Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISSN: 1518-5648
olhardeprofessor@uepg.br
Departamento de Métodos e Técnicas de
Ensino
Brasil
Leff, Enrique
Complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental
Olhar de Professor, vol. 14, núm. 2, 2011, pp. 309-335
Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino
Paraná, Brasil
Resumo: O artigo se propõe a realizar uma reflexão crítica sobre os marcos conceituais e as bases
epistemológicas da questão ambiental, os quais podem impulsionar uma prática da interdisciplinaridade
mais aprofundada e bem fundamentada em seus princípios teóricos e metodológicos, orientada ao ma-
nejo, gestão e apropriação dos recursos ambientais.
Abstract: This article proposes to undertake a critical reflection on the conceptual frameworks and the
epistemological basis of environmental issues, which can stimulate an interdisciplinary practice that
is more in-depth and well-grounded in theoretical and methodological principles and is more aimed at
management and the ownership of environmental resources.
*
Artigo publicado em PHILIPPI JR., Arlindo (Org.). Interdisciplinaridade em ciências ambientais. São Paulo :
Signus, 2000.
**
Professor da Universidade Nacional Autônoma do México e Coordenador da Rede de Formação
Ambiental para a América Latina e Caribe do PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente. E-mail: <enrique.leff@yahoo.com>.
Formação em Ciências Ambientais (CIFCA) que tenham sido abertos espaços de forma-
– programa conjunto do PNUMA com o ção ambiental (ainda marginais) nas univer-
governo da Espanha que funcionou desde sidades, a interdisciplinaridade se incorpora,
1976 até 1983 – e pela Rede de Formação na maior parte das vezes, como um princípio
Ambiental para América Latina e Caribe, que se satisfaz com a multiplicidade de te-
do PNUMA, desde seu estabelecimento em mas ambientais introduzidos no currículo.
1981. Esses esforços levaram à organização A reflexão em torno dos problemas do
do Primeiro Seminário sobre Universidade conhecimento que apresenta a questão am-
e Meio Ambiente, organizada pela Rede biental foi orientado para a incorporação de
de Formação Ambiental e pelo PIEA em
um saber ambiental emergente nos paradig-
Bogotá, em 1985, que estabeleceu as bases
mas “normais” de conhecimento (das disci-
para o desdobramento de diversos programas
plinas científicas estabelecidas), buscando
de investigação e estudo nas universidades
com isso estabelecer bases para uma gestão
da região, orientadas pelos princípios da
“interdisciplinaridade ambiental” (PNUMA, racional do ambiente (LEFF et al, 1986). Da
1985; PNUMA/ UNESCO, 1988). concepção de uma educação ambiental fun-
dada na articulação interdisciplinar das ciên-
Hoje pode-se identificar na região da
cias naturais e sociais, se avançou para uma
América Latina e Caribe diversos programas
visão da complexidade ambiental aberta a
“interdisciplinares” de investigação e forma-
diversas interpretações do ambiente e a um
ção ambiental (PNUMA, 1995), nos quais se
diálogo de saberes. Nessa visão se confluem
desenvolvem estratégias acadêmicas e expe-
riências muito diferentes. Reconhecendo os a fundamentação epistemológica e a via her-
avanços feitos na investigação e na formação menêutica na construção de uma racionali-
ambiental que demandam a interdisciplina- dade ambiental que é mobilizada por um sa-
ridade como fundamento teórico e guia pe- ber ambiental que se inscreve em relações
dagógico, é possível afirmar que são poucos de poder pela apropriação social da natureza
os programas que trabalham a problemática e da cultura (LEFF, 1986, 1994b, 2000).
epistemológica e metodológica da interdis- A interdisciplinaridade implica assim
ciplinaridade para fundamentar seus progra- um processo de inter-relação de processos,
mas de investigação e de estudo2. Mesmo conhecimentos e práticas que transborda e
transcende o campo da pesquisa e do ensino
2
Existem honrosas exceções e importantes no que se refere estritamente às disciplinas
contribuições, como as pesquisas realizadas no Instituto científicas e a suas possíveis articulações.
de Estudos Ambientais da Universidade Nacional de
Colômbia; as pesquisas em torno do doutorado em
Dessa maneira, o termo interdisciplinaridade
Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade vem sendo usado como sinônimo e metáfora
Federal do Paraná (ZANONI; RAYNAUT, 1994, de toda interconexão e “colaboração” entre
FLORIANI, 1998) e do Programa de Pós-Graduação diversos campos do conhecimento e do
em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo
saber dentro de projetos que envolvem tanto
(JACOBI, 1999); as reflexões que fundamentam as
pesquisas do Centro de Investigações Ambientais da as diferentes disciplinas acadêmicas, como
Universidade Nacional de Mar del Plata e o mestrado as práticas não científicas que incluem as
em Gestão Ambiental do Desenvolvimento Urbano instituições e atores sociais diversos. É
nessa Universidade, assim como nas Universidades
de Comahue e Córdoba na Argentina (FERNÁNDES, desenvolvidos na América Latina (FOLLARI,1982;
1999). Além disso, as contribuições à análise da GARCÍA, 1986, 1994; NOVO e LARA, 1997), que
interdisciplinaridade e à construção e aplicação permeiam e dão suporte a muitos projetos de pesquisa
de métodos interdisciplinares de investigação e formação ambiental nas universidades da região.
cos que abrem as possibilidades do acesso e dos diferentes níveis do real em princípios
apropriação social da natureza. São os efei- gerais ou supostamente fundamentais de seu
tos desses processos materiais e simbólicos funcionamento estrutural – e não só de sua
que se articulam e se tornam visíveis nos gênese histórica ou evolutiva.
padrões tecnológicos e nas formas particu- O propósito de unificação das ciências
lares de organização produtiva; nos circuitos no positivismo lógico e a busca de suas ho-
da produção, distribuição e consumo; na or- mologias estruturais na Teoria Geral de Sis-
ganização institucional do poder; na eficácia temas, foi conformando uma prática inter-
dos métodos de produção, difusão e aplica- disciplinar que não foge a essa racionalidade
ção do conhecimento; nas atitudes frente à científica que tem “externalizado” o ambien-
inovação tecnológica e à mudança social; te e que desconhece o saber ambiental. O ob-
na retórica das práticas discursivas sobre a jetivo unificador e reducionista do logocen-
conservação ecológica e o desenvolvimento trismo da ciência moderna surge do desejo
sustentável. de encontrar um único princípio organizador
A materialidade dos citados processos da matéria, como se experimentara uma sin-
se forja entre o real do objeto do conheci- gular repugnância ao pensar a diferença, a
mento de suas ciências e a realidade onde descrever as separações e suas dispersões,
seus efeitos são perceptíveis. Os conceitos a dissociar a forma reafirmante do idêntico.
teóricos apreendem as causas determinantes (FOUCAULT, 1969). Esses sistemas desco-
e os princípios atuantes dessa organização do nhecem a especificidade conceitual de cada
real, de onde é possível explicar a dinâmica ciência, de onde é possível pensar sua inte-
destes processos, sua potencialidade e seus gração com outros campos do conhecimen-
efeitos concretos sobre a realidade empíri- to, sua articulação com outros processos ma-
ca. Essa produção de conhecimentos não se teriais e sua hibridação com outros saberes.
constitui a partir da simples indução da rea- As ciências não vivem num vazio
lidade sensível, pela formalização dos dados ideológico e semântico. Tanto por sua cons-
“puros” da realidade e dos enunciados sobre tituição a partir das ideologias teóricas e as
os fenômenos observáveis, ou pela “siste- cosmovisões do mundo no terreno conflitivo
maticidade” das possíveis relações lógicas das práticas sociais dos homens, como pelas
e “matematizáveis” em uma teoria geral de transformações tecnológicas que se abrem a
sistemas. Nesse sentido, a estratégia episte- partir das condições econômicas de aplicação
mológica proposta para compreender as pos- do conhecimento, as ciências estão inseridas
síveis articulações das ciências no campo da em processos discursivos onde se debatem
interdisciplinaridade ambiental, acaba sendo num processo contraditório de conhecimen-
oposta ao positivismo lógico e a todo idealis- to/desconhecimento que mobiliza o “lugar
mo empirista e subjetivista. da verdade” (BALIBAR, 1995), de onde
Os princípios anteriores se constroem derivam sua capacidade “cognoscitiva” e
como “postos de vigilância epistemológica” seu potencial transformador da realidade. A
frente às tendências idealistas à dissolução articulação desses processos de conhecimento
das diferenças nas ordens ontológicas do com os processos institucionais, econômicos
real, dos objetos das ciências e das racio- e políticos que condicionam o potencial tec-
nalidades que organizam os saberes em um nológico e a legitimidade ideológica de suas
campo unitário do conhecimento; em opo- aplicações, está regida pela confrontação de
sição à redução da organização específica interesses opostos de classes, grupos sociais,
culturas e nações pela apropriação diferen- de uma população; pela produção e pela
ciada e pelas transformações alternativas da aplicação de certos conhecimentos que
natureza. permitam uma apropriação coletiva dos
A produção científica se inscreve nes- recursos naturais, uma produção sustentável
sas condições ideológicas, não só porque o e uma divisão mais equitativa da riqueza,
cientista, como sujeito da ciência, é, desde para satisfazer as necessidades básicas das
sempre, um sujeito ideológico, mas também comunidades e para melhorar sua qualidade
porque suas práticas de produção de conhe- de vida.
cimento estão estreitamente vinculadas às A problemática ambiental induz, as-
ideologias teóricas e modeladas no tecido do sim, um processo mais complexo do conhe-
saber de onde emergem as ciências, e onde cimento e do saber para apreender os pro-
se debatem permanentemente em um proces- cessos materiais que configuram o campo
so interminável de emancipação, de produ- das relações sociedade-natureza. Daí surgem
ção e especificação de seus conhecimentos. obstáculos epistemológicos (BACHELARD,
As formações ideológicas nas quais se 1938) e motivações para a produção de co-
desenvolvem os métodos da interdisciplina- nhecimentos pelo efeito de interesses sociais
ridade ambiental tendem a “naturalizar” os opostos, abrindo possibilidades alternativas
processos políticos de dominação e a ocultar para a reorganização produtiva da socieda-
os processos de reapropriação da natureza de e o aproveitamento sustentável dos re-
que estabelecem as estratégias dominantes cursos naturais. As distintas percepções da
da globalização econômica. Dessa maneira, problemática ambiental – as causas da crise
pretende-se explicar e resolver a problemáti- de recursos, as desigualdades do desenvol-
ca ambiental através de uma visão funcional vimento econômico, a distribuição social
da sociedade, inserida como um subsistema dos custos ecológicos, a nova racionalidade
dentro do ecossistema global do planeta, produtiva fundada no potencial ambiental de
ocultando os interesses em jogo no conflito cada nação, região, território, população, co-
pela apropriação da natureza na legalidade munidade – geram demandas diferenciadas
dos direitos individuais e na unidade do sa- de conhecimentos teóricos e práticos. Des-
ber sobre uma realidade uniforme. sa forma, a “crise ecológica” mobiliza um
amplo processo de produção, apropriação e
Nesse sentido, o saber ambiental abre
utilização de conceitos “ambientais” que se
uma perspectiva de análise da produção
reflete nas estratégias para o aproveitamento
e de aplicação de conhecimentos como
sustentável dos recursos.
um processo que compreende condições
epistemológicas para as possíveis Para poder abordar a questão da inter-
articulações entre ciências e os processos de disciplinaridade e orientar tanto estratégias
internalização do saber ambiental emergente de investigação e de formação como políti-
nos árduos núcleos da racionalidade cas ambientais e de desenvolvimento susten-
científica, e a hibridização das ciências com o tável, deve-se reconhecer os efeitos das polí-
campo dos saberes “tradicionais”, populares ticas econômicas atuais sobre a dinâmica dos
e locais. A produção “interdisciplinar” de ecossistemas e sobre as condições de vida
conhecimentos se insere, dessa maneira, das comunidades. É necessário avaliar as
no marco das lutas por certa autonomia condições econômicas, políticas, institucio-
cultural, pela autogestão dos recursos das nais e tecnológicas que determinam a con-
comunidades, pela propriedade das terras servação e recuperação dos recursos de uma
mobilizam a ação com valores não mercantis que se abre para o saber da complexidade
e para fins não materiais nem utilitários. ambiental.
A ruptura epistemológica em diferen- A interdisciplinaridade é uma chama-
tes paradigmas do conhecimento, que gera a da para a complexidade, a restabelecer as
emergência do saber ambiental e sua possível interdependências e inter-relações entre pro-
“internalização”, provém do encontro entre cessos de diferentes ordens de materialidade
os núcleos de racionalidade das ciências e o e racionalidade, a internalizar as externalida-
campo do saber ambiental, entendido como des (condicionamentos, determinações) dos
um “espaço de externalidade”. Tal encontro processos excluídos dos núcleos de raciona-
é a confrontação com o real posto à margem, lidade que organizam os objetos de conhe-
confinado e excluído, externalizado do nú- cimento das ciências (de certos processos
cleo conceitual do objeto de conhecimento ônticos e objetivos). Nesse sentido, a inter-
(as condições ecológicas da reprodução do disciplinaridade é uma busca de “retotaliza-
capital e as condições termodinâmicas do ção” do conhecimento, de “completude” não
alcançada por um projeto de cientificidade
processo econômico). Mas, por ele mesmo,
que, na busca de unidade do conhecimento,
não se trata da internalização mecânica de
da objetividade e do controle da natureza,
uma “dimensão” do conhecimento, de um
terminou fraturando o corpo do saber e sub-
conjunto de princípios, preceitos, conheci-
metendo a natureza a seus designios domi-
mentos, métodos e técnicas. Refere-se mais
nantes; exterminando a complexidade e sub-
ao retorno dos impensáveis, do que só será
jugando os saberes “não científicos”, saberes
pensável fazendo atuar a reflexão sobre o já
não ajustáveis às normas paradigmáticas da
pensado, voltanto sobre os próprios funda-
ciência moderna.
mentos de uma ciência, sobre seus conceitos
Desde uma visão hermenêutica sobre
e pressupostos básicos (LEFF, 2000)6.
a constituição do conhecimento científico,
O ambiente não é o conceito que de- pode-se compreender o desconhecimento
signa a ruptura de uma ciência ou da articu- em que se fundamenta. Assim, a afirmação
lação das ciências existentes. O ambiente é de que a globalização – regida com base nas
o campo de externalidade das ciências; é o leis clarividentes do mercado – é a razão
conceito da demarcação frente à “cientifici- máxima de governabilidade do mundo, não
dade” própria que instaura a modernidade, o pode assegurar a certeza do conhecimento
logocentrismo que fundamenta as ciências no qual se fundamenta. O que faz é expul-
em torno de núcleos conceituais que externa- sar do campo da percepção todo possível
lizam e ignoram o ambiente que condiciona questionamento das causas profundas da cri-
os processos dos quais deve dar conta uma se ambiental. Dessa maneira, tal excesso de
ciência; é a disjunção do pensamento uni- conhecimento segue descarregando-se como
dimensional e do conhecimento disciplinar resíduos tóxicos e perigosos na natureza; os
6
investimentos de capital se transformam em
A “ambientalização” das ciências implica uma re-
estruturação epistemológica que, como coloca F. emissões térmicas que seguem sendo depo-
Regnault, é o ponto de retorno aos impensados desta sitadas na natureza, transformando seus ren-
ciência que, ao mesmo tempo, é um novo ponto sem dimentos em desastres naturais que castigam
retorno para esta ciência. (cit. em BALIBAR4 1995). os ecossistemas e os povos do mundo (e com
Trata-se de um retorno dos impensados... no sentido
maior severidade os países tropicais do Ter-
de uma produção de conceitos, que permite formular
completamente a teoria existente e, portanto, exibir ceiro Mundo e os povos da América Latina
seus limites.” (BALIBAR4 1995) e Caribe).
O processo de globalização econô- lado com sua externalidade, com sua “alteri-
mica organiza rituais para venerar o deus- dade”, que abre as comportas do saber para
-mercado, para pedir-lhe maiores colheitas irrigar novos territórios do ser; para que, em
de crescimento sustentável, sem considerar sua eterna recorrência, os conhecimentos
que é esse crescimento econômico, regido se reencontrem com os saberes subjugados
pelas leis do mercado e por uma racionali- (naufragados) em novos horizontes de racio-
dade do lucro de curto prazo (leis humanas nalidade.
sujeitas ao poder entre humanos), que pro- A transdisciplinaridade é o questiona-
duz os ritmos crescentes de extração e trans- mento do logocentrismo e da configuração
formação de recursos naturais, de matéria paradigmática do conhecimento, do qual
e energia sujeita às leis da entropia. É isso erradicou da ciência normal todo saber não
que se manifesta no aquecimento global do científico como externo e estranho, como
planeta, ocasionando os ritmos atípicos e ex- patológico, como “não conhecimento”; é a
tremos de altas e baixas temperaturas, os fu- transgressão da disciplinaridade, do saber
racões e ciclones, os incêndios florestais dos codificado para apreeender, “coisificar”, ob-
últimos anos que tornaram inoperantes as jetivar o real. A transdisciplina está no saber
práticas tradicionais de uso do solo e do fogo ambiental, como essa falta de conhecimen-
(que estão convertendo a desgraça humana to que anima a produção de novos conheci-
e o desastre ambiental em oportunidades de mentos; está na hibridização entre ciências,
negócio para a recuperação ecológica, tão tecnologias e saberes; está no diálogo inter-
demandada nos programas globais de desen- -cultural; é o saber que sabe que não pode
volvimento “limpo”). saber tudo, que sabe que está movido por
Para salvar os problemas que colocam seu não-saber, pelo desejo de saber. A trans-
a interdisciplinaridade como processo de re- disciplinar leva, assim, à desconstrução do
composição do saber fracionado, se postula conhecimento disciplinar e abre as vias para
a transdisciplina como sua solução final: um uma hibridização e diálogo de saberes no
conhecimento holístico e integrador, sem campo da complexidade ambiental.
falhas nem vazios; um conhecimento reuni-
ficador que transcende o propósito de esta-
belecer pontes interdisciplinares entre ilhotas Pensamento da complexidade,
científicas isoladas. No entanto, a transdisci- métodos interdisciplinares e diálogo
plinaridade não é a constituição de uma su-
de saberes
per-disciplina (ecologia, termodinâmica) que
transbordaria o campo das possíveis conexões
entre disciplinas para estabelecer um paradig- Havendo sobrevoado a problemática
ma onicompreensivo. A transdisciplinar não da interdisciplinaridade, será possível agora
poderá constituir-se em uma meta-discipli- uma maior aproximação no discernimento
na, senão em um processo de reconstrução de suas estratégias epistemológico-metodo-
do saber que transcenda a divisão e a con- lógicas frente à complexidade ambiental.
figuração disciplinar do conhecimento em A interdisciplinaridade tem sido defi-
compartimentos estanques. A trans-disciplina nida como uma estratégia que busca a união
é o processo mobilizador de um conhecimento de diferentes disciplinas para tratar um pro-
apressado, ao qual se fecharam as vias da com- blema comum. Nesse caso, pode-se enten-
plexidade; é o encontro do conhecimento iso- der como um procedimento metodológico
Assim, a produtividade sustentável aparece pela ciência afetada e não modificam o seu
como a síntese de processos naturais, so- objeto de conhecimento, condicionam em
ciais, culturais e tecnológicos, cognitivos e tal grau os processos que analisa, que estes
identificáveis, que estabelecem os processos só podem entender-se como uma sobre de-
sinergéticos de um sistema produtivo am- terminação ou uma articulação dos efeitos
biental complexo (LEFF, 1994). dos processos objeto dessas ciências. Vários
c) A confluência dos efeitos de dois ou problemas da articulação natureza-sociedade
mais processos materiais, objeto de diferen- exemplificam tal caso. A evolução e a suces-
tes disciplinas, em um fenômeno empírico – são dos ecossistemas naturais são objeto da
um sistema ambiental complexo –, que, ao biologia e da ecologia; mas os processos
não pertencer ao objeto de conhecimento de de transformação dos ecossistemas não de-
nenhuma de suas ciência, não implica a in- pendem tão-somente das leis biológicas da
clusão dos efeitos de um processo em outro evolução, senão que são afetados e sobrede-
nem a articulação dos conceitos de suas ciên- terminados pela apropriação cultural e eco-
cias. Este seria o fundamento teórico de uma nômica dos recursos naturais. A racionalida-
problemática intercientífica, mas que não de econômica não pode integrar-se no objeto
implica um processo de articulação teórica. da ecologia. Por ele, o estudo da transforma-
Um exemplo disso são os estudos demográ- ção dos ecossistemas implica a articulação
ficos ou de fecundidade. As taxas de repro- dos efeitos do modo de produção sobre os
dução, assim como as características físicas efeitos naturais e biológicos provenientes
e psicológicas da população, são o objeto da estrutura funcional de cada ecossistema.
de diferentes disciplinas. Nesses fenômenos Esse é um caso de sobredeterminação na
convergem os efeitos de diversos processos articulação científica. Outro caso de arti-
determinados pela estrutura genética de uma culação é o da organização cultural das for-
população, por suas condições de adaptação mações sócioeconômicas “não capitalistas”,
biológica ao meio, pela demanda de força de objeto da antropologia e da etnologia. Nesse
trabalho que produz a dinâmica econômica, caso, articulam-se os efeitos do idioma, da
e pelo desejo de reprodução vinculado às for- organização dos ecossistemas que habitam
mações do inconsciente, processos que são o
e das estruturas sociais que constituem, na
objeto da biologia, da economia política e da
explicação de suas práticas produtivas e ide-
psicanálise. Vários temas das etno-ciências
ológicas. É um caso de codeterminação múl-
são relacionados com esses processos inter-
tipla no processo de articulação.
disciplinares, nos quais a articulação contri-
bui para desenvolver um campo mais com- Seguindo esses tipos de intercientifi-
plexo da demografia ou da etno-botância, cidade, pode-se afirmar que, para que exista
mas não as estabelece como objetos cientí- articulação entre ciências em um sentido for-
ficos complexos (ver mais adiante o caso da te, é necessário que a materialidade de certo
biologia e da etno-botânica.) nível não seja mero apoio, pressuposição ou
d) A articulação dos efeitos de pro- condição dos processos de outra ciência – por
cessos materiais, objeto de uma ou mais exemplo, o ser biológico do homem como
ciências, sobre processos que são objeto suporte dos processos de trabalho ou de seus
de outra ciência, o que implica uma deter- processos simbólicos –, a não ser que suas es-
minação de processos externos que, se bem truturas materiais tenham efeitos determinan-
que não são absorvidos conceitualmente tes nos processos em que se articulam – por