertura do belíssimo filme As
praias de Agnès (2008), de Agnès Varda.

152 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
Fig. 1: As praias de Agnès (frame).

O sujeito espraiado

Suponham que todos os homens tenham desaparecido


da terra. Digo os homens, devido ao valor elevado que vocês
conferem à consciência. Já basta para perguntar – o que será que
sobra no espelho? Mas suponhamos até que todos os seres vivos
tenham desaparecido. Sobram então apenas fontes e cachoeiras
– e também raios e trovões. A imagem no espelho, a imagem no
lago, será que elas ainda existem?
É óbvio que ainda existem. E isto por uma razão ainda
muito simples – no alto grau da civilização ao qual chegamos,
que ultrapassa de muito nossas ilusões sobre a consciência,
fabricamos aparelhos que podemos, sem audácia alguma,
imaginar suficientemente complicados para que eles mesmos
revelem os filmes, os guardem em caixinhas e os depositem na
geladeira. Tendo desaparecido todo ser vivo, a câmera pode ainda
assim registrar a imagem da montanha no lago, ou até a do Café
de Flore, esfarelando-se na solidão total.

Com certeza os filósofos terão todo gênero de objeções


astuciosas a me fazer. Rogo-lhes, no entanto, que continuem
a prestar atenção ao meu apólogo. Eis que os homens voltam.
É um ato arbitrário de Deus de Malebranche – já que é ele
que, a todo instante, nos sustenta em nossa existência, ele
bem que pôde suprimir e nos repor em circulação alguns
séculos mais tarde.Os homens terão que reaprender tudo

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 153


e, em particular, a ler uma imagem. Pouco importa. O que
é certo é o seguinte – logo que virem no filme a imagem
da montanha, verão também seu reflexo no lago. Verão
também os movimentos que ocorreram na montanha e os
da imagem. Podemos levar as coisas mais longe. Sendo a
máquina mais complicada uma célula fotoelétrica apontada
para a imagem no lago, pôde determinar uma explosão
– é sempre preciso, para que algo pareça eficaz, que se
desencadeie em algum canto uma explosão – e uma outra
máquina pôde registrar o eco ou recolher a energia dessa
explosão. Pois bem! Eis aí, portanto, o que lhes proponho
considerar como essencialmente um fenômeno de
consciência, que não terá sido percebido por mim algum,
que não terá sido refletido por nenhuma experiência êuica
– estando ausente nessa época toda e qualquer espécie de
8. Original de 1954-1955. mim e de consciência do eu” (LACAN, 1987, p. 65).8

O filme se inicia com o barulho das ondas, antes mesmo que


a figura inconfundível de Agnès Varda apareça na tela, à beira
do mar, a caminhar para trás e a dizer: “Faço aqui o papel de
uma velhinha gorducha e faladeira que vai contando sua vida”.
Ela continua: “E, no entanto, são os outros que me interessam
e que quero filmar. Os outros, que me intrigam, me estimulam,
me interpelam, me desconcertam, me apaixonam. Agora, para
falar de mim, pensei: Se abríssemos as pessoas, encontraríamos
paisagens. E, se me abrissem, encontrariam praias”.
Já nessa primeira cena, coloca-se a questão do eu e do
outro. “Eu é um outro” – podemos, então, pensar, evocando a
9. Original de 1871. célebre frase de Rimbaud (2009).9 E a questão do sujeito cindido,
tal como a psicanálise o postula, já está colocada aí. Mas Agnès
avança um pouco nessa questão. Pois é ela mesma quem está
em cena, a recontar sua vida. Ela anda para trás – o retorno
com ternura? –, para contar sua história. Mas afirma que está
representando, fazendo o papel de uma velhinha. Enquanto
ela anda para trás, as ondas avançam. E, pronunciadas estas
palavras iniciais, o plano se abre, lá estão seus técnicos a armar
um cenário composto de espelhos antigos que não refletirão
um rosto, mas tão somente o mar. “Eis aí, portanto, o que
lhes proponho considerar como essencialmente um fenômeno
de consciência que não terá sido percebido por mim algum,
que não terá sido refletido por nenhuma experiência êuica”,
diremos, repetindo Lacan.

154 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
O que a imagem de um espelho que não reflete o rosto de
quem narra, mas apenas uma paisagem, pode nos indicar, sobre a
questão do sujeito? Que o “eu” não é o sujeito, é a primeira óbvia
dedução. Mas também que um corpo pode ser construído tão
somente a partir da voz e do olhar.
A voz cai disso que se diz. Lacan questiona: “O que há cuja voz
é assumida pelo sujeito a cada vez que fala?” (2005, p. 71).10 A voz 10. Original de 1963.

apresenta semântica de objeto a, quando “o Outro é o lugar onde


isso fala”. O objeto a não seria um objeto qualquer, mas qualquer
um que se configure invocante de um sujeito pela alteridade que o
marca. Quando algo de um outro apresenta-se não representável,
faz-se um ruído. Nesse intervalo, sobra um resto sem significação.
A voz como som não é assimilada, mas incorporada em sua pausa,
inaugurando um corpo com a marca dessa escansão.
A escansão da voz se associa ao recorte do Outro pelo
olhar. O olho é um órgão duplo que, ao tentar construir um foco
único sobre o mundo, acaba por deixar vestígios excluídos de
sua função. E, mais uma vez, só se é olhado a partir de uma
perspectiva que faz mancha: o Outro olha de onde o sujeito não
vê. Lacan dirá que a função desses vestígios excluídos comanda
o olhar e o distingue da visão:

Em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via


da visão e ordenada nas figuras da representação, algo
escorrega, passa, se transmite de piso para piso, para ser
sempre nisso em certo grau elidido – é isso que se chama
olhar (LACAN, 1998, p. 74).11 11. Original de 1964.

A visão é distinta da função do olhar, sendo essa última função


isolada como “digamos o termo, da mancha”.12 A mancha do olhar 12. Idem, p. 75.

seria também um traço de pura autonomia, que é transmitido “de


piso para piso”, um fio que sempre escapa à visão da consciência e
delineia um sujeito futuro.
No olhar e na voz, localizam-se restos dos rastros da linguagem
sobre um corpo. E sabemos que, para a psicanálise, um corpo, un
corps, encore (para evocar Lacan, em seu seminário Encore) é, mais
que tudo, um corpo pulsional. Aí, um sujeito se transmite “de piso
para piso”, de espelho para espelho.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 155


Quando priorizamos o olhar e a voz como lugar de
transmissão do saber de cada um, apostamos que aí, nesses dois
objetos, há algo que os desloca de uma organicidade. Não foi
sem causa que Lacan os acrescentou à série de objetos parciais
freudianos. Assim como Freud atribuiu ao seio, às fezes e ao falo
um lugar que não só toca, mas ultrapassa a função orgânica,
alcançando uma dimensão pulsional, Lacan atribui aos dois um
estatuto que está além de uma função biológica. Propõe-se uma
disjunção entre o som e a voz e entre a visão e o olhar. Esses
objetos acrescidos de um a dariam lugar à mancha ou à pausa
do Outro, que não pode ser vista ou falada. E talvez seja por
essa brecha que a transmissão se dê, refletindo no espelho uma
mancha do litoral de Agnès, que pode – com sua singularidade
– tocar o piso daquele que se divide ao tentar ver.
Nessa configuração de cena, Agnès Varda oferece o
testemunho de sua vida em uma sequência de espelhos, e no mar
repetido, nunca o mesmo, se inscreve o grafema que constitui o seu
corpo pulsional. Seria um curto e longo circuito que deflagraria
o impossível em sua transmissão, sem que seja ecoando sentido,
mas sim “ressoando sentido”, escrevendo dentro/fora das
molduras antigas seu torno de onda pulsante? Agnès deixa estar
fora do espectro, dentro do espelho, ao espectador. Mas, do autor
ao leitor, a letra se transmite?
Eduardo Vidal (2017), ao comentar a frase que se encontra
em “O seminário sobre ‘A carta roubada’” – “uma carta sempre
13. Original de 1956. chega a seu destino” (LACAN, 1998, p. 45)13 –, desenvolve uma
noção que pode nos auxiliar nesta reflexão. De início, Vidal
retoma a ideia de que à palavra carta, em francês, lettre, também
cabe a tradução “letra”. A carta, no conto, asseguraria um ponto
de resistência do texto entre o discurso analítico e o discurso
literário, que confrontaria o leitor com sua falta mais radical: “a
carta é o que se subtrai ao poder do discurso do mestre” (VIDAL,
2017, s.p.), pois a mesma, no conto, se perde e caminha de mão
em mão, sem que ninguém consiga de fato dela se apoderar.
Trata-se de um discurso que comportaria uma letra em
sofrimento, uma letra sem tradução que, não sendo aberta,
nada se sabe sobre o seu conteúdo. Somente uma carta que não
chega ao seu destinatário, que não teria um endereçamento
certo, chegaria ao que Vidal nos convida a entender como uma

156 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
“destinação”. Dessa forma, alcança um sujeito em sua divisão,
“um sujeito que se deixa, de alguma maneira, ler pela letra”
(VIDAL, 2017, s.p.). O conto de Poe e a carta desse conto chegam
“ao leitor, mas ao leitor, como Lacan deixa claro no início dos
Escritos, que não é aquele dos endereços aos quais uma carta se
remete, mas ao leitor que se deixa dividir pelo gozo que a letra
porta” (VIDAL, 2017, s.p.).
Um escrito, uma palavra, uma letra sem destinatário,
sem um endereçamento a um ideal, seriam portadores de uma
“destinação” capaz de promover o efeito de divisão em seus
leitores/auditores. Como a carta/letra que marca a falta no conto
de Poe, a fala, que deixa escapar um dizer, cumpriria a função
de um objeto perdido que faria advir o sujeito do inconsciente.
Talvez seja nesse encontro entre o dito e o dizer, apresentado na
letra/grafema de uma vida, que em um cinema documentário
possa se dar à transmissão.
Curioso notar que a execução do documentário em si, nas
palavras de Comolli, assim como a carta de Poe, promoveria
um “distúrbio do direcionamento que repercute do narrador na
escuta do espectador” (COMOLLI, 2008, p. 88). Quando fala, em
uma filmagem, o narrador endereça sua fala a um destinatário
colocado fora de campo, mas não fora de cena, promovendo um
papel estruturante na filmagem do percurso e da destinação da
narrativa. O espectador, sempre ausente, acaba se desdobrando
na figura do entrevistador, do diretor de cena, da câmera e,
claro, de espectadores imaginários. Sem um ouvinte fixo, sem o
olhar daquele que o localiza,

[...] o sujeito da palavra filmada vê-se na obrigação de


inventar em campo o dispositivo de escuta que permitirá sua
palavra. É assim que se forma, entre outras situações de crise,
a necessidade de uma auto-mise-en-scène do personagem
(COMOLLI, 2008, p. 88).

Como sugere Vidal sobre o efeito da carta no conto de Poe,


um testemunho dado frente às câmeras talvez venha a ter o mesmo
efeito de uma letra roubada: um efeito de destinação, sendo os
espectadores, não-todos, atravessados pelo irrepresentável real
que uma filmagem apresenta.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 157


É a partir daí que podemos já ir ao encontro da noção
barthesiana de biografema. Pois uma vida, para ser reduzida a
uma letra, a algumas letras, só poderá fazê-lo a partir de uma certa
escrita, de uma certa “pulsão da escrita”, como a nomeou Maria
Gabriela Llansol (2003, p. 31-32). E, ao evocarmos o universo de
Llansol, aproximamo-nos vertiginosamente do que propõe Agnès
Varda: “Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens”.
A essa proposição, Llansol poderia acrescentar: “A paisagem é o
terceiro sexo” (2000, p. 11).
Estamos no campo do sujeito, que não se confunde com o
eu, mas que não dispensa o corpo, mesmo que o corpo pulsional
venha a se reduzir à voz, ao olhar, às fezes, ao seio. Em Agnès
Varda, esse corpo se espraia: está na beira do mar, nas ondas, no
litoral, no horizonte longínquo, sempre mais além. C’est la mer
allée avec le soleil, diria Bataille, evocando os versos de Rimbaud
(BATAILLE, 1957, p. 32). “É o mar que se espraia com o sol”,
diremos, em licença poética.
O que um corpo espraiado pode nos dizer sobre o sujeito? E
mais: o que um corpo espraiado conserva da letra de uma vida,
da vida escrita por biografemas? Pensemos na letra como uma
espécie de mônada, atômica, singular, mas, ao mesmo tempo, com
uma abertura suficiente para que ela se abra a outras letras para
fazer escrita. A letra, como uma ostra, se abre em seu movimento
mínimo de molusco, não para exibir a pérola que ela secreta, mas
justamente em razão de seu processo mesmo de secretar.
Ali, em seu movimento de abertura, a letra é bio – germe, vida
que pulsa em direção à morte – e também suporte de uma escrita.
Escrever, sob a exigência da letra, talvez signifique então escrever
de si no outro, tendo como outro tudo que não é da experiência
êuica: o sol, a areia, o mar, os corpos dos amantes, os espelhos
antigos, o barulho do armário dos pais, quando ele se abria, na
infância, o toca-discos à manivela, a melodia de Tino Rossi, a
Sinfonia Inacabada de Schubert. Biografemas, letras de uma vida.
Assim se abre o filme, antes mesmo que o título se escreva sobre
a superfície de um espelho que mostra tão somente o mar. O que
virá depois não fugirá, em momento algum, à exigência da letra:
breves momentos a pontuar o efêmero. Agnès, a velhinha gorducha
e faladeira, prossegue, passando pela história de seu cinema, que
é também a de sua vida, até a festa de seus oitenta anos, motivo
aparente de sua retrospectiva biografemática.

158 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
E as praias? O que fazem elas, nesse filme que parece insistir
em nos dizer, a cada corte, a cada tomada, a cada movimento
de câmera, que o sujeito está sempre “aquém do eu, além do
outro”?14 As praias continuam lá, para além, com o movimento 14. Fazemos referência aqui
ao belo título do livro de
e o barulho das ondas, numa espécie de eternidade improvável. Leyla Perrone-Moisés sobre o
Um dia elas também desaparecerão? Não, enquanto houver sujeito em Fernando Pessoa.
uma letra que se abra, em secreção de ostra, e escreva, sobre a
areia, um traço. Mesmo que o mar o apague, se houver alguém
que o leia – ainda que esse alguém seja um pássaro ou a célula
fotoelétrica do apólogo lacaniano –, um dia, quem sabe, o corpo
anônimo do escritor terá tocado, como cinzas lançadas ao vento,
o corpo anônimo do leitor, ou do ouvinte, ou do espectador. E
então poderemos dizer, com Lacan:

É do encalço deste para-além, que não é nada, que ele [o


sujeito] volta ao sentimento de um ser consciente de si, que
é apenas seu próprio reflexo no mundo das coisas. Pois ele é
o companheiro dos seres que estão aí diante dele, e que, com
efeito, não sabem que são (LACAN, 1987, p. 281).15 15. Original de 1954-1955.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Lisboa: Edições 70, 1979.


BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1988, p. 65-70.
BATAILLE, Georges. L’Érotisme. Paris: Les Éditions de Minuit, 1957.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1996.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder - A inocência perdida: cinema, televisão, ficção
e documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor. In: QUEIROZ, Sônia (org.). O que é um
autor?, de Michel Foucault: duas traduções para o português. Cadernos Viva
Voz, Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2011.
LACAN, Jacques. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2011.
_______. O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
_______. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
_______. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 159


_______. O seminário, livro 2: O eu na técnica de Freud e na teoria da psicanálise.
2a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985a.
_______. O seminário, livro 20: Mais, ainda. 2a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985b.
LLANSOL, Maria Gabriela. Na casa de julho e agosto. 2 ed. Lisboa: Relógio
D’Água, 2003.
_________. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
RIMBAUD, Arthur. Carta de Rimbaud a Paul Démeny, datada de 15 de maio de
1871. In: BARROSO, Ivo (org.). Arthur Rimbaud: Correspondência. Rio de
Janeiro: Editora Topbooks, 2009.
VIDAL, Eduardo. Letra. In: VIDAL, Eduardo. Efêmero. BH: Cas’a’escrever Edições,
2017. (no prelo)
WENDERS, Wim. Uma vez. In: Zum Revista de Fotografia. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, n. 4, abr. 2013.

160 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 161
Sentir a imagem:
performatividade e mise-en-scène
no cinema de Naomi Kawase

Henrique C odato
Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-
graduado em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC).
Docente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Eduardo dos Santos O liveira


Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017


Resumo: A partir de um diálogo entre algumas teorias dos campos do cinema e da
performance, buscamos visitar dois documentários da realizadora japonesa Naomi
Kawase – Em Seus Braços (Ni Tsutsumarete, 1992) e Céu, Vento, Fogo, Água, Terra
(Kya ka ra ba a, 2001) – a fim de investigar as práticas performativas que a diretora
utiliza na e com a imagem e como ela inscreve seu próprio corpo na materialidade
do filme, constituindo, desse modo, um cinema repleto de imprecisões, ausências e
desaparecimentos.
Palavras-chave: Cinema; Performance; Performatividade; Mise-en-scène; Naomi Kawase.

Abstract: Based on a dialogue between theories from the field of cinema and
performance studies, the present work aims to visit two documentaries from
Japanese director Naomi Kawase – Embracing (Ni Tsutsumarete, 1992) and Sky, Wind,
Fire, Water, Earth (Kya ka ra ba a, 2001) – in order to investigate the performative
practices that the director uses in and with the image and how she inscribes her own
body in the materiality of the film, presenting a cinema full of inaccuracies, absences
and disappearances.
Keywords: Cinema; Performance; Performativity; Mise-en-scène; Naomi Kawase.

164 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


Introdução

Por que as árvores balançam com o vento?


Para poderem se tocar. Se eu fosse mais natureza,
eu me sentiria muito melhor.
Nesse lugar, meu pai deve ter sentido a mesma coisa, eu acho.
Naomi Kawase, Em seus braços

Estamos aproximadamente na metade do filme Céu, Vento,


Fogo, Água, Terra (Kya ka ra ba a, 2001), da realizadora japonesa
Naomi Kawase. O canto inferior direito do quadro revela-nos
o perfil da diretora, filmada em primeiro plano, no momento
de seu despertar. Ignorando a câmera, Kawase olha fixamente
através de uma grande janela que ocupa a outra metade do
quadro. Seu olhar perdido, ainda um tanto sonolento, se dirige
insistentemente para fora do quarto – e, por conseguinte, para
fora do campo filmado – como se buscasse, com isso, ver um
objeto que se distancia; apanhar com os olhos algo que parece
querer escapar. A luz do sol se espalha pelo cômodo, iluminando
o rosto da moça e fazendo-o ganhar certo destaque em meio à
semipenumbra que encobre o fundo do plano.
Nos planos seguintes, à medida que ouvimos Kawase
fabular em voz over: “O que é real? Onde está o verdadeiro eu?
Você prometeu que ia me salvar”, acompanhamos, por meio
de um impreciso travelling, um grupo de pessoas conversando
numa espécie de restaurante à beira do mar. “Ninguém pode me
salvar. Eu tenho que fazer isso sozinha”, conclui a realizadora
na sequência seguinte, que mostra, depois de um corte brusco,
o vaivém da água captada desde o interior de um recipiente
plástico – uma garrafa cortada ao meio, transformada em copo
– como se estivéssemos, diretora e espectador, a beber o líquido.
Em seguida, ao abandonar o interior do copo, a câmera perde
seu foco, enquanto se desloca, passeando pelo que parece ser a
superfície lisa de uma mesa, na qual repousam – como veremos
com o reganhar da nitidez da imagem – algumas cartelas de
medicamentos. A máquina filmadora se demora sobre os
comprimidos, filmando-os com atenção por alguns segundos.
Chove lá fora e a voz do radiojornalista anuncia que fará frio
em Tóquio.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 165


No lugar do excesso de drama, a diluição das ações e
o descentramento da própria figura. Por meio de jogos de
enquadramento, de luz e sombra, de fragmentações e reflexos, a
diretora implica o próprio corpo na filmagem tentando investigar
marcas e estratégias estéticas que permitam construir outro tipo
de mise-en-scène, impulsionada por práticas performativas e
muito mais preocupada com a fabricação de atmosferas sensoriais
do que com encadeamentos narrativos. É como se, por meio de
seus filmes, obras sempre tão íntimas e pessoais, pudéssemos
ver os rastros de uma presença quase fantasmagórica que,
desesperadamente, tenta atestar a própria existência e a existência
do mundo pelo gesto poético de filmar.
De fato, seu cinema se situa no ponto de confluência entre
arte e vida: marcada por dramas familiares, a história pessoal de
Kawase parece guardar uma potência narrativa que a realizadora
explora desde seus primeiros trabalhos, e que se torna algo
absolutamente notável em seus documentários autobiográficos,
como Nascimento e Maternidade (Tarachime, 2006) e Vestígio
(Chiri, 2012), em que filma a relação visceral com Uno Kawase,
sua tia-avó e mãe adotiva; e Em Seus Braços (Ni Tsutsumarete,
1992) e Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, obras que têm como motor
a ausência do pai biológico e que escolhemos como objeto de
análise para este ensaio.
Ao articularmos certas noções oriundas dos estudos do
cinema e da imagem e dos estudos da performance, propomos
desenvolver algumas reflexões acerca do cinema de Naomi
Kawase, mais especificamente de seus documentários, pensando-
os a partir da força performativa do corpo da realizadora e de
sua inscrição no espaço do filme. Para além de tentar representar
sua história pessoal ou a de sua família, defendemos que o gesto
cinematográfico de Kawase pretende, de fato, colocar memórias
em movimento, dar a ver lembranças fragmentadas, revisitar
arquivos pessoais, atualizar repertórios, reimaginar e reinventar
o passado com a (e a partir da) imagem.
Nosso principal objetivo torna-se, portanto, o de perceber
como as ações performativas e as estratégias de encenação
de Kawase se materializam na tessitura desses dois filmes
autobiográficos sobre a ausência do pai. Certo, seu cinema é feito
de ausências: algo parece sempre escapar, fugir do campo filmado,
sublinhando, nesse jogo “dentro-fora”, a articulação entre o

166 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


campo e o extracampo, o visível e o invisível. Em seus filmes,
a diretora investe o olhar à procura de brechas, de fissuras no
cotidiano, na localização de veleidades temporais, construindo,
a partir da inscrição de seu corpo na imagem, uma experiência
sensível com o mundo que a rodeia.
Devemos notar, nesse sentido, que não só as particularidades
formais de suas obras problematizam aquilo que é dado como
real, mas também suscitam questões políticas, éticas e estéticas
que atravessam a relação que a realizadora estabelece com
aquilo que ela filma. A dimensão processual dessas obras nos
interessa aqui na medida em que, combinada à estrutura fílmica,
não nos fornece pistas sobre o que é exatamente verdadeiro
ou falso, mas nos coloca em um lugar incerto, uma espécie de
“entre lugar”, em que os sentidos parecem, de fato, deslizar.
Gestos filmados, repetições encenadas, fabulações gravadas,
situações forjadas a partir de (e com) imagens: é justamente
nesse agenciamento entre filmagem, investigação e montagem
que propomos localizar o trabalho da performance e a força
performativa de Naomi Kawase.

Acionando conceitos: performance e mise-en-scène

Como sugere Tânia Rivera, na performance, o artista,


simultaneamente, “empresta seu corpo à obra; dá à obra um
corpo e faz do corpo uma obra” (RIVERA, 2013, p. 20). Ora,
é justamente esse imbricamento entre filme e corpo que nos
interessa aqui, de maneira precisa. Se a noção de performance
parece apropriada para nos aproximarmos dos filmes que nos
convocam, é porque, em seu sentido ontológico, ela cria o real:
“enquanto a representação é mimética, a performance é criativa e
ontogenética.1 Na representação, a repetição dá à luz o mesmo; na 1. A ontogenética é a ciência
que estuda a vida de um
performance, cada repetição encena seu próprio e único evento”
organismo desde sua fase
(DEL RIO, 2008, p. 4). Assim, é possível dizer que o que nos embrionária, até atingir sua
interpela nesses filmes é que não há, neles, uma apreensão direta forma plena.

do real, mas, sim, sua (re)invenção a partir da ação performativa


dos corpos filmados, sobretudo do corpo da própria realizadora.
É importante elucidar a persistência de uma estreita relação
entre os termos “performance”, “performativo” e “performatividade”.
Apesar de focalizarem propriedades distintas, esses conceitos não

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 167


são excludentes ou opostos, mas interagem entre si e operam de
modo imbricado, fazendo com que a explicação de um acabe por
abarcar a compreensão de outro e vice-versa. Ademais, devido
ao caráter fluido e escorregadio dessas acepções, este texto
tenta apontar alguns caminhos para a compreensão dos termos
a fim de construir um espaço em que essas formulações possam
transitar e ser realçadas, evitando definições que cristalizem suas
particularidades e impeçam seus transbordamentos.
Foi o filósofo e linguista John L. Austin quem cunhou
2. Do original: “I propose
to call it ‘performative o termo “performativo”. A noção foi introduzida no campo da
sentence’ or a performative filosofia analítica no ano de 1955 numa série de conferências
utterance, or, for short, ‘a
performative’”. O autor faz ministradas na Universidade de Harvard, as quais foram
uso do termo performative publicadas em forma de livro anos mais tarde. Em How to do
com base no verbo da
língua inglesa to perform, things with words (1962), Austin desenvolve a teoria dos atos de
frequentemente utilizado fala a partir de uma elaboração teórica que mudaria os rumos
para designar ação – e que
origina também a palavra dos estudos da linguagem: enunciados linguísticos não apenas
performance. descrevem coisas ou “servem” para fazer declarações, mas, em
alguma medida, efetivamente produzem estados, executam ações
3. No original, Austin utiliza
e geram condutas, como no âmbito dos testemunhos, casamentos,
o termo constative, para
denominar o primeiro grupo batizados ou acordos, nos quais são empregadas frases como “eu
de proferimentos. Embora prometo”, “eu aposto”, “eu sou”, entre outras. Fundamentando
em determinada parte
dos trabalhos acadêmicos uma série de classificações, o autor nomeia esse segundo tipo de
produzidos no Brasil sentenças de enunciados performativos, ou, de modo abreviado,
acerca da teoria dos atos
de fala apareça o termo performativos (AUSTIN, 1962, p. 6),2 em contraste ao primeiro
“constativo” para mencionar grupo referido, composto por proferimentos constatativos.3 Em
as expressões presentes
na obra referida, optamos suma, os performativos agiriam sobre o mundo, criando novas
por utilizar o vocábulo realidades e apontando para estados originais. Assim, seria
“constatativo” em diálogo
com a tradução realizada
impossível classificá-los em verdadeiros ou falsos, uma vez que
pelo professor Danilo carregam uma força de invenção constitutiva.4
Marcondes de Souza Filho,
publicada em 1990 pela Na condição de entusiasta da obra austiniana, o autor
editora Artes Médicas Sul.
francês Jacques Derrida (1991) compõe algumas críticas de
cunho complementar às ideias do filósofo inglês. Derrida
4. Apesar de tomar a
performatividade em sua argumenta que as análises de Austin requerem exaustivamente
capacidade de desmanchar um valor de contexto, e até de um contexto teleologicamente
oposições binárias, o autor,
à época, defendia que os determinável, “buscando, em vão, fixar a pertinência, a pureza
atos performativos da fala e o rigor” de categorias que o performativo embaralharia em sua
poderiam, ou não, ter êxito
– ser “felizes” ou “infelizes”, realização per se, devolvendo a comunicação performativa ao
em termos austinianos – a lugar de comunicação estritamente intencional (DERRIDA, 1991,
depender das circunstâncias
sociais e institucionais
p. 27-28). Com o intuito de escapar da tentativa de totalização
envolvidas no contexto da ação. empreendida nas classificações de Austin e, ao mesmo tempo,

168 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


sobrelevar a originalidade anti-logicista do pensamento do
autor inglês, Derrida, por conseguinte, sugere os conceitos de
iterabilidade e citacionalidade.
Relacionando a repetição à alteridade, o autor explica que
o primeiro termo deriva de itara, palavra em sânscrito utilizada
para denominar “outro”, evidenciando a particularidade de
um signo ser sempre outro em sua própria constituição e
funcionamento ao comportar a mudança e a possibilidade de
alterar-se a cada repetição.5 A citacionalidade, por sua vez, 5. Segundo o autor, “toda
escrita, deve, pois, para ser
indicaria a propriedade de um signo que o permite deslocar-se da o que ela é, poder funcionar
conjuntura de enunciação, “romper com todo o contexto dado” e na ausência radical de todo
“engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente destinatário empiricamente
determinado em geral”
não-saturável” (Ibid., p. 25). Desse modo, Derrida argumenta (Ibid., p. 19). Ele busca, a
que tais características são os componentes a partir dos quais os partir de suas formulações,
relacionar a escrita e os atos
performativos da fala produzem múltiplos efeitos e rupturas. de fala mais a um sentido
de diferença do que de
É nesses dois conceitos que Judith Butler (2003) encontra representação.
suporte para desenvolver a concepção de performatividade de
gênero. Abandonando a ideia de performatividade exclusivamente
ligada a um compromisso firmado entre falantes por meio da
linguagem verbal, a autora está mais interessada em discutir
uma teoria da ação cuja radicalidade se sustenta na perspectiva 6. Butler destaca as
linguística que considera o sujeito objeto de seu próprio fazer. paródias realizadas pelas
drag queens: “Ao imitar
A autora, desse modo, compreende o gênero de modo não o gênero, o [fazer] drag
estritamente correlacionado à biologia, ao “sexo”, ou a uma revela implicitamente a
estrutura imitativa do próprio
estrutura ontológica, mas como uma “identidade tenuemente gênero – assim como sua
constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de contingência” (Ibid., p. 196).
uma repetição estilizada de atos” (BUTLER, 2003, p. 200). Nesse
sentido, o gênero (tal como outras formas identitárias) é um ato, 7. Se anteriormente o
vocábulo “performativo”
cuja ação requer performances, ou práticas corporais, repetidas e aparecia neste capítulo
ensaiadas na esfera pública.6 A ideia de performatividade no que apenas como forma
abreviada de aludir ao
concerne ao gênero, assim, relaciona-se às propostas de Derrida conjunto de operações
na medida em que o gênero, para Butler, deve ser tomado como constitutivas investigadas
inicialmente por Austin,
prática iterativa e citacional, demarcando atos corporais que próximo da classe dos
engendram identidades em sua operação mesma, materializando substantivos, aqui, por outro
lado, seu uso circunscreve
formas não pré-existentes a cada repetição. a qualidade criativa de
tais operações. Assim,
Ter conhecimento do panorama articulado acima nos esse termo será utilizado
auxilia com a argumentação deste artigo visto que possibilita numa variedade de formas
e construções cognatas,
que compreendamos a concretização de um novo estado, como no texto da autora
seja atrelado ao caráter performativo7 de atos de fala ou do estadunidense.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 169


cerne criativo de práticas corporais, por meio da ação da
performance. Ainda que na obra da autora estadunidense a
performatividade esteja relacionada à dimensão do gênero
e da sexualidade na esfera social, existem linhas de diálogo
com o que o que este texto propõe refletir, uma vez que
buscamos levantar indagações acerca da fabricação de uma
nova realidade a partir das autoinscrições de Naomi Kawase
em suas obras autorreferentes, cujas imagens admitem a noção
de performatividade como núcleo de seu funcionamento.
Gostaríamos, pois, de deslocar a noção para além dessa
relação, uma vez que os agenciamentos que Kawase constrói
em seus filmes extrapolam ações geradas a partir da linguagem
verbal, constituindo uma série de mecanismos, estratégias e
eventos que envolvem a implicação do corpo da realizadora
na filmagem. Ao contrário: parece mesmo haver, nos filmes da
diretora, uma tentativa de deter a linguagem (verbal) em nome
de uma dimensão muito mais sensível, háptica, tátil (como no
início de Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, em que Kawase se filma
ao “tocar” o corpo de sua tia-avó através do vidro de uma janela
para, logo em seguida, sair da casa e ir tocá-lo “de verdade”,
passando a ponta dos dedos no rosto da velha senhora enquanto
filma). Assim, em seu cinema autobiográfico, a representação
se vê substituída pela presença, o que reabilita a mise-en-scène
do filme e reconfigura as dimensões espaciais e corporais de
nossa experiência.
Outro conceito importante que acionamos para essa
discussão – e que já apareceu outras vezes ao longo do ensaio,
mas que, agora, exige de nossa parte uma aproximação mais
atenta – é o de mise-en-scène. Antes de tudo, lembra-nos
Jean-Louis Comolli (2008), a mise-en-scène documentária
é uma atualização da experiência que decorre da potência
performativa do corpo em relação à câmera no espaço do
filme. Deste encontro/embate, desdobra-se uma espécie de
jogo entre visível e invisível que funda aquilo que Comolli
chama de mise-en-scène. Ela é, então, produto da relação
entre corpos e gestos filmados e os planos de um filme, que
inaugura um vasto universo feito de formas, de composições
visuais (e sonoras) elaboradas a partir do material plástico-
figurativo das imagens capturadas. Se colocar em cena significa
dar a ver, fazer figurar a partir de determinadas escolhas

170 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


políticas, éticas e estéticas, estas escolhas, dadas de modo
consciente ou não, também produzem extracampo, na medida
em que deixam necessariamente algo de fora (do quadro/da
cena). Ainda segundo Comolli, o cinema esconde mais do que
evidencia, conservando o que ele chama de parte da sombra. A
ontologia da sétima arte, assinala o autor, “está relacionada à
noite e ao escuro de que toda imagem tem necessidade para se
constituir” (COMOLLI, 2008, p. 214). Isso dito, a maneira de
elaborar ausências, de dar a ver desaparecimentos, de formular
imprecisões por meio de imagens e sons são iniciativas que nos
interessarão sobremaneira ao visitarmos cada uma das obras.
No caso do cinema autorreferente de Kawase, talvez
devêssemos ainda falar de uma auto-mise-en-scène. Tal como
definida por Comolli (COMOLLI; SORELL, 2015, p. 65), trata-
se de um conjunto de operações nem sempre conscientes, que
servem para testemunhar – muito mais do que para atestar – uma
relação direta entre corpos, olhares e máquina. Filmar o próprio
corpo, entretanto, implica em desarticular o poder calculado da
máquina sobre ele – uma vez que se torna, simultaneamente,
sujeito (aquele que dirige a câmera, que faz o filme, que
produz a imagem) e objeto (corpo filmado, observado, produto
da imagem) – o que vem provocar, por conseguinte, também
uma desarticulação do olhar: “O dispositivo que o corpo lança
sobre si, ainda que planejado por ele mesmo, possui brechas; e
é por tais lacunas que a experiência ocorre, arrebatando o que
se poderia prever” (REIS, 2016, p. 45). 8. Para Comolli, o corpo
oferecido ao quadro
Por último, é preciso ainda considerar que se os modos não pode escapar de ser
de figurar partem de escolhas da realizadora, as dimensões afetado pela experiência de
filmagem, produzindo um
processuais das duas obras, portanto, também nos interessam, filme como documento dessa
na medida em que, combinadas à estrutura fílmica, não nos afetação (COMOLLI, 2008,
p. 285).
dão pistas entre o que é exatamente verdadeiro ou falso, real
ou fictício, vida ou arte; mas se organizam em torno de um
sujeito cindido, repleto de lacunas, de uma Naomi Kawase 9. A realizadora contou em
uma entrevista a José Manuel
que, ao reimaginar a relação com sua família, reorganiza López que só consegue
igualmente o estatuto da mise-en-scène. Nossa hipótese é de expressar-se através do cinema.
“Minha relação com a arte
que a realizadora cria não somente filmes autobiográficos, mas cinematográfica é também
documentos de afetação;8 formas de sentir e de expressar-se;9 minha forma de me relacionar
com a vida, o reconhecimento
outros mundos dentro do mundo, constituídos de contingências, mesmo do ato de viver”
acasos e performances. (LÓPEZ, 2008, p. 136).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 171


Em Seus Braços: filmar (com) a ausência

Como já foi dito, o filme Em Seus Braços tem como tema a


situação familiar de Naomi Kawase. O pai a abandona antes de
seu nascimento, e ela é entregue pela mãe aos cuidados dos tios-
avós. Kaneichi Kawase, o tio-avô, morre quando Naomi contava
14 anos de idade. A família da garota, então, passa a ser uma
única pessoa: Uno Kawase, mãe adotiva, tia-avó biológica, a quem
Naomi chama resumidamente de oba-san – “avó” em japonês.
Se a convivência com Uno serve de mote para outros projetos
10. Além de Nascimento e autobiográficos da diretora,10 nesse caso, o princípio de ativação
Maternidade e Vestígio, três do filme é o abandono afetivo do pai.
outros títulos destacam-se na
filmografia de Naomi tendo
Em Seus Braços surge, portanto, do desejo de Naomi de
como tema a convivência da
diretora com Uno Kawase. São encontrar seu pai biológico. No decorrer deste média-metragem
eles: Caracol (Katatsumori, de aproximadamente 40 minutos, a diretora filma sua certidão de
1994), Viu o Céu? (Ten,
Mitake, 1995) e Sol Poente nascimento e a lê em voz alta, registra gestos banais de sua tia-
(Hi wa katabuki, 1996). avó, apanha o próprio corpo implicado em jogos com a imagem,
compõe sobreposições com fotografias e imagens de vídeo
antigas, além de inserir gravações telefônicas e diálogos com
pessoas sobre sua vida. Sem dúvidas, trata-se de um exercício de
(auto) descoberta com aqueles e daqueles que a rodeiam.
Ao decidir partir em busca de seu pai – e também de sua
própria identidade – a diretora o faz apenas com uma máquina
filmadora analógica de mão, uma câmera fotográfica e um
gravador. O trabalho de montagem do filme nos apresenta
imagens vacilantes e imprecisas, algumas quase estouradas,
com excesso de luz, tendendo ao branco. Os sons quase nunca
coincidem com o que há na tela, gerando, assim, deslizamentos e
contrastes na experiência do espectador. A cineasta, no entanto,
orquestra as ambiências do filme a partir da materialidade das
imagens, dessas assincronias e antinomias na composição dos
planos fílmicos: dentro e fora de campo, visível e invisível. Como
num confuso processo de investigação que se constrói junto com
a fabricação das imagens.
Fragmentação e embaralhamento. Nos poucos momentos de
Em seus braços em que vemos a diretora inscrever o corpo de modo
visível no campo filmado, há sempre algo que escapa dali, que
desfigura ou desenforma seu rosto, que desfoca sua imagem ou

172 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


impede que a vejamos por completo, como se, com isso, Kawase
propusesse a desconstrução da própria identidade. Em certo
momento, por exemplo, ela filma sua imagem sendo transmitida
por um aparelho de televisão, superfície pela qual também
podemos ver seu reflexo, além de uma terceira reprodução de seu
rosto, sobreposta na montagem (figura 1). Ela acaricia a face e
passeia a mão pelos cabelos. “Vou ligar para ele. Deveria chamá-lo
de papai? O que devo fazer? Eu quero vê-lo. Eu realmente quero
isso?”, é o que ouvimos sua voz over dizer, enquanto seu corpo
performa junto com aquelas imagens.11 11. Os efeitos gerados por
essa sobreposição – que,
poderíamos defender,
reflete esteticamente a
dúvida vivida pela diretora
em relação ao encontro
com o pai – aproximam
o trabalho de Kawase à
videoarte, remetendo-nos a
alguns trabalhos do grupo
Fluxus, por exemplo, pelo
viés performático e pela
experimentação autoral e
corporal, características
que acabam por influenciar,
aliás, grande parte dos
trabalhos (áudio)visuais
contemporâneos.

Figura 1: Naomi Kawase filma-se em frente a um aparelho de televisão e performa com as imagens em 12. O flickering, ou efeito
Em Seus Braços. Por meio do jogo de encenação, e através da montagem, a diretora fabrica um corpo flicker (palavra em inglês
que não preexistia à filmagem. que pode ser traduzida por
oscilação ou tremulação),
tecnicamente, decorre em
A dinâmica da cena torna evidente que a realizadora não
função do baixo frame rate
está interessada em nos oferecer respostas, mas em nos convidar de reordenamento (refresh)
a habitar o lugar das imprecisões, das dúvidas, dos riscos e dos entre os ciclos de exibição
em vídeo, especialmente nos
imprevistos junto a ela. O efeito flicker,12 produzido a partir da intervalos de atualização no
filmagem do aparelho da televisão, combina-se à paleta de tons tubo de raio catódico, como
acontece neste caso.
azuis e aos ruídos da tela do televisor desarranjando sua efígie,
desfazendo a impressão ilusionista de que estaríamos assistindo a 13. Como um corpo fechado
um movimento contínuo e desordenando as noções convencionais em si mesmo, inteiro,
alicerçado na tríade unidade/
de figuração do corpo, comumente relacionadas à representação.13 singularidade/identidade.
De estatutos completamente distintos – uma imagem televisiva; No regime da mimese, da
arte representacional, ao
outra cinematográfica; uma terceira, um reflexo, puro efeito contrário do que acontece
da montagem –, essas imagens entrelaçam-se e justapõem-se, no filme de Naomi Kawase,
o sujeito é tomado enquanto
fazendo com que algo novo surja no espaço da tela. Trata-se da
instância, como arranjo
irrupção de uma espécie de imagem performativa, produzida definitivo, imutável e
por meio da autoinscrição da realizadora no espaço da cena, na finalizado.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 173


relação imbricada entre corpo e câmera, mas que também se
desdobra em direção ao espectador, agindo no espaço entre ela
mesma e quem se põe diante do filme. Uma imagem cuja intenção
não é a de descrever um acontecimento, gerar afirmações sobre
um fato ou a de contar uma história, mas a de (re)constituir e (re)
elaborar realidades, de fabricar para o filme uma nova forma de
mise-en-scène e nela inscrever um novo corpo.
Ao longo de Em Seus Braços, a diretora constrói não
só um inventário íntimo de si e do que a rodeia, mas dispara
acontecimentos e acasos. Certidão de nascimento, fotografias do
passado, memórias de infância. Feridas na pele. Em outro momento
da projeção, ao revisitar o arquivo de sua família, Kawase obtém o
registro civil do pai. A partir deste documento, que contém todos
os dez endereços em que ele morou nos últimos 20 anos, ela
cria um itinerário e decide percorrê-lo. Nessas rotas espalhadas
pelas províncias de Osaka e Hyôgo, a diretora empreende,
então, diversos jogos com aqueles espaços: filma-se em meio a
uma plantação, brinca num parquinho, exibe fotografias de sua
infância naqueles territórios. Repetidas vezes. São mecanismos
inventados, práticas performativas de atualização, de arquivos
que mobilizam uma série de eventos, interações, afetos e
inscrições corporais. De uma documentação performativa, em
que há a materialização ou concretização de desejos que antes se
colocavam como virtualidades. Ora, a realizadora não encontraria
seu pai em nenhum ponto de seu périplo. Suas intenções eram
outras, como revelou posteriormente numa master class proferida
no Festival de Cine 4+1:

Depois de se separar de mim, meu pai se mudou para dez


lugares diferentes. Durante 20 anos, viveu em várias casas.
Eu fui a cada uma delas. Evidentemente, meu pai já não
estava lá. O que eu buscava eram apenas suas memórias e o
rastro de que ele havia estado ali. Tratava de sentir o que ele
havia vivido. Eu ia de cidade em cidade. E filmava o pôr do
sol, uma árvore balançando ao vento, escutava as crianças
brincando. Filmar esse tipo de cenas era o importante para
mim. Provavelmente as memórias de meu pai e de minha
mãe sejam iguais ao que eu gravei. Fui recriando-as. Como
dizia inicialmente, eu havia experimentado a beleza de
gravar o tempo com a câmera 8mm. Portanto, não é que
meus pais tenham me dito pessoalmente, eu simplesmente
fui a esses lugares e tratei de recuperar e regenerar esse

174 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


tempo perdido que eles viveram. Para mim, esse tempo
nunca existiu. Não pude conviver com eles, portanto eu
mesma regenerei esse tempo (2011).

Se, inicialmente, Em Seus Braços aparentava ser um filme


cuja intenção era a de relatar um reencontro entre pai e filha,
ou de simplesmente reatar um vínculo perdido entre os dois,
agora se revela como uma forma de pôr essas memórias em
movimento, (re)visitá-las e (re)imaginá-las, (re)constituí-las de
outras maneiras no tempo presente. Desse modo, ao percorrer,
acompanhada de uma câmera, as casas que outrora foram
habitadas pelo pai, Kawase pretende mais experimentar passados
incertos, falar de lembranças fragmentadas e do sentimento de
ausência, do que descrever propriamente ou representar a história
pessoal de seu pai. Do desejo de atravessar uma geografia que
não é formada apenas pelas casas, pela natureza, pela topografia
dos espaços filmados, mas que é também subjetiva e afetiva, na
qual a própria realizadora se evidencia como a questão colocada
no filme (figuras 2, 3 e 4).

Figuras 2, 3 e 4: Naomi Kawase busca seus rastros em sombras e reflexos em Em Seus Braços.

(Re)visitar arquivos torna-se, assim, (re)atualizar repertórios.


“De que adianta aventurar-se no desconhecido?”, pergunta uma
amiga próxima da família de Kawase. Podemos observar esse filme
como produto dos sucessivos agenciamentos entre arquivos do
passado da diretora e de sua família, bem como de imagens de seu
repertório corporal. O ato de buscar documentos que atestam sua
existência, folhear um álbum com fotografias antigas e revisitar

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 175


aqueles cenários, ou, simplesmente, pedir à tia-avó que sorria
enquanto a enquadra; cada gesto filmado por Kawase faz germinar
novas situações, forja novos acontecimentos, (re)cria realidades,
mantém viva e ativa a memória de sua família ao deslocá-la no tempo.
Ao fim do processo, outro arquivo, então, se constrói: o próprio filme,
que, por sua vez, vem reconfigurar o repertório de quem se põe
diante dele e oferece seu desejo em troca de viver o desejo do outro.
Em seus braços constitui-se, assim, de um imbricamento de arquivos
e repertórios, de imagens e sons que se encontram atravessados pela
potência performativa do corpo da realizadora em cena.

Céu, Vento, Fogo, Água, Terra: ausência marcada na pele

Kya Ka Ra Ba A é uma expressão budista derivada do sânscrito.


Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, em tradução para o português.
14. Ver MAIA e MOURÃO, Tal expressão resume tudo o que existe no mundo,14 uma vez
2011, p. 62.
que traz, juntos, os elementos dos quais o mundo é feito. Mas é
também um trava línguas, frase que Uno Kawase tenta pronunciar
corretamente, repetindo-a como um mantra durante a visita que as
duas mulheres fazem ao cemitério. Nove anos depois de Em Seus
Braços, Kawase retorna com o mote da ausência do pai biológico.
Nesse caso, tal como Em Seus Braços, a diretora revira seu arquivo
pessoal; sugere brincadeiras e performances com Uno; insere
gravações de telefonemas e dispara acasos que se concretizariam
de outra forma, caso não estivesse acompanhada de uma câmera.
Ao passear lentamente com a filmadora pelo que a rodeia, Kawase
vai transformando o mundo em outro mundo: “Desde Caracol
[Katatsumori, 1994] tive a convicção de que o resultado era um
mundo que eu mesma havia criado”, explica a diretora, em entrevista
15. O haicai é uma forma ao pesquisador Aaron Gerow (2008, p. 115).
poética nascida no Japão
cuja característica principal Esse outro mundo criado pela diretora é feito de vestígios,
é a concisão. Trata-se de
um curto poema escrito em
fragmentos, deslocamentos e reminiscências que, juntos, performam
japonês, de três versos, um tipo de estrutura poética que poderíamos aproximar daquela do
dividido em 17 sílabas: haicai,15 tal como a entende Barthes:
5 delas no primeiro e no
terceiro versos e 7 no verso
do meio. Geralmente, o haicai
fala de um acontecimento
preciso, que acontece no [...] uma arte contradescritiva, na medida em que todo estado
presente e apresenta alguma da coisa é imediatamente, obstinadamente, vitoriosamente
referência à natureza. convertido numa essência frágil de aparição: momento

176 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


literalmente “insustentável”, em que a coisa, embora já sendo
apenas linguagem, vai se tornar fala, vai passar de uma
linguagem a outra e constitui-se como a lembrança desse
futuro, por isso mesmo anterior (BARTHES, 2007, p. 102).

“O haicai nos lembra aquilo que nunca nos aconteceu”, conclui


Barthes (2007, p. 102). Passado e presente, memória e presença:
o cinema de Kawase, como um haicai, germina tempos e mundos.
Ao transformar suas lembranças em imagens e sons, Kawase as
(re)elabora e as coloca em cena a partir da força performativa do
corpo filmado. Portanto, aqui, tomamos as imagens produzidas por
Kawase mais como um processo e menos como objetos isolados,
pois, como assinala a filósofa Marie-José Mondzain “a imagem faz
devir o sujeito mesmo que a produz; é, simultaneamente, operadora
de uma relação e objeto produzido por essa relação” (MONDZAIN,
2015, p. 39). Nessa perspectiva, as imagens fabricadas por Kawase
são signos que se colocam no lugar de seus desejos de modo não
compensatório, fundando mais espaços de diferenciação – nos
quais a realizadora se reinventa ao ser por elas diretamente afetada
– do que caminhos dos quais sairá ilesa. Tais veredas conduzem a
diretora ao encontro do próprio pai, um pouco como se as imagens
ali constituídas fossem a ele destinadas. Mas, “o tema sou eu”, avisa
a realizadora (GEROW, p. 115, 2008).
“Alô, quem fala é Naomi Kawase? Sou eu, Yamashiro. Seu
pai faleceu no dia 5 de setembro. Desculpe informá-la com atraso.
Ligue-me quando tiver tempo”. Eis a mensagem vocal deixada na
caixa de recados da diretora que ouvimos repetidas vezes durante
o filme. Após um breve prólogo com imagens de Em Seus Braços,
do momento em que ouvimos a gravação que registra o primeiro
diálogo entre pai e filha, é a partir do áudio do telefonema transcrito
acima que somos introduzidos a Céu, Vento, Fogo, Água, Terra. As
escolhas formais da primeira metade desse filme de 50 minutos
são similares às da primeira obra: há o corpo de Kawase inscrito de
modo fugidio nos planos de filmagem; há gravações de entrevistas
sobrepostas a imagens do que a rodeia; há a natureza, árvores,
folhas e chuva; há o vento, o céu e também o fogo. Tudo está lá.
Menos o pai, que, de fato, nunca esteve.
As conversas com pessoas próximas revelam o persistente
sentimento de abandono sentido por Kawase. Durante uma
conversa entre a diretora e sua mãe biológica, que nunca aparece

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 177


16. Para a mãe de Naomi nas filmagens,16 a mulher confessa que o pai de Kawase pedira que
Kawase, surgir nas imagens
abortasse quando descobriram a gravidez. Enquanto as ouvimos
de seus filmes poderia romper
a harmonia de sua nova discutir, passeamos pelos jardins de uma casa, examinamos os
família. Ela, então, pediu a galhos de uma trepadeira, vemos a luz do sol atravessar as copas das
Naomi que não incluísse a
sua figura em nenhuma obra árvores, acompanhamos uma folha rodopiar com a força do vento,
(LÓPEZ, 2008, p. 137). nos deixamos capturar pelas chamas de uma fogueira acesa durante
um ritual religioso. O diálogo entre mãe e filha acaba num corte
brusco, dando início a uma nova sequência do filme, que se abre com
o primeiro plano da tia-avó Uno. As imagens da natureza e aquelas
de Uno surgem, pois, sempre como um contraponto à solidão
vivenciada por Naomi. Frente à errância da própria identidade, ao
descentramento do próprio sujeito, é a presença da velha senhora
que se manifesta como presença evidente, concreta.
A maneira como Naomi Kawase articula imagens de folhas,
troncos de árvores, correntes de ar, labaredas, tempestades e outros
elementos naturais em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, e também no
filme Em Seus Braços, provoca rupturas na noção de cultura apartada
da natureza. A aliança indissolúvel dessas duas esferas geralmente
dicotomizadas é uma das noções primordiais do entendimento
do corpo no Japão, como explica Christine Greiner (2015). Outra
concepção que norteia a compreensão japonesa de corpo, e que
notadamente se manifesta na plasticidade dos filmes que nos trazem
até aqui, é a impermanência: Naomi reiteradamente filma e dá a ver
sua interação com o ambiente em que está inserida, como se nos
alertasse que seu corpo está intimamente relacionado à natureza e
ao cosmos, culturalmente híbrido e sempre em fluxo (figura 5).

Figura 5: Em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, Naomi Kawase filma sua sombra projetada no tronco
de uma árvore, confundindo-se com o ambiente e borrando as fronteiras entre dentro e fora do
corpo.

178 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


O filme, no entanto, se bifurca. Na segunda metade de Céu,
Vento, Fogo, Água, Terra, a dinâmica da obra passa a problematizar
de modo mais enfático as dimensões de realidade e ficção no cinema
quando consideradas como dualidades opostas ou excludentes.
Ao decidir fazer uma tatuagem em recordação a seu pai falecido,
Kawase visita um estúdio e trava um intenso e filosófico diálogo
com o tatuador acerca do amor, da arte e do que pode exprimir
o gesto de gravar no próprio corpo, na própria pele, inscrever no
corpo, na carne, uma memória. Somos conduzidos por essas cenas
por intermédio de uma equipe de filmagem que constantemente
aparece em cena, exibindo o dispositivo de filmagem, o microfone de
captação sonora, a claquete, todo o aparato técnico que permanece
fora do campo em narrativas associadas ao cinema clássico.17 17. Devemos ainda notar o
barulho insistente da câmera
No decorrer do diálogo, a câmera se mantém bastante próxima filmadora de 8mm de Kawase
que, em momento algum
dos dois, mas visa sempre enquadrar o rosto da diretora: mais dos filmes, a diretora tenta
precisamente, seus olhos, sempre muito atentos àquilo que diz o apagar ou dissimular.
tatuador. Após ser sabatinada pelo homem, Kawase deixa o estúdio
pensativa, mas, logo, decide voltar e fazer a mesma tatuagem que
seu pai carregava no corpo. O tatuador realiza um rápido teste em
seu braço. Em seguida, observamos em close o rosto da realizadora
que se contorce de dor enquanto ouvimos o constante perfurar
da haste em sua pele. Existe, contudo, uma elipse na montagem,
um salto temporal que não nos permite ver Naomi Kawase tendo
seu corpo marcado com o grandioso desenho que observamos ao
fim da projeção, quando a diretora corre nua por entre um amplo
descampado, em direção a uma alameda. O operador da câmera
corre na tentativa de acompanhá-la, fazendo com que a última
imagem de Kawase em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra seja formulada
a partir de um intenso chacoalhar, tremular, que sempre deixa seu
corpo escapar do enquadramento (figuras 6 e 7). Junto a ela, a foto
do pai ausente, com os braços tatuados à mostra.

Figuras 6 e 7: Uma fotografia do pai de Naomi à esquerda e a realizadora à direita, carregando


uma enorme tatuagem nas costas.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 179


“O mais profundo é a pele”, já disse o poeta Paul Valéry.
Das fronteiras entre o interior e o exterior, o dentro e o fora, a
ausência e o absoluto, o eu e o outro, o passado e o presente, a
arte e a vida (e a morte): o cinema de Kawase se localiza mesmo
no limiar das coisas; entre a superfície (da tela) e a profundidade
(da imagem), entre o corpo e o espírito. Quando questionada
em uma entrevista sobre a necessidade de olhar para trás, como
se a morte de seu pai tivesse encerrado uma etapa na vida da
realizadora, Kawase explica:

Quando estava filmando Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, que é


a continuação de Em Seus Braços, ao enfrentar a realidade da
morte de meu pai, a película se transformou em um filme cujo
“objeto” havia desaparecido. Então entrevistei as pessoas mais
próximas de meu pai, mas algo não se encaixava: qual era a sua
verdadeira forma de ser? No que ele havia se equivocado? O que
o diferenciava das outras pessoas? Ao fim, decidi concentrar-
me na imagem de meu pai que habitava em mim mesma; quer
dizer, dirigir a câmera para o meu interior. Esse ato significou
revisar meu passado e, ao mesmo tempo, foi uma maneira de
me despedir dele (apud LÓPEZ, 2008, p. 136).

Assim, não é a tatuagem per se que importa, mas o gesto e o


desejo de fazê-la, o intenso processo de sua feitura. Esta parece ser
a mensagem que nos deixa Kawase partir da elipse que esconde
propositalmente a realizadora tendo suas costas marcadas ao fim
do filme. Interessa o que foi mobilizado a partir e junto daquelas
imagens imprecisas, daquelas gravações afetivas, daquele passado
reinventado. Daquele modo de se despedir.

Notas finais

Esperamos ter mostrado ao nosso leitor que a partir do


gesto de filmar o que a rodeia, de implicar-se corporalmente
nas filmagens e de atualizar suas memórias, a realizadora
japonesa Naomi Kawase levanta diversos questionamentos sobre
as fronteiras que se interpõem entre sujeito que filma e objeto
filmado, entre natureza e cultura, entre real e fictício, entre vida
e arte. Nesse espaço limítrofe, o seu corpo filmado, inscrito na

180 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


imagem, para nela (e com ela) performar. A mise-en-scène dos
dois filmes que visitamos é feita, por assim dizer, de fragmentos
capturados do tempo que se convertem em poesia a partir das
lembranças da diretora e daquilo que ela faz delas.
O percurso que aqui trilhamos e o diálogo que tentamos
estabelecer entre os campos do cinema – principalmente
apoiados no pensamento de Comolli –, da imagem – convocando
autores como Barthes e Mondzain – e da performance – com as
contribuições de Austin, Auslander e Del Rio – nos parece uma
iniciativa frutífera para pensarmos um tipo de arte tão singular
quanto a de Kawase e, em igual medida, possibilitarmos a
interação entre dois domínios de investigação que se utilizam do
corpo como referência, mas desprezam a ideia de representação
como norte. Tanto Em Seus Braços quanto Céu, Vento, Fogo, Água,
Terra são diários pessoais, são álbuns de família. São formas de
sentir a imagem. De provocar uma experiência fílmica a partir da
autoinscrição: na película, na pele e na carne.

REFERÊNCIAS

ALVIM, Luiza; CRUZ, Nina Velasco. Ritmos e correspondências: a representação


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CÉU, VENTO, FOGO, ÁGUA, TERRA. Direção: Naomi Kawase. Produção: Sent Inc.
& Kumie. Japão, 2001. 1 fita VHS (42 min.), son., color., legendado. Tradução
de: Stuart J. Walton.

182 Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 162-183, JUL/DEZ 2017 183
Helena Solberg:
entre o pessoal e o político*

Karla Holanda
Professora do curso de Cinema e Audiovisual e do PPGCine - Programa de Pós-
graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-203, JUL/DEZ 2017


Resumo: O primeiro filme de Helena Solberg é A Entrevista (1966), curta que discute
o papel da mulher na sociedade. Com considerável parte de sua produção realizada
nos Estados Unidos, a cineasta realiza, em 1994, Carmen Miranda: Bananas is My
Business, longa-metragem sobre a vida da cantora-mito. Em seus filmes, o que
se vê é um interesse pelo pessoal sem perder de vista aspectos políticos. Os dois
documentários destacados são emblemáticos em sua trajetória e permitem discutir
motivações de sua subjetividade.
Palavras-chave: Documentário; Helena Solberg; Autoria feminina; Subjetividade.

Abstract: In 1966 Helena Solberg directed her first documentary, A Entrevista, a short
film that discusses women’s role in society. In 1994 she directed Carmen Miranda:
Bananas is My Business, a feature film about the life of the singer-myth. The two
highlighted documentaries are emblematic in her career and allow us to observe
self-referential and self-expression aspects. Although the intensity of the subjective
dimension varies, the personal and the political always seem to be present in her
films.
Keywords: Documentary; Helena Solberg; Female authorship; Subjectivity.

186 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Mesmo que no Brasil a subjetividade em documentários * Este texto é resultado
da pesquisa do projeto
seja mais presente a partir dos anos 2000, é possível perceber
“Documentário de autoria
vestígios anteriores. Este artigo pretende identificar tais feminina no Brasil”, apoiado
traços, sejam traduzidos em autorreferencialidade ou no uso pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e
da primeira pessoa, em momentos distintos do documentário Tecnológico – CNPq.
brasileiro, sobretudo, a partir de dois filmes de Helena Solberg.
O primeiro é A Entrevista (1966), curta-metragem montado
com o áudio de entrevistas de mulheres de classe média alta,
abordando o papel da mulher na sociedade. Estreia de Solberg
na direção, o filme foi muito pouco visto e discutido no Brasil,
mesmo que traga elementos extremamente originais para
aquele período. O segundo filme que trataremos em destaque
é Carmen Miranda: Bananas is My Business (1994), longa-
metragem que começa a trazer a diretora de volta ao país
depois de larga temporada morando no exterior e que aborda a
vida da cantora-mito, provavelmente o mais conhecido de toda
sua obra. Entre um filme e outro, Solberg realiza uma série de
documentários marcadamente políticos que a faz diminuir a
intensidade da dimensão subjetiva, mas sem perder o interesse
pelo pessoal.
Após A Entrevista, Helena fez ainda no Brasil, Meio-dia
(1970), curta de ficção. Em 1971, a diretora vai morar nos
Estados Unidos, onde permanece por três décadas e realiza uma
dezena de documentários, sendo os três primeiros marcados
por forte teor feminista, assim como A Entrevista. São eles:
The Emerging Woman (A Nova Mulher, 1974), The Double
Day (A Dupla Jornada, 1975) e Simplesmente Jenny (1977).
Em seguida, realiza seis outros documentários enfaticamente
políticos – From the Ashes... Nicaragua Today (Nicarágua Hoje,
1982), Chile: by Reason or by Force (Chile: pela Razão ou pela
Força, 1982), The Brazilian Connection, a struggle for democracy
(Conexão Brasileira, a luta pela democracia, 1982/1983),
Portrait of a Terrorist (Retrato de um Terrorista, 1985), Home
of the Brave (Terra dos Bravos, 1986) e The Forbidden Land (A
Terra Proibida, 1990), sempre explorando questões políticas
de países da América Latina, incluindo o Brasil, em suas
relações com os Estados Unidos, com a igreja católica, com os 1. Solberg ainda fez Brasil
movimentos civis.1 Por essa expressiva filmografia na região, em cores vivas (1997), sobre
“Raça”, a primeira revista
Solberg recebeu no exterior a alcunha, desde The Emerging brasileira negra, produzido
Woman, de “cineasta da América Latina” (VEIGA, 2013, p. 305). para o Channel 4 inglês.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 187


Carmen Miranda: Bananas is My Business é o filme que lhe
reaproxima com maior intensidade do país natal. A partir
de 2003, Solberg volta a residir definitivamente no Brasil e
realiza Vida de menina (2004), sua segunda e última ficção,
e os documentários Palavra (En)cantada (2009), A Alma da
Gente (2013) e Meu Corpo, Minha Vida (2017).
O recorte deste artigo recai sobre o primeiro filme da
diretora e o último que realiza residindo fora do Brasil. Em
ambos documentários, é notória a vontade de compreender e
discutir a sociedade brasileira, ao mesmo tempo que parecem
ser os que mais trazem aspectos autorreferenciais.
Como diz Solberg, fazer documentário para ela:

É estar antenada, ligada no mundo em volta de mim. (...)


Muitas vezes comecei um filme com uma ideia na cabeça e,
à medida que o filme foi avançando e eu fui examinando
aquilo, eu fui mudando, eu fui entendendo outras coisas.
Eu acho que a realidade tem um efeito muito forte sobre
você, um impacto, e você, de repente, tem revelações
(SOLBERG, 2015).

A Entrevista

Em A Entrevista, encontram-se fortemente explícitas


preocupações que marcariam a segunda onda do movimento
2. Não cabe neste artigo feminista, que apenas começava a aflorar no Brasil, com
aprofundar o contexto temáticas ligadas ao interesse das mulheres, como trabalho,
histórico dos documentários
produzidos nos anos 1960 filhos, sexo, casamento, inserção na política, construção
que constituem o cânone de papeis sociais, etc (CAVALCANTE; HOLANDA, 2013).
do documentário moderno
brasileiro. No entanto, parece O material sonoro, captado à parte com a própria diretora
importante realçar que apesar operando um gravador Nagra, é explorado de maneira
de A Opinião Pública (Arnaldo
Jabor, 1967) também tratar da inédita no documentário brasileiro até então – diversas vozes
classe média carioca, o que anônimas constituem um discurso plural e contraditório dos
chamamos atenção é para a
maneira em que a voz off é dilemas enfrentados pelas mulheres na sociedade, afirmando a
utilizada por Solberg, sem diversidade de pensamento e de opiniões dentro de um mesmo
intenção de ser explicativa. Ao
contrário, seu curta explora
grupo social, a classe média alta carioca, da qual Helena fazia
justamente a multiplicidade parte, o que era raro ver naquele momento em que prevaleciam
de vozes que, muitas
duras temáticas sociais, um povo miseravelmente sofrido e
vezes, formam um discurso
impreciso e ambíguo. uma voz over a guiar o espectador.2

188 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Os depoimentos daquelas mulheres são titubeantes, 3. Nos últimos dois minutos
de A Entrevista, que tem 19
hesitantes, como não podiam ser de outro jeito3: além do peso
minutos de duração, o filme
dos assuntos tratados pelo filme, não era habitual personagens traz uma inesperada voz
mulheres ocuparem espaço relevante nos documentários de over, masculina, assertiva,
que faz uma associação
então. As situações trazidas pelo curta lhes corroíam, lhes direta da responsabilidade
chegavam como naturalmente femininas e, estranhamente, elas das mulheres na condução
ao golpe militar; é o único
não estavam lá tão certas disso. O feminismo que recrudescera nos momento em que há uma
Estados Unidos e na Europa nos 1960 fomentava “elementos para tentativa de fazer uma
interpretação da situação
se desmitificar o amor materno e desnaturalizar a maternidade”, pela diretora e seu montador,
assim como denunciava todo modelo de dominação patriarcal Rogério Sganzerla. Discuto
mais essa relação em
(CAVALCANTE; HOLANDA, 2013, p. 137). As falas das mulheres HOLANDA, 2015.
reunidas por Solberg parecem antecipar preocupações que se
tornariam mais correntes no Brasil a partir da década seguinte.
Os depoimentos, em off, são ouvidos enquanto se vê uma
moça (Glória Solberg, cunhada da diretora) desenvolvendo
uma série de atividades – em seu quarto, arruma-se com trajes
de banho para sair; anda pela calçada do bairro; entra numa
loja; deita-se na areia da praia; passa bronzeador no corpo;
prepara-se para o próprio casamento: maquia-se, veste-se como
noiva, vai à cerimônia, parte o bolo. Após o “casamento”, Glória
desfaz-se do figurino de noiva e, sentada ao lado da diretora,
dá o único depoimento direto do filme – nenhuma outra mulher
que fala no curta aceitou ter sua imagem revelada.
Vale destacar alguns depoimentos das variadas mulheres,
como sobre o limite de recentes conquistas femininas:

Eu acho que a mulher deve saber línguas, deve ser


socialmente perfeita (...) [a mulher deve] estar sempre em
dia com o que acontece no mundo; ela precisa ler muito, ter
uma cultura muito grande. Mas ela não precisa se dedicar
a uma coisa; ela pode encher a vida dela com aulas, com
conferências, uma série de coisas, mas não se dedicar a um
trabalho (Trecho de A Entrevista).

Sobre sexo:

Eu acho que o sexo é muito puro, é muito bonito para estar


sendo levado como está sendo levado (...). O pessoal considera
o sexo, sei lá, como uma coisa normal, comum, como beber

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 189


um copo d’água. É normal como beber um copo d’água, mas
você não vai beber um copo d’água sem ter sede, né? (...) Pra
mim, eu preferiria casar virgem, ter relação sexual já casada.
(...) Em muitas horas eu acho que pecar contra a castidade é
uma obrigação (Trecho de A Entrevista).

Sobre emancipação:

Eu gosto muito de liberdade, liberdade que acho que não


teria no casamento (...), tenho horror de ser dominada por
um homem. (...) Eu acho que a independência exagerada da
mulher, da maneira que a mulher está querendo tomar, não
dá certo porque, inclusive, têm mulheres que se destacam
de tal forma que não deixam o homem numa situação muito
confortável. (...) Se eu não tivesse casado, acho que estaria
eternamente infeliz, não satisfeita comigo mesma (Trecho
de A Entrevista).

Um melancólico depoimento:

Eu gostaria de ser uma pessoa ativa, de fazer coisas, mas


é inteiramente contra a minha natureza. Talvez se um dia
eu encontrar uma coisa que realmente me entusiasme, eu
faço. Mas no momento não encontrei uma coisa que eu sinto
que eu me entregaria, que aquilo me tome por inteira, mas
não vejo bem um caminho, talvez uma confusão de ideias...
Me sinto feliz, mas não tenho aquele entusiasmo pela vida
(Trecho de A Entrevista).

No único depoimento sincrônico, Glória Solberg fala direto


para a câmera:

Evidentemente que eu sinto uma série de incoerências em


minha vida, eu resolvi quase que aceitar minha ambiguidade
e minha incoerência em determinadas coisas porque muitas
vezes eu reconheço que não consigo agir exatamente do
jeito que devo. Tenho impressão de que nesse ponto há um
mínimo de lucidez em relação à própria incoerência e à
própria ambiguidade (Trecho de A Entrevista).

190 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Solberg explorava um dilema original no cinema com aqueles
fortes depoimentos de mulheres que tentavam se equilibrar
no impasse entre certa insatisfação pessoal e o papel ao qual
a sociedade insistia em que deveriam se realizar: o de mãe e de
esposa.
As gravações do áudio das entrevistas para o curta foram feitas
em 1964, quando Helena, na casa dos 20 anos, já havia cursado
Línguas Neolatinas, na PUC-RJ; já havia se casado, tido a primeira
filha e morado dois anos nos Estados Unidos, acompanhando o
recém marido (TAVARES, 2014, p. 203-204). Não se pretende
aqui investigar dados biográficos da diretora para demonstrar a
autorreferencialidade direta das problemáticas dos depoimentos
trazidas por A Entrevista e sua vida pessoal. Entretanto, é relevante
ter claro que Solberg, pertencente à classe alta, recebeu boa
educação, era poliglota, lia muito e tinha aguçada curiosidade por
seu entorno. Não é acaso que, para seu primeiro filme, tenha eleito
mulheres de sua mesma condição social e faixa etária para falar de
situações que eram, provavelmente, semelhantes às que ela mesma
atravessava, como uma conversa entre amigas, sem pretensão de
afirmações definitivas.
Na época de seu lançamento, A Entrevista mereceu algumas
matérias em jornais que reconheciam o pioneirismo da diretora. Na
Folha de São Paulo, de 10 de julho de 1967, lê-se: “Após o advento
do Cinema Novo (...) não se têm notícias de mulheres cineastas.
Portanto, Helena Solberg (...) é a nossa primeira mulher no cinema
renovado” (apud VEIGA, 2013, p. 301). Nessa mesma matéria,
a cineasta afirma sua consciência sobre a urgência da mulher se
expressar no cinema, cujo ponto de vista costuma ser masculino: 4. Desde o inaugural artigo
Women’s cinema as counter-
cinema (1973), de Claire
Johnston, teóricas feministas
Se procurei começar um trabalho no cinema, é porque vi nele (Anneke Smelik, Bérénice
Reynaud, Laura Mulvey, Mary
um meio influente de comunicação e expressão. As mulheres
Ann Doane) propõem que
devem usá-lo para expressar suas ideias a respeito da vida, do as mulheres rompam com o
mundo, de tudo. Enriquecer sua visão sobre as coisas, uma efeito de realidade em seus
visão que até hoje concebemos através do homem (SOLBERG filmes, explicitando os modos
apud VEIGA, 2013, p. 301). de produção, aproximando-se
da estética das vanguardas
ou de marcas do cinema
moderno, como forma de se
No Brasil, a partir da década de 1970, surgem muitos filmes opor à prática cinematográfica
hegemônica, tradicionalmente
que abordam e discutem a situação da mulher, explorando (ou regida pelo modelo patriarcal
não) a proposta feminista de um “contracinema”,4 como se vê (VEIGA, 2013, p. 133-139).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 191


em Ana Carolina, Vera de Figueiredo, Tereza Trautman, Ana
Maria Magalhães, Eliane Bandeira, Eunice Gutman, Sandra
Werneck, Rita Moreira, dentre outras.
Ainda cedo, Solberg teve interesse por leituras precursoras
do feminismo que se mostraria em pleno vigor na década
de 1970. O Segundo Sexo (1949), de Simone de Beauvoir, e
A Mística Feminina (1963), de Betty Friedan, já lhes eram
conhecidos quando fez seu primeiro filme. Quando Beauvoir
esteve no Rio de Janeiro no início dos 1960, foi entrevistada
para o jornal estudantil O Metropolitano por Solberg, que
admitiu à escritora que havia lido seu livro, mas o tinha
achado “difícil demais”; e Friedan parece ter lhe influenciado
na estrutura de A Entrevista, armado sob entrevista de dezenas
de mulheres, assim como o livro da estadunidense.
A diretora admite que filmar “é uma busca sempre, de
uma explicação, para entender o mundo, para entender você
mesma, para entender as coisas. Acho que a gente está sempre
procurando um pouco isso” (SOLBERG, 2015). E, de fato, o
que Solberg parece fazer em A Entrevista é transpor sua própria
subjetividade para as anônimas vozes de suas iguais de classe.
Os dilemas que os depoimentos revelam também são seus. As
respostas que o filme desperta – mas não apresenta – advém de
sua vontade de compreender o mundo e a si mesma, como ela
mesma admite em seu depoimento.
A abertura de A Entrevista se dá após os primeiros
depoimentos. A entrada do título e dos créditos, sob sons
seguidos de choro de uma criança, uma reza em latim, vozes
de mulheres e crianças cantando “Parabéns a você” e, por
fim, uma tenebrosa voz de bruxa, como a assustar as crianças
das várias fotos e as diferentes bonecas ao longo da cena. Em
seguida, vemos fotos da fachada de um colégio tradicional, de
colegas de aula, de freiras em seus hábitos, de crianças na 1a
comunhão. Ao longo da sequência, as fotos revelam crianças
cada vez maiores. Das fotos das crianças, volta-se à figura
fictícia de Glória Solberg andando pelas ruas do bairro, sob
cujas imagens voltaremos a ouvir os depoimentos em off.
As imagens utilizadas na abertura são do acervo pessoal
da diretora e das participantes do filme, assim como as bonecas,
que veremos muitas vezes em Carmen Miranda. A referência

192 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


crítica ao universo católico voltará a se repetir nesse filme,
assim como a crítica à sua própria classe social. Reservaremos
comentários a respeito no tópico sobre esse segundo filme,
logo mais.
Ao final de A Entrevista, a “noiva” retira o véu: agora
é Glória Solberg que dá seu depoimento diretamente para
Helena, ambas sentadas num sofá (figura 1).

Figura 1: A Entrevista.

A autoinscrição direta será uma constante nos filmes de


Solberg. Traço de um “contracinema” mesmo antes da proposta
de Claire Johnston em Women’s cinema as counter-cinema
(1973), a presença da diretora em cena lhe situa no set de
filmagem, demonstrando seu total envolvimento com o mundo
que a cerca. Somando-se aos aspectos destacados inicialmente
– os dilemas das mulheres entrevistadas que também podiam
ser seus, a utilização de acervo pessoal e referências ao próprio
universo –, a autoinscrição é mais um elemento que destaca o
impulso à subjetividade que se vê na obra de Solberg. Em pelo
menos nos três primeiros filmes de sua fase nos Estados Unidos
(The Emerging Woman, The Double day e Simplesmente Jenny),
os que são fortemente feministas, também vemos a diretora
se autoinscrever em cena, assim como outras integrantes da
equipe. Em Carmen Miranda igualmente, como veremos.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 193


Carmen Miranda: Bananas is My Business

Carmen Miranda: Bananas is My Business narra a trajetória


de vida e morte da cantora brasileira ocasionalmente nascida em
Portugal. Com utilização de enorme material de arquivo – imagens
do enterro da artista no Rio de Janeiro, filmes da família de Solberg,
shows de Carmen no Brasil e nos Estados Unidos, entrevistas
anteriores, inúmeras fotos, etc. –, o filme ainda dramatiza algumas
cenas com atores, faz novas entrevistas e, acima de tudo, é todo
pontuado pela voz off da diretora, que traz enfáticos enxertos de
elementos autobiográficos.
Em uma cena que inicia com imagens em movimento de pessoas
ricas e bem vestidas, ouvimos a voz off de Solberg: “Encontrei esse
filme feito por um tio meu, feito nos anos 20: uma tarde no Jóquei
Clube”. Em seguida, uma foto de Carmen Miranda, sucedida pelas
imagens em movimento, sob a voz off da diretora:

Carmen era uma menina crescendo no Rio nessa época. A


família dos Miranda e esses frequentadores do Jóquei conviviam
na mesma época, mas eram de mundos que raramente se
encontravam. Essa é uma classe que tem os olhos voltados para
a Europa, onde compram suas roupas e de onde vem também a
maior parte de suas opiniões (Trecho de Carmen Miranda).

Depois vemos fotos de uma rua na cidade com um morro


povoado acima, populares e Carmen Miranda ao lado de sua
irmã, sob a voz da diretora: “Mas os tempos estavam mudando: o
samba descia o morro e invadia as ruas da cidade. Carmen estava
crescendo com ele”. Em seguida, uma foto de Solberg séria, aos sete
ou oito anos de idade, e imagens de freiras, algumas já presentes
no filme de 1966:

Aqui estou eu com cara de preocupada e não muito feliz. Talvez


porque estivesse cercada por freiras demais e samba de menos,
com certeza. Elas estavam tentando fazer de nós moças bem
comportadas. (Trecho de Carmen Miranda).

Helena, em entrevista, diz que aos cinco anos foi aluna de um


colégio de freiras, onde era mascote: “a minha explicação do mundo
foi religiosa”. Na adolescência, ela diz que houve uma revolta contra

194 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


a religião: “não satisfazia mais, não dava mais uma explicação”. Foi
quando ela se aproximou de ex-dominicanos que faziam trabalhos
sociais numa favela e passou a ter necessidade de uma explicação
“mais política” do mundo:

Aos poucos, essa questão começou a se tornar uma experiência


de uma explicação mais política, entendeu? Eu começo então
a deixar para trás esse ranço da religião. Se bem que até hoje
eu adoro a liturgia, eu gosto do ritual, eu acho bonito, eu acho
que tem uma coisa cultural que, mal ou bem, a gente fica
marcada por ela, né? Mas que não tem mais nada a ver comigo
(SOLBERG, 2015).

No início de Carmen Miranda, manchetes de jornais dos


Estados Unidos noticiam a morte da cantora, seguem imagens em
movimento do cortejo de seu enterro no Brasil, acompanhado por
uma multidão a perder de vista. Ouvimos a voz de Solberg:

Quando a Carmen morreu, eu era uma adolescente, mas eu me


lembro da multidão e da confusão nas ruas do Rio de Janeiro
quando seu corpo chegou. Meus pais não me deixaram ir vê-
la. Pessoas como meus pais sempre acham que quando o povo
sai às ruas, seja qual for o motivo, é melhor ficar em casa.
Foi assim que eu perdi minha única chance de ver a Carmen
(Trecho de Carmen Miranda).

Helena Solberg faz um mea culpa de sua classe ao reconhecer


o preconceito e autoritarismo que a elite brasileira tem sobre a
população pobre. Quando diz dos seus antepassados: “é uma classe
que tem os olhos voltados para a Europa, onde compram suas roupas
e de onde vem também a maior parte de suas opiniões” ou: “pessoas
como meus pais sempre acham que quando o povo sai às ruas, é
melhor ficar em casa”, a cineasta revela em 1994 uma contundente
crítica à sua origem burguesa, assim como João Moreira Salles faria
em 2007 em Santiago, e Consuelo Lins, em 2010, com Babás.
Mesmo quando se refere às freiras que “tentavam fazer de nós
moças bem comportadas”, o que implicaria não se misturar com
o povo nem se aproximar do samba, a crítica também recai sobre
sua classe que sabia ter a parte mais conservadora da igreja como
aliada em sua ideologia segregacionista.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 195


Eram restrições impostas por sua condição de mulher
pertencente à elite econômica do país. Após fotos de Carmen
Miranda cantando, sorridente e alegre ao lado de músicos, ainda
no início de carreira, a voz off de Solberg lamenta sua distância
desse universo:

Eu me sentia curiosa a respeito desse mundo de jovens músicos,


cantores e compositores tentando sobreviver. Era um mundo de
homens no qual Carmen aprendeu a se virar muito bem. Esse
mundo me fascinava (Trecho de Carmen Miranda).

É claro o interesse de Solberg pelo “outro”, mesmo


quando fala de si. Os filmes que realiza nos Estados Unidos
entre A Entrevista e Carmen Miranda5 refletem a dura condição
5. À exceção de Meio dia,
econômica, social e política de seu país e da América Latina.
curta de ficção com pegada
experimental que realiza Esse peso histórico acumulado ao longo dos tempos, expresso
em 1970. numa diferença abissal entre pobres e ricos, pode dar certo tom
ressentido em sua autocrítica.
Ao final do filme, entretanto, a diretora parece buscar
apaziguar as queixas à sua condição burguesa, com as quais
sofrera limitações. Antes dos créditos finais, sob sua voz off, uma
foto sorridente de sua mãe ao lado de uma imagem de Carmen
Miranda (Figura 2), põe panos quentes: “Para terminar, eu queria
dizer que a minha mãe, que uma vez não me deixou ir ao enterro
de Carmen, reconciliou-se com ela e agora está tudo bem em casa”.
Com esse final, Helena busca diluir a carga de ressentimento, como
se ouvisse Virginia Woolf dizer que para se alcançar o sublime em
uma obra, é preciso conter a raiva (WOOLF, 2005).

Figura 2: Carmen Miranda: Bananas is My Business.

196 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Entre subjetividades

Ao olharmos o conjunto da obra de Helena Solberg, não


podemos dizer que se trata de uma diretora que persegue um
estilo ou que tenha uma marca definida. Ela parece se deixar
conduzir pela necessidade apresentada por cada filme. E,
dessa forma, tem sido precursora em alguns aspectos do fazer
documentário que só posteriormente se repetiriam em outros
diretores – aspectos como a autorreferencialidade, o uso da
primeira pessoa, a autocrítica à sua própria classe social e a
exploração de temáticas feministas.
Michael Renov observa que entre os anos 1970 e 1990 há
uma efusão de subjetividade nos documentários e acredita que
isso se deve ao clima cultural do período, caracterizado pelo
deslocamento das políticas dos movimentos sociais pelas políticas
de identidade. E o que contribuiu “para essa mudança radical foi
o movimento feminista, cuja reavaliação das estruturas políticas
alternativas anteriores sugeriram que as desigualdades sociais
persistiam” – as mulheres e as questões que lhes importavam
receberam pouca atenção. Com isso, os movimentos ajudaram
a fundar uma era em que questões pessoais tornaram-se
conscientemente politizadas (RENOV, 1999, p. 89).
Embora o autor acredite que esse clima cultural se refletisse
no ocidente, não dá para concordar que sua observação se
aplique aos países ocidentais indistintamente. Acreditamos que
os contextos históricos próprios de cada local podem determinar
suas culturas. No Brasil, por exemplo, só a partir dos anos
2000 se observa certa expansão da subjetividade através da
primeira pessoa nos documentários e não entre os 1970 e os
1990, como fora nos Estados Unidos. O próprio Renov parece
fazer uma revisão do que diz em seu livro publicado cinco
anos depois, The Subject of Documentary (2004). Nele, sugere
que “a tendência autobiográfica seja uma manifestação norte-
americana”, embora não exclusiva (RENOV, 2005, p. 239; 241).
Apoiado pela socióloga Arlie Russel Hochschild, defende que
os “grandes eventos” [históricos] são resultado de um viés
masculino e que “a política agora envolvia a maneira como
os indivíduos, mais que os Estados-nação, se conduziam no
mundo” (RENOV, 2005, p. 240).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 197


Pablo Piedras reconhece a recorrência da primeira pessoa
nos documentários argentinos recentes e observa que boa parte
deles foi realizada por cineastas que moram no exterior e/ou que
foram formados fora de seu país, e acredita poder transferir essa
observação a outros países da América Latina. Os documentários
chilenos em primeira pessoa nos anos 1990 eram de diretores
exilados na França (Patricio Guzmán, Carmen Castillo e Guy
Girard). No México, a diretora Lourdes Portillo se identifica
como chicana e sua obra é estadunidense. Piedras ainda sugere
relação desse tipo de documentário na Argentina com o retorno
da democracia em seu país, em 1983, “pela urgência de abordar
o passado recente e as problemáticas sócio-políticas vigentes”
(PIEDRAS, 2014, p. 46).
Essa tendência não se manifesta com força no Brasil antes
dos anos 2000, quando surgem documentários autobiográficos,
na maioria dirigidos por mulheres. Neles, é igualmente cabível
perceber certa condição estrangeira entre algumas das diretoras.
Nesse sentido, podemos citar os longa-metragens Um Passaporte
Húngaro (Sandra Kogut, 2004), 33 (Kiko Goifman, 2004), Diário
de uma Busca (Flávia Castro, 2010), Marighella (Isa Grinspum
Ferraz, 2012), Uma Longa Viagem (Lúcia Murat, 2013), Elena
(Petra Costa, 2013), Os Dias com Ele (Maria Clara Escobar, 2013).
Mas já faz algumas décadas que historiadores e cientistas
sociais, diz Beatriz Sarlo, têm se interessado pelo excepcional,
aquilo que foge à norma (bruxaria, loucura, literatura popular)
e pelas subjetividades que se destacam por alguma anomalia
(o louco, o criminoso, a iludida, a bruxa). Mas também têm se
interessado pelos sujeitos “normais”, como se verifica desde o
texto pioneiro de Michel de Certeau, A invenção do cotidiano
(1980). Assim, ainda segundo a autora, o passado volta
valorizado em seus detalhes, suas originalidades e curiosidades
que já não se encontram no presente. E os sujeitos marginais,
como as mulheres, que teriam sido ignorados em outros
modos de narração do passado, “demandam novas exigências
de método e tendem à escuta sistemática dos discursos de
memória: diários, cartas, conselhos, orações (SARLO, 2005, p.
17). Parece ser justamente isso que faz Solberg ao dialogar com
os temas e objetos de seus filmes, como se lesse notas de um
caderno com pequenas lembranças, estabelecendo associações
com sua história pessoal.

198 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Helena Solberg é uma exceção em 1966, ao explorar sua
subjetividade a partir de vozes de outras mulheres em A Entrevista
e ao acentuar visivelmente essa característica 28 anos depois, com
Carmen Miranda. É evidente, em muitas passagens desse filme, o
desejo da cineasta em refletir o próprio trajeto que traçara para sua
vida e se colocar no lugar da cantora que, assim como ela, morou
um longo período nos Estados Unidos.
Por outro lado, isso não significa que Solberg tenha se fixado
ao pessoal ou às subjetividades autorreferenciais em toda sua obra.
Seus filmes realizados nos Estados Unidos, em geral feitos para a
televisão, têm caráter de engajamento político e certo compromisso
em revelar formas de vida e dramas sócio-políticos em países da
América Latina. Embora também se encontrem neles elementos
que cultivam a subjetividade, não se pode dizer que predominam,
não são tão livremente explorados. Importante lembrar que,
convencionalmente, a televisão costuma ter expectativas de
modelos tradicionais em relação ao documentário independente.
Mesmo assim, Solberg ainda consegue manter significativa carga
criativa e quase sempre, mesmo abordando questões amplas,
destaca indivíduos ou pequenos grupos, valorizando suas
experiências singulares e, assim, evitando o autoritarismo do
discurso que apresenta a realidade como unívoca, objetiva.
Depois de The Emerging Woman (1974), ampla investigação
da história do feminismo realizada com fotos e textos, seus filmes
seguintes reforçam um gradual envolvimento com o ambiente e
os participantes do filme, que passam a ser mais individualizados.
Vale exemplificar com personagens de dois filmes que ela própria
nos contou terem lhe marcado de maneira especial. A primeira é
uma adolescente de 13 ou 14 anos com histórico de estupro e que
naquela ocasião já era prostituta. A garota, que conheceu na Bolívia
ao fazer The Double Day (A Dupla Jornada, 1975) e que se tornaria
protagonista de Simplesmente Jenny (1977), vivia num imaginário
fantasioso totalmente distante de seu cotidiano “brutal”:

Ao mesmo tempo que a realidade dela era uma coisa brutal,


ela usava linguagem de fotonovela (...). Era uma confusão
mental... No final, eu disse: “Vem cá, Jenny, me diga uma coisa,
o que realmente você queria ser?”. Aí ela virou para mim e
disse “Simplesmente Jenny”. Achei aquilo tão sensacional, tão
bonito, que ficou o nome de um filme. Têm esses momentos
que são preciosos (SOLBERG, 2015).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 199


Ou seja, a diretora demonstrava interesse por aspectos
“menores”, que distinguem o indivíduo de alguma categoria
abrangente. Em outro momento em que esteve próxima de um
ambiente e situação violentos foi em The Forbidden Land (A Terra
Proibida, 1990), filme que fala da Teologia da Libertação e da
reforma agrária. Solberg foi a São Luís entrevistar um suspeito da
morte do Padre Josimo, que estava num presídio “absolutamente
horrível” e aconteceu o inesperado:

Ele confessou o crime em frente à câmera! Ele não tinha


confessado ainda... e nós registrando. E eu disse para ele:
“como você fez isso...?”. Eu fiquei completamente perplexa e
ele disse: “o mandante veio, pagou, disse que o cara era um
padre, [disse] para eu ir lá olhar ele. Eu fui olhar de longe,
vi aquele homem barbudo, com sandália de dedo e eu, que
fui coroinha, [achava que] padre para mim tinha que usar
batina. Aí não deu outra, eu mandei bala”. Eu: “Nooossa! E
você matou?”. “Matei”. Depois, isso foi usado no julgamento
dele e ele foi condenado (SOLBERG, 2015).

No entanto, para uma brasileira vivendo nos Estados Unidos


durante a guerra fria, o contexto político-social da América
Latina, assolada por ditaduras militares, parecia muito urgente.
Aqui cabe trazer Joris Ivens. Após o experimentalismo de seus
primeiros filmes, A ponte (1928) e Chuva (1929), o cineasta
holandês deliberadamente suspendeu, a partir da década
seguinte, os “prazeres pessoais” daquela pesquisa estética, ao
assumir compromisso social explícito diante dos trágicos dramas
trazidos pela Depressão e pelo prenúncio da Segunda Guerra. Em
relação a Misère au Borinage (Joris Ivens e Henry Storck, 1934),
filme sobre a luta de mineiros e autoridades durante uma greve
na Bélgica, Ivens diz que seu objetivo era “impedir que efeitos
fotográficos agradáveis distraíssem a audiência das verdades
desagradáveis que estávamos mostrando” (IVENS apud RENOV,
2005, p. 249).
De forma análoga fez Solberg, ao optar por enfatizar
realidades difíceis, abrindo mão de explorar mais enfaticamente
suas preocupações interiores. É possível discordar do efeito dessa
opção, mas o que nos interessa é perceber motivações quanto
a determinadas práticas do documentário de Helena Solberg.

200 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Investigando histórias em países da América Latina cujas
populações, de maneira geral, viviam sérios problemas causados
pelo atraso político, social, econômico e cultural, acentuados pelo
retrocesso das ditaduras e, por outro lado, tendo que conviver
com o senso comum distorcido das interpretações da mídia e do
governo dos Estados Unidos sobre essas realidades, a urgência
de Solberg não era agora por imperativos de ordem pessoal. O
interesse por subjetividades pessoais cediam algum espaço a
modelos claramente politizados, a abordagens históricas largas.
Solberg demonstra ter plena noção da especificidade
de ser cineasta de um país subdesenvolvido: as diferenças
dos problemas em relação aos países desenvolvidos, onde a
classe média é predominante, é determinante. Segundo Veiga
(2013, p. 306), em uma entrevista que deu à Folha de São
Paulo em 1967, Helena diz que conhecia os filmes de Agnés
Varda mas que, pelo fato de viver num país subdesenvolvido,
estava distante anos da diretora francesa, que nessa época já
havia realizado mais de uma dezena de filmes, entre curtas
e longas. O caráter ensaístico e auto reflexivo, marca que
muito caracteriza os filmes de Varda, de fato, não seria tão
acentuadamente utilizado por Solberg, que sempre daria
prioridade aos contextos histórico-culturais, mesmo que os
buscasse a partir de sua própria história pessoal. E, mesmo
quando mais disposta a determinâncias históricas, sobretudo
nesses filmes das décadas de 1970 e 1980, impulsionada pelas
urgências sociais e políticas, Solberg também utiliza escalas
reduzidas em suas abordagens, destacando a individualidade
de personagens, como vimos acima, escapando de verdades
prontas, acabadas.
É a um anseio pessoal, mais que a uma história político-
social ampla, que Solberg parece saciar quando realiza A
Entrevista, tornando-se, provavelmente, a primeira cineasta a
questionar o papel da mulher na sociedade sob os lemas da
segunda onda do feminismo, ainda em 1966. Nesse momento,
a maioria dos filmes realizados no Brasil não compactuava com
esse aparente “individualismo” do curta de Helena. As questões
feministas não eram prioridade diante dos graves problemas
sociais e políticos, ou seja, diante dos “grandes eventos”. Na
verdade, o que Solberg fez foi praticar o slogan “o pessoal é
político”, antes mesmo de Carol Hanisch lançá-lo em 1969.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 201


A Entrevista e Carmen Miranda: Bananas is My Business são
como duas extremidades de uma imaginária ponte, alicerçada
pelo desejo de compreensão do mundo. Por sobre a ponte, onde
prevalecem os filmes feitos para a TV nos Estados Unidos nas décadas
de 1970 e 1980, está o mundo externo embalado por acontecimentos
amplos. Nas extremidades, a subjetividade interior, sem receio de
embaralhar as esferas públicas e privadas, o pessoal e o político.
Se em A Entrevista, o impulso da subjetividade já se insinua, em
Carmen Miranda: Bananas is My Business ele se revela cristalino e
acompanhado de riscos compensadores.

REFERÊNCIAS

CAVALCANTE, Alcilene; HOLANDA, Karla. Feminino Plural: história, gênero e


cinema no Brasil dos anos 1970. In: BRAGANÇA, Maurício de; TEDESCO,
Marina (orgs). Corpos em projeção: gênero e sexualidade no cinema latino-
americano. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2013. pp. 134-152.
HOLANDA, Karla. Documentaristas brasileiras e as vozes feminina e masculina.
Significação – Revista de Cultura Audiovisual. São Paulo, v. 42, n. 44. dez.
2015. pp. 339-358.
PIEDRAS, Pablo. El cine documental en primera persona. Buenos Aires: Paidós,
2014.
RENOV, Michael. Investigando o sujeito: uma introdução. In: MOURÃO, Maria
Dora; LABAKI, Amir (orgs). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005,
pp. 234-257.
RENOV, Michael. New subjectivities: Documentary and Self-Representation in the
Post-Verité Age. In: WALDMAN, Diane; WALKER, Janet (editors). Feminism and
documentary. Minneapolis: University of Minnesota, 1999. pp. 84-94.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São
Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
SOLBERG, Helena. Helena Solberg: depoimento [10 de agosto, 2015].
Entrevistadora: Karla Holanda. Rio de Janeiro, 2015. Entrevista concedida ao
Projeto Documentaristas Brasileiras.
TAVARES, Mariana. Helena Solberg: do cinema novo ao documentário
contemporâneo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2014.
VEIGA, Ana Maria. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos,
fugas, especificidades. Tese de doutorado em História Cultural. Universidade
Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

202 Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


FILMES

A Alma da Gente. Direção: Helena Solberg. Brasil, 83’, 2013.


A Entrevista. Direção: Helena Solberg. Brasil, 20’ , 1966.
A Ponte (De Brug). Direção: Joris Ivens. França, 11’, 1928.
Babás. Direção: Consuelo Lins. Brasil, 21’, 2010.
Brasil em Cores Vivas. Direção: Helena Solberg. Brasil, 30’, 1997.
Carmen Miranda: Bananas is My Business. Direção: Helena Solberg. Brasil, 92’, 1994.
Chile: by Reason or by Force. Direção: Helena Solberg. EUA/Chile, 60’, 1982.
Chuva (Regen). Direção: Joris Ivens. Holanda, 12’, 1929.
Diário de uma Busca. Direção: Flávia Castro. Brasil, 105’, 2010.
From The Ashes... Nicaragua Today. Direção: Helena Solberg. Nicarágua, 60’, 1982.
Home of the Brave. Direção: Helena Solberg. EUA/Brasil/Suíça, 58’, 1986.
Marighella. Direção: Isa Grinspum Ferraz, 100’, 2011.
Meio-dia. Direção: Helena Solberg. Brasil, 11’, 1970.
Misère au Borinage. Direção: Joris Ivens, Henry Storck. Bélgica, 28’, 1934.
Os Dias com Ele. Direção: Maria Clara Escobar, Brasil, 107’, 2013.
Palavra (En)Cantada. Direção: Helena Solberg. Brasil, 84’, 2009.
Portrait of a Terrorist. Direção: Helena Solberg. EUA/Brasil, 28’, 1985.
Santiago. Direção: João Moreira Salles. Brasil, 80’, 2007.
Simplesmente Jenny. Direção: Helena Solberg. Bolívia, 32’, 1977.
The Brazilian Connection, a struggle for democracy. Direção: Helena Solberg.
EUA/Brasil, 58’, 1982/1983.
The Double Day. Direção: Helena Solberg. Arg./México/Bolívia/Venezuela, 54’, 1975.
The Emerging Woman. Direção: Helena Solberg. EUA, 40’, 1974.
The Forbidden Land. Direção: Helena Solberg. EUA/Brasil, 58’, 1990.
Uma Longa Viagem. Direção: Lúcia Murat. Brasil, 95’, 2011.
Vida de Menina. Direção: Helena Solberg. Brasil, 101’, 2004.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 184-225, JUL/DEZ 2017 203


Já visto jamais visto:
devir memória ou a potência
histórica na escrita de si*

Roberta V eiga
Professora adjunta do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017


Resumo: No rastro do processo de escrita de si do cineasta Andrea Tonacci, em seu
filme Já visto jamais visto (2013), busca-se o modo como a relação frágil e lacunar
entre passado e presente apanha o duo, história e memória, em sua potência
imaginária. Trata-se de, ao perscrutar os diversos encadeamentos realizados entre
sons e imagens heterogêneas, levar o filme a uma forma de análise que ressalte
como e porque o cinema autobiográfico pode desviar-se de uma concepção linear
e racionalista da história, vinculado a um dever memória, para abrir-se ao devir
memória. Acontecimento próprio ao processo de montagem que esse cinema
de arquivos pessoais desencadeia, tal devir coloca o sujeito do filme (escavador,
cineasta e personagem), e, com ele, o espectador, frente ao passado não como um
construto mnemônico a se preservar, mas como lampejos do que se foi e do vir a ser:
imagens prestes a se tornarem outras.
Palavras-chave: Escrita de si; História; Devir memória

Abstract: On the trail of the filmmaker Andrea Tonacci’s self-writing process, in


his film Seen, ever seen (2013), we seek the way in which the fragile and gaping
relationship between past and present captures the duo, history and memory, in its
imaginary potency. By looking at the various chains made between heterogeneous
sounds and images, it is intended to take the film into a form of analysis that
highlights how and why autobiographical cinema can deviate from a linear and
rationalist conception of history, linked to a duty of memory, to open up to become
memory. Because it is an event proper to the montage process of personal archives’
cinema, the becoming puts the subject of the film (excavator, filmmaker and
character) and the viewer in the face of the past, not as a mnemonic construct to be
preserved, but as flashes of what has been and can be: images about to turn others.
Keywords: Self-writing; History; Become memory

206 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


Para o historiador Pierre Nora, a memória foi arrancada da
história justamente porque não a vivemos mais como experiência
própria ao nosso cotidiano em sua forma espontânea, viva, plural,
em sua oscilação produtiva entre esquecimento e lembrança.
Quando o passado não é mais constituinte do presente, a
irrigá-lo com seu imaginário, a atravessá-lo nos hábitos, gestos,
objetos e saberes, o esquecimento se torna um fardo pesado que
empurra a memória para fora da história. A história, por sua
vez interpelada por uma vocação cientificista, preocupada em
resgatar a continuidade do tempo, busca conservar o passado em
lugares apartados de memória, lugares de preservação de uma
herança consolidada em seus mais evidentes símbolos, que se
prestam apenas à certeza de que não é preciso se preocupar com
o que se foi. Para Nora, esses lugares vivem do sentimento que
não há memória espontânea daí “que é preciso criar arquivos,
manter aniversários, organizar celebrações... operações que não
são mais naturais” (1993, p. 13). Enquanto um evento atual,
um elo vivido no eterno presente, a memória é subtraída pela
história em seu afã de reconstrução do passado. Sua dimensão
afetiva e mágica é domesticada por uma função intelectual.
Nesse contexto, como diria Hartog (2013, p. 14-15), a memória
se impõe como um dever, que responde ao presentismo, à
sua relação fraturada com o passado, com a tradição, com
ancestralidade, com a velhice, transformando tudo em arquivo.
Nesse contexto, Nora chama atenção para os sujeitos comuns
que se tornam “historiadores de si mesmo” (1993, p. 17),
produzindo e arquivando imagens, transformando suas próprias
vidas em videobiografias individuais.
Na contramão desse desejo de preservação de si de tais
videobiografias, o filme Já visto jamais visto (2013), de Andrea
Tonacci, ao instituir-se por meio de uma tecitura memorialista e
autobiográfica, encarna imageticamente, através da experiência
subjetiva e do trabalho do tempo, um gesto histórico em
tudo oposto ao historicismo (esse de matriz racionalista). A
história deixa de ser entendida como um resgate do passado
numa cronologia de fatos evidentes e é experimentada como
um sentimento vivido na experiência e no presente do filme:
processo e espectatorialidade. Ao contrário de condenar o
cinema a um desses lugares repositórios de memória, Já visto
funciona como um complexo operador de temporalidade, no

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 207


qual a memória enquanto desejo pela presença de uma ausência
se faz devir.
Ao se voltar para mais de 40 anos de trabalho, arquivos
de imagens em vários formatos, o cineasta encontra a memória
como esquecimento, visto que ela não está lá depositada nos
rolos de filme, mas só existe, como diria Walter Benjamin, no
“tecido da rememoração” (1994, p. 37) a ser urdido no ato de
revisitar as imagens e montá-las cinematograficamente.

****

Se o projeto de Olho por Olho (1965), filme de estreia de


Tonacci, nasce das conspirações juvenis e Blablablá (1968), da
ânsia contida nos primeiros passos políticos de um jovem, Já
visto jamais visto (2013) parece ter origem na angústia de um
homem vivido frente a experiência da memória.
“O tecido do tempo é fundamentalmente lacunar e a
continuidade temporal não deve ser entendida como um dado,
mas como uma construção do sujeito, diante sobretudo da
angústia que significa para ele, o ato de reviver o desaparecido
(e, por tanto, o descontínuo), de enfrentar a morte”, afirma Lucia
Castello Branco (1990, p. 41), na esteira de Gaston Bachelard.
Para Bachelard, o tempo não é uma dimensão exterior ao sujeito,
mas o resultado da maneira como ele aí se inscreve. Ao se voltar
para o passado, o continuum é um desejo do sujeito de organizar
“a desordem e o caos que a vida o submete” (BRANCO, 1990,
p. 42). Tonacci parte desse desejo que é também um desejo
de cinema: o caos está lá nos filmes, nos pedaços de histórias
e ficções, nas fotografias e arquivos de família, que mesmo
catalogados, dispõem o tempo nessa dimensão descontínua,
onde qualquer tentativa de linearidade enfrenta saltos e buracos,
e se dispersa tal qual a memória.
O cineasta afirmava que durante a elaboração do projeto
do filme, era difícil para ele casar suas lembranças (afetos
e sensações) com as imagens que teria feito ao longo de sua
1. Conferir MOURÃO, Patrícia. vida.1 Dupla angústia, aquela própria à escrita de si que ao
Do arquivo ao filme: sobre Já
visto jamais visto. In: Devires,
debruçar-se sobre o passado encontra o esquecimento e a do
v. 9, n. 2, 2012, pp. 92-105 cineasta cujo esquecimento não pode ser sanado pela imagem

208 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


preservada do passado. Dupla impossibilidade do gênero
autobiográfico, e sua lógica ilusória: a primeira, a pretensão
dos textos confessionais de uma permanência narrativa daquilo
que já não é; e a segunda, própria ao cinema do eu, depositar
no registro, no arquivo-imagem, a possibilidade de preservação
da memória em sua continuidade. Mas é justamente nessa
impossibilidade da memória que reside a grande potência das
formas de escritas de si. É no caminho de busca pelo o que já
foi que se edifica o que ainda não é, ou seja, ao voltar-se para o
passado e encontrar lacunas e vazios, é só mesmo no presente
que o sujeito pode construir um vir a ser, alguma coisa que se
coloca entre o passado como existente e o esquecimento dele,
entre o passado como fato de vida e sua insustentabilidade no
tempo: a obra, ela mesma, como memória. Eis o trabalho do
filme de Tonacci, transitar por entre reminiscências, que ao
contrário de um dever biográfico e histórico cuja pretensão seria
reescrever o passado cronologicamente, se funda na memória
enquanto obra, processo, construção, atravessada que é pelo
esquecimento, portanto um tecido poroso e esgarçado, que
através da montagem aberta ganha materialidade expressiva.
O eu autobiográfico tem aqui a espessura deformante do qual
nos fala Paul De Man (2012): não é o sujeito fora do texto, ou
cineasta que segura a câmera e a vira para si, e nem tampouco
uma identidade fixa no construto, mas um traço de si, um
fragmento, que nunca se dá por inteiro.

Inscrito nesse absurdo projeto de captura/invenção do vivido,


o sujeito inventará a si próprio como sujeito de linguagem,
como sujeito de memória. Também ele se reduzirá a um traço,
a um signo virtual (ou um significante vazio, na acepção
lacaniana), a ser apenas precária e momentaneamente
preenchido na instância discursiva (BRANCO, 1990, p. 75).

Por não tentar preencher o passado de uma vida pessoal ou


do cinema brasileiro, mas por acontecer nessa impossibilidade
de volta no tempo que lhe é constituinte, Já visto jamais visto se
distancia do dever de memória, e se lança a um devir memória,
ou seja, a um tornar-se memória. Devir memória esse no qual
o passado só é no presente como aquilo que, sempre prestes a
desvanecer, acontece como lampejos – a reminiscência ela mesma

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 209


2. “Sem dúvida, para que haja – num entre lembranças e imaginação, fatos e sonhos, figuras e
um sentimento de passado,
sombras, construções próprias ao imaginário. Em detrimento de
é necessário que ocorra uma
brecha entre o presente uma aposta na volta ao passado, seja através de (re)encenações
e o passado, que apareça de acontecimentos, (re)visitações a lugares do passado, ou do
um “antes” e um “depois”.
Mas trata-se menos de uma uso excessivo de arquivos domésticos, como é comum em obras
separação vivida no campo autobiográficas – que traçam uma continuidade temporal ao
da diferença radical do que
um intervalo vivido no modo narrativizar um roteiro, enredo, familiar – Já visto jamais visto
de filiação restabelecida” sugere uma relação com o passado marcada pela distância
(NORA, 1984, p. 19). Nessa
perspectiva, caberia ao em relação às imagens, pela natureza ficcional de qualquer
cinema essa operação de, ao pertencimento, na indiscernibilidade entre o eu, o cineasta, o
montar, colocar em relação
passado e presente. personagem e o cinema. Ao internalizar a descontinuidade entre
passado e presente em sua forma, numa montagem que justapõe
3. O dever de memória materiais, texturas e ambiências heterogêneas, esse cinema expõe
nesse contexto de obsessão a própria história, como parece desejar Nora (1984, p. 19),2
pelo arquivo, para Nora,
pode ser definido nesta colada a uma operação de pôr em relação.
asserção: “O sentimento de
um desaparecimento rápido É justamente porque a memória se constitui no processo de
e definitivo combina-se à feitura do filme, e não como algo fora que precisa se resgatar
preocupação com o exato
significado do presente e ou se conservar como um patrimônio subjetivo, que ela não se
com a incerteza do futuro coloca como um dever, mas como um desejo, o desejo da presença
para dar ao mais modesto
dos vestígios, ao mais de uma ausência, cujo o conteúdo é um devir, o devir cinema.
humilde testemunho Ao contrário do que diria Nora (1984, p. 14), sobre um certo
a dignidade virtual do
memorável” (1984, p. 14). uso abusivo do arquivo-documento que obedece ao dever de
memória,3 o cinema aqui recorre ao arquivo menos como um
4. “Se habitássemos ainda suporte material, lugar de fixação do passado, do que uma zona
nossa memória, não teríamos fronteiriça onde à história só resta sobreviver ruidosa, rugosa,
necessidade de lhe consagrar
lugares. Não haveria lugares porosa, uma vez que o próprio ato cinematográfico, a montagem
porque não haveria memória principalmente, é que vai habitar a memória4 confundindo e
transportada pela história.
Cada gesto, até o mais embolando presente e passado. Aqui habitar o lugar da memória
cotidiano, seria vivido como é habitar o lugar do cinema que se sabe incompleto, e, por aí, num
uma repetição religiosa
daquilo que sempre se fez, só ato, transformar e ser transformado por esse espaço (no qual
numa identificação carnal se habita). Pois, como sabemos, em partilha com Gilles Deleuze
do ato e do sentido. Desde
que haja rastro, distância,
(1977), no devir, aquilo que alguém se torna muda tanto quanto
mediação, não estamos ele próprio.
mais dentro da verdadeira
memória, mas dentro da É como se Tonacci, ao se colocar em obra, no gesto que funda
história. (...) A história é
a reconstrução sempre
uma escrita de si, estivesse sempre a um passo de se tornar um
problemática e incompleta traço da memória para se tornar cinema ou vice-versa. Já visto...
do que não existe mais. A
então só poderá ser um filme feito de filmes, pedaços de filmes
memória é um fenômeno
sempre atual, um elo vivido feitos e outros por fazer, ficcionais, documentais e caseiros, que
no eterno presente; a história, por manter mesmo como obra acabada sua dimensão inacabada
uma representação do
passado” (NORA, 1984, p. 19). e aberta, fará suspeitar do estatuto referencial da imagem, de ser

210 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


imagens de pessoas ou coisas, e se configurará como aparições
prontas a desaparecerem no próprio lampejar e apagar das
imagens-memórias. No registro de um cinema devir memória,
as imagens operam entre sujeitos e produzem sentido entre elas
mesmas, como queria Jean Luc Godard (DELEUZE, 1996, p. 57-
58). Por mais que vejamos esse filme, jamais o veremos inteiro,
há sempre algo que falta e algo que vem, e ele será ao mesmo
tempo já visto e jamais visto, de forma que o tornar-se outro
nunca se esgote. Daí a espera de um terceiro, o espectador que
ainda virá, como constituinte do filme nessa dialética insolúvel.
“O terceiro não ocupa o lugar do todo porque a imagem é um
regime de deslocação, no sentido próprio da palavra. A imagem
não tem lugar. Utopia e distopia, ela instaura a temporalidade
histórica de uma circulação de lugares” (MONDZAIN, 2011, p.
109). O terceiro é outro que constitui o si da escrita, o si do
sujeito.
Difusos e sobrepostos, propomos adentrar a obra por três
tomos: o filho, o cineasta, e o pai. O primeiro tomo O filho,
tem como base o filme inacabado, Paixões, de 1994, que apesar
de se apresentar como o dispositivo disparador da obra não é,
como o cineasta mesmo admite, um epicentro. Análogo a uma
teia mnemônica, Já visto jamais visto não tem núcleo, mas
passagens, deslocamento, e essas partes deslizam e se ramificam
umas sobre as outras.

O filho

Na casa de campo de Tonacci, em Extrema (entre Minas


e SP), entre serras e sons de sapos, um filme está sendo feito.
Após a claquete, o menino, o filho, se prepara para dormir. O
palhaço da velha caixinha de música dança desengonçado, e
então somos lançados ao que parece ser o sonho do menino.
Escondido no meio do mato, o menino vê um objeto rolar junto
com a terra que o trator arrasta. Ao pegá-lo, ele foge como
quem achou algo precioso, talvez um tesouro, desses que os
meninos das histórias de aventuras, exploradores e piratas
desejam encontrar: uma botija, que pode conter moedas,
pedras preciosas, ou coisas mágicas. Mas um homem com
uma lupa está em seu encalço. Pela lupa, ele vê o menino que

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 211


anda pelo mato carregando o valioso objeto até encontrar sua
casa no alto de uma árvore. Com destreza ele tira tudo que há
dentro da botija, e se depara com uma enorme chave sorrindo
como se reconhecesse o objeto esperado.

Uma chave pesada de ferro, que parece ter vindo de um


outro tempo, de um passado remoto, e tudo que ela pode
abrir no universo infantil: armários ou baús velhos, a porta
de um casarão, ou até mesmo, de castelos, tesouros, de outros
mundos da literatura infanto-juvenil. Refugiado em sua cabana
o menino esconde a chave num baú de madeira. O homem
se aproxima, olha pra cima e lá está o menino a lhe encarar
com um rifle na mão. Os olhares se encontram – um corte, o
som de um trovão e não saberemos mais nada desse encontro,
inacabado ele jamais será visto.
A próxima imagem surge do escuro, um homem de cabelos
longos que parece vindo do passado ou de um filme de mistério
olha pela janela. Uma cobra num vidro, formigas sobem numa folha
verde, um inseto passeia num fino véu branco, tudo parece maior,
parece visto pela lupa e tudo se confunde em sobreimpressões (que
repetidas em vários momentos, como estratégia de montagem

212 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


recorrente, aproximam ainda a mais o mecanismo do filme àquele
da memória e dos sonhos (do imaginário)). Tudo se passa como
se o cinema fosse capaz de performar a própria memória. O som
de trovão, do inseto, do sino da casa que toca várias vezes, e da
chuva que cai com força se tensionam criando uma ambiência
de suspense, um misto de passado e natureza, elementos
incontroláveis e misteriosos. O som que se segue como o rufo de
um gongo, instrumento chinês do século XVI, e as pinturas que
cobrem também parecem vir de um passado distante e impõem
uma tensão. Estamos dentro da casa, quando a sombra intrigante
de um homem de gorro e uniforme militar surge em quadro.

O homem, Tonacci, é na verdade o pai que vem velar o sono


do menino explorador, seu filho, Daniel. A câmera fecha no rosto
da criança, e é dali que sai mais uma vez como se o universo que
estamos prestes a adentrar novamente emanasse do sono do
menino, como uma imagem onírica. Através da janela, ela agora
nos levará não mais para as serras que circundam aquela casa de
campo onde a aventura do pequeno explorador tem lugar, mas a
um portal escuro que se abre para um pátio iluminado cercado por
enormes construções antigas, de janelas e portas arredondadas. É
Mantova, uma comuna italiana fundada em 2000 AC.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 213


O mesmo caçador de objetos perdidos, vai então explorar
o mundo antigo. Ele perambula entre pedras, lagos e pontes,
gigantes etruscos, torres e escadarias, até chegar à imensa porta
de uma igreja, um plano de detalhe mostra uma fechadura
gigantesca, o menino coloca o dedo, como se lembrasse da
chave que guardara em sua casa da árvore. A fechadura parece
exata pra ela, mas como acontece no sonho, na memória, e na
imagem, o objeto preciso já não está mais ali, é uma ausência,
ou já se transformou pelo mecanismo de deslocamento próprio
do sonho e análogo à operação transformadora da memória.
Como diria Benjamin sobre Marcel Proust, “a semelhança entre
dois seres, a que estamos habituados no estado da vigília é
apenas um reflexo impreciso da semelhança mais profunda que
reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos não são
nunca idênticos, mas impenetravelmente semelhantes entre si”
(BENJAMIN, 1994, p. 39).

214 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


Do vidro de uma cabine telefônica, vemos a cidade. Enquanto
o menino folheia uma revista o pai diz, em italiano, “meu nome é
Andrea Tonacci”. O nome próprio, essa presentificação de uma
ausência, a nomeação do sujeito que falta, vem anunciar uma
mudança no estatuto da imagem. Aquelas que se assemelhavam ora
ao sonho de menino, ora a uma lembrança de infância – do pequeno
infante para quem todo o mundo é grande –, ora a um filme de
ficção, protagonizado pelo menino caçador de relíquias, filho do
militar, dão lugar a um filme de família, um diário da viagem que
Tonacci fez com Daniel ao seu país natal. Mas o filme de família
nessa vizinhança, criada na montagem, desterritorializa o gênero –
esse no qual arquivos de momentos em família se acumulam – e
remete à singularidade de uma vida, sua ancoragem num lugar e
situação, onde o texto da memória marca sua existência, como diria
Jacques Derrida (1973), na borda de toda ficção.
Já nesse primeiro tomo, no encontro entre um filme inacabado,
Paixões, e um arquivo de família, Tonacci em seu devir memória
assinala a correspondência entre o cinema, o sonho de uma criança,
e todo um passado, pois deles só temos vestígios. Ele parece nos
mostrar que na matéria que constitui esses territórios imaginários,
entre as imagens como registros de um momento vivido, se instalam
outras imagens, traços que funcionam como rastros de um passado
perdido, que as relíquias (mágicas e misteriosas, reais e fragmentadas,
vividas e fantasiosas) tornam parcialmente manifesto. O traço é então
aquilo que aponta para a coisa, significa-a, sem fazê-la aparecer. Que
será entendido por ele como um signo peculiar, “um efeito-signo,
que funcionará como vestígio, como marca de uma passagem, de um
transporte no tempo, de um entre-lugar” (BRANCO, 1990, p. 74).
No filme de Tonacci, o menino pode estar na Itália e ao mesmo
tempo sobrevoando Nova York, pode andar nas pedras ou nas
nuvens, pode estar no presente da viagem com o pai e no passado
remoto de uma civilização etrusca.
Pouco depois que a criança acorda, assistimos a uma filmagem
de bastidores de Paixões, feita durante um almoço na casa de campo
em que Tonacci, o pai, se revela o diretor do filme e conversa com o
homem da lupa, o ator Joel, enquanto o filho brinca por perto. Nesse
momento, vão aparecer os objetos que compõem ou comporiam a
história ficcional do filme inacabado, a cobra no pote de vidro, a
chave, a botija, uma bíblia de 1884, e uma pequena escultura de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 215


Jesus crucificado, tudo que Tonacci exibe com admiração, como
relíquias verdadeiras de uma ficção, ele também um caçador
delas, ele que costumava examinar as pinturas, as fotos, as
imagens com uma lupa.

O cineasta

Enquanto diz “é esse o Cristo”, Tonacci sustenta a imagem no ar,


que se dissolve na primeira das várias cenas de seus outros filmes, já
vistas e jamais vistas, que agora estão como ele mesmo diz, “de volta
ao mundo” (TONACCI, 2012, p. 140). É o cinema brasileiro que vai
surgir na tela, porém, longe de qualquer história que o catalogue, de
qualquer cronologia, de um dever de memória que busque preservá-
lo como patrimônio, mas num regime de historicidade próprio à
vertigem do processo de feitura do filme, do gesto de montagem
e das escolhas de Tonacci aberto ao passado como afeto. Achadas
numa arqueologia similar à do escavador de memórias, cada cena
ali é também uma relíquia tal qual os objetos que o diretor exibe
como elos fundamentais que constituirão sua ficção, peças cheias
de mistério, mas também precisas ao designarem por si mesmas um
emaranhado de fios históricos, dentro da história do filme. Assim
são as cenas dos filmes, elas apontam para elas mesmas como
um conjunto de elementos formais e diegéticos que compõe uma
imagem e uma narrativa tanto histórica quanto fictícia, mas apontam
também para fora delas, um fora-de-campo, uma constelação de
outras cenas e filmes que compõe ou poderia compor o cinema de
Tonacci, a história do cinema imiscuída à história do Brasil.

216 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


Se antes – na casa de campo, refúgio de Tonacci contra
a cidade, sono e sonho de infância, mistério e aconchego do
campo – parecíamos estar no devir cinema da memória, aqui
parece que nos instalamos no devir memória do cinema. O gesto
autobiográfico de Tonacci, seu arquivo pessoal, se mistura com
o próprio cinema brasileiro. As escavações não são mais das
relíquias de um passado remoto, a chave para a infância na Itália
de onde Tonacci saiu aos 11 anos, mas de um passado bem mais
próximo, quando no final dos anos 1960, já no Brasil, a rua era
o lugar de encontro do jovem cineasta e seus amigos, onde ao
lado de Rogério Sganzerla, ele conspirava em forma de filmes,
e realizavam Olho por Olho (1965). E será mesmo na rua que
reconheceremos a maioria das cenas que se sucedem, de outros
filmes dos anos 1970, quando um cinema marginal, porque feito
sem recursos financeiros, porque feito em dissonância com uma
série de padrões cinematográficos vigentes, era o cinema da
invenção. Blablablá (1968) e a denúncia da ditadura, Bang Bang
(1970) e a expressão da revolta, o exorcismo pela desordem,
que só pode se dar na tensão entre a implosão dramática e o
rigor formal. Filmes já vistos, que agora se tocam num jorro de
escritura próprio à busca impossível pelo passado, portanto,
também, jamais vistos.
Na primeira sequência, vemos do alto uma fumaça densa
que sobe do centro de uma cidade, da implosão de um velho
edifício, ambulâncias e caminhões de bombeiros, o movimento
acelerado e o barulho da sirene se estende para as outras
imagens de texturas e tempos muito diferentes. Na relação com
a trilha sonora de marchas, tiros e balbúrdias, elas evocam uma
tensão constante, um sentimento de conflagração (conflito,
revolta, guerra, morte) não só pela violência das cenas de
alguns filmes, como Olho por Olho, Bang Bang e Blablablá, mas
também pelos fragmentos de jornais e revistas, pelas imagens do
exército armado, da aglomeração de pessoas. Conflagração essa
sempre associada a uma coletividade, um país, uma guerra, uma
ditadura, tempos difíceis. Lemos na manchete de um jornal “O
país chora a morte de JK”, e ouvimos num off abafado pelo som
da parada militar que “não há mais condições de manter a ordem
nesse país”: é Blablablá que atravessa o tempo e nos reencontra
re-significado na memória de um cineasta que se autorretrata
pelo outro, pela imagem já descolada de si, essa que virou

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lembrança, que virou sentimento, que virou esquecimento e
que volta sempre como outra. Ali onde a memória do vivido
e do filmado se encontraram, a imagem-lembrança em seu
devir cinema, já é exterioridade, já o olhará como outro. Por
isso, quanto Tonacci surge com a câmera no reflexo do vidro,
não é um eu cineasta originário, nem um personagem ficcional
que se afigura, é mais uma imagem que se presentifica entre
outras, um retrato entre outros, que ainda assim desponta
5. Refiro-me ao conceito como diferença, porque traço, vestígio.5 Como afirma Jean Luc
de “différance” de Derrida,
que nada mais é que o
Nancy “o sujeito do retrato é o sujeito que o retrato mesmo é”,
rastro puro, produtor de pois ele só existe tendo a superfície da tela como interface de
diferenças, obliterador de um ser aí (NANCY, 2006, p. 31). O retrato, como imagem, é ele
origem, efeito sem causa,
não-origem por excelência: mesmo sujeito que nos olha.
“O rastro não é somente a
desaparição de origem, ele
quer dizer aqui – no discurso
que proferimos e segundo o
percurso que seguimos – que
a origem não desapareceu
sequer, que ela jamais foi
reconstituída a não ser por
uma não-origem, o rastro,
que se torna, assim, a origem
da origem. Desde então, para
arrancar o conceito de rastro
do esquema clássico que o
faria derivar de um não-rastro
originário e que dele faria
uma marca empírica, é mais
do que necessário falar de
rastro originário ou de aqui-
rastro. E, no entanto, sabemos
que este conceito destrói seu
nome e que, se tudo começa
pelo rastro acima de tudo
não há rastro originário”
(DERRIDA, 1973, p. 75).

Numa cadência de ritmos, que vai do grave ao melódico,


outras imagens vêm arrefecer essa espreita por uma morte
sempre coletiva. São agora filmes caseiros, intimistas, onde
Tonacci se expõe, se filma filmando, mas sem nunca assumir sua
presença em demasia, ele passa, parece prestes a desvanecer –
como na cena em que o vemos pelo reflexo do vidro sobreposto
ao rapaz (talvez seu irmão) que toca um samba no cavaquinho.

218 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


Aqui o arrefecer da guerra está na volta ao refúgio não mais da
natureza e da família, como na casa de campo, mas de outra
casa, um apartamento talvez, com namorada e amigos, que
também faziam cinema e tocavam samba.

O samba se contrapõe à marcha, aos tambores, aos tiros, às


vozes desesperadas, às convulsões, e também à melancolia do
jazz que acompanha os percursos de carro nas cenas noturnas,
ele traz uma alegria, uma brasilidade esperançosa, frente à
ditadura e à violência, uma liberdade frente à prisão. No filme,
a trilha sonora conduz a montagem como um escalonamento
de afetos que chama uma história do fora-de-campo para o
campo: da infância – no ragtime de 1902, The Entertainer (de
Scott Joplin), vinda da caixinha de música – aos mistérios da
natureza – sapos, chuva, trovões; das tensões na cidade, da
guerra, ao Brasil do chorinho; do Brasil à casa, o samba, e daí à
comunidade do cinema.

O pai

No terceiro tomo, que intitulamos de O pai, novamente o


tom grave – sons que se assemelham a tiros de metralhadora, e
helicópteros – evocam uma outra guerra. A lupa aparece agora
deslizando numa foto amarelada antiga como que procurando
alguém entre um grupo de soldados combatentes. Em outra
foto, um homem sorrindo usa um uniforme semelhante ao pai
militar do menino explorador de Paixões.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 219


Esguio e alto, ele se assemelha a Andrea Tonacci, a foto
se funde com a de uma mulher sorrindo cujos traços também
lembram os do cineasta, após uma sucessão de retratos de um e
de outro ao som da serenata italiana Io non posso cantare alla luna,
de 1943, a foto de casamento. Não há dúvida de que são os pais
de Tonacci, que de fato se casaram em 1943, em Roma, durante a
Segunda Grande Guerra. É o filho que olha novamente pela lupa, a
escavar a imagem, como que para encontrar seus sulcos, detalhes e
vestígios: o homem, o pai, um recém repatriado fugido de um trem
de prisioneiros italianos da Albânia, “ela escaladora de montanhas
e enfermeira voluntária nos hospitais romanos, o regime fascista
em seus estertores” (TONACCI, 2012, p. 112). Ali, como ele mesmo
recorda, Tonacci ainda é uma “total ausência” (2012, p. 112), só
aparecerá depois, um menino loiro junto ao pai.

220 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


Entre essa sequência de fotos do arquivo de família surge um
filme caseiro muito antigo, uma menina sorri e entra num carro
que sai, da janela ela acena para aquele que fica com a câmera
(talvez Tonacci). Lembramos imediatamente das várias sequências
de carros, como um traço inconteste dos filmes do cineasta –
principalmente desse movimento do carro que se vai com a câmera
e abandona um corpo que se torna pequenino ao fundo do quadro.
Nesse filme, é o carro que se vai, se afasta até sumir, e a câmera é
que fica para trás. Não importa se ali estava o desejo do cineasta
em seguir com o carro, ou se ali está a origem de um cinema por vir,
mas a evocação de uma presença ausente, não só aquela própria
da imagem, mas outra que se dobra sobre si mesma: a presença de
todos os filmes já vistos de Tonacci que ao mesmo tempo em que
estão ali, encapsulados nessa imagem-memória, dela se ausentam.
Se uma ausência reside na impossibilidade do filme conter todos os
filmes, ao modo de um Aleph borgiano cinematográfico, a presença
resiste na possibilidade do cinema de juntar temporalidades, de
plissar o tempo. O velho filme de família faz entrever o passado na
materialidade da película, nos movimentos que se processam no
presente da assistência ao filme, porém, novamente, ao produzir
esse presente, ele não cessa de evocar um ausente, não só passado
que se foi, mas o gesto futuro de um cinema que ainda viria a
acontecer, que por isso resta ali em potência.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 221


Enquanto ainda vemos a lupa aumentar uma foto bem antiga
da mãe no sofá com o cineasta menino, ouvimos a voz de Tonacci,
algumas sobreimpressões e o vemos novamente trajando o mesmo
uniforme do pai, junto ao filho que lê uma história: “precisamos ver
se há mesmo uma causa para o medo”. Em seguida, pergunta a Joel,
se para interpretar o personagem do pai militar, ele ficaria melhor
com ou sem o gorro. Até que pede ao filho, Daniel, que conte uma
história para a câmera, e, então, vemos a bela imagem do menino
caçador de tesouros de costas no alto de uma montanha de braços
erguidos para o pôr do sol.

É Tonacci quem nos dirá que essa tomada se deu movida


pelo afetuoso desejo paterno em relação à vida do filho, por isso
ela traz um gesto de vitória por um dia bem vivido. O cineasta
conta que aquela tomada se confunde com uma reminiscência
de infância, uma imagem-lembrança dele mesmo se sentindo
vitorioso no alto da montanha e, diz ainda, que nas escavações dos
arquivos para o filme encontrou a foto em preto e branco, em que,
como Dan, ele ergue os braços para os céus, porém de frente para
câmera e de costas para os altos contrafortes dos montes Dolomiti:
“uma sintonia imaginável, um encontro de memórias na imagem
presente, imagens dando realidade aos sentimentos e intuições de
filmar” (TONACCI, 2012, p. 113). Eis o sinal de que o gesto do
devir memória está sempre num entre: ali, na passagem do filho ao
pai, do ator ao personagem, da lembrança à foto, da foto ao filme,
da aparição à desaparição do sujeito.

222 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


No cinema do devir memória, as imagens sobrevivem sem
se estagnarem numa mediação simbólica pré-definida, mas
como lampejos de um tempo prestes a desaparecer novamente.
Se nesse cinema de arranjo poroso e onírico, espaço, tempo,
personagens se intercambiam, se fundem (filho, pai e filho;
cineasta-criança e soldado-personagem), não há lugares fixos
de memória, é porque, impermanente como a vida, o passado
se desloca, se transforma em objetos, imagens, sensações e
sobrevive no traço. Operando sempre nessas passagens, Já visto
jamais visto figura a cada cena, a cada retomada, a diferença no
entre passado e presente, entre o que se foi e o que se é, entre
a lembrança e sua atualização, entre natureza e civilização.
Esse último estado fronteiriço está também presente num gesto
de outro filme de Tonacci, Serras da Desordem (2006), por
exemplo, na sequência em que a locomotiva de ferro, remetendo
ao progresso, vem anunciar a ruptura com o mundo indígena.
Progresso esse em prol do futuro contínuo e desenvolvimentista,
da seta evolutiva da história que deve mover-se sempre na
mesma direção, avante, que solapa tudo o que pode ser o povo
da floresta, com seus saberes, sua ancestralidade, suas raízes,
sua magia, enfim seu passado e sua memória, que só poderá
sobreviver, para retomar Nora citado no início desse texto, como
museu, e não mais encarnado às crenças e habitus do cotidiano.
À guisa de conclusão, como diz Benjamin, “o importante
para o autor que rememora não é o que ele viveu, mas o tecido
de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência”
(1994, p. 37). É nesse trabalho de Penélope jamais acabado
que o gesto do cineasta, historiador, recria o passado de uma
vida não como ela foi, mas como será no filme, para e pelo
filme, e para aquele que virá, o terceiro, o espectador, um povo
por vir. Esse cineasta é Tonacci, o explorador de relíquias; o
arqueólogo do cinema; o escavador de imagens com sua lupa.
Eis que o inventor de Bang Bang volta a inventar no ato de
escavar, e compor uma tecitura onde, como diria Benjamin,
a recordação é a trama, mas o esquecimento é a urdidura.
Mais que isso, o acontecimento vivido é finito, ao passo que o
lembrado é sem limites. Como em Proust, trata-se da potência
de lembrar uma experiência nunca vivida, o inteiramente novo.
Já visto é o passado que, no trabalho de memória pelo cinema,
se descobre jamais visto.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 223


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. A imagem de Proust. In: Walter Benjamin – obras escolhidas: magia,


técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BRANCO, Lucia Castello. A traição de Penélope: uma leitura da escrita feminina na
memória. Tese de doutorado. UFMG-FALE, maio de 1990.
DE MAN, Paul. Autobiografia como Des-figuração. Sopro. Florianópolis, n. 71,
mai. 2012.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1996.
__________.; GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma literatura menor. Rio de Janeiro:
Imago, 1977.
DERRIDA, Jacques. Linguística e Gramatologia. In: Gramatologia. Trad. Miriam
Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 75.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do
Tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto
História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1981.
MONDZAIN, Marie José. Nada Tudo Qualquer coisa. Ou a arte das imagens
como poder de transformação. In: SILVA, Rodrigo; NAZARÉ, Leonor (org.).
A república por vir. Arte, Política e Pensamento para o século XXI. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
MOURÃO, Patrícia. Do arquivo ao filme: sobre Já visto jamais visto. Dossiê Tonacci.
Revista Devires: Cinema e Humanidades, FAFICH-UFMG, v.9, n.2, jul/dez
2012, pp. 92-105.
TONACCI, Andrea. Fotogramas comentados. Dossiê Tonacci. Revista Devires:
Cinema e Humanidades, FAFICH-UFMG, v.9, n.2, jul/dez 2012, pp. 106-113.
__________. Entrevista. In: BRASIL, A; GUIMARÃES, C.; MESQUITA C. Devir-
Tonacci. Dossiê Tonacci. Revista Devires: Cinema e Humanidades, FAFICH-
UFMG, v.9, n.2, jul/dez 2012, p. 114-142.

224 Já visto jamais visto / Roberta Veiga


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 204-225, JUL/DEZ 2017 225
Documental y Experiencia
Introspectiva: relaciones,
correspondencias y tensiones
para explorar el espacio de
las prácticas cinematográficas
autorrepresentacionales*

Paola Lagos Labbé


Máster en Documental Creativo y Doctora en Comunicación Audiovisual
(Universitat Autónoma de Barcelona). Realizadora y académica del Instituto de
la Comunicación e Imagen de la Universidad de Chile, desarrolla investigación y
docencia vinculada al cine y al documental contemporáneo.

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017


Resumen: El artículo plantea las principales discusiones conceptuales alrededor
de las prácticas documentales autobiográficas y autorrepresentacionales, así
como sus potenciales desafíos en un contexto contemporáneo atravesado por las
vertiginosas transformaciones tecnológicas asociadas a las plataformas digitales. El
texto ofrece un panorama de las formas subjetivas más recurrentes, tales como el
cine doméstico y amateur, el ensayo cinematográfico, el diario de vida, el diario de
viaje y el autorretrato. Explorando en sus propuestas narrativas, formales y estéticas,
el artículo transita por los principales hitos y exponentes que han cultivado estas
prácticas cinematográficas experienciales e introspectivas, que se enmarcan en el
espacio de lo privado, lo íntimo, lo afectivo, lo emocional e incluso lo confesional.
Palabras Clave: Cine Documental; Autobiografía; Subjetividad; Diarios Filmados.

Abstract: The article reviews the main conceptual discussions on autobiographical


and self-representational documentary practices, as well as their potential
challenges in a contemporary context marked by the vertiginous technological
transformations associated with digital platforms. The text offers a panorama of
the most recurrent subjective forms, such as domestic and amateur cinema, the
film-essay, personal diary, travel diary and self-portrait. Exploring narrative, formal
and aesthetic aspects, the article goes through the main milestones and exponents
that these experiential and introspective film practices have cultivated, framed in
the space of the private, the intimate, the affective, the emotional and even the
confessional.
Keywords: Documentary Cinema; Autobiography; Subjectivity; Film Diaries.

228 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


I. Autobiografías, Autorretratos, Autobiografilmes: hitos y * Este texto es una versión
revisada y ampliada de
exponentes un artículo publicado
originalmente bajo el
título: “Ecografías del Yo:
Documental Autobiográfico
El vuelco hacia una subjetivación de la mirada mediante y Estrategias de (Auto)
géneros autorreferenciales testimoniales posee larga data dentro Representación de la
Subjetividad”, en el
de las manifestaciones literarias que, ya desde el siglo XVI, han
Monográfico dedicado
puesto de relieve las potencialidades de la escritura para explorar a Estudios de Cine, para
en las esferas privadas de sus autores. La teoría coincide en la Revista Comunicación
y Medios Nº24 (2011),
señalar que – tras la excepcionalmente temprana Confesiones, pp. 60-80. Instituto de la
obra capital de San Agustín (400 D.C) – son los Ensayos de Michel Comunicación y Imagen,
Universidad de Chile. ISSN:
de Montaigne (1580-1595) los primeros escritos autobiográficos 0719-1529.
modernos publicados en Occidente. Siguiendo el precepto de la
Grecia Antigua adoptado por Sócrates, “conócete a ti mismo”, la
autobiografía se fue consolidando hacia los siglos XVII y XVIII con
ejemplos tan emblemáticos como las Memorias de François de La
Rochefoucauld (1662); las Confesiones de Jean-Jacques Rousseau
(1782), donde el autor arroja una verdadera declaración de
principios para el género: “Quiero mostrar a mis semejantes un
hombre en toda la verdad de la naturaleza; y ese hombre seré yo.
Sólo yo”. Ya en el siglo XIX, destacan las publicaciones póstumas
de las correspondencias, diarios íntimos y pensamientos de
Joseph Joubert (1838), J. W. Goethe (Poesía y verdad, 1811-1833)
y la autobiografía de François-René de Chateaubriand, Memorias
de ultratumba (1848).
Durante el siglo XX, en tanto, el arte cinematográfico que
aquí nos conmina, ha perpetuado y complejizado la vocación
introspectiva iniciada por la literatura de narrar la realidad más
privada y cercana.1 El gesto de volcar la cámara “hacia dentro”, 1. El cine continúa la vasta
tradición del autorretrato en
hacia lo más próximo y personal e incluso hacia el propio “yo”,
las artes visuales, tanto como
parece ser una operación connatural al propio medio desde manifestación escultórica
su nacimiento. Recordemos una de las primeras filmaciones (desde Busto del autor, Peter
Parler, 1380), como pictórica
de los hermanos Lumière en los inicios del cine: La comida (desde Retrato de un
del bebé (Louis y Auguste Lumière, 1895), primera home movie Hombre, Jan Van Eyck, 1433)
y fotográfica (con pioneros
de la historia, registra una sencilla toma en plano secuencia como el norteamericano
de encuadre fijo, donde vemos al propio Auguste Lumiere y Robert Cornelius, a quien
se le atribuye el primer
a su mujer, dando de comer a su pequeña hija, marcando el autorretrato fotográfico en
preludio de la larga historia que entrecruzará los caminos del 1839, o el francés Hypolithe
Bayard, con El ahogado,
cine autobiográfico con el cine doméstico familiar y el modo 1840, puesta en escena en la
amateur. Estos eventos en apariencia intrascendentes, son en que el autor ficcionaliza su
propia muerte).
realidad sumamente significativos porque están cargados de

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 229


valor emocional y de la espontaneidad de la vida cotidiana.
Las home movies constituyen un gozne que permite múltiples
vaivenes intersticiales entre los diversos registros del
documental del “yo”, además de conformar un “huellas” en
tanto dominios en los que el tiempo histórico es evocado como
experiencia y como inscripción del pasado en el presente.
Un segundo hito histórico para la experimentación de la
subjetividad cinematográfica lo constituyen las vanguardias
europeas de las primeras décadas del siglo XX, terreno
extremadamente fértil que arrojó clásicos tales como la
película manifiesto del Cine Ojo, El hombre y la cámara de
2. Si bien Ray nació en los Dziga Vertov (1929); o los autorretratos filmados de Man Ray,2
Estados Unidos, desarrolló
Autoportrait (1930), Courses landaises (1935) y La Garoupe
la mayor parte de su obra en
Francia, llegando a ser uno (1937). En esos mismos años, el teórico húngaro Bela Balasz
de los principales exponentes (1931) ya había predicho el potencial de “un género que los
del avant garde.
cineastas amateur deberían crear, y que podría presentar
una importancia documental tan grande como los diarios
íntimos y las autobiografías escritas” (cfr. BERGALA, 1998),
anticipándose a lo que décadas más tarde sería el apogeo de las
3. En el espacio de este
artículo sólo abordaremos
“autocinemabiografías” o “autobiografilmes”.3
las discusiones alrededor de
las diversas posibilidades En sus diversas prácticas, el documental autobiográfico
de representación del “yo” ha privilegiado el uso de dispositivos domésticos y amateur
en el documental, dejando
de lado el vasto campo de la
tales como el Super 8 y el 16 mm. (en celuloide) y luego el
autobiografía en el escenario vídeo electromagnético y digital. Para ratificarlo, basta revisar
del cine de ficción (concebida
la filmografía de los principales exponentes de las expresiones
como la expresión directa
o indirecta de la identidad del cine del “yo”, muchos de quienes surgieron en el contexto
y personalidad del autor a de las vanguardias cinematográficas norteamericanas de mitad
condición de que éste haya
tenido la intención – implícita del siglo XX (con el New American Cinema o el Underground),
o explícita – de narrar o perpetuaron su legado. A modo de reconocimiento, creemos
su vida, pensamientos o
sentimientos), e incluso las oportuno nombrarlos en este mapeo inicial, aún a riesgo de caer
denominadas “autoficciones”, en un listado arbitrario e incompleto:
películas genéricamente muy
híbridas como Caro Diario
(1993) o Aprile, (1998) de
Nanni Moretti, en las que Margaret Tait (Escocia. A Portrait of Ga, 1955; Happy Bees, 1955); Stan
el director se interpreta a
sí mismo en un contexto Brakhage (EE.UU. Wedlock House: an Intercourse, 1959; Window Water
de fantasía inspirado en Baby Moving, 1959; Thigh Line Lyre Triangular, 1961; Songs, 1964-
la realidad; o los álbumes,
autorretratos y documentales 1969; Scenes from Under Childhood, 1967-1969, The Weir-Falcon Saga,
epistolares de Boris Lehman, 1970; The Machine of Eden, 1970; The Animals of Eden and After, 1970;
en cuyos créditos el autor se
autodefine como realizador y
Sincerity/Duplicity, 1973–1980; Tortured Dust, 1984); Marie Menken
personaje. (EE.UU. Bagatelle for Willard Mass, 1961; The Gravediggers of Guadix,

230 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


1961); Jim McBride (EE.UU. David Holzman’s Diary, 1967); Carolee
Schneemann (EE.UU. Fuses, 1967; Interior Scroll, 1975; Kitch’s Last
Meal, 1973-1976); Jonas Mekas (Lituania-EE.UU. Walden. Diaries, Notes
and Sketches, 1969; Reminiscences of a Journey to Lithuania, 1971-1972;
Lost, Lost, Lost, 1976; Paradise Not Yet Lost, 1979; He Stands in a Desert
Counting the Seconds of His Life, 1969-1985; This Side of Paradise, 1999;
As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, 2001;
365 Day Project, 2007; Out-Takes From The Life of a Happy Man, 2012);
Ed Pincus (EE.UU. Diaries, 1971-1976); Jerome Hill (EE.UU. Family
Portrait, 1972); Jan Oxenberg (EE.UU. Home Movie, 1972; Comedy in
4. Una proximate collaborative
Six Unnatural Acts, 1975; Thank You and Good Night, 1991); Johan Van autobiography, como Paul
der Keuken (Holanda. Diary, 1972; Filmmaker Vacation, 1974); David John Eakin (1999) define
aquellas obras que –
Perlov (Brasil-Israel. Diary, 1973-1983, Updated Diary, 1990-1999; My tratándose sobre alguien
Stills, 1952-2002); Chantal Akerman (Bélgica. News From Home, 1977; íntimo, por lo general
algún familiar cercano – se
D’Est, 1993; Portrait d’une Jeune Fille de la Fin des Années 60 à Bruxelles,
construyen en un coro de dos
1994; Chantal Akerman par Chantal Akerman, 1996; Sur, 1999; Del primeras personas, toda vez
que, para indagar en su propia
Otro Lado, 2002; Allá, 2006; No Home Movie, 2015); Anne Rees-Mogg
identidad, el cineasta se sirve
(Inglaterra. Sentimental Journey, 1977; Grandfather’s Footsteps, 1983); de la vida de un “otro”.
Michelle Citron (EE.UU. Daughter Rite, 1978; Mother Rite, 1983); Rick
Hancox (Canadá. Home for Christmas, 1978); Sue Friedrich (EE.UU. 5. Expresión que ya en 1947
empleó Jean Pierre Chartier,
The Ties That Bind, 1984; Sink or Swim, 1990; The Odds of Recovery, en un artículo fundacional
2002; Gut Renovation, 2012); Ross McElwee (EE.UU. Backyard, 1984; para el cine autobiográfico:
Les Films à la première
Sherman’s March, 1986; Time Indefinite, 1993; Six O’clock News, 1996; personne et l’illusion de
Bright Leaves, 2003; In Paraguay, 2008; Photographic Memory, 2011); réalité au cinéma, publicado
en La revue du cinéma I, n. 4
Sadie Benning (EE.UU. If Every Girl Had a Diary, 1990; It Wasn’t Love,
(enero de 1947).
1992; Girl Power, 1992); Alan Berliner (EE.UU. Intimate Stranger,
1991; Nobody’s Business,4 1996; The Sweetest Sound, 2001; Wide Awake, 6. La emergencia de este
2006; First Cousin Once Removed, 2013); Naomi Kawase (Japón. Ni verdadero boom de filmes
autobiográficos, trajo
tsutsumarete, 1992; Katatsumori, 1994; Mangekyo, 1999; Tsuioku aparejadas las primeras
no dansu, 2002; Tarachime, 2006); Barbara Hammer (EE.UU. Tender preocupaciones teóricas y
críticas que se cristalizaron
Fictions, 1996); Ute Aurand (Alemania. At Home, 1998; To Be Here, en los encuentros “Cine y
2013); Agnès Varda (Francia. Los espigadores y la espigadora, 2000; Les Autobiografía” de Valence
(Francia, 1984) y Bruselas
plages d’Agnès, 2008). (Bélgica, 1986). En 1985, en
tanto, la Revista Revue Belga
du cinema lanzó el número
“Un cine de la autobiografía”.
Experimentando con las formas y a menudo situándose En la década siguiente (1999),
desde veredas marginales respecto al mainstream de las industrias la propia Asociación para la
Autobiografía (APA) dedicó
cinematográficas más robustas, estos cineastas pavimentaron sus jornadas anuales al cine,
la irrupción sostenida y sistemática de un “cine en primera y consagró el número 22 de
su revista La faute à Rousseau
persona”,5 como tendencia que se consolidó en el mundo entero
(octubre de 1999) al dossier
sobre todo desde finales de la década de los 90.6 “Autobiografía y Cine”.

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 231


Esta eclosión germinó precisamente en el escenario de una
postmodernidad que evidenció la crisis de los grandes relatos
del proyecto moderno y que – desde las ciencias sociales, las
humanidades y las artes – promovió expresiones subjetivas de
reivindicación de memorias alternativas. Michel Fischer (1986)
describe la autobiografía contemporánea como una exploración
de las identidades fragmentadas y dispersas de la sociedad
pluralista de fines del siglo XX. Por lo mismo, los registros de
enunciación clásicos de la mayoría de las filmaciones íntimas,
acuden a tonos solemnes y hasta “terapéuticos” cuando se ha
de explorar en memorias personales y familiares signadas por
eventos traumáticos, desintegraciones familiares, memorias
trizadas, exilios y desarraigos, de cara a cumplir con la que
según Lejeune es la “función reparadora” de toda empresa
7. Los encuentros de Valence autobiográfica.7 En este sentido, un hito paradigmático lo
de 1984 identificaron – sin
constituye el auge de los documentales autobiográficos de
aspiraciones rígidas
o definitivas e incluso las postdictaduras latinoamericanas y sus estrategias para la
admitiendo mestizajes de evocación de memorias e identidades fracturadas, que indagan
tonos – cuatro registros
de enunciación para las en experiencias a menudo traumáticas o no resueltas. Así,
filmaciones íntimas: el retorno a la democracia en países del Cono Sur tales como
melancolía, tristeza, nostalgia;
el deseo del otro; el pasado, Brasil, Argentina y Chile, sumado a la posterior llegada del nuevo
la regresión; la soledad. (cfr. mileno, marcaron un punto de inflexión en el tránsito desde una
LEJEUNE, 2008).
“cámara-puño” a un “sujeto-cámara” que, como característica
general, arrojó – y continúa arrojando – obras en primera persona
a través de las cuales hemos sido testigos del pasado reciente
desde una mirada subjetiva y autorrepresentacional. Si bien estas
creaciones abordan temáticas políticas e históricas, lo hacen desde
8. “El imperativo de contar un posicionamiento que subraya que no son necesariamente
y de ser escuchado puede
transformarse en una tarea
las condicionantes estructurales las que explican al individuo,
que consume la vida entera. sino las particularidades de esos sujetos las que explican las
Sin embargo, parece que
no importa cuánto se narre,
estructuras. Proyectos cinematográficos emblemáticos como
nunca se logra acallar esta los del cineasta chileno Patricio Guzmán (Primer Año, 1971; La
compulsión interna. Nunca Batalla de Chile, 1973-1977; En nombre de Dios, 1987; La Cruz
hay suficientes palabras, ni
las palabras correctas, nunca del Sur, 1992; La memoria obstinada, 1997; El Caso Pinochet,
hay suficiente tiempo ni 2001; Salvador Allende, 2004; Nostalgia de la luz, 2010; El botón
existe el momento correcto,
y nunca hay suficientes de Nácar, 2015), poseen tal compromiso con la recuperación de
oídos ni los oídos correctos la memoria, que los transforma en lo que Laub (1992) denomina
para articular la historia,
la que no puede ser “testigo documental”, al relevar – desde la relación personal de
capturada plenamente en el los realizadores con los hechos que les afectaron directamente –
pensamiento ni la memoria
ni el discurso” (LAUB, 1992, testimonios que para ellos es un imperativo ético y político narrar,
p. 78). aún cuando ello les suponga una labor de por vida.8

232 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


Siguiendo con Chile – para ilustrar la relación que, en general, 9. Entre otros, documentales
como La Hija de O’Higgins
el documental latinoamericano ha desarrollado de la mano de la
(2001, Pamela Pequeño);
subjetividad durante las últimas décadas – un paso más allá en el Volver a vernos (2002, Paula
camino de la introspección autorrepresentacional se encuentran Rodríguez); En algún lugar
del cielo (2003, Alejandra
aquellos documentales realizados por una generación de directores Carmona); Reinalda del
que hoy fluctúan entre los 35 y los 45 años, hijos de padres que Carmen, mi mamá y yo
(2006, Lorena Giaccino);
militaron en la izquierda durante la Unidad Popular y que, como Héroes Frágiles (2006, Emilio
consecuencia de ello, sufrieron la fractura vital y familiar que supuso Pacull); La promesa de mi
madre (2007, Marianne
para muchos de ellos el Golpe de Estado y la dictadura, encarnada en Hougen); Mi vida con Carlos
la desaparición, tortura o muerte de alguno(s) de sus componentes, (2008, Germán Berger); La
Quemadura (2009, René
en la diáspora del exilio, o el desarraigo experimentado en el Ballesteros); El edificio
retorno al país (cfr. BELLO, 2011). Esta recapitulación de la historia de los chilenos (2010,
Macarena Aguiló); El eco de
se enuncia desde la “postmemoria” (HIRSCH, 2008) y supone una las canciones (2010, Antonia
distancia reflexiva, una mirada crítica que interpela y cuestiona el Rossi), Sibila (2012, Teresa
Arredondo); Allende, mi
rol de la cohorte de los padres en el devenir de los acontecimientos
abuelo Allende (2015, Marcia
políticos, aportando una gran gama de matices a discursos – hasta Tambutti); Venían a buscarme
entonces – bastante hagiográficos. Así, este “cine de hijos”,9 conlleva (Álvaro de La Barra, 2016).

una crisis y un desplazamiento formal y narrativo con respecto a las


10. Ejemplos de documentales
retóricas clásicas del documental autobiográfico. autobiográficos de esta
naturaleza en Chile son, entre
Hoy en día, en tanto, con cada vez mayor frecuencia comienzan otros, Hija (2011, María Paz
a verse documentales autobiográficos centrados en problemáticas González); El Huaso (2012,
Carlo Proto); Genoveva (2014,
aún más íntimas pero no por ello menos políticas, obras que ya no Paola Castillo); El Soltero
se encuentran necesariamente determinadas por la historia nacional, de la familia (2015, Daniel
Osorio).
sino que centradas en memorias familiares signadas por secretos,
ausencias, vergüenzas, mentiras y confesiones.10 La función política
11. En este aspecto, destaca la
de estas obras pasa por visibilizar experiencias vitales comúnmente filmografía del cineasta chileno
ocultas o negadas dentro de la privacidad familiar (tales como el Ignacio Agüero (No Olvidar,
1982; Como me da la Gana,
embarazo no deseado, la adopción, la crianza monoparental, 1985; Cien Niños Esperando
las identidades LGBT, la depresión, el suicidio, entre otras), y por un Tren, 1988; Sueños de
Hielo, 1993; Aquí se Construye,
desencadenar procesos de proyección, identificación y empatía que 2000; La Mamá de mi Abuela
contribuyan a la aceptación y normalización de estos eventos tabúes. le Contó a mi Abuela, 2007; El
Otro Día, 2012; Como me da
Estos documentales conviven actualmente con aquellos que la Gana 2, 2016), la mayoría
de cuyos documentales
– también desde estrategias autorreflexivas – despliegan poéticas imprimen la mirada subjetiva
experimentales y estéticas intersticiales para articular los vértices y autorreflexiva del autor
alrededor de diversas
entre las múltiples capas de la experiencia personal, el sentido de materias. Sin embargo,
pertenencia colectiva, las relaciones entre pasado/presente, el propio particular interés en torno
al péndulo entre el mundo
acto de filmar y sus vínculos con lo real. En este tipo de poéticas interior y el mundo exterior
autorrepresentacionales, el acento recae sobre las relaciones y del cineasta para reflexionar
sobre el tiempo, la memoria y
operaciones del lenguaje cinematográfico, el cuestionamiento de sus
el propio cine, reviste su obra
códigos y las inflexiones tanto de sus contenidos como de su praxis.11 El Otro Día, 2012.

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 233


El giro decididamente subjetivo que se afianzó en este
período, continúa siendo uno de los rasgos preeminentes del
documental en la actualidad. Es precisamente mediante las
estrategias autorreflexivas e híbridas que tensionan y trastocan
las divisiones binarias entre ficción y no-ficción, lo público
y lo privado, la historia y la memoria, que el documental
autobiográfico contemporáneo logra desplazarse respecto de
los paradigmas hegemónicos y contribuye a desdibujar los
bordes del género, desestabilizando las definiciones estancas y
expandiendo gradualmente las relaciones que el cine de no ficción
autorrepresentacional performa con la realidad.

II. Apuntes para trazar el espacio del documental autobiográfico

En cuanto a su adscripción genérica, sus estrategias


narrativas, sus recursos estilísticos y sus registros de enunciación
narrativos y poéticos, estos documentales de búsqueda identitaria
en los que el “yo” se construye como huella de la experiencia y
de la subjetividad de sus autores, son de compleja categorización,
transitando por territorios de tan difusas fronteras como fértiles
confluencias. Muchas de estas filmaciones íntimas son mestizajes
que bordean los intersticios de diversos modelos de inscripción
autobiográficas tales como el diario de vida filmado, el diario
de viaje, los documentales epistolares (las “cartas filmadas”), el
autorretrato, el cine familiar y amateur, entre otras expresiones,
algunas de las cuales desarrollaremos a lo largo de las próximas
páginas. La fertilidad de los diálogos entre estas diversas formas de
autorrepresentación, siempre ha tenido cabida en los extramuros
de los sistemas de producción industriales, acuñándose en
espacios cinematográficos independientes y marginales, como las
vanguardias, el cine experimental, o el cine ensayo.
El cine contemporáneo de no ficción ha demostrado
claramente su radical divorcio de la pretendida objetividad
antaño atribuida casi por defecto al documental (diríamos que
al menos hasta sus manifestaciones clásicas e incluso modernas,
tales como el Direct Cinema y el Cinema Verité) y se ha decantado
decididamente hacia la vocación subjetiva e introspectiva de las
formas narrativas autobiográficas, hasta el punto en que hoy
estas producciones de naturaleza “yoica” incluso predominan

234 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


cuantitativamente en espacios de exhibición y distribución de cine
documental, tales como festivales internacionales especializados
en el género, donde logran a menudo repletar las funciones y
cosechar premios, además de una inaudita atención teórica y
crítica. Lo mismo puede constatarse en la academia; son cada día
más las escuelas de cine y comunicación audiovisual que asisten
a una expansión exponencial de proyectos cinematográficos
autorrepresentacionales por parte de estudiantes que -con mucha
mayor frecuencia que hace quince años – se decantan hacia los
caminos de la exploración de la intimidad.
Para Renov (2004),12 la subjetividad ha sido la tendencia 12. Renov rebate lo
señalado por el Nichols
determinante del cine de no ficción contemporáneo. El documental,
de La Representación
tradicionalmente exigido de dar cuenta de la alteridad, en la de la Realidad (1991).
actualidad es conminado a dar cuenta de sí mismo (del sí mismo Es justo precisar que,
tres años más tarde, el
autor y del sí mismo cine). Este giro subjetivo – espacio privilegiado investigador actualiza el
de experimentación visual y narrativa para la expresión de la debate en su libro Blurred
Boundaries (1994) acerca
intimidad – evidencia la puesta en escena de un “autos” (prefijo de de que “la subjetividad y la
origen griego que significa “uno mismo”: autobiografía; autorretrato) identificación son por lejos
menos frecuentemente
que construye una narración alrededor de sí. De tal modo que la explorados en el documental
autobiografía – la representación o escritura (“grafos”) de la vida que en la ficción. Los asuntos
de la objetividad, ética y la
(“bio”) de uno mismo (“auto”) – es, al decir de Jerome Bruner (1993), ideología han llegado a ser el
“la construcción de la vida a través de la construcción de un ‘texto’”. sello del debate documental,
tal como los asuntos de la
Como podemos apreciar, es en el carácter de escritura – diríamos subjetividad, la identificación
“grafológico”, por no decir incluso “caligráfico” en tanto gesto y el género lo han sido de
la narrativa de ficción”
identitario inherentemente personal) donde está puesto el acento
(NICHOLS, 1991, p. 156).
de la mayor parte del trabajo analítico producido alrededor de las
prácticas autobiográficas literarias y cinematográficas. Para el teórico
de referencia obligada en los estudios autobiográficos, Philippe
Lejeune, este tipo de narración debe ser un relato retrospectivo – en
prosa, en el caso de la literatura – que una persona real hace de su
propia existencia. Ello nos lleva a pensar la autobiografía como un
género narrativo referencial (anclado en la historia) determinado
por principios de continuidad y de identidad, focalizado en la
experiencia temporal de un individuo (preferentemente su infancia
y juventud; el pasado recobrado a través de la memoria). Así pues, el
documental autobiográfico delimitaría un espacio, un tiempo y una
voz, que confluyen para evocar un “yo” forjado en la observación
de la propia historia de vida. “Es el cine autobiográfico per se el que
enfrenta plenamente la ruptura entre el tiempo del cine y el tiempo
de la experiencia, e inventa formas para contener lo que encuentra
allí” (SITNEY, 1978, p. 246).

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 235


En el cine de no ficción, la narración retrospectiva
autobiográfica adoptaría la forma de una puesta en escena de
la propia trayectoria vital o de fragmentos de ésta, en la que el
sujeto narrador en principio coincide con el sujeto narrado (autor,
narrador y protagonista son una misma persona), así como el “yo”
constituye tanto el enunciador como el enunciado. La historia que
se conforma, estaría atravesada necesariamente por un valor de
verdad, lo que Lejeune denomina el “pacto autobiográfico”, que –
más allá de intentar encorsetar el relato en categorías a estas alturas
bastante obsoletas tales como el carácter “verídico” u “objetivo” de
unos hechos determinados – más bien releva gran importancia a la
relación entre el autor y su receptor (lector o espectador).
Las principales preocupaciones de Lejeune al hablar de
cine autobiográfico dicen relación con las dificultades que
supone desplazar así, sin más, el vocabulario genérico de una
expresión a otra (medio de comunicación o arte; la literatura,
el cine), sin considerar las especificidades particulares que
distinguen a cada manifestación.

Si se entiende como “autobiografía” un texto regido por un


compromiso de veracidad, éste puede tener funciones (ligadas
a la situación de la escritura y al destino) y formas muy
diferentes. Íntimo por su contenido, pero público por su destino
es el caso del relato autobiográfico (…) o del autorretrato.
Íntimo por su contenido y por su destino: el diario íntimo
(que refleja paulatinamente el presente). Por supuesto, estas
situaciones básicas pueden ser desviadas (la “carta abierta”,
en la cual se toma al público como testigo de una misiva
que dice ser privada; el “diario íntimo” que el mismo autor
publica…) o combinadas (…). ¿En el cine, el reparto entre
íntimo, privado y público funcionará de la misma manera
(¿se puede hacer una película con la idea de no enseñársela
a nadie?, ¿o, lo que viene a ser lo mismo, saltándose las
reacciones del público?) ? (…) Heme aquí ante la segunda
causa de confusión, el traslado de un término genérico de un
medio de comunicación a otro. Dos posiciones se enfrentan
en este punto. La primera, pesimista, severa y aparentemente
rigurosa, se debe a la poetisa americana Elizabeth W. Bruss en
su ensayo “La autobiografía en el cine”. La segunda, optimista,
fluida e imprecisa, se debe a los cinéfilos que actualmente
tratan de promover este nuevo género y a los cineastas que
demuestran el movimiento al andar: ¡el cine autobiográfico
tal vez no sea posible en teoría, pero en la práctica existe!
Incluso si es rara vez y confidencialmente. Incluso si es de otro
modo. (LEJEUNE, 2008, p. 16-17).

236 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


Algunas de las aseveraciones de Bruss (1980) señalan, en
efecto, que no puede haber autobiografía en el cine o, cuanto
menos, que ésta no sería comparativamente equivalente a la
autobiografía literaria y que, de existir, el cine autobiográfico
parecería estar condenado a la ficción. Lejeune refrenda esta
percepción, señalando que:

No puedo pedirle al cine que muestre lo que ha sido mi pasado,


mi infancia, mi juventud, solo puedo evocarlo o reconstituirlo.
La escritura no presenta este problema, porque el significante
(el lenguaje) no tiene ninguna relación con el referente. El
recuerdo infantil escrito es tanto una ficción como el recuerdo
infantil reconstituido en el cine, pero la diferencia es que puedo
creerlo y hacerlo creer verdadero cuando lo escribo, porque
el lenguaje no toma nada prestado a la realidad. En el cine,
en cambio, la falta de autenticidad del artefacto se vuelve
perceptible porque, en última instancia, una cámara también
hubiera podido registrar, en otro tiempo, la realidad de lo que
aquí es representado por un simulacro. La «superioridad» del
lenguaje se debe, pues, a su capacidad de hacer olvidar su
parte de ficción, más que a una aptitud especial para decir la
verdad. El cine presenta la desventaja de poder ser documental,
la imagen, de estar siempre ligada a una realidad. (…) El cine
es, antes que nada, el lugar de la ficción. Nadie se acuerda de
haber ido al cine para ver una autobiografía, stricto sensu. Tanto
más, cuanto la imagen referencial, verídica, más bien sería para
nosotros la imagen-televisión. Entre los géneros referenciales,
el cine se presta mejor a la biografía que a la autobiografía”.
(LEJEUNE, 2008, p. 19-21).

Pensar y validar el cine desde su vertiente hegemónica,


la ficción, es desatender las lógicas y los códigos propios del
documental y sus especificidades expresivas, representacionales
y enunciativas, en su larga búsqueda por definir una voz propia
que module un “yo”. Estas afirmaciones olvidan, en efecto, uno
de los recursos narrativos por excelencia del que se sirven las
autobiografías filmadas para dar forma a la construcción de su
subjetividad: la voice over o comentario retrospectivo, estrategia que
suele dotar de un sentido estructural al filme por medio de la voz en
primera persona del cineasta, que vierte en ella los pensamientos
que le surgen a la luz de la revisión del material registrado en un
pasado temporal. Esta narración enmienda la relativa dificultad
que se le atribuye al cine para la autorrepresentación, toda vez

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 237


que – efectivamente – a menudo se ve imposibilitado de indicar a
ese “sí mismo” en una imagen en la pantalla. No se puede ignorar
el hecho que, desde que el lenguaje cinematográfico pasó a ser
un lenguaje audiovisual con la llegada del sonoro, la oralidad
de la palabra en todas sus formas es un elemento constitutivo
del séptimo arte, tan importante como lo es la imagen. Así, con
toda propiedad, la narración en off puede reivindicarse como un
elemento propiamente cinematográfico; incluso cuando la voz
del autor no se encuentra en off, sino que su intervención es parte
de la diégesis y/o constituye un sonido on, como puede verse –
aunque excepcionalmente – en algunos documentales como Irène
(2009) de Alain Cavalier. En dicho filme, el cineasta no aparece en
cámara y si bien su voz se encuentra en off, sus comentarios son
registrados sincrónicamente con la imagen, no elaborados fruto
de revisiones posteriores e incorporados en el proceso de montaje,
como ocurre con la mayoría de las autobiografías filmadas. Así,
Cavalier reivindica la sincronía entre la inmediatez de lo vivido y
el presente filmado, y delata una valoración tanto acerca del acto
de capturar el aquí y el ahora, como de la capacidad in situ de la
cámara para develar los sentidos subyacentes a los sujetos y hechos
pasados a los que interpela.
Una de las principales paradojas de los registros íntimos de
filmación es el hecho de que los esfuerzos del realizador por capturar la
propia vida con la cámara, en general lo relegan a transformarse en un
mero espectador de la misma. Al no poder situarse simultáneamente
en ambos lados del aparato, el cineasta en general estará condenado
a optar entre el acto de ver y el inscribir la presencia del propio cuerpo
en la imagen. “La imagen de alguien detrás de la cámara comprende
su propia imposibilidad como representación, incapaz de acceder
a su origen, de invertir su propio proceso” (cfr. MARCHESSAULT,
1986). Pero aún este relativo impedimento se ha soslayado
mediante la recurrente imagen empleada por muchos documentales
autobiográficos en los que figura el cineasta registrándose a sí mismo
frente al espejo, entre otros variados recursos para la representación
del “yo” y para la evocación del pasado, sin necesidad de recurrir a la
reconstrucción ó a otros artificios tradicionalmente asociados al cine
de ficción. Por lo demás, a la hora de recoger las huellas indiciales
para restituir la relación con el propio pasado, muchos documentales
autobiográficos se construyen a partir de fotografías o películas
domésticas de la infancia de los autores, que han sido registradas por

238 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


sus padres en el pasado y resignificadas en la actualidad a través del
montaje. Nuevamente en este punto fructifican los cruces entre el
cine del “yo” y los registros domésticos y amateur. Evidentemente el
aligeramiento y abaratamiento de los soportes de registro (desde el
Super 8mm al video digital) ha facilitado inmensamente el desarrollo
del documental autobiográfico y las posibilidades del creador para
construir por sí solo una imagen de sí mismo, mediante un cine a
menudo autofinanciado, autofilmado, autorevelado, automontado;
distribuido y exhibido autónomamente, prescindiendo de la
profesionalización y especificidad de roles técnicos involucrados en
la producción industrial de un filme.
Habiéndonos aproximado a algunas de las principales
discusiones teóricas alrededor de la autobiografía en el cine de
no ficción, a continuación intentaremos dar cuenta de ciertas
formas de representación recurrentes en las que se manifiesta
el “yo” en el documental autobiográfico contemporáneo. Sin
pretensiones taxonómicas, nos aproximaremos a las estrategias
autorreferenciales medulares empleadas por los cineastas en la
formulación de su subjetividad y sus experiencias de vida, a través
del documental.
13. “Los encuentros de
Valence, en 1984, intentaron
abalizar ampliamente el
terreno, al distinguir ocho
III. Las Formas del “Yo” Filmado: ensayos, diarios, autorretratos y
géneros de ‘filmación
otros registros del cine de la experiencia íntima’ (viaje / reportaje /
teórica / banco de prueba
/ autoanalítica / confesión
amorosa / autobiográfica /
Como hemos visto a lo largo de estas páginas, el correspondencia) (…) Este
desenredo no aspira al
documental autobiográfico se caracteriza por una naturaleza
rigor: ‘Reiteramos nuestra
de difícil clasificación y unos límites borrosos, que lo hacen preocupación de no proponer
lindar con expresiones diversas dentro de la vasta gama de esta clase de inventario
como una tipología rigurosa
los géneros testimoniales y autorreferenciales presentes o definitiva’. (…) Para la
en el cine.13 Desprovista de una forma fija, el cine de la semana ‘Cine y Autobiografía’
de Bruselas, Adolphe
experiencia suele circular por constantes transformaciones, Nysenholc ha propuesto una
por lo que cualquier intento de categorización no sólo no clasificación más coherente,
al distinguir autorretratos,
puede ser taxativo y excluyente, sino resulta tan difuso como retratos de amigos, retratos
las expresiones discursivas que lo conminan. A continuación, de familia / cartas, diario de
viaje, noticiario privado /
se caracterizarán tres de las formas más recurrentes para la diario íntimo / confesiones
puesta en escena fílmica de la subjetividad: el Documental de (más o menos noveladas)
/ recuerdos de infancia
Ensayo; el Diario de Vida; el Diario de Viaje; y el Autorretrato, y / cuadernos de cineasta
se explorarán algunos usos narrativos y estéticos transversales (génesis del filme)”
(LEJEUNE, 2008, p. 22).
dentro de dichas manifestaciones.

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 239


A. El documental de ensayo
Los filmes ensayo se encuentran necesariamente vinculados
a la comprensión del arte cinematográfico como una forma de
pensamiento, por lo que a menudo ofrecen una interpretación
profundamente política del mundo a partir de la interrogación
sobre las propias imágenes y su capacidad para representar la
complejidad de la realidad. El ensayo – por definición – más que
aportarnos respuestas, nos formula preguntas; nos interpela como
espectadores convocándonos a someter al mundo a la prueba de
la duda, a tomar distancia y a adoptar un punto de vista en la
formulación de las ideas. En general, estas cavilaciones se canalizan
mediante la voice over, aquella voz en off que matiza, cuestiona, da
cuenta de los estados de ánimo del autor y sus disquisiciones vitales,
que no posee certezas y que, por lo tanto, difiere consustancialmente
del comentario ilustrado, omnisciente, anónimo, de las autoritarias
voces en off del documental expositivo que pretenden certificar
y autentificar verdades universales y conocimientos absolutos.
Dentro de sus principales cultores, destacan figuras emblemáticas
como los franceses Chris Marker, a lo largo de prácticamente la
totalidad de su legado, desde el inaugural Lettre de Sibérie (1957),
hasta su célebre Sans Soleil (1983), pasando por Le Fond de l’air est
rouge (1977), Le Tombeau d’Alexandre (1992), Level 5 (1996), Une
journée d’Andrei Arsenevitch (1999), Le souvenir d’un avenir (2001),
Chats perchés (2004), Second Life (2008), entre otros; y Jean Luc
Godard, con obras tales como Lettre à Freddy Buache (1981),
JLG / JLG: Autoportrait de décembre (1995), su monumental
Histoire(s) du cinéma (1988-1998), Éloge de l’amour (2001), Film
socialisme (2010), Adieu au langage (2014), por mencionar sólo
algunos filmes de su prolífica creación. Otra figura destacada de
la forma ensayo fue el alemán Harun Farocki, con filmes tales
como Entre dos guerras (1978), Ante tus ojos, Vietnam, (1981),
Como ves (1986), Imágenes del mundo y epitafios de guerra (1988),
Cómo vivir en la RFA (1990), ¿Qué sucede? (1991), Videogramas de
una revolución (1992), Trabajadores saliendo de la fábrica (1995),
El gesto de las manos (1997), Imágenes de prisión (2000) y Eye
Machine, 1 y 2 (2001, 2002), entre otros.
Las subjetividades representadas en los documentales
autobiográficos difícilmente se presentan como identidades fijas,
cerradas, completas. Muy por el contrario, en general se trata de
subjetividades en tránsito, que dibujan trayectorias a modo de

240 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


bocetos, de work in progress de la experiencia vital, articulando
su enunciación mediante la duda, la pregunta, el escrúpulo o la
indecisión. Es así como muchas veces estas creaciones dan cuenta
explícitamente de sus experiencias de ensayo/error, recurso que –
como veremos – es muy propio de los diarios cinematográficos y de
su construcción paulatina mientras se “toma nota” con la cámara.
En efecto, gran parte de las estrategias de autorrepresentación de la
subjetividad en el cine de no ficción, así como sus expresiones más
recurrentes, se inscriben en las formas del ensayo cinematográfico.14 14. Desde T.W. Adorno,
en su texto “El ensayo
Como su símil escrito, el ensayo conlleva siempre la posibilidad
como forma” (En Notas
de la duda y de la reflexión como recursos modeladores de las sobre la literatura, Taurus,
interrogantes existenciales del autor, en tanto determinan su visión Barcelona, 1962), este
registro ha sido ampliamente
sobre la propia vida, sobre los acontecimientos exteriores y también observado por la teoría y,
sobre la práctica autobiográfica en sí misma y sus potencialidades en materia cinematográfica,
investigadores como
de representación a través del lenguaje cinematográfico. Alexandre Astruc, Hans
Richter, Alain Bergala,
Antonio Weinrichter, Angel
Quintana, Josep María Catalá,
B. El diario de vida cinematográfico David Oubiña, Philip Lopate,
Cuando hablamos de “diarios de vida filmados”, nos referimos Ursula Biemann, Christa
Blümlinger, Karl Sierek, Laura
a (dia)crónicas personales por lo general registradas a lo largo Rascaroli, entre otros, le han
de períodos prolongados en la vida de un cineasta (varios años destinado amplio análisis.
o décadas) que – sin un orden establecido y tal como lo hace el
diario de vida escrito en el que se inspiran y con el que dialogan –
recogen y plasman sus vivencias cotidianas, sus relaciones afectivas
y familiares. Podemos encontrar múltiples semejanzas entre el
diario filmado y su símil escrito, pero existen también entre ellos
notables diferencias. La más evidente es que el diario de vida
escrito es claramente un texto íntimo, no destinado a la publicación
y que, por lo tanto, no está concebido para ser recepcionado por un
público general. En cambio, por mucho que un cineasta se proponga
que sus diarios filmados se entiendan como un cine íntimo, “de
cámara”, no pensado para las salas comerciales y sus audiencias,
los procesos asociados a su producción y a la naturaleza de las
imágenes conllevan el hecho de la proyección; la necesidad de ser
vistas por unos otros, por pequeños en número que éstos sean y por
alternativos que sean los circuitos de distribución.
Durante el registro, la exploración del sí mismo, del cotidiano,
del mundo histórico y del propio acto de filmar, obedecen a una
subjetividad fílmica que se proyecta a la cámara como extensión y
prótesis de sus realizadores. A la evidente incapacidad de cualquier

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 241


relato (ya sea cinematográfico o literario, etc.) para dar cuenta
de la totalidad de una trayectoria vital, se agrega la dificultad de
definir qué significa una vida y cuáles de sus eventos, momentos,
memorias o personas son significativos y, en consecuencia, dignos
de ser seleccionados como experiencias representativas. Sin
embargo, no puede olvidarse que un diario no se trata simplemente
de una acumulación de hechos o anécdotas; como dispositivo de la
autobiografía, el diario de vida surge de la necesidad dar sentido a
la experiencia, pues – tal como señala el filósofo Wilhelm Dilthey –
la autobiografía es una comprensión de sí mismo.
Uno de los rasgos recurrentes del diario filmado, es su
estructura fragmentaria. Si bien el diario es cronología, ésta no
impone linealidad, sino que avanza en el curso de la experiencia
cotidiana y su desorden existencial, respondiendo prioritariamente
al devenir pulsional de los estados anímicos del autor o a la
dispersión atomizada inherente al flujo de los pensamientos.
Así como Jim Lane (2002) en su libro The autobiographical
documentary in America se refiere a ciertos documentales
autobiográficos realizados con un “enfoque diarístico” (journal
entry approach), David E. James (1992), distingue dos momentos
claves en la realización de estos filmes:

En una primera fase tendríamos los ‘film diaries’, las entradas


diarias que el cineasta va grabando sin un plan previo, y que
se asimilan en cierto modo al diario escrito, en cuanto que
no cuentan con más estructura que su propia secuencialidad
cronológica. Se distinguen, sin embargo, del formato escrito,
por su dimensión puramente visual (aunque luego el video
también incluirá como opción la expresión verbal simultánea);
y sobre todo por su anclaje en el presente inmediato del
acontecimiento, sin la distancia retrospectiva del diario, que
aunque sea mínima, ya aporta una reflexión y reconstrucción
narrativa sobre lo acontecido. Más tarde esos ‘film diaries’ se
convertirán en ‘diary films’, en películas con una duración
determinada, preparadas para ser exhibidas públicamente.
En esta segunda fase, el cineasta tiene que elegir un período
temporal y realizar un montaje del material rodado (…). Y lo
que es más importante: en esta fase también se incorporan
nuevas capas expresivas, como intertítulos, músicas, y en
especial el comentario del autor-narrador, que aportan a las
imágenes una reflexión más propiamente autobiográfica, de
carácter retrospectivo, hasta configurar una obra de carácter
híbrido, específicamente audiovisual, a medio camino entre
el diario escrito y la autobiografía estándar. Así, el pasado

242 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


resuena en el presente con modulaciones propias, como
afirma Maureen Turim, pues los momentos en presente
de la grabación inicial devienen en memorias cuando son
reorganizados en el montaje, con esa voz del autor que sitúa
las emociones en el tiempo, una voz que ‘aporta el peso del
pasado’, que ‘convierte una fenomenología de la experiencia
en otra del recuerdo’ (apud CUEVAS, 2008, p. 107).

Cuando llevamos un diario de vida escrito, generalmente existe


un desfase entre el momento en que ocurren los acontecimientos
cotidianos y el momento en que los reconstruimos y narramos, a
menudo desde la tranquilidad de la noche, cuando recapitulamos
lo experimentado volcándolo al papel. Tal como sería extraño
imaginarse a un diarista que días después reelaborase lo escrito,
no es más fácil pensar en un cineasta autobiográfico que se
mantuviese exclusivamente en el plano temporal de la inmediatez
del presente filmado (fruto de la sincronía ontológica que en el
cine supone la vivencia y su registro). Salvo excepciones como
la mencionada Irène de Cavalier, en la mayoría de los diarios
documentales el registro del presente es retomado más tarde – y a
menudo, mucho más tarde; meses o años después – en el proceso
de montaje donde, generalmente a través de la voice over, se
ordena el carácter desestructurado y discontinuo de la narrativa
del film diary. Así, se le aporta aquello que Lejeune entiende
como una “perspectiva retrospectiva”; una reconstrucción del
pasado desde un presente en donde el cineasta reevalúa y aporta
sentido y coherencia al relato de su existencia, al “relato de vida”,
recogido y estructurado ahora en su diary film.
Además de los múltiples ejemplos de diarios de vida
cinematográficos que – junto a sus principales exponentes –
figuran como hitos en el primer punto de este artículo (Mekas,
Perlov, Van der Keuken, etc.), mencionaremos – para finalizar –
dos interesantísimas y hasta hace poco bastante desconocidas15 15. Un texto precursor sobre
las realizadoras chilenas en
propuestas de diarios de vida documentales realizados por mujeres,
el exilio es el libro Nomadías.
durante el exilio chileno. Se trata de Diario Inconcluso (Marilú El Cine de Marilú Mallet,
Mallet, 1982. Canadá) y de Fragmentos de un Diario Inacabado Valeria Sarmiento y Angelina
Vázquez, editado por
(Angelina Vásquez, 1983. Finlandia). Ambas obras representaron Elizabeth Ramírez y Catalina
subjetivamente temáticas como el desarraigo y el extrañamiento Donoso (Santiago de Chile:
Metales Pesados, 2016).
que atravesó la experiencia personal de las mujeres exiliadas, y
fueron ejemplos pioneros del giro autorreflexivo que más tarde
caracterizaría al documental chileno hasta la actualidad.

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C. El diario de viaje filmado
Estas suertes de road movies documentales también dan
cuenta de la intimidad de una vida cotidiana en tránsito, por
lo que evidentemente sus cruces con el diario de vida fílmico
son múltiples, pero se diferencian de estos últimos pues la
íntima búsqueda identitaria y genealógica en la que a menudo
se embarcan sus autores – comúnmente personas desplazadas,
desterradas o desarraigadas – se traduce narrativamente en
que éstos, en algún punto de sus vidas, emprenden viajes de
retorno a la Arcadia perdida, a la historia pasada, al país de
la infancia y adolescencia que han abandonado, al hogar y
los ritos de su cotidiano, sea éste un lugar físico concreto, o
un espacio imaginado y recordado que sólo es asequible por
la vía de la memoria. Es por ello, que el desplazamiento físico
– generalmente desde la urbe en la que se han asentado (lo
global), hacia el pueblo del que se han marchado (lo local, lo
propio, el territorio que conserva ciertas tradiciones vinculadas
a la experiencia y al ethos personal) – pasa a ser metáfora de un
movimiento interior, de un viaje hacia el autoconocimiento.
En estos desplazamientos cartográficos o espirituales,
efectivos o afectivos, los cineastas errantes avanzan animados
por reencontrar las propias huellas del pasado, y fruto de dicho
movimiento interior y exterior, (re)construir un nuevo yo que,
sólo a veces, al final del camino, termina encontrándose a sí
mismo. Las estrategias de evocación poética de estos filmes,
en general, dan forma a una estética del desarraigo o del
desamparo que transita entre la filiación y la orfandad, en
este constante ir y venir entre el alejamiento y el acercamiento
desde/hacia los orígenes.
La memoria contenida en estos diarios de viaje suele
encontrarse atravesada por el concepto y el conflicto del
desarraigo; toda vez que los cineastas se preguntan dónde está
realmente el hogar para un forastero; dónde las raíces, el sentido
de pertenencia. Y es que para quienes han debido tomar la decisión
forzosa o voluntaria de abandonar el país de origen por razones
de desplazamiento, exilio o migración, la construcción de la figura
del hogar constituye un dilema existencial de por vida, incluso a
pesar de tener la posibilidad de un fugaz retorno. Estos cineastas
buscan explorar en la identidad del “yo” y sus fisuras, interrogar
las grietas de la memoria, recomponer la identidad escindida

244 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


y corporeizar los espectros del pasado en personas concretas,
lugares palpables, objetos y formas que se fijan y se prolongan
ya no sólo en la fragilidad de la memoria, sino en la materialidad
del celuloide, en un tiempo y un espacio fílmicos. Como asegura
Waldman (2009), la pertenencia no reside necesariamente en
un “hogar” y el “hogar” no significa necesariamente pertenencia.
Waldman cita a Adorno para enfatizar que “quien ya no tiene
ninguna patria, halla en el escribir [en este caso, el filmar] su
lugar de residencia” (WALDMAN, 2009, p. 43).
Destacados ejemplos de estos viajes cinematográficos en
primera persona se encuentran en las obras del francés Chris
Marker, quien al inicio de Lettre de Sibérie (1957) señala “Os
escribo desde un país lejano”, a modo de guiño intertextual a la
obra del escritor y pintor Henri Michaux titulada con el oxímoron
Lejano Interior; en los diarios del lituano de origen judío radicado
en Estados Unidos, Jonas Mekas y su Reminiscences of a Journey
to Lithuania (1972); en el brasileño de origen judío, radicado en
Israel, David Perlov y sus viajes de retorno a su Sudamérica natal
tanto en Diary (1973-1983), como en Updated Diary (1990-1999);
en el norteamericano Ross McElwee y su trayecto al sur de EEUU
en Sherman’s March (1986); en el canadiense de origen armenio,
nacido en Egipto, Atom Egoyan y el viaje al país euroasiático de
sus ancestros que inspira Calendar (1993); en el francés Raymond
Depardon y sus obras Afriques, Comment ça va avec la douleur?
(1996), Journal de France, (2012) y Les habitants (2016); en el
cineasta portugués Manoel de Oliveira que, en Porto da Minha
Infância (2001), retorna a su Porto natal. Al principio de dicho
filme, señala Oliveira: “Recordar momentos de un pasado lejano
es viajar fuera del tiempo. Sólo la memoria de cada uno lo puede
hacer, es lo que voy a intentar”.

D. El autorretrato videográfico
Una de las más recientes exploraciones dentro de las vastas
formas de autorrepresentación del sujeto a través del audiovisual,
lo constituyen los autorretratos. Fórmula – como sus antecesoras
– eminentemente híbrida, configura una bisagra entre el cine de
no ficción, el videoarte y la performance. En las artes visuales,
el autorretrato ha transitado históricamente desde del campo de
la pintura a la fotografía, luego al del cine y más tarde al vídeo,

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fraguándose éste último como la plataforma privilegiada para su
evolución. El propio Philippe Lejeune se refiere al autorretrato
reconociendo que como técnica designa realidades muy distintas
para las diversas artes que la acuñan, ejemplificando en que
mientras el autorretrato escrito “tiende a exponer a los otros
aquello que por definición se les escapa de mí; el autorretrato
pintado tiende a hacerme dueño de aquello que soy el único que
no puedo aprehender directamente, mi rostro, que todo el mundo
conoce mejor que yo” (LEJEUNE, 2008, p. 16). El autorretrato
pone en tensión el concepto mimético de representación, entre
otras cosas porque constituye tal vez el único tipo de imagen en
que el artista está impedido de plasmar aquello que contempla
directamente; ha de mediar un espejo en el que ver reflejada
la propia imagen espectral para, a continuación, representar la
“imagen de esa imagen”, forzosamente oblicua.
Raymond Bellour (1990), uno de los principales
investigadores del autorretrato filmado, emplea el concepto
“entre-imágenes” para referirse al “espacio físico y mental” que
habita en cada zona de tránsito entre los diversos dispositivos
multimediáticos que caracterizan el escenario actual de la cultura
visual: los vasos comunicantes entre lo analógico y lo digital; lo
fílmico y lo televisivo, además de las propiedades inmanentes
de cada expresión y las potenciales fusiones entre los lenguajes;
desde el cine y su autorreflexividad a la pintura, o al vídeo, la
fotografía y la literatura.
Creo que podríamos aclarar un poco las cosas comenzando
por oponer dos grandes modos de tratamiento, a menudo muy
difíciles de distinguir, de la experiencia subjetiva. Por un lado está
la autobiografía: si queremos conservar un mínimo de su sustancia
a su definición tradicional, estamos obligados a constatar que
en el cine se vuelve fragmentaria, limitada, disociada, incierta –
obsesionada con esa forma superior de disociación que nace de los
disfraces de la ficción. Por el otro, cuando su definición se torna
realmente dudosa, es porque a menudo abarca una experiencia
que, por ser de naturaleza autobiográfica, es también su contrario:
el autorretrato (…). Podemos, sobre todo, evaluar entonces
precisamente las transformaciones que el video introduce en
el espacio que desde ahora comparte más o menos con el cine,
acercándose más directamente que él a una cierta tradición de la
experiencia literaria (BELLOUR, 2009, p. 293)

246 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


El video ha sido, pues, el dispositivo por antonomasia para el
desarrollo de esta forma de autorepresentación, que se caracteriza
por abordar cuestiones relacionadas con la experimentación formal
del propio medio tecnológico a través del cual se enuncia un “yo”
corporeizado y tensionado entre el espacio mental (la percepción
subjetiva) y el espacio material en el que se circunscribe y emplaza
un cuerpo, por lo general, fragmentado. Así, el video surge como
instrumento de una política del cuerpo en el autorretrato, en el
que el autor se expone como una unidad de cuerpo, experiencia
y memoria, ante un aparato – la cámara videográfica – con el que
performa una relación tanto estética como técnica.

Hemos visto lo que la mutación y la multiplicación de las


técnicas precipitan, a través del video y todo lo que este implica:
la imposible autobiografía se transforma allí explícitamente en
autorretratos de un nuevo género, que se despliegan con una
consistencia, una continuidad y una lógica de las que el cine no
ofrece en verdad equivalente (BELLOUR, 2009, p. 337).

Respecto a las estrategias performativas sobre el cuerpo en


las que indaga el autorretrato videográfico, Bellour explica que
una de las diferencias entre esta práctica y otras que se inscriben
en la autobiografía fílmica, es que al sujeto del autorretrato no le
interesa narrarnos la cronología de sucesos de la trayectoria vital,
sino mostrarnos quién es ese “yo”, en un “sentido agudo de la vida
cotidiana, los gestos, las posturas; una oscilación pendular entre
presente y pasado, imaginación y realidad, materia y memoria”
(BELLOUR, 2009, p. 249). Utilizo el verbo “mostrar”, pues la
inscripción del cuerpo del autor en la pantalla parece definir al
autorretrato, tanto como a su símil pictórico. La experiencia del
videoartista se materializa a través de la presencia de su cuerpo y la
relación que se establece entre éste y la representación tecnológica.
Mientras la concepción clásica de la autobiografía describe
la coherencia de un relato lineal, cronológico y continuo que se
refiere al pasado, el autorretrato presenta al sujeto de enunciación
incrustado en una narrativa ya no sólo fragmentada y discontinua,
sino muchas veces abiertamente incoherente en una estructura
con (des)órdenes que apelan más bien al tiempo presente; al
tiempo del rodaje. El autorretrato explora recursos poéticos y

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 247


elípticos de naturaleza metafórica y abstracta, empleando formas
que apelan a la circularidad, la repetición, la intermitencia y la
superposición. En cuanto al sonido como estrategia de enunciación
del “yo”, a diferencia de la autobiografía y su recurso clásico de
la narración en off, el autorretrato ofrece a menudo palabras
fragmentadas, gritos, susurros y onomatopeyas (por ejemplo,
The space between the teeth, de Bill Viola, 1976), o respiraciones y
sonidos corporales, como podemos apreciar en obras tales como
las de la artista libanesa de origen palestino, Mona Hatoum.
Hatoum lleva al extremo la divagación y distorsión propias de
las estructuras del autorretrato, en una poética del exceso en
torno a la exploración del “yo” y del cuerpo humano: en su
video instalación Cuerpo extraño (1994), la artista despliega una
performance mediante imágenes endoscópicas del interior de su
propio cuerpo, acompañadas del sonido de su corazón registrado
desde las diversas cavidades que recorre la cámara, y de la
respiración de Hatoum cuando ésta abandona su cuerpo. Así, la
endoscopía funciona como alegoría del ejercicio de exploración
visual interior, inherente a cualquier autobiografía o autorretrato.
Para finalizar este artículo, quisiera plantear algunas
inquietudes en torno a los que suponen – a mi juicio – los principales
desafíos para la autorrepresentación documental en un contexto
contemporáneo determinado, entre otras cosas, por las trepidantes
transformaciones tecnológicas asociadas al vídeo digital y las
plataformas virtuales. Como se ha visto, los autores que actualmente
cimientan su obra desde una puesta en escena de la subjetividad,
lo hacen por lo general tanto desde la experimentación formal,
estética y narrativa, como desde las prácticas deconstructivas y
autorreflexivas alrededor de la consciencia del propio dispositivo
cinematográfico y sus posibilidades creativas y autorreferenciales.
De lo anterior, se desprende la comprensión crítica por parte de
los creadores en torno a las propias herramientas, soportes y
formatos audiovisuales que modelan las narrativas del “yo”. Las
concepciones y los modelos que se erigen en torno a la intimidad,
la subjetividad y la autorrepresentación, no surgen deslindados de
los medios con que se construyen tales discursos sino, muy por el
contrario, son en gran medida consecuencia de la relación entre los
ámbitos representacionales y los ámbitos tecnológicos. Las nuevas
tecnologías interconectadas a través de Internet y la world wide
web, han permitido el surgimiento de plataformas hipertextuales

248 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


(Facebook, Youtube, blogs, webs personales, etc.) que abren
formidables posibilidades e inusitados retos para las nuevas formas
de inscripción alrededor de las prácticas “autocinemabiográficas”
del siglo XXI. Autobiografías digitales, videos confesionales, ensayos
electrónicos, sitios web autobiográficos, entre otras manifestaciones
del fenómeno que Paula Sibilia (2008) define como “extimidad”,
son sólo algunas de las expresiones emergentes que desestabilizan
las nociones clásicas de la autobiografía. Si hasta hace poco los
relatos privados alrededor de la intimidad conservaban un rasgo
introspectivo para la narración de la experiencia personal, hoy la
producción de sentidos en torno al ethos subjetivo se encuentra
atravesada por el fenómeno de la exhibición, facilitada por la
democratización de estos nuevos dispositivos y la posibilidad virtual
de alcanzar audiencias universales cada vez más asequibles. En un
contexto mediático contemporáneo en permanente mutación, que
ofrece múltiples posibilidades para las prácticas autobiográficas
y su construcción textual, la elección de un soporte audiovisual
(cine, vídeo, Internet) para los efectos de enunciar el “yo”, reviste
unas implicancias mediáticas y políticas radicales. Y es que en
esta era de producción, circulación y recepción de imágenes sin
aparente frontera, la autobiografía audiovisual asume un rol cada
vez más decidido como ejercicio de resistencia y disidencia frente a
las tendencias estandarizantes de la cultura global, consolidándose
como espacio predilecto para artistas que reivindican políticas
de la diversidad, asumen identidades marginales, o pertenecen a
minorías étnicas, sexuales o de género.

REFERÊNCIAS

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BELLO, María José. “Documentales sobre la memoria chilena. Aproximaciones
desde lo íntimo”, en Revista Cinémas d’Amérique Latine. n. 19, 2011. Disponible
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1990. Trad. al español: Entre Imágenes. Foto, cine, video. Buenos Aires.
Colihue, 2009.
BERGALA, Alain. Je est un film. París: Acor, 1998.

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BRAKHAGE, Stan. Défense de l’amateur. En: Le Je filmé. Paris: Ed. du Centre
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250 Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017 251
FOTOGRAMA COMENTADO

Catar imagem se limita com


escrever (seus grãos mais vivos,
à moda de João Cabral)

Carlos Adriano
Doutor em Estudo dos Meios e da Produção Mediática pela USP, Pós-Doutor em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e em Meios e Processos Audiovisuais pela USP.
Cineasta e realizador de filmes-poemas de reapropriação de arquivo (found footage).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 252-263, JUL/DEZ 2017


“Meu projeto é filmar com uma mão a outra mão”,
diz Agnès Varda, com voz off, no filme Os catadores e eu (Les
glaneurs et la glaneuse, 2000). É esta imagem, reiterada em
outros momentos ao longo do filme, que se comenta neste texto.
No campo da visão, a imagem no quadro da tela de cinema está
diante do espectador, que pode assim atestar a presença (da
cineasta, da mão, de seu projeto) pelo testemunho da evidência
da comprovação visual: o espectador vê a imagem da mão.
O espectador ouve a voz da cineasta; mas esta imagem
sonora comprova alguma presença? O código da linguagem
cinematográfica ensinou que esta voz ausente do quadro (do
campo visual) chama-se justamente de off, por estar fora do
campo visual. Mas estaria mesmo “fora”? Pela nomenclatura da
gramática fílmica, seria off porque sua fonte emissora (a imagem
da boca, por exemplo) não está visível na tela. Mas em vez de
“fora”, não poderia ser esta, talvez, mais apropriadamente, uma
voz interior?
Poderia se supor que esta voz não foi gravada no
mesmo momento da filmagem da mão. E que foi registrada
posteriormente e sincronizada no momento da montagem/
edição. Mas o som da voz também poderia ter sido gravado
enquanto a câmera gravava a imagem da mão. Pois a câmera
de vídeo, ao contrário da câmera de cinema, grava imagem e
som ao mesmo tempo no mesmo suporte (o vídeo grava imagem
e som simultaneamente no mesmo tempo e no mesmo espaço
físico).
Entre as várias e possíveis comparações entre as dicotomias
do cinema e do vídeo, a cisão, a sutura, instalada no registro da
imagem e do som seria uma das questões mais interessantes para
se pensar. Qual o lugar do som, quando apartado da imagem?
Qual o estatuto da voz que comenta a imagem da mão em
termos de sua posição de enunciação? Distanciado da imagem,
o som guarda sua economia de autonomia, a economia de sua
autonomia. A mão demarca o perímetro de sua pele.
Por que somos levados a pensar que aquela voz não foi
registrada no momento mesmo da filmagem da mão e sim
adicionada posteriormente na montagem/edição? Por que a
enunciação do projeto parece ser uma reflexão posterior, própria
do caráter ensaístico dessa espécie de argumentação? O aspecto

254 Catar imagem se limita com escrever / Carlos Adriano


de “balanço” se efetua após o momento do registro e durante a
montagem/edição? Haveria um delay entre o instante da mão
filmada e o momento da mão que edita a imagem da mão?
Sob a orientação do mote “o olhar faz o autor” (ADRIANO,
1996, p.12), podemos pensar nas formas como Agnès Varda
elabora sua imaginação com observações e histórias do real,
projetando “variações imaginárias” numa base documentária.
Assim como articula em sua obra as diferenças complementares
entre fotografia (imóvel e muda) e cinema (móvel e falante), opera
uma dialética sutil entre subjetividade e objetividade, discurso
direto livre e discurso indireto afeito à narração ensaística.
Os catadores e eu parece dissolver-se na imagem da
miragem de um tempo espiral, conjugado segundo os tempos da
digressão (mais do que da impressão) digital, no regime de uma
historicidade turva. Tal tempo, (re)torcido, faz acenos aos jardins
borgeanos dos caminhos que se bifurcam, em direções e reflexos.
Pois “o recurso recorrente à narração em off da primeira pessoa é
uma instância temporal que coloca o sujeito no fluxo histórico dos
acontecimentos” (ADRIANO, 2006, p.31).
Aquele fotograma da mão, mote deste comentário, ocorre
no fluxo pessoal dos acontecimentos vividos pela cineasta em
sua experiência da realidade. A mão é colocada em movimento:
o plano da mão é filmado no interior do carro, que transporta
Agnès por suas praias e estradas. Da câmera à direção do veículo,
a mão desliza pelas esferas da figura circular, passa de um giro
a outro, rodando o sentidos das reflexões e percepções. Noutra
ocasião, assim tentei resumir um aspecto do filme:

Os catadores e eu é um ensaio de mediação temporal.


Deslocando-se no tempo, Agnès parte de pinturas do
século 19 que mostram o gesto ancestral de catar, coletar e
recolher alimentos, para chegar ao ato contemporâneo de
coligir imagens e sons com uma câmera de vídeo digital.
Em off, ela diz que tal gesto “é definido figurativamente
como uma atividade mental”. Seu filme é o diário de um
processo de recolha, de restos, de fixar o tempo em matéria
de refugo. Se a prática antiga refere-se ao catar sobras
da colheita e a moderna de catar restos do lixo, a pós-
moderna seria a coleta de grãos da informação eletrônica.
O desperdício das batatas lançadas em aterro corresponde
ao desperdício de imagens e sons lançados pelo excesso
midiático. (ADRIANO, 2006, p.32-33).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 252-263, JUL/DEZ 2017 255


Se a mão identifica diretamente (quase que como um
decalque) o aspecto bricoleur, é à qualidade poética do fazer
1. “Godard, Truffaut, que ela se refere. Companheiro de Varda na Nouvelle Vague,1
Resnais, Rohmer, Chabrol:
Godard disse certa vez, em seu costumeiro tom de blague
a Nouvelle Vague, capítulo
básico da história do cinema, irônica, que até suportaria ficar cego mas não sem as mãos.
parecia ser mesmo um clube Há categorias de artistas visuais que poderiam endossar
do bolinha. A única voz
feminina, integrante do coro esse oxímoro, pois pensam com as mãos: um escultor ou um
disparatado que desafinou a montador/editor de imagens em movimento (cinema, vídeo,
‘qualidade’ do filme francês
anos 50, era Agnès Varda. digital).
[...] Varda encontrou pela
primeira vez alguns membros Pensar com as mãos. Eis uma formulação que daria pano
dos Cahiers du Cinéma em para as mangas da digressão neste artigo. E o que se tenta
1954-55, quando Chabrol,
Truffaut, Rohmer, Brialy, traçar como esboço. Mas voltemos à imagem do fotograma
Doniol-Valcroze e Godard comentado.
reuniram-se na casa de
Resnais. Ela relembra: ‘Eu O tempo escorre entre os dedos e as rugas da mão. O clichê
seguia mal a conversa.
Eles citavam mil filmes [...], da expressão adquire uma densidade própria neste fotograma
tagarelando animadamente. de Os catadores e eu que ora se comenta. É curioso, e intrigante
Eu estava ali como por
anomalia, sentindo-me
até, notar como esta imagem da mão de Agnès parece insistir
pequena, ignorante, e a em sua ligação com o tempo: a marca do tempo impressa na
única garota entre os rapazes’
(ADRIANO, 1996, p.12).
textura da pele, o motor do tempo que impele a ação. Doutra
feita, assim tentei esquadrinhar uma abordagem do tempo no
trabalho da cineasta, numa figura instável e cambiante:

(...) a temporalidade nos filmes de Agnès Varda parece


modular-se em três linhas: os filmes de imanência ao tempo
(“reportagens de atualidades”), os filmes de intermediação
(entre a experiência e a memória do tempo) e os filmes
de transcendência do tempo (os ensaios reflexivos). Esta
imponderável “classificação” não obedece à cronologia
de produção nem restringe os filmes a compartimentos
estanques, e só poderia ser lida sob os préstimos da
diacronia (ADRIANO, 2006, p.31).

A mão de Agnès testemunha, na própria pele, o tempo –


ou, dito de outro modo, a passagem do tempo. Os veios de suas
veias, os ossos que afloram, as rugas do esgar. Da pele à película
– eis um adágio inspirador, se ela tivesse filmado os Catadores
em celulóide (16mm ou 35mm). Mas “filmado” em digital, a
analogia (apesar do digital ser antagônico ao analógico) se
processa de outra ordem: os dígitos dos dedos, os dedos cor de
horas da aurora – para transplantar o famoso verso de Homero.

256 Catar imagem se limita com escrever / Carlos Adriano


Oposta à imagem-cinema, que traz um rastro (de resíduo)
da realidade e um lastro de índice semiótico, a imagem-vídeo é
pura especulação virtual. Cálculo de algoritmos, o digital tem algo
de ritmo sutil: a imagem configura-se em pulso de “zero” e “um”,
intervalo improvável onde a imagem surge no istmo do abismo,
sutura no intervalo da suspensão, lapso entre a possibilidade de
ser imagem e sua impossibilidade.
Brechtiana afetuosa, a abordagem de Agnès eterniza e
humaniza os objetos imaginários (que se retroativam dos objetos
concretos da realidade), deixando-os “eventualmente viverem suas
vidas e guardarem seu mistério”, imprevistos e livres (ADRIANO,
1996, p.12). Colher no ar uma tradição viva, preconizava Pound.
Catar no ar uma imagem fugidia, parece propor Agnès. Senão da
mão. Ela propõe ver o próprio filme no ecrã da vida. Acredita no
elã que vem de uma vivência imediata.
É o que chamou de “documentário subjetivo”, a partir de
L’opéra Mouffe (1958), o primeiro filme em que sentiu fazer “o belo
ofício de cineasta”. Nesse diário de impressões, a diretora grávida
também gestava uma dialética com tomadas “improvisadas” e
“ensaiadas” tornadas indiscerníveis (“uma forma de cinema, entre
a verdade de um Cartier-Bresson e os devaneios de um cinema
underground”) – “poderia se dizer que o real faz seu cinema”
(ADRIANO, 1996, p.12).
A pele enrugada da mão de Agnès remete à pele de Jacques
Demy, em tributo de memória e amor graças ao cinema.2 No 2. Foi na mesa de um café,
durante o Festival de Tours
filme, seus cabelos remetem aos cabelos ao vento da curadora (1958), que Varda conheceu
de um museu que trouxe para Agnès, sob o céu que ameaçava o também diretor Jacques
chuva, um quadro de glaneuses sob a tempestade. Agnès frisa que Demy, com quem se casou
e viveu até a morte dele.
o achado casual deste quadro não foi truque de cinema. O tempo Por essa época, via Demy,
cinematográfico opera milagres inacreditáveis, como quase todos Varda conheceu Jean-Luc
Godard. “Ele tinha dois
bons milagres: crer para ver. prenomes de apóstolos e
um nome incluindo Deus e
Os catadores e eu impregna-se de tempo como substância Arte (Ard com um d para que
manifesta na corrosão da matéria descartável. Percebemos se pudesse dizer árduo)”.
Os casais Jean-Luc & Anna
manchas e marcas do tempo ao longo do filme: no vazamento e (Karina) e Agnès & Jacques
no mofo no teto da casa de Agnès formando “pinturas abstratas”; costumavam passar as tardes
de domingo jogando cartas
no gesto dos pintores que reciclam objetos do lixo em suas obras; (ADRIANO, 1996, p.12).
na figura do ativista que come do lixo por princípio ético; na efígie
do homem com título de mestre que vende folhetos na estação de
trem, come restos da feira e alfabetiza imigrantes.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 252-263, JUL/DEZ 2017 257


Agnès demonstra gosto e apuro ao filmar detritos. Ao achar
na rua um relógio sem ponteiros, encontra um signo perfeito de
tempo e resíduo. Outro signo perfeito é o que se converteu em
símbolo do filme e guarda morfologia com a mão (também por
sua conversão em ruga, “última e sublime”): a batata-coração.
Catadores de detritos são mediadores e recicladores de tempos
mortos, assim como o são pintores e cineastas com os refugos da
imagem da realidade. Um uso justo de uma imagem desprezada?
Um alimento dispensado e um livro descartado são objetos
que a sociedade de consumo despreza segundo lógicas de
eficiência e competência (a comida estragada deveria se jogada
fora, mas um personagem de Agnès prova que não é bem assim):
“É como se algum drop frame, aquele fotograma de compensação
de sincronismo (na técnica do vídeo) fosse um elo perdido nos
lapsos do tempo, um resto para driblar a duração da passagem e
das duas faces da temporalidade” (ADRIANO, 2006, p.33).
A proposição de Agnès para suas mãos, sobre a qual se debruça
este artigo, existe apenas com a relação entre suas duas mãos: com
uma filmar a outra. Este aspecto de interdependência sugere o tom
para uma característica comum a tantos gestos e eventos do mundo
dos humanos: o sentido do par, do diálogo, do compartilhamento,
do pertencimento. Seria mesmo impossível viver sozinho ou não
estaríamos condenados a viver juntos? O limite da fragilidade é o
da dependência?
Pareceu-me inevitável, no contexto deste artigo sobre o
fotograma, não fugir de dois dados testemunhais que ligam o autor
do comentário ao filme. Em 2000 meu curta-metragem A voz e o
vazio: a vez de Vassourinha ganhou o prêmio de melhor documentário
no 36o Festival Internacional de Cinema de Chicago; no mesmo
ano Os Catadores e eu ganhou o mesmo prêmio na categoria de
longa-metragem. Entre coincidências e serendipidades, os sentidos
se oferecem ao escrutínio curioso.
3. Sobre este filme, ver o livro Ensaio poético de found footage, Vassourinha3 desacata o olvido
de Barros (2014).
e cata restos e fiapos de informação sobre o sambista paulista (1923-
1942) – seus seis discos 78rpm, fotografias, partituras, notícias de
jornal, programas de show e de rádio, documentos trabalhistas
e de óbito – para compor uma constelação benjaminiana sobre a
enigmática e evasiva figura, desconhecida na história da música
popular brasileira. O verso “ninguém sabe”, do sucesso Emília, é
loop-leitmotiv do filme.

258 Catar imagem se limita com escrever / Carlos Adriano


Não se pode fazer qualquer ilação sobre um deliberado
juízo dos jurados que concederam os dois prêmios de melhor
documentário (para longa e para curta), no sentido de uma
manifestação proposta e propositada, ao escolherem dois filmes
específicos que permitiriam articular um par, sobre a reciclagem
e a permanência da imagem no mundo contemporâneo, mediado
pelas indústrias da música e do vídeo. Mas não deixa de ser
tentador apontar tal injunção. Catadores, eus, vozes, vazios.
Também não posso deixar de fazer outro comentário pessoal.
Em 2009, Adhemar Oliveira, Patricia Durães e eu organizamos
o Seminário de Cinefilia em tributo a Bernardo Vorobow (1946-
2009).4 Na programação de filmes, inspirados pelo homenageado, 4. Em 45 anos, Bernardo
Vorobow (a.k.a. “o poeta
exibimos Os catadores e eu, pela beleza de cinema e o engajamento
da programação” e “o
social, uma vez que Agnès expande de um “em si” para um libelo sr. Cinemateca”, Carlos
social de implicações humanitárias e planetárias. Dos veios de sua Reichenbach dixit) foi
diretor e programador da
mão, ela abraça o mundo. SAC (Sociedade Amigos
da Cinemateca, quando
Na palma da mão, a alma dos poros. O respiro à flor da esta funcionou no subsolo
pele, por um triz. A mão que cata é aquela que afaga; a mão que do Belas Artes, em sua
época mais heróica,
(re)colhe é aquela que escolhe. 1970-1975); coordenador
de cinema do MAC-USP
Agnès parece enunciar seu projeto de filmar a mão como (1972-1976); criador,
quem interroga uma chance que se oferece ao alcance da mão, diretor e programador do
departamento de cinema do
mesmo que seja oportunidade inapropriada ou fugidia. Na MIS-SP (1975-1985). Criador
mão, ela encontra o eco da concha, o espelho côncavo que pode e diretor do departamento
de difusão da Cinemateca
devolver, se não a imagem, ao menos o enigma dessa imagem. Brasileira (1982-1999),
A ambigüidade é sinal de sentidos plurais e complexos, e não de e ali programador até
2009. Formou diversas
signos confusos. As fronteiras entre avesso e “direito” (ou fundo e gerações de cineastas e
figura) mostram-se fluidas e cambiantes, jogos anti-ilusórios. cinéfilos. Apresentou ao
público brasileiro autores e
Por que o contrário do avesso atende por um nome que traz filmografias, dos clássicos
aos desconhecidos.
uma qualidade do que é “certo”, “correto”? O avesso indica um Devotava um amor
risco, um perigo? O negativo. A imagem, em sua interface com o imenso ao cinema. Como
programador, era imensa e
real ou o imaginado, tem esse dado do avesso. Qual o avesso da
intensa sua generosidade
mão? O seu interior, como o da voz interior (ou off)? O filme de em compartilhar. Consultar
Agnès evoca várias pinturas, figurativas. Mas a partir da efígie da o Dossiê Bernardo Vorobow,
editado por Alcino Leite Neto
mão, a figura borra-se (como a figura da batata-coração transforma- na revista Trópico, com textos
se em potência de metáforas e alusões) e transborda. de Carlos Reichenbach,
Walter Salles e Carlos
Transbordamento ou desregramento dos sentidos? Adriano.

Anamorfoses entre fundo e figura, avesso e direito, informes e


conformes. A mão apalpa e procura. A mão aponta. A maçã do
achado cai na mão pronta para acolhê-lo? A mão que recolhe está

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 252-263, JUL/DEZ 2017 259


predisposta à recolha? Borrões de fronteiras, como as linhas da
mão. Nelas adivinha-se um trajeto, um destino. A pele enruga para
des(a)fiar a distensão no tempo. As ambiguidades da imagem.
Como numa pintura de Magritte. Um espelho cego.
A mão como objeto do filme e a mão como instrumento
mediador. A mão que opera a câmera e a ilha de edição. A volta:
por que se convencionou chamar esta voz de “voz off”? Uma voz
que vem de fora do quadro, certamente; mas também não poderia
ser uma voz que vem de dentro, do interior do corpo (da mente)
5. Aludo ao dispositivo da cineasta? Seria um “monólogo” (interior) que se trava “com”5 o
Yerushalmi, comentado em
Derrida (2016, p. 60).
espectador? E este comentário mesmo, acerca de tal imagem, não
seria também um “monólogo com” o leitor do fotograma?
Um fotograma é congelado de maneira a poder ser comentado:
nesse processo de decupagem analítica, o fotograma vira fotografia
– o que é uma volta ao princípio de que o cinema se constitui
de uma série de fotografias fixas que, quando acionadas por um
mecanismo apropriado (um projetor de filmes, por exemplo),
geram a ilusão de movimento. Para ser capturado pelo comentário,
é como se o fotograma devesse ser imobilizado. Ou que devesse
voltar ao seu estatuto originário de fotografia, pré-filme.
O que não deixa de escoar – ou responder em eco crítico-
6. Agnès Varda nasceu na criativo – a fidelidade da cineasta à sua formação na fotografia6
Bélgica (1928), de origem
(que até pode ser definida como instância de mediação entre o
grega e francesa. Formou-se
fotógrafa. Fez fama com cinema e o tempo): Agnès denominou de “cinevardafoto” aquelas
instantâneos de anônimos, suas obras em que “as fotografias põem em movimento os filmes”
de famosos (Ionesco, Fidel,
Aragon), de lugares (China, (ADRIANO, 1996, p.12). Neste artigo, é um fotograma que põe em
Ouro Preto, San Francisco). movimento o pensamento sobre o filme. Os sentidos sedimentam-
Foi aluna de Bachelard
(Sorbonne, 1946-47), cujos se no fotograma (ex-fotografia): o mistério intacto.
livros carrega sempre
consigo “para protegê-la da Uma escritura cinematográfica curiosa, de inflexão
imbecilidade” (ADRIANO, existencialista e imanente, poderia ser a chave de uma predisposição
1996, p.12).
generosa e magnética às coisas do mundo, eivada de urgências
e insurgências iminentes. A diretora do filme afigura-se como
demiurga provisória, aberta e predisposta aos caprichos e graças do
acaso e do humor. Sua ética é sua profissão de fé: “Eu me vejo como
uma autora sem certezas” (ADRIANO, 1996, p. 12). A fragilidade
de um gesto derrotado da mão denuncia o fracasso da vida.
A mão, junto com o pé, é talvez o único órgão humano que
se oferece naturalmente à contemplação (no sentido de não ser
preciso fazer malabarismos de postura nem torcer a vértebra

260 Catar imagem se limita com escrever / Carlos Adriano


para consumar o exercício da observação). A mão parece estar
ao alcance da mão para os olhos, a pupila na ponta dos dedos, à
própria visão de si mesmo, sem a necessidade de um instrumento
(externo) mediador. Para olhar o próprio olhar (os olhos, o rosto),
o ser humano precisa de um espelho.
Quando Agnès observa sua mão, é como se esta fosse um
espelho indicial e indexador de sua passagem pela vida. Um
espelho da alma na palma da pele, no cerne da carne. No filme,
diz a autora: “e as minhas mãos me dizem que estou perto do fim”.
Dizem-no pela perda dos movimentos antes plenos, o dizem pela
textura da pele puída. Mãos que testemunham uma contestação
de vida. Ou resignação; consignação. As mãos são o elemento por
essência da bricolagem, do fazer – portanto da poesia, poiesis.
Que seja possível extrair quase todo um mundo (e quase todo
um abismo e quase toda uma falésia) de pensamentos a partir
deste fotograma da mão em Os catadores e eu é a demonstração
da força desta imagem da mão gravada por Agnès, grávida de
sentidos, de projeções, de metáforas, de alusões. Mesmo que não
se possa extrair, ou ca(n)tar, tudo de todo. Ou quase. Impressão
digital de enigmas.

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DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 252-263, JUL/DEZ 2017 261


FORA DE
E CAMPO
Memórias de uma catástrofe em
andamento: testemunhos em
vídeo de violência policial na
periferia

Felipe Polydoro
Professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília
(FAC/UnB)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017


Resumo: Multiplicam-se, nas redes, vídeos de violência policial nas periferias
brasileiras captados pelos moradores. Tais testemunhos audiovisuais tomados
em situações extremas, às vezes pelas próprias vítimas, evidenciam abusos
outrora relegados à invisibilidade. Analisamos algumas dessas imagens a partir
de duas perspectivas: 1) como evidência de fatos que se impõem à pauta midiática
e produzem consequências jurídicas; 2) como memória traumática de condutas
autoritárias e ilegais dos aparelhos repressivos. Além do conceito de trauma,
valemo-nos, entre outros fundamentos teóricos, da divisão entre dois tipos de
testemunho, descritos pelas noções de testis e supertestes. Demonstramos que a
persistência histórica da violência encontra-se inscrita não apenas nos instantes de
choque, mas também nas reações contidas dos sujeitos envolvidos.
Palavras-chave: Política das imagens; Imagens amadoras; Testemunho;
Representação da periferia.

Abstract: There is a growing number of moving images capturing police violence


perpetrated in the outskirts of Brazilian cities. These images taken in extreme
situations, sometimes by the victims themselves, denunciate a set of abuses that
were once condemned to invisibility. We intend to examine some of these images
from two different perspectives: 1) as evidence of events that somehow invade
dominant media producing legal consequences; 2) as traumatic memories of
authoritative and illegal conducts of law enforcement officials. In addition to the
concept of trauma, we use, among other theoretical bases, the division between
two types of testimony, described by the notions of testis and supertestes. We
demonstrate that the persistence of this kind of violence can be identified not only in
the violence itself, but also in the subtle reactions of the different subjects involved.
Keywords: Politics of the images; Amateur footage; Testimony; Representation.

266 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


Na noite de 20 de fevereiro de 2015, um grupo de policiais
militares do Rio de Janeiro, em uma operação na Favela da
Palmeirinha, baleou e matou o adolescente Alan de Souza Lima,
de 15 anos. Chauan Jambre Cezário, então com 19 anos, também
foi baleado, mas sobreviveu. Lima, que no instante dos disparos
filmava uma conversa descontraída entre amigos, documentou a
própria morte. Após a irrupção abrupta dos tiros e a agonia do rapaz
situado fora de campo, a câmera mantém-se ligada por mais sete
minutos e meio, com um enquadramento fixo, gravando apenas
os dados sonoros. O vídeo1 circulou massivamente nos espaços 1. A versão do vídeo
analisada neste trabalho
digitais, foi apropriado em reportagens jornalísticas e serviu para
está disponível em: https://
evidenciar a inocência dos rapazes, acusados de portarem armas. www.youtube.com/
watch?v=Mm5E0zuZemE,
Neste artigo, discutiremos, nesta e em outras imagens acesso em 05/10/2020.
Importante destacar que
amadoras de violência policial, tanto a propriedade de evidência
a legenda sobreposta à
documental a produzir efeitos nas mídias e no plano jurídico imagem, remetendo à página
quanto o caráter de memória traumática sobre a violência reiterada do Facebook do canal que
divulgou o vídeo, encontra-se
contra populações periféricas brasileiras. Isto é: as práticas na versão original disponível
históricas de controle social por meio de violência ilegal praticada no Youtube.

pelas autoridades públicas (PINHEIRO, 1991), uma repetição de


ordem estrutural geralmente ocultada nas coberturas midiáticas.
São testemunhos visuais que carregam duas propriedades: o valor
de prova, associada à verdade factual, mas também a experiência
subjetiva, traumática, dos sujeitos que vivenciam o horror
dessa violência. Portanto, aludem a dois modelos diferentes de
testemunho, descritos pelas noções latinas de testis e supertestes
(SELIGMANN-SILVA, 2003), conforme veremos adiante.
Essas imagens traumáticas, fortalecidas pelo valor de prova e
pelo realismo da retórica amadora, possuem potencial de perturbar
discursos e justificativas históricas para a violência policial – embora
sejam incapazes, por si só, de provocarem transformações efetivas
na cultura policial e reverter o apoio de parcela significativa da
sociedade ao modelo linha dura de segurança pública. Ainda assim,
produzem, ainda que momentaneamente, abalos nos discursos
dominantes, efeito de imagem-dilaceramento (DIDI-HUBERMAN,
2012) que também servirá como um dos vetores das análises aqui
realizadas. No já mencionado vídeo da Favela de Palmeirinha,
as particularidades formais, ora a remeterem a uma violência
insuportável, ora marcadas pelo ocultamento das ocorrências
no plano visível, tornam o registro especialmente incômodo.
Comecemos com uma análise mais detida dessa imagem.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 267


Embora fruto de uma única tomada, este longo plano possui
três momentos distintos separados por modificações substanciais
na imagem, o que gera um efeito de montagem interna. Na
primeira parte, com duração pouco superior a um minuto, é
quando efetivamente vemos os corpos e objetos presentes na cena.
Aqui os quatro rapazes brincam em posições fixas. O cinegrafista
aproxima a câmera de um, de outro, quase encosta a lente num
garoto que conta uma piada, toca seu pescoço com a mão.
Um minuto e quatorze segundos depois do início, a câmera
se desloca para o lado direito e abandona a curta amplitude
compreendida até ali. O comportamento da câmera e o barulho
do vento no microfone indicam que o operador se move com
rapidez. O enquadramento chacoalha, uma instabilidade de
orientação vertical. O plano se torna abstrato: distinguem-se raios
de luzes a cortar o fundo escuro. É em meio a esse caos visual que
irrompem os tiros. Desde o primeiro disparo – são nove no total –
notam-se clarões invadindo a imagem a partir do lado esquerdo.
Dentro de uma lógica interna da imagem, a intervenção dos
tiros é inesperada e gratuita. Não há uma causa a demandá-los
como consequência; não há nexo causal com algum outro fato
anterior. Dá-se logo após uma conversa descontraída e amistosa,
sem qualquer anúncio ou preparo. A corrida parecia parte da
brincadeira. Não vemos uma arma, não avistamos policiais ao
longe. O operador simplesmente corre, movimento a princípio sem
sentido. Os tiros irrompem em um instante de caos visual, no qual
a imagem informa muito pouco e o som, fonte informativa mais
confiável neste contexto, fornece dados inexatos de ocorrências
situadas fora de campo. Irrompem primeiro e sobretudo como
som: estampidos altos e secos, facilmente reconhecíveis, uma
vez que familiares ao espectador contemporâneo. Os estampidos
estão acompanhados, visualmente, de clarões. Primeiro um ponto
brilhante e claríssimo no canto esquerdo; depois o plano inteiro
tomado por uma coloração quase branca.
Quando a imagem estabiliza-se, alguns segundos depois,
vemos o plano muito aproximado de uma bicicleta caída no chão,
provavelmente do cinegrafista. Sabemos que está caída porque, há
alguns instantes, vimos a roda chocando-se contra uma superfície
sólida e, ato contínuo, um punhado de areia voar contra a tela. Este
primeiríssimo plano da bicicleta estatelada persistirá até o final
do vídeo. O quadro exibe, na parte superior esquerda, um pedaço

268 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


da roda e, em toda a metade inferior, um fragmento do aro. Isto
é: de 1min30seg a 9min30seg, acompanhamos as ocorrências por
meio de dados sonoros. Ouvimos nesses sete minutos – e apenas
ouvimos: a agonia final do cinegrafista; as orações e lamentos do
outro rapaz ferido; alguns diálogos entre os policiais, os rapazes e
moradores; a remoção dos corpos.

Fig. 1: Na primeira parte do vídeo, a câmera media a conversa dos meninos

Dois aspectos sobressaem quando da emergência desse


vídeo como um acontecimento midiático da atualidade, com
repercussão nos espaços digitais e nos veículos de comunicação,
seja na circulação da sua versão mais longa (sobretudo através de
compartilhamento pelas redes sociais), seja na incorporação de
alguns de seus fragmentos em matérias jornalísticas. A qualidade
de evidência documental: a imagem que dá a ver a brutalidade
protagonizada pelas forças do Estado e que também serve de prova
da inocência dos rapazes alvejados pela polícia. E a singularidade
subjacente à proeza trágica do rapaz que filmou a própria morte.
A abordagem concentrada na natureza documental remete ao
fato pró-fílmico, o assassinato no mundo histórico de um civil. Já
o enfoque de ordem performática ressalta os detalhes envolvendo
o processo de produção da imagem.
A apropriação dos veículos jornalísticos realça, desta forma,
a ambiguidade incontornável deste acontecimento: o relevo
encontrado nos espaços midiáticos deve-se tanto ao interesse
pelo fato em si (homicídio de um jovem inocente pela polícia)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 269


quanto pelo inusitado da construção da imagem. Neste segundo
aspecto, inevitavelmente resvala-se para o sensacionalismo.
Vide esta manchete do portal de notícias G1: “PMs envolvidos
2. Notícia disponível em: em morte de jovem que filmou com celular são ouvidos”.2 Aqui,
http://g1.globo.com/rio-de-
Alan de Souza Lima é nomeado como aquele que “filmou com
janeiro/noticia/2015/03/
pms-envolvidos-em-morte- celular” a própria morte. Ou o título de uma das versões do
de-jovem-que-filmou-com- vídeo armazenada no Youtube, aquela com mais visualizações
celular-sao-ouvidos.html.
Acesso em 01/07/2020. e que será analisada mais detalhadamente aqui: “Jovem que
foi morto no Palmeirinha pela polícia gravou a própria morte”.
Portanto, há destaque maior à gravação da morte do que ao
homicídio em si.
Os exemplos em que o fato do assassinato e o fato da
gravação do assassinato encontram-se amalgamados nos
enunciados aludem, ainda, a uma particularidade formal das
captações amadoras: a presença de uma câmera diegética e
a inclusão do cinegrafista como personagem da cena. Mesmo
quando os corpos, objetos e ações registradas situam-se à
distância, as marcas da estética amadora – instabilidade, imagem
granulada, enquadramento precário, luz insuficiente – repisam
constantemente a existência da câmera e de um operador;
frequentemente, este fala ou produz outros ruídos, por exemplo.
As filmagens factuais amadoras constituem-se, assim, de duas
narrativas: aquela do fato narrado e outra, a “narrativa de sua
3. No original: “Narrative of its própria feitura” (WEST, 2005, p. 87).3 Neste caso, no qual o
own making” (tradução nossa).
desenlace violento vitima o próprio operador durante o processo
de filmagem, as duas narrativas estão particularmente intrincadas.

Fig. 2: No momento dos tiros, vê-se apenas a luminosidade do flash do celular

270 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


Transparência e opacidade

Uma perspectiva documental positivista, interessada em


conhecer os pormenores tal como se deram no mundo histórico
– uma perspectiva que constrói o fato – encontrará, neste vídeo
violento tomado na Favela da Palmeirinha, poucas provas
transparecidas na dimensão do visível. Embora tratado pela
imprensa como uma evidência, este registro, dentro de um viés
«ocularcêntrico», caracteriza-se pela opacidade na restituição do
ocorrido. As informações visuais são pouco elucidativas quanto
aos detalhes envolvendo as ocorrências na duração da filmagem.
Os fatos mais relevantes situam-se fora de campo: a chegada
dos policiais, a corrida do cinegrafista, os disparos, a queda dos
corpos alvejados, os corpos feridos caídos no chão, o corpo morto.
Na contramão de um regime do visível dominado pela
evidenciação pornográfica da violência, este documento visual
tomado no olho do fato mantém as ocorrências ocultas. Não há, no
campo de visão, cenas grotescas, violência explícita, corpo ferido
ou cadáver. É uma imagem que apela a outras sensibilidades que
não a visão. A partir de certo momento, convoca a uma espécie
de mergulho na cena, tendo em vista o predomínio do sonoro,
caracterizado pela ausência de limites físicos – ao contrário do
visual, limitado pelo quadro. Neste caso, mais do que em outros
vídeos amadores, a ênfase recai sobre o ponto de escuta, o
equivalente em termos auditivos ao ponto de vista.

Fig. 3: O vídeo permanece nesta posição por mais de sete minutos: apenas ouvimos o que acontece

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 271


Para efeito de comparação, vejamos o vídeo amador que capta
o disparo fatal do policial norte-americano Michael Slager contra
Walter Scott,4 fato de grande repercussão nos Estados Unidos.
4. Vídeo disponível em:
https://www.youtube.com/ Um policial mata, pelas costas, um suspeito negro desarmado.
watch?v=fg3GrfR2wiQ. O enquadramento aprofunda o campo e organiza o espaço de
Acesso em 01/07/2020.
maneira a incluir no mesmo quadro os dois personagens, o policial
e o suspeito, nos instantes-chave da cena, os momentos do disparo.
5. A interpretação deste
vídeo como portador de É essa presença contígua a garantia maior da veracidade do
uma verdade do fato e, registro: não resta dúvida de que o policial Slager alvejou um Scott
portanto, agente de justiça
e correção está expressa no que corria na outra direção, pois está tudo enquadrado no mesmo
título deste texto do jornal plano, um típico plano-sequência. Trata-se de uma imagem em
francês Le Monde traduzido
e publicado pelo portal Uol: que “o essencial de um acontecimento depende de uma presença
“Policial branco assassina simultânea de um ou mais fatores da ação” (BAZIN, 2014, p. 92) –
negro nos EUA. E se não
houvesse vídeo?”. Link para e cuja montagem ficaria proibida, conforme a famosa lei baziniana.
o texto: http://noticias. O “essencial do acontecimento”, neste caso, diz respeito à evidência
uol.com.br/internacional/
ultimas-noticias/
empírica a comprovar uma verdade factual.
le-monde/2015/04/09/
policial-branco-assassina-
O operador está a uma certa distância, o que lhe permite
negro-nos-eua-e-se-nao- filmar sem ser visto. No momento dos disparos, no centro do
houvesse-video.htm. Acesso
enquadramento, entre o policial que atira e o suspeito alvejado,
em 01/07/2020.
há um enorme tronco. A filmagem dá-se, literalmente, de trás
6. Alguns comentários da árvore. É uma tomada de câmera escondida, posicionada ao
na página do vídeo no longe, sobre a qual os agentes filmados não têm consciência. Este
Youtube afirmam que
algum deles portava um desconhecimento evidenciado na imagem é central na produção
rádio, equipamento usado de sentido: ao mesmo tempo em que mostra a ação em si – injusta,
na comunicação entre
traficantes. No entanto, desproporcional na agressividade – sublinha o caráter revelador
outros comentários dessa imagem técnica e o feito do operador, o herói da cena.5
desmentem a informação,
sustentam que era um guidão No vídeo brasileiro, ainda que opaco, as evidências permitem
de bicicleta. Interessante
como esses espaços de
responder a algumas questões específicas impostas à imagem,
comentários viram uma produzindo efeitos relevantes na vida civil. Os meninos foram
espécie de análise coletiva e
acusados de trocarem tiros com os policiais, que invocaram legítima
conflituosa dos vídeos, numa
mistura caótica de opinião defesa. A delegada do caso viu nas imagens a prova de que os
com leitura de evidências, rapazes não portavam armas ou estavam vinculados a traficantes6
onde há por vezes uma
perícia coletiva do vídeo. (COELHO, 2015). Isto é, pragmaticamente falando, a imagem
provoca uma inversão no processo judicial: os rapazes agora são
7. Outra consequência da as vítimas e os réus, os policiais.7 Neste sentido, é um registro
divulgação do vídeo foi a
exoneração do comandante tratado como portador de uma verdade de ordem factual, que
do 9o Batalhão da Polícia corrige e revela a farsa dos policiais envolvidos, verdade sustentada
Militar do Rio de Janeiro,
tenente-coronel Luiz Garcia
e entendida como oposição a uma mentira. Um instrumento de
Batista (COELHO, 2015). revelação e de justiça; de correção. Uma noção de verdade de
fundamento relacional, capaz de responder a questões específicas:

272 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


os meninos estavam ou não armados, ameaçavam ou não os
policiais. Conforme Xavier (2003, p. 33), quando se questiona a
evidência empírica de uma imagem, não estamos “discutindo sua
verdade em sentido absoluto, incondicionado”, mas em busca de
soluções condicionadas pela imagem e pelo espectador.
No julgamento dos policiais estadunidenses acusados de
agredir o taxista negro Rodney King, em 1991 em Los Angeles, a
estratégia dos advogados de defesa foi exatamente o de promover
uma batalha ao nível da significação do vídeo que flagrou a violência,
um acontecimento clássico de filmagem factual amadora.8 Dotado 8. Há uma versão do
vídeo neste link: https://
de uma câmera VHS, um cinegrafista não-profissional chamado www.youtube.com/
George Holliday captou, da sacada de seu apartamento, King caído watch?v=sb1WywIpUtY.
Acesso em: 01/07/2020.
e rodeado de policiais, golpeado dezenas de vezes com bastões de
ferro. Ele havia sido parado por excesso de velocidade e reagira
com alguma agressividade. Em vez de rejeitar o vídeo, a defesa dos
policiais tomou-o igualmente como prova e formulou outra narrativa
a partir desses mesmos dados brutos. Nessa versão alternativa
fabricada pela defesa, um Rodney King enfurecido tentava agredir
policiais tecnicamente bem preparados, que manejavam seus
bastões de modo a mantê-lo deitado. Ao controlá-lo dessa maneira,
à distância, os guardas teriam evitado o uso de armas fatais. Isto é:
nesta versão, os golpes de bastão salvaram a vida de King. Formado
predominantemente por brancos e sem nenhum negro entre seus
membros, o júri absolveu os quatro policiais, desencadeando uma
onda de protestos violentos nos quais, segundo o jornal Los Angeles
Times, morreram 63 pessoas (MOORE, 2012).

Fig. 4: No vídeo estadunidense, o plano enquadra tanto o policial que atira quanto o suspeito que corre

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 273


Para Nichols (1994), o equívoco dos promotores de acusação
residiu na crença de que o vídeo consistia numa evidência crua que
falava por si mesma, uma prova da culpa policial sem possibilidade
de refutação, quando o recomendável seria considerar a fita “um
9. No original: “Symptom sintoma que necessita de um diagnóstico” (p. 22).9 Por mais
in need of diagnosis”
(tradução nossa).
evidente que a agressão parecesse ao observador, a conclusão
sobre o excesso resulta, sobretudo, de um quadro interpretativo
que se impõe de fora da imagem, ainda que as ações inscritas no
vídeo possam servir de resistência a certas narrativas.
Na verdade, o enfoque da análise de Nichols (1994)
encontra-se menos em provar a agressão a King e mais na imagem
como sintoma de uma condição social de exclusão e humilhação
mais ampla, que exigiria uma resposta profunda no nível
estrutural muito além da penalização dos policiais. Para além de
um caso específico de abuso do poder repressivo, o vídeo também
consistia em um “testemunho visível, repetível e absolutamente
incontrolável” de um tipo de brutalidade comum que, adquirindo
visibilidade, toca “um nervo exposto” (THOMPSON, 2011,
p. 311). Foi este excesso ligado à experiência coletiva que fez
explodir as revoltas uma vez divulgada a decisão do júri.

Imagem e testemunho

Inseridos em plena batalha discursiva sobre seu significado


atual e histórico, tratados topicamente pelo jornalismo praticado
pelas grandes empresas de comunicação (que hesita em associá-los
seja num plano sincrônico, seja diacrônico) os flagrantes brasileiros
de violência na periferia carregam o mesmo tipo de excesso. São
registros potentes em duas temporalidades e duas acepções de
verdade: aquela relativa à elucidação dos detalhes sobre cada um
desses fatos trágicos e outra noção, aqui chamada de traumática,
referente à repetição do horror dessa violência.
Uma divisão conceitual comum nos estudos sobre o testemunho
pode ajudar na compreensão do valor e dos efeitos de cada uma dessas
acepções. Conforme Seligmann-Silva (2003), há duas palavras em
latim para o termo testemunho, cada qual com um significado próprio.
Testis designa um modelo de testemunho direcionado à verificação
da veracidade dos fatos, ao esclarecimento exato dos detalhes por

274 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


meio de evidências e provas, cujo propósito declarado de busca da
verdade é indissociável de uma retórica do convencimento. Trata-se
da noção de testemunho tipicamente jurídica, interessada em separar
o verdadeiro do falso em nome da justiça, em um contexto em que
elementos ficcionais são sinônimo de mentira. Valoriza-se aqui acima
de tudo o depoimento de terceiros, das testemunhas oculares. Não
à toa, a visão é especialmente relevante. “Etimologicamente, testis é
aquele que assiste como um ‘terceiro’ (terstis) a um caso em que dois
personagens estão envolvidos” (BENVENISTE apud SELIGMANN-
SILVA, 2005, p. 80).
O termo supertestes, por sua vez, define o testemunho daquele
que vivenciou uma experiência limite envolvendo o risco contra
sua vida, uma catástrofe ou provação (ou proximidade da morte).
É o sobrevivente que relata o próprio sofrimento, uma descrição
temporalmente posterior ao evento, muitas vezes voltada a
articular esta experiência extrema em alguma forma de linguagem,
geralmente oral. Benveniste observa que “supertestes descreve a
‘testemunha’ seja como aquele ‘que subsiste além de’, testemunha
ao mesmo tempo sobrevivente, seja como ‘aquele que se mantém no
fato’, que está aí presente” (apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 81).
Segundo Seligmann-Silva, “o ‘manter-se no fato’ do superstes
remete à situação singular do sobrevivente como alguém que habita
na clausura de um acontecimento extremo que o aproximou da
morte” (2005, p. 81). Portanto, diferentemente da testemunha como
testis, que ocupa a posição distanciada de um terceiro, o sobrevivente
agrega o episódio violento como componente indistinguível de sua
subjetividade. Nesta concepção, a memória catastrófica acompanha
permanentemente o sujeito, encontra-se sempre presente, por vezes
em estado latente, jamais manifesta integralmente no discurso.

O modelo do testemunho como testis é visual e corresponde


ao modelo do saber representacionista do positivismo, com
sua concepção instrumental da linguagem e que crê na
possibilidade de se transitar entre o tempo da cena histórica
(ou a “cena do crime”) e o tempo em que se escreve a
história (ou se desenrola o tribunal). (...) Ao nos voltarmos
para o paradigma do supertestes, os valores são outros. Aqui
pressupõe-se uma incomensurabilidade entre as palavras e
essa experiência da morte. (...) Nessa cena do testemunho
como supertestes, o presente do ato testemunhal ganha a
precedência (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 81).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 275


Os flagrantes de violência policial na forma de vídeo digital
que testemunham os fatos na sua própria duração da perspectiva
de um cinegrafista e, desta forma, restituem as ocorrências neste
plano visual, remetem aos dois sentidos do testemunho. Em
primeiro lugar, ao paradigma visual do testis: como evidência
factual, a maior parte das vezes com consequências efetivas no
10. Embora as punições plano jurídico e repercussão midiática,10 sobretudo quando o
aos policiais ainda se
restrinjam a penas de
cinegrafista não se encontra envolvido diretamente nos abusos
ordem administrativas e, retratados. É o caso de um vídeo captado por uma cinegrafista
muitas vezes, os processos
anônima no Morro da Providência, também no Rio de Janeiro.11
criminais não resultem em
condenação. A operadora situa-se numa posição alta, a uma certa distância
do ponto onde três policiais rodeiam o corpo recém baleado do
11. Há uma versão deste jovem Eduardo Felipe dos Santos Victor. A filmagem registra o
vídeo neste link: https://
www.youtube.com/ momento em que os policiais, ao disparar repetidamente uma
watch?v=uT8RZU9WcfQ. arma acomodada na mão do corpo inerte, tentam forjar uma
Acesso em 01/03/2019.
troca de tiros com o rapaz alvejado. Nota-se, pela conversa da
cinegrafista com outra mulher, que elas não conhecem o menino.
Portanto, é um registro de uma terceira que documenta um
fato, evidência que acaba por cumprir uma função jurídica. Mas
a experiência como um todo remete ainda ao testemunho como
supertestes. Moradora da mesma favela, potencial alvo de violência
semelhante e tendo passado pela experiência deste testemunho
em que sua própria vida esteve em risco, a cinegrafista também
passa a ter o estatuto de sobrevivente colado a sua subjetividade.
Ela diz ao fundo jamais ter presenciado um assassinato. Em
seguida, insiste que continuará filmando – ainda que o trabalho
exija esforço físico – porque o rapaz poderia ser um filho seu. A
imagem é registro audiovisual a presentificar o instante mesmo
de horror e, ao mesmo tempo, memória, resíduo que sobrevive e
descreve visualmente o ocorrido.

Fig. 5: Cinegrafista amadora flagra policiais a forjar tiroteio em favela do Rio de Janeiro

276 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


Nos estudos sobre o testemunho comumente privilegia-se
a linguagem verbal, seja a palavra da testemunha ocular que
presenciou o acontecimento (testis), seja, no supertestes, a do
sobrevivente que relata, em primeira pessoa, seu próprio encontro
violento (o depoimento oral tem a primazia sobre o escrito). Há uma
desconfiança em relação à imagem e ao visual, dado que “reduzir
o testemunho ao paradigma visual, falocêntrico e violento” poderia
estar associado a uma “espetacularização da dor”.12 Seligmann- 12. Seligmann-Silva, 2005,
p. 82.
Silva, porém, argumenta favoravelmente à complementariedade
entre testis e supertestes:

Minha proposta é entender o testemunho na sua complexidade


enquanto um misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade
de julgar: um elemento complementa o outro, mas eles se
relacionam também de modo conflitivo (2005, p. 82).

No caso de Alan de Souza Lima, tendo em vista a sobrevivência


do registro imagético, o menino acaba autor do testemunho do
próprio assassinato. Ele não pode dizer sobre o que vivenciou, mas
legou uma imagem tomada de seu ponto de vista, da perspectiva
menos do olhar do que do corpo, sobre o horror experienciado –
dada a regularidade deste tipo de violência, o legado é também
documento da catástrofe até aqui insolúvel dos excessos do poder
repressivo. Uma vez que o vídeo foi incorporado em reportagens
jornalísticas, disponibilizado no Youtube e compartilhado em perfis
de redes sociais, Alan, depois de assassinado, tornou-se também um
sujeito nos espaços midiáticos – o elemento performático do registro
da própria morte influenciando a repercussão sensacionalista do
acontecimento.
O efeito de real produzido pela filmagem amadora e as
marcações a apontar para o estive lá potencializam o estatuto de
testemunho, enquanto a câmera subjetiva estimula a identificação
por parte de um espectador cujo olhar é cooptado pela imagem.
Somos nós que olhamos e nós os atingidos; porém, uma vez a
câmera caída, estática, o cinegrafista já atingido, ouvimos todas as
decorrências ao fundo. Uma vez que as ocorrências dão-se todas
fora de campo, não há, como em outras imagens chocantes, o efeito
traumático provocado pela visão direta da violência que “interrompe
a linguagem e bloqueia a significação” (BARTHES, 1990). Quase

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 277


insuportável, aqui, é o som gutural da agonia do adolescente, que
contrasta com a fala articulada do outro rapaz alvejado (o som surge
logo depois dos disparos e da estabilização da imagem e desaparece
em seguida).
13. Conforme Chion (2008), Chama a atenção no longo trecho acusmático13 que se
o termo acusmático, de
origem grega, designa
segue à queda da câmera e dos corpos a contenção nas falas dos
uma circunstância em que moradores no trato com os policiais. O resguardo aparece inclusive
ouvimos o som sem ver sua no tom ponderado das vozes e nos lamentos ditos de modo lateral
causa originária.
sobre os rapazes, qualificados de “trabalhadores” – tal prudência é
furada em apenas um instante, quando uma mulher, voz distante,
direciona xingamentos aos PMs. Já as vozes dos policiais são firmes
e autoritárias, sempre a emitir frases no imperativo.
O horror está evidenciado não apenas nos momentos de choque,
de violência intensificada – a intrusão súbita dos tiros, a agonia
dos rapazes – mas também nas reações cautelosas dos moradores
da Favela da Palmeirinha, a revelar o medo já incorporado pela
regularidade dos abusos. As falas dos policiais revelam a preocupação
imediata de justificar os tiros, mostrando um reflexo condicionado de
construção da legítima defesa. Este registro visual inscreve a relação
entre a periferia e as forças policiais, desde a invasão dos campos
visuais e sonoros pelos tiros (que, ao contrário do que parece, não
é acidente ou acaso) até as falas controladas, sem intensidade. Bem
observado, informa, no que há de automatizado nas reações, o temor
e a opressão presentes nas relações entre os aparelhos repressivos
do estado e os moradores dessa região de periferia. Convivem na
mesma imagem o excesso da brutalidade comum (que aparecia no
caso Rodney King e se repete em centenas de outros exemplos) e o
14. O Sonderkommando
resguardo excessivo decorrente do risco físico real e do abismo de
(literalmente, “comando poder entre os agentes envolvidos – a contenção geral também é
especial”) era um
grupo constituído
testemunho da ausência de solução institucional para esse tipo de
predominantemente por conduta autoritária.
prisioneiros judeus que
tinha por função executar
trabalhos envolvendo o
extermínio em massa nos Imagens que perturbam consensos
campos de concentração
nazistas. Respondia por
tarefas tais como: carregar os
corpos das câmaras de gás No seu estudo sobre quatro fotografias do campo de
até os locais de cremação, extermínio de Birkenau tomadas secretamente por um membro
operar os fornos, limpar as
câmeras, entre outros (DIDI-
do Sonderkommando,14 do interior de uma câmara de gás,
HUBERMAN, 2012). Didi-Huberman tem o cuidado de afirmar o estatuto lacunar,

278 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


fragmentário, inexato da verdade dessas imagens, “fragmentos
arrancados [do real], pedaços peliculares” (2012). A noção
de verdade aqui em jogo transcende a dimensão temporal e
espacial do fato, da correspondência fiel entre um enunciado e
um estado de coisas do mundo. Não se trata apenas de afirmar a
incapacidade das descrições factuais em geral (visuais, verbais)
de fornecer uma visão integral do ocorrido, em virtude de
sua inescapável subjetividade. Qualquer enunciado sobre um
acontecimento limite – mesmo registros visuais que flagram um
instante do horror na sua própria duração – oferecerá no máximo
um vislumbre do que foi a experiência de vivenciá-lo. Uma
verdade parcial em comparação a uma verdade impossível de ser
representada ou dita. É o caso de Auschwitz, horror inominável,
irrepresentável.
Na reflexão sobre essas imagens, Didi-Huberman separa
a imagem-véu fetichista da imagem-dilaceramento, “que deixa
entrever um fragmento do real”. Ou seja, fiando-se na teoria de
Lacan, propõe a aptidão de certas imagens tocarem no real e,
dessa forma, desafiarem consensos, “perturbarem fronteiras”
(2012, p. 108).

Ao olhar para as quatro fotografias de Birkenau como


imagens-dilaceramento e não como imagens-véu, como a
exceção e não como a regra, podemos ver nelas um horror nu,
um horror que nos deixa tanto mais inconsolados quanto não
exibem as marcas hiperbólicas do “inimaginável”, do sublime
ou do inumano, mas as da humana banalidade a serviço do
mal mais radical (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 109).

As imagens-véu operam no nível do lugar-comum, das ideias


já prontas, da atratividade fácil e superficial, dos consensos, dos
clichês, das mercadorias. Porque domesticadas, conformadas,
entregues a uma lógica consumista, são desprovidas de verdade
– ao contrário das imagens que dilaceram, incomodam, abalam
os consensos, desafiam as normas e os poderes. O lugar
privilegiado dessas “imagens que velam” é a comunicação
de massa: “Da cobertura jornalística ao culto mediático, da
constituição legítima de uma iconografia à produção abusiva
dos ícones sociais, frequentemente não vai um passo” (DIDI-
HUBERMAN, 2012, p. 95).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 279


A cobertura jornalística do assassinato de Alan aproxima-se
mais do véu do que do dilaceramento. Ao realçar a coincidência
trágica do adolescente que filmou a própria morte e ao atribuir a
este aspecto contingencial o traço verdadeiramente singular do fato,
trata-o como fait divers – caracterizado, conforme Barthes, por uma
estrutura imanente, “que não remete formalmente a nada além
de si próprio” (1999, p. 59). A concentração excessiva nos apelos
performáticos, na peripécia trágica e mórbida, contribui para uma
apreciação espetacular e sensacionalista do ocorrido.
Já o vídeo completo que circulou nas redes sociais e encontra-
se armazenado no Youtube possui a capacidade de abalar a
ordem instituída que Didi-Huberman (2012) atribui às imagens-
dilaceramento. A recusa de dar a ver que perpassa esse registro
visual vira também uma espécie de alegoria do estatuto dessa
violência policial na periferia, cujos detalhes e motivações jamais
são integralmente expostos aos holofotes e debatidos frontalmente
nos espaços políticos e na mídia tradicional, apesar dos esforços de
muitos agentes políticos – e da proliferação de testemunhos e de
evidências documentais como os vídeos analisados neste artigo.
No vídeo de Palmeirinha, temos a presença das duas acepções
de trauma: o choque violento contra o corpo e a inscrição em
imagem de uma entre tantas violências, presentes e passadas, contra
a população pobre e negra no Brasil. Típico exemplo de memória
traumática: “que permanece não disponível para a consciência, mas
intromete-se sempre na visão” (CARUTH, 2000, p. 111). O realismo
carregado destes registros eficazes na presentificação das experiências
captadas adequa-se à descrição do modo de representação do
trauma na psicanálise freudiana. Não há deslocamento figurativo
ou simbolização dos fatos vivenciados, mas reprodução literal:
revê-se e revive-se a experiência tal qual se deu no vivido, mesmo
quando a imagem invade os sonhos. É a mesma imagem a insistir.
Ao mesmo tempo, por persistência de posturas autoritárias e falta
de vontade política de se enfrentar os mecanismos de manutenção
de privilégios (PINHEIRO, 1991), não há articulação e compreensão
dessas experiências nos espaços institucionais.
Não se trata apenas da possibilidade de um vídeo específico,
como este de Palmeirinha, ser visto, revisto e compartilhado nos
espaços digitais. Mas, principalmente, da repetição de diferentes
registros visuais, que captam novos acontecimentos envolvendo
homicídios e torturas de populações periféricas – sobretudo de

280 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


corpos negros e pardos – por parte da polícia, sem, no entanto,
produzir consequências efetivas nos planos institucionais e
políticos que transformem essa conduta autoritária. Se por um
lado não avançam as transformações na lógica das políticas
de segurança pública que poderiam interromper a violência
ilegal do estado, de outro temos esses registros visuais a vazar
repetidamente no espaço público, frequentemente nas redes
sociais. Este vazamento anônimo das mídias digitais que por
vezes parece obra de um autômato, sem autor, sem sujeito, uma
imagem que simplesmente aparece, uma operação que parece
obra não de um eu mas de um isso. Em suma: enquanto não
se trata amplamente o problema à luz do dia, as evidências do
horror seguem aparecendo, insistindo em vazar.

Considerações finais

Os vídeos aqui analisados ocupam ao mesmo tempo o


papel de memória e registro da atualidade, dado tratarem-se de
uma catástrofe em andamento. Inserem-se em uma batalha de
discursos vigente hoje que engloba inclusive o ato de nomear o
acontecimento, no sentido amplo e forte, ao qual estes fatos se
vinculam. Grupos ativistas de direitos humanos e combate ao
racismo nomeiam de genocídio contra a população negra, tal a
amplitude da violência contra negros que moram na periferia
(SILVA; DARA, 2015). Neste prisma, o vídeo que captura a
execução de Alan é uma verdade lacunar, aguda e reveladora
sobre o horror desse genocídio de jovens negros. Testemunho
visual sobre o que é viver sob o jugo de um poder violento que
invade subitamente o cotidiano e interrompe vidas.
O Holocausto, evento que baliza tantas discussões sobre
os limites da representação, é um fato histórico cujo discurso
encontra-se estabilizado. Aconteceu e foi uma política de Estado.
Negar sua ocorrência inclusive é crime em alguns países. É ético
ser espectador das imagens de evidência dessa experiência cujo
cerne de sofrimento e horror é irrepresentável? Imagens violentas
como os registros da morte de Alan de Souza Lima e tantos outros
colocam questão parecida. Convivem na internet com inúmeras
outros vídeos realistas violentos cujo interesse despertado parece
residir numa curiosidade discutível por parte dos espectadores.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 281


Todavia, uma vez que esses flagrantes são reflexo de políticas de
segurança cuja narrativa é fruto de disputas discursivas calcadas
na distribuição entre visível e invisível, a relevância das imagens
ainda ocupa uma posição anterior: a de simplesmente provar a
existência do acontecimento.
Conforme Pinheiro (1991), os procedimentos ilegais e
os excessos de violência contra as classes populares brasileiras
compõem um poder cuja lógica está calcada na dissimulação. O
controle social funciona porque jamais os motivos reais – isto é,
o caráter de mecanismo de controle – vêm efetivamente à tona.
Os agentes repressivos se valem normalmente das justificativas
da legítima defesa e da resistência seguida de morte. Como esses
episódios dificilmente são investigados, pois submetidos à Justiça
Militar, os perpetradores de práticas como tortura e homicídio
de suspeitos não só ficam impunes, como sentem-se autorizados
a essas práticas. Como vimos, a impunidade pode ser revertida
em situações em que alguma câmera flagra condutas ilegais. Em
vídeos como o da tragédia de Alan de Souza Lima, a eficácia
política reside, em primeiro lugar, nessa dimensão de prova, por
sua vez relacionada à tão questionada objetividade do registro
visual e ao testemunho como testis (testemunha ocular).
Há outra dimensão nessas imagens, esta subjetiva, ligada à
experiência de quem convive com essa violência cotidianamente:
o testemunho como supertestes. A escrita de si que emerge
desses vídeos crus de flagrante, à parte a força de prova, é de
pouca autonomia, uma opção meramente reativa que os novos
dispositivos tecnológicos oferecem a populações que pouco
conseguem fazer para defender-se desses abusos pelos meios
institucionais e jurídicos convencionais. No caso do vídeo de
“autoria” de Alan, o horror está potencializado pela morte ao vivo
do próprio cinegrafista, numa câmera subjetiva. Imagem que, se
prova sua condição de vítima, também mostra a dificuldade de
um jovem negro de periferia em escrever sua própria história fora
desse círculo de violência.

282 Memórias de uma catástrofe em andamento / Felipe Polydoro


REFERÊNCIAS

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_________. Estrutura da notícia. In: Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BAZIN, André. A montagem proibida. In: O que é o cinema?. São Paulo: Cosac
Naify, 2014.
CAPRIGLIONE, Laura. Os mecanismos midiáticos que livram a cara dos crimes das
polícias militares do Brasil. In: KEHL, Maria Rita; DUNKER, Christian; et al.
Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação.
São Paulo: Boitempo, 2015.
CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático. In: NESTROVSKI, Arthur;
SELIGMANN-SILVA, Márcio; Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta,
2000.
CHION, Michel. Audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Texto e Grafia,
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são ouvidos. Portal G1, 02 mar. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/
rio-de-janeiro/noticia/2015/03/pms-envolvidos-em-morte-de-jovem-que-
filmou-com-celular-sao-ouvidos.html. Acesso em 01/07/2020.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.
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Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.
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Times, 26 abr. 2012. Disponível em: http://latimesblogs.latimes.com/lanow/
2012/04/los-angeles-riots-remember-the-63-people-who-died-.html. Acesso
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NICHOLS, Bill. The trials and tribulations of Rodney King. In: Blurred boundaries:
questions of meaning in contemporary culture. Bloomington: Indiana
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PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes,
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PINHEIRO, Paulo S. Autoritarismo e transição. Revista USP, n. 9, 1991, p. 45-56.
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das catástrofes. Projeto História. São Paulo, n. 30, junho 2005, p. 71-98.
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XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 264-283, JUL/DEZ 2017 283


A vida-lazer como vontade de
futuro

Vinicios Kabral R ibeiro


Professor adjunto e atualmente chefe do Departamento de História e Teoria da Arte
(BAH/EBA) da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, Mestre em Cultura Visual e
graduado em Comunicação Social, ambos pela Universidade Federal de Goiás.

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Resumo: Vida-Lazer é um termo êmico que surge em Madame Satã (Karim Aïnouz,
2002) e reaparece na parceria de Aïnouz com o cineasta Marcelo Gomes, em Viajo
porque preciso, volto porque te amo (2009). Em diálogo com O céu de Suely, Praia
do Futuro (Ainouz, 2006 e 2014) e Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013) pretendemos,
assim, contribuir com o debate sobre as questões que mobilizam o cinema e o
mundo contemporâneo, tais como as relações entre arte e vida, as novas formas
de pertencimento e vinculação, os projetos de vida e a felicidade. O que é um
personagem vida-lazer? Como esta noção e a fala de personagens se articulam com
a ideia de futuro e com os projetos de vida no mundo contemporâneo?
Palavras-chave: Vida-lazer; cinema brasileiro; gênero; sexualidade.

Abstract: Leisure-Life is an emic term that first appears in the movie Madame Satã
(Karim Aïnouz, 2002), and, later, reappears in the partnership between Aïnouz and
the filmmaker Marcelo Gomes in the movie I Travel Because I Have to, I Come Back
Because I Love You (2009). We will also construct a dialogue between those two
movies and others, such as Love for Sale and Futuro Beach (both Karim Aïnouz, 2006
and 2014) and Tattoo (Hilton Lacerda, 2013). The objective of this research is to take
part on the debate of subjects that are importat to the critical thought of cinema and
the contemporary world, such as the relationships between art and life, the new
ways of belonging and association, and the ideas of life projects and happiness.
What is a leisure-life character? How does this idea and the speech of a character are
connected to happinnes future and life projects in the contemporary world?
Keywords: Leisure-life. brazilian cinema. Gender; sexuality.

286 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


Uma das minhas maiores perturbações, enquanto 1. A expressão vida-lazer
surge em Madame Satã
criança marcada pela certeira homossexualidade futura, era a
(Karim Aïnouz, 2002) e
impossibilidade de ter um relacionamento, ficar sozinho, morrer reaparece na parceria de
e ir para o inferno. Mesmo que aos nove anos de idade eu não Aïnouz com o cineasta
Marcelo Gomes em Viajo
entendesse uma coisa ou outra, eram esses os cruzamentos ditos porque preciso, volto
possíveis para uma vida gay. Essas certezas se acentuavam com a porque te amo (2009).
Tabu, cronologicamente
ausência de imagens e de pluralidades de formas de vidas, bem pelo lançamento do filme,
como com a hostilidade do ambiente familiar, escolar e social, que é a personagem que fabula
inicialmente a expressão
me distanciavam de uma vida-lazer.1 que dá título à pesquisa.
Seu sonho é “comprar uma
Filadélfia (Jonatham Demme, 1993), na infância, e Brokeback máquina Singer, de pedal,
Mountain (Ang Lee, 2005), na adolescência, corroboravam com pra costurar as fardas do
meu anjo de bondade,
essa sensação de morte e solidão. Existiam outras produções meu marido. E viver uma
com representações mais positivas da homossexualidade, com vida-lazer”. Já Patty, em
Viajo Porque Preciso
abordagens diferentes, mas não circulavam com facilidade. A (2009), deseja uma casa
cidade em que cresci, Caldas Novas, ao sul de Goiás, contava para ela e sua filha, um
companheiro que a tire da
com poucas locadoras de VHS e DVD. Os acervos eram restritos prostituição, e assim viver
a filmes comerciais e, eventualmente, era possível encontrar sua vida-lazer. Neste artigo
algo como Ken Park (Larry Clark, 2002) ou E Sua Mãe Também busco dialogar com outros
filmes onde a expressão
(Alfonso Cuarón, 2001). vida-lazer não aparece, mas
seus sentidos podem ser
Lembro-me de uma tarde do primeiro semestre de 2014, percebidos: o sonho, a busca
quando um amigo e eu fomos assistir Hoje Eu Quero Voltar Sozinho pela felicidade e as vidas
marcadas pela precariedade
(Daniel Ribeiro, 2014). Senti saudades e nostalgia. Acabava de e sexualidades fora da norma
ver um filme que, se existisse há dez anos, teria evitado muitas heterossexual. O presente
artigo é fruto da tese Vida-
feridas e frustrações. Não que o cinema fosse capaz de erradicar lazer: respostas sensíveis
a homofobia ou mediar meus conflitos domésticos, mas por do cinema brasileiro ao
espírito do tempo, defendida
acreditar que alguns filmes poderiam ofertar novas formas de em 2016, no PPGCOM da
entender e ver o mundo que me cercava. Escola de Comunicação da
Universidade Federal do
Como criança afeminada, monstruosa e violentada, demorei Rio de Janeiro. Disponível
em: http://www.pos.eco.
muito tempo a entender e a reelaborar certas narrativas que ufrj.br/site/download.
foram contadas e impostas. Eu sentia vergonha da minha voz, php?arquivo=upload/
tese_vribeiro_2016.pdf.
do meu corpo, dos meus questionamentos e dos meus desejos. Acesso: 19 nov 2020. Como
Quando nos mudamos de Mutunópolis, norte de Goiás, para forma de debater a noção
“vontade de futuro”, analiso
Caldas Novas, senti um grande alívio. Ficavam para trás os abusos
excertos dos filmes O Céu de
sexuais e as humilhações. Era o que eu imaginava. Contudo, uma Suely e Praia do Futuro(Karim
reconciliação plena com minha existência só se daria mais tarde, Aïnouz, 2006 e 2014) e
Tatuagem (Hilton Lacerda,
durante a graduação, no ambiente universitário. 2013). Menciono também o
longa Pelo Malo (Mariana
Eve Sedgwick (1991), em um artigo em que discute os Rondón, 2014) e o curta
pânicos morais em torno da criança afeminada, chama atenção Amanda e Monick (André da
Costa Pinto, 2008).
para a vigilância de gênero e sexualidade que se instauram no

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 287


corpo infantil. Essa vigília tem como objetivo coibir qualquer
manifestação de desvio da norma sexual e preparar o terreno
para a heterossexualidade compulsória. Um dos grandes efeitos
desse processo de monitoramento corporal da performance de
2. Sobre a questão da gênero é o auto-ódio e a invisibilidade da criança afeminada2
infância, em uma perspectiva nos debates e pautas políticas dos movimentos de lésbicas,
de pessoas LGBTQIA+,
Adriana Azevedo, Diego gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros, queer,
Paleólogo e eu organizamos intersexuais, assexuais LGBTQIA+. Sedgwick reforça que, ao
recentemente o dossiê
Tornar-nos crianças: auto/ mesmo tempo que temos conquistado espaços significativos nas
etnografias, cuidados e pautas de gênero e sexualidades:
reparações, com discussões
urgentes na construção e
reelaboração das nossas
imagens, de nossas
memórias, vivências Existe o perigo, porém, que este avanço possa deixar o menino
escolares, familiares afeminado uma vez mais na posição de abjeto assombroso –
e espectorialidades. desta vez o abjeto assombroso do próprio pensamento gay.
Disponível em: https:// [...] Neste caso, o eclipse da criança afeminada do discurso
periodicoscientificos.ufmt.br/ gay adulto representaria mais do que uma lacuna teórica
ojs/index.php/rebeh/article/ prejudicial; representaria um nó de aniquilação homofóbica,
view/11028. Acesso: 19 nov ginecofóbica e pedofóbica do ódio internalizado, tornado
2020.
central para análise gay afirmativa. O menino afeminado viria
a funcionar como o segredo aberto de muitos gays adultos
3. “There is a danger, politizados (SEDGWICK, 1991, pp. 20-21).3
however, that that advance
may leave the effeminate boy
once more in the position of
the haunting abject--this time O filme venezuelano Pelo Malo (Mariana Rondón, 2013)
the haunting abject of gay
thought itself. [...] In this case aborda de forma muito precisa a questão do menino afeminado.
the eclipse of the effeminate Com nove anos, Junior já percebe a repulsa que sua mãe nutre
boy from adult gay discourse
would represent more than por ele. Em princípio, a criança imagina que a razão venha do seu
a damaging theoretical gap; cabelo crespo, que ele tenta compulsivamente alisar. Contudo,
it would represent a node
of annihilating homophobic,
ao longo do drama confirmamos que é a possibilidade do filho
gynephobic, and pedophobic se tornar gay o motivo da angústia materna. Ela proíbe que ele
hatred internalized and made
central to gay-affirmative
cante, alise o cabelo, visite a avó paterna que incentiva seus
analysis. The effeminate “trejeitos” e impõe que ele se afaste do jovem Mario, pelo qual
boy would come to function Junior aparentemente se sente atraído.
as the open secret of many
politicized adult gay men”
Pelo Malo nos conduz com maestria ao universo de angústia
(tradução nossa).
e sofrimento que são imputados ao corpo infantil afeminado. Em
uma das passagens da tese de doutorado, Vida-lazer, mencionei
o curta de Aïnouz, Seams (1993), cujo o diretor ressalta que a
palavra “veado” é muito temida, o maior xingamento que pode
ser direcionado a um homem e já nos localiza inexoravelmente
em um presente cruel e nos destina às margens da futuridade.
E no corpo de Junior, sua experiência traumática é amplificada
pelas intersecções e seus marcadores sociais da diferença: uma

288 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


criança negra, afeminada, pobre e habitante da periferia de
Caracas. Ao mesmo tempo são características positivas vistas por
sua avó paterna, cujo filho foi assassinado por se envolver com
o tráfico de drogas. Criar o neto gay era uma forma de garantir
companhia e cuidados em seu envelhecimento; além disso, sua
possível homossexualidade o afastaria do universo de violência e
crimes da favela caraquenha.
No desfecho do filme de Mariana Rondón, temos um indicativo
de que o futuro de Junior se desenrolará longe de sua mãe e até
mesmo de sua avó. Após preparar a refeição do filho, a mãe começa
a arrumar as malas de Junior. Ela diz que o menino passará a viver
com sua avó. A criança se nega a ir e promete cortar os cabelos. Ela
lhe entrega uma máquina aparadora e o rapazinho se põe a raspar
a cabeça. Antes, contudo, ele afirma para a mãe: “não te amo” e 4. Na tese trabalhei com
a seguinte constelação
ela retruca: “eu, tampouco”. O plano seguinte não revela o destino de longas-metragens:
de Junior e, do alto, observamos a escola onde estuda. Em seguida, Madame Satã; O céu de
Suely; Praia do Futuro
podemos visualizar as crianças em fila, cantando o hino nacional
(Karim Aïnouz, 2002, 2006
venezuelano “Gloria al Bravo Pueblo”. O menino, com os cabelos e 2014); Tatuagem (Hilton
raspados, não canta. É como se ali houvesse uma recusa em aderir Lacerda, 2013); O céu sobre
os ombros (Sérgio Borges,
ao Estado, ao sistema educacional, à norma heterossexual e aos 2010); Cinemas Aspirinas e
frágeis laços familiares. Um desejo de não assimilação. Urubus (Marcelo Gomes e
Karim Aïnouz, 2005).
Vontade de futuro é um sentimento que encontra sua tradução
estética nos filmes que investiguei4 na tese de doutoramento, 5. A futuridade de pessoas
não heterossexuais são
em que proposta de vida-lazer é anunciado como um projeto de alvos de debates estéticos,
vida. É a resposta sensível que encontrei para um conjunto de políticos e socioeconômicos.
Nos Estados Unidos, os
filmes, majoritariamente contemporâneos e brasileiros, que não trabalhos de José Muñoz
se conectam entre si por inteiro, mas em momentos singulares (2009) e Lee Edelman (2014)
instauram uma tensão
e atos de pensamento que constituem instantes fortes desses no campo discursivo do
mesmos filmes. Aqui, o agente da vontade de futuro é a figura futuro de pessoas queers.
O primeiro autor refuta o
vida-lazer, a personagem vida-lazer: a travesti, a prostituta, a
argumento de abandonar a
criança afeminada, o moribundo, o abandonado. Discuti, na ideia de futuro, desenvolvida
tese, futuro e utopia a partir das reflexões de temporalidades por Edelman. Essa crítica se
dá, sobretudo, por Muñoz
e sexualidades, especialmente com Muñoz (2009) e Edelman perceber essa ideia de “não
(2014).5 Futuridade, quando vinculada a temporalidades de futuro” como endereçada
aos desejos segregacionistas
corpos e sexualidades fora dos marcos da heterossexualidade da classe média branca
e da modernidade heterocapitalista, nos fala do caminho a ser estadunidense. Para Muñoz
(2009) há uma gama de
tomado. Refutar a possibilidade de assimilação, higienização e corpos não hegemônicos
normalidade? Apostar na pulsão de morte ou buscar uma pequena que persiste, existe e resiste.
Desse modo, a utopia se
utopia no horizonte e no tempo? Questões que se tornam cada abre como um devir do corpo
vez mais urgentes e presentes na vida e nos debates teóricos. transviado, marginalizado.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 289


Gabriel Giorgi (2004), ao analisar a homossexualidade
e sua representação na literatura argentina, agudiza essa
interdição ao corpo homossexual e seu destino paradoxal: é
possível aceitar os discursos sobre as práticas homossexuais,
desde que os sujeitos que as vivenciam sejam apagados ou
eliminados. Giorgi entende como “sonhos de extermínio” o
desejo social de aniquilar os corpos lidos como abjetos, fora da
norma heterossexual e que escapam ao controle higienista do
Estado e de suas instituições, como o exército e a escola, bem
como a religião, a família e o patriarcado. Ao mesmo tempo,
os corpos trans, lésbicos, bissexuais e gays são os resíduos do
tecido social, grãos incômodos que sobrevivem e se colocam na
errância e à deriva do mundo.
É nesse ponto que os filmes brasileiros, que abordei na
tese, são colocados como respostas sensíveis a um desejo social
de aniquilação de subjetividades não normativas. A vida-lazer
como algo ambivalente, conflituoso, mas que leva em comum
a aspiração de uma vida melhor, aprazível e feliz. Como
observado anteriormente na tese, as figuras fílmicas tratadas
fabulam sonhos e desejos de futuridade mesmo em contextos
hostis, violentos e desiguais. A vontade de futuro é justamente
esse gesto capaz de nos impulsionar à vida, de nos reinventar e
nos colocar à deriva.

Tia Maria

Em O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), Hermila e sua


tia Maria vão ao mercadinho da cidade comprar algumas coisas.
6. Messeder (2012) inicia
o seu texto afirmando a Eis que a tia comenta com sua sobrinha o desejo de ir à praia
escolha da categoria lésbica com Georgina Jéssica: “Comprei um biquíni pra dar de presente
masculinizada como algo
que pode gerar incômodo e pra Georgina. Vou chamar ela pra ir pra praia comigo, lá em
dissenso, especialmente por Fortaleza. Será que ela vai? Tô doida pra ver ela de biquíni, se
eleger e se aproximar de suas
interlocutoras a partir do que queimando no sol”.
percebe como masculinizada.
Ao mesmo tempo, ela Tia Maria é lida socialmente como uma mulher lésbica
sustenta que as entrevistadas masculinizada.6 Sua indumentária se constitui principalmente de
estavam cientes dessa
percepção, inclusive shorts de cotton, ora justos, ora largos e camisetas estilo “machão”.
assinaram os termos de Usa costumeiramente os cabelos presos e é mototaxista (Figura
livre consentimento e
esclarecimento para a 1) em Iguatu – Ceará. Suely Messeder (2012), ao pesquisar sobre
pesquisa. as vivências de mulheres lésbicas com performances de gênero

290 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


masculinizadas em Alagoinhas, Camaçari e Salvador, na Bahia,
sustenta que algumas questões são similares nas experiências
de vida dessas mulheres, especialmente na infância, no período
escolar, na família e no mercado de trabalho.
Se, na escola, a criança performa um papel social entendido
como masculino, preferindo brincadeiras corporais, como o futebol
e corridas, assim como outros jogos que demandam habilidades
espaciais e táticas, incluindo o xadrez e a bola de gude, logo se
inicia um processo de suspeição sobre o corpo e o gênero da
infanta. Tais preocupações se multiplicam quando acompanhadas
por ausência de interesses em práticas consideradas comuns para
meninas, como bonecas, brinquedos cor-de-rosa e maquiagem.
É o que Guacira Louro (1999) compreende como um processo
pedagógico do gênero e da sexualidade, em que há a educação dos
corpos para a produção de sexualidades consideradas normais.

Figura 1 - Tia Maria vai à rodovia buscar Hermila e Mateus Junior.

O mercado de trabalho é outro momento em que os


marcadores sociais da diferença são acionados e investem no corpo
lésbico suas restrições ou destino. Suely Messeder (2012) pontua
que categorias raciais, de classe e de sexualidade se articulam
para determinar e estabelecer determinadas práticas profissionais.
Uma das entrevistadas afirma que, pelo fato de performar signos
de masculinidade e por ser designada socialmente como mulher
e negra, ela é sempre indicada a exercer papéis que demandam
ou pressupõem força física, como os de vigia ou de segurança.
Quando voltamos para Tia Maria, é possível supor que a história
de vida da personagem tenha sido entrecruzada por muitas dessas

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 291


questões. Contudo, são indagações implícitas e o que vemos
é o cotidiano no trabalho, na casa, os momentos de lazer e as
vontades de futuro: ir à praia com Georgina.
Tia Maria, em muitos momentos, encarna uma figura
vida-lazer. Sua encenação, seu corpo no espaço fílmico e sua
construção gestual corroboram para uma atmosfera de leveza e
de cotidiano. Ela é o porto seguro da sobrinha Hermila/Suely e
de sua mãe Zezita. Suas falas são permeadas de carinho, firmeza
e determinação. Assim como todos nós, ela é contraditória e se
espanta quando Hermila revela que irá vender rifas cujo prêmio é
uma “noite no paraíso”. Ela diz: “que ideia de puta é essa? ”. Ao
mesmo tempo, ela é apaixonada por Jéssica, a puta amiga de sua
sobrinha.
Durante essa cena há uma fala muito potente de Suely:
“puta nada, puta trepa com todo mundo, só vou trepar com um
cara, não quero ser puta não, não quero ser porra nenhuma”.
Além de percebermos o desejo de se diferenciar da atividade de
prostituição e do rótulo de prostituta, fica explícita a desilusão,
a apatia diante do futuro ou mesmo a percepção de que o
espaço geográfico e social que ela ocupa inviabiliza qualquer
possibilidade de sonho e futuridade. Como pontuado por
Alessandra Brandão (2008):

O Céu de Suely acompanha a travessia de Hermila entre a


desilusão amorosa e o investimento no sonho em São Paulo,
e a consciência do valor do próprio corpo como horizonte
de transformações. E é através da fronteira também do
corpo feminino, entre a maternidade precoce e inepta, e a
sexualidade latejante de seu corpo jovem, que o movimento
itinerante de Hermila se sustenta na biopotência. Para
Hermila, o corpo serve de instrumento para impulsionar
sua viagem, agenciando a passagem por outra fronteira,
que concede ao corpo mais que ganha pão, a esfera de
autovalorização, a política de um sentido próprio que se
configura na estratégia da comercialização de si mesma
(BRANDÃO, 2008, p.96).

A leitura de Brandão é muito instigante pois localiza uma


marca de vida-lazer na personagem de Suely: o movimento.
E essa biopotência, que opera dentro das redes capitalistas,
se instaura na crença de que mesmo diante da precariedade,

292 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


da tristeza e da desilusão, não se pode abandonar o sonho 7. Em conversa por
mensagens com Anita
e o delírio, mesmo que signifiquem um mergulho na
Leandro, co-orientadora
incerteza. Como este artigo busca apontar, a vida-lazer é da tese, em março de
uma forma de responder aos questionamentos e angústias do 2020, ela estimulou que eu
retornasse a ideia de vida-
presente: quando ela se expressa na arte cinematográfica, se lazer, com a sugestão de um
metamorfoseando em discursos de figuras fílmicas, quando ela título: vida-lazer, imagem
sobrevivente e promessa de
é encenada e performada; ela nos fala de afetos e sonhos, da futuro. Tal diálogo advém
vontade de impermanência, do desejo pela errância e na busca do momento pandêmico
em que atravessamos
pela felicidade. e, consequentemente,
quais possibilidades de
E partir é deixar para trás o que fomos, sem saber existência emergem após
com quem nos encontraremos e em que conversações nos uma experiência coletiva
traumática. Estou muito
colocaremos. Regressar pode ser impossível e até mesmo mobilizado pelo pensamento
não desejável. Quando vamos, levamos conosco o medo do de Denise Ferreira da Silva
(2019), sobretudo a ideia de
futuro e as lembranças que confortam ou doem. Acreditamos uma dívida impagável e o
na potência da vida, do corpo e do desejo. Nos alimentamos porquê de não se instaurar
uma crise ética diante do
da utopia. A vida-lazer é utopia? Não sei.7 Mas essa deriva e extermínio da população
errância nos lembra a resposta de Fernando Birri, rememorada negra. Vida-lazer, num
por Eduardo Galeano e dada a um estudante durante um contexto de violência e de
colonialidade, pode soar uma
seminário em Cartagena de Índias, Colômbia - “para que serve utopia ou algo irrelevante
a utopia?”: em momentos de tantas
urgências e lutas. Mas as
imagens fílmicas e as nossas
espectorialidades podem
nos convidar a reimaginar
A utopia está no horizonte. Eu sei que nunca a alcançarei. a vida, construir redes,
Se eu avançar dez passos, ela se distanciará dez passos. mesmo que em alianças
Quanto mais eu a buscar, menos a encontrarei: ela se pontuais e precárias,
distancia à medida que eu me aproximo. E, ora, para que sonhando um outro mundo.
serve a utopia? A utopia serve para isso, para caminhar.8 Enquanto o mundo da
violência e opressão não
acaba, podemos viver
diferentemente neste mundo,
na busca de cura e cuidado,
E para que serve a vida-lazer? Para cativar nossas paixões, como pontuou Denise
para nos fazer acreditar no mundo, tomar posse dele, da Ferreira da Silva, em uma
conferência virtual, em julho
nossa imaginação. No cinema: para construir uma quimera,
de 2020, na Escola de Artes
uma constelação de desejos e paixões. Personagens que nos Dramáticas da Universidade
convidam para o sonho, para o novo e para a escuta. A esperança de São Paulo. Disponível
em: https://www.youtube.
de que se nos movermos, se nos enfrentarmos, se formos além, com/watch?v=FJ7wf4Gc_
haverá de ter outro dia, com mais vida, com mais lazer. Para y4&t=12s&ab_channel=Com
unicaEscoladeArteDram%C3
nos fazer aprender com tia Maria e Hermila/Suely que a vida- %A1ticaEADECAUSP. Acesso:
lazer está ali, no banho de mar com sua paixão platônica, ou 19 nov de 2020.
na passagem de ônibus para o lugar mais longe, mais distante.
8. Disponível em: https://
Ou quando Suely viaja e ao sair dos limites da cidade podemos youtu.be/9iqi1oaKvzs.
ler no pórtico “aqui começa a saudade de Iguatu”. Acesso em: 19 nov 2020.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 293


Tatuagem e a criança de Mutunópolis

É muito curioso que um filme como Tatuagem (Hilton


Lacerda, 2013), retratando o fim dos anos de 1970, seja evocado
para falar de respostas ao presente e vontades de futuro. Em
verdade, não é tão estranho, ainda mais se olharmos ao redor
e vermos reacender debates conservadores, sectários e os
microfascismos. Para isso, vou trazer três cenas, duas retiradas do
cotidiano social e a outra da ficção audiovisual.

Primeira cena:
No dia 11 de setembro de 2012, Edmeire Celestino Silva, à
época com 29 anos, tentou adentrar o Palácio do Planalto para
declarar seu amor à presidenta Dilma Rousseff. Ao ser impedida
pelos guardas presidenciais, ela afirmou: “Sou marido da Dilma
Vana Rousseff. Sou esposo dela”, disse. “Você quer casar comigo,
meu amor?”. “Eu queria sequestrar ela, ela é meu coração” (Fig. 2).

9. Disponível em: https:// Fig. 2 - Edmeire Celestino Silva.9


img.jornalcruzeiro.com.
br/img/2013/07/12/ Segunda cena:
media/103282_EDMEIRE.jpg.
Acesso: 19 nov 2020. Em 28 de setembro de 2014, durante o debate eleitoral, o
presidenciável Levy Fidelix é questionado pela candidata Luciana
Genro: “Por que que as pessoas que defendem tanto a família, se
recusam a reconhecer como família um casal do mesmo sexo? ”. No
que ele responde: “aparelho excretor não reproduz” (Figura 3).

294 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


Figura 3. Charge de Laerte a partir da fala de Fidelix.10 10. Disponível em: http://
www.revistaforum.com.
br/2014/09/29/revolucao-
Terceira Cena: aparelho-excretor/. Acesso 21
Amanda e Monick (André da Costa Pinto, 2008) é um ago 2016.
documentário paraibano que aborda o inusitado cotidiano da
professora da rede municipal Amanda e de sua aluna Monick.
Ambas são travestis. A primeira, respeitada e admirada pela
comunidade escolar, e acolhida por seu pai. A segunda, mantém
um relacionamento com Nilda, uma mulher lésbica que está
grávida de Monick. Ao narrar o início de sua relação com Monick
e os questionamentos advindos da gestação, Nilda relembra os
muitos questionamentos suscitados: “As pessoas chegam perto de
mim e perguntam: Nilda (Figura 4), você não tem vergonha de
ser mãe e o pai ser uma bicha? - Não. Normal. E uma sapatão e
um veado? Isso é normal, não tem nada a ver não”.

Fig. 4 - Nilda exibe sua gravidez em Amanda e Monick.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 295


Chamo atenção para essas três cenas por elas nos
aproximarem de um ponto comum que abordarei em Tatuagem:
o conceito de família. Não por acaso, a vida-lazer enunciada por
Patty (Viajo porque preciso, volto porque te amo) e Tabu (Madame
Satã) se referem a ideias de amor romântico, monogamia e
constituição do lar. Logo, tanto no discurso quanto na expressão
estética da vida-lazer, é importante destacar o que está em jogo
quando evocamos a instituição familiar, seus usos e sentidos.
Especialmente quando ela é desejada por indivíduos que são
repelidos pela própria entidade familiar. Como mostrou Michel
Foucault, a família, tal como a conhecemos no Ocidente, começa
a ter essa configuração a partir do século XVIII, na qual:

As velhas formas do amor ocidental são substituídas por uma


11. Vanessa, minha amiga nova sensibilidade: a que nasce da família e na família; ela
de infância, foi assassinada exclui, como pertencendo à ordem do desatino, tudo aquilo
no dia 12 de julho de 2015, que não é conforme à sua ordem ou ao seu interesse. [...].
aos 27 anos, confirmando a
Este poder de repressão, que não pertence inteiramente
assombrosa expectativa de
vida de pessoas trans em ao domínio da justiça nem exatamente ao da religião,
nosso país. Disponível em: este poder arrancado diretamente à autoridade real não
http://www.mpgo.mp.br/ representa, no fundo, a arbitrariedade do despotismo, mas
portal/noticia/tribunal-do- sim o caráter doravante rigoroso das exigências familiares
juri-acolhe-acusacao-do-mp-
(FOUCAULT, 2008, p. 91).
e-condena-acusados-por-
assassinato-de-travesti#.
X7bR8Wj0nIU. Acesso: 19
nov 2020. Em 02 de Junho
de 2019, Antônio Sergio
O desatino é ser sapatão, bicha, travesti, mãe solteira,
da Silva, 40 anos, primeiro prostituta. E são essas as figuras fílmicas que dão forma estética à
gay declaradamente
vida-lazer aqui abordada. Elas transbordam das telas e procuram
assumido em Mutunópolis,
foi assassinado. Depois de ressonância em outros corpos. É por isso que o presidenciável Levy
anos sem contato, Tonha e Fidelix, acima citado, quando questionado sobre o seu combate
eu retomamos a amizade,
tínhamos sonhos comuns e às uniões homossexuais, nos encarcera em um destino biológico:
projetos, como ele terminar não somos capazes de reproduzir, logo não podemos amar. É uma
o ensino médio e entrar na
faculdade. Estimulei sua falácia construída a partir de um jogo muito bem estruturado de
imaginação e o incentivei manutenção dos privilégios do cis-heterocapitalismo ocidental,
a viajar, ver o mundo. Sua
vida foi interrompida na cruel branco e violento. Uma estrutura de sequestro do sonho, da
letalidade da homofobia. imaginação e da pluralidade. Não é possível existir vida-lazer se
Disponível em: https://
www.policiacivil.go.gov.
não podemos gozar livremente de amor e alegria.
br/delegacias/regionais/
menor-e-apreendido- Estamos falando de afetos, de amor e solidariedade. De corpos
suspeito-de-ato-infracional- cinematográficos, mas também de corpos reais, vivos. Estou falando
de-homicidio-vitima-tinha-
sido-dada-por-desaparecida.
de Tabu, e também de minha amiga Vanessa, travesti assassinada,
html. Acesso: 19 nov 2020. apedrejada, exterminada,11 do Antônio Sérgio, a Tonha. Falo da

296 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


violência que atinge meu corpo, o corpo dos meus amigos, dos
vizinhos e de qualquer um que seja ferido por habitar as bases
da pirâmide sexual (RUBIN, 1989). Levanto-me a todo momento
enquanto escrevo, estou embriagado de café. Ouço Diana, Bárbara
Eugênia, Aviões do Forró, Cartola e Bethânia. Revejo as cenas de
filmes. Hoje o dia está tão difícil. Começo a chorar e sorrir. Estou
há tanto tempo atravessado por essas imagens, por esses medos e
por esses discursos que não consigo organizar as ideias. Será que as
entrego assim, seminuas, fragmentadas e delirantes?
Estou olhando para a criança que fui, no que me tornei. Eu
queria protegê-la. Ir em Mutunópolis, pegá-la pela mão. Desenhar
em suas bochechas pequenos corações com um batom vermelho.
Abrir um armário com vestidos e sapatos, pentear seus cabelos e
elogiar sua voz. Pedir para que ela dançasse a música que mais
gostasse, que colocasse as mãos na cintura para ser fotografada.
Ensiná-la a se proteger como Madame Satã e a gritar para todo
mundo: “eu sou bicha porque eu quero”. Depois, a gente falaria
de futuro, do que ela se tornaria. E eu explicaria que:

A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização


do adulto. A polícia do gênero vigia o berço dos seres vivos
que estão por nascer, para transformá-los em crianças
heterossexuais. A norma faz sua ronda em torno dos corpos
frágeis. Se você não for heterossexual, a morte o espera. A
polícia do gênero exige qualidades diferentes do garotinho e
da garotinha. Ela molda os corpos a fim de desenhar órgãos
sexuais complementares. Ela prepara a reprodução, da escola
até o Parlamento, industrializa-a (PRECIADO, 2016, p. 6).

Somos esses corpos frágeis que desafiam a polícia de gênero.


E essa vigia normalizadora vai além dos auspícios da sexualidade:
almeja sobretudo assaltar o desejo pela vida, a esperança em
um outro mundo mais aprazível. São os corpos das crianças
transviadas, como dito por Edelman (2014), que atormentam o
futuro político, estético e econômico de uma sociedade baseada
na morte. Vamos ofertar nossa carne para o banquete insaciável
desse “moinho de gastar gente” (RIBEIRO, 1995)? Pedir para
adentrar ao círculo da respeitabilidade através da monogamia
e das práticas sexuais vistas como sadias, como denunciado por
Rubin (1989)? Ou vamos recusar este mundo?

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 297


Chegamos na pertinência de Tatuagem para o agora. O longa
retrata o dia e a noite da trupe Chão de Estrelas, capitaneada por
Clécio. Se cria e se impulsiona na margem. São experimentos
afetivos distantes dos laços consanguíneos. Uma família que
encontra na amizade uma forma de vida (FOUCAULT, 1981)
vinculante ao mundo.
A cena com a canção de Caetano Veloso, Esse cara, é um
momento de suspensão do filme; Clécio, que costumeiramente
se apresenta na casa ocupada pelo Chão de Estrelas, encarna
uma Maria Bethânia lânguida e transviada. Desliza pelo palco,
explode em intensidades e fita fixamente o belo rapaz sentado na
plateia. É Arlindo, cunhado de Paulete. É uma cena que remete
12. Conto de Caio Fernando ao escritor Caio Fernando Abreu, com seu “Sargento Garcia”.12
Abreu que narra o desejo
Após a performance de Clécio, os dois são apresentados por
entre o Sargento Garcia e
Hermes, um jovem pré- Paulete e ela já adverte o amigo para que não tente enredá-lo
vestibulando de Filosofia. em sua trama de sedução. Os dois conversam, riem, brincam.
Arlindo estranha a extravagância do lugar, a desadequação total
de um espaço como aquele na cidade do Recife, sob as armas da
ditadura militar.
Na cena seguinte, Clécio constrói uma ambiência erótica e
sinestésica. A penumbra, o quarto milimetricamente decorado,
Dolores Duran e “A noite do meu bem” dão o tom para a dança
de Clécio e Arlindo. Aliás, Clécio e Fininha. A essa altura, o
jovem militar já havia confessado que assim era a forma como
era conhecido, talvez por suas feições delicadas e sua voz macia.
E então, Bethânia come o milico.
Fininha parece ter familiaridade com práticas sexuais com
outros homens. Ela mesma afirma para Clécio não se tratar de
sua primeira vez como receptor. No dia seguinte é beijo na boca,
abraço apertado e banho de mar. As mãos de Fininha alisam
a penugem no rosto de Clécio. Logo, o cotidiano de ambos se
entrelaça na casa da trupe e uma relação se inicia. Clécio tem
um discurso libertário, de não propriedade dos corpos e desejos.
Contudo, tal perspectiva, quando transposta para a prática, se
mostra um tanto falha. Durante uma festa em casa, Fininha
dança e beija outro homem. Clécio se contorce de ciúmes, os
olhos ficam marejados e cobra uma explicação de seu amante.
E ouve: “tu mesmo que disse que a gente não tem contrato com
nada. Tu não falas que a gente não pertence a ninguém?”.

298 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


Tatuagem alterna entre os espaços de intimidade da casa,
dos corpos e da trupe Chão de Estrelas. Remete a um momento
histórico transgressor, mas que ao mesmo tempo nos fala do hoje.
São respostas sensíveis formuladas a partir de uma ambientação
pretérita que diz muito sobre o contemporâneo. Se a História
fosse linear, era de se esperar que em nossa década muitas das
questões suscitadas no filme já estivessem respondidas, ou que
não despertassem tanto interesse por terem sido incorporadas
pelo tecido social. Mas elas persistem e se agudizam. Quanto
mais as identidades sexuais políticas se afinam, mais o campo de
resistência à diversidade sexual e de conservadorismo se alastra.
É aonde gostaria de chegar quando retomei a infeliz fala do ex-
candidato a presidente Fidelix. Clécio é pai de Tuca, com sua
amiga Deusa. A mãe quer conversar com o pai sobre problemas
enfrentados na escola. Querem expulsar Tuquinha por ele ter
arrumado confusão na escola. Na verdade, o motivo da contenda
escolar foi a defesa que o adolescente fez de seus pais: uma mãe
solteira e um veado, nas palavras de um coleguinha. Disseram
ao garoto que deus fez o homem para a mulher, no que ele
retruca que deus não existe, e sim deuses.
O discurso reproduzido pelos colegas de escola de Tuca
não ficou esquecido nas décadas passadas. Ele persiste e nos
ameaça. A partir dos debates na França sobre casamentos civis
de pessoas do mesmo sexo e direitos à parentalidade, Judith
Butler (2003) formula a questão: “o parentesco é sempre tido
como heterossexual? ”. Ao longo de sua argumentação, ela
considera que:

Os poderes de normalização do Estado se tornam, porém,


especialmente claros, quando se considera o quanto a
contínua perplexidade sobre o parentesco condiciona e limita
os debates sobre casamento. Em alguns contextos, a alocação
simbólica do casamento, ou arranjos similares, é preferível à
alteração dos requisitos para que o parentesco proteja direitos
individuais ou plurais de se ter ou de adotar crianças ou de
assumir uma co-parentalidade legal. Variações no parentesco
que se afastem de formas diádicas de família heterossexual
garantidas pelo juramento do casamento, além de serem
consideradas perigosas para as crianças, colocam em risco
as leis consideradas naturais e culturais que supostamente
amparam a inteligibilidade humana (BUTLER, 2003, p. 224)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 299


13. O corpo de Dilma foi Quando evoquei anteriormente a paixão de Edmeire pela
atacado incessantemente,
presidenta Dilma Rousseff,13 o fiz por observar como a indagação
desde seu primeiro governo.
O golpe contra a presidenta de Butler é pertinente. Na campanha presidencial de 2010, em
é uma afirmação da entrevista na capital do Piauí, Rousseff respondia a questões
branquitude, do machismo,
colonialismo e a mesquinhez relativas aos compromissos com entidades religiosas em não
das elites brasileiras. Uma propor ao legislativo alterações de leis que favorecessem ao aborto
tentativa de sequestrar
o futuro. Mesmo tendo e o casamento civil de pessoas do mesmo sexo. Um jornalista
rifado direitos indígenas, questiona se a candidata era homossexual, como se especulava
secundarizado políticas de
igualdade racial, LGBT e do na internet. Dilma se altera com a pergunta e diz que não irá
povo do campo, foram estes responder. Entretanto, ela responde: «eu tenho uma filha e sou
segmentos da sociedade
civil organizada que saiu
avó, pelo amor de deus».14
em defesa de Dilma, não
por concordarem com suas Não é necessário reforçar que uma visão biologizante
políticas de governo, mas por sobre o parentesco e as relações afetivas obedecem a interesses
lutarem pela democracia.
escusos. Novamente, a centralidade do debate está no “futuro
da criança”, mesmo que ela nem tenha nascido, e nas falácias
14. Disponível em: https:// de proteção, pureza e ordenamento simbólico que ancoram nos
www.youtube.com/
infantes os papéis de gênero socialmente inteligíveis para homens e
watch?v=n8xcN5cLQeM.
Acesso: 03/11/2020. mulheres. A transgeneridade e a homossexualidade não ameaçam
a reprodução social, tampouco se organizam de maneira a impor
uma propalada anedota batizada como ideologia de gênero.15 Ao
15. É pertinente ressaltar
que à época da tese, 2016, contrário, é a figura da humanidade encarnada na mentalidade
o debate sobre ideologia branca, heterossexual, patriarcal e ocidental que ameaça a
de gênero, movido por
instituições religiosas e continuidade da vida.
conservadoras, intensificou
sua sistematização, ao ponto A quem interessa uma narrativa de futuridade que
de ser um tema central unicamente nos conduz à morte? Quais são as fontes do terror anal
nas eleições presidenciais
brasileiras de 2018. Sobre (HOCQUENGHEM, 2009) que assolam políticos, religiosos e outros
a “invenção da ideologia moralistas de ocasião? Eles insistem na falácia, porque sabem que
de gênero”, ver Junqueira
(2018). Disponível em: os corpos despossuídos e marginalizados se colocam na frente da
http://pepsic.bvsalud. batalha. O corpo está em jogo, teme a ameaça de violência física,
org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1519-
política, legal e jurídica, mas não recua.
549X2018000300004.
Acesso: 19 nov 2020. E,
Podemos nos reproduzir, como fizeram Nilda e Monick, doar
também, Santos e Irineu secreções, óvulos e sêmen para as tecnologias in vitro. O corpo coletivo
(2018).
sapatão, trans, bicha, veada, não-binário, negro, indígena, cigano e
quilombola pode andar em manada e se proteger. A casa Chão de
16. Sobre a Casa Nem, estrelas, no Recife, e a casa Nem16 no Rio de Janeiro apontam que o
espaço de acolhimento
futuro é estético e político. Que a vida-lazer pode ser o corpo coletivo
transvestigênere, idealizado
por Indianare, ver o filme em festa, a partilha do amor, a experimentação afetivo-sexual. Ou se
Indianara, de Marcelo preparar para o exame de admissão de uma universidade, costurar
Barbosa, Aude Chevalier-
Beaumel, 2019. laços de afetividade, acreditar no cuidado e proteção. Reivindicar a
rua como um espaço de direito, o corpo como suporte de um porvir.

300 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


O veado egoísta que foi dar o cu no Polo Norte

Luzindo na madruga, os corpos suados de Donato e Konrad


se encontram e fazem sexo dentro do carro. O salva-vidas cearense,
de Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014), se coloca de costas para
o mecânico de motos alemão. A câmera se demora na respiração,
na textura da pele, nas tatuagens do estrangeiro e nas estocadas.
No plano seguinte, Donato conduz uma pequena lanterna pelas
tatuagens de Konrad. E pergunta: “pra que tanta tatuagem? Fez
alguma pro seu amigo?”. O alemão, que acaba de sair do hospital
após sobreviver a um afogamento, comenta sobre Heiko, seu amigo
desaparecido. Eles sairiam de Fortaleza até o Sul do Brasil, depois
seguiriam para a Patagônia. E, então, ele voltaria para Berlin, para
reencontrar a esposa, seu filho e ter outro filho.
Praia do Futuro é uma espécie de resposta a uma pergunta
sobre a vida-lazer: ela é sempre feminina? O questionamento surge
por eu ter apresentado personagens circunscritas no campo das
feminilidades, como Tabu, Patty e Everlyn. Ao entender a vida-lazer
como um fragmento, um detalhe e um rompante narrativo, ela seria
sim, feminina. Contudo, ao mirarmos o conjunto da obra de Karim
Aïnouz e seu baú de afetos, essa vida-lazer extravasa e se capilariza
nos corpos para além dos marcadores de gênero e sexualidade.
Um incômodo inicial com o filme estava relacionado à sua
excessiva performance de masculinidade hegemônica. O primeiro
plano me alertou quanto a isso: Konrad e Heiko andando de moto
pelas dunas do Ceará; o sexo duro e penetrador do alemão e o
brasileiro Donato; os embates corporais e brigas que se sucedem
ao longo da trama. Como é possível abrir uma fenda de vida-lazer
diante desses dois corpos brancos, jovens masculinos e viris? E assim
se instaura uma impostura ou algo parecido com aquele patriarcado
sem machos, de Seams.
A masculinidade de Donato é movediça como as dunas do
Ceará. É ele que, inicialmente, dá o cu para Konrad. Permitir que
um falo adentre esse órgão tão caluniado, espúrio e vilipendiado,
significa uma grave penalidade dentro das estruturas do patriarcado.
Quando Ayrton, o irmão pequeno de Donato, cresce e vai à sua
procura na Alemanha é assim que ele justifica para si a partida do
irmão: “tu é um veado egoísta, que gosta de dá o cu escondido, na
porra desse polo norte”.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017 301


Essa percepção de Ayrton pode ser uma das muitas razões
que levaram Donato a deixar o emprego de bombeiro no estado
do Ceará, sua mãe, irmãs e seu irmão menor, que o via como
um super-herói. Mas existem outras redes que conduzem o
fortalezense ao cotidiano de Konrad, em Berlim. O desejo de
movimento, invisibilidade e de abertura ao desconhecido. De
encontrar a praia sem água (Figura 5), tão sonhada por Ayrton.

Fig 5. Ayrton, Donato e Konrad numa praia “sem água” na Alemanha. Praia do Futuro.

A mágoa de Ayrton com Donato se concentra no abandono


familiar. Não foi apenas um distanciamento geográfico, mas
um corte radical dos laços de convivência. Quando decidiu
permanecer em Berlim, ao lado de Konrad, o cearense se
manteve distante de qualquer contato com a família em sua
cidade de origem. E o irmão caçula enfatiza a continuidade da
vida, apesar de Donato lhes ter virado as costas. E quando o
salva-vidas pergunta sobre a mãe, ele contabiliza: «morreu tem
um ano, cinco meses e três dias».
De uma maneira recorrente, a sociedade heterocentrada
entende o desvio da norma heterossexual ou dos marcos de
uma sexualidade considerada saudável como um rompimento
nos projetos de futuro. É o caso de Patty (Viajo Porque Preciso),
por exercer a prostituição. E de Donato, por partir sem o desejo
de voltar. É nesse sentido que a vida-lazer engendra a discussão
de futuridade e temporalidade: ela rompe com a teleologia
heteronormativa (HENNING, 2016). A personagem de Donato
flutua entre uma negação dos laços familiares como uma
possibilidade de futuro (passando um longo tempo sem manter

302 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


qualquer contato com a família no Brasil) e uma crença na utopia
(ao final, quando escreve uma carta ao passado, para tentar curar
feridas e abre uma possibilidade de futuro ao lado do irmão).
O argumento de Edelman (2014), sobre uma ética dissidente
de sujeitos queer que recusam o futuro reprodutivo, pode ser
interpretado como uma oposição, nos filmes aqui discutidos,
à vida-lazer de Heiko e Patty: o casamento monogâmico e a
reprodução. É nesse campo de intensidades que Donato se insere,
inicialmente. Além de cortar os laços consanguíneos, ele também
rompe o relacionamento com Konrad. Não sabemos como se deu
o término entre os dois, mas o fim da aliança acontece após uma
vida cotidiana aparentemente cúmplice.
Quando Donato acompanha Konrad e a esposa de Heiko
num jogo de basquete na escola, o cearense parece estar sufocado.
Enquanto a plateia vibra na quadra de esporte, Donato se retira
do jogo e parece não se sentir integrado. Ao mesmo tempo, ele
parece gostar das atividades domésticas corriqueiras, de ir ao
mercadinho comprar mantimentos, cigarros e cerveja, do trabalho
como mergulhador em um aquário. Há um sentimento de leve
pertencimento durante as deambulações pela capital alemã.
Contudo, ele está partido ao meio.
Donato tem um devir-Suely. Ele vai sem olhar para trás. E
quando se vê dividido entre reencontrar o Donato que deixou ou
se metamorfosear em outro, segue viagem. Não significa falta
de amor para com seus familiares. Mas é essa bússola insistente,
dentro dele, que o leva para longe, para o futuro incerto, sem medo
do desconhecido. É um gesto similar ao de Suely, quando ela se
aproxima do guichê da rodoviária e procura se informar sobre os
preços das passagens das cidades mais distantes de Iguatu. Donato,
ao contrário de Suely, não planeja a partida, ela se dá ao acaso. É
Konrad o mediador desse salto para o futuro. Contudo, poderia ser
outro estrangeiro, poderia ser outra cidade ou país.
Quando Roland Barthes, em Como viver juntos (2003), evoca
os sentidos da palavra grega acédia, ele o faz vinculando-os ao luto,
à tristeza e ao torpor. Viver com alguém, em comunidade, exige mais
que habilidades emocionais e respeito à diferença. É preciso conviver
com múltiplas temporalidades, com rupturas, diferentes desejos,
impasses e descontinuidades. Abandonar ou ser abandonado é
doloroso, pois “sou objeto e sujeito do abandono: daí a sensação de
bloqueio, de armadilha, de impasse” (BARTHES, 2003, p. 41).

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Mas a resposta sensível do cinema e das personagens aqui
tratadas a esse bloqueio é, justamente, o campo de forças da vida-
lazer: resistência no presente e a vontade de futuro, despontando
de onde parece não haver essa esperança imediata. Reabrindo
as questões de Muñoz (2009) e Edelman (2014): apostar nas
pequenas utopias e nas potências do encontro do primeiro, ou na
negatividade e pulsão de morte do segundo. A utopia no cinema
brasileiro seria vazia (NAGIB, 2006)? No cinema de Karim, não,
pois a vida-lazer se abre não apenas como uma pequena utopia,
mas como uma aposta de vida.

Fig. 6. Clavadistas -Saltadores mexicanos no mar de Acapulco. Viajo Porque Preciso.

Quando ouço José Renato desejando voltar a viver, eu desejo


o mesmo que ele. No abandono, na ausência e no impasse, surge
uma vida-lazer. Ayrton, Donato e Konrad aceleram suas motos
rumo ao desconhecido, rumo ao futuro, impulsionado por uma
praia sem água, cinza e insinuante. Madame Satã hoje está
pintada em azulejos da Lapa, na Rua Moraes e Vale, na cidade do
Rio de Janeiro. E Patrícia Simone da Silva, a Patty de Viajo Porque
Preciso e enunciadora da vida-lazer, habita o azul acrílico de um
sertão-imagem.
A vida-lazer, como ato, é similar ao salto dos mergulhadores
mexicanos dos penhascos de Acapulco (Figura 6), no plano final
de Viajo Porque Preciso. Um pinote rumo à vida, ao desconhecido,
ao medo e à destrutibilidade da carne. Se é pulsão de morte,
ou uma pequena utopia, só as lentes que observam e os filtros
subjetivos são capazes de apontar.

304 A vida-lazer como vontade de futuro / Vinicios Kabral Ribeiro


Insiro a vida-lazer, traduzida esteticamente, como parte do
projeto de possíveis e de criação. Aumont (2007), ao pensar uma
segunda modernidade no cinema, com outras interpretações,
busca um caminho para além do binarismo clássico versus
moderno. E na vida-lazer, busco algo além da dualidade utopia
versus conformação, outras direções. Perceber que a singularidade
do cinema não está presa ao passado, nem a um futuro longínquo
irrealizável. Ela é uma resposta sensível ao espírito do tempo.
Esteticamente, ela aspira ao inimaginável: conexões de momentos
e atos de pensamento: ação.

O tempo histórico é a criação do novo. Dito isso, é preciso


questionar mais. Será que nossa consciência de tempo,
notadamente do futuro, repousa sobre a capacidade humana
de criar algo novo, ou será, ao contrário, a possibilidade de
criar algo novo que depende do fato de termos consciência do
futuro? (AUMONT, 2007, p. 96).

A vida-lazer no cinema é um pequeno lampejo nos fluxos de


imagens que habitam o mundo. Não é possível, nem desejável,
apreender essas imagens em sua totalidade. Mas elas persistem,
duram, vivem, instauram temporalidades e pensamentos. Vida-
lazer é olhar ao redor e ver que não estamos sós. Vida-lazer é uma
trama de afetos tecida por linhas plurais. Vida-lazer sobre a qual
Patty e Tabu filosofaram. Vida-lazer para não sermos circunscritos
nos mundos precários e subalternos. Vida-lazer como uma
sensibilidade do presente e uma vontade de futuro. E o futuro
está aqui, presente.

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REFERÊNCIAS

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