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Dados internacionais de Catalogação-na-fonte –CIP Renato Pazos Vazquez (UFRRJ) - 1º secretário
Graciela Alicia Foglia (UNIFESP) - 2ª secretária
Anais do VIII Congresso Brasileiro de Hispanistas. Estudos de literatura e Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ) - 1º tesoureiro
cultura / Organização de Luciana Maria Almeida de Freitas et al. Rio de Andrea Silva Ponte (UFPB) - 2ª tesoureira
Janeiro: ABH, 2016.
Conselho Consultivo
934 p. E-book. Titulares
Adrián Pablo Fanjul (USP) - Presidente
ISBN 978-85-66188-07-3 Fernanda dos Santos Castelano Rodrigues (UFSCar)
Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF)
1. Hispanismo. 2. Letras. 3. Título. Marcia Paraquett Fernandes (UFBA)
Neide Therezinha Maia González (USP)
Ruben Daniel Méndez Castiglioni (UFRGS)
Vera Lucia de Albuquerque Sant’Anna (UERJ)
Editoração: Luciana Maria Almeida de Freitas
Suplentes
Arte: Alessandra Tissoni Maria Augusta da Costa Vieira (USP)
Maria Del Carmen Fátima González Daher (UFF)

Conselho Fiscal
Titulares
Rosa Yokota (UFSCar) - Presidente
Elena Cristina Palmero González (UFRJ)
Elena Ortiz Preuss (UFG)
Suplentes
Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ)
Paulo Antonio Pinheiro Correa (UFF)
Organização do VIII Congresso Brasileiro de Hispanistas

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Elena Cristina Palmero González (UFRJ) Antonio R. Esteves (UNESP)
Luciana Maria Almeida de Freitas (ABH-UFF) Ariadne Costa da Mata (UEPB)
Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) Ary Pimentel (UFRJ)
Claudia Estevam Costa (CP2)
Membros Claudia Heloisa I. Luna Ferreira da Silva (UFRJ)
Andrea Silva Ponte (ABH-UFPB) Cristiano Silva de Barros (UFMG)
Elzimar Goettenauer de Marins Costa (ABH-UFMG) Cristina Vergnano-Junger (UERJ)
Flavia Ferreira dos Santos (UFRJ) Dayala Paiva de Medeiros Vargens (UFF)
Graciela Alicia Foglia (ABH-UNIFESP) Eduardo Tadeu Roque Amaral (UFMG)
Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold (UFRJ) Elena Ortiz Preuss (UFG)
Renato Pazos Vazquez (ABH-UFRRJ) Elisa Maria Amorim Vieira (UFMG)
Fernanda dos Santos Castelano Rodrigues (UFSCar)
Secretaria Ivan Rodrigues Martin (UNIFESP)
Carolina Gandra de Carvalho (UFRJ) Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF)
André Lima Cordeiro (INES) María Teresa Celada (USP)
Marcos Antônio Alexandre (UFMG)
Bolsistas Margareth dos Santos (USP)
Beatrice Bruno Tuxen (UFRJ) Maria Mirtis Caser (UFES)
Carolina Ecard Barros (UFRJ) Miriam Garate (UNICAMP)
Tatiana Dias Lütz (UFRJ) Pablo Gasparini (USP)
Paulo Antonio Pinheiro Correa (UFF)
Comitê Científico Romulo Monte Alto (UFMG)
Elena Cristina Palmero González (UFRJ) – Presidente Rosa Yokota (UFSCar)
Adrián Pablo Fanjul (USP) Lívia Reis (UFF) Ruben Daniel Méndez Castiglioni (UFRGS)
Ana Cecilia Olmos (USP) Marcia Paraquett (UFBA) Sara Rojo (UFMG)
Consuelo Alfaro Lagorio (UFRJ) Neide T. Maia González (USP) Valéria de Marco (USP)
Del Carmen Daher (UFF) Silvana Serrani (UNICAMP) Vera Lúcia de Albuquerque Sant’Anna (UERJ)
Graciela Ravetti (UFMG) Silvia I. Cárcamo de Arcuri (UFRJ) Viviane C. Antunes (UFRRJ)
Xoán Carlos Lagares Diez (UFF)
LOS PASOS PERDIDOS Y EL CUERPO SIN LUGAR: ALEJO
SUMÁRIO CARPENTIER Y LA TEMÁTICA DE LAS CORPORALIDADES
Amanda Brandão Araújo Moreno ......................................................... 76
LA CASA DE BERNARDA ALBA URUGUAYA: DRAMATIS A CRIAÇÃO LITERÁRIA EM BELIZE: EMERGÊNCIA DE UMA
PERSONAE LITERATURA HISPANA EM CONTEXTO OFICIALMENTE
Adriana Binati Martinez ........................................................................... 12 ANGLOPARLANTE
CONFIGURACIONES DEL CUERPO EN LA PRODUCCIÓN TEXTUAL Amarino Oliveira de Queiroz e Eidson Miguel da Silva Marcos ... 85
DE HÉLIO OITICICA LITERATURA AFRO-HISPANA EM CONTEXTO AHISPÂNICO? A
Adriana Kogan ............................................................................................. 20 EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA DA REPÚBLICA DOS
CONTAR UMA HISTÓRIA: LEVEZA, INTERTEXTUALIDADE E CAMARÕES
METAFICÇÃO NA CRIAÇÃO DO EFEITO DE HISTORICIDADE EM Amarino Oliveira de Queiroz .................................................................. 93
SANTA EVITA USOS AMOROSOS DE LA POSTGUERRA ESPAÑOLA OU CRÍTICA
Adriana Ortega Clímaco ........................................................................... 29 AO COMPORTAMENTO DA SOCIEDADE ESPANHOLA NO PÓS-
ALÉM DA NORMA: MITO E MIMESIS EM EL ZORRO DE ARRIBA Y GUERRA
EL ZORRO DE ABAJO DE JOSÉ MARIA ARGUEDAS Ana Carolina da Silva Pinto .................................................................... 101
Afonso Rocha Lacerda ............................................................................... 40 SUBJETIVIDADE E RESISTÊNCIA: DESLOCAMENTOS E RELAÇÕES
AS INTERFACES DE PIEL DE MUJER DE DELIA ZAMUDIO, QUARTO DE AFETO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA IDENTITÁRIA
DE DESPEJO – DIÁRIO DE UMA FAVELADA E DIÁRIO DE BITITA À OPRESSÃO
DE CAROLINA MARIA DE JESUS Ana Cristina dos Santos e Milena Campos Eich .............................. 107
Alessandra Corrêa de Souza .................................................................... 46 “EL DIVINO VERDUGO”: A REPRESENTAÇÃO DIVINA NOS
HETEROGENEIDADE E VIOLÊNCIA NO SAINETE RIOPLATENSE POEMAS DE BLANCA VARELA
Alfonso Ricardo Cruzado .......................................................................... 54 Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque e Mariana da Costa Valim
........................................................................................................................ 119
ESTRUTURAS DE AUSÊNCIA: FLORES DE MARIO BELLATIN
Álvaro Mendes de Melo ........................................................................... 71 SOB O OLHAR DOS MORTOS: A CONSTRUÇÃO ALEGÓRICA EM
PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO
Ana Paula Cantarelli ................................................................................ 128
SUA ANOTAÇÃO, MEU ROMANCE: PROCESSO E PRODUTO NOS ALEJANDRA PIZARNIK – SER FIEL À PRÓPRIA VOZ
DIÁRIOS-ROMANCE DE MARIO LEVRERO Clarisse Lyra Simões ................................................................................ 216
Antonio Marcos Pereira ......................................................................... 138 A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA SOL DE
LA PALABRA LABRADA POR EL AGOTAMIENTO Y EL TERROR EN MERCEDES CABELLO D CARBONERA
EL COTIDIANO FICCIONAL DE IMÁN DE RAMÓN J. SENDER Cláudia Regina da Silva Rodrigues ....................................................... 222
Antonio Valmario Costa Júnior ............................................................. 144 UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS TEXTOS UNAMUNIANOS
AUTORREPRESENTAÇÃO DOS SUBALTERNOS NO FUNK CARIOCA NIEBLA E SAN MANUEL BUENO, MÁRTIR
E NA CUMBIA VILLERA: TERRITÓRIO, IDENTIDADE E VIOLÊNCIA Cristiane Agnes Stolet Correia ............................................................... 232
NAS VOZES PROIBIDAS CRIANÇA E POESIA: ASPECTOS MITOPOÉTICOS NA OBRA
Ary Pimentel .............................................................................................. 152 QUANDO AS MONTANHAS CONVERSAM/ CUANDO LOS CERROS
EXPERIMENTAÇÕES DE BORGES ATRAVÉS DA FLOR ESPECULAR CONVERSAN
DE COLERIDGE – DO PARAÍSO UTÓPICO AO HORROR MODERNO Daiane Lopes .............................................................................................. 242
DA AUTORIA O INTELECTUAL E O PODER EM FRENTE AL FRENTE ARGENTINO
Breno Anderson Souza de Miranda .................................................... 162 DE AUGUSTO ROA BASTOS
ICONOGRAFIA DE SANTIAGO: AUTORIDADE, VIOLÊNCIA E Damaris Pereira Santana Lima ............................................................. 256
RESISTÊNCIA POLÍTICA E CULTURAL NOS ANDES PERUANOS O PÓS-GUERRA CIVIL FICCIONALIZADO EM MADRE, NO
Carla Dameane P. de Souza ................................................................... 167 ENTIENDO A LOS SALMONES, DE MONTSERRAT ROIG
MARCAS AUTOBIOGRAFICAS E TRANSGRESSÃO EM JUAN SIN Daniel Carlos Santos da Silva ................................................................ 264
TIERRA DE JUAN GOYTISOLO A PONTE POSSÍVEL ENTRE O “REAL” E O FICCIONAL: ANÁLISE DO
Carmelita Tavares Silva ............................................................................ 181 RELATO DE UMA SOBREVIVENTE DA ÚLTIMA DITADURA
A NARRATIVA DE TEOR TESTEMUNHAL: A MEMÓRIA DO MILITAR ARGENTINA
TRAUMA NO CONTEXTO ANDINO PERUANO Debora Duarte dos Santos ..................................................................... 270
Catiussa Martin ........................................................................................ 192 JORNALISMO E MEMÓRIA NA TRILOGIA COLOMBIANA DE JUAN
CALDERÓN DE LA BARCA E ARIANO SUASSUNA: O SONHO E O GABRIEL VÁSQUEZ
CIRCO Diogo de Hollanda Cavalcanti ................................................................ 276
Célia Navarro Flores ................................................................................ 207
MILITARISMO NO ROMANCE REPUBLICANO: COMPARATISMO ENTRE AMANHECERES E DISSIDÊNCIAS: A POESIA DE PEDRO
LITERÁRIO ENTRE O BRASIL E A VENEZUELA SEVYLLA DE JUANA
Dionisio Márquez Arreaza ..................................................................... 285 Ester Abreu Vieira de Oliveira e Maria Mirtis Caser ....................... 348
CÉSAR BRIE E O TEATRO DE LOS ANDES: PROCESSOS DIÁLOGO ENTRE LA NOVELA “LOS DÍAS DEL ARCO IRIS” DE
DRAMATÚRGICOS DE RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA SKÁRMETA Y LA PELÍCULA “NO” DE LARRAÍN
Éder Rodrigues .......................................................................................... 290 Ester Myriam Rojas Osorio ..................................................................... 357
ADEUS MACONDO! ABENÇOADA SEJA LA VIRGEN DE LOS FUSIÓN MÍTICA: EL OBSCENO PÁJARO DE LA NOCHE Y EL MITO
SICARIOS DEL MINOTAURO
Eduardo Andrés Mejía Toro .................................................................. 296 Farides Lugo Zuleta ................................................................................... 363
A IMPORTÂNCIA DA FOCALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA REDES EDITORIALES EN TORNO A UNA REVISTA CULTURAL DEL
NARRATIVA EM LA PREGUNTA DE SUS OJOS, DE EDUARDO EXILIO ESPAÑOL EN BUENOS AIRES: CABALGATA (1946-1948)
SACHERI Federico Gerhardt .................................................................................... 370
Elen Fernandes dos Santos .................................................................... 302 DESLOCAMENTO E MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA DE
COMO SE MOSTRA E O QUE REPRESENTA: O REALITY SHOW NA GUSTAVO PÉREZ FIRMAT
FORMA E NO CONTEÚDO DA NOVELA REALIDAD, DE SERGIO Fernanda Orphão Corrêa de Lima ....................................................... 377
BIZZIO A PERFORMANCE DA VIOLÊNCIA EM ADIÓS AYACUCHO, DE
Ellen Maria Martins de Vasconcellos ................................................. 318 YUYACHKANI
TRADUZINDO O INCONSCIENTE SURREALISTA LATINO- Flávia Almeida Vieira Resende ............................................................. 384
AMERICANO - PECULIARIDADES DO POEMA SURREALISTA SOBRE O FEMININO NOS MANIFESTOS CARTONEROS E O
Elys Regina Zils ........................................................................................... 335 ALINHAVAMENTO DE UM SUJEITO COLETIVO
LETRAS SIN ARMAS: VARIACIONES SOBRE EL PROBLEMA DEL Flavia Braga Krauss de Vilhena .............................................................. 390
PAPEL DE LA LITERATURA EN LA LITERATURA ESPAÑOLA JOÃO CABRAL DE MELO NETO, ANDALUCÍA Y EL NORDESTE
CONTEMPORÁNEA BRASILEÑO: QUANDO LA GEOGRAFÍA INTERFIERE EN LA
Erivelto da Rocha Carvalho .................................................................... 342 DICCIÓN DEL POETA
George Hamillton Pellegrini Ferreira................................................... 404
A CRIAÇÃO SIMBÓLICA DE ARTURO USLAR PIETRI: DIÁLOGO MATAR A BORGES: A FICCIONALIZAÇÃO DE BORGES E DA
ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA CRÍTICA LITERÁRIA
Gisele Reinaldo da Silva ........................................................................... 411 Isis Milreu ................................................................................................... 489
TRANSGRESIONES DE LOS MÁRGENES EN DOS NARRATIVAS DE A FICÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPANHOLA: FORMA E CONTEÚDO
MARÍA ROSA LOJO Jorge Paulo de Oliveira Neres ............................................................... 497
Gracielle Marques ..................................................................................... 425 O ROMANCE FAMILIAR DO NEURÓTICO ESPELHADO EM
A COMICIDADE NOS ESPERPENTOS VALLE-INCLANIANOS VARGAS LLOSA
Gustavo Rodrigues da Silva .................................................................... 434 Juan Ignacio Azpeitia ................................................................................ 509
LA OLIGARQUÍA, LA PEQUEÑA BURGUESÍAY EL PROLETARIADO EL PROYECTO STAHL Y LA NOVELA NADIE RECUERDA A
EN LOS DIARIOS DE RODOLFO J. WALSH Y LA CUESTIÓN DE LA MLEJNAS: NUEVAS PERSPECTIVAS LITERARIAS Y CULTURALES EN
VIOLENCIA REVOLUCIONARIA EL URUGUAY DEL SIGLO XXI
G.W. Spandau ............................................................................................. 439 Juan Pablo Chiappara ............................................................................... 516
O “NEOPOPULARISMO” NO ROMANCERO GITANO DE FEDERICO LITERATURA E CINEMA: UMA QUESTÃO DE FIDELIDADE?
GARCÍA LORCA Larissa Pinheiro Xavier ............................................................................. 525
Irley Machado ............................................................................................ 452 PSICOLOGÍA DE LAS MASAS VIOLENTAS. EXPERIÊNCIA N°2 DE
SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ Y ALEJO CARPENTIER: DOS VOCES FLÁVIO DE CARVALHO
DEL CARIBE ENTRE IDENTIDADES Y SIGNOS MUSICALES Laura Cabezas ............................................................................................ 537
Isabel Abellán Chuecos ............................................................................ 463 A POÉTICA DO DESLOCAMENTO, A POÉTICA DO ESPAÇO E A
O MOTIVO DO DESLOCAMENTO EM SAÑA, DE MARGO GLANTZ POÉTICA DA RELAÇÃO EM OS PALACIOS DISTANTES, DE ABILIO
Isabel Jasinski.............................................................................................. 468 ESTÉVEZ
IMPRENSA E IMAGINÁRIO: O DISCURSO FEMINISTA DE EMILIA Lays Gabrielle Neves Moreno ............................................................... 545
PARDO BAZÁN NA REVISTA "NUEVO TEATRO CRÍTICO" A LITERATURA DO CARIBE HISPÂNICO NOS ESTADOS UNIDOS:
Isabela Roque Loureiro ........................................................................... 477 OS CONTOS DE JUNOT DIAZ
Lívia Santos de Souza ............................................................................... 549
LEONARDO, YERMA, ADELA: CONFLITOS IRRECONCILIÁVEIS NO O TRAJETO DA SERRANA PARA CONVERTER-SE EM MITO
TEATRO DE GARCÍA LORCA Maria do Carmo Cardoso da Costa ...................................................... 652
Luciana Montemezzo ............................................................................... 556 DA LITERATURA PARA O CINEMA: UMA ANÁLISE DA
TRADIÇÃO E APROPRIAÇÃO 2.0: UM TALENTO ORIGINAL? EL REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE LATINO-AMERICANA
HACEDOR (DE BORGES), REMAKE DE FERNÁNDEZ MALLO Maria Inês Freitas de Amorim ............................................................... 658
Luciene Azevedo ....................................................................................... 568 A LEMBRANÇA, O OBJETO E O ESPAÇO: A MEMÓRIA NA
FÉNIX, MARIENE: EL ARTE DEL RETRATO EN EL TEATRO DE TRAJETÓRIA DOS BUENDÍA
CALDERÓN DE LA BARCA Mariana Marise Fernandes Leite .......................................................... 669
Lygia Rodrigues Vianna Peres ................................................................ 581 MÁS QUE PLUMA ES AIRE Y CERCANÍA”: A CORRESPONDÊNCIA
SONETOS DO PRADO POÉTICA DE RAFAEL ALBERTI A JOSÉ BERGAMÍN
Marcelo Maciel Cerigioli.......................................................................... 596 Mayra Moreyra Carvalho ....................................................................... 685
O CRUZAMENTO DE LINGUAGEM EM JORGE RICARDO AULICINO FORMAS DE TRADUÇÃO NA LITERATURA ANDINA: EL PEZ DE
Márcio Luiz Oliveira Pinheiro ................................................................ 600 ORO, DE GAMALIEL CHURATA
ANGEL RAMA Y LA INTERPRETACIÓN DE LATINOAMÉRICA EN Meritxell Hernando Marsal .................................................................... 693
CLAVE CULTURAL Y UNITARIA GUERRA CIVIL, EXÍLIO Y MEMORIA EN RÉQUIEM POR UN
Marco Antonio Bonilla Díez ................................................................... 612 CAMPESINO ESPAÑOL, DE RAMÓN J. SENDER Y EN CAMPO DE
PEREGRINAÇÕES POÉTICAS PELO ÁSPERO MUNDO LOS ALMENDROS, DE MAX AUB
Margareth Santos ...................................................................................... 623 Michele Fonseca de Arruda.................................................................... 698

APROXIMAÇÃO TRANSCULTURAL ENTRE UTOPIA SELVAGEM DE LOS LATINOS VIAJAN A LA MECA DEL CINE
DARCY RIBEIRO E LA TUMBA DEL RELÁMPAGO, DE MANUEL Miriam V. Gárate ....................................................................................... 704
SCORZA LA INMOVILIDAD PERFECTA
Maria Aparecida Nogueira Schmitt ...................................................... 630 Oscar Román Zambrano Montes.......................................................... 716
EUCLIDES DA CUNHA EN LA PRENSA MASIVA ARGENTINA DE HOMBRE-ESSAIS: EL LABERINTO, LA SOLEDAD Y UN SOLDADO
1930: MONSTRUOSIDAD, VIOLENCIA Y EXOTISMO PAZ ARMADO POR LA REFLEXIÓN
María de los Ángeles Mascioto ............................................................ 645 Phelipe de Lima Cerdeira ........................................................................ 725
ARCHIMBOLDI, O ESCRITOR, A FAMA E O ANONIMATO O EROTISMO E A MORTE EM BODAS DE SANGRE DE GARCÍA
Rafael Gutiérrez ......................................................................................... 739 LORCA
FRAGMENTOS DE UM ANOITECER: NOTAS PARA UMA LEITURA Rociele de Lócio Oliveira ......................................................................... 793
TARDIA DE ANTES QUE ANOITEÇA, DE REINALDO ARENAS LA GRAN NOVELA HISPANOAMERICANA: EL MÉTODO CRÍTICO
Raphaella Mendes Silva de Castro Lira Yaakoub.............................. 744 DE CARLOS FUENTES
A IMAGINAÇÃO DA HISTÓRIA EM LA GUERRA CARLISTA, DE Rodrigo Vasconcelos Machado ............................................................. 800
RAMÓN DEL VALLE-INCLÁN LECTURAS DE MARIÁTEGUI EN LA OBRA DE ARGUEDAS: EL
Raquel da Silva Ortega ............................................................................. 752 PRIMER ENCUENTRO DE NARRADORES PERUANOS
2666 E A POLÍTICA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DES-ESPERO Roseli Barros Cunha.................................................................................. 806
Raquel Parrine ............................................................................................ 760 EL ASESINATO DE SANTIAGO NASAR: EL CRIMEN Y LA LEY
O IMAGINÁRIO CAROLÍNGIO NA ENCANTARIA MARANHENSE Ruben Daniel Castiglioni ......................................................................... 813
Regina Célia de Lima e Silva .................................................................. 768 TESTEMUNHO, FICÇÃO E REALIDADE: AS RELAÇÕES DE PODER
AS FIGURAS FEMININAS EM LA BODA DE CHON RECALDE, DE NO MÉXICO COMTEMPORÂNEO EM EL TESTIGO DE JUAN
GONZALO TORRENTE BALLESTER, E AS MENINAS, DE LYGIA VILLORO
FAGUNDES TELLES: UMA ANÁLISE COMPARATIVA Simone Silva do Carmo ........................................................................... 819
Regina Kohlrausch ..................................................................................... 774 REPRESENTAÇÕES FICCIONAIS DE D. PEDRO EM O CHALAÇA E EL
LA 31”: LA ISLA PRECARIA DE ARIEL MAGNUS Y LOS IMPERIO ERES TÚ
DESPLAZAMIENTOS DEL YO Y DEL OUTRO ENTRE LOS Stanis David Lacowicz .............................................................................. 836
FRAGMENTOS DE LA CIUDAD UM REMAKE DE EL HACEDOR DE BORGES: UM ATO DE
Renata Dorneles Lima ............................................................................. 781 APROPRIAÇÃO
A INDIVIDUAÇÃO DE NATALIA ATRAVÉS DE SER ETERNO Tatiana da Silva Capaverde .................................................................... 848
CONTAR, EM LA PLAZA DEL DIAMANTE, DE MERCÈ RODOREDA LA PERSISTENCIA DEL ORIGEN. SEVERO SARDUY Y EL MÉTODO
Robson Leitão ............................................................................................. 787 Valentín Díaz .............................................................................................. 859
EL COLOQUIO DE LOS PERROS - BERGANZA E O OFICIAL DE
JUSTIÇA:
UM POSSÍVEL ENTREMEZ
Vânia Pilar Chacon Espindola ................................................................. 867
NOTAS SOBRE LITERATURA E NARCOTRÁFICO NA OBRA DE JUAN
VILLORO
Víctor Manuel Ramos Lemus ................................................................. 877
EL APOCALIPSIS DEL PÓRTICO DE LA GLORIA Y LA PRISIÓN A
FALCONA EN EL LÁPIZ DEL CARPINTERO, DE MANUEL RIVAS
Virginia Videira Casco............................................................................... 892
LUGARES DISCURSIVOS DEL ESCRITOR EN LA LITERATURA
LATINOAMERICANA CONTEMPORÁNEA: CONSIDERACIONES A
PARTIR DE LA PRODUCCIÓN LITERARIA DE WASHINGTON
CUCURTO
Wanderlan da Silva Alves ....................................................................... 902
O POLICIAL EM REVISTA: INVIERNO EN LISBOA DE MUÑOZ
MOLINA E ZORRILLA
Wellington R. Fioruci ................................................................................ 911
BIOGRAFÍA FICCIONAL DE ESCRITORES: HISTORIA LITERARIA
DESDE LA FICCIÓN
Yuly Paola Martínez Sánchez ................................................................ 925
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LA CASA DE BERNARDA ALBA URUGUAYA: DRAMATIS instaurada en contexto histórico-social definido. Sin embargo, en
PERSONAE su versión de Doña Ramona, cuya protagonista homónima es una
Adriana Binati Martinez ama de llaves, el autor fundamenta la trama en personajes
UNICENTRO/Irati e PG-USP comunes en un tiempo presente demarcado por el cambio del
retrato del presidente José Batlle y Ordóñez por del Doctor Claudio
AMPARO. [...] ¡Si Doña Ramona se llega a casar con Williman. Los hermanos solteros Amparo, Alfonso, Concepción y
nuestro hermano, también lo hace con el titular de nuestra Dolores sienten su universo familiar y social amenazado con la
firma, que lleva nuestro apellido! Y eso no sucederá posibilidad que Ramona se case con Alfonso, considerando tanto
mientras yo pueda evitarlo… A ninguna de las dos se les ha su origen humilde como sus actitudes de dominación que ejerce
ocurrido pensar cuál sería nuestro lugar de ahí adelante. entre los Fernández. Así, el dramatis personae es lo que estructura
¿Quién sería la dueña de esta casa, de la quinta, de la esa obra, siendo el conflicto entre los personajes y lo social lo que
barraca, de todo…? ¿Sería yo, que al fin y al cabo soy tu
fundamenta la acción dramática.
hermana? ¿Concepción, acaso? ¿Vos, con el poder de tus
La obra está dividida en dos partes – en la primera hay
“ideas”? ¡No, m’hijita! La dueña sería ella. La que ahora es
nuestra empleada pasaría a ser la patrona… (LEITES, 1992, dieciséis escenas y, en la segunda, quince – y tiene el transcurso
p.603). temporal de un año demarcado por el cambio de los retratos de
los presidentes en el salón. En ese teatro ambientado en una casa
En 1982 fue estrenada la obra Doña Ramona, del uruguayo finisecular del XIX de la alta burguesía uruguaya, Amparo,
Víctor Manuel Leites, que tiene como matriz la narrativa (cuento Concepción y Dolores viven bajo la tutela del único hermano y
largo o nouvelle) Doñarramona, de Pedro Bellán. Lo urbano y la hombre de la familia, caracterizado como fuerte y, a la vez, de
sensualidad reprimida de la clase media uruguaya de principios del “escasa inteligencia”, que es el responsable por comunicar la
siglo XX son algunas de las tónicas abordadas en la narrativa que, llegada de Doña Ramona:
en una ciudad ambientada por susurros beatos y voces del arrabal, ALFONSO: ¡Recibimos una carta!
se basa en la vida, obra y muerte de la poeta Delimira Agustini. El AMPARO: ¿No será de algunos de tus clientes, no?
dramaturgo, crítico teatral y algunas veces narrador Leites, en ALFONSO: Para nosotros, particular, y aquí está.
principios de los años ochenta, presenta Doña Ramona en versión CONCEPCIÓN: ¡Una carta para nosotros!
dramática, manteniendo en su figuración las simetrías entre AMPARO: ¡Dámela, me corresponde abrirla!
tradición y modernidad plasmadas en los valores sociales y CONCEPCIÓN: ¡Déjame ver de quién es!
psíquicos de la familia Fernández y Fernández. ALFONSO: ¡De la tía Marina!
El autor de Informe para distraídos (1968), Crónicas de bien CONCEPCIÓN. (Desilusionada.). ¡Chau sorpresa!
AMPARO. (Saca la carta). ¿Quién sabe qué desgracia la
nacidos (1972), Quiroga (1975), El Chalé de Gardel (1985) y Varela,
impulsó a escribirnos!
el Reformador (1990) tiene su producción dramática fuertemente
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ALFONSO: Ninguna desgracia: la tía nos envía un ama de RAMONA. (Girando.) “Gran ganancia es la piedad
llaves. ¡Ja…! ¿Qué me dicen ahora? ¡Quedaron mudas! acompañada de contentamiento. Así que, teniendo
¡Mudas! Leé, Concepción, lée para todos… (LEITES, 1992, sustento y abrigo estemos contentos con esto…”.
p.555-56). MAGDALENA. ¡Eso de aquí a veinte años me lo recuerda!
RAMONA. (Suave, siente que ya la domina) Ah, también
Mientras Alfonso sea el único hombre de esta familia y, por
habrá que levantarse más temprano.
esta razón, él que tiene la tutela de los bienes y de la vida de las [...]
hermanas, Amparo es la que ejerce el poderío en la casa. Así, desde RAMONA. (Inicia a su vez el mutis) Otra cosa, Magdalena,
las primeras escenas de la obra, son instaurados algunos de los desde hoy puede usted llamarme Doña Ramona. (Se va
conflictos de este universo femenino limitado: la ausencia del erguida y triunfante).
casamiento (Amparo), el cinismo y el deseo sexual reprimidos MAGDALENA. (Estupefacta.) Qué Doña Ramona, qué Doña
(Concepción), la ingenuidad y cosmopolitismo cultural y político Ramona… (Estalla, agarrando a puntapiés el atado de ropa.)
(Dolores), el robo de alimentos y conocimiento de los secretos de ¡Doña Ramona la puta que la parió! (Sale). (Ibíd., p.573-74).
la familia (Magdalena – la sirvienta). La llegada de Doña Ramona – Aunque sea de un origen social inferior, Doña Ramona
equivocadamente pensada por los hermanos como mayor a causa desde el inicio se establece en la trama como poseedora del
del tratamiento en la carta de la tía – agudiza los conflictos entre discurso, además del conocimiento religioso que rige su
los miembros familiares. Igualmente, en relación a la sirvienta de comportamiento y carácter. A través del habla la protagonista
la casa, Doña Ramona acentúa los enfrentamientos en la medida consigue conquistar a cada miembro familiar y, también, se
que se impone jerárquicamente y explicita que sabe de los robos destaca entre ellos. De ahí que consigue instaurar su poder en el
de Magdalena en los mantenimientos de la cocina: núcleo de los Fernández hasta llegar a ocupar un lugar a la mesa
RAMONA. (Helada.) Desde hoy habrá una balanza en la durante las refecciones de los hermanos. Sin embargo, la simetría
cocina.
entre la caracterización de “beata” y juventud del personaje
MAGDALENA. ¿Una balanza? Y quién pidió una balanza?
alcanza su punto de mayor conflicto con el descubrimiento de las
RAMONA: Yo. Se pesará todo lo que traigan los
proveedores. hermanas – sobre todo de Amparo – del interés sexual de Alfonso
MAGDALENA: ¿Y por orden de quién? por Ramona y, por su vez, del amor que esta revela sentir por
RAMONA: Por orden mía. Alfonso. Así que Amparo se preocupa con el cambio que esta
MAGDALENA. ¡Pero la plata que se la cuiden ellos! relación puede ejercer en la familia, bien como en el “prestigio”
RAMONA. Yo estoy aquí para cuidarla como si fuera mía! social de ellos y manifestándolos a sus hermanas Dolores y
MAGDALENA. ¡Como si! ¡Pero no! ¡Y la diferencia es muy Concepción, conforme nuestra epígrafe.
grande, m’hija, muy grande! Las tres hermanas reafirman su autoridad y status quo
familiar y social, a la vez estancado, al rechazar el cambio que la
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protagonista puede ejercer en ese universo en que viven. La víctima icónica de ese ámbito uruguayo que no acepta cambios de
pérdida de la virginidad de la protagonista provocada por Alfonso orden social en las familias burguesas.
en su cumpleaños cuando toma a la fuerza a Ramona, con el El principio de autoridad sobre el principio de libertad, que
silencio y falta de ayuda entre las hermanas a sus pedidos de acentúa el dramatis personae, está presente en la obra teatral
socorro, establece el orden familiar: lorquiana. De modo que es posible encontrar en la elaboración y
Amparo triunfa en su amargura yerma degradando a Doña desarrollo de la trama de Leites una correspondencia con La casa
Ramona, en la conciencia de Alfonso, a objeto para ser de Bernarda Alba, Drama de mujeres en los pueblos de España
usado, a sierva; Concepción se venga de su estado de (1936), de Federico García Lorca. El núcleo familiar (protagonizado,
erotización sin destinatario a través de esa violación principalmente, por mujeres), las criadas, la ambientación en la
ejercida sobre la apretada sensualidad del ama de llaves, a
casa, bien como el amor, el erotismo y las ideologías sociales
la vez que empareja su sentimiento de deseo castrado por
acerca del casamiento y del comportamiento femenino son
la opresión de Doña Ramona apoyando la castración de la
ambición social de la joven; Dolores es la única que atina, algunos de los elementos constitutivos de la trama uruguaya con
desde su juventud esperanzada, a un movimiento de la lorquiana. En esta perspectiva se puede observar tanto la
compasión, pero su llanto, que cierra la obra, sólo alcanza universalidad temática de la obra de García Lorca, como la
para preservar la sinceridad de sus ilusiones y sus importancia de la composición orgánica (estructura y lenguaje) de
convicciones… (MIGDAL, 1994, p.541). su teatro que influenciaron a autores de los más diversos ámbitos
temporal y espacial.
Además, esa explotación sexual cometida por Alfonso –
Respecto al contexto literario uruguayo, según Roger Mirza
como lo hizo su padre durante años con la sirvienta Magdalena –
(1992), a causa de razones políticas (Dictaduras) y de censura, es a
revela y ordena en la obra las conductas de las familias en sus casas
partir de 1979 que se acentúa la necesidad de encontrar formas
bajo el silencio a la fuerza, instaurado por razones económicas y
indirectas y, a la vez, evidentes al receptor (lector/espectador), de
morales, de las criadas. Así, es posible interpretar que el principio
una situación alternativa al discurso oficial. Por lo tanto, temas
de autoridad es mayor que el principio de libertad y, en ese
como el poder totalitario, el fanatismo represor, el encierro, el
sentido, hay la pérdida de los deseos e ilusiones personales de
miedo y el terror deshumanizante son frecuentes en las
cada personaje femenino de la obra, puesto que Alfonso sigue en
producciones de este período que, en resumen, lo hacen en
las mismas condiciones morales y sociales. Los personajes
diálogo con autores clásicos universales o contemporáneos
femeninos no consiguen romper las leyes sociales en que viven –
europeos para enmascarar la situación opresiva. Doña Ramona
acentuadas en el ambiente reducido de la casa y del núcleo familiar
surge en esta huella revelando las simetrías de la corrupción e
que constituyen la trama – y, de esta forma, se encuentran
“cerradas” (y solitarias) en este universo, siendo Doña Ramona la hipocresía del ser humano y de la sociedad uruguaya (como las
tradiciones familiares) del inicio del siglo XX (contexto histórico-
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social abordado en la obra) e, igualmente, representa el período matrimonio y el transcurso temporal en el encierro privado que las
contemporáneo en que el teatro fue publicado. condena al aislamiento social, se sienten más afectadas con la
Así, mediante el análisis comparativo respecto a la determinación de la madre cuanto al luto que guardarán a partir
constitución de la trama y a las temáticas del individuo frente a la de este día. En la trama no hay fechas cronológicas, siendo pasado
sociedad, es evidente el diálogo entre las obras. De modo que y presente determinados por las acciones y figuración dramática.
nuestra propuesta de estudio se ha basado en las simetrías del La presencia de Pepe el Romano en el desarrollo de la trama –
dramatis personae de la pieza uruguaya con el Drama de mujeres siempre como una referencia entre las personajes femeninas –
en los pueblos de España lorquiano. agudiza el dramatis personae entre las hermanas:
Los principios de autoridad y de libertad, que acentúa en MAGDALENA:
dramatis personae en búsqueda de la representación del humano Pepe el Romano tiene veinticinco años y es el mejor tipo de
en su esencia – como los conflictos entre el individuo todos estos contornos. Lo natural sería que te pretendiera
(interno/privado) y el social (externo/público) – está presente en a ti, Amelia, o a nuestra Adela, que tiene veinte años, pero
no que venga a buscar lo más oscuro de esta casa, a una
La casa de Bernarda Alba en la medida en que la matriarca, con sus
mujer que, como su padre, habla con las narices. (Ibid.,
valores y conductas sociales, impide que sus hijas Angustias,
p.140).
Magdalena, Amelia, Martirio y Adela tengan el dominio de las
propias vidas. El drama, dividido en tres actos, tiene como mote El poder matriarcal de Bernarda Alba, preocupada con las
inicial la muerte del segundo marido de Bernarda Alba, y la apariencias sociales, prevalece incluso en la condición en que su
residencia está cerrada conforme el costumbre del luto. Toda la hija menor se ha muerto en el final de la trama:
acción se pasará entre en interior y exterior de la casa, siendo que BERNARDA:
la matriarca determina a sus hijas que: Y no quiero llantos. La muerte hay que mirarla cara a cara.
BERNARDA. ¡Silencio! (A otra HIJA.) ¡A callar he dicho! (A otra HIJA.) ¡Las
Pues busca otro, que te hará falta. En ocho años que dure el lágrimas cuando estés sola! Nos hundiremos todas en un
luto no ha de entrar en esta casa el viento de la calle. mar de luto. Ella, la hija menor de Bernarda Alba, ha muerto
Hacemos cuenta que hemos tapiado con ladrillos puertas y virgen. ¿Me habéis oído? ¡Silencio, silencio he dicho!
ventanas. Así pasó en casa de mi padre y en casa de mi ¡Silencio! (Ibid., p. 205).
abuelo. Mientras, podéis empezar a bordar el ajuar. En el El mar de luto es la expresión final de esta matriarca
arca tengo veinte piezas de hilo con el que podréis cortar condenando su prole al encierro en la casa, bien como el silencio
sábanas y embozos. Magdalena puede bordarlas. (GARCÍA les ordena para que sus valores y conductas sean seguidas
LORCA, 2004, p.128)
rigurosamente. De modo que, al término del tercero acto, las hijas
Así, las cinco hermanas que ya tenían sus conflictos de Bernarda Alba están totalmente bajo su principio de autoridad.
personales, como la cuestión de la herencia, la falta del La única que se mantiene libre de su dominio es su madre, María
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Josefa, por medio de la locura que le permite hablar libremente en relação inter-humana e só conhecer o que esta esfera reluz.
el reducto de la casa, siendo distinta de la austeridad de su hija y (SZONDI, 2011, p.24)
proclamando sus deseos matrimoniales y eróticos: Las relaciones interhumanas tratadas en las obras de García
MARÍA JOSEFA Lorca y Leites están concentradas en los núcleos familiares de los
No, no me callo. No quiero ver a estas mujeres solteras Alba y de los Fernández y Fernández en relación con las sociedades
rabiando por la boda, haciéndose polvo el corazón, y yo me
en las cuales están insertados. La presencia de los criados en
quiero ir a mi pueblo. Bernarda, yo quiero un varón para
ambas tramas, sobre todo caracterizados en conflictos jerárquicos
casarme y para tener alegría. (Ibid., p.146).
sociales, agudiza esta tensión entre sujeto y mundo:
Para los críticos lorquianos, los principios de autoridad y de MAGDALENA: (Ofendida): ¡Era el patrón, che! ¡Y una
libertad que rigen su obra, en el sentido del conflicto entre la “ley siempre tuvo su dignidad, qué embromar…! Ahora, si te
natural” y la “ley social”, subrayan la disonancia del hombre frente digo la verdad, me divertía provocar el gallego. ¡Me iba a
a la sociedad, en un mundo en el cual el sujeto no se reconoce, no agarrar el año verde!
se encuentra, no se realiza. Por lo tanto, la soledad y la muerte son [...]
los destinos de los personajes en sus dramatis personaes. ¡Más porquerías me decía, más le reía yo! ¡Y él me insultaba
En relación a la desarmonía del hombre con el mundo, más fuerte y más fuerte! ¡Hasta su propia madre se tenía
según la historia literaria, ya es identificable en el período del que refugiar en el jardín, para seguir la comedia de que no
Renacimiento. Y el drama moderno, como forma cerrada, en el sabía de nada! (LEITES, 1992, p.615-616)
cual todos los elementos son justificables por la trama y en el LA PONCIA
interior de la trama, pone en evidencia las relaciones Tirana de todos los que la rodean. Es capaz de sentarse
interhumanas. Así, el diálogo es la mediación universal de este encima de tu corazón y ver cómo te mueres durante un año
sujeto (interno) que se siente separado de su objeto sin que se le cierre esa sonrisa fría que lleva en su maldita
(exterior/mundo): cara. ¡Limpia, limpia ese vidriado! (GARCÍA LORCA, 2004,
Era o diálogo, no entanto, o meio que dava expressão p.118)
lingüística a esse mundo inter-humano. Depois de
El principio de autoridad que vence el principio de libertad
eliminados prólogo, coro e epílogo, ele se tornou no
Renascimento, talvez pela primeira vez na história do en las piezas se cristaliza y fundamenta en los diálogos entre los
teatro, o único componente do tecido dramático… A personajes, siendo la acción de encierro, soledad y muerte
supremacia absoluta do diálogo, ou seja, naquilo que se desencadenada principalmente por los discursos. En otras
pronuncia no drama entre homens, espelha o fato de este palabras, la acción en la configuración plasmática de las obras de
se constituir exclusivamente com base na reprodução da García Lorca y Leites es secundaria al diálogo entre los personajes.
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En contrapartida, según George Lukács, en la historia de la … só é capaz de revelar-se e afimar-se após uma disputa
literatura universal, los griegos son responsables por un legado hierárquica com a vida, se todo personagem carrega em si
poético por el cual el hombre reconoce el universo en que está este conflito como pressuposto de sua existência ou como
inmerso y, por esta razón, todas las cuestiones de la vida suscitadas elemento motriz de seu ser, então cada uma das dramatis
personae terá de se unir somente por seu próprio fio ao
en el tejido simbólico del arte son para encontrar las respuestas
destino por ela engendrado; cada um terá de nascer da
seguras en el desdoblamiento, grandeza y plenitud del alma
solidão e, na solidão insuperável, em meio a outros
humana. De manera que, para el crítico, el surgimiento y desarrollo solitários, precipitar-se ao derradeiro e trágico isolamento;
de los géneros – épico y trágico – denotan tanto una cultura cada palavra trágica terá de dissipar-se incompreendida, e
cerrada – que no tiene dudas en relación a la existencia e nenhum feito trágico poderá encontrar uma ressonância
importancia del alma humana – como una filosofía histórica y que o acolha adequadamente. (LUKÁCS, 2000, p.43)
estética:
Por lo tanto, el lenguaje (como los diálogos) y el héroe son
[...] Se quisermos, assim podemos abordar aqui o segredo
do helenismo, sua perfeição que nos parece impensável e a elementos constitutivos de un sujeto y su vida como disonantes y
sua estranheza intransponível para nós: o grego conhece solitarios. En este momento destacamos que la discusión
somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente promovida por Lukács parte de una perspectiva histórica y,
soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, también, del drama moderno histórico. De manera que, en
somente formas, mas nenhum caos. Ele ainda traça o círculo resumen, la presencia de héroes en los dramas estudiados por el
configurador das formas aquém do paradoxo, e tudo o que, autor, están en el sentido del sacrificio del hombre (individuo) por
a partir da atualização do paradoxo, teria de conduzir à una causa mayor (colectivo). Ya Szondi se centra en dramas
superficialidade, leva-o à perfeição. Quando se fala dos modernos, o sea, se distancia de los dramas modernos históricos
gregos, mistura-se sempre filosofia da história e estética, por razones epistemológicas. Sin embargo, ambos autores
psicologia e metafísica, e trama-se uma relação entre as
destacan la importancia del diálogo en la concepción del drama
suas formas e a nossa era. (LUKÁCS,2000, p.27)
moderno, una vez que a partir de este elemento se dan las
Sin embargo, al estudiar el género narrativo (la novela) en relaciones interhumanas y los conflictos del sujeto con el mundo.
esta perspectiva histórico filosófica, Lukács señala que la Así que, a la forma dramática moderna, la soledad no es
homogeneidad de los géneros literarios se ha perdido en la medida solamente física, también es psicológica y su expresión concebida
que el mundo se tornó más amplio, sus fronteras sin límites y con como “lírica da alma”. Para Pedro Salinas (1996) el dramatismo y
realidades que no comportan más la armonía entre el hombre el teatro de Federico García Lorca han logrado gran éxito con el
(interior/privado) y el medio (exterior/público). Para el crítico, en público porque el autor andaluz permaneció fiel a su figuración
este escenario, el drama moderno es revelante porque: poética en la construcción del drama humano:
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[...] Esto constituye, a nuestro juicio, la medula de la poesía Además, el propio García Lorca ha declarado esa
de este autor: la visión del sino dramático del ser humano… consciencia de su ser poético dramático y la importancia que ese
creemos que si Lorca ha recurrido al teatro es porque amalgama establece no sólo a su literatura, sino a todas las demás
necesitaba de organismos artísticos más complejos, más al destacar la sobrevivencia (y pertinencia) del legado artístico
capaces de expresión amplia, para ofrecernos en toda su
universal. Los autores Allan Josephs y Juan Caballeros establecen
magnitud esa afirmación de su poesía: la fatalidad
una clasificación del teatro lorquiano que se aleja de una
dramática del vivir terrenal. De ahí la naturalidad; más aún,
la necesidad imprescindible de que Lorca pasase del estado perspectiva biográfica o de publicación, a saber, proponen tres
lírico de su poesía al estado dramático… Y en sus obras constantes: el lírico, el experimental y la unidad temática de su
dramáticas se nos revela el tercer grado de esta escala: la obra. En nuestro estudio nos interesó esa perspectiva analítica
resolución de la superstición y del misterio en la realidad porque La casa de Bernarda Alba es clasificada como teatro
última: el sino fatal del hombre. (Ibid., p.193-94). maestro del poeta dramaturgo que, en resumen, culmina en la
universalidad de su teatro deflagrando individuos en conflicto con
Mientras en relación a la producción teatral lorquiana la
lo social:
fortuna crítica no está de acuerdo en lo que respecta a la
[...] Ese extraño mundo violentamente poético de La casa
clasificación de sus obras – siendo La casa de Bernarda Alba para
de Bernarda Alba es netamente andaluz: en una casa
algunos tratada como tragedia (la tercera componente del género cerrada al mundo, en un pueblo de pozos, ocurre una
con Bodas de Sangre e Yerma) y, para otros, como drama – los horrible repetición de una querella tan antigua como la
estudiosos señalan que el autor es un poeta dramaturgo, o sea, el angustia humana, que se presenta en la forma de un drama
lírico y el dramático es amalgama en su arte, en este ámbito tan escueto y despojado como moderno y universal. La casa
histórico crítico: de Bernarda Alba representa dentro del teatro de Lorca el
[...] Dentro del marco español, califica Roberto Sánchez a triunfo tanto de forma como de fondo: cuanto más
Lorca como “poeta del teatro como hacía muchísimos años depurado, más andaluz, y cuanto más andaluz, más
que no se había conocido en España. El suyo no es teatro universal… (Ibid., p.98)
poético a la manera de los modernistas, no es poesía en el
Partiendo de estas premisas analíticas nuestro estudio
teatro”. Es decir, es poesía del teatro, no una puesta en
escena de versos, sino un concepto poético de lo que es espera más que corroborar con la fortuna crítica acerca del
teatro… Por ahora sólo queremos afirmar que todo el teatro carácter universal de la obra La casa de Bernarda Alba del poeta
lorquiano – y aquí existen radicales diferencias de opinión dramaturgo andaluz, también interpreta que el teatro uruguayo ha
entre la crítica – es poético. (JOSEPHS; CABALLEROS, 2004, alcanzado, en el decenio del ochenta del siglo pasado, la madurez
p.14) en el diálogo establecido con García Lorca en la construcción de lo
principio de autoridad frente al principio de libertad.
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Mientras en la literatura latinoamericana la poesía y el Referencias


teatro son cultivados desde el período histórico social de la GARCÍA LORCA, Federico. La casa de Bernarda Alba. Edición y
Colonización (emprendida a partir del siglo XVI) – por lo que la prólogo de Allen Josephs y Juan Caballero. Madrid: Cátedra, 2004.
narrativa es la más joven en esa perspectiva diacrónica – el teatro
es mayormente desconocido y menospreciado: LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-
A la fragmentación de América Latina se ha sumado en la filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução, posfácio e
historia de cada uno de sus países la discontinuidad de los notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
movimientos culturales, la admiración más o menos Cidades; Ed. 34, 2000.
ingenua ante los productos, modas, corrientes y objetos de
la cultura europea y la imitación de ese modelo, junto con
MANUEL LEITES, Víctor. Doña Ramona. In: Teatro Uruguguayo
el desconocimiento y el menosprecio (o la sobre dimensión
Contemporáneo. Antología. Dirección y coordinación de Moisés
deformante, por compensación) de la propia tradición, en
una repetición adolescente de los mismos esfuerzos, como Pérez Coterillo y Roger Mirza. Madrid: Fondo de Cultura
despilfarro de la miseria. Sin embargo, así como la literatura Económica, 1992, p. 545-622.
alcanza su mayoría de edad a mediados de este siglo, funda
una tradición y adquiere una continuidad y un nivel que MIGDAL, Alicia. Burguesía, Sensualidad y Modernización. In:
valdrán el reconocimiento universal, el teatro ha adquirido Teatro Uruguguayo Contemporáneo. Antología. Dirección y
en las últimas décadas un desarrollo y relevancia cada vez coordinación de Moisés Pérez Coterillo y Roger Mirza. Madrid:
mayores. (MIRZA, 1992, p.14). Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 537-42.
En este ámbito continental, mayormente la fortuna crítica
señala la distinción e importancia del teatro argentino. Ya en SALINAS, Pedro. Literatura Española Siglo XX. Madrid: Alianza
Uruguay, es en la Generación del 45 que surgen dramaturgos de Editorial, 1996.
gran calidad literaria y desarrollo profesional que, incluso, ganan
prestigio con el público (lectores/espectadores). Y, los últimos SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Tradução
decenios del siglo XX son analizados por la crítica y los de Raquel Imanishi Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
historiadores como el auge – madurez e importancia – de este
género. Así que nuestro estudio también es relevante a esta
discusión del género en América Latina, en la medida que, por
medio del comparativismo entre Leites y García Lorca, es posible
encontrar un arte que busca la universalidad del dramatis
personae.
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CONFIGURACIONES DEL CUERPO EN LA PRODUCCIÓN TEXTUAL Este enunciado es posible leerlo en el marco de lo que
DE HÉLIO OITICICA Claudia Gilman, que se refiere a un contexto latinoamericano más
Adriana Kogan amplio, denomina un proceso de politización, en el cual la política
UBA - CONICET cobra un valor legitimador de las prácticas intelectuales. En la
medida en que la figura del escritor asume la figura del intelectual,
El objetivo de este trabajo es analizar comparativamente dicho proceso de legitimación por lo tanto afecta a ambas esferas
textos de Hélio Oiticica de los años 60 y de los años 70, con el fin (intelectual y artística, siguiendo la lógica de los campos de
de reflexionar sobre los modos en que en su obra se configura el Bourdieu) que, tal como señala Gilman, durante los años 60
orden de lo corporal. La hipótesis que intentaremos sostener es pierden autonomía.
que si en los años 60 la relación con el cuerpo se formula en Ante esta encrucijada (teniendo en cuenta que Brasil
términos de adversidad, en los años 70 se formula en términos de atravesaba un período de crisis de la ideología desarrollista que
des-represión. había funcionado durante la década del 50 y que tenía a la
construcción de Brasilia como emblema de modernidad), es
Años 60: compromiso o experimentación posible afirmar que lo que Hélio Oiticica produjo fue una obra
A mediados de los años 60, en arte en Brasil se encuentra capaz de acercarlo a la cultura popular de las favelas, sin por
en un momento de crisis. Crisis por un lado política, ya es el renunciar a su trabajo de experimentación formal que venía
momento de endurecimiento de la Dictadura militar (cuyo llevando a cabo desde su trayectoria con el Neoconcretismo.
momento culminante se produce con AI5 de 1968), y por otro lado Siguiendo a Michael Asbury: “El descubrimiento de la favela,
estética, en tanto el arte se encuentra en una encrucijada, en la mientras tanto, funcionó como una forma de escapar del dilema
medida en que la relación del artista con la sociedad sólo puede propuesto por Gullar. Oiticica fue así capaz de asociar la noción de
ser asumida de dos maneras: en términos pedagógicos (como lo intuición y su ideal de sublime a través de la exuberancia popular
hacían la izquierda más ortodoxa, que integraba los Centros del samba y el carnaval” (ASBURY, 2008, p.41).
Populares de Cultura) o experimentales (como lo hacían los Poetas A través de su obra Parangolé, que consiste en una serie de
Concretos). Este esquema, que Heloísa Buarque de Hollanda capas o vestimentas que vistieron los integrantes de la Escola do
formula en su clásico libro Impressões de viagem es enunciado por Samba da Mangueira, y que en 1965 irrumpieron en el Museo de
el poeta Ferreira Gullar, quien (luego de una trayectoria ligada al Arte Moderno, Oticica entra en contacto con la cultura popular del
Concretismo y al Neoconcretismo) afirma que en el contexto de morro a través del cuerpo y de la danza:
mediados de los años 60 la vanguardia ya no puede ser Con los Parangolé descubrí estructuras comportamiento-
políticamente comprometida. cuerpo: todo para mí pasó a girar en torno al ‘cuerpo
tornado danza’: Mangueira era el prototipo de Río, no sólo
Mangueira, sino el morro carioca: y también Central,
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Estácio, Lapa, Mauá, Cancela, Quinta, suburbios en A su vez, en su texto “O Hélio nao tinha ginga”, Michael
general”, afirma Oiticica en su texto “Como Gertrude Stein. Asbury sostiene que “Oiticica expresó lo trágico dionisíaco –la
(OITICICA, 2014) condición ambivalente de la música, la danza y el sufrimiento en la
Así, si su participación en el movimiento Neoconcretista favela- dentro del drama apolíneo -aquel del idealismo del arte y
había sido el embrión de la participación subjetiva a través de la particularmente del racionalismo del legado constructivista”
experiencia sensorial1, con los Parangolé la noción de experiencia (ASBURY, 2008, p. 41).
cobra una importancia central. Tal como afirma Oiticica en Es decir, la invención de los Parangolé fue una manera de
“Experimentar lo experimental”, texto que publicó en la revista continuar con la tradición de la vanguardia constructiva que había
Navilouca en 1972, Oiticica se refiere al momento en que su obra venido desarrollando en sus obras anteriores, como los
comenzó a “asumir lo experimental”: “Lo experimental no es ‘arte Metaesquemas de fines de los años 50 (en la medida en que
experimental’, los cabos sueltos de lo experimental son energías siempre mantuvo su interés en la forma y el color), pero dando
que brotan para un número abierto de posibilidades”(OITICICA, cuenta de un “exceso” del que una obra en dos dimensiones no
2013, p.110). Es decir, asumir lo experimental para Hélio es hacer podía dar cuenta. En este sentido, podemos pensar que este
de ese “posicionamiento global vida-mundo-lenguaje- “exceso” en los Parangolé toman la forma del propio cuerpo de
comportamiento” un nuevo modo de relación con la obra: un quien los viste. Como dice el propio Oiticica, la experiencia del
modo de relación abierto, en contra de al actitud contemplativa Parangolé no aborda al cuerpo como soporte de la obra, sino que
del arte, que haga del artista un “transmutador el valor de las incorpora al cuerpo a la obra. Es decir, “Se trata de abolir la
cosas”. frontera espacio-tiempo, haciendo que el espacio en sí mismo se
Desde esta perspectiva Oiticica introduce la noción de torne un soporte para la experiencia del tiempo. Se trata de vestir
“antiarte” (del cual el Parangolé es el mayor exponente): la escultura, sentir el espacio, incorporar el cuerpo a la obra”
El antiarte es, por lo tanto, una nueva etapa (es lo que Mário (OTICICICA, 2013, p.137). Así, con los pliegues del Parangolé
Pedrosa sabiamente reformuló como arte posmoderno); es Oiticica crea una forma libre que incorpora un número abierto de
el optimismo, la creación de una nueva vitalidad en la posibilidades, donde el azar es parte de la obra y donde el cuerpo
experiencia humana creativa; su objetivo principal es dar al aparece presentado, vestido y danzado en términos de un “cuerpo
público la oportunidad de dejar de ser un público popular”.
espectador, externo, para empezar a participar en la Además de la forma de “cuerpo popular” que adopta su
actividad creadora (OITICICA, 2013, p.141).
obra Parangolé, el modo en que aparece configurado el cuerpo en

1
El “Manifiesto Neoconcreto” se declara en contra del racionalismo, y “repone
el problema de la expresión, incorporando las nuevas dimensiones verbales
creadas por el arte no figurativo constructivo”. (GULLAR et al., 1959).
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la producción Oiticica en estos años está muy vinculada con el social: a denúncia de que há algo podre, não neles, pobres
trabajo con figuras propias de la cultura marginal. Es el caso del marginais, mas na sociedade em que vivemos [...] (OITICICA,
Bólide Caja 18 – Homenagem a Cara de Cavalo, obra de 1966 que 2014)
consiste en una caja negra con una abertura en la parte superior, Así, su referencia a Cara de Cavalo constituye una instancia
que contiene una foto de Cara de Cavalo, habitante del Morro de de posicionamiento con respecto a lo social, que da cuenta de dos
Mangueira, bandido declarado “enemigo número uno” y cuestiones. Por un lado, al aliarse con el bandido número uno del
acribillado con cien balas por la policía de la escudería Le Coq en estado delinea un nuevo lugar para el artista, no sólo apartado sino
1964. En una bolsa transparente que contiene pigmento rojo, se además antagonista con respecto al Estado. Es decir, el cuerpo de
exhibe un poema que dice: “Aquí está, / e ficará! / Contemplai / o Cara de Cavalo lo que exhibe es un cuerpo cuya potencia radica en
seu / silêncio / heroico”. su fuerza de adversidad con respecto a lo social, tal como lo hace
En el texto “O herói anti-herói e o anti-herói anônimo” el Parangolé 4, capa 1, que exhibe la leyenda “da adversidad
Hélio Oiticica dice sobre esta obra: vivemos”.
O que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma Por otro lado, tal como el propio Oiticica afirma, se trata de
homenagem, é a maneira pela qual essa sociedade castrou un “momento ético” de su obra2, en la medida en que, como cita
toda possibilidade da sua sobrevivência, como se fora ela
Waly Salomão, “significó un problema ético, más que cualquier
uma lepra, um mal incurável – imprensa, polícia, políticos, a
cosa relacionada con la estética. Quise homenajear aquí lo que
mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada
nos mais degradantes princípios, como é a nossa, considero una revuelta individual social: la de los llamados
colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve marginales” (SALOMÃO, 2009, p. 63).
morrer, e digo mais, morrer violentamente. [...] O certo é Así, la cuestión del cuerpo en términos de un “cuerpo
que tanto o ídolo, inimigo público nº1, quanto o anônimo marginal” comienza a ser central en sus reflexiones y constituye
são a mesma coisa: a revolta visceral, autodestrutiva, una nueva dimensión de su relación con la cultura popular de la
suicida, contra o contexto social fixo (“status quo” social). favela. Como dice en una carta a Lygia Clark, “hoy soy marginal a
Esta revolta assume, para nós, a qualidade de um exemplo lo marginal, no marginal que aspira a la pequeña burguesía o al
– este exemplo é o da adversidade em relação a um estado

2
Gonzalo Aguilar realiza un análisis específico acerca de esta cuestión: proceso de experimentación artístico. La identificación que exigían los bólides,
“Anteriormente, lo abierto era a partir de una idea estética el despliegue entonces, se produce ahora en una dimensión diferente: el abandono de la ley
inmanente de un objeto (la “estructura implícita”), con el Homenagem a Cara exige un corrimiento de la frontera del arte hacia fuera de sí mismo en lo que el
de Cavalo es el cuerpo crivado que no soporta o se rehúsa a la idea puramente propio artista denominó “momento ético”. “La ley del bandido, la ley del arte”
estética. La foto abre, vamos a decir así, el “momento ético” e interpela al sujeto en Revista Iberoamericana, Vol. LXXV, Núm. 227, Abril-Junio 227, 539-550.
de una manera diferente a como lo hacían los anteriores bólides. El sujeto es
excedido en el a priori estético que se había asignado a sí mismo para iniciar el
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conformismo, como la mayoría, sino marginal propiamente dicho: términos de adversidad, en los 70 la relación con el cuerpo se da a
al margen de todo”. través de la forma del “cuerpo erotizado” y es una relación que se
De este modo, podemos arribar a la idea de que en sus da en términos de des-represión.
diferentes producciones de los 60 las reflexiones acerca del cuerpo En el texto “Brasil diarrea”, escrito desde Nueva York en
se desarrollan a través de dos formas: por un lado, la forma del 1973, Oiticica sostiene la necesidad de
“cuerpo popular” de los Parangolé y, por otro lado, la forma del entender que una posición crítica implica, inevitablemente,
“cuerpo marginal” del Homenagem a Cara de Cavalo. El modo que ambivalencias; estar dispuesto a juzgar, a juzgarse, a optar,
estos cuerpos otros adoptan con respecto a lo social se produce en a crear, es estar abierto a las ambivalencias, ya que los
términos de adversidad, en la medida en que postulan una relación valores absolutos tienden a castrar cualquiera de esas
libertades; incluso diré que pensar en términos absolutos es
antagónica con respecto a lo social.
caer en el error constantemente (OITICICA, 2013, p. 114).
Años 70: de la adversidad a la des-represión Así, el texto se constituye como una reacción frente al
Luego del AI5 de 1968, a partir del cual la Dictadura Militar ambiente conservador impuesto por el régimen militar, y lo hace
se vuelve mucho más represiva, y del posterior exilio de muchos desde un posicionamiento que denomina “ambivalente”, que se
de los integrantes del Tropicalismo, los primeros años de la década desmarca tanto de los esquemas rígidos propios de la crítica de
del 70 reconfiguran el mapa cultural brasileño de un modo bien arte como de la prensa vinculada al Partido Comunista Brasileño
diferente a la década anterior. A partir de entonces la relación (que constituyen lo que se dieron en llamar “patrullas
entre el arte y la sociedad ya no se plantea en los términos de los ideológicas”). Así, asumir la ambivalencia se configura para Oiticica
años 60, que al comienzo del trabajo presentamos a partir de un como un modo de inconformismo con respecto al estado de cosas,
esquema dicotómico entre el arte experimental y el arte y al mismo tiempo como la posibilidad de reformular de su propia
comprometido. De esta instancia de reconfiguración comienzan a posición que le permite, por ejemplo, volver a acercarse a los
formar parte nuevo s modos de pensamiento que se despliegan Poetas Concretos (de quienes se había alejado luego de su
por fuera de un esquema de pensamiento dicotómico, y para cuyo acercamiento al Neoconcretismo).
desarrollo Hélio Oticica tiene una importancia central. Por eso, en En “Vocês preferem Haroldo de Acevedo ou Haroldo de
esta segunda parte del trabajo nos proponemos reflexionar acerca Campos”, texto que discute con lo que Oiticica llama la “prensa
de cuáles son esos modos a través de los cuales Oticica reformula provinciana” (que en una entrevista había afirmado que Oiticica
en sus textos la relación de su obra con la noción de “cuerpo”. había acusado a la película Terra em transe, de Glauber Rocha, de
La hipótesis que intentaremos sostener es que si los 60 la ser “de derecha” y que su interés en Carmen Miranda estaba
relación con el cuerpo se da a través de la forma del “cuerpo asociado con estar “en la moda de Nueva York). Ante estas
popular” y del “cuerpo marginal” y es una relación que se da en “acusaciones”, Oiticica sostiene la necesidad de sustraerse de la
lógica de ser de izquierda/ ser de derecha y de estar en Brasil/estar
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“afuera” de Brasil. De lo que se trata, tal como sostiene desde su Urge a los creadores construir algo que se yerga como una
posición ambivalente, es de desmarcarse de un pensamiento cara de Brasil para el mundo. Un factor constructivo y
esencialista. revolucionario en medio de la dilución general. La posición
En este sentido, si pensamos en el esquema propio de los constructiva (construir lenguaje) surge de una ambivalencia
crítica, no conformista con los valores absolutos (OITICICA,
años 60 que opone un arte experimental a un arte comprometido,
2013, p.114).
vemos cómo ese tipo de razonamiento dicotómico en los años 70
comienza a desdibujarse y a buscar nuevos modos de reflexionar En este sentido, asumir una posición constructiva equivale
que no queden reducidos a meras polarizaciones. Es desde esta a crear un espacio propio del lenguaje-Brasil, que haga del lenguaje
perspectiva desde la cual sostenemos que conceptos como el de brasileño un lenguaje propio.
“ambivalencia” dan cuenta de otro modo de pensamiento que está El interés por crear un lenguaje propio fue una constante a
gestando en Hélio Oiticica, y que se desmarca también de los lo largo de la obra de Oiticica de los años 60 y 70. Desde la
términos antagónicos a través de los cuales Oiticica configuraba la perspectiva que venimos trabajando, es posible pensar que tanto
relación entre lo que llamamos “cuerpo popular” y “cuerpo a través del la incorporación del cuerpo, la experiencia y el
marginal” en relación a lo social. movimiento con los Parangolé como a través del trabajo con
Siguiendo con “Brasil diarrea”, Oiticica sostiene la figuras marginales como Cara de Cavalo, Hélio se opone a la
necesidad de asumir una posición constructiva que, en el contexto dicotomía entre el arte de vanguardia y el arte popular que había
de la mentalidad diarreica y disolutiva propia de Brasil, sea capaz sido enunciada por Ferreira Gullar, y encuentra un modo de
de “erguirse como algo específico todavía en formación; la cultura relacionarse con la cultura popular que se desmarque del modelo
realmente eficaz, revolucionaria, constructiva, será la que se alce paternalista de los CPC.
subterránea: sólo así asume la condición de subdesarrollada” En la base de este lenguaje, como señalamos antes, está la
(OITICICA, 2013, p. 111). En este sentido, la dimensión constructiva dimensión experimental, que es lo que a Oiticica le permite
ocupa un lugar clave en el pensamiento de Oiticica en los años 70, conjugar una tradición constructiva con una tradición popular. En
y se da en términos de la creación de lo que llama un “lenguaje- su libro Monstructivismo, Lucio Agra señala que los Parangolé
Brasil”, que implica tres cuestiones. En primer lugar, Oiticica constituyen para la obra de Oiticica un modo de apropiarse de las
postula un tipo de “posicionamiento global vida-mundo-lenguaje- líneas rectas geométricas de la tradición del constructivismo
comportamiento” que sea capa de articularse desde una posición europeo que devora (Mondrian, Malevich, Schwitters, Doesburg,
periférica, asumiendo ese lugar menor y creando un espacio Lissitzky), incorporando “cuarta dimensión” descubierta a partir de
propio allí donde había exclusión. Es decir, que lo conceptual sea la empiria, del movimiento meándrico de las quebradas del morro
sometido al “fenómeno vivo”. (AGRA, 2010, p. 211).
En segundo lugar, sostiene Oticicica: En este sentido, el acercamiento al morro constituye para
Oiticica la posibilidad de crear un lenguaje no lineal. Así como en
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su dimensión política inventar un espacio se asocia en sus fabulosos y episodios épicos [...] Con el morro, HO aprendió
reflexiones a asumir una posición marginal y en su dimensión el valor de la ambigüedad sinuosa, la ambivalencia. Nada
estética a inventar un espacio capaz de apropiarse de las líneas puede ser juzgado blanco o negro (SALOMÃO, 2009, p. 37-
rectas geométricas del constructivismo para transformarlas en 39).
curvas, crear un lenguaje propio para Oiticica también significa Volviendo a “Brasil diarrea”, Oiticica dice: “La cultura
salir del pensamiento lineal y racional, para asumir un “modo de realmente eficaz, revolucionaria, constructiva, será la que se alce
hablar” propio de Brasil, que incorpore el espacio curvo del morro; subterránea: sólo así asume la condición de subdesarrollada”
es decir, que incorpore aquello que el emblema de la modernidad (OITICICA, 2013, p.115). Tal como leemos, se esboza una cuestión
no dejaba ver. que nos interesa particularmente a fines de este trabajo, que tiene
En el texto “Bases fundamentales para una definición del que ver con el modo en que aparece configurada la noción de
Parangolé”, Oiticica dice: “marginalidad”. En este sentido es central pensar el
En la arquitectura de la ‘favela’, por ejemplo, está implícito desplazamiento de Oiticica desde Río de Janeiro hacia Londres días
un rasgo del Parangolé: existe una organicidad estructural antes del AI5, su retorno a Río en 1970 y su posterior viaje a Nueva
entre los elementos que la constituyen y la circulación York, luego de ganar la Beca Guggenheim, donde residirá hasta
interna y el desmembramiento externo de esas
1978. Es interesante, desde esta perspectiva, pensar cómo los
construcciones; no hay pasajes bruscos del ‘cuarto’ hacia la
lugares de producción de Oiticica, si bien son “centrales” en
‘sala’ o la ‘cocina’; antes bien, lo esencial que define a cada
parte se vincula a otra en la continuidad (OITICICA, 2013, p. términos de circulación y mercado del arte, sin embargo desde esa
146). “centralidad” Oiticica sigue reivindicando para el artista un lugar
marginal, o más bien “subterráneo” o de “no encajar”, aunque de
Es decir, la semejanza entre el espacio que construye su un modo diferente al que lo había hecho en los años 60.
obra y el espacio de la favela consiste en que ambos conciben el En “Subterránea”, texto escrito desde Londres en 1969,
espacio en términos de un espacio continuo. De este modo, la Oiticica afirma que la subterránea es la
arquitectura continua de la favela permite a Oiticica pensar e condición única de creación: del mundo para Brasil: en
imaginar con forma de morro, es decir, le otorga a su pensamiento Brasil → en el submundo algo nace germina culmina o es
una ambigüedad sinuosa. En este mismo sentido, en Qual é o fulminado como fénix nace de sus propias cenizas [...]
parangolé, Waly Salomão escribe: tropicália es el grito de Brasil al mundo → subterránea del
De todos los espacios, el espacio más importante es la mundo a Brasil: no quiero usar underground (es demasiado
incorporación del morro al pensamiento: Hélio intuyó que difícil para el brasileño) pero subterránea es la glorificación
el morro era el diferencial que necesitaba después de haber del sub – actividad – hombre – mundo – manifestación: no
atravesado el desierto del mundo sin objetos de Malevitch como detrimento o glori-condición → sí: como conciencia
[...] El morro era una invención mitológica con seres para vencer la super – paranoia represión – impotencia –
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negligencia del vivir: marcha fúnebre → entierro y grito Como sostiene Gonzalo Aguilar en el texto “Na selva
conciencia – crítica – creativa – activa (OITICICA, 2013. branca: o diálogo velado entre Hélio Oiticica e Augusto e Haroldo
p.159). de Campos”:
Es decir, y en esto radica su importancia para nuestro Si en los años 50 el blanco era interpretado, básicamente,
trabajo, la subterránea se constituye como un modo de des- como la autorreflexión más radical de la pintura, en el nuevo
represión, que opera tanto en el nivel de la represión política como contexto el blanco remite al cuerpo, al éxtasis, instaurando una
en el nivel del la represión del cuerpo, que desde cierto punto de transformación de lo sublime de lo inconmensurable a un
vista son homologables. sublime del gozo.
De este modo, para Oiticica la presencia del margen ya no Y luego:
aparece ligada (como sucedía en una obra como Homenagem a Si en los 60 su arte había encontrado su saber en el cuerpo
Cara de Cavalo) a su carácter adversativo con respecto a lo social, popular heroico o danzante, en los 70 se orienta en
dirección de ese nuevo sublime del cuerpo velado y
sino más bien a su potencial erótico, trabajo que luego retomará y
desnudo que ve realizado en lo sensible de la página en
profundizará en las Cosmococas.
blanco, que condensa aquello imposible de representar: la
Cosmococa-Programa in progress son nueve bloques- materia misma (AGUILAR, 2008, p. 249).
experimentos elaborados por Oiticica y Neville d´Almeida entre
1973/74, cada uno de los cuales se compone de una serie de slides En este sentido, puede pensarse que el interés de Oticica
de fotografías que incluyen “la cocaína como pigmento y fuente de en este proceso “erotizante” del cuerpo se produce en términos
placer”. Es el caso de CC5 Hendrix-War, donde se exhiben de un énfasis en lo material, y en ese sentido se explica su “vuelta
sensaciones táctiles, auditivas, visuales y sinestésicas aglutinadas al color” en la obra Magic Square n°5, proyecto en forma de
en bloque, que proponen acciones para que realice el público. maqueta e instrucciones, que Hélio había diseñado en 1978 y que
Como sostiene Beatriz Scigliano Carneiro, “Cosmos carga el fue construido póstumamente 22 años después en el Museo do
sentido de orden del mundo. El Programa Cosmococa: programa Açude, en el medio de la selva de Tijuca. En esta obra, la posibilidad
anti-cosmos, invención de cosmos otros, combate a la orden del del ocio no programado, creativo, en un ambiente sin ningún
mundo al captar fuerzas que actualizan el porvenir” (SCIGLIANO propósito determinado otorga al ocio un valor altamente
CARNEIRO, 2008). En este sentido, si pensamos en la importancia revolucionario, en la medida en que es capaz no sólo de subvertir
que adquiere la presencia material del cuerpo para Oiticica, es el significado del “tiempo útil”, sino también sino también de
posible comprender en qué radica su reformulación acerca de lo “crear lenguaje” (en el sentido en que lo presentamos en la
que en los años 60 podía ser pensado en términos del carácter primera parte del trabajo) a través de “cuadrados mágicos” que
antagónico de la obra, en este caso aparece en términos de un operan como pequeños mundos.
potencial des-represivo. La cuestión del ocio como potencia es algo que Oiticica ya
venía trabajando desde hacía varios años con el concepto de
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“crerlazer” (que formula en el texto “As possibilidades do já era


crerlazer”, que escribe desde París en 1969) y que concibe en in-corporação
términos de un “ocio usado como activador no represivo”, que hoje ela é nada mais q
tiene la posibilidad de “auto-fundarse”. En este sentido, podemos clímax corporal
não-display
pensar la estrecha relación que existe para Oiticica entre el “ocio”
auto-clímax
y el “gozo”, ambos en términos de una relación otra con lo propio.
não-verbal.
Desde esta perspectiva, volviendo a la cuestión del modo
en que la obra de Oiticica se relaciona en los años 70 con el “cuerpo En este sentido, y reafirmando nuestra hipótesis, la
popular” de la favela y siguiendo a Michael Asbury: “Esta relación de Oiticica con la danza, y por ende con el cuerpo, ya no
experiencia mítica que se da en los 60 en su contacto con la favela se configura en términos de antagonismo (o de “aspiración al
se modifica mucho en los 70”. Si en los Parangolé de los años 60, mito”, que sería otro modo de pensar una relación de antagonismo
sostiene Asbury, la búsqueda de Oiticica se orienta hacia la entre presente y pasado), sino más bien en términos de des-
dimensión mítica de la favela, represión, o “clímax corporal” en palabras de Oiticica, en la
sin embargo, si miramos sus otras capas, particularmente medida en que la concepción del cuerpo como materia permite
aquellas hechas en Nueva York, notaremos una sustancial una relación liberadora con respecto a las estructuras sociales.
diferencia de abordaje y estética. Las primeras poseen un
nivel de crudeza en los materiales y en la construcción que Referencias:
no están presentes en las versiones más tardías, que AGUILAR, Gonzalo. Na selva branca: o diálogo velado entre Hélio
tienden a ser mucho más orientadas al ‘constructivismo’ Oiticica e Augusto e Haroldo de Campos. In: BRAGA, Paula (org.). A
(ASBURY, 2008, p.49).
arte de Hélio Oiticica. San Pablo: Perspectiva, 2008.
En un texto de 1972 llamado “Parangolé Syntesis”, Oiticica
vuelve sobre sus Parangolé y afirma lo siguiente: ______. La ley del bandido, la ley del arte. Revista Iberoamericana,
1964, Parangolé-primeiro Vol. LXXV, Núm. 227, Abril-Junio 227, 539-550.
= A obra requer aí a participação corporal
direta: além de revestir o corpo, pede que este se AGRA, Lucio. Monstrutivismo, reta e curvas das vanguardias. San
movimente, Pablo: Perspectiva, 2010.
que dance em última análise =
ASBURY, Michael. O Hélio nao tinha ginga. In: BRAGA, Paula (org.).
naquela época a
DANZA A arte de Hélio Oiticica. San Pablo: Perspectiva, 2008.
era para mim aspiração ao mito, mas, mais importante
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BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa. Impressões de viagem. Río de SCIGLIANO CARNEIRO, Beatriz. Cosmococa – Programa in
Janeiro: Rocco, [1981] 1992. progress: heterotopía de guerra. In: BRAGA, Paula (org.). A arte de
Hélio Oiticica. San Pablo: Perspectiva, 2008.
COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu
pecado. Río de Janeiro: Civilización Brasileira, 2010.

GULLAR, F. et al. Manifiesto Neoconcreto. Suplemento Dominical


do Jornal do Brasil, San Pablo, 1959.

GILMAN, Claudia. Entre la pluma y el fusil. Debates y dilemas del


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SALOMÃO, Waly. Qual é o parangolé. Buenos Aires: Pato-en-la-


cara, 2009.
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CONTAR UMA HISTÓRIA: LEVEZA, INTERTEXTUALIDADE E por considerá-lo como narrativa de extração histórica (TROUCHE,
METAFICÇÃO NA CRIAÇÃO DO EFEITO DE HISTORICIDADE EM 2006, p. 44), ou seja, a narrativa que dialoga com a história,
SANTA EVITA produzindo um saber, um conhecimento sobre a história e, ao
Adriana Ortega Clímaco mesmo tempo, nela intervindo transgressoramente. Nestas
IFSP narrativas – que não caracterizam apenas romances – o que se
destaca é a transferência para a ficção do resgate e
O artigo apresenta reflexão sobre a narrativa do romance questionamento da experiência histórica, procedimento comum
Santa Evita (1995), de Tomás Eloy Martínez (1934-2010), escritor ao processo literário hispano-americano.
argentino, cujo tema é a biografia de María Eva Duarte de Perón No romance, narra-se a construção do mito de Evita,
(1919-1952), conhecida como Evita, mulher do ex-presidente Juan destacando-se como o desaparecimento de seu cadáver eletrizou
Domingo Perón (1895-1974) e figura emblemática para o a imaginação do povo argentino. Tomás Eloy Martínez insere-se
Peronismo, movimento político derivado do nome do ex- como narrador e personagem de seu próprio romance. Dá ao
presidente, caracterizado, dentre outras razões, por políticas de narrador seu próprio nome e relata sua experiência com o tema
caráter popular. sobre o qual escreve e o próprio processo de escrita. O narrador
Dizer que a biografia de Evita constitui o tema do romance recolhe vários relatos acerca de Eva Perón para estruturar sua
talvez seja uma forma reducionista de apresentá-lo. Não são visão mítica. Apresenta várias fontes históricas ficcionalizadas,
apenas a vida e a morte de Eva Perón tematizadas, mas também o documentos oficiais ou não, construindo-se como personagem de
sequestro e a ocultação de seu cadáver embalsamado. Unindo sua própria ficção, um narrador que combina os papéis de
história e ficção, o romance recria o mito de Evita, narrando as historiador, jornalista e romancista, discutindo o que teria
peripécias pelas quais passa seu cadáver embalsamado. O acontecido com o cadáver de Evita, de que forma se deu sua
romance apresenta ainda em sua composição questionamentos peregrinação, quem o sequestrou e onde permaneceu durante os
sobre a história e os atributos da ficção. vários anos em que esteve oculto. Várias obras literárias, autores
Vários gêneros textuais são mesclados em Santa Evita: diversos são citados, revelando uma intertextualidade produtiva,
biografia, jornais, correspondências, relatórios, roteiro chegando o romance, inclusive, a realizar ficcionalmente algumas
cinematográfico, drama, ensaio, historiografia, etc. O hibridismo propostas apresentadas nas obras mencionadas.
genérico revela como as fronteiras entre os gêneros literários Um dos capítulos do romance, capítulo três, “Contar uma
tornaram-se fluidas, permeáveis e aponta para a dificuldade de se história”, revela a mescla de gêneros efetuada. É um ensaio que
estabelecer um único gênero para este romance. Neste trabalho, brota na narrativa, alterando a forma de narrar de terceira para
embora isto não se configure como uma necessidade, visto que primeira pessoa, comentando de forma metaficcional a obra.
não se irá tratar essencialmente de questões genéricas, opta-se Martínez narrador ensaísta confessa suas angústias e vacilações,
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dando testemunho de sua experiência, sua própria transformação de catedrales y cementerios; la otra ala era amarilla y volaba
ao longo da escrita do romance, comentando livremente as hacia atrás, dejando caer escamas en las fulguraban los
escolhas que fez, o que descartou, o que omitiu, como e porque paisajes de su vida en un orden inverso al de la historia,
optou por determinada forma e não outra. Os vários elementos como en los versos de Eliot: En mi principio está mi fin. / Y
no lo llamen inmovilidad: / allí pasado y porvenir se unen. /
que discute são de fato realizados em sua escrita ao longo do
Ni movimiento desde ni hacia, / ni ascenso ni descenso. /
romance. O objetivo deste trabalho é comentar, ainda que
Salvo por ese punto, el punto inmóvil (MARTÍNEZ, 1995, p.
brevemente, alguns destes elementos tais como: leveza, 65).
intertextualidade e metaficção.
A borboleta chama a atenção pela beleza de suas cores, sua
Leveza fragilidade, leveza e delicadeza, mas sobretudo o processo de
Como apontado por Italo Calvino (1990), a leveza é um metamorfose pelo qual transformou-se comunica algo
valor literário que se deve preservar. Criada na escrita, no processo literariamente. A literatura e outras artes frequentemente
de escrever, a leveza consiste na subtração do peso que figuras e associam-na à mulher. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2007, p.
estruturas humanas, dentre outras, contêm. Está associada à 138-139): “pela sua graça e ligeireza, a borboleta, além de ser um
precisão e à determinação e não ao vago ou aleatório. É uma opção emblema da mulher, simboliza também a inconstância”. Outro
feita pelo escritor, seguindo a tendência de fazer da linguagem um aspecto de seu simbolismo diz respeito às suas metamorfoses: a
elemento sem peso. Sendo a escrita um modelo de todo processo crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser; a borboleta
do real, segundo Calvino, a literatura teria então uma função que sai dele é um símbolo de ressurreição. A borboleta é associada
existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver. analogicamente à chama, pela presença de suas cores e da
A leveza em Santa Evita expressa-se através do elemento agilidade do bater de suas asas. Pode ser também a forma
onírico. Um sonho indica ao narrador Tomás Eloy Martínez, como assumida pela alma ao deixar o corpo dos mortos, segundo uma
o enredo deveria ser desenvolvido. Em seu sonho, o narrador vê crença popular da Antiguidade greco-romana.
uma borboleta que paira no ar, voando, sem contudo sair do lugar, Considerando-se sua simbologia, a metáfora da borboleta
pois uma asa voa para frente e a outra para trás. É reconhecível a aplicada a Evita revela-se perfeita. A transformação de María Eva
relação entre esta ideia e a descrição do quadro de Klee, Angelus Duarte é metaforizada pela borboleta. As agruras pelas quais
Novus, por Walter Benjamin (1994), no que se refere ao apego ao passou sozinha, tentando vencer em Buenos Aires, a cidade
passado simultâneo ao impulso para futuro registrados num grande, assemelha-se à fase em que a lagarta transforma-se em
instante: crisálida para depois chegar a ser borboleta. De moça pobre, sem
Pasaron algunas noches y soñé con Ella. Era una enorme instrução nem grandes atrativos, como é descrita pelos que a
mariposa suspendida en la eternidad de un cielo sin viento. conheceram nos seus primeiros tempos em Buenos Aires, chegou
Un ala negra se henchía hacia adelante, sobre un desierto ao posto de Primeira Dama, considerada possuidora de grande
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beleza e ícone da moda. Sua metamorfose é destacada em Santa Pelo conjunto da narrativa, não se considera que o
Evita: quando chegou a Buenos Aires, em 1935, narrador a visse do mesmo modo quase ingênuo que o grupo
era entonces nada o menos que nada: un gorrión de guerrilheiro Montoneros, que considerava que “se Evita estivesse
lavadero, un caramelo mordido, tan delgadita que daba viva, seria montonera” e que ela teria dito “voltarei e serei
lástima. Se fue volviendo hermosa con la pasión, con la milhões”. O objetivo do narrador ao dizer que talvez ela volte e
memoria y con la muerte. Se tejió a sí misma una crisálida seja milhões, além de ser uma frase impactante, é narrá-la a partir
de belleza, fue empollándose reina, quién lo hubiera creído
do fenômeno da multiplicação. Evita torna-se múltipla. Sua
(MARTÍNEZ, 1995, p. 11).
multiplicidade manifesta-se de várias formas: nas inúmeras
O uso do verbo “tecer” e do substantivo “crisálida” imagens, fotografias; nos diversos papeis que encarnou nas
mostram que Evita passou por uma transformação da mesma telenovelas e na vida política; nos vários relatos, convergentes e
forma que a lagarta se metamorfoseia para se tornar borboleta. conflitantes, sobre sua vida; nas várias cópias de seu cadáver; nos
Este é um esforço solitário, empreendido sem auxílio. Quando infortúnios e nas maldições que causa; nos vários personagens da
aplica a Evita a metáfora da borboleta, o narrador leva o leitor a literatura e do cinema em que se tornou. Tudo isto parece indicar
considerar seu caráter autônomo. que Evita voltou e já não é única, são milhões. Para tentar
Utiliza-se o verbo “tecer” em outro momento: quando o compreendê-la, o narrador parte numa jornada em busca destes
narrador encontra-se com os militares do serviço de Inteligência, vários relatos. E constrói sua narrativa amalgamando, recontando,
em 1989. Ao final da conversa, o coronel Corominas diz a Martínez reordenando os diversos textos que encontra.
que a tumba onde o corpo havia estado, na Itália, havia sido dele. A multiplicação é, segundo se narra no romance, a
Esta afirmação é repetida, de forma ambígua, podendo-se interrupção da ordem natural das coisas (MARTÍNEZ, 1995). Isto é
considerar que falava de Evita e não só da tumba. Martínez aceita o que o Doutor Pedro Ara afirma a Juana Ibarguren quando lhe
o jogo ambíguo e pergunta a Corominas se de fato cria que ela mostra o cadáver de Evita e suas cópias. Esta ideia também se
havia sido dele, pois de um modo ou de outro, foi de todos. O relaciona à doença que acometeu Evita, pois o câncer também é
coronel responde-lhe que agora não é de mais ninguém, por fim uma multiplicação desordenada das células. Depreende-se disto
está onde sempre deveria estar. Martínez narra que se lembrou da que o mesmo princípio multiplicador que permite a Evita eternizar-
cripta no cemitério da Recoleta, onde o corpo repousa sob três se, também causa sua morte, mas não sua desaparição, pois ainda
chapas de aço de dez centímetros de espessura, atrás de grades de que seu corpo estivesse desaparecido, ou mesmo que após
aço, portas blindadas e leões de mármore. A resposta de Martínez encontrado, esteja enterrado com tanta proteção em Buenos
ao coronel Corominas é: “– No siempre va a estar ahí – dije –. Tiene Aires, a memória sobre Evita continua multiplicando-se. É
la eternidad para decidir qué quiere. Tal vez se ha convertido en justamente sua morte que permite a abertura ao infinito. Sobre
una ninfa que está tejiendo su capullo. Tal vez volverá un día y será
millones” (MARTÍNEZ, 1995, p. 390).
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isto, diz o Doutor Pedro Ara: “Viva, suhija no tenía par, pero muerta Evita havia se levantado da cama e, espiando pela janela, vê o povo
¿qué importa? Muerta, puede ser todo” (MARTÍNEZ, 1995, p. 55). na rua, em vigília. Volta para a cama, pensando em gravar uma
O narrador afirma que, transfigurada em mito, Evita era mensagem para rádio, de forma a acalmar o povo. Pensa que tem
milhões (MARTÍNEZ, 1995, p. 65). Associa sua multiplicação ao muito tempo, “durmió como si nunca hubiera dormido”
gênero em que pretende escrever sua narrativa, associando-a ao (MARTÍNEZ, 1995, p. 17).
romance, ao mito e à história: Deste ponto, partem os dois fluxos narrativos:
Si esta novela se parece a las alas de una mariposa – la regressivamente, até chegar aos anos 1920, a narrativa apresenta
historia de la muerte fluyendo hacia adelante, la historia de situações, momentos da vida de Evita; progressivamente, tem
la vida avanzando hacia atrás, oscuridad visible, oxímoron início a narrativa da morte, passando pelo processo de
de semejanzas – también habrá de parecerse a mí, a los embalsamamento do corpo, o sequestro em 1955, e as aventuras
restos de mito que fui cazando por el camino, a la yo que
pelas quais passa o cadáver embalsamado, até chegar aos anos
era Ella, a los amores y odios del nosotros, a lo que fue mi
noventa, tempo presente da narrativa.
patria y a lo que quiso ser pero no pudo. Mito es también el
nombre de un pájaro que nadie puede ver, e historia Os vários instantes passam velozes como um voo. Um leve
significa búsqueda, indagación: el texto es una búsqueda de voo de borboleta que dá partida à narrativa. O narrador confessa
lo invisible, o la quietud de lo que vuela (MARTÍNEZ, 1995, não saber como contar a história de Evita, até que compreende
p. 65). que basta começar a voar:
No iba a dejar que las supersticiones me arredaran. No iba
A narrativa como um sonho: a colagem de várias situações, a contar a Evita como maleficio ni como mito. Iba a contarla
tempo não linear, profusão de imagens, ideias, vozes, a fluidez, a tal como la había soñado: como una mariposa que batía
leveza de um sonho. Para frente, bate a asa da morte e para trás, hacia adelante las alas de su muerte mientras las de su vida
a da vida. Estes são os fluxos narrativos colocados em prática pelo volaban hacia atrás. La mariposa estaba suspendida
narrador. A morte e a desaparição do cadáver de Evita são siempre en el mismo punto del aire y por eso yo tampoco
narrados cronologicamente. A vida, a biografia, é narrada para me movía. Hasta que descubrí el truco. No había que
trás, do presente para o passado. Narrar Evita como a havia preguntarse como uno vuela o para qué vuela, sino ponerse
sonhado, propõe-se o narrador, é abrir porta ao delírio, narra-se simplemente a volar. (MARTÍNEZ, 1995, p. 78).
delirantemente, explorando-se o ambiente onírico. Além do voo de uma borboleta, a narrativa apresenta outra
O tempo da narração inicia-se com Evita em seu leito de metáfora de leveza utilizada com relação a Evita, um corpo celeste
morte, em 1952. O narrador em terceira pessoa, onisciente, de primeira grandeza, o Sol. De acordo com as anotações do
conhece o pensamento de Evita: “Al despertar de um desmayo que Doutor Pedro Ara, o embalsamador, Evita era um sol líquido, a
duró más de três días, Evita tuvo al fin la certeza de que iba a chama retida de um vulcão (MARTÍNEZ, 1995, p. 120). Isto talvez
morir.” (MARTÍNEZ, 1995, p. 11). A levíssima narrativa da morte: se refira às substâncias químicas do embalsamamento, por isso o
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sol é líquido, mas se abre a outros sentidos, além dos próprios simbolizar discórdia, revolta, inveja, luxúria. Tal símbolo relaciona-
cabelos amarelos de Evita. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2007, se bem à imagem de Evita, em sua ambivalência, à voracidade com
p. 836-841), o simbolismo do Sol é diversificado, rico de que buscou o sucesso no mundo artístico encontrando-o
contradições e está relacionado à divindade e à realeza. Possui plenamente no meio político, à sua consumição no trabalho por
ambivalência, pois pode matar e dar vida. É a fonte da luz, do calor exaustivas dezoito horas diárias, em alguns momentos, para
e da vida. Seus raios representam as influências celestes ou atender aos seus grasitas.
espirituais recebidas pela Terra. Além de vivificar, o brilho do Sol As metáforas e os símbolos aqui brevemente comentados
manifesta as coisas, mas pode destruir. Simboliza ressurreição e possuem caráter ambivalente, representando vida e morte, ou
imortalidade. morte e ressurreição, dor e prazer. São símbolos apropriados à
Uma vez mais, a seleção simbólica revela-se proveitosa. descrição ficcional do mito de Evita. Contribuem para criar o
Evita está relacionada a estas possibilidades de sentido. Em sua imaginário acerca desta figura emblemática da Argentina e do
atuação na esfera social, teria representado para muitos Peronismo, criando produtivamente a aura de mistério em torno
trabalhadores pobres a vivificação. Ao mesmo tempo, atraía para de sua história e dos relatos sobre seu corpo desaparecido.
si forte oposição por parte dos setores das classes alta e média. No Para encerrar reflexão sobre a leveza na narrativa de Santa
que se refere à ressurreição e à imortalidade, encarnou em seu Evita, cabe mencionar que o próprio cadáver é leve, e isto o
corpo a morte e a incorruptibilidade. Seu corpo morto diferencia de suas cópias. Foi esvaziado de seu peso, no entanto
embalsamado torna-se incorruptível, pois o processo natural de continuava cheio de sentido, carregado de história e significado:
decomposição foi interrompido. Podem-se recordar aqui os - Usted sabe muy bien lo que está en juego – dijo el
egípcios e sua simbologia solar voltada para as expectativas de Coronel y se levantó a su vez –. No es el cadáver de esa
ressurreição e imortalidade, a ponto de desenvolverem técnicas mujer sino el destino de la Argentina. O las dos cosas,
precisas de embalsamamento de cadáveres, que pudessem que a tanta gente le parecen una. Vaya a saber cómo el
cuerpo muerto e inútil de Eva Duarte se há ido
preservar seus corpos para a vida após a morte. São estes os
confundiendo con el país. No para las personas como
princípios que entram em operação na ideia do corpo
usted o como yo. Para los miserables, para los
embalsamado de Evita. ignorantes, para los que están fuera de la historia. Ellos
Associada à simbologia do Sol está a da chama. O sol se dejarían matar por el cadáver. Si se hubiera podrido,
líquido, o corpo cheio de substâncias e vapores inflamáveis pode vaya y pase. Pero al embalsamarlo, usted movió la
arder facilmente. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2007, p. historia de lugar. Dejó a la historia dentro. Quien tenga a
232), a chama é um símbolo com duplo significado: pode la mujer, tiene al país en un puño, ¿se da cuenta? El
simbolizar purificação, iluminação e amor espirituais, como gobierno no puede permitir que un cuerpo así ande a la
imagem do fogo e da transcendência; mas também pode deriva (MARTÍNEZ, 1995, p. 34).
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Isto explica o temor dos militares e da Revolução O título do conto é bastante sugestivo por aproveitar um
Libertadora que viam o objeto de culto político que o cadáver de dos epítetos depreciativos com os quais os opositores do
Evita havia se tornado. peronismo designavam Evita. Menciona-se o conto pela primeira
vez na narrativa quando o narrador, agora inserido como
Intertextualidade personagem, entrevista a viúva e a filha do coronel Moori Koenig
Voltando a observar a primeira citação do romance feita e o comenta com elas:
neste trabalho: ao mencionar versos de Eliot, o narrador dá pistas Les hablé de un cuento de Rodolfo Walsh, “Esa mujer”,
de outra característica de seu modo de narrar. Os versos citados mientras ellas asentían. El cuento alude a una muerta que
são recortados de diferentes poemas, constantes na obra Cuatro jamás se nombra, a un hombre que busca el cadáver –
cuartetos(1989), e reordenados como se fizessem parte de um Walsh – y a un coronel que lo ha escondido. En algún
momento entra en escena la esposa de ese coronel: alta,
único poema. Com isto, revela-se que Martínez narrador não faz
orgullosa, con un rictus de neurosis; ningún parecido con la
transcrições exatas dos dados aos quais tem acesso, antes os
resignada matrona que oía mis preguntas sin ocultar la
organiza como lhe convém na elaboração de sua narrativa, com desconfianza. Los personajes del cuento hablan en una sala
total liberdade. Menciona vários autores e obras, dispondo-as de grandes ventanales, desde la que se ve caer la tarde
segundo sua vontade e interesse. sobre el río de la Plata. Entre los muebles ampulosos, hay
Segundo Iser (1999, p. 69), a intertextualidade se produz platos de Cantón y un óleo que quizá sea de Figari. ¿Vieron
através do ato de combinação, que integra os atos de fingir ustedes, alguna vez, una sala como ésa?, les pregunté. Un
(seleção, combinação e autodesnudamento da ficção). Por meio cierto brillo asomó a los ojos de la viuda, pero ningún signo
deste ato de combinação, configura-se o imaginário. Textos são que indicara si me ayudaría en la investigación (MARTÍNEZ,
associados na urdidura do enredo, aumentando a complexidade o 1995, p. 56).
tecido ficcional. A intertextualidade tem grande produtividade em Segundo o narrador, a descrição da mulher do Coronel feita
Santa Evita. Várias obras são citadas em sua composição, no conto não se assemelha à viúva real. Parece tomar o conto em
integrando-a. chave realista, esperando que tudo nele seja real, ou parece
O narrador menciona o conto “Esa mujer” (1965), de desconfiar da veracidade do conto, apresentando nova versão
Rodolfo Walsh (1927-1977), no qual o narrador que é o próprio também para ele. Observa-se por parte do narrador o afã de
Walsh, entrevista o coronel Moori Koenig, responsável pela buscar o que realmente teria acontecido, tentando até mesmo
operação de sequestro e ocultação do cadáver de Evita. Este conto obter informações da viúva que o levassem a comprovar ou não os
é o principal intertexto, já que o narrador declara que partiu em dados contidos no conto.
busca do corpo perdido a partir de sua leitura, decifrando as pistas Continuando a entrevista, Martínez personagem comenta
que pensava ali existir (MARTÍNEZ, 1995, p. 61). com as duas mulheres que o coronel de “Esa mujer” se parece com
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o detetive do conto “La muerte y la brújula” de Borges (1951), pois mistério do corpo perdido era uma ideia fixa na Argentina.
ambos decifram um enigma que os destrói. Verifica-se ao longo de Publicaram-se entrevistas com o Dr. Pedro Ara, com o Coronel,
Santa Evita que o Coronel construído por Martínez também é com oficiais da marinha que guardavam a sede da CGT quando o
destruído não pelo enigma que decifrou, mas pelo que construiu: corpo foi subtraído, mas todos silenciavam (MARTÍNEZ, 1995, p.
o plano arquitetado do sequestro do corpo embalsamado de Evita 302).
e sua ocultação. O plano do Coronel é comparado pelo narrador Walsh é incluído como personagem em Santa Evita. O
ao que é descrito no conto de Borges, destacando-se que o que narrador conta que morava em Paris e lá, casualmente, encontrou
Borges escreveu acontece apenas num texto; já a trama do Walsh e sua companheira, Lilia (MARTÍNEZ, 1995, p. 302). Este
Coronel aconteceu fora da literatura, numa cidade real pela qual encontro teria ocorrido alguns anos antes de iniciar a escrita do
se deslocaria um corpo real. romance. A conversa fluía e, de forma banal, chegou-se ao tema
Para o narrador ensaísta, a literatura foi pioneira em tentar do conto:
entender e explicar o que teria acontecido ao corpo desaparecido. – De modo que el coronel de “Esa mujer” existe – dije.
O conto é analisado pelo narrador ensaísta como um texto sobre a – El Coronel murió el año pasado – contestó Walsh.
ausência. Nele, o nome e o corpo de Evita estão ausentes, mas o Tal como él lo había advertido en un breve prólogo, “Esa
tema se presentifica: mujer” fue escrito no como un cuento sino como
En los diez años que siguieron al secuestro, nadie publicó transcripción de un diálogo con Moori Koenig en su
una sola línea sobre el cadáver de Evita. El primero que lo departamento de Callao y Santa Fe. [...] Todo lo que el
hizo fue Rodolfo Walsh en “Esa mujer”, pero la palabra Evita cuento decía era verdadero, pero había sido publicado
no aparece en el texto. Se la merodea, se la alude, se la como ficción y los lectores queríamos creer también que era
invoca, y sin embargo nadie la pronuncia. La palabra no ficción. Pensábamos que ningún desvarío de la realidad
dicha era en ese momento la descripción perfecta del podía tener cabida en la Argentina, que se vanagloriaba de
cuerpo que había desaparecido. ser cartesiana y europea (MARTÍNEZ, 1995, p. 304).

Desde que apareció el cuento de Walsh, en 1965, a la prensa A proposta do narrador é que busquem o corpo juntos, mas
se le dio por acumular conjeturas sobre el cadáver Walsh não aceita. O narrador insiste, lembrando-lhe que ele um
(MARTÍNEZ, 1995, p. 301). dia escrevera que buscaria o corpo, mas ainda assim, a ideia é
rejeitada. O narrador afirma que irá procura-la. Sua procura é
Segundo o narrador, o conto funcionou como um estopim
literária, dá-se através da escrita. O conto de Walsh funciona como
para que a imprensa iniciasse suas conjecturas sobre a localização
um mapa, um guia, pois, segundo o narrador, embora escrito como
do cadáver. Algumas especulações que circulavam em revistas que
ficção, falava a verdade, mas os leitores não o receberam desta
circulavam nos anos sessenta são apresentadas: um cemitério
forma, já que o narrado era inacreditável.
numa ilha; promessas de mapas e revelações impossíveis, etc. O
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Convencido pela narrativa do conto, o narrador vai atrás do Além disto, dentre as várias situações pelas quais passou o
corpo. Sua busca tarda em iniciar. Após receber um telefonema de cadáver de Evita, relatadas no romance, está o período em que foi
militares, lança-se numa vertigem de busca de informações, coleta tratado como boneca por uma menina, Yolanda, filha do projetista
de dados e escrita até que conclua ou que comece a narrar Santa de um cinema, no qual o corpo havia sido escondido atrás da tela
Evita: de projeção. Verifica-se que o narrador confere à literatura um ar
Así estuve tres años: esperando, rumiando. La veía en mis de realidade, realizando a ideia de Borges em outro contexto,
sueños: Santa Evita, con un halo de luz tras el rodete y una invertendo a lógica do conto borgeano: em lugar de uma boneca
espada en las manos. Empecé a ver sus películas, a oír las representando o cadáver tem-se o cadáver tratado como boneca.
grabaciones de sus discursos, a preguntar en todas partes Para o narrador ensaísta, o propósito de Borges era:
quién había sido y cómo y por qué. [...] Acumulé ríos de poner en evidencia la barbarie del duelo y la falsificación del
fichas y relatos que podrían llenar todos los espacios dolor a través de una representación excesiva: Eva era una
inexplicados de lo que, después, iba a ser mi novela. Pero muñeca muerta en una caja de cartón, que se venera en
ahí los dejé, saliéndose de la historia, porque yo amo los todos los arrabaldes. Lo que le sale, sin embargo es, sin que
espacios inexplicados (MARTÍNEZ, 1995, p. 390). él lo quiera – porque no siempre la literatura es voluntaria
O romance realiza a ficção apresentada no conto. É como –, un homenaje a la inmensidad de Evita: en “El simulacro”,
se o testasse, como se o expandisse, explorando suas Evita es la imagen de Dios mujer, la Dios de todas las
possibilidades. Outros contos entram neste entrelaçamento mujeres, la Hombre de todos los dioses (MARTÍNEZ, 1995,
p. 198).
intertextual, compondo o mosaico, a colagem de Santa Evita,
sendo também experimentados. Um exemplo é o conto “El Borges, ferrenho opositor a Perón e Evita,
simulacro”, de Borges (1997), escrito em 1960. Neste, uma boneca involuntariamente a homenageia, como observa Martínez
loira é exibida numa capela ardente por um homem de luto. É um narrador, revelando que nem sempre a literatura segue a vontade
andarilho pobre que, de povoado em povoado, monta o palco do do escritor. Beatriz Sarlo (2005, p. 110), comenta que o conto do
velório atraindo pessoas simples e pobres para, juntos, encenarem antiperonista Borges diz a verdade de que um objeto antes inerte
o velório de Evita. recebeu o sopro da magia simpática, pois “a boneca representa,
A ideia de vários e simultâneos velórios pelo país afora é como os ícones da religião, o corpo que no mesmo momento está
explorada no romance. Mencionam-se velórios nas capitais de sendo velado em Buenos Aires”.
província e nas cidades distritais, onde a defunta era representada Outros contos, obras e autores são mencionados, como
por fotografias (MARTÍNEZ, 1995, p. 20). Os altares nos quais se “Ella” (1953), de Juan Carlos Onetti; “Casa tomada” (1951), de Julio
rezava pela recuperação de Evita, também representada por Cortázar; Copi; Martínez Estrada; Néstor Perlongher, etc., não
fotografias (MARTÍNEZ, 1995, p. 37), facilmente cede lugar aos sendo possível analisá-los de forma detida neste trabalho.
velórios.
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Parece ser objetivo do narrador em Santa Evita esclarecer Em diversos momentos, o narrador comenta o processo de
pontos obscuros através da ficção. Se a história silencia, a escrita, suas tentativas, erros e acertos, o modo como perseguiu o
literatura oferece uma resposta. Talvez não uma resposta tema, visto que este velava-se e desvelava-se de acordo com sua
definitiva, e isto nem a história poderia dar, mas um caminho para aproximação ou afastamento. Relata seu sonho, evento
o entendimento. Martínez apresenta no mosaico literário fundamental, como já exposto, ao qual atribui a chave da
argentino, as visões sobre Evita, reelaborando seu mito. narração.
O narrador expõe sua opção na construção dos
Metaficção personagens: retrata figuras marginais e não centrais (MARTÍNEZ,
A revelação do sonho que fornece ao narrador uma 1995, p. 62), pondo em cena aquelas que eram como Evita no que
maneira de narrar surge no momento em que a narrativa passa a se refere à origem humilde, mas principalmente, isto permite
ser feita em primeira pessoa, e reflete, de forma metaficcional, chegar ao conhecimento de um modo de narrar diferente da
sobre as estratégias e angústias de sua elaboração. A obra volta-se história oficial, a saber, a história vista pelos de baixo, as versões
sobre si mesma e dá ao leitor oportunidade de considerar sua não canônicas da micro-história, que permitem maior
escrita, a ficção da criação ficcional, na qual o narrador recebe o aproximação às figuras públicas, revelando aspectos domésticos,
mesmo nome do autor, Tomás Eloy Martínez, incluindo-se o autor portanto de maior apelo. Seguindo esta lógica, os personagens
como personagem de sua narrativa. O instante em que a narrativa que são apresentados são o cabelereiro de Evita, o projetista, as
passa de terceira a primeira pessoa assemelha-se a um atrizes com as quais contracenou em sua carreira artística, pessoas
testemunho: “En esta novela poblada por personajes reales, los comuns, do povo, que com ela tiveram algum contato.
únicos a los que no conocí fueron Evita y el Coronel.” (MARTÍNEZ, O narrador ensaísta, refletindo metaficcionalmente sobre
1995, p. 55). Dá a entender a possibilidade de a obra ter sido sua obra, reverencia Evita, chamando-a Ella, cujo nome invoca,
escrita e depois lida e comentada por seu autor, ampliando seu repetidamente, imaginando que isto lhe trará revelações sobre
efeito estético. como narrar esta história (MARTÍNEZ, 1995, p. 63). Menciona os
Falando de si ou contendo a si mesma de modo efeitos que Evita causava nas pessoas: benefícios, por um lado, e
autorreferente, a ficção duplica-se por dentro (BERNARDO, 2010, malefícios, por outro. “Toda la gente que anduvo con el cadáver
p. 13). Através do recurso da metaficção, o romance Santa Evita se acabó mal” é a constatação com tom de mau augúrio proferida
autodesnuda, autoevidenciando-se, no dizer de Iser (1983, p. 397), pela viúva do Coronel (MARTÍNEZ, 1995, p. 59). O embalsamador,
revelando-se como ficcionalidade, demarcando que é literatura e, Dr. Pedro Ara, teria se apaixonado pelo cadáver; o Coronel
portanto, diversa da realidade objetiva. Entretanto isto surte um enlouqueceu de amor e ódio; os militares mais próximos ao
efeito de realidade, pois passa-se a considerar a possibilidade de o Coronel, seus auxiliares no processo operativo de sequestro e
relato das experiências do narrador com a escrita serem verídicos. ocultação do cadáver também foram marcados pela tragédia. Um
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deles sofre um acidente de carro que o desfigura; o outro, ao Os eventos históricos ficcionalizados, o uso de nomes reais
esconder o cadáver em sua própria casa, encanta-se com ele, em de personagens históricos de domínio público, as notas de pé de
desatino, mata a esposa grávida por engano e é condenado à página distribuídas ao longo da narrativa favorecem tal efeito. A
prisão perpétua. Sobre todos estes paira a suspeição da necrofilia. narrativa de extração histórica apaga as fronteiras entre história e
O narrador, incluindo-se a si mesmo entre os que sofrem os ficção.
efeitos benéficos ou maléficos do contato com Evita, conta como,
estando em Nova Jersey, recebeu a notícia da morte de sua mãe, Considerações finais
na Argentina, dias após o sepultamento, pois seus irmãos não Em Santa Evita, busca-se a leveza, narra-se de forma leve,
conseguiram contactá-lo. Relata que se sentia preso num como reação ao peso do viver. Embora o tema abordado seja
malefício, adoece, é diagnosticado com hipertensão, desenvolve denso e pesado, o sonho é o fio condutor da jornada narrativa, a
depressão da qual só sai quando consegue terminar o relato, ou imagem que fornece o método empregado para narrar.
por fim, inicia-lo, pois não sabe em que ponto do relato está. A intertextualidade permite a combinação de diversos
Escreve ou reescreve a primeira linha da narrativa, tornando a discursos sobre Eva Perón, a construção ou reelaboração de uma
história cíclica (MARTÍNEZ, 1995, p. 390). versão de seu mito a partir de um mosaico textual. O narrador
A metaficção permite ao narrador não apenas contar a recolhe relatos, embaralha-os, reordena-os e devolve um texto
história que deseja, mas apresentar ideias sobre o processo de próprio.
construção da estrutura de narração. Relativiza sua própria Com a metaficção, aglutina-se o modo de narrar, gerando
narração, ao explicar que, nos romances, o que é verdade também um efeito estético, um efeito de historicidade, permitindo assim a
é mentira, visto que “los autores construyen a la noche los mismos relativização dos limites entre história e ficção.
mitos que han destruído por la mañana”, como o mito de
Prometeu (MARTÍNEZ, 1995, p. 389). A última frase, a derradeira Referências
confissão: “Ahora tengo que escribir otra vez” (MARTÍNEZ, 1995, BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
P. 391). literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São
Um efeito estético é causado com a metaficção, um efeito Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1).
de historicidade, visto que apresenta declarações do narrador que,
como jornalista ou historiador, investiga e analisa suas fontes, BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta
comentando-as. Isto pode induzir o leitor a tomar como não Negra Bazar Editorial, 2010.
ficcional a ficção, acreditando estar, finalmente, diante de um
relato esclarecedor e convincente sobre o que de fato teria BORGES, Jorge L. El hacedor. Madrid: Alianz, 1997.
ocorrido à Eva Perón e ao seu cadáver.
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CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições TROUCHE, André G. América: história e ficção. Niterói: EdUFF,
americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
1990.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos:


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21ª ed. Tradução de V. da C. e Silva [et al.]. Rio de Janeiro: José
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Paco Editorial, 2014.

ELIOT, T. S. Cuatro cuartetos. Tradução de J. E. Pacheco. México:


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ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto


ficcional. In: LIMA, Luiz C. Teoria da literatura em suas fontes. v. II.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 384-416.

______. O fictício e o imaginário. In: ROCHA, João Cezar de C.


(org.). Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser.
Tradução de B. W. Vilar; J. C. de C. Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ,
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MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Santa Evita. Buenos Aires: Planeta, 1995.

SARLO, Beatriz. Tempo presente: notas sobre a mudança de uma


cultura. Tradução de L. C. Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio,
2005.
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ALÉM DA NORMA: MITO E MIMESIS EM EL ZORRO DE ARRIBA Y diferentes estratos ou níveis intercalados, desafiando aqueles que
EL ZORRO DE ABAJO DE JOSÉ MARIA ARGUEDAS dela se aproximam. Uma das “misturas” mais desconcertantes
Afonso Rocha Lacerda ocorrem justamente na manipulação explícita de elementos
USP aportados de narrativas míticas, além da forma como o autor faz
realidade e ficção se aproximarem, narrativizando os tormentos de
Compreender em que termos realidade e ficção se sua escritura.1
relacionam e se comunicam é o objetivo da reflexão que aqui Os elementos textuais de Dioses y hombres de Huarochirí,
ensaiamos. Não é nosso propósito, naturalmente, diante de uma desdobrados no romance remetem-nos aos encontros culturais
questão intrincada e polêmica como esta, esbarrar em qualquer ocorridos nas sociedades coloniais, particularmente nas
resposta genérica ou conclusiva. Tencionamos apenas investigar sociedades andinas, fazendo com que a referida conexão entre
uma faceta da conexão existente entre a representação artística, literatura e oralidade manifeste um caráter conflitivo e mesmo
mais especificamente a criação verbal, e a realidade. Uma questão agônico. 2 Objetivamente, um fenômeno como este adquirirá
suplementar que vem se somar a este propósito consiste em rematada expressão naquelas escrituras que almejaram, em sua
explicitar algo acerca do vínculo existente entre mito e literatura, realização, não dissimular as contradições decorrentes da
o que levará, por sua vez, a considerar o tipo de conexão existente confluência entre uma narrativa consagrada (seja ela a crônica ou
entre a criação verbal literária e o que se poderia denominar como o romance) e o que poderíamos denominar, provisoriamente, de
formas artísticas verbais exclusivamente orais. O interesse por esta narrativas tradicionais capazes de “invadir” o espaço das
problemática nasce de nossa aproximação e esforço por primeiras.3
compreender a narrativa de José María Arguedas, especialmente Um aspecto das referidas contradições, manifesto em El
aquela configurada em seu último romance, El zorro de arriba y el zorro de arriba y el zorro de abajo, pode ser expresso a partir de
zorro de abajo (1996). Nesta obra, como se sabe, interagem uma asserção polêmica, a qual, todavia, pareceu perfeitamente
elementos heteróclitos, e sua composição apresenta-se segundo plausível para parte da crítica que se ocupou da produção

1
José Maria Arguedas traduziu do quéchua os manuscritos recolhidos na criação literária, cujas arestas e inquietações em grande parte terão sido
província de Huarochirí no século XVII, tradução que foi publicada em 1966 e apaziguadas pela internalização de práticas e hábitos de pensamento há muito
intitulada Dioses y hombres de Huarochirí. Alguns dos personagens deste texto consolidadas, notadamente aquelas caracterizadas pela adoção da escrita. Por
reaparecem no seu último romance, notadamente as raposas míticas. outro lado, a coexistência e sincronicidade de processos de arraigada oralidade,
2
Dioses y Hombres de Huarochirí foi o título dado por Arguedas à sua tradução persitentes inclusive nas sociedades consideradas “modernas”, adquire maior
realizada em meados dos anos de 1960 do relato quéchua recolhido no século visibilidade naquelas em que tal “modernidade” é vivenciada como elemento
XVII na província andina de Huarochirí. forâneo.
3
Na medida em que seja tomada segundo uma consideração diacrônica,
manifestar-se-á o caráter originário da conexão entre formas verbais orais e
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arguediana, aquela que enfatiza o seu “realismo”. Antonio Cornejo uma vez por todas resolvida pela clara manifestação do próprio
Polar, notadamente, afirma de modo inequívoco esta vocação autor acerca de suas intenções. Se dela nos servimos, é sobretudo
manifesta nos textos de Arguedas. A prevenção contra uma como ponto de partida para um esclarecimento ulterior que
concepção simplista do que seja tal realismo, é conveniente dizer, faremos, acerca do conceito de mimesis. Por outro lado, cabe
não deixou de ser realçada pelo crítico ao abordar este tópico. Esta adiantar que nossa indagação sobre este conceito não é menos
“fama”, se pudermos assim nos expressar, edifica-se inicialmente motivada por considerações críticas para as quais a criação
a partir das próprias reflexões e manifestações do autor, para linguística realçada pela narrativa de El zorro de arriba y el zorro de
quem importa sempre “descrever” uma determinada realidade. abajo apresenta um caráter antimimético. Podemos citar, neste
Poderíamos mencionar a expansão progressiva do universo sentido, a apreciação de Antonio Melis, para quem em
abarcado pelos seus romances, por exemplo, fenômeno correspondência com as representações ampliadas do mundo
observado por Cornejo Polar, segundo a qual o universo tratado andino, destaca-se o trabalho de aperfeiçoamento do instrumento
em suas narrativas se expande gradualmente, desde o pequeno expressivo que resulta em uma “lengua esencialmente literaria,
povoado andino, passando pelas vilas maiores, até abarcar serra e una invención del escritor para expresar una situación lacerada”
costa em seu último romance. A preocupação recorrente em seus (2011, p. 109). Interessa-nos, exatamente, aproximarmo-nos
contos e romances pode ser apreciada quando justificava, tentativamente de uma concepção de mimesis na qual o aspecto
referindo-se a Agua e a Yawar Fiesta, porque a consigna de poiético, produtor, joga um importante papel, resguardando com
“indigenistas” ou “indias” nas quais se buscava enquadrá-las eram isso a adequação do termo para compreender a forma como a
ineficientes. “Se trata de novelas en las cuales el Perú andino narrativa do romance redescreve a realidade.
aparece con todos sus elementos, en su inquietante y confusa Aproxima-se da interpretação de Melis acima mencionada
realidad humana, de la cual el indio es tan sólo uno de los muchos o que diz Cornejo Polar, embora este último consiga, de modo
distintos personajes” (ARGUEDAS, 1993, p. 209).4 alternativo, assumir de modo mais claro a maior eficácia de uma
Que este juízo atributivo de seu “realismo” costume ser linguagem artificial como veículo para aproximar-se da realidade.
proferido em relação ao conjunto de sua obra, deve também ficar De fato, esta tese aqui se apresenta muito mais complexa e
claro, o que para nós significará, eventualmente, a licença de ir problemática, na medida em que o escritor terá de se enfrentar
além daquela que aqui tomamos como central. Ademais, com uma tradução impossível. Assim, o realismo linguístico de
advertimos que não assumimos como uma evidência a nomina do Arguedas se revestirá de uma qualidade paradoxal, segundo o
“realismo”, conforme as considerações críticas costumam autor, pela qual, a criação de uma nova linguagem, de uma
tradicionalmente representá-la, nem consideramos que ela seja de

4
No Primer Diario deparamo-nos com as seguintes palavras: “Voy a tratar, pues, siento [...]; también lo mezclaré con todo lo que en tantísimos instantes medité
de mezclar, si puedo, este tema (el suicidio) que es el único cuya esencia vivo y sobre la gente y sobre el Perú [...]”(ARGUEDAS, 1996, p. 8).
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linguagem fictícia, se fará necessária “para revelar el mundo real” pensar das culturas orais, Walter Ong observa: “Sin un sistema de
(CORNEJO POLAR, 1989, p. 128). escritura, el pensamiento que divide en partes – es decir, el análisis
Aproximando estas duas considerações, talvez possamos – representa un procedimiento muy arriesgado. Como Lévi-Strauss
relativizar o juízo antimimético reservado a uma instância tão lo expresó atinadamente en una aserción sumaria, ‘el
determinante como a expressão linguística que compõe a obra pensamiento salvaje [i. e. oral] totaliza’” (2011, p. 45).
literária da qual tratamos. Perguntamo-nos se tal juízo não seria Este ponto de vista permite-nos uma aproximação com as
atribuível ao justificável esforço por desvincular a obra arguediana conclusões de Martin Lienhard, quando este autor fala da
do enquadramento em um tipo de representação determinista e “concepción mitológica y oral del lenguaje”, ao tratar da palavra
cerrada da realidade social que buscou retratar. perseguida por Arguedas. O apagamento da cisão significante-
Para conseguirmos construir uma via alternativa para a significado é perseguido utopicamente, ao mesmo tempo que
mimesis, transcendendo uma concepção que atrela esta forma de signo verbal e realidade assumem uma relação de identidade. O
operar das narrativas a um servilismo cerrado em relação à próprio Arguedas manifesta este anseio em El zorro de arriba y el
“realidade” (no sentido de uma physis) que deveria precedê-la, zorro de abajo, nos Diarios, ao enunciar o desejo de transmitir à
talvez seja frutífero nos voltar para a consideração das narrativas palavra a matéria das coisas.
orais, especialmente das narrativas míticas. As práticas El encuentro con aquella alegre mujer debió ser el toque
evidenciadas por estes produtos da imaginação, onde quer que se sutil, complejísimo que mi cuerpo y alma necesitaban, para
manifestem, parecem se caracterizar pela contraposição entre recuperar el roto vínculo con todas las cosas. Cuando ese
vida e pensamento. Entendendo-se este último como o vínculo se hacía intenso podía transmitir a la palabra la
materia de las cosas. [...] ¡Qué débil es la palabra cuando el
pensamento que procede por abstração, por análise, ou seja, que
ánimo anda mal! Cuando el ánimo está cargado de todo lo
divide em partes e que supõe a possibilidade de categorias
que aprendimos a través de todos nuestros sentidos, la
distanciadas da realidade que descrevem, as quais podem ser palabra también se carga de esas materias. ¡Y cómo vibra!
ordenadas segundo arranjos capazes de ajudar a compreender as (1996, pp. 7 e 10).
leis da natureza que intentam descrever. Tais categorias são
passíveis de uma apreensão a priori e, no mesmo passo em que Paralelamente a esta busca pela palavra, a própria
são aplicadas à compreensão da realidade, criam um efeito de discursividade encarnada pela narrativa evidencia-se como
subordinação. Este fenômeno está associado aos processos de vacilante. Na gênese da escritura de El zorro de arriba y el zorro de
internalização da linguagem escrita. 5 Referindo-se ao modo de abajo, o autor mesmo comenta como ocorre uma passagem do

5
Tomamos como parâmetro, aqui, as investigações levadas a cabo por
estudiosos da oralidade e da tecnologia da escrita, particularmente o trabalho
de Walter Ong.
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relato etnográfico ao etnológico, em relação ao objeto que Em primeiro lugar, ela não admite enquadrar-se nos
intentava compreender, seguido por outro deslizar para o relato modelos discursivos regidos por categorias abstratas e cujo
literário. Uma transição similar já havia se manifestado em Yawar encadeamento ocorre segundo uma relação de subordinação à
Fiesta, ou seja, uma de suas primeiras narrativas, segundo aponta- realidade que intenta descrever. Descarta-se a teoria do reflexo.
nos Horácio Legrás, levantando uma interessante interrogação. Sair do campo desta lógica restritiva envolve afirmar, em lugar do
“Por qué no persistir en la forma etnográfica como un vehículo “reflexo de realidade”, o “horizonte de realidade”, conforme
apto para describir este mundo? Excepto, por supuesto, que haya aponta-nos a análise desenvolvida por Portugal. Sua proposta
algo más que pueda ser dicho y sólo ser dicho con la fuerza que apresenta, porém, algumas nuances que nos conduzirão ao ponto
acompaña una palabra estética” (1996, p. 65). central da consideração que visamos propor. Considera o fundo
Na forma como Arguedas entendia sua prática artística, utópico da narrativa arguediana, elemento que dá conta de sua
incluindo o seu último romance e – apesar de toda a problemática orientação para o futuro, ao mesmo tempo enfatiza elemento tão
e abaladora experiência do debate sobre Todas las Sangres, desde ou mais importante, sua abertura para o presente.
a qual teria ficado clara a sua colisão com o discurso institucional Ese material que no ha recibido formulación en otros
das ciências sociais – prevalece uma concepção que José Alberto ámbitos del lenguaje social o intitucional (lo que no ha sido
Portugal definiu de maneira bastante precisa e sintética. dominado como contenido o, al ser reconocido, ha sido
Parte importante de lo que diferencia [...] a la novelística de rechazado por inmanejable) es lo que en la novela habla
Arguedas de muchos de sus contemporáneos es la misteriosamente. Es más, es lo que hace al texto de
intensidad e intencionalidad de la representación de una Arguedas hablar como novela (PORTUGAL, 2011, p. 105).
multiplicidad de dominios de la vida social y económica en Analisando a ideia de figura no ensaio “Figura”, de Erich
un esfuerzo por penetrar e interpretar la compleja Auerbach, Luis Costa Lima apresenta-a como um termo cujo
naturaleza del actuar social (2011, p. 107).
correlato é encontrado na ideia de seu cumprimento, de
promessa. Nesta forma de entender, é patente a hierarquização
Segundo o autor citado, a escritura arguediana distancia-
segundo a qual a figura é subordinada à sua realização em um
se, ao mesmo tempo, de uma opção que tomava força e garantia
sentido inteligível. A máxima expressão disto consiste na
um espaço institucional aceitável para as práticas artísticas, as
interpretação alegórica onde, nas palavras de Costa Lima, aquilo
quais passavam a valorizar a mediação do espaço livre e da
que a figura antecipa e que vem a se cumprir, sua dimensão
ilimitação do possível. Premida entre duas alternativas
intelectual, se confunde com a manifestação de uma norma ou lei.
insatisfatórias, a produção do escritor acaba por reservar para si
A subordinação operada pela interpretação alegórica faz que a
uma situação esdrúxula. Contudo, convém especificar de que
figura fique relegada ao papel de mero suporte sensível de algo
maneira a intencionalidade da representação exigiria uma solução
que vem a se mostrar em sua integridade em um plano abstrato e
estética, nos moldes da resposta esboçada por Legrás mais acima.
inteligível, nas palavras do autor. Não estamos distantes, aqui,
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daquela subordinação de que falávamos antes, quando referíamo- para a palavra literária parece obedecer a um gesto de rebeldia
nos à passagem da oralidade para a tecnologia da escrita e da contra o controle dos condicionamentos sócio-históricos passíveis
contraposição entre vida e pensamento, com importantes de uma abordagem normativa e subordinadora da “realidade”, tal
implicações para a escrita arguediana. Escapar dos efeitos desta como se dava na prática da ciência social. Arguedas reivindicava a
subordinação e hierarquização de longa história, da teleologia que possibilidade e necessidade de representar o universo andino
despotencializa a palavra em ato com toda a sua carga poiética – afirmando, ao mesmo tempo, a irredutibilidade das formas de
nos termos de Arguedas, que a esvazia de sua “matéria” – pode organização e descrição autóctones enquanto apostava na
explicar o recurso à força de uma “palavra estética”. Na obra citada transitividade das mesmas através da criação artística. Pode ser
de Portugal, na qual reflete sobre os rumos da crítica arguediana, que pressentisse outra forma de controle na ameaça de
o autor busca mostrar a impropriedade de uma “crítica figural” do esvaziamento do sentido que reivindicava para sua arte.
romance. Porém, o que o autor designa com esta expressão
equivale a uma interpretação alegórica, no sentido que acima Referências:
buscamos delinear. Consideramos acertado o afastamento deste ARGUEDAS, José María. El Zorro de Arriba y el Zorro de Abajo.
tipo de interpretação, conforme o autor sugere, ao passo que a Edición crítica, Ève-Marie Fell, coord. Madrid; París; México;
reflexão sobre a mimesis e a figura, nos moldes do que foi Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, 1996.
esboçado acima, permaneça extremamente fecunda para a
compreensão dos processos da escrita arguediana. O interesse de ______. Un Mundo de Monstruos y de Fuego. Selección e
uma consideração como esta é acrescido de sentido, na medida introducción de Abelardo Oquendo. México: Fondo de Cultura
em que os processos “figurais” são passíveis de tornar mais clara a Económica, 1993.
forma como operam as narrativas míticas, que os mitos sejam
entendidos como reflexões figurativas capazes de resignificar e CORNEJO POLAR, Antonio. Los Universos Narrativos de José María
transformar a realidade. Arguedas. Buenos Aires: Losada, 1973.
Na figura autonomizada do termo de seu cumprimento,
Luis Costa Lima vislumbra a possibilidade de resgatar a mimesis, ______. “La obra de José María Arguedas; elementos para una
afirmando sua dimensão produtora. Não determinada por uma interpretación”. In: La Novela Peruana. Lima: CELACP, 1989.
“imitação da verdade” prefigurada pela linguagem, ela
compreende um potencial de dispersão e pluralidade de sentido COSTA LIMA, Luis. Vida e Mímesis. São Paulo: Editora 34, 1995.
materializado na ideia de horizonte de eventos (1995, p. 232).
Longe de funcionar como uma imitação servil, ela transforma (atua
sobre) aquilo que descreve. O resvalar da narrativa arguediana
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LEGRÁS, Horacio. “Yawar Fiesta; el retorno de la tragédia”. In:


FRANCO, S. R. (Ed.). José María Arguedas: Hacia una Poética
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PORTUGAL, José Alberto. Las Novelas de José María Arguedas. Una


Incursión en lo Inarticulado. Lima: Fondo Editorial PUCP, 2011.
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AS INTERFACES DE PIEL DE MUJER DE DELIA ZAMUDIO, QUARTO DE Paulo. De Jesus em muitos trechos de sua obra sente a necessidade
DESPEJO – DIÁRIO DE UMA FAVELADA E DIÁRIO DE BITITA DE CAROLINA de escrever para registrar as mazelas de um sistema que a exclui
MARIA DE JESUS diariamente, no mesmo fluxo, escreve Diário de Bitita que para nós
Alessandra Corrêa de Souza é tão fascinante como a primeira, a edição que trabalhamos foi
UFS/UFRJ publicada em 1986 posteriormente a sua morte. Carolina Maria de
Jesus, a partir das memórias de si retorna ao passado e na sua
A proposta deste artigo é um recorte da monografia da maturidade tece as lembranças desse mesmo sistema que a
disciplina problemas de história da literatura. Pois bem, nos excluía em Quarto de Despejo – diário de uma favelada, pelas
questionamentos construídos no decorrer das leituras de leituras feitas constatamos que em vinte seis anos entre a
Édoauard Glissant e outros téoricos constatamos a necessidade de publicação de uma obra e a outra, os resquícios da exclusão e da
repensar o corpus do projeto de doutorado da presente autora à falta de oportunidade continuam presentes em nossa sociedade,
luz dos conceitos de unidade-diversidade, relação, crioulização vimos que a segunda por mais que tenha sido escrita depois
para analisar as obras literárias Piel de Mujer de Delia Zamudio, complementa a primeira obra, pois em Diário de Bitita são
Quarto de Despejo – diário de uma favelada e Diário de Bitita de registradas as memórias da infância à fase adulta da autora até a
Carolina Maria de Jesus. sua chegada a São Paulo e Quarto de Despejo são os anos vividos
Para estabelecer as interfaces, nada mais significativo que na favela Canindé. Se as duas obras são importantes para constatar
iniciarmos com a máxima de (Glissant, 2005, p.15), para ele “[...] as desigualdades sociais da sociedade brasileira, a obra de Piel de
não existem fronteiras, existem imbricações entre essas três Mujer de Delia Zamudio, vem com a mesma proposta de Carolina
Américas”. Acreditamos que o elo estabelecido entre as Américas Maria de Jesus, no primeiro momento, a diferença entre a peruana
é o eixo para as análises de Quarto de Despejo – Diário de uma e a brasileira seria apenas o geográfico, pois as exclusões e as
favelada [(1960)1995], Diário de Bitita(1986) de Carolina Maria de crueldades delimitadas nos textos literários são bem semelhantes.
Jesus e Piel de Mujer (1991) de Delia Zamudio. Zamudio traz aos leitores desde as primeiras páginas o
Vale destacar um breve resumo das obras acima citadas, testemunho de sua vida, ora em Chincha, ora em Lima – Peru. Ela
iniciemos de maneira cronológica. Carolina Maria de Jesus em se mudou para a capital, mas as dificuldades ao invés de melhorar
Quarto de Despejo – diário de uma favelada, escrita em 1958 e vão piorando cada dia, descreve o tratamento dado pelas patroas,
publicada em 1960 por uma mulher, pobre e moradora de espaço a crueldade e a exclusão dado a toda a sua família, representa as
popular, que teve apenas três anos de ensino formal, traz uma explorações e a violência sexual e de gênero.
série de construções históricas, políticas e sociais do Brasil da O tema inicial que estabelecemos são as relações entre os
época em que o livro foi publicado. A autora relata em seu diário: discursos das narradoras-personagens que em muitos momentos
a fome, a miséria e a vida dos favelados na extinta Canindé em São nos textos literários supracitados temos a dificuldade como
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leitores de separar autor(a)-narrador(a)-personagem. Verificamos próximos para dificultar comunicações. O elemento linguístico e as
que os conceitos de Édoauard Glissant são mais adaptáveis à Piel rivalidades de alguns grupos étnicos favoreceram os traficantes
de Mujer de Delia Zamudio do que aos textos de Carolina Maria de em certa medida; no entanto, as relações, assim como a
Jesus, segundo a nossa interpretação podemos balizados pelo crioulização são imprevisíveis, portanto - “o ser é a relação com o
conceito oficial de história que nos levam a essa hipótese, mas no outro, não é raiz única, somos raízes indo ao encontro de outras
decorrer da análise, provaremos o porque detectamos essa raízes”. (2005, p.18)
premissa. As autoras Carolina e Delia são exemplos dessas
Ao estudar as histórias das Américas, identificamos o imprevisibilidades dos novos contextos atuais - as autoras tentam
diverso proposto por Glissant (2005) e constatamos que a raiz e buscam o diverso e as outras raízes em seus discursos de
única destacada em verso em prosa por muitos pesquisadores denúncia e utilizam a escrita como elo de (re)ssignificação nas
ainda está atrelado ao par dicotômico como obras Quarto de Despejo – Diário de uma favelada [(1960)1995],
colonizador/colonizado; branco/negro, segundo Glissant Diário de Bitita(1986) e Piel de Mujer (1991).
vislumbrar nossas riquezas culturais como um rastro/resíduo é Para facilitar a leitura, disponibilizamos, a primeira parte
nossa tarefa como estudantes e pesquisadores. como introdutório, o segundo para identificar os locais discursivos
Os rastros/resíduos trazidos pelos negros nas Américas das narrativas em primeira pessoa, o terceiro para as análises das
pelo tráfico negreiro foram transformando-se em identidades obras, o quarto como considerações finais e por último as
culturais usadas para reafirmar suas pluralidades, as quais lhes referências bibliográficas.
foram roubadas nas travessias entre os oceanos. Podemos
identificar esses traços na música, na dança, na religião e em tantas As Relações e os Lugares de Onde se Emitem os Discursos
outras maneiras de revalorização da herança africana. Literários
Glissant nos ajuda a repensar os rastros/ resíduos trazidos Carolina Maria de Jesus era pobre, negra, moradora de
desde que o primeiro negro pisou no solo americano; ou ainda a favela, catadora de lixo, teceu suas experiências em um diário que
repensar nesses rastros resíduos, no navio negreiro quando posteriormente virou livro. Vendeu muitas cópias, fez sucesso
trazidos por imposição dos escravistas da época para evitar como escritora, foi reverenciada. Entretanto, a sequência de
conflitos na travessia e as uniões entre os escravos para futuras reconhecimentos se encerra com a volta de Carolina Maria de
rebeliões no novo continente, colocavam-se seres humanos Jesus para o cenário de exclusão.
encaixotados e amarrados, onde os “alimentavam”, ali mesmo Para Rufino Santos, Carolina Maria de Jesus não teve lugar
faziam suas necessidades básicas, os que não suportavam o bom reconhecido na história da nossa literatura, até hoje. (Rufino
atendimento a bordo eram jogados no mar e para completar Santos, 2009, p.22-25). O autor enfatiza que, por meio de Carolina
disponibilizavam homens e mulheres de etnias diferentes bem Maria de Jesus, em Quarto de Despejo [(1960)1995] podemos
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avistar melhor acontecimentos, uma série de acontecimentos tão Ao mesmo tempo, quando se considera que Zamudio
distantes entre si como a qualidade literária, o populismo, a sofreu abuso físico e psicológico, discriminação racial sistemática
origem das favelas, o racismo, o golpe de 64, o êxodo rural, etc. e marginalização sociopolítica, além de opressão sexista, seu
Carolina foi o que os dicionários chamam de grafomaníaca: pessoa testemunho ilumina a fortaleza mental e emocional da população
com tendência compulsiva, doentia, de fazer registros gráficos, de ascendência africana no Peru e nas Américas. Desse modo,
rabiscos e, especialmente, escrever em qualquer superfície ou Zamudio ao contar sua história representa um ato de valentia. Ela
material imediatamente accessível. é fundadora do centro de mulheres que defende e acolhe
Já em Diário de Bitita (1986), a autora não teve a mesma mulheres que sofrem violências domésticas localizado em um
projeção que teve em Quarto de Despejo – diário de uma favelada município limenho de San Juan de Lurigancho. Continua sendo
[(1960)1995], aquele teve apenas uma edição em português, foi organizadora de sindicatos e militante pelos direitos civis de todos
publicado em 1982 em francês por duas jornalistas que os afro-peruanos. Seus relatos começam com suas origens em
recolheram os cadernos manuscritos de Carolina Maria de Jesus Chincha, uma zona rural, longe da capital e um lugar de grande
quando a entrevistaram em 1975. concentração de gente negra. (Harris, 2011, p.495)
Delia Zamudio é escritora peruana, ativista e FAYE (2010) afirma que a mulher tem uma presença
indiscutivelmente reconhecida como líder do povo, em seu livro preponderante na realidade histórica, social, econômica e cultural
Piel de Mujer (1995) expressa suas experiências pessoais como da América Latina; foi a sua experiência caracterizada por uma
mulher negra; tendo crescido com poucos recursos financeiros e ausência durante a fase de exploração e conquista do continente,
educacionais, sua história ilustra com paixão o triplo desafio de ser já que a maioria das Crônicas das Índias omite o seu protagonismo.
negra, mulher e pobre no mundo hispânico. No primeiro capítulo Assim mesmo, foi apagada dos textos que recorriam àquela
de sua narrativa, Zamudio caracteriza-se como vítima. Suas experiência histórica e humana. Porém, durante o processo de
experiências e determinação fortemente influenciam a decisão de construção das nacionalidades latino-americanas, a mulher em
converter-se em militante e sindicalista e lutar pelos direitos das geral, em particular a mulher negra foi resgatada parcial e
mulheres nos sindicatos. Sua consciência inicial ajuda a formar a fugazmente na literatura.
fundação ideológica das características sociais e políticas que
ocupa no decorrer de sua vida. Apesar da luta por acesso à Análises de Quarto de Despejo, Diário de Bitita e Piel de Mujer
educação adequada e a um salário digno, como pode ser Quais são as interfaces que podemos estabelecer entre
observado ao ler sua obra, seu testemunho foi editado e Quarto de Despejo- diário de uma favelada, Diário de Bitita e Piel
transformado em livro, a partir da organização não de Mujer?
governamental, sem fins lucrativos, Incentivo à Vida, dedicada a
melhorar as condições de pessoas com baixos salários.
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Glissant afirma que a crioulização 1 é imprevisível. Desse Se “alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a
modo, podemos vislumbrar a maneira como as autoras Carolina obedecer; outros, a mandar” (ARISTÓTELES, 2005, p.22) é preciso
Maria de Jesus em Quarto de Despejo – diário de uma favelada e questionar os mecanismos que mantém alguns grupos presos em
Diário de Bitita assim como Delia Zamudio em Piel de Mujer um estereótipo. O pensamento de Aristóteles ratifica a nossa
abraçam as poucas oportunidades que lhe são dadas como válvula compreensão a respeito da perpetuação de padrões do discurso
de fuga, sobretudo de denúncia ao sistema, se a escrita foi imposta hegemônico. Há outros discursos a serem proferidos, ouvidos e
pelo Discurso do Poder na época das “descobertas” do Novo aceitos tão válidos ou autorizados porque narram táticas que
Mundo, nada mais significativo que hoje sirva para trazer à baila as deflagram movimentos outros, não-hegemônico, que pressupõem
memórias de si, sobretudo ir ao encontro dos rizomas e de outras uma estética e uma ética diferenciadas ou a reversão de uma
raízes. hegemonia.
Iniciemos as análises a partir dos fragmentos das obras Carolina em Quarto de Despejo descreve suas insatisfações
Quarto de Despejo – diário de uma favelada, Diário de Bitita e Piel políticas, sobretudo sua experiência de residir em uma favela.
de Mujer para que visualizemos as interfaces dos discursos de Narra seu descontentamento em relação às pessoas do lugar onde
denúncia de ambas: mora. É na escrita que esta mulher se liberta do ambiente que
Cena1: “Vocês são incultas, não pode compreender. Vou rejeita, no qual não se reconhece. A favela é o quarto de despejo
escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que da cidade. Para a autora, esta condição a encerrava em um caos
aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero do qual transcendia em seus sonhos de dias melhores em uma casa
escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me de alvenaria – outra forma de atingir a condição de cidadã que lhe
fornece os argumentos.” ( De JESUS, 1995, p. 17)
fora negada, pois o centro da favela também é a margem. Em
Cena2: “Nos sacó a las doce de la noche, llovía mucho. Mi relação a isso, concordamos com OLIVEIRA (2008, p.29) a ideia de
hermanita ya había nacido, la trataba de abrigar porque el centro e de periferia não tem base geográfica nem científica, é
frío era intenso. Recuerdo que mi mamá lloraba, no apenas e tão somente definida pelo poder de que desfrutam os
teníamos dónde dormir.” (ZAMUDIO, 1995, p.23) grupos que habitam uns ou outros espaços.
CENA 3: “ Trabalhamos quatro anos na fazenda. Depois o Nestes espaços, pulsam práticas e outras narrativas que
fazendeiro, nos expulsou de suas terras [...] Por que é que não se restringem à lamentação social, do sentimento de
nós não podíamos ter terras para plantar.” ( De JESUS, 1986, despertencimento, da perda, conforme os estudos de CERTEAU
p.135-137) (1994), que ensinam a perceber os pormenores – no cotidiano há
mil formas de fazer e de romper o discurso do poder.

1
A crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação “se contato e nessa mistura, seja externamente, de fora para dentro. A crioulização
intervalorizem”, ou seja, que não haja degradação ou diminuição do ser nesse rege a imprevisibilidade (Glissant, 2005, p.20-21)
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O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto condicionado, ou seja, nenhuma de suas atitudes pode ser
preço, residir numa casa confortável, mas não é possível [...] caracterizada como natural. Nossa trajetória cultural está
o desgosto que tenho é residir em favela. (De JESUS, 1995, reunida em uma memória que governa nossas ações; as
p.19) lembranças funcionam não como conhecimento, mas um
adestramento do sujeito. Definindo, de certo modo, o
Carolina é uma leitora apaixonada, autodidata, lê o mundo
primitivo e o civilizado.” (ELIAS 1994, p. 9-10).
com os óculos da teoria que não foi ensinada nos poucos anos de
experiência escolar. Teoria da vida, da subversão dos discursos, da Reiteramos que nessa(s) suposta(s) margen(s) há uma
autonomia de quem se apropria do discurso hegemônico para infinidade de sujeitos inventores nas artes de fazer, que
criticar/questionar aqueles que parecem ter sido engolidos pela reconfiguram “o tabuleiro” do jogo social vigente, que ao inventar
fome do óbvio quando rotulados como subalternos. Já diria Ribeiro se (re)inventam, e tornam possível compreender que aquilo a que
que o óbvio nos impede de pensar, tendendo a nos tornar chamamos de realidade é muito mais complexo e inusitado do que
incapazes, por vezes, nos condiciona a sentir, a lembrar, a viver e se possa pensar (PASSOS & SILVA, 2009).
ser o que não somos nem ao menos gostamos. “Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de
Observemos os trechos a seguir: mudar daqui [...]” (De JESUS, 1995, p.17). Compreendemos que o
A Silvia e o esposo já iniciaram o espetáculo ao ar livre. Ele desejo de Carolina de sair da favela é um desejo de cidadania –
está espancando. E eu estou revoltada com o que as também almejada por Delia– de materializar a libertação
crianças presenciam. Ouvem palavras de baixo calão. Oh! Se proporcionada pela escrita dos paradigmas que determina de fora
eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente [...] e a prende em um estereótipo. “O nervoso interior que eu sentia
[...] quando eu chegar na favela vou encontrar novidades. ausentou-se. Aproveitei a minha calma interior para eu ler ”( De
Talvez a D. Rosa ou a indolente Maria dos Anjos brigaram JESUS, 1995, p.9).
com meus filhos. ( De JESUS,1995, p.9) Acreditamos que a narrativa de Carolina é próxima a de
Questionamo-nos se as personagens Silvia, D. Rosa e Maria Delia e de outras escritoras negras. Narrativa que é comum nas
dos Anjos gostam da condições que lhes foram impostas ou se táticas que nos tornam autoras e protagonistas da nossa história.
Estamos dentro-fora dessa reflexão que delimita o que não existe
estão condicionadas ao que foi determinado como
e assim mesmo insistimos de chamar de real. Procuramos nos
comportamento específico daqueles que estão à margem. Refletir
a esse respeito se faz necessário quando são poucos, ainda, os que afastar e nos aproximar de duas narradoras-personagens que
sabem/agem cientes de que a periferia/margem assim como o transcendem através da leitura e da escrita. Refletimos e
conceito de civilizações são relativos. Cremos que o criticamos nossos questionamentos assim como Carolina Maria de
desenvolvimento dos modos de conduta, a civilização dos Jesus.
costumes, demonstra que o homem é um animal Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever.
Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.” (De
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JESUS, 1995, p.19) - “Li um pouco. Não sei dormir sem ler. sobretudo no que concerne aos grupos economicamente
Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do desfavorecidos: as intertextualidades históricas como: a
homem. (De JESUS, 1995, p.22) escravidão, as explorações do sistema capitalista, o papel do
De Jesus e Zamudio romperam a invisibilidade delimitada latifundiário no século XX, as migrações estrangeiras, o êxodo
às mulheres negras nas Américas. As narradoras-personagens rural, contudo Carolina escorrega na encruzilhada de apenas
buscam alternativas para protagonizar e narrar a sua própria apresentar os pares dicotômicos: branco/preto; pobre/rico e em
história em Quarto de Despejo, Diário de Bitita e Piel de Mujer. No muitos trechos das obras destacadas, ela traz todo resquício e
decorrer do texto levantamos algumas relações e diálogos entre os conservadorismo ideológico que foi imposto nas colonizações
discursos narrativos supracitados, todavia não respondemos à luz modernas, ou seja, percebemos um paradoxo muito forte nas suas
das teorias de Glissant(2005) o porque que delimitamos na obras que em definitivo, a afasta das teorias de Glissant,
introdução desse artigo que após analisar as três narrativas acreditamos que a autora-personagem muitas vezes fica presa a
percebemos que a obra de Zamudio é mais adaptável aos raíz única, ao passo que Zamudio em Piel de Mujer vai ao encontro
conceitos do crítico literário martinicano. de outras raízes e consegue utilizar-se dos rastros-resíduos de
Pois bem, em Piel de Mujer - a narradora-personagem no forma mais produtiva que De Jesus. A poética da Relação pode ser
primeiro capítulo descreve que sua vida sempre foi difícil desde a verificada nesse trecho:
infância, no entanto, percebemos que na adolescência começa a Tengo que reconocer que la política me ha ayudado en el
participar de reuniões de sindicatos, defende juntamente com a desarrollo y madurez de mi persona. Me ayudó a
comprender la situación de explotación que se da con los
sua mãe a casinha que construíram e que os chineses tentam
trabajadores y conmigo misma. A comprender por qué
desapropriá-las, saí de casa e começa a trabalhar em diversos
otros países también se organizaban y luchaban igual. A
empregos e sendo explorada por todos os patrões. Zamudio comprender las diferentes posiciones políticas que se
sempre pelo coletivo, no que concerne a exploração da mão de manifiestan en la clase obrera. A descubrir que los pobres
obra dos operários consegue nas lutas sindicais diminuir a carga no somos flojos, sino que hay una situación económica y
horária laboral de doze horas para oito horas. Luta diariamente política que provoca la pobreza. (Zamudio: 1995, p.141)
contra o sexismo e a violência, as mulheres são exploradas ora
Com o destacado acima, conseguimos enquadrar Piel de
pelos patrões ora pelos colegas do gênero masculino. Delia chega
Mujer aos paradigmas conceituais de Glissant (2005), como
a ser presidente do sindicato dos trabalhadores em sua região, já
determinado na introdução, mas também é importante destacar o
foi especificado anteriormente o seu papel significativo para as
papel de denúncia das duas autoras, por tudo apresentado até o
mulheres negras em Chincha – Peru até os dias atuais.
momento percebemos que o eixo político das suas raízes de
Já De Jesus em Quarto de Despejo – Diário de uma
militante e ativista desde muito cedo foi trabalhado a partir do
favelada e Diário de Bitita, a narradora personagem é crítica,
coletivo, já De Jesus desde muito criança precisava defender-se de
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todos e não foi criada para o coletivo como Delia, ou até mesmo BALCAZAR, Lilia Mayorca. Coord. General. Insumisas – Racismo,
as escolhas que cada autora faz para as suas vidas no decorrer das sexismo, organización política y desarrollo de la mujer
suas obras, Carolina sente-se nesse não-lugar ao retratar a favela afrodescendiente. In: Transafricanía y Género – mujer, voz y
em Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, assim como desde discurso nacional en América Latina – M’BARE NGOM FAYE Lima:
pequena, destaca o papel do avô, como Sócrates negro e a partir Perú: Centro de Desarrollo Étnico (CEDET). Serie: Caja Negra/3,
da morte dessa proteção, sente- se sozinha e toda a sua luta é 2010.
individual e muitas vezes imbricadas de preconceitos e
estereótipos referente ao outro, isso não consta na obra de Delia. DE JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo – diário de uma favelada.
8ªed.
Considerações Finais São Paulo: 1995.
Faz se necessário delimitar que às interfaces estabelecidas
nesse trabalho texto é o início de uma longa caminhada como ______. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
investigadora e como teóricos como Glissant e outros destacados
no decorrer do texto podem trazer inquietações ou até mesmo CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes,
responder algumas lacunas na interpretação do corpus do projeto 1994.
de doutorado. Antes da leitura dos textos de Édouard Glissant, a
autora do presente trabalho nunca havia analisado que esses ELIAS, Norbert. Sociogênese da diferença entre Kultur e Zivilisation
binarismos impostos aos cidadãos do terceiro mundo é uma no emprego alemão. In: O processo civilizador. Tradução Ruy
armadilha e que devemos ater-nos a crioulização, sobretudo a Jungmann, revisão e apresentação, Renato Janine Ribeiro. Rio de
imprevisibilidade e aceitar que somos diversos, ou seja, diferentes Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. 2v.
dos outros e estamos abertos às novas utopias da pós-
modernidade e as autoras Carolina Maria de Jesus assim como GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade.
Delia Zamudio nas obras literárias aqui analisadas fazem partem Trad. Enice do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF,
desses novos sujeitos que antes não tinham autorização para falar 2005.
e que hoje escrevem em denúncia ao sistema escravista e
capitalista. ______. Poétique de la relation. Paris: Éditions du Seuil, 1990.

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HETEROGENEIDADE E VIOLÊNCIA NO SAINETE RIOPLATENSE produto da heterogeneidade e as ferramentas e motivos utilizados


Alfonso Ricardo Cruzado pelas personagens.
UFF Estas obras produto das diferentes heterogeneidades do
período destacam-se por plantear conflitos que não são resolvidos
O nosso corpus será formado por duas obras do gênero e remetem aos que aconteciam nesse período no Rio da Prata.
sainete que, segundo a historiografia tradicional do teatro Divergências ocorridas produto do crescimento da cidade, a
argentino (GALLO (1959), ORDAZ (1971), PELLETTIERI (2008)) aparição de novas classes sociais e das diferentes correntes
formam parte da época intermediaria para a formação do primeiro imigratórias que gerarão o famoso “crisol de razas’’ e levaram à
gênero teatral nacional: o grotesco. Elas são La Patota (1922) e Los cidade de Buenos Aires de 177.787 habitantes em 1869 a
disfrazados (1906) de Carlos Mauricio Pacheco. Carlos Mauricio 1.231.698 em 1909. Vivenciamos nestas obras conflitos não
Pacheco (Montevidéu,1881 – Buenos Aires, 1921) foi um somente políticos e sociais senão também linguísticos, polifonia de
dramaturgo, ocasional ator e escritor fundamentalmente de vozes que apresentam posições convergentes e contrarias sem
sainetes que precedem o gênero “grotesco criollo”. Também de chegar a ser excludentes.
acordo a historiografia tradicional (GALLO (1959), ORDAZ (1971)) Esta heterogeneidade ocasiona atos violentos produto da
o sainete é integrante do denominado “género chico”, como conveniência, do sadismo, do preconceito e da impossibilidade da
oposição ao “género grande”- culto, é uma peça breve cómica ou percepção da alteridade. Ateremo-nos á análises das obras, pois
tragicómica (geralmente de um ato) de carácter popular que utiliza mesmo no profundo trabalho sobre a imigração na literatura
os tipos tradicionais desse tempo. Para seu estudo foi dividido em argentina desse período de Gladys S. Onega, La inmigración en la
períodos (sainete como festa, sainete tragicómico e grotesco) literatura argentina (1982), esta heterogeneidade nunca foi
(PELLETTIERI, 2008), formando parte do nosso corpus sainetes que estudada. Onega não somente não a estuda como afirma que este
consideramos de acordo as suas características da fase gênero (o sainete) nunca tinha sido estudado em profundidade
tragicómica. anteriormente, principalmente desde o ponto de vista da
O objetivo desta comunicação é desconstruir a heterogeneidade.
periodização tradicional do sainete, devido a que se nos O contexto de produção destas obras é o inicio do século
tivéssemos que ater especificamente a ela estas obras não XX, mas as suas características mais marcantes são determinadas
poderiam ser reflexivas e criticas como são, senão que teriam que pelo fim do século anterior. Ao ser sancionada a Constituição de
ser principalmente meros passatempos, simples e inocente 1853, a necessidade de um rápido aumento da população adquire
diversão com toques sentimentais e patéticos. Procuramos categoria constitucional; deste modo o documento supremo
também analisar a violência nas obras, e observar a sua presença declara que o governo fomentará a imigração europeia e não a
restringirá nem imporá a ela nenhuma taxa (ONEGA, 1982). Neste
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período era necessário aumentar a mão de obra e a população do pode ser mais o da elite (a família), então Pacheco o transpõe para
território nacional, sendo assim, os europeus eram os mais a rua, para o espaço público ou semi-publico, ao lugar de
indicados para isso. Em palavras de Alberdi e Sarmiento, os aparecimento do outro. Esta aparição do outro, é seguida pelo seu
europeus deviam povoar o deserto e acabar com a barbárie levantamento politico, conflitos de poderes que terminam com a
gaúcha, mas os imigrantes se concentraram nas grandes cidades derrotada alteridade no grotesco (VIÑAS, 1986).
causando assim grandes problemas de moradia e gerando os Esta heterogeneidade é muito bem percebida na
famosos “conventillos” (cortiços) (ONEGA, 1982). Os europeus que multiplicidade de linguagens que formam partes das obras, os das
povoaram as cidades sofreram um processo de adaptação que diferentes classes sociais que se começam a perfilar nesse período,
levou ao surgimento de uma população mista nas camadas medias dos diferentes imigrantes misturados com o espanhol. Mas
e proletárias. Agregando mais conflitos aos já existentes também resulta importante destacar que dentro desta babel de
anteriormente na sociedade, recebendo rejeição e hostilidade línguas as que representam a oligarquia, o poder político e
pela sociedade (ONEGA, 1982). Os espanhóis foram mais aceitos monetário da época, como o inglês e o francês não aparecem
devido às características culturais que compartilhavam, mas ilustradas dentro desta heterogeneidade, ato que não é um
mesmo assim receberam a sigma de burros, duros de esquecimento senão uma ação proposital como forma de excluir
entendimento. Os que mais sofreram e foram mais estigmatizados as ideologias dominantes destas reflexões.
como se percebe muito bem nas duas obras foram os italianos, a Entre as línguas a que tem mais destaque devido a grande
causa da sua língua, o seu aspecto físico e a sua origem proporção da sua imigração é o italiano, estereotipado no
principalmente rural, deles criaram uma figura estigmatizada e cocoliche, mistura de italiano e espanhol. Variante que entra
depreciativa, a do cocoliche (ONEGA, 1982). Mas na verdade o que rapidamente em conflito com o outro excluído da sociedade que
mais sofreu foi o povo judio, embora o seu número fosse já está integrado nas obras, pois com o avance do aramado foi
insignificante em comparação com as outras imigrações despertou extinto, o gaúcho, o melhor dito o idioma gauchesco. Este último
uma hostilidade ainda maior (ONEGA, 1982). começa a ser visto como algo típico, popular, com a sua
No contexto de produção destas obras no teatro “grande” desaparição vai ganhando cada vez maior valor positivo até
de finais do século XIX - inicio do século XX, o espaço dramático por converter-se em um símbolo nacional; dita tensão se perceve
excelência era a família. Mas devido as características conflituosas muito bem nos enfrentamentos dos italianos e os gauchos em Los
do gênero analisado e da necessidade do surgimento de outras disfrazados desde o inicio da obra. Fato que podemos observar
figuras teatrais se troca de espaço dramático. Construindo-se este logo na primeira cena, onde vemos como um cocoliche bem
novo espaço como um lugar de conflitos com os intrusos, os estereotipado intervém na apresentação musical do grupo de
derrotados, os vencidos. Ou seja, o sainete deste período desloca gaúchos Los hijos de la pampa (nome que já carrega um grande
o espaço do tema da família para o de classe, por isso o espaço não
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valor positivo) configurando assim as tensões que se produziram Mas a chegada destes acionares sociais a literatura o
ate o final da obra. devemos a Gregorio de Laferrere (Argentina, 1867-1913). O
O modelo da Argentina ate o século XX foi agroexportador, dramaturgo Gregorio de Laferrere representa muito bem estes
baseado na importação de trigo, milho, linho, couro, lá e intelectuais aos quais nos referimos anteriormente, é um
principalmente carne vacuna. As elites de poder eram gentleman com um modo de escrita matizado de gentleman e
conformadas por estes terratenentes, que se espelhavam na clubman. A sua produção manifesta a essência de um gentleman
Europa, principalmente na Inglaterra, e mais tarde na França. Isto em repouso que contempla o mundo desde o seu ócio, ócio que
se percebe muito bem quando se considera que a ilusão dos articula a sua critica, observando tudo desde o Circulo de Armas,
governantes, ao estimular a imigração por médios legais, era seu clube (VIÑAS, 1968). E o seu teatro reflete este olhar, o de um
receber, como eles mesmos o declaram no período, ingleses homem que está em um canto privilegiado e observa os
cultos, para povoar e purificar a nação argentina. Por tudo isto até personagens passarem na sua frente, é uma simples mirada, é uma
finais do século XIX a produção literária estava em mãos dos testemunha, reproduz como uma câmara fotográfica. Cria assim
gentlemen (esta elite que dominava o inglês e o francês e que vivia personagens tipos definidos e os deixa falar, interagir, resultando
do comercio com a Inglaterra), pessoas descendentes de famílias linhas, de modo que cada tique ou mania se converte em uma
poderosas que tinham a literatura como uma excursão, uma sorte de destino. O seu teatro se conformara mediante o olhar de
diversão, todos eles eram portadores de sobrenomes tradicionais, clubman que projetara sobre o teatral, aprofundando mais ou
formavam parte da elite. Pelo exposto anteriormente os nomes de menos o seu procedimento expositivo e narrativo (VIÑAS, 1968).
todos estes tipos são em inglês como forma de representar melhor Conforma o seu recurso crítico o titeo, típica situação do club,
a sua idiossincrasia. Após o ocaso dos gentlemen com o processo penetrando no outro pelas suas debilidades, suprimindo a
de democratização surge o clubmen; cavalheiros que elegem o resistência com o inesperado do ataque. Levando deste modo a
mundo da diplomacia ou os comitês ou os clubes. O clube se mirada do clubman ao teatro, ao cenário.
transforma no lugar do titeo, ou as tijeretadas praticadas por e Transfere assim as suas brincadeiras do clube a sua
sobre as grandes damas da elite (VIÑAS, 1996). Muitos destes dramaturgia, gerando uma burla (chacota) dramatizada: valendo-
clubmen viraram sportman que a sua vez se justavam em patotas, se da tomadura de pelo (burla específica na sua entonação e com
da mesma forma que os rufiões, e davam ar a sua violência como algo peculiar da sociabilidade argentina, por algum tique ou mania
se pode observar na obra La patota. Até finalmente chegar ao se toma para a chacota alguém inferior), titeo (consiste em
escritor de classe media, o escritor profissional, que terá que procurar alguém dos nossos pares e iniciar uma chacota, tendo-o
trabalhar de jornalista para viver, pois nesse período escrever não o grupo como cristo), la tijeretada (entre mulheres), la cargada
era um oficio rentável. Desta maneira no inicio do século XX com (algo mais pesado e entre jovens, com mais descaro e menos
as classes medias na escrita se inicia a sua profissionalização. contemplações), labecerrada (de homens sobre uma mulher), la
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choteada (no exercito ou no colégio interno), los progroms (amos Pacheco se valeu de estas e outras ferramentas na
sancionando os seu escravos), linchamentos (amos condenando construção dos seus quadros. Pacheco sempre tentou ir contra o
escravos rebeldes), caza de brujas (amos que tomam represálias teatro dominante, que ainda mantinha a maioria das
contra um igual em rebeldia) (VIÑAS, 1968). características do teatro espanhol e dar características próprias,
Ao se referir ao titeo Viñas o define: não mediante um quebre total, senão uma leve nacionalização
“Podría decirse que pertenece a la tradición oral: el titeo com uma profunda carga reflexiva e critica, valendo-se para isso
entre señores es esencialmente una burla que por lo do sainete vigente lhe deu características reflexivas para que seu
general ser realiza entre varios ejercitándola sobre uno solo. teatro possa manifestar as tensões sociais do seu entorno,
Un tuteo agudo, próximo y refinado pero que desvaloriza. favorecendo a reflexão. É assim como na sua obra La patota as
Resulta así una complicidad que al canalizar tensiones
instituições características da cidade que são o titeo e a patota são
apunta sobre uno del grupo. Sustentado por quien goza de
retratadas e criticadas, virando as figuras centrais que mobilizam a
un prestigio previo entre el círculo de titeadores – mayor
edad, más fortuna o cierto éxito diferenciador en la política, ação da obra. Pacheco manifesta assim a sua critica frente as
los negocios o con las mujeres – es el líder a quien dejan la patotas de señoritos filhos ou netos dos clássicos gentlemen, que
iniciativa, plegándose lentamente a su espesa y jocunda agiam violentamente nesse período contra o que não os agradava,
complicidad.” (VIÑAS, 1968, p.107) incendiando teatros, imprensas anarquistas, batendo nos
imigrantes.
Não se da o titeo entre pessoas de diferentes níveis sociais,
As ferramentas dramáticas e sociais são utilizadas de
se da na intimidade masculina do clube. O titeado carrega com
formas diferentes em cada uma das obras. A primeira delas Los
algum leve defeito ou carência que o coloca em inferioridade de
Disfrazados (1906) se baseia em um enredo que pode ser resumido
condições (barba ruiva, ser o mais baixo), que no meio do grupo
da seguinte forma: tudo acontece num dia de carnaval, os
homogêneo o diferencia do restante do grupo. Por não ser igual
moradores do cortiço se preparam para sair à noite ou sobrevivem
aos demais, ele é sancionado, esse elemento constitutivo o
ao acontecimento. Temos dois triângulos amorosos que
converte no outro, e para o gentleman alteridade e mal se
constroem a história. O principal é formado por Pietro (um italiano
identificam, por isso tem que desqualifica-lo, provocando a sua
traído), que fuma o tempo todo e fica calado, e Elisa, sua mulher,
catarse (VIÑAS, 1968). Além disso, como assegura Bergson, é esta
que o trai com Machín (o amante). Pietro por amor atura todas as
diferença que impede a identificação, é a alteridade que permite
maldades e traições da sua esposa. Mas nessa noite Machín decide
me manter afastado dele e que se produza o riso (BERGSON,
levar a sua amante para dançar no Marconi, e para burlar-se de
2008). Laferre nos ensina as fraquezas dos personagens e nos trata
Pietro e mostrar a sua façanha, convida-o também. Pietro quer
como titeadores, se esforça para colocar-nos de cumplices (VIÑAS,
reagir, mas Andrés o segura e o incentiva a continuar com o plano
1968). Mesmo assim, muitos veem o titeo como algo moralizante
deles de fantasiar-se de homens felizes. O triângulo amoroso
que propõem a correção do titeado.
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secundário é formado por Gato (jovem poeta que mora no seu Como tínhamos indicado anteriormente a peça se situa
mundo); Rosalía, que o vê como um pavo (uma anta) e que se espacialmente e temporalmente em uma tarde de Carnaval em
aproveita dele para conseguir as coisas que quer; e Hilario Buenos Aires. O primeiro momento se desenvolve no pátio de um
(motorman nas empresas de transporte inglesas), por quem inquilinato, e imediatamente somos advertidos pela didascalia que
Rosalía se derrete e a quem dá o seu coração nas costas da mãe não é o conventillo (cortiço) sujo e complexo, é um lugar ideal para
(DoñaPepa). Não aguentando mais as investidas do rival e sendo uma construção mais profunda.
desrespeitado pela sua esposa ante a solicitação de não sair, “Es un patio donde el autor toma sus apuntes de la vida
depois de receber uma bofetada de Machín, Don Pietro esfaqueia popular sin necesidad de taparse las narices. Hay en el
seu opositor, voltando a olhar a fumaça. Estando assim o centro da ambiente cierto aseo, cierta limpia alegría de día de fiesta,
chacota no imigrante configurado em uma caricatura degradante. que no se encuentra en las oscuras vecindades
cosmopolitas. No es, pues, el conventillo propiamente. Son
Neste processo somos opostos à festa e ao sofrer do
unos cuantos tipos que en la tarde carnavalesca mueven,
esquecido, solitário; comovidos pelo seu grito surdo, seu silêncio,
ante los ruidos cómicos de la calle, el respectivo cascabel
o seu profundo sofrer (VIÑAS, 1986). As ações são mediadas por interno. El todo entre paredes y con perspectiva de azoteas,
Don Andrés, a primeira personagem que desenvolve a função do por encima de las cuales declina el sol.” (PACHECO, 1986,
novo intelectual, segundo a definição de intelectual de Rama p.156)
(1998). Esta personagem corresponde a uma figura de proto
Com esta didascalia inicial são induzidos todos os
intelectual do século XX, podemos identificá-lo com os novos
elementos desta obra: personagens com psicologias mais
intelectuais que descreve Rama em La ciudad letrada(RAMA,
profundas que serão analisados em uma espécie de estudo
1998). Esses intelectuais que surgem na segunda camada da
laboratorial, por isso estamos frente a um lugar ideal, aparenta ser
sociedade, como os docentes, os médicos. Essa nova classe que é
mas não é. Estamos quase frente a uma pesquisa de psicologia
a articulação entre os letrados e os não letrados, essa nova classe
social ou sociologia, vemos aos indivíduos interagir em um
media. Podemos equiparar a Andrés a figura do novo escritor que
ambiente o mais controlado possível, os observamos sem intervir,
nos planteia Rama que se move nas beiradas destas duas classes
regidos pelos seus cascabeles internos (seus sentimentos, as suas
(RAMA,1998). Esta nova figura que não é mais da elite senão da
paixões, etc), em um momento de maior liberdade como é o
classe media com educação, pode ser tomada como uma
carnaval, onde se da uma certa liberação. Para que não tenhamos
prefiguração positiva dos futuros filhos dos imigrantes, nova classe
duvida sobre o social da nossa imagem o primeiro momento inicia
que o grotesco fará lutar e brigar com as suas raízes. Como forma
com um grupo de gaúchos, com um nome nada inocente “Los hijos
de marcar estas mudanças o dramaturgo dá valor ao silêncio, que
de la Pampa”, nome que poderíamos tomar como filhos da terra,
adquire uma profundidade psicológica.
ao ser esta a maior extensão do território argentino. Eles cantam
e dançam, mas no fundo ouvimosos ruídos da rua, gritos de
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mascaradas, sons de cornetas e chocalhos; que servem para conflito entre a cena oficial e os novos integrantes da sociedade
lembrar que estamos em uma época de fantasias, inversões, e os que começam a formar parte dela e que precisam deixar de ser
nossos cantantes também estão fantasiados, de gaúchos. Isto se estereotipados negativamente (VIÑAS, 1986). Esta mecânica será
faz bem visível, pois o paisano primeiro canta com “a postura de reforçada mediante o segundo momento no qual é apresentada
compadre” (outra figura arquetípica em conflito no período, pelos personagens a teoria sobre a vida de Andrés e que no quarto
suposta evolução do gaúcho na cidade). Dançam mas não dançam momento será enunciada por ele mesmo “Todos
qualquer musica senão um malambo. Uma vez que o malambo é vivimosdisfrazados [...] gastamos muchas caretas alfindelaño.”
uma dança folclórica tradicional argentina que nasceu na pampa (PACHECO, 1986, p.161) . Após este planteamento do conflito no
que carece de letra, executada unicamente por homens, que segundo momento El Gato (um idealista, um jovem poeta) tenta
representa uma competição de figuras ou movimentos seduzir a Rosalíaque aparenta estar interessada enquanto a mãe
(denominados mudanzas), tendo nascido como competência costura do seu lado, mas Rosalía na verdade esta apaixonada por
entre duas pessoas. A dança folclórica também nos oferece as Hilario (motorman). Assim somos apresentados a um dos
características das ações que vamos ver, pois representa um triângulos amorosos da obra e a outros dos conflitos sociais. Em
enfrentamento entre homens, e assim é lido por um cocoliche que um canto Don Pietro o primeiro personagem que é trabalhado
se coloca no centro da cena para marcar a sua presença, como através do silencio do gênero, olha a fumaça; introduzindo o
indicando que os imigrantes também formam parte da sociedade, segundo triangulo amoroso e mais conflitos sociais. Temos assim
ou melhor dito que querem formar parte dela. Estas tensões uma serie de personagens conflitivos: o poeta romântico em uma
sociais brevemente esquematizadas e outras mais do período sociedade em crescimento moderna; um trabalhador que defende
apareceram na obra. Olhando pelo lado do titeo, sendo Pacheco as companhias inglesas e é contra o seu próprio povo popular; um
a figura intelectual que é poderíamos ler a didascalia e o primeiro italiano discriminado e excluído por todos, ridicularizado pela sua
momento 1 como uma espécie de titeo do tieteador principal. forma de falar, que prefere o silencio; uma mulher que faz de conta
Mediante estes mecanismos o momento de apresentação da peça que gosta de o poeta para obter ganancias do seu pretendente. No
resume ao espetador o que irá enfrentar. meio destes conflitos incipientes implícitos somos apresentados
Pacheco por primeira vez em Los disfrazados elabora a pelas personagens a que todos estão fantasiados, que mudam a
dialética entre a máscara e o rosto por meio da ideia de que os fantasia de acordo a necessidade, que quase nunca são eles
personagens estão fantasiados e trocam as fantasias para viver mesmos, outra critica social bem profunda. Mas esta teoria não é
diferentes personagens no seu dia a dia.Mostrando assim o de qualquer personagem senão da que é exposta pelas restantes

1
A obra não esta dividida em quadros, pois o que pretende é a ruptura com as processo a partes específicas da obra com maior precisão. Esta divisão será feita
formas tradicionais. Como forma de permitir uma melhor analise faremos uma de acordo a nomeação que faz a obra de uma nova listagem de personagens
divisão narratológica em momentos para podermos dirigir durante este que participaram na enunciação, teremos deste modo temos 31 momentos.
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personagens como uma verdadeira figura intelectual (primeira stancia …Somoseaquentetrabacadora tanto que
personagem intelectual do gênero), Don Andrés, que funcionará poguetasereimpligatemonocipale re la limpieza, come
como interprete dos silêncios, sentimentos e pesares de Pietro, lustratore re calzato... ¡Prefetamente! (PACHECO, 1986,
sendo o seu único confidente. No final da obra por médio de uma p.177)
inversão que utiliza como ferramenta a bebedeira de Don Andrés Mas a tensão com os italianos é muito marcada. No
perderá a sua voz, a emprestará a Pietro que assassinará ao momento sexto Machin (amante da mulher de Pietro) o
amante da sua traidora mulher e finalmente falará o que pensa, desvaloriza junto com um amigo (Vasco) e entra na habitação de
para ficar mudo novamente devolvendo-a assim a don Andrés que Pietro em busca da sua amante para convida-la a festa de carnaval.
fechara a peça com a confirmação de sua teoria: “¿No lesdije? ... Este é o inicio do processo de eclosão. Pietro rompe por primeira
Este también. ¡Era un tigre disfrazado!” (PACHECO, 1986, p.177). vez o seu silencio: “PIETRO¡Per Dio, ya e mucho! (Ruido de
O momento seguinte apresenta o enfrentamento do máscaras que entran y salen corriendo. Vase don Pietro por foro.)”
compadre Malatesta com pouca educação oficial, mas socialista e (PACHECO, 1986, p.163). A obra nos nomes das personagens, nas
Hilario, o motormampro inglês que acredita ser superior devido ao falas deles nos apresenta a heterogeneidade social e cultural da
seu emprego, mas não deixa de formar parte do grupo da classe época e os seus conflitos, Vasco, Pietro que fala como um
popular. Malatesta recrimina a sua ação de ter trocado de bando cocoliche, etc.
pelo do capital estrangeiro, deixando de lado o taita da Floresta, A tensão não é somente nesse nível senão também politica,
argumentando que se tem fantasiado também. entre o povo nascido no país e os socialistas e anarquistas. A sua
Como indicamos acima um dos maiores conflitos sociais foi presença se faz evidente na discussão de Ramón que defende o
produto da não aceitação dos imigrantes, a sua discriminação. A governo e as suas praticas violentas repressivas (“Que
quantidade de imigrantes que Argentina recebeu foi muito grande, lesplanchenellomo. Sí, señor. Y bien hecho por alterar el orden
com esforço eles se foram incorporando a sociedade, mas os mais público que’s la base … por no vivir cada uno en su rancho”
estigmatizados e que mais sofreram nesse processo foram os (PACHECO, 1986, p.163)) frente a Malatesta que o chama de
italianos; tensão incluída no momento quinto entre outros. ignorante e o critica. A conversa deles continua a través dos
Pelagatti, cujo nome brincadeira entre italiano e lunfardo faz momentos, é assim, como no dezoito Ramón apresentamuitobem
referencia a um pelagato, uma pessoa socialmente insignificante, o olhar de parte do povo frente àsmanifestações políticas e as
marcando assim a sua exclusão social; no seu discurso marca a defensas dos seusdireitos: “RAMÓN ¡Mirá, callate, ustedes son
oposição civilização-barbarie, os imigrantes não são a barbárie unos insubordinados, que para tener prestigio les basta con
como os gaúchos senão europeios trabalhadores: disfrazarse de atorrantes y encajarse en el pecho una corbata
PELAGATTI ¡Caballieri! Hayecatenere presente sangre e’ toro como una mariposa ensartada! ... Salí, no te doy
xanosotronomsomo los hic ore lupaise, ca la gusta la traque corte y me voy pa’l corso ... Salí … (Vase.)” (PACHECO, 1986, p.169).
gordenario é bárbere, re lugauche, re la campaña, re la
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Na verdade, o centro do enredo esta nos dois casais e os príncipe mas Hilario em aparte o desmoraliza com o publico, frente
outros diálogos são mais pano de fundo e contextualizadores. ao que poderíamos tomar como uma espécie de titeo popular, no
Deste modo, no nono momento vemos a agressividade de Machín, qual faz participar como titeadores, cumplices a plateia: “ HILARIO
a burla que faz do italiano. Esta levando a Elisa (mulher de Pietro) (Aparte.) Como pedrada en ojo tuerto ... (Pelagatti se pasea
e mesmo assim se burla dele convidando-o a festa: “ MACHÍN orgulloso de su elegancia.) / PELAGATTI Tenese que vire, que e
Nibiabas’iba a comer. Esperá, que lo voy a invitar pa que venga con cuestione re familia. ¡Un prime mío ese conde n’Italia! / HILARIO
nosotros al Marconi.” (PACHECO, 1986, p.164). El Vasco e Elisa se ¿Se esconde en Italia? / PELAGATTI Cuestione re familia.”
opõem a burla, mas mesmo assim Machín decide levala a cabo. (PACHECO, 1986, p.167). Hilario não somente quer a burla senão
Quando voltam Pietro e Don Andres, Elisa tenta freia-lo, também briga, que o que não é como ele apanhe, por isso gera
masMachín insiste: “MACHÍN Salí te digo, quieroinvitarlo para confusão ocasionando o enfrentamento de Pelagatti com um
luego ... (Insiste). Oigan ... (Se acerca a don Pietro. Escena de paisano.
hilaridad contenida en el grupo.) Diga, don Pietro, ¿quiere venir a HILARIO (Buscando camorra) .. Vea, paisano, disse Pelagatti
un baile esta noche?” (PACHECO, 1986, p.165). A burla esta feita, que esse traje es una pavada ... / PAISANO ¡Qué sabe esse
todos acharam engraçado menos Elisa. Pietro os mira fixamente animal (Leyendo) [...] / PELAGATTI A mí nu me faltasse a lo
mas não responde, ou melhor dito, a sua resposta é o silencio. Don respeite ... / PAISANO Salga de ahí porque leabollola pelada
... / PELAGATTI ¡Tute quistecumpadrite se
Andrés os chama de canalhas e leva a Pietro baixo as risadas do
rifrázanoregabuche e háceno l aparata cu
grupo. O momento seguinte é bem simbólico, uma criança
ladacarelatonepel’aria! / HILARIO (Aparte.) Ahí se agarraron
fantasiada de esqueleto persegue a outra fantasiada de diabinho ... / PAISANO Más lata será su agüela, tano roña … y si no
ameaçando-a com a sua gadanha. Ante a duvida que não façamos fuera porque tengo que formar en “Los rezagos”, le
essa leitura uma vizinha a faz para a gente,ao velos se persigna: encajaba una piña … que l’iba a dar … / PELAGATTI Cu la
“ROSALÍA (Asomándose) ¡Cruz Diablo! (Se persigna.) ¡La muerte piola re lupioline … hico re so mama … ¡CuanoMorerira re
en casa! (Entra. Los del grupo siguen riéndose sin preocuparse” cartoné! (Van a tomarse a golpes. Hilario lo impide.) /
(PACHECO, 1986, p.166). No fundo desta luta mitológica temos o HILARIO No es tanto ... amigos. Son bromas de carnaval. /
riso dos burladores, como avisando-nos das tristes consequências PELAGATTI (Con énfasis, espada em mano.) E que quiste
dos seus atos, como se fosse uma premonição anuncia o trágico gabuchenum decano vevire a la societávertatieramente
final. Mas esta não é a única burla que os imigrantes sofrem, no artística ... (PACHECO, 1986, p.167-168)
momento quinze observamos outro tipo de burla a um imigrante, Após fazer o público participe da burla e quando vão iniciar
os burlados são os italianos, e como burladores participam outros a briga Hilario os impede. Como bom interprete das situações
imigrantes também (no caso anterior observamos a participação Andrés nos da a chave de leitura do absurdo somente observando
do Vasco). Rosalía e Pepa falam que Pelagatti esta como um a fantasia: “ ANDRÉS Un conde y un gaúcho, es curioso ...”
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(PACHECO, 1986, p.168). Contrapondo mediante este modo ideal da coragem e do valor. Mas sua presença na literatura data de
a suposta barbárie á suposta e idealizada civilização no projeto de períodos anteriores aos da sua obra como observamos nesta peça.
população da Argentina indómita pelos governantes. Os compadritos cantam as suas virtudes, a sua valentia e a sua
Desde a rua fazem novamente a sua anunciação as destreza na sua música, o tango. Frente a ausência de Andrés, Gato
Mascaras, marcando a sua presença e após isso Andrés destaca as como seudointeletual que é nos apresenta o outro lado destas
inversões da obra e do carnaval, como preanunciando a figuras:
transferência de sua voz a Pietro: “ANDRÉS ¡El carnaval! ¿Y para PEPA Estos van a divertirse ... / GATO A divertirse o a peliar.
qué, estando la vida? ... Los vivos de tontos, los pícaros de Debajo de cada saco, un cuchillo. Cuando yo era redactor ...
honestos, los míseros de generosos, los ignorantes de sabios, los (PACHECO, 1986, p.172).
doloridos de alegres … ¡Caretas … siempre caretas!… (El Vasco y Após a fala do Gato novamente temos a burla de Hilario
Machín entran riendo y al ver a don Pietro y don Andrés se acercan neste caso frente a um poeta, literato: “HILARIO (Burla.)
a ellos).” (PACHECO, 1986, p.168). A burla não tem sido suficiente Cuandoelseñor era redactor... / MALATESTA ¡Miau!”
para eles querem continuá-la e como se não fosse suficiente a (PACHECO, 1986, p.172).
burla o caricaturam com a sua fantasia, nariz grande que Também temos a burla de Rosalía com Gato que o faz
representa o cocoliche: acreditar que gosta dele, pede ingressos para um baile de carnaval
MACHÍN ¿Diga, che, no quiere venir al baile? ... / VASCO (A e a ultimo momento ela vai acompanhada por Hilario e faz que ele
don Pietro, haciéndole burlas con una larga nariz postiza
acompanhe a mãe dela, Pepa.
que trae puesta.) ¡Mascarita! ¡Mascarita! ( Lo zamarrea.
A violência se manifesta mais intensamente para o final da
Acto continuo entran los dos riendo al cuarto de Elisa. Se
oye música a lo lejos.) / PIETRO (Levántase nerviosamente obra a través das suas consequências como podemos observar
con ademán de ira.) ¡Non puedo más, Cristo! ¡Non puedo nesta didascalia: “Dichos, PELAGATTI, RAMÓN y otros, que
más! ... (Don Andrés lo toma del brazo atrayéndolo. Don conducenalprimeroensituación lastimosa. En una refriega callejera
Pietro rompe a llorar amargamente.) (PACHECO, 1986, ha perdido capello, capa y espada y trae la cabeza vendada y un
p.168). ojo en compota. Viene el estandarte hecho pedazos y algunos
pobres condes machucados.” (PACHECO, 1986, p.174). Pelagatti
Desfilaram na nossa frente até agora, os imigrantes, os
descreve como se deu o enfrentamento, frente a tal violência
socialistas, os que apoiam as inversões estrangeiras, os que
Hilario destaca “¿Pero eran gaúchos o índios?” (PACHECO, 1986,
apoiam aos governos, a figura do campo popular e nacional do
p.175), fazendo deste modo um jogo de palavras que poderiam
gaúcho, mas é necessário marcara apariçãode uma figura mítica
fazer pensar em um malón de índios o de gaúchos (que passava
mais. Devido a isto no momento vinte e quatro é introduzida a
arrasando com tudo o que tinha no caminho), mas que não tem
figura mitológica nacional da cidade, o compadrito. Borges na
nenhuma relação com tudo isto a não ser a autoreferencia a la
base dos seus cuchilleros construirá uma mitologia cidadã nacional
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indiada, que ficará bem nítida na outra obra. Estes grupos se que este ato não seja uma violência como as outras, para que este
autodenominavam la indiada como forma de referirse aos grupos ato seja somente uma reação.
indomáveis de índios que arrasavam as cidades tomando tudo o A eleição do fundo do carnaval não é um capricho, permite
que estava no seu caminho sem respeitar nenhuma autoridade muitas inversões além do jogo de mascaras e funciona como chave
nem ideia externa ao seu grupo, somente os seu ideiais. Esta de leitura do texto e das ações das personagens. O carnaval não
tensão vai em aumento até estourar com o assassinato de Machín era um momento de perfeitas harmonias como é descrito
pelas manos de Pietro. porBahktin (2008) na Idade Media, senão que ao ser uma ocasião
Andrés deixa de interagir como interprete direto da de supostas liberdades, se transformava em um momento de
situação e Pietro não aguantando mais a situação decide agir, grandes conflitos, lutas enfrentamentos entre os diferentes blocos
tenta impedir a saída de Elisa, mas a burla de Vasco e de Machín representantes das diferentes culturas e capas da sociedade. Não
continua: era somente uma competição para ver quem tinha a melhor
PIETRO ¿Adúnde va? ... / MACHÍN ¿Quiere venir? Vamos fantasia senão que brigavam violentamente e discutiam. Como se
pa’lbaile ... / VASCO Venga, se va a divertir .... (Bromeando.) pode observar nos diferentes enfrentamentos referenciados pela
Mascarita, mascarita .... / PIETRO ¿Adúnde va? ¡Cristo! / obra. Nesta peça todos estes conflitos são somente planteados
MACHÍN Tágüenoesto ... / Elisa (Aparte.) Vamos, vamos mais nunca resolvidos, a violência a recorre do início ao fim
ligero ... / PIETRO (Voz poderosa) Ya non puedo masse ... me
mostrando as tensões possíveis dentro dessa sociedade. O maior
afogo … ¿Eh, no comprende? … ¿Non ve ahora soy yo,
vinculo que se da com o carnaval medieval é que ele reproduz ao
Pietro? … (Tomando a Elisa por el brazo.) ¿Eh? ¿Non ve que
soy tuomarito? ... ¿Quí e que manda? / MACHÍN igual que esta obra a heterogeneidade.
(Adelantándose) ¿Diga, che anda com gana ‘e morirse? ... / Los disfrazados como o carnaval quebra as fronteiras entre
VASCO Dejalo, está encurdelao ... / MACHÍN Si está a vida e a arte mediante a carnavalização. Transformando tudo em
borracho que vaya a dormir ... (Va a continuar com ella hacia algo além de um simples ato, em uma interação, um fato social,
el foro. Don Pietro se interpone.) / PIETRO E sí, stoyboracho, violento como os vividos pelos seus espectadores. Isto faz muito
stoyciego ...(Con fiera actitud.) Ostésa ríe, ¿eh? ¡E un canalla importante expor: a) que esta violência é produto de uma serie de
... un canalla! ... / MACHÍN (Dándole un bofetón.) ¡Tomá, tensões que derivam em violência entre os de abaixo que
canalla! (PACHECO, 1986, p.172). reproduzem os modos de violência dos de cima para os de baixo.
Pietro recebe a bofetada mas isso ativa a sua vingança e por b)Expõe um sistema de violência que possibilita a legalização do
mais que não seja visto diretamente o momento, esfaqueia a crime, a instauração do crime comodepois se dará mais
Machín, voltando ao seu mutismo. Não observamos profundamente em Roberto Arlt e é analisado por Massota(1982).
especificamente o momento que Pietro esfaqueia Machín para C) La Patota vai dos diferentes tipos de titeo até o linchamento, a
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diferença de Los disfrazados com Pietro que não mata por seu predecessores (SALAS, 2004). Esta mulheres geralmente
violência senão como reação, seu ato é de rebelião. recebiam o nome de “milonguitas”, diminutivo de “milonguera” (a
Em Los Disfrazados não assim em La patota, a mulher contratada para bailar tango em lugares públicos) (SALAS,
apresentação dos conflitos é mais suave, a violência não é tão 2004,p.141).
explícita como observaremos no analise desta outra peça. La Nesta obra a ação inicia em um destes apartamentos
patota é de um período posterior à obra anterior (1913), o qual alugados, uma amante que é seduzida e enganada por um homem
demostra a evolução de Pacheco no referente ao gênero e o para deixar o seu pai e o seu irmão e ir a morar com o seu amante
desenvolvimento dos personagens, a aplicação da musica e a (Roberto). Onde é tratada como um objeto e utilizada pela patota
critica mediante a reflexão. Também mostra o desenvolvimento da de amigos, enquanto o seu sedutor se diverte com outras
segunda fase do sainete e a sua importância nela. Os personagens mulheres: “Ojalá me hubiesedejadoalláen mi casa ... Si yo hubiera
poderiam ser facilmente identificáveis no período da obra e até um sabido ... Por él, por él he abandonado a mi pobre padre ... a mi
pouco depois, com todas as suas características bárbaras e hermanito ... ¡por él!” (PACHECO, 1966, p.65). Enrique um dos
primitivas. Ela não foi catalogada pelo seu autor como sainete integrantes do grupo frente as suas lagrimas e a sua queixa da
senão como “escenas de la vida porteñaenunacto”, o qual remarca traição fala para que agradeça que ali é a dona de uma casa, tem
mais o comuns que eram esse tipo de personagens no período. A para comer, saio do cortiço, pois senão estivesse ali estaria
obra é de um ato único, dividida em um quadro primeiro de 20 fazendo de giro em outro lugar.
cenas, um segundo quadro de 4 cenas e um terceiro quadro de 10 Do mesmo modo que trouxe mudanças a peça anterior ao
cenas. gênero, esta além de mudar a classe dos personagens e incorporar
A peça data a ação na “época atual” (1922) na cidade de um interprete, incorpora um alterego do dramaturgo com seu
Buenos Aires. Datação que quer destacar a intervenção mais nome. A personagem de Mauricio, alterego de Carlos Mauricio
concreta sobre o momento social. A didascalia nos Pacheco, aparece na segunda cena do primeiro quadro e logo que
descrevemuitobem o ambiente: “Habitación amplia. Dos o tres ingressa faz a sua critica sobre a situação: “¡Pobre mujer!” “Jugar
cuadros, un piano, una guitarra sobre la mesa. Sofá y sillas” con el corazón de estas pobres mujeres ... Francamente ... Yo no
(PACHECO, 1966, p.65). Já não estamos mais no cortiço estamos sé para que hablarles de amor, hacerles sentir un instante de esa
com outra classe social, em outra realidade. Aqui nos grandeza si después las va uno a largar así a que sufran” (PACHECO,
encontraremos com uma situação que se fará muito comum a 1966, p.66-67). A personagem aparenta ser uma evolução de don
partir de 1920. A partir do Centenario (1910) aproximadamente, a Andrés, mas com uma diferença ele interage mas profundamente
classe alta abandona as visitas aos prostíbulos e opta por ter uma com os integrantes da patota, ele forma parte dela, não olha tudo
mantida à que monta um apartamento. A nova classe governante de fora. Mauricio frente ao seu suposto sentimentalismo, que para
progressivamente frente as pressões formais do poder imita aos
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nos seria humanidade, é titeado por Enrique que o compara a um estão burlando um pobre padre de família. Mauricio solicita que
grande filósofo. volte mais tarde. Quando sai Benigno o chama de velho louco e
Podemos focar a violência da obra em tudo o que for Enrique rindose da sua burla, aclara que nunca receberá ao mesmo
diferente aos integrantes do grupo, ao que por ser o outro, é que os outros estrangeiros aos que devem, o francês do piano, o
maléfico. Consideramos que esta concepção de alteridade é a que judeu dos moveis, o espanhol da quitanda, etc. Eles mantem o
justifica que a falta de respeito e a desvalorização aos imigrantes apartamento e a sua mobília mediante estafas a imigrantes que
seja tão grande. Esta se manifesta mediante diferentes burlas e consideram a escoria da sociedade e dos quais consideram valido
enganos, com auxilio dos quais se aproveitam da boa fe e aproveitar-se sendo eles superiores.
humanidadedos imigrantes. Trabalhando dessa forma também A patota tem um arrimado (Maneco), um homem maior,
com outros integrantes sociais que não pertencem ao seu grupo. (segundo designado por Enrique um velho) que como passo a sua
Nesta peça todos tem dinheiro. A heterogeneidade aqui se produz vida de festa em festa não construiu nada gastando toda a sua
entre ricos, quase todos os personagens o são. A tensão se produz fortuna e aproveita dos restos da patota e tenta ser a voz da sua
entre os chamados arrivistas (os imigrantes que enriqueceram no consciência, dá-lhes conselhos, etc. Maria chora enquanto volta
território) e os aristocratas que se achavam os verdadeiros donos com Maneco. Maneco tenta defendê-la e é ofendido. Ante o qual
do pais e com verdadeiro direito de deter a autoridade monetária Mauricio os critica novamente como pessoas que nada sabem e
da nação. nada fazem da vida a não ser coisas fúteis: “¡Quésaben! O tocar
Estes filhos de aristocratas agem como miseráveis, como tangos, o pegar trompadas, o hablar de baile o de carreras ...”
verdadeiros integrantes do baixo mundo. As personagens não (PACHECO, 1966, p.70). Maneco se apresenta como um produto
pagam o aluguel do apartamento e vivem enganando ao dono, o dessa vida, como uma consequência dela, tenta ser uma
gringo Cristini. No momento da peça devem seis meses e Enrique advertência. Nas suas próprias palavras para ele já é tarde e
foge (rindo da sua burla) e deixa a Mauricio para enrolar a Cristini prefere ser destratado, já esta acostumado, e morrer junto a
com a sua filosofia. Cristini é um italiano que utiliza uma mistura “esses caveiras” no meio dessa alegria artificial é o que ele quer;
de italiano e espanhol (cocoliche), mas veste como um lorde contrapondo assim que os outros se realmente quiserem podem
(opondo-se a opinião da época sobre o italiano). Escondido mudar.
Benigno que foi a avisar a chegada do italiano ri da burla. O Após a tensão da cena anterior temos uma cena musical
imigrante os acusa de que o estão estafando, pois não pagam e que remarca a superficialidade dos integrantes da patota, uma
supostamente tinha sido alugado por dois estudantes, mas o fiador musica onde três personagens malham falando da importância de
não existe e são como vinte. Além disso, fazem sempre festas com estar sarados pela estética (“fuertes y sanos / lindas
mulheres bêbadas. Os vizinhos falaram que a casa se transformou piernashinchadas / y gordas manos” (PACHECO, 1966, p.71)) e
em um lugar da indiada (patota violenta dos meninos de bem), eles para poder destruir a qualquer um que se interponha no caminho
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(“me preparo galantemente / y a cualquierfarabutti / le rompo um dele e perguntam se já fez os favores solicitados. Talvez sem
diente” (PACHECO, 1966, p.71). Ao mesmo tempo descrevem suas compreenderem realmente o que ele insinuou. A verdadeira
egoístas e anárquicas ações: “pego enfurecido a cualquier ganso”, função de Maneco é levar a frente as estafas e as enganações que
“provoco a quine me place”, “hago y deshagocuanto me ocorre” e os jovens não são capazes ou não querem levar a cabo. Assim é
“a nadierespetamos” (PACHECO, 1966, p.72). A violência como se aproveita da sua velhice fazendo-se passar por um
voluntaria e fortuita os caracteriza regada a bebida e a professor de Pedro para enganar a tia e pedir dinheiro. Os jovens
intimidação, fecundada por uma falsa valentia. O conteúdo da tem dinheiro mas o malgastam na sua vida noturna e não pagam a
letra faz mais sinistra a obra demonstrando a impunidade que tem ninguém.
os seu atos, chegando a ridicularizar aos personagens. Nesta peça a frase que descreve a situação é a de Maneco
Maneco não forma realmente parte do grupo, é permitido “¡Entretanto la vida se desliza!” (PACHECO, 1966, p.75). Lema que
que participe da patota para que faça favores, mas principalmente se repete e designa a perca de tempo, da sua vida dos jovens em
para ter alguém com algum grau de inferioridade para titear, neste futilidades e vivendo da agressão, os enganos e as trapaças. Pois
caso especifico pela sua velhice (“viejocalavera”), muitas vezes ele como o foi Andrés o fez em Los disfrazados, Maneco faz de
não participa das atividades pois esta “harto de ser la inocente interprete, é assim como descreve as características dos
víctima de ajenas y agresivasdiversiones...” (PACHECO, 1966, personagens e o alter-ego de Mauricio. “Vos sos el único que
p.73). Mas quando manifesta este pensamento é chamado de consigue aqui ponerse serio. Vos no sos como ellos. ¡En el fondo
agressivo por Pedro um dos que malhava na cena anterior, frente de cada uno hay un índio!” (PACHECO, 1966, p.75) e por
ao qual ele da uma resposta que explica muito bem que a vida issotentaafastalo dese ambiente “En cuanto a vos, debes alejarte.
destes estudantes se baseia na violência noturna. Vos no tenés el indio adentro … ¡ellos sí! ...” (PACHECO, 1966,
“MANECO Sí mis imberbes y disolutos amigos; yo ya no me p.76). Aparece novamente a referencia a indiada, além de ser uma
divierto con ustedes, porque no pego a nadie. Al contrario; possível referencia uma outra peça de 1908 La indiada se refere a
si los acompaño bulliciosa y trasnochadamente, es sabido um grupo de jovens que agem de forma mal educada, que tem
castañazo que se pierde (sacándose el sombrero) pelada muita ira e são indômitos.
que se la pilla. No las voy de fuerte y prefiero estos enseres
A vida destes jovens se desenvolve mediante a violência
y quehaceres. (Señalandoelenvoltorio que traía.)”
sem respeito a nenhuma autoridade e assim também agem as
(PACHECO, 1966, p.73).
mulheres que participam do grupo. Enquanto um grupo deles
Com estas palavras, com a autoridade da velhice os titea, chega de fugir da polícia por terem batido em pessoas volta o
os chama do que são e se burla deles também. Os chama primeiro italiano, chamado depreciativamente por Benigno de grévano
de imberbes, jovens que ainda não tem barba ou tem muito pouca, (deveria ser grébano, forma que designa a um italiano estupido,
mas também jovens inexperientes; “disolutos”, dissolutos, ou seja, tonto, besta). Cristini solicita o que é dele más sempre muito
licenciosos, entregados aos vícios. Mas eles também se burlam
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educadamente, como um verdadeiro cavalheiro, o que gera o sainete ou de outro sainete da mesma fase teria a função de
grande contraste com a incontrolável indiada. Trás o italiano chega diversão se transforma em um catalisador da desesperação, do
o francês (dono do piano) que toma assento do lado de Cristini que Deus nos acuda. Os policias expressam a sua impossibilidade de
se queixa da divida, trás ele sobe Rascovich e se junta ao grupo. reação e remarcam a impunidade destes personagens. Chegando
Frente a todos eles Maneco se retira. Todos riem frente a situação, a demonstrar os indefensos que se encontram frente a eles os
se burlam deles e saem nas costas deles, os estrangeiros percebem outros integrantes da população, provando sem nomea-la quem é
e não sabem que fazer, então Benigno os expulsa (“Es paráirse” a verdadeira indiada.O numero musical dos policias termina de
(PACHECO, 1966, p.79)). Após as palavras de Benigno ingressam caracterizar a patota e indiretamente faz referencia a impunidade
Eduardo, Ernesto e Pedrobêbados que agridem aos credores (as que tinham estes jovens de famílias influentes: “Y siendo hijo e
mesmas personagens que nos intimidaram com verbalmente com manate / el bochinchero / hay que tener paciencia / por su dinero,
a sua canção e a sua força física enquanto malhavam). Ernesto / porque hay gran diferencia / entre un mocito bien / y un simple
firma ao francês pela barba e o sacode; e se burla, “le toma el pelo” jornalero.” (PACHECO, 1966, p.82). Para que não tenhamos
(não o titea pois ele é inferior) sobre o que ele fala em francês e o duvidas da impunidade destes jovens vemos como os agentes se
interpreta como quer. Os imigrantes vendo a situação tentam fugir negam a levar a um ex-diputado, segundo eles por ordem do seu
mas o pessoal os segura. Benigno se burla deles espantando-os chefe, a pesar do estado lamentável e agressivo dele. Jovem que
como se fossem animais. Ernesto arrastra ao francês até o piano e se burla deles solicitando que o levem.
após solicita-lhe que toque um tango o enche de porradas porque O ápice da violência acontece no ultimo quadro (terceiro),
não sabe tocar esse gênero, enquanto os outros credores ficam este tem lugar em um café ao ar livre, onde os três agressores
num canto em pânico. Pedro diz a Ernesto que o mate, o francês anteriores bebem junto com mulheres, se burlam de um casal
pede clemencia pelos filhos. Os outros começam a sair da casa e francês, titean enquanto de outras mesas observam o titeo. Não
trás eles os outros dois credores, mas são seguidos por Eduardo e felizes com titear o casal se burlam de dois compadritos que estão
Pedro. Maurício como crítico fala que o estão matando, ali Maneco sentados perto, burlando-se dos seus penteados e as suas roupas.
reafirma a sua declaração “¡En cada unohayunindio!” (PACHECO, Todoneles símbolo de uma tradição, autoridades mitológicasda
1966, p.80) e saem. Ernesto, Pedro y Eduardo voltam carregando coragem já estabelecida que eles não reconhecem e vem como
a Cristinie ao ruso batendo neles impunemente os obrigam a negativas, inúteis. Os compadritos estão em menor numero e
dançar, eles dançam mortos de medo. Ernesto se cansou de bater fogem. Mesmo os supostos símbolos da coragem, as personagens
no francês e os três ante o pânico dos outros dois, se burlam e tidas como violentas são doces ovelhas frente a estes monstros. A
berram bravo para eles. obra vai transformando lentamente esses entes animalizados em
A tensão é aumentada mediante o numero musical dos algo imparável, chegando a dar características fantásticas.
policiaisdo quadro seguinte, uma musica que na fase anterior do
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Como os compadritos fogem deles voltam a pressionar e bagunça. Um agente pergunta que acontece e ele fala era a minha
agredir o casal que pede rapidamente a conta para ir embora e sai irmã. Com esta trágica e leccionadora imagem termina a obra.
recebendo bolinhas de papel que são jogadas pela trupe. Detrás Em estas duas obras os conflitos produto da
deles Maneco aparece falando que a polícia os esta procurando heterogeneidade politica, social e cultural se manifestam com
porque o francês está quase morto, mas eles não esquentam a todas as suas forças, produzindo repetidos enfrentamentos, mas
cabeça pois se sentem intocáveis, inatingíveis, sabem que como da mesma maneira que na sociedade da época não encontram
são ricos não sofreram nada. Maneco inutilmente tenta traze-los a resoluções, tão somente deixam vítimas no caminho. As duas
realidade, lembra a eles que os espera a cadeia. Mauricio critica a peças são dominadas por manifestações de violência de diferentes
violência da qual ele não participou “¡Ha sido um bestialidad!” graus. A indiada característica da época conformada pelos filhos
(PACHECO, 1966, p.87). Como um pai Maneco os adverte para não dos poderosos do período estende sua injustiça e violência, a
brincar com fogo, mas continuam ignorando-o. vítimas sempre fora do grupo, todos os que não fossem do grupo
Este é o inicio de uma sucessão de violências que se eram o outro, o suposto mal da sociedade. Destruíam tudo o que
estendem até o desenlace trágico final. De todos os que têm perto não gostavam ou desaprovavam, botavam fogo em lojas,
se burlam e a todos tentam agredir. Primeiro um poeta que quitandas, chegaram a botar fogo em um teatro do período que
atraem a mesa que tentam matar a porradas, depois outro casal tinha colocado em cartaz uma peça que não gostavam; impediam
de integrantes da elite que é titeado e agredido. a livre expressão política. Era um órgão de repressão não
Um dos últimos burlados é um garoto que estava tocando governamental, cruel e desumano; detentor de soberania produto
a arpa. Tenta se acercar a mesa e Maneco o impede e adverte do do poder econômico. Todos estes processos violentos fazem
perigo, mas ele fala que não fazem nada a ele. Ao velo eles se projetar os elementos censurados da sociedade pela consolidação
burlam e pedem que toque um tango e lhe dão de beber. Maneco do domínio dos liberais.
aconselha o garoto a que for embora novamente. O grupo Mas se na primeira obra se supera a forma teatral
continua a provocação jogando papeis e pães. Se senta outro casal artificiosa de Laferrere, nesta segunda se parodia as suas técnicas
no mesmo lugar e começam novamente o titeo, vão a roubar a e a realidade da qual ele foi partícipe. Faz-se uso de essas
mulher do cara e mandar ele embora. Ocasionam uma grande ferramentas como elementos para a reflexão. O titeo e todas as
confusão batem no cara, se ouve um tiro e quando todos fogem os suas formas são utilizadas pelas personagens que reagem da
policiais encontram o corpo sem vida da mulher. mesma forma que o fariam na realidade, impunemente, com
Finalmente um agente os define, foi “¡La indiada amigo, la violência frente aos que não querem aceitar e integrar na
indiada! (PACHECO, 1966, p.91). O menino da arpa que tinha sociedade, configurando a famosa patota de gente bien.
contado que tinha uma irmã que tinha fugido e que sempre a Demostrando assim que não estamos frente a uma simples
procurava nas mesas chora após colher a sua arpa no meio da variação do sainete como festa, senão a um novo tipo literário que
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adquire com Carlos Mauricio Pacheco características próprias que BERGSON, H. La risa. Ensayo sobre la significación de lo cómico.
o transformam em profundamente reflexivo e critico, heterogêneo Madrid: Alianza Editorial, 2008.
e em processo de cambio profundo como a sociedade mesma,
sendo muito mais que uma forma estereotipada e fixa como o é o GALLO, B. R. Historia del sainete nacional. Buenos Aires: Quetzal,
considerado gênero teatral nacional pela historiografia tradicional, 1959.
o grotesco. Gênero que de tão estruturado pertence a um único
autor (Armando Discepolo) e mais especificamente a somente MASOTTA, O. Sexo y traición en Roberto Arlt. Buenos Aires: Centro
cinco das suas obras. Editor de América Latina, 1982.
Mas o mais importante de tudo é observar que produto
destas heterogeneidades e alteridades no inicio não aceitas, e ONEGA, G. S. La inmigración en la literatura argentina (1880-
graças a estes imigrantes se conformo e povoou um país dando 1910). Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1982.
uma cultura e identidade próprias ricas e heterogêneas,
conformando o que atualmente se conhece como nação ORDAZ, L. El teatro argentino. Buenos Aires: Centro Editor de
Argentina. América Latina, 1971.
Podemos concluir que o titeo é uma forma de violência
discursiva que funciona como vinculo entre a relação do estado PACHECO, C. M. Los disfrazados. In: Teatro Rioplatense (1886-
com a lei de residência e a arte. Com o titeo estamos frente a uma 1930). Venezuela: Biblioteca Ayacucho, 2ª edición 30 de junio de
forma de organização social que funciona mediante o escárnio, 1986.
que vai do escárnio ao ninguneo. O discurso se organiza de uma
forma violenta e isto terá que ver com uma realidade histórica, ______. La patota. In: Los disfrazados y otros sainetes. Buenos
com uma heterogeneidade nunca reconhecida. Mas que será Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1966.
percebida por Pacheco e colocada em obras que se estrearam no
teatro. Planteando assim um nível de resistência, de autocrítica PELLETTIERI, O. El sainete y el grotesco criollo: del autor al actor.
frente ao modelo oficial estabelecido. Buenos Aires: Galerna, 2008.

Referências RAMA, A. La ciudad letrada. Montevideo: Arca, 1998.


BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Media e no Renascimento.
O contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo: Huicitec, 2008. SALAS, H. El tango. Buenos Aires: Emecé, 2004
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VIÑAS, D. Literatura argentina e política II: De Lugones e Walsh.


Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1996.

______. Mirada de Clubman y arquitectura teatral. In: La crítica


moderna. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1968.

______. Introdução. In: Teatro Rioplatense (1886-1930).


Venezuela: Biblioteca Ayacucho, 2ª edición 30 de junio de 1986.
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ESTRUTURAS DE AUSÊNCIA: FLORES DE MARIO BELLATIN Zeitgaist da arte moderna, isto é o“ espírito unificador que se
Álvaro Mendes de Melo comunica a todas as manifestações de culturas em uma dada fase
UNEMAT/PPGEL histórica” (ROSENFELD, 2010, p.75). É este Zeitgaist moderno, que
esteve na base do romance deste período, com suas determinadas
Esse trabalho tem por objetivo analisar alguns características, o que parece se modificar em algumas narrativas
fragmentos narrativos contidos no livro Flores (2001), de Mario contemporâneas. Por exemplo, o romance Flores (2001) do autor
Bellatin. A partir da reflexão sobre esta obra, que se insere dentro mexicano Mario Bellatin, a partir de sua constituição estrutural,
das chamadas narrativas contemporâneas (LADDAGA, 2007), suscitou-nos algumas indagações sobre o gênero romance na
buscaremos perceber como alguns elementos constitutivos do contemporaneidade, pois o universo ficcional construído por
romance moderno são empregados por Mario Bellatin, com o Bellatin já não estrutura-se nos moldes do que convencionalmente
intuito de ver em que medida o emprego desses elementos se chamou-se romance moderno, o que também poderia indicar, que
diferencia ou se assemelha ao modo que foram empregados no a constituição do espírito de época modificou-se na
romance moderno. contemporaneidade.
Por modernidade, em consonância com Vattimo (1992), Esta estruturação peculiar de Flores pode ser observada já
entendemos que seja todo o grande período, compreendido entre na constituição estrutural do livro, enquanto objeto propriamente
o início do iluminismo europeu no século XVII ao fim das grandes dito, pois, podemos verificar, bastando para isso apenas folhar o
guerras mundiais, já no século XX. Toda esta etapa, de certo modo, livro, que estamos diante de um objeto distinto em relação ao que
teve como característica comum considerar “a história humana convencionalmente se chama romance. Ele chega ao leitor em um
como um progressivo processo de emancipação, como a cada vez envelope plástico, composto de cinco blocos de papel, nos quais
mais perfeita realização do homem ideal” (VATTIMO, 1992 p. 08). se pode ver ainda a cola utilizada para juntá-los, o que dá a
Nesta afirmação, pode-se perceber que o homem ocupa o centro impressão de algo inacabado e incompleto, fato que já alerta ao
de seu destino na modernidade e também ela é, acorde ao que leitor sobre a configuração peculiar do objeto que tem em mãos.
afirma Cortázar (1974), “Uma consciência “lúcida [...], presente em Além disso, ao folharmos o livro, vemos, sobre uma lauda de fundo
toda literatura moderna, para qual nada é mais importante do que verde, blocos de textos dispersos, que variam de tamanho de
o homem como tema de exploração e conquista” (CORTÁZAR, página para página. Tais características começam a indicar que
1974, p. 64). poderíamos estar diante de um objeto diferente ao que
Assim, na modernidade, o futuro do homem era o convencionalmente chama-se livro de romance.
fruto imediato de sua própria realização, devir este, sempre Ainda em relação à estrutura do livro, ele organizado a
alicerçado sobre um metarrelato, constituído por uma partir de um conjunto de trinta e cinco blocos de textos, que, em
determinada ideia de verdade. Tais características constituíam o muitos casos, devido ao diminuído tamanho deles, a página em
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branco ocupa mais a lauda que o texto propriamente dito. Em cada e por isso, estas pequenas peças, parecem não fazerem parte da
um destes trinta e cinco blocos, encontraremos pequenas histórias composição de uma unidade maior. Sinteticamente o enredo de
todas encabeçadas por um título, a saber, o nome de uma Flores foi visto do seguinte modo por Terron:
determinada espécie de flor, como rosas, cravos, etc.. [...] há o cientista que descobre certo fármaco cuja
Ao começarmos a leitura, percebemos que realmente composição causa deformações físicas, outro que
estamos diante de uma narrativa distinta, pois a história que diagnostica vítimas do produto, e entre elas descobre
começamos a ler na primeira página, não terá seguimento no mutantes que buscam se beneficiar da indenização do
laboratório, os gememos que são encontrados sem braços
próximo fragmento, e, avançando as páginas, indo a um novo
nem pernas e adotados por um poeta, há um homem, o
fragmento, nos sentiremos ainda mais desconcertados, pois,
Amante Outonal, que tem especial atração por velhos.
enquanto leitores, sempre estaremos com a impressão de que (TERRON, 2004, P.01).
perdemos o “fio condutor” do relato. Ao prosseguirmos na leitura
terminaremos por perceber que as histórias apenas Nessa mesma perspectiva do enredo, Michael afirma que:
aparentemente não se relacionam entre si, pois em boa medida, [...] En Flores se registra el destino de distintos personajes
en varias atmósferas, unidos por su condición de seres
elas gravitam em torno da personagens que apresentam como
nacidos con severas malformaciones genéticas, debido a la
característica comum alguma má formação genética ocasionada
prescripción de fármacos altamente tóxicos a mujeres
por um determinado fármaco. embarazadas. Esa corte de mutantes se desplaza por el
Estas histórias, descontínuas e fragmentadas não ocupam mundo buscando una manera propia de traducir su
mais que uma página e são narradas em terceira pessoa. Algumas religión o su sexualidad ante la evidencia de la deformidad.
vezes, algumas delas são retomadas pelo narrador em outro (MICHAEL, 2014, P.01).
relato, outras vezes não. Todos estes elementos supracitados nos
Pode-se ver que, em suas considerações sobre o enredo da
levou ao um questionamento em torno a tal estruturação
obra Flores, Terron e Michael apontam para a existência de várias
romanesca: como categorias como enredo, tempo e espaço
histórias, cada uma delas com diferentes personagens, como o
(cronotopo), e personagem, estão empregadas?
cientista, o Amante Outonal, que perambulam em alguma cidade.
No que diz respeito a essas categorias tradicionais do
Constatam que o atípico enredo de Flores, está sempre se
gênero romance, podemos ver, em primeiro lugar, que, em relação
deslocando de qualquer eixo de sentido, o universo tramado,
ao enredo, Flores diferencia-se do romance moderno, pois as
criado, por Mario Bellatin é pouco dado aos resumos.
histórias apresentadas na obra não se deixam resumir em apenas
Parece-nos que, para extrairmos de Flores alguns de seus
uma história. A impressão é que o enredo está em construção e
sentidos, temos que ver as histórias desarticuladamente, ou seja,
desconstrução, sempre fugidio. Em cada fragmento, parece haver
da forma que se apresentam, e não construir apenas um único
um enredo incompleto que nem sempre é retomado pelo narrador
resumo do enredo. O primeiro fragmento, por exemplo, é
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intitulado Rosas. O fragmento parece assim se intitular, porque o verdades, estar sempre oscilando. Tal essência da obra na época
consultório do cientista, um dos personagens deste primeiro da reprodutibilidade técnica, a distancia, segundo Vattimo, da
fragmento da narrativa “fica numa pequena edificação de madeira “definição metafísica tradicional da arte como lugar da conciliação,
cercada de jardins cobertos de roseira” (BELLATIN, 2001 p.06). da correspondência entre interior e exterior, da catarse”
Nesta primeira história, o narrador menciona algumas (VATTIMO, 1992, P.53).
personagens, como a secretária Henriette Wolf, o cientista Olaf A obra de arte na contemporaneidade, não sendo mais o
Zumfelde e o escritor sem perna. Além disso, ficamos informados lugar da conciliação e da catarse, e de afirmações de respostas,
que a secretária trabalha para o cientista Olaf Zumfelde e que, segundo Vattimo, passa a exercer sobre o seu observador, dois
anos antes, ele havia descoberto que más formações em recém- novos efeitos, o primeiro deles é o de Stoss, termo cunhado por
nascidos foram causadas por um medicamento feito a base de uma Heidegger, para explicar a angústia produzida por uma obra que
determinada substancia. O terceiro personagem deste primeiro não promove ou realiza uma determinada verdade. E o segundo
fragmento é o escritor sem perna, que entra de repente na história, efeito, o de shock, próprio da estética dadaísta e mais tarde
ou seja, entra na narração, não por necessidade do relato, mas por apropriado pelo cinema, diz respeito ao modo como a obra de arte
uma espécie de digressão do narrador. Ao mencionar o escritor é concebida dentro de uma experiência tardo moderna, como um
sem perna, o narrador insere, neste primeiro fragmento, uma projétil constituído por diversas imagens lançado contra o
ruptura na ordem do relato, este mesmo procedimento ele observador.
utilizará ao longo das outras histórias, isto é, a colocação nas Em Flores podemos ver tais efeitos, o de stoss e o de shock,
histórias que está contando de elementos de indeterminação. por exemplo, na projeção de muitas imagens desconexas feitas
Percebemos que este procedimento utilizado pelo pelo narrador, que, logo que são formadas, já são substituídas por
narrador em Flores afasta a narrativa do modelo de narrar outras, o que pede ao leitor uma readaptação constante. E esta
construído sobre a verossimilhança aristotélica, constituída a constante readaptação frente ao enredo que o leitor deve fazer,
partir da apresentação de fatos úteis, necessários e prováveis para se assemelha a definição de shock, conforme podemos ler na
produção de uma história com sentido, para suscitar a catarse. seguinte afirmação de Vattimo:
Pelo contrário, em Flores, o aparecimento de personagens ou fatos [...] O shock de Benjamin parece, pelo contrário, algo de
inesperados, o escritor sem perna, por exemplo, na história que o muito mais simples e familiar, como a rápida sucessão de
narrador está tratando de contar visa romper a sucessão provável imagens na projeção do cinema que exige ao espectador
da história. uma prestação análoga à que se exige a um condutor que
se move no tráfego da cidade. [...] (VATTIMO, 1992, p. 57)
A ruptura da ordem tradicional do desenrolar dos fatos no
enredo de Flores aproxima esta narrativa à essência da obra de Tal rapidez desconexa na projeção das imagens produz a
arte na contemporaneidade, a de não propor e nem afirmar fragmentação e é ela, que está na base do efeito de stoss/angústia,
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pois os fragmentos desconexos em Flores não remetem a nada, ou outra ordem. Convergia para um eixo aglutinador. Já a
remetem para o nada. Percebemos com isto, que as categorias fragmentação em Flores pode ser vista como uma sucessão
romanescas tradicionais, para construir os efeitos de shock e de desordenada de fatos que não convergem para uma unidade, que
stoss, são significativamente alteradas em Flores. colocam a obra, em certa medida, perto do caos e do sem sentido,
Os efeitos estéticos de choque e angústia (shock e stoss), gerando o efeito de angústia identificado por Váttimo como Stoss.
para serem alcançados, sacrificam algumas categorias do romance O efeito de angústia/stoss ocorre em Flores, pois a
moderno, tanto da sua primeira fase realista como de sua segunda conciliação e correspondência entre ser e mundo presentes no
fase, já no século XX (Cortázar,1974). Vattimo aponta também romance até então não se produz nesta narrativa contemporânea.
para o fato de a essência da arte estar sofrendo modificações na A imagem das personagens, do espaço, do narrador e do próprio
contemporaneidade em razão das novas condições de produção e enredo representada na obra quer mostrar um mundo e um ser
fruição na sociedade dos mass media. Condições estas já inconciliável e sem correspondência. A ruptura com esta essência
apontadas por Walter Benjamin no ensaio sobre a Obra de Arte na da arte tradicional, a essência da conciliação e da correspondência,
Época da sua reprodutibilidade Técnica, de 1936. Neste cenário já é alcançada na obra de Bellatin a partir de uma “desorganização”
diferente da modernidade, o comportamento do romance se e reorganização profícuas, à medida que estruturam um universo
modifica, pois a própria experiência do ser se vê alterada na era do sem sentido de redenção, esse que a obra quer representar.
cinema, da velocidade, da comunicação e informação. Este novo Portanto, a aparente ideia de desordem deste romance
contexto, segundo Benjamin (2010), altera a essência (wesen) da contemporâneo é também efeito de construção discursiva. A
arte tradicional, a qual era tida como lugar de conciliação e da fragmentação é o eixo da falta de sentido que busca comunicar o
correspondência entre o interior e o exterior, entre ser e o mundo, romance. Ela é tomada, na obra, com fins estéticos e
definições, de certo modo, ligadas ao papel catártico da obra comunicativos. Dito de outra maneira, o efeito de desorientação,
Vattimo. de choque e de angústia alcançado pela aparente desordem da
Estamos diante de um romance que busca novos caminhos narrativa Flores, coloca-nos diante de uma nova representação
de representação de uma experiência na contemporaneidade. estética em relação à representação ficcional e a experiência
Nesse romance, a relação de causa e efeito, isto é, o efeito de moderna.
causalidade na trama narrativa está dissolvido, o que de certo
modo foi teorizado e até mesmo ensaiado em algumas obras na Referências
modernidade. Agora é, efetivamente, posto no centro da BELLATIN, Mario. Flores. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
representação romanesca contemporânea. Como podemos ver
em Flores, a circunstancialidade ou um determinado instante, não
compõe uma linearidade, perde-se. A dispersão moderna era de
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BENJAMIN, W. O Narrador. In:BENJAMIN, W. Magia e técnica,


arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva,


1974.

LADDAGA, Reinaldo. Espectáculos de realidad: ensayo sobre la


narrativa latinoamericana de las últimas dos décadas- 1ª Ed.-
Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2007.

VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio


D’ÁGUA, 1992.
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LOS PASOS PERDIDOS Y EL CUERPO SIN LUGAR: ALEJO dias que correm entendemos o corpo não apenas como
CARPENTIER Y LA TEMÁTICA DE LAS CORPORALIDADES receptáculo da alma; seu papel vai mais além e interfere no modo
Amanda Brandão Araújo Moreno como todos nós lidamos com as coisas do mundo e com nós
UFPE mesmos. Nosso objetivo neste trabalho é analisar a temática das
corporalidades associada ao romance Os passos perdidos, de Alejo
Diante das conhecidas imagens eu me perguntava se, Carpentier. Entendemos que pensar e expressar as corporalidades
em épocas passadas, os homens teriam saudade das através de uma literatura que busca ainda seu lugar, como a
épocas passadas, como eu, nesta manhã de estio, tinha literatura hispano-americana, traz aportes não só sobre essa
– como se os tivesse conhecido – de certos modos de literatura, mas sobre os homens de nosso tempo.
viver que o homem perdera para sempre. Alejo Creio que o primeiro passo para situar nossa discussão está
Carpentier justamente em definir de que corporalidade falamos. Como
sugerimos acima, os estudos atuais, em geral, já rechaçaram a
Preliminares: do corpo, da literatura e das relações que ideia da dualidade entre corpo e mente. Pensar no corpo hoje é
queremos discutir pensar nas redes de relações entre ele e o indivíduo que
O século XX, em seu conjunto, deu lugar a uma série representa, em suas simultaneidades, interferências e inter-
paradigmática de mudanças culturais na sociedade ocidental, relações. De acordo com Fernando Silva,
algumas delas com raros precedentes. Pode-se dizer que foi um Um corpo é um complexo de relações de forças (no sentido
século de emancipações: coloniais, feministas, políticas, nietzscheano), de fluxos de energia ou desejo (no sentido
econômicas, tecnológicas... Cada esfera de nossa sociedade deleuzoguattariano), o jogo da différance (no sentido
parece ter sido revitalizada através de novos vieses, novos derrideano). É um erro conceber um corpo ainda na
concepção platónica e religiosa, como dualidade de matéria
formatos e suportes. Como é de costume, as mudanças que
e espírito, e não como physis-psyché composto sempre pela
ocorrem no meio mudam também o modo como o homem se
mesma energia embora com funcionamentos diferentes,
relaciona não só com o novo, mas com o mundo a sua volta e com produções diferentes em relações diferentes. O corpo
também consigo mesmo. O mesmo século XX deu espaço a uma é esse Uno-Múltiplo, conjunto de quantidades de força com
série de discussões exatamente sobre esse tema: o das relações do diferentes qualidades (aquilo que, no entender de
homem com o meio e, talvez com igual peso, do homem consigo Nietzsche, surge como activo ou reactivo) em relação com
mesmo, seja considerando o plano psicológico, seja considerando outras quantidades e qualidades de força. Um corpo faz-se
o plano físico, corporal. Os estudos sobre a corporalidade se pela relação e exprime-se em relação a outros corpos, tocar
expressam nos mais variados meios artísticos e acadêmicos, e ser tocado, ver e ser visto, sentir e dar a sentir, afectar e
gerando uma série de discussões profícuas sobre seu objeto. Nos afectar-se. Contudo isto não diz o que é um corpo, a
dificuldade de se falar do corpo existe porque ele resiste à
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linguagem, isto é, tudo o que ele implica no desenrolar da É também pela dificuldade de realizar análises como a que
sua história, nas suas potências e possibilidades esquiva-se tentamos empreender aqui que delimitamos os pontos que
à linguagem, à língua. (SILVA, 2007, p. 45) queremos discutir. Tentaremos deixar de lado algumas
E ainda assim existe um grande número de estudos sobre obviedades, como diz Silva, como o fato de ser necessário um
as linguagens corporais e sobre o corpo inscrito na linguagem corpo que escreva para que haja literatura (embora também esse
escrita. O corpo resiste à linguagem mas há pontos de ruptura, em conceito possa ser discutido e problematizado) e como o fato de
que a resistência cede à necessidade de expressar seja lá o que for que a literatura representa corpos, fala de corpos e corporalidades
e essa expressão costuma se dar no terreno na cifra. A literatura e se vale delas para elaborar seus temas mais básicos. Neste
parece “dá a ver o duplo, a cópia, o substituto, justamente para trabalho tentaremos abordar as corporalidades através de dois
questionar a integridade ontológica do ‘original’. Ela questiona aspectos básicos: o primeiro é observar o corpo como prisão, como
justamente a existência de um corpo humano puro, original, agente limitador, queremos pensar o sentir-se preso em seu
perfeito” (MONTEIRO, 2003, p. 75). Ainda segundo Fernando Silva, próprio corpo. Um segundo aspecto é observar as relações entre
o corpo determina a unidade potenciadora de toda a literatura. corpos, espaço/tempo e a libertação do corpo-prisão. Nesse
O corpo é determinantemente, a partir desta articulação quesito o intento é reafirmar como a interação com alguns espaços
dos pensamentos de Derrida e Deleuze/Guattari em e com atemporalidades pode gerar a liberdade daquele que antes
resposta àquilo que julgamos existir imanentemente na estava preso em si mesmo. O ponto de partir para discutir esses
relação entre o Corpo e a Literatura, a unidade dois pontos básicos e alguns outros que surgirão a partir deles é o
potenciadora de toda a literatura. Não nos queremos romance Os passos perdidos, de Alejo Carpentier. Parece-nos
reduzir à afirmação real e simplista, de que sem um corpo relevante, antes de mais nada, trazer algumas palavras sobre o
não há literatura, o que nos parece óbvio. Mas também
autor e sobre o conjunto de sua obra.
pode haver corpo sem existir literatura. A literatura é um
produto do corpo se a pusermos a nossa máquina desejante
a funcionar nesse sentido. À pergunta de Espinosa, que No rastro de Carpentier: a trilha dos passos perdidos
Deleuze recorrentemente cita, o que pode um corpo?, Alejo Carpentier é um escritor cubano nascido nos
respondemos quase de rampante que ele pode tudo, primeiros anos do século XX. Filho de um arquiteto francês e de
embora saibamos que o conhecimento do que realmente uma professora russa, passou muitos anos de sua vida transitando
pode um corpo terá de ser produzido infinitamente na entre o velho e o novo continentes, fatos que o levaram a aprender
conjugação de várias disciplinas científicas e nunca mais de um idioma desde cedo, a uma educação que não se
alcançado, porque uma vez “tocado” perde-se o corpo pela restringia aos moldes europeus – apesar de fundamentada por
différance e pela própria finitude de um corpo, o seu fim eles – e a uma relação nem um pouco trivial entre várias culturas.
desde origem inscrito no corpo, a sua morte. (SILVA, 2007, Do ponto de vista literário, Carpentier é considerado um dos
p. 45, grifos do autor)
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precursores da novelística atual e um dos principais expoentes do formulação do conceito de real-maravilhoso, e de toda sua
romance hispano-americano do século XX. O autor foi um nome proposta literária.
importante na discussão em torno da ideia de América e de Em Os passos perdidos, publicado em 1953, Alejo
América Latina. Em geral suas obras dialogam com ressonâncias Carpentier traz a história de um musicólogo descontente com o
históricas ou literárias, além de musicais, que de alguma forma trabalho e com a vida amorosa que não encontra em nada ao seu
tangenciam a temática ou fazem dela seu tema principal. O redor a satisfação. O livro está organizado como um diário de
continente americano está retratado em seus escritos como uma viagem, narrado em primeira pessoa pelo protagonista. Carpentier
realidade maravilhosa, dotada de privilégios estéticos comenta a origem do romance; segundo ele a ideia nasceu numa
extraordinários se comparados com os europeus. Carpentier viagem à Venezuela.
tentou assumir a experiência latino-americana em sua totalidade, A terra venezuelana foi para mim como uma zona de
“o mito passou a ser o próprio real, compreendido na contato com o solo da América, uma forma de me internar
simultaneidade de suas perspectivas prováveis” (JOSEF, 1993, p. em suas selvas e conhecer o quadragésimo dia da Criação;
101); o autor procurou criar uma unidade entre os temas numa viagem ao alto Orinoco convivi um mês com as tribos
mais primitivas do Novo Mundo. Então nasceu em mim a
americanos e a cultura universal, integrando as ciências e as artes
ideia de Los Pasos Perdidos. (CARPENTIER, apud QUIROGA,
no romance. A busca realizada é não apenas da própria identidade,
1984, p.31)
mas a de toda a Hispanoamérica.
Porcentagem significativa dos textos a respeito do autor Vindo de um casamento fracassado, o personagem
traz uma citação em comum: “¿pero qué es la historia de América principal do romance não se identifica nem fisicamente nem
toda sino una crónica de lo real maravilloso?”. A constante afetivamente com as coisas no mundo que o cercam. O romance
repetição da pergunta retórica do autor, registrada no prólogo ao em questão, considerado aquele que inaugurou o período de
livro El reino de este mundo (1949), não é gratuita: ela resume em plenitude de seu autor, trata da história de um musicólogo, como
poucas palavras não apenas o projeto literário de quem as já dissemos, frustrado com sua vida. A pedido de um amigo,
escreveu, mas também sua visão histórica, política e cultural a empreende uma viagem às selvas da Venezuela em busca de
respeito da América. Jorge Quiroga diria que “todos os livros de instrumentos musicais de origem indígena primitiva para integrar
Carpentier tendem a esta nova descoberta, que é, na verdade, a um museu organológico. A viagem é um rumo ao atemporal:
descoberta do real” (1984, p. 64), em toda sua obra procede quanto mais se distancia das cidades e entra em contato com as
reconstruindo, desmistificando, “investigando, tentando decifrar, florestas reconhece um passado que nunca conheceu mas que lhe
redescobrindo. O enigma do real, a multiplicidade de imagens, de é familiar. Como já foi dito por outros estudos, o romance traz
formas, são o material de sua narrativa, a busca de uma muitos traços autobiográficos. Trata-se de um livro sobre
linguagem” (QUIROGA, 1984, p. 65), a qual resultará na reencontros: do homem consigo mesmo, com seu passado
imemorial, com as origens do que se é, com uma América perdida
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e nunca antes encontrada e, ponto de nosso maior interesse neste interpretar alguma vez. Ia de Norah a Judith, de Medeia a
trabalho, reencontro (ou no caso de alguns personagens, o Tessa, com a ilusão de renovar-se; mas essa ilusão fora
desencontro) com o próprio corpo. vencida, por fim, pela tristeza dos monólogos declamados
No primeiro capítulo, o personagem principal se encontra em frente do espelho” (CARPENTIER, 2009, p. 7)
numa grande cidade, perdido entre as obrigações conjugais, as Na impossibilidade de encontrar-se satisfeita com suas
frequentes fugas, não mais divertidas, com a amante e seu grupo funções e escolhas, esse complexo de relações e de fluxos de
de amigos e os afazeres do trabalho, que ele mesmo considera energias assume também o tom do estado mental, sem nunca se
frívolo e de baixo valor, visto que se resumia à composição de desligar dele. Ruth (a esposa) era uma mulher pálida, sem cores,
músicas para comerciais. Todas as descrições que faz de suas que apenas dava à memória a lembrança de uma corporalidade
atividades e de si mesmo nesse momento estão relacionadas à viva e vibrante que já se esvaíra. Vivia a repetir a encenação que
insatisfação, que se relaciona e reflete em seu corpo. A vida do representava essa corporalidade que, no momento em que o
protagonista na grande cidade oscilava entre afazeres e vazios. romance se inicia, já não é mais que lembrança. Também o
Segundo ele mesmo, era um “exasperado por não poder mudar personagem principal é um duplo com seu corpo. Este não o leva
nada em minha existência, regida sempre por vontades alheias, onde quer ir, não entram em conformidade. Ambos, marido e
que apenas me deixam a liberdade, a cada manhã, de escolher a mulher, são prisioneiros do próprio corpo, não mais estão à
carne ou o cereal que prefiro para meu dejejum” (CARPENTIER, vontade com suas corporalidades. A ideia de prisão muitas vezes
2009, p. 18). O próprio casamento era-lhe um dever a cumprir; nos aparece inclusive textualmente, como no excerto a seguir.
domingos, único dia disponível na agenda, o casal cumpria sua E ao deixar minha esposa em seu palco no início da
“convivência do sétimo dia”. Ruth, a esposa, era uma atriz que apresentação da tarde, tinha a impressão de devolvê-la a
representava a mesma peça há anos. O narrador a considera uma um cárcere onde cumprisse uma condenação perpétua.
cativa de seu próprio corpo: Soava o disparo, caía o falso pássaro do segundo terço de
Seria preciso o gênio de uma trágica ímpar, para se desfazer bambolinas, e dava-se por terminada a Convivência do
daquele parasita que se alimentava de seu sangue: daquela Sétimo Dia (CARPENTIER, 2009, p. 8)
hóspede de seu próprio corpo, presa em sua carne como um O personagem principal empreende a viagem com sua
mal sem remédio. [...] Cada vez mais amargurada, menos amante, Mouche, a quem também despreza: considera-a uma
confiante em realizar de fato uma carreira que, apesar de
frívola admiradora da astrologia e do universo surrealista europeu,
tudo, amava por instinto profundo, minha esposa se
apenas vagamente intelectualizada, seus desejos são vãos e sua
deixava levar pelo automatismo do trabalho imposto, como
eu me deixava levar pelo automatismo de meu ofício. Antes, opinião superficial, estava unido a ela tão somente por um “hábito
ao menos, tratava de salvar seu temperamento num dos sentidos” (CARPENTIER, 2009, p. 77).
contínuo repasse dos grandes papeis que aspirava a
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A viagem funciona como encontro apenas e segue num sentido inverso: Mouche perde a beleza e a
progressivamente: de uma grande cidade norte americana, o vitalidade, definha. Podemos ver esse processo através da
narrador passa a uma capital latino americana e só então viaja para descrição do próprio musicólogo, que transcreveremos mais
o interior da selva. No percurso abandona sua língua corrente, o adiante. A viagem ao centro da selva exemplifica a influência dos
inglês, e retoma o idioma de sua infância, o espanhol. Esse é talvez afetos no corpo: “a barca desapareceu agora na distância de um
o primeiro reencontro do enredo, que é cheio deles. estuário, encerrando com sua partida uma etapa de minha
as mudanças de altitude, a limpidez do ar, a mudança dos existência. Jamais me senti tão leve, tão bem instalado em meu
costumes, o reencontro com o idioma de minha infância, corpo, como esta manhã” (CARPENTIER, 2009, p. 165). Essa nova
estavam operando em mim uma espécie de regresso, ainda aprendizagem e o encontro são irreversíveis, o narrador nunca
vacilante mas já sensível, a um equilíbrio perdido fazia mais será o mesmo: fechou-se uma etapa de sua existência. Para
muito tempo (CARPENTIER, 2009, p. 75)
Mouche, por outro lado, o encontro com uma realidade outra
E esse equilíbrio se demonstra através da mudança de sua gerou afetivamente consequências distintas, demonstrando como
corporalidade, como indicaremos a seguir. O fato de a narrativa o corpo tem a ver com a percepção afetiva do ambiente:
ser em primeira pessoa intensifica a percepção das mudanças que Agora me assombrava de como a matéria mesma de sua
ocorrem como sendo experiências dos sentidos, apontando para figura, a carne de que era feita, parecia ter murchado desde
uma atuação sensorial dos corpos. Em sua viagem, o personagem o despertar daquela última jornada de navegação. A cútis,
principal acaba por se afastar de sua amante, deixa de querê-la por maltratada por águas duras, avermelhara-se, descobrindo
zonas de poros demasiadamente abertos no nariz e nas
perto. Encontra em seu caminho uma terceira mulher, uma latina
têmporas. O cabelo se tornara como que de estopa, de um
de nome Rosário, que lhe desperta o interesse, inicialmente pelo
loiro verde, desigualmente matizado, revelando-me o
“pitoresco” mas depois pelo estímulo a um estado corporal outro muito que devia seu acobreado brilho habitual ao manejo
no personagem principal, que gerou um bem estar perdido há de inteligentes colorações. Sob uma blusa manchada por
muito tempo. É interessante notar como se dá essa “troca” de resinas estranhas, caídas das lonas, seu busto parecia
amantes a partir da percepção que o musicólogo tem das menos firme, e mal conservavam o esmalte umas unhas
corporalidades femininas. No caso de sua amante inicial, Mouche, partidas pelo constante agarrar-se a algo que a vida nos
existe o processo inverso ao que vai ocorrer com o musicólogo. Na impusera num convés lotado de baldes e barris, do galpão
grande capital norte-americana, Mouche sentia-se extremamente flutuante que havia sido nosso barco. Seus olhos de um
confortável consigo mesma e com seu estado de vida. Estava castanho lindamente jaspeado em verde e amarelo,
satisfeita com suas escolhas, orgulhava-se de seu corpo, enfim: refletiam um sentimento que era mescla de aborrecimento,
cansaço, asco a tudo, latente cólera por não poder gritar até
encontrava-se num estado simbiótico consigo e com o mundo que
que ponto se tornara insuportável essa viagem que havia
a cercava. No transcorrer da viagem, entretanto, esse estado muda
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empreendido, no entanto, com frases de alto júbilo literário corporalidade. Tomamos aqui a liberdade de propor uma
(CARPENTIER, 2009, p. 132) comparação intersemiótica entre as descrições de Mouche e
É interessante observar como se dá o trânsito de uma Rosário em seus estados iniciais e duas obras de Diego Rivera.
amante à outra. Rosário, inicialmente, representava o pitoresco:
“não estava bem vestida nem mal vestida. Estava vestida fora da
época, fora do tempo, com aquela intrincada combinação de
bordados, franzidos e cintas, em cru e azul, tudo muito limpo e
engomado” (CARPENTIER, 2009, p. 90), enquanto Mouche
representava o conhecido. Com a nova realidade também um
novo desejo se instaura e os afetos mudam de composição. Passar
a entender, aceitar, admirar e desejar o corpo de Rosário, é como
um exercício de aprendizagem de uma nova linguagem. Ruth, a
esposa, musa distante, ou Mouche, musa segunda, são espaços
conhecidos, terra natal e terreno cativo; são língua sistema.
Rosário, por outro lado, requer uma educação visual, sensorial.
Quando aprendeu a ler Rosário, quando desvendou sua
linguagem, cobiçou-a: universo paralelo incorporado ao berço.
Rosário, no entanto, nunca se torna língua sistema, resta sempre,
até a despedida, uma surpresa. Ela escapa às previsibilidades do
narrador.
É interessante notar que essas mudanças de afetos que
implicam mudanças de percepção das corporalidades, no caso de RIVERA, Diego. Retrato de la señora Natasha Gelmann, 1943.
Os passos perdidos, só ocorrem em virtude da viagem, dos Fonte: Google Imagens
deslocamentos. O musicólogo e sua amante viajam da grande
capital rumo à selva venezuelana e apenas nesse trânsito ocorrem
alterações. Também é possível dizer o mesmo sobre o caso de
Rosário, ainda que haja menos referências materiais no texto que
sirvam para fundamentar suas transformações, as quais, a bem da
verdade, foram muito mais discretas, o que pode sugerir uma
estabilidade maior quando a sua percepção da própria
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Dos traços físicos às roupas e expressões faciais, a comparação


ajuda a ilustrar as corporalidades de que falamos antes.
Também é interessante notar o modo como o narrador se
refere ao contato que tinha com os corpos das duas mulheres. No
primeiro caso, o de Mouche, fala de uma animalidade temporária
que assumia para afastar a fadiga que o envolvia em sua vida na
cidade. Como no excerto a seguir:
Mas na noite seguinte enternecia-me só de pensar em seus
desplantes, e regressava à sua carne que me era necessária,
pois encontrava em sua profundeza a exigente e egoísta
animalidade que tinha o poder de modificar o caráter de
minha perene fadiga, passando-a do plano nervoso ao plano
físico (CARPENTIER, 2009, p. 28).
Quando fala de Rosário, entretanto, são variados os relatos
que apresenta. No primeiro contato, à primeira vista, a descrição
que formula sobre ela é quase sociológica, como podemos ver no
RIVERA, Diego. La vendedora de alcatraces. trecho abaixo.
Fonte: Google Imagens
De onde eu estava só podia ver um pouco menos da metade
de seu semblante, de pômulo muito marcado sob o olho
A primeira obra poderia ser uma representação de
alongado até a têmpora, que se afundava em profunda
Mouche, amante do personagem principal, com quem sombra sobre a voluntariosa arcada da sobrancelha. O perfil
empreendeu a viagem. Quando interpretamos alguns traços de era um desenho muito puro, da testa ao nariz; mas,
sua corporalidade, vemos a natureza apenas ao fundo e uma inesperadamente, sob os traços impassíveis e orgulhos. A
mulher aos moldes ocidentais europeus, com maquiagens, joias, boca se fazia espessa e sensual, alcançando uma bochecha
vestido que marcava seu corpo. Sua expressão demonstra magra, em fuga para a orelha, que evidenciava
segurança, autoafirmação, uma posição de poder e controle. Já no intensamente o modelado daquele rosto emoldurado por
segundo caso, poderíamos traçar um paralelo com a personagem uma pesada cabeleira negra, recolhida, aqui e ali, por
Rosário. Misturada com a natureza, sua presença não pretende presilhas de celuloide. Era evidente que várias raças se
impor-se, mas compartilhar a experiência, seus traços, singelos, encontravam misturadas nessa mulher, índia pelo cabelo e
pelos pômulos, mediterrânea pela testa e pelo nariz, negra
conotam não só simplicidade, mas alguma inocência, serenidade.
pela sólida redondez dos ombros e por uma peculiar largura
do quadril, que acabava de perceber ao vê-la levantar-se
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para por a trouxa de roupa e o guarda-chuva na rede de conscientemente meu próprio exotismo, ante uma
bagagens. (CARPENTIER, 2009, p. 88-89) dignidade inata que parecia negada de antemão à
acometida fácil. (CARPENTIER, 2009, p. 115-116)
Em outro momento, já tendo-a conhecido, essa descrição
ganha novo tom. Muda, também, a percepção sobre Mouche. Essa passagem não só nos situa frente à opinião cambiante
Como podemos ver a seguir: do narrador como também frente às interferências e interrelações
Além do mais, a jovem crescia ante meus olhos à medida que existem entre o espaço - e com isso que se compreenda
que transcorriam as horas, ao estabelecer com o ambiente também geografia – e o corpo. A deslocação corporal e geográfica
certas relações que me eram cada vez mais perceptíveis. implicou uma alteração significativa nas corporalidades e nos
Mouche, ao contrário, tornava-se tremendamente afetos. Em razão disso, mudaram também opiniões e juízos quanto
forasteira dentro de um crescente desajuste entre sua ao novo estado de coisas.
pessoa e tudo que nos circundava. Uma aura de exotismo
condensava-se em torno dela, estabelecendo distâncias
À guisa de conclusão
entre sua figura e as demais figuras; entre suas ações, suas
maneiras, e os modos de atuar que aqui eram normais. A temática das corporalidades tem chamado a atenção da
Transformava-se, pouco a pouco, e, algo alheio, mal academia para seus pressupostos, os quais incluem a ideia de que
situado, excêntrico, que chamava atenção, como chamava o corpo ultrapassa as fronteiras da biologia e se constitui como
atenção antigamente, nas cortes cristãs, o turbante dos uma construção simbólica plural que se representa de forma
embaixadores da Sublime Porta. Rosário, em compensação, distinta no espaço e no tempo. Posto isso, “pensar no corpo como
era a Cecília ou a Luzia que volta a engastar-se em seus discurso significa desconstruí-lo, pluralizá-lo servindo-se dele
cristais quando se termina de restaurar um vitral. Da manhã como um espaço de transgressão de linguagem e pluralidade de
à tarde e da tarde à noite fazia-se mais autêntica, mais sentidos” (DINIZ, 2002, p. 01). Os estudos da literatura e da teoria
verdadeira, mais cabalmente desenhada numa paisagem e crítica literárias já tentam incluir há algum tempo essa temática
que fixava suas constantes à medida que nos
no rol de seus modos de observar e interpretar o texto literário.
aproximávamos do rio. Entre sua carne e a terra que se
A obra de Alejo Carpentier, em especial a que aqui se
pisava estabeleciam-se relações escritas nas peles
ensombrecidas pela luz, na semelhança das cabeleiras discute, Os passos perdidos, é matéria de análise que dá espaço às
visíveis, na unidade de formas que dava aos corpos, aos discussões sobre as corporalidades, ainda que essa não fosse
ombros, às coxas que aqui se enalteciam, um feitiço comum necessariamente intenção do autor à época da publicação do
de obra saída de um mesmo torno. Sentia-me cada vez mais romance. Neste, os corpos transitam entre os espaços e adquirem
perto de Rosário, que se tornava mais bela de hora em hora, novos formatos de corporalidades, ainda que provisórios. Esse fato
diante da outra que se esfumava em sua atual distância, reafirma a tese de que o local é um dos determinantes do corpo,
aprovando tudo que dizia e expressava. E no entanto, ao bem como dos afetos. A leitura do livro de Carpentier sob esse viés
olhar a mulher como mulher, via-me torpe, coibindo
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aponta para uma espécie de corpos de entrelugares e de SILVA, F. M. M. A. P. Da literatura, do corpo e do corpo na
corporalidades transitórias, que estão à mercê do tempo, do literatura: Derrida, Deleuze e Monstros no Renascimento. Covilhã:
espaço, da geografia e dos afetos para elaborar respostas, também Universidade da Beira Interior, 2007. Tese. Disponível em
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A CRIAÇÃO LITERÁRIA EM BELIZE: EMERGÊNCIA DE UMA imprevisibilidade defendido pelo escritor martinicano foi gestado
LITERATURA HISPANA EM CONTEXTO OFICIALMENTE precisamente através de sua observação da realidade caribenha,
ANGLOPARLANTE lugar de confusão e imbricamento de variadas informações
Amarino Oliveira de Queiroz culturais numa realidade nova que seria relida como crioulizada,
Eidson Miguel da Silva Marcos anos mais tarde, através das considerações desenvolvidas em sua
UFRN Poétique de la Relation (1990): uma realidade onde as culturas que
afirmam sua identidade como raiz única tenderiam a se tornar
A definição do que vem a ser o Caribe pressupõe um compósitas, indo ao encontro de outras raízes.
questionamento contínuo e, no mais das vezes, distante de Por sua vez, em artigo dedicado à experiência civilizacional
representar um conceito minimamente consensual para diversos caribenha, a escritora cubana Nancy Morejón (2011) defenderia
setores da crítica contemporânea. Conforme assinala Hugo Viera também que, justamente pela grande diversidade e dinâmica
Colón (2014), chegou-se mesmo a cogitar a possibilidade de cultural característica da região e seu entorno, torna-se arriscado
integrar ao entorno caribenho os arquipélagos das Canárias e de estabelecer uma definição única que contemple, de forma
Cabo Verde, iniciativa justificada pelos vínculos históricos e satisfatória, um entendimento mais abrangente e representativo
sociolinguísticos que estes territórios africanos apresentam com a do que vem a ser o Caribe em toda a sua heterogeneidade. Não
área do Caribe oficialmente reconhecida. Tal dificuldade inicial obstante, elencando alguns elementos diferenciadores
sinalizaria, no entanto, um nova possibilidade de negociação: os consubstanciados a partir do sucessivo contato sociocultural e
estudos mais aprofundados do universo caribenho passariam a linguístico entre as populações autóctones, os europeus
considerar não apenas a região insular que se estende desde Cuba colonizadores e os africanos escravizados, Morejón situa o mundo
até Trinidad y Tobago, mas também as margens continentais caribe como um espaço que narra a história de um somatório de
contíguas ao mar Caribe - na América Central, o Panamá, a Costa povos transplantados cujas experiências comuns teriam se
Rica, Belize e a costa dos Mosquitos nicaragüense; na América do tornado mais importantes do que as diferenças que os
Sul, o Suriname, a Guiana, a Guiana Francesa e os territórios caracterizam. Desta forma, um possível viés narrativo dessas
costeiros da Venezuela e da Colômbia. mesmas histórias poderia traduzir, por exemplo, a consciência de
Atendo-se à trajetória cultural e literária das Américas e do que esses territórios representam hoje, do ponto de vista cultural
Caribe na segunda metade do século XX, o escritor e crítico e linguístico,
Édouard Glissant chamava a atenção para o fato de que a atividade una especial Torre de Babel en cuya cúspide aparecen las
poética do continente poderia ser pensada em termos do que ele lenguas metropolitanas, es decir, las lenguas traídas por los
sintetizou como poética do diverso, caracteristicamente conquistadores (inglés, francés, holandés y español)
heterogênea, múltipla e imprevisível. O conceito de escoltadas por infinitos compartimentos habitados a su vez
por lenguas autóctonas, originarias, - exiguas algunas pero
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aún con vida – y aquellas, que llamamos creoles, revisitadas, sociocultural e linguístico à parte dentro da realidade centro-
reinventadas por nuevas poblaciones cuyas raíces se nutren americana e caribenha.1
de esa diversidad cultural (MOREJÓN, 2011, p. 70) Com fronteiras terrestres delimitadas por países
Tal possibilidade - a identificação de uma história narrada oficialmente hispanófonos e suas milhas marítimas demarcadas
que tenta registrar as experiências comuns num patamar de pelo mar Caribe, o país centro-americano só veio a tornar-se
relevância que se sobreponha ao estabelecimento das diferenças - independente em 21 de setembro de 1981, dividindo com São
vem deflagrar, aqui, a tentativa de aproximação cultural, Cristóvão e Nevis, Antigua e Barbuda a condição de mais jovens
linguística e literária em torno da realidade contemporânea de Estados das Américas. Por abrigar, conforme destacamos, uma
Belize, uma vez que o jovem Estado-nação centro-americano grande diversidade étnica, cultural e linguística em seu pequeno
conforma, ainda hoje, um espaço pouco visitado quando espaço territorial, a antiga Honduras Britânica registra, ao lado do
pensamos nas pautas da pesquisa hispanista levadas a cabo a inglês oficial, o castelhano majoritário, o crioulo belizenho, o
partir do Brasil. spanglish, as línguas maias e o garífuna das populações afro-
Descrita por estudiosos como Cayetano (2011, p. 67) na ameríndias, para dar alguns exemplos de seu intricado mosaico
condição de uma sociedade multiétnica, multicultural e etnolinguístico.
multilíngue que forma uma ponte com a comunidade caribenha, a O uso efetivo da língua inglesa em Belize configura uma
realidade atual de Belize aponta para um Estado constituído sobre realidade bastante singular. Conforme assegura Mauricio Andrés
a inclusão imperialista de populações provenientes de culturas Cardona Ramírez (2012), o fato de que os falantes de inglês
bastante diversificadas entre si, a exemplo dos maias, crioulos, representem apenas 6% do total num país em que este é o idioma
mestiços, africanos, europeus e asiáticos, nomeadamente indianos oficial motivou uma comunicação no mínimo bilíngüe entre a
e chineses (SÁNCHEZ, 2009, p.212). Inclua-se aí um contingente maioria de seus habitantes, quer dizer, uma permanente interação
humano bastante peculiar, que é o das populações garínagu, ou entre as línguas nativas (espanhol, garífuna, maia etc.), a língua
garífuna, originário do encontro entre os arawaks-caribs e os franca (seja o crioulo belizenho ou o spanglish) e o inglês, ainda
africanos escravizados que constitui um capítulo histórico, político, que este último costume limitar-se ao entorno acadêmico,
turístico ou, ainda, a um contexto meramente oficial (RAMÍREZ,
2012, p. 9).
1
Em linhas gerais, conforme assegura Gabriel Izard (2004, p. 99) os garífunas um coletivo cafuso e transnacional, além do território belizenho os povos
constituem “el grupo étnico resultante del mestizaje entre indígenas caribes y garífunas estão distribuídos em outros espaços pelas Américas, a saber:
negros fugitivos en las Pequeñas Antillas en el siglo XVI. El gentilicio garífuna Guatemala, São Vicente e Granadinas, Nicarágua, Honduras e comunidades
(garínagu en plural), apareció a finales del siglo XVIII y es una derivación de emigrantes nos Estados Unidos, principalmente nas cidades de Los
calínago (comedores de yuca), que es como los habitantes de las Antillas, Angeles, Miami e Nova York.
llamados caribes por los europeos, se nombraban a sí mismos”. Na condição de
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No que tange especificamente à ocorrência da língua diretamente a representatividade dessas línguas e dessas
espanhola em Belize, sabe-se que desde iniciativas pioneiras como alteridades na construção de uma narrativa polifônica da nação
as desencadeadas pelos veteranos linguistas Antonio Quilis e belizenha, permeada por tantos vieses reais e simbólicos em
Manuel Alvar (1984), redimensionadas por alguns estudos mais paralelo:
recentes, se aponta para um sucessivo crescimento desse registro. 1. Como tratar de uma possível narrativa diversificada da
O avanço da língua vem aumentando à proporção que aumenta o nação onde, mesmo flagrantemente minoritário, é o
número de hispano-falantes decorrente da emigração e também inglês o idioma de prestígio e de poder, elemento
pela contínua melhora nas relações institucionais entre Belize e os historicamente legitimador da experiência literária
outros países hispânicos, possibilitando ao próprio sistema escrita do país a nível de visibilidade internacional?
educativo local uma regularização sintonizada com esta realidade 2. Qual o impacto cultural que as outras línguas nacionais,
em particular (SÁNCHEZ, 2009, p. 214). A presença cultural e mesmo refletindo experiências escritas e criações
linguística do castelhano em território belizenho veio literárias na oralidade anteriores ou posteriores à
proporcionando, ao longo de sua trajetória histórica, outras colonização britânica, tiveram ou têm na realidade
demandas e tomadas de posição. Isto deflagaria, entre tantas literária belizenha contemporânea?
outras questões, a necessidade de uma expressão literária Em seu estudo intitulado “Panorama del texto literario en
comprometida e afinada com os segmentos hispânicos em Belice, de tiempos coloniales a tiempos post-coloniales”, o escritor
ascensão no país, tema do qual trataremos mais adiante. David Nicolás Ruiz Puga (2001) afirma que as experiências literárias
Conforme assevera Sara Carini (2011), por sua situação belizenhas representam um caso único dentro da complexa árvore
intermediaria entre o mundo anglo-saxão e o mundo hispânico, evolutiva do desenvolvimento da literatura nas Américas. Essa
bem como pelo reconhecimento apenas parcial de sua existência atividade reflete os três séculos de presença colonial inglesa que
política e literária no mapa centro-americano, em Belize se repete conformaram um sistema social, político e cultural bastante
“la situación de vida liminar sufrida por las minorías de diferente daquele que se desenvolveu na América Central
Centroamérica y de toda Hispanoamérica”, na qual espanhola.
la palabra deja de ser sólo un medio para la reconstrucción Apesar da existência de criações literárias na oralidade,
de la identidad, se vuelve el punto de partida hacia la produzidas nas diversas línguas faladas em seu território, a
construcción de una nueva identidad colectiva en donde literatura escrita belizenha foi se desenvolvendo inicialmente em
predomina la alteridad y cuyo texto representa el encuentro inglês, com algumas entradas em espanhol, em crioulo belizenho
entre opuestos. (CARINI, 2011, p. 234)
e em garífuna, podendo ser compreendida, segundo Ruiz Puga
Frente a evidências como as relatadas acima, algumas (2001), em duas principais fases: uma anterior e outra posterior à
questões se colocam de forma bastante contundente e envolvem independência nacional.
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A fase do chamado texto pré-independência vai de meados Conforme anuncia a declaração de David Nicolás Ruiz Puga
do século XIX até o princípio da década de 80 do século XX, como acima registrada, a segunda das fases da historiografia literária
neste fragmento original em espanhol de Edison Coleman, no qual belizenha corresponderia ao período de pós-independência,
o sujeito lírico, para dizê-lo com palavras de Victor Manuel Durán iniciando-se na década de 80 do século passado e projetando-se
(2011, p. 119) reflete “el fervor patriótico de la población beliceña até os dias atuais. Alguns escritores desse período “describen los
en vísperas de la independencia de Inglaterra”. É um tempo em problemas causados por la independencia y aconsejan a los
que, complementa Durán, escritores comprometidos com a causa beliceños que se enorgullezcan de su identidad” (DURÁN, 2011, p.
independentista incitam seus conterrâneos, em várias línguas, “a 134), realçando-lhe a pluralidade e diversidade características. É o
sentirse orgullosos del país y de los héroes nacionales”: que sugere o sujeito lírico deste fragmento poético assinado por
Por el sur y por el norte Phillip Lewis, no qual são incorporadas ao texto original, escrito em
El poniente y occidente, crioulo belizenho, diversas palavras de outros idiomas utilizados
Lucharemos por hacerte no país. Tal estratégia acentua um chamamento à consciência
Belice, independiente. [...] identitária, sublinhando expressamente o respeito às alteridades:
Por tus ríos y tus valles, “Todos son hermanos”.
Por tus montes y tus calles, Así dice el Mestizo
¡Belice! Unidos donde quiera “Ubafu lun Garifuna”.
Digamos, “¡Esta es mi tierra! A wanda weh dende mean?
(COLEMAN, “Esta es mi tierra”. In DURÁN, 2011, pp. 119- When Maya man sey “Koten waye”.
120) da ie temple ie wha sho yu. [...]
Ainda de acordo com o pensamento de Ruiz Puga, o texto All a wi da one a sey
literário belizenho anterior à independência é caracterizado, “Qué pasa?”- yu nho yer mi big
Black mout an mi lata brains
sobretudo, pela poesia e pelo conto, distinguindo-se da literatura man luk ya Bra-da time fi si di
colonial por sua tendência a um expresso reconhecimento da New Belize.
identidade política do país: (LEWIS, “A Si Wha New Belize”. In: DURÁN, 2011, p. 136)
Mientras que el texto antes de la independencia tenía como
Bem a propósito, pese a sua importância como registro
interés el desarrollo de la conciencia política para la
inaugural de uma fortuna crítica e historiográfica para a literatura
independencia, el texto después de la independencia se
belizenha em seus diversos matizes expressivos, esta periodização
orienta más a la política cultural de la nueva sociedad
multiétnica. (RUIZ PUGA, 2011, on line), inicial proposta por David Ruiz Puga não chegou a constituir uma
unanimidade, encontrando mesmo em alguns setores da crítica
local e internacional olhares um tanto quanto divergentes. O já
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referido crítico Victor Manuel Durán, por exemplo, pondera sobre A complexidade lingüística belizenha é tratada com humor
a questão esclarecendo que: através da novela Old Benque: Érase una vez en Benque Vie: já em
La literatura de este país no se puede discutir suas páginas iniciais, uma situação reveladora dessa problemática
cronológicamente, ya que diversos grupos, en diversas é apresentada por um narrador principal cuja intervenção
partes del país, escribían y publicaban sobre los mismos discursiva reabilita o papel dos tradicionais contadores de histórias
temas pero en diferentes etapas cronológicas y en sus na oralidade:
propias lenguas. Por ejemplo, los garífunas en el sur Cuenta mi madre, que le contaba su abuelo, que le decía su
escriben sobre un hecho histórico en su cronología que padre que en aquel entonces, se armó una confusión tal,
ocurrió al mismo tiempo que otro hecho histórico ocurría que los niños salieron hablando Ispamal – mezcla de inglés,
en la historia de los mayas “hispanizados” en el norte del español, maya yucateco y alemán; suficiente razón para que
país. aquel Gobernador que tuvo el valor de visitar el poblado
Entonces, la literatura del país tiene que clasificarse de una escribiera en los Anales de la Colonia: ‘He oído a monjas
manera temática ya que se nota que diversos grupos alemanas tratando de enseñar a niños mayas de un libro
étnicos escribían y siguen escribiendo, simultáneamente, escrito en inglés que tenían que explicar en español’ (RUIZ
sobre los mismos temas”, evidenciando, entre eles, a PUGA in Got seif de Cuin!, 2004, pág. 4).
natureza e sua beleza, o patriotismo, a época colonial, os
mitos e as lendas, o amor romântico, o período da A recepção da crítica à literatura hispano-belizenha e à
independência e o protesto. (DURÁN, 2011, p. 114).
escrita transversal de David Ruiz Puga em particular tem
ultrapassado as fronteiras nacionais. Um exemplo desse avanço
Investindo no mapeamento de uma literatura belizenha
pode ser avaliado através das considerações críticas do escritor
desenvolvida particularmente a partir do texto originalmente
nicaraguense Nicasio Urbina, para quem
escrito em língua española, Old Benque: Érase una vez en Benque
Viejo, de David Ruiz Puga, aparece em 1990 como seu livro La otra vena de la narrativa beliceña, la hispanohablante,
menos numerosa, está distinguidamente representada en
inaugural na categoria narrativa longa, colocando-se ainda como
David N. Ruiz Puga, acaso el escritor hispanohablante más
discurso representativo dos segmentos hispanos dentro da cultura sólido y prometedor [...]. Su novela “Got seif de Cuin” (1995)
local. A ele se seguiriam, do mesmo autor, também numa língua es la mejor refundición de la tradición británica
espanhola permeada por outras interferências linguísticas, a españolizada en el contexto histórico social beliceño
novela Got seif de Cuin! (1994), La visita y otros cuentos (2000) e o (URBINA, 2011).
livro infantil Jonás Matapalo (2002).
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Tal como em diversos outros autores nacionais que espanhol (Mary Gómez Parham, Natividad Obando, Nadia Hamze),
também se expressam literariamente em crioulo, maia ou garífuna (Marcela Lewis, Evadne García) ou crioulo belizenho
garífuna, o exercício espanhol-inglês encontra interessantes (Patricia Sánchez). Esta participação vem se consolidando em
experiências na arte poética de Amado Chan, apontado por Nicasio grande parte no período de pós-independência, visto que a partir
Urbina (2001) como outro representante bilingue da nova poesia daí foram oferecidas maiores oportunidades acadêmicas às
belizenha ao lado do poeta crioulo e rapper Leroy “the mulheres que escolheram especializar-se nas humanidades e, em
Grandmaster” Young: especial, na área de literatura (DURÁN, 2011, p. 137).
Sus dos libros “Generation X” (1999) y “Made in Pink Alley” De acordo com a perspectiva crítica de Werner
(1999) son un buen ejemplo de estas nuevas tentaciones en Mackenbach (2008) em torno da vertente hispana da literatura
la poesía beliceña. Amado Chan es otro representante belizenha, torna-se necessário assinalar que sua existência é real e
bilingüe de esta nueva poesía: “Speak to Me háblaME” que mesmo marginalizada, por razões decorrentes da forte
(1999) reveló a este poeta de ascendencia hispana y
emigração, ela ocupará nos próximos anos um espaço ainda mais
oriental. Su segundo libro “Make de Monarch Blush” (2001)
importante dentro do contexto caribenho e centro-americano,
demuestra una poesía engastada tanto en la tradición
inglesa como en la española, con reminiscencias de Neruda haja vista que
y el espíritu lúdico de Lewis Caroll (URBINA, 2001) Las narrativas centroamericanas siguen siendo
articulaciones de influencias diferentes, mezclas entre el
Tendo iniciado sua carreira artística como componente de Pacífico, el centro (el altiplano, la montaña, el valle central)
um grupo de rap, o poeta Leroy Young costuma desenvolver y el Caribe en todas sus diversidades.
vigorosa performance cênica em recitais de poesia dub com textos Una de las tareas de ahí resultantes será profundizar los
fundamentalmente compostos em crioulo, mas entremeados de estudios de las literaturas centroamericanas escritas en
improvisos em inglês e espanhol, o que confere às suas español que se ocupan del Caribe desde una perspectiva
apresentações ao vivo um caráter coloquial, dinâmico e interior [...]
politicamente engajado.
Otra tarea, no menos importante y pendiente ya hace
A criação literária contemporânea revela um gradativo mucho, es la de dedicar investigaciones exhaustivas al
processo de expansão estilística e temática em Belize, lado a lado estudio de las articulaciones literarias centroamericanas en
com as demais manifestações orais e escritas produzidas nas otros idiomas (inglés, creole, lenguas indígenas). Así la
diversas línguas que circulam num país que mal chegou à casa dos puerta de entrada a Centroamérica, que por mucho tiempo
350 mil habitantes. Levando em consideração a exiguidade do se había transformado en la puerta trasera del istmo, se
quadro populacional, podemos perceber que é significativa a podrá convertir en un portal de las literaturas en
presença autoral feminina, reunindo poesia e prosa de autoras que Centroamérica. (MACKENBACH, 2008, p. 51)
escreveram ou escrevem em inglês (Zee Edgell, Zoila Ellis),
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para caminhos que podem tornar possível, de forma criativa e caribeña. In: Enciclopedia de Puerto Rico. Disponível em:
diversa, a narrativa poética de uma nação marcada, desde as suas http://www.enciclopediapr.org Acesso em: 18 de fev. 2014.
origens, pelo signo da pluralidade de vozes, culturas, idiomas e
etnias. Apostemos, pois, que o impacto cultural dessa experiência, DURÁN, Victor Manuel. Los mayas, criollos, garífunas y mestizos de
meritória já a partir de sua singularidade translinguística, Belice: una muestra literaria. Cuadernos de Literatura, Bogotá:
desencadeie com similar força a continuidade de um exercício Universidad Javeriana, n. 30, Jul – Dic, p. 108-137, 2011.
crítico cada vez mais sintonizado com a diversidade representada
pela escrita literária em geral, bem como pelo particular DURÁN, Victor Manuel. An Anthology of Belizean Literature:
contributo expresso através de outras literaturas de língua English, Creole, Spanish y Garifuna. Lanham, Maryland: U P of
espanhola igualmente invisibilizadas. America, 2007.

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LITERATURA AFRO-HISPANA EM CONTEXTO AHISPÂNICO? usada tradicionalmente para referirse al caso concreto de
A EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA DA REPÚBLICA DOS Guinea Ecuatorial, se pasará a las “literaturas
CAMARÕES hispanoafricanas”, en las que se engloban prácticas
Amarino Oliveira de Queiroz textuales con influencias diferentes y escasamente
vinculadas entre ellas. (LÓPEZ, 2012, p. 92)
UFRN
Enrique Lomas López considera, portanto, a existência de
As Literaturas Africanas de Língua Espanhola cinco diferentes espaços geográficos correspondentes a essas
A considerável ascensão da escrita literária produzida produções. O primeiro deles estaria representado pela literatura
originalmente em espanhol por autores e autoras africanos vem em espanhol da República da Guiné Equatorial, território que além
despertando especial interesse em alguns setores da crítica do espanhol, tem no francês e no português os seus dois outros
hispanista ao redor do mundo. Na tentativa de nomear esse idiomas oficiais. O segundo espaço geográfico relatado por López
emergente conjunto de textos ficcionais e poéticos em particular, teve início no antigo Protetorado Espanhol do Marrocos, ponto de
uma já expressiva coleção de estudos críticos vem apresentando origem de uma literatura hispano-magrebí que se estenderia
distintas referências, que oscilam conforme a perspectiva analítica posteriormente também pelo Protetorado Francês e por
dos pesquisadores envolvidos. diferentes núcleos da costa do Magreb. O terceiro espaço estaria
Em alguns de seus ensaios temáticos iniciais o crítico Mbaré caracterizado pela antiga colônia espanhola do Saara Ocidental,
Ngom (1993), por exemplo, propunha a etiqueta Literaturas tematicamente marcado pelo conflito político e o exílio: como se
Africanas Hispanas para reunir o conjunto de textos literários sabe, desde a declaração da independência em 1976 e a
africanos originalmente escritos e veiculados em castelhano. subseqüente invasão militar marroquina, a situação política do
Landry-Wilfrid Miampika e Enrique Lomas López são dois país permanece sem solução até os dias atuais.
estudiosos que adotaram a expressão Literaturas Hispano- Em quarto lugar figurariam os textos surgidos em torno de
africanas, tendo sido Miampika, juntamente com os pioneiros diferentes centros universitários localizados em países que não
Donato Ndongo-Bidyogo e Mbaré Ngom, entre outros, um foram colônias espanholas, sobretudo a República dos Camarões,
persistente batalhador no sentido da abertura de espaço e onde é corrente a referência a uma particular e profícua literatura
visibilidade internacional para estas literaturas dentro do universo hispano-camaronesa. Por fim, um quinto espaço seria resultante
acadêmico e editorial. das correntes migratórias africanas em direção à Espanha, cujas
De acordo com o pensamento de Enrique Lomas López, expressões literárias foram se desenvolvendo tanto em castelhano
Las diferentes realidades sociales, culturales e históricas, como em catalão ou galego. (LÓPEZ, 2012, p. 93)
mucho más acentuadas que en el caso de Hispanoamérica, De acordo com o pensamento formulado por Jorge Salvo
harán que el conjunto hispánico de África deba ser (2003, p. 1), no entanto, a referência Literaturas Hispano-africanas
considerado en plural. De la “literatura hispanoafricana”,
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implica uma significativa diferença conceitual em relação às Dentro dessa experiência diaspórica peninsular
chamadas Literaturas Afro-hispânicas, uma vez que estas últimas encontraremos significativo contingente de autores e autoras que,
poderiam ser assimiladas também como a reunião dos textos por questões de ordem pessoal, política ou profissional
literários de matriz africana produzida por escritores afro- desenvolveram ou desenvolvem sua produção fora de seus países
descendentes na América de língua espanhola. de origem. Essa escrita, caracterizada inicialmente pelo
Seguindo esta linha de raciocínio (SALVO, 2003, p. 10), testemunho da emigração e do exílio, vem se ampliando
observaremos que o próprio vocábulo “afro” veio apresentando tematicamente e envolvendo escritores das mais variadas
gradativamente um despojamento desse seu sentido geográfico procedências, entre os quais poderíamos destacar:
para assumir, no plano cultural, um patamar que ultrapassa as 1. Agnès Agbotón, do Benim;
fronteiras da mera delimitação espacial. Desta forma é que 2. Landry Miampika, do Congo;
designações como afro-cubano, afro-peruano ou afro-brasileiro 3. Jammet Kalilu, de Gâmbia;
passariam a referir culturas e literaturas desenvolvidas pelos 4. Abdoulaye Traoré e Sidi Seck, do Senegal;
descendentes dos africanos trazidos para as Américas, 5. Zahra Hasnaui, Bahia Awah, Sukeina Taleb, Ebnu, Fatma
fortalecendo assim a diferença identificada através da Ghalia e Limam Boisha, do Saara Ocidental;
argumentação proposta por Jorge Salvo. 6. María Nsúe, Raquel Ilonbé, Donato Ndongo-Bidyogo,
Renomeando essa produção a partir de critérios Remei Sipi, Juan Tomás Ávila Laurel e Justo Bolekia, da
relativamente consensuais, grande parte da crítica Guiné Equatorial;
contemporânea tem adotado a expressão Literaturas Africanas de 7. Mohamed Rekab, Said Jedidi e Mohamed Sibari, do
Língua Espanhola, incluindo-se aí desde estudiosos africanos como Marrocos;
Mbaré Ngom, Donato Ndongo-Bidyogo, Monique Nomo Ngamba, 8. Ou, ainda, Boniface Ofogo, Mbol Nang, Céline Céline
Céline Clémence Magnéché Ndé, Justo Bolekia, Joseph-Desiré Clémence Magnéché Ndé, Guy Merlin Nana Tadoun e
Otabela-Mewolo ou Sosthène Onomo Abena até pesquisadores Inongo Vi-Makomé, da República dos Camarões.
não-africanos como Benita Sampedro, Gloria Nistal, Dosinda À exceção da Guiné Equatorial e do Saara Ocidental,
García-Alvite ou Dulcinea Tomás Cámara. territórios oficialmente hispano-falantes do continente africano,
Esta será a nomenclatura que adotaremos no presente uma marca diferencial vem agrupar a maioria dos escritores
estudo, muito embora pudéssemos desenvolver o entendimento referidos na perspectiva de análise do conjunto dessas literaturas:
da questão incluindo a escrita diaspórica produzida em castelhano, todos eles adotaram o castelhano como idioma original de
voluntaria ou involuntariamente, por escritores e escritoras expressão literária, alguns desenvolvendo inclusive uma escrita
africanos concentrados, sobretudo, no território peninsular literária simultânea em dois ou mais idiomas.
espanhol.
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Dentro desse perfil se enquadram, portanto, os poetas, algumas das quais derivadas da família bantu. Ainda que não
ficcionistas, dramaturgos e ensaístas da República dos Camarões tenham sido oficializadas, essas línguas todas, bantas e não bantas,
acima elencados. Assim, apostando na perspectiva de estabelecer são utilizadas na comunicação pelos variados grupos étnicos que
a continuidade do debate em torno de outras literaturas compõem o seu contingente populacional, sem contar com o
hispânicas a partir do Brasil e dialogando com estudos críticos de crescente desenvolvimento de pidgins. 1
pesquisadores africanos e não-africanos dedicados a este tema em Conforme reiteram os estudos de Gonzáles, Hernando e
especial, o presente estudo pretende levantar algumas Dopico (2009),
considerações historiográficas e analíticas a respeito dessa original Los diversos avatares históricos, que en estos territorios
e emergente criação literária camaronesa em língua castelhana, subsaharianos significan reparto de colonias por parte de
realçando sua transversalidade linguística, cultural e estética. las metrópolis, hicieron que Camerún estuviera primero
bajo el dominio alemán y que, a partir de la Primera Guerra
Mundial, se repartiera entre Inglaterra y Francia. Estos dos
A República dos Camarões
impérios coloniales legaron sus respectivas lenguas, y
Localizado na África Central, fazendo fronteiras com a
Camerún es actualmente un país oficialmente bilingüe: el
oficialmente anglófona Nigéria, os francófonos Chade, Gabão, francés y el inglés son lenguas obligatorias en todos los
Congo e República Centro-Africana, além da hispanófona Guiné niveles del sistema educativo camerunés. Como en la
Equatorial, o antigo território bantu dos Camarões se tornou, ao mayoría de los países del África subsahariana, en Camerún
longo de sua trajetória histórica, colônia alemã, francesa e inglesa, se implantaron estas lenguas de una forma muy rápida, ya
razão pela qual adotou como idiomas oficiais e de expressão que la población las utilizó desde un principio como lenguas
literária duas dessas línguas herdadas da colonização, francas para la intercomunicación entre las diferentes
nomeadamente o francês e o inglês, tornados obrigatórios em etnias y territorios. (GONZÁLES, HERNANDO, DOPICO, 2009,
todos os níveis da educação formal instituída após a sua p. 63)
independência política. Some-se a essa realidade o alemão, cuja oferta obrigatória
Oficialmente bilíngue, o uso efetivo desses dois idiomas se verifica como uma das duas línguas estrangeiras incluídas na
não constitui, porém, uma realidade uniforme, razão pela qual educação formal, ao lado do espanhol. Ainda de acordo com os
poderemos afirmar que o mosaico linguístico da atual República estudos de Gonzáles, Hernando e Dopico (2009, p. 63), são
dos Camarões apresenta um desenho muito mais complexo, precisamente o alemão e o espanhol os idiomas estrangeiros que,
caracterizado pela ocorrência de cerca de outras 270 línguas, além de serem oferecidos por todos os institutos camaroneses,

1
O termo bantu foi utilizado, a princípio, para referir uma comunidade designa o plural, e da palavra “ntu”, ou “muntu”, que significa homem. Na
lingüística conformada por cerca de 450 línguas aparentadas. Conforme reitera totalidade das línguas bantas essa palavra serve para nomear tanto o gênero
Bonifacio Ofogo (s/d, p. 3), a palavra bantu consta da forma prefixal “ba”, que humano como o indivíduo do sexo masculino.
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contam com um maior número de alunos e professores em todos unos 400 millones de personas en el mundo. (GONZÁLES,
os níveis educativos. Implantado na grade oficial através do ensino HERNANDO y DOPICO (2009, p. 63)
secundário desde 1951, mas avançando progressivamente para Seguindo essa perspectiva de análise, os autores apontam
outros níveis ao longo das últimas décadas, é nesse quadro que se o poder midiático, o interesse pelo futebol, a filiação românica do
coloca, de maneira bastante singular, o uso do espanhol como idioma espanhol e sua consequente afinidade com o francês, além
idioma original de literatura em textos diversos de escritores e da proximidade física com a oficialmente hispanófona, lusófona e
escritoras camaroneses poliglotas. francófona República da Guiné Equatorial não somente como
É nesse lugar transnacional, intercultural e plurilinguístico importantes elementos de motivação linguística como também de
que se perfila e toma corpo a emergente e diversificada literatura identificação cultural e estética:
hispano-camaronesa, referência pela qual passou a ser El desarrollo de los medios de comunicación, por otra parte,
reconhecida em diversos estudos na África e na Europa, sobretudo ha hecho que el ciudadano camerunés tenga acceso a
na Espanha. Diante destas evidências, cabe indagar aqui o informaciones sobre España, un país que hasta hace no
seguinte: quais as motivações que justificariam tal expressão em tantos años era un completo desconocido en estos lugares.
língua castelhana num contexto que, a priori, como bem o No podemos pasar por alto la influencia que el fútbol ha
classifica Guy Merlin Nana Tadoun (2013, p. 3) é assimilado na tenido en este acercamiento a la realidad española: todo
condição de ahispânico? mundo en Camerún sabe que hay un jugador camerunés
llamado Eto’o que juega en un equipo español llamado F. C.
Vejamos o que ponderam Gonzáles, Hernando e Dopico
Barcelona, y todo el mundo sigue la liga española de fútbol
(2009, p. 63) no supracitado estudo sobre a atual situação do
como propia.
idioma castelhano nos Camarões:
Si en un principio el alemán superaba al español como También podemos apuntar como causa de este incremento
primera lengua extranjera en Camerún, ahora podemos del interés por el español el hecho de que sea una lengua
decir que la tendencia se ha invertido, y eso a pesar de que románica muy parecida al francés.
los recursos que destinan las autoridades y organizaciones La cercanía de Guinea Ecuatorial, con la que Camerún
alemanas a la difusión y promoción de su lengua son comparte su frontera sur, puede ser también un motivo del
significativamente superiores a los que destina España. Las éxito de nuestra lengua. No parece tan sorprendente, pues,
razones de este cambio, y del interés creciente por el que los cameruneses, obligados por sus programas a
español, pueden ser varias. Por un lado, la lengua española estudiar una lengua extranjera en la secundaria, se
no tiene el estigma de lengua colonial que aún puede tener decanten por el español.
el alemán, y que desde luego tienen el francés y el inglés. El
estudiante que se acerca al español lo hace con una mirada Lo que sí llama más la atención a los pocos españoles e
limpia de connotaciones, consciente de que es la lengua de hispanohablantes que viven en este país es el alto grado de
conocimiento que adquieren estos estudiantes, a pesar de
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la escasez de medios y recursos, y la “pasión” que la literatura hispanoamericana. Cada vez somos más los que
demuestran por el español, al que califican de lengua desde África escribimos en español y también hay muchos
romántica, musical, dulce y melodiosa. No es infrecuente africanos inmigrantes en España que han empezado a
que, cuando se pregunta a un estudiante por sus razones escribir y es sólo una cuestión de tiempo. (NANG, 2010, p. )
para elegir el español, diga que ésta es la lengua de la
Pensando essa “questão de tempo” referida por Mbol
poesía. (GONZÁLES, HERNANDO, DOPICO, 2009, pp. 63-64)
Nang, cabe lembrar aqui o nome de um dos pioneiros dessa escrita
literária hispano-camaronesa: Inongo Vi-Makomé. Em uma de
A Literatura Hispano-Camaronesa suas narrativas, nomeadamente “Tiempos de oscuridad (Carta a
Um dado significativo não tratado pelos três pesquisadores Emèno)”, a tematização do tempo se coloca como uma questão de
espanhóis em questão, mas que entendemos como de igual cariz mais filosófico do que precisamente cronológico, realçada
relevância para o entendimento e consolidação de uma escrita pela perspectiva cosmogônica das sociedades bantu. Assim
literária hispano-camaronesa projetada além de suas fronteiras percebido, o movimento temporal se projeta em ordem espiralar,
internas, diz respeito a questões de ordem menos técnica ou como ocorria na visão tradicional dos antigos bantu, não
estatística e mais abertamente pessoal, profissional e política. necessariamente definido pela lógica da sucessividade
Em entrevista concedida a Lourdes Timoteo em 2010, característica da experiência ocidental:
quando indagado sobre o porquê de um intelectual camaronês ter Emèno:
tomado a decisão de escrever precisamente em espanhol, o crítico
Te escribo estas líneas cuando estoy llegando a esa edad en
literário, ensaísta, poeta e ficcionista Mbol Nang declararía que: la que, en nuestra cultura y realidad negra africana, el
Un camerunés escribe en español por capricho, por pasión hombre ya camina obligado hacia su encuentro con los
por la lengua española y también para comunicar, para antepasados. No puedo decirte mis años porque ignoro los
mostrar al mundo que se puede escribir en cualquier que tengo. Allí no nos fijamos en ellos. No existen. Nuestra
lengua. En Camerún tenemos dos lenguas oficiales, el edad es el tiempo vivido, los acontecimientos acaecidos, las
francés y el inglés, pero yo he tenido la oportunidad de batallas libradas, las experiencias acumuladas… A diferencia
escribir también en español y estoy encantado. [...] de los nativos de aquí, nosotros no vamos al encuentro del
Hoy hay en Camerún más alumnos que estudian el español tiempo, esperamos que sea él el que venga a nosotros. Y así
que personas que hablan en español en toda Guinea hace, llega, nos invade, nos llena, luego nos arrastra [...] (VI-
Ecuatorial. Tenemos muchos alumnos, hay una labor de MAKOMÉ, 2006, p. 13)
hormiga que va cuajando y que está provocando que cada
Além dos temas ditos universais como o amor, o tempo, a
vez haya más interés por el español en mi país. [...]
beleza ou a morte, algumas características recorrentes nas obras
Pronto se hablará del boom de la literatura hispanoafricana hispano-camaronesas dão conta de questões relativas à
como se habló en su día en España y en Europa del boom de nacionalidade, aos mitos fundadores, à identidade cultural, à
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ancestralidade, à interação entre a oralidade e a escritura, à a pesar de su carácter enigmático y elíptico que muy a
convivência entre o tradicional e o contemporâneo, passando pela menudo dificulta el juego - hay que ver que, generalmente,
crítica e a denúncia social, a emigração e o exílio. la adivinanza plantea un problema que no se soluciona con
Nessa “Carta a Emèno” há uma clara referência aos sólo los datos dados por el enunciado; tampoco uno hecha
mano de la reflexión; sus metáforas imprecisas someten la
procedimentos característicos da regulação social nas
imaginación a un tambaleo entre las formas exteriores y las
comunidades tradicionais bantas: o destaque para o papel dos
imágenes inconscientes que se han vuelto prototipos
mais velhos e sua responsabilidade na formação dos mais jovens. oníricos con sentido fijo -, la adivinanza es concebida como
Tal estratégia coloca em evidência uma postura cultural un verdadero punto de partida de la enseñanza, como una
diferenciada, através da qual o respeito à velhice e à metodología didáctica que se desenvuelve a través del
ancestralidade se impõem como valores fundamentais para uma entretenimiento y la diversión. En otros términos, las
convivência social equilibrada entre as diferentes gerações, pois, adivinanzas no desempeñan únicamente esta función
conforme reitera Boniface Ofogo: lúdica. Además de ésta, tienen otra: la didáctica.
Los ancianos representan la sabiduría, la experiencia y son (MAGNÉCHÉ NDÉ, 2002, p. 30)
los que se encargan de transmitir los valores ancestrales a
Além de sua expressão literária autoral, compõe o labor
las nuevas generaciones. Lejos de la segregación física que
literário de Céline Clémence Magnéché Ndé a recolha e tradução
se practica en Occidente entre los ancianos y sus nietos, en
toda África en general son ellos los que se encargan de la ao espanhol de contos orais camaroneses. Grande parte dessas
primera educación de los nietos. narrativas é tributária de sua relação com a cultura do povo
bánsoa, de filiação bantu, e muitas delas são compartilhadas
El respeto y la veneración que se da a los ancianos son tales
diretamente com as crianças mais jovens em forma de reconto.
que el antropólogo Cheikh Anta Diop llegó a afirmar que "en
O exercício da contação de histórias encontra outro grande
África un anciano que muere es una biblioteca que se
quema”. Por extensión, cualquier persona mayor merece el destaque nas atividades desenvolvidas por Boniface Ofongo, misto
mismo respeto. Cualquier adulto tiene la responsabilidad de de griot, escritor e performer que atua para um público de várias
corregir públicamente a cualquier niño, si considera que faixas etárias, contando e recriando tanto oralmente como por
está obrando mal. (OFOGO, sd, p. 9) escrito o universo narrativo da tradição oral bantu. Embora seu
principal contributo se dê através dessa revisitação à oralidade
A particular relação oralidade/escritura ganha relevo
tradicional, reeditando performaticamente os antigos contadores
também em textos como os de Céline Clémence Magnéché Ndé,
de histórias africanos em sessões ao vivo, Boniface Ofogo
que entre outras atividades intelectuais tem se dedicado ao estudo
desenvolve investidas multimidiáticas, não dispensando outros
das advinhações, revalorizando essa modalidade discursiva na
meios de divulgação para as suas obras, como o teatro, o cinema,
dupla condição de gênero literário e ferramenta pedagógica :
o audiovisual e o formato impresso.
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Outra interessante peculiaridade que convém ressaltar na Sendo desenvolvida num contexto que aprioristicamente
literatura camaronesa é o trânsito que autores como o próprio se coloca como ahispânico - ou mesmo como produto da
Boniface Ofogo, e ainda Céline Clémence, Inongo Vi-Makomé, emigração nem sempre voluntária em direção à Espanha, a
Mbol Nang, Germain Metanmo, Robert Johlio, Tikum Azonga, Guy disposição literária hispano-camaronesa configura uma atividade
Nana Tadoun ou Alain Didier Foti Foko desenvolvem, criativa que, tendo ultrapassado os limites originais que a
simultaneamente, por distintos gêneros e línguas. Desta forma, conformaram, reivindica um maior espaço de visibilidade,
alternam sua expressão entre a narrativa curta e o teatro, o interlocução e fluidez dentro do conjunto mais abrangente
romance e a poesia ou o ensaio e o conto oral. No próprio texto de representado pelas literaturas hispânicas na contemporaneidade.
Vi-Makomé cujo fragmento foi apresentado anteriormente, a
sequencial mescla de relato curto, em tom de carta, abre espaço Referências
para uma relação direta com a poesia de Antonio Machado e os FOTI-FOKO, Alain Didier. “La literatura camerunesa de expresión
discursos de Martin Luther King e Nelson Mandela. española”. In: Actas del XLV Congreso AEPE. La Coruña: Instituto
Ainda que muitos desses autores camaroneses sejam Cervantes, 2010. Disponível em: http://cvc.cervantes.es/
também, como dissemos, literariamente bilíngues ou trilíngues, ensenanza/biblioteca_ele/aepe/congreso_45.htm. Acesso em:
torna-se cada vez mais consistente a presença de poetas e 12 de dez. 2012.
ficcionistas (Inongo-vi-Makomè, Robert Marie Johlio, Céline
Clémence Ndé, Bonifacio Ofogo, Germain Metanmo, Guy Merlín GONZÁLEZ, Fátima G.; HERNANDO, Marta M.; DOPICO, César R. “El
Tadoun, Tikum Mbah Azonga) e ensaístas (Mbol Nang, Guillermo Español en Camerún”. In: Anuario Cervantes. Madrid: Instituto
Pié-Jah, Monique Nomo Ngamba, Sosthène Onomo-Abena, Alain Cervantes, 2009. Disponível em:
Didier Foti Foko) que escrevem textos originais em castelhano e ao cvc.cervantes.eslenguaanuarioanuario_06-07pdfpaises_06.pdf
mesmo tempo transitam por gêneros e sistemas literários Acesso em: 22 de abr. 2011.
diferenciados, acumulando, assim, uma expressão
significativamente plural. Nestes termos, para dizê-lo com palavras LÓPEZ, Enrique Lomas. “Estampas de nuestros africanos. Una
de Alain Didier Foti Foko, aproximación general a las literaturas hispanoafricanas”. In:
A menudo, y de forma más marcada en narrativa y teatro, Esdrújula 3/12 Revista de Filología n. 4., p. 91-98, octubre-
pero también en poesía, la obra de estos escritores fluctúa diciembre 2012.
entre corrientes: una proyectada hacia fuera y que busca
transmitir la propia idiosincrasia mediante el MAGNÉCHÉ NDÉ, Céline Clémence. Las adivinanzas Bánsoa o el
costumbrismo; y otra hacia dentro que se produce con la
pasaporte para la Vida. Revista de Folklore, Valladolid: Caja España,
introducción de elementos culturales hispánicos en la
Tomo 22ª n. 253., p.31-36, 2002.
literatura nacional. (FOTI FOKO, 2010, p. 300)
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USOS AMOROSOS DE LA POSTGUERRA ESPAÑOLA OU CRÍTICA cuerpo [...], todos tenían miedo, todos hablaban
AO COMPORTAMENTO DA SOCIEDADE ESPANHOLA NO PÓS- del frío; fueron unos inviernos particularmente
GUERRA inclementes y largos aquellos de la guerra, nieve,
Ana Carolina da Silva Pinto hielo, escarcha. (MARTÍN GAITE, 2008, p. 995).
UFF
Assim como muitos escritores de sua geração, Carmen
Martín Gaite iniciou-se no meio literário produzindo contos e
Ensayar es [...] una operación del espíritu que corresponde
al acto de entender; es el despliegue de la inteligencia a
estreou com um conto intitulado Un día de libertad (1953). Além
través de una poética del pensar y es la puesta en práctica de contos, sua vasta obra abarca poesias, romances, peças de
de nuestra capacidad de interpretar la experiencia y dar un teatro, artigos, traduções e ensaios, sendo este último gênero,
juicio sobre la realidad desde una perspectiva personal. segundo José Teruel, uma "auténtica autobiografía intelectual de
(WEINBERG, 2006, p. 23). la autora." (TERUEL, 2008, p. 9) E, de fato, era por meio de seus
ensaios que Carmen Martín Gaite procurava entender o mundo
Usos amorosos de la postguerra española é um ensaio
em que vivia, voltando o olhar para si própria, para seu interior,
publicado em 1987 por Carmen Martín Gaite, escritora espanhola
partindo de sua experiência de vida para tentar compreender a
pertencente à chamada generación del medio del siglo ou
sociedade na qual estava inserida.
generación de los niños de la guerra, uma vez que os escritores que
Como descrito na citação de Liliana Weinberg que abre este
produziram por volta dos anos 1950 foram crianças na época da
estudo, Carmen Martín Gaite, no seu Usos amorosos de la
Guerra Civil Espanhola e, se não sentiram o efetivo impacto que
postguerra española, procura interpretar a experiência que
toda guerra engendra, pelo menos presenciaram seus efeitos.
vivenciou por meio de sua perspectiva pessoal para lançar sua
E, de fato, nascida em 08 de dezembro de 1925, em
crítica à sociedade espanhola do pós-guerra, pondo à prova seu
Salamanca, sob a ditadura de Primo de Rivera, Carmen Martín
objeto de estudo, experimentando todos os seus pontos fracos, de
Gaite passará, em 1936, pela dura experiência de ter um tio seu
maneira a ressignificá-lo para tentar compreender o período
fuzilado (Joaquím Gaite Veloso era professor de Geografia e
retratado.
diretor do Instituto de Ciudad Rodrigo, onde Carmen Martín Gaite
Após a morte de Franco, em 1975, Carmen Martín Gaite
estudaria; seu delito consistiu em estar filiado ao Partido
começa a consultar revistas e jornais dos anos 40 e 50, mas sem
Socialista), além de ter vivido os sombrios anos da pós-guerra, nos
ter ideia do que realmente faria. Decide, portanto, analisar os
quais umas das sensações mais presentes eram o medo e o frio,
costumes amorosos durante os anos que sucederam à Guerra Civil
como podemos constatar na seguinte passagem de seu romance
Espanhola, fazendo uma retrospectiva desde a década de 40 até a
El cuarto de atrás (1978):
[...] para mí las dos sensaciones más envolventes
de 80, partindo do ponto de vista feminino e procurando
compreender como seus contemporâneos interpretaram e
de aquellos años: el miedo y el frío pegándose al
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viveram sob as amarras da censura do regime franquista e como duros que os da própria guerra. Anos em que as palavras restrição
se comportaram como futuros pais e mães. e racionamento caracterizam e resumem bem o período no qual
De acordo com o que nos informa Liliana Weinberg, "el não se podia comentar sobre a miséria provocada pela guerra:
ensayo es [...] un estilo del pensar y del decir [...]" cidades arrasadas, famílias mutiladas, pessoas exiladas, a
(WEINBERG, 2006, p. 24), ou seja, é uma forma de quantidade de presos superlotando as prisões. Nada disso podia
pensamento e de como esse pensamento é passado ser dito, as pessoas estavam proibidas de olhar para o passado
adiante. Carmen Martín Gaite encontra, portanto, nesse
recente, pois deveriam enaltecer o passado remoto, resgatando o
gênero o meio ideal para lançar sua crítica à sociedade da
conceito de 'espanholidade': ser espanhol era ser castiço, católico
qual ela própria fazia parte. Segundo Max Bense, o ensaio é
e nacional.
a forma da categoria crítica de nosso espírito. Pois quem Publicado em 1987, foi a primeira vez em que se relataram
critica precisa necessariamente experimentar, precisa criar tão claramente os costumes da sociedade espanhola do pós-
condições sob as quais um objeto pode tornar-se
guerra, uma vez que, durante a guerra e o sombrio período do pós-
novamente visível, de um modo diferente do que é pensado
guerra, a censura atuou em várias esferas, como teatro, cinema,
por um autor; e, sobretudo, é preciso pôr à prova e
experimentar os pontos fracos do objeto; exatamente este música, literatura, porém de maneira muito rígida nos jornais, de
é o sentido das sutis variações experimentadas pelo objeto forma que o povo espanhol não tinha acesso ao que de fato ocorria
nas mãos de seu crítico. (BENSE apud ADORNO, 2003, p. 38). em seu entorno. A notícia vinha de fora ou por meio das
entrelinhas dos romances de escritores que não foram exilados da
E é exatamente isso que Martín Gaite, na condição de
já citada Generación de los niños de la Guerra.
ensaísta, faz em Usos amorosos de la postguerra española, analisa
Ao ser publicado doze anos após a morte do General
seu objeto de estudo - a relação entre sexos opostos no período
Franco, a transição da era franquista para um Estado social,
do pós-guerra - a partir de vários pontos de vista, argumentando,
democrático e de direito já havia ocorrido na Espanha, sendo,
elaborando sua crítica, baseada em vários documentos da época,
portanto, permitido à autora abordar abertamente temas
como revistas, relatos, documentários e entrevistas.
impensáveis de serem discutidos até a morte de Franco, como o
Se um ensaio, como afirma Liliana Weinberg no primeiro
apoio da Igreja Católica às barbaridades cometidas pelo regime e
capítulo do livro onde analisa a situação do gênero, é um texto em
as injustiças às quais as mulheres eram submetidas. Composto,
prosa que manifesta um ponto de vista bem-fundamentado, bem-
assim, por nove capítulos permeados de ironia, Carmen Martín
escrito e de responsabilidade do autor com relação a algum
Gaite já inicia seu ensaio de forma bem irônica, com o capítulo
assunto do mundo, Carmen Martín Gaite compõe em Usos
Bendito Atraso.
amorosos de la postguerra española uma excelente fonte para
O capítulo é iniciado com uma citação de Eugênio Pacelli,
quem busca compreender como foram aqueles duros anos do pós-
que, no momento da afirmação, em abril de 1939, exercia o
guerra, os quais muitos escritores afirmam terem sido até mais
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Papado há um mês sob o nome de Pio XII, na qual diz que "de repiensa sus lecturas de nada menos que en el horizonte de
España ha salido la salvación del mundo" (PACELLI apud MARTÍN un orden literario. De este modo, el ensayo no sólo integra
GAITE, 1987, p. 17). Segundo Martín Gaite, com essa afirmação, y reactualiza otras lecturas, sino que se vincula con ellas en
Pio XII se transforma no primeiro suporte ideológico do regime un horizonte general de comprensión [...]. (WEINBERG,
2006, p. 55).
franquista que terá todo o apoio da Igreja Católica. Podemos
perceber o modo irônico com que Carmen Martín Gaite compõe É possível, assim, perceber, desde o início, o tom ensaístico
seu ensaio ao iniciá-lo com a afirmação no mínimo dúbia do da obra pelo desenvolvimento lógico e dinâmico das ideias da
religioso, uma vez que, após ter sido destroçada por uma dura autora, que vai compondo seu texto a partir das experiências
guerra civil, como pode esta mesma sociedade exportar um vividas, argumentando de forma clara à medida que as
modelo de salvação para o mundo? informações vão aparecendo segundo as fontes consultadas. A
Para Lukács, partir dos trechos transcritos do ensaio no decorrer deste estudo,
o ensaio sempre fala de algo já informado ou, na melhor das foi possível perceber a crítica da autora por meio do tom burlesco
hipóteses, de algo que já tenha existido; é parte de sua de sua escrita, muitas vezes presente, inclusive, nos trechos
essência que ele não destaque coisas novas a partir de um usados das fontes de pesquisa da própria autora.
nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as Martín Gaite se baseia, na maioria das vezes, em
coisas que em algum momento já foram vivas. (LUKÁCS
documentos para fundamentar sua argumentação, mas há casos
apud ADORNO, 2003, p. 16).
em que deparamos com a opinião nua e crua da autora, quando,
Após a análise de Usos amorosos de la postguerra española por exemplo, para exemplificar a situação de tira y afloja, ela cita
e tendo como ponto de partida a definição de ensaio para Lukács, que houve "una canción de la época", "un bolero famoso", "Quizá,
podemos perceber a escrita ensaística dessa obra de Martín Gaite, quizá, quizá" (MARTÍN GAITE, 1987, p. 198, grifo nosso), sem ao
na qual, ao fazer um resgate do comportamento da sociedade menos revelar de quem era a canção. Ao utilizar como exemplo o
espanhola do pós-guerra, da qual a própria fazia parte, ou seja, ao bolero composto em 1947 pelo cubano Osvaldo Farrés, Martín
resgatar seu próprio passado, busca compreender o presente. Gaite apoia sua argumentação baseando-se no seu horizonte de
Como afirma Lukács, a autora não parte de um nada vazio, mas sim expectativas, na própria memória, a partir da sua experiência de
reordena fatos passados para que possa interpretá-los. vida, parece que a canção vem surgindo aos poucos em sua
De acordo com Liliana Weinberg, podemos compreender o memória: uma canção, um bolero e, finalmente, o nome – “Quizá,
ensaísta como um quizá, quizá”. Recordando uma música que também fez parte de
lector que completa y consuma sus propios actos de lectura sua história, a autora encontra a forma perfeita para caracterizar
al producir él mismo otro texto. Es el caso extremo del como as pessoas se relacionavam durante sua juventude.
proceso de la recepción: el lector se convierte a su vez en
autor. En este caso, a su vez, este lector inscribe su texto y
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Outro exemplo é quando, no último capítulo, ao tratar provenientes de otros géneros, en un quehacer siempre
novamente da desvantagem da mulher com relação aos homens reactualizado por la imperiosa exigencia de dar a entender."
quando chegavam ao casamento, no desenrolar de suas ideias, (WEINBERG, 2006, p. 28).
assim argumenta: "un autor criticaba así la falta de información Assim, de acordo com Liliana Weinberg, o ensaio se define
sexual que había presidido hasta entonces la educación de las como um trabalho artístico no qual se representa o mundo por
mujeres" (MARTÍN GAITE, 1987, p. 209, grifo nosso). Após isso a meio de uma organização própria, fundamentando-se em
autora até vai comprovar com uma citação da fonte de onde a operações próprias para que realize a "imperiosa exigência de dar
retirou, colocando um número que remete aos detalhes da fonte a entender", ou seja, o que importa nesse gênero é o que o autor
consultada no final do capítulo, no caso um artigo de Ángel nos leva a entender, é o seu pensar, é o seu dizer, é o seu
Fontanet presente na revista El Ciervo, porém, de imediato, de pensamento crítico.
modo a não romper o fluxo de ideias que lhe surgem para compor Carmen Martín Gaite, ao assumir seu papel de ensaísta em
sua argumentação, ela quer logo esclarecer, é como se, num Usos amorosos de la postguerra española, "trata sobre todo de
primeiro momento, dissesse: “Alguém disse isso.”, e só depois se una atmósfera, un clima de pensamiento que implica un explicar
preocupa em fundamentar o que disse. el mundo, estar alerta a respecto de él, interpretarlo y transcribir
Os dois exemplos expostos nos fazem compreender que o dicha experiencia de mundo [...] en una nueva obra". (WEINBERG,
que mais importa no ensaio é o pensamento crítico em si que nos 2006, p. 24).
transmite o ensaísta. O como ele vai compor esse pensamento Gabriel García Márquez inicia sua autobiografia Vivir para
também é importante, mas, se as fontes são seguras ou não, se o contarla (2002) com uma citação que nos parece resumir e definir
que transcreve é real ou insólito, já não importa nesse gênero, o a importância da publicação desse ensaio para a sociedade como
que realmente tem valor é o pensamento crítico que é formado. um todo, mas principalmente, a espanhola:
Liliana Weinberg afirma que La vida no es la que uno vivió,
el ensayo se orienta fundamentalmente en una dimensión sino la que uno recuerda y
explicativa e interpretativa, a la vez que - a diferencia de cómo la recuerda para contarla. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2002,
otras formas en prosa que pueden hacer un empleo p. 2).
meramente instrumental de los signos - lleva a cabo un
trabajo artístico sobre el lenguaje y logra construir una Nesta passagem o escritor colombiano nos ensina a
representación del mundo con su propia legalidad y importância da memória na formação do ser humano enquanto
organización, de modo tal que él mismo pueda apoyarse en cidadão, ao afirmar que a vida de uma pessoa não está constituída
operaciones propias de la narración y la poesía, acentuar la dos vários momentos pelos quais ela passa, mas sim da recordação
teatralidad y el carácter performativo que puede alcanzar la que ela tem desses momentos, e, principalmente, da maneira
discusión de las ideas, a la vez que citar ejemplos como ela recorda os momentos vividos para poder contá-los.
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Sendo assim, Usos amorosos de la postguerra española foi mais GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Vivir para contarla. 11. ed. Buenos
uma das formas encontradas por Carmen Martín Gaite para Aires: Debolsillo, 2014.
interpretar seu entorno. Parafraseando Gabriel García Márquez,
podemos dizer que o ensaio aqui analisado é uma das formas MAINER, José-Carlos. Por el prólogo - Las primeras novelas de
como a autora recorda a vida para poder contá-la. Carmen Martín Gaite. In:
Não podemos esquecer, como nos afirma Jesé Teruel, que
a base da literatura desenvolvida por Martín Gaite consiste em MARTÍN GAITE, Carmen. Obras completas. Barcelona: Editora
refugiar-se dentro de si própria para compreender seu entorno. A Galaxia Gutenberg, 2008, p. 55-100.
partir das reflexões de Adorno sobre o ensaio como forma,
compreendemos que, em Usos amorosos de la postguerra MARTÍN GAITE, Carmen. La chica rara. In: ___________. Desde la
española, Martín Gaite "vira e revira o seu objeto" de estudo, "o ventana. Disponível em:
questiona e o apalpa, [...] o prova e o submete à reflexão", <http://www.carmenlaforet.com/vista_por/11.%20Carmen%20M
reunindo "no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em artin%20Gaite.%20La%20chica%20rara..pdf>. Acesso em: 22 de
palavras o que o objeto permite vislumbrar sob as condições abr. 2013.
geradas pelo ato de escrever". (2003, p. 36).
Esperamos ter conseguido deixar claros os motivos pelos ______. Obras Completas - Novelas I. Barcelona: Editora Galaxia
quais Usos amorosos de la postguerra española se configura como Gutenberg, 2008.
um ensaio fundamental para quem deseja compreender como se
comportavam e se relacionavam as pessoas na Espanha no período ______. Usos amorosos de la postguerra española. Barcelona:
pós-bélico. Alguém que deseje compreender melhor esse período, Editorial Anagrama, 1987.
encontrará neste ensaio de Martín Gaite inúmeros documentos
que caracterizam toda a época, além das reflexões de quem viveu ROZALÉN, Verónica Peña. Usos amorosos en la postguerra de
de perto os longos anos e o ambiente asfixiante da pós-guerra Carmen Martín Gaite. Disponível em:
espanhola. <http://clasesdeapoyonuevo.s3.amazonaws.com/capitulos/apunt
es/9.4.3.12.pdf>. Acesso em: 03 de mai. 2013.
Referências
ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: TIEDEMANN, Rolf TERUEL, José. Por la introducción y las notas - Nombres y tramos
(org. da edição alemã). Notas de Literatura I. Tradução e para una vida en “obras”. In: MARTÍN GAITE, Carmen. Obras
apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 15 completas. Barcelona: Editora Galaxia Gutenberg, 2008, p. 9-54.
- 48.
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WEINBERG, Liliana. I. Situación del Ensayo. In: ______. Situación


del ensayo. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de
México, 2006, p. 15 - 32.

______. II. La Esencial Heterogeneidad del Ensayo. In: ______.


Situación del ensayo. Ciudad de México: Universidad Nacional
Autónoma de México, 2006, p. 33 - 56.
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SUBJETIVIDADE E RESISTÊNCIA: DESLOCAMENTOS E RELAÇÕES Na referida obra, em relação a sua protagonista,


DE AFETO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA IDENTITÁRIA identificamos uma forte representação daquilo a que Castells
À OPRESSÃO (1999) denominou de identidade de resistência e objetivamos
Ana Cristina dos Santos analisar como a autora elabora a construção dessa identidade na
UERJ/IL protagonista, elencando alguns dos elementos que, no romance,
Milena Campos Eich constituem-se como integrantes desse processo. Além disso,
UERJ/PG pretendemos demonstrar a representatividade da figura feminina
em situação de protagonismo em contraposição a uma tendência
Dance, dance, Zarité, porque da historiografia tradicional de colocar nesta condição apenas os
escravo que dança é livre... personagens masculinos. Adotamos, para tanto, a perspectiva de
enquanto dança.’ Eu sempre Hutcheon (1991, p. 122), segundo a qual: “O que a escrita pós-
dancei. moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a
(ALLENDE, 2010, p. 8) história são discursos, que ambas constituem sistemas de
significação pelos quais damos sentidos ao passado”.
Introdução Cabe ressaltar que tais escolhas não pressupõem esgotar as
A análise aqui proposta insere – mas não encerra - o mais possibilidades de análise da referida obra. Ao contrário,
recente livro de Isabel Allende, A Ilha sob o Mar (2010), em uma caracterizam-se por serem os primeiros, de muitos estudos a
das possibilidades de análise que encontram seus caminhos em serem ainda efetivados.
produções que se distinguem por demonstrar a mulher a partir de
uma perspectiva que somente pode ser constituída por mulheres, A Ilha sob o Mar, história e ficção
devido às especificidades, não biológicas, mas culturais, de O romance A Ilha sob o Mar (2010) aborda a trajetória de
construção da identidade dos gêneros, ou seja, naquilo que a luta, sobrevivência, afetos e desafetos de sua protagonista. Uma
crítica feminista tem, contemporaneamente, considerado como mulher, que, na condição inicial de escrava, vivencia não somente
literatura de gênero. toda a opressão pertinente à que sua posição social lhe impõe,
Cabe observar que a obra em questão, ficcional, tem como como também reage a ela, usando as armas disponíveis, que,
pano de fundo a revolução que, em São Domingos, atual Haiti, objetivamente, não são muitas, mas que, subjetivamente,
levou este país a ser o primeiro, em toda a América Latina, a abolir preservam sua identidade e compõem os laços de solidariedade e
a escravidão, sendo este evento o único registro histórico de colaboração entre ela e os grupos aos quais se vincula, nos espaços
revolução de escravos que foi bem sucedido (JAMES, 2010). através dos quais circula.
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Allende se insere em um significativo grupo de escritoras e âmbito das discussões sobre a literatura produzida por mulheres
escritores que produzem a chamada literatura latina “desde las no século XX, redimensionando, assim, a perspectiva de análise
entrañas del monstruo” (SKAR, 1991, p. 9), ou seja, nos Estados linear da história.
Unidos. Adota um discurso multicultural, na medida em que se Pela voz da narração, onisciente, é o discurso hegemônico
define, não mais como uma escritora chilena, mas como latino- que instaura a ordem – ou a desordem, como fruto de suas
americana. Essa perspectiva tem se reproduzido em muitas de contradições internas. Contudo, Allende o apresenta com uma boa
suas obras recentes, como O plano infinito (1992), Filha da Fortuna dose de ironia, porque a história se passa em uma colônia francesa
(1999) e agora, em A Ilha sob o Mar (2010). cuja economia se baseia toda na escravidão, embora a legislação e
Em comum, tais obras, além de privilegiarem a os valores supostamente sigam as ideias iluministas da época.
representação da figura feminina em condição de protagonismo. Protagonistas, coadjuvantes e enredo são apresentados na medida
Também se estruturam em torno de uma trajetória de construção em que sua teia de relações vai sendo constituída e são mostradas
de identidades que, por motivos variados, encontram-se em as motivações e justificativas de cada um deles para assumirem
situações de crise no tocante a esse aspecto (HALL, 2005). Isabel seus posicionamentos diante da realidade que os cerca.
Allende reexamina conceitos como liberdade, identidade e etnia e É um mundo violento, repleto de disputas e inserido em um
questiona o lugar da mulher nas relações sociais. Em seus textos, sistema econômico altamente desigual e competitivo - imposto
as personagens femininas fogem dos estereótipos que primam pelos brancos – no qual todos, independentemente de sua
pela submissão à voz masculina, pela negação do corpo e do prazer, concordância ou não com a realidade, defrontam-se com o fato de
destacando-se, assim, por eleger a condição da mulher sob o pano que ela está dada e que, objetivamente, é preciso sobreviver a ela
de fundo de uma narrativa de reconstrução histórica como objeto e ocupar, cada qual, seu lugar na sociedade. Aos brancos cabe
de sua representação. manter-se no poder, exercendo a violência, física ou ideológica, dos
A obra que ora analisamos, ficcional, insere-se em um mecanismos típicos da dominação. Aos outros, negros, morenos,
espaço e um tempo reais, o Haiti, durante a época da revolução - mulatos, créoles, cabe sobreviver.
iniciada em 1791 - que tornou aquela a primeira república a abolir No entanto, quando a narrativa é passada à personagem
a escravidão em terras latino-americanas (JAMES, 2010). A história Zarité, protagonista do romance, são explicitadas as contradições
é contada, ora pela voz onisciente da narradora, ora pela própria e falta de sentido dos hábitos e tradições europeus diante da ânsia
protagonista, que dá sua própria versão dos fatos, apresentando-a pelo lucro imediato, em contraposição ao sentido de preservação
sob o ponto de vista de uma personagem que, em uma sociedade do bem maior, a vida. A falta de propriedade dos homens brancos
patriarcal e escravocrata, encontra-se nas categorias mais no lidar com a natureza, os afetos, a infância e as mulheres, soa, do
oprimidas possíveis, simultaneamente de escrava e mulher. ponto de vista da escrava, como inumanos. A respeito de sua
Gênero, escritura e identidade são categorias que se interligam no patroa, a quem fora encomendada para servir de companhia e nos
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cuidados de sua alimentação, higiene e beleza, a protagonista A faculdade de “ver mais longe”, adiantando-se aos
comenta, sem disfarçar a incredulidade e o espanto que lhe vêm à acontecimentos e desenvolvendo resiliência e sabedoria para lidar
mente quando ouve dizer que é bonita: “Estava transparente. O com as intempéries, é uma peculiaridade daqueles que, na
patrão dizia que era muito bonita, mas seus olhos verdes e seus configuração dos fatos sócio-históricos, ocupam o espaço de
caninos pontudos não me pareciam humanos” (ALLENDE, 2010, p. “dominados”: “Tété havia aprendido cedo as vantagens de se calar
66). e obedecer às ordens com expressão vazia, sem dar mostras de
Nesse sentido, a obra apresenta, entre outros fatores, a entender o que acontecia ao seu redor [...]” (ALLENDE, 2010, p. 43).
visão dos vencidos, aqueles personagens que Benjamin (1994) Enquanto isso, os dominadores, por força e obra do conforto ao
nomeia como ex-cêntricos e problematiza a questão do discurso qual se apegam, vão tornando-se, paulatinamente, mais frágeis e
como fonte de verdade. Sob essa perspectiva, a narrativa vai vulneráveis à medida que se desenvolvem, e se acirram, os
também ao encontro da abordagem adotada por Velasco Marín confrontos.
(2007), segundo a qual, uma das principais características da Zarité, a escrava, insiste e persiste em manter seu próprio
literatura de gênero – no caso, feminino – é a marca da identidade ponto de vista sobre o desenrolar dos acontecimentos e as diversas
que se traça através da resposta de contraposição ao discurso “tomadas de decisão”, que inevitavelmente implicam mudanças,
hegemônico. por vezes as mais drásticas, feitas por parte dos detentores do
A narrativa, seja nos momentos em que é pronunciada poder, em especial por parte do homem a quem “pertence” na
diretamente por Zarité, seja quando é através da narradora 1 maior parte de sua vida. Apesar de sua posição estar à margem da
reforça a noção de que a crítica feminista se contrapõe, segundo sociedade, em uma dimensão ex-cêntrica a esta (BENJAMIN, 1994)
Velasco Marín (2007), à crítica tradicional. Demonstra que há, sim, a personagem não se deixa submeter em sua identidade pessoal
caminhos possíveis de análise em produções – quase sempre de nem coletiva, apenas simula subserviência, como mecanismo
autoria feminina - que se distinguem por demonstrar a mulher a eventual de sobrevivência, face a uma estratégia maior de
partir de um ponto de vista que só pode ser constituído por conquista posterior da liberdade: “Madame Delphine, minha
mulheres, dadas as particularidades culturais, e não as biológicas, primeira dona, me ensinou a ser silenciosa, vigilante e me adiantar
da construção da identidade dos gêneros. No cenário apresentado aos desejos dos patrões; uma escrava deve ser invisível, dizia ela.
por Allende, um mundo patriarcal e escravocrata, é da condição de Foi assim que aprendi a espiar” (ALLENDE, 2010, p. 221).
observadora que a mulher aprende a lidar com os fatos.

1
Evitamos aqui, por adesão à corrente crítica feminista, usar o termo escritora uma mulher, e embora não possamos confundir as noções de
“narrador”. Richards (1996 apud VELASCO MARÍN, 2007, p. 551) demonstra que “escritor” com a de “narrador”, por um processo de simplificação e de busca de
a suposta neutralidade da linguagem também contribui para o reforço dos coerência, a figura literária que nos conta a história será aqui tratada como
estereótipos de dominação masculina, na medida em que o mascara. Sendo a narradora.
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Diferente postura é adotada pela esposa deste A Eugenia cabe, portanto, aceitar as vontades e decisões de
mesmo homem, a já mencionada patroa de Zarité. Criada em um ambos, por mais absurdas que pareçam. Quando, em momentos
convento, isolada do restante do mundo, Eugenia nada sabe sobre cruciais de sua vida, intenta apresentar alguma oposição aos
como garantir sua própria sobrevivência ou desenvolver sua mandos e desmandos do marido, sua voz é calada, mediante um
própria rede de relações que não seja relativo à missão de tornar- austero: “Não se fala mais nisso!” (ALLENDE, 2010, p. 65), ou
se esposa e mãe, preservando-se bonita e casta. Ou seja, suas mediante o uso de drogas que a dopassem, caso se exacerbasse
preocupações limitam-se a agradar aos homens, adaptar-se a eles. por não suportar algumas das situações a que era seguidamente
Seu casamento, arranjado mediante um “acordo de cavalheiros”, imposta. Quando ambos se hospedaram na casa do intendente de
traz benefícios sociais e econômicos, tanto para seu irmão, La Cap 2 , porque seu marido queria que, no dia seguinte,
finalmente liberto do fardo de sustentar a irmã solteirona, quanto assistissem a um evento público no qual escravos rebeldes – dentre
para o marido, cuja respeitabilidade diante da sociedade branca, eles Macandal, líder das primeiras insurreições que abalaram a ilha
depende, em grande medida, do fato de ser casado. Pouco antes - seriam mortos em uma fogueira, ela inutilmente se recusou a ver,
de ter oportunidade de conhecer o futuro marido, Eugenia posto que estava grávida e se assombraria com tamanho horror:
questiona o irmão, com quem vivia em Cuba, a respeito do Seu marido rogou que baixasse a voz para que o resto da
casamento, e suas dúvidas não parecem um empecilho para ele: casa não a ouvisse, mas ela continuou gritando. O
- É um cavalheiro culto e rico, mas, mesmo que fosse intendente apareceu para saber o que estava acontecendo
corcunda, você se casaria com ele de qualquer jeito. Vai e encontrou sua hóspede quase nua, lutando com o marido.
fazer vinte anos e não tem dote... O doutor Parmentier tirou um frasco de sua maleta, e os três
- Mas sou bonita! homens obrigaram a mulher a engolir uma dose de láudano
- Há muitas mulheres mais bonitas e magras que você em capaz de botar um bucaneiro para dormir. Dezessete horas
Havana. mais tarde, o cheiro de queimado que entrava pela janela
- Você me acha gorda? acordou Eugenia Valmorain. Sua roupa e a cama estavam
- Você não está em condições de se fazer de rogada e muito ensanguentadas; assim acabou a ilusão do primeiro filho.
menos em se tratando de alguém como Valmorain. Ele é um (ALLENDE, 2010, p. 73-74).
excelente partido e possui títulos e propriedades na França, Sucessivamente interditada em suas vontades e identidade,
embora o grosso de sua fortuna seja uma plantação de cana-
Eugenia acaba enlouquecendo, sendo calada definitivamente:
de-açúcar em Saint-Domingue – explicou Sancho. (ALLENDE,
Sete anos mais tarde, em 1787, num mês escaldante e
2010, p.34-35)
fustigado por furacões, Eugenia Valmorain deu à luz seu
primeiro filho vivo, depois de várias gestações que lhe

2
Cidade próxima à fazenda de Toulose Valmorain, senhor de escravos e
proprietário de Zarité, a protagonista.
P á g i n a | 111

custaram a saúde. Esse filho tão desejado chegou quando Antes de se ver obrigado a viver na ilha teria ficado chocado
ela já não podia amá-lo. Transformara-se num amontoado com a escravidão. E teria ficado escandalizado se tivesse
de nervos e perdia-se em estados mentais confusos e conhecido a fundo os detalhes, mas seu pai nunca se referia
caóticos em que vagava por outros mundos durante dias, às ao assunto. Agora, com centenas de escravos sob seu
vezes semanas. Nesses períodos de desvario, sedavam-na comando, suas ideias a esse respeito haviam mudado.
com tintura de ópio, e, no resto do tempo, acalmavam-na (ALLENDE, 2010, p. 17)
com as infusões de plantas de Tante Rose, a sábia curandeira
Tal posicionamento ideológico, contraditório e
de Saint-Lazare, que substituíam a angústia de Eugenia pela
perplexidade, mais suportável para aqueles que deveriam explicitamente inconsistente, justificava-se, em sua consciência,
conviver com ela. (ALLENDE, 2010, p. 75). pelo fato de que não se dedicava, como muitos de seus pares, a
perversões e sadismos de maior impacto, mesmo porque, isso,
É a voz interditada. Foucault (2012, p. 10) nos dá conta do além de perigoso, não era lucrativo. Considerava os escravos como
que a história bem o demonstrou: “Desde a Alta Idade Média, o animais, propriedades suas que lhe deveriam proporcionar
louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros”. produtividade, motivo pelo qual tratou de providenciar meios para
Nesse aspecto, a narrativa desconstrói a imagem de “humanidade” que não morressem “como moscas” (ALLENDE, 2010, p. 13), o que
e “justiça”, normalmente atribuídas aos defensores dos ideais ocorria na época de seu pai:
apregoados pela Revolução Francesa. Toulose Valmorain, o francês Conseguiu um substancioso empréstimo, graças ao apoio e
de ideias iluministas que, vindo à Colônia, supostamente para às ligações que o agente comercial de seu pai tinha com
ajudar seu pai adoentado durante um tempo, acaba tendo que, banqueiros, depois mandou os commandeurs aos canaviais
após o falecimento deste, assumir a produção de açúcar, para trabalhar lado a lado com os mesmos que eles haviam
gerenciando-a em um mundo que vivia, historicamente, a martirizado antes e os substituiu por outros menos
emergência do capitalismo internacional. Torna-se proprietário da depravados, reduziu os castigos e contratou um veterinário
fazenda e dos escravos que nela trabalham. Como não haveria na que passou dois meses em Saint-Lazare tentando devolver
França outro modo de sustentar-se, nem à mãe ou irmãs que lá um mínimo de saúde aos negros. [...]. Valmorain se deu
conta de que os escravos de seu pai duravam em média
permaneciam, decide assumir suas novas responsabilidades,
dezoito meses antes de fugir ou cair mortos de cansaço,
embora intimamente condenasse as práticas associadas à
tempo muito inferior ao das outras plantações. As mulheres
produção e comércio do açúcar, pois se considerava um iluminista. viviam mais do que os homens, mas tinham o péssimo
Pressionado, ora pela necessidade de adequar sua costume de engravidar. Como muito poucas crianças
produção à forte concorrência que se instalava, ora por sua própria sobreviviam, os plantadores concluíram que a fertilidade era
fraqueza de caráter, Valmorain, no que diz respeito ao fato de que tão baixa que não se tornava rentável. O jovem Valmorain
não reconhecia os escravos como humanos, iguala-se, realizou as mudanças de forma automática, sem
progressivamente, a seus pares, de quem antes se dizia enojado: planejamento e rápido, decidido a ir logo embora, mas
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quando o pai morreu, deu-se conta de que havia caído numa resistência e sobrevivência com base em princípios
armadilha. Não pretendia deixar seus ossos naquela colônia diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade,
infestada de mosquitos, mas, se partisse antes do tempo, ou mesmo opostos a estes últimos.
perderia a plantação e, com ela, a renda e a posição social
Assim, tendo tido oportunidade de receber educação, tanto
de sua família na França. (ALLENDE, 2010, p. 14. Grifo nosso).
em sua cultura, de origem africana, quanto na cultura dita “branca”
Isso não significava, no entanto, que seus escravos não – já que era uma escrava “de casa” e não “do eito3”, como se dizia
passassem por humilhações ou atrocidades. Apenas que não era na época, Zarité desenvolve, desde menina, sensibilidade e
ele que as praticava diretamente. Para isso, tratou de providenciar perspicácia para entender a violenta opressão à qual está
um capataz, Prosper Cambray, que, em seu lugar, desse conta do submetida e encontrar, nos menores subterfúgios, espaço para
“serviço sujo”: preservar sua integridade e liberdade, pelo menos internas. Na
Cambray não possuía fortuna nem padrinhos e optou por maior parte do tempo, procura manter-se “invisível”, pois, aos
ganhar a vida na ingrata tarefa de caçar negros naquela brancos, só interessa a presença dos escravos quando deles
geografia de selvas hostis e montanhas escarpadas, onde
necessitam:
nem as mulas pisavam com segurança. [...]. Exigia
Dona Eugenia dormiu e eu me arrastei para o meu canto,
subserviência desprezível dos escravos e, ao mesmo tempo,
onde a luz trêmula das lamparinas não chegava. Tateei,
rastejava para quem estivesse acima dele. No começo,
procurando o prato, peguei um pouco do ensopado de
tratou de ganhar a estima de Valmorain com intrigas, mas
cordeiro com os dedos e pude perceber que as formigas
logo compreendeu que os separava um abismo
haviam chegado primeiro. Mas comi assim mesmo porque
intransponível de raça e classe. Valmorain lhe ofereceu um
gosto do sabor picante delas. Estava na segunda porção,
bom dinheiro, a oportunidade de exercer autoridade e a isca
quando o patrão e um escravo entraram, [...]. Cobri o prato
de se tornar chefe dos capatazes. (ALLENDE, 2010, p. 17-18)
e esperei sem respirar, fazendo força com o coração para
que não prestassem atenção em mim. (ALLENDE, 2010, p.67)
Zarité: identidade cultural e de resistência Isso faz dela um personagem-coringa (capaz de estar e
Zarité se contrapõe à dominação imposta pelo seu “dono”, circular nos mais diversos ambientes sendo pouco notada) e lhe dá
Valmorain, assumindo a perspectiva da construção de identidade acesso a informações cruciais para a participação em momentos
de resistência pela perspectiva feminina e afetuosa, além de estratégicos do enredo. É uma personagem dotada do que Lukács
cultural. Essa identidade, assim a define Castells (1999, p. 24): (1965) aponta como um “caráter intermediário”. São escravos,
[...] [é] criada por atores que se encontram em
crianças ou poetas que, por diferentes motivos, circulam entre os
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas
principais grupos sociais envolvidos nos conflitos retratados,
pela lógica da dominação. Construindo assim, trincheiras de

3
Da plantação.
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conseguindo articular os “extremos essenciais do mundo manter-se viva. Desenvolve, para isso, mecanismos de “escape”
representado no romance”, representando “aquela figura em através dos quais resguarda sua identidade e lucidez. E apesar de
torno da qual se pode construir assim todo um mundo, na toda a dor e opressão, reconhece-se como alguém diferenciado de
totalidade de suas vivas contradições.” seu dono e não como mera “propriedade” dele, em um processo
Porém, quando, em raras e curtas ocasiões, Zarité tem diametralmente oposto ao percorrido pela esposa.
possibilidade de fazer uso de sua voz e reflexão para com seu Aprende a sobreviver com pouco, a aproveitar as sobras, a
senhor, o faz com sabedoria, dando-lhe conta da teia de paradoxos esperar pelo momento adequado para agir. Escapa, sempre que
em que está inserto, ou fazendo-o recuar, ainda que possível, da violência sexual, embriagando seu dono de modo que
momentaneamente, em suas arbitrariedades. Um curto diálogo a ele lhe pareça que está sendo atendido em suas ânsias. Quando
entre ambos demonstra essa sua habilidade: não o consegue, suporta fisicamente a situação, escapando
-“Espere, Tété. Vamos ver se nos ajuda a dirimir uma dúvida. mentalmente dela:
O doutor Parmentier acha que os negros são tão humanos Tété havia aprendido a se deixar usar com a passividade de
quanto os brancos e eu afirmo o contrário. O que você acha?” uma ovelha, o corpo frouxo, sem opor resistência, enquanto
– perguntou-lhe Valmorain, num tom que ao doutor sua mente e sua alma voavam para outro lugar. Assim, seu
pareceu mais paternal do que sarcástico. patrão acabava logo e depois desmoronava num sono de
Ela permaneceu muda, com os olhos no chão e as mãos morte. Sabia que o álcool era seu aliado se o administrasse
juntas. na medida certa. Com uma ou duas taças, o patrão se
- “Vamos, Tété. Responda sem medo. Estou esperando...”. excitava, com a terceira devia ter cuidado porque se tornava
- “O senhor tem sempre razão.” – murmurou ela, por fim. violento, com a quarta o envolvia a neblina da embriaguez
- “Ou seja, na sua opinião, os negros não são e, se ela o evitasse com delicadeza, dormia antes mesmo de
completamente humanos...” tocá-la. (ALLENDE, 2010, p. 113)
- “Um ser que não é humano não tem opiniões, senhor”.
O doutor Parmentier não pôde evitar uma gargalhada Um trecho em que a voz narrativa é passada a Zarité,
espontânea, e Toulose Valmorain, depois de um instante de exemplifica o quanto, também a obra - e não só sua personagem -
dúvida, riu também. Com um gesto, despediu a escrava, que se esforça no sentido de desconstruir o pensamento dominante ao
desapareceu na sombra. (ALLENDE, 2010,p. 96) equiparar o homem branco ao demônio. Ela narra as desventuras
de seu primeiro grande amor, Gambo, quando da ocasião em que
No entanto, por motivos óbvios, não é o que acontece a
é raptado de sua tribo na África, trabalho feito por membros de
maior parte do tempo, em especial no contexto que precede o
uma tribo inimiga, e levado aos brancos, para ser vendido e
processo de revolta dos negros, marcado por uma explosão de
escravizado:
violência contra a minoria branca. Zarité precisa, na maior parte de
Foi quando Gambo viu os brancos pela primeira vez e achou
sua vida, calar o medo e suportar a violência, a fim de meramente
que eram demônios; depois ficou sabendo que eram gente,
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mas nunca acreditou que fossem humanos como nós. 2010, p. 10), existem cerca de 60 milhões de não europeus vivendo
Estavam vestidos com panos suados, couraças de metal e e trabalhando na Europa hoje. Este fato, por si só, torna impossível
botas de couro, gritavam e batiam sem motivos. Nada de homogeneizar a cultura ou assimilar aos “desarraigados”. Toro
caninos ou de garras, mas tinham pelos na cara, armas e (2010, p. 11) assim nos informa:
chicotes, e seu cheiro era tão repugnante que nauseava os [...] del nuevo lugar que ocupan los desplazados, de una
pássaros no céu. (ALLENDE, 2010, p. 128-129) nova noción de cultura que no está sujeta a lasprácticas de
A presença de várias vozes conduz a um embate discursivo la cultura dominante sino que, más bien, las desafía en sus
em torno da questão que sustenta a Pós-modernidade – em que propias bases. La modernidad produjo un desplazamiento
apenas o discurso permite a identidade - e tais discursos refletem que intento borrar, por asimilación y otredad. El Otro ha
estado encapsulado, se le ha negado su lengua y su cultura,
a heteroglossia, compreendida em um sentido bakhtiniano (1987),
su posibilidad de intercambio con la nueva cultura (como ha
pois cada discurso parte de um lugar social diferente, o que, por
demostrado claramente Edward Said) que siempre ha
sua vez, revela uma intensa intertextualidade. Gardiner (1996, estado presente, pero reprimida, desplazada. Sin embargo,
apud VELASCO MARÍN, 2007, p. 552) ressalta que a pergunta una nueva forma de desplazamiento – y con esto no sugiero
medular da crítica literária feminina é: “Quem está falando quando que las razones que provocan el desplazamiento hayan
uma mulher diz: ‘eu sou?’ ”. cambiado sustancialmente a través del tiempo – emerge
Em A Ilha sob o Mar, este processo de identificação se con la condición postmoderna y con la forma de pensar la
marca, entre outras coisas, pela preservação do próprio nome, condición postcolonial.
como bem registra a personagem: “Aprendeu a me chamar Tété, Um dos procedimentos da literatura contemporânea latino-
como todo mundo, menos alguns que me conhecem por dentro e americana, na qual Allende se integra, é a subversão dos valores e
me chamam de Zarité” (ALLENDE, 2010, p. 145. Grifo nosso). cultura hegemônicos, dando voz ao que antes era considerado o
Eurídice Figueiredo e Noronha (2005, p. 201) também nos vêm Outro, aquele que estava à margem da sociedade, cuja língua e
reforçar essa perspectiva, ao afirmar que todo embate construído versão dos fatos não eram considerados legítimos diante da
na história é um embate pela identidade: só reclama pela sociedade em que se encontravam. O contraste entre ambos os
identidade aquele que não é reconhecido pelo outro. extremos se faz presente em várias passagens da narrativa, como
nesta em que, por estarem Zarité e sua filha Rosette presas e
Zarité: religião e dança correndo perigo, a escrava pede ajuda a sua deusa de devoção,
Essa afirmação identitária se faz possível, entre outros rejeitando a prece proferida por outra das presas, em louvor à
motivos, porque já não é mais plausível, na contemporaneidade, Virgem Maria:
pensar em uma divisão da sociedade tão maniqueísta quanto a que Às suas costas, ouviu a mulher se despedir com palavras
previa limites claros entre uma identidade central e outra, à conhecidas, porque as tinha ouvido de Eugenia: ‘Virgem
margem desta. Como bem demarcou Chambers (1994, apud TORO,
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Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores.’ Tété por acaso, a religiosidade de origem africana se expressa, na
respondeu em seu íntimo, porque a voz não lhe chegou aos narrativa, de forma intensa e reiterada, através da dança. Allende
lábios secos: ‘Erzuli, loa da compaixão, proteja Rosette’. ficcionaliza o imenso ritual em que, na floresta, escravos e rebeldes
(ALLENDE, 2010, p. 247) teriam se decidido pela revolução e, consequentemente, pelo fim
Outro motivo que, sob nossa ótica, tem possibilitado a da escravidão, mostrando que eles mesmos foram os artífices
emergência da voz do dito marginalizado, em especial no tocante dessa libertação:
aos povos de origem africana, está no fato de que, apesar de toda Os tambores começaram a perguntar e a responder, a
a opressão e ofensa que sofreram, os valores e a cultura das marcar o ritmo para a cerimônia. As hounsis dançavam em
pessoas que vivenciaram na pele, através de gerações, a terrível volta do poteau-mitan, movendo-se como flamingos,
agachando-se ondulantes, os braços alados, e cantaram
experiência da escravidão, perpetuaram-se através do tempo e
chamando os loas, primeiro Légbé, como sempre se faz,
chegaram até nós. Podem hoje reclamar seu direito à voz e à sua
depois os outros, um por um. [...]. Os tambores
própria versão dos fatos, por conta, entre outros fatores, da aumentaram de intensidade, o ritmo se acelerou, e a
exaltação às suas tradições, vivenciada em seus rituais de religião floresta inteira palpitava das raízes mais fundas até as
e dança, elementos-chave na construção de sua identidade de estrelas mais remotas. Então, Ogum desceu com o espírito
resistência enquanto povo cultural e politicamente oprimido por da guerra, Ogum-Feraille, deus viril das armas, agressivo,
séculos. irritado, perigoso, e Erzuli soltou Tante Rose para dar
Tais rituais, além de permitirem a perpetuação dos valores passagem a Ogum, que a montou [...]. Muito tempo depois,
e cultos vinculados à origem africana, consagravam novos quando a multidão estremecia como uma só pessoa, Ogum
partícipes à invocação aos deuses de seus antepassados e à deu um rugido de leão para impor silêncio. Imediatamente
experimentação dos “transes” espirituais a que sua fé lhes os tambores se calaram, e todos, menos a mambo, voltaram
a ser eles mesmos, e os loas se retiraram para a copa das
conduzia. Claramente, sobre estes momentos, como bem o
árvores. Ogum-Feraille apontou o asson para o céu, e a voz
descreve Allende no romance, a cultura branca hegemônica não
do loa mais poderoso explodiu na boca de Tante Rose para
tinha nenhum poder, entendimento ou controle. Aos olhos dos exigir o fim da escravidão. (ALLENDE, 2012, p. 169-170)4
brancos, cuja cultura religiosa cristã, divide o corpo e alma em duas
partes distintas, desagregadas e opostas uma a outra, os rituais Não é, no entanto, necessário a alguém entender, nem ser
relativos à religiosidade africana tinham um aspecto considerado adepto desta forma de religiosidade para entender essa integração
como de feitiçaria e descontrole, inclusive por valorizar como que a dança provoca, destes dois polos que, para a cultura cristã,
sagrado exatamente o oposto: a união entre o corpo e a alma. Não estão tão resolutamente separados pelo pecado, o corpo e a alma.

4
As expressões em itálico (grifadas pela autora) estão no assim chamado dialeto
créole, próprio dos escravos que habitavam a ilha para comunicar-se entre si.
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Esse aspecto integrador da dança também terá seu Honoré sempre me falava da Guiné, dos loas, do vodu, e me
reconhecimento em outras culturas. Maurice Bejart, coreógrafo da advertiu de que eu nunca pedisse ajuda aos deuses dos
emblemática cena de balé clássico representada ao final do filme brancos, porque são nossos inimigos. Explicou-me que, na
Retratos da Vida, sob o som do “Bolero de Ravel”, assim define o língua de seus pais, vodu quer dizer espírito divino. Minha
boneca representava Erzuli, loa do amor e da maternidade.
resgate dessa união, propiciado pela dança: “A dança é uma das
Madame Delphine me fazia rezar para a Virgem Maria, uma
raras atividades humanas em que o homem se encontra
deusa que não dança, só chora, porque mataram seu filho
totalmente engajado: corpo, espírito e coração” (BÉJART apud e porque nunca teve o prazer de estar com um homem.
GARAUDY, 1980, p. 8-9). (ALLENDE, 2010, p. 49)
Como a cena descrita por Allende pode demonstrar,
durante o ritual religioso, há hierarquias a serem respeitadas, vozes Encontram-nos em rituais que afrontam a moral e os
de comando e sinais a serem entendidos. Os que, em uma costumes brancos:
Na praça do Congo, dançávamos do meio-dia até a noite, e
plantação de cana, reduzem-se a escravos, em uma roda ritualística
os brancos vinham se escandalizar; porque, para lhes gerar
de dança e expressão religiosa, podem perfeitamente ocupar a
maus pensamentos, mexíamos as nádegas como
condição de liderança. O deslocamento, aqui, é cultural e redemoinhos, e para lhes causar inveja nos esfregávamos
ritualístico e propicia a preservação ou a reinvenção das como tórridos amantes.” (ALLENDE, 2010, p. 264.).
identidades, em um movimento de resistência à aculturação
insistentemente tentada pelo catolicismo. “Um caráter subversivo Contudo, não só para escandalizar os brancos, Zarité cultiva
seria atribuído a qualquer expressão religiosa de ordem não- seus deuses. Dessa fé extrai grande parte da força que a mantém,
católica” (BARZOTTO, 2011, p. 7), mas esse caráter subversivo íntegra, mais uma vez, em sua identidade. Aliada à dança, essa fé,
persistiu. No tempo e no espaço público e privado. subjetivamente falando, é seu exercício de liberdade:
Os tambores vencem o medo. Os tambores são a herança
Este aspecto, no livro, se coaduna com os estudos teóricos
de minha mãe, a força da Guiné que está no meu sangue.
sobre a escrita de autoria feminina no diz respeito à abordagem
Ninguém então pode comigo, torno-me incontrolável como
relativa à religiosidade e à mitologia. Gloria da Cunha (2004, p. 17) Erzuli, loa do amor, e mais veloz que o açoite. Os búzios
evidencia que, “talvez para chegar ao fundo da dominação que, chacoalham nos meus tornozelos e nos meus pulsos, as
historicamente, tem padecido a mulher, e libertá-la, as escritoras cabaças perguntam, os tambores Djembes respondem com
sentem a necessidade de questionar ou desmistificar não somente sua voz de floresta e os timbales com sua voz de metal, os
a história nacional, como também a mitológica e religiosa.” DjunDjuns que sabem falar convidam e o grande Maman
Em um ambiente dominado pelo catolicismo, os deuses ruge quando o tocam para chamar os loas. Os tambores são
contra-hegemônicos de Zarité e seus amigos são símbolos de sua sagrados, e é através deles que falam os loas. (ALLENDE,
identidade e de sua não subserviência: 2010, p. 7 )
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Cabe aqui observar que na obra se impõe a autenticidade texto no campo sociopolítico: as conquistas da revolução haitiana
da linguagem de origem africana. Allende não traduz as expressões não foram resultado apenas do esforço masculino, mas contou
de cunho religioso e, como leitores, se não as encontramos com a força e a persistência femininas. Através da trajetória de
traduzidas em alguma outra fonte, cabe-nos deduzir, aceitar. Zarité, Allende nos reconta a história da libertação do Haiti,
Somos confrontados novamente com o uso de estratégias marcada pela revolução dos escravos. A história da libertação de
linguísticas envolvendo as relações de poder, confirmando as Zarité – tanto subjetiva como objetiva – é simbolicamente a
teorizações de Richards (1996) no que concerne a esse aspecto, história do processo que conduziu o Haiti a ser a primeira colônia
desmontando as pressuposições tradicionais segundo as quais a latino-americana a abolir a escravidão.
linguagem seria “neutra”. A resistência cultural se nos defronta Ambas as liberdades – do Haiti e de Zarité - tiveram a
dessa vez pelo caminho contrário ao da aculturação hegemônica, religião, a dança e as relações que nelas se estabelecem como
pois ao leitor é imposta a necessidade de entender, com seus apoio à construção de sua identidade. Por caminhos tortuosos e
próprios recursos, o discurso da personagem, confortável e alternativos, alcançaram seus objetivos. Há muito ainda a ser feito,
vibrante em suas convicções religiosas. porque a dominação também encontra formas outras de se
perpetuar. Contudo, a literatura e a arte, como o corpo e alma de
Conclusão quem dança, hão sempre de encontrar ritmos e espaços através
A obra analisada insere-se no processo de revisão histórica dos quais as identidades culturais possam se expressar, libertando-
em que a literatura contemporânea expressa os valores e a cultura se.
contra-hegemônicos daqueles que antes não tinham vias através
das quais se expressar. Nesse contexto, a narrativa dá voz a uma Referências
personagem duplamente marginalizada, por ser escrava e mulher. ALLENDE, Isabel. A Ilha sob o Mar. Tradução: Ernani Ssó. Rio de
Da condição de objeto e de pessoa submetida, Zarité passa a Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
sujeito de seu próprio destino, ainda que tenha de construir
subterfúgios para manter sua identidade e integridade física, BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
enfrentando o destino concebido para si pelo sistema patriarcal Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
hegemônico. HUCITEC; Brasília: Universidade de Brasília, 1987.
A partir desse entendimento, aderimos aqui a um dos
principais objetivos da escrita de autoria feminina contemporânea BARZOTTO, Leoné Astride. A fé como estratagema cultural
que é ressignificação da figura feminina em textos de conotação libertador. In: Anais do XII Congresso Internacional da Abralic.
histórica, alçando-a à condição de protagonismo. O compromisso Centro, Centros – Ética, Estética. Curitiba, 2011. s/p.
se amplia na medida em que procura ampliar a intervenção do
P á g i n a | 118

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ourveture e a
técnica. Arte e política: ensaios sobre literatura e história da revolução de São Domingos. Tradução Afonso Teixeira Filho. 1ed.
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“EL DIVINO VERDUGO”: A REPRESENTAÇÃO DIVINA NOS do vocábulo. No poema a linguagem recupera sua originalidade
POEMAS DE BLANCA VARELA primitiva, mutilada pela redução que lhe impõe a prosa e a fala
Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque cotidiana” (PAZ, 1982, p. 26). Em última instância, o que se coloca
UERJ no poema é um enfrentamento na base da língua a tudo o que se
Mariana da Costa Valim organiza como mundo, verdade e identidade.
UERJ É a esse enfrentamento que acreditamos que se alinha a
poesia de Blanca Varela1. Falamos de um sistema poético que se
Quando o Homem nomeou a natureza, se apartou para alimenta da sombra da dúvida insistente e que persegue o
sempre dela e foi lançado ao espaço vazio: “O homem é um animal questionamento frente a tudo que se camufla de estável. Contra o
político porque é um animal literário, que se deixa desviar de sua solo firme das proposições afirmativas, a poesia vareliana
destinação ‘natural’ pelo poder das palavras”(RANCIÈRE, 2009, apresenta a melancolia risonha da interrogação. Levando em
p.59-60). conta a potência iconoclasta de tal poesia, interessa-nos centrar
Seu inferno é deserto ou oceano, a linha do horizonte atenção sobre um desses pilares de sustentação da realidade: deus
transbordante de Nada. A poesia, bem como todo o sistema da e o divino.
arte, em sua “desutilidade” prática, debruça-se na “tarefa” de Deus e o divino comparecem na poesia de Blanca Varela,
encarar essa vastidão de ruínas e sobreviver à vertigem. ora como tema, ora como interlocutor. Seja qual for sua posição
Escrevemos para sobreviver, porque a linguagem já nos lançou à no poema, há sempre um sentido irônico, cáustico e blasfemo
morte. intermediando a relação. O resultado é a perda de seu estatuto de
As palavras ordenam o mundo e dão existência às coisas, representação: “Estamos ante un contacto desigual, jamás
mas as fixam na rigidez dos conceitos irrevogáveis, numa tentativa compartido, herida y violencia antes que cariño. Dios no es amor”
desesperada de assegurar um chão e um teto para a nossa ( SUÁREZ, 2003, p. 160).
existência. A experiência poética é um ataque a qualquer Nesse ponto, gostaríamos de convocar a interpretação do
segurança, é a experiência de um desdobramento sobre a Neobarroco feita por Severo Sarduy.
banalidade do que existe em excesso em nosso campo visual, e a Ao recuperar a tradição barroca para uma leitura do
aproximação, abrupta ou sutil, a tudo aquilo que mal intuímos. continente híbrido latino-americano, Severo Sarduy propõe um
Quem se lança à poesia, lança-se ao susto ininterrupto da queda. sistema de interpretação desta tradição baseada num
Octavio Paz afirma: “O poema jamais atenta contra a ambiguidade “recaimento” no nível das artes do descentramento fundamental

1
Poeta peruana nascida em Lima, em 1926. Sua obra foi vastamente declarados de sua poesia o poeta e crítico mexicano Octavio Paz e o aclamado
reconhecida e premiada. Recebeu, entre outros, o “ Premio Reina Sofia de ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa. Blanca Varela
Poesía Iberoamericano”, em Salamanca (2007) e teve, como admiradores faleceu em 2009.
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que significou a proposta do Universo elíptico de Kepler2 (SARDUY, Tais considerações são de extrema importância ao se tratar
1989, p. 133). A harmonia, a estabilidade e o equilíbrio do sistema de uma arte de excessos, de referenciação metonímica e
clássico de representação, pautados na perfeição do círculo, são metafórica transbordante. Nela, o excesso parece sinalizar a falta.
esvaziados pelo centro cego e deslocado do espaço na forma de O que Sarduy realiza em sua teoria é a demonstração irrefutável
elipse. Geométrica e linguisticamente, esse centro apontará para do vazio como um elemento constituinte indelével do homem e de
uma presença muda, uma ausência plena: toda a maquinaria lógica por ele criada para explicar o mundo, a
Algo se descentra, ou melhor dizendo, desdobra o seu vida, Deus. Ao proclamar o barroco como uma arte lúdica e erótica,
centro; presentemente a figura matriz já não é o círculo, de no sentido de um jogo sem nenhuma finalidade senão a de sua
centro único, radiante, luminoso, paternal, mas a elipse, existência pura de jogo, além de destituir a linguagem de seu lugar
que opõe a este foco visível um outro foco igualmente de centro de significação e mapeamento da realidade, o que se
activo, igualmente real, mas obturado, morte, nocturno,
coloca é a própria interrogação sobre a possibilidade de se
centro cego, reverso do yang solar germinador: ausente
interpretar a existência como uma experiência do corpo, fora dos
(SARDUY, 1989, p. 57).
parâmetros de um sentido para além do material. Não há
Sarduy repete essa lógica de um centro vazio a outro finalidades. A vida se realiza no desperdício da matéria.
sistema: o numérico. Considerando que este é um sistema Apesar de refutar o entendimento do barroco como um
primordial na organização da vida racional como a conhecemos, o esquema estilístico fixo de procedimentos formais, afinal já está
teórico argumenta que os números começam sua contagem com clara sua defesa desse sistema artístico como um verdadeiro
um referente contraditório: o número zero existe como índice, deslocamento de pensamento, Sarduy propõe uma série de
mas é o não-número. Ele existe para marcar a não-existência. recursos no âmbito da construção linguística que seriam
[...] o zero como a extensão do não-idêntico a si próprio, do apropriados genuinamente pelo barroco para dar conta de sua
conceito contraditório no campo do qual nenhum objeto se configuração dialética. Todos estes recursos dizem respeito a uma
pode incluir, e cuja única garantia é a que recusa qualquer
quebra de expectativa na relação entre significante e significado e
existência ao objeto por ele designado [...]. É nestas franjas
a uma contaminação pela eliminação de limites entre um e outro
vazias, nestas evocações fugidias do zero, nestas marcas
cegas, que a sequência insiste, e não nos elementos plenos termo/significado. Serão tais recursos e a profanação das
que parecem constituí-la: estes limitam-se, na realidade, a fronteiras entre termos opostos ou díspares uma das vias de
mascarar o vazio que os suporta e organiza [...]. (SARDUY, realização da poesia de Blanca Varela. Se o barroco interpretado
1989, p. 103) por Sarduy aponta para um hibridismo cujos resultados mais

2
Johannes Kepler: “As leis de Kepler: 1) Os planetas descrevem elipses onde o A relação do cubo do semieixo maior com o quadrado do período é a mesma
centro do Sol ocupa um dos focos; 2) O raio que une o círculo do Sol ao centro para todos os planetas.”
do planeta percorre, ao longo do movimento, áreas iguais em tempos iguais;3)
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imediatos são um descentramento e uma consequente perda de A desconstrução do discurso religioso e metafísico já pode
hegemonia, há, certamente, muita possibilidade de diálogo com a ser indiciada através do título. De “crucifixión”, substantivo para o
potência cáustica da poesia de Blanca Varela. ato de crucificar, o poema cria o vocábulo “Cruci-ficción” que, além
Um poema como Cruci-ficción apresenta múltiplas pautas de partir a palavra original ao meio, delimitando metades no
de interpretação à luz do repertório barroco, como a paródia, sentido, altera a segunda parte da palavra, preservando, portanto,
neste caso, dessacralizadora, de um ritual e uma mitologia cristã. a mesma estrutura fonética, porém não mais a estrutura gráfica
Contudo, o que se vê construído minuciosamente nos versos deste (física), o que altera o seu significado. Essa alteração é, em si,
poema é bem mais do que ironia e paródia: bastante ácida: insere no tema sugerido pela palavra, já
Cruci-ficción automatizada pelo arcabouço cultural- religioso ocidental, o
de la nada salen sus brazos sentido de ficção, de irrealidade, de artifício e, em última instância,
su cabeza de mentira.
sus manos abiertas Ainda sobre a construção do título, a partir de uma palavra
sus palmípedas manos dividida em duas partes através da marca do hífen, é possível
su barba redonda negra sedosa interpretá-la como uma imagem material de violência carnal, de
su rostro de fakir flagelação, na medida em que vemos um índice de materialidade−
hecho a medias o hífen – partindo, ferindo, perpassando o corpo da palavra, a
un niño matéria da palavra. Não será difícil, por conseguinte, identificar
un dios olvidadizo nesse hífen o prego que atravessa a carne, alterando a disposição
lo deja sin corazón da matéria da parte do corpo violada.
sin hígado A primeira estrofe se inicia com uma imagem de abandono
sin piernas para huir e vazio, “de la nada salen sus brazos”. O nada envolve o corpo
en la estacada lo deja descrito no poema, destacando sua solidão e a falta de sentido na
así colgado en el aire
construção da cena. Os versos seguintes da mesma estrofe
en el aire arrasado de la carnicería
desencadeiam uma enumeração iniciada pelos anafóricos “su,
ni una línea para asirse sus”, possessivos que indicam as partes do corpo do crucificado,
ni un punto focando assim detalhes e fragmentos, numa descrição que não
ni una letra alcança a totalidade e que, portanto, põe em destaque a
ni una cagada de mosca
incompletude.
en donde reclinar la cabeza
(VARELA, 2001, p. 144)
A destrinchada anatomia humana do poema revela
também a falta de um coração ( “sin corazón”), órgão
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culturalmente identificado como centro dos sentimentos e, Outra leitura possibilitada por tais versos é a aproximação
portanto, parte inegável na constituição de uma humanidade e de da cena do flagelo com o imundo cenário de um açougue. À cena
um sentido metafísico materializado. violenta e sanguinária da crucificação se justapõe a de um
Quanto a “sus manos abiertas”, tanto referem-se à posição abatedouro, repleta de pedaços de carne, de morte, de vísceras
das mãos como à ferida, à chaga que abre uma fenda na mão, penduradas em ganchos. Aproximando tais campos de sentido,
criando o vazio na matéria. Já “palmípedas manos” aproxima a podemos concluir por uma compreensão do sacrifício carnal
descrição do sujeito à animalidade ao caracterizar as mãos com humano, identificado na crucificação, como um capricho divino. À
uma propriedade das patas das aves. A crucificação animaliza submissão da existência corpórea humana ao desejo do divino
Jesus. Tal aproximação à animalidade tanto reforça o aspecto do corresponde a existência animal subjugada às vontades do
terreno, do vil, como ressalta um sentido de “metamorfose”, de homem.
criatura que extrapola as delimitações de uma determinada A última estrofe retoma o campo semântico de “ficción”
espécie, manifestando características de outra espécie. expresso no título ao retomar elementos do discurso escrito,
Em “hecho a medias/un niño”, a estrofe começa com uma “línea”, “punto”, “letra”, remetendo os fatos descritos para a
constatação: o menino é incompleto, foi feito pela metade. Os esfera do ficcional, da história escrita em romance, conto, etc.
versos dialogam (em tensão) com a mitologia cristã que isenta Contudo, tais elementos estão precedidos pela conjunção negativa
Jesus Cristo da contaminação pelo pecado original, aquele “ni”, o que acarreta a impossibilidade de respaldo inclusive na
efetuado na carne, forjando-lhe uma origem “limpa”, esfera ficcional. Tais elementos do discurso escrito chocam-se com
materializada não pela conjunção carnal, mas pela divina. Essa a abrupta inserção da expressão oriunda da oralidade “ni uma
concepção gera um ser incompleto; “sin hígado/sin piernas”. A cagada de mosca”. Tal uso coloquial contamina ainda mais a cena
constituição metade divina é interpretada, então, como uma como uma construção mítico-religiosa, pois rompe com o
perda, uma falha, uma anomalia. protocolo de distância e reverência exigido na presença de uma
O poema acaba com a vulgaridade de uma expressão, “ni evocação do discurso religioso e a impregna com vocábulos que
uma cagada de mosca em donde reclinar la cabeza”, que só faz remetem ao corpóreo, ao escatológico, ao animal.
aumentar o sentido de abandono, pequenez e miséria na Constatamos, portanto, que há um predomínio da
composição da descrição do crucificado. presença densa, corpórea, humana, em detrimento de uma
O crucificado está abandonado e esquecido, “colgado en el evocação divina, metafísica, superior. O sacrifício humano em
aire/en el aire arrasado de la carnicería”. Abandonado no ar, sua nome de uma vontade divina é encarado como pura carnificina,
localização espacial é o nada, ele habita o vazio, relação reforçada como ilusão baseada em falsas premissas, em princípios fictícios.
pelo contraste com a preposição “en”, que localiza e define um As dicotomias “corpo x espírito”, “humano x divino” são abaladas
lugar. pela contestação do segundo termo constituinte dos pares e,
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simultaneamente, pela inversão de valores dos pólos opositivos. en mi plato de pobre


Tal inversão resulta em um afrontamento do discurso metafísico un magro trozo de celeste cerdo
e, em linhas gerais, expressa a convicção de que não se deve aquí en mi plato
sacrificar o corpo em nome de uma existência espiritual. O homem observarme
deve valorar a sua materialidade. Não é o corpo, com suas observarte
vontades e desejos, que impede a plenitude espiritual, e sim a o matar una mosca sin malicia
alma e a pretensão do discurso metafísico que impedem a aniquilar la luz
plenitude da realização carnal. o hacerla
Concluindo sobre o poema, parece válido ressaltar que não hacerla
há, efetivamente, nenhum dado que nos informe seguramente como quien abre los ojos y elige
que a cena descrita trata da crucificação de Jesus. É a un cielo rebosante
automatização das referências da mitologia cristã que nos leva a en el plato vacío
realizar essa leitura intertextualizada. A ambiguidade no sentido rubens cebollas lágrimas
do poema, que impossibilita a determinação segura de que se trata Más rubens más cebollas
ou não de Jesus, realiza tanto uma profanação da cena mítica Más lágrimas
como também iguala todo e qualquer ser humano em sua tantas historias
condição de perpétuo animal de expiação. negros indigeribles milagros
O que Severo Sarduy chama de leitura radial, “[...] uma y la estrella de oriente
cadeia de significantes que progride metonimicamente e que
emparedada
termina circunscrevendo o significante ausente, traçando uma y el hueso del amor
órbita ao redor dele [...]” (SARDUY, 1972, p. 164), realiza, nos tan roído y tan duro
versos citados, um ataque ao estatuto divino de Jesus. Ao varrer brillando en otro plato
do poema o significante “Jesus Cristo”, e substituí-lo por uma série
este hambre propio
de fragmentos de referência corpórea, escatológica, visceral, o que
existe
o poema faz é, essencialmente, perder definitivamente a es la gana del alma
referência divina, acumulando-a de pedaços de carne e sujando-a que es el cuerpo
de matéria. A distância entre significante e significado tomou a
proporção de um abismo. es la rosa de grasa
que envejece
Outro poema que joga o tempo todo com as posições
en su cielo de carne
superior e inferior, mundana e divina é Canto Villano:
y de pronto la vida mea culpa ojo turbio
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mea culpa negro bocado vista a potência irônica de tal poesia) ou se derivam de uma reação
mea culpa divina náusea meramente orgânica diante das “cebollas”? Também aqui não
no hay outro aquí somos confrontados com uma relação que submete espírito a
en este plato vacío carne, que ata o sublime ao vil?
sino yo “Indigeribles milagros”, “tantas historias”... O sarcasmo
devorando mis ojos desses versos reside, sobretudo, na palavra “indigeribles”, que
y los tuyos aponta tanto para um sentido figurado de intolerável e, portanto,
(VARELA, 2001, p. 140-141) de ceticismo, como para o sentido literal de difícil digestão,
A palavra “vida” está cercada pela aliteração em –p e pela ligando-se, por conseguinte, ao campo semântico de fome e
assonância em – o dos termos “pronto”, “plato” e “pobre”, necessidade corpórea que percorre todo o poema. “Milagros” são
indiciando a irrupção da força da matéria e a emergência do plano diluídos em “tantas historias”, perdendo seu aspecto particular de
físico e menos nobre que é parte inegável da constituição do excepcionalidade e reforçando a ideia de inverossimilhança,
homem. Nos versos “un magro trozo de celeste cerdo/aqui en mi mentira, falácia.
plato” unem-se, de maneira inexorável, a matéria desprestigiada A materialidade segue cercando e cortejando outros
de um pedaço de carne de porco, animal imundo, e o adjetivo índices sublimadores: a “estrella de oriente”, referência direta da
divinizante “celeste”. No prato da fome, a voz poderosa que grita mitologia cristã e encarnação de um sinal divino, recebe o
no corpo, somente o pedaço de carne pode fazer sentido. O complemento “emparedada”, o que cria uma prisão material,
tratamento irônico na inserção da palavra “celeste” parece concretizando o inatingível e cerceando o imaterial com a
desafiar-nos a encontrar um sentido sublime em tensão com evidência irrevogável da matéria.
imperativos da animalidade humana, em imagens tão imersas na Nos versos seguintes, o vocábulo “amor” aparece rodeado
sobrevivência corpórea. de outros termos igualmente materiais e “baixos”: amor, hueso e
Abrir os olhos e escolher o que ver. Escolher enxergar um roído entram em equivalência através das assonâncias em “o”.
céu transbordante num prato vazio. Querer ver o sublime Uma vez mais, uma palavra cuja simples evocação traz em seu bojo
onde o que grita é decididamente bestial. Um céu transbordante a expectativa de um sentido metafísico é desconstruída, corroída
de beleza incapaz de preencher o prato vazio da fome da matéria. pela evidência indigna de uma matéria faminta e miserável.
O poema segue na tensão entre um anseio enganoso pelo Superior Processo similar sofrem dois vocábulos cujo campo
e a força coercitiva e terrível das necessidades corpóreas. semântico do etéreo e do santificado está reconhecidamente
Será possível julgar se as lágrimas descritas na 4ª estrofe automatizado: a rosa, símbolo mariano, e o céu recebem
foram produzidas pelo impacto do Belo da arte, ligando-se assim a complementos de vilania, “grasa”, “envejece”, “carne”, que
Rubens (em letra minúscula, como não poderia deixar de ser, haja submetem tais símbolos à putrefação, à dor, à morte, ao corpo
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enfim. A coincidência da sílaba final das palavras “rosa” e “grasa” acidamente substituída por imagens que em nada evocam essa
constrói uma equivalência entre tais termos respaldada pela leitura idealizada:
aproximação fonética e gráfica. O isolamento dos verbos “existe” podría describirla
e “envejece” nos segundos versos das duas estrofes realçam a ¿tenía nariz ojos boca oídos?
força da matéria, pois a significação de tais verbos já encerra em si ¿tenía pies cabeza?
uma totalidade de conceitos relacionados ao corpo, que existe ¿tenía extremidades?
sólo recuerdo al animal más tierno
como matéria e que como matéria envelhece.
llevando a cuestas
Ainda no campo de uma mitologia cristã, a presença da
como otra piel
expressão “mea culpa” determina a existência de um sujeito que aquel halo de sucia luz
assume a enunciação, mas também parte de uma retórica religiosa
cujo cerne é a confissão da imperfeição e do pecado (que residiria voraces aladas
sedientas bestezuelas
sobretudo na carne) e o pedido de perdão a Deus. “Ojo turbio,
infamantes ángeles zumbadores
negro bocado, divina náusea”: excetuando-se o qualificativo
la perseguían
“divino”, todas as outras palavras remetem a corpo e a sensações […]
corpóreas ou sensíveis. A relação estabelecida entre “divina” e
“náusea” começa na continuidade e coincidência da sílaba final da tras la legaña
me deslumbró el milagro mortecino
primeira palavra e da sílaba inicial da segunda, seguindo com o
la víspera el instinto la mirada
processo de irrupção do vil na não-matéria do sublime. el sol nonato
Ao longo de todo o poema, as aproximações entre os
campos semânticos de alma, incorpóreo e de carne, matéria, dão- ¿era una niña un animal una idea?
se através de referências a um mal estar físico, a uma não ah señor
saciedade de um desejo fisiológico, etc. O impacto dessas qué horrible dolor en los ojos
sensações de incômodo físico desfaz em fragmentos sarcásticos a qué agua amarga en la boca
expectativa de uma verdade metafísica superior e inalcançável. de aquel intolerable mediodía
“Canto”: composição poética de estilo nobre. “Villano”: en que más rápida más lenta
procedente de vil, baixo. O poema é a denúncia de nossa busca por más antigua y oscura que la muerte
a mi lado
um céu transbordante, embora a fome implacável da existência
coronada de moscas
humana seja e esteja no corpo. pasó la vida
No poema Ternera acosada por tábanos, a representação (VARELA, 2001, p. 175)
da vida como um acontecimento belo, milagroso e divinal é
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Retomando as referências “ángeles”, “halo”, “coronada”, próximo


“luz”, temos, através de processos metafóricos e metonímicos, […]
uma estrutura semântica erguida com símbolos de santidade, (VARELA, 2001, p. 178)
nobreza, superioridade. Contudo, esse campo semântico é
O repertório de acusações através de realizações formais
infiltrado pela imundície das imagens e dos adjetivos que o
se repete aqui. “Divino” e “verdugo” encontram equivalências
acompanham, “sucia”, “bestezuelas”, “moscas”. Os mais altos
fonéticas nas aliterações em “d” e nas assonâncias em “o”,
índices da metafísica são acossados e ironicamente corroídos pelo
equivalência fonética indiciando equivalência semântica. A
fundamentalmente escatológico.
existência etérea do anjo se perde na concreção de um objeto às
A estrofe que interroga sobre o ser que então passava:
ordens das execuções mais baixas do deus algoz, que tem as mãos
“¿era una niña un animal uma idea?, sem vírgulas ou fronteiras,
e a espada sujas de sangue, morte e vida.
sem possibilidade de diferenciação, culmina numa leitura de
A poesia de Blanca Varela inegavelmente compartilha da
equivalência entre o humano e o animal, mas, sobretudo,
potencialidade iconoclasta característica da literatura moderna. As
desemboca no fim de uma fronteira entre o ideal (a ideia) e a
limitações da consciência, as limitações do corpo, a consequente
concreção (a menina, o animal).
ruína do logocentrismo por sua evidente fragilidade e a
Todos os termos cuja evocação imediata liga-se a leituras
relativização da identidade como unidade passam a ser o centro
positivas, belas, redentoras, parecem sofrer o assédio de uma
da realização dessa literatura. A antiga busca da verdade cedeu
verdade carnal, mortal, feia e irrevogável: o milagre é “mortecino”,
lugar à confrontação da fissura nascida do encontro entre a
o sol é “nonato”, a visão da vida que passa causa um “horrible dolor
finitude humana e o Ilimitado (DELEUZE apud BRUNO, 2008, p. 94),
en los ojos”.
cuja abordagem não pode se dar senão de modo enviesado. A
Arrematando o poema, temos o verso “pasó la vida”
incompletude humana brilha. Não só não é mais mascarada como
fazendo referência direta à visão do novilho. A vida que o poema
passa a ser exibida, analisada, explorada.
descreve, portanto, relata a parcimônia resignada do animal
O homem e sua solidão de carne vagam com os pés sujos
envolto em uma nuvem de moscas, e jamais ao homem com seu
de terra ainda que a ideologia judaico-cristã imponha a
halo de ser designado e cópia do demiurgo divino. O deslocamento
representação humana como imagem e semelhança de um divino
é claro e irremediável.
afastado hierarquicamente e salvaguardado da miséria de uma
A verdade bruta da vida em sua realização física empurra
existência vil. “El mensaje salvífico de hermandad dado por el
Deus num vórtice de sangue e náusea. Parece ilícito falar de uma
cristianismo no está destinado a tener éxito y es una ilusión. El ser
existência superior afastada e isenta dos males da carne:
[…] humano está a solas, sueña consigo mismo y basta” (BARRIENTOS,
el divino con parsimonia de verdugo 2007,p. 223).
limpia su espada en el lomo del ángel más
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Irremediavelmente carne, porém sempre com os olhos VARELA, Blanca. Donde todo termina abre las alas. Poesía Reunida
voltados para o alto, à procura de nós mesmos. A consciência nos (1949-2000). Barcelona: Círculo de lectores/Galaxia Gutenberg,
colocou a esperança de um sentido para além da experiência 2001.
empírica, mas nos interrogará para sempre, como a cicatriz de um
vazio que levamos no peito.

Referências
BARRIENTOS, V. La náusea vareliana. In: DREYFUS, M;
SANTISTEBAN, R.S. (org). Nadie sabe mis cosas: Reflexiones en
torno a la poesía de Blanca Varela. Lima: Fondo Editorial del
Congreso del Perú, 2007.

BRUNO, M. Escrita, literatura e filosofia. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2008.

PAZ, Octavio. O arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: Estética e política. Tradução de


M. C. Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.

SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa: Vega, 1989

_______. O Barroco e o Neobarroco. In: MORENO, César


Fernández (org.) América Latina em sua literatura. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1972.

SUÁREZ, Modesta. Espacio pictórico y espacio poético en la obra de


Blanca Varela. Madrid: Editorial Verbum, 2003.
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SOB O OLHAR DOS MORTOS: A CONSTRUÇÃO ALEGÓRICA EM 1. Pedro Páramo: um romance de mortos
PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO No México, a morte, ao lado da imagem de Benito Juárez
Ana Paula Cantarelli enquanto paladino nativo mexicano e da imagem da Virgem de
UNIR Guadalupe, é apontada como um dos três totens nacionais por
Lomnitz (2006). Nessa condição, converte-se em um símbolo
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, foi publicado pela primeira nacional, agregando ao seu redor uma série de elementos que
vez em março de 1955 - apenas dois anos após a publicação de El atuam como constituintes da identidade mexicana. À primeira
llano en llamas -, sendo, atualmente, reconhecido como uma das vista, a ideia de estabelecer a morte como um símbolo nacional
obras mais importantes da literatura mundial. Rulfo declarou que surpreende. A partir do imaginário cristão e de uma concepção
a primeira ideia para a escrita desse romance foi concebida antes linear de tempo, a ideia de morte como um símbolo parece
que ele completasse trinta anos, o que confere um período aniquilar a perspectiva de futuro da sociedade mexicana, fadando-
“gestacional” de pelo menos sete anos para que o texto tomasse a a uma espécie de perecimento gradual ou a uma estagnação na
forma. No dia trinta de março de 1955, apenas onze dias depois da qual o presente reproduziria o passado sem qualquer projeção de
primeira impressão de Pedro Páramo, Edmundo Valadés teceu os futuro. Tal concepção “amputaria” a percepção de
primeiros comentários sobre o romance de Rulfo: desenvolvimento ou ainda de avanço social, econômico e
“Desconcertante, lista a inquietar a la crítica, está ya en los intelectual. Porém, o imaginário acerca da morte construído no
escaparates la primera novela de Juan Rulfo, Pedro Páramo” México envolve ao menos outra face atuante da constituição do
(VALADÉS, 1955, p.1). A partir do termo “desconcertante” pacto social: a concepção pré-colombiana de morte das tribos
empregado por Valadés para descrever o texto de Rulfo é possível indígenas e a concepção circular do tempo por elas adotada. A
perceber o impacto causado pelo romance desde as primeiras união do imaginário cristão e do imaginário indígena mexicano,
leituras. somada ao processo histórico vivenciado pelo México desde a
Produzido após o término da revolução mexicana, esse chegada dos espanhóis, deu origem às configurações assumidas
romance tem sido objeto de análises ancoradas em diferentes pela morte nesse país.
áreas do saber. Neste estudo, elaboramos uma proposta de leitura Ciente e partícipe dessa cultura Rulfo, explora a ideia da
a partir do conceito de alegoria formulado por Walter Benjamin, morte na construção de um romance no qual todas as personagens
reconhecendo a condição temporal do romance associada à estão mortas. Pedro Páramo inicia com a morte de Dolores
condição temporal da humanidade. Preciado e com a promessa que seu filho (Juan Preciado) lhe faz:
buscar o pai (Pedro Páramo) em Comala e reivindicar o que lhe
cabe como herdeiro. Por meio de paisagens áridas, cruzando
caminhos sinuosos que conduzem costa abaixo, Juan parte cheio
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de sonhos em busca da figura paterna que nunca chegou a no simplemente la muerte y no esa música tierna del pasado?”
conhecer. A Comala com a qual sonhava era apresentada pelos (RULFO, 2009, p.106). Elaboradas pelas personagens mortas, essas
relatos nostálgicos de sua mãe como um lugar fértil e promissor. interrogações nos permitem formular uma série de outros
Entretanto, o povoado que o filho de Dolores encontra não passa questionamentos: Por que as vozes dos mortos de Comala
de um triste espectro do que um dia foi. insistem em recordar o passado? Por que a morte não foi capaz de
Pedro Páramo já está morto, e os habitantes do povoado silenciá-los? Qual o espaço ocupado por esses mortos dentro da
também. Comala sucumbe à passagem do tempo, deteriorando-se temporalidade histórica? Rulfo criou Juan Preciado, Dolores,
dia após dia, configurando-se em um amontoado de ruínas. A Susana San Juan, Damiana Cisneros e outras tantas personagens
presença do filho de Dolores invoca os mortos, criando um espaço que, mesmo depois de mortas, seguem recordando suas
para que estes contem suas histórias, para que possibilitem a Juan experiências passadas. Mas, “¿Por qué ese recordar intenso de
a reconstrução do passado do povoado através da união dos tantas cosas?”. As experiências dessas personagens, suas
fragmentos de seus relatos. Juan, que fora buscar o pai e a herança memórias individuais e a memória coletiva do povoado que
que lhe competia, ao se deparar com o cenário de morte e habitam constituem visões/ versões do passado.
abandono, vê-se desolado: como encontrar-se com o pai morto? A maioria dos relatos no romance pertence ao passado
Que herança lhe competia? A resposta dessas perguntas é dada (com exceção de Juan Preciado, que marca o presente), sendo
pela narrativa no momento em que Juan morre na segunda noite oriundas de momentos distintos da história do povoado. Cada voz
que passa em Comala. Só através da morte o filho de Dolores seria narrativa pertence a um diferente segmento da população,
capaz de receber algo do pai que já estava morto. Sua herança: a apresentando uma versão particular da história. Cada história é
integração ao povo e à cidade de Comala. um fragmento, porque não pode ser tomada como uma verdade
Depois da morte de Preciado, os relatos dos mortos absoluta e única, mas sim como um trecho, como uma visão sobre
continuam, agora, vizinhos da sepultura de Juan. Também um determinado acontecimento. Essas histórias são o que Walter
narrador em terceira pessoa vai auxiliando-nos na composição do Benjamin denominou de ruínas, pois são construções parciais e
passado do povoado. Outros fatos são, então, acrescentados particulares sobre eventos passados. A manutenção dessas ruínas
àqueles que Juan já ouvira. A narrativa encerra com o relato da é o que denota a necessidade de recuperação do ontem através de
morte de Pedro Páramo, fechando uma espécie de ciclo narrativo um processo reflexivo e crítico que lhe atribua significados.
que havia iniciado com a morte de Dolores Precisado. Quando essas ruínas são abandonadas, o passado converte-se em
um tempo vazio.
2. Por que os mortos insistem em falar? Para Benjamin (2011) há uma estreita relação entre as
Comecemos com duas perguntas presentes no romance de ruínas e a alegoria: as alegorias são, no reino dos pensamentos, o
Rulfo: “¿Por qué ese recordar intenso de tantas cosas? ¿Por qué que as ruínas são no reino das coisas. De acordo com o filósofo, a
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alegoria se vincula ao passado, sendo composta por fragmentos, e de valorá-lo. Quando, através de um processo reflexivo, o passado
é através dela que as ruínas reclamam uma restituição, não se se faz presente, a transitoriedade é superada, pois o passado é
contentando com um espaço vazio. Idelber Avelar (2003) defende para o homem algo que não pode ser deixado para trás como
que a alegoria está sempre datada, ou seja, ela exibe em sua desnecessário já que é parte constitutiva do seu presente.
superfície as marcas de seu tempo de produção, estando inscrita A retomada do passado, no entanto, não pode ser uma
em uma temporalidade na qual o passado é mais que um tempo atividade homogeneizante, pois há diversas versões sobre o
vazio. As ruínas, enquanto fragmentos, ainda aspiram conter um mesmo fato, há múltiplas verdades. Em Pedro Páramo, quando
sopro de existência no qual a construção alegórica possa exibir relacionamos as vozes narrativas, percebemos que elas
suas marcas históricas. aproximam-se em alguns pontos e distanciam-se em outros,
Benjamin critica a Modernidade por buscar um futuro que demonstrando que são particulares ainda que relatem os mesmos
pretende romper com o passado, negando suas ruínas, suas eventos. Quando aproximadas, nenhuma ação totalizante é capaz
histórias, suas construções. A busca do novo, do moderno prevê de dar conta delas de forma satisfatória sem suprimir os traços que
uma contínua e insistente negação do passado. O filósofo alemão as tornam singulares. A partir da dialética negativa adorniana,
destaca que essa negação resulta em uma ruptura no propomos uma relação de convivência entre essas ruínas distintas.
encadeamento temporal, produzindo uma barbárie. O Tal relação comporta uma tensão intrínseca determinada pelas
reconhecimento dessas ruínas e a aceitação de suas constituições oposições presentes nos diferentes relatos. Assim, os grandes
particulares e de seu lugar na história da humanidade é o que relatos nacionais, que apresentam versões homogêneas de
impede que o passado torne-se um tempo vazio, e tal eventos passados, estão, de certa forma, incompletos, uma vez
reconhecimento, por sua vez, passa por uma construção alegórica. que abrem mão de elementos que não podem ser
No romance de Rulfo, as vozes dos mortos de Comala exigem um homogeneizados.
reconhecimento, uma restituição, para que o passado do povoado A composição do grande relato nacional está diretamente
não seja esquecido. Então, “¿Por qué ese recordar intenso de associada à forma como os indivíduos percebem suas identidades,
tantas cosas?”. Para que a história mantenha o passado como um como eles percebem seus papeis e sua vinculação à estrutura
tempo ativo dentro da tríade temporal, sendo capaz de criticá-lo, nacional. A história dos vencedores – independente do que seja
avaliá-lo. necessário ocultar – mostra-se mais atrativa. Dessa forma,
No romance de Rulfo, as vozes dos mortos de Comala algumas narrativas são excluídas, outras são adaptadas, para que
exigem uma restituição, para que o passado do povoado não seja possam ser elaboradas versões homogêneas. Essas versões,
esquecido. Então, “¿Por qué ese recordar intenso de tantas entretanto, não são capazes de dar conta da complexidade
cosas?”. Para que a história mantenha o passado como um tempo envolvida na narração dos feitos históricos. No caso da narração
ativo dentro da tríade temporal, sendo capaz de refletir sobre ele,
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dos atos da revolução mexicana, encontramos um grande exemplo da revolução foi apenas a produção de uma pequena onda sem
disso. nenhum impacto real na sociedade? Não necessariamente.
Segundo Villa (1993), não podemos desconsiderar que o Quando Madero assumiu a presidência, ele recebeu de
processo da revolução mexicana vivenciou inúmeras fases de Díaz “un país que después de 500 años de vivir militarmente sujeto
mitificação através dos anos. O fato da primeira revolução popular a la unidad por la Ciudad de México, finalmente se conoció a sí
latino-americana do século XX ter ocorrido no México; o fato de mismo mediante los trenes, los puertos, los coches y los
diferentes classes sociais terem participado da revolução e o telégrafos” (ENRIGUE, 2001, p.146). A implantação de novas
reconhecimento dos princípios ideológicos que nortearam os tecnologias, ainda durante o governo de Porfírio Díaz, foi o
confrontos tonaram-se, para o povo mexicano, de forma geral, primeiro passo para que o povo mexicano pudesse perceber suas
motivo de orgulho e de distinção: “los abuelos nos castigaban extensões territoriais, os diferentes grupos que constituíam a
cuando la escribíamos con minúsculas, porque como país nação, as diferentes tradições que formavam parte do México no
debíamos agradecer la lucha de esos héroes con el respeto, y sobre início do século XX e, inclusive, foi o movimento inicial para a
todo la distancia teatral del público que observa, que impone las efetiva recuperação de suas raízes através da aproximação, da
mayúsculas” (MANZUR, 2011, p.391). Embora nem todas as comparação e do estabelecimento de relações entre as diferentes
manifestações ocorridas fossem de fato motivo de orgulho, o regiões do país. Isso não significa que os mexicanos não tinham
emprego das letras maiúsculas tratava o processo revolucionário consciência de seus limites territoriais ou mesmo da constituição
como “loable, justificado, todopoderoso” (BENJAMIN, 2010, p.31). da população, mas sim que com os trens, os portos, os telégrafos
O período pós-revolucionário, no entanto, continuava as distâncias foram suprimidas (minimizadas), permitindo que o
apresentando muitos dos problemas que a revolução havia povo estreitasse as relações humanas e com o território habitado.
tentado solucionar – o povo, em alguns casos, enfrentava maiores Nos anos posteriores a 1910, as sucessivas trocas de
dificuldades que antes, pois, sem trabalho no campo (terras governos, a busca por conciliar os diferentes segmentos sociais e a
inférteis por conta de uma reforma agrária mal planejada, falta de composição de uma nova burguesia como classe dominante
dinheiro para investimento, etc.), acabava migrando para os conseguiu, durante a presidência de Lázaro Cárdenas (1934-1940)
centros urbanos e aumentando a grande parcela da população que - após a ditadura de Elias Calles e a tentativa de retorno de
não possuía as condições básicas de sobrevivência. Os governos Obregón em 1928, quando foi assassinado -, escrever parte
pós-revolucionários continuavam mantendo diversos setores significativa da história mexicana atrelada aos ideais
marginalizados, o projeto de integração nacional, de união e de revolucionários ao mesmo tempo em que visava o ingresso efetivo
equiparação social parecia ter fracassado em diversas instâncias. da nação na Modernidade. No período Cárdenas, a revolução
Então, a mitificação à qual Villa (1993) se refere mascarou os alcançou seu momento supremo de controle dos dois fatores
problemas não resolvidos no cenário mexicano? O que se obteve básicos de determinação do destino nacional: “as forças
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constritoras internas, reduzidas a uma burguesia urbana cujo Cárdenas do poder. A partir desse momento, inicia a jornada de
âmbito de ação era limitado pelas empresas públicas dominadoras praticamente setenta anos no poder de um único partido político,
em diversos setores” (RIBEIRO, 2007, p.121) e “os investidores em uma das ditaduras com roupagem democrática mais longa da
estrangeiros, que se viram compelidos a acatar as decisões história política da humanidade.
governamentais por mais atentatórias que fossem aos seus A revolução mexicana, apesar dos inúmeros problemas não
interesses e a aceitar inovações no trato que sempre impuseram resolvidos e de tantos outros gerados por conta dos confrontos,
aos governos latino-americanos” (RIBEIRO, 2007, p.121). Em 1938, alcançou alguns ganhos significativos. O México conseguiu realizar
Cárdenas, com o intuito de criar um partido de trabalhadores, uma revolução social ao longo de toda a nação, tornando-se o
transformou o Partido Nacional Revolucionário (PNR) – criado por primeiro país latino-americano capaz de formular seu próprio
Calles em 1929 com a intenção de aglutinar em seu poder as forças modelo de desenvolvimento, apresentando condições de manter
políticas atuantes no país desde novembro de 1910 - em Partido uma política externa autônoma e progressista. Além disso, foi
da Revolução Mexicana (PRM), buscando o que ele próprio capaz de abolir o poder da velha oligarquia latifundiária, fazendo,
chamou de "coletividade organizada". De outra maneira, significa através de uma insurreição popular generalizada, a revisão de todo
dizer que o objetivo político desse governo foi o de cooptar as o regime do Estado, “alcançando resultados equivalentes aos das
massas operárias e camponesas em uma única direção revoluções sociais inglesa, norte-americana e francesa” (RIBEIRO,
burocratizada. 2007, p.122).
Cárdenas distribuiu aos indígenas e aos camponeses mais Esses ganhos, no entanto, viram-se limitados pela ausência
terras que seus antecessores, embora grande parte da população “de uma liderança revolucionária madura, capaz de alicerçar uma
rural permanecesse sendo explorada pelos grandes latifundiários aliança das sublevações camponesas com o operariado
e muitas dessas terras não fossem efetivamente produtivas. Com sindicalizado” (RIBEIRO, 2007, p.122). Apesar dos esforços, os
tal ação, colocou em prática uma política reformista e nacionalista, governos pós-revolucionários não foram capazes de atender
ampliando o mercado interno de consumo e incluindo neste um satisfatoriamente o processo de reforma agrária e nem constituir
número maior de excluídos na lógica do sistema capitalista. Com o México como um Estado forte. O movimento camponês teve
uma política contraditória e dúbia, o PRM burocratizou-se e os suas necessidades mais urgentes abrandadas; o proletariado
próprios dirigentes do partido promoveram um retorno do México urbano teve seus interesses imediatos atendidos e depois foi
para um período conservador. No âmbito político, o poder disciplinado pela burocratização do sistema sindical. A oligarquia
centralizado do PRM passou a controlar os sindicatos operários e latifundiária não existia mais, mas em seu lugar erigiu-se uma
os movimentos camponeses, o que explica o fato de alguns estrutura capitalista crescente economicamente cujo intuito era
pensadores considerarem não o governo de Miguel Alemán Valdés manter os interesses tanto estrangeiros quanto nacionais, o que
(1946-1952) como fim oficial da revolução, mas sim a saída de restringiu a perspectiva de libertação e de organização particular
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nacional, uma vez que o ritmo de crescimento almejado era o crítica do outro e de si mesma, a Modernidade funda-se em um
atingido pelas nações consideradas mais “desenvolvidas”. processo constante de novas buscas, de promoção de mudanças:
A revolução foi capaz de unir as massas marginalizadas “cada ruptura é um começo” (PAZ, 1984, p.170). Assim, o
(compostas principalmente por indígenas), integrando milhões de resultado da revolução mexicana, atrelado à concepção de
índios à vida econômica, social e política. Tal ação elevou a Modernidade de Walter Benjamin, deveria apresentar-se como
produção agrícola. Contudo, “o estancamento do ímpeto um movimento contínuo de crítica, de busca, de novas
revolucionário, depois de Cárdenas, apenas permitiu ao México proposições, uma vez que é no futuro que a Modernidade procura
continuar progredindo nesse processo, graças à força da inércia, sua realização: “Nossa perfeição não é o que é, mas o que será. Os
resultante do empuxo inicial. Esse mesmo impulso acabou por antigos olhavam o futuro com temor e repetiam vãs fórmulas para
esgotar-se, conduzindo a uma nova estagnação das forças conjurá-lo; nós daríamos a vida para conhecer o seu rosto radioso
emancipadoras dessas massas marginais” (RIBEIRO, 2007, p.123). – um rosto que nunca veremos” (PAZ, 1984, p.35). Contudo, os
Durante as décadas de 1940 a 1960, o México foi “invadido” por governos, durante e após o período de revolução, buscaram a
capitais estrangeiros, principalmente estadunidenses, que estabilidade, visto que a conciliação interna era uma tarefa árdua
deformaram a industrialização nacional. O patriarcado nacional – fato refletido nos confrontos, assassinatos e trocas de governos
fortaleceu-se e as camadas populares, representadas no poder por ocorridos desde o início da revolução até a presidência de
lideranças oficiosas, enfraqueceram. Os monocultores capitalistas, Cárdenas.
assentados sobre terras férteis e irrigadas, eram servidos por O que, em nossa concepção, pode ser considerado como
créditos oficiais, enquanto os camponeses eram condenados à um dos maiores ganhos da revolução mexicana – e que está
pobreza. No meio urbano formava-se uma massa de associado às concepções de nação, nacionalidade e identidade
desempregados que não conseguia encontrar seu lugar no estruturadas na Modernidade - é o fato do México ter tomado
processo de modernização. O Estado tornou-se um instrumento de consciência de si, de sua identidade, aceitando sua própria
preservação da ordem nacional privatista. imagem, reconhecendo suas limitações: “La Revolución se volvió
Se pensarmos tais resultados da revolução mexicana parte del gran relato que fundó, moldeó y que es la nación
relacionados à Modernidade, perceberemos que o processo de mexicana” (BENJAMIN, 2010, p.32). O grande relato ao qual se
ruptura proposto durante o movimento foi uma etapa de crítica refere Thomas Benjamin é construído culturalmente e oferta aos
que culminou na destruição de um sistema para a proposição de membros de uma nação a percepção de seu passado comum -
outro. Este outro seria, então, satisfatório? A resposta é simples: contribui com a formação nacional ao representar o país como um
Não. A Modernidade, manifestada em suas características mais grupo homogêneo em evolução dentro de um devir histórico -,
peculiares (a crítica e a busca pelo novo) não poderia dar-se por permitindo que os indivíduos tomem consciência do processo
satisfeita ao encontrar um sistema estável, pois ao erigir-se como revolucionário dentro da história nacional.
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Durante o processo revolucionário, a aparição de ruptura com um passado de invasão, subjugação, diferenciação de
numerosas facções armadas e distintos movimentos políticos – classes, imposição de regimes governamentais, etc. Ainda que
muitas vezes antagônicos – tornou quase impossível “hablar de muitos mexicanos buscassem vinganças pessoais, essas vinganças
una sola memoria colectiva de un suceso o de una época; el México eram dirigidas contra uma ordem social que não os favorecia, o
revolucionario ciertamente fue testigo de construcciones que as tornava, em certa instância, coletivas. Assim, independente
diferentes y rivales sobre su pasado reciente” (BENJAMIN, 2010, da versão histórica sobre a revolução que foi adotada, recuperar o
p.40). Thomas Benjamin defende que o ingresso da revolução no passado permitiu à população assumir uma postura ideológica
grande relato mexicano na verdade não pode ser tomado como a frente à realidade. Essa tomada de consciência de si, já destacada
apresentação de uma leitura homogênea dos acontecimentos que por Octavio Paz (1998), como um olhar para o passado em busca
iniciaram em 1910, mas sim como uma multiplicidade de relatos da compreensão do presente, é o que permitiu aos mexicanos,
que englobam desde as narrativas do povo, dos caudilhos até as durante o processo revolucionário, estabelecerem suas noções de
dos governantes e dos grandes latifundiários. Entretanto, como o pertencimento, de nacionalidade, valorizando seus elementos
pesquisador reconhece, os primeiros relatos sobre a revolução locais e passando por um processo de revisão de sua trajetória
trataram de ocultar a brutalidade de alguns grupos revolucionários constitutiva e civilizatória. O que nos resta saber é, com o passar
(os roubos, assassinatos, violações, etc.), de ocultar os jogos de do tempo, após o processo revolucionário, como esse resgate foi
interesses e as trocas de favores políticos e econômicos entre os visto, uma vez que o ingresso na Modernidade e a assunção de sua
governantes, apresentando um discurso que enobrecia e exaltava proposta histórica implica em um abandono do passado, o qual
o processo revolucionário como motivo de orgulho para todos os passa a ser concebido como um tempo vazio? O romance de Rulfo,
mexicanos (Revolução com letras maiúsculas). Com o passar do quando olhado sob uma perspectiva alegórica, é capaz de nos
tempo e o distanciamento histórico necessário, os sucessos apontar uma possível resposta para essa pergunta.
revolucionários começaram a ser revistos e novas narrativas foram Ao realizarmos tal proposição de leitura de Pedro Páramo,
acrescentadas às já existentes, criando passados heterogêneos. De passamos a considerar as distintas vozes narrativas como
acordo com Walter Benjamin, a criação de múltiplos passados é possibilidades diversas e singulares, como verdades múltiplas e
algo comum na Modernidade, pois, como ocorreu no cenário incompletas que, agrupadas, podem ser percebidas como uma
mexicano, o desenvolvimento de uma memória oficial não expulsa proposta de revisão da constituição do grande relato nacional
nem tão pouco incorpora todas as outras memórias coletivas, as mexicano relacionado à revolução, partindo da compreensão e da
quais, em algumas ocasiões, permanecem como desafiadoras da aceitação do passado como heterogêneo e fragmentado. Cada
construção dominante. narrador de Pedro Páramo apresenta a sua visão em relação aos
O México vivenciou um resgate histórico durante a processos de mudança ocorridos no povoado por conta da
revolução: os conflitos eram motivados pela ânsia de mudança, de revolução, enquanto o narrador em terceira pessoa apresenta as
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vivências do tirano. Essas construções explicitam momentos de do pai e do povoado em toda sua complexidade. Ele promove a
incerteza, expõem as dificuldades pelas quais os moradores união do passado com o presente da narrativa através de sua
passaram, demonstram o jogo de interesses e a manipulação dos morte, reconhecendo as diversas vozes que ecoam na narrativa, as
rumos dos confrontos por parte dos grandes latifundiários. Enfim, ruínas são atualizadas, passam por um processo reflexivo e são
essas vozes revelam o lado da derrota, da perda. dispostas outra vez dentro da história.
Ao aceitar que essas vozes são importantes na composição Ao lado do reconhecimento das ruínas e da sua valoração,
do grande relato nacional, rompemos com as visões encontramos outro elemento igualmente importante para a
homogeneizantes e totalizantes da história e tomamos a compreensão de Pedro Páramo: a incompletude do sentimento de
diversidade e a oposição como aspectos positivos na recuperação luto. Freud (1917) já destacava que todo processo de luto tem uma
do passado. Todavia, não basta apenas expor essas vozes, dar-lhes resistência em tornar-se completo e, mesmo quando alcança
espaço, é necessário que elas venham acompanhadas de um percorrer todas as fases, depara-se com algum resquício que ainda
processo de reflexão e de crítica, pois o passado somente é capaz denuncia a perda. O trabalho de luto passa por três períodos
de cumprir seu papel na tríade temporal quando é temporais: passado, presente e futuro. O passado da narrativa
constantemente revisto e valorado. As diferentes vozes narrativas surge associado à fertilidade e à produtividade de Comala. No
de Pedro Páramo, tomadas como ruínas, apenas podem ser presente, está a deterioração do povoado, sua aridez e a escassez
significadas através de processos reflexivos e avaliativos. Sem essa de oportunidades. Entre o passado e o presente, além da perda do
crítica, o passado converte-se em vazio, em um amontoado de ambiente, da sua deterioração – o que já acarreta o trabalho de
ruínas que esperam por alguém que lhes atribua sentido. Assim, luto -, há uma perda ainda mais intensa: os moradores de Comala
propor uma leitura alegórica de Pedro Páramo, a partir da morrem, perdem sua existência física. O futuro - tempo em que o
concepção de alegoria de Benjamin, é ingressar no romance não trabalho de luto se completa através da substituição do objeto
em busca de metáforas que nos permitam encontrar emblemas perdido – surge sem nada a oferecer: nada é suficientemente
organizados, de modo a recompor a totalidade da história válido para ser posto no lugar da vida dos habitantes de Comala.
mexicana, mas sim dispostos a dar voz às ruínas que ali se Há, dessa forma, uma impossibilidade da completude do trabalho
apresentam. de luto. Segundo Avelar (2003), “o cadáver se afirma como objeto
Os indivíduos são seres temporais, de modo que, o alegórico por excelência porque o corpo que começa a se
processo de significação dos fragmentos deve ser constante, deve decompor remete inevitavelmente a essa fascinação com as
ser contínuo, pois as percepções se modificam com o passar do possibilidades significativas da ruína que caracterizam a alegoria.
tempo. No romance de Rulfo, é Juan Preciado quem promove a O luto é a mãe da alegoria”. A marca da perda é o que fortalece o
significação das diferentes vozes narrativas. Juan assume uma vínculo entre o alegórico e as ruínas.
posição receptiva, aceitando a história de sucessos e de fracassos
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Se, na Modernidade, o futuro era visto como um tempo de 1994). Em Pedro Páramo, o futuro de promessas é aquele
realizações, no romance de Rulfo essa positividade é negada: construído a partir do reconhecimento e da aceitação do passado,
primeiro, porque o passado necessita ser reconhecido através de considerando seus aspectos heterogêneos como marcas inerentes
um processo reflexivo para que o futuro possa delinear-se de que não devem ser suprimidas. Os elementos defendidos pela
forma fértil dentro da linha temporal histórica; e, em segundo Modernidade, na narrativa, encontram-se vinculados ao passado:
lugar, porque o futuro surge como um tempo que não é capaz de reflexão, crítica, valoração temporal, reconhecimento de
realizar o processo de luto em sua totalidade, negando o status ambiguidades, etc. Nessa condição, o que a narrativa almeja é a
que a Modernidade lhe conferiu de tempo de plenitude. A crítica, projeção de um futuro de ruínas, de fragmentos para explorar e
em Pedro Páramo, ao lugar que a Modernidade concedeu ao ressignificar, ao invés de um futuro vazio que abandonou o
futuro, permite-nos propor a apreensão desse tempo como, passado atrás de si.
também, composto por ruínas. Tal percepção possui um caráter
positivo uma vez que nela se percebe a perpetuação dos Referências
fragmentos e das ruínas vinculados ao passado através de ADORNO, T. Dialética Negativa. Tradução de Marco Antônio
processos críticos. Não se trata de simplesmente reproduzir as Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
ruínas, pois, nesse caso, o futuro seria uma cópia estática do
passado e do presente. Trata-se de refletir sobre elas, ordená-las, AVELAR, I. Alegorias da Derrota: A ficção pós-ditatorial e o trabalho
reorganizá-las aceitá-las ou mesmo modificá-las. Nessa conjectura, de luto na América Latina. Tradução de Saulo Gouveia. Belo
há um êxito no reconhecimento do caráter humano dos indivíduos Horizonte: Editora UFMG, 2003.
enquanto seres históricos. O passado é submetido a constantes
processos analíticos e é equiparado ao presente e ao futuro em BENJAMIN, T. La Revolución Mexicana: memoria, mito e Historia.
termos de importância na tríade temporal. Cidade do México: Taurus, 2010.
O romance de Rulfo denuncia que, pela forma como a
Modernidade concebe o passado (tempo vazio), sem assegurar-lhe BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão. Edição e
sua restituição e valoração, é o futuro (o tempo idealizado) que tradução J. Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
tenderá a tornar-se vazio. A negatividade do vazio reside em que,
sem ruínas, pobre em experiências comunicáveis, os indivíduos ______. A modernidade e os modernos. Tradução de H. K. M. da
perdem suas referências, perdem seu poder de crítica e de Silva et. al. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
reflexividade (elementos contraditoriamente defendidos e
valorizados pela Modernidade). O que lhes resta? Partir para
frente, contentar-se com pouco, começar do zero (BENJAMIN,
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______. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: Ensaios RIBEIRO, D. As Américas e a civilização: Processo de formação e
sobre literatura e história da cultura. Tradução de S. P. Rouanet. causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São
São Paulo: Brasiliense, 1994. Paulo: Companhia das Letras, 2007.

______. Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge RULFO, J. Pedro Páramo. Santiago de Chile: Editorial RM, 2009.
do capitalismo. Tradução de J. M. Barbosa e H. A. Baptista. São
Paulo: Brasiliense, 1989. VALADÉS, E. Tertulia Literaria: La tinta fresca. Novedades, Cidade
do México, 30 de março de 1995, Segunda Sección, p.01-05.
ENRIGUE, A. Virginidad. In: ROSAS, A. (Coord.). Las dos caras de la
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FREUD, S. Luto e melancolia. Edição Eletrônica Brasileira das Obras


Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1917.

LOMNITZ, C. Idea de la muerte en México. Tradução de M. Z. Vega.


Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2006.

MANZUR, C. A. El teatro del poder (Texto en dos actos y un envío).


ROSAS, A. (Coord.). Las dos caras de la historia: Revolución
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PAZ, O. El laberinto de la soledad. Madrid: Fondo de Cultura


Económica de España, 1998.

______. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução


O. Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
P á g i n a | 138

SUA ANOTAÇÃO, MEU ROMANCE: PROCESSO E PRODUTO NOS Essa conexão com o que virá, com o a posteriori da escrita
DIÁRIOS-ROMANCE DE MARIO LEVRERO que testemunhamos, é parte do que leva Adriana Astutti, em dois
Antonio Marcos Pereira ensaios particularmente felizes, a denominar “escribir para
UFBA después” (2006, 2013). Leitores de diário que estamos sendo ao
ler esses textos, supostamente estamos em um vestíbulo da
Recentemente, por conta de uma associação muito escrita, num momento que precede o que será, efetivamente,
absorvente com os textos finais de Levrero – que fui lendo e pouco literatura. E, um dia, chega: findam os diários, somos apresentados
a pouco foram roubando minha atenção de outros assuntos e a uma suposta reprodução do manuscrito de La novela luminosa,
autores, e terminaram me conduzindo ao desejo de escrever a o tão ambicionado romance, no estado em que se encontrava, e
respeito do que lia neles – me ocorreu que havia uma oposição Levrero morre pouco depois. La novela luminosa terá publicação
entre processo e produto que pulsava nesse conjunto de textos. É póstuma, que será um combinado diário + romance, e com isso o
uma propriedade específica desses textos em que Levrero lida com “depois” ganha outra conotação, pois lemos muito sobre a vida, e
o diário como forma, como oportunidade para lançar a narrativa: sobre as reflexões que o narrador de Levrero faz sobre a vida,
não está, não a percebo, em textos anteriores dele, como Nick nesses diarios; boa parte dessas reflexões se lança sobre a escrita
Carter (LEVRERO, 2009), por exemplo. Mas está em Diario de un dessa outra coisa, desse romance, e sua aparição, para nós, parece
canalla (LEVRERO, 2013a), El discurso vacío (LEVRERO, 2009), e La tributária do fim da vida, que nos lega, enfim, o romance. Houve o
novela luminosa (LEVRERO, 2010): nessas narrativas o diário é uma processo ao qual fomos apresentados ao longo de três livros, e ele
espécie de coadjuvante, ao lado do narrador, a nos dizer o que se nos conduz ao produto, ao romance, que é rebocado pelos diários,
passa ali. que são os livros que lemos. É isso mesmo, um vai-e-vém.
O que se passa é, via de regra, muito simples: coisas Essa descrição de início me parecia correta: retratava o que
rotineiras, e uma alusão perene a um projeto literário, a um desejo ocorria, e tinha plausibilidade. Mas ao mesmo tempo me parecia
de escritura: um romance iniciado e abandonado, que o narrador friável, e falhava em um ponto fundamental: o “produto” que
deseja concluir. Acredita que pode, ou deve, concluir: sua líamos ao cabo de tantos diários já tinha estado lá todo o tempo,
existência precária, inconclusa, o incomoda e mobiliza, e esses como motivação da escrita dos diários, como pontapé inicial do
textos sempre apresentam esse romance já escrito antes como projeto. Ele nos é apresentado ao final, mas o que se apresenta
algo que virá depois, que virá ao final, que se deixará concluir após não é – a seguir a suposta verdade interna à narração – uma versão
o que estamos vendo o narrador fazer ali naqueles diarios: seguir significativamente reformada, resultado da terapêutica praticada
sua vida, ambicionar alguma reforma moral, desejar um patamar na produção diarística. É La novela luminosa que já tinha sido
de salubridade que se traduza em condições de escritura. escrita, o que já estava lá de saída e, nesse sentido, talvez fosse
melhor descrito como o ponto inicial do processo, ao invés do
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momento em que o processo perde sua fluidez e mobilidade e se situar a maneira como Astutti categoriza essas narrativas de
cristaliza no que é sua razão de ser, seu produto. Levrero, aparece para mim o seguinte trecho de um texto de
Ao mesmo tempo em que pensava essas coisas, avançava Laddaga,
na leitura da recepção de Levrero, catando coisas focalizadas nessa Basta leer algunas páginas de La novela luminosa para darse
parcela da produção dele que mais me solicita, e observava como cuenta de que no se trata de un diario en el sentido
isso, que ia ganhando evidência para mim como problema, parecia habitual: un registro de la vida en su caos normal. No hay
invisível, ou subalternizado, por outros leitores. De certa maneira, nada de caótico en la vida que el libro de Levrero narra: esta
vida ha sido simplificada hasta llegar a ser un esbozo, un
isso se traduzia em uma questão ligada ao gênero das narrativas:
esqueleto. Pero ¿qué es lo que nosotros podríamos obtener
criou-se um sossego com o monstro, um jeito de tratar dos textos
de la lectura de esta secuencia de minucias, de repeticiones,
enfatizando-se seu caráter híbrido que, ao mesmo tempo que de constancias? (LADDAGA, 2013, p.229)
refere a constatação da peculiaridade – como faz Astutti ao dizer
que são “textos a caballo entre el diario íntimo, la crónica Aí há algo cuja importância me captura, e que me convence
minimalista y la ficción” (ASTUTTI, 2006, p.2), ou que são “textos- a deslocar o foco da observação do gênero – ou do texto, de
diario-ficcionales” (Ibid, p.5) – reduz sua estranheza, a apazigua em maneira gera do que está lá, no que o autor lança à nossa fruição
uma forma hifenada. É disso que se trata? Encontramos um jeito – para a leitura – ou para os efeitos do texto, de maneira geral para
de categorizar e mandamos bala, procedendo como se nada de o que está aqui, no que um leitor se vê fazendo com o que o autor
estranho tivesse acontecido, estivesse acontecendo? lançou para sua fruição. É por essa via que encontro um jeito de
Pode bem ser verdade que essa seja a resolução possível, “resolver” a relação entre processo e produto na produção tardia
ou válida, para Astutti. Mas para mim perdurava uma questão que de Levrero – e a ideia de resolução aí aparece entre aspas não por
era parte do que me referi na abertura como o imenso pudor excessivo ou pendor pós-moderno, mas por reconhecer que
magnetismo que esses textos exercem sobre mim. Esse caráter sui há uma ordem de irresolvível em pauta, pois a matéria evidencial
generis das narrativas finais de Levrero anuncia a nutrição de uma é indissociável de uma dimensão que envolve a disponibilidade da
fome peculiar, ligada aos bastidores da escritura, suas ansiedades leitura de forma particular. É essa orientação geral que vai
e ao que aí, humaniza e aproxima os autores de meu próprio desembocar na “crítica patética” à qual Barthes faz menção em
exercício, titubeante e cheio de vacilações, como crítico de seu A preparação do romance I (2005).
literatura: estou lendo o diário do escritor, estou visitando a “casa Aqui, cabe fazer um pequeno desvio: Barthes – e
do escritor”, e isso me conforta e, ao mesmo tempo, estimula a justamente nesse projeto, exposto nas notas de curso de A
escrever, a escrever sobre esses “textos-diario-ficcionales” em preparação do romance – parece muito convidativo como um
particular, e de uma forma que seja também próxima de um estruturante da leitura dessas narrativas finais de Levrero. A
estado de atelier, ensaística e ensaiante. Mas, ainda buscando motivação para o exame da anotação, do diário, em Barthes,
aparecem pelo que essas permitem entrever de desejo de Obra,
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de encaminhamento de escritura. Se a questão de fundo é a Escribo para escribirme yo; es un acto de autoconstrucción.
“passagem da anotação ao romance”, o acoplamento é fácil, e Aquí me estoy recuperando, aquí estoy luchando por
muito ajustado, ao que vemos em Levrero. Observe alguns rescatar pedazos de mí mismo que han quedado adheridos
excertos, recolhidos justamente da abertura, da explicitação das a mesas de operación […], a ciertas mujeres, a certas
ciudades, a las descascaradas y macilentas paredes de mi
preocupações que orientam o curso:
apartamento montevideano, que ya no volveré a ver, a
O que é interessante é a vida presente, mesclada
ciertos paisajes, a ciertas presencias. Sí, lo voy a hacer. Lo
estruturalmente ao desejo de a escrever. A “preparação” do
voy a lograr. No me fastidien com el estilo ni con la
romance se refere, portanto, à captura desse texto paralelo,
estrutura: esto no es una novela, carajo. Me estoy jugando
o texto da vida “contemporânea”, concomitante.
la vida. (LEVRERO, 2013a, p.25)
(BARTHES, 2005, p.36)
Pode-se escrever o Presente anotando-o, à medida que ele Como Levrero executa sua “autoconstrucción”, senão pelo
“cai” em cima e embaixo de nós. […] A Notatio aparece de uso do diário como estrutura que esboça, em seu acolhimento ao
chofre na intersecção problemática de um rio de linguagem, que “cai” na circunstância, a obra? Mas isso, aqui, parece importar
linguagem ininterrupta: a vida – que é texto ao mesmo menos que uma brecha que permite responder à questão de
tempo encadeado, prosseguido, sucessivo, e texto Laddaga indicada antes. Pois se o narrador está insistindo que se
superposto, histologia de textos em corte, palimpsesto –, e trata de “vida”, se está salientando que “esto no es una novela”,
de um gesto sagrado: marcar (isolar: sacrifício, bode isso não resulta em uma absorção do texto no desenho de uma
expiatório, etc). A anotação: intersecção problemática? contingência caótica que seria o retrato mimético, o “problema do
Sim: é o problema do realismo que é colocado pela realismo” ao qual alude Barthes, de uma vida. A “secuencia de
anotação (Ibid, p.37)
minucias, de repeticiones, de constancias” – presente de uma
Por outro lado, como passar da anotação, da Nota, ao maneira ou de outra nas narrativas dessa fase final da produção de
Romance, do descontínuo ao fluxo (ao estendido)? Levrero, mas talvez manifesta, por sua extensão e intensidade, de
Problema para mim psico-estrutural, já que isso quer dizer maneira mais vívida em La novela luminosa – produziu para mim
passar do fragmento ao não-fragmento, isto é, mudar uma forma particular de encontro com uma expressão do vazio,
minha relação com sua escritura, isto é, com a enunciação,
algo que o próprio Laddaga corteja ao indicar, na abertura de seu
e ainda com o sujeito que sou: sujeito fragmentado (= certa
ensaio, uma conexão que vê entre um relato autobiográfico de um
relação com a castração) ou sujeito efusivo (outra relação)?
(Ibid, p.38) japonês contemporâneo sobre sua experiência em um rigoroso
mosteiro zen e o “Diario de la beca”, parte inicial de La novela
Agora observe uma passagem do que seria o primeiro texto luminosa.
nessa sequência de diários-romance de Levrero, Diario de un O “nada”, visto dessa maneira, parece estar no centro do
canalla: palco, mas articulado de tal jeito que – e aqui apresento o que é
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minha hipótese hermenêutica, o que penso como parte da maneira como certas formulações críticas tendem a passar – sem
justificação para este ensaio – talvez seja o caso da obra constituir mais, como se não se tratasse de uma passagem, ou tradução – do
sua própria vaziez como se fosse peripécia. Nela, feitos particular para o geral, conferindo função normativa a um fato da
supostamente simples, como adquirir um ar-condicionado, ou tirar experiência pessoal. Barthes, evidentemente, tem ciência disso
uma segunda via da carteira de identidade, ganham tons que, ao (indica a “imprudência” dessa alternativa), e qualifica, indicando
reiterar sua ordinariedade, de grande monta aventuresca, uma vez que aquilo a que se refere ao mencionar esses tais “momentos de
que os horários de sono invertidos do narrador lhe dificultam verdade” não é apenas “uma impressão subjetiva, arbitrária”. Por
enormemente a execução de tais tarefas: há temor, há esse roteiro, buscando traduzir em termos metodologicamente
planejamento para execução, há falhas mil, e reflexões que saem viáveis o que tateou com o ambicioso sintagma que pôs à frente
como farpas de cada incidente e de cada movimento, mesmo da discussão, diz
aqueles que representam a circulação das mesmas mercadorias Não seria impossível teorizar uma leitura – e, portanto, um
comezinhas. Caracterizando esse setor da produção de Levrero, método, uma crítica – que se ocuparia com ou partiria dos
recordo uma observação de Damian Tabarovski (2006) que me soa momentos da obra: momentos fortes, momentos de
acertada: se os livros tardios de Levrero são “um tipo de narração verdade ou, se não tivermos medo da palavra, momentos
patéticos (conhecemos o vínculo com o Trágico). Crítica
alterada que, em um mesmo movimento, lembra o romance, o
patética: em vez de partir de unidades lógicas (análise
ensaio, o manual de auto-ajuda e o diário íntimo”, há uma
estrutural), partiríamos de elementos afetivos; poderíamos
insinuação de que, aqui, algo se projeta para contribuir com o chegar a uma discriminação dos valores (do valor) da obra
aperfeiçoamento da sensibilidade e da moralidade, a uma segundo a força dos momentos – ou de um momento.
transformação no comportamento (a “auto-ajuda” não tem a ver (BARTHES, 2005, p.223)
com isso?).
Esse trecho funciona como uma chancela para valorizar,
Isso funciona, e se mostra acertado, aceitável, a reboque
não particularmente um “momento de verdade” na obra tardia de
da manobra que me interessa fazer, à qual me referi
Levrero, mas a constituição de uma órbita particular na qual o
anteriormente como uma saída da preocupação categorial e uma
leitor trafega, e que o conduzirá ao ponto de chegada – o texto
entrada no exame da experiência da leitura. E, mais uma vez,
original de La novela luminosa, disparador de todo o processo no
Barthes, no mesmo A preparação do romance, se mostra
qual estamos envolvidos – com uma certa disponibilidade. O que
adequado para essa argumentação. Já ao cabo de suas aulas, e do
aconteceu com quem lê o “Diario de la beca”? Aqui, acho útil
minucioso exame que faz de variantes da passagem da anotação
lançar mão da caracterização de “interesse” como uma categoria
ao texto, Barthes alude a “momentos de verdade”: ficamos logo
de apreciação estética, tal como sugerida por Sianne Ngai, em seu
em alerta, pois estamos mercando aí com um vocabulário cafona,
Our aesthetic categories (2012): quando declaramos que algo é
e flertando com um excesso que já conhecemos de sobra, que é a
interessante, indicamos estar diante de algo que não somos ainda
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capazes de explicar completamente. Para Ngai, o gesto definidor El yo no es otra cosa que una parte modificada, em función
do interesse é o dedo apontado, é a convocação da atenção alheia de cierta conciencia práctica, de un vasto mar que me
para o ponto que já capturou a nossa atenção, que está ali transciende y sin duda no me pertenece; un espécimen
investida: nosso apontar funciona como uma nota promissória, surgido, o emergente, de un vasto mar de ácidos nucleídos.
Pero qué hay detrás, cuál es el impulso que se expresa
insinuando a existência de um suplemento discursivo que é
mediante el ácido. Ese deseo, esa curiosidad, esa voracidad
demandado na situação, mas que não somos ainda capazes de
subyacente en las partículas materiales. (LEVRERO, 2009,
oferecer, e assim barganhamos tempo de atenção e articulação p.123)
rotulando como – e endereçando – interesse. Por força dessa
indeterminação constitutiva do interesse, há seu parentesco com Ou essa, retirada de uma das entrevistas que deu, na qual
um je ne sais quoi, e é essa zona de descontrole, esse elemento aborda a questão do romance que já existe, o romance que já foi
que convoca algo que não sabemos se podemos conhecer, mas escrito: “Yo siempre hablo de texto preexistente. El texto está, hay
que acreditamos poder conhecer, que nos compromete (a que descubrirlo. […] El único método que puede usarse, y sólo
“promissória”), magnetizando o desejo de saber e esboçando um hasta cierto punto, es para motivar un estado del espíritu em el
campo gravitacional que solicita a insistência no investimento, que pueda ser más fácil tener aceso al texto. (LEVRERO, 2013b,
insistência que perdura enquanto houver interesse. p.185).
Não parece compatível com o que tem lugar na produção A ideia de um texto preexistente o anima, aqui, como um
tardia de Levrero? Citei anteriormente um trecho de Diario de un princípio estético, uma condição para a criação. O que é preciso,
canalla no qual há uma peremptoriedade, um afã para indicar que afinal, talvez não seja tanto concluir o romance – que perdura
estamos diante de algo fora da literatura: é da vida que se trata, inconcluso, que nasce póstumo – mas sim construir ao narrador,
diz o narrador, é de uma escrita compreendida como matéria de para que ele no processo construa também um leitor para o
organização pessoal, com fins lucrativos e pragmáticos precisos romance que já existe. Se o que a escritura almejava era uma
(“esto no es una novela, carajo”) que justificam repúdio “autoconstrucción”, algo se constrói, certamente, para fora do
antecipado a qualquer cobrança estilística (“No me fastidien com texto, em quem lê esses textos, em quem empenha seu tempo na
el estilo ni con la estrutura”). Não que, mesmo que levemos ao pé convivência prolongada com esse projeto auto-performativo.
da letra, estejamos aqui fora do campo de possibilidades da Quem assim fez, investiu seu desejo, sua curiosidade, sua
autoria contemporânea: a assertiva que busca negar o ficcional, o voracidade nas peripécias vazias desses textos literalmente
escancarado descaso para com questões formais, tudo isso é promissores, na expectativa de que dali aparecessem as condições
emoção barata, parte constitutiva do repertório de possibilidades de possibilidade de um romance que, ao final, lhe aguarda: não
do romance. Mas observem que curioso é o contraste entre a como produto e ponto final do processo, mas como um envio para
afirmação anterior e esta, tomada de El discurso vacío: o leitor, que a essa altura reconhece os “pedazos [...] que han
quedado adheridos a mesas de operación”, bem como “ciertas
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mujeres”, “ciertos paisajes”, “ciertas presencias”. “Sí, lo voy a ______. Um silencio menos. Conversaciones compiladas por Elvio
hacer. Lo voy a lograr”: ele fez, ele conseguiu – e você, que leu, E. Gandolfo. Buenos Aires: Mansalva, 2013b.
também.
NGAI, S. Our aesthetic categories: Zany, cute, interesting.
Referências Cambridge: Harvard University Press, 2012.
ASTUTTI, A. Ejercicios de caligrafia: Mario Levrero. BOLETIN/ 13-14
del Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria (Diciembre 2007 TABAROVSKY, D. La realidad es una cosa lejana. El Pais, 7-10-2006.
– Abril 2008), p.1-9. Disponível em: Disponível em:
<http://www.celarg.org/int/arch_publi/astutti_13_14.pdf> <http://elpais.com/diario/2006/10/07/babelia/1160177955_850
Acesso em: 30 de Setembro 2014. 215.html>. Acesso em: 21 março 2014.

______. Escribir para después: Mario Levrero. In: DE ROSSO, E.


(Org.) La máquina de pensar em Mario – Ensayos sobre la obra de
Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2013.

BARTHES, R. A preparação do romance - I. São Paulo: Martins


Fontes, 2005.

LADDAGA, R. Un autor visita su casa. Sobre La novela luminosa, de


Mario Levrero. DE ROSSO, E. (Org.) La máquina de pensar em
Mario – Ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna
Cadencia Editora, 2013.

LEVRERO, M. La novela luminosa. Buenos Aires: Mondadori, 2010.

______. El discurso vacío. Barcelona: Debolsillo, 2009.

______. Diario de un canalla/ Burdeos, 1972. Buenos Aires:


Mondadori, 2013a.
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LA PALABRA LABRADA POR EL AGOTAMIENTO Y EL TERROR EN EL dibujada por cada alma indígena o española que al cabo de cada
COTIDIANO FICCIONAL DE IMÁN DE RAMÓN J. SENDER día respondía por el tamaño de la patria, con su vida o su muerte.
Los periódicos contemporáneos y los sitios en la web
Antonio Valmario Costa Júnior revuelven las arenas del tiempo trayendo en sus granos tintas
UFF nuevas a la vieja ruta, por la cual pasó entre idas y vueltas gran
parte de la historia y del imaginario de España. Melilla sigue siendo
“Viance tiene preparada la fuga. En la seguridad de que al el destino que se acerca de alguna cosa buena que no llega a ser
volver hacia Annual morirá ha encontrado los impulsos buena por lo que pueda prometer. Es más parecida a un escape a
decisivos para intentar la huida hacia Melilla.” (SENDER, lo malo que la arrodea. Así les parece hoy a los inmigrantes
2006, p. 297) subsaharianos, como lo fue a los de la mili y eso es una de las cosas
“[…] Sus padres, sus hermanos han huido a la guerra. El que hace con que Imán, (1930), la primera novela de Ramón, J.
hambre ronda por los aduares y atenaza a los niños, a los Sender (1901 – 1982) se mantenga como actual, o sea, sigue
viejos […] Puede ser un día se haga la paz y que el padre, ofreciéndonos la propiedad de presentarnos a la dinámica que rige
los hermanos vuelvan a su aduar a labrar las tierras. Pero el las fuerzas de aquel rincón de desierto. No porque sus páginas
odio seguirá en los corazones y se transmitirá de padres a sean inmunes a los cambios que los años impusieron al mundo,
hijos.”(SENDER, 2006, p. 321)
pero sí, porque sus letras fueron confidentes de las aflicciones y
esperanzas que atravesaron aquellas tierras. El sufrimiento de
Hoy estamos en el año 2014. Nos llegan a cada mes antaño, inscrito en las milenarias rocas aún gana fuerza cuando el
novedades de Melilla. La Valla de Melilla, una construcción viento pasa entre ellas y toca a los hombres de hoy.
compuesta por tres verjas revestidas por alambre y concertina, Por lo tanto, nos proponemos a través de la presente
ubicada en la frontera entre Melilla y Marruecos cumple su función ponencia a desarrollar una mirada hacia la representación de esta
de impedir la entrada de los inmigrantes subsaharianos en el suelo guerra en la obra Imán, en particular al episodio conocido por el
español a coste de desangramientos y incluso muertes de los Desastre de Annual, para reflexionar sobre las configuraciones del
africanos. Aquellos que tuvieron un día sus riquezas sustraídas, terror que emergen de ella. Forma parte también de nuestros
ahora son rechazados a causa que hoy nada poseen. objetivos identificar posibles enlaces entre estas reflexiones y
Se pasaron siglos desde que los moros cruzaron aquellas algunos de los aspectos contenidos en el ensayo Medo, reverencia,
tierras hacia España, otros tantos centenares de años dieron terror: Reler Hobbes hoje (2014) de Carlo Ginzburg, (1939 - )
testimonio de su retirada hasta que a mediados del siglo XIX y a los buscando dar relieve al papel de la pareja estado-religión en la
principios del XX, Marruecos se convirtió en una frontera viva instauración de formas subliminares del terror. Por fin, con la
intención de rescatar la idea inicial aquí puesta sobre la
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contemporaneidad de las fuerzas conflictivas que emergen del Viance mientras se desarrolla la Guerra del Rif (1920-1926), en
universo de Imán y de Marruecos, intentaremos desarrollar la idea Marruecos.
de algunas posibles extensiones de este terror. Sender se involucró personalmente en el conflicto una vez
La novela se estructura en tres partes, es decir: 1) El que cumplió el servicio militar en Marruecos entre febrero de 1923
campamento – El relevo 2) Annual – La catástrofe y, finalmente, 3) y enero de 1924 ascendiendo a los puestos de cabo, sargento y
Salvación – La guerra – Licenciamiento – La paz de los muertos. suboficial mientras actuaba como periodista del diario El
Imán, publicado por primera vez en 1930 narra la historia Telegrama del Rif. No por mera casualidad las dos principales
de Viance, un aldeano de un pueblo llamado Urbiés, voces narrativas de Imán se manifiestan a través del propio Viance,
supuestamente ubicado en Asturias, norte de España. Tras las un soldado y del sargento Antonio, un periodista que se alista junto
dificultades generadas por las malas cosechas, Viance se con Viance, reflejando sin duda en la tela ficcional de la novela
determinó a ir a Barbastro, en Aragón, donde logró hacerse gotas del testimonio de la experiencia que no fue inventada sino
herrero de modo que como él propio dijo: “un año después me vivida, aunque la sea parcialmente ya que cuando del servicio
daban ya tres duros mensuales, que yo le enviaba a militar de Sender, el Desastre de Annual (1921), el eje de los
padre.”(SENDER, 2006, p.120). El apodo de imán vino de su nuevo sucesos narrativos, ya había ocurrido.
oficio porque “El eje de un carro le cayó en un pié y dos falcas Tras esta breve contextualización seguimos hacia el tema
saltaron del trono y le dieron en la cabeza.” (SENDER, 2006, p.124) que elegimos como central de nuestra investigación: el terror.
Eso le resultó que pasó a creer que “atraía el hierro – la desgracia, Cumple que aclaremos antes lo que puede constituirse en una
la violencia – a su alrededor.” (SENDER, 2006, p.124) como un pequeña diferencia entre horror y terror. Aunque los dos se
verdadero imán, lo que le dio fama de uno que lleva mala suerte. refieran a un sentimiento de miedo intenso, a nuestro juicio este
Aunque sus esfuerzos fuesen intensos no le bastaron a Viance para miedo se manifiesta de forma distinta. Según el diccionario de la
quitar los infortunios que acometieron a su familia, cuyo universo Real Academia Española horror es: “un sentimiento intenso
miserable e injusto es descripto con colores muy semejantes a las causado por algo terrible y espantoso o aversión profunda hacia
que usaría Camilo José Cela (1916 – 2002) doce años más tarde al alguien o algo.” (DRA, 2014, no paginado) Esta definición nos
escribir La familia de Pascual Duarte (1942). Padre, madre y coloca el sentimiento de horror localizado en la persona que siente
hermana murieron y su hermano que era inocente quedó a su el miedo aunque él sea provocado por la presencia de un suceso
propia suerte. Como que para confirmar la fama recién añadida fue con cara de “atrocidad, monstruosidad, enormidad” (DRA, 2014,
sorteado a cumplir a la quinta como tantos otros ciudadanos no paginado). Ya, para la palabra terror, el diccionario la define
españoles pobres que al fin y al cabo se incorporaron a la mili por como “miedo muy intenso”, pero relaciona este miedo muy
no poder comprar su libertad. Ya integrado al ejército español, el intenso a la “persona o cosa que produce terror”, (DRA, 2014, no
libro nos relata la lucha por la supervivencia moral y física de
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paginado), atribuyendo de esta forma el terror al agente que lo Además del horror individualizado abundan en el libro las
produce. imágenes del horror generalizado que suelen ser expresadas por
Tal distinción nos suena significativa ya que a lo largo de la frases como: “Los que llevan la guerrera así están decapitados.”
novela los relatos de las atrocidades y de las violencias cometidas (SENDER, 2006, p.86); “cuerpos desnudos, mutilados, uno con las
son múltiples, llevándonos a percibir la anatomía del miedo de piernas cortadas sobre la rodilla.” (SENDER, 2006, p.208) o
formas distintas. entonces: “Viance ve en él una imagen grotesca de la tragedia, con
El horror individual se muestra a menudo a los hombres en los órganos sexuales descubiertos bajo el vientre destrozado. No
las situaciones en que la muerte se les avecina no más como una quiere mirarlo”. (SENDER, 2006, p.270).
posibilidad pero como una casi certeza. Así se pasa con el soldado Ya el horror de que uno se vale para infundir pánico al
herido que frente al alambrado de una fortificación conocida por oponente es un horror que probablemente labra en los dominios
la posición R., suplica a los del interior de la fortificación que lo del terror, desgranando el coraje del adversario y sembrando
rescaten diciendo: “¡Mi teniente! No es por malo, pero cumplo amenazas en las sombras. De esta forma la novela nos da a saber
dentro de tres meses. Si me curaran – dice el herido – poderla del terror cuando dice: “Ayer tumbaron un avión y han paseado al
salvarme, mi teniente. No merezco morir como un perro, mi piloto muerto clavado en lo alto de una estaca” (SENDER, 2006,
teniente“. (SENDER, 2006, p.166) y tiene como respuesta la p.154), o entonces cuando alguien comenta “Pues aquí ya han
indiferencia del oficial que teme la invasión de los moros. Ese sacao por cuarta vez de la tierra a un pobre moro […] los camiones
horror aparece cuando Viance va a rematar un moro ya herido y de los convoyes le pasan por encima, porque le ponen atravesao
“Se encuentra con la expresión de horror del moro con los ojos en la carretera.” (SENDER, 2006, p.117) o nos cuenta que ha visto
desorbitados y que vomita, con la mejilla en tierra, sobre su propia “[…] en la iglesia crucificar los soldados igual que Cristo.” (SENDER,
mano” (SENDER, 2006, p.261). Este horror personal que mueve 2006, p.276),
Viance a supervivir lo hace también a ignorar “ya por completo la Sin embargo, el terror del que nos habla Carlo Ginzburg en
conciencia del peligro, la noción de lo que le rodea, el horror de los su ensayo sobre el Leviatan (1651), de Thomas Hobbes (1588 –
muertos.” (SENDER, 2006, p.239) y mismo a confrontarse a un 1679) es de otra naturaleza. Para establecer un acercamiento
Viance completamente irreconocible por si propio cuando tras el entre la novela y el ensayo, nos cumple formular una pregunta:
hambre de días mirando a un soldado recién muerto reflexiona “¿Cuál era el carácter de la obediencia de aquellos hombres del
sobre la posibilidad de canibalizar el muerto aunque le pese un pueblo representados en la forma del ejército español?”. Para
resto de conciencia que le recuerda que “[…] llegaría uno a ser peor contestar eso destacamos algunos aspectos del texto de Ginzburg
que las fieras porque ellas no comen la carne de sus semejantes”. que nos parecen relevantes.
(SENDER, 2006, p.286) El primer aspecto es un planteamiento de Hobbes en el que
él consideraba el estado natural del hombre como siendo el de la
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guerra. Hobbes decía que en la naturaleza todos los hombres “são española se cayeron por tierra confirmando por un lado la tesis de
substancialmente iguais e têm os mesmos direitos (entre os quais Hobbes ( estado natural humano siendo lo de la guerra) y por otro
o de ofender e de se defender): por isso vivem numa condição de lado, revelando las dos fuerzas que tras la construcción
“desconfiança geral”, de “medo recíproco” (mutual fear)” institucional imponían al pueblo una idea de orden civilizadora. El
.(GINZBURG, 2014, p.16) evocando así el principio de bellum miedo de los dioses y el de las leyes humanas. Por consiguiente,
omnium contra omnes (la guerra de todos contra todos). tanto Ginzburg, como Hobbes consideran que la guerra (la anomia)
Para Hobbes, los hombres “saem dessa situação intolerável es el estado natural del hombre; el pacto civilizador adviene de la
renunciando a uma parte dos próprios direitos; um pacto que sujeción del hombre a través del miedo y este miedo tiene dos
transforma uma multidão amorfa num corpo político. Nasce assim, vertientes constitutivas, el estado y la religión.
o Estado, aquele que Hobbes chamará de leviatã.” (GINZBURG, El frontispicio del Leviatã, obra maestra de Hobbes, nos
2014, p.16). Esta posición va en contra al concepto Aristotélico que presenta el “dios mortal “, el Estado, como una figura coronada
tenía la polis como el estado natural del hombre por comprender que tiene la espada en una mano y el báculo en la otra. Para
el filósofo que el hombre era en esencia un animal político. Ginzburg, Hobbes considera que el poder del estado no se apoya
El segundo aspecto que Ginzburg nos presenta es que el sólo en la fuerza (las armas) pero en la sujeción (Iglesia) y para eso
planteamiento anterior se ancla muy fuertemente en el estudio comprende que Hobbes al usar la palabra miedo se vale en verdad
que Hobbes había realizado al traducir La guerra del Peloponeso, del sentido de la palabra hebraica yir`ra, que designa al mismo
de Tucídides. Tucídides al narrar la peste, en Atenas, en 429 a.C. tiempo miedo y sujeción (to awe), ya que “Para Hobbes, o poder
nos cuenta que: político pressupõe a força, mas a força por si só, não basta. O
[...] a peste marcou para a cidade o início da propagação da Estado, o deus mortal gerado pelo medo, incute terror: um
ausência de leis [...] Ninguém se dispunha mais a sentimento no qual se misturam de maneira inextricável medo e
perseverar naquilo que julgara ser o bem – pensava – não sujeição”. ( GINZBURG, 2014, p.29).
havia como saber se não morreria antes de alcançá-lo [...]. Zygmunt Bauman (1925 - ) da amparo a esta idea cuando
O medo dos deuses ou das leis humanas já não
nos informa que en 1648, el tratado de “soberanía de Vestfalia”
representava um freio,[...] porque aos olhos deles o
confirmó la formula de Augsburgo, es decir el principio de cuius
respeito aos deuses ou a irreverência eram agora a mesma
coisa, uma vez que viam todos morrerem do mesmo régio, eius religio o sea el gobernante determina la religión al
modo.” ( GINZBURG, 2014, p.20). gobernado. (2014, p. 221)
Sin embargo, lo más interesante que Ginzburg nos muestra
Lo que la peste en Atenas y la guerra en Marruecos guardan es que “no Estado, por ele ( Hobbes) delineado, a religião – ou
en común es que los dos son representaciones de la anomia (la melhor, a Igreja – não tem nenhuma autonomia.” (GINZBURG,
ausencia de leyes); condición en que los marcos configurativos de 2014, p.28), o sea, la pareja entre estado y religión en el estado
lo que se podía suponer como civilización ateniense y civilización
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moderno no nos presenta una relación de dos entidades sido en defensa de la Patria / Soldado: Esta tierra ¿es la
independientes que actúan en conjunto. Al contrario, el patria nuestra o la de ellos? / Cura: efectivamente, la de
historiador nos insinúa que el estado se reviste del carácter ellos, pero todo lugar donde alienta un corazón cristiano es
religioso despertando en sus súbditos no sólo obediencia, pero la patria de Dios y debemos defenderla contra los infieles.
/ Soldado: ¡Ah! ¿Entonces esta guerra la ha mandao el
también devoción. Es por esta razón que Ginzburg considera que
papa? / Cura: No, el rey / Soldado: Y el que obedece al rey
”A secularização não se contrapõe à religião: invade- lhe o seu
¿va al cielo? / Cura: Sí, porque el rey tiene investidura
campo”. (GINZBURG, 2014, p.30) divina. / Soldado: ¿Cómo? / Cura: Que representa la
Volviendo a la guerra del Rif, escenario de Imán, podemos autoridad de Dios en nuestra patria. / Soldado: Ya, Siempre
considerar que la España de Alfonso XIII era aún fruto de aquel me lo he representao a Dios como una especie de rey. /
estado moderno que había surgido en el siglo XVII. La España de Cura: Justo / Soldado: Dice usted que si a uno le dan un
1920 aún era el país de un rey que había ascendido sobre su zumbido en la guerrilla y dice una mala expresión, ¿si va al
pueblo a través de este tipo de terror. Un terror que se había cielo? / Cura: sí / […] Dios no lo toma en cuenta. / Soldado:
firmado no sólo por la violencia pero también por una idea de Y si, es un suponer, estando yo en la guerrilla hablo contra
reverencia que impedía que siquiera se pudiera contestárselo por el rey igual que ellos contra Dios y me cogen, ¿me fusilan?
pensamientos. / Cura: seguramente / Soldado: ¿Y voy al cielo? / Cura: de
ningún modo, si antes no has hecho acto sincero de
La anomia en la Guerra del Rif produce dos efectos en los
contrición. / Soldado: Pues no lo entiendo, porque, según
soldados españoles. Por un lado derriba el aparato ideológico que
eso, es más pecado faltar al rey que faltar a Dios. (SENDER,
reviste a la idea de patria y de iglesia, lo que logra despertar la 2006, p. 113 – 114)
conciencia de gente pobre, campesina u obrera como Viance para
la sujeción que el estado se les imponía. Por otro, el terror de la Del segundo caso hay ejemplos en la novela que siempre
guerra al sobreponerse al terror del estado destruye cualquier dan relieve a los aspectos de un automatismo y de un
capacidad de creer en algo. Esta descreencia profunda sembrada sonambulismo donde el hombre al sentir permanentemente que
en medio al cansancio extremo lleva los pobres soldados al terror ya no se pertenece, enfrenta el peor terror que puede acometer a
apocalíptico de un fin de mundo donde el único sitio posible acaba alguien. El del abandono de cualquier certeza. Este terror de la
siendo el de las arenas desérticas de la locura fragmentación de la psique soldadesca encuentra eco en la
En el libro hay un episodio significativo del primer caso. Es atmósfera narrativa de Imán que es igualmente fragmentaria.
una situación en que un cura charla con un soldado que lo auxilia Ricardo Crespo al comentar la producción periodística de
en el servicio de extrema unción a algunos combatientes españoles Sender en El telegrama del Rif nos cuenta que “La estructura
muertos. El diálogo se sucede de la siguiente forma: fragmentada en escenas, las descripciones rematadas con un
Cura: -Desde luego, han salvado el alma / Soldado: Pues diálogo que refleja el estado de ánimo de los soldados, es técnica
algún moro habrán matao, digo yo / Cura: No importa; ha que aquí se anticipa a Imán […]” (CRESPO, 1989, p.11). Guzmán
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Urrero Peña (1968 - ) al comentar que en Imán “La constante El terror atávico de la huída de Viance lleva tintas
producción de imágenes se vuelve fragmentaria”, (CVC, 2014, no calderonescas donde la inconsciencia bordea la atmósfera del
paginado) también nos confirma la intencionalidad de representar sueño que puede ser el de la muerte o el de un despliegue de la
a través de las palabras toda la anomia de la guerra, todo extremo realidad. Hay episodios en los que Viance reflexiona sobre este
terror psicológico y cansancio físico que turban la percepción y los tema por los senderos de su ambivalencia como aquel en el que
sentidos de los soldados y su discernimiento. Lo curioso es que el se pregunta: “¿El sueño? ¿Otra vez el sueño? Pensar en lo
efecto impuesto a la tesitura narrativa, o sea un agotamiento inconcreto, formar abstracciones, es atraer bajo la sed el hambre,
profundo acaba por ampliarse y dirigirse hacia el lector que se el dolor de las heridas, ese sopor tan parecido al sueño y a la
siente igualmente confuso, atónito y desorientado. muerte […] Sueño. Muerte. Huida hacia un infinito diáfano, lejos
En Imán este tipo de terror labrado por el agotamiento de los hombres.” (SENDER, 2006, p.266), o cuando afirma “Hay un
presenta faces múltiples. Hay la palabra labrada que bajo una hambre acumulado de tres días […] se hacen comentarios tan
apariencia de normalidad se inviste de buenas maneras mientras ajenos a la realidad inmediata que si piensa si están locos o se
no percibe el peligro y hasta mismo siquiera lo considera quizás trata de un sueño lleno de incoherencias. (SENDER, 2006, p. 277).
por el miedo de sentir miedo, involucrando a los hombres en un Finalizando, nos gustaría enfrentar algunas provocaciones
cotidiano que sublima la propia indignidad. Hay la palabra cansada que Ginzburg nos deja al fin de su ensayo donde especula sobre la
de buscar un hilo de esperanza terrena que la sostenga y que se forma actual del leviatán. Se nos impone dos preguntas: “¿Qué
mueve en sobrevuelos panorámicos donde el terror es atávico y configuración el tipo de terror subliminar ejercido por la pareja
metafísico como en la huida de Viance durante el Desastre de estado – iglesia en el siglo XVII asumiría en los días de hoy?” y
Annual. Hay el silencio que suplanta a la sed, al hambre, al horror “Qué nuevo tipo de agotamiento es producido por la tensión entre
y que encuentra fuerzas solamente en un último instinto. España y Marruecos?”
El terror del sonambulismo cotidiano ficcional nos trae Ginzburg nos advierte al final de su ensayo que el
relatos tales como: “El cansancio llega a anestesiar. No se sienten bombardeo a Bagdá, en marzo de 2003, realizado por Estados
los pies, ni las hendeduras de las correas que nos cruzan el pecho, Unidos se llamó Schock and Awe (golpear y aterrorizar)
ni el calor” (SENDER, 2006, p.82), o entonces, lo de “comerse una comentando que según Clara Gallini (1931 - ) este terror se refiere
rata o tragarse un par de moscas no tiene importancia para la a un “terror sagrado”. Ginzburg también comenta que Richard
salud […] Todo es química.” (SENDER, 2006, p.116) y aún “Ni Dios Drayton (1964) escribe a los neoconservadores americanos,
pegará un ojo en las tiendas próximas al parapeto. Viance, sí. diciéndoles que ellos se les habían propuesto a adaptar Hobbes al
Duerme de pie o andando, mientras tenga algo donde apoyarse.” siglo XXI, difundiendo terror con fines de crear sumisión.
(SENDER, 2006, p.97). Zygmunt Bauman a la vez, nos recuerda que la Era
Moderna, carga tras el imperativo categórico de Kant, la ambición
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de que el uso de la razón pudiera convertirse en derecho natural nunca hicieron tan poco sentido. Hoy en día, las palabras, nunca
y universal del comportamiento humano y que en relación al representaron tan poco frente a lo tanto que anhela un día
dominio de la naturaleza “o que as preces não tinham conseguido manifestarse como palabra. Las palabras pasaran a ocultar al
alcançar, a techné […] apoiada pela ciência, certamente leviatán. Ocultan a la guerra en vez de desvelarla como se sucede
conseguiria.” (BAUMAN, 2008, p. 113). en Imán.
En verdad, lo que tanto Ginzburg como Bauman nos dicen El viejo desertor español que abriga Viance, en su huída, le
es que el carácter de sujeción religiosa y reverencia que en un dijo: “Todo en el mundo es lucha.”(SENDER, 2006, p.253). En la
tiempo pasado revistió al Estado moderno en su carácter de novela de Miguel de Delibes (1920-2010) Las guerras de nuestros
fuerza, revístelo ahora en la post-modernidad a través la antepasados (1975), el personaje Pacífico dijo: “Lo cierto es que
tecnología por un carácter de amplitud e interconexión. en casa empezando por el bisa y terminando por Padre todos
Viance y sus compañeros de mili, hombres más que tenían su guerra, una guerra de qué hablar, ¿comprende?”
comunes, vivían en extremo cansancio y sonambulismo. Cruzaban (DELIBES, 1985, p.20).
los días a través de un agotamiento creciente y una anestesia Sender en la presentación de la primera edición de Imán,
continua donde cada palabra podría ser la última y el alma se les escribió:
caía de ellos lentamente, sujetados por el leviatán del Estado. La imaginación ha tenido bien poco —nada, en verdad—
Bauman afirma que hoy la tecnología, la religión de la que hacer. Cualquiera de los doscientos mil soldados que
actualidad, se mueve como “estivesse se transformando numa desde 1920 a 1925 desfilaron por allá podía firmarlas [estas
força inumana destinada a tirar dos inventores humanos o fardo notas]. Y desde luego su protagonista se puede
“comprobar” en la mayor parte de los obreros y
da liberdade e da autonomía.” (BAUMAN, 2008, P. 118) y aún
campesinos que fueron allá sin ideas propias, obedeciendo
añade que la tecnología “oferece aparentes atalhos para os
a un impulso ajeno y admirando a los héroes que salen
impulsos morais e soluções em doses rápidas para os dilemas retratados en los periódicos. (SENDER, 2006, p. 77)
éticos […] “mecanizando moralmente” os atores, anestesiando
sua consciência moral.” (BAUMAN, 2008, p. 118). Lo cierto es que la guerra es al mismo tiempo lucha interna
La diferencia entre los hechos pasados en Imán y los y externa. Es materia común a la humanidad de todos los tiempos
vividos hoy es que la anestesia se hace sin necesitar de una guerra y herencia particular de cada generación. Mientras vemos a través
declarada. El leviatán sigue en su modo de ser insinuante pero se la tele (la techné) a los subsaharianos morir intentando trasponer
vale ahora de la espada, del báculo y también del ordenador. Las a la Valla de Melilla, lo cierto es que una anestesia secular está
palabras que deberían ser labradas como suspiro vivificante al ocultándonos una guerra. Una lucha secular que se presenta
agotamiento ahora son causa de sofocación. Las multiplicamos a disfrazada por nuevos aires, siguiendo y soplando entre las rocas
través medios tan distintos (libro, web, etc…) y, sin embargo, ellas milenarias sobre las víctimas preferenciales del leviatán: los
hombres comunes.
P á g i n a | 151

Referências
BAUMAN, Z. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BAUMAN, Z.; DONSKIS, L. Cegueira moral: a perda da sensibilidade


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filología, nº1, 1989, p. 7 – 28:

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em: 27 de ago de 2014

SENDER, Ramón J. Imán. Barcelona: Editorial Crítica, 2006.


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AUTORREPRESENTAÇÃO DOS SUBALTERNOS NO FUNK CARIOCA Este trabalho é fruto de uma pesquisa sobre as
E NA CUMBIA VILLERA: TERRITÓRIO, IDENTIDADE E VIOLÊNCIA representações nos limiares urbanos onde se dão contatos entre
NAS VOZES PROIBIDAS1 culturas dos quais surgem procedimentos discursivos híbridos e
Ary Pimentel novos códigos de socialidade. Tendo como objeto o estudo dos
UFRJ subgêneros musicais funk proibido e cumbia villera a partir de
coletâneas de músicas difundidas nos circuitos dos bailes cariocas
O sangue bom falou pra falar pra você e dos trabalhos dos grupos Damas Gratis e Pibes Chorros, a
Se der mole pros home, amizade, o bicho pega pesquisa tem como proposta discutir as subculturas juvenis, como
[...] a cultura de pequenos grupos diferenciados no corpo das
e a moçada que não dá mancada megacidades contemporâneas, recolocando a questão das
sentiu o aviso e não vacilou,
estratégias de produção e consumo com foco nas principais
pois toda favela tem sua passagem
peculiaridades e especificidades de cada subgênero. Por levar em
e sem caguetagem jamais alguém dançou,
jamais alguém dançou... Vai ter... conta que, quando as condições de produção, circulação,
O Rappa, em “Se não avisar, o bicho pega” reconhecimento e consagração variam, os discursos também
apresentam características próprias, daremos especial atenção
La historia terminó, te vas con él
neste estudo às gramáticas de produção e reconhecimento de
llorando mi derrota, sé que nunca volverás
cada campo musical. Tendo em vista os aspectos que plasmam
te vas con él
modelos discursivos a partir das performances difundidas e
Ella decía que me amaba popularizadas por uma complexa e diversificada cadeia mediática,
sus sueños nunca cumplió pretendemos estudar, mediante o uso de abordagem
dijo que yo era su dueño
comparatista a correspondência entre dois fenômenos musicais
pero un día con otro hombre me engañó
cuja emergência apresenta coincidência no que se refere ao
Que nadie me vea llorar contexto sociocultural e às dimensões temporais e territoriais.
que nadie me vea sufrir Nosso trabalho propõe ainda uma leitura do universo das letras do
Damas Gratis, em “La historia terminó” funk carioca considerando a retomada do tópico relacionado ao
ethos guerreiro e das letras de cumbia villera a partir das imagens
recorrentes do roubo e da traição.

1
Muito do que se encontra neste artigo é ainda esboço de um trabalho em Filosofia y Letras da Universidade de Buenos Aires, enfocando a produção do
processo, integrando uma reflexão maior que se aprofunda durante meu Funk Carioca e da Cumbia Villera como máquinas expressivas dos subalternos.
estagio de pós-doutoramento em Ciências Humanas e Sociais da Facultad de
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O consumo de material simbólico por parte dos moradores a partir de lugares ou estratégias pouco convencionais tem una
das periferias urbanas – para os quais a escuta de certos preferência por temas nada ortodoxos (tais como o roubo e a
subgêneros musicais como a cumbia villera e o funk carioca fazem traição), que revelam atitude estética e política perante o
parte de uma forma de ressignificar a existência – aponta para um território, a sociedade e a vida.
novo lugar da cultura que se constrói nas fronteiras da cidade e Os principais autores da cumbia villera se nutriram da
para o papel da música atuando nas disputas e no processo de experiência cotidiana e da apropriação de letras e ritmos de outros
formação de identidades coletivas. Espaço privilegiado dos gêneros musicais. A cumbia villera de grupos como Damas Gratis,
conflitos de interculturalidade, a fronteira constitui o lócus onde Yerba Brava ou Pibes Chorros dialoga com o tango e o chamamé,
se faz a vida e a arte do presente (BHABHA, 1998, p. 19). As vidas com o rock e a música folclórica, com o reggae e a música
na fronteira são o próprio objeto das expressões que eletrônica. Por sua vez, Menor do Chapa, um dos mais importantes
desestabilizam formas tradicionais de se pensar as práticas de MCs do funk carioca, reconhece em entrevista recente que sua
caráter simbólico. obra traz as marcas da escuta atenta de diferentes seguimentos da
Conforme atesta Homi K. Bhabha em O local da cultura, música brasileira, abarcando desde Luiz Gonzaga a Mr. Catra, de
texto sobre este novo lugar de produção da cultura do presente, é Jorge Bem Jor a Mano Brown, passando pela obra marcante de
nos interstícios que emergem no mundo pós-moderno que as Bezerra da Silva. Conforme observa Umberto Eco, falando de
identidades e os interesses grupais são definidos e os valores grupos subalternos,
culturais negociados. De acordo com o crítico indiano, Frequentemente, essas massas impuseram um ethos
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a próprio, fizeram valer, em diversos períodos históricos,
necessidade de passar além das narrativas de exigências particulares, puseram em circulação uma
subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles linguagem própria, isto é, elaboraram propostas saídas de
momentos ou processos que são produzidos na articulação baixo. Mas paradoxalmente, o seu modo de divertir-se, de
de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o pensar, de imaginar, não nasce de baixo: através das
terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – comunicações de massa, ele lhes é proposto sob forma de
singular ou coletiva – que dão início a novos signos de mensagens formuladas segundo o código da classe [grupo]
identidade e postos inovadores de colaboração e hegemônica[o]. (1990, p. 24)
contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade.
Outra questão, que torna a discussão ainda mais complexa
(1998, p. 20)
é a circularidade no sentido inverso, ou seja, a “biculturalidade”
É justamente nestas “zonas de contato” ou “entre-lugares” (BURKE, 1989) exercida por sujeitos subalternos que começam a
que se registra de modo mais explícito fenômenos ou dicções que desenvolver alguma competência no processo de apropriação e
envolvem os balbucios do subalterno (ACHUGAR, 2006) como os ressignificação de diferentes capitais culturais.
subgêneros musicais objeto deste estudo. Essa música produzida
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Neste contexto, a própria noção de cultura ou, mais o seu espaço o direito de representar-se através da palavra
particularmente, de “capital cultural” pensada por Pierre Bourdieu cantada. Deslocam a atenção da escrita para a oralidade, ou para
dever ser, então, conforme propõe Néstor García Canclini, o lugar intersticial que se projeta entre ambas, o qual se converte
repensada “a fim de incluir os produtos culturais nascidos dos no lócus deste novo sujeito do discurso. Estamos falando de
setores populares, as representações independentes das suas subalternos que deixam de ser sujeitos que apenas comem,
condições de vida e a ressemantização da cultura hegemônica feita trabalham, fazem sexo, lutam contra as adversidades cotidianas,
pelos subalternos de acordo com seus interesses” (GARCÍA para converter-se em sujeitos que se dedicam a pensar e a pensar-
CANCLINI, 2005, p. 90) se.
Este é o caso da cumbia villera e do funk proibido carioca As tramas intertextuais e interculturais que se tecem nos
que podem ser vistos não só como expressões culturais de grupos diálogos com obras da tradição escrita também se manifestam
subalternos, mas como manifestações estéticas populares que quando recordamos os grandes temas do cancioneiro nacional.
hoje se apropriam de um vasto acervo de referencias culturais ao Um outro dado interessante a respeito das fontes destes textos e
mesmo tempo que alimentam inclusive uma nova dinâmica da da circularidade da cultura manifestada nas produções de
circularidade ao serem incorporados como temas e elementos subalternos nas periferias de Rio de Janeiro e Buenos Aires é que
estruturadores do discurso de obras de grande êxito no retomam certas vertentes das origens do tango e do samba com
mainstream. uma linguagem direta e sem tabus.
Para além do repertório de temas compartilhados, destaca- É um aspecto deveras curioso, mas não surpreendente para
se outra característica: a projeção de uma subjetividade villera que o investigador mais atento, reencontrar na cumbia villera velhos
toma a cena de assalto. São textos escritos em primeira pessoa, temas do tango ou, no funk, antigos tópicos que freqüentaram as
mesmo quando não narram fatos protagonizados pelo enunciador, letras de Bezerra da Silva. Nos velhos temas da malandragem, por
como na música “Duraznito”, do grupo Damas Gratis. Nas letras da exemplo, já se destacava a pluralidade de imagens usadas para
cumbia villera, aquele que toma a palavra reivindica uma relação referir-se ao delator ou alcaguete: “dedo de seta”, “dedo de anzol”,
entranhável com o assunto abordado, embora não se deva “língua nervosa”, “língua de tamanduá”, “língua maldita”, entre
esquecer que se trata de uma ficcionalização de experiências reais outras.
que parecem preencher as lacunas deixadas pelas representações Vamos dedicar uma atenção maior ao tema do traidor por
difundidas especialmente através dos meios de comunicação de entendermos que a partir daí podemos discutir mais
massa. profundamente a relação entre práticas sociais e palavra cantada
Nestes discursos narrativos nos quais podemos ver como em contextos em que, como bem nos lembra Pablo Semán, “lo
se ficcionalizam as trajetórias dos sujeitos locais, a primeira pessoa social influye en lo musical” ao mesmo tempo em que “la música
tem a ver também com o fato de o sujeito reivindicar para si e para hace sociedad” (2011, p. 9). Seguimos este caminho, contudo,
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“sem desconhecer que nas culturas populares existem Nas letras de funk associa-se uma negatividade absoluta
manifestações simbólicas e estéticas próprias, cujo sentido supera aos que traem ou desertam da comunidade fechada. O que
o pragmatismo cotidiano” (GARCÍA CANCLINI, 2005, p. 91). aparece como uma ascensão na cumbia, no mundo funk é um
Gêneros musicais traduzem visões de mundo e estão, de desastre pessoal de consequências quase sempre fatais.
modo geral, profundamente enraizado no solo histórico. Levando Ao contrário das letras do funk carioca, nas quais a traição
isso em consideração, os estudiosos observam que a produção da aparece profundamente associada ao contexto do varejo da droga,
cumbia villera guarda uma grande proximidade com o discurso do em várias letras de cumbia villera a traição se relaciona ao
tango de oitenta ou noventa anos antes. abandono da mulher amada ou à tentativa de desvincular-se da
Estamos diante, neste caso, de um universo de signos própria condição villera, movimento que marca a trajetória do
culturais, de motivos tradicionais tomados de empréstimo a outros enunciador do discurso ou do personagem central do relato
subgêneros da música e da cultura de massas. Ainda que apresentado na letra: marginal e marginalizado que tem sua
enraizados no tango e no lunfardo, a cumbia villera é também identidade indissociavelmente vinculada à villa.
música eletrônica e resultado dos deslocamentos transnacionais Cabe observar que, ao representar a si mesmo e ao seu
da cultura de massas, destacando-se aí o seu caráter glocal – global território, cada um destes sujeitos o faz com seu discurso
e local ao mesmo tempo. particular. Contudo, não devemos esquecer que este discurso
Ao processar a realidade em suas letras, os jovens aparece enraizado em uma tradição discursiva. Em algumas letras
cumbieros não se vêem obrigados a abrir mão dos modelos do de cumbia villera, como “Duraznito”, quando aparece a figura do
passado. São apenas seletivos: descartam o que não lhe serve da traidor não encontramos a mesma carga de negatividade em
tradição do tango e incorporam novos elementos, desenvolvem relação ao responsável pelo golpe sofrido pelo grupo criminoso
dicções renovadas e reciclam antigos valores. Por exemplo, o que caracteriza o tratamento reservado ao traidor no funk carioca.
tópico da traição é dos mais repetidos no tango, na cumbia villera Em “Duraznito”, o autor insere a história em uma tradição
e também no funk, embora neste apareça com mais peso e mereça na qual a cumbia aparece imbricada com o tango: o abandono da
um tratamento diferenciado. villa por conta da aquisição de capital econômico e social, como
Tema recorrente no funk, a traição não aparece na cumbia também se dá no caso do sujeito que ingressou na polícia, história
relacionado ao mesmo universo de valores. Os autores da cumbia contada na cumbia “Sos botón”. A narrativa da traição passa a ser
villera inserem as histórias de traição em uma tradição que a história do elemento bem sucedido que deixa a favela para trás
entronca com o tango: o abandono da villa (antes do arrabal) por ou do elemento que se afasta dos circuitos de sociabilidade entre
parte daquele que devido a um golpe de sorte pode mudar de vida, os quais se formou:
seja porque ganhou na loteria, seja porque casou-se com um Se borró Duraznito de la villa
homem rico, ou ainda porque entrou para prostituição. Se llevó toda la plata del blindado
Esa que nos habíamos afanado
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La otra noche en la General Paz Porque eu tô cheio de ódio, neguinho.


(“Cheio de ódio”, de Menor do Chapa)
Nos acostó a nosotros sus amigos
Nos dejó a todos sin un centavo Numa variante desta estrofe, nesta mesma versão
Ahora tiene un piso en Belgrano identificamos que na letra se presta uma homenagem a Orlando
Y en un Mercedes se pasea en la ciudad Jogador, mito fundador do Comando Vermelho:
Míralo a Duraznito viviendo la buena vida Quando eu lembro do Orlando,
Y nosotros que pensábamos que era retardado Sem neorose, eu choro,
Ahora está rodeado por las mejores minas O cara era braço era nois à vera,
Y nosotros los vivos en Devoto encerrados Geral sente sua falta aqui na favela
Y sin un mango (“Cheio de ódio”, de Menor do Chapa)
(“Duraznito”, de Pibes Chorros) Outro viés do tema a partir da abordagem da cumbia villera
No cenário do proibidão carioca a traição é quase um tema é que a traição na maioria das vezes em que aparece se mantém
obrigatório. Ao contrário do que ocorre na cumbia villera, como no no âmbito das relações amorosas. A cumbia é copiosa em relatos
exemplo citado de “Duraznito”, nas letras de funk não há qualquer de amantes enganados. Poderíamos citar, a título de exemplo
tolerância para com os que traem ou desertam de seu mundo, da algumas letras de Pablo Lescano, o nome mais importante da
facção criminal ou da comunidade. No funk é a facção ou a “família cumbia villera. Tecladista, compositor, cantor e criador de quatro
expandida”, cujos laços integram a “tribo urbana”, que se grupos, sendo o mais importante deles a referência do subgênero,
representa como vítima de uma traição que aparece também Damas Gratis, Lescano esteve à frente do grupo desde 2000. Seu
como tema universal, estabelecendo um diálogo intertextual com trabalho como letrista nos permite dimensionar a importância e o
a tração primeira: tratamento dado ao tema. Observamos, por exemplo, que mais da
Cheio de ódio, neguinho, eu vou te dizer por que. metade das músicas do CD Esquivando el éxito (2011) falam sobre
Tô cheio de ódio porque fizeram uma judaria a traição da mulher amada e, mais precisamente, sobre aquele que
E ele não pode se defender. está tomado por um amor frustrado por uma mulher que o
Mais uma vida se vai, um mano que era puro abandonou: “hoy me emborraché por ti”, “volvé, te perdonamos
E num comédia acredito demais. todas”.
Eu tô boladão, eu tô cheio de ódio.
Embora se diga em “Damas grátis”, música com letra de
Quando eu lembro do meu mano,
Pablo Lescano e Andrés Calamaro, que “antes de traicionar,
Sem neorose, eu choro,
O cara era braço era nós à vera, prefiero morir”, a música do grupo homônimo não remete ao
Geral sente sua falta aqui na favela. tópico da masculinidade guerreira. Ao contrário, põe em cena o
Não, não, não... Não entra no meu caminho, diálogo entre dois homens que disputam uma mesma mulher.
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Reconhecendo a derrota perante o rival, o enunciador decide Todos lo sabían menos yo


“ahogar las penas” e buscar “otro querer”. nadie dijo nada
Em “La va a pagar”, apesar do que aparentemente se quizás por temor
indicia no título, fica ainda mais clara a desconstrução de um estilo y la escuché
mientras hablaba
de masculinidade fundado na violência. O sujeito traído anuncia
y se reía de mí, se burlaba
que a mulher a quem ele entregou seu amor e que lhe foi infiel irá
aquel amor la que yo amaba
pagar pela traição, mas a presumível vingança não é fruto de uma la muy ingrata faltó a sus palabras
ação que o sujeito realize por suas próprias mãos como forma de de ser fiel!!!
reparar a honra afetada perante o coletivo (“Todos lo sabían
No, no se juega así
menos yo”) O sujeito desta ação, cabe supor, será o tempo ou o
con el amor con el amor
destino: “la va a pagar/ te saldrá muy caro/ lo que hiciste/ Como
de nadie…
me engañaste,/ te engañarán”. Poderíamos mesmo dizer que há no, no se juega así
na cumbia villera um elemento explícito de pacificação dos con el amor con el amor de nadie...
conflitos na medida em que sinaliza para uma retomada o
La va a pagar
processo civilizatório nas margens de uma sociedade onde a
la va a pagar
modernidade não se atualiza de modo amplo ou homogêneo: tú tienes que pagarlo
Hoy me siento triste
la va a pagar
hoy me han engañado
la va a pagar
y la tristeza fiel compañera
te saldrá muy caro
no me deja
lo que hiciste
no me abandona.
como me engañaste
Le entregué mi amor te engañarán.
pues yo la amaba (“La va a pagar”, de Damas Gratis)
el paso pensé
No contraponto desta atitude, numa letra que traz como
no supe entender.
título “Quem traiu vai pagar”, MC G3 diz “Não adianta se
La va a pagar esconder/ que o bonde vai cobrar/ [...] Oi, quem traiu vai pagar, pa
la va a pagar ti cum dum”. No mesmo registro musical, Menor do Chapa ratifica:
lo que me ha hecho tiene que pagarlo
“Quem traiu vai pagar, na fé de Deus,/ a judaria que fizeram com
la va a pagar
o mano meu/ O que fizeram vai ter volta/ pode acreditar”.
la va a pagar
lo que me ha hecho tiene que pagarlo.
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Conforme assinalamos acima, outra possibilidade concreta


de traição ou deserção no âmbito da cumbia villera se exemplifica Y a tus amigos andás arrestando
na trajetória dos que abandonam os laços da sociabilidade barrial sos el policía del comando
para converter-se em agente da polícia. Contudo, ainda neste Vos sos un botón
caso, o traidor aparece como alguém que não provoca dano ao nunca vi un policía tan amargo como vos
grupo. Pelo contrário, ele é o único que perde com a opção vos sos un botón
profissional e agora sofre por já não desfrutar da companhia dos nunca vi un policía tan amargo como vos
amigos nos rituais coletivos de torcedores durante os jogos de (“Sos botón”, de Damas Gratis)
futebol. Uma letra como a do sucesso “Sos botón” se projeta como Duas últimas observações a fazer quanto às diferenças no
narrativa testemunhal e ao mesmo tempo como forma de pensar tratamento dado ao tema nos dois subgêneros: enquanto que no
a cidade e o território de segregação sócio-espacial a partir de uma funk carioca os diversos desfechos que relatam o destino do
subcultura juvenil com um discurso que se dirige antes de tudo a traidor remetem a um sistema legal paralelo que recorre a penas
sua própria tribo: exemplares para escarmento de todo o grupo, como se dava no
Sufres por hacerte policía exercício do poder metropolitano nos tempos coloniais, no caso da
No, no lo puedo creer cumbia villera, o que observamos é a ênfase nas referências ao
vos ya no sos el vago, ya no sos el atorrante passado do traidor, remetendo a lembranças dos tempos que
al que los pibes lo llamaban el picante antecedem à sua mudança de atitude e de imagem perante o
ahora te llaman botón grupo. Contudo, cabe chamar a atenção para o fato de que muitas
Ya no estás con tus amigos das letras que abordam o tema particular da traição à comunidade
y en la esquina te la dabas imaginada não estabelecem qualquer relação com formas de
de polenta, de malevo y de matón organização do mundo delinquencial. Trata-se de um metarrelato
y sólo eras un botón, y sólo eras un botón da cumplicidade barrial que aponta, mais que tudo, para as
Vos sos un botón disputas internas do campo musical. Isso é o que observamos em
nunca vi un policía tan amargo como vos várias letras de Damas Gratis, Pibes Chorros e Yerba Brava, como,
vos sos un botón por exemplo as músicas “De qué te la das” e “Pibe Cantina”:
nunca vi un policía tan amargo como vos Detrás de lentes oscuros
Por los pasillos se lo vió
Cuando ibas a la cancha
Se comenta que es el Cantina
parabas con la hinchada y tomabas vino blanco
Que a la villa volvió
y ahora patrullas la ciudad
Y de la mano de una dama
si vas a la cancha, vas en celular
Que gratis consiguió,
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La sacó de un cabarute musical (na qual não seria equivocado identificar aspectos das
Cuando la tanga le vió. batalhas de MCs) os cumbieros Pablo Lescano e Ariel Salinas se
Te la das de fumanchero enfrentam em inúmeras letras que interpretam à frente dos
Y también de ganador, grupos Damas Gratis e Pibes Chorros, respectivamente.
Y hasta el más gil se da cuenta
Criado pela gravadora Magenta, o grupo Pibes Chorros
Que sos terrible ratón.
opta por investir na afirmação de sua identidade através da
¿Y ahora de qué te la das, Cantina?
La villa no es para vos, Cantina! associação da imagem de seus integrantes com a figura dos “pibes
Tocá de acá! choros” ou garotos ladrões, jovens delinquentes que dominaram o
(“De que te la das”, de Yerba Brava) imaginário urbano argentino nos anos iniciais do novo século. Os
pibes chorros geralmente são apresentados como elementos de
Certas letras como esta parecem ser usadas para acertos
uma realidade marginal que é sempre o contraponto dos mundos
de contas entre os grupos que se enfrentam em permanente
da família e do trabalho: no “escabio” (consumo de álcool) ou
tensão na busca por construir um lugar no campo musical. A
tomando “vitamina” (droga: cocaína, pasta base), acompanhando
violência verbal substitui a violência física. Enquanto Damas Gratis
os amigos da “hinchada” (torcida) para defender os “trapos”
questiona a autenticidade das letras e do relato experiencial de
(bandeiras) e demonstrando o “aguante” que caracteriza o seu
Pibes Chorros, estes e Yerba Brava acusam Pablo Lescano (Damas
pertencimento a uma tribo urbana, ou envolvido em ações
Gratis) de projetar uma imagem falsa de si mesmo, criando uma
delitivas nas quais “pelan los caños” e arriscam a vida para
persona que se sobrepõe à figura real do “Pibe Cantina”, um traído
conseguir algum dinheiro, são a figuração de uma juventude que
da villa (“La villa no es para vos, Cantina!”). O termo “traição”
cresce em tempos de crise.
neste caso nos remete a um dos episódios centrais da cena
Nessas figurações aparecem vivendo a euforia do
artística da cumbia villera. Continuam em voga grandes sucesso
momento e positivando um ato de rebeldia diante do sistema
relacionados à rivalidade entre Damas Gratis e os grupos Pibes
social, ato este que pode ser o último de suas curtas trajetórias.
Chorros e Yerba Brava. Algumas peças incorporadas ao repertório
Apesar das estratégias anárquicas com as quais conseguem
dos três grupos dramatizam uma espécie de duelo ou polémica
ampliar consideravelmente a sua liberdade de ação e
entre alguns dos principais autores da cena musical numa luta por
deslocamento pela cidade e, em certos casos, pelo campo da
pertencimento que muitas vezes demonstra uma característica
cultura (em relação às gerações anteriores), esses sujeitos
central do “neotribalismo” (MAFFESOLI, 2010) presente em
subalternos não modificam em nada as estruturas sociais que
sociedades contemporâneas nas quais observamos a proliferação
permanecem fundadas na desigualdade e na estigmatização dos
de pequenos grupos fechados que recusam o que é diferente.
refugos.
Nesse contexto, aparece outro elemento que remete à
conexão entre os dois estilos musicais: em uma espécie de justa
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Como forma de autolegitimar-se a partir do pertencimento, Tenés tres teclados al pedo


em “Cinco amigos” dizem: y un negro que grita “¡Miau!”,
Somos cinco amigos chorros de profesión lavataper gato, negro
No robamos a los pobres porque no somos ratones te cansaste de robarme
Buscamos la fija y entramos al banco, pelamos los fierros y todos los punteos,
todos abajo estás zarpado de rastrero,
(“Cinco amigos”, de Pibes Chorros) esta canción te voy a dedicar...

Dando início à conhecida polêmica envolvendo a cumbia Te ponés cartel de chorro


villera, a resposta de Pablo Lescano, letrista de Damas Gratis, y sos un transa nada más,
Si hiciste tantos hechos, decime en qué penal
desqualifica o líder do grupo rival ao questionar seu vínculo com a
¿Cuantos años estuviste preso?
villa e com o mundo delitivo, definindo-o como “una rata”, “um
Tus antecedentes no te ayudan
traidor”. ¿Te acordás cuando cantabas el Los Chudas2?
Em oposição à valorização da coragem de investir no roubo ¡En ese grupo de mierda que parecía Yerba Brava o Volcán!
a bancos que se sublinha em “Cinco amigos”, letra na qual está Y te ponés cartel de chorro, sos un rata nada más.
presente também a negação da condição de “ratones”, ou seja, a Y te pones cartel de chorro, sos un rata nada más.
desvalorização do ato de roubar os pobres, Lescano interpela o (“Sos una rata nada más - Dedicado a Ariel, el traidor”, de
vocalista de Pibes Chorros a partir da denúncia do ato mais vil: o Pibes Chorros)
roubo entre iguais. Ariel teria roubado músicas e imitado Mas, apesar das polêmicas, das negociações e mediações
flagrantemente o líder do Damas Gratis. Essa é uma ação que várias, podemos concluir que tanto o funk proibido carioca quanto
tenderia a levá-lo a merecer o desprezo de todos. Ele, contudo, a cumbia villera refletem a magnitude dos ecos observados no
subverte a situação e assume o nome de Ariel el Traidor. Na letra, discurso musical de fenômenos associados à criminalidade, cultura
Lescano o define como “rastrero”, termo que, além de aparecer juvenil e violência urbana. O que os diferencia de modo substancial
nos glossários de lunfardo compartilhados pela cumbia villera talvez seja o “destinatário” primeiro dos discursos de cada um dos
como sinônimo de “ladrão insignificante” (“Guacha rastrera, subgêneros musicais. Enquanto que os MCs do funk escrevem
guacha rastrera/ En un descuido me rastriás la billetera”, em músicas para consumo da própria comunidade onde se realiza o
“Guacha rastrera”, de Damas Gratis), carrega também o sentido de baile, os autores da cumbia villera buscam uma inserção maior no
baixo, vil, desprezível, aquele que se arrasta como um réptil. mercado fonográfico e falam para toda a sociedade. Isto não deixa
de impor uma modulagem ao seu discurso.
2
Nome do grupo de cumbia villera que depois passaria a se chamar Pibes
Chorros.
P á g i n a | 161

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EXPERIMENTAÇÕES DE BORGES ATRAVÉS DA FLOR ESPECULAR que não é a do campo, contudo não é a do idealismo e relativismo.
DE COLERIDGE – DO PARAÍSO UTÓPICO AO HORROR MODERNO Teorias essas que, acreditamos, já estariam explanadas no
DA AUTORIA conto/ensaio/crítica A flor de Coleridge, tudo isso desde uma
Breno Anderson Souza de Miranda parábola que vai do grande gênio romântico provedor de
USP maravilhas no encontro autor-leitor ao horror da autoria
contemporânea, provedora que ainda necessita de significação
Nosso foco é a relação de Borges com suas criações e constante e progressiva para criação e crítica em um contexto
críticas em contextos autoritários. As fases e faces de Borges céptico e tecnicista.
encontram-se tão plurais que já não podemos falar de apenas duas Foucault é nosso ponto de partida, porém não vamos
fases ou dois Borges. Em entrevista à Revista Iberoamericana, Noé alongar na “função autor” já estudada por tantos. No debate após
Jitrik fala de uma exaustão crítica que luta para trazer novidades a exposição do filósofo, Jacques Lacan diz sobre uma condição
interpretativas a um objeto demasiadamente estudado. Segundo autoral-revolucionária e participante, na qual as estruturas
Jitrik, a obra de Borges seria como uma caixa ou, em nossas desceram às ruas em 1968 (FOUCAULT, 2001). Algo similar parece
palavras, uma cartola mágica, onde vão surgindo novas presenciar-se na “divisão internacional do trabalho” que se
possibilidades, por vezes insólitas e fantásticas, de leituras (JITRIK, aproximaria da narrativa de Borges, de acordo com Idelber Avelar
2008, p.3). Mas os argumentos do crítico sugerem nossa pergunta: (2011) e um pouco no autor velado segundo Daniel Balderston
até onde vai a elasticidade do mito? Não alheios às (1985), leitor de Stevenson. Expliquemos. Que a crítica em Borges
temporalidades, não apenas no interior da obra, mas na relação tem um caráter desconstrutor das velhas certezas da
desta com a exterioridade, resta desvendar o que esse gigantesco modernidade, como o totalitarismo e o marxismo soviético, já
panteísmo autoral, que já se esbarra em formulações canônicas e sabiam os franceses pós-estruturalistas de 68, entretanto, a partir
engessadas, ainda tem a dizer. de uma leitura que se inicia em seu próprio país, Borges vai
Ao se tratar de temporalidades, o biografismo e o ganhando status pós-colonialistas de resistência em sua
documentalismo fascinam aqueles que tentam resgatar o atualidade, em posturas que tendem a romper alguma
intelectual Borges em contato com seu campo, como podemos ver ontologização do conservadorismo e apostasia políticos de sua
nos sociologismos inspirados em Pierre Bourdieu e Max Weber. autoria, e procuram avançar em um não-estreitamento de sua
Mas essa não é nossa intencionalidade, e ainda no âmbito da atividade criativa a fim de intervenções participativas nos
relação tempo e obra, encontramos em Júlio Pimentel Pinto, realismos de sua época e futuros.
Daniel Balderston, Fredric Jameson, Idelber Avelar, Juan Pablo A ética da crítica de Borges não é didática, muito menos
Dabove e George Steiner, além da fenomenologia de Foucault e obedece a uma conceitualização determinante, linear e unitária.
Sloterdijk, algumas pistas que buscam esclarecer nossa proposta, George Steiner pergunta em que a literatura, entendida como arte
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e belo, garante para a “alfabetização humanista” do homem. “A “moralizar não é um modo muito efetivo de lidar com esses
barbárie predominou no próprio berço do humanismo cristão, da sintomas, nem mesmo com o próprio fim da temporalidade”.
cultura renascentista e do racionalismo clássico. Sabemos que Então, um Borges pós-colonialista coexistiria na mesma
alguns dos homens que conceberam e administraram Auschwitz temporalidade que o vieillard terrible? George Steiner (1988(b))
foram educados lendo Shakespeare ou Goethe, e continuavam a fala de um “gênero pitagórico” que parece aproximar-se do que
lê-los” (STEINER, 1988(a), p.23). Em nossa polêmica com Borges, apresentamos em relação a Borges, em um misto de esperança
cabe perguntar o que resta de ética na arte de um escritor que se visionária, silêncio, anarquia e panfletismo, uma “energia
envereda por caminhos lamentáveis no contexto ditatorial. irreconciliada dentro do repouso” (p.110) e acrescentaríamos, já
Poderemos propor uma “divisão internacional do trabalho que não estamos na esfera da moralidade, dentro do proibido. É
intelectual” como faz Idelber Avelar? Haveria uma divisão preciso falar que Borges apoiou truculentas ditaduras e continuou
“assimétrica e hierárquica” das potencialidades cognitivas de sua ao mesmo tempo a produzir uma arte que luta contra
crítica em oposição ao seu conhecido conservadorismo político? autoritarismos. O caráter panfletário em Borges estaria velado no
Em que consiste esta (des)valor-ação? O que vale mais, o político interior da imaginação irrealista da fantasia do belo ou horror, e
ou o estético? Em nossa hipótese, Borges não seria o inveterado convoca o leitor a participar dessa comunidade crítica, seja para
liberal e o moralista vieillard terrible (termo que retiramos de Emir apoiá-lo ou censurá-lo. Sim, porque não apontar esse fato, é uma
Rodríguez Monegal), o tempo todo. Avelar percebe em um conto forma de censura à crítica e autoria da obra. No clássico El
de Borges, uma “representação da natureza indecidível do precursor velado, Daniel Balderston (1985) relata que R. L.
encontro ético” (AVELAR, 2011, p.166). Entende-se ética como Stevenson e Borges dão grande importância à imaginação
liberdade crítica e singular ante uma categorização universalista do participativa, como a que as crianças têm ao se sentirem co-
que seja pleno, ditatorial e normativo. autoras nas fantasias e aventuras das personagens que lêem.
Defendemos que a utopia libertária continua mesmo no “Nuestros primeros amigos en la tierra de los relatos son siempre
Borges mais maduro. Resta essa ação crítica “coexistir nos los más reales” (STEVENSON apud BALDERSTON, 1985, p.22).
tempos” [termo de James Clifford apud Idelber Avelar (2011)] Nossa hipótese é que um Borges revolucionário estaria velado
duvidosos do conservadorismo, e que a partir do ceticismo, dentro do conservador, um jovem dentro do velho, como um
desestruturaria certezas consolidadas, seja ela a via liberal ou a duplo, como Mr. Hyde e Dr. Jekyll. Tentaríamos esboçar uma
autoritária. Em nosso trabalho, um Borges historiador ou uma parábola que não se rompe entre o jovem Borges, panfletário da
história da crítica em Borges seria escrita segundo o que Jameson Revolução Russa e leitor de Whitman, e o velho que passará a
(2008) chama de espaço-tempo da crítica, onde o real seria tanto apoiar a ditadura, e logo depois condená-la. Após a canonização e
não-representável como inescapável. Seria o espaço para de anos de recepção crítica, antes de lermos o policial, já sabemos
temporalidades e realismos? Jameson (2011) responde que que Mr. Hyde é Dr. Jekyll, e desvendar o enigma não é o insólito
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mais importante da narrativa. A tensão recai sobre a autores e documentalismos, e sem a velha ênfase autor e obra. A
forma/conteúdo da materialidade literária, no instante proposta de uma historiografia literária em Borges é anarquista e
circunstancial da escritura/crítica transversal que não se consolida revolucionária quando ele fala do mistério de uma “flor futura”,
em nenhuma ontologia identitária. “la contradictoria flor cuyos átomos ahora ocupan otros lugares y
Por fim, para vermos em Borges o que tentamos dizer, no se combinaron aún” (p.640). Quer dizer, Borges fala de uma
chegamos à Flor de Coleridge, uma das possíveis ambientações história ainda a ser escrita. Nessa futura história da literatura, de
dessa aventura política, entre o desencanto e a euforia acordo com Borges, todos os autores poderão ser um só. Carlyle,
revolucionária. A flor de Coleridge, dentre tantas simbologias, por exemplo, está ao lado de Whitman e De Quincey. Após o
garante a possibilidade de ser o “outro” escritor e não ser, de horror, a poética de Borges ainda parece se teletransportar para
visitar suas peculiaridades e historicidades, e ao mesmo tempo um sem fim da criação e da crítica, não linear nem causualista,
apagar-se, para logo renascer em outra condição fenomenológica. onde os átomos poderão ligar-se em outras utopias críticas. “Si
Esta flor pode retornar do Paraíso pelo sonho de um amante leitor, este hecho es verdadero, la historia del sueño de Coleridge es
mas logo se depara com o duro realismo da escrita/imagem a ser anterior en muchos siglos a Coleridge y no há tocado aún a su fin”
reconstruída em época tecnicista e autoritária, cenário do horror (BORGES, 1974(b), p.643). Estranhamente, o narrador de Borges
de Wells e Adorno, e um dos fundamentos de nossa modernidade que diz não acreditar no sobrenatural, propõe um movimento das
que ainda perdura. Que sobrevida de ilusões teríamos ao olharmos autorias em uma variação de almas, uma vez que a história da
enquanto escritores/críticos/historiadores através dessa mesma literatura do futuro seria a história do Espírito. “Cabe suponer que
flor especular que já se apresenta tão murcha e perecível na el alma del emperador, destruido el palacio, penetró en el alma de
atualidade, depois de tantas atrocidades? Coleridge, para que éste lo reconstruyera en palabras, más
O narrador Borges classifica H. G. Wells como visionário do duraderas que los mármoles y metales” (p.644).
horror. Por fim, cabe a suspeita que um Borges revolucionário
El protagonista de Wells, a diferencia de tales espectadores sempre combaterá por utopias libertárias nas propostas políticas
proféticos, viaja físicamente al porvenir. Vuelve rendido, e nas memórias do autor, mesmo na apostasia e indiferença. Como
polvoriento y maltrecho; vuelve de una remota humanidad em Sloterdijk (2006), cabe a suspeita de alguma cristalização
que se ha bifurcado en espécies que se odian [...]; vuelve fenomenológica da criação libertária, quando átomos, após
con las sienes encanecidas y trae del porvenir una flor
dispararem para todos os lados, procurariam uma “poética do
marchita. Tal es la segunda versión de la imagen de
começar”, tanto na estética da dor quanto na do prazer. “Poética
Coleridge. (BORGES, 1974 (a), p.640)
del comenzar” que lutaria contra o “horror vacui” do descaso às
É interessante observar a contraparte da imagem revolucionária temporalidades e contra os autoritarismos desencadeados no
criada pelo romântico poeta inglês, uma vez que Borges inicia seu
ensaio dissertando sobre uma história da literatura utópica sem
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mundo contemporâneo pela aversão à memória ou pela reificação BORGES, J.L. La flor de Coleridge. In: ______. Otras Inquisiciones.
dessa. Obras Completas 1923-1972. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974
O Borges crítico seleciona seus pares e aproxima-se ao tom (a).
profético e visionário da narrativa de seus diletos. Para finalizar,
citamos o que escreve sobre o filme Lo que vendrá de Wells em ______. El sueño de Coleridge. In: ______. Otras Inquisiciones.
1936, em uma cenografia que já não poderá ser nos “futuros Obras Completas 1923-1972. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974
imediatos”, apenas a natureza paradisíaca do narrador da flor de (b).
Coleridge. Engendra-se, mais uma vez, o horror da autoria e da
criação de outros mitos, o que demandará o (re)começar de novas ______. A flor de Coleridge. Tradução de S. Molina. In: ______.
esperanças. Outras Inquisições. Obras Completas II. São Paulo: Globo, 1999,
Wells empieza mostrándonos los terrores del futuro p.16-18.
inmediato, visitado por plagas y bombardeos; esa
exposición es eficacísima. (Recuerdo um cielo abierto que ______. O sonho de Coleridge. Tradução de S. Molina. In: ______.
ennegrecen y ensucian loa aeroplanos, obscenos y dañinos Outras Inquisições. Obras Completas II. São Paulo: Globo, 1999,
como langostas). [...]. Wells venera los chauffeurs y los
p.19-22.
aviadores; la ocupación tiránica de Abisinia fue obra de los
aviadores y de los chauffeurs — y del temor, tal vez un poco
mitológico, de los perversos laboratorios de Hitler (BORGES, ______. Wells previsor. In: _____. Borges en Sur 1931-1980.
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ICONOGRAFIA DE SANTIAGO: AUTORIDADE, VIOLÊNCIA E Kayhinapaq


RESISTÊNCIA POLÍTICA E CULTURAL NOS ANDES PERUANOS Churasunki
Carla Dameane P. de Souza Kamasunki1
UFBA Santiago (2000), criação coletiva do grupo Yuyachkani com
dramaturgia de Peter Elmore, foi idealizada a partir de interesses
Sumaq Ñusta pessoais, tanto da parte do diretor, Miguel Rubio Zapata, quanto
Torallaykim da dos atores, Amiel Cayo, Ana Correa e Augusto Casafranca,
Puyñuykita
envolvidos na idealização e realização do espetáculo. 2 Esse
Pakirqayan
interesse compartilhado trazia um elemento comum: a particular
Hinam antara fascinação causada pela imagem de Santiago, que, em procissão,
Kunuñunun atravessa a cidade de Cusco todos os anos durante a celebração
Illaqpantaq do Corpus Christi. Essa celebração é uma das que envolve um tipo
Qamri Ñusta de religiosidade que, no contexto andino, estende-se para além
Unuykita dos templos e das normas prescritas pelos dogmas da religião
Paramunki cristã e, como uma forma de hagiolatria, agrega alguns pontos de
Mayñimpiri encontro entre ícones religiosos de culturas distintas, relacionados
Chichimunki diretamente às rupturas e colisões condicionadas pela colonização
Ritimunki (Cf. MILLONES, 1998, p. 16-42).
Pacha ruraq No contexto das guerras de conquista do século XVI, o
Pacha Kamaq apóstolo Santiago foi transportado da Espanha para a América,
Wirakocha unindo-se às campanhas de invasão e pacificação de territórios,
considerados, desde então, propriedades da Coroa Espanhola. Na
Espanha, este Santo possuía grande popularidade, pois, sobre ele,
diziam que havia ajudado os soldados durante a Guerra da
1
Cf. YARANGA VALDERRAMA, 2006, p. 50. Este é um Harawi para Illapa. raios trovões e relâmpagos / tu, linda princesa / tuas águas / nos dará chovendo.
Divulgado pelo Padre Valera, é um canto lírico dedicado à Wiraqocha (criador / Por onde e até onde granizará / nevará. / O criador do mundo / o criador /
do mundo, das divindades e da civilização), à entidade feminina Illa, geradora Wiraqocha / por isso / te criou / e te deu a vida”.
2
da Mama Yaku (água) e ao Illapa (raio, trovão, relâmpago, chuva e granizo), O vídeo do espetáculo está disponível na videoteca online do Instituto
progenitores dos Apu, Suyo o Yachaq (sacerdotes, xamães, médico e Hemisférico de Performance y Política, NYU. Disponível em:
astrólogos). Segue a tradução: “Linda princesa / aquele teu irmão / do teu <http://hemisphericinstitute.org/artistprofiles/index.php?lang=Eng& Artist =
cantarilho / de quebranto está / Por este motivo / com grande estrondo / caem yuyachkani &Menu=HIDVL>. Acesso em: 20 fev. 2012.
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Reconquista (771-1492). O mito de que este discípulo de Cristo que se manifesta através de fenômenos meteorológicos como o
tenha visitado algumas regiões ibéricas o transformou, durante as relâmpago, o raio, o trovão, a chuva e o granizo.3 A crença nessa
Cruzadas, num dos principais estandartes da guerra contra judeus divindade está presente em vários pontos geográficos dos Andes e
e muçulmanos. Seu nome batizou uma ordem militar, visto que ele possui variações de acordo com as regiões. Na serra sul, ela
se tornara Patrono da Espanha, e Compostela, lugar onde estão aparece como Illapa, podendo ter outros nomes como os de
seus restos mortais, transformou-se num lugar que atrai, até hoje, Chuquilla, Catuilla e Intillapa; na serra central e ao norte, chama-
peregrinos de todo o mundo. Natalia Ortiz Hernández (2009, p. se Libic ou Catequil. Em Dioses y Hombres de Huarochirí,
271) informa que, na Espanha, Santiago era conhecido também encontram-se relatos que nos levam a concluir que, na serra e na
como Bonaerges, filho do trovão, de acordo com o evangelho parte sul do litoral do Peru, a Huaca Pariacaca é homônima de
bíblico (Cf. ORTIZ HERNÁNDEZ, 2009, p. 265-301). Para Teresa Illapa (Cf. DE ÁVILA, 2009, p. 48-63).
Gisbert (1980, p. 29), a associação do santo aos fenômenos A divindade pré-hispânica foi assimilada por Santiago no
naturais devia-se à forma como a sua aparição remetia a uma contexto da resistência inca frente ao exército colonizador
presença cenográfica. Enquanto o barulho dos cascos de seu espanhol. Conta-se que a investida desse santo e de outras
cavalo lembrava o som do trovão, o fulgor de sua espada divindades católicas foram decisivas no desfecho das batalhas.
recordava o raio (Cf. GISBERT, 1980, p. 29). Guamán Poma de Ayala, por exemplo, descreve, em suas crônicas,
Segundo Ortiz Hernández (2009), a primeira aparição de os combates que ocorreram durante a conquista e as guerras civis
Santiago na América ocorreu em 1518, em Tabasco, no México, que a ela se seguiram, cuja duração seria de cerca de vinte e cinco
durante uma batalha entre soldados de Hernán Cortés e os anos. O cronista narra que em uma das campanhas promovidas em
defensores do território administrado pelos Aztecas. Sua proteção resistência ao cerco de Francisco Pizarro e Diego de Almagro,
aos soldados espanhóis teria sido valiosa também em batalhas no contra Cusco, Manco Inca Yupanqui se defendia dos
Chile e na região dos Andes, onde ocorreu um fenômeno de conquistadores levando consigo uma grande quantidade de
identificação desse santo com a de uma divindade que forma parte homens do exército inca. No relato, quando os soldados espanhóis
da cosmogonia andina. Como vimos no primeiro capítulo, para o avistaram a ofensiva nativa, ajoelharam-se e começaram a rezar,
homem do Tawantinsuyo não existia uma concepção abstrata de pedindo a Deus, e a seus deuses, uma intervenção para que
Deus e o sagrado se manifestava por meio das Huacas (lugares pudessem ser salvos. Os soldados indígenas lutam com bravura,
sagrados) dos Wamanis/ Apus (espíritos tutelares das montanhas) até que tentam incendiar, a mando de Manco Inca, o Sutur Huasi,
e através da relação que esses povos mantinham com os antigo templo pré-hispânico dedicado a Wiraqocha, que, por
elementos naturais ou eventos climáticos. Illapa é uma divindade ordem dos conquistadores, já tinha se transformado em um

3
A raíz da palavra Illapa vem de illa, que significa “luz”, “esplendor”. Segundo funcionavam como talismãs, e que muitas pessoas levam consigo para
Ortiz Hernández (2009, p. 277), Illa foi também o nome dado às pedras que aumentar a prosperidade de seu dono. Outros tipos de illas eram medicinais.
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templo cristão, sede do poder colonial, correspondendo, Santiago. Como los cristianos daban voces, diciendo
atualmente, à Catedral Basílica da Virgem de Assunção. Segundo “Santiago”. Y así lo oyeron los indios infieles y lo vieron al
Poma de Ayala (2005, p. 309), os espanhóis se encontravam dentro santo caer en tierra como rayo. Y así los indios son testigos
do templo, no qual havia um grande crucifixo. De acordo com o de vista del señor Santiago y se debe guardarse esta dicha
fiesta del señor Santiago en este reino, como pascua, porque
relato, por milagre de Deus, o fogo não teria conseguido alcançá-
del milagro de Dios y del señor Santiago se ganó.4 (POMA
los, para surpresa dos incas.
DE AYALA, 2005, p. 310)
Outros milagres teriam acontecido durante essa batalha,
quando os espanhóis clamavam à Virgem e a Santiago para que os Nessa última passagem, pode-se perceber como a aparição
protegessem da ira dos nativos. No milagre de Santa Maria, desse santo, cujas características na Espanha já o assimilavam aos
apresentado por Poma de Ayala (2005, p. 307), os soldados de fenômenos meteorológicos, faz com que os guerreiros do
Manco Inca, assombrados pela visão da santa, fogem de sua Tawantinsuyo vejam-no como semelhante à Illapa. É passível de
investida. O terceiro, relativo ao mesmo episódio, teria sido o de questionamento a forma narrativa e plástica com que o cronista
Santiago, quando este intervém diretamente no combate. A apresenta o momento em que se dá a identificação dos dois signos,
investida do cavaleiro guerreiro teria sido decisiva para assegurar representativos da ordem do sagrado, mas pertencentes a culturas
a vitória dos espanhóis: distintas. Merece destaque, por exemplo, o fato de que, no interior
[…] dicen que lo vieron a vista de ojos, que bajó el señor de uma ordem cronológica, o cronista suspende a narrativa
Santiago con un trueno muy grande, como rayo cayó del realista das batalhas, do ponto de vista histórico, para acrescentar
cielo a la fortaleza del Inga llamada Sacsaguaman, que es uma informação de ordem metafórica, que envolve dois mitos:
pucara del Inga arriba de San Cristóbal; y como cayó en aquele que veio da Espanha, sobre Santiago apóstolo, e o que já
tierra se espantaron los indios y dijeron que había caído existia no Tawantinsuyo, sobre Illapa.
Yllapa, trueno y rayo del cielo, caccha, de los cristianos, A existência dos “milagres” em meio ao que estava sendo
favor de cristianos. Y así bajó el señor Santiago a defender a
relatado pressupõe, entre outras possibilidades, a de explicar ao
los cristianos.
interlocutor a causa da derrota dos Incas frente às forças
[…] Y desde entonces los indios al rayo le llaman y le dicen espanholas. A ideia de que essa derrota possa ser justificada pelo
Santiago porque el santo cayó en tierra como rayo, Yllapa, poder superior que os deuses “ocidentais” teriam sobre os andinos

4
“[...] dizem que o viram à vista dos olhos, que desceu o senhor Santiago com chamam e o dizem Santiago, porque o santo caiu na terra como raio, Illapa,
um estrondo muito grande. Como raio, caiu do céu na Fortaleza do Inca Santiago, como os cristãos o chamavam, dizendo: “Santiago”. E assim ouviram
chamada Sacsayhuamán, que é templo do Inca acima de São Cristóvão. E, como os índios infiéis e o viram ao santo cair na terra como raio. E assim os índios são
caiu na terra, se espantaram os índios e disseram que havia caído Illapa, trovão testemunhas da vista do senhor Santiago e se deve guardar essa dita festa do
e raio do céu, punho, dos cristãos, em favor dos cristãos. E assim desceu o senhor Santiago neste reino como páscoa, porque através do milagre de Deus e
senhor Santiago a defender os cristãos. [...] E desde então os índios ao raio o do senhor Santiago se ganhou.”
P á g i n a | 170

parece coerente com a afirmação de que “la fuerza de un pueblo FIGURA 1 – Milagre de Santiago
no es más que la expresión del poder de sus dioses” 5 (DUSSEL,
1992, p. 128). A partir dessa perspectiva, seria possível entender
que “el indio, muchas veces, pedirá ser cristiano para congraciarse
con los dioses cristianos, para poseerlos, siendo poseído, para
firmar una alianza pacífica con ellos”6 (DUSSEL, 1992, p. 128). Mas
essa aliança, que o desenho de Poma de Ayala vem a sugerir, não
é pacífica, uma vez que é resultado de um choque violento do qual
o sujeito andino sobrevive como aquele que deve se submeter ao
outro. Se se trata de uma aliança, ela é meramente estratégica,
pois apenas permitirá a esse sujeito simular um comportamento
adequado aos protocolos e às convenções chamadas de
“civilizadas”.

Fonte: POMA DE AYALA, 2005, p. 308.

No processo político da conquista do continente


recém-invadido, os objetivos dos espanhóis eram ocupar,
pacificar, organizar e evangelizar. É nesse contexto que o milagre
de um santo, invocado por soldados cristãos, durante uma guerra,
ilustra a derrota dos soldados pagãos e o êxito de uma divindade

5 6
“[...] a força de um povo não é mais que a expressão do poder de seus deuses”. “O índio, muitas vezes, pedirá para ser cristão, para se unir aos deuses cristãos,
para possuí-los, sendo possuído, para assinar uma aliança pacífica com eles”.
P á g i n a | 171

diretamente associada ao invasor, já que, “el santo era, sobre todo, FIGURA 2 – Santiago Mata Índios. Lenço anônimo da Escola de
una imagen popular entre las milicias españolas que Pintura Cusquenha do Barroco do Século XVIII. Encontra-se no
desembarcaron en América, y, dado que la Iglesia estuvo casi Museu Histórico Regional de Cusco
ausente durante la conquista del Nuevo Mundo fueron ellas
quienes lo introdujeron en América” (ORTIZ HERNÁNDEZ, 2009, p.
192).
Segundo minha leitura, no espetáculo Santiago, o
grupo Yuyachkani resgata a imagem desse santo apóstolo a fim de
problematizar a relação que esse personagem possui, menos com
a igreja e a religião cristã, como tais, e mais com a violência
associada à memória coletiva referente à história do país, desde
sua colonização. O tema é resgatado, em diálogo com os conflitos
civis contemporâneos, com a finalidade de se trabalhar os mitos
que envolvem esse santo e trazer à cena outros regimes de
verdade, nos quais a sua figura aparece como uma alegoria 7
reconstruída entre a imaginação, a lembrança, o sonho e a vigília.
Contudo, cabe apontar que essa reconstrução, de maneira
proposital ou não, faz também citações ou dialoga com
representações visuais de Santiago existentes ao longo da história
da arte no Peru.

Fonte: Foto de Carla Dameane.


7
Para Benjamin, a alegoria não pode ser considerada como técnica ilustrativa, do mesmo ponto de vista barroco” (BENJAMIN, 1984, p. 188). Esta ideia parece
realizada por intermédio de imagens, sendo composta por um sistema, como a fundamental, uma vez que a relação entre a natureza e a história se estabelece,
linguagem e a escrita, convencional e expressivo, de signos (BENJAMIN, 1984, justamente, no campo da alegoria, que, diferentemente do símbolo, pode
p. 184). Respaldado pelo livro Mythologye, de Creuzer, o autor explicará, para o incorporar expressões de representatividade da natureza, “não à luz da
que me interessa, que “a concepção da alegoria como desenvolvimento do salvação”, mas a partir da “facies hippocratica da história como paisagem
mito, [...] revela-se em última análise como moderadora e mais moderna, à luz petrificada” (BENJAMIN, 1984, p. 188).
P á g i n a | 172

Com a disseminação do mito sobre a aparição de Santiago divindades resulta da impressão causada pelos adereços e pela
nas batalhas protagonizadas por incas e espanhóis, em Cusco, conduta impetuosa de Santiago, considero que para o sujeito
surgem as primeiras tentativas de se representar essa divindade andino, produtor e receptor dessa representação, essas imagens,
em formatos iconográficos. Dessa forma, segundo Teresa Gisbert por si só, trazem informações que atribuem ao Santo essa dupla
(1980, p. 197), a primeira pintura que retratava Santiago apóstolo, identidade cultural, sobretudo porque em muitas delas o Mouro é
como Santiago Mata Índios, possui seu contexto de produção substituído por outro infiel: o homem do Tawantinsuyo.
anterior ao ano de 1560. Tratava-se de um mural pintado sobre as Relembrando a distinção que Benjamin faz entre a alegoria
paredes da antiga catedral, e se perdeu quando este primeiro medieval, “cristã e didática” (BENJAMIN, 1984, p. 193), e a barroca,
templo foi destruído. Entre outras representações visuais de que “retrocede à antiguidade, dando-lhe um sentido místico-
Santiago, estão a de Guamán Poma de Ayala e também esculturas histórico” (BENJAMIN, 1984, p. 193), penso que a imagem de
coloniais e quadros da escola cusquenha de pintura, do Barroco do Santiago, nos quadros da escola cusquenha de pintura do século
século XVIII. Muitas dessas peças, como as anônimas Revelación de XVIII, e também no desenho de Poma de Ayala, abarca o
Santiago al Rey Ramiro I, Santiago en la Batalla del Clavijo e antagonismo inerente à ideia do barroco, no qual
Santiago Mata Índios, encontram-se no Museu Regional de Cusco. [...] a natureza era dotada de fins na medida em que seu
Com base nessas representações de Santiago, feitas pelos sentido podia ser representado emblematicamente, de
pintores do Barroco colonial, concordo com a opinião de Teresa forma alegórica e como tal irreconciliavelmente distinta de
Gisbert (1980, p. 29) de que não é possível perceber a sua realização histórica. Em seus exemplos morais e em
suas catástrofes, a história era vista apenas como um
correspondência entre o santo vindo da Espanha e a divindade
momento substantivo da emblemática. A fisionomia rígida
andina Illapa. De fato, só se pode ter acesso a essa informação por
da natureza significativa permanece vitoriosa, e de uma vez
meio de testemunhos orais ou literários, como no caso das por todas a história está enclausurada no adereço cênico.
crônicas de Guamán Poma de Ayala, em que, apesar de (BENJAMIN, 1984, p. 193)
representar Santiago tal como os pintores da escola cusquenha,
seu desenho funciona como uma alegoria que dialoga com a parte Compreendida como alegoria barroca, aquela que
escrita. Entretanto, se a correspondência que há entre as duas antecederá, para Benjamin, a alegoria moderna, como também
pensava Lezama Lima (1988),8 a inscrição visual de Santiago nessas

8
Para Lezama Lima (1988, p. 79), o barroco latino-americano deve ser (LIMA, 1988, p. 80). Lezama Lima traz como exemplo os nomes de Sor Juana Inés
compreendido em suas duas facetas. Por um lado, ele esteve em sintonia com de la Cruz (1648-1695) e do indígena Kondori, artesão que, por volta de 1728,
o barroco espanhol, combinando a tensão, o platonismo e a forma plena de realizou trabalhos na Igreja de San Lorenzo de Potosí. Na análise que Lezama
elaborações linguísticas características desse estilo. Por outro, foi produzido Lima realiza dos poemas de Sor Juana, em que se depara com a questão das
contrariando a ideia de arte da Contrarreforma (que também fazia parte da imagens oníricas (no poema O sonho), o autor dirá: “[...] se comparamos esse
estética barroca), pois se manifestou como uma “arte da contraconquista” modo de apresentar-se do onírico com outros, o que primeiro o diferencia do
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pinturas e no desenho combina história e natureza, convenção e realiza uma releitura do desenho colonial que Guamán Poma da
expressão da contraconquista. É essa alegoria que o Yuyachkani Ayala faz de Santiago. Entretanto, a aparição iconográfica do
recupera, três séculos mais tarde, a fim de libertar “a história apóstolo acontece durante um conflito atual, no qual se pode ver
enclausurada no adereço cênico” (BENJAMIN, 1984, p. 193), e de as Forças Armadas Oficiais do Estado lutando contra civis sob a
explorar o que aí está “enclausurado”, demonstrando a dialética tutela de Santiago. Na tela, tanto o cavalo do apóstolo quanto os
subterrânea responsável pelo movimento, não só do tempo dos soldados estão pisoteando a imagem do guerreiro Inca caído no
mitos relativos a Santiago e à Illapa, mas do tempo da história em chão.
que o sujeito andino esteve submetido a um poder hegemônico,
seja por parte dos invasores, como também dos inquisidores e, Illapa e Santiago: entre o sonho e a vigília
finalmente, durante o Conflito Armado Interno (1980-2000), Assim como em diversos trabalhos da arte peruana colonial
submetidos à crueldade das Forças Armadas Oficiais do Estado e e contemporânea, em Santiago, o Yuyachkani explora, relê e
dos Grupos de Esquerda que empreendiam sua luta armada. reinventa a imagem sacra do apóstolo, de modo a tornar presente
Enunciando-se como subalterno, porque ocupa um lugar para o espectador a violência colonial, e também a violência dos
de submissão frente ao conquistador, o sujeito andino está situado conflitos internos das décadas de 1980 e 2000. Peter Elmore
entre “o código de comportamento e um sistema de protocolo” (2000) explica que a chave da estrutura dramática do espetáculo
(BRECHT, 2002, p. 159), que põe em evidência não só as encontra-se nos dois significados da palavra “duelo”, 10 porque
“qualidades combativas e semibárbaras dos fundadores da propõe uma situação de convivência e diálogo entre sujeitos
civilização” (BRECHT, 2002, p. 159), como também a permanência envolvidos num contínuo combate entre seus desejos e suas
ou as transformações dessas qualidades naqueles que cuidam da aflições, entre suas perspectivas no presente e suas lembranças e
manutenção da sociedade peruana na contemporaneidade. Essa vínculos com o passado. Dessa forma, como uma linha temporal, a
situação está presente na tela de Mauricio Delgado Porque no memória coletiva do passado colonial e recente atravessa os
tenemos nada lo haremos todo (2012), que fez parte da Mostra La personagens humanos (Armando, Bernardina e Rufino) e
República Fallida (2012)9. No óleo sobre lenço, o artista plástico

10
surrealismo contemporâneo ou do romantismo alemão da primeira metade do Neste caso, “duelo” entendido como luto, dor, aflição, e também como luta,
século XIX, consiste em que não se trata de buscar outra realidade, outra combate, confronto. Cf. ELMORE, Peter. “El templo de los duelos”. In: Notas
casualidade mágica, mas com visível reminiscência cartesiana, o sonho aparece sobre Santiago, de Yuyachkani. Disponível em:
como forma de domínio pela superconsciência. Há uma sabedoria, [...] <http://www.oocities.org/santiago_yuyachkani/Peter.html>. Acesso em: 26 jul.
trabalhada sobre a matéria da realidade imediata” (LIMA, 1988, p. 97). 2012.
9
Disponível em: <http://mauriciodelgadoc.blogspot.com.br/search?updated-
min=2012-01-01T00:00:0008:00 &updated-max=2013-01-01T00:00:00-
08:00& max-results=13>. Acesso em: 15 maio 2013.
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míticos/sobrenaturais (Santiago, Illapa, Ukuku), que se afrontam e imagem e presença ao teatro. O diretor contata Peter Elmore, que
se reconhecem. é o coautor da dramaturgia, e os três atores que estão no
O problema, ou a intriga que dá suporte à peça, está na espetáculo. Após a encomenda de um cavalo cenográfico, idêntico
relação entre três personagens: uma mulher do povoado, ao de Santiago, começam a aparecer as primeiras ações,
Bernardina, que quer a qualquer custo libertar o santo em contornadas por uma dramaturgia que, de acordo com o diretor
procissão para que, em troca, seus filhos gêmeos, desaparecidos (RUBIO ZAPATA, 2008, p. 184), é o resultado dos exercícios de
durante o conflito armado interno, sejam localizados; Armando, improvisação dos atores, em que se exploram o espaço teatral e a
comerciante e mordomo da festa, quer libertar o santo para que, relação com os objetos e materiais físicos, sonoros, visuais,
em troca, a vida do povoado possa transcorrer normalmente, bem sensoriais, literários e narrativos. Das primeiras experimentações
como o seu negócio; e por fim Rufino, o guardião da igreja, que e jogos com esses materiais cenográficos, surge a ideia que
resiste em libertar Santiago, tornando-se uma espécie de resultou na dramaturgia espetacular de Santiago:
empecilho para que se realize a procissão. Los tres últimos habitantes de un pueblo casi vacío, están
Esse drama tem o seu início quando, ao conhecer a encerrados durante una noche dentro de la iglesia donde se
Catedral de Santiago, na Galícia, e se surpreender com a venera al santo patrón del pueblo, Santiago apóstol. La
quantidade de fiéis que visitam o corpo do santo, o diretor do violencia política y las enfermedades explican la actual
situación de abandono del pueblo y del templo, ubicados en
Yuyachkani começa a pensar na fonte originária de um mito que,
algún lugar de los Andes.12 (RUBIO ZAPATA, 2008, p. 161)
em seu país, permanece vivo (Cf. ZAPATA, 2008, p. 170-171).
Miguel Rubio Zapata relata: “Desde que conocí la Iglesia, que Na primeira parte do enredo, é como se os três
según dicen los lugareños fue construida con piedras de personagens, cansados das discussões sobre os porquês de se
Sacsayhuamán, la he visitado muchas veces y me he sentado libertar ou não o santo, adormecessem na igreja. No sonho de
frente al santo mirándole a los ojos fijamente, como esperando Bernardina, que é encenado para o espectador, ela vê e ouve o
una señal”11 (RUBIO ZAPATA, 2008, p. 174). Incomodado, de certa diálogo entre Armando (Augusto Casafranca) e Rufino (Amiel
maneira, com a figura do santo, que às vezes mostrava-se Cayo), que ocupam, respectivamente, os lugares de Santiago e do
completamente vazia, Rubio Zapata sente que é necessário dar Mouro, realizando uma ação cênica utilizando o cavalo. É muito
vida àquela representação, trancafiada na igreja, e levar a sua interessante como o sonho de Bernardina, no início da montagem,
relaciona-se com o desenlace da peça. No decorrer da trama, ela e
11
“Desde que conheci a Igreja, que, segundo dizem os aldeões, foi construída povoado, o apóstolo São Tiago. A violência política e as enfermidades explicam
com pedras de Sacsayhuamán, visitei-a muitas vezes, sentando-me frente ao a atual situação de abandono do povoado e do templo, situado em algum lugar
santo, olhando seus olhos fixamente, como que esperando um sinal.” dos Andes.”
12
“Os três últimos habitantes de um povoado quase vazio estão encerrados,
durante uma noite, dentro da igreja onde se venera o santo patrono do
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Armando encontram a chave, retiram a imagem da urna e e Armando/Santiago responde: “no me importa donde esté igual
preparam o santo para que este saia em procissão. Entretanto, brilla mi poder” (RUBIO ZAPATA, 2000). Na ação que dá sequência
eles não encontram a imagem do mouro, de modo que os dois a esse diálogo, Rufino/Mouro liberta-se das patas do cavalo e inicia
usam da violência, amarrando Rufino e o obrigando a assumir o uma coreografia no espaço teatral, utilizando folhas de coca. Logo
lugar do herege. depois, ele se responsabiliza por dar movimento ao cavalo de
De acordo com Javier Zorilla E. (1978), nos contextos Santiago, encenando a sua aparição e causando verdadeiro horror
comunitários e familiares, os sonhos podem tomar a forma de em Bernardina, de modo que não é possível delimitar se ela ainda
“revelações” que nascem da realidade ou de uma preocupação está sonhando, se ela se tornou parte do sonho ou se está
social. Transformando-se em narrativa onírica, os sonhos acordada.
devolvem modelos de condutas sociais que podem se tornar obras Sob o ponto de vista antropológico, os sonhos devem ser
históricas, isto é, realidade. Analisando um exemplo concreto, na analisados a partir de uma metodologia que ressalte, segundo
comunidade de Acocro em Ayacucho, o pesquisador percebe Zorilla E. (1978, p. 119), a caracterização social daquele que sonha,
como a população encontra soluções para terminar com o a motivação material do sonho, a ideologia que se reflete no
problema da escassez de água, a partir da interpretação dos sonho, a relação dele com a consciência coletiva e a conduta social
sonhos de um dos moradores. Isso se tornou possível, segundo o da comunidade (ZORRILLA E., 1978, p. 119). Acrescento, além
autor, porque os sujeitos acreditam que eles estão enfrentando a disso, que para se interpretar o sonho de Bernardina, deve-se
realidade, como se estivessem acordados, na medida em que a considerar ainda outro fator, neste caso decisivo, que é o lugar de
nitidez de seus sonhos oferece conteúdos que podem ser onde ela sonha.
interpretados e reproduzidos na prática. A história em questão ocorre dentro de uma igreja, que, ao
A partir desse raciocínio, penso que o sonho de Bernardina, que tudo indica, é análoga à igreja do Convento de Santo Domingo,
na dramaturgia espetacular de Santiago, é o momento em que em Cusco, onde, durante o Tawantinsuyo, estava o Qoricancha, no
ocorre essa visualidade límpida do enfrentamento do sujeito que qual havia uma sala dedicada especialmente à Illapa. Entendo que
está sonhando com a sua realidade. Nesse sonho, conteúdos de seja uma analogia a esse templo, porque Rufino cita passagens de
níveis ideológicos aparecem sem qualquer tipo de censura já que cronistas, como Guamán Poma de Ayala (2005, p. 310), e reproduz,
Rufino e Armando, enquanto assumem os respectivos papéis de no chão da igreja, utilizando um giz, um desenho feito por Santa
Mouro e Santiago, estabelecem um diálogo repleto de acusações Cruz Pachacuti (1613) em suas crônicas. Nesse desenho, Santa
e sentimentos de rancor. Rufino/Mouro diz sob as patas do cavalo: Cruz Pachacuti descreve o altar do Qoricancha, tornando visível a
“mataste indios ahí y les llamaste moros” (RUBIO ZAPATA, 2000)13

13
O Texto de Peter não está publicado. Doravante será referido apenas como
RUBIO ZAPATA, 2000.
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representação de Illapa, sem qualquer alusão a Santiago.14 Illapa Bernardina é um sujeito andino feminino que procura por
é retratado por meio de linhas em zigue-zague, referenciando a seus filhos gêmeos, desaparecidos durante os conflitos internos. É
sua assimilação ao raio.15 A inscrição desse desenho no espaço da uma devota fervorosa de Santiago apóstolo, a quem sempre faz
igreja, que é cenário de Santiago, surge como uma citação que preces para que ele a ajude a encontrar os rapazes. Sua relação
desassocia as duas divindades, e chama atenção para o fato de que com essa divindade, entretanto, deve-se também a uma tradição
o templo de Santiago foi, e continua a ser, templo de Illapa. ancestral que se refere à Illapa. De acordo com as descrições de
Arriaga (1999), de Duviols (2003) e dos relatos de Dioses y Hombres
FIGURA 3 – Abaixo e à esquerda está a representação de Illapa no de Huarochirí, o nascimento de gêmeos tem uma relação estreita
desenho que retrata o altar do Qoricancha. com a Huaca Pariacaca (Illapa). Nesta última referência, conta-se
que quando um casal comete alguma falta a Pariacaca, este envia
como filho um ata ou ylla,16 e quando estes aparecem é sinal de
que os próximos filhos serão gêmeos “a cambio de la muerte” (DE
ÁVILA, 2009, p. 189).
Essa tradição, presente nos relatos coloniais, apresenta
uma forma de castigo divino que funcionava como uma espécie de
jogo de azar, um desafio lançado por Illapa, porque a gravidez de
gêmeos, naqueles tempos e até à nossa contemporaneidade, é
normalmente considerada uma gravidez de risco. No parto, pode-
se perder um dos bebês, os dois bebês, ou mesmo a mãe. Por outro
lado, se tudo ocorre bem, os gêmeos representam uma graça e a
chance de que todos possam viver juntos, como ocorreu no caso
de Bernardina. No entanto, ela se sente em dívida com Santiago.
Fonte: SANTA CRUZ PACHACUTI YAMQUI SALCAMAYGUA, 1993, Ela perde os dois filhos, no contexto dos conflitos internos,
p. 208. sobrevive, porque mantém uma postura obediente em relação ao

14 16
Muitos atores consideram este desenho como importante para se entender a Os atas são crianças que nascem com uma parca (sinal de deficiência ou má
cosmologia andina. Um completo estudo sobre este desenho está em: FINK, formação, como seis dedos, ou no caso de frutos, aqueles que nascem unidos).
2001, p. 9-75. Essas crianças são consideradas yllas (deformidade que possui características
15
De fato, nas estruturas que restam do Qoricancha, ainda se poder ter acesso mágicas) por haverem sido tocadas por Pariacaca/Illiapa. Cf. DE ÁVILA, 2009, p.
aos sinais da antiga arquitetura inca, e por meio dela, à representação de uma 187.
figura antropomórfica, visível como três esculturas adornadas por uma manta,
que dizem ser Illapa.
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que acontecia, e sua única esperança reside na possibilidade de quem se submete às patas do cavalo. De alguma forma, esse sonho
obter um milagre do Santo. de Bernardina pressupõe a ideia de que alguém deve ser
Inicialmente, a figura dessa mãe desolada assume uma sacrificado para que a normalidade possa voltar ao povoado.
contradição frente aos dois personagens masculinos que Embora saibamos que essa pessoa será Rufino, isso não torna os
protagonizam um combate. Sua postura é pacífica e passiva, demais personagens imunes a essa condição.
considerando-se que ela mantém um comportamento imparcial
diante dos dois companheiros. Esse comportamento, porém, não Illapa e Santiago: O tempo invertido
deixa de transparecer que Bernardina também está em guerra. O contexto histórico em que o enredo de Santiago situa-se
Analisando o seu sonho, a partir das estruturas ideológicas que é o dos conflitos civis. Percebendo as condições em que se
estão presentes, percebo como ela se sente submetida aos encontrava o Peru, em meio a uma violência deliberada, através
poderes de Santiago, que, por sua vez, representa o medo, a força, do oráculo, Illapa manifesta seu posicionamento de não querer
a ordem. Por isso, mesmo que o lugar do Mouro deva ser ocupado fazer-se presente nessa espécie de “zona cinzenta”,19 esse tempo
por Rufino, no fim da montagem, essa mulher, que é vítima e em crise, confuso, estagnado pela dor. Mesmo assim, nesse
sobrevivente do Conflito Armado Interno, não está livre do peso momento da peça, cai uma tempestade. Illapa, por este modo,
do cavalo de Santiago. Essa ideia, que surge a partir do espetáculo, manifesta a sua recusa, mas também o seu aceite, porque logo
ganha força quando penso na releitura que a artista plástica cessa de chover, relampejar e trovoar. Entre estas manifestações
peruana Kukuli Velarde17 fez da imagem de Santiago Mata Índios, da divindade, os personagens vão reconhecendo as suas
em sua série de autorretratos denominada “Cadáveres”18. prioridades, na trama, e assim estabelecem o que devem fazer.
No sonho de Bernardina, a aparição do santo lhe causa um Para resgatar acontecimentos que marcaram de forma tão
enorme temor, o que reforçará a sua atitude de querer encontrar, bruta a população peruana de modo geral e a andina,
junto com Armando, uma solução para cumprir sua promessa. particularmente, o Yuyachkani busca, num tema que envolve a
Para tanto, a possibilidade é reproduzir a imagem que aparece em religião, um modo de estabelecer um espaço de criação em que
seu sonho, de acordo com a qual, ao invés do Mouro, é Rufino possam conviver o real e a ficção, inerentes aos eventos

17 19
As obras de Kukuli Velarde foram expostas na galeria Geman Krüger Para Agamben, o conceito de responsabilidade possui uma relação estreita
Espantoso no ICPNA (Instituto Cultural Peruano Norteamericano) de Miraflores, com a noção jurídica, de modo que, se o sujeito assume uma responsabilidade
sob o título de “Patrimonio”, entre 10 de maio e 24 de junho de 2012. Suas obras moral, pressupõe-se que ele esteja disposto a assumi-la juridicamente. O autor
estão disponíveis no site da artista. Disponível em: afirma, entretanto, que “a ética, a política e a religião puderam se definir
<http://www.kukulivelarde.com/site/ HOME.html>. Acesso em: 30 set. 2012. unicamente ao roubarem terreno à responsabilidade jurídica, não, porém para
18
Disponível em: <http://www .kukulivelarde.com/site/Paintings.html#28>. assumirem responsabilidades de outro tipo, mas sim ampliando as zonas de não
Acesso em: 20 jul. 2012. responsabilidade” (AGAMBEN, 2008, p. 30).
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traumáticos próprios do CAI. Citam-se, por isso, aqueles eventos esteticamente, na montagem Santiago, a imagem propagada do
históricos do passado colonial que não deixariam de ressoar, com santo, através de personagens vivos e da memória coletiva que
força, durante o último período de violência e discriminação suporta, na imagem desse santo cristão, a memória de uma
contra o sujeito andino. O passado colonial vem à tona, no divindade pré-hispânica. Então, muito mais que se limitar a ser
presente, através da encenação de um “processo primário” uma simples alusão pictórica, essa imagem queima, no sentido de
(TURNER, 2008, p. 102) contido nos símbolos religiosos, o que nos que funciona através de “la intencionalidad que la estructura, con
faz levantar indagações sobre até que ponto as manifestações la enunciación, incluso con la urgencia que manifesta” (DIDI-
religiosas, que antes de tudo são manifestações culturais HUBERMAN, 2008, p. 51), de modo a problematizar “processos
populares, poderiam alavancar uma reação coletiva dos sujeitos primários”, que se revelam como a cicatriz de um trauma, sobre o
envolvidos nesses conflitos. qual se constituem as identidades dos sujeitos andinos ao longo de
Em um milagre de guerra, Santiago não poderia intervir, no séculos de dominação.
conflito contemporâneo, como protetor daqueles que sofrem a Nesse espetáculo, Yuyachkani dialoga com imagens como
violência se se atribui a ele a identidade de Santiago Mata Índios. esta para, além de permitir a exploração da plasticidade visual –
Contudo, uma vez que remete à ancestralidade andina de Illapa, relacionando-a à proposta de lutar contra a amnésia coletiva, com
essa imagem funciona como uma imagen-quema, aquela que vistas a atualizar a memória histórica do país a partir de uma
“quema con lo real, a lo que por un instante se ha aproximado” perspectiva contra-hegemônica – no intuito de associar o passado
(DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 51). Neste caso, estou pensando na traumático da conquista aos recentes eventos de violência
imagem de uma divindade tutelar que não é substituída por um armada. Essa associação que se efetiva entre os símbolos religiosos
santo cristão. Tendo em vista o ato puro, ao qual a imagem faz e as ações políticas, faz-me recordar os estudos de Victor Turner
referência como representação de um fato passado, essa (2008, p. 97) sobre a história da Independência do México e da
divindade ancestral intercede, no contexto da manifestação imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, utilizada por Hidalgo
popular religiosa, em favor dos sujeitos andinos e contra o estado como estandarte da luta de independência, que possuía, da
secular imposto pela violência dos grupos armados. mesma forma que a imagem de Santiago, uma dupla identidade20
Em diálogo com a memória da guerra da conquista e com e, ao mesmo tempo uma pulsão interna de resistência das religiões
os conflitos civis mais recentes, o Yuyachkani reproduz, dos povos originários. O que interessa para Turner (2008, p. 97)

20
Trago as palavras de Roberto Ricard, citado por Turner: “O culto de Nossa hispânica Tonantzin fora adorada antes da chegada de Cortez – parecem [...] ter
Senhora de Guadalupe e a peregrinação à Tepeyac – a colina perto da Cidade do nascido, crescido e triunfado com o apoio do episcopado, em face da [...]
México onde se diz que a ‘Virgem Morena’ de Guadalupe apareceu pela turbulenta hostilidade dos frades menores do México” (RICARD apud TURNER,
primeira vez ao índio asteca e catecúmeno Juan Diego, cerca de dez anos após 2008, p. 98).
a conquista espanhola, e que, incidentemente, é a colina na qual a Deusa pré-
P á g i n a | 179

sobre esse episódio é o fato de que, mesmo fracassada, a tempo colonial, estabelece outra forma de autoritarismo. O
insurreição reuniu interesses populares, através da chamada do partido não levou em consideração os fatores étnicos, colocando-
padre Hidalgo, que utilizou a Virgem de Guadalupe como um se no lugar do dominador (Cf. MANRIQUE, 1989, p. 168).
núcleo simbólico da resistência indígena. Segundo Turner, foi após Rufino, Bernardina e Armando, em Santiago, são “sujeitos
a ação política e religiosa empreendida pelo padre que se efeitos” de uma rede descontínua de processos de assimilação e
estabeleceu, na história do México, um novo mito, “contendo um resistência cultural, diante dos quais tentam se reconhecer em
novo conjunto de paradigmas, metas e estímulos para a luta suas alteridades. Em permanente duelo com o pensamento
mexicana” (TURNER, 2008, p. 195). Quando comparo esse caso hegemônico, os personagens buscam formas de sobreviver e
com o peruano, penso que Santiago funciona como um estandarte, preservar suas identidades frente aos preconceitos e à violência e
durante o Conflito Interno, representativo de uma resistência retomam os traços de ancestralidade, na práxis teatral, como parte
micropolítica frente a um Estado totalitário e violento. Se, para constituinte da subjetividade dos próprios criadores, em defesa de
Turner, no caso da insurreição mexicana, é possível pensar que “o um desejo de coletividade, da convivência cultural e da
lado religioso, até mesmo profético, da natureza de Hidalgo tenha preservação da diferença.
[se] ajustado de forma demasiado vigorosa, se não sonambulística
ao ardor e à violência de seus índios ao se livrarem de três séculos Referências
de dominação espanhola” (TURNER, 2008, p. 102), na guerra AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a
interna do Peru, o lado religioso, pressupondo os mesmos “ardor” testemunha. Homo Sacer III. Tradução de Selvino J. Assmann. São
e “violência”, teria a ver com os principais agentes da violência. Paulo: Boitempo (Coleção Estado de Sítio), 2008. 175 p.
Os grupos revolucionários, que condenavam as
manifestações de culto, defendendo a ideia de um Estado secular, BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução e
tinham, no seu programa pedagógico, o culto à personalidade de notas de Sergio Paulo Rounet. São Paulo: Civilização Brasileira,
seus líderes. No caso do Sendero Luminoso, a figura de Abimael 1984. 276 p.
Guzmán representava a imagem de um poderoso “Patrón”, que
encontrou peruanos dispostos a seguirem-no, religiosamente, em BRECHT, Bertolt. Diário de trabalho. Organização de Werner
seu projeto revolucionário. Como em uma espécie de utopia, cujas Hecht. V. I – 1938-1941. Tradução de Reinaldo Guarany e José
promessas eram as de liberdade e autodeterminação de uma Laurenio de Melo. Editora Rocco: Rio de Janeiro, 2002.
comunidade ideal, o “processo primário” era, aqui, retomado em
seu sentido mais violento já que a prática desse partido, durante a DE ÁVILA, Francisco. Dioses y hombres de Huarochirí. Tradución de
sua luta armada, em vez de romper com a dinâmica cultural José Maria Arguedas. Lima: Universidad Antonio Ruiz de Montoya,
representada pelo dualismo hegemônico/subalterno, herdado do 2009. 287 p.
P á g i n a | 180

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MARCAS AUTOBIOGRAFICAS E TRANSGRESSÃO EM JUAN SIN internarse en la novela como quien se adentra en un sueño,
TIERRA DE JUAN GOYTISOLO enfrentado a un universo móvil y escurridizo, que se forma y
Carmelita Tavares Silva deshace sin cesar ante sus propios ojos”. Com estas palavras Juan
IFES - Campus Venda Nova do Imigrante Goytisolo oferece uma chave de leitura de sua obra Juan sin Tierra,
publicada pela primeira vez em abril de 1975 pela editora Seix
Neste estudo serão analisadas as marcas autobiográficas Barral de Barcelona, encerrando-se com ela a trilogia Álvaro
em Juan sin Tierra de Juan Goytisolo (1975) e serão destacados Mendiola. A declaração do autor já antecipa para o leitor uma
outros aspectos da obra, entre os quais se destacam a sua narrativa que representa não somente sua ruptura definitiva com
estrutura, o uso da linguagem e sua função na narrativa. Serão a sociedade espanhola e tudo o que ela significa em termos de
comentados alguns eventos ocorridos no contexto familiar do estagnação e opressão, mas também a destruição de seus valores
autor por meio dos quais o narrador explicita seu posicionamento pela transgressão e destruição da linguagem - veículo de sua
com relação à tradição e aos valores da sociedade espanhola. O manutenção e perpetuação. As palavras finais do romance,
autor apresenta nessa obra um discurso fragmentado, com escritas em árabe confirmam a decisão do autor: “estoy
alternância de vozes narrativas, num caleidoscópio que expõe para definitivamente al otro lado, con los parias de siempre, afilando el
o leitor sua crítica à Igreja, ao Estado e aos, assim considerados, cuchillo”. O cuchillo (grifo nosso) – faca em espanhol – como
cânones da literatura espanhola. símbolo de corte, ruptura e cisão, concretiza, no plano da
Procuraremos também demonstrar que a proposta linguagem, a proposta do autor.
literária de Juan Goytisolo se concretiza nessa obra ensaística que O título Juan sin tierra remete à obra Cartas de Juan
completa a trilogia Álvaro Mendiola e que encerra um processo de sintierra de José María Blanco White (1811), autor também
ruptura, em todos os sentidos, com a sociedade e a cultura de seu espanhol por quem Juan Goytisolo sempre declarou profunda
país. Serão tomados como ancoragem teórico-crítica, entre outros, admiração: “No es una simple casualidad si los dos escritores que
os autores Leonor Arfuch (2010) em O espaço biográfico. Dilemas más me han interesado, y cuya obra ha influído más
da subjetividade contemporânea, Philippe Lejeune (2008) – O profundamente en mí durante los últimos tiempos son dos
pacto autobiográfico: de Rousseau à internet e Gastón Bachellard malditos: Blanco White y Cernuda” (GOYTISOLO, 1997, p. 290-
(2006) em A poética do devaneio. 291).
Palavras-chave: Juan Goytisolo, ficção autobiográfica, vozes Dividida em sete partes Juan sin Tierra, encerra-se com o
narrativas, memória. texto em árabe, a que já aludimos e que, segundo o autor, tem a
Ainda que não se defenda ser o autor de um texto o seu intenção de criar um efeito de ruptura: “La obra había llegado a
melhor intérprete, a recomendação de Juan Goytisolo no um punto final de descreación y la quería cortar de un modo
fragmento a seguir deve ser considerada: “El lector deberá brusco, imponiendo a los lectores una grafía distinta.”
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(GOYTISOLO, 1977, p. 9). Em que pese o fato de, por sua temática, outra sequência mencionada pelo autor relaciona-se ao aspecto
Juan sin Tierra completar a trilogia Álvaro Mendiola, cumpre escatológico presente em Juan sin Tierra. O autor conclui: "En éste
ressaltar que sua singularidade representou um verdadeiro marco y otros muchos aspectos las dos novelas se imbrican, se encabalgan,
na produção literária do autor e que não poucos críticos se modifican en virtud de su influjo recíproco, intertextual”
acreditaram que marcaria também o fim de seu processo criativo. (GOYTISOLO, 1977, p. 19).
A respeito da opção por encerrar o relato, escrevendo em árabe as Se em Señas de Identidad e em Reivindicación del Conde Don
palavras finais, o autor esclarece: Julián o narrador se coloca no papel de alguém que vive o dilema da
Para imponer esta sensación final de extrañeza, procedí en busca e negação de si mesmo, em Juan sin Tierra a negação se volta
tres etapas: contaminación del paradigma castellano con la contra seu próprio idioma e tudo o que por meio dele pode ser
fonética negra de los esclavos cubanos; paso al árabe veiculado: as normas linguísticas, sociais e ideológicas, os
escrito con caracteres latinos, en una operación inversa – comportamentos sexuais, o peso das tradições, principalmente as
vengadora – a la de los escritos aljamiados moriscos;
religiosas, profundamente influentes na sociedade espanhola: “El
empleo de la grafía arábiga. Gracias a ello lograba que el
Álvaro que se expresaba en Señas de identidad se matamorfoseó
mensaje final resultara incomprensible y el lector se sintiera
excluido, como si le hubieran dado con la puerta en las [sic] en el mítico Don Julián y ahora vagabundea por el tiempo y el
narices (GOYTISOLO, 1975, p. 10). espacio igual que un alma en pena” (MIGOYO, 1977, p. 61).
A transgressão da linguagem se colocaria, assim, como o
Esta explicação justifica de certa forma, o projeto de próprio tema e eixo da obra em uma relação de destruição e ruptura
Goytisolo, revelando a coerência com seu objetivo de transgressão que abarca autor e obra: “no basta con echar por la borda rostro,
e subversão da linguagem pela própria linguagem e a destruição de nombre, familia, costumbres, tierra: la ascesis debe continuar: cada
todos os paradigmas e valores chegando ao extremo de não poupar palabra de tu idioma te tiende igualmente una trampa: en adelante
sequer o próprio leitor. Registra-se que essa obra teve autorizada aprenderás a pensar contra tu propia lengua”. (GOYTISOLO, 1977,
sua impressão na Espanha, mas negada sua divulgação e leitura, o p. 83).
que sinaliza para a ameaça que representou, à sua época, o Goytisolo define Juan sin tierra como uma obra ensaística e
conteúdo de sua crítica. nesse aspecto cabe considerar que sua estrutura permite a leitura
Em entrevista concedida a Julián Rios (1977) Goytisolo fala de qualquer de suas partes sem comprometimento da coesão, em
sobre o processo de criação de Juan sin Tierra e explica que essa parte pela independência de cada uma em relação às demais, mas,
obra surge a partir de dois fragmentos de Reivindicación del Conde sobretudo em função do próprio processo de ruptura empreendido
Don Julián. O primeiro diz respeito a uma fala da personagem Don pelo autor. O próprio Goytisolo sugere que “su mejor lectura [...]
Julián: “recreador del mundo, dios fatigado, el séptimo dia sería una en countdown” (GOYTISOLO, 1977, p. 17). Entrelaça na
descansarás” – o que poderia ser uma possível explicação para a narrativa distintos recursos estilísticos sendo a ironia o mais
estruturação da obra em sete capítulos, segundo o entrevistador. A
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frequente. Desenvolve na própria crítica uma teoria do romance e lógico-temporal sino en un ars combinatoria de elementos
cria, pela subjetividade, um espaço autobiográfico que abriga as (oposiciones, alternancias, juegos simétricos) sobre el
marcas autobiográficas na dialética entre História e ficção. blanco rectangular de la página : emulando con la pintura y
A obra inicia-se in media res, com o uso de letra minúscula: la poesía en un plano meramente espacial: indiferente a las
amenazas expresas o tácitas del comisario-gendarme-
“según los gurus indostánicos, en la fase superior de la meditación,
aduanero disfrazado de crítico : sordo a los cantos de sirena
el cuerpo humano, purgado de apetitos y anhelos” (GOYTISOLO,
de un instrumental e interesado contenidismo y a los
1977, p. 11) – e já na segunda linha um tema recorrente – cuerpo criterios mezquinos de utilidad. (GOYTISOLO, 1977, p. 295).
humano – é citado. A partir desse ponto a temática do corpo estará
presente em toda a obra estabelecendo uma relação de erotismo Essa assertiva se ajusta com perfeição à obra e será
na associação corpo humano e corpus da escritura. Tal como nas retomada no decurso deste estudo com o propósito de comprovar
duas outras obras que compõem a trilogia, observa-se também a a coerência do projeto literário do autor. Goytisolo lança mão da
transgressão ortográfica na ausência de parágrafos; do uso de ironia e da paródia como recursos linguísticos para construir sua
maiúsculas; na quebra ou omissão da pontuação e no uso de narrativa e nos parece pertinente aqui observar que, dentro de sua
diversos tipos de linguagem, além de algumas passagens que se proposta de transgressão e subversão da linguagem, o autor não
repetem ao longo da narrativa. usa a ironia tão somente em seu sentido clássico de zombaria para
Como a proposta está pautada na transgressão que traz em provocar no leitor algum tipo de reação. Ele joga com as palavras
si a ideia de ruptura e liberdade também o corpo será considerado (teoria que constrói no intratexto da narrativa) e desenvolve sua
em suas possibilidades de subversão e liberdade. E no espaço da crítica à sociedade espanhola destacando algum episódio, fictício
página em branco, o espaço da escritura, Goytisolo constrói sua ou não, usando uma argumentação que para um leitor ingênuo
teoria do romance como se pode constatar no fragmento, que poderia parecer encomiástica, mas resulta, na verdade,
apesar de algo extenso, merece ser transcrito, pois apresenta as ridicularizadora e desmistificadora. Em suma: sua função é de
ideias principais de sua teoria: subverter. Em uma descrição que tem início na página 15 e se
eliminar del corpus de la obra novelesca los últimos estende até a página 20, Goytisolo utiliza uma linguagem
vestigios de teatralidad : transformarla en discurso sin rebuscada e rica de pormenores, como se observa na citação:
peripecia alguna: dinamitar la inveterada noción del [...] la próvida disposición del director de escena centrará la
personaje de hueso y carne: substituyendo la progressio atención del indigno en verdad respetable en el doble trono
dramática del relato con um conjunto de agrupaciones vacío que, erguido sobre adamascado pedestal y protegido
textuales movidas por fuerza centripeta única : núcleo del sol por un airoso palio, aguarda también a las claras la
organizador de la propia escritura, plumafuente genésica presencia soberana, que como el viril em medio de los oros
del proceso textual : improvisando la arquitectura del de la custodia, le colmará del augusto poder de su mágico
objeto literario no en un tejido de relaciones de orden esplendor radiante (GOYTISOLO, 1977, p. 16).
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Essa passagem relata uma solenidade, descrevendo o ato Goytisolo utiliza a ironia para responder aos críticos de sua
de defecação coletivo em local público e em conjunto, dos obra, e ironiza também os escritores realistas imprimindo um tom
escravos do Engenho San Agustín de propriedade da família divertido à narrativa, ao parodiar o gênero pastoril destacando
Goytisolo, em contraposição à inauguração do vaso sanitário nessa passagem a personagem Vosk, um tipo camaleônico que
(doble trono vacío) em cerimônia festiva que culmina, em clima de segue o narrador em todo o espaço textual.
apoteose, quando sua bisavó, “cerrando los ojos con místico mi nombre es Vosk [...] mi oficio, crítico y profesor [...] mi
arrobo” (Idem, p. 19), exclama: “he cagado como una reina” (Idem, desdicha, tanta, que contra ella no han valido las armas de
p. 20). O fragmento exemplifica, em nosso entendimento, o duplo mi recto saber ni el poder de la vasta y heredada riqueza :
uso da ironia a que aludimos no início do parágrafo. O uso de um desde mi infancia más tierna di en leer las obras literarias
[...] y allí, bajo la bienhechora tutela de tantos y tantos
discurso pomposo pela seleção rigorosa das palavras garante um
escritores preclaros, comencé a depurar mis aficiones y
efeito de sacralidade quase litúrgica a uma ação comum, cotidiana
gustos [...] con lo que nació en mi pecho un amor indeleble
e desprovida de qualquer importância: “el suspense augura un por aquellas novelas que, combinando instrucción con
acontecimiento grandioso”, ou seja, o ritual do discurso vazio deleite, son reflejo veraz y sincero de las sociedades en que
(crítica aos escritores espanhóis), além do efeito de ridicularizar a se crean, merced a la introducción de personajes vivos y
pretensa nobreza das atitudes burguesas diante da miséria dos auténticos, sometidos a las pasiones y achaques de los
escravos que, despojados de sua dignidade, são mostrados como hombres de carne y hueso y, [...] que me llevó al aprendizaje
um espetáculo burlesco. Observa-se que o autor inverte a simetria asiduo de los textos sagrados del realismo, en especial de
da ação descrita e a ironia e o grotesco recaem sobre a figura da las sentencias máximas inigualables del evangelista San
bisavó em seu trono, numa dupla alusão que conjuga o impacto da Lukas, [...] que pronto iban a ser objeto, [...] de un aleve y
era industrial e a sujeira que a “madre España”, representada pela cuidadosamente preparado asalto a los fundamentos
mismos de su razón, mientras, infelice [sic] de mí, yo
bisavó, esconde sob o trono, sentando-se sobre a mesma: "y
proseguía mis lecturas y estudios y, en la palestra de la
aunque nadie captará el mensaje del ama, mil rumores fantásticos
prensa o la tribuna pública, me enzarzaba em continuas y
se propagarán de inmediato por el batey y la negrada permanecerá brillantes justas con los secuaces de una ideología
inquieta y confusa, [...]” (Idem, p. 20). Exemplifica também a ironia oscurantista y retrógrada, cuyos mitos escapistas no son
o uso do latim, idioma adotado pela Igreja Católica para os ofícios sino triste reflejo del estéril subjetivismo del escritor.
religiosos e usado pelo narrador para a descrição das atividades (GOYTISOLO, 1977, p. 247-248).
sexuais dos escravos de seu bisavô: “¡es algo horrible! Entonces
A intertextualidade de Juan sin tierra com El Quijote pode
dímelo en latín el capellán se santiguará varias veces: las visiones
ser detectada com a passagem em que Don Quijote comenta com
atroces del almacén parecen haberle perturbad el juicio”
Sancho sobre a crítica feita à primeira parte de sua obra: em Juan
(GOYTISOLO, 1977, p. 32).
sin Tierra a personagem – autor vai a julgamento por sua forma de
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escrever descumprindo ou desrespeitando as normas vigentes. caretas pájaro en mano pero sin desdeñar los cien que
Por esse mesmo motivo ele será internado em uma clínica – o vuelan los obligaréis a encuerarse también y los someteréis
“establecimiento de Normalización” para ser tratado da síndrome al escarnio cruel de vuestro vengativo discurso oídnos bien
da desobediência aos padrões literários canônicos. las trampas de vuestra razón no lograrán apresarnos moral
religión sociedad patriotismo familia son ruidos
Ainda sobre a temática da intertextualidade em Juan sin
conminatorios cuyo sonoro retintín nos dejará indiferentes
Tierra, Manuel Durán, em citação de Migoyo, comenta que se trata
no contéis con nosotros creemos en un mundo sin fronteras
de uma “collage” de textos e os capítulos que são, de certa forma, judíos errantes herederos de Juan sin Tierra (GOYTISOLO,
independentes entre si interagem e criam o efeito de comicidade. 1977, p. 88-89).
Sua análise é complementada por Gonzalo Días Migoyo para
quem: “no sólo es cada uno de los tres textos una re-escritura a A crítica ácida à religião se respalda na autoridade da voz
modo de palimpsesto de los otros dos sino que, a su vez, cada uno de Deus: “el Padre está en su hamaca, en la casa solariega del Cielo
de ellos consiste en una serie de ‘reprises’ de una misma imagen y quiere saber [...] qué hay de esos negros [...] esclavos de la firma
única” (MIGOYO, 1977, p. 62). Mendiola y Montalvo? Se portan bien?: son obedientes?: cumplen
Embora o próprio autor esclareça: “[...] hay, en un primer sus metas?: redimen las culpas mediante el trabajo” (GOYTISOLO,
nivel, un personaje que ha perdido la tierra, que se convierte en un 1977, p. 27). Esse exemplo, se despojado de seu caráter religioso,
Judío Errante” (GOYTISOLO, 1977, p. 14), talvez seja mais poderia também associar-se ao modelo econômico capitalista de
pertinente falar em vozes narrativas que poderiam ser exploração.
consideradas, assim entendemos, como marcas autobiográficas O exemplo a seguir parece bem mais ilustrativo da falsa
que nos remeteria sempre a um narrador nômade que circula piedade cristã:
pues, hijitos, para qué creéis que os han traído desde las
entre épocas distintas e assume variados papéis.
selvas remotas de África sino para redimiros por el trabajo
Sem outra finalidade que a de organizar a sua apresentação
y enseñaros el recto camino de la salvación cristiana?: no os
neste estudo optamos por uma seleção em que as vozes que alarméis por las penalidades que os toca sufrir: esclavo será
inserem na narrativa as marcas autobiográficas e a proposta de vuestro cuerpo: pero libre tenéis el alma para volar a la
uma nova teoria do romance serão relacionadas ao narrador- morada feliz de los escogidos: por eso enviamos nuestras
protagonista e aquelas que representam suas críticas serão cañoneras y bergantines y os hicimos cruzar el agua salada
tomadas como a voz narrativa da instituição que poderiam ser (GOYTISOLO, 1977, p. 35).
identificadas pelo teor da crítica formulada. Para a adoção desse É recorrente em toda a obra de Goytisolo o registro da
critério tomamos em conta o seguinte fragmento: vergonha e da culpa que carrega com relação à fortuna de seus
con su ayuda corrosiva y feroz, desincharéis la fatuidad de
ancestrais construída à custa da exploração de escravos em Cuba:
los globos y expondréis su mezquino e irrisorio temor a las
realidades del mundo una a una arrancaréis sus miserables
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reproducirás una vez más con tu caligrafía pulcra, la carta pátria, ao contrário, ridicularizando seu idioma em um aspecto de
de la esclava cuya lectura esclarece y da sentido a una vida peculiaridade e marca cultural é uma forma bem sutil de mostrar
(la tuya?) organizada (en función de ella) [...] con la que decididamente esse país lhe é totalmente indiferente: “el
conciencia de haber llegado al final de un ciclo a partir del exilio te ha convertido en un ser distinto, que nada tiene que ver
cual, mudada la piel, saldada la deuda, puedes vivir en paz
con el que conocieran” (GOYTISOLO, 1977, p. 63).
(GOYTISOLO, 1977, p. 297).
Goytisolo insere na narrativa a figura da “Parejita
A voz narrativa que abordará o tema do patriotismo Reproductora” que simbolizaria a família. Aparece já no primeiro
irrompe de duas formas na narrativa: uma, bastante lacônica, na capítulo, e, como um dos valores mais tradicionais da sociedade
página 95, é a transcrição de uma frase pichada em um muro e que espanhola, é enobrecida: “todas las naciones, sin distinción de
o autor incorpora ao texto: “UNE FEMME QUI COUCHE AVEC UM ideologías ni credos, alimentan su mito, iglesias y gobiernos
ARABE EST PIRE QU’UNE PUTAIN". A outra, que ocupa duas unánimemente la ensalzan, los diferentes medios de
páginas (286 e 287), é uma utilização do jogo de palavras e simetria comunicación se sirven de ella para fines de promoción”
mencionadas no início deste estudo. O autor narrador é submetido (GOYTISOLO, 1977, p. 67). No entanto é, em seguida, ridicularizada
a uma prova que tem como objetivo sua conversão às normas pela incapacidade do noivo em consumar a união, demonstrando
canônicas da escrita. Tem lugar então um diálogo entre ele e o assim a fragilidade dessa instituição: “la tribulación de la Parejta
aplicador da prova nomeado Discípulo Fiel. Este repentinamente resulta cada vez más lastimosa y en vano repetirán gerundios e
se exaspera com a personagem e faz uso de uma expressão imperativos: irregular, quizás defectivo, el verbo no se alzará”
idiomática da língua espanhola e a partir desse ponto se instala a (GOYTISOLO, 1977, p. 73).
comicidade. O narrador subverte o sentido contextual de todas as E outra voz narrativa já citada que se faz presente ao longo
expressões idiomáticas que se seguem e demonstra que da obra corresponde a da personagem Vosk. Essa personagem
definitivamente já não fala mais a mesma língua: funciona como um contraponto à voz do autor uma vez que
¡Oiga joven! dirá: se ha propuesto usted tomarme el pelo? também assume distintos papéis e da mesma forma transita por
Aunque me lo propusiera no lo conseguiría, responderás tú: vários espaços. Surge inicialmente como capelão no Engenho da
es usted absolutamente calvo un momento, dirá el família Mendiola e no final do capitulo seis, já em vias de
reponiéndose: no confundamos las cosas: yo le hablo en
desaparecer, interpela o romancista: dígame usted, señor
castellano y usted lo comprende tan bien como yo: no
novelista: es este el paraíso adonde conducen sus cantos de sirena
quiera ahora pasarse de listo y darme gato por liebre no le
estoy ofreciendo a usted ninguno de esos dos animales, revolucionarios?: la abolición, la muerte del ego [...] ahora no soy
dirás tu (GOYTISOLO, 1977, p. 286). más que una voz: [...] ni voz mía siquiera, sino de usted, de mi amo”
(GOYTISOLO, 1977, p. 290). Na página seguinte a decisão do
Entendemos que essa forma de trazer ao texto o tema do narrador: “a rey muerto, rey puesto concluído el breve responso
patriotismo, não falando de sentimentos de amor e orgulho pela
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por el descanso eterno del personaje, descenderás las primeras (SILVA, 2010, p. 13). E de acordo com o que propõe Philippe
gradas del Sacré Couer y vagarás unos minutos [...]” (GOYTISOLO, Lejeune, poderia se considerar que Juan sin Tierra, por suas
1977, p. 291). características, se aproximaria do romance autobiográfico, uma
Analisada em sua dimensão de história e ficção, vez que
considerada esta como obra literária antes que como invenção, o romance autobiográfico congrega tanto as narrações
ganha importância, na obra, o componente autobiográfico e nesse pessoais, onde ocorre a identidade entre o narrador e a
sentido a contribuição que oferece Leonor Arfuch (2010) em O personagem, quanto às impessoais (personagens indicadas
espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea lança pelo uso de pronomes de terceira pessoa). Enquanto na
autobiografia não ocorrem gradações – ou é, ou não é – o
luzes sobre a questão do narrador. Arfuch utiliza o termo, cunhado
romance autobiográfico as admite. LeJeune ratifica a
por Lejeune – espaço biográfico – para se referir a “coexistência
relevância do nome próprio, ou seja, todos os
intertextual de diversos gêneros discursivos em torno de posições procedimentos empregados na construção de uma
de sujeito autenticadas por uma existência ‘real’" (ARFUCH, 2010, autobiografia podem ser usados no romance
p. 132). A escritora argentina se reporta a teoria de Bakhtin para autobiográfico. (SILVA, 2010, p. 35).
quem
o autor é um momento da totalidade artística e, como tal, No que tange aos aspectos de historicidade presentes na
não pode coincidir, dentro dessa totalidade com o herói que obra, observa-se que esses, muitas vezes, operam como
é seu outro momento, a coincidência pessoal ‘na vida’ entre mecanismos de passagem de uma época para outra, ancorados no
o indivíduo de que se fala e o indivíduo que fala não elimina uso singular da linguagem e nessa movimentação pelo espaço do
a diferença entre esses momentos na totalidade artística texto o narrador assume outros papéis: “has recorrido de un
(BAKHTIN, 1982, p. 134). extremo a otro el ámbito del islam desde Istanbul a Fez, del país
Portanto, sob essa ótica e em consonância com a proposta nubio al Sáhara, mudando camaleónicamente de piel gracias al
do autor entendemos que talvez a questão do narrador deva ser oficioso, complaciente llavín de unos pronombres apersonales [sic]
vista em concomitância com as marcas autobiográficas, objetivo prevenidos para el uso común de tus voces proteicas, cambiantes”
principal deste estudo. E nesse contexto a aproximação com o (GOYTISOLO, 1977, p. 158). Vale registrar que esta passagem é
tema da autobiografia deva ser considerada, pois, como aponta recorrente no texto, fazendo-se uma marca indelével do projeto
Arfuch (2010), existe imprecisão dos limites entre autobiografia e de subversão da linguagem e da comprovação de que tudo é
ficção. possível a quem se aventura no espaço em branco da folha de
A dicotomia que se estabelece entre a narração do fato papel.
recuperado na memória e o discurso ficcional que dá Nesse contexto os estudos de Bakhtin oferecem uma chave
materialidade ao texto permite que o gênero autobiográfico de leitura que responde bem à tensão autor narrador e
transite livremente entre as fronteiras do real e do imaginário personagem. Entendemos que as diversas vozes narrativas
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presentes na obra consolidam o projeto literário de Goytisolo e Esse fragmento faz alusão às fotografias antigas que a
nesse sentido a voz narrativa que propõe uma nova teoria do família conservava, bem como a alguns documentos cujo teor
romance seria a mesma que carrega as marcas autobiográficas. provocou no narrador profundo sentimento de culpa, em nível tal
Cabe lembrar a teoria de Bakhtin para quem todo enunciado é que em Coto vedado Goytisolo confessa: “Una tenaz, soterrada
dialógico, visto que um determinado objeto se relaciona com impresión de culpa, residuo sin duda de la difunta moral católica,
enunciados produzidos anteriormente. Sentidos e significados são se sumó a mi ya aguda conciencia de la iniquidad social española e
produzidos na medida em que sujeito e objeto se constituem no índole irremediablemente parasitaria, decadente e inane del
discurso. Na obra A estética da criação verbal, Bakhtin (1992) mundo al que pertenecía” (GOYTISOLO, 1985, p. 11). E mais
afirma que todo enunciado, unidade real da comunicação verbal, adiante complementa: “Del efecto que en mí produjo el hallazgo
surge numa atitude responsiva, o que implica sempre a presença tardío de estos materiales el lector podrá forjarse una idea
do outro. Nessa concepção, o “outro” perpassa o discurso do “eu” recorriendo las páginas de Señas de identidad” (ídem, ibid). E
e, ao suscitar uma resposta, delimita a alternância dos sujeitos: reafirma em Juan sin Tierra, o impacto das sequelas morais
“quién se expresa em yo/tú: Ebeh, Foucauld, Anselm Turmeda, causadas pela descoberta e comprovação da exploração de
Cavafis, Lawrence de Arabia?: mudan las sombras errantes en escravos por parte de seu bisavô:
vuestra imprescindible horma huera”. (GOYTISOLO, 1977, p. 147). Interrumpirás la lectura de documentos: frases extraídas de
Destarte a polifonia sinaliza para o leitor um “fio de Ariadne” que los libros y fotocopias se superponen en tu memoria a la
lhe dará suporte na aventura da leitura de Juan sin Tierra. carta de la esclava al bisabuelo resucitando indemne tu odio
Dentro da proposta de ruptura e transgressão as marcas hacia la estirpe que te dio el ser : pecado original que
tenazmente te acosa con su indeleble estigma a pesar de
autobiográficas desempenham outra importante função, pois
tus denodados esfuerzos por liberarte de él : la página
funcionam como gatilhos da memória, alimentando lembranças
virgen te brinda posibilidades de redención exquisitas junto
que o autor, talvez, pretendesse sepultar. Algumas marcas que al gozo de profanar su blancura. (GOYTISOLO, 1977, p. 51)
aparecem em Juan sin tierra encontram-se já em Coto Vedado,
obra publicada em 1985 como se pode ver na seguinte descrição: A escrita como forma de exorcizar velhos fantasmas que
El bisabuelo Agustín y su esposa, el señorito, las niñas, un povoam suas lembranças constituiria para o autor uma
grupo de parientes dignos y pobres, los esclavos domésticos possibilidade de libertação?
[...] Él vestido de blanco de cabeza a pies, con el chaleco O episódio que tomamos aqui apresenta uma marca
cruzado, una cadena de oro y el cigarro habano encendido: autobiográfica que será evocada sempre contrapondo o “amor
Ella, idéntica al retrato desvaído que velara tus pasos productivo” ao “amor nefando”:
inquietos en el largo pasillo de la adusta mansión. nacido en ínsula próxima a la espaciosa y triste Península
(GOYTISOLO, 1977, p. 18) (¡Allah la devuelva al Islán!), sorprendí siendo niño (a los
cinco, seis años de edad?) por una celosía indiscreta [...] la
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intimidad conyugal de mis padres (el tibio amor productivo, apremiante personalidad. [...]. Raimundo ha pasado a ser al
tedioso y desaborido como una cena recalentada), cabo de un año un testimonio vivo de la verdad escrita en
espectáculo cuya vil sordidez [...] me hizo concebir un odio tu novela: alguien a quien se muestra a los amigos como
violento, insaciable (GOYTISOLO, 1977, p. 143). prueba suplementaria de autenticidad. (GOYTISOLO, 1985,
p. 227-228).
O tema de sua orientação sexual se menciona na marca
autobiográfica: “El tibio amor productivo te llena Raimundo é retextualizado no fragmento que
irremediablemente de tedio y ensalzarás sin remordimiento ni transcrevemos a seguir: “describirás a Ebeh: “alfanje en mano,
escrúpulos el placer solitario y baldio, el nefando, el insólito, el presto a arremeter al enemigo con toda la fuerza de su robusto
ilegal” (GOYTISOLO, 1977, p. 77). E se reafirma na passagem: “y has brazo?: o en el acto de someter otro cuerpo al placer imperioso del
decidido asumir tu prometeica, devoradora pasión hasta sus suyo [...] piel rugosa y curtida, rostro plagado de hoyuelos de
últimas, delirantes consecuencias” (GOYTISOLO, 1977, p. 63-64). viruela, dientes enfundados en oro” (GOYTISOLO, 1977, p. 145-
Em Coto vedado o autor narra sua paixão por Raimundo, 146).
um trabalhador da área portuária de Barcelona, que o autor A paixão pelo mundo árabe aparece ao longo da narrativa
conheceu no ano de 1954 e explicita suas frustradas tentativas de e esse fragmento o expressa: “someterás la geografía a los
seduzi-lo. Ele o descreve com riqueza de detalhes, permitindo imperativos y exigencias de tu pasión” (op. cit, p. 82) e mais
perceber-se a atração que nutria por ele. Apesar de se fazer passar adiante: “y el amor que hallarás junto a ellos será ardiente y estéril
por embriagado e dormir ao lado do mendigo ele não alcançou como las planicies del desierto: lejos de las grutas fungosas y
seus objetivos, mas o rememora por meio dessa marca: “Entre húmedas que abrigan la nocturna actividad soterrada” (op. cit., p.
todos los mendigos del zoco, escogerás al más abyecto” 86)
(GOYTISOLO, 1977, p. 63). A intertextualidade entre Coto vedado Algumas marcas evidenciam que o processo de maturidade
e Juan sin Tierra realça a relevância desse tema em sua vida: caminha paralelamente ao de ruptura e podem ser observadas nos
El fracaso de tu tentativa nocturna no interrumpe vuestra seguintes fragmentos:
amistad: Raimundo será durante el año cincuenta y cuatro “Pero tú ya no eres niño, ni analfabeto, ni pastor” (p. 74),
el centro ígneo irradiante, solar en torno al cual tu “Cuando las voces broncas del país que desprecias ofenden
existencia gravita. Diariamente acudes a verle, a solas o con tus oídos, el asombro te invade : qué más quieren de ti? : no
tus amigos: [...]. Del mismo modo imperceptible que Lucho, has saldado la deuda?: El exilio te ha convertido en un ser
tu amigo se ha ido convirtiendo poco a poco en un distinto, que nada tiene que ver con él que conocieron” (p.
personaje literario con el que contiendes a diario en la 63) ou ainda: “Lentamente te has despojado de los hábitos
página en blanco, independientemente del modelo real. y principios que en tu niñez te enseñaron: no cabías en ellos
Este cambio de status implica un distanciamiento tácito del como culebra que muda de piel, los has abandonado al
segundo, el cese de tu anterior subordinación a su borde del camino y has seguido avanzando” (op. cit., p. 83).
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Nesse aspecto as reminiscências também são Essa obra que congrega aspectos autobiográficos, crítica
transformadas em matéria narrativa. Submetidas ao filtro seletivo literária e social, ficção e realidade, memória e imaginação,
do autor, elas irrompem, balizando seus princípios e valores, paródia e intertextualidade, pode ser considerada não apenas
comprovando o que afirma Gastón Bachelard: “para ir aos como um marco na produção de Juan Goytisolo, mas também de
arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos fatos, sua proposta de: “poner al desnudo las raíces más escondidas de
valores” (BACHELARD, 2006, p. 99). mi compromiso social” (GOTYSOLO, 1977, p. 18). É o que o autor
O próximo fragmento se constitui, em nossa leitura, um parece deixar bastante claro em Juan sin tierra.
interessante exemplo que se legitima na afirmação de Gastón
Bachelard: “las fotografías atabacadas, marchitas, que presidieran Referências
el cónclave de fantasmas de tu niñez no están aquí para ilustrar tus ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade
pasos y probablemente siguen ornando los muros de la vieja contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
mansión, en el país de cuyo nombre no quieres acordarte”
(GOYTISOLO, 1977, p. 14). BACHELAR, Gastón. A poética do devaneio. São Paulo: Martins
A última parte da citação agrega o valor que transcende o Fontes, 2006.
fato cuja lembrança se fez arquivo de memória. Categoricamente
o autor narrador se posiciona com relação ao que significa para ele BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
o país onde nasceu e que não merece ser sequer uma, entre tantas Fontes, 1992.
outras, lembrança.
A leitura de Juan sin Tierra contempla uma temática DIAZ-MIGOYO, Gonzalo. Juan sin tierra: la reivindicación de Onán.
bastante diversifica e, mais que isso, acreditamos, representa a In: Juan sin tierra. Espiral Revista 2, Madrid: Editorial
consolidação de uma proposta de transgressão que, pela Fundamentos, 1977.
linguagem, alcança tudo que por ela pode ser expresso dentro da
cultura espanhola, inclusive a própria linguagem. Goytisolo não DURÁN, Manuel. Juan sin tierra o la novela como delirio. In: Juan
teme “meterse en el terreno del toro”, ao romper radicalmente sin tierra. Espiral Revista 2, Madrid: Editorial Fundamentos, 1977.
com toda a técnica do romance até então utilizada. Ao dar GOYTISOLO, Juan. Juan sin tierra. Barcelona: Seix Barral, 1977.
materialidade às suas marcas autobiográficas, o autor, pela escrita,
canaliza pulsões que participam na constituição de um eu que, ______ . Coto vedado. Barcelona: Seix Barral, 1985.
retextualizado e reconfigurado aporta á narrativa vozes outras que
clamam, criticam, denunciam ou até mesmo silenciam.
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LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet.


Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

RIOS, Juan; GOYTISOLO, Juan. Desde Juan sin tierra. In: Juan sin
tierra. Espiral Revista 2, Madrid: Editorial Fundamentos, 1977.

SILVA, Carmelita Tavares. Coto vedado - ruptura e reencontro.


2010. 203 f. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas),
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2010.
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A NARRATIVA DE TEOR TESTEMUNHAL: palavras. Assim, temos nuanças, misturas de acontecimentos


A MEMÓRIA DO TRAUMA NO CONTEXTO ANDINO PERUANO sociais, lembranças que emergem nas novas narrativas e
Catiussa Martin despertam olhares variados ao contexto hispano-americano, que
UNISC/Bolsista FAPERGS muitas vezes, salientam críticas ao apelo ao tema.
Rosane Cardoso Diante de questões desse porte, a pergunta que fica é: o
UNISC que leva um escritor e um leitor a se sensibilizar com o assunto que
puxa, muitas vezes, o comportamento irracional do ser humano e
Muitos dos recursos narrativos, no contexto hispano- se permitir seduzir pela relação das palavras literárias e da
americano, presentes na obras literárias, estão relacionados com violência, que aparentemente, movem sentimentos
o tema da violência. A literatura, por exemplo, trabalha com a contraditórios?
utopia de um final surpreendente que quebre com a sequência do
que está sendo narrado, como os casos em que a fantasia e o 1 Reflexões sobre a violência
desejo do final feliz são de difícil inserção quando o assunto Muitos mais que o procedimento esclarecedor do termo –
representa uma realidade fingida do contexto das guerrilhas, violência – sem apologia ao mesmo, e muito menos que o objetivo
ditaduras ou de situações extremas de agressão ao direito civil. de torná-lo um fetiche literário, é importante salientar que não é
A questão aparentemente simples, de como narrar uma possível saber com certeza os sentidos que cada definição possa
obra em que o tema é a violência, toma um aspecto novo e representar no contexto hispano-americano. Inicialmente, a
problemático quando o assunto pode estar relacionado com a violência passa a ser pensada pelas palavras de Fanon (2005),
literatura, pois, enquanto as lembranças são rememoradas o como tendo em sua aplicabilidade uma forma de substituir
enredo precisa fazer sentido, diferentemente de um documento determinada espécie de homem por outra espécie de homem.
histórico, a memória do trauma é composta por oscilações de Para o autor, qualquer processo de descolonização sempre é um
espaços brancos e negros. Por outro lado, o mistério, mesmo fenômeno violento e causador de desordem que atinge e modifica
relacionado com o testemunho de um fato real que resulta de uma o ser. Sendo assim, ela forma um novo sujeito no método de
memória ferida, exige ser contado com suas nuances. A narrativa, libertação e luta, em um mundo de interdições que só é
ainda abordando uma situação baseada no real da violência, vai reformulado, ou possível de ser, pela ação violenta em absoluto.
partir da subjetividade do autor, do narrador e do leitor, que dão No sentido literal então, a violência é utilizada como forma
vida às personagens literárias que são frutos de uma memória de poder e de assegurar o domínio de determinada cultura. De tal
ferida. A violência, enquanto tema, está além de um desafio à forma, ela é tida como o meio de defender o seus interesses
literatura, é uma oportunidade de emanar experiências e quando o diálogo não é eficaz ou, até mesmo, é inexistente. O
acontecimentos históricos que demandam da sensibilidade das resultado de toda a ação violenta pode ser percebido, não
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somente na proliferação de obras literárias e dos históricos no O advento do nacionalismo num sentido propriamente
contexto hispano-americano, que tem seus fortes conflitos moderno esteve ligado ao batismo político das classes
armados envolvendo a cidade e os camponeses, como também ao inferiores... Embora por vezes avessos à democracia, os
processo anterior que envolve os movimentos de conquistas de movimentos nacionalistas sempre foram de perfil populista
e tentaram conduzir as classes inferiores à vida política. Na
território:
sua versão mais característica, ele assumiu a forma de uma
A colonização ou a descolonização são simplesmente uma
liderança intelectual e de classe média descontente,
relação de forças. O explorado percebe que a sua libertação
tentando despertar e canalizar as energias populares em
supõe todos os meios e primeiro a força. Quando, em 1956,
favor dos novos estados. (NAIRN citado por ANDERSON,
depois da capitulação de Guy Mollet diante dos colonos da
2008, p. 85).
Argélia, a Frente de Libertação Nacional, num panfleto
célebre, constatou que o colonialismo só desiste com a faca Ao querer o lugar do outro, conquistador e conquistado, a
na garganta, nenhum argelino achou esses termos violentos violência é o recurso mais eficiente. O jovem criollo que é o
demais. O panfleto só fazia expressar o que todos os colonizado e que cresce, segundo Fanon (2003) em meio à ferro e
argelinos sentiam no mais profundo de si mesmos: o fogo e aos mortos que despertam em seus espíritos acaba
colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo
percebendo o real e tornando a violência um movimento de sua
dotado de razão. Ele é a violência em estado natural, e só
práxis na busca pela libertação. É precisamente a luta de interesses
pode se inclinar diante de uma violência maior. (FANON,
2005, p. 78-19). nacionalistas, a propensão do colonizado, apresentado como uma
classe inferior que busca seus direitos na política, que configura o
Se por um lado o processo de independência das colônias contexto de violência hispano-americano. Como por exemplo, “o
das grandes metrópoles é violento, vale mencionar então, as ex- fator que pode ter impulsionado a luta pela independência em
colônias espanholas, mais especificamente na América Central e relação a Madri, em casos importantes como os da Venezuela, do
América do Sul, citando como exemplo o Peru e a noção do sujeito México e do Peru, foi o medo de mobilizações políticas das “classes
subalterno que tem suas raízes no processo de colonização. baixas”: a saber, as revoltas dos índios ou dos escravos negros.
Precisamente por isto, que vale citar os denominados crioulos - (ANDERSON, 2008, p. 86).
criollos, definidos por Anderson (2008) como descendente Com relação a isso, não se torna fora de contexto inferir
europeu nascido nas Américas tido, também, como pouco que um movimento nacionalista, a libertação dos países
intelectual, inferior e responsável pelo trabalho fundiário, colonizados e o processo de independência é por si só violento e
enquanto as atribuições administrativas e as funções mais um procedimento historicamente estabelecido. Por outro lado, a
importantes eram de monopólio dos espanhóis reinóis. A redistribuição de riquezas e de território é tida, também, como
insatisfação com a divisão de poder e de riquezas é um dos uma forma de combate à situação extrema de miséria que move a
propulsionadores das grandes revoltas e da luta por território: busca pelos direitos com a ação violenta. Não é possível,
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entretanto, ficar sem relacionar os casos de brutalidade do o país, a América Latina lutou e passou por longos conflitos
período da colonização europeia com a as guerrilhas e os conflitos sangrentos, o que resultou em incontáveis mortes:
armados que ainda marcam a história da América Latina. A [...] as mortes que importam são aquelas miríades de fatos
afirmação de Fanon (2005) do processo de colonização e anônimos, que, somados e tabulados em índices médicos
independências dessas colônias, faz ainda sentido no contexto de mortalidade por século, lhe permitem mapear as
atual, em que para o autor, o problema parte da necessidade de condições de vida [...] dos cemitérios implacavelmente
crescentes, [...] a biografia da nação agarra, à revelia dos
uma redistribuição das riquezas. As atividades que são
índices de mortalidade, aqueles suicídios exemplares, os
propulsionadas pelos políticos são do tipo eleitoreiro e as ações
martírios dolorosos, os assassinatos, as execuções, as
das camadas desfavorecidas estão, na grande maioria, pautadas guerras e os holocaustos. Mas, para servir à finalidade
pela luta contra a miséria e são exercidas pela força: narrativa, essas mortes violentas precisam ser
Hoje, a independência nacional, a formação nacional [...] os lembradas/esquecidas como “nossas” mortes. (ANDERSON,
diferentes países apresentam a mesma ausência de 2008, p. 280).
infraestrutura. As massas lutam contra a mesma miséria,
debatem-se com os mesmos gestos e desenham com seus Do mesmo modo que a comunidade luta por defender seus
estômagos reduzidos aquilo que se chamou de geografia da interesses de território e de qualidade de vida, o sujeito é
fome. Mundo subdesenvolvido, mundo desumano e de apresentado como uma certa concepção do valor ao coletivo.
miséria. (FANON, 2005, p.116). Nesse sentido, tem particular importância a memória coletiva,
Logo, é apontado uma causa comum, a luta pelos uma combinação do pessoal e do comunitário que tem um sujeito,
interesses de um determinado grupo em detrimento de outro. A no contexto hispano-americano, demandado por diferentes
violência constitui o único meio para a formação em sociedade, práticas de repressão que resultam em uma mudança de
“essa práxis violenta é totalizante, pois cada um se faz um elo comportamento e um jogo entre a necessidade de narrar e a
violento da grande corrente, do grande organismo violento necessidade de lembrar e esquecer uma situação extrema de
surgido como reação à violência. [...] Os grupos se reconhecem violência. “Todas as mudanças profundas na consciência, pela sua
entre si e a nação futura já é indivisa. A luta armada mobiliza o própria natureza, trazem consigo amnésias típicas. Desses
povo [...]”. (FANON, 2005, p. 111). O sujeito batalha pela esquecimentos, em circunstâncias históricas específicas, nascem
coletividade, por um direito comum. Por exemplo, no Peru, a busca as narrativas”. (ANDERSON, 2008, p. 278). Mesmo que a violência,
pelo respeito aos aborígenes, que segundo Anderson (2008), é a nas obras literárias, esteja difamada como um produto bastardo;
luta pela libertação nacional para que não sejam mais chamados que sua produção careça de uma certa tradição estética
de índios, nativos ou selvagens, pertencente a uma classe inferior, convincente, tudo isso já foi dito e repreendido o bastante. A
mas que consiga o respaldo de ser um cidadão do Peru e aplicabilidade do termo nas narrativas emergentes, na literatura
reconhecido como peruano, sem outra nomenclatura. Assim como em especial, já percorreu um longo caminho, que vai ser pensado
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junto ao problema e ao desmerecimento que muitas obras sofrem reconhecimento. A tendência à narrativa da violência, em alguns
por abordar o assunto em questão. casos, desperta crítica a politização da palavra literária com a
literatura de testemunho, ou testimonio, como apresenta Saw
1.1 A violência, o testemunho e o estereótipo literário (2005), em que a produção surge de uma necessidade de expor o
Eleger o termo que representa uma situação extrema de testemunho do iletrado, o sujeito oprimido por razões políticas,
violência sem embelezar o contexto ou disfarçar a dor é um que na maioria das vezes, era de esquerda. Em seu início, a
desafio. Como é possível narrar a perda quando as palavras são tendência política nas obras ganhava reforço no incentivo de Cuba
ausentes ou insuficientes? O uso do tema da violência na e o Prêmio Casa das Américas. Por meados de 1960, a escolha da
literatura, muitas vezes, é criticado por estar sendo estereotipado. testemunha partia dos interesses políticos que tinha como
O que vale salientar é que a generalidade do assunto, entretanto, objetivo a denúncia de fatores encobertos pelo sistema
para Barthes (1973) pode ser entendida como a repetição, muitas dominante.
vezes, sem a magia e o entusiasmo de uma palavra que é a O sujeito selecionado para testemunhar e denunciar a
selecionada como adequada e com o cuidado de não resultar violência sofrida era, geralmente, uma vítima sem acesso à cultura
insignificante diante da repetição. A desconfiança em relação ao letrada. A obra era escrita por um transcritor que apresentava a
grande número de obras sobre a violência pode ser o responsável “supressão do eu, do ego do escritor ou do sociólogo [...].
pela crítica negativa, mas por outro lado a abordagem nas páginas Despojar-se de sua individualidade, sim, mas para assumir a do seu
literárias é tão necessária quanto qualquer outro recurso que informante, a de sua coletividade, que este representa. [...] O
venha a contribuir a um sujeito leitor se identificar com a fruição autor no romance-testemunha deve dizer junto com seu
literária. Na linha de Barthes, repetir o assunto também produz a protagonista: eu sou a época.” (BARNET citado por PENNA, 2003,
fruição e, ao pensar no contexto hispano-americano, auxilia na p. 307). Ou seja, uma imagem do contexto é selecionada e
perda do foco político que por anos foi questionado. De tal modo, transmitida às obras testemunhais no período. No processo de
a literatura de fruição então “consiste em despolitizar o que é escolha da testemunha então, já estava implícito os interesses
aparentemente político, e em politizar o que aparentemente não políticos que apresentavam um estereótipo do selvagem que
o é. [...] A violência? É um valor superior, e dos mais bem passa a ser reconhecido como um revolucionário. No primeiro
codificados.” (BARTHES, 1973, p. 87). momento do chamado romance-testimonio, a intenção era contar
A tarefa de abordar em poucos palavras algo sobre a a história do sujeito que sofreu nas barbáries com a violência do
situação do romance e a violência, enquanto sua forma estética, país em que está inserido. As obras visam atribuir voz a quem não
exige destacar um e outro elemento relevante, ainda que isso seja era conhecido e, muitos menos, ouvido pela sociedade, mas que
um desafio. O apelo ao tema não vem do século XXI nem do Boom possuía uma história a ser contada. Entretanto, o sujeito
de escritores que abordam o assunto e têm o seu devido testemunha selecionado acaba sendo aquele que possui uma
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influência na comunidade e, que para Bartra (1998), é portador de históricos. Há, então, uma decorrência do tema desde esse
uma forte carga simbólica e possui o desprezo por qualquer período, mas que não tolera ou apresenta o intuito de transformar
preocupação que não seja a coletiva. Logo, as narrativas vão a realidade em que o sujeito testemunha está inserido:
contribuindo a uma consciência social relacionada ao desejo O que está em jogo neste debate é uma crítica da função
subentendido no testemunho, tido muitas vezes, como representativa na literatura, levada a cabo
antiestético e de forte interesse político. A noção do Outro que é tradicionalmente pelo intelectual concebido como porta-
portadora de intensas raízes populares que estão apoiadas em voz do povo, e a estruturação de um novo conceito de
representação, ligado ao estabelecimento de identidades
uma longa tradição oral e que antes de ser descoberto o sujeito
políticas. [...] Assim, a postulação da radicalidade do
precisou ser inventado e apresentado nessa visão misturada com
testemunho partirá sempre de uma crítica do sistema
a cultura da sobrevivência na natureza: intelectual latino-americano como instituição de
A importância do testemunho na América Latina espanhola subjetivação do subalterno [...] a literatura latino-americana
está ligada à possibilidade de dar expressão a culturas com como um todo e a exclusividade da representação político-
uma inserção precária no universo escrito e uma existência literária da nação, que se constitui ao constituir o sujeito
quase que exclusivamente oral. Como a distribuição entre subalterno (ao subjetivá-lo), posicionando-se como seu
escrita e oralidade repete uma segmentarização social em representante. (PENNA, 2003, p. 313).
grande escala – consequência de um processo de
aculturamento e modernização que transcreve o legado Quem ainda hoje, representa a violência nas páginas
colonial, perpetuando a exclusão e a marginalização das literária, não mais a produz como na década de 1960 e 1980, em
culturas que não passam pelo processo de “letramento” ou que, segundo Shaw (2005), devido ao assunto, eram considerados,
da escrita –, o testemunho latino-americano acaba como uma forma de denunciar o problema para mudar a
possibilitando a expressão de culturas e subjetividades realidade:
emergentes. (PENNA, 2003, p. 305). Nos testimonios, para usar a expressão castelhana original,
A teoria testemunhal enquanto produção literária, com o modelo de vida que se quer comprobatório é mais
seus devidos interesses, multiplicou-se na América Latina. Todavia, importante do que a escrita que o re-presenta (isto é, que
representa de novo e de modo diferente aquele modelo de
mostrar ao mundo um sujeito que recebe o castigo físico e a
vida). A tarefa da escrita, melhor dito, a grafia-de-vida é de
tortura moral para sobreviver entre as instâncias dominantes,
tal forma estranha à experiência-de-vida que o traslado
tanto de direita quanto de esquerda, gerou na literatura de desta para aquela é quase sempre delegado a um terceiro.
testimonio, por meados de 1980, alguns romances que não Em, última instância, nos testimonios, o eu escrito se
estavam mais tão centrados no relato dos iletrados, mas em apresenta, ao se representar, como uma forma vicária dum
apresentar obras também com narrativas em terceira pessoa que ele elusivo. A ausência de construção retórica por parte do
partiam da experiência direta e a comprovação de documentos narrador torna-se limbo político-religioso, onde são
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validadas a autenticidade da experiência e a inocência da violência é ainda mais conturbada, ora insistente ora abstrata, caso
escrita. (MOLLOY, 2003, p. 09). seja possível especificar. Tendo em vista que o “eu” que
Os textos mesmo estando reservados a um significado testemunha na obra literária já é um “eu” diferenciado, é o
específico não obtiveram o resultado esperado, a realidade de selecionado para representar um outro “eu” que coleta e narra
violência do contexto real, com as obras da década de 1980, não determinadas lembranças pessoais e coletivas. Com os mais
mudou a situação histórica do sujeito envolvido e caiu em diversos métodos e técnicas emergindo à capacidade de
descrédito. No decorrer do século XIX surgiu novamente um representação do real fornecerá sempre um testemunho de uma
emaranhado de produções literárias, mas não mais fornecendo um realidade passada e transformada pelos trabalhos da memória
testemunho centrado no objetivo político do subalterno, no individual e coletiva. O real vai estar relacionado com a
entanto está voltado para à narrativa e ao sujeito que passa por subjetividade do autor-narrador, com a interpretação e com a
um situação extrema de violência, seja direta ou indiretamente, e compreensão dos fatos do que com a realidade objetiva. Platão
sente a necessidade de contar a história. Então no século XIX, as (GUINSBURG, 2010), já colocava em debate a representação do
obras que emergem já não são mais consideradas pertencentes à real no Livro X, ao diferenciar ideia, objeto e representação. O
categoria testimonio, mas sim, portadoras de um teor testemunhal filósofo compara a ideia da cama, com objeto confeccionado pelo
segundo Seligmann-Silva (2003), que a apresenta como integrante artesão tendo mais valor do que o próprio móvel representada
da memória e da história que fornecem as narrativas um teor pelo poeta, já que participam menos do ser, tem menos realidade,
testemunhal com escrita de um passado explorado pelas nuances em outras palavras, a cama pintada pelo artista, enquanto arte,
das lembranças e da palavra literária. Assim, o recurso literário que não é a ideia e nem objeto, mas uma representação desse. Logo, é
se intensificou no século XIX, fornece a narrativa a plenitude e a possível presumir que o testemunho não é fiel ao fato real, mas a
capacidade linguística de representar uma situação social uma visão singular do ocorrido que é transmitida à obra. Sendo
compartilhada subjetivamente por muitos indivíduos que se assim, ao se lidar com o sentimento de mundo a verdade é
solidarizam com a literatura, mesmo sendo essa postura secundária, as asserções podem ser falaciosas e ainda
testemunhal, como sugere Molloy (2003), que por muito tempo tendenciosas porque quando se trata de um fato histórico, o leitor
caracterizou os textos hispano-americanos. pode atribuir a sua interpretação sobre a verdade apresentada,
aceitando-a ou refutando-a. Seria o contraponto da história
1.2 A narrativa e a memória da violência objetiva a história testemunhada que passa pela memória:
Muitas vezes o tempo faz pesar na capacidade de recordar Que é a partir de uma análise sútil da experiência individual
de pertencer a um grupo, e na base do ensino recebido dos
e as lembranças das diversas fases da vida social acabam
outros, que a memória individual toma posse de si mesma.
esquecidas ou necessitam da ajuda de algum recurso ou técnica
Sendo essa a estratégia escolhida, não é de admirar o apelo
para serem ativadas. A lembrança que envolve um contexto de ao testemunho dos outros [...]. É essencial no caminho da
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recordação e do reconhecimento, esses dois fenômenos em que se trata de um literatura escrita a partir de um evento
mnemônicos maiores de nossa tipologia da lembrança, que limite à representação, não é o foco a comprovação do fato real,
nos deparamos com a memória dos outros. Nesse contexto, mas a capacidade do escritor e, ou o leitor de percebê-la nas
o testemunho não é considerado enquanto proferido por nuanças literárias com a simbologia do contexto em que emergem.
alguém para ser colhido por outro, mas enquanto recebido
por mim de outro título de informação sobre o passado.
2 Abril rojo e as marcas literárias do contexto da violência
(RICOUER, 2007, p. 130-131).
peruana
O que consta até então, é que essa memória coletiva no A narrativa peruana contemporânea fornece uma vertente
contexto hispano-americano está relacionada ao período dos literária como uma característica híbrida. É interessante notar que
conflitos armados e das ditaduras militares. As histórias reportadas entre elas se desenvolveu o conceito de narrativa criolla, andina e
às obras literárias são uma mescla de memórias individuais e indígena. Entre outras definições, pode-se dizer que a primeira,
coletivas que se mantém vivas porque, como sugere Jelin (2012), criolla, possui um caráter literário direcionado à colonização, ou
ainda existem atores sociais que não deixam a história ser seja, uma tradição, segundo Degregori (2007), herdeira dos
esquecida insistindo para que esteja presente através de ações, da espanhóis e próxima dos costumes ocidentais. Eles são escritores
necessidade da memória ou da curiosidade das novas gerações criollos que reportando seus textos ao mundo ocidental ou ao Peru
sobre o assunto, mas principalmente pelas marcas que a deixam criollo, enquanto que a literatura indígena é baseada em narrativas
viva e permitem diferentes interpretações com o passar do tempo orais e a andina, conforme Degregori (2007), apresenta escritores
e por ainda existir danos e crimes causados no passado que são intelectuais provenientes de classe média ou alta que escrevem
difíceis de ser reparados. sobre os temas permeados pela cultura rural ou indígena, mas é
É interessante mencionar que a lembrança do período que principalmente a área urbana quem tem destaque na narrativa,
é apresentado nas obras literárias, tanto individual ou coletiva, em especial Lima. Por outro lado, os escritores, tanto andino
quando relacionada a um sujeito que foi afetado diretamente por quanto criollo, ou uma boa parte desses escritores, desenvolvem
uma situação extrema de violência terá uma recordação insistente uma literatura baseada no seu país – Peru. A grande maioria dos
e ao mesmo tempo fragmentada. Para Seligmann-Silva ao textos que emergem na atualidade trazem a noção ou exploram a
comentar Freud (2003, p. 49) “a experiência traumática é aquela memória coletiva das atrocidades das forças armadas e de outros
que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. [...] O grupos envolvidos com o problema da violência sociopolítica no
testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas país que, para muitos, é um assunto um tanto incômodo.
da resistência à compreensão dos mesmos [...] um desencontro Evidentemente, na medida em que se trata dos excessos da
com o real”. violência, a caída do regime Fujimori é tido como um fator de
O testemunho inevitavelmente está relacionado com a grande abertura para abordar o assunto nas páginas literárias. Em
memória e as suas devidas oscilações. Evidentemente, na medida
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certo sentido, o tema não é mais um tabu e a liberdade de A narrativa anterior ao fim do período de violência quando
expressão junto com a necessidade de trabalhar a memória do mencionava o conflito se detinha em apresentar o governo
excesso de violência sociopolítica que pertence a um passado, não vitorioso de Fujimori sobre o terrorismo, conforme relata
tão distante, é que surge em grande quantidade uma literatura Degregori (2007). Para o autor, os escritores mantinham uma
híbrida que se ocupa do assunto, e assim conquistando a distância do tema ou se calavam, “la narrativa peruana enmudece
visibilidade dos meios de comunicação, o capitalismo e o olhar de frente a la violencia sin límites que desangra el país.1” (DEGREGORI
outros países ao contexto hispano-americano. cita KRISTAL, 2007, p. 61). Os primeiros textos literários sobre o
No entanto, não é demais recordar o problema da violência conflito interno, mais significativos, aparecem por volta de 1986.
sociopolítica que envolveu o Peru, que é representado nas páginas Dentre as manifestações literárias do contexto hispano-
literárias, com as suas duas décadas, de 1980 a 1999, de violento americano, Abril rojo, de Santiago Roncagliolo (2006) que recebeu
conflito interno, proporcionado tanto pelo grupo de guerrilheiros o prêmio Alfaguara 2006, é uma das obras que mencionam a
Sendero Luminoso quanto pelas Forças Armadas. Ambos trajetória dos conflitos armados, é um testemunho à sociedade
adotaram a metodologia do horror em que os mais prejudicados sobre a violência no país de uma perspectiva que representa não
com a guerrilha foram os camponeses assassinados, torturados e somente a destruição gerada pelos guerrilheiros, mas também a
violados. A violência sociopolítica era empregada para educar e ocasionada pelo governo. “Esas páginas son como la piel de
mostrar ao outro o que não pode ser feito, ou seja, era um modo nuestros pueblos, los testigos de una condición siempre
de propagar o terror como forma de mostrar e assegurar o poder presente”2 (KOHUT, 1999, cita DORFMAN, 1972, p. 194).
sobre o outro, em especial o camponês. Segundo Jiménez (2009), A personagem principal da história de Roncagliolo, Félix
nem o apocalipse ou holocausto podem considerado como um Chacaltana Saldívar, é um fiscal distrital, um sujeito letrado que ao
comparativo de exagero ao que ocorreu em Chungui, distrito investigar a história de um assassinato acaba se envolvendo em
peruano, conhecido também como Oreja de Perro, por exemplo. uma trama de perturbações e comportamentos sociais que
A redistribuição de riquezas e a defesa dos interesses fez com que insinuam a participação do grupo Sendero Luminoso - SL e as
a violência extrema tomasse uma proporção quanto a quantidade tentativas do governo de encobrir as ações com ondas violentas
de vítimas, incalculável e a narrativa é uma das formas emergentes no período que se acreditava ter sido encerrado o conflito armado.
de trabalhar e superar a memória do conflito, junto com a A narrativa representa de um lado a ideologia de SL e por outro as
necessidade de narrar a história para um dia superar ou, ao menos, ações das Forças Armadas - FFAA na história. Os principais
minimizar o sofrimento. afetados, poderia se dizer que, foram os campesinos. A violência
provocou a fragmentação da sociedade rural e das pequenas

1 2
A narrativa peruana emudece diante da violência sem limites que dessangra o Essas páginas são como a pele dos nossos povos, o testemunho de uma
país. condição sempre presente.
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comunidades resultando em uma situação pragmática à - el hombre que quemaron en Quinua. El cornudo debe
sobrevivência em um estado de depredação que os acompanhou. haber estado bien enojado, ¿no?
Tanto a participação das Forças Armadas, dos guerrilheiros quanto - Me temo que es pronto para saber qué ocurrió, señor.
a situação extrema de violência que a população rural foi - Por favor, Chacaltana. Tres días de carnaval y un hombre
muere. Celos. Lío de faldas. Pasa todos los años.
submetida pode ser observado no testemunho de Roncagliolo:
-Ningún familiar ha reclamado el cadáver…
Los métodos de ataque senderistas descritos en este libro,
- Porque no hablan nunca. ¿O aún no lo ha notado? Los
así como las estrategias contrasubversivas de investigación,
campesinos siempre evitan aparecer, se esconden.
tortura y desaparición, son reales. Muchos de los diálogos
-Por eso mismo no matarían así, comandante. No de un
de los personajes son en realidad citas tomadas de
modo tan violento. […]
documentos senderistas o de declaraciones de terroristas,
- ¿Y qué sugiere usted?
funcionarios y miembros de las Fuerzas Armadas del Perú
El policía volvió a cerrar la boca. El fiscal vio su oportunidad
que participaron en el conflicto3. (RONCAGLIOLO, 2006, p.
de hacer notar la gravedad del caso y lucir sus calidades
327).
deductivas:
A trama se desenvolve na investigação de um assassinato - No me atrevería a descartar un ataque senderista.
sem explicações plausíveis. O fiscal ao escrever o relatório da Lo había dicho. El silencio que siguió a esa frase pareció
morte necessita buscar mais subsídios para relatar o ocorrido e alcanzar a todo el salón, a toda la ciudad. […]
nessa trajetória acaba despertando um certo incômodo em seus - Está usted paranoico, señor fiscal. Aquí ya no hay
superiores por estar no período eleitoral e, por meio das Sendero Luminoso.
especulações Chacaltana acaba insinuando o envolvimento dos - Y se dio la vuelta para abandonar la conversación. Con
guerrilheiros no assassinato que estava sendo considerado pelos orgullo de archivo, el fiscal argumentó:
militares como um desentendimento entre casais: - Se cumplen veinte años del primer atentado… […] 4
[…]- ¿El cornudo, señor? (RONCAGLIOLO, 2006, p. 42-43)
El comandante dio un trago risueño.
3
Os métodos de ataques senderistas descritos neste livro, assim como as anos./ Nenhum familiar reclamou o cadáver... / - Porque nunca falam. Ou ainda
estratégias de contra insurgência de investigação, tortura e desaparecimentos, não percebeu? Os camponeses sempre evitam aparecer. Se escondem. / - Por
som reais. Muitos dos diálogos dos personagens são na realidade citações de isso mesmo não matariam assim, comandante. Não de uma forma tão violenta.
documentos senderistas ou de declarações de terroristas, funcionários e [...] / - E o que você sugere. / O policial voltou a fechar a boca. O fiscal viu a
membros das Forças Armadas do Peru que participaram do conflito. oportunidade de fazer notar a gravidade do caso e destacar suas qualidades
4
O corno, senhor? / o comandante lançou um riso leve. / O homem que dedutivas: / _ Não me atreveria a descartar um ataque senderista. / Havia dito.
queimaram em Quinua. / O corno deve ter ficado muito irritado, não? Temo que / O silêncio que segui a frase pareceu atingir a todo o salão, a toda a cidade. [...]
é muito sedo para saber o que aconteceu senhor. / Por favor, Chacaltana. Três / você está paranoico senhor fiscal. Aqui não existe Sendero Luminoso. / E deu
dias de carnaval e um homem morre. Ciúmes. Rabo de saia. Acontece todos os
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Roncagliolo escreve a narrativa baseado no campo principalmente, na coletiva. Para tanto, o meio escolhido para
histórico do país e nas características da literatura de teor contar ao leitor ou, simplesmente, registrar a memória do passado
testemunhal: de um lado a “realidade” é representada por meio no presente, foi a relação característica da literatura de testimonio
das situações extremas de violência que envolve o conflito armado da década de 1980, ou seja, a obra é constituída tanto com um
entre as forças militares e os guerrilheiros e de outro, a narrador em terceira quanto por relatos em primeira pessoa: “a
necessidade de o sujeito relatar a situação extrema em que está veces ablo con ellos. Siempre. Me recuerdan. Y yo los recuerdo
inserido, como é possível observar no testemunho do autor na porque fui uno de ellos. Aun lo soy.6” (RONCAGLIOLO, 2006, p. 28).
contracapa: Outra característica do período literário é o uso de documentos e
Siempre quise escribir un thriller, es decir, un policial testemunhos orais, em outras palavras, o autor sugere que
sangrento con asesinos en serie y crímenes monstruosos. Y determinados registros oficiais podem ser alterados para ocultar
encontré los elementos necesarios en la historia de mi país: uma história: “Trató de explicar ese punto, pero el capitán lo
una zona de guerra, una celebración de la muerte como a interrumpió: - ¿Por qué no hace un informe y cierra el caso de una
Semana Santa, una ciudad poblada de fantasmas. ¿Se
vez? Atribúyalo a un incendio o a un accidente automovilístico... Y
puede pedir más?
todos tranquilos.7” (RONCAGLIOLO, 2006, p. 72).
[…] Siempre quise escribir una novela sobre lo que ocurre O conflito social, que é uma das características da narrativa
cuando la muerte se convierte en la única forma de vida. Y andina, é o centro do romance, bem como o fator econômico e o
aquí está.5 (RONCAGLIOLO, 2006). popular que também é um meio articulador da trama. A maior
Há uma mescla entre a experiência do país e a narrativa parte da história ocorre em Ayacucho durante as festividades da
de testemunho, o que na reflexão de Seligmann-Silva (2003), pode semana santa, e menciona o envolvimento da Igreja com as Forças
ser a teoria da história enquanto teoria da memória em uma Armadas na tentativa de amenizar ou desaparecer com os corpos
literatura também chamada de arte de testemunho em uma obra dos guerrilheiros e camponeses afetados pelo conflito. Tal
que (re)inscreve o passado no presente com a força do trabalho da conjuntura é possível observar na conversa do sacerdote com o
memória. Roncagliolo, centrou o romance em um tempo e um fiscal Chacaltana durante a investigação do assassinato: “El
espaço delimitado do Peru, com base na memória individual e, sacerdote se encogió de hombros. – Puestos a buscárlos, todas las

a volta para abandonar a conversa. Com o orgulho do arquivo, o fiscal mais? [...] – Sempre quis escrever um romance sobre o que ocorre quando a
argumentou: / - Cumprem-se vinte anos do primeiro atentado... [...] morte se converte na única forma de vida. E aqui está.
5 6
Sempre quis escrever um suspense, ou seja, um policial sangrento com Às vezes falos com eles. Sempre. Me lembram. E eu os lembro porque fui um
assassinos em série e crimes monstruosos. E encontrei os elementos deles. Ainda sou.
7
necessários na história do meu país: uma zona de guerra, uma celebração da Tratou de explicar esse ponto, porém o capitão o interrompeu: - Por que não
morte como a Semana Santa, uma cidade povoada de fantasmas. Pode pedir faz um informe e encerra o caso de uma vez? Atribui-lo a um incêndio ou a um
acidente automobilístico... e todos ficam tranquilos.
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cosas tienen un sentido transcendental. Todo es una expresión de assassino da narrativa e as opacidades da história política e social
la misteriosa voluntad del Señor. Lo de la sangre quizá tenga un do Peru:
significado más bien pagano. Podría ser la sangre del sacrificio.8” Chacaltana los vio entonces. En realidad, llevaba un año
(RONCAGLIOLO, 2006, p. 195). O testemunho é o recurso utilizado viéndolos. Todo el tiempo. Y ahora la venda se le cayó de los
como a principal fonte de investigação para a personagem quanto ojos. Sus cuerpos mutilados se agolpaban a su alrededor, sus
a situação de violência representada na obra: “Eran unos pechos abiertos en canal apestaban a fosa y muerte. Eran
miles y miles de cadáveres, no sólo ahí, en la oficina del
doscientos armados con garrotes, gases paralizantes y cadenas,
comandante, sino en toda la ciudad. Comprendió entonces
sueltos como perros rabiosos cruzando el patio a zancadas, hacia
que eran los muertos quienes le vendían los periódicos,
nosotros”9 (RONCAGLIOLO, 2006, p. 218). Assim como, o contexto quienes conducían el transporte público, quienes fabricaban
de barbárie, que é resultado do conflito interno, também é las artesanías, quienes le servían de comer. No había más
transposto para as páginas literárias: habitantes que ellos en Ayacucho, […]
Eran miembros, brazos, piernas, algunos semipulverizados
por el tiempo de enterramiento, otros con los huesos - Me pedían que la sangre no fuese derramada en vano,
claramente perfilados y rodeados de tela y cartón, cabezas Chacaltana, y yo lo hice: un terrorista, un militar, un
negras y terrosas una sobre otra, formando un montón de campesino, una mujer, un cura. Ahora todos están juntos.
desperdicios humanos de varios metros de profundidad. Ni Forman parte del cuerpo que reclaman todos los que
siquiera se veía el final de esa acumulación de huesos y murieran antes. ¿Comprende usted? Servirán para construir
cuerpos secos.10 (RONCAGLIOLO, 2006, p. 162). la historia, para recuperar la grandeza, para que hasta las
Entre militares, guerrilheiros e camponeses, o personagem montañas tiemblen al ver nuestra obra. A principio de los
mergulha em um campo de perturbação mental em que o olhar ochenta prometimos resistir el baño de sangre. Los que se
para o outro e para o seu país é um meio instigado. O autor utiliza han sacrificado en estos días no han muerto. En nosotros
dessas nuanças literárias para inquietar o leitor quanto ao real viven y palpitan en nosotros. 11 (RONCAGLIOLO, 2006, p.
314-315)

8 10
O sacerdote deu de ombros. – Postos a buscá-los, todas as coisas têm um Eram membros, braços, pernas, alguns semidecomposto pelo tempo de
sentido transcendental. Tudo é uma explicação da misteriosa vontade do enterro, outros claramente com os ossos perfurados e cercados por um pano e
senhor. O do sangue pode ter um significado bastante pagão. Poderia ser o papelão, cabeças escuras e terra uma sobre a outra, formando um monte de
sangue do sacrifício. desperdícios humanos de vários metros de profundidade. Nem se quer se via o
9
Havia cerca de uns duzentos armados com porretes, gazes paralisantes e final dessa acumulação de ossos e corpos secos.
11
correntes, soltos como cães raivosos caminhando a passos largos em direção a Chacaltana os viu então. Na realidade, já tinha um ano que os via. Todo o
nós. tempo. E agora a venda caiu dos olhos. Seus corpos mutilados se aglomeravam
ao redor, seus peitos abertos no canal fediam a fossa e morte. Eram milhares e
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A violência do conflito é relevada pelas imagens que por elementos inescrupulosos con el fin de dañar la imagen
emergem na mente do leitor, assim como ocorre com Chacaltana, de nuestro país en el exterior o empañar los importantes
“ahora las imágenes se sucedían en la mente del fiscal. Como si se logros del Gobierno en materia de lucha contrasubversiva.13
rebelase después de décadas de olvido.”12 (RONCAGLIOLO, 2006, (RONCAGLIOLO, 2006, p. 324).
p. 318). A personagem percebe que, em se tratando da lei da A narrativa é contada e encerrada no período da Semana
violência, a única lei que vale é a própria violência. O recurso Santa, época de ressurreição, talvez porque “los muertos no
encontrado por ele, para a sobrevivência, é fechar os olhos às leis mueren, se quedan gritando para siempre, reclamando um
e assim criar as “milícias de defesa” com fins pouco esclarecidos. cambio. [...] Al fondo, entre los cerros secos, el sol insinuaba las
Logo, os documentos da investigação dos assassinatos são primeras luces de un tempo nuevo.” 14 (RONCAGLIOLO, 2006, p.
arquivados e Chacaltana, apontado como o principal suspeito, é 319-320). De um modo geral, é com a esperança da justiça e de um
dado como desaparecido e a história dos assassinatos são futuro promissor ao país que se anuncia o fim da narrativa Abril
ocultadas para proteger o país: Rojo e o desejo de um recomeço peruano que é datado a contar
Junto con estos archivos, se ha remitido al Servicio de ao segundo semestre de 2000.
Inteligencia la totalidad de los documentos referidos a
desapariciones, torturas y malos tratos practicados durante Palavras finais
el periodo de estado de emergencia por los siguientes
A personagem de Roncagliolo, Chacaltana, é a própria
efectivos militares y policiales […]. De momento, no cabe
imagem do universo artístico literário determinado por um traço
esperar que tales casos sean elevados ni a la justicia civil ni
a la opinión pública, de modo que puedan ser manipulados da realidade histórica. A narrativa, não é somente a manifestação
do olhar individual e do coletivo no ambiente imediato, mas

13
milhares de cadáveres, não somente aí, no escritório do comandante, mas em Junto com estes arquivos, remeteu-se ao Serviço de Inteligência todos os
toda a cidade. Então compreendeu que eram os mortos quem vendiam os documentos referentes aos desaparecimentos, torturas e maus-tratos durante
jornais, quem conduziam o transporte público, quem fabricavam os o período de estado de emergência praticados pelos seguintes efetivos militares
artesanatos, quem o serviam de comer. Não existia mais habitantes que eles em e policiais [...]. No momento, não cabe esperar que tais casos sejam levados nem
Ayacucho, [...]/ - Pediam-me que o sangue não fosse derramado em vão, a justiça civil nem a opinião pública, de modo que possam ser manipulados por
Chacaltan, e eu o fiz: um terrorista, um militar, um camponês, uma mulher, um elementos inescrupulosos com o objetivo de prejudicar a imagem do nosso país
padre. Agora todos estão juntos. Formam parte do corpo que reclama todos que no exterior ou cobrir as importantes conquistas do governo em matéria da luta
morreram antes. Você compreende? Serviram para construir a história, para da contra insurgência.
14
recuperar a grandeza, para que até as montanhas tremam ao ver nossa obra. A Os mortos não morrem, permanecem gritando para sempre, reclamando uma
princípio dos anos 80 prometemos resistir ao banho de sangue. Os que se mudança. Ao fundo, entre os cerros secos, o sol insinuava as primeiras luzes de
sacrificaram nesses dias não estão mortos. Vivem em nós e palpitam em nós. um novo tempo.
12
Agora as imagens apareciam na mente do fiscal. Como se revelasse depois de
décadas de esquecimento.
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também a manifestação do olhar sobre o mundo. A tarefa, ou En el caos no hay error, y en esos papeles ni siquiera la
melhor, a necessidade de contar a violência não é uma realidade sintaxis tenía sentido. Chacaltana había vivido toda su vida
isolada do contexto hispano-americano, mas é algo que remonta entre palabras ordenadas, entre poemas de Chocano y
as origens do homem enquanto sujeito pautado na dependência códigos legales, oraciones numeradas u ordenadas en
versos. Ahora no sabía qué hacer con un montón de
ideológica e social, como por exemplo, o período da colonização,
palabras arrojadas al azar sobre la realidad. El mundo no
em que claramente Fanon e Anderson, apresentam a violência
podía seguir la lógica de esas palabras. O quizá todo lo
como uma herança e o meio de defender e garantir os direitos e contrario, quizá simplemente la realidad era así, y todo lo
interesses na sociedade quando as palavras não são suficientes. demás eran historias bonitas, como cuentas de colores,
É inegável que existem aspectos do comportamento diseñadas para distraer y para fingir que las cosas tienen
humano que resistem a qualquer tentativa de explicação. Logo, a algún significado. (2006, p. 313).15
ação violenta a qual é submetida o sujeito colonizado ou a vítima
As palavras se solidarizam com milhares de outras vítimas,
dos conflitos e ditaduras, foge da compreensão humana e resulta
porque a narrativa é sempre subjetiva. O que se tem, é uma
na memória do trauma. De um modo geral, é lembrança ferida,
história que necessita passar pela lembrança da dor, tomada de
repetitiva, insistente e da mesma forma, ausente. As palavras,
ausências e insistências, e que torna o passado em um presente.
mesmo que fugidias, são o auxílio para as respostas, muitas vezes
Ao narrar, alguns fatos são privilegiados em detrimentos de outros
inexistentes, o que torna a memória inquieta. O sujeito afetado
atribuindo uma lógica que não é questionada. O ser humano tem
pela situação de violência, pode se dizer, que tem uma memória
a necessidade da narrativa como algo próprio de sua existência e
ferida que busca auxílio e explicação na coletiva. A lembrança é
é um dos fatores que auxilia no processo de superação do trauma.
esfacelada, dolorida e necessita de um tempo de cura para
Portanto, a história do conflito na literatura é a lembrança
lembrar, esquecer e rememorar com a possibilidade da narrativa.
da dor que pode ser, por meio dos trabalhos da memória,
É de certa, presumível, que o tempo das lembranças do contexto
infinitamente (re)escrita. A relação entre a violência e a literatura
hispano-americano, ou no caso o Peru, sobre o conflito está
contribui para pensar um espaço determinado e a tentativa de
relacionado a necessidade de contar a memória do trauma que
reunir e guardar os fragmentos de uma memória ferida que
encontra os recursos necessários na literatura. A tensão entre as
procura a compreensão. Assim, não é um emaranhado de obras
palavras e a possiblidade ou impossibilidade de representação do
sobre a violência que se tem no contexto hispano-americano, mas
indizível é percebido também no testemunho de Roncagliolo:
uma articulação da memória do trauma que chama o problema e,

15
No caos não existe erro, e nesses papeis nem se quer a sintaxe tinha sentido. jogadas aleatoriamente ao azar. O mundo não podia seguir a lógica dessas
Chacaltana tinha vivido toda a sua vida entre as palavras ordenadas, entre palavras. Ou talvez todo o contrário, talvez simplesmente a realidade era assim,
poemas de Chocano e códigos legais, orações numeradas ou ordenadas em e tudo o mais eram histórias bonitas, como contas coloridas, desenhadas para
versos. Agora não sabia o que fazer com um monte de palavras sobre a realidade distrais e para fingir que as coisas tem algum significado.
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ao mesmo tempo, busca nas palavras a denúncia e a própria JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. 2 ed. Lima: IEP, 2012.
condição de entender o incompreensível. O que parece excludente
ou oposto em um primeiro momento - a sedução das palavras JIMÉNEZ, Edilberto. Chungui: violencia trazos de memoria. Lima:
literárias mescladas com o contexto real da violência - resulta em IEP, COMISEDH, DED, 2009.
uma necessidade à vítima.
GUINSBURG, J.. A República de Platão. São Paulo: Perspectiva,
Referências 2010.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito: a escrita autobiográfica na América
origem e a difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. Hispânica. Chapecó:
São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Argos, 2003.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1973. PENNA, João Camilo. Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre
o testemunho hispano-americano. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio
BARTRA, Roger. El Salvaje em el espejo. México: Ediciones Era, (org.). História, Memória, Literatura: o testemunho na era das
1998. catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003.

DEGREGORI, Luiz Nieto. Entre el fuego y la calandria. Cronicas RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas:
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<http://www.guamanpoma.org/cronicas/12/5>. Acesso em: 01
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2006.
KOHUT, Karl. Política, violencia y literatura. Katholische
Universität Eichstätt. 1999. Disponível em: SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, Memória, Literatura: o
http://estudiosamericanos.revistas.csic.es/index.php/estudiosam testemunho na era das catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003.
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______. Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução Enilce Chris Marhker: a escritura da memória. In: SELIGMANN-SILVA,
Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: UFJF, 2005. Márcio (org.). História, Memória, Literatura: o testemunho na era
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SHAW, Donald L. Nueva Narrativa Hispanoamericana: Boom.


Posboom. Posmodernismo. 8 ed. Madrid: Cátedra, 2005.
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CALDERÓN DE LA BARCA E ARIANO SUASSUNA: O SONHO E O até maior que a de Cervantes foi a de Calderón.” (FELINTO, 1991,
CIRCO s/n).
Célia Navarro Flores Este trabalho se apoia em um dos conceitos da Literatura
UFS Comparada, a intertextualidade, o qual foi elaborado por Kristeva
─ na esteira de Bakhtin ─ em sua célebre frase: "todo texto se
Nos anos 70, o escritor Ariano Suassuna encabeçou um constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
movimento estético, denominado "armorial", que propunha a transformação de outro texto" (KRISTEVA apud NITRINI, 1997, p.
criação de uma arte erudita com raízes na arte popular. Por 161). Mais recentemente, Fokkema apresenta uma distinção entre
"cultura popular", o escritor se refere, principalmente, à cultura do intertextualidade semântica e sintática, a qual pretendemos
nordeste do Brasil: as festas, o circo, o teatro de títeres, a literatura aplicar a este trabalho:
de cordel, a xilogravura etc. Por "cultura erudita", compreende-se As a general principle of writing, intertextuality is a wide
a cultura ibérica, herança de nossos colonizadores. Para Suassuna, concept that is operative on two different levels: at the level
o autêntico povo brasileiro é o nordestino, o qual conseguiu of semantics (for instance: plot, themes, metaphors) and
manter vivas as tradições da cultura ibérica. text syntactic form (for instance: genre, style, narrative
form, poetical structures, rhyme). Since, as Lotman
A literatura armorial, ou seja, a autêntica literatura
suggested, formal features often have a semantic effect, a
brasileira seria a que melhor expressaria essa conjunção de erudito
strict division between semantic and syntactic
e popular, e o exemplo mais consumado é a obra do próprio intertextuality is untenable. [...]. (FOKKEMA, 2004, p. 6).
Suassuna. Da literatura erudita, Suassuna se debruça
principalmente sobre os escritores do Barroco espanhol, talvez A intertextualidade sintática estaria mais relacionada aos
porque o Barroco é um movimento estético que, assim como o procedimentos formais (gênero, estilo, forma narrativa, estrutura
romance armorial, busca a união dos contrários. Vários autores poética e rimas), enquanto a semântica estaria mais dirigida aos
dos Séculos de Ouro espanhol inspiraram Suassuna: Cervantes, aspectos do conteúdo (enredo, temas, metáforas). Porém, como
Lope de Vega, Quevedo e Calderón de La Barca, entre outros. afirma Fokkema, tais instâncias não são estanques.
Embora nossa especialidade seja Cervantes, neste trabalho Para este trabalho, centrar-nos-emos em dois grandes
vamos tratar da presença de Calderón de La Barca (1600-1681) na temas da cosmovisão calderoniana presentes na obra de
obra suassuniana. A influência cervantina é bastante forte, porém Suassuna: a vida como um sonho, presente de forma mais incisiva
o próprio Suassuna confessa que Calderón o inspirou ainda mais na obra La vida es sueño, e o mundo como um grande teatro, tema
que Cervantes: “recebi uma influência enorme de Cervantes e de central da obra El gran teatro del mundo. Com relação ao segundo
vários autores espanhóis, inclusive de Calderón de La Barca. Talvez tema, chamamos a atenção para o fato de que, na obra de
Suassuna, a cosmovisão calderoniana do mundo como teatro se
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desloca para a metáfora do mundo como um circo-teatro, como seu sacrifício e o da jovem amante possibilita a
veremos adiante. reconciliação do pai e do tio, concluindo a peça sob um céu
Uma vez que estamos tratando da apropriação de temas e limpo, que lembra o de “Romeu e Julieta”. (MAGALDI, 1957,
metáforas de um autor receptor por um emissor, estamos no s/n)
âmbito daquilo que Fokkema estabelece como intertextualidade Além desse artigo, encontramos também um depoimento
semântica. Entretanto, mais do que mostrar até que ponto do escritor, no qual ele comenta brevemente essa obra:
estamos diante de uma intertextualidade semântica ou sintática Folha - O sr. realmente escreveu uma peça baseada em "A
(lembremos que não há uma divisão palpável entre as duas Vida é Sonho", de Calderón de La Barca?
instâncias), pretendemos mostrar como o escritor brasileiro se Suassuna - Escrevi. Chama-se "O Arco Desolado". Nunca
apropria da cosmovisão calderoniana em prol de sua poética, o publiquei porque não presta. Mas em 1952, se não me
movimento armorial, adequando-a ao contexto brasileiro, mais engano, eu concorri com ela ao Concurso do Quarto
especificamente, nordestino. Centenário da Cidade de São Paulo. Ganhei menção
honrosa. Aliás, eu soube depois, por fonte segura, que eu
O sonho e a realidade cheguei a ganhar, e depois me "desganharam". (FELINTO,
A admiração que Suassuna tem por Calderón o levou a 1991, s/n)
escrever uma obra teatral baseada em La vida es sueño. Trata-se Entretanto, é em sua narrativa, que nos deparamos de uma
de O arco desolado (1952), obra que nunca foi publicada, porque maneira mais explícita com a cosmovisão calderoniana da vida
o escritor a tinha com reservas; porém foi merecedora de uma como um sonho. Em 1971, Suassuna publica o Romance d’A Pedra
menção honrosa no Concurso do Quarto Centenário da Cidade de do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta e, em 1977, o autor
São Paulo. Sobre ela, encontramos um artigo de autoria de Sábato lança uma continuação desse livro, intitulada O rei degolado ao sol
Magaldi, escrito em 1957, para o suplemento literário do jornal O da Onça Caetana. Romance Armorial e Novela Romançal
Estado de São Paulo: Brasileira. Esse segundo livro foi condenado pelo próprio autor por
O tratamento de “O arco desolado” diferencia-se parecer-lhe demasiadamente autobiográfico e nunca foi
fundamentalmente do que o dramaturgo espanhol deu à reeditado; porém, é nele onde a alusão à obra de Calderón aparece
lenda polaca. O Sigismundo de Calderón, sabendo que “la
de maneira consumada.
vida es sueño”, quer tornar a existência um sonho bom.
O protagonista das duas obras em prosa de Suassuna, O
Contraria a predição sobre o seu nascimento, para instaurar
um reino de justiça. O Sigismundo de Ariano Suassuna Romance d’A Pedra do Reino e O rei degolado, é Pedro Dinis
desencadeia de fato, quando sai da prisão, uma série de Ferreira-Quaderna, personagem acusado de ter matado seu
horrores. Vai purgar-se da possível bastardia no mundo, padrinho e colaborado com os comunistas. Quaderna é um pícaro
confiando-se de novo à prisão em que fôra criado. Com o quixotesco, um louco megalomaníaco, que sonha ser rei do Quinto
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Império do Brasil ─ este império abarcaria além do Brasil, todos os dura realidade: ambos estão mortos. Nesse momento, Quaderna
países do terceiro mundo ─; quer escrever a obra do Gênio da Raça começa a discorrer sobre a dicotomia sonho e realidade:
─ uma obra que abarque toda a literatura universal ─ e segue a Aí, já sentado na cama, acordado de vez e volto à velha e
religião “católico-sertaneja”, da qual se declara o máximo parda realidade; ao contrário da notícia dada no sonho pelo
sacerdote. Para Quaderna, o sonho representa uma fuga da meu irmão, a desgraça é que é verdadeira: meu Pai e meu
realidade. Ser rei, escritor e profeta se contrapõe a sua situação Padrinho estão mortos e nunca mais nenhum de nós os verá
em cima desta terra. Porém pergunto, Sr. Corregedor: de
real: um fidalgo empobrecido, coletor de impostos, bibliotecário e
fato, qual será a realidade mais efetiva? A deste mundo de
proprietário de uma casa de prostituição.
agora, fragilmente e enganosamente tranquilo, este mundo
A palavra "sonho" é utilizada por Suassuna em todas suas que me cerca pelo lado de fora? Ou a outra, a desse mundo
acepções: o sonho noturno, a fantasia, os anseios, os ideais etc. estranho, espinhoso e sangrento que entrou no meu sangue
Entretanto, já no primeiro capítulo do Romance d'A Pedra do Reino desde menino? (SUASSUNA, 1977, pp. 75-76)
(Folheto I 1 ) notamos claramente a cosmovisão calderoniana da
Depois de ter sonhado que seu pai estava vivo, Quaderna
vida como um sonho: "[a]gora, preso aqui na Cadeia, rememoro
volta à "velha" e "parda" realidade. Segismundo, personagem de
tudo quanto passei, e toda a minha vida parece-me um sonho,
Calderón, duvida se está sonhando ou acordado, se é príncipe ou
cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos e gloriosos"
prisioneiro; Quaderna; por sua vez, pergunta o que é a realidade:
(SUASSUNA, 2007, p. 34). Notemos nesse fragmento a
a que o cerca e que considera "frágil" e "enganosa", ou a que está
aproximação dos opostos "grotescos" e "gloriosos" e lembremos
dentro dele, em seu sangue. Há, portanto, duas realidades: a de
da situação de Segismundo prisioneiro (grotesco) e príncipe
dentro e a de fora, a verdadeira e a sonhada. Assim como
(glorioso). Observemos que Quaderna, nesse momento da obra,
Segismundo, Quaderna, embora de maneira pícara, expressa a
também é prisioneiro como Segismundo.
mesma angustia existencial.
Essa concepção da vida como sonho aparece de forma mais
Na sequência, Quaderna começa a contar sobre um fato ocorrido
consumada, como dissemos anteriormente, no segundo livro de
em sua infância:
Suassuna: O rei degolado ao sol da Onça Caetana. No folheto XIII
[...] Lembro-me de um circo que passou aqui por Taperoá, o
─ sugestivamente titulado “cantar do sonho da vida” ─ Quaderna
Circo Estringuini, montando duas peças de teatro que eles
conta ao Corregedor que tinha sonhado que seu pai e seu padrinho tinham tirado de “folhetos”. Chamava-se uma A vida é
estavam vivos e, ao se despertar, se encontra cara a cara com a sonho, e a outra O terror da Serra Morena. Não me lembro
mais delas com muita exatidão: misturei os dois enredos na

1
Os dois livros de Suassuna estão divididos em “folhetos” não em “capítulos”,
porque, para o autor, cada capítulo seria una espécie de folheto de literatura de
cordel.
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minha memória, porque todas as duas eram bonitas e Sonha o que agrava e ofende,
parecidas, com Reis, bandidos, emboscadas, venenos, E, no Mundo, em conclusão,
Princesas raptadas etc. De qualquer modo, numa das duas Todos sonham o que são,
─ não me lembro em qual ─ havia um príncipe, prisioneiro coisa que ninguém entende!
desde o seu nascimento numa torre de Pedra. Davam a ele
uma beberagem que o adormece. Ao acordar, ele está na Eu sonho que estou aqui
Corte, num lugar brilhante, cheio de tronos, bandeiras e De cadeias carregado,
toques de cornetas, vestido suntuosamente com um manto E sonhei que, em outro estado,
de Cavalhada, tendo ao lado o Rei, seu Pai, e uma Princesa. Como Príncipe, vivi!
Lembro-me bem de que aqui, em Taperoá, o rei era Que á a vida? Um frenesi!
representado pelo dono do circo ─ que às vezes também Que é a Vida? Uma ilusão!
fazia o palhaço ─ e a Princesa por uma equilibrista. Uma sombra, uma ficção,
Convencem o Príncipe de que toda sua vida anterior, a de E o bem mais belo é medonho,
prisioneiro, tinha sido sonhada. Mas, depois de várias Pois toda a Vida é um Sonho,
aventuras ─ no meio das quais ele, entre outras coisas, E os sonhos, sonhos são! (SUASSUNA, 1977, pp. 76-77)
matava um homem ─ davam-lhe novamente a mesma
O poema recitado é uma versão dos mais famosos versos
beberagem e levavam-no para a mesma prisão de pedra. Ao
despertar novamente na torre, diziam-lhe que sonhada fora pronunciados por Segismundo em La vida es sueño de Calderón:
aquela sua segunda vida, a de Príncipe. Preso de novo, Sueña el rico en su riqueza,
carregado de cadeias de ferro, cheio de dúvidas sobre sua que más cuidados le ofrece;
própria existência e a do mundo, recitava o Príncipe duas sueña el pobre que padece
estrofes. Nunca as esqueci porque meu mestre de cantoria, su miseria y su pobreza;
João Melchiades, depois do espetáculo foi pedir cópia delas. sueña el que a medrar empieza,
Eram duas “décimas” exatamente iguais às que o genial sueña el que afana y pretende,
Leandro Gomes de Barros usava, feitas também “em sete sueña el que agravia y ofende,
pés” e com as rimas nos mesmos lugares. Vou recitá-las do y en el mundo, en conclusión,
jeito que me vêm à memória: todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.
Sonha o rico na riqueza
Que cuidados lhe oferece, Yo sueño que estoy aquí
Sonha o Pobre que padece destas prisiones cargados,
Na miséria e na pobreza! y soñé que en otro estado
Sonha o que busca a Beleza, más lisonjero me vi.
Sonha o que luta e pretende, ¿Qué es la vida?, un frenesí;
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¿qué es la vida?, una ilusión, poema o qual era composto por "'duas décimas' exatamente iguais
una sombra, una ficción, às que o genial Leandro Gomes de Barros usava, feitas também
y el mayor bien es pequeño; 'em sete pés' e com as rimas nos mesmos lugares" (SUASSUNA,
que toda la vida es sueño, 1977, p. 77). Novamente nos apoiamos em depoimentos do
y los sueños, sueños son. (CALDERÓN DE LA BARCA,
escritor para uma possível explicação a esta "citação falsificada"
1979, p. 78)
(para utilizar a expressão de Tavares):
Cremos que não é necessário comentar as coincidências: o
título da obra teatral representada em Taperoá ─ A vida é sonho ─ [...] Agora vou lhe dar um exemplo. Eu acabei de falar de
o enredo e a tradução quase literal do fragmento da obra de Calderón De La Barca e não disse isso. Um romanceiro
Calderón. Notemos como o escritor brasileiro desloca a obra de popular do nordeste usa uma estrofe chamada Décima, que
Calderón do século XVII para o XX, contextualizando-a em um Calderón De La Barca usava nas peças dele inclusive. Quer
circo-teatro, espaço típico da cultura popular nordestina. dizer, o romanceiro popular do nordeste recebeu uma
influência, de Calderón, uma influência oral. Os autores não
Observamos que Suassuna conserva a estrutura poética do
sabem, nem, talvez, quem foi Calderón, mas aí houve uma
monólogo de Segismundo (o esquema rítmico, de rimas etc.), o
influência da arte chamada erudita sobre a arte popular.
que nos coloca diante de uma intertextualidade sintática entre os Acho que há uma troca de influência e que às vezes não se
dois poemas. pode nem discernir. (PEREIRA, p. 2008)
Chamamos a atenção para o fato de que Quaderna em
nenhum momento cita o nome de Calderón. A explicação para este Ao constatar que tanto Calderón quanto os cordelistas
procedimento nos é dada por Tavares: brasileiros lançavam mão da mesma estrutura poética, Suassuna
Como Idelette Muzart Fonseca dos Santos observou e busca enaltecer a literatura de cordel, elevando-a à altura da
analisou [...], a escritura de Suassuna é uma reescritura de poesia erudita de Calderón. Lembremos que a literatura de cordel
textos próprios ou alheios. Ela considera o romance de está intimamente ligada à poesia do romanceiro e que essa fôrma
Ariano um texto "grafofágico", devorador de outros textos, métrica foi amplamente utilizada pelos dramaturgos do “Século de
e afirma ao se referir às "citações falsificadas ou Ouro” espanhol e, inclusive, recomendada por Lope de Vega, em
transformadas". Um autor nunca cita um texto alheio sem seu Arte Nuevo de hacer comedias en este tiempo. Como vimos, a
interferir nele, sem modificá-lo de propósito, usando para equiparação da cultura popular e da erudita é o pressuposto
isto o pretexto de ser Quaderna quem faz a citação se fundamental da romance armorial.
moldar a seu estilo régio. (TAVARES, 2007, p. 119)
Curiosamente, os famosos versos recitados por
Quaderna afirma que as obras de teatro representadas Segismundo podem, de fato, ter sua origem na literatura popular.
foram retiradas dos folhetos, ou seja, da literatura de cordel e, Valbuena-Briones (1965), em um estudo sobre a evolução do tema
mais adiante, conta-nos que João Melchíades pediu uma cópia do da vida como sonho em Calderón, apresenta-nos o fragmento de
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um poema encontrado no Thesoro de varias poesías (1580), cujo brasileiro. Lembremos que ingestão de beberagens,
verso final é idêntico ao recitado por Segismundo: principalmente com fins medicinais ─ denominadas "garrafadas" ─
é prática comum no nordeste brasileiro.
Soñaba yo que tenía O vinho sagrado provoca alucinações em Quaderna, aquilo
alegre mi corazón, que ele chama de “viração”:
mas a la fe, madre mía, ─ Bem, Senhor Corregedor: então, naquele dia, os sonhos
que los sueños, sueños son. (PADILLA apud VALBUENA do vinho tinto e os sonhos zodiacais e embandeirados do
BRIONES, 1965, p. 170) Catolicismo Sertanejo começaram a se juntar com as
Em La vida es sueño, o elemento que provoca em cintilações que o Sol ia tirando aqui e ali em pontas de
pedra, em lascas de quartzo e em cristais de malacachetas,
Segismundo a confusão entre sonho e realidade é uma droga
e, de repente, quando menos eu esperava, tive uma
ministrada por Clotaldo em obediência a uma ordem do rei. Em O
"viração".
Romance d'A pedra do Reino, por sua vez, mencionam-se duas ─ Uma "viração"? O que é isso? De que "viração" o senhor
beberagens: o "chá de cardina" e o "vinho sagrado" ou "vinho está falando? É, por acaso, à brisa sertaneja que o senhor
encantado". O primeiro, ministrado por tia Felipa, quando quer se referir?
Quaderna era seminarista, servia "para abrir a cabeça e ter sucesso ─ Não senhor! [...] As "virações" são uns acessos
nos estudos do Seminário" (SUASSUNA, 2007, p. 174), porém apocalípticos que me assaltam de vez em quando, atacado
continha um efeito colateral funesto: causava impotência. Apenas que sou do "mal sagrado" dos Vates, dos Poetas
uma pessoa conseguiu eliminar tal efeito colateral, Maria Safira, a escumejantes e dos Profetas. [...]. (SUASSUNA, 2007, p. 562-
mulher que todos acreditavam ser possessa pelo demônio. A 563)
segunda droga mencionada, o "vinho encantado", por sua vez, tem A palavra "viração" viria do verbo "virar", pois, após tomar
efeito similar à droga ministrada a Segismundo: a transformação o vinho sagrado, a feia realidade “vira”, ou seja, transforma-se em
da realidade. Vejamos. uma espécie de sonho reluzente, povoado de reis, rainhas,
Enquanto sacerdote-profeta de sua religião católico- trombetas etc. De alguma forma, poderíamos associar essa
sertaneja, Quaderna realiza rituais religiosos, nos quais veste seus beberagem à droga ministrada à Segismundo, em La vida es sueño,
trajes litúrgicos e bebe o vinho sagrado, feito de "certa composição pois tanto para Quaderna quanto para Segismundo, a droga é o
de jurema e manacá: tem a propriedade do álcool e do ópio, ao passaporte de um mundo a outro, da realidade ao sonho, de
mesmo tempo" (SUASSUNA, 2007, p. 77-78). Chamamos a atenção prisioneiro a príncipe, no caso de Segismundo; e de pícaro a rei,
para o fato de o manacá ser uma árvore tipicamente brasileira e a poeta e profeta, no caso de Quaderna.
jurema, tipicamente nordestina, o que novamente nos mostra a
preocupação de Suassuna em contextualizar sua obra em solo
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O teatro do mundo e o circo atores trágicos, dançarinas, mágicos, palhaços e


A imagem do mundo como um grande teatro foi saltimbancos que somos nós. (SUASSUNA, 2007, p. 209)
amplamente explorada pelos escritores barrocos e consagrada por Segundo o poeta brasileiro, a concepção da vida como circo
Calderón de La Barca em sua obra El gran teatro del mundo. está na raiz de toda sua obra literária:
Maravall (1997) nos aponta alguns possíveis significados do tópico: Assim, como se vê, a visão do Circo é fundamental para se
Finalmente y lo hemos dejado por último lugar en esta entender não só o meu teatro mas toda a poética que se
enumeración, por ser el tema más estudiado y conocido el encontra por trás dele, do meu romance, da minha poesia e
“mundo como teatro” [...]. Primero, el carácter transitorio até da minha vida, como um dia, talvez venha a revelar
del papel asignado a cada uno que sólo se goza o se sufre melhor. (SUASSUNA, 2007, p. 212)
durante una representación. Segundo, su rotación en el
reparto, de manera que lo que hoy es uno mañana lo será Esse fenômeno ocorre porque o circo faz parte da
otro. Tercero, su condición aparencial, nunca sustancial, con formação cultural do escritor. De fato, em entrevista concedida a
lo que aquello que se aparenta ser —sobre todo para Felinto, da Folha de São Paulo, o escritor paraibano rememora sua
consuelo de los que soportan los papeles inferiores— no infância e nos conta sobre seus primeiros contatos com o circo-
afecta el núcleo último de la persona, sino que queda en la teatro:
superficie de lo aparente, con frecuencia en flagrante Folha - Frequentemente o sr. fala do circo. Parece mesmo
contradicción entre el ser y el valer profundos de cada uno”. que o circo é um paradigma do mundo para o sr.
(MARAVALL, 1990, p. 320) Suassuna - É. É verdade. Exatamente isso. O circo é uma
coisa fortíssima em mim.
Dos três significados apresentados por Maravall, cremos
Folha - Mais que o teatro?
que o terceiro se aplicaria de maneira mais adequada à obra de
Suassuna - Anterior ao teatro, porque, veja bem, a minha
Suassuna, principalmente o Romance d'A Pedra do reino, no qual infância decorreu toda no sertão. Então, havia duas saídas
Quaderna oscila entre a essência e a aparência, entre sua realidade para o cotidiano: o circo e o livro. Vocês não podem
de fidalgo decadente e seu sonho de poeta genial. imaginar o que era para mim a chegada do circo. Era a
Entretanto, para Suassuna, a metáfora da vida como um teatro se abertura de um mundo novo, onde a rotina ─ como
desloca para a da vida como um circo: Quaderna com as cavalhadas e o folheto ─ era vencida. A
O circo é, portanto, uma das imagens mais completas da gente saía do universo cotidiano e entrava num mundo
estranha representação da vida, do estranho destino do mágico, onde tudo podia acontecer e onde tinha a
homem sobre a terra. O dono-do-circo é Deus. A arena, com presença, para mim fundamental, do palhaço e do mágico.
seus cenários de madeira, cola e papel pintado, é o palco do Nos circos da minha infância você tinha mulheres
mundo, e ali desfilam os rebanhos de cavalos e outros lindíssimas ─ que deviam ser horrorosas, mas eu achava
bichos, entre os quais ressalta o cortejo humano ─ os reis, lindíssimas, não é? As equilibristas eram para mim a
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equivalência do que hoje são as bailarinas. (FELINTO, 1991, Comentários finais


s/n) Como pudemos observar, a influência semântica (Fokkema,
Após uma digressão sobre a literatura, Suassuna retoma a 2004) de Calderón na obra suassuniana se dá tanto no que se
questão do circo e do teatro: refere à dicotomia sonho / realidade, quanto a sua cosmovisão do
[...] Agora, voltando ao circo e ao teatro, o que acontece é mundo como um grande teatro, mais especificamente, um circo-
que no circo da minha infância o teatro também era teatro.
encenado. O próprio circo era uma companhia ambulante Já no primeiro folheto do Romance d' A Pedra do Reino,
de teatro. Quaderna ─ prisioneiro como Segismundo ─ diz que sua vida
Folha - Os chamados circo-teatros? parece um sonho glorioso e grotesco. A angustia existencial de
Suassuna - Exatamente. O primeiro circo que eu vi na minha Segismundo é expressa por Quaderna em O rei degolado ao sol da
infância chamava-se Circo-teatro Stringhini, que era o nome onça Caetana, quando o protagonista propõe a existência de duas
do dono. Parece que ele era italiano ou filho de italiano. Eu
realidades: a de dentro (o sonho) e a de fora (a parda realidade).
achava até muito estranho esse nome e tinha uma figura,
De maneira mais incisiva, notamos a presença de Calderón na obra
era um sujeito extraordinário, que era o palhaço Gregório.
Esse palhaço está ainda hoje dentro de mim. (FELINTO, suassuniana, quando Quaderna recita — no âmbito de uma clara
1991, s/n) intertextualidade sintática — uma versão quase literal dos
famosos versos de Segismundo, atribuindo sua autoria aos
Notemos como essa experiência vital de Suassuna está cordelistas. Assim como Segismundo, Quaderna é transportado do
plenamente representada em sua obra. Como vimos, em O rei mundo da realidade para o sonho por meio de uma beberagem, a
degolado, Quaderna lembra de "um circo que passou aqui por qual, na obra de Suassuna, remete-nos às populares garrafadas
Taperoá, o Circo Estringuini" [...], "o rei era representado pelo nordestinas.
dono do circo ─ que às vezes também fazia o palhaço ─ e a Princesa Ao transpor a metáfora do mundo como teatro para a do
por uma equilibrista" (SUASSUNA, 1977, p. 76). Observemos que mundo como um circo-teatro ─ baseado em sua experiência vital
inclusive os atores do circo cumpriam duas funções: princesa e ─ Suassuna atualiza o tópico de Calderón adequando-o ao contexto
equilibrista, e rei e palhaço. As fronteiras entre vida e obra se brasileiro e, mais especificamente, ao nordestino. A matéria
esfumaçam, fundindo ambas em um só conceito de mundo: o calderoniana assim transformada se coaduna com os princípios da
circo. Não é à toa que, como vimos, Suassuna afirma que "a visão estética armorial, uma vez que unifica o teatro culto calderoniano
do Circo é fundamental para se entender não só o meu teatro mas com o popular circo-teatro nordestino.
toda a poética que se encontra por trás dele [...] e até da minha
vida [...]. (SUASSUNA, 2007, p. 212)
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Referências ______. O teatro, o circo e eu. In: Almanaque armorial. Seleção,


CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. La vida es sueño. In: Obras de organização e prefácio de Carlos Newton Júnior. Rio de Janeiro:
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FELINTO, Marilene. Ariano Suassuna. Suplemento literário, Folha ______. Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai
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PEREIRA, Patrícia. A filosofia, entre o erudito e o popular. Revista


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SUASSUNA, Ariano. História d’O rei degolado nas caatingas do


sertão. Romance armorial e novela romançal brasileira. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1977.
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ALEJANDRA PIZARNIK – SER FIEL À PRÓPRIA VOZ cultivando desde sempre um castelhano claro e preciso, seguia
Clarisse Lyra Simões uma exigência de pureza que determinava a seleção de palavras e
USP temas elevados e nobres, tendo sido definida pelo crítico Daniel
Link como “una conceptista militante de una austeridad estoica”
A que coisa é fiel o poeta? (LINK, 2011). A oposição que ela levanta entre “lengua hermosa” e
Giorgio Agamben, Ideia da prosa. “voz propia”, quando vista em relação com a experiência escritural
de Derrida, permite alguns cruzamentos: para ser fiel à própria voz,
Nas fissuras da biografia, no espaço íntimo do diário e entre é necessário trair a língua pátria? É possível ser fiel à língua pátria
as obsessões de uma poesia de temas restritos, uma questão e à voz própria ao mesmo tempo? (aqui nos aproximamos de um
delicada se coloca para quem pretenda se aproximar à obra de dos dilemas clássicos dos tradutores, o da servilidade a dois
Alejandra Pizarnik: o desconforto diante da língua (e, às vezes, da senhores). E mais: que obstáculos uma “lengua hermosa” – seja
linguagem), o horror e o estranhamento que ela lhe provoca. Esse isto a língua pátria, a língua materna, uma determinada tradição
sentimento, explicitado de maneiras diversas em seus diários e ou língua literária – impõe à impostação de uma voz singular, limite
espécie de nódulo de sua obra poética, chega a um tensionamento entre corpo e discurso, lugar privilegiado da diferença segundo
extraordinário quando ela diz: “Ahora bien, lo más difícil es escribir Roland Barthes (1990a, p.248)?
con una lengua hermosa y, al mismo tiempo, ser fiel a la propia Para começar, devemos lembrar a definição de Freud de
voz” (PIZARNIK, 2010, p.275). Questões fundamentais como unheimlich, conceito chave da psicanálise que se aplica em larga
bilinguismo, imigração, tradição literária, fidelidade, voz, autoria, medida à experiência que Alejandra testemunha frente à
autenticidade e experiência intrincam-se em um tal grau nesta linguagem: “o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora
sentença que ela ganha contornos enigmáticos. E a primeira que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar”
pergunta que ela suscita parece ser: em que sentido e por quais (FREUD, 2010, p.249). É a partir desta definição que “aprendemos
motivos escrever em uma língua, em uma determinada língua (e o quanto o eu é fruto de um auto-engano promovido e construído
aqui o significado de “lengua hermosa” é apenas um dos mistérios pela linguagem. Freud com isso mostra o quanto toda língua nos é
que a frase encerra), significa trair a voz própria? sempre estrangeira e sempre gerará em cada sujeito uma variante
A natureza da pergunta é próxima da do apontamento que muito singular” (TAVARES, 2014, p.12). À luz desses
faz o estudioso Paulo Ottoni sobre a escrita do filósofo Jacques esclarecimentos, podemos ler sem assombro certas passagens dos
Derrida. Segundo ele, “Derrida não faz um uso padrão do francês, diários da argentina, como por exemplo: “Ayer [...] sentí un dolor
já que ele traduz, transforma e dissemina os sentidos do próprio increíble al pensar que ésa [el español] era mi lengua” (PIZARNIK,
idioma francês na sua escritura”; Derrida, portanto, “é infiel à sua 2010, p.280); “Me horroriza mi lenguaje. Miento todo el tiempo. Si
própria língua” (OTTONI, 2000, p.130). Pizarnik, ao contrário,
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hablo miento. Hay que averiguar por qué” (PIZARNIK, 2010, p.402). fantasma do nome). Nenhuma redenção possível, ainda que
Alan Pauls arrisca: almejada, nada de cura pela palavra. Completa Alan Pauls:
Porque la frase, que es lo más familiar, lo más heimlich, diría El drama de poseer y no ser, de ser poseída y quedar
Freud, es también lo unheimlich por excelencia. Elías Canetti excluida de la posibilidad de un encuentro, de no poder pe-
observa que la frase es “siempre un Otro en relación a quien netrar y sólo atenerse: he aquí una de las catástrofes
la escribe. Se alza ante él como algo extraño, como una íntimas más persistentes de los Diarios de Pizarnik, y quizá
muralla repentina y sólida que no puede salvar de un salto. la prueba más radical de que la relación de proximidad, lejos
Podría tal vez contornearla, pero incluso antes de llegar al de garantizar finales felices, suele sembrar lo íntimo con
otro extremo ve surgir, en ángulo agudo con respecto a ella, semillas siniestras (PAULS, 2007, p.5-6).
una nueva muralla, una nueva frase, no menos extraña, no
menos sólida y alta” (PAULS, 2007, p.5). Escusado é que se comentem os frutos sinistros que um
trabalho diário e complexificado a este nível com a linguagem
De fato, uma das declarações mais pungentes da autora proporcionaram a Alejandra Pizarnik. Suicidada aos trinta e seis
sobre o tema será: “El lenguaje es un desafío para mí, un muro, anos de idade, em seu poema mais feroz, escrito durante sua
algo que me expulsa, que me deja afuera” (PIZARNIK, 2010, p.286). última internação no hospital psiquiátrico Pirovano, na periferia de
É realmente inquietante: mesmo falando de dentro de um dos Buenos Aires, ela ri de certos métodos terapêuticos
mecanismos mais sofisticados da linguagem (ou, talvez: recomendados, que veem no trabalho um possível alento para a
exatamente por isso?), a poesia, e armada dos recursos legados doença:
por mais de uma tradição literária, especialmente do espanhol e cuando pienso en laborterapia me arrancaría los ojos en una
do francês (Arthur Rimbaud, o mencionado Lautréamont, Antonin casa en ruinas y me los comería pensando en mis años de
Artaud, Franz Kafka, Antonio Porchia, Julio Cortázar são figuras escritura continua,
importantes de sua biblioteca), Pizarnik acusa a todo tempo a sua 15 o 20 horas escribiendo sin cesar, aguzada por el demonio
impossibilidade de estar de pé sobre a língua, de manejá-la sem de las analogías, tratando de configurar mi atroz materia
assombro diante da ambiguidade e dos sucessivos vazios que ela verbal errante,
porque -oh viejo hermoso Sigmund Freud- la ciencia
recobre. No centro do poema, um outro poema; no centro do
psicoanalítica se olvidó la llave en algún lado:
centro, a ausência; no centro da ausência, apenas a sombra da
abrir se abre
poeta, que é o centro do centro do poema (PIZARNIK, 2001, p.381). pero ¿cómo cerrar la herida? (PIZARNIK, 2001, p.415)
Nenhuma correspondência fixa, nada do “algo” – objeto da
verdade – (FLUSSER, 2010) a não ser talvez o seu fantasma (para Sobre este ponto, impossível não se lembrar do “Van Gogh,
Pizarnik, as palavras são coisas e as coisas palavras; a coisa é o o suicidado pela sociedade” de Artaud, no qual ele atribui a culpa
pela morte do pintor em grande parte a seu psiquiatra, que o
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recomenda pintar a natureza em um dia em que melhor faria se langue étrangère” (DERRIDA, 1986, p.146); e também por isso que
ficasse em casa repousando, como se “sepultar-se na paisagem” Pizarnik registra:
fosse poupar Van Gogh da “tortura de pensar” (ARTAUD, s/d). Para Los problemas que me plantea el escribir. El primer, mi
Pizarnik, a sua “atroz materia verbal errante” foi sempre uma exilio del lenguaje. […] sucede que yo no siento mediante
preocupação e um motivo de angústia. un lenguaje conceptual o poético sino con imágenes
Atitude totalmente compreensível para uma filha de visuales acompañadas de unas pocas palabras sueltas. O sea
que escribir, en mi caso, es traducir (PIZARNIK, 2010, p.331,
imigrantes numa Argentina absolutamente normativa quanto à
grifos meus).
“beleza” da língua. Na primeira metade do século XX, o criollo foi
“erigido por las clases dirigentes como monumento nacional a fin
Escrever, para Pizarnik, é traduzir, e essa tradução primeira
de contrarrestar lo que sentían ser el bárbaro aluvión
é tão impossível e necessária (DERRIDA, 2002) quanto qualquer
transatlántico” (GASPARINI, 2009, p.73) que ameaçava a unidade
tradução propriamente dita (JAKOBSON, 1969), e ela conhece este
da língua com mesclas indesejadas, das quais já começava a surgir
segredo. Escrever é mediar esse espaço conflituoso entre o iídiche
uma literatura específica, caso do “cocoliche”, língua mista de
e o espanhol, entre ser uma poeta judia e ser uma poeta argentina;
espanhol e italiano.
entre ser Flora, Blímele ou Alejandra (“para empezar a escribir en
Não sendo, portanto, o espanhol a sua língua materna – a
una lengua laica”, disse Tamara Kamenszain [2000, p.103], “Flora
língua da mãe –, mas uma língua oficial, aprendida na escola,
o Blímele adoptará el seudónimo de Alejandra”); é mediar e
dentro de pressões específicas de inclusão, serão frequentes no
“corrigir” a fala estranha que não é reconhecida nas ruas de
diário de Pizarnik anotações como esta: “Estoy deslumbrada: hoy
Buenos Aires como argentina; é enfrentar e se inconformar com o
descubrí que no sé escribir, que no tengo la más mínima noción del
território onde “cada palabra dice lo que dice y además más y otra
idioma español, que no son temas lo que me falta sino técnica.
cosa” (PIZARNIK, 2001, p.283), onde “todo tiene nombre pero el
Hablo de moverse libremente dentro del lenguaje” (PIZARNIK,
nombre no coincide con la cosa a la que me refiero” (PIZARNIK,
2010, p.274). Alejandra não consegue, como os patronos das letras
2010, p.286). Não à toa, ela escreve: “No comprendo el lenguaje y
espanholas Jorge Luis Borges ou Mario Vargas Llosa podem,
es lo único que tengo. Lo tengo sí, pero no lo soy” (PIZARNIK, 2010,
encarar a língua de frente. Paradoxalmente, esse mal-estar frente
p.325).
à linguagem é a matéria de seus poemas, que escancaram isto que
A língua única não é uma língua. O Único, de que os homens
para Derrida é uma condição de qualquer língua: “A língua, na participam como da única possível verdade materna, isto é,
verdade, só pode existir no espaço de sua própria estrangeiridade comum, é sempre qualquer coisa dividida: no preciso
em relação a si mesma” (JOHNSON, 2005, p.33). instante em que alcançam a palavra única, eles têm de
Será por isto então que ele escreve este axioma tomar partido, escolher uma língua. Do mesmo modo, nós,
enigmático: “On n'écrit jamais ni dans sa propre langue ni dans une ao falarmos, podemos apenas dizer alguma coisa – não
podemos dizer unicamente a verdade, nem podemos dizer
P á g i n a | 219

apenas que dizemos (AGAMBEN, 2012, p.41, grifos do ao infinito) a essa voz primordial inarticulada para sempre perdida,
autor). voz essencial que não é língua, mas linguagem, e que nesse
instante primeiro é escuta e não fala. Também a escuta precede a
Nestas palavras do italiano Giorgio Agamben, encontramos fonação (e, sobretudo, “a voz implica uma escuta” [CAVARERO,
uma tradução aproximada da ideia de língua que acreditamos 2011, p.21-22]), mas durante a análise é esta quem se permite
residir na poética de Alejandra Pizarnik. livrar-se dos artifícios, deixando fluir algo mais familiar àquela
Depois da língua, a voz. Melhor: antes da língua, a voz – sonata irrecuperável:
pelo menos assim aponta a ontogênese desenhada pelo escritor Ao examinar o encontro analítico, F[rançois] R[oustang]
francês Pascal Quignard, que não é psicanalista nem nada, mas que mostra o canto acrítico que volta a emergir do fundo do
mergulha nas águas da psicanálise e da filosofia em seu livrinho corpo. Sob o pensamento social, superegóico, expressado
Butes (não apenas neste), que recupera a história do marinheiro na língua nacional, que dá voltas no interior do crânio
homônimo que, ao contrário de Orfeu, não resistiu ao canto das individual na forma de consciência, ou seja, sob a língua de
sereias e atirou-se ao mar desejando ir ao seu encontro. Nessa madeira da nação, sob a queixa obsessiva da família, sob a
busca ficcional por uma genealogia da música, Quignard vai tagarelice do sujeito, retorna o pensamento vivo. Retorna o
velho estado de alerta de antes das palavras. Reaflora, ou
traçando também o caminho da voz em sua relação com a língua
melhor, jorra novamente o arcaico alerta de antes da língua,
(materna ou nacional):
de antes do tempo, de antes da consciência, de antes do
Porque desde a origem, na ontogênese, no interior do
próprio sol e da atmosfera (QUIGNARD, 2013, p.12-13, grifo
ventre materno, é inevitável que o feto ouça. Ele ouve
do autor).
independentemente do que aconteça, para além, ao longe,
muito longe, atrás da pele e da água, a estranha sonata do
que será sua língua materna. Genealogicamente, esse canto Desejaria Alejandra, no chamado à fidelidade à voz própria,
do qual só ouve a emoção, é anterior à voz articulada. [...] A um retorno a este estado ancião? Se ressente a sua poesia dessa
voz humana, quando cantada, situa-se no meio do caminho passagem da psique à língua, extensão que condiciona o
entre o grito da espécie biológica e da língua nacional pensamento a relações lógicas pré-definidas, conforme teoriza
adquirida. A música é a nostalgia, depois da aprendizagem Vilém Flusser (2010)? Seria essa nostalgia de um tempo anterior às
das línguas coletivas, do estado anterior da fonação, do palavras o sentido de versos como: “Volver a la memoria del
sopro, da animação, da anima, da psique (QUIGNARD, 2013, cuerpo, he de volver a mis huesos en duelo, he de comprender lo
p.70, grifos do autor). que dice mi voz” (PIZARNIK, 2001, p.244)? A memória do corpo, os
Além da música, também o encontro analítico seria, para ossos em luto – o que diz a voz? Esse desejo de compreensão é
Quignard, um momento possível para uma aproximação uma vontade de logos (reino das palavras) ou atende a uma ordem
(aproximação que nunca se completa, como uma reta no caminho outra, à ordem de um saber corporal, orgânico, um saber com os
P á g i n a | 220

ossos, atravessado por e direcionado ao mesmo tempo a uma voz entre corpo e discurso, é que permite a Alejandra experienciar,
que é uma “ruptura da clausura do corpo” (ZUMTHOR, 2007, dizer – estou aqui agora. Ou ainda: sou aqui agora.
p.83)? Yo voces.
Segundo Roland Barthes, o grão da voz é o corpo na voz que Yo el gran salto.
canta ou na mão que escreve (BARTHES, 1990b, p.244), é a
“materialidade do corpo falando sua língua materna” (BARTHES, Cuando la noche sea mi memoria
mi memoria será la noche (PIZARNIK, 2001, p.447)
1990b, p.239). Essa relação voz/corpo é fundamental para
Pizarnik, e a performatividade que seus versos apresentam nos
Referências
permitem pensar no tanto de corpo que está investido em sua
AGAMBEN, G. Ideia da prosa. Tradução de J. Barrento. São Paulo:
escritura. Um aspecto dessa performatividade é a deriva entre as
Autêntica, 2012.
pessoas do discurso (yo – tú – ella), que tem a voz como principal
fluido: “Y yo sola con mis voces, y tú, tanto estás del otro lado que
ARTAUD, A. Van Gogh: o suicidado pela sociedade. Rio de Janeiro:
te confundo conmigo” (PIZARNIK, 2001, p.289); “Recibe lo que hay
Achiamé, s/d.
en mí que eres tú” (p.157); “Emboscado en mi escritura / cantas
en mi poema” (p.165). Outro aspecto é o desejo ardente de fazer
BARTHES, R. A música, a voz, a língua. In: BARTHES, Roland. O óbvio
do corpo uma língua, como ela deixa claro neste trecho do diário:
e o obtuso. Tradução de L. Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
“Pasa que la condición de mi cuerpo vivo y moviente es la poesía
1990a.
[…]. No se trata de obligarme sino de arder en el lenguaje”
(PIZARNIK, 2010, p.335). No poema “El deseo de la palabra”, ela
______. O grão da voz. In: BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso.
reitera: “Ojalá pudiera vivir solamente en éxtasis, haciendo el
Tradução de L. Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990b.
cuerpo del poema con mi cuerpo” (PIZARNIK, 2001, p.269).
O investimento do corpo é fundamental na poesia de
CAVARERO, A. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo
Alejandra Pizarnik porque a linguagem sozinha não é capaz de
Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
colocar em cena o sujeito, de fazê-lo vibrar. Ao contrário, “Decir yo
es anonadarse, volverse un pronombre algo que está fuera de mí”
DERRIDA, J. Survivre. In: DERRIDA, J. Parages. Paris: Galilée, 1986.
(PIZARNIK, 2010, p.344). Por isso, a voz será para ela mais do que
apenas uma marca do sujeito social (que porta suas singularidades
______. Torres de Babel. Tradução de J. Barreto. Belo Horizonte:
linguísticas e de tom, timbre, impostação – lembrando que
Editora UFMG, 2002.
gagueira e dislexia foram singularidades apresentadas por
Pizarnik). O chamamento à voz, como linde entre o dentro e o fora,
FLUSSER, V. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2010.
P á g i n a | 221

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P á g i n a | 222

A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO EM BLANCA SOL DE tornarem fluidos, leves e líquidos. Para ele ser líquido é mover-se
MERCEDES CABELLO D CARBONERA com fluidez, facilidade, leveza (nos faz lembrar Calvino em as Seis
Cláudia Regina da Silva Rodrigues Propostas para o Próximo Milênio, a busca da leveza surgindo
UFRJ como possibilidade de resistência, como reação ao peso do viver).
E o livro O Mal Estar na Civilização de Freud2, escrito na década de
O presente trabalho busca apresentar a obra da escritora 30, que apresenta como ideia central a discussão da repressão que
peruana Mercedes Cabello de Carbonera, assim como fazer um é imposta pela sociedade, onde cada indivíduo está sob uma
estudo dos efeitos da modernidade sobre o sujeito na atualidade espécie de vigilância e a alienação gerada diante das regras inibe o
e mostrar como esses efeitos podem ser percebidos em épocas desenvolvimento do ser humano. Levando-se em consideração
anteriores, no caso o final do século XIX. Destacando o modo como que o instinto humano é naturalmente agressivo, ao se libertar
se configurava e como acontece ainda hoje a questão da busca da dessa repressão, a tendência é a destruição de seu meio. Freud nos
felicidade; fazendo uma comparação com autores que tratam da ensina que a vida de cada um de nós é regida por dois princípios:
temática na Pós-modernidade. O intuito é perceber como, em o do prazer e o da realidade que obviamente entram em conflito.
momentos tão distantes, as condutas divergiam e de repente A partir do estudo das obras citadas, serão analisadas
podem se encontrar. É importante ressaltar que não pretendo algumas cenas da obra peruana sempre fazendo uma
fazer um estudo comportamental ou antropológico; almejo contraposição com a obra pós-moderna de Bauman e com a de
simplesmente observar algumas cenas de uma obra ficcional; o dia Freud que, apesar de ser do ano de 1930, podemos dizer que tem
a dia de pessoas comuns que tentam apenas viver um dia após o seus princípios aplicáveis tanto no passado como na pós-
outro de modo mais prazeroso e com menos dificuldades. As cenas modernidade.
destacadas da obra nos mostrarão como esse desejo era saciado, Muitos indivíduos vivem alienados em seu próprio mundo,
vale ressaltar que estamos tratando do final do século XIX. devido às repressões impostas pela sociedade, pois não é possível
Os autores escolhidos para, com seus conceitos, de épocas satisfazerem seus instintos como de fato desejam; dessa forma
distintas, contraporem a questão são Zigmund Bauman1 em Amor não encontram possibilidades de realização de felicidade. A
líquido, publicado no ano de 2001; este destaca que “o principal plenitude não existe, apenas alguns momentos de satisfação
herói deste livro é o relacionamento humano” (2004, p.6). O livro passageira. O mundo moderno trouxe uma infinidade de
nos faz refletir sobre a mudança da sociedade moderna passando possibilidades de liberdade ao indivíduo; o sentir-se só se tornou
pelo individualismo até as relações de trabalho, família e facilmente superado pelo advento das inovações tecnológicas.
comunidade, tempo e espaço deixando de ser concretos para se Hoje, não é preciso sair de casa ou ter alguém fisicamente ao seu

1 2
Sociólogo da atualidade, nascido na Polônia em 1925. Nasceu na Tchecoslováquia, no ano de1856; formado em medicina e
especializado em tratamentos para doentes mentais, ele criou uma nova teoria.
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lado para estar acompanhado; os parceiros são outros, são Vida da Autora
virtuais. Até mesmo as crianças e os adolescentes que Mercedes Cabello de Carbonera nasceu em 17 de fevereiro
costumavam ir ao encontro de seus amigos para estarem juntos de 1849 no Peru. Filha de Gregorio Cabello Zapata e María
compartilhando de conversas, brincadeiras e momentos de Mercedes Llosa y Mendoza, é oriunda de uma família de pessoas
interação, agora o fazem com menos frequência. Muito cultas e teve à sua disposição uma vasta biblioteca; teve uma
possivelmente estarão “acompanhados” de seus amigos virtuais, educação muito à frente das mulheres de sua época, aprendeu
participando de jogos on-line e/ou redes de interação em seus francês, o que lhe proporcionou a oportunidade de ler muitos
computadores. A modernidade inovou a forma de o ser humano livros que um grande número de peruanos até então não tinham
se relacionar, e com isso trouxe também mudança nas relações conhecimento. Casou-se com um médico, porém não teve filhos.
que antes eram necessariamente presenciais, agora, haveria Foi uma escritora de ideias liberais e positivistas, leitora
realmente necessidade? É o tempo do individualismo exacerbado, incansável; nas referências bibliográficas de seus trabalhos
o pluralismo cultural e a fragmentação das percepções de cada um. reflexivos são evidentes os reflexos de sua formação intelectual.
Não temos mais verdades absolutas, e sim dúvidas e inquietações. Anos depois de a família Cabello Llosa decidir se estabelecer na
A multiplicidade de opções são tantas que é difícil centrar-se em cidade de Lima, conhece o doutor Urbano de Carbonera, com
um só ponto. Não é mais interessante, como antes, ter um quem se casa. Posteriormente torna-se participante ativa no
relacionamento duradouro (algo que exija tempo para movimento literário, contribuindo em revistas utilizando-se do
cultivar???), não se quer mais isso. É a era da globalização onde pseudônimo Enriqueta Pradel, para somente mais tarde começar
“tudo” ou quase tudo está ao alcance de suas mãos (ou dos dedos a usar seu nome. Por seus ensaios em favor da emancipação da
no teclado de um computador). Mas no passado não havia as mulher, converteu-se na mais destacada ensaísta peruana.
possibilidades que existem na modernidade. Também teve participação de grande importância nas veladas
O homem lança-se ao progresso, é a época dos literárias organizadas em Lima, na casa da escritora argentina
descobrimentos com as navegações, dos inventos, da tecnologia e Juana Manuela Gorriti, onde leu alguns de seus trabalhos sobre a
dos progressos. A fundamentação do comportamento social está importância da literatura, a educação da mulher, o idealismo como
pautada em um novo momento com obviamente diferentes elemento gerador de poesia e a mulher diante da escola
aspirações. Porém, a busca pela felicidade sempre esteve presente materialista dentre outros.
independente da época. Tal busca atinge patamares distintos, os Começa a ingressar no mundo literário, mas seu marido
indivíduos nunca deixaram de tentar satisfazer seus desejos, ou ao não a acompanha em nada que fazia parte de seu universo
menos evitar o desprazer. (atuações, atividades e apresentações públicas). Ele vai viver em
outra cidade e a deixa sozinha, com isso Carbonera intensifica seus
trabalhos como escritora. Após a morte do companheiro em 1855,
P á g i n a | 224

publica romances e aumenta o seu prestígio que já havia ganho em comunicando e estabelecendo maneiras de pensar distintas da
âmbito nacional e internacional. época, e também serviu de porta-voz dos ideais políticos e sociais.
Mercedes Cabello de Carbonera é uma destacada Certamente que sua postura sempre adiante da sociedade em que
representante da literatura peruana do final do século dezenove. vivia lhe causaram um amontoado de dificuldades e inimizades.
Reivindicou a educação da mulher dentro da sociedade para que Mercedes Cabello de Carbonera foi uma apaixonada incentivadora
estas pudessem ter uma vida intelectual e conhecimento de mudanças que favorecessem a classe feminina, desejava
suficientes que permitissem confrontar o materialismo e a melhorar a situação mediante uma grande campanha de educação
superficialidade que abundavam em seu meio. Com sua narrativa de massas, especialmente a educação da mulher. Afirmava o
pretendeu o despertar da sociedade para uma nova época de seguinte:
reflexões e transformações. Defendeu a igualdade, a civilização e Siempre he creído que la novela social es [de] tanta ó [sic]
o progresso. A autora rompe com a clausura do sujeito feminino e mayor importancia que la novela pasional. Estudiar y
critica as limitações concedidas às ocupações ou destinos que têm manifestar las imperfecciones, los defectos y vicios que en
a mulher na sociedade peruana. Mas, para isso teve que enfrentar sociedad son admitidos, sancionados, y con frecuencia
objeto de admiración y de estima, será sin duda mucho más
muitas dificuldades pelo fato de ser mulher e se dedicar à tarefa
benéfico que estudiar las pasiones y sus consecuencias.
intelectual.
(CARBONERA, 1894, p. I).
Certamente que sua postura sempre adiante da sociedade
em que vivia lhe causou um amontoado de dificuldades e A autora intencionou fazer uma crítica à sociedade da
inimizades. Carbonera não aceitava os convencionalismos de sua época onde condena também o materialismo; exibe a moral de sua
época; como diz Ismael Pinto Vargas3, para ela, a mulher é quem sociedade mostrando os vícios e defeitos de um aglomerado de
deve decidir a quem entregar-se e a quem amar, mesmo que pessoas e interesses para que esta mesma sociedade perceba a
transgredindo a moral e os convencionalismos. situação materialista e opressora existente. Cabello define o
Suas ideias distintas e voltadas para o progresso não homem e sua natureza moral e espiritual ao analisar o
agradavam a muitos conservadores; fez ataques ao modelo de componente social, definindo assim sua missão na literatura. Ela
educação aplicado no colégio de freiras em um artigo que escreveu viveu em uma época na qual a sua condição de viúva sem filhos,
intitulado “Los Exámenes”. Em um trecho diz que dessas escolas intelectual positivista e defensora dos novos rumos da mulher não
saem mulheres vazias, vaidosas [...]; mulheres ociosas e egoístas lhe transformou em um personagem aplaudido, mas teve a
que amam mais os salões que seu próprio lar [...] (VARGAS, 2003, imagem de uma “mulher pública” como ela mesma se classificou
p. 788). Teve um papel muito importante na América Latina, muitas vezes.

3
Crítico peruano que se dedicou ao estudo de vida e obra de Mercedes Cabello
de Carbonera.
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Depois da metade da década de noventa, fica enferma, e se encontram inseridos questionamentos no nível discursivo e
com o passar dos anos seu estado de saúde vai se agravando; é simbólico das obras. São contendas que pairam sobre o panorama
internada em um manicômio por sua família e falece em 12 de da crítica atual da história da literatura latino-americana. Sobre o
outubro de 1909. assunto Octavio Paz deixa a sua contribuição:
A loucura que afetou Carbonera no final de sua vida pode- La literatura es un conjunto de obras, autores y lectores: una
se dizer que é fruto de falta de adequação entre suas aspirações sociedad dentro de la sociedad. Hay excelentes poetas y
intelectuais e a sociedade em que vivia, somando-se a esse fato a novelistas colombianos, nicaragüenses y venezolanos pero
saúde que se encontrava debilitada. no hay una literatura colombiana, nicaragüense o
venezolana. Todas esas literaturas son inteligibles
Mercedes Cabello foi uma grande escritora, porém ao final
solamente como partes de la literatura Hispano-americana.
de sua vida foi esquecida. Após sua morte, apenas um jornal
(PAZ, 1981).
publicou uma pequena nota na qual informava o falecimento; nem
um outro redigiu nada sobre o assunto, era como fizessem um No início do século XIX, a América Hispânica estava
complô diante do fato. mergulhada em momentos de guerras independentistas, porém o
Peru demorou a romper com os laços de independência; o
Um pouco de Literatura Hispano-Americana Romantismo demorou a estabelecer-se e sua influência durou até
A literatura hispano-americana desde suas origens foi a segunda metade do século XIX; entretanto, uma nova corrente
marcada por uma grande mistura de diferentes culturas. Em meio ideológica era firmada entre os intelectuais do Peru. O positivismo
a essa tão rica diversidade cultural e literária, a mulher também de Comte propunha o progresso social mediante critérios
conquistou seu espaço, porém de forma mais lenta. Aos poucos científicos, em especial na educação. Isso significava que era
foram vencendo os preconceitos e ganhando cada vez mais espaço preciso romper com tudo aquilo que estava atado ao passado; ou
dentro do meio literário, seu trabalho passa a ser tão valorizado seja, começar a construir uma nova concepção de país e o passado
quanto o do homem, e com elas dentro da literatura surge deveria limitar-se a forjar a identidade nacional. Porém, essa nova
também sua maneira de escrever. Não que essa maneira seja visão era contrária à romântica que já estava incorporada ao
exclusivamente feminina, mas leva seu nome, uma maneira rica imaginário nacional e, desse contraste de filosofias surge o
em todos os aspectos e que encanta a quem lê, se trata da escrita enfrentamento da intelectualidade peruana. Uma das figuras mais
feminina. entusiasmadas com o rumo positivista foi Mercedes Cabello de
Parte da crítica aponta para a necessidade de ampliação Carbonera.
das concepções teóricas e analíticas que evidencie as implicações A chegada da modernidade significou uma reformulação
de ordem ideológica e política sobre essa temática histórico- nos espaços nacionais e os romances retrataram tais mudanças
literária. Todavia entendemos que existem textos literários onde que ocorreram dentro da sociedade.
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Uma das revoluções silenciosas mais importantes do século atividade periodística e literária era um sinal inquestionável da
XIX foi a mudança da situação da mulher no mundo e no Peru. modernidade. A palavra escrita, sem dúvida, resultava em ameaça
Mudanças essas que ocorreram no íntimo do lar e também na aos poderes tradicionais e ao patriarcalismo. Através das
esfera econômica e social do espaço público; tais variações foram publicações e da leitura apareciam outros espaços vitais; tudo
profundamente significativas para a sociedade feminina daquela diretamente ligado ao desenvolvimento da individualidade e a
época. Neste período somente algumas personalidades ousaram ampliação do mundo interno, o que seguia as aspirações femininas
utilizar-se de mecanismos que permitissem que elas ocupassem no panorama da cultura pública. Na sociedade do século XIX, a
alguns espaços antes negados. Podemos mencionar como atividade educativa estava associada à igreja católica; porém,
principais representantes Flora Tristán, Juanna Manuela Gorriti, algumas mulheres obtiveram uma educação sofisticada. Mas,
Teresa González de Fainning, Mercedes Cabello de Carbonera, infelizmente, a educação oferecida nestes locais não era
Antonia Moreno Leyva, Clorinda Matto de Turner e Maria Jesús de igualitária, onde se tratava com notável consideração as meninas
Alvarado dentre outras que deixaram profundas marcas na ricas e com desprezo as pobres.
história. Tais modificações de comportamento estão diretamente A tarefa para elas não foi fácil nem tão pouco gratificante.
ligadas às transformações da estrutura social e dos avanços no O castigo por violar os costumes da época as condenou, muitas
processo de modernização do país. Podemos destacar um fator vezes, à escuridão, ao isolamento, à marginalização…
como fundamental para o maior impacto nos câmbios ocorridos, o As tertúlias literárias promovidas por Juanna Manuela
processo educativo. Gorriti são manifestações das relações de escrita e individualidade,
Muitas mulheres abriram o caminho desenvolvendo as são uma mescla do mundo público e privado ao mesmo tempo, um
próprias estratégias para expressar sua opinião em uma sociedade espaço diferenciado da experiência dos lares. A palavra escrita,
cuja estrutura tendia ocultar e restringia a participação delas, sem dúvida, resultava em ameaça aos poderes tradicionais e ao
principalmente na vida pública. Vale muito destacar a patriarcalismo. Através das publicações e a leitura apareciam
representante da literatura feminina, ou melhor, um dos maiores outros espaços vitais; tudo diretamente ligado ao
nomes da poesia de língua hispânica, Sóror Juana Inés de la Cruz. desenvolvimento da individualidade e a ampliação do mundo
Freira do final do século XVII e figura de grande influência cultural interno, o que seguia as aspirações femininas no panorama da
e política, sua vida atravessou importantes períodos da colônia cultura pública.
espanhola e, através de sua obra, extraem-se momentos Ao longo dos anos, muitas foram as contribuições no
significativos não apenas da formação intelectual da elite da âmbito da escritura de autoria feminina. É inegável o esforço das
mulher, mas também os limites impostos pela Igreja. mulheres para transcender a posição de subordinação imposta
Uma das várias manifestações do processo de emancipação pelo sistema patriarcal. As escritoras propõem tanto a reflexão
da mulher foi a proliferação na produção escrita na cidade. A
P á g i n a | 227

sobre as mulheres e a ficção produzida, assim como a ficção escrita Enfrenta a família e a sociedade para pôr em prática seus
sobre elas. prazeres, sua desenfreada vaidade e seu materialismo; deixa
sempre bem clara a sua preferência pela vida terrena como se
Resumo da obra observa na narrativa em alguns momentos em que faz enormes
A obra Blanca Sol foi publicada pela primeira vez no jornal doações, onde tenta mostrar com um gesto aparentemente
La Nación em 1º de outubro de 1888. A narrativa conta uma caridoso diante da sociedade e da igreja o que, na verdade, é mais
história cotidiana; classificada como romance social, pois trata dos um de seus acessos (ou quem sabe excessos). Blanca pertencia a
costumes e deformações da sociedade do século XIX. A autora uma família distinta, porém já sem recursos financeiros. Sua
intencionou fazer uma crítica à sociedade da época; exibe a moral família não lhe deu uma formação imoral, e sim uma educação
de sua sociedade mostrando os vícios e defeitos de um irregular, onde não aprendeu a respeitar os bons costumes e os
aglomerado de pessoas e interesses para que esta mesma convencionalismos da sociedade, para ela, nada disso existia.
sociedade pudesse perceber a situação materialista e opressora Desejava usufruir da vida da melhor forma possível e também
existente. Cabello define o homem e sua natureza moral e desejava um parceiro que a atraísse, mas não foi dessa forma que
espiritual ao analisar o componente social, definindo assim aconteceu. Casou-se com Serafim Rubio, ao qual não demonstrava
também sua missão na literatura. afeto; o fato se deu por necessitar de dinheiro para pagar dívidas
Para dar vida à obra, a autora serviu-se de uma linguagem e despesas suas e de sua família. Achava-o nada interessante, mas
precisa e apurada; manipulando o tempo com muita habilidade o que menos lhe agradava era a sua pequena estatura.
durante a narrativa, sempre trazendo clareza às cenas. Relatando Mas, ainda assim casou-se com ele e para a infelicidade
vidas cotidianas, vidas mutiladas, problemas do mundo moderno… dela, em poucos anos de casamento, já tinha cinco filhos, fato que
Blanca Sol (personagem principal) é impulsiva e se queixava amargamente.
sentimental, é dotada de uma rebeldia individual e egoísta, não Blanca quejábase amargamente de esta fecundidad, que
respeita as regras impostas ao convívio social simplesmente por engrosaba su talle e imperfeccionaba su cuerpo,
considerar seus caprichos mais importantes. impidiéndola ser como esas mujeres estériles, que dan todo
Teve uma criação que a tornou mimada, irresponsável e su tiempo a la moda y conservan la independencia y libertad
de la joven soltera. (CARBONERA, 1889, p. 110)
despreocupada com o mundo, somente lhe interessavam seus
caprichos e uma vida de luxo. Possuía vários admiradores, com os quais sempre flertava,
La educaron como en Lima educan a la mayor parte de las porém nunca foi adúltera. Serafim Rubio é levado à falência por
niñas: mimada, voluntariosa, indolente, sin conocer más conta de sua falta de cuidado com os negócios e também por causa
autoridad que la suya, ni más límite a sus antojos, que su dos exageros de sua esposa. E, diante da evidência de adultério
caprichoso querer. (CARBONERA, 1889, p. 5). que na verdade não foi consumado, termina louco em um
P á g i n a | 228

manicômio. Blanca é agora obrigada a conviver com o desprezo da de prestar culto ao ideal amoroso e na qual a verdadeira vida está
sociedade, a falta de recursos financeiros e filhos para sustentar; associada ao que se saboreia a dois, a relação estável e exclusiva
com isso decide viver em um bairro pobre da cidade. E, para constitui ainda um fim ideal. Essa premissa seria facilmente
resolver seus problemas financeiros, torna-se prostituta. Ao final aplicável a tempos passados porém na atualidade já não ocorre da
da obra deixa a seguinte reflexão: mañana habrá dinero para mesma forma. A relação paradoxal que encontramos nos faz
pagar mis deudas. (CARBONERA, 1889, p.144). Blanca Sol tem entender como os indivíduos celebram hoje com um universo
desejo por um mundo diferente daquele que faz seus sonhos em dominado pelo mercado, onde nem a esfera da intimidade
pedaços… consegue escapar. Numa sociedade onde as necessidades dos
cidadãos estão constantemente em observação e a ser alvo de
Pontos e Contrapontos elaboradas estratégias de mercado. Mas, podemos perceber que
O termo felicidade pode ser associado a muitos conceitos e esse fato tão comum na atualidade também pode ser notado nas
noções, tornando o objetivo de especificá-lo de forma consistente relações do passado; onde pessoas precisam “ter para ser”, é
e abrangente uma tarefa muito difícil de ser levada a cabo. necessário cada vez mais estar à frente como se vivêssemos em
Encontramos um dos vários sentidos dados ao termo no Dicionário uma competição, é preciso ostentar...
de Filosofia de José Ferrater Mora4: As receitas de felicidade espalhar-se-iam nas áreas da
[...] a felicidade não tem sentido sem os bens que fazem alimentação, do amor, da comunicação, da educação dos filhos e
felizes e tendeu-se para distinguir entre várias espécies de da produção de sentidos em torno da felicidade. Tal busca levaria
felicidade: uma felicidade bestial, não é felicidade senão a uma contínua produção de dilemas e à necessidade de
aparente; uma felicidade eterna, que é a vida reinvenção da felicidade e da busca pela alegria de viver, o que
contemplativa, e uma felicidade final, que é a beatitude…
nem sempre poderá ser dado ao homem como consequência de
Santo Agostinho falou de felicidade como fim de sabedoria;
suas buscas.
a felicidade é a possessão do verdadeiro absoluto, quer
dizer, de Deus, todas as demais felicidades se encontram Na obra Blanca Sol vemos retratado esse fato na cena onde
subordinadas àquela. (MORA, 2001, p. 109) a protagonista está sempre atenta procurando impressionar os
outros com adornos que demonstram riqueza e consumismo.
Desde os antigos gregos, o ser humano vive em busca do Na obra Blanca Sol vemos retratado esse fato na cena
grande segredo da felicidade, na eterna procura do que o fará feliz abaixo, onde a protagonista está sempre atenta procurando
e satisfeito com a sua vida. Se pensarmos na felicidade associada impressionar os outros com adornos que demonstram riqueza e
ao amor, é possível afirmar que em uma sociedade que não cessa consumismo.

4
Filósofo espanhol que estudou na Universidade de Barcelona; participou da
Guerra Civil Espanhola e ficou exilado na França.
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Decían que Blanca al bajar del coche o al subir el peldaño de No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo,
una escalera se levantaba con garbo y lisura el vestido para corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo
lucir el diminuto pie, y más aún la torneada pantorrilla. humano e sua vida mental. Existem certos homens que não
¡Mentira! Blanca se levantaba el vestido para lucir las ricas contam com a admiração de seus contemporâneos, embora
botas de cabritilla, que por aquella época costaban muy a grandeza deles repouse em atributos e realizações
caro, y sólo las usaban las jóvenes a la moda de la más completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da
refinada elegancia. (CARBONERA, 1889, P. 9). multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor
que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses
Aqui vemos a ostentação como o motivo que induz ao
grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa
consumo, dando início à era do bem-estar, onde o acesso ao com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias
conforto, satisfação dos prazeres passa a ser a principal motivação existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas
para a felicidade. As compras são o ópio da sociedade que, quanto ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos
mais isolada e frustrada com a solidão, tédio do trabalho, de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples
fragmentação da mobilidade social, segue buscando o consolo na assim (FREUD, 1997. P.81).
felicidade imediata proporcionada pelas mercadorias. Ou seja, Não comprar ou substituir, o que deixa o ser humano em
consumo como forma de fazer transparecer a condição de
êxtase e prazer, é estar constantemente insatisfeito e ultrapassado
felicidade propiciada pelas novas experiências.
em relação ao o que o mundo oferece ou sugere.
A felicidade, substituída pela satisfação de desejos nunca
A alienação do mundo moderno, com o desejo de consumo
aplacáveis, jamais é experimentada. O que nos resta é a ansiedade
desenfreado que causa em muitas pessoas nos dias atuais, a
da felicidade. Segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
alienação e o consumismo, também foram representados na obra
tornar a si mesmo vendável é uma das tarefas mais importantes
de Cabello. A protagonista sempre está adornada de forma
que as pessoas têm numa sociedade de consumo, além de
luxuosa e cercada de belos objetos, o que a faz sentir forte e com
conquistar a felicidade. Ainda segundo o sociólogo, a felicidade é
a certeza de despertar a admiração e o afeto dos que a cercam. É
o principal objetivo da sociedade de consumo, ou seja, os homens
um exemplo de vida esvaziada que tenta suprir seus anseios
vivem para ser felizes por meio das coisas que adquirem,
através do consumismo vazio e mordaz, muitas vezes levando à
paradoxalmente, por meio daquilo que descartam.
mentira, ao desengano e à falência. Ela leva uma vida conturbada,
Em Freud vemos que ao questionar os padrões avaliativos
proporcionada pela falta de capacidade de lidar com o mundo real.
dos homens o autor alega que comumente o ser civilizado valoriza O drama em que vive é resultado dos seus desejos sem limites e
fatores como poder, sucesso e riqueza, deixando de lado o que sua insatisfação diante da vida. Sabota a sua própria felicidade ao
realmente é importante na vida. Sobre sua conclusão o autor
tentar com que o mundo se adapte aos seus ideais e caprichos. É
reflete:
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incapaz de perceber a realidade com exatidão, confunde seus contemporâneo está abandonado ao seu próprio aparelho de
desejos com a vida objetiva, residindo aí a sua falta de sensatez e sentido, de modo que tal aparelho tem, ao mesmo tempo, grande
grandeza que na obra se produz uma mistura de ilusão e realidade, facilidade de conceder e descartar sentido nas “relações
ou seja, é tão importante o que acontece de fato quanto o que amorosas”.
passa na imaginação dela. O homem moderno, ávido por relacionar-se, ao mesmo
A mãe de Blanca demonstrava com frequência que uma tempo em que busca uma relação, e desta maneira repudia a
fortuna por formar não vale mais que uma fortuna já formada. Em solidão, não abre mão de sua liberdade, e para manter a liberdade
outro momento Blanca é incitada pela mãe a desfazer o mantêm a relação, entretanto com uma outra configuração. Desta
compromisso com seu noivo por saber que os negócios dele não maneira, temos um novo modelo de relação amorosa: é a relação
vão bem. líquida, frouxa.
La madre de Blanca demostrábale con frecuencia que una
fortuna por formar no vale lo que una fortuna ya formada y Conclusão
trataba de alejarla de sus simpáticos sentimientos, y con A felicidade, que de uma parte do paradoxo, prazer-
gran contentamiento de la madre, la hija fue de esta misma desprazer, satisfaz o homem na medida em que supera um
opinión. Contribuyó no poco en estas positivistas reflexiones
sofrimento. Os fluídos movem-se facilmente, quer dizer:
de Blanca, el haber visto que la suerte principiaba a serle
simplesmente “fluem”, “escorrem entre os dedos”,
adversa a su novio; varios de sus negocios que él con
mejores esperanzas emprendiera no llegaron a feliz “transbordam”, “vazam”, “preenchem vazios com leveza e
término. [...] Blanca informada por él mismo de las fluidez”. Muitas vezes não são facilmente contidos, como por
dificultades y las luchas que sostenía, en vez de consolarlo y exemplo, em uma hidrelétrica ou num túnel de metrô, lugar que
alentarlo, se dio a considerar que si su novio la ofrecía se pode observar as goteiras, as rachaduras ou uma pequena gota
mucho amor, en cambio la ofrecía pocas esperanzas de numa fenda mínima. Mundo identificado como líquido, em que as
fortuna. (CARBONERA, 1889. p.10). relações se estabelecem com extraordinária fluidez, que se
Ela informada pelo próprio noivo sobre as dificuldades, em movem e escorrem sem muitos obstáculos, marcadas pela
vez de o consolar, simplesmente considerou que este lhe oferecia ausência de peso, em constante e frenético movimento. O amor
poucas esperanças de fortuna… E assim agiu a protagonista, também passa a ser vivenciado de uma maneira mais insegura,
criando um mundo no qual as mazelas financeiras que conheceu com dúvidas acrescidas à já irresistível e temerária atração de se
em sua infância fossem eliminadas e, foi além, se empenhou para unir ao outro. Nunca houve tanta liberdade na escolha de
que o mundo imaginário se tornasse real. parceiros, nem tanta variedade de modelos de relacionamentos,
A fragilidade dos vínculos humanos são misteriosos, e, no entanto, nunca os casais se sentiram tão ansiosos e prontos
conflitantes e inseguros na medida em que o homem para rever, ou reverter o rumo da relação. Quando, com toda
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justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, FREUD, Sigmund. F. Sigmund: O Mal-Estar na Civilização. Rio de
por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um Janeiro: Editora Imago, 1997.
plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de
tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado;
quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de
sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito
justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos
esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações
tais, que satisfaçam as necessidades e escapam a nossas críticas.
Mas talvez possamos também nos familiarizar com a ideia de
existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se
submeterão a qualquer tentativa de reforma.

Referências

AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura


ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011.

CABELLO DE CARBONERA, M. Blanca Sol. Edición Crítica de Oswald


Voysest. USA: Stockecero, 2007.

______. Blanca Sol (Novela Social). Lima: Carlos Prince, 1894.

CALVINO, Í. Seis Propostas para o Próximo Milênio. Trad. Ivo


Barroso. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia – Vol. 1. Buenos Aires:


Editorial Sudamericana, 1965.
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UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS TEXTOS UNAMUNIANOS Miguel de Unamuno afirma que o vocábulo nivola foi criado
NIEBLA E SAN MANUEL BUENO, MÁRTIR por Goti no prólogo de seu texto Niebla, mas que sua obra é uma
Cristiane Agnes Stolet Correia novela, o que nos leva a perceber a genialidade do autor como
UEPB subterfúgio aos rótulos da crítica literária. Se Niebla não atende
aos padrões literários vigentes na época e passa a ser alvo da pior
O pensador espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) crítica literária (visto que esta se preocupa muito mais com um
sempre defendeu a necessidade de a literatura inquietar, julgamento que com a descoberta de novas possibilidades), o meio
provocar, suscitar novos questionamentos e caminhos. É nesta que Unamuno encontra para não ser incomodado com bobagens
direção que se lança o presente trabalho. Tendo como inquietação é dar um nome diferente ao que é diverso, daí o termo nivola.
geral e inicial, a necessidade de se comparar dois romances do Ainda que o autor saiba que se trata de uma novela e deixa isto
autor escritos em momentos bem diferentes de sua vida (Niebla - claro em várias passagens, a criação de um substantivo para um
1914 e San Manuel Bueno, mártir - 1931), mas que se irmanam por novo estilo novelístico, soa bastante significativo.
se alimentarem do mesmo sentimento trágico unamuniano, surgiu Ao atentarmos para a formação do neologismo nivola,
uma grande inquietação posterior, que ganhou ainda mais força percebemos que são dois os termos que compõem o novo
com a defesa explícita de Unamuno (em seu texto Los gigantes) da vocábulo: ni e vola. Em uma primeira mirada, parece que são duas
morte de uma suposta verdade histórica em prol do nascimento palavras do vocabulário espanhol que dão forma ao novo termo:
da verdade mítica. Trata-se aqui de pensar o resgate unamuniano ni (partícula de negação) e volar (verbo “voar”). Entretanto,
de dois mitos em suas obras: Orfeu e Lázaro, considerando conhecendo o pensamento do autor espanhol disperso e unido em
principalmente, em um primeiro momento, que ambos remetem vários textos seus, soa-me no mínimo estranha esta constatação,
à ida ao mundo dos mortos e ao retorno daí. considerando que o escritor defende justamente um movimento
rumo ao não limite, à inesgotabilidade das possibilidades, à
1 Niebla – a denominada nivola eternização, então, como achar que a nivola apontaria para um
No prólogo de Niebla, o personagem unamuniano que não voo? O não voo poderia ser visto como a visão unamuniana de
assina e se diz escritor deste, Víctor Goti, declara que a obra boa parte da literatura produzida até então, mas não da obra que
prologada constitui uma nivola (na sua perspectiva) e revela o ele quer instaurar. Então, provocada pelo novo termo, fui buscar
desejo unamuniano de escrever uma bufonada trágica / tragédia outras possibilidades etimológicas.
bufa, onde o bufo/grotesco e o trágico não estejam simplesmente Vola remete-nos ao latim, ao velle (querer / desejar) e ni
justapostos, mas fundidos, confundidos (UNAMUNO, 2007). Cabe, significa “eu” na língua basca. Assim, nivola remete ao que o
portanto, tentar adentrar tais considerações na abertura da obra. escritor enquanto um “eu” quer, não a normas, a leis impostas por
Comecemos pelo termo nivola. um gênero. E o que Miguel de Unamuno quer se constitui como
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uma bufonada trágica ou tragédia bufa, expressões também “¡Pasar el rato!” Passar o rapto, o arrebatamento, sem ser
sinalizadas pelo autor para o repensar humano-literário. arrebatado, eis o que seria matar o tempo. Já nos encontramos em
um determinado momento histórico. Portanto, falar em rapto em
2 A bufonada trágica / tragédia bufa termos temporais seria ser raptado, retirado, de alguma maneira,
Sabendo-se que “o bufão é representado na maioria das do tempo em que nos encontramos historicamente. Mas o cômico
dramaturgias cômicas”, sendo considerado, inclusive, “vertigem não se deixa arrebatar. Inserido em seu tempo, vai no embalo das
do cômico absoluto” (PAVIS, 1999, p. 34), a bufonada trágica ou passagens de momentos e, assim, mata o tempo. O cômico é
tragedia bufa consiste na fusão do trágico e do cômico. aquele que já está determinado historicamente, que permanece
No Prólogo a San Manuel Bueno, mártir, y tres historias ancorado fortemente no seu momento histórico sem se permitir
más, os comentários sobre o que seria o cômico e o trágico podem distanciar-se deste, ser raptado. Esta fixa colagem ao tempo
nos ajudar a adentrar a questão. “atual” acaba por matar o tempo. Percebemos, assim, que o
¡La cuestión es pasar el rato! Etimológicamente, el rato es cômico é aquele que cristaliza a primeira noção temporal
el rapto, el arrebato. Y la cuestión es pasar el arrebato, pero apresentada por Abbagnano, que entende o tempo como algo
sin dejarse arrebatar por él, sin adquirir compromiso serio, mensurável, medido, determinado, matando, então, a terceira
sin comprometerse. De otro modo le llamamos a esto matar noção temporal apresentada anteriormente (o tempo como
el tiempo. Y matar el tiempo es la esencia acaso de lo
estrutura de possibilidades).
cómico, lo mismo que la esencia de lo trágico es matar la
Com relação ao trágico, a essência deste, conforme Miguel
eternidad (UNAMUNO, 2009, p. 204).
de Unamuno, é matar a eternidade. Eis os “dois significados
Averiguemos, primeiro, a essência do cômico para fundamentais” para eternidade: “1.o duração indefinida no tempo;
Unamuno: matar o tempo. Mas como pensar o sentido de tempo 2.o intemporalidade como contemporaneidade” (ABBAGNANO,
neste contexto? Nicola Abbagnano nos diz que, para o vocábulo 2007, p. 441). O trágico, pois, mataria a “duração indefinida do
tempo, “podemos distinguir três concepções fundamentais: 1.a o tempo” e a “intemporalidade”. Bom, se o trágico mata a “duração
tempo como ordem mensurável do movimento; 2.a o tempo como indefinida do tempo”, ele também vai apreender o tempo de
movimento intuído; 3.a o tempo como estrutura de modo definido, determinado (assim como o cômico). A morte da
possibilidades” (ABBAGNANO, 2007, p. 1111). Não há a pretensão primeira noção de eternidade ainda ganha força com a morte da
aqui de se discorrer filosoficamente sobre as três concepções segunda noção (intemporalidade como contemporaneidade).
temporais (o que o autor já faz em seu dicionário), mas sim de se Conforme HOUAISS (2008, p. 428), intemporal significa o
apropriar da primeira e da terceira concepção para buscar “que não varia em função do tempo, que está fora de uma dada
apreender o cômico, o trágico e, consequentemente, a bufonada realidade”. Mas o prefixo in denota “movimento para dentro”
trágica ou tragedia bufa. (BECHARA, 2004, p. 366). Faz-se mister, portanto, perguntar: como
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relacionar o “que está fora de uma dada realidade” com exatamente por isso, exatamente através desse
“movimento para dentro” do tempo? E este último com o “que deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do
não varia em função do tempo”? Só faz sentido essa relação se que os outros, de perceber e apreender o seu tempo
entendemos o intemporal, o contemporâneo na perspectiva (AGAMBEN, 2009, p. 58).
unamuniana de atualidade permanente. A colagem total ao tempo em que se está acaba por
O que está dentro do tempo, o intemporal, não vai variar dificultar ou até mesmo impedir o reconhecimento temporal de
em função deste, está fora de uma dada realidade, justamente modo mais abrangente e profundo. A excessiva proximidade
porque a noção de eternidade reside na abertura histórica impossibilita uma visão mais ampla, condenando o campo de visão
temporal, onde passado, presente e futuro se encontram, onde a um horizonte extremamente pequeno. “[O] contemporâneo [...],
não há realidade, mas real enquanto potência e, portanto, a dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e
atualidade é permanente. O movimento para dentro do tempo de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de
pressupõe uma ruptura na realidade, uma abertura abismática modo inédito a história” (AGAMBEN, 2009, p. 72). Ora, a relação
desde o presente histórico, a permanência e a inesgotabilidade das com os outros tempos só pode dar-se de maneira profícua se há
possibilidades. Concluímos, assim, que o trágico, matando a não só proximidade (inevitável), mas também distanciamento.
eternidade, o intemporal, o contemporâneo, também mata o Portanto, somente na fusão trágico-cômica dar-se-ia a
tempo enquanto estrutura de possibilidades. O somente trágico e manifestação do contemporâneo. É nesta fusão, pois, que
o somente cômico matam o tempo enquanto estrutura de proximidade e distanciamento se encontrariam. Proximidade, por
possibilidades justamente por aderirem ferrenhamente ao já se estar inserido em seu tempo, mas não excessiva, mediada por
momento histórico “atual” em que se encontram, embora cada um um distanciamento que viabilize uma nova visão, que permita ver
a seu modo. Mas se nem um nem outro isoladamente dá conta do mais profundamente seu tempo para nele atuar de modo próprio
contemporâneo para Unamuno (vale lembrar que ele defende a e criativo.
fusão dos dois) e ambos residem no apego à realidade do Tanto os personagens considerados somente trágicos ou
momento em que se encontram, o que exatamente o autor está somente cômicos na obra de Miguel de Unamuno encontram-se
sinalizando? O que implica a noção de contemporaneidade presos ao seu tempo sem conseguirem distanciar-se efetivamente
enquanto atualidade permanente? Como reconhecê-la em uma deste, mas apenas vislumbrar a fresta das possibilidades. Todos
obra? Como encontrá-la? Agamben vai ao encontro de Unamuno temem cair no abismo do possível. Não só Emeterio, o cômico, “el
ao apontar a dupla correnteza contemporânea:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é
verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide
perfeitamente com este, nem está adequado às suas
pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas,
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ahorrativo, no caía” 1 (UNAMUNO, 2009, p. 82), mas também a com a cronologia, no a-histórico para lidar com o histórico
trágica Elvira (de Tulio Montalbán y Julio Macedo) que reconhece (ALBERTO PUCHEU, original, cedido pelo autor).
a sua atração aterradora pelo abismo (na figura de Julio Macedo,
aquele que existe como homem “de carne e osso”, mas também Falta ao homem trágico e ao homem cômico colocar um pé
como memória viva de seu povo, como o lendário Tulio Montalbán na extemporaneidade / intemporaneidade (conforme definição
). Eis o diálogo entre ela e seu pai após o anúncio da chegada de anterior), mas o colocar um pé onde não se sente um chão é
Julio Macedo: arriscar cair no abismo. A atualidade permanente de Miguel de
─ Ay, padre, yo no sé…, no sé si tendré fuerzas…, ese hombre Unamuno é o contemporâneo de Agamben, tal qual trabalhado
me aterra… por Alberto Pucheu:
─ ¡Ese hombre te atrae! O contemporâneo é o ponto tensivo de fratura entre a
─ ¡Como un abismo…! atualidade na qual estamos lançados e a dinâmica inatual
(UNAMUNO, 2009, p. 182). na qual também estamos lançados sem poder apreendê-la.
Enquanto símbolo do contemporâneo, enquanto aquele
Inúmeros são os personagens trágicos e cômicos que veem que deve “pagar a sua contemporaneidade com a vida”, o
o abismo, mas demonstram medo de nele cair. Presos a uma dada poeta, como o filósofo, fixando o olhar em seu tempo sem
realidade, enxergam o lugar das possibilidades e sofrem com não que possa voltar para tempos pretéritos senão através de
conseguirem se deslocar do tempo em que se encontram, do lugar sua contemporaneidade, flagra a fratura do tempo,
conflitivo de suas entranhas. Ambos, tanto a personagem (a buscando suturá-la ou soldá-la com seu próprio sangue.
pessoa) trágica como a cômica, não podem participar de uma zona Sutura ou soldagem líquida e, consequentemente,
de conforto ditada pelo provérbio “o que os olhos não veem, o irrealizável, impossível (Original, cedido pelo autor).
coração não sente”. Inquietam-se por enxergar a abertura
temporal contemporânea e sofrem por permanecerem onde O poeta e filósofo Miguel de Unamuno busca uma
estão. Se, portanto, uma obra somente trágica ou cômica não bufonada trágica ou uma tragédia bufa, onde o fazer poético só
permite a encontraria espaço na fratura abismática temporal. A busca
fabricação de algum distanciamento, é preciso [...] ir além unamuniana se perfaz no deslocamento da realidade para o real,
de si e de seu tempo, romper com ele. [...] Trata-se, então, ou seja, do já dado (de onde apenas se pode visualizar a fenda
de, desde a atualidade do tempo, conseguir colocar um pé temporal) para o potencial (a própria fenda). Missão vital que, de
na extemporaneidade para lidar com o tempo presente, na acordo com Agamben, tal qual lido por Alberto Pucheu, paga-se
inatualidade para lidar com o atual, no anacrônico para lidar com sangue, perfazendo-se na sua condição de impossibilidade.

1
“O poupador, não caía”. Vale notar que Emeterio era aquele que queria
poupar-se em todos os sentidos.
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Missão vital que, para Miguel de Unamuno, implica a queda no o peito da mãe (vale notar que anteriormente Augusto vinha
abismo, também impossível em vida por acarretar a morte com os pensando em sua mãe, já morta), compadece-se da situação de
impactos da queda. Mas é justamente esta postura que lança Don abandono na qual o animal se encontra e resolve levar o animal
Miguel na eternidade, já que, para o autor, “quem não aspira ao para viver com ele em sua casa. Assim que chega a casa com o
impossível não fará nada factível que valha a pena” (UNAMUNO, animalzinho, pede ao criado Domingo que traga leite para o filhote
1996, p.269). No posicionamento diante do impossível, na busca e, ao alimentá-lo com uma espécie de mamadeira, batiza-o de
da fusão trágico-cômica em sangue, emerge a contemporaneidade Orfeu, sem sabê-lo por que, conforme as indicações na narrativa.
de Miguel de Unamuno, que se perfaz no universo íntimo de cada É interessante perceber que o batismo do nome de Orfeu
um. (vale enfatizar que a palavra “batismo” é usada pelo autor) se dá
no momento de contato com o primeiro alimento ingerido pelo ser
3 O íntimo a partir dos mitos de Orfeu e Lázaro vivo após seu nascimento. Tal opção já me parece bastante
O romance Niebla é o mais conhecido do autor e muita significativa. É no sugar o leite (que remete diretamente ao
coisa já foi dita a respeito, mas pouco se deteve no que Unamuno maternal, portanto, ao nascimento) que o cachorro é reconhecido
considera fundamental: o íntimo de seus personagens. Sabendo como Orfeu, como aquele que foi capaz de reunir em si o poder de
que o espanhol conhecia profundamente a língua e a cultura grega curandeiro, músico e profeta, como veremos mais adiante. Vale
(tendo em vista que era catedrático de grego na Universidade de destacar ainda o uso do termo “batismo”, que remete ao
Salamanca), a nomeação de um de seus personagens como Orfeu cristianismo em nossa cultura. Ao tomar o leite, dá-se uma espécie
certamente não é aleatória. Neste caso (como em tantos outros), de unção do filhote, que passa a ser sentido como Orfeu por
o nome revela muito do que o autor quer trazer como realidade, Augusto. Já nesta passagem, é possível perceber a junção de
portanto, como íntimo, inclusive de si mesmo, considerando a símbolos gregos e cristãos no cachorro. Tal fusão é bastante
revelação constante unamuniana de que todos os seus comum na obra unamuniana, e muito reveladora.
personagens provêm de si, de que ele é pai e filho A partir do momento em que Augusto leva Orfeu para sua
simultaneamente de todos eles. O caso aqui, no entanto, se casa, aquele passa a compartilhar com este todos os seus
complica um pouco mais ao tomarmos conhecimento de que sentimentos e pensamentos. É claro que podemos pensar neste
Orfeu é um cachorro. Vale aclarar rapidamente o contexto de procedimento como uma estratégia do autor de nos revelar o mais
Orfeu na obra em questão. verdadeiramente possível a vida íntima do protagonista. Tratando-
O protagonista de Niebla, Augusto Pérez, em um de seus se de um cachorro, não de um ser humano, é como se o animal se
passeios, escuta ruídos lastimosos, “como de um pobre animal” encarnasse em outro eu do personagem, já que este não precisa
(2007, p. 89) e, ao procurar de onde vem o lamento animalesco, “medir” as palavras, nem se preocupar com uma equivocada
descobre um filhote de cachorro, já imaginando que este buscava interpretação do outro. Acreditando talvez que o cachorro não
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entenda verbalmente nada (por não conhecer e usar a linguagem algumas considerações apontadas por Junito Brandão em seu
humana e nem ser um homem), Augusto sente-se completamente Dicionário Mítico-Etimológico. Assinalarei alguns pontos
à vontade, livre para dizer tudo o que lhe vem. E este outro eu de ressaltados pelo estudioso. Tomemos primeiramente o seguinte
Augusto projetado no cachorro chama-se Orfeu. fragmento do dicionário:
Cabe dizer ainda que Augusto morre no romance e o autor Orfeu sempre esteve vinculado ao mundo da música e da
opta por não contar o que sucede com mais nenhum personagem, poesia: poeta, músico e cantor célebre, foi o verdadeiro
somente com Orfeu. Niebla termina com uma “oración fúnebre criador da “teologia” pagã. Tangia a lira e a cítara, sendo que
por modo de epílogo”, proferida pelo cachorro Orfeu ao lado do passava por ser o inventor desta última ou, ao menos, quem
lhe aumentou o número de cordas, de sete para nove, numa
corpo morto de Augusto. Após a oração do cachorro, este também
homenagem às Nove Musas (BRANDÃO, 1991, p. 196).
morre, talvez para tentar trazer seu amo de volta do mundo dos
mortos, assim como tentou fazer Orfeu com sua Eurídice no mito Percebe-se já a partir destas considerações iniciais como o
grego. Esta possibilidade de interpretação mostra-se muito mais simbolismo do mito é extremamente rico. Orfeu encantava o
forte ao conhecermos a vida e obra do autor, que afirma mundo com sua arte, criava novos instrumentos, novos sons,
incansavelmente querer ser imortal enquanto homem de carne e novas realidades, em consonância com as Musas Inspiradoras,
osso, nisto consiste seu sentimento trágico da vida: em querer algo como aponta Brandão. Seu talento e sabedoria eram tantos que
que se mostra como uma impossibilidade racional. A luta entre o era considerado “educador da humanidade”. “Iniciado nos
homem racional e o homem de fé faz-se inesgotável, infindável. Já ‘mistérios’, completou sua formação religiosa e filosófica viajando
que não existe a possibilidade de imortalizar-se como homem de pelo mundo. De retorno ao Egito, divulgou [...] os cultos de Dioniso
carne e osso (desejo unamuniano e, para ele, o mais humano de e os mistérios órficos, prometendo, desde logo, a imortalidade a
todos), sofre-se com o contentamento da imortalidade na quem neles se iniciasse” (BRANDÃO, 1991, p. 196). Tais questões
memória de pessoas, na memória de um povo. mitológicas reforçam a busca de imortalidade, que se concretiza
Em Niebla (como em muitas obras unamunianas), o mais fortemente em Niebla com a criação do personagem Orfeu
caminho encontrado por Unamuno para imortalizar-se emerge no contexto mencionado.
não só por todo seu sentimento-pensamento adentrado, mas De acordo com o mito grego, a amada de Orfeu, Eurídice,
também por se criar como personagens e, neste caso específico, morre, e ele resolve trazê-la de volta à vida. Eis a passagem em que
os contornos ganham mais complexidades ao haver os Brandão descreve este momento e os seguintes:
desdobramentos no protagonista Augusto, em Orfeu e em Inconformado com a perda da esposa, o grande vate
Unamuno (que se apresenta como o escritor-personagem na resolveu descer às trevas do Hades, para trazê-la de volta.
obra). Foquemos, no entanto, novamente em Orfeu, recuperando Orfeu, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal
forma o mundo ctônio, que até mesmo a roda de Exíon
a tradição grega suscitada pelo nome próprio. Tomarei como base
parou de girar, o rochedo de Sísifo deixou de oscilar, Tântalo
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esqueceu a fome e a sede e as Danaides descansaram de permaneceu intacta e passou a servir de oráculo, reforçando a
sua faina eterna de encher toinéis sem fundo. Comovidos força profética que tinha em vida.
com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone Conclui-se, deste modo, que o mito grego de Orfeu
concordaram em devolver-lhe a esposa. Impuseram-lhe, destaca-se por seu poder como curandeiro, músico e profeta.
todavia, uma condição extremamente difícil: ele seguiria à
Como curandeiro, ressalta-se a comunhão com a natureza; como
frente e ela lhe acompanharia os passos, mas, enquanto,
músico, o criador artístico; como profeta, a previsão, o
caminhassem pelas trevas infernais, ouvisse o que ouvisse,
pensasse o que pensasse, Orfeu não poderia olhar para trás, conhecimento do que ainda não se mostrou. Neste sentido, o
enquanto o casal não transpusesse os limites do império das Orfeu unamuniano representa o animal comum criativo, capaz
sombras. O poeta aceitou a imposição e estava quase talvez de lançar-se ao mundo dos mortos para resgatar seu amor,
alcançando a luz, quando uma terrível dúvida lhe assaltou o mas desta vez ciente de que o olhar para trás não deve existir. É
espírito: e se não estivesse atrás dele a sua amada? E se os nesta criação agônica do cachorro Orfeu que se lança Unamuno
deuses do Hades o tivessem enganado? Mordido pela em Niebla, tentando garantir sua imortalidade de todos os modos.
impaciência, pela incerteza, pela saudade, pela “carência” e Mas, como Don Miguel é incansável em sua busca agônica, a ida
por invencível póthos, pelo desejo grande da presença de do cachorro Orfeu ao mundo dos mortos (sem se narrar o que
uma ausência, o cantor olhou para trás, transgredindo a acontece depois) não lhe basta. Daí o resgate daquele que é
ordem dos soberanos das trevas. Ao voltar-se, viu Eurídice,
considerado na cultura popular o protetor dos cachorros: São
que se esvaiu para sempre numa sombra, “morrendo pela
Lázaro (conforme sinaliza Câmara Cascudo, 2002). Em Niebla não
segunda vez” Ainda tentou regressar, mas o barqueiro
Caronte não mais o permitiu (BRANDÃO, 1991, p. 196-197). se conta o que acontece após a morte de Augusto e de Orfeu. Se
existe a possibilidade de Orfeu conseguir a ressurreição de si e do
Percebe-se, portanto, que Orfeu foi e voltou do mundo dos outro, como aponta o mito grego, existe também a possibilidade
mortos, e por muito pouco não conseguiu trazer sua amada de da morte esgotar-se em si mesma e finalizar com os seres. Lutando
volta à vida, ou seja, ressuscitá-la. Por ter violado o interdito, contra esta última possibilidade, insurge a simbologia de Lázaro
olhando para trás, apegando-se ao que já foi, mirando no oculto, Carballino (remetendo ao Lázaro bíblico ressuscitado) na obra San
perdeu sua chance de ressuscitar o amor de sua vida. Ao voltar Manuel Bueno, mártir.
sozinho do Hades, Orfeu já não é mais capaz de encantar com sua San Manuel Bueno, mártir constitui o último romance escrito
música como antes. Fiel ao seu amor, sem poder esquecer Eurídice por Miguel de Unamuno. Nele, Ángela Carballino (irmã de Lázaro)
e talvez carregando intimamente a culpa por não a ter a seu lado conta a história do padre Manuel, que considera seu pai espiritual.
(já que desobedeceu a imposição oriunda do reino dos mortos), Seria um relato comum sobre a vida de um bom homem religioso,
despreza todas as outras mulheres e assim sucumbe. Brandão que passa pelos trâmites para canonização após sua morte, se não
destaca duas versões deste momento do mito. Em ambas, Orfeu é fosse um segredo revelado a Lázaro: Manuel não é capaz de
esquartejado pelas mênades, pelas bacantes. Mas sua cabeça
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acreditar no que professa, sofre, agoniza por não acreditar na vida totalmente desgarrado da vida na igreja, começa não só a
eterna, sentindo-se constantemente impelido ao suicídio, já que frequentá-la como a auxiliar o padre em todos os seus afazeres. Se
acha que este acabaria com seu tormento. havia uma luta agônica entre o que o padre sentia, o que dizia e o
Ángela inicia seu relato após todos os acontecimentos, após, que fazia, esta agonia passa a ser partilhada com Lázaro. O padre
inclusive, a morte de todos, e segue uma ordem temporal Manuel não era capaz de crer, mas era plena doação bondosa em
cronológica para explicar tudo o que vivenciou e viu no que suas ações. E neste empenho reforça-se o diálogo ativo com
concerne à vida do padre e a relação dela e de sua família com ele, Lázaro.
declarando estar usando não só sua própria memória como alguns A conversão de Lázaro se dá, de certo modo, pelo
registros escritos do irmão Lázaro. Interessa-nos agora, no reconhecimento do outro em si. Identificando-se com o padre, já
entanto, o início da aproximação entre Lázaro e o padre. não se pode dizer que está inteiramente sozinho. E assim
Na narrativa, Lázaro era um rapaz que tinha estudado na apresenta a conversão ao povo pela participação do momento da
cidade e retorna ao seu povoado nato extremamente incomodado comunhão. Vale a pena trazer a descrição desta cena:
e relutante com toda a tradição católica ali existente. Além de não Y llegó el día de su comunión, ante el pueblo todo, con el
frequentar a igreja (sendo extremamente criticado por todos da pueblo todo. Cuando llegó la vez a mi hermano pude ver
região, com exceção do padre), não entende o fascínio que o padre que Don Manuel, tan blanco como la nieve de enero en la
Manuel exerce sobre todos. Até que um dia sua mãe, já muito montaña y temblando como tiembla el lago cuando le
hostiga el cierzo, se le acercó con la sagrada forma en la
doente, sendo católica, pede a presença do padre Manuel para a
mano, y de tal modo le temblaba ésta al arrimarla a la boca
extrema unção. O padre então se aproxima de Lázaro e diz:
de Lázaro que se le cayó la forma a tiempo que le daba un
- Dile que rezarás por ella, a quien debes la vida, y sé que
vahido. Y fue mi hermano mismo quien recogió la hostia y
una vez que se lo prometas rezarás y sé que luego que
se la llevó a la boca. Y el pueblo al ver llorar a Don Manuel,
reces…
lloró diciéndose; “ ¡Cómo le quiere! “. Y entonces, pues era
Mi hermano, acercándose, arrasados sus ojos en lágrimas,
la madrugada, cantó un gallo (UNAMUNO, 1996, p. 139).
a nuestra madre, agonizante, le prometió solemnemente
rezar por ella. Alguns detalhes merecem ser destacados. Primeiro, o
- Y yo en el cielo por ti, por vosotros – respondió mi madre, nervosismo visível do padre ao estender a mão com a hóstia a
y besando el crucifijo y puestos sus ojos en los de Don Lázaro, que, por sua vez, acode ao sacerdote, tomando as rédeas
Manuel, entregó su alma a Dios (UNAMUNO, 1996, p. 137). da situação. O povo interpreta o nervosismo do padre devido ao
A partir deste momento a relação entre Manuel e Lázaro grande sentimento que nutre por Lázaro, mas, nós, como leitores
estreita-se. E o vínculo se fortalece ainda mais quando Lázaro tem que penetramos no segredo compartido entre ambos, intuímos
acesso ao segredo trágico do padre. É na morte materna que a que a questão é mais complexa. Pela primeira vez em sua vida, o
solidão lazarenta encontra-se à solidão religiosa. Lázaro, até então padre Manuel encontra-se tendo que exercer a ação central do
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cristianismo católico, diante de seu irmão espiritual, que padece acompanhado dos cachorros também abandonados, é
de sua mesma incapacidade de credulidade. A nudez de seu ressuscitado por Jesus para o retorno à vida em sociedade. Vive,
espírito ali, literalmente diante de seus olhos, revelada no outro e porém, na mais profunda solidão, na solidão de quem retornou da
nos olhos do outro, provocam-lhe o tremor incapacitante da ação. morte. Josué parou o sol, parou o dia para que a luta prosseguisse.
Mas Lázaro, compadecido, auxilia-o também neste momento. Assim, Lázaro Carballino mantém a iluminação do dia na solidão
Vale enfatizar ainda o final da transcrição. Após Lázaro compartilhada com o padre Manuel. Sua luz ganha forma e atua
tomar a hóstia em sua boca, ouve-se o canto de um galo. Da ao ressuscitar-se, ao despertar da loucura da razão, movimento
mesma forma que o nome Lázaro remete a Bíblia, o canto do galo incitado pelo calor do verbo de Manuel.
também o faz. De acordo com Chevalier (1982), “o galo é também No comungar do corpo divino em pão, mesmo sem crer, o
um emblema de Cristo”, residindo nele “o simbolismo solar: luz e Lázaro unamuniano inicia sua mais profunda transformação:
ressurreição”. Tal constatação ilumina-se ainda mais com as morre o homem puramente lógico, tão somente racional, que
palavras que Manuel dirige a Lázaro antes de sua morte: “Sé tu, eram suas chagas mortíferas, sua lepra, para renascer
Lázaro, mi Josué, y si puedes detener el Sol, detenle, y no te verdadeiramente como Lázaro Carballino, como aquele que reúne
importe del progreso” (UNAMUNO, 1996, p. 158), o que se em seu nome próprio, o socorro divino, o espiritual, portanto, e a
coaduna às seguintes afirmações de Lázaro sobre Manuel: força do carvalho, árvore, inclusive, fruto da transformação das
Él me hizo un hombre nuevo, un verdadero Lázaro, un bacantes esquartejadoras de Orfeu (conforme uma das versões do
resucitado […] Él me dio fe. […] fe en el consuelo de la vida, mito), portanto, da natureza, do corpo. A ressurreição do Lázaro
fe en el contento de la vida. Él me curó de mi progresismo. bíblico é total, no sentido que revive o homem de carne e osso. É
Porque hay […] dos clases de hombres peligrosos y nocivos: aí que se lança o criar unamuniano. Ouso dizer que Lázaro
los que convencidos de la vida de ultratumba, de la
Carballino vivifica a simbologia do cachorro Orfeu, mas como
resurrección de la carne, atormentan, como inquisidores
santo, como protetor dos cães, ou seja, como o que pode conferir
que son, a los demás para que, despreciando esta vida como
transitoria, se ganen la otra, y los que no creyendo más que nova vida a Orfeu. Lázaro retorna à vida em sociedade,
en éste […] esperan no sé qué sociedad futura, y se comungando do corpo social (ao aceitar e atuar no seio da
esfuerzan en negarle al pueblo el consuelo de creer en sociedade junto a Manuel) e do corpo espiritual (ao alimentar-se
otro… (UNAMUNO, 1996, p. 162). do corpo de Cristo), fazendo valer a conjunção já empreendida por
seu nome. San Manuel Bueno foi o mártir desta história,
Se o galo aponta um novo dia, um renascimento, é no
testemunhou-a. O trágico é que tudo não passa de uma névoa...
comungar com o povo em Cristo que Lázaro renasce.
Reconhecendo o perigo de qualquer certeza ditadora, renasce
como uma junção bíblica entre Lázaro e Josué. No Novo
Testamento, o leproso Lázaro, marginalizado pela sociedade, mas
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Referências HOUAISS, Antônio. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa.


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CRIANÇA E POESIA: ASPECTOS MITOPOÉTICOS NA OBRA pensar que o texto também é dele. Falamos até aqui dos devaneios
QUANDO AS MONTANHAS CONVERSAM/ CUANDO LOS CERROS que são direcionados à infância e, por isso, deixamos implícito o
CONVERSAN fato de que tal processo ocorre com o ser adulto. Mas será que o
Daiane Lopes processo de sentir, de se emocionar com o texto poético também
UNISC ocorre na criança?
Obviamente, a resposta é afirmativa. Embora percebendo
O texto literário oportuniza o cruzamento, entre tantos o texto de uma maneira diferenciada da forma com o que o adulto
outros cruzamentos, do saber patente e instituído do o recebe, devido à bagagem de conhecimentos culturais que
adulto e o saber latente e natural da criança. É o ambos possuem, a criança se entrega ao texto poético: conhece,
espaço rico de mútua e rica re-alimentação, onde brinca com palavras, com sons, com ritmos e se emancipa. Ora, a
criança e adulto marcam encontro, burlando o tempo, poesia está presente em sua vida desde seu nascimento. O contato
no jogo múltiple desses dois saberes. com as palavras, com sons e ritmos aumenta gradativamente:
Glória Kirinus brincos, acalantos, parlendas, cantigas de roda, adivinhas, trava-
línguas, leitura e dizer de poemas etc. Não é possível imaginar a
Os seres humanos, em todos os processos de significação infância sem poesia!
do viver, possuem uma bagagem de recordações. Com certeza, a A poesia pode desenvolver a personalidade, formar o gosto
infância é uma fase de grande importância na ressignificação de e a sensibilidade, possibilitar à criança o falar e o
suas memórias. Já nos disse Bachelard (1988, p. 119) que “a conhecimento do próprio "eu", ela auxilia a compreensão
infância permanece em nós como um princípio de vida profunda, da comunicação do irracional e do incomunicável,
funcionando como "antídoto" em uma civilização urbana e
de vida sempre relacionada à possibilidade de recomeçar”. É nesse
técnica. O desenvolvimento do gosto da beleza, de um
sentido que entendemos a poesia como uma das possibilidades
gosto pelo ritmo, e o jogo da linguagem asseguram, assim,
para esse recomeço, para esse voltar a ser, voltar a viver. O mesmo seu domínio e levam à consciência ao mesmo tempo
teórico nos fala, também, dos devaneios voltados à infância ao liberadora e lúdica da linguagem, à descoberta de níveis da
considerar que a poesia possui a capacidade de sintetizar a língua e do real. (AVERBUCK, 1988, p. 5).
existência humana.
A descoberta de que a linguagem possui um caráter lúdico
Talvez isso se deva ao par repercussão-ressonância,
e de que é possível adentrar outro mundo, que não o habitual, é a
também criado por Bachelard (1989): a ressonância vista com um
porta de entrada para o estímulo à imaginação. Na verdade, ao
todo incognoscível, e a repercussão, que, ao possuir o caráter
aguçar a percepção do caráter estético presente nos textos, o dizer
variacional, abrange a multiplicidade do sentir. Ao emergir do
poético apresenta uma espécie de refúgio, como nos é ressaltado
criador, determinadas poesias atingem a alma do leitor, fazendo-o
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na citação, de toda a racionalidade imposta pelo mundo pós- autor... Prazerosa, gostosa, lúdica, brincante, se for a
moderno. intenção do autor... (ABRAMOVICH, 1995, p. 67)
A interação com o outro, propiciada pelo texto poético, Obviamente, as intenções dos autores que escrevem para
abre espaço para que a criança perceba que ouvir, ler ou dizer as crianças serão ressignificadas, principalmente se levarmos em
poesia, de fato, é um grande ato de recriar, de ressignificar o texto, consideração a variedade de situações sociais em que a(s)
de atribuir sentido de acordo com suas experiências pessoais. O infância(s) são constituídas e as diferentes culturas em que a
jogo que é estabelecido entre o real e o imaginário provoca a criança, desde que deixou de ser vista como um adulto em
emancipação do ser infante, através da descoberta de que a língua miniatura, interage: familiar, da infância e escolar (BARBOSA,
é um grande conjunto de possibilidades. 2007).
Ainda de acordo com Averbuck (1988), podemos O diálogo estabelecido entre os diferentes textos
considerar que a poesia possui caráter libertador, estimula a produzidos pelos já citados espaços de interação do infante
capacidade de associação, o fluxo da fantasia e é o elemento repercutem de maneira peculiar em cada indivíduo. É por isso que
condutor de camadas do inconsciente. A afirmação, de certo um mesmo texto traz à tona uma pluralidade de significações, que
modo, justifica o argumento de que ela é um dos instrumentos que são admitidas de acordo com as possibilidades de inserção em
auxilia a criança a adquirir o domínio da palavra, pois, como vimos, cada contexto: o do autor, o do texto e o do leitor (ou ouvinte, já
o contato com o texto poético, se dá em distintos níveis de que a poesia ganha espaço antes mesmo do período de
apreensão, a partir das brincadeiras com a poesia folclórica, alfabetização; se insere em uma prática social mais ampla, o
atingindo o conhecimento da “grande poesia”. processo de letramento).
É imprescindível destacar o aspecto lúdico que envolve o Um desses espaços, o escolar, em variadas situações é o
texto poético (ou que, ao menos, deve envolvê-lo). A poesia para responsável por fazer com que o prazer poético se evanesça.
a criança se apresenta como uma grande brincadeira, mas que, Magda Soares (1999) já nos alertou para o fato de que o termo
apesar de promover a diversão, envolve a seriedade. Nesse escolarização é propicio da escola, já que é inevitável que tudo
sentido, a poesia para a criança: aquilo que se integre ao universo escolar seja, por consequência,
[...] tem que ser, antes de tudo, muito boa! De primeiríssima escolarizado. No entanto, nos chama a atenção sobre as
qualidade!!! Bela, movente, cutucante, nova,
possibilidades de uma escolarização positiva e de uma negativa.
surpreendente, bem escrita... Mexendo com a emoção,
Ao tratar da poesia, a autora apresenta uma série de questões que
com as sensações, com os poros, mostrando algo de
especial ou que passaria despercebido, invertendo a forma fazem com que o gosto pelo texto poético seja abolido do universo
usual de a gente se aproximar de alguém ou de alguma infantojuvenil: o uso de poemas para o ensinamento de
coisa... Prazerosa, divertida, inusitada, se for a intenção do conteúdos, a fragmentação e a (des)formatação dos textos ao
autor... Prazerosa, triste, sofrente, se for a intenção do
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passarem para a página do livro didático, o acesso limitado nas A poesia pode ser a chave que abra a porta de um caminho
bibliotecas, entre outros fatores. que é individual. Um caminho encantado, onde somente a criança
Parece que, com a chegada da “idade da razão”, quando a tem a possibilidade de construir o seu eu ou de remodelá-lo cada
criança passa a vivenciar o mundo racional e objetivo apresentado vez que encontra um outro ser: o ser de um autor ou um ser fictício
pela instituição de ensino, ela não possui mais o direito de que ela será capaz de criar e de acreditar.
imaginar, de vivenciar outros mundos, mesmo que ficcionais. O
infante inicia seu processo de conhecer e de produzir coisas úteis Infância: um espaço mitopoético
e a poesia precisa estar a serviço desses critérios. O núcleo poético do ser humano certamente está
Mesmo deixando falar livremente as crianças, mesmo constituído pelos seus próprios mistérios. Por esse
observando-as sem censura, enquanto elas têm a total sentido intuitivo que nos conecta à escuta misteriosa
liberdade de seu jogo, mesmo escutando-as com a terna da vida. Não seria esta a maneira de conciliar-se com o
paciência de um psicanalista de crianças, não se atinge Aqui Ainda e Agora Também, e preparar-se para
necessariamente a pureza simples do exame
receber a criança da pós-modernidade?
fenomenológico. Somos demasiado instruídos para isso e,
Glória Kirinus
por conseguinte, demasiado propensos a aplicar o método
comparativo. Uma mãe se sairia melhor, pois vê no seu filho Se pararmos para refletir sobre a história do conhecimento
um incomparável. Mas, ai de nós!, uma mãe não sabe fazê- e do modo de pensar do homem, não será difícil chegarmos à
lo por muito tempo... Assim que a criança atinge a “idade da conclusão de que a mitologia foi uma constante no que tange ao
razão”, assim que pede seu direito absoluto de imaginar o seu progresso e desenvolvimento. “Os desenhos paleolíticos da
mundo, a mãe assume o dever, como fazem todos os
pré-história, as palavras oraculares, as fórmulas mágicas, as rezas,
educadores, de ensiná-la a ser objetiva – objetiva à simples
os encantamentos, os cânticos de guerra e de trabalho agrícola
maneira pela qual os adultos acreditam ser “objetivos”.
Empanturramo-la de sociabilidade. Preparamo-la para sua denotam uma identidade mito-poética no ser humano”. (KIRINUS,
vida de homem no ideal dos homens estabilizados. 1998, p.18) Conforme a estudiosa, a própria capacidade de
Instruímo-la também na história de sua família. Ensinamos- entever a presa morta e de pintá-la representava o desejo de fazer
lhe a maior parte das lembranças da primeira infância, toda com que o fato se transformasse em realidade, de pré-figurar uma
uma história que a criança saberá contar. A infância – essa ação que se concretizaria. E seria essa poeisis de um poder mágico
massa! – é empurrada no espremedor para que a criança o que traçaria o perfil do artista, do criador e do poeta.
siga direitinho o caminho dos outros. (BACHELARD, 1988, p. Para Kirinus, o primeiro artista, ao lado do mágico
101-102). propriamente dito e do curandeiro, seria o artista-mágico,
considerado como o primeiro profissional, primeiro poeta. Além
disso, a autora ressalva, também, que o próprio pensamento
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mágico ou simbólico, ao ser convertido em linguagem, se cobre de Cabe salientar ainda, a existência da mitologia enquanto
metáforas, principalmente em relação aos primeiros falantes. necessidade, pois é inerente à linguagem. O mito é condicionado
A expressão da metáfora, na tentativa que o homem faz de e mediado pela atividade da linguagem. O mundo mítico, o mundo
nomear, compreender, interpretar, temer, amar ou da ilusão, só é explicável quando se descobre o original e o
epifanizar os objetos, seres e fenômenos eu faziam parte da necessário autoengano do espírito, quando se faz indispensável
sua realidade, serve de trajeto entre o pensamento mágico uma atitude de afirmação de um realismo ingênuo. Nesse sentido,
(imagem) e o pensamento racional (linguagem). Os
Max Muller apresenta a teoria da conexão entre linguagem e mito.
exemplos reveladores de analogias, metáforas,
Citado por Cassirer (2009, p. 19), Muller (1876) nos diz que
onomatopeias na linguagem dos rimeiros falantes estão
A mitologia [...] é inevitável, é uma necessidade inerente à
expressos nos mitos e contos que se conservam graças ao
linguagem, se reconhecermos nesta a forma externa do
registro oral transmitido de geração em geração. (KIRINUS,
pensamento: a mitologia é, em suma, a obscura sombra que
1998, p. 19).
a linguagem projeta sobre o pensamento, e que não
Assim, percebendo a relação apontada por Kirinus da carga desaparecerá enquanto a linguagem e o pensamento não se
mágico-divina entre a linguagem e o sujeito que a emitia, podemos superpuserem completamente: o que nunca será o caso.
falar, também, da importância dada por alguns povos aos nomes. Cassirer continua argumentando que, para representar ou
De acordo com Cassirer (2009, p. 68) “a identidade essencial entre reter a realidade, recorremos ao signo, ao símbolo, já que é
a palavra e o que ela designa torna-se ainda mais evidente se, em impossível captá-la por inteira. E, assim como ela, o próprio
lugar de considerar tal conexão do ponto de vista objetivo, a conhecimento é incapaz de refletir a autêntica natureza das coisas,
tomamos de um ângulo subjetivo.” Dessa forma, de acordo com o pois a essência é delimitada em conceitos. Dessa forma, criamos
pensamento mítico o homem e sua personalidade estariam unidos esquemas sobre o mundo. Então, o saber, o mito, a linguagem e a
ao seu nome. arte fazem parte de tais esquemas, já que reduzem a realidade a
O nome pode desenvolver-se para além desse significado
uma espécie de ficção.
mais ou menos acessório da posse pessoal, na medida em
Além disso, a interpretação mítica está associada à
que é visto como um ser substancial, como parte integrante
da pessoa. Enquanto tal, pertence à mesma categoria que existência empírica, pois o homem vive em configurações. Ao abrir
seu corpo ou sua alma. Conta-se que, para os esquimós, o a realidade por suas próprias mãos, se revela também para ela.
homem se compõe de três partes: seu corpo, sua alma e seu Esses dois mundos – o si próprio do homem e o mundo – se
nome. Também entre os egípcios encontramos uma interpenetram continuamente. A visão mítica, por sua vez,
interpretação bastante análoga, pois acreditavam que, manipula um todo complexo, do qual emergirão configurações
junto ao corpo físico do homem, existia de uma lado o seu particulares. É por isso que, nessa concepção, a individualidade
Ka, o duplo geral, e, de outro, seu nome, espécie de “duplo” humana não é fixa e imutável, ela ganha um outro ser, um outro
espiritual. (CASSIRER, 2009, p. 68). eu a cada nova fase da vida.
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O mito, então, é parte constituinte de nosso pré-saber, que, a primeira forma de contato sonoro do homem, que, como
para Japiassu (1992), compreende as primeiras aquisições não principal característica, é um ser dotado de linguagem.
científicas de estados mentais. Nossos pré-saberes formam certa Ainda de acordo com Kirinus, é no próprio canal rítmico que
cultura, que é relativa ao próprio saber e à ciência, uma vez que a poesia encontra a sua origem mítica. As cantigas de ninar
nossos conhecimentos não são construídos de forma autônoma; relevam a criação linguística através de metáforas e comprovam
são frutos de atividades sociais, inseridas em determinados que essa forma de expressão oral é tão milenar quanto o próprio
contextos. mito. É por isso que a criança, “na sua fase pré-escolar, imita versos
Já sabemos que a criança é exposta, desde o nascimento, a e brinca com as palavras com muita intimidade e, sem perceber,
uma série de poesias folclóricas, as quais, com obviedade, estão interioriza a fonologia e a gramática da poesia oral.” (KIRINUS,
impregnadas de uma carga mitopoética. Como são resgatadas da 1998, p. 30).
memória coletiva dos povos, através da transmissão oral, as É assim que a criança começa a jogar com palavras e a
cantigas de ninar, os acalantos etc estão repletos de perceber as formas de interação com a própria língua. Ao entrar
onomatopeias, de rimas, de aliterações, enfim, de uma série de na escola, ela já leva consigo uma bagagem de conhecimentos
efeitos linguísticos/sonoros que se mantiveram presente através poéticos; já sabe brincar com sons, ritmos e rimas e já consegue
dos tempos e através do pensamento mitológico de que possuíam estabelecer determinados sentidos (apesar de que na fase pré-
o dom de entreter as crianças. escolar, nem sempre a significação é mais importante do que o
A criança, dotada geneticamente de sua natureza mito- próprio ato de brincar com as palavras). O fato é que a criança
poética – o seu inatismo linguístico engloba a função possui a capacidade de se encantar, de adentrar outros caminhos
poética da linguagem 1 -, é receptora, desde os primeiros que a levarão a novas possibilidades de sentir e de, por isso,
meses de vida, de toda uma carga sonora ricamente vivenciar. É todo o corpo que se enche de emoções, que ganha
permeada de ritmo e melodia. Ela ouve rimas e estribilhos
outras oportunidades de vir a ser.
emitidos pela mãe num tom afetivo/emotivo de alto grau.
Na roda, na rua, a criança explode em sons e se comunica
(KIRINUS, 1998, p. 24).
também com a ajuda do corpo e dos gestos. Poderíamos
Nessa perspectiva, a criança, a partir dos primeiros afirmar que ela encena o ritual mito-poético com toda sua
contatos interacionais que passa a possuir com a mãe, inicia a fase carga afetiva e emocional provinda do seu jogo sonoro e
de interiorização da linguagem, absorvendo sons e desenvolvendo gestual. [...] As palavras, no contato com a criança, ganham
seu aprendizado linguístico. Essa primeira interação é, na verdade, concretude. Tornam-se palavras-coisa, palavras-brinquedo.
Com muito humor, elas se divertem criando rimas: “olha o

1
A autora se refere aqui à quinta ideia fundamental da teoria chomskiana:
“estado mental inicial” da criança ao qual corresponderiam os primeiros cantos
poéticos interacionais entre a mãe e o bebê.
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balão/caiu teu calção”; gosta de amora?/vou contar pro seu esquecer as metáforas, que representam outras maneiras de
pai que você namora”. (KIRINUS, 1998, p.32-33). darmos sentido à realidade. Segundo Huizinga (1999), por detrás
E por falar em jogo, não podemos deixar de citar o de toda expressão abstrata se esconde uma metáfora, que na
estudioso neerlandês, John Huizinga (1999). É ele que nos diz que, verdade, é um jogo de palavras. E é através de sua expressão que
apesar das inúmeras definições e teorias existentes para o termo, o homem cria a sua vida e o seu mundo.
jogo, não podemos esquecer o fato de que a própria civilização A metáfora tem a propriedade de passar do significado
próprio [...] para o significado figurado; do único para o
surge e se desenvolve nele ou com ele, já que é uma manifestação
multívoco e da linearidade para o jogo. Lembremos que a
anterior à própria cultura. Por possuir uma função significante, o
metáfora provém do mito, na necessidade que o homem
ato de jogar confere um sentido à própria ação. Tem caráter primitivo tinha de entender e dominar a natureza. Então, ao
estético, promove prazer, alegria, tensão e sua essência é definida criar “outro mundo”, metaforiza a natureza. (KIRINUS,
pelo divertimento. Permeando todas as manifestações culturais, o 1998, p. 38)
jogo demonstra sua função social e acaba se tornando um
Recordemos, também, os postulados de Vigotsky (2004)
complemento ou acompanhamento da vida real.
quando afirma que o leitor precisa ser congenial ao poeta. Não
Quando o jogo é instaurado, apresenta-se uma limitação de
diferente com o infante, ele, para sentir a poesia, precisa ser poeta
certo espaço, onde se respeitam determinadas regras, ou seja,
também, deixar que o poema o tome por inteiro. E, muitas vezes,
criam-se mundos temporários dentro do mundo habitual. Isso, em
através de metáforas, criança e poeta recriam mundos. O poeta,
efeito, é o que chamamos de evasão da vida real em uma esfera
expressa em um texto um mundo singular, ficcional, mas com
temporária de atividade com orientação própria. Entretanto, ao
existência concreta. A criança constrói fantasias e as vivencia pelo
mesmo tempo em que se utiliza a autenticidade e a
faz-de-conta, mesmo tendo a consciência de que ocupa um
espontaneidade, se exige a seriedade e a concentração. Ao passo
processo de transição entre o real e o imaginário. Para Kirinus
que é tido como algo supérfluo, o prazer por ele provocado pode
(1998), as semelhanças entre poeta e criança se acirram,
torná-lo uma necessidade: “[...] a poesia desempenha uma função
sobretudo, pelo significado da palavra grega “poietes”, ou seja,
vital que é social e litúrgica ao mesmo tempo. Toda a poesia da
pelo termo que significa “aquele que faz”. Ao fazerem linguagem,
antiguidade é simultaneamente ritual, divertimento, arte,
ambos estão imersos em um mundo de estranheza, de mistério e
invenção de enigmas, doutrina, persuasão, feitiçaria, adivinhação,
de encantamento.
profecia e competição” (HUIZINGA, 1999, p. 134).
No mesmo sentido, a autora continua argumentando que
Diante disso, podemos definir a poesia, sobretudo a infantil
o imaginário, fonte do mito e do poético, ao perder
e a juvenil, como jogo de palavras. Ela é composta de assonâncias,
prestígio na humanidade, vive por longo tempo mal-dito e
aliterações, paralelismos, rimas, enfim, de uma série de figuras de encontra refúgio apenas no artista. Como conviver no
linguagem que estimulam a criança a jogar. Não podemos mundo ordeiro e progressista com essa potência amoral?
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Como confiar nos dados matemáticos e reais com a e se sentir parte do universo, consegue perceber que o caos lhe
intromissão fugidia, inacessível e enganadora? (KIRINUS, traz o novo, o diferente. E é justamente através disso que ele
2007, p.44, grifos da autora) aprende e se ressignifica. Levando em consideração esse aspecto,
Realmente, perguntas provocativas da reflexão do papel e vimos, na criança, um bom exemplo de nossa natureza voltada ao
do espaço que a poesia ocupa na sociedade do século XXI. A mundo mítico e poético. Ela tem a capacidade de articular o real e
resposta relativa a esse espaço talvez esteja nas palavras de o ficcional e de transitar entre os dois polos através de um
Magalhães (1982) quando ressalta que é na infância que a processo de transmutação, que a orienta no desenvolvimento de
atividade lúdica mais se manifesta, pois a criança ainda não sua própria personalidade.
participa da manutenção da família. O afastamento do jogo se dá O trajeto entre o real e o imaginário – uma das mais graves
de maneira gradativa ao longo de seu desenvolvimento e ela passa dicotomias assumidas e até defendidas pelo mundo adulto
– é espontâneo e naturalmente articulado na criança. Ela,
a fazer uso dos atos lúdicos apenas ocasionalmente. Ora, vivemos
no domínio confluente dos dois hemisférios cerebrais,
em meio a ideologias e são elas que não nos deixam brincar de
conjuga inusitadamente significados e significantes, não
imaginar, de fantasiar (a escolarização talvez seja uma boa apenas no capo linguístico, mas também no campo
explicação para isso). semiológico do seu universo. E aqui vale a pena destacar a
Diante dos sentidos estabelecidos para a relação entre intensidade com que ela se re-liga à sua ambiência. A
criança e seus espaços de interação, sobretudo pelo intercâmbio criança, mais do que um ser ecológico, ecologiza-se devido
entre o seu “eu” e a poesia, resta-nos, então, conceituarmos o ser à força da sua relação com o seu ambiente. (KIRINUS, 1998,
mitopoético e, portanto, o infante. Para tanto, utilizaremos as p. 70).
palavras de Kirinus (1998), pesquisadora que embasou as Na parte seguinte, temos o objetivo de realizar este trajeto:
concepções teóricas da maior parte deste artigo e autora da obra do habitual para o imaginário. Tentaremos demonstrar que o ato
que infantil/infantojuvenil que será analisada a seguir. poético tem um pouco disso, pois nos instiga a pensar, vivenciar e
Chamamos de ser poético, ou melhor, de ser mito-poético,
agir em espaços nunca antes imaginados. Observaremos como a
ao homem integrador e integrado com e na sua ambiência.
relação entre a realidade e a ficção se desenrola em uma obra
Este homem é capaz de aceitar com naturalidade a con-
fusão dos contrários e de criar o novo a partir do caos con- direcionada à criança, de que maneira a autora consegue
fusional. O ser mito-poético, apesar dos degraus entre expressar em versos suas fantasias, até mesmo as vivências de sua
tantas outras sinalizações impostas pela sociedade pós- infância, que agora preveem um leitor infante que dialogará com
industrial, sabe integrar-se na invisível corrente semiológica o texto, com a autora e com o seu próprio ser. Nesta análise, um
do universo, conjugando-se com ele. (p.69) espaço mitopoético se abrirá na tentativa de visualizar o ato
criador concretizado na interpretação e na ressignificação da obra
Nosso século, ainda sustenta dicotomias (razão/emoção;
literária.
corpo/alma...). No entanto, o ser mitopoético consegue ajustar-se
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Quando as montanhas conversam... ¿qué ocurre? mitopoético se desperte na tentativa de ressignificar o texto e
Ellos calientan nosso próprio eu.
el viento O ato poético fundamenta-se no mito e, como a palavra
con versos mágico-divina, compreende afirmativamente os ciclos dos
bien rimados tempos e a soma de todos os dados a que tem alcance. Isso
y conjuran porque o ato poético é a própria arte de re-articular os
despedaços do universo e até de unir, no seu verso,
sus misterios
materiais tão opostos como pedras e penas, ou, ainda, uma
en un código
ser outra, ou até uma ser outras. (KIRINUS, 1998, p. 83-84)
de pensamientos.2
Glória Kirinus Como vimos, o ato poético, para a autora, tem a sua raiz no
mito. Ao juntar os pedaços do mundo na formação do verso, o
Glória Kirinus, autora da obra Quando as montanhas poema é capaz de conversar com o nosso eu, de nos arrancar
conversam/Cuando los cerros conversan, nasceu no Peru e reside confissões na medida em que nos confessa, em que nos emociona.
no Brasil, em Curitiba/Paraná. Para dar conta do amor pelas duas
A obra carrega em si muito do eu da autora. Vejamos o que ela diz
terras, ela elabora livros bilíngues, destinados ao público
na contracapa do livro: “Quando menina, lá no Peru, ficava na
infantil/infantojuvenil dentre tantos outros escritos somente em
ponta dos pés para espiar do outro lado das montanhas andinas.
português. Além disso, professora e pesquisadora dos cursos de
Agora, andarilha neste Brasil, observo os países vizinhos que me
pós-graduação, Kirinus é autora de algumas obras teóricas,
ensinaram a cirandar” (KIRINUS, 2007, contracapa).
sobretudo sobre poesia infantil. Uma delas serviu de arcabouço
Na realidade, podemos dizer que o texto surge com base
teórico para o presente trabalho, Criança e poesia na pedagogia
nas vivências de infância da autora que, quando criança, como
Freinet.
escreve, era acostumada a observar as montanhas peruanas.
Na referida obra, percebemos que a concepção de criança
Nesta obra, então, ela descreve a maneira como “los cerros”
apresentada pelo texto dá conta da argumentação já sustentada,
mexem com seu imaginário e como são capazes de resgatar
uma vez que o infante é considerado em sua pluralidade de
lembranças, agora registradas através da escrita.
significações, como um ser capaz de atribuir sentido para o
O que mais chama atenção no texto é uma das
ficcional a partir de seu conhecimento sobre o real. Quando as
características mais significativas do saber mítico: o
montanhas conversam/Cuando los cerros conversan é um texto antropomorfismo. A própria formação da palavra, de origem
que desperta o imaginário e que faz com que nosso ser
grega, nos fala um pouco de sua definição: antropós, que significa

2
Elas aquecem / o vento / com versos / bem rimados / e conjuram / seus
mistérios / num código / de pensamentos.
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humano, homem; e morfos, que significa forma. Ou seja, o ato de são apresentados elementos e ações próximas do universo infantil
antropomorfizar consiste em atribuir formas humanas ou e as montanhas vão ganhando vida.
características humanas a fenômenos, fatos, ou feições da Para Ramos e Tornquist (2012), o ilogismo perpassa todo o
natureza. poema, pois a autora atribui mobilidade às montanhas, que
Na infância, essa característica se constitui como a principal possuem, além disso, o dom da fala: “Quando as montanhas /
forma de auxílio para a criança começar a entender a realidade. Ela conversam... / sobre tudo o que acontece, não ficam / como
está muito presente na literatura infantil. Nas histórias, por estátuas, cada uma / em seu lugar.” (KIRINUS, 2007, p.4). Ainda de
exemplo, nos deparamos com lobos e outros animais falantes e, acordo com as autoras, o poema age sobre a imaginação do
suas ilustrações, quase sempre, mostram os recursos naturais com infante, uma vez que revela uma outra situação, diferente do
fisionomias humanas (árvores e sóis com olhos e bocas, por habitual. A criança é convidada a participar de outro mundo, onde
exemplo). a ficção é possível e onde os padrões da anormalidade não são
Algumas expressões metafóricas são extremamente contestados.
representativas do antropomorfismo. Quando falamos a frase “a É significativa, nesse sentido, a separação de ‘conversam’ da
brisa da manhã abraçou a sua pele macia”, obviamente, estamos parte anterior - ‘Quando as montanhas’. A quebra da
atribuindo, de maneira simbólica, a capacidade de ação para um sequência corresponde ao rompimento com os padrões da
fenômeno da natureza. Assim, podemos dizer que a poesia está normalidade, pois as montanhas não conversam no mundo
real, o que não impede, porém, que, no universo ficcional,
impregnada desse aspecto referente ao saber mítico.
a criança acredite nas atitudes humanas atribuídas às
Na obra, as montanhas/los cerros ganham vida e são
mesmas. (RAMOS, TORNQUIST, 2012, p. 13).
dotadas(os) de características humanas. Brincando com o
imaginário infantil, a autora demonstra todo o encantamento que A crença nas atitudes das montanhas, nesse universo
possuía, quando criança, pelas montanhas andinas. É a ficcional, pode ser motivada pelo fato de que a autora, como
proximidade que tinha com elas o que talvez tenha impulsionado percebemos nos versos acima, insere em seu texto elementos do
a criação poética, carregada de fantasias e que apresenta todo o cotidiano infantil: a brincadeira de estátua, de ciranda e a menção
encantamento com a imensidão. realizada à escola. O ambiente escolar, aliás, é apresentado
Observamos que o título do texto é inserido nos versos, os enquanto espaço lúdico, indo ao encontro dos pressupostos
quais apresentam o paralelismo e a repetição como principal teóricos de Kirinus, apresentados nas obras que destina aos
característica na composição do poema (Quando as montanhas professores e pesquisadores da infância.
conversam/ [...] Enquanto isso...). A expressão “enquanto isso” Como podemos observar nos primeiros versos transcritos
possui uma carga semântica significativa ao colaborar com a ideia do poema, ao longo de todo o texto, a expressão “Quando as
de simultaneidade dos acontecimentos. Por isso, gradativamente, montanhas conversam” é seguida de palavras que representam a
imobilidade, apresentadas em expressões negativas, ou seja, não
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atribuindo imobilidade às montanhas. Essas palavras, Na segunda parte que compõe este micropoema, a autora
representativas do aspecto estático que possuem, são ligadas ao trata de uma temática considerada tabu, principalmente ao ser
mundo habitual, principalmente aos ambientes em que a criança direcionada ao público infantil: a morte. Aborda o ciclo vital
interage. A estrofe seguinte é sempre iniciada pelo pronome elas, humano, e o ressignifica iniciando pela morte (“Enquanto isso, /
referindo-se às montanhas, e composta de versos que justificam a um homem / caminha lento / e se despede / do mundo / com um
mobilidade delas: “Elas se movem / sem medo / e até ficam / de leve / aceno de mão” (KIRINUS, 2007, p. 10). De uma maneira
mãos dadas, / numa ciranda / de abraços, como crianças / na metafórica, Kirinus compara a morte com um leve aceno de mão
escola” (KIRINUS, 2007, p. 4). É como se autora nos dissesse: “As após uma lenta caminhada. O fenômeno, enfocado de maneira
montanhas não ficam como estátuas porque se movem como uma natural, é apresentado como algo que faz parte da existência
ciranda de abraços”. humana. O leitor, assim, é convidado a refletir sobre o efeito
A próxima estrofe, sucessivamente iniciada pela expressão catártico dos versos, já que a vida (e até mesmo a mobilidade das
“enquanto isso”, refere-se a uma ação humana, algo cotidiano, montanhas) continua.
expressando as múltiplas vivências e experiências do homem: Em seguida, outro elemento do universo infantil é
“Enquanto isso,/ nasce um cavalo/com asas,/ que a galope/ volta enfocado. Desta vez são as bonecas (de palha) que mexem com o
e voa/ na tela/ de um pintor” (KIRINUS, 2007, p. 6). imaginário do leitor-criança. Nesse sentido, percebemos que o
Na realidade, o poema é composto de micropoemas que mundo feminino é evidenciado pelos efeitos semânticos gerados
acompanham a estrutura já descrita: quatro estrofes, iniciadas por algumas palavras do texto (bonecas e vestido): “Quando as
com as mesmas expressões (Quando as montanhas montanhas/ conversam... / sobre tudo / e sobre nada, / não
conversam.../Elas.../ Enquanto isso...). Os micropoemas mesclam pensem / que se comportam / como bonecas / de palha. // Elas
ficção e realidade na complementação das ações das montanhas e trocam / de vestidos / cada vez que / vira o vento, / e brincam de
das atitudes ou acontecimentos da vida humana. esconde-esconde / com bonecos / de algodão” (KIRINUS, 2007, p.
Se os humanos não prestam a atenção nas montanhas, que 12).
passam despercebidas, elas os imitam. Fazem gestos, micagens, O nascimento também ganha espaço no texto. A chave de
como se fossem crianças em seus primeiros contatos com o mundo sol encantada, trazida pela criança ao nascer, representa a
adulto: “Quando as montanhas / conversam... / sobre tudo / o que esperança contida em cada ser humano, como se cada um de nós
admiram, / não ficam / assim plantadas, / como postes / na fôssemos pontos de luz espalhados pelo mundo, como se cada um
esquina. // Elas inclinam / seus corpos / para um / e outro lado. / contivesse um mundo e fosse autor de um todo maior em parceria
Fazem gestos / e micagens / imitando / os humanos. (KIRINUS, com os muitos outros [“Enquanto isso, / uma criança nasce /
2007, p. 8). apressada / trazendo / para este mundo / uma chave de sol /
encantada” (KIRINUS, 2007, p. 14)].
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O próximo poema exprime, novamente, outra maneira de Para ainda mais salientar a mobilidade das montanhas, a
mostrar ao leitor algumas das ações humanas contrapostas à imobilidade é apresentada pela autora como uma das
mobilidade, algo que não se espera das montanhas. As montanhas características dos próprios seres humanos. Vejamos a estrofe:
não empoçam lagos de gelo em seus olhares, como muitos de nós Enquanto isso, / sete quedas / desaparecem / na câmera / escura
fazemos. Não, as montanhas aquecem o vento e são capazes de / de um fotógrafo / amador” (KIRINUS, 2007, p. 22). Podemos
produzir rimas e versos para expressarem, por meio de um código observar que a máquina fotográfica, invenção humana, é capaz de
próprio, seus mistérios: “Quando as montanhas / conversam.../ tornar imóvel aquilo que possui movimento. Como exemplo, o
sobre sortes / e pecados, / não pensem / que em seu olhar / texto nos traz as Setes Quedas, já que a água pode ser tida como a
empoçam / lagos de gelo. // Elas aquecem / o vento / com versos representação do movimento.
/ bem rimados / e conjuram / seus mistérios / num código / de Na realidade, a referida passagem exige certo
pensamentos” (KIRINUS, 2007, p. 16). conhecimento prévio por parte do leitor. Vejamos! No trecho,
Como já comentamos, os fatos cotidianos são notamos mais uma menção à vida da autora. Como vive no Paraná,
apresentados pela autora através da beleza dos versos. Um dos estado onde se localizava um dos pontos turísticos mais
que mais chama a atenção é a alusão que realiza ao plantio e à importantes do Brasil, as Sete Quedas, a autora insere no texto, de
colheita. Essas ações humanas, que são comuns, embora não uma maneira poética, a destruição dessa beleza natural. Faz
valorizadas por todos, recebem um tratamento diferenciado. referência ao uso da câmera fotográfica e, ao mencionar o
Kirinus refere-se ao fato de “afundar sementes na terra”. fotógrafo, deixa claro que é um amador, ou seja, remete à possível
Entretanto, não são quaisquer sementes, são sementes de existência de inúmeros registros do local pelas mãos dos turistas.
fantasia. Novamente a confiança depositada na espécie humana é As mesmas mãos, as do ser humano, que acabaram abolindo
expressa, pois o que está subentendido nesse tipo de semente é a aquela realidade, imobilizada e armazenada pelos recursos
esperança, sentimento que alimenta a alma [“Enquanto isso / tecnológicos da modernidade.
alguém afunda / na terra / sementes / de fantasia / e colhe / de De certa forma, a estrofe citada, assim como todas as
madrugada / o pão de cada dia” (KIRINUS, 2007, p. 18)]. outras, se relaciona com a primeira estrofe do micropoema. Como
As montanhas de Kirinus também possuem passado, mas explicitamos, a autora fala do passado. Obviamente, a fotografia é
nem por isso ficam presas a ele. Elas possuem a liberdade de um dos elementos mais propícios à lembrança, à recordação. É
ensaiarem voos e de conhecerem outras possibilidades: “Quando através dela que podemos vivenciar situações e até mesmo nos
as montanhas / conversam... / sobre as coisas / do passado, / não modificarmos. Ainda mais quando falamos da destruição de
parecem / armaduras antigas / de cavalheiros / andantes. // Elas recursos naturais. Hoje, as Sete Quedas não existem mais; foram
andam soltas / e até ensaiam / alguns voos / como os pássaros / extintas em consequência da construção da Usina Hidrelétrica de
que migram / entre mares / e presságios” (KIRINUS, 2007, p. 20).
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Itaipu, em 1982. As imagens e a memória são alguns dos recursos sobe-e-desce / com a proteção / dos astros / e fazem sinais / com
de que dispõem os antigos morados da pequena cidade de Guaira. os dedos / assinalando / caminhos” (KIRINUS, 2007, p. 28).
Através disso, também percebemos os (des)limites Na última estrofe, de acordo com Ramos e Tornquist (2012,
geográficos que “habitam” o interior da escritora. A fronteira entre p. 14) “o interlocutor percebe que a presença dele está prevista na
Brasil e Peru parece não mais fazer parte de seu eu. Ao mesmo obra, que ele faz parte daquilo que lê. E o sujeito lírico afirma que
tempo em que relembra a terra natal, pois o texto possui uma o leitor também está alheio à conversa das montanhas, pois sua
forte ligação com a cultura peruana, Kirinus não deixa de citar as atenção está integralmente voltada ao texto, aos poemas.” Além
belezas naturais do país em que vive, o Brasil, e sua preocupação disso, percebemos que a autora intenciona um leitor que possui a
com a preservação dos recursos naturais (tanto peruanos, quanto capacidade de se encantar com o texto, de viver e atribuir sentido
brasileiros, enfim, recursos que são universais). Outra justificativa a essa experiência [“Enquanto isso, / um leitor / conspira /
para isso é a preservação de sua identidade através da escrita nas encantamentos / na última / estrofe / desta história.” (KIRINUS,
duas línguas consideradas “irmãs”, o português e o espanhol. 2007, p. 30)].
Prova de que o escritor é sim um ser mito-poético, que vai unindo É importante ressaltar que as ilustrações da obra são
os pedaços que a modernidade lança ao universo e atribuindo extremamente instigantes. Graça Lima, formada em Comunicação
sentido às suas vivências. Visual pela escola de Belas Artes (UFRJ) e mestre em Design pela
Enquanto as montanhas prometem às estrelas os segredos PUC-Rio, foi quem se encarregou de realizá-las. Estão dispostas
do tempo, “um poeta / recupera / na folha de papel / o verso visualmente no centro de todas as páginas abertas do livro. Por
rebelde / que sem licença / fugiu.” (KIRINUS, 2007, p. 26). Notamos isso, elas se situam entre o texto em português e o texto em
aqui, a necessidade de se pensar sobre a escrita criativa, sobre a espanhol. Além de contribuir para o tom de mistério presente no
criação poética. Talvez esse poeta seja inspirado ou “distraído” texto verbal, as imagens remetem ao Peru. Apesar de coloridas, as
pela natureza, já que a tentativa de escrita é interrompida pelo são apresentadas em tons pastéis, como se tivessem sido pintadas
desaparecimento do verso. em uma tela. Além de fazerem alusão à Cordilheira dos Andes, as
Para finalizar, e apresentando mais um dos elementos que imagens nos fazem refletir sobre a variedade de artes, de produtos
aproximam a obra do leitor infantil, Kirinus elabora o último artesanais e de recursos naturais existentes no país e em toda a
poema baseada na intertextualidade. Agora, ela alude ao mundo América latina.
dos contos de fadas, especificamente, a Bela Adormecida. O leitor As ilustrações emancipam o leitor criança, pois provocam a
é visto como um ser autônomo, alguém que já possui determinado reflexão e estão longe de serem imagens didáticas. Nelas
conhecimento sobre as histórias infantis: “Quando as montanhas percebemos a característica antropomórfica no sentido de que
/ conversam... / sobre artes / e alpinistas, / não ficam de olhos / tentam retratar, em algumas páginas, a mobilidade das
fechados / como as belas / que adormecem. // Elas brincam / de montanhas. Entretanto, a ilustradora não atribui características
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humanas aos elementos naturais, embora tenha composto realidade e que a poesia, através dos devaneios que provoca,
algumas imagens que imitam a forma humana, como quando possa possuir o mesmo efeito.
paramos e observamos as nuvens ou até mesmo as montanhas. O ato de fazer com palavras é a principal característica
Vimos coisas onde não existe!!! humana. Elas estão presentes o tempo todo em nossas vidas.
Por não ter compromisso com a realidade, o mundo fictício Quando aparecem de forma poética, descobrimos possibilidades e
apresentado pelo texto, instiga a imaginação. Notamos que, em passamos a brincar com o real. Na verdade, transitamos entre ele
algumas passagens da obra, a criança necessita da mediação de e a fantasia. E quanto mais esse jogo é praticado, mais sentimos a
um adulto para compreender a riqueza do poema. Dessa maneira, necessidade de jogá-lo.
ela é seduzida ao entrar em contato com um mundo de Nós ainda estamos neste processo de transição e não
descobertas. Seu cotidiano é suspenso por alguns instantes e ela é conseguimos descobrir de que lado estamos: no real ou no
levada a querer saber, a querer sentir, enfim, a querer vivenciar ficcional. Resolvemos, então, assumir uma posição de entremeio.
aquela encantadora experiência. E nesse exato momento, brincamos de esconde-esconde e
espiamos a vida com outros olhos, por detrás de uma montanha.
Algumas palavras de despedida Olhos mais encantados, mais amorosos. Olhos de uma criança que
Mientras tanto, traz vida para o mundo, que traz vida para o(s) texto(s).
un lector
conspira Referências
encantamientos ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 5.
en la última ed. São Paulo: Scipione, 1995. (Série Pensamentos e Ação no
estrofa
Magistério)
de esta historia.3
Glória Kirinus
AVERBUCK, Ligia Morrone. A poesia e a escola. In: Leitura em crise
Nunca imaginamos que, se as montanhas conversassem, na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado
tanta coisa pudesse acontecer. Pois bem, elas conversam! E Aberto, 1988.
enquanto essa tagarelice não para, nos redescobrimos, pois às
vezes esquecemos nossa natureza mitopoética. Não há nada mais BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução de Antônio
instigante do que pensar que o mito nos ajuda a entender a de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

3
Enquanto isso, / um leitor / conspira / encantamentos / na última / estrofe /
desta história.
P á g i n a | 255

______. A poética do espaço. Tradução de Antônio de Pádua RAMOS, Flávia Brocchetto; TORNQUIST, Sandra Regina. A
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. construção do poético em Quando as montanhas conversam. Acta
Scientiarum, Maringá, v. 34, n. 1, p. 9-15, jan./jun. 2012.
BARBOSA, M. C. S. . Culturas escolares, culturas de infância e
culturas familiares: as socializações e a escolarização no entretecer SOARES, Magda. A escolarização da leitura infantil e juvenil. In:
destas culturas. Educação e Sociedade, Campinas, n. 100 – BRANDÃO, Maria B.; EVANGELISTA, Aracy A. M.; MACHADO, Maria
especial. v. 28, p. 1059-1083, out. 2007. Disponível em: Z. V. (Orgs.) A escolarização da leitura literária: o jogo do livro
http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 25 nov. 2011. infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito. Tradução de J. Guinsburg, VIGOTSKY, Lev Semenovich. A educação estética. In: ______.
Miriam Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2009. Psicologia pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 323-363.
HUIZINGA, Johan. Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno
Cultural. In:______. Homo Ludens: o jogo como elemento da
cultura. São Paulo: Perspectivas, 1999.

JAPIASSU, Hilton. Introdução ao pensamento epistemológico. 7.


ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

KIRINUS, Glória. Criança e poesia na pedagogia Freinet. São Paulo:


Paulinas, 1998.

______. Quando as montanhas conversam/Cuando los cerros


conversan. Ilustrações de Graça Lima. São Paulo: Paulinas, 2007.
(Coleção Dobrando a Língua)

MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Jogo e Iniciação Literária. In:


ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Lígia Cadermatori. Literatura
Infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.
P á g i n a | 256

O INTELECTUAL E O PODER EM FRENTE AL FRENTE ARGENTINO ao poder temporal ou político,” (BOBBIO, 1997, p.119). Essas
DE AUGUSTO ROA BASTOS sociedades se distinguem pelo maior ou menor poder dos
Damaris Pereira Santana Lima intelectuais em relação aos outros grupos sociais: “em um
UFMS extremo, acham-se as sociedades reais ou ideais nas quais os
intelectuais estão no poder [...]; em outro extremo, sociedades nas
A união entre a palavra e o poder político seria perfeita, ou quais “o princípio” que as faz moverem-se é adverso à inteligência
se não perfeita, poderia gerar situações decentes de vida entre [...]”. (BOBBIO, 1997, p.119-120). Embora em toda sociedade e em
seres humanos, mas o que geralmente se vê é uma distância entre qualquer época houvesse o intelectual, a referência aqui é a um
o homem do poder e o homem da palavra, ou o homem do poder fenômeno característico do mundo moderno, do momento em
manipulando a palavra. Ou seja, temos o ‘político’ no sentido de que ocorre a separação da ciência mundana, da ciência divina, do
governo de Estado de um lado e o intelectual de outro, e essa momento do desencanto, na acepção de Weber.
separação parece ser condição inerente ao ser humano, porque O próprio Norberto Bobbio amplia o conceito, afirmando
não é de hoje a disparidade entre o intelectual e o poder. que o intelectual é “alguém que não faz coisas, mas reflete sobre
Na história, no entanto, muitos intelectuais estiveram a as coisas, que não maneja objetos, mas símbolos, alguém cujos
serviço do poder. O exemplo “mais emblemático deles, talvez o instrumentos de trabalho não são máquinas, mas ideias.”
fundador do intelectual moderno Maquiavel, conhecido por sua (BOBBIO, 1997, p.68). É este o intelectual contemporâneo,
obra clássica, O Príncipe. Esta parece ser uma obra destinada a dar produto das complexidades dos contextos sociais, que se desloca
conselhos aos príncipes” (OLIVEIRA, 2004, p.55). Embora negue o entre diversos segmentos, com o papel de mediador entre a
espaço público e sua independência, o conselho de Maquiavel é sociedade e o poder, não mais o porta-voz de quem não tem voz.
para a República e com isso ele acaba reafirmando o espaço Essa mediação é feita pelo discurso, tecendo narrativas, símbolos
público. O nascimento do intelectual moderno “coincide com a e imagens, já que “uma das funções principais dos intelectuais, se
abertura do Novo Mundo, marcando precisamente o nascimento não a principal, é a de escrever.” (BOBBIO, 1997, p.67).
desta relação entre intelectual, conhecimento e espaço público. O De acordo com Said, o melhor lugar para se encontrar as
intelectual passará a ser um produtor de conhecimento primeiras definições do papel do intelectual são os romances
independente.” (OLIVEIRA, 2004, p.56). Desse modo, a figura de incomuns do século XIX e início do século XX. Na mesma direção,
Maquiavel parece inaugurar essa ideia do perfil público do Roa Bastos representa a realidade social de seu país através de
intelectual. seus personagens. Vê-se a realidade de opressão dos que vivem à
As sociedades de todos os tempos tiveram seus intelectuais margem e a arrogância do poder, mas, apesar de mostrar a
“ou mais precisamente um grupo mais ou menos extenso de realidade de um país latino-americano, a narrativa de Roa Bastos
indivíduos que exerce o poder espiritual ou ideológico contraposto trata de temas que são universais, inerentes ao ser humano
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contemporâneo à sua narrativa. O intelectual moderno alterou de Esse significado nem sempre diz respeito a estar em alerta
maneira decisiva a representação da realidade social, e para criticando o sistema político, mas a vocação do intelectual é estar
exercer seu papel é necessário o bom uso da língua e saber como em constante alerta de modo a não aceitar que meias verdades ou
intervir por meio dela, duas características essenciais a esses preconceitos orientem uma sociedade. O intelectual é o indivíduo
agentes da cultura. Assim, de acordo com Said (2005), o intelectual capaz de representar sua cultura de maneira que ela prevaleça,
seria obrigado a usar uma língua nacional, pois é por ela que se pois “o papel dos intelectuais deve ser o de ajudar uma
espera que o escritor imprima sua própria perspectiva. comunidade nacional a sentir uma identidade comum, e em grau
Expressando-se através da arte da palavra, Roa Bastos é um muito elevado.” (SAID, 2005, p.41). Sobre o consenso de uma
exemplo desse intelectual vocacionado e ousado na sociedade de identidade nacional, a tarefa do intelectual é “mostrar que o grupo
seu tempo, que agiu com compromisso e risco. É interessante não é uma entidade natural ou divina, e sim um objeto construído,
lembrar de que o exílio foi resultado da publicação de suas fabricado, às vezes até mesmo inventado, com uma história de
denúncias através da escrita no jornal em que trabalhava. lutas e conquistas em seu passado, e que algumas vezes é
Ademais, ele tem uma escrita ficcional com muitas marcas de sua importante representar.” (SAID, 2005, p.44). Neste sentido, Roa
experiência pessoal, ou seja, uma escrita bastante autobiográfica. Bastos também cumpre sua tarefa de intelectual, pois em suas
Usar e saber intervir através da língua é o que faz Roa Bastos ao obras há a presença dessa responsabilidade ancestral sobre a
usar a língua dos paraguaios, a língua com a qual ele nasceu, pois construção da história nacional. E vale ressaltar o que diz o seu
sua casa era um ambiente híbrido, tendo contato com as duas personagem Cristóbal Jara, em Hijo de hombre: “Lo que no puede
línguas, com as duas culturas. O universo linguístico da hacer el hombre, nadie más puede hacer.” (ROA BASTOS, 1971,
comunidade dele é um universo híbrido, responsável por toda p.245). De alguma maneira, Roa Bastos procura mostrar a
hibridez da cultura paraguaia, e Roa Bastos usa essa entre cultura, consciência que é peculiar ao intelectual, de que o homem é o
e essa entre língua com maestria na representação da realidade responsável pelo seu destino, que sua história é construída por ele
social. mesmo e que não se vive à mercê de um destino natural ou divino.
O intelectual, enfim, Em sua narrativa Roa Bastos cumpre seu papel de
não é nem um pacificador nem um criador de consensos, representante do seu povo, de acordo com o que Said pontua:
mas alguém que empenha todo o seu ser no senso crítico, A essa tarefa extremamente importante de representar o
na recusa em aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos, ou sofrimento coletivo de seu próprio povo, de testemunhar
confirmações afáveis, sempre tão conciliadoras sobre o que suas lutas, de reafirmar sua perseverança e de reforçar sua
os poderosos ou convencionais têm a dizer e sobre o que memória, deve-se acrescentar uma outra coisa, que só um
fazem. Não apenas relutando de modo passivo, mas intelectual, a meu ver, tem a obrigação de cumprir. Afinal,
desejando ativamente dizer isso em público. (SAID, 2005, muitos romancistas, pintores e poetas [...] encarnaram a
p.36) experiência histórica do seu povo em obras de arte, que, por
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sua vez, foram reconhecidas como obras-primas. Nesse intelectual é inerente ao ser humano e, no entanto inseparável da
sentido, penso que a tarefa do intelectual é universalizar de atividade manual. Ser cidadão não significa apenas pertencer à
forma explícita os conflitos e as crises, dar maior alcance sociedade, mas significa construí-la e transformá-la. Gramsci
humano à dor de um determinado povo ou nação, associar considera duas categorias de intelectuais: tradicional e orgânico. O
essa experiência ao sofrimento de outros. (SAID, 2005, p.53)
intelectual tradicional grupo constituído pelo clero, juristas,
O propósito do intelectual ao contar as mazelas de seu escritores, etc. “representantes de uma continuidade histórica que
povo é uma prevenção evitando que a opressão sofrida em não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e
determinado povo seja esquecida ou violada em outro tempo ou radicais modificações das formas sociais e políticas.” (GRAMSCI,
lugar. O intelectual do século XX, além de agir para a preservação 1979, p.5). Estes intelectuais têm uma tarefa hegemônica na
da memória com vistas à construção de uma identidade coletiva, sociedade. Já os intelectuais orgânicos, grupo que nasce no
ainda tem como uma de suas atividades principais, questionar o terreno originário
poder das autoridades governamentais. Tem-se a impressão de de uma função essencial no mundo da produção
que é solitária a voz do intelectual, “mas tem ressonância só econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo
porque ela se associa livremente à realidade de um movimento, às orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão
aspirações de um povo, à busca comum de um ideal partilhado.” homogeneidade e consciência da própria função, não
apenas no campo econômico, mas também no social e no
(SAID, 2005, p.103). Faz parte do dever do intelectual encontrar
político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da
um espaço para enfrentar e retrucar o poder das autoridades,
indústria, o cientista da economia política, o organizador de
“pois a subserviência inquestionável à autoridade no mundo de uma nova cultura, de um novo direito, etc. (GRAMSCI, 1979,
hoje é uma das maiores ameaças a uma vida intelectual ativa, p.4)
baseada em princípios de justiça e equidade.” Mas, o intelectual
tem a opção de “representar a verdade de forma ativa e da melhor A tarefa desses intelectuais é contrahegemônica. Desse
maneira possível, ou então se permitir, passivamente, ser dirigido modo é possível afirmar que na obra de Roa Bastos as
por uma autoridade ou um poder. Para o intelectual secular, esses representações do intelectual são latentes.
deuses sempre falham.” (SAID, 2005, p.121). Uma das atividades suscetíveis à intervenção dos
Ao tratar de Roa Bastos, quem passa do artista ao intelectuais é proteger o passado e impedir o seu
intelectual através do político vale recorrer à lição deixada por desaparecimento, além de construir campos de coexistência em
Antonio Gramsci: “Todos os homens são intelectuais” (GRAMSCI, vez de campos de batalha, pois, “o intelectual é talvez uma espécie
1979, p.7), pois possuem faculdades intelectuais e racionais, mas de contramemória com seu próprio discurso contrário que não
ao mesmo tempo considerava que nem todos os homens tem na permitirá que a consciência baixe os olhos ou adormeça.” (SAID,
sociedade a função de intelectuais. Segundo Gramsci a atividade 2004, p.49).
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Roa Bastos é consciente de que utilizou o poder da arte formal da liberdade seja substituído pela imaginação libertadora e
para exercer seu papel de intelectual. Para ele a literatura deve que o universo imaginário, mais livre e mais criativo do que nunca,
integrar-se plenamente com a função que lhe corresponde, ao nasça das fontes da realidade e da história. “Es ahora cuando la
conjunto de todos os meios e atividades que conduzem à escritura, liberada de sus espejismos formales, está haciendo subir
liberdade. “el fondo a la superficie”: es decir, la realidad del hombre, de la
Não é por acaso o ressurgimento do gênero crônica na sociedad y de la historia a la irrealidad de sus signos.” (ROA
América latina, não a crônica colonial, mas em oposição simétrica BASTOS, 1986, p.138).
“la crónica de la liberación”. (ROA BASTOS, 1986, p.137). As No artigo intitulado “El texto cautivo”, Roa Bastos (1991),
narrações mais relevantes assumem o caráter de crônica de com o propósito de refletir criticamente sobre ideologia e a prática
libertação, gênero que faz a conjunção entre história, realidade e do poder cultural, aponta os fatores destrutivos anteriores ao
imaginação. A expressão da escrita se enriquece nas múltiplas e fenômeno de alienação e desestruturação produzido pelo poder
simultâneas significações do real imaginário, ou seja, da realidade cultural, a saber: o atraso, a miséria, o analfabetismo e outros
mítica à luz da escrita, que é a produção individual, mas perpassa males que assolaram e ainda assolam os povos da América Latina.
a sinergia da vida social. Dessa forma, o que se vê é o compromisso História, cultura e sociedade são estruturas vitais para uma
político do intelectual através da literatura no contexto da identidade que se reconhece e se transforma em fatos espirituais
dependência pondo em jogo o processo fundacional de libertação: e materiais, mas o poder político repressivo que contém a
El poder represivo interno (apoyado y a veces coaccionado ideologia e a prática da opressão colonizadora impede em todos
por el poder económico, político y militar de los os campos o nascimento de uma identidade essencialmente livre.
imperialismos como estructuras de dominación del “nuevo Roa Bastos é um intelectual que não perdeu qualquer
orden mundial”) ha generado el estado de guerra interno oportunidade de exercer sua função na sociedade paraguaia, mas
contra las ciudadanías oprimidas en el orden político y
o destaque de sua atuação ocorre no uso da arte de escrever
social. En el plano cultural, la devastadora acción del poder
transformando história e mito em ficção, porque sua proposta é a
financiero de las multinacionales ha remachado los resortes
de la dominación y de la dependencia provocando toda de questionar a história hegemônica, apresentando assim, uma
clase de perturbaciones en el ya dislocado sistema história que até então não tinha sido apresentada à sociedade.
comunicacional interno de nuestras sociedades y de ellas A Guerra do Paraguai, Guerra Grande ou Guerra contra a
entre sí. (ROA BASTOS, 1986, p.137) Tríplice Aliança (1864-1870) aparece em seu romance Yo el
Supremo, no caderno privado, quando o Supremo contesta os
Com isso se percebe que esse processo de libertação não
escritos de Bartolomé Mitre, que é nomeado na narrativa como o
se resume especificamente às guerras revolucionárias, mas é um
“Tácito del Plata”. Mitre é um dos historiadores cujo texto faz
processo que se concebe lentamente no seio das sociedades
parte do material do compilador. O Supremo demonstra desprezo
dominadas e dependentes. Trata-se então do fato de que o mito
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a estes registros e às atitudes de Mitre diante da Guerra Grande. Para o Supremo o que o historiador, militar e político
“Tozudamente insistes, golpeando la contera del bastón- argentino, Mitre escreve sobre a Revolução não tem valor, pois
generalísimo sobre las baldosas flojas de la Historia; porfías en que seriam discursos de um menino. Ele ironiza dizendo que o
Belgrano fue el verdadero autor de la Revolución del Paraguay, historiador não sabe o que de fato aconteceu com respeito à
arrojada como una tea al campamento paraguayo.” (ROA BASTOS, revolução e que a “retórica de Archivero-jefe habría estado un
2008, p.156). poco más cerca de la realidad y naturaleza de aquellos hechos que
E continua dizendo que as palavras de Mitre são apenas pretendes narrar con el chambergo inglés echado sobre los ojos.
palavras e que poderiam ter sido queimadas. Contesta o Esto te permite afirmar con británica flema, [...]” (ROA BASTOS,
comentário do Tácito-Brigadier sobre o desenvolvimento da 2008, p.158). Vale ressaltar que a referência a Mitre neste ponto é
imprensa, fato que facilitou a marcha dos sucessos, dizendo que, importante porque o texto aqui analisado se refere a este político
“la prensa no basta a reflejar el movimiento cotidiano de la e historiador argentino. É interessante notar como ele é visto por
revolución, y el secreto empieza a hacerse por necesidad de una Roa Bastos em toda sua narrativa.
regla de gobierno;” (ROA BASTOS, 2008, p.157). Mas também diz Tanto na escritura ficcional de Roa Bastos quanto em seus
que à medida que o mistério se faz indispensável, faz-se necessário textos críticos, percebe-se o conflito latente entre os detentores
registrar tudo através da escrita, desta maneira, um dia a do poder e os intelectuais. Esses conflitos resultam da
posteridade se encontrará em posse até dos pensamentos mais “consciência” do papel do intelectual na sociedade: seu poder
recônditos dos homens do passado e pode-se estudá-los melhor advém do uso da palavra instrumento capaz de alertar o povo e
do que se tivessem vivido aqueles momentos. Isto aconteceu com corroer o próprio poder.
ele quando procurava uma fonte mais confiável que a imprensa Em Roa Bastos o intelectual é caracterizado “como um
jornalística e entrou nos arquivos de guerra e do governo exilado e marginal, como amador e autor de uma linguagem que
posteriores a 1810. tenta falar a verdade ao poder.” (SAID, 2005, p.15). Roa Bastos
El primer hecho que tenía que ilustrar era la expedición de tentou cumprir sua função de intelectual ao fazer da palavra
Belgrano al Paraguay, sobre el cual poco digno de instrumento para a discussão da realidade de seu país.
consultarse existía publicado, habiendo cometido los más Frente al frente argentino e Frente al frente paraguayo são
groseros errores casi todos cuantos de ella había hablado… os dois textos de Augusto Roa Bastos que fazem parte do tetra
¡Ah Tácito Brigadier! Consideras indispensable el misterio
livro, Los Conjurados del Quilombo del Gran Chaco, formado por
como regla de gobierno (El tratado secreto de la Triple
textos de representantes dos quatro países envolvidos na Guerra
alianza contra el Paraguay lo cocinaste entre medios gallos
y media noche). Depositas toda tu fe en los papeles sueltos Grande, são variações de fragmentos de El fiscal. Frente al frente
en la escritura. En la mala fe. (ROA BASTOS, 2008, p.157) Paraguayo tem como título de sua primeira divisão: Recuperando
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lo escrito e traz para esse título a seguinte nota de rodapé – que foi perdida na guerra. O general ironiza: “Menos manos, más
Fragmentos selecionados por el autor, reproducidos de El fiscal. humanos” (ROA BASTOS, 2001, p.15). Retomando Maquiavel Mitre
O primeiro texto de Roa Bastos em Los conjurados del afirma que “como decía el pariente Nicolás: ‘El que no sabe mentir
Quilombo del gran Chaco, “Frente al frente argentino” é uma no sabe gobernar’”, declarando com isso que o poder da história
espécie de diálogo entre Bartolomé Mitre (1821-1906), oficial está baseado em mentiras. O general continua dizendo que
comandante das forças aliadas da República da Argentina, e seu a batalha perdida na lembrança do tenente pode ser ganha na
oficial o pintor Cándido López (1840-1902). Cándido López imaginação, pois é necessário inventar a glória. O general já
participou da batalha até perder a mão direita, mas não quis começa apresentando as armas ou artifícios utilizados pelo poder
abandonar o cenário bélico e foi elevado ao posto de tenente para a construção do discurso oficial e com isso a construção dos
sendo designado para trabalhar com Bartolomé Mitre então mitos e das identidades dos povos, pois como ele prossegue, o que
Comandante das tropas aliadas. Na narrativa tanto Mitre quanto importa nos registros é o que ficará na lembrança que terão no
Cándido López desenvolvem tarefas intelectuais. Mitre traduz os futuro, pois tudo se pode melhorar, pois “el arte es el arma para
versos do ciclo do inferno da Divina Comédia, de Dante, enquanto corregir la realidad.” (ROA BASTOS, 2001, p.15). Sobre o poder da
López faz esboços das batalhas das quais participou. arte, o pintor também diz: “Anímese entonces, señor: Los dos
Neste estudo, a questão do poder será vista no texto Frente mesclamos tinta, temblamos un poco y después recreamos el
al frente argentino, “El Generalísimo y el pintor” o qual Roa Bastos mundo a nuestro modo y según nuestros reales antojos. Fíjese,
constrói a partir da pintura de Cándido López uma história da usted con palabras escribió una guerra.” (ROA BASTOS, 2001, p.17)
Guerra Grande com outras facetas, pois leva em consideração o De acordo com o personagem Cándido López, eles dois
olhar de outro estrangeiro, vendo uma história diferente, mas recriam o mundo do jeito deles, conforme seus caprichos,
possível, para a criação de uma contra história. Para Bobbio (1997, provocando o general dizendo que este havia feito uma guerra
p.112), os intelectuais exercem o poder por intermédio de suas com palavras, insinuando com isso, que o general não escreveu o
obras, mediante persuasão e não coação. Em suas formas que aconteceu, mas criou também uma realidade. O general
extremas podem chegar à violência psicológica, mas nunca à justifica-se: outros interesses estão subordinados ao interesse do
violência física. A relação entre o intelectual e o poder pode ser Estado. Desse modo é possível notar que Mitre é o homem das
configurada como a relação entre diferentes formas de poder. letras, o representante da história hegemônica, que se baseia nos
O diálogo entre Mitre e López leva-nos à reflexão sobre as discursos oficiais e que Cándido é o representante de uma contra
relações entre o poder e o intelectual e começa com o general história que questiona o poder.
discordando do pintor por este pintar os horrores da guerra. Ele Quando o pintor apresenta o quadro da batalha de Tuyutí,
sugere ao pintor esquecer o pesado passado, ao que o pintor o general sente-se incomodado com tanta fumaça e diz que as
retruca que seu pulso não mente, ainda mais quando falta a mão cores usadas pelo pintor parecem trair a realidade. O pintor
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admite que as cores usadas por ele possam ter traído a realidade, do poder e os intelectuais. Esses conflitos resultam da
mas ele não pode pintar a traição de outra maneira. Com culpa, o “consciência” do papel do intelectual na sociedade: seu poder
general diz não poder retroceder. E não consegue entender advém do uso da palavra instrumento capaz de alertar o povo e
porque Cándido tem tanta obsessão por pintar carnificina. O pintor corroer o próprio poder.
por sua vez, retruca: “Pinto lo que usted me muestra, general.” Quer seja representando, escrevendo, falando ou
(ROA BASTOS, 2001, p.27). ensinando, atividades que os faz reconhecidos publicamente e
Antes de continuar com a resposta do pintor ao general, comprometidos com a realidade política e social, o intelectual
vale o comentário sobre a referência a Domingo Sarmiento e sua incomoda o poder porque tem possibilidade de expor ideias
obra Facundo: sobre a dicotomia Civilização e Barbárie, que tem levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar
ressonância nas ideias de Mitre. O que contradiz ao seu discurso ortodoxias e dogmas. Em tese o intelectual não seria facilmente
sobre a igualdade. Em várias passagens está implícita a cooptado pelo poder, pois um de seus princípios é o de expressar
superioridade da província de Buenos Aires e a referência aos não a causa da liberdade humana, do conhecimento e da justiça.
portenhos e aos indígenas como bárbaros. Segundo Said “não pode haver escape para os reinos da arte e do
Como já foi mencionado, o momento dos regimes de pensamento puros nem, nessa mesma linha, para o reino da
repressão na América Latina, o tempo dos desterrados, fez com objetividade desinteressada ou da teoria transcendental.” (SAID,
que o intelectual, através da arte se posicionasse e levasse a 2005, p.34).
coletividade à reflexão do que é possível fazer, sem se utilizar da Em Roa Bastos o intelectual é caracterizado “como um
violência física, como é de costumes nos governos autoritários. exilado e marginal, como amador e autor de uma linguagem que
Em Frente al frente argentino o poder dos que propõem a tenta falar a verdade ao poder.” (SAID, 2005, p.15). Roa Bastos
guerra é questionado pelo artista, que se propõe à reflexão através tentou cumprir sua função de intelectual ao fazer da palavra
da palavra e da arte como libertadores do ser humano. instrumento para a discussão da realidade de seu país.
Para terminar vale refletir sobre o pensamento de Said
(2005, p.100) quando diz que é dever do intelectual criticar os Referências
poderes constituídos, os responsáveis pelos cidadãos, BOBBIO, N. Os intelectuais e o poder:dúvidas e opções dos homens
principalmente porque esses poderes são exercidos de maneira de cultura na sociedade contemporânea. Tradução de M. A.
desproporcional, discriminatória, repressiva e cruel. Roa Bastos Nogueira. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
cumpre seu dever de intelectual quando se compromete e se
expõe através de seus textos ficcionais. GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução
Tanto na escritura ficcional de Roa Bastos quanto em seus de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
textos críticos, percebe-se o conflito latente entre os detentores
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OLIVEIRA, F. de. Intelectuais, conhecimento e espaço público. In: ______. Representações do intelectual. Tradução de M. Hatoum.
MORAES, D. Combate e utopias: os intelectuais num mundo em São Paulo: Cia das Letras, 2005.
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1981). In: KLAHN, N. y CORRAL, W. H. (comp.) Los novelistas como
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______. Hijo de hombre. Buenos Aires: Losada, 1971.

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hispanoamericana actual. In: SOSNOWSKI, S. Augusto Roa Bastos
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SAID, E. O papel público de escritores e intelectuais. In: MORAES,


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Tradução de E. Aguiar e L. P. Guanabara. Rio de Janeiro: Record,
2004.
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O PÓS-GUERRA CIVIL FICCIONALIZADO EM MADRE, NO aparentemente banal, fazendo-nos visualizar o contexto do pós-
ENTIENDO A LOS SALMONES, DE MONTSERRAT ROIG guerra civil espanhola no qual a obra se insere.
Daniel Carlos Santos da Silva Através do testemunho oferecido pelo republicano,
USP desenvolve-se o fluxo de consciência da personagem principal, em
que ela rememora um caso amoroso, implicando a existência de
1. um terceiro momento no conto. Tais tempos se alternam ao longo
Madre, no entiendo a los salmones é um conto escrito por do texto, evidenciando uma pluralidade de vozes:
Montserrat Roig e compõe a obra El canto de la juventud, - ¿Por qué los salmones van a morir donde han nacido?
publicada em 1990. Ele se inicia a partir de um diálogo em que ¿Cómo pueden recordarlo?
Norma, personagem principal, está conversando com seu filho - Es que tienen mucha memoria. Se van al mar porque es
sobre o movimento realizado pelos salmões no período da amplio. Y profundo. Pero luego el lecho del río los llama.
primavera. A protagonista explica que eles vão do mar, onde vivem - No entiendo a los salmones.
no inverno, em direção ao rio de origem da espécie. Norma sintió que el frío le cortaba la piel. Hacía poco que
O diálogo inicial, que indica o momento presente da había llegado del sur, donde el otoño aún era cálido.
narrativa, sofre uma ruptura e outro tempo é narrado: Norma está Remontó el camino que llevaba al cementerio con el viejo
em um cemitério, escutando o relato de um republicano que republicano […]. (ROIG, 1990, p. 87)
esteve presente em um campo de concentração. Esta mudança O excerto acima apresenta as duas partes iniciais da
reflete o movimento de ruptura temporal e discursiva do texto, narrativa, separadas por um espaço em branco. Na primeira,
demonstrando sua complexidade. Com isso, torna-se necessário Norma explica ao seu filho que os salmões retornam ao rio de onde
refletir sobre como tais variações confluem para uma síntese do provêm, devido à memória. No entanto, ele continua sem
conto, que resulta em um movimento de resistência frente à entender tal prática, ao expressar a frase “no entiendo a los
história da Espanha, desencadeado pelos processos de memória salmones”, que dá título ao conto e encerra sua primeira parte em
existentes na obra. uma ruptura para um segundo momento.
O princípio in media res que constitui a narrativa sinaliza Isso implica que o termo “memória”, utilizado na última
um dos aspectos centrais do conto, que corresponde ao estilo fala de Norma, na primeira parte, refere-se não somente ao
fragmentário da autora. Em sua composição, ela trabalha com exercício dos salmões para que eles regressem ao rio onde
“aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, nasceram, mas também é o elemento que ativa o segundo tempo
algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com da narrativa. Com isso, compreendemos que “o conteúdo atuante
que a história oficial não sabe o que fazer” (GAGNEBIN, 2006, p. graças à forma constitui com ela um par indissolúvel que redunda
54). Um universo maior desponta, a partir de uma cena cotidiana em certa modalidade de conhecimento” (CANDIDO, 1995, p. 248),
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logo, a estrutura do texto organiza sua mensagem, conjugando-se isso implica a própria ruptura existente no discurso oficial da
com esta. Em suma, a memória é posta como sentido e forma história espanhola, devido ao processo de silenciamento
presentes no texto, já que é ela que desencadeia a continuação da ocasionado pelo regime ditatorial. Em consequência disso,
narrativa. entendemos que existe um empenho da autora por questões
Sendo assim, a segunda parte inicia-se com a sensação de histórico-sociais relativas ao contexto da Espanha do século XX. Na
frio que a protagonista sente, indicando, a seguir, uma mudança composição de sua obra encontramos a tematização do universo
na época em que ela estava no Sul, “dónde el otoño aún era concentracionário espanhol. Tal aspecto alude um interesse que
cálido”. Logo, a alteração de temperatura não faz referência remonta os desastres da guerra e, consequentemente, representa
somente a uma diferenciação de espaço, mas também a outro literariamente uma realidade ofuscada pelo poder político,
tempo que foi ativado pela memória da personagem principal. resultando no processo de resistência que permeia o conto.
Dessa forma, Norma sai do tempo presente em que está O estilo fragmentário de Roig se dá por meio da técnica da
conversando com seu filho, e remonta um tempo, através de sua livre associação psicológica desencadeada pela memória
memória, em que está em um cemitério prestes a escutar o relato (HUMPHREY, 1969), sendo que determinada frase ou palavra
de uma vítima de guerra. Temos, assim, a indicação de uma geram outro tempo em sua narrativa, que se referem a diferentes
pluralidade temporal no texto. momentos vivenciados por Norma – diálogo, escuta e
Com isso, ressaltamos a importância dos estudos de rememoração. Ao defendermos que a própria estrutura é o que
Antonio Candido para o presente estudo, pois o aspecto linguístico evoca a condição social do texto, consideramos aquilo que ocorre
do texto pode nos levar a considerar a implicação social existente nos múltiplos instantes da narrativa. Dessa forma, distintas
na obra (CANDIDO, 2002). Dessa maneira, entendemos que a particularidades passam a compor o texto literário. Contudo,
partir do texto existe um movimento de reflexão, intrínseca à obra, independentemente das diferenciações temporais narradas –
que remete às questões históricas que suscitam nossa análise. Em sejam elas retratos exteriores ou interiores –, haverá um reflexo
Madre, no entiendo a los salmones a memória não está presente sobre um contexto maior, sintetizado através de uma
somente como aspecto linguístico, mas é ela que se configura no multiplicidade de perspectivas (AUERBACH, 1994).
processo de escrita de Roig e constitui o contexto histórico Se no tempo presente a voz do filho de Norma marca uma
espanhol. dúvida, teremos em um segundo momento o relato de um
republicano que expõe e, por sua vez, esclarece o não
2. entendimento sobre a prática dos salmões – explícito tanto no
A partir dessa exposição inicial, entendemos que ocorre início, quanto no título do conto. Há, dessa forma, a narração de
uma ruptura na escrita de Montserrat Roig, marcada pela distintas particularidades em Madre, no entiendo a los salmones,
sobreposição de tempos. Assim, buscaremos demonstrar como que marcam a existência de diferentes gerações e suas respectivas
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relações com o contexto do pós-guerra. O republicano representa comparado ao modo de narrativa tradicional. De acordo com
uma primeira geração, de quem vivenciou o universo Jeanne Marie Gagnebin (2006), ocorre uma experiência traumática
concentracionário; o filho aponta uma terceira, que não teve que torna a linguagem inacessível de maneira habitual ao sujeito.
relação direta com as consequências da guerra; Norma Com isso, reafirmamos a ideia de que o filho de Norma representa
corresponde a uma geração intermediária que intersecciona as uma terceira geração em Madre, no entiendo a los salmones, que
duas anteriores. – oficialmente – teve acesso a somente uma perspectiva discursiva
O primeiro demarca, assim, uma geração vitimada pelo sobre as consequências da guerra – a ditatorial. Portanto, ignora o
poder e dá seu testemunho ao longo do conto: “[...] ves, esta que ocorreu com seus compatriotas que foram vítimas da guerra-
bandera es la nuestra. Por la bandera republicana ha muerto civil e, assim, não entende os salmões.
mucha gente. ¿Quién lo recuerda ahora? ¿Quién se acuerda, Ademais, ressaltamos que a partir do silenciamento de
Norma?” (ROIG, 1990, p. 89). Nesta passagem é possível vozes ocorrido na Espanha – consolidado tanto pelos horrores da
compreender novamente o movimento de repressão ocasionado guerra-civil como pela unilateralidade do regime ditatorial – há um
pelo regime ditatorial na Espanha ao nos atentarmos para o fato processo de resistência na escrita de Roig. Isso ocorre justamente
de que os republicanos foram os “perdedores” da guerra civil pela narração de distintas vozes que somadas representam a
espanhola e, por sua vez, subjugados pela ditadura. De certa sobrevivência do discurso, aliado a um processo de denúncia e
forma, as perguntas feitas pelo republicano – Quem recorda isso? engajamento social que permeia o texto. Tal processo torna-se
Quem se lembra? – indicam um tom de protesto por representar expressivo quando compreendemos que, no conto, os salmões
justamente a realidade de uma Espanha que manteve suas vítimas convertem-se em símbolo de resistência, como fica expresso no
de guerra em silêncio, fazendo com que suas vozes fossem excerto a seguir:
evacuadas pelo discurso histórico oficial e que houvesse um Los muertos habían sido enterrados en aquel cercado
“esquecimento” daquele que foi coagido. porque eran rouges, y los rouges no podían ir a parar al
Desse processo, tem-se como consequência a ignorância cementerio católico.
das gerações posteriores da Espanha quanto aos acontecimentos “– Y muchos de los salmones mueren antes de llegar a su
do pós-guerra. Isso ocorre justamente pelo silenciamento de suas destino. Embisten las cascadas, procuran saltarlas, pero
vítimas e a propagação de um discurso unilateral proveniente do muchas veces vuelven a caer y la corriente los arrastra hacia
poder, indicando uma supressão que gera “uma pobreza de el mar (ROIG, 1990, p. 88).
experiência [que] não é mais privada, mas de toda a humanidade. Novamente, há uma ruptura no texto em que o diálogo de
Surge assim uma nova barbárie” (BENJAMIN, 1993, p. 115). Esta Norma dá continuidade ao relato que ela escuta. Primeiramente,
perda do conhecimento decorre da experiência de guerra que percebemos que um testemunho denuncia a segregação dos
ocasiona uma mudança no processo narrativo que se altera, se republicanos que foram mortos no período pós-guerra e tiveram
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seus corpos abandonados nos campos de concentração. A maneira esquecidas por uma tática de silenciamento promovida pelo
pela qual as vítimas desapareceram explica a ruptura existente regime. Este silenciamento está impregnado na estrutura do
entre as duas partes do conto expostas acima. A cisão acontece conto, quando justamente no momento em que o republicano dá
justamente no momento em que o republicano discorre sobre o seu testemunho, ocorre uma quebra em seu discurso que silencia
esquecimento em relação aos corpos das vítimas, que foram a voz da vítima, dando passagem ao momento presente do diálogo
abandonados. Ocorre, então, a presença da fala de Norma na parte entre mãe e filho. Norma, então, torna-se a geração intermediária
subsequente do texto, em que ela explica o processo de regresso que une aquelas que a antecedem e sucedem. A personagem
dos salmões e seu esforço para sobreviver, sendo que muitos não explica ao seu filho o processo de regresso dos salmões, mas ele
o conseguem e são arrastados pelo mar. não compreende tal prática. Como explicação, a protagonista se
O empenho dos salmões é exposto de maneira recorda do relato de um republicano que expõe práticas ocorridas
fragmentada ao longo do texto. O conto possui cinco partes, sendo nos campos de concentração. A princípio, a particularidade do
que a segunda e a quarta dizem respeito ao testemunho do filho parece não se relacionar com a experiência de uma vítima de
republicano e à rememoração de Norma do seu caso amoroso. As guerra. No entanto, é justamente o testemunho desta que
outras partes referem-se ao diálogo entre mãe e filho que responde ao questionamento inicial.
exprimem o movimento dos salmões que, por sua vez, mimetiza Assim, ressaltamos o processo em que o fator externo se
no texto o procedimento memorialístico. torna interno ao texto literário (CANDIDO, 1997). A ruptura no
Isso se dá, pois a explicação dada por Norma é entrecortada discurso histórico espanhol, o silenciamento em relação às
pelo testemunho do republicano. Ou seja, a oscilação dos salmões consequências da guerra civil, torna-se presente na estrutura
ao saltarem as correntes denota os saltos da memória, que está textual de Montserrat Roig. Com isso, a sobreposição de tempos
fragmentada ao longo do texto. Este se inicia com o trajeto dos no conto remete a um processo de representação de distintas
salmões e encerra-se justamente com a descrição deste percurso. vozes para que, sintetizadas, tragam à tona – através da memória
Logo, compreendemos que ocorre um processo de resistência da – o destino dos republicanos. Há no texto uma geração
memória, mimetizado pelo movimento de obstinação dos intermediária que não viveu diretamente as consequências da
salmões. Assim, ainda que existam diversas rupturas ao longo do guerra, mas que através de um testemunho é capaz de transmitir
texto, a memória é posta como elemento de resistência e através a experiência de uma voz distinta àquela propagada pelo poder.
dela tomamos conhecimento dos desastres da guerra civil Representa-se, dessa forma, a denúncia existente em Madre, no
espanhola. entiendo a los salmones e o consequente engajamento de Roig.
Quem viveu sob o poder ditatorial na Espanha não
tomou/toma conhecimento das consequências do pós-guerra civil,
já que as vítimas deportadas e muitas vezes assassinadas foram
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3. logo, há um desconhecimento da atual geração a respeito das


Por tudo isso, entendemos que a livre associação de vítimas de guerra.
ideias ao longo do conto vai indicando distintas experiências Dessa forma, percebemos que ocorre “o adensamento do
individuais. Com elas, ocorre a representação de cotidianos e a tempo histórico e uma narrativa histórica que nada tem de
partir deles indicações do contexto histórico que perpassa o conto, ingênua, pois constrói no mesmo movimento a perspectiva do
através de diferentes gerações da Espanha do século XX. Ao narrador e o processo que ele quer narrar” (WAIZBORT, 2007, p.
apresentar-nos personagens que representam distintas gerações, 128). Assim, concluímos que Madre, no entiendo a los salmones
é possível reforçarmos o engajamento de Roig. Em sua obra ela apresenta uma pluralidade de pontos de vista representados por
compõe uma personagem principal que equaciona através de sua suas distintas personagens que, por sua vez, representam
própria experiência outras duas. diferentes gerações da Espanha. Ademais, tem-se na escrita uma
Com isso, entendemos que o conto possibilita a fragmentação que está contida no plano linguístico do texto, mas
configuração da memória de maneira complexa. Esta ocorre nos que também representa o próprio processo da memória. Esta nos
diversos planos narrativos, de modo que ele nos traz a experiência é apresentada por sua forma entrecortada e representa o processo
(o vivenciado) contraposta à escuta, perpetuando assim a de resistência mimetizado na resistência dos salmões.
propagação do discurso não oficial (o narrado). Ele indica a Isso faz com que reafirmemos o embasamento da nossa
resistência que está sintetizada no texto, tanto por sua forma, presente análise. De acordo com Antonio Candido, “[...] o externo
quanto pelo seu conteúdo, pautada no contexto sócio-histórico. (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado,
Para tanto, Montserrat Roig compõe o que György Lukács mas como um elemento que desempenha um certo papel na
apresenta como “gênese histórica”, sendo que “[...] somente uma constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”
verdadeira compreensão da complexidade e do enredamento (CANDIDO, 2006, p. 14). Com isso, observamos que o
dessas forças [sócio-históricas] pode mostrar como elas se entrelaçamento entre diferentes vozes em Madre, no entiendo a
engendraram e em quais direções podem se desenvolver à los salmones, correlacionadas a distintas realidades e gerações,
derrubada revolucionária do fascismo” (LUKÁCS, 2011, p. 214). A explica a fragmentação temporal presente no conto, que sintetiza
autora apresenta a gênese histórica do seu tempo através da a resistência da memória através do discurso literário.
ignorância de um filho, que não entende a morte dos salmões. A
falta de conhecimento é indicada no próprio título do conto, Referências
demonstrando um processo de distanciamento da geração AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na Literatura
contemporânea da Espanha em relação aos seus compatriotas, Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1994.
que vivenciaram diretamente as consequências da guerra. Se
houve um “silenciamento de vozes” por parte do regime ditatorial,
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BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza”. In: BENJAMIN, Walter.


Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.

CANDIDO, A. “Duas vezes ‘A passagem do dois ao três’”. In:


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1965.

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ENTREVISTA com Antonio Candido. Investigações. Recife: v. 7, pp.


7-39. 1997.

GAGNEBIN, J. M. “Memória, História e Testemunho”. In:


GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo:
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Santiago: Editorial Universitaria, 1969.

LUKACS, G. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.

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Barcelona: Península, 1990.

WAIZBORT, L. A passagem do três ao um: crítica literária,


sociologia, filologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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A PONTE POSSÍVEL ENTRE O “REAL” E O FICCIONAL: ANÁLISE DO Márcio Seligmann-Silva aborda muitas destas reflexões em
RELATO DE UMA SOBREVIVENTE DA ÚLTIMA DITADURA seu artigo “O testemunho para além do falocentrismo: pensando
MILITAR ARGENTINA. um outro paradigma”. Em suas contribuições, Seligmann-Silva
Debora Duarte dos Santos busca erguer possibilidades teóricas para o campo discursivo que
USP trata das problemáticas sociais e históricas mais prementes no
século XX, que, como citado por ele, pode ser considerado como a
Introdução “era das catástrofes”. O principal leitmotiv das discussões
¿Qué es lo que lleva, después de tanto tiempo, a volver propostas pelo teórico refere-se ao seu anseio por consolidar uma
sobre ese pasado? ¿Por qué hacer pública la linha de estudos a partir da qual seja estabelecida uma postura
experiencia más íntima del miedo, la vejación, la teórica acerca tanto da literatura da “era das catástrofes”, quanto
tortura, el dolor? ¿Por qué revivir en el relato cada una dos testemunhos. Tal empreitada propõe um olhar mais cuidadoso
de las instancias de ese sufrimiento – secuestro, para as referidas produções discursivas, tratando de trazer à tona
confinamiento, tortura, delación, abuso sexual, a mirada daqueles que foram perpassados por práticas
perversión, pérdida de los compañeros, peligro de repressoras de processos autoritários, dentre os quais citamos
muerte, exilio –? Porque el lenguaje trae consigo, aqueles que se desdobraram na América Latina. Nesse sentido, no
inexorablemente, toda la carga de la afección. que cabe ao discurso literário propriamente dito, Seligmann-Silva
(Arfuch, 2013, pp.88-89). assinala que seria pertinente pensar este como um discurso
literário e ao qual está alinhado o que ele chama de “teor
Sobre aquilo que nos interessa discutir podemos, de testemunhal”.
entrada, propor as seguintes questões: Qual é de fato o estatuto Observamos que as experiências do século XX acabaram
possível para se pensar não apenas a literatura cujo tema central por instaurar um novo modo de compreender não somente a
advém das catástrofes, mas também o testemunho, ambos tidos literatura, mas as artes de uma forma mais ampla, sem
aqui como o que o outro nos conta acerca de determinada desconhecer, é claro, outros tipos de discurso, tais como os
experiência? Quais são as fronteiras entre o que se entende por apresentados pelo viés histórico. Sobre o assunto, em “El texto
“real” e aquilo que se convencionou chamar de “ficcional”? O que histórico como artefacto literário” (2003), o historiador Hayden
é, ao fim e ao cabo, a “verdade” e como se encontra o estado da White entende a história como parte integrante de um todo muito
arte para a questão, quando o que temos em cena é o fato mais complexo, contraditório e paradoxal: o processo de tradução
histórico atravessado pela subjetividade e pela experiência ocular do “real” para o verbal, isto é, a própria escrita. A tese defendida
do sobrevivente? por Hayden White entrevê que os episódios históricos têm uma
espécie de “valor neutral”, ou seja, são em certa medida
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provisórios, visto que sempre passarão pelo crivo hermenêutico também porque já “[...] não podemos mais contar com discursos
do historiador. Para o teórico, a exposição do fato histórico puros” (2003, p. 17-18).
encontra-se intrinsecamente relacionada com a decisão de Desse modo, na presente análise, propomo-nos discutir um
determinado estudioso em dar ao componente histórico uma relato cujo valor testemunhal está imerso tanto nos fluxos da
formatação peculiar, ora ressaltando determinados aspectos, ora história, quanto atrelado à memória e ao seu consequente oposto,
enfatizando outros. o esquecimento. Nosso ponto de partida sustenta-se na
Cómo debe ser configurada una situación histórica dada prerrogativa de que não é possível conjeturar a própria
depende de la sutileza del historiador para relacionar una experiência sem que esteja nos interstícios do gesto discursivo
estructura de trama específica con un conjunto de daquele que narra uma postura flutuante entre o que ele viveu no
acontecimientos históricos a los que desea dotar de un tipo passado e aquilo que o constitui no presente. Há que se considerar
especial de significado. Esto es esencialmente una
que na contemporaneidade é flagrante a inexistência de um eu
operación literaria, es decir, productora de ficción y llamarla
sobrepujado pela orientação cartesiana, sobretudo após os
así en ninguna forma invalida el status de las narrativas
históricas como proveedoras de un tipo de conocimiento processos e estilhaços herdados historicamente.
(2003, p. 115).
Análise: o relato de María Isabel Chorobik de Mariani
Seguindo a mesma linha de White, García (2002) em Uma abertura em flashback marca o início do relato da
Ficción, testimonio y debate social: acerca de Recuerdo de la sobrevivente da última ditadura militar argentina, a senhora María
muerte de Miguel Bonasso retoma o assunto, sobretudo quando Isabel Chorobik de Mariani, que evidencia em suas remissões a
alude às teorias de Bruss (1991) e Bakhtin (1985), dizendo o presença da carga emocional. A entrevistada, embora tenha
seguinte: “Para ella [Bruss], tanto para Bajtín, el acto de leer o enquanto pretensão basilar apresentar um dado histórico, apela
escribir supone una elección de estilo o temática en función de una aos recursos da língua para discorrer sobre sua experiência. Na
postura ideológica relacionada con una determinada acción que se entrevista realizada notamos não só o uso de figuras de linguagem,
pretenda llevar a cabo a través del texto” (GARCÍA, 2002, p. 37); tais como as elipses, os anacolutos, como também o emprego de
proposição que se confirma com as reflexões de Seligmann-Silva, sufixação nominal com sentido diminutivo. Nesse segundo caso, a
desde as quais observamos a diluição do pensamento que defende utilização das terminações “ita” (diminutivo do idioma espanhol)
a existência de uma “verdade pura” e facilmente verificável no nos vocábulos “muchachita” e “gordita” revela-nos uma marca de
mundo fatual, principalmente quando o teórico aponta que “[...] estilo bem definida: o de sentimento de afeição que a entrevistada
não existe historiografia imune à questão aparentemente banal do possui em relação a uma terceira pessoa; fato que acaba se
‘ponto de vista’ [...] uma vez que a nossa visão de mundo sempre confirmando logo em seguida quando Mariani fala de Laura
determinará nossos discursos e a reconstrução da história”, e Alcoba, autora da obra La casa de los conejos (2008) — romance
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que discute o mesmo episódio histórico apresentado pela sentimento de culpa por ter escapado da morte, fato que acaba
entrevistada. aniquilando seu modo de se relacionar com a própria vida. A dor
- ¡Es una chica fascinante! […] ¡Es fascinante! Es una criatura da qual fala Mariani, também foi vivenciada pela autora de La casa
maravillosa y que pasó a contar su historia desde los ocho de los conejos, pois de acordo com a entrevistada, quando Laura
años, desde lo que ella veía, desde lo que ella sentía […] Así voltou à Argentina e foi, depois de tantos anos, até a casa na qual
que yo tengo para ella un agradecimiento y un cariño muy morou durante sua infância ela sofreu “[...] un choque muy grande
especial, muy especial. Es una hermosa criatura. (Mariani,
[...] lloraba y lloraba [...] Entonces llegar allí y recordar fue
2012).
durísimo” (Mariani, 2012). Referência que também encontramos
Nas falas iniciais de Mariani são apresentadas as aporias de no livro:
sua voz estertorante, à medida que nos aclara que por conta das Meses después de la lectura del libro Los del ‘73, tuve
desventuras do tempo e das condições políticas vivenciadas na ocasión de entrar en contacto con Chicha Mariani, madre
Argentina é que ela acabou perdendo o contato com Alcoba, e só de Daniel – “Cacho”, para mí. Y todo ocurrió gracias a un
muito tempo depois é que, por meio de uma amiga, pode contatar concurso de circunstancias que todavía me maravilla: una
Laura. Mariani expõe o seguinte: “[…] un día apareció acá una cena absolutamente fortuita con la madre de un amigo que
evocó al pasar su nombre, ignorando que yo había vivido en
amiga mía de Ginebra, de Suiza, […] muy amiga mía [...] y me contó
la casa de los conejos y hasta qué punto todo aquello
que su hijo, trabajaba con o estudiaba [...], no me acuerdo, en una
todavía vivía en mí. Sin duda otro azar prodigioso. Tras un
Universidad de París, juntos” (Mariani, 2012, grifo nosso). Nesse breve intercambio epistolar con ella, me fui volando a la
fragmento, a entrevistada constrói o sintagma “no me acuerdo”, Argentina.
ou seja, mesmo sem pretender, acaba obviando o que inserimos Acompañada por, casi treinta años después, en La Plata,
em nossa altercação inicial: a condição de refém daquele que pude así volver a ver lo que queda de la casa de los conejos.
testemunha, sobretudo porque o mártir ao apresentar seu relato Hoy una asociación se ocupa de ella y trata de convertirla
trabalha simultaneamente com a memória e com o esquecimento. en un espacio de recordación. Chicha está al frente.
Quando elucida sua postura após a leitura de La casa de los En ese lugar, aún puede distinguirse el emplazamiento de la
conejos, a entrevistada ergue uma metáfora de suma relevância imprenta clandestina. Una placa explica de qué servía este
para se refletir acerca da linha que prende o superstes ao seu extraño espacio estrecho, encerrado entre dos muros, hoy
en gran parte devastados. Pero la palabra embute no
passado: “[...] yo creo que se me congeló la sonrisa durante varios
aparece, ni siquiera entre comillas.
días” (Mariani, 2012). Essa menção de María Isabel traz para a
Sí. Creo que ha desaparecido definitivamente.
discussão o processo de submersão no trauma, que percorre a vida Todo muestra que el ataque fue de una violencia inaudita.
do sobrevivente. Uma vez que, para a testemunha ocular
continuar vivendo depois da catástrofe é o mesmo que viver
“congelado”, arrefecido. O sobrevivente é afetado pelo
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No existen palabras para la emoción que me invadió cuando O fato de sublinhar a existência de “erros” em La casa de
descubrí, en cada cosa recordada, las mareas de la muerte los conejos encontra-se atrelado à voz política do testemunho,
y la destrucción. pois, de acordo com a entrevistada, esse “[...] fue un libro con una
Un solo disparo de mortero horadó dos paredes. Perforó la resonancia en el mundo entero, porque ya fue traducido a varios
fachada y luego abrió un agujero idéntico en el muro que
idiomas y anda y anda y anda el libro a cada tanto, en alemán, en
separaba el cuarto de Diana y Cacho, de la cocina.
francés, en inglés”, ou seja, a obra de Alcoba teve “[…] una
En el garaje, aun está la furgoneta: un resto de naufragio
oxidado y acribillado a balazos. repercusión muy grande” (Idem) e, dessa forma, ao citar os
El techo fue incendiado casi completamente. En la parte de “equívocos” constantes no livro, Mariani pretendeu evidenciar sua
atrás de la casa, allí donde se encontraban los conejos y la preocupação no que concerne à apresentação dos fatos
imprenta, no quedan sino ruinas de lo que yo había recuperando “[...] o que existe de mais terrível no ‘real’ para
conocido. Ruinas y escombros. Nada más. apresentá-lo” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 375). Demonstrando
Yo quería visitar la casa. Quería sobre todo hablar con assim que a voz política do testemunho deve-se pressupor isenta
Chicha, y tratar de saber más, cuanto fuera posible […] do caráter “imaginativo”. Para García (2002): “El relato testimonial
(ALCOBA, 2009, pp. 126-128). argentino se posiciona en el debate social como una voz disonante
De acordo com Mariani, em La casa de los conejos “[...] Hay y periférica, ubicada deliberadamente fuera de los géneros
algunos pequeños errores [...]”, no entanto esta só pode entrar em institucionalizados para combatir un estado de cosas […],
contato com a autora tempos depois da publicação. Segundo constituyéndose en un nuevo centro de interés” (p. 115), de modo
María Isabel: “La madre que conocía la historia […] le dijo: ‘Mira que não se pode negar ao relato testemunhal o seu “tono de
acá esta zona se llamaba así, esta otra… ¡‘tás’ confundiendo los denuncia” e de certa militância. É com este gênero que podemos
nombres!’” (Mariani, 2012). Ou seja, tanto para a senhora Mariani identificar a ponte possível, o ponto provável, o liame entre as
quanto para a mãe da autora, era imprescindível que a tessitura janelas do “real” e do ficcional, que por ora passam a se constituir
narrativa de La casa de los conejos fosse “fiel” ao contexto como vasos comunicantes.
histórico dos anos 70, fazendo aparecer os fatos “tal como haviam
ocorrido”. Não obstante, a escritora decidiu “[...] dejar así como ya Considerações finais
lo recordaba” (Idem). A fala da entrevistada sinaliza, portanto, dois Conforme observado no testemunho de Mariani, atrelado
argumentos que se aproximam e se afastam ao mesmo tempo: a à sua intenção primeira está a necessidade de assegurar o status
necessidade do estatuto de “verdade”, do “real” e/ ou da de veracidade, muito embora esta que se encontra na condição de
“transparência” para o recorte histórico e a “liberdade” estética superstes seja refém do tempo, de suas lembranças e
inerente à ficção. esquecimentos. Esta que testemunha recorre às evocações de seu
pretérito, preocupando-se em conferir ao relato a credulidade e
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isto é o que explica seu recorrente esteio nos dados comprováveis em vista que não existe um discurso do qual não goteje as
no mundo fatual, inclusive porque sua voz é uma voz política. Além interferências de seu “criador”. De modo geral, as composições
disso, sua performance evidencia a intenção de se apresentar narrativas da contemporaneidade, sejam elas literárias ou
como uma enunciação “homogênea”, menos ambígua e mais históricas, esfacelam as probabilidades de confirmação de um eu
obediente a protocolos. No entanto, o “real” que aparece que se quer colado a não-contradição. Observa-se que por meio
problematizado na fala da sobrevivente, “[...] não deve ser das discussões engendradas ao longo de todo o século XX é que o
confundido com a ‘realidade’ [...] o ‘real’ que nos interessa aqui paradigma ganhou novos contornos, encetando, dessa forma, um
deve ser compreendido [...] na chave de um evento que processo de transição e relativização de aspectos que antes eram
justamente resiste à representação” (Seligmann-Silva, 2003, p. extremamente engessados.
373). Isto é, o “real” elaborado pela testemunha ocular não pode
estar apenas e tão somente cravado no caráter histórico ou Referências
jurídico dos fatos, isso porque o sobrevivente necessita simbolizar ALCOBA, L. La casa de los conejos. 1. ed. Buenos Aires: Edhasa,
as cenas que residem em sua memória. Esse processo de “dar 2009.
forma” ao evento catastrófico seria, antes, o ligamento
constitutivo do relato testemunhal, ou seja, o aspecto que enuncia ______. Manèges: petite histoire argentine. Paris: Gallimard, 2007.
o paradigma fronteiriço entre o “real” e o “ficcional”. Sendo assim,
há que se ressaltar que: “A tensão que habita a literatura na sua ______. Jardín Blanco. 1.ed. Buenos Aires, Edhasa, 2010.
relação dupla com o ‘real’ – de afirmação e de negação – também
se encontra no coração do testemunho [...]” (SELIGMANN-SILVA, ______. Los pasajeros del Anna C. 1.ed. Buenos Aires: Edhasa,
2003, p. 374). 2012.
Desse modo, concluímos o respectivo trabalho apontando
que os eixos abalizados pelo pensamento histórico do século XIX ______. Entrevista ao Programa Los siete locos. Disponível em:
foram colocados, ipso facto, em xeque. Notamos que hoje o http://www.youtube.com/watch?v=PO9nBKC5J9c Acesso em: 13
discurso é visto como parte constitutiva de um espaço no qual as de maio de 2013.
verdades “estéticas” são admissíveis. Um lugar a partir do qual as
porosidades discursivas são olhadas desde uma postura ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade
afirmativa, e não ao contrário. De modo que o caráter de contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010.
contaminação e pulverização dos discursos passou a ser
considerado em sua validade e importância, acreditando-se dessa ______. Memoria y autobiografía: exploraciones en los límites. 1.
forma que as fronteiras se encontram amplamente difusas, tendo ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2013.
P á g i n a | 275

GARCÍA, R. Ficción, testimonio y debate social: acerca de recuerdo


de la muerte de Miguel Bonasso. Mar del Plata: Estanislao Balder
UNMDP, 2002.

MARIANI, M. I. Ch. de. “Entrevista”, La Plata, 2012. In: SANTOS, D.


D. dos. "Un mundo más allá del mío”: violência e inocência em La
casa de los conejos, de Laura Alcoba. Dissertação (Mestrado)-
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2014.

SELIGMANN- SILVA, M. (org.). História, Memória, Literatura: O


testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2003.

______. O local da diferença: Ensaios sobre memória, arte,


literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. Literatura e Trauma: um novo paradigma. In: O local da


diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São
Paulo: Editora 34, 2005.

WHITE, H. El texto histórico como artefacto literario. Disponível


em: http://www.scribd.com/doc/105263415/Hayden-White-El-
texto-histo%CC%81rico-como-artefacto-literario. Acesso em: 28
de julho de 2013.
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JORNALISMO E MEMÓRIA NA TRILOGIA COLOMBIANA auge da fama, faz um balanço de sua vida e questiona lances
DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ decisivos de sua trajetória profissional. Como aproximação ao
Diogo de Hollanda Cavalcanti tema, começo o trabalho reunindo considerações teóricas que, a
UFRJ partir de diferentes prismas, ressaltam a complexidade das
relações entre jornalismo e memória, que nem de longe admitem
1. Introdução diagnósticos absolutos. Em seguida, sem pretensões exaustivas,
A influência do jornalismo no imaginário social e suas cito trechos de dois romances – Festa no covil (2010), de Juan
relações ambíguas e inescapáveis com a memória coletiva Pablo Villalobos, e Os surdos (2012), de Rodrigo Rey Rosa – para
parecem um tema cada vez mais frequente na literatura hispano- ilustrar o interesse, a meu ver crescente, na influência do
americana. Um dos exemplos mais significativos, pela recorrência jornalismo no imaginário social dos países hispano-americanos.
e a amplitude da abordagem, é a obra do colombiano Juan Gabriel Finalmente, concluo fazendo a análise da trilogia colombiana de
Vásquez (Bogotá, 1973), escritor que ganhou notoriedade e Vásquez – análise certamente preliminar, porém suficiente para
diversos prêmios principalmente com os romances Los evidenciar a centralidade do jornalismo na obra do autor.
informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El
ruido de las cosas al caer (2011). Nesses três livros – cujas inúmeras 2. Três facetas de uma relação ambígua
semelhanças permitem ver como uma trilogia –, o jornalismo se Ao pensar nas relações entre jornalismo e memória, é
apresenta como elemento incontornável, para o bem e para o mal, preciso considerar três perspectivas em boa medida
nas investigações históricas empreendidas pelos protagonistas, contraditórias: 1ª) a do jornalismo como meio de preservar a
sempre tendo como propulsor algum evento pessoal, que memória coletiva – ou, como dizia o repórter Joel Silveira (apud
desencadeia uma investigação familiar que depois se expande MORAES NETO, 2008), de “salvar os fatos da grande fogueira do
para os domínios da memória coletiva. Longe de receber uma esquecimento”; 2ª) a do jornalismo como um construtor de
caracterização unívoca, o jornalismo é mostrado nas obras em pelo discursos hegemônicos; 3º) a do jornalismo como um produtor de
menos três dimensões contraditórias: como meio de preservar a esquecimento – ação que exerce tanto pela condição anterior, de
memória, construtor de discursos hegemônicos e produtor de fabricante de discursos hegemônicos, como por sua natureza
esquecimento. mercadológica, seu caráter de usinas de notícias em busca de
A proposta deste artigo é analisar este aspecto ainda pouco audiência e rentabilidade. A seguir, abordarei essas três
explorado da ficção de Vásquez, que aparece não apenas nos três dimensões.
livros mencionados – que eu e outros autores temos chamado de
“trilogia colombiana” – como em seu romance mais recente, Las
reputaciones (2013), protagonizado por um caricaturista que, no
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2.1 O jornalismo como guardião da memória coletiva escriturária que abarca a seleção do que será publicado, a
A importância do jornalismo para a memória coletiva é repetição reiterada da informação e, por último, a
citada por autores como Jacques Le Goff (2003), Eric Hobsbawm monumentalização do que um dia foi o acontecimento fundador
(2005) e Pierre Nora (1996), que consideram os meios de (BARBOSA, idem). Exemplo recente dessa prática é a cobertura da
comunicação um dos agentes mais poderosos de difusão dos fatos chamada “pacificação” das favelas cariocas, a partir de 2008,
do passado – tanto recente quanto remoto – e um dos principais quando a expressão “momento histórico” foi usada
responsáveis pela interpretação que fazemos deles. Le Goff (2003, exaustivamente nas matérias sobre a instalação das Unidades de
p. 461) vincula a imprensa a um fenômeno de aumento da oferta Polícia Pacificadora (UPPs).
de memória coletiva, e atribui à “memória jornalística” papel Portanto, mais do que preservar a lembrança dos
fundamental para o surgimento da opinião pública. Pierre Nora acontecimentos, o jornalismo produz uma memória sobre eles,
(1996, p. XVII), por sua vez, considera um “lugar de memória” as como destacou, entre outros autores, Pierre Nora (1988, p.191).
narrativas históricas mediadas pelos meios de comunicação, no Essa produção se dá não apenas no efeito futuro gerado,
sentido de que proveem a ideia de um passado compartilhado a cumulativamente, pelos relatos do presente, mas na leitura
uma comunidade ligada por certos vínculos identitários. Como presente dos relatos sobre o passado, que aparece
nota Eric Hobsbawm (2005, p. 20), na dinâmica das relações sistematicamente rememorado nos veículos de imprensa. Tal
cotidianas, menos do que uma tradição ancestral, é o contato com rememoração nem sempre tem como propósito a discussão dos
jornalistas, professores, padres e outras figuras que falam de episódios evocados – embora esta se faça, ocasionalmente,
história que determina a organização da memória coletiva. sobretudo em efemérides –, mas a compreensão, à luz da História,
Cientes dessa importância, os próprios jornalistas dos acontecimentos da atualidade. Segundo Eliza Casadei (2012),
reivindicaram ao longo do tempo epítetos como “historiador do ao citar fatos históricos e incorporá-los às notícias do presente, os
instante”, “historiador do tempo presente” e “historiador do meios de comunicação buscam, principalmente, um conjunto de
cotidiano”, expressando, por um lado, o desejo de dar longevidade referências que dotem de significado os eventos que estão
a algo geralmente efêmero como a notícia e, por outro, o anseio narrando. Trata-se, em suas palavras, de semantizar o evento
de se equiparar aos historiadores na legitimidade para relatar o jornalístico, partindo da ideia, exposta por Stuart Hall (1993,
passado. Neste sentido, embora cada vez mais ditada pela p.226), de que um acontecimento só faz sentido se puder ser visto
instantaneidade, a atividade jornalística se volta não apenas para em um contexto de identificações sociais e culturais já conhecidas.
o presente, mas também para o futuro, com o interesse de fazer
dos jornais uma espécie de fiador dos tempos passados (BARBOSA,
idem, p. 464). Uma das consequências é a própria produção de
acontecimentos históricos, mediante uma intrincada engenharia
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2.2 O jornalismo como construtor de discursos 2001, p. 67) –, por outro expressou preocupações crescentes com
hegemônicos o unilateralismo que, a seu ver, favorecia a burguesia em qualquer
Considerando o caráter seletivo de toda narrativa e o fato contexto, até mesmo nas notícias corriqueiras. Em mais de um
de, consequentemente, toda lembrança supor um esquecimento, momento, Gramsci chegou a pregar o boicote aos “jornais
cabe então pensar na natureza da memória produzida pelo burgueses”, exasperado com o tratamento dado aos operários e a
jornalismo. Será uma memória democrática, múltipla e inclusiva? invariável censura feita a suas reinvindicações. Em seus escritos, o
A resposta, ainda que não possa ser unívoca, dificilmente seria filósofo diz que os jornais manipulam a opinião pública e silenciam,
positiva. Como comenta Sylvia Moretzsohn (2007, p.105-118), deturpam e falsificam as informações, a fim de enganar, iludir e
desde suas origens mais remotas – os avvisi e zeitungen do século manter os trabalhadores na ignorância.
XIII –, o jornalismo padece de uma ambiguidade ontológica: a de Para Dênis de Moraes (2010, p.67), as considerações de
ser um serviço público prestado quase sempre por agentes Gramsci continuam a ter validade hoje, numa “sociedade
privados. A periculosidade desta condição – ou seja, a midiatizada”, marcada por “fluxos hipervelozes, saturada de
possibilidade de que fomente uma “memória manipulada”, como imagens e aparentemente conformada em expressar aspirações
a mencionada por Paul Ricoeur (2007) – é agravada pela através do consumo”. Buscando moldar a opinião social com a
necessidade de verbas publicitárias, que “transformou muitos escolha dos temas que merecem ênfase, incorporação,
jornais que nos fizeram abrigar esperanças de mudança em meros esvaziamento ou extinção, as corporações midiáticas procuram
reprodutores do que dizem os decretos dos governos e ordenam reduzir ao mínimo o fluxo de ideias contestadoras – sobretudo as
as empresas de propaganda”, segundo observou Tomás Eloy que se opõem ao mercado como âmbito de regulação de
Martínez, em uma conferência de 2005. demandas sociais. “A meta precípua é esvaziar análises críticas e
Antonio Gramsci considerava a imprensa um dos aparelhos expressões de dissenso, evitando atritos entre as interpretações
privados de hegemonia, entidades da sociedade civil que, através dos fatos (notadamente os que afetam interesses econômicos,
da elaboração e propagação de ideologias, buscam obter corporativos e políticos) e seu entendimento por parte de
consenso, seja para manter uma situação de domínio, seja para indivíduos, grupos e classes” (MORAES, 2010, p. 68).
tentar revertê-la (MORAES, 2010, p.59). Tanto nos Cadernos do Neste sentido, parece fundado o temor de uma memória
cárcere quanto em sua vasta produção jornalística – que abrange manipulada, que privilegie as classes dominantes em detrimento
mais de 1,7 mil artigos –, o marxista italiano reflete sobre a ação dos setores subalternos. Ainda assim, resistindo a uma visão
decisiva dos meios de comunicação na formação da opinião apocalíptica, Moraes adverte que a mídia não pode ser vista como
pública. Assim, se por um lado saudou os benefícios da imprensa – um todo homogêneo, sendo marcada por tensões diversas, vindas
que deu à memória "um subsídio de valor inestimável” e permitiu tanto das inquietações do público – que impõem, até mesmo por
“uma extensão inaudita da atividade educacional” (GRAMSCI, questões mercadológicas, algumas concessões – quanto de sua
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própria composição interna. Segundo ele, a grave assimetria nas conquistar leitores e anunciantes com o menor investimento
comunicações – o fato de uma parcela mínima da sociedade ser possível –, esses aspectos motivaram críticas contundentes desde
dona de veículos, enquanto a coletividade é apenas destinatária – o fim do século XVIII, quando os jornais começaram a se multiplicar
impõe limitações e obstáculos, mas não impede que ações ao compasso da modernização do capitalismo. Incomodado com a
inventivas se desenvolvam no interior das empresas (MORAES, quantidade de veículos de comunicação que surgiam na Alemanha
2010, p. 72). Além disso, o advento da cultura digital, com o – e a forma absorvente com que se impunham no cotidiano –,
surgimento de novas possibilidades de comunicação, sinaliza um Goethe, por exemplo, disse que a imprensa constituía um grande
horizonte de esperança, no qual o poderio das corporações não desperdício de tempo, que atulhava os leitores de
será mais suficiente para impedir a circulação de discursos superficialidades e promovia a passividade e o conformismo (apud
dissonantes, que valorizem a consciência social, as causas KELLNER, 2000, p. 13-14). Diagnóstico semelhante partiu,
comunitárias e os direitos da cidadania (idem, p. 74). Como dizia repetidas vezes, de Nietzsche, que apontou na expansão dos
Gramsci, a hegemonia não é uma construção monolítica, mas o jornais um dos principais fatores para a mediocrização da cultura
resultado provisório de um processo de medições de forças, de e da educação alemãs. O jornalista, disse Nietzsche, “passa com
uma disputa permanente entre diferentes grupos em determinado pressa e ligeiramente sobre as coisas” (apud DIAS, 2001, p.37),
contexto histórico. Esta mesma condição mutante caracteriza a contribuindo para a deterioração da língua, o empobrecimento
memória pública, definida por Claudia Koonz (apud ACHUGAR, das ideias, a homogeneização e o conformismo dos indivíduos. O
2006, p. 56) como um campo de batalha, em que diferentes efeito paralisante do excesso de informações – que também
memórias competem pelo poder. adverte nas Segundas considerações intempestivas, “Da utilidade
e desvantagem da história para a vida” – é outro motivo de
2.3 O jornalismo como produtor de esquecimento apreensão para o filósofo.
Mas, para vários autores, o jornalismo induz Em um de seus ensaios sobre a modernidade (“Sobre
irremediavelmente ao esquecimento – e não só pelo que conta e alguns temas de Baudelaire”), Walter Benjamin observa que o
o que deixa de contar, mas pelas características de sua enunciação: próprio discurso jornalístico – pautado pela novidade, a
a miscelânea de informações, profusas e torrenciais; o super objetividade, a desconexão entre as notícias – produz a separação
aproveitamento dos espaços; a superficialidade e as entre fato e experiência, ou seja, relata os fatos sem transmitir
simplificações; o afã judicativo, e a própria efemeridade dos uma experiência nem propiciar uma memória. “Na substituição do
assuntos no noticiário. “Não há nada mais velho do que o jornal do antigo relato pela informação e da informação pela ‘sensação’,
dia anterior”, já diz a frase que, como outras, incorporou-se ao reflete-se a atrofia progressiva da experiência”, escreveu o crítico
senso comum. Forjados majoritariamente pelos interesses alemão (2000, p. 36). Nos dias atuais, esse efeito de esquecimento
econômicos das empresas – ou seja, pela necessidade de foi intensificado com o jornalismo em tempo real e seu “fetiche da
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velocidade”, como denominou Sylvia Moretzsohn (2002, p. 176), vértigo textos innecesarios” (BORGES, 2005, p.120-121). A réplica
sublinhando “o descompasso entre o tempo dos sistemas de do narrador corrobora a visão de Borges:
informação e o tempo humano e social”. Ao comentar as – En mi curioso ayer – contesté –, prevalecía la superstición
diferenças entre jornalismo e literatura, Ricardo Piglia (2012) de que entre cada tarde y cada mañana ocurren hechos que
reforça a visão de Benjamin. De acordo com o crítico e escritor es una vergüenza ignorar. El planeta estaba poblado de
argentino, com o fluxo incessante de informações, assistimos a espectros colectivos, el Canadá, el Brasil, el Congo Suizo y el
Mercado Común. Casi nadie sabía la historia previa de estos
certas catástrofes sem nos sentir implicados, como se fôssemos
entes platónicos, pero sí los más ínfimos pormenores del
meros espectadores. Segundo ele, enquanto a literatura consegue
último congreso de pedagogos, la inminente ruptura de
envolver o leitor por transmitir uma experiência – ou seja, uma relaciones y los mensajes que los presidentes mandaban,
vivência dotada de sentido –, o jornalismo nos atinge elaboradas por el secretario del secretario con la prudente
superficialmente por difundir apenas informações. Por conta imprecisión que era propia del género. […] Todo eso lo leían
disso, salientou Piglia, apesar do manancial de dados de que para el olvido, porque a las pocas horas lo borrarían otras
dispomos, vivemos com a sensação de estar sempre trivialidades (BORGES, 2005, p.120-121). 1
desinformados. Na literatura contemporânea, nota-se um interesse
Essa proliferação incessante e indiscriminada já era, crescente na influência do jornalismo no imaginário social e na
décadas atrás, um dos cernes das críticas de Borges à imprensa. O memória coletiva. A indiferença mencionada por Piglia aparece,
escritor argentino, a quem o tema da memória sempre foi
por exemplo, no romance Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos,
particularmente caro, caracterizou em diferentes textos a leitura publicado originalmente em 2010. Assistindo com o pai, um chefão
de jornais como uma entrega ao esquecimento. Em “Avelino do tráfico, ao telejornal noturno, o menino Totchili, protagonista e
Redondo”, publicado em El libro de arena (1975), o narrador narrador, comenta com naturalidade o desfile de cadáveres
associa o hábito de ler jornais a uma recusa à atividade crítica: exibido pelo noticiário.
“Ávido lector de periódicos, le costó renunciar a esos museos de Hoje na tevê deram essa notícia: no zoológico de
minucias efímeras. No era hombre de pensar ni de cavilar” Guadalajara os tigres devoraram uma mulher inteirinha,
(BORGES, 2005, p.144). Em “Utopía de un hombre que está menos a perna esquerda. Vai ver que a perna esquerda não
cansado”, incluído no mesmo livro, o personagem narrador era uma parte muito suculenta. Ou vai ver que os tigres já
encontra um homem que vive no futuro e que, entre outras estavam satisfeitos. [...] No final da reportagem o homem
revelações, anuncia-lhe a extinção da imprensa – “uno de los das notícias ficou muito triste e desejou à diretora do
peores males del hombre, ya que tendió a multiplicar hasta el zoológico que descansasse em paz. Que idiota. A essa altura

1
Devo ao artigo de Leila Danziger (2007) as referências a Borges e Benjamin,
que depois consultei nos originais.
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ela já estava dentro da barriga dos tigres feito mingau. Além mesma proposta temática – de reescrita do passado colombiano –
do mais só vai ficar lá enquanto os tigres fazem a digestão, e terem em comum diversos procedimentos narrativos, como a
porque ela vai acabar transformada em cocô de tigre. enunciação em primeira pessoa, o uso do discurso metaficcional e
Descansar em paz uma ova. No máximo a perna esquerda é a presença da figura paterna como fio condutor do enredo, que é
que vai descansar em paz (VILLALOBOS, 2012, p.26-27).
sempre uma investigação sobre a história nacional. Outras
Em Os surdos, de Rodrigo Rey Rosa, publicado em 2012, um semelhanças são o papel de destaque dado a personagens
personagem prestes a cometer um assassinato imagina como a deslocados (que figuram ou como narradores ou como
imprensa noticiaria o crime: “leitor assíduo de jornais, Chepe tinha testemunhas decisivas), as permanentes reflexões sobre a
certeza de que o ato que ia consumar seria documentado na seção memória (ela própria tida como um enigma) e – o que nos
de ocorrências policiais; talvez apenas como uma cifra – por isso interessa particularmente aqui – a aparição recorrente do
esperava – mas provavelmente também com algum nome. E uma jornalismo (um elemento ineludível nas investigações
foto talvez?” (REY ROSA, 2013, p.130). empreendidas pelos protagonistas).
Porém, no que tange às relações entre jornalismo e Em Los informantes, o personagem narrador é um
memória, ainda mais digna de nota é a obra de Juan Gabriel jornalista que reconstrói, em dois livros consecutivos, um episódio
Vásquez, sobre a qual discorrerei na seção seguinte. pouco difundido da história colombiana e latino-americana: a
perseguição sofrida por imigrantes dos países do Eixo durante a
3 A trilogia colombiana de Juan Gabriel Vásquez Segunda Guerra Mundial. Para narrar acontecimentos
Nascido em 1973, em Bogotá, Vásquez é um dos nomes de traumáticos, como a criação das listas negras e dos campos de
maior destaque na literatura hispano-americana contemporânea, confinamento na Colômbia, o jornalista recolhe testemunhos,
elogiado com a mesma ênfase por representantes da geração garimpa documentos, se apropria de cartas e vasculha a
anterior, como Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, e escritores intimidade do próprio pai. Finalmente consegue fixar na escrita
surgidos nas últimas décadas, como o argentino Rodrigo Fresán, lembranças que, do contrário, não venceriam as interdições
que o apontou como um dos maiores romancistas políticos da privadas e tenderiam a desaparecer com o passar do tempo. O
América Latina (FRESÁN, 2011). Traduzido para 16 idiomas e jornalismo, portanto, oferece uma possibilidade de produzir uma
editado em mais de 30 países, Vásquez publicou até agora seis memória democrática, um relato que evite o apagamento das
romances, um livro de contos, um de ensaios e uma pequena vivências dolorosas de parte da população. Não à toa o pai do
biografia sobre uma de suas referências literárias, Joseph Conrad. protagonista, que sonha com o esquecimento dos eventos
Embora tenham tramas independentes, Los informantes, evocados pelo filho, nutre severo desprezo pela atividade
Historia secreta de Costaguana e El ruído de las cosas al caer jornalística.
podem ser lidos como uma trilogia, por compartilharem uma
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Em Historia secreta de Costaguana, cuja trama se informações indispensáveis para iluminar os acontecimentos que
desenrola na Colômbia do século XIX, o jornalismo aparece como investiga.
produtor de esquecimento e construtor de discursos Desta forma, os três romances ajudam a pensar o
hegemônicos. Entusiasta da construção da ferrovia e do canal jornalismo na complexidade que mencionamos no princípio: nem
interoceânico no Panamá, o jornalista do romance utiliza a de todo bom, nem de todo deletério. Apenas – e indiscutivelmente
imprensa para manipular a opinião pública, distorcendo – inevitável nos estudos sobre a memória coletiva.
informações e omitindo os aspectos negativos das duas obras,
como a morte de trabalhadores, os surtos de febre amarela e as Referências
fraudes cometidas pelos administradores. Cabe mais uma vez ao ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte,
personagem narrador insurgir-se contra o pai e combater a cultura e literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
manipulação feita nos jornais: “Em seus escritos, meu pai não
temia nem por um instante alterar o que era sabido ou o que todo BARBOSA, Marialva Carlos. Cenários de transformação: Jornalismo
mundo lembrava. Aliás, por uma boa razão: no Panamá, que afinal e História no século XX. Revista Famecos: mídia, cultura e
de contas era uma província colombiana, quase ninguém sabia; e, tecnologia, Porto Alegre, v.19, n.2, maio/ago, p.458-480, 2012.
sobretudo, ninguém lembrava” (VÁSQUEZ, 2007, p. 105).
Já em El ruído de las cosas al caer, a imprensa é mediadora BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas de Baudelaire. In: A
permanente da sensação de medo que toma conta da Colômbia modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
nos anos 1990. Recordações traumáticas do narcoterrorismo – 2000.
como o assassinato de Luís Carlos Galán – muitas vezes se
confundem com lembranças de transmissões televisivas. As BORGES, Jorge Luis. El libro de arena. Buenos Aires: Emecé
primeiras páginas do romance – que mostram o circo midiático ao Editores, 2005.
redor da fuga dos hipopótamos de Pablo Escobar – são expressivas
o suficiente para indicar a perda de sentido que a CASADEI, Eliza Bachega. Jornalismo e ressignificação do passado:
espetacularização do noticiário é capaz de provocar. Somente os fatos históricos nas notícias de hoje. Dissertação de mestrado
depois de ser atingido por um tiro – e ver o parceiro de sinuca apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
morrer a seu lado –, o protagonista Antonio Yammara consegue Comunicação da Universidade de São Paulo. 2010.
captar a dimensão histórica da violência e enveredar, a partir daí,
na investigação que o ajudará a entender as raízes do problema. DANZIGER, Leila. O jornal e o esquecimento. Ipotesi – Revista de
No caminho, escarafunchando no passado do amigo e na trajetória Estudos Literários, Juiz de Fora, v.11, n.2, p.167-177, 2007.
da própria Colômbia, encontrará nas páginas dos jornais
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DE OTEYZA, Caroline. Historia, memoria y periodismo. El MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Los hechos de la vida. Conferência
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MILITARISMO NO ROMANCE REPUBLICANO: regime político. Era o final do ano 1893, a quatro anos da
COMPARATISMO LITERÁRIO ENTRE O BRASIL E A VENEZUELA claudicação da monarquia e da proclamação da república, quando
Dionisio Márquez Arreaza se manifestam as tensões contra a participação e liderança do
ULA, Venezuela exército como o “protetor” do novo regime.
Pela sua participação na proclamação, a classe armada
Neste trabalho, analiso o fracasso do idealismo das toma consciência de sua importância na sociedade e emerge um
personagens Policarpo Quaresma em Triste fim de Policarpo sentido mais coeso de identidade de classe a se contrastar com a
Quaresma (1915), do romancista Lima Barreto, e Gonzalo Ruiseñol marginalidade com que o exército foi tratado pelos políticos do
em En este país...! (1920), do romancista venezuelano Urbaneja Império (COSTA, 1985, p. 282). Uma vez no poder, valorizando-se
Achelpohl, dentro de sua participação respectiva em guerras a si, a obediência estrita e a ação pronta do militar constroem um
nacionais. senso de superioridade moral que o faz se ver a si como o “salvador
A queda do idealismo das personagens constata com da pátria” e o retificador da corrupção e degeneração da ordem
nitidez a oposição entre retórica nacional de fundação e prática de civil trazida pela política imperial (COELHO, 1976, p. 65).
exclusão social. Depois do fracasso retórico e agrário, o fracasso na Essa autovalorização do militar será objeto de crítica no
guerra é o terceiro e último termo da estrutura narrativa nos dois romance que penetra o drama de Policarpo. Durante a Revolta da
romances e representa o cume narrativo do fracasso do idealismo Armada ficcionalizada, os militares e sua retórica castrense são
nacionalista. Assim, a guerra nos romances formula uma crítica representados com uma forte crítica que não escapa ao
daquela oposição exteriorizada no evento bélico que afeta a protagonista. Vejamos.
psicologia das personagens. Policarpo comanda um batalhão de artilharia do governo
No caso de Triste fim de Policarpo Quaresma, o referente contra os revoltosos. Ali ele se encontra, por terceira vez no
bélico é explícito: a Revolta da Armada, ocorrida entre 1893 e 1894 romance, empolgado para servir à pátria na forma que melhor
durante a presidência do “marechal de ferro” Floriano Peixoto. No conhece: a leitura romântica da letra escrita do livro. Guiado pelo
caso de En este país...!, o referente é implícito com a “Revolución patriotismo, em vão busca nos livros os cálculos para calibrar a
Libertadora”, ocorrida entre 1901 e 1903, durante a presidência pontaria dos canhões em um clima de improviso e mediocridade
do general Cipriano Castro. descrito com ironia pelo narrador. Em lugar de agir, prima a
No contexto brasileiro, o confronto armado coloca o conduta de se preparar, como adiando a ação para depois. No ato
governo militar de Floriano, apoiado pelos políticos e militares de estudo, ele se abstrai da realidade imediata do destacamento e
republicanos e pela poderosa classe agrária paulista, contra a causa risadas ao tentar agir. Como ocorre nas primeiras duas
marinha armada cujos líderes, os almirantes Custódio de Melo e partes do romance, a personagem condiciona o mundo real ao
Saldanha da Gama, questionavam a sucessão de Floriano e o novo mundo textual de tal forma que não coincidem. A ingenuidade e a
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paixão da interpretação romântica distanciam o real do textual. evento ficcionalizado, sobre o outro perigo da posição mais
Assim, a prática da guerra contradiz elaborações ideais, bem inofensiva possível exibida no Policarpo. Tanto o tenente Fontes,
entendido, na sua ação imediata e irreflexiva. A esperança vai se que defende a “elevação moral” (LIMA, 1984, p. 203) do governo
esgotando para o leitor e o próprio protagonista nessa sua última de Floriano, quanto Policarpo se fundamentam nas retóricas
tentativa de livrar a pátria de seus males através do potencial fundacionais da nação que orientam sua participação na guerra e
transformador do idealismo nacionalista. as quais justificariam os atos de violência e exclusão. Para Fontes,
Porém, a contradição entre teoria e prática da guerra o contraste no uso do idealismo é uma contradição insignificativa,
envolve, além do ideal de Policarpo, a retórica não menos idealista pois se trata de entrar na ordem existente e sua lógica excludente,
e nacionalista do jacobinismo ou republicanismo radical, enquanto para Policarpo significa entrar numa crise de consciência
representado no tenente Fontes. O narrador faz alusão ao insuportável.
positivismo como componente da retórica oca em prol dos Agora vejamos a decepção de Gonzalo na guerra implícita
militares republicanos e o que lhe incomoda é a associação do elo em En este país...!. No contexto venezuelano, o confronto armado
religioso do positivismo à autoridade constituída que justificaria o da Revolução Libertadora opõe o presidente e general Cipriano
uso da força, identificando a contradição entre o ideal militar e a Castro e o banqueiro com título de general Manuel Antonio Matos,
comissão de crimes (LIMA, 1984, p. 176). Embora o triunfo do que se diferenciam em termos políticos mais do que nos
governo militar na Revolta da Armada em 1894 dera a razão econômicos. O projeto de centralização política e controle militar
histórica aos jacobinos, a eleição nesse mesmo ano de Prudente de Castro acabará com a ordem liberal chamada de “amarela” do
de Morais, o primeiro presidente civil do Brasil, neutralizou as sistema tripé de conveniência entre o governo federal, o setor
aspirações de poder dos militares. financeiro-comercial e os caudilhos regionais (QUINTERO, 1995, p.
Ao contrastar o fracasso do jacobinismo com o de 3 e 21), embora deixando intacta a estrutura econômica e
Policarpo, em ambos os idealismos nacionalistas se vê claramente imprimindo na retórica um renovado cunho nacionalista.
a contradição entre retórica e prática, ou seja, entre o ideal Essa desestruturação do sistema amarelo é forma de
projetado e a realidade material. Desse modo, o romance faz um cultura política que dialoga com a tensão simbólica durante a
paralelo de idealidades retóricas ao colocar Policarpo num terceira e última parte do romance quando o drama de Gonzalo
ambiente onde o jacobino tem a razão. A diferença está na Ruiseñol é contrastado pelo narrador com outras personagens, no
agressividade e a exclusão deste e na ingenuidade romântica e o caso, com o general García e, em especial, Paulo Guarimba, assim
pacifismo daquele, ambos sustentados na ficção (do romance e da ilustrando a forma narrativa de sua decepção e seu fracasso
idéia) de pátria. O narrador ataca sem hesitação o militarismo definitivo como alternativa idealista inviável.
positivista do jacobino, deixando o leitor entrever o perigo dessa A descrição da guerra tem como filtro subjetivo a psicologia
retórica ideal do evento histórico para então advertir, dentro do das personagens envolvidas no campo de batalha. Duas linhas são
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traçadas: a linha de mando e a psicologia dos “decididos” do Quando se inicia a guerra, conta-se o recrutamento
governo, representados no presidente general em chefe e Paulo, e violento e arbitrário de Paulo Guarimba, peão do sítio Guarimba –
a linha dos “indecisos” da revolução, representados no general que lhe dá o sobrenome –, que é etnicamente misturado e
García e Gonzalo. representa um sujeito popular e marginalizado. A história de Paulo
O narrador se divide entre a descrição dos atores da guerra é vertebral, protagonista bem sucedido do romance que co-
e a imediatez da violência. No caso de García e Gonzalo, se protagoniza com Gonzalo pela oposição simétrica dos seus
observam os pensamentos indecisos, caracterizando a dimensão destinos: triunfo versus fracasso. Com efeito, enquanto Gonzalo
psicológica e individual do fracasso neles que os condiciona provém da rica família dos Ruiseñol, formado no estrangeiro,
negativamente na batalha. possuindo capital, crédito e recursos para concretizar e financiar
Certamente, apesar de o general García demonstrar um suas reformas e empresa agropecuária, Paulo é simples
profissionalismo militar igual ao do exército nacional, sua trabalhador de sítio e, se tem alguma responsabilidade de relevo,
indecisão no contexto da incerteza política do país mostra a tensão é pela seriedade, lealdade e confiabilidade do peão diante do seu
entre a dimensão ideal da arte militar de guerra e a prática patrão, “don” Modesto Macapo.
medíocre que a tipifica. De igual forma, Gonzalo – que já o leitor Mas a situação se inverte no decorrer do romance,
viu fracassar na agricultura – reforça o parâmetro individual e precisamente, durante a guerra. Motivado pela promessa de sair
psicológico do fracasso. Ambos García e Gonzalo são feições da bancarrota de sua fazenda, Gonzalo se une à revolução,
distintas de idealidade em graus diferentes que vão de encontro enquanto que Paulo, através do seu caráter corajoso, vai
com a realidade caótica e imprevisível da vida nacional. Ciência ascendendo as patentes militares.
agronômica liberal ou arte militar, o potencial ideal se decepciona Com sujeitos populares como Paulo, o que romance
com a prática profissional dado que as personagens, como propõe é fazer a última revolução, encerrando o ciclo da guerra
indivíduos ou “organismos” fracos, não são aptos para a interna para iniciar, assim, o verdadeiro período de paz garantido
compreensão e superação dos problemas da terra local ou do pelo homem forte e popular que estaria em comunhão com as
conflito armado. particularidades da terra e do povo para defender a república
Não obstante, estruturalmente a guerra é narrada em politicamente, mas também socialmente justa, satisfazendo assim
função do contraste entre Gonzalo e Paulo Guarimba, personagens a promessa da emancipação social da retórica nacional arrastada
cuja relação está já inserida dentro da oposição decisão/indecisão; desde a Independência.
Gonzalo associado ao indeciso general García e Paulo ao decidido Concluindo, a disparidade entre Policarpo e o tenente
presidente e general em chefe. De maneira a melhor entender o Fontes apresenta duas versões de idealismo nacionalista, um mais
plano narrativo da ação bélica, explicarei aquele contraste para, puro, quixotesco e ecumênico, o outro pragmático, opositivo e
então, completar a análise do fracasso do “criollo” Gonzalo. agressivo. A ideologia nacional de um é romântica, a do outro
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jacobina e positivista. Ainda, em um, esta é liberal, embora A interioridade de Gonzalo e a exterioridade de Policarpo
conservadora, no outro, liberal, embora militarista. A tensão como forças excludentes se originam ambas na margem, aqui
definitiva durante o conflito bélico se dá na incompatibilidade do negativa, do idealismo patriótico contrastado, também
idealismo de Policarpo com a prática do improviso e negativamente, com a guerra. Na medida em que a origem
consentimento na violência criminal por parte da autoridade, fundacional do idealismo sustentado pelas personagens se
enquanto o jacobino positivista integra no seu idealismo essa encontra fora de lugar diante da destruição e morte da guerra, a
prática contraditória como natural. Isso quer dizer que toda ação retórica fundacional é negada e, por isso, sua promessa, também
é sujeita a uma margem retórica de idealidade, mas, dependendo fundacional, de emancipação social mostra-se descumprida e
da sua adequação ou não dentro da prática política, a ação e o perpetuamente adiada. Dessa maneira, o desenho dos romances
sujeito que a pratica serão incluídos ou, no caso, excluídos. A interliga o fracasso de personagens integradas ao sistema como
exclusão de Policarpo provém, então, de forças externas a ele e ela cidadãos proprietários com a exclusão histórica de sujeitos
é total e completa dado que provém das contradições da marginalizados como o índio e o negro na colônia; eles junto com
corporação castrense e a própria guerra, método último de os pardos, os mestiços e os mulatos nos primeiros cem anos de
resolução de conflitos. independência política que encerraram os dias em que a guerra
A disparidade entre Gonzalo e o general García também interna constituía uma reposta válida para manter o poder e a
apresentam duas versões de idealismo nacionalista, um letrado, o ordem.
outro militar. Embora ambos sejam profissionais, a tensão
definitiva durante o conflito responde a forças internas a essas Referências
personagens cujo perfil profissional se nivela narrativamente no BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Triste fim de Policarpo
fracasso. Eles fracassam junto com a revolução toda pelo Quaresma. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
parâmetro interno da psicologia individual que, então,
predetermina a falha do “organismo”. Mas, a opção popular de COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o exército e
Paulo empenhada pelo narrador é também marcadamente a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Forense-
idealista. A origem étnica e social do marginalizado não garante Universitária, 1976.
necessariamente a superação da fraqueza não biológica mas
cultural do olhar “criollo” não do sujeito mas da situação de posse COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos
de poder político, o que é representado na transformação decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
psicológica de Paulo de subalterno a superior e sua posse como
ministro. QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os radicais da República.
Jacobinismo: ideologia e ação. São Paulo: Brasiliense, 1986.
P á g i n a | 289

QUINTERO, Inés. Las tentaciones del poder. Manuel Antonio


Matos: de banquero a revolucionario. Caracas: CONAC, 1995.

URBANEJA ACHELPOHL, Luis Manuel. En este país…! 1978. Caracas:


Monte Ávila, 1997.
P á g i n a | 290

CÉSAR BRIE E O TEATRO DE LOS ANDES: PROCESSOS obras, realização de eventos culturais e intercâmbios com outros
DRAMATÚRGICOS DE RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA artistas.
Éder Rodrigues O surgimento do grupo fundamentou-se a partir do
UNIR princípio coletivo da criação teatral onde todos os artistas
envolvidos transitam entre a encenação, as propostas musicais,
Os estudos sobre o texto teatral contemporâneo têm cenográficas e as dramatúrgicas. Idealizado por César Brie,
expandido suas fronteiras relacionais ao eleger o processo de Giampaolo e Nalli González o grupo se pautou no desenvolvimento
ensaio como um espaço investigativo dos elementos que de um trabalho baseado na improvisação teatral em que os
constituem o texto dramático e sua conjuntura espetacular. Este treinamentos físico-corpóreos conduzem à investigação de um
espaço passa a ser entendido não apenas como um laboratório ator-poeta no sentido etimológico do termo, ou seja, onde o
atoral ou do encenador, mas também um lugar onde o dramaturgo caráter criador se evidencia na figura de um artista que
se coloca de forma efetiva no processo, atuando no sentido de experimenta os fios capazes de unir a materialidade artística
compor a estrutura dramatúrgica que será levada à cena, além de individual ao contexto coletivo de sua inserção, trabalhando
pensá-la a partir do contexto e do processo vivenciado. cenicamente numa espécie de jogo de espelhos que só se reflete a
A reconfiguração do papel do dramaturgo, observada partir do outro.
principalmente na última década do século XX, incorpora à Este ideal corrobora com os desdobramentos da pesquisa
dramaturgia, além da materialidade levantada em sala de ensaio, do grupo ao se debruçar sobre o espaço cênico, a arte do ator, e,
os princípios processuais que a concebe e suas linhas de força. sobretudo, no exercício de voltar a si mesmo para se recordar a
Trata-se de uma práxis que reconhece como poética dramatúrgica partir de uma esfera conjunta que só vem à tona quando se dilata
não só a palavra, mas também a diversidade dos outros elementos as possibilidades de escuta das outras vozes e silêncios da
capazes de conferir teatralidade ao prospecto eleito. alteridade. Este recordar, essa necessidade de contar e recontar
Esta tem sido uma característica de coletivos teatrais que histórias de si e do entorno, edifica um teatro da memória em que
elaboram coletivamente a dramaturgia de seus espetáculos como os processos dramatúrgicos trabalham no sentido de reconstruí-
forma de acentuar o caráter dinâmico e polifônico da escritura la.
teatral. Esta perspectiva de trabalho encontra consonância junto Concentro esta reflexão na obra Otra Vez Marcelo (2005)
ao grupo Teatro de los Andes que se insere no cenário cênico da de César Brie e o trabalho deste dramaturgo junto ao referido
América Latina a partir de 1991 com a fundação da sua sede em grupo. Na peça em questão, analiso a textura polifônica e os
Yotala, próximo a Sucre na Bolívia, onde se efetivou o procedimentos dramatúrgicos utilizados para fundir a violência do
funcionamento de um espaço denominado pelo próprio grupo de período ditatorial com a estética lírica proposta, além do caráter
“teatro-granja”, espaço de suporte aos ensaios, apresentação das performático que elucida estratégias de memória e resistência
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junto ao corpus extraoficial dos povos da América Latina. Palavra histórico), em busca do resgate de uma memória coletiva capaz de
e imagem se fundem como forma de ratificar o movimento garantir a pulsação presentificada desses fatos em meio ao povo,
memorialístico que a teatrografia do Teatro de Los Andes privilegia ou seja, estratégias para o não esquecimento. Outra vez Marcelo
e encena. encerra essa trilogia política ao eleger a história de Marcelo
Apresentado ao público como um drama político, Outra Quiroga como pilar dramatúrgico para se tecer reflexões sobre a
Vez Marcelo1 faz parte da trilogia do grupo composta pelas peças Bolívia e a América Latina.
La Ilíada (2000) e En un sol amarillo (2004), todas fruto de um O texto parte de fragmentos da novela Los Deshabitados
mergulho em temas políticos e de profundo reflexo na história (1959) de Marcelo Quiroga, além de discursos políticos,
recente da Bolívia. A tríade testemunhal de reflexão e impacto conferências e escritos sobre arte e outros assuntos que explicitam
sobre o exercício das forças ditatoriais no país pode ser lida como sua efetiva atuação nos meios políticos e sociais do país. A obra
discurso e prática de resistência, onde a linhagem poética inconclusa intitulada Otra vez marzo (1990), cujo título remete
dramaturgicamente conecta o espectador às micropolíticas, no diretamente ao título da peça em causa, também foi um pilar
caso da peça, ao universo de Marcelo Quiroga 2 , intelectual e importante para a construção do espetáculo, além de poemas
ativista boliviano que teve sua obra e pensamento silenciados no adaptados do poeta Roberto Juarroz.
panorama político e cultural do país. A dramaturgia sublinha a relação afetiva entre Quiroga e
O processo dramatúrgico operado por César Brie junto ao sua esposa Cristina, intermediada pelas fronteiras do exílio e a
grupo na composição desta tríade pontua a reconstrução da política contextual de violência e silenciamento. A peça interpassa
memória coletiva como um alicerce revelador de materialidades os laços líricos dessa relação, ao mesmo tempo em que disseca as
dramatúrgicas extraídas tanto dos ensaios como dos arquivos atrocidades do período que teve no nome de Quiroga um
oficiais e extraoficiais do país. Este percurso teve início com A pensamento de oposição às ditaduras de René Barrientos Ortuño
ilíada, partindo de um dos mais antigos poemas do discurso e de Hugo Bánzer. O destacado apelo pela soberania nacional
ocidental para tecer um olhar de luto e resistência diante da diante de seus bens naturais como o petróleo, as inúmeras
violência e se intensificou com Em um sol amarelo ao desnudar os denúncias realizadas e as ideias democráticas difundidas
artifícios de uma catástrofe natural usada como instrumento de culminaram com seu assassinato as voltas dos atos iniciais do
manipulação popular e desvio de recursos. Nos dois trabalhos, os golpe de estado. Seu corpo, porém, foi sequestrado e nunca mais
precedentes se debruçam sobre o passado (literário, factual e apareceu. Após a ditadura, sua viúva, Cristina Trigo de Quiroga

1
A peça foi encenada em Belo Horizonte na Casa do Conde/FUNARTE entre os militante frente ao governo ditatorial e, também, pela sua polivalente atuação
dias 28 de julho de 01 de agosto de 2006. no âmbito da universidade, da política e das artes, construindo um pensamento
2
Marcelo Quiroga Santa Cruz (1931 – 1980) Político, jornalista e escritor. de oposição à frente hegemônica da época. Foi censurado, perseguido e
Tornou-se um importante intelectual boliviano por causa de sua posição assassinado pelas forças armadas ditatoriais.
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junto a familiares e amigos lutaram durante anos para processar e O olhar que se destinou a este processo não obedece aos
condenar os envolvidos neste e outros crimes. parâmetros tradicionais de composição dramatúrgica, até porque
O pulsante pensamento de Quiroga é o foco desta compõem a dramaturgia fragmentos e texto inteiros dos discursos
dramaturgia que opera no sentido de reconstituir esta memória políticos que, de fato, foram proferidos por Quiroga. O trabalho
fraturada frente às inúmeras tentativas, veladas ou não, de corroê- elaborado junto à escritura das cenas extrapola os limites da
la através do esquecimento. O próprio Brie assinala esta palavra e cria uma fluidez imagética que testemunha o
importância no programa de apresentação do espetáculo em acontecimento. Se a palavra escrita do intelectual foi calada na
razões de sua apresentação no 8º Festival Internacional de Teatro época, a forte profusão das imagens deste espetáculo tem a força
de Belo Horizonte FIT em 2006. de novamente fazê-las reviver, entre contextos similares e outros
Marcelo é um personagem incômodo hoje em dia para a ultimatos políticos e sociais que se presentificam no ato da
classe política que, em vinte anos de uma democracia encenação.
tingida de farsa e manchada de sangue, afundou a Bolívia Temos também em Outra vez Marcelo, principalmente no
em um estado de indigência material e indignidade moral. trabalho de César Brie, um triplo olhar sobre o processo, o que
Na Bolívia o nome de Marcelo é sempre mencionado, mas
resulta em uma dramaturgia polifônica, no sentido polivalente que
não se conhecem suas obras, não se estuda seu
o olhar de autor, diretor e ator intervém na escrita da peça. Esta
pensamento e se sabe pouco de sua história pessoal.
Resgatá-lo do esquecimento é cumprir o que grande poeta tríplice atuação no exercício da escrita desloca a horizontalidade
argentino Roberto Juarroz sintetizou em uma frase: “pensar com que se encara a construção de um texto teatral e seu
em um homem equivale a salvá-lo” (BRIE, 2006). resultado passa a ser o reflexo de um olhar que pensa a encenação,
a atuação e a escrita em um constante movimento entre o arquivo
Refletir sobre o processo de construção da dramaturgia
e o repertório, entre a memória que se reconstitui e o que,
deste espetáculo ilumina alguns fatores específicos como o fato de
dramaturgicamente, dela se elucida.
que a obra que serviu de ponto de partida para a edificação
Esta constância triangular de vivência nos processo
dramatúrgica se trata de uma obra inconclusa, ou seja, de escritos
teatrais, ligada aos ideais do grupo, ratifica o olhar poético e
incompletos que, de certa forma, necessitariam de uma
criador outorgado aos artistas e que, ao intermediar os processos
ressignificação histórica, literária ou teatral para que fosse
do grupo, tornam-se dialogicamente potentes para entender o
compartilhada. A complementaridade história e a literária foi
termo dramaturgia a partir de uma perspectiva dilatada. Uma
suprimida pelas forças ditatoriais junto aos arquivos de apuração
relação pode ser estabelecida entre esta especificidade processual
do assassinato do escritor, porém, a teatral, foi a qual o grupo se
do grupo e a imagem do garoto soltando uma pipa proferida pelo
debruçou para que esta complementaridade fosse requerida junto
ao público, num exercício pleno de reaver a memória no ponto
extremo de suas fraturas.
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próprio Brie na oficina “Pensar a cena” 3 ministrada em Belo primera interpelación sobre el gás em Bolivia es de 1966 y
Horizonte/MG, em que o autor assinala o poder metafórico com tiene 140 páginas. Él hablo 14 horas. ¿Como sintetizar eso
que vê a realidade na figura de um menino e a imaginação na figura em uma escena y que esa escena no aburra? Um espectador
de uma pipa, ficando a dramaturgia como a responsável pela linha de teatro va a ver teatro y no una lección de economía
política. Así que ése fue el desafio: contar su vida, su
que os une e os distancia com o mesmo impacto. Para as
historia. Y lo que me sirvió fue su historia de amor. (BRIE,
estudiosas Raquel França Abdanur e Juliana Helena Gomes Leal,
2006, p.2).
cujo artigo “Entre o menino e a pipa: a construção de imagens
cênicas do Teatro de Los Andes do diretor César Brie” trata desse Outra vez Marcelo utiliza da palavra escrita/falada para se
evento, o exemplo de Brie simboliza metafórica e concisamente, a circunscrever no espaço, porém, sua dramaturgia evoca um teatro
maneira através do qual se efetiva esse processo de construção de imagens, uma teatralidade que está presente no diálogo que se
das imagens utilizadas nos textos espetaculares realizados pelo complementa, contrasta ou se fragmenta exatamente no
Teatro de Los Andes, principalmente em Outra Vez Marcelo. entrelaçar da palavra e da imagem que, na peça, coreografam
Acrescento aos apontamentos colocados que o conjunto de fluidamente o exercício do lembrar.
elementos dramatúrgicos, no caso, não é responsável apenas pelo As estratégias do lembrar que se presentifica na
fio condutor e de elo entre as instâncias, mas também pelo desfiar apresentação do espetáculo embaralha uma série de documentos
de forças que prendem e soltam os extremos que conecta. oficiais da época com o plano lírico do diálogo
Este determinante poético me parece fundamental e, ao (possível/impossível) entre Marcelo e sua esposa Cristina. O
mesmo tempo, desafiador aos propósitos de se recuperar o levantamento desses arquivos traz como protagonista de cena,
pensamento de Marcelo Quiroga, já que muito das suas idéias exatamente o discurso calado e violentamente oprimido na época
constavam em documentos políticos e não literários. O próprio e que reflete também uma série de lacunas deixadas pelos
César Brie, em palestra ministrada para os alunos da Faculdade de inúmeros arquivamentos de processos referentes às ditaduras
Arquitetura Desenho e Urbanismo da Universidade de Buenos latino-americanas. A inclusão destes arquivos na dramaturgia
Aires em 04 de novembro de 2006, citada na entrevista concedida pertence a uma espécie de teatro-documentário, categoria que
à María Natacha Koss, coloca esse desafio tem se difundido no teatro contemporâneo, porém, neste caso, os
No se sabe nada de lo que pensaba Marcelo. Yo me propuse documentos e vídeos que fazem parte do espetáculo arquitetam
rescatar su pensamiento. La propuesta era muy poco uma dramaturgia que equaciona percursos do individual ao
teatral: ¿Cómo hacer poesia com la economia política? La coletivo, estruturando o percurso textual sobre uma camada lírica

3
A Oficina “Pensar a Cena” foi ministrada entre os dias 28 de julho a 01 de
agosto de 2006, dentro da Programação do Festival Internacional de Teatro de
Belo Horizonte [FIT/BH 2006].
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que diz respeito ao relacionamento do casal e que se mistura aos A partir do momento em que o peso do documental sobrepõe o
prospectos políticos elencados impedindo a horizontalidade do ficcional, todos passam a partilhar da história sem os eventuais
discurso e da sucessão de cenas. mecanismos de seleção do que oficialmente lhe forma, fazendo
Trechos literais de inúmeros discursos políticos de Quiroga parte, inclusive, de um prospecto testemunhal (tomando a cena
em prol da nacionalização dos recursos naturais da Bolívia são teatral como algo real, que se efetiva enquanto espetáculo no
intermediados pelas cartas trocadas entre o casal, muitas vezes evento de sua apresentação), imagético e escritural.
fazendo o papel testemunhal da passagem do tempo pelos corpos A poética das imagens utilizada pelo dramaturgo dá corpo
e pela própria palavra enfraquecida pela prisão, pela distância e e voz aos discursos colocados à margem ao efetivar a inserção de
pelas tentativas de silenciamento. Neste emaranhado de fatos na memória coletiva por meio de estratégias ficcionais (plano
conjunturas que se alternam ou são colocados em cena lírico), documentais (dimensão dos discursos recuperados) e
concomitantemente é que o espectador é chamado como dramatúrgicos (o pôr em jogo), estratégia que recorre exatamente
testemunho desse teatro da memória. O testemunho presencia o aos pedaços ou fragmentos que não compõem a história oficial. A
retorno dramatúrgico de Quiroga na interpretação do ator (no partir do teatro, a materialidade documental passa a existir
caso, o próprio César Brie) e no jogo dramatúrgico proposto, onde oficialmente, tornando-se um documento vivo, compondo uma
torna-se possível que os mesmos discursos sejam retransmitidos e troca de experiências entre o grupo e o público que no momento
recolocados à luz das reflexões como células pulsantes que do espetáculo partilham da mesma memória reconstituída e
continuam a interpelar a realidade boliviana. colocada em fluxo.
Neste ponto, a transposição performática que a Esta noção da dramaturgia como o exercício do “pôr em
dramaturgia intercala esfacela os limites do palco, principalmente jogo” encontra em Outra vez Marcelo uma esfera onde a vida e a
na cena em que ao proferir um discurso político, o ator sobrepõe morte, a realidade e a ficção, a memória e o esquecimento criam
a projeção e estende o comício aos espectadores do espetáculo zonas de tensão entre os elementos que articula.
que, naquele momento, testemunham a reconstituição do evento O “pôr em jogo” provoca um espaço de conexões e
não para estender o luto, mas para compartilhar coletivamente do ressignificações do que se teatraliza e é neste jogo vivo que a
que está sendo dito, visto, e que teatralmente mantém vivo em dramaturgia se edifica, embaralhando elementos de ambiências
repertório. A cena cria um tipo de escritura performática que distintas (texto/imagem/improvisações/dança, projeções), porém
baliza estruturas de tempo passado no tempo presente, do espaço construídos numa rede polifônica de contrastes e alusões. Entre o
reivindicado e o atual, do personagem morto e das formas de fazer lembrar e o esquecer, a dramaturgia proposta coreografa
com que reviva. temporalidades que remetem não somente à realidade e à
Ao intercalar imagem e escritura, discurso e coreografia, imaginação, mas à própria história e os meios, oficias e não oficias,
arquivo e performance rompe-se com os liames do que é teatral. de reconstituí-la a partir do teatro.
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Referências
ABDANUR, Raquel França; LEAL, Juliana. Entre o menino e a pipa:
a construção de imagens cênicas do Teatro de Los Andes do diretor
César Brie. Caligrama – Revista de Estudos Românicos , Belo
Horizonte, v. 11, p. 133-147, 2006.

BRIE, César. Otra vez Marcelo. Sucre/Bolívia: Teatro de los Andes:


Plural Editores, 2005.

_______. Em um sol amarelo. Tradução de Consuelo Maldonado e


Patrícia Leonardeli. Salvador: EDUFBA, 2010.

KOSS, María Natacha. La ética y La estética [Entrevista com César


Brie]. Bueno Aires, Janeiro de 2007. Disponível em: <
http://www.alternativateatral.com/nota135-la-etica-y-la-
estetica>. Acesso em 02 de junho de 2014.

SOLER, Marcelo. Teatro Documentário – A Pedagogia da Não-


Ficção. São Paulo: Hucitec, 2010.
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ADEUS MACONDO! ABENÇOADA SEJA LA VIRGEN DE LOS religião oferecem discursos totalizantes que conformam a
SICARIOS sociedade do espetáculo. Fernando ataca frontalmente o sistema
Eduardo Andrés Mejía Toro1 editorial, estético, político e moral.
UFMG Vallejo insurge, em suas narrativas, contra um Deus que
legitima o horror e a maldade da existência. Deus é representado
García Márquez, ao receber o Prêmio Nobel em 1982, era pelo escritor colombiano como sinônimo da continuidade das
otimista com respeito ao futuro das nações da América Latina, ideologias, como argumento dos tiranos. Por isso, o autor
porque, segundo ele mesmo, os países latinos possuíam duas argumenta que a humanidade não deve se reproduzir e enfatiza
qualidades fundamentais: a força vital e o potencial criador. que a multiplicação da espécie multiplica a depredação e a
Contudo, ao final daquela mesma década, a violência que invadiu exploração. Contudo, nas suas narrativas, o amor homossexual é o
a Colômbia, somada aos discursos demagógicos e às ideologias único canto à vida, o único espaço no qual a vida cobra sentido,
que invadiram o Ocidente, não deixou espaço para os discursos sobretudo por seu caráter infértil. Aparentemente pessimistas, as
que comemoraram o ganho da potência vital. A realidade regional narrativas de Vallejo têm sentido precisamente pela existência dos
e continental superará a imaginação mais desbordante, conforme delitos da humanidade. Sua escrita só tem sentido então, na
afirmava o mesmo García Márquez em muitas entrevistas – porém medida em que o mundo é ainda perfectível e pode ser melhorado.
não no viés do realismo mágico, mas, ao contrário, num sentido Como exemplo esclarecedor, pode-se considerar o
oposto, o do horror (DIACONU, 2014). romance La Virgen de los sicarios (1994), em cujo final o narrador
Esse viés pode ser lido em quase toda a produção literária vai ao necrotério para reconhecer o corpo do seu jovem amado,
de Fernando Vallejo, pois sua escrita é o signo da indignação e da mas o que encontra primeiro é o corpo de uma criança na parte
rebelião (expressas mediante a ferocidade dos seus temas e a superior de outro cadáver, tudo porque “simplemente no tenían
graça do seu estilo), na medida em que o escritor aborda mesa vacía”. Aqui o sentido maravilhoso da realidade tem um dos
problemáticas pouco convencionais: o impacto negativo da seus sentidos mais nefastos:
humanidade no planeta, o desrespeito pelos animais, a ausência Recordó esas combinaciones de objetos mágicas, insólitas
de insurreição, a democracia descarada que legitima o poder. con que soñaban los surrealistas, como por ejemplo un
Vallejo não escreve para agradar; ao contrário, segundo ele paraguas sobre una mesa de disección. ¡Surrealistas
mesmo costuma afirmar, escreve para incomodar. Essa é uma estúpidos! Pasaron por este mundo castos y puros sin
entender nada de nada, ni de la vida, ni del surrealismo. El
característica pouco frequente nas mídias comumente
demagógicas e aduladoras, nas quais a publicidade, a política e a

1
O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Estudantes-
Convênio de Pós-Graduação – PEC-PG, da CAPES/CNPq - Brasil”.
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pobre surrealismo se estrella en añicos contra la realidad de Quando de sua publicação, o romance La Virgen de los
Colombia (VALLEJO, 2002, p. 118). sicarios teve uma recepção impactante. A evidente dimensão
A crescente politização do meio cultural, a partir dos anos histórica da obra, como resposta sutil e matizada à realidade
1980, determinou uma mudança geral no âmbito das Letras, de colombiana contemporânea, não se pode reduzir de jeito nenhum
modo que os discursos comemorativos, eufóricos e utópicos são ao “lugar comum” da violência. Supervalorizado por muitos
cada vez mais vistos com suspeição. A realidade social exigiu “pôr críticos, esse aspecto não passa de um elemento secundário no
os pés no chão”. O próprio García Márquez sente essa romance. A obra do Vallejo consegue expor de forma crítica um
preocupação e, retomando uma forma narrativa menos problema histórico a partir das feridas abertas da nação,
complacente com o realismo mágico, escreve em forma de crônica esclarecendo transformações éticas, axiológicas, sociais, culturais
Noticia de un secuestro (1996), uma reportagem sobre a corrupção e políticas do país e analisando com singular clareza todo um
e a violência ocorridas nos principais anos do narcotráfico: processo complexo de decomposição social. A destruição de um
El cadáver tenía la cabeza cubierta por una capucha mundo, com o sistema de valores que o organiza e a degradação
acartonada por la sangre seca, puesta al revés, con los ética que acompanha esse processo, reflete claramente a
agujeros de la boca y los ojos en la nuca, y casi desbaratada corrupção da humanidade. Esses detalhes históricos,
por los orificios de entrada y salida de seis tiros disparados aparentemente informativos, interpretam a realidade colombiana
desde más de cincuenta centímetros, pues no habían e permitem apreciar o abismo que separa a visão desesperançada,
dejado tatuajes en la tela y en la piel. Las heridas estaban proposta na obra, da visão esperançosa, repleta de vitalidade e fé
repartidas en el cráneo y el lado izquierdo de la cara, y una no futuro, mantida artificialmente pelas narrativas oficiais,
muy nítida como un tiro de gracia en la frente. Sin embargo,
falsamente “maravilhosas”.
junto al cuerpo empapado por la hierba silvestre sólo se
A visão de mundo desmistificadora e extremamente crítica,
encontraron cinco cápsulas de nueve milímetros (GARCÍA
MÁRQUEZ, 1996, p. 73). junto com a estética praticada por Fernando Vallejo, é
simultaneamente muito recente e antiga, pois se insere na
Trata-se de uma questão que distancia o autor das suas tendência pós-moderna de revisão dos mitos da modernidade, ao
maiores preocupações estéticas, obrigando-o a deixar do lado o mesmo tempo em que lembra os filósofos cínicos da Antiguidade.
popular realismo maravilhoso. Os escritores mais jovens Segundo a original leitura proposta por Diaconu (2014), o
compreenderam o gesto estético de García Márquez e começaram narrador-protagonista é, como em quase todas as obras de
a escrever sobre as problemáticas da violência e do narcotráfico Fernando Vallejo, o álter ego de um autor dotado de muitos dos
que arrasam o país. Assim, têm desenvolvido ficções de caráter atributos dos filósofos cínicos da Antiguidade. Vallejo é um
diferenciado, nas quais os novos autores não estão mais intelectual com grande bagagem cultural, gramático de formação,
interessados em maquiar a realidade de cores “maravilhosas”; ao um declarado defensor da linguagem, horrorizado pela corrupção
contrário, apresentam um olhar hipercrítico da face nacional.
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à qual se submetem escritores contemporâneos. Como grande ou como inúteis mentirosos; ataca Cristo constantemente,
conhecedor da língua em todos os seus registros, o escritor, tal definindo-o como um impostor, culpando-lhe por instaurar a
como os cínicos, empreende discussões éticas por meio de jogos impunidade na Terra, e denuncia Deus como cúmplice da injustiça
de linguagem. na humanidade. Seu pregão vai crescendo até se transformar
A condição homossexual em Vallejo está intimamente numa espécie de ritual ou feitiço de provocação frente às
relacionada com a sua rebeldia contra a família, a procriação, a instituições. Blasfemando, o autor troca o sentido do “bendito”
ordem tradicional e toda forma de institucionalização da vida. pelo do “maldito”, seguindo os passos de Quixote: “Bendito seas
Nesse sentido, Vallejo é um exilado tanto no sentido literal como Satanás que a falta de Dios, que no se ocupa, viniste a enderezar
no figurado, pois regressa à Colômbia depois de uma longa los entuertos de este mundo…” (VALLEJO, 2002, p. 99).
ausência com um olhar cosmopolita, livre de toda leitura Esse discurso, apresentado no país do “Sacro Coração” de
nacionalista. O autor, ao voltar, não encontra nada da antiga nação modo irreverente em face do senso popular religioso e majoritário,
patriarcal, idealizada pelo olhar da infância, vivida em meados do consegue inevitavelmente a desaprovação e a indignação quase
século XX. Encontra, ao contrário, um país mudado por completo: unânimes, independentemente das imensas diferenças entre as
corrupto, degradado, injusto, cheio de vícios e preconceitos de classes sociais. Todavia, a desaprovação não faz Vallejo moderar
toda sorte. Afligido profundamente pelas suas descobertas, o sua narrativa nem maquiar sua perspectiva do mundo, porque
narrador-protagonista só encontra esperança no amor do único precisamente provocar e irritar são parte do seu projeto criador.
ser que considera valioso e autêntico: o jovem Alexis, que, De fato, o autor vai mais longe e, após ter atacado todos os valores
proveniente de condição social mais baixa, tem de trabalhar como oficiais, passa ao outro extremo e fala com admiração, ternura e
sicário. mesmo com fervor místico de seu jovem amante Alexis, a quem
A crítica empreendida por Vallejo tenta, a partir de uma apelida como o “Anjo exterminador”, contraditória metáfora
posição ética inexpugnável, abarcar a totalidade dos crimes da referente à sua pureza contrastante com seu ofício.
humanidade. Consequentemente, o autor, de um lado, ataca O fato de acreditar em Alexis enquanto despreza o resto da
quem está no poder ao considerá-lo um palhaço, e, de outro, humanidade não pode ser lido como um gesto romântico banal de
critica também os humildes por serem, segundo ele, culpáveis da idealização de um personagem. Resultado de um intenso encontro
sua própria pobreza e animalização. É por isso que, na contramão de amor-paixão, a valorização sem resguardos de Alexis tem a ver
do senso comum, o escritor investe contra as atitudes populistas. com uma triple provocação resultante de uma inversão traumática
O autor considera, dentro da moral proposta nas suas narrativas, do sistema axiológico aceito pela sociedade, de uma mudança
que os pobres merecem propriamente o seu destino. Vallejo não radical da perspectiva tradicional sobre os valores estabelecidos:
hesita em denunciar as mentiras desavergonhadas dos exalta-se a condição do homem não contaminado pela cultura, a
representantes da Igreja, rotulando-lhes como ladrões perversos condição de homossexual e a condição de sicário.
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Produto típico da época contemporânea, em que a No romance, a condição do analfabeto está vinculada
velocidade e a fugacidade exigem a substituição da linguagem intrinsecamente à condição homossexual, designando pureza e
articulada por outras linguagens mais diretas, simples e autenticidade. Esses valores são contrapostos à condição
impactantes, dirigidas de maneira mais imediata para os sentidos, degradada, moralmente suja e até perversa do ser inferior, o
o jovem Alexis é quase um analfabeto, não contaminado nem pela heterossexual. Certamente, o romance não trata somente da
palavra, nem pela mentira nas suas múltiplas formas: falsas condição homossexual, pois exalta a dissidência cultural pela qual
ideologias, discursos demagógicos, etc. O personagem fala pouco se faz imprescindível, para uma leitura apropriada do texto,
e faz na hora limita-se ao estritamente necessário; escuta a reconhecer na condição homossexual uma categoria axiológica
linguagem incompreensível da suas músicas preferidas e chave para o sistema de valores que a obra propõe. Somente assim
comunica-se por meio da linguagem onomatopéica dos desenhos tem sentido a superioridade, proposta na obra, da condição
animados, pela linguagem dos golpes dos filmes de ação e, homossexual sobre a heterossexual. Essa classificação, que só tem
sobretudo, pela linguagem mais curta e direta possível para os sentido no contexto dos valores propostos na narrativa, não pode
sicários: atirar. ser entendida como uma verdade científica, pois carece
Vallejo, mesmo na condição de intelectual refinado, totalmente de sentido. Trata-se de um juízo estético que pertence
prefere a cultura de Alexis à cultura das maiorias. Com senso de a uma ordem diferenciada e, portanto, não condiz com o que o
filosofo, o autor valoriza muito mais o analfabeto sincero do que o próprio autor, como biólogo, considera sobre o assunto.
demagogo vil, habilmente escondido atrás de sua aparente Para qualquer leitor que reconhece o perfil axiológico dos
civilidade e respeitabilidade. Frente à calúnia e à baixa moral do personagens, é evidente que a verdadeira oposição narrada no
cidadão “comum”, o jovem sicário possui a superioridade e a livro é entre a condição humana assumida profunda e seriamente,
beleza da sua autenticidade, sincera nos fatos. Para Fernando, entre a vida e o amor autêntico, de um lado, e, de outro, a
personagem, a maneira com que Alexis converte, em menos de um existência convencional do ser humano banal que nunca terá
segundo, a palavra em fato é fascinante, reflexo da sua pureza acesso a tudo isso. Essa oposição axiológica, que constitui a coluna
intocada. Nele, o autor vê encarnada e levada à perfeição a opção vertebral da obra, não pode se equivaler mecanicamente à
do fato que antecede a imediação do discurso. Sua declaração de oposição entre a condição homossexual e a heterossexual.
amor tem também o significado simbólico de uma declaração de Com certeza, não se pode passar ao largo da dimensão
guerra aberta contra dos códigos da vida social e da cultura oficial. provocadora que resulta da inversão do costume – ainda muito
É a reação de um atirador furtivo, um partidário da contracultura presente na Medellín da juventude de Fernando Vallejo – que
ou de uma cultura alternativa, dado que a variante oficial é mais condenava o amor homossexual. Este aparece, no texto, como o
repugnante do que a mínima cultura. oposto do amor convencional burguês:
Vuelvo y repito: no hay que contar plata delante del pobre.
Por eso no les pienso contar lo que esa noche antes de
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dormirnos pasó. Básteles saber dos cosas: Que su desnuda podem ser aproveitadas pelo leitor. Sendo que o outro é
belleza se realzaba por el escapulario de la Virgen que le aniquilado pelo disparo de Alexis.
colgaba del pecho. Y que al desvestirse se le cayó un A provocação e a inversão dos valores atingem um ponto
revólver (VALLEJO, 2002, p. 94). de clímax com a valorização do criminoso e do crime. O narrador
Com isenção do prazer que produz a mesma declara abertamente seu maior apreço pela qualidade do
provocação, não são visíveis no texto as descrições das cenas assassino profissional do seu amado Alexis, a princípio, e, logo
eróticas. O texto possui grande sobriedade e expõe, ao contrário, depois, de Wílmar, que o substitui. Os dois jovens matam sem
um amor profundo e puro, numa dimensão axiológica que se faz vacilar, sem remorso nenhum, já que os problemas de consciência
visível, por exemplo, na cena em que Fernando pergunta a Alexis do criminal, esclarece Fernando, são “pendejadas de Dostoievsky”.
se este tem deitado também com mulheres: “Mi niño era el enviado de Satanás que había venido a poner orden
“No”, contestó, con un “no” tan rotundo, tan inesperado en este mundo con el que Dios no puede. A Dios, como al doctor
que me dejó perplejo. Y era un “no” para siempre: para el Frankenstein su monstruo, el hombre se le fue de las manos”
presente, para el pasado, para el futuro y para toda la (VALLEJO, 2002, p. 99).
eternidad de Dios: ni se había acostado con ninguna ni se Num país como a Colômbia, no qual o crime e a violência
pensaba acostar. Alexis era imprevisible y me estaba não são somente problemas teóricos, trata-se de um tema que já
resultando más extremoso que yo. Conque eso era pues lo
não pode deixar de ser indiferente para ninguém, nem para os
que había detrás de esos ojos verdes, una pureza
cristãos, nem para os humanistas, nem para os céticos.
incontaminada de mujeres. Y la verdad más absoluta, sin
atenuantes ni importarle un carajo lo que piense usted que Com certeza, além do aspecto provocador, a valorização
es lo que sostengo yo. De eso era de lo que me había positiva do crime é perfeitamente coerente, nesse contexto
enamorado. De su verdad (VALLEJO, 2002, p. 19). ficcional, com o olhar da nova ética que organiza o universo: num
mundo abjeto no qual a procriação é um crime, porque só permite
Na Medellín dos anos 1990, considerada a cidade
perpetuar o vício e a inconsciência, matar é sinônimo de fazer uma
com maior índice de criminalidade do país e mesmo de todo o
obra de caridade, é um ato honorável, justiceiro e, até, asséptico.
mundo, Fernando caminha e observa as pessoas, na companhia de
Dentro dessa lógica ficcional, Herodes é um santo porque
Alexis. Fernando é o cérebro; Alexis o braço. Para o autor, eles são
aniquilou o mal a partir do berço. Pode-se sublinhar que a intenção
o casal perfeito. Um só corpo, harmonia ideal nunca conseguida
do autor não é, como se poderia deduzir de uma leitura literal,
pelos heterossexuais. Se Fernando faz uma crítica leve a algum
fazer uma apologia ao crime ou propor o assassinato como solução
vício ou injustiça, Alexis atira. Juntos, cumprem a tarefa de
real dos males que assaltam a sociedade colombiana
“limpar” a humanidade dos seus vícios de uma maneira, sem
contemporânea. Vallejo incita não o crime, mas, sim, a reflexão
dúvida, extrema, pois, as lições dadas por Fernando somente
sobre uma sociedade na qual o crime, mal endêmico de uma
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verdadeira “cultura da violência”, parece ser naturalizado e GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Noticia de un secuestro. Barcelona:
institucionalizado. Mondadori, 1996.
A provocação vai longe, pois, após mandar ao outro
mundo, sem pestanejar, um bom número de pessoas, os OSPINA, William.Vallejo. El Espectador, Bogotá, 6 de set. 2014.
personagens se estremecem frente à agonia de um cão morrendo. Disponível em: http://www.elespectador.com/opinion/vallejo-
A escala de valores se inverte mais uma vez. Depois de situar o columna-515132. Acesso em: 6 de set. 2014.
criminoso no topo da hierarquia humana, proclama-se a
superioridade do animal, negando-se por completo o próprio VALLEJO, Fernando. La Virgen de los sicarios. Bogotá: Alfaguara.
homem. 2002.
Para concluir,
Borges dijo que Voltaire se había empeñado en demostrar
que el universo es apenas un escenario de catástrofes y
maldades, pero que lo hizo con tanta gracia y prodigalidad
que el efecto de sus palabras no es de desolación sino todo
lo contrario. “¿Cómo podría el universo ser malvado si ha
producido un hombre como Voltaire?” (OSPINA, 2014, p.1).
O discurso do Vallejo tem um som tão delirante que,
agredindo e destruindo, suscita a indignação dos seus leitores: de
alguns contra ele, de todos contra o poder político e moral e contra
os horrores praticados pela humanidade. Esse processo de
indignação se dá no leitor entre risos e desprezo do
intrinsecamente humano. Vallejo denuncia o mal no “bem”: em
Deus, na Igreja, no governo. Esse olhar dialético entre bem e mal
faz com que o autor, fingindo ser o mal, acabe sendo a
representação da consciência moral de um país sem memória.

Referências:
DIACONU, Diana. Fernando Vallejo y la autoficción: Coordenadas
de un nuevo género narrativo. Bogotá: Universidad Nacional de
Colombia, Facultad de Ciencias Humanas, 2014.
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A IMPORTÂNCIA DA FOCALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA enunciativa constituinte de La pregunta de sus ojos, por julgarmos
NARRATIVA EM LA PREGUNTA DE SUS OJOS, DE EDUARDO ser esta a estratégia responsável por edificar o interessante jogo
SACHERI temporal entre passado e presente conformador do romance de
Elen Fernandes dos Santos Sacheri, e, desta forma, apresentar-se como instrumento estético
UFRJ para o tratamento da memória pela narrativa do escritor.

Este estudo forma parte da pesquisa de mestrado O conceito de focalização e sua aplicação no romance
desenvolvida nos últimos anos, e que teve por objetivo analisar as Como antes dito, este estudo visa discutir o modo como o
estratégias narrativas empregadas na obra La pregunta de sus ojos entrelaçamento de épocas distintas ocorre em La pregunta de sus
(2005), do escritor argentino Eduardo Sacheri, como caminho de ojos a partir da junção de vozes que têm espaço intercalado na
leitura dos significados socioculturais latentes no romance. Nosso obra de Eduardo Sacheri. Ainda que separadas no que diz respeito
intuito na pesquisa foi o de refletir os significados histórico- à organização estrutural, ambas as focalizações, nascidas de uma
culturais presentes na narrativa de Sacheri a partir da apreciação concepção da obra como um todo coeso e unificado, constituem-
dos elementos estético-formais que integram o romance foco de se como vozes interdependentes, as quais despontam de
nossa análise. narradores que se complementam na conformação de La pregunta
Considerar de forma mais detida cada estratégia narrativa de sus ojos pelo escritor.
possibilitou-nos por em prática os distintos modos como podemos Considerando-se que trabalharemos neste estudo com a
discorrer sobre uma obra, comentar suas diversas partes e noção de focalização no que se refere às vozes que narram no
depreender sentidos a partir de como essas partes se relacionam. romance, explicamos que o conceito de “focalización” utilizado
Nesta medida, entendemos que uma possível orientação de leitura pela teórica neerlandesa da literatura Mieke Bal (1995) será de
de uma obra é pensar na forma do texto literário a serviço de um grande importância na valoração destes distintos estratos do texto
tema, o qual delimitamos após um processo contínuo de leitura e narrativo, haja vista que o termo se refere ao ponto de vista
releitura da obra de Eduardo Sacheri. Sob tal ótica, partimos das escolhido, à maneira específica de representar em uma narrativa.
estratégias narrativas empregadas pelo autor – selecionadas de Segundo a autora, a focalização alude “a las relaciones entre los
forma que pudéssemos contemplar ao máximo a organização da elementos presentados y la concepción a través de la cual se
obra literária como um todo artístico – e justificamos a escolha de presentan. La focalización será, por lo tanto, la relación entre la
cada uma destas estratégias a favor dos temas que intuímos visión y lo que se ‘ve’, lo que se percibe.”(BAL, 1995, p.108). Com
conformar a obra, e que chamamos de significados do romance. base na definição proposta por Bal, entendemos que La pregunta
Entre as estratégias literárias analisadas, selecionamos de sus ojos apresenta mais de um foco de visão, ou seja, mais de
para reflexão neste Congresso aquela que diz respeito à polifonia um focalizador, ao mesmo tempo em que “lo que se ‘ve’”, ou seja,
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o objeto narrado, também varia de acordo com o focalizador que Características do FP (focalizador-personagem)
se tem em mente. De forma mais detida, inicia-se de antemão esta Antes de iniciarmos uma leitura mais detida do focalizador-
reflexão a partir da distinção entre as instâncias focalizadoras personagem ou focalizador interno, doravante FP ou FI, de La
proposta por Mieke Bal, quando a autora explica que: pregunta de sus ojos, cabe refletirmos sobre o próprio conceito de
Cuando la focalización corresponde a un personaje que focalização interna, sugerido por Mieke Bal. A presença de um
participa en la fábula como actor, nos podremos referir a focalizador personagem no romance é claramente situada na
una focalización interna. Podremos indicar, entonces, por primeira pessoa do singular (Yo) presente nos capítulos cuja
medio del término focalización externa que un agente organização se dá via classificação numérica. Tendo em vista a
anónimo, situado fuera de la fábula, opera como
presença deste Yo que narra e insere sua perspectiva, seu ponto
focalizador. Un focalizador externo no ligado a un personaje
de vista na narrativa, importa refletirmos sobre algumas questões
se abriría como FE. (BAL, 1995, p.111)
referentes à caracterização deste focalizador que integra o
A partir da distinção acima feita por Bal e dando início à romance: já que a escritura é o instrumento que o converte em
análise da focalização no romance, entendida esta como a relação focalizador, o que motiva o personagem a escrever? Que dimensão
do agente que vê com aquilo que se vê, pode-se afirmar que La afetiva esta voz introduz no romance? Quais são as nuances dessa
pregunta de sus ojos possui dois grandes sujeitos da focalização, voz que narra e ao mesmo tempo participa da história narrada?
ou seja, dois focalizadores que organizam seu discurso de acordo O capítulo “1”, o segundo a aparecer na obra de Eduardo
com o objeto que se propõem a focalizar: um focalizador interno Sacheri, já nos coloca de início diante de um personagem que
ou focalizador-personagem (FP) e um focalizador externo (FE). O escreve uma história sem maiores certezas das razões que o levam
primeiro está representado na figura de Benjamín Miguel a fazê-lo: “No estoy demasiado seguro de los motivos que me
Chaparro, personagem protagonista de La pregunta de sus ojos llevan a escribir la historia de Ricardo Morales después de tantos
que assume a função de focalizador quando se propõe a narrar a años.” (SACHERI, 2010, p.17). De fato, esta incerteza do
história do assassinato da jovem Liliana e todos os pormenores personagem quanto a suas próprias motivações perpassa grande
relacionados ao fato. O segundo, por sua vez, diz respeito a uma parte de La pregunta de sus ojos. Há uma clara necessidade do
instância narrativa que não participa do romance enquanto focalizador interno de justificar, perante a um hipotético leitor, o
personagem, tal como Benjamín Chaparro, mas que focaliza o porquê de sua escritura. Leia-se incerto leitor, pois o personagem
mesmo em seu momento presente, enquanto escritor e Chaparro, na incerteza que o define enquanto ser ficcional, não
focalizador de seu passado. Analisaremos a seguir estas duas vozes está seguro de que alguém algum dia leia o que ele mesmo
narrativas de forma a compreender sua importância para a escreve. Ao tentar encontrar uma resposta, uma função para sua
composição estrutural do romance e para uma reflexão do diálogo empreitada como escritor, Chaparro apresenta ao leitor razões
edificado entre passado e presente na narrativa de Eduardo múltiplas e distintas para lançar-se ao ato de escrever. A primeira
Sacheri.
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delas, por certo, se relaciona à atração mesma que o caso de sin amedrentarme con la vergüenza de empezar a mentir
Morales exerce sobre o personagem. Chaparro confessa não ter para llenar baches, alargar la trama o convencer a quien la
coragem de encarar suas próprias fraquezas e afirma encontrar na lea de que no la tire al cuerno apenas transcurridas quince
vida do outro um caminho mais cômodo de reflexão de seus páginas. (SACHERI, 2010, p. 21)
próprios medos: No que tange ao fragmento acima citado, depreendemos
Podría decir que lo que le pasó a ese hombre siempre que o focalizador personagem chama a atenção para o estatuto de
ejerció en mí una oscura fascinación, como si me diera la verdade do objeto foco de sua mirada. Mieke Bal (1995) também
oportunidad de ver reflejados, en esa vida destrozada por el menciona esta pretensão de objetividade por parte de um
dolor y la tragedia, los fantasmas de mis propios miedos.
personagem que se propõe a focalizar, narrar algo. De acordo com
(SACHERI, 2010, p. 17)
a autora, a tentativa de apresentar só o que se vê (ou, no caso de
Na medida em que suas justificativas ganham corpo sólido La pregunta de sus ojos, o que se viu) é acompanhada de um
em seu texto, o leitor de Chaparro se dá conta de que o assombro desejo por eliminar qualquer comentário ou interpretação que
diante dos rumos tomados pelo caso de Liliana não figura como fuja à objetividade. No entanto, como coloca a autora, a percepção
razão única para a escritura do personagem sujeito da focalização se apresenta como um processo psicológico inerente ao
interna. No transcorrer de suas divagações literárias, Chaparro focalizador, razão que leva Bal a afirmar que o esforço por ser
acaba por confessar que, se decide escrever a história de Morales, objetivo no ato de narrar carece em grande medida de sentido. De
o faz para ocupar um vazio deixado pela saída da Secretaria de fato, embora Benjamín Chaparro, no fragmento anteriormente
Instrução onde trabalhou durante toda sua vida: “Supongo que citado, demonstre buscar contar a história de Morales com total
lacuento porque tengotiempo. Mucho, demasiado tiempo”. (2010, fidelidade aos fatos e “sin inventar nada”, não consegue fazê-lo no
p.18). No mais, se o personagem decide por fim que a trama de decorrer de sua narrativa. As dúvidas do narrador se apresentam
sua obra consistirá na história de Ricardo Morales e do crime de como problemas ficcionais que dão espaço a sugestivas reflexões
Liliana, também o faz, entre outras razões, em função de uma narratológicas que apontam desde a ficcionalidade do narrado até
comodidade assumida por ele mesmo: as possibilidades, procedimentos e limites do ato de narrar, o que
Lo primero que pensé es que no tengo la imaginación comprovamos na seguinte passagem de marcado caráter
suficiente como para escribir una novela. La solución que metanarrativo:¿Y qué hago con las partes de la historia que no he
encontré fue escribir sin inventar nada, es decir, narrar una sido directamente testigo, esas partes que intuyo pero no conozco
historia verdadera, algo de lo que yo hubiese sido, aunque
a cienciacierta? ¿Las cuento igual? ¿Las invento de pe a pa? ¿Las
indirectamente, testigo. Por eso decidí escribir la historia de
ignoro? (SACHERI, 2010, p. 22)
Ricardo Morales. Por lo que dije al principio y porque es una
historia que no necesita que yo le agregue nada, y porque Os problemas ficcionais antes citados têm relação direta
sabiéndola cierta tal vez me atreva a contarla hasta el final, com os capítulos em que Benjamín Chaparro abandona sua
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perspectiva de focalizador personagem e passa, também ele, à assume que é tão só por uma questão de organização dos fatos
perspectiva de Narrador Externo aos fatos. Isso ocorre quando para o leitor, já que o que lhe importa é contar o que viveu:
Chaparro decide por criar capítulos a partir de fatos que intui [...] será mejor contar lo que sé y también lo que supongo,
terem acontecido no transcorrer da investigação da morte de porque de lo contrario nadie va a entender un carajo. Ni yo
Liliana. E como ter a certeza de que os capítulos em questão não mismo. Y otra cosa complicada, el léxico: en el renglón
são estruturados pelo próprio focalizador externo de La pregunta anterior resalta la palabra “carajo” como un cartel de neón
en medio de las tinieblas. ¿Uso esas palabras burdas y
de sus ojos? O leitor sabe que a voz que narra pertence a Chaparro
soeces, o las elimino de mi lenguaje escrito? Cuántas dudas,
porque já compactua da estrutura organizacional dos capítulos
carajo. Ahí está, de nuevo, el improperio. Al final tendré que
proposta pelo romance. Dito de outro modo, a partir do pacto de concluir que soy un malhablado. (SACHERI, 2010, p.22)
leitura que o leitor firma com a narrativa, sabemos que o capítulo
13, a título de exemplo, é construído por Chaparro por tratar-se de A preocupação com a pessoa gramatical se faz acompanhar
um capítulo numerado. Narrado em terceira pessoa, este capítulo de dúvidas quanto ao léxico, ilustradas no fragmento anterior e
nos descreve o momento em que o pai de Liliana Colotto, a jovem que ratificam esta estrutura de metaficção observável em La
assassinada em 1968, vai até a casa da mãe de Isidoro Gómez, pregunta de sus ojos. São muitos os momentos em que Chaparro
ainda suspeito da morte da jovem, para tentar conseguir tece comentários sobre seu próprio ato de narrar, dando-nos a
informações sobre o paradeiro do possível assassino. Chaparro e o impressão de que constrói seu romance em consonância com a
viúvo Morales confabulam juntos esta empreitada em busca de leitura feita por seu leitor: “En realidad y muy en el fondo,
informações realizada pelo sogro de Morales, mas Chaparro não sospecho que esta página que porfío en llenar de palabras va a
estava presente nesta expedição e o pai de Liliana a realiza terminar también, como las diecinueve que la precedieron, echa
sozinho. un bollo en el rincón opuesto de la pieza.” (SACHERI, 2010, p.20)1
Como Chaparro tem acesso às informações O personagem que se propõe a ser também autor divaga
pormenorizadas que narra ao leitor se não estava lá no momento quanto ao método de escritura que utilizará, bem como com
em que sucede a ação? Como apontado aqui anteriormente, o relação ao que será ou não objeto ou foco de sua leitura do
próprio personagem nos avisa, de antemão, que irá “mentir” em passado:
alguns momentos “para llenar baches” em sua narrativa. Se o faz, La primera dificultad concreta, una vez decidido el tema:
¿En qué persona gramatical voy a redactar esta cosa?

1
Este fragmento ilustra um interessante efeito de ilusão de que a obra escrita por ele. Refletindo este encaixe de obras dentro de uma única obra, como em
por Chaparro é construída em compasso com a leitura realizada pelo leitor. Dito uma espécie de boneca russa, são detalhes estilísticos como estes que nos
de outro modo, entendemos que este efeito é alcançado pela própria estrutura levam inclusive a supor se não seria a própria La preguntade sus ojosa obra
física da obra. No fragmento, retirado da página 20 de La pregunta de sus ojos, escrita por Benjamín Chaparro.
Chaparro faz referência às dezenove páginas anteriores que já foram escritas
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Cuando hable de mí mismo, ¿diré “yo” o diré “Chaparro”? Cuando en un texto el narrador nunca se refiere
Es tétrico que este escollo baste para detener todo mi brío explícitamente a sí mismo como personaje, podremos, de
literario. Tal vez sea mejor, para no verme tentado a volcar nuevo, hablar de narrador externo (NE). Ya que no figura en
impresiones y vivencias demasiado personales. Eso lo tengo la fábula que él mismo narra, hablaremos de un narrador
claro. No pretendo hacer catarsis con este libro, o con este vinculado a un personaje, un (NP). (BAL, 1995, p.128)
embrión de libro, hablando más exactamente. Pero la
Além da oposição aqui já apontada por Bal entre as vozes
primera persona me queda más cómoda. Por inexperiencia,
supongo, pero me queda más cómoda. (SACHERI, 2010, p. interna e externa de um romance, os modos de apresentação da
22) consciência são também estudados pela austríaca Dorrit Cohn
(2001), teórica que centrou seu trabalho na análise da estrutura
No transcorrer de sua escritura e em conformidade com a formal da ficção narrativa. Pensando nos discursos em terceira
evolução de sua consciência de escritor, Benjamín Chaparro torna- pessoa, a autora chama de “psiconarração” a técnica narrativa que
se mais seguro de seus propósitos artísticos e abandona se efetiva quando um narrador (em terceira pessoa) expõe com
paulatinamente seus devaneios estilísticos e suas dúvidas quanto sua própria voz emoções, pensamentos e desejos de um ou mais
ao ato de narrar. A história de Morales, como nomeada pelo personagens, tecendo ou não comentários sobre os mesmos. De
próprio personagem-autor, passa a ganhar forma e faz com que acordo com a autora, a psiconarração trata-se do “discurso del
Chaparro comece a preocupar-se com o que seja ou não narrador sobre la conciencia de un personaje” (COHN, 2001,
importante para o entendimento da história por parte do leitor. p.209). Nesta medida, se no discurso em primeira pessoa verifica-
Benjamín Chaparro sabe que só teremos conhecimento dos fatos se “la retrospección dentro de una conciencia”, na psiconarração
narrados por ele e, enquanto modalizador da recepção leitora, o que se constata é “la inspección de una conciencia”. (2001,
toma decisões que interferem no acesso que o leitor tem aos fatos. p.209).
Como antes dito, se decide criar a partir do que imagina ter O narrador externo de La pregunta de sus ojos acompanha
acontecido, o faz pois assume sua posição de autor diante do que as ações realizadas por Chaparro desde o primeiro capítulo do
narra e de responsável pela melhor transmissão possível de um romance, a partir do dia em que lhe organizam uma festa de
passado que ainda lhe parece próximo e que faz nascer no despedida por sua aposentadoria, da qual o personagem prefere
personagem o desejo de sua organização e transmissão via não participar. Antes mesmo da apresentação da voz de Chaparro
escritura. enquanto narrador, é este narrador externo e onisciente quem
abre a narrativa de La pregunta de sus ojos no primeiro capítulo,
Características do FE (focalizador externo) quando somos informados por uma voz outra que não a de
No que diz respeito ao focalizador externo, como vimos, Chaparro, sobre a decisão do personagem de escrever um
Mieke Bal o define como aquele que está situado fora da fábula. romance:
Segundo a autora,
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Le dice que, aunque no tiene ni idea de qué va a hacer de personas. Se pregunta si esta será la sensación que tienen
ahora en adelante, anda con ganas de probar el viejo los escritores cuando narran. Esa módica omnipotencia de
proyecto de escribir un libro. En cuanto lo dice, se siente un jugar con las vidas de sus personajes. No está seguro, pero,
imbécil. Viejo, dos veces divorciado, jubilado, con si es así, la sensación le agrada. (SACHERI, 2010, p.28 –
veleidades de escritor. El Hemingway de la tercera edad. El Capítulo “Cine”)
García Márquez del oeste del conurbano. (SACHERI, 2010,
Neste fragmento percebe-se que as divagações de
p.14 – Capítulo “Despedida”)
Chaparro quanto a seu processo de escritura, expostas no tópico
Ao descrever as emoções e sensações de Benjamín anterior através da focalização do próprio personagem, também
Chaparro, dentro do que a autora Dorrit Cohn chama de são colocadas ao leitor a partir da perspectiva deste narrador
“psiconarração”, o narrador externo abre espaço para a externo. No fragmento, a adjetivação empregada pela voz do NE
caracterização de Chaparro a partir de uma perspectiva diferente. confirma o que nos coloca Dorrit Cohn (2001), quando a autora
Como também assinala Mieke Bal, o NE difere de um narrador defende que o narrador em terceira pessoa realiza uma
personagem porque nunca se refere a si mesmo como um “inspección” da consciência do personagem foco de sua narração.
personagem2. A principal função do NE em La pregunta de sus ojos É o narrador externo de La pregunta de sus ojos quem nos
é narrar a vida presente de Chaparro, seu projeto de escritura e os apresenta um Chaparro “satisfecho”, “desesperado”, “contento”,
obstáculos que o personagem precisa superar para concretizá-lo. “ansioso”, sentindo uma “módica omnipotencia” por jogar com a
Chaparro, por sua vez, é autor do romance (focalizador interno) e vida de seus personagens.
também personagem objeto da focalização do narrador externo. Vale chamar a atenção mais uma vez para este seguimento
Ocupa um lugar destacado nas duas instâncias narrativas. Joga contínuo a Chaparro, quando todo o processo de escritura do
com seus personagens, mas também atua como parte de um jogo protagonista é acompanhado de perto por este NE. Observa-se
mais amplo, que engloba a ele mesmo e a todo seu projeto que este acompanhamento ininterrupto do narrador externo
narrativo: sobre o personagem ganha um ar de veracidade a partir de
[Benjamín Chaparro] Se incorpora, satisfecho. Dos días interessantes procedimentos narrativos realizados por Eduardo
atrás estaba desesperado por la certeza de que jamás Sacheri em La pregunta de sus ojos:
podría escribir su libro, ahogado en la nebulosa del Chaparro tira de la hoja que acaba de terminar con la
principio. Ahora ese principio está escrito. Bien o mal, pero suficiente energía como para liberarla del rodillo sin
escrito. Eso lo pone contento, aunque también siga ansioso. romperla y la relee. Las últimas palabras lo hacen sonreír. Le
Pero ansioso por seguir, por contar lo ocurrido con esas

2
Gérard Genette (1972), usando outra terminologia, chamará narrador geralmente em terceira pessoa. Não utilizaremos esta terminologia do autor,
homodiegético ao que participa dos fatos que narra e narrador heterodiegético, mas damos conta de sua existência. Ver: GENETTE, Gèrard. Figuras III.
o que não o faz e narra a partir de uma maior distância dos fatos narrados, Barcelona: Editorial Lumen, 1989.
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resulta grato el ejercicio de la memoria: esa frase con la que pero ahora ha renunciado a semejante pretensión. Si no se
ha cerrado el capítulo, la de “el día en que los boludos hagan le ocurre un nombre para el conjunto, mucho menos se le
una fiesta”, la había creído absolutamente olvidada. Pero ocurrirá para cada apartado. Y ya lleva escritos dieciséis y le
ahora ha salido a flote junto con otro montón de recuerdos faltan mucho más. (SACHERI, 2010, p.138 – Capítulo
de su pasado y de la gente con la que ha vivido ese pasado. “Nombre y apellido”)
(SACHERI, 2010, p.137 – Capítulo “Nombre y apellido”)
É curioso pensar que os capítulos escritos por Chaparro
Parece-nos oportuno observar que o capítulo de La sejam numerados porque, ainda que tivesse a pretensão inicial de
pregunta de sus ojos que antecede ao acima citado, cuja escritura tecer entradas para cada um deles, o personagem não se sente
é feita por Benjamín Chaparro, termina justamente com estas “bueno para los títulos”. Em contrapartida, os capítulos escritos
palavras que “lo hacen sonreír”, como apontado pelo narrador pelo narrador externo contêm cada um deles um título diferente,
externo no fragmento acima. A frase filosófica de seu amigo conectados literariamente ao assunto tratado. É como se, em
Sandoval, utilizada somente em momentos especiais, lhe salta à alguma medida, a inexperiência declarada sem qualquer reserva
memória e suas reações durante o ato de escritura são por Chaparro não fosse uma das características do outro narrador,
acompanhadas de perto (e também expostas) por este narrador capaz de confabular seus próprios títulos.
externo. Ora, como neste estudo já foi explicitado, tais passagens Partindo à análise de outro procedimento narrativo
de caráter metanarrativo dão ao leitor a sensação de que lê dois relacionado à focalização externa presente em La pregunta de sus
romances que são concebidos simultaneamente. O narrador ojos, pode-se constatar que os dilemas de Chaparro chegam até o
externo narra concomitantemente à escritura de Chaparro, leitor por meio de perguntas feitas por este narrador em terceira
enquanto esta se desenvolve em sincronia com a narrativa pessoa, o que evidencia que este NE, através de tais
realizada pelo NE. Este jogo narrativo também perpassa a própria questionamentos, de perguntas que aparecem interpoladas em
conformação da obra, como já sinalizado, a partir da ordenação do sua narração, segue o fluxo de pensamento de Chaparro, trazendo
romance em capítulos numerados (referentes a Chaparro) e à tona momentos de autocrítica, enquanto o toma como objeto de
titulados (referentes ao NE): sua focalização:
Acomoda sobre el resto de la pila la última hoja “Imaginate, Irene, no me voy a poner a mis años a aprender
mecanografiada, y aprecia el espesor. No es poco, para ese computación, sabés. Y esa Remington la tengo incorporada
primer mes de trabajo. ¿O ya es un mes y medio? Puede ser. en la punta de los dedos como si fueran una cuarta falange”
El tiempo pasa rápido gracias a este asunto. Lo asalta una (¿cuarta falange?, ¿pero de dónde ha sacado semejante
duda recurrente: ¿qué título le pondrá a su novela? No imbecilidad?). (SACHERI, 2010, p.14 – Capítulo
sabe. No tiene la menor idea. “Despedida”)
Chaparro siente que no es bueno para los títulos. En un Em seus estudos sobre o caráter polifônico da enunciação,
primer momento pensó en ponerle un título a cada capítulo, o linguista francês Oswald Ducrot (1987) busca ilustrar “como o
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enunciado assinala, em sua enunciação, a superposição de narrador externo do romance. Em suma, tais questionamentos
diversas vozes.” (DUCROT, 1987, p.172). A certeza teórica de que denotam a fusão de vozes antes citada, como momentos de
há uma unicidade intrínseca ao sujeito da enunciação (quando se autocrítica ou de dúvidas que correspondem a Chaparro, mas que
afirma “o sujeito”) é questionada por Ducrot, que defende que este narrador traz interpolados em seu discurso.
nem sempre o autor de um enunciado é o responsável por aquilo Chaparro, mientras prepara el mate, se encuentra
que de fato se diz no enunciado. Dito de outro modo, o sujeito sumergido, de repente, en el mismo deseo culpable de
falante ou locutor (em nosso caso a voz do NE) nem sempre tem a tantas otras veces, aunque de inmediato se llame a sosiego.
responsabilidade pelo enunciado produzido. Ducrot cita o caso das Una Irene repentinamente viuda… ¿no podría enamorarse
de él? Nada le asegura semejante cosa. Así que mejor dejar
retomadas, quando o que se recupera não é de responsabilidade
en paz al pobre ingeniero, que siga disfrutando de su vida y
do falante enquanto ser único, mas de um enunciador outro, que
de su mujer, mal rayo lo parta.
tem seu enunciado assimilado pela voz que fala, tal como notamos
no fragmento acima citado. Acomoda sobre el resto de la pila la última hoja
O ato de pergunta realizado pelo NE de La pregunta de sus mecanografiada, y aprecia el espesor. [...](SACHERI, 2010,
p.138 – Capítulo “Nombre y apellido”)
ojos em “(¿cuarta falange?, ¿pero de dónde ha sacado semejante
imbecilidad?).”, de fato, trata-se de uma retomada que revela a O fragmento antes citado também figura como amostra de
polifonia presente na voz deste narrador, que traz os uma estratégia narrativa recorrente em La pregunta de sus ojos,
questionamentos que pertencem ao objeto de sua focalização. No também concernente à análise da instância narrativa aqui tida
fragmento, pode-se ler este questionamento que parte da voz do como externa: quando o narrador, em 3ª pessoa gramatical,
NE como um momento de autocrítica que Chaparro levanta sobre distanciado e anônimo, introduz no meio de seu relato uma
si mesmo, sobre o que acaba de dizer a Irene. Há uma fusão de expressão que não se pode atribuir a ele enquanto narrador. Tal
vozes quando o pensamento de outro enunciador – no caso, o de procedimento – que aqui será chamado de Procedimento da Voz
Chaparro – é assimilado pela voz em 3ª pessoa que narra em La Indexada3 – diz respeito à presença da voz de outro, inserida na
pregunta de sus ojos e que acompanha as ações de Chaparro em voz do narrador externo. Esta voz indexada, encoberta, não está
seu momento presente. identificada por aspas ou por qualquer outro recurso gráfico, mas
É bastante considerável a quantidade de questionamentos é percebida pelo leitor como pertencente a outro enunciador,
que aparecem como indício da polifonia presente na voz do diferente daquele que fala. De posse do trecho acima, observa-se

3
Julgamos necessária a criação de um conceito que pudesse dar conta deste enunciado interpolado na voz do narrador externo, mas que não pertence a
procedimento narrativo tão recorrente em La pregunta de sus ojos. Desta este. O leitor identifica o enunciado como estranho à voz que narra, como se a
forma, chamamos aqui de Procedimento da Voz Indexada, termo sugerido por voz do narrador se fundisse com a voz de outro enunciador, em uma espécie de
meu orientador Miguel Ángel Zamorano,ao fenômeno de aparição de um mescla de consciências em uma única voz.
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que “mal rayo lo parta” diz respeito a um enunciado que não é de prometido lo contrario y aunque vengan preparando la
responsabilidade do sujeito falante, mas de outro enunciador. despedida desde hace tres semanas y aunque hayan
Tal procedimento torna possível que, através da ficção, o reservado la mesa para veintidós personas en El Candil y
narrador externo esteja conectado, de alguma forma, à aunque Benítez y Machado hayan confirmado que se vienen
desde el fin del mundo para celebrar la jubilación del
consciência do personagem objeto de sua descrição, o que, como
dinosauro.
vimos, Oswald Ducrot (1987) aponta como um dos movimentos da
polifonia, quando a voz de um único locutor traz em si indícios de Su gesto es tan abrupto que el hombre que viene
mais de um enunciador. Ducrot estabelece uma metáfora teatral e caminando detrás de él, por Talcahuano y hacia el lado de
compara o locutor a um ator, na medida em que ambos se Corrientes, casi se lo lleva por delante y a duras penas logra
esquivarlo bajando un pie de la vereda al pavimento para
assumem como porta-vozes de diferentes personagens, que no
seguir andando. (SACHERI, 2010, p.9 – Capítulo
caso da polifonia textual referem-se aos diferentes enunciadores
“Despedida”)
que se fazem “falar” pela voz do narrador externo. Assim, segundo
o teórico, “dizendo que o locutor faz de sua enunciação uma No fragmento acima selecionado, “Al cuernocon todos”
espécie de representação, em que a fala é dada a diferentes não é um discurso pertencente ao sujeito detentor do enunciado,
personagens, os enunciadores, alarga-se a noção de ato de mas a Chaparro, cuja voz é justaposta no meio dos fatos narrados
linguagem.” (DUCROT, 1987, p.217). De acordo com Ducrot, existe pelo NE. Confirma-se assim o postulado por Ducrot, quando o
a possibilidade discursiva de que o pensamento que se comunica teórico defende que nem sempre o locutor (o responsável pelo
não seja pertencente àquele que fala. Vale dizer que não se trata enunciado) é o mesmo que o enunciador (aquele que se expressa
aqui do relato de um discurso no discurso de outro (em estilo através da enunciação). Ainda com base no fragmento, percebe-se
direto ou indireto), mas da presença de várias vozes em uma única que o primeiro parágrafo se distingue amplamente do segundo
consciência. pois em um primeiro momento promove uma sensação de que não
Os pensamentos de Ducrot servem de amparo neste corresponde à narração dos fatos feita pelo NE. É como se de
estudo pois tal procedimento contribui para que se revise o alguma forma o narrador, no primeiro parágrafo do fragmento, se
conceito e a função clássica do narrador em 3ª pessoa de La fundisse com o personagem Benjamín Chaparro a partir de uma
pregunta de sus ojos, como aquele que age de forma anônima, imersão em sua consciência, criando um efeito de abolição do
onisciente e distanciada. De fato, tal distanciamento é colocado distanciamento clássico e esperado de um narrador externo. O
em xeque quando a linearidade do discurso do narrador externo é segundo parágrafo, por sua vez, retoma este tempo cronológico e
rompida por estas indexações abruptas, portadoras de uma voz linear, como se o narrador abandonasse suas digressões e
que não lhe pertence. retornasse à progressão externa dos fatos que conta.
Benjamín Miguel Chaparro se detiene en seco y decide que Sob tal ótica, entende-se mais uma vez que a concepção
no va. No va y punto. Al cuerno con todos. Aunque haya teórica de um narrador externo distanciado é questionada quando
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se pensa no NE de La pregunta de sus ojos. São muitos os corre paralelo a la calle Tucumán hasta encararse con la alta
momentos em que o narrador externo se introduz na consciência y angosta puerta de su Secretaría. Se detiene mentalmente
do personagem e, ao compartilhar de seus desejos, sonhos e en el posesivo “su”. Sí, qué tanto. Es suya, y mucho más suya
angústias, elimina a distância prototípica do ato de narrar. Quando que del secretario García, o que de cualquiera de los otros
secretarios que han precedido a García, o que de cualquiera
opta por não expor ações, mas antes traduz a consciência do
de los que habrán de sucederlo.
personagem objeto de sua focalização, narrador e personagem
parecem fundir-se em uma só identidade. As consciências não se Mientras abre la puerta el enorme manojo de llaves tintinea
distanciam, mas se mesclam em um só relato. Conclui-se que, en el silencio del pasillo vacío. Cierra con cierta fuerza, para
muitas das vezes, concepções simplificadoras não fazem jus ao que la jueza se percate de que alguien ha entrado en la
oficina. Momento: ¿por qué eso de “la jueza”? Porque lo es,
conceito de narrador externo, posto que a voz em 3ª pessoa
claro, pero ¿por qué no Irene? Porque no, justamente por
também permite uma série de modulações, graduadas pelo
eso. Ya bastante tiene con ir a pedir lo que está por pedir,
interesse do enunciador em manter ou não maior distância dos como para sumarle el descalabro de saber que se lo tiene
fatos narrados. que pedir a Irene y no simplemente a la doctora Hornos.
Ainda de acordo com o fragmento acima citado, nota-se (SACHERI, 2010, p.11-12 – Capítulo “Despedida”).
que o que chamamos aqui de Procedimento da Voz Indexada dá
O fragmento acima se encarrega de ilustrar as colocações
lugar à conexão entre dois tempos e dois espaços distintos: os que
feitas até agora sobre a interessante polifonia presente no narrado
pertencem ao narrador externo e os que competem à voz
pelo NE de La pregunta de sus ojos, índice da complexidade de uma
indexada. O fluxo temporal do narrado pelo NE é interrompido
das vozes focalizadoras do romance. O tempo cronológico, o da
pelo tempo da consciência, diferente da temporalidade da trama,
narração dos fatos, é interrompido por divagações subjetivas que
do tempo cronológico. Quando o narrador se funde com o “eu” do
se inserem na voz que detém a narração. O segundo parágrafo do
personagem, há uma alternância de duas perspectivas distintas
fragmento acima revela esta combinação de vozes. Pensar no
dentro de uma só voz: as ações vistas como exterioridade (e que
possessivo “su”, afirmar que a Secretaria “es suya” ou ainda
seguem o fluxo temporal cronológico) e aquilo que integra a
questionar-se quanto ao vocativo “lajueza” figuram como ações
consciência do personagem (um não tempo ou um tempo
que competem a Chaparro, mas narradas pelo narrador externo.
suspenso).
[…] Todavía no han cerrado la puerta principal. Se trepa al Logo, mais que apresentar ao leitor a vida presente do
primer ascensor que tiene a tiro. No necesita aclararle al personagem Chaparro por via de um distanciamento, o NE em
ascensorista que va al quinto piso, porque en el Palacio lo questão se mescla e se confunde com o objeto de sua mirada. Em
conocen hasta las piedras. última instância, não se trata aqui de um mero caráter onisciente
inerente a este narrador, mas da fusão de identidades e de vozes,
Avanza, a paso firme, haciendo ruido con los mocasines de
suela sobre las baldosas blancas y negras del pasillo que
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que já no primeiro capítulo do romance revela o tom dado à obra sempre “se hace presente”. (2005, p.10). E é justamente a partir
pelo escritor. do tempo presente que este passado é recordado e, assim,
entendido. Em La pregunta de sus ojos, entender os caminhos que
O tratamento da memória pela narrativa de Eduardo Sacheri conduziram um homem a fazer justiças com suas próprias mãos
Tendo em vista que as vozes antes analisadas requer recordar a história de vida deste mesmo homem. É a partir
configuraram-se como caminho de leitura do tratamento da do ato de memória de um personagem que o leitor tem acesso a
memória pelo romance corpusdeste estudo, partiremos agora à histórias de vida que se imbricam ao redor de uma morte. E é
análise deste elemento conformador da obra de Sacheri. É a partir também na rememoração destes momentos de vida que somos
do jogo de focalização constituinte do romance que o passado levados a refletir temas como o tratamento da memória pela
argentino ganha espaço da obra do escritor. literatura.
Beatriz Sarlo (2005) reflete sobre uma característica No que diz respeito ao diálogo entre literatura e este
inerente e incontrolável do passado: ainda que se queira reprimi- passado que “se hace presente” do qual nos fala Sarlo, Márcio
lo ou deixá-lo restrito ao espaço do ontem, o mesmo “sigue allí, Seligmann-Silva (2012) afirma que
lejano y próximo, acechando el presente como el recuerdo que a relação do passado com o presente e a necessidade de
irrumpe en el momento menos pensado, o como la nube insidiosa refletirmos criticamente sobre as experiências e vivências
que rodea el hecho que no se quiere o no se puede recordar.” individuais e coletivas, a partir das quais se constroem os
(2005, p.9). A autora o compara a um aroma que chega sem que relatos sobre o passado, são preocupações que não se
limitam ao âmbito profissional de historiadores, mas que
se queira ou espere, daí que optar por não recordar é o mesmo
estão presentes nos estudos literários, artísticos e culturais,
que “proponerse no percibir un olor, porque el recuerdo, como el
perpassando linguagens e mídias diversas. (SELIGMANN-
olor, asalta, incluso cuando no es convocado.” (2005, p.9). Nesta SILVA et al., 2012, p.9)
medida, em La pregunta de sus ojos, o passado surge como este
“olor que asalta” e que impulsiona o personagem narrador Com base nas palavras de Seligmann-Silva, confirmamos
Benjamín Chaparro a querer capturá-lo através da arte e organizá- que o passado também pode ser recordado (e entendido) pelo
lo em forma de palavras. discurso artístico. Como explica o autor, a abordagem do passado
De acordo com Sarlo, recordar e entender são ações que não se restringe ao campo da disciplina História, mas encontra
caminham juntas. Se entender se apresenta como mais possibilidades de realização a partir de diálogos interdisciplinares
importante que recordar, o ato de recordar se mostra com os Estudos Literários, Filosóficos, Culturais, em Artes Plásticas,
imprescindível para que se chegue a algum tipo de entendimento. Visuais e Inter-Semióticos (2012, p.9). O tratamento da memória
Recordar, nesta medida, surge como caminho de organização e pela Literatura, nesta medida, se justifica quando refletimos o
entendimento de um passado “soberano e incontrolable” que discurso literário enquanto instrumento que também é capaz de
dialogar com o passado a partir do viés ficcional.
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Em La pregunta de sus ojos, o passado “se hace presente” para recordar e entender o seu passado e o das vidas que o
a partir de personagens que se encontram enredados a fatos que rodeiam.
os impedem de seguirem com suas vidas sem que este passado Sarlo fala de modalidades não acadêmicas na escritura da
constantemente ressurja e os interpele. Nesta medida, vemos que história, baseadas não em regras do método da disciplina histórica
este passado se faz presente a partir do impacto pela morte da (SARLO, 2005, p.14), mas nos sentidos comuns do presente, como
jovem, que atua de modo distinto em Benjamín Chaparro e no aquela modalidade que “atiende las creencias de su público y se
viúvo Morales. Chaparro sofre com o bloqueio amoroso que lhe orienta en función de ellas.” (SARLO, 2005, p.15). Benjamín
submete a décadas de silêncio, de idas e vindas de um amor que o Chaparro é símbolo dessa voz do homem comum que se alça e
sufoca e o faz sofrer calado. A vida de Morales, por sua vez, estrutura um relato histórico a partir de seu próprio ponto de vista,
mantém-se estagnada, posto que o personagem tem sua morte daquilo que vivenciou ou que presenciou na vida de pessoas
simbólica consolidada com a morte de sua esposa Liliana. próximas. Homens comuns que “no sólo seguían itinerarios
Em nossa leitura sobre os sujeitos focalizadores de La sociales trazados sino que protagonizaban negociaciones,
pregunta de sus ojos, é importante observar que Chaparro se transgresiones y variantes.” (SARLO, 2005, p.18).
utiliza do literário como mecanismo de ordenamento de fatos que É a partir deste destaque dado a “la rememoración de la
já integram a sua própria história. Como já dito, o ato de recordar experiencia” (SARLO, 2005, p.21) que ganham espaço os discursos
se efetiva a partir da escritura deste personagem, quem, após em primeira pessoa como forma privilegiada para a apresentação
aposentar-se como pró-secretário de uma Secretaria de Instrução de pontos de vista, caminho que revigora o viés subjetivo dos
de Buenos Aires, decide contar a história de vidas que se cruzam discursos sobre o passado. Como aponta a autora, “[...] la historia
em um romance. É também Beatriz Sarlo quem afirma que oral y el testimonio han devuelto la confianza a esa primera
el tiempo pasado es ineliminable, un perseguidor que persona que narra su vida (privada, pública, afectiva, política), para
esclaviza o libera, su irrupción en el presente es conservar el recuerdo o para reparar una identidad lastimada.”
comprensible en la medida en que se lo organice mediante (SARLO, 2005, p.22).
los procedimientos de narración y, por ellos, de una Quanto aos testemunhos e à valorização dos discursos em
ideología que ponga de manifiesto un continuum
primeira pessoa, Beatriz Sarlo também afirma que
significativo e interpretable de tiempo. (SARLO, 2005, p.13).
la memoria ha sido el deber de la Argentina posterior a la
O caminho encontrado por Chaparro para organizar este dictadura militar y lo es en la mayoría de los países de
tempo passado que não pode ser eliminado também se baseia em América Latina. El testimonio hizo posible la condena del
procedimentos de narração, tal como coloca Sarlo no fragmento terrorismo de estado; la idea del “nunca más” se sostiene
citado. Como constantemente afirmamos neste estudo, Chaparro en que sabemos a qué nos referimos cuando deseamos que
eso no se repita. Como instrumento jurídico y como modo
almeja escrever um romance e é este o instrumento que utiliza
de reconstrucción del pasado, allí donde otras fuentes
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fueron destruidas por los responsables, los actos de conferida pela escritura de algo que lhe parecia perturbador, assim
memoria fueron una pieza central de la transición como observamos no fragmento supracitado, que Chaparro se
democrática. […] (SARLO, 2005. p.24). sente livre, desprendido, numa soltura que lhe chegou “desde que
Vimos que Chaparro não consegue esquecer-se dos fatos ha contado todo”.
que o marcaram de forma a seguir com sua vida com algum padrão Nesta medida, a máquina de escrever que Chaparro utiliza
de normalidade, ainda que o tente e que os demais recriminem para contar a história de Morales é simbólica em La pregunta de
sua postura. Reagir a este passado através do recalque e do sus ojos, pois permite que um pro-secretário aposentado se invista
esquecimento já não é mais possível e, por isso, o caminho que de seu papel de escritor e, assim, assuma a responsabilidade de
encontra é o processamento simbólico de seu passado através de organização da memória de vidas outras que se cruzaram com a
uma antiga máquina de escrever. Sua necessidade de voltar-se sua. O projeto antigo de escrever um livro ganha concretude
para o ontem a fim de reconstruir os caminhos da memória quando o personagem finalmente compreende que é tão só pelo
demonstra que seu passado só pode ser compreendido quando caminho da escritura que o desalinhado, desconexo, ganha uma
verbalizado, razão pela qual a literatura surge como instrumento dimensão compositiva mais coerente e, por isso, mais clara e
que lhe permite ao indivíduo avançar e retomar sua vida depois de compreensível para quem carregava por tanto tempo o peso de
um acerto de contas com sua própria história. um passado que lhe parecia tão nebuloso e sufocante.
De repente [Benjamín Chaparro] se sobresalta. El tren Nesta linha de leitura, a busca pela verdade que ancora a
avanza, ruidoso, entre los paredones lúgubres que se narrativa tem relação direta com a auto investidura de Chaparro
levantan a los costados de las vías entre Caballito y Once. como escritor. A verdade não implica somente saber o que de fato
¿En qué ha estado pensando la última media hora? No ocorreu ao assassino da jovem, posto que a carta de Morales se
puede recordarlo. ¿En Morales? ¿En Gómez? No. Ellos ya encarrega de esclarecer estas pendências da história a Chaparro,
descansan. Llamativamente, desde que ha contado todo, ya mas, antes, envolve também a preocupação constante de trazer a
no lo asaltan, no lo perturban, no lo increpan a cada rato.
verdade impressa naquilo que se diz sobre este passado.
(SACHERI, 2010, p. 313 – Capítulo “Devolución”).
Deja los elementos del mate sobre el escritorio y se
O fragmento mostra-se fundamental para a leitura dos encamina hasta el aparador de la sala. Sabe que las cartas
significados do romance que nos propomos a realizar. Chaparro están en el segundo cajón, cada una en su sobre. No están
utiliza o literário como ferramenta de entendimento e organização amarillentas porque no son tan antiguas. Y aunque no ha
de seu passado e dos fatos que de alguma forma afetaram sua vuelto a leerlas, cree recordarlas con exactitud, casi hasta
sus textuales palabras. Pero no quiere falsear la verdad que
própria história de vida. O passado, enquanto emaranhado de
tienen en las manos. Por eso las sacará de allí para
momentos e recordações mescladas e confusas, ganha
llevárselas al escritorio. Para citarlas todas las veces que lo
linearidade, sequenciamento, lógica interna, a partir do ato de considere necesario.
escritura. É tão só através desta segurança organizacional
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“¿Por qué semejante prurito de exactitud?”, se pregunta. o contexto espaço-temporal de desenvolvimento destes fatos
Porque sí, es su primera respuesta. Porque en ellas se passados. Vimos que a estratégia utilizada por Benjamín Chaparro
esconde la verdad, o la propia palabra de Ricardo Morales como forma de lidar com os fatos que marcaram sua história é a
que en este caso es la última verdad, se contesta luego. de organizar o passado via escritura, mecanismo que lhe viabiliza
Porque así, con las pruebas documentales en la mano,
entender os caminhos que o conduziram ao lugar onde está: sua
citando lo que haya que citar, es como ha trabajado
força e sua covardia; seus desejos e suas inumeráveis dúvidas; sua
cuarenta años en Tribunales, agrega. Y esa otra respuesta
también es verdadera. (SACHERI, 2010, p.281-282 – nobreza e sua mesquinhez; a história de Morales e a sua; a história
Capítulo “Más dudas”). do Juizado Criminal de Instrução nº 41 e a história da própria
Argentina. Ainda que seu objetivo seja o de oferecer-nos tão só um
A despeito de contar uma história que parte da aceitação relato sobre o que aconteceu a Ricardo Morales, Chaparro nos
de sua imprecisão intrínseca, Chaparro não se contenta em trazer oferece sua própria vida, a das pessoas que o cercam, a de sua
a seu leitor uma versão própria dos fatos. Ainda que tenha Nação.
consciência da subjetividade que atravessa sua narração, o Chaparro tira de la hoja que acaba de terminar con la
personagem-autor continuamente assume sua inquietude por suficiente energía como para liberarla del rodillo sin
encontrar a verdade e ser fiel a ela em seu processo de escritura. romperla y la relee. Las últimas palabras lo hacen sonreír. Le
La mitad de Chaparro que odia la incertidumbre, y que resulta grato el ejercicio de la memoria: esa frase con la que
anhela hasta la desesperación concluir con eso, opina que ha cerrado el capítulo, la de “el día en que los boludos hagan
es perfecto llegar hasta aquí: mal que mal ha conseguido una fiesta”, la había creído absolutamente olvidada. Pero
contar lo que se había propuesto, y el tono que encontró ahora ha salido a flote junto con otro montón de recuerdos
para hacerlo le da la impresión de ser el adecuado. Los de su pasado y la gente con la que ha vivido ese pasado.
personajes que ha creado se parecen insólitamente a los (SACHERI, 2010, p.136 – Capítulo “Nombre y apellido”)
seres de carne y hueso que él conoció, y esos personajes
han dicho y hecho, mal que mal, las cosas que esos seres É esta memória própria e alheia na qual o personagem está
reales hicieron y dijeron. Esa mitad cautelosa de Chaparro submerso que serve de instrumento de autoconhecimento a
sospecha que, si se extiende más, todo se irá al diablo, y la Chaparro e que traz à luz a memória coletiva de seu próprio país.
historia se saldrá de cauce, y los personajes terminarán Bem mais que o resgate da história de um crime de uma jovem, a
moviéndose a su antojo sin atenerse a los hechos, o a su escritura do personagem dá espaço ao passado de uma Nação
memoria de los hechos, que para el caso es lo mismo, y todo quando momentos históricos surgem como pano de fundo da
habrá sido al divino botón. (SACHERI, 2010, p.187 – Capítulo narrativa. Nesta medida, o desejo contínuo do personagem por
“Abstinencia”) trazer a verdade em sua narração do passado o leva a explorar
Esta preocupação por trazer a seu leitor a história de também o contexto histórico de acontecimento destes fatos.
Morales com o máximo de exatidão possível implica o manejo com
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É neste detalhamento da escritura, tão valorizado por Sacheri já trabalhou em um Juizado Criminal e é da experiência
Benjamín Chaparro, que a obra de Eduardo Sacheri abre espaço pessoal e de um episódio contado por companheiros mais
para que elementos históricos ecoem em La pregunta de sus ojos. experientes – a liberação de um assassino confesso por ocasião de
A trama de busca em Sacheri, ambientada em uma Argentina dos uma anistia para presos políticos em 1973, que nasce La pregunta
anos sessenta e setenta, atua como veículo que permite a de sus ojos. A recordação de uma história verídica, mas que
apreciação de conflitos políticos e sociais próprios do país, a partir ocorreu em circunstâncias nebulosas e vagas, configura-se como
de uma evolução temporal que contempla diferentes episódios de material de criação artística porquanto uma infinidade de
importância nacional. Contudo, importa chamar a atenção para o possibilidades que se relacionam ao fato ocorrido surge na mente
trato sutil na apresentação dessas referências históricas por ingeniosa do escritor.
Sacheri, as quais se mesclam com o literário num intrigante jogo A necessidade de que ao leitor lhe seja aclarado, ao final, o
narrativo entre a memória da Argentina e a memória de um caráter fictício do romance denuncia o intenso tratamento de fatos
personagem. da memória nacional por Eduardo Sacheri. Entendemos que a
Concluímos que que a estruturação da obra a partir de duas apresentação desta nota pelo autor se justifica pelo fato de o
vozes, diferenciadas quanto a suas funções próprias, mas romance dialogar amplamente com fatos históricos da Argentina.
imbricadas na conformação de La pregunta de sus ojos como um O jogo narrativo se conforma a partir da memória do próprio
todo unificado, atua em prol do tratamento da memória na escritor, que recupera um fato passado e o atualiza pelo viés
narrativa, tendo em vista que as duas vozes dedicam-se a esferas ficcional. Sob tal ótica, a memória do escritor dá lugar a memória
temporais distintas – o presente e o passado argentinos, que se de um personagem que vivencia este fato e, por sua vez, também
imbricam e arquitetam o romance com base em duas decide recuperá-lo por meio da escritura de um romance. Ambas
temporalidades: a Argentina de agora, de um Chaparro já as obras – a de Chaparro e, de forma extensiva, a de Eduardo
aposentado e amadurecido, e uma Argentina de outrora, de trinta Sacheri, dialogam amplamente com a memória da Argentina,
anos antes. É esta última a que se configura como cenário de arcabouço sócio-histórico que edifica La pregunta de sus ojos.
ocorrência do crime da jovem, decorrente da violência e da
violação da lei cometidas por um homem. Por extensão, é também Referências:
este o lugar de tantos crimes outros, referidos na trama de Sacheri, BAL, M. Teoría de la narrativa (una introducción a la narratología).
como consequência da violência e da violação da lei cometidas por Traducción de J. Franco. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.
aqueles que deveriam atuar em prol da justiça e não contra ela.
Com vistas a aclarar este jogo narrativo, La pregunta de sus COHN, D. Técnicas de presentación de la consciencia. In: Teoría de
ojos se encerra com uma nota do próprio autor, que configura-se la novela: antología de textos del siglo XX. Enric Sullà (ed.).
a partir de episódios de intenso carácter autobiográfico. Eduardo Barcelona: Crítica, 2001.
P á g i n a | 317

DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.

GENETTE, G. Figuras III. Barcelona: Editorial Lumen, 1989.

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Altea, Taurus, Alfaguara, 2010.

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Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

SULLÀ, E. (ed). Teoría de la novela: antología de textos del siglo XX.


Barcelona: Crítica, 2001.
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COMO SE MOSTRA E O QUE REPRESENTA: meios de comunicação, em particular na televisão, em que


O REALITY SHOW NA FORMA E NO CONTEÚDO DA NOVELA a notícia imediata, as diferentes formas de
REALIDAD, DE SERGIO BIZZIO. documentarismo, os reality shows e a televisão interativa
Ellen Maria Martins de Vasconcellos hoje representam aquilo que mais atrai o público,
USP oferecendo a possibilidade de se testemunhar, em tempo
presencial, tanto a intimidade de personagens conhecidos
Introdução ou anônimos quanto os eventos dramáticos.
A cultura da imagem atravessa, atualmente, todos os (SCHØLLHAMMER, 2011, p. 8)
campos da arte, e encontra na literatura também um espaço para
O estudo da relação entre literatura e imagem na
interferir. Essa relação que a literatura contemporânea passa a
contemporaneidade, segundo Karl Erik Schøllhammer, deve ser
manter com as imagens, faz com que esta amplie seus temas e
apurado na perspectiva dos “estudos das visibilidades, da cultura
também seus procedimentos na construção da narrativa, haja vista
visual e do desenvolvimento tecnológico de novas formas de
que na produção e reprodução de imagens, recursos dos meios
representação visual” (2007, p. 15). Isso faz com que a leitura de
cinematográficos, televisivos e inclusive da internet são utilizados,
um crítico busque as relações entre o que um texto “faz ver” e o
tais como a montagem, a edição de cenas e a escrita
que a imagem “diz e dá a entender” (ibidem). O autor segue:
compartilhada, e até mesmo a crítica contra o espetáculo das O texto depende hoje mais do que nunca da sua qualidade
imagens – que já está inserida, muitas vezes, no próprio espetáculo visual, e da sua materialidade de escrita, do seu meio
– é aproveitada. Com isso, a literatura em contato com a gráfico, da sua edição ou da sua projeção. [...] O conjunto
linguagem visual contemporânea, que abrange esses e outros texto-imagem forma um complexo heterogêneo
diversos meios e dispositivos de comunicação, além de suas fundamental para a compreensão das condições
conexões com outras práticas artísticas, tende a aumentar sua representativas em geral. (SCHØLLHAMMER, 2007, p. 17).
potencialidade estética, já que aumenta seus códigos e E é seguindo esta perspectiva de estudo, que começo meu
articulações, fazendo, dentro de sua própria forma, um texto. Primeiramente, devo aclarar que este trabalho integra a
questionamento quanto à sua especificidade e função. investigação do meu mestrado, cujo projeto parcial se chama “Dos
Uma nova evocação de realidade se evidencia hoje nas
meios aos efeitos: a televisão e o espectador na literatura pós-
tendências expressivas da literatura e das artes à procura de
autônoma”, onde analiso as obras Realidad, de Sergio Bizzio e Bajo
efeitos de realidade na transgressão dos limites
este sol tremendo, de Carlos Busqued, para entender e explicar
representativos do realismo histórico. Tal tendência tenta
como é representada a televisão na narrativa, que aparece não só
demarcar seu espaço sede geral de realidade que, com
como tema nos romances, mas também como forma, isto é, com
facilidade, se verifica no cinema, na fotografia, nos grandes
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seus procedimentos incorporados na narrativa, para modificar a e isso inclui temas e procedimentos das novas tecnologias, do
função do narrador e produzir efeitos na leitura. mundo digital, da política, da economia, da realidade, da ficção,
Nesta fala, minha proposta é apresentar o panorama crítico etc. Em 2007, Ludmer lançou o “Literaturas postautónomas 2.0”,
que discute essa inserção de artifícios das mídias e de outros meios depois o “Notas para Literaturas postautónomas 3”, depois o
na literatura latino-americana contemporânea, e analisar “Literaturas postautónomas 3.0”, até que em 2012, lançou o
brevemente determinados aspectos do romance Realidad, de último “Literaturas postautónomas: otro estado de la escritura”,
Sergio Bizzio, à luz destes textos críticos e outros que investigam texto o qual pretendo comentar.
pontualmente a televisão, suas ferramentas e determinados É um texto bastante esclarecedor, pois nele, a autora
formatos televisivos. retoma sua posição, explica, exemplifica, e vai além. Ela inicia
situando o crítico como uma espécie de ativista cultural do
Panorama pré e pós Ludmer presente, e o presente como o presente literário, espaço onde ela,
Quem pesquisa a literatura latino-americana como crítica, enxerga todo o funcionamento central da imaginação
contemporânea sob o viés dos estudos culturais sabe a pública. A partir daí, Ludmer volta a caracterizar o conceito de pós-
importância, ou ao menos, a polêmica que os textos de Josefina autonomia: não é anti, nem contra, mas alter, no sentido que não
Ludmer sobre a pós-autonomia causaram no panorama crítico corta totalmente com a estética moderna e seus valores, até
atual. Isso porque, em seus textos sobre as literaturas pós- porque o passado está presente no presente, mas a ultrapassa,
autônomas, a autora relativiza conceitos que até então eram tencionando-a e oscilando-a. Esta é a condição fundamental da
praticamente “intocáveis”, tais como valor de obra, valor de literatura na atualidade.
crítica, e principalmente, o próprio conceito de literatura. Os Depois, Ludmer aborda a questão da autonomia da
textos de Ludmer são cinco: o primeiro, com o título de literatura e das outras esferas ou práticas sociais (a econômica, a
“Literaturas pós-autônomas”, foi publicado em 2006, em seu blog política etc.), para se aprofundar no regime particular autônomo
e em revistas virtuais, e a partir daí, foi possível se deparar com literário, desde o século XVIII até o XX, importantíssimo para a
reedições e reavaliações deste primeiro texto, com o acréscimo de constituição e culminação das nações latino-americanas, além da
novas definições, um contexto histórico e espacial mais definido, criação das editoras nacionais. A literatura escrita nestes tempos
explicações detalhadas do que seriam essas literaturas e por quais diferenciava a realidade real da ficção realista, que inserindo a
razões assim seriam caracterizadas. Também foram dados vários realidade histórica nacional no tempo da narrativa, fazia
exemplos de obras literárias e, o que particularmente mais me representar suas identidades políticas, para criar finalmente uma
interessa, foi a sugestão de uma nova proposta de leitura para identidade nacional. Hoje, com essa ideia da pós-autonomia, essas
essas obras contemporâneas que trabalham com a fábrica de figuras e funções não são mais necessárias, porque, segundo
presente, isto é, trabalham desde o presente, o próprio presente, Ludmer, com o fim das lutas pelo poder no interior da literatura,
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com outros modos de produção e distribuição do livro, outros Quando Ludmer define a mudança do regime de realidade
modos de ler, outros regimes de sentido, realidade e ficção, o na escritura pós-autônoma, ela retoma a problemática da
objetivo literário é outro: é colocar em questionamento todas as desdiferenciação da ficção e da realidade, tratada nos seus três
esferas abertas, e dissolver fronteiras, para produzir efeitos textos anteriores, além da conceituação de imaginação pública e
estéticos e experiências sensíveis neste espaço, onde a imaginação fábrica de realidade. Na realidade cotidiana, produzida nesta era
pública também é retomada e fabricada, que é a literatura. dos meios e da indústria da língua (e do livro), tudo parece ser
Rancière vai dizer que a reivindicação da arte hoje é partilhar o ficção e parece ser realidade, e é. Por último, a autora fala da
sensível, isto é, partilhar o comum, as imagens, e isso inclui mudança do lugar do escritor nesta fusão que é a realidadficción.
partilhar experiências também, mas sem a necessidade moderna Com a chegada da era dos meios, a figura do autor existe para
de intervenções polêmicas. Mas volto a isso mais adiante. promover seus livros, fazer conferências, participar de feiras e
Seguindo ainda o último texto de Ludmer, a autora trata fazer parte desse mercado que gera emprego e muito dinheiro.
dessas mudanças mais consistentes na literatura pós-autônoma. Começa também a crescer um desinteresse por parte de alguns
São elas: a linguagem, o sentido, a realidade e o autor. A linguagem escritores pela autoria, com a criação de romances em blogs
hoje, segundo a autora, se faz visual e espetacular. Como a imagem colaborativos, textos de autoria coletiva, etc. Tudo isso é muito
é a lei, a escritura precisa tratar de produzir imagens visuais num novo, e não é capaz de se tornar a única forma de produção. Por
meio puramente verbal. Esse fenômeno é diferente da metáfora, isso, Ludmer insiste na reflexão de que as formas do passado
da alegoria ou do simbolismo, já que acrescenta ao significante, ao permanecem no presente, e são essas relações tensas entre a
significado e ao referente uma capacidade de fazer ser autonomia e a pós-autonomia as existentes hoje: de fusão de
transparente. Dessa forma, ler é ver passar imagens transparentes esferas, de sentidos, de políticas, de tempos, de língua, de
e de sentidos ambivalentes. Imagens, que a principio parecem identidade.
claras, indiscutíveis, já que estão compostas de índices realistas, Para finalizar, a autora uma vez mais defende que estas
no entanto, carregadas de signos, terão seu sentido mais óbvio novas escrituras não podem ser lidas com ferramentas
modificado dependendo da imagem anterior ou posterior, tradicionais, ao menos que essas estejam em uma posição de
dependendo da sequência ou do contexto onde estão inseridas. A distanciamento, e sem hierarquização em relação às ferramentas
linguagem que se faz visual, portanto, na literatura das novas mídias. Como testemunhas do presente, é necessária
contemporânea, não só desperta uma imagem mental durante a uma forma de ativismo cultural que queira ler e analisar nessas
leitura, mas, segundo Schøllhammer, “se nutre tanto dos recursos obras seus elementos retirados dos meios de comunicação, seus
imaginários fornecidos pela experiência viva do leitor, quanto das procedimentos apropriados de outras práticas artísticas, e as
imagens culturais acumuladas em sua formação como ser social” possibilidades diversas que aproximam a realidade da ficção na
(2007, p. 8) para seu dinamismo. construção da narrativa literária, imersa nesta fábrica de presente.
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A conclusão que ensaio em relação a este texto é que a arte Josefina Ludmer desde 2006, e há dez anos antes também
contemporânea, e a literatura contemporânea incluída, precisa de enxergou Irlemar Chiampi, em 1996, é um movimento da arte, e
novas ferramentas de análise, transposta também das novas por consequência, também da literatura, em construir-se cada
mídias, já que como afirma Ludmer, são essas as novas matérias mais inespecífica, usando um termo de Garramuño, e levantar essa
que a literatura trabalha e dialoga, utilizando-as como tema e inespecificidade como bandeira, a bandeira da emancipação da
também como artifício na elaboração da narrativa. É o que autonomia, diria Ludmer. Para Garramuño, isso significa que a
constrói o nosso presente, e que por consequência, constrói literatura combina suas convenções e estruturas específicas com
também a literatura que trabalha com o cotidiano. outros elementos específicos de outras artes e meios, conectando
Após a leitura do artigo de Florencia Garramuño “Frutos “árvores, música popular, filme e palavra escrita” (2014, p. 11) não
estranhos. A aposta pelo inespecífico na estética contemporânea”, só para produzir tal efeito estético que o artista busca, e transmitir
publicado neste ano de 2014 no livro Cenários contemporâneos da tais ideias, mas também e justamente para apostar e construir um
escrita, organizado por Schøllhammer, tive ainda mais certeza que novo lugar para a arte, um novo espaço de “textos, instalações,
a literatura latino-americana do século XXI, e a arte, em geral, se filmes, obras de teatro e práticas artísticas contemporâneas”
articula de forma bem diferente com a realidade e os discursos que (ibidem), sem uma definição específica, sem uma ideia de
a constroem, do que a literatura no decorrer do século XX e pertencimento ou identidade fechada.
também da literatura proposta no inicio dos anos 80, que Antes de ir aos exemplos e explicar onde quero chegar,
reivindicava o fim da autonomia dos campos literários e o fim da retomarei o primeiro texto que levo como base para estas
obrigatoriedade com a transcendência e com o caráter indagações, que é o texto de Chiampi. Em 1996, a autora publicou
indubitavelmente crítico da obra de arte. Quer dizer, estas um artigo chamado “O romance latino-americano do pós-boom se
exigências seguem em vigor, assim como a impugnação de apropria dos gêneros da cultura de massas”, destacando o diálogo
conceitos antes determinantes como a literariedade, o moderno, do erudito e do popular nas escrituras contemporâneas. Este
o sublime, mas seu estatuto expandiu, passou dos limites estudo é fundamental para começar a visualizar o panorama
disciplinares, ultrapassou práticas, sentidos, formatos, suportes e crítico da literatura latino-americana, porque a autora já
objetivos. observava uma mudança nítida e pontual de valores na literatura
Hoje, afirma Garramuño, a literatura questiona a desde o romance pós-boom. Segundo ela, com o desenvolvimento
especificidade artística, e justamente por isso, seu valor como arte da cultura das rádio-novelas, da TV e da cultura de massa na
e sua função crítica nunca foram também tão questionados quanto América Latina, os textos literários latino-americanos se
atualmente pelos seus críticos. A arte está em constante aproximaram de outras formas e práticas artísticas e dos gêneros
movimento desde sua origem, a cada obra nova, a cada artista espúrios, como diz a autora, que são aqueles gêneros que os meios
novo; mas, o que enxerga Garramuño hoje, e que enxergou massivos consagraram, que “o povo consome e a elite abomina”
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(1996, p. 75): o folhetim, a radionovela, a telenovela, o romance identificados no imaginário social, e possuem representatividade
sentimental, as histórias de detetive, os musicais, o danzón, o no que antes era chamado de cultura popular (por Canclini). O
bolero, etc. terceiro aspecto importante que destaca a autora é o trabalho de
Afirma Chiampi, que os textos literários não só se apropriação dos gêneros massivos. Este procedimento não supõe
aproximaram, mas também se utilizaram de seus procedimentos, o abandono de uma proposta estética, da expressão erudita, ou do
reaproveitaram suas estruturas, recuperaram e fizeram caráter de experimentação das obras, já que esses textos propõem
refuncionalizar não só seus temas, mas também suas formas: sim um cuidado com a forma e possuem narrativas bem
a estrutura melodramática dos relatos sentimentais é estruturadas assim como os romances modernos; mas o que essa
recuperada em complexas situações de registro “operação de resgate e inserção do repertório melodramático na
experimental; os tics obsessivos do gosto massivo pontuam linguagem narrativa do romance” (1996, p. 75) visa é a
os diálogos, os sonhos e o fluxo de consciência dos incorporação de novos temas e artifícios dos gêneros massivos não
personagens; os clichês, a cafonice, os convencionalismos
com o objetivo de criar pastiches, nem de mencioná-los com certa
discursivos... (CHIAMPI, 1996, p. 76).
distância desse repertório, mas de utilizá-los com o mesmo valor
Explica ela que essa reciclagem de subprodutos da cultura estético e validade cultural dado a obras clássicas da literatura e
pós-moderna na literatura indica uma leitura seletiva e interessada óperas renascentistas. Nos romances pós-boom não há paródias
dos escritores latino-americanos nos discursos vários que dos gêneros massivos, há tomada, apoderamento, já que são
acompanharam o desenvolvimento urbano e as grandes mudanças gêneros tão formadores de identidade latino-americana quanto os
histórico-sócio-econômicas da época. romances históricos.
Chiampi cita quatro aspectos importantes do romance O quarto e último aspecto dessa literatura pós-boom é que
latino-americano contemporâneo. O primeiro é temporal: trata-se o sujeito pós-moderno (o escritor) recusa a posição totalizante e
de um fenômeno pós-boom, isto é, pós a “experiência moderna de autoritária que estabelece hierarquias de valor estético. Sua
renovação e ruptura dos anos 50 e 60 que teve no realismo função é tornar verossímil essa apropriação, transcodificar
maravilhoso o foco privilegiado de sua invenção poética” (1996, p. materiais, ora tomando seu discurso como próprio, ora indicando-
75). Enquanto a literatura do boom consistia numa hibridização o tal como é, despragmatizando-o, isto é, deslocando-os de seu
articulada, uma lógica binária entre o tradicional e o moderno, contexto original para serem inseridos em novo contexto, já que
dialogando com os mitos e questionando a identidade latino- essa recolocação por si só já altera a percepção dos códigos
americana, a literatura do pós-boom já não discute essa questão, originais, dissolvendo a oposição entre um objeto aurático e outro
e ultrapassa as lógicas binárias para declarar independência dos não aurático. Como exemplo, Chiampi cita o romance La
polos. O segundo aspecto é a inclusão da cultura de massas como importância de llamarse Daniel Santos, de Luis Rafael Sánchez, que
capital simbólico, como matéria de diálogo e material para se apropria da técnica de videoclips, com o deslocamento do
construção de narrativas. Seus discursos e saberes são
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código musical-brega do seu contexto para inseri-lo na obra formação da identidade latino-americana, e por conseguinte,
literária, a colocação de imagens rápidas também fora de seu material para ser explorado.
contexto em uma série de fragmentos, uma certa ausência de Por essas ideias é que é possível enxergar neste estudo de
história, e o também “deslocamento do código culto da literatura Chiampi o início de uma nova leitura da literatura publicada nas
para inseri-lo no enunciado melodramático do romance” (1996, p. últimas décadas, já que defende a autora que é a partir dos
81). romances pós-boom que mais do que uma exploração dos gêneros
Essas operações supõem também, segundo Chiampi, um massivos, houve uma contaminação destes na literatura. A partir
processo de repragmatização, no qual um discurso retirado de seu desta análise cruzada de diferentes linguagens, e de outros
contexto pragmático para ser colocado em outro adquire nova estudos críticos, é que é possível começar a esboçar novas
função. Quando o texto literário cita fragmentos de obras e definições acerca da literatura atual: uma literatura em trânsito,
autores canônicos como se fosse material espúrio, colocando-os que possui características literárias clássicas, mantém certas
em situações adversas ou na voz de personagens que provém do categorias da arte moderna, mas manifesta outras relações com as
universo popular-massivo, mais uma vez, faz com que os códigos convenções estéticas, com outras práticas artísticas e relativiza
se nivelem e se contaminem. Não há motivos, segundo a autora, limites antes instransponíveis, tais como realidade e ficção, arte e
portanto, para seguir preservando a diferença entre o erudito e o não arte. Além disso, busca produzir novos efeitos e experiências
popular: ambos já foram “contaminados” e não há a possibilidade sensíveis no leitor.
de voltarem ao estágio original. Essa “estratégia antropofágica de Essa nova literatura, que insiste em deslocar-se, e modifica
sobrevivência” (1996, p. 83) reivindica o direito da legalização do lentamente seu próprio estatuto, colocando em crise
melodrama, da cafonice, do sentimentalismo. Tal operação não determinados conceitos tradicionais é o objeto de estudo da crítica
deixa de ser crítica: a repragmatização garante um status literário literária composta por Chiampi, Ludmer e Garramuño, entre
ao que antes não era considerado arte, e com isso, prevê a chance outros. Chiampi vai citar autores como Luiz Ruffato e Mario
de produzir a catarse no leitor, tal qual qualquer outro texto Bellatin, que mesclam em suas obras literárias outras artes, como
clássico da literatura. a fotografia, o cinema, e as esculturas de Duchamp. Já Ludmer,
Chiampi finaliza seu texto defendendo que essas operações entre os que cita, está Cesar Aira, que dentre suas dezenas de
de apropriação para despragmatizar e repragmatizar a cultura de novelas, mescla notas, emails, letras de música, citações clássicas,
massas (das letras de bolero e tango, no conteúdo dos folhetins etc.; e Daniel Link, o qual possui uma obra que primeiro foi
radiais, etc.) no texto literário, resgata e legitima características da publicada em seu blog durante meses, e depois ganhou outro
identidade cultural, antes neutralizados. O resgatado não deixa de suporte que é o livro impresso - assim como antes ocorria com o
ser brega, kitsch, mas passa a ser também originário, parte da folhetim. Já Garramuño cita uma obra de Nuno Ramos onde ele
cria uma escultura, chamada Aranha, com vaselina, óleo, pelúcia,
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algodão e textos. Estes textos, que fazem parte da obra, e mostra ao leitor-espectador só aquilo que o produtor deseja e o
posteriormente foram publicados em um livro, que continha público espera: fortes emoções.
também outros textos, que foram utilizados depois em outras Ressalto que os elementos televisivos formam parte da
instalações do artista. Além de Nuno Ramos, Garramuño cita obras constituição da obra literária, mas não são seus únicos elementos
de Sylvia Molloy, Bernardo Carvalho, Tamara Kamenszain, etc., constitutivos, portanto, minha análise não esgota a obra, nem
para afirmar que o que especifica certas práticas artísticas mesmo determina que esta seja a melhor maneira de lê-la. O que
contemporâneas é justamente este não pertencimento a postulo aqui apenas aponta uma forma de compreender a obra
nenhuma arte específica. literária contemporânea que se enriquece com a contribuição de
Quer dizer, a literatura contemporânea é uma aposta ao análises de outras artes e outras mídias. Josefina Ludmer, em seu
heterogêneo elevado a incógnita potência. E isso não faz com que primeiro ensaio “Literaturas pós-autônomas”, instiga novas
a obra perca seu caráter de arte, seu valor estético e seu potencial leituras para a literatura contemporânea, mas sem propor nenhum
crítico. Pelo contrário, além do valor estético que segue método, só sugere que partamos dos mesmos materiais que elas
comprometido, a arte atual cria novas formas de experiência do se utilizam. Termino este panorama com um apelo de Gaudreault
sensível. Como diz Jacques Ranciére, é nessas novas assimilações e Jost, em A narrativa cinematográfica: “Muito ganharia a
entre o perceptível e o pensável, entre o objeto de arte e as narratologia literária se repensasse os resultados obtidos pela
distâncias que este cria com o que já é dado (o real), que se localiza narratologia cinematográfica para poder integrá-los em suas
o caráter crítico da arte contemporânea, onde o autor e o análises” (2009, p.190). O que pretendo aqui é começar a
espectador alcançam o mesmo nível de igualdade, e a literatura reconhecer justamente estas considerações; analisar a imagem na
pode se apropriar de outros suportes, e se preocupar com outros perspectiva textual e ler o texto visualmente. Só deste modo, será
efeitos, que não só os tradicionais da literatura. possível indagar as mudanças nas relações entre realidade, ficção
Meu exemplo para contribuição e análise é o autor e experiência, investigar o impacto que os procedimentos
argentino Sergio Bizzio que faz outro movimento: traz para sua televisivos causam na construção da narrativa e no narrador, além
obra literária outra mídia, a televisão; outro formato, que é o de avaliar as razões das novas configurações e efeitos esperados
audiovisual; outra especificidade, que é o reality show; e faz com no leitor/espectador de uma obra literária.
que o reality “Gran Hermano” (que corresponde ao Big Brother, no
Brasil) seja não só o principal tema de sua narrativa, mas também A imagem sensível
a forma. Ou seja, o livro é, em grande medida, um grande reality Na era da convergência, poderia se pensar que a televisão
show, um espetáculo que mistura ficção, índices da realidade e entraria em crise, já que o computador e o celular incorporaram a
edição da realidade, tal qual deve ser um reality show exibido na televisão, em seus aplicativos, sem perder suas funções essenciais,
televisão, que corta cenas, manipula diálogos, joga com os clichês, dissolvendo essas fronteiras que antes pareciam intransponíveis.
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No entanto, a televisão acabou por estender seu poder de manifestação artística e está exposto aos seus efeitos: concebem
comunicação, já que agora está presente em todos os lados, um nível de igualdade para gerar e estabelecer “una comunidad
inclusive nos meios de transporte, nos restaurantes, nas salas de antecipada de narradores y de traductores” (RANCIÈRE, 2010,
espera, e reforça sua presença quando alguém a vê pelo celular ou p.27), isto é, de artistas e espectadores.
pela tela do computador. Nos dias atuais, a televisão além de Segundo François Jost e Andres Gaudreault, em A narrativa
digital, ainda é interativa, isto é, cada espectador faz sua grade cinematográfica, um dos elementos que a narrativa
televisiva, o que facilita a abertura e o convite para novos cinematográfica trouxe para revolucionar o modo de ler e narrar o
espectadores, para outros públicos que antes não viam televisão, mundo foi a capacidade de mostrar e representar ao mesmo
porque agora pode contar com uma programação mais tempo. Isso se deve a certas características presentes na
diversificada e personalizada. O telespectador é autônomo, mas ao linguagem cinematográfica, que complexificaram a narrativa
mesmo tempo, segundo Jost, “não perderá o gosto de ser literária, já que o cinema se utiliza das matérias de expressão
surpreendido por um espetáculo que ele não esperava, literária (narrador, tempo, espaço, ponto de vista) para articular
encontrado no simples gesto de acender a televisão” (JOST, 2010, com especificidades do audiovisual (relação entre palavra e
p.58). imagem, sons e vozes, gestos e expressões dos atores, etc.). Em
Jacques Rancière fala do espectador emancipado, ativo; e outras palavras, aquilo que é imagem e som, que é mostrado ao
pensa não só nesse espectador da televisão, mas também do espectador se articula com aquilo que é verbal, representado
teatro, do cinema, da performance e da literatura. Segundo o visualmente no cinema, que num processo de montagem, no qual
autor, este é o novo lugar do espectador, que está num mesmo o espectador não tem acesso, dá forma a meganarrativa, que é o
patamar de competência e possivelmente possui muitas das filme.
referências que o artista também tem. É claro que esse espectador Mostrar não é o mesmo que narrar, e por isso, segundo os
é uma imagem de espectador ideal, de certa medida: aquele que autores, uma imagem mostra, mas não narra nada. É necessária
consegue perceber esses movimentos dissolventes de uma história, uma sequência de planos, de acontecimentos, isto é,
especificidades entre as artes, entre os meios de comunicação, e fatores de contexto, para a imagem “dizer” algo. Quer dizer, um
competências para “intercambiar sus lugares y poderes” (2010, filme pode mostrar ações, sem nada dizer, como um filme dos
p.26). É claro que há níveis de entendimento, de recepção e irmãos Lumière, que só tinham a pretensão de mostrar um pedaço
interpretação. Mas já fez Ludmer colocando seus textos na da realidade, como a saída dos operários da fábrica, ou a chegada
internet, abertos a qualquer leitura, e faz o artista que expõe sua do trem à estação, sem qualquer narrativa1.

1
Claro que essa impressão é enganosa, já que “sem uma mediação prévia,
qualquer que seja, não haveria filme e não veríamos nenhum acontecimento”
(GAUDREAULT; JOST, 2009, p.57).
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Narrar cinematograficamente pressupõe além de uma e o mundo fictício diminuíram, ou melhor dito, cada vez entre
organização na “mostração” (no fazer ver) das imagens esses polos há mais porosidade, e inclusive nos programas mais
(fotogramas) ― o plano ―, uma “narração”, quer dizer, uma ancorados na realidade, como é o caso do telejornal, estes já
articulação desses planos ― a montagem ―. Isto é, é preciso filmar apresentam procedimentos retirados da ficção, como a
várias imagens e depois uni-las, organizadamente, para construir dramatização, a adoção de um ponto de vista para intensificar o
uma narrativa. Além de uma eleição de luz, de áudio, e de foco, já real, com uma determinada entoação, com o apelo a entrevistas,
que a câmera, sua posição e movimentos, podem interferir e a testemunhos, com imagens de câmeras não profissionais, etc.
modificar a percepção de uma história; para gravar uma imagem Além disso, a ludicidade também está disposta nas narrativas
se pressupõe que estes procedimentos se correlacionem com as destes três tipos de mundos e nos inúmeros programas televisivos.
instâncias necessárias para produzir uma narração: uma trama, O que fará descobrir em qual mundo, como afirma Jost, tal
diálogos, sequência de acontecimentos, composição cênica, programa está situado, depende de seu objetivo fundamental.
encenação, etc. No mundo real, Jost afirma que as narrativas, presentes em
Ferramentas para criar é o que não falta: os dêiticos da todos os programas de televisão, se apoiam no sensível, ou seja,
literatura, por exemplo, além de poderem ser transpostos naquilo que é possível compreender, porque ele está presente no
verbalmente, na fala de um personagem, também podem ser mundo físico em que vive o espectador, “qualquer que seja a ideia
transpassados por uma série de artifícios, como o tremido da que se faça desse mundo” (JOST, 2010, p. 62). Estes programas
câmera, o olhar fixo do ator diretamente para a câmera, a visam cumprir uma das missões da televisão, que é informar,
focalização no primeiro plano, desfocando o ambiente, o abaixar difundir notícias, imagens e sons, com a maior transparência
das câmeras para o nível dos olhos, etc. Quer dizer, a narratologia possível, isto é, com um grau de autenticidade mais próximo da
cinematográfica apaziguou qualquer fronteira, levando em realidade. Essas narrativas reafirmam uma relação tangencial
consideração as mídias disponíveis, para poder trabalhar com os entre a história real e a apresentada, com índices que podem ser:
procedimentos que ao diretor lhe parecesse mais adequados. a imagem ao vivo, uma entrevista em tempo real, ou até mesmo
François Jost, avançando mais sobre o tema e aumentando um depoimento de alguém anônimo, com a voz mudada, mas que
o campo da narratologia, partiu para o universo televisivo, e se diz testemunha de um evento. Por esse detalhe, é que Jost, ao
investiga em Compreender a televisão, como essas narrativas na tratar do mundo real transmitido na televisão, deixa evidente que
TV se dividem em três mundos: o da realidade, o da ficção e o a acessibilidade ao real nem sempre é real e total, afinal de contas,
lúdico. não há garantia para o espectador que essa testemunha seja
Uma emissão televisiva que comporta uma ou mais verdadeiramente testemunha, ou que as entrevistas não foram
narrativas dentro de si pode se referir à realidade ou à ficção, sob ensaiadas, ou que as imagens não foram manipuladas, ao menos
vários graus. Atualmente, esses graus que separam o mundo real
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em parte. Há um contrato de fidedignidade que a emissora e o regras e limitações. O mundo do jogo pode se valer de papeis
programa transmite e o público aceita. predefinidos, ou contar com pessoas ‘reais’; podem ter um roteiro
Já no mundo fictício, as narrativas também precisam ter estipulado de ações e consequências, ou simplesmente jogar uma
coerência e obedecer a certas regras e estruturas da narrativa tarefa ou situação e se desenvolver a partir da postura e reação
(início, meio, fim, um narrador, etc.), mas dentro de um mundo dos participantes a essa condição, etc.
inventado. Uma vez aceito este mundo, o espectador acredita em É neste terceiro mundo, que o reality show está inserido, e
seus fenômenos, por mais que sejam inverossímeis no mundo real. dentro dele, o formato do Big Brother. O reality show foi um
A ligação com o real está suspensa, ainda que restaure um ponto gênero televisivo produzido inicialmente nos Estados Unidos, e
de vista verossímil com o mundo real, e introduza elementos reais transportado, nos anos 90 para França e outros países na Europa,
(como nomes de personagens, fatos históricos, espaços que e trazia este caráter de realidade, sem perder o do espetáculo, o
existam de fato). A operação da ficção condiciona que o mundo entretenimento da exibição. Dentro da categoria de reality show
narrado não pré-exista totalmente antes da história, estão os formatos de “Quem quer ser um milionário”, “Survivor”,
independente da semelhança; e que os personagens sejam “Big Brother”, “Popstars”, etc. Mas há, hoje em dia, reality shows
pessoas atuando, isto é, personagens representando. Outra culinários, esportivos, musicais, corporativos; na selva, na
operação que aponta um índice de ficção é o diálogo construído, passarela, na fazenda; para resolver problemas com o marido, com
roteirizado e produzido. “Esse é o paradoxo da ficção: de um lado, os filhos, com a casa, com o próprio peso, com o guarda-roupa, etc.
ela parasita o mundo real, não podendo passar sem ele; de outro, O formato do programa Big Brother foi estruturado por
ela não lhe deve nada” (2010, p. 116). uma empresa holandesa chamada Endemol, que patenteou essa
Já o terceiro mundo onde as narrativas televisivas podem forma, um real-life docusoaps, denominação proposta pela
se inserir é o mundo lúdico, onde as narrativas quebram as Endemol para lançar o reality. Criar um formato televisivo significa
fronteiras entre o real e o ficcional, apresentando elementos e desenvolver “uma série de parâmetros ou de tratos estruturais,
procedimentos em suas construções que são retirados destes dois que permitam aos diferentes sujeitos, envolvidos na concepção e
mundos, mas arquitetando com elementos próprios para formar produção, refazer indefinidamente um produto reprodutível”
parte de um mundo do jogo, da interação. Um traço determinante (JOST, 2010, p.77). A Endemol direcionava que este formato teria
deste mundo, segundo Jost, é que qualquer jogo se baseia num que seguir uma série de especificações: comportar emissões ao
conjunto de regras que é preciso cumpri-las, sob a pena de ser vivo, e outras editadas, possuir um cenário definido – uma casa –,
desclassificado de parte dele, ou ser excluído definitivamente. com câmeras visíveis e outras escondidas, partir de um número
Essas regras devem ser consideradas justas pelo telespectador. mínimo de participantes; além de grandes regras e situações,
Outra característica fundamental é que o jogo visa um ganho, um como a nomeação de participantes para deixar o programa, provas
prêmio, e é pela obtenção dele que participantes se sujeitam às de imunidade, a participação do telespectador no andamento do
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jogo, o desempenho de tarefas cotidianas, e outras para conseguir Um fato curioso e que interessa saber para iniciar a análise
comida, regalias, além de uma premiação em dinheiro para o do romance de Bizzio é que este programa foi campeão de
vencedor, que será aquele que permanecer na casa até o fim, e por audiência nas primeiras edições em praticamente todos os países
último, ganhar mais votos do público, etc. Mas em geral, o formato que o compraram e o adaptaram, começando pela Alemanha,
é permeável a mudanças, e se adapta a publicidade criada em depois Inglaterra, em seguida da Espanha, Estados Unidos, e assim
torno dele, à proposta da emissora, ao horário de transmissão e viralmente até se tornar conhecido por qualquer um que tinha ou
faixa etária incluída, e principalmente, à cultural local, como afirma não o costume de ver televisão. Depois, caiu no gosto do mundo
Jost. inteiro e todos os países da Europa e quase todos os da América,
Sob o regime de visibilidade total e vigilância constante, em além de vários da Ásia, criaram o seu próprio Big Brother,
geral, intrigas, discussões, altos índices de libido e sexo são os utilizando o primeiro como formato e adaptando-o. Esse sucesso
principais termômetros de audiência deste tipo de programa, no do reality show se deve, segundo Gloria Saló, à desaparição ou, ao
qual há a eliminação de certas regras sociais e morais, e há outras, menos, à permeabilidade que o mundo privado passou a ter com
ditadas pelos produtores e apresentador do programa que o mundo público. Essa dissolução questionável e muitas vezes
precisam ser cumpridas, sob o risco de punições também aceitável entre as esferas públicas e privadas nunca mais deixou
estabelecidas por eles. Os participantes são eleitos para entrar na de ser tema na TV.
casa por testes feitos em várias partes do país, e em geral, são Ver sin ser visto, impunemente desde el salón de tu casa y
selecionados jovens, de classe média, dispostos a se tornarem sabiendo que no vas a ser descubierto. Nadie dice que ve
atores, ou seja, ter sua privacidade perdida e sua história de vida Gran Hermano, o muy pocos, pero los índices de audiencia
descoberta pela mídia, além de representar ou ser manipulado, dicen lo contrario. Lógico, ¿quién admitiría que ha mirado
por la cerradura del vecino o que ha escuchado a través de
caso seja necessário. Migliorin, citado por Madalozzo, afirma que
la pared?. (SALÓ, 2013, p. 114)
os participantes de um reality show sabem que “suas vidas valem
dinheiro, dentro e fora da casa, como forma de ganhar o prêmio, No entanto, não se trata mais do voyeurismo clássico, de
ou como forma de capitalizar a fama” (2009, p. 54). olhar o outro às escondidas; se trata aqui de um espectador que
Para Denise Araujo, os reality shows são considerados elege o que quer ver, o que quer espiar, votando; portanto, a
gêneros híbridos da televisão. Isso porque utilizam de elementos realidade é escolhida pelo público. O público, mobilizado como juiz
factuais, como em um documentário; mas também se abastece de (BAUDRILLARD, 2004, p. 22), decide por ver o escândalo, a cena de
recursos ficcionais e melodramáticos, como o uso de trilha sonora, intriga, a traição. A banalidade cotidiana não interessa, esta ele
o congelamento de imagens e efeito de close-up (focalização tem em casa, o espelho da realidade não dá audiência, mas sim a
fechada) em momentos decisivos, como nas telenovelas e outros banalidade exagerada, espetacularizada; não se trata somente de
dispositivos ficcionais televisivos. tornar visível o mundo privado dos outros, mas de converter o
público em “deuses”, detentor do azar e da sorte de cada
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participante, como a produção do programa assim faz parecer: que próprio narrador (que além de câmera, editor, é também
o público traça os destinos de cada um, votando para que este apresentador) a essa estrutura do reality, à mídia televisiva, às
fique ou aquele saia. É mais que ser cúmplice da vida do outro, é ações terroristas, ao que se passa do lado de fora da emissora, ao
ter poder sobre a vida dele, tornando o público onipotente, ainda público espectador em geral, e, inclusive, à “realidade” que é
que este saiba que, na realidade, não o é; tudo não passa de um construída pelos meios. O livro termina com o narrador explicando
contrato, de um jogo. o que aconteceu com os terroristas, com o público espectador que
assistiu ao programa, e com cada um dos participantes do
O grão de Realidad programa; dando particular atenção a Robin, o protagonista do
E o contrato com o público é justamente o que abre o Gran Hermano, forte candidato a vencer o programa se ele não
romance Realidad de Sergio Bizzio. O narrador inicia assim: “Si lo tivesse sido interrompido pela ação terrorista e a intervenção da
que sigue va a leerse como una novela, entonces conviene decir ya polícia.
mismo que los terroristas entraron al canal con un lugar común: a O que é importante resgatar e que se analisará a partir
sangre y fuego”. (2009, p. 7) A partir daí, do contrato assinado, daqui é que o reality show, este formato explicado anteriormente,
“isto é um romance”, o narrador começa a descrição de como se surge na obra não só como material, tema, cenário onde a trama
deu a invasão do grupo terrorista aos estúdios da emissora vai acontecer, mas também como forma, já que o narrador utiliza
argentina. das características e ferramentas do formato televisivo para a
Antes de se aprofundar na análise do narrador, resumo a construção da narrativa, para assim como o programa, captar a
trama. No romance Realidad, publicado em 2009, pela editora atenção e causar emoção do leitor/espectador da obra.
Mondadori, o leitor se depara com a narração de um ataque A narração, como uma câmera, percorre os estúdios, ora
terrorista islâmico a uma emissora de televisão argentina, na qual junto com um dos terroristas, e este é o foco, independente do
em seus estúdios está sendo gravada a versão argentina do reality que acontece ao redor dele - “Entró al bar, salió, caminó por los
show Big Brother, o Gran Hermano. O narrador apresenta não só pasillos, subió por uma escalera, bajó por otras, recorrió los
as ações e pensamentos dos terroristas nos corredores e outros alrededores de los estudios de grabación...” (p.9) – ora o cenário
espaços do canal, como também o que acontece dentro da casa completo, o plano aberto, onde o que importa é exibir o
onde estão os participantes do reality, alheios a tudo o que ocorre panorama:
fora do confinamento: o que acontece com seus familiares do lado Sailab apuntaba com su metralladora a dos hombres
de fora, além da movimentação policial, da negociação dos sentados em sillas giratórias frente a uma consola. Los
agentes de inteligência com os terroristas, e também das emoções hombres estaban pálidos y mantenían los brazos em alto,
do público em geral. Outro detalhe incluído nestas narrações, que um poco exageradamente. Junto a ellos había una chica
vestida de negro, que permanecía inmóvil, de pie, con una
mais bem parecem cenas gravadas de uma câmera, é a crítica do
hoja de papel en una mano y una lapicera en la otra;
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apretaba los labios, pero daba la impresión de tener la boca Chaco, sin resistencia de su parte, aunque ahora vivía en
muy abierta. (BIZZIO, 2009, p. 13) Capital). No se hablaba más que de él, adentro y afuera de
la casa. Tenía veintidós años y, como los demás, ninguna
Em Realidad, o programa Gran Hermano é descrito pelo
habilidad. No sabía nada y no sabía hacer nada. (BIZZIO,
olhar de um dos terroristas: 2009, p. 18)
Ommar les echó un vistazo a los monitores. En uno de ellos
vio a un chico y a una chica en una cama, semidesnudos, Com essa descrição, já é possível perceber que o narrador
besándose en blanco y negro; en otro había tres chicos más é irônico, assim como é também é o apresentador desses
– dos mujeres y un varón – sentados a una mesa: comían programas de reality show. Ele é o único que ao falar com o
algo que agarraban de una fuente con los dedos y parecían público, sem que os participantes escutem, pode dar alguma
desganados o agotados, todo a color. Los otros monitores opinião sutil, quanto ao que acha das atitudes de um e de outro, e
mostraban un jardín con pileta de natación, una ducha, un ao falar com os participantes, joga umas indiretas quanto à sua
pasillo, un gimnasio, un sector del living… (2009, p. 13-14)
opinião para ver se eles se dão conta. Este apresentador, no
O reality show aparece tal qual o espectador o assiste na romance, é o personagem de Mario Lago, que conversa com os
TV. Parece, mais bem, uma reprodução da realidade, isto é, do jogo participantes pelo confessionário. É por ele que Ommar, o
que qualquer um já conhece. Isto é, a casa é descrita como uma terrorista, dita as ordens e este as repassa aos participantes pelo
casa grande, com piscina, sala de ginástica, cozinha, pátio, salão confessionário. O narrador na trama explica superficialmente ao
onde os participantes conversam em grupo com o apresentador, leitor o funcionamento do jogo e das tarefas, isso porque supõe
banheiro, quartos e a salinha onde os participantes de modo em diversos momentos, não só que o leitor já conhece o programa
privado conversam com o apresentador (via câmera) e nomeiam o e as regras, e que compactua, portanto, com o narrador das críticas
participante que querem que deixe o confinamento. quanto ao programa e a futilidade das pessoas que dele
Os participantes também são como qualquer participante participam, mas que também verá pelas imagens transmitidas, e
escolhido pelos produtores para se integrar a este jogo. São típicos entenderá sozinho, como este funciona. No romance, é possível
jovens de classe média, com corpos esculturais e quase nada de pensar nesta problematização do lugar do leitor, haja vista que ao
atividade cerebral. O objetivo deles é claro desde o primeiro dia: tratar do reality show, e expor seu funcionamento e referências
ser famoso, e se possível ganhar um prêmio em dinheiro. O jogo, deles, o narrador traz à história as mesmas referências que um
no romance, já está nas suas últimas semanas, e portanto, há leitor comum pode ter, este, que é espectador do presente, pelos
poucos participantes na casa, somente cinco. O narrador os meios atuais. Segundo Rancière (2010), como já comentado, é esta
descreve assim: a proposta da nova arte: reconfigurar a divisão do sensível sobre a
Uno de los participantes, Robin, había seducido y qual o consenso é simulado, reinstaurar competências iguais entre
enamorado a los demás, a Paula (Pau), a Romina (Romi), a o artista e o espectador, e reedificar o espaço público, antes
Gabriela (Gaby) y a Néstor (un formoseño al que le llamaban
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dividido. O narrador de Realidad faz inúmeras referências aos dos personagens e narra histórias de seu passado, com detalhes
meios de comunicação em suas obras, indicando o real que está íntimos e depoimentos de pessoas envolvidas, como o que pensa
detrás da narrativa ficcional (ainda que realista). Cita filmes como a mãe ou algum conhecido. A escolha da construção minuciosa dos
“Apocalypsis Now” e “Querida, encogí a los niños”, artistas personagens lhes dá mais que verossimilhança, lhes dá um efeito
famosos como John Travolta, Marlon Brando e Rod Stewart, e de real, para a trama e para o jogo televisivo. Quer dizer, para que
canais de TV, como TV Globo, BBC, CNN, RAI, DW, etc. o público se identifique com elas, por mais tontas que pareçam, o
É interessante pensar, portanto, que a realidade que vemos narrador precisa evidenciar outros detalhes: que não são pessoas
através da televisão, e por consequência, através desta obra, não vindas do nada, elas possuem biografia e segredos como qualquer
deixa de ser uma amostra do real, seu índice somente, já que a um, (e o narrador sabe de todos eles). Além dos pormenores
realidade sempre é exibida reduzida, defasada, haja vista que narrados, o próprio jogo, no livro, estimula que os participantes
precisa se encaixar na duração de um programa, de uma vinheta, revelem confidências voluntariamente, como é o caso de Robin,
de uma notícia. Cabe aos editores e produtores dos programas que expõe frente à câmera seu drama por ter um filho e não poder
televisivos abreviar a realidade, mondando-a, e recortando-a para vê-lo (e o narrador soma a esta confissão detalhes mais íntimos,
o público espectador. As imagens do real são uma síntese do real. como a declaração dada por seu sogro), ou como é o caso de
Portanto, basear-se somente por elas não é possível para dar conta Chaco, outro finalista do programa, que nunca pode revelar sua
de exibir a realidade em sua totalidade. Dependendo do programa, homossexualidade para a família e a escancara na televisão diante
por exemplo, um reality show, se exibirá uma mostra do que vende de milhares de expectadores. Como era de se esperar, nessas
mais e dá mais audiência, de acordo com os publicitários e os noites de confissões, a audiência atingia níveis desmesuradas, mas
diretivos acordados e previstos desde a criação do programa. No “Normalmente el programa tenía unos 30 puntos de rating, es
caso do Gran Hermano, diz Jost, “as ações significativas são decir que alrededor de seis millones de personas seguían cada
essencialmente atos de fala: que se goste ou que se deteste, que noche las estrechísimas cotidianidades de sus héroes”. (2009, p.
se esconda o jogo pelos silêncios ou que se fale seu coming out 93)
(para confessar sua homossexualidade, por exemplo), tudo passa O narrador sabe que seu “programa” não dá conta da
pelas palavras” (2010). Isso significa que, ainda que as festas, realidade por completo, por isso, no epílogo diz:
confissões e brigas representam só dez por cento do cotidiano dos Si lo que antecede fue leído como una novela, entonces no
participantes, e no restante das vinte e quatro horas os hay por qué decir lo que pasó con cada uno de sus
participantes tenham ficado calmos e até apáticos, serão esses dez personajes (solo la realidad es capaz de contarlo todo). Pero
minutos de conduta que irão ao ar e transmitirá aos espectadores el caso es que lo narrado hasta aquí sucedió: la muerte de
Sailab – el primero en caer – fue real (giró sin soltar la
o caráter de cada jogador, serão esses dez minutos o reflexo do
metralleta y recibió una salva de plomo en el pecho, en la
visível. O narrador, em vários momentos da trama, faz descrições
cara, en un hombro, en una pierna). Fue real que los grupos
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especiales se lanzaron a un asalto ‘en bruto’, y que la acción assista. Dessa forma, portanto, mesmo no meio de um diálogo, ele
les ‘salió sutil’ por las dimensiones del canal y por el reducido tem o poder de cortar a exibição da imagem e partir para outra
número de terroristas que lo habían tomado. Dicho de otra câmera, isto é, para outra cena, com outros participantes da
manera: entraron dispuestos a hacer un desastre, pero história, para “reforçar a convicção do telespectador de que ele
solamente asesinaron. (2009, p. 207)
está em toda a parte ao mesmo tempo” (JOST, 2010, p. 48). Este
É sua forma de dizer que nem a novela nem nenhum outro artifício narrativo, como um ato de câmera de planos curtos, é
meio será capaz de representar o real, porque este é perceptível na trama pela quantidade de interrupções de diálogos,
irrepresentável. Por isso, antes de contar o último desfecho, que desvios no meio de uma descrição, e frases que mudam de repente
foi o que aconteceu com Robin e seu filho, o narrador confessa: o espaço narrado, como “En ese momento, a siete barrios de
Lo que sigue es intranscendental y literal, pero también distancia, el padre de Chaco apagó el televisor...” (2009, p. 62)
arbitrario: podría narrarse cualquier otra cosa; lo real no sendo que antes o narrador relatava uma conversa de Diego e
tiene fin, excepto si es leído como novela, con lo cual su Cristina.
conclusión tiene que ver más que nada con el ritmo, con el Outro exemplo está quando o narrador está expondo uma
gusto, con el espacio, con la forma o el capricho, como en un
conversa de Mario Lago com o terrorista e no meio dela, diz
trip de realidad. (2009, p. 214)
“Mientras tanto, en sus casas, los gerentes de todas las áreas...”
Não há forma de transmitir a realidade tal como ela foi ou (p. 75). Ou seja, o narrador deixa de exibir uma realidade para
é. Se uma forma é encontrada é porque já não é real, é ficção, é mostrar outra.
novela, é outra coisa, porque já é necessária uma série de eleições Outro exemplo está quando o narrador descreve o que está
para contá-la: ritmo, espaço, foco narrativo. E assim o narrador acontecendo minuto a minuto mostrando todas as “câmeras”
escancara o contrato ficcional. Assim como o reality show possíveis que o romance-programa pode ter: dentro da casa
televisivo, que possui várias câmeras espalhadas pela casa, o montada, nos corredores da emissora, no saguão dos reféns,
próprio narrador constrói um espetáculo onde filma vários dentro da câmera de edição do programa, na sala dos policiais, no
ambientes e circunstâncias, e como ele é uma câmera, seu papel restaurante onde estão os pais dos finalistas, na casa do filho de
se limita a mostrar a cena, sem crítica ou julgamento. Uma câmera Robin, etc.
objetiva, que focaliza e grava num plano aberto ou fechado tal Un minuto después, en el minuto dieciséis, retiró el brazo y
cena, isto é, mostra. Com a gravação de várias câmeras, o narrador se alejó en silencio. En el minuto quince, aprovechando que
já como editor, compõe um cenário para o público, isto é narra, el tema terminaba, Mario Lago pidió ir al baño. En el minuto
como que dizendo “isto é o que está acontecendo”, e aí conforme catorce se produjeron dos vómitos simultáneos: uno en el
os acontecimentos se tornam mais essenciais para a narrativa, o bar del canal (la maquilladora que insistía con la histeria) y
otro a kilómetros de allí (en boca de uno de los ex
narrador volta a cada uma delas para mostrar algum detalhe mais,
participantes del programa)… (2009, p. 172-173).
mas só pelo tempo que julga necessário que o espectador as
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Este recurso permite não só ao narrador, mas também ao adolescente clase baja embaraza a una adolescente de clase alta.
leitor, o público, estar em vários lugares diferentes, diminuindo as Se quieren, o podrían quererse, pero todo lo demás es imposible”.
distâncias e lhe dando uma espécie de condição de onipresente, (p.20) Essa montagem de um discurso literário ficcional que trata
tal como o espectador de reality show televisivo. de outro discurso (televisivo, lúdico; o reality) que cita outro
Outro recurso interessante tomado destes e outros discurso (televisivo, dramático; a novela) numa espécie de
formatos televisivos que o narrador utiliza é a pausa da narração interação mediática é o que proporciona um diálogo com o público
para uma série de perguntas retóricas destinadas ao espectador, leitor que conhece todos esses meios, além dos clichês, e entende
para criar um suspense e um efeito de expectativa na sequência da do que o narrador está falando, descolando assim, o espectador
história. Este artifício também está muito presente em programas do pacto de ficção para refletir sobre os suportes e artifícios
jornalísticos que querem para provocar emoções como raiva, destes. Esta multiplicidade de estruturas, conforme Madalozzo, é
choque ou angústia e captar a atenção do espectador, além de o que convoca o espectador passivo a tornar-se um espectador
intensificar o efeito de realidade para os fatos. Exemplos na trama pensativo e crítico.
são: “¿Qué significaba todo eso? ¿Qué planeaba Robin? ¿Adónde Concluo, assim, minha exposição sobre como esta obra
iba?” (p.30) Ou ainda em: “¿Quién podía, en un momento así, por literária consegue trabalhar com tantas especificidades televisivas,
más inteligente (o arrogante) que fuera, no sentir que su alma era sem deixar de ser arte, sem deixar de ser crítica, e trabalhando nela
igual a la de Chaco, que lo había sido, o que ya lo sería? ¿Quién a problemática da realidade e da ficção, da irrepresentabilidade do
podía, en un momento así, cambiar de canal?” (p. 117). real, e conseguindo, ao mesmo tempo, entreter e divertir o leitor
Quanto à crítica que o próprio programa traz de si, isto com um espetáculo tão banal do cotidiano.
também é um velho artifício do formato televisivo. O apresentador
do programa, antes de mostrar uma cena gravada do dia, ele Referências
introduz a cena, assim como faz um apresentador de telejornal, ARAUJO, Denise Correa. Imagens revisitadas: ensaios sobre a
para apresentar ao público aquilo que ele vai assistir. No entanto, estética da hipervenção. Porto Alegre: Sulina, 2007.
como no Gran Hermano passado na televisão, no romance, o
narrador-apresentador também dispõe da ironia ao tratar dos BAUDRILLARD, Jean. Telemorfose. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.
participantes, fazendo as críticas que crê necessária até para
manipular o público que assiste, fazendo com que um participante BIZZIO, Sergio. Realidad. Buenos Aires: Mondadori, 2009.
chame mais atenção, ou fazendo outro perder a preferência do
público, etc. O narrador ao descrever Robin, um dos finalistas, por CHIAMPI, Irlemar. O romance latino-americano do pós-boom se
exemplo, comenta: “La historia de Robin tenía todos los apropria dos gêneros da cultura de massas. Revista Brasileira de
condimentos del drama sentimental. O mejor: de la telenovela. Un Literatura Comparada. v. 3. nº 3, p.75-85, 1996.
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literaturas-posautonomas-iii/>. Acesso em: 08 maio 2014.
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TRADUZINDO O INCONSCIENTE SURREALISTA LATINO- aspirava traduzir o inconsciente nos seus textos, criando poemas
AMERICANO - PECULIARIDADES DO POEMA SURREALISTA de linguagem onírica.
Elys Regina Zils A descoberta do inconsciente é creditada a Freud e seu
PGET/UFSC livro A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1900. Freud
aborda os processos inconscientes envolvidos nos sonhos e traz
Quando a maioria das pessoas leigas pensa em tradução, um método de acesso ao inconsciente por meio de hipnose e da
imaginam uma atividade mecânica para qual basta saber duas técnica de associação livre, que são técnicas resgatadas pelos
línguas. Nada mais longe da realidade, principalmente tratando-se surrealistas em busca da linguagem. Pois, os surrealistas
de tradução de poesia. A tradução literária é uma atividade onde, interessavam-se pelo sonho enquanto linguagem onírica.
segundo Rónai, o papel do tradutor é “singularmente mais Justifica-se assim a investigação relacionada à questão das
importante; perde o que tinha de mecânico e se transforma numa modificações nos processos da mente envolvidos nos sonhos.
atividade seletiva e reflexiva” (RÓNAI, 2012, p.22). Em a Poética Segundo Freud, os sonhos “pensam predominantemente em
do traduzir, Meschonnic afirma que “a poética só se desenvolve imagens visuais” (FREUD, 1900a, p.56). Os sonhos tendem à
em procedimento de descoberta se ela se liga ao conjunto da representação pictórica. Como expressa Freud:
teoria, da literatura e da linguagem. Se ela própria torna-se a teoria um pensamento onírico não é utilizável enquanto expresso
da linguagem. Aqui, a poética na tradução desempenha um papel em forma abstrata, mas, uma vez que tenha sido
maior como poética experimental” (MESCHONNIC, 2010, p. 3). E, transformado em linguagem pictórica, os contrastes e
mais adiante, ele afirma que “a poética é uma teoria crítica no identificações do tipo que o trabalho do sonho requer, e
que ele cria quando já não estão presentes, podem ser
sentido em que ela se encontra como teoria de conjunto da
estabelecidos com mais facilidade do que antes entre a
linguagem, da história, do sujeito e da sociedade” pois o discurso
nova forma de expressão e o restante do material
aqui está assentado em todos esses aspectos, e “se funda como subjacente ao sonho (FREUD, 1900b, p.02).
teoria da historicidade radical da linguagem” (MESCHONNIC, 2010,
p. 5). Vai além da estratégia tradutória, cria uma “poética-critica” Freud atribui essa característica ao fato de que “em todas as
que nos leva a explorar as diferenças linguísticas, culturais e línguas, os termos concretos, em decorrência da história de seu
históricas. Partimos dessa concepção para abordar a historicidade desenvolvimento, são mais ricos em associações do que os
do nosso assunto. conceituais” (FREUD, 1900b, p.03). E o surrealismo se nutre nessas
Como a minha proposta é discutir o tema da tradução de imagens oníricas para sua criação literária de modo semelhante ao
poemas e suas particularidades, especificamente dos poemas processo de construção do sonho.
surrealistas, faz-se necessário refletirmos como o surrealismo Nos sonhos, a imaginação se vê destituída do poder da
linguagem conceitual. É obrigada a retratar o que tem a
dizer de forma pictórica e, como não há conceitos que
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exerçam uma influência atenuante, faz pleno e poderoso qualquer influência racional. Para o psicanalista vienense, a
uso da forma pictórica. Assim, por mais clara que seja sua estratégia da associação livre era um instrumento terapêutico e
linguagem, ela é difusa, desajeitada e canhestra. A clareza mesmo assim com ressalvas. Quando Freud pedia aos seus
de sua linguagem sofre, particularmente, pelo fato de ela se pacientes que falassem tudo que lhes viesse à cabeça sem
mostrar avessa a representar um objeto por sua imagem
restrições, sabia que isto não aconteceria tão simplesmente e que
própria, preferindo alguma imagem estranha que expresse
o inconsciente se manifestaria mais claramente onde o discurso do
apenas a imagem específica dos atributos do objeto que ela
busca representar. Temos aqui a “atividade simbolizadora” paciente se traísse, como no chiste, na hesitação, na inibição...
da imaginação […] Outro ponto importantíssimo é que a (MACHADO, 2003).
imaginação onírica jamais retrata as coisas por completo, Breton e Freud trocaram cartas em 1937. Quando
mas apenas esquematicamente e, mesmo assim, da forma convidado por Breton a participar de uma coletânea de textos
mais rústica (FREUD, 1900a, p.85). sobre o sonho, Freud contestou que não lhe interessava pois, para
ele, “o sonho só apresentava interesse enquanto conteúdo
Breton interessa-se sobre o método da associação livre
manifesto que rementia a um conteúdo latente” (WILLER, 1985,
proposto por Freud na tentativa de escapar de qualquer
p.20). Por outro lado, Breton vem propor o interesse no sonho
julgamento moral ou estético e conseguir a almejada escrita
voltado enquanto linguagem, sem preocupação analítica
automática. Essa associação livre de ideias torna-se um meio para
enquanto significante e sem interesse em significados. Breton
recuperar o material recalcado pela censura. No primeiro
busca a suprarealidade por essa via.
Manifesto, Breton se refere a teoria de Freud:
Como, naquela época, eu ainda andava muito interessado Breton explica mais profundamente sobre a escrita
em Freud e familiarizado com os seus métodos de exame, automática na seguinte citação:
que tivera oportunidade de empregar em alguns pacientes Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado
durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o que se no mais favorável possível para concentração do seu
tenta obter deles, vale dizer, um monólogo enunciado o espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo,
mais depressa possível, sobre o qual o espírito crítico de ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense que a
quem o faz se abstém de emitir qualquer juízo, que não se literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo.
atrapalha com nenhuma inibição e corresponde, tanto Escreva depressa sem assunto preconcebido, bastante
quanto possível, ao pensamento falado (BRETON, 1985, depressa para não reprimir, e não fugir à tentação de ser
p.37). reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a
cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento
Breton jamais havia praticado psicanálise. A escrita consciente, pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil
automática e a associação livre de ideias são alvo de críticas no decidir sobre a frase seguinte; ela participa sem dúvida, a
sentido de que se questiona a possibilidade de um estado livre de um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra,
admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supõe
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um mínimo de percepção. Isto não lhe importa, aliás; é aí (parece-se a uma interminável suma de fragmentos); rompe com
que reside, em maior parte, o interesse do jogo surrealista. a linearidade e cria uma multiperspectiva (de ideias e imagens);
A verdade é que a pontuação se opõe, sem dúvida, à existe uma distorção espaço-temporal e, como nos sonhos, ocorre
continuidade absoluta do vazamento que nos interessa, se um trabalho de condensação em larga escala, “os sonhos são
bem que ela pareça tão necessária quanto a distribuição dos
curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e
nós numa corda vibrante. Continue enquanto lhe apraz.
riqueza dos pensamentos oníricos" (FREUD,1900a, p.237); o
Confie no carácter inesgotável do murmúrio [...] (BRETON,
1985, p. 63). deslocamento que se dá por influência de alguma censura ou
defesa. A linguagem surrealista também revaloriza os objetos
Em seu livro La búsqueda del comienzo, Octavio Paz (1974, descontextualizando-os para assim atribuir novos significados. Ao
p.84) aborda o que para ele são as dificuldades da escrita tirar os objetos de seu lugar comum cria-se uma imagem inusitada.
automática. Paz afirma que é muito difícil superar a vontade de Nos sonhos as imagens que os formam são um modo de subversão
não intervir causando uma grande tensão que poucos seriam da realidade vigente; assim como no procedimento surrealista, de
capazes de alcançar. Para ele, a escrita automática “es un método deslocar um objeto ordinário de seu mundo habitual, cria-se a
para alcanzar un estado de perfecta consciencia entre las cosas, el visão “absurda” com intenções subversivas de extinguir a
hombre y el lenguaje; si ese estado se alcanzase, consistiría en una realidade imposta.
abolición de la distancia entre lenguaje y las cosas y entre el Aspirando essa linguagem onírica os surrealistas criam
primero y el hombre. Pero esa distancia es la que engendra el poemas que quebram a coerência tradicional da linguagem
lenguaje; si la distancia desaparece, el lenguaje se evapora” (PAZ,
prosaica resultando em poemas de outra lógica, como em um
1974, p.85).
sonho. Segundo Meschonnic, “traduzir é um ato de linguagem”
Para Breton, a poesia é o vaso comunicante em uma
"continuidade absoluta do vazamento", construindo novos (MESCHONNIC, 2010, p.XXXXIV). Assim, a tradução além de
sentidos fruto do acaso, em "grupos de palavras que se sucedem" proporcionar o movimento entre línguas, também traz uma nova
exercendo "entre si a maior solidariedade"; e não compete ao visão de outras culturas. Mas como esse inconsciente surrealista
poeta "favorecer estas em detrimento daquelas" (BRETON, 1985, se traduz na literatura latino-americana?
p.66). Justifica-se assim a despreocupação com as rimas, não usava O surrealismo teve grande repercussão na literatura
pontuação, nem métrica, nem maiúsculas. Busca jogar com as hispano-americana, com presença marcante em países como
palavras. A escrita automática leva as palavras para outro patamar, México, Argentina, Chile e Peru. Evidencias de que o surrealismo
“é a aparência e a sonoridade de uma palavra o que determina a tocou nossa América são as produções, a partir de 1926, de
escolha de outra” (MACHADO, 2003, p. 25).
Enrique Molina, Aimé Césaire, Wilfredo Lam, Roberto Matta,
O surrealismo literário diferencia-se por algumas
Octavio Paz, César Moro e E.A. Westphalen, além de muitos outros
características comuns em sonhos: possui estrutura acumulativa
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artistas que nunca foram propriamente considerados surrealistas. Ao falar sobre as vanguardas latino-americanas, Jorge
Exemplos como esses provam que o movimento surrealista foi um Schwartz, em Utopias Americanas, afirma que o “admirável
dos de maior influência no continente. homem novo da vanguarda” projeta seu “imaginário no futuro”
Ainda que foram muitos os contatos com os franceses, o (SCHWARTZ, 2008, p.35). O novo “transforma-se em palavra de
surrealismo ganha diferentes tons ao brotar em solo americano. ordem dos ismos dos anos 1920” (SCHWARTZ, 2008, p.59). Esse,
Na América Latina assume-se o clima de ruptura das vanguardas, “novo” também se dá em um desejo de uma linguagem nova em
mas com intenções de renovar a literatura e a realidade. O um país novo. Esse novo é visto como uma pluralidade significativa
surrealismo latino-americano se deu mais como uma linguagem. por Rama:
Sua originalidade é fruto de uma grande diversidade cultural. Mais Surgem, em pontos estratégicos da América Latina, outras
falanges vanguardistas que se organizam em torno de
que explorar o sonho, o surrealismo germina de uma vontade de
manifestos, revistas, atos públicos escandalosos, para
buscar outra dimensão do real com uma linguagem poética. proclamar a vontade do novo. Esta palavra, ingenuamente
Segundo Barthes (2007), para que possa existir vanguarda, dignificada, constitui-se na senha com a qual se
a sociedade deve combinar duas condições históricas: uma arte reconhecem uns aos outros e com a qual se unificam,
reinante de natureza razoavelmente conformista, e um regime de porque ainda que esconda um conjunto de acepções
estrutura liberal; noutras palavras, é preciso que a provocação plurais, níveis díspares, associações caóticas, ela supera
encontre ao mesmo tempo sua razão e sua liberdade. Na América essa diversidade com o único dado seguro que no momento
hispânica a vanguarda encontrou um solo que precisava de suas se vislumbrava no horizonte artístico: a vontade de ser
sementes para trazer a renovação de sua linguagem e técnicas, seu diferente dos antecessores, a consciência prazerosamente
espírito questionador e crítico, e de certa forma se incorpora a assumida de ser novos, de nada dever aos antepassados
(embora as dívidas se acumulassem em Paris) e dispor a seu
tradição reformulando-a.
capricho do repertório de uma realidade que é a do seu
Nesse momento de contato com as vanguardas europeias,
tempo e que, por isso, ninguém a pode disputar (RAMA,
a América Latina vivia um período de mudanças sociais e políticas. 2001, p.114-115).
Cidades como México, Lima e Buenos Aires estavam em
crescimento com uma progressiva mecanização nas mais Assim como cada novo “ismo” brota da vontade de superar
diferentes áreas. Surge uma nova visão consciente do fugaz da o anterior, o novo aqui é potência de superação e renovação.
vida, sujeita ao movimento e às metamorfoses. Rama afirma que Busca-se uma nova estética e a inovação formal da poesia. As
os anos de ascensão das vanguardas foram marcados “a partir de imagens poéticas presentes muitas vezes refletem esse cenário
uma ruptura artística que os escritores promoveram onde o mecânico se infiltra. Segundo Rama, “a cidade moderna era
voluntariamente para evidenciar, na literatura, a mutação que agora para os vanguardistas o que fora a natureza para os
registravam na sociedade a que pertenciam” (RAMA, 2001, p. 112). românticos” (RAMA, 2001, p. 112). Exemplo desta questão, cito o
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poema Andando el tiempo de Emilio Adolfo Westphalen, onde não importando que o vocabulário tenha ou não
percebemos essa preocupação tanto no nível semântico como correspondência com uma nova sensibilidade
rítmico. Seu título, Andando el tiempo, é a síntese da questão, o autenticamente nova. O importante são as palavras
tempo que passa, o sujeito que passa, o ciclo da vida e os (VALLEJO in SCHWARTZ, 2008, p.478).
paradoxos do tempo. Vejamos um trecho: Em países como Argentina, Peru e Brasil percebemos as
Andando el tiempo... vanguardas como uma potência de renovação das linguagens
Andando el tiempo existentes e a possibilidade de pensar em uma língua que fosse
Los pies crecen y maduran realmente nacional. Exemplos como Macunaíma de Mário de
Andando el tiempo
Andrade, o neocriollo de Xull Solar e o projeto de Francisco
Los hombres se miran en los espejos
Chuqiwanqa Ayulo de recuperar marcas indígenas na fala retratam
Y no se ven
Andando el tiempo uma vontade extrema de expressar-se em uma língua que fosse
Zapatos de cabritilla sua e representasse a realidade nacional e não uma imposição.
Corriendo el tiempo Lembrando que já em 1825 Simón Rodríguez faz a distinção entre
Zapatos de atleta língua escrita europeia e “língua falada americana” (SCHWARTZ,
Cojeando el tiempo 2008, p. 66), as vanguardas apenas reacendem a chama. As
Con errar de cada instante y no regresar vanguardas reforçaram o desejo de uma identidade própria com
Alzando el dedo Señalando essa reflexão sobre as especificidades da língua.
Apresurado Ainda que o surrealismo não tenha interesse no “nacional”,
Es el tiempo y no tiene tiempo seu desejo pela liberdade integral do homem acaba por incluí-lo
No tengo tiempo […]
nessa discussão. Assim como usam a linguagem para resgatar o
Mas não se trata de uma apologia à vanguarda futurista, apesar de maravilhoso de uma realidade, a linguagem de origem onírica situa
algumas simpatias. Quer se ir além de mencionar novidades a poesia em uma realidade.
tecnológicas, almeja-se uma nova sensibilidade. Mas esse Refletimos aqui sobre o contexto que está além dos
pensamento, por outro lado, recebe críticas de autores como significados do texto. Segundo Paulo Rónai, “o tradutor que aspira
Borges e Mariátegui que criticam a ideologia do novo pregando um a ser um bom profissional tentará familiarizar-se, igualmente, na
esgotamento do mesmo. E Vallejo também critica aos que medida do possível, com os costumes, a história, a geografia, o
escrevem sobre o novo ficando apenas no léxico: folclore, as instituições do país de cuja língua traduz, além de se
Poesia nova passou a ser chamado todo verso cujo léxico é munir da indispensável cultura geral” (RÓNAI, 2012, p.36). Esse
formado pelas palavras “cinema, motor, cavalos de força, tipo de conhecimento ajudará o tradutor a compreender o sentido
avião, rádio, jazz-band, telegrafia sem fios” e, em geral, por e estilo da obra original. Segundo Britto, Holmes e outros pioneiros
todas as vozes das ciências e indústrias contemporâneas,
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abriram caminho para o que veio a se chamar a “virada cultural” Conscientes destas reflexões tratadas até aqui, cabe
dos estudos da tradução. A partir desse momento os tradutores atentarmos para uma outra questão a qual o tradutor literário está
passaram a valorizar o texto como um fenômeno cultural, dentro envolto. O que caracteriza um texto literário? O que caracteriza a
de um contexto rico e complexo (BRITTO, 2012, p.20). literariedade?
Ao pensarmos especificamente no cenário peruano, O texto literário tem um valor intrínseco para aqueles que
compreendemos que “la vanguardia peruana constituyó uno de o utilizam, e é valorizado como objeto estético. Como afirma
los momentos fundamentales de la literatura hispano-americana Jackobson, “o valor literário de um texto reside no texto em si, nas
porque permitió la modernización del lenguaje de la poesía de palavras tal como se encontram na página, e não apenas em seus
lengua castellana y la liquidación del legado modernista […]” significados, o tradutor de uma obra literária não pode se
(COZMAN, 2007, p.53). O peruano Westphalen, segundo Cozman, contentar em transpor para o idioma-meta a teia de significados
assimilou o surrealismo de modo criativo e foi um paradigma do do original” (JACKOBSON apud BRITTO, 2012, p.49). E no caso do
trabalho com a linguagem através do emprego de tropos como a texto poético, “o caso-limite da literariedade”, outros fatores tem
metáfora que sustentava uma fragmentação do discurso poético ou podem ter tanta importância quanto o sentido. As palavras
de acordo com as tendências como o ultraísmo, dadaísmo, tornam-se além de portadores de significado, objetos sonoros; seu
futurismo e o surrealismo (COZMAN, 2007, p. 53). O surrealismo, número de silabas e seus acentos também são significantes, além
para Westphalen, torna-se um meio de escapar de toda rigidez da da aparência do texto.
linguagem tradicional, rumo ao desejo de mudar a realidade. Paulo Rónai no capítulo “nos limites da tradução”, afirma
Westphalen diz: “en la poesía, en la revolución y en el amor veo que “todo texto é alguma coisa mais do que a simples soma das
actuantes los mismos imperativos esenciales: la falsa resignación, palavras que o compõe, vai além da traduzibilidade das palavras e
la esperanza a pesar de toda previsión razonable contraria” estruturas, faz-se necessário atenção a característica artística
(WESTPHALEN, 1980). deste tipo de texto. Britto acredita que a tradução deva produzir o
Sua linguagem busca uma autenticidade que não está mesmo “efeito de literariedade” – efeito estético- análogo ao
distante da realidade peruana. Westphalen “desconfía del logos y produzido pelo original em seus leitores (BRITTO, 2012, p.50).
busca el mito; deja el ente específico y se aferra al arquetipo; Assim, ao traduzirmos um poema surrealista temos que preservar
abandona eventualmente el mundo consciente y parece o que faz dele um poema surrealista (suas imagens “absurdas”,
aproximarse al mundo de los sueños” (COZMAN, 1990, p. 50). A seus deslocamentos, jogos de palavras, linguagem fragmentada,
linguagem simbólica evoca o sonho, mas para Westphalen o sonho etc) para manter o espírito do original.
não é um refúgio senão uma arma, como escreve em El sueño O valor único de um poema está na forma, na qualidade
(Poema do livro Ha vuelto la diosa ambarina publicado em estética e no conteúdo. Por esse fato é que a tradução de poesia
Tijuana- México em 1988). é tão controversa. O tradutor deve, como prega Benjamin, manter
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a atenção para que o texto original possa, na tradução, encontrar PAZ, Octavio. La búsqueda del comienzo: escritos sobre el
o seu eco. surrealismo. 3. ed. Madrid: Espiral/fundamentos, 1974.

Referências RÓNAI, Paulo. A tradução vivida. José Olimpio Editora, 4ªed, Rio de
BARTHES, Roland. Escritos sobre teatro. Textos reunidos por Jean- Janeiro, 2012.
Loup Rivière. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2007. _____. Escola de tradutores. Os cadernos de cultura, Ministério da
Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1952.
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Tradução de Luiz
Forbes. Prefacio Cláudio Willer. São Paulo: Brasiliense, 1985. SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas. 2 ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
BRITTO, Paulo Henriques. A tradução Literária. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012. WESTPHALEN, Emilio Adolfo. Poetas en la Lima de los años
treinta. In Otra Imagen Deleznable. México: Fondo de Cultura
COZMAN, Camilo Fernández. Belleza de Un espada clavada en la Económica, 1980.
lengua de Emilio Adolfo Westphalen. Martín: Revista de Artes y
Letras de la Universidad San Martín Porres, Lima, v. 16, p.53-58,
jun. 2007.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Leipzig Und Wien:


Franz Deuticke, 1900.

MACHADO, Fernanda Coutinho. A utopia dos sonhos:


Considerações sobre a Ética da Psicanálise e o Surrealismo. Revista
Psicanálise & Barroco, Ano 1 nº2, 2003.

MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa


Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Percpectiva, 2010.
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LETRAS SIN ARMAS: VARIACIONES SOBRE EL PROBLEMA DEL


PAPEL DE LA LITERATURA EN LA LITERATURA ESPAÑOLA [...] Quítense delante los que dijeren que las letras hacen
CONTEMPORÁNEA ventajas a las armas, que les diré, y sean quien se fueren,
Erivelto da Rocha Carvalho que no saben lo que dicen. Porque la razón que los tales
UnB suelen decir y a lo que ellos más se atienen es que los
trabajos del espíritu exceden a los del cuerpo y que las
armas sólo con el cuerpo se ejercitan, [...], para el cual no es
1. A guisa de introducción
menester más de buenas fuerzas, o como si en esto que
La cuestión del papel de la Literatura en el mundo moderno llamamos armas los que las profesamos no se encerrasen
no es novedad. Desde el Siglo de Oro español, e incluso antes, el actos de fortaleza [...]. (CERVANTES, 2005. p.392).
tópico de las Armas y Letras resurge con fuerza, asumiendo en
Es innecesario decir que el Discurso sobre las Armas y las
cada contexto un nuevo matiz que destaca tanto la agudización del
Letras no debe ser tomado como la opinión de Cervantes sobre el
problema como la conciencia de la impotencia del discurso
tema, y sí como un ejemplo más de una serie de temas cortesanos
literario (en su doble dimensión ética-estética) ante el predominio
utilizados por el novelista para aproximar su protagonista al
de los poderes de la técnica y del mercado.
mundo de duques y caballeros, curas y canónigos, o sea, al público
Ya desde Cervantes es posible constatar la presencia del
letrado que aparece en su ficción. A pesar de dar razón a las Armas
tema, aunque no exactamente como un problema, sino más bien
(o a las leyes de la guerra sobre las leyes civiles) en el capítulo 38,
como un topos que remonta al Renacimiento. En su ya clásico El
también se representa ahí la opinión contraria, aquella favorable a
pensamiento de Cervantes, publicado originalmente el 1928,
las Letras.
Américo Castro (2002, p.198) se refería a este tópico a partir de
Todavía más compleja es la puesta en escena del diálogo
una cita de El Cortesano de Castiglioni, y mencionaba en una nota
del Caballero de la Triste Figura con el personaje de Don Diego de
aparte a una decena de obras del siglo XV y XVI que se examinaban
Miranda, acompañado de su hijo Lorenzo, en la II Parte del Quijote.
esta cuestión tan aparentemente intranscendente.
Aquí, el héroe cervantino defiende la poesía de la opinión de los
En el Quijote, dos celebrados pasajes remiten al tópico de
que, como el caballero del Verde Gabán, la encuentran
las Armas y Letras. El primero es el famoso Discurso de las Armas
desnecesaria ante la imponencia de las Letras.
y las Letras, dividido entre los capítulos 37 y 38 de la I Parte. En el
Hay un ligero desplazamiento del tema en el pasaje, que
capítulo 37, Don Quijote discursa ante una asistencia inmóvil que
corresponde perfectamente al cambio de perspectiva operado de
escucha su defensa de las Armas ante las Letras en uno de esos
la Primera Parte de la obra hacia la Segunda. El juego especular del
momentos en que el Caballero Andante reluce su peculiar forma
Quijote se vuelve sobre la propia Literatura, y el tópico de las
de lucidez.
Armas y Letras es reemplazado por la discusión sobre la educación
Según él:
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de los jóvenes y de la nobleza de la actividad literaria, A menudo, en las entrevistas programadas por mis editores
representada por la figura del imberbe poeta Lorenzo. y coloquios en los que por flaqueza intervengo – los voy
De todas formas, delante de la fantasía expuesta en las reduciendo de año en año hasta llegar al punto de cero –
locas razones del Caballero, prevalece como valor típico del mundo algún listo me pregunta con astucia, como cazador que
tiende una trampa a su presa: “¿Por qué un escritor
“cuerdo” la visión mezquina del padre del joven, el Caballero del
comprometido como usted en causas cívicas y políticas de
Verde Gabán, cuya razón pragmática personifica los valores de la
alcance general- antirracismo, defensa de las minorías e
España post-tridentina, casi como un prenuncio de los poderes de inmigrados, crítica del fundamentalismo monetario y el de
las concepciones instrumentales de las Humanidades en el mundo la tecnociencia, etcétera, cultiva una literatura tan
contemporáneo. minoritaria, elitista y hermética que aleja de sus novelas al
Si Cervantes no se decanta por una defesa explícita de las lector normal?” La pregunta apunta a primera vista a una
Letras ante las Armas, sí es verdad que la dualidad de su discurso contradicción insoluble: ¿Cómo compaginar, en efecto, la
puede hacer pensar en una ambigüedad fundamental cuanto al voluntad de defensa de causas cívicas y valores
tema, que aparece acompañada de su humor e ironía. Pues, al universalmente amenazados por la barbarie con una
final, la vida de los jóvenes poetas vale tanto cuanto la de los escritura personal de acceso difícil e incomprensible para
soldados, sean estos escritores o no. muchos lectores? Para responder adecuadamente a ella
habría que ponerse de acuerdo no sólo en cuanto al
contenido del término literatura sino también al de sus
2. Ambigüedad y contradicción
conexiones con la cultura y la sociedad (GOYTISOLO, 1995.
Lo que en Cervantes es algo que aparentemente no va más pp. 11-12).
allá de un topo clásico, se vuelve en la modernidad literaria
española en un problema de larga monta, centrado en la discusión La visión de Goytisolo a la hora de problematizar el
sobre la “función social” de la Literatura y de las Letras en el concepto de Literatura y tomarla en sus relaciones con la cultura
mundo contemporáneo. No se trata de un asunto baladí, pues de no es la única posible, pero evidencia el malestar y la verdadera
la posición que uno toma en relación al mismo depende el tipo de contradicción que la pregunta mencionada no presenta: la del
proyecto literario que emprende, y eso es algo que las visiones papel de la Literatura en un mundo dominado por la técnica, en
instrumentales de la Literatura fingen olvidar. que los valores pragmáticos del comercio editorial han suplantado
En el El bosque de las letras (1995), Juan Goytisolo sitúa con ventaja a la posible humanidad perdida en medio al universo
desde la misma introducción algo que podría ser tomado como de la crítica y de las obras literarias.
uno de grandes desafíos de los escritores actuales ante su tiempo. La posición de Juan Goytisolo, que se resume en el título de
Según el autor: su libro, es concebir la Literatura desde la metáfora del árbol, o
mejor, desde la imagen del bosque de las letras que da nombre a
su colección de ensayos críticos sobre la situación de la Literatura
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española y europea en el mundo. Ante lo que llama de visión Otras varias actitudes pueden ser tomadas ante el mismo,
“esencialista” de la cultura y del arte, Goytisolo propone una idea entre ellas la de recusa radical del mismo problema. Vila-Matas
de una Literatura mestiza y de raíces profundas y capilares, tal servirá aquí de modelo en el intento de analizarlas.
como defiende en uno de los mejores ensayos de su obra,
“Palmera y mandrágora”, dedicado a la poética de José Ángel 3. Del anti-realismo como lema
Valente. La respuesta de Goytisolo a la cuestión sobre el papel de la
Retomando la introducción de Goytisolo, el autor presenta literatura artística en un mundo dominado por los valores
las claves de este proyecto de Literatura insurgente, en un párrafo mercantiles tiene la virtud de poner en tela de juicio el espíritu de
que es también una defensa de los valores fundamentales de la animosidad que lleva a la aparente contradicción entre escrita
poesía. artística, tomada como gesto político, ético y estético, y la
Como afirma él: actuación en un sistema de producción cuyas pautas no son dadas
El escritor aferrado al valor de la palabra, consciente de ser por los mismos valores de esta. La dicotomía entre arte y
una rama, prolongación o injerto del árbol de la literatura, producción en las sociedades capitalistas es tempranamente
debe defender con uñas y dientes el derecho inalienable de conocida y la “respuesta” comprometida también.
la escritura ser escritura. La busca de las raíces y del tronco
Sin embargo, hay otra respuesta ante el diagnóstico
del árbol – de lo que el poeta José Ángel Valente denomina
relativo a la crisis de la Literatura en la sociedad contemporánea.
palabras sustanciales – es un combate de supervivencia:
como el de esas plantas del desierto cuyos rizomas saben Ante la posibilidad de cerrarse en el hermetismo o en el
abrirse paso en el suelo ingrato en el que las superficiales compromiso de los poderes demiurgos de la palabra poética, hay
mueren hasta calar en las zonas más hondas y dar con la también una perspectiva prosaica sobre la acción del escritor en
veta que las alimenta (GOYTISOLO, 1995. p. 11). un mundo que se ha alejado del arte y que ha tratado de tomar la
tecnología como una especie de nueva magia, o como diría Carlos
Goytisolo terminará su prólogo reafirmando el papel de
París (2001, p.17), de la técnica como “nuevo mito”. Se trata de la
resistencia del hecho literario en contra de la literatura de masa,
actitud sencilla de rechazar el problema aparente de la crisis como
de “consumo instantáneo” según sus palabras, incluso asumiendo
algo inadvertido o sin sentido, o como algo que obedece a la lógica
el riesgo del hermetismo a partir de una visión comprometida que
restricta de la crisis del realismo literario.
lleva, por otro lado, a determinado tipo de realismo literario. De
Es lo que Enrique Vila-Matas hace, en cierta perspectiva, a
todas formas, su libro indica con exactitud el malestar de la
lo largo de su trayectoria, y muy especialmente en estas novelas
literatura con ambiciones artísticas en medio a un ambiente
que han sido nombradas como su personal “Catedral meta-
general desfavorable. Su toma de posición no cambia de por sí el
literaria”: Bartleby y compañía (2000), El mal de Montano (2002) y
problema, pero ahora ya lo hace despuntar en el horizonte.
Doctor Pasavento (2005). Con estas obras, Vila-Matas ofrece otra
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posibilidad de entendimiento de la posible “respuesta” de la verdadera vida al exponer lo que la vida real y la Historia
Literatura ante su desaparición como discurso público considerado sofocan (VILA-MATAS, 2002. p. 302).
y cargado de sentido. Esta sección de la novela termina en este párrafo, y la
Su gesto literario toma su quehacer como un movimiento narración seguirá en la próxima parte, intitulada “La salvación del
de resistencia, así como en Goytisolo, pero de un signo diverso al espíritu”. En el gesto de negación de los textos vilamatasianos se
indicado anteriormente. Especialmente por un motivo, que es encuentra una actitud de signo opuesto pero complementar al
exactamente la negación de esta “realidad” convencional a la que comprometimiento detectado en Goytisolo. Si en este último la
la Literatura tendría que contestar. En El mal de Montano, el palabra poética es la última palabra de rebeldía ante los poderes
narrador va a enfrentarse al desafío de no conseguir escribir y de curas, bachilleres y reporteros, en Vila-Matas esta revuelta es
busca romper con su bloqueo creativo de la única forma posible: representada por una voz sinuosa que se presenta bajo múltiples
tratando de hacer con que su texto retome el contacto con la vida máscaras, que siempre afirman lo mismo a través de la
o, haciendo con que su vida incorpore lo literario. constatación del absurdo evidente de un sistema que se
La incorporación mencionada es un movimiento que no desconecta de la vida en nombre de una realidad convencional y
parte de la lógica de pregunta-respuesta, arte-sociedad, ética- de una Historia restringida a la idea de Grande Relato, por
estética comprendidos de forma estanque. En esta perspectiva mencionar aquí una noción cara a Lyotard (1984) en su reflexión
tampoco tiene sentido lo que convencionalmente se llama sobre la post-modernidad.
“sistema literario” o “realidad”, porque en él no hay más espacios A partir de estas dos primeras posturas sobre el problema
para dicotomías ni contradicciones posibles. Sólo interesa aquí la del papel de la Literatura, la de Goytisolo y de Vila-Matas,
superación de las dicotomías, de imposibilidades presentadas a llegaremos a la tercera, presente en la aporía unamuniana.
partir de dicotomías, como aquella que lleva la sumisión de la
lógica del arte a la lógica de la mercadotecnia. 4. Entre Don Quijote y la Literatura
En la cuarta parte de El Mal de Montano, la que lleva el En una de sus obras capitales, la Vida de Don Quijote y
título ‘Diario de un hombre engañado’, el narrador resume así la Sancho, publicada el 1905, Unamuno nos sugiere una salida para
relación que se establece en esta obra entre vida y la literatura: el impase entre la crítica realista del problema del papel de la
Precisamente porque la literatura nos permite comprender
Literatura en el mundo contemporáneo, que hemos visto en
la vida, nos habla de lo que puede ser pero también de que
Goytisolo, y la negación sistemática de la misma anclada en la idea
lo que pudo haber sido. No hay nada a veces más alejado de
la realidad que la literatura, que nos está recordando todo de autonomía del arte llevada a cabo por Vila-Matas en sus textos
momento que la vida es así y el mundo ha sido organizado meta-ficcionales.
asá, pero podría ser de otra forma. No hay nada más Si bien la estrategia de Unamuno se acerca mucho a la de
subversivo que ella, que se ocupa de devolvernos a la Vila-Matas al proponer una mirada desde “dentro” para el
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problema, también es verdad que el filósofo ha tomado la idea de la cultura del Libro en la Europa contemporánea, Unamuno
la Literatura como una metáfora que va más allá del signo constata la pervivencia de otra cultura, menos libresca y más
equívoco del lenguaje ficcional, y así, la “doble” vida (La vida de literaria, representada por los valores auténticos, espontáneos y
Don Quijote y Sancho, que es una y dos a la vez) de los personajes populares que recobrarían sentido desde su interpretación del
cervantinos añaden una nueva dimensión al problema de las Quijote.
relaciones de la Literatura con el mundo tecno-científico. No se trata solamente, como en Vila-Matas, de reafirmar la
De manera resumida, el problema radica para el escritor autonomía del lenguaje literario, pero sí de declarar cierta
Unamuno en como tomar las figuraciones sobre el papel de la dimensión transcendente presente en el mismo. En Unamuno, la
Literatura en un mundo pragmatista, más allá de asumir ante ellos muerte de Don Quijote es leída como seña del renacimiento de la
una posición de crítica o negación. Es conocido el pasaje del Literatura a pesar de la “crisis”, pues su muerte opera tanto en
epílogo en Del sentimiento trágico de la vida, libro del 1914, en que campo de la autonomía ficcional cuanto en términos del lenguaje
confirma la proposición de una lectura del Quijote a pesar de literario comprendido también en una dimensión metafísica o
Cervantes: “¿Qué me importa lo que Cervantes quiso o no quiso simbólica, más allá de la comprensión estricta del mismo como
poner allí y lo que realmente puso? Lo vivo es lo que yo allí signo lingüístico.
descubro, pusiéralo o no Cervantes [...]” (2005, p.304). Dicha Así, ante la vida literaria presentada en radical contraste
perspectiva no parece ser un mero movimiento acomodaticio con las convenciones de lo “real”, como se ve de formas distintas
como supone cierta crítica cervantista, sino que se presenta como en Goytisolo y Vila-Matas, lo que destaca Unamuno es otra
otro método, otra epistemología posible de enfrentamiento al propuesta de comprensión de la Vida (con “v” mayúscula), más allá
texto cervantino. de la tensión entre lo “literario” y lo “pragmático”, o entre la
Dicha posición supone desde ya un gesto avanzado en el comprensión estricta del lema que opone Armas y Letras.
sentido de no conceder al objetivismo de las posturas que La tendencia que se afirma en Unamuno, de alguna
defienden la primacía de cualquier tipo de intencionalidad en el manera, es la misma que aparece como perspectiva en el episodio
entendimiento del fenómeno literario, o de la supremacía del del Verde Gabán en Cervantes, la de la comprensión de las Letras
estilo sobre la materia misma de la Literatura. En este caso, lo en comparación con ellas mismas, en grado segundo, para usar la
paradigmático (y paradójico), es que Unamuno construye toda la noción de Gennete (1989), y no a partir de una oposición más o
obra como relectura y nueva interpretación subjetivista de la menos implícita al pragmatismo mundano. La alteridad como
metáfora de Don Quijote (y Sancho Panza), y también como un fundamento del lenguaje, principio notado en Unamuno por
desafío a la visión anquilosada de la tradición española que Zavala (1991), y que basa también la narrativa cervantina, es el eje
consagra a Cervantes como príncipe de las Letras del Siglo de Oro básico que afianza las Letras contemporáneas ante la fatalidad de
en detrimento de la libre lectura de su obra. Junto con la crisis de la hegemonía del mercado.
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Para terminar, retomo aquí la oposición entre cuerpo y VILA-MATAS, Enrique. Bartleby & Compañía. Barcelona:
ánima ya presente en los tratados cortesanos y en Castiglione, Anagrama, 2000.
pero ahora de manera invertida: lo que puede justificar las Letras,
la Literatura, en una cultura de lo innoble es la propia literatura, ______ . El Mal de Montano. Barcelona: Anagrama, 2002.
comprendida desde su crítica, negación y también superación.
Esto es lo que de alguna manera da carta de naturaleza a la ______ . Doctor Pasavento. Barcelona: Anagrama, 2005.
Literatura sea en Vila-Matas o Goytisolo, o tanto en Cervantes
como en Unamuno. ZAVALA, Iris M. Unamuno y el pensamiento dialógico: M. de
Unamuno y M. Bajtín. Barcelona: Anthropos, 1991.
Referencias
CASTRO, A. de. El pensamiento de Cervantes y otros estudios
cervantinos. Madrid: Trotta, 2002.

CERVANTES, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edição de F. Rico.


Madrid: Santillana, 2007.

GENETTE, G. Palimpsestos: La literatura en segundo grado. Madrid:


Taurus, 1989.

GOYTISOLO, J. El bosque de las Letras. Madrid: Santillana, 1995.

LYOTARD, F. La condición postmoderna. Madrid: Cátedra, 1984.

PARÍS, C. Fantasía y razón moderna: Don Quijote, Odiseo y Fausto.


Madrid: Alianza, 2001.

UNAMUNO, M. de. Vida de Don Quijote y Sancho. Madrid: Alianza,


1987.
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ENTRE AMANHECERES E DISSIDÊNCIAS: A POESIA DE PEDRO produção desse poeta que vive a globalização, se reconhece no seu
SEVYLLA DE JUANA semelhante e respeita as diferenças que existem entre todos.
Ester Abreu Vieira de Oliveira Marca-se essa postura, entre outros sinais, no plurilinguismo com
Maria Mirtis Caser que se expressa o poeta, como se vê em Elipse de los tiempos, onde
UFES – CCHN/ DLL/ PPGL se encontram nove poemas do próprio autor em autotradução
para o português (páginas 99, 103, 167, 186, 194, 202, 204, 207,
Pedro Sevylla de Juana (1946, Fuente de Valdepero, 210 e 212) uma para inglês (página 75), e uma para o catalão
Palencia Espanha), vive em El Escorial, Madri, é publicitário, (página 132).
conferencista, articulista, poeta, romancista, ensaísta e tradutor Além de publicações coletivas, on-line e impressas, Sevylla
do espanhol para o português, catalão, inglês e francês e do de Juana tem publicados os seguintes romances: Los increibles
português para o espanhol. Colabora em revistas na Europa e sucesos ocurridos en el Principado (1982); Pedro Demonio y otros
América. Move-nos a apresentar esse poeta espanhol primeiro sua relatos (1990); En defensa de Paulino (1999); El dulce calvario de la
poesia, reconhecida pelos críticos e laureada com prêmios señorita Salus (2001); En torno a Valdepero (2003); La musa de
literários e depois seu amor à língua portuguesa e à cultura Picaso (2007); Del elevado vuelo del halcón (2008); La boca del
brasileira, explicitado pela tradução de vários poemas de poetas infierno (2011); Pasión y muerte de la señorita Salus (2012); Las
portugueses e brasileiros e na produção de seus próprios poemas mujeres del sacerdote (2012); Estela y Lázaro vertiginosamente
na língua portuguesa. (2014).
Homem de seu tempo, Pedro Sevylla de Juana se sensibiliza Pedro Sevylla de Juana é dono de uma linguagem elaborada
com o ser humano, sua vida e sua complexidade, o que pode ser e clara e de um vocabulário preciso, ao mesmo tempo clássico e
comprovado na leitura de seus escritos ficcionais y poéticos. Com popular (metáforas, provérbios, ciência e folclore). No seu tecer
linguagem simultaneamente elaborada e acessível, Sevylla de literário filosofa sobre a vida, pontua críticas políticas e literárias,
Juana é reconhecido como poeta de grande sensibilidade. revive arquétipos, conceitua a arte e a poesia, revive o seu passado
Revitalizando em sua poesia o seu lugar de origem, o “pueblo” e despe a própria alma. Entre as narrativas acima enumeradas,
Valdepero, como espaço vivido e reelaborado pela imaginação, o destacamos:
poeta ratifica a ideia defendida por Bachelard (1988a, p. 50) de que Em torno a Valdepero (2003) é uma obra organizada com
“(t)oda grande imagem tem um fundo onírico insondável e é sobre uma seleção de relatos nos quais a realidade e o mito são
esse fundo onírico que o passado pessoal coloca cores fronteiras para o escritor elaborar personagens históricos e
particulares.” lendários de Valdepero. O amor, o ódio, a morte e o progresso
O multiculturalismo, que marca as relações entre os afetam a vida tranquila e paradisíaca de Fuentes de Valdepero e
homens na contemporaneidade, não poderia estar ausente da arredores em Pasión y muerte de la señorita Salus (2012), 3ª ed.,
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205 p., obra que foi laureada como o Prêmio Internacional de ocultas e acontecimentos trágicos que terão como consequência a
Romances “Mario Vargas Llosa” e que relata conflitos da morte. A narrativa tem início em Barcelona e seu desfecho se dá
personagem que, em sua “via crucis”, culminam com “la muerte el em uma chácara na fronteira entre Espanha e Portugal, às margens
calvario que fue la existencia de la señorita Salus” (p. 205) dentro do rio Gévora. Os personagens são anfitriões e convidados que
de uma banheira. Nas últimas horas antes de seu passamento, a foram passar os dias de feriados da Semana Santa, por motivo do
personagem faz uma análise dos acontecimentos que ocorreram noivado dos filhos.
em sua vida, “larga vereda que bordea el mar, llana, A obra poética de Pedro Sevylla de Juana consta de poesias
ininterrumpida y sinuosa” (p. 187). Numa sociedade rural, a esparsas publicadas em revistas e sites e está ainda na compilação
princípio, e urbana, depois, convivem a volúpia, o amor, a amizade, Elipse de los tiempos (2012, 217 p.), onde se reúnem 159 poemas,
a humilhação, o orgulho, o ciúme, a cólera, a vingança, e o cujos títulos são numerados de UNO a CIENTO CINCUENTA Y
narrador vai pouco a pouco mostrando a luta entre a verdade e a NUEVE. A polifonia que se pode apreender em sua escritura é
aparência de uma personagem cheia de contradições. registrada na resenha da 4ª capa do livro em que aparece a
Del elevado vuelo del halcón (2008), em 22 capítulos e um enumeração de um elenco de poetas, nacionais e internacionais,
epílogo, relata a vida de um executivo, Juan Frías Blanco, e sua barrocos, românticos, modernos e atuais, cuja leitura teria
família, que vivem em uma Madri amável e cruel, ao mesmo despertado a veia poética de Sevylla de Juana: Luis de Góngora,
tempo. Entre os seus familiares, mulher, filhos, irmão, neto, Gustavo Adolfo Bécquer, Antonio Machado, Federico García Lorca,
destaca-se a figura do avô, Miguel, pai do protagonista, um César Vallejo, Pablo Neruda, Juan Ramón Jiménez, Miguel
sonhador, que deseja viajar para ignoradas terras. Juan perde o Hernández, Rabindranath Tagore, Odysséas Elitis, Vladimir
emprego, depois de anos de dedicação e eficiência no serviço Maiakovski, Lord Byron, William Butler Yeats, Walt Witman, T. S.
prestado a uma empresa multinacional, devido a falsas e invejosas Eliot, William Blake, Harry Martinson, Gunnar Ekelöf, Artur
tramas de companheiros de trabalho mas tem na mulher, Amélia, Lundkvist, Guillaume Apolinaire, Arthur Rimbaud, Fernando
o incentivo para continuar a viver: “[...] dirige los ojos a la tierra Pessoa, Charles Baudelaire, Rimma Kazakova, Giacomo Leopardi
que pisa, y a medio camino encuentra a los nietos, quienes desde são apontados pelo resenhista. Acolhemos essa apreciação, mas
su pequeñez levantan hacia él la mirada con una sonrisa”, e então acreditamos acertado acrescentar entre os ecos das leituras do
esse homem “crecido de gozo imperfecto, agita sus alas desparejas poeta a Bíblia, que se entrevê em temas e formas. Como em um
sobre las montañas nevadas y las laderas cubiertas de pasto: palimpsesto lá estão os “Cânticos dos Cânticos” nos poemas
elevado vuelo del halcón que será, no tardando, un halcón abatido amorosos do nosso autor. Mas, tomando as palavras do resenhista
tutelado por Amelia” (p. 390). de Elipse de los tempos, registramos: “Contribuyeron todos, acaso,
Las mujeres del sacerdote (2012) finalista do “Premio a que sus poemas sean como son, pero la poesía estaba ya en la
Ateneo Ciudad de Valladolid”. Nessa obra relatam-se paixões vida destapada a derecha e izquierda, a ras de suelo o en lo alto.”
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Como a poesia encarna a dor humana, é a realidade poética de do outro na compreensão de sua mensagem, assim se manifesta:
uma emoção e sua mensagem é um canto íntimo da alma que a “Soy la oscuridad que me oculta a los ojos del mundo/ y el
produz, os impulsos proporcionados pelo conhecimento da boa esperado rayo de luz que me pondrá en el centro de todas las
poesia encontram nesse poeta terreno fértil na tarefa de tecer miradas.”
seus versos. Se o poema oculta o poeta, as palavras nele contidas serão
No diálogo de Sócrates a Fedro (PLATÃO, 19??, p. 182) a sua revelação nos olhos do leitor. E elas são o resultado de sua
aprende-se que aquele que não possui nada de valioso, senão o vivência e da absorção de suas leituras. Pedro Sevylla assim o
que escreveu e passou largo tempo a rever, tirando uma coisa aqui declara no poema já mencionado (p.54): “Soy la vida y la muerte
e acrescentando outra acolá, a esse homem se chamará poeta. que hay en mí/ y las injusticias que descubro/ las rutinas que me
Mas não é só tirar e acrescentar, Sócrates sabia. É muito mais: é atan a los días/ y las lecturas que desarrollan mi intelecto.” Como
ter uma linguagem poética autêntica, é mover as palavras com a o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, que em sua
propriedade de um regente de orquestra, para produzir harmonia. Morte e vida Severina profetiza: “Trabalhando nessa terra, /tu
É lançar silêncios em palavras e palavras que subam, que voem até sozinho tudo empreitas: /serás semente, adubo, colheita”, o poeta
as nuvens e aos espaços siderais e desçam ao interior da terra, aos palentino também se reconhece como o tudo e o todo, a terra e o
pântanos, aos lamaçais, aos mais infernais caminhos dantescos. É cosmo, o corpo e as ferramentas, como se pode ver no fechamento
ter uma linguagem que não fuja do cotidiano, mas que não seja o do poema SETENTA Y DOS:
falar comum. É representar e imaginar no “irreal’. É projetar-se na [...]
verdade de uma maneira peculiar. É instaurar a verdade, Soy la ubérrima simiente
oferecendo o novo e fundando ideias. O poeta instaura uma que en el barbecho germina,
aventura, planeja-a e realiza-a com a palavra, pessoal e histórica, soy la brizna verde,
soy el tallo erguido, soy la preñada espiga,
e com silêncios, que revelam seu inconsciente. Segundo Octavio
soy el grano desgranado
Paz (1982, p. 212), “as revelações do inconsciente pressupõem um
en el redondel de la trilla;
tipo de consciência dessas revelações”. Elas vêm à luz na recriação soy el Cierzo enfurecido que separa el bálago del grano,
do mundo por um ato livre e voluntário que se liberta do soy trigo molido, soy la blanca harina.
inconsciente nas palavras para serem absorvidas pela ação do Soy la masa inerte, soy la levadura
leitor. soy el fuego, soy la leña encendida,
Pedro Sevylla (2014b) também teoriza sobre a arte de soy el pan del sacrificio,
escrever: “Los poemas son jaulas que el lector abre, para que el sacerdote, altar y víctima.
águila o el colibrí escapen”. O eu lírico, de Elipse, poema nº Tomo el color del día que me cerca,
CUARENTA Y OCHO (p. 53-54), assinalando a importância do olhar y soy azul, rojizo, gris o cárdeno,
como la tornadiza faz de la Naturaleza.
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Más allá de la sed y del cansancio, Porque as facturas e as cartas comerciais são o princípio da
del imán y el esmeril; história
del hacha, la azada, la palanca y la rueda; E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são
por encima de cualquier afán impenetrable o fim. (PESSOA, 2006, p. 288)
desde el punto de mira del poeta,
Em cada seção o poeta faz diferentes destaques. Na
soy la tierra, el labrador y la cosecha. (SEVYLLA, p. 77-78)
primeira, “Amanecer de amaneceres”, foco de nossa análise,
Em Elipse de los tiempos, dividida em sete seções destaca a Espanha, a povoação, a origem dos povos, a paisagem, a
temáticas: Amanecer de amaneceres, La excentricidad de mi vida, e Valdepero. Na segunda, “La excentricidad de mi órbita”,
órbita, Dispersión y búsqueda, Amor de amor enamorado, enfatiza o eu poético, sua autobiografia (p. 53), a forma de seu
Intemperie de dudas y misterios, Disidencias e Epílogo, Pedro crescimento intelectual: “la evolución del pensamiento apoyada
Sevylla de Juana cria um cosmo que parte de sua terra natal, en los ensayos” (p. 51). Comprova-se a anotação anterior do
Fuentes de Valdepero, – “vales, páramo, llanura;/ y Valdepero,/ caráter intertextual em alguns poemas nos ecos de outros poetas,
piedra angular, síntesis, coluna.// En lugar tan lleno de verdades, de que é exemplo o poema CUARENTA Y SIETE, em que se reitera
límpida mirada,/ he nacido” – (p. 14), onde o poeta situa o uma hora determinada: “No quiero llegar más tarde de las cinco a
nascimento e a decadência dos homens e das coisas. O eu lírico Valdepero” em que a anáfora “no quiero llegar”, nos quatro
torna-se testemunha do que acontece, fazendo-se primeiros versos e “no quiero” em doze versos faz lembrar o
filósofo/poeta/historiador e recolhendo de toda parte a poesia, o poema de Federico García Lorca, “Llanto a Ignacio Sánchez
que nos remete à “Ode marítima“ de Álvaro de Campos Mejías”: “A las cinco de la tarde./ Eran las cinco de la tarde/ Un
(heterônimo de Fernando Pessoas) nos versos que citamos aqui: niño trajo la blanca sábana/ a las cinco de la tarde”, não só pela
Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente organização, mas também pelo uso da metáfora das cinco horas,
Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes - para significar acabar, morrer, como as cinco horas do início da
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes
tourada, esporte que culmina com a morte: ou a do touro
de tudo isso!
(esperada) ou a do toureiro (a não esperada).
Há quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias. Ainda nessa seção encontra-se o poeta mais filósofo e se
Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente. pode detectar em seus escritos ressonâncias da poesia do
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos nicaraguense Rubén Darío e do espanhol Antonio Machado. No
escritórios! poema DIECIOCHO, como Darío, que faz um canto épico à
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo Argentina, mencionando os deuses autóctones – Copán, Palenque,
respiro-a, Tihuanaco (DARÍO, 1949, p. 69) –, Sevylla de Juana fala dos mitos
Porque tudo isto vem a propósito dos vapores, da de Valdepero, los deuses dos “vacceos”: Ariana, Pergio e Muradis
navegação moderna,
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(p. 23). Se Darío canta uma terra de “paraíso terrestre” de social: “No se exhiben las chozas,/ consecuencias/ del dispendio
“ventura”, um passado de conquistadores e conquistados, o eu habido en los palacios;/ se ven descomunales megalitos/ que
lírico de “Amanecer de amaneceres” descreve Valdepero como hablan de pobres y de esclavos,/ ingente mármol victorioso/
lugar “lleno de verdades, límpida mirada” e, no poema VEINTIDÓS, extraído a latigazos” (p. 161). E continua o eu lírico constatando a
disputas, de guerras e suas consequências: “mata la vida en la vida solidão do homem pós-moderno: “la soledad, parásito perpetuo,/
engastada/ modifica la liturgia y desparrama la miel de las habita al hombre y está donde él está;” (p. 163) “La soledad reduce
colmenas// Cada puñado de tierra/ oculta una gota de sangre (p. afectos y recados,/ borra las mudables coordenadas/ que sitúan el
30). Se Antonio Machado (1955, p. 118) em “Encina”, contrasta mundo en algún lado” (p. 175) “ “la soledad / al hombre
essa árvore (o carvalho, em português) dos campos de Castela, encarcelado/ le viene ya de fuera/ y es su condena más antigua/
com outras árvores – pino, palmera, hayas, manzano – com sua haya o no paredes, con rejas o sin rejas.” (p. 180)
“copa ancha redonda/ rama sin color/ en el campo sin verdor” o Na terceira seção, ‘Dispersión y búsqueda”, Valdepero e o
eu lírico em Amanecer de amaneceres menciona os campos de eu lírico se amalgamam no desvendar das entranhas. Suas vozes
Valdepero de “cosecha perdida entre los dedos” e onde “Las são gritos dilacerantes da mescla de universalidade e
últimas encinas del monte confinan el espacio/ alrededor no hay cosmopolitismo, como se constata no Poema SETENTA Y CINCO:
nada”. Cada um desses poetas fala de uma “Castilla” de um solo Emparento con mogoles y bactrianos;
ingrato “un suelo sin piedad, un cielo azul cruzado de gorriones/ griegos, árabes,
un siglo y otro iguales” (SEVYLLA DE JUANA, p. 14-15); “campo sin generosos persas,
verdor” onde a “encina” sempre a mesma “ya bajo el sol que e incorporo a la suya mi sangre
en beneficiosa mezcla.
calcina […] siempre firme, siempre igual” (MACHADO 1955, p. 118-
En las vegas llanas
119) e cada um deles apresenta o seu amor por Castilla, em
y en las inclinadas cuestas
determinado lugar, destacando a respectiva paisagem Sevylla de jóvenes labriegos de los campos feraces
Juana de Valdepero, Machado de Soria. declaman melódicos poemas
De sua veia filosófica, destacamos alguns pensamentos, tras el último esfuerzo recolector de cosechas.
exemplificados nos versos: “En lo fugaz tengo mi suelo,/ lo huidizo Voy sentando
me ofrece su morada,/ columna, pared y techo.” (p. 60) “La con mi palabra y ejemplo
realidad/ en el crudo invierno de la vida/ no es más que la estepa -solo, sin ayuda de nadie-
inabarcable de los sueños.” (p. 75). “El odio/ es la memoria amarga un linaje abierto a lo externo
de una herida,/ y el amor -última gota de agua cedida en el pleno de posibilidades.
desierto,/ salvadora de quien desea arrebatarnos la vida-/ es favor Por eso reconocen mi voz
y me llaman hermano;
sin condiciones” […]. Segue o eu lírico demostrando engajamento
soy ascendiente del magnífico Iskender
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el nombre que las abuelas darán a sus nietos sabios o ser humano sempre se aproxima a seu semelhante, porque a
y las madres a los hijos fuertes. mudança é tão somente aparência:
En su viaje acompaño al viento, Del resultante pan recién cocido
porque mi entusiasmo es inagotable; un pedazo retornó a cada comarca
soy uno de entre ellos, del cual proviene el hombre primitivo:
y todos ellos lo saben. (p. 84) igual composición, distinta estampa.
Na quarta seção, “Amor de amor enamorado”, como Lorca, Sea faz el hombre o sea espalda
Rígido cuscurro o blanda miga
Ramón Jiménez, Cernuda, Neruda ou Quevedo, o eu lírico se
El color es lo único que cambia
declara “amor de amor enamorado” e canta na boda da filha o
La sustancia humana no varía.
amor da união: “no he visto una pareja tan unida/ que se ame
tanto y se ame bien/tan dueña del futuro y de la vida/ como la O eu lírico denuncia a banalização das mortes dos
formada por Daniel y Maribel.” (p. 128-129). No poema CIENTO trabalhadores na execução de suas tarefas, registrando que
SIETE, o eu lírico reitera, por meio da anáfora, a força números frios e falsos mascaram a situação dramática daqueles
transformadora do amor: “Enamorado amante de mi niña/ arman que deveriam ser protegidos mas são abandonados à própria
mis manos un barco de vela/ para que cruce rauda la mar bravía sorte. Como o eu lírico de Canto general, que denuncia a tirania
[...] Enamorado amante de mi niña/ hago juventud de mis dos poderosos: “Ficou um aroma entre os canaviais:/uma mescla
sesenta/[...] Enamorado amante de mi niña/ enciendo la noche de sangue e corpo, uma penetrante/ pétala nauseabunda”
más oscura/ [...]” (p. 136) (NERUDA, 1987, p. 431 ), o eu lírico de Elipse de los tempos
O eu lírico destaca o homem na quinta seção “Intemperie identifica-se com os injustiçados, incluindo-se entre os
de dudas y misterios”. No verso CIENTO DIEZ, p. 144, questiona a desfavorecidos e explorados:
vida: o nascimento, a alimentação, a criação, o desprendimento da yo, Pedro Sevylla de Juana,
família, o trabalho e a educação. O eu lírico sonha, adquire solidario con el segmento de población más desprotegido,
exijo mi inclusión en el recuento de perjudicados,
conhecimento, transforma-se e sente a vida: “Escucha el hombre
en las curvas de frecuencias,
los gemidos/ que arranca el viento a los desfiladeros, […] tras
en las oscilaciones
laboriosos ensayos y alguna que otra enmienda,/ transforma en y en el inventario de cifras: (p.203).
música los sencillos / sones de la Naturaleza.”
Em “Disidencias” (seção seis), no poema CENTO TREINTA Y Com a forma ubi sunt lembra Jorge Manrique (século XVI),
SIETE (p. 186), o eu lírico narra, em poética parábola, o nascimento que em Coplas por la muerte de su padre, questiona o
do homem como resultado de várias substâncias, constatando que desaparecimento dos seres queridos, de forma a assinalar a
não há entre os seres humanos diferenças dignas de observação, transitoriedade da vida: “Recuerde el alma dormida/ avive el seso
que no essencial o homem é igual a outro homem e que no caráter y despierte/ contemplando/ cómo se pasa la vida,/ cómo se viene
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la muerte/ tan callando,/ cuán presto se va el placer,/ cómo, La eternidad es el tiempo que tarda la luz en recorrer
después de acordado,/ da dolor;” (MANRIQUE, 2014). Nos dois el espacio infinito,
poemas identifica-se a situação vivida ao tempo de cada um: la infinitud es el extremo espacio
Pero dónde están los huérfanos, que la luz alcanza en su eterno recorrido;
dónde las viudas de los obreros muertos en el tajo; se explican juntas ambas […] (p. 10)
qué ocurre con los padres y hermanos, No poema OCHO o eu lírico apresenta a vida que nasce “sosegada,
qué hay de los familiares, de los amigos y compañeros; selectiva/imparable” na terra onde Pedro Sevylla de Juana nasceu,
y de todos cuantos amamos
Valdepero “piedra angular, síntesis, columna”, a terra onde se
aquí, allá y acullá,
juntam La Tierra de Campos e El Cerrato. Valdepero, de “valles,
a los obreros muertos en el tajo (p. 203-204).
páramo, llanura” “provincia” de Palencia, na Espanha, onde
Entre os vários poetas e seus “cantos humanos” a que o “floreciera una especie humanizada/ capaz de llorar ante el
autor faz referência não está arrolado o nome de Borges, crepúsculo / y de sonreír al Alba” (p. 15). Não cabe fazer aqui
intertextualmente presente, no entanto, pelo tema da eternidade interpretação que associe autor ficcional com autor real, mas é
e da biblioteca no tom confessional de Sevylla: “Hay poemas que inevitável sentir a pulsação da terra do poeta na sua escritura.
dicen todo de los caminos borrados,/ de los pasos perdidos,/ O poeta recria o seu próprio mundo poético e histórico.
firmados por...” (p. 216). Menciona lugares de Castela que guardam a história dos primeiros
Como já observamos, a polifonia se faz presente já na habitantes e terras vizinhas de Valdepero. Tierra de Campos (lugar
inauguração dos versos de Elipse de los tiempos, quando em onde os visigodos se fixaram no século V e que era conhecido na
“Amanecer de amaneceres”, composto de 25 poemas, Sevylla de Idade Media como Campos Góticos) e Cerrato (lugar onde viveram
Juana faz a sua Valdepero um canto cuja técnica estilística reporta os primeiros povos com presença estável no planalto de Castilha
a El canto general de Pablo Neruda (1949), já que nos dois textos do norte (planalto do vale do Doro, do grupo celta peninsular, de
a terra, nasce, cresce, sofre e se modifica. A Bíblia é ainda outra origem centro-europeia, com atividade agrícola), como
fonte de intertextualidade: em Sevylla de Juana o “Faça-se a luz”, documenta a História. O poeta menciona a agricultura desses
do Gênesis, 3, transforma-se, no poema UNO, em fusão eterna de povos e a paisagem árida da “Meseta Castellana”, a escassa flora e
espaço e luz. O eu poético expande o espaço, na imagem da fauna e a terra árida da planície: “
primitiva rosa dos ventos e o tempo é infinito. Las últimas encinas del monte confinan el espacio
En su propio final inalcanzable alrededor no hay nada:
se enraíza el imposible principio del tiempo un agujero informe y vacío,
y los bordes del espacio se alejan a la velocidad de la luz una liviana noche de soledad,
siguiendo los treinta y dos rumbos de la rosa de los el profundo abismo.
vientos. Un suelo sin piedad, un cielo azul cruzado de gorriones
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un siglo y otro iguales, costillares, calaveras/ pertenecientes a valerosos soldados:/


el firmamento apoyado en el páramo y el monte muertos en ataque, muertos en defensa.”
y sobre él No último poema, CIENTO CINCUENTA Y NUEVE, que
la eternidad de los días cercados por las noches. (p. 14-15). podemos considerar a última seção –“Epílogo”–, o eu lírico faz, em
A temática dolorida do eu lírico sobre Valdepero (Palencia) forma de metapoesia, uma confissão sobre a origem de sua
nos lembra os poemas de Antonio Machado sobre uma sofrida poética, que estaria no poema inconcluso da humanidade,
Castilla. A partir da povoação da terra, o poeta apresenta o encontrado por ele na Biblioteca Nacional, e a cuja construção vai
surgimento da palavra, da agricultura e dos elementos que fazer o seu aporte, porque todos os poemas são um único poema,
ajudarão na fertilidade da terra: a água, o sol e o vento. Elementos independentemente da forma, condição, espaço ou tempo em que
da sobrevivência: o alimento do corpo e a comunicação e o tenha sido produzido:
alimento espiritual do homem: os mitos. Yo añado estos versos a los tuyos,
Sabemos que podemos suspirar pelo passado, ter dele escritos en papel pautado,
saudades, mas sabemos também que as expectativas só apontam en los blancos muros,
en el agua clara y en la suave arena;
para o futuro e que o retorno não acontecerá, que todo “bom
para alargar el Poema interminable
tempo” morre como desaparece também o tempo funesto. Para
que escriben los poetas,
alcançar a eternização do tempo o poeta cria o mito, porque o conocidos y anónimos de todos los tiempos,
tempo mítico não morre; repete-se, incansavelmente, no “eterno de todas las razas y creencias. (p. 217)
retorno”. O tempo mítico encarna-se. É uma realidade. Assim
Valdepero é o arquétipo de Crono – passado, presente e futuro –; Bachelar (1988b, p 165-167) declara que aquele que está
é o tempo que se faz uno no presente mítico dos poemas de Sevylla impregnado de solidão se faz sonhador do mundo e que “nunca
de Juana. teremos visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que
No poema DIECIOCHO (p. 23-24) os deuses de Valdepero víamos” e explica que “em seu devaneio solitário, o sonhador de
aparecem esculpidos com cinzel “con el buril de las devaneio cósmico é o verdadeiro sujeito do verbo contemplar, a
conveniencias”: Aiana – deusa da Felicidade e da Harmonia, do primeira testemunha do poder da contemplação”. Pedro Sevylla
Amor e do Equilíbrio, e Pergio, o primeiro agricultor, que gerou de Juana, longe de seu torrão natal, sonha com ele e o torna
Muradis. Lamenta o poeta, no poema VEINTICUATRO (p. 30-31), cósmico. O uno se torna o todo. Intensamente humano, o poeta
que em Taragudo, ‘Uma elevação de terreno de Valdepero´, não sofre com a mutação espaço/temporal e a incapacidade do
haja mais vestígio do Templo, que só exista o cemitério com os homem de conseguir resolver os problemas de seu entorno,
ossos de “toros y caballos ofrecidos en holocausto,/ cúbitos, tibias, porque, explica o eu lírico, “[...] nadie fue capaz de doblegar a las
espigas/ y menos aún de desgranarlas,/ las raíces eran habitual
alimento/ y el gélido frío inseparable compañero” (p. 15).
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Podemos dizer enfim que, humano e sensível, o poeta é “capaz de PLATÃO. Manon. Banquete. Fedro. Rio de Janeiro: Tecnoprint,
llorar ante el crepúsculo y de sonreír al alba” (p. 15), político e 19??.
solidário com a humanidade sofrida, se identifica com ela e, de
forma poética, denuncia a visível realidade, por ela sofre, e tenta PESSOA, Fernando. Ode maritima. In: ______ O eu profundo e os
consolar-se da dor de existir por meio dos caminhos poéticos. outros eus. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006, p. 261-290.

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demais-por-pedro. html. Acesso em 02 de fevereiro de 2014.
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Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/
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PAZ Octavio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. 2. ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
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DIÁLOGO ENTRE LA NOVELA “LOS DÍAS DEL ARCO IRIS” DE las novelas anteriores (Ardiente paciencia, No pasó nada, El baile
SKÁRMETA Y LA PELÍCULA “NO” DE LARRAÍN de la Victoria), la preferencia que demuestra Skármeta por los
Ester Myriam Rojas Osorio héroes jóvenes, entendemos que para ellos los grandes conflictos,
UNESP/ASSIS las tragedias, los dramas personales o sociales no significan que
deban dejar de lado el valor de la vida cotidiana como: amigos,
En este trabajo volvemos a sentir el sabor del teclado escuela, admiración por los ídolos de la música, del cine o de la
ideológico de Skármeta, autor chileno que una vez más nos ofrece televisión, los primeros encuentros sentimentales, el despertar
con maestría el juego del arte y el juego de la vida con el que para la vida sexual, etc. Todo esto hace que la situación histórica
contribuye en la conservación de la memoria histórica de la por más crítica que parezca, gracias al baño constante de
sociedad chilena de la década de 1980. Esta obra fue adaptada al espontaneidad juvenil de los personajes, se siente una sutileza en
cine por el Director Pablo Larraín, que al hacer su propia lectura, la narración estética. Como decía Bakhtin, para vivir tenemos que
suma su postura estética y axiológica, ofreciendo como resultado, ser inconclusos, estar siempre abiertos a nuevas posibilidades.
una bellísima película que discute el fin de la dictadura de Pinochet El personaje vive cognoscitiva y éticamente, sus acciones se
como consecuencia del plebiscito de 1988. mueven dentro del abierto acontecimiento ético de la vida o
Para establecer ese diálogo contamos con el apoyo teórico dentro del mundo determinado de la conciencia; es el autor que
de Mikhail Bakhtin que ve la obra literaria como una unidad está dirigiendo a su personaje y a su orientación ética y
ficcional producto de una construcción de sentidos, en este cognoscitiva en el mundo fundamentalmente concluido del ser,
diálogo, lidiamos con algunos conceptos teóricos como: autor, que es un valor aparte en la futura orientación del acontecimiento,
autoría, héroe, ideología, polifonía, etc. Parte del trabajo del autor debido a la heterogeneidad concreta de la existencia. (BAKHTIN,
Skármeta lo desvendamos en el prólogo de otra de sus novelas, 2001, p. 22)
“No pasó nada”, donde él declara. Cortazar en una ocasión se manifestó al respecto: “La
Soy de la clase de escritor que hace sus ficciones en primer literatura siempre es una expresión de la realidad por más
lugar con las emociones de su experiencia personal. La imaginativo que sea” (CORTAZAR, 2001, p.207).
historia me deparó el trance de ser testigo de En esta obra, la voz del estudiante Nico Santos, hijo del
acontecimientos mayúsculos que animaron o destrozaron profesor de filosofía del Instituto Nacional de Santiago, nos coloca
las vidas cotidianas de mis personajes. (SKÁRMETA, 2003,
al tanto de la realidad socio histórica de la sociedad santiaguina de
p.13)
la década de 1980. En ese momento, el dictador Pinochet después
Es el mismo escritor el que entrega el secreto de su trabajo, de 15 años en el poder, decide ofrecer una abertura política por
se posiciona axiológicamente frente a su propia vida, consigue dar medio de un plebiscito. De esta forma, los ciudadanos podían votar
voz al héroe que está a su lado, sin embargo, ese nunca será “SÍ”, si estaban de acuerdo con la continuación de la dictadura, y,
confundido con el autor dentro de la obra. Conocemos, gracias a
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“NO”, si eran a favor de una elección democrática para escoger un cosas reales. Pero si salieran de la caverna y vieran las
nuevo presidente. Como primer acto democrático él permitiera cosas bajo la luz del mismo sol se darían cuenta de que han
una campaña publicitaria en la televisión de 15 minutos. En 15 vivido en un mundo de apariencias y lo que tenían por
minutos la oposición, formada por 16 partidos políticos, podría cierto es un pálido reflejo de la realidad. (SKÁRMETA;
2011, p.10)
convencer al resto del país que los 15 años de dictadura no habrían
valido la pena. Nuestro héroe, el joven adolescente, relaciona la vida del ciudadano
A pesar de la sensación de holganza de la rigidez que chileno víctima de una dictadura durante quince años, con la vida que llevaría
el prisionero de la caverna de Platón, la vida sin libertad equivaldría a una vida
intentaba transmitir la fuerza policial del régimen de Pinochet, la sin luz, esta sería brillante e iluminada si existiese la real posibilidad de una
firmeza de esa continuaba manteniendo el tono. De hecho, opción democrática.
frecuentemente, se dejaba caer de improviso en la escuela de
Nico, primero para buscar al profesor Santos (padre de Nico), más
tarde para coger al profesor Paredes, ambos docentes
intelectuales, declarados peligrosos por la dictadura. En ese
escenario se mueve Nico, nuestro héroe, que constantemente
dialoga con sus conflictos interiores, con sus inquietudes de
adolescente, con sus verdades ideológicas y filosóficas, con sus
miedos y sus descubiertas en el campo del amor, etc. Vemos que
no es fácil mantener la supuesta vida normal que debía llevar Nico,
ante el desaparecimiento de su padre. Ese hecho se hacía habitual
para aquellos jóvenes que perdían sus padres para el régimen
dictatorial, y, debían tantear una salida de superación y afirmación
personal. Aquí llamamos la atención de cómo la novela de
aprendizaje muestra el camino de la superación social del
personaje, sobre, todo ante el diálogo significativo que Nico
establece con el mito filosófico de la caverna de Platón, mito oído
de la voz de su padre diversas veces.
Los hombres vivimos como zombis mirando contra la
La misma voz del joven Nico nos presenta otro personaje
pared de una caverna las cosas que pasan, que no son
nada más que las sombras de las cosas reales proyectadas fundamental, se trata de Adrián Bettini, padre de Patricia, su
por un fuego contra el fondo. Esos hombres, que nunca enamorada. El insuperable publicitario que en ese momento
han visto las cosas de verdad, creen que las sombras son responde a la realidad de un profesional desempleado, como
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tantos otros que no están de acuerdo con la dictadura de Pinochet. Americana, que en esa década se encontraba intentando la
Aún en esa condición, Bettini, será convidado a desarrollar la transición de los regímenes militares para la democracia.
campaña publicitaria del plebiscito por las dos fuerzas opuestas, la Aparecem programas econômicos austeros, se vê
fuerza de la dictadura y la fuerza de la oposición – “La crescimento na economia de mercado, mas também, se
concertación”- formada por dieciséis partidos políticos. Mostrando conhecem as exigências da Casa Branca a respeito da
un indescriptible coraje, el profesional rechaza la propuesta del previdência social, reforma tributária, reforma fiscal, etc.
Como resultado de todas essas reformas, os projetos de
gobierno y acepta la propuesta del grupo de oposición. De ahí en
índole social vão perdendo validade. (OSORIO,2008, p.42)
adelante, su tarea consiste en desarrollar una campaña
publicitaria con la cual consiga convencer a la sociedad chilena, De esa forma, nuestro héroe llega a la conclusión que
que la opción “NO” sería la mejor para todos. delante la voz publicitaria de la hegemonía burguesa, que
En ese momento, Bettini se detiene a hacer un análisis funcionaba tan bien como parte del aparato represivo, que
sobre la situación actual del país, y llega a la conclusión que existe imponía falsas necesidades y falsos deseos a la sociedad, él debería
un pesimismo general en una sociedad habituada a obedecer sin presentar un producto totalmente nuevo y original. Podemos
levantar más controversias, ni cuestionar más el período de quince recordar que el hombre según Bakhtin y Thompson, es un animal
años cumplidos por la dictadura, no existe esperanza entre la retenido en telas de significación tejidas por él mismo, y que la
población y se le ve resignada a su destino. comunicación difundida a través de medios de información
Por otro lado, le llegaban a Adrián las contribuciones de siempre es un fenómeno social contextualizado. Así, de esa forma,
voluntarios para la campaña, ellos narraban las desgracias sufridas nuestro héroe, queda convencido de que podría utilizar la
durante el gobierno autoritario: hijos desaparecidos, mujeres comunicación y la tecnología a su favor y que gracias a ambas él
estupradas, ancianos desamparados, hombres y mujeres alcanzaría sus objetivos. “La comunicación mediada es siempre un
torturadas, jóvenes expulsados de las universidades, niños fenómeno social contextualizado: es siempre implantada en
pasando necesidades, etc. El publicitario, angustiado, asistía la contextos sociales que se estructuran de diversas formas y que a su
apatía política mostrada por la población chilena. vez, producen impacto en la comunicación que ocurre.
Al fijar la mirada sobre la publicidad vehiculada por la (THOMSOM, 2008, p.20)
televisión de los años ochenta, el especialista ve que la propaganda Como vemos, la responsabilidad que pesaba en los
solamente ofrece productos como: lápiz labial, perfumes, jeans, hombros del personaje era gigantesca, pero gracias a la
zapatillas de marca, leche de vida prolongada, gafas, viajes de orientación de su creador, él encuentra el camino como producir y
turismo, créditos bancarios, universidades privadas, etc. Todo esto reproducir formas simbólicas y transmitir este contenido simbólico
reflejaba no solo la realidad chilena, sino la realidad Latino para la población, unión y sobre todo alegría.
Así nació la campaña del “NO” que ofrecía felicidad,
perspectivas de futuro, unión, y sobre todo alegría, todo aquello
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que la sociedad chilena había perdido desde hacía quince años. La película de Pablo Larraín
Una música al compás de Strauss animaba esta campaña que Primero que nada, tendremos presente que el director de
llegaba envuelta por los colores del Arco Iris, simbolizando los la película no sólo se vale de los enunciados escritos o hablados
diferentes partidos políticos de la oposición. para transmitir su mensaje, sino que echa mano también, del
Esa campaña de apariencia pueril conseguía despertar, en lenguaje polifónico propio del séptimo arte: música, danza, juegos
aquellas personas que se quedaban frente a la televisión sintiendo de luces, colores, documentales auténticos de la TV de la época.
que los seres ficticios eran más reales que ellos mismos, la alegría Todos esos recursos ayudan a motivar una postura crítica del
y les renovaba las ganas de vivir. Como resultado de esa campaña espectador, que a su vez, hace una lectura interpretativa en que
de rostro sencillo e inocente, la dictadura de Pinochet se ve suma su conocimiento humano a la relación con el mundo real en
obligada a abrir mano del poder y se ve obligada a llamar a que vive. De esta forma, intentamos desvendar la relación
elecciones democráticas, acontecimiento donde sería escogido dialógica que nos entrega Larraín con la realidad histórica de Chile,
más tarde el presidente Patricio Alwyn (1990-1994). que se entrelaza con la historia personal del joven publicitario
Durante el desarrollo de la campaña, otro personaje René Saavedra, ejecutivo que asume la tarea de liderar la campaña
presentado por Nico fue la figura del “Che Barrios”, joven publicitaria del “NO”. Llamamos la atención a la fuente de
repatriado recientemente, que había permanecido algunos años inspiración que el director tuvo espejándose en el personaje de la
en Argentina como técnico en sonido y desempeñaba un papel novela, el Che Barrios, joven que se había repatriado muy
importante en el área técnica de la campaña. recientemente, y que es una figura que se destaca como técnico
Nico, que ese año terminaba la escuela secundaria, en sonido durante la campaña.
disfrutaba su gran pasión por Patricia Bettini, hija de Adrián, que René Saavedra también es muy joven, sin embargo es
estudiaba en la Escuela Italiana. Ella era una chica romántica, que divorciado y cuida de su hijo de aproximadamente de seis años. Su
idealizaba la vida, algunos de sus sueños de adolescente eran: ex mujer, una activista de oposición al gobierno militar,
ingresar a la universidad, ver el fin de la dictadura e iniciar su vida constantemente es presa y torturada por las fuerzas de la
sexual con Nico, todo esto en perfecta armonía como en un vals. dictadura. Saavedra se vale de su prestigio y amistades para
De esa forma, el creador nos proporciona un dulce desenlace para libertarla. Vemos aquí dos diálogos importantes: primero, el
todos los conflictos sociales y generacionales presentados en su análisis de las familias posmodernas formadas por: ex esposa, ex
ficción. Con ese mensaje de optimismo y presentando el sexo, una marido, nuevo compañero de la madre e hijo, este nuevo núcleo
vez más, como un acto libertador, el autor encierra su novela. muestra fuertes lazos de unión y no demuestran ninguna clase de
resentimientos; segundo, el latente conflicto entre dos fuerzas
opuestas: el gobierno y la oposición, esta, que a pesar de haber
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sufrido tanta violencia, no desiste de clamar por libertad de Larraín ya había concedido voz a otros protagonistas para
expresión. repasar la historia vivida por el pueblo chileno bajo la cruel
La película llama la atención del espectador y le recuerda dictadura de Pinochet. En “Tony Manero”, película Chileno-
que el general Pinochet había gobernado el país con mano de Brasileña de 2008, que vive los obscuros años de la dictadura
hierro durante quince años. La dictadura había comenzado el año (1978), nos presentaba el psicótico, obsesivo y perturbado actor
1973, cuando las fuerzas armadas chilenas, junto a una elite que quiere ser otro, o sea, aquel que brilla en las discotecas del
burguesa, más el apoyo de los medios de comunicación y mundo, Tony Manero quiere ser John Travolta, que es rico,
sobretodo de la CIA Americana, asumieron las dirección del famoso, poderoso, que tiene el poder de consumir, o sea, que
gobierno chileno por medio de un golpe militar. posee la felicidad. Queda nuevamente en evidencia que el
El director coloca su foco en la mirada del publicitario concepto de felicidad como poder de consumo surge al final de la
recién llegado del exilio, profesional que entiende que su trabajo década de 1970.
consiste en vender un producto. Su éxito aconteció al conseguir En “Post Mortem”, filmada en 2010, la voz queda a cargo
vender una ideología a través de los símbolos: alegría, felicidad, de Mario Cornejo, auxiliar forense encargado de transcribir las
música, optimismo. O sea que el protagonista consigue prometer autopsias durante el golpe militar, entre ellas, este auxiliar
un país más feliz sin Pinochet, y decir en las entre líneas: sin más transcribe, sin ninguna conciencia la autopsia del fallecido
violaciones de los derechos humanos, sin odio, sin violencia, sin presidente Allende. Por esas tres películas –Tony Manero, Post
miedo. Esa alegría remarcaría un renacer social. Mortem y No- este director ganó una serie de premios
internacionales. Con la película “NO” concurrió al Oscar de mejor
película extranjera en 2012.
Un aspecto importante, que el director presenta en la
película, es el proporcionar voz a los artistas, los que consiguen
manifestarse y protestar. De esa forma, aparecen entre muchos
otros gritos oprimidos las voces de los artistas que sufrieron
persecución y fueron condenados a quedarse en silencio por
tantos años.

Conclusión
En este trabajo hemos dialogado con las obras de Skármeta
y Larraín, dejamos claro que ambas obras ayudan a rescatar la
memoria histórica de Chile, declaramos que estamos totalmente
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conscientes que las dos obras estéticas hacen brillantemente el OSORIO, E. M. R. (Org) Bakhtin na Prática- Leituras de mundo. São
juego del arte y el juego de la vida, nuestro apoyo teórico fueron Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2008.
algunos conceptos de la teoría Bakhtiniana, tales como: novela,
autor-autoría, dialogía, polifonía, etc. THOMPSOM, J.B. A Mídia e a Modernidade- Uma teoria social da
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FUSIÓN MÍTICA: EL OBSCENO PÁJARO DE LA NOCHE Y EL MITO de Don Jerónimo de Azcoitía. Humberto Peñaloza es un sin rostro,
DEL MINOTAURO un personaje marginalizado aun cuando la novela se centre en él,
Farides Lugo Zuleta hace parte de una masa de figuras sin identidades definidas y sin
FURG ninguna trascendencia en la sociedad, es un casi neo-esclavo de
Don Jerónimo de Azcoitía, quien, por su parte, pertenece a una
Mi experiencia con el Obsceno Pájaro de la Noche (OPN) de familia tradicional de influencia política, un nacido en cuna de oro,
José Donoso inició en 2007, cuando un compañero de la Facultad un triunfador: "He perdido mi forma (Humberto Peñaloza), no
de Ciencias Humanas (UNAL) puso en mis manos un viejo ejemplar tengo límites definidos, soy fluctuante, cambiante, como visto a
de la obra. Yo le pregunté: "¿De qué trata? ¿Es buena?". Y él me través de agua en movimiento que me deforma hasta que yo ya no
respondió: "Sí, es más o menos la historia de una casa". Inicié la soy yo, soy este vago crepúsculo de conciencia poblado de figuras
lectura por esos días y la culminaría dos años después, ya que blancas" (DONOSO, 1985, p. 272).
siempre que llegaba a la mitad de la novela me detenía para volver La relación conflictiva entre estos dos personajes mostrará
al inicio, yo no quería terminar de padecer y disfrutar con este mucho de nuestra historia, una Latinoamérica con familias de
texto. En 2009 me inscribí al Seminario de Mito Clásico y Literatura apellidos tradicionales en las que el poder se traspasa, se hereda
Latinoamericana que dictaba Jorge Enrique Rojas Otálora en la desde la Colonia y en donde los excluidos paradójicamente somos
Universidad Nacional de Colombia, en el marco de esa casi todos. Sin embargo, la relación entre Humberto y Jerónimo no
investigación trabajé mi monografía de grado en 2010 y, ahora, es completamente vertical, aquí entra en juego la estrategia
pretendo compartir sucintamente cuáles fueron algunas de las paradójica de Donoso al presentar la concepción de poder: en
ideas que hicieron parte de mi obsesión. ocasiones dentro del universo narrativo del OPN, quien es
El análisis propuesto tiene tres ejes integradores: la novela explotador será atravesado por la dependencia que crea hacia esas
El Obsceno Pájaro de la Noche, el mito clásico del Minotauro y el mismas personas que están ubicandas en una posición inferior, al
concepto “fusión mítica” propuesto por el escritor y filólogo punto en que Humberto jugará (o creerá jugar) un papel esencial
español Antonio Prieto (1929) en su obra "Ensayo semiológico de en la vida de Jerónimo: "¿Cómo no va a quedarme la marca que
sistemas literarios". El objetivo general consiste en mostrar cómo me recuerda que mil ojos, anónimos, como los míos, fueron
entre esta novela chilena y el mito clásico mencionado existe lo testigos que yo (Humberto Peñaloza) soy Jerónimo de Azcoitía? Yo
que Prieto denomina como “fusión mítica”. no me robé su identidad. Ellos me la confirieron" (DONOSO, 1985,
Yo no me atrevería a simplificar El Obsceno Pájaro de la p. 205).
Noche a la historia de una casa. Después de mis lecturas esta obra Con el fin de entender mejor una primera relación entre el
vino a presentar la relación problemática de Humberto Peñaloza, mito y la novela, identifiqué una serie de puntos de confluencia
su personaje principal, con el poder, concentrado en el personaje que denominé como "Proyecto Minotauro". Por ser el argumento
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de El Obsceno Pájaro de la Noche tan ramificado y rico, con más de llamada La Rinconada; serían bien pagos mas no podrían salir:
ochenta personajes que intervienen, sólo trabajaré aquí con el "Acudieron monstruos de todas partes, bajaron de las montañas y
aparte específico para el análisis planteado. "Proyecto Minotauro" salieron de los bosques y subieron de los sótanos, llegando a veces
vendría a ser el plan de Don Jerónimo de Azcoitía para esconder en desde regiones remotas y hasta del extranjero para suplicar que a
La Rinconada a su único hijo que ha nacido deforme, lo que debió ellos también les permitieran ingresar a ese paraíso que don
ser una gran alegría, pues llevaba años intentando engendrar con Jerónimo de Azcoitía estaba creando" (DONOSO, 1985, p. 233).
su esposa Inés, se convirtió en una amenaza a su condición social El trabajo propuesto para ellos durante el encierro
y una posibilidad de burla y humillación. Boy, el niño anhelado por voluntario consistiría en acompañar a Boy durante sus años
una pareja de ensueño, nace así: sobrevividos y hacerle creer al niño que la monstruosidad es el
Desde el punto de vista científico, lo confirmaron los orden del universo:
expertos, el nacimiento de Boy era una aberración: ese Nada de lo que rodeara a Boy debía ser feo, nada mezquino
gargolismo que le encogía el cuerpo y le encorvaba la nariz ni innoble. Una cosa es la fealdad. Pero otra cosa muy
y la mandíbula como ganchos, ese labio leporino que le distinta, con un alcance semejante pero invertido al alcance
abría la cara como la carne de una fruta hasta el paladar… de la belleza, es la monstruosidad, por lo tanto merecía
increíble, inaceptable, dijeron los médicos, los niños- prerrogativas también semejantes. Y la monstruosidad iba a
gárgola sólo viven días, cuando mucho semanas, este caso ser lo único que, desde su nacimiento don Jerónimo de
de labio leporino es inaudito, esta joroba, estas piernas, si Azcoitía iba a proponer a su hijo. (DONOSO, 1985, p. 231)
parece que todos los defectos posibles estuvieran
congregados en este cuerpo, no, usted, don Jerónimo, El único puente entre la casa y lo que conocemos como el
tiene que conformarse con la idea de que su hijo morirá, y “mundo real” sería Humberto Peñaloza, quien no sufre ninguna
quizás sea para mejor, imagínese el destino de un ser como incapacidad ni deformación, y termina como el encargado de
éste. (DONOSO, 1985, p. 241) administrar la casa y abastecerla; oficio que lo convertirá en un
preso más del laberinto y denigrará aún más su condición ante don
Ante la deformidad de Boy, su padre siente un profundo
Jerónimo: “Las reglas del juego que don Jerónimo y yo, sí, yo
rechazo y empieza a planear la mejor forma de deshacerse de su
mismo inventé las reglas de este juego que me ha atrapado con un
presencia y evitar que su heredero sea conocido por la sociedad
gancho que me está haciendo sangrar” (DONOSO, 1985, p. 254).
implacable en las críticas. Humberto Peñaloza será una pieza clave
Así, con este “Proyecto Minotauro”, Boy vivirá en un
para desarrollar este plan. Jerónimo abre convocatoria para todos
mundo de valores estéticos invertidos, para él Humberto será un
los fenómenos de la zona y cientos de personajes de circo
monstruo al poseer una armoniosa simetría corporal, no sabrá del
aparecen: enanos, mujeres barbudas, hombres elásticos, hombres
mundo exterior, del origen y el fin de la vida y creerá que todo lo
cocodrilos, mujeres más grandes del mundo y la lista continúa.
ve sólo existe en ese preciso instante: “Era una sola exigencia: que
Todos vivirían encerrados en una casa enorme, laberíntica,
Boy jamás sospechara la existencia del color y del placer, de la
P á g i n a | 365

dicha y de la desgracia, de lo que ocultaban las paredes de su albergaba los ofrecimientos humanos al Minotauro, este hecho
mundo artificial, ni oyera desde lejos el rumor de la música” tenía su explicación en el deseo de expiar la muerte de Androgeón,
(DONOSO, 1985, p. 235). hijo del rey Minos. Si en el OPN el proyecto es resguardar a Boy
Todo este pasaje de la novela me hizo pensar (Minotauro), aquí el proyecto es matar al Minotauro, la idea es
inmediatamente en el mito clásico, yo lo vi desde el inicio como darle muerte al monstruo; Ariadna, su medio-hermana será una
una re-creación, una re-construcción, una actualización del mito colaboradora (como Humberto) para tal objetivo:
tan conocido por nosotros en un contexto por esencia Que tu brazo cruel, armado con una espada, no hubiese,
latinoamericano. Don Jerónimo de Azcoitía es un Minos: padre, ¡Oh! Teseo, inmolado al monstruo, mitad hombre, mitad
poderoso, reconocido, influyente, forjador de impensables toro [...] No me sorprende, al final, que la victoria haya sido
proyectos, cuidador de su imagen, privador de la libertad, cruel. tuya y que el monstruo haya manchado con su sangre la
tierra de Creta, su cuerno no podía perforar un corazón de
Boy es un Minotauro: ser despreciado por su apariencia, híbrido,
hierro, sin escudo, tu pecho te bastaba como defensa [...]
mitad hombre, mitad animal, creación imposible de integrarse que
Cuando fueres recibido en tu patria, de tu alta morada verás
debe ser aislada, ocultada, producto vergonzoso, niño-gárgola. la multitud comprimiéndose para oírte contar
De este modo, entró en juego el segundo eje que pomposamente la muerte del monstruo, mitad toro mitad
mencioné, tenía en mis manos una novela apasionante, encontré hombre. (OVIDIO, p. 125)
en ella una fuerte relación con el mito del Minotauro, y sentí que
En Las Traquinías de Sófocles tenemos una alusión fuerte
necesitaba más datos sobre el mito para confirmar que los puntos
a la familia de los sauros, pues un centauro engaña a Deyanira al
de encuentro no eran simple casualidad. El Minotauro, esa figura
entregarle un supuesto filtro de amor, que no es otra cosa que su
animal-hombre, ¿u hombre-animal? ¿Cuál sería el orden correcto
propia sangre, que termina asesinando a Hércules, quien había
por importancia?, de la mitología griega, híbrido, ser de la familia
despertado los celos de su esposa al tener como preferida a su
de los “sauros”, productos maravillosos de los tiempos remotos de
concubina Íole.
la formación del universo, nos remiten a un mundo primitivo,
Rescato las anotaciones de Pedro Sánchez de Viana que
mítico y en plena formación. Pude rastrear sus apariciones en los
datan de 1589 sobre Minos y el Minotauro, su libro antiguo está
textos clásicos: Minotauro de Las Cartas de amor, Las Heróides de
entre los ejemplares raros de la Biblioteca Nacional de Rio de
Ovidio; Minotauro presente en el poema 64 de Catulo; Minotauro
Janeiro. Los apartes 8.8 y 7.37.1.8 están dedicados a comentar
de Plutarco en el Teseo de Vidas Paralelas; Minotauro del Infierno
sobre el Minotauro y Minos, respectivamente. La cita a
de la Divina Comedia de Dante, entre otros.
continuación tiene el contexto mitológico en donde Minos es el
Pasaré a detallar algunas apariciones: en Cartas de amor de
hijo de Europa y Júpiter, dato que se presenta en el libro séptimo
Ovidio tenemos la presentación de lo ocurrido entre Teseo y
de Las Metamorfosis de Ovidio; y de cómo Pasifae junto con un
Ariadna, cómo él entró al inextricable laberinto que cada año
toro engendran al Minotauro. Por lo tanto, aparece una nueva
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relación con el OPN ya que tanto Minos como don Jerónimo no son Para culminar con los ejemplos en el rastreo de fuentes,
los padres legítimos del monstruo, en la citación se puede apreciar, presento el caso de La divina comedia de Dante. Al inicio del Canto
también, cómo Androgeón sí es el hijo amado por Minos, en XII encontré otra aparición del Minotauro, quien estaba en el
contraste con el Minotauro y Boy que son alejados de la sociedad primer giro del séptimo círculo, lugar destinado para los violentos
y condenados por sus “padres” al encierro: contras las personas. El Minotauro aparece aquí como una criatura
Pretende Minos, que aunque muy valido, etc. Acabando de feroz que se lastima a sí mismo a causa de su incontenible ira, los
contar el poeta los combates, sacrificios y alabanzas, que poetas se encuentran con él y se torna aún más colérico por miedo
anfi* en el palacio real de Egeo, como en toda Athenas se a Dante, quien está vivo mientras explora el mundo de los
celebraban por la buena venida del valentísimo Teseo. Y muertos; Virgilio, entonces, se encarga de explicar la condición de
estando todos con mucho regocijo, dice el Ovidio, que a
la bestia.
este punto tuvo nueva Egeo de la furia con que el rey Minos
Con el fin de sintetizar, puedo afirmar que encontré ciertas
le comenzaba a perseguir, armado de gran número de
gente, por mar, y por tierra, pero mucho más de ira confluencias en las versiones antiguas. En general, el Minotauro
paternal, que contra aquel rey no tenía, por la muerte de un clásico, a pesar de ser un híbrido entre animal y hombre, tiene
ínclito Príncipe hijo suyo, llamado Androgeo, mostrándonos prácticamente anulado su componente humano y casi siempre se
la fortuna en semejantes ejemplos, cuan cerca del contento presenta sólo como un animal, una bestia, un monstruo salvaje, un
anda el disgusto, como arriba dijimos: Para hacer Minos su enfurecido, un devorador. Sólo la Ariadna de Ovidio se refiere a él,
fortuna discretamente, convocó las ciudades comarcanas, en ocasiones, como “mi hermano”, es lo más cercano al trato
en favor suyo y atrajo a Anapho con ruegos y promesas: humano que pude encontrar.
pero su fuerza hizo venir a Astipalea, y viendo esto se le Para mí resultó fascinante cuando miré hacia
rindieron Micon, Cimoli la gredosa, y la florida Siphnon la Latinoamérica y encontré versiones del Minotauro como la de Julio
llama Syruphnon, con la famosa Paros.
Cortázar en su única obra de teatro “Los Reyes” de 1949, donde
Del valeroso Androgeo, etc. esta figura mitológica tergiversa por completo lo que conocíamos
Fue este Androgeo hijo de Minos Rey de Creta nobilísimo de de él y resulta nunca haber devorado a los jóvenes que se le
condición, y por envidia de los Magarenfes, y Athenienses entregaban como sacrificio para aplacar la plaga ocurrida después
muerto, porque había en el juego de la palestra vencido a de la muerte de Androgeón. En el laberinto, entonces, lo que existe
los demás. Por lo cual su padre * la batalla, y habiendo es una fraternidad intelectual y artística liderada por el Minotauro,
vencido a los Megarenses, hizo tributarios a los de Athenas, más hombre que bestia. Por su parte, Jorge Luis Borges en su
y en memoria de Androgeo mandó que cada año echasen al cuento “La casa de Asterión” de 1947, dos años antes de Cortázar,
Minotauro (de quien presto diremos) cierto número de también nos muestra un Minotauro mucho más humanizado que
mozos Atenienses, para que el cruel monstro comiese, de espera paciente a su redentor mientras juega por su casa laberinto,
esto hace mención Virgilio. (SÁNCHEZ, 1589, p. 151)
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sus manos no se ensangrientan nunca y permite que Teseo lo mate Minotauro; ya tenía la certeza de que ambos textos estaban
sin oponer ninguna resistencia. En El Obsceno Pájaro de la Noche dialogando con varios siglos entre ellos, sólo me faltaba un gancho
tenemos un Minotauro en Boy, niño adorado y protegido al teórico que los uniese, y el concepto que le dio soporte a mi idea
extremo por todos los fenómenos que tomaron la decisión de fue el de “fusión mítica” propuesto por Antonio Prieto, mi tercer
encerrarse en la casa laberíntica de José Donoso. eje arriba mencionado. Necesitaba ver al mito no bajo la definición
No puedo concluir por ello que Latinoamérica sea el lugar tradicional de texto cuya función es explicar el origen de algo, sino
propicio para la tergiversación de mitos clásicos, pero sí pareciera como un sistema de representación cultural, ir más allá al verlo y
que con este ejemplo del Minotauro se estuviese afirmando una entenderlo como un conjunto de simbologías que pueden o no
naturaleza híbrida que encuentra lugar en la literatura, donde sí explicarnos. No quería solamente quedarme afirmando que esta
habría espacio para las identidades compartidas, para un novela utilizaba al mito para narrar, sino que quería pensar en qué
Minotauro más hombre que bestia sin pretensión de formas puras. le aportaba Donoso al mito, cómo se acercaban ambos textos,
Esa actualización del Minotauro, esa adopción y humanización del cómo se actualizaba el mito clásico en la novela, qué le cuestiona
mismo me interesó. Quizás el Minotauro clásico por tener su El Obsceno Pájaro de la Noche al mito del Minotauro. Intuía que lo
cabeza de toro haya perdido el componente humano, se concibió que Donoso estaba haciendo en su obra no era la mera abstracción
carente de entendimiento; pero, de este otro lado, parece que se y fórmula con fines ornamentales, no era un simple captador de
hubiese pensado en otras partes corporales, puede que su cabeza elementos mito, no era la modificación del mito a través del
sea de animal, mas su corazón es de hombre y todo el resto de su tiempo variando concretos aspectos estéticos; tampoco Donoso
cuerpo también lo es. estaba acomodando motivos míticos a su novela ni trasladando el
Además, en los textos clásicos casi nunca se piensa en el mito y su esencia atemporal a una realidad determinada por el
destino del monstruo, es más fácil encontrar referencias sobre su tiempo. Por el contrario, lo que experimenté fue un diálogo mucho
origen semidivino o la decisión de encierro de Minos, pero cuando más profundo entre ambos, era fusión mítica, es decir, se estaban
el Minotauro entra al laberinto desaparece esa mitad hombre que fusionando dos palabras para crear un tiempo libre de ataduras
hay en él; por eso me parece tan valiosa la preocupación espacio-temporales. El Mito del Minotauro está inserto y ligado a
latinoamericana que indagó por las posibilidades de lo ocurrido la semántica de El Obsceno Pájaro de la Noche en un tiempo mítico
con el Minotauro dentro del laberinto. Más aun cuando constato “que no transcurre sino que se remansa entre paredes de adobe
cómo en el mundo clásico la mayor atención se la llevaron Teseo y que jamás terminará de caer. Germen primario que parece no
Ariadna con su trágica historia de amor, sus traiciones y el estar aún en carrera continua con los relojes, que se dilata,
abandono desgarrado de esta última. creando un ambiente propicio para la fantasía, la alucinación, el
En este punto, ya tenía identificados casi todos los desorden, el caos” (DONOSO, 1985, p. 45).
encuentros entre El Obsceno Pájaro de la Noche y el Mito del
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Con el fin de ir concluyendo, quiero plantear mi reflexión conceptos de belleza y fealdad como categorías tenues, ya
final sobre lo que encontré en la exploración de la relación mito- que, en esencia, la monstruosidad es la culminación de
novela: El Obsceno Pájaro de la Noche y el laberinto terminan ambas cualidades sintetizadas y exacerbadas hasta lo
siendo uno solo, libro y laberinto están abiertos al lector sublime. Los seres normales, aterrados frente a lo
excepcional, los encerraban en instituciones o en jaulas de
peligrosamente como lo plantea Borges en “El jardín de los
circo, arrinconándolos con el desprecio para arrebatarles su
senderos que se bifurcan”, el laberinto que es El Obsceno Pájaro
poder. (DONOSO, 1985, p. 234)
de la Noche pretende al lector un Minotauro para extraviarlo
dentro de sus rincones sin luz y, algunas veces, sin sentido También llamó mi atención cómo Donoso no sólo trabaja
aparente, donde prevalecerá el deseo de penetrar el laberinto, con el mito clásico sino que lo pone a dialogar con leyendas de la
conocerlo y resolverlo saliendo de él. Aunque el mito clásico en sí tradición Mapuche, transmitiéndonos a lo largo de toda la obra esa
lleva un argumento probatorio de razonamientos, es sensación de naturaleza cambiante, inconstante y maleable donde
incuestionable y no necesita justificación, resulta interesante la únicamente lo esencial sobrevive: “Dije (Humberto Peñaloza) que
apropiación que hace el autor chileno bajo su propio sistema de esa noche en la cocina, las viejas, no me acuerdo cuál de ellas, da
valores. Sobre todo, la original reflexión que plantea sobre la lo mismo, estaban contando más o menos esta conseja, porque la
monstruosidad alejada de la fealdad corriente y más cercana a lo he oído tantas veces y en versiones tan contradictorias, que todas
excepcional y sublime, lo feo es ordinario, el monstruo puede ser se confunden [...] Sólo lo esencial siempre permanece fijo”
equiparado al prohombre: (DONOSO, 1985, p. 43).
Jerónimo tuvo que desarrollar el fino trabajo de Humberto Peñaloza, por ejemplo, cambia de máscara todo
convencerlos de que el ser anómalo, el fenómeno, no es un el tiempo, cuando ya lo creíamos definido en un rol salta a otro, él
estadio inferior del género humano frente al que los es el mudito, Humberto Peñaloza, la séptima bruja, el perro de la
hombres tienen derecho al desprecio y a la compasión: Iris Mateluna, el secretario de Don Jerónimo, la cabeza de cartón
éstas, explicó don Jerónimo, son reacciones primarias que piedra del gigante, el chonchón y el que suplanta a Don Jerónimo
ocultan la ambigüedad de sentimientos inéditos muy en el momento de la fecundación de Inés, esta duda de la
semejantes a la envidia, o erotismo inconfesable producido
paternidad acerca aún más el origen de Boy al del Minotauro,
por seres tan extraordinarios como ellos, los monstruos.
como lo mencioné antes. El caos reina en el cuerpo de Boy con su
Porque la humanidad normal sólo se atreve a reaccionar
ante las habituales gradaciones que se extienden desde lo ruptura del buen orden, en la casa y en la esencia misma de la obra
bello hasta lo feo, que en último término no son más que que todo el tiempo se niega a sí misma, se cuestiona a sí misma, se
matices de la misma cosa. El monstruo, en cambio sostenía nos escurre de las manos, se deconstruye. Si Humberto Peñaloza
don Jerónimo con pasión para exaltarlos en su mística, no se disfraza no llega a ser nada, con la maleabilidad de sus
pertenece a una especie diferente, privilegiada, con rostros él alcanza la libertad de no ser nunca lo mismo, sin
derechos propios y cánones particulares que excluyen los permanencia ni individualidad propia:
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Un mundo perdido más atrás de otros mundos perdidos


más atrás de otros mundos perdidos, excelencia
sustituyendo excelencia caducada, cabezota de
cartonpiedra dentro de cabezota de cartonpiedra, el olvido
ahogándolo todo, yo me he colocado voluntariamente en
sus fauces, he reptado hasta su garganta para lanzarme por
su esófago y desaparecer y he desaparecido, sí, Madre
Benita, aunque usted tenga mi mano en la suya y me
consuelen sus palabras piadosas, ya no soy. (DONOSO,
1985, p. 151)
El Obsceno Pájaro de la Noche recoge la palabra del mito,
la acuna hasta apropiarse plenamente de ella y, luego, es en ella,
para darle nueva vida a este mito del Minotauro en otras vidas que
sin duda irá en busca de otras vidas, así con la palabra nos
acercamos a la eternidad.

Referencias
DONOSO, J. El obsceno pájaro de la noche. Bogotá: Editorial Oveja
Negra, 1985.

OVIDIO. As Heróides. Landy Editora.

PUJALS SÁNCHEZ, P. Anotaciones sobre los quinze líbros de las


transformaciones de Ouidio: Con la mithologia de las fábulas, y
otras cosas. Valladolid, 1589.

SÓFOCLES. As Traquínias. Editora Unicamp, 2009.


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REDES EDITORIALES EN TORNO A UNA REVISTA CULTURAL DEL los de Luis Seoane, Arturo Cuadrado, Lorenzo Varela y Rafael
EXILIO ESPAÑOL EN BUENOS AIRES: CABALGATA (1946-1948)1 Dieste, promotores de diversas empresas editoriales entre las que
Federico Gerhardt se cuenta no sólo Cabalgata sino también otras dos publicaciones
IdIHCS (UNLP-CONICET) periódicas previas, que constituyen lo que podría considerarse la
prehistoria de aquélla, y cuya consideración puede arrojar luz
El 1° de junio de 1946 salió a la luz el número 0 de acerca de ciertos entramados editoriales sobre los que ella se
Cabalgata, que en el subtítulo se definía como “Quincenario asienta: la revista De Mar a Mar y el periódico Correo Literario.
popular. [de] Espectáculos, literatura, noticias, ciencias, artes”. Ya
desde este subtítulo, la publicación se ubica en lo que aún De De Mar a Mar, a Correo Literario
entonces seguía siendo el periodo considerado como el “auge de En diciembre de 1942 apareció el primer número de De
la industria cultural” (RIVERA, 1998, p. 94) y, más específicamente, Mar a Mar, título que en ésta y sus posteriores entregas fue
en los inicios de la “época de oro de la industria editorial” (DE acompañado por la indicación “Revista literaria mensual”. En el
DIEGO, 2006, p. 91), una coyuntura favorable dado el crecimiento breve texto de presentación de la revista, incluido en el número
del mercado del libro en la Argentina, por la caída de la industria inicial, el grupo fundador compuesto por exiliados republicanos
editorial española como consecuencia de la Guerra Civil y la españoles, manifiesta la voluntad de integrar la publicación en el
inmediata posguerra, que permitió la expansión de las editoriales campo literario local, pretensión que a lo largo de los siguientes
argentinas hacia el mercado externo (ESPOSITO, 2010, p. 516). seis números de la revista se irá realizando por medio de la
En este contexto propicio, se había ido produciendo, desde inclusión de una creciente nómina de colaboradores compuesta no
finales de la década del ’30 y principios de la década del ’40, la sólo por otros exiliados españoles sino también por los nombres
inserción laboral de no pocos exiliados españoles que, si bien de escritores y artistas argentinos, y, en menor medida, uruguayos
habían llegado a la Argentina en un número relativamente y brasileños.2
reducido, presentaban un importante componente de agentes A la cabeza del grupo fundador se encontraban, como
vinculados a la producción en el campo cultural (SCHWARSZTEIN, secretarios, dos exiliados españoles: Lorenzo Varela, quien venía
2001; MACCIUCI, 2011). Entre ellos se encontraban nombres como de participar en México de las revistas Taller y Romance; y Arturo

1
El presente trabajo forma parte del trabajo desarrollado como investigador y Luis Seoane; los argentinos Enrique Anderson Imbert, Horacio Butler, Eduardo
del CONICET (Argentina), en torno a las relaciones con el campo cultural y con Mallea, Ricardo Molinari, Eduardo Sacriste, el ítalo-argentino Attilio Rossi y el
el mercado del libro argentino, de los proyectos editoriales promovidos por brasileño Newton Freitas. La lista se cierra con un etcétera que se irá
exiliados españoles en Buenos Aires en la década del ’40. completando en los números siguientes con la incorporación de españoles,
2
La nómina del primer número está compuesta por los siguientes artistas y Antonio Sánchez Barbudo, Alejandro Casona y Rafael Dieste, y de argentinos
escritores: los españoles Rafael Alberti, Francisco Ayala, Manuel Colmeiro, como José Luis Romero, Julio Caillet-Bois,y Luis Baudizzone, entre otros.
Arturo Cuadrado, Guillermo de Torre, José Otero Espasandín, Ramón Pontones,
P á g i n a | 371

Serrano-Plaja, con pasado en La Gaceta Literaria, El Sol y Hora de El propio Dieste, junto con Varela y Francisco Ayala, fundó,
España en la Península, y luego también en Romance (CAUDET, en aquel mismo año de 1942, la editorial Nuevo Romance, la
2007). A Varela y Serrano-Plaja se sumaban, dentro del grupo distribución de cuyos títulos estuvo a cargo de la editorial Losada.
inicial y como colaboradores asiduos, dos exiliados de ascendencia Y a propósito de esta mención, a esta serie de conexiones que se
gallega y de destacada labor editorial: el poeta Arturo Cuadrado y tejen en torno a la revista cabe agregar además que los
el artista plástico y escritor Luis Seoane. Al entrar ambos en Emecé, mencionados así como otros de los colaboradores se hallaban
en 1940, comenzaron a publicar para la editorial dos colecciones vinculados a editoriales como Losada 3 y Sudamericana, la
dedicadas a la literatura gallega: “Hórreo” y “Dorna”, cuyos Colección Austral de Espasa-Calpe –en cuyos respectivos
volúmenes incluían las más de las veces, láminas e ilustraciones del desarrollos los españoles han desempeñado un papel destacado y
propio Seoane y, en algunos casos, dibujos de Manuel Colmeiro, analizado por la crítica–, y el sello Poseidón, fundado en 1942 por
otro artista gallego residente en Buenos Aires e ilustrador de las el catalán Joan Merli, y cuyos volúmenes de cuidada factura se
páginas de De Mar a Mar. Además, en la misma editorial, Seoane imprimían en los mismos talleres que De Mar a Mar y las ediciones
creó la colección “Buen Aire”, en colaboración con Cuadrado, de Nova: la Imprenta López.
Lanuza y Luis María Baudizzone, director, a su vez, de Editorial Junto a los nombres que componen el núcleo inicial de la
Argos. revista se suman los colaboradores cuya lista, en constante
En 1942, habiéndose retirado de Emecé, Seoane y crecimiento, se incluye en cada número. La composición de esta
Cuadrado fundaron la editorial Nova, sello bajo el cual dirigieron nómina podría considerarse como un síntoma de la voluntad de
las ediciones “Botella al mar”, y las colecciones “Pomba” y “Camino integrar la publicación en el campo literario y cultural local. Sin
de Santiago”, respectivamente. En ellas tuvieron lugar obras de embargo, en los textos de crítica literaria predominan las firmas
Varela y Serrano-Plaja, además de autores como Rafael Dieste, españolas, tanto en los estudios más elaborados como,
otro de los escritores del grupo fundador de De Mar a Mar, que especialmente, en las noticias bibliográficas. Estas últimas tienen
por entonces también se desempeñaba como Director del en la revista un lugar aparte que, bajo el título “Libros”, ocupaba
Departamento Editorial de Atlántida, sello en el que además dirigió un espacio importante: entre seis y nueve páginas de las
la “Colección Oro”, cuyos primeros catorce libros se deben a la aproximadamente cincuenta que tenía cada número. Las reseñas
pluma de José Otero Espasandín, otro gallego residente en Buenos publicadas en De Mar a Mar estaban a cargo de los secretarios de
Aires que se cuenta entre los colaboradores más asiduos de De la revista, Varela y Serrano-Plaja, y de Otero Espasandín, Cuadrado,
Mar a Mar. Dieste y Farías.

3
En un trabajo reciente, de próxima publicación, expuesto en las Xornadas Editorial Losada y el Centro Gallego de Buenos Aires, para la creación de una
Internacionais UCM-UNED “Literatura galega: identidade, alteridade e exilio”, “Biblioteca de Escritores Gallegos”, fechable en 1939.
he sacado a la luz un proyecto inédito de Luis Seoane para un convenio entre la
P á g i n a | 372

De acuerdo con el objetivo –si no del todo declarado, más aporte de escritores argentinos, y, en menor medida, de firmas
que presumible– de difundir la obra de los exiliados entre otros uruguayas y brasileñas.4
desterrados e integrarse en la cultura argentina, la sección Si bien otorgó más lugar a las artes plásticas, cine y teatro
bibliográfica otorgó un lugar preponderante a los libros editados que su predecesora, Correo Literario continuó dando un lugar
en Buenos Aires por los sellos a los que se hallaba ligado el grupo preponderante a la literatura y más aún a la crítica literaria, a cuya
fundador, y, en particular, a las obras de los españoles exiliados. defensa y promoción la redacción dedicó varios textos. La crítica
Como contraparte, las citadas editoriales aportaban al sostén ocupaba la sección “Libros y autores” y, al igual que en De Mar a
económico de la revista mediante la publicidad, generalmente, a Mar, esta sección se proyectaba en las otras páginas de Correo
página completa, que ocupaba alrededor de cinco páginas en cada Literario, en la medida en que las obras analizadas o reseñadas
número, en folios agregados al principio y al final del mismo. Esta pertenecían, muchas veces, a los catálogos de las editoriales que
característica se mantiene desde el primer número hasta el publicaban sus anuncios en la misma publicación: Nova, Poseidón,
séptimo, aparecido en junio de 1943, cuando la publicación Losada, Sudamericana, El Ateneo y Salvat, a las que se sumaba la
interrumpe su curso. Imprenta López.
El 15 de noviembre de ese mismo año comienza su En este sentido, la fuerte presencia de la crítica literaria y la
andadura Correo Literario, “Periódico quincenal”, que a partir del publicidad editorial podría leerse en relación con las casas editoras
número 37 tendrá una frecuencia mensual. La nueva publicación a las que se hallaban ligados el grupo directivo y sus colaboradores,
retoma el proyecto interrumpido de De Mar a Mar, en lo que al tiempo que pone en escena una solidaridad recíproca entre
respecta a su orientación americanista, en consonancia con la estas editoriales, imprentas y librerías, por un lado, y Correo
voluntad de los exiliados españoles de integrarla al campo cultural Literario, por el otro. Además, proporcionaría una explicación para
del país y del continente receptores. Dicha orientación se hace el creciente interés por la industria editorial que se fue haciendo
patente no sólo en la atención a la actividad cultural (literaria, paulatinamente más notorio en dicho periódico, ya que de la
artística, editorial) de las naciones latinoamericanas –sobre todo, marcha de la industria dependía no poco la suerte del mismo. A
aunque no exclusivamente, de la Argentina–, sino además en la partir del número 31, Correo Literario dio lugar a una sección
nómina de colaboradores. El grupo directivo estaba compuesto titulada “El mercado de los libros”, de irregular frecuencia, firmada
íntegramente por colaboradores de De Mar a Mar: los directores con seudónimos y dedicada a registrar el curso de la actividad y a
eran Arturo Cuadrado, Luis Seoane y Lorenzo Varela, y el secretario explorar las causas de las alzas y las bajas. La última de las entregas
Javier Farías. Junto a estos y otros españoles como Francisco Ayala, de la sección, firmada por “Tournebroche”, aparece el 1° de junio
Clemente Cimorra y Rafael Dieste, la publicación también recibe el de 1945 y da cuenta de lo que califica como un “verdadero

4
Pueden mencionarse, por ejemplo: Alberto Girri, Ulyses Petit de Murat, Cáceres, Enrique Amorim, en el segundo; y Mario de Andrade, Newton Freitas y
Cayetano Córdova Iturburu, en el primer caso; Juana de Ibarbourou, Esther de Vinicius de Moraes, en el tercero.
P á g i n a | 373

colapso” de la venta de libros, augurando de todos modos una arte y de las letras, hay en América latina una gran editorial
pronta recuperación (n° 37, p. 7) 5 . El editorial del número de arte y –ahora– un quincenario que ha de ser expresión
siguiente, precisamente, anuncia el cambio en la frecuencia de del gran movimiento intelectual que se viene acrecentando
publicación, de quincenal a mensual. Finalmente, el número 40, en nuestro continente, una de cuyas expresiones
indudables es el desarrollo asombroso de la industria
del 1° de septiembre de 1945, fue el último de Correo Literario.
argentina del libro. (n° 0, p. 15)
Cabalgata Sin embargo, junto a esta figura visible, en la dirección de
En este escenario hace su ya referida entrada Cabalgata, el la revista se encontraban, nuevamente, Lorenzo Varela como
1° de junio de 1946, como “Quincenario popular” que cambiará su director literario y Luis Seoane como director artístico,
periodicidad a partir del número 13, de noviembre de 1947, responsable de la diagramación y el diseño de la publicación, según
cuando, tras una interrupción de siete meses, comienza la segunda se desprende de la correspondencia intercambiada por estos dos
época de la que ahora se define, también en subtítulo, como con diferentes corresponsales en torno a las colaboraciones para
“Revista mensual de artes y letras”. El financiamiento de la cada número. Así, por ejemplo, el 24 de septiembre de 1946,
publicación corría por cuenta del ya mencionado Joan Merli, Attilio Rossi, le recuerda a Seoane que
marchante de arte y editor catalán residente en la Argentina, en mi carta anterior dirigida a ti y a Varela confirmaba el
director de la editorial Poseidón, quien, a partir del séptimo encuentro de un colaborador ideal para Cabalgata,
número de Cabalgata figuró como director de la revista. Ya en el especifícame las condiciones […] He visto el número 0 de
Cabalgata. Hermosísimo y hallado el título. Me suena una
mismo número inicial una nota sin firma anuncia brevemente que
de esas magistrales “trovata” de Dieste. Bueno el material y
Ha partido para Estados Unidos, haciendo diversas escalas
seria y equilibrada la compaginación. Muchas gracias por la
en las capitales de Sudamérica, el señor Joan Merli,
nota dedicada a mí…6
distinguido crítico de arte que está al frente de la Editorial
Poseidón y de la empresa editora de Cabalgata. El artista gráfico italiano, uno de los que afianzó los
Nadie mejor que él para llevar a lo largo de América el conocimientos de las artes editoriales en Seoane (PÉREZ-
saludo de quienes animan esta nueva empresa. Gracias a su RODRÍGUEZ, 2003), se refiere a la nota sin firma publicada en ese
intensa labor y a su sensibilidad de verdadero amante del mismo número 0 que, bajo el título de “Attilio Rossi” y con motivo

5
Para mayor claridad, las citas o referencias a las notas, generalmente sin firma, hermoso. He encontrado el colaborador que ustedes me pedían”. En una carta
aparecidas en Correo Literario y Cabalgata, indican entre paréntesis el número posterior, del 11 de enero de 1947, Rossi escribe: “Cabalgata me gusta[,] he
y página de publicación. visto hasta ahora los números el cero y el N.2 [sic]. Yo estoy coleccionando fotos
6
Se refiere Rossi a una carta enviada el 12 de agosto de ese mismo año, que se dramáticas de destrucciones de monumentos célebres que pueden interesar a
cierra con saludos a Joan Merli, y en la que les dice: “No he recibido aún la nueva Cabalgata”. Las tres cartas citadas se encuentran en el archivo de la Fundación
revista pero de una carta de Perrota sé que se llama Cabalgata. El título es Luis Seoane de A Coruña, donde han sido consultadas.
P á g i n a | 374

de su partida a Italia, recuerda “que desde hace poco más de diez notable actividad editorial en Espasa Calpe y Losada (LARRAZ,
años venía consagrando lo mejor de sus actividades en este país al 2009), y con presencia en el catálogo de Poseidón, y Ramón Gómez
renacimiento gráfico del libro” y destaca sus trabajos para la de la Serna, uno de los escritores dilectos del editor Merli por
Colección Austral de Espasa Calpe, y las editoriales Nova, Losada y aquellos años (FERNÁNDEZ, 2011).
Pleamar” (n° 0, p. 14).7 El número 1 de Cabalgata, publicado el 1° de octubre de
Cabe recordar en este punto que tanto Varela como Seoane 1946, da cuenta de un comienzo exitoso en relación con aquellos
habían trabajado, y por entonces lo seguían haciendo, para la objetivos planteados en la entrega anterior, superando incluso las
editorial de Merli, éste como ilustrador y maquetador, y aquél expectativas, de acuerdo con lo afirmado en una breve “Noticia”
como traductor y autor de libros de crítica de arte y literaria (e sin firma:
incluso como contable y administrativo en momentos de El n° 0 de Cabalgata ha encontrado cordial acogida en todos
necesidad económica). Con estos tres nombres a la cabeza, los medios en que fue difundido. Diversos periódicos y
aunque sin mencionar a ninguno de ellos, sale a la luz –pero no a revistas en toda América se ocuparon elogiosamente del
la venta– el número 0 de Cabalgata, donde, del mismo modo que mismo en su momento. Editores, libreros, escritores y todos
cuantos de uno u otro modo tienen relación con las
en los casos anteriores, la redacción de la revista hace una breve
actividades espirituales nos han hecho llegar sus
declaración inicial, afirmando la intención de integrarse en el
felicitaciones y su promesa de colaboración en la difícil
campo cultural local, nacional y continental: “La idea que anima empresa que se propone realizar Cabalgata.
Cabalgata es hacer en la Argentina una gran revista para todo el
continente. Una revista que sea expresión de todas las actividades Superando el cálculo inicial de la publicidad que era
presumible esperar para un primer número como es el
de la cultura americana y universal” (n° 0, p. 1).
presente, nos hemos visto obligados a alterar el plan
De acuerdo en parte con este objetivo, el grupo de
general y a suprimir o mermar secciones que en números
colaboradores estaba compuesto mayormente por escritores sucesivos alcanzarán su verdadera medida. (n° 1, p. 2)
argentinos y por españoles exiliados, entre los que se contaban,
además de los ya citados directores, otros nombres en común con Prácticamente la totalidad de los anuncios publicitarios de
las publicaciones previas8, como Arturo Serrano-Plaja y José Otero este número, así como de los posteriores de la revista, se refieren
Espasandín. A ellos se sumaron otros como Guillermo de Torre, de a las editoriales, librerías e imprentas que, una vez más, se hallan
ligadas a Cabalgata: Nova, Editorial Atlántida, Losada,

7
En la “Breve crónica en relación conmigo y las artes gráficas”, escrito como la tipografía y del arte gráfico en esa ciudad. […] Rossi trajo al libro argentino su
introducción a su Segundo libro de tapas, de 1957, Luis Seoane insiste en el amor a la medida, su rigor geométrico y, con sus grandes conocimientos
papel destacado de Rossi en la industria editorial argentina: “Attilio Rossi técnicos, un afán constante de experimentación” (reproducido en: SEOANE,
abandonó la Italia de Mussolini donde había dirigido con Carlo Dradi ‘Campo 1994, p. 33).
8
gráfico’ en Milán, luego de participar en todos los movimientos renovadores de V. notas 2 y 4.
P á g i n a | 375

Sudamericana, El Ateneo, Imprenta López, Amorrortu (en cuyos Sudamericana y Hermes (n° 3); y José López Soto, de la Imprenta
talleres se imprime la revista) y Poseidón. En este caso, además, la López (n° 5). En el número 16, de febrero de 1948, le tocará el
revista incluía en cada número una pequeña lámina de regalo, con turno al propio editor de la revista, Joan Merli, en calidad de
obras de pintores sobre los que la editorial de Merli había editado director de la Editorial Poseidón, quien, interrogado por “O.H.”,
o editaría monografías. A estas firmas se suman otros sellos responde, como adelanta el título, “Sobre el candente problema
americanos como los mexicanos Hermes (filial de Sudamericana) y de la industria editorial”, caracterizando del siguiente modo el
Fondo de Cultura. A su vez, los libros de estas y aquellas editoriales panorama local:
encuentran lugar en los textos de crítica literaria y en las noticias La industria argentina del libro en la actualidad carece de
de la actualidad editorial. mercados. El país, la Argentina, consume un porcentaje
A semejanza de De Mar a Mar y Correo Literario, junto a las insignificante de la producción. Hay que crear un consumo
artes plásticas, el cine, el teatro y la música, Cabalgata incluyó una interno, pero para eso es necesario que antes se abran
librerías en el interior y que contemos con un ejército de
sección bibliográfica compuesta por notas breves, con un
vendedores de libros. (n° 16, p. 13)
propósito de difusión, acerca de obras publicadas sobre todo en la
Argentina, y, particularmente, por Losada, Emecé, Sudamericana y Cabe pensar que la intervención de Cabalgata en el campo
Poseidón. Esta sección bibliográfica irá incrementando cultural local apunta a revertir este aspecto del panorama. Pero, al
significativamente sus dimensiones sobre todo a partir de la mismo tiempo, podría considerarse que este “candente problema
segunda época.9 de la industria editorial” es un factor determinante del fin de la
Pero además, desde sus primeras entregas, la revista publicación 10 , teniendo en cuenta su estrecho vínculo con el
incluyó una sección dedicada al mercado de la edición de libros, mercado de los libros, en momentos en que la industria
llamada “Mundo editorial”, en cuyas páginas fue publicada una comenzaba a experimentar serias dificultades en su desarrollo (DE
serie de entrevistas a diferentes agentes del campo (editores, SAGASTIZÁBAL, 1995). A diferencia de sus precursoras De Mar a
impresores y libreros), acerca de los problemas de la industria Mar y Correo Literario, en el número 21, de julio de 1948, con una
editorial en general, y sobre los proyectos de sus respectivas nota titulada “Cabalgata deja de publicarse” la revista se despidió
empresas. Entre los primeros entrevistados se encuentran: definiéndose a sí misma como “portavoz del libro argentino y eco
Gonzalo Losada, de Editorial Losada (n° 1), Daniel Cossío Villegas, de sus problemas” (n° 21, p. 8).
del Fondo de Cultura Económica (n° 1); Antonio López Llausás, de

9 10
Es en esta segunda etapa cuando tiene una participación en la sección Tal como lo hacen, en su clásico estudio, Lafleur, Provenzano y Alonso (2006,
bibliográfica un joven Julio Cortázar, por entonces estrechamente relacionado p. 23) al explicar su cierre por falta de avisadores.
con la industria editorial por las funciones desempeñadas en la Cámara
Argentina del Libro.
P á g i n a | 376

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P á g i n a | 377

DESLOCAMENTO E MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA NA OBRA DE O escritor Gustavo Perez Firmat, sendo cubano-americano,
GUSTAVO PÉREZ FIRMAT problematiza em suas obras a questão de pertencer
Fernanda Orphão Corrêa de Lima simultaneamente a dois lugares, duas línguas, duas culturas,
UFRJ reconstruindo assim uma memória individual, familiar e cubana,
ancorada no deslocamento e na biculturalidade.
Introdução Gustavo Pérez Firmat, o autor, é professor de literatura em
A transformação acelerada dos meios de comunicação e de uma universidade estadunidense e já publicou inúmeros ensaios e
transporte nas últimas décadas, o movimento massivo de pessoas, obras literárias, tanto em língua espanhola quanto em língua
o transito continuo de imagens, o aumento do fluxo da inglesa, a respeito da diáspora e da biculturalidade. A obra El año
informação, a desestabilização de fronteiras nacionais, assim que viene estamos en Cuba foi originalmente escrita em inglês e
como a crise de certos paradigmas ideológicos que sustentaram o traduzida ao espanhol pelo próprio autor. Ocupando o lugar
mundo moderno, influenciam hoje, de maneira definitiva, nos estratégico de tradutor/autor, Gustavo Pérez Firmat, o autor,
estudos da cultura, tornando-se o deslocamento uma noção optou por manter algumas expressões em inglês ao longo da obra,
essencial para compreender a sociedade atual e suas práticas pois segundo ele não é possível apagar os traços de sua cultura
culturais. estadunidense de sua cultura cubana, e tentar fazê-lo na tradução
Imersa nessa pratica das escritas produzidas em condições do livro que discute exatamente essa questão tornaria a escrita
de deslocamento cultural, estudo a obra El año que viene estamos falsa e artificial.
en Cuba (1997), de Gustavo Pérez Firmat, um texto de caráter O diálogo constante entre as duas culturas nas quais está
genérico híbrido que se pretende autobiografia apresentando, no simultaneamente inserido o autor influencia em sua poética
entanto, características de ensaio, ficção, romance confessional e literária e em suas reflexões a respeito do deslocamento. Minha
romance histórico. A narrativa gira em torno do personagem pesquisa de mestrado tem o objetivo de discutir como isso
homônimo do autor. O personagem Gustavo, à semelhança do influencia a produção literária, principalmente o que se refere à
autor1, abandonou Cuba aos once anos de idade para viver nos prosa deste autor.
Estados Unidos, e aquele reflete ao longo da obra a respeito de sua Para o desenvolvimento da pesquisa estudamos o texto de
cultura cubana que dialoga com a cultura estadunidense na qual Gustavo Pérez Firmat, refletindo sobre as relações entre
está inserido. Sendo assim, ambas as culturas cubana e deslocamento cultural e memória autobiográfica, para responder
estadunidense interagem para construir esse “eu”. à seguinte questão: Como caracterizar a identidade da escrita de
Gustavo Perez Firmat, especificamente no que tange às relações

1
Por tratar-se de uma análise literária da obra, sempre que me referir a Nos momentos em que considerar pertinente referir-me ao autor, darei a
Gustavo, estarei escrevendo a respeito do personagem Gustavo Pérez Firmat. ênfase necessária para evitar ambiguidades.
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entre deslocamento cultural e memória autobiográfica, partindo sujeito assume diferentes identidades de acordo com o momento
da singularidade estética dos textos analisados. e os sistemas de significação que se multiplicam de tal forma que
passa a existir uma multiplicidade de identidades possíveis que
Deslocamento cultural inexistia em épocas anteriores.
Deslocamento é um conceito que se refere a diversas No que se refere ao conceito de cultura, segundo Barbero
formas de movimento, não somente físicos ou geográficos, mas (2003) é Herder que discute a respeito da importância de uma
também espirituais e culturais. Segundo Palmero González pluralidade de culturas e sobre os diferentes modos de
Entendido como vivência e prática dos sujeitos, o configuração da vida social, gerando assim uma mudança na ideia
deslocamento é um conceito fundamental nos estudos sobre do que pode ser definido como cultura e uma renovação do
imaginário e memória cultural. Entendido como conceito de cultura que está relacionado a uma revisão do conceito
metodologia de trabalho, converte-se em paradigma de nação. Partindo dos pressupostos românticos, é desenvolvida a
fundamental para pensar processos culturais. (2010, p.13)
ideia de que existe um outro tipo de cultura fora do eixo da cultura
As identidades que se formam em contextos de oficial e hegemônica que também constitui a cultura da nação,
deslocamento, de diáspora e migração, intercalam características apesar de não ter recebido anteriormente o mesmo espaço e
das distintas culturas que as atravessam a partir daquilo que gera valorização social. Dessa forma surge a “nova ideia que começam a
maior resposta afetiva no individuo; ele irá absorver e reproduzir as forjar da relação entre povo e cultura [...] percepção da cultura
características com as quais mais se identifica em cada uma das como espaço não só de manipulação, mas de conflito.” (BARBERO,
culturas na qual está inserido. A cada momento novos sentidos e 2003, p. 46).
novas combinações são criados, dessa forma a identidade Nesse contexto, recorremos aos estudos de Bhabha (1998)
influenciada pelo deslocamento se torna fluida e não-estática. Ou que falam sobre o fim de século como o momento no qual a
seja, no caso de Perez Firmat, apesar de estar envolvido e integrado produção de figuras complexas de diferença e identidade se
à cultura estadunidense que o rodeia, a ligação emocional com sua relaciona ao momento de trânsito no tempo e no espaço.
cultura de origem o leva a questionar a definição e manutenção de o que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a
sua identidade múltipla. necessidade de passar além das narrativas de subjetividades
originárias e inicias e de focalizar aqueles momentos ou
Pensando no âmbito contemporâneo da cultura pós-
processos que são produzidos na articulação de diferentes
moderna, Bauman (2005) define a época como o momento em que
culturas. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a
não existe mais o pertencimento. O sujeito está no meio, entre a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou
cultura da sociedade em que vive e a cultura herdada de seus pais coletiva – que dão inicio a novos signos de identidade e
e aprendida em sua infância. Hall (2000) define como o momento postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de
em que as identidades se tornam fragmentadas na medida que o definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA, 1998, p.20)
P á g i n a | 379

Memória Castro foi negativa porque ocasionou a deterioração de seu


Para construir a identidade do individuo e a identidade da patrimônio. A memória é utilizada não só para recriar o passado,
nação, utiliza-se da memória para resgatar fatos heroicos ou mas também para primeiramente reconstruir a si mesmo.
emocionalmente relevantes no passado do individuo ou de um A infância é a fase da vida em que o sujeito passa a tomar
grupo social. Em obras que se pretendem autobiografias é conhecimento de si mesmo e do mundo que o rodeia e, segundo
necessário que se reflita sobre a relação existente entre o Bustelo (2007), é a fase da vida em que mais somos influenciados
individuo, o ‘eu’, e a coletividade social-ideológica na qual o sujeito pela escola, pela família e pelos meios de comunicação.
está inserido, o ‘nós’. Ao longo da narrativa em El año que viene As lacunas que surgem entre o que é lembrado e o que
estamos en Cuba, as histórias se sobrepõem umas às outras. O efetivamente aconteceu acabam sendo preenchidas pelas
sujeito da narrativa não é mais ‘uno’, é fragmentado e formado por memórias de terceiros sobre o evento. Essas memórias são, por
diferentes visões, diferentes histórias que são, em si mesmas, sua vez, também fragmentadas e:
resultado de um processo narrativo mutável que é adaptado de El vacío entre el recuerdo y lo que se recuerda está ocupado
acordo com o gênero, o interlocutor e o objetivo do narrador ao por las operaciones lingüísticas, discursivas, subjetivas y
re–contar essas historias. A narração, principalmente quando se sociales del relato de La memoria: las tipologías y modelos
utiliza do narrado em 1ª pessoa, demonstra apenas um enfoque narrativos de la experiencia, los principios morales,
religiosos, que limitan El campo de lo recordable, El trauma
dos fatos narrados. Dessa forma, partes dos acontecimentos serão
que obstaculiza la emergencia Del recuerdo, los juicios ya
ressaltadas e outras partes serão suprimidas por serem menos
realizados inciden como guías de evaluación. Más que de un
importantes ou pela limitação de conhecimento natural à posição vacío se trata de un sistema de desfasajes y puentes
de narrador-personagem. teóricos, metodológicos e ideológicos. (SARLO, 2005, p.
A memória individual é manipulada pelo interesse, 137)
afetividade, censura e pelo esquecimento, assim como a memória
A própria alteração no tipo de narrador ao decorrer da
coletiva. A memória coletiva é intrinsicamente importante para a
narrativa entre narrador de 1ª pessoa e, consequentemente,
manutenção das sociedades porque a memória social é o que cria
inserido no desenrolar da ação, e narrador em 3ª pessoa,
a tradição, o que delimita a rotina e o que norteia o progresso, o
distanciado da ação, já altera o nível de detalhamento da descrição
que define a identidade de cada sociedade e, consequentemente,
do ambiente e dos efeitos psicológicos no personagem central da
de cada individuo que a constitui.
narrativa.
A reconstrução dos fatos também é influenciada a partir do
Segundo Bachelard (1982) as memórias da infância não são
local enunciativo, da condição social e ideológica na qual está
psiquicamente datadas. As datas são repostas a partir do que nos
inserido o sujeito central da narrativa. No caso da família Firmat,
contam, com a ajuda daqueles que estão ao nosso redor. Sendo
que era dona de armazéns, a ascensão ao poder do regime de Fidel
assim, as lembranças fragmentadas da infância dependem de
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apoio externo para serem organizadas cronologicamente. Essa microcosmo que irá prepará-lo para a convivência em sociedade,
fragmentação natural às memórias da infância abre espaço para essa primeira casa é sua forma inicial de se relacionar com o
que as histórias contadas por terceiros e a imaginação preencham mundo fora de si mesmo. Por esse motivo o regresso após um
as lacunas vazias com aquilo que, inconscientemente, supomos período de afastamento gera desconforto ao sujeito. Segundo
que deveria ter acontecido. Pelo fato da infância de ser menos Arfuch:
propensa a ocorrência de conflitos de maior gravidade, ela é lo que ha desaparecido, aún cuando no nos pertenezca,
dotada de valor de arquétipo de felicidade, um conforto también se ha llevado consigo algo de nuestra biografía, del
psicológico para o adulto. No entanto, dado o papel fundamental mismo modo que las casas que ya habitamos se nos han
da imaginação no processo de rememoração das lembranças vuelto extrañamente ajenas: otras luces y otras sombras.
(2013, p.29)
infantis, já não é possível separar o que é realidade do que é
imaginação. Nas narrativas de memória, especialmente nos trechos que
Ou seja, a memória é formada a partir do que o sujeito tratam da infância, na obra El año que viene estamos en Cuba, a
escutou de seus pais de fatos que foram vivenciados por eles antes infância exerce papel central na formação da identidade do
do sujeito nascer ou vivenciados em sua primeira infância, com a sujeito. A maior parte das lembranças do personagem Gustavo
função de fundar o presente em relação ao passado para, dessa sobre sua infância em Cuba está relacionada às historias contadas
forma, preencher as lacunas de sua história pessoal e para por seus parentes e por outros cubanos de seu convívio diário. Esse
compreender efetivamente o que estava acontecendo. Sua fato relacionado à fragmentação natural das lembranças dessa
compreensão dos fatos foi se aprofundando ao longo dos anos, fase torna impossível distinguir quais acontecimentos lembrados
apoiado nas suas próprias memórias fragmentadas e naquilo que pelos personagens são realmente lembranças e não lembranças
ouvia de seus pais sobre o exílio da família. Esse aspecto permeadas por fatos imaginados.
fragmentário do discurso na memória se baseia no fato do sujeito
tentar retratar algo que não está mais presente e essa El año que viene estamos em Cuba
fragmentação está diretamente relacionada à subjetividade O personagem Gustavo, de família cubana, discute através
daquele que recorda. de digressões, memórias e reflexões a respeito de sua cultura
O lugar, os locais nos quais se desenrola a narrativa, exerce múltipla, definindo a si próprio, ao longo da obra, através de
grande importância no desenrolar das narrativas da memória. diferentes denominações como: “los cubanos residentes en
Entendendo lugar como desde o lar onde se vive até a cidade ou Estados Unidos” (PÉREZ FIRMAT, 1997, p.X); “a casi todos los
país habitados, aspectos psicológicos e sentimentais são inmigrantes y exiliados nos llega un momento” (PÉREZ FIRMAT,
suscitados quando da descrição destes locais. A casa é o local onde 1997, p.X); “Para cubanos americanos como yo” (PÉREZ FIRMAT,
o sujeito primeiro interage com outros sujeitos, como um 1997, p.XI).
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Somos apresentados a diversas memórias do personagem personagem Gustavo impõe limites para a influência norte-
a respeito de sua infância em Cuba e de seu período de adaptação americana em sua personalidade:
e subsequente vida nos Estados Unidos. Em meio a essas por muy americano que yo fuera para otras cosas, no estaba
memórias da infância misturam-se devaneios e digressões, como dispuesto a jurar lealtad a la bandera de otro país.[...]
quando o personagem Gustavo nos conta a partida da balsa de Durante las semanas que se siguieron, cada vez que la clase
Cuba, momento no qual o personagem começa a digredir a recitaba el juramento, tenía la vaga sensación de que me
estaba comportando heroicamente.[...] Esa era mi manera
respeito de um sonho no qual haviam dois Gustavos, o que partia
de luchar por la libertad de Cuba. (PEREZ FIRMAT, 1997,
e o que ficava em Cuba, para questionar-se mais adiante sobre
p.34-5)
como seria sua vida se jamais tivesse deixado a ilha. Apesar de seu
amor pela pátria natal, o personagem sente que o regime político O adolescente Gustavo se ressente por não regressar a
de Fidel Castro o roubou de quem ele poderia ter sido se ele tivesse Cuba, e esforça-se para integrar-se mais profundamente à cultura
vivido por toda sua vida em Cuba. estadounidense, adotando até mesmo um nome mais
El exiliado padece la ausencia de esa parte de sí que dejó americanizado – ‘Gus’ – e oprimindo ao máximo a nostalgia em
atrás.[...] ¿Qué le pasó al niño que dejé atrás? ¿La relação à Cuba, fato que leva o personagem a tentar redescobrir
Revolución aceleró su crecimiento? ¿Y cómo hubiera sido yo durante a fase adulta as suas memórias perdidas da infância em
de haberme quedado en Cuba? [...] Ese niño que dejé en el Cuba.
muelle Es una parte de mi que he superado, y una parte de Após alguns anos, o Gustavo adulto já se sente integrado
mi que nunca superaré. (PEREZ FIRMAT, 1997, p.5-6) ao país que habita com ambas as culturas fundidas em uma cultura
O personagem Gustavo confessa, em determinado múltipla que, a cada momento, enfatiza mais as características de
momento da narrativa, que apesar de suas memórias de Cuba um ou outro país:
parecerem claras, ele se recorda de poucos eventos de forma antes del partido, el público se pone de pie para cantar el
espontânea, utilizando-se do que lhe contam seus parentes para himno nacional americano.[...] Pese a que no aprendí la
recriar sua memória. Ao apoiar suas memórias de infância no que letra casi hasta la adolescencia, la digo con sentimiento y
sinceridad, como si la conociera de toda la vida.” (PEREZ
lhe é contado por seus pais, tios e avós, a já fragmentada memória
FIRMAT, 1997, p.VIII)
infantil se torna um barco a deriva, apoiando-se nas diferentes
narrativas a respeito de si mesmo, oscilando através dos Para o menino Gustavo os Estados Unidos representam a
fragmentos da memória de família. Segundo Bustelo (2007) os liberdade, mas esse país constitui apenas seu lar temporário até
mecanismos de dominação política agem de maneira sutil na que possa voltar à sua terra natal, Cuba, que por sua vez
sociedade, atuando sobre a individualidade de cada sujeito e representa a opressão de um regime ditatorial:
delimitando-o no momento em que este deveria desenvolver uma
personalidade autônoma, como no início do exílio em que o
P á g i n a | 382

Aunque Fidel Castro llevaba menos de dos años en el poder, BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien.
Cuba ya estaba encaminada hacia el totalitarismo. El Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
hombre que iba a rescatar al pueblo cubano de décadas de
gobiernos corruptos y autoritarios, se convertiría en el peor BARBERO. Jesús Martin. Dos meios às mediações: comunicação,
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porque nascemos em seu território geográfico é pura convenção, BENJAMIN, Walter. Mi infancia en Berlín hacia 1900. Madrid:
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subjetivo. Una discusión. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005
P á g i n a | 384

A PERFORMANCE DA VIOLÊNCIA EM ADIÓS AYACUCHO, DE múltiples tensiones, que cruza y entrecruza valores
YUYACHKANI abstractos y concretos en forma de estructuras. Es ubicarse
Flávia Almeida Vieira Resende y tomar posición. Elegir un espacio desde el cual uno decide
UFMG hablar no es una elección sencilla, sino es asumir el espacio
que ocupa e involucrarse en una tradición. (MAMANI
MACEDO, 2009, p. 13)
1 A representação da violência: performance e humor
Como falar da violência? Ou ainda, mais especificamente,
E ambos, Julio Ortega e Yuyachkani, desejaram tomar essa
pode a arte representar a violência, sem que a representação
posição por meio da escrita (textual/cênica) de Adiós Ayacucho, e
pareça muito aquém da violência real, ou sem que seja ela mesma
deixar que o texto seja perpassado pelas inúmeras tensões
uma violência? Como fazer isso? Essas parecem ser as questões
presentes no espaço geográfico andino.
que norteiam a produção de Adiós Ayacucho, tanto do conto de Uma primeira questão que nos parece importante para
Julio Ortega, quanto da adaptação feita pelo grupo teatral pensarmos a construção tanto do conto quanto do espetáculo é o
Yuyachkani. Como afirma Ortega (2008, p.10), “construir una
fato – quase óbvio, embora muitas vezes omitido – de que “la
mirada sobre la violencia es el dilema ético actual”.
materia de la violencia es el cuerpo” (ORTEGA, 2008, p. 9). Mais do
Esse é um desafio, sobretudo, para um enunciador
que isso, podemos afirmar que as marcas da violência de um povo
localizado em meio a uma sociedade em constante violência, como
se transmitem muito mais pelo repertório do que pelo arquivo,
era o Peru das décadas de 1980 e 1990, quando uma guerra civil
segundo os termos de Diana Taylor (2013), ou para dizer de outra
assolava o país e a população via-se ameaçada tanto pelas forças
forma, estão inscritas muito mais no corpo das pessoas do que nos
do Estado quanto pela resistência armada (especialmente o
informes oficiais.
Partido Comunista Sendero Luminoso). Qualquer artista
A representação da violência, nesse sentido, necessita
comprometido com seu lugar de enunciação, que desejasse
tomar corpo. E isso é significativo em um contexto em que grande
assumir uma posição em relação àquela violência, deveria se
parte da violência está materializada justamente no
defrontar com este problema ético. Afinal, a violência estava
desaparecimento dos corpos, ou na anulação de suas identidades
espalhada pelas ruas, pelos povoados, e a morte marcava sua
(inúmeros mortos nesse período de guerra civil no Peru eram
presença em inúmeras famílias. Como falar de uma violência tão enterrados em valas comuns, sem identificação). Trata-se,
escancarada? Se a tarefa parece difícil, ela é igualmente portanto, de dar corpo a uma falta de corpo, de dar presença a
necessária. Mauro Mamani Macedo destaca a importância dessa
uma ausência. É justamente esse o mote de Adiós Ayacucho.
enunciação que assume o seu próprio contexto:
Alfonso Cánepa, dirigente campesino, morto pelas forças do
Hablar desde la tierra de origen no solamente involucra
Estado, empreende uma viagem até a capital Lima a fim de
informar sobre el espacio geográfico donde uno vive sin
tensión, sino una instancia geocultural que atraviesa recobrar o resto de seus ossos, que ele acredita terem sido levados
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para lá, e entregar uma carta ao presidente denunciando a sua Peru (CVR).Em Adiós Ayacucho, a referência ao mito de Inkarrí é
situação e a situação de violência do país. sugerida no início, na narrativa da tortura e esquartejamento de
Vemos, neste enredo, uma clara referência ao mito de Cánepa, e na última frase, tanto da novela quanto da peça: “Ya me
Inkarrí. Segundo esse mito, bastante difundido na cultura andina, levantaria en esta tierra, como una columna de piedra y de fuego”.
o Inka morto e esquartejado pelos colonizadores espanhóis estaria Não se trata de um reestabelecimento do império inca, mas de
voltando para reconstituir a ordem perdida. As partes de seu uma valorização daquela cultura – das formas de pensamento, de
corpo, que haviam sido espalhadas pelos quatro cantos do mundo sensibilidade, sua cosmovisão – para que as tensões provocadas
(Tahuantinsuyo), estariam se juntando debaixo da terra. Quando pela heterogeneidade presente no país possam conviver de forma
se encontrassem com a cabeça, enterrada em Cuzco, Inkarrí produtiva, e não violenta.
reestabeleceria o império Inca. No texto de Ortega, Cánepa, O passo dado pelo Yuyachkani em direção à performance
durante uma conversa com o personagem antropólogo1, retoma o da narrativa de Ortega nos parece importante justamente pela
mito de Inkarrí, questionando se Vicente de Valverde teria sido questão que postulamos a respeito do corpo. Por meio da
também um antropólogo. O outro, durante a discussão, zomba de performance, aquilo quepertencia ao âmbito da escrita ganha
Cánepa: “¿Quién te crees que eres? – volvió furioso - ¿Un Tupac corpo e voz e pode tanto se inserir na cultura oral das populações
Amaru en bluyines? ¿Te crees el mismísimo Inkarrí, que espera que campesinas (por meio, inclusive das representações feitas pelo
sus miembros renazcan para despertar? ¡Descansa en paz!” grupo em língua quéchua), quanto materializar de diferentes
(ORTEGA, 2008, p. 30). formas a violência sofrida pelo personagem Cánepa (que ecoa
É justamente um “Tupac Amaru en bluyines” que Ortega inúmeras outras violências reais sofridas no país).Sabemos que a
parece materializar em seu texto, ao atualizar este mito. Inkarrí é oposição entre cultura oral e cultura letrada é um dos problemas
contextualizado para o Peru da década de 1980, quando inúmeros centrais desde a época da colonização do continente americano, e
campesinos eram mortos, esquartejados, “desaparecidos”. vem sendo usada (ao longo da história, até os dias atuais) como
Yuyachkanidá um passo além e coloca essa narrativa em uma fonte de poder e dominação, por parte da última sobre a
performance, levando-a como presença viva, inclusive, para as primeira. A pretensa “fixidez” da escrita lhe conferiria um estatuto
comunidades andinas, onde se instituíam, já nos anos 2000, as de “verdade”, de “ciência”, enquanto a oralidade transita por uma
audiências públicas da Comissão da Verdade e Reconciliação do mobilidade que lhe tiraria a confiabilidade e daria às populações

1
Não nos aprofundaremos na questão do antropólogo neste artigo, mas antropológico tradicional representa al mundo campesino como una realidad
entendemos, com Vich e Hibbett (in ORTEGA, 2008), que a novela de Ortega resistente a los cambios y exótica ante los ojos de un observador externo” (p.
estabelece una crítica ao papel da antropologia na construção de categorias e 109), estabelecendo categorias hierárquicas como “Perú profundo” para tratar
entendimentos sobre a sociedade peruana. A principal crítica presente em Adiós das comunidades que supostamente careceriam de modernidade.
Ayacucho, e apontada por Vich e Hibbett, trata-se de que “el discurso
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não letradas essa imagem de “não modernas”, “exóticas”, e, em Assim, a saída encontrada pelo ator Casafranca e pelo
última instância, “desprovidas de voz”, pelas quais alguém deveria diretor Rubio Zapata foi trazer para a cena uma figura tradicional
falar (o antropólogo). Diana Taylor, em seu livro Arquivo e da cultura popular andina: o Q’olla. Trata-se de um dançante da
repertório, questiona justamente essa oposição.Nas palavras de Qapac Qolla, que representa os ganaderos do altiplano, de
Taylor (2013, p. 68), “parte do processo colonizador por todas as Titicaca, que traziam seus produtos (principalmente lãs) para
Américas consistia em desacreditar os modos autóctones de comercializar em Paucartambo, e vinham homenagear a Virgendel
preservar e comunicar o entendimento histórico”. O que a teórica Carmen. Na peça de Yuyachkani, o Q’olla assume também a função
busca afirmar é que, ao contrário, o repertório enquanto prática de Alma Qateq (“guia de almas”), que “auxilia diretamente nesse
corpórea também é fonte de conhecimento e metodologia, e que processo de reconstrução da identidade física e civil de Cánepa e
um deve se alimentar do outro (memória corpórea e prática inicia o ritual funerário”, como observa Carla Dameane (2013,
arquivista) para uma construção mais verdadeira da história social, p.83). É ele quem vai dar corpo e voz para Alfonso Cánepa, em seu
principalmente das culturas hemisféricas. processo migratório rumo a Lima e rumo à reconstituição de sua
Entendemos que Adiós Ayacucho pode ser tomado como ossada. Se, no texto de Ortega, Cánepa pode ser o próprio
um bom exemplo dessa alimentação entre cultura oral e cultura narrador – pois a escrita é também de alguma forma palavra “sem
letrada, especialmente na representação feita por Yuyachkani. corpo”–, na peça teatral a presença do morto será materializada
Logo no início do processo de montagem da peça, o grupo se na alternância da presença de Cánepa com a presença do Q’olla no
deparou com uma questão fundamental: como dar corpo e voz a corpo do ator Casafranca. Na cena inicial da peça Adiós Ayacucho,
um sujeito morto e “sem corpo”? Miguel Rubio Zapata, diretor do as roupas de Cánepa estão sendo veladas (costume das
grupo, conta a solução que o ator Augusto Casafranca encontrou comunidades andinas) e o Q’olla está dentro de um saco plástico
para essa representação: preto2, de onde vai saindo. Ao ver as roupas de Cánepa, ele diz:
Augusto me invitó a la sala y un “q’olla” de Paucartambo, “Eso (mirando los sapatos) a ti ya no te sirve, y a mí me hace falta.”
Cusco, me contó la historia. Así comenzó la propuesta que (RUBIO ZAPATA, 2008, p. 97). Neste momento, ele sobe sobre os
luego se transformaría en la relación Q’olla-Cánepa, en el sapatos do morto, que passa a falar através dele, alternando a voz
pacto que hace el Q’olla con el espíritu de Alfonso Cánepa, com a do Q’olla.
el muerto que se vela ritualmente, para que a través suyo
É interessante observar que já nessa primeira fala é
se supiera lo que le sucedió a Cánepa. (RUBIO ZAPATA,
possível perceber o tom cômico da figura do Q’olla, que traz um
2008, p. 92)
contraponto à tragicidade da história narrada. Em diversos outros
momentos, ele trará esse tom cômico, como quando Cánepa conta

2
Na novela de Ortega, os restos de Cánepa que teriam sido levados a Lima
foram reunidos pelos militares em um saco plástico preto.
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sobre sua morte, sobre sua “condição de peruano crédulo”, por ter “Que cosa más terrible, no puede haber nada peor, supongo
se apresentado à Comissária de Polícia. A isso, o Q’ollalhe que lo harás con mucho humor, sino qué va a ser eso, ¿nó?”,
responde: “claro, sólo un tonto iría hasta la comisaría sabiendo dijo Osvaldo luego de escuchar nuestras intenciones. Ese
que lo perseguían” (RUBIO ZAPATA, 2008, p. 101). O caráter comentario fue clave para que Augusto y yo nos lanzáramos
a trabajar sobre el cómico andino presente en muchas
cômicoaqui é intensificado pela alternância de vozes num mesmo
danzas tradicionales. (RUBIO ZAPATA, 2008, p. 91)
ator, pois Casafranca materializa tanto a voz do peruano crédulo
que é o defunto Cánepa, quanto a voz crítica e irônica do Q’olla.
Acreditamos que essa comicidade foi a chave encontrada
Sobre essa broma específica, Vich e Hibbett (in ORTEGA, 2008, p.
por Ortega e por Yuyachkani para responder ao “dilema ético” da
115) fazem uma interesante leitura: “El lector debe caer en cuenta
representação da violência concreta do país. Esse “escândalo do
de la dinámica según la cual todo peruano acriollado – es decir,
pensamento” (ORTEGA, 2008, p. 10), que é a violência efetiva,
quien ya ocupa una posición de poder – debe saber cuándo no pode ser mais bem assimilado por recursos que o atinjam por
creer en la ley o cuándo tomar distancia de ella a fin de evitar se outros vieses – talvez não o humor escancarado, mas o humor
‘cojudeado’.”. Para Vich e Hibbett, o humor presente em Adiós
grotesco ou irônico. Assim, “el lector, al reírse de las bromas y los
Ayacucho tem a função de uma “consciência negativa”, a fim de
dobles sentidos, se vuelve cómplice de Cánepa y es ahí donde la
estabelecer um posicionamento crítico frente à sociedade peruana
novela realiza su apuesta política (y estética, sin duda)” (VICH;
(como nessa ideia de uma identidade peruana, do “peruano
HIBBETT, in ORTEGA, 2008, p. 114). Dessa forma, Yuyachkani pôde
crédulo”, ou daquele que é “demasiadamente peruano”).
seguir representando a peça por diversas comunidades onde
Essa comicidade está presente já no texto de Ortega, por
aconteciam as audiências da CVR, estabelecendo um diálogo entre
meio da figura grotesca de um cadáver disforme que vai buscar o
a história de Cánepa e a tragicidade real de muitos peruanos.
resto de sua ossada em Lima. Para a montagem de Yuyachkani,
Miguel Rubio conta que a comicidade não estava evidente desde
2 Alfonso Cánepa e a categoria do sujeito migrante
o início. Quando escolheram o texto de Ortega e selecionaram o
Interessa-nos ainda abordar uma outra categoria andina
que iria para a montagem3, lhes interessava a princípio apenas a
presente em Adiós Ayacucho, que também contribui para a
tragicidade da situação, que eles acreditavam condizer melhor
representação da violência presente na obra. Trata-se da categoria
com a tragicidade da própria realidade do país. Porém, o do sujeito migrante, teorizada por Cornejo Polar.
dramaturgo Osvaldo Dragúnlhes deu a chave para esse Desde a colonização espanhola no Peru, e com o
entendimento:
estabelecimento das sedes administrativas da coroa na cidade de
Lima (inicialmente chamada de Ciudad de los Reyes), vigorou uma
3
O texto de Yuyachkani é bem mais dinâmico que a narração de Ortega, tem
menos detalhes do caminho migratório e menos personagens.
P á g i n a | 388

forte separação entre um Peru urbano e dominado pela cultura Quanto ao primeiro objetivo, sua jornada termina falha: após ter
espanhola, e um Peru rural, mantenedor das crenças e práticas conseguido entregar a carta ao presidente, ele a vê no chão,
indígenas e das línguas nativas. A partir da segunda metade do amassada e sem abrir. Quanto ao segundo objetivo, Cánepa tem
século XX, porém, tornou-se intenso o processo migratório das um pouco mais de êxito: embora não consiga recuperar seus ossos
regiões rurais para a capital Lima, em busca de melhores condições originais, recompõe, de outra maneira, aquilo que lhe faltava.
de vida, de forma que “em apenas meio século, [Lima] passou a Após tentar entregar a carta ao presidente, Cánepa e o
concentrar um terço de toda a população nacional” (DAMEANE, garoto que o ajuda entram na catedral na Praça de Armas, e param
2013, p. 110). diante do sarcófago do que seria o cadáver de Francisco Pizarro,
Para pensar esse novo quadro que se estabelece no país, e conquistador espanhol conhecido por subjugar o império inca e
suas implicações nas formas de representação, Cornejo Polar fundar a cidade de Lima. Com a ajuda do garoto, Cánepa pega
propõe a categoria do sujeito migrante: aquela que seria a caveira do conquistador, separa os ossos que
Tengo para mí que a partir de tal sujeto, y de sus discursos lhe faltam e entrega o resto para que o garoto venda. Podemos
y modos de representación, se podría producir una entender esse gesto de Cánepa como a representação de uma
categoría que permita leer amplios e importantes heterogeneidade presente no sujeito migrante, naquele que vai do
segmentos de la literatura Latinoamericana – entendida en povoado à capital, como postula Cornejo Polar:
el más amplio de sus sentidos – especialmente los que están Mi hipótesis primaria tiene que ver con el supuesto que el
definidos por su radical heterogeneidad. (CORNEJO POLAR, discurso migrante es radicalmente descentrado, en cuanto
1996, p. 838) se construye alrededor de ejes varios y asimétricos, de
alguna manera incompatibles y contradictorios de un modo
Alfonso Cánepa representa, de certa forma, essa categoria no dialéctico. [...] imagino – al contrario – que el allí el aquí,
dosujeito migrante, que vai da zona rural à sede administrativa do que son también el ayer y el hoy, refuerzan su aptitud
país. Ao chegar à cidade de Lima, ele se depara com multidões de enunciativay pueden tramar narrativas bifrontes y – hasta si
pessoas de todo tipo: despachantes, coimeros, fotógrafos, se quiere, exagerando las cosas –esquizofrénicas. [...]
policiais, familiares de desaparecidos, mendigos, crianças, loucos, considero que el desplazamiento migratorio duplica (o más)
vendedores. Dessa forma, com a diversidade de pessoas que se el territorio del sujeto y le ofrece o lo condena a hablar
encontra no espaço público da cidade, Cánepa – um cadáver, vale desde más de un Lugar. Es un discurso doble o
lembrar – pode passar despercebido, ou melhor, pode se misturar múltiplemente situado. (CORNEJO POLAR, 1996, p. 841)
àquela diversidade de sofrimentos. O que ele deseja, porém, não
Assim, é possível que o corpo de Cánepa seja
é se “misturar” completamente àquelas figuras, tornando-se um
mendigo, por exemplo; Cánepa tem dois objetivos claros: entregar reconfigurado, levando em conta o mito de Incarrí, de forma que
nele estejam presentes tanto as culturas quéchua e aymara,
a carta ao presidente Belaúnde e recuperar o resto de sua ossada.
quanto aquilo que veio com a invasão espanhola. No trecho final
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de Adiós Ayacucho, como mencionamos anteriormente, há uma RUBIO ZAPATA, Miguel. El cuerpo ausente (performance política).
clara referência ao mito de Incarrí, quando Cánepa diz “Ya me Lima: Yuyachkani, 2006.
levantaria em esta tierra, como una coluna de piedra y de fuego”.
Porém esse levantar-se não pode mais ser apenas do Inca, pois já TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório – Performance e memória
há uma heterogeneidade presente na própria reconstituição da cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
ossada. A partir daí, e apenas a partir dessa compreensão, Cánepa
e as outras vítimas da violência podem conceber formas de
“descansar em paz”.

Referências
CORNEJO POLAR, Antonio. Una heterogeneidad no dialéctica:
sujeto y discurso migrantes en el Perú moderno. Revista
Iberoamericana. Vol. LXII, Niums. 176-177, Julio-Diciembre 1996,
p. 837-844.

DAMÊANE, Carla; ROJO, Sara (orientadora). A encenação do sujeito


e da cosmogonia andina no teatro peruano: memória histórica e
ativismo político em César Vallejo e Yuyachkani. 2013. 314 f., enc.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Letras.

MAMANI MACEDO, Mauro. Poéticas andinas: Puno. 1. ed. Lima,


Perú: Instituto de Investigaciones Humanísticas, Facultad de Letras
y Ciencias Humanas, Universidad Nacional Mayor de San Marcos:
Pájaro de Fuego Ediciones: GUARAGUAO, Revista de Cultura
Latinoamericana, 2009.

ORTEGA, Julio; VICH FLÓREZ, Víctor; HIBBETT, Alexandra; Grupo de


Teatro Yuyachkani (Lima). Adiós Ayacucho: novela. Lima: Fondo
Editorial de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2008.
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SOBRE O FEMININO NOS MANIFESTOS CARTONEROS E O duas esferas semióticas distintas em sua materialidade: um livro
ALINHAVAMENTO DE UM SUJEITO COLETIVO cartonero é uma conjunção entre o código escrito e o visual.
Flavia Braga Krauss de Vilhena Cartón é uma palavra em língua espanhola que significa papelão.
Unemat - Campus de Tangará da Serra As cartoneras publicam livros que provavelmente não teriam saída
no mercado editorial comum e envolvem este corpo com uma
“… hacer insignia y huir del hábito, he ahí la clave del capa de papelão pintada à mão; um envelope feito do que
goce cartonero.” comumente chamamos de lixo, refugo da sociedade industrial,
Jaime Vargas Luna mas já transformado, mas já bem colorido. Sim, que sorte que no
meio do caminho continuem existindo adversativas. Livros
A cartonera “é um coletivo de pessoas que se unem pela cartoneros são livros duplamente artísticos: um corpo de literatura
diferença”, para começarmos este texto pinçando uma definição confeccionado manualmente e colorido com guache. Assim, em
que aparece no primeiro parágrafo do manifesto do Dulcineia seu composé, fazem frente ao prêt-à-porter hegemônico do
Catadora. E nesta primeira definição, já temos um jogo entre o mercado editorial na atualidade.
artigo feminino e o masculino. “Cartonera” é um substantivo Repetimos: a cartonera “é um coletivo de pessoas que se
feminino e, de um modo geral, as cartoneras são tradicionalmente unem pela diferença”. É interessante notarmos que a palavra
batizadas, ainda que de forma profana, com nomes femininos. “diferença” que aparece neste trecho pode tanto se referir ao que
Mas –sim, no meio do caminho existe uma adversativa – somando- elas não possuem de homogêneo, alegando que cada pessoa do
se ao fato de serem substantivos femininos singulares, são coletivo funcionaria como complementar à outra, mas também
coletivos: a cartonera é um coletivo. Ou seja, a “cartonera”, uma pode se referir ao resultado de uma subtração. Por exemplo: a
palavra feminina no singular, é definida por uma palavra masculina diferença entre cinco e três é dois. Assim, poderia indicar tanto
que nos remete a um sujeito coletivo. E com esta assertiva inicial, para uma adição como para o resultado de uma subtração. Nos
“a cartonera é um coletivo de pessoas que se unem pela parece importante ressaltar que em ambas acepções existe um
diferença”, e em seu intrincado jogo entre masculino e feminino, efeito de sentido que se dirige para algo que não seria absorvido
singular e plural, encontramos a primeira nota indicial que vai dar originariamente, sendo descartado como sobra, bem como o
o mote de todo o composé cartonero. E é nesta espécie de pista próprio papelão que aparece nas capas de cada um dos livros
que fazemos nossa aposta. feitos pela cartonera. Assim, não já de cara, mas já de capa, a
Composé é uma palavra utilizada em moda e arquitetura produção cartonera se propõe a trabalhar com uma sobra, com
para designar a combinação entre diferentes materiais e algo que não cabe, extrapola e poderia acabar sendo considerado
estampas. Acreditamos na potência desta palavra francesa para como resto, refugo, rebarba. Publicam autores que não teriam
designar a organização cartonera justamente pela presença de saída no mercado editorial, como por exemplo, o morador de rua
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de São Paulo, Nicomedes. Ou autores consagrados que fazem classificações e hierarquizações, pertencendo, assim, ao âmbito do
“política no limite da palavra”, como aparece no manifesto do feminino, do não-todo, daquilo que se semidiz, já que não admite
Dulcineia Catadora. Trabalham, como depreendemos da leitura de uma universalização. E por nunca conseguir dizer-se totalmente,
seus manifestos, buscando dar visibilidade ao que ainda não tem estaria sempre se dizendo. E é devido a este modus operandi que
visibilidade, a um “mais além” do já aceitado e reconhecido o feminino tem sempre retornado, mesmo tendo sido abafado
socialmente. durante longos períodos históricos.
Também pontuamos neste início de conversa que as Para Lacan, a mulher, por ser lapidada pela lógica do gozo
cartoneras costumam serem batizadas com nomes femininos. suplementar, faria parte de um grupo que não admite a formação
Algumas realmente têm nomes próprios, nomes de mulheres: de grupos: um grupo inagrupável, um grupo que não se deixa
Eloísa Cartonera, Dulcineia Cartonera, Sarita Cartonera, Olga engolir por classificações. E daí a máxima “a mulher não existe”,
Cartonera, Aida Cartonera, Julieta Cartonera, Sofia Cartonera, La devido ao fato de não admitirem nenhuma universalidade. Assim,
Veronica Cartonera, Isidora Cartonera, Benicia Cartonera, Nuestra a lógica do Don Juan, de onde justamente seria proveniente seu
Señora Cartonera, Kiltra Cartonera, My Lourdes Cartonera, sucesso com a ala feminina, reside em tomá-las uma a uma. Talvez
Katarina Cartonera, La Aparecida Cartonera, La Cecilia Cartonera, tenha sido alguém que entendeu de mulheres, justamente por não
Mama Dolores Cartonera, Rosalita Cartonera, Yvonne Cartonera, entendê-las em uma suposta universalidade. Assim, não pensaria
Carmela Cartonera, Severina Cartonera, Maria Papelão. ele, não pensaria Lacan, e não pensaríamos nós, seguindo seu
E também existem um tanto de outras cartoneras cujos legado, n“a mulher”, justamente porque este suposto conceito, ao
nomes são substantivos no feminino: Yiyi Jambo, Yerba Mala não pode ser generalizado e abstralizado, não pode ser escrito.
Cartonera, Mandrágora Cartonera, Animita Cartonera, La São muitos os saberes que não podem ser escritos. Andar
Cartonera, Ultramarina Cartonera, Santa Muerte Cartonera, de bicicleta, por exemplo. Não posso deixar um guia didático para
Nicotina Cartonera, Me muero muerta, Meninas Cartonera, La que meu filho, guiando-se por ele, aprenda a andar de bicicleta.
Rueda, La Vieja Sapa, Otra cosa, Kodama Cartonera, Cieneguita Lembro que meu pai me ensinou a andar de bicicleta sem rodinhas
Cartonera, Sereia Cantadora, La Cabuda, Infinita Cartonera, La segurando o banco da minha monareta vermelha, enquanto eu
Verdura Cartonera, Ratona Cartonera, Iguanazul Cartonera. pedalava em uma rua sem asfalto. Eu já pedalava sozinha, mas
Entretanto, nossa aposta consiste em afirmar que, mais quando percebia que ele havia soltado o banco (me faltava sua voz
que terem nomes de mulheres, costuram uma proposta de ação conversando comigo) eu caía. Assim, saberes que não podem ser
que se origina em uma estrutura de relação com o saber permitida escritos são saberes que não cabem em uma cartilha: é um saber
pelo gozo suplementar, tal como colocado por Lacan (2008) no que se partilha. Como inteligente e engraçadamente nos mostrou
Seminário 20. O gozo suplementar seria uma matriz de leitura e Cortázar (1995) em seus contos de “Historia de Cronopios y
escritura que excede a lógica masculina, fálica, baseada em Famas”, subir uma escada ou chorar é algo que não pode ser
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escrito. Ressaltamos aqui que o verbo “poder” se relaciona a uma Inbenciones em vez de cópias y libros de todos los
impossibilidade e não a uma proibição. Ainda que ele tenha tamaños.
conseguido escrever uma receita de como subir uma escada, o O que muda constantemente não pode ser escrito,
único que conseguiu fazer foi mostrar que ninguém conseguiria justamente porque a escrita permanece paralisada, o escrito
subir uma escada porque leu uma receita de como subir uma estaciona, estanca, estabelece definições e fronteiras. Sim,
escada. “Inbenciones em vez de copias y libros de todos los tamaños”, em
Considera-se ininconseguível escrever “a mulher”, por mais oposição às formas já fornecidas e padronizadas de acordo com os
que se tente e se queira e se descabele. Desista: não se escreve; e
parâmetros hegemônicos, trabalhando paralelamente al GRAN
ponto final. Assim, como também temos pensado os manifestos MERKADO que havia aparecido anteriormente no mesmo excerto.
das cartoneras enquanto pertencentes ao campo do feminino, eles Faz-se interessante notarmos que a própria língua na qual aparece
não se escreveriam. E este é nosso ponto de partida. redigido o manifesto do qual retiramos o trecho aqui em análise
Assim, ao analisarmos tais manifestos artísticos, não não apresenta estabilidade lógica, esquivando-se da noção de
encontramos um universal do que vem a ser “a” cartonera. Se de língua mais corriqueira, admitida tanto na academia como no
um lado, percebemos que é uma tarefa arriscada e complicada a senso-comum, e que separa as línguas em português, espanhol,
definição de uma cartonera – inclusive elas ainda não aparecem italiano e francês, para começar com as românicas que nos são
em estado de dicionário, congeladas neste monumento à língua – mais próximas.
por outro, existe um esforço por não fazê-lo a partir de categorias
O manifesto aparece escrito em uma entre-língua: em
pré-definidas. Sim, as cartoneras – a partir da análise que fazemos “portuñol salvaje”, uma expressão que tampouco apresenta
de seus manifestos – não se escrevem no sentido de não se estabilidade, já que inclusive sua grafia pode variar a cada
encaixarem no já existente, não caberem nos limites do possível já aparição. Conforme explicado para a Revista ABH por Douglas
recortado pela tesoura da linguagem. Diegues (2012), o portunhol salvaje seria selvagem por ser a língua
Para fugirem do já definido linguageiramente, elaboram e daquilo que trazemos por dentro, ainda não civilizado: “Por que
exercem uma exaltação da constante troca, inversão e invenção de selvagem? Porque que brota de las selvas de mio corazon y de los
caminhos, ainda que paralelos às grandes narrativas, aos grandes corazones de los habitantes de las selvas desconocidas de la
caminhos, “al GRAN MERKADO ABERTO”, como encontramos no frontera del Brasil com el Paraguay”.
manifesto do coletivo Yiyi Jambo: Se Perlongher (2000) nos diz que “o efeito do portunhol é
10 Bezes mais mudanzas em todas la partes. imediatamente poético”, de nossa parte dizemos: o portunhol é
I LIKED PRINCESAS DE LA SUKATA. poético em sua essência, em sua constituição de uma nova língua
Merkados paralelos al GRAN MERKADO ABERTO y a cada ato de enunciação. Por este motivo seria a língua
otros outros lados. considerada como do coração: porque é uma língua inventada nos
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moldes justos daquilo que se quer dizer, uma língua que não As cartoneras não parecem estar preocupadas com a
aparece com uma formatação pré-fabricada: seria uma língua de precisão nem com uma limpeza da estabilidade de sua construção
alfaiataria que, assim como o composé cartonero, faz frente ao de sua própria verdade, como aparece no manifesto do Sarita
modus operandi do modelito linguísticoprêt-à-porter. Cartonera: “Hemos tenido que repensarnos. No tenemos
Vislumbramos, também, uma reverberação desta noção de respuestas claras pero hay algunas rutas o principios sobre los
língua-alfaiataria logo na primeira frase do manifesto do Yerba cuales se ha basado y se basa nuestra propuesta (o nuestras
Mala: “Si de cartones hablamos, no se trata de mencionar posturas propuestas).” Como vemos, existe um modalizador “hemos
acartonadas ni mucho menos títulos académicos”. Deste modo, a tenido” que ao estar conjugado em “pretérito perfecto de
condicional real encabeçada pela conjunção “si” em “si de indicativo” indica uma obrigatoriedade que começou no passado
cartones hablamos”, é seguida por uma negativa: “no se trata de e que se estende até o momento da enunciação; é uma ação ainda
mencionar posturas acartonadas ni mucho menos títulos em curso que encharca o tempo presente de possibilidadese
académicos”. Assim, de todos os sentidos evocados pela possíveis recálculos de rota. Na verdade, e como também nos
condicional real “si”, dois são excluídos em uma escala de indica este tempo verbal, elas parecem estar interessadas
crescente intensidade no rechaço: posturas acartonadas justamente na instabilidade das verdades, naqueles locais onde as
(acartonadas significam aqui engessadas, pouco flexíveis) e títulos fronteiras ainda não foram afirmadas e afiadas a ponto de nos
académicos. Por isso, percebemos que, apesar da ascendência que separar. E assim, por estarem ainda se repensando, prosseguem
a palavra acartonada tem na palavra cartón, existe um efeito de o manifesto posicionando-se justamente com relação às
sentido que separa e exclui os sentidos relacionados a “posturas fronteiras: “Nos sentimos más cómodos en las fronteras no
acartonadas”, enrijecidas, previamente cartografadas e definidas, las de enriquecimientos mutuos [...] No creemos en
mensuradas no termômetro da graduação acadêmica. Assim, já dogmatismos. Eso nos permite cambiar de rumbo cuando nos da
neste trecho se separam da tanto do conhecimento logicamente la gana y sin culpa.”
estabilizado, definido, recortado, quanto dos caminhos Como se vai desenhando neste excerto, as cartoneras
reconhecidos social e academicamente para a construção deste estabelecem uma relação com o gozo suplementar, afastando-se
mesmo conhecimento. Na esteira deste raciocínio, se afastam assim da lógica fálica, que justamente estabeleceria e reafirmaria
tanto dos processos quanto dos produtos preponderantes em suas fronteiras ao firmar estratégias de ação e conquista, como tão
nossa tradição moderna de relacionamento com o saber, que visa, comum nos manifestos artísticos do princípio do século passado,
a partir de procedimentos científicos e acadêmicos, justamente a que visavam romper com a tradição estabelecida, afastando-se
precisão e a limpeza na estabilidade das construções sobre a dela (GELADO, 2008). O gozo suplementar se relaciona a uma
verdade. chave de leitura e escritura maleável, que resiste e se adapta às
condições de produção e atuação.Por ser a mulher não toda
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(LACAN, 2008, p.38), há sempre alguma coisa dela que escapa ao Nos explicamos: ao construírem uma fenda no já
discurso e foge das fronteiras, resistindo e excedendo as grades estabilizado logicamente, fazem muito mais que definir quais são
linguageiras. Assim, o gozo suplementar, não captável via as propostas de seu trabalho. Performaticamente recortam uma
linguagem, não só fugiria das grades linguageiras, mas seria intervenção lúdico-cirúrgica que modifica o mundo e os seres que
também um recanto de ludicidade no interior do já domesticado por ventura venham habitar temporariamente esta fenda. In-
via linguagem, favorecendo, neste canto que se cava, a construção ventam outros sentidos e vetores possíveis, não captáveis via
de uma alternativa aos sentidos já estabilizados, ao que não pode linguagem, mas, talvez, via sentidos: destacamos o olhar, o tocar,
ser transformado, como nos declara Yerba Mala Cartonera: o sentir o cheiro e a textura do livro cartonero que em seu próprio
Operamos en el intersticio ignorado, allí donde se han processo de confecção valoriza a singularidade de todo e cada
inventado muros y sólo hay espacios abiertos. Asumimos la livro.
otredad entera como nuestro ombligo mismo y debemos Já a terceira acepção aqui posta em cena, “llevar a cabo
reconocer que la risa nos invade, en acto sincero e ingenuo, acciones de guerra”, em nossa interpretação se refere à proposta
cuando se insinúa siquiera una separación tajante entre luz
política desempenhada por estes coletivos que, ao agirem
y oscuridad, mujer y hombre o vida y muerte.
justamente no interior do ainda não estabilizado, o “interstício
Como analisamos a partir da leitura do trecho posto em ignorado”, possuem estratégias de guerra que mais se aproximam
destaque, sua primeira oração é uma declaração: “Operamos en el do poético que brinca e faz carinho que do bélico que ataca. Deste
intersticio ignorado”. Ressaltamos que o verbo operar que dá modo, seria uma guerra que se faz pela não-guerra, nos moldes
início ao período pode se relacionar ao menos com três acepções também desenhados por Beatriz Preciado (2013)1:“Eles dizem que
trazidas pelo dicionário da Real Academia Española, vejamos: a guerra limpa se fará com os drones. Nós queremos fazer amor
“Ejecutar sobre el cuerpo animal vivo, con ayuda de instrumentos com os drones. Nossa insurreição é a paz, o afeto total.”
adecuados, diversos actos curativos, como extirpar, amputar, Destacamos que esta ilogicidade que tange o afetivo-sexual
implantar, corregir, coser, etc., órganos, miembros o tejidos”, que perpassa o manifesto de Beatriz Preciado, aparece de modo
“Obrar, trabajar, ejecutar diversos menesteres u ocupaciones” ou muito marcado no manifesto do Yiyi Jambo, uma cartonera
“Llevar a cabo acciones de guerra, mover un ejército con arreglo a localizada em Assunção, no Paraguai. Como dado de análise,
un plan”. Assim sendo, argumentamos que este verbo pode estar trazemos o terceiro parágrafo deste manifesto: “Good morning
se referindo tanto ao trabalho cartonero, que figura na segunda Wisconsilândia! Alô alô marcianas! ¿Qué dicen las yiyis?” Um
acepção aqui em questão, “obrar, trabajar”, como quanto à parágrafo, três línguas e um neologismo, “Wisconsilândia”, que
operação que fazem no simbólico a partir de dito trabalho. não corresponde efetivamente à língua nenhuma, ainda que siga

1
Beatriz Preciado é professora de Teoria do Gênero, História Política do Corpo
e História da Performance na Paris VIII.
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as regras morfológicas de formação léxica do português. Logo após Terezinha” é retomado lado a lado com um verso que diz “Aquele
a saudação matinal em inglês, temos um “Alô alô marcianas!” que abraço” e que também dá nome à canção.
imediatamente nos remete a uma paródia de um verso da Seguindo com nossa demonstração de que os manifestos
conhecida canção cantada por Elis Regina. Lembremos que este se estruturam a partir de uma lógica concernente ao gozo
verso é seguido na canção por estes outros: “Aqui quem fala é da suplementar, uma lógica que esteja para além do abarcável via
Terra/ Pra variar estamos em guerra”. Entretanto, ao trocar a linguagem, extrapolando, excedendo e estendendo-se na
palavra “marciano” pelo seu feminino no plural, “marcianas”, construção de uma coletividade, temos o seguinte excerto:
consegue um efeito, no mínimo, cômico. Em nossa interpretação Empieza la semana del amor em Paraguaylandia y dicen que
este efeito cômico se dá por outra relação intertextual las kuarentonas son las que más disfrutam.
estabelecida por este trecho: o famoso “Alô, alô, Terezinha”, do Inbentar el libro-dildo cartonero. [...]
Chacrinha, o mais famoso apresentador de auditório do Brasil Kontrabandear al Vatikano y al resto de la Gluebolândia los
bessos sinceramente sinceros que nim los lovers boys y las
entre as décadas de 50 e 80. Irreverente e com uma estética
bandidas mais karas de la selva rio-sampaulandensis
carregada, atraiu o gosto popular e foi o demiurgo de um conjunto
vendem…
de mulheres que ainda hoje figura no imaginário popular
masculino: as chacretes. O trecho recortado começa com uma contextualização
Como vemos, o elemento feminino pluralizado que temporal-espacial: “Empieza la semana del amor em
aparece em “chacretes” retorna em “marcianas”, oferecendo ao Paraguaylandia”, justamente com o lançamento do manifesto, de
texto um efeito humorístico reforçado pelo “Qué dicen las yiyis?” modo que podemos pensar a escritura do manifesto como um acto
que aparece na sequência. A palavra “yiyi”, que também dá nome dicendi, um gesto de ser, de se fazer ser, que declara o começo de
à cartonera, Yiyi Jambo, não está catalogada pelo dicionário da uma nova era. Entretanto, já no começo desta nova era a
Real Academia Española, entretanto, de acordo com a frikipedia2, descrevem como relativa somente a uma semana. Assim, o
seriam “chicas jóvenes y en buen estado físico”; em algum site aspecto temporal se concretiza via temporário, indicando para
ainda mais informal que este 3 , encontramos que a palavra yiyi algo que não dura muito tempo, atualizando assim um efeito de
estaria próxima ao significado de prostituta. De todas as formas, sentido maior, a saber: o da constante invenção e renovação. “Huir
existe um forte apelo sensorial que se reforça inclusive porque del hábito” seria a chave do gozo cartonero, como já colocado em
outra remissão possível para “Alô alô marcianas” seria a conhecida nossa epígrafe.
música de Gilberto Gil na qual o bordão do Chacrinha, “Alô, alô, Na sequência temos duas comandas de ação: uma
relacionada à invenção, ao fazer existir o que ainda não possui

2 3
Disponível em: http://www.frikipedia.es/friki/Paraguay. Acesso em 26 de Disponível em: http://espanol.answers.yahoo.com/question/
julho de 2013. index?qid=20100318210756AAlBHZC. Acesso em 26 de julho de 2012.
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existência no mundo real, mas que se inventa no patamar do Sabemos que o Vaticano é um Estado eclesiástico, o menor Estado
linguageiro a partir da junção de duas palavras que existem, mas soberano do mundo e que constitui um quisto no qual o poder
que normalmente não saem por aí de mãos dadas: “Inbentar el estatal e religioso se condensam e se concretizam na figura de uma
libro-dildo cartonero”. A partir desta palavra composta (libro- única pessoa: o papa. O papa detém os poderes legislativo,
dildo), podemos pensaruma conjunção entre desejo e gozo:“libro” executivo e judiciário e não precisa prestar contas a ninguém, pois
estaria no campo do desejo e “dildo” do gozo, demonstrando que seria o sucessor direto de São Pedro. Assim, teríamos como alvo
para entrelaçar produtivamente estes polos seria suficiente um primeiro do manifesto um país que se constitui a partir da
hífen. cristalização de dois aparelhos ideológicos em um só: O Estado e a
De acordo com Lacan (2002), a conjunção entre gozo e Igreja. A proposta de ataque lançada pelo manifesto teria início
desejo se daria pela letra-litoral. Como vemos, aqui a letra litoral pelo menor, mas um dos menos porosos Estados. Entretanto, o
aparece como um signo da ordem da escritura, encarnada como míssil com o qual querem atingir o alvo seriam nada menos que os
um simples hífen. Tomamos este hífen como uma metonímia bessos sinceramente sinceros que já apontamos como o hífen que
daquilo que de algum modo é feito em todo o manifesto, já que ligaria desejo e gozo neste manifesto.
em toda sua extensão existe um esforço por fazer com que gozo e O desejo se relacionaria ao aspecto coletivo e o gozo ao
desejo se encontrem em “bessos sinceramente sinceros” como aspecto corpóreo da proposta: ambas questões seriam políticas.
exploraremos. Assim, mais uma vez, teríamos ecos de que a armas de combate
Já a última comanda do excerto se refere a “Kontrabandear trazidas por este manifesto seriam mais “sem-noção-sensoriais”
al Vatikano y al resto de la Gluebolândia los bessos sinceramente que bélicas, como dizia Preciado: “nós queremos fazer amor com
sinceros”. Verbos no infinitivo também podem exercer uma função os drones”. Como notamos, a argumentação de Yiyi Jambo não se
imperativa na língua espanhola. Assim, estaríamos de frente com pauta em uma lógica fálica, que hierarquiza a apresentação das
uma ordem de ação. Sendo o contrabando uma prática ilegal de proposituras e se esmera em apresentar um plano de ação
transporte e comercialização de mercadorias proibidas por lei, os executável e validado historicamente. Se podemos mostrar com
beijos seriam tomados, no período aqui em análise, considerados quantos paus se faz uma canoa, talvez não tenhamos a mesma
como artigos proibidos por lei no momento de escritura do facilidade para prever com quantos beijos se faz uma guerra a ser
manifesto. Tais beijos, ao serem “sinceramente sinceros”, são começada no Vaticano.
duplamente, adjetiva e adverbialmente, sinceros. Se são sinceros, Relembremos que na epígrafe deste trabalho trazíamos
logo não são vendidos nem pelos “lovers boys” nem pelas que a chave do gozo cartonero seria “hacer insígnia y huir del
“bandidas mais karas de la selva rio-sampaulandensis”. Além de hábito”. Em espanhol a palavra hábito pode significar tanto certa
serem contrabandeados, os beijos seriam, primeiramente, roupa eclesiástica como também uma ordem militar, além de
contrabandeados ao Vaticano e, logo, para o resto do mundo. significar de modo mais transparente para a língua portuguesa
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“modo especial de proceder o conducirse adquirido por repetición selvagem em muitos aspectos se aproxima dos moldes daqueles
de actos iguales o semejantes”, além de “situación de dependencia descritos como próprios de lalangue. A partir do exposto por Lacan
respecto de ciertas drogas”. Assim, fugir do hábito se relacionaria em Lituraterra, concebemos a lalangue como uma agulha munida
a um evitar os aparelhos ideológicos tais com se apresentam, cuja de linha. Juntamos essa nossa interpretação, com o colocado por
ação correspondente seria fugir do Vaticano, mas também poderia Milner (2012, p. 26) ao dizer que lalangue seria aquela via na qual,
ser habitá-lo de um modo pouco convencional, não se de um só golpe, existe linguagem e inconsciente. Existe linguagem
relacionando assim a certa fuga espacial, mas sim, uma fuga lógica porque se fazem presentes os significantes linguísticos.
que rompe com o já dado, ao, por exemplo, “kontrabandear al Entretanto, estes significantes estão despojados dos significados
vatikano”. compartilhados socialmente. Já para Góis et al, em um texto
É interessante notarmos a menção à situação de intitulado, “Lalangue, via régia para a captura do real”4, “lalangue
dependência de certas drogas e “modo especial de proceder o é feita de qualquer coisa, de mal-entendido, anterior ao
conducirse adquirido por repetición de actos iguales o significante-mestre”. É um neologismo inventado por Lacan que
semejantes”, como trazido pela RAE e em um sentido mais une o artigo definido à palavra langue: seria uma língua imperfeita
próximo daquele mais utilizado em português. Chamamos a que permite falar para nada dizer, dizer o que não se sabe ou só se
atenção para o fato de que tanto a dependência quanto a sabe mais ou menos.
repetição do “hábito” se referem a uma imobilização derivada de Ora, se toda língua é uma ferramenta imperfeita (HENRY,
um gozo desenganchado do desejo. Conforme já mencionado, 1992), lalangue seria uma língua perfeita por ser, assim como o
gozo e desejo poderiam se unir por meio da letra-litoral, que se próprio portuñol salvaje, a língua da selva do coração: éa
alinhava no caso aqui em análise justamente a partir da língua deformação da língua já compartilhada socialmente para fazê-la
alfaiataria modelada pelo portuñol salvaje. sua através de um esforço de apropriação. Depois desta
Esta língua-alfaiataria seria responsável por coser todo o deformação, dita língua seria capaz mastigar o gozo fálico de cada
manifesto, mas também por costurar o gozo ao desejo tal como se um, processando-o enquanto gozo suplementar que possibilitaria
expressam no manifesto mesmo. Lembremos novamente do o alinhavamento entre os sujeitos, permitindo, assim, a construção
neologismo “libro-dildo” aqui analisado. Assim, esta língua de um sujeito coletivo5 (HENRY, 1992).

4
Disponível em http://www.psicanaliselacaniana.com/estudos/documents/ foi politicamente organizada porque o movimento operário muniu-se de
LALANGUE.pdf. Acessado em 27 de junho de 2013. organizações políticas e sindicais, tiveram por corolário o desenvolvimento no
5
A partir de Paul Henry (1992, p. 138), começamos a pensar que a única interior das ideologias dominantes, mas rompendo com elas, de formações
possibilidade de resistência no interior da sociedade capitalista seria a criação ideológicas políticas nas quais as posições da classe operária estão
de um sujeito coletivo. Na sequência, colocamos o trecho que nos incentivou representadas. Essas formações ideológicas estão constituídas em torno de uma
nesta conclusão: “Ora, o desenvolvimento da luta de classes em todas as forma-sujeito, a do “sujeito coletivo” (a célula, a seção sindical, o partido, as
formações sociais capitalistas, o fato de que em certos países a luta de classes
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Se lalangue é uma agulha equipada com linha, podemos Entretanto, lalangue seria justamente este quisto onde
dizer que seu trabalho possui um duplo alcance: perfurar o gozo linguagem e verdade se encontram, como nos diz Milner (2012, p.
fálico de cada um e bordar a letra litoral não só entre gozo e 39): “Lalíngua não é toda. Disso deriva o fato de que há algo nela
desejo, mas também entre o sujeito e o coletivo, que permite um que não cessa de não se escrever”. Por isso, por não se bastar, não
trans-bordamento, ao mesmo tempo que extrapola o já construído se completar, e não se cansar de tentar se costurar, seria via régia
e permite que estes polos fiquem de mãos dadas. Tamanha é a para o alinhavamento de coletividades. Se lalangue pode ser
importância dada ao conceito de lalangue por Lacan, no fim de seu pensada como uma agulha com linha, a partir de seu trabalho,
ensino, que Groisman (2013) chega a dizer que o próprio Lacan acontece de um sujeito abrir uma via e escrever um impossível de
poderia inclusive ser chamado de Lalan, tamanha a importância se escrever, que é também um impossível de se enganchar. E é por
deste conceito em sua obra que, principalmente, aparece via se relacionar com lalangue de algum modo que o portunhol é
performance em sua escritura. poético, conforme defendido por Perlongher: ao construir de
Se nunca dizemos a verdade, pois as palavras estão em falta forma inventiva uma forma justa para o que se quer dizer, faz com
com esta verdade (MILNER, 2012, p. 28), logo podemos concluir que a linguagem encontre o inconsciente; abre uma via na qual é
que, em certo sentido as palavras são mentirosas. E neste ponto possível dizer o indizível nas línguas pré-existentes. Ou, pelo
retornariam os “bessos sinceramente sinceros” que finalizam este menos, diz o já dizível, mas de modo diferente, gesto que em si já
manifesto. Assim, se todas as palavras são mentirosas em certa transforma o dizível.
medida (sim, elas “estão em falta com esta verdade”), verificamos Em nosso caso, o portuñol salvaje objeto de nossa análise
que o manifesto acaba por compor-se nos moldes de um mosaico manifesta este traço de não todo por se apresentar como cheio de
não coerente, mas que procura ser “sinceramente sincero”, frestas, permitindo a entrada do impensado e desestabilizado
obedecendo assim a uma lógica da verdade, que se contrapõe a logicamente, a entrada do português, do guarani, do espanhol, do
uma lógica da ciência, utilizando-nos ainda da linha de raciocínio italiano e da invenção neologística mesma em sua materialidade.
de Milner: a lalangue (ainda que não muito compreensível) se É uma língua de confecção própria, feita para uso imediato, sem
relacionaria com a verdade. Ora, se a língua é da ordem do todo, lei externa, como bem anunciava Perlongher: o poeta faz sua
do simbólico, e a verdade da ordem do não todo, do real, estão própria lei. E na sequência, o poeta costura com sua própria lei sua
destinados a não se encontrarem (“uma parte de mim é só manjedoura, agregamos. O poeta abraça e é abraçado por sua
vertigem: outra parte, linguagem”, intuía em termos poéticos letra-litoral, letra que se oferece como dobradiça entre gozo e
Ferreira Gullar). desejo, e deste lugar faz seu alicerce, seu lirismo, sua moradia, sua
metralhadora de brincadeira, sua brincalhona britadeira.

massas etc...) que rompe com a forma-sujeito constitutiva das ideologias


práticas burguesas.”
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Propomos o seguinte: procurar confeccionar a própria lei, porque creemos en la necesidad de evidenciar siempre los
bordar a própria letra-litoral como algo sempre em movimento e límites de una propuesta, para transgredirlos.
como um acto dicendi nos parece que seja mesmo o mote do Como vemos, ainda que reconheçam o cânon, não
trabalho cartonero, conforme se vislumbra em seus manifestos. compactuam com sua validade hegemônica e imperativa,
Como analisamos a partir do manifesto do Yerba Mala: justamente por seu caráter excludente, que despreza tudo o que
Tampoco buscamos una respuesta (sólo) racional a esta aí não se encaixa. Por este motivo, estão contra o desenhado,
unificación macro y global que planteamos, la salubridad de
dividido e estabelecido. Querem estar dos dois lados do campo:
nuestro caminar se fundamenta más en un antiguo instinto
dentro e fora.
que en las conclusiones parciales que la ciencia a diario
ofrece. Esta visión nos hace rozar los bordes (inexistentes) y Sim, ainda que Pêcheux (1983) diga que é impossível estar
desplazarnos sin demasiado lío entre márgenes, centro, dentro e fora ao mesmo tempo, defendendo certa necessidade de
periferias y alguna otra dimensión más allá de lo homogeneidade lógica, temos aqui a enunciação de que advogam
clasificable. que seja possível estar ao mesmo tempo dos dois lados da
fronteira: “Estar a la vez adentro y afuera”. Como os poetas,
Notamos que também a partir do manifesto do Yerba Mala
querem fazer de lalangue seu lar, seu leme e seu lema de guerra.
podemos depreender uma relação com o saber caudatária do gozo
De acordo com a postura defendida pela cartonera, ainda que seja
suplementar que, mesmo reconhecendo seus limites, não o
importante reconhecer os limites de uma proposta, este
percebem como muros intransponíveis. Assim, a construção de
reconhecimento somente se valida na transgressão, na
sua lei em seu processo de conhecimento e sua proposta holística
ultrapassagem deste limite, como também aparece neste trecho
não se basearia somente em um procedimento racional, mas em
de Sarita Cartonera, no qual também transparece este desejo de
um “antiguo instinto”. Este instinto antigo os leva a desconfiarem
“estar adentro y afuera”, dos dois lados do campo:
tanto da lei já estabelecida quanto do canon já encarcerado, por
Yo soy Sarita Cartonera, la santa de a pie, la ilusión más allá
incentivarem limitações, como vemos no dado que expomos na de la desilusión, las ganas de hacer algo cuando todos dicen
sequência: “ya no hay nada que hacer”, la música a todo volumen, la
Tampoco estamos de acuerdo con el canon. Siempre se ha combi asesina, el policía coimeando en la esquina. [...]No,
dejado de lado lo que no encaja en él. Por ello nos yo camino a pie, yo veo todo lo grandioso y lo terrible en
proponemos omnívoros y plurales. Los géneros y las cada uno de nosotros, yo bendigo la mierda, beso al asesino,
disciplinas, por ejemplo, sólo incentivan limitaciones [...] oigo al obsceno, duermo entre latas y basura pero conservo
Estamos en contra de lo establecido: nos interesa en mi corazón algo innombrado y no lo voy a nombrar, éste
atravesarlo. Estar a la vez adentro y afuera. Buscamos es mi motor, mi fuerza, mi fe más allá de mi propia fe
siempre sorprender, tanto en formatos como en
contenidos, buscamos rebasar nuestros propios límites, De acordo com nossa leitura, existe um transbordamento
dos sentidos convencionais, uma celebração do excessivo que
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surge em escala crescente e que chega a escorregar no linguagem e inconsciente, ao estar tanto no mar quanto na areia
contraditório, quando a cartonera se auto-apresenta como “la da praia, para utilizarmos a metáfora também trazida por Lacan
ilusión más allá de la desilusión, las ganas de hacer algo cuando em Lituraterra (2002).
todos dicen ‘ya no hay nada que hacer’, la música a todo volumen, Assim, a sequência de união dos contrários seguiria em: “yo
la combi asesina, el policía coimeando en la esquina.”Começamos veo todo lo grandioso y lo terrible en cada uno de nosotros, yo
nossa análise atentando para o fato de que a palavra “ilusión” em bendigo la mierda, beso al asesino, oigo al obsceno, duermo entre
língua espanhola, diferentemente do português, pode ter tanto latas y basura”. Em nossa perspectiva, grandioso e terrível seriam
sentido positivo quanto negativo, como aparece nas duas campos contraditórios, ainda que habitem cada um de nós, como
primeiras acepções trazidas pelo dicionário da RAE: 1. f. Concepto, inclusive dito neste mesmo trecho.
imagen o representación sin verdadera realidad, sugeridos por la Já nas descrições que aparecem na sequência, as ações
imaginación o causados por engaño de los sentidos. 2. f. Esperanza referidas pelos verbos bendecir, besar, oír e dormir não são
cuyo cumplimiento parece especialmente atractivo. Assim, se condizentes com os substantivos com os quais figuram de mãos
aproxima tanto do sentido hegemônico em português, ilusão, dadas, a saber: mierda, asesino, obceno, latas y basura, causando
quanto de uma esperança que pode trazer muita alegria. E neste assim uma espécie de curto-circuito no canal comunicativo, que
ponto começa a desestabilização lógica deste manifesto, já em seu evidencia que nossa lógica se sente mais apta à não comunhão dos
primeiro parágrafo, trazendo uma palavra que mesmo contrários do que para sua fusão. Imediatamente após este curto-
isoladamente comporta a contradição e dizendo que está “mais circuito na comunicação, aparece um “pero” (que bonito isso de
além” de toda desilusão. Também seria a vontade de fazer algo que no meio do caminho de curto-circuito continuem existindo
quando todos dizem que já não é possível fazer mais nada, adversativas). Pero em espanhol é uma adversativa correlativa ao
apontando aí para uma vontade que excede e ultrapassa o que nosso mas em português. Vejamos: “pero conservo en mi corazón
todos sentem e dizem. algo innombrado y no lo voy a nombrar, éste es mi motor, mi
A terceira definição “soy la música a todo volumen”, nos fuerza, mi fe más allá de mi propia fe”.
aponta, intensificando o sentido excessivo e de exceção trazido A adversativa “pero” sendo colocada após o curto-circuito
por “ganas de hacer algo cuando todos dicen ‘ya no hay nada que que carece de homogeneidade lógica nos aponta para o fato de
hacer’” para o ápice dos sentidos tomados em termos positivos, já que aquele que enuncia está consciente da confusão
que a próxima definição nos traz um sentido negativizado “el anteriormente eclodida. E, neste momento, aparece a adversativa
policía coimeando en la esquina”, cuja tradução seria: o policial com vistas a mudar a direção argumentativa do manifesto. Do
subornando na esquina. Conforme também aparece nos dados caos, da confusão, da indiferenciação, surge uma adversativa
anteriores, nos parece que lalangue teria algo de união dos seguida do verbo conservar, que nos aponta justamente para uma
contraditórios, de “estar adentro y afuera”, já que, inclusive, une estabilização, um momento, ainda que fugaz, de calmaria. Esta
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estabilização se dá na selva do coração, como nomeado por como Huidobro, as cartoneras podemse afirmar sem se preocupar
Douglas Diegues ao explicar o processo de construção do demasiadamente com a opinião alheia ou com a conjunção de
portunhol selvagem. O que se conserva no coração não tem nome grupos, ainda que peçam “la más absoluta hostilidade”. Huidobro,
e nem vontade de tê-lo: aí está o motor, a força, a fé de Sarita poeta da vanguarda modernista chilena, em um texto chamado
Cartonera. Sim, Sarita sabe que o nome mata, congela, paralisa. “Yo”, inclusive com certo tom de arrogância, afirma: “Tengo
Denominar é uma tentativa de dominar; e esta não é a lógica do completa fe en mí mismo”.Arrogância à parte, defendemos que
gozo suplementar que move a escritura dos manifestos aqui em neste trecho teríamos um exemplo de pensamento outro
análise. Um pouco mais a frente do manifesto, ao se afastar de conforme descrito por Mignolo (1999), que diz que um
uma compreensão mais cartesiana, acaba recorrendo a um pensamento outro seria um pensamento sem o Outro.
esquema explicativo mais intuitivo: Assim como Huidobro, Vallejo, poeta peruano também
Sentimos que somos un grupo de gente haciendo cosas que mencionado no excerto cartonero em destaque, ao estar mais
nos gustan y sirviendo, a partir de nuestras propuestas para preocupado com o que tinha para escrever do que com que os
que otra gente escriba, pinte, se anime a difundir su trabajo outros iriam pensar, pagou caro por estar em desacordo com o
[...]Así como Vallejo y Huidobro que pedían, en caso de pensamento hegemônico: foi preso, viveu exilado grande parte de
discrepancia con la actitud de sus revistas, la más absoluta
sua vida, teve muitos livros e obras de teatro recusadas e morreu
hostilidad, creemos también en la renovación constante y
bastante pobre. Entretanto, de acordo com Lannoy (2006, p. 19),
que dure lo que deba de durar, sin atenuantes.
o desamparo todo que encontrou em vida servia como
Neste trecho, como podemos ver, o gozo aparece de mãos combustível para sua criação poética. Foi um artista que alcançou
dadas com o desejo, como resultado do trabalho de costura feito notoriedade e hoje é considerado o maior poeta peruano e um dos
pela agulha de lalangue, como depreendemos em “haciendo cosas maiores poetas universais. São poetas que se dedicaram a bordar
que nos gustan”. E o bonito é que no momento em que gozo dá a sua própria letra-litoral sem se preocupar muito com o que
mão para o desejo, o sujeito se assenta na letra-litoral, fazendo pensariam, mostrando com a própria vida que sua ideologia estava
dela sua morada, e se assegura da posse do próprio corpo, acima do seu reconhecimento.
podendo colocá-lo a serviço tanto de si mesmo, como do outro, Notamos que a constante renovação presente neste texto
como aparece no trecho: “y sirviendo, a partir de nuestras desde a epígrafe, em “huir del hábito”, também está presente no
propuestas para que otra gente escriba, pinte, se anime a difundir último trecho em destaque, “creemos también en la renovación
su trabajo”. constante y que dure lo que deba de durar, sin atenuantes”, que
A partir de Hearle (1979), consideramos Huidobro um serve como defesa do estancamento, ao engessamento, ao
poeta na contramão das vanguardas modernistas, justamente em acartonamento, à não reciclagem do pensamento. Assim,
sua época de apogeu, era “un poeta aislado y auténtico ante la encaminhando-nos para o final do nosso texto, o arrematamos
revolución poética vanguardista” (HEARLE, 1979, p. 171). E assim
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reafirmando que uma lógica derivada do gozo suplementar, tal cansam em insistir em “hacer insignia e huir del hábito”. E, nisto,
como se apresenta nos manifestos aqui em análise, poderia ser insistem juntas.
pensada como profícua como um movimento de resistência, pois
possibilitaria a construção de um sujeito coletivo, como aparece Referências
de modo muito marcante no manifesto de Animita Cartonera: CORTÁZAR, J. Historia de cronopios y famas. Buenos Aires:
De la muerte nacen y son su burla. Aunque ha habido Alfaguara, 1995.
mociones para erradicarlas y erguir en su lugar más vías de
autopista o edificaciones que necesitan tal espacio, la traba Diccionario de la Real Academia Española. 22 edición. 2001.
a esta expropiación es más fuerte. Y ellas siguen estando Disponível em www.rae.es. Acessado em 05 de maio de 2013
ahí, insolentes, inmunes a las suspicacias, al paso del
tiempo, a la mismísima muerte. Son pura resistencia.
DIEGUES, D. Corregirlo sería matarlo. Abehache. Revista da
As animitas, assim como o próprio papel e papelão Associação Brasileira de Hispanistas. n° 2, 1° semestre de 2012.
utilizados na confecção do livro cartonero, podem representar Disponível em: http://www.hispanistas.org.br/abh/images/
certo tempo cíclico, onde a morte não aparece tão separadamente stories/revista/Abehache_n2/2_159-166.pdf. Acessado em 05 de
da vida. A vida, de acordo com a visão deste trecho em destaque, maio de 2013.
nasceria da morte, ainda que se proponha a lutar constantemente
contra esta mesma morte. Ainda no rastro destas letras, esta luta GELADO, V. Un arte de la negación: El manifiesto de vanguardia en
nasceria justamente da “burla”, que assim como o “burlesco” é América latina. Revista Iberoamericana, Vol. LXXIV, Núm. 224,
festiva e jocosa. Julio-Septiembre 2008, p. 649-666. Disponível em:<http://revista-
E, assim, mais uma vez, a luta bélica na verdade se constitui iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/vi
como um movimento lúdico, derivado do gozo suplementar, ew/5249> Acesso em 12/11/2012.
feminino, não-todo, não-totalizante.Como o feminino é o que só
se semidiz, estaria destinado a se dizer sempre, justamente por GÓIS et al. Lalangue, via régia para captura do real. Instituto de
não conseguir dizer-se completamente. E se o não-todo é o que Psicanálise Lacaniana. Disponível em:
não cessa de não se escrever, seu constante movimento de tentar http://www.psicanaliselacaniana.com/estudos/documents/LALA
se escrever contribuiria também nisso de bordar sua própria letra- NGUE.pdf. Acesso em: 03 de junho de 2013.
litoral. Assim, com um alicerce de bordado bem sólido, poderiam
constituir-se em sujeito coletivo: seriam puras resistências, GROISMAN, D. Entre filosofía badiouana y sofística lacaniana:El
residências duras que, assim como as animitas chilenas e yerbas sujeto más acá del fratricidio. Nombres: Revista de Filosofía,
malas bolivianas, não cessam de se proliferar. E, assim, não se Córdoba, año XXII, número 27, p. 303-323, 2013.
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JOÃO CABRAL DE MELO NETO, ANDALUCÍA Y EL NORDESTE poema que integra el libro A escola das facas, hay una confesión
BRASILEÑO: QUANDO LA GEOGRAFÍA INTERFIERE EN LA del autor:
DICCIÓN DEL POETA Só duas coisas conseguiram / (des) feri-lo até a poesia: / o
George Hamillton Pellegrini Ferreira Pernambuco de onde veio / e o aonde foi Andaluzia. / Um,
UFPA o vacinou do falar rico / e deu-lhe a outra, fêmea e viva, /
desafio demente: em verso / dar a ver Sertão e Sevilha.
(MELO NETO, 1994, p. 456-457)
He empezado a amar a Andalucía desde la mirada de João
Cabral. A través de la misma dicción que, en su momento, me hizo Adepto de la materialidad JCMN tenía una cierta aversión
ver la parte dura de otra geografía, mucho más cercana a mí, al tono lírico y romántico en su escritura. Predominan en su poesía
mucho más dura y triste. Este encantamiento que suele ocurrir elementos concretos, que tengan forma, que puedan ser
cuando leemos algo que nos evoca paisajes atractivos, tanto por corporificados, como los paisajes y los objetos. La presencia de
su belleza y seducción como por su aspereza y hostilidad. Este elementos geográficos atraviesa toda su obra. Son ríos, ciudades,
encantamiento que nos lleva a querer conocer los espacios y calles, plazas.
paisajes descritos por los escritores que amamos (RIVERO, 1997). Me gustaría, antes de pasar al análisis comparado, hacer un
Los espacios y paisajes son prácticamente infinitos, tanto los reales pequeño recorte del concepto de paisaje y emplazamiento. Una
como los no menos reales (los imaginados). Hay escritores que delimitación que tiene mucho más la intención de unir que de
nunca han salido de sus espacios, pero cantaron con maestría separar, aunque el término busque decir el contrario. Quizás lo
paisajes lejanos. Es el caso de Edgar Rice Burroughs, que describió mejor sería decir de la necesidad de mezclar, o hibridizar, para usar
la jungla de Tarzan sin nunca haber estado en África. Hay otros que un término más moderno.
inventaron lugares que deseaban ver en la tierra, como la Utopía
de Tomás Moro, la Pasárgada, de Manuel Bandeira o la Ciudad de El concepto de paisaje
los inmortales, de Jorge L. Borges. Pero hay otros, a ejemplo de La noción de paisaje surgió con la pintura (GUILLÉN, 1992;
Hemingway y Francisco Ayala, que se movieron por el mundo, por PEÑA BERNETH, 1998), alrededor del siglo XV, cuando pintores
voluntad propia o ajena. Entre estos está João Cabral de Melo holandeses e italianos comenzaron a introducir ciudades,
Neto. terrenos, torres, bosques, etc. en sus pinturas. Muy vinculada a la
Por cuenta de su labor como diplomático, JCMN conoció iglesia o a los señores feudales, esos paisajes servían sólo como
muy variada geografía y muchas culturas. Entretanto, dos escenario, telón de fondo para destacar los elementos que
geografías se destacan en la producción de este escritor, la simbolizaban el poder o la guerra. En los siglos siguientes se puede
andaluza y la pernambucana. Es en estos dos espacios donde se observar un proceso de “independización” del paisaje, que poco a
puede notar la dicción más profunda de JCMN. En Autocrítica,
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poco va eliminando la figura humana hasta llegar a su total científica por la geografía, por la antropología, por la arqueología,
exclusión. por la arquitectura y otros ramos del conocimiento.
Landschap (del neerlandés) es la primera palabra a surgir
con sentido de parte de un territorio. Sigue la landschaft, en el La Teoría del Emplazamiento
mundo germánico y landscape, en el mundo anglosajón. En el “Yo soy yo y mis circunstancias”, ya nos decía Ortega y
mundo latino aparecen, en italiano, paesaggio, em castellano Gasset. Lo decía apoyado en la creencia de que el entorno, a lo
paisaje y en francés paysage. Segundo Cláudio Guillén (1992), las largo del tiempo, cambiaba el individuo en la sociedad. Por lo
palabras francesas paysage, pays, paysan son oriundas de tanto, el niño que nace y crece en un entorno determinado será
pagensis y pagus, que permanece en España de hoy como “pago”: malo (marginal, delincuente, sin modales) o bueno (educado,
espacio limitado de tierras y fincas, subdivisión de comarca. gentil, solidario…). Manuel Ángel Vázquez Medel va más adelante,
El francés pays fue aumentando el espacio que abarcaba, afirmando que la condición del yo ya supone las circunstancias y
desde el pequeño territorio rural hasta lo que hoy más, el simple cambiar de sitio (plaza), ya interfiere decisivamente
denominamos en castellano “país”, en su acepción más en el estado (tiempo) del yo. Imaginemos un sujeto parado
amplia y sin embargo arraigada en la conciencia de la (emplazado) en determinado sitio de una calle. En esta posición,
localidad, como cuando se dice “los paisajes catalanes”. Aún
su emplazamiento lo está condicionando a los referentes muro,
hoy en francés c´est mon pays, indicando a una persona,
coche rojo, edificio de cristal, vigilante que murmura una canción,
significa popularmente “es mi paisano”, aludiendo a la
patria chica; y la nostalgia o morriña de ésta es le mal du naranjo de la acera, mujer con carro de compras, calle izquierda en
pays (GUILLÉN, 1992, p. 78). obras. Con apenas el gesto de girar el cuerpo, y su ángulo de visión,
hacia sus espaldas o dar unos cuantos pasos hacia la acera de
En este espacio etimológico, sigue Guillén (1992), está enfrente, se estaría cambiando el yo. Eso porque si entiende que
también las palabras “payés” y “pagano” que significaba una parte este otro, persona o cosa, nos condiciona y, a la vez, estamos
de terreno rural (pago), que eran resistentes a la cristianización. El condicionando todo lo que está a nuestro alrededor.
“pagano” es aquel habitante que, con sus paisanos, no aceptan las […] La condición misma del pensar y del sentir y, por tanto,
nuevas concepciones de la iglesia. de la conciencia de nuestro existir, es la triple emergencia
En el portugués tenemos la palabra pagano, que se dice de del yo, del aquí, del ahora. […] Las tres deixis (la espacial y
la persona que aún no fue bautizada por la iglesia. Paisano es, la temporal, pero sobre todo la personal, que brota del
también, aquel que vive en mi país. En el portugués tenemos la entrecruzamiento de espacio-tempo) suponen la condición
expresión “estar à paisana” que significa estar en trajes civiles, o misma y, a la vez, la posibilidad de todo lenguaje. Desde
sea, estar igual que todos, andar con los otros. Paisano significa, ellas es posible señalar hacia los objetos del mundo, y en
también, en la lengua portuguesa, un patricio, un compatriota. A ese señalamiento encontramos nuestro lugar, nuestro
emplazamiento (VÁZQUEZ MEDEL et al., 2003, p. 23-24).
partir del siglo XIX el paisaje pasa a ser estudiada de forma
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Sabemos que el hombre recibe los estímulos del paisaje en La dicción de JCMN que canta Pernambuco traduce el
que habita de forma involuntaria. Es sabido, también, que el paisaje de manera masculinizada, bruta y distante. Lo representa
paisaje forma al individuo que tiene su cotidiano marcado por lo con la voz de un padre austero. El paisaje espanhol, al contrario, es
sucesivo en un mismo espacio geográfico. JCMN, Además de representado como una madre cariñosa, amable; es una amante
percibirlo, tiene toda la intención de interrelacionarse con él, sensual, dedicada, permisiva. Es una mujer que acaricia, que
fundirse a él, incluso de forma carnal. Para eso, da voz y acepta, que acoge.
movimiento al inanimado. “Teniendo en cuenta que el paisaje es En el poema “Duas paisagens”, que integra el libro
un compuesto en donde tiene cabida un amplio rango de “Paisagens com Figuras”, publicado en 1954, ya se nota el tono con
elementos heterogéneos, vivos e inertes, naturales y antrópicos, que va a tratar estos dos paisajes. Vale mencionar una pequeña
es más dinámicos y, a la vez, más vulnerable que otros "objetos de paradoja: el término paisaje en portugués y español es
identidad" como la música, la arquitectura o la literatura. Por otra heterogenérico, siendo femenino en portugués.
parte, su variabilidad se acrecienta en razón de su dependencia de D’Ors em termos de mulher / (Teresa, La Ben Plantada) /
la percepción humana, que es a la vez diversa y circunstancial”. descreveu a Catalunha / a lucidez sábia e clássica // e aquela
(GARCÍA, 2003) sóbria harmonia, / aquela fácil medida / que, sem régua e
La mirada pernambucana es uterina, de dentro; aunque la sem compasso, / leva em si, funda e instintiva, // aprendida
certamente / no ritmo feminino / de colinas e montanhas /
casi totalidad de su producción haya sido producida fuera de
que lá têm seios medidos. // Em termos de uma mulher /
Pernambuco, esta geografía que está marcada en su memoria es
não se conta é Pernambuco: / é um Estado masculino / e de
mirada itinerante, crítica, contundente. En entrevista publicada en ossos à mostra, duro, // de todos, o mais distinto / de
el periódico Sibila, (MELO NETO, 2009) el poeta afirma que su mulher ou prostituto, / mesmo de mulher virago / (como a
producción en Pernambuco no tenía color local. Fue en su estancia Castilla de Burgos). // Lúcido não por cultura, / medido, mas
en Barcelona que escribió Psicologia da composição com a Fábula não por ciência: / sua lucidez vem da fome / e a medida, da
de Anfion e Antiode. Después de esta publicación ya daba por carência, // e se for preciso um mito / para bem representá-
cierto que no iba a escribir nada más. Entonces, leyendo el lo / em vez de uma Ben Plantada / use-se o Mal Adubado.
periódico Observador Econômico e financeiro, que llegaba (MELO NETO, 1994, p. 166-167)
regularmente al consulado descubrió que la expectativa media de Otro poema que trae en su composición la comparación
vida en India era de 29 años, y en Recife, 28. La información dejó entre España y Brasil es “Pernambuco em Málaga”, que aparece
el poeta tan impresionado que escribió su primer libro sobre en el libro Serial, publicado en 1959:
Pernambuco: O Cão sem Plumas. Despues, en Rio de Janeiro, I / A cana doce de Málaga / dá domada, em cão ou gata /
escribió O rio, que también es de temática pernambucana. A partir deixam-na perto, sem medo, / quase vai dentro das casas.
de ahí no paró más de escribir sobre el tema pernambucano. // É cana que nunca morde, / nem quando vê-se atacada: /
não leva pulgas no pêlo / nem, entre as folhas, navalha. // II
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/ A cana doce de Málaga / dá escorrida e cabisbaixa: / “Quem fez Sevilha a fez para o homem, / sem estentóricas
naquele porte enfezado / de crianças abandonadas. // As paisagens. / Para que o homem nela habitasse, / não os
folhas dela já nascem / murchas de cor, como a palha: / ou turistas, de passagem. // E, claro, se a fez para o homem, /
a farda murcha dos órfãos, / desde novas, desbotadas. // III fê-la cidade feminina, / com dimensões acolhimentos, / que
/ A cana doce de Málaga / não é mar, embora em praias: / se espera de coxas íntimas. // Para a mulher: para que
dá sempre em pequenas poças, / restos de uma onda aprenda, / fez escolas de espaço, dentros, / pequenas
recuada. // Em poças, não tem do mar / a pulsação dele, praças, plazoletas, / quase do tamanho de um lenço.”
nata: / sim, o torpor surdo e lasso / que se vê na água (MELO NETO, 1994, p. 183)
estagnada. // IV / A cana doce de Málaga / dá dócil,
En el poema “O segredo de Sevilla”, se propone a terminar
disciplinada: / dá em fundos de quintal / e podia dar em
jarras. // Falta-lhe é a força da nossa, / Criada solta, em ruas, lo que se había propuesto Joaquim Romero Murube:
praças: / Solta, à vontade do corpo, / Nas praças das De Joaquim Romero Murube / ouvi certa vez: “De Sevilha /
grandes várzeas. (MELO NETO, 1994, p. 301-302) ninguém jamais disse tudo. / Mas espero dizê-lo um dia.” //
Morreste sem haver podido / A prosa daquele projeto; /
La mirada andaluza trae las sensaciones de la otredad, Sevilha é um estado de ser, // menos que a prosa pede o
aunque hay quien diga lo contrario. El paisaje Andaluz es verso. // Caro amigo Joaquim Romero, / nem andaluz eu
femenino, aunque el término, en su etimología, sea masculino. Las sou, sequer, / mas digo: o tudo de Sevilha / está no andar
ciudades y espacios son, a todo momento, comparados con la de sua mulher. // E às vezes, raro, trai Sevilha: / Pude
mujer, no solo con el carácter sensual pero también en harmonía encontrá-lo muito longe, / no andar de uma não sevilhana,
y sensibilidad. En “Retrato de Andaluza” que aparece en el libro / tudo que buscas. Ainda? Onde? (MELO NETO, 1994, p.
637-638)
Museu de tudo, publicado en 1966,
Estatura pequena e nítida / das cidades de onde ela era: / Incluso la muerte y eventos más violentos, como el toreo,
daquele justo para o abraço / que é de Cádiz, onde nascera, o figuras e imágenes que guardan en sí misma la dureza, la aridez,
/ e de Sevilha, onde vivia / e se dizia, mas não era: / cidades lo insólito, son suavizados cuando están en el paisaje español. En
que ainda se podem / abraçar de uma vez, completas, / e el poema “Alguns toureiros”, dedicado a Antônio Houaiss
que dão certo estar-se dentro, / àquele que as habita, ou
(diccionarista brasileño), compara la faena al arte del bien escribir,
versa, / e entrega inteira, feminina, / e sensual ou sexual, de
resalta el aspecto superior de lo humano, de imponer la
sesta. (MELO NETO, 1994, p. 384-385)
inteligencia del artista a la fuerza de la irracionalidad. Resalta los
El poeta va construyendo, en el transcurrir de su obra, un
movimientos perfectamente calculados, donde se ve una precisión
pacto de fidelidad a Sevilla, como se la ciudad fuese, de hecho, una
que elimina cualquier tipo de exagero.
mujer. En poema “As plazoletas”, que aparece en el libro Sevilha
“Eu vi Manolo González / E Pepe Luís, de Sevilha: / precisão
Andando, reafirma su impresión de la ciudad-mujer.
doce de flor, / graciosa, porém precisa. // Vi também Julio
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Aparício, / de Madrid, como Parrita: / ciência fácil de flor, / esquina de San Luís; / comprei de fiado uma garrafa / de
espontânea, porém estrita. // Vi Miguel Báez, Litri, / dos aguardente (cazzalae anis) // que lhe dei cuidadosamente /
confins da Andaluzia, / que cultiva uma outra flor: / como uma poção de farmácia, / medida, como uma poção,
angustiosa de explosiva. // E também Antonio Ordóñez, / / como não se mede a cachaça; // que lhe dei com colher de
que cultiva flor antiga: / perfume de renda velha, / de flor chá / como remédio de farmácia: / Hijita, bebí lo bastante,
em livro dormida. // Mas eu vi Manuel Rodríguez, / // disse com ar de comungada. / Logo então voltou a dormir
Manolete, o mais deserto, / o toureiro mais agudo, / mais / sorrindo em si como beata, / um semi-sorriso de gracias /
mineral e desperto, // o de nervos de madeira, / de punhos aos santos óleos da garrafa. // De manhã acordou já morta
secos de fibra, / o da figura de lenha, / lenha seca de / e embora fria e de madeira / tinha a defunta o riso ainda /
caatinga, // o que melhor calculava / o fluido aceiro da vida, que a aguardente lhe acendera”. (MELO NETO, 1994, p.
/ o que com mais precisão / roçava a morte em sua fímbria, 589)
// o que à tragédia deu número, / à vertigem, geometria, /
Vamos a Pernambuco, ahora: lleguemos con el Alisio, el
decimais à emoção / e ao susto, peso e medida, // sim, eu
vi Manuel Rodríguez, / Manolete, o mais asceta, / não só viento que viene del mar. Un viento extranjero que necesita
cultivar sua flor / mas demonstrar aos poetas: // como cambiar para pasar por este estado que trae en si el paisaje
domar a explosão / com mão serena e contida, / sem deixar diabolizado por JCMN. El Alisio necesita cambiar, endurecerse,
que se derrame / a flor que traz escondida, // e como, para poder integrarse a un espacio que refracta, arremete, ataca y
então, trabalhá-la / com mão certa, pouca e extrema: / sem agrede. El poema intitulado A escola das facas, muestra una
perfumar sua flor, / sem poetizar seu poema.” (MELO NETO, geografía como escuela. Los elementos que componen el paisaje,
1994, p. 600) como la palmera y la caña, tienen las hojas como navajas. Enseña,
En “o crime na Calle Relator”, poema que da título al libro, entonces, al Alisio, como tiene que volar en el sertão.
habla de un caso curioso de eutanasia pasado en Sevilla (y, según O alísio ao chegar ao Nordeste / baixa em coqueirais,
canaviais; / cursando as folhas laminadas, / se afia em
el poeta, verídico, como todos los otros que aparecen en el libro).
peixeiras, punhais. // Por isso, sobrevoada a Mata, / suas
Una joven bailaora angustiada por ver su abuela en los momentos
mãos, antes fêmeas, redondas, / ganham a fome e o dente
finales de su vida, decide realizar su último deseo que es tomar da faca / com que sobrevoa outras zonas. // O coqueiro e a
unos cuantos tragos de cazalla. El tono de confesión y el cana lhe ensinam, / sem pedra-mó, mas faca a faca, / como
encantamiento escénico rebaja la violencia del momento, incluso voar o Agreste e o sertão: / mão cortante e desembainhada.
añadiendo un toque de humor en la último estrofa. (MELO NETO, 1994, p. 429)
Em “Cemitério Pernambucano”, del libro Paisagens com
“[…] E mais: se o doutor já dissera / que da noite não
passaria / por que negar uma vontade / que a um figuras, dice
condenado se faria? // Fui a esse bar do Pumarejo / quase
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Nessa terra ninguém jaz, / pois também não jaz o rio / (O sol em Pernambuco leva dois sóis, / sol de dois canos, de
noutro rio, nem no mar / é cemitério de rios. // Nenhum dos tiro repetido; / o segundo dos dois, o fuzil de luz, / revela
mortos daqui / vem vestido de caixão. / Portanto, eles não real a terra, tiro de inimigo. (MELO NETO, 1994, p. 140)
se enterram, / são derramados no chão. // Vêm em redes
Los paisajes interfieren en la dicción de JCMN. Estar
de varandas / abertas ao sol e à chuva. / Trazem suas
próprias moscas. / O chão lhes cai como luva. // Mortos ao emplazado en geografías distintas, tanto física como en la
ar-livre, que eram, / hoje à terra-livre estão. / São tão da memoria, produce un cambio de postura que se puede notar a un
terra que a terra / nem sente sua intrusão. (MELO NETO, simple vistazo, como lo hemos demostrado aquí. “No podemos
1994, p. 159) escapar a/de nuestro emplazamiento. Todo lo más que podemos
hacer es desplazarnos; pero automáticamente quedaremos
Por último me gustaría enfrentar dos poemas que tratan de
reemplazados.” (VÁZQUEZ MEDEL et al., 2003). Las dicciones del
la luz. Uno, “Luz de Sevilha”, invita, atrae, ilumina, une. El otro, “O
poeta pernambucano reaccionan, a todo momento, interactuando
sol Pernambucano”, rechaza, azota, separa.
con el paisaje que le rodea. Para Stuart Hall, “[…] las identidades
Luz de Sevilha
nunca se unifican; [...] nunca son singulares, sino construidas de
Não há luz, sobre Sevilha, / embora sofra sol e lua; / o que múltiples maneras a través de discursos, prácticas y posiciones
há sim é uma luz interna, / luz que é de dentro, dela estua. diferentes, a menudo cruzados y antagónicos”. (HALL e GAY, 2003,
// Luz das casas branco-caiadas, / que vem de baixo para
p. 17).
cima, / que vem de dentro para fora / como a água de uma
las identidades se construyen a través de la diferencia, no al
cacimba; / luz de dentes de luz, e vivos, / que parece a sede
margen de ella. Esto implica la admisión radicalmente
da alma, / e luz que parece acender / no espaço seu andar
perturbadora de que el significado “positivo” de cualquier
de palma; // enfim, luz de tudo o que faz/ seu estar na vida,
término —y con ello su “identidad”— sólo puede
vivê-la, / a da clara alegria interna, / de diamante extremo,
construirse a través de la relación con el Otro, la relación
de estrela. (MELO NETO, 1994, p. 543)
con lo que él no es, con lo que justamente le falta, con lo
O sol em Pernambuco que se ha denominado su afuera constitutivo. (HALL e GAY,
2003, p. 17).
(O sol em Pernambuco leva dois sóis, / sol de dois canos, de
tiro repetido; / o primeiro dos dois, o fuzil de fogo, / Para finalizar, hago coro a JCMN, cuando aconseja, desde
incendeia a terra, tiro de inimigo.) / O sol ao aterrissar em el alto de su vivencia como ciudadano en varios emplazamientos,
Pernambuco, / acaba de voar dormindo o mar deserto; / que hay que Sevillizar el mundo:
dormiu porque deserto; mas ao dormir / se refaz, e pode
decolar mais aceso; / assim, mais do que acender incendeia, Como é impossível, por enquanto, / civilizar toda a terra, /
/ para rasar mais desertos no caminho; ou rasá-los mais, ate o que não veremos, verão, / de certo, nossas tetranetas, //
o vazio do mar / por onde ele continua a voar dormindo. [...] infundir na terra esse alerta, fazê-la uma enorme Sevilha, /
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que é a contra-pelo, onde uma viva / guerrilha do ser, pode


a guerra. (MELO NETO, 1994, p. 663)

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A CRIAÇÃO SIMBÓLICA DE ARTURO USLAR PIETRI: DIÁLOGO Las lanzas coloradas, em 1931, já o encontramos, em 1936, como
ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA presidente da Associação de Escritores da Venezuela. Em 1939, é
Gisele Reinaldo da Silva nomeado Ministro da Educação no governo de Medina Angaria e,
UFRJ a partir de então, poderíamos seguir citando diversos prêmios ao
longo de sua carreira, até, por exemplo, 1990, quando recebe o
“O essencial é saber ver, Premio Príncipe de Asturias das Letras por ser, segundo o jurado, o
Saber ver sem pensar, criador do romance histórico moderno na América Hispânica ou
Saber ver quando se vê ainda, em 1991, quando se converte no primeiro venezuelano a
E nem pensar quando se vê receber o Prêmio Internacional de Romance Rómullo Gallegos.
Nem ver quando se pensa.
Engajou-se, simultaneamente, na diplomacia, cultura, política e
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!) escritura. Ademais do já mencionado cargo de Ministro da
Isso exige um estudo profundo, Educação da Venezuela, assumiu, posteriormente, o de Interior,
Uma aprendizagem de desaprender”. mais tarde, o da Fazenda, desempenhando engajamento singular
Fernando Pessoa (1974) em sua tarefa de diplomata, jornalista, romancista e ensaísta.
Além de sua importância como artista e político, Uslar Pietri
O escritor e filósofo espanhol Agapito Maestre, em sua foi, enquanto homem das Letras, um dos máximos expoentes do
Introdução a Ensayos sobre el Nuevo Mundo, antologia de textos realismo mágico, como Miguel Ángel Asturias, sintetizando tal
políticos de Arturo Uslar Pietri (2002), afirma que o trato que o corrente estética e literária como o “redescobrimento da
escritor recebeu nas últimas décadas, próximas a sua morte, se mestiçagem hispano-americana”. No entanto, seus comentaristas
referia a este como uma figura já histórica, passada, embora com tendem a silenciar sua obra, em função de ressaltar o personagem
reconhecimento reverente a seu legado. Poucos são os que se político e enfatizam, por exemplo, sua grande influência no debate
atrevem a avaliar suas verdadeiras contribuições à literatura, ao político e intelectual de seu país, no seio da UNESCO, como
pensamento e ao periodismo, nos dias atuais. Isso porque o embaixador da Venezuela, esquecendo as contribuições de Uslar
excelente curriculum vitae do autor, paradoxalmente, acabou por Pietri na compreensão da América Hispânica para além dos
propagar mais tópicos sobre o personagem público que nacionalismos localistas, ou ainda, sua especial forma de estudar a
configurou, ao invés de enfocar na densa obra de um grande cultura hispano-americana como polo chave da civilização
romancista e pensador do século XX. ocidental.
Sua longa carreira, marcada por infindos prêmios e Há, ainda, os que fazem especial enfoque aos cargos
aplausos, deixou em segundo plano a realidade de que, nascido em públicos que ostentou, sua oposição às ditaduras de Gómez e
1906, com data de publicação de seu primeiro grande romance, Pérez Jiménez, bem como sua candidatura à Presidência da
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República da Venezuela, em 1963, esquecendo seu pensamento americano, em uma época de bárbaros especialistas, não foi bem
de caráter liberal e democrático. Enaltecem, ainda, o fato de o visto. A presença do poeta na vida pública justificava-se por sua
escritor venezuelano ter sido diretor do diário El Nacional, de crença de que “a obra é inseparável da vida”.
Caracas, e que sua fama, como articulista e divulgador cultural na Para o autor, sua obra, que é vida, ou sua vida, que é obra,
televisão de seu país, jamais foi alcançada por outro intelectual, ensinava/ensina da maneira mais válida o entender e cumprir os
mas não sinalizam que este trabalho jornalístico esteve pautado deveres de seu tempo, como lição aberta para o entendimento e
por uma potente convicção ilustrada acerca da cultura como cumprimento dos nossos na contemporaneidade. Filho de militar
liberação da humanidade. e neto de Juan Pietri, vice-presidente do caudilho Juan Vicente
Os esquecimentos são, portanto, uma constante quando se Gómez, não poderia renunciar a seu destino político, que no caso
trata de Arturo Uslar Pietri. Há uma tendência a não enfatizar suas de muitos escritores seria um fator exclusivamente relevante para
contribuições à cultura venezuelana, no tocante, por exemplo, à a compreensão de sua personalidade e obra, mas que, no caso de
repercussão que tiveram as revistas Válvula e El Ingenioso Hidalgo, Uslar Pietri, acaba configurando mais uma barreira que uma
fundadas a partir de seu regresso da Europa, junto com Julián plataforma para aproximarmo-nos de suas verdadeiras
Padrón, Alfredo Boulton e Pedro Sotillo, as quais representaram, contribuições à história da cultura Hispano-Americana em geral ou
em 1936, as vanguardas que dinamizaram a cultura venezuelana. à história do pensamento particular.
O legado e a adoção do Surrealismo europeu na América não Sua obra literária e ensaística, que adquire unidade através
somente o fez romper com a literatura do modernismo decadente, de uma singular reconstrução, não deve ser ignorada perante sua
como também tornou parte de sua obra considerada vanguarda maestria em outros campos de participação social. Arturo Uslar
até hoje. Sua obra é poligráfica. Abarca contos, romances, teatro, Pietri compreende e põe em prática o espírito transcultural
poesia e ensaios de ampla temática: política, econômica, histórica, apontado pelo escritor e crítico literário uruguaio Ángel Rama
artística, crítica e literária. Seu legado torna-o, indubitavelmente, (2008), em sua obra Transculturación narrativa en América Latina,
um dos maiores humanistas do século XX. tanto nos seus ideais como no seu modo de fazer literatura, a qual
Não obstante, as críticas a Arturo Uslar Pietri se dividem em se abstém de um afã puramente internacionalista para dar lugar à
reconhecimento excessivo e indiferença parcial. Interessa-nos, peculiaridade cultural desenvolvida no interior da Venezuela e da
enquanto campo de pesquisa, a parte da indiferença, quanto ao América Latina, de modo mais amplo.
que esteve por trás de todo seu brilho público, impulsionando-o a Esta originalidade só poderia ser alcançada mediante a
construir uma literatura novedosa. É como se o magistério de Uslar representatividade da região na qual surgia a expressão literária,
Pietri, bem como seu engajamento com o político e o social, mais em função da notoriedade desta sociedade em comparação às
que estimulá-lo à criação literária, se tivesse convertido em uma “progenitoras”, tanto pela diferença do meio físico, quanto pela
carga. Isso porque seu espírito abarcador do humanista latino- composição étnica heterogênea, além do distinto grau de
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desenvolvimento a respeito do que se visualizava como único ateliê histórico da sociedade americana1. (RAMA, 2008, p.
modelo de progresso: o europeu. A missão patriótica de Uslar 24)
Pietri tornou sua literatura instrumento apropriado para fraguar a Ao criticar obras literárias provenientes, pura e
nacionalidade. O princípio ético do escritor se aproximou ao simplesmente, de barcos europeus, Rama (2008) alude à
sentimento nacional de modo a tornar os assuntos nativos sua necessidade de que o nome da América Latina não seja evocado
“matéria-prima”. Rama (1998) compara, nesta conjuntura, o em vão, ressaltando a importância de que a acumulação cultural
escritor latino-americano ao agricultor ou o operário na cadeia de interna seja capaz de prover não somente a “matéria-prima”
produção. indispensável, como também uma cosmovisão, uma língua, uma
Trata-se da nova linguagem latino-americana como técnica para produção das obras literárias. Trata-se de um esforço
instrumento de independência. Abstendo-se de uma possível de descolonização espiritual de um continente cuja marca
redução da obra literária à mera documentação sociológica, Uslar inventiva é fértil e a luta por constituir-se como uma das ricas
Pietri engaja-se no questionamento central de sua época, fontes culturais do universo é pertinente, em uma era cuja maré
conforme a definição de Rama: está a favor de uma internacionalização culturalmente
Reestabelecer as obras literárias dentro das operações presunçosa.
culturais que cumprem as sociedades americanas,
O processo de transculturação como um processo de
reconhecendo suas audazes construções significativas e o
aquisição de uma nova cultura (aculturação), em concomitância
ingente esforço por manejar autenticamente as linguagens
simbólicas desenvolvidas pelos homens americanos, é um com um processo de desarraigo parcial da cultura precedente
modo de reforçar estes vertebrais conceitos de (desculturação), em paralelo à criação de novos fenômenos
independência, originalidade e representatividade. As culturais (neoculturação) reflete bem a realidade da América
obras literárias não estão fora das culturas, e sim, as coroam Latina, a qual nunca configurou uma entidade passiva, receptora
e na medida em que estas culturas são invenções seculares de uma nova cultura, sem nenhuma reação criadora. Ao contrário,
e multitudinárias fazem do escritor um produtor que a cultura presente na América Latina está composta, de acordo
trabalha com as obras de inumeráveis homens. Um com Rama (2008), de valores idiossincráticos, os quais estão em
compilador, teria dito Roa Bastos. O genial tecelão, no vasto vigor desde tempos remotos, ao mesmo tempo em que está
composta de uma energia criadora em constante evolução e
1 “Restablecer las obras literarias dentro de las operaciones culturales que fuera de las culturas sino que las coronan y en la medida en que estas
cumplen las sociedades americanas, reconociendo sus audaces culturas son invenciones seculares y multitudinarias hacen del escritor un
construcciones significativas y el ingente esfuerzo por manejar productor que trabaja con las obras de innumerables hombres. Un
auténticamente los lenguajes simbólicos desarrollados por los hombres compilador, hubiera dicho Roa Bastos. El genial tejedor, en el vasto taller
americanos, es un modo de reforzar estos vertebrales conceptos de histórico de la sociedad americana.” [Tradução nossa]
independencia, originalidad, representatividad. Las obras literarias no están
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mobilidade. Em outras palavras, a comunidade latino-americana é, esta não é a função da literatura. O escritor deve buscar na
em grande parte, transculturada. essência humana de cada ser a essência, também, de seus
Trata-se de uma força comunitária que atua com personagens. Conforme a assertiva do autor:
desenvoltura, tanto sobre sua herança particular, segundo as Si el objeto del arte literario fuera el de encontrar y expresar
situações próprias de seu desenvolvimento, como sobre as verdades generales sobre ese ser abstracto que llamamos el
inovações culturais provenientes do estrangeiro. De acordo com hombre, toda la literatura estaría reducida a una especie de
proceso de decantación cuyo resultado último sería la
Rama, é justamente esta capacidade latino-americana de elaborar
formación de un apotegma válido para todos los seres en
com originalidade, ainda que em difíceis circunstancias históricas,
todas las circunstancias. Toda la novela moderna parecería
toda esta mescla cultural o que a torna uma sociedade vida, un dispendioso y caótico trabajo de verificación de la verdad
criadora e plural (RAMA, 2008, p. 41). contenida, por ejemplo, en una máxima de La
Rochefoucauld, que acaso podría ser aquella que dice: “No
A chave para o El Dorado: o élan poético e revolucionário de siempre es por valor y por castidad que los hombres son
Uslar Pietri transmudado às Letras valientes y que las mujeres son castas”. Pero no es ese el fin
de la literatura, ni de su inagotable y maravillosa búsqueda.
Lo que le importa al escritor son los caracteres, las personas,
Arturo Uslar Pietri, inserido neste contexto do século XX de
las situaciones, las formas particulares y locales de los seres,
anseio pela criação poética de uma literatura implicada no de los sentimientos, de los conflictos. No es el amor en
questionamento da realidade, afirma o seguinte, no tocante a sua abstracto, sino el amor por Laura, en lo que tiene de único,
obra: que es precisamente lo que tiene de universal, según una
Lo que puedan valer dentro de la literatura de mi tempo es de las paradojas fundamentales de la literatura; ni es
cosa que yo difícilmente puedo juzgar, pero, en cambio, sé tampoco la duda y la vacilación, sino la duda y la vacilación
muy a ciencia que son para mí de una importancia de un hombre que se llama Hamlet; ni el conflicto del
extraordinaria, de una importancia tan extraordinaria como sentimiento y la realidad, sino los conflictos de un ingenioso
mi propia vida, porque, después de todo, y acaso en el hidalgo que vivió, o vive verdaderamente, “en un lugar de
sentido más valioso y verdadero, son mi propia vida, es la Mancha”. (USLAR PIETRI, 1956, p. XII)
decir, lo más propio, reconocible y duradero de ella. (USLAR
PIETRI, 1956, p. X) A primeira obra de Uslar Pietri, Barrabás y otros relatos, ao
surgir no fim de 1928, buscava distanciar-se do formato de contos
De acordo com Uslar Pietri (1956), gêneros e formas são que vinham sendo escritos na Venezuela, até então. Seu objetivo
maneiras, ou vias de aproximação mais segura de desvelar o mais era reagir ao costumbrismo, apresentando em seus personagens o
íntimo do ser humano, ao utilizar os gêneros e as formas como conflito de um homem que participaria decisivamente, embora, a
instrumentos, não como busca de verdades gerais e abstratas, pois princípio, de forma inconsciente, no momento mais importante do
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processo de ruptura nas Letras ocidentais. Uslar Pietri ressalta seu que se assemelha com a de outros homens que compartilham seu
afã de promover mudanças na literatura e na condição destino histórico.
venezuelana, inspirado pela cena literária plena de convites à A literatura, conforme Uslar Pietri,
insurreição, condizente com um mundo em mudança. (…) como el arte entero, no es monólogo solitario, es
Preocupava-se com a estagnação em que a Venezuela dos diálogo vivo de dar y recibir. Cuando parece monólogo es
anos 20 se encontrava até o momento, compreendendo a porque la respuesta tarda y a veces no llega sino en una
necessidade de renovação, o que o leva, como ele mesmo salienta, generación posterior. Pero ha de llegar para que la obra de
arte se cumpla. Cada vez de una manera más consciente y
a fazer vanguarda. Uslar Pietri advertia, ainda, para o fato de que
clara he ido sintiendo lo que escribo como mi parte de un
não bastava discutir e proclamar havia a necessidade de se realizar
diálogo que me empeño en establecer con mi gente. Mi
uma obra que refletisse, em sua nova condição, a presença de uma gente es toda la que tiene o es susceptible de tener conmigo
nova consciência não só da literatura, mas também da condição do cosas en común, comienza, en grado de parentesco
ser venezuelano. Seus livros de contos seguintes foram Red, em decreciente, pero vivo y eficaz, por mi pueblo de
1936, e Treinta Hombres y sus sombras, em 1949. venezolanos, para llegar hasta el más remoto de los
Uslar Pietri se propõe a essa esperançosa tarefa, guiado hombres. Pero el más remoto de los hombres siempre será
pelo propósito de avançar ao máximo, extrapolando a realidade más importante para mí que el mero gozo estético de hacer
local, de maneira a alcançar o universal, sem detrimento do frases. (USLAR PIETRI, 1956, p. XIV)
nacional. Sua busca era pela representação do mais universal e Uslar Pietri, nascido no início do século XX (1906) e morto
válido, dentro do nacional. Seu primeiro romance, Las lanzas no início do XXI (2001), militou no melhor estoicismo hispânico,
Coloradas, foi escrito em uma primavera de Paris, em 1931, embora a dor e a paixão que sentiu por sua terra nunca tenham
embora o autor afirmasse, neste momento, o assédio das visões terminado em resignação, pois, recriou, através do
de seu país. redescobrimento da mestiçagem cultural, as melhores
O autor entra pelo caminho da novela histórica porque contribuições da cultura de língua espanhola ao debate das
pensava que, para expressar o nacional fora do mero paisagismo, culturas universais. Foi um renovador imprescindível da narrativa
fosse necessário começar por buscá-lo nas horas em que alcançou hispano-americana, um observador inteligente e um ator
sua mais alta e reveladora tensão. O escritor sentia, por exemplo, comprometido com os tempos convulsos da Venezuela e de toda
que no impulso destrutor e criador da guerra da Independência, a a América Latina.
condição crioula de nossa humanidade foi revelada de um modo Se considerarmos que descobrir o venezuelano, descobrir
pleno, e é este o enredo que conduzirá poeticamente os seres e o essencial da América Hispânica foi a pretensão de Las lanzas
sucessos desse primeiro romance. Sua intenção é expressar, em coloradas, não é difícil imaginar que tudo o que veio
sua obra, a condição humana intrínseca ao homem venezuelano, posteriormente foi uma ampliação, um desenvolvimento, uma
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permanente matização deste grandioso descobrimento do la figura de Lope de Aguirre es una de las pocas que aparece
puramente local, inserido no universal. Esta foi a principal busca con tanta riqueza de entre los llamados descubridores, los
de Uslar Pietri e seu decisivo legado: mostrar que a América Latina primeros europeos que abrieron a los ojos del mundo del
é um Mundo Novo, principal objetivo de seu primeiro romance, que procedían el espacio americano, a través de sus
informes, cartas y memoriales. Aguirre fue, como tantos
que poderia ser também o resumo de toda sua obra.
otros, justificadamente tildado de asesino: no lo hizo más
Romantizar e ensaiar a história da América Hispânica, como
que otros, sólo que lo hizo con determinación explícita y
duas dimensões imprescindíveis da política, foram suas principais desfachatez. A la luz de los siglos, esta actitud aparece
atividades. Expressar as múltiplas arestas da relação dos indivíduos atractiva en el personaje, frente al solapamiento con que
com sua história foi algo mais que um objetivo de seu labor, foi actuaban los demás, los que realizaron actos vandálicos
uma obsessão. Para o autor, torna-se impossível, sem história, o similares y sustentaron de igual modo su poder. (PIZARRO,
encontro da identidade individual e coletiva. Porém, isso não 2009, p. 46)
significa que o homem da América Hispânica seja preso pelo Durante dez intermináveis meses se cumpre a alucinante
determinismo histórico ou por algum tipo de tradicionalismo, pois, travessia ao longo do rio Amazonas, que constitui não um mero
de forma alguma, o escritor adota um tom moralizante, ao cenário geográfico no romance, mas uma presença vital. A fome e
contrário, vai descobrindo quase programaticamente o caráter as febres tropicais vão dizimando, pouco a pouco, a tropa, mas,
mestiço do continente hispano-americano. sobretudo, as intrigas e o ódio convertem em um verdadeiro
Uslar Pietri romantiza a história e constrói uma ensaística
pesadelo o lento avanço das frágeis embarcações. Lope de Aguirre,
que visa mostrar a essência da América Hispânica. Seu segundo integrante da expedição de Pedro de Ursúa, elimina
romance, El caminho de El Dorado (1947), mais que um romance, progressivamente seus antecessores, e, em certo ponto da
configura uma biografia narrada do conquistador Lope de Aguirre narrativa, torna-se dono da situação e figura central a partir da
e uma espécie de geografia poetizada. Como bem questiona a qual toda a ação do romance se desenvolverá.
investigadora chilena Ana Pizarro, em seu livro Amazonía: El río A expedição chega à Ilha Margarida, na costa venezuelana,
tiene voces: e prosseguem cometendo brutalidades contra a vida e os bens do
¿Quién es Lope de Aguirre? ¿Quién es este expedicionario
aterrorizado povo da ilha. Logo a fama das sinistras façanhas,
de rebeldía histórica que penetró por el Marañón hasta la
confluencia con el Ucayali, siguió por el gran río hasta llegar atribuídas a Lope de Aguirre, se propaga por toda a região e,
al Atlántico, alcanzó en el Caribe a la Isla Margarita, en quando desembocam em terra firme, em Nossa Senhora da
donde su paso marcó una época de terror, y, queriendo Conceição da Burburata, encontram um povo completamente
llegar a Panamá para atravesar el istmo, se vio obligado a deserto.
tomar la vía de Valencia, para terminar muerto en A busca pelo El dorado sintetiza a busca pelo lugar de todas
Barquisimeto? Vilipendiado por unos y glorificado por otros, as riquezas. Como se pode ver neste trecho da obra El camino de
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El Dorado: “—Vamos derechos a El Dorado, mis amigos. Este es el A fome, a peste e a fúria imperiosa da natureza os
preciso camino que han señalado los indios brasiles. Es tanto el oro tornavam reticentes quanto à existência do El Dorado, mas o afã
que allí se encuentra que uno anda como deslumbrado, casi sin pela fama e riqueza que os esperavam no lugar da plenitude de
poder abrir los ojos, como lechuza al mediodía” (USLAR PIETRI, todas as necessidades lhes incitava a seguir adiante:
1956, p. 199). No tenían motivo para aquella alegría, pero todos sentían una
A tropa de navegação espanhola estava entregue ao azar e profunda necesidad de cambiar, aunque fuera por un
suas consequências: momento, el tono y el dramático color que habían ido
Todo era extraordinario y desconocido. Pero no parecían tomando sus vidas. Aquella larga sucesión de días y días
sentir gran sorpresa ante aquel mundo de la vida del río sobre el río sin límites y de noches sobresaltadas, rumiando
inmenso. Era como si lo vieran de lejos y con despego, en el desvelo su angustiosa desesperanza. (…) Pero nada de
buscando otra cosa. Parecían, además, fríamente eso podía hacerles olvidar lo que en el fondo de cada quien
entregados al azar y a sus consecuencias. […] De una a otra estaba royéndole el sosiego: la inutilidad de todos los
embarcación se hablaban poco y a gritos para transmitirse esfuerzos hechos para encontrar el reino de El Dorado y la
informaciones, preguntar por los enfermos o consultarse poca esperanza que quedaba de hallarlo. (USLAR PIETRI,
sobre el rumbo. Después volvían largos espacios de 1956, p. 240-241)
silencioso deslizarse sobre el agua, mientras el sol subía y Com o assassinato do governador Pedro de Ursúa, Lope de
un húmedo calor envolvía los cuerpos. (USLAR PIETRI, 1956, Aguirre logra a tomada de poder. Há um deslocamento da
p. 217-218) centralidade do romance em torno do percurso do rio rumo ao El
O rio Amazonas embalava a busca dos corpos espanhóis Dorado para a figura de Lope de Aguirre e suas artimanhas:
pelo mistério em torno da atraente, temerosa e desconhecida Desde la noche del asesinato de Ursúa las cosas parecían
selva com seus rios, animais e ruídos: haberse desarrollado con una velocidad vertiginosa. Los que
(...) los hombres sentían la avasalladora presencia de lo antes eran lentos días de agotadora espera, se habían
desmesurado y de lo misterioso. Era el mundo infinito de trocado ahora en acelerada sucesión de emociones y
aquella agua viva que se multiplicaba en el cauce inmenso y sucesos. Los terribles acontecimientos y sus variadas
que rodaba, con sus troncos, con sus animales, con sus consecuencias parecían haber borrado un poco la
ruidos hacia un rumbo desconocido, que nadie podía presencia, hasta entonces avasalladora, del mundo natural.
modificar. Y era también el mundo infinito de la selva Ya no era la vastedad letal de la selva, ya no era el temor de
espesa, impenetrable y desconocida llena de una vida las mil formas de la muerte desconocida que acechaban al
huraña, pulutante y temible. Esa presencia los rodeaba, con soldado en aquellas soledades. Ahora, lo que fijaba la
aspectos cambiantes, en todas las horas y en todos los atención de todos, era la cadena de sucesos que habían
sitios. Nunca llegaban a sentirse solos, y nunca llegaban a venido ocurriendo desde aquella noche. La honda sensación
sentirse confiados y tranquilos. (USLAR PIETRI, 1956, p. 220) de maleficio y de fatalidad que durante la larga jornada
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había venido penetrándolos a todos, como una de aquellas Lope de Aguirre morre pelas mãos de seus próprios
densas nieblas que se alzaban en la madrugada del río, soldados, que se unem ao exército inimigo, em uma tentativa
había venido a concentrarse ahora en los hechos y los desesperada e bem-sucedida de libertar-se do tirano. A obra El
rostros de los hombres de la expedición. Aun el ansia de camino de El Dorado é mais que um relato da história da
llegar el reino de El Dorado parecía haberse apagado. Algo,
Conquista, mais que uma narrativa do descobrimento espanhol do
más dramático y próximo, se había interpuesto. (USLAR
Rio Amazonas, mais que uma narrativa do imaginário mítico
PIETRI, 1956, p. 255)
europeu. A busca pelo El Dorado, empreendida em 1559, configura
Nas palavras de Lope de Aguirre, na obra de Uslar Pietri: uma traição à monarquia, um rompimento com o reinado de Felipe
Y caminando nuestra derrota, pasando todas estas muertes II, um início de processo de independência, tão bem registrado
y malas venturas en este río Marañón, tardamos hasta la pelas cartas-manifestos destinadas ao rei da Espanha, nas quais
boca de él y hasta la mar más de diez meses y medio:
Lope de Aguirre declarava sua independência e a de seu grupo de
caminamos cien jornadas justas, anduvimos mil quinientas
“marrañones”.
leguas. Es río grande y temeroso…Tanto andado y tanto por
andar todavía. ¿Cuándo habría de descansar? Estaba en Aguirre se propunha a levar sua “doutrina” ao Peru,
guerra contra el rey, en guerra contra la naturaleza, en atravessar o rio Amazonas, chegar ao Caribe e terminar no
guerra contra sus mismos hombres. ¿Cuántos marañones Panamá, a fim de liberar o continente do jugo espanhol. Se não
más habrían de traicionarlo? (USLAR PIETRI, 1956, p. 371) pudesse fazê-lo, ao menos sua fama ficaria registrada na memória
da humanidade para sempre. O motivo de sua empreitada é,
Ainda, conforme o personagem:
sobretudo, político. Trata-se de um jogo de poder, de um princípio
Tan grandes son nuestras maldades que, podéis tener por
cierto, que ni en España, ni en las Indias, ni en parte separatista, liberador da coroa espanhola. Parece algo demencial
ninguna, que hayamos oído, ha habido hombres que las a atitude de Aguirre, ao escrever as rebeldes cartas, se considerada
hayan hecho más grandes. (…) Ni os perdonará el rey, ni os a época de rigidez monárquica, mas esta, no fundo, marca um
perdonará el verdugo, ni podrán perdonaros los parientes y princípio histórico com a consignação de uma nova ordem.
amigos de todos los que habéis muerto, que os habrán de Uslar Pietri compreende, com maestria, o diálogo que a
perseguir mientras alienten hasta que logren quitaros las sociedade exerce com o território usado. Conforme apontado pelo
vidas y así no tendréis sosiego y viviréis corridos y geógrafo brasileiro Milton Santos (2001), em seu livro Território e
afrentados, sin que haya estanciero ni calpiste, que no os Sociedade: entrevista com Milton Santos, território exerce um
vitupere y baldone con nombre de tiranos, hasta que al fin diálogo que inclui tanto o natural quanto o artificial, tanto a
hayáis de morir de malas muertes. (…) Además si ahora
herança social quanto a sociedade em seu movimento atual.
pasamos trabajos y hambres, mañana tendremos descanso
y hartura, como unos mismos reyes, cuando lleguemos a
Cada ação social, na visão de Santos (2001), apropriada
Perú. (USLAR PIETRI, 1956, p. 385-386) para a análise da obra de Uslar Pietri (1956), inclui a Terra e os
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seres que a habitam, e cada situação seria outra, em caso de que novela venezolana. Ningún país hispanoamericano excede a
fosse outro, também, o território e seu uso, ou seja, há uma Venezuela en la numerosa, continuada y creadora familia de
relação de dependência mútua entre os mesmos. Milton Santos novelistas que posee, que en el último medio siglo ha
(2001) adverte para que, como estamos acostumados a pensar a contado con más de quince novelistas importantes, que han
escrito una cincuentena de novelas notables, muchas de las
história como se esta se configurasse a partir da relação direta dos
cuales habrán de quedar en la historia de la literatura
homens com a Terra, quando, na verdade, tal relação está
continental. Venezuela, que durante el siglo XIX había
perpassada tanto pela intermediação das heranças sociais e producido algunas grandes figuras literarias, las más de ellas
materiais quanto pelo presente social2. aisladas e inconclusas, va a tener en la novela, y en la
Arturo Uslar Pietri constrói romances que revisitam o literatura de ficción en general, el más grande florecimiento
passado como uma forma de sacudir o presente. Seu objetivo é de su literatura. Ya no se trata de grandes nombres
oferecer a seu país, de passado modesto, com possibilidades até dispersos, sino de un movimiento de conjunto, que cubre
então limitadas, a possibilidade de ser uma nova Venezuela. generaciones sucesivas, que cobra vigor social y sentido
Expressa sua intenção quando escreve a obra Letras y hombres de nacional, y que afirma, a través de sus variadas creaciones,
Venezuela, em 1948, na qual o escritor se dedica inteiramente a rasgos propios. Ya se puede subir al mirador del género y
contribuir para a formação da cidadania venezuelana, refletindo, mirar en conjunto armónico a los individuos que lo cultivan.
(USLAR PIETRI, 1956, p. 1045-1046)
como o próprio título sugere, sobre a realidade da Venezuela,
desde a sua Conquista, avançando para a figura de Simon Bolívar Segundo Uslar Pietri, há vigor, há ânsia criadora, há vida no
e seguindo na reflexão sobre a representação social de outros romance venezuelano. Sem este, o rosto de seu país estaria
escritores e intelectuais como Andrés Bello, Juan Vicente incompleto e muito de seu mistério não haveria começado a
González, Cecilio Acosta, Pérez Bonalde, os quais o autor define expressar-se. Não há, de acordo com o autor, manifestação mais
como “servidores del espíritu de los pueblos americanos y de la alta de poder e espontaneidade em nenhuma outra forma
civilización”, culminando, finalmente, com outra reflexão sobre o literária.
romance e o conto venezuelano. Em De una a otra Venezuela, escrita em 1949, Uslar Pietri
Ainda nesta obra, a respeito do romance venezuelano, dizia-se movido por um sentimento de angústia quanto aos
Uslar Pietri realiza duas defesas polêmicas: acontecimentos dramáticos ocorridos na vida venezuelana,
La novela hispano-americana es hoy la más importante de ocasionados pela grande crise que atravessava o país. Crise esta,
lengua española; y, dentro de ella, ninguna aventaja a la

2O geógrafo Milton Santos estabelece a seguinte definição para o conceito pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam”. In: SANTOS
de território, pertinente para o nosso estudo: “o território em si, para mim, (2001) p.22. Apoiamo-nos, assim, para esta pesquisa, na definição de
não é um conceito. Ele só se torna um conceito utilizável para a análise social território exposta acima, atribuída pelo respectivo autor.
quando o consideramos a partir do seu uso, a partir do momento em que o
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que se reflete na vida política, econômica e social. Crise de consciência de sua missão, de seu caminho, de seu básico e
transformação e deformação fundamentalmente econômica que permanente interesse, pode subordinar todas as circunstâncias a
se complica no político e repercute no social. A origem está na crise estes fins superiores, de modo a ascender no caminho da história.
do petróleo e, a partir do mesmo, o escritor discute a educação, a Ainda nas palavras de Uslar Pietri:
economia e a sociedade. En algunas épocas, los hombres se han matado entre sí
Sua obra é uma evocação ao povo venezuelano para porque entendían de distinta manera el amor de Dios. Este
implicar-se nas mudanças de seu país, dividido em uma grande horrible absurdo de matar a la criatura por amor del
maioria pobre e desinformada e uma minoria das modernas Creador fue posible porque el tono pasional en que se
cidades que recebe os benefícios monetários da riqueza desarrolló la pugna religiosa hizo perder de vista los fines
petrolífera. Nas palavras de Uslar Pietri: verdaderos y superiores. No sería menos absurdo que nos
De unas a otras, de una a otra Venezuela debe ir la angustia hubiéramos de odiar porque entendemos de modo distinto
creadora de los venezolanos. De una a otra Venezuela, de la el amor de Venezuela. El verdadero amor de Venezuela, por
que no es a la que debe ser, ha de encaminarse la acción el contrario, es lo que debe acercarnos a todos los que lo
colectiva. Lo que no es otra cosa que invocar una política sentimos y empequeñecer nuestras divergencias. (USLAR
venezolana para un país que casi no la ha conocido. Hay que PIETRI, 1956, p. 1463)
salvar a Venezuela. Nadie es tan fuerte que pueda salvarla
Uslar Pietri, em sua obra En busca del nuevo mundo, trata
solo, ante la indiferencia de los demás. Nadie es tan
da questão da identidade dos povos hispano-americanos, a partir
pequeño o insignificante que pueda negar su esfuerzo sin
que el impulso total no se debilite. Es tarea de todos para do tema da mestiçagem cultural. Discute a busca do homem
todos. Yo, por mi parte, nunca he dudado, a pesar de tantos americano em si próprio, entre contraditórias heranças e
tropiezos, de que los venezolanos seamos capaces de dissímiles parentescos, que o levam a atuar ora como ser
semejante empresa. Porque no lo dudo he escrito las desterrado em sua própria terra, ora como conquistador desta:
palabras que están en este libro, y en él las recojo para Por un absurdo y antihistórico concepto de pureza, los
lanzarlas como un pedrusco a la campana que ha de hispanoamericanos han tendido a mirar como una marca de
despertar al pueblo venezolano, mi pueblo. (USLAR PIETRI, inferioridad la condición de su mestizaje. Han llegado a
1956, p. 1345) creer que no hay otro mestizaje que el de la sangre y se han
inhibido en buena parte para mirar y comprender lo más
A vida de um povo consiste em uma perpétua crise de valioso y original de su propia condición. Se miró al
crescimento e adaptação a circunstâncias constantemente mestizaje como un indeseable rasgo de inferioridad. Se
mutáveis. Tal realidade é a razão pela qual a política e o governo estaba bajo la influencia de las ideas de superioridad racial
tornam-se arte complexa. Arte esta, muito mais complexa do que desde el siglo XVIII y se afirmaron en el XIX con Gobineau,
supõem os demagogos de praça pública. Quando um povo assume que dieron nacimiento a toda aquella banal literatura sobre
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la supremacía de los anglosajones y sobre la misión épica y trasfondo mágico. ¿A qué época o a qué escuela
providencial y el fardo histórico del hombre blanco europea podrían asimilarse Gallegos, Guiraldes, Rivera,
encargado de civilizar, dirigir y encaminar a sus inferiores Azuela? La poesía de Gabriela Mistral es una trémula
hermanos de color. Se creó una especie de complejo de confluencia de tiempos y modos. El aire barroco que mueve
inferioridad y de pudor biológico ante el hecho del las frases de Asturias y Carpentier está mezclado con
mestizaje sanguíneo. Se quería ocultar la huella de la sangre elementos románticos, con sabiduría surrealista y con la
mezclada o hacerla olvidar ante los europeos, olvidándonos atracción por la magia de los pueblos primitivos. Un libro
de que Europa era el fruto de las más increíbles mezcolanzas como Los pasos perdidos o como El señor presidente refleja,
y de que el mestizaje de sangre podía ser un efecto, pero en el más mestizo lenguaje creador, el mestizaje original y
estaba lejos de ser la única causa ni la única forma de profundo del Nuevo Mundo. Jorge Luis Borges es el más
mestizaje cultural. Lo verdaderamente importante y refinado manipulador de la vocación y de los elementos del
significativo fue el encuentro de hombres de distintas mestizaje cultural. La torrencial voracidad transformadora y
culturas en el sorprendente escenario de la América. Ése y caótica de Pablo Neruda tiene sus raíces y su razón en el
no otro es el hecho definidor del Nuevo Mundo. (USLAR poderoso fenómeno del mestizaje americano. No solo hay
PIETRI, 1969, p. 13) una vocación de superponer influencias y escuelas sino que,
además, hay una deformadora capacidad de asimilar y
As ideias ocidentais invadem a América rumo a um novo
desnaturalizar las influencias, que no es otra cosa que la
destino, rumo a uma mescla cultural originária de novas avasallante consecuencia cultural del hecho americano.
significações, cujos sentidos dão-se na lenta e contrastada fissura (USLAR PIETRI, 1969, p. 23)
dos povos americanos. O Descobrimento da América transformou-
se, para a Europa, no descobrimento da Utopia, propiciado pelo Para Arturo Uslar Pietri, a América Hispânica é, talvez, a
contato com as culturas indígenas ricas em teogonias, mitos, única grande zona aberta no mundo do século XX ao processo de
lendas e crenças. Para a América, por sua vez, o contato com mestiçagem cultural criador. Ao invés de considerar tal
europeus incorpora a maneira de ser e entender advinda da característica extraordinária como uma marca de atraso ou de
Antiguidade greco-latina e hebreia; incorpora a herança de livros, inferioridade, faz-se mister enxergá-la como a mais afortunada e
filosofia e herança teológica da Idade Média. Conforme as palavras favorável circunstância para a compreensão da personalidade
de Uslar Pietri: fecunda e poderosa da América Hispânica, bem como de sua
El modernismo no es un episodio aislado, su voluntad de originalidade e tarefa criadora. Sobre a América Latina, no século
mezcla y de incorporación aluvional sigue activa en el XXI, Uslar Pietri defende que:
desarrollo ulterior de la literatura de la América Hispana. Su vocación y su oportunidad es la de realizar la nueva etapa
Las grandes novelas americanas de la tercera década del de mestizaje cultural que va a ser la de su hora en la historia
siglo expresan esa impureza receptiva en su poderosa de la cultura. Todo lo que se aparte de eso será desviar a la
combinación de realismo, costumbrismo, simbología, forma América Latina de su vía natural y negarle su destino
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manifiesto, que no es otro que el de realizar en plenitud la La cuestión verdadera no consiste en preguntarse si la
promesa de los Garcilaso, de los Bolívar, de los Darío, de los literatura de la América Latina es o no moderna, lo cual
constructores de catedrales, para la obra de un Nuevo implica una comparación con un modelo más o menos
Mundo. (USLAR PIETRI, 1969, p. 26) arbitrario y ajeno, constituido generalmente por la última
literatura que hacen en Londres, en París o en Nueva York,
La creación del Nuevo Mundo representa a maturidade das
sino la de preguntarnos si es o no hispanoamericana, si
reflexões que Uslar Pietri (1991) vinha desenvolvendo, ao longo de expresa o no la peculiar y única circunstancia del hombre
toda sua carreira, no que diz respeito à originalidade cultural da hispanoamericano y su situación histórica y cultural. (USLAR
América Hispânica, sua busca multicentenária por identidade, seu PIETRI, 1991, p. 153)
contraditório passado, seu difícil presente e as vias possíveis de
Esta grande experiência de encontros de culturas que teve
seu porvir. Como Octavio Paz já elucidara o autor venezuelano,
como cenário o mundo americano, através da linguagem, dos usos
igualmente, crê que a tentativa de “desviver a própria história” é
e das experiências, veio a converter-se em uma nova dimensão de
o cerne do trágico equívoco da história política da América Latina.
toda a comunidade hispânica. Não houve em toda a história uma
Há que se considerar a excentricidade desta, ou seja, sua não
experiência de tamanha envergadura e consequências. O contato
correspondência com os movimentos e características do cêntrico
estreito, durante séculos, entre o europeu, o índio e o negro, as
modelo europeu.
“protocélulas” formadoras do povo latino-americano, gerou não
Na insurgência da América Latina, o pensamento é
apenas consequências sociais e culturais, mas também uma nova
questionador, crítico e reformador; os romances são de protesto e
concepção de mundo e de humanidade (RIBEIRO, 1986) 3. Como
luta contra a ordem recebida. O anseio é por alguma forma efetiva
bem diria o escritor venezuelano Simón Rodríguez “A América
e imediata de mudança do presente. Invocam-se, para tanto,
Latina é original, portanto não deve copiar” 4 . Em concordância
princípios e doutrinas, recentes ou antigas, vindas de fora, mas que
com tal premissa, Uslar Pietri retoma uma vez mais a perspectiva
se mesclam com a mitologia local e a realidade existencial. Mais
do autor e conclui: “o inventamos, o erramos”.
que um pensamento crítico ao estilo da Europa, constrói-se na
A obra de Uslar Pietri é um convite aberto à aceitação de
América Latina uma espécie de pregação missionária. A atitude é
nossas raízes, em sua riqueza histórica, culminantes em uma
de tentativa de levar uma salvação que se propague e salve os
mestiçagem cultural que nos garante uma forma bastante única de
povos americanos da complexidade de sua história.
sermos ocidentais, como se verifica a seguir:
Uslar Pietri questiona, com maestria, o seguinte:
3O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro aborda, em sua obra, a concepção 4“La América Latina es original, por lo tanto no debe copiar”. In: USLAR
de um novo gênero humano, como fruto do choque entre índios, negros e PIETRI (1991, p.178). [Tradução nossa]
europeus, “protocélulas” formadoras do povo latino-americano, em
consonância com a perspectiva defendida por outros escritores como Simón
Rodríguez e José Martí. Cf. RIBEIRO (1986).
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Nadie puede negar hoy que todos los iberoamericanos formamos MENESES, Guillermo. Cuento de Venezuela. Pref. A. Uslar Pietri.
evidentemente una extensa y varia comunidad hecha por la Caracas: Tamanaco, 1960.
historia y por la geografía, que es distinta a todos y cada uno
de sus componentes y que por ello mismo tiene una
PESSOA, Fernando. Obras poéticas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
inescapable condición de originalidad. Somos lo que la
1974.
historia nos ha hecho, más allá de polémicas y de complejos
de culpabilidad, somos la herencia viva de cinco siglos de
creación histórica que han formado una realidad autónoma PIZARRO, Ana. Amazonía: El río tiene voces. Chile: Fondo de
y poderosa que es la nuestra y la única de la que podemos Cultura Económica, 2009.
partir para avanzar hacia el porvenir que nos está ofrecido.
No podemos detenernos y desviarnos en una estéril RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. 2ª ed.
disputa, casi teológica, sobre el pecado original del que Buenos Aires: El Andariego, 2008.
hemos nacido, o en declararnos partidarios de uno de
nuestros abuelos contra otros de ellos mismos. Lo que RIBEIRO, Darcy. América Latina: a pátria grande. Rio de Janeiro:
importa es que somos como somos y todo lo que podemos Guanabara Dois, 1986.
hacer tiene que partir de esa certidumbre. (USLAR PIETRI, 1991,
p. 186)
SANTOS, Milton. Território e Sociedade: entrevista com Milton
Em nossa mestiçagem cultural reside nossa contradição e Santos. SP: Fundação Perseu Abramo, 2001.
singularidade. Em nossa latinidade ocidental, proveniente do
Pecado original da Conquista, reside nossa descendência, herança USLAR PIETRI, Arturo. En busca del nuevo mundo. México: FCE,
e futuro. Para o século XXI, em seus desafios transnacionais, cabe 1969.
a compreensão, ainda que tardia, desta base cultural histórica
latino-americana para que, enfim, alcancemos a maturidade crítica ______. Ensayos sobre el nuevo mundo: antología de textos
necessária para a percepção e análise das questões transculturais políticos. Introducción y selección de Agapito Maestre. Madrid:
deste tempo presente. Editorial Tecnos, 2002.

Referências ______. La creación del nuevo mundo. México: Fondo de Cultura


LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico- Económica, 1991.
filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. posfácio e notas
de José Marcos M. de Macedo. SP: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. ______. Las lanzas coloradas. El camino de El Dorado. Barrabas y
otros relatos. Red (cuentos). Treinta hombres y sus Sombras. Las
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visiones del camino. La ciudad de nadie. El otoño en Europa. Un


turista en el cercano oriente. Letras y hombres de Venezuela.
Apuntes para retratos. Las nubes. De una a otra Venezuela. In:
Obras Selectas. Madrid, Caracas: Edime, 1956.
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TRANSGRESIONES DE LOS MÁRGENES EN DOS NARRATIVAS DE (re)contextualización de viejas y nuevas formaciones culturales
MARÍA ROSA LOJO forjadas en el cruce de fronteras.
Gracielle Marques
UNIR/UNESP FCL/Assis Del caos y de la solidaridad
El cuento “Té de araucaria” se divide en cuatro partes y
Centrada principalmente en la revisión del periodo pos- narra – en tercera persona– el encuentro inquietante entre la
independentista y de la formación de la República Argentina, la empleada indígena Luisa (libre creación ficcional) Lord Greystoke
narrativa histórica de María Rosa Lojo (Buenos Aires, 1954) (recreación ficcional) y Manuela Namuncurá (personaje histórico
consigue incorporar a las figuras femeninas en el centro del recreado) en Europa. De esos encuentros se encienden recuerdos
proceso histórico, abriendo espacio para otras voces marginales, de Manuela de su Mapú, la patria mapuche, y le hace abandonar
diálogos y representaciones de la alteridad que enriquecen y una representación que ya no le convencía más.
profundizan la problemática de la identidad personal y colectiva. Narrado en tercera persona, la acción del cuento tiene un
De esta manera, centramos nuestra lectura en el cuento día de duración y se pasa en la Costa Dorada. Se inicia en una
“Té de Araucaria”, publicado por primera vez en la revista El mañana con un juego de poker entre cuatro señoras inglesas: Lady
Extramundi y los papeles de Iria Flavia en 2004 –posteriormente Cavendish, Mrs. Van Tappen, Miss Pitt y Edna Partridge. En
fue añadido a la segunda edición del libro de cuentos Amores seguida, la vencedora Lady Cavendish regresa a su casa caminando
Insólitos de nuestra historia (2011) y en la novela Finisterre (2005), con los pies descalzos por la arena del mar. Por intermedio del
con el objetivo de hacer una lectura comparada desde el punto de narrador sabemos que le atrae el mar, cuadro natural que se abre
vista de la trayectoria de los personajes Manuela Namuncurá y infinitamente hacia el horizonte ofreciendo una analogía con la
Elizabeth Armstrong, respectivamente. En esas obras, Lojo nos inmensidad de la pampa casi olvidada de su infancia y
presenta a esos personajes en el momento en que sus vidas, hasta adolescencia.
entonces determinadas por la voluntad masculina, se enfrentan Al llegar a su casa, el marido, Lord Cavendish, la llama por
con el inevitable (re)encuentro con los vínculos e imaginario el sobrenombre “Dolly” debido a la dificultad en pronunciar su
asentados en el pasado. Un conocimiento que les permite nombre de bautismo: Manuela. De pronto ella percibe, como nos
cuestionar sus trayectorias como algo fabricado y subvertir los advierte el narrador, que su mundo pudiera haber estado en su
discursos patriarcales. perfecto orden cotidiano y espiritual, aunque postizo,
Es también la mirada crítica sobre las ideologías representado en la convivencia resignada con el marido y los
imperialistas descalificadora del “otro” que enriquece los hilos objetos de la casa alquilada:
narrativos no solo en los referentes históricos, sino en la Todo estaba bien: los narcisos en el búcaro de cristal. La
porcelana, las copas, las jarras para el vino y el agua fresca,
los cubiertos de plata. Pero nada era suyo, pensó Dolly o
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Manuela. Alquilaban la casa con toda su vajilla y todo su Una taza de té con sus hojas dispersas en el fondo: hay allí
mobiliario. […] De todas maneras, Dolly o Manuela se había un ojo extraviado, hay una boca que no halló la palabra, hay
acostumbrado a que nada fuera suyo por mucho tiempo ni una pierna atravesada en medio del camino, hay una mano
por entero ni siquiera su marido, gentil pero también que no sabe coser. Hay un mapa secreto de una ciudad ya
indiferente, que guardaba para ella zonas opacas y inhabitable donde viviste. Hay un llamado inaudible, hay
memorias inaccesibles. (LOJO, 2011, p.252) una música que podría volverte el alma del revés, si la
escucharas. (LOJO, 1998. El subrayado es nuestro)
Sin embargo, un elemento ajeno, inesperado, casi mágico
había irrumpido deshaciendo los límites de un mundo en aparente El “llamado inaudible” del té, le hace a Dolly o Manuela
orden: “Todo hubiera sido tolerable, todo hubiera quedado, no escuchar a las canciones de Luisa en una lengua antigua con sabor
obstante, dentro del orden, si la mujer no hubiera aparecido, mejor “lejano y familiar” y le vuelve “el alma del revés”. Esa peculiar
dicho, si su marido no la hubiera traído con la buena intención de comunicación se presenta como uno de los elementos
complacerla” (LOJO, 2011, p.252. El subrayado es nuestro). desencadenadores y anticipadores del final sorprendente.
La mujer que su marido contrató, creyendo poder Pasemos, ahora, a la novela. Finisterre narra la historia de
entretenerla, viene de su tierra natal. Se llama simbólicamente la joven Elisabeth Armstrong que se entrecruza con la de Rosalind
Luisa, guerrera gloriosa, y se había instalado en la casa como una Kildare, a través de las cartas que ésta le envía. La novela está
presencia fantasmal: “Era inaudible, y Dolly la sentía de pronto a escrita en tercera persona y primera persona (las cartas de
sus espaldas, sin previo aviso, o la veía emerger súbitamente –una Rosalind y Oscar Wilde). Elisabeth nace en el fortín Tres de
sombra en los juegos de la luz– en el descanso de una escalera, o Febrero, en los confines de la provincia de Córdoba en Argentina,
en el vano de algún umbral” (LOJO, 2011, p.253). Las palabras hija del comerciante inglés Oliver Armstrong y la india mapuche
semánticamente relacionadas a la invisibilidad y al silencio la Garza Que Vuela Sola – sobrina del líder mapuche Ignacio Coliqueo
definen. Sin embargo, en silencio, Luisa encuentra una manera de refugiado entre los ranqueles– muerta a poco tiempo de dar a luz.
interactuar con los patrones a través de las tazas de té de pehuén Viene al mundo por las manos de Rosalind Kildare, una española
(araucaria), bebida sagrada para los mapuches, servido a la hija de padre irlandés y madre gallega, que estuvo cautiva entre
manera inglesa a la pareja. los indios ranqueles. La joven, también llamada por sus
A partir de la ingestión del té se desatan los nudos que ascendentes Aluminé, la Resplandeciente, vive hasta los tres años
impedían los recuerdos del pasado. Esta percepción de lo que se de edad en Argentina. Luego, su padre la lleva a Londres y a partir
oculta en los pliegues de la memoria, simbólicamente de ahí le oculta su pasado mestizo.
representado en las imágenes desprendidas por una taza de té, ya Creada con el nombre de Elisabeth, vive como una
aparecían en un poema de Lojo intitulado Té de las cinco, de verdadera inglesa, hasta el día en que recibe misteriosas misivas
Esperan la mañana verde (1998): de una señora de Finisterre, Galicia. De manera semejante a la
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historia de cuento, comienza a cuestionarse sobre el aparente de Luisa en el cuento, se funde a los retazos de imágenes,
orden de su vida: comunicando lo que está fuera de sí, pero que le permite regresar
Aunque su vida era relativamente buena –o quizá sólo a sí mismo.
cómoda-, se edificaba sobre un origen clausurado y cubierto Además de los elementos del té servido por Luisa y de las
de sombras cuando intentaba penetrarlas, el silencio y la cartas de Rosalind, otros personajes actúan en el desvelamiento
perceptible molestia de su padre caían sobre sus ansias del pasado encubierto, expulsando a las protagonistas para
como un cerrojo, la dejaban inexorablemente del otro lado
siempre de una posible seguridad inventada por el marido o por el
de la puerta. (LOJO, 2005, p.13)
padre e instalándolas en la esfera de los discursos antagónicos,
La perspectiva de las cartas enviadas por Rosalind, con la fragmentados y plurales.
cual Elisabeth perdió el contacto, gracias al alejamiento impuesto En “Té de araucaria”, por la tarde, en la segunda parte del
por el padre, se centra en el rescate y autorreflexión de los años cuento, aparece una nueva figura reveladora. Su marido Lord
vividos en el cautiverio. A través de diversos planes que se doblan Cavendish recibe en su casa y le presenta a John Clayton, Lord
en acontecimientos históricos y personales uniendo sus vidas, se Greystoke, reduciendo sencillamente su vida a una imagen
va iluminando el pasado de Elisabeth. Esa correspondencia, de la exótica: “Mi amigo se crió en las selvas africanas, sólo entre los
cual su padre no tiene conocimiento, crea un espacio femenino de monos. Sus padres se salvaron por milagro de un naufragio, pero
resistencia y transgresión. murieron allí sin ser rescatados, a poco de nacer él” (LOJO, 2011,
La idea del “llamado inaudible” se puede asociar, en esta p.255). Añadiendo, con admiración, el logro atribuido a John de
novela, a la actividad silenciosa de la lectura de las cartas que le haber “sabido unir los refinamientos de la cultura con la fuerza y
despierta las imágenes ya apagadas y gastadas de su primera la nobleza del hombre primitivo, aún incontaminado por nuestros
infancia: vicios” (LOJO, 2011, p.255).
Sin embargo, cuando buscaba indicios mirando hacia la Se hace operativa en ese pensamiento una perspectiva
hondura del pasado, como si atisbara una moneda de oro imperialista que considera que el hombre blanco creado en
extraviada en el fondo de un pozo, escuchaba el rumor de culturas no-europeas, consideradas inferiores, se conserva
una lengua que no podía ser el inglés ni el español, y sólo
incontaminado, presumiendo primitivismo y sencillez en la cultura
veía, al alcance de su mano pequeña y ávida, la cinta
del otro. Pero la explicación de Greystoke a Manuela desvela esa
brillante de una trenza roja. (LOJO, 2005, p.14)
dualidad que encubre el proceso de inferiorización: “Mis
El eslabón que la conecta con el pasado aparece en la compatriotas prefieren que todo lo deba a los monos y a mí
imagen de la trenza roja, metonimia de esa mujer gallega, que mismo, antes que a los negros” (LOJO, 2011, p.2).
pasó por la experiencia de la inmigración y del cautiverio y le A través de la parodia del retorno a la civilización – presente
transmite una consciencia singular de la existencia humana. El en el mito literario del Tarzán del escritor norte-americano Edgar
“rumor de lengua” antigua, de manera semejante a las canciones
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Rice Burroughs – se cuestiona una construcción ideológica que se Las incursiones imperialistas se profundizan en distintos
ha propuesto como perspectiva, parcial y fallida, para reducir y escenarios imponiendo para su mantenimiento ciertos órdenes
silenciar la cultura africana. Al mismo tiempo Lojo extiende esa reguladores del género y de la memoria social frente a la historia
crítica a la relación entre centro y culturas periféricas en la dominante. Cuestionar la utilidad de esos órdenes desde los
Argentina de Julio Roca. Así, esa cuestión actúa como el espejo en márgenes es permitir la erupción del pasado en el presente, para
el cual Manuela refleja su trayectoria: desde la adolescencia, que se pueda pensar en un futuro distinto. Lojo invoca el pasado,
cuando conoce a su esposo inglés, en Aluminé, en la actual recreando ambientes conflictivos, insertando personajes
provincia de Neuquén, hasta su vida en Inglaterra, ficcionales e históricos – en especial figuras femeninas– que en
desencadenando un proceso de interrogaciones sobre su propia permanente tensión con las imposiciones establecidas,
identidad. claramente reconocibles en nuestro presente, nos ofrecen otra
La visión imbuida del “espíritu civilizatorio”, con la que narración. El conocimiento y el desprendimiento de la situación
muchos viajantes europeos miraban a América, no se muestra colonial, de las amarras que silenciaron a los considerados
como exclusiva a este espacio, es decir, se encuentra en las inferiores, durante el siglo XIX, son la contra-estrategia que su
relaciones de los países imperialistas con otras regiones menos narrativa arquitecta para enfrentar a los permanentes desafíos
evidente pero igualmente marginales. Así como África, Lojo amplía existenciales.
la problemática de la mirada hegemónica, en su novela Finisterre, Una de esas inversiones de los discursos coloniales y
en el caso entre Inglaterra e Irlanda. patriarcales se explicitan sutilmente a través del código social de la
Es así que el comerciante Armstrong – enriquecido con el indumentaria, que dentro de esos órdenes sirven para diferenciar
dinero de los negocios obscuros en la guerra de expansión de las y subyugar el género (masculino y femenino), las etnias y a ricos y
fronteras argentinas en la época de Manuel de Rosas – entiende a pobres. La ironía y ambivalencia de las circunstancias, en la que
de manera semejante las relaciones de las instancias hegemónicas están inmersos los personajes, revelan en sus ropas o disfraces un
(Inglaterra- Buenos Aires) con los subalternos (Irlanda- indígenas): espacio ideológico, en el cual ciertos valores son expuestos.
Nunca se resignarán. Como todos los bárbaros permeables En el cuento, las categorías de dominación genérica, étnica
a la razón y a la ley, atados buena parte de ellos a una y social son examinadas dentro del matrimonio vehiculándolas con
religión supersticiosa y a una lengua absurda. La única las prendas. Esa combinación se ilustra en los recuerdos de
forma de evitar que descarrilen es tenerlos sujetos. […]. Elisabeth sobre el mundo que su esposo inglés encontró al viajar a
Creo que Gladstone se equivoca haciendo concesiones a
su patria indígena. Había encontrado a un mundo que ya no existía
Irlanda en materia de tierras. Cuanto más se les dé, será
más. Un mundo en el que sus antepasados, como su abuelo
peor más pedirán. Lo mismo pasaba en las Pampas, en las
negociaciones con los salvajes de la frontera. (LOJO, 2005, Manuel Cafulcurá, heredero del legendario jefe mapuche
p.17) Calfucurá, habían dominado una vasta extensión territorial.
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Vencidos, por el “otro” y por las desuniones entre ellos mismos, articuladas a la construcción del género, se convierten en una
les restaron pactar, disfrazarse en los reducidos papeles actitud de sobrevivencia y transgresión.
distribuidos entre hombres y mujeres del mundo de los blancos: Por un lado, al examinar la novela Finisterre, notamos el
Algunos se quedarían en las pocas tierras que les habían dialogo intertextual entre el personaje Rosalind y dos doncellas
dejado, en el Neuquén. Otros, como ella, como Ceferino, se guerreras de la literatura canónica occidental. La Rosaura de La
pondrían un disfraz para sobrevivir: un uniforme de vida es sueño, de Calderón de la Barca y Rosalind de As you like it,
sacerdote o militar, o el uniforme sin galones, pero de raso de Willian Shakespeare. La primera, al travestirse consigue
y plumas, que las damas lucían en los saraos y que acaso ella
alcanzar sus objetivos. La segunda, con astucia transforma el exilio
ya no podía distinguir de su piel. (LOJO, 2011, p.257-8. El
en una oportunidad de disfrutar de una libertad dentro del
subrayado es nuestro)
envoltorio del travestismo. Nos interesa resaltar el punto en que
Así, al igual que su abuelo, que a cambio de paz accedió al la segunda incide en la trama narrativa lojiana.
rango de coronel del ejército argentino, o a su tío que bautizado Elisabeth y su tía Audrey van al teatro a asistir a la pieza As
por los salesianos ingresa al colegio de la orden en Buenos Aires, you like it del dramaturgo inglés. Audrey comenta con su sobrina
también ella, llevada por un curioso turista inglés se había que se trata de su pieza favorita. En su opinión, la complejidad y la
disfrazado de dama con sus trajes de raso y plumas. Estas independencia de la Rosalind de Shakespeare se explica en la
constataciones le hacen recobrar su lugar en la historia y entender conjunción de los atributos femeninos y masculinos, más cercano
su actuación en un mundo en donde es la marioneta principal de a las necesidades de movilidad de los seres humanos, que la hace
un teatro de muñecas dirigido por su esposo. Su percepción se ve más completa como mujer:
agravada con los recuerdos de las veces que escenificó, en un ritual Rosalind sí que sabe lo que quiere y bien lo defiende. Pone
grotesco, el papel de “princesa de un reino inexistente” para los a prueba a su enamorado hasta hallarse completamente
curiosos invitados del esposo: “Entonces ella bajaba por otra segura de su lealtad. Se halla tan cómoda en traje de
escalera que era como el escenario de un teatro, pero ataviada con caballero como en su propia vestidura de doncella, tan a
el chamal de lana negra, la faja de colores, y todas sus joyas de gusto en los bosques y el destierro, como en los esplendores
plata” (LOJO, 2011, p.258). Sin embargo, rompe con esa repetición de la corte. Habla con rústicos y con nobles, concierta las
voluntades, armoniza las discordias, comprende y reúne los
al cortarse las trenzas, parte “indispensable del traje araucano”,
opuestos. (LOJO, 2006, p.23)
desagradando al marido que las guarda como pieza de un museo
en un estuche. Por lo tanto, la recuperación de la máscara shakespeariana
Al revelar la teatralidad por detrás de los roles sociales, el permite la transferencia de manera simbólica del conflicto
texto cuestiona una estructura de poder colonialista que intentó personal de la cautiva lojiana Rosalind a los conflictos de identidad
anular a las diferencias. Este tema se complica en Finisterre, pues de Elisabeth. En este sentido, argumenta Mabel Moraña: “la
en esta obra se concreta la idea de que las estrategias escénicas, máscara, entonces, más que ocultar al ser, lo proyecta hacia
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afuera, hacia una zona de juego, riesgo y vértigo que relativiza las Quizá soy yo la que no tengo mundo” (LOJO, 2011, p.261. El
certezas y teatraliza la condición social de sujetos que detentan subrayado es nuestro).
identidades conflictivas” (MORAÑA, 1998). Ambas las mujeres, de En este fragmento se plantea la permanente tensión que es
Finisterre y Londres comparten la misma condición de vivir entre vivir entre dos mundos, en el contraste de los tiempos verbales
dos mundos. subrayados. Se trata de una condición que no se resuelve nunca,
Por otro lado, Lojo proyecta el espejo del matrimonio de aunque se exalte su integración. En este caso la integración se da
Manuela en uno de los intentos del personaje Audrey de a través del amor. De acuerdo con lo que observa Gloria da Cunha,
presentarle a su sobrina el maduro Sir. Ashton Bradley, que había el amor es el gran personaje de todos los relatos de Amores
sido marino y aventurero. Siempre “dispuesto a elogiar su ‘belleza Insólitos “porque no se amordaza sino que se expresa, como lo
exótica” (LOJO, 2005, p.45) da señales de pretender, como lo hace la naturaleza, esculpiendo en los rostros de personajes
intuye su padre, que la joven “se convierta en el último capricho históricos o ficticios, facetas olvidadas por la plenitud que el mismo
de un inglés fatuo y viejo” (LOJO, 2005, p.47). La misma Elisabeth otorga a la humanidad de los seres” (CUNHA, 2007, p.115). El
sospecha, se espejando en la historia que vivió su padre con su conflicto de la doble identidad creado por los descentramientos y
joven madre indígena, los desagradables propósitos de Bradley, ya la mezcla cultural alcanzan varios desdoblamientos en la novela
advertidos en el cuento: “adquirir una muñeca codiciada, menos Finisterre.
por su beldad que por su frágil rareza, y que sirviese tanto para la En la novela, además de las cartas, Elisabeth se acerca al
exhibición victoriosa ante sus amigos y coetáneos como para su empleado de su padre, el joven Frederick Barrymore, quien le
íntimo goce personal” (LOJO, 2005, p.48). ayuda a abrir las puertas del otro lado de su historia. De forma
Simultáneamente a la transgresión del lenguaje de la semejante y también irónica es su padre quien lo lleva a su casa y
indumentaria, podemos leer de manera similar el proceso que va lo presenta a Elisabeth. Lo que oculta el joven a su padre es que
desde las rígidas fronteras del pensamiento decimonónico – igual a su hija tampoco es de legítimo linaje británico. Con el
civilización versus barbarie – a la creación de un espacio ficcional consentimiento del padre pasa a visitarla todos los jueves y
de “contacto intercultural”. De esta manera, aunque con ciertas descubre que Elisabeth recibe correspondencias de una señora de
diferencias, los relatos van en la misma dirección, o sea, matizan Finisterre. Se le acerca poco a poco y le invita a conocer a la señora
una de las temáticas centrales en la obra de Lojo: la identidad en Manuela Rosas, hija del ex-gobernador de Buenos Aires Manuel de
el cruce de contactos entre América y Europa. Rosas, exiliada en Londres. Es esa señora quien le ayudará, por fin,
En el cuento, al ser cuestionada por Greystoke sobre su a orientarse entre las piezas que componen su pasado:
gente, Manuela revela sus conflictos interiores: “–También allí –Pues será usted una india inglesa, y no hay en ello ninguna
[Neuquén] las cosas han cambiado. Y sobre todo, he cambiado yo. tragedia, nada que no pueda resolverse. Así se ha hecho
América. Mezclando y revolviendo sangres y cuerpos,
entrelazando lenguas. No renuncie a nada. Quédese con sus
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dos herencias, aprenda de los unos y de los otros. Si su padre qué no hace lo mismo, amiga mía? ¿No es una hermosa noche para
no quiso ver eso por torpeza y obcecación, véalo usted. caminar por la playa?” (LOJO, 2011, p.262). En este contacto con
–Justamente por eso quiero ir. Para ver a los otros que la tierra consiguen abarcar el mundo mapuche o africano y el
también son los míos. (LOJO, 2005, p. 154. El subrayado es mundo occidental.
nuestro) Elizabeth, por su parte, al partir para conocer el otro lado
de sus raíces se encuentra con Frederick Barrymore, que le revela
Aquí, además de la autora estar tratando de la
su identidad mestiza y el haberla conocido de niña mientras vivió
estructuración, o de los umbrales de la joven nación argentina, por
en el fortín Tres de Febrero. Barrymore parte a Sudamérica para
detrás de ese diálogo se oculta, de cierta manera, la concepción
invertir en un negocio con plantas medicinales, aprovechando el
literaria de Lojo. Como defiende la autora al ser cuestionada sobre
conocimiento indígena para incrementar la farmacopea europea.
la experiencia de las migraciones en la literatura argentina:
Integrar el aquí y el allá en un centro nuevo capaz de Lojo reúne fronteras incomunicables y canaliza los saberes de las
producir vida y cultura autónomas, valiosas por sí mismas, dos culturas.
sin culpas ni añoranzas que impidan o lastren el desarrollo Consideramos que en esa particular presentación de la
creativo: eso es lo que todavía parece faltar en la conciencia historia argentina, tan similares en el cuento y la novela, Lojo,
comunitaria argentina, no sólo en la de los pensadores y también, cuestionan la instalación de un orden hegemónico y
literatos. (CRESPO BUITURÓN, 2010, p.289) colonialista, que suprimió diferencias y mezclas indeseables a la
Volvamos a los relatos para entender como Lojo alude a esa cohesión nacional, a comienzos del siglo XIX. Por eso, rasgos
concepción. Al final del trayecto hacia el pasado, ahora esencialmente excéntricos como el caos y la solidaridad, según la
descubierto, los relatos se cierran de manera semejante, es decir, conceptuación de Boaventura Souza Santos (2003), emergen en la
con la travesía espacial y discursiva que conecta el centro a la escritura lojiana para ofrecer un espejo al presente.
periferia. El pensamiento de las corrientes dominantes de la
Dialogando con el texto de Edgar Rice Burroughs, modernidad occidental, teniendo en cuenta el orden como una
específicamente el epígrafe que introduce el cuento, se delínea un forma dominante de conocimiento, estableció el "conocimiento-
encuentro de figuras ex-céntricas que se complementan. La regulación", que va del caos al orden, en detrimento del
invitación de Greystoke a que Manuela se descalce los zapatos y "conocimiento-emancipación", que hace el camino inverso, yendo
que caminen juntos por la arena de la playa indica, de un punto de ignorancia llamado colonialismo a un punto de
simbólicamente, un entendimiento cómplice y al mismo tiempo la conocimiento llamado solidaridad. En palabras de Souza Santos:
transgresión a las normas que los mantenía bajo el discurso "Así, lo que era saber en esta última forma de conocimiento, se
colonialista: “Greystoke se agachó. Se estaba desatando los transformó en ignorancia (la solidaridad se convirtió en caos) y lo
zapatos. Cuando los tuvo en la mano le sonrió a Manuela. – ¿Por
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que era ignorancia se transformó en saber (el colonialismo fue Referencias


recodificado como orden)” (SANTOS, 2003 p.61). BORGES, J. L. Historia del guerrero y la cautiva. In: ______El Aleph.
Lojo transgrede esas fronteras del “conocimiento- Barcelona: Alianza, 1998, p.55-61.
regulación” al valorar el pasado, en su confluencia de los saberes
del mundo indígena y de occidente, y ampliar las opciones CUNHA, G. Re-visión de la identidad argentina en los cuentos
limitadoras de la ecuación masculino/femenino. Paradójicamente, históricos de María Rosa Lojo. In: ARANCIBIA, J. A., FILER, M. A. y
es la mudez, representada por la criada indígena y su té araucaria, TEZANOS-PINTO, R. (eds.). María Rosa Lojo: la reunión de lejanías.
en el cuento, y las cartas a Elizabeth enviadas por Rosalind, las que Buenos Aires: ILCH, 2007. p.111-119.
causan la fractura en la identidad cohesiva. Replantea con
imaginación filosófica y política el marco histórico de sus relatos y LOJO, M. R. Esperan la mañana verde. Buenos Aires: El
las tensiones entre pasado/presente, pasivo/activo y Francoatirador, 1998. Disponível em: <http://www.mariarosalojo.
tutor/tutelado. Propone en fin, una solidaridad de saberes y com.ar/ficcion/index.htm>. Acesso em: 10 de ago. 2014.
visiones que sella la complementariedad creativa entre femenino
y masculino en la unión entre Manuela y Jonh Clayton y Elisabeth ______. Finisterre.2. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2005.
y Frederick. Al marido abandonado le queda el vacío y el silencio,
comprendidos, quizás, por el gesto de devolverle las trenzas. Al ______. Amores insólitos de nuestra historia. Buenos Aires:
padre, sin embargo, la protagonista de la novela deja las cartas Alfaguara, 2011.
enviadas por la señora de Finisterre, su versión subalterna y
silenciada, contrariando y contestando la suya. MORAÑA, M. Viaje al silencio. Exploraciones del discurso barroco.
Por fin, nuestra lectura buscó esas similitudes entre los México: UNAM, Facultad de Filosofía y Letras, 1998. Disponível
relatos que nos permite afirmar que la autora escribe, con algunas em: <http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/viaje-al-
variaciones y modificaciones, la misma historia. Incluso podemos silencio-exploraciones-del-discurso-barroco--0/html/e5b96feb-
identificar un eco borgiano: “acaso las historias que he referido son bf21-4bd2-be1c-9389af0cb0ba_56.html#I_16_ >. Acesso em: 15
una sola historia. El anverso y el reverso de esta moneda son, para de feb. 2014.
Dios, iguales” (BORGES, 1998, p.61). Forman una única historia que
cristaliza la tensión que es vivir entre dos culturas y en la cual sus PÉREZ, A. J.; BUITURÓN, M. C. Entrevista a María Rosa Lojo. In:
protagonistas reciben un llamado de sus pasados que les permite ARANCIBIA, J. A., FILER, M. A. y TEZANOS-PINTO, R. (eds.). María
transgredir a ciertas representaciones hegemónicas. Rosa Lojo: la reunión de lejanías. Buenos Aires: ILCH, 2007. p. 271-
280.
P á g i n a | 433

SANTOS, B. S. La caída del Angelus Novus: ensayos para una nueva


teoría social y una nueva práctica política. Bogotá: Instituto
Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos: Universidad
Nacional de Colombia, 2003.
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A COMICIDADE NOS ESPERPENTOS VALLE-INCLANIANOS Se nos baseamos especificamente nos estudos do


Gustavo Rodrigues da Silva esperpento existentes em nível mundial, podemos observar que
IEL/Unicamp há um grande impasse sobre quais obras valle-inclanianas seriam
esperpentos ou não. A nossa opinião é a mesma defendida pelos
Originalmente, o gênero artístico esperpêntico surge na teóricos Anthony Cardona e Rodolfo Zahareas, e se refere ao fato
pintura com o artista espanhol Francisco José de Goya y Lucientes, de que consideramos como esperpentos “plenos” as obras: Luces
que viveu de 1746 a 1828. O autor espanhol Ramón María del de bohemia, Los cuernos de Don Friolera (1990), Las galas del
Valle-Inclán, que viveu de 1866 a 1936, em sua obra Luces de difunto (1990) e La hija del capitán (1990). Inclusive eles reforçam
bohemia, por meio de uma personagem, confirma a criação do essa tese (1987, p.11): “Y los dos primeros esperpentos, Luces de
pintor (2001, p.172): “MAX. - [...] El esperpentismo lo ha inventado bohemia, [...], y Los cuernos de Don Friolera, [...], son las dos obras
Goya. [...]” 1 . Ele pinta quadros, desenhos, gravuras e murais. en que se integran con más claridad y precisión los temas, las
Muitos teóricos o consideram como o precursor das vanguardas actitudes, las técnicas, el estilo, la visión y la historicidad de todos
do século XX na área da pintura. As suas obras sempre tentam los esperpentos.”2.
retratar a conturbada história nacional espanhola dos séculos XVIII O esperpento possui várias características as quais algumas
e XIX. Em muitas delas, se observa que o mundo é deformado e serão discutidas quando nos referirmos à comicidade. Eis um
surge uma imagem grotesca desse. Também há a animalização das primeiro esboço: a deformação da linguagem, a degradação e a
pessoas e a humanização dos animais. Esses desenhos apresentam coisificação das personagens, reduzidas a meros signos ou
um forte tom satírico e crítico da sociedade espanhola da época bonecos, a fusão de formas humanas e animais, literaturização da
em questão em suas mais variadas frentes, por meio de matizes linguagem coloquial, frequentemente caracterizada por todo tipo
sinistros, tenebrosos, grotescos e cômicos. Valle-Inclán utiliza de intertextualidades; distorção da cena exterior que já é
recursos artísticos paralelos quando cria o esperpento literário. disforme; aparência de caçoada e de caricatura da realidade; o
Logo, é comum a ligação entre artistas de diversas áreas a partir grotesco como forma de expressão crítica e intenção satírica que
desse momento, conforme observa Martin Esslin, em sua obra O constitui a autêntica lição de moral, e a presença da morte como
teatro do absurdo (1968, p.340): “De APOLLINAIRE aos personagem fundamental. Os cenários dominantes são tabernas,
surrealistas, e até mais além, tem havido sempre uma ligação prostíbulos, antros de jogos, interiores miseráveis e ruas inseguras
muito próxima entre os pioneiros da pintura e da escultura e os de Madri. As obras trazem bêbados, prostitutas, pícaros,
poetas e dramaturgos de vanguarda [...]”.

1
Tradução livre: MAX. – [...] Goya inventou o esperpentismo [...] as técnicas, o estilo, a visão e a historicidade de todos os esperpentos se
2
Tradução livre: E os dois primeiros esperpentos, Luces de bohemia, [...], e Los integram com mais clareza e precisão.
cuernos de Don Friolera, [...], são as duas obras nas quais os temas, as atitudes,
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mendigos, artistas fracassados, boêmios apresentados como enquadrados como deformadores da Língua Espanhola oficial da
marionetes sem vontade, animalizados e coisificados. época.
Temos dois objetivos em nosso artigo. O primeiro é mostrar Chegamos ao tema que nos interessa, que é o cômico nos
que os esperpentos constituem um subgênero cômico moderno. esperpentos. Seguimos o princípio do teórico Wolfgang Iser que
Postulamos subgênero e não, gênero, porque essas obras não se pensa sobre o processo de “figura de relevância”, o qual consiste
enquadram em todas as premissas de Aristóteles em sua Poética em considerar que a ficção cobra do leitor a exacerbação da sua
(1997). Algumas diferenças são que as personagens “elevadas” são “atividade ideativa”, pela qual esse realça certas partes do texto
ridicularizadas como o Teniente Don Friolera do esperpento Los como temas em detrimento das outras, que se denominam
cuernos de Don Friolera, o leitor não sente compaixão pelas horizontes. O cômico será o nosso realce nos esperpentos, e
personagens e, sim, ri de suas confusões, haja vista a grande aparece nessas obras para criticar os vários setores da sociedade
quantidade de fragmentos cômicos presentes nas obras, e o autor espanhola e as suas instituições, se transformando em um ataque
emprega a sua própria voz em muitas passagens dessas, algo aos costumes do povo daquele país. Em um plano interpretativo
impensado por Aristóteles. O nosso segundo objetivo é provar que mais profundo, o uso do cômico questiona o que é autêntico no
os esperpentos são obras tardias. O termo ficou eternizado por mundo real e quais são os valores confiáveis desse mundo. O
Theodor Adorno em seu ensaio Late style in Beethoven (2002), estudo dessa comicidade nos esperpentos valle-inclanianos reside
porém já tinha sido apresentado antes por outros autores, como na observação de que, de acordo com as nossas pesquisas
Georg Simmel (1922). As obras tardias são obras que marcam a bibliográficas em fontes diversas, não encontramos nenhum
literatura mundial para sempre por sua inovação e criam estudo acadêmico em nível nacional que trabalhasse tal
tendências. São obras que dialogam com o passado, porque se problemática de maneira prioritária. Escolhemos estudar o cômico
diferenciam dele, e com o futuro, porque abrem as portas para por meio de seus recursos porque, como defende Sigmund Freud,
novos fazeres literários. Diferentemente de muitos teóricos que em seu volume escrito sobre a piada, em suas Obras completas
pensam que as obras tardias são feitas quando a pessoa vai (2008, p.189): “[...] y uno aprende más sobre la esencia de lo
morrer, não pensamos dessa forma. Basta ver o exemplo do cómico cuando estudia los recursos que sirven para engendrarlo
pianista Gleen Gould citado pelo teórico Edward Said em sua obra [...]”3.
Estilo tardio (2009). Esse pianista cria interpretações musicais Primeiramente, trataremos do esperpento Luces de
tardias trinta anos antes de seu falecimento. Veremos, mais bohemia. Foi escrito em 1920 e publicado por cenas no jornal
adiante, nesse artigo, que as obras esperpênticas são tardias España entre 31 de julho a 23 de outubro do mesmo ano. Em 1924,
especialmente por apresentar muitos fragmentos que podem ser se edita a versão ampliada com quinze cenas. O protagonista é

3
Tradução livre: [...] e as pessoas aprendem mais sobre a essência do cômico
quando estudam os recursos que servem para fabricá-lo [...]
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Máximo Estrella ou Max Estrella, um poeta cego, pobre e boêmio. de la Pasa no se casa.” 4 . Em outro exemplo, há a humanização
A obra conta as últimas vinte e quatro horas da personagem. As animal e a caracterização fantochesca e animal de um humano,
doze primeiras cenas do esperpento têm como marco temporal o que passa a ser um ser grotesco (2001, p.50): “[...] En la cueva
fim da tarde do dia anterior até o raiar do dia em que morre o hacen tertulia el gato, el loro, el can y el librero. Zaratustra,
protagonista. As últimas três cenas tratam do velório e enterro de abichado y giboso - la cara de tocino rancio y la bufanda de verde
Max Estrella, e possuem como marco temporal doze horas. Temos serpiente - promueve, con su caracterización de fantoche, una
como alguns exemplos de recursos cômicos, primeiramente, o aguda y dolorosa disonancia muy emotiva y muy moderna [...]"5.
nome do protagonista, que é Máximo Estrella. Como ele pode ser O esperpento Los cuernos de Don Friolera é publicado, pela
uma máxima estrela nacional se é pobre e ninguém reconhece o primeira vez, em 1921. A versão definitiva sai na trilogia Martes de
seu valor literário? É o recurso cômico do mundo às avessas carnaval, em 1930, e reúne os esperpentos Los cuernos de Don
misturado com o da comicidade de nomes. Esse fato é comum na Friolera, La hija del capitán e Las galas del difunto. Possui um
Espanha, de uma maneira geral, visto que os espanhóis conhecem prólogo, doze cenas e um epílogo. Diferentemente do esperpento
mais as personalidades atuais que alguns de seus maiores analisado anteriormente, esse é mais complexo porque possui
escritores, devido ao problema da educação espanhola deixar a uma estrutura dramática de bonecas russas, na qual uma trama se
desejar em relação ao resto da Europa. Essa ideia pode ser abre após outra. Logo, o prólogo apresenta a conversa dos
comprovada em reportagens da Internet como La educación senhores Manolito e Estrafalario, na qual tratam da questão
secundaria es el punto débil en España (2013). O refrão é um esperpêntica, entretanto, são interrompidos pela apresentação de
recurso cômico de degradação da Língua Espanhola. Um refrão um grupo de rua de fantoches, o qual encena a história que será
existe quando a personagem La Pisa Bien, uma vendedora de contada depois em doze cenas, ou seja, é um metaesperpento. Em
bilhetes de loteria, diz à personagem Don Latino, um intelectual, seguida, o autor apresenta as doze cenas que contam a história do
que este pode ficar com a mãe dela só se casar. Ela se refere ao Teniente Pascual Astete, vulgo Don Friolera, que é traído em
fato antigo madrilenho de que, antes de se casarem, os noivos palavras e, quiçá, em atos, pela sua esposa Doña Loreta com o
tinham que passar pelo cartório Vitoria localizado na rua La Pasa vizinho e barbeiro Pachequín. As doze cenas giram em torno de
(2001, p.214): “LA PISA BIEN. - A usted le conviene mi mamá. Pero situações em que sempre a questão da traição é colocada à baila.
mi mamá es una viuda decente y para sacar algo hay que llevarla a Tanta tensão culmina na cena décima segunda, na qual o marido
la calle de la Pasa.”. O refrão original é: “el que no pasa por la calle encontra a esposa conversando com o vizinho no quintal dela, fica

4 5
Tradução livre: LA PISA BIEN. – Ao senhor lhe convém a minha mãe. Mas ela é Tradução livre: [...] Na cova, o gato, o louro, o cão e o vendedor de livros fazem
uma viúva decente e, para conseguir algo, o senhor tem que levá-la a Rua de la uma tertúlia. Zaratustra, abichado e macacado – a cara de toucinho antigo e o
Pasa. Tradução do refrão original: Aquele que não passa pela Rua de la Pasa, cachecol de verde serpente – promove, com a sua caracterização de fantoche,
não se casa. uma aguda e dolorosa dissonância muito emotiva e moderna [...]
P á g i n a | 437

furioso e dispara um tiro que, sem querer, acerta a sua pequenina na referida obra, pois discutem sobre vários temas, como
filha Manolita, que morre. Entretanto, no epílogo, há o romance literatura espanhola e esperpentos. Grotesca é a resposta que Don
do cego, uma forma poética medieval, que é recuperada e Estrafalario dá a uma pergunta de Don Manolito (1990, p.123):
modificada com traços modernistas. Nesse grande poema, o cego “DON MANOLITO. - ¿Qué haría usted viendo ahorcarse a un
conta a história do esperpento anterior, porém, no final, o tenente pecador?/ DON ESTRAFALARIO. - Preguntarle por qué no lo había
mata a filha, a esposa e o amante. Temos vários recursos cômicos hecho antes. […]”7.
na obra. O primeiro exemplo está no título: Los cuernos de Don O nosso estudo encontrou muitos humores, gírias,
Friolera. O próprio Valle-Inclán já zomba de sua personagem no paródias, entre outros recursos cômicos, que, muitas vezes,
início porque, com esse título, ele nos diz que o protagonista é um aparecem combinados em duplas ou trios; o que torna mais
cornudo e, provavelmente, esse fato aconteça porque ele é frio complicada, inovadora e tardia a obra valle-inclaniana. Não os
com a sua esposa ou, como observamos no dicionário online da reproduzimos todos aqui por falta de espaço, visto que totalizam
Real Academia Española (2014), Friolera é uma pessoa sem graça quatrocentos exemplos na somatória dos dois esperpentos
ou sem importância. Essa zombaria fica no imaginário de todo analisados por nós. Sempre esses recursos são usados para uma
homem traído e o fato é que a violência de gênero ainda é grande crítica ácida e cruel da sociedade espanhola do começo do século
na Espanha, basta ver a reportagem da Internet intitulada passado, que, se formos refletir, é parecida à sociedade espanhola
Violencia de género (2014). Outro exemplo ocorre quando o atual, pois ambas possuem as mesmas mazelas como a violência
protagonista Friolera degrada a língua, ao usar um andalucismo, de gênero, a questão da honra; a traição e a desvalorização da
expressão própria da Língua Espanhola falada na região de cultura no mundo capitalista. Todos esses problemas mostram que
Andalucía, quando comenta sobre a pessoa que lhe mandou uma a modernidade, apesar de ter trazido benefícios, não consegue
carta anônima denunciando a traição (1990, p.128): “DON propor mudanças em antigos problemas humanos. Nesse ponto
FRIOLERA. - […] ¡Qué mal ángel, destruir con una denuncia reside a grande contribuição artística valle-inclaniana, que faz o
anónima la paz conyugal! […]” (negrito nosso)6. Nesse desabafo, leitor pensar e tentar achar uma solução para ter um mundo
podemos ver o recurso cômico da ingenuidade do militar, que, melhor.
apesar de desconfiar da traição, ainda acredita no amor romântico
que tem para com a esposa. Outro exemplo de recurso cômico
provém das personagens Don Estrafalario e Don Manolito, que são
dois intelectuais espanhóis, constituindo nas vozes de Valle-Inclán

6 7
Tradução livre: SENHOR FRIOLERA. – [...] Que anjo mau, destruir a paz conjugal Tradução livre: SENHOR MANOLITO. – O que o senhor faria se visse um
com uma denúncia anônima! [...] pecador se enforcando?/ SENHOR ESTRAFALARIO. – Perguntar-lhe-ia porque
não fez isso antes. [...]
P á g i n a | 438

Referências CARDONA, Rodolfo e ZAHAREAS, Anthony. Visión del esperpento.


ADORNO, Theodor. Late style in Beethoven. In: _______. Essays on 2ª ed., Madrid: Castalia, 1987.
music. Trad. Susan Gillespie. Berkeley, Londres e Los Angeles:
University of California Press, 2002. ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Trad. de Bárbara Heliodora.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
ANÔNIMO. 1925 Academia Usual. Disponível em:
<http://web.frl.es/ntllet/SrvltGUILoginNtlletPub> Acesso em: 18 FREUD, Sigmund. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu,
jul. 2014 1976.

______. Francisco de Goya. Disponível em: ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético.
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Goya>. Acesso em: Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996,
10 de dez. 2013. volumes 1 e 2.

______. La educación secundaria es el punto débil en España. ______. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma
Disponível em: <http://www.teinteresa.es/espana/educacion- antropologia literária. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro:
secundaria-punto-debil-Espana_0_944306281.html >. Acesso em: Editora da UERJ, 1996.
02 de ago. 2014.
______. The range of interpretation. New York: Columbia
______. Luces de bohemia. Disponível em: University Press, 2000.
<http://es.wikipedia.org/wiki/Luces_de_bohemia>. Acesso em: 2
de fev. 2014. SAID, Edward. Estilo tardio. Tradução de Samuel Titan Júnior. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
______. Violencia de género. Disponível em:
<https://www.es.amnesty.org/paises/espana/violencia-de- VALLE-INCLÁN, Ramón María del. Luces de bohemia. Esperpento.
genero/>. Acesso em: 15 de ago. 2014. Edição bilíngue. Trad. Joyce Rodrigues Ferraz. Brasília: Embajada
de España. Concejería de Educación y Ciencia, 2001.
ARISTÓTELES, HORÁCIO e LONGINO. A poética clássica –
Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. 15ª ed., ______. Martes de carnaval – Las galas del difunto – Los cuernos
São Paulo: Cultrix, 1997. de don Friolera – La hija del capitán. Madrid: Espasa-Calpe, 1990.
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LA OLIGARQUÍA, LA PEQUEÑA BURGUESÍAY EL PROLETARIADO utilizados por el diarista para referirse a las personas que describe,
EN LOS DIARIOS DE RODOLFO J. WALSH Y LA CUESTIÓN DE LA que eran corrientes en las capas intelectualizadas de las izquierdas
VIOLENCIA REVOLUCIONARIA latinoamericanas de los años sesenta y setenta.
G.W. Spandau De este modo, aparecen en las anotaciones del diarista las
USP siguientes categorías sociales: proletariado/trabajadores,
burguesía y pequeña burguesía. Los textos del diarista que
Introducción consignan estos términos y otros emparentados, poseen un
El presente trabajo tiene por objetivo el análisis de algunos anclaje en la izquierda que, en diferentes lugares del mundo,
pasajes del diario de Rodolfo Walsh en los que se registra la mirada abrevaba en las fuentes del marxismo. Como afirma el investigador
del diarista sobre diversos individuos y grupos sociales. El corpus argentino Carlos Altamirano, “[no se puede] soslayar [esta]
con el que trabajamos se encuentra en el libro Ese hombre y otros referencia a la tradición intelectual que remite a la obra de Marx y
papeles personales, que reúne diversos textos, tanto públicos Engels, la más poderosa e influyente de las tradiciones que
como privados, del escritor argentino y que fuera editado por alimentaban doctrinariamente a la izquierda” (2013, p.108). Y esa
Daniel Link por primera vez en 1996. En relación a las anotaciones base también será adoptada por los diversos grupos e intelectuales
que analizamos se tratan fundamentalmente de textos breves de de esa nueva izquierda que surge en Argentina a fines de los
los años sesenta y setenta. cincuenta y comienzos de los sesenta.
Al hablar del “diario de Walsh” tenemos que considerar que Es decir, Walsh, cuando utiliza estas categorías, si bien
se trata de un conjunto de textos heterogéneo, más que un diario como dice a fines de 1968, “[recién está comenzando] a asimilar lo
íntimo típico. Como afirma el editor podemos denominarlo un básico del marxismo” (2007, p.119), se apropia, en las entradas de
“cuaderno de bitácora”. No existe una anotación día por día o que su diario, de este lenguaje usual en la época y en su medio. De este
siga un orden y organización específico. Incluso debemos tener en modo, desfilan a lo largo de sus anotaciones, especialmente de
cuenta que algunos de estos “papeles personales” fueron 1968 en adelante, referencias a su “nivel de conciencia” (2007,
rescatados del “allanamiento” que las fuerzas represivas p.119), a ser él mismo un “burgués más recalcitrante aún” (2007,
realizaron en su vivienda de San Vicente, Provincia de Buenos p.119), a tener “una personalidad burguesa” (2007, p.126), así
Aires, luego del asesinato del escritor en marzo de 1977. como las menciones al “pueblo”, las “masas” y los “obreros/
De esta forma, nuestra intención es realizar un análisis del trabajadores / proletarios”, etc.
sujeto textual que emerge de las anotaciones a partir de su De esta manera, con base en la teoría marxista clásica,
valoración y opinión de los individuos o grupos con los que tiene tomamos las definiciones de la intelectual chilena Marta
contacto y registra en sus notas. Antes de adentrarnos en el propio
análisis es importante aclarar el sentido de los diversos términos
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Harnecker en su texto “Clases sociales y luchas de clases” 1 y el En virtud de ello, como expresa Altamirano, “En el curso de
análisis sobre la pequeña burguesía realizado por Carlos unos diez años [1955-1965] se configuró, en el ámbito de la cultura
Altamirano en su artículo “La pequeña burguesía en el purgatorio” de izquierda […] una ‘literatura’ social y psicológica compuesta por
(2013), que traza esa entrada del marxismo en los años sesenta en una trama de predicados que tenían como sujeto a la pequeña
Argentina. Es decir, si bien en esta época, la izquierda burguesía o clase(s) media(s) urbana(s)”. (2013, p.100). Esa
latinoamericana en su conjunto abreva en las fuentes de Marx y “literatura” intenta explicar de alguna forma, en general desde un
Engels, con el paso de más de cien años y una evolución diferente nacionalismo marxista (o también desde un nacionalismo
de las sociedades es necesario que tengamos noción de cómo fue populista), el devenir de la clase media argentina y su relación con
adoptado e interpretado el marxismo, en este caso, en Argentina el proletariado, pero especialmente con el fenómeno peronista2. Y
luego de la caída del régimen peronista en 1955. Ello, es algo con lo que lidia Walsh en algunos de sus escritos del diario.
especialmente, para la categoría social englobada en la pequeña Es decir, su origen social, su camino en el campo intelectual y sus
burguesía. Karl Marx, denomina a ésta, como una “clase de opciones políticas lo llevan a una toma de posición en la que
transición”, ya que oscila entre el proletariado y la burguesía, pero aparece, como para otros intelectuales, la cuestión de una
con el avance del capitalismo tiende a desaparecer, “infraestructura burguesa”, un proceso revolucionario y la relación
subsumiéndose en el primero. Lo expuesto consta del Manifiesto con Perón y el peronismo.
Comunista del año 1848, pero en la Argentina de mediados del Por lo tanto, ante la emergencia en el texto de estos
siglo XX, la pequeña burguesía se encontraba en crecimiento a vocablos y categorías del instrumental marxista, creemos que las
partir de un proceso de desarrollo y cierta modernización referencias conceptuales pueden ser las siguientes. Como un
económica. aspecto general, las “clases sociales” serían, siguiendo ahora a
Lenin, “grupos humanos, uno de los cuales puede apropiarse del

1
Lucha de clases (I y II) Cuadernos Nº 4 de la serie: Cuadernos de Educación Editorial 22 de Agosto, l986; Global Editora Brasil, 1998. Véase:
Popular: ¿Qué es el socialismo? publicados en Chile en 1972 durante el gobierno http://www.rebelion.org/docs/89545.pdf.
2
de la Unidad Popular y reproducidos en distintos países e idiomas. Escrito por Entre esa “literatura” Altamirano cita diversos autores tanto de vertiente
Marta Harnecker con la colaboración de Gabriela Uribe. Debido a que no se marxista como nacionalista. Entre los primeros ubica, entre otros, a Rodolfo
respetó en varios países el texto original y los ejemplos que ilustraban su Puiggrós y su Historia crítica de los partidos políticos argentinos y a Juan José
contenido, la autora decidió hacer una edición revisada y universalizada, Sebreli con Buenos Aires. Vida cotidiana y alienación. Por su parte, entre los que
publicada en España, por Akal en l979. Existen ediciones en portugués, francés, abrevan para explicar a las clases medias en un nacionalismo de izquierda
italiano y holandés: Chile, Editora Nacional Quimantú, lª ed., l972; 2ª ed., 3ª ed., incluye aArturo Jauretche con sus obras El medio pelo en la sociedad argentina
y 4ª ed., l972; España, PSOE, l972; Ediciones de La Torre, sin fecha; Akal Editor, y Los profetas del odio, así como a Hernández Arregui y La formación de la
l979; Venezuela, Editorial Primero de Mayo, l972; México, Universidad conciencia nacional.
Autónoma de Puebla, l972, Universidad Autónoma de Sinaloa, l978; Argentina,
P á g i n a | 441

trabajo de otro por ocupar puestos diferentes en un régimen agrícola, etc. Walsh en general se refiere al primero, sobre todo
determinado de economía social” (LENIN apud HERNECKER, 1972, luego de su paso por la central obrera disidente CGTA
p.9). Es decir, la clase para el líder comunista deviene de la posición (Confederación General del Trabajo de los Argentinos), donde la
en el sistema de producción de la sociedad. De esta manera, las mayoría de los gremios eran de base fabril. Asimismo, en los
clases sociales “marco”, que entran en colisión, son la burguesía y términos de la lucha revolucionaria en Argentina, a partir de los
el proletariado. Dentro de ellas habrá divisiones y contradicciones años setenta, la batalla principal se dará en los centros urbanos,
pero la primera, en definitiva, es la dueña de los medios de tanto a nivel de acción de masas como de actividades guerrilleras.
producción y la segunda quien vende su fuerza de trabajo. En Por su parte, en relación a la pequeña burguesía se trataba
síntesis, “Burguesía o clase capitalista [es] la […] que controla y de uno de los grupos sociales más inestables en la visión de Marx,
dirige el sistema de producción capitalista. Con dinero acumulado a mediados del siglo XIX. Como señalamos era pensada como una
compra medios de producción y fuerza de trabajo a fin de obtener “clase de transición” en el proceso de la lucha de clases, que
una cantidad de dinero mayor de la que invirtió al iniciar este cuando éste terminase desaparecería. En este sentido, y de
proceso, dinero que obtiene través del trabajo no pagado a los acuerdo con la coyuntura, la pequeña burguesía puede oscilar
trabajadores del sector industrial” (HARNECKER, 1972, p.10). hacia la derecha o a la izquierda, entre la burguesía y el
Por su parte el “proletariado” es la clase explotada, que proletariado, dependiendo del fortalecimiento o el debilitamiento
produce bienes materiales y que vende su fuerza de trabajo por un del devenir del proceso revolucionario3. Por su parte, dentro de
salario, y que genera la consabida plusvalía. Allí tendremos esta clase también hay subgrupos4, como, por ejemplo, aquellos
diversos tipos de proletariado por su labor: industrial, comercial, que consiguen obtener algún excedente de su negocio o industria,

3
Se trata de “una clase formada por pequeños productores y comerciantes tanto, pueden contratar a un número muy limitado de asalariados además de
independientes ligados al mercado capitalista, es una clase de transición: una su familia. Este subgrupo comprende una parte importante de las industrias
clase que tiende a desaparecer, a desintegrarse en proletariado y burguesía. […] artesanales del país. También pertenecen a él los pequeños comerciantes: por
tiene, por esta razón, intereses contradictorios: por un lado, aspira a ejemplo, los dueños de almacenes de un cierto tamaño que contratan a algunas
enriquecerse y a adquirir capital, lo que le permitiría convertirse en burguesía personas para que les ayuden a vender. Al segundo subgrupo pertenecen
[y]; por otro lado, se ve cada vez más avasallada por la clase capitalista que la aquellos que sólo trabajan para su subsistencia, no logrando producir ningún
empuja a convertirse en proletariado y, por tanto, a identificarse con los tipo de excedente, por lo que tampoco pueden contratar mano de obra
intereses de esta clase” (HARNECKER, 1972, p.15). asalariada. [Por su parte, al] tercer subgrupo pertenecen todos aquellos que no
4
“La pequeña burguesía urbana está formada por los dueños o arrendatarios de logran cubrir sus necesidades de subsistencia con su trabajo individual, por lo
pequeñas industrias artesanales, almacenes y negocios. Trabajan ellos mismos que se convierten en masas semiproletarias. Se trata de un grupo que
con sus propios medios de producción vendiendo sus productos en el mercado. representa una desocupación disfrazada. Este es el caso de muchos vendedores
Como se trata de un grupo en continua descomposición, debemos diferenciar ambulantes, feriantes, etc. Estos trabajadores contratados por este subgrupo
en él por lo menos tres subgrupos. [Al primero] pertenecen aquellos que logran no producen plusvalía, a diferencia de los trabajadores contratados por los
obtener un cierto excedente de su pequeña industria artesanal y que, por lo pequeños capitalistas, que ellos sí producen o realizan plusvalía. La pequeña
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como sería, aparentemente el caso de Cora, una peluquera Como afirma Altamirano, ese “reunirse con los
suburbano que describe Walsh y analizamos más adelante. trabajadores, entendido como proletariado en la visión marxista o
entendidos como núcleo del pueblo en la representación populista
El halo de la clase obrera del antagonismo […]” (2013, p.127) es unode los objetivos
Rodolfo Walsh, a partir de un origen familiar y una primordiales de la lucha popular. Es decir, a los fines de nuestro
idiosincrasia burguesa, entablará un vínculo profundo con la clase análisis pensamos que Walsh dirige su pensamiento, tanto hacia el
obrera. Y ello lo realizará por dos vías. Una, que podemos “proletariado”, por su contacto con el sindicalismo de la CGTA y
denominar práctica o inmediata, y otra, mediata, a partir de la sus lecturas marxistas, como hacia el “pueblo”, en sentido amplio
reflexión y la teoría. La primera se concretará a través de su la masa trabajadora. Por lo tanto, la búsqueda del diarista se da en
militancia en laya citada central obrera combativa CGTA por medio torno al pasaje, al abrazo con ese otro, no intelectualizado, que
de la dirección de su semanario. Antes de ello había tomado puede ser pensado desde el eje marxista o peronista.
contacto con trabajadores humildes o desocupados, cuando En relación a la faz más mediata o “teórica” de su relación
escribe Operación Masacre, y también había visto las dificultades con el proletariado, pensamos que su estancia en Cuba de 1959 a
de las clases bajas, especialmente en las provincias, al realizar 1961 es su primer paso en este sentido 5 . La experiencia
algunas de sus notas periodísticas para las revistas en las que revolucionaria caribeña lo lleva a consustanciarse con la lucha
trabajaba. Sin embargo, es en 1968, con su desembarco en el popular que tiempo después, lo hará intentar formarse
Semanario CGT, cuando, de acuerdo con el periodista argentino teóricamente en el marxismo, como era requerido y
Horacio Verbitsky, “las condiciones estaban maduras para ese acostumbrado en la época para los militantes revolucionarios. El
encuentro natural del escritor con los rostros, los dolores y los propio Walsh admite en una de las entrevistas que concede a fines
sueños del pueblo […] Se interesaba por lo que decían [los obreros] de los sesenta que existe cierta dificultad para ello: “Tengo que
y por cómo lo decían. El lenguaje popular fue una de sus vías de decir que soy marxista, pero un mal marxista, leo muy poco: no
acceso hacia la vida y la lucha de quienes lo hablaban, pero tengo tiempo para formarme ideológicamente. Mi cultura política
también hacia el centro de sí mismo” (2007, p.22). es más bien empírica que abstracta” (WALSH, 2007, p.140)6.

burguesía urbana es, por su carácter mismo de clase, un grupo social inestable, derecha. Por todas estas razones, este sector debería ser el principal aliado del
que oscila entre las posiciones del proletariado y las de la burguesía, pudiendo proletariado” (HARNECKER, 1972, pp.27-29).
5
definirse por una u otra clase según las circunstancias. Si el proceso Rodolfo Walsh permanece en Cuba desde mediados de 1959 hasta mayo/junio
revolucionario avanza, si las posiciones de la izquierda se fortalecen, al mismo de 1961 trabajando en la agencia de noticias Prensa Latina, fundada por el
tiempo que se debilitan las posiciones de la derecha, este sector tenderá a argentino Jorge Ricardo Masetti con la llegada de Fidel Castro al poder.
6
situarse al lado del proletariado. Pero, por el contrario, si la izquierda pierde “¿Lobo estás?”. Entrevista publicada en la revista Siete Días, n°110, Buenos
fuerza, si manifiesta signos de debilidad, estos sectores se inclinarán a la Aires, 16 al 22 de junio de 1969.
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Es a fines de los sesenta cuando llega ese momento para párrafos limpios y netos, precursores del aplauso. La mayor
Walsh de abrevar en la clase obrera y el pueblo. De esta forma, parte de lo que se escuchaba era repetición, retórica, furia
como señalamos, y considerando su origen y el contexto social en candorosa e inarticulada […] De ese vínculo brotaban a
el que se mueve, pasamos a analizar algunas anotaciones de su veces decisiones erróneas, contra el buen sentido de
oradores opacos y arrastrados (2007, p.176).
diario que se refieren a su mirada y desplazamientos sobre las
clases sociales. Por lo tanto, el diarista, registra un caso individual, como el
En este sentido es importante tener en cuenta que las de “C”, y luego hace sus observaciones generales en relación a lo
categorías positivas generalmente estarán encarnadas en el que sería un buen orador sindical. A pesar de que el magnetismo
proletariado y el pueblo. Este último como un colectivo genérico de un orador puede terminar en un dislate por oposición a
que abarcará a los obreros, desocupados, clases bajas, sindicalistas oradores más oscuros pero con mejores ideas.
combativos y simpatizantes y militantes de la revolución por Además de los ejemplos puntuales como el de “C”, un
oposición a la burguesía y el poder. En términos generales, en sus sindicalista y obrero que emerge varias veces en las anotaciones
anotaciones Walsh se refiere al pueblo o al proletariado en su de 1968 y 1969 será el dirigente Raimundo Ongaro, con quien
conjunto. Cuando particulariza lo hace sobre cierto segmento del Walsh mantuvo un vínculo cercano y especial por su ingreso como
último colectivo que son los operarios politizados, los obreros que director del semanario de la central obrera a sugerencia del ex
además de serlo son militantes sindicales. presidente Juan Domingo Perón.
Es importante reiterar que todas estas anotaciones que Raimundo Ongaro, nace en 1924 en Mar del Plata, en el
analizamos forman parte de ese cuaderno de bitácora, no estaban seno de una familia de clase baja. Luego de un tiempo como
pensadas para ser publicadas ni Walsh las difundiría. Son una compositor y profesor de música pasa a trabajar como obrero
muestra de cómo ve parte de ese mundo sindical, y que como buen gráfico de desde donde ingresará al mundo sindical 7 . Su mayor
diarista, lo deja registrado. Hacia el final de la entrada del 15 de salto en el ámbito gremial lo da en marzo de 1968, cuando es
enero de 1970, en la que habla sobre un tal “C”, discurre sobre los nombrado Secretario General de la CGTA en el “Congreso
oradores de las reuniones sindicales, en las que: Normalizador Amado Olmos”8.
El físico importaba mucho […] Todos los grandes dirigentes Sobre Ongaro, Walsh confiesa una intensa atracción por su
tenían un magnetismo personal que casi siempre empezaba figura, “un constructor de emociones”, “un revolucionario […]
por la estatura, el timbre de voz, la capacidad para articular

7
Véase: “Prohibido pero nunca en silencio”, relato autobiográfico del y combativa, y la CGT Azopardo (por el nombre de la calle en la que se hallaba)
sindicalista Raimundo Ongaro. http://www.cgtargentinos.org/ de un perfil negociador y ortodoxo, tildada por sus adversarios de burocrática y
documentos4.htm. traidora.
8
El Congreso fue llevado a cabo del 28 al 30 de marzo de 1968 y selló la división
de la central obrera en dos. La CGTA, conducida por Ongaro, de vertiente clasista
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como Masetti” (2007, pp.115-116). Incluso ante la ausencia de En resumen, emerge de los textos una cierta forma de
Ongaro hay cierta desesperanza del diarista: “No había nadie que idealización de Ongaro, como no lo hace con otros individuos en
galvanizara la reunión, que con Ongaro habría sido otra cosa. Pero su diario, a excepción de Masetti, su jefe en Prensa Latina. Surgen
Ongaro está en España […] (2007, p.108). Ese sindicalista curtido las características del líder sindical como constructor (político y de
en las luchas populares, de familia pobre y con un origen de obrero emociones), revolucionario, valiente, etc. También las
gráfico seduce de cierta forma al escritor. Y más allá de su afinidad expectativas en demasía a su respecto y el “desaliento por [su]
política e ideológica respecto a la estrategia de lucha en aquellos momentánea derrota” (2007, p.125). Sin embargo, si nos
años, lo que interesa observar es, por un lado, esa admiración que trasladamos al ámbito de los escritos públicos, podemos observar
surge de los diarios, y por otro lado cierta rigidez y distancia a nivel el panegírico de Ongaro que escribe el autor en el Semanario CGT,
personal, y un autocuestionamiento que emerge de las en un resumen posterior a la crisis de la central obrera, donde
anotaciones. afirma:
La primera mención a Ongaro en el diario es la de la cita Raimundo Ongaro tenía la certeza de que el movimiento
transcripta arriba, de la entrada del 17 de septiembre de 19689. obrero estaba saliendo de una profunda crisis de confianza.
Como señalamos, en ella lamenta la ausencia de Ongaro para la Si un grupo de dirigentes, por pequeño que fuese,
resolución de los problemas. Es decir, si el sindicalista hubiera aguantaba todas las amenazas y seducciones, las
amarguras y las derrotas, esa confianza debía renacer. La
estado allí, todo habría sido diferente. Después, en una entrada
CGT de los Argentinos cumplió ese papel hasta el sacrificio.
dos días posterior, cuando analiza la encrucijada de la CGTA,
Su estructura formal fue despedazada por las
presionada por Perón, acosada por el gobierno militar y con intervenciones, las intrigas, los abandonos. La llama que
algunos sindicalistas menos combativos buscando una salida, había encendido pareció extinguirse: en el verano [de
Walsh se desahoga, pero con la esperanza de un acto de Ongaro: 1969,] que sucedió a las dos grandes huelgas, una calma
“La rabia intensa que todo este ‘tacticaje’ me provoca; el deseo de siniestra de derrota pareció extenderse por todo el país.
que Raimundo [Ongaro] les patee el tablero de una vez” (2007, Nunca como en esos días de pasillos semidesiertos brilló
p.110). Una expectativa tal vez exagerada sobre lo que podría tanto la fe de Ongaro, su aptitud para agrandarse en la
hacer el gremialista. Podemos suponer que racionalmente Walsh
sabía que Ongaro, en la coyuntura del peronismo de 1968, no
“patearía el tablero”. Sin embargo, registra esa vana esperanza en
el diario.

9
Rodolfo Walsh comienza su vínculo más firme con la CGTA y el mundo sindical, número del semanario se publica el 1° de mayo de ese año, con el escritor como
y con Ongaro en particular, a principios de 1968 luego de que el general Juan su director.
Domingo Perón los presenta en su casa de Puerta de Hierro (Madrid). El primer
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adversidad y contagiar la fe a quienes lo rodeaban 10 avancé para darle la mano mientras él avanzaba para abrazarme
(Cursivas nuestras). […]” (2007, p.164). Recordemos que para esta época ya comparten
Como puede observarse, el escrito público también coloca casi dos años de intensas vivencias juntos, en general están de
a Ongaro en un sitial privilegiado. Más allá de la estrategia política acuerdo con la estrategia política que se debe implementar e
y sindical el texto abreva en elementos afines a la religiosidad. interactúan prácticamente a diario. Además, tienen casi la misma
Como vemos, el diarista no pasó en vano un período importante edad y construyeron un ámbito de confianza a pesar de todas las
de su formación en internados católicos. De esta manera, tenemos vicisitudes políticas y gremiales que tuvieron que enfrentar en ese
esa fe de Ongaro que brilla y contagia a los demás. El “sacrificio” corto período de tiempo.
cumplido, la resistencia ante las adversidades y ese camino de Podemos suponer que esta “trabaafectiva” es algo
privaciones por “pasillos semidesiertos” en juego con una “travesía relativamente importante para Walsh, ya que lo registra en el
en el desierto”. Es decir, tanto en el espacio íntimo de los textos diario a partir del comentario de su mujer. También, en la misma
del diario como en lo publicado en el semanario, hay una gran entrada, es sintomático otro comentario al respecto del
valorización y una entronización de Ongaro, como hombre, sindicalista. Como dijimos, se trata de su encuentro posterior a un
político y sindicalista. encarcelamiento de cinco meses. Durante ese tiempo el escritor se
El otro aspecto que merece destacarse en torno a la dedicó en pleno a hacer lo que podía por mantener el semanario.
relación con el líder gremial de los gráficos es que, a pesar de esa De esta forma, cuando Ongaro le dice a otro “Vos también salís en
admiración y estima del diarista, que surge de los escritos públicos libertad”, Walsh registra: “[Eso] se aplica igualmente a mí” (2007,
y privados, existe una distancia entre ellos. Así se lo expresa a p.165). La libertad de Ongaro genera la libertad del diarista. La
Walsh, por ejemplo, su pareja de entonces en la entrada del prisión en la cárcel del gremialista, había generado el
30/11/1969 que analizamos abajo. Asimismo, existe una “aprisionamiento” de Walsh en la CGTA y su semanario.
preocupación del diarista en relación a lo que piensa sobre él el Como afirma del diarista respecto a ese tiempo, “en esos
dirigente sindical. cinco meses [de detención de Ongaro] no he escrito casi una línea
En el primer aspecto, en la entrada “30 noviembre, 69. – para mí, no he ganado un peso para mí; […] no he cuidado de mi
Sundaynight”, Rodolfo Walsh confiesa: “Tiene razón L[ilia salud; no me he tomado un fin de semana. Es decir, empecé a vivir
Ferreyra] sobre que hay alguna traba afectiva ante R[aimundo] […] de algún modo como un animal, alienado en esa lucha. Aguanté”
Cuando nos encontramos hoy, después de cinco meses de cárcel (2007, p.165). Podemos observar todo este trabajo de sostén de la
[de Ongaro], el gesto de R fue más afectuoso que el mío […] yo central combativa y su órgano de prensa, como parte inescindible

10
Prólogo de Rodolfo Walsh a carta de Ongaro desde la cárcel (“Rebelión del cierre del medio gráfico con el último ejemplar (N°55) del mesde febrero de
interior”) publicado en el SemanarioCGT,N°51, Septiembre de 1969. A partir de 1970.
este número la edición de la publicación comienza a ser clandestina hasta el
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de la labor de un militante revolucionario. No obstante, si nos que “contagia fe” y supera todas las adversidades, quien “no
detenemos en los registros del diarista en su sentido privado, es entiende nada”. El valor que le adjudica al gremialista hace que
viable situar la relación con Ongaro a nivel más personal. De quiera justificarse o entender sus razones, y hasta saber sus gustos
identificación y reflejo. La prisión de uno es la del otro así como la literarios. Por lo cual, finalmente, afirma: “Tengo que hablar con él
liberación, conforme aparece ese vínculo para el sujeto textual. de todo esto” (2007, p.159).
Lo expuesto también es vinculable a cierta preocupación En resumen, analizamos la emergencia del sujeto textual en
por lo que piensa Ongaro respecto al diarista. Ello lo vemos relación a la clase obrera y el sindicalismo. Es decir, en términos de
especialmente en relación a su escritura pública. Vimos que para clase social, las descripciones de Walsh son de obreros con
referirse a la “traba afectiva” con Ongaro, no expresa en primera militancia gremial y política. Ello se aplica tanto a “C” y a Ongaro,
persona sus sentimientos sino que registra lo dicho por su esposa. sobre quien más profundizamos debido a la relación entablada con
En relación a su literatura trae el problema también por vía de un el diarista y a las diversas menciones que realiza. Podríamos decir
tercero, en este caso desconocido. De esta forma, expresa: “’No que se trata de personas con “conciencia de clase” y politizadas.
entiendo nada’, parece que dijo Raimundo [Ongaro]. ‘¿Escribe Diferente al caso de los sobrevivientes de Operación Masacre y de
para los burgueses?’” (2007, p.158). Al día siguiente, en la entrada testigos diversos que, en general, son pobres y poco politizados.
del 3 de noviembre de 1969, continúa con el tema, ya con la
confirmación de las palabras de Ongaro: “(12:15)… Cosa que me Pequeños burgueses y burgueses pequeños
molestó, lo que dijo Raimundo, que yo escribía para los burgueses. Como señalamos, así como emerge de los escritos una
Pero me molestó porque yo sé que tiene razón o que puede valorización de la clase obrera y del pueblo, las referencias hacia la
tenerla […] Tendría que preguntarle qué literatura le gusta a él […] clase media y la burguesía son en general negativas en el diario.
¿Qué es lo más específicamente burgués de lo que yo escribo, lo Tanto respecto a colectivos, por ejemplo a quienes escriben en el
que más le molesta a Raimundo? (2007, pp.158-159). periódico La Nación, de Buenos Aires, como a individuos de su
A lo largo de las notas del diarista de la década del sesenta conocimiento, a ejemplo de la esposa de un amigo que los aloja
siempre está presente la problemática de para quién escribir, si por unos días.
para los burgueses o los obreros, y escogiendo la segunda opción, Después del asesinato de Augusto Vandor, líder sindical
cómo hacerlo. Es una de las reflexiones más recurrentes del enemigo de los gremialistas combativos, en junio de 1969, Walsh
escritor en estos años. Tanto en su cuaderno de bitácora como en y su pareja deben pasar, como muchos militantes de izquierda, a
algunas entrevistas que le realizan. En las citas de arriba, vemos una semiclandestinidad. Al no formar parte aún formalmente de
también esta problemática, pero atravesada por la relación un grupo guerrillero su refugio lo deben buscar en casas de amigos
personal con Raimundo Ongaro. Es a éste a quien le “molesta” el y conocidos por fuera del sistema de resguardo de los grupos de
tipo de escritura de Walsh. Es el máximo líder sindical combativo, guerrilla urbana. A cierta altura, afirma Walsh: “No teníamos
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muchos lugares adónde ir, ya habíamos agotado los tres amigos la reflexión walshiana pasa por una cuestión más íntima o
que no se inquietaban por tener que albergarnos, y empezábamos espiritual, de dimensiones que no tienen nada en común y no
a depender de los tres que sí se inquietaban” (2007, p.149). La deberían cruzarse, pero, en virtud de la situación se encuentran. Y
entrada, de agosto de 1969, dos meses después de la muerte de es algo que Walsh sabe desde el momento en que la conoce, por
Vandor, cuando se encuentran en la casa de unos los amigos, que lo que escribe: “- ‘Mi nombre es Madalena, en la profesión’ [dice
“se preocupan” por alojarlos, también contiene una descripción de la dueña de casa]. Era evidente que no nos íbamos a llevar bien
la dueña de la vivienda. […], quizá no tanto por mí, que no tenía la menor posibilidad de
Es allí, en esta semblanza de la mujer de su amigo, donde llevarme con ella de ningún modo –porque en mi profesión ella era
Walsh descarga su crítica mordaz sobre un exponente de la algo que no trata de sortear, como un mueble fuera de lugar […]”
pequeña burguesía, una mujer sin mayores luces, conforme lo que (2007, p.149).
expone el diarista. Ella es “Cora. Una mujer de cuarenta años, con En el diarista, desde el preciso momento del encuentro, ya
ojos chicos y desconfiados y oscuros: de ratón, un pelito suave hay una toma de posición en relación a esta pequeña burguesa. No
sobre la frente: marinado por las tinturas de su casa de categoría. hay diálogo posible, es execrada por él. No se trata, como
Era peinadora […]” (2007, p.150). Por lo tanto, debido a las señalamos, de un adversario político o un enemigo, pero sería un
circunstancias, el diarista tiene que interactuar con la dueña de individuo funcional al poder. Igualmente, pensamos que éste no es
casa, ya que son ellos quienes se encuentran refugiados allí. Afirma el mayor problema para el diarista, sino ese choque de
Walsh que su relación, en realidad, pasaba por el marido, que era disparidades. Muestra irónicamente las diferentes “profesiones”
su amigo. “[…] entonces comprendimos porque [éste] había que tienen. No en un sentido de superioridad del intelectual sobre
tratado de no dejar ningún hueco en la conversación por donde quien no lo es, sino en virtud de esa sobredimensión de la
ella pudiera arrojar su cagaditas de mediocridad, sus ideas “profesión” de peluquera por parte de Cora, como posible gesto
generales sobre el mundo. […]” (2007, p.149). de una pequeña burguesa que, por ejemplo, la diferenciaría de un
Existe un desprecio por parte de Walsh respecto a esta obrero. Y, como remate, el diarista, que ya la tildó de mediocre y
mujer y a todo lo que representaría. Como afirma, intenta la comparó con una rata, la coloca en lugar de un mero objeto, un
congraciarse con ella por una cuestión de conveniencia, o mejor mueble, que para peor se encuentra fuera de lugar, obstaculizando
dicho, de supervivencia considerando su situación, pero el el pasaje.
problema es que se trata de universos contrapuestos. No ya En definitiva, en la breve descripción de “Madalena/Cora”
políticamente, como podrían ser los burócratas sindicales, por la misma emerge como una representante de la pequeña
ejemplo, que siendo “colaboracionistas” del régimen militar, burguesía urbana no intelectual. Walsh, recordemos, proviene de
“traidores de la clase obrera” y varios etcéteras se constituyen una pequeña burguesía también, pero es un intelectual. Por lo
como el enemigo. En el caso de la mencionada Cora, creemos que tanto, ese rechazo por la dueña de casa, ¿pasaría por su poca
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cultura y desinterés en la lucha revolucionaria? De acuerdo con […] perseguir un objetivo desmesurado’ [que] saca a la luz una
Lenin, la pequeña burguesía tendría un doble papel en el proceso condensación de política, pulsión erótica y religión […]” (2009,
revolucionario, el de llevar la teoría revolucionaria a la clase p.131). El autor, introduce el tema, a partir del ejemplo de
obrera, que por sí misma, por diversas circunstancias, no pasaría testimonios de guerrilleros y militares que se enfrentaron, se
del mero reformismo, es decir, no encararía la lucha de clases. mataron y torturaron pero años después se reúnen sin mayores
Sin embargo, el proletariado paga un precio por esto. Como problemas.
afirma el destacado militante del PRT, Julio Parra, en su artículo Walsh no se encaja en la figura del “guerrero”, ni siquiera
“Pequeña burguesía y revolución” 11 : “Junto con la teoría cuando es un cuadro intermedio y con gran responsabilidad en
revolucionaria, los revolucionarios llevan al movimiento obrero sus Montoneros. Lo que pretendemos destacar es que en el campo
características de clase: el individualismo, la pedantería, la revolucionario, la configuración de un escenario de “guerra total”
vacilación ante las grandes decisiones, la visión política mezquina y de la inevitabilidad de la revolución se toman como
[…]” (1971). Es decir, los revolucionarios, por lo menos en un circunstancias irreversibles. Ahora bien, lo mismo ocurre en el
primer momento, surgen de una pequeña burguesía intelectual, bando enemigo. La dinámica en que se encuentra el diarista a fines
como Walsh, que intenta inocular en el proletariado la teoría de los sesenta, basada en el compromiso y la entrega, de cierta
revolucionaria para que tenga lugar ese estadio que es la lucha de forma, lo introduce en este “espíritu de guerra”. De este modo,
clases. Así, parte de la feroz descripción de Walsh sobre Cora, pasa nos parece que Cora y su moral pequeño burguesa solo merecen
por su individualismo, pedantería y mezquindad. No obstante, es la ironía y el desprecio del diarista. También son “contemplados”
algo de lo que también padecería la pequeña burguesía intelectual con ello los “enemigos”, pero se deja entrever en relación a estos
y revolucionaria a la que pertenece el escritor argentino. una diferente “consideración”. Si Cora es un “mueble” que lanza
Asimismo, creemos que estaría latente una cuestión más “cagaditas de mediocridad” y parece una “rata”, los enemigos son
profunda en torno al episodio de Cora. Como señalamos, existen “traidores”, “mercenarios”, “vendidos”, “burócratas”,
los adversarios/enemigos que pueden encarnarse en el régimen “torturadores”, etc. Es decir, estos últimos tienen importancia, la
militar, los burócratas sindicales y la burguesía en general. Con pequeña burguesa, no
ellos habría una especie de vínculo por medio de, en palabras de Ahora bien, si Cora representa a una pequeña burguesía
Hannah Ardent, una comunidad de guerreros” que llegará a su porteña o suburbana, también hay una referencia general a la
ápice mediados de los setenta. De acuerdo con Hugo Vezzetti pequeña burguesía del interior. En la entrada del “Lunes 18 de
[apudJauretche], al tratar de explicar la violencia revolucionaria la abril, 69” hace un breve relato (15 líneas) sobre una visita a Junín,
sintetiza como “‘una forma de entregarse a la política como al sexo aparentemente a unas tías. Y allí expresa: “[…] la mentalidad de

11
Julio Parra, seudónimo utilizado por el militante del PRT (Partido
Revolucionario de los Trabajadores) Luis Ortolani.
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sus pequeños burgueses, sus médicos y abogados, que se se une un análisis más general por parte del diarista, lo que no
desgarran el alma ganando dinero, traicionando sus rebeldías ocurre con la pequeña burguesa Cora. Es decir, si bien comienza
anteriores […] y deduciendo una metafísica de las clases pobres, por medio de la ironía, en relación al invitado nazi, luego realiza
que son así: perezosos, borrachos, ignorantes, etc., y por eso no una crítica a la “clásica cantinela de siempre que habrá
triunfan” (2007, p.139). Lo mismo que podría pensar Cora sobre explotadores y explotados […]” (2007, p.237) y termina con un
los pobres a pesar de, suponemos, pertenecer a un grupo inferior análisis político sobre la “libertad de expresión”. Ante un invitado
que galenos y leguleyos, de la pequeña burguesía. Tanto en este que afirma: “Ahora [en 1972, gobierno del general Lanusse, por
breve escrito, como en la descripción de Cora analizada arriba, en oposición a Perón] se puede hablar”, el diarista desgrana un
términos políticos, la invectiva de Walsh sería contra un individuo argumento en relación al “[…] ‘poder hablar’ […] mito sagrado para
o un grupo pequeño burgués funcional al poder, a la derecha, pero [la] clase media. Le da tal importancia a su palabra, que le resulta
sin una conciencia política de la lucha en desarrollo y de la más grave que se atente contra ella que contra cualquier otro
configuración de una “guerra integral”. aspecto de su libertad. La clase media se idealiza a sí misma como
Por su parte, en 1972, en la entrada del 10 de mayo, el portadora de las conquistas liberales. Si ‘poder hablar’ es […] más
diarista hace un relato de las bodas de plata de su hermano, Carlos importante que ‘poder comer’, es porque la clase simula dar
Walsh, donde encuentra a “allthebloodyparentala” y “Un prioridad a las ‘necesidades espirituales’”. (2007, p.237).
muestrario bastante completo de la pequeña y media burguesía, En resumen, pensamos que el diarista realiza las
[su] alienación, las racionalizaciones y los resentimientos de clase” reflexiones típicas de un diario, como la descripción de una
(2007, p.237) (Cursivas nuestras). Allí, a pesar de la brevedad del persona con la que se vincula y no es de su agrado o sobre los
texto, hay una marca más politizada sobre quienes se encuentran invitados a una fiesta familiar. En los textos emerge ese crítico
en el lugar. Varios oficiales de la Marina (colegas de su hermano), feroz y mordaz o también irónico. De esta forma, cuando el tema
un nazi que no abomina de aquella época, “gorilas” resentidos, etc. pasa por Cora, como señalamos, no hay diálogo posible, a pesar de
En las charlas que mantiene con ellos, su crítica es menos feroz y que, en términos generales, pertenezca a una clase que podría
mordaz que respecto a Cora. Tal vez irónica, en relación al llegar a ser, dependiendo de las circunstancias, aliada del proceso
admirador del Furher, quien afirma que “los alemanes trataban revolucionario. No obstante, para el diarista no hay espacio para
bien a sus prisioneros”, pero se sostiene sobre la coyuntura intentos de seducción, convencimiento, ni siquiera para un debate
política, desfavorable a los militares y sus simpatizantes. o una mera discusión, porque las “ideas sobre el mundo” de Cora,
En este ámbito, el de la fiesta de su hermano, el diarista además de ser incompatibles, como las la derecha, generan el
alterna con esos “enemigos”, que en 1972 afirmará que se desprecio y la denigración del escritor.
“intercambian las últimas cortesías” antes de que la “guerra”, En definitiva, si la pequeña burguesía es una clase
entonces más sorda para algunos, estalle. Aquí, a la ironía y crítica “veleidosa, timorata, moralista, proclive al formalismo y a todas las
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ilusiones políticas, instrumento y víctima de los que oprimen a la ésa es la clave: lo que pase después no me importa mucho […]”
nación y a las clases populares, ‘gorila’ […] no [es] una clase (2007, p.119). Es decir, el sujeto textual que emerge del diario
enemiga” (ALTAMIRANO, 2013, p.124). En el caso de los textos tiene dudas sobre el destino de la revolución.
analizados, la clase “enemiga”, se encontraría más entre los Es más, si “no le importa mucho” el futuro se equipararía a
invitados de su hermano que en alguien como la peluquera Cora esa peluquera alienada contra la que lanza sus diatribas. Asimismo,
con su “casa de categoría”. No obstante, el mayor desprecio y más allá de la cuestión personal que emerge del diario en torno a
rechazo es para ésta. Para los contertulios de las bodas de plata de los valores burgueses y el “hombre nuevo”, como afirma la
Carlos Walsh, sí hay crítica y rechazo, pero también cierto ensayista argentina Beatriz Sarlo: “Política y moral revolucionaria
“respeto” que genera ese breve análisis político. están marcadas por la aceptación del sacrificio, sostenida por la
Como señala el mismo Altamirano, esta “literatura” sobre seguridad de una victoria irrevocable” (2003, p.186) (Cursivas
la clase media/pequeña burguesía, era una “literatura de nuestras). Sabemos, por su lucha, militancia y muerte, que la vida
mortificación y expiación” dirigida y consumida por esta misma de Walsh no fue la de un timorato pequeño burgués, lo que
clase. El “pecado” que debía expiar este conglomerado era de su queremos resaltar son esas dudas, escisiones y conflictos que
antiperonismo y apoyo al golpe que derrocó al general Perón, así: emergen de ese sujeto textual en el ámbito íntimo. Y que generan
Este discurso […] que creció en el área de la izquierda las críticas, ironías y análisis del cuaderno de bitácora.
argentina contenía un mensaje de mortificación y, a la vez,
un llamado, [que, en palabras de Ismael Viñas era la Referencias
necesidad de] ‘darnos vuelta como un guante […] operación ALTAMIRANO, C. La pequeña burguesía en el purgatorio. In:
profunda y penosa’ […] Unir el propio destino pequeño
ALTAMIRANO, C. Peronismo y cultura de izquierda. Buenos Aires:
burgués al del proletariado (2013, p.125).
Siglo XXI, 2013.
Walsh, se encuentra dentro de esta problemática,
originario de la pequeña burguesía, con un breve pasado ______. Intelectuales y pueblo. In: ALTAMIRANO, C. La Argentina
nacionalista, debe expiar sus “pecados” pequeño burgueses. Con en el siglo XX. Buenos Aires: Ariel / Universidad Nacional de
la “revolución [como] mito redentor: evoca y exalta el Quilmes, 1999.
acontecimiento en que el pequeño burgués une su destino al de
los trabajadores y halla salvación” (2013, p.127). El escritor
argentino, sí “une su destino al de los trabajadores” al ingresar en HARNECKER, M. Clases sociales y luchas de clases. In: Cuadernos
la CGTA, pero no cree del todo en la “salvación”. Así afirma, en Nº 4 de la serie Cuadernos de Educación Popular: ¿Qué es el
una entrada de diciembre de 1968 que ya mencionamos a lo largo socialismo? Santiago de Chile: 1972. Disponível em:
del presente trabajo: “Me paso al campo del pueblo, pero no creo <http://www.rebelion.org/docs/89545.pdf>. Acesso em: 14 de
que vamos a ganar: en vida mía por lo menos. ¡En vida mía! Porque jun. de 2014.
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O “ NEOPOPULARISMO ” NO ROMANCERO GITANO DE ousadas, com uma considerável liberdade no uso das métricas, de
FEDERICO GARCÍA LORCA versos cortados e de rimas assonantes.
Irley Machado Os anos 20 e 30 se caracterizaram por uma tomada de
UFU consciência significativa da modernidade e deram nascimento ao
que chamamos La edad de plata de la literatura española. Os
Há na poesia espanhola do final do século XIX um poetas desse período aliaram a tradição à vanguarda, reunindo em
movimento de retorno à angústia romântica, que acabará por se suas criações três importantes características: a renovação formal
fundir com o modernismo simbolista. Dirigida pela geração de 98, com um léxico rebuscado, formado a partir de palavras comuns; a
composta por poetas como Unamuno, Azorín, Baroja, entre renovação da métrica com a liberdade e o equilíbrio entre
outros, o movimento irá ancorar-se no poder evocador das inovação e tradição e, finalmente, uma temática variada, como o
palavras, em que as sinestesias, os sons e os ritmos vão se amor, a morte e o destino. Alguns poetas do neopopularismo
manifestar como metáforas reveladoras da evasão dos poetas. Os sofreram a influência dos clássicos espanhóis, e, notadamente, de
escritores dessa geração, em busca de liberdade formal, Gôngora.
incorporaram à poesia fontes antigas e populares na tentativa de O objeto da literatura é ele mesmo carregado de uma
revitalizar a cultura espanhola, revelando suas preocupações com ideologia cujo teor se revela em sua produção e em seu contexto.
a situação social do país. No caso de Federico García Lorca, a poesia e suas contradições,
Seduzidos pela experiência modernista, os poetas e devidas ao fato de seu autor ter se tornado um mito, fundado
filósofos do período tomaram emprestados elementos da lírica e sobre o conjunto de sua obra e em sua história pessoal, tornam
da literatura popular e criaram uma corrente poética conhecida difícil a tarefa de bem limitar nosso objeto de estudo.
como “popularismo”, que se caracterizava por sua proximidade A fixação de uma data precisa para o início de um
com o canto. Segundo Sainz de Robles (1972, p.122), poder-se-ia movimento artístico ou literário pode parecer arbitrária, se
falar de “ Un estilo cantable con una forma popular y tradicional ”. ponderarmos que todas as fronteiras são artificiais, e nos fazer
Os poetas da geração de 27, uma geração revolucionária e idealista compreender que na realidade mergulhamos em uma série de
cuja principal característica foi a tradição e a renovação, tornaram- ambiguidades que se mostram, a cada leitura e reflexão, mais
se os defensores de uma nova corrente que ficou conhecida como fascinantes. No entanto, sabe-se que a arte e a literatura são
“neopopularismo”. Seus representantes se colocaram contra a construídas sobre estruturas econômicas e políticas, o que as torna
literatura elitista e universalista do modernismo e a frieza inseparáveis de seu processo histórico e social.
hermética das vanguardas. Os recursos estilísticos dos poetas Quando falamos da obra de García Lorca, é preciso
neopopulares foram o laconismo, a sugestão e o uso de metáforas esquecer as fronteiras, considerando-se que a riqueza de sua
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criação as faz desaparecer em uma fusão artística perfeita e pela uma nova categoria estética, tentando estabelecer, a partir das
graça de um talento inigualável. raízes do Flamenco, a última substância da arte espanhola.
O poeta vive em um momento histórico preciso e participa O poeta escreve sobre temáticas diversas e de diferentes
da controvertida geração de 27. Controvertida na medida em que formas, que podem romper qualquer classificação. É assim que se
desenvolve uma concepção da arte relativa à criação de autores justifica a atribuição do termo neopopularismo quando se fala de
que não somente criam poesia, mas poetizam suas próprias vidas. sua obra o Romancero gitano. Na verdade o granadino criou um
Nessas circunstâncias García Lorca irá se revelar como o poeta mundo multiforme, um universo de significações, de denúncias, de
mais autêntico em relação à estreita simbiose com a natureza, o cheiros, sons, mistérios profundos, de amores impossíveis, de
que o acompanhará em toda sua carreira. Sua ligação com a desejos jamais satisfeitos, cercados de beleza, por meio de uma
natureza aparece em sua primeira coletânea, Impresiones y poesia que nos dilacera intimamente, enquanto revela
paisajes, em seu texto de teatro El maleficio de la mariposa, em ressonâncias profundas universais e andaluzas.
seu teatro inédito de juventude e, sem dúvida, em seu Romancero Para Ramos-Gil (1967, p.85) “ La obra de Lorca es un prisma
Gitano, em que o poeta experimenta certa “metamorfose” em mágico que quiebra su luz en colores diferentes “. Na realidade,
cigano, esquecendo e negando a crítica e os ataques recebidos por Lorca, ao abraçar a essência do humano, a recria, pois segundo ele
parte de autores mais radicais. essa é a tarefa do criador.
Na filiação estética de García Lorca se encontra a influência É preciso lembrar que a Espanha fundou-se sobre bases
do Século de Ouro Espanhol, a importância do simbolismo, sua heterogêneas. Inúmeros povos deixaram suas marcas no território
proximidade com as vanguardas e, sobretudo, com o surrealismo, espanhol. A Espanha sempre foi plural e, por consequência,
bem como sua adesão ao neopopularismo. Entretanto, atrás de contraditória e polissêmica. O mesmo país que abriu suas portas
um Lorca simbolista, surrealista ou neopopular, há o gênio e a aos Mouros para expulsá-los após, que defendia uma limpeza de
singularidade de um criador difícil de classificar. Sua concepção da sangue e esperava impacientemente o movimento da reconquista
arte e da criação artística não se desenvolve em um tratado, mas cristã, permitiu a entrada em seu território – pelas mesmas portas
aparece condensada e resumida em uma de suas Conferências, do norte da África – dos ciganos: povo temido no continente
quando o poeta irá falar de sua Teoría y Juego del Duende e onde europeu, o que prova, mais uma vez, o paradoxo da sociedade
ele tenta definir “el espírito oculto de la España dolorosa” (GARCÍA espanhola. Tendo como berço as culturas judia, moura e cigana, a
LORCA, 1957, p.37), sempre seguindo o conselho de Antonio arte do flamenco, na Andaluzia, destaca-se como uma arte forte,
Machado, que assinalava que “La verdadera poesía la hace el intensa e que representa a alma e o autêntico espírito de um povo.
Pueblo”. Nesse ensaio o poeta realiza uma síntese, um exercício de Este povo tão distinto, tão estereotipado e, por vezes, tão
apropriação da linguagem popular do flamenco e a transforma em apaixonante e verdadeiro: o povo da solidão, da paixão, do
vermelho e do negro.
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Este país singular e plural pode ser encontrado na poesia entranhas da terra andaluza e uma busca constante pelo “duende”
de Lorca, na medida em que o autor se serve da maneira de se espanhol : este duende, amigo da improvisação, mas que exigia a
expressar de sua terra. Intimamente ligada ao Canto Jondo, e técnica do poeta. Lorca buscou o instinto eficaz, a força interior e
como tal um dos pilares da cultura andaluza, encontramos a subterrânea do duende e, igualmente, o anjo que ele encontrava
cultura dos ciganos, cantada pelo poeta em seu Romancero. Em na poesia e no sentimento do flamenco. Segundo Pineda
sua conferência sobre a Importancia histórica y artística del Hermanándose dos lenguajes alienados e idénticos: la
primitivo canto andaluz llamado cante jondo, pronunciada em 19 música, tan racial, tan andaluza de Don Manuel de Falla, y
de fevereiro de 1922, no Centro Artístico de Granada, ele analisou la poesía enduendada, honda de García Lorca, y es,
os elementos rítmicos e harmônicos do canto, alertando para a entonces, cuando, en verdad, se abre una auténtica puerta
a su estimación y valorización y una cumbre de entusiasmo
força da poesia que dele fazia parte, aproximando-a e
(con sentido universal), con la apoyatura de casi todos los
relacionando-a à poesia hispano-árabe: Cuando la copla nuestra
poetas del 27. (PINEDA, 2007, p.179).
llega a un extremo del Dolor y del Amor, se hermana en expresión
con los magnificos versos de poetas árabes y persas”. (GARCÍA Graças ao seu gênio, Federico, por meio de suas
LORCA, 1999, p.158). conferências e de sua obra, deixou-nos uma série de visões
Há na cultura andaluza uma fusão de elementos étnicos, enriquecedoras sobre essa arte única, e os aspectos brilhantes e
nos quais predomina a cultura oriental, que chegou com os ciganos tenebrosos da maravilhosa e angustiante música flamenca,
que lá se estabeleceram. A Andaluzia é a região de maior revelando assim a cultura do sangue e fazendo-a atingir uma
concentração de população cigana, o que muito contribuiu para a grande universalidade.
difusão do Canto jondo. O poeta aproximou-se do flamenco para Alguns críticos, como Antonio Mairena e Ricardo Olina
tentar enobrecer seu mundo, aludindo à obra de Manuel (apud PINEDA, 2007, p. 175), especialistas da cultura cigana,
Machado, da qual muitos poetas da geração de 27 se inspiraram. afirmaram: “Ni antes ni después de él hubo poeta que más
Manuel Machado teria sido, segundo alguns críticos, o grande profundamente haya captado el mundo y el espíritu de lo
poeta do Flamenco, tendo publicado, em 1912, o primeiro livro flamenco”. Lorca sentia-se atraído pela música dessa classe
sobre o Canto jondo em Madrid. Com ele o Flamenco tornou-se a marginal e marginalizada, que se encontrava nas ruas de Granada
alma do povo, sensível e anônimo, e fundou-se ao e com a qual ele convivia. Ele amava esse mundo trágico que
neopopularismo. recriou em sua obra. Nesse sentido, foi um intérprete
Lorca, em sua conferência sobre o Cante Jondo, destacou particularmente sensível. Em seu livro Poema del Cante Jondo,
esta arte popular que segundo ele retomou “O cultivo de los embora seus poemas se pareçam mais a evocações líricas e não
antigos cantos, en muchas partes casi absolutamente olvidados”. sejam coplas tradicionais, eles guardam da copla a essência do
O Poema del Cante Jondo tornou-se então uma viagem nas estilo e o conteúdo: isto é a sensibilidade trágica, o drama com a
sensação de uma ameaça invisível e omnipresente que ocupa todo
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o espaço poético. Escrita em sua juventude, entre romances Seu Romancero reúne uma coleção de dezoito “romances”
irregulares e poemas livres ao gosto surrealista, essa obra oferece e foi editado pela Revista de l’Occidente sob o título de Primer
uma linguagem nova, plena de imagens circulares e metáforas Romancero Gitano (1928). A obra situa-se num quadro original, um
difíceis, originais e sobretudo ressoantes do espírito e da voz de espaço geográfico, histórico e mítico {,} próprio aos ciganos. Na
Federico. temática lorquiana destaca-se o cigano visto como representação
Lorca é o poeta que recupera a arte do povo e a valoriza, ao mesmo tempo individual e coletiva de um ou de vários grupos
tentando preservá-la no que ela tem de original. Nada melhor que que vivem afastados da sociedade espanhola. O autor percebe
um andaluz para definir o espírito de seu povo e a geografia de sua uma desmedida entre o primitivo e o civilizado e declara sua
terra por meio de imagens que o acompanham desde seu grande afinidade por um povo secular, humilde e excluído: “Yo
nascimento. O poeta irá cantar o abandono e a miséria dos creo que el ser de Granada me inclina a la comprensión simpática
marginais da Andaluzia. Muitos de seus poemas provocam um de los perseguidos. Del gitano [...] en este mundo, yo soy y seré
sentimento de indecisão e impotência. Eles sugerem as grutas dos partidario de los pobres”. (1957, p. 1367).
ciganos, a terra árida e seca, uma existência que acontece às É, pois, sobre a tradição e a existência do universo cigano
escondidas entre suspiros e lágrimas, à sombra de punhais que que Lorca se apoiou para ancorar sua criação, seguindo os modelos
abandonam seus mortos no cruzamento dos caminhos de um da poesia popular por meio de suas formas e temas. A presença do
tempo cristalizado: o tempo de homens mascarados que se elemento regional foi fundamental em sua escritura, em sua
deslocam entre laranjais e olivais, deixando atrás de si um caminho dimensão poética e pessoal, bem mais que no quadro sociológico
semeado de lágrimas e de dores, como no poema La soleá, em que de sua obra. Sua poesia se caracterizou pouco a pouco por um
encontramos a morte personificada em mulher que leva consolo conjunto de regras e de códigos poéticos, universais e teatrais. Sua
ao luto: “Vestida con mantos negros [...] piensa que el suspiro escrita oferece um modelo de integração de formas artísticas nas
tierno del grito, desaparecen en la corriente del viento.” (GARCÍA quais as palavras e as imagens participam de uma estrutura mais
LORCA, 1957, p.232). ou menos complexa. A originalidade de seu Romancero deve-se,
A compreensão que Lorca possui do universo poético e sem nenhuma dúvida, à estreita ligação entre a expressão oral,
musical da arte andaluza não o afasta da dura realidade na qual saída da tradição popular e sua reescrita, diretamente ligada a uma
vive o povo cigano. O Romancero Gitano é uma obra que concentra tradição que podemos considerar culta. Lorca não se limitou a
a reivindicação humana e a estética lírica de seu autor. Poeta do desenvolver tendências já existentes, como a do romance de
povo, ele busca suas raízes ciganas, encontrando-se nelas, para dar feição popular – cuja origem remonta às transformações herdadas
à sua obra universalidade. Do universo cigano ele extrai os das canções de gesta do final do século XV –, mas ele as renovou
símbolos criadores essenciais e canta a dor intensa que acabará com vigor e liberdade criadora.
em tragédia e em morte, uma morte inevitável e omnipresente.
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Seu Romancero Gitano, quando de sua publicação, conheceu de Ouro ” e deu nascimento a uma poesia e uma estética nova na
de imediato um grande sucesso. Segundo Eutimio Martín (2007, p. poesia espanhola, um “neopopularismo”, se assim podemos dizer.
112): “Esta é sem contestação a coletânea de poemas a mais Em sua conferência sobre o Romancero, o poeta explica que sua
célebre e celebrada de toda a historia da poesia hispânica e talvez obra é:
da poesia europeia. Não somente a mais conhecida, mas também Un libro anti-pitoresco, anti-folklórico, anti-flamenco.
a mais recitada em público.”1 Com o rápido sucesso do Romancero Donde no hay ni una chaquetilla corta ni un traje de torero,
Gitano o poeta recebeu a etiqueta de “poeta-cigano”, etiqueta que ni un sombrero plano ni una pandeireta, donde las figuras
muito o contrariou. Em 1928, no momento da publicação da obra, sirven a fondos milenários y donde no hay más que un solo
personaje grande que es la Pena... (GARCÍA LORCA, 1957,
ele declarou na Gaceta Literaria, uma revista de vanguarda: “Mis
p.1114).
gitanos, son un tema literario y un libro. Nada más.” Entretanto o
poeta pareceu contradizer-se em sua conferência sobre o No momento em que escolhemos estudar o Romancero
“Romancero gitano” quando afirmou: Gitano, obra que reúne um número infinito de elementos
El libro es el conjunto, aunque se llame gitano, es el poema complexos de fundo e forma, constatamos a forte inclinação do
de Andalucía; y lo llamo gitano porque es lo más elevado, lo poeta pelo uso de uma metáfora que retrata um mundo mágico e
más profundo, lo más aristocrático de mi país, lo más cruel. Cruel na medida em que o eu-lírico denuncia os tormentos
representativo de su modo y el que guarda el ascua, la físicos e espirituais aos quais era submetido o povo cigano.
2
sangre y el alfabeto de la verdad andaluza universal. Segundo Christopher Flint (apud Cifuentes, 2005, p.162),
(GARCÍA LORCA, 1957, p. 1114) “La violencia y el dolor que caracterizan su poesía constituyen en
Lorca tinha a intenção de promover formas artísticas gran medida la fuente inmediata de sus convicciones estéticas y
capazes de traduzir a expansão do imaginário, bem além das políticas”. São elementos que fazem parte de uma cultura popular
fronteiras estabelecidas. Embora se servisse da poesia popular, que o autor conhecia bem. Lorca nos apresentou um mundo que
não se pode falar de um popularismo em Lorca, pois sua retomada permitia que as manifestações eróticas e sensuais fossem
das tradições não correspondia ao popularismo de Manuel traduzidas em uma linguagem poética: um mundo de cavalos, de
Machado, ou de Salvador Rueda, entre outros. A forma como esses ciganos, de uma população posta de lado que conservava o desejo
autores se aproximaram da alma e das canções do povo é bastante eterno de perpetuar-se por meio de uma cultura que insistia na
diversificada. Por seu lado, a tendência popular do granadino se preservação de seus valores. Uma cultura híbrida, cheia de acentos
orientou em direção à poesia tradicional dos mestres do “ Século de uma tradição ligada à ancestralidade. A cultura andaluza foi

1 2
“Ce sera sans conteste, le recueil de poèmes le plus célèbre et célébré de toute Conferência recital sobre o Romancero Gitano, pronunciada várias vezes, a
l’histoire de la poésie hispanique et peut-être de la poésie européenne. Non última delas em março de 1936, alguns meses antes de sua morte.
seulement le plus connu, mais aussi le plus récité en publique”. NT.
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revivificada pelas cantigas escutadas pelo poeta em sua infância e recriação, ele a eleva a um verdadeiro status artístico. Sem negar
juventude e reunidas por ele em suas “nanas” ouvidas e recolhidas as forças telúricas da natureza, nesse mundo em que vivemos, ele
no entorno de Granada, nas grutas do Sacro Monte, quando o as abraça sob sua responsabilidade, como o chamado de um
poeta se encontrava seduzido pelo contato com o povo de sua mundo intermediário com seus demônios ocultos que dominam os
região. Em suas primeiras viagens de estudo, em companhia de seu homens.
mestre Don Martín Domínguez Berrueta, o jovem poeta Para Ramos Gil (1967, p.65), Lorca “recoge la herencia y la
aproveitava suas excursões geográficas para reunir histórias e remoza, con intuición de artista soberano”. Segundo Pineda (2007,
canções dos ciganos. Em sua obra Impresiones y paisajes ele p.170), Federico era “vital y tierno, tradicional y rebelde, fabuloso
manifestou sua inclinação e seu amor pelas gentes da Andaluzia. y mítico… Un niño en la vida y un viejo en la sangre”. Fabuloso e
Federico, ao identificar-se com os povos oprimidos, revelou mítico como a raiz do sangue, ele defendeu os ciganos e os
toda uma série de tradições, que ele amou e recriou como nenhum universalizou em seu Romancero Gitano com um fundo mitológico
de seus contemporâneos. A cultura cigana é, sobretudo, oral e rica de sons e de sensualidades carregadas de sentimento trágico. Se
em variantes que são o resultado de um cruzamento entre as começarmos por analisar um dos primeiros poemas pertencentes
culturas orientais e ocidentais. Não se pode esquecer que o cigano, ao Romancero encontramos de imediato a força deste sentimento:
por meio de seus ‘romances’, que contam suas trajetórias La luna vino a la fragua
individuais e igualmente coletivas, tornou-se uma figura épica, Con su polisón de nardos
revelando no cotidiano a tragédia sociocultural de seu universo El niño la mira mira
histórico. Para Lorca, El Romancero Gitano é uma apologia do El niño la está mirando. (GARCÍA LORCA, 1999, p.352).
cigano. Estruturado sob a égide de signos trágicos e temas de amor É assim que começa o Romance de la luna, luna. O poema
e morte, de angústia e de dores, esta obra denuncia uma realidade se associa aos elementos da natureza, a lua e a figura do menino,
humana impressionante. e anuncia um fim trágico. Entretanto o poeta não o faz de
É a partir de um sentimento mágico da realidade que a arte imediato. Ele gira ao redor da imagem da criança e da lua. Ele
pode ser vivida e entendida aos olhos do autor; para ele é em desloca o perigo como se fosse a lua a estar ameaçada pela
efeito dessa aproximação que se encontra o espírito da terra; presença dos ciganos que chegam:
contudo, para que ele seja percebido, é preciso abandonar toda Huye luna, luna, luna
concepção racionalista do mundo. Sua arte vai, pois, aparecer si vinieran los gitanos,
como uma experiência do sagrado na natureza e o artista como harían con tu corazón
testemunha do mistério que o cerca. collares y anillos blancos.
Nesse sentido o poeta ultrapassa a noção de popularismo O poeta utiliza imagens fortes que constroem
ancorada apenas nas velhas tradições orais e, por meio de sua gradativamente o universo trágico: “La fragua, el niño con los
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ojillos cerrados, la luna lúbrica y pura con sus senos de estaño” do poema do Romance de la luna luna há a dor provocada pela
(GARCÍA LORCA, 1999, p.352). Ele irá trabalhar com elementos morte de menino, uma dor mais do que física e que se lança em
contrários: a lua dança para seduzir o menino com sua luz branca direção a uma dimensão cósmica.
e enganadora e o menino aceita a mão dessa bailarina fatal, para Lorca em seu Romancero vai igualmente falar de uma dor
se afastar do mundo, uma ação que encontramos retomada várias corporal, muito forte, que parece desprezar as leis culturais. Em
vezes na poesia lorquiana. Guillermo Diaz-Plaja (1955, p. 116) fala 3
Romance de la Guardia Civil , o mundo social é representado pela
deste poema descrito como um balé. Ele afirma: “Tiene del ballet Guarda Civil e pelos ciganos. Os versos testemunham o sofrimento
la fantasía con que se dibujan los personajes terrestres y celestes desses últimos. Um sofrimento físico, corporal, mas também um
y su mudez”. Para o autor, o poema se reveste de um ar sonâmbulo sofrimento que atinge a alma do cigano no que ela tem de mais
em que a realidade se mistura ao sonho e o mistério está à sagrado: sua tradição, seu sentimento de honra, sua concepção do
espreita. amor e seu prazer em viver em liberdade.
Lorca nos apresenta uma morte metafórica que aparece de Para Manuel Antonio Arango (1995, p.63), “ El gitano
várias maneiras em sua obra, mas que é mais significativa no representa la tradición legendaria, la que engloba la intrahistoria
Romancero Gitano. No poema citado os presságios aparecem no que porta en sus raíces la naturaleza de la raza gitana”. No
canto de uma coruja: “¡Cómo canta la zumaya, ay como canta en Romance de la Guardia Civil, o poeta granadino destaca a
el árbol!” Em Lorca, como mostra o exemplo, não se pode separar disparidade entre o abstrato e o material. Há uma alternância
Eros de Tânatos. Pode-se deduzir que a sedução de uma lua entre a silenciosa e ameaçadora onipresença da guarda civil:
personificada em mulher de seios brancos conduz o menino a sua Pasan, si quieren pasar,
perda na frágua: é assim que à sua chegada os cavaleiros Y ocultan en la cabeza
encontrarão o menino de olhos fechados, estendido sobre a una vaga astronomía
bigorna. Dessa forma a imagem poética ganha em beleza quando De pistolas inconcretas. (GARCÍA LORCA, 1999, p.390).
“Por el cielo va la luna con un niño de la mano” (GARCÍA LORCA, E a alegria dos campos de ciganos com suas aspirações
1999, p.352) em uma transposição cósmica bem característica de naturais:
nosso poeta. Eros e Tânatos não são, todavia, os únicos elementos ¡Oh ciudad de los gitanos!
que aparecem em sua obra. A tradição e a honra estarão En las esquinas banderas.
presentes, acompanhadas por uma dor que se eleva acima do La luna y la calabaza
mundo físico e que pode substituir simbolicamente a morte. Para Con las guindas en conserva. (GARCÍA LORCA, 1999, p.390).
o poeta essa dor torna-se uma espécie de morte em vida. No caso

3
Fundada em 1844, La Guardia Civil estava ao serviço da oligarquia. Patrulhava se que a Guarda Civil punia com a mesma crueldade um assassino e um ladrão
os campos e punia com crueldade todo “ataque” a propriedade privada. Conta- de galinhas.
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O poema representa o conflito entre o mundo dos ciganos, vira passar num triste cortejo. Sua narrativa encontrava-se
com sua vitalidade natural e primitiva, e a Guarda Civil, que impregnada de um realismo comovedor.
personifica o perigo, a repressão e a morte. Segundo Debicki (apud O poeta transforma a narrativa de forma lírica com a
CIFUENTES, 2005, p.369), trata-se de um “Conflicto arquetípico y Canción del Gitano Apaleado, inserida na Escena del teniente
mítico, por lo tanto, central a la dialéctica de todo el romancero”. coronel de la guardia civil, encontrada em seu livro Poema del
Os ciganos que celebram a vida e as sensações imediatas e físicas Cante Jondo :
estão mais próximos da realidade, pois compreendem melhor a Veinticuatro bofetadas.
natureza e preferem atividades que os deixem em liberdade e que Veinticinco bofetadas;
lhes permitam gozar da sensualidade pertencente à própria vida. Después, mi madre, a la noche
Entretanto eles serão limitados pelas “leis” estranhas às Mi pondrá en papel de plata. (GARCÍA LORCA, 1999, p.232).
necessidades do indivíduo. A força externa representada pela Pode-se deduzir que a Escena del teniente coronel de la
Guarda Civil irá tentar extirpar, desenraizar a experiência subjetiva guardia civil nos conduzirá ao Romance de la Guardia Civil, do qual
dos ciganos. Para eles a Guarda Civil torna-se um símbolo de já falamos.
morte, torna-se um inimigo, enquanto representante do poder Poderíamos explorar amplamente o simbolismo dos
institucionalizado. Um poder que tenta controlar o corpo dos seres poemas do Romancero Gitano, mas neste estudo nos limitaremos
para obrigá-los a se adaptarem às forças brutais de um mundo que aos elementos que se podem considerar como pertencentes ao
vive sob normas estritas. A violência corporal aparece várias vezes neopopularismo. No Romance de la luna, luna pode-se dizer que a
no espaço poético de Lorca, particularmente no início de seu tessitura é bastante simples, como se Lorca desejasse evocar no
Romancero Gitano. O poeta delata por meio de sua obra a cegueira poema a tendência neopopular: ele nos conta uma história
da civilização moderna, a qual nega a vida na intenção de controlar servindo-se de meios diferentes. Aparentemente o poema e as
o prazer, realizando uma clara separação entre mente e corpo. palavras são simples (niño, luna, fragua). Em sua construção
Como diz Foucault, o corpo humano pode tornar-se o locus de um formal, ele apresenta uma estrofe longa e quatro estrofes curtas o
complexo conjunto de relações políticas, sociais e mesmo que o aproxima de uma copla breve, entretanto bastante
econômicas. condensada, apesar de seu conteúdo trágico. Poderíamos dizer
Segundo Eutimio Martín (2007), considerando o que Lorca tende ao surrealismo, se considerarmos o número de
envolvimento do poeta com a raça cigana “ é difícil admitir que os imagens novas e estranhas para o leitor, mesmo sendo elas
4
ciganos são para Lorca apenas um tema literário “ . Lorca teria expressas com palavras conhecidas.
enviado ao seu irmão Francisco o testemunho de um menino que

4
Il est difficile d’admettre que les gitans ne sont pour Lorca qu’un thème
littéraire. NT.
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Como diz apropriadamente Thomas Schmitt (2011, p.277), proibição, nas lacunas e nas reticências: aquilo que nos escapa nos
“Lorca suena popular pero no lo es, porque experimenta, combina magnetiza e nos aprisiona. A ausência, o halo de mistério no
lo conocido de manera que sale lo desconocido”. A metáfora da mundo alimenta o impulso vital dos seres e esse impulso o poeta
noite – criada pela presença da lua – serve para nos afastar de um chama simplesmente de poesia. Dessa reverência sublime se pode
tempo e de um espaço concretos. A sensibilidade poética mostra compreender que a poesia para Lorca é inseparável da vida. Em
ao leitor um mundo estranho e o poema, embora as metáforas Lorca não se pode estabelecer uma fronteira entre o poético e o
sejam fáceis de compreender, nos envia a uma visão assustadora. dramático. Em sua criação o poético fusiona com o lírico e o
A impressão que se tem é que a palavra concreta não existe, como dramático.
lembra Derrida. Não é a identidade – entre a imagem e as palavras Se considerarmos como exemplo o poema Prendimiento de
ou os objetos e as palavras – que nos permite nelas encontrar um Antoñito el Camborio en el Camino de Sevilla, nele encontramos a
significado, mas sim a diferença entre os significados. A linguagem narrativa de uma história dramática em que o mito da raça cigana
torna-se um jogo que termina por unir os signos de forma livre, aparece. O poema conta a viagem de Antoñito no caminho de
substituindo um pelo outro, ou aproximando-os conforme a Sevilha: homem livre, filho e neto de Camborios, com sua “vara de
necessidade. Os poemas do Romancero são a narração de mimbre”, sua vara de vime, impregnada de velhos símbolos
episódios particulares em que a natureza ganha grandes míticos próprios do povo andaluz. O personagem goza da
proporções. Trata-se de uma obra que se situa na tradição liberdade como uma parte integrante e bela desta natureza que o
narrativa. Em uma de suas conferências, Lorca falou de seu cerca, enquanto símbolo de um mundo simples e antigo. O herói
Romancero e de seu desenvolvimento lírico, a exemplo de “moreno de verde luna” terá seu caminho interrompido pela
Góngora, ou narrativo, de Riva Zorilla, e declarou seu desejo de “ guardia civil caminera ”. Sua liberdade e sua descendência lhe
fundir os dois aspectos. Por meio de personificações ele atribuiu serão negadas: os símbolos de liberdade e poder como sua vara de
valores imediatos a temas que poderiam parecer abstratos. Um vime, ou seu direito de ir e vir, serão usurpados por seus
exemplo que se pode dar é o Romance de la pena negra. A opressores no violento momento de sua captura. Sem a liberdade
personagem Soledad Montoya não padece do sofrimento, ela é o ao longo do caminho, é a morte interior que o personagem
próprio sofrimento. experimenta em vida, na prisão. A descrição dramática que o
Federico García Lorca, o poeta a quem importava mais o poeta nos dá da luta de Antoñito, que se defende como um animal
espirito que a palavra, sempre sustentou que o povo é o que há de e combate corajosamente com “mordiscos de jabalí”, nos leva a
mais importante na criação artística. Um poema nunca será concluir que o personagem foi morto como um touro de rodeio. A
perfeito se não carrega o sangue, a maneira de ser, a paixão e o morte do protagonista foi transformada em uma cena de grande
sofrimento do povo que ele quer mostrar. Para o poeta andaluz a beleza; graças ao vigor das metáforas e dos símbolos uma triste
predileção pelo mistério se revela no culto ostentador da realidade pode alcançar um nível mítico.
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Outra questão crucial para o artista ligava-se ao fato de se DIAZ-PLAJA, Guillermo. Federico García Lorca. Buenos Aires:
ser livre ou submisso. Pois se a vida seguidamente visava impor o Espasa-Calpe Argentina, 1955.
autoritarismo do governo espanhol, Lorca em sua arte poderia ser
inteiramente puro e livre, sem o controle arbitrário dos poderes FLINT, Christopher. La carne del poeta: representaciones del
despóticos. Sua arte não foi somente uma denuncia social, mas cuerpo en Romancero Gitano y en Poeta en Nueva York. In.
uma crítica dos costumes e do comportamento da sociedade. Ele CIFUENTES, Luiz Fernández. Estudios sobre la poesía de Lorca.
deu voz aos marginalizados. Em seu Romancero e na forma como Madrid: Ediciones Istmo, 2005.
escolheu para escrever sua poesia, tomou a defesa dos miseráveis,
como dos ciganos excluídos pela burguesia espanhola. Sob a pluma GARCÍA LORCA, Federico. Obra Completa. Madrid: Aguilar. 1957.
do poeta o personagem do cigano atinge o máximo de estilização:
oprimido pelas normas sociais, sua vida e sua liberdade ______. Obra Poética Completa. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
incontroláveis foram poeticamente colocadas em valor.
MACHADO, Antonio. Juan de Mairena. Tomo I. Madrid: Cátedra,
Referências 2006.
ARANGO, Manuel Antonio. Símbolo y Simbología en la obra de
Federico García Lorca. Madrid: Espiral Hispano Americana. 1995. MARTIN, Eutímio. Federico García Lorca: Un messianisme
humaniste. Paris: Ellipses, 2007.
BELLAMICH, André. Lorca. Paris: Gallimard, 1983.
PINEDA, Daniel. Lorca y el Flamenco. Sevilla: s.n., 2007. p. 169-184.
CIFUENTES, Luis Fernández. (ed.) Estudios sobre la poesía de Lorca.
Madrid: Ediciones Istmo, 2005. RAMOS-GIL, Carlos. Claves líricas de García Lorca. Madrid: Aguilar,
1967.
CUADRA, Pablo Santonio; ARELLANO, Jorge Eduardo. Poesía
Selecta. Caracas: s.n., 1991. SAINZ de ROBLES, F. C. Ensayo de un diccionario de Literatura.
Madrid: s.n., 1972.
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Gitano. In. CIFUENTES, Luis Fernández. (ed.) Estudios sobre la SCHMITT, Thomas. Con las Guitarras Abiertas. El neo
poesía de Lorca. Madrid: Ediciones Istmo, 2005. popularismo... In. Anuário Musical, Madrid. 2011, p.263-282.
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SIEBENMANN, Gustav. Los estilos poéticos en España del siglo XX.


Madrid: s.n.,1973.
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SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ Y ALEJO CARPENTIER: DOS VOCES interrelaciones entre la música y los negros. En numerosas
DEL CARIBE ENTRE IDENTIDADES Y SIGNOS MUSICALES ocasiones Alejo Carpentier hablará del ritmo intrínseco del negro,
Isabel Abellán Chuecos y será en El reino de este mundo donde la insurrección se dará a
Universidad de Murcia través de los tambores de éstos. En otras obras se comprobará esta
idea: así, en La consagración de la primavera Vera montará una
A pesar de la distancia temporal y espacial que separa a coreografía sobre la obra homónima de Igor Stravinsky pero con
Alejo Carpentier y Sor Juana Inés de la Cruz podemos observar, sin bailarines negros, que aportarán ese ritmo intrínseco que les
embargo, que sus obras pueden enlazarse a través de elementos faltara a quienes ya la habían representado bajo el mando de
comunes como la música y las distintas identidades a través de Nijinsky.
ella. Del mismo modo, al igual que esta relación entre la música
Elementos y visiones de la música confluirán y establecerán y los negros, encontraremos otro punto en común entre las obras
una dialéctica entre ambos autores permitiendo unirlos a través de la mexicana y el cubano. Si Sor Juana introduce entre sus versos
de este elemento que marca la ligazón y la interdisciplinariedad, literatura proveniente de la cultura mexicana, también en la obra
así como permite dar sentido a este estudio. de Alejo Carpentier podremos ver transculturaciones relacionadas
Es así como cobrará especial relevancia en ambos la con esta mezcla e interrelación de culturas, entre lo occidental y lo
representación del negro a través y desde la música. Si indígena. Un ejemplo de ello podemos encontrarlo en las
históricamente el negro ha sido casi un “tabú”, en este caso puede procesiones que aparecen descritas en La música en Cuba,
convertirse en tótem. Podemos observar cómo en la narrativa de procesiones que también aparecerán recreadas en obras de ficción
Alejo Carpentier se le asigna al negro un papel primordial frente a como Los pasos perdidos, o los ritmos del ritual abakuá que Vera -
la música, con un ritmo intrínseco, que hace que podamos verlo tras haber podido contemplarlos- piense usar en el montaje de su
incluso como superior y magnánimo. Por su parte, en la obra de coreografía en La consagración de la primavera.
Sor Juana se reivindican las distintas músicas –cosa que también Por otra parte, en la canción del Negro que se cante en el
sucede en la obra de Alejo Carpentier- y entre ellas se encuentran “Villancico VIII” del grupo “Concepción, 1676. Villancicos que se
las canciones que realice “el Negro”, siempre así, con mayúscula, cantaron en la S. I. Metropolitana de Méjico en los maitines de la
pudiendo relacionarlo también –aunque sea sólo por su forma Purísima Concepción de Nuestra Señora, año de 1676, en que se
léxica- con esta magnitud. imprimieron.” (DE LA CRUZ, 1976, p. 18) se hablará de una culebra
La relación que se establece en los Villancicos de Sor Juana (el Demonio con ojos de culebra), que nos permite establecer una
Inés de la Cruz entre la música y los “negros” no puede dejar de relación con las antiguas danzas de la culebra que se dieron (y se
llevarnos a pensar en Alejo Carpentier. Como en los escritos de la dan) en toda Latinoamérica, y que aparecen recogidas en diversos
mexicana, también aparecerán en los del cubano las textos. Estas muestras de la cultura popular -como son el baile de
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la culebra- se verán también en la ficción, como es el caso en que ven, ven, ven.
Filomeno (el criado negro que aparece en Concierto barroco, de Y haciendo ademán de matar la sierpe del cuadro con un
Alejo Carpentier) comenzará a interpretar y al que se unirán enorme cuchillo
personajes como Doménico Scarlatti, Antonio Vivaldi y Jorge de trinchar, gritó:
Federico Haendel (aunando la música popular y la “culta”). -La culebra se murió,
Filomeno contemplará un cuadro de Eva tentada por la ca-la-ba-són,
Serpiente; sin embargo, en él, la protagonista no sería tanto Eva Son-són
como el reptil, enorme, enroscado en tres vueltas en el árbol y Ca-la-ba-són,
pareciendo tentar con su mirada maligna a probar la manzana a Son-són. (CARPENTIER, 2006b, p. 154-155)
todos aquellos que observaran el cuadro más que a la Eva de tono Este baile, por otra parte, recuerda a diversas canciones
insignificante junto a ella. Así comenzará el baile con atmósfera de populares como sería, entre otras, “Se va el caimán”, de origen
ritual: colombiano pero que se canta y baila incluso actualmente por
Filomeno se fue acercando lentamente a la imagen, como si Latinoamérica.1
temiese que la Serpiente pudiese saltar fuera del marco y, Y mientras en los versos de Sor Juana nos encontrábamos
golpeando en una bandeja de bronco sonido, mirando a los al Diablo con “ojo ri culebra” (DE LA CRUZ, 1976, p. 27) serán los
presentes como si oficiara en una extraña ceremonia ritual,
ojos de la Serpiente los que parezcan mirarnos malignamente
comenzó a cantar:
desde el cuadro que ve Filomeno en la obra de Carpentier, y que
-Mamita, mamita,
ven, ven, ven. propicia todo el baile ritual casi como un exorcismo hasta “matar”
Que me come la culebra, a la culebra. Será también el Negro –como en el caso de la obra de
ven, ven, ven. Carpentier- en los versos de Sor Juana quien asocie en su canto al
Diablo con los ojos de culebra:
—Mírale lo sojo
¡Válgati Riablo, Rimoño,
que parecen candela.
con su ojo ri culebra,
—Mírale lo diente
¿Quiriaba picá la Virgi?
que parecen filé.
¡Anda, tomá para heya!
—Mentira, mi negra, -¡Vaya, vaya, vaya!
ven, ven, ven. -¡Zambio, lela, lela! (DE LA CRUZ, 1976, p. 27)
Son juego é mi tierra,

1
Aquí puedo señalar mi propia experiencia en un tren en Argentina, donde pude
presenciar una interpretación de esta canción popular, o diversos ejemplos por
distintos lugares de Colombia, corroborados por amigos.
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Esta imagen de la Serpiente que es el Demonio y que quiere en escena “un Negro y la Música Castellana” (DE LA CRUZ, 1976, p.
picar a la Virgen nos lleva también a la idea de la iconografía de la 26). Se establecerá un diálogo entre ellos, entrando en la ancestral
Inmaculada Concepción pisando a la Serpiente, superando al dicotomía entre negro y blanco, donde la Música Castellana le dirá
pecado y a la tentación –y superando así la imagen de otra gran al Negro que se vaya fuera de esa fiesta, pues “en Fiesta de luces,
mujer bíblica, Eva, quien sucumbió a la tentación que se viera / toda de purezas, / no es bien se permita / haya cosa negra!” (DE
personificada en esa Serpiente ofrecedora de manzanas-, así como LA CRUZ, 1976, p. 27).
esa imagen de San Miguel venciendo a Lucifer o San Jorge frente Ya se ha hablado anteriormente de la consideración del
al dragón. ritmo propio del negro, que se diferenciaba del de la música
Por otro lado, la ancestral relación entre la serpiente y el occidental. Los ritmos del negro son muy distintos a la música de
mal. La idea de la serpiente aparece en todas las culturas occidente, y entre ellas, la “Música Castellana” que apelará al
relacionada con éste, que, además, va relacionando la serpiente, Negro y le dirá que se aleje de donde ella se encuentra.
el mal, el pecado, lo que acecha y/o amenaza… Sin embargo, en Esta dicotomía entre la música “propia” de negros y de
algunas culturas, la Serpiente torna su función y la vemos como blancos se vería también en alguna de las obras de Alejo Carpentier
uno de los dioses supremos, como pasaría con Quetzalcóatl –no –como hemos señalado-. Siguiendo con este tema, será en La
olvidemos su relación con México-, asimilando en la Serpiente consagración de la primavera donde podamos observar cómo los
Emplumada tanto lo humano como lo divino, el bien y el mal, lo nuevos ricos desprecian la música de negros, diciendo de ella que
físico y lo espiritual… solamente debe ser interpretada y escucharse en cabarets,
Siguiendo con lo musical y dejando las Serpientes a un lado, quedando relegada de otros ámbitos más nobles o puros. De igual
en ritmo de jácara estará escrito el “Villancico VI” del Segundo modo, se verá el fuerte contraste entre los ritmos propios de los
Nocturno enmarcado en el grupo “Concepción, 1676. Villancicos negros y los blancos, aunque esta vez será todo un descubrimiento
que se cantaron en la S. I. Metropolitana de Méjico en los maitines ante los ojos de Vera, la bailarina rusa que pensará conformar una
de la Purísima Concepción de Nuestra Señora, año de 1676, en que compañía de ballet con bailarines negros para montar La
se imprimieron.” (DE LA CRUZ, 1976, p. 18). Este villancico tendrá consagración de la primavera de Stravinsky que tantas críticas
también temática musical. “¡Oigan, miren, atiendan / lo que se hubiera tenido en el montaje occidental. Igualmente, siguiendo
canta, / que hoy la Música viene / de mucha gracia!” (DE LA CRUZ, con estas distinciones entre blancos y negros, por exigencias de
1976, p. 24). esta nueva clase rica, Vera se verá obligada a tener dos academias
Será dos villancicos más tarde, en el “Villancico VIII” del de baile distintas, una para las señoritas blancas y otra donde
mismo grupo –del que ya hemos señalado algunos aspectos al incluirá danzantes negros, aunque no sea del agrado de muchos.
tratar la relación entre la música y los negros- cuando la Música no “Ca-la-ba-són, / Son-són” (CARPENTIER, 2006b, p. 155)
aparezca solamente nombrada sino que se personificará, entrando cantaba Filomeno en Concierto Barroco, y en los Villancicos de Sor
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Juana un “Negro [...] cantó al son de un calabazo” (DE LA CRUZ, resonancias hispanas; por otra, con tres artistas –un indio, un
1976, p. 39). La calabaza que se percute, se canta al son del negro y un blanco (poeta, pintor y músico respectivamente)- que
calabazón, se une la percusión, lo intrínseco del ritmo negro, el le recordarían a los Reyes Magos, y que prestarían mucho más
cantar tocando cualquier instrumento que pueda percutirse y interés por Occidente que por toda la riqueza que se daba en su
resonar. Las canciones de negros que ya habían aparecido en la propio continente; sin olvidar el momento en que Marcos (hijo del
serie de villancicos dedicados a la Virgen, ahora aparecen en los Adelantado) fuera a buscar su guitarra bajo la lluvia e hiciera sonar
que van destinados a San Pedro Nolasco (“Tumba, la-lá-la; tumba, en ella un romance “sobre un ritmo que hace correr sangre de
la-lé-le; / que donde ya Pilico, escrava no quede! / ¡Tumba, tumba, negros” (CARPENTIER, 2006a bis, p. 716), aunando las dos
la-lé-le; tumba, la-lá-la, que donde ya Pilico, no quede escrava!” – tradiciones en esa transculturación musical.
de la Cruz, 1976: 39-). Siguiendo con las incursiones de negros, en el grupo
Y si aparecía la calabaza como instrumento de percusión, “Asunción, 1685. Villancicos que se cantaron en la S. I.
también nos encontraremos con la conga (“La otra noche con mi Metropolitana de Méjico, en honor de María Santísima, Madre de
conga / turo sin durmí pensaba, / que no quile gente plieta, / como Dios, en su Asunción triunfante, y se imprimieron en el año de
ella so gente branca.” –de la Cruz, 1976: 40-) o incluso la guitarra, 1685.” encontraremos de nuevo a un Negro que canta a la Virgen
traída en este caso por un Indio (“Púsolos en paz un Indio / que, en la “Ensalada” del “Villancico VIII”, por tanto, como se ha podido
cayendo y levantando, / tomaba con la cabeza / la medida de los comprobar, el motivo del Negro que canta a la Virgen aparecerá
pasos; / el cual en una guitarra, / con ecos desentonados, / cantó trasversalmente en los villancicos de la mexicana.
un Tocotín mestizo / de Español y Mejicano.” –de la Cruz, 1976: Y no sólo las personas, sino también todos los elementos y
41-). Mientras el Negro siempre irá representado por la percusión, la naturaleza en su vasta extensión cantan y celebran la Asunción
es el Indio quien trae la guitarra, y canta un tocotín (que aparecerá de la Virgen. Así, encontramos el “Villancico VII” del Tercero
reproducido completo en los Villancicos) mezclando las lenguas. Nocturno del grupo “Asunción, 1685” en el que el Viento formará
Así, nos encontramos en un mismo grupo con el “lenguaje de los clarines mientras la Tierra sea su caja de resonancia, sin que el
negros”, el español y el náhualt reproducido por Sor Juana, y Agua y el Fuego dejen de ser parte de la fiesta. Las Aves formarán
llenando de musicalidad estos versos que ya estaban llenos de el coro con la Aurora, y se compararán estas fiestas con aquellas
contenido musical, contenido y forma conforman toda la música en que en lugar de Aves se encuentren Ángeles, y las Rosas sean
desparramada por los versos. sustituidas por Estrellas; fiestas, sin duda, que también serían en
Además, este “Tocotín mestizo” recordará de nuevo a una honor a la Virgen. De las fiestas terrenales a las fiestas celestiales,
de las obras de Alejo Carpentier, Los pasos perdidos, donde el pues de eso se trata la Asunción, de su paso de la Tierra al Cielo,
protagonista se encontrará en su viaje, por una parte, con los festejando el triunfo.
punteadores negros que cantarán distintos romances con
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Y entre “voces” y “ecos”, y “oigan”, “atiendan”, “escuchen” ______. El reino de este mundo, en Narrativa completa I.
nos encontraremos con este universo sonoro lleno de “cantos”, Barcelona: RBA-Instituto Cervantes, 2006a.
“Maitines”, “clarines”, “trompetas”, “coros” donde los Villancicos
–ya composiciones musicales de por sí- se llenan de otras músicas ______. Los pasos perdidos, en Narrativa completa I. Barcelona:
de todo tipo y diversidad por entre sus líneas, para deleite de RBA-Instituto Cervantes, 2006a bis.
quienes los disfruten, al igual que sucede por entre las líneas de las
obras de Alejo Carpentier, llenas de música, bandas sonoras de las ______. Concierto barroco, en Narrativa completa II. Barcelona:
obras que no son solamente eso sino que trascienden mucho más RBA-Instituto Cervantes, 2006b.
allá.
Aparecen, por tanto, interrelaciones que nos permiten ______. La consagración de la primavera, en Narrativa completa
encontrar un hilo conductor, revelador y deslumbrante entre III. Barcelona: RBA-Instituto Cervantes, 2006c.
autores alejados geográfica e históricamente –y sin embargo tan
unidos en parte-, así como posibilitan de igual manera establecer DE LA CRUZ, S. J. I.: Villancicos y letras sacras, en Obras Completas
una dialéctica no solamente entre uno y otro, sino también en sus II. Edición, prólogo y notas de Alfonso Méndez Plancarte. México:
propias narrativas, otorgando una nueva visión disparadora y en Fondo de Cultura Económica, 1976.
profundidad y proponiendo nuevos puntos de fuga al tiempo que
ejes axiales en relación a estas cuestiones musicales e identitarias MÉNDEZ PLANCARTE, A.: Edición, prólogo y notas a DE LA CRUZ,
a través de ella. Sor Juana Inés: Villancicos y letras sacras, en Obras Completas II.
México: Fondo de Cultura Económica, 1976.
Referencias
CARPENTIER, A.: “Del folklorismo musical”, en Tientos y
diferencias. Montevideo: ARCA, 1967.

______. La música en Cuba. México: Fondo de Cultura Económica,


1972.

______. “El folklorismo musical”, en Letra y solfa. I. Visión de


América. Selección, prólogo y notas de Alexis Márquez Rodríguez.
Buenos Aires: Lotus Mare, 1976.
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O MOTIVO DO DESLOCAMENTO EM SAÑA, DE MARGO as marcas dessa experiência, resultado de uma expressão do
GLANTZ indizível. Tal poética, chamada de “escrita nômade”, corresponde
Isabel Jasinski à plasticidade do espaço da linguagem, seus modos de
UFPR posicionamento no/sobre o mundo, definindo um processo de
percepção e concepção, conforme considera Christophe Bident
Inscrever, marcar na fita da cronologia durações magníficas, em “Les mouvements du neutre” (2010). Em consequência, o
instantes que reúnem e resumem a ideia e depois deslocamento se efetua como articulação entre corpo e escrita ao
sintetizam o espírito do deslocamento. Michel Onfray definir um espaço de ação política na literatura, não um lugar,
Es en los estados de transición donde reside el peligro, por porque não se prende à identidade ou à legitimidade, mas à
la simple razón de que toda transición entre un estado y experiência compartilhada de ser outro por meio da arte. A escrita
otro es indefinible. Los híbridos y otras confusiones entran literária se torna um caminho possível de sobrevivência e
en el orden de la abominación. Margo Glantz resistência contra os discursos totalitários.
A “saña” – do latim insânia, sanna/sannae, rancor, ímpeto
Introdução de raiva, crueldade – é o pano de fundo dos inúmeros textos que
compõem a obra de Glantz. Fundamenta a ideia daquilo que é
Esse trabalho pretende considerar os aspectos tomado de “furor” como sendo algo condenável, a ser reprimido e
relacionados ao tema do “deslocamento” em Saña (2010) da marginalizado porque está fora do modelo de comportamento
escritora mexicana Margo Glantz e sua relação com uma poética adequado, fora do lugar. A “saña” se converte em atitude
que se sustenta sobre a ideia de atravessamento de processos de deslocada em relação ao Estado, à Língua e à Religião, base da
significação diferenciados. O motivo “sair do lugar” tanto está identidade que, no entanto, indica a existência de fissuras,
conectado à viagem e à percepção do “absolutamente outro”, consideradas como “abominações” que recheiam os bestiários do
como à narratividade das outras artes nessa obra, vivenciado por imaginário ocidental. A contestação “ensañada” em Saña se
uma percepção monstruosa do mundo. Todos esses fatores se apresenta nos temas elaborados pela diversidade de textos curtos,
projetam como corpo-imagem, nas obras de Francis Bacon, por na sua maioria narrados em primeira pessoa na forma de
exemplo, constantemente revisitada pelo narrador nos pequenos testemunho, e pela forma de organização fragmentada do
textos que compõem o livro. Assim também os relatos dos passos conjunto, mutilada como a narrativa de Sherazade. Os textos
nômades de Rimbaud nas colônias francesas da África, as viagens transitam entre relatos de viagem por espaços múltiplos, história,
de um narrador desconhecido por Varanasi na Índia, as notas escritores, pintores, músicos, interpretações das diferentes
estrangeiras de Domenico Scarlatti na Espanha do século XVII ou linguagens artísticas, moda, fotografia, manicômios, campos de
os relatos dos sobreviventes de Auschwitz que escreveram sobre concentração. Isso põe em desordem qualquer noção de
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legitimidade e estabilidade da linguagem literária, museu e em um trem, segundo o narrador de “Vialidad” (GLANTZ,
problematizando a escrita como instrumento de esclarecimento, 2010, p. 107). Estar em trânsito propicia o contato com a diferença,
sendo ela mesma deslocada frente a um real inapreensível. mais que isso, alimenta a “diferância”, como considera Nancy
Supomos que o motivo do deslocamento, como ”estar fora sobre a prática derridiana, a “ação de diferir”:
do lugar”, na obra da escritora mexicana, problematiza o sentido [...] se trata de la definición del sentido, mejor aún, del
de anomia característico do que chamamos “escrita nômade”. A sentido del sentido, de no ser ni palabra ni concepto, ni
arte não é da ordem do sagrado, ela é híbrida, contaminada, não significante, ni significado, sino envío y desvío, y sin
obedecendo a nenhuma normativa que predetermine seus modos embargo, y por esto mismo, gesto de escritura, apertura y
forzamiento de un ha cuya significación y destinación
expressivos. Seu objeto é aquilo que escapa às regras, daí sua
completas (la à del ha…) consiste en excribirse: en ir a tocar
liberdade que, contudo, não equivale mais a um sentido de
lo concreto del mundo allí donde la existencia hace sentido.
autonomia segundo as prerrogativas modernistas. A partir do (NANCY, 2003, p. 32)
sentido de relação que o deslocamento favorece, manifestando-se
como um processo fractal de significação, como entende Jean-Luc A ação de diferir está imbuída da saída de si característica
Nancy (2003), o texto fala do conflito de identidade resultante do do deslocamento, que vive o processo de significância como
processo inconclusivo e inconforme da escrita literária, marca do potencial instituidor do sentido, sempre em movimento, e
corpo que retém no olho, no ouvido e no texto o grunhido animal sustenta o gesto da escrita, ou “excrita”, enquanto abertura “em
que a razão nega. direção ao” que existe. O fluxo das coisas, que se apresenta para o
narrador viajante de Saña, fica registrado como uma enumeração
Deslocamento: identidade ou aflição? de percepções, gerando a vertigem de sentido na leitura.
O deslocamento implica uma ação oposta a estar num En las calles multitudes, un revoltijo de camas, desechos,
anuncios, peatones, bicimotos-taxis (antiguos rikshós
lugar, um movimento de saída equivalente à ideia de
modernizados), camiones que transportan objetos
desterritorialização, que possui uma dimensão temporal tanto
inverosímiles. Los tendidos eléctricos caprichosamente
quanto espacial, interna tanto quanto externa, intensiva tanto entreverados compiten con las raíces de los árboles: forman
quanto extensiva, como disseram Deleuze e Guattari (1995). O absurdas y dislocadas figuras; en las aceras, artesanos,
aspecto mais evidente do deslocamento em Saña são as inúmeras practican los más antiguos oficios del mundo: barberos,
viagens que o protagonista anônimo efetua por diferentes países, cerrajeros, dentistas, cirujanos, masajistas, basureros,
relatando seu interesse pela diversidade cultural: do México aos herreros… Banderolas coloridas, guirnaldas de flores rojas y
Estados Unidos, à França, à Alemanha, Inglaterra, Índia. Seus amarillas para las ofrendas, templos grotescos, repletos de
relatos de viagem revelam a busca pela aquisição de conhecimento retratos y de estatuas disconformes. / Deambulan a media
por meio da “contemplação voyerista”, uma ação lícita em um calle las vacas, inconmensurablemente flacas, los monos y
los perros. Vuelan los pájaros, se posan en los cables de
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electricidad, caen sus cadáveres al suelo. [...] El ruido es degradantes é extensa: secreções, doenças, sadismos,
inmisericorde, los carros ostentan un letrero: favor de tocar morbosidade, violência, imundície, contaminação. Todos são
constantemente la bocina. / La contaminación, tremenda. produto das ações humanas, tratadas com ironia pelo narrador,
Frente a Dheli o a cualquier ciudad hindú – Bangladore, por como no texto em que relata as estratégias adotadas pelos oficiais
ejemplo, y no digamos Bombay o Calcuta –, el valle de
nazistas relativo à Solução Final para a questão judaica, na
México y su ciudad conservan su antigua y maravillosa
conferência de Wannsee, com detalhes repugnantes, intitulado
transparencia. (GLANTZ, 2010, p. 283)
“Intercambio cultural” (GLANTZ, 2010, p. 62), ou a menção ao
No limite do mundo ocidental, o narrador demonstra seu corte de cabelo que estava na moda em Hong Kong, conhecido
conflito com o processo de organização e significância do outro. como “o da guilhotina”, porque era usado para retirar o cabelo do
Nesse caso, a escrita se torna estranhamento e conflito que pescoço nas execuções com esse instrumento. Este texto,
reafirmam a origem e a identidade. A atitude do viajante é sempre chamado “Salón de belleza” faz uma menção direta ao livro de
distanciada, eventualmente lírica, muito próxima ao do narrador Mario Bellatin (2009), a quem Glantz dedica sua obra, não
viajante de El jardín de las delicias do escritor espanhol Francisco somente pelo título, mas pela inversão no uso dos referenciais da
Ayala (1999), publicado no México pela primeira vez em 1969. A morte para o embelezamento. De certa forma, esses exemplos
viagem como busca de conhecimento, as visitas aos museus e colocam em pauta a mundaneidade do sagrado, interrompendo a
sítios arqueológicos são indícios claros disso (Guggenheim em separação de elementos dissímeis e colocando sua função em
Nova York, Museu Picasso em Paris, ruínas de Khajuraho na Índia), conflito.
obedece a uma motivação racional e individual que contribui para Talvez um dos exemplos mais constantes, em Saña, do
a positividade do eu em detrimento do outro, não se estabelece a deslocamento errante seja o de Rimbaud, que marca com essa
relação, mas se reitera o controle do significado, do déspota- condição a falta de direção que o poeta tomou ao abandonar as
significante e do sujeito-legislador, como consideramos letras e partir para o continente africano em busca de dinheiro. O
anteriormente. Apesar de oposta, porque negativa, sua postura é primeiro texto da série, “El caminador”, apresenta-o em relação
equivalente à de Colón em “Turismo informal” (GLANTZ, 2010, p. com outros personagens, respondendo a uma discordância da
281), a do distanciamento para reafirmação de si em contraste sociedade em que vivia ou a uma inquietação sobre as
com o outro. determinações do pertencimento: “su rebelión se inicia en los
Porém, tudo o que Colón afirmava com maravilha e pies” (GLANTZ, 2010, p. 13). No entanto, a rebelião, que
assombro, o narrador destaca com espanto e repúdio em relação responderia de certa forma a uma vinculação entre vida e arte,
ao outro que se busca conhecer: “espacios ominosos; por ellos se num momento em que a arte determinava as escolhas de vida, é
desplazan las historias funestas relatadas em voz baja” (GLANTZ, matizada pela obscuridade das motivações que definiram um
2010, p. 51), mostram o lado daquilo que não se conta, a contra- rumo para as suas andanças nômades e por uma condescendência
propaganda das veleidades humanas. A coleção de aspectos
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com a dominação colonial, ou seja, com as determinações de poeta-colonizador, caminhante que não conseguia sair do lugar
verdade de um Estado autoritário, exposta em uma missiva para a que o recebeu (GLANTZ, 2010, p. 73), mal hóspede que alimentava
família, em busca de aceitação. a violência ao traficar armas, um fracasso para os negócios
Es una carta-puente. / Reseña una de sus ocupaciones (GLANTZ, 2010, p. 234). Rimbaud, poeta do estranhamento do
favoritas, la de caminar, a la que ha dedicado una buena outro que é ele mesmo, cuja incoerência e inconsistência se
parte de sus años. Pero esa caminata ya no es – en mostram propícias para considerá-lo como personagem dessa
apariencia – un vagabundeo, forma deambulatoria que, escritura nômade em Saña, que se efetiva com o próprio corpo.
junto con la práctica de la literatura, su madre abomina. Es
O conflito gerado pela concretude do mundo, a
es camino emprendido hacia la redención: la estabilidad
“diferância”, “ali onde a existência faz sentido”, para retomar as
nómada y burguesa del comerciante colonial, instalado en
las posesiones francesas de África. Otro de los bizarros palavras de Nancy, produz efeitos na linguagem, seja a vertigem
diseños de los puentes. (GLANTZ, 2010, p. 19) do colecionista de palavras e imagens, seja a pulsação ou o olhar
da obra de arte. É o caso de Domenico Scarlatti, “quien vivió la
A redenção, a estabilidade burguesa e a propriedade mayor parte de su vida en un país de extraños y fascinantes
colonial são contrárias ao movimento nômade, então contrastes” (GLANTZ, 2010, p. 204), por seguir seu mecenas, Maria
“estabilidade nômade” constitui um paradoxo de resolução Bárbara, princesa portuguesa que se tornou rainha da Espanha.
impossível, reforçado ainda pela imagem da vida de Rimbaud Também o caso de Doménikos Theotokópoulos, conhecido como
como partida em duas metades irreconciliáveis, em “El corte”: a El Greco, que se mudou para Toledo em 1577 e viveu lá até a sua
do poeta revolucionário e a do burguês mesquinho e morte. A relação entre ambos os artistas é o trânsito entre
estelionatário: “El corte se instala en un incidente gramatical: el mundos, mas também o trânsito entre épocas: o pintor uniu a
ser radical del poeta, su Je est un autre, se transforma y produce tradição bizantina com as tendências ocidentais do Renascimento
un ser extrañado definido así por Mallarmé: alguien que había sido italiano, o músico expressou o contraste do período por meio das
él, pero que había definitivamente dejado de serlo” (GLANTZ, minúcias idiomáticas da escrita a duas vozes do seu instrumento,
2010, p. 31). o cravo, cujos efeitos orquestrais são apagados pela interpretação
Duas posturas que colocam a Rimbaud como estranho a si moderna ao piano.
mesmo, em relação à normalidade e à normatividade, em relação Viajero errante entre dos mundos, explica el pianista y
à excentricidade que ele cultivou. Nesse sentido, ele se mantém clavecinista alemán Christian Zacharias (nacido en 1950), no
fiel ao processo de estranhamento que institui a dúvida no lugar solo por la geografía sino por la historia musical de su
das certezas, assume o outro para o outro que ele optou ser na tiempo, conjunta el barroco con el clásico naciente y es
juventude e garante o direito à opacidade, à contradição e à quizá este doble aspecto el que le otorga a su música ese
indecibilidade que instituem a surpresa. Acaba refém de suas carácter singular y ese rigor implacable. (GLANTZ, 2010, p.
próprias escolhas, vítima da hostilidade pela sua condição de 243)
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Em Saña, são inúmeros os exemplos em que os o outro se manifesta pela sua presença enquanto infinito do
personagens são colocados em relação, como Proust e Claude pensamento, destacando sua impessoalidade e atopia,
Simon, em “Cuerpos incandescentes” (GLANTZ, 2010, p. 129), manifestadas como percepção no limite da percepção. O neutro,
Glenn Gould, Mozart, Haydn em “Efemérides” (GLANTZ, 2010, p. segundo essa perspectiva, seria a condição mesma da relação,
144), Nefertiti, Carlos V, Paul Klee, Max Ernst, Andy Warhol, Joseph equivalentes à opacidade e ao pensamento do rastro / resíduo de
Beuys e Sor Juana Inés de la Cruz em “Uma verdadeira beldade” Glissant (2005), e ao processo de dessubjetivação requisitado por
(GLANTZ, 2010, p. 233), para citar apenas alguns textos. Por esse Deleuze e Guattari (1995). Esse modo de percepção no limite da
motivo, a relação pode ser vista como determinante das percepção estabelece o movimento na direção do outro por meio
estratégias de significância em Saña, concebida dentro do da relação entre diferentes linguagens artísticas, que define
pensamento da errância, porque se constrói sobre as qualquer forma de arte como escrita e a escrita como arte, ao abrir
ambigüidades, as contradições e as mudanças na configuração do a palavra para o potencial sensível das referências da memória e
sentido. Elas sustentam um modo de ser e expressar que se para o indizível. Daí o trânsito dos textos que compõem a obra pela
fundamenta na associação de referências, muitas vezes produção artística de músicos e pintores, além de escritores.
aparentemente aleatória, mas que constroem a imagem de um O pintor que mais se destaca, talvez pela emergência do
colecionista altamente culto que monta máquinas de significação, corpo como contestação da autoridade do belo e do racional, é
películas com fotogramas avulsos, capazes de contar histórias e Francis Bacon, e, por meio dele, Picasso, Giacometti, Lucien Freud,
criar novas dinâmicas de sentido. Stanley Spencer, entre outros. Além dos elementos biográficos
Essa estética da relação, que parte da abdicação do mesmo que produziram efeitos pictóricos nas suas obras, como a sua
e da repetição, sem a apropriação do outro, prerrogativas de homossexualidade, se destacam o processo de criação e sua
autoridade, remetem à ideia de neutro em Blanchot, a partir das obsessão figurativa. O estúdio do pintor estava repleto de
reflexões de Bataille, de Lévinas, de Barthes, como aponta reproduções fotográficas maltratadas de obras de outros pintores,
Christophe Bident (2010) em “Les mouvements du neutre”. nas paredes e no chão, vendidas em leilões após sua morte,
[...] il me semble que le neutre leur est apparu, chaque fois, algumas das quais evitava conhecer o original, como a de
comme le concept ou le percept susceptible de repenser Velázquez, por exemplo: “para la composición de sus cuadros,
une émergence de l’être, du corps ou du visage dans un utilizó solamente una fotografia” (GLANTZ, 2010, p. 74). O acesso
espace strié de négations qui s’imposaient avec une a outras obras de arte se dá mediado por técnicas, a priori,
brutalité totalitaire visant à écarter toute possibilité de
segundo um ponto de vista tradicional, alheias à pintura, porque
renversement dialectique. (BIDENT, 2010, p. 14)
não importa o original, mas a percepção que a imagem reproduz.
O neutro equivale a uma forma de não-saber que reage a A Bacon le gustaba ejercitarse mirando las imágenes más
qualquer sentido pré-estabelecido, como saber e poder sobre o diversas; en su estudio, un montaje reunía, clavados a la
mundo. É a emergência do outro numa espécie de diálogo em que pared con chinches, retratos de Goebbels, Inocencio X
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pintado por Velázquez, una foto de Baudelaire, un misma forma en que se está consciente de la vida. (GLANTZ,
matadero exhibiendo enormes trozos de carne sostenidos 2010, p. 158)
por garfios, una fotografía magnificada de una boca abierta
A vida proporciona os temas limite para Bacon, que ele
con los dientes muy maltrechos y abrillantados por la luz,
las fotografías de personajes en movimiento de Muybridge. sempre buscou para a sua pintura. Assim também para Stanley
/ Varias fotos desparramadas en desorden por el suelo Spencer, que influenciou Francis Bacon e Lucien Freud pela visão
fueron encontradas en el taller de Reece Mews de Bacon, do corpo humano, muito próxima a uma “animalidade de
después de su muerte. Una de ellas representa el despacho matadero”, segundo o narrador, “una visión que aniquilaba
de León Trotsky cuando fue asesinado en México, la totalmente una forma de sexualidad y una forma de vida inglesas,
colocación de los objetos y la del cuerpo recuerdan las conocidas como victorianas” (GLANTZ, 2010, p. 223). Spencer
netamente el ala derecha de un tríptico realizado por el usava a deformidade da sua esposa, Patricia Preece como um traço
pintor anglo-irlandés entre 1986 y 1987, pintura cuya especial que marcava sua singularidade, contra o padrão de beleza
fuente fotográfica poco directa resalta por su falta de clássico, equivalente à perfeição que serviu de parâmetro de valor
mediación. (GLANTZ, 2010, p. 195)
para a consideração da arte. Isso dá margem a introduzir outro
Estranhos caminhos nos processos de criação de Bacon que tópico relativo à questão do deslocamento, diferente da viagem,
sublinham sua excentricidade, em vista dos interesses da relação, das linguagens: a questão do outro da loucura, da
composicionais e da pintura não figurativa a partir da técnica feiura, da deformação.
figurativa da fotografia, “dentro de mí, las imágenes engendran las São inúmeros os textos em Saña que falam das
imágenes” (GLANTZ, 2010, p. 121). Interessa-lhe a mancha determinações da moda e da beleza, o vestuário, os sapatos e
pictórica, metaforicamente representada pela sombra arrancada acessórios, as modelos, em conflito com eventos que relativizam o
do contexto, como meio de detecção de uma força invisível, como padrão imposto, ou mostram o poder da moda em contraste com
o grito, não o horror. Para Bacon, na visão de Glantz, se pinta os valores morais tradicionais, como o caso da modelo Kate Moss
porque não se pode explicar. que se casou de preto (GLANTZ, 2010, p. 100). O conflito entre
En la pintura de Bacon hay tres fuerzas, una es invisible, esses mundos se torna evidente na comparação que o narrador faz
aísla: la segunda deforma, se apodera de los cuerpos y la de dois tipos de construção corporal contemporânea: o Cindy
cabeza de la figura. La tercera disipa, aplana, difumina. Crawford e o de Lucien Freud, o corpo artístico e o corpo produto
Aunque Bacon prefiere considerarse como un pulverizador (GLANTZ, 2010, p. 22). Como no caso da moda, a imagem do corpo
o un excavador, actúa más bien como un detector. Si la vida
é parte determinante do espetáculo, a fotografia é usada como
excita, la muerte, su opuesto (como una sombra), debe
registro da loucura no manicômio “La castañeda” na Cidade do
excitar aún más. O quizá esa no sea la palabra adecuada, la
muerte no excita: es necesario estar consciente de ella de la México em contraste com a encenação da caridade burguesa.
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Fotografías de locos, fotografías de La Castañeda, un 2010, p. 301). Verbalizar a loucura torna-se um meio de acessá-la
manicomio célebre y fastuoso (por su arquitectura) que para compreendê-la, o outro não é aceito em um processo de
ahora casi nadie recuerda, locos reducidos a la hospitalidade incondicional, precisa ser interpretado. Esse é o
impersonalidad conceptual de la falta de nombre, exceso de processo de construção do deslocamento em Saña, como se
presencia y desconocimiento de sí mismos, locos detenidos
apresenta até o momento.
en su pose demencial: la joven de larga cabellera y vestido
O que foge à lei da palavra também remete às abominações
decente que se deja retratar asumiendo sin saberlo la
silueta y el grito que hicieran famoso a Edvard Munch. Los físicas, enquanto formas deslocadas da normalidade. Os bestiários
locos-locos y sus espectadores, los que visitan el asilo como (p. 93), os “monstruários” (p. 268) e a “zoologia americana” (p.
si se tratara de un zoológico, los que inauguran un sitio de 278) se equiparam a processos de nomeação da extravagância
reclusión como símbolo del Porfiriato y las fiestas del para dar-lhe um lugar no espaço do conhecimento e da existência,
centenario de la Independencia (coinciden en toda América: sem o qual ela equivale a nada, à ausência sem presença. O neutro
1810, 1811); en el año de inicio de la Revolución Mexicana, blanchotiano, conforme Bident, não tem lugar nos territórios de
la última gran construcción de don Porfirio Díaz, edificio Sañas. No mesmo sentido, os defeitos físicos não impedem a ação,
diseñado por su hijo, con el objeto de equiparar a México como narrado em “Proezas” (GLANTZ, 2010, p. 189), e as
con las grandes ciudades modernas: un monumento mutilações resultantes de forças externas encontram certa
singular para el aislamiento de quienes con su patología
justificativa enquanto perda, castigo ou desejo, marcando a
degeneran la raza. (GLANTZ, 2010, p. 35)
singularidade do indivíduo, como se vê em “Despojos” (GLANTZ,
Em outro texto, o narrador efetua uma análise dos recursos 2010, p. 322). Por outro lado, as atrocidades levadas a cabo nos
de escrita na fotografia dos loucos de “La Castañeda” por meio da campos de concentração, como Auschwitz, são condenadas como
descrição minuciosa dos elementos figurados, para acentuar as processos de animalização do ser humano, cujos corpos são
características patológicas dos enfermos e o contraste em relação usados como moeda de troca, alcançando um estado de
à normalidade das estudantes de famílias poderosas que visitam o aviltamento a ponto de perder qualquer sentido de moral, de
hospício como exercício de filantropia (GLANTZ, 2010, p. 247, 248). sacralidade ou de identidade. Os sobreviventes de Auschwitz,
Porém, o espetáculo denuncia o desconforto das visitantes frente como Primo Levi, Jean Améry (Hans Mayer), Paul Celan e Georges
a um mundo que desconhecem, que escancara a “indecência da Perec testemunharam o conflito da identidade judia produto das
loucura”, do patológico e obscuro, chegando ao ponto do narrador imposições do Estado totalitário por meio da escrita, “se cuenta o
se perguntar: “[...] ¿qué es lo normal y qué la enfermedad?”. Para se dice, grados diversos del lenguaje y del testimonio: A fin de
o narrador, a experiência da loucura não tem relação com as cuentas, ¿quién testimonia por el testigo?” (GLANTZ, 2010, p. 237).
figuras representadas numa fotografia, a não ser que seja A escrita se revela como modo de sobrevivência:
verbalizada como facilitador para a compreensão, pois a loucura No sé si lo que tuviera que decir no se dice porque es
corresponde à ausência de linguagem e de uma obra (GLANTZ, indecible (lo indecible no está agazapado debajo de la
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escritura, es lo que la ha hecho estallar); sé que lo que digo Para Bataille, a lenda, a mitologia, a literatura são as únicas
es vacío, neutro, signo de una aniquilación total. / Es eso lo opções para revelar sua desmesura e a verdade dos crimes
que digo, es eso lo que escribo y es eso y solamente eso lo verdadeiros, observa o narrador de “Cadáveres” (GLANTZ, 2010, p.
que se encuentra en las palabras que trazo y en las líneas 310). É isso que busca em Saña, ao tratar do indizível, dos
que esas palabras designan y en los blancos que deja
deslocamentos de sentido e da fragmentação narrativa? Em caso
aparecer el intervalo entre las líneas; aunque pudiera
positivo, como tendemos a considerar, então a escrita propõe
detectar mis lapsus… solo encontraré el último reflejo de
una palabra ausente a la escritura, el escándalo de su questões de interesse para pensar a escrita nômade, mas não
silencio y de mi silencio. / No escribo para decir que no diré chega a elaborar processos de sentido relacionados à
nada. Escribo: escribo porque vivimos juntos, porque fui desterritorialização e à neutralidade, necessários para a prática da
uno entre ellos, sombra entre sus sombras, cuerpo cerca de “diferância”. Certamente, isso não diminui a contribuição da obra
sus cuerpos; escribo porque ellos dejaron en mí su marca para a reflexão sobre o motivo do deslocamento.
indeleble y su huella es la escritura, su recuerdo está muerto
a ella, pero la escritura es el recuerdo de su muerte y la Considerações finais
afirmación de mi vida. (GLANTZ, 2010, p. 266) “Ensañarse” é o meio para alcançar a conclusão dos
É considerada como uma marca corpórea, efeito da projetos humanos, relacionado a um sentido de totalidade e de
pressão tátil sobre o papel, que detém o olho na sua marca ou o integridade que são a marca da divindade no corpo humano,
ouvido na sua projeção vocal, nos relatos de Sherazade com os considera o narrador do último texto de Sañas, “Integridad”.
quais compra vidas, usando a mutilação como um dos “Ensañarse”, na perspectiva teórica adotada neste trabalho, pode
procedimentos de escrita, porque fragmenta, cinde, intercala corresponder à pulsão da saída de si no movimento nômade que
discursos diferentes, poemas, parábolas, reflexões filosóficas: propicia a troca por meio da relação. Contudo, esse movimento
“escribir se convierte así en un acto sagrado, el remate de la não pode ser totalizado, permanece inconcluso,
mutilación, o mejor dicho de la marca corporal que al transcribirse fundamentalmente profano e profanador. A arte, segundo a
al lienzo, o quizá a ese sudario que llevan bajo el brazo los dolentes estética da relação e do neutro, não é da ordem do sagrado, ela é
en Las mil y una noches, inmortaliza” (GLANTZ, 2010, p. 262). O híbrida, contaminada, inconforme, conflituosa. O deslocamento,
resultado final é o pertencimento e a identificação, que devolve o nesse sentido, não se submete a nenhuma lei, antes circunscreve
caráter sagrado à escrita e ao corpo, não pela técnica, mas pelo um espaço de anomia. Daí sua negação dos discursos formais, o
sentido que constrói, como um escudo. Daí a sua relação com a Estado, a Religião, a Língua.
tatuagem, pintura viva, chamada irezumi em japonês, que Apesar de enfocar as chamadas “abominações”, efeito
sobrevive à morte. dos deslocamentos, ainda predomina uma tentativa de
dominância e controle do sentido, nas redes criadas por Margo
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Glantz em Saña. A tentativa de dessubjetivação, pela ONFRAY, Michel. Teoria da viagem: poética da geografia. Trad.
multiplicidade de testemunhos, pelas releituras anacrônicas dos Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2009.
diversos modos de relação, pela fragmentação textual e pelos
relatos de viagem, contudo, inscrevem – não excrevem –durações
magnificas na fita da cronologia, como invocou Michel Onfray,
sintetizando o espírito do deslocamento no sentido de reafirmação
do próprio por meio do conhecimento e da lembrança, não do
esquecimento e do vazio.

Referências
AYALA, Francisco. El jardín de las delicias. Madrid: Alianza, 1999.

BELLATIN, Mario. Salón de belleza. Buenos Aires: Tusquets, 2009.

BIDENT, Christophe. Les mouvements du neutre. Alea. Volume 12.


Número 1. Rio de Janeiro, Pós-graduação em Letras Neolatinas da
UFRJ, Jan/Jun 2010, p. 13-33.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e


esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. V.1.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

GLANTZ, Margo. Saña. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz


de Fora: Editora UFJF, 2005.

NANCY, Jean Luc. El sentido del mundo. Trad. Jorge Manuel Casas.
Buenos Aires: La Marca, 2003.
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IMPRENSA E IMAGINÁRIO: O DISCURSO FEMINISTA DE EMILIA 2002, p.20). Isso fez com que muitas escritoras espanholas
PARDO BAZÁN NA REVISTA "NUEVO TEATRO CRÍTICO" tomassem a palavra para si, de forma a pleitear, através da escrita
Isabela Roque Loureiro de textos impressos, uma imediata revalorização da mulher. E,
UFRJ mesmo diante de certa resistência masculina, elas encontraram
nas atividades jornalísticas um caminho para serem percebidas.
Na sociedade espanhola do século XIX, a preponderância Foi, então, que passaram a conceber a imprensa como um
masculina teve todas as condições para seu pleno exercício. Em La oportuno meio para defender seus ideais e impulsionar
dominación masculina y otros ensayos, Pierre Bourdieu (2010, campanhas a favor de causas que acreditavam ser necessárias para
p.48-49) afirma que a preeminência universalmente reconhecida o desenvolvimento da sociedade espanhola.
aos homens se afirmou na objetividade das estruturas sociais e das Os veículos de comunicação de massa atuam como
atividades produtivas e reprodutivas, e se baseou em uma divisão significativas ferramentas de representação social (TEIXEIRA &
sexual do trabalho de produção e reprodução biológico e social VALÉRIO, 2007). Através da análise de jornais ou revistas de
que conferia ao homem a melhor parte. Essa divisão sexual, da qualquer período, é possível obter uma noção geral de como se
qual se ocupa Pierre Bourdieu em muitos dos seus ensaios sobre o comporta uma sociedade em determinado período, pois neles
domínio masculino, encontrou-se estritamente vinculada a uma encontramos explícitos e bem determinados os costumes, as
ordem social que, segundo ele, funcionava como uma imensa ideologias, os hábitos, as formas de vida e, principalmente, a
máquina simbólica (Ibidem, p.21). Essa, por sua vez, tendia a multiplicidade de vozes e de pontos de vista que caracterizam a
ratificar a preponderância do homem e a submissão da mulher, heteroglossia social (BAKHTIN, 2008).
marcando, assim, a existência de uma sociedade Atualmente é possível encontrar, nos sites da Biblioteca
predominantemente desigual e machista, uma vez que Nacional da Espanha e da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes,
desconsiderava as potencialidades femininas e suas habilidades inúmeras publicações oitocentistas digitalizadas, e ter livre acesso
para outros trabalhos que não estivessem relacionados apenas às a esses periódicos permitiu-nos uma maior aproximação com o
tarefas do lar e ao cuidado da família. imaginário da época. Segundo Michel Maffesoli (2001), herdeiro
Os argumentos ideológicos usados para excluir as mulheres intelectual de Gilbert Durand, o imaginário representa uma força
do direito à cidadania possuíam fundamentos muito antigos. social de ordem espiritual, ou seja, uma construção mental que se
Recaíam majoritariamente sobre a crença de que elas eram, por mantém ambígua, perceptível, embora não mensurável, e que se
natureza, seres inferiores por carecerem de racionalidade mantém, concomitantemente, impalpável e real. Logo, não se
superior, e essa condição de inferioridade ou de minoria moral as trata de algo meramente racional, sociológico ou psicológico, mas
impediam de fazer parte da cidadania e, portanto, de serem sim de algo capaz de transcender o indivíduo e a própria
objetos de direitos e deveres jurídicos e políticos (CANTERLA, sociedade, de forma a contagiar o coletivo, ou pelo menos parte
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dele. Daí a noção de imaginário estar intrinsecamente relacionada conhecimento e a experiência dos sentidos (MAFFESOLI,
à ideia de coletividade. Vejamos: 1998, p.192).
Pode-se falar em “meu” ou “teu” imaginário, mas, quando Assim, vemos que o imaginário tudo contamina, tudo
se examina a situação de quem fala assim, vê-se que o “seu”
permeia, e é desse imaginário, capaz de contagiar até mesmo as
imaginário corresponde ao imaginário de um grupo no qual
esferas mais racionais, como a política, que se alimenta a
se encontra inserido. O imaginário é o estado de espírito de
um grupo, de um país, de um Estado-nação, de uma sociedade.
comunidade, etc. O imaginário estabelece vínculo. É Tratar do Jornalismo no século XIX, assim como da
cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma Literatura produzida nesse período, requer, de nossa parte,
atmosfera, não pode ser individual (Ibidem, p.76). reconhecer a importância e o significativo papel dessas
construções mentais na criação de novas formações discursivas
Em sua obra, fica nítida a defesa da natureza coletiva e
para representar a “modernidade”, o moderno, o novo sujeito
social do imaginário, perspectiva que se aproxima também das
social, tal como nos assinala a escritora e crítica literária Iris M.
noções apresentadas por Patrick Legros e outros autores na obra
Zavala (1990, p.10), que percebe o texto como forma articulada de
Sociologia do imaginário (2007), que definem o imaginário como
representação do imaginário social. Assim como Zavala, também
fenômeno coletivo, social e histórico, devido ao fato dele circular
entendemos o texto como uma importante fonte de criação e
através da história, das culturas e dos grupos sociais (LEGROS et
reprodução de imaginários sociais, compartilhados, segundo
al., p.10). E por atuar como elemento instituidor de vínculos, que
Gislene Silva (2010, p.249), “por todos os sujeitos envolvidos no
une e liga numa mesma atmosfera, também se torna
universo das notícias, sejam repórteres, leitores/receptores,
imprescindível chamar atenção para sua natureza essencialmente
fontes, publicitários, proprietários de veículos noticiosos, editores,
interativa: “o imaginário, certamente, funciona pela interação. Por
anunciantes”.
isso, a palavra interatividade faz tanto sentido na ordem
Perpassando pela história da Espanha oitocentista e pelos
imaginária” (Ibidem, p.77).
inúmeros periódicos publicados no séc. XIX, sobretudo, aqueles
Michel Maffesoli afirma que:
destinados ao público feminino, constatamos que a situação
Não há domínio que esteja indene da ambiência afetual do
momento. A política, evidentemente, que se tornou um política vivida pelo país na década de 80 muito contribuiu para o
vasto espetáculo de variedades que funcionam mais sobre fortalecimento de discursos que questionavam a preponderância
a emoção e a sedução do que sobre a convicção ideológica; masculina e o silenciamento da mulher, o que consolidava a
mas, igualmente, o trabalho, onde a energia libidinal exerce existência de uma sociedade predominantemente desigual,
um papel importante; e não esquecendo todas as machista e, em muitas ocasiões, misógina.
efervescências musicais e esportivas que são tudo menos Através da imprensa, muitos foram os jornais e revistas do
racionais. Tudo isso mostra que existe uma dialética entre o final do séc. XIX que, a partir de um discurso crítico, propuseram
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não só repensar, como também recriar a identidade de um sexo Emilia Pardo Bazán posicionou-se como defensora legítima
sob uma ótica em que o indivíduo não tivesse de adaptar-se a dos direitos da mulher. E por defender incessantemente o acesso
modelos hierarquizados, e um deles foi a revista espanhola Nuevo da mulher a uma educação íntegra e o exercício de uma profissão
Teatro Crítico (1891-1893), organizada e financiada pela escritora nas mesmas condições de igualdade que o homem, transformou-
Emilia Pardo Bazán (1851-1921), considerada a melhor romancista se numa das mais importantes vozes do feminismo na Espanha
espanhola do século XIX e uma das escritoras mais significativas da oitocentista. Para o crítico Juan Paredes Nuñes (1992, p.309), a
história literária do país, em razão de sua portentosa produção escritora galega assumiu um importante papel de propagandista
literária, composta por romances, contos, livros de viagens, obras do movimento feminista na Espanha. Assim como Concepción
dramáticas, composições poética e numerosas contribuições Arenal e Belén de Sárraga˗ duas outras relevantes vozes na difusão
jornalísticas. Através dela, a autora pretendia exclusivamente “dar do feminismo no país˗ Pardo Bazán manteve-se ativamente em
a conocer toda la vida política, social cultural de su época” contato com os principais círculos feministas na França e na
(PAREDES NUÑEZ, 1992, p.305). Inglaterra, dialogando com importantes conceitos e teorias sobre
Poucos são os estudos que tratam de ilustrar o vasto campo a emancipação da mulher. Também se manteve interada sobre o
de atuação da escritora galega, que além de obrar como representativo movimento feminista norte-ameriano, e ao
romancista, contista e crítica literária, desempenhou também um contrastar a situação da mulher nesses países, onde o feminismo
importante papel como articulista, tendo escrito, ao longo de sua havia conquistado uma ampla aceitação, com a condição da
trajetória acadêmica, quase cerca de dois mil artigos. Um dos mulher espanhola, ainda fortemente oprimida por uma
aspectos mais significativos dessa produção é, sem dúvida alguma, mentalidade conservadora e patriarcal, percebeu, como escritora,
a diversidade de temas dos quais a condessa se ocupava em suas ser essencial o seu engajamento e participação no movimento
publicações. Em seus textos, Pardo Bazán discorria com espanhol.
propriedade e, principalmente, com uma nítida vocação didática A criação Nuevo Teatro Crítico foi indubitavelmente uma
sobre conteúdos que variavam desde as teorias evolucionistas de das mais importantes provas da natureza empreendedora de
Charles Darwin a comentários sobre os poetas épicos cristãos, o Emilia Pardo Bazán. A escritora não só escreveu todas as seções
rei dom Carlos, o Papa, ou até mesmo sobre assuntos relacionados como também se responsabilizou pela parte financeira, custeando
à pena de morte, à culinária no país, à mulher espanhola e aos as despesas da revista com parte dos recursos que herdara do pai.
benefícios da eletricidade. E dentro dessa diversidade temática, O título da publicação foi uma homenagem da condessa ao padre
que variava desde os científicos, até os religiosos e culinários, é Benito Jerónimo Feijoo, autor de Teatro Crítico Universal, cujos
imprescindível comentar que nos detivemos excepcionalmente nove volumes foram publicados entre 1726 e 1740. A revista,
àqueles que tratam da limitada condição da mulher na sociedade disponível no site da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, mais
patriarcal do séc. XIX. especificamente no Portal dedicado às Escritoras Espanholas,
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organizado por Mª Ángeles Ayala Aracil, contém trinta números confessou aos leitores de Nuevo Teatro Crítico que foi motivada a
que foram publicados entre 1º de janeiro de 1891 e 30 de “salir de una situación anómala y molesta” (NTC, março de 1891,
dezembro de 1893. É oportuno comentar que todas as edições da p.61) da qual se encontrava para emergir em uma necessária
publicação encontram-se digitalizadas, o que facilita a consulta e discussão− o ingresso de mulheres na RAE− que há tempos a
abre caminho para novas pesquisas acadêmicas. condessa gostaria de ter realizado para a tranquilidade de seu
A revista Nuevo Teatro Crítico está dividida em duas seções: “propio espíritu y satisfación de las personas discretas y
as variáveis e as fixas. Na primeira, Emilia Pardo Bazán dedicou-se equitativas”. (Ibidem, p.61).
a viagens, história, movimento religioso e a crônicas diversas. Já Segundo Rocío Charques Gámez (2003, p.12), é
nas seções fixas, o espaço era dedicado à publicação de contos, conveniente lembrar que “el 2 de febrero de 1853 Gertrudis
romances, de estudos críticos sobre obras literárias, dramas ou Gómez de Avellaneda pide el puesto del fallecido académico Juan
comedias recentes, biografias, necrologia de importantes autores Nicasio Gallego, pero los académicos llegan a un acuerdo mediante
nacionais e estrangeiros, e ainda de um estudo sobre uma questão votación pública y cierran las puertas del la RAE a las mujeres. El
social ou política da atualidade, e foi justamente nessa seção que 11 de febrero la Corporación escribe a la peticionaria
os textos como “La cuestión académica” (NTC, número 3, março reconociendo su valía, pero excluyéndola de la Academia por el
de 1891) e “Tristana” (NTC, número 17, maio de 1892), que tratam mencionado acuerdo”. Desde então, Emília Pardo Bazán viu-se
de importantes questionamentos feitos pela autora sobre o papel contrariada ao arbitrário fechamento da RAE e, em cartas dirigidas
da mulher na sociedade espanhola do século XIX, foram à dona Gertrudis, manifestou apoio à candidatura dela e grande
publicados. Através deles, pretendemos examinar e apresentar interesse pela questão. E além de manifestar-se favorável ao pleito
quais são as perspectivas defendida por Pardo Bazán que, através levantado por Avellaneda, a escritora galega comentou-lhe
de um discurso altamente crítico, vai lutar não só por uma também sobre as dificuldades encontradas por ela na tentativa de
educação feminina de qualidade como também por uma maior ser aceita pelos membros da RAE, que se encontravam ainda mais
participação da mulher nas esferas políticas, trabalhistas e severos e intransigentes quanto ao ingresso feminino na
intelectuais. Academia. E ainda que a Real Academia tenha nomeado a senhora
“La cuestión académica”, publicado na edição de número Isidra de Guzmán, em 1784, como acadêmica honorária, por
3, em março de 1891, trata-se de uma resposta à carta aberta pressões exercidas pelo monarca Carlos III (HILTON, 1952, p.42),
publicada em La España Moderna pelo senhor D. Rafael Altamira, foi no século XIX que ela fecha terminantemente todas as portas
secretário do Museu Pedagógico, que nela se manifestara para a entrada das mulheres.
favorável à candidatura de dona Emília a uma vaga na Real O texto do senhor Altamira funciona para Pardo Bazán
Academia Española de Letras. A partir do texto de Altamira, como um “pretexto honroso” (NTC, março de 1891, p.61), em
igualmente intitulado de “La cuestión académica”, Pardo Bazán outras palavras, como um meio para que ela pudesse questionar
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as censuras públicas dos intelectuais e catedráticos a merecida imprescindível para o aprimoramento da sociedade espanhola,
candidatura dela, uma das mais expressivas escritoras espanholas que se encontrava intensamente atrasada em relação às demais
do século XIX. Inconformada com as justificativas que potências europeias. Vejamos a solicitação feita pela condessa,
contrariavam suas pretensões acadêmicas, Pardo Bazán, no artigo inteiramente disposta a manter sempre viva as chamas dessa
“La cuestión académica”, apresenta uma espécie de defesa, significativa reivindicação:
visando contrapor os argumentos infundados expostos pelos [...] solicito de Vds., de la juventud grave, ilustrada,
reacionários sobre “el derecho y las aptitudes de la mujer para despreocupada, de que es V. simpático ejemplar, que no
alcanzar esa sanción oficial y externa, aunque importante al fin y abandonen la cuestión académica femenina; que me
al cabo, dentro del medio y para vivir en acuerdo con él” (NTC, ayuden en ella; que me presten ánimo, cooperación, auxilio.
Porque franca ya del enojoso aspecto personal que para mí
março de 1891, p.63-64).
revestía, dispuesta estoy á remover siempre esa cuestión, á
Em “Cuestión académica”, Pardo Bazán, encarecidamente,
no dejarla dormir ni un instante (NTC, março de 1891, p.67).
agradece ao estimado amigo, o senhor Rafael Altamira, pela carta
aberta que ele lhe escrevera, defendendo a candidatura da Em “La cuestión académica”, Emilia Pardo Bazán fez
condessa a Real Academia Española de Letras. E ao ter em conta questão de chamar atenção para a candidatura de Concepción
que o ingresso na instituição tratava-se de um direito que deveria Arenal à Academia de Ciencias Morales y Políticas de España, que
estar disponível a todos, desde que comprovado o merecimento, fora extremamente aplaudida e reconhecida, devido ao mérito de
e independente do sexo, dona Emilia, no artigo, abordou a questão suas publicações, por renomados especialistas italianos na área do
não a partir de um tratamento pessoal, mas sim por intermédio de direito, e por diversos pensadores alemães e inclusive por dois
um ponto de vista que a priorizasse como uma questão objetiva e importantes membros da Academia de Ciencias Morales y
de princípios, já que o que deveria ser discutido não era o fato de Políticas: o visconde de Campo Grande e o senhor Cos-Gayón,
se ela merecia ou não ser acadêmica, mas sim se a mulher tinha o ministro da Fazenda, que, segundo a escritora galega, afirmaram
direito e as competências para tal ofício. ser merecida a indicação de Concepción Arenal para ocupar, ao
Diante do declarado apoio de Rafael Altamira, secretário do lado deles, uma cadeira na Academia.
Museu Pedagógico, a condessa reconheceu ser vital um amplo A referência à Concepción Arenal não foi uma menção
debate, novas discussões sobre a questão acadêmica feminina, e gratuita. A condessa a fez na finalidade de reforçar o pedido feito
para isso solicita o apoio e o engajamento da juventude ilustrada ao senhor Altamira, o de convocá-lo para dar continuidade às
da qual dom Altamiro demonstrava profunda simpatia. Pediu a discussões sobre a questão acadêmica feminina. Pretendia
essa nova geração de jovens espanhóis ajuda, colaboração e também atrair a participação de outros nomes que igualmente
motivação para que juntos suscitassem uma extensa reflexão compartilhassem os mesmos pontos de vista para defender,
sobre o tema tido por ela como algo indiscutivelmente especialmente através da imprensa− “médio de acción que todos
ávidamente codician fingiendo desdeñar” (Ibidem, p.72)−, o pleito
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de Concepción Arenal que, segundo Pardo Bazán, desempenhara especialmente por acreditar que juntos eles conseguiriam não só
um papel fundamental dentro da sociedade espanhola por lutar conscientizar, como também convencer, sobretudo através da
pelos direitos das mulheres e por contribuir com ideias e imprensa, os cidadãos espanhóis a lutarem por esse tão almejado
pensamentos que tornaram mais harmoniosas e respeitosas as e merecido ingresso das mulheres nas Academias. E para essa
relações entre homens e mulheres. honrada empresa, Pardo Bazán afirmou não medir esforços,
Assim como Rafael Altamira, que logo em seguida ao mantendo-se incansável e sempre “pronta á verter la última gota
pedido feito por dona Emilia, publica em El Heraldo de Madrid uma de tinta− nunca empleada mejor” (Ibidem, p.73).
carta à condessa, demonstrando-se favorável à candidatura de No artigo intitulado Tristana, publicado na edição de
Concepción Arenal a Academia de Ciencias Morales y Políticas, número 17, em maio de 1892, Emilia Pardo Bazán realizou uma
outros nomes também se posicionaram a favor do ingresso das consistente e profunda análise crítica sobre o romance de Benito
mulheres nas Academias, e, dentre eles, destacamos o romancista Perez Galdós, também publicado em 1892. Nele, Pardo Bazán
Benito Pérez Galdós, Castelar, Campoamor e o pensador krausista comentou que, em meio ao frenesi causado pela publicação de
Francisco Giner de los Ríos que muito contribuiu para a Realidad, Tristana manteve-se silenciada e teve pouca atenção por
emancipação da mulher espanhola. No entanto, embora houvesse parte da crítica literária da época. Para dona Emilia, o romance
uma significativa concordância por parte de muitos intelectuais da galdosiano estava muito distante de ser tido como uma das
época quanto à pretensão acadêmica de Concepción Arenal, ela melhores obras de Pérez Galdós, e assinalou que se o
não conseguiu eleger-se. Recebera apenas uma homenagem comparássemos com os romances mais recentes do autor, talvez,
pública no Ateneu de Madri por suas relevantes contribuições nas o livro pudesse ser definido pela qualidade inferior. No entanto,
áreas das ciências jurídicas, sociais e políticas, o que seguramente apesar do estranhamento causado pelo título, pelo assunto e pela
dever ter contrariado as expectativas de dona Emilia, para quem a tendência, a obra era indiscutivelmente merecedora de um atento
candidatura de Concepción Arenal era simplesmente exame, e foi justamente essa apreciação crítica que a autora
inquestionável. Vejamos: “Á esta candidatura, que llenaría todas buscou realizar em seu artigo.
nuestras aspiraciones, nadie puede objetar sino disculpas de mal A primeira delas relaciona-se com o assunto e a trama do
pagador ó razones de pie de banco: únicamente la maldad ó la livro. Para a autora, o assunto de Tristana cabia em um punho e a
envidia ruin osarían poner en tela de juicio su legitimidad y su trama era praticamente inexistente. Vejamos: “El asunto de
conveniencia” (Ibidem, p.70). Tristana cabe en un puño, la trama puede decirse que es nula”
Nas considerações finais de seu texto, Emilia Pardo Bazán (NTC, maio de 1892, p.78). Para justificar o seu ponto de vista, a
novamente solicitou o engajamento do amigo, o sr. Rafael condessa faz um breve resumo da obra, destacando os seguintes
Altamira, na campanha a favor da candidatura acadêmica de pontos: a decadência de D. Lope; a tutela concedida pela família
Concepción Arenal à Academia de Ciências Morales y Políticas, de Tristana; a sedução e a possessão da personagem; o
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confinamento da jovem; a paixão por Horacio; a repressão do muito contrariou as expectativas de dona Emilia, uma das
velho galã/ tirano doméstico; a tentativa de separação; a ausência principais vozes do feminismo na Espanha.
de Horacio e a doença de Tristana, o tumor e a amputação da No artigo, a Condessa opina que se essa ideia, que em
perna; o casamento por conveniência e pelo cansaço, e, por fim, a Tristana aparece de forma embrionária e confusa− “a través de
eterna dúvida sobre a felicidade do casal. una niebla, como si el novelista no se diese cuenta clara de la gran
Pardo Bazán comentou que não desaprovara a fuerza dramática que puede encerrar” (Ibidem, p.81)−, tivesse sido
simplicidade da trama, especialmente porque muitas das mais destacada, como o foi nas obras El amigo manso e Fortunata
melhores obras da literatura universal que ela afirmara conhecer y Jacinta, as quais é possível observar a precisão e a vitalidade do
possuíam uma trama excessivamente simples. Explicou que, assunto interno, talvez o romance galdosiano fosse o melhor
apesar da visível simplicidade do assunto, havia excessos nele, em romance de Galdós. E foi justamente essa ausência de prumo e de
outras palavras, existiam elementos na trama que eram força na história da senhorita Reluz que comprometeu o assunto
desnecessários e indispensáveis para o assunto interno da obra, ou interno de Tristana.
seja, o que acontecia, o que se via, tal como a falta e o Incisiva em sua crítica, Emilia Pardo Bazán comenta que,
desaparecimento de Horacio e a perna amputada da personagem. ainda que os primeiros capítulos da obra tenham dado-lhe uma
Para a Condessa, o assunto interno de Tristana muito longe estava impressão animadora: “me hacían concebir esperanzas brillantes”
de ser a sedução de Don Lope, a paixão de Horacio, a ruptura, ou (Ibidem, p.82), em razão de a situação apresentar-se com rapidez
o casamento entre vítima e algoz; tratava-se, pois, de algo maior, e firmeza pelo autor, a obra decai consideravelmente, em especial
de um assunto: a partir da segunda metade que, segundo ela, fica muito abaixo da
[...] nuevo y muy hermoso, pero imperfectamente primeira, “atropellándose para traer el episodio final de la
desarrollado, es el despertar del entendimiento, la operación quirúrgica y sus consecuencias decisivas del porvenir de
conciencia de una mujer sublevada contra una sociedad que Tristana” (Ibidem, p.82).
la condena á perpetua infamia no le abre ningún camino Para a condessa, “en esta unión ilícita del maduro galán con
honroso para ganarse la vida, salir del poder del decrépito
la linda muchacha, el drama verdadero, el conflicto de conciencia,
galán, no ver en el concubinato su única protección, su
tiene que surgir al punto mismo en que Tristana conozca la
apoyo único (Ibidem, p.81).
indignidad de su situación, y por salir de ella se arroje á una lucha
Era, portanto, o despertar da consciência de uma jovem desigual, pero que por lo mismo puede rayar en sublime” (NTC,
mulher− condenada por uma conservadora sociedade que maio de 1892, p.83). E foi no segundo capítulo de Tristana, que
censurava e via, com desprezo e antipatia, a emancipação nós, leitores, pudemos vislumbrar a força e a originalidade do
feminina− o grandioso assunto do romance de Pérez Galdós. No romance, pois nele vemos o desabrochar da personagem, que já
entanto, é preciso ressaltar que o “nuevo y muy hermoso” assunto havia completado vinte e um anos de idade. A partir dele, e até
fora, segundo Pardo Bazán, imperfeitamente desenvolvido, o que
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que se comece o episódio dos amores com Horácio, Pardo Bazán - ¡Ay, no, señorita, no pensaba tal cosa! -replicó la
afirma haver “una novela fuerte rara, de primer orden, un doméstica prontamente-. Siempre se encuentran unos
bellíssimo caso psicológico” (Ibidem, p.83), em que é possível pantalones para todo, inclusive para casarse. […] Libertad,
presenciar os primeiros impulsos de independência de Tristana e tiene razón la señorita, libertad, aunque esta palabra no
suena bien en boca de mujeres. ¿Sabe la señorita cómo
as primeiras reflexões críticas da personagem sobre a estranha
llaman a las que sacan los pies del plato? Pues las llaman,
condição social em que vivia. E para melhor apresentar essa tardia,
por buen nombre, libres. De consiguiente, si ha de haber un
porém extremamente significativa conscientização da poco de reputación, es preciso que haya dos pocos de
personagem, comparada estrategicamente pela autora com o esclavitud. Si tuviéramos oficios y carreras las mujeres,
processo de florescimento de uma planta vívida e cheia de ideias, como los tienen esos bergantes de hombres, anda con Dios.
nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: Pero, fíjese, sólo tres carreras pueden seguir las que visten
Hay algo de sagrado en esa crisis del alma de Tristana, que faldas: o casarse, que carrera es, o el teatro... vamos, ser
sacudiendo su irreflexión y pasividad muñequil, sin ideas cómica, que es buen modo de vivir, o... no quiero nombrar
propias, sustentada por las proyecciones del pensar ajeno, lo otro. Figúreselo.
florece de improviso como planta vivaz se llena de ideas, en
- Pues mira tú, de esas tres carreras, únicas de la mujer, la
apretados capullos primero, en espléndidos ramilletes
primera me agrada poco; la tercera menos, la de en medio
después; que se siente inquieta, ambiciosa de algo muy
la seguiría yo si tuviera facultades; pero me parece que no
distante, muy alto, que á medida que se cambia en sangre
las tengo... Ya sé, ya sé que es difícil eso de ser libre... y
y medula de mujer la estopa de la muñeca, va cobrando
honrada. […] Yo quiero vivir, ver mundo y enterarme de por
aborrecimiento repugnancia á la miserable vida que lleva
qué y para qué nos han traído a esta tierra en que estamos.
en poder de Don Lope Garrido (Ibidem, págs.83-84).
Yo quiero vivir y ser libre... (PÉREZ GALDÓS, 2004, p.61-62).
Outro significativo aspecto a ser comentado por Emilia
O diálogo entre Tristana e Saturna, representado pelo uso
Pardo Bazán, em sua crítica, foi o diálogo de Tristana com a criada
do discurso direto, é revelador principalmente pelo fato de ele
Saturna, que “con su sentido práctico de dueña marrullera,
aclarar uma nítida contraposição de perspectivas ideológicas.
advierte á Tristana de los riesgos que corre” (NTC, maio de 1892,
Através das relações dialógicas que nele permeiam, é possível
p.84). A conversa gira em torno do casamento e da condição da
vislumbrar os distintos pontos de vista que cada personagem
mulher na sociedade patriarcal do séc. XIX. Vejamos:
feminina possui a respeito do matrimônio e da condição da mulher
[…] Te reirás cuando te diga que no quisiera casarme nunca,
que me gustaría vivir siempre libre. Ya, ya sé lo que estás na sociedade do séc. XIX. Tristana não fora adequadamente
pensando; que me curo en salud, porque después de lo que escolarizada, não teve um amplo acesso ao mundo das letras: “[...]
me ha pasado con este hombre, y siendo pobre como soy, mi mamá no pensó más que en darme la educación insustancial de
nadie querrá cargar conmigo. ¿No es eso, mujer, no es eso?. las niñas que aprenden para llevar un buen yerno a casa, a saber:
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un poco de piano, el indispensable barniz de francés y qué sé yo…, O pensamento transgressor de Tristana sobre a liberdade
tonterías” (Ibidem, p.116), e esta falta de instrução muito limitou feminina e sobre o casamento pode ser explicado principalmente
o seu conhecimento de mundo e suas experiências de vida. pelo fato de a jovem haver se apropriado do discurso liberal
Antes de morrer, dona Josefina, mãe de Tristana, concedeu daquele que inicialmente estava predestinado a ser o seu tutor,
a dom Lope Garrido a tarefa de orientá-la, e este o fez conforme dom Lope, que também manifestava grande aversão ao
sua própria vontade, cativando com esmero a imaginação da relacionamento conjugal. Além de aclarar a apropriação do
jovem e semeando ideias que fomentaram a conformidade com discurso, o narrador heterodiegético, através do diálogo das
uma vida marcada pelo infortúnio. Não havia oposição, mas sim personagens, pretende pôr em evidencia algo maior: a relação
uma aceitação por parte de Tristana que, inclusive, passou a dialógica que há nele, já que o discurso de Tristana se conflitará
incorporar alguns conceitos de dom Lope, tornando-se herdeira do com o da criada, Saturna.
pensamento de seu dono: “Algunas ideas de las que con toda Em oposição à Tristana, Saturna torna-se porta-voz do
lozanía florecieron en la mente de la joven procedían del semillero discurso ideológico da conservadora sociedade patriarcal na
de su amante y por fatalidad maestro” (Ibidem, p.60), e uma destas Espanha do séc. XIX, principalmente por afirmar que a liberdade
opiniões referia-se ao casamento, o que novamente nos leva a trata-se de uma palavra que não soa bem na boca das mulheres. E
pensar no conceito bakhtiniano sobre a importância do olhar essa repulsa à emancipação feminina fica mais nítida quando a
complementário do outro. criada faz alusão às três possíveis “carreiras” que a mulher poderia
Por ver o mundo com os olhos do decadente cavaleiro, a seguir: ser casada, ser artista e ser prostituta, revelando, assim, o
jovem de “destino gris”, definida assim por Leopoldo Alas na crítica indiscutível peso do discurso patriarcal na determinação do papel
literária do romance galdosiano, também se demonstrou da mulher, que impreterivelmente deveria dedicar-se à família e
desfavorável à união matrimonial. Vejamos: “Yo me entiendo: ao lar.
tengo acá mis ideítas. Nada de matrimonio, para no andar a la Para Bakhtin (1995, p.41), “as palavras são tecidas a partir
greña por aquello de quién tiene las faldas y quién no. […] Libertad de uma multidão de fios ideológicos”, e a voz de Saturna pode ser
honrada es mi tema…, o si quieres, mi dogma. Ya sé que es difícil, compreendida como a voz que ecoava na sociedade espanhola no
muy difícil, porque la sociedaz, como dice Saturna… no acaba de séc. XIX. Por mais que as mudanças socioeconômicas decorrentes
entenderlo… (Ibidem, p.124). Do ponto de vista da personagem, a da modernidade tenham proporcionado diversas conquistas ao
liberdade era sinônimo de independência e de honra, e o público feminino, as mulheres que buscavam conquistar sua
casamento, de prisão e de submissão, visão que revelava a emancipação, sua independência, não eram bem vistas pelos
presença de um espírito indiscutivelmente revolucionário, homens nem tampouco por muitas mulheres, perplexas com as
transgressor, dado o imensurável desprendimento da jovem. atitudes e os comportamentos daquelas que viam na liberdade e,
acima de tudo, no trabalho, o caminho para se desprenderem das
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amarras impostas por essa sociedade predominantemente O descontentamento de Emilia Pardo Bazán é visível. Ela
masculina. não hesita em declarar que Galdós desorientou duplamente os
Para dona Emilia, o conteúdo que se apresenta no diálogo leitores da obra: primeiro na apresentação do caráter e papel de
entre Tristana e a criada Saturna é o que deveria, portanto, ser o Tristana e, em seguida, com a figura de dom Lope:
assunto fundamental de toda obra. A partir de sua própria [...] que al principio parece un esclavo del punto de honra,
experiência como leitora do romance, a escritora galega comenta un galán calderoniano, modo de ser muy conforme con su
que o leitor de Tristana acredita presenciar, a partir dos primeiros avellanada y varonil hermosura de personaje del cuadro de
capítulos do livro, um “drama transcendental”; que vai ser las Lanzas, y que se prestaba admirablemente para realzar
con el contraste la figura de su rebelada pupila, se va
testemunho de um “processo libertador e redentor” de uma alma
convirtiendo poco á poco en un héroe psicológico moderno,
que, segundo ela, representa milhões de mulheres oprimidas pelo
francés á lo Pablo Bourget, un hombre contemporizador y
mesmo peso, o que definitivamente não acontece. Quando Pardo escéptico, que tolera lo que no puede evitar, seguro de que
Bazán acreditar começar o embate, surge a figura de Horacio e a las circunstancias y el tiempo le devolverán su presa”
previsível paixão da jovem Tristana pelo pintor. Para a autora, não (Ibidem, págs.: 86-87).
havia novidade alguma nessa relação retratada por Galdós;
De Lope Garrido, a condessa esperava, após o
tratava-se apenas de uma intriga amorosa como qualquer outra, e
descobrimento da traição, uma diferente postura do decadente
isso não só comprometeu como também suprimiu a luta pela
galã, especialmente pelo fato dele demonstrar uma profunda
independência da personagem. Benito Pérez Galdós silenciou
admiração e simpatia aos ideais calderonianos que proclamavam
também qualquer outra luta, inclusive aquela que garantiria à
a legitimidade do ponto de honra. E ao invés de presenciar “el
Tristana o direito de livre escolha amorosa, causa muito defendida
terrible conflicto del hombre antiguo y el ideal nuevo” (Ibidem,
por Pardo Bazán que se posicionava enfaticamente contra ao
p.87), o que pode ser visto pelos leitores foi nada mais que a figura
casamento convencional, sem amor. Vejamos o comentário da
de um velho conformista e teimoso, uma menina aprisionada e
condessa:
Cuando creemos que va á principiar el combate, aparece uma história inexpressiva, que segundo a editora de NTC, “se
Horacio, una intriga amorosa como cualquiera, Tristana se desenlaza por medio de un suceso adventício, de una fatalidad
entrega á la pasión con un ímpetu que yo no negaré que sea física, análoga á la caída de una teja ó al vuelco de un coche”
cosa muy natural, pero que no tiene nada que ver con la (Ibidem, págs: 87-88).
novela iniciada en las primeras páginas del libro. La lucha Com isso, é possível concluir que as críticas empreendidas
por la independencia ya queda regalada á último término; por Emilia Pardo Bazán, nesse artigo, recaem fundamentalmente
puede decirse que suprimida. Ni aun tenemos ocasión de ao fato de o romance Tristana não ter aprofundado o tema da
presenciar otro género de lucha, la lucha por la libre emancipação feminina, tendo desconsiderado um rico repertório
elección amorosa” (NTC, maio de 1892, p.86). de elementos que, caso fossem desenvolvidos com a maestria e o
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talento inatos de Pérez Galdós, possivelmente fariam de Tristana Referências


a melhor obra galdosiana. O assunto fora anunciado, porém não BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de
desenvolvido: “[...] Galdós nos dejó entrever un horizonte nuevo y Janeiro: Forense Universitária, 2008.
amplio, y después corrió la cortina” (Ibidem, p.88), fator que
possivelmente explica o nítido descontentamento da condessa ______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCITEC,
que, além de notável romancista, contista, articulista e crítica 1995.
literária, foi uma das mais importantes vozes do feminismo na
Espanha. ______. Questões de Literatura e Estética. São Paulo: HUCITEC,
1998.
Considerações finais
Emilia Pardo Bazán participou da minoritária corrente BOURDIEU, Pierre. La dominación masculina y otros ensayos.
crítica que tratou de examinar e denunciar as causas que Buenos Aires: La Página S.A., 2010.
conduziram a Espanha a uma situação de decadência. Segundo
Guadalupe Gómez-Ferrer Morant (1998, p.137), a escritora galega CANTERLA, Cinta. “Mujer y derechos humanos: universalismo y
expressa sua percepção da realidade espanhola nos anos violencia simbólica de género”. In: Discursos,realidades, utopías.
finisseculares bem de maneira realista através de seus artigos La construcción del sujeto femenino en los siglos XIX y XX.
jornalísticos, bem de forma simbólica através de seus contos. Seus Barcelona: Anthropos, 2002.
textos contribuíram para refletir as estruturas sociais vigentes,
uma vez que há neles uma explícita apresentação da invisibilidade CHARQUES GÁMEZ, Rocío. Los artículos feministas en el Nuevo
feminina, agravada especialmente pela baixa escolarização da Teatro Crítico de Emilia Pardo Bazán. Universidad de Alicante,
mulher e pela falta de oportunidades no mercado de trabalho, o Centro de Estudios sobre la Mujer, 2003. Disponível em:
que impossibilitava a emancipação e, por fim, o surgimento de <http://webs.uvigo.es/pmayobre/pdf/emilia_pardo_bazan/nuev
novos papéis sociais da mulher. E foi justamente contra essa oteatrocritico.pdf>. Acesso em: 23 de mar. 2014.
condição que a autora levantou a sua voz, e se nós, mulheres,
dispomos hoje de uma nova posição dentro da sociedade do FERRER MORANT, Guadalupe Gómez. Emilia Pardo Bazán en el
século XXI, que nos coloca em posição de igualdade legal, ocaso del siglo XIX. Cuadernos de Historia Contemporánea. 1998,
profissional e educativa com os homens, esta deve ser atribuída, número 20, p.129-150.
sem dúvida, a escritoras como Pardo Bazán que tomaram a palavra
para si na defesa da igualdade de gênero e de oportunidades no HILTON, Ronald. “Pardo Bazán and literary polemics about
mercado de trabalho e na educação. feminist”. Romanic Review, XLIV, 1953.
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LEGROS, Patrick et al. Sociologia do imaginário/Frédric ZAVALA, Iris M. “Una poética del imaginario social. Investigación
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MATAR A BORGES: A FICCIONALIZAÇÃO DE BORGES E DA também com a história da literatura. Antonio Roberto Esteves
CRÍTICA LITERÁRIA (2010, p.123) acrescenta que a literaturização de um escritor é
Isis Milreu uma maneira de relê-lo, além de discutir “[…] importantes
UFCG - PG UNESP-Assis questões literárias, como a construção do cânone literário ou o
papel do leitor e da crítica na construção e manutenção desse
Palavras iniciais cânone.” Portanto, as obras que convertem um escritor em
Além de ser um reconhecido escritor e de protagonizar personagem giram em torno da literatura e da história literária,
vários estudos críticos e biográficos, Jorge Luis Borges também é instigando novas leituras do autor ficcionalizado.
personagem de diversas ficções contemporâneas. De acordo com Tendo em vista essas considerações, analisaremos nesse
Pablo Brescia (2008), atualmente há uma tendência a literaturizar trabalho a literaturização de Jorge Luis Borges no romance Matar
o escritor argentino, ou seja, transformá-lo em objeto literário. O a Borges (2012), do escritor argentino Francisco Cappellotti. Desse
estudioso aponta que esse processo começou com o próprio modo, examinaremos como Cappellotti representou Borges em
Borges, que “[…] se adelantó a Barthes, a Foucault, a Giardinelli y sua narrativa e como ficcionalizou a crítica literária em sua obra.
a Avilés Favila en anunciar la muerte del autor y luego se hizo Além disso, investigaremos o diálogo que o romancista
personaje de sus textos. Comenzó a desautorizarse, fue estabeleceu com a poética borgeana e a história da literatura, bem
irreverente con él mismo y se autotransformó en objeto literario.” como refletiremos sobre as questões literárias problematizadas
(BRESCIA, 2008, p.141). Assim, o crítico insinua que o próprio em sua ficção.
escritor argentino é o “culpado” de sua crescente ficcionalização.
Um rápido olhar para a produção literária contemporânea, Matar a Borges (2012)
particularmente a latino-americana, indica que após a iniciativa de Matar a Borges, o primeiro romance de Francisco
Borges em converter-se em personagem, sua literaturização Cappellotti, foi publicado em 2012 pela editora Planeta. Seu autor
tornou-se uma verdadeira “[…] enfermedad que sigue contagiando escreveu vários contos, além de ser advogado e professor de
a lectores y escritores.” (BRESCIA, 2008, p.139). Por isso, pensamos Direito. Talvez seja a sua profissão que levou-o a evitar possíveis
que vale a pena refletir sobre esse fenômeno literário. problemas de interpretação de sua narrativa e iniciá-la com uma
Apesar de ser evidente a referida tendência de advertência ao leitor, na qual postula que tanto a inserção de
multiplicação de obras que transformaram Borges em objeto Borges como um dos protagonistas do relato quanto a presença de
literário, Marilene Weinhardt (1998) afirma que ficcionalizar um vários personagens criados pelo escritor argentino são uma
escritor não é um acontecimento recente na literatura ocidental. homenagem. Logo, essa advertência é uma explicitação do
A autora também assinala que as narrativas que literaturizam um objetivo principal da narrativa de Cappellotti: homenagear Borges
escritor dialogam não só com a obra do autor ficcionalizado, mas através de sua ficcionalização.
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O romance está dividido em 50 capítulos. O relato é feito e Borges. Cabe frisar que embora predomine no relato a narração
por um narrador onisciente e gira em torno da ameaça feita por em terceira pessoa, há alterações do foco narrativo por meio de
Carlos Argentino Daneri, personagem do conto borgeano “El monólogos interiores e quando Borges ou Daneri descrevem seus
Aleph”, de matar Borges a fim de vingar-se de seu criador. Para sonhos. Paralelamente a essa trama policialesca encontramos no
compreender melhor a narrativa de Cappellotti é necessário deter- romance a reconstrução de momentos importantes da vida do
nos rapidamente na mencionada ficção borgeana. “El Aleph” tem Borges escritor, pois a ação narrativa situa-se em 1950, período em
como eixo narrativo o conflito entre Borges e Daneri, motivado por que ele era presidente da Sociedade Argentina de Escritores
razões sentimentais e literárias. O relato é feito por um narrador (SADE) e, juntamente com outros intelectuais, enfrentava-se com
chamado Borges, caracterizado como escritor. Portanto, tanto o o peronismo. Assim, a ficção mescla elementos biográficos do
seu nome quanto a sua profissão nos remetem ao autor empírico autor argentino com o seu universo ficcional, problematizando os
do texto. Também somos informados que o personagem é limites entre realidade e ficção.
apaixonado por Beatriz Viterbo, prima de Daneri. Sua obsessão por Matar a Borges inicia-se com duas epígrafes extraídas de
ela é tão grande que mesmo após sua morte ele continua a obras borgeanas. A primeira, “No corrijo los hechos, no falseo los
frequentar sua casa no dia de seu aniversário em busca de nombres”, foi retirada de “El Aleph”, publicado no livro homônimo
lembranças. Por sua vez, Carlos Argentino é descrito como um em 1949. Trata-se de um verso do mencionado poema “La Tierra”
escritor medíocre que tem o objetivo de abarcar o universo em um de Carlos Argentino Daneri e sua autoria é explicitada. Já a segunda
poema intitulado “La Tierra”, pelo qual é premiado, fato inscrição, “Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del
questionado por Borges. Um dia ele telefona para o escritor para olvido o del otro.”, reproduz os versos finais de “Borges y yo”,
solicitar sua ajuda a fim de impedir a demolição de sua casa. Para publicado em El hacedor (1960). Dessa maneira, as epígrafes unem
tentar convencê-lo a ajudá-lo, ele leva Borges ao porão de sua casa Carlos Argentino Daneri e Jorge Luis Borges, insinuando que os
e mostra-lhe o seu grande segredo: o Aleph, definido como um dos dois são semelhantes porque são escritores. Ao analisar os
pontos do espaço que contem todos os pontos. Inicialmente, fragmentos, notamos que o primeiro critica a falsificação de fatos
Borges pensa que Carlos Argentino é louco, mas constata que ele e de nomes enquanto o segundo refere-se a uma vida de fuga em
falou a verdade, embora vingue-se dele declarando não ter visto virtude do esquecimento ou do outro. Nesse sentido, as inscrições
nada e, no final do relato, considere que se tratava de um falso antecipam os temas centrais do romance, uma vez que Carlos
Aleph. Logo, é compreensível que Daneri deseje vingar-se de seu Argentino busca vingar-se de Borges por sua representação irônica
autor, bem como do Borges personagem de “El Aleph”. no mencionado conto borgeano e por não contar a verdade sobre
Na narrativa de Cappellotti, a vingança de Carlos Argentino a existência do Aleph, questionando a sua falta de realismo. Por
desencadeia os assassinatos de Ulrike von Kuhlmann e Estela sua vez, Borges é perseguido por Daneri que pode ser visto como
Canto, a investigação dos referidos crimes e embates entre Daneri o seu duplo. Cabe frisar que a opção do autor argentino por não
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escrever de forma realista foi uma das críticas frequentes à argentino entra em cena: sua frustrada candidatura ao Nobel. Ao
literatura borgeana durante anos, a qual é reproduzida nessa despertar, Fanny entrega a carta de Daneri e questiona sua
ficção. Portanto, trata-se de uma ficcionalização da crítica literária. existência, uma vez que sempre pensou que ele era um mero ser
O relato inicia-se com Carlos Argentino escrevendo uma ficcional. O escritor alega que se trata apenas de uma brincadeira
carta para Borges em que apresenta seus motivos para matá-lo, de um leitor inoportuno.
informando que tomou essa decisão alguns meses depois da Após a leitura da carta, Borges fica mais preocupado com a
publicação de “El Aleph”. Nessa missiva há uma paráfrase do opinião das pessoas sobre o fato de que sua obra fantástica estava
referido conto, utilizada para descrever o personagem e sua baseada na realidade, ou seja, que é uma mentira, uma farsa, do
relação com o escritor, bem como citações do mencionado relato que com a sua sentença de morte. Então, escreve uma resposta
borgeano em itálico. Daneri também informa que seguiu os passos para Daneri convidando-o a matá-lo dentro de uma semana na
de Borges nos últimos meses e sabe que ele ocupa o cargo de Plaza San Martín. Também provoca-o dizendo que não está
presidente da SADE e que costuma voltar caminhando para sua arrependido por ter imortalizado o Aleph e relembra a dualidade
casa na rua Maipú, 994. Eis duas informações conhecidas da de que todos os traidores também são heróis. A seguir, sonha que
biografia do autor argentino. está na Plaza San Martín com o outro Borges. Assim, somos
Para atingir o seu objetivo, Carlos Argentino resolve remetidos ao relato “Borges y yo” que, inclusive, é citado nessa
conhecer profundamente o seu inimigo e transformar-se nele. parte da narrativa através de alguns fragmentos em itálico.
Como Borges é cego passa a andar no escuro e, inclusive, tem um O escritor decide entrar em contato com Adolfo Bioy
gato chamado Beppo, como o dele. Entretanto, essa conversão é Casares e informar-lhe sobre a ameaça de Daneri. Nesse trecho do
invertida em alguns pontos, já que Daneri declara que aderiu ao romance surge a primeira descrição física de Borges, caracterizado
movimento peronista depois que esse governo “promoveu” como gordinho, pálido e com cara redonda. Já Bioy Casares é
Borges do seu cargo na biblioteca Miguel Cané para o de “Inspetor descrito como alto, esbelto e com traços bem definidos. Vale a
de Aves e Coelhos”. Logo, o anti-peronismo do autor argentino é pena observar que essas descrições são condizentes com os seus
explicitado e dois elementos importantes de sua biografia vêm à referentes empíricos no período em que a ação narrativa está
tona. situada. O narrador também aponta que, ao contrário de Borges,
Antes de receber a carta de Daneri, Borges sonha com o seu amigo é bem sucedido com as mulheres e relata a relação de
Aleph, com Beatriz Viterbo e Carlos Argentino. Pensa que ele está amizade entre os dois. Em seu encontro, Borges revela que o Aleph
prestes a descobrir a verdade sobre a existência do Aleph, mas e Carlos Argentino Daneri são verdadeiros. Bioy Casares suspeita
reflete que todos vão preferir acreditar em um eminente Prêmio que Carlos Argentino quer matá-lo para ser Borges e sustenta que
Nobel de Literatura e não em um bibliotecário delirante. Desse “Daneri puede desear destruir a Borges, superar a Borges, o aun
modo, mais um acontecimento marcante da vida do autor burlarse de Borges, pero digamos que, como todo escritor, no
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puede vivir fuera de Borges.” (CAPPELLOTTI, 2012, p.51). Dessa Borges, informando que eles tiveram uma relação fugaz em 1949.
forma, a influência que o autor argentino exerce em alguns Também relembra que Borges dedicou-lhe “Historia del guerrero
escritores é exaltada, sendo, até, generalizada, ao mesmo tempo y de la cautiva” e que enviou-lhe um conto intitulado “La otra
em que a ideia de Daneri como duplo de Borges é reforçada. Além muerte” em que há um personagem chamado Ulrike. Por sua vez,
disso, desvela-se o significado do título do romance que pode ser Colombres demonstra não conhecer Borges e Vega define-o como
visto como uma metáfora para a relação entre os novos e os “[...] nuestro más grande poeta, cuentista.” (CAPPELLOTTI, 2012,
antigos escritores. p.63), ressaltando sua admiração pelo escritor. Recorda que ele
Bioy Casares aconselha-o a procurar a polícia e afirma que viveu na Europa quando era adolescente e que seus descendentes
essa situação não é literatura, mas sim realidade. Borges responde eram ingleses. Dessa forma, surgem dois importantes dados
que não há literatura mais perfeita do que aquela que mescla biográficos do escritor argentino na narrativa. Além disso, o papel
ficção e realidade e que “Tal vez pueda desmenuzar los más do leitor é representado no relato por meio de Vega que
inextricables problemas filosóficos, quizá pueda perderme en los Amaba sus metáforas, sus adjetivos y particularmente su
laberintos de la eternidad o refugiarme en mis sueños. Pero lo que forma de sentir la poesía, el sentimiento que a través de ella
irremediablemente no puedo es aprender a vivir, a enfrentar la expresaba. Sus cuentos, por qué negarlo, eran prodigiosos.
realidad [...]” (CAPPELLOTTI, 2012, p.53). Eis uma alusão a falta de Una prosa soberbia que cumplía el más perfecto sentido de
la estética, hilvanados con la más portentosa filosofía,
senso prático do autor argentino, bem como uma menção a
fantasía y metafísica. (CAPELLOTTI, 2012, p.71).
conhecidos tópicos da poética borgeana: labirinto, eternidade e
sonho X realidade. Diante desses argumentos, Bioy Casares Notamos que essa valoração dos escritos de Borges
conforta o amigo dizendo que tudo irá ser solucionado. sintetiza os principais méritos da poética do autor argentino.
Ao receber a resposta do escritor, Daneri fica indignado e Contudo, a admiração pela obra borgeana leva o detetive a pensar
decide feri-lo matando primeiro os seus dois amores não que Borges poderia ser o assassino de Ulrike, uma vez que ele
correspondidos: Ulrike von Kuhlmann e Estela Canto. Enquanto várias vezes descreveu homens com vida dupla em suas obras.
realiza o seu plano, sonha com Borges, ou melhor, sonha que é Assim, a ficção justificaria a realidade, problematizando seus
Borges. Aliás, no seu último sonho descreve a morte de Borges em limites, igualando o autor e o personagem. Ao comentar suas
primeira pessoa. Nele, o escritor não é assassinado, pois Daneri suposições, Colombres anima-se e declara que Perón ficará
declara não poder matá-lo porque ambos são um só. Novamente, encantado em ver o escritor preso.
ressurge o tópico do duplo no relato. Quando Borges é informado da morte de Ulrike decide
Para investigar os assassinatos de Ulrike e Canto entram em matar Daneri. Toma um táxi e juntamente com o taxista tece várias
cena o inspetor Colombres e seu ajudante, Ezequiel Vega. Durante críticas ao autor argentino. Para o taxista, Borges é um reacionário
a investigação do crime de Ulrike é Vega que relaciona Ulrike a e sua literatura é entediante. Também questiona o seu anti-
peronismo, alegando que ele não pertence à classe popular, e
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ironizando o seu desprezo pelo futebol. Por sua vez, Borges tentam protelar o interrogatório, mas Borges retorna e decide
comenta que gosta de dois ou três contos do escritor argentino e apresentar-se logo. Ao vê-lo Vega fica entusiasmado porque
que os outros deveriam estar no lixo. Acrescenta que ele não pode estava diante do arquétipo da prosa e da poesia argentina. Borges
ser comparado a grandes autores como Shakespeare, Stevenson e recebe outra carta de Daneri anunciando a morte de Estela Canto
Dante. Ao se despedirem, o taxista pede-lhe que, caso encontre e esconde-a dos investigadores. Durante o interrogatório ele não
Borges, comente suas opiniões. Assim, várias críticas conhecidas à fornece nenhuma informação nova e ao despedirem-se, Vega tem
obra borgeana e ao seu autor são recriadas no relato, bem como a a impressão de estar diante dos Deuses. Essa admiração pelo
ironia e a autocrítica do Borges escritor. escritor argentino leva-o à morte, uma vez que recebe uma
Ao descer do táxi, Borges espera Daneri em frente à rua mensagem anônima que anunciava que o segundo assassinato
Serrano, 2174. Cabe frisar que se trata do endereço da antiga casa havia sido articulado. Imediatamente o inspetor relaciona a frase
da família Borges em Palermo. Como ele não aparece resolve com o conto borgeano “La muerte y la brújola” e, tal como o
chamar e é atendido por um menino de sete anos que leva nas detetive desse relato, segue pistas falsas e é assassinado. Contudo,
mãos a Antología Poética de Leopoldo Lugones. Os dois conversam Vega descobre a verdade antes de morrer, pois acredita que os
sobre literatura e o garoto comenta algumas de suas leituras, crimes foram praticados por algum fanático por Borges, um
expressando seu desejo de ser escritor. Suas leituras coincidem inverossímil impostor.
com as realizadas em sua infância pelo Borges empírico: Oscar Por sua vez, o escritor pede ajuda a Bioy Casares para
Wilde, mitologia grega, Macedonio Fernández, Evaristo Carriego e impedir o assassinato de Estela e matá-lo, mas Daneri consegue
Pedro Palacios (Almafuerte). Portanto, podemos vê-lo como um assassiná-la antes que ele possa colocar o seu plano em ação. No
duplo do escritor. Nossa hipótese é reforçada quando a mãe do enterro de Canto, Borges recebe vários olhares acusadores. Então,
garoto interrompe o diálogo e chama-o de Georgie, tal como resolve vingar-se e planeja atrair Carlos Argentino através de uma
Borges era denominado por familiares e amigos. No romance, o conferência sobre o gênero policial e, assim, matá-lo. O escritor
escritor voltará a encontrar Georgie no zoológico e, finalmente, declara que não está preocupado com sua morte, pois postula que
descobre que ele é sua versão infantil, ressurgindo o tópico do sua obra pode torná-lo imortal. Entretanto, durante a sua
duplo no relato. Tenta convencê-lo a não escrever “El Aleph”, mas exposição, desmaia ao ver Daneri apontar-lhe uma arma. Ele é
percebe que o seu destino já estava traçado e não poderá ser hospitalizado, mas sua mãe e Bioy Casares não demonstram
alterado. Eis uma alusão ao destino literário do Borges escritor, o preocupação, já que esses desvanecimentos eram comuns e,
qual declarou em diversas ocasiões que havia decidido dedicar-se inclusive, algumas vezes, foram fonte de inspiração como no caso
à literatura desde criança. do conto “El Sur”, segundo o narrador. Dessa maneira, outro
Enquanto o escritor estava na casa de Georgie, Colombres elemento da biografia do autor argentino aparece no relato, pois
e Vega vão ao seu apartamento interrogá-lo. Fanny e Leonor é possível interpretarmos o referido conto como a ficcionalização
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do acidente que ele sofreu em 1938, o qual acelerou o seu apaixonado por Canto e que ela enganava Borges com ele.
processo de cegueira. Também indaga porque o escritor não havia avisado a polícia sobre
Bioy Casares pensa em como ajudar Borges e Silvina sua ameaça de morte. Borges explica que havia vários agentes
Ocampo, sua esposa, sugere que organizem um ato de desagravo ligados ao peronismo perseguindo-o e que acreditava que Carlos
na Villa Ocampo, em San Isidro. A seguir, ela entra em contato com Argentino trabalhava para o governo. De fato, sua análise estava
sua irmã, Victoria Ocampo, a qual adere ao projeto. No referido certa, uma vez que descobrimos no final do romance que Daneri
ato estão presentes vários intelectuais argentinos, ligados a revista foi contratado por Colombres, um militante do movimento
Sur. Além de descrever o encontro, o narrador menciona a censura peronista, para matar Borges.
à imprensa decretada por Perón, comparando-o a Rosas. Destaca Após o embate verbal, a narrativa termina de forma aberta
que a revista Sur havia resistido à censura devido ao seu perfil com Borges revendo vários duplos e chorando porque seus olhos
cultural e aristocrático e que combatia ativamente o governo não podiam compreender o que viam. Assim, ele “Vio el Aleph, vio
peronista. Assim, o contexto histórico é reconstruído, ao mesmo tu cara y mi cara, vio a todos los Borges del orbe y sintió vértigo y
tempo em que se enaltece o papel da revista Sur por sua luta a lloró…, desconsoladamente lloró…, porque sus ojos no podían
favor da liberdade de imprensa. comprender lo que veían.” (CAPPELLOTTI, 2012, p.235). O início da
Nesse encontro, Victoria faz um discurso a favor de Borges, citação é uma paráfrase de “El Aleph” e sugere que o escritor não
lembrando as perseguições do governo peronista contra o escritor: morreu, dado que ele chora após receber o tiro, embora seus olhos
sua “promoção” ao cargo de Inspetor de aves e coelhos e a não compreendam o que estão vendo, pois estaria vendo tudo.
detenção de sua mãe e de sua irmã por cantarem o hino nacional Também há uma alusão ao autor do romance e ao leitor, já que
em via pública. Depois de seu discurso, Borges toma a palavra e Borges vê os seus rostos, bem como o de outros Borges. Essa
reafirma que sabia desde criança que o seu destino era ser escritor. hipótese é reforçada por meio do uso dos pronomes possessivos
Ele acrescenta que a salvação está nas letras e que se não “tu” e “mi” que indicariam, respectivamente, o leitor e o autor da
escrevesse já estaria morto, reforçando o papel da literatura na narrativa. Nesse sentido, é possível interpretar esse final como
vida do autor argentino. Desse modo, Cappellotti reconstrói uma referência ao processo de ficcionalização do escritor
anacronicamente o ato de desagravo organizado pela SADE em argentino por outros autores que podem ser vistos como leitores
1946 e o “Desagravio a Borges”, publicado pela revista Sur, em borgeanos, pois dialogam intensamente com a sua poética em
1942, misturando os dois acontecimentos. seus textos, demonstrando que conhecem a sua obra.
Finalmente, depois de trocarem cartas e de sonharem com
o outro, Borges e Daneri encontram-se na Plaza San Martín. Carlos Considerações finais
Argentino afirma que as mortes de Ulrike e Canto foram uma Matar a Borges dialoga com a poética borgeana de diversas
maneira de envolvê-lo em sua armadilha. Confessa que esteve formas, uma vez que nesse relato há alusões a tópicos
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característicos da literatura do autor argentino como a críticas que a obra borgeana e o seu criador receberam em seu
ficcionalização da crítica literária, a indiferenciação entre autor e país. Por um lado, Borges foi bastante elogiado por Vega que o
personagem, a cena da leitura, a intertextualidade, a vingança, o considerava o arquétipo da literatura, o maior poeta e contista
sonho, a vigília, a morte, o duplo, a biblioteca, entre outros. argentino, um gênio literário e um imperador de ficções, além de
Também estão presentes na ficção citações de trechos de várias exaltar o seu estilo e a forma de suas poesias e de seus contos. Por
obras de Borges e são mencionados diversos autores relacionados outro lado, o inspetor Colombres ao ouvir o seu sobrenome pensa
ao arquivo literário borgeano. A narrativa aborda, ainda, outro que se trata do comediante Tato Borges, demonstrando
elemento caro à poética borgeana: o romance policial que está desconhecê-lo; o taxista o classifica de reacionário, afirma que
presente tanto na estrutura do relato quanto em intertextos com seus contos lhe pareceram chatos, critica o seu desprezo pelo
o gênero. futebol e explica o seu anti-peronismo devido a sua diferença de
Contudo, na narrativa de Cappellotti destaca-se o diálogo classe; já Daneri quer vingar-se do escritor por ter distorcido a
com o conto “El Aleph”, visto que, além de ser citado realidade, uma das principais marcas da poética borgeana.
constantemente, um personagem desse texto foi reficcionalizado. Também não podemos nos esquecer dos mencionados desagravos
Portanto, a intertextualidade também ocorre com a história da que foram ficcionalizados na narrativa, cuja função foi apoiar
literatura, pois um personagem borgeano foi retirado de seu Borges e sua literatura. Historicamente, o escritor argentino foi
contexto original e questiona o ponto central da estética de seu respaldado por intelectuais ligados à revista Sur, como Victoria
criador: a sua não filiação ao realismo, um claro exemplo de Ocampo e Adolfo Bioy Casares. Aliás, muitos escritores de sua
ficcionalização da crítica literária. Não podemos deixar de geração foram seus leitores, dado que no início de sua carreira a
mencionar que o romance traz, ainda, algumas questões literárias literatura borgeana não obteve uma ampla recepção crítica. Isso
à tona, tais como o valor de um escritor. Também permite discutir levou alguns críticos a classificarem a literatura de Borges como
a relação que os novos autores estabeleceram com o autor destinada apenas a escritores. Nessa perspectiva, Matar a Borges
argentino, dado que é possível interpretarmos o desejo de Daneri estabelece um diálogo com a história da literatura, dado que tanto
matar Borges como uma metáfora desse relacionamento. Cabe os elogios quanto os questionamentos a obra borgeana abordados
registrar que essa ideia foi expressa pelo escritor Witold no romance refletem as diversas leituras que a literatura de Borges
Gombrowicz em 1963 quando em sua partida da Argentina foi alvo na Argentina ao longo das últimas décadas. Dessa maneira,
aconselhou os seus admiradores a matarem Borges, sugerindo que somos remetidos ao processo de canonização de Borges cujo
produzissem uma obra original, eliminando a influência do autor reconhecimento começou a partir da década de 1960 com o
argentino. recebimento do prêmio Formentor.
Vale a pena salientar que a narrativa de Cappellotti dialoga Pensamos que a conversão do escritor argentino em
com a história da literatura argentina ao ficcionalizar algumas das personagem no romance de Cappellotti problematiza os limites
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entre a realidade e a ficção, um tópico corrente da poética BRESCIA, P. Borges deviene objeto: algunos ecos. In: Variaciones
borgeana. Vimos que nessa obra Borges foi representado em uma Borges 26, 2008.
fase decisiva de sua vida, uma vez que havia sido “promovido” do
seu cargo da Biblioteca Miguel Cané para o de Inspetor de aves e CAPPELLOTTI, F. Matar a Borges. Buenos Aires, 2012.
coelhos, além de ser perseguido pelo governo peronista.
Historicamente, ele renunciou ao referido cargo e, como precisava ESTEVES, A. R. O romance histórico brasileiro contemporâneo
encontrar um novo trabalho, passou a lecionar e a ministrar (1975-2000). São Paulo: UNESP, 2010.
conferências. Para vencer sua timidez buscou a ajuda de um
psicanalista, fato reconstruído no romance. Essas mudanças foram WEINHARDT, M. Quando a história literária vira ficção. In: ANTELO,
decisivas para a fase de consagração de sua carreira. R. et al., (org.). Declínio da arte, ascensão da cultura. Florianópolis:
Em suma, Matar a Borges é um texto híbrido, visto que a Abralic, 1998.
realidade e a literatura estão mescladas. Percebemos que o
romance é construído a partir de referências espaciais empíricas,
a maioria relacionada à moradia ou a lugares frequentados pelo
autor argentino, e que o tempo é demarcado claramente, pois a
ação narrativa concentra-se em 1950. Além disso, há vários
personagens baseados em referentes empíricos e o contexto
histórico é recriado, bem como vários episódios da vida de Borges.
Porém, essa intenção de construção de uma obra aparentemente
verossímil é problematizada com a reficcionalização de Carlos
Argentino Daneri, personagem do conto borgeano “El Aleph” e
com algumas distorções do material histórico, conforme já
assinalamos. Nesse sentido, ao igualar a história e a ficção, a obra
de Cappellotti pode ser lida como um novo romance histórico que
ficcionaliza escritores, no qual o autor assume o papel de leitor e
recriador de Borges, escrevendo novos capítulos da história
literária.

Referências
BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1974.
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A FICÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPANHOLA: FORMA E CONTEÚDO Neste contexto é que entram os escritores acima citados. Em
Jorge Paulo de Oliveira Neres primeiro lugar, Miguel Delibes, que era jornalista, e se sentia
UNESA profundamente incomodado pela censura, sem poder tratar em
seus artigos das questões essenciais de sua Espanha e,
A Literatura Espanhola contemporânea, como todas as particularmente, de sua Castilla. Sem alternativa, busca na ficção
literaturas ocidentais, experimenta a dinâmica dos processos o modo de melhor vislumbrar a realidade hostil em que se
evolutivo e transformador, perceber algumas destas encontrava seu país. Manuel Rivas, por sua vez, bem mais jovem,
transformações é o objetivo do presente trabalho. Tomamos por sofre indiretamente os percalços do regime e, ao se transformar
referência inicial dois escritores contemporâneos espanhóis que já em escritor, a partir das experiências ouvidas e pesquisadas,
foram objetos de nossos estudos em trabalhos anteriores, que são constrói algumas de suas obras ficcionais tendo como tema o
Miguel Delibes (1920-1910) e Mauel Rivas (1957), tomando por período ditatorial.
referência sua obras respectivas Los santos inocentes (1981) e El As obras Los santos inocentes e El lápiz del carpintero são
lápiz del carpintero (1998). São obras que, de alguma forma, tem exemplos claros da temática subjacente a elas, que chamaríamos,
como matéria histórica subjacente a Ditadura de Francisco Franco conforme (BASTOS, 2000, p. 9) de “matéria de extração histórica”.
(1892-1975), como consequência da Guerra Civil Espanhola (1936- Reside, neste ponto, o aspecto crucial de nosso trabalho que vem
1939) que, além das marcas violentas que a caracterizaram, a ser a designação destas obras como metaficção histórica ou não.
desencadearam, também, um regime fechado no qual as práticas Isto porque as aparentes intencionalidades autorais não nos
opressivas se constituíram em marca maior, dentre as quais, a conduzem a uma peremptória afirmativa em termos de gêneros
ostensiva censura. de cada uma das obras. Percebemos, muito mais que isso, quer
Como não poderia deixar de ser, o regime opressor varreu dizer, uma experimentação estética do ato da escritura. Tanto
todo tipo de informação que o contestasse, além de calar, pela Delibes quanto Rivas preocupam-se muito mais com o universo
violência, as vozes que a ele se opunham, fossem publicadas ou interior de suas personagens do que propriamente com o exterior,
não. Enfim, configurou-se um vazio de pensamento e de mas deixam claro que este repercute decisivamente naquele. Ou
informações na Espanha, ao longo de 40 anos, no qual somente se seja, tanto em uma obra quanto em outra há um ser opressor
tinha conhecimento do discurso oficial. As consequências disto supremo, que é a Ditadura, onipresente, representante de um
foram desastrosas e percebidas de forma contundente quando a macrosistema perverso e injusto, sob o ponto de vista social . No
ditadura ruiu com a morte do ditador. O país, ao redemocratizar- caso de El lápiz del carpintero, um preso político, que é um pintor
se, vai olhar o passado e perceberá que sua história foi apagada ou de ideias, desenha o Pórtico da Glória, utilizando um lápis de
varrida para debaixo de um hipotético tapete. carpinteiro vermelho. O Pórtico representa o Dia do Juízo Final e
os rostos dos anjos e dos profetas estão representados pelos
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prisioneiros políticos, enquanto que os demônios torturadores são problema mental de retardamento vive livre pelo Cortijo, fazenda,
os guardas do inferno prisional da prisão de San Simón. Já em Los em contato com a natureza e apaixonado pelas aves,
santos inocentes, Delibes traz para a cena uma família de pincipalmente uma gralha, que ele chama de Milana, seu animal
camponeses oprimida pelo dono da fazenda , Señorito Iván, de estimação. Em outras palavras, Azarías é a própria
representante digno do poder opressor. A família de agricultores, representação do inocente. Sobre isto, torna-se pertinente
cujo patriarca é Paco, El Bajo, vive completamente explorada pelo esclarecer que tanto Delibes quanto Rivas recorrem a textos
Señorito, humilhada em sua dignidade mínima. Paco, a esposa bíblicos em suas narrativas, revelando olhares irônicos sobre a
Régula, os filhos Rogelio, Quirce, Nieves e a Niña Chica, além do tradição, numa atitude típica das narrativas pós-modernas. Em
cunhado Azarías são humilhados constantemente, sendo espécies Delibes, o próprio título da obra revela a ironia em torno dos textos
de animais de estimação do Señorito. Este, aliás, tem a predileção bíblicos. Em Los santos inocentes se torna clara a paródia aos
pela caça., utilizando-se de Paco como uma espécie de cão textos sagrados já a partir do título do romance, na alusão aos
farejador, e como Paco se submete totalmente aos caprichos do “santos” enquanto seres naturalmente virtuosos e, ao mesmo
patrão, justifica-se plenamente o adjetivo que o qualifica “El bajo”. tempo, “inocentes” numa referência ao episódio bíblico da
A propósito a opressão é tão violenta que os camponeses optam matança de crianças por Herodes. Na verdade, o diálogo
pelo silêncio e pelo acato ostensivo às ordens emanadas. Há uma estabelecido entre a narrativa delibesiana e as Escrituras Sagradas
espécie de aceitação tácita de um status quo inferior, como uma se dá, poderíamos dizer, em dois níveis. No primeiro, que
espécie de convenção ao aceitamento da hierarquia opressora, chamamos plano do texto, a intertextualidade se realiza sob o
tudo isso materializado num pacto de silêncio. Isto se constata signo da paródia. No segundo, que denominamos ideológico, se dá
quando Nieves, uma das filhas de Paco, vai trabalhar na casa dos ao nível do contexto. Quando nos referimos à paródia, no que
patrões e é orientada pelo pai: “Niña, a ti estos pleitos de La Casa convencionamos chamar de primeiro nível, observamos que
de Arriba, ni te van ni te vienen, tú allí, oír, ver y callar” (DELBES, Delibes em momento algum estabelece uma crítica ao texto
1981, p.55), A visão de Paco, o seu receio ao poder pode ser original das Escrituras. Isto significa dizer que a hierarquia sagrada
ilustrado pela afirmativa de (ŽIŽEK ,2010, p. 17): é mantida incólume na atualização, ou seja, a matriz não sofre
O grande Outro opera num nível simbólico. De que então qualquer tipo de arranhão na escrita do autor. O que abstraímos
se compõe a ordem simbólica? Quando falamos (ou da narrativa, no entanto, e que se nos afigura como uma grande
quando ouvimos) nunca interagimos simplesmente com paródia é o fato de que os “inocentes”, no texto original, eram
outros; nossa atividade de fala é fundada em nossa crianças perseguidas por Herodes, pela suposição de que uma
aceitação e dependência de uma complexa rede de regras e
delas seria o apregoado Messias, representação do pensamento
outros tipos de pressupostos.
cristão. No romance de Delibes, os “inocentes” continuam com o
Apenas quem não se submete aos ditames do Señorito é o mesmo status de perseguidos, só que dentre os seus
cunhado de Paco, El Bajo, Azarías, este, por apresentar algum
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perseguidores, se encontra justamente o representante do caso a pintura, numa espécie de projeção às inovações estéticas
pensamento cristão, o Bispo, comensal contumaz da casa do típicas do século XXI. O mesmo podemos falar de Delibes com as
Señorito Iván, alusão clara de que a Igreja Católica Espanhola inovações que inscreve na elaboração de sua obra.
optou pelos opressores e abandonou seus “inocentes”. Sobre isto
afirma MARTINEZ (2002, p.9): DAS RUPTURAS E DA TRADIÇÃO: o silêncio eloquente e as marcas
La novela es, por lo tanto, desde el mismo título, un acto de da História
justicia, una reparación, un desagravio, sobriamente Aqui, tratamos da inserção dos romances de Miguel Delibes
respetuoso, no vocinglero ni proselitista. Azarias, Paco y los e de Manoel Rivas no universo das obras transgressoras dos
suyos son “santos”, esto es, en sentido estricto, “apartados modelos canônicos e da tradição. Nosso foco é centrado na
para Dios”. Es el novelista quien así lo establece, quien los
estrutura narrativa, sem perder de vista as relações temáticas
canoniza, no el representante de la Iglesia, ese obispo que
materializadas no conteúdo social emanado de cada obra.
aparece en la novela para unir al hijo de los poderosos con
Dios y no tiene siquiera una palabra de conmiseración para Assim, torna-se importante o comentário das estruturas
los otros, para los santos inocentes de los que “apartaba la narrativas das obras, pois, conforme( LUKÁCS, s.d., p. 95):
mano discretamente”, sintiéndose “azorado”. No lo A composição romanesca é uma fusão paradoxal de
“azora”, sin embargo, el hecho de que los señoritos a los elementos heterogêneos e descontínuos chamados a
que sirve hayan convertido su religión en pura fórmula, en constituir-se numa unidade orgânica permanentemente em
mera máscara de sus privilégios, ni que ofendan al Dios que causa. As relações que dão coerência a estes elementos
él representa y en el que ellos dicen creer manteniendo abstratos são, apenas na sua pureza abstrata, de natureza
sumidas a sus criaturas en la más terrible miseria espiritual formal; por isso o último princípio unificante não poderia
y física. ser neste caso senão a ética da subjetividade criadora, ética
tornada evidente pelos próprios conteúdos. [...].
Em função disto, Delibes redime esses “inocentes” em sua
narrativa, “canonizando-os” num processo que extrapola a Desta forma, a análise se configura como uma espécie de
paródia em significação muito mais ampla. Afinal, notamos que a estudo de mão dupla, observando a técnica a serviço do enunciado
santificação se realiza num contexto extremamente sacrificial, no e este se construindo pela técnica. Com isso, não ignoramos as
qual os direitos mais elementares do camponês oprimido lhe são interlocuções interditadas das personagens de Los santos
subtraídos, inclusive o de professar a fé. Dado o exposto, o inocentes, por exemplo, porque o “calar espontâneo” ou a
romance se configura antes de tudo como uma forma transversa “interrupção de uma fala” pode se dar por contingências do
de Delibes conferir dignidade a esses camponeses. Em Rivas, contexto ou mesmo por opção narrativa, ocasionando, portanto,
observamos, além da questão bíblica, na visita ao passado, a um impacto decisivo na estrutura do relato.
abertura dialógica da literatura com outras linguagens da arte, no Sob a mesma perspectiva, inserimos aqui a discussão em
torno do subgênero romance histórico por entendermos que os
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relatos se incluem nesta modalidade narrativa. Como atualmente obras, bem como no teor de seus conteúdos, donde se justifica a
as narrativas de extração histórica, bem como biografias, incidência concomitante da abordagem em torno da inclusão ou
autobiografias e textos afins atendem aos apelos da demanda de não delas no rol das narrativas de extração histórica.
um mercado editorial ávido por obras desta natureza,
aproveitamos para discutir a atualização dos temas históricos com Modernidade , pós-modernidade e tradição nas obras de Delibes
a premissa de que o pós-moderno utiliza-se da tradição para com Em uma primeira leitura, são visíveis as inovações em Los
ela romper. santos inocentes, de Miguel Delibes, tanto no que se refere aos
Não queremos dizer com isto que a literatura ou a produção procedimentos de elaboração narrativa quanto no que diz respeito
literária contemporânea esteja submetida à ditadura do mercado, ao trato estilístico.
pois uma afirmação desta natureza seria, no mínimo, superestimar O relato de Delibes é extremamente dinâmico, em função
o mercado em detrimento de uma historiografia literária rica em de sua estrutura narrativa que foge ao modelo dos romances
inovações. tradicionais. Em suas linhas iniciais, já percebemos a ausência de
Mas, não podemos negar que as exigências mercadológicas fronteiras entre narrador e personagens, com os discursos de
impõem, no contexto denominado de pós-moderno, um trânsito ambos sobrepondo-se, entrecortando-se, alternando-se na
em mão dupla das formas eruditas com as da chamada cultura de polifonia peculiar às narrativas pós-modernas. Além disso, a
massa. E isso se concretiza, no mais das vezes, através de oralidade, tão funcional e veloz na comunicação cotidiana,
hibridismos envolvendo variadas linguagens, por meio de busca de apresenta suas marcas no romance Los santos inocentes,
alternativas formais inovadoras, pela necessidade de se relevar a conferindo-lhe a praticidade da linguagem do dia-a-dia do
recepção da obra etc., e, por que não dizer, numa outra ponta, as universo camponês de Extremadura, onde a narrativa é
variadas atividades do sujeito autoral contemporâneo o levam a ambientada.
transitar em inúmeros contextos de linguagens que se projetam, Construído nos moldes de um grande poema, apresenta uma
muitas vezes, na materialidade de seus textos como formas novas essência lírica que se contrapõe à matéria violenta que constitui
de enunciação literária. seu tema. Assim, no relato altamente poético, a pontuação
Não nos esqueçamos, como ilustração do exposto, que peculiar à prosa tradicional é dispensada e a forma fragmentada,
Miguel Delibes, por exemplo, traz para o seu texto literário a como a de um poema, não implica em momento algum na perda
experiência do jornalismo, do mesmo modo que Rivas se revela um da homogeneidade da obra.
verdadeiro multimídia. Em seu relato, o autor parte de um universo particular, mais
Dado o exposto, sendo a literatura antes de tudo um precisamente regional, e confere um caráter universal à obra a
produto da linguagem, não separamos em dispositivos estanques partir do momento em que penetra nas razões que extrapolam
a forma do conteúdo. Daí nosso trânsito nos aspectos formais das
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limites geográficos e se assentam nas eternas contradições e impregnados do mesmo senso de injustiça e de intolerância.
idiossincrasias humanas. Utiliza-se do insólito para conferir o sólito à narrativa, sendo a
Desta forma, o contexto em que se dá a obra desemboca personagem tida como marginalizada, e até mesmo louca,
numa tragédia comum a qualquer ambiente opressor. Em Los instrumento caro aos rumos da história.
santos inocentes, a narrativa representa ficcionalmente a Delibes, na intenção de lançar seu olhar sobre os contextos
realidade empírica da subserviência aos detentores do poder. O que origina sua narrativa, emprega vozes de outros, configurando
inusitado reside no fato de que, em Delibes, , é a personagem dita aquilo que (BAKHTIN, 2005, p. 188) chama de “elaboração
“inocente”, apartada da realidade, risível, a que efetivamente estilística do discurso objetificado”. Isto quer dizer que, o discurso
rompe a estrutura hierárquica para dar a resposta dos oprimidos: de Azarías, por mais ilógico que possa parecer, é “tarefa estilística
Azarías. do contexto do autor”, uma vez que ora contribui como
Dois aspectos especiais nos chamam a atenção no que se ingrediente da tessitura do texto, ora se torna fundamental à
refere aos recursos empregados pelo autor na elaboração de sua solução narrativa.
obra. Em primeiro lugar, destacamos a presença da matéria de Ao atribuir papéis capitais a personagens com perfis
extração histórica, um tanto quanto implícita em Los santos alienados, loucos ou inocentes, Delibes efetivamente utiliza-se de
inocentes, uma vez que os índices históricos remissíveis à ditadura técnicas consolidadas na história literária que se renovam com a
franquista ocupam as frestas da narrativa, sugeridos por relações roupagem da narrativa contemporânea e se atualizam na recepção
opressoras seculares, típicas do campo espanhol, que se acirram do leitor e nossa contemporaneidade.
após a chegada ao poder do ditador Franco, com a vitória na Sua obra é inovadora, sem perder os fios da tradição e se
Guerra Civil em 1939. estabelece como discurso consoante com as transformações da
No romance Los santos inocentes, destacamos a marca modernidade. Dito isto de outro modo, cumpre, enfim, a receita
peculiar de Miguel Delibes de se fixar nas personagens para, a de (BAUDELAIRE, 1997, p.24) acerca da modernidade , que “é tirar
partir delas, descortinar o exterior, fato que pulveriza e o poético do histórico e extrair o eterno do transitório”. Resulta,
praticamente anula a verossimilhança, colocando-a num plano daí, uma das interessantes facetas do romance Los santos
secundário, ínfimo. inocentes
Em função disto, as referências ao mundo exterior aparecem
fragmentadas nas visões individuais de cada personagem, ou seja, A elocução interditada em Los santos inocentes
a matéria histórica em Delibes se situa nos planos do subjetivo e Se tomarmos, em primeiro lugar, a obra de Miguel Delibes,
do psicológico. Ele lança mão de procedimentos narrativos observamos que sua narrativa apresenta como pano de fundo o
consoantes com as escrituras contemporâneas, além dos elos universo rural espanhol, materializado em um cenário bem
temáticos voltados para universos sociais distintos, porém delineado do campo no qual transitam personagens que, de
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alguma forma, trazem ao presente da narração marcas profundas Pacífico Perez, de La guerra de nuestros antepasados (1975), para
das incidências históricas a consubstanciar suas personalidades, se praticarem os atos os mais inesperados possíveis.
é que assim podemos configurar a personagem ficcional Desta forma, como apontamos anteriormente, é a partir das
delibesiana. personagens que podemos perceber o impacto daquilo que
Los santos inocentes é uma narrativa em que a historicidade chamaríamos de realidade histórica empírica sobre o âmbito
das personagens imbrica-se com a História da sociedade em que individual de cada uma delas. Da mesma forma, compreendemos
se inserem, tornando-as reflexos do contexto autoritário em que o porquê das muitas de suas ações ou paralisias em face da
vivem. Na verdade, tanto o universo opressor quanto o oprimido conjuntura hostil que as sufoca.
resultam de convenções sociais seculares que se impõem no Assim, percebemos, por exemplo, que em Los santos
cotidiano de cada personagem, através do discurso pétreo de um inocentes, dada a proximidade do poder opressor, cuja nítida
poder que se “renova” na consolidação de velhos hábitos, ou seja, representação é o Señorito Iván, a subserviência se torna a
mudam as pessoas, mas a estrutura continua a mesma. alternativa, daí o silêncio eloquente ou a incidência de uma
Assim, esta narrativa de Delibes, não levando em elocução pautada nas frases curtas de acato às ordens emanadas
consideração as inovações nela contidas, tampouco a reconhecida pelo dono do poder.
originalidade do autor, retoma o ambiente comum do conjunto de A aparente dicotomia da expressão “silêncio eloquente” se
sua obra, o sempre referido universo de Extremadura e também explica no fato de que, apesar do silêncio, o camponês, embora
de Castilha. não vislumbre os meios para mudar a situação, tem plena
Isto se justifica pelo fato de que não é o autor quem insiste consciência de que é explorado. Cala-se, mas interiormente sabe
em não renovar seus temas, mas é aquela Espanha, representada os motivos de seu silêncio, como na reiteração de um aviso
em sua obra, que não se cansa de recorrer ao obscurantismo para anterior dado a Nieves, , quando Paco, el Bajo, no sumiço de Purita,
resolver suas dissidências. Logo, o autor, amante empedernido de diz a Nieves que “em estos asuntos de los señoritos, tu oír, ver y
sua região, toma da pena para dizer, na literatura, aquilo que não callar,” (DELIBES 1981, p. 154),
pôde falar como jornalista, em função da censura política do Em La guerra de nuestros antepasados, por outro lado, o
ditador Franco. silêncio é antes de tudo uma opção da personagem Pacífico Perez,
Daí serem suas personagens profundamente densas, que só começa a falar a um gravador depois de muito instado pelo
revelando algum tipo de desvio psicológico que, ou as tornam médico. Temos, neste caso, uma situação distinta, até porque, há
passivas e resignadas, como o caso de Paco, el Bajo e de Régula, um abismo social a separar Pacífico das personagens camponesas
de Los santos inocentes, ou capazes de serem arrancadas de sua de Los santos inocentes.
letargia, como o caso de Azarías, também de Los santos, e de Para termos, no entanto, ideia mais abrangente da obra de
Delibes e dos procedimentos inovadores de sua narrativa,
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lembramos que Pacífico Perez está em um hospital-prisão, Nesta perspectiva, Delibes constrói uma personagem
condenado por assassinato, e desperta a curiosidade do médico do atravessada pela superposição de tempos cronológicos distintos
sanatório, Dr. Burgueño em relação à sua história. O médico tenta que se diluem no seu confuso universo interior, materializando-se
entrevistá-lo, mas esbarra no silêncio de Pacífico até que, depois em uma elocução expressa pelo fluxo de consciência na qual os
de algum tempo, tendo conseguido sua confiança, inicia as fatos, leitmotiv periférico à ação das personagens, se encaixam até
entrevistas com o recurso do gravador. o momento do desfecho inesperado.
Em seus relatos ao médico da prisão, Pacífico Perez revela, a Em Los santos inocentes, as referências sociais também são
partir de reminiscências de histórias de guerras passadas nas quais apresentadas segundo o olhar de cada personagem, porém, dada
seus ascendentes se envolveram, todo o seu drama pessoal e o a condensação da linguagem, não ocupam explicitamente um
drama histórico espanhol. Percebemos que a personagem, primeiro plano nas elocuções, aparecendo como uma espécie de
“pacífica” por excelência, é obrigada a escolher uma guerra para comentário subjacente aos temas tratados nos diálogos, como no
si, pois todos os seus parentes tiveram as suas. Em outras palavras, trecho em que o Señorito Iván, em função da indiferença de Quirce
nesta narrativa, Delibes traz para a ficção o passado bélico durante a caçada, se queixa ao Ministro e este lhe responde: “la
espanhol, acentuando o drama da violência a permear a história crisis de autoridad afecta hoy a todos los niveles.” (DELIBES, 1981,
da Espanha, inclusive na contemporaneidade do relato. p. 144).
Pacífico Perez, que havia deliberado manter-se em silêncio, Ao longo do romance, situações como estas se repetem, o
em pleno contexto opressor da ditadura de Franco, solta a palavra que demonstra estarem as questões sociais, no texto de Delibes,
em aluvião e transborda o gravador com histórias que nada mais muito mais presentes no sentido geral da obra do que
são do que o drama de sua existência. propriamente na palavra explicitada.
Num relato em que o tempo cronológico não conta muito, Um exemplo claro deste procedimento adotado pelo autor
as histórias vão sobrepondo-se num fluxo de consciência, é a passagem, , em que Azarías conduz Miriam ao local onde se
materializado em um ato narrativo onde o que menos importa são encontra a Niña Chica quando, inconscientemente, lhe apresenta
as referências e limites externos, mas o impacto dos o desconhecido mundo de miséria em que viviam os camponeses.
acontecimentos no universo interior da personagem, conforme Sem escrever uma linha sequer em torno do fosso social a separar
(ROSENFElD,1996, p. 82): as classes ou fazer qualquer proselitismo a denotar engajamento
Sabemos que o homem não vive apenas “no” tempo, mas político, Delibes demonstra a sua inquestionável eloquência ao
que é tempo, tempo não-cronológico. A nossa consciência não dizer o que efetivamente diz.
não passa por uma sucessão de momentos neutros, como o Pelas frestas do universo rural as referências históricas e
ponteiro de um relógio, mas cada momento contém todos sociais se fazem presentes. Daí a ostensiva presença do ambiente
os momentos anteriores.
de Castilha e de Extremadura no conjunto da obra de Delibes e,
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particularmente, Extremadura, em Los santos inocentes. Aí, as en realidad éstas son cosas para tratar entre mujeres,
personagens transitam, seja como sujeitos ou objetos da estrutura pero...
social opressora, seja integrando-se ou agredindo a natureza que y la pausa se hizo más profunda, [...]
as acolhe. Quando nos referimos às interlocuções interditadas,
No romance, a opressão secular e particularmente a figura estamos, na verdade, nos referindo a um contexto opressor que
de Franco e aquilo que ela representa, revelam-se muito mais de impõe o silêncio. Se observarmos a personagem Régula, por
forma implícita do que explícita, pairando como uma espécie de exemplo, constatamos que a forma lacônica com que responde
negras nuvens a não chover, fantasmas a vigiarem os passos de aos seus superiores decorre, antes de tudo, de uma postura
cada personagem. Aqui, observamos como Delibes submissa que extrapola a personagem, alcançando justificativa
magistralmente maneja a linguagem e o uso das técnicas naquilo que ela representa, ou seja, Régula não é submissa e sim a
narrativas. classe social a que pertence.
A linguagem empregada em Los santos inocentes revela a Ora, a narrativa de Delibes sempre que antepõe em situação
intenção explícita do narrador em privilegiar os truncamentos de diálogos integrantes da família de Paco, el Bajo a seus
peculiares a situações dialógicas interditadas a fim de caracterizar opressores, revela o truncamento da comunicação por parte dos
o ambiente narrativo como um contexto opressor, daí, como no camponeses. Desta constatação, tiramos duas conclusões, uma,
exemplo abaixo, trunca a fluidez da comunicação entre as no plano da elaboração da obra e a outra no âmbito das
personagens a fim de colocar em um plano primeiro o silêncio personagens.
entrecortado por frases suspensas, conforme (DELIBES, 1981, pp. Sob o ponto de vista da obra, Delibes procura ser o mais fiel
44-45): possível na representação do universo camponês espanhol com
y don Pedro, el Périto, continuó, dándole instrucciones, todas as peculiaridades de suas relações hierárquicas. Em função
que no paraba de darle instrucciones y, al concluir, ladeó la disto, os procedimentos técnicos de elaboração do seu romance
cabeza, se mordió la mejilla izquierda y quedó como
revelam como elemento essencial à narratividade a presença de
atorado, como si omitiera algún extremo importante, y la
um narrador onisciente que, muitas das vezes, utilizando-se da
Régula sumisamente,
¿ alguna cosa más, don Pedro? descrição, desvenda aquilo que a personagem não consegue falar.
y don Pedro, el Périto, se mordisqueaba nerviosamente la Isto quer dizer que este narrador deliberadamente ocupa, em
mejilla realidad, y volvía los ojos para la Nieves pero no muitos momentos, o lugar da personagem. A esta, ele reserva as
decía nada y, al fin, cuando parecía que iba macharse sin frases lacônicas.
despegar los labios, se volvió bruscamente hacia la Régula, A substituição, em muitos momentos, dos chamados verbos
esto es cosa aparte, Régula, dicendi e a abolição da pontuação assinaladores das entradas de
balbuceó, vozes e dos diálogos pela conjunção “y” ou pela vírgula, não só
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conferem velocidade à narrativa, como também acentuam a fusão um discurso finito lhe proporciona, visto ser incapaz de tudo
das variadas vozes e estabelecem a conexão entre as falas e as comunicar.
ações. Este recurso estilístico de preenchimento dos possíveis Essas personagens, portanto, por representarem um
vazios se justifica quando levarmos em consideração o fato de que discurso adulto mais conformado e não vislumbrarem tempo para
o relato de Delibes tem como premissa a representação de alternativas que possam mudar-lhes a vida optam por
personagens inseridas em um universo de comunicação truncado, conscientemente fecharem os olhos na comodidade do silêncio e,
repleto de frases curtas, peremptórias, de expressões lacônicas e diferentemente do silêncio de seus pais, Quirce, Rogelio e Nieves
cerceadas pelo seu contexto de produção. Sob o ponto de vista não se deixam seduzir, tampouco se submetem explicitamente aos
estético, o efeito desta técnica narrativa é primordial; no plano mandos dos poderosos. Acatam as ordens no sentido prático que
ideológico da obra, revelador de uma profunda coerência. as caracterizam, mas revelam a rebeldia de não abaixarem a
No âmbito das personagens camponesas, com exceção de cabeça para aqueles que os oprimem. A construção dessas
Azarías e da Niña Chica, todas são comedidas na fala. Azarías e a personagens, descendentes diretos de pais oprimidos, já revela na
Niña, pelo estado de inocentes, ignoram todas as convenções, narrativa de Delibes uma “luz no túnel”, mesmo não se
sendo que o primeiro, como todo alienado, pode falar o que bem materializando em atitudes contestadoras mas, pelo menos,
entender, pois não será levado a sério e a Niña que, devido à revelando traços de insubmissão que, fatalmente darão início ao
mudez, apenas grita palavras incompreensíveis. desmoronar do sistema opressor.
Quando observamos, no entanto, as demais, não podemos Ao tratarmos destes dois autores, com ênfase em Miguel Delibes,
negar o predomínio do silêncio sobre as lacônicas frases que dadas as peculiaridades inovadoras de sua narrativa, queremos
emitem. Nesse ponto, se diferenciam entre elas. Régula e Paco, assinalar que tanto Rivas quanto Delibes, mesmo atendo-se a um
por exemplo, se encaixam na modalidade de silêncio apontada por modelo narrativo de importância primordial para a Espanha
(DAUENHAUER apud SPERIDIÃO, 2003, p. 24): redemocratizada, materializado na necessidade de preenchimento
O silêncio não é simplesmente ligado a algum desempenho de um vácuo histórico deixado pela Ditadura Franquista, que foi a
humano ativo. Ele próprio é um desempenho ativo. Assim é reconstrução da História por meio da ficção literária ou metaficção
que o silêncio não é mudez nem simples ausência de som
histórica, ambos, pelo manejo de uma capacidade de escritura
audível. É comparável à diferença entre estar sem visão e
inovadora, abriram caminho para os modelos narrativos do século
ter os olhos fechados. O homem que se priva da criação de
uma nova fala, como nova forma de se perceber, XXI. Isto no plano estético-formal e, como não poderia deixar de
permanece acorrentado por um discurso aparentemente ser no próprio tratamento da matéria histórica, se pensarmos em
contínuo e eterno; obriga-se a viver ilusoriamente um conteúdo, afinal vozes que foram caladas vieram à tona e o
mundo controlável e familiar, porque teme as aporias que oprimido, que sempre ficou à margem da História Oficial e
Tradicional, passou a ter voz, pois, conforme (BASTOS apud
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TROUCHE, 2006, p.40) o histórico não se resume aos grandes feitos apud PILATI, p.1): “Nós nos sentimos livres porque somos
“[...] mas também a jornada cotidiana e cinzenta do homem desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade!”
comum [...] A substância histórica confunde-se com a política [...]” Ora, de alguma forma o filósofo esloveno tem razão e aqui cabe
É necessário esclarecer que as narrativas de matéria de uma associação com a ficção de( GALEANO 1994, p.69) quando
extração histórica tiveram forte evidência em fins dos anos 70 e escreve:
início dos anos 80 do século passado, notadamente naqueles Janela sobre a palavra (IV)
países que foram submetidos a regimes opressores. O gênero ou Magda Lemonnier recorta palavras os jornais, palavras de
subgênero alcançou grande repercussão em países da América todos os tamanhos, e as guarda em caixas. Numa caixa
Latina, redemocratizados, após períodos longos de ditaduras e, na vermelha guarda palavras furiosas. Numa verde, as
palavras amantes. Em caixa azul, as neutras. Numa caixa
Espanha, em particular, denotando o nocivo efeito histórico da
amarela, as tristes. E numa caixa transparente guarda as
censura, ou seja, a metaficção foi o meio encontrado para o
palavras que tem magia.
preenchimento do vácuo. Às vezes, ela abre e vira as caixas sobre a mesa, para queas
A queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da Guerra Fria palavras se misturem do jeito que quiserem. Então, as
propiciaram espaços para a pulverização ideológica e, neste palavras contam para Magda o que acontece e anunciam o
entrelugar, uma nova ordem econômica se estabeleceu, o que acontecerá.
neoliberalismo, acompanhado, do avanço tecnológico, da
Nota-se claramente, aí, a ausência da voz de Magda,
informática e, particularmente da Internet, trouxerm à tona o
confirmando o que foi dito acima acerca do episódio de Paco, El
fenômeno da globalização. É evidente que tais acontecimentos
Bajo com sua filha Nieves, há uma voz do Outro, conforme Žižek
causaram impacto na arte de modo geral e na literatura, de forma
que priva nossa liberdade. Uma ditadura invisível solapa nossa
particular. Embora não sejam os casos de Delibes e de Rivas, que
liberdade e nosso discurso, impondo-nos comportamentos
mesmo estando ao lado dos oprimidos, não conferiram às suas
autômatos, tal qual fantoches.
obras um caráter panfletário e/ou partidário, aquela literatura dita
Ora, mas neste contexto do século XXI, apesar do Outro e
“engajada” perdeu seu espaço, até porque as corporações
do comportamento anódino de Magda, vemos que a literatura
também foram diluídas, numa ironia à frase de Marx de que “tudo
dribla os obstáculos utilizando-se desses mesmos obstáculos. O
que é sólido desmancha no ar” e se desmancharam também o
próprio texto de Galeano é uma demonstração clara disto, até
sentimento gregário e as relações humanas. Tudo tornou-se
porque na caixa transparente as palavras tem magia.
objeto descartável. Hoje impera o individualismo e a economia de
Sabemos que a literatura, e a Literatura
mercado, ressaltando-se a qualidade individual ao invés do grupo
EspanholaContemporânea tem superado este desafio,
social. A literatura sofre esse reflexo e adapta-se a esse novo
respondendo, de certa forma, ao questionamento de Žižek, muitas
tempo, ou pelo menos tenta se adaptar. Sobre isto afirma (Žižek
das vezes se desdobrando e abrindo diálogo com as mais variadas
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linguagens. As obras de Delibes e de Rivas foram representadas o jovem filho de um ex-preso político, que cuida do pai doente e
filmicamente, entrando decisivamente no mercado mediático. que narra, num intenso processo de fluxo de consciência, os
Escritores contemporâneos deste século XXI da Literatura impactos e as consequências das atitudes políticas do pai sobre sua
Espanhola, não só tem vastamente publicado, como transitado nas vida. Noll, neste conto, não toma qualquer atitude ideológica, pois
diversas medias, apresentando variadas temáticas, desde a narrativa é altamente introspectiva, com o elemento externo
feminismo, multiculturalismo , amor, dentre outros, numa influenciando decisivamente na vida do jovem, embora este
demonstração de que o passado franquista casa vez mais se elemento exterior seja apenas algo subjacente a seu drama
distancia e que novos temas e abordagens se impõem. Podemos interior, infinitamente mais relevante na matéria narrada.
citar, por exemplo, Jose Ovejero (1958), contista e romancista Em outras palavras, a produção literária contemporânea
premiado, autor que também transita pelo ensaio, temos Vicente abandona um pouco o externo e se volta para a interioridade, na
Luis Mora (1970) e last but not least, Rosa Margarida Magda, atitude similar do indivíduo que põe um fone no ouvido e que se
crítica literária filósofa, escritora voltada para a temática feminista, dane o mundo, desde que o celular funcione e/ou tenha crédito. A
dentre muitos outros escritores que dão continuidade às diferença é que essa interioridade ou revela conflitos, ou apresenta
inovações do período da redemocratização espanhola e que hoje tensões permeadas pela linguagem ágil, pela multiplicidade de
tentam driblar as ditaduras invisíveis e as frequentes barreiras do vozes e pela atualidade temática. Obras abertas em diálogos com
mercado. Sobre esta questão mercadológica e o momento atual as mais variadas linguagens e os mais diversos gêneros textuais. A
da literatura (PILATI, 2009, p.1) afirma, em diálogo com Žižek, que inovação estética atualiza a literatura e a abertura para o
“ a ideologia do capitalismo tardio é feita em nome da inconstância hibridismo das linguagens amplia o círculo da recepção.
e os processos de mudança podem ser chamados de inovação e
criatividade.” E é esse o caminho da literatura contemporânea, Referências
seja ela espanhola ou não. E lá atrás Delibes já nos dava a receita. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad.
Ainda uma observação que entendemos como Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 3 ed., 2005.
interessante e que diz respeito à produção literária contemporânea
é que o distanciamento histórico pulveriza a memória daqueles que _____. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
participaram como algozes ou vítimas de regimes ditatoriais, bem contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São
como o desinteresse na recepção de tais temas que, Paulo-Brasília: Hucitec/UnB, 6 ed., 2008.
incidentalmente aparecem em narrativas com alguma
repercussão, como é o caso, na Literatura Brasileira, de um dos BASTOS, Alcmeno. A História foi assim: o romance político
contos de João Gilberto Noll, contido no livro O cego e a dançarina brasileiro nos anos 70/80. Rio de Janeiro: Caetés, 2000.
(1980) “Alguma coisa urgentemente”, cuja personagem principal é
P á g i n a | 508

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida


moderna. Trad. Roneide Venâncio Majer. (Org.) COELHO, Teixeira.
São Paulo: Paz e Terra, Col. Leitura, 1997.

DELIBES, Miguel. Los santos inocentes. Barcelona: Editorial


Planeta, 1981.

GALEANO. Eduardo. As palavras andantes. Trad. Eric


Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 1994.

LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Trad. Alfredo Margarido.


Lisboa: Editorial Presença, s/d.

NOLL, João Gilberto.O cego e a dançarina. Rio de Janeiro,


Civilização Brasileira, 1980.

PILATI, Alexandre. Resposta ao desafio Žižek Disponível em


HTTP://outras palavras. Net/posts/resposta ao desafiode zizek/
Acessso em 27/09/14ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto I. São
Paulo: Perspectiva, 5 ed., 1996..

SPERIDIÃO, Zulmira Moreira. Pedro Páramo e o silêncio polifônico


de Comala. Rio de Janeiro:, 156 f. Dissertação de Mestrado – UFRJ,
Rio de Janeiro, 2003.

TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói: EdUff, 2006.


Žižek,Slavoj.Como ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
de Janeiro, Zahar, 2010
P á g i n a | 509

O ROMANCE FAMILIAR DO NEURÓTICO ESPELHADO EM barramento, essa proibição, em que o sujeito não obtém já a
VARGAS LLOSA satisfação instantânea das suas pulsões, institui-se o desejo. O
Juan Ignacio Azpeitia ideal do Eu é sempre um ideal do Outro, em geral o pai, e da, para
UNEB/UFBA o sujeito, consistência imaginária a um pai feito de amor, cujo laço
amoroso abriu espaço para a identificação. É desse lugar que o
A função simbólica Nome do pai foi descrita por Lacan sujeito aguarda reconhecimento do seu valor, aplausos, amor.
como sendo menos a pessoa do genitor que uma instância legal, Esse sujeito é imaginarizado toda vez que um personagem
um puro significante, que barra o acesso ao incesto tanto da mãe ocupa esse lugar. Pode ser o analista, o amado ou a amada, é
quanto do filho. O Nome-do-Pai é um “Não!” que impede o filho sempre no outro que o sujeito busca seu Eu ideal. Esse Outro Ideal
de gozar sexualmente de sua mãe, e esta de utilizar seu rebento não pode responder pois é um pai que está morto, mas continua
como objeto de gozo. A estreita relação descrita por Freud entre a internalizado como Nome-do-Pai ou pela multiplicidade de
pulsão sexual (Eros) e a pulsão de morte encontra no Nome-do-Pai personagens que o encarnam Nomes-do-Pai
aquele limite simbolizado na proibição do incesto. É na sublimação presente na criação artística, onde essa
No sujeito adulto esta busca do gozo “é comandada pelo negociação entre a pulsão e as exigências do Outro encontram um
SuperEu, que tenta superar essas interdições e conseguir a ponto de equilíbrio, os elementos que mobilizam a libido
satisfação desse gozo pulsional”(ZENONI,2007, p. 54), sendo a encontram aprovação da sociedade, são socialmente valorizados.
culpa a consequência direta desse comportamento. Existe dentro Embora não seja adequado tentar explorar a psique de um
do indivíduo uma oposição entre o Eu pulsional e um Eu barrado artista, seja quem for, através daquilo que se encontra exposto na
que entende que deve renunciar ao prazer do erotismo para ser sua obra, sim podemos dizer que elementos pulsionais
amado. encontraram na sublimação a satisfação que procuravam e, talvez,
A função da Lei que barra o gozo, foi analisada por Freud que o público da obra também compartilha de alguma forma essa
em “Totem e Tabu”, neste caso“o parricídio não permite o gozo da gratificação.
mãe, o totem e o Pai-morto confirmam que esse gozo está barrado A experiência pessoal do escritor peruano Mario Vargas
para o sujeito” (VILELA, 2005, p. 32). O Totem, como Llosa é muito interessante no que diz respeito a essa relação com
representação do pai morto, é o símbolo da Lei que tem a função a Lei, com os Nomes-do-Pai falando aqui no plural para dar conta
Nome-do-Pai. Já não é necessário um Pai vivo para fazer valer a da sua diversidade. Para começar, sua biografia, narrada por ele
proibição do incesto, a Lei, abstrata, internalizada, cumpre essa mesmo, nos defronta com uma situação infrequente, e sua obra
função. nos permite observar de que maneira os diferentes “legisladores”,
Por isso não é o Pai de carne e osso o que interessa, se não aqueles que decidem o que é correto ou errado, são representados
o Nome-do-Pai. Segundo Lacan, no momento em que existe esse e a importância que sua função tem dentro da narrativa do autor.
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A mãe de Vargas era filha de um político socialdemocrata O peixe pela caneta morre
do interior do país, que chegou a ser prefeito de Piura durante a O primeiro capítulo do seu livro autobiográfico se titula
infância de Mario, e casou-se muito apaixonada com um jovem “Esse senhor que era meu pai” e traz uma versão estilizada do que
que trabalhava numa companhia aeronáutica norte-americana. O Freud chamou o “romance familiar do neurótico” (FREUD, 1909, p.
pai do Mario, que era de origem menos aristocrática, levou a 245) e nele o autor vai descrevendo as pregas da sua história. A
esposa a morar em Lima e a deixou ao cuidado do lar. Ela não construção de tais narrativas é descrita por Freud como uma
conseguiu se acostumar com este tipo de vida e com o papel que atividade imaginativa estranhamente acentuada, sendo uma
na conceição “machista” do aviador caberia a ela e assim que antes característica essencial dos “neuróticos más também das pessoas
do menino nascer, e depois de varias brigas violentas decidiu viajar com um talento superior” (FREUD, 1908, p. 148).
ao interior a receber os cuidados da sua mãe durante o parto. Esse Até aonde o caminho descrito por Freud é
foi o final do casamento: nunca recebeu ligações nem cartas do pai acompanhado pelo relato de Vargas podemos ver já no título, uma
de Mario e quando o procurou depois de um tempo só recebeu um das primeiras afirmações que o menino que descobre a
pedido de divorcio. sexualidade fará no seu romance familiar é que “pater sempre
O menino Mario foi criado pelos avôs e por tios e tias e incertus est”. Não que pode ser lido de forma diferente o título
cresceu olhando para uma fotografia do seu pai em uniforme, de “esse senhor que era meu pai”, que questiona abertamente a
um pai que segundo lhe diziam “estava morto”. Chegando à filiação, é possível ler a frase como sendo ‘esse senhor que (diziam
puberdade do futuro escritor, a família toda morava na Bolívia, de que) era meu pai’, tal construção subjacente é imprescindível para
um bom passar econômico pois o avô adquirira uma pequena entender o circunlóquio utilizado para não dizer diretamente
fazenda. Só que então a mãe decide voltar atrás e reatar o “meu pai”.
casamento com o pai de Vargas, pelo que o “pai morto” voltou a No mesmo ensaio Freud afirma que esses
viver. “devaneios” (FREUD, 1908) da puberdade (que na tradução de
Vamos analisar neste artigo, em duas fases, primeiro a Amorrortu chamam-se fantasias) tem como principal objetivo
narrativa destes fatos que o próprio autor faz no livro libertar-se dos pais que desceram em sua estima, e de substituí-los
autobiográficoO peixe na água escrito após o fracasso da sua por outros em geral de uma posição social mais elevada. E é
candidatura a presidente do Peru, para tal fim vamos acompanhar precisamente isto que o discurso do Vargas Llosa faz.
a analise de Freud sobre “romance familiar”. Em uma segunda Narra o chocante que fora para ele saber que o seu pai
parte deste artigo veremos como isso pode se refletir numa das ainda era vivo, a pesar que, segundo ele próprio relata, a mãe
suas obras mais importantes e que trata de uma temática cara ao acreditava que não iria se surpreender ao receber a noticia. Parece
publico brasileiro La guerra delfindel mundo onde conta a historia que Mario estava conforme com a situação do pai morto e ter que
da Guerra de Canudos no sertão baiano. aceitar que aquele mito não era real foi um dos “dias mais
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importantes que tinha vivido até aquele momento e, quem sabe, A questão do tabu vai retornar no romance familiar de
dos que viveria depois” (VARGAS LLOSA, 1993, p. 37). O motivo Vargas Llosa e agora o tabu vai ser ele próprio, o menino Mario.O
não é outro que o apontado por Freud, libertar-se do pai, e as abandono de fato que sofreu a mãe quando depois do nascimento
explicações que Vargas Llosa da ao fracasso matrimonial da sua do menino não retomou nenhum tipo de contato com o pai da
mãe (assim ele o expressa) não deixam lugar a equívoco. criança, fez com que ela ficasse aos olhos do pequeno povoado
Primeiro vai dizer que esse fracasso foi motivo de vergonha interiorano -sempre de moral ultraconservadora- como uma
para toda a sua família materna, “sua única família”, frisa, sua mãe esposa abandonada, primeiro, e depois como uma mãe de um filho
com dezenove anos para Llosa era “pouco mais que uma sem pai. “Minha mãe não colocava os pés na rua” afirma Vargas, o
adolescente” e o casamento “destruiu” sua vida. O verdadeiro tabu era Marito, ninguém poderia ver o fruto dessa paixão
motivo do fim do matrimonio segundo o escritor peruano foi que desastrosa.
“Ernesto J. Vargas, apesar da sua pele branca, seus olhos claros e Quando finalmente o pai e a mãe reatam o casamento e é
sua elegante figura, pertencia – ou acredita pertencer, o que é a levado para Lima é que começa o verdadeiro calvário do menino,
mesma coisa- a uma família socialmente inferior à da sua mulher” que tem na sua mente a imagem da pureza de uma mãe que não
(VARGAS LLOSA,1993, p. 43). Note-se que para a própria família o teve “não quis ter” pretendentes durante a infância toda do Mario.
fracasso matrimonial era devido à “personalidade ruim” do seu Ele descobre que o pai e a mãe se trancam em quarto fechado e
pai, mas para Vargas Llosa em nenhum momento existem dúvidas ele não deve interromper (ele intenta fazê-lo e recebe reprimenda)
quanto a raiz socioeconômica da crise. pelo que passa a odiar a seu pai, a sentir ciúmes declarados dele e
Quando faz o racconto da vida do pai desfecha todo tipo de dizer que “roubou a sua mãe dele”.
calamidades sobre a família paterna e atribui rancor e inveja ao Nas anotações sobre o mecanismo da paranoia Freud
seu pai perante a família Llosa, um sobrenome daqueles que escreve queeste mecanismo esconde uma fantasia de desejo
ressoam no interior Arequipano e cujas nobres origens remontam- homossexual que é recalcada na expressão “ Eu não o amo- Eu o
se aos primeiros colonizadores castelhanos. Recolhe, porém, o odeio”(FREUD, 1969, p. 87), é assim que Mario Vargas Llosa se
testemunho (verdadeiro ou fantasiado) do rancor do seu padre refere ao seu pai.
para como seu próprio pai (o avô do escritor) e diz que seu nome Como se estivesse seguindo o roteiro traçado por Freud no
era “tabu”. Freud disse que quando o menino substitui ao pai “romance familiar” Vargas Llosa conta que um dia o pai o levou a
verdadeiro por outros de origem mais nobre, estes substitutos conhecer uns irmãos que ele tinha fruto de um matrimonio com
sempre mostram algum parecido com o original que estão uma senhora alemã. Dirá “não eram meus irmãos eram os filhos
substituindo, do que se segue que o menino não realiza o desse senhor”.
apagamento do seu pai, antes ao contrário o enaltece ao investi-lo Para completar a predição freudiana, em algumas horas em
com as roupagens de outros homens mais poderosos. que tentava pressionar a sua mãe para que se separasse
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novamente, ameaça com contar para seu pai que durante o tempo essa ação de afastar a criança da sua mãe, é “a função da Lei”
que ele sumiu sua mãe tinha recebido propostas indecentes de um (Lacan, 1949).
candidato, história notoriamente falsa e que encaixa Como temos observado no romance familiar de Mario
perfeitamente na descrição de Freud de “colocar a mãe em Vargas Llosa, essa Lei é qualquer coisa menos homogênea. Sendo
situações de secreta infidelidade e em secretos casos amorosos” criado durante toda a primeira infância sem a presença do pai, ou
(FREUD, 1908, p. 152) com a representação de um “pai morto”, podemos pensar que
Suas lembranças voam então para a infância da inocência esse barramento era no mínimo incompleto para impedir o
dos tios e do avô onde ele era o rei da situação. Lembra que desenvolvimento das fantasias eróticas respeito da sua mãe.
naquele tempo era o “neto do prefeito” e que senti orgulho Aparece a figura do seu avô como ocupando esse lugar num
quando os militares rendiam honores ao seu avô. Que diferente a primeiro momento e logo hipoteticamente a de alguns tios.
“esse senhor” com quem agoravivia e que batia nele e na sua mãe, Porém, a aparição de “esse senhor, meu pai” restabelece a
esse senhor que era seu pai. proibição com todo seu ímpeto. Ele escapa algumas vezes com sua
Podemos achar interessante também o relato que faz de mãe (assim ele vive esse romance), mas ela sempre volta para o
uma experiência na escola religiosa que frequentava, quando um marido. E finalmente a figura do pai, portador de um mítico
Irmão o levou ao seu quarto lhe ensinou umas revistas e tentou revólver, se desloca para o exército como novo elemento
um contato íntimo. “Coitado do Irmão Leoncio”, diz Vargas, e a repressor. E estamos aqui sim no começo do trabalho criativo do
partir desse momento começou a perder o interesse pela religião escritor Mario Vargas Llosa, sua sublimação e seus devaneios.
e por Deus. Os primeiros romances do escritor, Los cachorros (1967);
O final da sua epopeia com “esse senhor que era seu pai” Los Jefes (1959) e La ciudad y los perros (1963), estão ambientados
chegou com seu ingresso no Colégio Militar, onde tiraria a nitidamente nessa estrutura onde a repressão é originada na
inspiração para seus primeiros romances. sociedade, na escola, no exército, onde o Nome do Pai encontra-
se diluído nas instituições. Podemos dizer que o barramento do
Os Nomes do Pai desejo nesses romances está no exército, na hierarquização
A partir da insatisfação do desejo é que o sujeito se decorrente da vida militar e nas injustiças que isto gera. O anti-
constitui como tal. No momento em que falta o peito o sujeito militarismo do Vargas Llosa daqueles primeiros trabalhos junto a
compreende a noção de carência, e ao expressar sua necessidade um anti-clericalismo (lembremos o episódio com o Irmão Leoncio
a partir do pranto e da subsequente satisfação de obter o almejado na escola) são a expressão de rejeição a esse pai autoritário que o
peito materno, começa a desenvolver a linguagem, como sistema privou do amor da sua mãe.
sígnico. Da interdicção do desejo nasce o individuo, essa proibição, Em 1977 publica o romance semi-autobiográfico La tía Julia
y el escribidor, onde narra em primeira pessoa as aventuras de
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Marito ou Varguitas e sua paixão pela “tía Julia” uma mulher vários a essência do conflito, que a não ser por ela poderia ter sido
anos mais velha que ele, com quem tem um distante grau de evitado mediante alguma negociação. A incapacidade de
parentesco. O fantasma do incesto ronda este relacionamento negociação, e o enfrentamento irracional dos contrários estão na
resistido pela família e a sociedade e que acaba levando Vargas base do relato vargasllosiano.
Llosa, na vida real, a morar fora do país, na época do seu Observados desde a perspectiva Lacaniana os dois
casamento com Julia Urquide, irmã do seu tio político. O personagens, Conselheiro e Moreira César, encarnam os Nomes-
desdobramento que sugere a aparição da figura do “escribidor” do-pai dos seus seguidores e talvez seja isto o que mais interessa
um exilado boliviano que se vê desbordado pelas suas criações a Mario, representar esse conflito e expor sua irracionalidade.
ficcionais, nos parece ser um duplo do escritor, um alter ego que Aos rivais que a história legou para ficcionalizar Vargas
faz muitas coisas que ele gostaria de fazer se se libertasse Llosa acrescenta outro para de opostos que saem da distorção que
completamente da Lei, se conseguisse se sobrepor aos sua imaginação produz sobre personagens possíveis, porém com
mandamentos do Nome-do-Pai se deixasse de procurar seu uma intervenção pouco clara no conflito, o Barão de Canabrava e
reconhecimento e aplauso. o anarquista Galileo Gall.
Sendo a sua obra muito vasta nos focaremos no romance Se nos dois primeiros observamos a presença de uma Lei
La guerra del fin del mundo onde encontramos um imposta desde fora que tem efeito repressor, nestes outros
desenvolvimento posterior desta luta do Vargas com os Nomes- personagens o outro Eu do espelho se expressa, aquele que quer
do-Pai com os mandamentos familiares que, como ficou exposto dar vazão às pulsões inconscientes.
no ponto anterior, respondem as várias figuras que ocuparam esse O anarquista Galileo Gall, quer destruir o sistema
lugar na infância do autor e as contradições que existiram entre capitalista mas na sua vida pessoal se autoimpôs um celibato sem
elas. Caso fizermos uma análise de maior quantidade de obras justificativa, somente por solidariedade com um companheiro de
poderíamos traçar uma constante, mas baste o romance sobre cela. No fragor da luta e quando lhe são arrebatados os fuzis que
Canudos para observar de que forma se manifestam estas lutas. pensava levar a Canudos não consegue segurar suas pulsões e se
A recriação da história do Conselheiro é feita a partir da rende a elas, estuprando a mulher do seu “guia”.
apresentação de dois pares de opostos. O primeiro par, o próprio Esta luta dos anti-heróis contra suas pulsões também
Conselheiro enfrentando ao Coronel Moreira César. No ponto de atinge ao Barão, quem apesar de representar o equilíbrio, a
vista do escritor peruano, trata-se de dois fanáticos, doentes de diplomacia, o modo de ser “britânico”, cai na tentação e também
igual cegueira: o fanatismo religioso e o fanatismo militar, como já comete estupro, desta vez na pessoa da escrava que cuida da sua
foi dito, os dois traumas maiores da puberdade do autor. Esses esposa.
fanáticos possuem ainda um grau de poder irracional sobre os seus Vemos então que a luta com a Lei tanto dos personagens
seguidores, e seria nesta irracionalidade onde residiria para Vargas que a representam como a daqueles que a desafiam é uma marca
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persistente na literatura de Mario Vargas Llosa e talvez seja essa Referências


convivência de múltiplos Eu em luta dentro da sua personalidade BULCÃO NASCIMENTO,M. Alienação, separação e travessia da
o que lhe permite essa riqueza na criação de personagens tão fantasia. Opção Lacaniana online nova série,ano 1,número 1,mar.
controvertidos como para atrair nossa atenção e cativá-la pelo 2010.
tempo que dura a leitura de seus romances.
FREUD, S. Escritores criativos e devaneios [1908 (1907)]. In:
Considerações finais ______. ’Gradiva’ de Jensen e outros trabalhos. Edição Standard
Pela extensão deste artigo não poderemos avançar Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago,
numa descrição mais minuciosa das formas em que a 1976. v. IX. p. 145-158.
representação da Lei-Pai aparece na obra de Vargas Llosa,
esperamos, porém que os elementos aqui aportados sirvam de ______. Romances familiares [1909 (1908)]. In: ______.’Gradiva’
base para um trabalho de maior extensão que recolha os pontos de Jensen e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira das Obras
de partida aqui descritos e se atreve a ir além aportando os Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.IX. p. 239-
elementos presentes na vasta obra do escritor para reuni-los e 247.
interpretá-los na luz destas observações.
Sirva a modo de pergunta aberta a referência a seu ______. Sobre o mecanismo da paranoia. In: ______. Ocaso
último trabalho El héroe discreto, publicado este ano, onde Schreber, Artigos sobre técnica e outros trabalhos. Edição
novamente contrapõe dois personagens, um de origem humilde Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de
que exibe uma grande honestidade e valor moral e um outro de Janeiro: Imago, 1969/1980. v. XII.
condição abastada que apresenta qualidades de bom vivant, gozo
responsável da sexualidade adulta, gosto pelas belas artes... LACAN, J. El estadío del espejo como formador de la función del yo
Sem que tenha sido muito advertido pela crítica até (je)tal como se nos revela en la experiencia psicoanalíticaIn: Los
agora, por trás destes dois personagens estão os filhos destes, sem escritos de Lacan. Psikolibro. Edición Electrónica.Comunicación
dúvidas candidatos a cometer o assassínio do pai mítico da horda presentada ante el XVI Congreso Internacional de Psicoanálisis, en
original. O ódio dos filhos aos pais é representado agora Zurich, el 17 de julio de 1949.
claramente por Vargas Llosa que é septuagenário desde o lugar da
vítima, é o pai que vê como os seus filhos planejam seu fim. O VARGAS LLOSA, M. El pez en el agua: Memorias.Barcelona: Seix
escritor que contava o ódio dos filhos pelos pais, querendo acabar Barral biblioteca breve,1993.
com eles, é agora o Pai que observa como seus filhos querem
substituí-lo.
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______. La tía Julia y el escribidor. Barcelona: Seix Barral biblioteca


breve, 1977.

______. La guerra del fin del mundo. Barcelona:Seix Barral, 1981

______. Los cachorros- Los jefes. Barcelona: Seix Barral, 1980

______. La ciudad y los perros. Barcelona: Seix Barral, 1982

VILELA PINTO NAKASU, M.O parricídio em totem e tabu:Uma


análise acerca da gênese do conceito de pulsão de morte. Revista
de Filosofia, Curitiba, v. 17 n.20, p. 137-146, jan./jun. 2005

ZENONI, A. Versões do Pai na psicanálise lacaniana: o percurso do


ensinamento de Lacan sobre a questão do pai. In:Psicologia em
Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 15-26, jun. 2007
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EL PROYECTO STAHL Y LA NOVELA NADIE RECUERDA A 17-20)lo que atraen a Stahl hasta el lugar donde viven los
MLEJNAS: NUEVAS PERSPECTIVAS LITERARIAS Y personajes y donde se desarrolla la historia, es decir, Las Piedras,
CULTURALES EN EL URUGUAY DEL SIGLO XXI una ciudad de la región metropolitana de Montevideo.
Juan Pablo Chiappara Stahl baja del ómnibus en la plaza principal de la localidad
UFV en calidad de periodista cultural interesado en conocer a los
SpaceGlitter, como se llama el grupo de Jon y Rex, una vez que está
La obra de Ramiro Sanchiz (Montevideo, 1978) – 15 títulos interesado en incluir una entrada sobre la misma en el libro Cual
entre novela y cuento, publicados entre 2008 y 2014 – responde a retazo del espacio: la historia de la ciencia ficción uruguaya, que
un proyecto en el cual el personaje Federico Stahl siempre está está por publicar.
presente, sea entre jóvenes de la década de los 90 vinculados a la Es alrededor de una historia de jóvenes que se conocen y
contracultura (Perséfone, 2009), sea involucrado en una trama que comparten un fin de semana juntos que Sanchiz desarrolla la trama
transita entre lo fantástico y la ciencia ficción (Los viajes, 2012), sea en la cual se destacan dos aspectos fundamentales que componen
como la voz que modula un relato cultural a partir de lo ucrónico y el Proyecto Stahl: el tema de la literatura de ciencia ficción en el
lo distópico (La vista desde el puente, 2011; La historia de la ciencia Uruguay y el tema de la contracultura.
ficción uruguaya, 2013). Estos tres modos del stahlinismo, como el NRM, aunque publicada antes, es una secuela de otra
autor lo llama, suelen, sin embargo, superponerse. Así ocurre en novela de Sanchiz aparecida en 2013, La historia de la ciencia
su última novela publicada (El orden del mundo, 2014b) y, en ficción uruguaya (SANCHIZ, 2013). Es muy probable que una de las
particular, en la novela Nadie recuerda a Mlejnas(2010a), objeto cosas que más le interesan a Sanchiz en NRM (como en la precuela)
de este texto y que identificaremos a continuación con las letras sea colocar un ladrillo más en su empresa faraónica de fundar en
NRM. Uruguay una tradición de la ciencia ficción. De hecho, esto ha
En ella – como en todas las novelas del proyecto –, la implicado e implica un trabajo a contramano de los intereses
historia está contada por el personaje y narrador omnisciente Stahl. dominantes en los medios oficiales (públicos o privados), el que
Además, Rex, Jon y Alastair Lestrange son los personajes centrales. requiere que se forje un espacio que venza los prejuicios de
Rex y Jon tienen una banda de glam rock terraja1 y Lestrange es un editoriales, premios, críticos y público lector en general. Y también
escritor de ciencia ficción que se dedica a varios asuntos ligados al es una empresa faraónica en la medida en que la tradición de la
ocultismo, pero es también el mentor de los chicos de la banda, ciencia ficción uruguaya es casi inexistente. Algunos escritores y
habiendo influenciado sus letras con su literatura, desconocida (u críticos, tal el caso de Pablo Dobrinin, han publicado ensayos sobre
olvidada) en la escena literaria local. Son las letras del demo de esa este aspecto de la literatura local; a una secuencia de artículos
banda –Say good bye to the next millenium – (SANCHIZ, 2010a, p. suyos puede accederse en la revista digital en línea Axxon

1
"Terraja” puede ser traducido al portugués por “brega”.
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(DOBRININ, 2006; 2007), donde se esfuerza en trazar una concebir las obras literarias con temática científica, futurista,
evolución del género a lo largo del siglo XX hasta hoy. ucrónica o distópica como literatura a secas. (SANCHIZ, 2014c) Si
A su vez, el propio Sanchiz ha escrito sobre este asunto en bien esto puede ser entendido como una alternativa para
su blog – aparatosdevuelorasante.blogspot.com – y en sus novelas, esquivarse del prejuicio que el género siempre ha sufrido, es
así como ha hablado al respecto en diferentes momentos, como lo también y sobre todo una forma de entender la literatura como un
hizo recientemente en La Paz, cuando participó como invitado a la flujo mucho más continuo en el cual la condición ficcional sería
XIX Feria del Libro celebrada en esa ciudad. Pero no hay mucho suficiente para definir su principal y fundamental característica. En
más sobre el tema. Para el autor de NRM el punto de referencia una visión integradora como ésta, el autor no tiene ningún
clave del ámbito uruguayo que le sirve de amarre para forjar esa inconveniente en disfrutar y dejarse influenciar por autores que
nueva tradición que se esfuerza en fundar junto con otros pueden ir de Proust a K. Dick (SANCHIZ, 2010a, p. 14-15).
escritores y dibujantes de comics (como por ejemplo Rodolfo Más allá de esa estrategia, esta generación y Sanchiz – su
Santullo y Matías Bergara2) es Mario Levrero. exponente más militante – echan mano de otra para intentar
Sabemos que Levrero no se consideró nunca un escritor de cambiar la situación limitada (en el sentido de mercado y en el
ciencia ficción, pero Sanchiz va a inventar a su propio Levrero sentido cultural) que presenta la escena uruguaya en lo
(distanciándose así de algunos epígonos que intentan imitarlo o relacionado a la literatura de ciencia ficción (o inclusive fantástica):
seguir su huella de demasiado cerca en el Uruguay, sobretodo en apelar para una realidad mayor (respaldada de hecho por la
el ámbito de la autoficción, última y menos interesante etapa en la historia regional) que se sitúe en lo rioplatense como territorio de
obra de este escritor) y a elaborar una historia entre ficticia y circulación y de referencia. (SANCHIZ, 2014d).
apócrifa que coloca a este autor de culto como el puntal de ese Tanto por las influencias reales y explicitadas como por su
subgénero, al mismo tiempo que lo metamorfosea en personaje forma de pensar la inserción en el mercado de lectores, Sanchiz es
recurrente de sus novelas, en las cuales suele llamarse Emilio el que mejor explota ese vínculo con el Río de la Plata, aquel que
Scarone (SANCHIZ, 2010a, p. 56) o incluso Jorge Varlota, usando el incluso iba hasta Bolivia en la época colonial. Y esto queda claro al
otro nombre del autor y su apellido materno 3 . La opción por ver las plazas donde ha publicado sus libros, así como las
Levrero como base de esa tradición es posible, a decir verdad, influencias regionales destacadas por él mismo, tal como el caso
porque Sanchiz, a pesar de ser un lector voraz de literatura de de Borges, pero también Bioy, Fogwill, Laiseca, Aira, Paz Soldán.
ciencia ficción desde su adolescencia, se pregunta si efectivamente Algunos de estos nombres están representados en NRM en torno
el género existe como tal y propone abrir el abanico genérico para a un episodio final y fundamental (SANCHIZ, 2010a, p. 80-88),

2
El caso del comic en Uruguay y en el Río de la Plata es un tema que merece ser Publicaciones en libros y revistas se vienen acumulando y en particular
investigado dada la expansión que viene conociendo últimamente. alrededor del género ciencia ficción.
3
Ver también LAGOS (2011).
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cuando Lestrange le cuenta a Federico Stahl un relato cuyo título su obra proyecta una realidad cultural uruguaya que puede ser que
es “Apehell” (infierno simiesco), que remite a “El aleph”, de Borges, exista dentro de algunos años, quizás de algunas décadas, quizás
y a “Help a él”, de Fogwill (2011), el cual a su vez remite a Laiseca nunca, pero el deseo plasmado en su obra es también un viaje
y a su relato “El balneario de crotos”, de Matando enanos a imaginario hacia ese futuro anhelado, para lo cual Sanchiz también
garrotazos. (LAISECA, 2004), lo cual nos lleva también a Bioy relee el pasado, lo reordena y vive en el Uruguay del presente a
Casares, posible personaje del cuento de Fogwill, sin contar, por partir de presupuestos al menos inusuales. Es eso, nos parece, a lo
otro lado, la referencia del título de la novela de Sanchiz (Mlejnas), que refiere cuando suele afirmar que todo el tiempo y toda vez
que llama la atención para ese elemento dejado de lado por el que un sujeto interviene públicamente lo hace desde una pose,
propio Borges en el relato “Tlön, Uqbar, OrbisTertius”, de Ficciones desde una impostura. Es toda esta actitud y esta impronta lo que
(BORGES, 2011). puede contagiar a sus lectores y fascinarlos, aunque es también lo
Cabe señalar que, al leer NRM, nos damos cuenta de que que puede suscitar reacciones violentas y de rechazo por parte de
Sanchiz se inscribe en la ciencia ficción como en un sistema no solo aquellos que aun sin sospecharlo se inscriben ingenuamente en el
estético, sino de valores; la capacidad de pensar el pasado, el funcionamiento de un yo cartesiano y positivista.
presente y el futuro que permite la ciencia ficción parece ser para Otra cosa que le interesa a Sanchiz en NRM es comprender
el autor un modus operandi y un modus vivendi. Entender esto la historia reciente uruguaya bajo el prisma de la ciencia ficción;
hace posible comprender la relación entre el autor y su alter ego por eso la dictadura militar en la novela es tratada de forma
Federico Stahl y es en ese sentido que Sanchiz ha dicho en algún ucrónica (algo desfasada en relación al período en la cual ocurrió,
momento que no se debe concebir a Stahl como si fuera un ya que va de 1973 a 1989) y, al tema de la dictadura, se le
personaje en el sentido más convencional del término, el cual superpone una guerra civil en la cual un grupo de revolucionarios
supone una separación más nítida de su voz de la del autor.Al tuvo pretensiones separatistas en el norte del país (Tacuarembó).
contrario, el universo literario donde Sanchiz y Sthal transitan está Es cierto que ese desplazamiento ucrónico puede ser también una
marcado por la idea de un logos intervenido radicalmente por el crítica directa al primer mandato postdemocrático, a cargo de Julio
modo ficcional en el cual sus voces suelen superponerse o donde María Sanguinetti, quien accede a la presidencia por elecciones
se hace difícil separarlas. Si nuestro cerebro es una máquina de muy preparadas en el plano de la competitividad de los Partidos y
futuro, como afirma Jorge Volpi en su libro Leer la mente. El de los candidatos, sin contar que mantuvo cierta represión directa
cerebro y el arte de la ficción(VOLPI, 2011), si es una máquina de en las calles (razzias nocturnas) y un probable control de
anticipar y organizar mundos posibles que ha posibilitado la determinados ciudadanos por parte de los servicios de inteligencia,
evolución del sapiens sapiens hasta el presente, NRM y el Proyecto según testimonios de ex presos políticos. Pero ese desplazamiento,
Stahl son una buena prueba de ese funcionamiento esencial de lo también encontrado en la obra La historia de la ciencia ficción
humano porque desde el punto de vista que comentamos ahora, uruguaya parece más la búsqueda por desplazar la lectura
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convencional y cada vez más oficial que se ha hecho y se hace de en particular al progresivo, al glam y al punk. El punto de partida
la historia reciente del Uruguay. Como se podrá ver un poco más es el Manifiesto del Glam Rock Terraja de los Space Glitter, donde
abajo, el desplazamiento no es gratuito. aparecen los primeros indicios de la relación que quiere establecer
En la trama de la novela el enganche entre los dos Sanchiz con la tradición mencionada y en particular con algunas
momentos de la historia (el pasado y nuestro presente, donde la figuras de aquella escena, las cuales va a citar explícitamente a lo
trama ocurre) se da por medio del personaje Lestrange, autoridad largo de la novela.
intelectual de los Space Glitter, que habría participado de ese El narrador nos cuenta que Space Glitter parece una copia
grupo separatista durante la guerra civil y ahora escribe ciencia del David Bowie de finales de los 60 y principios de los 70 y las
ficción (SANCHIZ, 2010a, p. 55); he ahí el modo de entender y de menciones a Ziggy Stardust(SANCHIZ, 2010a, p. 31) a
ver la realidad que a Sanchiz le interesa y que postula como el Diamonddogs (Idem, p. 33) – lo que remite a la distópica 1984, de
modo de comprenderla. Por medio de la ficción se teje una Orwell, ya que el disco homenajea a esta obra –, dejan muy claro
reflexión que considera sucesos plausibles que de haber sido que David Bowie se convierte para la novela y para Sanchiz en ese
considerados o imaginados como útiles en el devenir de la historia ícono de la contracultura de los 60 y 70, figura de la cual el tema
en vez de desechados, podrían haber contribuido para producir un de la bisexualidad juega también un papel importante no solo en
presente-otro. En ese presente, seguramente, Sanchiz se sentiría NRM, sino en las obras de Sanchiz como un todo.
menos desplazado, en virtud de una escena cultural que sería Es posible suponer que no es casual la mención y la elección
menos monofónicade lo que de hecho lo es la uruguaya, ya sea en de Bowie, sino coherente, en el sentido de que ya en 1969
su lectura del pasadocomo en su concepción de lo popular. La compusiera Space Oddity, aquel álbum emblemático inspirado en
contradicción puede estar en que desear que eso hubiese sido así la película 2001, de Kubrick, luego el disco Hunky Dory, de 1971,
sería, a su vez, arriesgarse a no existir como escritor ya que la donde la tapa muestra una figura indefinidamente
necesidad de crear ese universo paralelo por la literatura sería femenina/masculina, o en The man who sold the world, de 1972,
menos imperiosa o aún innecesaria, o en todo caso generaría otra donde Bowie está en la tapa sentado y vestido de mujer con un
necesidad.Pensando de esta manera, se puede advertir que no amplio vestido florido, botas de caña alta y una carta de poker en
todo es ficción, sino que nuestra realidad corporal y la del mundo una mano, y luego entra en su considerada fase explícita del glam,
siempre nos condiciona y lo que tenemos es todo el margen iniciada con The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders
deseado para imaginarla a través de la literatura, por ejemplo, y from Mars, también en 1972, que contiene buenas dosis de
anhelarcambiarla en relación al futuro. ambigüedad sexual y dereferencias espaciales, ya en el título del
El otro gran aspecto que nos interesa destacar en NRM álbum, pero también en canciones como “Moon age day dream”.
también es uno de los pilares del proyecto Stahl: el inscribirse en Además, si el fundador del glam es considerado el fallecido Marc
la tradición de la contracultura iniciada en los 60 en torno al rock y Bolan, de la banda Tyrannossaurus Rex – como afirma Thompson
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(2013, p. 116-117) –, y en particular con el éxito del LP T-Rex de Cual retazo del espacio: la historia de la ciencia ficción uruguaya
Electric warrior, en 1971, puede ser legítimo asociar con esto en dedicada a los Space Glitter hará mención a Los Shakers, banda
NRM al personaje Rex (también presente en otras novelas y creada en 1964 (el mismo año que se fundó el MLN – Movimiento
cuentos de Sanchiz), quien tiene un papel central aquí pues debe de Liberación Tupamaros), en particular a La conferencia secreta
entrar a un túnel (un gran caño maestro abandonado en las del Toto's bar, considerado por muchos el Sgt. Pepper's del
inmediaciones de Las Piedras) en el contexto de un ritual de Uruguay e incluso latino, grabado en 1968 y lanzado en 1969.
iniciación dirigido por Lestrange, quien promueve un pacto con el También en este punto están las menciones, algo irónicas, a Charly
diablo a cambio de convertir a Rex en el mejor guitarrista de todos García y Luis Alberto Spinetta, que cuentan con discos
los tiempos (SANCHIZ, 2010a, p. 51), sobre todo por creer en la emblemáticos de rock progresivo, tal es el caso de
música como un camino superior al lenguaje para acceder a la Desatormentándonos, de 1972, Pescado rabioso, de 1973 e
verdad y a la sabiduría sobre el mundo, tal como lo creyeron Invisible, de 1974, los tres de Spinetta, así como La máquina de
algunos de los representantes más destacados de la revolución hacer pájaros, de 1976 y Películas, de 1977, ambos de Charly
cultural que significó el rock. García.
Esta relación que establece la novela con la contracultura y Pero lo que nos parece que quiere comprender Sanchiz a
en particular con un sector bien preciso del rock de finales de los través de su escritura, o lo que quiere reconstruir, es un mundo
60 y principios de los 70 queda sellada cuando Stahl, al decidir posible en el cual los hechos se hubiesen desarrollado de otra
incluir una entrada en su libro ficticio/apócrifo Cual retazo del manera y el Uruguay de hoy fuese “otro” país. Al leer NRM y otras
espacio: la historia de la ciencia ficción uruguaya, marca novelas del autor percibimos que, así como le interesa al autor
efectivamente las relaciones musicales de los Space Glitter con el imaginar un mainstream que no hubiese ninguneado la obra de
David Bowie de Diamond Dogs – que prevé la revolución punk que Mario Levrero, sino que la hubiese acogido y hubiese permitido así
se iniciará en breve (THOMPSON, 2013) –, con el Pink Floyd de un desarrollo menos marginal y oprobioso para la misma e incluso
Animals, de 1977, con 2112 de la banda Rush, de 1976, y para el autor, un desarrollo que hubiese posibilitado el
nuevamente con un período un poco anterior, con el Iggy Pop de florecimiento más temprano de escritores que explotasen lo
The Stooges, o sea en la fase que va de 1969 a 1973, fantástico en la literatura, que acogiesen la imaginación radical y
aproximadamente, marcada por los discos The Stooges (1969), Fun no solo explotasen el realismo social o la novela histórica e
House (1970) y Raw Power (1973), antes de juntarse con el propio historicista, así también le interesa pensar a través de su escritura
Bowie, a partir de 1976. (SANCHIZ, 2010a, p. 17) en qué habría pasado si la movida contracultural, que también
Con este telón de fondo, Sanchiz busca referencias locales florecía en el Uruguay de los sesenta, vinculada no directamente a
que puedan remitir a algo semejante en la cultura de los 60 y 70 la política y a los movimientos revolucionarios, sino a la música
en Uruguay e inclusive en el Río de la Plata. Es así que en la entrada influenciada por la contracultura que generaban esencialmente
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Inglaterra y Estados Unidos de América, hubiese podido las consecuencias de la Primera y de la Segunda Guerra Mundial y
desarrollarse sin la represión que la cortó de cuajo y acabó por de la ascensión del capitalismo y sus consecuencias en relación a
direccionar su energía hacia el canto popular y el canto de protesta, los autoritarismos nacionalistas. (PAZ SOLDÁN, 2014b).
esencialmente, mucho más influenciado por tradiciones musicales A su vez, sería poco probable no encontrar referencias
locales y regionales, lo que a su vez promovió por parte de la directas o indirectas a Philip K. Dick o a Lovecraft en NRM. De
izquierda un rechazo de lo considerado foráneo, en particular del hecho estos pilares de Sanchiz aparecen en momentos claves de la
mundo anglosajón, ya que se lo entendía políticamente como una novela, cuando se sientan las bases de lo que parece ser el
influencia alienante, lo cual prevaleció como verdad hasta finales proyecto mayor del autor en relación al papel que atribuye a la
de la década del 80 por lo menos. 4 Y es así que también cobra literatura de ciencia ficción en Uruguay, a contramano del
sentido el desplazamiento – no gratuito – que propone Sanchiz mainstream local. Efectivamente, las letras de las músicas de
hasta 1989 de lo que en su obra es la dictadura militar a la que se SpaceGlitter, según Stahl, son una “[...] copia evidente de varias
le superpone una guerra civil. novelas de Philip K. Dick [...]” (SANCHIZ, 2010a, p. 14-15), pero
Es posible comprender, pues, cómo los dos aspectos vinculadas a un contexto histórico local en el cual se debía
comentados hasta aquí, el de la ciencia ficción y el de la considerar que estos chicos de la banda que enunciaban aquellas
contracultura, se abrazan en un proyecto literario que propone letras con aquel sentido:
una reflexión a partir de nuevas perspectivas y de nuevas formas [...] venían de Las Piedras, estaba el telón de fondo
de narrar que evocan indudablemente influencias tales como 1984, innegable de la Guerra Civil, la dictadura militar, la
de 1949, o de Un mundo feliz, de 1932, o la película Brazil (SANCHIZ, pseudoguerrita con Argentina por el Falkandsaffair y la
2010a, p.14), pero que al mismo tiempo se encuentran con obras endeble apertura democrática de los últimos años de la
década del 80, sin mencionar el descolgado neoliberalismo
contemporáneas como puede ser el caso de las novelas de Paz
de los 90 ni el desmembramiento completo de la izquierda…
Soldán, quien este año al publicar Iris (2014), tal vez la novela más
[...]. (SANCHIZ, 2010a, p. 15).
de ciencia ficción ya escrita en lengua castellana (como ha dicho
Sanchiz), ha declarado que el género, hoy, es el más apto a pensar Es así que ciencia ficción y contracultura se dan la mano en
la realidad en general y la realidad latinoamericana en particular, NRM, así como se han dado la mano en buena parte de las bandas
como lo han hecho Huxley o Orwell en otro momento para pensar más influyentes del rock a partir de los 60.

4
Es este también el punto de vista del autor en una novela aún no publicada uruguaya si hubiese entendido que el rock inglés y norteamericano también
cuyo personaje principal parece imaginado a partir de la figura de Bob Dylan. En vehiculaban un discurso de protesta social que podría haber sido acogido como
esa novela se comprende bien otra vuelta de tuerca de la forma como Sanchiz tal y del cual se habría visto beneficiada del punto de vista estético y
ve la escena cultural, política y musical de los últimos cincuenta años; lo que comportamental.
parece interesarle es imaginar cómo se habría desarrollado la sociedad
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Se puede concluir que lo que hace Sanchiz en esta novela, ______. Historia de la ciencia ficción uruguaya. Primera entrega.
así como en La historia de la ciencia ficción uruguaya (2013) y en Revista Axxon, Buenos Aires, n. 164, julio 2006. Disponível em:
otras como La vista desde el puente (2011), es intentar emplazar <http://axxon.com.ar/rev/164/axxon164.htm>. Acesso em: 15 de
una tradición que es histórica, literaria, musical y cultural, mar. 2013.
emplazarla a través de un logos ficcional. De hecho, al decidir
incluir en la obra ficticia Cual retazo del espacio: la historia de la ______. Historia de la ciencia ficción uruguaya. Segunda entrega.
ciencia ficción uruguaya una entrada sobre los Space Glitter, Revista Axxon, Buenos Aires, n. 165, Agosto 2006. Disponível em:
Federico Stahl escribe sobre todas las referencias que parecen <http://axxon.com.ar/rev/165/axxon165.htm>. Acesso em: 15 de
influenciar el demo de la banda y lo relaciona con el pasado político mar. 2013.
reciente del Uruguay, así como con algo de su pasado musical de
los 60 y con su tradición de literatura de ciencia ficción (bastante ______. Historia de la ciencia ficción uruguaya. Tercera entrega.
débil) a través del personaje Lestrange, la principal influencia de la Revista Axxon, Buenos Aires, n. 166, setembro 2006. Disponível em:
banda de Las Piedras. Son las letras de los SpaceGlitter, que el <http://axxon.com.ar/rev/166/axxon166.htm>. Acesso em: 15 de
lector de la novela debe imaginar, el puente entre ese telón de mar. 2013.
fondo de la historia reciente del Uruguay, el presente donde
Sanchiz escribe y uno lee, y el futuro que se imagina a partir de la ______. Historia de la ciencia ficción uruguaya. Cuarta entrega.
ficción. Revista Axxon, Buenos Aires, n. 174, junho 2007. Disponível em:
Muchas preguntas y respuestas quedan por hacer y dar en <http://axxon.com.ar/rev/174/axxon174.htm>. Acesso em: 15 de
relación a esta novela plagada de referencias no mencionadas por mar. 2013.
nosotros aquí. Futuras lecturas podrán a su vez intentar responder
el enigma del título, Mlejnas, más allá de (y junto a) la alusión al FOGWILL, R. Cuentos completos. Madrid: Alfaguara, 2011.
cuento de Borges.
HUXLEY, A. Un mundo feliz. Retorno a Un mundo feliz. México:
Referencias Editorial Porrúa, 2013, KINDLE.
BORGES, J. L. Ficciones. Madrid: Debolsillo, 2011.
LAGOS, G. Senderos que se unifican. La diaria. Montevideo, 04
______. El aleph. Madrid: Debolsillo, 2011. abril 2011. Disponível em: http://ladiaria.com.uy/articulo/
2011/4/senderos-que-se-unifican/>. Acesso em: 13 de abr. 2013.
CASARES, Bioy. La invención de Morel. Madrid: Alianza, 2012.
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LAISECA, A. Matando enanos a garrotazos. Buenos Aires: Gárgola, ______. Algunos de los otros redux. Buenos Aires: Reina Negra,
2004. 2012, EPUB, PDF, MOBI.

ORWELL, G. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______. Trashpunk. Buenos Aires: Ediciones Centro de Estudios
Contemporáneos, 2012, EPUB, PDF.
PAZ SOLDÁN, E. Iris. Editor digital OZN, 2014a, EPUB.
______. La historia de la ciencia ficción uruguaya. Córdoba:
PAZ SOLDÁN, Edmundo. Paz Soldán dibuja un mundo apocalíptico Llantodemudo Ediciones, 2013.
y desolador en su novela “Iris”. Los tiempos. Tragaluz.
Cochabamba (a través Agencia EFE), 21 febrero 2014b. Disponível ______. Vampiros porteños, sombras solitarias. Buenos Aires:
em: http://www.lostiempos.com/diario/actualidad/tragaluz/ Parque Moebius, 2014a.
20140221/paz-soldan-dibuja-un-mundo-apocaliptico-y-
desolador-en-su-novela_245825_536016.html Acesso em: 13 jul. ______. El orden del mundo. La Paz: Editorial El cuervo, 2014b.
2014.
______. Después de google y wikipedia la erudición no tiene
SANCHIZ, R. Perséfone. Montevideo: Estuario, 2009. interés en sí misma. Brújula. Santa Cruz de la Sierra, 30 Agosto
2014c. Disponível em: <http://www.eldeber.com.bo/brujula/
______. Nadie recuerda a Mlejnas. Ciudad Autónoma de Buenos 2014-08-30/nota.php?id=140829202218> Acesso em: 30 de ago.
Aires: Reina negra, 2010a. 2014.

______. Del otro lado. Montevideo: La propia cartonera, 2010b. ______. Entrevista a Ramiro Sanchiz. Revista 88 Grados. La Paz,
Bolivia, Mayo 2014d. Disponível em:
______. Algunos de los otros. Montevideo: Trilce, 2010c. <https://www.88grados.net/2014/05/entrevista-a-ramiro-
sanchiz/>. Acesso em: 05 de set. 2014.
______. La vista desde el puente. Montevideo: Estuario, 2011
THOMPSON, D. Dangerousglitter. Como David Bowie, Lou Reed e
______. Los viajes. Vicente López: Melón Editora, 2012. Iggy Pop foram ao inferno e salvaram o rock ‘n` roll. Tradução de
Alyne Azuma. São Paulo: Editora Campos, 2013.
______. Los otros libros. Montevideo: La propia cartonera, 2012.
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VOLPI, J. Leer la mente. El cerebro y el arte de la ficción. México:


Alfagura, 2011.
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LITERATURA E CINEMA: UMA QUESTÃO DE FIDELIDADE? Manter o original, portanto, não é possível e nem desejável nessas
Larissa Pinheiro Xavier circunstâncias.
IFPB Para superarmos a crítica da fidelidade, como critério de
análise, é necessária a percepção de que, quando classificamos
Quais são as escolhas ao se adaptar uma obra literária para uma obra como infiel ao original, expressamos, na verdade, nosso
o cinema? Como representar através de imagens as palavras desapontamento ao sentirmos que a adaptação falha ao captar o
expressas no texto? É possível ser “fiel”? As críticas são várias que nós, como leitores, consideramos os aspectos fundamentais
quando classificam o filme adaptado de obras literárias. O da narrativa, da temática e da estética da fonte literária. A palavra
processo pode ser considerado como “vulgarização”, “traição” ou infidelidade é, então, uma forma de exteriorizar nossos
“infidelidade” de um texto dito original. Essas são algumas das sentimentos em relação à obra de chegada que, por vezes,
questões sobre as quais nos propomos refletir nesta seção. consideramos inferior ao texto de partida. O conceito de fidelidade
Segundo Robert Stam (2008, p. 20), a crítica à adaptação é, por si só, extremamente problemático e questionável. Stam
fílmica de romances tem sido muitas vezes discriminatória, pois (2008), adotando uma postura desconstrutivista, questiona até
considera que o cinema vem prestando “um desserviço à sobre a possibilidade da fidelidade em adaptações, já que
literatura”. Para o autor, não há comparação de um com o outro, mudanças são automatizadas, dado o caráter das mídias.
pois o filme, por mais que seja adaptado, é diferente do original, Umberto Eco (2007, p. 57-58), que destina seus estudos à
ao mesmo tempo é também original, uma vez que muda o meio tradução de um modo geral, entende que uma boa tradução
de comunicação. deveria considerar principalmente a transmutação do enredo do
A passagem de um meio unicamente verbal como o texto de partida. Considera, ainda, a tradução não somente como
romance para um meio multifacetado como o filme, que questão linguística, mas como estrutura que pode ser transmutada
pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), e até realizada em outros sistemas semióticos. Poderíamos,
mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens segundo o autor, contar a história da Odisséia, de Homero, com o
fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de
mesmo enredo, não somente parafraseando linguisticamente,
uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo
mas também por meio de um filme ou de uma versão em
de indesejável (STAM, 2008, p. 20).
quadrinhos. Mas é necessário que se respeitem as particularidades
O que o autor sugere, como podemos observar, é que a de cada meio, já que
adaptação dispõe de um amplo e rico universo de opções e [...] na manifestação cinematográfica [por exemplo] contam
caminhos a ser percorrido. Da mesma forma que um texto literário certamente as imagens, mas também o ritmo ou a
pode promover uma série de leituras e interpretações, assim velocidade do movimento, a palavra, o barulho e os outros
também qualquer romance pode nos oferecer várias adaptações. tipos de som, muitas vezes escritos (sejam eles diálogos nos
filmes mudos, as legendas ou elementos gráficos mostrados
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pela tomada se a cena se desenrola em um ambiente em citado, da literatura para o cinema, tem seus próprios recursos,
que aparecem cartazes publicitários ou numa livraria), para suas técnicas, sua linguagem e sua abordagem.
não falar na gramática do enquadramento e a sintaxe da É necessário, então, enxergarmos a adaptação fílmica não
montagem (ECO, 2007, p. 60). como subordinada à obra fonte, mas sim entendermos a mesma
Ele afirma que, independente do meio em que o texto de como uma nova obra, produto de outro ato criativo, com suas
partida foi traduzido ou transmutado, cada um tem suas próprias especificidades. Uma das formas consideradas nessa nova
particularidades, suas características e sua linguagem. O cinema, perspectiva é, desta maneira, a percepção do texto de chegada
por exemplo, usa imagens, movimento de câmera, legendas, som como a leitura de um romance, poesia ou drama fonte, um texto
para auxiliar na construção do enredo. de partida. Tal leitura é inevitavelmente parcial, pessoal e
Eco (2007, p.16) ainda afirma que uma discussão que conjuntural.
perdurou por muito tempo nos estudos da tradução foi a questão Ismail Xavier (2003, p. 67), ao tratar da adaptação literária
da fidelidade ao original. Para o autor, a fidelidade tem a ver com e suas múltiplas dimensões, a respeito da adaptação da literatura
a persuasão “de que a tradução é uma das formas de para o cinema, afirma que o filme pode tanto optar por:
interpretação”, e o tradutor deve sempre visar reencontrar a Estar mais atento à fábula extraída de um romance,
intenção do texto, ou seja, aquilo que o texto diz ou sugere em tratando de tramá-la de outra forma, mudando, portanto, o
relação à língua e ao contexto cultural no qual foi cunhado. sentido, a interpretação das experiências focalizadas. Ou
pode querer reproduzir com fidelidade a trama do livro, [...]
Atualmente, com o estabelecimento do cinema como
sem mudar a ordem dos elementos. [...] Nesse aspecto, é
forma artística independente da literatura, as discussões sobre o
possível saber com precisão o que manteve, o que se
não reconhecimento do cinema como arte já são consideradas modificou, bem como o que se suprimiu ou acrescentou.
desnecessárias. Estudiosos, como o próprio Umberto Eco, Robert Mas dificilmente haverá consenso quanto ao sentido de tais
Stam, Jaques Aumont, Walter Benjamin, já consideram o processo permanências e transformações, pois elas deverão ser
de adaptação entre diferentes mídias como um processo cultural avaliadas em conexão com outras dimensões do filme que
intrínseco à contemporaneidade, um processo que modifica até envolve elementos que se sobrepõem ao eixo da trama,
mesmo o ato de criação e distribuição da obra artística. como os de estilo que se engajam os traços específicos ao
A adaptação fílmica reescreve uma narrativa, com o uso de meio.
outra linguagem, e se torna portadora de significação: “É mais do Observamos que, na visão do autor, é importante ter um
que evidente que uma tradução, por melhor que seja, jamais conhecimento específico das diferenças entre a comunicação
poderá ser capaz de significar algo para o original” (BENJAMIN, fílmica e a literária, assim como um conhecimento das
2001, p. 193). O processo entre linguagens, como no caso aqui circunstâncias sócio-históricas concretas no processo de
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organização da estrutura narrativa e as ideologias que se atribuem O resultado da tradução proposta constitui um novo produto, uma
ao autor, ao cineasta e ao escritor. obra que adquire característica e status independente.
Os estudos nessa área não podem, portanto, limitar-se à Brian McFarlane (1996) propõe uma perspectiva prática
descrição de semelhanças e/ou diferenças entre textos-fonte e para a análise estrutural da relação entre obras literárias e
textos-alvo. Precisam tentar mostrar quais os mecanismos de cinematográficas. Para esse autor, a questão narratológica deve
canonização, integração, exclusão e manipulação que, subjacentes estar no centro das preocupações de qualquer estudo sobre o
à produção do texto traduzido, operam nele continuamente, em processo de adaptação – processo que considera ser pouco
vários níveis. Para cumprir esse objetivo, esses mecanismos estudado pelos chamados críticos da adaptação, que voltam seus
tornam-se muito mais abrangentes do que meros estudos olhares para pormenores referentes à relação entre a literatura e
linguísticos, e não mais podem se desassociar dos estudos o cinema.
literários e culturais. Enxergando a adaptação como uma tradução
Se associarmos essa discussão ao romance de G. G. intersemiótica, McFarlane propõe a realização de uma análise da
Márquez, percebemos a cultura latino-americana inserida no estrutura narrativa, das ações que traçam o esqueleto da história
espaço e no enredo da obra. Ele mostra os personagens dentro do contada no livro que são adaptadas para o filme. A fidelidade é
contexto real, com comportamentos, costumes e ações que logo descartada por esse autor como foco de análise, dado que
identificamos como parte de camada de uma parcela da “assim como os espectadores, independente do quanto eles
sociedade. À medida que esses romances são adaptados, tem-se reclamem sobre esta ou aquela violação do original, continuam
que observar todo o contexto sociocultural que envolve a trama e querendo ver como ficam os livros nas telas” (MCFARLANE, 1996,
não somente se deter a aspectos puramente estruturais e p. 7)1. Isso acontece na medida em que cada leitor cria imagens
linguísticos. O meio social no qual os protagonistas do romance mentais sobre a obra que lê e, na maioria das vezes, o que vê na
estão inseridos é fator importante de influência nas suas atitudes tela são imagens cunhadas segundo a interpretação de outro
e pensamentos, não como causa nem significado, mas como leitor.
elemento que desempenha certo papel na construção do sujeito, Críticas à fidelidade dependem de uma noção de que o
segundo Candido (1965). texto possui um significado correto alcançado apenas pelo
De acordo com Machado e Pageaux (2001, p. 24), a leitor (inteligente), o qual o cineasta ou adere a este sentido
adaptação é uma forma de leitura, seja ela de quem lê, de quem ou, de certo modo, o viola ou "adultera". [...] o crítico que
briga por falhas na fidelidade está dizendo, na verdade,
traduz ou até mesmo de quem faz a crítica; devendo-se considerar
que a tradução é uma relação de diálogo entre culturas diferentes.

1
As the audiences, whatever their complaints about this or that violation of the
original, they have continued to want to see what the books look like.
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nada além disso: essa leitura do original, na forma que está, casamento por interesse e os próprios conflitos sociais da época.
não condiz com a minha (MCFARLANE, 1996, p. 9)2. Assim, estudos teóricos que abordem literatura, sociedade e
O autor argumenta, ainda, que nem sempre as adaptações cultura, como o de Candido (1965), por exemplo, poderão
consideradas mais fiéis são aquelas que alcançam maior êxito contribuir para uma investigação sobre os aspectos acima
junto à crítica e ao público e ilustra essa questão apresentando retratados dentro da obra e da produção cinematográfica, sobre a
estudos sobre adaptações ora mais fiéis, ora menos fieis às suas obra de García Márquez, O amor nos tempos do cólera (1995).
fontes literárias. Desta forma, McFarlane (1996) desenvolve sua As reflexões e análises sobre essas teorias e práticas da
proposta teórica sem priorizar esta ou aquela arte, respeitando os adaptação do universo literário para o fílmico tornam-se cada vez
limites de ambas e tendo como foco o estudo do processo, não mais necessárias, à medida que vemos a quantidade de obras que
seus resultados. estão sendo adaptadas e, com isso, contribuindo para a ampliação
Para tanto, tendo em mente que seu método analítico do conceito de tradução e para a percepção do fenômeno como
foca-se na centralidade da narrativa, o autor sugere existirem nas intermediação entre culturas. Nessa perspectiva, nossa pesquisa
obras literárias dois tipos de elementos: (1) aqueles que podem ser se insere no intuito de contribuir para o debate em questão.
facilmente transferidos ou traduzidos do texto verbal para o Alguns estudos têm investigado a natureza dessas
cinematográfico por meio de um processo de transferência; e (2) adaptações e suas implicações. De acordo com um feito por Silva
aqueles que dependem de maior criatividade, exigindo mais do (2009, p. 584), a análise da construção de personagens e do
tradutor, configurando-se como um processo de adaptação espaço, por exemplo, são temáticas relevantes de tradução para
(McFARLANE, 1996, p. 13). Seguindo os pressupostos consolidação da literatura no cinema e “contribui para uma
metodológicos elencados pelo autor, a análise da adaptação ampliação do próprio conceito de tradução”, pois inclui nos
deveria focar-se na identificação desses elementos e, no caso dos estudos de tradução essa análise feita de obras literárias para o
que são transformados por um processo de adaptação, na cinema. Para tal, o autor analisou o romance Les Liaisons
elucidação das etapas criativas por trás dos que subjazem a eles. Dangereuses (1788), do escritor francês Choderlos de Laclos, e sua
Ao associarmos essa discussão à obra de García Márquez adaptação para o cinema, intitulada Ligações Perigosas (1988),
em estudo, percebemos que o sistema cultural vigente valorizava dirigida pelo cineasta inglês Stephen Frears.
muito o status social do indivíduo — fosse este profissional ou Esse estudo tem como pontos de análise a formatação da
pessoal. O texto também apresenta a situação da mulher, sua narrativa fílmica, a construção do espaço e dos dois personagens
posição e seu comportamento frente à sociedade, mostra o principais. Para tal, Silva (2009) utilizou como base teórica o

2
Fidelity criticism depends on a notion of the text as having and rendering up to quibbles at failures of fidelity is really saying no more than: “This reading of the
the (intelligent) reader a single, correct „meaning‟ which the film-maker has original does not tally with mine in these ways.
either adhered to or in some sense violated or tampered with. […] the critic who
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conceito de reescritura e tradução, sob a perspectiva dos Estudos representado por tradições, usos, costumes, valores morais,
Descritivos de Tradução. O processo se deu apenas através da aspectos econômicos e políticos articulados ao contexto histórico
análise das cenas iniciais do filme, pois o autor considerou serem no qual estão inseridos e os conceitos estéticos/artísticos
suficientes para comprovar o argumento de que a tradução da utilizados para sua criação.
obra para a tela reescreveu o tom libertino dos personagens do O espaço psicológico, para Reis, aborda o interior da
romance de Laclos, dentro de um contexto histórico e social personagem, compreendendo as suas vivências, seus sentimentos
relevante. Conclui-se que as estratégias de tradução do texto e pensamentos. Na obra, O amor nos tempos do cólera (1995),
cinematográfico também apresentam um “construto de notável conseguimos identificar o espaço psicológico como elemento
elaboração estética”, consolidando o texto do autor francês para representativo, pois esta é uma das características mais marcantes
o espectador (SILVA, 2009, p. 588). da obra de García Márquez. O autor trabalha o lado psicológico das
Xavier (2003, p. 62) atesta que “livro e filme estão personagens na narrativa, de forma que, muitas vezes, quem fala
distanciados no tempo”, assim como o autor e o cineasta não têm é o pensamento/o narrador ao invés de ser trabalhado o diálogo.
as mesmas perspectivas frente ao texto, sendo necessário que a Alguns pensamentos do protagonista Florentino Ariza apresentam
“adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com seu isso:
próprio contexto, mesmo quando o intuito é a identificação dos Como compensação do destino, foi também no bonde de
valores nele expressos”. O autor aponta, ainda, que o sucesso da burro que Florentino Ariza conheceu Leona Cassiani, que foi
obra fílmica se dá pela busca das “equivalências” bem sucedidas, a verdadeira mulher da sua vida, embora nem ele nem ela
ou seja, quando o filme, na sua linguagem, consegue transmitir ao jamais o soubessem, ou jamais fizessem o amor. Ele a sentiu
antes de vê-la quando voltava a casa no bonde das cinco: foi
espectador a mesma “essência”, as mesmas características dos
um olhar material que tocou nele como se fosse um dedo.
protagonistas do livro de modo a privilegiar a filmagem como
Ergueu a vista e a viu, no extremo oposto, mas muito bem
transmutação de sentidos e efeitos. O espaço, na narrativa definida entre os outros passageiros. Ela não desviou o
literária, constitui-se o lugar praticado, as operações responsáveis olhar. Pelo contrário: manteve-o com tamanho
por tornar os lugares múltiplos, ao abranger em sua composição, descaramento que ele não podia pensar senão o que
o conflito, a ambiguidade e as transformações constantes. pensou: negra, jovem e bonita, mas puta sem sombra de
Para Carlos Reis (2003, p. 362), o conceito de espaço, além dúvida. Descartou-a da sua vida, porque não podia
de abranger o conceito físico, de espaço real, que serve de cenário conceber nada mais indigno do que pagar pelo amor: não o
à ação em que as personagens se movem, “pode ser fez nunca (MÁRQUEZ, 1995, p. 226).
compreendido em sentido translato, abarcando tanto as Nesse trecho do livro, acontece o primeiro encontro de
atmosferas sociais (espaço social) como as psicológicas (espaço Leona com Florentino, e esta vem a ser a sua melhor e única amiga.
psicológico)”. O primeiro é constituído pelo ambiente social, Podemos observar que o pensamento de Florentino a todo o
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momento se mistura ao do narrador por meio do discurso indireto a metade da sala, dividida com um biombo de madeira.
livre. Havia ali uma mesa e quatro cadeiras que serviam ao
Há também o espaço geográfico, que vai determinar o mesmo tempo para se comer e escrever, e ali Florentino
cenário, lugar onde se passa a história, que pode ser um Ariza dependurava a rede quando o despontar do dia não o
surpreendia escrevendo (MÁRQUEZ, 1995, p. 94-95).
determinado continente, país, região ou até outro planeta,
dependendo do tema abordado na narrativa. No geral, esse Essa situação acontece logo depois que Florentino Ariza
elemento tem como principal função situar as ações das pede a mão de Fermina Daza em casamento. A mãe dele,
personagens e estabelecer com elas uma interação, quer acreditando na união do casal, inicia a reforma na casa para
influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer receber a futura mulher do seu filho, uma vez que Trânsito Ariza
sofrendo eventuais transformações. achava que a casa do jeito que estava não era digna de receber a
Assim como na descrição do espaço psicológico, García filha de um fazendeiro da cidade e de uma moça que estudava em
Márquez traz, também, descrições minuciosas do espaço bom colégio. García Márquez retrata, então, através da descrição
geográfico em que as personagens estão inseridas, pois, muitas do local, as condições financeiras de mãe e filho, a forma como
vezes, esse espaço influencia diretamente o comportamento e a eles viviam e suas intenções.
ação dos mesmos. A exemplo das personagens, Reis (2003, p. 351) defende
Desde que ele falara pela primeira vez na intenção de se que o espaço pode ser caracterizado mais detalhadamente em
casar, seis meses antes, Trânsito Ariza iniciara gestões para textos descritivos e, à medida “[...] que o espaço vai se
alugar toda a casa, que até então compartilhava com duas particularizando, cresce o investimento descritivo que lhe é
famílias mais. Era uma construção civil do século XVII, de consagrado e enriquecem-se os significados decorrentes [...]” do
dois blocos, onde funcionava o Monopólio do Tabaco sob o
número ilimitado de elementos que podem ser atribuídos a ele
domínio espanhol, e cujos proprietários arruinados tinham
como forma de composição das cenas.
tido que alugar aos pedaços por falta de recursos para
mantê-la. Tinha uma seção que dava para a rua, onde se O autor ainda acrescenta que é possível dar ao espaço
faziam as vendas do tabaco, outra no fundo do pátio de características próprias como, por exemplo, o espaço geográfico
pedras onde estivera a fábrica, e uma cavalariça muito fechado ou aberto, urbano ou rural. Entende-se por espaço
grande que os inquilinos atuais usavam em comum para geográfico fechado, locais em que determinada narrativa acontece
lavar roupa e estendê-la na corda. Trânsito Ariza ocupava a dentro, lugares fechados como no interior de casas,
primeira parte, que era a mais útil e mais conservada, estabelecimentos, igrejas etc. Ao contrário, o espaço aberto relata
embora fosse também a menor. Na antiga sala de vendas ações em locais ao ar livre como ruas, praças, praia, feiras livres
ficava o armarinho, com um portão para a rua, e ao lado o etc. Sobre o espaço urbano e rural, o nome já nos remete: urbano,
antigo depósito, onde dormia Trânsito Ariza e cuja única
ventilação era uma claraboia. O cômodo de trás da loja era
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a narrativa se passa em cidades, metrópoles e o rural, no interior, transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo,
em pequenas cidades. a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar
Ao aplicarmos esses conceitos ao romance de García constituído por um sistema de signos – um escrito.
Márquez, podemos citar como espaço fechado, na obra, os Como podemos observar, Certeau reforça que o espaço
momentos de convívio de Florentino Ariza com sua mãe, Trânsito não é estável como o lugar, pois é modificado pelas
Ariza, no interior da casa deles; como ilustração do espaço aberto, transformações, depende de múltiplas convenções, colocadas
a feira, onde Florentino escrevia cartas para os transeuntes. O como o ato de um presente. Essa oposição entre lugar e espaço
espaço urbano é a própria cidade onde se passa a trama da deve-se remeter a duas espécies de determinações nos relatos:
história, Cartagena das Índias; e como espaço rural, a cidade do uma por objetos, a outra por operações que se atribuídas a objetos
interior, lugar para onde Fermina Daza é mandada, quando o pai ou seres humanos, especificam espaços pelas ações de “sujeitos
descobriu o romance dela com Florentino. Abordar essa relação históricos (parece que um movimento sempre condiciona a
das personagens com o espaço corresponde a mencionar a ação produção de um espaço e o associa a uma história)” (CERTEAU,
denominada de “enredo” ou “trama” que, por sua vez, possui um 1994, p. 203).
tema como matéria-prima. Nessa obra especificamente, levando De acordo com o autor, a descrição de lugares oscila entre
em consideração o conceito de espaço de Reis (2003), podemos termos de uma alternativa, podendo apresentar movimento ou
encontrar os quatro tipos de espaços geográficos acima algo estático: ver (ordem de lugares) ou ir (ações espacializantes);
mencionados. quadro (‘existe’) ou movimentos (‘você entra...’). Se analisarmos a
Michel de Certeau (1994), ao retratar relatos de espaço, última citação acima com relação à obra de García Márquez, em
como ele mesmo intitula em um dos seus capítulos do livro A que o narrador descreve a casa de Florentino Ariza, podemos usar
invenção do cotidiano, faz uma distinção entre lugar e espaço. esses princípios teóricos para fazer essa relação de lugar e espaço,
Segundo o autor, lugar é uma configuração instantânea de identificando em qual dos dois conceitos se encaixa. A linguagem
posições e implica uma indicação de estabilidade, pois cada usada na descrição como, por exemplo, “tinha uma seção”, “o
elemento ocupa um lugar que lhe é próprio e distinto, não cômodo de trás”, “havia ali”, mostra a descrição como algo
podendo, assim, dois elementos ocuparem o mesmo lugar. É a estático, quadro, sem ideia de movimento, caracterizando assim,
ordem da coexistência. Espaço já leva em conta “vetores de lugar.
direção, quantidades de velocidade e a variável do tempo” Gaston Bachelard (1978), em A poética do espaço, relata
(CERTEAU, 1994, p. 202). um estudo fenomenológico sobre a intimidade do espaço interior:
Certeau (1994, p. 202), procurando uma definição para a casa. Para o autor, a casa é um ser privilegiado se levarmos em
espaço, diz que: consideração a sua unidade e a sua complexidade, “tentando
O espaço é um lugar praticado. Assim a rua integrar todos os seus valores particulares num valor
geometricamente definida por um urbanismo é
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fundamental” (BACHELARD, 1978, p. 199). Nesse sentido, ela escrivaninha de nogueira do pai, e das poltronas de couro
fornece simultaneamente imagens dispersas e um corpo de almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com
imagens. estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase
Ao relacionarmos esses conceitos à obra de García demente três mil livros idênticos encadernados em pele de
bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao
Márquez, podemos associá-los às descrições do autor sobre os
contrario dos outros aposentos, que estavam à mercê das
espaços habitados pelas personagens. Tais descrições nos
comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a
oferecem a possibilidade de visualizar essas imagens, quase como biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma
reais, além de evocarem com frequência esse elemento da poética abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição caribe de
do espaço. Na narrativa, o autor descreve minuciosamente cada abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não
lugar, com riquezas de detalhes que mostra ao leitor aspectos existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram
relevantes da vida social, econômica e cultural de Florentino Ariza, a princípio o coração oprimido pela clausura. Mas acabaram
Fermina Daza, Trânsito Ariza, Juvenal Urbino, dentre outros. convencidos das vantagens do método romano contra o
Bachelard (1978, p. 201), ao retratar a casa como lugar de calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor
memória e imaginação, afirma ainda que se trata de um dos de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e
maiores poderes de integração para os pensamentos, as abri-las de par em par aos ventos da noite. [...]. Era também
a mais bem protegida de dezembro a março, quando os
lembranças e os sonhos do homem.
alísios do norte destroçavam telhados e passavam a noite
Abordando as imagens da casa com o cuidado de não
dando voltas como lobos famintos ao redor da casa em
romper a solidariedade da memória e da imaginação,
busca de uma fresta para se introduzirem. Ninguém jamais
esperamos fazer sentir toda a elasticidade psicológica de
imaginou que um casamento fincado sobre tais alicerces
uma imagem que nos comove a graus de profundidade
pudesse ter algum motivo para não ser feliz (MÁRQUEZ,
insuspeitos. Pelos poemas, talvez mais do que pelas
1995, p. 29-30).
lembranças, tocamos o fundo poético do espaço da casa.
Podemos observar que, à medida que o autor descreve as
É através dessa integração que García Márquez busca
partes da casa, percebe-se o requinte, a riqueza, o luxo através do
retratar o comportamento das personagens, levando em
uso de expressões, tais como: “escrivaninha de nogueira”,
consideração o ambiente em que elas vivem e o espaço em que
“poltrona de couro”, “estantes envidraçadas”, indicando aos
estão situadas. Na citação abaixo, vemos, como ilustração, a
leitores característica da vida do casal. Isso mostra também
descrição de partes da casa de Juvenal Urbino mesclada a
indícios sobre o padrão econômico e social da família e ao mesmo
passagens que falam dos costumes dos moradores da casa:
No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade tempo vemos os costumes, quando o autor diz que eles seguiam
meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor algumas superstições de como se preservar os livros.
Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da
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Segundo Antonio Candido (2004), em sua discussão sobre Aumont (2002) concebe o filme como representação visual
a Degradação do Espaço, em O Discurso e a Cidade, o ambiente e sonora. O visual (imagem), que se apresenta para nós sob forma
material aparece através do destaque dos objetos que o povoam. plana e delimitada por um quadro nas telas, está entre os traços
Como observamos acima, a descrição destes objetos no texto de fundamentais dos quais decorre a apreensão sobre representação
García Márquez faz parte da narrativa, narrativa esta que “parece fílmica. O que pode ser visto ou imaginado a partir do espaço
uma concatenação de coisas e o enredo se dissolve no ambiente, fílmico é o que o autor denomina campo e fora de campo. Como a
que vem a primeiro plano através das constelações de objetos e imagem é limitada em sua extensão pelo quadro, a impressão é
dos atos executados em função deles” (CANDIDO, 2004, p. 61). É a que só capta uma parte desse espaço. É essa parte do espaço que
partir dos detalhes descritivos que a história se constrói, pois nos está contida no quadro que se chama campo: “como incluído em
fornece elementos necessários para compreender o enredo, as um espaço mais vasto, do qual decerto ele seria a única parte
personagens e o espaço em que vivem. visível, mas que nem por isso deixaria de existir em torno dele”
Para o autor, a descrição assume papel fundamental, não a (AUMONT, 2002, p. 24).
modo de enquadramento ou complemento, mas de instituição da O fora de campo, que vai além do que está sendo visto
narrativa. Vemos isso na escrita de García Márquez, em que as dentro do espaço, está fora deste, mas com intuito de prolongar o
sequências narrativas são formadas “pela articulação entre o campo. Segundo o autor, este conceito está:
ambiente, os objetos e o comportamento” (CANDIDO, 2004, p. 65). Vinculado essencialmente ao campo, pois existe em função
Como observamos particularidades de construção do do último; poderia ser definido como um conjunto de
espaço na narrativa literária, podemos, também, pensar sobre elementos (personagens, cenário etc.) que, não estando
particularidades de construção do espaço da narrativa dentro do incluídos no campo, são contudo vinculados a ele
imaginariamente para o espectador, por um meio qualquer
cinema. A princípio o cinema era concebido apenas como um meio
(AUMONT, 2002, p. 24).
de registro e não tinha como vocação narrar histórias. Jaques
Aumont relata que “poderia ser apenas um instrumento de O autor nos diz que campo e fora de campo se vinculam,
investigação científica, um instrumento de reportagem ou de por este ser a continuidade daquele. Quando se fala em imagem,
documentário, um prolongamento da pintura e até um simples os elementos que fazem parte dele são aqueles que são visíveis,
divertimento efêmero de feira” (AUMONT, 2002, p. 89). O cinema mas também os que o complementam, dando a ideia de
possuía estruturas narrativas fundamentais para a composição de continuidade, de noção de espaço. Ambos pertencem ao que autor
sua linguagem, porém os espaços eram bem marcados e as chama de “espaço fílmico”.
sequências de imagens entre um quadro e outro aconteciam com No filme O amor nos tempos do cólera (2007), de Mike
muitas interrupções. Newell, selecionamos uma imagem para observamos esses dois
elementos: campo e fora de campo.
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afirma que: “[...] o cinema é a primeira arte em que a dominação


do espaço pôde se realizar de forma plena”. A partir da grande era
da montagem, a imaginação humana foi arrastada para mundos
criados, recriados e para outros nunca imaginados.
Vale ressaltar aqui a importância da montagem na nova era
dos filmes, pois um dos traços específicos mais evidentes do
cinema é, justamente, por ser uma arte de combinação e de
organização. Entende-se por essa organização e combinação o
conjunto de elementos que um filme mobiliza: imagem, som,
efeitos gráficos etc. A montagem inclui esse conjunto de fatores e
se trata de um aspecto central nos estudos fílmicos. Martin (2011,
p. 147) considera que a montagem: “Constitui, efetivamente, o
fundamento mais específico da linguagem fílmica, e uma definição
de cinema não poderia passar sem a palavra “montagem”.
Digamos desde já que a montagem é a organização dos planos de
um filme em certas condições de ordem e de duração. “.
Figura 01– Campo e fora de campo.
Além desse aspecto estético de que o autor fala, ele busca
(Em 01h03min09s)
tratar da diferença entre montagem narrativa e montagem
expressiva. O primeiro revela o aspecto mais simples da
Nessa imagem estática, o que podemos observar que está
montagem, pois se refere à preocupação de reunir os elementos
no campo é a escrita de uma carta, vemos o papel, a caneta, uma
em ordem cronológica ou lógica, levando em consideração o ponto
parte da mão, da mesa e do tinteiro. O fora de campo imaginamos
de vista dramático: “o encadeamento dos elementos da ação
justamente a continuação dessa imagem em que só mostra parte
segundo uma relação de causalidade”; e o psicológico: “a
desses objetos. Sabemos que há uma pessoa escrevendo a carta,
compreensão do drama pelo espectador” (MARTIN, 2011, p 147).
que provavelmente ela está sentada em algum cômodo de sua
O segundo tem como objetivo produzir um efeito direto, buscando
casa ou do trabalho, num lugar fechado. Supõe-se ainda que pelos
exprimir por si mesmo uma ideia e já não é mais considerada um
objetos antigos, o filme não acontece na época atual, mas sim
meio, e sim um fim, pois procura produzir constantemente efeitos
décadas atrás.
de ruptura no pensamento do espectador.
Com o desenvolvimento e a elaboração das narrativas no
A montagem proporciona ao cinema a colocação de dois
cinema, o espaço passa a ter papel importante como categoria de
elementos fílmicos que proporcionam um efeito específico que, se
composição. Marcel Martin (2011, p. 219), ao tratar da questão,
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fossem colocados isoladamente, não produziriam o mesmo efeito. do seu conteúdo, intimamente ligado às personagens que estão
Isso justifica e valida a importância dada a montagem no cinema, envolvidos. É importante dizer que o espaço possui valor
pois é um dos principais meios de construção do espaço fílmico, e dramático e psicológico, um significado simbólico, figurativo e
de maneira geral, de toda a diegese. plástico e um caráter substancialmente estético.
Ainda sobre o elemento espaço, Martin (2011, p. 220) E o cinema, por ser a arte do espaço, nos termos de Martin,
destaca que o cinema foi a primeira arte cuja denominação pode consegue transportar o espectador para um espaço material real,
ser dada de forma plena e ressalta que o cinema trata o espaço de apesar de ser criado essencialmente por meios artificiais. O espaço
duas maneiras: e o tempo se fundem, a ponto de transformarem-se um no outro
[...] ou se contenta em reproduzi-lo e em fazer com que o mediante uma “interação dialética”: através da câmera lenta e da
experimentemos através dos movimentos de câmera [...], imagem acelerada, por exemplo, pode-se mostrar ora o espaço,
ou então o produz ao criar um espaço global, sintético, ora o tempo na vida em ato, nas coisas em movimento. Esse
percebido pelo espectador como único, mas feito da realismo é o que pode explicar, de maneira mais coerente, por que
justaposição-sucessão de espaços fragmentários que
motivos quem está diante da tela consegue penetrar na história e
podem não ter nenhuma relação material entre si.
vivenciá-la de forma tão intensa.
Embora o espaço no filme possa nos oferecer fortes
indícios, dados ou informações que nos levariam a inferir ou até a Referências
compreender certos elementos da diegese, tais como a trama, a AUMONT, J. et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 2002.
atmosfera, o clima, as reações psicológicas, o comportamento ou
a personalidade de algumas personagens, Martin acredita que o BACHELARD, G. A Poética do Espaço. Tradução de Joaquim José
espaço construído arbitrariamente não tem valor representativo Moura Ramos e colaboradores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
por si mesmo, pois “trata-se de um simples quadro oferecido à
ação, um suporte, não puramente abstrato, é verdade, mas BENJAMIN, W. A tarefa – renúncia do tradutor. In: HEIDERMANN,
construído em função das necessidades da mise en scène do W. (Org.) Clássicos da teoria da tradução. Florianópolis: UFSC,
conteúdo figurativo” (MARTIN, 2011, p. 225). De qualquer forma, 2001. p. 188-215.
o espaço submete-se à ação, é considerado um meio, não um fim
plástico. CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1965.
Quando se menciona o espaço cinematográfico
especificamente, não se pode focar somente no espaço do filme, ______. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ed. Ouro sobre
porque é composto de quadros fixos, rígidos e objetivos. Da Azul/São Paulo: Duas Cidades, 2004.
mesma forma, as imagens não são apenas representações em duas
dimensões: é considerado um espaço vivo, em nada independente
P á g i n a | 536

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Tradução de Ephraim SILVA, C. A. V. "Ligações Perigosas" e a construção de personagens
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PAGEAUVI, 2009. Anais... João Pessoa: Idéia, 2009. p. 583-589.
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de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. XAVIER, I. Literatura, cinema e televisão: Do texto ao filme: a
trama, a cena e a construção do olhar do cinema. São Paulo, Ed.
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P á g i n a | 537

PSICOLOGÍA DE LAS MASAS VIOLENTAS. EXPERIÊNCIA N°2 DE materia y espacio, a través de la unión de formas reales con formas
FLÁVIO DE CARVALHO imaginarias, obtenidas o sugeridas por puntos establecidos, o por
Laura Cabezas medio de perforaciones” (MADERUELO, 2008, p. 52), porque de lo
UBA-CONICET que se trata es de recuperar el espacio, darle cuerpo, hacerlo
palpable en las formas escultóricas.
En 1968, Paulo Duarte y un grupo de exiliados republicanos Como arquitecto pero también como “antropófago”, Flávio
españoles que conformaban parte del Centro Democrático de Carvalho hace del espacio uno de sus temas centrales de
Español le piden a Flávio de Carvalho que diseñe un monumento reflexión. A través del arte plástico y de los proyectos
en conmemoración a la memoria de Federico García Lorca. A fines arquitectónicos, pero también a través de sus trabajos sobre el
de ese mismo año, el 26 de septiembre, se erige el monumento en teatro y la danza, o de sus performances en las calles de San Pablo.
la Praça das Guianas, en el medio de un área residencial, cerca a Pero no es posible separar espacio y violencia en la obra (artística
una escuela primaria y a una Iglesia, en el centro de San Pablo, y vital) de Carvalho. El gesto violento no sólo es parte constitutiva
entre las avenidas Nove de Julho e Brasil, en dirección al Parque de de su producción sino que la violencia regresa desde el exterior y
Ibirapuera. Realizado con tubos de hierro rectilíneos colocados en se posa en sus intervenciones estéticas. El monumento a García
posiciones geométricas heterogéneas, con chapas recortadas en Lorca será atacado en la madrugada del 26 de julio de 1968 por un
formas curvas y apliques de metal pintados en un rojo intenso, la grupo de extrema derecha que desarman la estructura de la obra
escultura también contenía en el centro unos versos de García y la transforman en una masa informe, con restos de metal
Lorca del poema “Los álamos de plata” de 1919, pintados en letras retorcidos y distribuidos por el jardín. Al final, los agresores
negras: disparan una serie de tiros desde sus pistolas y ametralladoras.
¡Hay que abrirse del todo No era la primera vez que Flávio de Carvalho sufría de un
frente a la noche negra, modo tan cercano la violencia hacia una de sus experiencias
para que nos llenemos de rocío inmortal! estéticas. Si aquí los fascistas brasileños destruyen el monumento
Como señala Nicolau Sevcenko, el monumento evocaba al poeta español fusilado en Granada en 1936, recreando esa
fuertemente el memorial que Pablo Picasso había creado para fuerza violenta que alienta la década del treinta; en 1931, Flávio de
homenajear a su amigo Guillaume Apollinaire, junto con el escultor Carvalho es atacado por las masas católicas al pasearse por una
Julio González, quien enuncia su idea de “dibujar en el espacio” en procesión del Corpus Christi sin sacarse su sombrero en señal de
unos textos que escribe entre los años 1931 y 1932. Lejos de respeto. Es que en los años treinta el catolicismo se instala
pensar en la armonía o el equilibrio, propio del arte clásico o del fuertemente en el contexto cultural y político de Latinoamérica,
regreso al orden que proponen en los años treinta algunos artistas polarizando posiciones. Como apuntó Tristão de Athayde sobre su
ex-vanguardistas, González pretende un “matrimonio entre propia postura que, sin embargo podría extenderse para pensar
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toda la década “infame”: “Se não fosse católico, seria comunista. sobre la violencia y el peligro se asienta la escritura de este libro
É que a época é de militantes” (2001, p. XXVI). anómalo que toma a las emociones propias y ajenas como un
Si la vanguardia antropófaga había roto los lazos con las objeto de estudio que traspasa los parámetros racionales. Por eso,
reglas morales, religiosas, burguesas y patriarcales que será la lógica del montaje cinematográfico la que organice ese
normativizaban lo literario pero también el cuerpo en el San Pablo material caótico que incluye los recuerdos, las sensaciones y las
de los años veinte, Flávio de Carvalho, ingeniero civil que regresa lecturas de psicoanálisis y etnografía, junto con los dibujos que
de Inglaterra en 1924, no sólo continúa esa línea de pensamiento acompañan el texto, más vinculados a una estética expresionista.
en “La ciudad del hombre desnudo” través de la postulación de En el presente trabajo nos concentraremos en las figuras del gesto
una desnudez primitiva que condensa la potencia revolucionaria y el vamping como modos audaces de plantear una subjetividad
necesaria para cuestionar la sociedad occidental (ahí Carvalho libre de ataduras normativizadoras. A los cuerpos adormilados de
delinea la construcción de una nueva ciudad en los trópicos, sin las masas en procesión, Flávio de Carvalho le opone una
Dios, propiedad o matrimonio), sino que también acompaña el configuración corporal, dinámica y en puro movimiento,
nuevo proyecto editorial de Oswald de Andrade, el periódico de proveniente del cine, otro ámbito donde se visibilizan fuertemente
izquierda O Homem do Povo, que surge en 1931, luego de su las multitudes urbanas.
ingreso al Partido Comunista Brasileño. No obstante, como
compañero de ruta, Flávio de Carvalho no se suma a las filas “Ninguna visión era segura”
partidarias: su recorrido se arma desde el desvío y la Al no encontrase registro de ninguna Experiencia n°1, dos
fragmentariedad. versiones circulan sobre el origen de la segunda experiencia de
Desconfiado frente a las certezas plenas que brindan tanto Flávio de Carvalho. Por un lado, se piensa como una respuesta a
el materialismo dialéctico como la salvación por la trascendencia, los ataques que algunos estudiantes de Derecho dirigieron contra
su apuesta se redobla al hacer de la experiencia propia un Oswald de Andrade y su compañera Pagú a la salida de la redacción
laboratorio de indagación tentativa y exagerada que quiebra la de O Homem do Povo. Molestos por las críticas que aparecían
idea de una existencia única y constante. En este sentido, sobre su Facultad en las páginas del periódico, los jóvenes
Experiência n°2 es el resultado del pasaje de los planos y la teoría intentaron agredir físicamente a la pareja y sólo la intervención de
arquitectónica al espacio público. Ahí Flávio de Carvalho la policía pudo calmar la situación. Este hecho ocurre dos meses
documenta su intervención provocadora sobre una procesión del antes de la irrupción de Carvalho en la procesión del Corpus Christi,
Corpus Christi que se estaba llevando a cabo una mañana de cuando paseaba por la Praça da Sé, el mismo lugar en que se dio el
domingo de junio de 1931 en la ciudad paulista. Su negativa ataque a sus compañeros.
impiadosa a quitarse un llamativo sombrero verde de su cabeza Por otro lado, también se ha señalado la posibilidad de
enfurece a las masas católicas que amenazan con lincharlo. Así, vincular la Experiência n°2 con la condena del aristócrata francés,
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Jean François Lefebvre, Chevalier de La Barre, quien en 1766 fue já corriam abertamente. Vi o perigo da minha situação e a
acusado de herejía por haber mutilado un crucifijo y entonar ebrio grande dificuldade de qualquer fuga entre a massa
una canción en la que María Magdalena aparecía como una puta. compacta; porém, o alcance da experiência era maior do
Por esos cargos fue torturado, decapitado y quemado en la que parecia à primeira vista. (CARVALHO, 2001, p. 19)
hoguera. En O homem e o cavalo, la obra de teatro que Oswald de Si bien desde el comienzo el libro plantea que el motor de
Andrade escribe para el Teatro de la Experiência –otro de los la experiencia n°2 es desenmascarar el alma de los creyentes a
emprendimientos de Flávio de Carvalho por esos años- se deja leer través de una revuelta que permita palpar psíquicamente la
la referencia al intento de linchamiento que sufre el ingeniero y emoción tempestuosa del alma colectiva y vislumbrar así su
artista paulista por usar sombrero en plena peregrinación inconsciente, a medida que avanza la narración se descubre que la
religiosa. Pero también aparece en la obra dramática la conexión reflexión sobre el acto de experimentar ocupa un lugar de
con de La Barre. Como muestra la crítica de artes escénicas Nanci privilegio en tanto se construye un sujeto que duda y desconfía de
de Freitas, en el coro profano que acompaña la escena aparece la realidad y de sus recuerdos, que se ve modificado también por
María Magdalena como una prostituta que defiende la poesía una emoción que no es la devota sino la que trae la sensación de
social y ataca la moralidad cristiana (2007, p. 4). El cántico, así, peligro. Luego de rehusarse a sacarse el sombrero, leemos: “Com
aludiría a ese otro heterodoxo francés del siglo XVIII que, como dificuldade conseguia colher observações, e o meu raciocínio já
Flávio de Carvalho, atentó provocativamente contra los emblemas não funcionava como dantes. A emoção do momento começava a
de la religión católica. me invadir aos poucos” (2001, p. 22).
Más allá del grado de veracidad de estos relatos de origen, Dos emociones, entonces, que moldean dos clases de
en los tres episodios se puede reconocer una marca de violencia. La que llevan a cabo las masas guiadas por el imperativo
autenticidad que supera las barreras históricas y los aúna: la de linchamiento con el objeto de restaurar un orden que se percibe
sobrevivencia de un gesto violento que irrumpe anárquicamente en crisis y la que ejerce Flávio de Carvalho a través de su
en el racionalizado espacio urbano. No obstante, Flávio de performance y su escritura: un impulso violento que carece de un
Carvalho imprime una diferencia con respecto a las demás escenas fin claro y preestablecido, que está más cerca de lo que Walter
violentas descriptas al ubicar su accionar y su relato bajo una idea Benjamin por esos años denomina violencia divina, aquella
de experiencia que lleva el yo al límite: violencia que destruye el derecho, arrasa sin límites y posee un
Minha atitude atraía e em parte monopolizava a atenção. Já carácter purificante. Es mediante este tipo de violencia, que no se
começavam a discutir e raciocinar sobre o meu gesto, puede controlar y que escapa a los parámetros racionales, desde
padres e feiras. Já me olhavam de um modo esquisito. donde Carvalho imagina su propia concepción de experiencia y su
[...]
método arqueológico de “pescar” sus emociones, asumiendo que
A minha atitude era realmente provocadora. A assistência,
até então passiva, começou a inquietar-se. Os comentários
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el resultado siempre brindará un “panorama desconexo, cheio de Agamben, “la esfera no de un fin en sí mismo, sino de una
vazios” (2001, p. 33): medialidad pura y sin fin” (2010, p. 55).
Minhas emoções são pescadas no passado, muito do Es por eso que el peligro, el acercamiento al límite o a la
mesmo modo como o são os peixes. Um grande número muerte, es el que permite una experiencia que quiebra la unicidad
escapa ao meu método de pescar e as que são colecionadas en la que se asienta el sujeto moderno. Este se desdobla en dos
formam um conjunto enigmático desconexo, mas personalidades, un yo-crítico y un yo-miedoso, que componen una
aparentemente inteiro. No entanto, as emoções perdidas,
“criatura extraña” (CARVALHO, 2011, p. 42) la cual, como ilustran
se fossem pescadas, não podiam deixar de alterar o aspecto
los dibujos que acompañan el texto, se descompone mental y
do conjunto. E quem sabe o número de emoções perdidas...
ou mesmo a capacidade emotiva máxima. A passagem dos corporalmente. El relato se detiene en la descripción de un cuerpo
peixes de um lado para o outro pode figurar o fluxo dos que se percibe como desnudo, de color amarillo y marrón, con una
acontecimentos e o meu método de pescar indica a mano en la boca y otra en la pierna, mirando hacia arriba con ojos
deficiência da minha percepção, de maneira que me é desorbitados. Frente a esta imagen del terror, la parte crítica
absolutamente impossível dizer com exatidão o que foi plantea un entendimiento desde el goce que impide el control
passado como também me é impossível dizer o que é consciente sobre la realidad. Los efectos de la multitud le abren al
exatidão. (2001, p. 32) sujeto un mundo de sensaciones guiados por el pánico que
En la línea de Montaigne, tal y como lo entiende Giorgio quiebran su posición de sujeto de lenguaje, su yo se ve escindido y
Agamben en Infancia e historia, Flávio de Carvalho afirma una la experiencia alcanza su aporía, su imposibilidad de comunicar y
experiencia ajena a la exactitud y a la certeza. Y hace de esa falta decir.
de cálculo y acierto un método que conjuga observación, aventura
y psicoanálisis; las emociones y los hechos están sujetos a la “Emprendi imediatamente uma série de flirts”
censura o aprobación de la psiquis en el momento de la escritura. Inmerso en el cortejo, Flávio de Carvalho combina la
Pero si la aventura, que presupone lo extraordinario y lo exótico provocación con la seducción hacia la congregación de las “Hijas
en contraposición a lo común y lo familiar (AGAMBEN, 2011, p. 34), de María” para mostrar el mecanismo sensual que opera entre las
configura el camino para hacer una experiencia en una sociedad masas y aquel que ocupa el lugar de jefe invisible:
polarizada por ideales de sujetos plenos (diseñados desde la Eu queria realmente ver se todas se manifestavam de uma
maneira conquistada e submissa. Inicie imediatamente um
Iglesia, el Ejército, el nacionalismo y la militancia), el gesto como
vigoroso vamping com toda a massa branca, a princípio
modo de acción opera un desvío sobre el camino de la aventura
dando predileção a uma ou a outra e, aos poucos, abolindo
porque borra la finalidad: la conducta se vuelve puro movimiento a predileção e me dedicando altruistamente a todas. O meu
sin dirección a un fin. Lo que comunica un gesto es, en palabras de sucesso não foi completo, mas de todas aquelas que
cederam à minha arrogância, vamos dizer uns 70% do total
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presente, uma meia dúzia parecia não se preocupar com a Lo interesante de la utilización de la mujer vamp como
prisão religiosa, me encarando resolutamente submissas. autorreferencia a su modo de acción radica en que se le opone al
Outras eram submissas timidamente. Via-se que guardavam imaginario decimonónico que definió a las masas en términos
uma certa recordação grata do outro delator, o Cristo. irracionales, sensuales y veleidosos como mujeres apasionadas,
Era evidente que o meu mundanismo atraía pelo seu caráter otra configuración de género que sostiene la necesidad de la
audacioso, heróico – as filhas de Maria cedendo destrucción como forma de vida. En efecto, destruir implica en el
sorrateiramente, se mostravam unicamente mulheres. análisis de la experiencia atacar la propiedad y la sumisión al
(2001, p. 20). mundo de los objetos como fetiches donde el sujeto se refugia
Teniendo como base Psicología de las masas y análisis del para sobrellevar su sentimiento de inseguridad e inferioridad. Por
yo de Freud, el segundo apartado de Experiência n°2 se detiene en eso, el regreso a Cristo de los participantes de la procesión se da a
el análisis del sentimiento de igualdad que las masas establecen, través del contacto con los accesorios-fetiche (el pañuelo, el
no entre ellas como miembros de un alma colectiva, sino entre rosario, la estampita, el crucifijo, el libro de oraciones, etc.) y del
cada individuo y el jefe conductor, en este caso, Cristo (pero que canto, que salva a Carvalho de la agresión física que se tornaba
puede homologarse, según Carvalho, a la Patria en la ideología inminente.
nacionalista). Dios y la Patria como emblemas totémicos se Los objetos ocupan un lugar privilegiado dentro de la
moldean a imagen del sujeto que se postra ante una idea que él reflexión que se lleva a cabo en la segunda parte del libro.
La dependencia del sujeto frente al mundo objetivo
mismo creó y por ende termina adorándose a sí mismo en una
obsesiona a Flávio de Carvalho, ya que lee esa relación en
exhibición de narcisismo, sobrevivencia de los lazos patriarcales de
conexión con la conciencia y la rutina, que aprisionan y
la familia primitiva que se debate entre la adoración y el odio o convierten al hombre en una suerte de momia: O amor [por
deseo de matar. el objeto] torna-se uma conseqüência da necessidade de se
Para problematizar la construcción de estos lazos afectivos colocar em segurança para o prazer narcisista de exaltar a
entre la masa de creyentes, Flávio de Carvalho acude a la figura personalidade e a consciência cresce à medida que o amor
cinematográfica del vamp, es decir, a la mujer seductora y aumenta pelas coisas do mundo, enlaçando o homem em
perversa, que juega y no goza, y que con su frialdad encandila y forma de múmia, fazendo-o escravo de uma ética como
esclaviza al espectador (CRUZADO RODRÍGUEZ, 2004, p. 37). Bajo meio de defesa para manter-se vivo e adquirir mundanismo.
este rol, su intromisión en la procesión suspende el goce narcisista. (2001, p. 108)
La audacia de su gesto lo identifica y lo pone en rivalidad con El ataque a la propiedad privada, uno de los pilares de la
Cristo, hasta el momento en que la imitación ya no puede llevarse antropofagia y tema central de “La ciudad del hombre desnudo”,
a cabo y explota así la violencia a través del grito de linchamiento. se reactualiza en este texto a través de la reflexión sobre el fetiche
como conservación de la forma, en tanto permite que no se
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desmantele el ordenamiento social, se conserve el pasado y se relación a su mundo. Mientras que el fetiche transporta el deseo
mantenga una tradición. La audacia y el peligro, como vimos, se buscando alcanzar la meta totémica, el tótem es la fantasía del
posicionan en clara oposición a esta concepción histórico-política individuo, producto del contacto con el objeto-fetiche y causa de
en la que se basa el mundo occidental. ese contacto, una forma de entusiasmo del Yo, sumido en general
Hacia el final del libro queda claro que la búsqueda de a la rutina y a la teoría. Esta trilogía muestra la tendencia a la
fetiches no se restringe tan sólo al individuo, sino que también nivelación como una meta imposible de alcanzar, ya que trabaja
involucra a la Nación que utiliza a la masa del pueblo como punto con la falta y la desesperación de los oprimidos. La denuncia se
de apoyo para alcanzar algún ideal que se presente como meta en deposita, así, en las religiones que brindan una ilusión de
ese momento, especialmente si el país se enfrenta a una situación omnipotencia, de cercanía con dios, de ser elegido y de seguridad.
de crisis. Así, se da nacimiento, según Carvalho, a una orla El deseo de dominio y de exaltación del Yo que también padecen
nacionalista afeminada que crea tratados de paz, tratados los nacionalismos con su entusiasmo por la identidad nacional y
comerciales, acuerdos y alianzas, “fetiches-apoyos” que ayudan a sus símbolos (los uniformes pomposos, las proclamaciones
atiborrar la sensación de inseguridad y a “construir uma imagem inflamadas, los desfiles masivos) que muestra una virilidad
fantástica de um totem-patria ornamentado de uma ficção artificial que oculta sus puntos débiles:
inacessível” (2001, p. 100). En oposición a la audacia, la astucia es As religiões são pontos de refúgio muito procurados pelo
el parámetro que trae el conformismo y la aceptación de una vida homem para esconder a sua inferioridade; a pátria, como
acorde a lo convencional y a una rutina oficial que impone las idéia derivada do patriarca, tem sempre ajuntando grandes
normas del modus vivendi en sociedad. Por el contrario, leemos: grupos de homens; ultimamente porém o seu
O abandono da rotina deveria diminuir consideravelmente encantamento anda em perigo. A introdução de novas
a astúcia da vida, a necessidade de engodo, e formas econômicas no cenário mundial, como o advento da
conseqüentemente de uma maneira geral o sentimento de máquina e o interesse demonstrado pela palavra eficiência,
insegurança. O sentimento de insegurança existe por parecem querer criar uma nova filosofia de vida, um novo
comparação com a maioria que fornece o padrão e o modo mundo ideológico que orientará os laços afetivos do
da rotina. Sem uma maioria e uma rotina o mundo objetivo homem para um internacionalismo mais intenso,
torna-se menos “próximo” em relação às associações do já aumentando a visão de cada um. (2001, p. 145-146)
vivido; o sentimento de insegurança diminui e o homem En un panorama poco alentador para las utopías, Flávio de
seria em parte, libertado da sua curiosa prisão, Carvalho afirma una nueva creencia, la de la eficiencia, que tiene
aparentemente o seu totem tornar-se-ia menos acessível. su dios en la máquina. Deslumbrado por las nuevas tecnologías
(2001, p. 107)
pero también por los postulados arquitectónicos de Le Corbusier,
Sujeto, fetiche y tótem forman, para Flávio de Carvalho, la la conclusión de Experiência n°2 apuesta por un futuro de felicidad
trilogía de la humanidad, o el modo de funcionar del sujeto en en el que se diseñe un nuevo sujeto sin religión, sin propiedad y sin
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patriarcado, gobernado por la lógica de la pureza y la precisión. La Del gesto y el vamp se pasa al baile, a las máscaras de
propuesta final de Carvalho contrasta con ese clima anárquico que aluminio, a los instrumentos africanos y a la iluminación para, igual
se fue tejiendo a lo largo del libro y que tenía al cine como que en el libro de 1931, proclamar la muerte de Dios. En Dialética
mecanismo de composición estética. No obstante, la alusión al da moda, Carvalho cuenta cómo las máscaras de aluminio de los
internacionalismo como frente de batalla al nacionalismo y al actores en su mayoría negros entorpecían la dicción y
catolicismo muestra el acercamiento al surrealismo que se da a desarticulaban las frases, mezclaban palabras y gruñidos, en un
través del poeta Benjamin Peret, quien junto con su mujer Elsie clima ritualista que abría el camino para que hombres y mujeres a
Houston llega a Brasil en 1929, y será expulsado del país dos años controlen su propio destino. Así, sin abandonar el trabajo con las
después por Getúlio Vargas. En consonancia con André Breton, el emociones, lo primitivo se aúna con la técnica para explorar ese
ingeniero paulista sostiene la importancia de una visión ampliada momento imposible anterior a la individuación donde se juega una
para el mundo subjetivo, que descoloque la percepción común de experiencia.
los objetos y avive la actividad de la imaginación. De este modo, su Ubicándose por fuera de la dicotomía entre modernidad y
apuesta es por combinar lo tecnológico con las pulsiones secularización, Flávio de Carvalho propone un sentimiento
irracionales para que, juntos y en tensión, enfrenten los religioso más vinculado con lo mágico que ponga en contacto al
lineamientos del proceso civilizatorio que se impuso desde la sujeto con lo alucinatorio y lo inconsciente como modos de
Colonia en América Latina. liberación y religue con el mundo.

Conclusión Referencias
Flávio de Carvalho le escapa a las clasificaciones. Formado AGAMBEN, Giorgio. Medios sin fin. Notas sobre la política.
en ingeniería y en arquitectura, también desarrolla una carrera Valencia, Pre-textos, 2010.
como artista plástico y se anima a la dramaturgia con su proyecto
“Teatro de la Experiencia”, que en 1933 le trae nuevamente ______. Infancia e historia. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011.
problemas con la policía de San Pablo. Si ya en la Experiência n°2
el cuerpo tenía un papel central ligado a una actitud que anticipa ASSIS BARBOSA, Francisco de. Intelectuais na encruzilhada.
las performances de los años sesenta, en tanto lleva a cabo una Correspondência de Alceu Amoroso Lima e Antônio de Alcântara
expresión estética (y ética) sobre las normas y convenciones que Machado (1927-1933). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
se imponen en el espacio público, en O Bailado do Deus Morto, la Letras, 2001.
obra de teatro censurada dos años después, continúa las
reflexiones abiertas sobre lo corporal pero en relación con la danza
y los efectos escénicos.
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BENJAMIN, Walter. “Para una crítica de la violencia”. Para una MADERUELO, Javier. La idea de espacio. En la arquitectura y el arte
crítica de la violencia y otros ensayos. Iluminaciones IV, Madrid: contemporáneos. 1960-1989. Madrid: Akal, 2008.
Taurus, 1999.
OSORIO, Luiz Camillo. Flávio de Carvalho. São Paulo: Cosac Naify,
CARVALHO, Flávio de. A Cidade do Homem Nu. São Paulo: Museu 2009.
de Arte Moderna, 2010.
SEVCENKO, Nicolau. Pindorama revisitada: cultura e sociedade em
______. Experiência n°2. Realizada sobre uma procissão de Corpus- tempos de virada. São Paulo: Peirópolis, 2000.
Christi. Uma possivel teoría e uma experiencia. Rio de Janeiro: Nau
editora, 2001.

______. A origen animal de Deus e O bailado de Deus Morto. São


Paulo, Difusão, 1973.

CRUZADO RODRÍGUEZ, Ángeles. El mal tiene nombre de mujer: del


Olimpo a la meca del cine” In: En el espejo de la cultura: Mujeres e
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FREITAS, Nanci de. “Flávio de Carvalho e Oswald de Andrade:


actantes provocadores e atos performáticos”, en IV Reunião
Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, Belo
Horizonte, UFMG, 2007. [Consultado el 30/07/2014]. Disponible
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%20Nanci%20deFfreitas.pdf

FREUD, Sigmund. Tótem e tabú. Buenos Aires: Amorrortu, 2011.


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A POÉTICA DO DESLOCAMENTO, A POÉTICA DO ESPAÇO E A Partindo da leitura do livro Os Palácios Distantes (2002), de
POÉTICA DA RELAÇÃO EM OS PALACIOS DISTANTES, DE ABILIO Abilio Estévez2, me proponho a articular as ideias de Elena Palmero
ESTÉVEZ1 González (2010) no que diz respeito a uma poética do
Lays Gabrielle Neves Moreno deslocamento no âmbito da Literatura Hispano-americana, às de
UFRJ Gaston Bachelard (1993) no que concerne a sua poética do espaço,
juntamente com as discussões apresentadas por Glissant (1995),
É exatamente porque as lembranças das antigas moradas ao nos falar de uma poética da relação. Longe de querer esgotar
são revividas como devaneios que as moradas do passado os temas propostos por tais autores, objetivo tão somente
são imperecíveis dentro de nós. (BACHELARD, 1993; p.26.) evidenciar possíveis poéticas presentes na obra de Abilio Estévez.
O que importa, Victorio, é encontrar o palácio. O menino Apesar de Os Palácios Distantes não ser a obra ideal para abordar
separou-se do braço, se ergueu e abaixou a mão, tão as discussões contemporâneas de mobilidade cultural e
pequena, sentiu a força da coxa vigorosa do aviador. Que identidades em movimento, pois foi escrita em Cuba, já nos
palácio, Mouro? O homem sorriu, inclinou-se para o menino possibilita entrever marcas de uma subjetividade deslocada,
como se fosse lhe revelar o mais extraordinário dos concretizada em obras posteriores como Inventario secreto de La
segredos. Ai, garoto, isso sim é importante! Você não sabe Habana (2004), escrita em Barcelona. Busco, então, uma
que todos temos um palácio em algum lugar? Apertou o aproximação ao estudo do sistema narrativo de Abilio Estévez,
nariz sem deixar de sorrir. Sim, não me olhe com essa cara
tendo como plano de fundo as poéticas do deslocamento e da
de eu-não-entendo-nadinha-do que-você-diz, cada pessoa
relação, e aprofundando em especial a poética do espaço, por ser
nasce com um palácio destinado a si, para que viva nele e
para que nele se realizem seus caprichos, gostos, mais evidente na obra analisada em questão.
aspirações...Todos-todos? O homem passou a mão pela O protagonista do romance, Victorio, é um gay, solteiro,
testa suada, voltou a cuspir, voltou a limpar a boca. Sorria, beirando os cinquenta anos que acorda com a notícia de que o
via-se que se divertia. Agora tenho que continuar a fumigar antigo palácio onde ele tem um pequeno apartamento alugado
as bananas de Güira de Melena, disse num tom que tentava está prestes a ser demolido. Ele decide então abandonar o lugar,
dar à conversação por encerrada. (ESTÉVEZ, 2002. p. 21) deixando para trás também emprego e toda a vida que levava até
então e começa uma trajetória sem rumo pelas ruas e espaços

1
Esta comunicação faz parte do projeto de dissertação: Deslocamento e centro editorial do mundo hispânico, no qual o escritor tem conseguido
memória autobiográfica na obra de Abilio Estévez, orientada pela Profª Drª instaurar, com êxito, sua produção dos últimos doze anos. Com destaque para
Elena Palmero González (UFRJ), que se desenvolve com bolsa do CNPq. suas obras: El año del Calipso (2012), El bailarín ruso de Montecarlo (2010), El
2
Reconhecido dramaturgo, poeta e narrador, Abilio Roberto Estévez Pazo, em navegante dormido (2008) El Inventario Secreto de La Habana (2004), Los
nasceu em Cuba em 1954 e atualmente vive na cidade de Barcelona, importante palacios distantes (2002) e Tuyo es el reino (1998).
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abandonados de Havana, perdendo-se nas reminiscências de sua ancião que parece um menino se equilibra sobre as
infância, nas recordações dos tempos de ouro daquela cidade madeiras. (ESTÉVEZ, 2002, p.24)
outrora esplendorosa, de palácios luxuosos e pessoas ilustres. À O velho palhaço é Don Fuco, que vive em um teatro
medida que vai caminhando, a degradada realidade a sua volta vai abandonado, em outros tempos lugar de encanto da beleza
cedendo lugar aos renovados olhares recriados principalmente por havanesa. Dedica-se a fazer rir, escolhendo os espaços de maior
meio de sua imaginação. Esta, muito mais que a memória do tristeza e abandono (velórios, asilos, hospitais e cemitérios) para
personagem, será o fio norteador de toda a trama da história e resgatar as pessoas de seu abatimento e apatia. Posteriormente os
imaginar, muito além da recordação, funciona como antídoto de dois se encontrarão, mas antes Victorio conhece Salma, uma
um presente onde tudo parece se desmoronar. jovem prostituta com quem inicia uma amizade. A partir de então,
A trajetória errante de Victorio confere ao narrador os dois amigos prosseguem juntos sem destino. Salma ao poucos
onisciente a dimensão que somente a distância, o afastamento, nos revela sua triste história, sua condição de total dependência
podem proporcionar. É somente no deslocamento que o de seu antigo namorado, o Negro Piedad, violento proxeneta que
entendimento se faz, a visão deixa de ser turva: [...] “quando você a prostitui.
está no céu se dá conta de que todos os lugares são um só lugar.” Num segundo momento, Victorio cruza sua jornada com o
(ESTÉVEZ, 2002, p. 21) Esse foi o grande legado deixado pelo velho palhaço e pouco depois se encontra novamente com Salma,
Mouro aviador, personagem que Victorio conhece na infância e e os dois passam a viver no teatro com Don Fuco, que os treina na
que lhe revela que todos possuímos um palácio privado, um arte dos bufões. Juntos, os três se dedicam a realizar atuações
espaço utópico próprio que, independente de onde estejamos, improvisadas em diversos lugares da Havana.
sempre será um refúgio, e nós leitores nos damos conta que nem De grande potência poética são também os espaços
sempre o espaço físico é sinônimo de estabilidade, de segurança, físicos a que rementem cada um dos personagens. Salma nos traz
e que ampliar o horizonte de percepção possibilita enxergar o que a imagem da miséria das ruas, o abandono e a consequente fuga
habitualmente não se via. no sexo. Don Fuco nos apresenta um teatro abandonado que
Hoje vê uma coisa que nunca viu. Não se trata do desenho lemos como a falência do riso, e Victorio está no trânsito, na eterna
na parede. Ali, no alto, quase no nível dos terraços, um
viagem, no eterno devaneio. Nos revela espaços ocultos da sua
adolescente se equilibra sobre as madeiras. Percebe que é
subjetividade: espaços que nos orientam a uma leitura mais
o mesmo que vira sobre o teto da Flogar se olhando em um
espelho de mão. E desta vez se dá conta imediatamente que introspectiva, pouco visível a um leitor não familiarizado com o
não é um adolescente, de que se houvesse observado bem, contexto no qual a obra se insere e com o tipo de linguagem
como agora, teria sido capaz de notar que não é um menino, poética escolhido para narrar a história. Falamos aqui de um
mas sim um ancião pequeno, quase anão, e maquilado: um espaço imaginário/ fictício, resultado das memórias
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inventadas/ficcionalizadas do autor, o qual reconhecemos como o canto, propaga, por assim dizer uma imobilidade. Um
espaço do deslocamento. quarto imaginário se constrói ao redor do nosso corpo, que
O tratamento dos “espaços”, neste sentido, é acreditamos estar bem escondido quando nos refugiamos
significativo, constituindo elemento norteador da trama. O num canto. As sombras logo se tornam paredes, um móvel
é uma barreira, uma tapeçaria é um teto. (BACHELARD,
argumento central da obra é senão a criação, o desvelar de
1993, p. 146)
espaços adormecidos, espaços silenciados que se tornam visíveis à
medida que seus personagens vão ocupando-os, deslumbrando- A impossibilidade de resgatar um passado abre espaço para
os, numa espécie de viagem fictícia aos “Palácios distantes” que a imaginação e vemos transformar à nossa frente “sombras em
cada um leva dentro de si. A busca do palácio distante é uma das paredes, móvel em barreira, tapeçaria em teto” e tudo o quanto
maiores forças que possuímos para nos integrarmos com nossos for possível na nossa invenção. Nas narrativas de Victorio é preciso
próprios pensamentos, mas é necessário que estes sejam dotados imaginar, muito mais que ativar a memória, para reviver um
de poesia, pois só assim a solidão nos oferecerá mais que um passado, que o envolve numa camada protetora que de alguma
isolamento ou um refúgio, nossos devaneios serão meios de forma representa o espaço que estaria à salvo. Nesse jogo de
acessar nossa memória de maneira vívida por meio de uma poética subjetividades, assomam-se à narrativa múltiplas vozes,
do espaço. Porque o artista é aquele que aborda o imaginário do
Com este ideal, Victorio percorre as ruas desertas, evitando mundo, e que as ideologias do mundo, as previsões, os
encontrar a vigilância, e perambula nos lugares anônimos de uma castelos de areia começam a falhar, é preciso pois
começarmos a fazer emergir este imaginário. Neste
cidade em ruínas e conhece personagens que, como ele, existem
imaginário não se trata de sonhar o mundo, mas sim de
apenas nos espaços esquecidos, assim como as próprias ruínas
penetrá-lo... Isso significa que uma intenção poética pode
que, enquanto se deterioram no tempo, narram um passado. me permitir conceber que na minha relação com o outro,
Victorio enfim, em meio a decadência que o redeia, vai em busca com os outros, com todos os outros, a Totalidade-Mundo,
do seu palácio, mas só vê penumbra e esquecimento em sua volta. eu me transformo tocando-me com o outro, permanecendo
Como num sonho, Victorio tem a chance de revisitar seu passado, eu mesmo, sem renegar-me, sem diluir-me, é preciso toda
mas a memória é bloqueada pela escuridão. O abandono desses uma poética para conceber esses impossíveis
espaços sugere o clima dos cantos, como descrito abaixo: [...](GLISSANT, 1995, p.43-75).3
O canto é uma espécie de meia-caixa, metade paredes,
metade porta. [...] a consciência de estar em paz em seu

3
Tradução livre feita por Enilce Albergaria Rocha, Professora-Adjunta de Língua celui qui approche l’imaginaire du monde, et que lês idéologies du monde, les
e Literatura Francesas e dos Mestrado em Teoria da Literatura da UFJF. In: A prévisions, les plans sur la comete commencent à failir et qu’il faut commencer
noção de Relação em Édourard Glissant. Texto original: Parce que l’artiste est à lever cet imaginaire. Ce n’est plus là rever le monde, c’est y entrer [...] C’est-à-
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Também o espaço que ocupa a ruína na obra é de especial na relação que se estabelece entre múltiplos lugares de
protagonismo. Na narrativa somos levados pela mão a caminhar enunciação que a poética de Abilio Estévez é tecida
por ruas desertas, a vislumbrar construções abandonadas e a discursivamente.
conhecer a gente decadente de uma Cuba real e ao mesmo tempo
imaginária – em ruínas, e nos damos conta de um passado que Referências
ainda não terminou, mas que está assentado no presente, como BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins
os escombros das ruínas. Assim também a própria escolha dos Fontes, 1993.
personagens não é em vão: um velho gay solitário (Victorio), um
palhaço (Don Fuco) e uma prostituta (Salma)- figuras rechaçadas ESTÉVEZ, Abilio. Los palacios distantes. Barcelona. Tusquest, 2002.
ou esquecidas da sociedade cubana. Cito:
La Habana dejó poco a poco de tolerar a los mendigos: les FIGUEIREDO, Eurídice (org.) Conceitos em literatura e cultura.
negó la caridad de los portalones, la bendición de las brisas Niterói: EDUFF; Juiz de Fora: editora da UFJF, 2005.
y el resguardo a sus relentes bárbaros. Se ha llegado a
afirmar (se sabe cuánto de novelera tiene la imaginación GONZÁLEZ, E. P. González. Deslocamento/Desplaçamento. In:
popular) que el cambio comenzó a notarse el día en que La
Bernd; Zilá. (Org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos
Habana permitió que encerraran en un asilo al más famoso
americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010, v., p. 109-129.
de sus vagabundos, el Caballero de París. Aquel día infausto,
La Habana anocheció a las cuatro de la tarde, y el
adelantado crepúsculo asombró a los habaneros (ESTÉVEZ, ROCHA, Enilce Albergaria. A noção de Relação em Édourard
2002, p. 241). Glissant. In: <http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2009/12/A-
no%C3%A7%C3%A3o-de-Rela%C3%A7%C3%A3o1.pdf >Acesso
É justamente a ruina que permite ver a Havana textual de
em: 03 de setembro de 2014.
Estévez como duas cidades sobre postas. Habita-se a Havana banal
e cotidiana, com suas ruínas, sua sujeira e sua escassez, mas o
VALDÉS Armando. La escritura imaginaria de Abilio Estévez. In:
passante e leitor atentos permitem-se alcançar os palácios
Encuentro, N. 51/52, inverno/primavera, Madrid, 2009, p.123-132.
distantes que todos levamos em nós.
Estudar as poéticas que compõem o Sistema Narrativo de
Abilio Estévez, então, se faz cada vez mais urgente e pertinente. É
no deslocamento, nos espaços ocultos de nossas subjetividades e

dire qu’une intention poètique peut me permettre de concevoir que dans ma en m’èchangeant demeurant moi-même, san me renier, sans me diluer, et Il faut
relation à l’autre, aux autres, à tous les autres, à la totalitè-monde, jê me change toute une poétique pour concevoir ces impossible.
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A LITERATURA DO CARIBE HISPÂNICO NOS ESTADOS UNIDOS: observa-se o retorno do mesmo narrador em oito dos nove contos
OS CONTOS DE JUNOT DIAZ que compõem a obra. Nesse segundo livro de contos, publicado
Lívia Santos de Souza dezessete anos depois do primeiro, no entanto, não se observa
UFRJ mais a narração da experiência de migração em si, mas sim uma
recorrente preocupação em retratar o modo como vive esse
1. Introdução indivíduo que se vincula social e culturalmente tanto à República
O dominicano radicado nos Estados Unidos Junot Diaz é Dominicana quanto aos Estados Unidos. Trata-se de um texto mais
autor de uma obra tão concisa quanto marcante. Aos quarenta e maduro e mais centrado na experiência adulta, embora também
seis anos, seus livros, traduzidos para diversos idiomas, entre eles apresente contos que recuperem a adolescência do protagonista
o português, já receberam prêmios literários de prestigio narrador.
internacional como o Pulitzer. Para a presente comunicação, Dessa forma, a obra de Junot Diaz se apresenta como
elaborei como recorte a abordagem de seus dois livros de contos, objeto bastante produtivo para a análise da literatura vinculada
Afogado, de 1996 e É assim que você a perde, publicado no ano culturalmente ao Caribe hispânico escrita nos Estados Unidos. Seus
passado, embora minha pesquisa de doutorado inclua também o contos partem da simplicidade do cotidiano para retratar toda a
romance de 2007 A maravilhosa vida breve de Oscar Wao. complexidade da condição migrante, a frequente situação trânsito
Em Afogado, cujo título original é Drown, somos e as negociações culturais que a mudança de país exige.
apresentados ao universo ficcional de Díaz: suas obsessões,
temáticas e personagens recorrentes. No livro, a República 2. A literatura do Caribe hispânico nos Estados Unidos: os
Dominicana é vista pelos olhos de narradores infantis e a contos de Junot Diaz
experiência migrante é apresentada do ponto de vista do Embora seja apontada como um campo relativamente
adolescentes em formação. Praticamente todos os contos do livro recente dentro dos estudos literários de forma geral, a produção
envolvem de alguma forma personagens da mesma família, literária hispano-caribenha elaborada nos Estados Unidos tem
dominicanos que poderiam ser descritos como classe média baixa grande relevância, tanto para a historiografia literária que lida com
e que veem na migração uma oportunidade econômica. o conjunto das literaturas hispânicas produzidas nesse país, quanto
Igualmente, boa parte dos contos tem como narrador o filho mais para a que pensa a literatura latino-americana.
novo dessa família, Yunior. Entretanto, embora esse grupo partilhe uma série de
Afogado trata diretamente da experiência da migração, o pontos em comum que justificam o termo hispano-caribenho, não
choque com a nova realidade, o novo clima, a recém-adquirida se pode vê-lo de forma homogênea. Dessa forma, para refletir
condição migrante. Trata-se abertamente de um livro de formação. sobre suas características faz-se necessário pensar as próprias
Em É assim que você a perde, This is how you lose her, no original, condições de migração relativas aos países que integram o termo.
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Diferentes questões políticas, econômicas e sociais motivaram o Tanto Afogado, como É assim que você a perde tratam
surgimento e o crescimento das comunidades porto-riquenha, diretamente da questão das migrações transnacionais, nos termos
cubana e dominicana nos EUA. Enquanto a migração cubana é mais descritos por Abril Trigo (2003). Diferente do que ocorria até o
antiga e encontra com frequência justificativas políticas, os casos início do século XX, as migrações no mundo contemporâneo
de Porto Rico e República Dominicana estão mais vinculados a obedecem a trânsitos bastante menos lineares e definitivos. O
elementos econômicos, por exemplo. movimento, nesse contexto, se torna uma operação constante, e a
A migração dominicana, caso de especial interesse para o ideia de deslocamento assume outras nuances, fundamentais para
presente trabalho, é a mais recente das três mencionadas, já que tentar compreender esse fenômeno.
mesmo tendo seus primeiros episódios concomitantes ao caso Sobre esse conceito, afirma Palmero González que:
cubano é e a partir da década de 60 que o fluxo de dominicanos Au sens du vécu et de la pratique individuelle, le
para os EUA começa a se intensificar. Por essa razão, a literatura deplacement est une concept fondamental pour les études
dominicano-americana é a mais recente das hispano-caribenhas centrées sur l'imaginaire et la memoire culturel; au sens
produzidas nesse contexto diaspórico. Willian Luis (2006) afirma méthodologique; il devient un paradigme fondamental por
réfléchir aux processus culturels. C'est dire que le concept
que só a partir dos anos oitenta passa a de fato existir uma
recouvre un vaste champ de significations et de relations
literatura identificada como hispano-dominicana.
(2014, p. 147)1
Junot Diaz, cujo primeiro livro é publicado em 1996,
apresenta em sua escrita várias das características apontadas por Dessa forma, incorporar a noção de deslocamento é um
Willian Luis (2006) como marcantes da literatura hispano- movimento extremamente necessário para refletir sobre a
caribenha elaborada por autores que cresceram no ambiente norte literatura que lida diretamente com os processos culturais
americano: o emprego da língua adotada, a preocupação com a envolvidos na migração.
descrição do cotidiano do migrante nas grandes metrópoles Nesse sentido, foram selecionadas três das várias possíveis
americanas, ao mesmo tempo em que retoma temas caros para a nuances que a ideia de deslocamento pode assumir para explorar
produção literária dominicana elaborada na própria república os contos de Junot Diaz. A primeira delas é talvez a mais tradicional,
dominicana, como o Trujillato e a invasão americana de 1965. Em a ideia de deslocamento geográfico, o texto literário, no entanto,
seus contos, no entanto, aparecem com singular força os dilemas consegue revelar dimensões insuspeitas desse fenômeno. Outra
da condição migrante. variante é o deslocamento de olhar, operado dentro do próprio
texto literário. Nesse contexto, parece especialmente interessante

1
Cito tradução própria, elaborada apenas para fins do presente trabalho: “No plano metodológico, trata-se de um paradigma fundamental para refletir sobre
plano da experiência e das práticas pessoais, o delocamento é um conceito processos culturais. Isso significa que o conceito cobre um vasto campo de
fundamental para estudos centrados nos imaginários e memórias culturais. No significados e relações.”
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como o deslocamento se torna elemento da própria poética de que já está no outro país, seja no discurso do menino que dá nome
criação de Junot Diaz. Por último, será explorada a ideia de ao conto, Ysrael, possui uma deformação no rosto provocada por
deslocamento linguístico, para refletir sobre a questão da adoção um acidente na primeira infância e que nutre esperanças de
da língua do país receptor como língua literária e as implicações tratamento nesse país.
dessa opção para o texto literário. Outras das narrativas desse livro inicial narram
precisamente a viagem para o país receptor e os primeiros
2.1 Deslocamento geográfico momentos nesse novo contexto, é o caso de Fiesta 1980, em que
Embora o emprego de deslocamento como termo utilizado se relata a festa organizada pela família que protagoniza boa parte
em referencia ao movimento geográfico seja o mais tradicional, das situações narradas no livro para receber alguns parentes
quando utilizada em relação às literaturas produzidas em também recém-chegados da República Dominicana. Nesse evento,
contextos diaspóricos na contemporaneidade essa ideia pode se somos apresentados ao cotidiano do grupo familiar em questão no
tornar bastante mais complexa. Dessa forma, embora esteja em país receptor. Ganham destaque na narrativa os processos de
jogo um movimento que possui um ponto de partida e um ponto adaptação de rituais comuns no país de origem, a mãe,
de chegada aparentemente bem definidos, os trânsitos que personagem nunca nomeada no conto, por exemplo, tenta resolver
caracterizam as migrações transnacionais são mais numerosos e o problema do filho que sempre vomita quando anda no carro
acabam por abarcar outras instâncias. Na obra de Junot Diaz, por novo da família oferecendo a ele balas de menta, e jogando
exemplo, observa-se nos livros de contos a presença de textos que algumas pela janela do automóvel como oferenda para Eshú.
se localizam tanto no país de origem, quanto na nação receptora. Se em Afogado predomina o trânsito no sentido República
Em É assim que você a perde, a situação de migração parece Dominicana/EUA, em É assim que você a perde o movimento mais
bastante semelhante ao que Sonia e Bernadette Porto (2005) característico se dá na direção oposta. Em O sol, a lua e as estrelas,
descrevem como migração circular, já que são numerosas as idas e conto que abre esse segundo livro, vemos um Yunior já adulto
vindas entre os dois países. tentando lidar com uma profunda crise de relacionamento com sua
Além disso, mesmo nos textos em que a ação narrativa se namorada também de origem dominicana. A solução encontrada
dá exclusivamente em um dos locais, o espaço em que não se está nesse sentido é uma viagem de casal ao país em que ambos
tem presença bastante marcante, evidenciando toda a nasceram. Essa viagem, no entanto, não deve ser compreendida
complexidade do deslocamento geográfico no texto literário. Em como uma tentativa essencialista de retorno às origens, não há
Ysrael, conto que abre Afogado, toda a ação narrativa se passa na espaço para esse tipo de idealização na obra de Diaz. Ambos os
República Dominicana. No entanto, o imaginário norte americano personagens mantém estreitos laços emocionais e culturais com o
surge repetidas vezes, seja nas conversas entre os dois irmãos que país de origem, mas não deixam ser também estrangeiros na
protagonizam a narrativa, que frequentemente mencionam o pai, República Dominicana, visitam locais turísticos, se hospedam em
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grandes hotéis destinados a turistas internacionais, se perdem em ambos os livros que tem como ponto comum o fato de que fogem
Santo Domingo. do núcleo familiar principal anteriormente descrito. Em uma
Em outro texto do mesmo livro no qual também se observa entrevista concedida a Hilton Als em 2013, Diaz afirma que seus
o mesmo movimento, Guia amoroso do traidor, é o melhor amigo textos pertencem a um único universo ficcional. Esses textos
de Yunior, Elvis, outro dominicano, quem motiva o retorno à ilha. parecem representar, portanto, um deslocamento dentro desse
Elvis, embora casado nos EUA, acredita que possui um filho em seu próprio universo, cuja principal função parece ser a de explorar
país de origem, e planeja uma viagem para a qual Yunior é outros matizes da condição migrante. Em Afogado, contos como
arrastado. O resultado do retorno aqui não é menos desastroso, Aurora e Sem cara são representativos nesse sentido. Já Em É
Elvis leva malas abarrotadas de presentes para a criança, Elvis Jr, assim que você a perde, Otravida, otravez, é o único texto não
que seria o fruto de um breve romance que ele tivera em uma narrado por Yunior e que também não envolve nenhum fato
viagem anterior a Santo Domingo, paga bebidas aos vizinhos e relacionado a sua vida.
parentes da mãe da criança, empresta dinheiro à família dela, é Aurora conta uma história de amor fracassado. A
recebido como rei na favela em que vivem. Ironicamente, no exato personagem que dá título ao livro é uma usuária de drogas pesadas
momento em que se imagina retornando às origens, Elvis é tratado que mantém uma relação intensa, porém conflituosa com um
como gringo. traficante menor em um bairro latino, o narrador do conto. O conto
Obrigado por Yunior a fazer um teste de DNA, o amigo reflete o cotidiano de indivíduos que se encontram nas margens da
acaba por descobrir o que mais temia, não é o pai da criança, margem, sua condição periférica no país receptor é
evidenciando-se assim a impossibilidade do retorno, da profundamente acentuada pelas atividades marginais a que estão
reconstrução desse vínculo profundamente alterado pela migração. vinculados.
Observa-se, dessa forma, que tanto Afogado quanto É Já Sem cara narra o retorno do personagem Ysrael, o que
assim que você a perde a perde apresentam narrativas marcadas possui o rosto deformado, já adulto, e demonstra a manutenção
pelo entre-lugar que caracteriza a condição migrante. Um espaço é de suas esperanças em um tratamento estrangeiro como solução
inseparável do outro, quando na República Dominicana, os EUA para sua condição. Ysrael é perseguido e ameaçado com a
estão sempre presentes de alguma forma, e quando no país possibilidade de abuso de diversos tipos. De alguma forma, o
receptor a terra de origem também é um elemento marcante. personagem parece uma representação alegórica do próprio
migrante, um indivíduo sem rosto, que enxerga na viagem a
2.2. Deslocamento do olhar solução para seus problemas. Portanto, embora escapem do arco
Para pensar as múltiplas formas através das quais o principal de personagens de Junot Diaz, essas tramas contribuem
deslocamento se constrói na obra de Junot Diaz, torna-se para a criação de um panorama mais amplo da experiência
fundamental refletir sobre algumas narrativas existentes em diaspórica.
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Mas é Otravida, Otravez, o quarto conto de É assim que seu país de origem e com a própria variante do imigrante, em
você a perde, que representa um ponto fundamental nesse diversos níveis.
deslocamento do olhar, interno ao próprio universo ficcional. A A presença constante de expressões hispânicas ao longo
trama é narrada por Yasmin, uma jovem imigrante que se relaciona dos contos, por exemplo, é marcante. Dos dez contos de Afogado,
com um também imigrante que deixou família e filhos na República metade tem títulos em espanhol, se considerados também os que
Dominicana. É a única das narrativas de Diaz que apresenta voz são formados a partir de nomes próprios hispânicos. Nomes
narrativa feminina, e é sintomático que seja essa a mulher referentes a relações familiares como mama, papa, tía, são
escolhida para falar, a outra, o oposto da mãe. mantidos na língua do país de origem, assim como palavrões e
Em Otravida, otravez temos acesso ao universo do sujeito expressões tradicionalmente vistas como baixas, xingamentos,
diaspórico da perspectiva feminina. Yasmin narra sua experiência ofensas, termos preconceituosos.
como funcionária da lavanderia de um hospital recorrendo às Também se mantém em espanhol boa parte do vocabulário
histórias de outras mulheres em situação semelhante, como suas referente ao sexual, ao universo do machismo, nesse contexto,
colegas de trabalho e as companheiras da moradia compartilhada. para mencionar um exemplo bastante significativo, namorada e
Entra em cena também seu relacionamento com esse homem que amantes são representadas de maneira completamente distinta,
ela sabe que possui outra família, e sua relação com essa família em muitos casos as segundas sequer tem nome, são mencionadas
que mesmo distante se faz presente tanto pela memória quanto apenas como súcias.
pelas cartas que envia. Nessa narrativa tão delicada a figura da A presença de termos em espanhol na obra de Junot Diaz
amante, tão menosprezada nas narrativas de voz masculina de Diaz, não é casual nem mero efeito de cor local. Se essa fosse a questão
é finalmente humanizada, incorporada ela também ao retrato da seria mais simples que a obra fosse escrita em espanhol, língua que
diáspora dominicana elaborado pelo autor. o autor também domina. A opção por esses termos é consciente e
revela um traço estilístico da obra, um elemento de
2.3. Deslocamento linguístico verossimilhança, também já que muitos de seus personagens,
Outro tipo bastante significativo de deslocamento nos especialmente os mais jovens revelam que não falam a língua dos
contos de Junot Diaz, e que não poderia deixar de ser mencionado, pais para além desses casos em específico. A opção pelo inglês
é o que se dá em torno da questão linguística. Como afirma Willian também não se explica apenas em termos mercadológicos,
Luis (2006), existe uma tendência no caso dos escritores hispano- embora textos sobre experiências diaspóricas tendam a ser melhor
caribenhos oriundos de levas de migração mais recentes a adotar incorporados no campo literário do país de origem quando adotam
o idioma do país receptor como língua literária. No entanto, sua língua, como aponta Jesús Barquet (2011), mas parece
embora a obra de Diaz seja completamente elaborada em inglês ancorada na experiência de autores nessa faixa etária, que
observa-se que ela apresenta relações intensas com o espanhol de realizaram boa parte de sua escolarização nos Estados Unidos.
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Em Afogado a questão linguística como tema surge desde a A presença dessa cronotopia justifica a relevância do
epígrafe, o poema do cubano-americano Gustavo Pérez Firmat, trabalho com o conceito de deslocamento, abordado em uma
Dedication no qual se afirma I perspectiva mais ampla do que a da mera mobilidade geográfica.
don't belong to English /though I belong nowhere elese/if not here/ Nesse sentido, a reflexão sobre a complexa mobilidade que
in English2. Os versos parecem traduzir com bastante precisão essa caracteriza a experiência migrante pode ser extremamente
situação ambígua da localização linguística e suas implicações produtiva para compreender não só a literatura produzida em
identitárias. Outro elemento significativo sobre esse tema contextos diaspóricos, mas também o próprio mundo
presente nesse livro é seu glossário, incluído ao final do volume em contemporâneo, como afirma Appadurai (2001) em Modernidade
sua primeira edição. Em entrevista, Junot Diaz afirmou que sempre Desbordada.
foi contra a inclusão do apêndice, no entanto, apenas após a boa
recepção de público e de crítica que o livro recebeu foi possível Referências
retirá-lo. APPADURAI, Arjun. La modernidad desbordada. Dimensiones
culturales de la globalización. Buenos Aires: Fondo de Cultura
3. Considerações finais Económica, 2001.
Pode-se observar, dessa forma, que os contos de Junot Diaz
se apresentam como relevantes exemplares da literatura hispano- BARQUET, Jesús J. Reflexiones sobre la literatura hispana em los
caribenha produzida nos Estados Unidos hoje. Seja pelas opções Estados Unidos. In: Anales del Coloquio Internacional Identidades
temáticas, pelas estratégias narrativas adotadas ou pelo idioma culturales y presencia latina em los Estados Unidos. Casa de las
empregado, é fato que essa produção literária é marcada Américas: Habana, 2011. Disponível em:
profundamente pelos espaços entre os quais transita, e que esse http://laventana.casa.cult.cu/modules.php?name=News&file=pri
movimento pode ser entendido como traço fundamental da nt&sid=6340
poética do autor.
Tais textos apresentam, dessa forma, o que Palmero BERND, Zilá & CAS-GIRALDI, Norah Dei (dir.). Glossaire des
González (2012, p. 67) descreve como cronotopia imaginária, já mobilités culturelles. Bruxelles: Peter Lang, 2014.
que entrelaçam “tempos e espaços múltiplos, ambíguos [...] onde
se interceptam a terra matricial e a terra escolhida; a memória e o DÍAZ, Junot. Los boys. Barcelona: Mondadori, 1996.
esquecimento; o passado e o presente”.
______ Drown. New York: Riverhead, 1997.

2
Cito a tradução conforme aparece na edição brasileira: O fato de eu/estar assunto:/como explicar a você que eu/não pertenço ao inglês/embora não
escrevendo pra você/em inglês/já deturpa o qu eu/queria lhe dizer./Meu pertença a nenhum outro lugar
P á g i n a | 555

______ The brief and wondrous life of Oscar Wao. New York: TRIGO, Abril. Memorias migrantes. Testimonios y ensayos sobre la
Riverhead Books, 2007. diáspora uruguaya.
Rosário: Beatriz Viterbo, 2003.
______ La maravillosa vida breve de Óscar Wao. Barcelona:
Mondadori, 2008.

______ This is How you lose her. New York: Riverhead, 2012.

______ Así es como la pierdes. Barcelona: Mondadori, 2013.

LUIS, William. “Literatura Latino-Americana (Hispano-Caribeña)


escrita en los Estados Unidos.” in ECHEVARRÍA, Roberto González
& PUPO-WALKER, Enrique (orgs.) Historia de la litera tura
hispanoamericana II, El siglo XX . Madrid: Gredos, 2006, 527-56.

PALMERO, Elena. Literaturas hispanas em deslocamento: cultura


tranlocal e história da literatura. In: MONTEZ, Luiz. Viagens e
deslocamentos: Questões de identidade e representação em
textos, documentos e coleções. Rio de Janeiro: Móbile Editorial,
2012.

______ Dislocation/déplacement. In: BERND, Zilá & CAS-GIRALDI,


Norah Dei (dir.). Glossaire des mobilités culturelles. Bruxelles:
Peter Lang, 2014.

PORTO, Maria Bernadette & TORRES, Sonia. Literaturas migrantes.


In: FIGUEIREDO, Eurídice (org). Conceitos em literatura e cultura.
Niterói: EDUFF; Juiz de Fora: editora da UFJF, pp. 225-260, 2005.
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Leonardo, Yerma, Adela: conflitos irreconciliáveis no teatro de Sodoma… Sí, ya sé que el título es grave y comprometedor,
García Lorca pero sigo mi ruta. ¿Audacia? Puede ser, pero para hacer el
Luciana Montemezzo pastiche quedan otros muchos. Yo soy un poeta y no he de
UFSM apartarme de la misión que he emprendido.
Tendo em vista a morte precoce do autor (apenas um mês
“Escribo cuando me place. No soy de los autores al uso depois de aprontar La Casa de Bernarda Alba – peça que nunca viu
que siguen la teoría de una obrita todos los años.” encenada e que apenas leu para seus amigos), a crítica lorquiana
(GARCIA LORCA, 1972, p. 1811) considera a existência da trilogia que, por um lado, discute a
Espanha rural da década de 1930 e, por outro, aborda temas
Introdução universais e transcendentes.
Nas peças Bodas de Sangue (1932), Yerma (1934) e A Casa Por meio de personagens emblemáticos como Leonardo –
de Bernarda Alba (1936), que compõem a chamada “Trilogia que, de certa maneira, é responsável por desencadear a tragédia
Dramática da Terra Espanhola”, o poeta e dramaturgo espanhol em Bodas de Sangue –, Yerma – a esposa fiel e ansiosa pela
Federico García Lorca (1898-1936) problematiza o desejo de chegada de filhos, presa a um casamento estéril – e Adela – a filha
liberdade individual em conflito com os interesses da coletividade. mais nova de Bernarda Alba, que não se conforma com a
O objetivo de compor uma trilogia havia sido anunciado em 1933, imposição de um luto de oito anos – estes conflitos são abordados
em entrevista a José S. Serna: e trabalhados de maneira singular: não somente porque tratam de
[...] Bodas de Sangre es la parte primera de una trilogía temas profundamente humanos, mas também porque elaboram
dramática de la tierra española. Estoy, precisamente estos ferrenhas críticas à sociedade espanhola, presa a costumes e
días, trabajando en la segunda, sin título aún, que he de religiosidade anacrônicos em relação aos demais países europeus
entregar a la Xirgu. ¿Tema? La mujer estéril. La tercera está
no período.
madurando ahora dentro de mi corazón. Se titulará La
Neste sentido, tais personagens podem ser entendidas
destrucción de Sodoma. (GARCÍA LORCA, 1972, p. 1724)
como representativas de um país que, até hoje, caracteriza-se por
O projeto de Lorca não foi completamente cumprido, uma polarizações político-ideológicas que o tornam paradoxal por
vez que La destrucción de Sodoma nunca foi publicada. Contudo, excelência. Não fosse assim, talvez o país não necessitasse, ainda
apareceu, em 1936, La Casa de Bernarda Alba, que mantém hoje, da figura de um monarca, para mediar os conflitos existentes
estreita relação temática e simbólica com Bodas de Sangue e desde sua constituição como nação.
Yerma. Ainda sobre La destrucción de Sodoma, GARCÍA LORCA
(1972, p. 1768) declarou, em 1935, depois da estreia de Yerma:
Ahora a terminar la trilogía que empezó con Bodas de
Sangre, sigue con Yerma e acabará con La destrucción de
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Nomes como predestinação Seu significado, “excitar o avivar una pasión del ánimo, una pugna,
Os leitores do teatro de García Lorca, via de regra, sabem una disputa” (DRAE) também estaria de acordo com a
que os nomes de suas personagens têm muito a dizer sobre suas personalidade inflamada da personagem. Tal qual um centauro,
personalidades e, não raro, chegam ao ponto de justificar seus atos Leonardo anda a cavalo sem se preocupar com o fato de que as
e escolhas. Estes são os casos de Leonardo, Yerma e Adela, longas e aceleradas corridas possam matar o animal:
personagens com alto grau de protagonismo que, de certa LEONARDO
maneira, têm seus destinos traçados por seus nomes. Eu vim a cavalo. [...]
CRIADA
Leonardo Vai matar o animal correndo desse jeito.
LEONARDO
Rechaçado pela família da Noiva devido à sua condição
Se morrer, morreu! (Pausa.) (GARCÍA LORCA In:
financeira inferior, Leonardo é o único que tem nome próprio.
MONTEMEZZO, 2008, p. 159)
Além disso, seu sobrenome – Félix – é o mesmo dos assassinos do
pai e do irmão do Noivo. Diferente das demais personagens, O cavalo, no universo simbolizado por García Lorca, está
nomeadas por seus papeis sociais – Pai, Mãe, Noivo, Noiva, Criada, relacionado aos impulsos vitais mais elementares, à pulsão sexual
Esposa de Leonardo, Sogra de Leonardo – esta personagem faz e à resposta negativa à repressão. É a cavalo que Leonardo vai
suas escolhas baseada em seus desejos individuais – aos quais sorrateiramente, de madrugada, até a janela da Noiva, e é com ele
García Lorca denominava inclinación. De acordo com GONZÁLEZ que chega ao casamento, antes dos demais convidados – que vêm
(2013, p. 58) pela estrada. Também é com ele que escapa, levando a Noiva
Leonardo é, simbolicamente, um cavaleiro. [...] é o cavaleiro consigo, depois de terminada a cerimônia, no meio da festa. Em
que viaja pelos atalhos – pelo córrego e não pelo caminho fuga, Leonardo e a Noiva oscilam entre o desejo de liberdade, em
que a sociedade percorre de carroça – livre dos entraves deixar-se levar pela força da inclinação e a culpa por terem
colocados pela sociedade, capaz de perceber causas e rompido as regras. Sabem que os caçam e temem por suas vidas,
consequências e de agir em função disso. mas, ainda assim, pretendem encontrar espaço para realizar o
Por força da inclinação, Leonardo caracteriza-se por amor contido ao longo de tantos anos:
extrema força vital e negação às normas sociais. Seu nome, NOIVA
segundo a crítica lorquiana brasileira, seria fruto da união das Fuja!
É justo que eu morra aqui,
palavras leo (leão) e nardo (flor que simboliza pureza). Assim
Com os pés dentro da água,
designada, a personagem encerraria, de uma só vez, força e
espinhos na cabeça.
fragilidade. Contudo, há que se considerar, também, ao E que chorem por mim as folhas,
conjecturar sobre o significado de tal nome, o verbo enardecer. mulher perdida e donzela.
P á g i n a | 558

LEONARDO Sente-se absolutamente preparada para a maternidade, pois vem


Fique quieta. Estão subindo. de uma numerosa família.
NOIVA Em Yerma a terra é seca, mas está sendo trabalhada. Juan
Vá embora daqui! deseja enriquecer e prosperar, o que lhe faz desinteressar-se da
LEONARDO
vida doméstica e do casamento. É um trabalho compulsivo que
Silêncio, para que não nos percebam.
parece esgotar-se em si mesmo: Juan não pensa na terra como
Vá na frente. Vamos, estou dizendo!
(A Noiva vacila.) herança e descendência. Ele escapa, diferente das demais
NOIVA personagens, do ciclo de vida e morte constituídos pela vinculação
Vamos juntos! da terra com o sangue. De acordo com CORREA (1970, p. 123)
LEONARDO (Abraçando-a). En el esquema armónico de la naturaleza fecundante y
Como quiser! fecundada, Juan representa la mala hierba de simiente
Se nos separarem, podrida que interrumpe el ciclo de perpetuación de la
é porque estarei morto. Madre Tierra en su urgente impulso renovador. Juan no es
NOIVA hombre de sangre, no tiene herencia de casta, no siente en
E eu, morta. (GARCÍA LORCA In: MONTEMEZZO, 2008, p. sus venas el ansia de renovarse.
197-198) A secura da terra é também a secura de cada um dos seres
Este movimento ocasiona o trágico desenlace, que culmina humanos que nela vivem, embora não se possa precisar uma
no duplo assassinato dos rivais e na solidão a que ficam relação de causa e consequência entre elas. Há, evidentemente,
condenadas Noiva e as demais mulheres das duas famílias. uma relação direta – telúrica, para citar a terminologia que
Leonardo, por força do sangue e da inclinação incontidos, revelou caracteriza a crítica lorquiana – entre o ser e o ambiente, entre
as contradições que as normas sociais tentavam esconder à força homem e terra. Yerma tenta abrandar a secura que a rodeia,
de repressão. saindo de casa e buscando água fresca. Por infértil e não ainda
trabalhada, a terra é incapaz de dar vida. E toda essa situação de
Yerma não poder gera – paradoxalmente – em última análise, a
Yerma (de yermo: seco, desértico) é a protagonista da peça infertilidade: a vida é yerma, o casamento é yermo. Por isso não
de mesmo nome. É a mulher que se rende às normas sociais com pode haver herdeiros. Em busca de respostas para seu dilema,
paciência e, por que não dizer, com certa dose de satisfação. Está Yerma fala de seu passado com a 1a Velha, mulher madura e
conformada com o casamento com Juan, mesmo sem amá-lo, experiente:
porque crê que este casamento gerará filhos. Estes, por sua vez, 1a VELHA
na ilusão da personagem, serão sua companhia e lhe darão alegria. Escute, você gosta do seu marido?
YERMA
P á g i n a | 559

Como? 1a VELHA
1a VELHA Totalmente o contrário de mim. Talvez por isso você não
Você o ama? Deseja estar com ele...? tenha parido a tempo. Temos que gostar dos homens,
YERMA mocinha. Eles têm que desfazer nossas tranças e nos dar de
Não sei. beber água em sua própria boca. Assim corre o mundo.
1a VELHA (GARCÍA LORCA In: MONTEMEZZO, 2008, p. 218-219)
Não treme quando ele se aproxima? Não lhe dá uma
Neste revelador diálogo, em que a protagonista conversa
espécie de sono quando se aproxima de seus lábios? Diga.
YERMA com uma mulher mais experiente, fica claro que Vítor
Não. Nunca senti isso. representaria a possibilidade perdida de felicidade conjugal.
1a VELHA Entretanto, Yerma, presa às imposições sociais, aceita casar-se
Nunca? Nem quando dançou? com Juan, sonhando com a chegada dos filhos. Em um processo
YERMA (Recordando.) inverso ao natural, Yerma cresce “para dentro” e vai murchando,
Talvez... uma vez... Vítor... tal qual uma flor deixada ao sol, sem água. Este processo gera
1a VELHA enorme angústia, e vai crescendo a ponto de tomar conta de todo
Siga. o mundo mental da personagem, que vai, paulatinamente,
YERMA deslocando-se do mundo real. Por não entender os motivos de sua
Me pegou pela cintura e não pude dizer nada, porque não
secura, procura conversar com pessoas mais velhas e é estimulada
podia falar. Outra vez, o mesmo Vítor, quando eu tinha
a participar de práticas nada esclarecedoras, tais como tomar chás
catorze anos (ele era um belo homem), me pegou em seus
braços para saltar um córrego e me subiu uma tremedeira e acompanhar uma procissão 1 à qual compareciam todas as
que cheguei a bater os dentes. Mas é que eu fiquei com mulheres que desejavam ser mães. Não lhe ocorre, por exemplo,
vergonha. procurar recursos médicos em uma cidade grande. A julgar pelas
1a VELHA soluções buscadas por Yerma, percebe-se que apesar dos avanços
E com seu marido... científicos que a Europa em geral vinha experimentando, a
YERMA Espanha rural seguia presa a tradições religiosas e crendices
Meu marido é outra coisa. Foi meu pai quem me deu, e eu populares.
o aceitei. Com alegria. Esta é a pura verdade. No dia em que É na referida procissão que Juan declara textualmente que
comecei a namorá-lo já pensei... nos filhos... E me olhava não deseja filhos. No auge do sofrimento psíquico, Yerma perde
em seus olhos. Sim, mas era para me ver muito pequena,
totalmente a sanidade e avança contra o marido, sufocando-o até
muito frágil, como se eu mesma fosse minha filha.
1
Procesión del Cristo del Paño, que ocorre desde a Idade Média até os dias de
hoje, no povoado de Moclín (Granada), no dia 05 de outubro.
P á g i n a | 560

a morte. Com tal atitude, retorna à resignação do início da peça, E ficou muito bem em mim. É o melhor que Madalena já fez.
declarando que, ao matar seu marido, está também matando seu MADALENA
filho. Como uma mulher honrada, julga não poder ter filhos fora E as galinhas, o que disseram?
do casamento – embora tenha essa oportunidade – e se condena, ADELA
Me presentearam com umas quantas pulgas que me
por honra e casta – à solidão.
morderam as pernas.
(Riem) (GARCÍA LORCA In: MONTEMEZZO, 2008, p. 276)
Adela
Adela, a filha mais nova de Bernarda Alba (que também é O luto, para Adela, então, se torna impensável. Além das
mãe de Angústias, Madalena, Amélia e Martírio), é uma jovem de ilusões próprias da idade, ela deseja casar-se com Pepe Romano2.
vinte anos, sonhadora e determinada. Quando o drama começa, Jovem como ela, Pepe, no entanto, vai casar-se com Angústias,
Bernarda está velando seu segundo marido (pai das últimas quatro filha do primeiro casamento de Bernarda, que tem uma
filhas) e, depois do velório, impõe às filhas e a sua mãe, Maria considerável herança para receber.
Josefa, um luto de oito anos, conforme reza a tradição. Adela (“de Inconformada com esse arranjo grotesco, Adela entra em
estirpe nobre”, simbolizando força, coragem e altivez), contudo, conflito com suas irmãs – especialmente com Angústias e Martírio,
não se conforma com a imposição, pois está animada com seu que também estão apaixonadas por Pepe. Ao que tudo indica,
novo vestido verde. Pepe tem um relacionamento com Adela, embora tenha se
MADALENA: comprometido com Angústias. No mesmo diálogo, ainda
As galinhas viram você? comentando sobre o novo vestido, Adela demonstra
ADELA inconformidade e tenta enfrentar as expectativas sociais que a
O que você queria que eu fizesse? oprimem:
AMÉLIA MARTIRIO:
Se a nossa mãe tivesse visto, arrastaria você pelo cabelo! Você pode tingi-lo de preto.
ADELA MADALENA
Tinha muitos desejos com o vestido. Pensava em vesti-lo no O melhor que pode fazer é dá-lo de presente para
dia em que fôssemos comer melancia no engenho. Não Angústias, para a festa de seu casamento com Pepe
haveria outro igual! Romano!
MARTIRIO ADELA (Com emoção contida)
É um lindo vestido! Mas Pepe Romano...
ADELA AMÉLIA

2
Pepe Romano não é propriamente uma personagem do drama, uma vez que
não consta no Dramatis Personae.
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Não ouviu falar disso? Conflitos irreconciliáveis


ADELA A complexidade das personagens, ao mesmo tempo tão
Não. humanas tão simbólicas, encerra uma perspectiva que está
MADALENA presente ao longo de toda a trilogia: o conflito entre o que se
Pois agora já sabe.
deseja intimamente e a expectativa social que rege a vida dos seres
ADELA
humanos, sem permitir-lhes outra alternativa além daquela
Mas não pode ser!
[...] imposta pela tradição e pelas obrigações sócio-familiares. No
MARTIRIO entender de RUIZ RAMÓN (1986, p. 177), o teatro lorquiano
No que pensa, Adela? precisa ser compreendido como a antítese entre dois princípios
ADELA básicos: princípio de autoridade – ordem, tradição, realidade,
Penso que este luto me pegou na pior época da minha vida. coletividade – e princípio de liberdade – desejo, imaginação,
MADALENA individualidade. Tais princípios são antagônicos irreconciliáveis
Logo você se acostuma. entre si. Há apenas duas maneiras de resolver este conflito, no
ADELA (Começando a chorar com ira) contexto da dramaturgia de García Lorca: a loucura ou a morte. É
Não, não me acostumarei! Eu não quero ficar trancada! Não dessa maneira que as personagens resolvem seus conflitos: Adela
quero que as minhas carnes fiquem como as de vocês. Não
e Leonardo por meio da morte. Para Yerma resta a loucura, porque
quero perder o viço da minha pele dentro desses quartos!
a realidade não comporta seus sonhos e desejos.
Amanhã vou por meu vestido e passear pela rua. Eu quero
sair! (GARCÍA LORCA In: MONTEMEZZO, 2008, p. 276-277) Leonardo, o jovem apaixonado e pobre e que é preterido,
aparentemente consegue restabelecer-se da desilusão. Casa-se,
O desacordo entre as irmãs vai crescendo ao longo da peça tem um filho pequeno e outro a caminho, mas intimamente não
até culminar em um confronto, no qual se envolvem não apenas se conforma com os rumos de sua vida. Na cena de pedido de mão,
Adela e Angústias, mas também Martírio – que esconde de Adela o Pai da Noiva menciona uma “hortinha” entre suas terras, que
uma fotografia de Pepe. Neste momento, Bernarda percebe que não lhe querem vender. Isto o impede de aumentar o patrimônio.
está diante de uma espécie de uma rebelião, que até então havia A Mãe do Noivo compartilha dessa opinião, e também enuncia o
se negado a ver, embora já tivesse sido alertada dela por Pôncia, a desejo de unir suas terras às da Noiva. Neste diálogo fica claro que
governanta. Ante o imprevisível, a matriarca (que age, na verdade, o casamento é, na verdade, um negócio que visa antes de mais
como patriarca) na tentativa de manter a ordem e disciplina entre nada a manutenção da riqueza nas mãos de algumas poucas
as filhas, finge ter matado Pepe. Desesperada e, ao que tudo famílias. Dessa forma, o que se propõe é uma discussão quanto à
indica, grávida de Pepe, Adela se suicida no final do drama. questão agrária espanhola, que, à época, remontava aos modelos
P á g i n a | 562

feudais e impedia grandemente a ascensão e a mobilidade social. sobre minhas feridas de pobre mulher encolhida, de moça
De acordo com GONZÁLEZ (1989, p. 65) acariciada pelo fogo. Eu não queria, ouça bem! Eu não
[...] Existen realidades irreductibles a valores económicos. queria, ouça bem! Eu não queria. Seu filho era o meu fim e
¿Leonardo? ¿La libertad? ¿La inclinación? ¿La sangre? eu não o traí, mas o braço do outro me arrastou como um
Todo ello, elemento fundamental de la tragedia, se golpe de mar, como a cabeçada de uma mula, e teria me
enfrenta en la huertecilla, a la sociedad organizada y arrastado sempre, sempre, sempre, ainda que eu ficasse
poderosa del Padre rico, en un auténtico “omen” de la velha e todos os filhos de seu filho se tivessem agarrado a
tragedia que ya está en marcha. meus cabelos. (GARCÍA LORCA In: MONTEMEZZO, 2008, p.
204)
Além de representar um empecilho para a união das terras
das duas famílias por meio do casamento, simbolicamente, essa A fala da Noiva define e reforça a imagem de Leonardo,
pequena porção de terra indica que de fato Leonardo não está indivíduo dominado pelos instintos e pela inclinação, de quem ela
submetido às regras sociais coletivas. É essa insubmissão que o não conseguiu fugir.
move rumo ao desenlace trágico: inconformado com o casamento Já Yerma vive dividida entre o desejo irrealizado de ser mãe
da amada, interrompe a festa, roubando a Noiva e fugindo com e a aparente tranquilidade do casamento. Como tal o desejo não
ela. A fuga é percebida pela Mãe do Noivo que, impulsionada pelo se concretiza, a protagonista vai aos poucos se tornando taciturna
desejo de vingar a honra de seu filho e de toda a sua família – e amarga, deixando-se dominar pelo desespero. Apesar de
sempre afrontada, no seu entender, pela família Félix – convoca descender de uma família numerosa – e, portanto, fértil – Yerma
todos os presentes a perseguirem os fugitivos. A caçada é não consegue ter o filho com o qual sonhou desde o instante em
implacável e termina com o duplo assassinato dos rivais. A Noiva, que foi dada em casamento a Juan. Embora não o amasse, aceitou
viúva sem efetivamente ter sido esposa, sintetiza o conflito, de bom grado o casamento, acreditando que a presença de um
afirmando à Mãe do Noivo: filho aplacaria sua solidão. Contudo, o tempo passa, e o filho não
NOIVA vem. A relação com o marido, sempre comedida, vai se tornando
Porque eu fugi com o outro, fugi! (Com angústia.) Você cada vez mais ágria e distante. Diferente da terra fértil que o casal
também teria fugido. Eu era uma mulher queimada, cheia habita, à qual Juan se dedica zelosamente, o casamento não gera
de chagas por dentro e por fora, e seu filho era um frutos. Paradoxalmente, embora se veja intimamente ligada à
pouquinho de água, da qual eu esperava filhos, terra, saúde; terra cultivada por Juan, Yerma se sente seca, murcha e incapaz.
mas o outro era um rio escuro, cheio de ramas, que Quanto mais tempo passa, mais seu conflito aumenta, acabando
aproximava de mim o rumor de seus juncos e seu canto por tomar conta de sua vida. O desejo irrealizado de procriação a
entre dentes. E eu corria com seu filho, que era como um
leva de um extremo a outro: passa do sonho ao desespero, da
menininho de água fria e o outro me mandava centenas de
ilusão ao desengano.
pássaros que me impediam de andar e que deixavam geada
P á g i n a | 563

Perdida em seu mundo mental, de idealização e rancor, que, segundo Pôncia, a governanta, não resistirá ao primeiro
Yerma acaba por enlouquecer. A demência funciona como parto – para concretizar seu amor por Pepe Romano. No entender
subterfúgio de evasão da realidade, com a qual os sonhos são da criada, como é natural, depois da morte de Angústias, Pepe se
irreconciliáveis. Tendo sofrido a inversão antinatural da condição casará com Adela, a mais jovem das irmãs. Contudo, Adela não
feminina básica, inverte, também, sua conduta social, e recorre ao aceita os conselhos assim como não se conforma com a espera e
escapismo e ao isolamento, já que se inverteram seus processos com o luto forçado. Segundo GONZÁLEZ (2013. p. 90-91)
emocionais. Ao invés da esperada evolução – inerente à condição Adela é, sem dúvida, uma das personagens mais marcantes
humana – Yerma involui, “cresce para dentro”. Mais do que um criadas por García Lorca. Na peça, é equivalente, como
modo antinatural de viver, crescer para dentro é uma personagem, a Bernarda; e funciona como sua antítese.
manifestação de absoluta incapacidade de comunicação e vazio [...] Aos vinte anos, vê-se rodeada pelas demais irmãs que
a precedem na idade, todas frustradas ou a caminho da
interior. É a falência completa das relações íntimas.
frustração.
O desespero crescente e a revolta que tomam conta da
personagem a conduzem ao final trágico, no qual Yerma sufoca o Apesar disso, Adela não se conforma com esperar pela
próprio marido até a morte, ao dar-se conta que ele não se importa morte da irmã para ter realizado seu sonho de viver com Pepe –
com a inexistência de um filho. Ao matar o marido, Yerma afirma que significa, também, viver longe do cárcere privado a que
estar matando também seu próprio filho, ou seja, com a vida de Bernarda a submete. Ante o impeditivo de realizar este sonho,
Juan se esvai também sua possibilidade de ser mãe, por honra e sobrepõe-se o final trágico. Ainda de acordo com GONZÁLEZ
por casta. (2013, p. 92)
Finalmente, em A Casa de Bernarda Alba, Angústias e Sua rebeldia atinge o ápice quando ela quebra em duas a
Adela, as filhas mais velha e mais nova, respectivamente, simbólica bengala3 de sua mãe. O ato e a peça encerram-
representam antagonicamente as possibilidades de se com seu suicídio [...]. A morte voluntária é a última
maneira de ela repetir sua frase: “Eu quero sair”.
concretização da feminilidade em suas dimensões social e
individual: casamento e procriação. A primeira conseguirá casar- Apesar dos esforços da filha, Bernarda luta por manter as
se graças à herança que lhe foi deixada pelo pai, embora não aparências. “Silêncio” é sua primeira e última palavra em cena.
esteja apta para a vida marital nem para a procriação, pela Na ficção, depois desta morte, seguem-se outros anos de luto,
avançada idade – trinta e nove anos – e a fragilidade de sua saúde. segundo reza a tradição familiar. Na realidade, apenas um mês
A segunda, apesar de jovem e saudável, não dispõe de dote e, depois de a peça ter ficado pronta, o silêncio passaria a imperar
portanto, deve conformar-se em esperar pela morte da irmã – no país de maneira paulatina: primeiro, por meio do conflito

3
A bengala de Bernarda, no original, é sempre designada por “bastón”. No referência à autoridade que o vocábulo encerra, de acordo com MOLINER
momento em que a quebra, Adela chama o objeto de “vara”, numa clara (1991).
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bélico que durou três anos, em seguida graças à ditadura imposta aborda os aspectos simbólicos e universalizantes que, ainda de
pelos vencedores. Depois disso, a Espanha mergulharia numa acordo com o autor, produzem uma idéia subterrânea.
espécie de luto – pela morte da liberdade – de trinta e seis anos, Analisado sob este aspecto, o conflito referido por RUIZ
em que realidade e ficção se aproximariam de forma RAMÓN (1986) pode ser compreendido como a síntese de um país
surpreendente. paradoxal desde sua formação como nação. A partir da conquista
de Granada, último reino a render-se ao domínio cristão, em 1492,
Plano Natural e Vertente do Poeta e a consequente imposição da religião católica em todo o território
Para entender a crítica contida na trilogia aqui estudada, é espanhol, houve um processo de silenciamento das diferenças –
importante destacar uma reflexão de seu autor que, de certa culturais, religiosas, linguísticas – marca da Espanha de até então.
maneira, constitui-se uma importante chave interpretativa de sua Paradoxalmente, quase cinco séculos depois, seria Granada um
obra. Em entrevista ao jornal espanhol El Mercantil Valenciano dos primeiros territórios a se aliar ao levante fascista que
(em 15 de novembro de 1935), García Lorca declara que seu teatro mergulhou o país em longa ditadura. Também foi em Granada que
tem dois planos: García Lorca nasceu, foi capturado e morto, apesar de acreditar
Mi teatro tiene dos planos: una vertiente del poeta, que que ali estaria a salvo.
analiza y que hace que sus personajes se encuentren para Em 1942, por decreto, judeus, mouros e árabes – que até
producir la idea subterránea 4 , que yo doy al “buen então compartilhavam o território com relativa harmonia com os
entendedor”, y el plano natural de la línea melódica, que demais espanhóis – tiveram proibidas suas práticas religiosas e
toma el público sencillo para quien mi teatro físico es un
foram obrigados a falar apenas o castelhano – agora designado
gozo, un ejemplo y siempre una enseñanza. [...] (MARTÍN,
como Espanhol e elevado ao status de língua oficial da nova nação.
1989, p. 42)
Aqueles que não estivessem de acordo deveriam sair do país. Os
Segundo tal declaração, pode-se traçar uma espécie de que desejassem ficar deveriam converter-se ao catolicismo. Surge,
metodologia de análise que tente a ser muito esclarecedora. O nessa época, então, a figura do cristão novo – o judeu converso –
plano natural trata das relações estabelecidas com os fatos que tanto será atacada e combatida.
históricos (política republicana, reforma agrária, crítica ao Entretanto, várias famílias – por opção ou por falta dela –
catolicismo, entre outros) enquanto que a vertente do poeta acabaram ficando em território espanhol, uma vez que ali tinham
suas vidas organizadas, suas propriedades e negócios. Por força

4
Grifo meu. A expressão merece destaque especial porque resume a noção de relação à totalidade de sua produção literária. Essa idéia já havia sido explorada
que os textos dramáticos lorquianos estão construídos sobre um subtexto – não em El Público (1933), em que se estabelece a oposição entre “teatro bajo la
menos importante que o texto explícito – que estabelece uma rede de arena” (o verdadeiro teatro) e “teatro al aire libre” (o falso teatro).
significações, através da qual se podem atribuir sentidos mais profundos em
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disso, obrigavam-se a restringir o uso de suas línguas e suas na década de 1930, o confronto entre duas ideologias se polarizou
práticas religiosas aos ambientes domésticos. Dessa maneira, os ainda mais. Inspirados nos resultados da Revolução Russa (1917) e
papéis sociais, desempenhados em ambientes públicos, eram nos ventos de liberdade provindos da França, os republicanos
muito diferentes daqueles praticados em âmbito privado, no seio espanhóis sonhavam ver seu país avançar em conquistas sociais e
da família, tal qual o que acontece na “Trilogia Dramática da Terra individuais. Lorca, apesar de filho de uma tradicional família
Espanhola”. granadina, estava entre estes sonhadores. Nunca se filiou ao
O mal-estar gerado pela pretensão de apagamento das Partido Comunista, diferentemente de muitos de seus amigos, mas
demais culturas existentes na península nunca se resolveu declarou-se inúmeras vezes ser contra as injustiças sociais:
totalmente no país. Uma das consequências disso é, sem dúvida, a El mundo está detenido ante el hambre que asola a los
imagem de um país dividido, las dos Españas: uma libertária, outra pueblos. Mientras haya desequilibrio económico, el mundo
conservadora. No entender de NAVARRO (2014): no piensa. Yo lo tengo visto. Van dos hombres por la orilla
En España siempre ha habido, a lo largo de su historia, dos de un río. Uno es rico, otro es pobre. Uno lleva la barriga
concepciones de España. Una, la España de siempre, llena, y el otro pone sucio el aire con sus bostezos. Y el rico
continuadora de la España imperial, basada históricamente dice: ‘¡Oh, qué barca más linda se ve por el agua! Mire, mire
en la Corona de Castilla (lo que explica que la lengua oficial usted el lirio que florece en la orilla’. Y el pobre reza: ‘Tengo
de España sea el castellano), con una visión jacobina del hambre, no veo nada. Tengo hambre, mucha hambre’.
Estado, dominado este por la Monarquía, el Ejército, la Natural. El día que el hambre desaparezca, va a producirse
Iglesia y los poderes fácticos –económicos y financieros– en el mundo la explosión espiritual más grande que jamás
que dominan la vida económica y política del país. [...] Su conoció la humanidad. Nunca jamás se podrán figurar los
jefatura ha ido variando de monarcas a dictadores, y de hombres la alegría que estallará el día de la gran revolución.
dictadores a monarcas. Su Estado nunca ha respetado la ¿Verdad que te estoy hablando en socialista puro?”
plurinacionalidad de España. [...] La otra visión de España es (GARCÍA LORCA, 1972: 1768)
la republicana y pluricéntrica, que apareció (sin nunca poder Assim como em sua dramaturgia, também em sua
desarrollarse), en sus inicios, sobre todo durante la II trajetória pessoal e em suas convicções acerca da arte literária
República, y que ofrecía el potencial de posibilitar otra
(poética e dramática, especialmente), evidencia-se a dualidade
España, una España más democrática, poliédrica,
que constitui a Espanha desde sua unificação. Uma unificação
policéntrica y no radial, laica, plurinacional y federal. Ni que
decir tiene que la II República no fue la máxima expresión forçada, baseada, sobretudo em motivações políticas e
de esta otra España. Pero sí que permitía poder desarrollar financeiras, tais quais os casamentos de Leonardo e da Noiva, de
otra vía distinta a la visión de la España uninacional y radial. Yerma com Juan e de Angustias com Pepe Romano: todos
arranjados para manterem a riqueza e a propriedade nas mãos de
Em vários momentos, esta divisão foi mais evidente do que
em outros. No período em que García Lorca viveu, especialmente
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uma elite que vivia confortavelmente à custa do trabalho do povo O núcleo familiar também exerce papel preponderante no
empobrecido e, na sua maioria, analfabeto. processo de aniquilação do indivíduo frente à sociedade,
constituindo-se como poderosa instituição privada que fortalece
Considerações finais as bases do sistema político autoritário e repressor. Sob tal ponto
As personagens aqui analisadas tornam-se emblemáticas, de vista, as peças compõem a trilogia lorquiana são um exemplo
uma vez que encarnam o conflito de maneira paradigmática. Suas do processo de articulação entre público e privado que visa a
atitudes põem de manifesto as contradições que a própria dominar as individualidades em nome da tradição que sustenta o
Espanha – às portas de uma guerra civil que fragmentaria em poder econômico nas mãos de um determinado grupo.
definitivo as famílias e traria como conseqüência o silêncio tão Os sonhos e desejos individuais não podem ser
caro a Bernarda Alba – ainda tenta negar e ocultar. Nesse concretizados e, uma vez mais, o que resta no final é a solidão. A
contexto, família e Estado são dois braços que se dão suporte solidão, nesse caso, torna-se castigo. A vida, em lugar de alegria e
mutuamente: se reproduz em microcosmo, em âmbito familiar, o liberdade, é prisão. Sobreviver às tragédias não implica renascer,
mesmo silenciamento que o Estado impõe aos seus cidadãos, em mas sim o contrário: deixar-se morrer lentamente em vida, dia
macroescala. após dia, numa mórbida e solitária espera.
As situações de opressão, como a representada no último
drama lorquiano, são vistas por FOUCAULT (2004, p. 247), como Referências
fruto de um caráter regulador, próprio do âmbito institucional. A CORREA, Gustavo. La poesía mítica de Federico García Lorca.
referência a instituições não se restringe apenas à esfera pública, Madrid: Gredos, 1970.
mas também à privada. Assim, todo o aparato regulador que tem
ingerência sobre as relações sociais é considerado institucional. EDWARDS, Gwynne. El teatro de Federico García Lorca. Madrid:
De acordo com o filósofo Gredos, 1983.
Geralmente se chama instituição todo comportamento
mais ou menos coercitivo, aprendido. Tudo que em uma FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal,
sociedade funciona como um sistema de coerção, sem ser 2004.
um enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é a
instituição.
GARCÍA LORCA, Federico. Obras Completas. Madrid: Aguilar, 1972.
Partilhando das afirmações de Foucault, e considerando
que o caráter institucional está fixado no comportamento e no GONZÁLEZ, Mario Miguel. A Trilogia da Terra Espanhola: de
discurso que se reproduz, é possível observar que não somente as Federico García Lorca. São Paulo: EDUSP, 2013.
instituições públicas são responsáveis pela opressão do indivíduo.
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TRADIÇÃO E APROPRIAÇÃO 2.0: UM TALENTO ORIGINAL? propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à
EL HACEDOR (DE BORGES), REMAKE DE FERNÁNDEZ inclusão textual em terreno reconhecidamente literário”.
MALLO Em outra publicação recente, Florencia Garramuño para
Luciene Azevedo nomear certa “inespecificidade na estética contemporânea”
UFBA chama de “Frutos estranhos”, “uma série cada vez mais importante
de textos, instalações, filmes, obras de teatro e práticas artísticas
“Lo importante es ser original reescribiendo” contemporâneas” (2014, p. 11). Evocando o campo semântico da
(Fernández Mallo) estranheza e do inespecífico, Garramuño identifica uma “saída da
especificidade do meio, do próprio, da propriedade, do enquanto
Há alguns meses, Flora Sussekind identificava na literatura tal de cada uma das disciplinas” (2014, p.15) para sugerir que
contemporânea brasileira o que chamou de “objetos verbais não aquilo que identificamos como arte ainda hoje pode estar se
identificados” para nomear algumas experiências literárias transformando e, nesse sentido, a literatura estaria fora de si, fora
perturbadoras das manias taxionômicas mais convencionais. Esses da esfera da autonomia e da especificidade, características
objetos exploram 'formas corais', são obras “marcadas por responsáveis pela própria manutenção da arte literária desde ao
operações de escuta, e pela constituição de uma espécie de menos o século XVIII.
câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista O mais instigante no argumento das duas críticas é a
inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes, constatação das transformações sofridas pela própria ideia de arte,
elementos não verbais, e de uma sobreposição de registros e de das mudanças da forma de apresentação dos produtos que podem
modos expressivos diversos”, nas palavras da própria Sussekind. ser considerados artísticos, de seus procedimentos de
Nesse texto, publicado no caderno Prosa e Verso do jornal O Globo, formalização e dos valores envolvidos no ajuizamento de sua
o argumento crítico passeia pelo comentário de inúmeros categorização (arte ou não?). A afirmação peremptória de que essa
exemplos atuais que vão desde o livrinho de Verônica Stigger, constatação deve ser encarada como um desafio crítico está
Delírio de Damasco, publicado pela Cultura e Barbárie, passando fundamentada na existência de objetos estranhos às configurações
pela dramatização de vozes múltiplas presente nos poemas de com as quais estamos ainda acostumados a lidar quando se trata
Carlito Azevedo até a referência mais óbvia dos textos muitas vezes do universo artístico.
inclassíficáveis de Nuno Ramos. Conjugando exemplos tão díspares, Mas de onde vem essa estranheza? O inespecífico, a que se
o comentário quer capturar um certo movimento na produção refere Garramuño, e a dificuldade de precisar sua identificação,
literária recente que desafia os juízos críticos na avaliação do que como aponta Sussekind, residem no quê, exatamente?
pode ser considerado literário hoje. Sussekind identifica no Não deixa de ser curioso que em ambos os argumentos a
conjunto aparentemente heteróclito “um tensionamento noção de forma apareça colocada em xeque. Digo curioso porque
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é a noção de forma que inaugura um campo específico para a arte. Nesse sentido, as operações básicas dessas outras formas
Se pensamos, por exemplo, nas Cartas sobre a Educação Estética contemporâneas apontam tanto para a expansão quanto para a
do Homem, vemos Schiller esforçando-se para configurar a noção apropriação. Os dois procedimentos parecem aliados da
de autonomia e a especificidade do mundo estético diante dos estranheza e da especificidade a que se referem as autoras,
impasses colocados pelos desdobramentos da Revolução Francesa. quando aludem a uma saída da esfera da arte, a uma literatura no
Enfrentando a acusação da extemporaneidade das preocupações campo expandido (como é o caso de Garramuño) ou à captação de
com a arte em momento tão delicado, Schiller quer arrebanhar vozes, à exploração do coro, à dramatização de alteridades nos
partidários à causa da cultura literária e artística. Para tanto parece textos em que Flora identifica 'formas corais' em operação.
supor como necessário estabelecer os limites, as definições, o Ambos os processos, expansão e apropriação,
característico do procedimento artístico e elege o labor com a redimensionam nossa noção sobre a arte. A literatura no campo
forma na constituição da obra de arte como peça fundamental: expandido supõe o esmaecimento das fronteiras de sua
“Numa obra de arte verdadeiramente bela o conteúdo nada deve especificidade na direção do diálogo com outras artes, material e
fazer, a forma tudo. ...O conteúdo, por sublime e amplo que seja, procedimentalmente, com seus arredores, com a vida. Enquanto a
age sobre o espírito sempre como limitação, e somente da forma apropriação coloca em xeque o próprio valor atribuído a uma
pode-se esperar verdadeira liberdade estética.” (1991, p.117). forma artística. Os dois procedimentos atuam num território
Mesmo a fúria demonstrada pelas vanguardas artísticas contra a próprio ao que o crítico de arte francês Nicolas Bourriaud chamou
noção de obra de arte como forma, como produto do investimento de pós-produção. Não se trata mais “de elaborar uma forma a
do artista na construção de um objeto para ser arte, cuja partir de um material bruto [dar uma forma nova a ele], e sim de
dessacralização máxima ainda hoje parece ser o famoso urinol de trabalhar com objetos atuais em circulação no mercado cultural,
Duchamp exposto no museu, apenas parece confirmar por isto é, que já possuem uma forma dada por outrem” (2009, p.8).
oposição a supremacia que a noção de forma tem para nossa Uma literatura expandida, portanto, faz “explodir do interior da
cultura artística. literatura a possibilidade de definir tanto a literatura em geral
No entanto, os exemplos evocados por Garramuño e como os gêneros e modalidades discursivos em particular a partir
Sussekind apontam produtos in-formes ou ao menos difíceis de de uma especificidade” (GARRAMUÑO, 2014, p. 88). Por isso é
serem capturados em uma forma estável. São objetos que lançam cada vez mais comum hoje encontrarmos referências críticas que
mão de “múltiplas formas de refiguração material”, como afirma mencionam as categorias 'texto' ou 'narrativa' para obras que
Sussekind, mesclando, muitas vezes, características do “ensaísmo, parecem forçar demais as fronteiras do gênero romance, tal como
[d]o comentário crítico, [d]o testemunho, [d]a ficção”, sem se acontece com as publicações que exploram a exposição da
preocupar com as indicações ao leitor“sobre como organizar o intimidade ficcionalizando-a, como as autoficções. Ao invés da
itinerário” (GARRAMUÑO, 2014, p. 98). especificidade, parte de nossos produtos artísticos
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contemporâneos, “representam o lugar de uma negociação entre instituição: “o gênio opõe-se totalmente ao espírito de imitação”
realidade e ficção, narrativa e comentário” (BOURRIAUD, 2009, (1995, p. 154).
p.51). Mas se consideramos o horizonte aberto pela presença dos
É claro que redimensionar o papel da forma na criação do “objetos verbais não identificados”, mencionados por Sussekind,
produto artístico afeta também a própria noção de artista e, no ou pelos “Frutos estranhos”, de Garramuño, e aceitamos a
caso da literatura, o papel do autor. Já que mencionamos acima hipótese de que há uma transformação da importância que a
Schiller, quando pretendíamos apontar suas cartas como um dos noção de forma tem para esses produtos, como não pensar em um
dispositivos responsáveis por dar consistência ao que viríamos a redimensionamento da própria noção de autoria?
conhecer como modernidade artística, vale a pena revisitar Kant e Em 2010, Marjorie Perloff, lançou um livro cujo título
sua noção de gênio. No parágrafo 46 de sua Crítica do Juízo, o apontava para um paradoxo inusitado: O gênio não original. O
filósofo afirma peremptório: “Gênio é o talento (dom natural) que pressuposto básico de Perloff no ensaio homônimo ao livro é que
dá regra à arte”. E mais adiante: “a arte bela é possível somente “as práticas atuais da arte têm o seu próprio momento e inventio
como produto do gênio” (1995, p.153). É bem verdade também particulares” (2013, p. 54) e que em virtude dessa atualização uma
que, após o decreto, por Barthes, da morte do autor, a categoria nova inventio, um novo conjunto de pressupostos caracterizadores
do gênio não tem lá muito crédito, principalmente passados mais de práticas artísticas, estaria em operação hoje e que em relação à
de 200 anos de seu surgimento, quando muita discussão teórica já autoria, a mudança básica consistiria na dissociação entre a palavra
se ocupou do tema. Apesar da distância que mantemos em original e a palavra gênio, pressupondo para a noção de
relação ao horizonte kantiano ao tratar do gênio, não é possível originalidade uma outra significação. Mas o que é um gênio não
escamotear como nossos pressupostos valorativos, quando se original? Propondo uma espécie de recenseamento a fim de
trata dos produtos artísticos, ainda hoje estão associados, com rastrear um pai de uma possível, Perloff parte da estética da
maior ou menor sutileza, a um campo semântico que se aproxima citação de Eliot em The Waste Land, passeia pelos experimentos
de noções tais como criatividade ou originalidade. Mas quando dos oulipianos, do grupo Language e dos poetas concretos para
Kant afirma que o juízo sobre a arte não pode ser deduzido de defender a ideia de uma poesia conceitual, uma “poética da falta
qualquer regra que tenha um conceito como fundamento está de originalidade” (2013, p. 42), caracterizada pela primazia dos
abrindo caminho para a primazia do gênio sobre sua criação, procedimentos de apropriação: “a citacionalidade- com sua
identificando-o a “um talento para produzir aquilo para o qual não dialética de remoção e enxerto, disjunção e conjunção, sua
se pode fornecer nenhuma regra determinada” (1995, p. 153). E a interpenetração de origem e destruição – é central para a poética
afirmação de que a “originalidade tem de ser sua primeira do século 21” (2013, p. 48).
propriedade” é a outra face do interdito para a arte como Reconhecendo que a literatura, e mais especificamente, a
poesia, resiste a práticas que há décadas impregnam as artes
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visuais, Perloff relaciona a não-originalidade às práticas da citação, lançamento, Seven American DeathsandDisasters (2013), é a
da cópia, da reprodução, da colagem e identifica aí a possibilidade transcrição de gravações radiofônicas de grandes desastres ou
de um novo paradigma para a criação literária. O pressuposto não mortes de personalidades americanas marcantes: os assassinatos
defende, então, que “não haja um gênio em jogo” (2013, p. 54), de John Lennon, Michael Jackson, John e Robert Kennedy, a
mas que a noção de originalidade não pode mais se relacionar a explosão da Challenger, os tiros em Columbine, o atentado às
ele de forma tautológica uma vez que a inventio do século XXI Torres gêmeas. No que chama de “notas técnicas”, Goldsmith, ao
supõe que ser original significa desenvolver as habilidades de final do livro, comenta que solicitou a quinze alunos da disciplina
“isolar, reconfigurar, reciclar, regurgitar, reproduzindo ideias e sobre escrita não criativa que ministra em Penn que fizessem a
imagens que não são suas” (GOLDSMITH, 2011, p.139). A autoria transcrição de um trecho de não mais de três minutos de um
configura-se, então, como um processo sintetizador, e não mais entendiante áudio de gravação de uma sessão do congresso que
criador, à maneira do gênio kantiano. Perloff evoca a premissa debatia cortes ao orçamento e que em resposta obteve quinze
básica do famoso ensaio de Benjamin sobre os efeitos da transcrições diferentes. O relato parece servir como ilustração do
reprodução técnica sobre a perda da aura da obra de arte para argumento de Perloff: “como eu ouço e transcrevo alguma coisa
afirmar que a prática da apropriação, mesmo sendo tão antiga será diferente de você”, afirma Goldsmith (2013, p.174). A
quanto a própria arte, merece uma tentativa de singularização no 'originalidade', segundo a inventio do século XXI, não está na
contexto das práticas artísticas contemporâneas especialmente criação de uma forma nova, mas na capacidade de manipular
pela importância que as novas tecnologias digitais assumem em formas já existentes operando sobre elas, apropriando-se delas
nosso cotidiano. Porque abraça esse pressuposto, mostra-se muito para recriá-las.
entusiasmada com a escrita não criativa de Kenneth Goldsmith. Como todos as fontes críticas aqui comentadas se valeram
Professor da universidade da Pensilvânia e criador da famosa de numerosos exemplos que ilustram os pressupostos que
Ubuweb, um grande arquivo que deixa à disposição dos usuários defendem e até agora meu próprio argumento consistiu apenas em
na internet material sobre as práticas artísticas vanguardistas, uma espécie de apresentação panorâmica daqueles pressupostos,
Goldsmith defende o mero cortar e colar, próprio do mecanismo gostaria de me arriscar agora ao comentário mais detido de uma
digital, como procedimento fundamental à noção de escrita obra em particular a fim de tornar mais concreto meu próprio
criativa e não se cansa de propalar que “com a fragmentação digital argumento.
todo e qualquer sentido de autenticidade foi arquivado” (2011, Trata-se de El Hacedor (de Borges), Remake de Agustín
p.123). Fernández Mallo. O autor é um dos integrantes do que ficou
Afirmativas tais como “Nenhum dos meus livros é original” conhecido como Geração Nocilla na Espanha. Por mais
ou “A remoção de si mesmo é essencial à autoria contemporânea” controvérsias e negativas que a identificação do movimento a uma
(GUEVARA, 2014, p.34) são performadas em seus livros. Seu último geração provoque, a denominação quer identificar um grupo de
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narradores nascidos a partir da década de 60 e que constroem suas “objeto verbal não identificado” no panorama das narrativas
narrativas não apenas a partir de elementos da cultura pop, mas contemporâneas? Como tratar a apropriação levada a cabo pelo
principalmente incorporando dispositivos próprios às tecnologias empreendimento do autor espanhol sem considerá-la
virtuais. Não é à toa que alguns desses autores arrisquem-se à juridicamente um roubo de propriedade intelectual?
teoria nomeando o que fazem como Afterpop ou literatura zapping. Antes, voltemos a Borges. Em estudo realizado sobre El
No Brasil, Mallo é mais conhecido pela Trilogia Nocilla, Hacedor, Robin Lefere afirma que esse é o livro de Borges no qual
cujos dois primeiros volumes, Nocilla Dream e Nocilla Experience torna-se mais evidente a construção da automitografia, pois é
foram traduzidos pela Companhia das Letras. O primeiro livro possível ler em suas narrativas “la plasmación sistemática de una
publicado por Mallo após o sucesso mundial da trilogia foi o imagen de Borges” (2005, p. 97) tanto na clave mais autobiográfica
remake do livro de Borges. Mas o que significa fazer o remake de quanto em relação à sua própria constituição como autor, planos
um livro? Manipulando suas páginas percebemos que todos os que nem sempre podem ser distinguidos com tanta clareza, como
títulos das narrativas que integram o livro publicado por Jorge Luis no famoso “Borges y yo”. Nesse sentido, a imagem alentada pelo
Borges em 1960 se repetem no remake de Mallo, além de boa título da coletânea (El Hacedor) abre caminho para várias
parte do prólogo e do epílogo escritos pelo autor argentino. O que perspectivas de constituição do mito. Aponta para a elaboração de
poderia ser considerado uma repetição literal ou uma citação sem si mesmo como autor, para uma homenagem a suas afinidades
aspas repete-se em algumas poucas outras narrativas nas quais o eletivas (Homero, Shakespeare, Milton, Lugones) e explora a
texto de Borges aparece sem nenhuma alteração, literalmente ambiguidade da alusão ao fazedor a um só tempo mero artífice e
copiado. criador absoluto, capaz de ser “muitos e ninguém”, tal como Deus
Até agora, a descrição assim a seco do procedimento de responde a Shakespeare no diálogo irônico-melancólico imaginado
Mallo parece apontar para uma apropriação indébita da assinatura por Borges em “Everything and nothing”.
de Borges. Foi assim que Maria Kodama, viúva de Borges, entendeu Mas sem dúvida nenhuma, o tópico incontornável em se
a inciativa do autor espanhol e iniciou um processo por plágio tratando das questões envolvidas na reapropriação de Borges por
contra a editora Alfaguara e contra o próprio Mallo. Sem pretender Mallo é a “vocación parasitaria que prevalece en las mejores
levar adiante a discussão, editora e autor decidiram recolher os ficciones de Borges” (2000, p.104), emergindo na invenção de
exemplares do livro que até hoje só pode ser lido em cópias piratas referências bibliográficas (tal como aparecem na parte final do
na internet. próprio El Hacedor, sob o título de Museu) e de resenhas a livros
Mas seria possível abrirmos um crédito em nome de Mallo inexistentes, mas fundamentalmente na estética Pierre Menard,
a fim de analisar com maior cuidado seu remake e o que está em cuja cópia é já reescrita do Quixote. Essa faceta do “factor Borges”
jogo na apropriação do nome e da obra de Borges? Poderíamos incita a apropriação de forma manifesta.
considerar o remake de El Hacedor um “fruto estranho” ou um
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Em um ensaio publicado em 2011, Rosa Pellicer, professora a narrativa de Borges dobrando o número total de palavras sem
da universidade de Zaragoza, faz um apanhado dos livros de ficção alterar o conto original.
publicados a partir da efeméride do centenário de nascimento de O remake de Mallo não ganha protagonismo para o
Borges nos quais a obra do autor é reapropriada ou o próprio autor comentário de Pellicer, mas a autora reconhece que no caso do
argentino atua como personagem e considera digno de nota o autor espanhol o procedimento de apropriação é mais complexo:
número de textos “de segunda mano utilizando unicamente textos “se produce un travestimiento que tiene que ver com la
derivados del 'arquitexto' de Borges” (p.125) enunciación”, afirma. Nos três últimos exemplos citados, acentua-
Sem pretender ser exaustiva, a autora enumera uma se de forma crescente o que poderíamos chamar de autoria
taxionomia dos procedimentos de evocação à obra de Borges nos remixada. Afinal, em um conto 'engordado', quem é o autor?
textos analisados: “escritos 'a lamanera de', versiones de cuentos, Pellicer comenta que Mallo “utiliza el libro de Borges como
encuentros y entrevistas fictícios, personajes borgeanos que se material para reciclar” e que “al maneter la misma disposición que
conviertenen protagonistas de outras historias, Borges personaje El hacedor convoca simultáneamente a los dos textos” (2011,
de ficción, obras desconocidas del autor, efecto de lalectura de sus p.129)
obras.” (2011, p.126-7). Logo após o lançamento do livro, Mallo escreveu um texto
Segundo Pellicer, os procedimentos são repetitivos. intitulado “Motivos para escribir El hacedor (de Borges), Remake”.
Exageradamente respeitosos, não se arriscam na irreverência e Aí, o autor tenta dissociar a ideia do remake de uma mera versão
oferecem poucas surpresas, limitando-se a “imita[r] el estilo y el do livro de Borges: “quería escribir un libro que, siguiendo la
tipo de argumento asociados a Borges” (2011, p. 127). Em estructura de Borges, dialogara com el em diferido, un libro
contraposição ao estilo mimético, Pellicer identifica um outro producto de todas essas anotaciones de ideas que el original me
procedimento de apropriação que “consiste em introducir en el proponia pero conservando la estructura, titulos y ideas del
texto original cambios, más o menos importantes, dotándolo de un original”. Em outro livro, agora de teoria, Mallo tenta definir o
sentido nuevo” (2011, p. 127). conceito de Pospoesia baseando-o na ideia de que a cultura
Lembra, então, o experimento oulipiano de Cabrera Infante, literária deve funcionar como um laboratório à disposição para
publicado em Exorcismos de esti(l)o, que consiste na reescrita do “combinar lo que ya existe más un valor añadido” (s/d, p.11)
prólogo de El Hacedor a partir da substituição “de parte de las As duas observações de Mallo sobre seu procedimento
palabras originales por otras sinonímicas, o perteneciente al podem proporcionar uma reflexão mais acurada sobre a
mismo campo semántico” e alude à publicação recente de El Aleph apropriação.
Engordado, publicado por Pablo Katchadjian, autor argentino que, Comentando uma resenha de Edgell Rickword logo após o
promovendo o que chama de uma “expansión estilística”, aumenta lançamento de The Waste Land de Eliot, Perloff realça em especial
a aproximação que o crítico faz entre a prática da anotação, que
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denunciaria um quê de inacabamento, uma impressão de obra que completam (ou iniciam?) narrativas com a ajuda de outros
apenas esboçada, e a estética da citação de que lança mão Eliot suportes e linguagens.
para a composição do poema. O objetivo do crítico é desmerecer A primeira intervenção ao texto de Borges aparece na troca
o procedimento considerando-o fundamental como “resultado de dos nomes do prólogo ao livro. O remake é dedicado a Borges, e é
uma indolência do poder imaginativo” (apud PERLOFF, 2013, p.25). Mallo quem aparece na porta do escritório do autor argentino para
Curiosamente, a prática da anotação retorna no entregar-lhe o livro, tal como o encontro com Lugones imaginado
comentário de Mallo como um produto da leitura do original de por Borges.
Borges. O 'estado de anotação' permanece também como efeito Em “el hacedor”, na versão borgeana, Homero é exaltado
para os leitores de remake, mas funciona como um dispositivo como fundador da tradição literária ocidental, poeta por excelência,
disparador da potência imaginativa das narrativas. E aqui eu o fazedor de todas as coisas. Mas na versão remake, “el arquetípico
gostaria de aprofundar melhor essa hipótese tomando a anotação sueño de construir la Realidad” fica a cargo de um acelerador de
como um dispositivo que abre passagem tanto para que a literatura partículas e a eternidade da memória “se há desvanecido para
perca exclusividade em seu próprio território (cf. Perromat, 392), siempre”. Mesmo quando o texto de Borges é reproduzido ipsis
expandindo-se para fora de si, quanto para que a apropriação litteris, como na versão remake de “Dreamtigers”, a narrativa
possa se transformar num outro método de criação, características borgeana parece totalmente rasurada e mesmo os símbolos chave
que fazem de El Hacedor (de Borges), Remake um “fruto estranho”, de sua poética (o tigre, os labirintos) são dissolvidos em meio a
inespecífico, um “objeto verbal não identificado”. uma potência imaginativa que pouco tem a ver com o contexto
Se recuperamos a apresentação de nosso argumento no original. Na versão remake dessa história, um entregador de
início desse texto pode soar incongruente falar de saída da mensagens abre um site na internet (www.rupturaadomicilio.com)
literatura quando se está falando da apropriação de um autor de para oferecer o serviço de comunicação de rompimento de
culto como Borges. Mas a experimentação com o remake tira sua relacionamentos amorosos e colocar à prova uma máxima de
força do que parece ainda em estado de esboço, sem “importar Santo Agostinho. A versão integral da narrativa de Borges
tanto el acabado del producto” (PERROMAT, p.518), sua forma final, transforma-se, então, em uma dessas mensagens entregues pelo
que é um misto de comentário, ensaio, ficção. A anotação funciona protagonista do remake.
como uma ferramenta do laboratório que é a escrita de segunda Se aqui o leitor pode amenizar a surpresa do rumo tomado
mão e amplia o narrado não apenas quantitativamente, já que pela história podendo contar ainda com um mínimo fio de ligação
muitas narrativas borgeanas de apenas uma página são com o original, garantido explicitamente pela reprodução do texto
aumentadas, mas para fora dos limites do impresso, sugerindo ao de Borges, em “Lasuñas”, a mera menção à cor dos esmaltes da
leitor a consulta a videos no youtube, por exemplo, feitos pelo protagonista permite uma ligação muito tênue com o arquitexto,
próprio Mallo com ajuda de seu IMAC e um telefone Nokia N85, deixando o leitor que procura por pistas que o orientem a
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encontrar alguma possível relação do texto de Mallo com o de relação poderia existir entre o relato inusitado sobre o
Borges à deriva. Esse talvez seja o efeito mais inusitado de leitura crescimento das unhas narrado por Borges e sua versão remake?
proporcionado pelo livro de Mallo. O leitor aqui não deve proceder Descobrimos, por uma nota de pé de página, que os versos
como faria diante de qualquer texto que indica, implícita ou citados aparecem na obra Fuel&Fire de M. M. Mike que é na
explícitamente, uma filiação, com outro no qual está baseado, verdade um recorte feito sobre um artigo publicado por RC Baker
mantendo com ele uma relação intertextual, ou seja, evocar essa descrevendo a instalação-labirinto de Rachel Harrison. A obra de
relação, trabalhando hermeneuticamente através desse texto para Mike está disponível no youtube para qual a nota nos dirige. No
compreender o mecanismo operativo em ação na reescritura. O vídeo de quase dois minutos1, vemos a reprodução de uma foto
leitor de El hacedor (de Borges), Remake parece ficar cada vez mais retirada da reportagem de Baker de uma das obras de Harrison:
à deriva se insiste nessa operação, pois o próprio texto parece uma boneca Barbie, sentada em uma cadeira de rodas, de costas
repelir a ideia de um original, embora seja sua própria condição para a audiência, observando um quadro no qual está reproduzida
remake dependente da existência de um original. uma piscina vazia. A nota acrescenta ainda que os versos foram
A apropriação, então, não se fundamenta apenas na cópia citados pelas primeira vez pelo pintor Christopher Wool.
ou reprodução de trechos do original, e nem apenas na montagem A nota, portanto, abre uma extensão narrativa que força o
ou no corte, na seleção e reaproveitamento de passagens da obra leitor a entrar em uma espiral de citações, cuja origem parece
apropriada, já que a recontextualização configura em si mesma um perder toda a importância. Assim como Kate que na narrativa
mecanismo indecifrável, que ao mesmo tempo recria o texto de remake é efetivamente convidada a participar do filme para
partida, realizando um duplo movimento de aproximação e terminar num emaranhado labirinto de cenários (“abrió la puerta
distanciamento, para montar um outro arcabouço narrativo, para hallar un decorado que la llevaría a outro, y ése a outro, y así
transformando tudo em matéria difusa. a una sucesión como ocurre con las uñas, cuyo recorte engendra
Na versão remake de “Las uñas”, isso fica bem evidente. una siguiente más creíble y más oscura, más real y poderosa”), o
Kate recebe a visita de uma nova vizinha que em meio a conversa leitor é convidado a reelaborar sua disposição de leitura.
durante o chá afirma que Kate participaria das gravações de um Na nota escrita por Mallo ao final do livro ficamos sabendo
novo filme em breve. Sabendo das negociações em sigilo, Kate que há uma versão digital enriquecida que conta com vídeos,
mostra-se surpresa com o comentário e recebe como réplica “algo alguns deles ainda hoje disponíveis na internet. Um desses vídeos
muy críptico: se mire como se mire, en verdad/solo hay dos acompanha a versão remake de “El simulacro”, que em nada
habitaciones/[gasolina y fuego]/cuando antes de acostartelo lembra a sátira política de Borges, magistralmente comentada na
juntas/todo en la noche”. A estranheza é estendida ao leitor. Que sofisticada leitura que Sarlo faz da narrativa. Em Mallo, é a própria
arte que é satirizada e Malevitch aparece usando uma camiseta

1
https://www.youtube.com/watch?v=rKLbzsKfSTI
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com a estampa de David Lynch e desculpando-se por “modificar sin poucos em virtude mesmo dessa operação de “escrita-através”,
retorno la trayectoria del arte retinianooccidental”. O vídeo que uma outra forma, um outro nome de autor.
expande a narrativa mostra Mallo filmando a si mesmo com Pois se é possível perceber na apropriação levada a cabo no
dificuldades para recolocar, utilizando apenas uma mão, o livro remake a valorização dos mitos que marcaram a poética do próprio
Carnival e Cannibal de Jean Baudrillard em sua embalagem Borges, (Quixote, Shakespeare, Homero, Quiroga, Sarmiento,
plástica2. Mallo parece sorrir da inabilidade do leitor em lidar com Macedonio, espelhos, jardins e bibliotecas), simultaneamente
a cópia, com os simulacros, inevitável associação quando se trata vamos nos acostumando a um rol de referências trazidas ao texto
do nome do filósofo francês, pois como afirma em “Paradiso XXXI”, pela voz de Mallo: Warhol, David Lynch, referências à ciência, em
o “simulacro... no obstante posee materialidad”. A apropriação, particular à física, à música pop, às ferramentas do Google. É em
então, consiste em um flerte com Borges e deriva em flanerie, em “Borges y yo” que a operação de “escrita-através” fica mais
comentário anotado, que expande o imaginário disparado na evidente: “seria exagerado afirmar que nuestra relación es hostil o
leitura em histórias arbitrárias, “ideas más o menos descabelladas, amistosa, sólo es: Borges vive, se deja vivir, para que yo pueda
derivas, trayectorias tangentes a la curva central del texto” seguir tramando en él mi literatura y essa literatura me justifica”.
borgeano, como afirma o próprio Mallo. Apropriadas por Mallo as palavras de Borges instauram um
Tal expansão imaginativa é operada com base em um simulacro que é ao mesmo tempo cópia e invenção: “no sé cuál de
desdobramento de referências que proliferam de forma los dos escribe esta página”.
escorregadia e quase incontrolável, tornando impossível ao leitor A noção de “escrita-através” é mencionada por Perloff para
harmonizar o “metastásico resultado” (cf. “BlindPew” na versão descrever a operação de apropriação de elementos da cultura pop
remake) dessa operação. (filmes, quadrinhos, colunas de jornal), o que permite ao autor
Isso não significa que Borges seja descartado ou torne-se “participar de um discurso maior e mais público” (2013, p. 41). A
desimportante. Pelo contrário, é a evocação incontornável de sua opção de Mallo por “escrever-através' de Borges indica um
presença, o convite ao compartilhamento da autoria, explicitado movimento que poderíamos considerar esquizofrênico, pois se
de forma magistral no título ( El hacedor (de Borges), Remake) que avança na direção da tradição literária, ao mesmo tempo aponta
sugere simultaneamente a presença e a ausência do nome de para fora dela ao evocar uma “sobreposição de registros” que se
Borges, de sua obra. É como se experimentássemos um mesclam à narrativa como fotos, links para vídeos na internet,
esmaecimento da figura do próprio Mallo que se apresenta através incorporação de verbetes da wikipedia. A ideia de forma coral, tal
de Borges, de seu livro, e, ao mesmo tempo, víssemos emergir aos como comentada por Sussekind, parece fazer bastante sentido

2
https://www.youtube.com/watch?v=zGxH8Zv4Z0EO automatismo da carnaval e canibal, antropologicamente, segundo a indicação do texto,
associação do nome do filósofo com a tópica da simulação parece eludida por extraindo-lhe origens etimológicas e significados inusitados (“Carnaval
uma outra torção expansiva no vídeo que ganha legendas e traduz as palavras (desenfundar, desmontar), 1 mano; Canibal (fundar, montar), 2 manos”)
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aqui. Pois na “operação de escuta” a esse texto, ouvimos uma Smithson que consistiu em percorrer as ruas de Nova York no final
“espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira da década de 60, fotografando elementos da paisagem de um
vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes, bairro do subúrbio a fim de provocar a discussão sobre a noção de
elementos não verbais, e de uma sobreposição de registros e de monumento. Só depois da justaposição dos dois contextos (o do
modos expressivos diversos”. narrador em 2009 e de Smithson em 1967) ficamos sabendo que o
A peça de remake que melhor ilustra esse procedimento é efeito de real construído desde a introdução do relato (lemos, por
“Mutaciones”. O original de pouco mais de meia página exemplo, que o narrador ao preparar-se para sair ouve tocar em
transforma-se na peça mais longa, e também central, do livro de um volume muito alto no rádio de um carro uma música ouvida
Mallo. É difícil para o leitor associar o remake de “Mutaciones” a por porto-riquenhos) é mero efeito de ficção (PANTEL, p. 65), pois
uma reescrita do texto de Borges, pois o texto é outro, ganha a trata-se de uma passeio virtual, feito através do computador, de
marca da assinatura de outro nome e, no entanto, Borges paira aí um telefone celular e com a ajuda do Google Maps: “tecleo em
fantasmaticamente, à maneira de um teste de Rorschach. Google las palabras 'Passaic, Nueva Jersey'. Sin mucha dificultad
A versão remake de “Mutaciones” descreve três passeios encuentro em Google Maps el plano actual de la zona,
refeitos virtualmente. A dicção consiste ao mesmo tempo em uma correspondiente a lo que fuera el recorrido de Smithson”. Ou como
apresentação e em um relatório comentado dessas experiências. o próprio Mallo o nomeia, um “Viaje psicoGooglegráfico”. Tendo
O primeiro passeio diz respeito à obra de Robert Smithson, ao lado a reprodução do texto de Smithson publicada em livro, o
publicada na revista Artforum em 1967, intitulada “Um passeio narrador refotografa as fotos tiradas pelo artista americano,
pelos monumentos de Passaic”, o segundo à reconstituição do incorporando-as à narrativa. O que lemos, então, é a simulação do
mapeamento feito por investigadores à procura de vestígios de passeio feito pelo artista, agora refeito virtualmente pelo narrador.
radiação após o vazamento na usina nuclear de Ascó na Espanha e A narrativa mescla a descrição minuciosa do percurso do próprio
no terceiro, o narrador refaz a busca por Ana, personagem do filme Smithson, interpolando a reprodução de sua obra-artigo publicada
“La Aventura” de Antonioni, que desaparece na trama. Comentarei na revista Artforum e o comentário expandido do processo
aqui, com mais detalhes, apenas o primeiro dos passeios. narrativo de experimentar virtualmente o passeio de Smithson por
O relato começa à maneira de um diário de viagem Passaic. A narrativa parece reunir um conjunto de anotações, de
informando ao leitor dados sobre a localização do narrador e os ideias em estado de arquivo, de esboço para a composição de uma
preparativos para o passeio: “Ciudad de Nueva York, año 2009, narrativa, que, no entanto, faz desse estado de aparente
finales de julio, 7.00 am, picaduras de mosquitos...Preparo el inacabamento sua condição de relato. À medida que somos
material, me aseguro que el teléfono móvil tiene suficiente batería”. arrastados para o que parece ser uma estratégia de presentificação
Em seguida, o texto parece querer contextualizar a motivação do do passeio, das ideias de Smithson, da experiência de refacção da
narrador explicando detalhadamente o emprendimento de caminhada pelo narrador, corroborado pela reprodução de fotos e
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mapas em reafirmação a um efeito de real, a narrativa estimula no prova, assim, irreverentemente, a imprevisibilidade das mutações,
mesmo movimento o efeito de ficção ao numa digressão associar sugerindo, simultaneamente, que a estratégia da apropriação pode
o ícone do computador, a mãozinha/seta que aparece para renovar as noções de originalidade e criatividade, pois como
identificar a posição do cursor na tela, com a luva branca de afirma Mallo: “la lógica del viajero es perseverar en paisajes
Michael Jackson e a lembrança de sua morte recente. Da mesma indeterminados, no dejarse llevar por una idea sino construir una
forma, o comentário da foto tirada com o celular a partir da idea, su própria idea”.
imagem de uma rodovia às margens de um rio que aparece na tela O procedimento de Mallo está fundamentado em uma
de seu IMAC, identificada com a ajuda do Google Maps, parece negociação permanente entre a voz de Borges e a sua própria, El
querer realçar a irrealidade das imagens: “Pateo esa zona de hacedor (de Borges) e seu remake, “entre realidade e ficção,
frontera autopista-rio, me detengo a registrarlo... aparecen unos narrativa e comentário” (BOURRIAUD, 2009, p.51) e se esse
puntos brillantes sobre el río, una constelación, o una suma de movimento gera estranheza, coloca em xeque a autoria e dificulta
constelaciones, me digo. La mano deldifunto Michael Jackson en a tarefa do crítico, parece um boa maneira de pensar a expansão
mitad de la imagen parece querer atrapar alguna estrella”. O efeito da literatura no século XXI.
de ficção fica mais evidente quando utilizando o zoom do Google
streetview fotografa uma passante em uma das ruas pelas quais Referências
caminha virtualmente e entabula com ela um diálogo: “Parece que AUGUSTÍN, K. P. Plagiarism: Aesthetic or a contemporary
la mujer se da cuenta de mi disparo, e inmediatamente, para movement? In: 452ºF. Electronic journal of theory of literature and
disimular, me acerco y le pregunto si ella es de Passaic o si está de comparative literature, 5, 2011. p.115-127, Disponível em:
paso”. http://www.452f.com/pdf/numero05/perromat/05_452f_perrom
Sem querer negar que a recuperação do relato feita aqui at_trad_en.pdf. Acesso em: 15/07/2014.
pareça muito distante do original de Borges, é possível, no entanto,
identificar nas mutações efetuadas um eco da voz original. O texto BORGES, J. L. O Fazedor. In Obras Completas. Vol. 2. S.P. Globo,
borgeano termina com a evocação a três “velhos utensílios do 2000.
homem”, a cruz, o laço e a flecha e profetiza que a memória não é
capaz de protegê-los do esquecimento ou pode mesmo ser BOURRIAUD, N. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo
responsável pelas transformações causadas inevitavelmente pela contemporâneo. Tradução D. Bottman. São Paulo: Martins, 2009.
passagem do tempo, sendo impossível saber no fim “em que
imagens o traduzirá o futuro” (p.196). Mallo parece seguir à risca GARRAMUÑO, F. Frutos Estranhos: sobre a inespecificidade na
o comentário, apropriando-se de um dos símbolos que estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
maravilhavam Borges para associá-lo a um ícone pop, colocando à
P á g i n a | 579

GOLDSMITH, K. Seven American deaths and disasters. Brooklyn, PANTEL, A. Cuando el escritor se convierte en un hacker: impacto
New York: Power House Books, 2013. de las nuevas tecnologías en la novela española actual. (Vicente
Luis Mora y Agustín Fernández Mallo). Revista Letral, número 11,
______. Uncreative Writing. Managing Language in the Digital Age. 2013, p. 55-69. Disponível em:
New York: Columbia University Press, 2011. www.proyectoletral.es/revista/descargas.php?id=184. Acesso em:
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P á g i n a | 580

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/21/objetos-
verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-
510390.asp. Acesso em: 22/10/2013.
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FÉNIX, MARIENE: EL ARTE DEL RETRATO EN EL TEATRO DE Podemos pensar en ese momento en la boda del rey Felipe
CALDERÓN DE LA BARCA II con María I, María Tudor, reina de Inglaterra, en 1553. Ella hija
Lygia Rodrigues Vianna Peres de Henrique VIII y Catalina de Aragón. Él hijo del imperador Caros
UFF V y de la reina Isabel de Portugal.

En la Corte de los Felipes en el siglo XVII, dramaturgos y


pintores enseñan la expresión del arte: poesía y pintura se
muestran en la escena teatral y, el retrato – memoria de la amada,
presencia de la ausente criatura, presentación y conocimiento de
novios reales en alianzas matrimoniales – se materializa en el arte
de la pintura en los salones y galerías para mostrar la nobleza de
las Casas en cuya estirpe se registra la memoria de los
antepasados y mantiene el orgullo de las familias en el presente.
Los retratos de los reyes enseñan la majestad y la excelencia de los
artistas. La estrecha relación política y cultural entre la Corte
española e Italia muestra la excelente influencia y presencia del
arte italiano en el arte español.
En lo que se refiere a alianzas matrimoniales entre novios
de distintas coronas para garantizar la paz, además de intereses
políticos y económicos.

Naturalmente debía el novio conocer la novia a través del


retrato. Mas el artista fue lisonjero al retratar la novia reina, nos
informa Diane Rodart, (1998. p.163) – enseñamos el retrato hecho
por Hans Eworthy - y al conocerla personalmente el novio, el rey
Felipe II, se sintió burlado sobre la belleza de su mujer. En el mismo
año de la boda, 1554, llama a Londres al pintor Antonio Moro que
retrata verdaderamente a la reina: enseña su rostro, facciones
duras, retrato tan vivo, tan natural, lo parecido en todo al modelo.
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De ese modo, el retrato de la reina de Inglaterra cumple sentado - por el pintor italiano Tiziano Vecellio, (1488/1490 - 1576)
con los preceptos de Francisco Pacheco: y de su mujer, la reina Isabel de Portugal, retrato de 1548.
Acercamos al modo de obrar […] a dos cosas se obliga el que Retratos, registros de la supremacía de la pintura sobre las demás
retrata, que si cumple con ambas es digno de alabanza: la artes – escultura y arquitectura – que demuestran la excelencia del
primera es a que el retrato sea muy parecido a su original y nombrado Apeles renacentista, además de dos retratos del
éste es el fin para que se hace y con que quede satisfecho el príncipe Felipe II.
dueño. A ésta se obligan buenos pintores y, de no
conseguirla, no se ha hecho nada. La segunda obligación es
que esté el retrato bien debuxado y pintado con buena
manera de colorido y fuerza de relievo. Y esta segunda
obligación tiene valor y crédito entre los de l´arte, porque,
sin que sea el dueño conocido, en razón de buena pintura
es estimado (1990, p.524).
Afirmamos que Antonio Moro cumplió con los preceptos de
Francisco Pacheco, el modelo, la reina Maria I de Inglaterra es
reconocida en su retrato. Mas faltó al pintor el decoro y no cumplió
con su arte. Alcanzó la semejanza en todas las partes, se adaptó
directamente a la realidad, imitando, sí, la realidad. Sin embargo
no corrigió ningún accidente, por ejemplo, amenizar sus duras
facciones y mostrarla más femenina. Le faltó al pintor la relación
de “imitación” a través de la idea que podía tener de la reina:
estudiar del natural e imitar artísticamente el modelo.
La nobleza tenía la preocupación y el gusto de mantener en
sus palacios un Salón de Linajes, cuyos antepasados en retratos
señalaban la participación de artistas, requinte y riqueza en la
constitución de dicha galería.
Por ello traemos, se lo podemos afirmar, la herencia de la Y si enseñamos los retratos de la reina María Tudor,
pintura de retratos reales desde el siglo XVI, por ejemplo, cuando traemos uno de los retratos de Felipe II, hecho por Tiziano
el imperador Carlos V tiene su imagen retratada en diferentes La excelencia de la pintura de Tiziano no es indiferente o
momentos – 1533, Retrato de Carlos V; 1548, Retrato del despreciada por el futuro rey de España Felipe II, admirador de la
Imperador Carlos V , en Mülberg, y Retrato del Imperador Carlos V colorista escuela veneciana, cuyo mayor nombre y representante
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es, como ya nos referimos anteriormente, Tiziano, de quien el rey


de España encomienda Poesías, es decir, pinturas mitológicas
como Venus y Adonis, que hoy se encuentra en el Museo del Prado
en Madrid.

El retrato de la persona amada, expresión del arte de la


pintura en el teatro de Calderón de la Barca, nos confirma la
excelencia de la pintura de retratos en Italia. Piero di Cosimo
(1462 – 1522) nos ofrece uno de los más bellos retratos, ejemplo
de la escuela de Florencia, en donde se destaca Leonardo da Vinci.
Expresión artística distinta de la escuela colorista de Venecia cuyos
Y el retrato, figuración de la persona real, alcanza tal mayores representantes son Giorgione y Tiziano.
importancia, que es la misma persona retratada. El retrato del Rey De ese modo, el retrato de Simoneta Vespucci, pintado
es cómo si estuviera él mismo en persona. Y un buen ejemplo de aproximadamente entre 1485-1490, celebra la belleza de la joven
esa presencia Real es La recuperación de Bahia del Brasil, 1625, de nacida en 1453, amada por Julio de Medicis y muerta de
Fray Juan Bautista Maino.: los rebeldes están arrodillados ante el tuberculosis en 1476, es decir, con apenas 23 años. Su belleza
retrato de Felipe IV. reconocida y admirada por los pintores en Florencia, fue el modelo
de Botticelli en varias de sus pinturas, como El nacimiento de
Venus”, La Primavera. Es decir, el artista la pintó no del natural,
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mas la idea que mantenía de su belleza. Eso la trasforma en Seguimos en nuestras consideraciones sobre la escuela de
leyenda y más aún, la muerte del Medicis dos años después. Ella Florencia en la cual destacamos el retrato de Cecilia Gallerani, La
es el encanto de la belleza femenina asociado a la virtud., cono nos dama con el Armiño, 1488-1490, de Leonardo da Vinci.
informa Gloria Fossi (1998, p.70). El bello perfil de Simoneta se El armiño es un mamífero pequeño, de unos 25 centímetro
destaca sobre el fondo negro, nubes de matices variados del azul de largo, sin considerar la cola, que tiene ocho centímetros, de piel
oscuro al blanco con alguna luz La sofisticación de su peinado hace muy suave y delicada, parda en verano y blanquísma en invierno,
contrapunto con la serpiente, el ouroboros, alrededor de su cuello, excepeto la punta de la cola, que se mantiene siempre negra.
la cual no completa cl círculo, símbolo de la eternidad. Simboliza la pureza.
Señala Carlo Pedretti ser ese retrato, tal vez, la más bella
tela de Leonardo. por la originalidad de la exposición de la modelo
y de la intensidad de la expresión (1998, p.96). Se establece una
relación simbólica entre la desenvoltura mundana de la joven y el
armiño en sus brazos: la posición trasversal de la pequeña cabeza
del animal, en diferencia con la cabeza ovalada de la joven. Es
importante señalar el juego de luces – el rostro de Cecilia, su
cuello, la cabeza del armiño y parte del cuerpo que se muestra al
espectador. Luces que se destacan sobre el fondo oscuro, el cual
delimita a la izquierda las sombras del traje de la modelo que, a su
vez, dstacan la mano de la joven sobre el animal. A la derecha el
fondo oscuro evidencia los matices del traje en azul, rojo y amarillo
sob dibujos negros.
La escuela de Venecia, colorista, se diferencia de la escuela
de Florencia por el uso de los colores, cuyo mayor representante
es Tiziano Vecellio. La excelencia de su pintura como hemos
señalado ya, lleva a Ludovico Dolce a afirmar que la naturaleza le
hizo al veneciano pintor, que su arte ha vencido la naturaleza, y en
el arte de la pintura de retratos es de tal excelencia que el natural
ya no parece natural. (2010, pp181-188).
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mira en su traje azul, con largos fruncidos en las mangas, seguidos


de fruncidos blancos que se ajustan en los puños. La sutileza del
velo amarillo - muestra apenas su cuello, - evidencia su bello
rostro, pelo negro coronado con adorno en flor de seis pétalas
delineadas con perlas, organizadas simétricamente en cuyo centro
una pieza ovalada presenta una piedra roja. Flor, perlas que
sustentan el velo en tonos marillo/castaño sobre su cabeça. La
posición de las manos se ordenan elegantemente en diferencia.
Hay que señalar la mano derecha de Laura delicadamente sobre el
ombro del niñito negro, cuyo traje en distintos tonos de amarillo
al castaño oscuro, contrasta y compone el retrato de la duquesa
de Ferrara. El fondo oscuro la destaca y la deja naturalmente en su
miarada hacia a nosotros espectadores.
Comprobada la importancia del retrato en el arte de la
pintura, pasamos a la presencia de pintura de retratos en el teatro
de Calderón de la Barca. Signos verbales en la réplica de los
personajes, iconos en la escena, imagen formalizada en la
imaginación del espectador; todo ello nos lleva a evidenciar la
estrecha relación del poeta, dramaturgo Calderón de la Barca con
el arte de la pintura. Poeta y dramaturgo a partir del reinado de
Felipe IV, contemporáneo de Diego Velázquez, el pintor de la
Las afirmativas de Ludovico Dolce nos llevan a reflexionar Corte de los Habsburgo. Los dos exponentes del arte convivieron
una vez más sobre la importancia del retrato, de se ver una en la Villa de Madrid y, naturalmente, nos dejó el dramaturgo su
persona retratada o tener su retrato por un nombrado pintor. El conocimiento y gusto por la pintura,
retrato registra la belleza, y enseña la idea de inmortalidad De ese modo, elegimos dos obras de Calderón de la Barca,
terrena. Por ello, naturalmente, la nobleza eterniza su imagen por protagonista del barroco europeo, en las cuales vamos a enseñar
la mano de grandes pintores: arte, refinamiento y riqueza. Es la estrecha relación entre pintura y poesía, a través de la pintura
ejemplo, uno más de los que ya señalamos de la supremacía y de retratos deprendidos en la misma escena o a través de las
excelencia del arte de Tiziano el retrato de Laura Dianti, pintado réplicas de los personajes: E principe constante, obra de 1628; El
aproximadamente en 1523. Ella, mujer del duque de Ferrara, nos mayor monstruo del mundo, 1637.
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En El príncipe constante el dramaturgo recupera la pálido, se muestra melancolia. En seguida, leemos la didascalia
memoria histórica de la Península Ibérica, cuando Portugal está explícita: Salen las Moras vistiendo a Fénix:
bajo la corona de España,1580-1640.1 EST.- Hermosa te has levantado
En Fénix, la princesa árabe predomina la melancolía. Ella ZARA.- No blasone el alba pura
abre y cierra el drama. Su nombre mitológico, el ave Fénix, señala que la debe este jardín
su supervivencia o trascendencia además de los límites del la luz, ni fragancia hermosa,
ni la púrpura la rosa,
espacio/tiempo; renace para la libertad, pues es cambiada por el
ni la blancura el jazmín. (p.249,2)
cadáver de don Fernando, muerto desde hace algunos años.
Estamos en el [jardín del Rey de Fez], nos informa la voz del Contrariamente a la réplica de Rosa, Zara enuncia la luz/ alba pura/
dramaturgo. Entran “cautivos cantando lo que quisieren y Zara”. superior a la /segunda aurora/ Fénix.; y los colores / la púrpura/ y
En la “situación” 2, oímos la réplica de Rosa que ordena la salida / la blancura, /rosa/ y jazmín/ del jardín/Fénix, pues la princesa es
de los cautivos e en didascalia implícita anuncia la llegada de Fénix: bella como la naturaliza, es / fragancia hermosa/. Se matiene,
.- Despejad, cautivos; da pues, el predomínio de los colores. Y oimos la réplica de la infanta
a vuestras canciones fin; árabe:
porque sale a este jardín . -el espejo.
Fénix a dar vanidad En la escena el espejo, la bella imagen de la princesa refletida en
al campo con su hermosura, el espejo se intensifica y sensibiliza al espectador, como señala
segunda aurora del prado.
Porqueras Mayo:
Vanse los cautivos. (p.249,1)
El marco del espejo queda desbordado por la figura de Fénix
La pintura metáforica, el retrato de Fénix, prepara al que lo trasciende para saltar del espejo al espectador. Por
lector/espectador para recibir la princesa y la anuncia más bella otra parte esta imagen melancólica de la princesa reflejada
que la naturaleza pues da /vanidad/ al campo…/; pero, / segunda en el espejo es la que permanece constante en la mente del
aurora del prado/ es decir, con menos luz. Si sabemos que “as espectador. (1977, p.691)
cores variam em razão da luz, uma vez que toda cor colocada na A la evidencia de la belleza de la joven princesa, Fénix la contesta
sombra não parece ser o que é na claridade” , como nos informa y afirma su melancolia:
Alberti . (1989, p.79). la joven árabe, con menos luz, tiene el color FEN.- ¿De qué sirve la hermosura

1
El tema de la obra, “El Desatre de Tanger”l a derrota de Portugal, bajo el consecuencia don Fernando es puesto en prisión y, en el drama calderoniano,
reinado de Don Duarte, en septiembre de 1437, permite al dramaturgo poner se hace mártir. Después de site años de cautiverio muere y es el Infante Santo
en escena el infante don Fernando, el hermano más joven del rey de Portugal. de Portugal. Historicamente e; ruega la concretización de negociaciones: su
El protagonista, ejemplo de fé y constancia, no permite el cambio de su libertad libertad por Ceuta, lo que no ocurrió.
por la restitución de Ceuta, conquistada por don Juan I, en 1407. En .
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(cuando fuese la mía)) El eco dulce escuché


si me falta la alegría, de tu voz, y apresuré
si me falta la ventura? por esta montaña el paso.
[...] de la pena mía ¿Qué sientes? (p.260,2)
no sé la naturaleza:
La joven princesa árabe explica la causa de su temor:
que entonces fuera tristeza
lo que hoy es melancolía.
Solo sé que sé sentir; una caduca africana,
Lo que sé sentir no lo sé; espírito em forma humana,
que ilusión del alma fue. (p.250,1) ceño arrugado y esquivo,
que era um esqueleto vivo
Como la más bela entre los demás personajes, belleza física, ella de lo que fue sombra vana,
se incorpora a los demás elementos decorativos que le rodean: el cuya rústica fiereza,
jardín y el mar. Metonímicamente los elementos de la naturaliza cuyo aspecto esquivo y bronco
evidenciam los colores del retrato de Fénix: /púpura/, /rosa/, fue escultura hecha de un tronco
/jazmin/, /blancura/, colores señalados, una vez más en la réplica sin pullirse la corteza. (p.261,1)
de Zara: Primeramente debemos aclarar el significado de /caduca/,
.- Pues no puedes divertir en siglo XVII: “es toda cosa frágil y perecedera; del lat.caducus, a,
tu tristeza estos jardines, um, fragilis, mobilis, mortales”, segundo el Diccionario de
que a la primavera hermosa
Covarrubias y Orozco, Tesoro de la Lengua Castellana o Española,
labran estatua de rosa
fecha 1611. La oposición entre la bella Fénix, bella con los colores
sobre templos de jazmines,
hazte al mar; un barco sea de la naturaleza, y la frágil africana, presentada al
dorado carro de sol. (p.251,1) lector/espectador en dibujadas líneas se intensifica por la síntesis
de los trazos en su representación, del todo: /espíritu en forma
En la jornada II, leemos la didascalia explícita, voz del humana/, a lo particular, los accidentes: ceño arrugado y esquivo/
dramaturgo: [Falda de un monte cercano a los jardines del Rey de - líneas, entre si, ora aproximadas, ora distantes, muestran las
Fez], “situación “1, cuando entra em cena Fenix, assustada. arrugas, desdeñosas, ásperas; particularidad que, una vez más, se
FÉN. -¡Zara! ¡Rosa! Estrella! ¿No hay quen responda? E
muestra - /era esqueleto vivo/ en su tétrica totalidad. Mas la
[Sale Muley] que contesta:
princesa árabe es capaz, a pesar de su horror, de se detener en los
Sí,
que tú eres sol para mí detalles: /cuya rústica fiereza/, /cuyo aspecto esquivo y bronco/.
y para ti sombra soy, Voz seguida por el espectador con la mirada atenta, voz que
y la sombra el sol siguió. intensifica la imaginación del lector y mantiene la expectativa,
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pues esperamos que el dibujo se complete en la escena en donde precio de un muerto ha de ser? (p.260,1)
/fue escultura hecha de un tronco/ sin pulirse la corteza/. Trazos En la “situación 16, jornada III, [Salen el Rey y Celín al muro. Y
definidores del diseño individualizado hecho tronco, semejante a pregunta el Príncipe don Alfonso, futuro rei de Portugal, don
la naturaleza, áspero, sin pulimento. Pues, con Pacheco, el maestro Alfonso V:
de Velázquez, declaramos: REY .- ¿Qué quieres, valiente joven?
Es el debujo […] la forma sustancial de la pintura. Es alma y D.ALF.- Que me entregues al Infante,
vida della, sin el cual sería muerta, sin gracia, sin hermosura al maestre Don Fernando,
y movimiento. Es la parte que tiene más dificultad de y te daré por resgate
vencer, antes no tiene la pintura en rigor (si así se puede a Tarudante y a Fénix,
decir otra dificultad; en la cual es menester grande que presos están delante.
perseverancia y fortaleza […] Es el caudal universal de la Escoge lo que quisieres:
pintura. (1990, p.344) morir Fénix o entregarle. (p.277,1)
De ese modo, la escena se muestra una pintura – la aproximación Así, se cumplen las palabras proféticas de la “caduca africana”.
de dos mujeres, tan opuestas – y se intensifica por el contacto, En El mayor monstruo del mundo, cuya protagonista es
pues afirma la princesa de Fez: /una mano me tomó/. Seguimos Mariene, mujer del Tetrarca romano , la voz del dramaturgo define
con la réplica de Fénix, réplica en donde el horror se revela en las los espacios de la acción: [La escena en las cercanías de Jafe, en
expresiones: /ser tronco/, /hielo-venas’, /horror/, /voces veloces/, Menfis y en Jerusalén].
/mortal veneno/, como leemos: En la “situación “1, primera jornada, leemos la didascalia
una mano me tomó, explícita, cuando se muestra al lector/espectador el espacio
y entonces ser tronco yo
escénico – [Sala en una quinta a orillas del mar en la playa de Jafe.]
afirmé por las raíces.
– lugar de la acción, lugar en donde Mariene llora ya su muerte –
Hielo introdujo en mis venas
el contacto, horror las voces, lugar en donde Salen músicos cantando y detrás el Tetrarca,
que discurriendo veloces, Mariene, Libia, Sirene y Filipo. Oímos la Música:
de mortal veneno llenas, MÚS.- La divina Mariene,
articuladas apenas, el sol de Jerusalén,
esto le pude entender: por divertir tus tristezas,
vio el campo al amanecer.
Cuando en palabras proféticas afirma: Las aves, fuentes y flores
¡Ay infelice mujer! le dan dulce parabién,
¡Ay forzosa deventura! repitiendo por servirla,
¿Qué en efecto esta hermosura al aire, una y otra vez:
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Sea triunfo de sus manos Terminada la música/loor a Mariene/Aurora, oímos la


lo que es pompa de los pies. réplica del Tetrarca Herodes, rey de Jerusalén:
Fuentes, sus espejos sed, TET.- Hermosa Mariene,
Corred, corred, corred. a quien el orbe de zafir previene
Aves, su luz saludad, ya soberano asiento,
volad, volad. como estrella añadida al firmamento:
Flores, paso prevenid, no con tanta tristeza
vivid, vivid. (p.458,1) turbes el rosicler de tu belleza. (p.458,2)
Música y poesía expresan el loor a Mariene: divina”, como/ La determinación del soberano confirma e intensifica
sol de Jerusalén/ ella /vio el campo al amanecer/. Los elementos gradativamente la relación metafóra: /hermosa/ reina estará en
de la naturaleza / las aves, fuentes u flores/, indician la /el orbe de zafir/ en /soberano asiento/; allí, /como estrella/
metáfora/alegoría: añadida al firmamento/. Alegoría: en Mariene /el rosicler de
Sea triunfo de sus manos […]belleza/ de la Aurora. Entretanto, en el nivel histórico, el orbe
lo que es pompa de los pies de zafir es el cielo de Roma conquistada – pretensamente – por el
Mariene, /sol/, entra en la escena reina de Jerusalén. La rey de Jerusalén, en donde Mariene tendrá asento soberano. Reina
didascalia ímplícita expresa los votos: la /pompa/ de su caminar en Roma será la mas alta y brillante estrella en el cielo azul. Pues
/sea triunfo de sus manos/, es decir, Aurora. Ella se muestra con en la “situación”5, afirma el Tetrarca:
las primeras luces y colores del amanecer; rosada, despierta y Todo mis intentos son
activa la naturaleza: /corred/,volad/,vivid/, que la refleja, que la entrar con ella triunfante
en Roma, porque no tenga
saluda con el canto de las aves. La Aurora, o Eos, con sus dedos
que envidiar mi esposa a nadie.
rosados, abre las puertas del oriente, despierta y da vida a la
¿Por qué ha de gozar belleza,
naturaleza. Los votos entonados intensifican y expresan, una vez que no hay que la iguale
más, la singular belleza de la joven reina: /Fuentes, sus espejos (error del mérito), un hombre
sed. Como Narciso ella se ve, pero en muchos espejos; imagen que hay otro que le aventaje? (p.462,2)
multiplicada, permanente y dinámica, pues se refleja y sigue o
Volvemos a la “situación 1, la didascalia implícita lleva el
corre desde las fuentes como reflejo de las primeras luces rosadas
lector a situarse juntamente con el espectador presente en el
del amanecer. Hay, portanto, tres niveles de lectura: histórico –
espacio de la acción: la quinta, espacio escénico en donde /el mar/
Mariene es la reina de Jerusalén; alegórico – Mariene es la aurora;
y /el cielo/ se muestran en /esplendor/, /flores/, /campo/,
y tropológico, como sol de Jerusalén ella ilumina sus súbditos a
/colores/, /matices/, /Flora/. /perlas/, /Aurora/, /música/, y
buenas costumbre.
/aves/:
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¿No habitas esta qunta La tristeza de Mariene se evidencia, portanto,


que sobre el mar de Jafe el cielo pinta? naturalmente en su expresión exterior. Conmueve al marido y, en
Pues no tan facilmente la representación, icono que se muestra, manifiesta el movimento
Se postre todo el sol a un accidente: – sentimento – del alma, y lleva el espectador/lector a pensar en
liberal restituya tu alegría
mucho más de lo que realmente ve.
su luz al alba, su esplendor al día,
Mas, el Tetrarca en los vv. 64.65: /a celos me ocaisionen
su fragancia a las flores,
al campo sus colores, mis desvelos./No sé más que decir: ya disse celos/ afirma para su
sus matices a Flora, mujer e indicia para el lector/espectador el sentimiento /celos/,
sus perlas al Aurora, cuya intensidade, independiente de su libre albedrío, es decir, del
su música a las aves entendimento, y de su voluntad, una de las potencias del alma, es
mi vida a mi, pues con discursos graves conducido a acciones extremas, a un fin trágico, como veremos.
a celos me ocasionan tus desvelos. En la escena 4, primera jornada, nos situamos en el espacio
No sé que más decir: ya dice celos. (p.459.1) [Sala de palácio de Menfis], en donde se encuentra el Imperador
Los versos /Pues no tan facilmente/ se postre todo el sol a un Octaviano, cuya victoria reciente sobre Marco Antonio y Cleópatra
accidente/ confirman el verso /no con tanta tristeza/ en la voz del lo lleva a declarar:
Tetrarca cuyo deseo expressa diretamente a su mujer: /liberal OCT.- Felice es la suerte mía.
pues de Egipto victorioso,
restituya tu alegría/. En los versos siguientes, los sentidos
dilato la monarquía
tropológicos - la alegría de la reina alegra a sus súbditos – e
de Roma, dueño famoso
alegórico – Mariene/Aurora dan vida a la naturaleza – intensifican de los términos del día.
la pintura y los atributos del retrato metáfora de Mariene por la Cante, pues, victoria tanta
ausência, en ese momento, de luces y colores. Mas un retrato, la fama, y en testimonio
expresión de su alma en el que la tristeza, acidente, la muestra en de que a todas se adelanta
sus colores sin la luz de la alegría. De ese modo podemos observa sean triunfo de mi planta
con Alberti: hoy Cleópatra y Marco Antonio.
Dizem os filósofos que nada se pode ver que não seja Presos a los dos procura
iluminado e colorido. Têm, pois, as cores grande parentesco llevar mi heroica ventura,
com as luzes para se fazerem vistas e quanto é grande esse porque lidiador bizarro,
parentesco se pode verificar pelo fato de que, faltanto a luz, sean fieras de mi carro,
faltam as cores, e, retornando as luzes, tornam as cores. el poder y la hermosura. (p.463,1)
(1989, p.79).
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Informa la voz del dramaturgo, “situación”6: [Salen Malacuca, procedente de una “Idea y forma intelectual”, orientación
Aristóbolo y un Capitán. Siguiendo las réplicas entre los aristotélico-escolástica afirmada en el Tratado de Lomazzo, en
personajes, leemos la réplica del Capitán a Octaviano: 1584 y afirmada por Federico Zuccari, en Idea, publicado en 1607.
Cifra es del mayor poder Plasmada en el intelecto, la Idea como “forma espiritual”, “diseño
su inestimable riqueza; interno”, reconoce los aspectos de la naturaleza en su
mas la pintada belleza individualidad y precede la realización; portanto, la Idea es
de una extranjera mujer representación en el espírito humano, y depende de la experiencia
sensible, “diseño”externo”. Luego, en la pintura encontrada por el
En la evidencia de la riqueza del rey de Jerusalén, Octaviano Imperador romano es reconocida la belleza individual de la joven
encuentra lo que será para él joya de mayor valor, el retrato de mujer, /viva hermosura/ y la /forma espiritual”: la /hermosura/ es
una bella mujer extranjera. Y declara: alma de la pintura, como nos informa Panofsky (1990, pp.77-81).
[Saca de cofrecillo un retrato.] De ese modo, el retrato de Mariene confirma el arte del
es la más noble y mejor pintor como nos asegura Vicente Carducho:
joya, y la de más valor. El interior Pintor pinta en la memória, ó en la imaginativa
los objetos que le dan los sentidos exteriores por medio
Información para el lector/espectador sobre el retrato de Mariene,
del sentido comun: a estos objetos perficiona este Pintor
arte del pintor que la representa /viva/ en su /hermosura/; arte
interior (si fuere docto) y con su sabiduría los elige y
todavía mayor, pues es la /hermosura/ el alma de la pintura. E corrige, haziendo en la imaginativa una perfecta Pintura,
Aristóbolo, cuñado del Tetrarca, en aparte, confirma la fidelidade la qual contempla y medita este docto entendimiento
del retrato: graduado por los actos de la razon y de la ciencia. (1977,
(Atento el Emperador p.188)
mira el retrato fiel; (p.465,1)
La /pintura/ referida por Octaviano y el /retrato fiel/, confirmación
de Aristóbalo, detienen nuestra atención para la cuestión del
sujeto, Mariene, modelo del retrato, y el objeto, el retrato.
Octaviano informa el arte del pintor como expresión de la
harmonía entre el exterior y el interior de la mujer del Tetrarca. En
el /retrato fiel/ estaría la confirmación de Mariene como la belleza
femenina perfecta, lo que permitiría al pintor retratarla tal ella es
en su exterior. Entre “imitar” y retratar y entre retrato y retratar,
respectivamente, está evidente una relación de imitación,
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Es pues, con ese teatro en el que el dramaturgo Calderón


de la Barca pinta retratos, como apenas, ejemplificamos, en la En el retrato de una dama, 1630—1633 de Velázquez
Corte de Felipe IV, que convive y actúa con la excelencia de su queremos enseñar una dama que, a lo mejor, puede acordarnos a
pintura Diego Velázquez. La influencia de la pintura italiana, sus alguna de las damas de las comedias y dramas de Calderón de la
viajes a Roma; la pintura de Tiziano conocida, por ejemplo, a través Barca, Tirso de Molina o Lope de Vega.
de los retratos del Imperador Carlos V y de Felipe II, como nos El fondo castaño claro destaca la dama en traje oscuro, que
referimos; la visita de Rubens a la Viila de Madrid, momento deja ver su cuello, con ligera sombra a la izquiera, adornado con
cumbre del arte, en el cual se encuentran los dos pintores – el collares, lo que favorece la evidencia su rostro claro, en tonos
holandés y el sevillano – por todo ello nos importa ahora enseñar rosados, adonado con el pelo en tono de castaño dorado.
tres pinturas de Velázquez: la reina Isabel de Borbón de pie, 1631- Observamos que Velázquez no apenas pintó el original, mas en la
1632. Nascida en 1601, hija de Enrique IV, rey de Francia, se casó sutil sonrisa, la mirada hacia el espectador, nos enseña, además el
con Felipe IV en 1621, es decir, muy joven, con 20 años. Murió en alma de la dama. La posición de las manos se muestran en
Madrid en 1640. Naturalmente, alianza matrimonial entre las dos diferencia, entre luz y sombra. La mano derecha, en plano
Coronas de Europa: España y Francia. superior, apoyada en el sillón es símbolo de alto rango. Mientras
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la izquierda con menos luz, en posición vertical enseña dos anillos La reina Mariana de pie, la mano apoyada en el sillón se
en los dedos. Es interesante registrar el traje con sus detalles destaca por su figura centralizada, bajo el símbolo de grandeza, el
evidencia la moda de entonces. cortinaje castaño, drapeado en luces y sombras , el que con la
mesita de mantel rojo señalan el espacio interior del cuadro. La
joven reina se destaca en su traje elegante y sobrio en negro con
adornos blancos opuestos en líneas rectas y circulares y
longitudinales. Éstas evidencian el cuerpo delgado y la cintura muy
pequeña. El pañuelo blanco en su mano izquierda se destaca sobre
el fondo negro del traje. El pelo distribuido simétricamente en arco
destaca todo el cuerpo de la reina en líneas diversificadas.
En conclusión, nos referimos a la importancia de la pintura
de retratos en la Corte de los Felipes en el siglo XVII en España,
cuando dramaturgos y pintores demuestran la expresión del arte.
Retratos, memoria de la amada ausente, retratos en galerías que
enseñan la estirpe familiar, retratos en alianzas matrimoniales
para conocimiento y reconocimiento de los novios. Retrato de
María Tudor, en los cuales la modelo pintada del natural no
correspondió a la real naturaleza de la modelo por la adulación de
los pintores en esconder los accidente en la naturaleza exterior de
la reina, enviados desde Inglaterra al novio Felipe II.. Por ejemplo
el retrato pintdo en 1554 por Hans Eworth. El novio desilusionado
con el natural quiere un retrato más, el cual, pintado por Antonio
Moro, faltó el decoro del pintor para suavizar los accidentes del
natural.
Por último enseñamos el retrato de la reina Mariana de Señalamos los retratos de Carlos V y de Felipe II pintados
Austria, pintado entre 1651-1652. Nació en Viena en 1634 y murió por Tiziano. Intentamos mostrar la pintura de retratos en
en Madrid en 1696. Sobrina y segunda esposa de Felipe IV, cuya diferentes momentos, como el de Simoneta Vespucci,; el de La
boda confirma la dinastía de los Habsburgo en España, la cual dama con el armiño de Leonardo da Vinci de la Escuela de Florencia
empezó con Carlos V de Alemania y Carlos I de España, a partir de y Tiziano representante de la Escuela colorista de Venecia, el
1516.
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retrato de Laura Dianti. Resaltamos la supremacia de la pintura de la persona amada, testigo de alianzas matrimoniales entre coronas
Tiziano, nombrado el Apeles en el Renacimiento. europeas, además de registros de la moda de entonces.
En los retratos de Fénix y Mariene prevale el colorido sobre
el dibujo. Colores venidas del frescor y juventud del amanecer. Referencias
Colores naturales evidencian la armonía la belleza y naturalidad en ALBERTI, L.B. Da Pintura. Trad. de MENDONÇA, Antonio da Silveira.
la pintura de las dos jóvens, Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.
Fénix, naturalmente melancólica, en metáforas pintada,
apunta su hado, cumplimiento de las palabras proféticas de la CALDERÓN DE LA BARCA, P. El príncipe constante. In: Obras
“caducas africana”. Belleza árabe sitúa el lector/espectador en el Completas, vol. I Dramas. Madrid: Aguilar, 1969.
espacio/monte en donde se detiene para un descanso. Allí está la
fuente que murmura y corre; allí, el pequeño monte, coroado de CARDUCHO, Vicente. Diálogos de la pintura. Su defensa, origen,
/clavels y jazmines/. Allí ella descansa /sobre un catre de esencia, definición, modos y diferencias. Edición de CALVO
carmín/en donde hizo un lecho de esmeraldas. Es, portanto, en ese SERRALLER, Francisco. Madrid: Turner, 1977.
espacio cuyo dibujos – fuente, monte, clavel, jasmín – enseñan el
relioeve/volumen evidenciado por los desvelados colores que se COVARRUBIAS HOROZCO, Sebastián. Tesoro da la Lengua
pintan carmín y esmeralda. Fénix se da a la soledad, oye el ruido Castellana o Española. Edición de ARELLANO, Ignacio y ZAFRA,
de las hojas. A la multiplicidad de signos/iconos formaliza, Rafael. Pamplona: Biblioteca Áurea Hispánica, 21, Edición de
portanto, el espacio escénico, cuando le aparece la “caduca Clásicos Españoles, 2006.
africana”. Podemos verlas, teatralizarlas en nuestra memoria, pues
están en escena Fénix, la princesa árabe y la “caduca africana”. DOLCE, Ludovico. Diálogo de la Pintura, Titulado Aretino, y otros
En el retrato de Mariene la belleza que es el alma de la escritos de Arte, Edición de Santiago Arroyo Esteban. Prólogo de
pintura, retrato fiel, encontrado por Octaviano, idea en colores Fernando checa Cremades. Madrid: Akal, 2010.
sobre la tela pintada. Reina de Jerusalén, mujer del Grande
Herodes, el Tetrarca, ella muere trágicamente, cuya causa es “el MAINO, Juan Bautista. La Recuperacicón de Bahia del Brasil.
mayor monstruo del mundo, los celos. Disponible en http://www.museodelprado.es/
Finalmente, dos retratos pintados por Velázquez: el de una
dama y el de la reina Mariana de Austria. PACHECO, Francisco. El arte de la pintura. Edic. introd. y notas
En la ilustración de nuestras reflexiones señalamos la BASSEGOA I HUGAS, Bonaventura. Madrid: Cátedra, 1990.
belleza de las pinturas, el arte de pintar retratos – Piero di Cosimo,
Leonardo da Vinci, Tiziano y Velázquez - memoria permanente de PANOFSKY, Erwin. Idea. Madrid: Ensayos de Arte Cátedra, 1989.
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PEDRETTI, Carlo. Léonard et Giorgione. L’épaule et le miroir. In:


FOSSI, Gloria. (Direc.) Le Portrait. Paris: Librairie Gründ, 1998.

PORQUERAS MAYO, Alberto. En torno al “Principe constante. La


Relación Fénix-Fernando. In V CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN
INTERNACIONA DE HISPANISTAS. Instituto de Estudios Ibéricos e
Iberoamericanos,. Actas. Université de Bordeaux III,. Bordeaux: pp.
687-698, 1977.

RODART, Diane. Le portrait de cour dans l’Europe du XVIe siècle.


In: FOSSI, Gloria. (Direc.) Le Portrait. Paris: Librairie Gründ, 1998.

TIZIANO. Retratos de Carlos V e de Felipe II. Disponíbles en


www.olga’sgallery o www.abcgallery.com
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SONETOS DO PRADO A forma física da retina, redonda, é explorada, como uma


Marcelo Maciel Cerigioli tela refletora no fundo dos olhos —“profundo espejo que atesora”
USP/CEETEPS (ALBERTI, 1948, p. 17) e, por extensão, na companhia da menina
dos olhos —“niña de luz” (ALBERTI, 1948, p. 17), do formato
O livro A la pintura (1948), do poeta espanhol Rafael redondo do olho —“jardín redondo” e “flor circular” (ALBERTI,
Alberti, produzido no pós-guerra em seu exílio na Argentina, 1948, p. 17) ou dos elementos circulares: “sol cerrado” e “abierta
apresenta três classes de poemas: a dos que se dedicam às cores, luna”, “hora de sol sin hora” (ALBERTI, 1948, p. 17).
a dos que homenageiam os pintores do Museu do Prado e a classe Essa imagem expande-se, possibilitando o sentido de janela
dos poemas que tratam dos elementos do universo pictórico. aberta para o mundo —“donde mora / de par en par pintada la
Esta última coloca em destaque diversos elementos do belleza”, “ajimez a la mar de la ventura” (ALBERTI, 1948, p. 17),
universo pictórico, como se pode ver a partir de seus títulos: “A la completada pela amplitude —“el sinfín de la naturaleza”, “noche
pintura”, “A la retina”, “A la mano”, “A la paleta”, “A la pintura de grandeza”, “hora de sol sin hora”, “torre del homenaje de la
mural”, “Al lienzo”, “Al pincel”, “A la línea”, “A la perspectiva”, “Al vida”, “pintor de los pintores”, “fuente inmortal de la pintura”
claroscuro”, “A la composición”, “Al color”, “Al ropaje”, “A la luz”, (ALBERTI, 1948, p. 17)— e pela onipresença, através dos
“A la sombra”, “Al movimiento”, “Al desnudo”, “A la gracia”, “A la paradoxos: “siempre vivaz, aunque dormida”, “si sol cerrado,
acuarela”, “A la divina proporción”. noche de grandeza, / si abierta luna; hora de sol sin hora”
De acordo com a temática, os poemas sobre os elementos (ALBERTI, 1948, p. 17).
do universo pictórico podem ser classificados em três subclasses: Além disso, com a metáfora da retina-pintora, alusão à
objetos concretos, abstratos e técnicas de pintura. Para abranger criação da visão no cérebro, o poema também focaliza a beleza das
essa variedade, foram escolhidos poemas das três subclasses, ou cores —“donde mora / de par en par la belleza”, “flor circular que
seja, os poemas “A la retina”, “Al claroscuro” e “A la acuarela”, irisa en su cabeza / del rayo negro al rubio de la aurora”, “¿qué
compondo, assim, o objeto de estudo deste artigo. sería sin ti de los colores, / niña de luz, pintor de los pintores?”
O poema “A la retina” homenageia a parte do olho (ALBERTI, 1948, p. 17), ressaltando a importância da retina no
responsável por captar e enviar as imagens da visão para o reconhecimento destas no mundo, pois é preciso conhecê-las para
cérebro, um elemento fundamental para o pintor. poder imitá-las ou recriá-las na pintura.
A visão constitui o tema central do poema, destacando, Para representar a retina, o poema trabalha tanto a forma
desde o início, a sua função fotográfica, já que o olhar possui a física, através de termos relativos ao redondo, evocando a imagem
capacidade de captar as tantas imagens que o mundo oferece para do olho, como também sua função fotográfica para a pintura, ou
o cérebro poder reuni-las na memória. seja, de caixa observadora do mundo, que permite ao pintor
exercer a sua profissão com beleza, detalhes e perfeição.
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Já o poema “Al claroscuro” trata de uma estratégia fases de sua pintura, o poema identifica esse recurso com o pintor:
inovadora renascentista, constituída pelo contraste entre a luz e a “Rembrandt febril de la Pintura” (ALBERTI, 1948, p. 67).
sombra, que cria o efeito do volume em um objeto, sem utilizar Portanto, para criar esse objeto abstrato, o poema “Al
linhas de contorno. claroscuro” recorre aos seus elementos constituintes, como a luz
Este volume é marcado no poema a partir da justaposição e a sombra, os contrários e os contrastes, além da evocação de
entre luz e sombra, pois, para serem destacados o brilho e a luz, é Rembrandt, mestre do claro-escuro.
preciso utilizar a sombra como fundo, o que está apresentado em Já o poema “A la acuarela” presta homenagem à pintura
“nocturno, por la luz herido, / luz por la sombra de repente” e que utiliza tintas diluídas em água, técnica adequada para criar
“claro en la noche y por el día oscuro” (ALBERTI, 1948, p. 67). imagens de transparência e luminosidade.
Para marcar o uso do claro-escuro, o poema também Sua imagem principal, a água, atravessa todo o poema,
recorre aos contrários e paradoxos: “claro ofensor de súbito exaltando seu aspecto líquido —“mojada”, “abrevadora frente”,
ofendido”, “Si el día tiembla, tú, noche valiente; / si la noche, tú, “agua primaveral”, “lluvia florida”, “sumergida”, “líquido”,
día enardecido”, “A ti, contrario en busca de un contrario”, “fresca”, “bebida”, “alivio de la sed”, “llorada”, “te agotas”, “río” e
“adverso que al morder a su adversario / clava la sombra en una “mar” (ALBERTI, 1948, p. 123)— evocando a mitologia na imagem
luz segura” (ALBERTI, 1948, p. 67). da ninfa das águas: “ninfa de acequias atanores” (ALBERTI, 1948,
Este contraste intensifica-se tanto, a ponto de adquirir o p. 123).
status de batalha, luta entre a luz e a sombra, o que lhe dá maior No poema, associa-se à ninfa outra propriedade da água, a
dramaticidade —“arrebatado, oscuro combatiente”, “A ti, capacidade de deslocamento do líquido —“expandida”,
acosado, envuelto, interrumpido, / pero de pie, “corriente”, “corres”, “creces” e “río hacia el mar” (ALBERTI, 1948,
desesperadamente”, “Tu duro batallar es el más duro” (ALBERTI, p. 123), dando ênfase à rapidez, necessária no uso da aquarela,
1948, p. 67) destacando a violência: “herido”, “herida” e “clava” pois se não houver rapidez, a água evapora-se e a tinta pintada
(ALBERTI, 1948, p. 67). seca antes que o trabalho esteja terminado: “alma ligera”, “cuerpo
Ocorre neste poema uma identificação entre o claro-escuro de premura”, “corres”, “creces” e “amaneces” (ALBERTI, 1948, p.
e o pintor Rembrandt, o que é indicado por palavras que sugerem 123).
o perfil desse artista de capacidade especial para expressar Além disso, a propriedade de ser límpida, atribuída à
emoções, como se pode notar nas formas “arrebatado”, aquarela, reforça a imagem da água, além de aludir às
“envuelto”, “desesperadamente”, “enardecido” ou no adjetivo características de iluminação e de transparência dessa técnica de
“febril” (ALBERTI, 1948, p. 67). Como o pintor holandês foi um pintura: “límpida”, “inmácula”, “trasparente”, “espejo” e “luz”
grande mestre no uso do contraste e do claro-escuro em todas as (ALBERTI, 1948, p. 123).
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De um lado, estão presentes os pigmentos das cores — ou “Al”, como uma forma de dedicatória, por exemplo: “A la
“rosa”, que são diluídos na água, gerando imagens de conforto e retina” ou “Al claroscuro” ou “A la acuarela”.
de felicidade, compondo a técnica da aquarela: “jubilosa”, “alivio”, Quando o objeto é concreto, o poema volta-se para o
“feliz”, “primaveral” e “florida” (ALBERTI, 1948, p. 123). De outro aspecto físico do instrumento homenageado, quando é abstrato,
lado, o pincel, com sua secura e suas cerdas, contrapõe-se à água busca outra forma de aproximação, recorrendo a elementos afins
e seu universo de beleza e conforto: “su cabellera ardiente”, de seu contexto e, quando se trata de um tipo de pintura, procura
“fresca y mitigadora luz bebida”, “alivio de la sed de los colores” descrever sua técnica. Para tanto, recorre à forma clássica do
(ALBERTI, 1948, p. 123). soneto para tratar desses elementos, elevando sua importância, já
O pincel é visto como elemento capaz de transferir a que esses simples instrumentos ou elementos usados para pintar
pintura ao papel, ou seja, de pintar: “Llorada de tus ojos, corres, não costumam estar relacionados a formas poéticas tão nobres.
creces, / feliz te agotas, cantas, amaneces” (ALBERTI, 1948, p. 123). Quanto à distribuição dos versos, os poemas são muito
Ao mesmo tempo em que se mostra a tristeza na imagem do pincel parecidos, com o início das três primeiras estrofes com o uso de
chorar a tinta, também é apresentada a felicidade do mesmo em versos que descrevem e qualificam o objeto homenageado. No
se esgotar. verso final, ao concluir a definição do elemento homenageado no
Desta forma, compõe-se a imagem do esgotamento, poema, há a elevação da importância que ele possui, pois, alude a
esvaziamento e, ao mesmo tempo, a da abundância de água e sua função na atividade da pintura, terminando todos os sonetos
cores, correndo com a pintura como um rio em direção ao mar, com a expressão “de la Pintura”, com esta última palavra escrita
movimento que retrata a transferência do pigmento da paleta, via em letra inicial maiúscula, o que exalta mais ainda a posição dessa
pincel, para o quadro. Os versos apresentam imagens que buscam arte.
construir essa forma de pintar, como um líquido que atravessa o Nos outros tipos de poemas do livro A la pintura,
poema, desaguando no verso final: “río hacia el mar de la Pintura” como no poema-prólogo, “1917”, nos poemas sobre as cores e
(ALBERTI, 1948, p. 123). sobre os pintores, há a convivência do eu-lírico da guerra, com um
Assim, o poema cria a imagem central do encontro do pó outro, da paz. No entanto, ao analisar o recorte de poemas sobre
colorido com a água, saciando a sede do pincel seco, que se os elementos do mundo pictórico, evidencia-se que nestes
desloca feliz em direção à pintura, como um rio em direção ao mar, poemas, diferente dos demais, há o predomínio da perspectiva da
compondo a técnica da aquarela. paz. Assim, destaca-se a arte como resposta à violência.
Todos os poemas dedicados aos instrumentos ou Os poemas analisados também ajudam a demonstrar como
elementos do universo pictórico apresentam os títulos em caráter o livro A la pintura recria o Prado da vivência de Alberti:
de homenagem, já que os mesmos começam sempre com “A la” […] Museo en adelante va a ser símbolo de muchas
realidades importantes, la juventud, un modelo de cultura
civil bárbaramente abolido, el matrimonio del pueblo en
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peligro, y con esta importancia emerge y domina la gran


elegía que es el poema A la pintura, a la vez que un
esperanzado inicio del retorno (HENARES, 1990, p. 198).
Nestes poemas, o “eu” busca o passado saudoso e a terra
distante, ou seja, o paraíso perdido a partir de uma distância dupla,
tanto temporal como espacial, desde a maturidade vital e poética,
na relação entre pintura e poesia, uma manifestação da visão
integradora das artes, que caracteriza a obra de Alberti.
A la pintura recria o Prado por meio das técnicas e dos
elementos da pintura, o que representa a adolescência de Alberti,
já que evoca seus primeiros contatos com as obras do Museu, na
imagem de suas aulas de pintura e desenho. Assim, em A la
pintura, os elementos da pintura elevam a importância desta arte,
mostrando as técnicas utilizadas pelos grandes pintores, presentes
no Prado, celebrando a poesia, a linha, a cor e a pintura.
Portanto, cores, pintores e quadros configuram o paraíso
perdido de Alberti, destruído com a Guerra Civil e o exílio. Nessa
medida, os poemas sobre os elementos do mundo pictórico
apresentam a arte, a beleza e a paz como respostas à violência, à
morte e aos horrores da guerra.

Referências

ALBERTI, Rafael. A la pintura. Poema del color y la línea. [1945–


1948]. Buenos Aires: Losada, 1948.

HENARES, Ignacio. La pintura y la estética en Alberti. Cuadernos


Hispanoamericanos, Madrid, nº 485–486, p. 198, nov./dic. de
1990.
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O CRUZAMENTO DE LINGUAGEM EM JORGE RICARDO AULICINO Como apontado anteriormente há na estrutura do livro
Márcio Luiz Oliveira Pinheiro Hostias a presença do cruzamento de linguagens, especialmente
IFAM com a musical. Ele está dividido em três partes Dies Irae, Hostias e
Communio. Os títulos de cada uma das partes guarda semelhança
Na obra de Aulicino, podemos perceber a presença de com os movimentos do Requiem mozarteano. As partes do livro
relações entre as artes visuais e a música. Estas relações estão são Dies Irae associada ao movimento andante; Hostias, ao allegro
manifestas de diversas formas, por exemplo, seja em estrutura de e Communio, ao adágio. Para Aulicino (2006. p. 1), em La infancia
livro, como no caso de Hostias (2004), seja em títulos de poemas, del procedimiento, o elemento musical que conforma o arcabouço
como por exemplo: “Cézanne” de Poeta Antiguo (1980); do livro integra o segundo plano, pois quando se avança na leitura,
“Michelangelo”, “Jan Vermeer”, “Última Sinfonía” de La Caída de percebe-se que a religião e a história ocupam o primeiro plano ao
los Cuerpos (1983); “Coloristas” do livro Paisaje con Autor (1988); tratar de temas como a comunhão e a morte, entre outros, que são
“Arte Fotográfico”, “Mirada en una Foto Color”, “Música para abordados poeticamente em relação a apreensão da realidade.
Aeropuertos”, “Donizetti” e “Un Canto” do livro Hombres en un A seguir, abordaremos as relações intersemióticas na
Restaurante (1994); “Baja Resolución”, “Bach y un Cartel”, “Perros construção das imagens e sentidos poéticos na obra do Aulicino.
de Bach”, “Misa Brevis (Mozart)”, “La Rendición de Breda. El Prado,
Madrid” e “404” de Primera Junta (1995-1996); “Intermezzo Planos e focos na poetização de sentidos
Interrotto (Bèla Bartók)” do livro Almas en Movimiento (1995); “7- A representação de planos e de focos atua na poetização
Caravaggio” e “Kyrie Eleison” do livro Hostias (2004) e “Los dos sentidos por meio dos quais a realidade é captada por Aulicino
Náufragos de la Medusa” do livro El Capital, (2010). E, obviamente, e sua relação com a história, a religião, a arte, a
essa presença das artes visual e musical está na construção de intangibilidade/imaterialidade e ao mesmo tempo concretude da
imagens seja nos poemas em que essa presença está explícita no realidade. Esta percepção é ratificada pelo entendimento da Sara
título ou em poemas que isso não acontece, como por exemplo: Cohen (2012, p. 14) ao afirmar que a representação da realidade
em “La Poesía Tiene una Felicidad que le es Propia”, de La Caída na poesia de Aulicino se dá por meio de um entrecruzamento entre
de los Cuerpos (1983); “Habeas corpus”, “Victoria Land (II)” e arte, história e religião, que podem estar dispostos em diferentes
“Buenos Momentos en el Sanatorio”, de Hombres en un planos, sendo expressos por um observador apresentado como
Restaurante (1994); “Un Lírico” e “Saludos Detrás de una Postal de imparcial ao narrar os fatos. Para abordar a relação estabelecida
Berlín del Este” do livro Almas en Movimiento (1995); “Whale’s com as artes pictórica e musical, faremos referência a dois poemas,
Blow” do livro Las Vegas (2000) e “12”, de Cierta Dureza en la um da década de 80 e outro dos anos 90: “Cézanne” (de Poeta
Sintaxis (2008). Antiguo, 1980) e “Donizetti” (de Hombres en un Restaurante, 1994).
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Cézanne configurado pelo questionamento sobre os espaços em branco de


a Santiago Kovadloff algumas telas do pintor impressionista.
Sólo con inclinarme de derecha a izquierda, Para Kovadloff (1980. p. 9), Cézanne deixou em branco
de izquierda a derecha, me basta, aquilo que não podia ver, uma vez que o ato de ver equivaleria a
escribía Cézanne. entender. Deste modo, Cézanne tem o ato de pintar como um
Podría pasarme la vida aquí modo de olhar (compreender) os objetos. Segundo Sara Cohen
inclinándome de derecha a izquierda, (2012. p. 2), o espaço em branco retratado é substancial tanto para
de izquierda a derecha o poema quanto para a pintura como registro daquilo que o artista
y no agotaría la realidad, explicaba. decide não pintar. Logo, o que parece inesgotável no olhar do
Espacios en blanco en las últimas telas de Cézanne artista sobre a realidade vai ao encontro daquilo que não se vê.
indican a los expertos Deste modo, o não ver inevitavelmente reorientará o que é visto.
que había llevado su teoría hasta el último extremo. Segundo Marcelo Cohen (2000. p. 14) a questão dos
Otros espaços em branco que o poema traz ao tratar das últimas telas de
los atribuyen a dificultades de la vista: Cézanne se refere ao pensamento de que o poeta deve trabalhar
Cézanne dejó en blanco lo que no podía ver.
a partir dos fragmentos recolhidos pelos sentidos, confiando a
En este caso (o en ambos),
verdade à incompletude das sensações. A poetização desses
¿por qué Cézanne no esforzó la imaginación?
El interrogante debería hacer pensar sentidos parece acontecer mediante três planos: a voz de Cézanne,
a esoteristas vernáculos, a a dos especialistas em arte e a do eu-lírico, em suas quatro
distintas especies de mistificadores. questões cruciais no poema. Estas indagações sobre o inesgotável
da realidade são reincidentes no poema “Donizetti”, publicado por
¿Por qué Cézanne no quiso pintar lo que sus ojos
Aulicino quatorze anos depois.
-aun moviéndose con su cuerpo de derecha a izquierda,
Donizetti
de izquierda a derecha- no podían ver?
Cómo pudo un hombre, cómo pudo,
¿Por qué escriben sobre lo que el corazón no ve?
dice, imaginar esta música, sinécdoque,
¿Por qué escriben sobre lo que la inteligencia no celebra o
una parte por el todo, esa lágrima
llora? (2012, p.45)
que flota, suspendida galaxia.
Percebemos que, em “Cézanne”, os focos estão postos na Cómo pudo imaginar el sentido más allá
impossibilidade do artista (poeta/pintor) alcançar uma y ponerlo luego acá, en esta música
representação “total” da realidade e na incompletude da mediante la cual el árbol en la ventana,
manifestação artística do captado pelo coração ou pela una taza sobre la mesa,
inteligência. No poema “Cézanne”, encontramos um eixo parecen flotar en el principio
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pero también en el fin. que dá início ao poema e o outro, diz respeito ao eu-lírico no que
Y a la vez el amor, i palpitti, esos latidos se refere à expressão poética da autorreflexão; ambos englobam
que podrían hacer saltar todo y sólo lo prueban. o âmbito do material. O segundo plano se refere à questão da
Cómo pudo, dice, encontrar el sentido “força criadora” ou da “essência”, na figura do sentido, que
y decir furtiva lágrima en letra y música.
desestabiliza o mundo ao redor, englobando o âmbito do
Cómo se detiene un momento todo y es objeto
imaterial.
la botella de plástico con agua mineral
y las gotas condensadas en la botella y Entre a época da produção dos poemas “Cézanne” e
es objeto, satori, la lágrima entrevista. “Donizetti”, podemos mencionar “Habeas Corpus”, do livro Paisaje
Cómo lo común estable se hizo inestable con autor (1988), em que também se percebe a existência de uma
inminencia en esa música si se quiere relação direta à arte e em especial à arte pictórica.
en extremo triste, Habeas corpus
en extremo intolerable, do livro Paisaje con Autor, (1988)
en extremo Un cuerpo muere y estira su mano
dichosa. (2012, p. 155) (¿hacia un océano dorado, un invierno violáceo?; nadie lo
Neste poema parece haver respostas, não desprovidas de sabe ni lo ve).
surpresa ou admiração, àquelas perguntas em “Cézanne”, Un pintor puede pintar la mano de Rembrandt sobre la
retomando o tema do inesgotável da representação da realidade, sábana,
pela via da imaginação e de uma autorreflexão sobre o comum- pero no la agonía del cuerpo entre sus columnas de
estável transmutado pela música e seus sentidos contraditórios. obsidiana.
Em “Donizetti”, a arte se faz presente na figura da música que El cuerpo no se ve.
parece ser o ponto de injunção do poema. Ele põe o foco na Ni con los ojos de la mente ni
autorreflexão do eu-lírico sobre o sentido que pode ser entendido con los ojos de la piel.
Nadie pinta en realidad un cuerpo.
como se fosse a “força criadora” ou “a essência” que desestabiliza
Se ha pintado espuma en los ojos del que muere,
o mundo ao redor.
lo entrevisto en el alba;
Esta desestabilização ocorre, porque, no poema, o mundo
ao redor está sendo notado através da percepção deste sentido hipótesis, en todo caso, sobre el cuerpo. (2012, p.104)
que é trazido pela música e apreendido pelo eu-lírico em sua Em “Habeas Corpus,” há a presença de dois planos: o
autorreflexão. Esta é expressa poeticamente, revelando-nos a primeiro diz respeito à impossibilidade de representação de um
presença de dois planos: o primeiro diz respeito a dois pontos: um corpo que está envolvido na intangibilidade da morte representada
se refere à questão musical que aparece primeiro, sendo o ponto pela agonia (versos 1, 4 e 5). O segundo plano do poema diz
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respeito à representação da morte que ocorre, por exemplo, na la guerra pudorosa de unos nobles hipócritas.
figura da espuma, mas devido a sua intangibilidade nos permite Pero advertid la mirada de este soldado
apenas alcançar hipóteses sobre o corpo (versos 9, 10 e 12). Ambos solicitando
os planos encontram eco no título do poema, pois a expressão consideréis la cuestión en su aspecto casual,
estos colores, verdinegros marrones, por ejemplo,
latina habeas corpus, no mundo jurídico, diz respeito a um
que caen por doquier,
instrumento que tem por finalidade garantir a liberdade de alguém
reptan al acaso, se mueven en una profundidad de mar
que se encontra preso (ALEXANDRE DE MORAES. 2000. p. 132); o de plasmas, y donde en verdad descubrirán
assim, tal expressão pode ser entendida poeticamente como a la lucha en que me pierdo. (2012, p. 407)
representação da liberdade por meio da morte, expressando
hipótese sobre o corpo. Nele, se percebe também um entrecruzamento que oferece
Nos poemas “Arte Fotográfico” e “Victoria Land (II)”, de algumas possibilidades. A primeira se refere a uma percepção
Hombres en un Restaurante (1994), os planos e focos nas imagens objetiva do elemento material para a formação de uma imagem
são construídas principalmente em relação à arte da fotografia. Já através do entrecruzamento da arte, em primeiro plano, com a
no poema “La Rendición de Breda. El Prado, Madrid” os diferentes história em segundo plano (versos de 1 a 6). O primeiro plano é
planos guardam relação com a arte pictórica na figura de um formado pela arte que está explícito no título e se encontra
determinado quadro de Velázquez e o foco está posto no registro presente no tema. O segundo plano é formado pela história que
da hipocrisia de uma época. teve um dos seus atos imortalizado na tela do quadro e é sobre o
La Rendición de Breda. El Prado, Madrid registro deste ato por parte do pintor que o eu-lírico desenvolve o
do livro Primera Junta (1995-1996), (2009) questionamento poético.
No corpo do poema “Arte fotográfico”, devemos prestar
¿No era de esperar que después de la batalla
atenção ao verso 4 e à seleção de palavras ou expressões lexicais
hubiese en las miradas de estos hombres
una inteligencia estrábica y en sus ropas (“registrar”, verso 6; “fondo” e “fuera de foco”, versos 4, 5 e 7), pois
pingajos de sangre? Y en las lanzas y en vinculam o texto à arte fotográfica:
las cabalgaduras, sangre también, y hasta vísceras. Arte fotográfico
Sin embargo pactan la rendición en un amable abrazo do livro Hombres en un Restaurante, (1994)
mientras un soldado mira la cámara Quería nada más que un gesto doliente,
-la grupa de un caballo ocupa el primer plano el gesto del dolor desconcertado,
y hay un papel, como volado de la escena, a la derecha-. pero sabía que detrás habría algo
He aquí mis compromisos cortesanos, porque las fotografías tienen fondo
parece decir Velázquez, y el fondo es imprevisible si se trata
en este efecto retablo en que se desarrolla de registrar un rostro desprevenido.
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El fondo fue una mano fuera de foco. (2012, p. 143) [...]


no completamente fuera del cuadro ( 2012, p. 128)
O poema expressa muito bem a imagem de diferentes
planos na percepção. No primeiro plano, o eu-lírico aponta o gesto Podemos dizer que os planos, focos e enquadramentos
de dor, mas também destaca um segundo plano, do fundo, que se metaforizam a dimensão existencial e o mundo afetivo do sujeito
caracteriza pela imprevisão uma vez que aquilo que é retratado é lírico. O eu-lírico propõe um não entrar completamente “no
algo que não se tinha em mente. quadro”para perceber os ventos, as músicas e as flores. Nesse
No poema “Victoria Land (II)” a seleção lexical se concentra andar do sujeito, a mulher acompanha e nessa caminhada o
no elemento do enquadramento fotográfico: sentido poético é também o de não estar “completamente fuera
No salgan del cuadro completamente del cuadro”.
no salgan del cuadro. O tema do inesgotável da representação da realidade pela
Esta es la foto, no se salgan via da imaginação ou pela via da autorreflexão está presente ao
del cuadro. (2012, p. 128) longo da obra do Aulicino. Por exemplo, em poemas como
Isso nos permite fazer uma vinculação entre planos, focos, “Michelangelo” de (La Caída de los Cuerpos, 1983) , “Whale’s Blow”
fotografia e sentidos poéticos. Para o poema a foto só estará em de (Las Vegas, 2000) e “7- Caravaggio” de (Hostias, 2004).
sua plenitude se o objeto fotografado se posicionar num ponto de Em “7-Caravaggio”, o inesgotável da representação se faz
intercessão entre o dentro e o fora do quadro como se pode presente na representação do esvaziamento do homem de sua
depreender da leitura dos versos 5 e 23: humanidade e o inesgotável da realidade ocorre pela via da
Si no entran completamente imaginação. Ele apresenta uma representação poética de flashes
Pueden sentir el viento de los caminos. concretos de uma cidade da sociedade industrial contemporânea
En la velocidad del viento escuchar voces y música cujos espaços urbanos esvaziam as pessoas de sua humanidade,
de civilizaciones. conforme os versos 9 a 11, 16 e 19:
[...] Y como una gota de sangre bajaría a los depósitos con luz
Mas allá de los pantanos verán la aurora boreal. cruda.
[...] Juntando el tono de millones de tonos y los restos de los
Y verán flores azules sobre el campo vasos
si no entran completamente en el cuadro. y la grasa de millones de papeles tirados a la calle.
Los acompañará una música de geishas [...]
voces de esposas y madres El que está en el cuadro es ellos.
amarán a las esposas como a geishas [...]
[...] Ellos con teléfonos portátiles en las rotiserías. ( 2012, p. 355).
mientras mantengan la marcha
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Em “7- Caravaggio” há também alusões ao claro-escuro1 de cobre en fundición.


(Lambert. 2008. p, 32 e 47) , que o permeiam como um todo. Desta Asistí a este espectáculo preparado por los dioses sólo para
forma, percebe-se a presença de dois planos: a) o da mí
intangibilidade/imaterialidade e b) o da concretude. O primeiro estrujando la caja de cigarrillos vacía, el pie sobre un charco
destes planos pode ser observado nos versos 5 a 8: de algo,
Empezaría en lo inenarrable. dolor en las cervicales. ( 2012, p. 264)
En la calle empezaría la primera pincelada.
No que se refere ao inesgotável da realidade, em “Whale’s
Y como en un viaje de pájaros sonámbulos
atravesaría las pequeñas fortalezas de los instintos” (2012, Blow”, ele é construído pela via da imaginação no que se refere à
p. 355). sua representação que pode ser notada por meio da conjugação
dos sentidos diante da manifestação do acaso na figura dos deuses,
Em “Whale’s Blow”2, o inesgotável da realidade se faz pois a princípio o eu-lírico somente podia ouvir a apresentação,
presente tanto pela representação poética do que uma cidade tem mas a partir do momento em que ele consegue conjugar os
de construído quanto pela via da imaginação no que se refere à sua sentidos ocorre a construção da realidade com a qual ele interage.
representação(AULICINO, 2006). O título do poema é uma Em “Michelangelo”, o inesgotável da realidade está
referência explícita ao que uma cidade tem de construído por se presente na representação de visões divergentes sobre a criação
referir a um determinado edifício. Nele, a religião, na figura da do mundo. A expressão poética desta oposição de entendimentos
divindade, comporia o segundo plano em foco e a música, na figura representados por diferentes planos nos dá uma imagem da
do trompetista, estaria no primeiro plano. composição pictórica representada no poema. O poema nos dá
Whale’s Blow
outra compreensão sobre o conceito de bem, mal e Deus que será
A causa de la gente amontonada en la barra, no podía
considerado de um modo objetivo para a formação de uma
ver a los músicos, hasta que de pronto sorprendí
la imagen del trompetista sobre el vidrio de un cuadro imagem pelo entrecruzamento da religião, em primeiro plano, com
colocado de manera lateral a arte em segundo plano.
y vi la trompeta anaranjada a causa de la mezcla de luces Dios separó la luz de las tinieblas
que comenzó a brillar cada vez más como si hubiese estado y llamó Día a la luz y Noche a la penumbra
hecha y yo soy un escultor a quien príncipes y Papas

1
Como se sabe, a obra de Caravaggio é marcada pelos contrastes de claro e arquitetura dos edifícios da referida cidade que era composto pela foto do
escuro, sendo considerado um dos precursores da arte barroca. edifício em questão seguido de explicações sobre sua arquitetura. Desta forma,
2
O poema “Whale’s blow” integra o livro Las Vegas que contém uma série de ele pretendeu criar representações poéticas daquela cidade a partir daquilo que
poemas que têm por título o nome de edifícios da cidade norte americana ela tem de construído.
homônima ao título do livro. Ele foi escrito após a leitura de um livro sobre a
P á g i n a | 606

confundieron con un topo sucio Antes de apontarmos elementos da heterogeneidade


agazapado bajo la bóveda de la Capilla Sixtina. ( 2012, p. 75) discursiva em “Bach y un cartel”, relacionaremos esta noção com
A religião compõe o primeiro plano do poema, que começa os estudos bakhtinianos; nos quais, Authier-Revuz (1990) se apoia.
com o entendimento criacionista de mundo. O segundo plano do Desta forma, vemos que a heterogeneidade mostrada para Bakhtin
poema é composto pela arte representada pela composição das (1988, p. 150) pode corresponder a um estilo linear ou a um estilo
pinturas que decoram a capela Sistina. Com o entrecruzamento dos pictórico. A heterogeneidade marcada corresponderia ao estilo
planos acima mencionados, temos a ocorrência de uma imagem linear por criar contornos exteriores nítidos à volta do discurso
cuja finalidade é a de representar a divergência sobre o citado. Já o estilo pictórico corresponderia à heterogeneidade
entendimento criacionista como se pode perceber nos seis últimos marcada ou à heterogeneidade não marcada, pois permite ao
versos. autor atenuar os contornos exteriores da palavra de outrem para
se expanden luces en las sombras colori-lo com os seus sentimentos e para expor os seus
y tinieblas en la luz cristalizada comentários (AUTHIER-REVUZ. 1990, p. 36; SERRANI, S. 2008, p.
donde querría sumirme: 61).
la plenitud es una cuestión de formas Bach y un Cartel
que non parlano,babbo,
“Suponiendo que huyera, sería preludio
Dios no ha separado nada ( 2012, p. 75)
de algo mayor”. Estaba parado y daba la espalda
a la puerta de aquel sitio público,
O dialogal e a articulação de mundos nos poemas muy interesado en demostrar que el juego
Abordaremos a presença do tom dialogal e da ocorrência con las palabras merecía respeto
da heterogeneidade discursiva em poemas do Aulicino. Desta como la agonía de un tonto.
Habló de Bach y de las asociaciones
forma, podemos dizer que o tom dialogal é uma marca na poesia
de fugas y preludios:
dele. Este e a heterogeneidade discursiva atuam tanto na
modos de pespuntear la realidad, reflexionó.
representação do mundo e na construção de sentidos quanto nas Matemáticamente el jaque existe, contesté,
indagações autorreflexivas do poeta a elas relacionadas; conforme ¿por qué no colocarse en jaque de entrada?
se verá a seguir ao abordarmos os poemas: “Bach y un Cartel” e ¿A qué huir, gotoso, o a qué tramar el mate ajeno?
“La Rendición de Breda. El Prado, Madrid” (ambos do livro Primera Pespunteos los árboles, la espuma, las piedras, contestó.
Junta (1995-1996), 2009). Como é evidente, neste último, o Bach para las cosas y el ajedrez para el hombre mortal.
cruzamento de linguagens acontece pela ressonância do título do Podíamos haber quedado en paz,
quadro do pintor espanhol Diego Velázquez. pero, más allá de los árboles, algo de neón faltaba.
Se prendía y apagaba mientras se sentó, gozoso.( 2012, p.
415)
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Nos dois primeiros versos do poema, a citação demarcada no poema sobre a representação da nobreza e sua hipocrisia no
pelas aspas contém elementos de estilo linear, na perspectiva quadro.
bakhtiniana (BAKHTIN, 1988. p. 150), ou seja aquele em que La Rendición de Breda. El Prado, Madrid
parece haver uma reprodução literal das palavras de outrem. Tal do livro Primera Junta (1995-1996), (2009)
citação dá início ao poema e nos prepara para a representação do ¿No era de esperar que después de la batalla
dialogal, que, por sua vez, nos conduz às indagações hubiese en las miradas de estos hombres
autorreflexivas presentes nos versos 11 e 12. Estas atuam na una inteligencia estrábica y en sus ropas
construção do sentido poético segundo o qual deveríamos aceitar pingajos de sangre? Y en las lanzas y en
as coisas como elas se apresentam, pois ao tentar abordá-las las cabalgaduras, sangre también, y hasta vísceras.
sempre haverá uma representação que escapará a nossa Sin embargo pactan la rendición en un amable abrazo
percepção. O referido tom se sucede tendo como pano de fundo a mientras un soldado mira la cámara
-la grupa de un caballo ocupa el primer plano
representação do material e do imaterial.
y hay un papel, como volado de la escena, a la derecha-.
O imaterial está representado pela ausência da luz no ato
He aquí mis compromisos cortesanos,
de piscar. Já o material está representado pela luz acesa e, na parece decir Velázquez,
relação entre Bach e as coisas: as árvores, a espuma e as pedras. en este efecto retablo en que se desarrolla
No poema, o nome de Bach está vinculado à representação do la guerra pudorosa de unos nobles hipócritas.
elemento musical que pode expressar a imaterialidade. Isto Pero advertid la mirada de este soldado
porque não há quem possa tocar materialmente a música solicitando
enquanto objeto, mas todos podem, sim, ser tocados por ela no consideréis la cuestión en su aspecto casual,
que se refere à imaterialidade dos sentimentos e sentidos por ela estos colores, verdinegros marrones, por ejemplo,
despertados nos ouvintes. Logo, nota-se que, em “Bach y un que caen por doquier,
Cartel”, está em foco aquilo que escapa à representação na figura reptan al acaso, se mueven en una profundidad de mar
o de plasmas, y donde en verdad descubrirán
dos elementos musicais como fugas e prelúdios e do ato de piscar
la lucha en que me pierdo.
como sinônimo de ausência de luz.
(Aulicino, J. Estación Finlandia, 2012. p. 407)
Já, em “La Rendición de Breda. El Prado, Madrid”, a
poetização de mundos implícitos que atravessam a obra artística Os mundos implícitos que atravessam a obra de arte foram
compreende o entrecruzamento da arte com a história. Isto ocorre poetizados graças à presença da voz de Velázquez, que parece
graças ao recurso da heterogeneidade discursiva mostrada (Authier, ratificar a impressão do eu-lírico de que, na representação
J 1990. p. 98), pelo qual o poeta introduz a representação da voz pictórica da rendição, há uma falta de veracidade quanto à
de Velázquez (verso 10), para mobilizar o efeito crucial de sentido representação de um conflito bélico. Esta percepção se faz
presente graças à não representação pictórica por parte de
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Velázquez de elementos como sangue, vísceras e expressões de (Almas en Movimento, 1995) e “Kyrie Eléison” de (Hostias, 2004).
angústia. Em “Buenos Momentos en el Sanatorio”, o dialogal está associado
No referido poema, percebe-se que a expressão pictórica às relações sensíveis entre a arte e o êxtase produzido por ela ou
do conflito quando representada poeticamente parece transmutar por sensações da cotidianidade. Nele, temos a presença do estilo
o foco da obra de arte. Isto porque se, no quadro, o foco está posto linear. Já nos poemas “Un Canto”, “Un Lírico” e ““Kyrie Eléison”, ele
na idealização do conflito; na expressão poética, ele compreende está associado ao procedimento de autorreflexão para a
a origem de tal representação idealizada, a saber: “o compromisso composição da cena objetivista. Em “Un Lírico” e em “Un Canto”,
cortesão” (verso 10). Tal compromisso está representado pela voz há a presença do estilo linear e, em “Kyrie Eléison”, há a presença
de Velázquez por meio da heterogeneidade mostrada. Este recurso do estilo pictórico.
permite a presença no poema da linguagem visual representada No sentido bakhtiniano, “Kyrie Eléison” lança mão do estilo
pela voz de Velázquez (verso 11). Authier-Revuz (1990. p. 98) pictórico, fazendo com que os sentidos do poema e suas
afirma que esta ocorre quando um fragmento do dizer inscreve um inquisições filosóficas se manifestem através de um tom dialógico.
conjunto de formas na sequência do discurso. Para a autora a O poema se inicia com um tom narrativo e, no meio dele, há a
heterogeneidade mostrada se divide em marcada e não marcada. presença de um tu e de um questionamento que montam a cena
Neste conjunto de formas marcadas, distingo aqueles que em que ocorre uma procura (versos 7 ao 11):
mostram o lugar do outro de forma unívoca (discurso direto, la vida se parecía a lo que habías dicho, a la promesa
aspas, itálicos, incisos de glosas) e aquelas não marcadas de un infinito en el que las formas no tenían intimidad con
onde o outro é dado a reconhecer sem marcação unívoca nosotros.
discurso indireto livre, ironia, pastiche, imitação...” (Authier- ¿Qué sustancia era esa, qué sustancia, que te negabas a
Revuz, 1990, p. 36) nombrarla
y que en verdad no hubieses podido nombrar, porque tu
No poema “La Rendición de Breda. El Prado, Madrid”, a voz
reino era aquel, (2012, p. 336)
de Velázquez parece ratificar o entendimento do eu-lírico de que
a expressão pictórica daquele conflito é oriunda de uma Em “Un Lírico”, o estilo linear está associado ao
representação falsamente pudorosa. Isso para Velázquez, no procedimento de autorreflexão, atuando na construção da cena
poema, significou dizer “compromisos cortesanos” e na tela, pintar objetivista. No referido poema, alguns versos depois do jogo de
um quadro cujo tema é um conflito armado com total ausência de vozes, o poeta introduz sua questão na forma de interrogação
consequências bélicas, a saber: a presença pictórica de sangue, indireta (versos 12 ao 14):: "Entiendo esta parte del asunto, le dije,
vísceras, expressão de angustia ou de mortos. // sin embargo, me gustaría saber // qué cosa pintaría con esa
Entre outros poemas que fazem uso do tom dialogal mujer. (2012, p. 189)
podemos ilustrar com: “Buenos Momentos en el Sanatorio” e “Un O poema “Un Lírico” tem por um de seus assuntos a
Canto” de (Hombres en un Restaurante, 1994), “Un Lírico” de representação pictórica e começa com uma imagem de citação
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cujo aparente discurso direto leva a quebra entre a representação ¿darán algún testimonio?
do tradicional modo de pintar e o mundo visceral trazido pelo Escuchados por seres de otro universo,
poema (versos 1 ao 3):"Pintaría un cuadro con esa mujer, dijo, // ¿qué querrán estos sonidos, qué dirán?
pero no tomándola como modelo, // sino con sus vísceras, con la ¿Qué significará testimoniar? (2012, p. 156)
sangre de su sexo. (2012, p. 189) No poema acima, o tom dialogal é usado também como
O dialogal concorre para o sentido do poema, porque o uso recurso para introduzir o mundo autorreflexivo. Deste modo, é
que o poema faz dele e da interrogação indireta é crucial para a possível perceber que o fazer poético de Aulicino abrange uma
construção do seu sentido. articulação de mundos, além do cruzamento de linguagens, que
Em poemas como “Buenos Momentos en el Sanatorio” a compreende a expressão de diferentes planos em que concorrem
outra voz não é a de um interlocutor individual, mas uma voz diferentes temas como se pode depreender de poemas como “7-
genérica, incluída no poema em estilo linear, nos termos Caravaggio” e “Un Canto”. Em “Un Canto”, há a presença de dois
bakhtinianos, com trechos entre aspas e outras marcas (versos 7 a mundos: um é interno ao sujeito poético e o outro é exterior a ele.
14): O mundo interior é caracterizado pela autorreflexão. Ela se
“Este es un cuadro naturalista”, se dice, deixa ver por meio da heterogeneidade mostrada marcada que dá
“puesto que Monet atrapó la felicidad de esos árboles o tom dialogal ao texto. Nele, podemos perceber o
¿O la felicidad de esos árboles sólo la vemos Monet y yo? entrecruzamento de linguagens: a musical e a poética que
Pero sin duda es la misma felicidad que yo veo en los configura a expressão de dois planos: um ligado ao mundo exterior
árboles reales.” e o outro vinculado ao mundo interior. O mundo exterior ao sujeito
De pronto se abre a su espalda una puerta poético é caracterizado pela música de um grupo chamado
y el pasillo es invadido por la fragancia del café. Bauhaus (versos 1, 11 e 12) cuja sensação causada no eu-lírico abre
Como si abriera una grieta en su pensamiento caminho para a expressão do mundo interior que é caracterizado
otro éxtasis. (2012, p. 152) pela autorreflexão expressa poeticamente, versando tanto sobre o
O tom dialogal aqui é dado pela fala interna do eu lírico ato de testemunhar quanto sobre os sentimentos despertados
representada em uma voz geral “se dice” que permite poetizar pela música ou pelo passar do tempo (versos 8 a 10 e 16 a 20).
sobre as relações sensíveis entre arte e êxtase produzidos pela arte “7-Caravaggio” é um dos poemas que compõe o livro
ou por sensações da cotidianidade. Em “Un Canto”, o dialogal Hostias, neste livro, a expressão de diferentes planos pode ser
funciona dialogicamente, representando a fala interna do eu, mas apontada pela representação da religião, na figura da comunhão
sem generalização, pois o eu lírico se mostra (versos de 3 a 8). como sugere o titulo dele e na sua vinculação com a arte que se faz
Estos sonidos estarán – me digo – mucho tiempo grabados presente pelo nome do pintor expresso no título do referido
En cintas electromagnéticas y discos compactos: poema. Em “7-Caravaggio”, o cruzamento de linguagens possibilita
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a expressão de dois planos, um se refere à ______. La infancia del procedimiento. 31. oct. 2006. Disponível
intangibilidade/imaterialidade e o outro diz respeito à concretude em <http://lainfanciadelprocedimiento.blogspot.com.br/
que pode englobar a arte, considerando o componente claro- 2006/10/jorge-aulicino.html>. Acesso em: 26 de mai. 2012.
escuro da representação que permeia o poema.
Por fim cabe ressaltar que na poesia do Aulicino ______. Estación Finlandia. Poemas reunidos 1974-2011. Bajo la
encontramos as seguintes características: uma relação entre as luna. Buenos Aires, 2012.
artes visuais e a música que corrobora para a construção das
imagens e dos sentidos poéticos por meio da expressão de AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité(s) Énonciative(s). In: Langages,
diferentes planos e focos e pelo entrecruzamento entre arte, 19e année, nº73, 1984. pp.98-111. Disponível em:
história e religião. Há também a ocorrência da heterogeneidade <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/lgge_
discursiva e do tom dialogal, atuando na representação do mundo 0458-726X_1984_ num_ 19_ 73_1167>. Acesso em: 10 de dez.
e na construção dos sentidos e nas indagações autorreflexivas do 2012.
poeta. Entre essas características, percebe-se também a presença
de uma carga ficcional no discurso poético mediante a presença de ______. Heterogeneidade(s) Enunciativas(s). Tradução de C. M.
um personagem que faz as vezes de um observador imparcial que Cruz e J. W. Geraldi. Cadernos de estudos linguísticos, jul/dez. 1990,
faz uso de uma língua ascética, impessoal, paradoxal e narrativa Campinas.
(Amarante e Elissagaray. 2010. p. 18 a 27 e 179).
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ANGEL RAMA Y LA INTERPRETACIÓN DE LATINOAMÉRICA EN borde, atravesando países, culturas, lenguas, disciplinas e
CLAVE CULTURAL Y UNITARIA. ideologías. En ese sentido Angel Rama fue un hombre
Marco Antonio Bonilla Díez verdaderamente representativo de nuestra época y nuestras
UNIANDES circunstancias (MORAÑA, 2004, p. 146).
En su vasta obra intelectual destacan tres textos
Angel Rama es uno de los críticos culturales y literarios más fundamentales: Transculturación literaria en América Latina, Las
sorprendentes de América Latina. Su trabajo tiene gran máscaras democráticas del modernismo y, especialmente para los
importancia dentro de la crítica latinoamericana por diferentes propósitos de este texto, La ciudad letrada. Junto a estas tres
razones. Quizá aquella de mayor relevancia tiene que ver con su obras, una panoplia de ensayos constituyen un impresionante
aporte para la comprensión de las distintas dinámicas culturales arsenal para interpretar Hispanoamérica y Lusoamérica en clave
que se han dado en el continente latinoamericano. cultural. Más allá de la variedad de temas abordados a lo largo de
Su talla intelectual, como narrador, periodista, editor, su fecunda carrera, “en el cerebro de Angel Rama, un verdadero
dramaturgo, antólogo, crítico, compilador y ensayista, se evidencia uruguayo universal, esa pasmosa actividad tenía una brújula”
en su papel en muchos de los debates culturales latinoamericanos (LAFFORGUE, 2002, p. 97). Su trabajo está orientado por la
que animaron la academia en la segunda mitad del siglo XX. Su búsqueda de un patrón cultural común a América Latina. La
labor crítica y académica se desarrolló desde fines de los años 50, producción ensayística de Rama está cruzada por una permanente
hasta el trágico accidente aéreo de Mejorada del campo, en el que seducción hacia una interpretación de América Latina en clave
perdió la vida junto con su compañera Marta Traba, mientras unitaria y cultural.
viajaban a Bogotá para asistir a un encuentro académico. Ese día Rama acuñó un concepto indispensable para interpretar la
aciago, culmina una vida que le llevó de su natal Uruguay, donde historia cultural de América Latina: la ciudad letrada que, como
dirigió por más de 10 años la sección literaria del semanario afirma Carlos Monsivais, es ya un sinónimo de la vida literaria en
Marcha, hasta su vida de académico expatriado en Puerto Rico, nuestras urbes, un espacio en donde los escritores se han reunido,
Venezuela y los Estados Unidos. disentido, peleado, creado revistas, enfrentado gobiernos,
Su vida refleja como un espejo pulido su obra. Habitante de pactado con tiranos y caudillos y buscado su mecenazgo (RAMA,
la ciudad letrada que criticó y analizó con fascinación, Rama fue un 1984, p. 5).
sujeto cruzado por lógicas de exilio y transculturación. Su obra Hay, en la historia de nuestro continente una gran cantidad
constituye, aún hoy, uno de los pilares inescapables del de esfuerzos por interpretar la realidad histórica de América Latina
pensamiento culturalista latinoamericano. Personaje liminal, en clave económica, atendiendo a los diferentes paradigmas que
cruzando constantemente fronteras nacionales, Rama es un explican la realidad cultural y política como determinados por la
verdadero intelectual transnacional, sujeto de una vivencia en el base material y económica de nuestros países. Desde el paradigma
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de la dependencia de corte cepalista o keynesiano, pasando por construcción cultural a la manera del “Oriente”, de Edward Said.
los diferentes marxismos y más recientemente el En la diversidad de sus partes, América Latina tiene una realidad
paradigma neoclásico walrasiano, abundan las explicaciones ontológica que, para Rama, está fuera de toda duda.
economicistas, mientras en nuestro continente las aproximaciones La pulsión totalizadora y unificadora de América Latina en
culturalistas brillan por su ausencia. el trabajo de Rama le lleva a una lectura orgánica en clave cultural
Hasta la obra seminal de Rama, La ciudad letrada, las que puede ser aplicada desde el norte de México hasta la
lecturas culturalistas en y sobre América Latina se caracterizaban Patagonia, y desde Recife hasta Baja California. No se trata, como
por su fragmentación. Como señalaba acertadamente Hugo afirman algunos críticos como Friedhelm Schmidt que Rama –
Achugar en el prólogo a La ciudad letrada hace casi treinta años, la como lo hiciera la teoría de la dependencia- considere a la cultura
creciente especialización de críticos y profesionales, estaba latinoamericana como una sola y homogénea, la misma en todos
conduciendo a una lectura fragmentaria de la cultura los países de la región (MAZZOTTI, 1996, p. 142). No. Por el
latinoamericana (AGUILA, 2004, p. 2) que llevaba consigo una contrario, Rama considera la cultura latinoamericana como
balcanización de la mirada sobre nuestra realidad histórica. totalidad en su heterogeneidad, en una forma similar a como la
Hay en Rama una voluntad de coherencia y unidad al considera otro gran crítico latinoamericano, el peruano Antonio
abordar la realidad cultural de Hispanoamérica y lusoamérica, sin Cornejo Polar.1
desconocer la diversidad que la constituye. Rama trata América Obras como Diez problemas para el narrador
Latina como una enorme comunidad imaginada, cruzada por latinoamericano (1972), La generación crítica (1972), La
lógicas de transculturación. La ciudad letrada es un intento de indagación de la ideología en la poesía (1980), Transculturación
hacer un discurso macroestructural que abarque todo el narrativa en América Latina (1982), La novela latinoamericana
continente, para expresarlo como conjunto, como totalidad. Rama (1982) y Literatura, cultura y sociedad en América Latina (2006),
compone y presenta una América Latina como unidad cultural, evidencian la centralidad de la preocupación de Rama por una
distinguible en el concierto mundial como una realidad clara y lectura culturalista de América Latina como unidad orgánica, como
distinta. En este orden de ideas, hay en Rama un afán explícito por totalidad. Sin embargo, es La ciudad letrada (1984) la obra de
demarcar y enunciar la especificidad cultural latinoamericana. Rama donde este cohesiona, en un hilo narrativo que recorre toda
Para Rama, América Latina se presenta como una entidad la historia cultural de América Latina, la función cómplice de la
concreta, dotada de existencia intrínseca, no como una clase letrada, en el ejercicio del poder. En este texto Rama sigue el

1
Aunque Antonio Cornejo criticó en un breve ensayo el concepto de naturaleza diversa, no simplemente impuestos desde arriba por los poderes
transculturación narrativa por no cumplirse en todos los casos en los que hegemónicos, coloniales o nacionalistas. Más que contradictorios u opuestos,
encuentran las culturas, los conceptos tienen en común un acento cultural y en los dos conceptos son, como lo señala acertadamente Raúl Bueno,
concebir la cultura latinoamericana como un sumatoria de elementos de complementarios para el análisis de la literatura y la cultura en la región.
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devenir del intelectual latinoamericano para fundar una crítica de y transdisciplinario “dentro del marco de la crítica continental,
la cultura que, aunque cuenta con antecedentes en la tradición pero subrayando la necesidad de precisión histórica, la
crítica, aparece directamente vinculada al tema de la producción importancia del análisis textual y la de sus conexiones con las
cultural en la historia de América Latina. diversas series culturales, el crítico elude las restricciones de un
La apuesta de Rama no es otra que generar un metarrelato sistema esquemático” (PINEDA, 2000, p. 53). Así, Rama construye
de la modernidad latinoamericana. Rama inicia su análisis en el un discurso crítico que, pese a su intención abarcante, se esfuerza
siglo XVI pues entonces, sin subterfugios, se advierten los por reconocer la heterogeneidad cultural latinoamericana, al
procedimientos de una minoría, ocultados o disminuidos por la desenterrar las contradicciones que subyacen al orden letrado que
sujeción a la palabra escrita (RAMA, 1984, p. 6). La Ciudad Letrada ha acompañado la historia de la región.
oscurece el periodo prehispánico y alumbra el periodo que se En este sentido, La ciudad letrada con su búsqueda de un
inaugura cuando las huestes lusas y españolas abandonan los principio de unidad para la América hispana y lusa se constituye en
litorales, donde recién habían desembarcado, para entrar en un un gran relato, el cual intenta establecer la genealogía, a la manera
territorio que era a sus ojos una verdadera terra ignota. Con el de Michel Foucault, de los poderes culturales latinoamericanos.
descubrimiento y conquista de América, como afirma Immanuel Esta genealogía se rastrea desde la colonia, pasando por los
Wallerstein se completa el mapa del mundo. El sistema mundial procesos de Independencia, los procesos modernizadores
capitalista adquiere unidad y sistematicidad con el encuentro de ensayados en el continente, hasta llegar al momento en que la
dos mundos. El continente americano es el resultado de la primera polis se politiza y se revoluciona (RAMA, 1984, p. 4). El propósito
expansión comercial europea y el motor del capitalismo de Rama en La ciudad letrada es examinar el comportamiento de
(MIGNOLO, 2005, p. 18). Rama elabora el metarrelato cultural cuerpo que durante siglos y, en buena medida aún ahora, han
latinoamericano, en el sentido que Jean-François Lyotard (1984) ejercido los intelectuales junto al poder con resultados con
da a este concepto, a partir de este encuentro. El eje articulador frecuencia ominosos.
de su relato es el poder hegemónico ejercido por las élites de Rama describe con detalle, acudiendo a disciplinas como la
América Latina a partir del monopolio de los medios de literatura, la arquitectura, la historia del arte, la economía y
representación, en concreto, la letra como herramienta de poder. tomando ejemplos de distintos países de América Latina, cómo la
La ciudad letrada y el poder de escribanos, abogados, ciudad letrada se modifica y recompone, adecuándose, tanto a la
constitucionalistas, periodistas y escritores, son las instancias que nueva situación de la “emancipación” post colonial, como a la de
atraviesan transversalmente nuestra historia cultural y política. la “modernización” y al momento de politización y revolución de
La contribución de Angel Rama para el análisis de la la polis. A pesar de los retos y críticas que con el tiempo se le han
modernidad letrada en América Latina radica en las dimensiones presentado a la ciudad letrada, esta ha demostrado su tenaz
de su método: al optar por un enfoque decididamente culturalista persistencia, hasta nuestros días, ampliando sus bases de
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sustentación, robusteciendo la escritura y demás lenguajes sobredeterminación de la escritura (mezcla de aversión y


simbólicos en función del poder. La escritura es la forma inmediata fascinación) en el trabajo del crítico uruguayo, una crítica que
de acceso al poder, es el molde en el que se circunscribe la asoma en muchos textos que abordan el trabajo de Rama. Pero, al
hegemonía y la resistencia, puesto que todo intento de desafiar el mismo tiempo, hay en La ciudad letrada una demonización de la
poder de la ciudad letrada, pasa necesariamente por la letra. Rama escritura (grafofobia), junto con una melancólica saudade por el
expone la función de la escritura en su servidumbre al poder, pero habla perdida de las comunidades indígenas de América Latina.
también sus potencialidades liberadoras, abogando al mismo Según Rama, para bien o para mal, “la palabra escrita viviría en
tiempo por una democratización de la función intelectual en América Latina como la única válida, en oposición a la palabra
nuestro continente. hablada que pertenece al reino de lo inseguro y lo precario […] La
En el ´Nuevo Mundo´ americano, la escritura es un factor escritura poseía gran rigidez y permanencia, un modo autónomo
esencial para la construcción de la sociedad y la formación de un que simulaba la eternidad” (RAMA, 1984, p. 7).
orden político. La escritura está ligada a la memoria, pero también La ciudad letrada surge en América como “ciudad
al poder. Claude Lévi-Strauss lo sabía. En Tristes Trópicos (2006), el ordenada”. Para Rama, en América Latina, desde la remodelación
antropólogo francés notó las manipulaciones sociales que trae de Tenochtitlan, luego de su destrucción por Hernán Cortez, hasta
consigo la letra. El autor cuenta cómo durante su trabajo el sueño urbanista de Lucio Costa y Oscar Niemeyer, la fundación
etnográfico en Brasil, en el tiempo en el que trabajó como de ciudades, verdaderos partos de la inteligencia, obedece al
catedrático en la Universidad de Sao Paulo, visitó algunas “sueño del orden” y la encarnación y materialización de ese sueño.
comunidades Nambikwara, observando cómo mientras tomaba Son las hordas de conquistadores ibéricos, los reformadores del
notas el jefe de la tribu percibió el poder de la escritura y el estatus siglo XIX y los urbanistas del estilo internacional en el XX, quienes
que el acto confería al antropólogo a ojos de los miembros de su llevan a cabo ese sueño al fundar y refundar las ciudades desde las
tribu. Entonces, según Lévi-Strauss, el jefe ´tomo una pluma y un cuales se dominará el territorio.
papel y se puso a imitar el acto mágico´ (WISEMAN, 1997, p. 90). Al encontrar un “nuevo mundo”, los conquistadores no
El jefe nambikwara, que lógicamente no sabía escribir, tan sólo solo atraviesan el atlántico, sino que ingresan en el modo
pudo garrapiñar unas líneas sobre el papel, ´pero esto bastó para capitalista de producción y en un espacio dónde implantarlo a
conferirle más autoridad ante sus hombres´ (p. 90). La escena partir del diseño social. El capitalismo será “el primer espíritu de la
descrita por Lévi-Strauss sirvió a Jacques Derrida para criticar, en ciudad letrada, un modo de la cultura universal" (FAVERON, 2010,
De la gramatología (1971) al antropólogo francés por su nostalgia p. 153). En América, los conquistadores podrán hacer una
de la presencia, su aprecio por el habla y para exponer cómo en la abstracción racionalista de las culturas autóctonas y emprender
cultura la escritura está siempre presente. Derrida, que no abordó ex-nihilo una política de tabula rasa. Allí, en un continente que se
el trabajo de Rama probablemente hubiera hablado de una presentaba en los mapas como un enorme vacío, los ibéricos
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consolidarán un nuevo orden social, “proyectado por la razón y y desconocido, reiterando la oposición griega de polis civilizada
construido desde ella” (p. 154). En una lógica propia de la contra la barbarie pagana.
“transculturación”,2 concepto de Fernando Ortiz retomado por Lo que se configura en la ciudad americana es una
Rama, los europeos transforman el continente, pero, al mismo maquinaria centralizada de producción de signos que imprime su
tiempo, son transformados por quienes allí moran. Rama sugiere potencialidad sobre lo real, un poder hegemónico que, no
que la ciudad letrada productora de signos, propia de América obstante, es resignificado y reelaborado por aquellos sobre
Latina, es consecuencia de unas formas de racionalización quienes se ejerce. Para llevar a cabo la enorme misión civilizadora
generadas en el continente a partir del encuentro de los y evangelizadora en el vasto territorio americano, “resultó
conquistadores con una tierra demasiado vacía para que pudieran indispensable que las ciudades dispusieran de un grupo social
ellos desarrollar sus vidas al modo europeo. especializado al cual encomendar esos cometidos. Fue también
Las exigencias de evangelización, administración, comercio indispensable que ese grupo (compuesto por religiosos,
y dominio militar que se van imponiendo, exigen un punto de administradores, estrategas militares, educadores, profesionales,
máxima concentración del poder. El resultado es una realidad escritores) estuviera imbuido de la conciencia de ejercer un alto
física racionalizada, manifiesta en el diseño en damero que se ministerio que lo equiparara a una clase sacerdotal” (RAMA, 1984,
prolonga, en su extraordinaria longevidad, más allá de los procesos p. 55).
independentistas, hasta nuestros días y que sitúa al poder en el En una sociedad analfabeta como la de la conquista y la
punto central, distribuyendo a su alrededor, en círculos colonia, la letra y su interpretación se constituyen en una religión
concéntricos sucesivos, los diversos estratos sociales. Queda secundaria. A la plebe se le ideologiza “desde el púlpito, la cátedra,
consolidado el triunfo de las ciudades sobre un territorio enorme la administración, el teatro, la literatura, y los letrados encauzan y

2
Aquí entra en juego el concepto de transculturación que Rama toma del prácticas culturales que, a su vez, influyen en la cultura de la metrópoli” (NAGY-
célebre trabajo de Fernando Ortiz Contrapunteo del tabaco y el azúcar, para ZEKMI, 2001, p.123). No obstante, la transculturación, concepto de suma
remplazar ´aculturación´ y usándolo como instrumento de crítica literaria más importancia y estatus teórico en el trabajo de Rama, él mismo, un sujeto
que antropológico. Los letrados, según Rama, son los transculturadores del transculturado(r), a diferencia de la de Ortiz, más horizontal y democrática, es
continente, agentes de dominio cultural que, sin embargo son transformados más vertical e impuesta. En la ciudad letrada de Rama, locus de formación
dialécticamente por las poblaciones subalternas o subordinadas del continente. ideológica queda negada la existencia de los demás agentes sociales en tanto
Como señala Rama en Transculturación narrativa en América Latina, en lo que agentes, que se entienden como pasivos receptores de ideas y signos, sujetos a
Marie-Louis Pratt (1992) denominó Zonas de contacto se da una doble una estructura que les es ajena y que no pueden controlar. Como afirma
transposición cultural en la que tanto las culturas populares se e impregnan de Faveron Patriau, “el tipo de control y producción de poder simbólico que ejerce
contenidos y formas hegemónicas como viceversa. Este concepto ha sido la aristocracia del espíritu de los habitantes de la ciudad letrada sobreentiende
utilizado por las ciencias sociales para describir la forma en que los grupos una idea gramsciana de hegemonía, donde diversos estamentos se oponen y
subalternos “seleccionan de entre los elementos de la cultura dominante y contagian a partir de sus formas de jerarquización y organización” (FAVERON,
utilizando estos elementos juntos a los vernaculares crean formas mestizas de 2010, p.164).
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dirigen la operación pedagógica” (9). Dentro de la ciudad material metropolitana, para entrar en la etapa postcolonial y republicana
organizada en torno a la figura del damero se organiza otra ciudad, en casi todos los países de América Latina, en las décadas de 1810
no menos amurallada sino más agresiva y apostólica, que la rigió; y 1820 y de forma más tardía en Cuba y Brasil. La ciudad
es la ciudad letrada cuya acción se cumple en el orden de los signos escrituraria ejerce su poder mediante el control de la palabra
y cuya misión casi sacerdotal contribuyó a darle su aspecto escrita, generando una profunda discrepancia entre la rígida letra
sagrado. de la élite culta y la fluida palabra del vulgo que no habla ni escribe
Para Rama, en el centro de toda ciudad latinoamericana bien. El gran aporte de Rama es su descripción del proceso, aún
hubo una ciudad letrada “que componía el anillo protector del hoy en funcionamiento, que divide el habla en sagrada o
poder y el ejecutor de sus órdenes: una pléyade de religiosos, consagrable y popular. La primera es la lengua pública, burocrática
administradores, educadores, profesionales, escritores y múltiples y oficial, la de las grandes ceremonias civiles, la escritura. La otra
servidores intelectuales”( 57), todos aquellos cuyas armas no es la del habla cotidiana, la de los sectores subalternos hispano y
fueron espadas sino plumas. La ciudad letrada sirve al poder a lusohablantes que no producen documentos, que languidece con
través de leyes, reglamentos, proclamas, cédulas, propaganda y el paso de cada generación, la que no deja huella en los archivos
mediante la ideologización destinada a legitimarlo. Los letrados no oficiales y de la que sabemos sobre todo gracias a las diatribas de
solo sirven a un poder sino que son dueños de un poder. Se trata los letrados, identificada con la corrupción, la ignorancia y la
de un sector social de dimensiones desmesuradas dado el escaso barbarie.
número de alfabetizados, cuyo tamaño obedece a las exigencias La ciudad escrituraria “secuestra el idioma y lo aleja de la
de una vasta administración colonial y de evangelización gente común”, reflejando el purismo idiomático que ha sido la
(transculturación) de una población indígena y africana que se obsesión del continente a lo largo de su historia (18). Quedan en
contaba por millones. Su poder, en suma, se debió a que sus evidencia los encuentros y desencuentros, amores y desamores
miembros fueron los únicos ejercitantes de la letra en un medio entre la ciudad letrada y la ciudad real, entre la sociedad como un
carente de letras, los dueños de la escritura en una sociedad todo y su élite intelectual dirigente. Según Rama, todo intento de
analfabeta y porque procedieron a sacralizarla dentro de la rebatir, desafiar o vencer la imposición de la escritura pasa
tendencia gramatológica de la cultura europea (65). obligadamente por ella, hasta el punto en que la escritura concluye
La ciudad letrada se va reconfigurando conforme una absorbiendo toda la libertad humana, “porque solo en su campo
nueva forma de sociedad se va formando en el continente. Según se tiende la batalla de nuevos sectores que disputan posiciones de
Rama, fue la distancia entre la letra rígida y la fluida palabra poder” (82). El orden social emanado de las revoluciones
hablada que hizo de la ciudad letrada una ciudad escrituraria, nacionalistas lideradas por Bolívar y San Martín demuestran la
reservada a una minoría privilegiada. Con su elitismo y tenaz persistencia de la escritura como forma de acceso al poder y
exclusivismo, la ciudad letrada sale de la colonia y la dependencia la capacidad de adaptación al cambio de la ciudad
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letrada/escrituraria. Con la independencia de la península ibérica escrito de disciplinas tuvo como tarea incorporar y modelar los
se da una sustitución de equipos en la administración: grupos sociales y marginar a aquellos que no lograban interiorizar
desaparecen los administradores coloniales y son remplazados por la norma ejercida mediante la letra. Como afirma González
los criollos, pero persiste la ciudad letrada y la sujeción por medio Stephan, independientemente de cómo se implantaron en cada
de la escritura. En la sociedad postcolonial, junto a la palabra una de las naciones latinoamericanas estas escrituras
libertad, la otra que tuvo igual peso fue educación, y la disciplinarias, estas fueron el bastión del proyecto civilizatorio y de
organización educativa fue tarea de la élite letrada. la sociedad disciplinaria.
La educación de las masas fue llevada a cabo durante el Fueron las revoluciones anticoloniales la primera prueba a
siglo XIX, como brillantemente ilustra Beatriz González Stephan, la que se vio sometida la ciudad letrada antes de la modernización,
mediante tres mecanismos escriturarios: por un lado, las que representó el segundo reto de la cual salió fortalecida y
constituciones nacionales, marco jurídico y político que regula las ampliada tanto en sus bases, como en contradictores, quienes
relaciones entre los ciudadanos y que enseña qué se puede y no se provenían tanto de las huestes racionalistas como positivistas.
puede hacer. Por otro lado, las gramáticas de la lengua, Luego de los trastornos que vive la ciudad letrada durante y
mecanismos de la cultura impresa para domesticar la lengua, después de las revoluciones burguesas anticoloniales, surge hacia
siempre fluida y ajena a las normas de los salones donde se reúne 1870 la ciudad modernizada, “que amplió el circuito letrado,
el poder. Finalmente, los manuales de urbanidad, apuntan a generando un proceso muy rico en opciones y cuestionamientos”
civilizar las costumbres y disciplinar unos cuerpos que, se espera, (DIAZ CABALLERO, 1986, p. 177). La ciudad letrada organiza los
sean dóciles y manipulables mediante la reticulación del tiempo y órdenes simbólicos de la cultura para ponerlos al servicio de la
el espacio. Así, la nación que resulta deviene en una realidad ideología del progreso. Según Rama, hacia 1870, los ciudadanos de
meramente escrituraria reservada a una minoría de y para los nuevos países comenzaron a vislumbrar el fin de sus vicisitudes
letrados: solo de este modo se cumpliría el efecto y el juego de esa y a percibir lo que llamaron el orden y el progreso, que venía
comunidad imaginada que se concibe semejante a partir del acompañado de su inserción dependiente en la economía mundial.
circuito que establece la cultura impresa que desconoce las Por esa misma fecha comienza a ser moneda común la
contradicciones y el carácter diverso del grupo (GONZALEZ- denominación con que habrían de reconocerse, y que evidencia
STEPHAN, 1996). una mayor conciencia de su singularidad: latinoamericanos
El siglo XIX es el escenario de la proliferación de prácticas (RAMA, 1983, p. 3-4).
discursivas escritas, registros, censos, mapas, diccionarios y En el periodo modernizador, que va de 1870 a 1910, una
tratados de higiene, verdaderas escrituras disciplinarias que se nueva disidencia crítica buscó combatir la ciudad letrada
intensifican hacia finales de siglo, cuando la modernización se hace modernizada, no obstante, en sus propios términos, bajo el
palpable en las principales ciudades latinoamericanas. Este cuerpo imperio de la letra. Las leyes de educación que apuntan a
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transformar la universidad y crear escuelas técnicas, acabando con de una relativa autonomía respecto a ellos” (RAMA, 1984, p. 103).
la hegemonía de abogados y médicos, no hicieron otra cosa que La ciudad modernizada es la ciudad de los grandes cambios y las
aumentar la escala de la ciudad letrada. De acuerdo a Rama, grandes renovaciones urbanas. Los viejos cascos históricos dejan
“hacia 1940 se abre un vasto cuestionamiento en el continente del de ser el escenario de la vida letrada para dar paso a nuevas formas
que han de participar activamente sus escritores y pensadores. de ciudad, nuevos paradigmas de la planeación urbana, previos y
Iniciado en algunos puntos antes (Argentina), en otros después posteriores al Bauhaus y al llamado estilo internacional.
(Brasil, México), tal cuestionamiento parece responder al freno El agitado siglo XX no vio desaparecer la ciudad letrada. Al
con que tropiezan los sectores medios en su ascenso al poder, a la contrario, con unas urbes cada vez más politizadas, la sacralización
refluencia de sus conquistas, a la autocrítica a que se someten sus de los intelectuales en una sociedad crecientemente secularizada
orientadores y a la presencia creciente y autónoma de los sectores no merma. Rama llama ciudad revolucionada a la que surge
proletarios (y aún campesinos) sobre la escena nacional” (RAMA, durante el siglo XX, desde la revolución mexicana de 1910 hasta la
1983, p. 12). revolución nicaragüense que derrocó la dinastía Somocista. Las
Las nuevas voces críticas apuntan a reemplazar la revoluciones y reformismos en América Latina, el radicalismo de
orientación y cambiar la composición de la ciudad letrada, aunque Yrigoyen en Argentina, la “disciplinada democracia” de Getulio
su funcionamiento jerárquico está fuera de toda cuestión. El Vargas en Brasil, la acción democrática de Gallegos en Venezuela,
periodo modernizador lleva consigo el advenimiento de un público el castrismo cubano y el Frente Popular de Allende en Chile, todos
culto, “modelado por la educación y el avance de pautas culturales ellos tienen en sus amplias bases la militancia letrada que les da
urbanas, gracias al fuerte crecimiento de las ciudades” (RAMA, sustento en manifiestos y escritos políticos. No hubo caudillo,
1983, p. 4). Junto a las nuevas clases sociales, burguesas, medias y reformista o revolucionario que no estuviera acompañado de
proletarias, producto de la modernización, y a las nuevas consejeros intelectuales, confirmando para América hispana y lusa
profesiones de la ciudad letrada (sociólogos, educadores, la teoría de las dos espadas, dos poderes inmanentes,
economistas y miembros de profesiones no liberales y de carácter mutuamente dependientes, sin los cuales no se entiende la
más técnico) surge en escena un nuevo actor, el periodista, que historia intelectual y cultural del siglo XX. La ciudad revolucionada
aunque ya hacía presencia desde la colonia, con la masificación del del siglo pasado es la reconfiguración de la ciudad letrada a partir
público lector, cobra una vigencia cada vez mayor dentro de las de la aparición de los partidos políticos de masas, estructurados
filas de la ciudad modernizada. En la ciudad modernizada, nueva alrededor de uno u otro lado del espectro político. El surgimiento
fase de la ciudad letrada, la palabra escrita continuó siendo “la y consolidación, a lo largo del siglo XX, del partido de masas, obliga
palanca del ascenso social, de la respetabilidad pública y de la a la ciudad letrada a apelar a sectores bajos o recientemente
incorporación a los centros de poder; pero también, en un grado educados, un cambio en el reclutamiento de sus miembros que
que no había sido conocido por la historia secular del continente,
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será definitivo: el intelectual comienza a volverse un antihegemónicos” (MORAÑA, 1994, p. 43). Pareciera como si la
correligionario. cultura en Rama se constituyera en una superestructura que
Con la ciudad revolucionada termina el itinerario de este determinara la política, la economía y la sociedad como totalidad
instrumento ideológico y forjador del poder hegemónico en en el continente.
América Latina: la ciudad letrada. Así, Rama culmina su Rama ignora, o parece ignorar que existen dos ciudades
metarrelato de nuestra historia cultural y su visión de nuestro letradas. Una, la que examina con gran maestría, la que se impone
continente como una totalidad coherente. Rama habitante a la fuerza y actúa junto al poder; y la otra que es reflexivamente
distinguido de la ciudad letrada lleva a cabo, no sin algunos fallos crítica, que se opone a la univocidad, que no es monolítica y
fundamentales, su lectura retrospectiva de la accidentada historia auspicia la diversidad y la justicia social. El espacio urbano de la
latinoamericana. ciudad, simultáneamente aplasta y crea espacios de libertad.
Por un lado, sus críticos afirman que la función intelectual Hoy la ciudad letrada convive con la tecnocracia, esa nueva
de Rama, no sólo es monolítica, sino además estática. Como Intelligentsia que recita como un mantra las recetas del consenso
heredero de Parménides, para quien nada cambia, el intelectual de Washington, asumiendo un gran número de las funciones de la
ramiano es siempre idéntico a sí mismo, es más un arquetipo que ciudad letrada. Instrumento ideológico de la clase dominante y ella
un agente social; y la naturaleza de un agente es cambiar en el misma, una clase dominante que no sólo sirve a un poder, sino
tiempo y, al mismo tiempo que determinar, ser determinado por también dueña del poder, la ciudad letrada es la clave para
la estructura social. No hay ´afuera´ ni opción de trascendencia entender el paso de la sociedad colonial premoderna a la sociedad
para el intelectual ramiano. Para el crítico uruguayo la lucha contra postcolonial moderna. La misión de la élite letrada en la primera
la ciudad letrada es inmanente a ella misma, y debe hacerse en sus fue evangelizar y en la segunda educar. El mismo esfuerzo de
propios términos es decir, con las herramientas de la escritura. Sin transculturación explica la supervivencia de la ciudad letrada
embargo, como afirma Gustavo Faverón Patriau, ´existen, fuera desde tiempos de la conquista hasta nuestra época. Rama logra
del marco de la ciudad letrada, otros mecanismos de construcción construir el puente entre lo colonial y lo postcolonial delineando
ideológica, otros medios de habitación cultural en América que no las continuidades entre las dos épocas.
sólo responden a la lógica de la ciudad letrada versus el caos, sino La ciudad letrada, transculturada y transculturizadora teje
que son igualmente sistemáticos y ordenados´ (FAVERON, 2010, p. una compleja urdimbre en todo el continente hispano y luso
168). americano, cuyo desentrañamiento sigue siendo un reto
Lo que no se hace explícito en el trabajo de Rama es que la fundamental. El aporte de Rama es ese: su obra abierta no es un
escritura y la literatura no son solo instrumento de legitimación de círculo completo, sino un proceso en formación. Su muerte trágica
los poderes dominantes, “sino asimismo vehículos de impugnación y prematura dejó una obra inconclusa. Como afirma Barros-Lémez,
del statu quo y construcción de discursos contraculturales, es clara la falta de otro capítulo que cierre lo resumido en los seis
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primeros (BARROS-LEMEZ, 1984, p. 133) de La ciudad letrada y FAVERON PATRIAU, Gustavo. Especulaciones sobre la ciudad
amplíe el análisis a nuestra situación contemporánea. Su lectura letrada y el intelectual latinoamericano. Revista Hispánica
de América Latina en clave cultural y como unidad y totalidad Moderna, Año 63, No. 2 (Diciembre 2010).
requiere de un complemento y un pulimento. Compete a las
nuevas generaciones de latinoamericanistas el completarla. GONZALEZ STEPHAN, Beatriz. Economías fundacionales, diseño del
Mostrar la forma en la cual nuestras actuales megalópolis como cuerpo ciudadano. In: GONZALEZ STEPHAN, Beatriz (Comp.).
São Paulo, Lima, Santiago, Ciudad de México y Bogotá siguen Cultura y tercer mundo. Editorial Nueva Sociedad. Caracas, 1996.
determinando la vida social, política y cultural de nuestro
continente en el orden postcolonial del capitalismo transnacional LAFFORGUE, Jorge. Angel Rama. Un autoretrato. Hispanoamérica,
posmoderno, es el capítulo restante de La ciudad letrada y el mejor Año 31, No 91 (Abril 2002).
homenaje a Angel Rama, ese extraordinario crítico que nos enseñó
a pensar con rigor e imaginación nuestra historia cultural. LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Paidós. Barcelona, 2006.

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PEREGRINAÇÕES POÉTICAS PELO ÁSPERO MUNDO existir em toda sua composição, inclusive na mais tardia, Otoños y
Margareth Santos otras luces(2001), em que o pessimismo, a idade avançada e a
(USP) doença que o acometera, se fez sentir.
Assim, vemos problemas em atribuir uma cisão à obra,
Desde seus primeiros poemas, Angel González se como muitos críticos o fazem, designar algo como uma primeira e
equilibrou entre a lucidez e o desengano em seus versos. Filho de segunda etapas. Acreditamos que poeta é o mesmo, assim como
pai republicano, que perdeu precocemente, de mãe católica algo os seus temas e as suas preocupações, o que muda, de fato, são o
fervorosa, com um irmão fuzilado durante a Guerra civil espanhola tratamento e o enfrentamento de questões que sempre lhe foram
e outro exilado, o poeta cresceu cercado pela proteção de caras e a inclinação por uma ou outra, ambas impregnadas por um
mulheres do convívio familiar e moveu-se durante muito tempo pessimismo ora exacerbado, ora tolerante.
entre o mundo acariciado e o áspero. Em meio a essas distintas gradações, elementares ou não,
Do primeiro, guardou as possibilidades do amor, ainda que se situa nossa proposta, a de explorar alguns procedimentos
em tempos conturbados e, a partir do segundo e de suas relações formais de sua construção lírica, para que possamos compreender
com o mundo acariciado, construiu uma poesia indagadora do o trânsito permanente de Angel González através dessas
indivíduo a partir de sua própria intimidade, sem perder de vista a preocupações constantes de sua poética. Trata-se de perguntar-
realidade circundante. Uma poética capaz de ter um pé na política nos como Angel trata a potência, ou a impotência, da voz poética
sem que para isso resvalasse no panfleto, mas reveladora de um que se configura em um conjunto de poemas do volume Tratado
questionamento desde uma consciência histórica, revestida por de urbanismo, de 1967, e como essa voz se comporta em um
uma curiosa educação sentimental. Sem meias palavras, uma tempo histórico violento, o da ditadura franquista, tempo em
poesia que concilia uma voz íntima com uma visão penetrante da Angel define de forma enfática sua posição poética frente à
realidade, aqui entendida em dois planos: a histórica e a do escritura e ao diálogo com a tradição literária.
poema. Considerando essa proposta, é importante situar o
A partir dessa perspectiva, entre o anedótico, o biográfico conjunto de versos de Tratado de urbanismo, cujo núcleo poético
e o construto poético, firmado na ficcionalização de um sujeito tem como principal força motora a ironia, através da qual, o poeta
melancólico e irônico, é possível dizer que a obra de Angel imprime ao livro uma dicção que se articula entre a forma precisa
González apresenta sua maior contundência na dialética citada (ou de tratar os temas de interesse humano e universal e a descoberta
seja, no mundo acariciado e no áspero), sobretudo em seus das possibilidades da linguagem cotidiana. A partir desses
primeiros volumes: Áspero Mundo (1956), Sin esperanza, com elementos, o escritor ovetense opera em níveis de significação que
convencimiento (1961) e Grado Elemental (1962). No entanto, incorporam ao mesmo tempo o registro íntimo e o coletivo.
também é preciso dizer que essa dialética aguda nunca deixou de
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No trânsito desses registros, nos chama a atenção o formas surpreendentes, a fim de representar o mal-estar do eu
conjunto de vozes presente no apartado “Ciudad uno”, de Tratado lírico frente ao mundo convulso. Logo, trata-se de uma poesia
de urbanismo. Moduladas, as vozes do conjunto de versos esmerada em sua forma, mas comprometida com os sentimentos
combinam-se à história social espanhola no presente e no passado expressos, posto que os mesmos reivindicam um caráter histórico,
imediato. Vemos desfilar por seus poemas uma fauna de seres configurado de forma desconcertante na fisionomia de uma
desajustados, marginais, insatisfeitos e corroídos pelo óxido da intimidade singular.
frustração, odiosa ou melancólica: são engravatados, prostitutas,
animais, trastes e seres ausentes, dispersos por urbes espanholas, Sobre os pedregulhos acariciados da crosta terrestre:
em lugares furtivos, propícios ou não para o amor, mas todos Os poemas que indicam muito claramente o procedimento
vivendo em um tempo hostil sob os olhares oblíquos da ditadura que chamamos de superfície, ou seja, aqueles situados sobre o
franquista. tecido urbano são, respectivamente, “Parque zoológico”, “Zona
Ao perguntar-nos sobre os procedimentos que podem residencial”, “Parque para difuntos”, “Centro comercial” e “Plaza
indicar o desenho dessa composição eclética de Tratado de contorreones y palacios”. Todos esses poemas pautam-se por uma
urbanismo salta à vista, primeiramente, o mais óbvio: a noção de forte crítica à realidade circundante, na qual, convive um sujeito
tratado assinalada no título do volume. O tratado, localizado na poético que descreve sobriamente um ambiente com uma ironia
urbe, poderia fornecer-nos algumas ideias imediatas e aparentes, que contamina a casca de dita perfeição, o que acaba por desfazer
tais como o rastreio de convenções, pactos sociais ou mesmo de a suposta exatidão minuciosa e a harmonia contida nos versos
uma minuciosa análise, cujo objeto seria o meio urbano e os que iniciais.
por ali transitam. Em “Zona residencial”, passamos de um ambiente buliçoso
Muitos dos títulos dos poemas podem levar-nos por esse e de equilíbrio modelar a uma paisagem instável:
caminho, desde a denominação de áreas urbanas, como parques, Hasta un ciego podría adivinarlo:
zonas residenciais ou comerciais até as noções burocráticas ou, La perfección reside en estas calles.
ainda, copiosas análises contidas nos termos “inventario”, Los ruidos, los olores,
“lecciones”, “preámbulo” e “interpretación”. Além desses el timbre delicado
de las voces humanas, el júbilo
percursos que se instalam na superfície da obra, temos um
de los ladridos,
procedimento, que acreditamos, seja central na feitura do volume:
el rumor armonioso de los coches,
a fragmentação do discurso. Tal operação reitera-se inúmeras la discreta presencia de las lilas,
vezes ao longo de Tratado de urbanismo e é possível vislumbrar incluso
como se combina de maneira a delinear uma voz poética la templanza del aire que difunde su aroma,
inconformada, que busca na assimetria e na dispersão discursiva revelan, sin más datos,
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eso que la mirada comprueba opulencia”, em que vemos a pergunta desconcertante sobre as
(GONZÁLEZ, 1997, p. 197). vitrines rutilantes do shopping center contemplado no título:
A descrição de perfeição imagética e sensorial dá lugar à Si una luz simboliza la esperanza
múltiples luces ¿simbolizan
ironia ácida contida nos parênteses impertinentes que o sujeito
múltiples esperanzas?
poético vai disseminando ao longo do poema, que convertem os
(GONZÁLEZ, 1997, p. 207).
habitantes descritos em objetos decorativos da zona residencial
em questão: Ou ainda, uma leitura que dialoga de forma enviesada com
En las personas y sus atributos: o marxismo e se impõe no questionamento incisivo eu lírico de
niños “Civilización de la opulencia”:
(bicicletas y risas niqueladas) Mas la cuestión no es ésa:
militares íncubos o sirenas, ángeles
(de alta graduación, sinsable derribados o enactivo, todos
ni escopeta, sólo esos objetos manufacturados, tantas
con artritismo y condecoraciones) mercaderías y brillantes bienes,
adolescentes ¿se acercan
(deagradable formato, encuadernados desde la lejanía de un mundo diferente,
en piel de calidad insuperable) más profundo y mejor,
doncellas para mostrar superfección de seres
(del servicio doméstico colmados, plenos, casi eternos,
—se entiende—, o vienen a contemplar la vida a la intemperie,
también bellas de bajo de la cofia) la indefensión cercada a cielo abierto,
(GONZÁLEZ, 1997, p. 198). el apacible tránsito del hombre
amanera de grey
A intervenção dos parênteses, que amplia e fragmenta o
por su cañada?
discurso, aliada aos travessões e encavalgamentos, imprime ao (GONZÁLEZ, 1997, p. 209).
poema a imagem de um catálogo de vendas, em que o sujeito, a
paisagem e os objetos compartilham adjetivos para compor um A questão respira aturdimento e a constatação de uma
suposto ambiente idílico. época de envases, na qual a mercadoria prometida brilha com suas
Próxima a essa linha de personificação invertida, ou seja, luzes múltiplas. Não obstante, ao deslocar a visão para uma
pessoas que absorvem características de objetos, também se pergunta no lugar de uma assertiva, o sujeito poético desvia a
encontram os poemas “Centro comercial” e “Civilización de la contundência da afirmação direta e conduz à reflexão.
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Não se trata apenas de uma sociedade em que se coisifica podemos ver como Ángel González conjuga uma realidade
tudo, o poema não se restringe a uma mera leitura do fetiche ou circundante que parece ordenada e aprazível a partir da
do consumo, mas da sociedade em questão, submetida a uma representação de um amor supostamente inabalável. No entanto,
ditadura, em que a mercadoria extrapola a sua própria condição esta mesma realidade revela-se imprecisa e sombria, visto que, à
concreta e se arvora em uma promessa de liberdade aparente: medida que o poema avança, recursos estéticos como repetições,
se eleva assertivas e comparações inadequadas vão criando planos
—incómodo, exquisito, indiferente— simultâneos e justapostos que suscitam a sensação de
un zapato, instabilidade e ambiguidade:
un único zapato inconcebible: Se amaban.
abrumador ejemplo de belleza, No demasiado jóvenes ni hermosos,
catedral entrevista sin distancia algo marcados ya por la fatiga
cantando com su esbelta arquitectura de convivir durante aquellos años,
un mudo “gloria en las alturas” una alimentación con excedentes
a la mórbida, larga, afortunada y fuerte de azúcar y de grasa había dañado
pierna posible que de su horma surja su silueta,
(GONZÁLEZ, 1997, p. 208). desdibujando la esbeltez del cuello,
Nessa concentração contraditória, o “sapato de salto alto” añadiendo volúmenes al vientre
aparece em seu caráter fantasmagórico, cujas propriedades reais y cierta pesadez a las caderas.
Pero se amaban y se mantenían juntos
estão turbinadas e carregam promessas deliberdade que se
(GONZÁLEZ, 1997, p. 199).
inserem em uma dinâmica de abstrações concretas sob o céu de
uma ditadura. No desenrolar dos versos a descrição do amor de um casal
Tal dinâmica nos faz pensar que em Tratado de urbanismo é reiterada do começo ao fim do poema. A repetição belicosa, que
o peso da história não anula o elemento estético, mas perfaz-se se fragmenta na voz do narrador, na voz dos convivas do casal e na
como pêndulo modelar entre o íntimo e a História, entre o de um “todos” abarcador, transforma-se em textos que glosam o
testemunho individual ficcionalizado através de um discurso amor em questão. A insistência do “siempre juntos”, do amor
poético incapaz de abdicar do compromisso com a história de seu inigualável, emparelha-se ao “desdibujar” dos contornos, aos
tempo, ao mesmo tempo em que a transcende, ao tratar de comentários de outros na ausência do casal e, por fim, ao próprio
questões imperiosas em tempos de cerceamento de pensamento do marido e da mulher, que são manuseados a fim de
individualidades. iluminar a trivialidade e o absurdo de um entorno político-social
Mas essa destreza de trânsito eloquente se fará sentir com estanque:
toda a contundência no poema “Lecciones de buen amor”, nele,
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Juicios así de firmes, compartidos Respecto a él, ella sabía


sin una indecisión en la mirada, su egoísmo, que solo le dolía
y ese estar siempre juntos, sin tocarse —o mejor, le dolió— algunas veces
(mas tan compenetrados y corteses, con ocasión de aquellas cosas
tan medidos sus justos ademanes, —hablo de gente de bien, téngase en cuenta—
tan comedidos sus bostezos entre que se hacen en el lecho los domingos
pasta y taza de té o pausa y pausa, por la mañana,
que parecía que toda su historia antes del desayuno
conyugal sólo era y tras el primer llanto de los niños.
un largo ensayo general, pensando En cuanto a ella, él conocía
en la ovación final de las visitas) su estupidez congénita, acentuada
y ese estar cotidiano sin tocarse, posteriormente en largos internados
repito, pero juntos —oraciones, solfeo y acuarela—
(GONZÁLEZ, 1997, p. 200). en los que, con la pausa
de húmedos veraneos en el norte,
O verniz espartano que recobre as aparências alimentadas
supersonalidad fue madurando,
nos versos nos mostra que a vida sob a ditadura franquista era cubriéndose de costras, retorciéndose
vista como uma cruzada religiosa e militar, na qual o núcleo hasta quebrar así: excipiente inocuo
familiar era proclamado indestrutível. —o secreción balsámica de sus mismas heridas—
No entanto, a desconstrução desse discurso de aparências Emulsionado con dos partes
vai ocorrendo à medida que o narrador vai abrindo parênteses ao semejantes de gula y de codicia,
longo do poema, fragmentando o discurso, alimentando e y perfumado
justapondo distintas perspectivas, o que acaba por revelar um por una firme, extensa,
constante exercício de desvio de realidades pré-concebidas, cujo ciega adhesión al culto de dulía
ápice configura-se, com toda sua contundência através de um (GONZÁLEZ, 1997, p. 201-202).
procedimento discursivo peculiar: a inserção de uma nota de Nessa operação fracionária, executada
rodapé, que amplia e desvia a experiência de leitura. Na nota, o predominantemente a partir do uso engenhoso das conjunções
estilo de vida assumido pelo casal descortina-se como uma farsa aditivas, da repetição e do registro irônico, o poema desafia as
alimentada por gestos calculados e palavras ensaiadas, por seres perspectivas e as premissas correntes, em especial, as ligadas ao
aparentemente unidos frente à sociedade, mas isolados em seus discurso franquista e, por conseguinte, à imposição de um triunfo
próprios mundos, divididos entre um bocejo e uma xícara de chá: aparente, de uma sociedade supostamente opulenta, cujo verbo
Y en efecto, era así.
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eloquente se conforma a partir de uma vitória oca, imposta pelo O gesto desassossegado se faz presente no verão escaldante, que
silenciar das vozes dissonantes. pede a sombra da árvore ou o vento furioso do outono sombrio,
Nesse âmbito, ganha amplitude o último poema do as ações angustiosas do eu lírico imiscuem-se aos movimentos
apartado Ciudad uno, “Preámbulo a un silencio” em que o sujeito telúricos da troca de estações, carregando de expressão e
poético reflete sobre as categorias de utilidade/inutilidade da impressão as ações prementes do sujeito lírico.
palavra. No poema, a fragmentação do discurso dispõe-se no uso Em meio a esse movimento tateante, repleto de indecisões,
dos parênteses melancólicos do eu lírico e pelos travessões perguntas e reflexões lançadas ao vento, constatamos que os
infundidos ao longo dos versos: versos de Angel González não se detêm apenas no caráter
Porque se tiene conciencia de la inutilidad de tantas estanque do franquismo, na suposta liberdade estampada pela
cosas abertura ao consumo, notamos que há uma zona cinza capaz de
a veces uno se sienta tranquilamente a la sombra de contemplar as contradições da sociedade daquele momento, que
un árbol —en verano— atina de forma linear e cíclica, descontínua e contínua, que se
Y se calla
reveste de utopia e de desesperança e que pode realizar-se, em
(¿ Dije tranquilamente?: falso, falso :
alguns momentos, por esperanças pífias e resistências poéticas.
uno se sienta inquieto haciendo extraños gestos,
pisoteando las hojas abatidas Frente a todas essas constatações de percurso tortuoso,
por la furia de un otoño sombrío, essa poética é capaz de imprimir ao panorama literário da época
destrozando con los dedos el cartón inocente de una um novo debate entre o sujeito poético e a experiência no mundo,
caja de fósforos, no qual, seus poemas adquirem a amplitude de uma narrativa
mordiendo injustamente las uñas de esos dedos, poética incisiva, cuja ironia acumulada nos desvela o lado mais
escupiendo en los charcos invernales, sombrio desse suposto triunfalismo, em que o “áspero mundo” da
golpeando con el puño cerrado la piel rugosa de las ditadura franquista surge em extensão e em detalhes sórdidos,
casas que permanecen indiferentes al paso de la sem que se perca de vista as mediações do mundo moderno, no
primavera, qual a figura do homem urbano constrói–se em um cotidiano
una primavera urbana que asoma con timidez los flecos
perfilado entre a esperança e a desesperança.
de sus cabellos verdes allá arriba,
detrás del zincoscuro de los canalones,
levemente arraigada a la materia efímera de las tejas a Referências
punto de ser polvo.) DEBICKI, Andrew P. Poesía del conocimiento. Madrid: Ediciones
(GONZÁLEZ, 1997, p. 212). Júcar, 1986.
Em seu percurso, a voz poética instaura a instabilidade
frente à paisagem idílica, impossível a quietude e a tranquilidade.
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APROXIMAÇÃO TRANSCULTURAL ENTRE UTOPIA SELVAGEM DE do Sul possui muito mais semelhanças com o Uruguai do que com
DARCY RIBEIRO E LA TUMBA DEL RELÁMPAGO, DE MANUEL o Nordeste do próprio país. Assim sendo, a unidade nacional passa
SCORZA a ser um conceito que não se aplica a regiões com tão expressiva
Maria Aparecida Nogueira Schmitt variedade cultural. Ángel Rama chega a considerar um segundo
CES/JF-SMC mapa latino-americano, traçado segundo as comarcas culturais,
sobre o que tece a seguinte consideração:
Cumprindo o papel de buscar aproximações das essas regiões podem abranger do mesmo modo diversos
diversidades, a literatura latino- americana tem recorrido a forças países contíguos ou recortar dentro deles áreas com traços
unificadoras que lhe chegam do passado com a história, a língua, comuns, estabelecendo assim um mapa cujas fronteiras não
os relatos de vida dos povos, os padrões de comportamentos se ajustam às dos países independentes. Esse segundo
mapa latino-americano é mais verdadeiro do que o oficial,
semelhantes. O pensador Henriquez Ureña, nascido nas República
cujas fronteiras foram, no melhor dos casos, determinadas
Dominicana em 1884, na década de 1920 ressaltava a importância
pelas velhas divisões administrativas da Colônia e, em uma
de haver uma unidade sem ignorar as diferenças e para tanto quantidade não menor, pelos acasos da vida política,
apontava o espanhol como uma língua de união entre países em nacional ou internacional. (AGUIAR & VASCONCELOS, 2001.
sobreposição às línguas indígenas. O idioma seria então o liame p. 282.)
para que as línguas pudessem formar uma unidade, integrando-se
Para a literatura a proposta de Rama de pensar a América
a um grupo e, a partir dessa integração, superar a fragmentação.
Latina em termos de regiões, traçando um mapa mais fiel de uma
Ureña levava em consideração as tradições locais, valorizando as
realidade que possui variada cultura étnica e tipos de meio físico
diversidades por meio de uma ação que chamava uma iniciativa de
distintos, significa dar voz aos silenciados pelos sistemas de
resolução pacífica das diversidades envolvidas. Defendia a ideia de
dominação que ainda atuam na atualidade.
que a América Latina só se expressaria plenamente no momento
Assim escritores destemidos escrevem obras em que o
em que aceitasse conservar a memória e tradição dos antigos
passado e o presente convergem entre si para fazerem saltar das
povos. Para Ureña a literatura promoveria essa integração para
páginas da nova narrativa latino-americana personagens-gente
uma unidade harmoniosa. O pensamento de Ureña desencadeou
geradas no casulo da realidade para ganharem as asas da ficção.
importantes considerações para Ángel Rama na construção dos
Uma grande fila de trabalhadores nas letras caminha determinada
conceitos de comarca cultural, geração crítica e transculturação
serpenteando cânones, transgredindo zonas de silêncio. Nela, a
narrativa, marcos fundamentais para os estudos latino-
um passo além de Arguedas, no Peru, encontra-se Manuel Scorza,
americanos. Com seu conceito de comarca, Rama busca despertar
continuador do projeto transcultural neoindigenista do autor de
a reflexão de haver uma unidade ideológica que não respeita
Los ríos profundos. Um passo além de Mário de Andrade, no Brasil,
fronteiras territoriais. No caso do Brasil, por exemplo, o Rio Grande
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projeta-se Darcy Ribeiro, indigenista, etnólogo, educador, político, Darcy Ribeiro o projeto nacionalista de Mário de Andrade é
com o romance Utopia selvagem. retomado.
Manuel Scorza empenha-se, no ciclo de “La guerra No Peru Scorza propõe a superação da mentalidade de
silenciosa”, ao posicionar-se criteriosamente em torno da escravos por meio da ação coletiva dos comuneiros, em La tumba
realidade que o cerca. A última obra da pentalogia, o romance La del relámpago, na passagem em que o personagem Cristiano
tumba del relámpago, registra a preocupação de Scorza com o Gutierrez declarou “... yo era uno de los babosos” (SCORZA, 1988,
despertar da consciência histórica, num povo condenado ao p. 98) que corriam atrás de Maca Albornoz e que superou a si
silêncio pelas grandes potências político-sociais. próprio quando começou a ler obras que lhe iluminaram o
Na busca de um caminho teórico que nos permita conhecer entendimento e lhe devolveram a identidade. Tornou-se um leitor
melhor o multiculturalismo presente em países periféricos como o insaciável, quando um dos empregados do restaurante em que
Brasil e o Peru, pode-se determinar com justiça o lugar da voz trabalhava o ensinou a ler e a escrever. Sentiu com os livros que
indígena. Tanto em referência à literatura ibero-americana, de toda escravidão se tornava em luz. Surpreendido pelo dono do
modo geral, como à peruana ou à brasileira, em particular, cabe a restaurante, lendo Los perros hambrientos, de Ciro Alegría, foi
reflexão de Gonçalves Fernandez, segundo quem: demitido. Começou, então, a trabalhar como mensageiro no
… la presencia del indígena en la literatura se da desde la escritório de um advogado que o autorizou a passar os dias de
literatura colonial, pasando por el Romanticismo y por el folga em sua biblioteca. Leu e se emocionou com Vallejo, Dickens,
Modernismo, pero es en la Post-modernidad cuando el Dostoievski, Balzac, Arguedas sobre o qual comenta: “Los ríos
reconocimiento de la exclusión, de la falta de identidad, de profundos de José Maria Arguedas, libro donde yo podia haber
la esclavitud se vuelven importantes para los estudios sobre
habitado porque ese maestro hablaba por mí y por todos los tristes
el indigenismo y la literatura indigenista.
del Perú.” (SCORZA, 1988, p. 99).
(http://sincronia.cucsh.udg.mx/fernandez03.htm ).
O despertar da consciência vencida, geradora da perda de
Em ambos os romances observam-se as singularidades dos identidade, pode ser constatada também em Darcy Ribeiro, na
autores e os matizes dos povos em contato. Enquanto Utopia passagem em que o narrador considera o enigma da identidade
selvagem retoma a tradição indígena amazônica, numa recriação latino-americana. Para ele tudo começa com a tenebrosa invasão
de Macunaíma, em La tumba del relámpago, Scorza procura dar civilizadora de onde decorre o caldeamento de raças:
voz aos povos andinos, no despertamento da consciência histórica Mil povos únicos, saídos virgens da mão do Criador, com
alienada, com o propósito de dar prosseguimento à utopia de suas mil caras e falas próprias, são dissolvidos no tacho com
Arguedas, na inserção de Todas las sangres. milhões de pituns, para fundar a Nova Roma multitudinária.
Em Scorza pode-se reconhecer o caminhar dentro de um Uma Galibia Neolatina tão grande como assombrada de si
projeto neoindigenista transculturador, da mesma forma que em mesma. Inexplicável. Aqueles tantos povos singelos que
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aqui eram já intrigaram demais ao descobridor e seus Amplamente reproduzido esse pensamento molda na
teólogos: ficção o que é a nossa realidade, quando Pitum expressa seu
- Gentes são ou são bichos racionais? Têm alma capaz de pensamento:
culpa? Podem comungar? O enxame de mestiços que deles - Quem somos nós, se não somos europeus, nem somos
devieram na mais prodigiosa misturação de raças intriga índios, senão uma espécie intermédia, entre aborígenes e
ainda mais. espanhóis?
- Quem somos nós? Nós mesmos? Eles? Ninguém? (2007, Somos os que fomos desfeitos no que éramos, sem jamais
p. 24). chegar a ser o que formos ou quiséramos. Não sabendo
quem éramos quando demorávamos inocentes neles,
Pela expansão ultramarina, oportunizando os inscientes de nós, menos sabemos quem seremos.
descobrimentos, a América Latina constituiu-se uma das (RIBEIRO, 2008, p. 24).
províncias mais amplas.
No jogo de linguagem, bem ao estilo barroco, Darcy Ribeiro
Povos foram sangrados, contaminados, a fim de serem
transporta o leitor nas asas da literatura ao tempo quando tudo
convertidos em força animal para o trabalho escravo. Esses povos
começou. A história borbulha e queima na alma dos que hoje a
desfeitos só conseguem agarrar-se à língua e à tradição dos seus
escrevem, tontos, soltos, ilhas na solidão do caos, na consciência
ancestrais.
da sua inconsciência.
Como bem o afirma Darcy Ribeiro, em sua obra O povo
O estilo da colonização barroca no Brasil foi resultado dos
brasileiro, sobre o anseio de identidade de um povo-nação
povos ibéricos, mestiçados em sua formação, que se mesclavam
constituído na mestiçagem:
No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi com os índios e que, desconhecendo-lhes os direitos, só os viam
também radical. Seu produto verdadeiro não foram os como multiplicação de braços a seu serviço. Sob a égide da
ouros afanosamente buscados e achados, nem as tolerância opressiva, desenvolveu-se uma convivência em que o
mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que colonizador reinava sobre os corpos e as almas dos cativos, índios
tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu e negros, que só eram vistos como futuros equivalentes, uma vez
produto real foi um povo-nação, aqui plasmado que para os ditos civilizadores toda a diferença lhes soava
principalmente pela mestiçagem, que se multiplica inconcebível e como deformidade.
prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à Ao explorador é importante o adormecimento da
espera do seu destino. Claro destino, singelo, de consciência histórica do explorado. O despertamento da
simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si
consciência vencida constitui uma grave ameaça ao sistema de
mesmos. (2008, p. 62).
dominação. Assim as obras produzidas por escritores que não se
acomodam, que teimam em criar resistência a toda e qualquer
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repressão, que entendem que o céu não pode ser dobrado e ficaram, encantados com as notícias que leram de nossa sã
guardado numa arca de tesouros usurpados, que o cenário da e gentil selvageria que se extinguia, deram de compor
natureza não pode ser desmontado e que todos os homens têm conosco suas utopias novo-mundescas. No meio deste jogo
direitos iguais para saltar a linha do horizonte e sobrevoar o de cabra-cega, tanto macaqueamos a eles, tanto eles se
mimetizaram em nós, que o colono vindo do Oriente se
mundo, são hostilizadas e extirpadas pelo “index librorum
julga, agora, senhor do Ocidente e quebra a bússula dos
prohibitorum” inquisitivo das grandes potências. Assim como
ventos e dos tempos. (RIBEIRO, 2008, p. 24-25).
Manuel Scorza, no Peru, Darcy Ribeiro, no Brasil, sofreu
retalhamentos daqueles que só entendem o mundo em sua órbita Darcy Ribeiro consegue aliar o seu projeto de retratar o
e de conformidade com a sua maneira de entender a vida, tendo corpo inteiro do Brasil, na feição rural e urbana, arcaica e moderna,
que se exilar no Uruguai para escapar dos dardos desferidos contra brotado na faceta de antropólogo na multiplicidade de escritor
homens que seguem o evangelho da libertação e da equidade genial. Ao produzir a obra O povo brasileiro, iniciada em 1950 e
social. “gestada por mais de trinta anos” (palavras do próprio escritor),
Recentemente se começou a ver que, no encontro histórico publicada em 1995, já no prefácio registra o espírito combativo de
do Anti-Cristo, cristão com o Cristo pagão, o que se deu foi um homem de fé patriótica. Após três retomadas na elaboração da
um desencontro fatal. Os povos sem história que cá éramos referida obra, o autor a conclui como superação de si próprio,
frente aos façanhudos que de lá vieram naquela hora chegando a declarar-se angustiado, diante da possibilidade de,
sumiram ou confluíram e trocaram de ser. (RIBEIRO, 2008, tomado pela doença, não conseguir seu intento:
p. 24). Ultimamente essa angústia se aguçou porque me vi na
Utopia selvagem é uma obra para ser lida no tempo solto iminência de morrer sem concluí-lo. Fugi do hospital, aqui para
do relógio, sorvida parágrafo por parágrafo, numa viagem de ida Maricá, para viver e também para escrevê-lo. Se você, hoje, o tem
sem o compromisso de volta. Nas grandes histórias, os fatos em mãos para ler, em letras de forma, é porque afinal venci,
individuais se perdem diante dos episódios universalizados. Assim, fazendo-o existir. (RIBEIRO, 2008, p. 11).
a história de Pitum, o tenente Carvalhall, abre-se em labirintos de O que o impulsionou a elaborar essa obra foi sentir
interpretações sob o fio condutor histórico-antropológico. necessidade de uma teoria do Brasil que nos situasse na história
Prosseguindo a viagem pelo texto, o leitor esbarra com humana. Redigiu-a no Peru, foi traduzido para o castelhano, mas o
novas reflexões do herói que registram o processo transcultural autor a vetou, para no futuro considerá-la um bom livro. Sobre as
como elemento desencadeador e, antagonicamente, sobrevindo interrupções da obra, Darcy explica:
da mestiçagem latino-americana. Desencadeou-se sobre mim o vendaval da vida. Um câncer
As gentes estranhas que Colombo e a América viram me comia um pulmão inteiro e tive de retirá-lo. Para tanto,
viraram colombianos, americanos e bolivianos, além de retornei ao Brasil, reativando as candentes luzes políticas
abrasados e prateados e até equatorianos. Os que lá que dormiam em mim nos anos de exílio. Tudo isso e, mais
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que tudo, uma compulsiva pulsão romanesca que me deu, A mata amazônica que Orelhão vê devastada e queimada
irresistível, assim que me soube mortal e que, desde então, pelas multi lá está esplendorosa
me escraviza, afastando-me da tarefa que me propunha.
As faladas donas sem marido, que seriam as Amazonas –
(2008, p. 16).
desaparecidas há séculos-,
Utopia selvagem, um dos frutos da pulsão de Darcy Ribeiro, Lá estão guardadas, arquivadas, na banda delas.
acumula no subtexto a pulsação dos nervos do autor sob as
vivências nos trágicos acontecimentos no Brasil, de que ele A Guerra Guiana, se é que há, haverá em outro mundo. No
delas tudo é paz. (RIBEIRO, 2008, p. 75).
participara como protagonista, e a pergunta que se faziam os
derrotados pelo golpe militar: “Por que, mais uma vez, a classe A conversa do narrador com o leitor persiste por todo o
dominante nos vencia?” (RIBEIRO, 2008, p. 12). romance. O capítulo intitulado “Próspero” já se inicia com uma
O narrador de Utopia selvagem convoca ao nacionalismo a recomendação a estilo de Machado de Assis, como se pode
partir do despertamento da consciência histórica para constatar:
desacreditarem que as classes dirigentes, definindo-se como Amigo, amiga, me desculpe, mas tenho outra vez de me
agentes da civilização ocidental e cristã, há quinhentos anos do intrometer em sua leitura. É verdade que, como sempre, em
descobrimento, sejam mais perfeitos, prudentes e castos, seu benefício. Agora, para proporcionar informações
avantajando-se sobre a selvageria e que seu destino seja impor-se complementares, quiçá decisivas para o desenvolvimento
desta fábula. Reconheço, porém, que este capítulo é meio
a ela como um domínio natural dos bons sobre os maus, dos sábios
chato e não me ofendo se você quiser saltá-lo. (RIBEIRO,
sobre os rudes: “Esgotados e enjoados do esforço de similar ser 2008, p. 116).
quem não somos, aprendemos, afinal, a lavar os olhos e compor
espelhos para nos ver.” (RIBEIRO, 2008, p. 25). Próspero representa alegoricamente as estruturas do
Devolvido pela cortina branca para o outro lado, para uma poder, de onde decorre a Utopia Burguesa Multinacional, sonhada
terra de índios, onde vivem duas monjas, Uxa e Tivi, o vingativo há séculos. Para concretizar o “ideal utópico”, diz o narrador, o
pajé e o tuxana Calibã, o herói Pitum estranhava o que as monjas poder supremo é simbolizado na pessoa sagrada do Imperador
contavam do Brasil delas e achava que era invenção. Impoluto.
Curioso, inseguro e inquieto, Pitum passou a escutar as Uma civilização nova, grandiosa, se implantou no Brasil e
conversas e por isso recebeu o apelido de Orelhão. floresce em todo o Terceiro Mundo através da coordenação
As monjas são as donas da verdade, uma de duas esferas de poder mutuamente ajustadas.
verdade não aceita por Pitum: A do Imperador Impoluto com suas Cortes da Beleza, da
Os índios delas nem nunca ouviram falar da FUNAI: estão Sorte, da Alegria Orgásmica e da Caça.
felizes.
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E a de Próspero, com suas redes computacionais instruídos e adestrados nos variados ofícios que gostarão
compulsórias de Participação Popular e de Mobilização imensamente de exercer. (RIBEIRO, 2008, p. 129-130).
Popular e de Educação Técnico-Moral e Cívica que
Por muitas vezes o homem enfrentou um genocídio de
conscrevem e mantêm atenta e acesa e informada toda
cidadania. (RIBEIRO, 2008, p. 123). projeções espantosas. Desde o descobrimento, em cada século,
tribos indígenas, que jamais tiveram contato com os brancos
Na ironia chistosa, o narrador define a Utopia Burguesa antes, foram sofrendo com pestes e perdendo em seu montante
Multinacional, afirmando para negar quando a define: demográfico. O efeito dizimador das enfermidades, adicionado ao
A Utopia Burguesa Multinacional é, como se vê, o engajamento compulsório da força de trabalho escravo e ao da
coroamento da evolução humana. Saltando do fogo ao arco
aculturação, acarretou a completa extinção da maior parte dos
e flecha ou à sarabatana, dela à cerâmica e à metalurgia e
grupos indígenas.
daí às matemáticas e à cibernética, os homens foram dar,
afinal, neste Sistema dotado de capacidade total de Desalojados de suas terras, os índios sofreram com as
destruição e de edificações do mundo, de desfazimento e guerras de extermínio, autorizadas pela Coroa contra os índios
refazimento radical da humanidade. (RIBEIRO, 2008, p. considerados hostis, como os do Vale do Rio Doce e do Itajaí.
129). Sobreviveram algumas tribos indígenas ilhadas na massa crescente
da população rural brasileira, como parte remanescente da
No viés do texto está presente a crítica à automatização do
população original. “A historieta clássica, tão querida dos
homem no processo civilizatório que interpenetra os labirintos das
historiadores, segundo a qual os índios foram amadurecendo para
palavras. Em Utopia selvagem, o narrador preconiza a
a civilização de forma que cada aldeia foi se convertendo em vila,
programação do “Homo Ciberneticus” que recolonizará os
é absolutamente inautêntica.” (RIBEIRO, 2008, p. 131).
mundos. A visão do homem na pós-modernidade percorre os
Atesta Darcy Ribeiro, em estudo que realizou para a
meandros do capítulo “Próspero”.
UNESCO, que os índios, como os ciganos ou os judeus, são povos
Tal como um dia os homens puseram ordem na natureza
para que as plantas nascessem onde deviam e não ao acaso, irredutíveis na sua identificação étnica. Quanto mais perseguidos
para que se multiplicassem as vacas, os carneiros e galinhas mais se recolhem para dentro de si mesmos.
e não a variada bicharia selvagem de antas, tigres e emas... No capítulo “Cunhãmbebe” essa ideia está expressa nas
assim também, agora, se trata de desfazer e refazer com a palavras de Pitum:
mesma radicalidade a natureza humana acabando com o – Não é crível que Deus tenha feito toda essa gentilidade
esgotado “Homo Sapiens Paleontológico” para dar lugar ao pagã que se gastou no Brasil desde o dia da “descoberta” só
Homem Novo Programático. Devidamente refeitos, os para provar e santificar missionários no martírio. Acho tudo
nossos netos serão criaturas do homem, verdadeiramente isto duvidoso. Os missionários pelejam anos, décadas,
aptos para serem felizes e eficazes. Todos nascerão gastando suas vidas nesta pia persistência, para nada. Cada
nova geração de índios – como de judeus ou de ciganos –
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nasce índia e índia permanece no fundo do peito, vendo em o país, cumpria abrir guerras de extermínio com tropas oficiais
nós, os outros, os cristãos. (RIBEIRO, 2007, p. 97). para resolver o problema. (Cf. RIBEIRO, 2008, p. 132).
Pouco conseguem, ainda, as missões, como a dos Naquele momento conflituoso surge a figura de Cândido
Salesianos do Rio Negro, empenhados em ocidentalizar e Rondon que, tendo ampla experiência do trato com os índios, uma
catequizar os índios daquela região. Tentaram, nas palavras de vez que estendera milhares de linhas telegráficas em território
Darcy Ribeiro, “desindianizar” os índios, o que consiste na ruptura indígena, sem conflitar com eles, o notável humanista exigiu do
das relações com a tradição, transmitidas de pais para filhos. “O país respeito à sua população original.
que alcançaram não foram italianinhos, mas moças e rapazes O apelo de Rondon foi atendido pelo governo e ainda por
marginalizados, que não sabiam ser índios nem civilizados, e lá dezena de oficiais das forças armadas, bem como por profissionais
vivem em vil tristeza.” (RIBEIRO, 2008, p. 131). de várias áreas que decidiram dedicar suas vidas à salvação dos
A incorporação indígena à população brasileira acontece no povos indígenas. O objetivo de Rondon e de seus companheiros
plano biológico, na gestação de mamelucos, filhos do dominador era não o de exterminar ou transformar o indígena, mas o de dar-
com as mulheres desgarradas de sua tribo, que, na identificação lhe acesso a ferramentas e orientação adequadas.
com o pai, se somam ao grupo paterno. Rondon e seus seguidores deram o primeiro grande passo
Dessa forma, a mulher indígena veio plasmando o povo transculturador, sobre o que declara Darcy Ribeiro:
brasileiro, exercendo papel de geratriz étnica. A inovação principal de Rondon foi, porém, o
estabelecimento pioneiro do princípio, só hoje reconhecido
Os índios e os negros aliciados como escravos dificilmente
internacionalmente, do direito à diferença. Em lugar da fofa
conseguiam uma companheira.
proclamação da igualdade de todos os cidadãos, os
Em 1939, Saint-Hilaire comentou da região do Rio Grande rondonianos diziam que, não sendo iguais, essa igualdade
do Sul, sobre os índios escravizados: “... se utilizam para o só servia para entregar os índios a seus perseguidores. O
povoamento do solo, visto como longe de suas terras não que cumpria era fixar as normas de um direito
encontram mulheres com quem pudessem casar.” (SAINT-HILAIRE, compensatório, pelo qual os índios tinham os mesmos
in: RIBEIRO, 2008, p. 132). direitos que os brasileiros – de ser eleitor, de fazer serviço
Na primeira década do século XX, os missionários se militar, por exemplo -, mas esses direitos não lhes podiam
apropriavam das terras dos índios que catequizavam e as ser cobrados como deveres. (2008, p. 133).
loteavam, com grande revolta dos nativos. Vastas áreas foram A semente rondoniana germinou, brotou, cresceu e deu
entregues à colonização estrangeira, sobretudo à alemã. Na época, frutos no solo brasileiro, de norte a sul. É rememorável que as
o diretor do Museu Paulista, solicitou ao governo que optasse sementes só chegam a fruto se caem em terra fértil.
entre a selvageria e a civilização, pois, se seu propósito era civilizar As palavras do Transculturador Maior, que interpenetrou o
céu com a terra dos homens com o Evangelho, Rondon e seus
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adeptos cultivaram e hoje transparecem nos grandes troncos que O índio venezuelano Simeon Turon, em seu artigo “Morte
sustentam as ramas verdes da inclusão social. cultural com anestesia”, declara: “O indígena perde sua
Ao se chegar à região de São Miguel das Missões, no Rio identidade, os valores de sua cultura e o significado de sua história.
Grande do Sul, pode-se contemplar o passado histórico resgatado Resta-lhe uma língua vazia, porque não está respaldada ou
no presente, iluminado pelo sol interpenetrando nas brechas fundamentada na história de sua cultura...” (TURON, in: CABRAL,
sulcadas pelas mãos do tempo, percorrendo as paredes de pedras, 1987, p. 13).
aquecidas no respeito aos povos da terra por organizações Nesse contexto, onde ficam as lendas, a alma indígena da
humanizadas como a UNESCO. tradição oral brasileira?
Nas pautas de uma tosca coletânea, transitam textos Resultante desse processo educacional equivocado, surgiu
visuais e verbais, produzidos pelos índios do nosso Brasil, no não o monitor índio, mas o “pastor índio”, figura intermediária da
projeto de interação “Por uma educação indígena diferenciada”. comunidade com o Reino de Deus. Nas áreas onde existem escolas
Os apóstolos rondonianos, hoje, ainda batalham pela missionárias, as escolas com monitores índios enfrentam
escola indígena, a vez que a escola dos missionários é inicialmente resistência por parte daqueles.
monolíngue, utilizando cartilhas de alfabetização na língua em que Segue-se o depoimento de uma monitora, Mariazinha
atuam. Yawanawá, que confirma esta questão:
A escola dos missionários é um dos mecanismos utilizados Depois do primeiro e do segundo curso que eu fiz, quando
para legitimar sua presença nas áreas, conquistando a eu voltei, os missionários não aceitaram. Eu queria explicar
confiança dos grupos, dominando-lhes a língua e para eles, mas não acreditavam, pensavam que eu estava
devolvendo-a escrita, com o objetivo de ‘salvar-lhes as falando besteira .... Um dia ele me chamou e disse: - Olhe,
almas’. A língua do grupo escrita, é, pois, oferecida ‘em não devemos ter duas escolas dentro de uma só. Eu fui e
escambo’ aos próprios falantes como símbolo do disse: - De fato, não devemos ter não. Não devemos ter
poder/saber dos missionários, que, em troca, pedem-lhes o duas escolas e não quero dividir alunos .... Eu tenho meus
abandono de suas crenças e a adoção da religião evangélica. materiais completos e vou ensinar. Eu não estou aqui por
(CABRAL, 1987, p. 13). minha conta própria. Eu estou cumprindo minha
responsabilidade ...
A escrita da língua indígena no Brasil é, portanto, resultado
(agosto/85). (YAWANAWÁ, in: CABRAL, 1987, p. 13-14)
de um ato solitário e autoritário dos pesquisadores da missões que
oferecem para os estudantes índios uma ortografia, escolhem No final de 1985, após uma série de conflitos, envolvendo
palavras, traduzem estórias estrangeiras. O produto dessa forma as missões “Novas Tribos do Brasil”, Comunidade e até Polícia
de pesquisa e de pedagogia são materiais desprovidos de Federal, a partir do escândalo das “Asas do Socorro” *, os
significação cultural, embora escritos na língua dos autóctones. Yawanawá expulsaram os dois casais de missionários americanos
de sua aldeia, por razões apresentadas em documento anexo pelo
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índio Biraci Brasil – Yawanawá, um dos principais articuladores da * “Asas do Socorro” é o nome de uma instituição ligada à Igreja
iniciativa, a partir do que a monitora pôde desenvolver, sem Protestante norte-americana que presta apoio logístico aos
interferências, seu projeto de escola indígena. (Cf. CABRAL, 1987, missionários, dentre eles os da “Novas Tribos do Brasil”. No fim de
p. 14). 1985 surgiram denúncias de que estariam desviando minério do
Ilustrativo consideramos registrar, neste estudo, uma das solo brasileiro para os Estados Unidos. O governo suspendeu, na
respostas, oriundas de um questionário de avaliação de curso, ocasião, a atividade das “Asas do Socorro”.
promovido para monitores índios, ao final das aulas de Comemos com Oswald nosso repasto mais sério e severo de
matemática. A pergunta era: - Para que servem os números? A assunção do nosso ser, diante da estrangeirada. Com ele,
resposta induz a reflexões sobre as impressões do “outro” quanto pela primeira vez, gargalhamos:
a conhecimentos adquiridos de diferentes culturas. Observe-se - Ali vem a nossa comida pulando.
que o conflito gerado na heterogeneidade frutifica nos processos Neste ímpeto de reversão da comedoria pantagruélica, só
transculturais: pedimos a Deus a boca voraz e insaciável dos prósperos da
– Os números servem para a gente contar quantidade de terra para devorar a estranja e fazer dela o estrume com
coisas; servem também pro patrão roubar os índios no peso que floresceremos.
da borracha, no peso do sernambi. Os índios hoje não têm
nada porque os índios não sabem fazer contagem, não Ainda hoje é este brado que ecoa, chamando tanto
sabem pra que servem os números. Os números servem macaquito sério que empulha europeísmos por aí para lavar
para a gente medir terreno, medir madeira, medir um a cara, rir e se armar para caçar e comer quem nos come.
tamanho de uma casa; servem também para dividir uma Menos para fazer nossa sua carne nojenta do que para
quantidade de produto. Servem também para juntar preservar nosso próprio sumo. (RIBEIRO, 2007, p. 25)
quantidade de objetos; servem também para multiplicar Darcy Ribeiro expressa brincando, à semelhança de Mário
uma contagem e também para diminuir uma quantidade de de Andrade, situações que o riso, arauto da verdade, jamais
dinheiro. (APURINÃ, in: CABRAL, 1987, p. 35)
esconde. Em passagens das respectivas obras dos dois escritores,
Para a elite cultural o texto do “outro” pode chegar às raias o humano constitui elemento vital para o imaginário passar a
do riso, uma vez que aquele é sempre o diferente, o marginalizado, sentir com os que sentem, expandir em explosões de
o menos inteligente. solidariedade.
É o que nos convoca a refletir Darcy Ribeiro, em Utopia Bergson chama a atenção para a interdependência entre o
selvagem, na paródia humano e o riso:
antropofágica, sobrevinda do ideário de Oswald de Andrade: ... não há comicidade fora do que é propriamente humano.
Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime,
____________ insignificante ou feia, porém jamais risível. Riremos de um
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animal, mas porque teremos surpreendido nele uma próximo dela para dar base de sustentação de uma cultura e
atitude de homem ou certa expressão humana. Riremos de definir uma identidade.
um chapéu, mas no caso o cômico não será um pedaço de O confronto de elementos aparentemente heterogêneos
feltro ou palha, senão a forma que alguém lhe deu, o molde disputam, num mesmo espaço, o pódio das verdades relativas.
da fantasia humana que ele assumiu. (1987, p. 12)
A literatura atual dialoga consigo mesma para adquirir uma
A comicidade se instala em “- Aí vem a nossa comida aguda consciência de denunciar suas próprias convenções, de
pulando”, quando a palavra “comida” explode seu significado para explicitar as regras do jogo.
multifacetar-se no significante “homem”. É o que busca a A paródia e a ironia constituem-se procedimentos
literatura pós-moderna: a explosão dos signos. fundamentais de desnudamento da construção literária que, além
No recorte, em destaque, de Utopia selvagem, a tal ponto de contribuírem para o efeito cômico por meio da denúncia da
o signo se expande que o processo antropofágico só se instala na rigidez de certos recursos da tradição literária, indicam novos
comicidade, quando se alia ao significante “comida” o significado caminhos para a linguagem da ficção. (Cf. ARRIGUCCI, 1973, p. 168
de gesticulação humana. – 169)
Constitui a paródia um dos traços de importância da arte Quando um escritor rompe com determinado código de
atual, uma vez que é uma das linguagens da modernidade que expressão para propor novas formas, ou reciclar as anteriores num
subverte a linguagem convencional, ao inverter o significado dos nível que atenda com mais eficiência suas necessidades de criação,
seus elementos. coloca em questionamento o sistema precedente, revelando seu
Segundo Bella Jozef, através da paródia caráter de paradigma desgastado e ineficaz.
... cria-se um distanciamento em relação à verdade comum Em Macunaíma, irrompe-se essa nova forma de
e opera-se a liberdade de uma outra verdade. Na tentativa substituição dos códigos estabelecidos das convenções
de descongelar o lugar comum, a paródia põe em confronto dominantes por meio de destruição e de construção a um só
uma multiplicidade de visões, apresentando o processo de tempo. Em Utopia selvagem, Darcy Ribeiro continua a substituição
produção do texto. Como escrita de ruptura procura um
dos códigos tradicionais, inserindo a crítica no cerne da obra, numa
corte com os modelos anteriores, realizando uma inversão
consciência contemporânea, por meio da metalinguagem, em
e um deslocamento. Ela retoma a linguagem anterior, de
maneira invertida, revelando a ideologia subjacente, diálogos estabelecidos pelo narrador com o leitor:
destruindo para construir. (JOZEF, 1980, p. 54) Sejamos sérios, leitor-a. Já é hora de darmos um balanço
crítico nesta história. Na boa literatura ficcional, enredo é
Ocupando o papel desmistificador do discurso realista, a indispensável, mas não basta. Alguma ensaística filosófica é
paródia, na ficção contemporânea, desvincula-se do compromisso também necessária. Aí vamos.
com a verdade e, interpenetrando a realidade, torna-se mais Segundo penso e professo, selvagem para ser autêntico tem
é que fazer selvageria, tal como cristão tem de viver na
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misericórdia e na caridade. Quando se contaminam, a Na atualidade, Darcy Ribeiro e Manuel Scorza trabalham
Civilização fica selvagem e a Selvageria cristã, o que só pode uma literatura cujo vetor é superar a intolerância de uma
dar em desgraça de cristãos asselvajados e selvagens pios. sociedade de castas, que despreza e pisoteia pelo racismo os
(RIBEIRO, 2007, p. 102) esquecidos dos poderosos deste mundo.
A leitura de obras como Macunaíma e Utopia selvagem Na narrativa de Scorza há uma forma muito peculiar de
exige um leitor “contra-herói”, assim definido por Roland Barthes: pisar a pós-modernidade, empunhando a bandeira de levar as
Ora este contra-herói existe: é o leitor de texto, no populações aborígenes americanas, marginalizadas, desde a
momento em que se entrega a seu prazer. Então o velho conquista espanhola, ao progresso material e moral, recuperando
mito bíblico se inverte, a confusão das línguas não é mais a dignidade humana que lhes foi negada pela história oficial.
uma punição, o sujeito chega à fruição pela coabitação das Como afirma Roland Forgues, no texto produzido em 2007,
linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é aos vinte e cinco anos da morte de Scorza, intitulado “Scorza en el
Babel feliz. (1987, p. 8)
siglo XXI – muerte y resurrección de los dioses”: “En una palabra
Ambos os textos exigem um leitor que abra o espaço para cuanto hizo y escribió Manuel Scorza fue motivado por la generosa
o jogo, na predisposição para acreditar nas brincadeiras do pícaro idea de introducir a los vencidos en la historia oficial como parte
ao dizer as verdades e para ouvir as verdades que ele teima em de ella, no como objetos sino como actores.” (FORGUES, in: Martin
dizer brincando. – Revista de artes y letras, año VII, nº 17, diciem., 2007, p. 19)
Nas obras da atualidade, o prazer da leitura decorre A busca de superação da mentalidade de escravos pelo
de duas margens textuais: de um lado está o produtor da ficção povo peruano, em particular, e latino-americano, em geral, leva a
que desfolha a verdade no jogo do “bem-me-quer, mal-me-quer”, literatura de Scorza a ressuscitar os antigos deuses da civilização
de outro, um leitor que desconstrói e reconstrói o discurso quéchua e reuni-los com os novos deuses da civilização ocidental,
narrativo nas brechas que nele descobre fascinado. encarnados pelas ideologias do progresso. Procura recuperar as
Lunarizando a literatura latino-americana no abraço formas do pensamento mágico religioso primitivo, aproximando-
transcultural, Brasil e Peru dão mostras, com seus escritores as da cultura racionalista ocidental para verter a consciência mítica
comprometidos com o seu tempo, de enfrentar o desafio com que do antigo quéchua na consciência histórica do homem moderno.
defronta América Latina, no cenário internacional, nas palavras de É o que expressa o romance La tumba del relámpago, em
Darcy Ribeiro: que Genaro Ledesma reflete sobre a petrificação do tempo, desde
... o de capacitar-se para enfrentar e vencer esta lúcida o dia da morte do Inca Atahualpa, para voltar a transcorrer no
política de potência destinada a submeter seus povos a um momento da revolução socialista. “el cuerpo de Inkari se ha
novo processo de atualização histórica, por meio de uma juntado bajo la tierra. Los cinco huevos de Pariacaca sólo pueden
combinação de procedimentos sócio-econômicos, de engendrar cinco cuerpos si hay cinco revoluciones. Aunque fuera
manobras políticas e de ações de guerra. (1978, p. 44)
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una, pensó. Y se le llenaron los ojos de lágrimas.” (SCORZA, 1988, Darcy Ribeiro apresenta em Utopia selvagem a mesma
p. 135). preocupação de Manuel Scorza quanto à estratégia mítica na
Scorza preferiu a palavra “campesino” a “índio” para falar recuperação das raízes culturais.
dos comuneiros andinos e também se negou, diferentemente de A mentalidade mítica, tão explorada em La tumba del
Arguedas, a inventar uma linguagem particular para que os índios relámpago, bem como em Utopia selvagem, no prosseguimento
se expressassem e traduzissem seus sentimentos. do processo transculturador de Macunaíma atesta sua presença
Como continuador do ideário de Mariátegui, no retorno ao na pós-modernidade, no projeto da inclusão.
passado, pondera Roland Forgues: Enquanto em Scorza, a personagem Maca Albornoz,
Como para José Carlos Mariátegui, el retorno al pasado o ‘a rechaçada pelo pai e irmãos por ter nascido mulher, transforma-
la cimiente indígena’ como propuesta de cambio y se, pela mentalidade mítica dos comuneiros em Santa Maca, em
fundamento del socialismo americano, era para Scorza el Utopia selvagem o mito das mulheres Amazonas antropófogas que
mejor medio de proyectar al Perú y América Latina en el devoram os homens assola o tenente Carvalhall, cognominado
futuro de la posmodernidad. (FORGUES, in: Martin – Revista
Pitum, pelas Icamiabas. Trata-se de uma abstração de alto grau em
de artes y letras, año VII, nº 17, diciem., 2007, p. 24)
que a fusão do natural e do social se processa em confusões, o que
Para Scorza as formas e as possibilidades de também ocorre em Macunaíma, em que o herói morto, feito em
desenvolvimento dependem da superação do trauma da torresmos pela mulher do gigante, ressuscita para mais aventuras
conquista. Esta superação só se realizará na recuperação dos na cidade de São Paulo.
deuses, isto é, na recuperação das raízes culturais e das formas de Octavio Paz expõe sua inspiradora reflexão sobre as formas
expressão do pensamento quéchua primitivo, marcado por uma de pensar do homem moderno. Para ele, o homem moderno
relação harmônica entre o homem e a natureza, que se rompeu, descobriu maneiras de pensar e sentir que estão muito próximas
desde a conquista, pela imposição ocidental. da parte noturna do nosso ser e completa: “Tudo aquilo que a
Para Octavio Paz o homem contemporâneo racionalizou os razão, a moral ou os costumes modernos nos fazem ocultar ou
mitos, mas não teve condições para destruí-los, sobre o que depreciar, constitui para os chamados primitivos a única atitude
afirma: possível ante a realidade.” (PAZ, 1982, p. 141 - 142)
Muitas das nossas verdades científicas, assim como a maior Para Octavio Paz a divulgação dos estudos sobre os mitos e
parte das nossas concepções morais, políticas e filosóficas, as instituições mágicas e religiosas têm as mesmas raízes que os
são apenas novas expressões de tendências que antes outros interesses contemporâneos, como a arte primitiva, a
encarnaram em formas míticas. A linguagem racional do
psicologia do inconsciente ou a tradição oculta. Afirma, ainda, que
nosso tempo apenas encobre os antigos mitos. (PAZ, 2006,
o moderno é uma tradição feita de interrupções, em que cada
p. 190)
ruptura é um começo, uma vez que entende por tradição a
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transmissão, de uma geração a outra, de notícias, lendas, histórias, Em La tumba del relámpago o tempo plural marcha no
crenças, costumes, formas literárias e artísticas, ideias, estilos; sentido de refazer o que a morte destruiu, no deus gerado na
logo, qualquer interrupção na transmissão equivale a quebrar a cosmogonia incaica: “Bajo la tierra, el cuerpo de Inkari había
tradição. Considera, ainda, que a modernidade é uma tradição seguido creciendo, juntándose con los siglos. ¡Y ahora, por fin, se
polêmica e que desaloja a tradição imperante para logo ceder reunía!” (SCORZA. 1988, p. 6)
lugar a outra tradição que, por sua vez, é outra manifestação Em ambos os escritores o mito representa um meio de
momentânea da atualidade, sobre o que conclui: apreender e de traduzir a realidade.
A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. O Darcy Ribeiro mergulha na tradição indígena amazônica,
moderno não é caracterizado unicamente por sua assim como o fez Mário de Andrade, no seu projeto de nacionalizar
novidade, mas por sua heterogeneidade. Tradição a literatura brasileira. Registra as várias versões de uma lenda,
heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está geradora das múltiplas facetas do mito que delas decorre.
condenada à pluralidade: a antiga tradição era sempre a
Manuel Scorza elabora o mito que resgata da tradição, não
mesma, a moderna é sempre diferente. A primeira postula
só para revelar a história dos vencidos, mas para empregá-la na
a unidade entre o passado e hoje; a segunda, não satisfeita
em ressaltar a diferença entre ambos, afirma que esse construção do futuro.
passado não é único, mas sim plural. (1984, p. 18) Segundo Roland Forgues: “Este cometido implica, desde
luego, que se dé un proceso de concientización de los hombres. Un
Em Utopia selvagem e em La tumba del relámpago, o proceso que, llevado a su término, desembocaría
tempo natural cede espaço ao tempo mítico que se rompe em obligatoriamente en la desaparición del mito y afirmación de la
pluralidade de passados. Em Utopia selvagem, no capítulo realidad.” (FORGUES, 1991, p. 47)
“Felicidade Senil” em que foi escrito O tempo traz em si uma carga de heterogeneidade,
...por Ato Institucional, na Constituição da República consta
geradora da sua pluralidade. À pluralidade do tempo real opõe-se
o princípio de que: ‘A ninguém é lícito viver
à unidade de um tempo ideal ou arquetípico. Nas palavras de
impreterivelmente’.
Octavio Paz:
Medite comigo, meu caro leitor-leitora, sobre este Ato. Ele Em um extremo, as tentativas mais radicais, como o vazio
é o reconhecimento da compulsoriedade necessária da budista ou a ontologia cristã, postulam concepções, nas
morte que, sendo consabidamente inevitável, só pode ser quais a alteridade e a contradição inerentes ao passar do
programada. Nesta circunstância só nos cabe o consolo de tempo desaparecem do todo, em benefício de um tempo
recordar que, afinal, como dizem os sábios chineses, o sem tempo. Em outro extremo, os arquétipos temporais
inevitável é sempre o melhor. (RIBEIRO, 2007, p. 147) inclinam-se pela conciliação dos opostos, sem suprimi-los
O narrador induz o leitor a uma reflexão sobre o tempo inteiramente, seja pela conjunção dos tempos em um
passado imemorial que se faz presente sem cessar, seja pela
biológico que se curva ao cronológico.
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ideia dos ciclos ou idades do mundo. Nossa época rompe Corporation conservaram os nomes reais. Em Mário de Andrade e
bruscamente com todas essas maneiras de pensar. (1984, em Darcy Ribeiro os nomes foram reajustados à ficção.
p. 33-34) É a estética pós-moderna a acionar os recursos para o
A época moderna exalta a mudança e a transforma em seu testemunho, muitas vezes tácito, de fatos que contam do medo,
fundamento. Para Octavio Paz: do rancor, da impotência e da exploração paradoxalmente narrada
Diferença, separação, heterogeneidade, pluralidade, com linguagem próxima do lirismo e do humor.
novidade, evolução, desenvolvimento, revolução, história –
todos esses nomes condensam-se em um: futuro. Não o Referências
passado nem a eternidade, não o tempo que é, mas o AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini T.(Orgs.) Ángel
tempo que ainda não é e que sempre está a ponto de ser. Rama – Literatura e cultura na América Latina. Tradução de Raquel
(1984, p. 34) La Corte dos Santos e Elza Gasparotto. São Paulo: Edusp, 2001.
Em Utopia selvagem, o tempo proclama “Ai que preguiça!”
que lhe ecoa do antecessor Macunaíma e anda sem pressa, nem APURINÃ, Francisco. In: CABRAL, Ana Suelly A. Câmara et al. Por
vontade; em La tumba del relámpago, na busca do lugar que lhe uma educação indígena diferenciada. Brasília: C.N.R.C./ FNPM,
foi arrancado na história, no episódio em que são narrados 1987.
acontecimentos que envolvem a torre do futuro, o personagem
Remígio, ao contemplar os ponchos tecidos pela cega Añada, ARRIGUCCI, Davi Jr. O escorpião encalacrado. São Paulo:
percebeu que naqueles tecidos o futuro estava todo relatado e o Perspectiva, 1973.
repeliu porque “¡Intuyó que había llegado al futuro, y lo rechazó!
Porque no quería ya acatar ninguna ley emitida en las sombras por BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva,1987.
la mano de una delirante sombra ciega, sino ordenarse él mismo y
obedecerse él mismo, asumir su propio futuro.” (SCORZA, 1988, p. BERGSON, Henri. O riso - ensaio sobre a significação do cômico. 2.
184) ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
Nos labirintos verbais, a história contemporânea veicula,
arrastando testemunhas da violência social que sofreu a América CABRAL, Ana Suelly A. Câmara et al. Por uma educação indígena
Latina. São obras em que os personagens individuais incorporam o diferenciada. Brasília: C.N.R.C./ FNPM, 1987
coletivo, mitificando-se. Protagonistas, fatos e tempos têm
referentes reais e históricos que foram ficcionalizados para FORGUES, Roland. Scorza en el siglo XXI, por el camino de la
proteger os justos dos punhos cerrados da justiça dos homens. Em posmodernidad - muerte y resurrección de los dioses. In: Martín –
Scorza esses personagens que enfrentaram a Cerro de Pasco
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Revista de artes y letras, Universidad San Martín de Porres. Año SAINT-HILAIRE, Auguste de. In: RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro.
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EUCLIDES DA CUNHA EN LA PRENSA MASIVA ARGENTINA DE descubría la cultura nacional y se consolidaba el concepto de
1930: MONSTRUOSIDAD, VIOLENCIA Y EXOTISMO literatura brasileira. En este momento la novela desplazó a la
María de los Ángeles Mascioto poesía y puso el acento sobre personajes humildes del noroeste,
IdIHCS- UNLP-Conicet una región que ya había sido “consagrada por Euclides da Cunha
en Os Sertões - 1902 - como locus que, por alejarse de las costas
La Revista Multicolor de los Sábados, suplemento literario propicias a la influencia europeizante, escondía lo auténticamente
y cultural del diario Crítica dirigido por Jorge Luis Borges y Ulyses brasileño” (SORÁ, 2003, p. 105). Por otro lado, Sorá identifica en
Petit de Murat entre los años 1933 y 1934, contó tanto con Buenos Aires un marcado incremento de la traducción de títulos
traducciones de textos escritos por brasileños como Euclides da brasileños a partir del año 1937, momento en el cual se publican
Cunha, Joaquim Machado de Assis y Ribeiro Couto como con dos colecciones de libros pertenecientes a escritores de Brasil: la
reseñas de poemas brasileños y artículos periodísticos sobre Brasil primera es la “Biblioteca de Novelistas Brasileños” de la editorial
y sus costumbres. No obstante, llama la atención la ausencia de un Claridad, una editorial de izquierda que desde los años veinte
análisis de estos textos que hacen referencia o que traducen a publicaba libros con el fin, claramente pedagógico, de ofrecer al
Brasil en las más importantes investigaciones sobre este público lector un conjunto de obras literarias de calidad difundidas
suplemento literario (RIVERA, 1976; LOUIS, 1997; SAÍTTA, 1999; a bajos precios (Montaldo). Y la segunda colección fue la
GREEN, 2010). Quizás esto tenga una explicación en la creencia “Biblioteca de autores brasileños traducidos al castellano” que
arraigada de que la literatura brasileña fue poco conocida en editó el Ministerio de Justicia e Instrucción Pública. Antes de esta
Argentina, pese a lo cual investigadores como Gustavo Sorá han fecha, de acuerdo con Gustavo Sorá, las traducciones de escritores
podido comprobar que, después de París, Buenos Aires fue uno de brasileños fueron más bien esporádicas.
los principales lugares de traducción y edición de autores Recién en el año 1942, es decir, nueve años después de
brasileños durante el siglo XX (SORÁ, 2003, p. 23). Sin embargo, ni haber sido publicados fragmentos de Os Sertões en la Revista
el mismo Sorá en su importante trabajo sobre las traducciones de Multicolor, la editorial Claridad ofrecería a sus lectores la
escritores brasileños en Argentina ha tomado en consideración la traducción completa del libro de Euclides da Cunha. De este modo,
presencia de Euclides da Cunha en el suplemento cultural de un lo que entre 1933 y 1934 había sido publicado de manera
diario de distribución masiva como Crítica a comienzos de los años esporádica y fragmentada en el suplemento literario del diario
treinta. Crítica, cuatro años más tarde se ofrecería a los lectores en
La década del treinta es considerada por este antropólogo formato libro por una de las editoriales que más había cuestionado
argentino como un momento fundamental para la literatura
brasileña y para su traducción en Buenos Aires (SORÁ, 2003). Por
un lado, aquí, en Brasil, se trataba de un período en el que se
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a este periódico1. Los textos publicados en el suplemento de Crítica En el período 1933-1934, Brasil formaba parte tanto de las
coexistieron con un contenido muy fuertemente presente en la noticias que se publicaban en el cuerpo del diario como de su
temática que enmarcaba la publicación periódica. El diario, suplemento. El 8 de julio de 1933, entre las informaciones
fundado en el año 1913 por Natalio Botana, era sensacionalista y internacionales, aparecía la noticia de la llegada de Natalio Botana,
fue el primero en Argentina de llegada masiva, se caracterizó por director de Crítica, a Río de Janeiro, la noticia señalaba que se
construir las noticias en sentido literal, y por preocuparse más por trataba de un viaje de descanso y anunciaba que el presidente
el impacto que ellas causaban en el público lector que por su Justo visitaría Brasil en agosto. En este último mes se presentarían
verificación y su objetividad (SARLO, 1992, p. 69). En sus páginas en la portada y cuerpo del diario las novedades del viaje
se observa una redacción atractiva y agresiva de los titulares, presidencial. El 7 octubre de 1933 el suplemento de Crítica publicó
historias de interés humano, una importante presencia de su primera traducción de un fragmento de Os Sertões, titulado “El
ilustraciones que dejaban de ser pasivas acompañantes de las centauro de los desiertos”, el sábado siguiente (14/10/1933) se
noticias y pasaban a ser reconstrucciones gráficas de los publicó un artículo sobre “Dios en el Brasil” firmado por Brasil
acontecimientos (RIVERA, 1998). Gerson; en la entrega del 21 de octubre de 1933, nuevamente
La Revista Multicolor se promocionaba en Crítica bajo dos Brasil volvió a ser el tema de portada con la publicación de la nota
lemas: “La mejor lectura para el más amplio público” y “Nuestra “La macumba de los brujos negros”, también a cargo de Gerson.
costumbre es innovar”. Tomando estas frases como premisa, el En el siguiente número se publicó el segundo fragmento de Os
suplemento presentó una convivencia de reseñas sobre Sertões, titulado “La fiebre pavorosa de la tierra”. Podemos
novedades literarias junto con artículos sobre curiosidades, títulos encontrar tanto en los textos literarios como en las notas
al modo sensacionalista y amplias ilustraciones. En la mayor parte periodísticas algunas coincidencias que mostraban al público
de relatos ficcionales y artículos de interés general publicados en lector una representación de Brasil en la que se mezclaba la
sus páginas se mezclaba veracidad y ficción, periodismo y religiosidad y superstición, lo verosímil y lo legendario.
literatura. Al mismo tiempo, el título (Revista Multicolor) y su Si, como sostiene Gustavo Sorá (2003, p. 24), “la traducción
periodicidad, así como su especificidad literaria y cultural, hicieron nos revela una de las dimensiones centrales de la circulación de las
de ella un ámbito restringido destinado a aquellos lectores que ideas, de la circulación de intercambios de bienes simbólicos, de la
quisieran dejar de lado la inmediatez de la noticia para acceder a constitución de las identidades nacionales”, podemos pensar la
un espacio mayormente poblado por ficciones literarias para puesta en contacto de textos que hacen referencia a la identidad
degustar durante toda la semana. brasileña dentro de un suplemento literario y cultural bonaerense
en el que también se publicaron textos sobre “lo argentino” o “lo

1
Para ver las polémicas entre Crítica y Claridad cfr. Rogers (2011).
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porteño”, artículos sobre el tango, la milonga, el folclore y la dinamismo y estatismo presente en el juego de las dos imágenes
cultura de Buenos Aires, cuentos criollos, rurales y urbanos, como la encontramos también en la historia que cuenta el texto
una relectura de Euclides da Cunha en la que se define lo nacional publicado en la Revista Multicolor, que está compuesto por tres
brasileño y lo nacional argentino en relación de semejanzas y apartados del segundo capítulo de Os Sertões, “Los Hombres”: “El
oposiciones con respecto a lo internacional o a lo americano. sertanejo”, “Tipos dispares: el jagunço y el gaúcho” y “Los
En este sentido, el primer texto de Euclides da Cunha, que vaqueros”.
se publica en la portada de la Revista Multicolor de los Sábados, Encontramos, entonces, en el suplemento de Crítica una
bajo el nombre de “El centauro de los desiertos”, ya desde el título relectura y modificación de la publicación original en soporte libro
parece aludir a la definición de “baqueano” de Sarmiento, como si en varios aspectos. En primer lugar, se observa que el texto ahora
se estuviera instaurando este texto extranjero dentro de la se encuentra acompañado por imágenes, que incluso adquieren
tradición de la literatura argentina. A esta estrategia se suman un protagonismo por sobre la escritura, teniendo en cuenta sus
algunos aspectos particulares de la reescritura, como por ejemplo grandes dimensiones y sus colores estridentes. Esta relevancia de
la traducción de “gaúcho” como “gaucho”, lo que da paso a una lo visual estaba muy presente tanto en el diario Crítica – que
ambigüedad en la interpretación y un acercamiento entre el justamente se diferenció de sus contemporáneos, La Prensa y La
personaje brasileño y el gaucho argentino. Desde el punto de vista Nación, entre otros aspectos, en que estos últimos hacían un uso
temático, el artículo alude a las oposiciones entre el “sertanero” y muy escaso de imágenes y fotografías– como en el suplemento
el “gaucho del Sur”, el primero se describe como perezoso, lo que multicolor de los sábados, en el que se aplicaron las más modernas
nuevamente nos retrotrae al punto de vista sarmientino sobre el tecnologías de impresión a fin de obtener una buena calidad en las
gaucho argentino, aunque en esta traducción de Da Cunha se imágenes, generalmente de colores estridentes, que
invierte el tópico y el gaucho pasa a ser activo y temperamental acompañaban los relatos e incluso, en ocasiones, guiaban la
frente al carácter pasivo y perezoso del “sertanejo”. lectura del suplemento (LOUIS, 1997).
Desde el punto de vista formal, este texto se encuentra En segundo lugar, llaman la atención dos aspectos del
acompañado por dos ilustraciones en color: en la más grande, un título: su escritura en letras de color rojo y negro, y su
hombre a caballo con vestimenta de baqueano en medio de un distanciamiento con respecto a los títulos que originalmente les
paisaje rural levanta su brazo y hace girar su látigo para pegarle a había asignado a estas historias Euclides da Cunha. Da la impresión
un buey, la imagen muestra movimiento y agresión. En la segunda de que se pretende llamar la atención del público lector a partir de
ilustración, mucho más pequeña, se nos muestra la cara de un la mención del carácter monstruoso propio de la palabra
hombre moreno, de perfil, con los ojos atentos pero estáticos, con “centauro”. En este sentido, podemos afirmar que tanto los
barba, sombrero y un cigarrillo a medio caer en la boca, cuyos titulares sensacionalistas como las historias asombrosas, que
colores contrastan con el amarillo del fondo. Esta oposición entre
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despertaban la curiosidad del público lector, eran dos aspectos noticias que habían fascinado al público en las últimas
muy presentes en el cuerpo de Crítica. décadas del siglo XIX y los primeros del XX y que seguían
En tercera instancia, desde el punto de vista de la escritura, demostrando su atractivo: siameses, animales, niños
resulta llamativa la condensación en un sólo texto de lo que en el bicéfalos o sin cabeza, deformaciones genéticas [...]
monstruos variados (SARLO, 1992, p. 69).
libro de Da Cunha fueron tres apartados. En el suplemento de
Crítica, los textos largos a menudo no se dividían por subtítulos No es casual, en este contexto, que lo primero que se
sino por pequeños espacios de separación pautados por una publica de Euclides da Cunha en el suplemento se titule “El
estrella entre uno y otro párrafo. Así, la descripción del sertanejo, centauro de los desiertos”. Pese a que su temática no hará
sus diferencias con el gaucho y su carácter vaquero ahora ya no se referencia a un ser monstruoso, el titular parecería adaptarse a las
encontrarían separados sino que conformarían el mismo texto. El expectativas del público lector del diario. A modo de ejemplo,
traductor no realiza una rescritura fiel sino que omite títulos y muchos de los relatos que se publicaron en la Revista Multicolor se
reestructura el texto. caracterizaron por ofrecer historias llamativas, exóticas, situadas
Estas nuevas características que adquiere el escrito en este en lugares lejanos como África, China, Arabia o la India, rasgo que
contexto de publicación dejan ver qué información del nuevo se acentuaría a partir del número 23 cuando la sección “Visto y
soporte se añade a la traducción y cómo éste incide en sus modos oído”, que contenía pequeñas curiosidades ilustradas, pasara a ser
de lectura, ahora orientados por titulares sensacionalistas, la tapa del suplemento, invitando a los lectores al mundo de las
grandes imágenes a todo color y el afán por la novedad, tres variedades.
características propias del diario Crítica y de la prensa popular En este sentido, podemos ver que tanto en los textos
masiva. En este sentido, Ángel Rama (1983) identificó las traducidos de Da Cunha como en los artículos sobre Brasil firmados
metamorfosis de la literatura guiadas por el periodismo y que van por Brasil Gerson se nos ofrece una imagen en la que prevalece lo
a estar presentes en los textos publicados en la Revista multicolor: exótico y se destaca una mezcla entre la superstición y lo racional,
la reducción de las dimensiones del poema, el cuento, el artículo, lo foráneo y lo telúrico. El segundo texto que se traduce de
incluso la novela; los recursos de intensificación en la lectura y el Euclides, titulado “La fiebre pavorosa de la tierra”, retoma el
remate; la transmutación de la lengua literaria respondiendo al apartado del capítulo “Los hombres” de Os Sertões, titulado
habla urbana, que favoreció la mutua permeabilidad de los originalmente “La sequía” para hacer referencia a las
géneros literarios, cuyas rígidas fronteras se desvanecieron. supersticiones del sertanero, que le permitieron mantenerse
En el diario Crítica adquieren una gran importancia dos estoico ante la falta de lluvias. Nuevamente en este caso podemos
áreas temáticas que aparecen de manera insistente: ver cómo el título que se le otorga en el suplemento es mucho más
por un lado, los ejercicios de anticipación del futuro, la llamativo que el que se le había asignado en el libro. Aquí también
ciudad del porvenir, los robots, los vuelos interplanetarios y el texto se encontrará acompañado por una imagen de los
el filo más cortante del progreso; por el otro, un potpurrí de
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sertaneros en el desierto esperando a la lluvia y desafiando a la de la aparición de una imagen de Jesús en el río en la que se mezclan elementos
sequía. Pero lo interesante es destacar que se selecciona para la portugueses y elementos nativos, la explicación racional y la fe:
traducción esta parte de Os Sertões en la que la religión oficial, el Todavía hoy, mientras la radio desparrama por los cielos
catolicismo, se mezcla con la superstición de los nativos, un rasgo melodías de todos los continentes y de todas las lenguas, en
que, junto con el siguiente texto de Da Cunha, publicado mucho los poblados se conservan imágenes tenidas como
tiempo después en el suplemento, y junto con los dos artículos de milagrosas [...] y las supersticiones prosperan, y nuevas
Brasil Gerson que preceden y anteceden “La fiebre pavorosa de la leyendas se van formando aquí y allá, a la sombra del
tierra”, nos permiten ver una definición de Brasil a partir de los prestigio de este o de aquel santo.
intrincados vínculos entre lo nacional y lo extranjero, lo nativo y lo
foráneo. Gerson explica racionalmente a los lectores el origen de la leyenda que
En las representaciones que la Revista Multicolor nos hace referencia a la aparición de una imagen de Jesús en el río de Pirapora:
ofrece de Brasil, la mezcla entre lo telúrico y lo foráneo se observa En los comienzos del siglo XVIII, los jesuitas fueron, en el
principalmente en los cruces entre la religión católica y la Brasil, objeto de encarnizadas persecuciones, y mucho de
superstición. En “La fiebre pavorosa de la tierra” se nos dice: cuanto poseían se perdió en sus fugas precipitadas o fue
[El sertanero] espera, resignado, el día 13 de aquel mes. arrojado a los ríos y a los mares por sus perseguidores.
Porque en tal fecha, una costumbre abolenga le factura Así explica la historia lo que el pueblo cree ser un milagro:
para sondar el futuro, interrogando a la Providencia. el aparecimiento, en lugares yermos, de imágenes
Es la tradicional experiencia de Santa Lucia. El día 12, al construidas evidentemente en Portugal por hábiles artistas.
anochecer, expone al relente, alineados, seis granitos de sal,
que representan, en orden sucesivo, de izquierda a derecha, Esta defensa de la racionalidad europea en detrimento de las inocentes
creencias de los nativos y los esclavos en las apariciones y en los milagros se
los seis meses venideros de enero a julio. Al amanecer del
choca, no obstante, con la actitud de los portugueses en las fiestas del Buen
13 las observa: si están intactas, presagian la seca; si la
Jesús, de las cuales participan junto con los descendientes de africanos
primera apenas se diluyó, transformada en gota cristalina, intentando seguir su paso en las danzas. Pese a la perspectiva horrorizada del
es segura la lluvia en enero […] cronista, el artículo pone el foco en una doble asimilación entre los rituales
Esta experiencia es bellísima. Porque, pese al estigma africanos y la religión europea. Gerson pone el acento en el carácter
supersticioso, tiene base positiva y es aceptable (DA espectacular de las fiestas a partir de esta mixtura: “Pirapora es una fusión típica
CUNHA, 1933) de las fiestas religiosas de los poblados portugueses y reminiscencias de las de
Esta misma combinación entre creencia religiosa en santos África, existentes aún en la sangre negra que circula en las venas de las
pertenecientes a la religión católica y en supersticiones estará presente en los poblaciones brasileñas”.
artículos de Brasil Gerson en la Revista Multicolor. En “Dios en Brasil” hace Esa misma fusión entre religiosidad y superstición está presente en la
referencia a las fiestas del Buen Jesús en distintas iglesias, menciona la leyenda última traducción que el suplemento ofrece de Os Sertões, titulada “Cómo se
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hace un monstruo”, y que incluye tres apartados de la sección “Los Hombres” de la época y analizó brevemente algunos aspectos presentes en los fragmentos
del libro de Euclides: “Cómo se forma un monstruo”, “peregrinaciones y que se tradujeron en el suplemento y, con ellos, la interpretación de Brasil y la
martirios” y “Leyendas”. Aquí Antonio Conselheiro no se ve tanto como la imagen que se construyó o que se quiso mostrar al público lector. Desde el
amenaza que altera el orden de la modernidad brasileña sino como uno más de punto de vista temático analizamos la monstruosidad, el exotismo y la violencia,
los tantos personajes llamativos que presenta el suplemento a sus lectores. y los modos en que ellos se vincularon con la temática de otros textos publicados
Podemos recordar, a modo de ejemplo, los personajes que protagonizan los en este suplemento de llegada multitudinaria, dirigido por Jorge Luis Borges y
relatos de la sección “Historia Universal de la Infamia”, de Borges, o “El otro lado Ulyses Petit de Murat. Hemos arriesgado como conclusión que tanto los
de la estrella”, de Raúl González Tuñón, y que comparten con las traducciones cambios que los textos sufrieron en su forma como la elección temática se
de Da Cunha la publicación en la Revista Multicolor de los Sábados. En los relatos vincularon, en parte, con algunas de las principales características del soporte
de “Historia Universal de la Infamia”, como en los textos de Euclides publicados de publicación: la prensa periódica.
en el suplemento, se observa la cuestión de la traducción, la presencia de lo
exótico vinculado con la violencia, el periodismo como tema y como especie de
conformación del texto a partir del vínculo entre escritura e imagen. Como en Referencias
esta última entrega de las traducciones de Euclides, los personajes de la sección BORGES, J. L. Historia Universal de la Infamia, Buenos Aires:
“Historia Universal de la Infamia” están concebidos a partir de lo que se dice de Alianza, 1995.
ellos, lo que la prensa cuenta o lo que el decir popular ha difundido. En “Cómo
se hace un Monstruo”, de Euclides, se cuentan una serie de leyendas que DA CUNHA, E. El centauro de los desiertos. Revista Multicolor de
permiten configurar la imagen de Antonio Conselheiro como un líder los sábados, 7 de octubre, núm. 9, p. 1, 1933.
carismático que nuevamente nos recuerda a las leyendas en torno a Facundo
Quiroga. Esta mixtura entre la religión y las creencias populares como algo _______. La fiebre pavorosa de la tierra. Revista Multicolor de los
propio de la identidad brasileña formará parte también del artículo de Brasil
sábados, núm. 12, p. 5, 1933.
Gerson titulado “La macumba de los brujos negros” en el que, después de
comentar el caso de una francesa que va a Río de Janeiro a ver una macumba y
ante el espectáculo sale despavorida, se define al ritual como esa parte
_______. Cómo se hace un monstruo. Revista Multicolor de los
constitutiva de Brasil que, por lo que se cuenta en la anécdota, Europa no puede sábados, 10 de marzo, núm. 31, p. 5, 1934.
comprender: “misteriosa, salvaje, sensual, la macumba tiene, tal vez, su
justificación en las mismas condiciones en que, poco a poco, fuese formando _______. Os Sertões: Campanha de Canudos. 20ª edição corrigida.
Brasil” (GERSON, 1933, p. 1). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1946.
Hemos realizado el análisis de una serie de fragmentos de Os Sertões
de Euclides da Cunha traducidos por primera vez en Argentina en la Revista GERSON, B. Dios en el Brasil. Revista Multicolor de los sábados,
Multicolor de los Sábados, el suplemento literario de Crítica, un diario masivo y número 10, 14 de octubre, p. 2, 1933.
popular, publicado en los primeros años de 1930. El estudio se detuvo en
algunas particularidades de esta traducción en uno de los diarios más vendidos
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GERSON, B. La macumba de los brujos negros. Revista Multicolor ______. El escritor y la industria cultural, Buenos Aires: Atuel,
de los sábados, número 11, 21 de octubre, p. 1, 1933. 1998.

_______. Samba, canción de los mulatos en Río. Revista Multicolor ROGERS, G. Claridad y los martinfierristas en Crítica. In: Cuarto
de los sábados número 21, 30 de diciembre, p. 3, 1933. Congreso Internacional Celehis de Literatura. Actas on-line:
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O trajeto da Serrana para converter-se em mito. No século XVI, o tema é retomado por Sebastião de
Maria do Carmo Cardoso da Costa Horozco que, em seu Cancionero, se reapropia da visão da Serrana
UFRJ pelo viés da virilidade, em um dístico que diz: “Salteóme la Serrana
/ junto á par de la cabana”. O verbo saltear remete para o delito
Parece que a Serrana – tema da minha tese – não me de “saltar a los caminhos” e “robar a los que pasan”, derivando-se
abandona. Naquela ocasião, escolhi duzentas versões para formar daí o sentido que adquire esse verbo não só no dístico mas
o corpus da pesquisa, deixando de lado outras tantas. Voltei a também no romance La Serrana de la Vera que apresenta a mulher
estas para dar continuidade à minha pesquisa e fazê-la conhecida como “salteadora de los caminos”.
de meus alunos. Mas são os dramaturgos quem se referem especificamente
O tema da figura da mulher salteadora que atacava os à Serrana, oriunda da região da Estremadura, ao resgatarem da
homens em lugares inóspitos é recorrente desde o século XIV, tradição oral esse romance. O primeiro deles é Lope de Vega
através da obra de poetas e dramaturgos. Nesse século, Juan Ruiz, seguido de Luis Vélez de Guevara, que escrevem comedias, com
o Arcipreste de Hita, no Libro de buen amor, apresenta a Serrana títulos idênticos ao do romance, porque são provindos desse
em quatro cánticas antecedidas por correspondentes poemas resgate. A obra do primeiro apresenta um desfecho oposto ao
narrativos, nos quais o autor a descreve como uma criatura epílogo do romance, pois o perdão concedido à serrana Leonarda
bárbara conduzida pelos instintos do sexo, da alimentação e da restabelece a ordem, apresentando um final feliz. Ainda assim,
preservação. O tratamento dado a essas mulheres é revelador, Leonarda guarda semelhanças com a serrana do romance, como
porque o Arcipreste tem a intenção de mostrar a realidade que há se vê na descrição feita pelo personagem Fulgêncio, cujo amor
por trás do “loco amor del mundo” ou, ainda, a de chamar atenção desencadeia o conflito, ao mentir sobre a ascendência do noivo de
para o perigo que é encantar-se pelas Serranas, uma vez que elas Leonarda:
representam o amor terrenal, destrutivo. Es un poco robusta de persona,
Em contrapartida, no século XV, nas serranillas, Íñigo López pero hermosa, y gentil, que mas vizarra,
de Mendoza, o Marqués de Santillana faz da Serrana a musa idílica no la ay desde Paris a Barcelona,
tomada pelo desejo amoroso, nota singular de lirismo que destoa ni desde Trasilvania hasta Navarra,
es una nueva Hipolita Amaçona,
da caracterização ora terrível, ora grotesta com a qual os autores
juega las armas, tira bien la barra,
a estruturam. Além disso, as mulheres das serranillas são mais
y con el arcabuz, sin verse como,
prudentes e sábias, compreendendo rapidamente o perigo passa desde la vista al blanco el plomo.
ameaçador do homem. Nelas, não é um mal de amor que faz o Sube a cavallo, y con las fuertes piernas,
homem “provar la sierra”, mas a sua profissão de frontero ou de de tal manera los talones vate,
montero. que menos tu le riges, y goviernas,
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con el duro bocado, y acicate, que descubre media pierna;


tiene obras graves, y palabras tiernas, sobre cuerpo(s) de palmilla
con que apenas ay vida, que no mate, suelto ayrosamente lleba
para nieve en efeto era estremada, un capot de dos faldas
porque es muy blanca, y en estremo elada. hecho de la misma mezcla;
Los hombres estimô toda su vida el cabello sobre el onbro
por cosa de vil precio, y acessoria, lleva partido en dos crenchas,
pero esta nieve, y piedra enternecida, y una montera redonda
oy ha dado al amor rica vitoria. (v.501-520) de plumas blancas y negras;
de una pretina dorada,
Portanto, vítima da mentira de Fulgêncio, Leonarda dorados frascos le cuelgan;
rechaça o amor do noivo Carlos e foge para o monte em Garganta al lado isquierdo un cuchillo,
la Olla, onde vai caçar. Ali fica sabendo que seu irmão pretende y en el onbro una escopeta.
casá-la com outro homem e jura vingar-se de todos os homens. Si saltea con las armas,
Tendo a natureza como cúmplice, faz do monte o seu refúgio, sem también con ojos saltea. (v.2202-2223)
intenção de voltar a Plasência. Essa descrição remete à mulher que “caça” os homens
Lope não se atém apenas às características da personagem solitários que passam pela serra. Os dois últimos versos denunciam
popular nem aos feitos que dariam consistência à sua obra o procedimento da Serrana: com as armas, apanha os animais;
dramática, no que se diferencia de Vélez de Guevara, que segue de com os olhos, os homens.
perto a sua estrutura habitual, tendo como tema recorrente a vida O final, com a morte da serrana Gila, não deixa de ser uma
rural, álibi pelo qual se criticava o poder constituído. Surgem daí as harmonização do caos que ela provocara com sua liberdade de
afrontas entre as classes sociais, pois menosprezava-se a corte e atuação. O fogo que queima sua cabana serve para purificar a
elogiava-se a aldeia. E é Gila, a serrana de Velez de Guevara, a consciência coletiva, e sua morte serve como modelo repressor a
porta-voz dessa nova perspectiva de teatro, que aparece descrita toda mulher que queira ser livre.
por um caminhante, seguindo de perto o romance: Já o dramaturgo José de Valdivielso recupera o mesmo
Allá en Gargantalaolla, tema, mas adapta-o à estrutura de um auto sacramental intitulado
en la Vera de Plasenzia,
La Serrana de Plasencia e dá-lhe uma interpretação mística. Neste
salteóme una Serrana
auto, a Serrana é uma dama de Plasência que se deixa levar pelo
blanca, rubia, ojimorena.
Botín argentado calça, prazer e foge para a serra, abandonando a cidade e o marido. Nele,
media pagiza de seda, intervêm personagens alegóricos que atuam de maneira
alta vasquiña de grana moralizante, como a Razão, o Engano, o Desengano, o Prazer, a
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Honra, a Juventude, a Formosura; porém, ao contrário de enfatizada sua beleza desmedida e valentia incomparável. Cito
Leonarda e Gila, que queriam vingar-se das afrontas que sofreram, uma versão factícia da tradição de Estremadura, composta e
a Serrana de Valdivielso tem a determinação de realizar os seus publicada por V. GUTIÉRREZ MACÍAS, “Con licencia picaresca
desejos e gozar os prazeres da vida, como ela própria diz: (Manifestaciones populares extremeñas)”, REE, XXXII (1976), p.
No tengo mal que temer, 564-6; antes dada a conhecer no “Primer Congreso Internacional
ni tengo bien que esperar sobre la Picaresca” (Madrid, 21 a 27 de junio de 1976). Segundo o
quiero de todo gozar, autor, “las estrofas que se incluyen en esta síntesis son de las que
lo gozado aborrecer, mejor recoge lo esencial del personaje”.
lo aborrecido matar. (v.109-113) Allá en Garganta La Olla, siete leguas de Plasencia,
E segue ainda demonstrando que, neste caso, a mulher não 2 habitaba una serrana, alta, rubia y sandunguera;
é movida pelo desejo de vingança e, sim, pelo apetite sexual e con vara y media de pecho, cuarta y media de muñeca,
sanguinário, próprio da devoradora de homens do romance, 4 con una trenza de pelo que a los zancajos le llega.
La Serrana es cazadora, la cintura lleva llena
aquela que quer aproveitar o momento presente:
6 de perdices y conejos, de tórtolas y aligüeñas.
Aora que moça soy
Cuando tiene gana de agua se baja pa la ribera;
quiero gozar mis madexas,
8 Cuando tiene ganas de hombres se sube a las altas
Hermosura tras ti voy
peñas.
que quanto de mi te alexas
Vio venir un serranillo con una carga de leña;
menos alexos de ti estoy.
10 le ha agarrado de la mano y a su cueva se lo lleva.
Mientras este furor dura,
No le lleva por camino ni tampoco por veredas;
serás de mi regalada
12 le lleva por altos montes por donde nadie lo vea.
con caricia y con blandura,
Ya llegaron a la cueva;
porque después de gozada,
14 trataron de hacer lumbre con huesos y calaveras
qué hermosura fue hermosura? (v.204-213)
de los hombres que ha matado aquella terrible fiera.
Tal como em Lope de Vega, o Esposo vai em busca da 16 - Bebe, serranillo, bebe, agua de esa calavera,
Serrana, sua mulher, a qual se deixa levar pelo amor, mas afasta- que puede ser que algún día otros de la tuya beban.-
se do final do texto de Lope, porque é o Esposo quem morre ao 18 Ya trataron de hacer una buena y rica cena
receber as flechadas dirigidas à Serrana. de perdices y conejos, de tórtolas y aligüeñas.
O romance popular é o fio condutor dos textos dramáticos 20 Ya trataron de acostarse, le mandó cerrar la puerta;
y el serrano, como astuto, la ha quedado medio abierta.
que caracterizam a Serrana como uma mulher que paga caro por
22 Ya que la sintió dormida se marchó para su tierra.
sua atuação, que não mede esforços para levar a cabo a ânsia de
Legua y media lleva andando sin atrás volver cabeza;
prazer e de justiça. Ela é apresentada de modo idêntico, sendo 24 a las tres ya la volvió, como si no la volviera:
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Vio venir a la Serrana gritando como una fiera; Também Gil Vicente se rende ao tema da Serrana ao inserir
26 con una china en su honda que pesaba arroba y media; em suas obras de teatro cantos populares que recolhia ou que
se la tiró y con el aire le ha tirado la montera. constavam nos Cancioneiros. Como exemplo, está o Auto da Sibila
28 - Vuelve, serranillo, vuelve, vuelve atrás por la montera, Cassandra (1511), em que Cassandra se nega a casar, destacando
que es de paño rico y fino, y no es razón que se pierda.
o lado desagradável do casamento porque as mulheres são
30 - Si es de paño rico y fino, así se estila en mi tierra;
prisioneiras e os homens, ciumentos ou conquistadores. Canta ela:
mis padres me compran otra y si no me estoy sin ella.
Dicen que me case yo
32 - Por Dios te pido, serrano, que no descubras mi cueva,
no quiero marido, no.
que puede ser que algún día otra vez vuelvas por ella.
Mas quiero vivir segura
Contrastando com a imagem da serrana bandoleira e
nesta sierra a mi soltura,
matadora de homens está o romance de Luis de Góngora y Argote, Que no estar a la ventura
que descreve uma cena bucólica de mulheres que bailam em Si casaré bien o no
círculo: Dicen que me case yo
En los pinares del Júcar no quiero marido, no.
vi bailar unas serranas
al son del agua en las piedras Madre no seré casada
y al son del viento en las ramas; por no vivir vida cansada,
no es blanco coro de ninfas o quizá mal empleada
de las que aposenta el agua, la gracia que Dios me dio.
o las que venera el bosque Dicen que me case yo
seguidoras de Dïana; no quiero marido, no.
serranas eran de Cuenca No será ni es nacido
(honor de aquella montaña) tal para ser mi marido;
cuyo pie besan dos ríos, y pues que tengo sabido
por besar de ella las plantas. que la flor yo me la só,
Alegres corros tejían, dicen que me case yo
dándose las manos blancas no quiero marido, no.
de amistad, quizá temiendo no la
truequen las mudanzas. A característica principal que une essas mulheres, tal como
¡Qué bien bailan las serranas! o nome diz, é que elas vivem na serra por vontade própria ou por
¡Qué bien bailan! imposição vingativa de algum ato machista, é um lugar que elas
dominam, e quem se atreve a passar por ali está sujeito a suas
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vontades. Fica claro que esse isolamento não era um caso único, já punição da Serrana, enquanto toma para si a divulgação das
que no poema de Góngora, elas relacionavam-se ludicamente façanhas da mulher, dando início à cristalização de sua presença
dançando em roda, além de ter as rédeas de sua vida sexual como mítica no imaginário popular.
na cantiga de Gil Vicente, em que Cassandra afirma não querer
“ver mal empleada la gracia que Dios me dio” porque sabe que “la Referências
flor yo me la só”. CATALÁN, Diego. (dir.). Catálogo General del Romancero. Teoría
As versões do romance La Serrana de la Vera apresentam general y metodología del romancero pan-hispánico. Madrid:
mulheres salteadoras que matam os homens depois de atraí-los a Seminario Menéndez Pidal; Universidad Complutense de Madrid,
sua cova; ou ainda mulheres de grande força física e sensual que 1984.
perseguem os homens para gozar de seu amor; e também certa
mulher estremenha que foge do lar paterno, retirando-se para a CHEVALIER, JEAN & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.
serra na qual faz vítimas, vingando-se de todos os homens que Tradução de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1988.
ousam pelo local. No entanto, um consegue escapar para contar-
nos a história da Serrana e transformá-la em um mito. CID, Jesús Antonio. "Romances en Garganta la Olla: materiales y
Nos textos, o mito da mulher selvática contesta a verdade notas de excursión". Revista de Dialectología y Tradiciones
do Gênese quando subverte a ordem institucional em sua Populares. Madrid [30], 463-527, 1974.
moralidade patriarcal para propor a independência feminina.
Contudo, percebemos que essa desordem não se estende à COSTA, Maria do Carmo Cardoso da. O mito e a cultura popular em
sociedade historicamente constituída em que a mulher continua La Serrana de la Vera. Rio de Janeiro: UFRJ-Faculdade de Letras,
sendo identificada como poder minoritário, porque só na 2000.
mitologia é que ela detém a hegemonia social.
Outra questão é o controle do circuito comunicativo das GONZÁLEZ ACOSTA, Alejandro. El motivo de la mujer matadora de
versões do mito, uma vez que autores, coletores e compiladores hombres en algunos romances: “La Serrana de la Vera” y “La
do tema e dos tópicos referentes à mulher selvática são, na sua Gallarda”. Boletín de las Investigaciones Bibliográficas, vol. IX, n. 1
maioria, homens; assim, dependendo do grau de atuação de cada y 2, primer y segundo semestres de 2004.
um, podem interferir menos ou mais na caracterização do domínio
da Serrana. Ou seja, não é ela quem fala ou melhor, não há uma RODRIGAÑEZ BUSTOS, Casilda. Las serranas. Disponível em:
voz feminina que dê conta dela, porque ela só é falada pelo https://sites.google.com/site/casildarodriganez/las-serranas-
discurso masculino. Nas versões do romance, percebemos que é o abril-2010
personagem masculino que, ao escapar da gruta, propicia a
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RUIZ, Juan, Arcipreste de Hita. El libro de Buen Amor. Ed. Alberto


Blecua. Madrid: Cátedra, 1992.

SANTILLANA, Marqués de. Poesias completas. I: serranillas,


cantares y decires, sonetos fechos al itálico modo. Ed., introd. y
notas de Manuel Durán. 3.ed. Madrid: Castalia, 1989.

VÉLEZ DE GUEVARA, Luis. La Serrana de la Vera. Ed. Enrique


Rodríguez Cepeda. 2. ed. Madrid: Cátedra, 1982.
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DA LITERATURA PARA O CINEMA: UMA ANÁLISE DA sobre uma estratégia fundamental: desnaturalizar o real e
REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE LATINO- AMERICANA naturalizar o insólito, quer dizer, integrar o ordinário e o
Maria Inês Freitas de Amorim extraordinário em uma única representação do mundo”.
UERJ O Real Maravilhoso, conceito e discurso estético-político de
representação da América Latina, foi desenvolvido pelo
Introdução romancista franco-cubano Alejo Carpentier no prefácio El Reino de
A construção da identidade cultural da América Latina é este mundo (1949). Para Stam (2008, p. 447): “Carpentier
uma questão irrevogavelmente histórica. Ela perpassa as diversas contrasta o que vê como sendo os laboriosos esforços dos
origens dos mais diversos povos que contribuíram para a vanguardistas europeus de processar o maravilhoso, através de
construção do continente. O contato, sobretudo entre a população técnicas de deslocamento, com o maravilhoso inerente à própria
nativa, as diversas nações africanas e o colonizador europeu, realidade quotidiana na América”. Cabe ressaltar, que o
contribuiu para uma formação identitária baseada em conflitos, movimento estético-literário difundido por Carpentier sintetiza
choques e violência. Esta construção inclui também as imposições uma nova atitude diante da realidade hispano-americana: ela é o
trazidas pelos povos dominadores e as traduções realizadas pelos lugar do maravilhoso, do olhar plurivalente do real. Desse modo,
povos dominados. os escritores inseridos nesse movimento foram responsáveis não
A América Latina, desde a época de sua colonização, só por criarem um novo conceito cultural sobre a América
experimenta limitações da liberdade. Contudo, pelo imaginário, o Hispânica, mas por produzirem obras que indagavam,
povo sempre foi livre. A imaginação é libertadora e a arte é uma principalmente, sobre a identidade latino-americana.
das mais belas expressões do imaginário humano. Assim, é na O escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez pode ser
produção artística da América Latina que diversos artistas buscam considerado um dos maiores representantes do Real Maravilhoso.
seu refúgio para expressar e apresentar ao mundo o seu Em seus textos estão expressos elementos próprios da identidade
sentimento diante da sua realidade. cultural Latino Americana, como crenças religiosas e tradições.
Os povos latino-americanos compartilham um passado de Diversas obras suas ganharam versões cinematográficas. Porém, a
explorações e de lutas por independência, sejam elas econômicas, adaptação de O amor nos tempos do cólera possui uma
políticas ou sociais. E essa busca pela liberdade também está singularidade: é a única que não é falada em idioma de origem
atrelada a uma miscelânea cultural que resulta em expressões latina, pois seus diálogos são em inglês. O filme, dirigido pelo inglês
artísticas muito próprias, que refletem o que é ser latino. Mike Newell, é uma co-produção entre EUA e Colômbia, do ano de
Como manifestação desta identidade, o Real Maravilhoso é 2007. A produção da obra é da New Line, estúdio da indústria
a corrente literária que expressa traços da identidade da América cinematográfica de Hollywood (EUA).
Latina. Para Roas (2001, p.12), “O realismo maravilhoso descansa
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A presente pesquisa busca apresentar de que maneira modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto
elementos da cultura latino-americana presentes na obra literária nossas ações quanto a concepção que temos de nós
foram transpostos para o cinema, destacando que elementos mesmos as culturas nacionais, ao produzir sentido ‘a nação’,
fílmicos consolidam certos estereótipos atribuídos aos latinos. sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem
identidades.
Para tal, foi necessário traçar um estudo sobre a construção da
identidade e de que forma o “outro” traduz e apresenta elementos As culturas nacionais não são um todo “puro” ou
de uma determinada cultura. “autêntico”, mas são frutos de construções históricas e do contato
com outras identidades culturais. García Canclini (2013, p. XXIII)
Construção da identidade afirma que “a história dos movimentos identitários revela uma
As obras do Real Maravilhoso retratam a complexidade série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas
cultural da América Latina, sobretudo o poliperspectivismo, fruto articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhe dá
do encontro entre índios, africanos e europeus. A identidade coerência, dramaticidade e eloquência”. É preciso levar em
cultural do “Novo Mundo” ganha contornos próprios, consideração que grupos sociais articulam determinados valores
“canibalizando” as influências dos diversos povos que o ou símbolos que marcam aspectos de uma cultura. Este é um dos
construíram. Mascaradas pelos elementos sobrenaturais, as principais motivos pelo qual a cultura é um organismo vivo,
mazelas e dificuldades do continente são abordadas. resultado de lutas constantes entre segmentos internos que
A produção artística agrega elementos que buscam buscam ter seu próprio espaço na construção de uma identidade
expressar elementos da identidade latinoamericana. Entretanto, cultural.
como afirma Stuart Hall (2006), a identidade é fragmentada, não A produção artística é uma expressão das culturas
fixa, essencial ou permanente, ela é uma celebração móvel, nacionais, estando envolvida com tais elementos simbólicos e
construída socialmente e historicamente. O sujeito assume representações, mas profundamente influenciados pelos
diversas identidades em diferentes momentos, constituindo processos de hibridização cultural.
identidades não unificadas e um “eu”, muitas vezes, não coerente. Apropriado da Biologia pelos Estudos Culturais, o termo
Apesar do caráter mutável das identidades, um aspecto hibridação ganha contornos que ultrapassam a lógica binária que
importante no reconhecimento do sujeito é a sua identificação restringe a formação de uma nova cultura a partir da fusão de duas
nacional. Apesar de não representarem um todo homogêneo e outras, mas se refere a uma construção repleta de tensões e
unificado, a cultura nacional é um fator decisivo para formar uma conflitos que o contato com o outro gera. É resultado das
leitura do mundo. Hall (2006, p. 50-51) defende que: decodificações e traduções feitas pelo contato com o “outro”,
As culturas nacionais são compostas não apenas de gerando uma “terceira margem”, um outro código diferente
instituições culturais, mas também de símbolos e
representações. Uma cultura nacional é um discurso – um
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daqueles já existentes. García Canclini (2013, p. XIX) define o termo Sobre o discurso e o intercâmbio cultural dentro de uma
hidridização cultural como: cultura, que aquilo que comumente circula não é a
Entendo por hibridização processos socioculturais nos quais ‘verdade’, mas uma representação. Não precisa ser mais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma uma vez demonstrado que a própria língua é um sistema
separada, se combinam para gerar novas estruturas, altamente organizado e codificado que emprega muitos
objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas esquemas para expressar, indicar, trocar mensagens e
chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão informações, representar, e assim por diante.
pela qual não podem ser consideradas fontes puras. Desta forma, quando uma obra de arte sofre um
Os processos de hibridização cultural refutam a ideia de intercâmbio entre culturas, ou seja, quando o romance O amor dos
cultura “pura” ou “autêntica”, uma vez que fenômenos tempos do cólera, do escritor colombiano Gabriel García Márquez
consolidados, como a globalização, seriam desprezados, assim é adaptado para o cinema por um estúdio da industria
como as possibilidades de transformações culturais e políticas. cinematográfica de Hollywood (EUA), por uma equipe liderada por
Complementando essa ideia, Hall (2013, p. 82) acredita que um diretor inglês, Mike Newell, certamente haverá um profundo
O hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem trabalho de tradução. Spivak (2005, p. 58) defende que:
ser contrastados com os “tradicionais” e “modernos” como A tradução é, portanto, não somente necessária, mas
sujeitos plenamente formados. Trata-se de um processo de inevitável. Entretanto, na medida em que o texto guarda
tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se seus segredos, ela se torna impossível. A tarefa ética nunca
completa, mas que permanece em sua indecidibilidade. é realizada de fato [...] Fetichizar a língua aborígine não faz
desaparecer essa tarefa fundadora da tradução. Às vezes
A identidade cultural de um povo é algo vivo, sempre
leio e ouço que o subalterno pode falar em suas línguas
aberta a transformações. Ao se buscar entender uma determinada nativas. Eu gostaria de poder ter essa autoconfiança tão
cultura, é preciso se despir de conceitos pré-concebidos e firme e inabalável que têm o intelectual, o crítico literário e
entender que o olhar do outro é diferente do seu próprio, não é o historiador que, aliás, afirmam isso em inglês. Nenhuma
superior ou inferior, mas diferente. Para Said (2007, p. 15) “existe, fala é fala enquanto não é ouvida. É esse ato de ouvir-para-
afinal, uma profunda diferença entre o desejo de compreender por responder que se pode chamar de o imperativo para
razões de coexistência e de alargamento de horizontes, e o desejo traduzir. Frequentemente confundimos isso com ajudar
de conhecimento por razões de controle e dominação externa”. pessoas em dificuldade, ou com pressionar pessoas para
Said (2007, p. 52) também acredita que a cultura do outro é uma que aprovem boas leis, até mesmo para que insistam, em
construção discursiva. Um determinado grupo, sobretudo aqueles nome de outra, que a lei seja implementada. Mas a
tradução fundadora entre as pessoas é um ouvir
detentores do poder político e econômico, cria uma imagem,
atentamente, com afeto e paciência, a partir da
muitas vezes repleta de estereótipos, para formar a concepção de
determinado grupo, tido como exótico.
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normalidade do outro, o suficiente para perceber que o Pelo processo tradutório é possível que um grupo conheça
outro, silenciosamente, já fez esse esforço. elementos de outra cultura. A tradução também permite que uma
O processo tradutório extrapola a questão de passar uma obra ganhe mais espaço. A adaptação de uma obra literária para o
obra de uma língua para outra (do espanhol para o inglês), ou de cinema contribui para que a obra original seja mais divulgada,
uma linguagem para a outra (do cinema para a literatura), mas ampliando seu público. Para Blume e Peterle (2013, p. 8):
entender o todo simbólico que a obra original imprime e não A tradução é fruto, mas também alimenta, renova e dá
sobrevida ao texto traduzido. Traduzir, portanto, significa
deturpar sua essência. Segundo Valente (2010, p. 325), “Não
também perviver, conceito-chave do clássico texto de
podemos nos esquecer de que a cultura que está sendo
Walter Benjamin sobre A Tarefa do Tradutor. Texto que vão
apresentada para a outra é sempre mais complexa do que sua se sobrepondo e formando um grande mosaico, no qual
concretização em uma determinada obra literária”. Assim, é cada peça completa uma outra.
possível considerar que a adaptação da literatura para o cinema é
um processo tradutório. A obra de arte traduzida proporciona que todo um universo
Corroborando com esta ideia, Venuti (2010, p. 65) defende seja apresentado para aquele que a conhece. Além da obra em si,
que “[...] translation is inherently violent because it necessarily diversos elementos culturais “do outro” podem ser transmitidos.
involves reconstituting the foreign text in accordance with values, A maneira pela qual a obra é traduzida pode mostrar um panorama
beliefs and representations that pre-exist it in the target de uma cultura diferente, sobretudo ao expor as particularidades
language”. O processo tradutório não pode ser considerado um que a constitui. O “outro” pode ser mais compreendido. Mas, por
trabalho imparcial e neutro, mas resultado de interpretações outro lado, a obra traduzida pode cristalizar estereótipos ou criar
ideológicas e política, no qual aspectos culturais passam por pastiches com a voz deste “outro”.
leituras e se escolhe como eles serão representados para a cultura A adaptação de O amor nos tempos do cólera segue, em
que os traduz. diversos momentos, esta segunda opção. O filme, em diversas
Ao ser adaptado para o cinema, a essência da obra O Amor sequências, sedimenta imagens pré-concebidas do que significa
nos tempos do cólera sofreu transformações. Sobretudo quando a ser latino, como a sensualidade, o exagero ou a dramaticidade de
obra cinematográfica busca “falar pelo outro”, representando comportamentos.
elementos culturais próprios da América Latina. Sobre esta
abordagem, García Canclini (2009, p. 46) afirma que “os recursos A adaptação da Literatura para o Cinema
simbólicos e seus diversos modos de organização têm a ver com os Considerado a mais jovem das artes, o cinema sempre
modos de auto-representar-se e de representar os outros nas dialogou com as manifestações artísticas já existentes e
relações de diferença e desigualdade, ou seja, nomeando ou consagradas. A “sétima arte”, como o cinema é conhecido,
desconhecendo, valorizando ou desqualificando”. absorveu características e aspectos (como técnicas) de
praticamente todas as artes, mas não pôde se limitar a absorver
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manifestações. O Cinema se engrandece quando começa a criar com o seu contexto e identificar os valores expressos. Para Bazin
sua própria linguagem, desenvolver características próprias, (1991, p. 96) uma adaptação literal produz um filme pobre,
quando conquistou a nomenclatura de Arte, e não apenas uma enquanto a tradução livre demais é condenável, pois a essência do
linguagem que aglutinava diversas manifestações, como fotografia original é perdida. A considerada “boa adaptação” seria aquela
e música. capaz de “restituir o essencial do texto e do espírito.”
Mesmo desenvolvendo uma linguagem própria e Embora baseado em uma obra literária, o filme é uma obra
conquistando autonomia, a influência das mais diversas autônoma, independente da leitura do livro. Para quem não leu
manifestações artísticas ainda está presente na produção de um determinado romance e assiste a sua adaptação
filmes. Uma destas formas de diálogo é a adaptação de obras cinematográfica, o filme é o primeiro contato que se terá com a
literárias em produções cinematográficas. narrativa. Assim, o filme precisa contemplar toda uma linha de
A literatura e o cinema se assemelham na busca por boas raciocínio para transformar as páginas da obra de origem
histórias a serem narradas. Para Stam (2008, p. 20): compreensíveis para todos os públicos, sejam o dos leitores do
A passagem de um meio unicamente verbal como o romance-fonte, seja o do público que apenas irá ao cinema. Para
romance para um meio multifacetado como o filme, que Bazin, “É absurdo indignar-se com as degradações sofridas pelas
pode jogar não somente com palavras (escritas, faladas), obras-primas literárias na tela, pelo menos em nome da literatura.
mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens Pois, por mais aproximativas que sejam as adaptações, elas não
fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de
podem causar danos ao original junto à minoria que o conhece e
uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo
aprecia” (ibid, p. 93).
indesejável.
Como formas de arte distintas, o livro pode servir então
Apesar de contar uma mesma história, uma adaptação não como mero suporte para o desenvolver da história do filme. Para
pode ser completamente fiel ao romance-fonte, justamente por Bazin, por mais problemática seja a adaptação, “elas não podem
ambos serem manifestações artísticas distintas, possuidoras de causar danos ao original junto à minoria que o conhece e os
linguagens próprias. Para Curado (2007, p. 2), “a possibilidade de ignorantes, ou se contentarão com o filme ou terão vontade de
transformação de uma novela ou romance para o cinema é uma conhecer o modelo, e isso é um ganho para a literatura” (ibid, ibid).
forma de interação entre mídias, a qual dá espaço a Para Cardoso, há uma contraposição narrativa entre o livro
interpretações, apropriações, redefinições de sentido”. Desta e o filme. Para ele: “em ambos casos, existe uma tradução passiva
forma, um mesmo texto permite uma multiplicidade de ou automática de convenções semióticas em elementos
possibilidades de adaptações, resultado de uma infinidade de inteligíveis e, paralelamente, um rearranjo ativo ou interpretativo
leituras. dos signos textuais em estruturas significativas”(CARDOSO, 2013,
Uma adaptação cinematográfica não deve seguir a obra p. 91).
literária página a página, mas entender sua atmosfera, dialogar
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A adaptação cinematográfica de uma obra literária colombiano John Leguizamo e a brasileira Fernanda Montenegro.
proporciona uma importante divulgação do texto base. O tema musical do filme é assinado pela cantora colombiana
Entretanto, ao ser apresentado a um texto pelas telas do cinema, Shakira.
o espectador precisa estar ciente que o processo não está isento O filme é uma coprodução entre a New Line Cinema, Stone
de impressões ideológicas e leituras próprias daqueles que Village Pictures e Grosvenor Park Media, todas são
produziram o filme. estadunidenses. E o roteiro ficou a cargo do britânico Ronald
Harwood e supervisionado pelo autor do romance-base Gabriel
O Amor nos tempos do cólera: da Literatura para o Cinema García Márquez. Apesar de o roteiro ter sido aprovado pelo
Gabriel García Márquez sempre afirmou que não tinha escritor, durante a produção do longa-metragem houve diversas
interesse em ver alguma obra sua para o inglês, porém, em 2007 adaptações da história original, fazendo com que a essência da
estreou a co-produção entre EUA e Colômbia a adaptação do obra fosse perdida.
romance O amor nos tempos do cólera. Segundo Mota Os diálogos do filme são em inglês, e os sons diegéticos1 são,
A proeza foi fruto da criatividade do produtor do longa- majoritariamente, em espanhol. A opção por “mesclar” os idiomas
metragem, Scott Steindorff, que após três anos de criou uma atmosfera artificial na construção do universo fílmico,
insistência disse ao autor que, como Florentino (o pois a referência de que a história está deslocada fica evidenciada
protagonista do romance, que espera 50 anos pelo amor de a todo o momento. Os diálogos em inglês já destoam dos demais
sua vida), não desistiria da ideia até realizá-la. Márquez
elementos diegéticos. Ao se apresentar falares em espanhol e
gostou da analogia e vendeu-lhe os direitos da obra por
diálogos em inglês fica rompida a ilusão de realidade que o Cinema
cerca de US$ 3 milhões. O compromisso de Steindorff foi
não “hollywoodizar” o escritor. (MOTA, 2007, p. 48) se propõe a mostrar.
As cores vibrantes e a “solaridade” são marcas visuais
O filme O Amor nos tempos do Cólera foi dirigido pelo usualmente ligadas à cultura latino americana. O filme busca,
cineasta britânico Mike Newell, que dentre seus trabalhos estão assim, transpor para a tela tais frames, buscando provocar
Harry Potter e o cálice de fogo, O sorriso de Monalisa e 007 - identificação e reconhecimento do local onde a história se situa. O
Skyfall. Seguindo um compromisso em não tentar “hollywoodizar” quadro inicial do filme apresenta um desenho de flores coloridas e
a produção, nomes como Brad Pitt foram descartados do elenco. o letreiro do filme. Desde essa apresentação, o filme já mostra
A produção optou por atores ligados ao universo latino, como o pistas do local para onde a narrativa conduzirá o espectador.
espanhol Javier Barden, a italiana Giovanna Mezzogiorno, o

1
“A diegese concerne à parte do relato que não é especificamente fílmica,
aquilo que a sinopse, o roteiro e o filme têm em comum, ou seja, um conteúdo
independente do meio que o expressa” (CARDOSO, 2013. p. 92).
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O espaço diegético do filme, portanto, recria a cidade de maquiadas para se passarem por pessoas idosas. Para outros
Cartagena do final do século XIX e início do século XX. A personagens, como Florentino Ariza (Javier Barden), a maquiagem
multiplicidade de cores vivas e os cenários que trazem objetos, que produz um resultado mais natural, proporcionando uma sensação
seguindo estereotipo, representam a cultura dos países da de “pessoa mais velha”.
América Latina, como imagens de santos e mobiliários coloridos, A história do filme é centrada no romance de Fermina Daza
estão inseridas no cenário. e Florentino Ariza, não incluindo as narrativas paralelas contidas
Foi escolhida uma fotografia clara, buscando representar a no romance-base. Questões importantes abordadas no livro, como
luminosidade dos trópicos, evidenciando ainda mais o local onde a epidemia de cólera e as guerras civis aparecem sem destaque na
a narrativa acontece. O filme é visualmente extravagante, mas o narrativa, em cenas descontextualizadas. Já a história do
exagero não gera desconforto, pois as cores são bem trabalhadas, afundamento do galeão San José foi completamente omitida.
compondo um todo harmônico. Há dois tipos de narrador no filme. A maior parte da narrativa
O figurino e a maquiagem, além de comporem o filme ocorre a partir de um narrador diegético centrado na personagem
visualmente, expressam indícios das personalidades das Florentino Ariza, ou seja, a construção da história é conduzida a
personagens. Um exemplo é a maquiagem borrada e em excesso partir de recursos fílmicos, pelas falas entre as personagens e por
e as roupas extravagantes e decompostas de Transito Ariza mostrar os seus pontos de vistas em relação ao que é mostrado.
(Fernanda Montenegro) quando enlouquece. Visualmente, o Outro recurso utilizado para a condução da narrativa é a voz
espectador percebe a transformação da personagem, que no início interior, que, segundo Cardoso:
da narrativa apresentava roupas sóbrias e uma maquiagem mais A voz interior de uma personagem, exteriorizada num
natural, mostrando a mulher ponderada e lutadora que era. As contraste entre som e imagem: ouve-se o que a
roupas claras e elegantes que o Dr. Juvenal Urbino (Benjamin personagem imagina, pensa ou comenta em seu foro
Bratt) veste também revelam a personalidade de homem íntimo, mas a imagem (e muitas vezes também a qualidade
emprestada ao som) demonstra que não se trata de uma
metódico e autoconfiante do médico.
fala ‘para fora’. (CARDOSO, 2013, p. 94)
Outro papel desempenhado pela maquiagem é
proporcionar um processo de rejuvenescimento ou No filme, a voz interior é utilizada para revelar aos
envelhecimento dos atores para representar a passagem do espectadores o conteúdo das cartas escritas por Florentino Ariza.
tempo para as personagens. Algumas caracterizações, como a de A voz deste personagem em off apresenta o que ele escreve em
Fermina Daza (interpretada por Giovanna Mezzogiorno) e Dr. suas cartas: declarações de amor e a sua visão de mundo, seus
Juvenal Urbino, a técnica de maquiagem apresentou um resultado pensamentos e opiniões.
grosseiro, rompendo com a ilusão de naturalidade e “realidade” O tempo diegético compreende o final do século XIX e início
que o cinema se propõe, mas evidenciando atores jovens, mas do século XX, tempo no qual se desenvolve o romance dos
protagonistas. A narrativa fílmica, que é construída
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cronologicamente, a partir de um flashback, enquanto a literária é apresentação deste personagem ao mostrar os comprimentos que
apresentada como um fluxo de consciência do narrador Fermina recebe dos convidados do velório. Mas as referências
onisciente. ficam aquém das descrições do livro, uma vez que no filme ele é
A cena de abertura mostra a morte do Dr. Juvenal Urbino e apresentando como algum personagem secundário.
a declaração de amor feita a sua esposa como últimas palavras. É notável ter havido uma reconstrução do universo latino-
Seguindo esta sequencia, é apresentada uma cena na qual aparece americano por uma equipe de “estrangeiros”. Tanto cenários
Florentino Ariza acompanhado de América, uma de suas amantes, quanto trilha sonora são marcados por estereótipos. A figura do
ouvem o badalar dos sinos da Igreja indicando que alguém muito “amante latino”, conquistador e apelativo, guia a interpretação
importante havia morrido. Florentino logo constata que Fermina dos atores, sobretudo Benjamin Bratt, que constrói um Dr. Juvenal
havia ficado viúva. Na cena seguinte, Florentino vai ao velório de Urbino bastante diferente da personalidade descrita na obra
Dr. Urbino e declara seu amor a Fermina, que o expulsa e diz que original ― onde é metódico, elegante e culto; o filme, em vez disso,
nunca mais quer vê-lo. Na cena seguinte, aparece Fermina lendo apresenta um homem arrogante e cafona.
cartas antigas, vendo e cheirando mechas de cabelo e olhando A adaptação do texto de García Márquez para o filme
para uma antiga fotografia de Florentino jovem, que é enquadrada também apresenta diversas limitações. O lirismo e a poesia
em primeiro plano. Ao ampliar o enquadramento para plano presentes na obra de Gabriel García Márquez ganham contornos
médio, ocorre uma “viagem no tempo” e o jovem Florentino visto cafonas e exagerados nos diálogos do filme. A sensualidade que o
na fotografia surge e assim, recomeça a narrativa em ordem texto original apresenta, ganha contornos vazios e
cronológica, desde o momento que Fermina e Florentino se despropositados. As críticas sociais narradas pela alegoria dos
conhecem até o final do filme. elementos mágicos são omitidas na obra Cinematográfica.
Todo este primeiro ato se desenvolve apressadamente e Os elementos fantásticos, um dos aspectos mais
resumidamente, o filme omite, por exemplo, a morte de Jerimah importantes da obra de García Márquez, não são transpostos para
de Saint Amour e as bodas de prata de formatura de Dr. Lacides as telas, criando um filme mais próximo ao realismo. Desta forma,
Olivella, discípulo de Dr. Urbino. Ao mostrar o que ocasionou a os traços característicos da obra original são rompidos, fazendo
morte de Dr. Urbino, ou seja, a tentativa de resgate a um papagaio, com que a essência da obra desapareça na obra Cinematográfica.
o filme não apresenta quem é o animal, nem o representa,
passando para o espectador que aquele é um papagaio qualquer. Considerações Finais
Ao omitir tais fatos, o filme quebra com elementos do realismo A história do romance O amor dos tempos do cólera constitui um
mágico descritos no livro, além de privar o espectador do filme de tema universal que tem como cenário a América Latina. Ao adaptar
conhecer elementos da personalidade de Dr. Urbino e o que ele o livro, o filme buscou recriar a atmosfera latina. Para tal,
representa para a comunidade. O filme busca retomar a utilizaram-se estereótipos daquilo que seria ser “latino-
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americano”, como personagens que falam muito alto e cenários ocorre. Na busca em se falar pelo “outro” houve uma construção
com excesso de cores. Esta tentativa, ao invés de transportar o artificial da representação da cultura latino-americana.
espectador para a essência da narrativa, a tornou artificial. Livros como os de Gabriel García Márquez contribuem para
Apesar de a história do livro apresentar aspectos de uma o despertar da herança latino-americana que os nativos deste
cultura mais “erudita”, como referências a óperas, a obra utiliza continente carregam. Ao mergulhar na poesia e nas cores que
uma forma narrativa próxima daquela utilizada cotidianamente carregam a narrativa mágica deste autor, há uma rememorização
pelos povos da América Latina, realizando referências a aspectos daquilo que é tão familiar, mas ao mesmo tempo tão esquecido: o
próprios da cultura popular local. Na transposição para a tela, que significa ser latino.
esses elementos perdem sua naturalidade. As produções artísticas europeias e norte-americanas
É impossível exigir “fidelidade” na transposição de costumam marcar de forma mais profunda o imaginário coletivo
linguagens. Para a construção de um filme, se busca inspiração em ocidental. A leitura da produção artística daqueles que são mais
outras manifestações artísticas, como a Literatura. Uma obra próximos, que sabem as dificuldades de viver em terras repletas
literária tem possibilidade de ser o suporte da história a ser de desigualdades, mas ao mesmo tempo tão ricas de alegria e
filmada. O que se busca, no entanto, é que a essência da obra-base esperança, contribuem para um retorno às raízes. Em se buscar o
seja mantida. O sentimento que a leitura de um livro desperta deve resignificado do que seja ser latino-americano.
ser preservado no filme.
Porém, quando o filme é produzido por um grande estúdio Referências
Cinematográfico de Hollywood (New Line Cinema), com um BAZIN, Andre. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991.
orçamento de aproximadamente US$ 45 milhões, a transformação
da obra de arte em produto comercial se torna evidente. A BLUME, Rosvitha Friesen; PETERPLE, Patricia (Orgs) Tradução e
preocupação em apresentar elementos atrativos para “vender” o Relações de Poder: algumas reflexões introdutórias. In: BLUME,
filme alcança um espaço muito grande, deixando que a busca pela Rosvitha Friesen; PETERPLE, Patricia (Orgs) Tradução e Relações de
essência da obra de arte seja deixada em “segundo plano”. Poder. Tubarão: Ed. Copiart; Florianópolis: PGET/UFSC, 2013. p. 7-
Para o público familiarizado com o contexto da narrativa, 19.
ou seja, o público latino-americano, a tentativa de reprodução de
um universo pautado pelos estereótipos se torna grosseiro. Soa CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma proposta metodológica para a
como se a equipe de estrangeiros que produziram o filme tivesse análise semiótica de filmes. In: ROSA, Claudio Beltrão da,
a intenção de recriar um universo no qual ela não está inserida e CARDOSO, Ciro Flamarion S. (Org). Semiótica do espetáculo: um
apresentar para quem lhe é nativo como se fosse fiel, o que não método para a história. Rio de Janeiro: Apicuri, 2013.
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CURADO, Maria Eugênia. Literatura e cinema: adaptação, SAID, E.W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente.
tradução, diálogo, correspondência ou transformação? São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Temporis[ação], Goiás, v. 1, nº 9, Jan/Dez 2007.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Tradução como cultura. Trad. Eliana
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Diferentes, desiguais e desconectados: Ávila e Liane Schneider. Ilha do desterro, Florianópolis, n. 48, p. 41-
mapas da interculturalidade. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de 64, jan./jun. 2005.
Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
______.Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
______. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo
Modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; Horizonte: Editora UFMG, 2010.
tradução da introdução Gênese Andrade. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2013. STAM, Robert. A Literatura através do Cinema – Realismo, magia
e a arte da adaptação. Tradução: Marie-Ane Kremer e Gláucia
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. El amor en los tiempos del cólera. Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
Buenos Aires: Delbosillo, 2014.
VALENTE, Marcela Iochem. Tradução: mais que um processo entre
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade, Rio de línguas, uma ponte para transmissão de capital cultural. Raído –
Janeiro: DP&A, 2004. Revista Semestral do Programa de Pós- Graduação em Letras da
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, Dourados, v. 4,
______. Da Diáspora: identidade e mediações culturais. n. 7, jan./jun. 2010. p. 323-332.
Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resende.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. VENUTI, Lawewnce. Translation as Cultural Politics: Regimes of
Domestication in English. In: BAKER, Mona (Ed.) Critical Readings
MOTA, Denise. O amor recontado no cinema. ENTRE LIVROS, São in Translation Studies. London and New York: Routledge, 2010.
Paulo, Editora Duetto, n. 22, fev. 2007, p. 48.
Referência Fílmica:
ROAS, David. La amenaza de lo Fantástico. In: _____. Teorías de lo O amor nos tempos do cólera [Love in the Time of Cholera] Direção:
Fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001 (Serie Lecturas). Mike Newell. Produção: Scott Steindorff. Intérpretes: Angie
Cepeda, Benjamin Bratt, Ernesto Leszek, Fernanda Montenegro,
Giovanna Mezzogiono, Hector Elizondo, Javier Bardem, John
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Leguizamo, Laura Harring, Marcela Mar et al. Roteiro: Ronald


Harwood e Gabriel García Márquez. EUA, Colômbia: New Line
Cinema, 2007 [DVD] (141 min).
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A LEMBRANÇA, O OBJETO E O ESPAÇO: A MEMÓRIA NA volta ao cérebro), ora numa representação imagética desse
TRAJETÓRIA DOS BUENDÍA contato, que resultaria na percepção. A percepção, que tem
Mariana Marise Fernandes Leite duração no presente, transforma esses estímulos em signos da
UFES consciência que seriam também armazenados como lembrança.
Ainda que proporcione a produção da lembrança, a percepção se
O romance Cien Años de Soledad (1967) é a narração do opõe a ela, sendo resultado imediato do contato do corpo e
percurso de existência das oito gerações da família Buendía estando em constante contato com as experiências passadas, de
durante em que é narrada também a trajetória da cidade de forma que as lembranças estão sempre alterando o estado puro
Macondo. O relato, que se desenvolve no tempo cronológico de da percepção.
cem anos, é feito pelo narrador destacadamente a partir das Essas memórias que interferem constantemente na
memórias dos personagens da estirpe dos Buendía. A partir dessa percepção são, segundo Bergson, de dois tipos: a Memória hábito,
memória é que são remontados os personagens, os que se fixa através do comportamento e da repetição, e a
acontecimentos decorridos durante essa trajetória e, também, o lembrança independente, que é a imagem de hábitos e
espaço no qual os percursos da cidade e da família se acontecimentos passados não específicos. O funcionamento da
desenvolvem. memória, que na verdade é a apresentação de lembranças
Neste trabalho analisamos a conexão existente entre o latentes no inconsciente quando invocadas pela percepção, se dá
relato e a memória e demonstramos a influência desse recurso na de forma móvel e fluída, de maneira que a cada momento a
constituição dos personagens e do espaço e na percepção da percepção está recorrendo a diferentes imagens para a
passagem do tempo. Para isso, apoiamo-nos nos estudos de Henri contribuição em sua intercessão com o meio.
Bergson em Matéria e memória (2006) sobre a relação do corpo Complementando os estudos de Bergson sobre memória e,
com a memória e nas obras Memória coletiva (1990), de Maurice segundo Ecléa Bosi (1979), contrapondo-se a eles em parte,
Halbwachs, Memória e Sociedade(1975) e O Tempo vivo da Maurice Halbwachs (1990) aponta para a existência de uma
Memória (2006), de Ecléa Bosi, destacadamente no que tange à memória coletiva, a memória que se constitui num grupo e que
relação da memória com o espaço e os objetos. costuma influenciar na memória do indivíduo, fazendo com que
Como bem retoma Ecléa Bosi em Memória e Sociedade ele reconstitua de forma mais completa suas lembranças passadas.
(1979), em Matéria e Memória (2006) Henri Bergson estabelece Segundo Halbwachs, nosso entorno material leva nossa
uma conexão entre o corpo e a percepção, apontando o corpo interferência, nossa marca, e a dos outros, de forma que a
como o canalizador dos múltiplos estímulos que recebemos em afirmação de Auguste Comte de que os objetos materiais que
ação e reação com o ambiente. Esses estímulos resultariam ora mudam pouco e com os quais temos contato diário contribuiriam
numa reflexão física ao contato (caso realizasse o trajeto de ida e para a nossa estabilidade emocional é uma afirmativa verdadeira.
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Partindo dessa conclusão, o autor aponta que nossa casa, nossos p.26) e que se deformam e sofrem alterações naturais com a
móveis e a maneira como estão dispostos os cômodos no espaço, passagem do tempo. Os objetos biográficos são objetos familiares
lembram nossa família e nossos amigos que nesse espaço víamos e cotidianos que, dispostos de determinada forma no espaço
e, além disso, representam nossa cultura e nossos gostos biográfico, mantém um elo natural do indivíduo com o passado,
aparentes, que estão impressos na escolha dos objetos e além de reafirmar sua identidade.
representam nossa relação com sociedades sensíveis e visíveis.
O autor aponta também que os objetos que circulam no Espaço biográfico
interior de um grupo costumam refletir a moda e o gosto do Em Cien Años de Soledad a cidade de Macondo e a
mesmo, distinguindo-o de sociedades mais antigas. Seria, segundo habitação dos Buendía podem ser consideradas como espaço
ele por essa relação do grupo com o espaço que, quando certos biográfico no romance. Em um percurso de criação,
autores, como Balzac ou Dickens, descrevem determinado espaço, desenvolvimento e destruição que dura os cem anos de existência
é possível saber o personagem que a ele está ligado. Além disso, da família Buendía podemos ressaltar Macondo como espaço
ele afirma cada objeto e o lugar que ele ocupa no espaço lembra biográfico nos termos de Halbwachs. Isso se dá pois, já desde sua
uma forma de viver comum a muitos homens que os define. Os fundação, o povoado reflete as características de seus habitantes,
objetos a nossa volta e sua forma teriam portanto uma destacadamente daqueles que são pertencentes à estirpe de José
significação, como uma sociedade muda e imóvel e, se deles nos Arcádio, já que, quando ainda era “una aldea de veinte casas de
cansamos, é como se envelhecessem. barro y cañabrava construidas a la orilla de un río de aguas diáfanas
Halbwachs esclarece ainda que não são todas as que se precipitaban por un lecho de piedras pulidas” (MÁRQUEZ,
modificações no espaço, ou de um espaço a outro, feitas por um 2009, p. 9), a cidade foi disposta espacialmente como ansiavam
grupo, que assinalam épocas na história da família. No entanto um seus fundadores e, desde esse momento da fundação, Macondo
grupo, ainda que disperso, conseguiria reviver sua memória em acompanha, com transformações físicas no espaço, a passagem do
contato com o meio que influenciou e pelo qual foi influenciado, tempo cronológico em que se insere.
de forma que uma modificação ou um acontecimento drástico, tal Dessa forma, o povoado se modifica como espaço com a
como uma morte, pode afetar definitivamente os indivíduos, o chegada dos ciganos e seus inventos, dos turcos e de Pietro Crespi
grupo e o espaço. ao povoado, com o longo período guerras revolucionárias, no qual
Complementando a compreensão da memória conectada sua escola é transformada em quartel e suas casas são pintadas de
ao espaço de Halbwachs (1990), Ecléa Bosi disserta sobre os cores que simbolizam o poder político vigente, com a chegada da
objetos que apresentam a marca dos indivíduos e de um grupo, companhia bananeira, o trem, a duplicação da cidade e a
seriam os objetos biográficos: “coisas que envelhecem conosco e apresentação de um novo lado estrangeiro separado do dos
nos dão a pacífica sensação de continuidade” (BOSI, Ecléa, 2004 fundadores e, também, com a devastação do povoado a partir de
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um atentado contra os trabalhadores da companhia, que culmina reformas, primeiro com o crescimento dos filhos e o retorno de
na decadência e no encerramento da existência da cidade. Melquíades da morte, em seguida com o retorno do Coronel
Em todos esses momentos vemos que a interferência dos Aureliano da guerra, mais tarde com a hospedagem de
habitantes de Macondo em seu espaço reflete de alguma forma estrangeiros que vinham no trem de ferro a Macondo e, por fim,
seus gostos e sua cultura, como Hallbwachs aponta ocorrer em com a companhia bananeira.
espaços biográficos. Dois exemplos disso são a pintura das casas A chegada de Fernanda, na quarta geração da família e o
de acordo com o regime político vigente, o que reflete momentos envelhecimento de Úrsula alteram a casa novamente. A esposa de
históricos marcados na memória coletiva dos habitantes de Aureliano Segundo imprime na casa e no contato com o restante
Macondo e, também, a transformação da estrutura do povoado da família sua história, trazendo com ela os costumes tradicionais
com a chegada da companhia Bananeira, que explora a cidade e de sua família, mesclando sua memória com a dos Buendía e
reprime uma greve de funcionários com o ataque e o assassinato dando novas dimensões à memória coletiva construída. É essa
de cerca de 3 mil funcionários, realizando uma alteração brusca no mescla que aponta Roberto Paoli (2014, p. 983) em:
grupo e no espaço alteração tal que impulsiona transformações El código cultural de la familia capitalina y colonial de los Del
radicais e o início da decadência da cidade. Carpio queda sometido a toda una serie de situaciones
Quanto à casa dos Buendía, sempre ao centro da cidade, desconsagratorias, cuando aquellos valores y
ela é descrita em sua forma inicial da seguinte maneira: comportamientos, típicos de otro espacio, y más que nada
fue desde el primer momento la mejor de la aldea, las otras de otro tiempo, se introducen, con el casamiento de
fueran arregladas a su imagen y semejanza. Tenía una salita Fernanda, en la familia Buendía, familia popular, marginal y
amplia y bien iluminada, un comedor en forma de terraza anarquista (en el sentido más amplio de la palabra), con un
con flores de colores alegres, dos dormitorios, un patio con pasado y vocación de nomadismo […].
un castaño gigantesco, un huerto bien plantado y un corral Entre as mudanças que Fernanda impõe à casa de forma a
donde vivían en comunidad pacífica los chivos, los cerdos y adapta-la e a ela se adaptar após o choque cultural provocado por
las gallinas. (MÁRQUEZ, 2009, 18) sua chegada na família estão: “La puertas de la casa, abiertas de
Essa composição inicial da casa sofre uma série de par en par desde el amanecer hasta la hora de acostarse, fueron
alterações à medida que se multiplicam os membros e agregados cerradas durante la siesta” e “(e)l ramo de sábila y pan que estaban
da família, sempre acompanhando os acontecimentos históricos. colgados en el dintel desde los tiempos de la fundación fueron
A casa sofre as primeiras alterações com a chegada a Macondo dos reemplazados por un nicho del Corazón de Jesus” (MÁRQUEZ,
ciganos, que trazem consigo invenções de crescente interesse para 2009, p. 256). Tais mudanças é que demonstram a inserção da
José Arcádio e impulsionam a construção de um laboratório de cultura de Fernanda que, como afirma Paoli, é uma representante
alquimia que virá a ser o primeiro espaço de afastamento de José de uma família colonial e que, por tal motivo, traz consigo a cultura
Arcádio do grupo de sua família; passa também por ampliações e e os costumes de seu contexto de origem.
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Ainda sob os cuidados de Fernanda, a casa e a família A extinção de Macondo da memória dos homens volta a
apresentam, após o fim da companhia bananeira, seus primeiros reafirmar a ela e a todo o entorno dos Buendía como um espaço
sinais de degradação. Enquanto esse espaço e o povoado biográfico pois, tendo sido extintos aqueles que produziam nesse
enfrentam aridez e decadência, Úrsula morre, Aureliano Segundo, espaço marcas históricas, também a cidade deixa de existir.
Petra Costes Fernanda e José Arcádio Segundo apresentam os Vale lembrar também que esse processo de criação,
primeiros sinais da velhice e, de toda família, os que mostram desenvolvimento e destruição conectado a um centro que é
juventude são Aureliano Babilônia, Amaranta Úrsula e José narrado em Macondo se aproxima do que Mircea Eliade em Mito
Arcádio. do eterno retorno (1992) aponta como cosmogonia, criação de um
Já em sua fase final de existência, a casa dos Buendía, cosmo a partir do caos e que a casa dos Buendía, além de ser a
concectada a uma Macondo devastada passa às mãos de José representação maior das transformações no espaço biográfico de
Arcádio, Amaranta Úrsula e Aureliano Babilônia e, durante esse Macondo, simboliza também um modelo sagrado a ser seguido,
período, vivencia um processo avesso ao da ampliação promovida modelo tal que está ao centro de Macondo. Assim como um
durante a existência de Úrsula. Isso se dá pois o espaço da casa, cosmo, ao perder sua organização harmônica e ter seu centro
assim como em diversas instâncias no romance, segundo aponta perturbado e deslocado, Macondo torna à inexistência.
Josefina Ludmer (1974), dobra-se sobre si mesmo, numa trajetória
especular. Da ampliação à destruição, o espaço da casa e o espaço Objetos biográficos
da cidade se deterioram e se comprimem até o clímax do romance Além do espaço biográfico na narração, alguns dos
em que, restando apenas Amaranta Úrsula e Aureliano Babilónia, personagens de Cien Años de Soledad apresentam objetos
a casa vai sendo consumida de modo crescente pelas formigas, biográficos, que retratam a passagem do tempo daqueles que os
contra as tentativas da última Buendía de dar vida ao espaço. manuseiam.
Com a morte de Amaranta Úrsula e do bebê, e a O mais importante desses objetos são os pergaminhos de
sobrevivência de Aureliano Babilônia, o espaço de Macondo se Melquíades. Os pergaminhos podem ser considerados objetos
fecha no pequeno quartinho de Melquíades, que havia se tornado biográficos pois, mesmo depois da segunda morte do cigano, em
espaço de vivência do último Buendía. Ao decifrar os pergaminhos sua última estada em Macondo, são as memórias desse
do cigano, Aureliano constata a extinção de sua estirpe: personagem as que estão vinculadas aos pergaminhos até o
antes de llegar al verso final ya había comprendido que no momento do desfecho da narração.
saldría jamás de ese cuarto, pues estaba previsto que la No relato, a memória de Melquíades é representada pelo
ciudad de los espejos (o los espejismos) sería arrasada por ressurgimento de sua imagem no seu antigo quarto em que alguns
el viento y desterrada de la memoria de los hombres en el dos homens da família entram na tentativa de decifrar os escritos.
instante en que Aureliano Babilonia acabara de descifrar los
A aparição de Melquíades na habitação pode ser compreendida
pergaminos […]. (MÁRQUEZ, 2009, p. 495)
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como o resultado do que Bergson (2008) afirma ser o processo da A lembrança


percepção, que está sob constante interferência das imagens Além de estar relacionada ao espaço de existência cíclica, a
lembranças dos Buendía que estudam os pergaminhos em busca memória está presente também no jogo narrativo do romance
de decifrá-los. Entre os Buendía que tem contato com a lembrança que, além de apresentar a trajetória de uma cidade que se fecha
do cigano está Aureliano Buendía, para quem “aquel recuerdo sobre si mesma, exibe o constante jogo de espelhos dos quais são
hereditario se había transmitido de generación en generación, y exemplos os Aurelianos e Josés Arcádios que revezam
había llegado a él desde la memoria de su abuelo” (MÁRQUEZ, características físicas e psicológicas entre si, casais que se formam
2009, p. 224). na família e que se diferenciam quanto à concretização ou não do
Outros objetos biográficos de alguns dos personagens do incesto, a lenda da criança com rabo de porco que se concretiza ou
romance são os objetos da sala de costura de Amaranta, com os deixa de se concretizar e a narração que se inverte dos dez
quais em sua velhice ela tece e desfaz sua mortalha; os objetos do primeiros capítulos aos dez capítulos restantes.
quarto onde ainda jovem o Coronel Aureliano exerce sua função Esse jogo de espelhos é ressaltado por Josefina Ludmer
de ourives e aos quais ele retoma em seus últimos anos para as (1974, p. 206) em sua interpretação do romance. Ele é apontado
atividades diárias de transformar o ouro nos peixinhos de ouro que pela autora como uma “máquina da memória”, pois os fragmentos
representam sua identidade desde os tempos da guerra; e os da narração estão em constante repetição, fazendo com que o
móveis da casa, com a disposição dos quais Úrsula ainda consegue leitor recorra sempre a representações que já foram formadas
se orientar pela casa após perder sua visão. anteriormente na leitura da narrativa.
No caso dos móveis da casa de Úrsula, ressaltamos que a A “máquina da memória” dialoga também com Bergson
relação dessa personagem com eles também está atrelada à (2004), uma vez que essa repetição instiga a percepção do leitor a
memória hábito da qual Bergson fala em seu estudo, uma vez que buscar imagens anteriormente formadas, “ressuscitar passados”.
ela usa de seus anos vivência na casa e da repetição constante dos Essa ‘máquina’ se faz visível na circularidade que o narrador
trajetos de um cômodo a outro para armazenar na memória , onisciente dá ao percurso de cem anos da narrativa através da
quando tem a visão ainda pouco afetada pela catarata, posições e memória dos personagens. Já ao início do romance vemos no
perrcursos para se locomover na cegueira, como lemos em: “Se coronel Aureliano Buendía um exemplo desse retorno: “muchos
empeñó en un callado aprendizaje de las distancias de las cosas, y años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel
de las voces de la gente, para seguir viendo con la memoria cuando Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde en que su padre
ya no se lo permitieron las sombras de las cataratas” (MÁRQUEZ, lo llevo a conocer el hielo” (MÁRQUEZ, 2009, p. 9). Além dessa
2009, p.297). cena do gelo, que é recordada outras vezes e que aponta um dos
recursos de recorrência ao passado, é frequente nessa narração
pretérita a recorrência do narrador a um passado ainda anterior a
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ela, de forma que o leitor é incitado a relacionar constantemente Segundo agonizando de soledad en el aturdimiento de las
acontecimentos de diferentes pontos dos cem anos e até mesmo parrandas, y entonces aprendieron que las obsesiones
precedentes a eles, como é o caso da regressão feita no segundo dominantes prevalecen contra la muerte (MÁRQUEZ, 2009,
capítulo do romance ao tempo dos antepassados de Úrsula e José p. 488-489).
Arcádio, numa forma de contextualização histórica do casal. Todos esses Buendía espalhados na casa após sua morte
A própria Úrsula, em seus últimos anos de velhice, se torna seriam na verdade as imagens passadas, assim como a imagem do
uma máquina da memória. Enquanto Aureliano está preso a um dia em que foi levado para conhecer o gelo do coronel Aurelinao,
ciclo de fabricação de peixinhos, Amaranta à feitura e desmanche só que no caso de Aureliano e Amaranta Úrsula, as imagens afetam
de sua mortalha e José Arcádio a um sonho de espelhos, ao fim da a percepção de forma que lhes dá a falsa impressão de uma
vida Úrsula está presa a suas recordações do espaço, de continuidade de existência.
acontecimentos diários e de acontecimentos passados.
São estes últimos, os acontecimentos passados, que a Conclusão
auxiliam na descoberta de alguns acontecimentos insólitos: do que A memória em Cien Años de Soledad é a responsável pela
acredita ser a verdadeira identidade de cada um dos gêmeos, conexão entre diferenças instancias narrativas do romance. Ao
confundida desde a infância, da descoberta de objetos perdidos, e mesmo tempo em que o narrador produz uma ‘máquina da
da utilização de suas recordações sobre outros membros da família memória’ que nos leva a todo momento a recorrer a
já falecidos, como a previsão de Amaranta para a data da própria acontecimentos ou personagens anteriores da narração, fazendo
morte. com que as próprias lembranças do leitor interfiram na percepção,
Outra evidência dos recursos da memória no romance é o é também a memória que, através da onisciência do narrador da
fato de, ao fechamento da narrativa, num incesto que, diferente vida aos personagens e remonta suas trajetórias.
do primeiro incesto do livro, concretiza a lenda do nascimento da Além disso, é através da memória, desta vez a do grupo,
criança com rabo de porco, vemos a memória dos personagens coletiva, que podemos estabelecer uma relação entre a existência
Aureliano Babilônia e Amaranta Úrsula afetando constantemente cíclica de Macondo e a existência cíclica dos Buendía. A cidade,
sua percepção, ao observarem espalhados pelo espaço da casa os representada principalmente através da casa da família é
membros da estirpe que já se foram realizarem suas antigas construída pelas gerações da estirpe e na cidade observamos
atividades cotidianas: aspectos biográficos desse grupo de forma que, assim como todo
Oyeron a Úrsula peleando con las leyes de la creación para espaço biográfico, no momento em que ocorre um impacto brusco
preservar la estirpe, y a José Arcádio Buendía buscando la na existência da família de José Arcádio, vemos uma mudança
verdad quimérica de los grandes inventos, ya a Fernanda radical também no espaço, que resulta no encerramento do ciclo
rezando, y al coronel Aureliano Buendía embruteciéndose
de existência dos indivíduos e também do espaço.
con engaños de guerras y pescaditos de oro, y a Aureliano
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Referências
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Tradução de Paulo Neves.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê editorial,


2003.

______. Memória e sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz ed., 1979.

ELIADE, Mircea. Mito do eterno Retorno. Tradução de José A.


Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992.

HALWBACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Laurent


León Schaffter. São Paulo: Revista dos Tribunais,1990.

LUDMER, Josefina. Cien Años de Soledad: Una Interpretación.


Buenos Aires: Ed tiempo contemporáneo, 1974.

MÁQUEZ, Gabriel García. Cien Años de Soledad. Buenos Aires:


Sudamericana, 2009.

PAOLI, Roberto. Carnavalesco y tiempo mítico en Cien Años de


Soledad. Disponível em: <http: // revista -iberoamericana. pitt.
edu/ ojs/ index. php/ Iberoamericana/ article/ viewFile/ 3981/
4149>. Acesso em: 29 março 2014.
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DOS VECES JUNIO. UMA FICÇÃO QUE ILUMINA UM DISCURSO A exemplo do que fez Luis Guzmán, em Villa(1998), Kohan
Máximo Heleno R. Lustosa da Costa se vale da voz de um cúmplice do regime militar para construir sua
UFF narrativa: em Guzmán, temos um médico civil que auxilia na
legalização das mortes; em Kohan, temos um recruta do exército
Em seu livro A quien corresponda, de 2008, Martín Caparrós argentino que serve de motorista a um capitão-médico do regime.
faz com que o protagonista, um militante sobrevivente da No primeiro caso, o protagonista é um médico, mas também se
ditadura, discutindo com uma jovem as motivações daquela luta, apresenta como “mosca”, o que anda sempre em torno daquele
pergunte: ¿Cómo podía explicarle estas cosas a alguien que ni que detém o mando,o que,acima de tudo, tem medo e, portanto,
siquiera había nacido en esos días y que era, desde todo punto de segue o que lhe ordenam, mesmo que sofra psicologicamente
vista, un producto de la cultura que aquella derrota generó? remorsos de sua colaboração; no segundo, o protagonista também
Essa pergunta, dentro da ficção, tem uma de suas respostas é uma espécie de mosca, que circula no entorno do “cero uno”, o
na ficção do livro Dos veces junio, publicado em 2002, de Martín médico capitão, só que agora, em Dos veces junio, não receberá
Kohan. De certo modo, o fato de não estar o autor dentro das nem a distinção de um nome próprio. A personagem de Kohan,
vítimas daquele período, como declara em entrevista (KOHAN, entretanto, tem uma admiração por seus superiores. Daí que Villa,
2004), permite que possa trabalhar outras possibilidades de de Guzmán, ainda é capaz de um ato de misericórdia, enquanto o
construção do discurso sobre este tema, afastando-se do conscrito, principal modo pelo qual o identificaremos na narrativa,
testemunho, e do argumento da experiência, para iluminar nem disso será capaz.
novamente o aspecto estético, da criação e, no caso, da Dos veces junio conta a seguinte história: Em 30 de junho
verossimilhança. Em outras palavras, Dos veces junio inverte o de 1982, o ex-conscrito do exército argentino recorda o seu tempo
protagonismo da narrativa, deslocando-o do aspecto histórico de serviço militar, quando servia como motorista do capitão-
para o trabalho com a linguagem. Escreve o autor: médico Dr. Mesiano. Suas lembranças são, mais precisamente, as
De este modo – y para el momento en que nos situamos, en do dia 10 de junho de 1978, dia do jogo entre Argentina e Itália
le que la categoría “narración” ocupa un espacio de pela Copa do Mundo de Futebol, evento ocorrido na capital
privilegio en el imaginario de la literatura argentina –, aun portenha.
recurriendo a los materiales provenientes de la historia, la Na ocasião, o soldado encontrará sobre a mesa dentro de
novela ya no se ajusta a las respectivas exigencias de
uma sala no quartel um bloco em que está escrita a seguinte
veracidad – del discurso histórico y de la novela realista – o
pergunta: “A partir de que idade se pode começar a torturar uma
de una fiel plasmación del acontecimiento, sino que procura
atener-se a su propia invención de una ficción y de un criança?”. A perguntada foi encaminhada pelo Dr. Padilla, que, no
lenguaje en la escritura misma. (KOHAN, 2000) Centro de Detenção de Quilmes, está às voltas com uma detenta
que se recusa a colaborar com o “Proceso” e seu movimento de
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repressão aos “subversivos”. Todos os métodos empregados Acontece nesse momento, algo que merece destaque:
resultaram infrutíferos e, por ocasião do parto, o Dr. Padilla sugere coube ao conscrito o quarto de número 202 e, nessa narrativa, os
que, sendo necessário interrogar rapidamente a detenta, que se números, desde o título, merecem atenção especial. O número
utilizem métodos de pressão psicológica. Estes, numa gradação 202 é um palíndromo, ou seja, um número que invertido
que começa com o jogo do torturador bonzinho e o malvado, permanece o mesmo.As possibilidades de interpretação para este
passam pela simulação de disparar a arma na cabeça da detenta, “acaso” são muitas; uma das que nos parece interessante é que o
sendo que a arma está descarregada, chegam ao último recurso: conscrito entrou, casualmente, neste quarto – e nesta posição
torturar o filho na presença da mãe. Entretanto, há um problema: social; a de soldado. Vale lembrar que o serviço militar era através
dadas as condições do parto, a criança não nasceu muito forte e é de um sorteio transmitido por rádio.De modo que a sorte, nascer
imprescindível a posição de um especialista para que não se perca filho de tal ou qual, ser soldado ou não, nada tem a ver com uma
a informação que, por ventura, a presa possa estar escondendo. A formação ideológica prévia. Então, o comportamentoda maioria
resposta, então, urge. de sem nomes nada tem a ver com convicção, mas sim com
Ocorre, porém, que o médico que poderia auxiliar nesta capacidade de se adaptar.
situação, o Dr. Mesiano, ganhou do coronel Maidano, que, por sua Kohan descreve assim este encontro deste casal:
vez, recebeu-os do próprio almirante Lacoste, vice-presidente do “¿Cómo te llamas?”, le dije. No estoy seguro de que, en un
Ente Autárquico, um órgão criado pelo governo militar para fazer encuentro casual en una calle de la ciudad, la hubiese
e ganhar o evento esportivo, dois ingressos para assistir ao jogo. tuteado, pero aquí no cabía otra posibilidad. “Me llamo
Portanto, apesar da urgência da situação e do período atravessado Sheila”, me dijo. “No”, le dije, “yo te pregunto cómo te
llamás de veras”. “Me llamo Sheila, de veras”, dijo. “Yo te
pelo país, o militar competente não está no quartel. O conscrito,
pregunto tu nombre auténtico”, insistí. “Me llamo Sheila”,
buscando proteger seu superior hierárquico, seguirá para as
dijo ella, “y no tengo nombre auténtico”. (KOHAN, 2002, p.
imediações do estádio e esperará a partida terminar (a Itália 97-8)
ganhará o jogo por 1 a 0).
Tendo conseguido encontrar o capitão, que está com o Como percebemos, a comunicação entre o conscrito e a
filho Sérgio Mesiano, transmitirá a necessidade urgente de sua prostituta é impossível. Há uma ironia na coincidência no nome da
presença no quartel a fim de resolver uma questão de interesse prostituta, mas, antes de tudo, uma predisposição de não aceitá-
nacional. O capitão dirá que sim, mas que, antes de tudo, será lo como verdadeiro por parte do conscrito. A situação se torna
preciso salvar a noite. Para isso, o capitão dirige o grupo a um bar, ainda pior quando ela, para diferenciá-lo de outros clientes, diz
aonde depois chegam três mulheres. Seguem então para um que ele teria direitos especiais:
motel, em que passarão algumas horas. Para sugerir que me distinguía con un trato especial, me dijo
que yo sí podía pedirle lo que quisiera. Dio a entender que
era un derecho al que no todos tenían acceso, porque
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aclaró: “Por ser vos”. Entonces yo le pedía una sola cosa: De fato, sobre estas “questões técnicas” da prática de
que no fingiera. Ella sonrió, me miró de arriba abajo y dijo: tortura do corpo de tarefas da ditadura argentina figuram
“Con vos para qué”. Yo quería creerle, y no podía. (KOHAN, vários testemunhos de vítimas que descrevem que nas salas
2002, p. 100) de tortura havia uma tabela para que se fizesse a relação
entre o peso do corpo da vítima e a voltagem da descarga
Vale ressaltar que, numa leitura metafórica, o corpo
elétrica a ser-lhe aplicada. (PERETI, 2012; p. 236)
feminino é o corpo da nação, é o corpo torturada nesta narrativa
e, em última instância, o corpo no qual, pelo raciocínio do De qualquer forma, já não interessa mais. O Dr. Mesiano
conscrito, não se pode acreditar.Daí que, incapaz de acreditar na quer levar o recém-nascido consigo e dá-lo a sua irmã, que nunca
prostituta, ele a tortura e, finalmente, quanto ela está quase conseguiu engravidar. O novo problema é que, nesta época, havia
desfalecendo, consegue sua melhor noite: “Gemía: ‘Me hacés uma lista de espera com pretendentes a adotar os filhos dos
mal”, y entonces yo tuve, debo confersalo, mi mejor noche: la subversivos mortos ou desaparecidos em combate. O Dr. Mesiano,
noche de la cifra mítica. Una marca que nunca hasta entonces gritando que vai mostrar quem pode mais, sai do Centro de
había conseguido, y ya no creo que vuelva a conseguir.’” (KOHAN, Detenção e viaja de volta ao quartel central, nas proximidades do
2002, p. 107) Estádio, aonde ficam as principais autoridades da ditadura. De lá,
A associação entre detenta, prostituta e nação, como o recebe autorização para retirar a criança. O Dr. Mesiano, como a
corpo feminino que se insinua para atender ao prazer de um corpo consulta que lhe fez o outro médico e a autorização para furar a
viril, masculino, parece estar claro nesta passagem, mas, lista indicam, é o primeiro de sua turma.
sobretudo, parece reiterar uma máxima interpretada nesta O conscrito recorda essa história a partir de 30 de junho de
narrativa e, consequentemente, nas ditaduras: sobre o corpo 1982, dia posterior a um novo jogo entre as seleções argentina e
feminino ‘em guerra’ se pode fazer tudo. Cremos que, nesta italiana, outra vez pela Copa do Mundo e novamente com vitória
passagem, a tortura se insinua como um último elemento de da Itália. O então aluno de medicina vai ao encontro do militar
prazer parao militar. aposentado, pois lera no jornal o nome de Sergio Mesiano na lista
Quando finalmente chegam a Quilmes, os dois médicos CEC (caídos em combate), por conta da guerra das Malvinas.
discutem e o Dr. Mesiano questiona a capacidade do outro O Dr. Mesiano está reunido com a família na casa da irmã,
médico. Efetivamente, o que acontece é que a pergunta está mal Ângela. Lá, o ex-conscrito dá as condolências ao médico, os dois se
formulada: para a tortura, não se considera a idade, mas o peso. solidarizam pelos momentos difíceis que o país passa e o ex-
Uma questão técnica que, conforme está em nota de pé de página conscrito conhece o cunhado do Dr. Mesiano, Alberto, a esposa
de artigo de Emerson Pereti: “O número que intitula o décimo Lidia e seu sobrinho Antonio, de quatro anos.
primeiro capítulo, Dos trecientos, é uma referência direta ao peso
da criança ‘apropiada’ (PERETI, 2012; p. 236). E acrescenta:
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A técnica de Dos veces junio Após o estupro, a menina é colocada novamente no


Como escreve Josefina Ludmer, essas literaturas têm todo caminhão que a levará a um lugar para que possa consertar a
um exercício para revelar ao leitor que ele está diante do literário. bicicleta (KOHAN, 2002, p. 102-08). Nesta passagem, o modo da
O mais interessante, no caso de Dos veces junio, é que a revelação narração assume algo da linguagem cinematográfica, com um
deste artifício seja apresentada através de um erro, de um erro diretor que orienta os atores (ou leitores). Há mesmo algo de
que inclusive se repete, no mínimo, dos veces. De modo mais claro, irônico, sugerindo até mesmo dúvida em relação ao sofrimento da
a pergunta que abre o livro, que é encontrada em um bloco de vítima: “Hay algo en ella de inexpresivo que nos impide saber a
notas, apresenta um erro ortográfico: “¿A partir de qué edad se ciencia cierta si en todo asunto sigue padeciendo o si algo existe ya
puede empesar a torturar a un niño?” Em espanhol, se escreve del sentimiento inverso” (KOHAN, 2002, p. 107). Nesta arquitetura
“empezar”, com a z. Este índice é tão relevante que o próprio de escrita, a expressão “ciencia cierta”, assim como o número do
soldado dirá: “Pocas cosas me contrarían tanto como las faltas de quarto, não pode passar despercebida. A conclusão, porém, é
ortografía”. (KOHAN, 2002, p. 12) ainda mais reveladora: “Seguramente no ese solo que más importa
Um outro exemplo para a característica de Dos veces junio en la historia” (KOHAN, 2002, p. 107). Durante toda a narração, o
de se repetir, e de se repetir como derrota – vale ressaltar que são narrador coloca em dúvida a total inocência da menina. E no final
duas derrotas para a Itália, em duas Copas do Mundo, e, claro, em diz que isso não é o mais importante.
dois meses de junho –, como erro,é o que verificamos numa outra Insinuar que há também na vítima um prazer, e isso dentro
passagem:Uma menina anda de bicicleta por uma rodovia. de uma narrativa que pode funcionar como uma metáfora da
Acontece que numa das tantas subidas e descidas, o pneu fura e própria violência sofrida pela nação, amplia significativamente a
ela se vê a pé e sozinha.Então, ela precisa andar até uma oficina intensidade desta leitura – e nos remete novamente ao número
para resolver o problema. Enquanto caminha, aproxima-se um que iguala tudo, o palíndromo 202. Em outras palavras, em Dos
veículo: “Es un camión del ejército y transporta a cuatro soldados veces junio, a relevância não está na interpretação, em uma
(cinco, si se cuenta al que maneja, y el que maneja debe ser possível objetividade da interpretação, mas em outro campo: na
contado” (p. 103) – reparemos que enquanto narra algo que está capacidade de oferecer interpretações, portanto, outra vez na
fora da narrativa principal, o autor dá pista de que aquele que linguagem.
dirige deve ser contado. Logo, vale lembrar que o conscrito é o Na continuação, o narrador apresenta uma questão e um
motorista do capitão e que a palavra “manejar” tem, em espanhol, novo erro na forma: “Es un misterio cómo, si la ropa se la
tanto o sentido de dirigir quanto o de governar.Eles parame arrancaron a jirones, la muchacha aparece vestida otra vez igual
oferecem ajuda. Ela entra no caminhão e, momentos depois, o que estaba al principio”. (KOHAN, 2002, p. 107) A falha apontada
veículo sai da estrada. Ela acaba sendo violentada pelos soldados. no texto, no caso, se aceitarmos a referência ao cinema, proposta
pelo autor, uma falha na sequência narrativa, funciona
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naturalmente para levar a atenção outra vez à linguagem, da milhões de pessoas. Então, as pessoas com as quais confraternizou
mesma forma que o erro ortográfico da pergunta inicial do a primeira conquista começam a virar-lhe as costas. Em todo o
romance. lugar em que Sonja chega, as informações são escondidas,
É sabido que a repetição é um recurso da técnica. truncadas, e todos começam a hostilizá-la. Na própria biblioteca
da cidade, os documentos da época lhe são negados e ela precisa
Quando há a ausência de um “sentimento”, estamos diante da entrar na justiça para ter acesso a eles.
máquina Acontece que, na cidade inteira, ninguém se opôs a Hitler
Quando em 1949, Jean-Paul Sartre escreve seu famoso e, inclusive, alguns tiraram proveito do regime nazista. A única
livro O que é literatura?, o mundo acabava de sair de uma guerra pessoa que se opôs foi a avó da protagonista, que se mudara para
devastadora, em que uma racionalidade esclarecida e produtiva uma fazenda. A pesquisa para a redação traz à lembrança de todos
conseguira justificar o extermínio de uma parte da espécie algo que querem esquecer, ou seja a cumplicidade na execução da
humana e criar uma versão da esteira fordista para a execução de ideologia ariana por cidadãos considerados exemplos de seres
tal objetivo. Dada a urgência de seu tempo, há apenas três anos da humanos. Conforme a investigação da menina avança, a cidade vai
explosão das bombas de Hiroshima e Nagasaki, Sartre se desfazendo, os cenários vão ficando mais toscos e boa parte do
naturalmente entendia como fundamental uma conscientização que forma a linguagem cinematográfica vai se esvaindo na tela.
das massas obreiras a fim de que estas pudessem se assenhorear Metaforicamente, sem memória, a cidade e a arte se desfazem.
do mundo em que viviam e orientá-lo por um caminho em que a Em seu livro Purgatorio, Tomás Eloy Martínez, trabalhando
desigualdade diminuísse. Da urgência de seu tempo, o filósofo na fronteira entre a ficção, os fatos reais e o ensaio, descreve um
solicita a urgência do uso das obras de arte no sentido de formar almoço em que o próprio general presidente Rafael Videla
as massas. comenta a visita que Jorge Luís Borges lhe fez, quando da tomada
Para fundamentar as ideias que construiremos a partir de do poder, e representa o sentimento geral da nação:
agora e relacioná-las com o pensamento sartreano, utilizaremos Yo le rogaba a Dios todos los días para que ustedes se
fragmentos de um filme, um livro e um documentário que, apuraran a tomar el gobierno. La gente en la calle estaba
acreditamos, estão em sintonia com a leitura que fizemos até aqui. desesperada viendo el país en manos de una bataclana
No filme A cidade sem passado, Sonja, uma menina alemã de uma retrasada. Teníamos miedo de que, para cuando ustedes
llegaran, sólo quedasen ruinas. No dejo de admirar la
cidadezinha do interior, ganha um concurso nacional de redação e
rapidez con que devolvieron las cosas a su lugar. Hasta
torna-se uma celebridade na cidade em que vive. No ano seguinte,
Borges, que es tan parco, se ha mostrado orgulloso de un
estimulada pela conquista anterior e por sua professora, decide ejército que ha salvado al país del comunismo. Lo oí hace un
participar novamente. O tema que escolhe se relaciona com a par de horas por la radio. Ah sí. Almorcé con Borges y otros
resistência de sua cidade à ideologia nazista e ao massacre de literatos. (MARTÍNEZ, 2008, p. 47)
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Em uma outra parte, o pai da protagonista, um importante tortura, a morte de inocentes, o desaparecimento de pessoas, o
empresário dos meios de comunicação, assume e distribui a estupro de meninas, a cumplicidade da população, o aparato
responsabilidade com milhões de compatriotas: “Admitió que en médico, a rede burocrática, a falácia da linguagem oficial e os
el pasado había cometido graves pecados de omisión (todavía recursos linguísticos utilizados na construção de seu discurso.
hablaba de pecados), y dijo que millones de argentinos compartían Concluímos, pois, que a narrativa de Kohan inscreve-se no
con él esa falta. Pidió disculpas por haber prestado más atención a conceito de literatura engajada politicamente proposto por Sartre,
la flotación del dólar que a los cadáveres en el Rio de la Plata.” ainda que, naturalmente, não se converta em panfleto ideológico.
(MARTÍNEZ, 2008, p. 197) A própria ausência de um nome próprio para o
A narrativa de Martín Kohan dialoga com as narrativas protagonista da narrativa opera um apagamento em que se
citadas, e possivelmente com muitas outras, atribuindo permite também situar o conscrito, e todos aqueles que fazem
responsabilidades àqueles que têm se exercitado, com bastante questão de esquecer, de apagar a memória, como no filme citado,
dedicação, a esquecê-las, e que, assim como a personagem de entre os desaparecidos por parte dos militares. Na narrativa,
Marítnez, se comprazem por seguirem a milhões de cidadãos. Isso inscrevem-se na carga semântica do vocábulo “desaparecido” as
nos permite uma reflexão sobre o fazer literário contemporâneo vítimas da ditadura para a qual este termo era apenas um
que, de algum modo, também está orientado para um tecnicismo eufemismo da morte que servia de aparato legal ao apagamento
da escrita. Um tecnicismo que aponta para uma racionalidade e das questões relativas a assassinato e a genocídio. Dissolvem-se
para certo tipo de escritor acadêmico. Sartre escreve: também no vocábulo “desaparecido” os agentes pequenos e
O raciocínio tira das lágrimas o que estas têm de obsceno; médios que contribuíram para a repressão e, naturalmente, para a
as lágrimas, revelando a sua origem passional, tiram do morte de centenas de dissidentes.
raciocínio o que ele tem de agressivo; não ficaremos muito Em oposição à história oficial, que se pretende única,
comovidos, nem de todo convencidos, e poderemos verdadeira, Kohan constrói uma ficção que, por sua base em
entregar-nos com segurança àquela voluptuosidade
documentação oficial, por sua verossimilhança, nos impede de
moderada que, como todos sabem, é proporcionada pela
aceitá-la como obra de domínio puramente estético. Sua ficção
contemplação das obras de arte. (SARTRE, 1949, p. 28)
parodia a história, criando, no mínimo, uma outra versão, e, ao
Ou, retomando a citação de Marcuse feita por Bürger: mesmo tempo em que amplia as possibilidades de leitura,
“Marcuse entiende que en la sociedad burguesa los valores relativiza a identidade criada pela versão militar e o aspecto de
humanos sólo se admiten como ficción y, a su vez, impiden su verdade que tal versão sugeria. Por outro lado, ao colocar em seu
realización concreta”. (BÜRGER, 1997, p. 15) próprio texto marcas que põem em dúvida a própria verdade da
Dos veces junio insinua muito do que está explícito nos linguagem, Kohan propõe um questionamento de sua própria
textos escritos sobre a ditadura militar argentina. Na narrativa versão, portanto, ainda mais profundo, interrogando o aspecto
apresentam-se tramas a serem desvendadas e/ou denunciadas: a
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ficcional de seu texto, do texto oficial e, quiçá, de todos os textos defectos que no tendrían cabida dentro de una amplia
que se apresentem sem a tarja de ficção. corriente de opinión que surge justamente de esta
De certa forma, podemos inferir que, em uma ditadura ou convergencia sobre objetivos que están definidos. Quién
em um discurso totalitário, todo texto que se proponha a tenga una tendencia totalitaria o estatista frente a los
objetivos sobre los cuales buscamos convergencia
descrever a realidade assumirá marcas de ficção, inclusive o texto
evidentemente entra en conflicto. Porque justamente no
oriundo da voz oficial. Neste sentido, vale relembrar as palavras do
tiene nada ni totalitarios ni estatizantes los objetivos del
próprio general Videla, em entrevista coletiva por conta dos proceso y sobre ellos que se procura convergencia. Así que
sucessos logrados pela ditadura no ano de 1978, entre outros, a habría, casi le diría auto marginamiento quiénes no
própria conquista da Copa do Mundo. Transcrevemos do adhirieran a estos objetivos no están dentro de la
documentário Lo pasado, pensado, de Felipe Pigna, a pergunta que convergencia, estarían en la divergencia. Por eso digo, no se
o jornalista Oscar Muiño faz ao general: excluyen del proceso estarían en la divergencia, estarían en
El gobierno ha manifestado hasta ahora algunos puntos de el disenso, y no en el consenso. En tanto no caigan en eso
fondo sobre los diversos aspectos de la vida nacional, por disenso ya en extremos inaceptables, tienen cabida en el
ejemplo, en materia de partido político ha señalado la proceso, no el consenso.
conveniencia de remozamiento de las ideas y de los
A discrepância entre o que diz o general e a realidade é
dirigentes. En materia sindical acaba de sancionar una
nueva ley y en materia económica ha hablado e insiste en la incontestável. Com o uso do termo automarginalização, o General
subsidad del Estado. Yo quisiera preguntarle si aquellas Videla insinua que os “desaparecidos” desaparecem por vontade
fuerzas políticas que estén en contra de puntos claves de própria. Ele constrói ainda um jogo de palavras que não contradiz
que acaba de mencionar quedarían fuera de la convergencia a ação de seus companheiros militares e nem responde com
cívico militar. objetividade a pergunta que lhe fazem. O jornalista aponta ainda
mais uma característica da fala do General que se aproxima do
A resposta de Videla, a exemplo do texto de Kohan,
texto literário criado por Kohan em Dos veces junio:
mantém uma distancia entre sua fala, ou seja, o discurso, e a
La segunda pregunta que le molesta fue la mía. Y le molesta
prática de seu regime. Os atos arbitrários e desumanos
porque en realidad el esquema del proceso que ya en este
deflagrados pelo processo de restauração nacional são justificados momento estaba pensando en su salida, en su cría, en su
como consequência natural para quem apresente uma opinião descendencia, era “bueno, todo mundo va tener que estar
divergente: con nosotros”. Entonces la pregunta mía era: “bueno, y qué
Mire, sin mucho análisis le digo que sí. No digo que queden pasa se todo mundo no está con ustedes, si no acepta su
fuera del proceso. Quedarían fuera de esta convergencia política económica, si no acepta a su política de reforma de
porque se colocarían en los extremos. En alguna suerte, por partido, si no acepta los cambios que están ocurriendo. Y
ejemplo, de estatismo, de totalitarismo y algunos tantos vos híncate que Videla se descoloca, no sabe que contestar
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y los silencios, que siempre nos preocupa a los periodistas, Dialogando mais uma vez com Josefina Ludmer, avaliamos
le empiezan a preocupar a él. que o romance Dos veces junio oferece também uma crítica à
O jornalista faz referência aos silêncios expressivos na fala determinada produção literária atual que se fundamenta em um
do militar, às pausas e às reticências que constatamos também matiz mais academicista e que, de certo modo, se inscreve em uma
presentes no romance. Ocorre aqui um efeito interessante da mecânica esteticista. Desconstrói-se assim a aura benjaminiana da
literatura de Kohan: é ela que, de certa forma, outorga uma arte e sugere-se uma atenção, inclusive, para este discurso:
característica de ficção à linguagem utilizada pelo General. Ela “Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura é a
ficcionaliza o que se apresenta como real, ou seja, a linguagem característica de um tipo de percepção cuja capacidade de captar
oficial. “o semelhante mundo” (Johannes V. Jensen) é tão aguda, que,
Em outras palavras, a própria voz oficial apresenta aspectos graças à reprodução, ela consegue captá-la até no fenômeno
de ficção que diluem os critérios de unidade e verdade da história, único” (BENJAMIN, 1969, p. 184). Entendemos que há uma
e, portanto, já em si sugerem outras possibilidades. Em fronteira intelectual profunda nestas considerações, mas, por
consequência disso, essa nova literatura será mais especulação do outro lado, vislumbramos algo do risco de A literatura em perigo,
que ficção, como escreve Josefina Ludmer: de Todorov (2007).
A especulação também é um gênero literário. A ficção Uma literatura ao estilo do escritor fictício Carlos Argentino
especulativa (um gênero moderno global, nesse momento Daneri, do conto El Aleph, de Jorge Luís Borges, na trilha de
latino-americano, que hoje parece ser mais fantasy do que determinada arte contemporânea, como um eco das vanguardas,
ficção científica) inventa um universo diferente do não se propõe para o público como obra de fácil proveito. Na linha
conhecido, fundando-o a partir do zero. Também propõe dessa perspectiva, ou seja, de uma mecânica da escrita, Jorge Luís
outro modo do conhecimento. Não pretende ser verdadeira Borges, em entrevista a Antonio Serrador, diz que, para escrever
ou falsa; gira em torno do como se, imaginemos e do literatura, aprendeu certas astúcias e que estas astúcias o fizeram
suponhamos: na concepção de uma pura possibilidade. A
Borges. Ao interpretar o que Borges chama de astúcias, corremos
especulação é utópica e desapropriadora, não apenas
o risco de entender a palavra como truque, artimanha, e, assim,
porque concebe outro mundo e outro modo de
conhecimento, mas porque postula esse mundo sem o diminuir toda a construção literária – do próprio Borges e de
dinheiro e sem a propriedade (como na Utopia de Thomas Kohan. Ocorre, porém, que tais astúcias também podem, e devem
Morus, 1516). Para isso, toma ideias de várias partes e se ser compreendidas como uma mecânica de escritas que se
apropria do que lhe interessa. Chama essa apropriação de constroem em uma expertise que está além do simples domínio de
extrapolação, se as tradições do gênero. (LUDMER, 2010, macetes.
p.8) Deste modo, entendemos que, em Borges, “astúcias” é
fruto de sua modéstia e da dificuldade para afirmações: “De
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qualquer modo, me sinto mais conjectural que afirmativo ou ______. Duas vezes junho. Tradução de M. Barbão. São Paulo: Editorial Amauta,
negativo”. (BORGES, 1969) Já em Kohan, esta construção ocasiona 2005.
um questionamento ainda maior do fazer literário, a começar por
ser seu material de trabalho, o implica uma relação mercadológica LUDMER, J. Literaturas postautónomas 2.0. Z CULTURAL, ano VIII,
da literatura, a linguagem, que se estende até o tecnicismo da mayo 2007. Revista Virtual do Programa Avançado de Cultura
praxe acadêmica no poder que tem de legitimar discursos e Contemporânea.
estratégias.
Assim, acreditamos que Kohan, sem abrir mão de seu ______. Aqui América Latina. Uma especulação. Juiz de Fora: EDUFMG, 2010.
compromisso com a literatura, consegue deixar clara a denúncia
que realiza. Evidencia a lição de Eagleton, que “o autor não precisa NOVARO, M., PALERMO, V. A ditadura militar argentina 1976-1983. São Paulo:
impingir suas opiniões políticas à obra porque, se revelar as forças EDUSP, 2007.
reais e potenciais em operação, ele já está sendo partidário”
PERETI, E. A derrota como alegoria e os corpos como trauma: de Dos veces junio
(EAGLETON, 2011, p. 87) e, ao mesmo tempo, ensina-nos a duvidar
e figli-hijos. In: Cadernos da Semana de Letras da UFPR, Ano 2012, Volume II.
dos discursos, quaisquer que sejam.
Curitiba: UFPR, 2012.

Referências SARLO, B. Borges, un escritor en las orillas. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Seix
CONADEP. Nunca más. Informe de la Comisión Nacional de la Barral, 2007.
Desaparición de Personas. Buenos Aires: Eudeba Editorial, 2009.

EAGLETON, T. Marxismo e crítica literária. Tradução de M. Corrêa. SARTRE, J. P. O que é literatura? Tradução de C. F. Moisés. São
São Paulo: EDUNESP, 2011. Paulo: Editora Ática, 2004.

GUSMÁN, L. La ficción calculada. Buenos Aires, Norma, 1998. TODOROV, T. A literatura em perigo. Tradução de C. Meira. – Rio
de Janeiro: DIFEL, 2009.
KOHAN, M. Historia y Literatura: la verdad de la narración. In: DRUCAROFF, E.
(dir.). Historia crítica de la literatura argentina: La narración gana la partida. Vol. VIÑAS, D. De Alfonsín a lmenemato 1983-2001: literatura
11. Buenos Aires: Editorial Emecé, 2000. argentina siglo XX. R. Carbone et. al.; compilado por R. Carbone y
A. Ojeda. 1ª ed. – Buenos Aires: 2010
_______. Dos veces junio. Novela. Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 2002.
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“MÁS QUE PLUMA ES AIRE Y CERCANÍA”: A CORRESPONDÊNCIA lírico, en el que sobre todo relucía nuestra amistad durante
POÉTICA DE RAFAEL ALBERTI A JOSÉ BERGAMÍN más de medio siglo (2009, p. 413).
Mayra Moreyra Carvalho Como se entrevê nessas palavras de Alberti, as cartas se
USP caracterizam pela heterogeneidade. Na tentativa de dar conta de
aspectos tão diversos, organizaremos este trabalho a partir de
Entre maio de 1971 e julho de 1972, os poetas espanhóis cinco citações: um verso tomado das cartas, três fragmentos das
Rafael Alberti (1902-1999) e José Bergamín (1895-1983) trocam reflexões do também poeta espanhol Pedro Salinas sobre cartas, e
cartas, o que não seria uma novidade em se tratando das relações uma expressão de Claudio Guillén ao descrever a mescla de
epistolares entre as centenas de intelectuais e artistas exilados gêneros nas cartas-poemas. As citações nos orientarão na
após a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). No entanto, as cartas abordagem das dez cartas que Alberti remete a Bergamín, e que
entre Alberti e Bergamín têm a particularidade de serem escritas aparecerão publicadas em 1982 na revista Litoral, sob o título de
em versos, são cartas-poemas, e, como tais, guardam as “De X a X. Correspondencia en verso con José Bergamín”
especificidades de uma correspondência e o lirismo próprio da
poesia. Em suas reflexões sobre as cartas-poemas, Claudio Guillén 1. “pues del mar el peor es el olvido”: o trabalho da memória
(1985) sublinha o caráter essencialmente intergenérico desse tipo Desde o primeiro verso da primeira carta, datada de 10 de
de produção, que toma da carta a relação básica entre duas maio de 1971, se estabelece o tom memorialístico que estará
pessoas, remetente e destinatário, se vale de sua função de meio presente na maioria das dez correspondências. Diz o sujeito lírico:
de comunicação, e as alia às características formais da poesia – “ya no se estila/escribir en tercetos una carta”, estabelecendo uma
disposição em versos, métrica, rima – e à possibilidade de clara distinção entre presente e passado, o que era de uma forma
expressar estados de ânimo e uma perspectiva fundamentalmente antes, agora não é mais assim. Como observa Nigel Dennis (2012,
subjetiva. O texto de Alberti publicado no jornal El País em 14 de p. 86), essas cartas-poemas trazem “la reflexión nostálgica sobre
setembro de 1983, por ocasião da morte de Bergamín, torna ainda un pasado ya irrecuperable”. No entanto, a carta se mostra como
mais claro o caráter de mescla de gêneros que suas cartas ao poeta possibilidade de recomposição do passado, já que sua forma se
madrileno apresentam: apresenta justamente na medida que não se pratica mais, trata-se
Nos escribimos cartas poemáticas, en verso, con toda clase de tercetos hendecassílabos, com rimas consoantes encadeadas.
de métrica. Cartas de nostalgia, de tristeza y desconsuelo a
Em outras palavras, a carta recupera o passado e instaura na
veces, satíricas, divertidas, mordaces, pensando en esa
primeira correspondência da série o início de um longo processo
España que ansiábamos y no llegaba nunca, perplejos ante
la incógnita de la monarquía que el régimen franquista de rememoração.
estaba preparando. De X a X, firmábamos aquel epistolario O procedimento de facção da carta poética segue o mesmo
princípio da costura, pois tem a rima como um fio condutor que
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transpassa as palavras. No entanto, o processo de reconstituição passado que este lugar evoca, povoado de pessoas e imagens. O
que ora se inicia não pode ser alegre como era o tempo de que locus amoenus do vale lhe traz à memória Juan Ramón Jiménez,
fala, pois interpõem-se entre eles o crime, o desterro e o pranto. poeta afeito às paisagens naturais e amante entusiasmado de
Desde o início, o remetente dessas cartas se anuncia como um jardins. O sujeito lírico também traz de volta a memória do próprio
sujeito cindido, para quem o trabalho da memória sempre lugar, que tem história como ele. Vai se criando um contraste entre
esbarrará na violenta realidade que o impeliu ao exílio. Estabelece- a perenidade da natureza, que é a mesma desde que Jean Baptiste
se na carta uma identificação entre remetente e destinatário, pois Camille Corot pintou as paisagens do vale no século XVIII, e a
ambos compartem igual destino: para poesia, seu tempo é o inexorabilidade do tempo para os humanos, já que as belas
mesmo, passaram pelas mesmas adversidades, resistindo ao modelos que posavam para pintores hoje são lentas anciãs. A
choro, à imobilidade e à morte, e, em decorrência disso, suas ações alusão à pintura serve também para trazer a memória dos mortos.
tiveram poder de transformação ante aqueles por quem passaram. O sujeito lírico incorpora aos versos “La isla de los muertos”,
A inversão de todo o infortúnio causado pelo exílio parece pintura do suíço Bocklin, de 1886. A visão soturna que o quadro
anunciar-se na conjunção “pero”, que abre a última estrofe: “pero traz ao poema é como um memento mori, que precipitará a
quien perdió al fin es hoy quien gana”. A correspondência termina aparição dos poetas que já se foram e que conviveram com o
com a imagem do amanhã como um mar de possibilidades e já sem sujeito lírico na brilhante geração da Edad de Plata. Aparecem
as marcas da despedida forçada. então Antonio Machado, poeta da geração anterior, Federico
A voz de Bergamín chegada de Madrid por um telefonema García Lorca, Pedro Salinas, Moreno Villa e Emilio Prados. Figuram
dado a Alberti, que estava em Roma, foi o que desatou a escritura entre eles também os exilados ainda vivos, permitindo-nos pensar
da carta, que atende a uma necessidade de dizer. Esta necessidade que a ilha dos mortos também alude ao não-lugar dos exilados
se acirra na segunda carta, de 15 de julho de 1971, tornando-se espanhóis, que, como o próprio poeta, tiveram aniquilada uma
loucura de falar livre, franca e claramente, razão pela qual os existência anterior. Nigel Dennis tem uma interessante observação
versos aqui são livres e brancos. A memória se precipitou depois acerca desse aspecto ao afirmar que tanto Alberti como Bergamín
da ligação de Bergamín, pois se trata da voz de um amigo antigo, vivem o exílio como uma morte figurada e que a letra “X” que serve
que passou pelas mesmas privações e que, naquele momento para designá-los nas cartas seria também um emblema dessa
havia já retornado à Espanha, o que Alberti só faria em 1977. O situação, simbolizando “la cruz sobre la tumba en que han sido
tom da carta é de desassossego, e as memórias começam a jorrar- sepultados vivos” (2012, p. 94)
lhe caudalosa e desordenadamente como um rio. O poema dá A memória vai trabalhando de modo confuso e mesclado,
forma organizada a essas memórias, construindo-se na como diz o sujeito lírico, entremeando a alegria de lembrar à
contraposição entre o espaço presente em que o sujeito está – tristeza de saber que tudo foi permeado por sangue. Aqui retoma-
“Estoy aquí en el valle de Aniene”/ “Sobre este valle estoy” – e o se o que já havia dito no primeiro poema: a resistência de Alberti
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e Bergamín ao choro e à morte. Em carta posterior aprecem a esse pensando, / escribir un segundo Marinero/ con la tierra que voy
respeito os impactantes versos: “pues nuestro tiempo nos adiestró pisoteando”.
en el arte/ de comer mierda seca o verde en cualquier parte”. Com A oitava carta é bastante lírica. Está marcada pelo
efeito, queriam as forças contrárias que eles estivessem descompasso entre o fluxo da natureza, que consegue restituir o
enterrados. Neste momento, o sujeito lírico usa de mordaz ironia belo e a vida com a volta da primavera, e a permanência da triste
ao mencionar o Valle de los Caídos, local onde foram enterrados, situação na Espanha real. Aqui o passado se apresenta como
com honra e glória, os combatentes do bando nacional franquista. impossibilidade, pois, embora a memória o traga de volta, o
Ele se pergunta “¿En dónde?”, deslegitimando a importância do presente se impõe deixando o sujeito sem referências. As segunda
lugar, que é para ele só um triste arquivo de cadáveres. Essa é e terceira estrofes concentram este movimento: o passado era
maneira de retornar ao lugar onde está no presente, o Vale de belo, mas foi transformado pelo “sangre, dispersión y
Aniene na Itália. O vale onde eles, os exilados, vão estar enterrados desconcierto”, desfigurando os lugares – Prado, Retiro, Castellana
é belo, tão idílico quanto o cenário que descreveu no início do – que não mais existem da maneira como o sujeito se lembrava.
poema. Este é o lugar em que se volta para levar a cabo o curso Os exilados seguem tendo que se camuflar e para isso o sujeito
natural da vida, para fazer a migração natural, não um exílio lírico recorre ao mito de Dafne, transformada em loureiro para
imposto. fugir do amor de Apolo. A camuflagem mítica é a forma encontrada
Nas cartas sétima e oitava, reaparece a rememoração. para abrigar-se em algo que é permanente, já que tudo em suas
Primeiro, num signo que é muito caro a Alberti, o mar. Ele o volta vidas desmorona, é movediço e incerto. Nesta carta, todo
a ver na cidade italiana de Anzio e isso reinstaura a tensão que elemento da natureza está melancolicamente desvirtuado. O
sempre existiu na sua relação com o mar, tensão que advém não pássaro, correlato do poeta, não canta pela beleza, mas pela dor.
do próprio sujeito, declarado amante deste signo de infinitude, Esse é um tempo em que não se canta mais pela beleza da poesia,
grandeza e aventuras, mas das condições em que sua vida o foi mas impulsionados por sentimentos pungentes e agônicos. Neste
colocando e que o impediram de manter o contato com o mar contexto, ganha mais importância todavia o trabalho da memória.
como ele gostaria. Desde o livro de estreia, a voz de Alberti se É preciso lembrar, pois “Triste/ la tierra que no habla de sus
coloca como cindida, pois se trata de um Marinero en tierra, muertos”, e é isso que o sujeito exerce ao recordar-se de Antonio
portanto alguém que está fora do lugar que desejaria. Condição Espina, jornalista e companheiro de geração de Bergamín e Alberti,
que ironicamente se estenderá por longos anos de sua vida. Com exilado, que morre na Espanha em 1972.
efeito, a visão do mar de Anzio faz com que o poeta pense em Na última estrofe, o sujeito afirma que as cartas são
escrever outro Marinero, pois é esta a condição que sua vida de elegíacas, ou seja, reforça o tom da rememoração melancólica que
exilado lhe impôs: “Quiero, / hace ya mucho que lo estoy apontamos. Seus versos são “alas que se me van del corazón”,
palavras que nos remetem às reflexões de Pedro Salinas sobre a
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escrita epistolar. Depois de enviada, a carta nasce e se alça a sua O sujeito permanece em vigília refletindo constantemente sobre
nova vida de viagem, e vai até cumprir o seu destino de oferecer- os rumos dos acontecimentos. Seu pensamento evoca a situação
se às mãos de outro ser (2007, p. 851). Além disso, o processo de da Irlanda, onde estão instauradas uma guerra civil e uma luta
escritura da carta confronta o sujeito com si mesmo, por isso o eu desigual desde 1969, que certamente ele associa à Guerra Civil
lírico de De X a X vai buscar Quevedo para dizer da constatação do Espanhola. A repetição de um contexto que vê no conflito irlandês
seu envelhecimento, da consciência do passar dos anos. É a escrita leva a pergunta “¿que escribir ya?”. A Espanha que ele conhecia já
da carta que lhe dá essa consciência, pois ele é obrigado a se não existe mais e sobre a Guerra Civil muito já se escreveu, sem
conhecer no processo de rememoração que a carta exige. Como que isso impedisse que outro conflito de mesmo porte
bem aponta Claudio Guillén, "Nos encontramos ante un poema acontecesse. No entanto, a repetição de uma guerra parece fazer
que no pretende ser otra cosa que un acto de escribir” (1985, p. com que se restitua algo em sua memória, não por acaso os três
168). Lembrando também as acertadas palavras de Pedro Salinas, quartetos deste movimento trazem rimas alternadas; e ele vê
“en cuanto queda escrita en letra, es ya un acto de consciencia. El novamente uma razão para luta: “vuelvo a ser calle y punta de
escribir es cobrar consciencia de nosotros” (2007, p. 860). navaja”. Neste momento de inflexão, a escritura da carta aparece
Depois de tudo isso, a primavera que abriu o poema como questão de sobrevivência. Continuar se correspondendo
permanece, dando testemunho do ciclo vital da natureza, para o com Bergamín é para ele o próprio ar e restitui outros elementos
qual há possibilidade da volta da vida e do belo. Paradoxalmente que lhe fazem falta, como se nota nos versos que dão título a este
para o homem, um ser natural, nem sempre é possível reconstituir trabalho: “más que pluma es aire y cercanía”. Como aponta Pedro
tudo, sendo preciso contentar-se com o trabalho árduo – mas Salinas, a carta tem a função vital de levar os sentimentos de
incompleto – da memória. alguém a outrem, o que ele chama de “ubicuidad del ánimo”. Na
carta e por ela “infinitos anhelos, fervores de donación de almas,
2. “Un regreso exquisito a la intimidad”1: o lirismo perviven, sostenidos en las hojillas de papel, que van y vienen,
Como cartas-poemas, todas as dez composições de De X a ayudando esperas largas, mitigando angustias, divirtiendo
X têm momentos de lirismo. Mas notamos que há duas cartas em pesares, consolando muertes” (2007, p. 854).
que o sujeito lírico se mostra mais ensimesmado e se impõe o A carta nove traz um sujeito lírico completamente confuso.
ponto de vista subjetivo sobre os dados do ambiente que observa. Não sabe para quem escreve, não discerne os elementos, não sabe
Na carta seis, por exemplo, a chuva ininterrupta e o frio de identificar a natureza das coisas. Encontra-se cansado.
Roma engendram o olhar melancólico do sujeito, que olha com Surpreende-o o modo como as pessoas o veem, admirando-o por
apreensão a situação política italiana e espanhola, onde pressente ter continuado poeta e por não ter cedido voltar à Espanha.
a volta da monarquia depois de terminada a ditadura franquista. Novamente vemos o processo de escritura da carta como

1
SALINAS, 2007, p. 878
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autoconsciência. O estado emocional do sujeito afeta a de Pedro Salinas (2007, p. 859). Por estar, por definição, ausente,
composição do poema, pois ela afirma não poder controlar a pena: o sujeito que enuncia na carta deve ter certeza de que a maneira
“Ciegamente,/ prosaica o rota o lírica o demente/ marcha mi como se expressará no papel garanta que o outro realmente
pluma sola sin mi mano”. Com efeito, o poema mimetiza seu entenda do que ele está falando e o que está sentindo. Ao menos
estado de confusão, já que há uma sequência de vinte curtos em quatro cartas fica clara a preocupação de Alberti com a forma
versos, sem pontuação, que impõem um ritmo desordenado, em da carta que está redatando.
que realmente parece que a pena vaga sozinha sem o controle da Na primeira carta, como já observamos, comenta o próprio
mão. Nesses vinte versos, mesclam-se indistintamente névoa e estilo em que decidiu compô-la. Os tercetos em versos
chuva, hoje e amanhã, eu e tu, mar, tarde, amanhecer, morte. Os hendecassílabos com rimas encadeadas reconhecem que já são
sentimentos e ações se acumulam, como denota a repetição do uma forma em desuso, mas insistem em sê-lo como uma maneira
aditivo “y”, e perdem-se as relações de causa e efeito. As ações se de recuperar um passado perdido.
seguem e se atropelam sem relação aparente. O ritmo é o da Na carta dois, a forma atende a uma necessidade do
angústia. Fica desta maneira muito bem representado o espírito deste sujeito. A fim de aplacar a loucura de falar com o
desnorteamento do exilado, que está inseguro sobre o presente outro de maneira clara e franca, Alberti abandona a métrica e a
em que está, sobre o futuro da volta à Espanha ou da renúncia a rima e parte para versos livres, em suas palavras “corzo blanco,
ela, e sobre o passado, manchado de sangue, que, como vimos, libre en apariencia”. Neste poema em que, como vimos, o trabalho
permanece vivo apenas em sua memória. da memória aparece em primeiro plano, o verso livre figurado no
animal selvagem faz pensar num ritmo natural e orgânico que
3. “Cartearse no es hablarse”2: a preocupação com a forma ocupará a superfície do poema, da mesma maneira como a
Em seu ensaio “El defensor”, Pedro Salinas insiste em memória opera ao trazer à tona as experiências.
diferenciar a conversa instaurada na carta daquela que se leva a Na terceira carta, o sujeito lírico anuncia nos primeiros
cabo quando se está na presença de alguém. Na carta, o sujeito versos o tom satírico que deseja imprimir. Pretende que a carta
pode ser quem de fato ele é, sem que os olhares ou trejeitos entretenha o destinatário, que prenda sua atenção e que ofereça,
daquele com quem dialoga o travem ou impeçam de dizer. No ao mesmo tempo, pequenas tomadas do intrincado contexto
limite, a carta proporciona que sejam ditas coisas que nunca o histórico, político e social espanhol, operação figurada na divertida
seriam numa situação de fala em presença, “unos secretos imagem de um grilo em um labirinto. Veremos mais adiante que a
últimos, unos primores de alma recónditos, que solo nos llegarán, carta atende a esse anúncio metalinguístico feito na abertura do
desde lejos, entre líneas, y que no se hubiera entregado nunca en poema.
la presencia ni en el habla”, como bem observa o olhar generoso

2
SALINAS, 2007, P. 857
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Na carta sete, aparece a preocupação com o destinatário 4. “Contragolpes satíricos”3: ironia e escatología
da carta. Certamente, Alberti não tem dúvida de que escreve a No texto “De X a X” publicado no El País em 1983, Alberti
Bergamín. No entanto, a preocupação aqui não é com a identidade comenta que as cartas a Bergamín tiveram por vezes uma faceta
“superficial” do outro, mas se converte numa reflexão sobre, pelo satírica, divertida e mordaz. É em especial nas cartas três e quatro
menos, três aspectos: a constituição do outro e de si mesmo, a que se notam esses aspectos.
razão mesma da escritura da carta e a identidade da própria A terceira carta responde a uma demanda do próprio
Espanha. Trata-se de uma série de indagações profundas sobre a remetente, anunciada nos primeiros versos: diverte e entretém o
natureza e os motivos dos sujeitos envolvidos nesta enunciação, destinatário, mas também prende sua atenção pela crítica mordaz.
desta forma de comunicação epistolar e da Espanha: O sujeito lírico se apresenta como acostumado à sátira, pois
¿Te escribo a ti? ¿Tal vez a nadie escribo? lembra seus burros explosivos, alusão a sua obra homônima de
¿Es nadie España? Es nadie todo? ¿Es nada? 1939, que contém uma série de romances e sonetos satírico-
¿Lo que vivimos fue verdad? ¿Es cierto burlescos. Como em outras cartas, há uma equiparação do lugar
que eres el mismo aquel Equis de entonces, desde onde o sujeito enuncia e a Espanha. Neste caso, uma das
que yo estoy vivo o que te escribe un muerto? sete colinas de Roma e local histórico de reunião para debates
¿Un muerto a otro muerto? ¿Dos que ya no estamos? políticos, o Campidoglio, é, “por transparencia”, Espanha. Neste
Mas oigo amanecer – todo está oscuro – lugar os políticos são ridicularizados, assemelhando-se a
y que de oscuro a oscuro nos hablamos. caranguejos com remelas nos imensos olhos, presos a uma teia de
(2004, p.540) aranha. A imagem critica a imobilidade da classe política
espanhola. O sujeito lírico também polemiza com a Igreja Católica,
Nesses versos o sujeito está pensando também sobre a
mencionando Lola Montes, bailarina irlandesa do século XIX,
natureza daquilo que está escrevendo. Em última estância, indaga-
amante do monarca Luís I, no que poderia ser uma dupla crítica ao
se o porquê da própria escritura, já que as situações
casamento institucional e à monarquia; e o Papa João XXIII, que
extremamente adversas fazem duvidar da efetividade do ato de
introduziu importantes reformas na Igreja a partir do Concilio do
escrever. Com efeito, a escritura funciona como um espelho de si
Vaticano II em 1962. Para falar da cidade de Zaragoza, o sujeito
mesma, e como espelho para o próprio sujeito que está posto
lírico elege destacar a anormalidade, a enfermidade da disenteria,
diante de toda sorte de incertezas. Só a escrita, e neste caso, a
designada também por sua denominação popular e coloquial:
escrita da carta, pode propiciar essa espécie de confronto.
“cagalera”. O tom satírico alcança a escatologia e é o momento em
que o sujeito opta pelo rebaixamento da áurea mesma que reveste

3
GUILLÉN, 1985, p. 171
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a poesia lírica. Outros momentos escatológicos aparecerão no chegava àqueles que realmente precisavam conhecê-la. Além de
poema, como “escupidera”, “esputo” (catarro), “traste” (nádega). garantir que eram lidos, importava constar na história literária
Entendemos que a presença dos vocábulos não é gratuita. espanhola. Por esta razão, muitos autores cediam às exigências da
Está em consonância com o tom satírico do poema, e também censura, antes mesmo de se submeter a ela, por orientação do
deixa entrever a irreverência do sujeito lírico ante uma situação editor ou até pela autocensura.
penosa para o escritor, que é a censura, sobre a qual Na terceira carta, Alberti alude sarcasticamente aos
discorreremos no próximo item. Na carta quatro, permanece o mecanismos da censura e da autocensura. Entre parênteses, ele
tom satírico, que desta vez se volta nominalmente para Francisco inserta sua voz que comenta os vocábulos ou fragmentos que
Franco, jocosamente denominado “el Gran Enano”. A posição decide suprimir:
escrachada do sujeito nos poemas é também uma forma de En Zaragoza hay disentería
exteriorizar sua fúria e descontentamento, além de ser uma o cólera. Mejor, Dios mío, fuera…
maneira de dar vazão ante a impotência de não poder dizer tudo (aquí, autocensurándome, me ahorro
o que se pensa, e, quando se diz, saber que poucos o ouvem. una sutil estrofa, aunque no borro
el vocablo en que acaba:) cagalera.
(2004, p. 535)
5. “La carta actúa como luz”4: censura e circulação da obra
Nas cartas de Alberti para Bergamín aparecem também E mais adiante:
dois elementos importantes para pensar a história do exílio Casi a 100 anos, ¡ay!, de la primera
republicano espanhol: a censura e a circulação das obras. Ainda República española.
durante a Guerra Civil, em 1938, o bando franquista institui a (Dejo aquí solamente:) escupidera…
(y algo más:)… tercerola.
censura prévia, que durará oficialmente até 1966, quando se
(El resto, censurado,
institui a chamada consulta voluntária. Em termos práticos, pouco
menos la última palabra:) Estado.
havia mudado, mas, para a imagem que o governo franquista (2004, p. 535)
queria vender no âmbito internacional, a mudança de 1966 era o
suficiente. Então, exigia-se um depósito da obra no Ministério de Vemos que o procedimento é extremamente irônico, pois
Informação e Turismo, que verificava os dados do livro, seus embora os parênteses indiquem a censura e, de fato, estão
antecedentes, e a encaminhava à leitura de um censor. Para os ausentes versos do poema, se mantêm algumas palavras que são
exilados, era importantíssimo ter suas obras publicadas na deveras jocosas ou que certamente seriam bloqueadas pela
Espanha, pois entre 1939 e 1955 eles ficaram praticamente censura. Portanto, o sujeito lírico finge que censura, para atender
isolados e não foram editados. Portanto, sua obra combativa não

4
SALINAS, 2007, p. 853
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à expectativa do regime, mas, na verdade, mantém o suficiente DENNIS, Nigel. José Bergamín en sus cartas. Málaga: Centro
para criticar mordazmente o sistema. Cultural Generación 27, 2012.
O próprio título da obra é índice da presença da censura, já
que apenas as duas primeiras cartas levam o nome do destinatário, GUILLÉN, Claudio. Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la
A José Bergamín. Deste modo, De X a X já é uma resposta à literatura comparada. Barcelona: Editorial Crítica, 1985.
impossibilidade de se comunicar livremente.
Verificamos, portanto, que a carta se apresenta como SALINAS, Pedro. Defensa de la carta misiva y de la correspondencia
resistência e atende a uma demanda pela escrita. Voltando epistolar. In: El defensor - I. Obras completas II. Ensayos Completos.
novamente ao título deste trabalho, essas cartas-poemas são para Madrid: Cátedra, 2007.
o sujeito lírico o próprio ar que o mantém vivo. Elas dão fôlego para
continuar resistindo à condição do exílio e à realidade adversa
espanhola porque repõem uma proximidade entre sujeitos que
têm uma história de vida em comum. Por isso, eles podem falar-se
de igual para igual, compartilhando dores, decepções e
expectativas. Se a condição de seu tempo os distancia, as cartas-
poemas os aproximam não só porque os põem comunicação, mas
porque os lembram e confirmam que são ambos poetas e pela
poesia resistem e sobrevivem, num movimento que supera a
solidão e o distanciamento do exílio.

Referências:
ALBERTI, Rafael. De X a X. Correspondencia en verso con José
Bergamín. In: Obra completa. Poesía IV. Barcelona: Seix Barral, p.
531-547, 2004.

______. José Bergamín. De X a X. (El País, 14-IX-1983). In: Obra


completa. Prosa II. Memorias. La Arboleda Perdida. Barcelona: Seix
Barral, p. 411-414, 2009.
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FORMAS DE TRADUÇÃO NA LITERATURA ANDINA: EL PEZ DE se pratica a ciência, o pensamento, a vida cívica; as línguas andinas
ORO, DE GAMALIEL CHURATA estão confinadas à vida material.
Meritxell Hernando Marsal Cornejo Polar (1994, p. 724) constata neste modelo “la
UFSC excentricidad de su punto de vista”, inaugurada pelas crónicas de
conquista. Para Cornejo Polar (1994, p. 723) as crônicas
A literatura andina constitui um contexto paradigmático constituem o fundamento da heterogeneidade, pois nelas se
para os estudos da tradução na América Latina pois nela estabelece a estrutura de seu processo de produção: “hombres de
evidenciam-se processos tanto de tradução cultural, como de ‘otro mundo’ emplean sus recursos lingüístico-culturales para
tradução interlinguística e intersemiótica. A literatura andina revelar lo que les es desconocido por completo y para hacerlo
alude então a um texto cultural denso, em que línguas diversas inteligible frente a lectores distantes” (CORNEJO POLAR, 1994, p.
dialogam (evidenciando o plurilinguísmo inerente da América) 720). Desta maneira, assinala Cornejo Polar, o indigenismo pode
com formas da dança, da performance, do tecido, do rito e do ser compreendido como “un modo de producción cultural de
canto, inseridas nas práticas cotidianas que relatam. Um conto raíces seculares”, que remete a “estructuras históricas profundas”,
como “A agonia de RasuÑiti”de José María Arguedas é ao “tiempo largo de Nuestra América”.
caraterístico. Já Antonio Cornejo Polar definiu o indigenismo desde Esta afirmação nos alerta sobre a estrutura de dominação
as formas da tradução: cultural que perdura na literatura, nos próprios modos discursivos
En el relato indigenista, como en las crónicas, lo indígena com que a linguagem apreende o mundo, que provocam a redução
aparece como materia de un acto de ‘traducción’ que do andino a um objeto que pode ser traduzido. A imaginação
realiza el narrador para el lector, acto por el que se asume, americana aparece fundada sobre o domínio discursivo do
por una parte, que el referente ha sido transferido a otro território constituído por paisagem, recursos, homens e culturas.
‘código’, y por eso interferido, pero también, por otra parte,
Gamaliel Churata constata esta realidade na sua polêmica
que el ‘traductor’ es suficientemente capaz y su ‘traducción’
rejeição da literatura hispano-americana pela ausência de conflito
suficientemente fiel como para ofrecer una imagen certera
de la realidad indígena. (CORNEJO POLAR, 1994, p. 724) linguístico nela. Churata nega-se a ver a América na harmoniosa
literatura hispano-americana, que desde Ercilla a Ciro Alegría
Este processo de tradução é que configura as literaturas conforma um mundo “ancho y ajeno” escrito em castelhano. Esta
heterogêneas, conceito chave para Cornejo Polar que, mais que é una proposta radical para a literatura na América, pois implica
uma exaltação da diversidade, está incidindo na desigualdade dos um questionamento sobre a colonialidade de sua própria
atores do processo de tradução. Na própria distribuição social das constituição. A linguagem deixa de ser um instrumento estético e
línguas, marcada pela diglossia, se constata esta disparidade. O evidencia processos históricos e culturais de dominação: de outras
castelhano é a língua da escritura, à qual se traduz, a língua na que
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línguas, culturas, formas expressivas, que são relegadas ao operações de negociação e transformação linguísticas de outras
“primitivismo” ou ao folclore. expressões culturais. Cornejo Polar deixa claro a extensão da sua
O que está em jogo aqui é a inclusão das formas populares ideia de heterogeneidade:
no repertório cultural da nação, que deve ser adaptado, Como está dicho, el indigenismo no es la única muestra de
‘traduzido’, às formas e necessidades nacionais. Até o próprio José heterogeneidad en la literatura latinoamericana. Participan
María Arguedas deixa clara a mediação que a literatura realiza em de ese carácter, aunque no necesariamente de su filiación
prol da incorporação de uma parcela da população relegada: cronística, otras muchas: la gauchesca, el negrismo, la
novela del nordeste brasileño, buena parte del realismo
“intenté convertir en lenguaje escrito lo que era como individuo:
maravilloso, algunas manifestaciones de la poesía
un vínculo vivo, fuerte, capaz de universalizarse, de la gran nación
conversacional y – por cierto – los relatos testimoniales.
cercada y la parte generosa, humana, de los opresores” (CORNEJO POLAR, 1994, p. 725)
(ARGUEDAS, 1997, p. 257). Esse apelo ao ‘humanismo’ dos
opressores pode ser lido como uma fórmula de promoção do Mas o apelo às crônicas, como grandes máquinas
andino dentro das estruturas civis hispânicas. Mas logo após, tradutórias da conquista, adverte da persistência de formas
Arguedas deixa claro uma recusa aos métodos e condições comuns coloniais de apreensão epistemológica: nesta tradução de diversas
dessa transação: formas culturais à letra haveria um processo de redução de um
el camino no tenía por qué ser, ni era posible que fuera objeto a paradigmas discursivos alheios. Por tanto, a genealogia da
únicamente el que se exigía con imperio de vencedores tradução na América impede uma celebração multiculturalista do
expoliadores, o sea: que la nación vencida renuncie a su processo (as perdas são incalculáveis) e impõe um olhar ideológico
alma, aunque no sea sino en apariencia, formalmente, y dos processos de tradução na literatura.
tome la de los vencedores, es decir, que se aculture. Daí a pertinência do estudo de textos voltados contra si
(ARGUEDAS, 1997, p. 257) mesmos, que subvertem as formas discursivas herdadas, tentando
Não perder a alma é recusar a instrumentalização do modificar o sistema literário. Neles nega-se qualquer
andino como simples objeto temático que acrescenta capital transparência do processo de tradução. Se comparamos Los ríos
simbólico a um sistema literário que o incorpora exotizando-o (a profundos com El zorro de arriba y el zorro de abajo podemos
afirmação pode-se ler nesse sentido como uma advertência aos observar como a criação literária se apresenta no segundo caso
riscos da transculturação, definida por Rama precisamente a partir como um processo nada harmônico, evidenciando as contorções
de algumas obras de Arguedas). É o próprio sistema que deve ser de um texto contra sua própria forma escrita. A língua das diversas
mudado, com a concorrência das formas andinas de expressão. personagens rebela-se contra a correção e mais ainda contra a
Desta maneira a literatura andina nos remete a um obrigação da comunicação, a exigência de um relato que deve ser
paradigma tradutor para olhar a literatura latino-americana, que narrado. A incorporação (mais do que explícita) da própria vida à
evidencia as instâncias de produção e recepção do texto, e as
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obra questiona a preeminência da letra por cima de outras formas Galana es el habla maternal de Garcilazo, y más que galana
da experiência. pródiga en contenidos expresionales, de idiostenia tan
Gamaliel Churata já anunciava o fracasso destes textos filosófica, pictórica o musical, como lo autorizan quienes
frente à forma habitual de entender o literário: tuvieron, o tienen, el privilegio de su posesión, si los mismos
Hay escritores como Jorge Icaza, José Mari ́a Arguedas, que apenas la sentimos en el gusto a saliva oni ́rica,
Cardoza Aragón, de Ecuador, Perú y Guatemala, en quienes comprobamos cómo es ella lo que se nos amputó del alma
es notorio el latido de una naturaleza con rai ́z; son, con sabiendo que asi ́ se nos privari ́a de una maternidad
decisión indisimulable, desde el punto de vista hispano idiomática. (CHURATA, 1957, p. 11)
deplorables. No; como posibilidades americanas; pues en Desta maneira Churata põe em questão a segurança
ellos es sobre el idioma que recae la violencia expresiva de letrada que manipula as línguas que domina. A operação de
una personalidad que acabará por romper los tejidos Churata só pode ser filológica: é o amor à língua (arrancada) que o
idiomáticos, haciendo del romance una jerga cuasi bárbara,
leva ao esforço por incluir rastros do quéchua e do aymara nos
cuasi tan bárbara como la usada por Huaman Poma.
seus textos.
(CHURATA, 1957, p. 24)
Nessa atitude Churata põe em evidência a ignorância do
Em Churata os processos tradutórios ocupam o primeiro letrado frente ao mundo que está traduzindo, negando assim os
lugar. A proposta estética deste autor parte da necessidade de que estatutos do indigenismo. Cornejo Polar assegura a base do
na literatura americana seja explícita “la concurrencia colonial de “contrato” do indigenismo é o domínio do referente e por isso:
las dos lenguas en que se enfrentan Españ a y el Inkario” (op. it., p. no es nada casual que el primero trate de cumplirlo
16). Por isso, a crônica de Huamán Poma de Ayala, exemplo que enfatizando, en el propio texto o en paratextos cercanos,
evidencia a interferência indígena no gênero, constitui seu que efetivamente conoce bien (o, como suele decirse,
modelo. ‘desde dentro’) el carácter del mundo indígena, mientras
Por isso a tradução em Churata segue caminhos pouco que el lector, que en este caso parece ser excepcionalmente
ortodoxos. El pez de oro apresenta uma proposta linguística onde desconfiado, exige con fuerza garantías de autenticidad al
mensaje que recibe. (CORNEJO POLAR, 1994, p. 724)
no texto castelhano são incorporados palavras e recursos
morfossintáticos do quéchua e do aymara. Mas Churata reivindica Os processos tradutológicos de Churata não são confiáveis.
idiomas que não fala. Ele o assinala explicitamente: “Al nacer te Ele não tem credenciais que lhe permitam assegurar o resultado.
arrancaron la lengua, y te la pasarás haciéndola sangrar hasta el Mais que domínio, o método de Churata é a aproximação
morir” (CHURATA, 1957, p. 54). A perda da língua como amorosa, uma postura que Gayatri Spivak solicita para a tradução:
consequência do processo de colonização é assinalado desde uma the translator must surrender to the text. She must solicit
postura inconformada. A língua é recuperada como resto: the text to show the limits of its language, because that
rhetorical aspect will point at the silence of the absolute
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fraying of language that the text wards off, in its special em processos que obrigam a prensá-lo e bater (a maltratar o
manner. Some think this is just an ethereal way of talking idioma, como assinala Churata), é progressivamente convertido no
about literature or philosophy. But no amount of tough talk próprio (ARNOLD, 2007, p. 64-65). Pela sua parte, a trama,
can get around the fact that translation is the most intimate constituída pelas palavras quéchua e aymará que suspendem a
act of Reading. Unless the translator has earned the right to
lógica do castelhano, é o elemento que vivifica o texto e lhe
become the intimate reader, she cannot surrender to the
confere sua identidade.
text, cannot respond to the special call of the text. (SPIVAK,
1993, p. 183) Desta maneira os modos da cultura andina organizam a
obra numa subversão da letra e dos mecanismos de referência.
O ponto de partida da tradução de Churata são “las entecas Mais que descrever um tecido ou um retablo, Churata incorpora
palabras de los pobres” (CHUARATA, 1957, p. 178), isto é, as estas formas na concepção da obra. Assim, consegue questionar a
formas de apreensão subalterna da língua. Mas na aproximação ao redução objetal do andino no seio do processo literário e a
texto se percebe claramente que não estamos na frente de uma diglossia das línguas/culturas em jogo.
possível transcrição das formas do castelhano andino. A tradução A atenção aos processos de tradução na literatura andina e
que realiza Churata não pretende reproduzir o castelhano como na literatura latino-americana permitem apreender a
falado nos Andes, mas assimilar os idiomas andinos como o complexidade das manifestações culturais implicadas, e
castelhano é assimilado nos Andes. Assim o processo de tradução considerar os modos específicos de representação e criação, que
se inverte: um idioma não ganha a riqueza cultural do outro nos transformam poderosamente o literário com a entrada de formas
próprios termos, mas acolhe as formas do outro. Assim, para falar populares e subalternas em condição de interlocutor. Como
de morte Churata deve falar de chinkana, de ahayu-watan, de assinala Spivak (2005, p. 58), “Nenhuma fala é fala enquanto não
suyus, e nenhum desses termos é traduzido, eles constituem “su é ouvida. É esse ato de ouvir-para-responder que se pode chamar
acaso única originalidad” (CHURATA, 1957, p. 8). de o imperativo para traduzir”.
A relação das línguas em Churata também pode ser
pensada desde o modelo do tecido, que é um modelo de relação, Referências
que según Sophie Desrosiers, guarda “lógicas de pensamiento que ARGUEDAS, José María. No soy un aculturado. In: _______. El zorro
imperan, tanto en la producción del mundo material como en la de arriba y el zorro de abajo. Madrid: ALLCA XX, 1997.
construcción del mundo conceptual” (DEROSIERS, 1997, p. 340). Se
a base da língua de Churata é o castelhano, esta língua pode ARNOLD, Denise Y. Hilos sueltos. Los Andes desde el textil. La Paz:
pensar-se como o urdume na que se tece a trama (qipa) do Plural e ILCA, 2007.
quéchua e o aymará. O urdume do castelhano pode relacionar-se
com os cabelos tendidos do Outro, como assinala Denise Arnold, CHURATA, Gamaliel. El pez de oro. La paz: Canata, 1957.
em uma apreensão da força de seu pensamento, que ao ser tecido,
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CORNEJO POLAR, Antonio. El indigenismo andino. In: PIZARRO,


Ana (Org.). América Latina: Palabra, literatura y cultura. Campinas:
Unicamp, 1994, p. 719-738.

DESROSIERS, Sophie. Lógicas textiles y lógicas culturales en los


Andes. Travaux de l’IFEA97, Lima, p. 325-349, 1997.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Outside in theteaching machine. New


York: Routledge, 1993.

______. Tradução como cultura. Ilha do desterro, Florianópolis, n.


48, p. 41-64, 2005.
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GUERRA CIVIL, EXÍLIO Y MEMORIA EN RÉQUIEM POR UN medida de literatos españoles lanzados a la diáspora tras el
CAMPESINO ESPAÑOL, DE RAMÓN J. SENDER Y EN CAMPO DE término del confronto: Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez,
LOS ALMENDROS, DE MAX AUB Pedro Salinas, Luis Cernuda, Jorge Guillén, Rafael Alberti, Francisco
Michele Fonseca de Arruda Ayala, Manuel Andrújar, Rosa Chacel, Arturo Barea, Mercè
UFF/PG Rodoreda, María Albornoz, entre otros.
En esta ponencia, destacamos los nombres de Ramón J.
La Guerra Civil, acaecida en España entre 1936 y 1939, fue uno de Sender y Max Aub, novelistas dispersados tras la guerra y que han
los episodios más impactantes del siglo XX. El conflicto entre convertido el oficio de la escritura no solo en un medio eficaz para
nacionalistas y republicanos sembró la violencia y destruyó buena llevar a cabo la función de resistencia y oposición en contra al
parte de la población del país. Se estima que las víctimas del régimen que les ha condenado al exilio, sino también una
confronto superaron el medio millón de personas, incluyendo los posibilidad de recuperar la memoria del conflicto bélico.
muertos en combate y los ejecutados por los vencedores tras la Al estallar la Guerra Civil, el aragonés Ramón J. Sender
guerra. ofició de protagonista, no solo de testigo, en esta tragedia
El 1 de abril de 1939, el General Francisco Franco, líder del nacional. Combatió al lado del ejército republicano y en escasos
ejército nacionalista, anunciaba el fin de la contienda. Sin meses perdió a su mujer, Amparo Barayón, y a su hermano
embargo, una otra herida se abría: la de los exiliados. Se evalúa en Manuel, antiguo alcalde de Huesca, ambos fusilados por las tropas
algo más de 100.000, el número de españoles que se vieron nacionalistas. Al finalizar la contienda, se exilió en Francia, pasó a
forzados a dejar su tierra natal y desplazarse a otros países México y finalmente se instaló en los Estados Unidos.
motivados por la temeridad ante las represalias del grupo Dentre las obras que Sender publicó durante su largo exilio
vencedor, por cuestiones ideológicas o por disconformidad con el nos ocupamos de Réquiem por un campesino español, narrativa
sistema político instaurado. corta publicada en 1953, en México, con el título Mosén Millán. En
Entre los españoles que prefirieron o tuvieron que salir del España, la novela estuvo prohibida hasta 1974, año en que la
país hay que mencionar a los que dejaron a la posteridad el legado editorial “Destino”, de Barcelona, inicia sus sucesivas ediciones.
de su pensamiento: intelectuales, científicos y artistas que habían La novela se concentra en dos personajes: Mosén
apoyado la causa republicana y que se vieron obligados a Millán, cura de un innombrado pueblecito aragonés y Paco el del
abandonar el suelo patrio y emprender el azaroso camino exílico Molino, joven campesino brutalmente asesinado y por quien será
del que muchos jamás habrían de retornar. celebrada una misa de réquiem. Mientras espera, en la sacristía,
En el caso concreto de la literatura, el estallido de la guerra por la llegada de familiares y amigos para dar inicio a la
y la llegada del posterior régimen dictatorial fue un duro golpe celebración, el sacerdote rememora los episodios más
para la intelectualidad del país. Algunos nombres ilustran la importantes de la vida de su hijo espiritual, a quién bautizó, vio
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crecer, casó y vio morir. Las remembranzas del párroco son, vez u ambigüedad que es la marca de Réquiem […] y pienso que
otra, interrumpidas por la presencia del monaguillo que recita una explicación de esta ambigüedad está en la elipsis de la
fragmentos de un romance 1 e informa al sacerdote sobre la novela. Además, opino que de las mismas elipsis es de
ausencia de miembros de la parroquia en la iglesia. A la sacristía donde esas imágenes de la realidad española de la época
evocada sacan buena parte de su poder. (RESSOT, 1998, p.
llegan los poderosos de la aldea y enemigos políticos del joven
88)
campesino, mientras el templo cristiano sigue vacio. Al final de la
narrativa, el sacerdote celebra la misa, exclusivamente para los Según Ressot, el tiempo histórico de la narrativa no es
responsables por la ejecución de Paco. mencionado directamente, sino fijado por alusiones a hechos de la
El marco historiográfico de la narrativa no es realidad historiográfica española de los años 30, a través de la
nombrado directamente, pero marcado por alusiones a hechos de figura retórica nombrada elipsis. Literariamente, la elipsis se
la realidad histórica y social de España de los años 30. Lo que existe configura por la omisión o supresión de términos que pueden ser
son breves e indirectas referencias a la II República y al inicio del fácilmente subtendidos. Generalmente, el contexto en que se
confronto fratricida que marcó la historia de la nación, a través de inserta la idea elíptica ofrece al receptor del texto todas las
un sugestiones ideológicas que se configuran sin que sean informaciones necesarias para la compresión del enunciado.
pronunciadas las palabras izquierda, derecha, franquismo, Por la intensidad de su contenido, la narrativa implica
Falange, fascismo, nacionalismo, democracia, dictadura, múltiples interpretaciones. Los más grandes estudiosos de la obra
liberalismo, socialismo, anarquismo o comunismo; vocablos no senderiana han dedicado gran parte de su labor para analizar la
utilizados en la narrativa, pero fácilmente perceptibles a través de novela bajo el enfoque de innúmeros temas, como la lucha de
íconos plasmados en el imaginario colectivo sobre el conflicto. clases y la postura de la Iglesia Católica frente al conflicto. Sin
Jean-Pierre Ressot define el texto senderiano como: embargo, el propio autor afirma que su intención fue la político-
Una creación literaria que parece hablar de Historia, pero social, como dejó relatado en una entrevista con Marcelino C.
cuando la examinamos de cerca, constatamos que, de cierta Peñuelas: “Es simplemente el esquema de toda la guerra civil
manera, la Historia no está, ni tampoco la ideología. Por lo nuestra, donde unas gentes que se consideraban revolucionarias
tanto, después de comprobar que la idea de una novela lo único que hicieron fue defender derechos feudales de una
pura y simplemente “comprometida con la izquierda” no tradición ya periclitada en el resto del mundo”. (PEÑUELAS, 1970,
está escrita de forma explícita en el texto, sería necesario
p.131)
comprender cómo una casi unanimidad pudo hacerse
alrededor de semejante imagen. Hay, pues, en esto una

1
Romance palabra de origen hispánica que se refiere a un tipo de verso, español
por excelencia, y también a un tipo de poema de la tradición oral integrado por
esos versos.
P á g i n a | 700

De hecho, en esta obra, Ramón J. Sender, expresa la realidad, una verdad que expresa la protesta contra la injusticia,
brutalidad de un momento de la vida española, a través del cual se pero es una protesta tácita, a media voz y por eso más efectiva y
proyecta una visión particular del mundo y de la historia, una vigorosa. Es un grito sordo contra el sistema feudal de la España
historia a menudo dolorosa experimentada por el propio autor, campesina, contra la opresión de los terratenientes y la pasividad
Ramón J. Sender, testigo y víctima del conflicto. de la Iglesia Católica frente a los conflictos. Esto en su nivel
En Réquiem por un campesino español el escritor aragonés junta exterior, pues adentrando más hondo en la narrativa, en sus
los hilos de la memoria y con ellos teje el escenario real en que entrelíneas, percibimos el tono moral que se convierte en una
estuvo inmerso, reconstruyendo, en su texto, no solo un pasado expresión de denuncia de los problemas sociales y políticos de la
marcado por los recuerdos y paisajes de su tierra natal, pero España de aquel entonces. En el texto senderiano, el espacio de las
también por el dolor, por la crueldad y por la violencia de una letras y palabras con que se teje, en una dimensión estética y ética,
guerra civil. Para ilustrar nuestras afirmaciones, destacamos un se evidencia la España fragmentada, episodio convertido en
fragmento del prefacio del autor, en la obra editada en 1964, en testigo, en el que el autor reconstruye, de manera poética y
Lexington, EUA, todavía con el título antiguo: contundente, una época dura, de tortura y muerte rutinarias.
El hombre es el mismo en todas partes si nos atenemos a Otra voz que se alzó para denunciar las atrocidades de la
los registros sutiles de la sensibilidad moral y a la Guerra Civil de España desde el exilio fue la de Max Aub.
esencialidad humana, es decir a la razón de la presencia del Recordemos que la vida del escritor fue consecuencia directa de
individuo en la familia, de la familia en la sociedad, y de la los convulsos episodios del siglo XX. En la infancia presenció el
sociedad en la nación y aún de todos ellos en la perspectiva
estallido de la I Guerra Mundial y tuvo que trasladarse con su
aleccionadora del tiempo.
familia a España. Su vida española termina con otra contienda, la
Pero unas veces el hombre domina las circunstancias, y Guerra Civil. El escritor tuvo participación activa, si bien no bélica,
otras es dominado y arrastrado por ellas. Esto último en el lado republicano, enganchándose en actividades de
sucedió en 1936. propaganda. Estuvo entre los ciento de republicanos que cruzaron
Por razones fáciles de comprender Mosén Millán está más la frontera francesa en 1939 y fue internado en un campo de
cerca de mi corazón que otros libros míos. Se trata en esta concentración francés. Deportado a Argelia, logró escapar en 1942
narración de la España campesina, de Aragón que es mi y se trasladó a México. En el exilio, gran parte de su obra narrativa
tierra natal, y de una coyuntura histórica inolvidable. se centró en la descripción de sus experiencias de la contienda
(SENDER, 1964, p. 5) fratricida.
Las palabras de Ramón J. Sender revelan que Réquiem por La obra más destacada de Max Aub es El laberinto mágico,
un campesino español es la voz directa de alguien que cuenta su un conjunto de seis libros, publicados entre 1943 y 1968, cuyo
propia historia para seguir viviendo. La narrativa expone una principal lazo de unión, común a todas ellos, es la Guerra Civil
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española. Se trata de una obra testimonial que se ha convertido en salida posible: el exilio. La tragedia se basa en que los prometidos
verdadero documento literario en torno al más trágico barcos, o no llegaron, o los pocos que se acercaron se dieron la
acontecimiento histórico de la España contemporánea. Sobre el vuelta sin recoger pasajeros, asustados por la multitud que los
confronto español y su colección literaria, Aub escribió: esperaba. Las autoridades republicanas asumen que no se puede
La Guerra de España corresponde a un tiempo de confusión, evacuar a todos, es entonces que el pánico se apodera de los allí
de muerte y nacimiento de mundos distintos. Tal vez por presentes. Muchos, ante la desesperación, empiezan a suicidarse,
esto y no sólo por impotencia estos relatos, imbricados unos unos como acto de honor, otros como una forma de evitar caer en
en otros y no machihembrados geométricamente, como tal las manos de los falangistas. Al término de la guerra, los que
vez debieran estarlo, den una idea del caos que fue en
permanecieron en Alicante fueron enviados a los campos de
tantas ocasiones aquella lucha. El desorden, la complejidad
concentración, uno de los cuales da el título a la novela.
de los motivos puede explicar el fárrago y el embrollo del
revuelo de lo que sigue, las tinieblas – la niebla – que La materia narrativa de la obra está dividida en tres partes.
muchas veces el sol español no logró vencer, aun sin contar La primera, compuesta por seis capítulos, se estructura en seis
la ofuscación de los contendientes. (AUB, 1967, p.114) relatos independientes, con seis protagonistas distintos cuyas
historias no tienen continuidad argumental. La acción se desarrolla
La cita reafirma el tono memorialístico y testimonial salidos
en Valencia durante sus últimos días como centro administrativo
de la pluma aubiana, nacido y desarrollado bajo el doble signo de
de la República. El eje central del capítulo está en la constatación
la fragmentación y de la totalidad, que dan cuenta del trauma de
del fin inexorable de la guerra y la urgencia de dejar a la ciudad.
la guerra y del fracaso de las esperanzas republicanas.
Esta parte termina con la entrega de la plaza a las tropas
Campo de los Almendros fue publicado en México en 1968
franquistas por el Coronel Segismundo Casado y su subsiguiente
y es el último libro del ciclo de narraciones de El laberinto mágico.
salida desde el puerto de Gandía, la visión de las carreteras
Se supone, por ello, la culminación de la labor de cronista ejercida
abarrotadas de vehículos que huyen hacia Alicante, mientras se
por Max Aub durante casi un cuarto de siglo. En Campo de los
menciona que el Gobernador alicantino se marchó en el último
Almendros circulan personajes cuyas voces se alzan para narrar el
barco en la noche anterior
trágico final del confronto fratricida en Alicante, última ciudad
La segunda parte cuenta los inútiles esfuerzos de la Junta
republicana ocupada por las tropas franquistas.
de Evacuación organizando listas, que son constantemente
La obra empieza en el momento de la victoria de los
reducidas de tamaño, que muestren el orden de embarque en los
nacionalistas y lo único que pueden hacer los que habían apoyado
barcos que nunca logran llegar. La desesperación toma cuenta de
la República es huir. Tras largas caminatas y agobiados por la
todos en el Puerto de Alicante, pues no se encuentran más
incertidumbre de no saber si se encontraban en territorio
respuesta que la entrada de los barcos franquistas en la ensenada
enemigo, miles de personas logran agruparse en el puerto de
mientras les apuntan sus cañones y se oye de fondo la Marcha
Alicante, última ciudad bajo control republicano, buscando la única
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Real. Esta parte se concluye con la constatación de la derrota total Ramón J. Sender y Max Aub buscaron, desde el exilio, que
al mismo tiempo que se comienza a desalojar el puerto a camino sus obras representasen a todos aquellos que no pudieron contar
del Campo de los Almendros. Es dentro de la segunda parte donde lo que han visto o sufrido. Los escritores no hablan por sí mismos,
surgen las “páginas azules”. Se trata de un paréntesis en el hilo de sino por todos aquellos que no pudieron hacerlo, sus memorias
la narrativa, en que el autor reflexiona acerca de su propia obra, son las reminiscencias de toda una colectividad silenciada por la
de la guerra, de la historia reciente de España y de aquéllos que la intolerancia y por violencia a los derechos fundamentales del ser
forjaron y la vivieron. humano. En este sentido, las obras de Sender y Aub se configuran
La tercera parte se abre el primero de abril con el anuncio como reivindicación de la memoria, de la verdad histórica contra
oficial del gobierno franquista comunicando que la guerra había la deformación y la mentira, contra el silencio, que buscan dejar
llegado al fin. Pronto se inicia la posguerra y con ella la feroz constancia de los hechos, ser la crónica del tiempo que vivieron y
represión contra los que habían apoyado la causa republicana. En superar el olvido.
esta parte también se narra el traslado inmediato de los A través de la memoria, Sender y Aub intentan traer el
prisioneros al Campo de los Almendros y la posterior redistribución pasado al presente para que este no desaparezca y permanezca
de la gente, el comienzo de los interrogatorios, las persecuciones vivo. De este modo, los escritores logran (re)vivir el contexto
y los fusilamientos en masa. histórico narrado en sus obras al paso que (re)crean el mundo
Las referencias temporales se van haciendo menos novelesco. Así, las voces de los novelistas se convierten en gritos
concretas según se acerca el final de la novela, que concluye de lucha, de crítica y denuncia, voces comprometidas con los
cronológicamente unos meses más tarde pero sin especificar valores que ambos han defendido cuando vivían en España.
fechas. Quizá, al dejar temporalmente abierto el final de su novela,
Max Aub intentase señalar que el comienzo de la posguerra y lo Referencias
que ésta trajo consigo – el régimen dictatorial de Francisco Franco, AUB, Max. Campo de los Almendros. Madrid: Alfaguara, 1981.
hecho histórico que aún vigoraba al ser escrita la obra - era una
herida que todavía estaba abierta. Como víctima y superviviente ______. Hablo como Hombre. México: Joaquín Mortiz, 1967.
de la intolerancia y de la violencia, Max Aub fue consciente de la
obligación moral que tenía de dar cuenta de todo lo que había AZNAR SOLER, Manuel. Los laberintos del exilio. Diecisiete estudios
vivido en el periplo que, entre 1936 y 1942, le hizo ser testigo de sobre la obra literaria de Max Aub. Sevilla: Renacimiento, 2003.
las guerras española y mundial, de la brutalidad de los campos de
concentración franceses y de la soledad del exilio al que partió en BLINKHORN, Martin. A guerra civil espanhola. São Paulo: Ática,
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P á g i n a | 703

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P á g i n a | 704

LOS LATINOS VIAJAN A LA MECA DEL CINE imbricación crítica cinematográfica/ficción literaria es una de ellas;
Miriam V. Gárate la utilización de procedimientos que tienden a imprimirle a
Unicamp escritura una estructura cinemática es otra. A continuación, se
propone una lectura de ese conjunto textual.
La presencia de relatos que se organizan en torno al motivo
del viaje a Hollywood es un dato significativo de las letras Viajes vividos (soñados) en la oscuridad
latinoamericanas de 1920-1930, que corre paralelo a la expansión Como se sabe, los factores implicados en la situación cine
de la cinematografía estadounidense en escala planetaria. Una (pasividad, aislamiento, alteración espacio temporal) se alían al
aventura de amor (1918), publicado en Chile bajo el seudónimo de efecto de presencia del lenguaje cinematográfico transparente
Boy, Miss Dorothy Phillips, mi esposa (1919), del uruguayo Horacio (XAVIER, 1984) para propiciar una experiencia que se constituye
Quiroga, Che Ferrati, inventor (1923), del mexicano Carlos Noriega como cancelación provisoria de la realidad inmediata y como
Hope y Hollywood, novela da vida real (1932), del brasileño desplazamiento (viaje) a una realidad paralela. Eso incitó a
Olympio Guilherme se estructuran alrededor de ese motivo. Quizá postular muy temprano una analogía con el par vigilia/sueño:
no sea coincidencia que a medida que el viaje deje de ser un sueño aboliendo temporariamente la dimensión diurna y las
el happy end se torne cada vez más unhappy. O que el par pobre frustraciones que ésta impone, la sala oscura le ofrece al
diablo seductor/estrella seducida ceda lugar a la proliferación de espectador una pantalla en la cual se proyectan (y él proyecta)
extras inmersos en una cotidianeidad cada vez más difícil. Los fantasías compensatorias, en una suerte de sueño despierto. Ese
títulos expresan hasta cierto punto esa trayectoria disfórica: Una dispositivo es delineado en varias crónicas latinoamericanas de las
aventura de amor y Miss Dorothy Phillips, mi esposa anticipan el primeras décadas del siglo veinte, que trazan el perfil de un público
desenlace venturoso y su corolario oficial, el casamiento - una destinatario compuesto por señoritas de barrio o empleados de
aventura que se deshace al despertar, dado que en ambos casos bajo rango1. Se trata de una tipología que medra en la literatura
se trata de un sueño, y se rehace en la escritura, dado que en vehiculada por publicaciones populares, dramatizando en la letra
ambos el relato del sueño es la redacción del cuento. En el juego identificación/proyección propuesto por la pantalla.
contrapartida, Hollywood, novela da vida real, apunta desde el Guillermo Grant, narrador protagonista de Miss Dorothy Phillips,
principio al carácter engañoso de la fábrica de ilusiones. Pero la mi esposa ofrece un retrato elocuente del “pobre diablo” cinéfilo:
denuncia resulta inseparable en este caso de la experiencia vivida Yo pertenezco al grupo de los pobres diablos que salen
por quien no se limitó a ir hasta allí únicamente en sueños. noche a noche del cinematógrafo enamorados de una
Características menos vinculadas al orden de la peripecia estrella. Me llamo Guillermo Grant, tengo treinta y un años,
favorecen otras conexiones entre los componentes del corpus: la soy alto, delgado y trigueño – como cuadra, a efectos de la

1
Sobre esta cuestión ver Gárate (2014).
P á g i n a | 705

exportación a un americano del sur -. Estoy apenas en remitir a Dolly el relato -como lo haré en seguida- con esta
regular posición, y gozo de buena salud [...] Siendo como dedicatoria:
soy, se comprende muy bien que el advenimiento del
“A la señora Dorothy Phillips, rogándole perdone las
cinematógrafo haya sido para mí el comienzo de una nueva
impertinencias de este sueño, muy dulce para el autor”
era por la que cuento las noches sucesivas en que he salido
(QUIROGA, 1996, p. 463)
mareado y pálido del cine, porque he dejado mi corazón,
con todas sus pulsaciones, en la pantalla que impregnó por Duplicidad análoga organiza Una aventura de amor (1918),
tres cuartos de hora el encanto de Brownie Vernon [...] En publicado meses antes en Santiago de Chile. En este caso, no
ciertos malos momentos he llegado a vivir dos vidas obstante, la frase que diseña la situación inicial explicita
distintas: una durante el día, en mi oficina y el ambiente simultáneamente el deseo del narrador por Carmel Myers y el
normal de Buenos Aires, y la otra de noche, que se prolonga tenor escrito/ficticio de la confesión, abiertamente dirigida al
hasta el amanecer. Porque sueño, sueño siempre
público: “Comenzaré por hacer a mis lectoras una confesión: estoy
(QUIROGA, 1996, p. 436-438)
terriblemente enamorado de Carmel Myers” (BOY, 2011, p. 380).
El parágrafo citado instaura una ambigüedad que permea En el origen del deseo, previsiblemente, el estreno de un film; de
la totalidad del relato y que solamente se dirime en el postrero inmediato, la persecución promovida por un espectáculo que
desenlace, ya que en rigor el cuento pone en escena dos finales faculta - e insta - a reiterar la satisfacción: “a la noche siguiente y
sucesivos. Por un lado, la historia es conducida hasta último en todas aquellas en que se repitió, fui de nuevo a ver la cinta”; “al
momento como si perteneciese a la dimensión diurna. De acuerdo cabo de algunos días, la cinta se fue a Valparaíso”, “yo me fui tras
con esa convención de lectura, que el texto invita a asumir hasta ella” (BOY, 2011, p. 380). La persecución a la Carmel Myers hecha
el epílogo, Grant quema sus parcas economías, va a Hollywood, de luz y sombra se trastrueca en seguida por el viaje a Hollywood
simula ser un próspero sudamericano cinéfilo, conquista a Dorothy y la seducción de la star de carne y hueso, desenlace
Phillips, revela más tarde su verdadera condición, es perdonado redimensionado una vez más por el último enunciado: “Y ahora,
por la estrella y, a punto de contraer matrimonio, planea escribir para terminar, debo hacer a mis lectoras otra confesión, y es que
un guión basándose en la aventura vivida. Por otro lado, el epílogo todo eso lo soñé una noche, después de ver Las sirenas del mar”
que sucede a ese happy end declara la condición onírica de la (BOY, 2011, p. 384).
historia induciendo a una redefinición retrospectiva: en lugar de Tal vez no sea arbitrario vincular la doble legalidad que
aventura real, peripecia soñada; en lugar de guión de un filme molda la estructura ambos cuentos al progresivo
futuro, materia de un escrito ya leído. “aburguesamiento” del imaginario cinematográfico apuntado por
Pero esto es un sueño. Punto por punto, como acabo de Edgard Morin (1989), fenómeno solidario, a su vez, del avance del
contarlo lo he soñado... No me queda para el resto de mis psicologismo y del happy end en la producción fílmica de los años
días sino una profunda emoción, y el pobre paliativo de
P á g i n a | 706

1920-1930. 2 De hecho, el par régimen diurno/régimen onírico ilusoria de la imagen proyectada en la sala oscura. 3 Puntuando
puede entenderse como un intento de satisfacer la demanda de esas observaciones generales, paréntesis autobiográficos modulan
“realismo” mediante el sesgo psicológico que representa el estado las mismas cuestiones en el plano de la experiencia vivida por el
de ensoñación, sin renunciar a las soluciones “extraordinarias” de protagonista, llevándolo a la determinación de “casarse con una
una fase precedente caracterizada por el predominio aventuras estrella de cine” (corolario de una jocosa crítica a la institución
excepcionales. La ambivalencia de lo narrado no denega el matrimonial, a la que pese a todo Grant se rinde y celebra). A
cotidiano ingrato. Invita a una satisfacción ilusoria (y partir de allí, los pormenores de la peripecia pueden leerse como
simultáneamente la desvela), a través de la representación de una las etapas de preproducción y de rodaje de una película. La
experiencia familiar y de la actualización de un motivo antiquísimo: elección de la futura esposa entre cuatro posibles (Miriam Cooper,
el de la dialéctica sueño/despertar. Dorothy Phillips, Brownie Vernon, Grace Cunard) es un sucedáneo
Conviene volver al cuento de Quiroga y a las digresiones del casting femenino, al cual sucede el del papel masculino,
iniciales del “pobre diablo”, “alto, delgado y moreno”, en el que es asumido por Grant. El viaje a Los Ángeles es relatado a través de
fácil identificar un tipo cinematográfico en vías de consolidación: escenas cortas y ágiles, en las que despunta un rasgo recurrente:
el latino. Alternándose con los trechos citados, Grant intercala la alternancia entre ilusionismo y desnudamiento de la
reflexiones semejantes a las desarrolladas por los pioneros de la arquitectura de la ilusión. Se trata de un vaivén que afecta diversas
teoría del cine y a la producción crítico-ensayística del propio situaciones: ora puede evidenciar la escasa belleza natural de una
Quiroga. Así, desfilan ante al lector consideraciones sobre la star (“las estrellas, de día, lucen poco, tienen manchas y arrugas”);
relación mirada/expresividad/fotogenia o sobre el vínculo entre ora revela los pormenores de un close-up en el cual el actor le
deseo erótico/tiempo de exposición del objeto/proximidad declara su pasión a una escoba fuera de campo 4; ora hace del cine

2
En relación a dicho proceso, el teórico sostiene: “Espectáculo plebeyo en su fuerza oculta) sino de las motivaciones psicológicas. El mismo movimiento que
origen, el cine se apropió de los temas del folletín popular y del melodrama, en acerca lo imaginario a lo real, acerca lo real a lo imaginario. En otras palabras: la
los cuales se encuentran en estado casi fantástico los arquetipos originales del vida del alma se amplía, se enriquece, incluso se hipertrofia en el interior de la
imaginario: coincidencias providenciales, la magia del doble, aventuras individualidad burguesa. El alma es precisamente el lugar de simbiosis en el que
extraordinarias, conflictos edipianos [...] El realismo, el psicologismo, el happy imaginario y real se confunden y se alimentan el uno del otro; el amor,
end y el humor revelan precisamente la transformación burguesa de dicho fenómeno del alma que mescla de la manera más íntima nuestras
imaginario. Las proyecciones/identificaciones que caracterizan a la personalidad proyecciones/identificaciones imaginarias y nuestra vida real, cobra mayor
en el estadio burgués tienden a aproximar el imaginario y lo real, que buscan importancia. Es dentro de ese contexto que se desarrolla el romanticismo
alimentarse el uno del otro. El imaginario burgués se acerca a lo real al burgués (MORIN, 1989, p.11, traducción mía).
3
multiplicar las señales de verosimilitud y credibilidad. Atenúa las estructuras Sobre la cuestión ver Gárate (2005; 2008).
4
melodramáticas para substituirlas por intrigas que se esfuerzan en ser Dice Grant: “A las diez en punto estaba en los talleres de la Universal. La
plausibles. De allí lo que suele llamarse “realismo”. Los componentes del protección de mi prepotente amigo me colocó junto al director de escena,
realismo ya no son del orden de la casualidad (la “posesión” del héroe por una inmediatamente debajo de las máquinas, de modo que pude seguir hito a hito
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el paradigma explícito del idilio real. 5 En medio a las idas y vueltas asumiera poco antes la columna cinematográfica. Sus crónicas se
de esa comedia se destaca el empleo de un recurso gráfico: la línea publican en el suplemento dominical y son reunidas después en el
corrida de puntos, marca que corta la escena posibilitando el libro El mundo de las sombras, el cine por fuera y por dentro (1921).
pasaje a la siguiente sin demoras, pero sin pérdida de legibilidad. La iniciativa del periódico se inscribe en un conjunto más vasto de
El procedimiento, aliado a la inserción de motivos plásticos acciones que testimonian el avance de la cinematografía
codificados por Hollywood, imprime un sesgo cinematográfico al estadounidense y tienden a instituir un imaginario participativo en
relato. relación al mundo de los sets, bien como a la vida de astros y
estrellas. En esa coyuntura, el reportero se traslada a la capital del
Un viaje, dos versiones cine con el objetivo de examinarla “por dentro” y de comunicar sus
En diciembre de 1919, el mexicano Carlos Noriega Hope impresiones a un lector sediento de noticias sobre Hollywood.6
viaja a Los Ángeles enviado por el El Universal, diario en el que

6
la impresión de varios cuadros. No creo que haya muchas cosas más artificiales Si bien en 1920 el studio system y el star system no habían alcanzado todavía
e incongruentes que las escenas de interior del filme. Y lo más sorprendente, su máximo apogeo, los componentes fundamentales de esas estructuras ya se
desde luego, es que los actores lleguen a expresar con naturalidad una emoción encontraban en pleno desarrollo. La existencia de una compleja red de
cualquiera ante la comparsa de tipos plantados a un metro de sus ojos, información y de publicidad es uno de sus aspectos constitutivos. A ese
observando su juego. En el teatro, a quince o treinta metros del público, concibo respecto, sostiene Morin: “En la época en que reinaba el star system, o sea,
muy bien que un actor, cuya novia del caso está junto a él en la escena, pueda hasta los años cincuenta, quinientos periodistas estaban establecidos en
expresar más o menos bien un amor fingido. Pero en el taller el escenario Hollywood para alimentar al mundo con informaciones, chismes y confidencias
desaparece totalmente, cuando los cuadros son de detalle. Aquí el actor sobre las estrellas. En su libro America at the movies, Margaret Throp estima
permanece quieto y solo mientras la máquina se va aproximando a su cara, que partían diariamente de Hollywood cien mil palabras, lo que tornaba a la
hasta tocarla casi. Y el director le grita: ciudad la tercera mayor fuente de informaciones de los Estados Unidos, después
-Mire usted aquí... Ella se ha ido, entiende? Usted cree que la va a perder. Mírela de Washington y Nueva York. Hoy en día, las fotografías de las estrellas
con melancolía... Más! Eso no es melancolía!... Bueno, ahora, sí... La luz! Y continúan apareciendo en primer plano en diarios y revistas. Su vida privada es
mientras los focos inundan hasta enceguecerlo la cara del infeliz, él permanece pública, su vida pública es publicitaria, su vida en la pantalla es surreal, su vida
mirando con aire de enamorado a una escoba o a un tramoyista, ante el rostro real es mítica” (1989, p. XV, traducción mía). Más recientemente, en la misma
aburrido del director [...].” (QUIROGA, 1996, p. 449). dirección, Goular afirma: “Según David Marshall (2010), las estrellas son
5
“Exactamente como en un film estaba el automóvil detenido en la calzada. Era “producciones del yo” dependientes de una cultura mediática poderosa y
el mismo ese banco de piedra que conocía bien, donde Ella, Dorothy Phillips, extremamente elaborada. La esencia del fenómeno está en sus imágenes, que
estaba esperando [...] yo, con el alma temblando em los labios por caer a sus necesitan ser construidas no solamente por los estudios, sino también por
pies [...] Entonces, de una ojeada abarqué el paisaje crepuscular cuyo costado entrevistas, biografías, chismes y publicaciones en la prensa. El término “fama”
ocupaba el automóvil esperándonos. implica que el público posea una imagen de un individuo y los medios de
– Estamos haciendo un film- le dije -. Continuémoslo” (QUIROGA, 1996, p. 455- comunicación de masa desempeñan un papel central para que una persona
456). privada sea transformada en figura pública” (2012, p. 12, traducción mía). La
P á g i n a | 708

Señalo algunos rasgos de las notas periodísticas con el En esta ciudad de setecientas mil almas existen más de diez
objetivo de examinar la relación instaurada entre éstas y las mil “extras” bonitas, jóvenes, quizás con intuición artística,
ficciones de tema cinematográfico escritas posteriormente por que trabajan uno o dos días a la semana en diversos
Noriega Hope. El primer aspecto a ser destacado se vincula a los “studios!, sin esperanza de subir, sin ninguna esperanza por
llegar a la cumbre. (NORIEGA HOPE, 1921, p. 22-23)
tópicos presentes en el marco y en el núcleo principal de las
crónicas; el segundo tiene que ver con el formato y el tono que El “incidente” horrendo y desolador, pero
prevalece en ese núcleo principal. El marco inicial es dado por la simultáneamente nimio (mejor: minimizado en el discurso), es
visita al estudio de Thomas Ince, en compañía del amigo, abandonado con presteza y substituido por la “tierra de
compatriota y cicerone Manuel Ojeda: maravillas” fabricada en los sets:
El auto llegó por fin a las puertas de Goldwyn y tímidamente Todo lo que escriba ahora habrá de ser un pálido reflejo de
me lancé tras mi amable cicerone hasta la sala de lo que vi porque soy impotente para describir esta tierra de
informaciones. Nunca en mi vida, señoritas, he visto maravilla, este lugar de cuento de hadas. Baste decir que al
espectáculo más desolador. Tan es así que, por cierto, salir me condujeron a las diversas construcciones
atrévome a odiar este pequeño incidente, horrible provisionales o “sets”, levantadas para la confección de las
incidente que se ofreció a mis ojos como primera últimas películas... ¡Por Dios! Estaba en una calle artificial,
manifestación cinematográfica. En la sala de espera a que rodeado de edificios artificiales, con tranvías eléctricos (o al
me refiero había –sin exageración alguna- cuando menos menos tal me parecían) artificiales! Había creído
tres decenas de muchachas repartidas en sillas y sillones. falsamente, en la realidad de esa calle y a la postre todo
Entré y quedéme extasiado porque todos los ejemplares resultaba de cartón y de papier maché... (NORIEGA
femeninos valían realmente, el esfuerzo de una larga HOPE,1921, p. 24-26).
contemplación... Todas estaban aguardando algo. Di un
La nota concluye con una entrevista a Mabel Normand,
tirón a Ojeda y ansiosamente, con una curiosidad enorme,
preguntéle: anunciando el tono de las que le suceden: el foco incidirá, a partir
de allí, en las estrellas y cineastas de renombre. El incidente del
-Manuel, ¿son acaso estas señoritas estrellas o algo por el comienzo, que abría la posibilidad de mostrar otras facetas de la
estilo? ¡Preséntamelas, por favor! Ojeda sonrió.
vida hollywoodiana, es abandonado en beneficio de una sucesión
-No, señor, son “extras” que esperan pacientemente, quizás de minibiografías marcadas por la escalada y permanencia en el
una hora, quizás un día o una semana, que alguien utilice grupo de los “elegidos” (aún cuando esos elegidos se encuentren
sus servicios en el “studio”. Vienen siempre temprano y se paradójicamente muy cerca del individuo común). Desfilan, de esa
van a la caída de la tarde, sin que la impaciencia las agote...

actuación como reporteros del mexicano Noriega Hope y del brasileño Olympo
Guilherme debe ser comprendida en ese contexto.
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forma, Charles Chaplin, William Hart, Tony Moreno, May Allison, un lado, operaciones de rescate y de importación, puesto que
Douglas Fairbanks, Max Sennet, Jack Dempsey y otros. Por fin, anécdotas como la citada migrarán a los cuentos. Por otro lado,
rematando el viaje del reportero, una anécdota que retoma el operaciones transformadoras que alteran pesos y proporciones,
episodio del primer día en Los Ángeles. Horas antes de partir, modificando el estatuto de lo narrado. El incidente horrendo, pero
Noriega Hope visita otra vez a Mabel Norman y ésta le pide que nimio en el discurso del reportero, se torna el núcleo principal de
entreviste e una joven: textos que enfocan una y otra vez a quienes habitan en la periferia
Mister Mex –me dice Mabel- no se vaya sin entrevistar a del star system: lo que fuera margen en las crónicas deviene centro
cierta muchacha. Quiero que usted la vea y que escriba en en la ficción. Che Ferrati, inventor, de 1923, ocupa un lugar de
México, algo sobre su personalidad. No importa que sólo destaque en ese conjunto. Se trata de una nouvelle cuya estructura
sean unas líneas […] es bastante cercana a la de la comedia de confusiones, en la que
- Señor, quería contarle mi historia porque necesito un poco se hace presente un motivo literario de larga tradición: el motivo
de publicidad. del doble.7
Debo explicar esta frase. La publicidad en los studios
norteamericanos, se mide dosimétricamente. Las actrices Astros, extras y dobles
consagradas “reciben” artículos y más artículos que se Tan pobre diablo como el argentino Guillermo Grant es el
reparten a todos los periódicos americanos, pero las que mexicano Federico Granados, joven actor recién llegado a
empiezan no merecen una sola línea de los escribidores de Hollywood con “quinientos dólares en el bolsillo” y “un capital de
cuartitas. Por eso... la solicitan ansiosamente como una ilusiones” al iniciarse la trama. De hecho, en la cronología que
limosna (NORIEGA HOPE, 1921, p. 130-131). marca la transición de un relato al otro, la cifra de los pobres
Al regresar a su país de origen Noriega Hope escribe varias diablos que anhelan llevar una vida de película se amplía
narrativas de tema cinematográfico, en las que realiza una serie de vertiginosamente. En su círculo distante, abarca el público
operaciones con respecto a la materia prima de las crónicas. Por espectador de las más remotas latitudes; en su círculo cercano,

7
Con dos modulaciones fundamentales, a saber, por un lado, la fantástica y, por línea de desarrollo realista, a ser abordada de inmediato, se materializa en el
el otro, la realista, el tópico del doble se hace presente en varios relatos de la tema del doble cinematográfico y en formas “blandas” de imitación del/de la
época. La primera vertiente retoma en clave “tecnológica” los motivos del deseo star. En este caso, el conflicto migra hacia la usurpación de la identidad del
amoroso, el ímpetu prometeico, el ansia de inmortalidad y el sacrificio del doble, cuya existencia se ve alienada y progresivamente fagocitada por el astro
original, entre otros. En ese linaje de textos, el aparato cinematográfico y/o los o estrella a suplantar. Además de Che Ferrati, inventor y de Hollywood, novela
seres fantasmáticos que engendra suelen vampirizar ora los originales filmados, da vida real, aquí examinados, cabe mencionar El hombre que se parecía a
ora el espectador hechizado, cuando no ambos. El espectro (1921), El puritano Adolfo Menjou (1929), de la peruana María Wiesse y Estrella doble (1935), del
(1926) y El vampiro (1927) del uruguayo Horacio Quiroga o la novela XYZ (1934) mexicano José Martínez Sotomayor.
del peruano Clemente Palma pertenecen a dicho grupo. En lo que respecta a la
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comprende la comparsa de girls interioranas y de extras sinvergüenza que da título a la narración: extra en el pasado,
latinoamericanos que impulsados por la ilusión se desplazan a la inventor de un set en miniatura que le permite ahorrar cien mil
Meca y eternizan su espera en los sets “vistiéndose un día de dólares a la Superb Picture después, director artístico del estudio
cowboy y otro de ciudadano romano” (NORIEGA HOPE, 1923, p. en la actualidad. Artífice de trucos generadores de ilusión y de
25). Federico Granados es uno de ellos y luego de arribar a Los dividendos, el argentino desempeñará un papel clave en la
Ángeles se cruza con una señorita parecida a la de la entrevista historia.
citada: Hazel Van Buren. Ella confiesa haber confundido al Cuando Granados conoce a Ferrati, el segundo lidia con una
mexicano con un fantasmón8 del cine, cuya popularidad causaba nueva invención: una “pomada maleable” que puede modelarse
“estragos en los corazones standard de todas las flappers” sobre el rostro; una segunda piel pasible de suplantar la original.
(NORIEGA HOPE, 1923, p. 16). Hazel, evidentemente, pertenece a La muerte inesperada del astro Henri Le Goffic, al cual el mexicano
esa categoría. El incidente tiene por función poner en escena un se asemeja físicamente, provee la oportunidad de probar el nuevo
indicio de lo que ocurrirá, pues Granados se asemeja realmente a truco. En un primer momento, el maquillaje parece Haber llegado
un astro que se tornará un fantasmón al morir en pleno rodaje y al para satisfacer las expectativas de todos: del director de la película
cual sustituirá, primero en esa cinta inconclusa y luego en otra y en interrumpida, que quiere concluirla; de los empresarios y de
otra más, hasta transformarse en un doble en carácter Ferrati, ávidos por lucrar; de las fans, deseosas de ver una vez más
permanente. Pero el episodio también sirve para iniciar a un juego “su” astro; de Granados, ansioso por abandonar la condición de
de seducción en el que los personajes asumen actitudes que imitan extra anónimo y que ve el papel como una chance de demostrar
y duplican las de la pantalla, favoreciendo una profusa circulación por fin su destreza interpretativa. No obstante, la situación se
de clichés: por un lado, el latin lover (Granados); por otro, la girl revela de inmediato menos simple de lo que parecía a primera
bonita e infinitamente ignorante en relación a todo, muy vista y sirve para poner en evidencia los mecanismos de un
especialmente, en relación a South America. 9 El tercer personaje engranaje complejo10. Por un lado, la sustitución convincente de
importante de esa galería de tipos es Ferrati, el argentino Le Goffic prueba el valor de Granados como intérprete; por otro,

8
El término es empleado como sinónimo de astro pero evoca esa significación pobre diablo de cinco dólares a la semana transformado en un gran señor!
segunda a partir de un atributo de la imagen cinematográfica: su condición nadie se dio cuenta de la mixtificación [...] Roy Margran, desde su sillón, se
ilusoria, espectral, fantasmagórica. admiraba ante la versatilidad de Granados: -Bendito sea Dios! La muerte de Le
9
El empleo de expresiones en inglés es muy frecuente en el relato y evidencia Goffic me llena de un impío gozo, porque hemos acabado por hallar un Le Goffic
un esfuerzo de construcción de cierto imaginario lingüístico acorde con el superior [...] -Me llena usted de júbilo, Mr. Margram. Y así espero que, al
universo representado. terminar esta película, acabaremos con Le Goffic y entonces trabajaré yo, con
10
¨Los primeros días la “duplicación” despertó la curiosidad y el humorismo de mi alma y mi cuerpo para hacer obras maestras. -Está usted equivocado, mi
Federico Granados. Eso de verse rodeado de varios centenares de extras; pobre amigo. Usted, para toda la vida, tendrá que ser Le Goffic, pues en caso
respetado por una multitud de fotógrafos... lo hacía sonreír por dentro. Un contrario no sería más que un simple extra” (NORIEGA HOPE, 1923, p. 36-38).
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lo deflaciona bajo el peso que posee la imagen pública de la figura vida privada es pública, su vida pública es publicitaria, su vida em
suplantada. Por un lado, la sustitución demuestra que la la pantalla es surreal, su vida real es mítica” (1989, p. XV), la vida
celebridad es un producto fabricado y fabricable; pero revela al de Granados/Le Goffic ilustra a la perfección dicha premisa, ya que
mismo tiempo que el valor de mercado difiere de acuerdo con el no sólo tendrá que interpretar su papel ante la prensa y en
tipo de mercadería. Existen as mercaderías de lujo (astros y eventos sociales: su “vida privada” y su existencia “real” serán
estrellas) y las mercaderías ordinarias (extras y dobles). Existen los vampirizadas por el mito.
“originales” y las “copias”. Nadie es inherentemente esto o
aquello. La posición en ese tablero es la resultante de múltiples Hollywood, novela de la vida real. Fade in
factores (inversiones ya hechas, rentabilidad actual del producto, En agosto de 1927 es el paulistano Olympio Guilherme
coyuntura) y es esencialmente móvil: la estrella de hoy puede quien arriba a Los Ángeles. No obstante Guilherme viniese
tornarse el extra de mañana; el desconocido puede ser beneficiado realizando colaboraciones en la prensa y pasaría a escribir desde
por un golpe de suerte. El doble, sin embargo, parece estar allí para la revista Cinearte, el viaje es resultado de la premiación
condenado a replicar indefinidamente el “fantasma” que imita en un concurso promovido por la Fox, que tuvo lugar en tres
(¿pero no ocurre lo mismo con la celebridad “original”?). No países: Chile, Argentina y Brasil (GOULAR, 2012). El proceso que se
obstante vestir la piel de un personaje ficticio o de esa producción delineaba cuando el mexicano publica sus notas cobra
del yo no menos inventada que es el astro sean operaciones proporciones continentales un quinquenio más tarde. De allí la
equiparables, la lógica de un modelo que se fundamenta en reaparición en el texto del brasileño de varios de los tópicos ya
carácter intercambiable de sus piezas y simultáneamente en la examinados. La corte de extras se amplía, siendo constituida
hipotética singularidad de las mismas prohíbe el “reconocimiento” inicialmente por Lucio Aranha - protagonista y alter ego del propio
del doble, so pena de depreciación de la celebridad. Las peripecias Guilherme -, Vicentini - “decano de los extras brasileños” - el
de Granados sirven para patentizar las paradojas de ese sistema, argentino Gutiérrez y el franco-egipcio Irarah. El ambiente de
cuyos tentáculos se expanden mucho más allá del espacio/tiempo inestabilidad laboral y de precariedad material se acentúa. El
del rodaje. En efecto, otro de los aspectos explorados por la fenómeno del mimetismo y su manifestación bajo a forma del
narración es la estrecha imbricación entre vida pública y vida doble proliferan ad nauseam: el perro de la pensión en la cual
privada en la que se asienta el star system, fenómeno que implica viven los aspirantes a actores es el doble de Rintintín – y sus
la progresiva confiscación del sujeto por la máscara asumida en las ladridos serán doblados /sincronizados por Aranha y Vicentini;
más diversas esferas, obligando al mexicano (como antes obligara Vera, la coprotagonista femenina de la historia, es la doble de
a Le Goffic) a interpretar su personaje dentro y fuera de los sets. Greta Garbo; Ivan Socolov es el “doble de Jesús”; Chaplin,
Si, como sostiene Edgard Morin a propósito de las estrellas, “su Talmadge, poseen sus respectivos dobles.
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Si Quiroga recurría a la línea corrida de puntos como estudios concluyen su jornada y “quinze mil extras” escuchan
sucedáneo del corte/montaje invisible, Guilherme importa en el “vozinhas femininas”, que “cortam como lancetas” la súplica de un
prefacio un vocabulario frecuente en la producción escrita del día de trabajo, diciendo: “nothing, nothing, nothing” (GUILHERME,
período: por una parte, opta por la expresión Fade in para intitular 1932, p. 15). Asimismo a las seis, “sendo possível, Hollywood
las palabras preliminares; por otra, la primera frase sugiere una senta-se à mesa e come”. No la cena abundante: “a jantinha feita
correspondencia entre el ingreso del lector al texto y del em casa, requentada, às vezes mesmo insuficiente” (GUILHERME,
espectador a la sala oscura: “Este livro é um retrato. Talvez haja 1932, p. 15). Tal es el clima de privaciones que se invita a mirar de
quem duvide. É por isso mesmo, esperando discordâncias de cerca; son esas peripecias, tendientes a driblar un destino por lo
opiniões, que, nesta salinha de espera, onde o leitor tira o capote, general inmodificable, que el lector acompañará a lo largo de
eu venho informá-lo de que este livro é um retrato.” (GUILHERME, trescientas páginas. En la representación de dicho universo se
1932, p. 7). Sin embargo, más allá de la analogía propuesta, el peso destaca un motivo que modela la realidad hollywoodiana: el rumor
recae sobre todo en “veracidad” del “retrato” ofrecido al lector. que deviene de inmediato “noticia”. Esa Hollywood maledicente
Contra la “Hollywood endomingada y risueña” a la cual lo también entra en intensa actividad a las seis de la tarde:
habituaron las revistas, la imagen “sin retoques”: “Essa Hollywood É a hora predileta do escândalo, do cochicho segredado com
ditosa não a conheço eu, mísero fotógrafo [...] a Hollywood que as mãos espalmadas sobre a boca. Repórteres vindos dos
posou diante da minha caixa quadrada...” (GUILHERME, 1932, p. quatro cantos da terra ficam de atalaia [...] Uma notícia
10). De hecho, no era la primera vez que el “fotógrafo” proponía inocente contada na esquina de Vine Street [...] quando
chega a Highland, sete quarteirões distante do seu ponto de
una amalgama de testimonio personal y de registro histórico. Tres
origem, é escândalo grosso, escândalo de primeira página.
años antes de dar a conocer este retrato escrito, Guilherme
No dia seguinte, como dinamite, explode ruidosamente
produjo, dirigió y protagonizó una película semi autobiográfica pelo mundo inteiro, na consagração da letra de forma
sobre las amarguras de un actor latino en Hollywood: Fome (1929). (GUILHERME, 1932, p. 14-15).
Todo indica que la novela de 1932 debería leerse paralelamente a
esa versión cinematográfica previa.11 La letra impresa había conducido a Noriega Hope a Los
El relato de Guilherme se inicia in media res, con una Ángeles en 1919, cuando la red publicitaria indisociable del studio
escena rutinaria en la vida del protagonista y de muchos otros: la system aceleraba su expansión; para la letra impresa Granados se
espera. Como se afirma poco después, en Hollywood “às seis horas vio forzado a desempeñar su papel fuera de la pantalla. Una
recrudesce o serviço dos telefones do Central Casting”, pues los década más tarde, la dinámica de un modelo inconcebible sin ese

11
La película Olympio Guilherme se considera perdida. El catálogo de la 1) Chegada a New York de Lia Torá e Olympio Guilherme (documental; 1927); 2)
Cinemateca Brasileña registra un documento fílmico y la descripción de otro a Making the grade (ficción; 1928).
partir de fuente escrita, relacionando a Guilherme en ambos casos como actor:
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producto secundario (pero principalísimo) que constituye la vida [...]. Quando tudo estivesse pronto, Greta Garbo, em
privada (pero pública y publicitaria) de celebridades convoca pessoa, ocupava o mesmo sítio onde momentos antes, Vera
reporteros de los cuatro rincones del planeta. Esa trama paralela, posara. (GUILHERME, 1932, p. 53)
arquitectada por la letra impresa, acarrea una doble vida o Poco después del episodio mencionado, el rodaje de una
representación generalizadas. Sea porque se aspira a sobresalir de secuencia con mil doscientos extras vuelve a reunir a Vera y a Lucio
la masa anónima de extras, sea porque se debe alimentar la fama Aranha, seleccionados para permanecer horas sin fin en la réplica
preservando determinada apariencia de vida, aquellos que de un circo, aplaudiendo los saltos mortales de los dobles de Janet
“existen” o son candidatos a hacerlo necesitan existir tanto en la Gaynor y Charles Morton. La situación propicia la emergencia de
cinta de celuloide cuanto en la prensa. Dos publicaciones ficticias un tópico ya comentado; su retomada se da según la lógica de la
introducen en el relato el universo de los pasquines: A Gralha, intensificación y del rebajamiento. Sin vestigios del encantamiento
dirigida por la intrigante Katy y O Monóculo, comandado por el que pautara la descripción del reportero mexicano, el set, aquí, se
mordaz Orestes. De alguna forma, la suerte de Lucio Aranha se asemeja a un “hangar”. El imaginario de la “tierra de maravillas”
dirime entre un chisme publicado en A Gralha y una entrevista cede lugar al pandemónium fabril:
concedida al Monóculo – entre lo uno y lo otro, el extra asciende A desordem que reina dentro desses barracões é
al rango de tipo y se torna un gigoló. indescritível. Por toda parte se veem refletores e cabos
elétricos [...]. O calor das luzes sufoca; ouve-se um bater
Sistematización de una línea de montaje contínuo de martelos automáticos; o olfato se corrompe
La novela comienza con una llamada telefónica que parece com o cheiro nauseabundo das tintas. (GUILHERME, 1932,
instaurar una perspectiva de cambio en el clima de desánimo p. 60-61)
reinante. Convocado para una prueba, Lucio se dirige al estudio – El mapa de esa lógica de producción en serie se completa
y pasa horas vestido de payazo para hacer un test fotográfico. El con consideraciones sobre la función de los tipos:
fiasco introduce en la historia a la coprotagonista femenina. En un Os diretores não querem atores, querem tipos [...]. A
primer momento, Lucio cree estar delante de Greta Garbo; días formação de tipos foi o primeiro passo para a
después, reencuentra a Vera, ahora presentada con todas las estandarização do cinema [...]. O tipo não é um simples
letras como doble. El diálogo entre ambos da lugar a una serie de extra. No plano cinemático, o extra é a “atmosfera” e está,
consideraciones sobre las incumbencias de ese tipo, sustitutivo del quase sempre, out of focus. O tipo é a figura intermediária
[...]. Economicamente, a maior vantagem do tipo é a de não
original:
precisar de muitos metros de filme que lhe definam a
O studio empregava a dublê para os long-shots e os
caracterização – porque o público já o conhece de sobra.
preparativos dos efeitos de luz. Trajando vestidos idênticos,
(GUILHERME, 1932, p. 121-122)
Vera ficava no lugar em que a estrela ia representar,
enquanto os eletricistas e cameramen compunham a cena
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La trama dramatizará a continuación el a pasaje de Lucio por el par Lucio/Vera. Por otro lado, se evidencia un esfuerzo por
Aranha de la condición de extra a la condición de tipo. Pero la “desromantizar” parcialmente esos leitmotiv, integrándolos al
interpretación del gigoló que se pretende encarnar en la pantalla clima de desaliento que impregna las experiencias narradas. Ahora
principia por la adopción de la máscara al atravesar la puerta de la bien, si el desenmascaramiento de las reglas del juego, en los sets
pensión. La contaminación cine/vida, ya apuntada en relación a y fuera de ellos, conduce la trama precisamente a una “solución”
Federico Granados, se presenta ahora invirtiendo la lógica causal y de los conflictos en el plano sentimental, el último avatar de la
la secuencia temporal. Se trata de un teatro a cielo abierto que historia tuerce otra vez el rumbo. En efecto, tomada la decisión de
involucra a casi todos: la actuación de Lucio en un cabaré lo lleva a abandonar los Estados Unidos y comenzar una “auténtica” vida
prolongar su papel más allá del palco y a sustituir el supuesto juntos en Brasil, surge la oportunidad que Vera aguardó en vano
amante de una estrella en decadencia: Anne Porter. Ésta, a su vez, durante años: asumir un papel como intérprete autónoma y no
se presenta en público como una libertina en el intento de aplazar como doble. El dilema se resuelve a favor de la fábrica de sueños
el colapso de su fama de seductora. Dulce, par de danza de Lucio y Lucio Aranha parte solo. El lector asiste la escena con la
en el cabaré, luego de haber ensayado sin éxito el tipo de la “joven impresión de que, pese al ímpetu anti-hollywoodiano, Guilherme
virgen”, interpreta ahora el tipo de la vamp, en una apuesta rinde tributo a lo que reniega:
paralela a la del protagonista masculino. Transformada en una O trem deu um arranco, as molas perras dos carros
representación continua, de fronteras fluidas, sin principio ni fin, rangeram; os freios de ar comprimido silvaram, como um
la vida como espectáculo (la espectacularización de la vida) es la bando de moleques vaiando; e, resfolegando com seu
realidad última de Hollywood. pulmão de ferro, o trem deslizou, lentamente, envolvendo
a estação em rolos pardos de fumaça... FADE OUT.
(GUILHERME, 1932, p. 315).
Fade out
El libro de Guilherme busca trazar un retrato pormenorizado y “sin No solamente la imagen se diluye, cerrando el fade in/fade
retoques” de la “vida real” en Hollywood, pero es asimismo una out que marca los liminares del libro a la manera de un filme; su
novela sentimental inmersa en ese mundo. Por un lado, la contenido remite a uno de los fetiches cinematográficos por
presencia de esa trama atestigua el carácter ineludible de antonomasia: la estación, las nubes de vapor que envuelven el
convenciones que no son una invención hollywoodiana, no tren, el encuentro, el reencuentro, la despedida o la partida
obstante hayan encontrado allí un suelo propicio: el primer solitaria. Inclusive cuando se trata de un unhuppy end, el
acercamiento fortuito y memorable, el secreto en torno al pasado imaginario hollywoodiano gana la partida.
de la mujer amada, los quid pro quo resultantes de los celos, el
amor puro y casto a despecho de la impureza del ambiente son, Referencias
entre otros, motivos folletinescos y melodramáticos actualizados BOY. Una aventura de amor (La semana cinematográfica, Santiago,
23/5/1918) In: BONGERS, W.; TORREALBA, M.; VERGARA, X. (orgs.)
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LA INMOVILIDAD PERFECTA el discurso de los intelectuales de izquierda de aquel contexto. Este


Oscar Román Zambrano Montes trabajo pretende identificar ese proceso, enmarcarlo en su tiempo
UFRJ y reconocer en la voz poética de "Derrota" los síntomas de una
postura política que hemos llamado metafóricamente política
Reparto de lo sensible estática.
El poeta canta lo que su comunidad grita (o silencia). Para Rafael Cadenas, poeta venezolano de la ciudad de
conocer el espíritu de un pueblo, en ciertas ocasiones puede ser Barquisimeto, escribió en el año de 1963 el poema más importante
más útil la poesía que la historia, la antropología o cualquier otra de su obra. “Derrota” fue una especie de símbolo que le dio forma
disciplina. Aristóteles le otorgó un carácter de veracidad mayor a los sentimientos y a los pesares de su generación. El título del
que el de la historia, caótico relato de los acontecimientos poema, publicado cinco años después de la llegada de la
humanos. La poesía, en oposición, es selectiva, escoge los democracia en Venezuela (1958: final de la dictadura del General
acontecimientos y los estructura en una totalidad inteligible de la Marcos Pérez Jiménez), es bastante elocuente. Mientras que en
que se desprenden significados pertinentes para la comunidad. Cuba había triunfado la revolución tras la dictadura de Batista, en
Aunque sea verdad, por un lado, que cuando Aristóteles decía Venezuela, después de la dictadura local, no llegó ninguna
poesía no se refería a lo que hoy entendemos como poesía sino a revolución, no se intentó instaurar un gobierno del pueblo, lo que
la tragedia y a la épica y, por el otro lado, que la historia no era se implantó fue una democracia de consenso en la que
considerada en la antigua Grecia como la ciencia en la que se participaron en su gran mayoría los mismos viejos políticos, los
convirtió posteriormente —a pesar del esforzado Herodoto quien, dinosaurios que una década antes habían sido apartados de la
a falta de documentos históricos (que no existían), usó el método escena pública por el dictador Pérez Jiménez y que, tras su caída,
de entrevistar personalmente a los testigos oculares de las guerras regresaban victoriosos para ocupar las mismas sillas del congreso,
que quería registrar, nadie sabía muy bien para qué—, de cualquier sólo que restauradas (como el resto del país) gracias a la bonanza
manera, su formulación remite a una postura que considera las económica del régimen autoritario. Esta nueva democracia era
bellas artes de una sociedad como la expresión más veraz de sí percibida por los grupos de izquierda como una democracia
misma. La música, el teatro, la poesía, la narrativa, la pintura, el revanchista, el reverso de la dictadura; el otro lado de la moneda,
cine y las artes en general componen una red de interpretación de sí, pero un lado de todos modos ya gastado, conocido por Cadenas
partes sueltas, desconectadas, marginales del mundo que no y por todos, perteneciente al orden de las cosas del pasado.
puede ser completamente aprehensible a partir de las categorías Aunque el mundo mudase con rapidez, aunque la efervescencia
de conocimiento de la sociología, la historia o la economía. Hay un comunista contagiase todos los grupos intelectuales del
buen ejemplo en la realidad cultural de la década de los sesenta de continente y aunque estuviese aconteciendo una gran batalla
Venezuela: el poema "Derrota" fue clave para darle voz y articular muda contra el sistema para proponer un nuevo sistema
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económico y social con su correspondiente hombre nuevo, pasaba de una concesión al imperialismo estadounidense,
Venezuela, ajena y ensimismada, no parecía reparar en ninguna de enemigo común de los grupos intelectuales de la región que
estas cosas por la manera en que persistió en su contramarcha comenzaban a consolidar la voz potente que estremecería el
fuera de sintonía. El programa político del nuevo gobierno de la mundo con su fuerza imaginaria (el Boom). Aunque las cosas
democracia consistió en cimentar, con el apoyo tácito de la cambiasen después, en aquella década el consenso ideológico
mayoría de la población y de las fuerzas militares, las bases de un entre los intelectuales era casi unánime: Gabriel García Márquez,
proyecto democrático conservador perdurable, lo que para Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, Mario Benedetti, Jorge Amado,
Cadenas y su grupo de intelectuales comprometidos con la política Elena Poniatowska, Eduardo Galeano, Pablo Neruda y Carlos
de cambio era asumido como un retroceso, un fracaso terrible. Fuentes, entre muchos otros, todos eran socialistas
Librarse de la dictadura fue sin dudas una meta importante en sí comprometidos y el hecho de comenzar a ser publicados,
misma, un motivo de orgullo y de conmemoración para el pueblo, traducidos y comentados en todo el mundo con velocidad
pero no lo suficiente para Cadenas. El objetivo era muy superior, vertiginosa era altamente significativo. En Cuba, Fidel y el Che, dos
resumido por Octavio Paz en El arco y la lira con las siguientes ídolos barbudos, recibieron la visita amistosa de la vanguardia
palabras: intelectual europea en las personas de Jean-Paul Sartre y Simone
La idea cardinal del movimiento revolucionario de la era de Beauvoir deslumbrados por el triunfo revolucionario en el
moderna es la creación de una sociedad universal que, al Caribe y gratamente sorprendidos por locuacidad ingeniosa de ese
abolir las opresiones, desdobla simultáneamente la par de revolucionarios-intelectuales, militares-lectores,
identidad o la semejanza original de todos los hombres y la gerrilleros-nerds, cultos soldados que todo lo podían, inclusive
radical diferencia o singularidad de cada uno. (PAZ, 1972,
oponerse a los dueños del planeta. Lo opuesto de las pretensiones
p.254).
de Rómulo Betancourt, el primer presidente de la democracia,
Desde la perspectiva de un país latinoamericano tan anticomunista rabioso, defensor del progreso y del desarrollo
subdesarrollado y explotado como Venezuela, crear una sociedad industrial de una nación que tenía que ser construida. ¿Cuál es el
universal y libre estaba demasiado lejos de la realidad material que papel de un artista en esa escena? Recurramos a la ayuda de
Cadenas vivía en aquellos años como para que el no cumplimiento Jacques Rancière para tratar de explicarlo:
inmediato del gran objetivo representase una frustración real. La El reparto de lo sensible hace ver quién puede tomar parte
frustración se explica antes como un problema de incompetencia en lo común en función de aquello que hace, del tiempo y
o de invisibilidad de ciertos grupos intelectuales en los campos del espacio en que esa actividad se ejerce. Así, tener esta o
político y social de la escena pública. Para los militantes literarios aquella ‘ocupación’ define competencias o incompetencias
y comunistas, que en aquel tiempo eran prácticamente la misma para lo común. Define el hecho de ser o no visible en un
espacio común, dotado de una palabra común. (RANCIÉRE,
cosa (y Rafael Cadenas, además de poeta, era miembro del Partido
2005, p.16)
Comunista de Venezuela), cualquier alternativa política liberal no
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¿Puede un poeta tomar parte en el conjunto de la sociedad como el destino de la humanidad. Hay una disonancia evidente. La
a la que pertenece? Un hombre cuya ocupación es escribir versos, voz poética de “Derrota”, que habla en primera persona (no
actividad enigmática por sobre todas y que además realiza en confundir con la persona Rafael Cadenas), es desoladora. Ningún
horas y espacios indefinidos, ¿tiene algún aporte significativo para otro poeta (y Venezuela es un país de poetas, más que de
su comunidad? ¿Para qué sirve su ocupación y cómo se inserta en narradores) escribía versos con ese tono de lúcida depresión. En
la sociedad? La respuesta que Cadenas da a través de sus cierta forma, la frustración derivada de la agresión que el entorno
mediaciones creativas, su reacción en forma de poema frente al ejercía en Cadenas era inédita en relación a las experiencias de sus
entorno agresor, es claramente negativa. La “Derrota” de Cadenas colegas literarios de los otros países de la región, y su reacción
es, ante todo, una derrota territorial en la reparto que determina artística, es decir, sus poemas, daban fé de esa diferencia. ¿Cómo
en lo sensible las relaciones entre lo común y sus partes poetizar lo desconocido? ¿Cómo cantar a contramarcha? ¿Cómo
constituyentes, o, dicho de otra forma, es una derrota del poeta hablar de lo innombrable desde la invisibilidad? ¿Cómo darle
percibido como incompetente en el dominio de los espacios forma a sentimientos sin referencia? ¿Y cómo hacer visible para la
(discursivos, laborales, de estatus y poder) de la colectividad. comunidad todo aquello que comienza e existir originalmente?
Reparemos en el siguiente fragmento de “Derrota”: Sólo las artes pueden condensar la experiencia vivida por un
Yo […] pueblo en una obra que al mismo tempo la presenta y la
que nunca usaré corbata representa, proyectando sobre ella una luz singular. Si
que perdí los mejores títulos para la vida entendemos los “actos estéticos como configuraciones de la
que he sido negado anticipadamente y escarnecido por los experiencia que sean nuevos modos de sentir e inducen nuevas
más aptos
formas de la subjetividad política” (RANCIÈRE, 2005, p27),
que un día pregunté en qué podía ayudar y la respuesta fue
podemos decir que la frustración política e ideológica que el poeta
una carcajada
que no podré nunca formar un hogar, ni ser brillante, ni Rafael Cadenas sentía junto al novelista Salvador Garmendia, al
triunfar en la vida historiador Manuel Caballero, al pintor Jacobo Borges (con ellos
que he sido dado de baja en todas partes por inútil fundó el grupo de discusión política y literaria Tabla redonda) y a
que me creí predestinado para algo fuera de lo común y muchos otros intelectuales comprometidos de la Venezuela pós-
nada he conseguido” dictatorial, no existió propiamente hasta que las mediaciones
(CADENAS, 1978, p.111) artísticas reactivas, es decir, las obras de los artistas —por sobre
Habla el inadaptado, el incomprendido, el anónimo: una las que destaca, sin dudas, el poema “Derrota”— le dieron forma
figura que parece extraña en plena época de los movimientos y visibilidad en la escena pública
revolucionarios, cuando los cantos —como el Canto general de
Pablo Neruda— eran épicos y triunfantes y la poesía tan grandiosa
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Trabajo y anonimato excepción de la norma? ¿Y el artista, sería un ser aparte de su


“Yo que no tuve nunca un oficio colectividad, incluso viviendo en ella?
que apenas llego a un lugar ya quiero irme (creyendo que Rancière explica que la distribución de ocupaciones y
mudarme es una solución) formas de ser en el espacio de posibles que compone lo común es
que siento verguenza por actos que no he cometido siempre polémica (2005). Y el caso de los artistas es más
que he perdido un centro que nunca tuve
complicado porque la utilidad de sus actividades no resulta
que no tengo personalidad ni quiero tenerla
completamente clara para la sociedad —que es, en cada caso de
que me niego a reconocer los hechos
que siempre babeo sobre mi historia cada sociedad específica, la que determina lo que es y lo que no es
que he percibido por relámpagos mi falsedad y no he un trabajo dentro de sus límites y dónde termina el trabajo
podido derribarme, barrer todo y crear de mi indolencia, mi ordinario y comienza la excepcionalidad artística. Un arquitecto
flotación, mi extravío una frescura nueva, y obstinadamente hace casas que son casas y sirven para ser habitadas. Un pescador
me suicido al alcance de la mano” pesca peces para la venta a otros hombres que quieran comerlos
(CADENAS, 1978, p. 112). y pagar por ellos. Un diputado hace política para intervenir en el
¿Qué es un oficio para la sociedad? ¿Hasta qué punto la comando de los poderes del gobierno de una población
ejecución de tareas es trabajar? ¿Y, en cualquier caso, qué tipo de determinada. ¿Y un artista, qué es lo que hace? Todos los oficios
criterios se aplican para decidir cuáles actividades son y cuáles no son maneras de hacer (o artes, como eran llamadas en la antigua
son un trabajo? ¿Es el poeta un trabajador? Puede la poesía ser Grecia), pero no sólo maneras de hacer actividades materiales
considerada un trabajo? Qué piensa el común de la colectividad determinadas sino maneras de hacer comunidad y, dependiendo
sobre este asunto? ¿O la escritura de versos, junto a la ejecución de la ocupación y de la cantidad de tiempo que esta consuma,
de otras actividades artísticas, lejos de ser un trabajo, se localiza maneras de intervenir en ese colectivo al que se pertenece. La idea
en el ámbito de las pasiones? ¿Puede una pasión ser un trabajo? de trabajo así entendida es inherente a la del concepto de Rancière
¿Las artes son actividades laborales o recreativas? ¿Acaso estas de reparto de lo sensible expuesto anteriormente em su libro
categorías dependen exclusivamente de la remuneración capital homónimo. ¿Por qué los trabajos del pintor, del músico, del actor
que derive o deje de derivar de la actividad en cuestión? Es decir y del poeta son tan problemáticos en sus sociedades y apenas si
¿si las artes producen dinero serían trabajo y si dejasen de son tolerados? Rancière dice que “el hacedor de mimesis perturba
producirlo no lo serían más? ¿Deberían las artes ser mejor o peor ese reparto: él es el hombre de lo doble, un trabajador que hace
pagadas que otras actividades físicas y mentales que son dos cosas al mismo tiempo”. (2005, p.64)
efectivamente consideradas trabajos utilitarios? Pero ¿es que Retomemos la pregunta original: ¿qué hace un artista? Las
acaso las artes tienen alguna utilidad en absoluto? ¿Es el arte una artes miméticas crean objetos que son imitaciones de otro objeto.
La música imita los sonidos, la pintura los colores. Mientras que un
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arquitecto hace una casa y un diputado hace política, el artista considerados bajos, de la plebe o masificados, como por ejemplo,
hace una cosa que es imitación de otra cosa. Una tragedia que lo banal y lo anónimo. Sin ellos, el poema “Derrota” habría sido
imita las elevadas acciones de personajes nobles y divinos, por inviable.
ejemplo. Figura errática y perturbadora la del poeta. No sorprende En contraposición al dominio discursivo del poder, a la
que Platón quisiera expulsarlos de su proyecto de república ideal. historización de los grandes acontecimientos bélicos y políticos del
Otro ejemplo: un poema que imita el acto de habla de una voz pasado inmediato y remoto, al retrato de los personajes
desgarrada que canta su propia “Derrota” y la de su gente. Figura trascendentales de la escena pública y a la jerarquía de géneros y
desgraciada. ¿Quién es ese que asume la resignada tarea de cantar temas, Cadenas habla por los testigos sin voz, canta la vida
la derrota en medio de la fiesta de la naciente democracia? ¿Por prosaica del ciudadano mediano, los fracasos de la masa (pocas
qué quiere sacudir lo común compartido? ¿No podría, como poeta cosas son tan masivas como el fracaso), desde la perspectiva del
que es, componer una canción a la República, una bonita relación, vencido, del cansado, rodeado de restos de realidad, de pedazos
métricamente rimada, del proceso de la gesta épica por la libertad de certeza: en resumen, Cadenas configuró e introdujo en la
consolidada? No es posible, responde Cadenas, nunca más. escena pública de su tiempo la figura del anónimo. Sólo así se
Cuando Eduardo Blanco publicó su loa a los héroes de las posibilita lo que Rancière denomina “la gloria de cualquiera”
luchas independentistas, titulada Venezuela heroica, la práctica de (2005, p.48). “Pasar de los grandes acontecimientos y personajes
la poesía nacional se encuadraba en lo que Rancière (2005, p.47) —dice Rancière— a la vida de los anónimos [...], explicar la
denomina "régimen de representación", que era lo que superficie por las camadas subterráneas, reconstruir el mundo a
determinaba en el campo de la creación, entre otras cosas, la partir de vestigios, es un programa literario” (p.49). Lo trivial, lo
elección de los géneros artísticos y sus respectivos tono y temática tosco y lo corriente se revalorizan, se embellecen, ganan validez
convenientes, bajo o elevado, según la ocasión. Pero cuando estética como aproximaciones a la realidad percibida (gracias al
Cadenas y sus compañeros escriben, ellos se ubican en un ámbito cambio de perspectiva) como auténtica. El poeta no aspira ser ni
bien diferente del de Blanco, como lo es el "régimen estético de representar un personaje importante; la transcendencia, más allá
las artes", pues, como explica Rancière, este régimen estético es de la fama y el reconocimiento, implica sacrificar la vida por un
“antes que nada, la ruina del sistema de representación” (p.47). temperamento, una posición, un lado, implica convertirse en un
Cambiaron los tiempos y con ellos las formas de hacer arte. Los ser soldado en sí mismo. Y “ser uno mismo —en opinión de Octavio
rearreglos de las imágenes y de los signos, de lo visible, de lo Paz— es condenarse a la mutilación pues el hombre es apetito
pertinente y de lo posible en una sociedad, que son construcciones perpetuo de ser otro” (1972, p.268). Lo anónimo es libre. Lo
hechas a partir de los dominios de lo artístico y de lo político, anónimo está dotado de una flexibilidad de actuación en el espacio
promovieron profundos cambios en la actividad creadora, de los de lo común de la que el personaje público carece. La voz anónima
que se deriva una revalorización de elementos y categorías antes del poeta proclama “que he perdido un centro que nunca tuve /
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que no tengo personalidad ni quiero tenerla / que siempre babeo (dictadura incluida), para mantenerse con vida; Arturo Uslar Pietri,
sobre mi historia” (CADENAS, 1978, p.112). Se trata de la voz del abogado, narrador y ensayista, era también una importante
anónimo, invisible por gusto, perturbador disidente del reparto de figura política: fue diputado y ministro y, a pesar haber vivido
lo común. exiliado durante la dictadura de Pérez Jiménez, la juventud
creadora lo relacionaba a ese pasado corrupto que era necesario
La isla serena olvidar lo más rápido posible; y Rómulo Gallegos, el más
El fin de la dictadura ocasionó una explosión vanguardista importante de los novelistas de su época, autor de Doña Bárbara,
en el campo cultural del país. Brotaban movimientos artísticos y pero también el más paradigmático de los artistas/políticos que
manifiestos literarios, se editaban revistas culturales, literarias y tuvo Venezuela: opositor tanto de la dictadura de Juan Vicente
políticas, se consolidaban grupos de jóvenes artistas militantes de Gómez como de la de Pérez Jiménez, fue el primer presidente de
todas las disciplinas que, aunque heterodoxos y la República elegido por vía del voto. Estas tres figuras, aunque
multidisciplinarios, tenían un enemigo común: los artistas de la satanizadas, concordaban con la vanguardia en una gran
dictadura y del pasado inmediato. Fue en aquellos años que se diversidad de órdenes, pero apenas un criterio cronológico
fundó la revista Sardio y que se crearon grupos de discusión bastaba para condenarlos en la hoguera de lo obsoleto: no eran
literario-política, como Tabla redonda y colectivos artísticos jóvenes sino viejos y debían ser arrasados. La vanguardia, violenta
vehementes, como El techo de la ballena. Cadenas fue miembro y enloquecida, avanzaba hacia el futuro y no iba a volver más.
fundador del primer grupo y colaborador del segundo. Estos Entre los vestigios del pasado y la onda frenética de las
grupos eran tan radicales como lo exigía el fin de una dictadura, vanguardias, existía una voz disidente, o más que disidente (pues
con un ímpetu compuesto en partes iguales por ansias Cadenas era por el contrario militante político) una voz disonante.
constructoras en relación al futuro como destructoras de todo lo El poema de Cadenas fue una isla en el mar revuelto de los
establecido. ¿Qué autoridad podían ejercer en estos jóvenes movimientos revolucionarios. La voz poética enumera, serena, los
artistas, los grandes literatos de la nación? Ninguna, opinaban los síntomas que componen la derrota del yo en el mundo.
incendiarios, como los futuristas rabiosos. A veces con terrible Aparentemente abstraído, el poema canta con calma acerca de la
injusticia, se volvió deporte nacional la práctica de hablar mal y identidad y del sentido de la existencia. “Derrota” es el producto
desautorizar a los artistas reconocidos en el ámbito cultural: qué de un doble exilio: exilio del canon, pero también exilio de la
hacer; las vanguardias son demoledoras. vanguardia. No es difícil entender por qué el canto del poeta se
Tres figuras satanizadas: Miguel Otero Silva, periodista y queja de haber “sido humillado por profesores de literatura”
narrador que, a pesar de ser de izquierda, dirigía con suceso el (CADENAS, 1978, p.111). “Derrota” es un poema sin lugar: fuera de
periódico El Nacional que (para la generación de Cadenas) en la tradición y fuera de la revolución. No es comparable ni
muchas formas tuvo que pactar con los gobiernos del momento semejante al de los poetas venezolanos de la época por lo singular
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de su tono poético e ideológico. Si pensamos, como aconseja respuestas para ninguna de estas preguntas, el poema no puede
Rancière (2005), en las obras de arte como escenas de tenerlas, apenas si las puede presentar, hacerlas visibles,
pensamiento, estaríamos con Cadenas frente a una escena introducirlas en el debate de lo común. Porque cuando “Derrota”
desconocida donde se producen reflexiones originales y (o cualquier otro gran poema) es publicado y crea un espacio de
apartidarias que poco o nada tienen que ver con las obras pensamiento nuevo, lo que realmente hace es contribuir a la
producidas por otros artistas en el mismo momento. El problema formación de una humanidad específica que habría sido
de la suerte del poema es triple, pues representa una práctica sin impensable si en ese dispositivo de la transformación, sin esa
precedentes que, por lo mismo, carecía de visibilidad en el espacio puñalada en el corazón de la comunidad que es el poema.
común y que era imposible ser aprehendida en el entorno tal y
como este estaba configurado. Cadenas no encajaba en ninguna Política estática
revista, grupo o movimiento. Su poema tuvo que ampliar los Rancière describe en “Transportes da liberdade” (1995) las
límites dentro de los cuales funciona la valorización artística para ligaciones profundas entre la creación del acto poético y su
construir un espacio propio. Es en este sentido que podemos intervención política en el reparto de lo sensible, usando como
pensar en las artes como un tipo de rearreglo de la realidad pues objeto de análisis la poesía escrita por Wordsworth y la relación
en ocasiones “lo real necesita ser ficcionalizado para ser pensado.” disidente del poeta con respecto a su contexto político (la
(RANCIÈRE. 2005, p.58) Revolución francesa) a través del símbolo de la nube viajante. La
Cadenas inauguró con “Derrota” un espacio de tesis del crítico es que el poeta, inclusive el poeta disidente,
pensamiento: el espacio de la inmovilidad, dominio de la política siempre establece relaciones con el poder. Hasta cuando decide
estática. Fue escrito con odiosa sensatez y en él se presentan ignorarlo olímpicamente, la obra del poeta se relaciona con las
temas de lo cotidiano cuya dignidad parecía no estar a la altura de luchas de poderes de la colectividad. Inclusive en el retraimiento
los tiempos históricos. Se quiebran así las jerarquías. Escrito en del arte —recuerda Adorno— el autor es político. El aislamiento
verso libre, el poema pone un empeño increíble en la tentativa de inmanente de la torre de marfil es una ilusión. El arte reacciona a
usar un lenguaje auténtico. Es una pieza rara en la poesía la cosificación del mundo: inclusive a la cosificación revolucionaria.
venezolana, diferente entre sus semejantes y también ajena a sus El poema es insatisfacción con el presente, es la quiebra del
antecesores. Pero, tal vez por eso mismo, por su diferencia, consenso (también del consenso político) en el que vive la
“Derrota” se convirtió en el poema más paradigmático de su sociedad; y en el caso de Cadenas, el poema es también ruptura
generación. Le dio una cara al vacío existencial que nadie con la práctica poética comprometida, con ese activismo
conseguía nombrar. Le dio forma a una angustia. ¿Qué sucede si semejante al panfleto en el que se expresaban muchos de sus
no consigo hacer la revolución? ¿Cómo vivo siendo un disidente colegas escritores.
del mundo? ¿Cuál es mi lugar si nunca pude hallarlo? No hay
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La revolución artística solitaria de Rafael Cadenas, así como La revolución no había sido para Cadenas, como en el caso
la —según Rancière— revolución lírica de los tiempos de de Wordsworth, una sorpresa inesperada, la representación de un
Wordsworth, también había sido “o esforço por desfazer um espectáculo al que no quería asistir o al que debía asistir por
parentesco necessário e insuportável com as marchas de canhão obligación. La revolución era una cosa que él, que sus compañeros
da política revolucionária ou contrarrevolucionária” (1995, p.110). artistas, que sus colegas creadores habían venido a cimentar
Las obras de ambos concuerdan en la (aparente) disidencia, pero juntos. El proyecto de construcción de Cadenas, sin embargo,
discuerdan en la forma que cada una tiene de militar en la concebido desde su reacción tanto al gobierno de Betancourt
disidencia. Mientras que Wordsworth es político por indiferente, como a la radical violencia de las FALN, se fundaba en la política de
Cadenas construye en la indiferencia de la voz poética su acto más la estática. A la obligación moral de la lucha armada, dogma
político. Lo político no deriva, sino que se crea a partir de la compartido por la Doxa izquierdista, Cadenas oponía un nuevo
renuncia del poeta que declara tipo de libertad, la libertad de la inmovilidad. Rancière propone
que me arrimo a las paredes para no caer completamente una aproximación a la revolución poética moderna a través de
que nunca podré viajar a la India Wordsworth como una inédita experiencia política de lo sensible
que ando por la ciudad de un lado para el otro como una fundada en el desplazamiento del caminante que, abstraído del
pluma ruido de la Revolución francesa, anda solitario mirando las nubes
que me dejo llevar por los otros
pasar. A las marchas militares y de resistencia, Wordsworth
que todo el día tapo mi rebelión
contrapone el tranquilo andar del caminante. La estrategia de
que no fui a las guerrillas
que no he hecho nada por mi pueblo Cadenas es otra, aunque más radical: en lugar de andar distraído
que no soy de las FALN y me desespero por todas estas por los caminos, Cadenas para, se detiene. Él no opone al gran
cosas y por otras cuya enumeración sería interminable movimiento otro movimiento subalterno, sino su opuesto
que no puedo salir de mi prisión absoluto que es la inmovilidad. “Un gran poeta francés —cuenta
que perdí el hilo del discurso que era ejecutado en mí y no Octavio Paz— conocido por la violencia de sus convicciones
puedo encontrarlo antirreligiosas, me dijo una vez: el ateísmo es un acto de fe.” (1972,
que he sido arruinado por tantas marcas y contramarchas p. 320) Para Cadenas, el acto de asumir la derrota en el medio del
que ansío la inmovilidad perfecta y la prisa implacable fragor combativo, la elección soberana del no movimiento, su
que no soy lo que soy ni lo que no soy posición estática frente al poder y al contra-poder, esos eran sus
que he vivido quince años en el mismo círculo
paradójicos actos de fe. Su revolución (dentro de la revolución)
me levantaré del suelo más ridículo todavía para seguir
aconteció al poner en el espacio de la escena pública de la
riendo de los otros y de mí hasta el día del juicio final”
(CADENAS. 1978, p.113) colectividad la alternativa de la política estática: la voz de la
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derrota, en este caso excepcional, es la misma cosa que el canto


de la libertad.

Referencias
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medio país. Caracas: Alfadil, 2003.

BELTRAN, G.L. El tema de la revolución. Caracas, Monte Ávila,


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de los lenguajes escénicos contemporáneos”, in TEATRO, Revista
de Estudios Escénicos. Nº 21. Alcalá de Henrares, Universidad de
Alcalá. P. 3-26, 2009.

CADENAS, R. Los cuadernos del destierro. Falsas maniobras.


Derrota. Caracas: Fundarte, 1978.

MIJARES, A. Coordenadas para nuestra historia. Temas de historia


de Venezuela. Caracas: Monte Ávila, 2000.

PAZ, O. El arco y la lira. Barcelona: Fondo de Cultura Económica,


1972.

RANCIÈRE, J. El reparto de lo sensible: Estética y política. Santiago


de Chile: ARCIS, 2009.

______. Transportes da liberdade. In: Políticas da escrita. SP:


Editora 34, 1995.
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HOMBRE-ESSAIS: EL LABERINTO, LA SOLEDAD Y UN SOLDADO reconocerlo y entenderlo. Hay un largo camino para delante y la
PAZ ARMADO POR LA REFLEXIÓN única certidumbre es que jamás habrá la llegada. Eso porque la
Phelipe de Lima Cerdeira propuesta paciana no trata de buscar respuestas con salidas
UFPR fáciles. Hay una intención clara por la pérdida en medio de las
informaciones, por una insinuación no resuelta.
“O crítico é um escritor, Quizá sea exactamente por ello que el epígrafe del
mas um escritor em liberdade condicional.” pensador Roland Barthes, el que proviene de la importante obra
(BARTHES, 2007, p. 26). Crítica e verdade (2007), haya parecido tan providencial para las
primeras líneas de ese trabajo. Existe un efecto condicional, un
Si la historia de la humanidad fuera identificada en síntesis hecho de alguien que es, sin duda, escritor, pero que logra obtener
como una guerra, es probable que algunos de los representantes una posibilidad para (re)integrarse a la sociedad y, sobre todo,
de ella llevarían la más importante de todas las funciones: la de para confrontarse con él mismo. El comportamiento es distinto por
reflexionar. Pero, en ese aparato simbólico, las armas están más la experiencia obtenida en el pasado, por el cambio a través de las
allá de su naturaleza metálica y cromada, centellando con la ayuda tentativas y por los pedidos de los otros. Parece razonable, incluso,
de propiedades literarias. Con esa clase de munición están pensar en la diferenciación propuesta también por Barthes en otro
relacionados algunos soldados muy especiales, sujetos – contexto, responsable por separar los “escritores” (aquellos que
sintácticamente de carácter compuesto – forjados por la buscan el valor del texto y su multiplicación en la literatura) de los
convicción de que sus obras suelen hablar por ellos mismos, “escribientes” (personas que relatan lo que cumple a la burocracia
multiplicando ideas al revés de comas, ideales tal cual fueran de la intelectualidad institucional) (BARTHES, 2007).
puntos suspensivos. Escribir es más que una libertad deseada, sino Dicho todo eso, queda claro que se pretende hablar no
una condición de ser y estar como alguien que solamente lo hace simplemente de alguien que transita en la escritura. Al revés, el
para sobrevivir. interés está en un Octavio Paz que es crítico, mejor, ensayista, y
En medio de ese inimaginable campo de batalla, se elige desde la presente perspectiva, un hombre-essais. La intención
hablar de apenas uno: allá está él, esperando a usted, lector, y la delante de tal clasificación podrá quedar más clara a lo largo de las
posibilidad de un diálogo inolvidable y transformador. ¿Puede páginas, pero se puede adelantar que la atribución sui generis es
reconocerlo? Aquél hombre de cejas negras y pelo canoso, quien una especie de homenaje, una antonomasia creada con la
lleva en su mirada una especie de bandera. Se trata del mensaje expectativa de cualificar a uno de los teóricos más representativos
de Paz. Del ciudadano. Del intelectual. Del mexicano. Del para el desarrollo del pensamiento hispanoamericano del siglo XX.
latinoamericano. Del universal Octavio Paz. Pero no se aburre si la La expresión hombre-essais es más que una simple figura
descripción hasta ahora no le haya sido suficiente para que pudiera del lenguaje, intenta demostrar, sí, una perspectiva de lectura
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delante de la manera encontrada por Octavio Paz para registrar su igualmente buenos y nunca me propongo agotarlos, porque a
trayecto en la historiografía literaria y en su marco específico de ninguno contemplo por entero: no declaran otro tanto quienes
nos prometen tratar todos los aspectos de las cosas. De cien
enunciación. El sustantivo essais cumple la función de doble miembros y rostros que tiene cada cosa, escojo uno, ya para
cambio, no solo por dar a la locución una idea adjetivada al trabajo acariciarlo, ya para desflorarlo y a veces para penetrar hasta el
del teórico, sino, principalmente, por fundamentar la percepción hueso. Reflexiono sobre las cosas, no con amplitud sino con toda
de un Paz dispuesto a caminar muy atento y de manos dadas a la la profundidad de que soy capaz, y las más de las veces me gusta
enseñanza ofrecida por Michel de Montaigne. Éste se vuelve examinarlas por su aspecto más inusitado. Me atrevería a tratar
a fondo alguna materia si me conociera menos y me engañara
maestro, una figura referencial, no exactamente por inaugurar – sobre mi impotencia. Soltando aquí una frase, allá otra, como
ya en el siglo XVI – la tradición de nombrar sus escritos como partes separadas del conjunto, desviadas, sin designio ni plan, no
essais, o, en español, ensayos. La herencia montaigniana está en el se espera de mí que lo haga bien ni que me concentre en mí
hecho de valorar el oficio crítico del escritor; exponer lucidez y mismo. Varío cuando me place y me entrego a la duda y a la
humildad en el entendimiento de que una lectura jamás podrá incertidumbre, y a mi manera habitual que es la ignorancia.
(MONTAIGNE apud GÓMEZ-MARTÍNEZ, 1992, p. 04, destaque en
eliminar todas las dudas acerca de un asunto y que es preciso negritas mío).
prudencia cuando uno no detiene la madurez y los conocimientos
necesarios; y, por último, dar al juicio el instrumento retórico y Tal cual ha pasado con el relato de Montaigne, la obra
perenne de auto compresión. Exactamente por la complejidad de paciana parece partir de una especie de entrega a la duda para, de
todo lo dicho acerca de la propiedad ensayística, parece inevitable pronto, expandir las posibilidades de un tema desde un punto que
y tentador presentar un trecho atribuido al propio crítico francés: la gran mayoría no hubiera podido imaginar. Dicha “ignorancia”,
Es el juicio un instrumento necesario en el examen de toda clase en verdad, funciona como un camuflaje para la habilidad no
de asuntos, por eso yo lo ejercito en toda ocasión en estos presuntuosa y para la increíble capacidad de transformar algo
ensayos. Si se trata de una materia que no entiendo, con mayor invariablemente no interesante en razón para que miles la
razón me sirvo de él, sondeando el vado desde lejos; y luego, si lo
estudien y se identifiquen. Quizá sea exactamente esa última
encuentro demasiado profundo para mi estatura, me detengo en
la orilla. El convencimiento de no poder ir más allá es un signo propiedad la que permita involucrar los textos de Octavio Paz no
del valor del juicio, y de los de mayor consideración. A veces sencillamente bajo la óptica de una crítica cualquiera, sino en la
imagino dar cuerpo a un asunto baladí e insignificante, buscando esfera de los ensayos. Estos hacen parte de una forma distinta de
en qué apoyarlo y consolidarlo; otras, mis reflexiones pasan a un pensar y hacer crítica, alejándose de balizas preestablecidas,
asunto noble y discutido en el que nada nuevo puede hallarse,
volcadas, de acuerdo con Ricardo Ferrada Alarcón, en una tarea
puesto que el camino está tan trillado que no hay más recurso que
seguir la pista que otros recorrieron. En los primeros el juicio se que
encuentra como a sus anchas, escoge el camino que mejor se le […] requiere de un trazado riguroso y abierto para conseguir
antoja, y entre mil senderos decide que éste o aquél son los más establecer las relaciones; es una actividad que supone
convenientes. Elijo al azar el primer argumento. Todos para mí son comprender, ampliar puntos de vista, explicar, desestimándose
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en ello una estética prescriptiva que antepone una escala de se da la propiedad ensayística (¿y por qué no laberíntica?) en la
valores previos, pues se sostiene en la "verdad" de su objeto. obra de Octavio Paz. Para ello, se necesita volver algunos siglos
(ALARCÓN, 2009, p. 13).
más en la línea de la historia como un todo, objetivando encontrar
El hecho de sentirse involucrado y la constante intención las primeras huellas características del género en el lenguaje y,
de contestar, antes que todo, la “verdad” del objeto permitió que después, en el discurso literario.
los ensayos pudieran ocupar una nueva posición en la vida de los Aunque Montaigne haya asegurado el papel de bautizar su
escritores y en la configuración propia de la literatura. Recordando literatura como “estos ensayos”, es determinante acordarse de
lo que ha dicho el propio escritor mexicano, “Ensaiar a explicação que la esencia de ese “nuevo” género ya había estado presente
de uma obra é, sobretudo, saber — e confessar — o quanto ela nos muchos siglos antes en otros discursos. Se trata de volver a los
atravessou, quanto ela nos ajuda a reconhecermo-nos através tiempos clásicos y pensar en las idiosincrasias, por ejemplo, de los
dela.” (PAZ apud SOMLYÓ, 1999, p. 19). diálogos platónicos. Volcados hacia la reflexión y el juego retórico,
Y Paz parece confesar sistemáticamente los efectos de una ya se iniciaba allí lo que se puede identificar como una decisión
obra o de un contexto social y político en sí mismo y en su ensayística de abordar algún tema, exigiendo una relación del
naturaleza como escritor. Esto sirve como fundamento de enunciador totalmente distinta, articulada con un análisis amplio,
inspiración para una de sus obras seminales, El laberinto de la inteligente, quizá más visceral, considerando no solamente las
soledad (1950)1, objeto central de estudio en esa reflexión y que variables de un texto, sino todas las influencias y posibilidades
tendrá, en el tiempo correcto, la debida atención. Mientras tanto, relacionadas a él y a su recepción. Además de ello, al tocar el
para acercarse a su manera tan propia de componer sus ideas, se universo de Platón, se intensifica también la continuidad de la
necesita entender primero un poco más acerca de cómo el ensayo discusión, la ya comentada idea de que el ensayo no es eterno, sino
se construye en cuanto género literario y, después, cómo éste está transitorio, ganando fuerza a cada luz nueva sobre las reflexiones
directamente identificado con el lugar de enunciación del ganador ya propuestas (HERNÁNDEZ, 2005).
del Premio Nobel que resignificó la soledad. Esa calidad de estar abierto a los cambios ha permitido que,
durante el comienzo del siglo XX, destacables teóricos pudieran
El ensayo como género y fundación del laberinto paciano establecer debates, además de dedicar sus pesquisas acerca de su
Entrar en una senda sin la perspectiva de encontrar la salida constitución y manutención como un género propio. Entre ellos,
es, sin duda, la promesa a alguien que se aventure a conocer y vale la pena citar las intervenciones y diálogos de estudiosos como
saber más sobre cómo se instituye el ensayo y, por supuesto, cómo Georg Lukács en su Carta a Leo Popper, relatando sus

1
Para fines de estudios y citas en ese presente ensayo, ha sido utilizada una originalmente el año 1950. Para más informaciones de la edición utilizada en
edición de la obra El laberinto de la soledad publicada en el año 1992. Es ese trabajo, se recomienda la visualización de los informes en la lista de
importante acordarse, todavía, que la obra de Octavio Paz ha sido publicada referencias.
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observaciones Sobre la esencia y forma del ensayo; la respuesta de un texto en una especie de arcilla que modela el pensamiento y
Adorno a partir del texto El ensayo como forma; y la manifestación gana forma para exponer y dar vida a las ideas:
de Max Bense en su artículo titulado Sobre el ensayo y su prosa. A […] escribe ensayísticamente quien redacta experimentando,
partir de cada uno de ellos, muchas otras reflexiones han sido quien vuelve y revuelve, interroga, palpa, examina, penetra en su
objeto con la reflexión, quien lo aborda desde diferentes lados, y
formateadas hasta que el ensayo pudiera ser reconocido como un reúne en su mirada intelectual lo que ve y traduce en palabras, lo
género híbrido y transversal, multiplicando las diversas maneras que el objeto permite ver bajo las condiciones creadas en la
para que uno pueda llevarlo a la práctica. escritura. (BENSE apud YVANCOS, 2005, p. 189).
Por el carácter híbrido comentado, queda establecida la
Posiblemente, esa misma percepción del ir, volver, palpar y
oscilación desde la filosofía pura hasta la completa literatura mirar desde múltiples prismas haya motivado a teóricos a percibir
(NICOL apud HERNÁNDEZ, 2005), tensión entre ámbitos tan la instancia de la crítica no como otra demarcación del mundo de
distintos y que, de alguna manera, parece también ser un dato de las ciencias, sino como una manifestación innata de las artes
la mirada paciana, una cierta “permanencia por estar en (LUKÁCS, 1970). Siendo así un patrimonio artístico, dentro de la
movimiento”, expresión utilizada por Maria Ester Maciel para esfera de lo literario, cabe al ensayo la posibilidad de extenderse a
evidenciar la manera de escribir y la amplitud de la mirada del distintas clases de receptores, ya que su contenido y forma no han
mexicano (1999). Lo mismo pasa en relación al carácter limitado la interacción y la fruición de cualquiera que atienda a una
transversal, en ese caso, Belén Hernández también lo relaciona al única regla: la de lo tener ganas de saber. En ese sentido, José
hecho de la sobrevivencia del género delante a las presiones
Miguel Oviedo contribuye con un fragmento precioso:
globalizantes: El ensayo habla al hombre en general, al que sabe algo y quiere
La brevedad del discurso, la variedad de la temática, que se saber más. Y como le habla con un lenguaje artístico, no en una
aproxima a argumentos científicos o antropológicos desde una jerga impenetrable de especialista, cualquier persona
crítica radical en la cual no están excluidas la sensibilidad y la mediamente culta o enterada puede disfrutarlo. En ese sentido,
intuición, mantienen la esperanza de que este género transversal el ensayo es una forma dialogante, un pensamiento que quiere
resista los embates homogeneizadores de la globalización. ser comunicación abierta, tanto con el lector como con el mundo
(HERNÁNDEZ, 2005, p. 08). histórico al que pertenece. (OVIEDO, 1991, p. 16).
Es imaginable que tal transversabilidad esté en contacto Se puede inferir, incluso, que sea esa misma propiedad
con la manera que los ensayistas tratan sus textos, por las artísticamente crítica por lo general atribuida al ensayo que haga
correlaciones articuladas alrededor de los temas y, sobre todo, por que la obra de Octavio Paz asuma, en un primer momento, una
la fundamental experimentación durante todo el proceso de relevancia tan grande cuando se piensa en la actuación y la
creación, así como ha constatado Max Bense. Sobre la dialéctica absorción de un escritor tras las generaciones de lectores (sean
entre el experimentar y el escribir, Bense apunta la sinestesia de expertos en literatura, sean solamente sus enamorados). Por
creación con la que el ensayista está relacionado, transformando supuesto, hay otras cuestiones particulares que van a explicar el
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desarrollo de la ensayística paciana, pero me ha parecido por todo ello, acaba también por sufrir transformaciones de
fundamental ya puntuar ese detalle en este momento de la diversos órdenes:
reflexión. Esto ocurrió, por una parte, en virtud de la evidente presencia de
Si el ensayo tuvo manifestaciones a comienzos del siglo XX, nuevas prácticas y expresiones estético-literarias, que mueven los
parámetros para la entrega de juicios pertinentes; desde una
son otros fenómenos los que ejercen influencia para su perspectiva complementaria, por el innegable aporte que
establecimiento real como un género literario a ser estudiado y tuvieron las reflexiones de orden científico y académico sobre el
evidenciado como tal. De acuerdo con Hernández, el primer paso lenguaje, aplicadas al análisis textual. (ALARCÓN, 2009, p. 14).
ocurre con la expresión de la subjetividad del autor (otra herencia
Así, se presentan a la pelea estudiosos en distintos rincones
de Montaigne, donde el autor se presenta a sí mismo, revelándose del continente, tales como Carlos Fuentes, Alfonso Reyes (a quien
como un tema y argumento factibles para la construcción muchos atribuyen el origen de la crítica literaria latinoamericana),
literaria). El segundo estaría volcado al deseo de dar respuesta a Alejo Carpentier, Lezama Lima, Leopoldo Zea, Rafael Rodó, Ortega
las demandas del lector moderno, cada vez más actuante y y Gasset, César Vallejo, José Carlos Mariátegui, Jorge Luis Borges,
responsable por consolidar nuevos significados a un texto. Por Fernando del Paso, Mario de Andrade, Antonio Candido y, por
último, puede evidenciar los efectos de una contemporaneidad supuesto, Octavio Paz. Sea al elegir la creación ficcional o la “crítica
inmersa en una necesidad creciente de información, por la crítica creativa”, cada uno de ellos – sin hablar de otras docenas de
y la vuelta que ésta puede ofrecer para que uno revisite su pasado, nombres más que aquí no fueron listados – constituyeron una
re-evaluando sus raíces (HERNÁNDEZ, 2005).
verdadero batallón para reflexionar sobre la situación ibero y
La articulación de todas esas transformaciones, hispanoamericana. La profusión de las ideas fue inmensa y con
especialmente en Latinoamérica, parece haber ganado un eco tras efecto inmediato para agenciar cambios simultáneos en diversas
los cambios profundos que ocurrieran en el ámbito social y perspectivas, garantizando un registro en la historia y en la
político, sobre todo por cuenta del afán postcolonial de búsqueda historiografía literaria, como se puede evaluar en el fragmento de
de una libertad aún más deseada: la intelectual. En medio de Alarcón:
revoluciones por la independencia, tal cual ha pasado en Cuba y Se pueden recordar diversos encuentros de escritores, que
México, por ejemplo, sin hablar de otras condiciones intentaron incluso señalar líneas programáticas, o a lo menos de
socioculturales que han ocurrido entre las décadas de 60 y 80, un compromiso, que testimoniaran posiciones éticas y sociales sobre
sentimiento de responsabilidad ha eclosionado en muchos de los los temas en conflicto de ese momento: Revolución cubana,
teoría de la dependencia, dominio geopolítico producto de la
representantes de las letras, garantizando producciones
guerra fría, identidad cultural, política y cultura, cultura popular
dispuestas a promover una revisión crítica sobre la cultura y la versus cultura académica, rol de los intelectuales y del artista,
gente, la sensación de pertenecer y formar parte de una razón que educación y universidad, acceso de la ciudadanía a la cultura.
es, al mismo tiempo, local y de todos (FUENTES, 1969). La crítica, (ALARCÓN, 2009, p. 15).
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De ahí, otra explicación para que la fundamentación de la con una especie de laboratorio literario para la formación y
crítica literaria pudiera encontrar en América Latina un local de fundamentación ensayísticas de diversos pensadores del
profunda diseminación y potencia. Delimitando las matrices continente, en el caso de Octavio Paz, las costumbres de casa han
temporales en el siglo XX, parece razonable pensar en tres etapas garantizado un inevitable alistamiento en el oficio de ensayar.
distintas apuntadas por Alarcón: Ese contexto ha sido sistemáticamente levantado por los
Primero, distinguimos la etapa en que se toma conciencia de los estudios del rumano Gyorgy Somlyó, quien cree que las
discursos en el marco de las vanguardias, lo cual significa asumir circunstancias de la vida privada del poeta-escritor acabaron por
el arte como una forma de discusión social y cultural, un
antecedente central para nosotros por la cercanía de Paz con la
influir directamente su trayectoria literaria. La primera razón está
estética surrealista. En segundo lugar, observamos la instancia relacionada con el abuelo de Paz, quien fue uno de los precursores
formativa del discurso crítico, localizada hacia mediados del siglo mexicanos del movimiento indianista volcado para la literatura
XX. Finalmente, llegamos al momento en que se formula la hispanoamericana. Siguiendo los pasos del patriarca de la familia,
demanda de una autonomía crítica como un proyecto y un desafío su padre, abogado dementado, estuvo relacionado con la
intelectual y cultural; esto coincide sustancialmente con las
propuestas del propio Paz y permite contextualizar la emergencia
profusión política del país, siendo partidario y líder revolucionario
de sus líneas de discusión. (ALARCÓN, 2009, p. 27). campesino de Zapata, valorando el hecho precursor en las
cuestiones de la reforma agraria en México. De los lazos de su
Según palabras del propio Octavio Paz, hubo en
madre – hija culta de inmigrantes españoles – quizá provenga la
Latinoamérica las “condiciones de ruptura” necesarias para que el
pasión por las letras, por los estudios y, sobre todo, por el
género ganara un aspecto con densidad y personalidad. Ese
sentimiento de comunión con la causa del otro, la dicta alteridad
escenario crítico tan latente parece construir caminos paralelos y
(SOMLYÓ, 1999).
perpendiculares que se cruzan para consolidar un verdadero
Saliendo del ámbito nuclear de la familia y buscando más
laberinto de la reflexión. La perspectiva, sin duda, es una metáfora
influencias para su formación personal, queda demarcado el valor
perfecta para que el ensayo ascienda como una real condición para
de un país. México representa más que una división geopolítica
que los escritores ejerzan su carácter crítico, registrando los
para la obra paciana, un sitio especial donde todas las
principales sentimientos y sensaciones decantadas en el aire. Cabe
informaciones son resignificadas, un espacio central en el que
una observación ahora sobre como el contexto de Paz ha podido
muchas de las reflexiones del escritor parten y vuelven, tal cual un
influenciar su propiedad ensayística y, por lo tanto, su expresión
núcleo irradiador del conocimiento. Se trata, una vez más, de la
poética.
indisoluble relación entre el enunciador y su local de enunciación,
paralelismo indispensable cuando se piensa en el desarrollo de la
México: sitio de enunciación, epicentro paciano para perderse y
crítica literaria, o propiamente, del ensayo como un género.
encontrarse
Además de lo apuntado anteriormente, la fuerte presencia
Si las condiciones de América Latina parecen haber servido
P á g i n a | 731

de México en la ensayística paciana demuestra sin duda la iberoamericana.


relevancia del nacionalismo como una porta voz central de En ese sentido, no se puede dejar de citar la gran
reflexión. Por cierto, esa característica no se aplica sólo al trabajo interacción del mexicano con Haroldo de Campos (LAFER, 1999),
de Paz, al revés, suele presentarse en distintos escritores y obras. encuentro que ha acercado a Paz de la vanguardia constructivista.
Es Leopoldo Zea quien, en su Dialéctica de la conciencia americana En una visita hacia Brasil el año de 1985, Octavio Paz y Haroldo de
(1976), valora tal predominancia, haciendo hincapié en el hecho Campos protagonizaron momentos memorables, tal como el solo
de que “El nacionalismo brota, en la casi totalidad de la América a dos voces para traducir el poema Blanco2. El franco diálogo entre
Latina, en forma casi simultánea, como respuesta al nacimiento del los dos escritores, además de un trabajo importante de Haroldo de
imperialismo estadounidense.” (ZEA, 1976, p. 145). Respuesta en Campos y Celso Lafer para posibilitar la recepción de la obra
bloque o levante estratégico de muchos soldados, el hecho es que, paciana en tierras brasileñas3 en la década de setenta, ayudan a
tanto para Zea cuanto para Paz, México ha sido una manantial de entender el porqué de la fuerza de Octavio Paz en Brasil, tanto en
disipación e inspiración, responsable por ofrecerles las condiciones el ámbito académico cuanto entre los lectores corrientes.
para la formación de un sujeto crítico. Es Celso Lafer, incluso, quien enumera, en uno de sus
Si el país siempre estuvo directamente colgado a la artículos dedicados al trabajo ensayístico del escritor mexicano, la
formación de un escritor crítico, vale la pena suscitar las importancia de la constante mirada crítica de Octavio Paz para la
experiencias que han cambiado la manera de Paz percibir su elaboración de sus reflexiones:
alrededor como mexicano, latinoamericano y, claro, como un ser [...] o que caracteriza a força e a inteireza de caráter do poeta-
ciudadano del mundo. Están aludidos, en esa instancia, los pensador Octavio Paz é a resistência de um olhar crítico. Foi isso
que o tornou um dos maiores intelectuais latino-americanos e um
momentos en los que el escritor estuvo en España, presenciando dos grandes intelectuais do século 20, que ele viveu com
desde cerca la guerra civil del país; el período de residencia en los intensidade e percorreu no espaço e na história, nas suas
Estados Unidos por cuenta de la Segunda Guerra Mundial (el que múltiplas e contraditórias dimensões. (LAFER, 1999, p. 16).
tendrá impacto puntual en mucho de lo que fue reflexionado en El Octavio Paz logró asegurar, por todo ello, no solamente un
laberinto de la soledad); y, por supuesto, las diversas veces que el estatuto y una designación de escritor y creador lírico. La
escritor estuvo en otros países representando oficialmente la dimensión de sus propuestas y la manera como cada una de ellas
identidad mexicana, logrando compartir ideas y influencias para la fueran (y siguen siendo) recibidos en México, Brasil, Latinoamérica
continuidad del pensamiento y del desarrollo en el ámbito crítico y tantos otros lugares, han permitido entenderlo primeramente
literario con otros exponentes de la intelectualidad como un referente intelectual

2 3
El encuentro entre los dos escritores ha pasado en una conferencia ofrecida en Para promover la obra y las reflexiones de Octavio Paz, Haroldo de Campos y
la Universidade de São Paulo (USP), representando un momento puntual de Celso Lafer organizaron la publicación del libro Signos em rotação, lanzado el
dialogo entre los intelectuales ibero y hispanoamericanos (LAFER, 1999). año 1972 (LAFER, 1999).
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[…] considera también su condición de referente intelectual que hecho de haber adherido al proyecto Taller Poético (1936-1938),
excede el espacio de su país y de la región, dada su presencia Paz demostró continuidad y oxígeno suficiente para generar
directa en acontecimientos socioculturales y políticos que
determinaron la sociedad, particularmente en la segunda mitad
transformaciones en la conducta del pensar. Exactamente por la
del siglo XX. (ALARCÓN, 2009, p. 11). confluencia de ideas, no es difícil adivinar que su obra ha hecho y
significado mucho tras los años en el siglo XX, sobre todo en dicha
Después de todo lo expuesto hasta aquí, es posible decir
realidad social. Lo más interesante es que, aunque tenga
que la historia pulsando en la sangre y la disponibilidad por
protagonizado un movimiento en diversos lugares, Octavio Paz
reflexionar – siempre utilizando su expresión poética – condujeron
parece haber preferido siempre el diálogo, nunca volcado a una
a Octavio Paz a innumerables oportunidades para demostrar su
sola perspectiva. Reacción y sistemática ensayística, la verdad es
naturaleza ensayística. Desde su eslabón en el pensamiento crítico
que esa conducta ha sido decisiva para la lectura de un proyecto
con la publicación del texto Ética del Artista4, Paz ha demostrado
literario fuerte, capaz de incidir en la modernidad latinoamericana
tránsito constante en los circuitos literarios e intelectuales, lo que
como un todo. En esa esfera, Maria Esther Maciel ratifica:
impactó, directamente, toda su producción. En ese sentido, Transitando em distintos lugares, ao mesmo tempo que não se
Alarcón evidencia: deixando confinar em nenhum, Paz atuou de maneira incisiva nos
[…] es innegable asumir que nuestro autor es un poeta y un rumos da modernidade latino-americana em suas interseções
poderoso ensayista. Lo que permanece casi oculto es que su com a diversidade cultural dos outros continentes. (MACIEL,
producción contiene artículos críticos que provienen de su 1999, p. 09).
práctica en diarios, revistas, clases o conferencias académicas en
universidades, y discursos públicos. También, que generó Es posible imaginar que todo ese paseo por distintos
estudios sistemáticos, algunos referidos a escritores, otros a campos del conocimiento le ha permitido al escritor construir una
diversas expresiones artísticas (poesía, cultura, cine, pintura). mirada crítica fundamentada en una percepción del mundo más
(ALARCÓN, 2009, p. 17). amplia, recurso, por supuesto, indispensable para aquel que juega
De la participación en Barandal hasta el involucramiento con su lengua y lo hace para guerrear contra el sentido estático de
en la fundación de Cuadernos del Valle de México (1932), o el las ideas. Por lo general, hay en la obra de Octavio Paz, un

4
El texto Ética del Artista, publicado en la revista Barandal, volumen 5, el textos de literatura, traducciones, artículos acerca de la vanguardia europea,
diciembre de 1931, ha fundamentado la presencia de Octavio Paz en el ámbito crítica, trabajos sobre arte, fotografía, cultura, reseñas de libros, etc. Estar
crítico literario. Además de ser percibido como una especie de eslabón para la involucrado en un proyecto como éste, alcanzado nombres, tales como Rafael
construcción de su pensamiento reflexivo, el trabajo fundamenta la mirada del López Malo, Salvador Toscano, Enrique Ramírez y Ramírez, entre tantos otros
mexicano hacia lo artístico, reiterando aún su ligación con la expresión poética. jóvenes con un impresionante pensamiento crítico y una densa discursividad, ha
Sobre la relevancia de Barandal en el ámbito literario, el doctor e investigador significado a Octavio Paz un importante impulso hacia su trabajo como
en Estudios Latinoamericanos, Ricardo Ferrada Alarcón, comenta sobre como la observador-audaz y escritor-poeta. (ALARCÓN, 2009).
revista ha ofrecido a sus lectores una miscelánea de contenidos, alternando
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repertorio indisociable, donde la subjetividad hace marcha hasta Soledad: reflexión en la trinchera del laberinto
un razonamiento preciso y precioso: En el año de 1950, Octavio Paz regala a la crítica literaria y
La premisa de base es que al "observar" (leer) su objeto, a la reflexión universal una obra maestra. Al elegir una figura
inevitablemente, lo hace a partir de un contexto y una visión de metafórica tan compleja como un laberinto, el escritor ya parece
mundo alimentada, además, por sus lecturas previas; por lo tanto,
es esperable que ello funcione o se exprese como un prejuicio o
dar la primera huella de su interés en hablar de un tema bajo la
un punto de vista, que introduce la subjetividad en los conceptos constitución de la poesía. Figuran juntos dos sustantivos –
y categorías operativas. Esta variable contribuye a la emergencia laberinto y soledad –, comulgando un diálogo que es, más que
de un sujeto que discute con la tradición, e impulsa a la vez las todo, de la búsqueda de uno a sí mismo. El título juega con un
transformaciones relativas a un espacio crítico. (ALARCÓN, 2009, enigma, invita al lector la entrada en un mundo que, si no fuera
p. 13).
nuevo, está lejos de ser igual, gracias al punto de vista ofrecido.
De esa “emergencia” individual para discutir la tradición, Ya en la contraportada del libro, una información empieza
viene la inferencia para que la poesía pudiera ofrecer al gusto a elucidar la propuesta discursiva: “El laberinto de la soledad es sin
paciano las “armas”, concretas y abstractas, necesarias para su duda una obra magistral del ensayo en lengua española y un texto
manifestación y expresividad. Al decir que el mundo sin prosa sería ineludible para comprender la esencia de la individualidad
posible, pero jamás sin la manifestación poética, Paz transciende mexicana.” (PAZ, 1992, destaques en itálica míos). Intervención de
las cuestiones de géneros literarios. Al revés, el escritor establece la edición o acuerdo con los responsables por la publicación, de
la condición de vivir según una metáfora perenne, una posición hecho, la frase llama la atención por ya dejar claro la ecuación del
para tratar cada uno de los asuntos como versos interconectados, sentido del texto como una propiedad ensayística, o sea, con
estrofas enriquecidas de realidad y ficción, argumentos para manifestación crítica y personal.
convencer que cualquier asunto, desde que tocado a través de un La frase inicial no le ofrece al lector ninguna frustración, al
prisma distinto, puede lograr una conquista. revés, minimiza lo que verdaderamente representan las ideas
Con la poesía sirviendo como un verdadero punto de presentes en la obra de Paz. Por muchos considerados como un
irradiación, aquel “modo de operación del pensamiento poético” trabajo antropológico-literario – ya que la condición y el origen del
responsable por canalizar la escritura, como bien ha destacado individuo mexicano han ganado tanto destaque alrededor de las
Maria Esther Maciel (1999), Octavio Paz concede a la crítica y a la líneas –, El laberinto de la soledad logra extender sus significados
posibilidad ensayística un nuevo estatus de enunciación. Cabe, propios para representar la consolidación del ensayo como un
ahora, vislumbrar lo que ocurre en un texto responsable por género y una manifestación literaria en sentidos amplios. Para esa
construir el máximo de la expresión y del juicio en un ambiente lectura, Octavio Paz parece haber tenido ganas de responder a un
que no es leyenda, sino un laberinto: El laberinto de la soledad. deseo de Alfonso Reyes: “(…) buscar el alma nacional".” (REYES
apud PAZ, 1992, p. 68).
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Exactamente por eso, Paz reserva en ese laberinto un propio reflejo. El esfuerzo, sin duda, es metalingüístico cuando se
espacio especial para hablar de la “inteligencia” mexicana. ¿Qué habla de la manera de ejercer el oficio ensayístico. Tal como revela
explica las comillas utilizadas por el propio Paz? El escritor se vale Oviedo, “al reflexionar sobre un asunto y al hacer su propuesta, el
de la señal gráfica y ortográfica para discutir la actuación de los ensayista se cuestiona a sí mismo, haciendo del ensayo un doble
intelectuales en la formación de la cultura regional. Las comillas, vehículo de especulación.” (OVIEDO, 1991, p. 15).
de esa manera, explican la percepción de la necesidad de crear El laberinto, quizá, sea la fundición de todo lo que converge
autonomía intelectual, seguir la misión del propio Reyes que es la y que es presentado en la obra paciana. Para quien desee saber
reflexión. más, parece, entonces, primordial adentrar en ese mundo lleno de
Para que eso fuera posible en la obra, Octavio Paz asume sorpresas. Al revelar la soledad como algo propio de la
su ya nombrada función de soldado. Y, como es común en muchos adolescencia, Paz juega con el carácter cuestionador, construye
de los momentos de las guerras, el escritor se esfuerza en rescatar una pared metafórica para hablar de la conciencia crítica y de la
en el comienzo de sus reflexiones el sentido de la existencia: “A ajetreada manera de expresarla. Por distinción, el escritor delimita
todos, en algún momento, se nos ha revelado nuestra existencia los niños y los adultos, seres que, para él, logran transcender la
como algo particular, intransferible y precioso.” (PAZ, 1992, p. 01). soledad con la ayuda de sus tareas o compromisos del día a día
La estrategia discursiva valora, al mismo tiempo, la intención de (sean juegos o trabajos). Queda, así, la primera crítica acerca del
despertar el interés de todos sus lectores, pero, principalmente, comportamiento del hombre, una manera inteligente para decir
deja claro que aquel texto le ha tocado como una tarea de batalla, que, en México o en cualquier otro sitio, se busca alguien que no
una emergencia del cuerpo y del alma, una misión para valorar la esté perdido por su inmatura manera de distracción, o, peor, en
mexicanidad. El ensayo es, así, la voz de conciencia de uno y su medio de la pereza obligatoria con la nada.
responsabilidad delante de un contexto. El ensayo retoma, a cada trecho, la reflexión del sujeto
Antes de tocar específicamente en la existencia mexicana, mexicano, los rasgos que a él le pertenecen, las cosas que han
Octavio Paz generaliza, demuestra conciencia en percibir que lo cambiado su vida y su manera de ser. Es así que se detiene en la
que es propio también puede, de muchas maneras, ser general. descripción de los pachucos, por ejemplo, las bandas de jóvenes,
Eso porque “(…) toda tentativa por resolver nuestros conflictos de origen mexicano, que se singularizan por su vestimenta,
desde la realidad mexicana deberá poseer validez universal o conducta y lenguaje, y que viven en la ciudad de Los Ángeles,
estará condenada de antemano a la esterilidad.” (PAZ, 1992, p. Estados Unidos. Lo que es más raro entre eses jóvenes es que ellos
72). no reivindican su raza ni la nacionalidad de sus antepasados. Al
El sentimiento de evasión y pérdida de sentido es la manera revés, los pachucos prefieren una no identificación, un cerrarse a
lírica encontrada por el escritor para registrar su intención de las posibilidades y una negación a sus más fuertes herencias. Tal
entender a un pueblo que es sus raíces, boca, imaginario, o sea, su reactividad es lo que los acerca al tema central de Octavio Paz: el
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laberinto en el que se encuentran los mexicanos y la mexicanidad con la historiografía, el ensayo de Paz tiene como argumento
de manera general. La banda de jóvenes tan pintoresca parece ser, valorar el choque que el pasado colonial español sigue teniendo en
en realidad, una imagen perfecta para ejemplificar el miedo de la comprensión de la mexicanidad. Por la revolución, el pueblo
presentarse al otro y la disimulación del individuo a través de una mexicano se adentra en sí mismo, en su pasado y en su sustancia,
especie de máscara: para extraer de su intimidad y de su entraña, su propia filiación
Viejo o adolescente, criollo o mestizo, general, obrero o (PAZ, 1992).
licenciado, el mexicano se me aparece como un ser que se A lo largo de la reflexión de Octavio Paz, queda, incluso, el
encierra y se preserva: máscara el rostro y máscara la sonrisa.
Plantado en su arisca soledad, espinoso y cortés a un tiempo, todo
cuestionamiento se aquella “traición original” ha sido la
le sirve para defenderse: el silencio y la palabra, la cortesía y el responsable por la formación de un mexicano que es
desprecio, la ironía y la resignación. (PAZ, 1992, p.10) característicamente cerrado en sí mismo. De hecho, el propio
ensayo – e, con él, la raíz ensayística de Paz – es una manera de
Octavio Paz es profundo, busca las respuestas de la
intentar disipar los fantasmas imaginarios (y profundamente
mexicanidad en las venas de la historia mexicana, haciendo una
reales) del sujeto mexicano.
breve recapitulación del proceso de conquista de los españoles,
Lo que es interesante en cierto punto de la reflexión (y que
evaluando la fragmentación bajo el poder central de los aztecas.
da al ensayo de Paz aún más fuerza y poder de identificación), es
La historia de México es presentada según las bases de la traición
la manera paradójica en la que el mexicano se encuentra descrito.
y, por consiguiente, su herencia es la de la desconfianza, la que
Aunque haya puesto al mexicano como alguien no dispuesto a
proviene desde los españoles y de una “madre-Malinche”, quien
“abrirse”, es Octavio Paz quien valora la importancia y los rasgos
fue capaz de hacer sufrir a sus propios hijos. Se trata una vez más
de las fiestas para la existencia de todo el pueblo. Segundo el
de la soledad, aquella que es histórica, que lleva, incluso, un grito
escritor, en las fiestas mexicanas, ocurre una especie de explosión
de guerra: “¡Viva México, hijos de la Chingada5!” (PAZ, 1992, p. 31).
del sujeto en sólo un día. Para los mexicanos, las
Después de un engendramiento traicionado, el escritor
conmemoraciones serían una oportunidad para abrirse para el
sigue con la historia de la formación mexicana, tocando en eventos
exterior. De alguna manera, las fiestas tienen una función
como la Reforma borbónica y, claro, la Independencia o Grito de
catártica, una especie de desahogo para el mexicano y su
los Dolores (fecha que ha sido bautizada por la expresión máxima
mexicanidad. Hay en los encuentros de la gente otra huella en
del desahogo mexicano). Más que citar y mostrarse preocupado

5
La “Chingada” es una palabra con un enorme valor simbólico para los en el imaginario mexicano, explicando la utilización del adjetivo despectivo
mexicanos. Hay en el léxico la ligazón con los orígenes del pueblo y la traición “malinchista” (alusión a quien es traidor de México y de la mexicanidad) (PAZ,
de Malinche a todos los mexicanos. Malinche, por su vez, fue la azteca que 1992).
enamoró de Cortés y lo condujo a los caminos para la conquista de los
españoles. Hasta hoy, ese vínculo de la mujer es una llaga que parece ser latente
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medio a los corredores de la intimidad laberíntica. La descripción tornando su lenguaje un aparato híbrido y con múltiples sentidos
cultural pasa a ser un dato de confesión. ¿Y quién ha dicho que la y significados. En El Laberinto de la soledad, el escritor se acerca a
soledad de ese laberinto no encuentra una puesta de luz? uno de sus coterráneos, imprimiendo en su texto una lírica
Las fiestas proponen, en verdad, una transformación. En distinta, una manera sencilla de combinar crítica, narrativa,
ellas, desaparecen valores fuertes y de conducción social, tal como metahistoria, poesía… Como Alfonso Reyes, Octavio Paz parece
el orden y las jerarquías. Hay, una vez más, una clase de creer en el ensayo como un “centauro de los géneros” (REYES apud
carnavalización de los sentidos, tal cual ha postulado Mikhail SALINAS; ADSUAR, 2005).
Bajtín. Mucho más que un exceso, la fiesta es una revuelta, una Inmerso en la condición tan distinta de ensayar, Paz les
súbita inmersión en lo informe, la posibilidad de que uno se liberte apunta a sus lectores una nueva intención de lectura, invitándoles
de todas las normas que se le han impuesto. La fiesta asume el a reabrir la puerta del conocimiento, a reentrar en un laberinto
significado para el sujeto mexicano de participación, un donde el centro pulsa y les encanta. La promesa no tiene un
movimiento visceral donde la sociedad comulga consigo misma. resultado común a todos (la mexicanidad es sencilla y compleja),
De acuerdo con Paz, sin las fiestas, el mexicano simplemente pero garantiza que la soledad que es duda también pueda ser la
estallaría, no logrando caminar hacia esa libertad, esa huída de la única respuesta:
conciencia de la soledad. (PAZ, 1992). La soledad, que es la condición misma de nuestra vida, se nos
Y, después de la vida presente en las fiestas, Paz encuentra aparece como una prueba y una purgación, a cuyo término
angustia e inestabilidad desaparecerán. La plenitud, la reunión,
en su antítesis otro razonamiento para seguir su reflexión. Delante que es reposo y dicha, concordancia con el mundo, nos esperan
de la muerte, el escritor vuelve a hablar del origen y del vínculo de al fin del laberinto de la soledad.” (PAZ, 1992, p. 82)
responsabilidad heredada de los aztecas, presenta un tema más
posible para el análisis de la identidad mexicana. En el texto se
verifica como para los mexicanos la muerte es una confrontación Para seguir perdiéndose
con la fascinación e, irónicamente, como ella también es respuesta A lo largo de un laberinto, Octavio Paz llega a la
para todo el sufrimiento no superado: “(…) la muerte nos venga de construcción de un “cohete que enciende” para designar la
la vida.” (PAZ, 1992, p. 23). mexicanidad y el individuo mexicano. Fuerte, con intensidad,
Vida y muerte son otras figuras para reforzar la expresión efímero, rápido, débil después de su grito hacia al cielo, la
poética paciana a lo largo de toda la construcción de su ensayo. Las inteligente metáfora es leída en ese trabajo tal como un resumen
dos refuerzan la forma como Octavio Paz, mientras asume el valor de cómo es posible recibir la ensayística paciana. Por supuesto, es
de guardián de la palabra 6 , manifiesta su habilidad literaria, sabido que todo lo que fue presentado es un paso más en la

6
Atribución dada a Octavio Paz por Maria Esther Maciel en la presentación del teórica como un homenaje al escritor mexicano. Más informes acerca de esa
libro A palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz (1999), organizada por la obra están puntuados en las referencias de ese ensayo.
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verificación de ese hombre-essais. Intentando seguir la propuesta Referencias


de la crítica, el trabajo tiene como verdad un fundamental apunte ADORNO, TH. W. Notas sobre literatura – obra completa 11. El
de Oviedo: “Un ensayo no intenta agotar un asunto, sino ser un Ensayo como forma. Barcelona: Ariel, 1993.
mero avance en esa dirección, una contribución individual que
espera correcciones y ampliaciones del propio autor o de otros ADSUAR, M. D.; CERVERA, V.; HERNÁNDEZ, B. (eds.). El ensayo
(OVIEDO, 1991, p. 18). como género literario. Murcia: Universidad de Murcia, 2005.
Como ya fue puntuado en diferentes grados en este
trabajo, al desarrollar El Laberinto de la soledad, el escritor ofrece ALARCÓN, R. F. El discurso crítico de Octavio Paz. Contextos,
más que una reflexión de la condición de lo mexicano, ejemplifica desafíos y fundaciones en Latinoamérica de los años 60-80.
lo mejor que puede pasar en la construcción ensayística. Bajo la Santiago: Ariadna Ediciones, 2009.
mirada de Octavio Paz, se encuentra la perspectiva de como la
literatura está permanentemente en relación y como una obra es BARTHES, R. Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés.
capaz de componerse siguiendo criterios dialógicos o (quizá como São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.
iba a preferir nombrar líricamente el propio Paz), componiéndose
hecho una colcha de retazos. Calentando a las próximas FUENTES, C. La nueva novela hispanoamericana. Ciudad de
reflexiones, queda imposible no acordarse de un fragmento México: 1969.
específico de la retórica charla de agradecimiento de Paz por su
premiación al Nobel de Literatura el año de 1990: “Somos y no GÓMEZ-MARTÍNEZ, J. L. Teoría del ensayo. México: Unam, 1992.
somos europeos. ¿Qué somos entonces? Es difícil definir lo que
somos pero nuestras obras hablan por nosotros”. LAFER, C. Sua palavra se ajustava à criação e à crítica. In: MACIEL,
Es dejando su obra hablar por sí mismo que Paz ha buscado M. E. (organizadora). A palavra inquieta: homenagem a Octavio
nuevas sendas, ha profundizado las esquinas y ha multiplicado la Paz. Belo Horizonte: Autêntica: Memorial da América Latina, 1999.
fuerza del laberinto. Mientras les presenta a los lectores al cuerpo
y al espíritu de su pueblo, de alguna manera, todos descubren que LUKÁCS, G. Sobre la esencia y forma del ensayo (Carta a Leo
esos mexicanos son también argentinos, brasileños, Propper). In: ______. El alma y las formas. Barcelona: Grijalbo,
guatemaltecos, franceses, japoneses, australianos, alemanes, 1970.
tantos más… El laberinto ya es de todos. La soledad – mágicamente
– es compartida. MACIEL, M. E. Prefacio. In: ______. A palavra inquieta:
homenagem a Octavio Paz. Belo Horizonte: Autêntica: Memorial
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ZEA, L. Dialéctica de la conciencia americana. Biblioteca


Iberoamericana: Alianza Ed. Mexicana, 1976.
P á g i n a | 739

ARCHIMBOLDI, O ESCRITOR, A FAMA E O ANONIMATO ganharia boa publicidade e 25,000 francos de antecipo pelo
Rafael Gutiérrez projeto.
UFRJ Mais perto de nós, no tempo e no espaço, em 2010 a
escritora brasileira Paula Parisot passou sete dias confinada numa
“Los escritores han perdido su lugar como héroes culturales. caixa de acrílico de 3 por 4 metros numa livraria em São Paulo para
¿Pero por qué no pueden por lo menos competir con las estrellas promover seu romance Gonzos e parafusos. Um dos convidados e
del pop en su terreno? ¡Promovamos a los escritores como sexy y parte integrante da performance foi seu mestre e escritor famoso
fabulosos!” por sua reclusão Rubem Fonseca. Fonseca passou quase três horas
Manifesto da Revista Canteen. no local. Ajudou a servir café da manhã para a amiga e pupila,
abaixou para beijar a mão dela por uma portinhola e, parecendo
Em um artigo do New York Times de 2011, o historiador e fascinado, sussurrou-lhe por trás do vidro palavras carinhosas:
escritor de livros de viagens Tony Perrottet (2011), lembra algumas "Precisa comer, viu?"; "Tá tão magrinha"; "Chora não, meu bem".
estratégias usadas pelos escritores ao longo da história para se A imagem de Fonseca e Parisot nos leva à tensão entre a
autopromover e promover suas obras. Perrottet cita Balzac que vontade de reconhecimento de uma jovem escritora e a vontade
em “Ilusões perdidas” já observara que o maior problema a de anonimato do escritor consagrado. E aqui conecto o tema com
resolver pelo artista é como ser notado. Entre as estratégias a figura de Archimboldi, uma figura que tem me intrigado faz
menciona o balão de ar quente que Maupassant teria mandado tempo, a figura desse escritor oculto, que fugia da fama e do
sobre o Sena em 1887 com o nome de sua mais recente história Le reconhecimento. O mistério rodeia a figura de Archimboldi nas
Horla ou as anônimas e exaltadas resenhas que o próprio Walt quatro primeiras partes do romance 2666. Ninguém sabe nada
Whitman escrevia sobre seus livros: “An American bard at last!”, sobre sua vida: nem os críticos, nem os editores, nem seus leitores.
diria Whitman sem um ápice de falsa modéstia. Outro autor Seus livros aparecem sem fotos na orelha ou na quarta capa, seus
americano, Gore Vidal, famoso por suas frases engenhosas deixou dados biográficos são mínimos (escritor alemão nascido na Prússia
esta perola: “Nunca perco a oportunidade de ter sexo e aparecer em 1920), seu local de residência permanece desconhecido.
na TV”. Intrigava-me Archimboldi precisamente por habitar uma
Perrottet lembra também o comentado caso de George época na qual o escritor aparece como uma superestrela, uma
Simenon que em 1927 teria aceito um convite para escrever um época cheia de luzes, holofotes e exposição da intimidade tão
romance suspenso numa gaiola de vidro no Moulin Rouge por 72 acentuada como a nossa. E também quiçá me intrigava essa figura
horas. O público estava convidado para escolher os personagens, e a ênfase na obra de Bolaño por uma certa ética do fracasso e o
o tema e o titulo do romance e acompanhar sua execução ao vivo. anonimato em contraposição ao que vem acontecendo com sua
Finalmente a performance não seria levada a cabo, mas Simenon figura e sua obra depois da sua morte. Juan Villoro (2013) colocava
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bem a questão quando escrevia, em um artigo para o suplemento Tal vez Vila-Matas esteja pensando também em seu
cultural do jornal argentino Clarín, que "[...] el mundo suele adorado Robert Walser que via seu destino de reclusão e
encandilarse con lo que se le resiste y la posteridad lo transformó abandono da escritura como um destino feliz tal como pensava
en leyenda. La fama es un equívoco: el asocial Kafka está en todas que teria sido o caso de Hölderlin contrário à opinião generalizada.
las boutiques de Praga, el rostro del Che Guevara vende millones “Estoy convencido”, lhe diz Walser a Carl Seeling (2000, p. 48), “[...]
de camisetas y Bolaño es el superestrella que vivió para no serlo." que en los últimos treinta años de su vida Hölderlin no fue tan
E agora, enquanto preparava esta apresentação, percebi desdichado como lo pintan los professores de literatura. Poder
que é um tema que me persegue faz tempo e que se tornou soñar en un modesto rincón, sin tener que responder a continuas
precisamente matéria central para meu próprio romance. O que é pretensiones, no es ningún martirio”.
que leva um escritor a optar pelo anonimato e levar uma vida Em 2666, Hans Reiter conversa com Ingeborg sua mulher
afastada do mundillo literário e o reconhecimento público? O em seu pequeno apartamento de Colônia depois de terminada a
personagem de meu romance afirma que optou pelo anonimato Segunda Guerra. O casal discute os motivos que o levaram a
como uma forma de se diferenciar e afastar da trilha de escolher um pseudônimo (Benno von Archimboldi) para tentar
superexposição seguida pela maioria de seus contemporâneos publicar seu primeiro romance Lüdicke. Reiter quer pensar que o
algo que, segundo ele, estaria prejudicando a verdadeira fez para se proteger de uma possível investigação pelo assassinato
literatura. Algo muito parecido ao que diria Enrique Vila-Matas do funcionário nazista Leo Sammer: “Tal vez os americanos
(2012) em um texto intitulado Música para malogrados: “En el estejam me procurando – disse – Tal vez os policiais americanos e
preciso instante en que los escritores empezaron a ser vistos se alemães tenham juntado as peças [...] o mais seguro para mim é
malogró todo”. Em outro lugar, lembrando a Bolaño, Vila-Matas que se esqueçam de Reiter” (BOLAÑO, 2010, p. 762). Ingeborg não
(2013) aponta para o momento de felicidade do escritor antes da acredita plenamente em Reiter e um pouco depois daquela
fama: conversa disse a ele com um enorme sorriso: “Você tem certeza
[...] cuando pienso en él no puedo olvidarme de cierto que vai ser famoso!”.
periodo de felicidad de algunos artistas, de gloriosos días sin “Até aquele momento”, escreve Bolaño (idem),
gloria vividos antes de haber oído hablar del mundillo Archimboldi nunca tinha pensado na fama [...] que quando
literario, de las envidias, de los egos y el mercado: días en não se cimentava no arrivismo, cimentava-se no equívoco e
los que esos artistas fueron misteriosos y antisociales y, por na mentira. Além do mais, a fama era redutora. Tudo o que
mucho que deploraran moverse entre tanta desolación y ia parar na fama e tudo o que procedia da fama
tristeza, vivían y respiraban plenamente en su personal inevitavelmente se reduzia. As mensagens da fama eram
reino sagrado del arte [...] A veces, el tiempo de silencio es primárias. A fama e a literatura eram inimigas
el paraíso de los escritores. irreconciliáveis.
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É também uma mulher, a fotógrafa de escritores Brita Em uma passagem do romance 2666 define-se a escrita
Nilsson, personagem desse outro grande romance como uma sessão de hipnotismo, e o sujeito que escreve como um
contemporâneo sobre escritores ocultos, Mao II de Don Delillo, sujeito vazio. Uma ideia em alguma medida próxima das teses
quem relaciona o gesto de ocultação à vaidade do autor, ou numa sobre a morte do autor, a impessoalidade da escrita, a supressão
versão menos romântica, simplesmente a uma personalidade do autor em proveito da escritura, etc. Não seriam estes casos de
tímida, enquanto o escritor e personagem central do romance, Bill escritores ocultos ou reclusos (Salinger, Archimboldi, Pynchon, Bill
Gray, afirma que: Gray) exemplares para pelo menos desestabilizar de novo a tirania
Quando um escritor não mostra a cara, ele se torna um do autor? Tal vez em principio, mas o paradoxal é que o gesto de
sintoma localizado da famosa relutância de Deus a aparecer ocultação do autor que serviria para que os leitores se
[...] todo o mundo tem certo fascínio pela ideia do concentrassem unicamente na obra e não na sua vida produz o
distanciamento. O lugar inacessível é necessariamente efeito contrário e o mistério da biografia passa a ocupar um lugar
bonito, acho. Bonito e tal vez um pouco sagrado. E uma
central ofuscando, às vezes, a própria obra atrás da mitologia do
pessoa que se torna inacessível tem uma graça e uma
silencio e a reclusão do escritor.
santidade que o resto de nós invejamos. (DELILLO, 1997, p.
45). A literatura de Bolaño parece colocar em cena
precisamente essa possibilidade: a ausência da obra/a
Ambos romances coincidem na exploração de vidas de preeminência da vida. Poderíamos quiçá ampliar para toda a obra
escritores que optaram por não dar a cara para o mundo literário de Bolaño a caracterização que Alan Pauls (2008, p. 328) fazia de
e seu público. E coincidem também, como mostrava o escritor e Los detectives salvajes como
crítico Peter Elmore (2008, p. 284), na aproximação entre a figura [...] un gran tratado de etnografia poética [...] porque hace
do escritor e a figura do criminal ou do terrorista. “[...] en ambos brillar a la obra por su ausencia [...] En ese sentido, a lo largo
casos”, diz Elmore, “la contraparte del escritor es el criminal, de toda su carrera, Bolaño no habría escrito sino una sola
político o común”. Um tema caro a Bolaño e que poderia se cosa, un libro único, a la vez entusiasta y doliente, eufórico
relacionar também com a questão da fama se pensarmos a via do y fúnebre: una Gran Introducción a la Vida Artística.
crime como outro caminho para o reconhecimento e o heroísmo. Em nenhum momento das 848 páginas (na edição em
Walter Benjamin em sua Crítica da violência-crítica do poder português) de 2666 nos encontramos diretamente com a obra de
(1982), vê na figura do criminoso esse herói mítico que desafia ao Benno von Archimboldi. Conhecemos seus títulos, seus temas e
destino, o único capaz de se enfrentar às leis que são impostas algumas características de seu estilo. Sabemos o que pensam os
pelos poderosos – daí se compreenderia a admiração pelos críticos sobre a obra de Archimboldi, sabemos sobre as disputas
grandes delinquentes da história. Para Delillo, o terrorista interpretativas a que tem dado lugar entre diversos grupos de
contemporâneo teria ocupado o lugar que antes pertencia ao críticos literários, mas a obra como tal nunca aparece. O que
escritor como aquele que podia alterar a vida interna da cultura.
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aparece é a vida de Archimboldi, sua biografia, desconhecida para ensaios fotográficos e entrevistas, “tomar de vez em quando um
seus leitores na ficção, mas conhecida para nós, tornada matéria porre com os outros escritores” (como me recomendou muito
da ficção. seriamente uma agente literária carioca para o sucesso de minha
É precisamente a vida do autor o que interessa para Bolaño. carreira como escritor) ou então afastar-se desse mundo,
São os rasgos de uma personalidade os que determinam sua continuar escrevendo no quase anonimato sem esperar nada em
importância como escritor, seu lugar na escala de valores troca, nenhum reconhecimento, nenhuma fama. Bolaño e
bolaniana. Algo que aparece frequentemente na sua obra, tanto também Vila-Matas parecem acreditar numa saída intermédia:
em suas ficções como em seus textos críticos ou crítico-ficcionais. entrar no sistema, mas sem aceitar totalmente suas regras,
Archimboldi parece encarnar muitas dessas características tão tentando quebrar seus códigos. Até onde isto será ainda possível?
positivamente vistas por Bolaño: a valentia, a solidão, a decisão de Perto do final de A parte de Archimboldi, a última parte que
se manter no anonimato, longe do mundillo literário, longe dos compõe 2666, a baronesa Von Zumpe agora encarregada da
centros de poder, a vida errante e à intempérie, o compromisso editora que publica os livros de Archimboldi diz a ele que seria o
radical (quase sacrificial) com a literatura. momento de dar uma entrevista: “Agora você é famoso”, diz a
Essa seria também a própria autofiguração do escritor, a baronesa, “uma coletiva não seria mal. Tal vez um pouco excessiva
imagem com a qual Bolaño queria ser lembrado, aquela imagem para você. Mas pelo menos uma entrevista exclusiva a algum
que ele próprio contribuiu a criar com suas intervenções públicas, jornalista cultural de prestigio”. “Só nos meus piores pesadelos”,
entrevistas, discursos e textos de corte mais pretensamente diz Archimboldi (BOLAÑO, 2010, p. 819).
autobiográfico. Mas a tensão entre esse ideal de anonimato, essa Além de por em cena a recusa ao reconhecimento público
época feliz como a chamaria Vila-Matas, e a vontade de e problematizar as suas consequências para a vida do autor,
reconhecimento e fama faz parte também de sua biografia. parece-me que a história de Archimboldi leva também implicada
Archimboldi escolhe um pseudônimo porque sabe ou pressente uma ética do trabalho e da vida do artista. Bolaño gostava de
que será famoso e quer se proteger das consequências da fama. repetir que tínhamos que voltar a ler Borges. Vou seguir seu
Bolaño nunca fugiu da fama e o reconhecimento e eu penso conselho e terminar com uma cita do prólogo a seu livro de
inclusive que curtiu seu momento de glória, tentando manter, poemas Los Conjurados, publicado em 1985, um ano antes de sua
apesar de todo, algumas marcas de resistência. morte. Borges (1994, p. 455) diz que está com mais de oitenta anos
Nesse triangulo formado pela pressão do sistema, a e se sente como uma “cansada terra”, mas que “Sigo, sin embargo,
vontade de reconhecimento e alguma resistência ainda possível na escribiendo. ¿Qué otra suerte me queda, qué otra hermosa suerte
literatura parece debater-se nosso escritor contemporâneo. Seguir me queda? La dicha de escribir no se mide por las virtudes o
as regras do sistema: ir a coquetéis, autopromover-se no Facebook flaquezas de la escritura. Toda obra humana es deleznable, afirma
e no Twitter, ir a eventos literários e talk shows, participar de Carlyle, pero su ejecución no lo es”.
P á g i n a | 743

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P á g i n a | 744

FRAGMENTOS DE UM ANOITECER: NOTAS PARA UMA LEITURA Inicialmente proposto por Theodor W. Adorno, em relação
TARDIA DE ANTES QUE ANOITEÇA, DE REINALDO ARENAS à música de Beethoven, será a definição de Said, em sua obra Estilo
Raphaella Mendes Silva de Castro Lira Yaakoub tardio (2009) que irá ganhar profundidade e espessura. Ao ser
UFRJ caracterizado a partir de uma compreensão do idioma encontrado
por artistas que se percebem ao cabo de suas existências, o estilo
Preâmbulo tardio se configura como uma via de leitura possível para a
O texto e a nota à margem, o fragmento que tenta, compreensão da obra daqueles que tinham plena consciência da
inutilmente, emular o discurso de um autor que, à beira da morte, morte. Sobreposição delicada de obra e biografia individual, o
não cessa de contar a própria vida. Antes que anoiteça (1992), estilo tardio se traduz na expressão encontrada por artistas que,
publicação póstuma do escritor cubano Reinaldo Arenas, é aqui o ao serem confrontados com a finitude e o desaparecimento,
impulso que movimenta a mola teórica da análise. Morto em 1990, trilharam uma rota lúcida de contrariedade e rebeldia. Mais do que
vitimado pela AIDS, dedicou seus últimos dias às narrações que uma possível expressão do choque entre o ser e seu fim, o estilo
integram a obra. No meio do caminho entre ficção, autoficção e tardio também expressa a busca por uma linguagem que não se
autobiografia, Antes que anoiteça é o discurso ininterrupto e encontra nos domínios do que se conhece, uma possibilidade de
esfacelado de um indivíduo que se sabe morrendo. Ao saber que o traduzir em palavras o inominável.
fim é real e iniludível, a decisão de contar a própria vida parece se Edward Said não foi, no entanto, o único que sucedeu
sobrepujar ao resto. Exilado e doente, Arenas grava inúmeras fitas Adorno na tentativa de se debruçar sobre as obras produzidas por
com o que mais tarde será convertido no livro. artistas que beiravam à morte. Também o escritor alemão
Para além do que podem expressar os próprios fatos Hermann Broch escreveu sobre essa forma de expressão tão
biográficos da vida do autor sobre a natureza conturbada da obra, particular, que parece desafiar o que se conhece da obra de um
uma via de leitura que se constitui como possível é o estilo tardio. determinado artista, na medida em que se coloca na contramão
O crítico literário Edward W. Said dedicou seus últimos dias de vida de uma produção de toda uma vida. Broch (2014) afirma que a
e saúde à escrita de uma obra que não viveu para ver publicada. proximidade da morte e sua subsequente consciência, aliada à
Na encruzilhada entre teoria e biografia, parece refletir as escolhas possibilidade de produzir uma última obra, seriam dádivas. É a
do autor, seus afetos e suas leituras. A figura do crítico que, passagem a um novo tipo de expressão, que normalmente
enfermo e terminal, dedica seus últimos dias a estudar as obras transcende aquilo que já se conhece de um artista e que, em
pulsantes que teriam sido produzidas por outros artistas, como numerosos casos, transcende seus contemporâneos, como foi o
ele, também enfermos e terminais, coloca o próprio conceito de caso do próprio Beethoven, também citado por Broch.
estilo tardio em mise-en-abyme. Assim, analisar o estilo tardio que emerge de Antes que
anoiteça significa não apenas lançar luz sobre a obra do escritor
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cubano, como também explorar uma teorização que se constrói no Eu já não existia. Não era jovem. Naquele lugar, pensei que
encontro entre biografia e obra, entre uma teoria que se desdobra a morte era o melhor que pudesse me acontecer. Sempre
em possibilidades infinitas e uma obra lacunar, incompleta e, ao considerei o fato de mendigar como um ato miserável e a
mesmo tempo, concluída em sua estrutura fragmentada. É vida como um favor. Ou se vive conforme se deseja, ou é
melhor acabar com a vida. Em Cuba, eu tinha suportado
também na obsessão das notas, que, à margem dos textos,
inúmeros sofrimentos, pois a esperança de fuga e a
tentarão elucidar os pontos nevrálgicos sobre a obra de Arenas,
possibilidade de salvar meus manuscritos sempre me deram
sobre a teoria que aqui se explora, sobre o exílio voluntário de um um grande estímulo. Agora, a única fuga que me restava era
latino-americano, e as respectivas repercussões de cada um desses a morte. (ARENAS, 1992, p.9)
pontos no universo exegético que aqui se ergue à sombra da
própria obra analisada, em forma de notas, também fragmentado O escritor, ao analisar sua vida pregressa, já parece ver a
e esfacelado. morte como a única saída possível. Se já não fosse o fim de tudo
aquilo que é vivo, a morte passa a ser encarada como solução para
Nota número 1: a autobiografia impossível a velhice que se aproxima, e também para a doença que consome
Antes que anoiteça se apoia na – anunciada e impossível – o corpo. A vida já não oferece mais esperança de nenhuma
tarefa de reconstruir a vida de Reinaldo Arenas. Desde a nota natureza, as agruras enfrentadas pelo autor – que transparecem
introdutória que abre o livro, a situação do escritor já pode sob o título, alusão clara ao período em que passou no bosque de
delineada: “Eu pensava que ia morrer. Durante meses, vinha tendo Havana, escondido, fugitivo do regime e escrevendo enquanto
febres altíssimas. Consultei um médico e o diagnóstico foi AIDS” tinha a luz do dia – já trouxeram o que poderiam trazer. Apesar de
(ARENAS, 1992, p.9). Apesar da inegável mescla de factual e ter saído de Cuba, e do que se encontra nas páginas da obra
conteúdo verídico, um dos pontos que emerge do relato de Arenas derradeira de Reinaldo Arenas se aproximar com frequência de um
é uma reconstituição afetiva da pobreza, da infância, e da Cuba exercício ficcional, em que as memórias e reminiscências do
primitiva de sua infância. O diagnóstico que recebe no desterro escritor parecem se mesclar a trechos de caráter digressivo, a
parece apenas contribuir para uma espécie de retorno situação de Cuba, em especial a situação política, segue sendo
emocionado às memórias de uma pátria perdida, ausente e também uma espécie de norte que se mistura ao diálogo
irreconhecível pelo regime que a dominava. fragmentando e confuso da obra, que por vezes parece ter como
Na realidade, será também nesse fragmento introdutório próprio destinatário Fidel Castro.
que poderemos identificar um tom particular que irá atravessar Se é possível afirmar que toda autobiografia visa
muitas das narrativas que integram a obra, como se o escritor reconstruir uma história pessoal, dar sentido através do
estivesse escrevendo de um lugar externo à existência humana, ordenamento cronológico dos fatos que a integram, também é
como se já não vivesse: plausível afirmar que se trata da maneira encontrada pelo próprio
autor de reivindicar para si mesmo a autoria de sua existência.
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Antes que anoiteça, no entanto, se inscreve em um patamar interpretação para algumas das passagens que constituem Antes
distinto: os episódios que integram a obra não possuem ordem que anoiteça.
particular, e por mais que reconstruam o percurso da vida do Vincent Colonna, em seu artigo Tipologia da autoficção
autor, jogam a todo o tempo com as fronteiras entre real e fictício. (2014), afirma que a autoficção biográfica se definiria com base na
presença do escritor enquanto herói da própria história: “[...] uma
Nota número 2: seriam os deuses autoficcionais? espécie de pivô em torno do qual a matéria narrativa se ordena,
É comum afirmar-se que os atos e comportamentos mas fabula sua existência a partir de dados reais, permanece mais
atribuídos aos deuses da mitologia grega tinham como referência próximo da verossimilhança e atribui a seu texto uma verdade”
e fonte de inspiração o comportamento humano. As intrigas, (COLONNA, 2014, p.45). A presença de algum nível de fabulação
traições e falsidades cometidas por Zeus, Apolo e Afrodite nada na definição apontada por Colonna parece ser uma via mais
mais seriam que a maneira encontrada pelo ser humano de produtiva para a tentativa de abordagem do que ocorre nas
projetar seu imaginário no desconhecido território dos deuses. páginas da obra de Reinaldo Arenas do que simplesmente aceitar
Apesar de nada na hipótese que se desenvolve aqui como inquestionável o paradigma autobiográfico.
remeter especificamente ao panteão mitológico grego, o processo A persona de Reinaldo Arenas que pode ser lida em sua
que fez com que a sociedade de então preenchesse as lacunas do última obra é também sua última criação. Ao imaginar o futuro e
desconhecido com suas narrativas pessoais em muito se se exilar na morte que se aproxima, o autor se recria como
assemelha ao tipo de processo autoficcional que se desenrola nas personagem e faz com que suas memórias se pareçam muito mais
páginas de Antes que anoiteça. Se a confluência entre o que teria com uma obra ficcional do que com uma autobiografia nos moldes
sido de fato a vida real de Arenas, que emerge dos inúmeros tradicionais:
fragmentos que constituem a obra, e o que constituiria uma Eu tinha dois anos. Estava nu, de pé; inclinava-me e lambia
espécie de rememoração incerta também disputam lugar sob o a terra do chão. O primeiro sabor do qual me lembro é o
abrigo da narrativa, por que falar em processo autoficcional, em sabor da terra. Eu comia terra com minha prima Dulce
vez de autoficção? María, que também tinha dois anos. Eu era um menino
fraco, mas com uma barriga enorme por causa das
Dentre os conceitos que gravitam no universo teórico-
lombrigas que cresciam no meu estômago, de tanto comer
crítico da literatura, é provável que um dos mais problemáticos
terra. Comíamos a terra na roça da casa; a roça era o lugar
seja a autoficção. Termo cunhado em 1977 pelo escritor e crítico onde dormiam os animais: cavalos, vacas, porcos, galinhas,
francês Serge Doubovsky, em torno de sua definição, até hoje, é ovelhas. A roça ficava pertinho de casa.
impossível afirmar que exista unanimidade. Fonte constante de
Alguém ralhava com a gente porque comíamos terra?
desacordos, também é no vértice de um conceito tão particular e
Quem seria essa pessoa? Minha mãe, minha avó, uma das
controverso que podemos encontrar mais possibilidades de
minhas tias, meu avô? (ARENAS, 1992, p.17)
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A tentativa de reminiscência, por parte do narrador, de pessoais que fornecemos, frente a uma questão qualquer, são a
uma infância tão remota quanto possível já imediatamente sugere silenciosa concatenação de nossas reminiscências somadas à
que os lapsos da memória possam ter sido preenchidos pela tênue parcela criativa, ou melhor, ativa. Esse é, talvez, um dos motivos
ficção do cotidiano. A narração que atravessa em especial os que esteja alinhado ao nosso fascínio pelo tecido ficcional que
trechos em que o autor afirma relembrar um episódio da infância integra as obras literárias. Por mais que a probabilidade de que a
soam particularmente ficcionais. Paul Ricoeur (2007), na nota de literatura seja, para empregar aqui uma figura de Jorge Luis
orientação que antecede o primeiro capítulo de A memória, a Borges, um eterno repetir dos mesmos temas, a flor à contrapelo
história, o esquecimento, afirma que a fenomenologia da memória do tempo, impossível e ainda assim materializada no presente, a
sempre foi confrontada com o fato de que a representação de um maneira como a ficção preenche as lacunas daquilo que já
passado, ainda que através da linguagem, pareça ser uma imagem. conhecemos segue sendo a resposta mais comum que a literatura
A maneira como lidamos, individual ou coletivamente, com aquilo pode dar àqueles que sugerem o esgotamento dos temas.
que que constitui o cerne de um inventário de memórias já é por O que, no entanto, relaciona a ficção, a memória, e a
si só um desafio à categorização de uma obra como autobiografia. narrativa aqui em questão, Antes que anoiteça? Ao tentar
O desejo de narrar a própria existência, o modo como acessamos reconstruir seu próprio – e reconhecido – percurso fragmentado
e selecionamos as narrativas que integram o passado, e o fato de de vida, Arenas acaba elaborando uma narrativa que também
estarmos sempre sujeitos à erupção involuntária de fatos e contraria o que se conhece como modelo tradicional do discurso
acontecimentos que julgávamos soterrados, são apenas mais autobiográfico. Ao remontar uma infância tão remota, que grande
alguns dos complicadores à possível categorização. Na verdade, parte das pessoas sequer consegue acessar, o que parece ficar
desde que o narrador proustiano mergulhou a madeleine numa evidente no texto é o modo como o autor reivindica para si sua
xícara de chá, as relações entre narrador e memória jamais foram própria origem. Exercício autoficcional de um sujeito em diáspora,
as mesmas. perseguido e isolado no exílio da doença e do desterro, ao
Paul Ricoeur ainda acrescenta, na mesma nota referida rememorar o dia em que comera terra com a prima, a vida que
anteriormente, que a memória, “reduzida à rememoração, opera Arenas parece escolher retratar em sua obra final acaba se
na esteira da imaginação” (RICOEUR, 2007, p.25). Por mais que a construindo na contramão na história do próprio país que o exilou.
imaginação claramente não possua o mesmo estatuto de outras Apesar de não conseguir dissociar sua origem da pátria, mãe
áreas do conhecimento, é através dela, todavia, que se dá nossa ingrata, a volta ao passado retira de Cuba o pertencimento de sua
mediação com o conhecimento que adquirimos ao longo da vida, existência.
é por meio dela que expressamos nossos afetos, e também é ela Em A ilusão biográfica, Pierre Bourdieu afirma:
em grande parte responsável pela caracterização do que [...] o fato de que a vida constitui um todo, um conjunto
consideramos como sendo nossas individualidades. As respostas coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido
como expressão unitária de uma “intenção” subjetiva e
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objetiva, de um projeto: a noção sartriana de “projeto entre vida e ficção estão mesclados. Não há possibilidade de narrar
original” somente coloca de modo explícito o que está ou apenas se ater ao que foi – ou que teria sido – a vida de Arenas.
implícito nos “já”, “desde então”, “desde pequeno”, etc das Ao observar o passado com o olhar do presente, filtrado pela
biografias comuns ou nos “sempre” [...] das “histórias da desilusão, pela doença e pelo exílio compulsório, o que resta ao
vida”. Essa vida organizada como uma história transcorre,
autor é um relato de uma infância idealizada, perdida no interior
segundo uma ordem cronológica que também é uma ordem
de uma Cuba primitiva e pouco desenvolvida, cuja história se
lógica, desde um começo, uma origem, no duplo sentido de
ponto de partida, de início, mas também de princípio, de confunde com a sua própria.
razão de ser, de causa primeira, até seu término, que
também é um objetivo. O relato, seja ele biográfico ou Nota número 3: estilo tardio
autobiográfico, como o do investigado que “se entrega” a Pouco antes de morrer, já bastante doente e debilitado, o
um investigador, propõe acontecimentos que, sem terem se crítico começou a dedicar grande parte de seu tempo à escrita
desenrolado sempre em sua sucessão cronológica [...] dessa obra, que viria a ser sua última e que foi publicada
tendem ou pretendem organizar-se em sequências postumamente. Ao retomar uma teoria que, na verdade, pertencia
ordenadas segundo relações inteligíveis. (BOURDIEU 1986, a Theodor Adorno, e aprofundá-la, Said coloca em evidência o
p.184) modo como o ser humano – em especial, o artista – parece
A ideia de que é possível reconstruir o que é a realidade particularmente contrário à morte. Em Estilo tardio, Edward Said
acidentada da vida de um determinado indivíduo parece repousar afirma que:
na crença de que a ditadura cronológica que nos é imposta pelo Há uma tensão inerente ao estilo tardio que o distancia do
nascimento e pela morte podem, de alguma maneira, fornecer mero envelhecimento burguês e que sublinha a crescente
respostas e fazer sentido. É provável que a coerência de uma vida consciência do distanciamento, exílio e anacronismo – uma
consciência que o estilo tardio expressa e, o que é mais
só exista para aquele que a vive, para todos os outros a quem os
importante, utiliza para se sustentar formalmente. (SAID,
fatos são apresentados, despidos de sua organização temporal e
2009, p.37)
referencial, o sentido pode parecer distante ou mesmo inacessível.
Assim, ao apelar para a sucessão cronológica de fatos que A vida não é a responsável direta pela erupção do estilo
constituiria sua própria vida, o autor também preenche uma tardio na obra de um artista, o que torna essa erupção inevitável é
lacuna de expectativa que existe no horizonte de leitura de um o confronto entre um ser que se extingue e seu fim. O estilo tardio
texto supostamente autobiográfico, conseguindo colocar em se traduz na expressão encontrada pelo artista que, ao ser
evidência uma ordem inteligível dos acontecimentos. Ao retornar confrontado com a finitude e o desaparecimento, decide trilhar
ao momento em que teria comido terra com sua prima, a narrativa uma rota lúcida de contrariedade e rebeldia. O estilo tardio,
já nasce inscrita num patamar de fabulação em que os limites portanto, por mais que se coloque como um conceito difícil de ser
definido de maneira objetiva, pode, ainda assim, ser descrito como
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a expressão peculiar adotada por artistas que sabem que vão - Ouça bem o que vou lhe dizer; preciso de mais três anos
morrer. Na contramão do senso comum, o artista, às portas da de vida para terminar minha obra, que representa minha
morte, não encontra tranquilidade, mas contradição e rebeldia. vingança contra quase todo o gênero humano.
Para além do choque entre o ser e seu irrefreável fim, o tardio se Acho que o rosto de Virgilio assumiu um ar de profunda
configura como uma busca por uma forma específica de seriedade, como se o que eu estava pedindo fosse algo
expressão, o desejo de se expressar numa linguagem que possa extraordinário. Já se passaram quase três anos desde
talvez arranhar a superfície da experiência humana e traduzir a aquele pedido desesperado. Meu fim é iminente. Espero
consciência da própria morte. Exilado num tempo incerto, o artista manter a lucidez até o fim.
– ou, no presente caso, o escritor – produz para um futuro que não Obrigada, Virgilio. (ARENAS, 1992, p.16)
verá, uma obra que, em toda as suas contrariedades, tenta dar
Tanto o modo como o autor diz se dirigir à fotografia de
corpo à certeza do fim que se avizinha.
Piñera quanto pelo pedido feito em si, a cena supostamente
Desse modo, já nas linhas frágeis que o definem, o
descrita por Arenas, após uma das diversas internações que se
estilo tardio acaba se colocando como uma sobreposição de obra
seguiram ao período do diagnóstico da AIDS, é perceptível o tom
e biografia individual, uma exceção em que os espaços que se
vingativo e amargo do desejo que parece impulsionar a escrita da
mostram incompreensíveis na obra podem ser preenchidos pela
obra. Narrar a história da própria vida não é um ato de vingança
projeção da subjetividade agonizante daquele que a produz. O
contra a pátria, contra Fidel Castro, contra o exílio, contra todas as
estilo tardio também não deixa de ser uma resposta deixada para
adversidades que parecem tê-lo levado até ali. O tardio latente
aqueles que ficam, aqueles para quem a morte é problema, por
que emerge da última obra – não publicada, mas certamente
aqueles que souberam que iam morrer.
idealizada – de Arenas ecoa rebeldia. Se, evidentemente, o autor
Ainda em Estilo tardio, Said (2000, p.34) também afirma
sempre havia vivido na contramão do regime, por sua
que a experiência particular de vivenciar o a condição tardia seria,
homossexualidade explícita, pelos escritos que sempre desafiaram
para o artista, “viver rumo ao fim, com plena consciência, com
a censura cubana, sua última obra, narrativa esfacelada de uma
plena memória e com total (e mesmo extraordinária) ciência do
vida que se consumiu em doença, literatura e contradições, tem
presente”. O postulado da lucidez rumo ao fim vai de encontro à
como principal objetivo não legar à própria pátria sua origem. Ao
figura do escritor cubano, doente e debilitado, ilhado num
reconstruir o acidental percurso de sua vida, e dele tentar extrair
pequeno apartamento em Nova York, escrevendo:
uma lógica interna, Reinaldo Arenas está, principalmente,
Quando voltei do hospital para o meu apartamento, fui me
arrastando até uma fotografia de Virgilio Piñera que está na retirando seu nascimento das mãos do país que o havia empurrado
parede; ele morreu em 1979. Eu lhe disse o seguinte: ao exílio. Sua vida passa a ser uma obra de sua própria autoria, e
em diversos momentos a narrativa evidencia a relação dura e
desigual do regime cubano com seus cidadãos.
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As linhas que orientam e balizam o que reconhecemos evidência o modo como o espaço da narração de um cidadão da
como estilo tardio são a contrariedade, a rebeldia, a lucidez diáspora, de um exilado, é incerto, e também como a obra em si é
perante o fim que se aproxima, e a busca por uma linguagem um testamento político de um enfermo que sobreviveu: Antes que
particular. O que se desenrola nas páginas de Antes que anoiteça anoiteça é, sobretudo, desde o título, o relato de um condenado à
não poderia, assim, se alinhar mais diretamente a essas morte.
características. Ainda no texto que antecede a obra, o próprio
autor afirma: Epílogo
Algum dia, finalmente, o povo derrubará Castro e a primeira A voz que emerge da obra final de Reinaldo Arenas não
coisa que deverá ser cumprida será acusar todos aqueles teme mais a repressão exercida tão fortemente pelo governo
que colaboraram impunemente com o tirano. As pessoas cubano e não hesita em se levantar como dissonante, como
que promovem um diálogo com Castro, sabendo (como delator ativo de um regime que havia antes ajudado a fundar. A
todos sabem) que Castro não largará o poder de livre e
desilusão com o regime se estende também àqueles que o
espontânea vontade, pois necessita de apenas uma trégua
apoiaram, aos que foram, por tanto tempo, a mão invisível de um
e de ajuda econômica para se fortalecer, são tão culpadas
quanto os carrascos que torturam e assassinam o povo, estado que sufocou e oprimiu indistintamente seus cidadãos. A
talvez até mais; de fato, em Cuba vive-se num clima vida que Arenas escolhe retratar em sua obra final é, de certo
absoluto de terror, mas no exterior pode optar por uma modo, inseparável da realidade de Cuba. O exílio, não apenas
certa dignidade política. (ARENAS, 1992, p.14) físico, mas também temporal, que isola o autor, acaba colocando-
o na contramão de tudo aquilo que havia sido sua prosa, conhecida
Ainda que a morte esteja à espreita, parece ser uma
até então pelos matizes surrealistas.
preocupação real a vida em Cuba, não apenas aquela que se
A noite que cai sobre a vida do autor, que também era a
construiu com a ascensão do regime castrista, mas principalmente
noite que se fechava sobre o bosque de Havana no auge da
um futuro utópico no qual a população terá força para se libertar
perseguição política e ideológica, é, de maneira metonímica, a
do jugo ditatorial. Escrevendo para um futuro que obviamente não
noite que cai sobre Cuba à medida em que o regime intensifica seu
verá, a lucidez perante o fim se materializa no desejo de ver
controle sobre o povo. Assim, quando Arenas decide que seu
punidos os torturados e todos os que são coniventes com Castro.
último livro será sua autobiografia, a sobreposição de obra e
As referências que se entrecruzam em Antes que anoiteça
biografia que é o estilo tardio ganha um novo significado. Ao fim,
trazem à tona um narrar focado na rebeldia, no afastamento cada
o autor escreve sua vida, se transforma em seu próprio criador,
vez mais latente entre o autor e sua própria existência, na
deixa a si mesmo como legado de seus escritos, (e) retira sua
fragmentação narrativa que reflete como as reminiscências da vida
origem das mãos de seu país. Seu nascimento passa a ser do
pessoal do autor estão mescladas às imagens de Cuba. O discurso
domínio do literário, a vida de Reinaldo Arenas que será conhecida
interrompido e repleto de contrariedades também coloca em
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para sempre será a vida que o próprio autor tratou de reconstruir CERVERA ARBOLEYA, Jesús. Cuba y los cubamericanos: el
por meio da ficção. Por mais que Antes que anoiteça possa ser, no fenómeno migratório cubano. La Habana: Fondo Editorial Casa de
entanto, descrito como uma autobiografia, é a expressão máxima las Américas, 2013.
de um escritor que escreve para um mundo onde sua morte já é
realidade. Exercício autoficcional e símbolo de um exílio em vida COLONNA, Vincent. Tipologia da autoficção. IN: NORONHA, Jovita
fruto do encontro inexorável com a morte, o tardio é a linguagem Maria Gerheim. (org.). Ensaios sobre autoficção (Trad. Jovita Maria
encontrada pelo autor para dar forma às contrariedades de uma Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes). Belo Horizonte:
vida que se extingue. O texto híbrido, livre das amarras da vida, se Editora UFMG, 2014.
converte na tradução da consciência de um homem que se imagina
morto e que escreve para aplacar a noite irrefreável que se RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução
anuncia, sua vida que se extingue, o futuro que se apaga. de A. François et al. Campinas: Unicamp, 2007.

Referências SAID, Edward. Estilo tardio. Tradução de S. Titan Jr. São Paulo: Cia
ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Tradução de I. Cubric. Rio das Letras, 2009.
de Janeiro: Record, 1992.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Tradução de P. Neves. São


Paulo: Martins Fontes, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. (Org.). Usos e


abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1986.

BROCH, Hermann. Mito e estilo maduro. In: Espírito e espírito de


época. Tradução de M. Backes e C. Abeling. São Paulo: Benvirá,
2014.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Tradução de A. R. Lessa


e H. P. Cintrão. São Paulo: Edusp, 2000.
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A IMAGINAÇÃO DA HISTÓRIA EM LA GUERRA CARLISTA, DE participação na Guerra Civil foi exitosa, considerando que, apesar
RAMÓN DEL VALLE-INCLÁN do apoio carlista ao Exército Nacional contra o Exército
Raquel da Silva Ortega Republicano, foram perseguidos e relegados ao ostracismo
UESC (CLEMENTE, 2011).
Podemos considerar como elementos determinantes para
Este artigo tem como objetivo apresentar, de maneira o surgimento do conflito, além da disputa pelo trono, a
introdutória, a história das Guerras Carlistas e analisar como o personalidade dúbia e as atitudes questionáveis de Fernando VII,
escritor espanhol Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) interpreta que serão determinantes nos eventos que levam ao conflito.
este evento histórico e o reelabora em suas obras 1 .
Apresentaremos a história do Carlismo, enfatizando a figura de Fernando VII, El Deseado
Fernando VII, o problema da sucessão e como o este evento se Antes do surgimento do Carlismo, a Espanha foi governada
relaciona com as questões da modernidade, temática que será por um Carlos, Carlos IV, que abdica ao trono em 1808,
determinante na produção literária de Valle-Inclán. Também favorecendo assim ao seu filho mais velho, Fernando VII, que
analisaremos o Carlismo de Valle-Inclán, isto é, como o autor assume o trono no mesmo ano.
recupera os relatos escutados durante sua infância e os transforma Fernando VII governa o país por pouco tempo, apenas até
em matéria narrativa, utilizando como objeto de análise a trilogia a invasão napoleônica em 1808, mesmo ano em que tinha
La Guerra Carlista (1908-1909). assumido o trono. Durante o período da invasão, a família real se
refugiou na França. O fato de buscarem asilo no país de origem do
O Carlismo invasor é bastante chamativo. De fato, Clemente afirma que
As Guerras Carlistas foram guerras civis que ocorreram Fernando VII nutria grande admiração por Napoleão. De acordo
devido à disputa pelo trono ao longo do século XIX na Espanha, com o autor, enquanto o exército napoleônico investia contra
gerando uma nova doutrina política, o Carlismo. Em total foram Espanha, Fernando VII o felicitava. Esta admiração teria chegado
três guerras: a primeira, de 1833 a 1839; a segunda, de 1846 a ao ponto de Fernando VII pedir que Napoleão o aceitasse como
1848 e a terceira de 1872 a 1876. Os partidários do Carlismo seu filho adotivo, mesmo sabendo que o exército de Napoleão
atuaram também na Guerra Civil espanhola (1936-1939). oprimia seu país (CLEMENTE, 2011, p. 15).
Nenhuma das guerras alcançou seu objetivo: destituir Isabel II do Ainda de acordo com Clemente, o alinhamento entre
trono e devolvê-lo a Carlos V (e posteriormente Carlos VII). Nem a Napoleão e Fernando VII foi tão intenso que Napoleão devolve o

1
Este estudo faz parte dos primeiros escritos que conformarão a tese de Letras Neolatinas (UFRJ), intitulada O Carlismo de Valle-Inclán: a modernidade
doutoramento desenvolvida pela autora no Programa de Pós-Graduação em antimoderna em La Guerra Carlista e El Ruedo Ibérico.
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governo voluntariamente a Fernando VII, quando começa a Cristina de Nápoles, tem uma filha, Isabel. Durante muito tempo,
perceber que a situação na Espanha já não lhe era mais favorável, a tradição espanhola dizia que as mulheres podiam assumir o
devido à articulação dos grupos liberais com a Igreja. trono na ausência de um herdeiro homem. Em 1713, o Rei Felipe
Enquanto isso, na Espanha, a população ansiava pelo V promulga a Lei Sálica, que determinava que as mulheres só
retorno de Fernando VII, o que gera o apelativo El Deseado. poderiam assumir o trono na ausência total de herdeiros homens
Efetivamente, Fernando VII retorna a Espanha em 1814 e encontra na linha principal (filhos) e laterais (irmãos e sobrinhos). Sendo
uma situação política diferente da que havia deixado. A monarquia assim, de acordo com esta lei, Isabel não poderia ser rainha uma
absolutista do seu primeiro governo foi substituída por um regime vez que havia um herdeiro lateral, seu tio Carlos María Isidro de
constitucional de caráter liberal e com a presença de cortes Borbón. Como já consideravam certo a sua ascensão ao trono,
legislativas. No entanto, o clero, as classes mais favorecidas e o vários partidários do absolutismo se aproximaram dele para
setor rural não estavam de acordo com esse novo rumo político e garantir influência no momento em que ele assumisse (GIL, 2008,
desta forma, Fernando VII não teve grandes dificuldades em p. 11).
reestabelecer o absolutismo (GIL, 2008). A retomada do Carlos IV, pai de Fernando VII e de Carlos, revoga a Lei Sálica
absolutismo endurece o conflito entre absolutistas e liberais, que em 1789, no entanto, esta revogação nunca foi publicada
já vinha se formando há algum tempo. Em 1820, um golpe militar oficialmente e por isso não era considerava válida. Quando nasce
impulsionado pelo liberal Riego obriga a volta do regime a filha mulher de Fernando VII, este recupera a ideia da revogação
constitucional. No entanto, a existência de um regime liberal gera da lei e a publica, gerando assim um grande conflito dinástico.
alarma nas comunidades europeias da época, que decidem apoiar Com a morte de Fernando VII em 1833, Isabel II é
a Fernando VII em uma nova retomada do absolutismo, o que proclamada rainha sob a regência de sua mãe. Os absolutistas que
acontece de maneira efetiva em 1823, graças à ajuda de tropas tinham se aproximado de Carlos não aceitam o reinado de Isabel II
francesas (GIL, 2008, p. 10). e proclamam a Carlos como legítimo herdeiro, surgindo assim o
Após reimplementar o absolutismo, Fernando VII endurece Partido Legitimista, também conhecido como Partido Carlista (GIL,
de maneira cruel a repressão contra os opositores liberais, 2008, p. 12). Como os absolutistas se voltaram contra o reinado de
gerando a sensação de que o regime estava totalmente Isabel II, resta à sua mãe apenas a opção de alinhar-se aos liberais
estabelecido, o que de fato acontece, até o início da disputa pela e proclamar a monarquia constitucional. Os legitimistas não
sucessão do trono. aceitam as mudanças e declaram guerra, começando assim o ciclo
de guerras carlistas.
O problema da sucessão O primeiro conflito ocorre entre 1833 e 1839. Os Liberais
Fernando VII se casou quatro vezes. Nos três primeiros conseguem apoio internacional, tanto econômico quanto bélico,
casamentos não teve filhos, mas no quarto casamento, com Maria enquanto os Carlistas têm grande dificuldade em levantar dinheiro
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e meios bélicos para o combate. Sendo assim, a derrota carlista é econômico dos Liberais superava o dos Carlistas, que novamente
inevitável. A Primeira Guerra Carlista termina com a assinatura do foram derrotados. Ainda assim, Isabel II propõe outra tentativa de
Convênio de Vergara, que conserva o trono de Isabel II e obriga a reconciliação: realizar o casamento de seu filho Alfonso com
Carlos V a abandonar o país (GIL, 2008, p. 13). Blanca, filha de Carlos VII. Os Carlistas recusam novamente, já que
A Segunda Guerra Carlista deu-se entre 1846 e 1848. O consideravam que Alfonso era filho ilegítimo (CLEMENTE, 2011, p.
segundo conflito está marcado pela atuação de Carlos VI, filho de 72). Após várias tentativas de combate, os carlistas são derrotados
Carlos V e pelo fracasso da tentativa de reconciliação das duas em todas, sendo derrotados definitivamente em 1876.
partes. Outra característica marcante deste conflito é o seu caráter Como podemos ver, a luta carlista fracassou totalmente.
político: diferentemente do conflito anterior, desta vez os Carlistas No entanto, seu fracasso não significou o sucesso do governo de
se preocuparam em lançar uma plataforma política com soluções Isabel II. Durante seu governo, a Espanha entra em uma profunda
aos problemas que o governo de Isabel II vinha enfrentando, crise, considerada por muitos a causa do desastre da Espanha.
publicada em periódicos que apoiavam a causa (CLEMENTE, 2011,
p. 61). Como vinha enfrentando grandes dificuldades políticas, O Carlismo e a modernidade
Isabel II propõe uma reconciliação, que se daria através do Ao longo do século XIX, além do Carlismo, a Espanha
casamento de sua filha com Carlos VI. No entanto, antes que isto passava por outros problemas. No livro Historia de España (1999),
acontecesse, o capitão carlista Jaime Ortega encabeça um levante Roldan conta que, em 1868, uma coalizão formada por
(conhecido como Ortegada) que fracassa e resulta na prisão de progressistas e democratas decide destronar a rainha Isabel II,
Carlos VI, além de vários carlistas. Para salvar a vida de seus acusada de ser a culpada pelos graves problemas sociais e
partidários, Carlos VI renuncia e logo depois morre econômicos do país. Sendo assim, em setembro daquele ano
misteriosamente. Como não tinha filhos, seu irmão Juan (que a estourou a revolução, chamada La Gloriosa, Isabel II se viu
partir deste evento será chamado Juan III) assume o reclamo pelo obrigada a escapar para a França. A coalizão proclamou em 1869
direito ao trono (CLEMENTE, 2011, p. 63). um novo rei, mas este foi assassinado após apenas dois anos de
A Terceira Guerra Carlista (1872-1876) tem como figura reinado. Com sua morte, a coalizão proclamou a República e, entre
principal a Carlos VII, filho de Juan III. É a guerra que mais influencia fevereiro de 1873 e janeiro de 1874 a Espanha teve quatro
a imaginação narrativa de Valle-Inclán, dado que ocorre durante a presidentes, que se sucederam no poder e não conseguiram
sua infância. Cada vez mais pressionada devido à grave crise resolver os problemas nacionais. Diante destes fatos, o general
política e econômica que assolava a Espanha, Isabel II propõe Pavía deu um golpe de estado e dissolveu a assembleia
entregar o governo a Carlos VII, caso ele concordasse em aceitar o republicana, iniciando a política da Restauração Monárquica, onde
sistema e a classe política que a apoiava (Liberais), no entanto, a dinastia borbônica reassumiu o poder e Alfonso, filho de Isabel
Carlos VII recusa a proposta. Mesmo com a crise no país, o poderio II, passou a ser o novo rei espanhol. Com sua prematura morte (aos
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vinte e oito anos) em 1898, sua esposa, María Cristina de trajetória como escritor, tratando de temas como a decadência da
Habsburgo, assumiu a regência do país no lugar do filho, oficial Espanha e apresentando uma visão particular do Carlismo.
herdeiro do trono, havia nascido naquele mesmo ano.
Durante o período da regência, a Espanha vê seu império O Carlismo de Valle-Inclán
ultramarino ruir definitivamente. Naquela época, os Estados Como já afirmamos anteriormente, Valle-Inclán vivenciou,
Unidos, que começava a estabelecer-se como potência e praticava durante a sua infância, o ambiente da Terceira Guerra Carlista
uma política econômica protecionista através do domínio de (1872-1876) e irá evocá-la nos seus textos a partir das suas
mercados internacionais, fixa seu interesse nas últimas colônias lembranças. María Dolores Lado afirma:
espanholas, na América e na Ásia. Espanha se vê em meio a uma Valle-Inclán recibe su primer contacto con el carlismo en
guerra para tentar defender – inutilmente – seu território forma de historias y narraciones de hechos y hazañas que
ultramarino, no entanto, suas frotas são destruídas pela marinha sus criados y familiares relataban cuando niño. Es una visión
norte-americana, tanto em Cuba quanto nas Filipinas, em 1898. fantaseada y heroica de la lucha en la que todos los héroes
son carlistas y los villanos pertenecen todos al bando
Neste mesmo ano, a Espanha assina também o Tratado de Paris,
contrario (apud GIL, 2008, p. 19).
onde concede a independência a Cuba e entrega o domínio das
ilhas de Porto Rico, Guam e Filipinas para os Estados Unidos. Carlos del Valle-Inclán, no prólogo de Gerifaltes de Antaño
A perda das últimas colônias na América e a política da (terceiro livro da trilogia La Guerra Carlista), comenta a
Restauração (considerada um retrocesso histórico e político) gera experiência infantil do autor em contato com os relatos de
descontentamento e protesto, surgindo assim um sentimento de Carlismo:
reforma em todos os âmbitos do país. De acordo com Rafael De niño, aquellos cuentos de los criados de su casa, son la
Barrett, a Espanha do final do século XIX é um país doente, que primera noticia que recibe de las guerras carlistas. Cuentos
sucumbe devido a sua decadência política – para o autor tanto a ingenuos, como un retablo antiguo, en los que los
contrastes eran enormes. Todas las virtudes están en las
monarquia quanto a tentativa de república fracassam – ao clero e
huestes del rey don Carlos. Las partidas carlistas aparecían
ao exército, este último responsável pelas derrotas nas lutas
a sus ojos de rapaz, temeroso de duendes y apariciones,
coloniais (CORRAL, 1994, p. 89). nimbadas de una heroica leyenda. Ellas eran leales en la
Pelo exposto, podemos concluir que, independente do pelea, sabían perdonar y hacer justicia, se batían por un rey
pleito dinástico, Espanha estava fadada ao fracasso. As tentativas que compartía el pan con los soldados y buscaba el peligro
carlistas de tomar o governo fracassaram, mas o governo de Isabel sin tener temor ni jactancia (apud GIL, 2008, p.20).
II também. Os pensadores da época a consideram culpada pelo
Valle-Inclán, ao tornar-se escritor, recupera estes relatos
"problema da Espanha". Neste contexto, Valle-Inclán inicia sua
sobre o Carlismo escutados na infância e os transforma em matéria
narrativa. Ao retratar este evento histórico nas suas obras, o autor
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opta por fazê-lo a partir da sua imaginação, isto é, da interpretação muitos o alter ego do autor, Bradomín expressará ideias que
e da reelaboração dos relatos escutados. Isto faz com que o poderiam ser consideradas como próprias de Valle-Inclán:
Carlismo de Valle-Inclán seja considerado peculiar. Alguns “Bradomín se conformaría con que el carlismo fuese ‘monumento
pensadores defendem que a postura do autor era genuína, isto é, nacional’, es decir, vestigio artístico del passado” (GIL, 2008, p. 33).
que ele realmente acreditava e defendia os ideais do Carlismo. No Gil também afirma que Bradomín não era partidário da guerra,
entanto, outros afirmam que a escolha pelo Carlismo era apenas era leal à causa, definindo a posição do personagem como
meramente estética. Nossa opinião é a de que o autor desenvolveu “mezcla de gusto por la tradición y falta de entusiasmo por la
propositalmente uma escrita ambígua, contraditória, com o victoria” (GIL, 2008, p. 34). Poderíamos considerar que o fascínio
sentido de provocar estranhamento e confusão nos seus leitores. de Valle-Inclán pelo Carlismo é fundamentalmente estético, por
Esta confusão também se instaurou entre os seus tudo que o evento pode significar ao representá-lo de maneira
contemporâneos, gerando mal estar entre alguns partidários artística.
carlistas. Sobre esta polêmica, Valle-Inclán afirmou que havia dois
Carlismos: o dele e o dos demais (GIL, 2008, p. 20). La Guerra Carlista
Acreditamos que Valle-Inclán se interessa pelo Carlismo Esta trilogia está composta pelos livros Los Cruzados de la
porque este evento histórico, suas consequências e os significados Causa (1908), El Resplandor de la Hoguera (1909) e Gerifaltes de
que cobram representam perfeitamente as questões da Antaño (1909).
modernidade e do fim de século, o que responderia às suas Em Los Cruzados de la Causa temos o encontro de três
intenções estéticas. Ao longo da sua obra, o autor irá reelaborar o personagens fundamentais na obra de Valle-Inclán: Marqués de
Carlismo em várias obras, submetendo-o a um processo contínuo Bradomín (protagonista da série Sonatas – 1902-1905), Juan
de deformação através do esperpento. Manuel de Montenegro e seu filho Cara de Plata (personagens da
Valle Inclán escreve duas trilogias que têm como pano de trilogia Comedias Bárbaras – 1907-1923). Neste livro, a narrativa
fundo o Carlismo: La Guerra Carlista (1908-1909) e El Ruedo Ibérico ocorre na Galícia e é protagonizada pelo lendário Marqués de
(1927-1932). No entanto, antes destes textos, a temática carlista Bradomín, que retorna à sua terra natal após 20 anos de ausência,
aparece em vários outros relatos do autor, ainda que nestes para levantar fundos para a causa carlista. Ao chegar lá, recebe a
primeiros textos o Carlismo fosse apenas circunstância, simples notícia de que havia um carregamento de armas disponível para os
alusões a eventos ou personagens carlistas e não matéria narrativa carlistas, mas era necessário desenterrá-lo e transportá-lo até o
(GIL, 2008, p. 28). porto, onde o mesmo seria embarcado em um navio que o levaria
Dos livros anteriores às trilogias, o mais representativo é a para um dos pontos de combate armado onde os carlistas estavam
Sonata de Otoño, com a figura do Marqués de Bradomín em desvantagem de armas. Bradomín se oferece prontamente
assumindo sua postura favorável à causa carlista. Considerado por para realizar o transporte e a narrativa irá girar em torno desta
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situação, que finalmente não se concretiza porque quando o Don Manuel Santa Cruz, padre defensor do carlismo que se torna
Marqués finalmente chega com armas no porto, o navio já havia guerrilheiro a favor da causa, figura real que inspirou vários
zarpado. Vemos retratados, neste livro, os dois principais escritores, como Pio Baroja e Unamuno, devido ao seu grande
problemas da luta carlista, como mencionamos anteriormente: a potencial de ficcionalização, graças às suas atitudes ambíguas. É
falta de recursos econômicos e a falta de armamentos com os extremamente chamativo que um padre abandone a batina para
quais poderiam fazer frente ao exército republicano. unir-se à guerra e se transforme em um líder cruel e traiçoeiro.
Em El Resplandor de la Hoguera, segundo livro da trilogia, Nesta obra, Santa Cruz recebe a Miquelo Egoscué, que tinha sido
está ambientado em Navarra, que é representada como uma convidado a juntar-se a ele (evento narrado em El Resplandor de
região totalmente inóspita. Neste livro, o autor apresenta o la Hoguera), no entanto, este convite foi uma armadilha para
contraste entre a nobreza dos defensores do carlismo e a vilania assassinar a Egoscué. Esta atitude de Santa Cruz não é bem vista
dos liberais. Ao mesmo tempo, enfatiza as disputas de poder nem pelos republicanos nem pelos carlistas e assim Santa Cruz
dentro do próprio carlismo, mostrando a passagem de uma passa a ser perseguido pelos dois bandos. Soldados das tropas de
concepção heroica da guerra para uma concepção deformada, o Egoscué conseguem fugir e desistem da causa carlista são
que evidencia o caráter esperpéntico da obra. A trama central gira acolhidos por partidários republicanos, que os tratam com
em torno da travessia que a abadessa María Isabel, acompanhada respeito, deixando evidente que o comportamento republicano
de sua criada e de Cara de Plata, realiza pela província de Navarra, era mais nobre que o carlista. Outro personagem que desiste da
evitando ser encontrada pelo exército republicano. Em um causa carlista é Roquito (sacristão que ficou cego em El Resplandor
determinado momento da travessia, soma-se ao grupo um de la Hoguera). Santa Cruz chega a ser cercado por ambos os
sacristão chamado Roquito. No final do relato, o grupo de esconde bandos, mas misteriosamente o exército republicano se retira.
em um casarão que logo é usado como abrigo para pernoite por Santa Cruz acredita que foi agraciado com um livramento divino,
soldados republicanos, que acendem a lareira sem saber que mas Roquito sentencia que na verdade foi salvo por satanás. A
Roquito estava escondido na chaminé. Quando Roquito é narração termina com o desespero de Santa Cruz ao escutar esta
resgatado após a retirada dos republicanos, está cego por causa da afirmação:
fumaça da chaminé. Ao mesmo tempo, temos outra trama - Recemos el rosario y demos gracias a Dios. ¡Él me salva, no
paralela, relativa às disputas de poder dentro do carlismo. Miquelo sé si de ser Judas, si de ser Caín!
Egoscué, um general carlista, recebe o convite de Manuel Santa Se arrodilló y besó el suelo, al mismo tiempo que estallaba
Cruz (ex-padre que se transforma em general carlista) para unir-se violenta la voz de Roquito:
- ¡Satanás te salva! […]
a ele, pedido que é atendido.
Todos callan atemorizados, y en la oscuridad se oye sollozar
Por último, em Gerifaltes de Antaño, último romance desta
al Cura de Hernialde.
trilogia, a narrativa está centrada na figura do personagem real (VALLE-INCLÁN, 1999, p. 150)
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Como podemos ver, nenhum dos eventos narrados ocorre tradición eterna, en intrahistoria.” Esta misma tradición
com sucesso. Todos fracassam, o que podemos considerar como eterna o intrahistoria, proyectada al porvenir, se convierte
uma alegoria do fracasso do carlismo. Também percebemos que en “el ideal”, “que no es otra cosa que ella misma [la
em nenhum momento o autor faz referência a algum fato intrahistoria] reflejada en el futuro”. (ARTILES, 1977, p. 204)
registrado pela historiografia carlista, apresentando apenas Ao optar em retratar relatos secundários, deixando de
relatos secundários, distantes do centro do conflito. Percebemos representar a história oficial, Valle-Inclán recupera a história
então que Valle-Inclán aborda o carlismo a partir do conceito de verdadeira e assim contribui para a sua eternização, de acordo
intrahistoria proposto por Unamuno, que afirmava que “Historia, com as ideias de Unamuno.
la auténtica, la que vivió y formó carne y espíritu de los españoles, Podemos concluir, portanto, que os eventos que se
no es la oficial, la historia al uso..., sino la que se escapa [a los desenvolveram até o estabelecimento do conflito pela sucessão do
historiadores]...” (ARTILES, 1977, p. 203). Para encontrar o trono na Espanha, chamado Carlismo, ocorreram devido às
verdadeiro sentido da história, Unamuno afirmava que era escolhas políticas de Fernando VII que, de acordo com os autores
importante dar voz aos personagens mais simples, que não estudados, apresentava um comportamento dúbio e questionável
participam dos relatos oficiais. no que diz respeito aos interesses do país. A disputa entre Isabel II
De acordo com Artiles, para Unamuno a intrahistoria, ao e Carlos V (e posteriormente Carlos VII) pelo trono foi o detonador
contrário da história, é permanente e eterna: de três guerras civis, onde absolutistas e liberais assumiram lados
Para Unamuno, la intrahistoria es la verdadera historia, la opostos e irreconciliáveis. A luta carlista para devolver o trono a
que no se ve ni se narra, y de lo que está formado el Carlos V (e logo, Carlos VII), quem, de acordo com a doutrina
sedimento que queda del paso de los años cuando el tiempo carlista, era o herdeiro legítimo, fracassou rotundamente. Por
ha aventado el humo y el polvo de las batallas ha barrido el
outro lado, o governo de Isabel II também é considerado um
viento las cenizas y se han olvidado las conquistas: lo que
fracasso. Isto insere tanto o governo de Isabel II quanto o carlismo
hay de verdadero y eterno al pasar de los siglos. Unamuno
distingue entre la historia y la intrahistoria. El presente se no marco da modernidade, uma vez que evidencia o fracasso e a
compone de dos capas distintas: una superficial y huidiza, decadência do país no final do século XIX.
que constituye el “presente histórico”, y otra profunda y Acreditamos, assim, que Ramón del Valle-Inclán admirava
permanente, que es el “presente intrahistórico”, que sería o Carlismo mas não pelas questões políticas e sim pelo potencial
algo así como la decantación del histórico y resultado de su estético e artístico do mesmo quando representado na literatura.
sedimentación, de la eternización de todos los presentes Isto pode ser comprovado pelo fato do autor escolher representar
históricos ya pasados, la solera de la cultura. “Los hombres o evento nas suas obras a partir dos relatos escutados na infância
van haciendo su historia cotidiana, pasajera y cortical, sobre e por situá-lo como pretexto de ação, como circunstância a outros
un légamo de intrahistoria o humanidad permanente, cada fatos narrativos nas obras em que estão presentes.
vez más denso y rico. La historia se convertiría así en
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Referências VALLE-INCLÁN, R. La Guerra Carlista I. Los cruzados de la causa.


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Disponível em: <http://mdc.ulpgc.es/cdm/ref/collection/ Madrid: Espasa-Calpe, 1999.
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ROLDÁN, José Manuel. Historia de España. 6ª ed. Madrid: Edelsa,


1989.
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2666 E A POLÍTICA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DES-ESPERO questão”, ou seja, quando de uma filosofia baseada na dualidade
Raquel Parrine entre o eu e o outro surge um terceiro.
UnB Se o face-a-face com o único engaja a ética infinita de minha
responsabilidade pelo outro numa espécie de juramento
“...a categoria fundamental do pensamento levinasiano é avant la lettre, de respeito ou de fidelidade incondicional,
a Alteridade, ou seja, uma incômoda presença a mim, o Mesmo, então o aparecimento inelutável do terceiro, e com ele da
justiça, subscreve um primeiro perjúrio. Silencioso, passivo,
de Outro – alter – para além da minha capacidade de representá-
doloroso mas inevitável, um tal perjúrio não é acidental e
lo e inclusive de pensá-lo.” (SOUZA, 2014). Emmanuel Levinas lida
secundário, ele é tão originário quanto a experiência do
com a angústia da impossibilidade da representação do Outro, rosto. A justiça começaria com esse perjúrio. (DERRIDA,
que, ao mesmo tempo é aquele que funda o ser. O Outro me rapta, 2013, p. 50)
me chama para uma responsabilidade ética para a qual estou
sempre implicado. Daí a necessidade, ao mesmo tempo, do Este terceiro perturba a “exterioridade a dois” (LEVINAS
encontro, traumático, entre o Mesmo e o Outro. Este encontro, apud DERRIDA, 2013, p. 49) e seu aparecimento representa um
entretanto, é feito em uma distância infinita, uma vez que o Outro gesto de passagem da responsabilidade ética à responsabilidade
é o enigma, é um rastro, presença-ausência, pois sempre se retira. política. Apesar de o tratamento da eleidade aparecer em vários
Ela se anuncia, mas nunca está lá. Está sempre em outro lugar que momentos da obra de Levinas, ela não é sua preocupação
não é o meu. Essa ideia, “o segredo da subjetividade” (LÉVINAS, principal. Donde se deduz que a filosofia levinasiana enxerga um
1991, p. 73), se baseia em que o Outro é a face do desconhecido, limite para si mesma.
daquilo que nunca vai ser assimilado por mim e que será sempre Ora, se, para Levinas, a ética é a prima philosophia, e a ética
diferente de mim, mas por quem serei sempre responsável. é uma “exterioridade a dois”, então a justiça e a política e a
Desta forma, se pensarmos em uma política levinasiana, ela eleidade não são a prioridade do seu pensamento. Por quê?
estaria centrada no um, no indivíduo e sua relação com a Arrisco alguns motivos:
alteridade, o inter-humano. Na dificuldade de transformar esta 1) Não-liberdade: Como observa Judith Butler:
It is important to remember that our ordinary way of
reflexão em engajamento, está havendo um movimento de
thinking about responsibility is altered in Levinas’s
cobrança de uma postura política, que vê uma dicotomia entre
formulation. We do not take responsibility for the Other’s
política e ética (ZIVIN, 2013). acts as if we authored those acts. On the contrary, we affirm
Derrida, anteriormente, se deu a tarefa de pensar a política the unfreedom at the heart of our relations.[...]Indeed,
levinasiana, em Adeus a Emmanuel Levinas. Ele observa que o responsibility is not a matter of cultivating a will, but of
político, na obra do lituano, nasce a partir do “nascimento da making use of an unwilled susceptibility as a resource for
becoming responsive to the Other. (BUTLER, 2005, p. 91)
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O que a filósofa argumenta é que a essência das relações espero, algo que já não pode esperar. Assim, se a ética é algo
humanas, segundo Levinas, está baseada em uma não-liberdade. passivo, não faz parte do processo de decisão, que a política exige.
Ora, se pensarmos que o conceito relativamente consensual de 3) Singularidade: Segundo Erin Graff Zivin, “Levinas carries
política é o estudo do poder; e o poder é um conceito out an improper bur necessary translation of the proper name [to]
fundamentado na desigualdade das relações humanas (BOBBIO, radical, untranslatable singularity” (2014, p. 205). O nome próprio,
2008), neste caso, a política nunca pode ser pensada em uma para Levinas, é profundamente intraduzível, devido à sua
perspectiva da ética levinasiana. Além disso, como nota Butler, a singularidade radical. O sofrimento do outro não pode ser
responsabilidade pelo outro não é uma questão de vontade, de entendido pelo mesmo. Desta forma, o pensamento político é
decisão – então, é inútil buscar em Levinas uma proposta interditado, porque é impossível pensar, politicamente, senão
democrática. A ética, mais do que uma possibilidade, é uma usando alguma ideia de massa, seja ela do elitismo, do marxismo,
obrigação. Neste sentido, Edith Wyschogrod é radical quando ou do pluralismo. Transformar o Outro em massa é um movimento
afirma que “To read Levinas, to really read him, is to allow oneself em que o Mesmo lança mão do seu logos para absorver a sua
to be claimed by a text whose predicative statements may be alteridade, mesmo que
concealed imperatives” (2000, p. ix-x). Se a ética é uma obrigação, “Outro” [seja] o que nunca antes esteve presente ao nosso
e o texto de Levinas é um imperativo, podemos pensar que a encontro, ou seja, o que inelutavelmente rompe
linguagem, o texto e, em último lugar, a literatura possuem a traumaticamente meu solipsismo, na medida em que chega
capacidade de ecoar o chamado do outro e indiciar o mesmo, o de fora, fora do âmbito dilatado de meu poder intelectual,
de meu narcisismo e de sua tendência de considerá-lo – a
leitor, para o seu lugar ético.
Outro – nada mais do que uma representação lógica ou
2) Passividade: Ainda segundo Butler, temos que usar uma
desdobramento inferencial de meu intelecto. (SOUZA,
susceptibilidade involuntária para sermos responsáveis pelo outro, 2014)
ou seja, deixar-nos ser obrigados e aceitar nossa “culpabilidade de
sobrevivente”, perante o sofrimento alheio. Segundo Levinas, a Do contrário: “Encadenado a su cuerpo, el hombre se niega
consciência do sofrimento já é sua revulsão, uma vez que a a escapar de sí mismo. La verdad ya no será la contemplación de
sensação do sofrimento já é sua vulnerabilidade. O sofrimento un espectáculo extraño – la verdad consistirá en un drama cuyo
traz ao “eu” a urgência do socorro – socorro que sempre vem tarde actor es el propio hombre—.” (LEVINAS, 2001, p. 166). Ou seja, no
demais; remédio que é meu dever. A minha exterioridade ao extremo, a política baseada na conversão do outro pelo mesmo,
sofrimento é a uma promessa de salvação (LEVINAS, 1997, p. 131), em que a verdade não é mais um “espetáculo estranho”,
uma obrigação sem esquivância possível, maior do que a fé em estrangeiro, que pertence à alteridade, em que o drama é si
qualquer coisa (idem, p. 133). O sofrimento do outro é o des- mesmo, esta é a filosofia do hitlerismo.
4) Não-soberania: este talvez seja o principal argumento
do porquê a ética levinasiana não pode ser pensada como política.
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Além de as relações entre os sujeitos não ser baseada na liberdade, que essa responsabilidade venha justamente, antes da ideia da
como vimos com Butler, o sujeito levinasiano não é autônomo. Ele Lei1.
existe a partir da sua relação com o outro, já existe na sua Este movimento me faz pensar que Levinas é justamente
responsabilidade. A fundamentação do ser não vem de um sentido um homem do seu tempo. O fato de ele hierarquizar a ética em
do esse, mas num sentido ético, relacional. Donde podemos cima da política advém, me parece, de uma desconfiança em
concluir que falta ao sujeito levinasiano a primeira condição do relação às políticas públicas que criaram os campos de
sujeito político, que é a soberania (CHAUÍ, 2007). concentração e as gulags, ou seja, na possibilidade de massificação
5) Desconfiança: Se concordarmos que a formulação de uma experiência individual, inclusive hierarquizando
política em Levinas é difícil, parece-me mais significativo a crítica sofrimentos, matematicalizando a eugenia. Em outras palavras,
que ele faz à teodiceia baseada no sofrimento do outro. Levinas ideia do outro como infinito ético, a alteridade absoluta, é uma
pensa que a ideia do sofrimento do Outro como condição para a forma de denunciar as tentativas de apropriação do Outro, sob
saúde do coletivo altamente perversa. Para ele, o compromisso pena de transformar o Outro em Mesmo. Assim, a crítica de
ético do Outro vem antes da ideia de cidade, em que os direitos Levinas incide na generalização e na ficcionalização do sofrimento
individuais estão garantidos por Lei. Aí está a crítica de Levinas à do Outro, inimiga da individualização, da unicidade da experiência
violência biopolítica, por meio da crítica ao social fundamentado do des-espero.
no sacrifício do Outro – pois é sempre o Outro quem tem que Estas cinco características do pensamento levinasiano que
sofrer-em-nome-de. apontei, qual sejam, a não-liberdade, a não-soberania, a
…o próprio fenômeno do sofrimento [...] é, em princípio, a passividade, a singularidade e a desconfiança, também têm um
dor de outrem. Para a sensibilidade ética – que se confirma, papel fundamental na construção ficcional da distopia 2666, do
na inumanidade de nosso tempo, contra essa inumanidade escritor chileno Roberto Bolaño.
– a justificação da dor do próximo é, certamente, a fonte de Esta pesquisa vai se concentrar na La parte de los crímenes,
toda imoralidade. (LEVINAS, 1997, p. 138)
um dos cinco romances que formam 2666. Foi escolhido porque
Em outras palavras, da mesma forma que a morte, para adentra o contexto dos feminicídios em Santa Teresa, uma
Levinas, não é um logos disponível e só pode ser experimentada representação ficcional de Ciudad Juárez, na fronteira entre o
como a morte do outro; o sofrimento também só existe como o México e os Estados Unidos. Nas primeiras páginas, começa um
sofrimento do outro. Na visão do filósofo, se nossa existência se movimento que marcará toda esta seção, a primeira descrição de
funda na inauguração da responsabilidade pelo Outro, faz sentido uma vítima dos feminicídios que ocorrem na cidade.

1
Em Adeus a Emmanuel Levinas, Derrida também parte numa busca da política
nos textos de Levinas e chega a uma conclusão muito diferente.
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Esto ocurrió en 1993. En enero de 1993. A partir de esta busca de pistas, pero no hallaron o no supieron hallar nada” (764),
muerta comenzaran a contarse los asesinatos de “El marido estuvo dos semanas detenido y luego salió en libertad
mujeres. Pero es probable que antes hubiera otras. La por falta de pruebas. El caso quedó sin resolver” (770), “Los
primera muerta se llamaba Esperanza Gómez Saldaña y resultados fueron decepcionantes” (565), “ambos casos entraron
tenía trece años. Pero es probable que no fuera la primera
rápidamente en un callejón sin salida, pues no había testigos ni
muerta. Tal vez por comodidad, por ser la primera
nada que ayudara la policía.” (569), “El caso quedó sin aclarar”
asesinada en el año 1993, ella encabeza la lista. Aunque
seguramente en 1992 murieron otras. Otras que quedaron (579). “El caso, efectivamente, se había ido a la chingada” (623). A
fuera de la lista o que jamás nadie las encontró, enterradas expectativa do leitor é de que esta sequência continue, exaustiva,
en fosas comunes en el desierto o esparcidas sus cenizas en por isso parece um anticlímax quando, em certo mês, não
medio de la noche, cuando ni el que siembra sabe en dónde, aparecem corpos torturados no deserto. “En marzo no apareció
en qué lugar se encuentra. (BOLAÑO, 2007, p. 4442. Grifos ninguna muerta en la ciudad, pero en abril aparecieron dos…”
meus.) (565), como se os corpos de abril compensassem a falta de
Este excerto já contém os traços do que se vai contar assassinatos em março, “En julio de 1994 no murió ninguna mujer
depois. Como insiste o narrador, há uma lista de mulheres. Esta pero apareció un hombre haciendo preguntas” (518), como se o
lista é uma narrativa tediosa, insistente, aterradora, repetitiva de homem que apareceu compensasse a falta de corpos. Parece se
corpos no deserto. A lista de cadáveres segue, monótona, por 351 tratar de uma matemática que iguala as ocorrências. Também é o
páginas e descreve os pormenores de cerca de centenas de corpos. caso de “En mayo ya no murió otra mujer, descontando a las que
Monótona, porque o leitor já sabe que nada será resolvido. Os murieron de muerte natural, es decir de enfermedad, de vejez o de
casos são rapidamente fechados, como observa Brett Levinson parto.” (453) – a palavra “descontando” reforça a ideia de que o
(2009). Adicionam-se novos nomes, novas vítimas e nenhuma narrador está fazendo mentalmente um cálculo. Entre as páginas
investigação: “Durante dos días, lo pensó. [...] Hasta que decidió 450 e 452 estão, por exemplo, as mortas de maio: “La primera
que por más que lo pensara no iba a hallar una solución muerta de mayo”, a segunda morta de maio, Guadalupe Rojas, e
satisfactoria, y entonces dejó de pensar en ello.” (532), “al poco “la última muerta de mayo”. Mas “En julio no hubo ninguna
tiempo el caso se cerró” (488), “Su perfil no se encajaba con el de muerta. En agosto tampoco”. Maio =3. Júlio = 0. Agosto = 0.
las desaparecidas de Santa Teresa. [...] El caso se archivó.” (705), Nesta lista, além do nome e da data de descoberta do
“Las últimas personas con las que se la vio fueron tres hombres [...]. corpo, constam a localização da cena do crime e informações sobre
La policía intentó localizarlos, pero parecía que la tierra se los había as vítimas:
tragado. El caso se archivó.” (720), “La policía rastreó el cauce en
2
Todas as citações de 2666 a seguir provém da edição de 2007 da Anagrama.
Deste ponto em diante, só apontaremos o número das páginas.
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…antes que acabara el mes de enero, fue estrangulada Luisa Por lo demás la mujer estaba desnuda y no tenía ningún
Celina Vázquez. Tenía dieciséis años, de complexión robusta, papel que sirviera para una posterior identificación. El caso,
piel blanca, y estaba embarazada de cinco meses (445) tras los trámites de rigor, se archivó y su cuerpo fue arrojado
a la fosa común del cementerio de Santa Teresa. (718)
Se llamaba Marta Navales Gómez, tenía veinte años, un
metro setenta de estatura, el pelo castaño y largo. [...] Neste caso, as especulações são ainda mais banais e
Vestía una bata y unos leotardos que sus padres no investigações ainda mais desinteressadas. Os corpos são
reconocieron como prendas suyas. Había sido violada anal y enterrados em valas comuns, porque nem o assassinato é capaz de
vaginalmente en numerosas ocasiones. La muerte se individualizar a vida dessas mulheres, em geral trabalhadoras de
produjo por estrangulamiento. (489)
maquiladoras, ou suas filhas. Pessoas cujas vidas são tratadas com
En octubre, también, se encontró el cadáver de otra mujer, insignificância, às margens da sociedade de consumo, às margens
en el desierto, a pocos metros de la carretera que une Santa do capitalismo.
Teresa con Villaviciosa. El cuerpo, que se hallaba en Como para justificar a brutalidade e a arbitrariedade dos
avanzado estado de descomposición, yacía tumbado boca assassinatos, as defuntas são rapidamente reconhecidas como
abajo, vestido con una sudadera y un pantalón de material
prostitutas pela própria polícia: “No tenía marido, aunque una vez
sintético en uno de cuyos bolsillos se encontró una
cada dos meses salía a las discotecas del centro, en compañía de
identificación según la cual la muerta se llamaba Elsa Luz
Pintado… (489) amigas del trabajo, en donde solía beber y irse con algún hombre.
Medio puta, dijeron los policías” (576),
Note-se o tom objetivo, as orações com poucos conectivos, Según el informe forense había sido violada de forma
o tom duro, pouco afetada, a descrição sintética – tudo sugere vaginal y anal y luego muerta por estrangulamiento. No
uma linguagem científica, ou do Direito Penal, similar a um laudo portaba consigo ningún documento que acreditara su
médico, ou um processo criminal. Segundo Patricia Espinosa H., identidad. El caso se encargó al policía judicial Ernesto Ortiz
…el fraseo literario es desplazado por el documento legal o, Rebolledo, quien investigó primero entre las putas caras de
más bien, la narración se expande hacia el documento, Santa Teresa a ver si alguien conocía la muerta, y luego,
anunciando su propia ruina y fracaso frente a los cuerpos ante el escaso éxito de sus pesquisas, entre las putas
que se acumulan en el basurero Chile, en el basurero baratas… (488)
América, en el basurero Mundo. Es el horror de los cuerpos, En el primer informe policial se dijo que Lucía ejercía la
el horror ante el secreto, el horror de la literatura que casi prostitución y era drogadicta y que la causa de la muerte
es obligada a ceder. (2006) probablemente había sido una sobredosis. A la mañana
Algumas vítimas ficam sem identificação: “La primera siguiente, sin embargo, la declaración de la policía varió
muerta de mayo no fue jamás identificada [...]. Nadie la ostensiblemente. Se dijo entonces que Lucía Domínguez Roa
acompañaba, nadie la echó en falta” (450)
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trabajaba como mesera en un bar de la colonia México… que nos possa liberar da responsabilidade e da amargura
(732) que nos inocula ao deparar-nos com sua sorte injusta.
(SEGATO, 2005, p. 278)
Este é o caso do último corpo relatado.
El último caso del año 1997 fue bastante similar al Se a mulher foi assassinada, se seu corpo não vale nada,
penúltimo [...]. El cuerpo estaba desnudo, pero en el interior não tem nem registro, qualquer indício vai comprovar que se trata
de la bolsa encontraron un par de zapatos de tacón alto, de de alguém, efetivamente, dispensável, e as prostitutas estão no
cuero, de buena calidad, por lo que se pensó que podía fim da lista do prestígio social. Neste trecho do artigo de Segato,
tratarse de una puta. [...] Tanto este caso como el anterior constam todos os elementos de La parte de los crímenes: a
fueron cerrados al cabo de tres días de investigaciones más
ineficiência da polícia, a falta de dignidade das defuntas, a
bien desganadas. (790-791. Grifos meus.)
impessoalidade dos crimes, a teia que vai se formando com a
Neste trecho, podemos perceber a energia catalogadora acumulação dos cadáveres, enfim, a normalização do terror. Os
das primeiras linhas da Parte de los Crímenes, em “fue bastante feminicídios são considerados efeito colateral de um modo de
similar al penúltimo”, “tanto este caso como el anterior”. Assim, vida. Por isso, La parte de los crímenes termina com as seguintes
narrador ainda está analisando e quantificando as ocorrências. linhas:
Além disso, é evidente a banalidade do raciocínio que leva à Las navidades en Santa Teresa se celebraron de la forma
conclusão de que a morta era uma prostituta, simplesmente por usual. Se hicieron posadas, se rompieron piñatas, se bebió
usar um salto alto caro. tequila y cerveza. Hasta en las calles más humildes se oía a
Segundo a antropóloga Rita Segato, referindo-se aos la gente reír. Algunas de estas calles eran totalmente
feminicídios reais de Ciudad Juárez oscuras, similares a agujeros negros, y las risas que salían de
Assim como é comum que o condenado recorde de sua no se sabe dónde eran la única señal, la única información
vítima com um grande rancor por associá-la ao desenlace que tenían los vecinos y los extraños para no
de seu destino e à perda de sua liberdade, da mesma forma perderse. (791)
a comunidade mergulha mais e mais em uma espiral A vida segue normalmente em Santa Teresa. O Natal passa
misógina que, na falta de um apoio mais adequado para “de forma usual”, apesar das ruas como buracos negros, os risos
desfazer-se de seu mal-estar, permite-lhe depositar na ecoando no escuro e as pessoas andando perdidas na escuridão.
própria vítima a culpa pela crueldade com que foi tratada.
Em suma, o que esta leitura que estamos fazendo ressalta
Facilmente optamos por reduzir nosso sofrimento diante da
é o tratamento dado ao Outro, no caso, às vítimas de Santa
injustiça intolerável testemunhada, alegando que “deve
haver uma razão”. Assim, as mulheres assassinadas de Teresa/Ciudad Juárez. Existem dois movimentos que tentam dar
Ciudad Juárez transformam-se rapidamente em prostitutas, conta da identidade desses corpos no deserto: por um lado, há a
mentirosas, festeiras, viciadas em drogas e em tudo aquilo displicência por parte das instituições policiais, alimentadas por
um pensamento que torna as mulheres uma massa disforme,
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subalterna e dispensável. Por outro lado, existe uma energia de vida social, geográfica e economicamente determinada. Para
catalogadora e incansável, inventariando nomes, características combater este pensamento generalizante, ele apresenta uma
físicas, cenas do crime, detalhes da perícia, linhas do tempo. Em contrapartida: um inventário virtualmente sem fim de ossos no
outras palavras, podemos dizer que esses dois movimentos são deserto.
massificador e singularizante, respectivamente, e que o narrador
se posiciona a respeito dessa escolha entre um e outro. Se Referências
pensarmos com Levinas, está aí justamente sua denúncia das BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB, 2008.
teodiceias que se fundam no sofrimento do outro. Ao singularizar
as vítimas e inventariar todas as suas características, Bolaño utiliza BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2007.
o nome próprio como Levinas e radicaliza a experiência individual
dessas mulheres. Por exemplo, em relação a um dos corpos não BUTLER, Judith. Giving an account of oneself. Nova York: Fordham
identificados, o narrador observa University Press, 2005.
Pero lo que más sorprendió a los periodistas es que nadie
reclamara o reconociera el cadáver. Como si la niña hubiera CHAUÍ, Marilena. O que é política? In: O esquecimento da Política.
llegado sola a Santa Teresa y hubiera vivido allí de forma Rio de Janeiro: Ed. Agir, 2007.
invisible hasta que el asesino o los asesinos se fijaron en ella
y la mataron. (584)
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo:
Ou seja, na lógica de impunidade de Santa Teresa, uma Perspectiva, 2013.
pessoa pode ter existido simplesmente para ser assassinada, o
resto da sua vida é “invisível”. Assim, na crítica feita em 2666, o ESPINOSA H., Patricia. Secreto y simulacro en 2666 de Roberto
anonimato é considerado mais uma violência que reduz o outro ao Bolaño. Valdivia, Estudios Filológicos, nº41, p. 71-79, 2006.
nada.
Ao dar o nome de seu romance de 2666, Bolaño evoca uma LEVINAS, Emmanuel. Algunas reflexiones sobre la filosofía del
distopia fadada a continuar, num futuro devastador e hitlerismo. Cuaderno Gris, Madri, época III, nº 5, p. 161-167, 2001.
desumanizador, uma espécie de ficção científica futurista
fritzlanguiana, e, ao mesmo tempo, real. Neste sentido, talvez ______. O Sofrimento Inútil. In: Entre Nós: Ensaios sobre a
compartilhe da desconfiança de Levinas na política, no sentido que Alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 128-142.
as instituições de Santa Teresa se alicerçam a partir do sofrimento
do outro. O fato de serem mulheres, e mulheres marginalizadas, ______. Ética e Infinito. Madri: Visor, 1991.
tornam estes assassinatos simples efeitos colaterais de uma forma
P á g i n a | 767

LEVINSON, Brett. Case Closed: Madness and Dissociation in 2666.


Journal of Latin American Cultural Studies. Cambridge, nº 18:2-3,
dezembro 2009, p. 177-91.

SEGATO, Rita. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a


escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juarez. Estudos
Feministas, Florianópolis, nº 13(2), maio-agosto 2005, p. 265-285.

SOUZA, Ricardo Timm. Levinas e a Ancestralidade do Mal. Porto


Alegre: EDIPUCRS, 2012.

______. (Outro) texto. O mutum. Brasília, nº 2, 2014. (No prelo)

WYSCHOGROD, Edith. Emmanuel Levinas: the Problem of Ethical


Metaphysics. 2ª ed. Nova York: Fordhan University Press, 2000.

ZIVIN, Erin Graff. “Politics against ethics”. Michigan, Política


Común, volume 4, 2013.

______. Beyond inquisitional logic, or, toward an an-


archaeological Latin Americanism. Michigan, MC: The New
Centennial Review, vol 1, nº 1, p. 195-212, 2014.
P á g i n a | 768

O IMAGINÁRIO CAROLÍNGIO NA ENCANTARIA MARANHENSE livretos que transformaram os clássicos em versões mais
simplificadas e acessíveis ao grande público.
Regina Célia de Lima e Silva
Antes de chegar às nossas terras em prosa, o imaginário
UFF
europeu era povoado pelas peripécias do Imperador Carlos Magno
antes do século XVII, através de poesias, representações e
Em um tempo muito distante existiu um rei franco, seus
recitações. A gesta La Chanson de Roland, de 1087, já trazia Carlos
soldados e inimigos mouros que encantaram o Brasil entre os
Magno como personagem vencedora de uma batalha contra o
séculos XIX e XX. Suas façanhas preencheram o imaginário de um
emir Baligant (SIQUEIRA, 2009, p. 5). O êxito da narrativa de
povo que as transformou em poesia e em festas populares ainda
Moreira de Carvalho no Brasil foi um pouco tardio e sua
hoje muito apreciadas por aqueles que têm a oportunidade de
persistência é uma aparente contradição se pensamos que os
presenciá-las em apresentações tradicionais remanescentes.
romances de cavalaria não eram mais tão apreciados pelo europeu
Aquelas personagens chegaram ao nosso continente pela
no século XIX.
memória, pelas vozes e pelos livros trazidos por antigos
Definidos alguns detalhes sobre a introdução da narrativa
navegadores amantes de historias fantásticas e cheias de
de Carlos Magno no Brasil, devemos voltar um pouco mais atrás e
violência. História do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de
tratar das especificidades da memória e do imaginário dos
França é o título dessa narrativa, um texto em prosa, traduzido do
colonizadores, pois eles foram elementos cruciais na divulgação de
espanhol para o português por Jerônimo Moreira de Carvalho e
uma mentalidade medieval herdada de tais narrativas.
bastante difundido no Brasil em meados do século XIX. A tradução
O autor Silvano Peloso afirma que os homens que
conhecida por nós teve como matriz o texto de Nicolás de
desbravaram o Novo Mundo tinham um sonho de conquista de
Piamonte, Historia del Emperador Carlo Magno, en la cual se trata
fortuna e de realização, sendo esse pensamento originado no
de las grandes proezas, y hazañas de los doce pares de Francia, y
romance arturiano do século XII e cujo ideal de aventura
de como fueron vendidos por el traidor de Ganalón, y la cruda
relacionava-se ao espírito das cruzadas (1996, p. 45). Aqueles
batalla que hubo Oliveros com Fierabrás de Alejandría, hijo del
homens cheios de sonhos não teriam muitas possibilidades de
almirante Balán, cuja primeira edição teria sido de 1525, segundo
realizar seus ideais em suas terras de origem, pois, de acordo com
Câmara Cascudo no livro Mouros, franceses e judeus (2001, p. 45).
o estudo de Ana M. A. Siqueira, em sua maioria, eram simples,
Quando nos referimos à tradução da história de Carlos
camponeses, desocupados, pouco cultos e impregnados de
Magno de Moreira de Carvalho, tratamos de um texto
mentalidade medieval por não terem acesso às novidades
consideravelmente tardio, sendo que os nossos primeiros contatos
quinhentistas (2009, p. 1). Dessa maneira sua intenção era a de
com as aventuras daquele imperador vieram muito antes da
tornar reais seus sonhos em terras desconhecidas, onde
referida tradução, através da memória dos colonizadores e em
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provavelmente encontrariam os mesmos gigantes, animais tão sedutor. Gigantes, anões, ilhas encantadas, amazonas,
desconhecidos e lugares exóticos vistos nos romances de cavalaria. fontes mágicas e ouro em profusão, seguramente deviam
Com conquistadores como Hernán Cortés, que era leitor existir em alguma parte das imensas terras que a
aficionado desses romances, segundo Peloso, personagens, como Previdência tinha repentinamente aberto do outro lado do
oceano (1996, p. 48)
Amadís de Gaula (1531) influenciaram gerações de leitores do
Novo Mundo. Ele segue explicando que Sendo os romances de cavalaria uma febre e a literatura
Os ingredientes desse tipo de literatura de tons considerada verdadeiramente popular, como afirma A. Leonard
marcadamente populares são aqueles de segura fortuna em (2004, p. 71-72), os leitores aceitavam qualquer coisa que se
todos os tempos: ação sempre viva, aventuras, sentimentos escrevesse. Sua crença naqueles monstros e lugares mirabolantes,
e cenas de amor, heróis invencíveis e magnânimos, damas além dos fictícios cavaleiros, teve grande influencia na moral e no
encantadoras, vigoroso tom descritivo, otimismo unido à
pensamento da sociedade. Era também uma forma de escape para
coragem, etc. Reeditados várias vezes e com vários
a monotonia dura de sua época.
continuadores que dão vida a ciclos completos ( aquele que
Amadises chegará a contar ao todo doze livros), estes Através dos desbravadores das novas terras outra tradição
verdadeiros e próprios antepassados quinhentistas das também nos é trazida, a da oralidade. Nos navios, no profundo
modernas telenovelas gozarão de uma particular fortuna na silêncio do mar “era a vez da leitura solitária em algum canto do
idade das descobertas (1996, p. 46-47) navio, ou daquela coletiva em voz alta, todos sentados em círculo”
(1996, p. 48). De acordo com Ana Marcia Alves Siqueira, em seu
Peloso acrescenta que os mapas e cartas geográficas da
texto O ciclo carolíngio na literatura de cordel nordestina (2009, p.
época dos descobrimentos eram cheios de desenhos de figuras
1), os novos colonos trouxeram essa cultura da oralidade e eram,
monstruosas. Tinham, assim, uma relação muito maior com o
em geral, pessoas simples, pouco cultas e ainda impregnadas da
imagético daqueles romances do que com a realidade, pois o que
mentalidade medieval. Inicialmente viviam no litoral, mas foram
não faltavam nestes eram anões, monstros e gigantes de força
migrando para o sertão, para lugares de difícil acesso. Ao
descomunal. Quem partia para as terras distantes descritas
ingressarem no interior, caracterizado pelo seu isolamento e por
naqueles mapas se identificava com os heróis das gestas
uma organização patriarcal “levaram ao congelamento desses
medievais, como afirma mesmo autor, (1996, p. 47) e com todo
modelos e propiciaram a identificação do viver e do sentir
um cenário fantasioso e mirabolante habitado por todos aqueles
sertanejo, de seu imaginário com o imaginário medieval”
seres exóticos.
(SIQUEIRA, p. 2). Tal contexto proporcionou uma espécie de
Assim, quem partia para o Novo Mundo estava convencido
de que, participando desta empresa, teria tocado com a conservação daquela mentalidade mais arcaica. Nada mais natural
mão as maravilhas, as riquezas e os extraordinários que houvesse uma significativa identificação com os mitos
espetáculos que os livros de cavalaria contavam de modo medievais. Suas imagens, símbolos e ideário são sentidos e
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reproduzidos por aqueles campesinos. Mas o fenômeno da após a labuta diária tinha os cantadores como seus maiores
oralidade não era uma novidade ao chegar ao Brasil. Ela já fazia divulgadores. Era praticamente uma obrigação conhecer as
parte da vida dos ibéricos aventuras contidas naquela narrativa e de acordo com Câmara
Antes de 1500, muchas de estas fabulosas leyendas llegaron Cascudo
a los oídos españoles por las narraciones orales de quienes Não conhecer a história de Carlos Magno era ignorância
contaban cuentos o por los romances caballerescos de los indesculpável, indigna de bardos sertanejos, mesmo
trovadores, y pasaban de boca en boca. Mas si estos relatos analfabetos. Faziam-na ler, folha por folha, escutando,
verbales excitaban la credulidad de los oyentes, mucho más aprendendo, entusiasmando-se, decorando, repetindo
incendiaria y convincente era la evidencia visual que façanhas, transformando-as em versos, em perguntas
tuvieron después de esa fecha, cuando la recién inventada fulminantes e respostas esmagadoras. (2001, p. 47)
imprenta lo corroboró claramente ante sus ojos en la
mágica forma impresa. (LEONARD, 2004, p. 69) O costume de escutarem-se leituras daquela narrativa nos
foi confirmado pelo Professor Sérgio Ferretti da Universidade
A chegada da imprensa e a divulgação mais popularizada Federal do Maranhão em conversa informal. Ele teve a
dos romances de cavalaria veio apenas confirmar o que eles já oportunidade de conhecer um senhor, de nome Roldão Lima, que
escutavam há tanto tempo. Os livros que eram restritos aos lhe afirmou ser tradição ainda hoje a leitura em voz alta da história
mosteiros passaram a fazer parte do cotidiano do povo, como de Carlos Magno na cidade de Turiaçú, no Maranhão, divisa com o
continua explicando Irving A. Leonard (2004, p. 69).Dessa maneira Pará. Naquela cidade também são facilmente encontradas pessoas
seria impossível desconsiderar os livros que foram trazidos por com nomes de suas personagens, como Floripes, Balão, etc.
aqueles homens e principalmente o que continha seu imaginário. Segundo Marlyse Meyer (2001, p. 149) as lembranças de
Leonard complementa que os livros de literatura tiveram tanta Carlos Magno contidas em livros ou em folguedos impregna
importância para o conquistador qe chegaram a influenciar memórias, escritas ou orais, “letradas” ou “populares” (aspas da
indiretamente no curso da história. (2004, p. 70) autora), além de embalar os sonhos das crianças. A autora segue
Heróis como Carlos Magno, exemplo de homem da Idade observando que são inegáveis as influências daquela narrativa em
Média valente, corajoso, belo e de força descomunal são nossa cultura ao identificar as festas populares que representam
facilmente admirados por eles. Personagens que em muitos casos as lutas do rei franco, como a Congada de São Benedito e a de
são históricas, como o próprio Carlos Magno, apelidado de Carlos Magno Reis do Congo . As lutas entre mouros e cristãos são
imperador da barba florida, seu sobrinho Roldão ou El Cid, grande uma praxe nessas festas. Nas cavalhadas, por exemplo, repete-se
herói da Reconquista, são tidos como exemplo a seguir. aquela luta à cada apresentação, sendo que a batalha só termina
No Brasil a História do Imperador Carlos Magno e dos doze com a conversão dos mouros ao cristianismo. Na chegança o ápice
pares de França tornou-se o livro mais conhecido pelo sertanejo e da representação é também a luta entre mouros e cristãos,
pelo povo simples do interior nordestino. Lido nas noites de luar chamada de Mourama. Se observarmos mais acuradamente a
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questão dos festejos encontraremos vários outros ligados ao O repertório de festas, poesias e representações relativas
mesmo tema ou pelo menos que façam referencia ao modelo de ao universo cavalheiresco faz parte do imaginário do campesino
sociedade europeia idealizada pelos que participam dessas brasileiro. Refiro-me ao conceito de imaginário explicitado por
confraternizações muito comuns no interior do Brasil. Na maioria Jacques Le Goff (2009, p. 12) enquanto aquele que ocupa o campo
delas temos a luta, a batalha imaginária que leva a uma conversão da representação, mas que vai além da reprodução de imagens,
forçada e legitimada pela festa autorizada (2001,p.157). Marlize sendo criador. Levado adiante pela fantasia, o imaginário constrói
Meyer acrescenta que e alimenta lendas e mitos de uma sociedade que transforma a
[...]jogos, ficção, realidade, se confundem para dizer a realidade em visões ardentes do intelecto. Assim,
mesma coisa: o desejo de um mundo único que impõe seu complementando sua definição, Le Goff afirma que
molde com uma violência legitimada pelos heróis que O termo “imaginário” sem dúvida remete-nos à imaginação,
propõe como modelo. E essa estrutura recorrente de luta, mas a história do imaginário não é uma história da
que, nem que seja um filigrana, permeia qualquer folguedo imaginação no sentido tradicional, trata-se de uma história
brasileiro tradicional (inspira até a fanfarronice costumeira da criação e do uso das imagens que fazem uma sociedade
dos cantadores), poderia ser lida como a comemoração agir e pensar, visto que resultam da mentalidade, da
ritual do acontecimento primeiro que marcou os primeiros sensibilidade e da cultura que as impregnam e animam.
tempos da colônia: aquele que se pode chamar de Guerra (2009, p. 13)
Santa da Conversão. (2001, p. 157)
Entranhado desse imaginário o povo é capaz de criar as
Assim, a violência inserida nos festejos populares e que leva festas populares e as cheganças são um bom exemplo disso. A
à harmonia é entendida como algo normal. As pessoas travestidas chegança é a representação da luta entre mouros e cristãos, a
de personagens têm sua compensação ao se colocarem ao lado do mesma batalha contada na narrativa de Carlos Magno, que junto
vencedor, no caso, os cristãos. Assumir o papel do defensor do com seus pares, lutou contra Ferrabráz, o gigante mouro, o pai
Cristianismo, Carlos Magno ou do herói Roldão passa a ser um Balão e seus soldados.
privilégio, mesmo que os dois carreguem em sua imagem não O pesquisador Pedro Mendengo Filho (2008, p. 7) diz que
apenas ações heroicas, mas principalmente sangrentas. não se sabe quando a tradição das cheganças chegou ao Brasil.
A violência herdada pelas tradições populares não era uma Para alguns autores teria sido no inicio do século XIX. No Maranhão
novidade na Europa medieval. Crueldade, intolerância e falta de ela teria também chegado em data imprecisa. O pesquisador cita
misericórdia faziam parte do comportamento habitual da época, a Professora Maria M. Pinto de Carvalho (apud MENDES FILHO,
como afirma Irving A. Leonard em Los libros del conquistador 2008, p. 14-15) para dizer que sua entrada no Maranhão foi via
(2004, p. 65). O conquistador trouxe em sua bagagem esse tipo de Piauí para fixar-se em Caxias. Essa chegança ou Dança do Marujo
comportamento que foi assimilado e reproduzido em folguedos de Caxias é representada por brincantes simulando as ondas do
posteriores à sua chegada. mar. Nela também há um enfrentamento entre mouros e cristãos,
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sendo os primeiros levados a ser batizados. Era apresentada no páginas do livro para transformar-se em encantados de uma
mês de janeiro, mas já se encontra praticamente desaparecida. religião de origem basicamente africana. Várias coisas se somaram
A chegança, de acordo com Mendengo Filho (2008, p. 4), e se amalgamaram para formar a encantaria. Tradições populares,
foi muito popular no século XIX, no reinado de Dom João V em histórias transmitidas pelas participantes do culto, a memória
Portugal. Em 1745 ela foi proibida por esse governante por acha- coletiva que mantem essas histórias vivas por muito tempo e
la uma representação lasciva. As tradições dramáticas de lutas principalmente a identificação do povo com os heróis, vilões, reis,
entre cristãos e mouros eram comuns em Portugal em festas da soldados, príncipes e princesas daquele universo literário. A minha
corte ou religiosas, como a de Corpus Christi (2008, p. 5). tentativa com esta pesquisa é a de manter viva e conhecida a
No Maranhão as cheganças faziam parte de festejos tradição da encantaria e dos fatos que cercam o Terreiro da
proporcionados pelos terreiros de Tambor de Mina. Mãe Turquia.
Anastácia, do Terreiro da Turquia fazia questão de ter essa festa, o
tambor de crioula e outras manifestações em seu calendário Referências
(FERREIRA, 2008, p. 72). Certamente as cheganças influenciaram CÂMARA CASCUDO, Luis da. Mouros, franceses e judeus. Três
bastante o imaginário dos filhos de Anastácia, pois a presença de presenças no Brasil. São Paulo: Global Editora,2001.
nomes de brincantes naquelas festas, como Ferrabrás, o gigante
turco e a princesa Floripes, sua irmã, coincide com suas LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. 2ª edição.
manifestações através da mãe de santo e da senhora Lody Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009.
respectivamente.
Concomitante ao imaginário carolíngio está o imaginário LEONARD, Irving A. Los libros del conquistador. 1ª reimpressão.
mouro na encantaria do tambor de mina maranhense. Os dois México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
fazem parte do Terreiro da Turquia através de entidades que
levam os nomes de algumas de suas personagens e através MENDENGO FILHO, Pedro. Chegança: um dramalhão de ritual
também do exemplar do livro História de Carlos Magno e dos doze esquecido. Rio de Janeiro, 2008.
pares de França pertencente à Mãe Anastácia, falecida em 1971.
Foram as vozes das mulheres do Terreiro da Turquia e da MEYER, Marlyse. Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo:
preservação de tradições, como as cheganças, que seus filhos de Edusp, 2001.
santo conheceram aquela narrativa. Ferrabrás de Alexandria, o
maior inimigo de Carlos Magno, o almirante Balão e a princesa PELOSO, Silvano. O canto e a memória. História e utopia no
Floripes são ao mesmo tempo personagens de um romance de imaginário popular brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1996.
cavalaria e também entidades da encantaria. Elas extrapolaram as
P á g i n a | 773

SIQUEIRA, Ana Marcia Alves. O ciclo carolíngio na literatura de


cordel nordestina. VIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais.
2009. Disponível em: <http://www.ppe.uem.br/jeam/
anais/2009/pdf/80.pdf. Acesso em 21/01/2014>.
P á g i n a | 774

AS FIGURAS FEMININAS EM LA BODA DE CHON RECALDE, DE acreditava ser a função do escritor: “testemunha de seu tempo e
GONZALO TORRENTE BALLESTER, E AS MENINAS, DE LYGIA da sua sociedade”. Tal confirmação deve-se porque a autora volta-
FAGUNDES TELLES: UMA ANÁLISE COMPARATIVA se para o contexto histórico brasileiro, mais especificamente, o
Regina Kohlrausch ano de 1969, período do sequestro do embaixador norte-
FALE – PUCRS americano Charles Elbrick, que propiciou, como exigência do grupo
de sequestradores, a liberação de presos políticos brasileiros. A
Gonzalo Torrente Ballester e Lygia Fagundes Telles são menção desse episódio está relacionada à personagem Lia de Melo
distintos no que se refere ao gênero e à nacionalidade, mas muito Schultz, militante de esquerda, namorada de Miguel, um dos
próximos no que diz respeito à atividade profissional e artística: presos libertados na ficção, que serve de símbolo dos presos reais
produtores de literatura, isto é, escritores de obras literárias liberados na época. Essa referência histórica permite situar o
significativas no contexto nacional (ambos premiados em seus tempo do acontecimento e a duração da história narrada, que
países e imortalizados pelas academias de letras pelo conjunto de pode ser medida entre dois dias, com recuos temporais que
sua produção), internacional (ambos foram traduzidos para outros permitem conhecer dados e entender a filiação, a formação e o
idiomas), e clássicos, pois suas obras, mesmo revelando a “cor estado psicológico de cada personagem.
local” em relação ao contexto histórico e social, são universais O romance de Lygia retrata, num jogo de vozes narrativas
porque retratam problemáticas humanas, própria das relações e de modo fragmentado, em torno de dois dias da vida das três
individuais, familiares e sociais que ultrapassam o âmbito local. Em meninas, Ana Clara Conceição, Lorena Vaz Leme e Lia de Melo
outras palavras, os espaços – espanhol e brasileiro – retratados Schultz, que vivem no pensionato Nossa Senhora de Fátima e que
podem ser reconhecidos a partir de dados mencionados no são estudantes universitárias, muito amigas, mas diferentes entre
decorrer da narrativa, assim como a época e o tempo, isto é, o si. As meninas, de acordo com Cristovão Tezza, podem ser
contexto histórico e político – pós-guerra civil e ditadura militar –, definidas a partir de três “arquétipos” ou figuras típicas da época
respectivamente, mas o conflito vivido pelas personagens das (TEZZA, 2009, p. 288):
obras desses dois autores ultrapassa o local e alcança o universal. Ana Clara é a mais bonita, a mais liberada e a mais
O problema delas não é o pós-guerra civil ou a ditadura militar, problemática, por ser dependente de drogas; Lia,
mas os dilemas da condição humana e também feminina, afetivamente chamada de Lião pelas outras, está envolvida
considerando as obras La boda de Chon Recalde, de Torrente na luta armada contra a ditadura; e Lorena, a mais
intelectualizada, é uma jovem rica de uma família
Ballester e As meninas, de Lygia, objetos de estudo desta
tradicional de proprietários de terras.
comunicação.
As Meninas, de Lygia, foi publicada em 1973, nove anos Considerando o contexto, é significativa essa
depois do golpe militar brasileiro, confirmando o que ela caracterização como figuras típicas da época, consequência dos
acontecimentos e movimentos próprios do período: Ana Clara é a
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personagem viciada e problemática, cuja mãe é uma prostituta e sexo, drogas. Porque o que une essas três jovens brasileiras
cujo pai ela não conhece, vivia com a mãe e frequentava o não é apenas a amizade, mas a circunstância de serem filhas
consultório do doutor Algodãozinho, e que almeja ser rica, dar do nosso tempo.
festas, ter uma família para si; Lia é uma estudante de Ciências Também é ali que elas vivem seus conflitos existenciais e
Sociais, cuja família trabalha para dar a ela condições de estudar, amorosos: Ana Clara namora Max; Lia namora Miguel, preso
que se envolveu com a militância de esquerda influenciada, pelo devido sua participação nos movimentos contra a ditadura, com
que se pode inferir, pelo curso e pelo movimento de resistência e quem vai embora para a Argélia, graças ao auxílio financeiro dos
luta armada e também a partir de uma tomada de consciência pais e do adiantamento da amiga, quem lhe dá um cheque em
sobre a existência ou não de Deus descrita no decorrer de uma branco para que preencha de acordo com a necessidade; Lorena
conversa com Lorena (2009, p. 215): está apaixonada por um homem casado, o M.N.,e está sofrendo
Também fui anjo de procissão, papa-hóstia, fui tudo. [...] porque desconfia que ele não a procure mais, conta, porém, com
Não sei explicar, Lena, mas assim que comecei a ler os a paixão de Fabrizio e de Guga.
jornais, a tomar consciência do que se passava na minha
A relação das três amigas – a drogada, a militante e a
cidade e no mundo, me deu tamanho ódio. Fiquei uma fúria.
intelectual –, conforme a construção da narrativa, gira em torno
Sem dúvida ele existe, eu pensava, mas é só crueldade.
da Lorena, pois é ela quem sempre vem à tona nas situações
Lorena é a moça rica, cujos pais estão separados, que mora numa vividas pelas colegas e é ela quem tem mais voz ou que se
pensão para estudar, que teve uma formação cultural e humana manifesta de modo mais intenso. Tal protagonismo deve-se,
importante, pois lê e ouve os clássicos da literatura e da música, e talvez, em função de sua situação financeira estável, que pode
ajuda os fracos e oprimidos. As três vivem no lugar da decência, da ajudar as colegas dando-lhes dinheiro (oriehnid) sem
honra e da paz, um pensionato católico dirigido pela Madre Alix comprometer sua fortuna, e também pelo modo como vê e analisa
com o auxílio das demais freiras que ali vivem e trabalham. No as situações, servindo também como referência psicológica para
entanto foi ali, “no lugar destinado a protegê-las dos riscos do as duas amigas. Destaca-se, entretanto, que essa estabilidade não
cotidiano urbano”, no conforto do pensionato, que elas se significa que não tenha problemas de ordem emocional, pois,
revelaram como viciada, militante e humana, respectivamente. É conforme vai se revelando pelo narrador e pela própria Lorena, ela
nesse lugar “intocável” que a droga, a política e o sexo se também tem seus dilemas e traumas, mas naquilo que é
encontram, como afirma Sales Gomes (2009, p. 295)1, fundamental numa sociedade capitalista, ou seja, a vida financeira,
o tal pensionato não é mais o casulo intocável – exposto está resolvida.
como se encontra, como toda a sociedade do nosso tempo, Se Lorena é construída e definida como um modelo estável,
às diferentes formas de fraternidade ou do medo: política,
que questiona sua existência e sua relação com o mundo, sem
1
Texto da orelha da primeira edição, de 1973, transcrito nessa edição de 2009.
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alterar sua rotina, o mesmo não ocorre com Ana Clara, que se convenção e da aparência”, confirmando-se o pensamento de
revela completamente instável em função da dependência de Lorena na passagem citada anteriormente:
drogas. Ela almeja um futuro melhor, ela sonha ser uma mulher Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou, eu
rica como Lorena, revelando certa inveja da amiga como, por estou: estou competindo e como dentro das regras do jogo
exemplo, no último episódio, quando ela sai do quarto, vai para a (milhares de regras) preciso competir bem, tenho
rua, pega carona e diz ser Lorena Vaz Leme, querendo mostrar-se consequentemente de estar bem para competir o melhor
possível. Para competir o melhor possível acabo
uma moça rica e distinta, que tem como problema, naquele
sacrificando o ser (próprio ou alheio, o que dá no mesmo).
instante, o enfarte do pai. Nesse episódio, ela sai da cama do
Ora se sacrifico o ser para apenas estar, acabo me
namorado completamente drogada, vai para a rua, pega carona desintegrando (essencial e essência) até a pulverização
com um senhor interessado em corpo e sexo, foge, entra num bar total.
onde se depara com outro senhor também interessado no corpo
da jovem, inicialmente tenta fugir, mas a bebida e a droga levam- Em relação à Lia, sua configuração gira em torno de seu
na a pensar no pai que não teve ou não conhece e termina caindo engajamento e sua militância política. Sua ação é regular e colada
na armadilha: a alucinação não permite distinguir o bem e o mal e nos dilemas da juventude e da militância. É com ela que se
ela segue o desconhecido até o seu apartamento. Reaparece em acompanha o desenrolar da luta contra a ditadura, que se
cena novamente no pensionato, onde, depois de acolhida, é conhecem os atos repressivos e o uso da tortura. Por isso a
encontrada morta por Lorena. Como o espaço não pode ser personagem torna-se singular, ela poderia simplesmente não
corrompido e ninguém quer ser envolvido, já que a moça não tem existir, mas o compromisso de ser “testemunha do seu tempo e de
família, Lorena e Lia levam-na, depois de vesti-la para uma noite sua sociedade” exige essa presença, apesar do risco. Para compor
de festa, até uma praça para que seja encontrada ali, sozinha e tal figura, a autora proporciona a ela situações de expressão de
morta, sem comprometer ninguém. Esse final de Ana Clara é pontos de vista socialistas e feministas significativos no que se
bastante ambíguo. Em primeiro lugar, está a resolução de Lorena, refere ao alerta da condição da mulher e das desigualdades sociais,
quem age de modo racional, porque o que interessa é livrar-se do bem como no que diz respeito às atrocidades do regime em voga.
corpo e evitar comprometer-se e comprometer o outro. Em Se no início temos uma personagem envolvida com a causa
segundo lugar, está o aspecto metafórico: livrar-se, sem coletiva, no final ela se individualiza porque o objetivo é sair do
testemunho, daquilo que é inconveniente ao sistema. Para Tezza país e encontrar-se com Miguel para retomar sua relação e seguir
(2009, p. 292), esse “final parece apontar uma resposta ainda que sua vida. O momento mais tenso, aquele que revela a morte da
antes pela negação do que pela afirmação – o fato é que tanto Lia Ana Clara, confirma esse individualismo, pois o que interessa
quanto Lorena fogem da responsabilidade concreta de seu naquela hora é a viagem, e nada pode interromper o plano. No
primeiro momento-limite de verdade, derrotadas pelo império da entanto, comovida, auxilia Lorena a pôr em prática o plano de
deixar a amiga na praça pública. Entende-se também que a recusa
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de Lia deve-se ao risco que corre devido ao seu envolvimento com mulheres se encarregam de podar a imaginação e substituir
a causa. Novamente a ambiguidade sobressai-se, felizmente, Salgari e Poe pela aritmética. É uma pressão tão completa,
confirmando tratar-se de uma obra literária. tão atmosférica, que todos a ela sucumbem e aprendem
Saindo do Brasil em direção à Espanha, tem-se o romance matemática esquecendo, por uns anos, as aventuras e os
projetos românticos.
La boda de Chon Recalde, de Torrente Ballester, publicado em
1995, traduzido no Brasil em 1997 pela editora Record. Essa obra A sedução sugerida está no fato de não falar da obra, mas
tem como contexto histórico os anos 40 do pós-guerra civil fazer algumas afirmações, como a citada acima, que despertem
espanhola, conforme referências no romance. Ela está dividida em curiosidade e, dependendo, indignação, principalmente nas
três partes: a primeira parte compõe-se de nove capítulos, a leitoras. Tal destaque sugere que o espaço é fundamental no texto,
segunda, de quatro, e a terceira, de três capítulos, introduzidas por pois, como afirma Rodríguez González (2007, p. 87-88):
três paratextos: o título (que sugere narrar o casamento de alguém se trata de un espacio social: las calles con sus viviendas y
chamada Chon Recalde), a dedicatória (dirigida ao neto, aos establecimientos públicos, se adjudican a determinadas
pescadores galegos e ao Fernando Bosch in memoriam), e o castas sociales, en las que apenas las mujeres de clase
“Incipit”. Este último, assim como os anteriores se caracteriza obrera tienen una aparición fugaz; en el Casino se sitúa la
“vox populi” más respetada en la ciudad, la casa de los
como uma passagem entre o texto e o não texto, o lugar onde se
Recalde es el símbolo de la supervivencia de la casta a los
estabelece o contato do emissor com o leitor real. Andréa Del
avatares de la historia, el comercio de don Regino Sanz es
Lungo (1993) afirma ser o incipit “a primeira unidade do texto” e o también un espacio simbólico. Y por último, el Rancho
considera como uma “zona” (e não como um “ponto”), que Grande en el Arsenal y el aula de inglés para oficiales de la
qualifica de estratégica, com limites móveis e incertos, cuja marina, donde trabajarán las dos hermanas, enfrentándose
extensão pode variar, e cada caso deve ser considerado a la tradición del lugar.
individualmente. Em La boda, o Incipit serve para iniciar o texto e
O romance inicia com a notícia do fuzilamento do capitão
seduzir o leitor ao apresentar o espaço físico da obra, a cidade de
Recalde, um recuo no tempo, para anunciar que as duas filhas do
Villarreal de la Mar, informando que seu desenvolvimento deve-se
fuzilado, Cristina e Chon Recalde, estão retornando à cidade, da
à indústria e ao racionalismo, os quais “produziram nas pessoas da
qual saíram quando ainda eram pequenas. Tal situação garante a
cidade uma alma contraditória, paradoxal; alma que desemboca,
elas o protagonismo do romance, cujo destaque recai sobre
irremediavelmente, em filarmonia e ironia” a também a sua
Cristina, quem tem por objetivo casar a irmã, mais nova que ela, e
origem céltica (1995, p. 7). Além disso, o texto de abertura
ir novamente embora da cidade. Ambas trabalham para
estabelece diferenças entre homens e mulheres e afirma que
sobreviver, rompendo com a tradição social da época, anos 40, que
(1997, p. 8):
não aceitava que uma mulher de família trabalhasse. Essa é uma
quem manda na cidade são as mulheres, e isso com um
grande senso prático, embora bastante limitado. As das outras situações que as diferenciam das demais mulheres da
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cidade. A principal delas reside na despreocupação das irmãs com guerra. Considerando as duas personagens, Rodríguez González
o status que têm em função da origem: filhas e netas de almirante define-as a partir de uma “composición cervantina”:
e capitão de mar e guerra sendo, por isso, rivais das demais moças Las dos forman la cara y la cruz de una sola mujer, que, de
“casadoiras” e de certo modo cobradas pela manutenção do estar completa, sería perfecta. Son como la mujer-Quijote
modus operandis próprio da condição delas como, por exemplo, que se quiere libre – en lugar de la locura de Quijano,
relacionar-se com homens da mesma casta militar. Cristina es extremamente racional –; y la mujer-Sancho
Panza, también de su libertad, por lo menos en la sociedad
A disputa mais acirrada está entre Pauliña e Chon, uma vez
que le quiere imponer sus rígidas convenciones. Chon es la
que Cristina não tem interesse em se casar. Chon chega à cidade e
encarnación literaria de la alegría de vivir [...], de la
no dia seguinte já está acompanhada de Pepe, que logo a sensualidad ingenua y la facilidad de adaptación al mundo
abandona porque foi proibido pela mãe de sair com a filha do de Villarreal. En su vivir el presente y no pretender nada más
fuzilado, como são tratadas as irmãs Recalde. Ele aceita a que realizar sus necesidades vitales de origen biológico, es
proibição, conhece Pauliña e o casamento é programado e la mujer sanchopancesca en el mejor sentido de la palabra,
realizado de acordo com o tradicional ritual. Antes disso, ela, pues se ve unida a su hermana en su comportamiento y
Pauliña, com auxílio da mãe, trata de desqualificar Chon Recalde mantiene la dignidad ante los ataques de “
para impedir que ela se case com o primeiro-tenente José María Diferente de Chon (Rodríguez González, 2007, p. 90),
Seoane, filho de um comerciante, pecado que não costuma ser “Cristina es la mujer con ideas, que se niega a integrarse en un
perdoado pela marinha naval. Ao impedir o casamento, ela evitará mundo, el de Villarreal de la Mar, que es suyo por nacimiento, y
o contato com a Recalde nos ambientes frequentados pelas que por lo tanto debe aceptar su extrañeza o disidencia. Nadie la
mulheres dos oficiais da marinha. entiende, pero todo el mundo la respeta”. Na mesma linha de
Pauliña alcança seu objetivo, separa Chon e Seoane, graças análise, Rodríguez González destaca ainda a personagem Elvira
a uma carta, que sugere que Chon Recalde não é mais virgem. Tal Seoane como sendo a única mulher que se pode igualar a Cristina
revelação, no entanto, não abala as irmãs, ao contrário, elas no item independência de ponto de vista.
seguem sua vida e suas relações sociais, morando na casa da tia, Retomando o propósito desta comunicação, que consiste
sem necessidade de explicar-se aos outros. Destaca-se ainda a numa análise comparativa da representação das figuras femininas
amizade de Cristina e Elvira Seoane, que começa devido ao nos dois romances apresentados acima, convém apresentar alguns
namoro dos irmãos, se mantém intacta apesar da separação do resultados parciais, uma vez que sempre é possível ampliar esse
casal. leque: a) são duas narrativas distantes no tempo de produção
Por fim, Cristina vai embora, Chon fica na cidade e casa-se (1973 e 1995) e no tempo de contextualização, anos setenta e anos
com Regino Sanz, comerciante, que não pode seguir a tradição 40, respectivamente; b) espaço ficcional específico, mas passível
marinha, mas que no fundo da alma era um capitão de mar e de reconhecimento a partir da caracterização de cada uma: a
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brasileira São Paulo e a espanhola Ferrol; c) contexto histórico construídas e inseridas em contextos históricos específicos, porém
ditatorial: golpe e ditadura militar brasileira e pós-guerra civil e semelhantes no que se refere ao estado ideológico militar e
ditadura franquista espanhola; d) representação da opressão ditatorial. Estado esse que não impede, no entanto, que seus
política e de gênero, porque há um limite para a liberdade de autores permitam que suas figuras se sobressaiam naquilo que é
expressão em geral e liberdade de atuação feminina; e) títulos próprio de sua natureza ficcional: desconcertar o leitor a partir de
forjados a partir do feminino: As meninas e La boda de Chon suas ideias e ações.
Recalde; f) consequentemente sobressai-se o protagonismo
feminino: Ana Clara, Lia e Lorena, por um lado, e Chon Recalde e Referências
Cristina Recalde, por outro. As duas obras apresentam figuras DEL LUNGO, Andrea. Por une poétique de l’incipit. Poétique, Seuil,
femininas da época, mas que estão além de sua condição de nº 94, Avril, p. 131-152, 1993.
gênero, cuja construção foi bastante cuidadosa para garantir a
verossimilhança sem cair na caricatura. São mulheres definidas e GOMES, Paulo Emílio. Texto de orelha da primeira edição de 1973.
decididas como se verifica nas suas caracterizações e nas suas In: TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das
ações e movidas por sentimentos tanto de presença como de Letras, p. 295-296, 2009.
ausência da paixão, cujas semelhanças se destacam, por exemplo,
entre Lorena e Cristina como personificação de mulheres cultas e JOSE VEJA, María & CARBONELL, Neus. La literatura comparada:
pensantes; Ana Clara e Cristina como personificação da não princípios y métodos. Madrid: Gredos, 1998.
adaptação ao mundo circundante, por isso a necessidade do entre-
lugar; Chon e Lorena, objetivas, mas esperançosas na possibilidade NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica.
de um amor correspondido; i) mistura de vozes narrativas e de São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
discurso, pois narrador e personagens disputam espaço e
conhecimento dos fatos, permitindo um conhecimento e OCAMPO VIGO, María Eva. La boda de Chon Recalde: Torrente
reconhecimento do universo espaço-temporal das figuras Ballester y la sociedade ferrolana de pós-guerra. La Tabla Redonda
femininas que se movem nas narrativas. – Anuario de Estudios Torrentinos, Vigo, nº 5, p. 101-112, 2007,.
Finalizando, com base na literatura comparada, entendida
como campo de investigação das relações literárias entre as RODRÍGUEZ GONZÁLEZ, Olivia. Novela de las mujeres de Villareal
distintas nacionalidades com vistas a estudar os empréstimos, as de la mar. La Tabla Redonda – Anuario de Estudios Torrentinos,
adaptações e imitações, pode-se afirmar que nos dois romances Vigo, nº 5, p. 81-100, 2007.
analisados não há empréstimo, adaptação ou imitação de uma ou
de outra, mas se configura a representação de figuras femininas
P á g i n a | 780

TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das


Letras, 2009.

TEZZA, Cristóvão. As meninas: os impasses da memória. In: TELLES,


Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, p.
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TORRENTE BALLESTER, Gonzalo. La boda de Chon Recalde.


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______. O casamento de Chon Recalde. Tradução de Ari Roitman e


Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Record, 1997.
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“LA 31”: LA ISLA PRECARIA DE ARIEL MAGNUS Y LOS personaje. El final de la historia no ocurre obligatoriamente,
DESPLAZAMIENTOS DEL YO Y DEL OTRO ENTRE LOS porque la estructura narrativa no está en la forma tradicional de
FRAGMENTOS DE LA CIUDAD escrita, o sea, no está en una estructura narrativa linear. El autor,
Renata Dorneles Lima utilizando combinaciones diversas de historias fragmentadas,
UFRJ pone en evidencia el objetivo de la obra de representar esa nueva
sociedad que produce sujetos fragmentados que viven en una
Frente al fenómeno de la fragmentación del sujeto y del nueva forma de sociabilidad, designada “neotribalismo”
territorio urbano que se reproduce a través de fraccionamientos y (Maffesoli, 2010), en que comunidades se forman a partir de un
segregación residencial, escritores hispanoamericanos de las presente vivido colectivamente y estrategias afectivas, y no a partir
últimas dos décadas escriben una literatura que narra la ciudad de una identidad nacional.
como espacio geográfico no homogéneo. Esa literatura ya no Analizando de otra forma, podemos afirmar que la escrita
plantea la urbe como una unidad geográfica, sino como una de Magnus puede integrarse en esas narrativas recientes de las
pluralidad de territorios fragmentados que pueden borrar las que nos habla Josefina Ludmer (2010, p. 127 / 128):
referencias de identidades o actuar como locus de pertenencia de [...] después de 1990 se ven nítidamente otros territorios y
grupos o tribus. sujetos, otras temporalidades y configuraciones narrativas:
Ariel Magnus, en su obra La 31 - una novela precaria, utiliza otros mundos que no reconocen los moldes bipolares
como locus narrativo uno de esos territorios fragmentados que tradicionales. Que absorben, contaminan y desdiferencian
lo separado y opuesto y trazan otras fronteras. Literatura
pertenecen a la ciudad de Buenos Aires, la villa que da nombre a la
urbana y rural, por ejemplo ya no se oponen sino que
obra. Se puede analizar la estética narrativa construida por
mantienen fusiones y combinaciones múltiples. [...] y
Magnus como una estructura precaria semejante al propio aparece una literatura urbana cargada de droga, de sexo, de
territorio narrado, una vez que el autor no construyó la obra de la miseria y de violencia. Esa literatura borra las fronteras
forma lineal tradicional; al contrario, la estructura narrativa se entre lo rural y lo urbano; borra la oposición [...]
asemeja a la propia estructura de la villa con sus viviendas
De acuerdo con Ludmer, esa forma de narrar ya no separa
visiblemente no terminadas y con sus callejones laberínticos. La
realidad de ficción y tiene como base la narración del presente de
idea de la precariedad presente en la obra no es algo negativo, sino
una sociedad que ya no se estructura de manera uniforme, de la
una estética de escrita de la cual Magnus se vale.
misma forma que no se presenta de manera bipolar entre el
El libro se divide en treinta y un capítulos – o relatos de lo
campo y la ciudad. Esas narrativas tienen como base las “islas
cotidiano – que pueden tener una continuidad, como una forma
urbanas”, que son territorios en que el sujeto se “desdiferencia”,
de seguir relatando la historia, o simplemente terminar en un
o sea, tiene anulada la división social que la ciudad le impone.
único relato, sin que el lector sepa como termina la historia del
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La ciudad pensada como territorio de disputas por la – por medio del proceso de fragmentación – por esa clase no
representación y por el derecho a ella puede ser utilizada como un reconocida como semejante.
territorio de ejercicio del poder dominante representado El autor de La 31 utiliza – para la representación del
normalmente por las clases hegemónicas. Cuando se evidencia su territorio – la idea de desplazamiento propuesta por el escritor
fragmentación, el poder de las clases altas pierde la fuerza, argentino Ricardo Piglia como complemento de las cinco
dejando más exacerbadas las disputas por el territorio. Nuestro propuestas idealizadas por Ítalo Calvino para la literatura de este
corpus trata la representación del territorio fragmentado a partir milenio. Piglia sugiere, en su texto “Uma proposta para o próximo
de esa vertiente: el diálogo entre ese espacio y los sujetos que lo milenio”, pensar la literatura a partir del desplazamiento, o sea, a
caracterizan y allí transitan. partir del margen.
La narrativa de Ariel Magnus alude a un territorio con Piglia inicia la discusión con el cuestionamiento de cual
características específicas, un territorio de la alteridad, aunque dé sería la sexta propuesta de Ítalo Calvino si la literatura fuera
espacio para los relatos de espacios hegemónicos. Sin embargo, el pensada basada en el “suburbio del mundo”. Lo que propone el
objetivo de esos relatos es enseñar el discurso de los sujetos que autor es una narración bajo la perspectiva del territorio y sus
allí viven en relación al territorio del “Otro”, o sea, del “no sujetos al margen; objetivo semejante al de A. Magnus al pensar
semejante”. una narrativa que tiene un locus no hegemónico. Para Piglia (2012,
En uno de los relatos de la obra, “Martín Fierrita”, el p. 4), “poderíamos imaginar que há uma sexta proposta. A
narrador expone la imagen que hay acerca del habitante de ese proposta que eu chamaria, então, de distancia, deslocamento,
territorio de la alteridad, describiendo la relación peyorativa que mudança de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale
la sociedad narrada hace del villero con otro personaje de la também na margem, no que se ouve, no que chega de outro”.
cultura argentina. En los treinta y un relatos que componen la novela de
Ciertamente, el gaucho asustaba por su soledad, que se Magnus, la narrativa proviene, mayoritariamente, de ese territorio
comparó en su momento a la del animal salvaje, mientras del margen. La representación de lo cotidiano de ese lugar ocurre
que el villero se le espera que vive demasiado cerca, cuando a partir del desplazamiento, aunque, en algunos relatos, la ciudad
en ambos casos el problema es que, de modo extensivo o hegemónica sea locus para la representación. Con todo, cuando el
intensivo, se han adueñado de la tierra que los otros creen
narrador lee la sociedad a partir de ese desplazamiento, lo hace
propia. (2012, p. 104)
como estrategia narrativa enfocando el lugar y la cultura del
“Otro” (del margen), normalmente enseñando lo imaginario de los
Ariel Magnus se propone, al narrar esa ficción del presente, prejuicios asimilados por las clases medias y altas porteñas.
pensar la representación de ese territorio marginalizado; territorio Pretendemos reflexionar acerca de la relación que hay entre los
que pertenecía al todo de la ciudad hegemónica y que fue ocupado medios de comunicación y lo imaginario de la ciudad en relación a
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los espacios periféricos que, muchas veces, son desconocidos de medios de comunicación. De acuerdo con el antropólogo (2008, p.
las clases hegemónicas. 17),
Para narrar la representación de la villa, A. Magnus trabaja é próprio das cidades, sobretudo das megalópoles, nos
con lo imaginario que hay acerca de ese territorio y de los sujetos proporcionarem experiências de desconhecimento.
que viven allí. Para comprender mejor esa afirmativa, utilizaremos Atravessamos zonas nas quais só podemos imaginar o que ali
las discusiones de Néstor García Canclini y de Jesús Martín Barbero sucede (habitualmente com preconceito e discriminações).
relacionados al modo como se forma ese imaginario. Los autores
explican la importancia de los medios de comunicación para la El relato intitulado “Agustina (o La fortuna de La maldad)”
difusión de imágenes de territorios marginales, favoreciendo, narra la experiencia de una mujer de la clase alta de Buenos Aires
consecuentemente, una visión deturpada y estereotipada de ese dentro de la villa. Agustina participa en una ONG que actúa en
territorio y de sus habitantes. Según Canclini (2008, p. 15), “as villas y se pierde de su grupo durante la visita al territorio. Agustina
cidades não existem só como ocupação de um território, se ve sola e imagina que será robada y violada por los villeros
construção de edifícios e de interações materiais entre seus porque tiene rasgos físicos distintos de los habitantes del lugar. Al
habitantes. O sentido e o sem sentido urbano se formam, final de su fuga por los callejones de la villa, encuentra a dos chicos
entretanto, quando o imaginam os livros, as revistas, o cinema”. que la perseguían para devolverle una cartela que ella había
Canclini argumenta que parte de lo que se conoce en una perdido; sin embargo, ella siguió creyendo que la violarían como
ciudad no está necesariamente relacionado a la interacción entre forma de agradecimiento por parte de la mujer.
los individuos pertenecientes a los distintos microterritorios que El relato comprueba los argumentos de Canclini de cómo la
componen la ciudad, aunque esas personas circulen por diferentes experiencia del desconocimiento puede favorecer una visión
ambientes. La teoría propuesta por Canclini trata del conocimiento deturpada en relación a un territorio o un grupo de individuos.
que se adquiere por medio de los grandes medios de comunicación Agustina, personaje principal en el relato, muestra su miedo por lo
o de la literatura, como una forma de conocimiento imaginado del “desconocido” y, aunque, el desenlace de su “aventura” aclare a la
“Otro”. personaje que su imaginario creado no correspondía a la realidad,
El argumento del antropólogo argentino puede ser ella permanece con la duda y el recelo ya naturalizado.
comprobado con el análisis de algunos relatos más emblemáticos Jesús Martín Barbero (2008, p. 253/254) complementa los
del libro de Magnus en lo que se refiere a la cuestión de lo argumentos de Canclini con la opinión de que la televisión es un
imaginario deturpado. El relato que describiremos como ejemplo aparato mediático que controla las diferencias. Si por un lado esos
de la teoría de Canclini evidencia que el sentido de lo urbano se medios de comunicación convencen que hay semejanzas entre
estructura por medio de cómo lo imaginan los libros – en el ámbito grupos heterogéneos – aunque de forma superficial –, por otro
académico – y las revistas y otras medias – en el ámbito de los
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lado, cuando los aleja, transforma al “Otro” en un extraño sin posición en tratar como exótico el “Otro”, en diferenciarlo de sí, o
ninguna relación con el grupo hegemónico. sea, diferenciarlo de la clase hegemónica a que pertenece. La
Ao conectar o espetáculo com a cotidianidade, o modelo mujer distingue el color de su piel y el color de la piel de los villeros
hegemônico de televisão imbrica em seu modo de operação con los cuales ella mantiene contacto visual.
um dispositivo paradoxal de controle das diferenças: uma La estrategia del autor del libro, en ese relato, es la posición
aproximação ou familiarização que, explorando as dicotómica que la personaje utiliza para diferenciarla de los
semelhanças superficiais, acaba nos convencendo de que,
personajes subalternos. La forma como Agustina percibe el “Otro”
se nos aproximarmos o bastante, até as mais “distantes” as
tiene como base una deturpación tan excesiva que ella, en un
mais distanciadas no espaço e no tempo, se parecem muito
conosco; e um distanciamento ou exotização que converte momento del relato, compara la imagen del grupo de villeros a de
o outro na estranheza mais radical e absoluta, sem qualquer un “monstruo”, y la suya como la de una “heroína”.
relação conosco, sem sentido para o nosso mundo. Sin embargo, el prejuicio evidente de Agustina no está
exclusivamente al discurso negativo de la imagen del “Otro”; lo
Lo que Barbero discute en este párrafo es la posibilidad de
imaginario producido socialmente acerca de lo que sería ese sujeto
la televisión naturalizar, en algunas clases sociales, la superficial
“no-semejante” provocó en la personaje un miedo concreto del
apariencia de semejanza con grupos que están en otra parte de la
territorio en que se encontraba y de sus habitantes. La cuestión del
ciudad, considerando la perspectiva social y económica. Sin
“miedo de la ciudad” es discutida por el geógrafo Marcelo Lopes
embargo, el alejamiento físico de los territorios de alteridad, así
de Souza en su libro Fobópole: o medo generalizado e a
como los individuos que allí bien, puede llevar a un exotismo de
militarização da questão urbana (2008).
ambos.
El geógrafo crea ese título para su libro para exponer la idea
La personaje del relato mencionado percibe y muestra,
del miedo social que aumenta gradualmente, haciendo con que la
durante todo el tiempo en que estuvo sola en la villa, lo imaginario
ciudad no-homogénea sea el espacio de la fobia. Ese tema podría
ya asimilado a partir de ese exotismo del villero. Agustina, en el
ser la base de análisis de muchos relatos de la obra que estamos
inicio del relato, diferencia nítidamente los individuos
analizando, pues problematiza muchas cuestiones que están en la
pertenecientes a su clase social y los individuos que viven en La 31.
base de la narrativa. El miedo del territorio de la alteridad, la
Nos cuenta el narrador: “Cuando Agustina se dio vuelta notó que
segregación inducida por las circunstancias y la auto segregación
ya no había nadie. O sea gente había mucha, una densidad de
son formas preventivas de no tener contacto con el “Otro”
shopping los días de lluvia, pero eran todos villeros [...]” (Magnus,
presente en la narrativa de Ariel Magnus.
2012, p. 9). Porque Acevedo no le tenía pánico al hecho de caer, si abajo
Agustina no reconoce los habitantes del territorio como lo hubiera esperado un precipicio, o el mar, sino al hecho de
iguales o como personas que merecen cierta importancia cuanto caer dentro de la villa, y no precisamente por la posibilidad
a la presencia. Durante el relato, la personaje deja evidente su de matar a alguien, como asumió su madre la vez en que le
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comentó su inquietud, aunque en aquel momento él por medio de sus sujetos, transitando por otros territorios así
asintiera compungido. Acevedo imaginaba la villa como una como hace los habitantes de la villa.
selva o un pantano que amortiguarían la caída hasta hacerla
imperceptible, pero solo para acusarle luego la más lenta y Referencias
terrorífica de las muertes, la de quien no logra salir de un
CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura
pozo insondable o un laberinto eterno. (MAGNUS, p. 90)
no século XX. Org. e revisão técnica de J. R. Santos Gonçalves.
El relato que utilizamos citamos es que tiene como título Tradução P. Farias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
“De paso”. Ese es un buen ejemplo de la teoría de Marcelo L.
Souza, pues evidencia el miedo de la villa, presentando el recelo ______. Literatura brasileira contemporânea: um território
de “caer” en el territorio segregado, o sea, el territorio utilizado contestado. Vinhedo, Rio de Janeiro: Horizonte, Editora da UERJ,
por la población pobre de la ciudad. El recelo del personaje 2012.
muestra la consecuencia que el miedo de la ciudad heterogénea
provoca en las personas, poniendo en funcionamiento el GARCÍA CANCLINI, N. Imaginários culturais da cidade:
mecanismo de lo imaginario construido a lo largo de los años por conhecimento / espetáculo / desconhecimento. In: COELHO, T.
los medios de comunicación en relación a los que son externos al (org.). A cultura pela cidade. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural,
territorio segregado. 2008, p. 15-31.
Las villas, durante mucho tiempo, no fueron hacían parte
de los temas que mereciesen atención en la literatura argentina. ______. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da
Sin embargo, con la fragmentación de la ciudad, territorios modernidade. 4 ed. 6 reimp. São Paulo: Edusp, 2013
diversos pasaron a ser locus narrativos de las narrativas recientes
y uno de eses espacios fue la villa, aunque sigue siendo un asunto LUDMER, J. Literaturas post-autónomas 3.0. Escrituras
preterido muchas veces en la academia. Pensar la idea de latinoamericanas de los últimos años: otros modos de pensar y de
territorio, por lo tanto, fue muy importante para la discusión de la imaginar. In: OLINTO, H. K., SCHOLLHAMMER, K. E. (orgs.).
fragmentación de la ciudad, sus consecuencias y su representación Literatura e realidade(s). Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, pp. 75-79.
en el ámbito literario.
Ratificamos la importancia que el escritor Ricardo Piglia da ______. Aquí América Latina: una especulación. Buenos Aires:
a la escrita desde la margen, desde el espacio de la alteridad. La Eterna Cadencia, 2010.
sexta propuesta de Piglia consiste en la mirada desde la margen y
no la mirada canónica del centro. Es lo que hace Ariel Magnus en
su obra: narra la representación de la villa dentro de ese territorio,
P á g i n a | 786

MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo


nas sociedades de massa. 4ª ed. Tradução M. de L. Menezes. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

MAGNUS, A. La 31 – uma novela precaria. Buenos Aires: Interzona,


2012.

PIGLIA, R. Uma proposta para o novo milênio. Tradução M. Visnadi.


Caderno de Leituras n. 2. Edições Chão da Feira.

SOUZA, M. J. L. de. A prisão e a ágora: reflexões em torno da


democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

______. Fobópole: o medo generalizado e a militarização da


questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

TERRANOVA, J. (org.). Buenos Aires/ escala 1:1. Los Barrios por sus
escritores. Buenos Aires: Entropía, 2011.
P á g i n a | 787

A INDIVIDUAÇÃO DE NATALIA ATRAVÉS DE SER ETERNO “individuação” como “tornar-se si mesmo” (Verselbstung)
CONTAR, EM LA PLAZA DEL DIAMANTE, DE MERCÈ RODOREDA ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung).
Robson Leitão (JUNG, 1984, p. 49)
UFF Natalia, que nos conta sua história em retrospectiva, é a
narradora eleita pela autora, pois esta parece desejar que
Se todas as personagens não cessam de contar histórias, é acreditemos que a protagonista adquiriu uma certa consciência de
que esse ato recebeu uma suprema consagração: contar é si mesma, do mundo que a cercava e a cerca no exato momento
igual a viver. (TODOROV, 1969)
em que lemos seu relato. E o tempo de Natalia é o presente que,
Embora compreendamos que um romancista seja incapaz como leitores/ouvintes, passamos ilusoriamente a imaginar. Se
de reproduzir a vida em seus textos, “seja na singularidade dos acompanharmos suas palavras com a devida atenção, veremos
indivíduos, seja na coletividade dos grupos”, como nos ensina que ela, a personagem narradora, irá contar sua transformação
Antonio Candido (1976, p. 67), a escritora catalã Mercè Rodoreda gradativa, saindo de sua passividade e ingenuidade rumo à
(1908-1983), em La plaza del diamante (1981), dá vida a uma série conscientização, quase forçada, do verossímil mundo pelo qual
de personagens ficcionais, entre as quais tem maior destaque transita. Para isto, a autora estrutura o discurso de Natalia em
Natalia, a protagonista do romance que conduz o leitor através da forma de monólogo, às vezes interrompido por breves diálogos ou
trama que vive e narra ininterruptamente. intervenções pontuais das demais personagens que circundam a
A narrativa conduzida por Natalia é feita de forma loquaz e protagonista, como se aquelas também necessitassem soar suas
descreve boa parte de sua vida adulta, de sua evolução como ser próprias vozes para se tornarem presentes na narrativa unilateral
vivente, de seu caminho rumo à individuação. E aqui empregamos de quem as descreve e de quem nos informa que suas vidas foram
essa terminologia porque cremos que o processo de construção significativas o bastante para serem incluídas no relato que faz. E
dessa personagem em particular, como estabelecido por para que o relato tenha correspondências com a realidade, a
Rodoreda, segue os mesmos caminhos, não ficcionais, trilhados autora situa o início do monólogo na Espanha da II República, mais
por uma pessoa comum que se proponha a descobrir-se perante o exatamente em Barcelona (RODOREDA, 1981, p. 114), e faz com
mundo que a cerca. Ou seja, para nós, a personagem Natalia se que o importante da vida da protagonista atravesse todo o período
constrói pela individuação, o mesmo mecanismo exposto e da Guerra Civil.
analisado pela primeira vez pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung [...] Natalia, tirando del hilo de los sentidos, reconstruye su
(1875-1961) que, em 1916, assim o definiu: memoria y su historia. A través de los registros guardados
Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em por la vista, el oído, el tacto y, especialmente, por el olfato,
que por “individualidade” entendermos nossa singularidade lo vivido encuentra forma y sentido. Para transmitir todo
mais íntima e incomparável, significando também nos ese mundo, no necesita dar muchas explicaciones. Con
tornarmos o nosso próprio si-mesmo. Podemos pois traduzir pocas palabras, ofrece la oportunidad de penetrar en su
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mundo, en el mundo que la rodea y en el mundo me la robarían?... y me cogió del brazo y me paró, ¿no ve
impregnado en su cuerpo y en su alma. Las alegres que me la robarían, Colometa? Y mi madre muerta y yo
experiencias vividas durante la República y la privación de parada como una tonta y la cinta de goma en la cintura
esas mismas experiencias no nos llegan a través de palabras apretando, apretando como si estuviese atada en una
de orden, de discursos ideológicos, de reivindicaciones, ni ramita de esparraguera con un alambre. (RODOREDA, 1981,
críticas o protestas. Natalia sólo habla de aires frescos que p. 12)
rozaron su piel, de olores de hojas tiernas y de capullos que
Não há identificação explícita de quem está falando, se
penetraron su olfato, y de nostalgia y melancolía, porque lo
que vino después… no era igual…, no era fuente inspiradora Quimet ou se Colometa. As vozes se fundem e confundem o
de arte, de poesía… (BUENDÍA GÓMEZ, 2008, p. 39-40) leitor/ouvinte de forma proposital. De qualquer maneira, não
podemos nos esquecer que o Quimet da narrativa feita por Natalia
Mas para que a personagem central possa ter todas essas pertence às suas memórias e se situa num campo imaginário,
percepções sensoriais, é necessária certa passividade, ou silêncio povoado pelas lembranças da personagem.
interior, sem o qual Natalia poderia vir a ser uma mulher dura, A escrita poética de Rodoreda, quase sempre, emerge das
impenetrável, incapaz até de absorver com tanta riqueza de palavras de Natalia/Colometa como se a protagonista, no papel de
sensações o universo que a rodeia e que apreende, a cada golpe narradora onisciente, pudesse reconstruir sua própria história
do destino. Sua passividade nos é apresentada logo no parágrafo minimizando, sempre que possível através da prosa poética, os
inicial do romance quando ela nos diz, em primeira pessoa, que dissabores, os horrores vividos, as dores e as perdas sentidas. Mas
acompanharia ao baile sua amiga Julieta, mesmo que não tivesse Natalia é narradora e também personagem da história que narra.
vontade de ir: [...] “porque yo era así, que sufría si alguien me pedía O distanciamento crítico entre uma e outra, a nosso ver, existe e
algo y tenía que decirle que no” (RODOREDA, 1981, p. 9). Com a se dá quando Natalia, a narradora, assume Colometa como
mesma atitude, se permite seduzir pelo jovem Quimet, no baile personagem de sua narrativa, como um alter-ego ou uma nova
popular na Plaza del Diamante. E, por causa dele, talvez mesmo identidade, mesmo que suas vozes permaneçam em uníssono. A
por sua altivez e dominação, renuncia ao noivo Pere e deixa de ser análise de La plaza del Diamante, feita pela pesquisadora literária
Natalia, quase sem relutar, para ser outra: Colometa. Nesse Josefa Buendía Gómez, apresenta correspondências significativas
momento, sua voz se funde com a de Quimet, como se ela fosse, com o que demonstramos aqui:
mimeticamente, apenas uma parte dele. Quer fugir, mas não La conducción de la narrativa por un narrador en primera
pode, pois sua transformação em Colometa é o ponto de não persona, necesariamente, implica su condición de
retorno, onde sua vida se fixa à de Quimet e onde sua personaje involucrado con los acontecimientos narrados.
individuação, paradoxalmente, tem início: Por eso, los recursos seleccionados por el escritor, para
Entonces fue cuando eché a correr y él corría detrás de mí, describir y construir los seres de la ficción, llegan
no se asuste… ¿no ve que no puede ir sola por las calles, que directamente al lector a través de un personaje; todo se ve
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a través de la perspectiva de tal personaje, que tiene la personagem significa uma nova intriga” (1969, p. 123). Colometa,
tarea de conocerse y comunicar ese conocimiento, ao desistir de sua vida, que para nós sempre será uma história
proyectando los trazos y atributos que hacen presentes a virtual, dá passagem para uma nova personagem, uma nova intriga
los otros personajes. (BUENDÍA GÓMEZ, 2008, p. 18) que será vivida não mais por ela, mas por uma nova Natalia. Se a
Com mais intensidade que o parcial mimetismo existência de Colometa estava intimamente ligada à de Quimet,
estabelecido entre Quimet e Colometa, Natalia e Colometa se quem lhe dera esse sugestivo nome, cujo significado no idioma
fundem na narrativa, onde a segunda pode ser compreendida original do romance, o catalão, é “pombinha”, com a morte
como sendo a consciência interior da primeira. Continuando nossa daquele, sua história não tem mais o mesmo sentido que antes.
linha de raciocínio, é ela, Colometa, quem atua na narrativa de Colometa, como muitos dos pombos que criara, por imposição de
Natalia e fornece àquela a leitura sensória dos fatos vividos por seu primeiro marido, e que depois matara, deixa de existir. A nova
ambas. Indo mais além, poderíamos dizer que a individuação de Natalia surge por evocação também de uma nova personagem, o
Natalia somente pode acontecer graças à intervenção, consentida, dono da venda, Antoni que, como ela, Natalia, sobrevivera às duras
de Colometa. Sua outra metade que se permitiu sair da imposições da vida, causadas em grande parte pela mesma guerra.
passividade, se casou com Quimet, teve dois filhos, passou fome, É importante notar que, para Antoni, não existe Colometa, mas,
pensou em morrer e, por fim, deixou de ser Colometa para ser uma sim, Natalia. E esta está em pleno processo de (re)conhecimento
nova Natalia, diferente da anterior, mais madura e consciente de de si mesma, de sua auto-afirmação como indivíduo. Quimet,
seu papel como protagonista das memórias narradas. A segunda agora, é somente um fantasma que, vez ou outra, volta do passado
Natalia nasce, por assim dizer, com a morte simbólica de para assombrar-lhe o novo presente. Mas a percepção de Natalia,
Colometa, quando esta, já viúva de Quimet e por não ver qualquer desta nova Natalia, é diversa da de Colometa:
outra saída contra a miséria que se abatera sobre si e sobre os que El temor frente a la amenaza externa, (la vuelta del marido
mais amava, em decorrência da Guerra Civil Espanhola, decide pôr y todo lo que eso podía significar) lleva a la protagonista de
fim ao sofrimento de seus dois filhos e ao seu próprio. O suicídio e La Plaza del Diamante a buscar la libertad dentro de sí
misma, destruyendo el símbolo que la anula y la culpabiliza.
o duplo assassinato, ainda que não ocorram de fato, marcam o fim
Por eso, en medio del miedo y de la zozobra, surge de nuevo
de uma vida e o início de outra. É a nova Natalia quem nos conta
el mito de Adán y Eva. Sin embargo, ahora, la historia del
isso: “Me costó levantar cabeza, pero poco a poco volví a la vida paraíso no aparece con el mismo significado que en el
después de haber estado en el hueco de la muerte” (RODOREDA, sermón que escuchó el día de su [primera] boda. (BUENDÍA
1981, p. 193). Quem estava no “hueco de la muerte”? A primeira GÓMEZ, 2008, p. 114)
Natalia ou Colometa, seu duplo?
Em sua leitura da reconstrução do mito de Adão e Eva,
Todorov já nos demonstrou que “a personagem é uma
descrito por Natalia após a morte de Quimet e a partir de sua nova
história virtual que é a história de sua vida. [Que] Toda nova
vida ao lado de Antoni, Buendía Gomez estabelece correlações
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com a liberação feminina, afirmando que “En su versión, Natalia, pessoais que a consciência não reconhece, mas que afloram
aliada de Eva, cuestiona el mito que explica la creación de la mujer nos sonhos, ou são significados de situações cotidianas
a partir de una costilla de Adán, como una forma de justificar su negligenciadas, de afetos que não nos permitimos e críticas
supuesta inferioridad y, por lo tanto, la necesidad de subordinar y a que nos furtamos. Entretanto, quanto mais conscientes
nos tornamos de nós mesmos através do
someter al hombre” (2008, p. 114). Esse suposto feminismo seria
autoconhecimento, atuando consequentemente, tanto
quase impossível à primeira Natalia e a Colometa, ambas
mais se reduzirá a camada do inconsciente pessoal que
incondicionalmente submetidas ao domínio masculino. Mas ainda recobre o inconsciente coletivo. Desta forma, vai
que a conscientização de si mesma seja bastante primária, mas emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho,
promissora, a nova Natalia já demonstra um forte indício de sua susceptível e pessoal do eu, aberta para a livre participação
transformação em indivíduo, como demonstra também a de um mundo mais amplo de interesses objetivos. (JUNG,
pesquisadora, em sua análise detalhada do romance escrito por 1984, p. 53-54)
Rodoreda: “En esta recreación del mito, Natalia cambia un gesto Lembremo-nos ainda que quem questiona o mito é a nova
del relato para indicar su emancipación y su autonomía” (2008, p. Natalia, a mesma que nos conta suas memórias. Observando, em
115). retrospectiva, sua própria história, essa Natalia torna-se capaz de
Para uma personagem feminina, que se descreve como se auto-analisar, de repensar os valores que fizeram dela o que ela
recatada, obediente às normas, que aceita passivamente a se tornou no presente (no qual lemos/ouvimos sua narrativa).
dominação de personalidades mais impositivas que a sua, essa
Quando a personagem questiona o mito arcaico da criação, que diz
recriação de um mito pode parecer, a princípio, muito estranha que a mulher foi feita a partir da costela do primeiro homem, ela,
por exigir uma profundidade que a protagonista, aparentemente, agora consciente de seu papel como mulher diante da vida, pode
não possui. Porém, podemos ver aqui a presença invisível da reformular a significação original para outra mais adequada a seu
autora que introduz na nova consciência de Natalia elementos presente: a mulher foi libertada da prisão em que vivia dentro do
imagéticos que, como diria Jung, pertencem ao plano do homem, visualizando dessa maneira as costelas como uma gaiola,
inconsciente, como é o caso do mito da criação, encontrado em uma jaula, onde era mantida encarcerada. Colometa, a pombinha,
diferentes culturas e em quase todas as partes do planeta. Mas era tão prisioneira de Quimet quanto aquelas tantas outras aves
esse mito surge, a partir do inconsciente, para compensar e que criava em seu palomar. Muitas das quais, mesmo sendo
redimensionar a nova consciência da protagonista em seu libertas posteriormente, podendo voar livres, regressavam ao
processo de individuação. Vejamos o que nos diz Jung: pombal, talvez em busca de comida, talvez em busca de proteção
Os processos inconscientes compensadores do eu
ou simplesmente por terem se acostumado àquela vida cercada de
consciente contêm todos os elementos necessários para a
auto-regulação da psique como um todo. No nível pessoal, grades.
tais processos inconscientes são constituídos por motivos
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A nova Natalia, nascida após o desaparecimento de história nos é contada por Natalia e sabemos que a outra é o duplo
Colometa, ainda traz em si resquícios do passado, assim como o vivente da protagonista. Colometa é parte crucial do processo de
fantasma de Quimet e a lembrança dos pombos que transformação pelo qual Natalia passa. Aquela não pode, nem
significativamente refletem seu atual processo de transformação: deve, ser apenas apagada da história. Afinal, marcas profundas
“Yo no sabía si estaba dormida o si estaba despierta, pero veía a foram deixadas em (e por) Colometa, segundo o que nos narra a
las palomas. Como antes, las veía. [...] todo era lo mismo, pero própria Natalia. As duas, nesse processo psicológico que tentamos
todo era bonito. Eran unas palomas que no ensuciaban, que no se estabelecer aqui, tornam-se um mesmo indivíduo, que é a
espulgaban, que sólo volaban por el aire arriba como ángeles de protagonista-narradora. E a autora, Mercè Rodoreda, consciente
Dios” (RODOREDA, 1981, p. 215-216). Tanto faz que seja em ou não desse processo, nos coloca, ao longo das últimas páginas
sonhos ou em estado de vigília, Natalia já não sofre o peso do que de seu romance, dentro de um mistério. Por que Natalia, depois
vivenciava em seu próprio pombal. Pois aquele se redimensiona de descrever a sensação de vários cheiros cotidianos repletos de
quando Colometa deixa de existir. E para expurgar seu passado, ou reminiscências da vida vivida por ela e por Colometa, está,
para compreendê-lo melhor, Natalia conta sua história a uma, repentinamente, com uma faca nas mãos, saindo à noite,
duas, três, muitas mulheres desconhecidas, tornando-se sorrateiramente, de sua casa, onde mora agora com Antoni?
referência para aquelas como “la señora de las palomas”. Durante [...] Y el olor del grano, y el de las patatas y el de la bombona
anos, conta e reconta sua história com os pombos. A prisão em que de aguafuerte… El cuchillo tenía el mango de madera
vivera fora demasiado marcante para que abandonasse o pombal atravesado por tres clavitos con la cabeza aplastada para
tão facilmente. Mas a repetição da história, enfim, acaba. O que nunca se pudiera separar de la hoja. Llevaba los zapatos
en la mano y cuando hube salido al patio ajusté el balcón
pombal, introjetado em suas lembranças, ganha cores diversas das
movida por una fuerza que me arrastraba, que no me venía
anteriores e não precisa mais ser expurgado: “Si alguna vez quería
ni de dentro ni de fuera, y apoyada en una columna para no
pensar en las palomas, prefería pensarlo sola. Y pensarlo como caerme me puse los zapatos. (RODOREDA, 1981, p. 241)
quisiera; porque a veces pensar en ello me ponía triste y otras
veces no” (RODOREDA, 1981, p. 232). Natalia parece não se O fluxo contínuo de seus pensamentos nos permite
importar mais se o passado a deixa triste ou não. Ela simplesmente visualizá-la andando pelas ruas por onde tantas vezes transitou e
reconhece os sentimentos evocados, sem se deixar perturbar. Ela que foram cenários das memórias que nos estão sendo narradas.
apenas os vivencia, mas agora de forma consciente. A descrição é tensa e plena de uma forte emoção que transborda
Porém, mais uma etapa para a concretização de seu a cada frase dita por Natalia. E a faca se faz presente no relato, com
processo de individuação ainda se faz necessária. Por mais que um significado ainda oculto, talvez também ignorado pela própria
simbolicamente Colometa tenha sido substituída pela nova narradora: “[...] y crucé la calle agarrando fuerte el cuchillo y sin
Natalia, ela não deixa simplesmente de existir. Tanto que sua ver las luces azules... Y al otro lado me volví y miré con los ojos y
con el alma y me parecía que aquello no podía ser verdad. Había
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cruzado” (RODOREDA, 1981, p. 242). Cruzado exatamente o que? em uma existência “de verdade”, de uma mulher que sai da
A rua, ou o que a impedia de crescer como pessoa e de se insignificância para uma dimensão muito maior aos olhos de quem
confrontar consigo mesma? O tempo da narrativa se confunde e a lê/ouve o seu relato. E isso nada mais é do que a magia
narradora percebe que seu caminhar a levou ao passado, em proporcionada pela literatura, aqui demonstrada pela destreza na
forma de presente: “Y me puse a andar por mi vida antigua hasta construção escritural feita por Mercè Rodoreda, en La Plaza del
que llegué enfrente de la pared de casa, debajo del mirador... La Diamante.
puerta estaba cerrada, Miré hacia arriba y vi al Quimet [...]”
(RODOREDA, 1981, p. 242-243). Ela não se encontra em frente a Referências:
porta da casa de Antoni, onde vive sua nova vida, mas na anterior, BUENDÍA GÓMEZ, Josefa. Mercè Rodoreda. Gritos y silencios en La
onde Colometa viveu toda sua existência. O passado se faz plaza del Diamante. Madrid: Narcea, 2008.
presente, mas pela voz de Natalia, não mais pela de Colometa:
“Había entrado hacía muchos años por aquella puerta casada con CÂNDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 5ª edição. São
el Quimet y había salido por ella para casarme con el Antoni y con Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
los niños detrás” (RODOREDA, 1981, p. 243). Passado e presente
se fundem na consciência individuada da protagonista e cria-se um JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Tradução de Dora
novo ponto de não retorno em sua existência. E a faca, que Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 1984.
aparentemente não tinha qualquer significado até então, ganha
uma função importantíssima no processo psicológico de RODOREDA, Mercè. La plaza del Diamante. 6ª edição. Tradução
individuação de Natalia: (para o espanhol)de Enrique Sordo. Barcelona: EDHASA, 1981.
Y me volví de espaldas a la puerta y descansé y tenía mucha
madrugada dentro. Y me volví a girar de cara a la puerta y TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução de Leyla
con la punta del cuchillo y con letras de periódico escribí Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Pespectiva, 1969.
Colometa, bien hondo y, como sin saber lo que hacía me
puse a andar y eran las paredes quienes me llevaban y no
mis pasos, y me metí en la Plaza del Diamante: una caja
vacía hecha de casas viejas y el cielo por tapadera.
(RODOREDA, 1981, p. 243).
O nome Colometa é gravado, por Natalia, na porta por
onde entrou uma e saiu outra. A faca que serve, entre outras
coisas, para cortar e matar, serve também para registrar. A
personagem Natalia é tão real em suas narrativas, que nos faz crer
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O EROTISMO E A MORTE EM BODAS DE SANGRE DE GARCÍA amor que está sendo construída pelos noivos, se inscreve também
LORCA. uma relação amorosa de traição da noiva com uma antiga paixão
Rociele de Lócio Oliveira da juventude.
UFES Essa relação fora do casamento teve inicio muito tempo
antes da notícia do casamento entre os noivos, os dois amantes
Analisaremos aqui como as representações do erótico e da foram namorados e romperam o relacionamento pouco tempo
morte aparecem em Bodas de Sangre, obra escrita por Federico depois do anúncio do noivado, aparentemente esse rompimento
García Lorca, em 1932, que tem em seu enredo uma história de se deu devido ao fato de que o noivo não teria bens suficientes
amor, vivenciada pelos personagens denominados como La Noiva para oferecer ao pai da noiva, como prova de que poderia manter
e Leonardo. Na obra todos os personagens são nomeados pelo e aumentar o alto padrão financeiro da família. A união dos bens
papel que eles ocupam dentro na peça, de acordo com o financeiros das duas famílias foi o fator primordial para se firmar a
parentesco que os relaciona com o triângulo amoroso que irá nova união, conversada e concretizada entre o pai da noiva e a
acontecer entre o Novio, a Novia e Leonardo. É importante notar mãe do noivo, como podemos ver no trecho:
que Leonardo é o único personagem que participa ativamente da Madre: Mi hijo tiene y puede.
peça, ele que recebe um nome próprio e vai tirar a noiva do Padre: Mi hija también.
caminho que ela tinha planejado para si e mudar o destino da vida Madre: Mi hijo es hermoso. No ha conocido mujer. La honra
de todos os envolvidos. Na peça, acontece um casamento entre os más limpia que una sábana puesta al sol.
Padre: Qué te digo de la mía. Hace las migas a las tres,
nomeados noivos, esse matrimônio vai firmar a união do casal e,
cuando el lucero. No habla nunca; suave como la lana, borda
junto com eles, também a junção das duas famílias.
toda clase de bordados y puede cortar una maroma con los
Em vários textos teatrais de García Lorca podemos dientes.
perceber como a morte ganha uma forte relação com o erótico. Madre: Dios bendiga su casa.
Em quase todas as peças aparece uma forte tensão sexual, a Padre: Que Dios la bendiga (GARCÍA LORCA, 1998, p. 91).
menção à prática sexual em si ou pelo menos o jogo que antecede
O casamento é acertado entre as famílias, a união entre os
o ato, e assim como o sexo é a atividade geradora de vida, por ela
dois parece ser muito proveitosa para todos os envolvidos, os dois
também perpassa a morte. No teatro de Lorca também podemos
noivos são jovens, pretendem ter muitos filhos para manter o
verificar a forte presença de Eros e Tânatos, aparecendo
nome da família, o sucesso das plantações do noivo e para
simultaneamente.
proliferar a riqueza já presente. Não fosse pelo retorno de
A peça inicia com os preparativos para o casamento dos
Leonardo na vida da noiva. Rompendo com o interdito, mesmo
jovens, com a reunião e a confraternização entre as famílias e,
casado com a prima da noiva e tendo um filho com essa, o
como podemos perceber, em conjunto com a possível história de
reencontro entre os amantes acontece pouco antes do recente
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noivado, quando Leonardo descobre que vai perder o seu amor, como fim dessa a reprodução, Bataille trata do desejo da
que teve início na juventude e permaneceu vivo, ele volta a visitar continuidade presente no ser humano, que sempre tenta fugir da
a noiva nas madrugadas, montado em seu cavalo e às escondidas morte, e está na reprodução a marca da descontinuidade. Quando
para que ninguém o visse, ele vai até a janela da amada na o homem e uma mulher se unem para gerar outro ser, ele está
esperança de vê-la e falar com ela. Mas não é assim que acontece, assumindo a descontinuidade do ser, que é a morte. E esse duplo
a descoberta dos encontros deles é denunciada no dia do de vida e morte fascina o homem, gerando assim, uma exaltação
casamento dos noivos, em uma conversa entre a noiva e a criada sobre o erotismo. Desde a concepção do novo ser está presente a
que demonstra saber o que estava ocorrendo: marca da morte geradora de vida, nas palavras de Bataille:
Criada: ¿Sentiste anoche un caballo? O espermatozoide e o óvulo estão no estado elementar dos
Novia: ¿A qué hora? seres descontínuos, mas se unem e, em conseqüência disso,
Criada: A las tres. uma continuidade se estabelece entre eles para formar um
Novia: Sería un caballo suelto de la manada. novo ser, a partir da morte, do desaparecimento dos seres
Criada: No. Llevaba jinete. separados. O novo ser é, ele mesmo, descontínuo, mas traz
Novia: ¿Por qué lo sabes? em si a passagem à continuidade, a fusão, mortal para cada
Criada: Porque lo vi. Estuvo parado en tu ventana. Me chocó um deles, dos dois seres distintos. (BATAILLE, 1987, p.12)
mucho.
E junto com essas duas pulsões, entra o interdito, termo
Novia: ¿No sería mi novio? Algunas veces ha pasado a esas
horas. que se refere a tudo que restringe os desejos do homem. Com
Criada: No. relação à morte, a pulsão aparece quando o homem passa a
Novia: ¿Tú le viste? enterrar seus mortos, já na sexualidade ela tem uma relação muito
Criada: Sí. forte com a entrada da religião nas sociedades.
Novia: ¿Quién era? Posteriormente, vai aparecer no homem a vontade de
Criada: Era Leonardo. burlar os interditos, e um exemplo dessa negação está justamente
Novia: (Fuerte) ¡Mentira! ¡Mentira! ¿A qué viene aquí? no erotismo, vista como atividade sexual que busca somente o
Criada: Vino. prazer. Nas palavras de Bataille:
Novia: ¡Cállate! ¡Maldita sea tu lengua! (Se siente el ruido A atividade sexual de reprodução é comum aos animais
de un caballo.) sexuados e aos homens, mas, aparentemente, só os
Criada: (En la ventana) Mira, asómate. ¿Era? homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade
Novia: ¡Era! (GARCÍA LORCA, 1998, p.98). erótica, e o que diferencia o erotismo da atividade sexual
George Bataille em seu livro O erotismo (1987) trata do simples é uma procura psicológica independente do fim
tema do erotismo e da morte como uma oposição que atua em natural encontrado na reprodução e na preocupação das
crianças. (BATAILLE, 1987, p.10)
conjunto. Tendo como chave para o erotismo a atividade sexual, e
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Um ato precisa do outro, se um deles é fundamental para Bodas de Sangre foi escrito depois da Primeira Guerra
gerar vida, no outro essa vida se encerra, para assim, dar vida a Mundial e antes da Guerra Civil Espanhola, período muito
outro ser, é esse percurso que Bataille chama de continuidade dos conturbado em que se tinha a morte e a violência como algo
seres. O ser humano tem tendência a permanecer no descontinuo, próximo de todos. Federico García Lorca foi morto em um
na morte, e essa quebra que rompe com o desejo do homem vem, fuzilamento pelas tropas militantes. Na obra podemos notar como
muitas vezes, através da violência. Somente com ela, e com a a presença da morte rodeia as famílias. A peça se inicia com as
desordem, o ser humano pode sair da continuidade e ir para a lamentações da Madre para com o filho e o marido que tinham
descontinuidade dos corpos. sido mortos durante uma briga entre famílias rivais,
Segundo Philippe Ariés, em seu livro Historia da morte no coincidentemente, a mesma família de Leonardo, os Felix. Na
ocidente (2012), nos registros escritos desde o período da Grécia família da Novia, aparece a morte de sua mãe. E no final da obra,
antiga o homem tinha uma relação mais serena com a morte, acontece uma batalha entre o Novio e Leonardo, o que resulta na
sempre relacionada com as divindades, a morte era tida como algo morte dos dois homens.
comum de que não se deveria ter medo, pois se sabia que no outro Segundo José de Anchieta Corrêa, em seu livro Morte
lado se estaria junto aos deuses. Com o advento dos tempos (2008), a morte sai de um período em que sua aceitação era feita
modernos e das grandes guerras, o homem passa a temer a morte de forma tranquila e vai para um período em que a morte é vista
e a afastar-se dela. como um mal estar. Corrêa faz menção a um costume normal do
Arturo Berenguer Carísomo atualiza a denominação de moribundo, que ficava em seu quarto esperando a sua morte, e
trágico que era empregada para caracterizar o teatro de García naquele mesmo local o próprio presidia o rito cerimonial, tornando
Lorca, utilizando o termo “tragédia antiga” e não “tragédia grega” o quarto um espaço público para a visitação dos amigos. Essa cena
para denominar o teatro lorquiano. Para Berenguer Carísomo a era comum e não havia exaltações ou excessos dos presentes, até
escrita do dramaturgo renovou o tratamento de alguns temas as crianças participavam do ato. Já depois da Segunda Guerra
tradicionais nas peças teatrais da Espanha, pois, em suas palavras, Mundial essa relação, do homem com a morte, muda totalmente,
com García Lorca, “a tragédia (tomado o termo no conceito amplo sai do familiar e vai para o espaço do anonimato, em geral os
do espetáculo religioso-popular), se revigorava mais uma vez” homens passam a morrer nos hospitais, “ambiente frio, vazio e
(1987, p. 98). desconhecido” (CORRÊA, 2008, p.33).
Bodas de sangre tem origem em uma notícia do jornal El Já os homens de Bodas de Sangre morrem no campo, em
defensor de Granada, em que García Lorca parece ter se inspirado meio a uma intensa batalha, e de lá, seguem para as igrejas para
ao ler sobre um assassinato cometido às vésperas de um serem velados pelos familiares e amigos. No final da peça, a Madre
casamento e decidir acrescentar ao acontecimento os elementos aparece sozinha, ela perdeu todos os homens da sua vida, e por
do teatro.
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isso, deseja ficar sozinha. Sem vontade de chorar ou sair, ela aceita Habitación blanca con arcos y gruesos muros. A la derecha
e solidão que lhe foi predestinada: y a la izquierda, escaleras blancas. Gran arco al fondo y
Madre: Aquí. Aquí quiero estar. Y tranquila. Ya todos están pared del mismo color. El suelo será también de un blanco
muertos. A medianoche dormiré, dormiré sin que ya me reluciente. Esta habitación simple tendrá un sentido
aterren la escopeta o el cuchillo. Otras madres se asomarán monumental de iglesia. No habrá ni un gris, ni una sombra,
a las ventanas, azotadas por la lluvia, para ver el rostro de ni siquiera lo preciso para la perspectiva.
sus hijos. Yo, no. Yo haré con mi sueño una fría paloma de Dos muchachas vestidas de azul oscuro están devanando
marfil que lleve camelias de escarcha sobre el camposanto. una madeja roja (GARCÍA LORCA, 1998, p.163).
Pero no; camposanto, no, camposanto, no; lecho de tierra, Em Bodas de sangre, todas as cenas entre o casal de
cama que los cobija y que los mece por el cielo. (Entra una
amantes é carregada de tensão sexual e erotismo, em seus
mujer de negro que se dirige a la derecha y allí se arrodilla.
discursos, encontramos uma relação que fica entre o erotismo e a
A la vecina.) Quítate las manos de la cara. Hemos de pasar
días terribles. No quiero ver a nadie. La tierra y yo. Mi llanto morte. A batalha final entre os homens só acontece porque a Novia
y yo. Y estas cuatro paredes. ¡Ay! ¡Ay! (Se sienta transida.) não consegue segurar toda a paixão em que Leonardo a envolveu.
(GARCÍA LORCA, 1998, p.170). Na última cena dos dois amantes, enquanto estão dentro de uma
cabana fugindo dos lenhadores, a Novia se declara para Leonardo,
Fhilippe Ariés comenta em seu livro sobre esse momento
e nessa fala é possível ver toda a paixão e a sexualidade presente
em que aquele que perde um familiar não consegue ficar de luto,
nessa relação:
essa mudança veio justamente quando o homem passa a morrer Novia: Y yo dormiré a tus pies
dentro dos ambientes frios e vazios, como os hospitais, ou, como para guardar lo que sueñas.
na peça, o campo, onde os principais homens do enredo foram Desnuda, mirando al campo,
assassinados. Já o motivo da reclusão, segundo Ariés, apresenta (Dramática.)
dois motivos, “permitir que os sobreviventes realmente infelizes como si fuera una perra,
resguardassem do mundo sua dor” (p. 229) e “impedir os ¡porque eso soy! Que te miro
sobreviventes de esquecerem demasiado cedo o falecido” (p. 230). y tu hermosura me quema (GARCÍA LORCA, 1998, p. 160).
Ambos motivos podem ser vistos na Madre, que se vê sozinha e Outro símbolo muito caro para as obras de García Lorca é o
decide vivenciar a sua dor e a sua solidão reclusa. Tudo que ela sangue, e na obra escolhida aqui para análise, ele também carrega
deseja é a solidão, depois de chorar por tantos homens, sua casa os dois significados, ele é tanto a marca da paixão arrebatadora,
passa a ser ambientada como um espaço branco e quieto, como como da morte. No sangue de cada personagem se inscreve seu
um hospital ou uma igreja. Na descrição da didascália no terceiro destino, e assim acontece com o triângulo amoroso, os três se
e último quadro podemos ver essa imagem: apaixonam profundamente, e por terem cedido a essa paixão,
morrem. Lembrando que os três personagens aparecem
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ensanguentados no final da obra, os dois homens tiveram uma carregada de erotismo, descrita pelo narrador através da
morte real e a noiva morre metaforicamente. Outro objeto de didascália. Ao som do violino, os dois travam uma batalha como se
morte carregado de erotismo é o cuchillo, objeto que aparece nas fosse uma dança entre eles:
primeiras páginas da obra nas palavras da Madre, que se lamenta Aparece la luna muy despacio. La escena adquiere una
por ter perdido seu marido e seu filho, homens fortes e crescidos, fuerte luz azul. Se oyen los dos violines. Bruscamente se
com objetos tão pequenos. Na obra, o fogo também é usado para oyen dos largos gritos desgarrados y se corta la música de
marcar a força do amor e da destruição. Na última cena da peça, los violines. Al segundo grito aparece la mendiga y queda de
espaldas. Abre el manto y queda en el centro, como un gran
em que a Novia tenta se justificar para a Madre sobre o possível
pájaro de alas inmensas. La luna se detiene. El telón baja en
motivo da traição, aparece esse elemento:
medio de un silencio absoluto (GARCÍA LORCA, 1998, p.
Novia: ¡Porque yo me fui con el otro, me fui! (Con angustia)
162).
Tú también te hubieras ido. Yo era una mujer quemada,
llena de llagas por dentro y por fuera, y tu hijo era un Philippe Ariés (2012) trata em seu livro da relação entre a
poquito de agua de la que yo esperaba hijos, tierra, salud; morte e o erótico:
pero el otro era un río oscuro, lleno de ramas, que acercaba A partir do século XVI, e mesmo no fim do século XV, vemos
a mí el rumor de sus juncos y su cantar entre dientes. Y yo os temas da morte carregarem-se de um sentido erótico.
corría con tu hijo que era como un niñito de agua, frío, y el Assim, nas danças macabras mais antigas, quando muito a
otro me mandaba cientos de pájaros que me impedían el morte tocava o vivo para avisá-lo ou designá-lo. Na nova
andar y que dejaban escarcha sobre mis heridas de pobre iconografia do século XVI, ela o viola. Do século XVI ao XVII,
mujer marchita, de muchacha acariciada por el fuego. Yo no cenas ou motivos inumeráveis, na arte e na literatura,
quería, ¡óyelo bien!; yo no quería, ¡óyelo bien!. Yo no associam a morte ao amor. [...] Como o ato sexual, a morte
quería. ¡Tu hijo era mi fin y yo no lo he engañado, pero el é, a partir de então, cada vez mais acentuadamente
brazo del otro me arrastró como un golpe de mar, como la considerada como uma transgressão que arrebata o
cabezada de un mulo, y me hubiera arrastrado siempre, homem da sua vida quotidiana, de sua sociedade racional,
siempre, siempre, siempre, aunque hubiera sido vieja y de seu trabalho monótono, para submetê-lo a um
todos los hijos de tu hijo me hubiesen agarrado de los paroxismo e lançá-lo, então, em um mundo irracional,
cabellos! (GARCÍA LORCA, 1998, p. 172). violento e cruel (ARIÉS, 2012, p. 67).
A figura da Luna e da Mendiga são, em si, Tânatos, a Luna A violência também aparece em Bataille com uma profunda
aparece para indicar o local onde Leonardo e a Novia estão relação com o erotismo e a morte:
escondidos para que os lenhadores pudessem encontrar o casal, e Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da
a Mendiga é a responsável por dar a notícia da morte dos dois aos violência, o domínio da violação. Mas reflitamos sobre as
familiares. Mesmo durante a batalha dos dois homens, a cena é passagens da descontinuidade à continuidade dos seres
ínfimos. Se nos referimos à significação desses estados para
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nós, compreendemos que a separação do ser da Como en el caso del caballo, el agua también servirá para
descontinuidade é sempre a mais violenta. O mais violento reunir a Leonardo y al Novio bajo un mismo símbolo. Ahora
para nós é a morte que, precisamente, nos arranca da la unificación es posible, porque – al igual que cuando se
obstinação que temos de ver durar o ser descontínuo que calificaba a ambos por igual de “morenito” – lo que se
nós somos (BATAILLE, 1987, p.13). simboliza es la juventud destruida, la vitalidad impetuosa
detenida por la muerte. (GONZÁLEZ, 1989, p.98).
A humanidade sempre desejou ter de perto o perigo, o
risco da morte é algo que excita o homem e o faz lutar por tudo E assim, utilizando o jogo duplo do fogo com a água, a noiva
aquilo que ele almeja. Somente quando o desejo se torna real é está cheia de amor e envolta em chamas, ela deseja água para
que ele vai romper com esse movimento e se inibir diante do acabar com sua dor, mas a mesma correnteza que apagou seu
objeto desejado. O objeto de desejo em si não é erótico, ele é fogo, também a matou.
atravessado pelo erotismo através do homem, o objeto não se Na obra é possível perceber como os personagens estão
basta como erótico em si, ele se torna através do olhar do homem. sempre atravessados pelo erotismo, presente na relação amorosa
Um exemplo disso em Bodas de Sangre são as meias, dadas e sexual, pelo medo, da descoberta da traição pelos seus familiares
pelo Novio de presente para a Novia, todas cheias de rendas, e amigos, e pela morte, representada pela perda. Mesmo temendo
bordados e transparência. Utilizamos aqui as palavras de uma das o que poderia acontecer com ela, a noiva rompe com o interdito,
amigas da noiva que ver os presentes e os descreve: foge da igreja, depois do fim da cerimônia, assume seu amor e se
Muchacha: ¡Y compraron unas medias caladas!... ¡Ay, qué entrega para Leonardo, sem medo do seu destino ou dos olhares
medias! ¡El sueño de las mujeres en medias! Mire usted: dos outros.
una golondrina aquí (Señala el tobillo.), un barco aquí O interdito aparece na obra sempre que o casal enamorado
(Señala la pantorrilla.) y aquí una rosa. (Señala el muslo.) não consegue prosseguir com seus desejos, para isso eles
(GARCÍA LORCA, 1998, p.84) deveriam passar por cima das ordens dos pais dos noivos, da
As meias são uma representação do erótico e do desejo, família do amante, da ordem da igreja - já que a noiva foge com o
imagem de sedução que o noivo compra com o objetivo de vê-las amante a cavalo depois de terminada a cerimônia, e por isso, ela
sendo usadas pela noiva na noite de núpcias. E o mesmo objeto é já era mulher do noivo -, e do que foi preparado e arrumado pelos
rechaçado pela noiva, pois está nas meias a representação do pais para unir as famílias, em todos os âmbitos.
casamento e da entrega de seu corpo para alguém que ela, Quando o contrato entre os dois noivos é quebrado, a
verdadeiramente, não amava. família do noivo parte em direção a floresta para descobrir o
Mario M. González, em seu livro El conflito dramático em esconderijo dos amantes e trazer a noiva de volta. Apoiados pela
Bodas de Sangre (1989), comenta sobre outra relação em Bodas Luna, que desvenda o esconderijo e aparece como um deus ex
de sangre, presente na imagem entre a água e o fogo: machine, ela ilumina os amados numa luz que vai despir os
amantes para o gozo final, de erotismo e morte.
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Referências:
ARIÉS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos
nossos dias. Tradução de Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana.


Porto Alegre: L&PM, 1987.

CORRÊA, José de Anchieta. Morte. São Paulo: Globo, 2008.

GARCÍA LORCA, Federico. Bobas de sangre. Madrid: Alianza


Editorial, 1998.

GARCÍA LORCA, Federico. Obras completas. Recopilación y notas


de Arturo Del Hoyo. Madrid: Aguilar, 1966.

GONZÁLEZ, Mario M. El conflicto dramático en Bodas de Sangre.


São Paulo: FFLCH/USP, 1989.
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LA GRAN NOVELA HISPANOAMERICANA: EL MÉTODO CRÍTICO Alfonso Reyes, “el centauro de los géneros”, es decir, el ensayo se
DE CARLOS FUENTES ubica en la borrosa frontera de lo estético con lo científico. Al
Rodrigo Vasconcelos Machado manejar con múltiples tópicos de las humanidades, como la
UFPR cultura, la sociedad y la historia, el discurso ensayístico termina
siempre huyendo a las tentativas de definir susodichos temas. El
Esta investigación tiene como blanco la problemática del discurso espeja o repite las etapas que la conciencia de uno tiene
ensayo en el ámbito de Iberoamérica, es decir, se propone a que sobrepasar en su proceso de aprehensión de lo real para
investigar cómo el método ensayístico del escritor mejicano Carlos organizar la “realidad concreta”. La oscilación del ensayo con los
Fuentes (1928-2012) sobrepasó las comunidades imaginadas de géneros tradicionales va a posibilitar su circulación y atender a las
las naciones hispánicas y puso las literaturas iberoamericanas en demandas inmediatas de sus lectores, es decir, podemos
relación. La obra elegida para este estudio ha sido la Gran novela considerarlo como una suerte de texto que atiende a las
latinoamericana, de 2011. El marco teórico-metodológico de la necesidades de la vida moderna por su brevedad y por no perder
presente investigación se inscribe en el contrapunteo de los de vista el estímulo intelectual y estético. Razonar sobre el ensayo
postulados planteados por Carlos Fuentes al comparar la literatura como género híbrido permite aclarar sobre su papel para la
brasileña con las literaturas hispánicas. conformación de los imaginarios culturales específicos, porque su
Por detrás de la obra propuesta como objeto de análisis relación con otras manifestaciones artísticas es de doble hilo. Se
está indicado cuál es el proyecto que establece los parámetros puede plantear que el ensayo es una forma válida para investigar
para este planteamiento crítico. En resumidas cuentas, la discusión historiografías literarias que proponen nuevas relaciones entre
aquí esbozada se incluye en la investigación sobre el ensayo literaturas con problemáticas muy próximas, ya que como plantea
iberoamericano en relación. Para ello, van a ser necesarias antes con mucha propiedad Miguel Oviedo, “En América [...] los
algunas explicaciones para la comprensión de susodicha fundadores de la conciencia cultural del continente son sus
investigación. El ensayo como género literario se inscribe en el ensayistas.” (MIGUEL OVIEDO, 1991, p.22)
debate que tuvo como sus precursores los trabajos pioneros de El ensayo en la época del romanticismo inicial de América
Lukács, Max Bense y Adorno. Curiosamente, todos son de otras Latina hizo planteamientos que debatían problemáticas de su
áreas del saber y no de los estudios literarios. Sin embargo, la tiempo, en la medida en que fue desarrollado por intelectuales en
sistematización epistemológica propuesta por sendos estudiosos varias formas, como el tratado, las memorias, discursos, artículos
fue la que orientó los posteriores razonamientos sobre el ensayo y de periódicos, prólogos, autobiografías, biografías, etc. Este
el lugar de enunciación de sus creadores. Las definiciones del conjunto heterogéneo nos obliga a manejar con temas todavía no
ensayo son varias, ya que para muchos investigadores, el ensayo resueltos por los ensayistas. En la América hispánica la partida de
es un género hibrido o como lo dijo como mucha propiedad nacimiento del ensayo se dio con los grandes maestros de la
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modernidad intelectual: Martí, Sarmiento, Rodó, Montalvo, compaginado con el análisis del lugar de enunciación de su autor
González Prada, Manuel Zapata Olivella, entre otros. En Brasil posibilitará el entendimiento más profundizado de la obra y sus
tenemos varios ejemplos, como Manuel Bonfim, Joaquim Nabuco, desdoblamientos. Carlos Fuentes fue un escritor con una carrera
Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, literaria reconocida internacionalmente y con una obra de ficción
Antonio Candido, entre otros. Hay que hacer hincapié que en Brasil madura. Sin embargo, su quehacer ensayístico en términos
el ensayo como género fue soslayado a una posición subalterna o cuantitativos no es tan expresivo como lo literario, pero sus
hasta misma eludido por la historiografía literaria tradicional. razonamientos críticos fueron significativos. Fuentes fue un gran
El actual momento de intensificación de los contactos admirador de Machado de Assis y lo consideraba como el único
políticos, económicos y culturales iberoamericanos se muestra autor de América Latina del siglo XIX a seguir la tradición
oportuno para la investigación crítica de la historia de los diálogos de Cervantes - la nombrada "tradición de la Mancha". El agosto
luso hispánicos y principalmente porque el ensayismo se inscribe de 1997, durante una conferencia en la Academia Brasilera de
como el espacio del debate moderno de las diversas Letras, Carlos Fuentes ministró la ponencia “El milagro de
nacionalidades ya constituidas o emergentes. Al mismo tiempo, Machado de Assis” sobre las relaciones entre El Quijote y la novela
importará conjugar esta mirada diacrónica con una atención machadiana. Al establecer una matriz común a partir de la novela
particular a los espacios geográficos y simbólicos del universo cervantina, Fuentes consiguió plantear un parámetro válido para
ibérico e iberoamericano y a sus fronteras franqueables. una posible historiografía literaria iberoamericana.
Asumiendo la centralidad del papel de la literatura y de las artes La proposición de Fuentes como uno de los posibles
en general en los procesos de definición de las identidades precursores del ensayo iberoamericano está enlazada al contexto
culturales, se puede sugerir un conjunto de campos de de publicación de su obra La gran novela latinoamericana en el año
investigación, en que se destacan como principales temas: la de 2011. Al término de su carrera como escritor y entre constantes
lectura crítica del ensayo; el razonamiento ensayístico sobre las viajes para recibir premios literarios tenemos la elaboración de un
semejanzas y las distinciones entre las diversas literaturas y texto que busca establecer el diálogo intercultural y razonar sobre
culturas; las relaciones entre la literatura y el ensayo. Tras la su postura como intelectual. El lado ficcional del escritor cambia
digresión anterior, el estudio de la historiografía del escritor por otro y surge la figura del ensayista. Sin sombra de duda se
mexicano recientemente fallecido se justifica por su labor crítica y puede afirmar que el texto de Fuentes tiene en su forma el
ficcional que acopia problemáticas que están en el debate de la abordaje libre y sin la carga de normas académicas. Los significados
actualidad latinoamericana. del término ensayo de “prueba”, “tentativa”, nos encamina a la
Descifrar el enigma de la Esfinge, esto es lo que se plantea idea de lo inacabado, de lo esbozado. El remate en el momento
para la comprensión del texto y de su contexto de enunciación, es decisivo es lo fundamental en la escritura del ensayo, puesto que
decir, el comentario de La gran novela latinoamericana lo dilatado con exceso compromete el resultado final. Lo que
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importa en el ensayo delineado como una historiografía tout court histórico-cultural de la Península Ibérica suministró los elementos
es quién lo escribe, es decir, uno que puede plantearse como para conexiones válidas de un recorte de obras y autores que por
alguien que tiene algo que decir. Fuentes fue una persona que se distintas razones no tuvieron un contacto directo. El
alejó de su lado de novelista e insinúo una interpretación original descubrimiento de América por Colón en 1492 y lo que se lo
y seminal para sus lectores. Las sistematizaciones del texto son motivó son los elementos decisivos en la formulación del
totalmente desechadas por una libertad de plantear su punto de imaginario cultural corriente a todos los pueblos que fueron
vista y es un rasgo inherente de quiénes se dedican a una escritura colonizados por los españoles. En el caso de los portugueses la
idiosincrática, en la medida en que el ensayo no se propone como problemática anterior no es tenida en cuenta en el planteamiento
una especie de monografía o investigación de referencia y conlleva que el enfoque de Fuentes sea direccionado en mayor
exhaustiva. Los aspectos de “lo provisorio” y de “lo contingente” grado hacia las novelas hispanoamericanas, sobre todo las de
van a ser las improntas indelebles del quehacer de su escritura. México, porque el proceso de colonización español fue distinto del
Además, el momento histórico de la redacción del texto y todas portugués.
sus problemáticas van a estar presentes en el tejido de su ensayo. Según Fuentes, una corriente artística que ayudaba a las
La “advertencia pre-ibérica” al inicio del libro explica su relaciones interculturales iberoamericanas fue el barroco. El
método crítico. Retomando las consideraciones sobre Cervantes y proyecto estético del barroco en la América luso hispánica adquirió
su novela, tenemos la constancia en el prólogo de la importancia peculiaridades que lo tornan distinto de su origen europeo: “El
conferida a la tradición de la Mancha como el eje central de la barroco americano salía al mundo conquistado del silencio y le
obra. Fuentes va a contraponer en su texto a las novelas ofrece una salida sincrética y sensual.” (FUENTES, 2011, p. 58) En
iberoamericanas que de alguna manera presentan los mismos el período colonial, Fuentes destaca la figura del escultor Antônio
elementos de composición, es decir, que se valen de Francisco Lisboa (1738-1814), el Aleijadinho, como el gran maestro
procedimientos narrativos que tienen como punto de partida las del arte de la Contrarreforma en Brasil. Podemos plantear que el
innovaciones del Quijote. ensayo pionero La expresión americana, del cubano José Lezama
La estrategia textual oscilará entonces en la búsqueda de Lima (1910-1976), debatió esta problemática al colocar en
trazos que podrán incluir obras literarias hispanoamericanas y contrapunto la praxis de Aleijadinho con la de otro gran nombre
brasileñas conjuntamente. La novedad de la obra de Fuentes del barroco hispano, a saber, el indio Kondori del Perú. Otro
reside en primer lugar en procurar características temáticas que escritor que también propuso el rescate de Aleijadinho, pero como
rebasen los entrabes lingüísticos y, en segundo lugar, lo de colocar personaje ficcional fue el afrocolombiano Manuel Zapata Olivella
en relación novelas que aparentemente presentarían más (1920-2004) con su novela magistral Changó, el gran putas (1983).
semejanzas que distinciones. Y es sobre los puntos en común que Zapata Olivella a través de la figura de Aleijadinho también
se articula la elaboración de su argumentación. El mismo origen propone el diálogo intercultural, es decir, al inscribir dentro de su
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cosmogonía afro al Aleijadinho rompe con las fronteras nacionales su desarrollo ficcional tuvo como cimientos el romanticismo
y lo torna elemento de afinidad entre las culturas iberoamericanas. tardío. Fuentes considera a Machado de Assis como el gran
La impronta del mestizaje transcultural de la estética fundador del Iberoamericanismo en Brasil: “En cambio – y éste es
barroca va a estar coherente con la mezcla racial de los pueblos el milagro –, Brasil le da su nacionalidad, su imaginación, su lengua
que forman los países del continente: “Desde luego, es tan al más grande – por no decir, el solitario – novelista
importante como interesante conocer, tanto como se pueda, el iberoamericano del siglo pasado, Joaquim Maria Machado de
origen africano de los negros del Nuevo Mundo. La razón de esto Assis.” (FUENTES, 2011, p. 78) Continuador de la tradición perdida
es que fortalece el sentido de continuidad que considero crucial en o interrumpida: es este el lugar que Fuente reserva a Machado. Al
la identidad del universo latinoamericano que, insisto, es indio, contrario de otros escritores de América Latina, el brujo de la
africano y europeo.” (FUENTES, 2011, p. 65) No obstante, la “Cosme Viejo” supo releer la tradición y dar una nueva ropa al
influencia del barroco en la novela brasileña del siglo XX fue muy género novelesco en Brasil y lo que permitió fue el hecho de traer
pequeña o casi inexistente cuando comparamos con las procedimientos narrativos que estaban olvidados.
producciones del neobarroco cubano. Tal vez para enriquecer y Machado de Assis utilizó procedimientos narrativos
prolongar el planteamiento seminal de Fuentes sería interesante innovadores a fin de alcanzar la madurez en su obra ficcional. La
considerar otras producciones artísticas del barroco como espejos distinción con sus novelas iniciales y con otros autores del período
interculturales iberoamericanos, como por ejemplo, la poesía se configura en el uso de técnicas narrativas provenientes de la
concretista, que a partir del recorte sincrónico, rescató para la tradición manchega. Considerando Memórias Póstumas de Brás
historiografía literaria brasileña sus precursores, es decir, los Cubas en su integridad de objeto, observamos la presencia, por
poetas concretos buscaron en la tradición los referentes para detrás de su superficie, de varias “camadas” sobrepuestas, que son
justificar sus elecciones estéticas. marcas de intertextualidades, como declara el narrador en el
Para concatenar la novela brasileña con la tradición prólogo de apertura1. Una de las “camadas” es, por ejemplo, la
cervantina y la hispanoamericana, Fuentes remite al novelista fragmentación de los capítulos y la inserción de otros símbolos
decimonónico Machado de Assis (1839-1908). La publicación de gráficos en el cuerpo de la narrativa. Estas “técnicas” existían en la
su novela Memórias Póstumas de Brás Cubas en 1881 fue decisiva literatura de Laurence Sterne y Machado de Assis se encontraba
para que Fuentes la incluyera en la tradición de la Mancha: “[...] en la necesidad de reinventarlas. Buscó en los escritores ingleses y
Machado de Assis no pertenece a la corriente romántica y realista otros modelos literarios las condiciones para romper con lo que se
de la Latinoamérica decimonónica, sino que resucita la gran hacía en su tiempo. El hallazgo de la técnica anterior le posibilitó
tradición de la Mancha: la tradición Cervantes-Sterne-Diderot.” una nueva forma de escritura que se adaptó a su fondo para crear
(FUENTES, 2011, p. 77). Sin embargo, se debe tener en cuenta que algo totalmente nuevo: “El humor de Machado va más allá del

1
Prólogo al lector puesto a partir de la 3ª edición de 1886.
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humor de Cervantes y el de Sterne: el brasileño narra pequeños (FUENTES, 2011, p. 88). Para plantear el argumento más
hechos en breves capítulos con la mezcla de risa y melancolía que convincente para su historiografía Fuentes enuncia que la
se resuelve, en más de una ocasión, en ironía.” (FUENTES, 2011, p. presencia erasmista en Iberoamérica se destaca muchísimo:
82) El componente melancólico gana espacio en la ficción Los hijos de Erasmo se convierten en Iberia y en
machadiana y el tono alegre del carnaval se perdió: “En todo caso, Iberoamérica, en los hijos de la Mancha, los hijos de un
en la novela de Machado el rumor del carnaval carioca va mundo manchado, impuro, sincrético, barroco, corrupto,
quedando lejos y afuera, a medida que la tinta de la melancolía va animados por el deseo de manchar con tal de ser, de
contagiar con tal de asimilar, de multiplicar las apariencias
ganándole espacios a la pluma de la risa.” (FUENTES, 2011, p. 83)
a fin de multiplicar el sentido de las cosas, en contra de la
Para Fuentes, el caleidoscopio machadiano permitió una nueva
falsa consolación de una sola lectura, dogmática, del
mirada sobre la mistura étnica, es decir, la tradición cervantina mundo. (FUENTES, 2011, p. 89. Subrayados míos)
inauguró una “literatura mestiza” (FUENTES, 2011, p. 85) y
Machado de Assis es uno de sus seguidores: A partir de la cita anterior, Fuentes comenta los principales
Y sin embargo, el hambre latinoamericana, el afán de nombres de la novela iberoamericana del siglo XX. El recorte
abarcarlo todo, de apropiarse todas las culturas, incluso propuesto tiene como meta verificar los desdoblamientos de la
todas las aberraciones: el afán utópico de crear un cielo tradición de la Mancha que en la raíz etimológica del término
nuevo en el que todos los espacios y todos los tiempos sean “manchar” destacado por Fuentes esparció su huella imborrable
simultáneos, aparece brillantemente en las Memorias en la tradición literaria iberoamericana y en algunos de los
Póstumas de Brás Cubas como una visión sorprendente del principales representantes de la nueva novela hispanoamericana.
primer Aleph, anterior al muy famoso de Borges, del cual, el Sin embargo, hay algunas omisiones que podrían tornar su
suyo, el propio Borges dice: “Por increíble que parezca yo
planteamiento más amplio y jugoso, como por ejemplo, incluir en
creo que hay, o que hubo otro Aleph”. Sí: es el de Machado
su debate otros autores que dialogaron como João Guimarães
de Assis. (FUENTES, 2011, p. 86)
Rosa y Juan Rulfo. De todas maneras, se puede decir que el lugar
Fuentes de manera magistral enlaza los dos grandes como uno de los precursores de una nueva historiografía
escritores al destacar que la novedad de las escrituras machadiana iberoamericana está garantizado al escritor mexicano que en su
y borgiana residiría en una prosa melancólica y difícil que iba más panorama de la novela latinoamericana consiguió proponer un
allá del exotismo caricaturesco (FUENTES, 2011, p. 87). La risa de diálogo que supera los obstáculos extra literarios y plantea un
Machado proviene del Renacimiento y del influjo de Erasmo de sendero que puede ser considerado como punto de partida para
Rotterdam con su obra el Elogio da Locura (1509). Parafraseando los estudios de literatura entre los países iberoamericanos al
a Fuentes, la raigambre erasmista engendró en los novelistas constatar que “[...] somos dos caras de la misma medalla, la cara y
iberoamericanos la discreta dosis de ironía para impedir que tanto su cruz y dividir ese escudo es quedarse sin la mitad de nuestro
la razón o la fe consiguiesen imponerse como dogmas absolutos ser.” (FUENTES, 2011, p. 404)
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El viaje de Carlos Fuentes por la novela iberoamericana con CANDIDO, Antonio. Os brasileiros e a nossa América. São Paulo:
sus seminales sugerencias exige nuestra completa entrega para Fundação Memorial da América Latina, 2000.
continuar con la labor ensayística de colocar en relación y extender
más puentes entre los países con una herencia cultural común que CERVANTES, Miguel de. El Ingenioso Caballero Don Quijote de la
está en el auge de su producción y circulación. Si los postulados Mancha. John Jay Allen (coord.). Madrid: Cátedra, 1999.
propuestos por Fuentes antes son considerados caducos o
ultrapasados, como la tradición de la Mancha, debemos por lo CERVERA, Vicente, Belén H. M.D. Adsuar (orgs). El ensayo como
menos ponerlos en discusión. Por no estar representado en su género literario. Murcia: Universidad de Murcia/Servicio de
texto como novelista, la voz de Fuentes aparece en el tejido de su publicaciones, 2005.
ensayo a través de la organización interna del texto, es decir, a
partir de una “disciplina irregular” de escritura que plantea una FUENTES, Carlos. La gran novela latino-americana. Madrid:
praxis que privilegia los grandes momentos de encuentros Alfaguara, 2011.
anunciados, pero no nombrados. Ser uno de los grandes novelistas
de América Latina dio la libertad para Fuentes de transitar por LEZAMA LIMA, José. La expresión americana. México/DF: FCE,
otras caminos y aprehender la realidad a partir de otro punto de 2001.
vista y así poder plantear con la mirada de la escrita las tres
temáticas constantes de la narrativa iberoamericana, a saber, “[...] LUKÁCS, Georg. El alma y las formas y la teoría de la novela.
el deseo del ser, del debe ser y de lo que no puede o no debe ser”. Barcelona: Grijalbo, 1970.
(FUENTES, 2011, p. 437)
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
Referencias
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas MIGUEL OVIEDO, Miguel. Breve historia del ensayo
cidades/editora 34, 2003. hispanoamericano. Madrid: Alianza editorial, 1991.

AULLÓN DE HARO, Pedro. Teoría del ensayo. Madrid: Verbum, ZAPATA OLIVELLA, Manuel. Changó, el gran putas. Bogotá:
1992. Ministerio de la Cultura, 2010.

BENSE, Max. “Über den Essay und seine Prosa” Merkur, 3 (1947),
p. 418.
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LECTURAS DE MARIÁTEGUI EN LA OBRA DE ARGUEDAS: El evaluación de la presencia del referido autor en las generaciones
PRIMER ENCUENTRO DE NARRADORES PERUANOS que se encontraban en el debate y su importancia en el
Roseli Barros Cunha pensamiento de Arguedas.
UFC A pesar de no haber escrito en su trayectoria una obra
dedicada a tratar de problemas de estética, según Sobrevilla, José
El presente artículo es parte de un estudio más amplio que Carlos Mariátegui demostró interés por la cuestión. El autor
desarrollo acerca de la presencia del pensamiento de José Carlos argumenta que “se puede reconstruir sus ideas estéticas a partir
Mariátegui (1894-1930) en la producción literaria y antropológica de sus trabajos sobre problemas literarios y artísticos”
de su conterráneo José María Arguedas (1911-1969). (SOBREVILLA, 2012a, p. 25) y con eso refuerza no solamente la
Específicamente, en este trabajo trataré de la serie de debates que preocupación de Mariátegui por el tema como también su
constituyó el “Primer encuentro de narradores peruanos”, aproximación a cuestiones relativas a estética de las artes plásticas
ocurrido en Arequipa en 1965 y donde, indudablemente, Arguedas y literatura.
y su obra tuvieron especial relieve. A partir del artículo “Mariátegui y la literatura europea de
El primer debate de la serie de tres tenía el tema “El su tiempo y de siempre” (1980), de Augusto Tamayo Vargas,
novelista y la realidad”; el segundo “Sentido y valor de las técnicas Sobrevilla afirma que al volver de Europa el intelectual no tenía
narrativas” y, finalmente, el tercero trató acerca de la “Evaluación una definición acerca de un concepto de arte, “sino un uso de esta
del proceso de la novela peruana”. Además de Arguedas estaban palabra como en el lenguaje ordinario” (SOBREVILLA, 2012a, p.
presentes en los debates Ciro Alegría (1909-1967), Alberto Escobar 26). Sin embargo, para él, el Amauta enfatizó lo que consideraba
(1929-2000), Sebastián Salazar Bondy (1924-1965), Eleodoro algunas precisiones sobre el fenómeno del arte.
Vargas Vicuña (1924-1997), Carlos Eduardo Zavaleta (1928-2011), En otro estudio acerca de la producción mariateguiana, en
Antonio Cornejo Polar (1936-1997), entre otros novelistas, críticos “La recepción de los 7 ensayos en las ciencias sociales”, Sobrevilla
y profesores de literatura. realiza un rastreo acerca del modo como fueron leídos los Siete
En el encuentro los participantes buscaban, además de ensayos en las ciencias sociales peruanas a lo largo de los años. El
caracterizar la novela peruana en aquel momento, discutir acerca autor señala tres momentos claves de intenso contacto con la obra
del establecimiento de un canon de la literatura peruana desde el de Mariátegui, luego de la publicación del libro en 1928, cuando
inicio del siglo XX hasta aquel entonces y, de cierto modo, verificar ocurrieron reacciones del lado conservador, de los apristas y de los
la existencia de un probable diálogo entre una generación mayor y marxistas ortodoxos (SOBREVILLA, 2012b, p. 168-169); una
ya consagrada y las nuevas generaciones. A lo largo del encuentro segunda etapa de recepción se dio posteriormente a 1943, cuando
tanto el nombre de José Carlos Mariátegui como el indigenismo la familia decide publicar Siete ensayos de forma completa, y se
fueron varias veces aludidos. De ese modo, es posible hacer una cerró por vuelta de finales de los años 1950 (SOBREVILLA, 2012b,
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p. 169). Y un tercer momento, el que se inició en el año 1989, con 1915 por José Gálvez con su tesis Posibilidad de una genuina
lo que él llama de “crisis del marxismo real” y a partir del cual literatura nacional. (SOBREVILLA, 2012b, p. 183).
tendría sido posible reconstruir el genuino pensamiento de Por tanto la discusión acerca de la posibilidad de una
Mariátegui sin que se quisiera encajonarlo entre marxista literatura genuinamente peruana es precedente a los escritos de
ortodoxo o heterodoxo (SOBREVILLA, 2012b, p. 171). Mariátegui y es a partir de eso que el Amauta intentará analizar el
Para ese rastreo Sobrevilla selecciona lo que considera proceso de construcción de una literatura peruana.
“casos” dónde, según el autor, “se puede comprobar la discusión En Siete ensayos, especialmente en el capítulo “El proceso
que han provocado algunos planteamientos centrales de los 7 de la literatura”, el autor trata de dejar claro que no está de
ensayos” (SOBREVILLA, 2012b, p. 171). A saber serían estos casos: acuerdo con la tradición a respecto de lo que se sostiene acerca de
el “Esquema de la evolución económica”, “Regionalismo y la literatura de su país. (MARIÁTEGUI, 2007 [1928], p. 223)
centralismo” y “El proceso de la literatura [peruana]”. El último es El Amauta destaca el carácter de excepción de la literatura
el que más nos interesa en este momento. Sin embargo, los otros peruana (por el “dualismo quechua-español” aún no resuelto) no
dos tienen relación directa con la tesis formulada por Mariátegui solamente en contraposición a las literaturas europeas sino que
en el último. también dentro de América Latina. (MARIÁTEGUI, 2007, p. 197).
Lo que hace el autor en ese ensayo es poner foco en el Para Mariategui, los estudiosos de su país deberían tener en
proceso de la literatura peruana, aunque en algunos momentos cuenta que de la especificidad literaria debería resultar un modo
opte por la comparación con otras literaturas de Hispanoamérica también particular de estudiarla y clasificarla. (MARIÁTEGUI,
y también, digamos, mundiales. Pero sin, duda su propósito era 2007, p. 199-200)
establecer el movimiento de construcción y fijación de autores y Mariátegui deseaba establecer una propuesta de estudio
obras de la literatura peruana. de la literatura que sirviera a la peculiaridad de la peruana aunque
Otro punto resaltado por Sobrevilla en la obra no aclare eso. En el mismo texto explicita su defensa del arte
mariateguiana es sobre el planteamiento acerca de la constitución realista, específicamente al tratar de la novela, una vez que ella
de una literatura nacional. Esa posibilidad ya había sido propuesta estaría al servicio de la sociedad y de una propuesta revolucionaria
antes por José de la Riva Agüero en Carácter de la literatura del (MARIÁTEGUI, 2007, p. 198)
Perú independiente, en 1905. La discusión reaparece en 1914 con En Los siete ensayos alerta que la corriente del indigenismo
Ventura Calderón y para ambos la literatura peruana sería que caracterizaba la nueva literatura peruana no era una moda
fundamentalmente limeña e imitativa de la literatura española a literaria sino que tenía una “significación” más profunda:
lo largo del período colonial y, de la francesa, en la República Basta observar su coincidencia visible y su consanguinidad
(SOBREVILLA, 2012b, p. 182). Ese pensamiento fue contestado en íntima con una corriente ideológica y social que recluta cada
día más adhesiones en la juventud, para comprender que el
indigenismo literario traduce un estado de ánimo, un
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estado de conciencia del Perú nuevo (MARIÁTEGUI, 2007, p. p. 278) a la vez que “tiene fundamentalmente el sentido de una
277) reivindicación de lo autóctono” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 281). A
El autor hace, evidentemente, una alusión a la continuación, analiza lo que le parecía faltar en la literatura
fundamentación teórica de carácter marxista-socialista de varios peruana de la época en una de sus afirmaciones más conocidas y
integrantes del movimiento, incluso suya, en aquel momento. reproducida:
Mariátegui defiende que el problema indígena estaba presente en La literatura indigenista no puede darnos una versión
rigurosamente verista del indio. Tiene que idealizarlo y
la política, en la economía y en la sociología y, sin duda, no podría
estilizarlo. Tampoco puede darnos su propia ánima. Es
estar ausente de la literatura y del arte (MARIÁTEGUI, 2007, p.
todavía una literatura de mestizos. Por eso se llama
277). Con eso se puede entender que, desde su perspectiva, el arte indigenista y no indígena. Una literatura indígena, si debe
realista colaboraría en el tratamiento de cuestiones de carácter venir, vendrá a su tiempo. Cuando los propios indios estén
social. en grado de producirla. (MARIÁTEGUI, 2007, p. 283)
Pero el Amauta declara que un movimiento que abarcase
Al final de su ensayo Mariátegui aclara que está
las cuestiones sociales estaría apenas germinando una vez que, por
defendiendo una hipótesis, a saber que la literatura peruana
ejemplo, una obra maestra “no florece sino en un terreno
estaría, en aquel momento de su escritura, en pleno desarrollo. Al
largamente abonado por una anónima y oscura multitud de obras
destacar el proceso de esa literatura el autor quiere demostrar su
mediocres” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 278). Es eso exactamente lo
construcción a partir de una perspectiva relacionada a su realidad
que él enfatiza en los Siete ensayos al destacar una secuencia de
social. El final de ese proceso, según el autor, solamente sería
nombres de autores que, en muchos casos, no tenían alcanzado
realmente verificado años o generaciones después (MARIÁTEGUI,
tanto destaque con sus obras. Esos no habían constituido un
2007, p. 294)
sistema literario, según lo que el brasileño Antonio Candido,
Tomás Escajadillo (2004) reflexiona acerca del término
posteriormente, en la década de 1950, denominará al tratar de la
indigenismo en el tiempo de Mariátegui y concluye que se puede
literatura brasileña.
considerar la existencia de tantos indigenismos literarios como
Al seguir explanando acerca de la literatura de su país,
cuantas revistas culturales estaban dedicadas a ello. Sin embargo,
Mariátegui comenta acerca de la diferencia que percibe entre el
para él no hay duda de que la mayoría de los narradores
criollismo y el indigenismo. Según su pensamiento, el primero no
significativos que cultivaron el indigenismo se aproximaron al
prosperó pues el criollo no representaría la nacionalidad
pensamiento de Mariátegui al cual denomina “criterio de
(MARIÁTEGUI, 2007, p. 278), ya el segundo proporcionaría una
Mariátegui” (ESCAJADILLO, 2004, p. 239).
renovación en la literatura peruana. Eso ocurriría porque el
Por ese motivo Escajadillo argumenta que: “El ‘indigenismo
indigenismo “encuentra un estímulo en la asimilación por nuestra
socialista’ de José Carlos Mariátegui no admite términos medios;
literatura de elementos de cosmopolitismo” (MARIÁTEGUI, 2007,
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las generaciones venideras estarán con él o contra él.” Más adelante complementó su opinión afirmando que la realidad
(ESCAJADILLO, 2004, p. 242). sería el material de la literatura y un modo de al observarse la
Ocurrido en 1965, el “Primer encuentro de narradores realidad de una región alcanzar el universal (PRIMER…, 1986, p.
peruanos”, se inserta en un período intermedio entre aquellos que 115)
Sobrevilla considera como segundo y tercer momentos de Arguedas siguió en sus comentarios enfatizando que no
recepción de los Siete ensayos en las ciencias sociales. En esa serie estaba en contra los cambios, fueran estos en la naturaleza o en la
de debates estaban presentes autores y críticos literarios que sociedad. Destacó, incluso, que esa sería una manera de resistir al
trataban de la literatura que ellos producían y leían en la época, de impulso externo. Comentario que recuerda aquello que años más
sus antecedentes y de caminos a tomar en el futuro. Eran, tarde el crítico literario Ángel Rama (1982) sustentará acerca de la
entonces, la vez productores y receptores de las obras literarias y transculturación y de la transculturación narrativa, término creado
teóricas anteriores y contemporáneas a ellos. por el uruguayo como un modo de entender la obra del propio
En el primer debate, que tenía como tema “El novelista y la Arguedas.
realidad”, hubo una polémica en relación a lo que los participantes En el segundo debate que trataba de las técnicas
entendían por realidad. Además la cuestión de la verisimilitud fue narrativas, Arguedas nuevamente resaltó el aspecto
interpretada de modo diferente por los participantes una vez que autobiográfico como modo del autor ser más interprete del
para algunos como Ciro Alegría y Arguedas sus obras están muy mundo, de la realidad que desearía retratar. En ese momento
relacionadas a aspectos biográficos. Obviamente, por el habla de sustentó que cuando al empezar a escribir su primer cuento no
los dos autores mayores y más renombrados del evento sobrepasa tenía conocimiento, o como reformuló más adelante, no tenía
la enseñanza de Mariátegui acerca del arte realista y su consciencia de la técnica narrativa, pero ése aún le seguía
contribución para la construcción de una sociedad. pareciendo su mejor relato (PRIMER…, 1986, p. 142).
Eso se confirma con la explanación inicial de Alegría: “Ya Alberto Escobar argumentó que en el encuentro estaban
anoche expresé mi convicción de que la novela realista es el arte presentes dos generaciones de autores, por eso el conocimiento y
de lo posible, dentro de eso yo he trabajado a veces con materiales uso de las técnicas narrativas eran distintos entre ellas (PRIMER…,
de la realidad y les he dado un acento casi biográfico”. (PRIMER…, 1986, p. 158). A lo que Salazar Bondy (quien en el primer debate
1986, p. 111). También Arguedas será de esa opinión. Pero había polemizado en relación a la realidad y la “verdad” de la obra
argumenta que encontraba una particularidad en la literatura literaria) destacó que todos los autores, tienen una técnica aunque
peruana en relación a otras, como la argentina. Explica que para él la generación anterior, según su concepción, las había utilizado con
la producción literaria peruana se volvía más a su naturaleza, menor intensidad que los más jóvenes (PRIMER…, 1986, p. 160).
sociedad, a “su realidad” al contrario de la argentina que se Otra contraposición de ideas que podemos percibir en ese
inspiraba en la “realidad de otros países” (PRIMER…, 1986, p. 112). segundo debate fue acerca de la opinión de Ciro Alegría sobre lo
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que consideraba el gran error de la literatura peruana y de la novela como verdad y demostró que para él la producción de
latinoamericana: la no creación de una técnica narrativa específica los dos autores mayores, Alegría y Arguedas, eran como un puente
a la región (PRIMER…, 1986, p. 163). Salazar Bondy alegó que la con la obra de Mariátegui. Ellos así como el Amauta representaban
propuesta de Alegría trataba del colonialismo en relación a la modelos que deberían ser absorbidos pero también repensados
creación literaria en Perú y América Latina, sin embargo, defendió pues tenían su papel en el proceso de la literatura peruana que
que: “Las técnicas, como las ideologías, no son nunca foráneas” ellos, los más jóvenes, también estaban construyendo.
(PRIMER…, 1986, p. 165). De ese modo, no veía la necesidad de Nuevamente en una referencia al indigenismo Zavaleta
una creación técnica particular para tratar de la literatura del destacó no solo las diferencias dentro de la corriente pero subrayó
subcontinente o peruana. Para validar su pensamiento alegó el la continuidad y la heterogeneidad de lo que se siguió al
reconocimiento que tenía la literatura latinoamericana en aquel indigenismo con su generación. A lo que Oviedo en una especie de
momento en Europa con autores como Carlos Fuentes, João balance destacó que ambos, Arguedas y Alegría, tenían una visión
Guimarães Rosa, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa entre muchos totalizadora, integralista del mundo indígena una vez que estaban
otros. instalados en él. (PRIMER…, 1986, p. 178)
En el tercer debate, titulado “Evaluación del proceso de la Complementando ese comentario, Arguedas reforzó no
novela peruana”, el autor Carlos Zavaleta propuso que la discusión solamente lo que dijo Oviedo pero la importancia de la obra de
se concentrase en obras producidas a partir de 1935, marcando Mariátegui en su producción:
ese límite con La serpiente de oro y Agua, respectivamente de Yo declaro con todo júbilo que sin Amauta, la revista dirigida
Alegría y Arguedas (PRIMER…, 1986, p. 173-174), demostrando de por Mariátegui, no sería nada, que sin las doctrinas sociales
ese modo que para aquella nueva generación la obra de los dos difundidas después de la primera guerra mundial tampoco
autores era emblemática y, de cierto modo, constituía un canon habría sido nada. Es Amauta, la posibilidad teórica de que
en el mundo puedan, alguna vez, por obra del hombre
literario.
mismo, desaparecer todas las injusticias sociales, lo que
Oviedo complementó proponiendo que se tratase de las
hace posible que escribamos y lo que nos da un instrumento
tendencias de la novela del Perú en aquel momento, el teórico, una luz indispensable para juzgar estas vivencias y
indigenismo y el realismo urbano (PRIMER, 1986, p. 175). hacer de ellas un material bueno para la literatura.
Nuevamente haciendo referencia a la obra de Mariátegui, Salazar (PRIMER…, 1986, p. 179)
Bondy destacó que reconocía su importancia pero que no podría
Enseguida demostró que a pesar de rendir tributo a la obra
dejar de destacar sus fallos, principalmente, según él su
del Amauta también lograba tener un alejamiento crítico: “estas
desconocimiento de la estructura del mundo andino (PRIMER…,
doctrinas fanatizan a la gente y yo leía con Amauta descripciones
1986, p. 176). De ese modo el autor hizo nuevamente una
de gamonales tan monstruosamente deformados como había sido
referencia a la polémica del primer debate, con Arguedas, acerca
deformado el indio” (PRIMER…, 1986, p. 179).
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Una vez más Salazar polemizó al afirmar que llegaba a la Zavaleta afirmó que cuando empezó a escribir no quería
conclusión de que “el indigenismo ha muerto” pues no sería hacer novela indigenista pues:
necesario que se proclamaran las ideas propuestas por el [...] yo estoy en el interregno entre esa cultura india, esos
movimiento una vez que, según él, “todo Perú es indigenista, todos materiales indios, manejados de otro modo que el que
los escritores somos de cierto modo indigenista” (PRIMER…, 1986, manejan Alegría y Arguedas, y al mismo tiempo estoy
p. 183). recogiendo primero de las capitales de provincias, segundo
de las capitales de departamentos y en seguida de Lima
Arguedas contestó enfatizando la importancia de los
estos elementos que en verdad confluyen con el indio.
autores anteriores a él a pesar de los errores o, como argumentó,
(PRIMER…, 1986, p. 193-194).
tal vez por esos mismo errores que fueron como impulsos para que
él se pusiera a escribir (PRIMER…, 1986, p. 183). Sin embargo, así Con esa declaración terminó el “Primer Encuentro de
como antes había destacado la importancia de una modernización Narradores” y, como conclusión provisoria, podemos recordar lo
sin la pérdida de las raíces, también enfatizó que el indigenismo que Sobrevilla considera como las cinco “precisiones sobre el
tenía que cambiar como una consecuencia natural de los cambios fenómeno del arte” que pueden ser encontradas en la obra de
del país, pues “el Perú está lleno de indios ahora, no están ya Mariátegui (SOBREVILLA, 2012a, p. 26), especialmente, dos de
metidos solamente en esas cuevas tremendas de los ríos ellas: el arte como un fenómeno fundamentalmente histórico,
profundos del Perú, están en Arequipa y en Lima hay 700.000 entrelazado con otros fenómenos históricos y el arte, la literatura
indios” (PRIMER…, 1986, p. 183-184). No se puede dejar de formando parte de la superestructura cultural sustentada sobre la
percibir, una vez más, la presencia de la propuesta mariateguiana estructura económico-política. Vemos que estas ideas seguían
en el pensamiento de Arguedas. vigente para las generaciones de autores que se encontraron en
Sin embargo, Alegría defendió que a pesar de los cambios Arequipa en 1965. Sin embargo, hubo un confronto por lo menos
esa literatura podría seguir denominada indigenista. Pues, para él, de parte de la nueva generación con la de los mayores en relación
el movimiento tenía dos aspectos claros: primero, de la lucha y de a lo que entendían por hacer una literatura que retratara la
la reivindicación que podría pasar cuando llegase una nueva realidad y sobre cuáles técnicas serían elegida para realización de
situación social y otro que valorizaba y descubría las calidades esa literatura.
humanas del mundo indígena que siempre existieron a lo largo de El evento reflejó el propio sistema literario peruano en
los siglos de opresión (PRIMER…, 1986, p. 187). Complementó acción donde los autores de las dos generaciones analizaron las
diciendo que “en la literatura creo también se están rastreando ya contribuciones de sus antecesores, las de su generación y los
nuevas vetas que no son exactamente de protesta, sino de proyectos que tenían para las próximas producciones, de ese
exploración del alma india” (PRIMER…, 1986, p. 189). modo poniendo efectivamente en práctica el proceso que
Mariátegui describió y anheló en sus Siete ensayos. Así como,
indudablemente, es perceptible la importancia de la presencia
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física y de la obra de Arguedas en la serie de debates, donde por Inca Garcilaso de la Vega/Nuevos Tiempos. Nuevas Ideas Fondo
los registros de las actas del evento es posible rastrear, así como Editorial, 2012b.
en varios otros momentos de su obra, la importancia del
pensamiento de Mariátegui en su producción.

Referencias
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (momentos
decisivos). Editora Itatiaia: Belo Horizonte, 1981 [1957].

ESCAJADILLO, Tomás. Ciro Alegría, José María Arguedas y el


indigenismo de Mariátegui. In: ESCAJADILLO, Tomás. Mariátegui y
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MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la


realidad peruana. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2007 [1928].
PRIMER ENCUENTRO DE NARRADORES PERUANOS. Lima:
Latinoamericana Editores, 1986.

RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina.


Montevideo: Fundación Ángel Rama, 1982.

SOBREVILLA, David. “La visión estética y de la literatura de su


tiempo”. In: SOBREVILLA, David. Escritos mariateguianos –
artículos y reseñas en torno a José Carlos Mariátegui, Universidad
Inca Garcilaso de la Vega/Nuevos Tiempos. Nuevas Ideas Fondo
Editorial, 2012a.

SOBREVILLA, David. “La recepción de los 7 ensayos en las ciencias


sociales”. In: SOBREVILLA, David. Escritos mariateguianos –
artículos y reseñas en torno a José Carlos Mariátegui, Universidad
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EL ASESINATO DE SANTIAGO NASAR: EL CRIMEN Y LA LEY desenlace, obliga a su lector a leer el libro línea a línea hasta el fin.
Ruben Daniel Castiglioni (MÁRQUEZ, 2005).
UFRGS La historia de Crónica es muy conocida. La tirada inicial fue
de un millón de ejemplares y la recepción fue un suceso en España
“[A mi abuela] le gustaba contar historias de noches y en América. Ambientada en un pequeño pueblo del interior de
de nupcias que terminaban mal: o el marido, en su Colombia, trata del casamiento de Angela Vicario con el joven y
prisa brutal, le rompía el pescuezo a la mujer contra el rico Bayardo San Román, quien prácticamente compra a la novia.
respaldo de la cama, o encontraban de mañana a la Ella, que se siente insegura por no ser virgen, piensa rechazar la
joven novia refugiada arriba del ropero, desnuda y propuesta que financieramente es tentadora, tanto para ella como
loca.” (Jean-Paul Sartre, Las palabras) para su familia. Sin embargo, será persuadida a simular su
virginidad con las "artimañas de comadre". En el día de su
En reciente capítulo para el libro Direito e Literatura na casamiento, que fue de fiesta para el pueblo, una celebración
virada do milênio (ARNOLD & KORFMANN, 2014) decíamos que las opulenta, magnífica, ella resuelve lo improbable: no fingir. Y el
aproximaciones y las distancias entre esos dos saberes aparecen marido devuelve a la mujer a la casa de sus padres en la noche de
espontáneamente cuando hacemos algunas consideraciones nupcias.
acerca de la novela de Gabriel García Márquez, Crónica de una Torturada por la madre con la complacencia de los
muerte anunciada. hermanos, señala al joven Santiago Nasar como “su autor”. Los
“El día en que lo iban a matar, Santiago Nasar se levantó a hermanos de Angela, Pablo y Pedro, se instalan en un comercio en
las 5.30 de la mañana para esperar el buque en que llegaba el frente a la casa de la víctima y aguardan, mientras amanece y el
obispo" (MÁRQUEZ, 2000, p. 7). Es así como comienza la obra de pueblo despierta para esperar el barco que trae al obispo. Es
Gabriel García Márquez y nos recuerda el inicio de una de las mas importante subrayar que los hermanos se encargaron de anunciar
famosas obras da literatura mundial, La metamorfosis, de Franz a todos acerca del crimen que pretendían cometer (posiblemente
Kafka: Cuando Gregorio Samsa se despertó una mañana después esperando que fuesen impedidos), pero nadie previene a la
de un sueño intranquilo, se encontró sobre su cama convertido en víctima. El asesinato ocurre delante de todos los habitantes, de
un monstruoso insecto. (KAFKA, 2014, p.1). aquellos que dudaban que el crimen ocurriría y de aquellos que no
Comentando su libro de manera informal, García Márquez hicieron nada para evitarlo. Y tampoco sirvieron los tristes
dijo que con ese comienzo el lector no pararía de leer, ya que lamentos del pueblo que se espantaba por su culpa, como si se
provocaría el deseo de saber por que, dónde y como matan al tratase de un coro de tragedia griega.
personaje. Y de esta manera, usando la técnica de anteponer el Después del asesinato, los hermanos se refugiaron en la
Iglesia, y en seguida, fueron detenidos. Sin embargo, estaban
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convencidos de que eran inocentes. Algunos días después apareció suerte, que muchas veces incurrió en distracciones líricas
un juez y constató lo que se sospechaba: que no se podía probar contrarias al rigor de su ciencia. Sobre todo, nunca le
que Santiago Nasar hubiese sido el “autor” de la mujer, mismo que pareció legítimo que la vida se sirviera de tantas
eso contrariase su declaración. El narrador así describe al juez: casualidades prohibidas a la literatura, para que se
Doce días después del crimen, el instructor del sumario se cumpliera sin tropiezos una muerte tan anunciada.
encontró con un pueblo en carne viva. En la sórdida oficina (MÁRQUEZ, 2000, p. 112).
de tablas del Palacio Municipal, bebiendo café de olla con Ese juez que comenzaba a ejercer su actividad había leído
ron de caña contra los espejismos del calor, tuvo que pedir los clásicos de la literatura española, dice el narrador. Y podemos
tropas de refuerzo para encauzar a la muchedumbre que se suponer que leyó Fuenteovejuna, de Lope de Vega, referencia
precipitaba a declarar sin ser llamada, ansiosa de exhibir su
obligatoria del teatro del Siglo de Oro. En esa comedia, la mujer
propia importancia en el drama. Acababa de graduarse, y
rechaza el “derecho de pernada” (derecho del noble de desvirgar
llevaba todavía el vestido de paño negro de la Escuela de
Leyes, y el anillo de oro con el emblema de su promoción, y a la novia) ejercido por el Comendador, exhortando a los hombres
las ínfulas y el lirismo del primíparo feliz. Pero nunca supe de Fuenteovejuna a que acudiesen en su ayuda. La pieza teatral se
su nombre. Todo lo que sabemos de su carácter es desarrolla con el linchamiento del Comendador, la llegada de los
aprendido en el sumario, que numerosas personas me representantes de la justicia, los interrogatorios y la convicción de
ayudaron a buscar veinte años después del crimen en el que absolutamente ninguna persona del pueblo diría quienes
Palacio de Justicia de Rioacha (MÁRQUEZ, 2000, p. 111). habían sido los asesinos. “Fue Fuenteovejuna”, respondió cada
El narrador sigue, mostrando la actuación del magistrado y uno de los interrogados. Los reyes católicos, Fernando e Isabel,
el conflicto que se establece entre “su ciencia” y la literatura. Es tuvieron que intervenir y, para reestablecer el orden, nadie fue
interesante recordar, como curiosidad, que Gabriel García condenado, pues la culpa era colectiva.
Márquez fue estudiante de derecho antes de ser escritor y Resulta clara la asociación que el magistrado de Crónica
periodista, y que conocía algo de la rutina de proceso y mucho de hizo o debería haber hecho, con los sucesos de Fuenteovejuna.
la “vanidad” de ciertos magistrados, que confunden la Pero, lo que más lo había conmovido en su primer trabajo como
representación del Estado con un poder divino que creen tener y juez fue algo inusual:
[...] lo que más le había alarmado al final de su diligencia
que lo comparten con el Creador. Pero ese juez era:
excesiva fue no haber encontrado un solo indicio, ni siquiera
[...] un hombre abrasado por la fiebre de la literatura. Sin
el menos verosímil, de que Santiago Nasar hubiera sido en
duda había leído a los clásicos españoles, y algunos latinos,
realidad el causante del agravio. Las amigas de Ángela
y conocía muy bien a Nietzsche, que era el autor de moda
Vicario que habían sido sus cómplices en el engaño
entre los magistrados de su tiempo. Las notas marginales, y
siguieron contando durante mucho tiempo que ella las
no sólo por el color de la tinta, parecían escritas con sangre.
había heco partícipes de su secreto desde antes de la boda,
Estaba tan perplejo con el enigma que le había tocado en
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pero no les había revelado ningún nombre. En el sumario declaran que no oyeron confidencias; el mismo Santiago, en la
declararon: "Nos dijo el milagro pero no el santo". Ángela noche de nupcias canta sin preocupación debajo de la ventana de
Vicario, por su parte, se mantuvo en su sitio. Cuando el juez los recién casados.
instructor le preguntó con su estilo lateral si sabía quien era Rama también dice que el personaje narrador no se
el difunto Santiago Nasar, ella le contestó impasible:
identifica, pero que podemos saber quien es con mucha facilidad
- Fue mi autor (MÁRQUEZ, 2000, p.112-113). gracias a los datos que nos brinda. Su madre se llama Luisa
Llama la atención en esa cita la referencia a su “autor”. Es Santiaga, desciende del coronel Márquez, su hermana se llama
raro que la mujer nombre de esa manera a alguien con quien tuvo Margot, tiene otra hermana que es monja, su hermano es Luis
su primera experiencia sexual. Y así, la confianza del magistrado, Enrique y le pide a Mercedez Barcha que se case con él. Ese
su “vanidad y lirismo”, se deshacen con lo que descubre en el personaje es, como saben los lectores medianamente informados
transcurso del proceso: de su biografía y aquellos que nada leyeron del autor, pero que lo
Durante el juicio, que sólo duró tres días, el representante conocieron como figura pública, el propio escritor Gabriel García
de la parte civil puso su mayor empeño en la debilidad de Márquez. Es un personaje secundario que juega con el lector y que
ese cargo. Era tal la perplejidad del juez instructor ante la dice que nunca hubo ninguna relación entre Santiago Nasar y
falta de pruebas contra Santiago Nasar, que su buena labor Angela Vicario. Hace una pesquisa y usa en su relato las técnicas
parece por momentos desvirtuada por la desilusión. de la novela policial. Además, reconstruye los hechos que el pueblo
(MÁRQUEZ, 2000, p.113). ya conoce y que están en el expediente concluyendo lo que todos
La referencia enigmática al “autor”, en un juego cervantino, ya saben: es muy difícil que Santiago Nasar haya causado el
remite al narrador cuyo nombre se ignora, pero que se sabe agravio.
perfectamente quien es. Ángel Rama, crítico literario, profesor e Como todos parecen libres de sospecha, el narrador insiste:
investigador, vio en Crónica de una muerte anunciada: La versión más corriente, tal vez por ser la más perversa, era
Un juego de palabras que nos fascina y engaña con sus que Ángela Vicario estaba protegiendo a alguien a quien de
pases de magia, sabiendo que no es magia, que no es veras amaba, y había escogido el nombre de Santiago Nasar
realidad, pero que parece ser, porque es la estofa de porque nunca pensó que sus hermanos se atreverían contra
nuestros sueños, de nuestros deseos y de nuestras culpas él (MÁRQUEZ, 2000, p.102).
(RAMA, 2010). García Márquez (2005) dijo que la mejor novela policial es
Para Rama, y para conquistar la tensión máxima del horror, Edipo, de Sófocles, y que esto se debe a que el investigador
Santiago Nasar debe ser inocente. Y, efectivamente, hay una gran descubre que es él el culpable. El protagonista busca al asesino sin
cantidad de pruebas que demuestran su inocencia. Los testigos saber que el asesino es él, mientras que los demás lo observan con
coinciden en que Ángela y Santiago no tenían vínculos; los amigos expectativa. De la misma manera, el personaje narrador aboga por
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la inocencia de todos y evita habla de si mismo, y así, se vuelve el compra [...] era rigorosamente disciplinado. Com o tempo,
principal sospechoso. “Fue mi autor”, dijo Angela Vicario. Y la frase o preço era pago mediante arras e, mais tarde, tornou-se
es, al mismo tiempo, clara enigmática. simbólico. A evolução transformou o objeto da compra: já
Este juego literario de Gabriel García Márquez fue não era mais a mulher. O mundium e a própria ideia de
compra desapareceu, transformando-se o preço em dote
minuciosamente estudiado por periodistas y críticos de literatura.
(CAMPOS, 2010).
Se sabe que tiene por base hechos reales ocurridos en la mañana
del 22 de enero de 1951 en la ciudad colombiana de Sucre. Su
Por lo tanto, y conforme la cita, los contratos en que la
amigo Cayetano Gentile Chimento fue ejecutado en plena plaza
mujer aparecía como objeto de transacción siempre existieron. Lo
pública por los hermanos Joaquin y Victor Chica Salas. Gabriel que podría ser el crimen del interior de un pueblo perdido de
García Márquez no pudo ayudar a su amigo, pues en la época de
América Latina adquiere otra dimensión si pensamos en el Brasil
lo ocurrido vivía en Barranquilla y solo supo de la muerte por
de la época de los hechos. Por ejemplo, y con relación a la
medio de una carta enviada por sus padres (SALDÍVAR, 2014).
virginidad femenina, el artículo 178 § 1º del Código Civil (1916),
Cuando leemos el desenlace de Crónica de una
que trataba da anulación del casamiento cuando el hombre
muerte anunciada, tenemos la seguridad de que la vida humana y
descubría que la mujer no era virgen, decía: “Art. 178. Prescreve:
el orden jurídico están divorciados. Como dice la profesora e
§ 1º Em 10 (dez) dias, contados do casamento, a ação do marido
investigadora Andrea Almeida Campos, en el artículo “A mulher
para anular o matrimônio contraído com mulher já deflorada”;
sob o casamento. Fidelidade e débito conjugal: uma abordagem
La evolución se dio con la Constitución Federal de 1988,
jus-histórica”:
que en el art. 5o dice: “I – homens e mulheres são iguais em direitos
[…] tendo por base o direito romano-germânico, o direito
e obrigações, nos termos desta Constituição”
continental traz, consideravelmente, em seu bojo a
influência dos institutos jurídicos germânicos. O Apenas como un comentario adicional, se puede decir que
matrimônio legítimo entre os germanos era o matrimônio la reparación y la anulación desaparecen, pero en el nuevo Código
com mundium. [...] o equivalente a manus entre os romanos Civil de 2002, continúan las nulidades. Por ejemplo, cuando uno de
e simboliza o poder (IHERING, 1999). Segundo Brunner- los novios, al casarse, no sabía acerca de algún “defecto” anterior
Schwerin, o matrimônio com mundium realizava-se uno al acto nupcial: “Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por
actu, mediante a prestação do preço pelo noivo e a entrega vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao
da noiva. Posteriormente, a celebração do matrimônio foi consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro”.
separada em dois atos: desponsatio e a traditio (traditio El error esencial trata de la “identidad, honra y buena
puellae). A desponsatio era contrato de alienação, concluído fama”, y se refiere a que uno de los integrantes de la pareja supo
em forma de contrato real entre o noivo e a Sippe ou o tutor
de prácticas que violaban las buenas costumbres (que es lo que se
da noiva, mediante o qual esta era vendida em matrimônio,
entiende por buenas costumbres es subjetivo). Para entender eso
pouco importando a vontade da noiva [...]. O preço de
P á g i n a | 817

es oportuno revisar el artículo que trata acerca do error esencial de completa privación de sus sentidos y de su inteligencia en el
como motivo para la anulación del casamiento: momento de cometer el crimen”.1
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do A Gabriel García Márquez le gustaba referirse a su
outro cônjuge: “carpintería literaria” (2005), y Crónica de una muerte anunciada
- o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, es de una técnica que sorprende. Conforme la clasificación de
sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne Sampaio (2010), no vuelve al orden anterior, como si se tratase de
insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
una novela policial clásica – caso resuelto, orden restablecida. Hay,
Actualmente, el conyugue puede probar que la vida en eso si, un crimen como síntoma de corrupción social, donde la
común es insoportable porque descubrió que fue engañado ya que justicia se hace con las propias manos y los actores desafían,
su pareja no poseía los principios de honra, atribuyendo a su confrontan y se sobreponen a la ley. El investigador transita entre
educación o religión los motivos para esa dificultad de convivencia. la legalidad y la ilegalidad buscando respuestas, y descubre que es
Inclusive, en un giro magnífico, la mujer puede requerir la él, en última instancia, quien causó el daño.
anulación del casamiento porque continúa virgen debido a que su Con la literatura se entiende como es el mundo, como son
marido, por ejemplo, es impotente. las personas y como se relacionan, dice Antonio Candido (2004). El
En Crónica de una muerte anunciada, y volviendo a la derecho, casi siempre unos pasos atrás de la literatura no puede
literatura que nos ilustra la reciente historia: “El abogado sustentó dejar de considerar los valiosos aportes que ésta le ofrece si lo que
la tesis del homicidio en legítima defensa del honor, que fue quiere es comprender al ser humano, saber como se asocia y se
admitida por el tribunal de conciencia, y los gemelos declararon al confronta. Crónica de una muerte anunciada provoca en el lector,
final del juicio que hubieran vuelto a hacerlo mil veces por los entre otras cosas, una reflexión acerca de la honra de los hombres,
mismos motivos”. (MÁRQUEZ, 2000, p.57). de la situación de la mujer en la sociedad, de la evolución de sus
Los hermanos Vicario fueron considerados derechos y del derecho. Todo eso, en un corto y magistral relato.
inocentes justamente con base en la tesis mencionada; "lo
matamos a conciencia" (MÁRQUEZ, 2000, p.58), dijeron. Aunque Referencias
hoy pueda parecer absurdo, y pensando nuevamente en Brasil, el ARNOLD, S.; KORFMANN, M. (orgs). Direito e Literatura na virada
Código Penal que vigoró hasta 1940, en su artículo 27 excluía la do milênio. Porto Alegre: Dublinense, 2014.
ilicitud de los actos de personas que “se encontrasen en un estado

1
O artigo 28 do atual Código Penal diz exatamente o oposto: “Não excluem a
imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão”. E o art. 61, I, a, estabelece o
motivo fútil como agravante.
P á g i n a | 818

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P á g i n a | 819

TESTEMUNHO, FICÇÃO E REALIDADE: AS RELAÇÕES DE PODER Durante os períodos ditatoriais, mais ainda do que em
NO MÉXICO COMTEMPORÂNEO EM EL TESTIGO DE JUAN outros, a história é representada pela palavra que está no poder,
VILLORO tornando-a sinônimo de “história oficial”. Desta forma, a figura da
Simone Silva do Carmo testemunha ganha relevada importância no período da pós-
UFRJ ditadura, pois essa voz pretende resgatar e reinterpretar o que o
discurso oficial tenta omitir ou manipular, possibilitando o resgate
I- Introdução de perspectivas e interesses da história conhecida até o momento.
Um dos fenômenos a que se assiste nas últimas décadas, No entanto, cabe destacar que a testemunha ocupa uma
principalmente na América Latina, é o debate sobre a recuperação posição problemática, uma vez que não apresenta um
da memória como estratégia política e cultural numa tentativa posicionamento crítico, havendo também o oportunismo como
iluminar o futuro. Esse resgate da memória, entretanto, não se dá tentativa de legitimação. Destaque-se que seu discurso, não rara
de maneira pacífica. Após longos períodos ditatoriais, como vez, é reduzido ao subjetivo e, quando aceito para debate, vem
ocorreu em muitos países latino-americanos, diversos grupos mediado pela figura do intelectual.
reivindicam para si a legitimidade de representação do passado Nesse contexto, encontra-se o romance El testigo do
para contrapor-se a uma versão da chamada “história oficial”. escritor mexicano Juan Villoro, publicado em 2004. Composto
Assim, quando se trata de analisar a história, utilizar-se da quase todo no estrangeiro após a derrota eleitoral do Partido
memória como uma forma de disputa pelo poder é bastante usual. Revolucionario Institucional (PRI) nas eleições presidenciais
O tema da memória é central para o debate das mudanças no ocorridas no México no ano 2000, fato que, na teoria, colocaria fim
presente, pois obriga a uma releitura do passado, a uma nova à hegemonia do “governo da Revolução Mexicana”.
interpretação. Isso porque o fato histórico interessa mais ao El testigo, cuja importância radica em não se colocar como
presente que ao passado. um romance de testemunho, no estilo de Hasta no verte Jesús mío
A tensão memória-história vem sendo amplamente (1969) de Elena Poniatowska ou Me llamo Rigoberta Menchú y así
discutida, não só pelos historiadores, mas também por críticos me nació la conciencia (1985) de Elizabeth Burgos-Debray e
literários. Essa tensão provoca uma disputa entre diferentes Rigoberta Menchú, serve como um balanço do México visto do
grupos de poder uma vez que cada qual quer ser o representante ângulo dos primeiros anos do século XXI, debruçado sobre o seu
da história “verdadeira”, narrando-a ou tentando narrá-la de seu processo histórico pós-revolucionário.
ponto de vista e questionando as versões apresentadas pelos Considerando aqui que essa testemunha não é mais o
outros grupos. Afinal, disso depende a hegemonia social, a subalterno, aquele que tem o intelectual como mediador, já que,
imposição da agenda histórica e dos interesses de cada um desses nessa obra, o próprio intelectual é chamado a dar fé, a prestar
grupos.
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testemunho, até que ponto se pode aceitar como verdade aquilo Acredita-se que esse romance, situado entre o documental,
que diz a testemunha? o histórico e o ficcional, considerado por críticos como Mihály Dés
Certamente a obra em questão não é uma crônica e Christopher Domínguez Michael, uma obra da maturidade,
jornalística do que ocorreu no México após a derrota do PRI. apresenta uma crítica ao não posicionamento do intelectual que
Apresenta, entretanto, um pano de fundo político, cuja leitura toca assiste ao horror na condição de testemunha. É o que se pode
em temas relacionados com o México contemporâneo, como as depreender a partir do peculiar matiz sarcástico e irônico de Villoro
feridas abertas deixadas pela guerra cristera na história recente, ao apresentar muitos personagens ocupando o papel de
reflexões sobre os meios de comunicação, principalmente a “testemunha”, sem destacar, porém, o termo intelectual, mas
televisão, e a influência do narcotráfico no contexto cultural, tecendo uma reflexão da imagem projetada por essa figura.
político e social do país. No entanto, nesse país há uma complexa relação de poder
Em linhas gerais, o romance narra a história de um em que a mídia continua controlada, os partidos políticos são
professor universitário, Julio Valdivieso, que vive há vinte e quatro marcados por escândalos de corrupção, a violência do poder
anos na Europa. Ele é casado com a tradutora italiana Paola (que paralelo do narcotráfico se acentua e a influência da Igreja
traduz os best-sellers de Constantino Portella), com quem tem Católica, fortemente abalada pelo processo revolucionário, havia
duas filhas: Claudia e Sandra. Em sua juventude, Valdivieso foi sido reativada, essas forças, que parecem incrustadas em várias
apaixonado por sua prima Nieves, porém, quando o romance esferas de poder, torna isso problemático. Afinal, tudo que o
começa, ela já havia falecido num acidente de carro com o marido, protagonista descobre, ou conhece via “testemunha” a respeito
deixando aos cuidados dos tios Donasiano e Florinda seus dois desse período do qual esteve ausente por tanto tempo, retira dele
filhos: Alicia e Luciano. Assim que chega ao país, o professor é a responsabilidade, tanto no acontecido como na práxis que está
abordado imediatamente pelos antigos amigos da Oficina Literária por vir.
da qual fizera parte: Juan Ruiz (El Vikingo), Ramón Centollo, Félix Este trabalho está centrado na análise dos personagens
Rovirosa, Olga Rojas e Flaco Cerejido, sendo que os dois primeiros que ocupam o papel de testemunhas, que são nesse universo
são assassinados durante o desenvolvimento do romance. Além romanesco também, intelectuais. Levando em consideração a
desses mais próximos do protagonista, outros também são problemática relação entre os intelectuais, o poder e os limites
importantes, como o dono da rede de TV, José Atanasio Gándara, entre ficção e realidade no México contemporâneo.
o padre Monteverde e os policiais que investigam as mortes dos
personagens: Ogarrio e Rayas. Já o personagem histórico-narrativo 2- Os intelectuais no México contemporâneo
Ramón López Velarde atravessa todo o romance com passagens de O termo “intelectual” entra como derivado da memória
sua biografia e inclusão de trechos dos seus poemas. coletiva no vocabulário europeu ocidental desde o Iluminismo, e é
nesse período que se estabelece a síndrome poder/conhecimento,
P á g i n a | 821

“[...] o atributo mais visível da modernidade”. (BAUMAN, 2010, p. democrática, em oposição, segundo ele, ao tipo comum de
16) No entanto, ele se propaga a partir de 1898 quando o jornal L` intelectual, como os administradores, os professores, os clérigos,
Aurore publica carta dirigida ao presidente da República por Émile devido à postura mantenedora da ordem tradicional, é bastante
Zola, exigindo revisão do processo do Caso Dreyfuss, como útil para discutir os intelectuais nesse trabalho, pois permite
menciona Carlos Monsiváis em seu artigo De los intelectuales en pensar nos intelectuais relacionados a uma classe, em oposição
América Latina (2007) que: aos intelectuais hegemônicos.
El término se propaga durante el Caso Dreyfuss para Cabe destacar, entretanto, que a noção de intelectual de
reconocer a los impugnadores del antisemitismo y, de fines Gramsci é muito ampla, uma vez que não envolve somente os
del siglo XIX a 1930, se esparce en América. Sin embargo, hommes de lettres, mas também a classe profissional. Essa noção,
sólo se difunde masivamente en la década de 1930, luego porém, permite compreender as articulações entre o intelectual e
del auge de algunos escritores, cuya autoridad moral hace
o Estado, mesmo que o objetivo aqui seja especificamente no
que se les conceda el rol de Maestros de la Juventud,
campo literário. Em conhecida passagem sobre a origem e a tarefa
augures y guías exaltados por las multitudes. (MONSIVÁIS,
2007, p. 19) dos intelectuais orgânicos, Gramsci define:
Uma das mais marcantes características de todo grupo
O termo em questão ocupa espaço em várias tribunas, social que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta
merecendo atenção particular as reflexões críticas de Julien pela assimilação e pela conquista "ideológica" dos
Benda, Antonio Gramsci e Jean Paul-Sartre, entre outros. Cabe intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são
destacar também que A traição dos intelectuais de Julien Benda tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão
“[...] fue leído por los intelectuales mexicanos de los años 30 con elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais
particular atención suscitando debates abiertos y sigue siendo orgânicos. (GRAMSCI, 1982, p. 7)
citado incluso en los años 90.” (SÁNCHEZ-PRADO, 2006, p. 37) Com base nessa concepção, o intelectual orgânico não é
No que se refere às acepções adquiridas em relação ao somente o que representa ideias de um grupo hegemônico, mas,
papel dos intelectuais na sociedade, pode-se destacar a de sobretudo, “[...] aquél que es capaz de generar consensos hacia
Gramsci, a qual relata que “[...] todos os homens são intelectuais, dentro de los grupos intelectuales “tradicionales”” (SÁNCHEZ-
poder-se-ia dizer então: mas nem todos os homens desempenham PRADO, 2006, p. 38)
na sociedade a função de intelectuais”. (GRAMSCI, 1982, p. 7) Em 2000, ano emblemático, principalmente pelo cenário
A noção clássica de “intelectual orgânico” de Gramsci, ou político mexicano, Juan Villoro e Jorge Volpi, este último um dos
seja, o que se envolve nas transformações de uma sociedade fundadores do Crack1, são indagados na revista El Cultural sobre

1
Movimento literário mexicano composto por Jorge Volpi, Pedro Ángel Palou, lançaram em 1996 um manifesto, inicialmente concebido como ruptura com o
Vicente Herrasti, Ignacio Padilla, Ricardo Chávez Castañeda e Eloy Urroz que postboom latino-americano.
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muitos assuntos. Questionados por que os intelectuais latino- provocar o riso, mas de fazer uma crítica à realidade histórico-
americanos, tradicionalmente, estão comprometidos com seu social à qual pertence.
tempo, sempre refletindo de maneira lúcida sobre o período em El testigo propõe uma reflexão sobre o posicionamento da
que se encontram, ambos respondem separadamente, mas, em figura do intelectual nesse período de mudança, demonstrando
conjunto, suas respostas traçam um perfil de desconfiança diante que, tanto numa era de ditadores como na de um governo
desse novo cenário, como afirma Villoro: institucionalizado, os intelectuais ocupam um importante espaço
El intelectual tiene un papel social protagónico en países como interlocutores entre o poder e os cidadãos. É, portanto, a
atrasados. Como domina una forma de la dificultad (la figura do intelectual que permite entender o porquê o romance
escritura), a la que pocos tienen acceso, se convierte en apresenta uma longa reflexão sobre o poeta Ramón López Velarde,
intérprete de emergencia y gurú accidental de todos los a recuperação das vanguardas mexicanas e a colocação de
asuntos. La participación de los intelectuales como profetas
personagens que se caracterizam como produtores de discurso.
de lo real ha ayudado a evitar males peores y en muchas
ocasiones ha sido heroica; sin embargo, también ha dotado
al escritor de una aura casi religiosa. En el futuro, con más 3-Aproximações ao testemunho: ficção e realidade
democracia e igualdad, los escritores mexicanos serán Como o nome já indica, El testigo é uma obra que, de
menos importantes como guías morales y más como poetas maneira preponderante, faz uma indagação sobre a figura da
o contadores de historias. (VILLORO y VOLPI, 2000, p. 3) testemunha e dos fundamentos do testemunhal. Em consequência
disso, a galeria de personagens que, no romance, ocupa essa
O papel protagônico que menciona Villoro nessa entrevista
posição de testemunha, em sua diversidade, atesta sobre o caráter
fica claro desde seu primeiro romance (El disparo de argón, 1991),
problemático dessa figura.
o qual, alegoricamente, ocupa-se na representação das
Numa primeira leitura do romance, pode-se interrogar por
consequências do TLCAN na vida cotidiana de um bairro na Cidade
que se chama El testigo, ou seja, A testemunha, se aparentemente
do México. Villoro inicia suas publicações durante a presidência de
não há nenhum crime, catástrofe ou genocídio. No entanto, após
José López Portillo y Pacheco (1976-1982), governo que ficou
algumas leituras, descobre-se que:
caracterizado por uma grave crise econômica herdada do governo
Não é preciso passar por uma catástrofe, no sentido
anterior de Luis Echeverría Álvarez (1970-1976). É evidente que o geológico, biológico, ou histórico, para reconhecer as
escritor não fica indiferente a essa situação, uma vez que sua obra contingências traumáticas da experiência, como se
segue a linha dos escritores que discutem a decadência social e os representa em obras e textos fundamentais do presente. O
aspectos políticos de seu tempo. Desse modo, o sentido irônico que aconteceu deixou marcas. As marcas deixam que o
presente em suas obras não tem, claramente, o objetivo de acontecido retorne, presumivelmente num outro modo,
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não só traumático, nem reparatório. (NESTROVSKI E testemunho é utilizado: “[...] não apenas para se tratar de
SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 7) sobreviventes da Shoah, mas também para sobreviventes de
Mas o que significa ser testemunha? Certamente não é outras guerras, de genocídios e para qualificar o discurso, ou
preciso ter atravessado um trauma ou uma catástrofe para contradiscurso, das mulheres, das minorias, dos soropositivos,
testemunhar. Afinal, o testemunho é, sem dúvida, uma prática etc” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 86).
discursiva, que apresenta um relato incompleto, não totalizador, Cabe ressaltar que, inicialmente, a questão do testemunho
dos eventos traumáticos, sem necessidade de constatação, pois é: foi discutida na Europa a partir da famosa frase de Theodor W.
o modo literário ou discursivo por excelência de nosso Adorno em seu ensaio Crítica Cultural e Sociedade, de 1949, no
tempo e que nossa era pode ser definida precisamente qual diz que: “[...] escrever um poema após Auschwitz é um ato
como a era do testemunho. “Se os gregos inventaram a bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque hoje
tragédia, os romanos a epístola e a Renascença o soneto”, se tornou impossível escrever poemas” (ADORNO apud
escreve Elie Wiesel (1977, p. 9), “nossa geração inventou SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 86). Com essa citação, observa-se qual
uma nova literatura, a do testemunho” (FELMAN, 2000, p. é o ponto de partida da discussão sobre testemunho na Europa e
18). nos Estados Unidos, a qual passa, na maioria das vezes, pelo
O termo em questão tem sido utilizado para referir-se a assassinato de judeus.
uma grande quantidade de textos, desde as crônicas da conquista Não cabe dúvida de que o século XX foi marcado por
e colonização, passando pelos relatos vinculados às lutas sociais, ditaduras e totalitarismos, que deixaram um rastro de violência e
militares e até os textos documentais, englobando não apenas os morte: “Uma era das catástrofes. Paralelamente a todas as
que relatam a trajetória de indivíduos de classes sociais populares, práticas genocidas, segue um processo de apagamento dessa
mas também os textos literários mais complexos. história, de negação das práticas assassinas, seja nos regimes
Na teoria literária, de modo geral, o conceito de totalitários ou ditatoriais” (ALVES, 2010, p. 105, grifo do autor). Em
testemunho se apresenta em dois grandes campos de discurso. De outras palavras, há uma tentativa de negação da violência, das
um lado, está a noção fortemente ligada à experiência histórica do torturas e dos assassinatos nos regimes totalitários, como o
eixo Europa e Estados Unidos em torno da Segunda Guerra nazismo e o fascismo, como também nas ditaduras de países
Mundial e da Shoah. Do outro, está a América Latina e, neste caso, latino-americanos: Brasil, Argentina, Cuba, Chile, Uruguai, México,
o conceito tem um peso muito mais de política partidária, com entre outros.
perspectiva de luta de classes, uma convergência entre política e Já o conceito de testemunho/testimonio no âmbito
literatura, levando em conta, principalmente, a ditadura, a hispânico foi desenvolvido a partir do início dos anos sessenta.
repressão às minorias, a exploração e a submissão econômica da Neste caso, a revista Casa de las Américas teve um papel
população. Sendo assim, hoje se percebe que o conceito de importante, pois foi ela que, em 1970, criou o “Premio Testimonio
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Casa de las Américas” (ALZUGARAT apud SELIGMANN-SILVA, 2002, posição, pois haviam atravessado um duro período de transição,
p. 74). Essa revista, criada com o objetivo de fazer uma ponte entre do qual Valdivieso esteve ausente.
os países do continente, surgiu a partir do Centro Cultural Casa de Considerando que o que vê testemunha, aproxima-se tanto
las Américas, fundado em 1959, ano da Revolução em Cuba. da historiografia como da cena do tribunal. O modelo de superstes
Ambas, Europa e América Latina apresentam semelhanças, tem a audição e não a visão em seu centro. Desta forma, tanto
como o resgate da memória e a tentativa de superação do trauma testis como superstes são importantes, e não se deve pensar o
da violência, mas o diferencial está na abordagem, pois o termo testemunho com esses sentidos separados, “assim como não se
passa de uma reflexão sobre a função testemunhal da literatura deve separar a historiografia da memória. Devemos aceitar o
para a conceituação de um novo gênero literário: a literatura de testemunho com seu sentido profundamente aporético”
testemunho/testimonio. Neste caso, o discurso da testemunha, (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 80).
bem diferente do que ocorre na reflexão sobre testemunho em O crítico Seligmann-Silva difere de Agamben, pois este
âmbito europeu e norte-americano, onde o trabalho da memória considera que a testemunha verdadeira, “[...] as testemunhas
está em torno das experiências traumáticas da Segunda Guerra autênticas foram os mortos” (AGAMBEN, 2008, p. 16), somente
Mundial e da Shoah, vem geralmente mediado pela figura do eles poderiam contar o horror, mas, por definição, não podem
intelectual. falar. Enquanto que, para o crítico brasileiro, não se deve valorizar
Desde o título, El testigo indaga sobre a figura da um modelo sobre o outro, ou seja, o superstes pelo testis, pois
testemunha, muito bem definida em diversos meios, mas não na implicaria em uma negação da possibilidade de testemunhar.
literatura. As acepções dadas pelo filósofo italiano Giorgio (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 81)
Agamben em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha Ao se abordar a respeito de um termo como o testemunho
(2008), texto com o qual, notadamente, Juan Villoro dialoga nesse em literatura com o intuito de tratar de uma testemunha ficcional
romance, apresenta dois termos em latim para representar num contexto ficcional, mas referindo-se, o tempo todo, aos
etimologicamente o termo testemunha. O primeiro é testis, acontecimentos do mundo real, coloca-se em questão a
significando aquele que se põe como terceiro em um processo fidedignidade da testemunha e a possibilidade de se é preciso ter
entre duas partes, enquanto o segundo, superstes “[...] indica visto ou ter passado por um evento traumático para ser
aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, testemunha. Neste caso, é importante salientar que o objetivo
portanto, dar testemunho disso” (AGAMBEN, 2008, p. 27). aqui não é questionar o ato de testemunhar per si ou a literatura
Diversos personagens denominam o protagonista, Julio Valdivieso, testemunhal daqueles que atravessaram um evento traumático
a testemunha perfeita, quer dizer, um testis, pois acreditam que como a Shoah ou os períodos ditatoriais, mas dos que não
ele pode dar fé dos fatos, pelo distanciamento deles. No entanto, passaram pelo evento e, no entanto, são chamados a
para ele, todos os outros personagens deveriam ocupam essa testemunhar, não apenas eventos do passado traumático coletivo,
P á g i n a | 825

mas também do momento atual, estando dentro ou fora desse. Ou a possibilidade de um acesso direto ao “real”, pois revoluciona a
seja, aqueles que são instigados a prestar testemunho do passado concepção do mesmo. (NESTROVSK e SELIGMANN-SILVA, 2000, p.
para o presente através de uma reavaliação das questões 84-87) Como resultante, surge a “literatura de trauma” de um
envolvidas. evento que resiste à representação, pois se trata de representar o
Ricardo Piglia em 2007 visitou México e, numa conversa irrepresentável, de dar forma ao que transborda a capacidade de
com Juan Villoro, travaram, entre outros temas, uma discussão pensar.
sobre ficção e realidade, enfatizando a questão do romance A tensão que circula entre a literatura e sua dupla relação
histórico e o uso da história no romance. Nesse encontro, ambos com o “real” de afirmação e negação encontra-se no cerne do
tomaram como base a obra e os conceitos do escritor argentino testemunho, pois Literatura e Testemunho só existem no espaço
Juan José Saer (VILLORO y PIGLIA, 2007, p. 2). Villoro comenta a entre as palavras e as “coisas”, levantando sempre a possibilidade
respeito da diferenciação que Saer faz em El concepto de ficción de dúvida, de ficção, de perjúrio ou de mentira. Mas quando se
(1997) sobre realidade e ficção “[...] no se trata de una diferencia elimina essa possibilidade, o testemunho não tem mais sentido.
equivalente a la de la verdad y la mentira, sino que la ficción es (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 374)
otra forma de lo real” (VILLORO y PIGLIA, 2007, p. 2). E segue, Cabe ressaltar que não se trata de transgredir a verdade ou
explicando que a ficção não precisa ser verificada, já que nela se de iludir o leitor:
pode acreditar sem ter que comprovar. El testigo passa por esse La ficción, desde sus orígenes, ha sabido emanciparse de
conceito, pois relata algumas passagens da história, como a esas cadenas. Pero que nadie se confunda: no se escriben
Revolução mexicana e a guerra cristera, e, mais recentemente, as ficciones para eludir, por inmadurez o irresponsabilidad, los
eleições presidenciais de 2000, mas, por se tratar de ficção, pode- rigores que exige el tratamiento de la “verdad”, sino
justamente para poner en evidencia el carácter complejo de
se acreditar que é verossímil, sem necessidade de comprovação.
la situación, carácter complejo del que el tratamiento
Dentro desse contexto, pode-se dizer que a literatura não
limitado a lo verificable implica una reducción abusiva y un
é mera imitação do mundo e que a diferença entre ficção e não- empobrecimiento. (SAER, 1997, p. 107)
ficção não é uma oposição entre mentira e verdade, mas que a
ficção forma parte do que é “real”, não devendo ser confundida Na tese de Maria Madalena Rodrigues (2006) sobre ficção,
com a “realidade”, tal como no romance realista e naturalista. história e testemunho, a autora propõe uma pergunta para
Retomando aqui a acepção de trauma na psicanálise através de separar as fronteiras entre a história e a ficção, “[...] pode o
Freud e de Kant, o “real” é representado na literatura de historiador abandonar, por completo, a ficcionalização, dos
testemunho a partir de uma ferida na memória, ou seja, a chave eventos, e reproduzi-los sem a interferência de seu imaginário?”
freudiana do trauma. Esse conceito mostrou-se eficaz para a atual (RODRIGUES, 2006, p. 70) Essa resposta envolve aspectos
teoria da história (e da literatura) justamente porque problematiza problematizados tanto pela teoria literária quanto pela
historiografia e, após longos aportes teóricos, pode-se concluir de
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forma resumida que a oposição não se trata de mentira ou 3-As relações de poder em El testigo
verdade, e sim do compromisso do que pode ou não ser verificado, O cenário da volta do protagonista, Julio Valdivieso, ao
pois, muitas vezes, a realidade descrita nem sempre é a realidade México, ocorre após vinte quatro anos de exílio voluntário, logo
literária. após as eleições presidenciais de 2000, quando o PAN (partido de
El testigo apresenta uma problematização da figura da direita – conservador e cristão, capaz de estabelecer um contato
testemunha, que percorre toda a obra, uma vez que indiretamente mais estreito entre Igreja e Estado) assume o poder, o que em tese
se indaga se é preciso ter vivido o horror para ser testemunha. O colocaria um fim aos 71 anos de hegemonia do PRI (de esquerda),
México não passou por uma ditadura como outros países latino- prometendo instaurar, finalmente, uma democracia. Tal fato não
americanos, mas isso não significa que não tenha atravessado um se concretiza, provocando uma profunda revisão do valor da
duro período de repressão e violência. O testemunho é também, Revolução Mexicana na consolidação das Instituições políticas e
nesse romance, uma forma de reunir fragmentos do passado (que culturais, assim como dos poderes econômicos do país.
não passa), uma maneira de dar nexo a um determinado contexto. A trama se desenrola quando Valdivieso, chegando ao país,
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 87) Na obra, Julio Valdivieso, o é abordado imediatamente pelos antigos amigos da Oficina
protagonista, que havia deixado o país há vários anos, é convocado Literária da qual fez parte: Juan Ruiz (El Vikingo), um importante
a dar testemunho do período em que esteve ausente. Todos os publicitário, e Félix Rovirosa, seu ex-colega de graduação em Letras
outros personagens o consideram a verdadeira testemunha, uma na UNAM e alto funcionário da televisão (que se presume tratar da
vez que, para este, só pode dar testemunho quem vivenciou todo Televisa – um grande consórcio de telecomunicações do México).
esse período. O regresso ao país em seu ano sabático é uma revisão em seu
É importante lembrar que, no romance, são muitas as arquivo familiar. Isso contribuirá para escrever o roteiro de uma
figuras que podem ser lidas como testemunhas. No entanto, essa telenovela histórica intitulada Por el amor de Dios, na qual se
aproximação ocorre apenas com os personagens que disputam o reviverá a gesta dos cristeros, fato posterior à Revolução e
poder de reinterpretação da realidade e do passado histórico no silenciada durante a hegemonia do PRI. Paralelo à telenovela, será
México contemporâneo. rodado um documentário sobre a vida do “poeta nacional de má
Sendo assim, tanto a testemunha quanto o intelectual são sorte amorosa, econômica e política” (CARMO, 2014, p.5), Ramón
figuras que ocupam a tribuna de debate nas últimas décadas na López Velarde.
América Latina, provocando inúmeras críticas, autoelogios e Partindo, então, de Valdivieso, um escritor fracassado, cuja
incontáveis polêmicas. São diversas as questões levantadas, carreira terminou antes de começar, pode-se confirmar a
principalmente com relação ao seu engajamento, predileção de Villoro pelos personagens derrotados, os quais
comprometimento e participação na sociedade. perpassam sua obra, já que o fracasso é “[...] uma das chaves de
sua escritura ao longo de sua carreira.” (PATÁN, 2011, p. 177) Esse
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fato determina o ângulo da narração, uma vez que se percebe a Juan Villoro (2010), no artigo intitulado “Carnaval y
presença do fracasso em todos os personagens. Afinal, eles não apocalipses”, menciona que o dinheiro que circula no México vem
têm princípios, nem moral e, muito menos, valores. O geralmente de três fontes que complicam a ideia de patrimônio:
protagonista, viciado em drogas, torna-se um respeitado do narcotráfico, das remessas de imigrantes e do petróleo. É
especialista em poetas esquecidos através do roubo de uma tese sabido que essas fontes não são duradouras, como comenta o
e passa a participar de um perigoso jogo duplo, prometendo para autor de El testigo:
grupos rivais o que não pretende cumprir. El petróleo no es renovable y a falta de una política a largo
Julio Valdivieso é um personagem eticamente ambíguo, plazo se discute su privatización; los paisanos que mandan
pois se compromete com padre Monteverde, dizendo que o dinero son la prueba del fracaso de una nación que no pudo
apoiará no processo de canonização de López Velarde. Entretanto, retenerlos (llegará el momento en que todos sus parientes
estén del otro lado y no tengan a quién mandarle dólares, o
promete o oposto para os companheiros da Casa do Poeta, visto
sólo mandarán los que sirvan para mantener las tumbas de
serem estes radicalmente contra tal ideia. É também uma figura
sus antepasados); el crimen organizado controla más pistas
de moral duvidosa, uma vez que põe em xeque a fidedignidade da de aterrizaje que la aviación civil (no sólo está al margen de
testemunha, pois sua convocação está baseada em documentos la fiscalización, sino que se ha apoderado del cielo que los
de sua família, visto esses poderem comprovar o milagre do qual mayas escrutaban para planear sus siembras). El dinero no
o padre necessita. Entretanto, não há nada consistente em relação es resultado del desarrollo; sigue rutas evanescentes,
a esse fato, e seu saber não é suficiente para que se possa extrair transitorias o secretas, determinadas por el petróleo, la
algum valor capaz de, no México posterior ao ano 2000, conduzir emigración y el narco. (VILLORO, 2010, p. 8)
uma discussão a respeito de tal assunto. Villoro apresenta em El testigo uma visão crua e
É um protagonista notavelmente passivo, com um olhar desesperançada do México atual, o qual, após décadas com o PRI
sempre sério e melancólico. E Isso é utilizado pelo autor como no poder, sonha conseguir se aproximar do modelo democrático
pretexto para denunciar a dor que um exilado sente ao voltar às do ocidente. Com muita precisão, o autor abarca uma sociedade
suas origens e constatar que tudo permanecia igual, ou pior do que que vai desde os empregados mais comuns de uma fazenda, os
quando havia partido, ou seja, um país dividido por diferenças chamados domésticos, a magnatas do mundo da comunicação.
econômicas, por convicções políticas e religiosas e por cartéis de Nesse contexto, observa-se que Valdivieso dialoga com a
drogas. Além disso, ele descobre que atrás da telenovela (e de seu definição de testis presente na obra de Agamben (2008),
financiamento) estão os narcotraficantes. Como diz o personagem respeitando a devida distância, pois o filósofo italiano fala da
Vikingo: “[...] cualquier dinero tiene que ver con el narco. Así testemunha no caso limite, a Shoah. Nesse caso, conforme já
funciona este pinche país. La droga mueve tanta lana como el mencionado, a testemunha é alguém fora dos fatos, mas que deve
petróleo en un buen año”. (VILLORO, 2004, p. 163) narrá-los. Essa distância, por si mesma, já comporta uma limitação
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e, ao mesmo tempo, supõe uma obrigação. Villoro, em entrevista México enquanto esteve fora: ele é uma testemunha distanciada,
a Fabienne Bradu, comenta: um “testis tardio” (RODRIGUES, 2006, p. 112), que assiste como
un testigo de interés cuestiona su propia fiabilidad, en qué espectador e participa como especialista. Na verdade, ele é uma
medida podemos rendir testimonio genuino de lo que testemunha ficcional, o qual, num contexto ficcional, dá seu
vemos, puesto que son nuestros anhelos, nuestros nervios, testemunho num momento posterior, contribuindo para criar uma
nuestros prejuicios los que nos hacen ver determinada reflexão a respeito das sequelas deixadas pelos eventos
manera. [...]Cualquier testigo mínimamente honesto
traumáticos de seu país. Ele é aquele que chega atrasado à cena,
cuestiona si las cosas ocurrieron realmente como las vio.
aquele que tem a oportunidade de exercitar um olhar
[...] es difícil que alguien diga: “soy el testigo certero”
(VILLORO apud BRADU, 2005, p. 1) retrospectivo e analítico, mas também prospectivo, pois pode
lançar perguntas ao passado com vistas às perguntas abertas pelo
A figura da testemunha ganha relevada importância dentro presente.
dessa perspectiva, pois os personagens que ficaram exigem que Mesmo o romance propondo, desde o começo, um
Julio Valdivieso, a quem consideram a testemunha perfeita – um rompimento na história dos últimos oitenta anos, a partir da perda
testis –, dê testemunho de algo que não viveu, uma vez que não das eleições do PRI, percebe-se que tudo está ancorado no
estava em seu país. Eles acreditam que, devido ao fato de ser um passado e que o futuro é apenas uma reatualização do que já
experto, um perito, tem uma posição privilegiada diante de quem ocorreu. A história pessoal e familiar de Valdivieso se confunde
ficou, enquanto que, para Valdivieso, as testemunhas perfeitas são com a nacional, num híbrido de realidade, ficção e metaliteratura,
aquelas que permaneceram em seu país, os sobreviventes – estabelecendo um processo que questiona e incomoda a História
superstes –, pois somente eles viram no que o país se havia do país.
transformado. Em meio a tudo isso, quem pode ser a testemunha O protagonista não voltou ao México para julgar, já que não
perfeita? É preciso ter visto, ter vivido, ter passado por um evento tem autoridade para isso, e muito menos para ser julgado: “[...]
traumático para testemunhar? Nas últimas páginas do romance, parece que lhe interessa apenas o que torna impossível o
Valdivieso reflete sobre o posicionamento dos que saíram e dos julgamento, a zona cinzenta na qual as vítimas se tornam
que permaneceram: “la gente se divide entre los que se van y los carrascos, e os carrascos, vítimas.” (AGAMBEN, 2008, p. 27). Ele
que se quedan, los que viven para una constancia y una repetición vive há muitos anos na Europa, tendo reduzido voluntariamente
y los que necesitan un aire siempre extranjero, un idioma en el que seu campo de estudo para se esconder. Por um amor extraviado,
encajan palabras inseguras, la falta de pertenencia como mayor pelo escritor que não foi e por ausências e frustrações, define-se
seguridad” (VILLORO, 2004, p. 434). como um perdedor. É então convocado por todos os outros
Valdivieso é testemunha desse tempo de conflito, porém personagens para ser a testemunha perfeita: “Eres el testigo
não é uma testemunha de primeira hora, nem uma vítima pessoal perfecto; ni siquiera eres creyente” (VILLORO, 2004, p. 270),
dos problemas econômicos e políticos que aconteceram no
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comenta o personagem Félix Rovirosa, se é que a testemunha Monteverde (Igreja); Vikingo e Felix Rovirosa (mídia); e
perfeita realmente existe. Constantino Portella (narcoliteratura). Grupos que no México pós
Ele é convocado por ser um especialista, um perito, não em Tratado de Livre Comércio Norte-Americano (TLCAN), logo depois
López Velarde, mas no grupo que o rodeava, os Contemporáneos. da queda do PRI, reivindicam com mais força o poder de
Valdivieso se tornou um experto através do roubo da tese de um representação.
estudante uruguaio morto durante a ditadura militar naquele país Com relação à Igreja, a aproximação ocorre através do
e a utilizou para conseguir uma bolsa de doutorado na Itália. tema cristero com dois personagens que funcionam como
Escreveu um único conto bom em toda sua vida, Rubias de sombra, testemunhas e que tentam de todas as maneiras influenciar o
e foi justamente a desconfiança de Félix Rovirosa em relação a esse protagonista: Monteverde, o enigmático padre ilustrado, e seu
prodígio que o levou à tese roubada. amigo pessoal, Donasiano (tio de Valdivieso). O padre, que estava
No romance, a mídia, a Igreja e até os narcotraficantes mais para um grande fazendeiro do que para um religioso,
disputam o poder de representação e reinterpretação da ostentava vaidade e poder financeiro numa região desértica, com
memória, reivindicando a imagem do poeta nacional, tido como dificuldades de água e comida, rota do tráfico de drogas e,
um dos pilares da literatura mexicana moderna, convocando Julio consequentemente, violenta:
Valdivieso ao país para dar testemunho, dar fé aos seus interesses. El sacerdote tendría unos cinquenta años bien llevados. Su
No entanto, não há posição privilegiada, pois todos são camisa con collarín y un relicario en el cuello definían su
convocados a testemunhar. E num país onde a corrupção domina oficio. En lo demás, parecía un próspero hombre de campo:
importantes grupos de poder, não há a auratização de classes ou cinturón con hebilla de plata del que pendían un estuche de
cuero piteado para la navaja y otro para el celular; pantalón
grupos. Deste modo, se Valdivieso é considerado por todos um
de mezclilla; botas con puntera de metal. Curiosamente, en
testis e, portanto, a testemunha mais importante, todos seriam
los antebrazos llevaba guardamangas de hule. (VILLORO,
considerados superstes, sobreviventes, e, por isso mesmo, aptos a 2004, p. 77)
testemunhar. Retomando Seligmann-Silva (2005), não se deve
valorizar um paradigma sobre o outro, deve-se entender o É através dele que o tio fica sabendo do convite que seu
testemunho “[...] na sua complexidade enquanto um misto entre sobrinho recebeu da televisão para ser o roteirista de uma
visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar: um elemento telenovela sobre a Cristiada. Com a ajuda de Donasiano, tenta
complementa o outro, mas eles se relacionam também de modo convencê-lo de que é fruto de um milagre, pois sua avó havia
conflitivo” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 81-82). engravidado de sua mãe através do suor e da baba do poeta López
Com exceção de Valdivieso, todos os outros personagens Velarde.
são figuras comprometidas ideologicamente e estão vinculadas a Monteverde quer aproveitar a telenovela para canonizar o
um saber institucionalizado, como, por exemplo: Padre poeta, pois seu objetivo e o do Donasiano é conseguir apoio para
essa “causa”, convencendo Valdivieso de que, em sua telenovela,
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é fundamental auratizar ainda mais o poeta, e a inserção da romance, relata que nesses tempos democráticos faz falta “[...] un
história do milagre seria muito importante na tentativa de melodrama que una a México” (VILLORO, 2004, p. 34), e que, além
convencer a opinião pública de que López Velarde é realmente um de trazer certo lucro, vai salvar a carreira de sua amante e cumprir
santo. Para tanto, necessitavam de mais um milagre, e eles com essa anacrônica função.
acreditam piamente que surgirá do povo: Em sua volta, a primeira figura com quem Valdivieso se
Necesitamos el tercero para enviar el expediente al depara é um amigo de faculdade, Juan Ruiz, “o Vikingo” (é preciso
Vaticano. lembrar que o nome completo do autor é Juan Villoro Ruiz). É
_¿Quieren que yo les comunique un milagro? _ sonrió Julio. graças a ele que se estabelece uma conexão entre o seu passado
_Necesitamos el aval de La Casa del Poeta _ terció el tío _. universitário e o presente dominado pelos poderes da mídia, da
La prensa chilanga es mendiga, jacobina. Nos van a acusar
igreja e do narcotráfico, os quais parecem mexer os fios do poder.
de mochos, retrógrados y cuantimás.
Vikingo é a figura que tenta convencer Valdivieso a ser o
_ Nosotros no expedimos certificados de santidad.
_ No se trata de eso. _ Monteverde retomó su tono sereno. roteirista da telenovela, demonstrando interesse nos documentos
_ Es decisivo que se insista en la identidad entre la vida y la de Donasiano e na fazenda Los Cominos como espaço de locação.
obra de Ramón. Fue un poeta católico y así hay que verlo. Afinal, o protagonista havia nascido e passado parte da infância e
No sólo la prensa de barricada se va a meter con nosotros. juventude exatamente nesse lugar, o qual, por ser guardião de
Los adversarios más fuertes están bajo la cúpula de San muitos segredos e documentos, apresenta um funcionamento
Pedro; nuestro candidato compite contra muchos otros. muito semelhante ao de um personagem. Lá é o espaço físico do
Necesitamos un expediente intachable, con apoyo de arquivo, onde se concentra a memória. É, também, em uma
eruditos. (VILLORO, 2004, p. 96) paisagem desértica, com geografia exótica, terra de cristeros, rota
Como se observa no trecho anterior, ambos necessitam do para o tráfico de drogas e possível locação da telenovela nacional
apoio dos intelectuais da Casa do Poeta para que tudo pareça mais e dos inéditos de López Velarde, a possibilidade de memória. É,
convincente e para que não haja contestação por parte da Igreja enfim, o lugar de conexão entre dimensões, espaços, tempos e
nem do público. Em outras palavras, precisam dos intelectuais interesses.
como testemunhas do milagre, como menciona Gutiérrez Negrón Além da relação Igreja-mídia, cabe destacar também o
(2011, p. 5): “Este proyecto bicéfalo—recuperar la Guerra Cristera envolvimento dos narcotraficantes com as questões religiosas, que
y canonizar a López Velarde—a pesar de su naturaleza cooptada, no romance aparecem de duas maneiras. Na primeira, com
va espoleado, por supuesto, por una motivación económica, extrema ironia, Villoro destaca a religiosidade dos traficantes:
aunque también por los retazos de un proyecto intelectual.” “Además, los narcos son muy creyentes y están llenos de
Já a mídia é caracterizada no romance através do supersticiones. [...] Antes de matar bendicen sus AK-47, como los
personagem Vikingo, o idealizador do projeto, logo no início do cristeros bendecían sus carabinas. Llevan crucifijos de oro por
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todas partes”. (VILLORO, 2004, p. 222-224); na segunda, de econômica e política atravessado pelo México nos anos 70 e 80.
maneira sutil, comenta a respeito da relação entre integrantes da No romance, esse personagem confuso e debilitado funciona
Igreja e o narcotráfico: “Las relaciones del narco con la iglesia son como um superstes, que significa a testemunha que atravessa todo
rarísimas”. (VILLORO, 2004, p. 163) ou quando Félix Rovirosa diz a o período de crise.
Valdivieso que fanáticos queriam proteger um “cardenal medio Já a proposta de Félix Rovirosa é que os dois projetos se
narco”. (VILLORO, 2004, p. 297) juntem e que o clima religioso contribua para o surgimento de um
Villoro, através dos personagens Padre Monteverde, “novo milagre”. Ele tem um papel interessante na trama, pois é
Vikingo e Félix Rovirosa, deixa transparecer uma visão ácida e quem dá suporte ao poder de manipulação dos meios de
extremamente particular da mistura dos meios de comunicação, comunicação de massa, usando a tese do uruguaio para
da Igreja, do poder político e do narcotráfico, como pilares podres chantagear o protagonista, enquanto este tenta mostrar a ele o
no qual o povo tenta inutilmente se apoiar. quanto ambos, na época da juventude, haviam pensado em fazer
Nota-se que, com a ascensão do PAN, o país não evoluiu, diferente quando chegasse a hora, pois, um dia, Rovirosa havia
pelo contrário, isso fez com que retrocedesse ainda mais, como dito que a México faltava “Honor. Eso le falta”. (VILLORO, 2004, p.
fica claro nesse trecho em que o padre coloca a televisão no 176). Valdivieso argumenta “_ Estás hablando de una telenovela,
mesmo nível de atraso das outras instituições. A televisão é, então, Félix. Telebasura. O como mucho, gracias a Portella, de telebasura
apresentada na obra, o tempo todo, como “telebasura”, lixo, de autor.” (VILLORO, 2004, p. 310) Mas, para Rovirosa, nada disso
refugo. E sobre a mídia, reflete Beatriz Sarlo (2005): tem valor, e termina dizendo que não importa a verdade, mas que
Em sociedades midiatizadas, a esfera da comunicação pareça verdade.
processa os dados da experiência, reforça-os ou debilita, Outra figura interessante é a de Constantino Portella que é
operando com ou contra eles, ainda que poucas vezes se utilizada para discutir situações importantes existentes no México
possa contradizê-los abertamente, salvo na ficção e, mesmo contemporâneo, que envolvem o poder do narcotráfico. Ele é um
neste caso, apenas de acordo com determinadas regras.
Latim Lover moderno, articulado entre os meios de comunicação,
(SARLO, 2005, p. 60)
os narcotraficantes e o Estado, e nada ignorante. Ao contrário, pois
Vikingo, que no final do romance é assassinado como bode conhece muito bem a grande literatura, discutindo, com
expiratório pelos narcotraficantes, é um dos personagens que inteligência e leveza, clássicos como a Divina Comédia de Dante
funciona como testemunha. É através dele que Valdivieso fica Alighieri: “El cabrón de Portella se mostraba más culto de lo que
sabendo a respeito do país e de seu próprio passado, obtendo sugerían sus libros. Al mismo tiempo conservaba su tono casual.”
assim informações para escrever o roteiro que lhe fora (VILLORO, 2004, p. 344)
encomendado. Diferentemente de Valdivieso, Vikingo não saiu do Esse personagem facilita a discussão da influência da
país, sobrevivendo como pôde todo o período de dificuldade cultura de massa através da “narcoliteratura”, uma realidade
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incrustada já há bastante tempo na população, através dos No entanto, quando o capital se apossa do conhecimento,
narcocorridos, como destaca Villoro no ensaio premiado La transforma-o em mercadoria. Esse processo passa a ser molde e
Alfombra roja, el imperio del narcotráfico (2008), onde comenta controle do acesso aos saberes e poderes, provocando uma perda
que: da radicalidade do conhecimento, ou seja, transformando
La narcocultura amplió su radio de influencia a través de los conhecimento em informação. Pode-se observar que esse
narcocorridos, muchas veces pagados por los propios processo ocorre também com os personagens de El testigo, pois,
protagonistas. En la confusión ambiente, los trovadores ao se investir na canonização de López Velarde e na produção de
vinculados al crimen gozan del dudoso prestigio de lo ilegal uma telenovela sobre a Guerra Cristera, torna-se evidente que não
que reclama un carisma a contrapelo y se somete a la
houve o objetivo de estimular o debate ou divulgar fatos de uma
“moral del pueblo. Sus deprimentes acordeones
parte importante da história do país, mas, única e exclusivamente,
acompañan una saga de la rapiña que, por más que lleve
alumbrado y carreteras a las comunidades que cultivan la promover entretenimento. É notória, então, a utilização dos
amapola, no resiste la comparación con Robin intelectuais do romance sendo colocados como especialistas,
Hood.”(VILLORO, 2008, p. 3) comunicadores, mediadores ou culture broker a serviço dos
poderes da mídia, da Igreja e do narcotráfico.
Nesse pequeno trecho, podem-se destacar dois fatos que
Embora o romance não toque explicitamente na figura do
aparecem no romance: o primeiro deles é a relação de
intelectual, de alguma maneira questiona sua posição, no cenário
naturalidade com que a população lida com os narcocorridos, pois
político, econômico, cultural e religioso, pois, todos os
não são vistos como ilegais. Afinal, é natural ouvi-los, cantá-los e
personagens convocados a testemunhar e os que convocam são
comprá-los. Outro fato que chama muito a atenção é a ação
intelectuais, ligados a um importante círculo de poder.
assistencialista dos narcotraficantes em seu relacionamento com
É importante relembrar a estrutura política, social,
a população carente.
econômica e cultural do México na década de 1970 quando o
Sendo assim, novamente se interroga se é preciso ter visto
protagonista deixou o país. O Estado ainda preservava seu caráter
ou ter vivido o horror para narrar, para ser testemunha. Mais uma
laico, ou seja, mantinha uma escola livre da interferência religiosa,
vez os intelectuais são convocados a testemunhar através de sua
com a proibição de cultos fora da Igreja e a restrição dos direitos
literatura, e mais uma vez há aqueles que acreditam que esse
de propriedade das diversas organizações ligadas a esse tipo de
engajamento não é necessário, já que não é assim que se faz
atividade. Tal fato, entretanto, modificou-se com a chegada do
literatura: “La literatura es artificio, sí” (PARRA, 2005, p.2). Essa
PAN ao poder. Já o narcotráfico era composto por poucos grupos,
postura, entretanto, é também uma maneira de deixar a
e a investida mais agressiva contra esse setor ocorreu em 1977
confortável cadeira de expectador ou a posição de testemunha,
com a Operação Condor. Vale destacar também que os dois
passando para o debate.
maiores cartéis de drogas mexicanos na atualidade: Cartel de
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Sinaloa e Cartel de los Zetas foram criados no final da década de Os personagens de El testigo são exemplos dessa
1980 e 1990, respectivamente. Em relação à mídia, é possível complicada relação entre os intelectuais e o poder. Como
afirmar que mantém relativa independência, embora a Televisa menciona um personagem do romance 2666 (2004) de Roberto
detenha o poder de grande parte dos canais de televisão no país. Bolaño que, os intelectuais latino-americanos estão preocupados
Os personagens mais destacados de El testigo não basicamente em sobreviver. Certamente não é um problema de
apresentam características de heróis ou vilões. São figuras má fé, trata-se somente de um emprego, ou seja, uma questão de
complexas, que vão desde poetas errantes como Ramón Centollo subsistência.
a Cultural Broker como Félix Rovirosa e Juan Ruiz. Seja o Enfim, El testigo é, em si, um diálogo constante entre
fraudulento professor Julio Valdivieso, ou ilustrado padre literatura e história, literatura e política, literatura e poder no
Monteverde, ou Donasiano, o historiador que apenas junta papéis México contemporâneo. Essa obra, de maneira indireta, faz uma
sem muita análise, ou Constantino Portella, o escritor de crítica aos intelectuais mexicanos, utilizando personagens que
narcorromance, não importa, são intelectuais, todos sem qualquer inicialmente se colocam como testemunhas para demonstrar que
tipo de posicionamento crítico em relação ao poder. Na verdade, eles são, na verdade, intelectuais. Nesse cenário, Villoro, com
eles funcionam mais como cúmplices dos diversos grupos que, de muita sutileza, evidencia que, no México atual, ainda se espera que
um modo ou de outro, controlam o país em diversos aspectos; eles assumam uma posição crítica, que explicitem suas posições e
entretanto, postulam-se a si próprios como testemunhas. que ressaltem que escrevem dentro de uma tradição. É por tal
No contexto atual mexicano, pode-se inferir através do motivo que Villoro encerra o romance com uma reflexão de
romance, que, para Villoro, o intelectual público não saiu de cena. reconciliação entre o intelectual e a terra, no qual o intelectual é a
Na verdade, houve um reposicionamento dessa figura, que se vanguarda, e a terra, a tradição.
tornou mais midiático. Como ele já havia declarado numa
entrevista com Jorge Volpi: em seu país, os intelectuais ainda são Referências
porta-vozes, funcionam como uma espécie de guru acidental e AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a
intérprete do real. Os intelectuais mexicanos, frequentemente, testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
explicitam suas percepções não somente sobre temas literários e
cultuais, mas, certamente, percebem, avaliam e fazem projeções ALVES, Fernanda Andrade do Nascimento. A morte e a donzela e
sobre assuntos políticos, econômicos e sociais. Que bom te ver viva: teor testemunhal. Revista Literatura em
No entanto, esta é uma situação complexa, pois, por um Debate, v. 4, n. 6, p.105-120, jan-jul, 2010. Disponível em:
lado, os intelectuais criticam alguns posicionamentos do poder ˂http://www.fw.uri.br/publicacoes/literaturaemdebate/artigos/7
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REPRESENTAÇÕES FICCIONAIS DE D. PEDRO EM O CHALAÇA E EL (1994), do brasileiro José Roberto Torero, e El imperio eres tú
IMPERIO ERES TÚ (2011), do espanhol Javier Moro. Especificamente, objetivamos
analisar como as duas obras reconstroem na ficção a personagem
Stanis David Lacowicz histórica de D. Pedro I do Brasil, evidenciando os recursos
Unioeste/Cascavel narrativos utilizados na reconfiguração da história na ficção e os
jogos de sentido que a estrutura das obras pode sugerir ao leitor.
A problematização da referência à realidade histórica é Trata-se de duas obras premiadas em seus respectivos países de
uma das possíveis linhas de discussão suscitada pelas narrativas de origem e com certo sucesso entre o público: O Chalaça (1994)
extração histórica (TROUCHE, 2006), como os romances históricos. conseguiu o prêmio jabuti de Romance do ano, em 1995, e El
A frequente e consciente utilização de recursos como a império eres tú (2011), o prêmio Planeta no ano de 2011.
intertextualidade, a paródia, a carnavalização, integrados a uma O Chalaça (1994) nos apresenta uma parte da história do
postura metaficcional (explicitando a própria construção do texto), Brasil e de Dom Pedro I a partir do ponto de vista de seu amigo e
fazem da literatura contemporânea, ou pós-moderna, além de secretário, Francisco Gomes da Silva, conhecido como o Chalaça.
complexa e de não fácil assimilação por um leitor comum, um Trata-se, nesse sentido, de um narrador autodiegético que reconta
poderoso meio de crítica sobre a maneira como são percebidos os os fatos históricos pela privilegiada condição de espectador direto
feitos históricos e a sua representação nos discursos e participante desses eventos. O romance compreende,
historiográficos. aproximadamente, o período de 1808 a 1834, narrando eventos
Nesse sentido, a problematização estimulada pela históricos conhecidos do leitor brasileiro, como a chegada da
literatura permite perceber a história como material de linguagem, família real portuguesa ao Brasil e a Independência do país, em
sobre o qual sempre há um projeto de seleção edição, elegendo 1822.
alguns acontecimentos e esquecendo-se de outros, ou seja, A constituição da ficcionalidade em um romance não
dirigindo uma construção também em certa medida ficcional. Isso ocorre devido ao enredo ou possíveis modificações efetuadas,
nos retoma a problemática pós-moderna da impossibilidade de como é o caso, em relação à historiografia oficial, mas
reconstrução do passado, que não pela via textual, pois “só principalmente pelo próprio processo de conversão dos fatos em
conhecemos o passado (que de fato existiu) por meio de seus linguagem:
vestígios textualizados” (HUTCHEON, 1991, p. 157). Porque no es la anécdota lo que decide la verdad o la
Levando em consideração a referida área de estudos, nosso mentira de una ficción. Sino que ella sea escrita, no vivida,
trabalho tem como objetivo fazer um estudo comparado de dois que esté hecha de palabras y no de experiencias concretas.
romances históricos contemporâneos: Galantes memorias e Al traducirse en lenguaje, al ser contados, los hechos sufren
una profunda modificación [...] lo que describe se convierte
admiráveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes, o Chalaça
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en lo descrito.” (VARGAS LLOSA, 2002, p. 18. Grifo del levado tanto a grandeza quanto à perdição. Em El imperio eres tú,
autor.) começamos com Pedro de Alcantara, o futuro imperador do Brasil,
A proposição de Vargas Llosa permite refletir sobre o então com dezoito anos e apaixonado por uma bailarina francesa,
caráter ficcional do discurso da história e permite compreender que lhe correspondia o sentimento. A partir daqui, ao longo do
que a reconstrução de personagens históricos, mesmo pelo romance, veremos a personagem em suas relações com as suas
discurso da história, já é imparcial desde o momento em que as duas esposas (D. Leopoldina e D. Amélia), bem como com a sua
suas existências concretas se convertem em material de famosa amante, Domitila de Castro, a Marquesa de Santos.
linguagem. A escrita traz, portanto, as marcas da perspectiva que
se adota para focalizar os eventos e jamais o acontecimento de O Chalaça: ecos da picaresca na reconstrução de D. Pedro I
maneira direta, questões que, se por um lado demonstram a não Conforme mencionado, O Chalaça nos apresenta parte da
neutralidade do discurso e a sua possível manipulação, fazem-nos história brasileira a partir do ponto de vista de Francisco Gomes da
perceber a palavra como a única forma de eternizar determinados Silva. Nesse sentido, o texto se constrói como se fosse o diário
eventos e pela qual alcançamos outros tempos e outros lugares. pessoa do Chalaça, no qual narra os acontecimentos entre os anos
D. Pedro da ficção, ainda que seja uma personagem de 1832 e 1834. O personagem/narrador está, então, na França,
advinda dos discursos da história, não é mais o mesmo dos textos de onde decide partir a Portugal, devido a pedido de seu amo D.
historiográficos, muito menos a personagem que um dia existiu, Pedro e por ter-lhe falhado o plano de se casar com uma senhora
mas um duplo que o imita e que é imitado, recriando-se de uma e garantir uma vida entre a aristocracia e a herança. Já nesse
maneira nova e cheia de significados. A ficção, com isso, deixa de momento nota-se a relação de vassalagem entre um e outro, a
ser uma mera cópia da realidade, articulando-se entre limites qual se desenvolve ao longo do texto. A volta a Portugal instiga em
flexíveis entre literatura e história, as fronteiras porosas entre a Francisco Gomes a rememoração de sua trajetória e o caminho
ficção e a realidade. As correlações entre os personagens dos para alcançar um bom lugar entre a Corte; estabelece, com isso,
romances com os dos livros de história são mantidas em vários um projeto de escrever suas memórias. Esse novo texto é
pontos, uma vez que a literatura busca fazer crer. Pactos de mostrado ao leitor ao longo do romance, intercalado aos capítulos
verossimilhança são, portanto, construídos, engendrando do diário e compartilhando com ele o mesmo período de escritura.
modelos do mundo real, versões ficcionais de personagens Ao narrar, nas memórias, sua história, Chalaça acaba narrando
históricos. também momentos da história do Brasil e da vida de seu amigo, D.
O romance de Javier Moro, por sua vez, ainda que nos Pedro, desde 1808 até aproximadamente 1832. No final do
conduza a recriação dos mesmos personagens históricos, tende a romance, o último capítulo das memórias traz os acontecimentos
focalizar o desenvolvimento da imagem de D. Pedro como do começo do diário e do romance, mas entrevistos por uma nova
Imperador e as suas relações com as mulheres, que o teriam perspectiva.
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O romance se divide, em sua maior parte, em dois gêneros pesquisadores que teriam encontrado equívocos de datas e de
textuais, o diário e as memórias, cada um apresentando uma linha linguagem (perdoáveis, entretanto, segundo argumenta o “autor”,
narrativa (como se uma a linearidade da história se dobrasse e pelo tom coloquial e despojado de um diário). Ainda que esse
sobrepusesse duas épocas distintas ao longo do texto). Além disso, autor atue com sinceridade, a honestidade não passa de um
a obra é complementando por uma série de quatro cartas (duas artifício de manipulação do leitor, para conquistar sua confiança e
escritas pelo Chalaça e duas dirigidas a ele, por seus amigos), por estabelecer um pacto de leitura. O fingimento típico da picaresca
meio das quais pode-se ter uma ideia do desfecho das surge, então, pelo jogo de máscaras que estimula a confusão entre
personagens. Com isso, dos 63 capítulos, temos: quarenta do o autor real (José Roberto Torero em sua existência física e social)
diário apócrifo do Chalaça (1833-1834); dezenove da autobiografia e o autor ficcional, o pretenso historiador que compõe o prefácio
(do capítulo 16 ao 58, intercalado com o primeiro, de 1808 até e tem a tarefa de organizar os textos do Chalaça. Esse autor
1833) e as quatro correspondências. ficcional, no caso, pode ser compreendido como uma espécie de
Elemento que contribui para a criação de sentidos do narrador-editor, pelo papel de organizar os textos e dar-lhes uma
romance é um prefácio que o introduz. Aqui, o autor se apresenta sequência ou, como ocorre, manter a sequencia de escritura. Tal
ao leitor como um investigador, e não um literato, que acabou narrador-editor faz parte do universo ficcional, mas se situa em um
achando o diário perdido do Chalaça, um documento estimado por nível narrativo externo à diegese conforme apresentada pelo
historiadores, pela possibilidade de trazer novas luzes sobre a narrador Chalaça; é um narrador extradiegético.
história do Brasil e sobre a intimidade da família real. Entretanto, O jogo de máscaras permite considera “verdadeiro”,
esse “autor” não é nada mais do que uma projeção ficcional do dentro do universo da ficção e ainda que com ressalvas, o diário de
autor real, sendo o prefácio já parte da criação ficcional e servindo Francisco Gomes da Silva:
como instrumento de persuasão do leitor. O falso prefácio surge a [...] a trapaça do pícaro atinge o leitor: o narrador se esforça
maneira dos prefácios da picaresca espanhola, como o Lazarillo de para identificar-se com o autor implícito e assim aparecer
Tormes, com o qual o romance de Torero estabelece um forte como o autor real. Esse processo se constrói por meio de
diálogo intertextual, tanto pela estrutura como pela ideia de uma motivação realista do texto que conduz o leitor a
sentir-se perante um documento e não perante um texto
ascensão social pela burla e pelo jogo de máscaras discursivo e
ficcional. (GONZÁLEZ, 1994, p. 268).
social.
Esse jogo de máscaras é percebido pela utilização do O Chalaça parodia a motivação realista do Lazarillo de
recurso do “manuscrito perdido”, como é apresentado no Tormes, trazendo a atitude manipuladora do narrador a fim de
prefácio, e se alia ao fingimento com o qual o “autor/historiador” legitimar a versão histórica da personagem de Francisco Gomes da
nos apresenta o diário, chegando a admitir a possível não Silva. Uma vez que o personagem tenta enganar a si próprio sobre
autenticidade dos textos, pois haviam sido analisados por sua condição na sociedade, esse engano tende a ser transferido à
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narração e, consecutivamente, ao leitor. O leitor desse tipo de atitudes de D. Pedro, cujo exagero acaba revelando a ironia na
literatura é convocado a deixar de ser um receptor passivo e a maneira conforme os acontecimentos vão sendo desvelados na
construir sentidos: “Se quem narra é um pícaro, é fundamental narrativa.
que o leitor desconfie de suas informações e interpretações. Há Um momento do romance que pode servir a análise da
então, um espaço para a ambiguidade entre o narrador e o humanização e rebaixamento da figura de D. Pedro, retirando-o do
protagonista, que o leitor deve preencher criticamente”. altar de herói, relaciona-se a um caso que ele teve com “uma
(GONZALEZ, 1994, p. 120). A preocupação com a aparência de negrinha, de nome Andrezza, que todas as quintas-feiras vinha
verdade do discurso é muito importante, já que o texto surge trazer doces feitos por ela mesma e por algumas freiras do
também como forma de resistência, no caso do Chalaça, à omissão convento” (TORERO, 1994, p. 67). A figura do conquistador
que sua figura histórica correlata sofreu dos discursos donjuanesco, acima dos limites morais, sociais e religiosos ou
historiográficos oficiais e acaba denunciando, nesse sentido, a sociais é ressaltada. Ao ver uma moça passar, certo dia, D. Pedro
parcialidade desses registros. A autobiografia (que n’O Chalaça comenta com o seu amigo: “Belo animal, não, Chalaça?”/“Bons
seria não apenas as memórias, mas todo o romance), expressão dentes e belos quartos, Alteza”/“Quero que a arranjes para mim.
simbólica da liberdade do pícaro-rebelde, altera a liberdade do Acho que daria uma montaria e tanto” (TORERO, 1994, p. 68). A
leitor ao conduzir a sua percepção, selecionando os fatos que julga moça, quituteira de um convento, é negociada pelo Chalaça, que
importantes para dar sentido à “tese” defendida (MILTON, 1986, tem de alegar ao padre, para convencê-lo, de que seria um
p. 34). presente a princesa Leopoldina, que ficaria muito satisfeita, pois
Essa perspectiva que se apropria de elementos da picaresca poderia saciar seus desejos súbitos de comer quindins. Depois de
espanhola, aliada a uma postura narrativa que retoma também alguns meses, Andrezza tem um filho e, “como recompensa pelo
elementos da malandragem, servirá de ponto de partida no seu bom serviço e discrição, ganhou do Príncipe uma casa com
romance para a configuração discursiva da personagem histórica mobília na rua da Viola” (TORERO, 1994, p. 68). O Chalaça relata,
de D. Pedro. O Chalaça se liga a ele pelos benefícios que a vida na por fim, que ele mesmo muitas vezes fora naquele endereço para
Corte lhe trariam, servindo-lhe de amigo, alcoviteiro e mesmo comer quindins. O discurso do Chalaça é, portanto, permeado pelo
secretário de assuntos políticos. Francisco Gomes possui, discurso de D. Pedro, conduzindo elementos que reforçam a ideia
portanto, uma perspectiva privilegiada para recontar a história de da submissão feminina, tanto de Andrezza, por sua condição de
D. Pedro, pois havia compartilhado com ele tantos os momentos cativa e de mulher (vista como objeto sexual), e de Leopoldina, por
históricos de grande importância (como a Proclamação da certa condescendência para com a infidelidade do esposo. A
Independência do Brasil), quanto havia estado com ele nos seus idealização nas relações amorosas entre homem e mulher é
momentos mais humanos e íntimos. A questão da vassalagem faz rompida por meio da linguagem carnavalizada; o diálogo dos
com que o Chalaça adote, em princípio, uma postura de defesa das homens tende a reforçar essa marginalização da mulher, ao trazer
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as correspondências metafóricas entre a mulher e um animal, o composição, além da maneira como encara a história brasileira e a
ato sexual e quindins. A comicidade do trecho rebaixa a figura de composição literária.
D. Pedro ao âmbito da mesquinhez humana, ao plano do corporal Aqui temos um narrador heterodiegético, ou seja, que está
e do material, rebaixando, por extensão, as noções de amor cortês fora da diegese, e que parte de uma focalização zero (não
e do próprio casamento, colocados nesse sentido como ideais focalizada) que por vezes se articula com uma focalização interna
falidos, sustentáveis apenas por exigências sociais, aparências e (visão com). A perspectiva do narrador é historicamente
interesses financeiros. distanciada, narra a história enquanto um ser que está fora dela e
Além do grotesco no vocabulário ao referir-se à mulher, a apresenta a sua perspectiva sem problematizar essa percepção,
carnavalização da personagem histórica também surge pela aproximando-se em certa medida do narrador do romance
imagem da morte. Francisco Gomes narra, perto do final do histórico tradicional. Esse distanciamento, entretanto, relativiza-
romance, os últimos momentos de seu amigo: “Presenciei o se ao longo do romance por conta da abordagem ao cotidiano das
entibiamento do seu corpo, o desaparecimento de sua voz e o personagens históricas, de sua intimidade e dramas interiores.
grande esforço que lhe custava assinar as missivas assim que eu Ao longo de suas 9 partes, entre as quais se distribuem 105
terminava de as escrever” (TORERO, 1994, p. 188). Em certo capítulos e um epílogo, narram-se conhecidos eventos da história
sentido, a imagem nos remete a concepção bakhtiniana do corpo brasileira e um período de tempo bastante próximo do abordado
grotesco, visualizado em sua reintegração ao mundo por meio da pelo romance de Torero, compreendendo desde a vinda da família
morte. Para Bakhtin (1987, p. 23), o corpo grotesco “não está real ao Brasi em 1808 até pouco após a morte de D. Pedro. Além
separado do resto do mundo, não está isolado, acabado nem da divisão em partes e capítulos, pode-se dizer que o romance,
perfeito, mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios primando por uma narrativa cronológica e linear (apesar das
limites”. Pela morte o corpo realmente se integrará à terra. A analepses), organiza-se de acordo com as quatro principais
carnavalização na obra de Torero efetua o rebaixamento das mulheres com quem D. Pedro se relacionou em sua vida: Noemie,
imagens cristalizadas da historiografia oficia, subvertendo os seus Leopoldina, Domitila de Castro, Amélia. Essas personagens
sentidos. O riso, aqui, não é apenas provocador de graça, mas é femininas podem ser percebidas como quatro eixos
sarcástico e irônico, reapresentando ironicamente a imagem de D. estruturadores da narrativa, cada qual trazendo determinados
Pedro. sentidos que ora aproximam D. Pedro da imagem do imperador
ora o aproximam do homem, ora lhe conduzem a uma imagem de
El imperio eres tú: D. Pedro entre o herói e o homem decadência moral ora lhe insuflam de sentimentos heroicos e
Em El imperio eres tú, Javier Moro efetua a recriação do nobres.
mesmo D. Pedro I histórico, mas de início já se diferencia d’O Com relação à postura do narrador, nota-se um intento de
Chalaça por conta do tipo de narrador e da perspectiva adotada na fazer com que parece não haver entre narração e eventos
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históricos um processo de reconstrução pela linguagem, não só de Todopoderoso te ha oferecido este destino. No lo
acontecimentos, mas muito mais de textos que um dia os desaproveches. Hay un solo Dios, tienes un solo padre. Hay
registraram. Esse tradicionalismo, ainda que idealmente haja entre muchas mujeres en el mundo. Estoy seguro de que la que te
leitor e obra um pacto pelo qual se percebam as personagens hemos escogido, después de enormes gastos y esfuerzos, te
gustará mucho. Te hará mejor persona, reforzará el
como seres ficcionais, tende a prender a atenção do leitor nos
Imperio. (MORO, 2011, p. 67)
acontecimentos e não na maneira como são contados, seduzindo-
o apenas pelos dramas narrados. Essa postura do narrador pode O rei retoma os discursos religiosos e políticos para tentar
ser percebida em todo o romance, do qual destacamos um convencer Pedro daquilo que não poderia fugir: os compromissos
momento em que se comenta a reação de D. João VI sobre saber para com o país e a Coroa. Tornar-se melhor pessoa era, portanto,
que Miguel não era seu filho biológico: “De lo que estaba seguro integrar-se ao destino traçado; a vida na realeza era condicionada
don Juan es de que no era suyo, porque cuando nació llevaba años pelas relações sociais exigidas dos líderes do país; os casamentos
sin tener relaciones con su mujer. Aun así, siempre lo trató como deveriam, portanto, servir ao bem do Império, principalmente em
un hijo más” (MORO, 2011, p. 59). O que D. João pensa é aquilo e situações de crise, como a do Brasil de 1816.
nada mais, não se problematiza sua relação com o filho, se D. Pedro é apresentado como um homem que não por seu
realmente ele o tratava como um dos seus filhos ou as possíveis desejo inicial nem por suas qualidades, mas por seu nascimento,
perspectivas do evento (o que Miguel pensava disso, o que os seria levado a ser o representante de uma nação e de um Império.
outros pensavam da relação entre os dois etc.). No desenrolar dos acontecimentos, D. Pedro surge como um
A oscilação de D. Pedro entre sua condição de homem e seu homem que lutaria pelos ideais de liberdade no Brasil, apesar de
papel político de príncipe herdeiro é um dos motivos principais do sua origem portuguesa, desenvolvendo a imagem de herói de
romance, aliado à mencionada questão das quatro mulheres. caráter nacionalista. Esse nacionalismo corrobora a imagem
Quais os dilemas do jovem cujo destino está traçado e como romântica do protagonista, característica que se pode perceber no
articularia seus desejos com o historicamente determinado papel seguinte fragmento: “Lo único que lo guiaba era su instinto, que le
de herdeiro do trono são perguntas que recheiam boa parte do arrastraba irremediablemente hacia los brazos de Noémie, con
texto. Na primeira parte do texto, quando D. Pedro tem o desejo una fuerza arrolladora.” (MORO, 2011, p. 69).
de casar-se com a bailarina francesa Noemi, D. João busca A imagen romántica da personagem entra em consonância
dissuadi-lo para o inevitável, ou seja, que enquanto príncipe com a imagem de D. Pedro como um cavaleiro medieval, que luta
deveria casar-se com uma mulher também da nobreza, de pelos direitos alheios, que luta pela liberdade e cujos feitos são tão
preferência, de alguma Corte Real europeia. D. João afirma com admiráveis que deveriam ser narrados por outra pessoa,
ênfase: enobrecimento que justifica o narrador heterodiegético, típico do
— Pedro, el Imperio somos nosotros. Será tuyo algún día. discurso histórico e das novelas de cavalaria. A imagem do
[...] Si tú has nacido en el seno de esa família, es porque el
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Cavaleiro Andante, defensor da honra e do povo, é outro dos afastamento dele de sua posição de herdeiro da Coroa, a
motivos que conduzem a narrativa, evidenciado nas constantes idealização do relacionamento dos dois é, em certo sentido,
menções à figura de Dom Quixote, cujas aventuras permearam a ironizada, ao descrever a dificuldade da vida que levavam em uma
infância do Príncipe tanto por meio de histórias quanto por casinha distanciada das comodidades da Corte. Leopoldina
imagens que ilustravam o teto de seu quarto em Portugal. O percorre uma grande parte do romance não lhe são poupadas as
narrador heterodiegético conduz-nos aos eventos como se não características positivas: sua fidelidade e devoção ao marido, sua
houvesse um processo de edição sobre o que é contado, filtrando inteligência e conhecimento erudito, seu amor por tudo aquilo que
e selecionando as informações. a pudesse integrar entre a família real portuguesa e agradar ao seu
O tradicionalismo de El imperio eres tú, entretanto, é esposo e ao seu sogro; apenas lhe é criticada a condescendência
contrabalanceado por algumas escolhas do narrador, sobre que vai para com, a partir de certo ponto do romance, os relacionamentos
tratar ao longo do livro. Isso se refere a intimidade e os amores de extraconjugais de D. Pedro. O adoecimento de Leopoldina, seu
D. Pedro, suas paixões pelas mulheres e seus desencantes, o sofrimento devido ao desprezo do esposo e a tristeza por conta da
sofrimento por não poder escolher a mulher para se casar, a traição de D. Pedro (cujas atenções então eram todas voltadas à
própria decadência do corpo devido a doenças. Ao focar nos Marquesa de Santos), são alguns dos momentos mais intensos do
sentimentos da personagem, em suas dores e sofrimentos e romance, desenhando a maneira como uma personagem boa
mesmo em seus aspectos egoístas e contraditórios, conduz a poderia ser relegada à miséria emocional. Todo esse sofrimento é
humanização da personagem, que deixa de ser um ser completo, creditado, em certa maneira e conforme se coloca no romance, ao
fixo e constante como os grande heróis e se mostra como um ser caso cada vez mais forte de D. Pedro com Domitila de Castro,
inconstante, apaixonado, incompleto, um homem qualquer, que amante que recebia as maiores regalias, incluindo o título de
pode provocar tanto o encanto quanto o nojo. Marquesa. Domitila protagoniza algumas das cenas sensuais do
Nesse sentido, D. Pedro é mostrado como uma romance, sendo construída como uma mulher sedutora, que usa
personagem romântica, nos vários termos do sentido: a paixão dessa arma para conseguir manter seu lugar ao lado de D. Pedro e
pelas mulheres, o donjuanismo que lhe provoca o desgosto para entre as classes abastadas, bem como angariar presentes e auxílios
com as regras sociais, o amor pela liberdade, o amor pela nação. O para a sua família. Essa imagem sedutora, cheia de elementos que
romantismo viria, contudo, também nos seus sentidos ruins, poderiam ser visto de maneira positiva, entretanto, acabaria
ligados ao egocentrismo e a contradição. levando D. Pedro a sua decadência, por conta do desprezo com
No que diz respeito a relação de D. Pedro com as quatro que trataria a sua esposa Leopoldina (que teria morrido de
mulheres referidas, nota-se uma postura do narrador de valorizar desgosto) e pela manipulação de Domitila com relação a questões
mais algumas delas do que outras. Noemie, apresentada como o do país, levando D. Pedro, inclusive, a se desfazer de seus mais
primeiro grande amor do Príncipe, estaria ligada ao processo de próximos aliados seguindo a ideia de que tentariam tomar-lhe os
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poderes. A amante leva o Imperador a perda do prestígio frente ao uma forma de reler a história, conforme já se pode perceber no
povo (que amava Leopoldina) e às lideranças do país (exército e título que encabeça o capítulo (pertencente às memórias): “Que
principalmente os grandes proprietários de terra); a reintegração trata do regresso da viagem a Santos e de grandes obras que
de D. Pedro ao seu local de líder político e social vai sendo naquele percurso se fizeram.” (TORERO, 1994, p. 22),
resgatada na medida em que ele começa a cortar suas relações demonstrando o enaltecimento exagerado que o Chalaça busca
com Domitila (a qual buscava o casamento e tornar-se a nova dar a sua composição, jogando também com o sentido de “obras”,
imperatriz). D. Amélia, a segunda esposa e nova imperatriz, sela a conforme explicitaremos. Ao iniciar a narração, o Chalaça
redenção de D. Pedro ao seu posto de Imperador, como se o amor demonstra o seu descontentamento com a viagem, pois mal
dessa nova relação o elevasse da decadência a qual havia sido haviam verificado as fortificações no litoral e, devido à uma
levado pela amante. costeleta de porco fortemente temperada, começaram a sentir
A utilização da carnavalização, ainda que de maneira mais “desconfortáveis contrações intestinais, cujo resultado é a
atenuada que no romance de Torero, serve também ao processo evacuação de uma matéria fecal mais líquida do que sólida. Os
de humanização do herói histórico. Ao reler o personagem físicos a definem como diarrhoea, enquanto a gente miúda a
histórico, o romance se apropria, assim como O Chalaça, de mitos conhece apenas por ‘caganeira’.” (TORERO, 1994, p. 107). D. Pedro
e figuras literárias, como o Don Juan, Don Quijote, o pícaro e o decide por partirem o mais rápido possível em direção à capital da
malandro, focalizando mais, entretanto, os dois primeiros, ligados província, mas, conforme expressa o narrador, “próximo ao riacho
a personagens que carregam uma ligação com a nobreza e do Ipiranga, ele próprio [D. Pedro], eu e mais sete ou oito oficiais
aristocracia, mas conduzem a construção de sentidos em torno do da comitiva tivemos que apear e, com o trabalho da natureza,
protagonista. Não nos deteremos obre essa relação entre os mitos acalmar as revoluções das nossas vísceras.” (TORERO, 1994, p.
literários e o romance nesse trabalho, mas pode-se afirmar que ela 107). A continuidade da narrativa é interrompida por um texto
propicia um enriquecimento do texto, estabelecendo outros níveis pretensamente filosófico do Chalaça, em que expressa a sua “tese
de leitura e uma série de diálogos intertextuais que rompem com sobre a perfeita evacuação das fezes e seus efeitos sobre o
o aspecto muitas vezes tradicional da obra. entendimento humano.” (TORERO, 1994, p. 107). Depois de
defender a leitura como melhor atividade para se realizar durante
Imagens da Independência do Brasil no romance histórico a defecação, o Chalaça comenta: “Sempre leal ao meu soberano,
A reconstrução da personagem histórica de D. Pedro pelos julguei ser o meu alto dever seguir na mesma direção que ele
romances de nosso estudo pode ser visualizada na maneira como tomava, tendo apenas o cuidado de ficar a uma boa distância e de
ambas recontam o evento da Proclamação da Independência costas para o vento.” (TORERO, 1994, p. 108). Nesse momento,
(1822). Em O Chalaça (1994), esse episódio é apresentado por chega um mensageiro trazendo cartas de Leopoldina, avisando-lhe
meio do recurso à carnavalização, utilizando-se do humor como das ame
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Nesse momento, chega o oficial da corte com história correntes; outros pontos ligam-se basicamente à
correspondências da princesa Leopoldina e de José Bonifácio. consciência que o Chalaça demonstra possuir da importância do
Nelas D. Pedro era avisado que fora destituído de seu posto de ato no que concerne à manutenção da unidade nacional, livrando
Príncipe Regente e haveria uma tropa real pronta para reprimi-lo a “nação brasileira da anarquia”, dado o perigo já assinalado de
no caso de insurgência. O Chalaça, acompanhando a leitura das revoluções ao longo do país. Novamente, a tensão cômico/sério dá
cartas, comenta: “Conhecendo o espírito indômito do príncipe D. o tom da ironia, em que o acontecimento heroico se vê
Pedro como eu conhecia, não era difícil prever a resposta que ele apresentado ao lado da faceta mais íntima do corpo humano e
daria a esse puxão de orelha das Cortes; o que era difícil de prever motivado pela instabilidade de Pedro, o qual aparenta ter
era quando e como ele se manifestaria” (TORERO, 1994, p. 109). realizado o ato também devido a ter compreendido as mensagens
Só não imaginava que a resposta viria tão cedo, quando de repente do reino como afrontas pessoais.
o Príncipe ordena aos soldados que lançassem os seus laços fora, A particularidade dessa passagem está na maneira como é
os quais representavam as armas portuguesas. D. Pedro, animado descrito o acontecimento, visando o rebaixamento das figuras
pelo movimento geral, levanta a espada e grita “Viva a heroicas, faz com que o acontecimento perca a imagem estática
independência e a separação do Brasil”, sobre o que todos de oficialidade e se torne mais vivo e dinâmico:
soltaram um “Viva!”; torna-se para a sua guarda de honra e fala: [...] rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em
“Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro comunhão com a terra concebida como princípio de
promover a liberdade do Brasil!”, declamando, enfim, o famoso absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se
mote “Independência ou morte!”. No final do capítulo, o Chalaça degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente,
mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor.
conclui:
(BAKHTIN, 1987, p. 19).
É essa história que se conta até hoje no Brasil, e eu dou fé
que é verdadeira. Tal fato será sempre memorável e No caso dos romances históricos aqui tratados, a nova vida
glorioso, porque livrou a nação brasileira da anarquia. Eu, proporcionada pela carnavalização se relaciona à chance de optar
como julguei sempre a minha primeira obrigação obedecer por outras facetas da história, percebendo que ela não se compõe
cegamente às ordens de meu amo, considerei-me a partir de uma trajetória única, mas da confluência de diversas
daquele dia o mais devotado defensor daquela causa.
perspectivas.
(TORERO, 1994, p. 111)
O romance de Javier Moro ao recontar o acontecimento da
O narrador proclama a pretensa autoridade de sua versão, Proclamação da Independência, resgata elementos bastante
que em relação a sua posição marginal para o discurso histórico semelhantes aos apresentados por Torero, dentre eles a diarreia
oficial, acaba dotando o fragmento de comicidade; essa, por sua que havia acometido o príncipe e que fez com que atrasassem a
vez, é apoiada pelo fato de que o modo como se narra o partida:
acontecido difere do tom sério que se verifica nos manuais de
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Sin embargo, tuvieron que retrasar la partida porque Pedro que “Ya no podía seguir esperando, el tiempo se le había echado
se encontraba mal, presa de unos violentos retortijones. encima.”, o momento decisivo havia chegado para tomar as rédeas
Prefirió esperar a que le preparasen, en una posada de da nação. Em seguida, “El príncipe volvió a montar en su caballo.
carretera, una infusión de hojas de guayaba, apropiada en Ya estaba: había tomado la decisión y era irrevocable. Cuando los
casos de diarrea, para proseguir su viaje. (MORO, 2011, p.
oficiales de su guardia de honor se le acercaron, les puso al
261)
corriente de la situación” (MORO, 2011, p. 263).
D. Pedro prefere preparar uma infusão durante a parada D. Pedro não estava desequilibrado, mas detinha uma
durante a viagem. Da mesma maneira como narrado em O postura reta, atuando segundo aquilo que vinha pensando a
Chalaça, ele precisa parar para defecar e aliviar-se da cólicas tempos e segundo os conselhos de Bonifácio, quando grita aos
intestinais, quando percebe a chegada do emissário real. Um seus soldados: “— ¡Viva la independencia y la libertad de Brasil! —
exército chegaria de Lisboa para reprimir qualquer tentativa de gritó —, ¡Lazos fuera, soldados¡ A partir de este momento, nuestra
resistência e Bonifácio clamava que o Príncipe voltasse ao Rio para divisa será: ¡Independencia o muerte!” (MORO, 2011, p. 263).
ajudar a manter a ordem do país e tentar resistir às Cortes Diferentemente da narrativa de Torero, temos D. Pedro não como
Portuguesas: “Pedro, éste es el momento más importante de um homem que teria proclamado a independência devido a ter
vuestra vida. Brasil será en vuestras manos un gran país [...] Señor, tomado como pessoais as repreensões das Cortes, mas como
la manzana está madura, ¡cogedla!” (MORO, 2011, p. 262). Após alguém que, tendo pensado seus atos, assumiu a postura de herói
ler os apelos de Bonifácio a que tomasse a postura de defensor do que a situação lhe exigia, tomando as rédeas da oportunidade
país, já anteriormente alimentada, Pedro passa a meditar sobre a histórica: “Pedro desenvainó la espada como si estuviese en pleno
questão: campo de batalla liderando un ataque contra sus enemigos y los
El príncipe arrugó los decretos de las Cortes con un gesto de Brasil, contra las Cortes, contra Portugal, contra el resto del
irritado y se quedó un rato en silencio, pensativo. Había mundo” (MORO, 2011, p. 263).
hecho todo lo posible para evitar la separación de ambos Há, nesse sentido, um enaltecimento da figura histórica do
reino y ahora percibía la futilidad de todos sus esfuerzos, y
herói, a carnavalização acaba por servir como um processo de
la fatalidad de una separación inevitable. Le dolía tomar la
humanização às avessas; humaniza-se para, ao aproximar do
decisión. (MORO, 2011, p. 262)
espaço do humano, mostrar que um homem, apesar de seus
Temos um protagonista contido, calmo, pensando sobre a defeitos, soube fazer diferença na constituição histórica do país. A
ideia de tornar-se o líder de uma nova nação, algo que já havia faceta humana do herói é reforçada ao narrarem-se os conflitos
alimentado ao presenciar o clamor do povo para com a sua internos da personagem, sua angústia entre tomar a defesa do
imagem. A separação parecia inevitável e lhe doía o sentimento de Brasil e ir contra o seu país de origem, Portugal.
ter de trair a sua nação mãe, mas passa a pensar que a sua nação
mãe, onde havia sido criado, era agora o Brasil. Comenta, então,
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Considerações finais dialogismo bakhtiniano, ao tratar do conceito de


O projeto de subversão de imagens cristalizadas da história intertextualidade, comenta que “todo texto se constrói como um
oficial, que ocorre pelos romances históricos contemporâneos, mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um
buscando novas perspectivas sobre os acontecimentos e outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64), processo que serve a
personagens históricos, mostra um claro intento de ruptura com desmistificando de imagens cristalizadoras que são atribuídas a
discursos advindos de grupos hegemônicos e mesmo de contra- determinados produtos de linguagem, muitas vezes em
colonização. Portanto, essas obras costumam trazer ao relato a voz decorrência de uma motivação social e política
e perspectiva das classes oprimidas, resgatando a história dos Acerca de D. Pedro, podemos perceber que, mesmo em se
esquecidos pelo discurso das elites. Quando são representados tratando da narração do mesmo evento histórico, a seleção dos
nomes conhecidos da história, isso é feito de modo a expor suas acontecimentos e o foco narrativo possibilitam uma maneira
características mais humanas, nas situações em os seus corpos se múltipla de se conceber o herói histórico. O Imperador brasileiro
abrem para o mundo: o sexo, a defecação, a alimentação etc. nos aparece como um herói de mil faces, mas em muitos
Pode-se perceber, logo, uma visão carnavalizada dos supostos momentos sem nenhum caráter, em um sentido alusivo ao
heróis, rompendo com hierarquias, trazendo-os à condição de Macunaíma, de Mario de Andrade, apontado por Isabel Lustosa
homens de carne e osso. em sua biografia de D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter
A integração mencionada entre personagens históricos e (2006). Suas diferentes facetas e reconfigurações navegam, então,
mitos literários, integrada ao trabalho metaficcional e à entre o estabelecido e a ruptura, entre o tradicional e o inovador,
carnavalização, expressa a manifesta intertextualidade desses entre a ordem e a desordem.
romances históricos. Desse modo, procedem a um:
trabalho de assimilação e de transformação que caracteriza Referências
todo o e qualquer processo intertextual. As obras literárias BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
nunca são simples memórias – reescrevem as suas o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São
lembranças, influenciam os seus precursores, como diria Paulo: HUCITEC, 1987.
Borges. O olhar intertextual é então um olhar crítico: é isso
que o define. (JENNY, 1979, p. 10)
GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins.
A intertextualidade permite essa apropriação crítica do Lisboa: Arcádia, 1979.
discurso dos outros e, na construção das obras de nosso estudo,
permitem perceber o próprio discurso histórico como um outro GONZÁLEZ, M. M. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance
texto que é retomado e reconstruído, integrando-se a outros, picaresco espanhol e algumas correspondências na literatura
como os advindos da tradição literária. Kristeva, a partir do brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
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HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz, Rio


de Janeiro: Imago, 1991.

JENNY, L. A estratégia da forma. Intertextualidades - Poétique:


revista de teoria e análise literárias, n. 27. Trad. Clara Crabbé
Rocha. Coimbra: Almedina, 1979, p. 5-49.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Trad. Lucia Helena França
Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.

LUSTOSA, I. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo:


Companhia das Letras, 2006.

MORO, J. El imperio eres tú. Barcelona: Editorial Planeta, 2011.

MILTON, H. C. A picaresca espanhola e Macunaíma de Mário de


Andrade. Dissertação (Mestrado em Letras). USP: São Paulo, 1986.

TORERO, J. R. Galantes memórias e admiráveis aventuras do


virtuoso Conselheiro Gomes, o Chalaça. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

TROUCHE, A. L. G. América: história e ficção. Niterói: Ed. UFF, 2006.

VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras. Barcelona: Seix


Barral, 2002.
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UM REMAKE DE EL HACEDOR DE BORGES: UM ATO DE Influência e reescrita em Borges e Agustín Mallo: um ato de
APROPRIAÇÃO apropriação
Tatiana da Silva Capaverde O texto Tradição e o talento individual de T.S. Eliot,
UFRR/UFF publicado entre 1919 e 1920 e precursor do texto de Borges,
propõe “uma concepção de poesia como um todo vivo de toda a
Agustín Fernández Mallo publica em 2011 a obra El hacedor poesia que foi escrita desde o começo do mundo” (ELIOT, 1968, p.
(de Borges), Remake que apresenta a mesma ordem e o título de 192). A partir do que ele chama de uma teoria impessoal de poesia,
cada um dos textos publicados em 1960 por Jorge Luis Borges em procura discutir os motivos da valorização da originalidade junto à
El Hacedor, trazendo ao debate noções de autoria e tradição crítica inglesa, a tendência em enaltecer no poeta suas
através da reescrita. Jorge Luis Borges foi o propulsor da discussão características individuais e originais. A partir da supervalorização
sobre reescrita, autoria e influência na América Latina quando em da originalidade, há uma consequente desvalorização daqueles
seu texto Pierre Menard, autor del Quijote (1939) propõe a leitura que procuram manter a tradição apenas através da fidelidade cega
como ato de recriação e em Kafka y sus precursores (1952) propõe e tímida, pois a qualidade estética está em conjugar a repetição e
o entendimento de que cada escritor cria seus precursores, a inovação. Assim, a tradição não pode ser herdada, mas é um
desmontando a relação temporal de sucessão e continuidade esforço de percepção do passado que permanece, isto é, uma
dentro de uma relação diacrônica, mas atribuindo ao processo a forma de afirmar a imortalidade dos antecessores. “Ela envolve,
noção de ruptura e transgressão enquanto relação de influência. em primeiro lugar, o senso histórico” (ELIOT, 1968, p.190), e,
Agustín Mallo, por sua vez, publica o livro Postpoesía: hacia un segundo Eliot, esse
nuevo paradigma (2009) que propõe a conexão entre a literatura senso histórico faz com que um homem não escreva apenas
e as ciências e defende a postpoesía como proposta estética que tendo em vista sua própria geração, e sim com o sentimento
possui, entre outros procedimentos, o apropriacionismo que irá de que toda a literatura da Europa desde Homero até a
executar literariamente no remake da obra de Borges. O ensaio de literatura de seu próprio país nos dias presentes possui uma
existência simultânea e compõe uma ordem global (ELIOT,
Mallo dialoga com a estética de vanguarda e se insere no contexto
1968, p. 190).
de produção em rede da literatura contemporânea. Observando o
trânsito de conceitos e obras entre esses dois autores é possível Para Eliot, “Nenhum poeta, nenhum artista de arte alguma
atualizar o debate sobre a originalidade e a prática da apropriação alcança sozinho o completo significado das coisas. Este se encontra
como ato criativo. na apreciação de suas relações com os poetas e artistas mortos”
(ELIOT, 1968, p.190). Propõe, portanto, que exista uma ordem
ideal que é modificada assim que uma nova obra de arte é
introduzida entre os monumentos já existentes. Essa reordenação
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entre as relações, proporções e valores de cada obra diante do pluralidade dos homens” (BORGES, 1999, p. 98), desconstruindo a
todo é a conformidade entre o velho e o novo, sempre noção de sucessão temporal entre os monumentos literários e os
considerando a possibilidade do passado ser alterado pelo introduzindo em uma rede de influências.
presente e do presente ser dirigido pelo passado. Vale ressaltar o Está também em debate nos dois textos o conceito de
fato de que essas relações comparativas não determinam uma tradição. No caso de Eliot, de acordo com Castro, “No cabe duda
escala de valores, pois “a arte nunca se aprimora, embora o que la idealización conservadora del pasado histórico inglés y
material usado jamais seja o mesmo” (ELIOT, 1968, p.191). No europeo presente en ‘Tradition and the Individual Talent’ es una
entanto, o poeta será comparado aos padrões do passado, em que reacción ideológica motivada por las olas revolucionarias que
as duas coisas serão medidas e avaliadas mutuamente (ELIOT, tanto en la cultura como en la política azotaron la Europa de 1917.”
1968, p. 191). O autor ainda acrescenta que o conhecimento do (2007, p. 08). No texto de Borges, produzido da perspectiva de um
passado deve ser perseguido pelo artista que passará por um escritor periférico, acaba por redefinir o conceito de tradição que
processo de despersonalização e de construção de uma relação se estabelecia a partir do centro europeu quando propõe o de
com o sentido da tradição, uma vez que a criação poética para o precursor, isto é, propõe uma nova forma de entendimento da
autor é uma manifestação impessoal e consciente, em que as relação entre passado e presente que permite que as literaturas
experiências e as ideias devem ser transmutadas em sensações e periféricas reelaborem a tradição a seu modo e a seu tempo. Para
emoções universais. Castro (2007), os dois autores diferem neste ponto: um (falando
Borges se apropria dessa noção de simultaneidade quando do centro – Europa) procura a partir da tradição, valorizar as
em seu texto propõe uma reorientação entre passado e presente inovações que não deixem de se vincularem a um passado
e aproxima o processo de escrita ao de leitura. Como explica presente, e o outro (falando da periferia – América Latina), a partir
Castro, “Borges encuentra en ‘Tradition and the Individual Talent’ da inovação, busca reescrever a tradição. Para o autor
un potencial anti-jerárquico que él desarrolla para justificar la Eliot, por lo tanto, propone fortalecer la continuidad entre
inovación literaria en Argentina, Latinoamérica y, por extensión, la la producción literaria y artística actual y la del pasado, dado
periferia” (2007, p. 08). Em Kafka y sus precursores (1952), a obra que los escritores desarrollaban la ‘conciencia del pasado’ e
de Kafka é considerada singular e sua voz passa a ser reconhecida incorporan esta conciencia en las nuevas obras de arte que
em outros textos. Em todos os textos citados, foi encontrada a producen. Pero Borges argumenta lo opuesto: que las
idiossincrasia de Kafka, porém chama a atenção para o fato de que innovaciones contemporáneas, en lugar de desarrollar lo
se Kafka não tivesse apresentado essa característica, esta não seria que ya existía en el pasado, permiten, en una mirada
percebida nos textos anteriores. Assim, Kafka criou seus retrospectiva, descubrir la diferencia actual en la
precursores, modificando seu passado e seu futuro. De acordo producción literaria del pasado. (p. 13, 2007)
com o autor, “Nessa correlação, não importa a identidade ou a
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Os dois entendimentos de tradição se diferenciam quando que reuniu, em junho de 2007, escritores nascidos por volta da
o primeiro propõe o relacionamento com o passado de forma década de 70 que possuíam em comum a fragmentação,
reverencial, o que resulta no controle da individualidade criativa; aproximações com o mundo pop, midiático e virtual. O autor,
e o segundo o relacionamento de forma irreverente através de portanto, possui como característica a utilização da colagem e da
atos apropriacionistas que transformem a tradição em fonte de reciclagem, a criação de gêneros híbridos e a escrita de enredos
novas obras. É interessante observar como Borges se apropria abertos. Escreveu em 2009 o ensaio Postpoesía:hacia un nuevo
apenas das noções contidas no texto de Eliot que lhe interessam, paradigma, que propõe a conexão entre a literatura e as ciências
fazendo uso delas para a elaboração da sua conceituação. A e defende a postpoesía como proposta estética que possui, entre
convergência entre os dois autores é a inovação no entendimento outros procedimentos, o apropriacionismo que irá executar
das relações entre autores e obras, propondo uma relação que literariamente no livro El hacedor (de Borges), Remake,publicado
conjuga a manutenção e a renovação em um “continuumque se em 2011.
estende desde Homero até a modernidade” (JUNQUEIRA, 1989, p. No ensaio Postpoesía:hacia un nuevo paradigma
16). Fernández Mallo denuncia o estado atual da poesia na Espanha,
Desta forma, a simultaneidade de Eliot, apropriada por apontando seu atraso em relação às outras artes. Portanto, o texto
Borges será, por sua vez, apropriada por Mallo. A literatura desde possui uma abrangência nacional, em que Fernández Malloopõe
a modernidade irá tematizar cada vez mais a autoria e a influência, moderno e pós-moderno (ou pós-moderno tardio). Apresenta a
e utilizar procedimentos de intertextualidade/apropriação como chamada postpoesía em oposição binária à poesia ortodoxa, que
recurso criativo e experimental, evidenciando, criticando e engloba quase a totalidade da poesia espanhola anterior. Aponta
subvertendo os limites de diferentes modelos de criação e que a postpoesía se aproxima de outras manifestações poéticas
recepção das obras. Consequentemente, não são casuais os jogos herdeiras da experimentação das vanguardas (mas sem o
autorais na literatura contemporânea. Um exemplo é o autor horizonte utópico das vanguardas), porém que se diferencia delas
Agustín Fernández Mallo, físico e poeta/novelista de La Coruña. por não se preocupar com os meios técnicos utilizados, mas sim
Escreve ensaios, poesias e narrativas híbridas. É um dos membros com a natureza das metáforas que servem de suporte ao poema.
mais importantes da Geração Nocilla (também chamada Geração A principal questão que impulsiona o ensaio é a
Mutante ou After pop), cuja denominação mais popular deriva do constatação por parte do escritor de que os princípios pós-
título de uma serie de suas novelas que fazem parte de Nocilla modernos presentes nas artes não possuem correlatos na poesia
Project: Nocilla Dream (2006), Nocilla Experience (2008), espanhola contemporânea. Cita o paralelismo estabelecido por
NocillaLab (2009). A Geração Nocilla passou a ser assim Nicanor Parra, que relacionou a poesia escrita até o século XIX com
denominada pela imprensa a partir de um evento organizado pela a física newtoniana; a poesia das vanguardas com a física
Editora Seix-Barral e pela Fundação José Manuel Lara de Sevilla, relativista e quântica do principio do século 20 e não encontra
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correlação entre a ciência pós-moderna (sistemas complexos, sospechoso de impostura, de plagio, de truco conocido, como la
teoria do caos e da catástrofe, fractais, etc) e a poesia espanhola visión de un río cuyas aguas estuvieran detenidas. [...] La idea de
contemporânea (MALLO, 2009, p.18). Essa correlação estaria trabajar hoy una inmortalidad realmente aterra.” (MALLO, 2009,
reestabelecida através da postpoesía ou poesia expandida p. 50) Abre mão da tranquilizadora tradição para buscar a
(inspirado no termo cinema expandido, aquele que usa e se inspira novidade inquietante. Não nega o passado, mas o vê de um ponto
nas novas tecnologias), que possui como princípios a de vista exterior, se servindo dele quando convém, acrescentando
experimentação e a simulação, como práxis a hibridez estética, a elementos contemporâneos. Seu entendimento da tradição pode
construção rizomática e possui como ferramenta a ser resumido no trecho citado abaixo, quando se refere a poesia
heterogeneidade e a instabilidade. Tem como base a Filosofia postpoética:
Pragmática, (“toda verdade es contingente” (MALLO, 2009, p.35)) [...] no lleva una tradición dentro mitificada (modelo
em que o poema é visto de forma holística e possui como método Colesterol), sino que a tradición es exterior a ella (modelo
o não método. Fotosíntesis), y la utiliza o no según convenga a fin de crear
No capítulo [2.1] Tradición como mito apresenta duas su pastiche, pastiche que no es únicamente una mera
formas de relação com a tradição: uma desde o interior e outra intertextualidad, sino una actitud que da como resultado la
desde o exterior. Para o autor a poesia ortodoxa se relaciona com negación de aquella creencia moderna por la cual todo lo
a tradição desde o interior, em um modelo por ele denominado actual agrega un valor sustancial a lo precedente (de ahí
Colesterol, isto é, quando a “tradición trabaja desde el mismo nuestro apropiacionismo y fundición en el presente de
interior de la poesía [...] como una grasa animal que esclerotiza”. objetos poéticos de todas las épocas y tendencias), y
(MALLO, 2009, p. 44). Este é um modelo fechado a qualquer viceversa, la negación de que todo lo antiguo, la tradición,
informação exterior e se retroalimenta apenas com elementos não agrega un valor sustancial a lo actual (de ahí nuestro
renovados, construindo um mito de tradição que se perpetua alejamiento de ‘lo arcaico’ como valor per se). (MALLO,
como algo “que avanza en el tempo reencarnándose en lo mejor 2009, p. 67)
de cada época a fin de, por acumulación, sacralizarse,” (MALLO,
Desta forma defende a simultaneidade de diferentes
2009, p 48) Já a poesia postpoética se relaciona com a tradição
tempos sem construir uma relação de valor entre as obras e os
desde o exterior “operando como elemento transubstanciador de
movimentos, negando qualquer relação hierárquica temporal
los agentes poéticos en juego de igual manera que la luz solar muta
entre diferentes autores e obras. No capítulo 3.2, El Centro de
a la planta (modelo Fotosíntesis)” (MALLO, 2009, p. 44-45). Neste
Tiempos, aborda mais detidamente o apropiacionismo, criticando
modelo, a proposta abandona a busca pela imortalidade,
aqueles que não aceitam esta prática no processo criativo. Afirma
perseguido pelo mito da tradição em todos os tempos, e procura
que este posicionamento pressupõe o entendimento de que haja
mostrar que “Lo pretendidamente inmortal se nos presenta
textos canônicos que serão violentados quando apropriados,
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pautados na concepção de tempo linear, em que o que vem generalizações visando um público não especializado. Apresenta,
depois, distante do poema matriz supostamente original e ideal, como se pode observar, ressonâncias da obra de Borges, entre
possui menor valor estético. Propõe o entendimento de tempo outros teóricos, e, assim como ele, se apropria daquilo que lhe
relativo e utiliza os princípios de um processo físico chamado interessa para construir sua proposta estética e abordar a tradição
Sistema de Referencia Centro de Massas, que será aplicado a e o apropriacionismo, ao seu modo pessoal, em rede com o
diferença temporal entre duas obras. No exemplo do movimento passado, mas sem deixar de evidenciar sua vinculação ao presente
entre partículas, quando se observa o fenômeno fora do sistema, globalizado e midiático.
se percebe que uma partícula se movimenta em direção a outra.
Quando o mesmo fenômeno é percebido de um Centro de Massas Agustín Mallo e os atos de Apropriação
se observa o movimento entre as duas partículas de um ponto El Hacedor (de Borges), Remake às vezes toma elementos e
médio entre elas. Mudando o ponto de vista do exterior para o textos do original, mas outras vezes cria novas histórias
interior do sistema, a sensação criada é de que as duas partículas distanciadas de suas homólogas. A utilização da palavra Remake
se movimentam, mostrando a relatividade do fenômeno. O autor do campo audiovisual por Agustín Fernandéz Mallo no título de seu
transfere essa máxima aplicada ao espaço para o tempo e afirma livro aponta para o processo de criação de uma nova versão, a
que a obra literária original e fixa não precede a nova obra ou vice- reescrita da obra de Borges sob os efeitos midiáticos. A obra de
versa, “sino que la dos se retroalimentan de imágenes y metáforas Mallo percorre um caminho que busca ao mesmo tempo
en un tiempo situado entre ellas, ‘fuera’ del tiempo del reloj estabelecer relações de semelhança e de diferença com a obra de
histórico. A ese punto temporal podríamos denominarlo un Centro Borges. O sentido da obra como tal, isto é, como miscelânea de
de Tiempos bajo el cual las dos obras van la una hacia la otra (como extratos textuais, como construção de identidade autoral, como
antes en el sistema Centro de Masas las dos partículas iban la una afirma Borges ser a proposta de El Hacedor também se observa na
hacia la otra aunque una de ellas estuviera quieta)” (MALLO, 2009, obra remake. Mallo busca através da utilização do mesmo sumario
p, 90). A partir desse descolamento da posição de onde se observa da obra primeira, recriar os temas utilizando diferentes gêneros
o fenômeno, isto é, do sistema de referência, é possível perceber literários e textuais, sejam eles escritos, visuais ou iconográficos.
o tempo como algo relativo, em que as duas obras trocam fluxos Agustín Mallo relata que El Hacedor foi o primeiro livro de
literários sem uma direção temporal privilegiada, como Borges que leu por volta de seus 19 anos. O que chamou sua
anterior/posterior. atenção na obra foi o fato de haver ali o que ele, naquela época,
O ensaio de Agustín Mallo foi muito criticado pela buscava: uma forma de levar a poética existente na ciência e na
construção baseada em comparação binária, uma vez que busca filosofia ao gênero ficcional (MALLO, 2011, p.30). Nos anos
apresentar um novo paradigma estético utilizando o mesmo modo seguintes passou a investigar o que chamou de postpoesía e toda
operacional cartesiano tradicional, além de fazer algumas vez que regressava à obra, lhe eram propostas nova leituras, até
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que se sentiu maduro para começar a reescrever El Hacedor, que reescrito. Mallo utiliza o mesmo texto com pequenas alterações,
“siguiendo la escructura del de Borges, dialogara con él en diferido, como o autor homenageado (já que a obra de Borges é dedicada a
un libro produto de todas esas anotaciones de ideas que el original Leopoldo Lugones e a de Mallo a Borges), o que se pode observar
me proponía pero conservando la estrutura, títulos e ideas del nos últimos parágrafos citados abaixo:
original, como si el libro de Borges fuera la figura de carne y hueso En este punto se deshace mi sueño, como el agua en el
y el mío su deformada imagen en un espejo [...]” (MALLO, 2011, agua. La vasta Biblioteca que me rodea está en la calle
p.31). O primeiro texto reescrito foi o prólogo e entre os anos de México, no en la calle Rodríguez Peña, y usted, Lugones, se
2004 e 2010 recria os outros textos. mató a principios del 38. Mi vanidad y mi nostalgia han
Como afirma Lafon em Poética del Prólogo, os prólogos de armado una escena imposible. Así será (me digo) pero
Borges configuram uma obra em si, já que para o autor “Prologar, mañana yo también habré muerto y se confundirán
señalar, selecionar, reunir, apadrinhar, apoyar, reseñar, editar, nuestros tiempos y la cronología se perderá en un orbe de
dirigir, traducir, tales sonalgunos de los componentes de una símbolos y de algún modo será justo afirmar que yo le he
interminable empresa de puesta en circulación y apropiación de la traído este libro y que usted lo ha aceptado.
literatura.” (p. 09, 1999) É interessante observar que os prólogos J.L.B.
de Borges em nada se diferenciam de seus contos, poemas ou Buenos Aires, 9 de agosto de 1960.
ensaios, possuindo uma estrutura narrativa mais que ilocutória. (BORGES, 1989, p. 08)
“Hay evidentemente una afinidad entre todos los principios que En este punto se deshace mi sueño, como el agua en el
glosa el prólogo, y todos los principios que él mismo constituye (o agua. La vasta Biblioteca que me rodea está en mi
contribuye a constituir): umbral del libro, encuentro con el autor, apartamento, no en la calle México, y usted, Borges, se
descubrimiento de la obra, arranque de la lectura, frontera del murió a mediados de los años 80 del siglo 20, el mismo día
texto, revelación del tema…” (LAFON, p. 12, 1999), porém Borges en que yo tiraba a una hoguera [negra y blanca] mi primer
renova esse paratexto, assim como o epílogo em formato disco de Joy División [blanco y negro], y pocos días después
metaficcional, construindo, um importante veículo de debate da de que Juan Pablo II publicara su encíclica Dominum et
proposta poética presente na obra. Por esse motivo, a comparação Vivificantem. Mi vanidad y mi nostalgia han armado una
dos Prólogos e Epílogos dos dois textos é de especial importância escena imposible. Así será, me digo, pero mañana yo
para uma primeira compreensão da proposta apropriacionista dos también habré muerto y se confundirán nuestros tiempos,
autores. y la cronología se perderá en un orbe de símbolos
O Prólogo do remake dá inicio ao jogo narrativo proposto premodernos y de algún modo será justo afirmar que yo le
pelo título da obra, já que o autor ficcionaliza uma cena na qual he traído este libro y que usted lo ha aceptado.
entrega o manuscrito a Borges, prevenindo-lhe de que se verá ali AFM
P á g i n a | 854

Isla de Mallorca, 20 de diciembre de 2004. das práticas poéticas, ao contrário, segue o modelo fotossíntese,
(MALLO, 2011, p. 09, grifo nosso) que vê na obra clássica uma luz que se transformará em energia
para a alimentação do processo.
Na obra de Borges há a simulação do encontro entre Borges
O Epílogo também apresenta pequenas alterações com
e Lugones e a certeza de que a obra e seus símbolos os unirão
relação ao texto de Borges. Nos dois casos há a tomada de
atemporalmente. Em Mallo o encontro se dá com Borges, em sua
consciência da construção de uma obra autoral e autônoma.
biblioteca particular, acrescentando referências a acontecimentos
Borges descreve seu processo criativo como produto de leituras
da década de 80: discos com capa preto e branco da banda inglesa
filosóficas. Já Mallo, o relata em convivência com atividades
pós-punk Joy Division que teve seu final após o suicídio de seu
rotineiras e repetitivas, em uma evidente dessacralização da
vocalista em 18 de maio de 1980, e publicação da encíclica
escrita literária. Introduz em forma de citação o segundo parágrafo
Dominumet Vivificantem por João Paulo II em 18 de maio de 1986,
do texto de Borges com algumas alterações:
cujo tema era o Espírito Santo na vida da igreja e do mundo. Os
Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo
acréscimos ao texto de Borges apontam para a música e a
largo de los anos puebla un espacio con imágenes de
religião,indicando a multiplicidade de vivências e referências do
provincias, de reinos, de montañas, de bahías, de naves, de
artista contemporâneo.
islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de astros,
É interessante observar que os prólogos como discurso
de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre
paratextual normalmente apresentam a forma autoral ou crítica e
que ese paciente laberinto de líneas traza la imagen de su
possuem como função fazer uma mediação entre a obra e leitor,
cara.
apresentando o eixo central da obra. Neste caso o fazem de forma
J.L.B.
singular, através de um discurso ficcional, justamente apontando
Buenos Aires, 31 de octubre de 1960
que na obra não haverá tema narrativo, mas um procedimento
(BORGES, 1989, p. 130)
que servirá de eixo à miscelânea: o ato apropriacionista na
Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo
constituição da originalidade.
largo de los anos puebla un espacio con imágenes de
No Prólogo de Mallo ficam evidenciados a composição e o
provincias, de reinos, de montañas, de bahías, de naves, de
procedimento que foram defendidos em seu ensaio e serão
islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de astros,
aplicados em toda a obra: composição em rede, com diferentes
conexões entre artes, textos e estilos; relação com a tradição de de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre
forma irreverente e livre para realizar as apropriações que achar que esa especie de laberinto traza la imagen de la huella de
necessário, sem com isso prestar reverencia ou estabelecer Neil Armstrong en la Luna. Y se dice, “pero ¿y a qué huele en
filiação. Sua forma de relacionamento com a tradição não segue la Luna?”.
ao modelo que mitifica o monumento dificultando a emancipação
P á g i n a | 855

La única diferencia entre lo kitsch y lo hermoso es esa Agustín Mallo, por sua vez, narra a historia do mesmo
pregunta. homem que quis descrever o mundo, porém, no momento de sua
AFM morte, percebe que o labirinto de textos forma a imagem de uma
Isla de Mallorca, diciembre de 2010 pegada na Lua, relacionando, paradoxalmente, a descrição de
(MALLO, 2011, p. 169, grifo nosso) mundo à concepção de lugar longínquo e desabitado. Relaciona,
portanto, o conhecido com o desconhecido; o mundo dos homens
Borges narra a historia de um homem que se propõe a
e os outros mundos. A citação do astronauta Neil Armstrong traz
tarefa de descrever o mundo e por fim, antes da morte, acaba por
ao universo metafórico as descobertas científicas, já que foi o
perceber que essas imagens criadas desenham seu rosto. O
primeiro homem a pisar na Lua em 1969. A pegada também é uma
Epílogo de Borges está em consonância com o que ele afirma em
marca, um rastro do caminho percorrido, conquistado, remetendo
seu Ensaio Autobiográfico: “Para minha surpresa, esse livro, que
à transitoriedade e à aventura da escrita. Desse encontro com o
mais acumulei do que escrevi, parece-me minha obra mais pessoal
desconhecido resulta a interrogação bem humorada e irônica:
e, para meu gosto, talvez a melhor” (BORGES; DI GIOVANNI, 2000,
“pero ¿y a qué huele en la Luna?” (MALLO, 2011, p. 169). Através
p. 138). Sua obra o constitui, formando a imagem de seu rosto. Ele
dessa construção textual feita por Agustín Mallo fica evidenciado
afirma ainda que “talvez esse seja o caso de todos os livros; é, sem
sua proposta estética postpoética, em que a experimentação é o
dúvida o caso desse livro em particular” (BORGES; DI GIOVANNI,
principal propulsor criativo, que une em um mesmo procedimento
2000, p. 139). Pode-se ler aqui a conjunção da função de
o experimento investigativo do campo científico e a
representação da arte e o posicionamento social do escritor, isto
experienciação do campo lúdico. E é justamente esse aspecto da
é, o desejo de descrever o mundo, o todo, a unidade; e o produto
curiosidade experiencial que, segundo o autor, diferenciará seu
dessa impossibilidade, a obra de uma vida que passa a constituir o
trabalho do kitsch, estilo imitativo que oferece o efeito de belo e
artista, a pessoa, através da imagem de sua cara, parte do corpo
segundo ECO “imita o efeito da imitação”. (1979, p. 77)
humano que mais marca a individualidade dos seres. Sempre
lembrando que para Borges o sujeito não é uno e completo, mas
Borges e Mallo em Rede
fragmentado, múltiplo e sempre outros. Defende a ideia de que
Os Prólogos e os Epílogos são textos que evidenciam a
um homem pode ser qualquer homem e mais, todos os homens.
proposta estética de cada autor, marcando as aproximações e os
Além disso, o escritor é um individuo em que de forma mais
distanciamentos entre eles, pois é um espaço propicio para a
evidente se percebe seu descentramento, porque está sempre
manifestação da voz autoral uma vez que abre um canal direto de
dividido entre aquele que escreve e aquele que possui vida
comunicação com o leitor. A situação narrativa criada, que permite
anônima e comum. Nesse sentido, de qual dos Borges é a face que
o encontro entre autores mortos e vivos, é apresentada como um
se forma a partir das linhas do labirinto? Ou, qual dos dois escreveu
sonho, e como jogo de possibilidades a obra é apresentada ao
estas páginas?
P á g i n a | 856

leitor. Cada autor apresenta seus pressupostos e sua estética. Nos Fica evidente a identificação que possui com Borges, o que
dois casos, esse autor que fala com o leitor é composto por pelo não o impediu de recriar o texto dentro dos preceitos e estilos de
menos duas vozes, que se posicionam simultaneamente na seu tempo, estabelecendo com seu precursor não uma relação de
posição de escritor/leitor. O Epílogo inicia com uma apresentação reverência, mas de uma apropriação que se estabelece pela
bastante ilocutória e no segundo parágrafo já introduz uma ausência da utopia da transgressão. Mallo, em seu tempo histórico
narração, que será o lugar do fechamento do que cada autor leu a obra de Borges e a pós-produziu. Estamos frente a dois textos
entende que tenha sido o resultado final da obra. distintos que se apresentam em simultaneidade. Borges cria Eliot
Pode-se observar que, assim como Pierre Menardem como seu precursor. De Eliot se apropria da ideia de tradição como
relação a Cervantes, Mallo reescreve o texto de Borges. Em poucos relação entre obras que se dá de forma orgânica, que dialogam
casos palavra por palavra, mas na maioria deles realizará um independentemente de tempos e espaços distantes no interior da
remake. Através da leitura realizada construirá não o El Hacedor, biblioteca. Ignora, no entanto, a subordinação conservadora ao
mas o El Hacedor (de Borges), Remake, buscando reconstruir a senso histórico. Mallo, por sua vez, a partir da ideia de
espontaneidade, a ironia e a proposta apropriacionista da obra. O simultaneidade de Borges, que afirma ser possível modificar o
texto de Agustín Mallo, ao mesmo tempo em que copia a proposta passado e o futuro, aponta para a noção de rede e de tradição
de compor uma miscelânea de textos, composta por diferentes “modelo fotossíntese”, aquela que oxigena através de
gêneros e autorias, reescreve os textos que compõe o livro a seu apropriações livres que não possuem em si bandeira estética ou
modo e estilo. Afirma em entrevista a aproximação que sente pela utópica, mas sim um impulso experimental e irreverente. Constrói,
obra de Borges, já que o autor dessa forma, quando valoriza a arte pop e o cotidiano, não uma
conectaba también con asuntos que siempre me han enciclopédia com obras monumentos, mas um almanaque que
interesado: poner bajo sospecha el concepto de mescla referencias eruditas e conhecimento popular. Além disso,
“originalidade” (Borges siempre afirmo que toda literatura o conceito de tradição em debate rompe com a noção de centro-
son versiones, todo es literatura de segunda mano, él periferia, uma vez que a literatura da América Latina desde o boom
mismo lo versioneó todo: de Homero a la ciencia ficción hispano-americano passou ao “centro”, passou a fazer parte da
seria B de su época), el simulacro (construcción de una tradição literária, irradiando influência para Europa e Estados
realidad automantenida), lo monstruoso (el objeto que no Unidos, o que desconstrói esse binarismo pós-colonial que
está en su propia naturaleza), las redes (histórico-literarias entendia a apropriação como ato subversivo contra o poder
en este caso), el residuo o spam (narrar a través de dominante. Não há mais o entendimento de que a distância
elementos en apariencia residuales, o menores), la geográfica e/ou cultural impulsiona a transgressão da tradição, o
posmodernidad (Borges prefigura el ato se dá de dentro pra fora, na irrupção de um “centro”
posmodernismo).(MALLO, 2013, p. 2)
P á g i n a | 857

desconstruído e questionado, localizado em um mundo BORGES, J. L.; DI GIOVANNI, N. T. Um ensaio autobiográfico. São
globalizado e em redes digitais. Paulo: Globo, 2000.
A leitura e análise dos textos nos apontam que o autor que
mais se dedicou a discutir a temática da originalidade e praticar a CASTRO, J. E. de. De Eliot a Borges: tradición y periferia.
apropriação como ato criativo, também será aquele que será o Iberoamericana, v. VII, n. 26, 2007. p. 7-18.
mais cobiçado objeto de apropriação na contemporaneidade.
Nesta rede dos tempos atuais, que torna possível a simultaneidade ECO, U. A Estrutura do Mau Gosto. In: ___. Apocalípticos e
deaproximações e distanciamentos entre obras e autores, temos Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 69-128.
em contato dois autores muito diferentes, com estilos literários
completamente dissonantes, mas unidos pelo mesmo ato ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: NOSTRAND, A. D.
apropriacionista, já que escrever,desde Borges,“significa (Org.) Antologia de Crítica Literária. Rio de Janeiro: Lidador, 1968.
confessar-se leitor de outros textos e responder a estes por meio p.188-195.
da criação literária. Para o escritor argentino, a inserção de um
indivíduo na tradição pressupõe a abdicação do controle deste JUNQUEIRA, I. Eliot Ensaísta. In: ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Art
sobre sua obra, que se disponibiliza às mais imprevistas Editora, 1989. p. 9-36.
associações” (NAMORATO, 2011, p. 35). Em consonância com o
entendimento de autor leitor proposta pela obra de Borges, que LAFON, M. A Poética del prólogo. Boletín del Centro de Estudios de
terá reverberações na literatura contemporânea, podemos Teoría y Crítica Literaria,n.7, Oct. 1999.
colocar os dois autores e as duas obras em simultaneidade,
tornando possível novas combinação aleatória dos mesmos MALLO, A. F. Postpoesía: hacia un nuevo paradigma. Barcelona:
elementos, que são, portanto, em número infinito de Anagrama, 2009.
possibilidades.
______. El hacedor (de Borges), Remake. Madrid: Alfaguara, 2011.
Referências
BORGES, J. L. El Hacedor. Buenos Aires: Emece, 1989. ______. Motivos para escribir El Hacedor (Borges) Remake.
Biblioteca Virtual Cervantes. Disponível em:
______. Kafka e seus precursores. In: ___. Obras Completas.v. 2. http://www.cervantesvirtual.com/obra/motivos-para-escribir-el-
São Paulo: Globo, 1999. p. 96-98. hacedorde-borges-remake/. Acessado em: 20 de abr de 2013.
P á g i n a | 858

NAMORATO, L. Diálogos Borgianos: Intertextualidade e imaginário


nacional na obra de Jorge Luis Borges e de Antonio Fernando
Borges. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
P á g i n a | 859

LA PERSISTENCIA DEL ORIGEN. SEVERO SARDUY Y EL MÉTODO ambos sentidos no se oponen entre sí, porque para conjurar algo
Valentín Díaz –un espectro, un demonio, un peligro– es preciso ante todo
UBA/UNTREF evocarlo. Se deduce de esto que la alianza entre el genealogista y
el historiador encuentra su sentido propio en esta ‘evocación-
1. Introducción expulsión” (2009, p.116-117). La conjuración sintetiza aquello que
Si algo otorga interés al origen como tarea filosófica es que otorga mayor interés a la arqueología: es el modo (el único modo)
su cara nunca es la misma; y aún: que esa cara es siempre la de sostener la pregunta por el Origen, de permanecer fiel a su
nuestra, devuelta por un espejo inestable en el que es difícil historicidad e, incluso, de poder estar atento a sus rastros.
reconocer los propios gestos. Allí radica, probablemente, el interés Es decir, una vez arruinado el origen, lo más atractivo que
(metodológico, político) siempre renovado de la tarea la tradición arqueológica entrega hoy al pensamiento como tarea
arqueológica. Pero lo que hoy me interesaría subrayar es que los es el despliegue de figuras en las que el origen al tiempo que
postulados más delicados de la arqueología filosófica conducen asume esa ruina, insiste, persiste en la pregunta por lo originario y
menos al abandono del Origen que al interés por su persistencia, de ese modo permanece fiel a una necesidad (no renunciar) y a
menos a su olvido (como problema por fin superado) que a la una filía (la filosofía, pero sobre todo la filología), a un trabajo que,
asunción del origen como trabajo decididamente histórico. tal como Walter Benjamin señaló en 1928, es siempre “imperfecto
Una de las más recientes actualizaciones de esa tradición y sin terminar” (1990, p.28).
se debe a Giorgio Agamben. En uno de sus trabajos El arte, el pensamiento del arte, ocupa en esa tradición un
específicamente metodológicos, Signatura rerum (2008), retoma lugar determinante: no hay, probablemente, ruinología mayor que
la tradición arqueológica, a partir de Kant, para revisar su recorrido la del pensamiento estético, enfrentado, cada vez, a nuevas
y plantear, entre otras cosas, que la arqueología debe fundaciones, a nuevas historias. Y es el Barroco, la historia del
comprenderse como único modo de acceso al presente: “el punto concepto, uno de los territorios privilegiados para dar sentido a esa
en el que […] un futuro alcanzado en el pasado y un pasado discusión. El Barroco, en efecto, hizo del Origen uno de sus
alcanzado en el futuro coinciden por un instante” (AGAMBEN, problemas fundamentales. La incertidumbre etimológica, es decir,
2009, p.137). la multiplicación de hipótesis en torno al origen del nombre, no es
Uno de los primeros señalamientos de Agamben es un sino uno de los espacios en los que cobró visibilidad un problema
subrayado del Foucault de “Nietzsche, le généalogie, l’histoire” de mayor, que remite en última instancia a los modos de concebir la
1971. Había dicho Foucault: “El genealogista tiene necesidad de la historia de lo moderno, pero que parte siempre de la inquietud
historia para conjurar la quimera del origen” (2004, p.23). que guió desde fines del siglo XIX a los historiadores del arte
Agamben señala que en el término conjuración conviven “dos alemanes y austríacos: ¿cómo es posible que el Renacimiento haya
significados opuestos: evocar y expeler”, pero, agrega, “quizás
P á g i n a | 860

conducido al Barroco? ¿Cómo es posible que la estabilidad y la 2. Las formas del origen en Severo Sarduy
armonía se haya desmoronado de un modo tan dramático? Las formas del origen en la obra teórica y poética de Severo
La pregunta que en este caso me gustaría plantear es en Sarduy se organizan en torno a una imagen fundamental: Big Bang.
qué sentido el Barroco del siglo XX –concebido fundamentalmente Cuando en 1974 Saduy publica el que será su libro más importante,
como despliegue teórico– puede ser convocado o integrado a la Barroco, hace crecer la apuesta de sus trabajos anteriores2 a partir
tradición de la arqueología filosófica y cuáles serían los efectos de de una articulación inesperada entre arte y Cosmología. Lo que
esa integración. Sarduy se propone es construir una historia ¿del arte y la ciencia?
El postulado que me propongo sostener es que el Barroco ¿de la imaginación? segmentada en bloques históricos definidos
del siglo XX (una de cuyas inflexiones latinoamericanas según la episteme foucaultiana, cuyo punto de referencia es el
significativas, en la que me detendré, es el Neobarroco de Severo Barroco. De ese modo, la historia (de las “maquetas del universo”)
Sarduy) puede concebirse como un pensamiento arqueológico y se reduce a tres tiempos (antes del Barroco, el Barroco, después
define una de las formas específicas en que América Latina del Barroco). El Barroco, por lo tanto, funciona como “origen” de
participa de esa tradición. Esa participación, lejos de ser una mera la modernidad –y es el único modo en que se vuelve posible, para
incorporación, supone uno de los momentos en que esa tradición Sarduy, concebir otro presente. Ese presente (el siglo XX), es
adquiere mayor vitalidad (es una salida para la fatiga y “el caos espacio de un nuevo estallido (aunque es siempre el mismo, el
europeo”), pues en torno al Barroco, la llamada arqueología Primero, que cobra rostro de nuevo), el Big Bang y por lo tanto es
funciona como despliegue de una crítica del origen que asume el contexto de aparición de un nuevo Barroco.
quizás más decididamente que nunca su persistencia, su Es decir, en el presente de la ciencia, conviven dos teorías
resistencia (como ruina) y su contemporaneidad. En el caso de antagónicas: Big Bang (el universo está en expansión), Steady State
Sarduy, es la Cosmología (y a partir de allí, el desarrollo (el Universo es estable e inmutable). Es la primera la que, por
metodológico llamado “Neobarroco”) el modo de llevar esa diversas razones, seduce a Sarduy, en tanto relato del Origen
persistencia del Origen a una escala máxima. Allí el Barroco (como (perdido), nueva inestabilidad y fundamento del Neobarroco. El
experiencia histórica permanentemente reinventada, como Big Bang es definido por Sarduy como “indicio”, “vestigio”,
tradición del pensamiento estético y como método) es aquello que “vestigio del ‘origen’”, “rayo fósil extremadamente débil pero
a su vez funciona como “origen” de la posibilidad de instaurar una constante y que, a diferencia de todos los otros rayos conocidos,
perspectiva crítica sobre el origen.1 no parece proceder de ninguna fuente localizable” (SARDUY, 1999,
p.1246). Es decir, el Big Bang es el origen que falta en su lugar y

1 2
Avanzo sobre planteos propios (Díaz, 2010, 2011) a propósito del alcance Escrito sobre un cuerpo (1969) y el lanzamiento de la noción de neobarroco,
metodológico del Neobarroco de Severo Sarduy. “El barroco y el neobarroco” de 1972. Cfr. Sarduy 2011, con Apostillas por
Valentín Díaz.
P á g i n a | 861

que, sin embargo, puede ser alcanzado, tocado. El origen nunca de las galaxias, del vacío inmenso
termina de suceder (está del lado de la historia): es luz y ruido, es hoy son luz fósil. Paradojas bellas
decir, una presencia material siempre actual. El origen es el arte. que anuncian por venir lo transcurrido
Por ello, desde la perspectiva de Sarduy, el arte es un y postulan pasado lo futuro.
espacio siempre arcaico, cuya potencialidad es oír (o hacer Universo del pensamiento puro:
audible), ver (o hacer visible) la dinámica del Universo. El arte no un espacio que fluye como un río
representa esa dinámica; la toca (o es tocada por ella), porque está y un tiempo sin presente, opaco y frío.
construido con los materiales (de edad inmemorial) que dieron El tiempo de la espera y el olvido (SARDY, 1999, p.222).
origen a todo lo conocido.
Y esa potencialidad del arte permite concebir una obra
3. Agamben
definida del siguiente modo:
obra no centrada: de todas partes, sin emisor identificable Cuando Giorgio Agamben, en Signatura rerum vuelve
ni privilegiado, nos llega su irradiación material, el vestigio metodológicamente sobre el problema de la arqueología filosófica
arqueológico de su estallido inicial, comienzo de la para insistir sobre su vigencia, convoca, entre otras imágenes, la
expansión de signos, vibración fonética constante e misma que había servido a Severo Sarduy para fundar un campo
isotrópica, rumor de lengua de fondo: frote uniforme de completo de indagación, el Big Bang. Escribe Agamben:
consonantes, ondulación abierta de vocales (SARDUY, 1999, La arché hacia la que retrocede la arqueología no debe
p.1246). entenderse en modo alguno como un dato situable en la
cronología (ni siquiera en una larga línea de tipo
Esa obra será la del propio Sarduy, pero será también la de una prehistórico); ésta es más bien una fuerza operante en la
tradición (el Barroco/Neobarroco) cuya legibilidad se define a historia […] así como el big bang, que se supone dio origen
partir del establecimiento de un método. El Neobarroco es, antes al universo, es algo que continúa enviando hacia nosotros
que nada, un método. Claro que con esos materiales Sarduy su radiación fósil. Pero a diferencia del big bang, que los
también escribió versos, pero en ellos (como en este soneto) los astrofísicos pretenden datar –si bien en términos de
materiales son los mismos con los que escribió su teoría: millones de años--, la arché no es un dato o una sustancia,
sino más bien un campo de corrientes históricas bipolares,
Que se quede el infinito sin estrellas tensionadas entre la antropogénesis y la historia, entre la
que la curva del tiempo se enderece emergencia y el devenir, entre un archipasado y el presente.
y pierda su fulgor, cuando se mece Y como tal –en la medida en que, como la antropogénesis,
un planeta en su abismo y en las huellas la arché es algo que se supone necesariamente acontecido,
pero que no puede ser hipostasiado en un hecho dentro de
del estallido primordial. Aquellas
la cronología--, sólo puede garantizar la inteligibilidad de los
noticias recibidas del comienzo
P á g i n a | 862

fenómenos históricos, “salvarlos” arqueológicamente en un que: “el origen siempre está antes que la caída, antes que el
futuro anterior en la comprensión, no de un origen –en todo cuerpo, antes que el mundo y el tiempo; está del lado de los dioses,
caso inverificable--, sino de su historia, a la vez finita e y al narrarlo siempre se canta una teogonía” (2004, p.20).
imposible de totalizar (AGAMBEN, 2009, p.151). Uno de los efectos fundamentales de esa distinción –tal
El matiz que Agamben introduce no invalida la correspondencia (él como se volvió evidente con el paso del tiempo– fue la exclusión
mismo señala lo inconcebible de la unidad “millones de años”) y de Walter Benjamin de la tradición arqueológica, en la medida en
define una forma de contemporaneidad con Sarduy que no es la que, por ejemplo, su vindicación del concepto de Ursprung o su
única. En efecto, esta coincidencia en torno a la imagen elegida invocación de la Caída lo hacían extraño a esa tradición. Esa
(Big Bang) sintetiza una serie de continuidades metodológicas que exclusión, por cierto, resulta comprensible por diferentes razones
merecen destacarse, cuyos puntos de mayor intensidad pueden (para comenzar, la recepción siempre tardía de la obra de
establecerse a partir de una articulación entre la noción sarduyana Benjamin –en Foucault, en efecto, Benjamin no ocupa nunca un
de retombée y las agambenianas de “paradigma” o “sistema lugar relevante), pero, en última instancia, remite a la distancia
analógico bipolar”. En ambos casos, por diferentes razones, todo radical que separa la concepción histórica benjaminiana del eterno
fenómeno es el Origen. retorno nietzscheano.
Ahora bien, una de las marcas distintivas de las inflexiones
4. La Historia del arte, la persistencia del origen y el Barroco recientes de la tradición arqueológica es el abandono de esa
A partir de este punto, vale la pena volver sobre el texto negatividad radical con respecto al origen, a partir de (o gracias a)
clave de Foucault de 1971 y sobre las derivas de esas los esfuerzos que, por ejemplo, realiza Agamben, de articular esa
formulaciones en el campo de la historia del arte. tradición con el legado benjaminiano. Pero es sobre todo en el
Los esfuerzos de Foucault en Nietzsche, la genealogía, la espacio del arte (e incluso de la Historia del arte), donde se vuelve
historia por realizar una separación tajante entre el uso más visible esta necesidad nueva de la arqueología. En efecto,
nietzscheano de Ursprung y el de Herkunft, o Entstehung, o Georges Didi-Huberman también empeñado en la incorporación
Geburt, 3 responden, probablemente, a las necesidades de un de Benjamin (además de Aby Warburg) al corpus arqueológico,
momento radicalmente negativo de la arqueología, entendida hace de la arqueología otra cosa que un mero señalamiento de
como aquello que, simplemente, “se opone a la búsqueda del discontinuidades: la historia, así, se puebla de supervivencias.
origen” (FOCUCAULT, 2004, p.13). En ese marco, Foucault plantea,
para sostener su rechazo a la noción de Ursprung, por ejemplo,

3
“En Nietzsche encontramos dos usos de la palabra Ursprung. Uno no está rechaza, al menos en ciertas ocasiones, la búsqueda del origen (Ursprung)?”
fijado […] El otro empleo sí está fijado. A veces, en efecto, Nietzsche lo sitúa en (Foucault, 1971: 13-17). “Términos como Entstehung o Herkunft señalan mejor
oposición a otro término [Herkunft] […] ¿Por qué Nietzsche genealogista que Ursprung el objeto propio de la genealogía” (Foucault, 1971: 24).
P á g i n a | 863

Por ello Didi-Huberman, al enfrentar el problema del origen del contexto en el que Benjamin postula su concepción de origen:
no puede sino volver sobre el texto de Foucault de 1971 para el trabajo sobre el Barroco. Si bien el problemático Prefacio
realizar una acusación grave: epistemológico-crítico de Origen del drama barroco alemán es un
Foucault radicaliza la discontinuidad (el contra-tiempo) a texto que retoma postulados previos que se remontan, al menos,
riesgo de perder de vista la memoria (la repetición) […] Y a 1916, resulta sin embargo cuanto menos discutible perder de
todo su rechazo del concepto de origen [Ursprung] va en vista que es el Barroco como problema teórico aquello que
ese sentido: recusar la historia como búsqueda del “lugar de conduce a Benjamin a plantear su concepción del origen:
la verdad”, ese lugar originario donde se diría la “esencia El origen [Ursprung], aún siendo una categoría plenamente
exacta de la cosa”. histórica, no tiene nada que ver con la génesis [Entstehung].
Además de que se comprueba filológicamente inexacto, ese Por origen no se entiende el llegar a ser de lo que ha surgido,
rechazo del Ursprung nietzscheano presenta el sino lo que está surgiendo del llegar a ser y del pasar. El
inconveniente de des-dialectizar la noción de síntoma. origen se localiza en el río del devenir [Fluß des Werdens]
Foucault enfrenta sin matices el modelo de las “raíces”, que como un remolino y engulle en su ritmo el material relativo
se supone continuo, a la voluntad genealógica de “hacer a la génesis. Lo originario no se da nunca a conocer en el
aparecer las discontinuidades”. No imagina que las raíces modo de existencia bruto y manifiesto de lo fáctico, y su
pueden ser múltiples, entrelazadas, fibrosas, reticulares, ritmo se revela solamente a un enfoque doble que lo
rizomáticas, aquí visibles y allí subterráneas, aquí fosilizadas reconoce como restauración, como rehabilitación, por un
y allí en constante germinación… (Didi-Huberman, 2002, lado, y justamente debido a ello, como algo imperfecto y sin
p.175). terminar, por otro (BENJAMIN, 1990, p.28).
De este modo, Didi-Huberman llega inevitablemente a Esta formulación benjaminiana debe leerse como uno de los
Benjamin: “El Ursprung mismo –Walter Benjamin hizo, desde momentos en que, con mayor nitidez, la persistencia del origen
1928, su teoría– supone la discontinuidad y el carácter (una persistencia caída, arruinada) une sus destinos a los del
anadiómeno, apareciente-desapareciente, de los filamentos Barroco. Pero es nuevamente América Latina el espacio que
genealógicos (Didi-Huberman, 2002, pp.175-176). permanece más fiel a ese legado. El destino de la arqueología, en
Ahora bien, lo que a su vez Didi-Huberman excluye en más efecto, es latinoamericano.4
de una oportunidad (Ce que nous voyons, ce que nous regarde, En este sentido, fenómenos como la insistencia del
1992; Devant le temps, 2000 y L’image survivante, 2002) de su presente en la vigencia de Aby Warburg, en la necesidad de seguir
lectura del Ursprung benjaminiano es la consideración específica invocando ese nombre, deben considerarse, desde América Latina,
4
Raúl Antelo ha insistido en diversas oportunidades en esta articulación. Al
menos desde 1999, cuando, en relación con Girondo y Henríquez Ureña, postuló
la existencia de una “arqueografía latinoamericana” (ANTELO, 1999, p.XXX).
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como una oportunidad para volver a algunos nombres clave de anacronismo metodológico) es la penetración de la imagen en la
nuestra estética. Me refiero, por ejemplo, a José Lezama Lima. 5 naturaleza.
Quizás la renovada arqueología haga posible volver a Lezama y Por ello si en Sarduy hay un método, ese método sólo es
otorgar a su pensamiento un lugar más preciso.6 Así, cuando Didi- posible a partir del establecimiento de un tiempo (el presente),
Huberman analiza el destino del pensamiento estético concebido como “Era Lezama”, uno de cuyos rasgos
alemán/vienés luego de la Segunda Guerra mundial, plantea que metodológicos fundamentales es la capacidad de crear o buscar
“la Segunda Guerra mundial quebró este movimiento, pero […] la Eras en las que la imago se impuso como historia. Ese método,
posguerra enterró su memoria” (DIDI-HUBERMAN, 2008, p.76), en cuyo agente es el Sujeto metafórico, es capaz de crear enlaces que
la medida en que primero el nazismo y luego la reterritorialización vuelvan visible la dinámica de las imágenes, a partir de
forzosa impuesta por el mundo anglosajón supuso una depuración “causalidades retrospectivas” (lo que en Sarduy será retombée, lo
de ese vocabulario.7 Pero para trazar la historia completa de esa que hoy es “anacronismo”).
tradición y establecer otras continuidades de esa tradición Si una de las variables que debe ser subrayada en estas
aparentemente sin herencia, es necesario volver la mirada a uno continuidades es la variable regional o continental es porque lo
de los grandes espacios reprimidos de la modernidad, América que está en juego es no sólo una delimitación menos excluyente
Latina y oír a Lezama Lima, el auténtico contemporáneo del de una tradición de pensamiento, sino, sobre todo, el
anacronismo de Warburg (supervivencia), 8 y de la mirada establecimiento de América (incluidos los EEUU) como auténtica
originaria de Benjamin. Lezama había postulado, por ejemplo, que salida para el pensamiento. Y todo se remonta, quizás, a enero de
el lugar del origen (perdido) es ocupado por la Imagen y que la 1957, a las palabras finales de La expresión americana, a ese
sobrenaturaleza (el terreno de las eras imaginarias, todo un señalamiento del lugar (del destino) americano como “espacio

5
Otro caso, no menos significativo, es el de Haroldo de Campos. brotan de su propio repertorio imaginario, esta dinastía de imágenes. Para él se
6
Tal como propone Horacio González, la obra de Lezama debe leerse como una trata del “hilado que le presta la imagen a la historia”, y de allí surgen hechos
“teoría latinoamericana del conocimiento y la imaginación” (GONZÁLEZ, 2014, dispares pero hipostasiados en el relato, bien que agrupados –por ejemplo–
p.12). bajo el signo de la ‘era carolingia’, de índole teocrática, favorecedora de
7
“al renunciar a su lengua, los historiadores del arte de la Europa herida ‘prodigios y de islas de maravillas, de un causalismo obliterado y simplón’. Y así
terminaron por renunciar a su pensamiento teórico” (DIDI-HUBERMAN, 2008, desfilan las ‘eras de la imagen’ en Lezama, ese contrapunto animista cuyos
p.77). enlaces son ofrecidos por el sujeto metafórico a la manera de lo súbito: tal hilado
8
“Es probable que Lezama no haya leído a Warburg, frecuentado con mayor es una sorpresa. Y otra definición, entonces, de lo que sería la sorpresa: ‘una
intensidad en nuestros países a partir de los años ’60, pero la vinculación es suerte de causalidad retrospectiva’. O sino: análogos mnemónicos” (GONZÁLEZ,
evidente, precisamente a través de Curtius […] El autor de Paradiso trabaja con 2014, pp.10-11).
estas mismas orientaciones […], sólo que denomina con nombres propios, que
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gnóstico”. Escribe Lezama: “América instaura una afirmación y una DÍAZ, V. Severo Sarduy y el método neobarroco. Confluenze.
salida al caos europeo” (2001, p.180). Y agrega: Rivista di Studi Iberoamericani, Bologna, v. 2, n. 1, mayo, 2010.
En un escenario muy poblado como el de Europa, en los
años de la contrarreforma, ofrecemos con la conquista y la ______. Apostillas. In: SARDUY, S. El barroco y el neobarroco.
colonización, una salida al caos europeo, que comenzaba a Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2011.
desangrarse. Mientras el barroco europeo se convertía en
un inerte juego de formas, entre nosotros el señor barroco
DIDI-HUBERMAN, G. Lo que vemos, lo que nos mira. Buenos Aires:
domina su paisaje y regala otra solución cuando la
Manantial, 2010.
escenografía occidental tendía a trasudar escayolada.
Cuando en el romanticismo europeo, alguien exclamaba,
escribo, si no con sangre, con tinta roja en el tintero, ______. Ante el tiempo. Historia del arte y anacronismo de las
ofrecemos el hecho de una nueva integración surgiendo de imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008.
la imago de la ausencia. Y cuando el lenguaje decae,
ofrecemos la dionisíaca guitarra de Aniceto el Gallo y el ______. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes
fiesteo cenital en la rica pinta idiomática de José Martí. Y selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002.
cuando, por último, frente al glauco frío de las junturas
minervinas, o la cólera del viejo Pan anclada en el instante SARDUY, S. Obras completas. Edición crítica de Gustavo Guerrero
de su frenesí, ofrecemos, en nuestras selvas, el turbión del y François Whal. 2 vols. Madrid/ Barcelona/Lisboa/París/
espíritu, que de nuevo riza las aguas y se deja distribuir
México/Buenos Aires/São Paulo/Lima/Guatemala/San José, ALLCA
apaciblemente por el espacio gnóstico, por una naturaleza
Archivos /Sudamericana, 1999.
que interpreta y reconoce, que prefigura y añora (2001,
p.181-182).
______. El barroco y el neobarroco, con Apostillas por Valentín
Díaz. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2011.
Referencias
AGAMBEN, G. Signatura rerum. Sobre el método. Buenos Aires: FOUCAULT, M. Nietzsche, la genealogía, la historia. Valencia: Pre-
Adriana Hidalgo, 2009. Textos, 2004.

ANTELO, R. Introducción del Coordinador. In: GIRONDO, O. Poesía GONZÁLEZ, H. Lezama Lima: la transmutación de la lengua como
completa. Madrid/Paris: ALLCA/Archivos, 1999. mito. In: LEZAMA LIMA, J. Ensayos barrocos. Imagen y figuras en
América Latina. Buenos Aires: Colihue, 2014.
BENJAMIN, W. Origen del drama barroco alemán. Madrid: Taurus, 1990.
P á g i n a | 866

LEZAMA LIMA, J. La expresión americana. México: FCE, 2001.


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EL COLOQUIO DE LOS PERROS - BERGANZA E O OFICIAL DE Peralta se dispõe a ler o relato, e assim o Coloquio se converte em
JUSTIÇA: UM POSSÍVEL ENTREMEZ uma narrativa surpreendente, no instante em que seus
Vânia Pilar Chacon Espindola protagonistas, Berganza 1 y Cipión 2 , decidem contar suas
USP reminiscências. Berganza inicia a historia de sua vida, a partir de
seu nascimento no matadouro de Sevilha.
Algumas composições escritas na Espanha dos séculos XVI Após passar por alguns amos e por muitas peripécias, o
e XVII foram marcadas por sua natureza cômica, em função de mastim é encontrado por um oficial de justiça que o toma como
retratarem práticas, costumes e vícios da sociedade do período, "perro de ayuda". O episódio começa no instante em que Berganza
como é o caso da novela exemplar: El Coloquio de los Perros, de descreve seu novo amo, sua amizade com o escrivão, a união ilícita
Miguel de Cervantes. que sustentava com a prostituta Colindres, sem mencionar os
Cabe observar que o Coloquio é a única novela da coleção negócios que mantinha com os rufiões da cidade.
que apresenta animais como protagonistas, sem contar que tem Assim, por entender que o episódio se assemelha a um
seu início no final da penúltima das novelas exemplares: El entremez nossa intenção está em estabelecer algumas analogias
casamiento engañoso, no momento em que seu protagonista o entre essa passagem da novela com essa breve encenação
alferes Campuzano encontrava-se no Hospital da Ressurreição burlesca introduzida nos intervalos das peças teatrais nos séculos
acometido de um ataque de sífilis, fruto de seu falso casamento XVI e XVII. Por esse motivo, a princípio, cabe um maior
com Estefanía. Em uma noite de delírio o alferes escuta um aprofundamento a respeito desse gênero tido como breve nesse
diálogo. Com muita incredulidade nota que aqueles que período, cuja autoria nem sempre era assumida pelos seus
dialogavam não eram outros senão os dois cães de guarda do compositores (ASENSIO, 1973, p.171), apesar de que Cervantes
hospital, cuja matéria decide transcrever ipsis litteris, surgindo não só os reconhecia como os intitulava: "hijos legítimos de su
assim El coloquio de los perros ou Novela y coloquio que pasó entre ingenio". O autor publica todos os seus Ocho entremeses nuevos
Cipión y Berganza. Após sair do hospital, Campuzano se encontra nunca representados no ano de 1615, em Madri, a fim de que "se
com seu amigo o licenciado Peralta que o leva para sua pousada e vea de espacio lo que pasa de prisa". (p.171)
toma conhecimento do incrível evento. Mesmo sem acreditar,

1
O nome Berganza foi relacionado tanto com Cervantes (narrador), quanto com sua obra De Re Publica composta em (54 – 51 a. C.), O senador narra que Cipião
bergante (salteador y en castellan de la época, picarón, sinvergüenza y de malas Emiliano encontra com o rei Massinissa, amigo da família e este chora ao
costumbres) Cipión: Cipión con Scipión (el crítico) extraído da edição: recordar os feitos de seu avô, Cipião o Africano. Durante a noite, Cipião Emiliano
CERVANTES, Miguel de El Coloquio de os Perros in Novelas Ejemplares, Ed. sonha com o avô que o aconselha a percorrer o caminho da virtude e da honra,
Crítica, Barcelona, 2005. sem valorizar a fama: "Ten valor y rechaza el miedo, oh Scipio;[...] cultiva la
2
Cipión: Pode-se relacionar a discrição e a prudência de Cipión com as justicia y la piedad [...] disponível em: http://smejuto.blogspot.com/2010/01/el-
características de Cipião Emiliano, personagem do relato de Marco T. Cícero em sueno-de-escipion-marco-tulio.html.acesso em 07/10/2013.
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No entanto, o que quis dizer Cervantes com essa afirmação: o entremez instituía por meio de suas representações a variedade
"para que se vea de espacio lo que pasa de prisa"? Vale recordar que tanto divertia e alegrava o público. Além disso, por não
que essa breve composição teve sua entrada no cânone teatral por estabelecer quaisquer pretensões morais, essa pequena peça
intermédio de Lope de Rueda, 3 autor admirado por Cervantes teatral não tinha outro alvo senão o deleite. (ASENSIO, 1973,
desde sua mocidade. Vale a pena destacar que Eugenio Asensio, p.173)
em seu livro Itinerário del entremés (1971), dedicou um primoroso Cabe acrescentar, segundo os estudos de Nicholas
trabalho sobre o gênero, sendo que algumas características Spadaccini, que essas obras abordavam temas relacionados: ao
aparecem com frequência em seus estudos críticos, dentre elas matrimônio, linhagem, dinheiro, a questão da honra, valores,
destacaria as relações do entremez com a sociedade, sua fala e loucura, generosidade, engano e desengano, introduzidos por
costumes ao descrever tipos e ambientes, oferecendo um meio de cenas cômicas ou de cunho satírico, embora Cervantes
repertório de temas, personagens e feitos risíveis. não institui em seus entremezes a corrosão típica ao estilo de
"El entremés constituye un tipo teatral fijado por Lope de Quevedo, mas uma linguagem própria "de las figuras que en ellos
Rueda que se mueve entre dos polos: el uno la pintura de la se introducen", (CERVANTES, 1989, p. 15) com um exemplo
sociedad contemporánea con su habla y costumbres; la proveitoso relacionado à conduta do homem como indivíduo
literatura narrativa, descriptiva o dramática. De la literatura dentro da sociedade. Ademais, para Asensio, os entremezes
oral o escrita, es decir, de la facecia, la acción celestinesca,
cervantinos tinham como palco as cidades espanholas como Madri
la novela picaresca, la fantasía satírica, la descripción de
e, no caso dessa passagem do Coloquio, Sevilha, por onde
tipos y ambientes, toma sobre todo un repertorio de
asuntos, personajes, gracejos, atmosfera. De la comedia se transitavam personagens baixos, pertencentes à plebe, cujo
apropia además de un almacén de asuntos, inspiraciones y objetivo estava em promover o riso, a alegria sem freio, não
modelos de forma y estilo." (ASENSIO, 1971, p. 25) atendendo aos meios para consegui-la seja mediante recursos
finos, seja através de golpes baixos de comicidade. (ASENSIO,
Nessa configuração, conforme os estudos de Eugenio
1973, p. 173)
Asensio, essas peças eram protagonizadas por personagens de
Além disso, conforme o pesquisador, nesse pequeno
baixa condição social, apresentando cenas de caráter cômico, sem
gênero teatral a sociedade ri de suas convenções e de seus valores
instituírem qualquer relação com a comédia principal, pois ao
mais queridos, no momento em que os percebe representados por
introduzirem cenas jocosas sem interrupções acabavam se
separando do contexto. Assim, com um discurso breve e divertido
3
O primeiro exemplo de companhia ambulante ou teatro itinerante tem sua primeiros austrias. Cervantes o referenda de maneira elogiosa em sua obra:
origem através da atividade do dramaturgo e poeta cômico, o grego Tepis de Ocho comedias y ocho entremeses nunca representados (1615). extraído em:
Icaria, século VI A.C. O segundo exemplo foi protagonizado pela companhia de http://es.wikipedia.org/wiki/Teatro_itinerante. acesso em 20/02/2014.
Lope de Rueda Navarro (natural de Toledo), entre 1540 e 1565 na Espanha dos
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um desfile de figuras que se satisfazem por introduzirem normas tranquila e reflexiva sobre essas peças, porém como discursos
sociais de maneira invertida. ( p. 174) escritos, cuja leitura implica, mais que um passatempo, observar a
Paralelamente para Jesús G Maestro a comicidade exibida representação das condutas do homem como indivíduo e como ser
nos entremezes de Cervantes se constitui através de três aspectos: social marginalizado, levando em conta suas limitações
o primeiro nem tanto pela ação, mas por meio da linguagem econômicas, estamentais, intelectuais. (CERVANTES, 1989)
utilizada. Por isso, as personagens faziam uso de um discurso Vale salientar que Cervantes, conforme o pesquisador,
condicionado ao estamento ao qual pertenciam. O segundo estabelece em seus entremezes uma espécie de diálogo com as
aspecto diz repeito ao dinamismo ou brevidade, pois as situações Belas Letras de seu tempo, inclusive com sua própria obra. Um
ridículas e grotescas eram introduzidas com certa instantaneidade. exemplo disso pode ser verificado em Dom Quixote, no episódio
Por fim, tem-se a pantomima ou lugar onde os signos verbais são dos duques, cuja teatralidade na opinião de Maria Augusta C.
levados ao extremo juntamente com a expressão gestual, Vieira será responsável por todas as ações transcorrerem "[...] num
vestuário, como forma de codificação das personagens. Nesse palco que exige a máscara e onde cada um desempenha seu papel
sentido, segundo o pesquisador, a censura expressa nos discursos como se fosse outro." (VIEIRA, 1998, p. 106). Para a pesquisadora,
tornava-se mais tolerável por intermédio das burlas, ao contrário o episódio retrata o momento em que Dom Quixote preocupa-se
de fazer uso das verdades, pois a brincadeira promove com a aparência, a imagem, a representação que faz de si¸
consequências cômicas muito mais insignificantes, mesmo porque considerando a recepção e o reconhecimento oferecidos por esses
"cuando la comedia es posible, la realidad es inevitable." (González nobres¸ embora todo esse teatro caminhe direcionado em "virar
Maestro, 2012, p.530) pelo avesso os matizes mais recônditos do personagem". (p. 107)
Nesse aspecto, para González Maestro nos entremezes De maneira idêntica, ao que concerne ao referido episódio
cervantinos pode-se observar que o autor ridiculariza um poder da novela exemplar El Coloquio de los perros, tornam-se eminentes
social e institucional, não querendo nem seduzir, nem vencer, mas determinadas características teatrais, até mesmo porque
simplesmente promover o riso, seja da perspectiva moral da Berganza assume uma posição de ator e espectador desse possível
Espanha aurissecular, seja por intermédio da intolerância entremez, à medida que narra suas reminiscências. Nesse aspecto,
institucionalmente legitimada de um mundo que lhe coube viver. tanto os personagens quanto o espaço onde será apresentada a
(p. 526) possível peça começam a ser delineados; a principio temos: o
Logo, diante dos estudos expostos, o que se pode entender oficial de justiça, o escrivão, os beleguins, as duas prostitutas, o
dessa frase "para que se vea de espacio lo que pasa de prisa", é marinheiro estrangeiro, tendo como ambiente um quarto de
que Cervantes, segundo Spadaccini, nos comentários preliminares pensão.
de seus Entremeses, por não conseguir ver seus entremezes Dessa forma, por meio da descrição de personagens
representados, dirigi-se ao leitor e o convida a fazer uma leitura pertencentes aos estamentos mais baixos, Berganza determina de
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que maneira esses tipos viciosos se apresentam e como as relações grupo de pessoas com vícios que começam a ser evidenciados e
que estabelecem entre si se articulam no interior da novela. Um censurados. Vícios que se transformam em deformidades
exemplo disso pode ser verificado por intermédio da descrição das constituídas por imagens verossímeis, cujo propósito está em
práticas habituais das duas prostitutas: realçar as vilezas, em especial, do oficial de justiça, seja por meio
"Berganza. Éstas les servían de red y de anzuelo para pescar de seu caráter corrupto, seja pela maneira como suas práticas
en seco en esta forma: vestíanse de suerte que por la pinta aliciam todos ao seu redor.
descubrían la figura, y a tiro de arcabuz mostraban ser A paródia das figuras em cena, temas e motivos terá como
damas de la vida libre; andaban siempre a caza de alvo a corrupção presente nos meios públicos. Nesse aspecto,
estranjeros, y cuando llegaba la vendeja a Cáliz y a Sevilla,
pode-se verificar que o tratamento cômico reservado tanto ao
llegaba la huella de su ganancia, no quedando bretón con
assunto quanto às personagens estará restrito ao estamento a que
quien no embistiesen, y, cayendo el grasiento con alguna de
esas limpias, avisaban al alguacil y al escribano adónde y a pertencem, ou seja, à plebe, pois como observa Lope de Vega em
qué posada iban, y en estando juntos les daban asalto y los sua Arte nuevo de hacer comedias "porque entremés de rey jamás
prendían por amancebados; pero nunca los llevaban a la se há visto." (CERVANTES, 1989, p. 15)
cárcel, a causa que los estranjeros siempre redimían la Para Kenneth R. Scholberg, em seus estudos atuais
vejación con dinero." (CERVANTES, 2005, p.683-684). contidos na obra Algunos aspectos de la sátira en el Siglo XVI
(1979):
De acordo com o parágrafo acima, o que se pode notar
“El satirizar a miembros de diferentes profesiones y clases
pela descrição do protagonista é a linguagem utilizada nessa
sociales gozó de considerable popularidad en la Edad Media
pequena cena da peça. Inicialmente, Berganza não somente faz y siguió en el siglo XVI, aunque con ciertos cambios de
uso de uma metáfora como:"pescar en seco", para descrever o énfasis. [...] Los escribanos y mercaderes son blancos de
momento da abordagem e sedução das duas prostitutas, como cortos ataques [...](SCHOLBERG, 1979, p.30)
também introduz termos em germania,4 ou seja, a fala própria de
Conforme o pesquisador, ao citar as queixas do
ladrões e rufiões daquele tempo, tais como: "por la pinta
personagem Micilo en El Crotalón, contra os escrivães, acrescenta
descubrían la figura", sendo a palavra "figura" procedente do jogo
que recebiam dos príncipes tal ofício, mesmo sendo "hombres
de naipes; "vida libre", significando que de longe se podia notar
viles y de ruynes castas y suelo; los cuales por pequeño interés
que eram meretrizes. (CERVANTES, 2005, p. 683)
pervierten el derecho y justicia del que la ha de haber."
Assim, por intermédio da descrição das personagens,
(SCHOLBERG, 1979, p.27).
acrescida da linguagem utilizada, delineia-se o estereótipo de um

4
Germanía Jerga o manera de hablar de ladrones y rufianes, usada por ellos verdadera, y de otros muchos vocablos de orígenes muy diversos. extraído em:
solos y compuesta de voces del idioma español con significación distinta de la http://lema.rae.es/drae acesso em 11/02/2014.
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Um exemplo de como um pequeno interesse perverte o cincuenta escuti doro in oro."(CERVANTES, 2005, p. 684-
direito e a justiça pode ser observado na cena que culminou no 685).
golpe aplicado pelo oficial de justiça com a ajuda de Colindres Sem dúvida, as descrições de Berganza conduzem a
contra mais um marinheiro estrangeiro "unto y bisunto"5, ou seja, atmosfera de comicidade do episódio, sem contar com as
endinheirado. características burlescas apresentadas pelas personagens
"Berganza. Sucedió, pues que la Colindres [...] pescó un secundárias, no momento em que a ausência de caráter que as
bretón unto y bisunto, concertó con él la cena y noche en su
individualiza se torna evidente. Consequentemente, as relações
posada; dio el cañuto a su amigo; y, apenas se habían
sociais, diante da chantagem e da depravação entram em colapso,
desnudado, cuando el alguacil, el escribano, dos corchetes
y yo dimos con ellos. Alborotáronse los amantes, esageró el instituindo um jogo de interesses que tende a amplificar a própria
alguacil el delito, mandolos vestir a toda prisa para llevarlos deformação moral dos envolvidos no golpe. Esse jogo de
a la cárcer, afligiose el bretón, terció, movido de caridad, el interesses torna-se mais evidente quando o oficial de justiça,
escribano, y a puros ruegos redujo la pena a solos cien diante do fracasso desse golpe tenta extorquir dinheiro da
reales.[...]"(CERVANTES, 2005, p. 684). hospedeira.
"Berganza. [...] Como el alguacil vio que el bretón no tenía
O mais curioso dessa ação, ocorrida na pensão onde
dinero para el cohecho, se desesperaba, y pensó sacar de la
Colindres vivia, está no instante em que o marinheiro descobre huéspeda de casa lo que el bretón no tenía. Llamola, y vino
que suas calças haviam sumido, juntamente com os "cinquenta medio desnuda, y como oyó las voces y quejas del bretón, y
escuti d'oro in oro" que nelas estavam. Na realidade, as calças não a la Colindres desnuda y llorando, al alguacil en cólera y al
haviam sido roubadas, mas retiradas do aposento por Berganza, escribano enojado y a los corchetes despabilando lo que
interessado em um pedaço de toucinho que no interior do traje se hallaban en el aposento, no le plugo mucho." (CERVANTES,
achava. 2005, p. 685).
"Berganza. Digo que hallé en ella un pedazo de jamón
Evidentemente, a hospedeira já conhecia o oficial de
famoso, y, por gozarle y poderle sacar sin rumor, saqué los
justiça, a "ninfa Colindres" e as artimanhas de todo aquele grupo,
follados a la calle, y allí me entregué en el jamón a toda mi
voluntad, y cuando volví al aposento hallé que el daba voces por isso, sem rodeios, procura assumir o controle da situação, não
diciendo en lenguaje adúltero y bastardo, aunque se só tornando evidentes as práticas do oficial de justiça, como
entendía, que le volviesen sus calzas, que en ellas tenia também menciona um certo título de fidalguia que seu marido
possuía.

5
O sentido de "unto y bisunto" seria untado e novamente untado"; no texto rodapé das Novelas Ejemplares, edição de Antonio Rey Hazaz e Florencio Sevilla
utilizado em duplo sentido: endinheirado, riquíssimo. Extraído da nota de Arroyo, Madrid, Espasa, 2011. p.272.
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É interessante perceber que a menção do título de juízes que deixassem de aplicá-las, recebendo as mesmas punições
fidalguia, feita pela hospedeira, foi tópica frequentemente estabelecidas aos réus. Essa utilização indevida de títulos de
abordada por alguns escritores satíricos do século XVI. Em suas fidalguia proliferava mesmo nos estamentos mais baixos,
obras, esses autores censuravam o uso indevido de títulos, feito resultando que os verdadeiramente nobres recusavam-se a usar
por pessoas de estamentos inferiores, ou seja, pertencentes à seus títulos. (SCHOLBERG, 1979, p. 66)
plebe. Nesse sentido, Scholberg cita como exemplo a anônima Cabe recordar, como mencionado anteriormente, que essa
Segunda parte de Lazarillo de Tormes, extraindo da obra o pretensa "ascensão social", ciente do anacronismo, não era
fragmento que mais retrata o tema: permitida nos séculos XVI e XVII. Cada súdito, como integrante do
“Lazarillo, convertido en atún, había captado el favor del rey corpo político, mantinha-se no estamento a que pertencia,
de los peces, y le ofreció consejos para acrecentar su caudal. respeitando a hierarquia e a ordem orientadas pela Razão de
Uno de éstos era que cualquier de sus súbditos que pusiese Estado - tudo visando um bem comum.
“don” sin que le viniese el título por su linaje, pagase una O que se percebe nesse instante do episódio, é que essa
contribución al rey. Dice que salió muy bien tal reglamento
pretensa fidalguia utilizada pela personagem tem como propósito,
porque había tanta desvergüenza entre los atunes que
além de vangloriar-se, intimidar a aplicação da lei, levando em
todos, altos y bajos, buenos y malos, se atrevían a hacerse
llamar "don"". (SCHOLBERG, 1979, p.66) conta a posição do oficial de justiça. Ao fazer uso desse suposto
privilégio, a hospedeira não só desrespeita a hierarquia existente
Vale a pena salientar, que essas práticas no século XVI entre ambos, ao denunciar as ações corruptas do antagonista, mas
tornaram-se tão frequentes que Felipe II, através da Pragmática de também tenta persuadi-lo ao não cumprimento da justiça, mesmo
1586, cujo conteúdo refere-se a "Orden que debe observarse en que nesse caso, essa justiça seja aplicada às avessas.
los tratamientos y cortesías de palabra y por escrito" determina: De fato, a hospedeira era conivente com os golpes do oficial
"Y mandamos, que à ninguna persona, de cualquier estado de justiça até o momento em que não fosse enredada por eles; a
o condición que sea, no siendo de las expresadas en esta
verdade dos acontecimentos estava retratada em sua condição de
nuestra ley, se les pueda llamar ni llame Señoría por escrito
dona de uma pensão/prostíbulo, sem contar com a posição ridícula
ni por palabra, ni a título de Consejo, dignidad eclesiástica
ni seglar, ni oficio, ni otro pretexto ni color alguno; ni que sustentava, baseando-se na suposta posição de esposa de um
Ilustrísima sino es a los que se manda o permite llamar en fidalgo. Assim, a personagem finge ser o que não é, mesmo diante
esta nuestra ley; ni Excelencia a ninguno que no sea Grande. da evidência dos fatos.
(D.FELIPE II, 1586, Livro VI,Título XII, Lei I, 19, p.176). Nesse sentido, para João A. Hansen, em seus estudos sobre
a sátira no século XVII, o néscio finge ser prudente e moderado,
É certo que as penas para aqueles que desrespeitassem
"Estilizado negativamente, o pseudodiscreto é identificado
essas leis iam do pagamento de ducados proporcionais ao delito, na sátira com o pseudofidalgo: embora o critério principal
chegando até a prisão. Essas penas se estendiam também aos da discrição seja o padrão culto das letras, outros
P á g i n a | 873

dispositivos operam a desqualificação, como os da se constata é a desestabilização das posições hierárquicas, tudo
genealogia, do nome de família, das virtudes heroicas. em prol de interesses particulares. Mesmo espantado diante das
Vulgar, o pseudofidalgo figura o tema da decadência falas da hospedeira, o oficial de justiça procura reafirmar sua
política e corrupção dos costumes, que a persona compõe posição na tentativa de reestabelecer a ordem, embora sua
como atos de aparência dos signos nobilitantes[...]"
intervenção seja silenciada pela postura desafiadora da
(HANSEN, 2004, p.95).
personagem.
O curioso nessa cena é verificar que a partir da postura
Daí o elemento cênico ser a base desse episódio, pois as
assumida pela hospedeira começam a se desencadear diversas
personagens movimentam-se no palco construído pela narrativa
reações nos demais personagens; todos de alguma forma tentam
de Berganza; como atores, essas personagens transformam a ação
defender suas posições no interior desse possível entremez.
trivial em uma situação cômica com tendências satíricas, pois
Nesse aspecto, o risível se presentifica por meio da ausência de
retratam não somente o ridículo, mas a feiura nociva, que no caso
virtude que esses personagens evidenciam, ressaltando que o
se reproduz nos vícios dessas personagens secundárias. Quando se
lugar de privilégio no interior da encenação pertence ao oficial de
pensa em nocivo também se entende que essa sátira, como
justiça. Mesmo que as disposições hierárquicas se
subgênero do cômico, censure as práticas sociais por meio da
desestabilizem, por assim dizer, as demais personagens
maledicência, da mordacidade; no caso do oficial de justiça, por
procuram manter suas posições no interior da representação.
exemplo, através de seus atos corruptos o antagonista transforma
"Berganza. Quejábase ella al cielo de la sinrazón y justicia
a justiça que deveria ser justa em algo injusto,6 ferindo com isso a
que la hacían [...] El bretón bramaba por sus cincuenta
harmonia e o bem estar da sociedade vista, como se sabe, pela escuti. Los corchetes porfiaban que ellos no habían visto los
metáfora de um corpo político formado por ordens e estamentos. follados, ni Dios permitiese lo tal. El escribano, por lo
Nesses termos, para o pesquisador, esse riso expresso callado, insistía al alguacil que mirase los vestidos de la
“[...] é incidental na sátira, uma vez que a ridicularização de Colindres [...]. Ella decía que el bretón estaba borracho y
vícios é antes uma convenção para várias tópicas graves e que debía de mentir de lo del dinero. [...] todo era
vários tipos viciosos que uma correspondência verista e confusión, gritos y juramentos [...]"(CERVANTES, 2005, p
imediata do discurso com a pessoa empírica ou a situação 687).
referidas nele.” (HANSEN, 2004, p.294).
Nessa configuração, por meio do discurso da hospedeira Diante de tanto alvoroço, um assistente tenente7que por
são colocados em perspectiva os vícios do oficial de justiça. O que ali passava escuta aquela gritaria e decide averiguar o ocorrido.

6 7
Idem, comentário feito no Exame de Qualificação 18/07/2013. O tenente de Assistente (Corregedor) é o “auxiliar ou delegado do
Corregedor”; em Sevilha, este nomeava dois tenentes [GL, p. 577].
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"Berganza. Preguntó la causa de aquellas voces; la Diante das reservas do amigo, Cipión declara:
huéspeda se la dio muy por menudo: dijo quién era la ninfa "Cipión. Sí, que decir mal de uno no es decirlo de todos; sí,
Colindres, que ya estaba vestida, publicó la pública amistad que muchos y muy muchos escribanos hay buenos, fieles y
suya y del alguacil, echó en la calle sus tretas y modo de legales,[...] que no todos entretienen los pleitos, ni avisan a
robar, disculpose a sí misma de que con su consentimiento las partes, ni todos llevan más de sus derechos, ni todos van
jamás había entrado en su casa mujer de mala sospecha, buscando e inquiriendo las vidas ajenas para ponerlas en
canonizose por santa y a su marido por bendito tela de juicio, ni todos se aúnan con el juez para "háceme la
[...](CERVANTES, 2005, p 687). barba y hacerte he el copete", ni todos los aguaciles se
conciertan con los vagamundos y fulleros, ni tienen todos
De fato, ao ser questionada pelo assistente tenente foi
las amigas de tu amo para sus embustes.[...] Sí, que no todos
tamanho o discurso da hospedeira, sem contar com a nova
como prenden sueltan, y son jueces y abogados cuando
menção da carta de fidalguia, que o oficial cansado ordena que quieren." (CERVANTES, 2005, p. 688)
todos sejam levados à prisão. Segundo Berganza [...] conviene a
saber, al bretón, a la Colindres y a la huéspeda. (CERVANTES, Observa-se nas palavras de Cipión uma ironia implícita por
2005, p 688). intermédio da repetição da expressão: "no todos", apesar de que
O que se soube é que tanto o marinheiro, quanto a enfatize o seu desprezo pelo ofício relacionado. Como dito
hospedeira pagaram as custas. Colindres saiu livre. No mesmo dia anteriormente, existe uma censura direta ao oficial de justiça feita
a prostituta "pescó a un marinero con el mismo embuste del pela hospedeira, (CLOSE, 2007, p. 70-71) quando a personagem
soplo", o que levou Berganza a concluir: [...] porque veas, Cipión, denuncia a farsa aplicada comumente pelo oficial e seus auxiliares.
cuántos y cuán grandes inconvenientes nacieron de mi golosina. No entanto, Cipión direciona seu discurso não a uma pessoa em
(p 688). No entanto, o problema não havia sido causado pela particular, mas a todos que têm o mesmo ofício. O que leva a
gulodice de Berganza, mas pelas ações velhacas do oficial de pressupor que a censura desse sábio interlocutor se estenda às
justiça, conforme acrescenta Cipión "Mejor dijeras de la práticas comumente observadas naqueles que sustentam tal
bellaquería de tu amo." (p. 688) posição. Assim, a proposta da descrição de Cipión acaba por
Com toda a certeza, as ações viciosas do oficial haviam promover o reconhecimento do leitor, no que concerne a
desencadeado toda aquela confusão, embora Berganza soubesse determinados tipos sociais presentes em seu cotidiano, um
que seus atos de vileza jamais acabariam. Mesmo assim, o mastim reconhecimento que provoca a comicidade presente nesse
apresenta certas reservas com respeito à própria narrativa, uma instante da novela, a qual conduz a percepção de uma parceria que
vez que havia a preocupação em difamar, com seus comentários, se desenvolve entre o narrador e seu destinatário. Na opinião de
os demais oficiais de justiça e escrivãos, comprometendo assim Antony Close em seus estudos sobre a comicidade cervantina,
outros que sustentam o mesmo ofício: "[...] puesto que me pesa analisando a mesma passagem do Coloquio, o pesquisador afirma
de decir mal de alguaciles y de escribanos." (p.688) que:
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"El fragmento se posiciona, ambiguamente, en un lugar além de retratarem o feio, o torpe, direcionam a representação
intermedio entre transmitir una censura general y paliarla; paródica de uma justiça às avessas, seja pelos vícios apresentados,
y, a este respecto, se trata de una continuación de la escena seja pelos crimes que o antagonista comete, ferindo com isso "uma
del alguacil y la Colindres, a la que directamente alude." (p. harmonia preestabelecida na hierarquia" 8 de uma sociedade da
71)
qual pertence.
Evidentemente, ao se observar as falas de Cipión, sua Vê-se portanto que, diante dos estudos apresentados, o
resposta aos questionamentos de Berganza não deixa de que se pode notar nessa passagem da novela é que, ao retratar as
apresentar certa ambiguidade, como bem observado por Close. O ações criminosas do oficial de justiça, Berganza apresenta uma
que significa reconhecer que seja pelas "afirmações negativas" ou narrativa repleta de situações cômicas, cuja utilização do elemento
pelas "negações afirmativas" contidas em seu discurso, Cipión cênico será responsável pela transformação do episódio em um
conduz o leitor à conclusão de que, indubitavelmente, todos os possível entremez. O que se constata nesse instante da novela é
que mantêm os ofícios mencionados, de uma maneira ou de outra, que ao descrever a encenação de cada um dos personagens no
estão sendo representados fielmente pelo antagonista do interior desse grande "teatro do mundo", 9 Berganza introduz de
episódio. Em outros termos, todos apresentam ações corruptas e forma teatralizada feitos que buscam imitar as práticas presentes
viciosas como as sustentadas pelo amo de Berganza. no cotidiano social, visando o reconhecimento do leitor. Em outras
O que vale concluir que os tipos percebidos nessa novela palavras, por intermédio da exposição que o protagonista faz
exemplar representam deformações que estariam relacionadas à dessas práticas os personagens em cena acabam instituindo uma
fealdade moral associada à falta de medida ou proporção, imagem de aparência e posição responsável pela representação
(HANSEN, 2007, p. 245) que, na opinião de Hansen, ao analisar o que fazem ora de vícios ora de virtudes ao seu destinatário.
Tratado dos Ridículos de Emanuele Tesauro, os torna substituíveis
devido aos conceitos associados ao pior e ao péssimo. A exposição Referências:
ridícula e maledicente desses personagens feita pelo protagonista ASENSIO, Eugenio. Entremeses. In: AVALLE-ARCE, Juan Bautista;
será responsável pela produção dos efeitos de comicidade no RILEY, E. C. Suma Cervantina London: Tamesis, 1973.
interior dessa novela exemplar. Dessa forma, ao analisar o tipo do
oficial de justiça, pode-se observar que suas práticas corruptas

8
HANSEN, João A. Comentário feito no Exame de Qualificação 18/07/2013. os filósofos pitagóricos, em Filebo de Platão, na obra dos estóicos,
9
El gran teatro del mundo (1655), obra de teatro composta por Calderón de la especialmente, nas Epístolas Morais a Lucilio de Séneca, bem como na obra
Barca no século XVII. O tema que se articula nesse auto diz respeito à vida Encheiridion do filósofo grego Epícteto. Este último, em particular, serviu de
humana vista como um grande teatro em que cada pessoa representa seu papel. modelo para a difusão da imagem do theatrum mundi no Renascimento.
A vida humana como um teatro é uma tópica que vem desde a Antiguidade com
P á g i n a | 876

______. Itinerário del Entremés desde Lope de Rueda a Quiñone de HANSEN, João A. A sátira e o engenho. 2 ed. São Paulo/Campinas:
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SCHOLBERG, Kenneth R. Algunos aspectos de la sátira en el siglo


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P á g i n a | 877

NOTAS SOBRE LITERATURA E NARCOTRÁFICO NA OBRA DE JUAN produzindo uma hiperexposição que tende a atrofiar a capacidade
VILLORO de assombro de leitores e espectadores, por outro, os próprios
Víctor Manuel Ramos Lemus cartéis do narcotráfico entram na guerra das representações
UFRJ confeccionando vídeos (que posteriormente são postados na web
em sites e blogs) em que se transmite torturas, assassinatos,
1 – A violência no papel, e os papeis violentos decapitações e mutilações, seja para advertir aos concorrentes na
A escalada de violência que vem acontecendo no México guerra do narcotráfico, seja para escarmento interno e manter
nos últimos anos está ocorrendo, também, nos livros, obrigando, sobre aviso todos aqueles vinculados às suas estruturas. Diante
com isso, a repensar o cânone e o corpus da literatura mexicana. disso, o olhar curioso se encontra no meio de um fogo cruzado de
Nesse sentido, contrário ao que o escritor e ensaísta Rafael Lemus discursos e imagens.
disse em “Balas de salva. Notas sobre El narco y la narrativa Nessa guerra de textualidades, e para concorrer com a
mexicana”, o auge dos textos que utilizam como tema o exposição do material em bruto (o que não significa que seja
narcotráfico não obedece apenas ao mero capricho, oportunismo apresentado sem elaboração formal), a ficção entra na cena do
mercadológico ou moda passageira, mas acompanham crime, e a violência relacionada com o narcotráfico se torna objeto
rigorosamente Zeitgeist. Se nas últimas décadas os diversos cartéis das mais diversas representações artísticas e estéticas. Narco-
de drogas (os “Zetas”, “La familia”, “O cartel do Golfo”, “O cartel corridos, filmes, telenovelas e seriados, assim como ensaios,
de Tijuana”, “O Cartel de Sinaloa”) têm incursionado também no crônicas, reportagens, contos e romances, tentam apreender uma
tráfico de representações e discursos, promovendo cantores que realidade em que o narcotráfico se revela o grande poder por trás
compõem para eles “narco-corridos” ou produzindo vídeos de da vida política, econômica e cultural do México.
tortura e decapitações que depois são postados em blogs e sites É possível constatar que hoje, escritores mexicanos como
(competindo com os que elaboram diversos meios de Luis Humberto Crosthwaite, Elmer Mendoza, Daniel Sada, Paco
comunicação com a anuência do Estado), toda uma série de Ignacio Taibo II, Héctor Aguilar Camín, Cristina Rivera Garza, David
escritores, com menos recursos (o que, não obstante, não os Toscana, Juan Pablo Villalobos, Eduardo Antonio Parra, Yuri
coloca em desvantagem) vem trabalhando o tema da violência em Herrera, Homero Aridjis, Federico Campbell, entre muitos outros,
um riquíssimo leque de estilos, formas estéticas e gêneros. têm feito do narcotráfico um tema válido em suas obras. Esse
Se por uma parte a imprensa “oficial” (leia-se o consorcio fenômeno tem levado a que, inevitavelmente, o assunto tenha se
das telecomunicações chamado Televisa, e outros médios tornado objeto de debates artísticos e estéticos — mobilizando
importantes que buscam concorrer com esse empório jogando o conceitos, ideias e categorias que são utilizadas para discutir a
mesmo jogo), com o fim de elevar os índices de audiência, literatura mexicana. Desta forma, noções como literatura
empenha-se na espetacularização exacerbada da violência, mexicana, cânone, corpus, sistema literário, valor estético, estilo,
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etc., habituais na exegese de obras e autores consolidados na antigamente, sem medo, denominava-se “realidade”), esforço
“História da literatura mexicana” como El periquillo Sarniento de esse que implica em operar “rupturas com as tradições da ficção.”
José Joaquín Fernández de Lizardi; Pedro Páramo e El llano em (WATT, 1996, p. 27)
llamas de Juan Rulfo; La región más transparente e La muerte de Para além das exigências do mercado editorial e
Artemio Cruz, de Carlos Fuentes; La sombra Del caudillo e El águila jornalístico, que reclama com avidez sangue novo para repor os
y La serpiente de Martín Luis Guzmán; Los relámpagos de agosto e estoques das bancas, prateleiras e estantes das livrarias, nessa
La ley de Herodes de Jorge Ibargüengoitia; El libro vacío de Josefina guerra de representações uma questão se revela crucial: que dose,
Vicens; Los recuerdos del porvenir de Elena Garro; Balún Canan de ou intensidade, se considera adequada para certificar que alguém
Rosario Carstellanos; Hasta no verte Jesús mío e La noche de teve uma “experiência” que possa ser transmitida por escrito? Em
Tlatelolco de Elena Poniatowska, entre outros, vêm sendo Apocalipstick, Carlos Monsiváis afirma: “Nós, escreveu o grande
mobilizadas na reflexão e debate sobre textos e autores que têm poeta Wallace Stevens, não moramos em uma cidade, mas em sua
o narcotráfico como elemento. descrição.” (MONSIVÁIS, 2011, p. 19) Na medida em que não é
Se no México a narrativa que aborda o narcotráfico talvez possível eliminar certo grau de interferência textual nas
começa em 1967 com Diario de un narcotraficante, de Angelo percepções, resulta claro que experiências e vivências, em boa
Necaveva (FONSECA, 2009, p.33), na atualidade o tema se revela medida, são compreendidas quando alguma forma de
inevitável nas obras de um número considerável de escritores, representação escrita, auditiva ou visual lhes empresta sentido.
mesmo que este apareça de maneira esporádica ou incidental. Prosseguindo na escola realista que parece caracterizar a tradição
Nesse sentido, é preciso considerar que a violência, elemento mexicana, o “narco-romance” (misto de romance policial, crônica
estruturante das chamadas “narco-narrativas”, é um ingrediente e reportagem) tateia em busca de uma forma que o arranque do
que tem se consolidado nas literaturas hispânicas “costumbrismo” de que os autores que se aproximam da realidade
contemporâneas: usada tanto na forma quanto no âmbito da que circunda o narcotráfico são acusados. A eles é feita a crítica de
representação, ela tem se tornado um elemento fundamental para mal conseguirem elaborar a dimensão ficcional que seja capaz de
pensar e discutir o potencial estético da literatura em sua incendiar o fenômeno, potenciando, a partir de um número
capacidade de discutir os processos históricos dos países — como limitado de elementos, a percepção do real (múltiplo, complexo,
é o caso do México, da Colômbia ou do Brasil. multiforme, que se expande em muitas direções, com freqüência
Em A ascensão do romance, Ian Watt adverte que o contraditórias entre si) que é o que habitualmente se exige da
romance realista nasce quando os escritores questionam o caráter “grande” literatura:
textual e genérico da escritura, e se debatem tentando rasgar as Una narrativa sobre el narco, una estrategia ordinaria:
convenções retóricas que delimitam e condicionam os esforços costumbrismo minucioso, lenguaje coloquial, tramas
por escrever a experiência empírica, pessoal e histórica (o que populistas. El costumbrismo es, suele ser, elemental. A
veces excluye, casi completamente, la invención, como si la
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imaginación no pudiera agregar nada a la realidad. La prosa entregam alguma coisa, pois como sabemos a partir do Primo Levi,
es, intenta ser, voz, rumor de las calles. (LEMUS, 2005) a testemunha total, aquela que foi até o final, não pode falar,
Essas opiniões de Rafael Lemus, publicadas em 2005, justamente por ter sido aniquilada, razão pela qual os que melhor
tiveram imediata resposta em um artigo de Eduardo Antonio poderiam falar da violência do narcotráfico não sobreviveram para
Parra, que enfatizou: contar), a partir do que é lido, ouvido e visto na televisão ou na
La literatura es artificio, sí. Mas el artificio se despliega no internet.
sólo en la concepción de un rompecabezas, sino en cada Acatando o adágio tolstoiano de que as vidas felizes não
uno de los elementos del relato: lenguaje, técnicas costumam despertar interesse literário, a literatura mexicana
adecuadas, estructuras, trazo de los personajes, reflejo de contemporânea tem na violência um dos seus temas. Se no Brasil
la condición humana: el significado total del conjunto. [...] (em um arco que inclui Pixote e consolida com o narcotráfico como
La violencia es un elemento, no la esencia. (PARRA, 2005) seu complemento em Cidade de Deus e os filmes que compõem a
Anos depois, o escritor Elmer Mendoza (citado no artigo de saga de Tropa de elite) a violência tornou-se o carro chefe do
Lemus como um desses escritores inábeis para lidar esteticamente cinema nacional que pretende discutir a exclusão e a desigualdade
com o material que oferece o narcotráfico, mas que, no entanto, é estruturais do país, assim também a “narco-literatura”, no México,
apontado pela crítica como um dos principais expoentes do tem ganhado destaque para pensar os porquês dos fracassos da
“narco-romance” — e não só do México), acrescentou: política que se consolidou no período pós-revolucionário (1920 –
En estos años se ha fortalecido la literatura realista… Los 2000, anos em que a Revolução mexicana se consubstancia com a
vanguardistas de cafetería se preocupan, descalifican, formação, o auge e o declínio do PRI), dominado pela corrupção, o
despotrican… Trabajar la violencia implica emplear ciertos tráfico de influências, a desigualdade social e os baixos índices de
elementos, muy pocos, para crear símbolos que sean desenvolvimento humano.
representativos de la realidad. [...] Pretendemos una À semelhança de “Esse est percipi”, conto genial de Don
propuesta que sea estilística, que sea lenguaje, ritmo Bustos Domeq (pseudônimo que albergou durante alguns textos
narrativo e historia: pretendemos contar algo y queremos
geniais os talentos de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares) em
contarlo bien y de manera diferente. No nos desagrada que
que tudo que os torcedores da equipe de futebol River Plate
la gente saque conclusiones a partir de la lectura de
nuestras obras: es su deseo y también su derecho. sabem, deriva do que um empresário das telecomunicações
(MENDOZA, 2012) inventa (de maneira que nem o time, nem os jogadores e nem as
partidas existem pois são uma criação ex nihilo de hábeis
A via é de mão dupla, e assim como os livros tentam narradores esportivos), assim a chamada “narco-cultura” modela
absorver em suas páginas o sangue derramado, assim também as o imaginário inoculando uma gramática, uma linguagem e uma
percepções se textualizam e a realidade vinculada ao narcotráfico série de códigos que influenciam as percepções a través de narco-
é vivida, mais do que com os sentidos (se é que neste caso eles
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corridos, filmes, romances, telenovelas e seriados, isso para não se as nações americanas, a exemplo das europeias, consolidariam
falar dos documentários e as páginas dos jornais em que se aborda suas estruturas, diferenciando-as. Em “De cortiço a cortiço”,
o tema de maneira espetacularizada. É desta forma, portanto, que Antonio Candido se debruça sobre O cortiço, de Aluísio Azevedo,
se textualiza a percepção, na qual se vê aquilo que foi lembrando que para muitos críticos esse romance tem uma forte
condicionado pelas manifestações culturais que se consomem influência de L´Assommoir, de Émile Zolá:
exaustivamente. Portanto, a narco-literatura confere sentido à Como L´Assommoir, O cortiço narra histórias de
percepção da realidade e é por essa razão que entra na disputa trabalhadores pobres, alguns miseráveis, amontoados
pelas representações e os discursos. numa habitação coletiva. Como lá, um elemento central da
narrativa é a degradação motivada pela promiscuidade. Lá,
agravada pelo álcool, aqui, também pelo sexo e a violência.
2 – Juan Villoro e a narco-literatura
O cortiço é tematicamente mais variado, porque Aluísio
Nas últimas páginas de Los detectives salvajes, livro
concentrou no mesmo livro uma série de problemas e
publicado por Roberto Bolaño em 1997, os leitores se deparam ousadias que Zola dispersou entre os vários romances de
com uns desenhos jocosos que representam chapéus vistos de sua obra cíclica. Na sociedade francesa, a diferenciação
cima — e que corresponderiam ao estereótipo dos mexicanos. Em sendo mais acentuada requeria maior especialização no
“Mariachi”, conto de Juan Villoro, o protagonista, um cantor desse tratamento literário e quase sugeria ao escritor a divisão de
gênero musical que odeia sê-lo, afirma: “Una vez soñé que me assuntos como núcleos de cada romance: vida política, alto
preguntaban “¿Es usted mexicano?”. “¿Sí, pero no lo vuelvo a ser”. comércio, comércio miúdo, bolsa, burocracia, clero,
Esta respuesta, que me hubiera aniquilado en la realidad, especulação imobiliária, prostituição, vida militar, lavoura,
entusiasmaba a todo mundo en mi sueño”. (VILLORO, 2013, p. 14) mineração, ferrovias, alcoolismo etc. Nos países pouco
A distância irônica com que esse relato aborda um tema que tem desenvolvidos, como o Brasil, esta especialização
equivaleria talvez a uma diluição... A originalidade do
a ver com os símbolos consolidados da nação obriga a lembrar que
romance de Aluísio está nesta coexistência íntima do
este escritor é filho do filósofo Luis Villoro, membro fundamental
explorado e o explorador... (CANDIDO, 1993, pp. 125 – 126)
do Hiperión, grupo de pensadores que se tornou célebre por
debater a questão da identidade do mexicano. Desse debate, um Do ponto de vista artístico e literário, essa concepção
dos livros que ganharam maior notoriedade fora do México foi El carrega uma noção de arte enquanto esfera separada da ciência e
labirinto de la soledad, de Octavio Paz — que não fazia parte do da moral:
grupo. Nessa época do desenvolvimentismo, em que estava em la racionalización cultural, de la que surgen las estructuras
voga o conceito de “formação”, os intelectuais indagavam sobre a de conciencia típicas de las sociedades modernas, se
extiende a los componentes cognitivos, a los estético-
formação das estruturas do país. Esse ângulo, certamente mais
expresivos y a los moral-evaluativos de la tradición religiosa.
reformista do que revolucionário, tinha como objetivo o de saber
Con la ciencia y la técnica, con el arte autónomo y los
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valores relativos a la presentación expresiva que el sujeto ganham outros contornos. Em consequência, sua obra assume que
hace de sí, con las ideas universalistas que subyacen al o México se encontra no fim do ciclo desenvolvimentista em que o
derecho y a la moral, se produce una diferenciación de tres imperialismo se disfarça de globalização democrática, com a
esferas de valor, cada una de las cuales obedece a su propia reposição do atraso, momento em que o problema da identidade
lógica. Con ello, no solamente se cobra conciencia de la
do mexicano é de pouco aproveitamento para entender as
“legalidad propia, interna” de los componentes cognitivos,
particularidades da formação das estruturas do México, pelo que
de los componentes expresivos y de los componentes
morales de la cultura, sino que con su diferenciación a literatura (diante das transformações da sociedade e da
aumenta también la tensión entre estas esferas. formação dos leitores), não pode dar-se mais esse ângulo de
(HABERMAS, 2002, p. 222) problematização e deve abrir-se a outros temas, formas,
linguagens e gêneros — e é por isso que se aproxima da rica obra
Nascido em 1956, nos textos de Juan Villoro se aprecia o
de Carlos Monsiváis, de quem:
gosto pelo rock e a contracultura norte-americana, sobre os que se permite trasladar los hallazgos de éste a sus otras
tem escrito assiduamente. Essas afinidades eletivas encontram-se materias –notablemente a la novela- donde enriquecen las
em um dos seus livros de crônicas que melhor expressam sua visão posibilidades del género, cimentando la urgencia de contar
da história da cultura no México em chave de rock: Tiempo el presente, la expansión de la ciudad, el quiebre del país,
transcurrido. las costumbres resistentes o cambiantes como posibilidad
Outro elemento que é decisivo em sua formação é a de comprensión. Villoro lee al cronista Monsiváis no sólo
“literatura de la Onda”, chamada assim pejorativamente por como un renovador de su género, sino como un precursor
Margo Glantz para se referir à jovem narrativa que se escrevia no de la narrativa de las generaciones posteriores. (ZAVALA &
México a meados dos anos 60. Sob a influência da Beat generation RUISÁNCHEZ, 2011, p. 12)
(Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs compunham Autor de romances infanto-juvenis, cronista nos mais
sua Santíssima Trindade) e em geral da contracultura norte- diversos âmbitos da cultura (lugar destacado é sua paixão pelo
americana, escritores como José Agustín (a quem Villoro dedica o futebol, até assuntos como a política, o rock e as mais diversas
livro de crônicas Tiempo transcurrido), Luis Zapata, Parménides formas e gêneros da literatura), ensaísta, romancista, contista,
García Saldaña, Gustavo Sainz entre outros, abordavam em suas autor de músicas e roteiros de filmes, apresentador de
obras a problemática de jovens mexicanos que repentinamente se documentários, entrevistador, sua obra se caracteriza por
descobriam contemporâneos dos homens do seu tempo. incorporar muitos elementos da cultura de massa, além de trazer
Portanto, Juan Villoro faz parte de uma época em que o abordar problemas atuais em que a geopolítica e a geoeconomia
problema da identidade do mexicano não representa mais um ditam o teor das discussões para um país da periferia do
ângulo suficiente para discutir as questões de fundo que animaram capitalismo como é o México.
o Hiperión, razão pela qual essas questões, nos textos deste autor,
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Portanto, não é arbitrário que ele faça a seguinte afirmação consolidaram no México nos últimos anos, em vários contos de Los
de si próprio: culpables (2007) e mais recentemente em Arrecife (2012) o tema
En 1967 inicié mi colección de discos de rock, con una avidez se revela fundamental.
sólo superada por la de mi amigo Carlos, hijo de Emilio Se de maneira célebre ele batizara Luis Humberto
Uranga, otro filósofo nacionalista. Nuestros padres Crosthwaite como “el gran mitógrafo do Tijuana” porque seus
pertenecían al Grupo Hiperión, que buscaba la ontología del relatos faziam entrar na literatura mexicana (ampliando seus
ser del mexicano. Para enfatizar nuestro abismo
territórios) os corridos, a cultura dos migrantes e o universo do
generacional, fundamos el grupo de rock Fusifungus Pop
narcotráfico (de maneira mais visível isso é abordado no romance-
[...] En mi infancia, el contacto con lo auténtico no tuvo que
ver con los mariachis sino con los filósofos nacionalistas. Me reportagem Tijuana, crimen y olvido), seu diagnóstico do México
sentía rodeado de una secta que operaba en abstrusa não podia ser ignorante disso e o tema também aparece em sua
complicidad. (VILLORO, 2005, pp. 26 – 27) obra, como na do bajacaliforniano. Nesse sentido, observa-se um
paralelismo entre sua obra e a de Crosthwaite, toda vez que ambos
Não era apenas a referência ao rock o que marca seu
abrem para um vasto leque de questões, dentre as quais figura o
distanciamento com essa problemática tão em voga no
narcotráfico. Textos como Estrella de la calle sexta, Instrucciones
pensamento mexicano durante a segunda metade do século XX.
para cruzar la frontera, Idos de la mente. La increíble y (a veces
No ensaio anteriormente citado, ele registra as transformações
triste) historia de Ramón y Cornelio, entre outras, caracterizam-se
pelas quais passou o México entre os anos cinquenta e a década
mais por estabelecer uma cartografia das contradições da vida de
de setenta — a passagem de sua infância à vida adulta — no
quem vive na fronteira norte do México — concretamente, em
âmbito da cultura, o que pede que às questões colocadas pela
muitos casos, a de Tijuana — do que centrar apenas no
filosofia do mexicano sejam revistas em sua formulação. É por isso
narcotráfico.
que no final da crônica anteriormente citada, quando ele está
Por falar nessa cidade da fronteira norte do México,
prestes a ser maior de idade, afirme: “tampoco me había
tornou-se célebre a afirmação de Néstor García Canclini, em
convertido en filósofo nacionalista.” (VILLORO, 2005, p. 35) Assim,
Culturas híbridas (refém das modas conceituais que influenciaram
“o tema do mexicano”, quando trabalhado em sua obra, é com
certas formas de abordar as transformações que se verificaram na
ironia, paródia, buscando ir além, e mais fundo, nele, e em suas
segunda metade da década de 80 e começo dos anos 90), de que
novas configurações. E é por isso que em seus textos diversos
Tijuana seria um dos laboratórios da pós-modernidade, pelos
temas ganham força — dentre eles o narcotráfico, que pelo menos
processos de “des-territorialização” da cultura e pela “hibridação
desde 2004, ano em que publica El testigo, aparece com
cultural.” Contra essa ideia, muitos têm escrito sobre o fato de
frequência. Se nesse romance o assunto ganhara destaque não
que, pelo contrário, na fronteira norte se observa uma reposição
apenas porque os personagens consumiam cocaína mas porque
do atraso que deve ser analisada com outro instrumental teórico.
este se revelava, junto com a mídia, um dos poderes que se
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Nuestra respuesta, que también tiene una base etnográfica, estructurales, sociales o culturales que unifican estas
pero de carácter más comparativo e internacional (Wilson y grandes urbes por encima de los factores que las separan o
Donnan, 2000), se contrapone casi punto por punto a la diferencian. Hay que matizar, sin embargo, que en términos
precedente. Según nosotros, las áreas fronterizas son estrictamente económicos Tijuana está lejos de ser una
ciertamente espacios transnacionales, pero sólo en sentido “metrópoli transnacional”. De hecho, en los estudios más
descriptivo y cultural, sin que ello implique pérdida de prominentes sobre la globalización económica en el Tercer
hegemonía por parte de la cultura nativa supuestamente Mundo no se analiza ni a Tijuana ni a ninguna otra de las
amenazada, ni mucho menos impotencia o repliegue del grandes ciudades de la frontera como “metrópoli globales”;
Estado–nación. Son también el espacio de interacción más bien se las considera centros de producción en un
entre culturas desiguales en conflicto permanente, con corredor regional cuyo epicentro se encuentra en la Ciudad
efectos de transculturación adaptativa que por lo general de México, verdadero nexo de la economía mexicana con la
no afectan los núcleos duros de las mismas. En red global a nivel financiero y mediático (Parnreiter 2002).
consecuencia, son el lugar de las identidades exasperadas (BELLVER, 2008)
en confrontación recíproca, donde las identidades
É preciso esclarecer que o próprio sociólogo argentino, em
dominantes luchan por mantener su hegemonía, en tanto
que las dominadas lo hacen para lograr su reconocimiento uma entrevista concedida a Fiamma Montezomolo, reconheceu as
social. En armonía con todo lo anterior, lejos de ser el lugar limitações que seu livro, pensado e escrito na década de oitenta,
de la desterritorialización, las áreas fronterizas son el lugar apresentou e apresenta — algo que nem os seus mais entusiastas
de la multiterritorialidad. (GIMÉNEZ, 2009) seguidores aceitam ainda. Decorrente disso, é necessário lembrar
que termos frequentes como pós-modernidade, modernidade
Essa opinião é reforçada com uma oportuna observação no
líquida, hipermodernidade, entre outros, tornam-se
que diz respeito à dimensão econômica desse debate:
problemáticos para pensar as manifestações culturais na periferia
En el ámbito de las ciencias sociales otro de los trabajos que
más ha influido en la visión de Tijuana como metrópoli do capitalismo. Em Apocalipstick, para falar da Cidade do México
transnacional, y por ende de la frontera entre EEUU y e de outras megalópoles do terceiro mundo, Carlos Monsiváis
México como “región transfronteriza”, es Where North aponta a maneira em que a oposição de noções como
Meets South: Cities, Space and Politics on the U.S. – Mexico modernidade/pós-modernidade resultam equívocas:
Border (1990), de Lawrence Herzog. Para Herzog, la  los contrastes entre riqueza y pobreza tan
dinámica socio-económica de la región se inserta en un impresionantes que asfixian las reflexiones;
contexto internacional de globalización cuyo análisis debe  el culto a la modernidad, que es el gran antídoto contra
centrarse sobre todo en la interacción de las grandes la nostalgia;
ciudades fronterizas mexicanas con sus “gemelas”
estadounidenses (Tijuana/San Diego, Ciudad Juárez/El Paso,
etc.), y en el estudio de aquellas características
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 la convocatoria a la posmodernidad, distribuida en los deconstruyen y cuestionan toda construcción ideológica—,


edificios que recuerdan fotos borrosas de Dallas o Los su uso es bastante problemático cuando se emplea en
Ángeles” (MONSIVÁIS, 2011, p. 24) conexión con la escritura testimonial y pseudotestimonial
que insiste en las nociones de verdad, autoridad, sujeto,
Isso expressa uma reflexão sobre uma modernidade que, ideología, historia y conciencia histórica, repudiados por los
na América Latina, mal chegou e ainda se apresenta como posmodernistas. Para este tipo de escritura
horizonte desejável, e uma pós-modernidade que se apreende nos latinoamericana preocupada con el referente histórico y la
simulacros televisivos que vêem dos seriados importados. búsqueda de las identidades y verdades propias propondría
Se, como sabemos, a literatura mexicana pós-moderna el término de postcolonial, distinguiendo de esta manera
data da obra de José Juan Tablada e Ramón López Velarde pela entre las prácticas en último término despolitizantes de los
posmodernismos occidentales y las prácticas políticas y
maneira em que tentaram marcar distância com a poesia dos
concientizadoras postcoloniales. Con esta postura no estoy
modernistas Manuel Acuña, Manuel Gutiérrez Nájera, e
de ninguna manera asumiendo una posición esencialista
prenunciaram as vanguardas dos Estridentistas e os que exige la nítida separación entre lo propio (bueno) y lo
Contemporâneos, afirmar que no México a pós-modernidade se ajeno (malo) —de todas formas un sueño imposible dado el
consolida com o fim do ciclo desenvolvimentista inaugurado por tráfico global de capital, gente y cultura—, sino que más
Miguel Alemán e enterrado de vez pelo governo neoliberal de bien estoy problematizando la adopción mecánica de los
Carlos Salinas de Gortari, é criar um falso ponto de partida para modelos críticos importados, cuando la propia experiencia
enveredar em uma reflexão equívoca, como se a última reposição ofrece maneras de cuestionar, examinar y criticar la relación
do atraso inaugurasse uma nova era. Na obra de Juan Villoro entre metrópoli y otros mundos. (PALAVERSICH, 2005, p.
(como em 2666 de Roberto Bolaño), observa-se que, aplicado à 20)
América Latina, o conceito de pós-modernidade consolida como Mesmo quando a reflexão entre o “colonialismo” e o “pós-
comédia aquilo que sempre ocorrera como tragédia. colonialismo” deveria recordar, como fez Eric Hobsbawm, o fato
Em De Macondo a McOndo, Diana Palaversich estabelece uma de que, em suas manifestações clássicas, o primeiro termina com
oportuna distinção entre pós-modernidade e pós-colonialismo a eclosão da 1ª Guerra Mundial e a partir de então passou a ser
para pensar a literatura e a cultura na América Latina: exercido pelo poder do capital e cada vez menos com a invasão e
Aunque, como ya lo había indicado en la introducción, no presença armada (o que levaria a ter mais cautela no uso do “pós”
me opongo a toda aplicación del término posmodernismo — que é o que a definição de Palaversich fica devendo), mesmo
en América Latina —este concepto me parece más
assim se dá um caráter mais preciso aos fenômenos que aqui estão
aceptable en el caso de las obras paródicas e intertextuales,
em discussão: mais do que anunciar, de maneira otimista, um
aquellas que demuestran fuertes rasgos metafictivos y
abolen toda noción de la realidad extraliteraria, las que mundo por vir em que os seres humanos olharão com beneplácito
ou resignação o desemprego, o abandono e o desafeto como algo
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“líquido”, o que aqui se mostra é a reposição do atraso. Nesse para apoiar decorados apotegmas de sociologia barata. Em
ponto, a obra de Juan Villoro aponta para o leque de questões que nome da América Latina se interpreta o perigoso papel da
a noção de pós-modernismo também tenta nomear, mas que diplomacia de oratória, suscetível a bajulações em
frequentemente desproblematiza. banquetes e aniversários, em benefício das rutilantes
quimeras convencionais da política europeia.
Dando outra coloração aos elementos do paradigma
identitário na literatura, a obra deste escritor mexicano se abre a Estas duas palavras prestam-se a tudo isto. Delas retiram
uma diversidade de assuntos entre os que o narcotráfico é mais grande proveito pessoal todos aqueles que nada podem
um dos que compõe sua constelação. Assim, se ele começara fazer por conta própria, exceto se agarrar ao seu país de
escrevendo sobre o influxo da contracultura no México (tendo origem, a antecedentes e a referências de família. (VALLEJO
apud SCHWARTZ, 1995, p. 29)
como influência principal José Agustín e suas obras De perfil, La
tumba, Inventando que sueño, Ciudades desiertas e Se está Estas palavras de César Vallejo, proferidas em 1926,
haciendo tarde), vê no começo do novo século a consolidação do registram a reflexão sobre o lugar que cabia — e ainda cabe — à
tema do narcotráfico na cultura. Mesmo reconhecendo a América Latina na produção de imagens e ideários. A escalada da
importância deste, sua posição resulta valiosa para entender e narco-cultura e da narco-literatura coloca a mostra que as teses de
pensar os usos e abusos da narco-literatura, assim como seu Oswald Spengler sobre o declínio do Ocidente ainda estão
discreto charme. vigentes.
Quando os conquistadores e colonizadores espanhóis
3 – Geopolítica do medo desceram dos barcos que vinham da Metrópole, junto com a cruz
Vedes duas palavras que na Europa têm sido e são e a espada trouxeram a ideia de “América”, que a partir de então
exploradas por todos os arrivismos imagináveis: América se tornou o complemento necessário do mito de “Europa” /
Latina. Eis aqui um nome que se leva para baixo e para cima, “Ocidente” enquanto “Outro” que a define por oposição. Na
de um a outro bulevar de Paris, de um a outro museu, de versão afirmativa do mito, “Europa” ou “Ocidente” representam o
uma a outra revista tão meramente literária quanto
legado da cultura greco-latina, os portentos do Renascimento, as
intermitente.
luzes da Razão, o salto que representaram a Revolução francesa e
Em nome da América Latina conseguem ficar ricos, a Revolução industrial, entre outros. Na versão negativa, apontam-
conhecidos e prestigiosos. América Latina sabe a discursos, se os exemplos das Amazonas (que buscavam subverter a
versos, contos, exibições cinematográficas com músicas, sociedade repressora patriarcal), a ideia rousseauniana de bom
bolinhos, refrescos e humores dominicais. Em nome da
selvagem, o declínio da civilização europeia e cristã do
América Latina se saqueiam os gabinetes europeus que
pensamento nietzschiano, os taitianos de Paul Gaugin e em geral
exploram as humildades enfatuáveis da América, a cata de
difusão para um folclore e uma arqueologia que dão duro a pintura dos fauves, e mais recentemente, na visão dialética dos
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pensadores da Escola de Frankfurt, que Auschwitz é a rigorosa e seja possível a empresas estrangeiras, de países civilizados, fazer
consequência da razão cartesiana e iluminista — o que é lacado de dinheiro e higienizar fortunas, tornando-as honestas:
referendado em romances como Respiração artificial, de Ricardo El dinero de la venta de armas, de la trata de blancas, del
Piglia. Tendo como coordenadas esses dois sentidos, que se narcotráfico no puede llegar así como así a un banco,
apresentam de forma maniqueísta, “América” já foi Eldorado, a necesita dar un rodeo: Kukulcán es perfecto para simular
infância da humanidade, o local sem alma que devia ser trazida a que las ganancias se generaron aquí.
Cristo pela espada e pela cruz, a Barbárie que que precisava [...]
reformar-se pela Civilização, a terra das oportunidades, a Las aseguradoras compran deudas que nadie puede pagar.
alternativa para uma Europa gasta. Negativo de uma imagem (VILLORO, 2012, p. 109)
central, no plano materialista “América” sempre foi a terra das
especiarias, dos metais preciosos, das riquezas extraídas com Por tabela, o local serve também para que os turistas
trabalho escravo negro e da exploração dos indígenas. Na europeus e norte-americanos, entediados de calmaria (o que eles
intrincada série de obrigações que a cada território lhe foi entendem por “civilização”), acordem a adrenalina adormecida.
atribuída na configuração do sistema-mundo que se consolidou na Da mesma forma que, segundo se diz, o escritor americano
modernidade, para a América Latina sobrou não apenas a de Ambrose Bierce teria afirmado que morrer na Revolução mexicana
produzir matérias primas, mas folclore (leia-se “exotismo”), cores era mais instigante do que de um escorregão em casa (anedota
intensas e sabores rudes ao paladar condescendente. A afirmação que Carlos Fuentes aproveitou para seu romance Gringo viejo),
(frequentemente proferida) de que os europeus que chegaram à esses turistas vão ao México para ter uma vida mais emocionante:
América não viajaram no espaço, mas no tempo, é verdadeira “La gente no acelera a 300 kilómetros para matarse sino para saber
enquanto diz muito da mentalidade que a postula enquanto que podía matarse” (VILLORO, 2012, p. 40), diz Mario Müller, o
verdade. Na atual configuração geopolítica e geoeconômica, idealizador dos roteiros perigosos e amigo do narrador, Antonio
América Latina é a terra das commodities, dos paraísos da (Tony) Góngora. E continua sua exposição:
—Porque no vendemos tranquilidad —continuó—. En todos
especulação imobiliária, do espaço destinado à lavagem de
los periódicos del mundo hay malas noticias sobre México:
dinheiro, a produção das drogas, do ecoturismo, e, ultimamente, cuerpos mutilados, rostros rociados de ácido, cabezas
do turismo da violência e do medo. sueltas, una mujer desnuda colgada de un poste, pilas de
Em Arrecife, de 2012, Juan Villoro tece uma reflexão sobre cadáveres. Eso provoca pánico. Lo raro es que en lugares
o lugar que cabe ao México na cartografia da riqueza e do tranquilos hay gente que quiere sentir eso. Están cansados
divertimento contemporâneos. Um resort de luxo, localizado no de una vida sin sorpresas. Si tú quieres, son unos perversos
mar Caribe, é construído para que fique vazio a maior parte do ano de mierda o son los mismos animales de siempre. Lo
importante es que necesitan la excitación de la cacería, ser
perseguidos. Si sienten miedo eso significa que están vivos:
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quieren descansar sintiendo miedo. Lo que para nosotros es “El miedo es nuestro mejor recurso natural.” (VILORO, 2012, p.
horrible para ellos es un lujo. (VILLORO, 2012, p. 63) 108)
Às imagens e simulacros que se consolidaram para América Em uma época de crescente repolitização conservadora,
Latina (cores fortes, ícones rebeldes como os de Frida Kahlo e esses turistas viajam para observar a barbárie que se atribui ao
Ernesto “Che” Guevara, o realismo mágico de Gabriel García Outro — e ter “experiências” desse mundo que apenas conhecem
Márquez), incorpora-se a mais nova atração: a violência do pela televisão ou os jornais.
narcotráfico. Essa forma de colocar o problema a partir da literatura e da
Em “Amigos mexicanos”, relato que faz parte de Los ficção, recupera elementos valiosos para a discussão sobre o auge
culpables, o jornalista americano Katzemberg volta ao México com da narco-cultura e o papel do artista, o que conecta com a reflexão
a missão de fazer uma pesquisa para escrever um artigo que será entre escritura, mercado e intelectuais. Julio Cortázar já tinha
publicado em Point Blank (nome traduzido no relato como “a colocado o problema em “Apocalipsis en Solentiname”. Mesmo
queima-roupa”): “una de esas publicaciones que perfuman sus longa, é preciso atender à seguinte citação, toda vez que ela
anuncios y ofrecen instrucciones para ser hombre de mundo.” oferece pontos para repor a questão:
(VILLORO, 2013, p. 87) Sabedor de que o mais conceituado sobre En “Apocalipsis en Solentiname”, Julio Cortázar indaga en
las posibilidades del arte en América Latina: dar una visión
a América Latina é produzido para confirmar a sensibilidade
naif de la realidad, o testimoniar el horror. En el cuento, el
civilizada, codificada nos Estados Unidos e na Europa, a partir da
narrador, un escritor argentino llamado Julio Cortázar que
qual tudo é visto, é decisivo o rigor com que esse jornalista procura vive en Paris, visita Nicaragua en plena revolución
levar adiante sua empreitada. Se já no passado publicara um artigo sandinista. Ya en el primer párrafo, las contradicciones
sobre Frida Kahlo no influente New Yorker, para o qual, antes de asoman en el personaje, y se resumen en la dificultad de
vir, “...se entrevistó con profesores de Estudios Culturales en conciliar un arte comprometido con el pueblo con una
Brown, Princenton y Duke.” (VILLORO, 2013, p. 88), desta vez ele escritura difícil, vanguardista, “hermética” (283).
quer mergulhar fundo para escrever sobre a violência. Cuando “Julio Cortázar” llega a la isla de Solentiname,
O crescente auge dos passeios aos bairros pobres da descubre las pinturas de los campesinos, que dan cuenta de
América Latina (chamam-se favelas, “ciudades perdidas”, una realidad en la que hay una comunión del hombre con la
“cantegriles”, “chabolas”, “slum cities”, “villa miserias”, naturaleza, “una vez más la visión primera del mundo, la
“población callampa” entre outros), autênticos “safaris” na mirada limpia del que describe su entorno como un canto
medida em que se busca olhar, caracterologicamente, seus de alabanza” (285). Esa América Latina de las pinturas
habitantes entendidos como o “Outro”, é abordado em Arrecife. contrasta con la sensación del narrador en la misa del
Mario Müller, amigo do narrador, afirma com impecável lucidez: domingo, en la que, siguiendo los postulados de la teología
de la liberación, el evangelio es leído como si fuera parte de
la vida cotidiana de los campesinos, “esa vida en
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permanente incertidumbre de las islas y de la tierra firme y sobre los límites de cierto arte para dar testimonio de ese
de toda Nicaragua y no solamente de toda Nicaragua sino destino sudamericano, esa violencia latinoamericana. Lo
de casi toda América Latina, vida rodeada de miedo y de que el escritor comprometido debe hacer es, sin renunciar
muerte, vida de Guatemala y vida de El Salvador, vida de la a su proyecto artístico, sin simplificar sus hermetismos,
Argentina y de Bolivia, vida de Chile y de Santo Domingo, enfrentarse a esa realidad atroz y representarla. En el
vida del Paraguay, de Brasil y de Colombia” (285). ejercicio literal del fotógrafo/escritor en “Apocalipsis en
Solentiname”, se debe revelar el apocalipsis que está detrás
El arte naif de los campesinos no da cuenta del
de los paisajes bucólicos y la mirada prístina de los
miedo, del horror de vivir en la América Latina de los
habitantes del continente. (PAZ SOLDÁN, pp. 11 – 12)
setenta. Pero no es difícil rasgar la superficie y encontrar las
tinieblas, lo siniestro. En el cuento, el narrador, como un Tanto em Arrecife como em “Amigos mexicanos”, os
turista agradecido y conmovido más, toma fotos de las turistas que querem “conhecer o mundo” e “ter uma experiência”
pinturas y se las lleva a París. Allí, ya instalado con el direta estão ávidos de observar a “identidade” desse Outro. Desta
proyector a su lado, se pone a ver las fotos de Solentiname. forma, a América Latina passa a ser vista como o Continente
De pronto, en un típico giro cortazariano, ocurre lo
caracterizado pela violência que não tem solução.
fantástico para hacer estallar las estructuras del realismo
Em La 31, romance do escritor argentino Ariel Magnus, um
convencional: aparece en la pantalla, en vez de una pintura
de un campesino, la foto de un muchacho con un balazo en grupo de turistas norte-americanos que visitam essa “villa
la frente, “la pistola del oficial marcando todavía la miseria”, localizada no coração de Buenos Aires, afirmam:
trayectoria de la bala, los otros a los lados con las Esta simpática desprolijidad, sumada a la estrechez del
metralletas, un fondo confuso de casas y de árboles” (287). pasillo, a la ropa tendida en las alturas, a los perros sin amo
Después, más fotos del horror: “cuerpos tendidos boca y al olor a comida que emanaba de las casas les recordaba a
arriba”, “la muchacha desnuda boca arriba y el pelo los turistas los viejos pueblos europeos. […]
colgándole hasta el suelo”, “ráfagas de caras —Para esto me iba a Lisboa, que al menos queda más
ensangrentadas y pedazos de cuerpos y carreras de mujeres cerca…
y de niños por una ladera boliviana o guatemalteca” (287-
8). —Yo estuve en las favelas de Rio y de Caracas y les digo que
están muchísimo peor, ahí sí que el tour vale la pena…
La mayoría de las fotos remite a la violencia estatal:
hay uniformados en jeeps, autos negros de paramilitares, —Yo estuve en la India y la verdad es que después de eso
torturadores de corbata y pull-over. Es la violencia de las no hay miseria que logre a uno sorprenderlo…
dictaduras del Cono Sur, tiempos de “guerra sucia” y La decepción era general y se había ido acrecentando en
Operación Cóndor. “Cortázar”, en el paréntesis cada parada del tour, pues en comparación con lo que
revolucionario de la Nicaragua sandinista, escribe un cuento esperaban ver eso era efectivamente Nueva York, y nadie
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viajaba tantas horas —algunos desde aquella misma entiendo a este pueblo tan extraño en su inexpresividad
ciudad— para que les mostraran edificios de hasta cinco nórdica, en su mudez alcohólica que se emborracha de fría
pisos, muchos de ellos con su tanque de agua en altura y depresión, pero que sale de sus saunas con el poto rojo a
todos con luz eléctrica, balcones y aires acondicionado, zambullirse al mar congelado. Y corren desnudos por el
cerramientos de aluminio y vidrios (enteros)… hielo con los cachetes azules, y siguen bebiendo para no
llorar. (LEMEBEL, pp. 25 – 27, passim)
—Así cualquiera es pobre… (MAGNUS, 2012, pp. 25 – 26)
Segundo Mario Müller, espécie de Todesengel que
Se for verdade que a luz estridente de toda paródia pode
experimenta o terror controlado em Arrecife, o tédio finlandês
iluminar aspectos que em ocasiões a clareza dos conceitos deturpa
conduz os turistas em massa a buscar paraísos do medo. Nada
e limita, certamente esse episódio obriga a pensar sobre a
melhor, então, do que ir a “La Pirâmide”. Se “El tercer mundo
influência que a violência vinculada ao narcotráfico exerce sobre
existe para salvar del aburrimiento a los europeos.” (VILLORO,
muitas manifestações da literatura Latino-americana
2012, p. 63), e por tabela se confirme na comparação, a geopolítica
contemporânea. Não é arbitrária, portanto, a objeção de Rafael
dos estereótipos culturais ainda cumpre sua função. A partir dessa
Lemus sobre o auge da “narco-literatura”. Até que ponto o
posição de Sujeito, à natureza (confirmada no seu lugar de Objeto
escritor, o crítico e o leitor entram nessa moda aceitando seu
junto com a América Latina enquanto “Outro”) cabe também
discreto charme?
contribuir com o entretenimento: em um passeio, uma serpente
Em uma de suas extraordinárias crônicas, “Hensilki, donde
de coral atravessa diante deles. Um segurança a pega e se
los pobres tienen yate”, Pedro Lemebel escreve sobre o tédio
descobre que se trata de uma falsa coral. Tony Gándara, então,
finlandês,
En este paraíso de albinos, uno no puede sentir el ocio afirma: “También las víboras actúan — pensé.” (VILLORO, 2012, p.
turista mientras va surcando los canales verde oscuro con 70)
lanchas y yatecitos blancos bamboleados por la ventisca Desta forma, Arrecife trabalha na trilha do afirmado por
polar. Porque aquí, hasta los pobres tienen yates… Todos César Vallejo em 1926. Se o resort serve para vender medo, é
aquí viven bien, y a los niños forrados de astronautas, los porque “El peligro es el mejor afrodisiaco”. (VILLORO, 2012, p. 43)
cuidan como porcelanas. [...] Pero aquí, a pesar de la Se o primeiro mundo destruiu seu território (e esse é o
amabilidad de algunos finlandeses, igual se está solo en la outro nome válido para os conceitos de “modernizar” ou até
noche del invierno blanco, en la noche con sol del verano “civilizar” — como bem adverte Mefistófeles a Fausto) e quer que
helado. Se está doblemente solo en este paisaje a América Latina seja o do ecologismo, confirma-se então a
cinematográfico... Los fineses son indiferentes y parecen
geopolítica do medo.
amables, sonríen siempre, no sé de qué, son
extremadamente civilizados y toman vodka como bestias
día y noche, solitarios en los bares (me la ganaron)… y no
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EL APOCALIPSIS DEL PÓRTICO DE LA GLORIA Y LA PRISIÓN A La peregrinación compostelana y el impacto social de la


FALCONA EN EL LÁPIZ DEL CARPINTERO, DE MANUEL RIVAS cultura jacobea no siempre han tenido la misma dimensión. En los
Virginia Videira Casco siglos XII y XIII presenciamos un período de confirmación y
UFRJ esplendor. Algunas oscilaciones en las siguientes centurias y
decadencia en los siglos XVII, XVIII y XIX. Nos referimos a cantidad
"Entonces quise saber la verdad acerca de la cuarta de peregrinos, nobles o plebeyos, de nacionalidades diversas, que
bestia, que era tan diferente de todas las otras: terrible realizaron su romería por motivos religiosos, culturales o
en gran manera con sus dientes de hierro y sus garras económicos, y también por el simple hecho de viajar, para citar
de bronce. Devoraba, desmenuzaba y pisoteaba las algunos ejemplos.
sobras con sus pies. También quise saber de los diez En el último tercio del siglo XIX, y durante la primera mitad
cuernos que tenía en su cabeza, y del otro que había del siglo XX, comienza un proceso de recuperación de la tradición
crecido y delante del cual habían caído tres. Este jacobea. En el año 1937, primer jubilar 2 en plena Guerra Civil
cuerno tenía ojos y una boca que hablaba arrogancias, española, el General Franco proclama nuevamente al Apóstol
y parecía ser más grande que sus compañeros. Yo veía como patrón de las Españas, y pese al momento de guerra el
que este cuerno hacía guerra contra los santos y los número de peregrinos supera los cien mil. El siguiente año, 1938,
vencía, hasta que vino el Anciano de Días e hizo justicia por orden del Papa Pío XI, se convierte en Jubilar extraordinario,
a los santos del Altísimo. Y llegado el tiempo, los santos bajo la justificación de que el país se encontraba en guerra en 1937
tomaron posesión del reino." (DANIEL, 7:19-22).1 y quizá muchos caminantes no habían conseguido completar su
peregrinación en este año particular. Pero 1938 presenta escasas
El presente texto surge de lecturas de la novela El lápiz del peregrinaciones y sólo de procedencia local (gallega) o del resto de
carpintero, del escritor gallego Manuel Rivas (1957) en diálogo con España. Es solo a partir de 1943, el siguiente jubilar, cuatro años
la obra escultórica Pórtico de la Gloria, dentro de la Catedral de después de acabada la guerra, que las peregrinaciones comienzan
Santiago de Compostela. Ciudad apostólica del Occidente de a demostrar un aumento y que, poco a poco, a partir de la década
Europa. Localidad con un largo y profundo proceso histórico que de cincuenta, crece el número de visitantes extranjeros.
con el pasar del tiempo se convierte en perseverante centro de Ese poder de atracción del mundo jacobeo despertó
peregrinación para las gentes de la Cristiandad. siempre sentimientos que los hombres manifestaron de alguna
forma por medio del arte, como la música, arquitectura, escultura,

1
Biblia Sagrada. Apóstol Santiago el Mayor) cae un domingo. Lo que sucede habitualmente cada
2
Año Jubilar Compostelano, Jubileo o Año Santo, concedido por disposición 6, 5, 6 y 11 años. Aquí hacemos referencia al primer jubilar dentro del período
papal, se celebra desde la Edad Media, cada vez que el día 25 de Julio (día del de la Guerra Civil Española (1936-1939).
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literatura, etc. Gracias a ellos, y a las diversas manifestaciones, el Tras los sucesivos retornos a Galicia, Gerardo Diego enriquece
universo artístico, dentro de la temática jacobea, se amplía. En la sus emociones y sugestiones poéticas, además de su vocación
literatura, por ejemplo, foco de nuestros estudios, muchos compostelana, pues en Ángeles de Compostela evidenciamos
escritores, se valieron de los asuntos jacobeos para exponer un libro compuesto por poemas, todos ellos, absolutamente de
sentimientos en los diferentes géneros en que se encuadran piezas cuño jacobeo. El autor colocó en ellos tradición y cultura y,
de teatro, poemas, novelas, etc. según afirman los especialistas, a imagen y semejanza del
Prueba de ello es el caso del poeta español Gerardo Diego mismo Pórtico de la Gloria, monumento arquitectónico
(1896-1987) quien rinde homenaje a la región de Galicia, realizado por el maestro Mateo (1150 d.C -1200 o 1217 d.C),
llamada por él la “abuela de España”, en especial a la ciudad de localizado en el interior de la catedral compostelana. Diego
Santiago, en un libro titulado Ángeles de Compostela. El origen expresará su visión personal que al mismo tiempo es la visión
de este libro se remonta a 1929, cuando el poeta llega por de casi todos aquellos que realizaron la peregrinación o
primera vez a Santiago de Compostela. Este encuentro entre tuvieron contacto con la ciudad jacobea, una visión de hoy y de
poeta y ciudad fue relatado por Gerardo Diego en varias siempre, aunque no esté presente el género lírico en su forma,
ocasiones, en donde describe la intensidad con que vive la como lo representa con maestría Gerardo Diego, pero sí en su
llegada a Compostela con sus calles oscuras debido a un contenido.
apagón, hecho que le otorgará a la experiencia algunas Citamos ahora uno de los principales escritores de las letras
sensaciones naturales como el mismo autor lo expresará: gallegas, Manuel Rivas, quien en varias de sus obras rinde
Hasta 1929 [...] no conocí yo Santiago de Compostela ni homenaje a la ciudad compostelana o al culto jacobeo. El lápiz
Galicia. [...] llegué a la ciudad con tan buena suerte que mi del carpintero (1998), una de sus más famosas novelas, o quizá
primera noche me permitió ver una Compostela la más consagrada, ya que le rindió varios premios y es el libro
absolutamente Medieval. Un oportuno apagón eléctrico más traducido de la literatura gallega (VÁZQUEZ, 2007, p. 11),
sumió a la incomparable Roma de España en una tiniebla,
presenta gran parte de su narrativa en la ciudad de Santiago.
apenas atenuada por un cielo purísimo con todas sus
Isabel Castro Vázquez explica la base real de El lápiz3:
estrellas sin luna. Por las rúas salían a la novena de las
Inspírase nas vidas de Francisco Comesaña Rendo, un mozo
Animas las devotas, acompañadas por escuderos o dueños
estudante de medicina republicano (Daniel Da Barca, na
con linterna. Aquella misma noche a la luz de un cabo de
ficción), e a súa namorada Asunción Concheiro García,
vela escribí un soneto, ‘Ante las torres de Compostela’, con
coñecida familiarmente como Chonchiña (representada
mi impresión“.(DIEGO, 1996, p. 15).
como Marisa Mallo). Di Concheiro que en “1936, el ía
rematar a carreira e xa tiñan pensado casar en decembro,

3
A partir de ahora la obra El lápiz del carpintero será citada como El lápiz.
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pero o 26 de xullo ‘detivérono e déronlle una malleira anterior, porque es el personaje del pintor quien con un lápiz
brutal.’ O seu único delito: ‘ser o presidente das Juventudes de carpintero dibuja, dentro de la prisión, el Pórtico de la Gloria.
Socialistas,’ asegura a muller” (Candal). Comesaña foi Antes de continuar con el análisis de este personaje
condenado a morte, e máis tarde a súa pena rebaixouse a creemos conveniente explicar, o por lo menos intentar ya que es
cadea perpetua. […] Ademais deste fío central, tamén se
bastante complejo, el conjunto escultórico del Pórtico de la Gloria,
lembra a Camilo Díaz Baliño 4, pintor asesinado durante a
en la Catedral de Santiago de Compostela. No es una tarea fácil si
guerra, que está representado no artista que debuxa na
cadea cun lapis de carpinteiro, ata que, Herbal, o narrador consideramos que la biografía del arquitecto maestro Mateo aún
principal, mátao e quítallo […] Esta historia, ambientada na es un enigma para los historiadores. También la lectura del Pórtico
guerra civil, está centrada na outredade, nos acalados, nos se nos presenta bastante compleja, con la cantidad de imágenes
invisibles. (VÁZQUEZ, 2007, p. 186-187). que lo componen y las diversas lecturas que a lo largo de la historia
los investigadores han hecho de él. Pero, creemos conveniente
El narrador nos presenta los personajes y, con inúmeros
abordar el contexto histórico en el que fue edificado, y parte de su
momentos de flashback, conocemos el personaje Herbal, un
simbología, para poder establecer un diálogo con algunos pasajes
guardia de los presos políticos, que trabaja en la cárcel A
de El lápiz.
Falcona. Otras veces será el mismo Herbal, quien narre. Porque
Durante el episcopado de Diego Gelmírez (1068-1139 o
lo importante, según Rivas, es contar y “lo que precisamos son
1140), arzobispo de Compostela en 1120 y gran divulgador de la
cuentistas” (RIVAS)5. Y justamente, uno de los principales temas
peregrinación a Santiago y del culto al Apóstol, juntamente con el
que surge de la lectura de El lápiz es la Guerra Civil Española.
papa, Calixto II, y el abad de Cluny, San Hugo (1049-1109), fue
Según defiende Rivas "En Los Libros Arden Mal, en El Lápiz del
diseñada la basílica románica de Compostela, en la década de
Carpintero y La Lengua de las Mariposas no se trata de contar
1070, bajo la previsión de realizar un gran santuario que pudiese
una historia, ni siquiera un episodio. Lo que trato es de hablar
acoger a todos aquellos caminantes que llegaban a Santiago, como
de la guerra de las guerras".6
meta de su peregrinación. Fue preciso ampliar el espacio de la
Para establecer el diálogo entre el conjunto escultórico Pórtico
ciudad para que cupiesen las naves mayores, la fachada principal y
de la Gloria y la prisión A Falcona, en Santiago de Compostela,
las torres del nuevo edificio, que contaba con una dimensión
decidimos centrar nuestro trabajo en la figura del personaje
mucho mayor en comparación con sus antecesoras, las basílicas
pintor. Primero porque la mayoría de los estudios literarios
pre-románicas de la época de Alfonso II, el Casto, y Alfonso III, el
sobre esta novela abordan los personajes principales Daniel da
Magno.
Barca y Herbal. Segundo, y casi tan importante como lo

4 6
Camilo Díaz Baliño – Pintor asesinado el 14 de agosto de 1936. Idem
5
Entrevista con Manuel Rivas elencada en las referencias electrónicas.
P á g i n a | 895

Las obras catedralicias comenzaron en el año 1075, cinco más diferentes confines. La gente no sabía leer, la gente
después de la realización del proyecto, y finalizaron en 1211. El aprendía el consuelo de su turbación o tragedia viendo. La
resultado, además de la majestuosa basílica, mostrará una ciudad culturización no se hacía por los libros, se hacía con los
medieval con plazas que rodeaban la catedral, edificios públicos, cinceles (XAVIER, 1985, p. 498-499).
mercados y calles con las casas de sus habitantes. En esos tiempos, quien llegaba por la vía Francígena
Pero fue durante el episcopado de Diego Gelmírez, el cual (camino Francés) entraba por la puerta de la Plaza de Azabachería,
comenzó en 1100 y duró hasta el momento de su fallecimiento, conocida también como Plaza da Inmaculada, que debe su nombre
que se dio el impulso definitivo a la construcción de la catedral, al gremio de los azabacheros, artesanos típicos de Compostela,
obra que empezó con el obispo Diego Peláez. Así, en estos quienes vivían o tenían allí sus talleres. La catedral comparte su
cuarenta años, Compostela fue para los reinos españoles lo que exterior también con otras tres plazas. Obradoiro, que sirve de
Roma para el Sacro Imperio Romano, de tal relevancia que antesala al Pórtico de la Gloria, cuyo nombre deriva de los
adquirió, extrapolando los límites de la religión y la lengua, al numerosos talleres instalados en la plaza en los cuales se
recibir peregrinos representantes de otras tierras medievales. El trabajaban los materiales y se guardaban las herramientas para la
arzobispo Gelmírez, no sólo quiso rematar lo iniciado por Peláez, realización de la obra de la catedral. Platerías, que debe su nombre
sino enaltecer e introducir reformas. Así levantó nueve capillas, a los numerosos talleres de plateros allí asentados. Y finalmente
introdujo reliquias, lo que resultó en fortuna y prestigio, y realizó, Quintana, la cual posee una escalinata que la divide en dos partes:
entre otros detalles, obras en las portadas. Compostela contó con la de abajo es Quintana de Muertos, porque en ella se situaba el
donaciones que los romeros obsequiaban al final de la cementerio, y la de arriba Quintana de Vivos.
peregrinación, en su nombre o en el nombre de un grupo o de una ¿Pero quién fue de hecho el maestro Mateo? Su biografía
ciudad a la cual representaban. aún es un enigma, aunque desde el siglo XVIII se intenta
Portadas, capiteles y fachadas ofrecían un campo fértil para documentar su formación y también el conocimiento de su obra.
quien tuviese el arte de trabajar con el cincel figuras rígidas e Se cree que Mateo llevó a cabo sus trabajos en los reinos cristianos
hieráticas, típicas de los artistas románicos, como lo expresa el medievales de la Península Ibérica, durante la segunda mitad del
reverendo jesuita, historiador y literato gallego Adro Xavier siglo XII. Según documentos de la época se sabe que Fernando II,
cuando nos describe a los artistas y peregrinos de ese momento: cuyo reino también se extendía a Galicia, Salamanca, Zamora y
Su inspiración se reconcentra en un estilismo fino, Toro, en 1168 le confía la dirección de los trabajos de la basílica
evocador, de alma reconcentrada, tal vez, de alma paciente compostelana a cambio de una pensión vitalicia. Ceán Bermúdez,
o resignada, que es la que mejor encajaba con el público de al publicar en 1800 su Diccionario histórico de los más ilustres
la época. En estas portadas los artistas “hablaron” misterios
profesores de las Bellas Artes en España, realiza una peculiar
de fe a los caminos repletos de peregrinos, a todo ese
descripción del pórtico y cita la donación de Fernando II, diciendo
romeraje que bajo su cruz personal o social, venía desde los
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que dicho rey: "hizo mucho aprecio del mérito de este profesor". obra de la catedral compostelana y en los dinteles ubicados bajo el
(YZQUIERDO, 2010, p. 5). Unos años después, Llaguno y Amirola en tímpano central del pórtico se lee la siguiente inscripción, asociada
su Noticia de los arquitectos y arquitectura de España, afirma que al día en que coloca los dinteles y no a la finalización del pórtico:
anterior a la donación de Fernando II, en: "el año 1161, construía En el año de la Encarnación del Señor de 1188. En el día de
el maestro Mateo el puente de Cesures". El canónigo e historiador las calendas de abril, los dinteles del portal principal de la
de la catedral compostelana, Antonio López Ferreiro, publicó un iglesia del bienaventurado Santiago fueron colocados por el
estudio sobre el Pórtico de la Gloria y concluye, al referirse a maestro Mateo. Que dirigió la obra desde los cimientos de
las puertas (UNCETA, s/f, p. 54)
hipótesis de diferentes personas con el nombre Mateo, con su
opinión: "Por lo que a la patria toca, no hay por ahora indicio Lo que no se puede negar es la importancia y complejidad
alguno razonable que nos obligue a dejar de tenerlo por del proyecto arquitectónico y del programa iconográfico. Y claro
compostelano o al menos gallego". (YZQUIERDO, 2010, p. 8) que es lógico que se piense en la colaboración y plantel de
La historiografía del siglo XX no ha conseguido clarear esas escultores, que con seguridad formaban parte de un taller. Un
incertezas, así como tampoco generar nuevas hipótesis. Por lo grupo que además de intervenir en las obras de la ciudad de
tanto, el primer documento relativo al maestro Mateo es la Santiago tuvo su protagonismo en el arte gallego de 1200.
donación del rey Fernando II, en 1168, cuyo pergamino, escrito en
latín, se encuentra guardado en el Archivo de la Catedral de 1.1 El Pórtico de la Gloria
Santiago. El peregrino de hoy, principalmente el que llega por el
Dono y concedo a ti, Maestro Mateo, que tienes el primer Camino Francés, accede a la catedral por la puerta occidental,
puesto y la dirección de la obra del mencionado Apóstol, ubicada en Obradoiro. Es justamente después de subir las
cada año y en la mitad mía de la moneda de Santiago, la escalinatas y atravesar la fachada barroca que se depara con el
pensión de dos marcos cada semana, y lo que faltare en una Pórtico de la Gloria, obra cumbre de la escultura medieval gallega,
semana que se supla en otra, de modo que esta pensión te
y quizá de toda España, creación del escultor y arquitecto español
valga cien maravedíes cada año. Este obsequio y don te lo
maestro Mateo, a pedido del rey Fernando II de León.
concedo por todo el tiempo de tu vida para que redunde en
mejoría de la obra de Santiago y de tu propia persona, y los Mateo construirá los últimos corredores de las naves
que esto vean, cuiden y trabajen con más afán en dicha mayores y creará una obra en tres plantas llamada Pórtico de la
obra". (YZQUIERDO, 2010, p. 9) Gloria:
A parte principal da obra é um Pórtico de três arcos
Según los historiadores se podría afirmar que el maestro cobertos de estátuas de granito, onde se representa o mais
Mateo conocía el arte francés de su época, además del italiano, el surpreendente poema da História da Arte Medieval
musulmán y la tradición románica de los reinos cristianos europeia. Estaria quase feito no dia primeiro de abril de
peninsulares. Su faceta de escultor se representa claramente en la
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1188, quando Mateo coloca as vergas que suportam o Como toda leyenda resulta imposible comprobar su
grande tímpano central (SINGUL, 1999, p. 126). veracidad. Pero de todas formas a partir de aquí queremos
Estos tres espacios superpuestos representan: el mundo establecer el primer diálogo del Pórtico con El Lápiz. La figura
terrenal (Cripta), la Gloria (Pórtico) y la bóveda de Jerusalén humilde de maestro Mateo y la postura justa del personaje pintor
Celestial (Tribuna). El conjunto escultórico presenta la cuando reconoce la actitud “subversiva” de su hijo, después de la
materialización de la ciudad sagrada, traduce la Historia de la denuncia del alemán, sobre piedras arrojadas a las ventanas de su
constitución de Jerusalén Celeste, la Historia de la Redención, casa: “Al poco, apareció el pintor con su hijo [...] al que denunció
según la teología Cristiana. Primero la Nueva Jerusalén que por ser uno de los autores de las pedradas. Hasta el comisario
desciende del cielo a la tierra (Ap 21:1-8), después las bodas del quedó pasmado [...] Así de recto era el pintor [...] Porque el pintor
Cordero (Cristo) y su Esposa (Iglesia) (Ap 21:9-27) y para finalizar era un señor hecho y derecho” (RIVAS, 2008, p. 26).
una visión que recuerda a los primeros capítulos del Génesis (el
primer libro de la Biblia) hablando de ríos y árboles que dan fruto 2. El Pórtico y El lápiz del carpintero
eterno (Ap 22:1-5). En su origen, cuando el pórtico se trazó, no tenía puertas
(las que se traspasan actualmente corresponden a la fachada
1.2 La leyenda posterior barroca) y según algunos estudiosos eso se atribuye al
Cuenta una leyenda que cuando las obras del pórtico siguiente párrafo del Apocalipsis: “Tus puertas no se cerrarán, son
estaban por acabar el arzobispo visitó la catedral. Durante las el día porque allí no habrá noche” (BIBLIA SAGRADA, Ap, 21:25).
descripciones del maestro Mateo, sobre las esculturas y el papel Esta afirmación bíblica nos lleva a analizar que de cierta forma,
que cada una representaba en el conjunto, el arzobispo notó que después de que el personaje pintor realiza el dibujo del pórtico,
una de ellas, ubicada en el tímpano central, no había sido citada. también no habrá noche en El lápiz. Habrá sí muchas injusticias y
Mateo reconoció que la escultura representaba él mismo, pues se perdedores como los hay en toda guerra, pero algunas veces la
consideraba merecedor de la gloria después de realizar aquella muerte, física o sicológica, no se concretará. Rivas se vale de
obra de arte. Ante las recriminaciones del clérigo por su poca estrategias, en la elaboración de la novela, que ayudan a
humildad, Mateo decidió retirar su imagen. Después de un tiempo contrarrestar el sufrimiento de la prisión. El banquete que el
invitó nuevamente al arzobispo para apreciar el pórtico ya personaje Daniel Da Barca le oferece a Gengis Khan bajo hipnosis,
acabado. La figura del tímpano había desaparecido y una nueva delante de los presos como testigos; la tos que interrumpe la
escultura arrodillada, en la parte trasera del pórtico, formaba parte celebración de la victoria nacional; el grito de España “libre” de
de él. Se cree que es la imagen de Mateo, también llamada Santo todos los presos o la orquesta que forman en conjunto, así como
dos Croques. también, el relato del tipógrafo Maroño, en la prisión, quien
cuenta a sus amigos la historia de las hermanas Vida y Muerte, son
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algunos de esos ejemplos que según Vázquez mantienen vivos vez las dos opciones, los presos lo eran por sus características y al
estos hombres: “A beleza artística, o lirismo e as verbas son modos mismo tiempo se hacía necesario registrar un mensaje tan
de resiliência que contribúen a transformar unha realidade significativo como el que el pórtico contiene.
adversa e permiten a re-existencia dos presos como seres Veamos, por ejemplo, el conjunto escultórico del pórtico,
humanos” (VÁZQUEZ, 2007, p. 190). con estatuas que huyen de la rigidez o el hieratismo, demostrando
El personaje pintor también mantiene vivo a los presos vivacidad, movimiento y dinámica. Las ropas de las esculturas, casi
cuando les adjudica un lugar en el Pórtico de la Gloria. Y no es la dejando entrever la anatomía de los cuerpos, el tratamiento de los
primera vez que lo hace, pues antes de entrar en la prisión ya había cabellos y otros detalles sirvieron de inspiración para muchos
retratado enfermos en un manicomio. Según dice: “quería retratar autores, admiradores del conjunto escultórico, como Rosalía de
las heridas invisibles de la existencia” (RIVAS, 2008, p. 39). Ante los Castro (1837-1885) que en Follas, al hacer referencia al conjunto
gritos desesperados de un preso que anuncia la muerte de todos escultórico del pórtico, decía: “¿Estarán vivos? Serán de pedra /
Da Barca finaliza: “Hablar es un esconjuro” (RIVAS, 2008, p. 34). aqués sembrantes tan verdadeiros, / aquelas túnicas maravillosas,
Tanto sea verbalmente o a través de dibujos en un papel, la idea / aqueles ollos de vida cheos?” (FOLLAS NOVAS, 1880?).
es exorcizar contra los malos espíritus. Piedra viva superpuesta a la situación descripta en El lápiz
El pintor realiza por segunda vez el pórtico, esta vez con el cuando, dentro de la prisión, el narrador nos describe el personaje
lápiz de Marcial Villamor, un amigo carpintero sindicalista que se pintor y su descripción del pórtico: “El pintor hablaba del Pórtico
lo regala al ver que intentaba dibujarlo con un pedazo de teja. Y, de la Gloria [...] Cada una de las figuras resultaba ser en el retrato
desde nuestro punto de vista, para establecer el diálogo de la obra uno de sus compañeros de la Falcona” (RIVAS, 2008, p. 36). A Casal,
El lápiz con la arquitectura del pórtico, este quizás sea uno de los quien fuera alcalde de la ciudad de Compostela, lo relaciona con la
pasajes más inolvidables figura sagrada de Moisés con sus Tablas de la Ley en la mano. A
Y a medida que pasaban los días, con su estela de los peores Pasín, un sindicalista ferroviario, lo relaciona con San Juan
presagios, más se concentraba él en su cuaderno. Mientras Evangelista, el cual aparece en el pórtico, encima de un águila,
los otros charlaban, él los retrataba sin descanso. Les escribiendo. El teniente Martínez, quien de carabinero pasó a
buscaba el perfil, un gesto característico, el punto de la concejal republicano, está representado por San Pablo, el soldado
mirada, las zonas de sombra. Y cada vez con mayor
romano que perseguía a los judíos antes de ser seguidor de Jesús.
dedicación, casi enfebrecido, como si atendiese a un pedido
Los ancianos, Ferreiro de Zas y González de Cesures, son
de urgencia. [...] El pintor explicaba ahora quién era quién
en el Pórtico de la Gloria (RIVAS, 2008, p. 35-36). relacionados con las figuras de los ancianos del Apocalipsis
(veinticuatro ancianos) dispuestos en semicírculo en el arco
A partir de esta cita nos surgen dos inquietudes: En la central, bordeando el tímpano. En conversación unos con otros
novela El lápiz ¿los presos de A Falcona eran imagen y semejanza (una vez más el movimiento de las figuras), portan diversos
de las esculturas del pórtico o el pintor quería que lo fuesen? Tal
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instrumentos musicales (violas, arpas, citaras, y un organistrum - sonríe con descaro en el Pórtico, una maravilla del arte, un enigma
instrumento con cuerdas que dos de ellos llevan en su regazo). para los expertos. Ése eres tú, Da Barca” (RIVAS, 2008, p. 37).
Ellos son la orquesta del Apocalipsis. Daniel el profeta, según los textos bíblicos, fue prisionero
Otras esculturas y escenas también son representadas en junto con los hebreos y arrojado dos veces a la fosa de los leones
el pórtico y mantienen relación con el texto bíblico citado. En el sale milagrosamente ileso. Daniel será también el primero que, en
arco de la izquierda está representado el pueblo judío en el limbo la Biblia, hará referencia al Apocalipsis. En El lápiz, el personaje
de los justos a la espera de la llegada del Mesías. Además se Daniel Da Barca también es prisionero de las fuerzas de la falange,
aprecian diez figuras con cartelas en las manos que podrían sale ileso de un disparo y es condenado a cadena perpetua.
representar, según afirman algunos investigadores, a las diez Asimismo, su sonrisa, como la de Daniel el profeta, también es un
tribus de Israel. La imagen de Cristo en el centro preside el enigma frente a la adversidad. Mantiene siempre la conducta y el
tímpano. Un ángel a cada lado y los cuatro Evangelistas con sus buen humor y en la novela se lo cita de la siguiente manera: […]
símbolos: San Juan con el águila, San Lucas con el toro alado, San Parecía que su función más natural era la del abrazo […]
Mateo con el ángel y San Marcos con el león. Cristo se muestra Condenado a muerte en 1936 y que salvó el pellejo de milagro […]
bajando al limbo para liberar al Pueblo judío junto a las esculturas Un hombre de otros tiempos” (RIVAS, 2008, p. 11-14).
de algunos Patriarcas, así como Noé, Adán y Eva. En el arco de la Daniel da Barca, en la prisión, narra como una noche,
derecha se representa el Juicio Final, con las cabezas de Dios Padre cuando aún era estudiante de medicina, se encontraba en el
y Cristo en el centro, rodeado a su derecha por los justos que, en osario, junto al cementerio, cuando vio una hilera de candiles,
figura de niños, son conducidos a la Gloria por ángeles y, a su alusión a la “Santa Compaña”7: “Creo en la Santa Compaña porque
izquierda, por los condenados. la vi. No por tipismo” (RIVAS, 2008, p. 27). La “Santa Compaña” es
De todos ellos, cada escultura o imagen, no tenemos como una leyenda que forma parte de la mitología popular gallega. Es
establecer un diálogo directo con El Lápiz, pero sí podemos afirmar una procesión de muertos que recorren errantes los caminos con
que el conjunto escultórico en sí mantiene relación con la cárcel A la misión de visitar aquellas casas en las que, en breve, habrá una
Falcona. No sólo por las relaciones que el personaje pintor defunción. Se dice también que no todos los mortales tienen la
establece con algunas imágenes, a medida que dibuja, sino facultad de ver esta procesión, algunos tan solo la escuchan o
también, y tal vez, principalmente por lo que él mismo explica intuyen. Tenemos aquí otro dato interesante si pensamos que
cuando, en su dibujo, dedica unos segundos a hablar de la Daniel Da Barca, en la novela, relata esa experiencia, pues
escultura de Daniel, el profeta: “De él se dice que es el único que demuestra que no es un personaje cualquiera. Delante de la
adversidad siempre tuvo un papel de “santo” para de alguna forma

7
Según la mitología popular galega es una procesión de almas en pena con velas cruz. Esta procesión aparece para anunciar la muerte, de la propia persona que
en las manos, presidida por una persona viva, hombre o mujer, que porta una la asiste o de algún conocido. Señal de tragedia o maldición.
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mantener vivos, y optimistas, a los presos, lo que justifica, una vez finalidad mostrar visualmente a los creyentes los dogmas y
más, que el personaje pintor lo retrate a imagen y semejanza con enseñanzas del Antiguo y el Nuevo Testamento, además de otros
el profeta Daniel. textos de la tradición Cristiana.
Así como el personaje pintor, creador de su dibujo, y las Así como Mateo, el personaje pintor, en El lápiz, es un gran
relaciones que establece con el texto bíblico, representa un admirador de los pasajes bíblicos, lo que se confirma cuando
importante papel dentro de la novela, el maestro Mateo, creador expone su punto de vista sobre el eslabón perdido entre el mono
del Pórtico de la Gloria, representa a su vez un importante papel y el hombre: “Yo prefiero la literatura de la Biblia a la de la
dentro de la catedral compostelana. Las columnas del pórtico que evolución de las especies [...] la Biblia es el mejor guión que se hizo,
sustentan los arcos también están cubiertas con estatuas por ahora, de la película del mundo” (RIVAS, 2008, p.29). Y
realizadas por el propio Mateo. Y aquellas columnas que sustentan mientras en la novela el pintor describe el pórtico, el personaje
el arco central representan a Profetas, Apóstoles y diversos Herbal recuerda. Principalmente recuerda el botafumeiro, el gran
personajes del Antiguo Testamento. En el dorso de la columna del incienciario que lo dejara extasiado. Pero en determinado
parteluz, justo detrás de la representación del Árbol de Jesé, momento Herbal vuelve de sus pensamientos cuando escucha al
encontramos la imagen del Santo dos Croques. Es tradición que pintor describir el zócalo del pórtico, poblado de monstruos, pues
los peregrinos y visitantes de la catedral se den golpes (croques) los ojos de los presos estaban posados sobre él.
contra la cabeza de piedra para obtener memoria y sabiduría. Este En efecto, el zócalo en que descansa el pórtico se compone
rito también aparece en El lápiz, con el personaje Herbal, cuando, de cinco grupos de animales (leones, águilas y osos) cuyo
según la descripción había visitado dos veces la iglesia, primero de simbolismo aún se discute. Algunos creen que corresponden a los
niño, cuando sus padres lo llevaron: “tuvo que golpear la frente dogmas de la antigüedad: Brahmanismo, Budismo, Naturalismo,
contra la cabeza de piedra” (RIVAS, 2008, p. 36), y otra de grande: Sabeísmo, Islamismo, aplastados por la religión cristiana. Para
“La segunda vez ya fue uniformado, en una misa de la Ofrenda” otros representan los vicios y pasiones que veneraban los paganos.
(RIVAS, 2008, p.36). El escritor e historiador español Antonio López Ferreiro (1837-
Como ya colocamos, algunos estudiosos apuntan que la 1910), en sus trabajos sobre la catedral compostelana apunta que
imagen del Santo dos Croques es un autorretrato del propio simbolizan la Fe, la Justicia, la Fortaleza, la Pereza, la Envidia, la Ira,
Mateo. Con la mano derecha se golpea el pecho y con la izquierda la Lujuria, la Gula, la Soberbia y la Avaricia.
sostiene un tarjetón en que se lee: Architectus, como afirmando la Es esta última afirmación la que nos parece más adecuada
realización escultórica. Si el Santo dos Croques pertenece o no al para justificar la actitud del personaje pintor, al decidir realizar el
maestro no lo sabemos, pero lo cierto es que el Pórtico de la Gloria, dibujo del pórtico: demostrar los Siete Pecados Capitales, tal vez
muestra a Mateo como un ser humano gran conocedor de la Biblia, adjudicados al régimen fascista, la Fortaleza de los presos frente al
que lo crea en una época donde la escultura medieval tenía por régimen impuesto, la Justicia que, pese a los años de guerra
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seguidos por los de dictadura, al final prevalecerá, y la Fe de que la ______. Entrevista con Manuel Rivas. Disponible en:
historia un día será contada. http://www.rtve.es/mediateca/videos/20100210/entrevista-
En el pórtico, la arquitectura, la escultura y la pintura se manuel-rivas/689625.shtml Acceso en: 18 de ago. 2010.
unen para crear una imagen de la historia de la Redención y de su
Gloria. En El lápiz el personaje pintor relaciona el texto bíblico con SINGUL, Francisco. O Caminho de Santiago – A peregrinação
la situación de muchos presos durante la Guerra Civil Española. Y Ocidental na Idade Média. Tradução de Maria do Amparo Tavares
luego de su asesinato, Herbal, con un lápiz de carpintero Maleval. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.
imaginario, dibuja el mismo pórtico, también ficticio, y parece
entender, como nunca antes, cada imagen en él representada, UNCETA, María. La catedral de Santiago de Compostela. Santiago
principalmente la belleza de los ángeles que portan los de Compostela: Ediciones Aldeasa.
instrumentos de la Pasión: “una belleza dolorida que muestra la
melancolía por la injusta muerte del Hijo de Dios” (RIVAS, 2008,
p.53), aquel o aquellos que de alguna forma fueron silenciados por
el régimen franquista.

Referencias
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RIVAS, Manuel. El lápiz del carpintero. 5ª ed. Tradução de Dolores


Vilavedra. Madri: Santillana Ediciones Generales, S. L., 2008.
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LUGARES DISCURSIVOS DEL ESCRITOR EN LA LITERATURA marginados en el tejido social que luchan en busca de legitimar
LATINOAMERICANA CONTEMPORÁNEA: CONSIDERACIONES A algunos loci enunciativos que expresen sus intereses y
PARTIR DE LA PRODUCCIÓN LITERARIA DE WASHINGTON necesidades. Y, por otra parte, con estas categorías parece
CUCURTO afirmarse la condición marginada de dichos grupos e individuos en
Wanderlan da Silva Alves los debates culturales, una vez que su ingreso a los espacios de
UEPB elaboración y reflexión de la crítica se concreta con base en una
negación: lo que dichos conceptos señalan, más que la pertenencia
Un escritor no surge, no escribe ni habla desde la nada. El a uno u otro grupo o su homogeneidad y coherencia interna, es la
propio texto literario presenta una dimensión material y una no pertenencia a otro(s) grupo(s) establecido(s) y legitimado(s)
condición espacial y temporal que extienden sus sentidos más allá desde donde se suele medir el conocimiento. Es como si se dijera:
de la dimensión del significante y del significado en el discurso “somos esto porque, frente a los modelos vigentes o establecidos,
literario. Además, en el conjunto de países de América Latina, la somos distintos y, por lo tanto, no nos insertamos en los marcos
producción literaria se concentra en los grandes centros de sus matrices del conocimiento o sólo muy débilmente nos
económicos y culturales urbanos, en manos de grupos étnicos y encasillamos en ellos sin amplias comillas”.
económicos históricamente destacados en la producción Es decir, no se trata de buscar interpretaciones distintas a
discursiva representativa de una idea de cultura letrada que, en las establecidas en el orden sociocultural, sino de admitir que hay
cierto modo, escribe y representa a los demás grupos paradigmas distintos desde los cuales se produce el conocimiento,
socioeconómicos, étnicos y lingüísticos sometiéndolos a los aunque no siempre esto se explicita en el ámbito de las
dispositivos de representación y la visión de mundo según los instituciones culturales. Desde luego, “pensar que hay distintas
conciben aquellos que fabrican las representaciones, las cuales interpretaciones implica suponer que existe un principio
pueden no corresponder a las visiones de mundo ni a los compartido de conocimiento y reglas de juego, mientras que
paradigmas del conocimiento de los individuos representados. admitir que hay distintas perspectivas significa que los principios
En la literatura este problema apuntala a los niveles casi del conocimiento y las reglas del juego tienen una posición
insospechados de una paradoja, que, sin embargo, supera los geohistórica” (MIGNOLO, 2007, p. 39) y que, por lo tanto, depende
límites y objetivos de nuestra reflexión en este texto. Importa de quiénes hablan, desde dónde hablan y cómo hablan.
señalar, sin embargo, que, por una parte, la difusión de categorías Hace un siglo los formalistas rusos nos enseñaron que el
recientes en los estudios literarios como “literatura de autoría extrañamiento es un efecto fundamental en la creación literaria,
femenina” “literatura homosexual o literatura gay”, “literaturas precisamente porque en tanto desvío a la norma y los usos del
periféricas”, amén de tantas otras categorías posibles y corrientes, lenguaje prosaico, el procedimiento llama la atención hacia lo que
señalan las reivindicaciones de grupos tradicionalmente no es corriente e interviene en el propio curso de la comunicación
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y de sus modos automáticos de circulación entre los individuos en de los dos extremos, situación en que el elemento queda a la
las relaciones ordinarias en el lenguaje. Pero, desviando deriva, sin rumbo ni lugar definido, como un elemento extraño y
deliberadamente el concepto de los formalistas rusos de los permanentemente perturbador en el interior y a la vez en la
supuestos inmanentes que lo rigen, podríamos decir que no es sólo periferia del sistema literario y cultural. Es éste el caso de Santiago
internamente y en lo formal que el extrañamiento actúa en la Vega, más conocido como Washington Curcurto, en su relación
constitución del discurso literario. Si de pronto se inserta en el con el sistema literario en la literatura latinoamericana
sistema literario establecido un individuo o un grupo de individuos contemporánea.
convertidos en escritor(es), que de algún modo se choca(n) con los En el caso particular de Cucurto juegan, precisamente, las
patrones vigentes en el sistema –por el origen étnico, social y paradojas de la propia condición institucional de la literatura, es
económico, por ejemplo, o aún por sus opciones formales y su decir, el manejo de fórmulas ya existentes y aceptadas y la
concepción de lo literario–, este (estos) escritor(es) también le consecuente burla que las demuele y debilita en el propio discurso
provoca(n) un desvío al sistema, haciendo más compleja su literario. En nuestra hipótesis de lectura en este ensayo,
“gramática”, lo cual provoca cierta desautomatización en el propio defendemos que Cucurto tuvo que aprender la lengua del
funcionamiento del sistema literario.1 El modo como dicha tensión paradigma establecido (el sistema literario, que ya no se aparta del
se soluciona (pero habría que preguntarse si ella de hecho se sistema económico) para introducirse en él y de este modo llegar
soluciona) ya es otra etapa en la trayectoria. a tener una visibilidad en el ámbito público que no sólo ampliara
Se puede decir someramente que a veces los agentes el alcance y la circulación de su producción literaria sino que
ordenadores del sistema –individuos, políticas institucionales y potenciara la difusión de la crítica de las propias estructuras
editoriales o, incluso, razones económicas– se comportan de modo sociales, aspecto que está en la base de su literatura desde las
reaccionario, arrinconando o marginando al “elemento extraño”, primeras publicaciones.
“sofocándole la voz” parcialmente o por cierto tiempo –sea porque La producción literaria de Cucurto está marcada por el
no lo aceptan sea porque no lo entienden–. Otras veces lo acogen, propósito escandaloso, y eso hace que su propia constitución
adoptando en este caso una postura progresista que llega a textual sea compleja, puesto que a veces el texto se ubica en el
reconocer en lo nuevo algunas raíces que legitiman su ingreso al umbral de lo literario, de la polémica y del comentario o crítica
sistema. Sin embargo, una vez que la relación entre las piezas del literaria, en lo que el propio escritor critica al libro en tanto objeto
sistema literario es dinámica y puede cambiar siempre que algunas de ceremonia elitista. Sin embargo, el procedimiento sugiere la
de las variables se alteren, las dos opciones –la negación o la pervivencia en el entramado social y en el sistema literario
incorporación de lo nuevo– pueden, además, no llegar a ninguno latinoamericanos de estos valores que se cuestionan, y esto se

1
En “Sobre la evolución literaria” Tinianov (2004) ya había señalado que el autores ingresan a él y, en cierto modo, lo obligan a articular las piezas que lo
sistema literario se reorganiza y se redimensiona cada vez que nuevas obras y constituyen y orientan a su dinámica y sus relaciones internas.
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constituye en parodia al libro y a su institucionalización literaria. La bifurcan, el de Cucurto también lo hace, pero se encamina hacia
edición de Eloísa Cartonera de sus Poemas de siempre, poemas senderos menos glamorosos en la frontera de lo vulgar, lo público
nuevos y nuevas versiones de 2007, por ejemplo, acude a un y lo privado. En este caso se trata de la creación de un lugar
conjunto de artificios empleados por las grandes editoriales para discursivo y geopolítico que acapara lo tradicionalmente
la difusión y valoración de los libros de sus catálogos, aunque Eloísa desechable –pornografía, cultura de masa y arte callejero– para
Cartonera lo hace desde otras condiciones y lugares discursivos. inventar o producir el punto de vista de individuos o categorías
Desde la primera página figuran ciertas marcas del “estilo individuales y sociales que, aunque dejados a un lado en los
Cucurto” que a la vez integran la publicación al circuito librero y paradigmas legitimados del conocimiento, tienen su punto de vista
esfuma este circuito. En ella el lector ve el busto de una mujer de crítico y se niegan a “seguir la corriente de una historia a la que no
grandes senos semidesnudos y notable sonrisa –como las “tickis” creen pertenecer” (MIGNOLO, 2007, p. 29).
que forman una categoría de personajes secundarios de Noches Su escritura se presenta, pues, desde los detalles iniciales,
vacías o de Cosa de negros, sobre quienes Cucurto escribe un como el lugar del goce, la búsqueda inalcanzable de lo imposible
“Postscriptum” a Noches vacías para aclararle al lector que se trata que parece esquivarse siempre –él éxito, el reconocimiento y el fin
de mujeres “que se ríen de cualquier cosa, […] ésta es su calidad de la marginalización– que, sin embargo, si se alcanza
sorprendente” (CUCURTO, 2006, p. 61) y que son “nuestras reinas momentáneamente, quizás produzca conocimiento
visibles-invisibles del barrio” (CUCURTO, 2006, p. 62). En la misma indirectamente, y el carácter indirecto de esos saberes es
página de apertura del libro aparece la sigla “W. C.” y en el renglón fundamental, porque no fetichiza ni cosifica a nadie ni nada,
siguiente una frase a manera de subtítulo que dice: “Una vida simplemente hace girar a los saberes.2
atravesada por un rayo de pasión”. El lector motivado por dichas sugerencias podrá ir en busca
En este producto “libro”, lo literario, lo menor y lo de otros vínculos, y hallar en la escritura de Cucurto huellas de las
desechable –lo que se deja en el baño (W.C.)– ocupan el mismo “deliciosas criaturas perfumadas” (CUCURTO, 2006, p. 87) de
lugar y a lo mejor son lo mismo. “W.C.” es el lugar de la escritura y Boquitas pintadas de Puig, o del “comandante Buendía”
de lo público, y quizás de los ritos masturbatorios que la figura (CUCURTO, 2006, p. 152) de Cien años de soledad de García
dibujada de la “ticki” puede proporcionarle al que ahí se mete: es Márquez. Pero en la literatura de Cucurto ya no se trata de las
un libro-baño cuya puerta-portada el lector puede abrir y entonces boquitas pintadas de rojo carmesí, que luego se tiñen de azules,
encontrar la excitación y la pornografía. Inserto en una tradición violáceas y negro, o de la también periférica Coronel Vallejos como
de libros-laberintos, libros universales y libros-senderos que se en la novela de Puig, ni de los Buendía del Macondo mítico de

2
Roland Barthes (1977) dice que la literatura, distintamente de las ciencias en puesto que le permite constituirse en un lugar discursivo menos sometido a los
el sentido corriente del término, hace girar a los saberes, no los fija ni los poderes institucionales.
fetichiza, confiriéndoles un lugar indirecto que, a su entender, es precioso
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García Márquez, sino de las “tickis”, los cumbianteros y los numerada). Ahí está el guiño para el lector. Y, sin embargo, lo que
vendedores ambulantes de las periferias bonaerenses de La Boca sigue es verdadero y pragmático: datos de la publicación y de la
o Constitución, y de la parodia carnavalesca de la idea e identidad bibliografía de Cucurto. Si a todo eso añadimos la estrategia de
de la nación, por la que Cucurto funda en el universo de su agregar entre los textos de Poemas de siempre, poemas nuevos y
escritura a la “República Revolución Productiva del Disparate”. nuevas versiones algunos breves textos críticos sobre los diversos
Cucurto, la persona de escritor, también se vuelve crítico libros de Cucurto reunidos en esta publicación, notamos que se
confesional, deslindando para el lector el contexto, la época, el trata de un proceso deliberado de “corrosión de lo central por lo
lugar y a veces los motivos de cada uno de los textos que están marginal” (KLINGER, 2006, p. 158).
recogidos en Poemas de siempre, poemas nuevos y nuevas Entonces, la trayectoria literaria de Cucurto, parcialmente
versiones. Al comienzo en cada uno de los libros reunidos en esta reunida en Poemas de siempre, poemas nuevos y nuevas versiones,
publicación aparece un párrafo que funciona como una sinopsis apuntala a ciertas tensiones que perduran en el ámbito literario
del respectivo libro, semejante al procedimiento de presentación latinoamericano contemporáneo, como las tensiones entre lo alto
y comentario breve de crítica literaria que actualmente se publican y lo bajo, que, lejos de haber desaparecido, irrumpen travestidas
en revistas y diarios de gran circulación, que funcionan más bien en las relaciones sociales. Resulta crítica esta opción en Cucurto
para atraer al lector hacia el libro en tanto producto, y poco tienen porque constituye una manera alternativa de cuestionar los
que ver con la crítica literaria propiamente. Con eso se vuelve modos de pensamiento anclados en la política y la economía
problemático el proceso de referencias, puesto que un texto presuntamente libres que, por lo general, no se ponen en duda y
remite a otro texto, que a su vez remite a otro sucesivamente, por ello figuran como naturales en las relaciones socioculturales y
hecho que llama la atención a la condición de representación de en la producción del conocimiento, modernamente, y
este conjunto de discursos de Cucurto y sobre Cucurto, los cuales, corresponden en verdad a estrategias de pervivencia de una matriz
no obstante, aparentan ser transparentes (las imágenes y de poder que se gestiona a sí misma bajo la retórica de la libertad,
entrevistas en la internet y en los blogs, la presunta confesión la innovación y de lo nuevo. Dialogando aquí con los argumentos
autobiográfica, el autor convertido en personaje, etc.). de Walter Mignolo (2007) y haciéndole una paráfrasis para
En Poemas de siempre, poemas nuevos y nuevas versiones, reflexionar sobre nuestro tema, podríamos decir que Cucurto
por ejemplo, la presentación de la biografía del escritor (persona habla desde un punto de vista que ve a varios acontecimientos
de escritor, en verdad), aparece en la quinta página, ya convertida simultáneos relacionados entre sí por distinciones impuestas por
en ficción y a la vez sacada de Wikipedia. Los datos se presentan los diferenciales de poder.
presuntamente del modo más transparente, hasta que en el Al crearse en tanto persona de escritor, Cucurto dialoga
penúltimo renglón se observa que Washington Cucurto “murió en oblicuamente con las legitimaciones establecidas en el entramado
una bailanta el 27 de abril de 2007” (CUCURTO, 2007 –página no social y en el sistema literario. El recurso consiste en fingir
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concebirse a sí mismo como otro escritor latinoamericano que comunicación y los debates en torno a la propia literatura, porque
rearticula sus diferencias o su “no status de otro”, convirtiéndolo “lo cierto es que en los últimos años la relación se invirtió en
en una persona aparentemente adherida a las esferas de muchos aspectos y el lugar del poder lo ocupa lo que tiene
dominación y manutención de la oposición entre centros y visibilidad, lo que está en los medios y en el mercado” (YUSZCZUK,
periferias –por medio del racismo, del racionalismo y del discurso 2010, p. 261).
anclado en una idea de progreso que defiende la explotación de la El conjunto de discursos de Cucurto y sobre Cucurto que
mano de obra– que se enmarca en los discursos que dan circulan en los medios de comunicación y también en el discurso
continuidad a las relaciones de dependencia cultural que marcaron de la crítica sobre el escritor, hoy integran los sentidos que la obra
la historia de América Latina, y por este artificio se opera el y la persona de escritor Washington Cucurto forman, lo cual
desenmascaramiento crítico del funcionamiento de este ethos extiende la textualidad de su producción literaria. Se trata de un
discursivo de la modernidad literaria latinoamericana, que todavía trasvasamiento de los signos, en cuya operación de construcción
deja sus huellas en la literatura contemporánea. de los sentidos la ficción real (Washington Cucurto, seudónimo del
Su doble articulación discursiva ubica a Washington autor) completa para el lector o en su mente los espacios vacíos
Cucurto (persona de escritor de Santiago Vega) en un lugar que quedan en la escritura y el habla del Washington Cucurto
discursivo híbrido de resistencia, entre la sencillez y el cinismo. Así ficcional (el personaje y la persona de escritor), en un proceso en
que Washington Cucurto, a pesar de también haber surgido en la que la ficción de lo real y lo real de la ficción se complementan
periferia, logra incursionarse en diversos ámbitos sociales, recíprocamente. Pues Cucurto (la persona de escritor y también el
económicos, políticos y culturales –sea en universidades, sea en personaje) es la voz borracha, populachera y tartamuda, la voz que
circuitos del comercio de libros, sea como agitador cultural cuya surgió anónima a partir de un chiste motivado por la borrachera y
mise-en-scène de escritor también constituye un modo de poner el juego con la referencia al colectivo que se tomaría el personaje
en duda la condición de margen y de periferia de sus orígenes y de (el 39).
su participación en el propio sistema literario, condición que a Quizás por tratarse de una voz tartamuda y movida por la
veces sirve de casilla para clasificar periféricamente su literatura y borrachera, la suya también es una voz cambiante. Curto, coto,
la de aquellos que no forman parte de lo culturalmente Cucurto, circuito, culto o corto, las voces literarias de Washington
considerado central en las esferas sociocultural y económica. Cucurto se constituyen en la repetición que, sin embargo, es
Al convertirse en escritor por medio de Washington repetición tartamuda y, riendo y repitiéndose, dice otras cosas y
Cucurto, Santiago Vega apuntala a las contradicciones de un no lo mismo. Eso corresponde a una postura crítica, pues este
sistema literario que acepta lo marginal siempre y cuando le artificio hace girar a los saberes sin fijarlos, y poniéndolos en
peguen el sello de “marginal”, a la vez que entra en la disputa por movimiento, pone en duda los mitos y genera nuevos saberes,
lugares discursivos más visibles, especialmente los medios de convirtiéndolos en literatura imaginativa.
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En su literatura los mitos que se ponen en duda son inmigrantes en su constitución–, que también rompe con una
aquellos creados por las clases medias con respecto a las periferias tradición literaria canónica al adoptar como modelo el discurso
y los individuos de las periferias: el machismo, la violencia, la pornográfico de las revistas y los relatos eróticos disponibles para
vulgaridad, la irracionalidad, la criminalidad, la pobreza, el la venta en quioscos o para el acceso gratis en internet. La
desorden, el inmigrante latinoamericano como bárbaro. Por otra invención imaginativa funciona, aquí, como elemento que en la
parte, Cucurto también pone en duda algunos mitos “cultos” como violencia (del lenguaje, de las acciones y de la propia sexualidad
el de la nación, de la identidad nacional, y el de la homogeneidad exasperada) se convierte en un modo de desvelar la violencia de
étnica y económica argentina en cierto modo legitimados en la los discursos legitimados en torno a la idea de nación e identidad
tradición literaria moderna, etc. En Cosa de Negros, por ejemplo, nacional argentinas que, por lo general, les negó a los negros,
el sexo “da vida y mata” (CUCURTO, 2006, p. 31). El personaje indios e inmigrantes latinoamericanos la importancia en tanto
Cucurto, el sofocador de la cumbia, llega a Buenos Aires para un elemento cultural, étnico y lingüístico en la constitución de la idea
concierto por la celebración de los 500 años de la ciudad y se mete de nación. En la narrativa de la novela, todo ese raudal negado se
en unas confusiones festivas, políticas y sexuales en las que no sólo vuelve materia fecunda (semen) que apuntala a otros derroteros
se enamora de Arielina –hija de Evita Perón con un amante– como de la historia y la sociedad argentinas.
la tumba en sitios públicos, y tienen sexo en cualquier lugar, hecho Mientras que en el paradigma tradicional del pensamiento
que provoca un desorden nacional y el riesgo de una guerra entre latinoamericano la violación culminó en la promoción del silencio
República Dominicana y la Argentina. Así que la diégesis se del otro, en la diégesis el sexo culmina en la producción de nuevos
convierte en una suerte de orgía sexual y textual, pues Cucurto signos que redimensionan o problematizan la propia idea de
tiene relaciones con varias mujeres y también con hombres, nación. Ya no se trata de silencios, sino de gritos, gemidos, dolor
dejándose sodomizar, incluso, a la vez que la narrativa mezclado con goce y burla. Narrada desde este lugar, esta historia
fragmentada potencia la lectura de los quiebres de las ideas de pone énfasis al burlador burlado (o en la expresión del relato “el
identidad y nación argentinas. culeador culeado”), sin embargo, se pone en escena desde otro
En esta novela el sexo se convierte en alternativa que paradigma de pensamiento y conocimiento, lo cual resulta ya no
“corrompe” el presunto orden de la historia del país, acción llevada en una violación unívoca, sino en una relación más amplia,
a cabo por inmigrantes, conforme dice el narrador. El artificio orgiástica si se mantiene el campo semántico sexual, en la que al
desarma el mito de la pureza étnica y al mismo tiempo provoca un dolor también se asocia el placer del “rompimiento total” que
“rompimiento total” –rompimiento (del cuerpo) de la historia de la desarma los mitos de la homogeneidad y produce nuevos
nación que silencia la participación de las minorías y los conocimientos.
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En su trayectoria literaria Washington Cucurto contrajo Pero habría que tener en cuenta que Interzona también ocupa un
relaciones oblicuas con el sistema literario como forma de lugar periférico en la geografía del capitalismo y en la dinámica del
insertarse en él y marcar su locus discursivo anclado en otro mercado editorial transnacional reciente: se trata de una editorial
paradigma del pensamiento y del conocimiento, a la vez que esta más o menos pequeña de la Argentina.
operación también estableció lo literario como uno de sus lugares Así que el éxito de Cucurto también confirma su condición
discursivos: Cucurto habla en la literatura y desde la literatura. Su de excepción –algo semejante le sucedió a Pedro Lemebel, aunque
éxito a lo largo de los años, por otra parte, en lugar de eliminar las su caso tiene otros matices, pues el chileno fue el primer escritor
fronteras en las que se inscriben sus lugares discursivos, sigue declaradamente homosexual que logró una beca Guggenheim
desafiando tanto el campo de la literatura como el del mercado, para escribir un libro–. Ésta es una contradicción importante,
aunque actualmente es cada vez más evidente que Cucurto y puesto que pone en evidencia que el acercamiento de Cucurto a
Santiago Vega (a lo mejor ya inseparables en el escenario literario) los circuitos institucionalizados de producción y difusión del
también ya forman parte de las dinámicas del mercado, pero conocimiento no alteran del todo la condición singular de su locus
periféricamente, y esto es fundamental. discursivo. Cucurto no es hoy un anónimo, pero tampoco es una
Si se comparan sus libros iniciales publicados en cartón por voz “a la corriente”.
Eloísa Cartonera con el éxito de Cosa de Negros, por ejemplo, Su trayectoria literaria pone en duda la idea de que los
algunas diferencias son evidentes e, incluso, contradictorias. En los nuevos marcos de circulación y difusión de la literatura en la época
primeros hay la configuración artesanal de la publicación en de los blogs y de la internet borran las luchas por el poder en el
cartón, y la fotocopiadora presenta un rol central emblemático de interior de la literatura y, a la inversa, enseña que las tensiones
un modo de hacer literatura, en el que no hay derechos de autor políticas y literarias ya no se formulan del mismo modo en el
expresados en la contraportada ni ISBN o datos de imprenta y terreno de la literatura contemporánea, y no se trata de oponer
catálogo. En ellos tampoco está prohibida la reproducción parcial una literatura experimental a una literatura participante,
o total de los poemas y las narrativas. La publicación de Cosa de sencillamente. Cucurto se ubica en un marco de múltiples
negros por Interzona (en verdad, Cosa de negros y Noches Vacías disputas, que también ocurren en y desde la periferia. Y si su
reunidos en un tomo), a su vez, no sólo presenta al producto literatura todavía hoy tiene que enfrentarse a los paradigmas del
“libro” bajo otra configuración –ya no en cartón–, sino que lo conocimiento que suponen que lo que escribe Cucurto no es
introduce en la dinámica del mercado editorial y, por tanto, del “totalmente” literatura, el paradigma inventivo adoptado por él
mercado. Con esto están declarados los derechos de autor, los aclara que apenas hubo en alguna época obras que fueran
registros y catálogos, el ISBN y la prohibición de la reproducción. “totalmente” literatura.
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Este umbral es su zona de conflictos productiva y escándalos políticos, etc. ¿Y no se trata de lo que también hacen
generadora de literatura y debate, en él se inventa el presente, es muchas otras literaturas del presente? Sí, es lo que parece. Sólo no
decir, se lo imagina a partir de otros lugares creativos y discursivos. se puede eludir el giro que hace que, al plantearse las repuestas y
No son nuevas interpretaciones de la historia o del presente, sino representaciones de dichas cuestiones desde un locus discursivo
otras historias y otro presente que se diseñan en el lenguaje. Ésta que no sigue el paradigma legitimado y establecido en el
es una perspectiva doble. Por una parte, Cucurto acude a ciertos entramado sociocultural, Cucurto ofrece otras historias, otras
elementos corrientes de la propia literatura latinoamericana, respuestas y otros conocimientos no cimentados en la misma
como el poema y la prosa. Por otra, no hay utopía integradora en retórica de la modernidad.
su literatura ni en los lugares discursivos que ocupan los
personajes, el propio Cucurto (persona de escritor) y el propio Referencias
autor: “¡Cuánto tiene que ver mi vida con ese tronco/sobresaliente BARTHES, R. Aula. Tradução L. Perrone-Moisés. 14. ed. São Paulo:
del ombú de la Plaza San Martín!// Un palo lo sostiene pa que no Cultrix, [1977].
se vaya al piso,/ ese palo es mi vida!” (CUCURTO, 2007, p. 132). Lo
que hay es una búsqueda constante de nuevos derroteros de la BERNAL, A. No saben que sou el rey del realismo atolondrado
expresión y de la invención, que apuntalan a la idea de que, (entrevista). Destiempos, México, D. F.: n. 10, p. 1-4, p. 2007.
aunque el campo literario sigue anclado en un paradigma del
conocimiento que tiene en la razón y la seriedad su andamiaje, CHERRI, C. L. Lo real y las sirenas del presente: Cucurto,
posautonomía e imperio. In: CONTRERAS, S. (ed.) Cuadernos del
también ya comienza a tomar forma el diálogo con otros sectores
seminario – Realismos, cuestionoes críticas. Rosario: Humanidades
de la sociedad y del lenguaje desde nuevos paradigmas de y Artes Ediciones/UNR, 2013. p. 209-236.
producción del conocimiento que no se ven o no se reconocen en
las representaciones que tradicionalmente se les impusieron y que CUCURTO, W. Cosa de negros. Buenos Aires: Interzona, 2006.
a lo mejor estaban relacionadas con el propio ethos “latino”
moderno que se construyó la literatura latinoamericana. CUCURTO, W. Poemas de siempre, poemas nuevos y nuevas
Por esta vía alterna Cucurto y su producción literaria versiones. Buenos Aires: Eloísa Cartonera, 2007.
forman unas representaciones carnavalescas que a veces lindan
con el absurdo, por las que se pone en debate un conjunto de CULLER, J. Teoria literária: uma introdução. Tradução S. G. T.
paranoias del presente, como el terrorismo, las revoluciones y las Vasconcelos. São Paulo: Beca produções culturais, 1999.
crisis políticas, la inmigración, el espectáculo mediático y los
P á g i n a | 910

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P á g i n a | 911

O POLICIAL EM REVISTA: INVIERNO EN LISBOA DE MUÑOZ parte desse estudo, abordar-se-ão as particularidades dessa mal
MOLINA E ZORRILLA sucedida adaptação.
Wellington R. Fioruci Dada a perspectiva semiótica de Eco (2003, p. 153), vale a
UTFPR/UFRGS pena retomar suas asserções sobre o estilo: “[...] considero que
devemos afirmar duas coisas: a primeira, que uma semiótica das
Em toda obra de arte, o estilo é uma promessa. artes nada é senão pesquisa e desnudamento das maquinações do
T. Adorno estilo; a segunda, que a semiótica representa a forma superior da
estilística e o modelo de toda crítica de arte.” Ainda que a segunda
Estilo e significação definição soe grandiloquente para alguns, pode-se depreender
A problemática em torno do estilo foi bastante discutida que o teórico italiano refere-se de modo geral à importância do
por Bakhtin (2003) no início do século XX, quem o colocava no eixo estilo em todo objeto artístico e, por conseguinte, este
comunicativo ou dialógico da construção discursiva, abordagem corresponderia às estratégias e/ou recursos (“maquinações”) que
essencial para os estudos sobre os gêneros. Mais atualmente, dão corpo à linguagem ou poética de um autor, tal como assinala
Umberto Eco, partindo de seu conterrâneo Giacomo Leopardi, Julio Plaza (2013, p.23) “Produzir linguagem em função estética
definiu o conceito de estilo como sendo o elemento de significa, antes de mais nada, uma reflexão sobre suas próprias
originalidade da obra (ou do autor), e o tomou como um sinônimo qualidades.”
da forma: “Pertenceriam ao estilo (como modo de formar) não É importante destacar que não se pretende aqui debater o
somente o uso da língua (ou das cores, ou dos sons, segundo os conceito per se de estilo, mas entender que, na aproximação de
sistemas ou universos semióticos), mas também o modo de dispor duas linguagens, a questão das estratégias ou recursos dos quais
estruturas narrativas, de desenhar personagens, de articular lançam mão os autores é fundamental, ainda mais em se tratando
pontos de vista.” (ECO, 2003, p. 152). de sistemas semióticos diferentes. De antemão, porquanto, é
A concepção de Eco serve muito bem ao propósito deste totalmente viável colocar para dialogarem obras de autores e
artigo, já que sua base fulcral é comparar diferentes estilos ou códigos diversos, contanto que se respeitem as idiossincrasias de
formas, a saber, a linguagem literária de Antonio Muñoz Molina e cada um. Em suma, o estilo ou a construção da forma de uma obra
a cinematográfica de José Antonio Zorrilla: dois Antonios e um está intrinsecamente conectado tanto às escolhas do artista como
texto em comum, o romance El invierno en Lisboa, adaptado ao às fronteiras do código. No entanto, é também relevante o alerta
cinema em 1991. Cabe antecipar que infelizmente o romance não que faz Eco (2003, p. 159) sobre uma análise que
conseguiu ser transposto para as telas com êxito, ao menos no que equivocadamente perca de vista as invenções de um texto para
diz respeito ao efeito proporcionado pelo filme, certamente mais focar nas invariantes do estilo. Em consonância com Eco, André
importante do que a mera transposição do enredo. Na segunda Bazin diria:
P á g i n a | 912

difference rather than similarity, individual styles rather


“Form” is at most a sign, a visible manifestation, of style, than formal systems. (2000, p. 8, grifo meu)
which is absolutely inseparable from the narrative content,
Diante dessas suas concepções, conclui que os estudos dos
of which it is, in a manner of speaking and according to
auteurists conseguem valorizar mais a transformação de uma
Sartre’s use of the word, the metaphysics. Under these
circumstances, faithfulness to a form, literary or otherwise, linguagem em outra sem “essencializar” ou priorizar a natureza da
is illusory. (BAZIN apud NAREMORE, 2000, p. 20, grifo do obra literária, sobretudo as canônicas: “I myself have always
autor) preferred the approach of the auteurists because they are less
reverente toward literature and more apt to consider such things
Se é fato que a capacidade de invenção é substancial na
as audiences, historical situations, and cultural politics.”
configuração de um estilo próprio, na emancipação de uma voz
(NAREMORE, 2000, p.08), perspectiva com a qual este artigo
particular, no que tange à transposição de uma obra literária para coaduna. Nesse sentido, na esteira do pensamento teórico de Julio
o cinema essa correlação é ainda mais conflituosa, já que Plaza, poderia se dizer que: “[...] um signo traduz o outro não para
ineludivelmente a obra adaptada permanece ecoando no
completá-lo, mas para reverberá-lo, para criar com ele uma
horizonte de expectativas da recepção, senão do leitor comum,
ressonância [...]” (2013, p.27).
certamente da crítica “If we know that prior text, we always fell its
Efetivamente, tal coexistência ou conflito (criativo) entre
presence shadowing the one we are experiencing directly. When
códigos não se deve traduzir de forma alguma em perda de sentido
we call a work an adaptation, we openly announce its overt
e tampouco estabelecer uma relação de subalternidade entre as
relationship to another work or works.” (HUTCHEON, 2013, p. 6).
obras, ao contrário, a abertura do texto de partida permite que se
James Naremore em conhecido ensaio resgata a linhagem
criem novas perspectivas de significação, dado que “[...] toda arte
de estudos proveniente da Nouvelle Vague francesa (French
é a conversão duma sensação numa outra sensação.” (PESSOA
auteurists), bem como os aportes teóricos de George Bluestone,
apud MOISÉS, 1994, p.50), princípio tradutológico essencial do
pioneiro dos estudos de transposição semiótica literário-fílmica,
signo na sua transformação em objeto ou pensamento. Esse
para tecer algumas considerações bastante elucidativas no sentido
trânsito semiótico é um processo gerador de novos efeitos, como
de entender “[...] how codes move across sign systems”:
sói ocorrer no trânsito intertextual entre obras de um mesmo
The Bluestone approach relies on an implicit metaphor of
código, objeto de estudo apreciado, por esse motivo, pela teoria
translation […] this category usually deals with the concept
of literary versus cinematic form, and it pays close attention comparativista.
to the problem of textual fidelity in order to identify the A ordem existente é completa antes que a nova obra
specific formal capabilities of the media. By contrast, the apareça; para que a ordem persista após a introdução da
auteurist approach relies on a metaphor of performance. It, novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se
too, envolves questions of textual fidelity, but it emphasizes jamais o foi, sequer levemente alterada: e, desse modo, as
relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao
P á g i n a | 913

todo são reajustados, e aí reside a harmonia entre o antigo Antonio Muñoz Molina
e o novo. (ELIOT, 1989, p. 39)
A produção literária do granadino Antonio Muñoz Molina,
A harmonia a que se refere Eliot em seu conhecido ensaio autor várias vezes galardonado 1 e não menos popular, está
sustenta-se no diálogo vivo entre os textos, em certo grau no delineada em grande medida pelas tintas do gênero policial, base
potencial de um sobreviver ao outro e no outro, enfim, no delicado sedimentar desse conciso estudo. O autor pertence à geração do
jogo entre permanência e ruptura: “[...] as a process of creation, pós-franquismo e ainda que possua ampla diversidade em sua
the act of adaptation always involves both (re-) interpretation and produção é possível situá-lo no eixo do romance policial espanhol
then (re-)creation. This practice is also seen as a creative act of contemporâneo, cujas obras surgem entre as décadas de 1970 e
appropriation. [...] seen from the perspective of its process of 1980. Subjaz à novela negra desse período um teor de
reception, adaptation is a form of intertextuality.” (HUTCHEON, ambivalência política, o que explica certamente o fato de que “la
2013, p. 8). Segundo ainda Linda Hutcheon (2013, p. 115), o ficción criminal en España se encuentra fuera de la corriente
conforto ou prazer do espectador-leitor talvez “[...] lies in the principal de literatura política del país” (MACKLIN, 2006). Ao
simple act of almost but not quite repeating, in the revisiting of a menos é o que se pode observar no romance El invierno en Lisboa,
theme with variations.” Nesse sentido, a abordagem pois não obstante um certo viés de natureza crítico-social ou ainda
cinematográfica do romance deve reconhecer os atributos deste histórico-político, sobressai o compromisso estético, já que se nota
de maneira que, ao investir na construção de uma forma que no romance “[...] su inmersión en un modelo estético codificado”
garanta a si um valor próprio dentro do novo campo de de maneira que este “se desvincula de toda imitación de la
significações sígnicos, seja a um só tempo uma homenagem e uma realidad”, isto é, “el arte se imita a sí mismo.” (IZQUIERDO, 2002,
contribuição ao texto fonte. p. 127).
A ligação com o subgênero noir, amplamente abordada
As tessituras narrativas de Muñoz Molina e Zorrilla pela crítica no tocante ao romance El invierno en Lisboa, não se
justifica apenas pela presença da femme fatale, do enigma e do
[…] en el fondo de lo que se trata es de contar lo mejor crime com apelo à violência, mas, sobretudo, pela composição da
posible, de contar algo que sea verdadero y que al atmosfera. A intriga não é descartada, porém nota-se um trabalho
mismo tiempo te dé la impresión de estar apurado de filigrana com a construção de um espaço-tempo
sumergiéndote en otro mundo distinto. Yo creo que impregnado de nostalgia, de sugestibilidade. Não é gratuito, de
siempre en el arte, en el cine hay una dimensión fato, perceber ecos de filmes clássicos do gênero, como muito se
poética muy fuerte.
1
Muñoz Molina recebeu ao longo de sua carreira um total de seis prêmios (1991), por seu romance El Jinete Polaco. El invierno en Lisboa foi agraciado com
literários, dentre eles o Quijote (2005), o Príncipe de Asturias (2013) e o Planeta o Premio de la Crítica de Narrativa Castellana (1987) e o Premio Nacional (1988).
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alardeou sobre a presença-ausente de Casablanca (1942), francés. Tenía el pelo más gris y estaba más gordo, pero aún
correlação que autorizaria ludicamente a troca do pianista usaba las mismas camisas y pulseras doradas y una
Santiago Biralbo pelo pianista Sam do filme, jogo intertextual tranquila cortesía de ofidio.
constante do próprio romance: - Amigo mío - dijo -. Vuélvase muy despacio, pero no levante
Lucrecia se acodó en la barra, probó el whisky y dijo, las manos, por favor, es una vulgaridad, no la soporto ni en
burlándose de sí misma y de Biralbo y de lo que estaba a el cine. Bastará que las mantenga separadas del cuerpo.
punto de decir y amándolo sobre todas las cosas: (2011, p. 156).
-Tócala otra vez. Tócala otra vez para mí. Ou ainda esta outra, dentre inúmeras ao longo da
- Sam - dijo él, calculando la risa y la complicidad -. Samtiago narrativa: “Por el modo en que me sonrió me di cuenta de que no
Biralbo. (2011, p. 92, grifo meu). íbamos a besarnos. Me dijo: “¿Has visto cómo llueve?” Yo le
contesté que así llueve siempre en las películas cuando la gente va
Note-se também que, de maneira similar ao filme, há no
a despedirse.” (2011, p. 42).
romance uma separação entre o casal de amantes durante longo
No primeiro excerto, existem dois níveis de percepção do
tempo e um reencontro difícil em outro contexto, estrutura que
elemento noir cinematográfico, expresso nas menções ao próprio
aproxima o casal Ilsa/Rick de Lucrecia/Biralbo. Há ainda outra
cinema “como un negro de película” “no la soporto ni en el cine” e
invocação do filme hollywoodiano de Michael Curtiz em uma
de forma mais ampla no conjunto da cena, em que se afiguram a
passagem mais adiante:
presença do bandido, da arma e de uma construção propriamente
- Dispara, Malcolm. Me harías un favor.
policial afiançada pelo estilo de Muñoz Molina na descrição do
- ¿Dónde he oído yo eso antes? - dijo Toussaints Morton, bandido “una tranquila cortesía de ofidio”, a qual revela
pero a Biralbo le pareció que su voz sonaba en otra ironicamente a periculosidade de Morton. No segundo, a alusão
habitación, porque él sólo veía frente a sí las pupilas de
ao cinema é direta e, pelo acúmulo de referências, interpõe-se
Malcolm.
novamente a presença-ausente de Casablanca, já que o par fílmico
- En Casablanca - dijo Daphne, con indiferencia y precisión - se despede na película sob um fundo chuvoso. Não será
. Bogart se lo dice a Ingrid Bergman. (2011, p. 165) coincidência possivelmente que no penúltimo capítulo do
A filiação ao cinema noir não se resume, contudo, apenas a
Casablanca, pode-se reconhecê-la em outras alusões mais ou
menos diretas:
[...] sonriendo con inextinguible felicidad Toussaints Morton
le apuntaba a la nuca. Seguía hablando como un negro de
película o como un mal actor que imita en el teatro el acento
P á g i n a | 915

romance Biralbo faz a última apresentação com Billy Swan em um dos elementos citados pela pesquisadora, Lucrecia, representação
animatógrafo lisboeta.2 da mulher misteriosa e que provoca uma atração irresistível no
Há ainda outras referências ao cinema, não estritamente protagonista, em outras palavras, a femme fatale, é fundamental
noir, como esta em que o narrador descreve o hall de entrada do para a trama.
hotel de seu amigo Biralbo: “La recepción de su hotel era como el Notó que esa suma de contratiempos menores lo distraía de
vestíbulo de uno de esos cines antigos que parecen templos pensar en Lucrecia: quince minutos antes de que
desertados [...]” (2011, p. 17) e, mais à frente, uma muito similar, concluyeran los tres años de su ausencia, mientras Biralbo
em que se descreve o “sanatorio de monjas” onde Billy Swan está buscaba un taxi, Lucrecia estuvo más lejos que nunca de su
pensamiento. Sólo cuando subió al taxi y dijo a dónde iba
internado “De las altas arcadas colgaban globos de luz sucios de
recordó estremeciéndose de miedo que verdaderamente
polvo, como en los cines antigos [...]” (2011, p. 133). No capítulo
estaba citado con ella, que iba a verla igual que veía sus
XIV, outra menção, com um tom novamente bastante propios ojos asustados en el retrovisor. Pero no era su propia
metalinguístico “Se detuvo y sonrió cuando logró captar algo que cara la que estaba mirando, sino otra cuyos rasgos le
parecía una obertura de ópera. “Ahora va a golpearme”, pensó resultaban parcialmente extraños, porque era la que iba a
Biralbo, incurablemente adicto al cine, “pondrá la música muy alta ser mirada por Lucrecia, juzgada por ella, interrogada en
para que nadie oiga mis gritos”.” (2011, p. 159). Essas muitas busca de esas señales del tiempo que sólo ahora Biralbo era
referências levam à possibilidade de leitura do romance: capaz de advertir, como si pudiera verse a sí mismo desde
[...] como un homenaje al cine negro norteamericano; en los ojos de Lucrecia. (2011, p. 74-75)
ella [novela] encontramos sus emblemas más
Essa passagem dá a dimensão do poder desta mulher sobre
característicos: escenario urbano y nocturno, atmósfera de
Biralbo e, por extensão, sobre o próprio romance. Todo o enredo
suspenso, huidas y persecuciones, violencia y muerte, todo
ello acompañado de revólveres, gabardinas, sombreros y estrutura-se ao redor de sua figura, seja para recordá-la ou para
miserables cuartos de hotel. La extrema visibilidad de las esquecê-la, seja fugindo dela ou procurando-a, dada a perspectiva
escenas -escenas potencialmente cinematográficas, el unidimensional de Biralbo narrativizada pela voz homodiegética, a
empleo del presente histórico para narrar el clímax del qual não se identifica ao leitor. Além disso, Lucrecia também está
relato y los registros claramente impresionistas de los diretamente ligada a outro viés do relato, a questão em torno do
capítulos XV y XVI [...]. (Ferrari, 2007) quadro de Cézanne, que motiva a ação e a violência no romance.
O romance de Muñoz Molina, como demonstra Marta Desse modo, pode-se dizer que a personagem feminina funciona
Ferrari, ampara-se nas estratégias do gênero policial noir. Além como eixo enigmático, seja por si mesma e o efeito que provoca
no protagonista, Santiago Biralbo, seja por estar ligada ao roubo
2
Animatógrafo era uma antiga denominação para o ancestral das salas de encenação teatral e recitais. Há ainda em Lisboa um Animatógrafo, no bairro do
cinema, embora muitas vezes também se utilizassem como espaços de Rossio, fundado em 1907, atualmente espaço de peep-shows.
P á g i n a | 916

da pintura, ato que causará uma reação em cadeia e levará ao había estado tocando durante una larga temporada. (2011,
envolvimento do protagonista com a morte. Com efeito, o próprio p. 9)
destino do protagonista parece ineludivelmente marcado pelos O outro elemento, também de grosso calibre artístico, é a
contornos do gênero policial quando afirma o narrador de forma construção sinestésica do relato ao empregar referências de
extremamente metaficcional, uma piscadela pós-moderna ao diversos campos artísticos, uma miscelânea entre a palavra escrita
leitor: “[...] entendí que había en él esa intensa sugestión de e a pintura, o cinema, o teatro e a música. Como afirma Natalia
carácter que tienen siempre los portadores de una historia, como Corbellini, a geração de Muñoz Molina encontrou no romance um
los portadores de un revólver. Pero no estoy haciendo una vana desafio frente à tradição do relato anterior, tanto no nível estético
comparación literaria: él tenía una historia y guardaba un quanto ideológico. A saída pós-moderna era o conhecido paradoxo
revólver.” (2011, p. 16). da manutenção e da transgressão da tradição: “En los
Muñoz Molina prova ser um escritor de estilo refinado, o fundamentos de este desafío [...] estaba implícita la necesidad de
que nem sempre acontece com um gênero popular como o diferenciarse del corpus tradicional preexistente, y por ello, la
policial, ao manejar com elegância dois elementos que se somam incorporación de prácticas y temáticas propias del cine, la
à escritura noir. Um deles é presença lírica da memória, um televisión y los medios de masas” (2010, p. 11). Essas contribuições
potente mecanismo que serve ao clima entremesclado de narrativas ao gênero, além de um enredo bem arquitetado, dão o
melancolia e nostalgia, próprio da novela negra, sentimento que tom particular do que vem a ser o estilo norteador de El invierno
pode ser sintetizado pelas expressões “axioma melancólico” en Lisboa.
(2011, p. 90) ou “infinita melancolia” (2011, p. 210) manifestas Efetivamente, seu traço mais particular reside em criar uma
pelo narrador evocativo para definir o tom do relato. A memória voz narrativa que vai evocando, por meio de imagens, sensações e
em chave simbólica exerce também papel diegético peculiar na referências interartes, sentidos já um pouco dispersos pelo tempo,
construção em flashbacks de pretéritos alternados, dado que a os quais o narrador trata de reconstituir, embora esteja fadado
temporalidade do romance se desmembra em ecos de um passado muitas vezes a um silêncio nostálgico ou a uma lembrança volátil
mais distante, plasmado pela imagem da cidade de San Sebastián, do que aconteceu “Como los planos sonoros en la música, las
recuperado por um narrador que os rememora em Madrid num palabras que dice el autor las que permanecen ocultas en los
passado mais próximo do presente da enunciação. espacios en blanco crean líneas simultáneas de significación que
Habían pasado casi dos años desde la última vez que vi a adquieren su única resonancia posible en la conciencia del lector”
Santiago Biralbo, pero cuando volví a encontrarme con él, a
(MUÑOZ MOLINA, 1998, p. 82). É nas palavras de Biralbo que o
medianoche, en la barra del Metropolitano, hubo en nuestro
narrador encontra uma definição interessante para essa relação
mutuo saludo la misma falta de énfasis que si hubiéramos
estado bebiendo juntos la noche anterior, no en Madrid, entre o vivido e o rememorado:
sino en San Sebastián, en el bar de Floro Bloom, donde él
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[...] un músico sabe que el pasado no existe […] Esos que autoritario, y satisface el deseo de una nueva lógica que
pintan o escriben no hacen más que acumular pasado sobre organice el imaginario. (CORBELLINI, 2010, p. 74, grifo da
sus hombros, palabras o cuadros. Un músico está siempre autora)
en el vacío. Su música deja de existir justo en el instante en
O modus narrandi do romance é assim uma profusão de
que ha terminado de tocarla. Es el puro presente. (2011, p.
13-14) metáforas e sensações que apresentam o estado do sujeito
narrador em processo de livre evocação, sem mitigar, entretanto,
Essa camada mais lírica, inclusive filosófica, no sentido de a trama em sua narratividade elementar, neste caso, traduz-se em
uma filosofia da composição artística a serviço da memória, leva o não haver prejuízo ao andamento do relato policial. A exemplo do
romance a uma articulação complexa entre o nível diegético, por que fizeram outros grandes escritores, tais como Jorge Luis Borges
meio do qual a narrativa policial se desenrola, e um nível mais em sua famosa trilogia do conto policial3, Umberto Eco em O nome
ontológico, naquela perspectiva de Bachelard (2012) de uma da rosa (1980) e O pêndulo de Foucault (1988), Gabriel García
fenomenologia da imaginação segundo a qual a palavra poética, a Márquez em Crónica de una muerte anunciada (1981), e mesmo
imagem literária tem um dinamismo próprio, um ser autêntico que nos primórdios o genial Dostoievski com seu imortal Crime e
se realiza no presente de sua captura, no “êxtase da novidade da Castigo (1866), o relato de cunho enigmático, policial ou
imagem” (BACHELARD, 2012, p. 1). A essa dimensão corresponde detetivesco não é subterfúgio para uma narrativa de amplitude
o processo de rememoração fundido na voz narrativa: metafísica, fenomenológica ou simplesmente lírico-criativa, visto
[...] la concepción de la narrativa para Muñoz Molina es el que se pode reconhecer o valor e a convivência plurívoca desses
modo en que el hombre percibe y organiza su mundo, en
estratos sígnicos.
línea con la imposibilidad de aceptar un orden “verdadero”
Essa obra literária possuía, assim, elementos frutíferos para
para la realidad que caracterizó el final del siglo XX. Pero
entonces ¿cuál es el sentido de esa vuelta al placer de narrar propiciar uma adaptação cinematográfica, destacando-se, além de
que propiciaba Vázquez Montalbán para los ochentas? El precipuamente uma boa trama policial, uma linguagem com
invierno en Lisboa es una novela, en el sentido en que es el acordes que iam da música à pintura, da melancolia à ação, com
relato de una historia de unos personajes que buscan personagens complexos e cenários marcantes e sugestivos: “Todo
explicar lo que les sucede condicionados por su modo de ver parece facilitar la conversión de este texto literario, tan
el mundo. La narración se vuelve placer en tanto nos ofrece cinematográfico, en un texto fílmico. Pero como ocurre a menudo,
completar ese hueco que provocó la caída del discurso la inspiración demasiado fílmica de un texto literario puede ser

3
Os contos que compõem essa trilogia seriam, segundo maiormente a crítica, ia acrescentar outros escritos apenas por Borges, dentre os quais, sem maiores
“La muerte y la brújula”, “El jardín de senderos que se bifurcan” e “Tema del tergiversações polêmicas, incluir-se-iam “Emma Zuns”, “Abencaján el Bojarí,
traidor y del héroe”. Não se estão considerando aqui os contos escritos com a muerto en su laberinto” e “La espera”.
colaboração de Bioy Casares sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq. Poder-se-
P á g i n a | 918

contraproducente en el momento de elaborar la película.” body but not the soul. And it is not impossible for the artistic soul
(CASTELLANI, 2009, p. 9). to manifest itself through another incarnation.” (BAZIN apud
Infelizmente, de forma geral, o filme de José Antonio NAREMORE, 2000, p. 23).
Zorrilla não conseguiu realizar um trabalho à altura do texto de O fato é que o próprio escritor, confie-se ou não na
Muñoz Molina. Segundo afirma um dos atores do elenco, o sinceridade de sua declaração, deixou claro que havia lido o roteiro
espanhol Fernando Guillén, cuja longa experiência precede seu e “[...] se limitó a hacer un par de observaciones. Pese a que la
depoimento, as filmagens foram caóticas e o diretor se queixava fidelidad al texto original no es uno de los requisitos para hacer una
de que não tinha dinheiro “[...] la novela de Muñoz Molina era una buena versión, Muñoz opina que la versión cinematográfica se ciñe
novela negra, muy atractiva, pero la película resultó fallida” e bastante a la novela.” (apud GARCÍA, 1991). É verdade que o
acrescenta em tom duro “[...] no sé si por um problema de roteiro não é o único e tampouco o maior dos problemas do filme.
capacidad del director (que, vuelvo a repetir, se quejaba Há uma visível falta de interação entre o casal principal, Biralbo4 e
continuamente que no tenía tempo ni dinero), pero el hecho es que Lucrecia, interpretados por Christian Vadim, um ator ainda muito
aquello no funcionó.” (GUILLÉN apud OLIVA; DUEÑAS, 1999, p. ligado a papéis na televisão francesa, e Hélène de Saint-Père, outra
103). contribuição francesa ao elenco, igualmente em começo de
O problema certamente não é a adaptação em si. Mesmo carreira. As locações, sobretudo os espaços fechados, são
uma obra com menor potencial de linguagem pode servir de base visivelmente pouco convincentes, dando a impressão de cenários
a uma adaptação bem realizada, como é o caso do já comentado de um filme amador, ainda mais dada a importância de Lady Bird
filme de Michael Curtiz, Casablanca, baseado em uma peça de e Burma, dois bares (clubes) nos quais ocorrem alguns dos
pouca expressividade, Everybody comes to Rick’s (1940). Na principais eventos narrativos da trama. Esses problemas, somados
transposição de uma obra para outra linguagem, importa, acima a falta de ritmo do filme, com uma montagem primária e ineficaz
de tudo, respeitar o espírito daquela (neste caso o romance) e, do ponto de vista da tensão narrativa, e um trabalho técnico de
mediante procedimentos que respondem ao estilo próprio do som tacanho transformam os quase 100 minutos do filme em um
tradutor semiótico (o diretor como tal) e do sistema ou meio exercício maçante e de catarse “quase” nula.
sígnico (isto é, o cinema), dar forma e vazão a uma segunda obra, O advérbio destacado anteriormente introduz algumas
preservando-se em alguma medida o lastro próprio à obra anterior ressalvas que justificam a análise de dois elementos que
ao passo que se dá um processo de ressignificação: “The style is in contribuem positivamente para o construto fílmico, embora não
the service of the narrative: it is a reflection of it, so to speak, the consigam salvar em termos absolutos a experiência oportunizada

4
No filme o personagem de Santiago Biralbo recebe um primeiro nome filme há uma informação errada, pois o aponta como um “batería” e não como
diferente, Jim Biralbo, uma opção anglófona que provavelmente está um pianista.
relacionada ao interesse na distribuição do filme fora da Espanha. Na capa do
P á g i n a | 919

ao telespectador. Esses elementos correspondem à fotografia e à Outra tomada breve externa que contribui positivamente
música intradiegética. Embora o destaque maior fique para a para a linguagem noir e à problematização da trama se dá quando
segunda, sobretudo pela presença do músico Dizzy Gillespie no Billy Swan, músico jazzista que funciona como o mestre de Biralbo,
elenco e na composição da trilha sonora, algumas cenas produzem dá uma dica a este de procurar por pistas de Lucrecia, que já havia
pelas imagens um efeito significativo na criação de um clima entre fugido com o marido (00:30:19). A câmera acompanha de longe,
o melancólico e o nostálgico. Nesse sentido, a descrição dos com uma música pesada de carga dramática e de suspense, o
ambientes e das cidades, sobretudo Lisboa, funciona como personagem apaixonado correr em busca do apartamento. Uma
metáfora existencial, espaços de memória e de utopia para o ser bela panorâmica da baía de San Sebastián e da cidade banhada por
humano, seja o narrador ou o protagonista. luzes noturnas se interpõe entre Biralbo e o cadáver que jaz no
O filme consegue realizar um bom trabalho de fotografia ao banheiro do apartamento, correspondente a um inimigo do
menos nas tomadas externas, as quais inclusive contrapõem-se às marido de Lucrecia, Bruce Malcom, sujeito perigoso e de conexões
relativas aos ambientes fechados em termos qualitativos. A misteriosas5. O cinema ganha ao criar esses momentos de silêncio
primeira tomada externa é muito breve (00:20:15) e surge após imagético, projetando na tela um cenário que deveria funcionar
um fade-out de Lucrecia nua na cama de Biralbo, revelando assim como um nó semântico na sintagmática da narrativa fílmica, aquilo
o affair central da narrativa, ao qual se segue o fade-in que nos que Pasolini denomina no cinema de prosa poética:
apresentará à cidade de San Sebastián noturna, espaço do amor O cinema não nos dá uma representação concreta,
conflituoso e clandestino do casal, já que se trata de uma relação autêntica, das pessoas e das coisas, mas uma representação
adúltera. Uma música sutil ao fundo, delicada e melancólica, poética, uma palavra visual essencialmente poética: o que
sugere a relação que se nos apresenta, num amálgama foto- importa não está no que se filma, mas no colorido
semântico que se constrói; assim como num poema palavra
musical bem construído, mas que logo em seguida não ganha força
sugere palavra, num filme, imagem sugere imagem.
com a cena em que o casal aparece ensaiando mais uma noite de
(AVELLAR, 2007, p. 108)
sexo, sem convencer pela sua falta de química e erotismo. Lucrecia
ainda tenta um olhar furtivo quando arrebatada pelo corpo de O problema do filme de Zorrilla é que este nó imagético se
Biralbo, cuja intenção seria demonstrar sua ambiguidade, mas no afrouxa, não se sustenta no conjunto da película, embora
conjunto da cena perde consistência. isoladamente possua uma força sugestiva que se conecta às
melhores passagens evocativo-simbólicas do romance:

5
Há uma mudança fundamental aqui em relação ao livro. Malcom, um uma organização angolana de ultra-direita, assim, embora mantenha-se a
traficante obras de arte, está ligado a Toussaints Morton, igualmente perigoso. conotação política por trás da trama noir, no filme ela ganha contornos
Esse contexto criminal no filme ganha uma conotação política relativa à diferentes, de um possível golpe político em Portugal por parte de um grupo
Revolução dos Cravos, ao passo que no romance a relação de Morton se dá com armado.
P á g i n a | 920

Volvió a la ciudad para perderse en ella como en una de esas positividade, mas com todas as parcialidades da
noches de música y bourbon que no parecía que fueran a imaginação. [...] No reino das imagens, o jogo entre o
terminar nunca. Pero ahora el invierno había ensombrecido exterior e a intimidade não é um jogo equilibrado.
las calles y las gaviotas volaban sobre los tejados y las (BACHELARD, 2012, p. 19, grifo meu)
estatuas a caballo como buscando refugio contra los
A relação simbiótica entre o exterior (a cidade) e a
temporales del mar. Cada temprano anochecer había un
instante en que la ciudad parecía definitivamente ganada intimidade (de Biralbo) vem mediada duplamente pelo viés da
por el invierno. Desde la orilla del río circundaba la niebla imaginação, mergulhada nas águas turvas da memória de Biralbo
borrando el horizonte y los edificios más altos de las colinas, e do narrador “La percepción de la ciudad, captada de este modo,
y la armadura roja del puente alzado sobre las aguas grises es totalmente distinta, pertenece tanto al campo de la visión como
se prolongaba en el vacío. (2011, p. 143) al de la fantasía, quizás dependa más de esta, que es mental, que
de aquella, que es visual.” (CASTELLANI, 2009, p. 6).
À cidade de Lisboa corresponde não apenas o clímax da
Outro diálogo significativo se dá entre a linguagem verbal e
narrativa, mas um espaço do qual emanam a melancolia e a solidão
a musical. Como salientado anteriormente, o romance de Muñoz
de noites intermináveis, por isso a associação com o signo do
Molina possui uma verve plurissensorial, dadas as inserções pela
inverno, reforçado pela descrição deste espaço “ensombrecido”,
linguagem da pintura, da música, do teatro e do cinema, todavia,
de “niebla” e “vacío”, o lugar improvável onde o protagonista pode
é na música que a obra literária encontra sua irmã, se não gêmea,
reencontrar o amor perdido de Lucrecia. O espaço físico se
ao menos adotiva: “El cine, y sobre todo el cine negro, es el
converte em território anímico a refletir o estado de espírito de
transfondo [sic] inter-medial desde el cual la novela se aprovecha
Biralbo “Lejos, sobre la ciudad, resplandecía brumosamente el sol
de ambientes y personajes estereotípicos [...] pero la expresión
del invierno, pero el paisaje que cruzaba Biralbo tenía una grisura
artística que tiene más importancia [...] es sin duda la música.”
de atardecer lluvioso.” (2011, p. 145). Os signos “brumoso”, “sol de
(HANSEN, 2011, p. 108).
invierno”, “grisura” e “atardecer lluvioso” aliam-se ao fragmento
Zorrilla tira um bom proveito do elemento musical para dar
interior para demonstrar no romance a força deste espaço
força ao seu filme, certamente sua mais relevante contribuição à
simbólico como sintomático não apenas dos sentimentos de
obra de partida. Mas a força deste aspecto não reside,
Biralbo, mas da sensibilidade da linguagem de Muñoz Molina,
infelizmente, na figura do pianista Biralbo, o protagonista, e sim na
sinestésica e evocadora por excelência. A prosa poética de Muñoz
presença do músico estadunidense Dizzy Gillespie, que interpreta
Molina suscita uma gama rica de interpretações no que tange à
o mentor artístico do protagonista, Billy Swan. Vadim-Biralbo em
psicologia de sua imagética narrativa.
O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço nenhum momento parece convencer-nos de sua faceta artística,
indiferente entregue à mensuração e à reflexão da ao contrário de Gillespie, quem, embora ator limitado, encanta e
geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua
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cativa com seu trompete. A morte deste último no filme é um personificação do íntimo de Biralbo, em um fragmento de intenso
momento dos mais marcantes. lirismo sinestésico:
A música no filme de Zorrilla consegue criar um estrato Al principio se oía como el rumor de una aguja girando en el
semântico considerável, convertendo-se naquilo que o teórico intervalo de silencio de un disco, y luego ese sonido era el de
Michel Chion chamou, em uma tradução aproximada, de valor las escobillas que rozaban circularmente los platos
agregado: metálicos de la batería y un latido semejante al de un
By added value I mean the expressive and informative value corazón cercano. Sólo más tarde perfilaba la trompeta una
with which a sound enriches a given image so as to create cautelosa melodía. Billy Swann tocaba como si temiera
the definite impression, in the immediate or remembered despertar a alguien, y al cabo de un minuto comenzaba a
experience one has of it, that this information or expression sonar el piano de Biralbo, que señalaba dudosamente un
“naturally” comes from what is seen, and is already camino y parecía perderlo en la oscuridad, que volvía luego,
contained in the image itself. (1994, p. 5, grifos do autor) en la plenitud de la música, para revelar la forma entera de
la melodía, como si después de que uno se extraviara en la
Ao ouvirmos a música no filme sentimos, de forma mais ou niebla lo alzara hasta la cima de una colina desde donde
menos consciente, que as imagens e, pari passu, a narrativa pudiera verse una ciudad dilatada por la luz. (2011, p. 46)
ganham um contorno mais nítido, na medida em que lhe
Aqui há uma dissimulada prolepse se pensarmos que a
acrescentam um sentido mais, uma camada outra, a sonora, que
Lisboa como espaço concreto e diegético na narrativa, a exemplo
se alia à visual, como o próprio narrador do romance observa: “[...]
da música, será o cenário da realização amorosa entre Biralbo e
yo había notado com algún alivio que la música puede no ser
Lucrecia, no desfecho do romance. Imagem e som se juntam nesta
indescifrable y contener historias.” (2011, p. 11). Portanto, seu
passagem para criar um efeito verbo-visual de contornos poéticos,
valor agregado “[...] is what gives the (eminently incorrect)
cujo ritmo é o de um despertar lento e um tatear rumo à felicidade
impression that sound is unnecessary, that sound merely duplicates
luminosa. Ademais, há uma leitura possível, já especulada pela
a meaning which in reality it brings about, either all on its own or
fortuna crítica dessa obra, em que se lê a estrutura narrativa do
by discrepancies between it and the image.” (CHION, 1994, p. 5, romance e sua consequente conclusão em Lisboa como uma
grifos do autor). metáfora da construção jazzística:
No romance, a música assume uma dimensão quase Como han señalado tanto Heymann como Ibáñez, esta
onírica, como se durante sua execução fosse instaurado um tempo estrutura narrativa, en la cual la trama primero se divisa,
mágico, quase sempre um interlúdio de solidão e fuga em relação después se pierde en un laberinto de senderos posibles para
ao passado e ao próprio presente. Há uma passagem singular, al final volver a aparecer de forma lógica y coerente,
contudo, em que a canção “Lisboa” assume um sentido libertador, corresponde a un principio reconocido de composición de la
na percepção descrita pelo narrador ao ouvi-la como uma música jazz. (HANSEN, 2011, p. 110)
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No filme de Zorrilla há vários momentos em que a música haja vista sua importância como elemento ambientador do cinema
de Gillespie em versão sola ou com arranjos de Danilo Pérez dá o noir (GUERRERO, 2012). Efetivamente, não surpreende que o disco
tom furtivo e melancólico à trama, criando assim um plano com a trilha sonora tenha arrancado elogios da crítica
simultâneo ao da linguagem narrativa, isto é, da ação fílmica. O especializada, como é o caso de John Fordham, crítico do jornal
blues jazzístico que ouvimos imprime sentimento à tela, tal qual a norte-americano The Guardian (2004).
linguagem escrita de Muñoz Molina na obra literária. O trompete
e o piano criam notas profundas, de quase lamento, carregadas Palavras à procura de conclusão
por um ritmo lento e introspectivo, como se preenchessem uma O leitor deve ter em mente que a base de toda a arte da
ausência com emoção, com vida, ainda que uma vivência solução deve ser encontrada nos princípios gerais da
nostálgica, aproximando-a da reminiscência. Essa trilha sonora formação da própria linguagem, sendo assim
une-se, em alguns casos, à fotografia, ampliando seus efeitos completamente independente das leis particulares que
regem toda mensagem cifrada ou a construção de sua
supramencionados.
chave.
O entrecho musical certamente mais marcante fica por
Edgar Allan Poe
conta da balada “Magic summer”, de Charles Fishman,
interpretada pela cantora Leola Jiles, com a participação mais do O romance de Muñoz Molina é uma obra de elevado teor
que especial de Gillespie ao trompete. A canção é tocada na artístico, como se pôde verificar ao longo dessa breve exposição.
íntegra e os cinco minutos de sua execução intradiegética Concorrem para este fino acabamento literário os elementos
correspondem, em um procedimento de economia narrativa, aos sinestésicos tomados emprestados à pintura, à música e ao
momentos de affair entre Lucrecia e Biralbo, culminando na cinema. A sensibilidade da linguagem deste autor espanhol
imagem noturna da baía de San Sebastián já mencionada quando contemporâneo não relega, contudo, a segundo plano o prazer
da análise da fotografia. Ou seja, esses cinco minutos alternam-se envolvente que se atribui com razão ao gênero policial, neste caso,
entre imagens do palco, onde a música está sendo executada mais apropriadamente o subgênero noir.
dentro da própria ação narrativa, e fragmentos amorosos do casal, Já a transposição fílmica do romance, levada a cabo pelo
que nos explicam de forma sucinta seu envolvimento afetivo e a diretor José Antonio Zorrilla, não alcança a mesma qualidade em
complicação advinda do fato de Lucrecia ser casada com um sua totalidade, mesmo tendo como base uma narrativa de
homem misterioso e perigoso. indiscutível veio cinematográfico, constatação que talvez explique
Apesar de essa música poética e narrativamente destacar- os mais de dez anos que o realizador, após esse trabalho, ficou sem
se sobremodo, há outras intervenções sonoro-musicais ao longo dirigir um filme no cinema. Apesar do conjunto mal sucedido dessa
do desenvolvimento fílmico que merecem destaque, como o adaptação, há alguns elementos de destaque no filme,
funky-jazzístico “Burma” e a envolvente canção de encerramento, relacionados ao trabalho com a fotografia e a música, os quais por
si só não garantem o sucesso da obra, mas ao menos dão dignidade
P á g i n a | 923

ao trabalho e fornecem algumas pistas interessantes sobre o CORBELLINI, Natalia. Trayectoria poética de Antonio Muñoz
diálogo entre essas linguagens. Molina. 2010. 225f. Tese (Doutorado em Letras). Universidad
Interessa, pois, observar como é vasto o território dialógico Nacional de La Plata. Facultad de Humanidades y Ciencias de la
onde se cruzam as diversas naturezas de códigos artísticos, espaço Educación, La Plata, 2010. Disponível em:
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BIOGRAFÍA FICCIONAL DE ESCRITORES: HISTORIA LITERARIA en 1896, y seguida por escritores como Pierre Michon, Patrick
DESDE LA FICCIÓN Mauriès y Gerárd Macé. En Inglaterra, los herederos de la tradición
Yuly Paola Martínez Sánchez biográfica inaugurada por las Vidas Breves de John Aubrey, una
FURG edición en 1669 y otra en 1696, se dividen en dos campos en los
inicios del siglo XX: por un lado, la vía tradicional, representada por
La biografía ficcional los redactores del célebre Dictionary of National Biography,
Dorrit Cohn en su texto Vidas históricas versus Vidas dirigido entre 1882 y 1891 por Leslie Stephen, el padre de Virginia
ficcionales (1989) sostiene que lo que hace única la ficción es la Woolf; y por el otro lado, la vía moderna de la New Biography,
posibilidad, inexistente en el texto histórico, de adentrarse en la incentivada por los trabajos de la misma Virginia Woolf y de Lytton
conciencia de sus personajes, incluso en su momento más Strachey (FORTIN, 2011) 1 . En general, estas dos tradiciones se
irrepresentable, el de la muerte. La biografía, mantenida como un caracterizan por combinar, con destreza, evidencia documentada
género histórico menor, o como una simple forma de historiografía de la vida del personaje histórico con las licencias de la invención.
(COHN, 1989) ha quebrado esa especie de frontera trazada entre Las evidencias confieren autenticidad al relato biográfico, mientras
los relatos históricos y los relatos ficcionales. Esa modalidad que la imaginación le permite al autor explorar otras vías para
narrativa de contar la vida de otro, hoy no se instala celosamente narrar instancias íntimas de la vida del personaje histórico.
en el ámbito científico de la historia, sino que se ha Paulatinamente, las biografías van omitiendo cualquier inhibición
interrelacionado constantemente con formas ficcionales hasta historiográfica, en favor de la ilimitada aparición de los
generar una serie de trabajos, como los que hoy presentaré, que pensamientos y sentimientos de los sujetos históricos. El uso de
se podrían enmarcar en un género, aún incipiente, denominado citas tanto directas como indirectas va desapareciendo para dar
biografías ficcionales o imaginarias, o ficciones biográficas. privilegio al discurso indirecto libre, fusionado con el lenguaje
La constitución de la biografía ficcional tiene dos narrativo. Con esto, el lector no logra diferenciar el hecho
tradiciones, distinguibles al finalizar el siglo XIX y las primeras documentado de la invención. (COHN, 1989).
décadas del siglo XX. Durante este período el género biográfico Durante la segunda mitad del siglo XX se dio una
experimentó transformaciones tanto en Francia como en proliferación de trabajos biográficos que seguían escapando de la
Inglaterra. En Francia la ruptura con la biografía tradicional es pretensión científica de la historia para apoyarse con mayor fuerza
promovida por las Vidas imaginarias de Marcel Schwob publicada en las herramientas dadas por la ficción2. Lo que provocó que para

1
Los trabajos enmarcados en la New Biography en particular recibieron también Ides of March (1948), Marguerite Yourcenar's Mémoires d'Hadrien (1951), David
el nombre de biografías hibridas (SCHABERT, 1982). Caute's Comrade Jacob (1961), Anthony Burgess's Nothing Like the Sun (1964)
2
De acuerdo con Ina Schabert algunas de las obras más representativas de este and Napoleon Symphony (1974), William Styron's Confessions of Nat Turner
género son: “Hermann Broch's Der Tod des Vergil (1945), Thornton Wilder's The (1967), George Garrett's Death of the Fox (1971), Peter Hartling's Holderlin
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los años de 1980, la biografía tradicional estuviera sufriendo una Si bien, el término biografía ficcional ya había sido
profunda crisis como consecuencia del descrédito de las empleado, en el contexto de los estudios anglosajones, por la
pretensiones de verdad y de facticidad sobre las que se sustentaba profesora alemana Ina Shabert (1982) y retomado por la profesora
(BRESA- CAMPRUBÍ, 2013). A esas producciones que siguieron el de la Universidad de Harvard Dorrit Cohn (1989), la intención en
modelo de las Vidas imaginarias y de la New Biography se sumó las dos oportunidades es marcar las diferencias y las fronteras
un creciente interés por estudiarlas e insertarlas en los debates entre la biografía ficcional y la biografía factual. Así que, más que
críticos y teóricos del campo de los estudios literarios. ofrecer indicios que permitieran pensar en esta nueva forma de
En esa perspectiva, es punto de referencia para los biografía desde una perspectiva integradora y legitimadora del
estudiosos del género el neologismo Biofiction propuesto por el género, las autoras prefirieron mantener una posición separatista.
escritor y crítico francés Alain Buisine en 1991, en la Revue des A este posicionamiento se opone Gérard Genette (1990), citando
Sciences Humaines, a propósito del momento fundador que estaba específicamente el artículo de Dorrit Cohn, para sostener que los
viviendo la biografía ficcional. Buisine hace énfasis en que lo géneros pueden cambiar sus normas, porque nadie se las ha
biográfico ya no es más lo otro de la ficción, pues la biografía se impuesto, más bien son los géneros mismos los que se imponen
convirtió en productora de ficciones, cuando se empezó a sus propias reglas. Por ello, le parece más razonable, tanto a nivel
comprender que la ficcionalidad hace necesariamente parte del narratológico como temático, adoptar actitudes integracionistas,
gesto biográfico (BUSINE, 1991). Un año después, el estudio del en vez de intentar cualquier forma de segregación.
género es retomado por el escritor e historiador de la literatura Como continuación de la iniciativa de Alain Buisine y Daniel
Daniel Oster con la publicación de un trabajo títulado La fiction Oster, en los últimos años el estudio de la biografía ficcional ha
biographique, en el Supplément Universalia de l’Encyclopædia tenido fuerte resonancia en la academia francesa. Se destacan los
Universalia (BESA-CAMPRUBI, 2013; FORTIN, 2011). De esta acercamientos teóricos y críticos de Alexandre Gefen, Dominique
corriente francesa, que se ha interesado por el posicionamiento de Viart, Martin Boyer Weinmann, Robert Dion, Frances Fortier, entre
la biografía ficcional como género literario, sobresale la idea de otros. Estos estudiosos, además de proponer abordajes teóricos,
que éste abre posibilidades para pensar en la superación de las integradores y no separatistas, sobre la definición y
formas rígidas y estructurales de las categorizaciones genéricas desenvolvimiento de la biografía ficcional en el marco de los
tradicionales (BESA-CAMPUBRI, 2013), en provecho de la géneros literarios, han centrado su interés en la biografía ficcional
observación de la movilidad, interrelación y transposición de los que recrea la vida de escritores de literatura. Según los autores
géneros en la actualidad. esta modalidad narrativa ofrece un dinamismo nuevo y
enriquecedor a la tradición, que para ellos, se extiende desde las

(1978) and Ludwig Harig's Rousseau (1978) are some of the genre's most
interesting representatives.”(1982, p.3)
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Vidas paralelas de Plutarco y las Vidas imaginarias de Marcel para el novelista, la biografía ficcional de escritor propicia una
Schwob (FORTIN, 2011). interrelación con la crítica, la teoría y la historia literaria, que
resulta en novedosos procedimientos narrativos que tienen su
Biografía ficcional de escritor base en la intertextualidad y la metaficción.
Las biografías ficcionales de escritor, además de desafiar de Dichos procedimientos narrativos de reescritura están
una u otra manera las prohibiciones de la biografía tradicional, determinados por las formas inventivas de “escribir al escritor”
como las biografías ficcionales en general, proponen nuevas (DION, apud FORTIN, 2011), sobre todo por el modo en que la obra
maneras de pensar el relato de la vida de un autor y la relación de ese escritor-personaje es apropiada por parte del novelista para
entre la vida y la obra (DION, 2005). No se trata de un relato que hacer parte del constructo narrativo y argumentativo del relato
vincule hechos comprobados de la vida del autor con su obra para ficcional. Ya sea incorporando extractos de las obras, o utilizando
intentar una reconstrucción fiel, sino de una actividad de nombres de personajes, o recreando situaciones de creación de los
interpretación que explora todos los recursos de narración y trabajos literarios del personaje-escritor. En todo caso, es evidente
descripción. En otras palabras, este tipo de biografía recrea un efecto de proyección, en el que apropiándose de la palabra del
ficcionalmente la figura de un escritor a la luz de la lectura y otro, el escritor-biógrafo se busca o se reconoce a sí mismo a
reescritura de su obra, hecha por otro escritor. “Se trata menos de través de la figura de escritor que está recreando. Este fenómeno,
descubrir la verdadera cara del hombre detrás de su obra, que de además de revelar una nueva relación que emparenta a la
hacer advenir una figura de escritor al seno de una ficción biografía ficcional de escritor con la autoficción – asunto que no
asumida” (FORTIN, 2011, p. 10). será desarrollado en este momento-, sin duda genera una
La forma interpretativa que media la escritura de la reactualización del escritor biografiado, en tanto su obra y su
biografía ficcional de un escritor, implica una adecuación entre la posición dentro de la historia literaria se ofrece al lector en modo
forma literaria de la biografía y la obra-vida de la que ella quiere reflexivo y reivindicativo.
dar cuenta. Así, para cada escritor hay que inventar una forma En la misma línea, es decir, a propósito de la implicancia de
nueva y especifica de biografía, pues la obra-vida de cada escritor la biografía ficcional de escritores en la historia literaria, tenemos
es única y particular (BOYER-WEINMANN, 2004). Ese ejercicio de que ya desde la elección del escritor a biografiar, el novelista revela
lectura y reescritura pone en evidencia una interrelación más una empatía por ese escritor y su obra, y de una u otra manera lo
compleja que la del relato ficcional con el relato factual, o lo inserta, y se inserta a sí mismo, en una herencia o tradición
ficcional con lo real, discusión que se instala del lado de la corriente literaria. Por lo tanto, estos relatos ubican al escritor biografiado
que se rehúsa a considerar la biografía ficcional como género en una genealogía literaria nacional o de continente, y en la
literario. Dado que, en esta modalidad de texto biográfico, la obra genealogía personal propia al novelista (FORTIN, 2011). Con el
del escritor biografiado se convierte en material de primera mano propósito de construir su relato ficcional el escritor-biógrafo se
P á g i n a | 928

confronta a toda una tradición, ya legitimada por el canon, la Biografía ficcional en la literatura latinoamericana
historia literaria formal y la crítica literaria, que debe interrogar y
hasta criticar en ocasiones, así sea de manera implícita, para Las aproximaciones críticas y teóricas a la biografía ficcional
otorgar validez a la vida-obra que está ficcionalizando. o imaginaria, y en especial a aquella que se centra en la figura de
En ese sentido, “más allá de la recreación imaginaria de la los escritores, se ha basado en la producción literaria francesa
existencia del escritor a partir de las posibilidades que ofrece la contemporánea, y en casos reducidos en la literatura canadiense,
ficción, esta clase de textos tiene, asimismo, un propósito crítico y debido a la vinculación de Frances Fortier y Robert Dion a la
polémico, pues su objeto es también acceder a algún tipo de academia de ese país. En ninguno de los estudios sobre el género
verdad nueva acerca de la literatura misma” (BESA-CAMPRUBÍ, se contempla la narrativa latinoamericana, a pesar de que la
2013, p. 45). Con esto, la biografía ficcional de escritor no es una publicación de trabajos literarios en el campo ha sido prolífica.
investigación de un modelo literario que intente mostrar una En especial, la literatura brasilera cuenta con una tradición
fidelidad a esa figura, ni un rechazo a las prácticas consideradas constituida en cuanto a ficción sobre escritores. Empezando por
caducadas, sino, por el contrario, un análisis y profundización de Calvario e Porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto
las propias interrogaciones, en tanto el escritor contemporáneo es (1977), de João Antonio, que evoca a Lima Barreto; Em liberdade
también crítico de su herencia literaria y de él mismo (FORTIER, (1981), de Silviano Santiago, recreando a Graciliano Ramos; Os
2005). cães da província (1986), de Luís Antonio de Assis Brasil, teniendo
Esa filiación que propicia este nuevo género con la como personaje a Qorpo Santo; A barca dos amantes (1991), de
literatura anterior, en forma de apropiación y proyección en lo Antonio Barreto, sobre Tomás Antonio Gonzaga; Memorial do fim
otro, como ya mencioné, le permite al novelista-biógrafo indagar (1991), de Haroldo Maranhão, que ficcionaliza a Machado de Assis;
en la literatura del otro los trazos y los tratamientos de sus propias O primeiro brasileiro (1995), de Gilberto Vilar, sobre Bento
interrogaciones. Lo que según Fortier (2005) pone en evidencia la Teixeira, entre otros (BOTOSO, 2010, p. 32-33). En este tipo de
dimensión hermenéutica del género, y a mi parecer lo ubica en una producciones, además, se destaca el trabajo de la escritora Ana
dimensión metaficcional, que lo autoriza para pensar el género de Miranda, quien desde el año de 1989 con el lanzamiento de su
la biografía ficcional de escritor y la literatura en general dentro novela Boca do inferno, que tiene como protagonistas al poeta
del mismo relato. Con esto, me adhiero a la idea de que “el Gregorio de Matos y al jesuita Antonio Vieira, inaugura un camino
formato de la biografía (tradicionalmente “no literario” o con poco de exploración en la escritura ficcional sobre escritores de poesía
prestigio, y subestimado por los estudiosos por ser poco dado a la y de ficción. En 1995, publica A última quimera, que recrea la figura
experimentación) se ha convertido, paradójicamente, en el lugar del poeta Augusto dos Anjos, en el mismo año aparece Clarice, que
en el que se plantea de nuevo la cuestión de la literatura” explora una faceta profundamente personal e íntima de la
(JEFFERSON, apud BESA-CAMPRUBÍ, 2013, p. 58). escritora Clarice Lispector. En 2002 publica Dias & Dias, sobre el
P á g i n a | 929

poeta Gonçalves Dias, y culmina con su más reciente novela sobre Padura, La novela de mi vida (2002), sobre la vida del poeta cubano
José de Alencar, Semiramis, publicada en el mes de febrero de este José María Heredia; entre otros.
año. Si bien, muchos de los últimos trabajos literarios han sido
En el escenario de la literatura hispanoamericana, se objeto de estudio crítico y teórico, la perspectiva de análisis se ha
despliega una amplia producción de trabajos literarios, mantenido en el marco de la novela histórica; y en la discusión de
normalmente abordados por la crítica desde la perspectiva de la los límites entre el discurso histórico y el discurso literario y la
nueva novela histórica, pero que, siguiendo a la profesora y manera como se combinan, sobre qué, de lo que se narra, es real
escritora Aimée Bolaños “integran un corpus narrativo de y qué ficción. En el caso particular de Ana Miranda, se cuenta con
originales nexos genealógicos en torno a las biografías ficticias” algunos trabajos que resaltan su relación con la historia literaria
(2013, p. 195). La autora se refiere a variadas obras de escritores brasilera y con la biografía ficcional (MORAIS, 2009; NEVES, 2009;
como “Manuel Mujica Lainez, Juan Rodolfo Wilcock, Félix Pita BOTOSO, 2010; BOLAÑOS, 2013). Con respecto a las obras de los
Rodríguez, Alejo Carpentier, Reinaldo Arenas, Carlos Fuentes, autores hispanoamericanos de las últimas décadas no hay
Mario Vargas Llosa, Mario Bellantin, Elena Poniatowska, entre registros, por el momento, que den cuenta de un abordaje desde
otros” (BOLAÑOS, 2013, p. 195). las posibilidades que ofrece la biografía ficcional de escritor, que
En específico, en el ámbito de la biografía ficcional de sin duda permite explorar aspectos que el género de la novela
escritor se destacan La Historia universal de la infamia (1935) de histórica no contempla, y que hoy se presentan como reflexiones
Jorge Luis Borges, “que augura las ficciones de Averroes, Menard, actuales y pertinentes para el campo de los estudios literarios.
Funes, Asterión, hasta el Borges autoficcional” (BOLAÑOS, 2013, p.
195); y La literatura nazi en América (1996) de Roberto Bolaño, Historia literaria en la biografía ficcional de escritor
antología de biografías ficticias de escritores americanos que Ahora bien, para continuar con el objetivo de esta
simpatizaron con el nazismo. A ellas se suman varias obras que han presentación, es decir, observar la manera en que las biografías
revelado, durante las últimas décadas, un creciente interés por ficcionales de escritor se desplazan al terreno de la historia
fabular sobre figuras de escritores reales. Los títulos que literaria, presentaré algunas consideraciones sobre el tema, a la luz
sobresalen son En el nombre de Salomé (2002) de la escritora de la lectura de algunas de las obras latinoamericanas nombradas,
dominicana Julia Álvarez, en donde se reconstruye la figura de la que ficcionalizan escritores.
poeta Salome Ureña y su hija Camila Henríquez Ureña; también los Algunos podrían pensar que la biografía ficcional de
trabajos de la escritora y crítica argentina María Rosa Lojo, Una escritor vuelve sobre la tradición biográfico-psicológica de la
mujer de fin de siglo (1999) sobre la poeta Eduarda Mansilla y Las historia de la literatura, que predominó en el siglo XIX, en la que se
libres del sur (2004) que tiene como personaje principal a la presenta la obra del escritor en función de su vida personal, o
escritora Victoria Ocampo; la obra del escritor cubano Leonardo incluso la obra literaria, es ignorada por dar privilegio a la figura
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del escritor como el genio creador. Sin embargo, la prevalencia de escritor-personaje. De otro lado, también, extractos de las obras
datos de la vida del autor de carácter verificable y comprobable de los escritores son vinculadas al relato, unas veces de forma
que caracteriza a las historias literarias de cuño psicológico o directa para mostrar la lectura especifica que lleva a cabo la
biográfico, es una tendencia con la que la biografía ficcional de narradora, otras veces de forma indirecta, fusionados a los
escritor rompe todo nexo. Por lo contrario, en la biografía ficcional pensamientos e intervenciones de la misma, demarcados en
de escritor es la obra del escritor biografiado la que se instala en el ocasiones por la letra cursiva.
centro de la creación para desplegar varias facetas de esa figura, En otras novelas, como En el nombre de Salomé (2000) de
naciente del ejercicio de lectura por parte del escritor-biógrafo. Julia Álvarez y Una mujer de fin de siglo (1999) de María Rosa Lojo,
De manera que desde variados mecanismos narrativos se hace uso de la primera persona para escuchar la voz
estos trabajos de biografía ficcional reactualizan las figuras de sus ficcionalizada de las escritoras Salomé Ureña y Eduarda Mansilla,
escritores-personajes en una relectura y reescritura de sus obras. respectivamente. Una voz que revela los sentimientos, las
Por ejemplo, algunos acuden a narradores en tercera persona, que preocupaciones, las angustias más íntimas de las escritoras, a
conocieron de cerca al autor y siguen su recorrido a partir de las partir del tejido de textos de ellas mismas, como cartas, diarios,
relaciones con otros conocidos, o a partir de lo que se publicaba relatos y poemas, con la invención intuitiva de sus autoras-
en los medios de la época, como en el caso de Dias e Dias (2002) y biógrafas.
Semiramis (2014) de Ana Miranda. En estas novelas en particular, No obstante, en estas dos obras intervienen otras voces
la ficcionalización del escritor surge de la intimidad que crean sus narrativas que entran a complementar el mundo de escritura
narradoras con la lectura de las obras y la alternancia de recuerdos creado por una primera voz íntima. En Una mujer de fin de siglo la
de ese momento de cercanía con el autor, que de cierta manera voz de la joven secretaria de Eduarda nos ofrece su versión de lo
ponen en evidencia el interés por encontrar en la ficción que la escritora ya ha narrado, así como de los textos literarios, y
respuestas sobre el origen, sobre el momento fundador, que dio a ellas se suma la narración de Daniel García Mansilla, hijo de
vida a la escritura poética o ficcional. Eduarda, en la que también se interrelacionan fragmentos de uno
Las obras de los escritores en estos dos casos están de sus textos con la interpretación imaginativa de la autora. En el
presentes en dos niveles, de un lado se configuran como el nombre de Salomé la voz en primera persona de la poeta, se
trasfondo del tejido argumentativo, es decir que la narración va entrelaza con la un narrador externo que relata sucesos de la vida
avanzando en la medida en que las obras de los escritores de Camila Henríquez Ureña, la única hija mujer de Salomé. El relato
aparecen en público y son leídas dentro del relato. Éstas dan de una se confunde con el de la otra, Camila está buscando a su
continuidad a la trama, en cuanto son las lecturas de dichas obras madre tras su obra, y el relato en primera persona parece
las que permiten el surgimiento de las reflexiones y recuerdos de responderle las preguntas que la atormentan, pero siempre a la luz
las narradoras para la construcción de las distintas figuras del de lo que los poemas de su madre le revelan. Estas biografías
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ficcionales ponen en relieve de nuevo ese ejercicio de lectura de la la par con la idea de una nación independiente y libre. O para
obra de los escritores dentro del mismo relato como fundamento revalidar autores y obras minimizados por la crítica hegemónica de
constitutivo de la trama. la época, que los mantiene por fuera de un canon establecido, por
Procedimientos similares ocurren en La novela de mi vida ejemplo la obra de Eduarda Mansilla, que por su condición de
(2002) de Leonardo Padura, en donde la autobiografía ficticia del mujer, perteneciente a la alta sociedad argentina, fue mantenida
poeta José María Heredia se entrecruza con el relato de un en silencio y en el olvido, y sólo recuperada tras el trabajo
profesor de literatura, investigador de la obra de Heredia, investigativo de María Rosa Lojo, autora de la novela. O también
Fernando Terry, que está tras las pistas para encontrar el para mostrar una o varias facetas poco exploradas de la obra de un
manuscrito de dicha autobiografía. La narración en primera autor, como en el caso de Clarice Lispector y José de Alencar, de
persona de las peripecias y sufrimientos de Heredia se quienes Ana Miranda privilegia la reconstrucción de figuras
corresponden con las vivencias de Fernando, lector asiduo del intimistas subyacentes de la relación de la obra de los escritores
poeta. Ambos comparten la condición de poetas frustrados, con su cotidianidad personal y sentimental.
exiliados de Cuba por traiciones e intrigas, y la historia de un amor En ese sentido, tanto los personajes o narradores que
imposible. La vida-obra de Heredia se entrecruza y funda con la intervienen como lectores de la obra del escritor-personaje, como
vida de Fernando Terry en la medida en que éste avanza en su los propios escritores-biógrafos emprenden un trabajo de crítica
investigación y penetra en las profundidades y secretos dentro del mismo relato, que reevalúa sentidos e interpretaciones,
inconcebibles de la poesía de Heredia. Con esto, en La novela de a fin de ubicar o validar desde otras perspectivas el lugar del
mi vida se asiste, además de la ficcionalización del escritor, a la escritor y su obra en el sistema de historia literaria al que
ficcionalización de un lector que concibe y narra su existencia a corresponde.
partir de la inserción en la obra de un escritor. Ahora bien, las biografías ficcionales alcanzan otra
Por consiguiente, el lector, categoría primordial en la preocupación del campo de la historia literaria y es la relación del
historia de la literatura, se reafirma como complemento autor y su obra con su contexto. Estas biografías ficcionales
existencial del escritor, en el sentido en que, tanto dentro de la además de situar a los escritores como individuos y plantear
obra como fuera, me refiero aquí al escritor-biógrafo como lector, conflictos específicos de su ser como escritor, a través de la
es el que motiva la reaparición y actualización de la figura del autor reconstrucción de fragmentos o períodos de sus vidas, recrean
en el escenario literario. Bien sea para remarcar y recordar una tanto el contexto social y político, como el escenario intelectual y
importancia ya reconocida en la tradición de la literatura nacional literario en el que los escritores actuaron. Con esto, las biografías
y continental, como en el caso de los poetas Salomé Ureña o José ficcionales de escritores se construyen en oposición a visiones
María Heredia, que tienen un protagonismo especial en la historia reduccionistas de la obra de arte como un producto autónomo,
de la literatura latinoamericana por ser escritores que surgieron a ajena de todos los efectos externos. Por lo contrario, la mayoría de
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las obras nombradas dan cuenta de las filiaciones entre escritores escritores-biógrafos se han formado, o por lo menos, la tendencia
y pensadores de la época, de los círculos, de las circunstancias que de la que son seguidores, insertándose a sí mismos en la serie de
permitieron la existencia de ese escritor y su obra, dando un un sistema literario nacional. Como vemos, generalmente, los
panorama del pensamiento y las ideas que se movían en los escritores-biógrafos ficcionalizan sobre escritores de su misma
momentos y contextos históricos específicos de cada escritor. En nacionalidad, con los que tienen alguna empatía o característica
el nombre de Salomé por ejemplo, queda claro que la escritura común. Si bien, las filiaciones entre escritor biógrafo y escritor
poética en Salomé Ureña surge como una urgencia que el contexto biografiado pueden ser de tipo espacial y cultural, como en el caso
político de la República Dominicana de finales del siglo XIX le de Ana Miranda, que parece tener un especial interés por los
exigía. Sus versos incentivaron a la revolución y a las ansias de escritores nordestinos 3 , cercanos a sus experiencias culturales
liberación de su pueblo. Al igual que la poesía de José María personales. También las filiaciones pueden ser ideológicas, como
Heredia, que incentivó los intentos de independencia tanto en en el caso de María Rosa Lojo, que manifiesta una intención
Cuba como en otras regiones hispanoamericanas. abierta de reivindicación femenina en el campo de la historia de la
Una obra que en particular destaca esta especie de literatura argentina y latinoamericana4, al igual que Julia Álvarez,
movimiento intelectual en el que se forman los escritores es Las quien expresa su interés por sacar del silencio en el que surgieron
libres del sur (2004) de María Rosa Lojo. Un relato que teniendo y desaparecieron las dos mujeres de su novela.
como personaje principal a la escritora Victoria Ocampo, narra el En todo caso, las biografías ficcionales de escritores
modo en el que circuló el arte y la literatura en la Argentina de aparecen en la literatura contemporánea como proposiciones
inicios del siglo XX. Así como la manera en que las mujeres se innovadoras para abordar discusiones actuales. Por ejemplo, la
fueron posicionando en ese campo, hasta culminar con la figura del autor, declarado muerto por algunos pensadores,
publicación de la famosa revista Sur. Momento clave para la resucita en la vitalidad ofrecida por la ficción, para garantizar su
historia de la literatura Argentina y latinoamericana, liderado por existencia y perdurabilidad en una tradición literaria nacional o
una mujer de múltiples facetas y contradicciones, relatadas con continental. La idea de un canon literario cerrado y una historia
destreza en esta novela de Lojo. literaria que clasifica y jerarquiza se difumina para dar cabida a la
Desde otra perspectiva, las ficciones que recrean vida-obra integración y recuperación de nombres y obras olvidadas o
de escritores ponen en evidencia también la tradición en la que los minimizadas. Debates de historia y teoría literaria se insertan en la

3
Por ejemplo, Golçalves Dias nació en Maranhão, José de Alencar nació en una vocación que nos les reclama por cierto la sociedad, más proclive a
Fortaleza, Augusto dos Anjos en Paraíba. asignarles otras funciones. Es una novela pensada y escrita, pues, desde las
4
Lojo declara en la parte introductoria de Una mujer de fin de siglo (1999): “Es necesidades y problemas de este presente, donde los personajes históricos son
una novela inspirada en su vida, cuyo sentido se proyecta sobre todas las también símbolos de sueños y deseos que han mantenido (y exasperado) su
mujeres intelectualmente creadoras (incluso las actuales) comprometidas con vigencia” (p. 1)
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biografías ficcionales de escritores, a modo metaficcional y BOYER-WEINMANN, M. La biographie d'écrivain: enjeux, projets,
autoficcional, para reforzar el intento de convertir a la escritura contrats. Cartographie exploratoire d'un geste critique. Poétique,
poética y ficcional en el lugar preciso y adecuado para desplegar no. 139, 2004. Disponible en: <http://www.cairn.info/revue-
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tiempos se hace sobre su lugar en el mundo y el sentido de su Revista Complutense de Estudios Franceses. Madrid, vol. 28, 2013.
existencia en la escritura. Así, “escribir sobre el escritor hoy en día, Disponible en:
es creer en la vitalidad de un patrimonio literario transhistórico y <http://dx.doi.org/10.5209/rev_THEL.2013.v28.40374>. Acceso
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