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Larissa Michelle Lara é professora da

Organizadora
Larissa Michelle Lara
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Dança: dilemas e desafios na
Doutora em Educação (UNICAMP). Líder do
Grupo de Pesquisa Corpo, Cultura e Ludicidade contemporaneidade é resultado
(CNPq). Autora de As danças no candomblé:
corpo, rito e Educação e Corpo, sentido
Os dilemas que tocam a dança na de pesquisas e experiências
docentes de
ético-estético e cultura popular. E-mail:
contemporaneidade remetem aos desafios

D
lmlara@uem.br.
professores/pesquisadores que
Rita Ribeiro Voss é professora da Universidade que os diferentes sujeitos precisam integram a Rede de Cooperação
Federal de Pernambuco (UFPE). Doutora em
enfrentar no intuito de concretizar ações Acadêmica, Cultural e Artística

A
Educação (UFRN). É pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Dança: Estética e Educação, na em Dança por meio de três
UNESP. E-mail: riberita@gmail.com.
que venham a contribuir com a grupos de pesquisa vinculados a

LO
Marcio Pizarro Noronha é professor da
Universidade Federal de Goiás. Doutor em produção/disseminação de conhecimento Programas de Pós-Graduação e
História (PUCRS) e em Antropogia (USP). um grupo vinculado à graduação
Psicanalista. Líder do Grupo de Pesquisa e com o campo de atuação profissional. em dança. Produção de
Interartes (CNPq) – Processos e sistemas
interartísticos e estudos de performance. E-mail:
marcio.pizarro@hotmail.com.
A sociedade atual exige esforços no conhecimento em dança
sentido da radicalidade dos saberes (dimensão epistemológica);

N
Alba Pedreira Vieira é professora da
conceitos operacionais do campo

DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS


Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutora
em Dança pela Temple University (Estados produzidos e do compromisso com sua da arte; ensino e aprendizado de
Unidos). Líder do Grupo de Pesquisa
Transdisciplinar em Dança (CNPq). Autora do propagação e recepção, a fim de dança hoje; fragmentação na

Dança

W
livro digital Educação para as artes. E-mail: abordagem de corpo e métodos de
apvieira@ufv.br. promover o diálogo necessário para o ensino; concepções de dança por
Kathya Maria Ayres de Godoy é professora da
Universidade Estadual Paulista (UNESP/IA). estabelecimento de processos profissionais com formação no
stricto-sensu; dança coral como
intercomunicacionais que conduzam ao

O
Doutora em Educação (PUC/SP). Líder do
Grupo de Pesquisa Dança: Estética e Educação.
Autora e organizadora do livro Movimento e mecanismo de congraçamento dos
cultura na escola: dança (Instituto de Artes da pensamento crítico e interventor. sujeitos; processo de

dilemas e desafios
UNESP, 2010) e Oficinas de dança e expressão

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corporal para o ensino fundamental (Cortez, mercadorização da dança são
2009). E-mail: kathya.ivo@terra.com.br.
temas que integram a obra. A

na contemporaneidade
Eliane R. C. Tortola é mestre em Educação Física compilação visa discutir esses
(UEM) e membro do Grupo de Pesquisa Corpo,
Cultura e Ludicidade (CNPq). E-mail: Larissa Lara assuntos apontando para dilemas

EE
eli-tortola@hotmail.com. existentes no campo da dança e
Maristela Moura Silva Lima é professora Titular para os desafios que demandam
do Curso de Dança do Departamento de Artes e
Humanidades da Universidade Federal de Viçosa ações interventoras. Interessa,
(UFV). Doutora em Educação pela Temple Larissa Michelle Lara especialmente, a professores,
University (EUA). Membro do Grupo de
Pesquisa Transdisciplinar em Dança (CNPq). Organizadora pesquisadores, estudantes de
FR
E-mail: teinha@ufv.br graduação e pós-graduação em
Rita de Cássia Franco de Souza Antunes é mestre dança, arte, teatro, educação
e doutora em Educação Física (UNICAMP).
Pós-doutorada em Artes pelo Instituto de Artes
ISBN 978-85-7628-481-9
física e demais áreas voltadas às
(UNESP-SP). Membro pesquisador do Grupo de discussões propostas por essa
Pesquisa Dança: Estética e Educação (CNPq).
E-mail: antunes@fc.unesp.br. coletânea.
9 788576 284819
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DANÇA:
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DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE


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EDITORA DA U N I V E R S I D A D E E S TA D UA L DE MARINGÁ
EE

Reitor: Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho. Vice-Reitora: Profa. Dra. Neusa Altoé. Diretor da Eduem: Prof. Dr. Alessandro Lucca Braccini.
Editora-Chefe da Eduem: Profa. Dra. Terezinha Oliveira

CONSELHO EDITORIAL
Presidente: Prof. Dr. Alessandro Lucca Braccini. Editores Científicos: Prof. Dr. Adson C. Bozzi Ramatis Lima, Profa. Dra. Ana Lúcia
Rodrigues, Profa. Dra. Angela Mara de Barros Lara, Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer, Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva, Profa. Dra.
Cecília Edna Mareze da Costa, Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim, Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli , Prof. Dr. Eduardo Augusto
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Tomanik, Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto, Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso, Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes, Profa. Dra.
Larissa Michelle Lara, Prof. Dr. Luiz Roberto Evangelista, Profa. Dra. Luzia Marta Bellini, Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado,
Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima, Prof. Dr. Rafael Bruno Neto, Prof. Dr. Raymundo de Lima, Profa. Dra. Regina Lúcia Mesti, Prof.
Dr. Reginaldo Benedito Dias, Profa. Dra. Rozilda das Neves Alves, Prof. Dr. Sezinando Luis Menezes, Profa. Dra. Terezinha Oliveira,
Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco, Profa. Dra. Valéria Soares de Assis.

EQUIPE TÉCNICA
Fluxo Editorial: Edilson Damasio, Edneire Franciscon Jacob, Mônica Tanamati Hundzinski, Vania Cristina Scomparin. Projeto Gráfico e
Design: Marcos Kazuyoshi Sassaka. Artes Gráficas: Luciano Wilian da Silva, Marcos Roberto Andreussi. Marketing: Marcos Cipriano da Silva.
Comercialização: Norberto Pereira da Silva, Paulo Bento da Silva, Solange Marly Oshima.
LARISSA MICHELLE LARA
Organizadora

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DANÇA:

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DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

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Prefácio
Donald S. Blumenfeld-Jones
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Maringá
2013
Copyright © 2013 para os autores

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico,
eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, dos autores.
Todos os direitos reservados desta edição 2013 para Eduem.

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Revisão textual e gramatical: Maria Dolores Machado
Normalização textual e de referência: Simone Lima Lopes Rafael
Projeto gráfico/diagramação: Marcos Kazuyoshi Sassaka

A
Capa - foto/arte final: Luciano Wilian da Silva
Ficha catalográfica: Edilson Damasio (CRB 9-1123)
Fonte: GoudyOlSt BT, Times New Roman

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Tiragem - versão impressa: 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(Eduem - UEM, Maringá – PR., Brasil)

D173

N
Dança : dilemas e desafios na contemporaneidade / Larissa Michelle Lara (organizadora) ;
prefácio Donald S. Blumenfeld-Jones. -- Maringá : Eduem, 2013.
265 p. : il. (color.)
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Vários autores.
ISBN 978-85-7628-481-9

1. Dança. 2. Dança – Teoria. 3. Dança como arte. 4. Danças – Educação. 5. Corpo e


dança. I. Lara, Larissa Michelle, org. II. Título.
O

CDD 21.ed. 793.3


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EE

Editora filiada à
FR

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá-Paraná - Fone: (0xx44) 3011-4103 - Fax: (0xx44) 3011-1392
www.eduem.uem.br - eduem@uem.br
Sumário

D
A
Preface ..................................................................................... 7

LO
Prefácio.................................................................................... 13
Apresentação .......................................................................... 19

1 N
Dimensão epistemológica da dança: leituras, prospecções e
W
incompletudes
Larissa Michelle Lara ............................................................... 29
O

2
Desafios epistemológicos e políticas de ação na graduação e
D

pós-graduação em dança
Rita Ribeiro Voss ...................................................................... 57

3
EE

Corpoarte: releitura do corpo na educação. Território do


corpo no mundo dos saberes
Rita de Cássia Franco de Souza Antunes ................................ 87
FR

4
Reflexões em estudos de teoria da arte e dança cênica
Marcio Pizarro Noronha .......................................................... 115
5
Dança, educação e contemporaneidade: dilemas e desafios
sobre o que ensinar e o que aprender

D
Alba Pedreira Vieira ................................................................. 155

A
6
Transformações nas concepções sobre dança de profissionais

LO
atuantes no meio artístico e educacional
Kathya Maria Ayres de Godoy ................................................. 185

7
Dança coral: fazer e dançar
N
Maristela Moura Silva Lima, Alba Pedreira Vieira .................. 207
W
8
A mercadorização da dança nas noites urbanas: dilemas
O

contemporâneos
Eliane Regina Crestani Tortola, Larissa Michelle Lara ............ 237
D
EE
FR
Preface

D
A
As I share my thoughts with you in this Preface, allow me to

LO
set the context of those thoughts. This context will involve my
initial introduction to the conference out of which the papers you
find in this collection grew and my thoughts prior to attending the
conference. Those thoughts have changed since my attendance and
I want to share with you what I experienced at the conference and
N
the meaning value of what you will find within the pages of this
book.
W
In the summer of 2011 Dr. Alba Pedreira Vieira of the
Universidade Federal de Vicoşa invited me to deliver the keynote
address for the 3rd ENGRUPEdança meeting to be held in Maringá
O

at the Universidade Estadual de Maringá in October. Dr. Larissa


Michelle Lara was the sponsor of the conference at Maringá. Both
D

were gracious hosts, making my visit with the various dance scholars
very fruitful as well as having many conversations about dance
research outside the context of the meetings.
Drs. Vieira and Lara, in presenting the conference theme, asked
EE

me to address ‘the importance of international connections between


dance researchers and dance research groups . . . in order to increase
our international connections’. As you shall see I believe Brazilian
scholars are already connected to the international scene in their
FR

thinking. More of this will become evident in my brief comments to


be found below on the chapters of this book.
At the time of preparing my remarks, I focused on the play of
‘culture’ in our thinking about dance, cautioning, in my keynote
address, against international connections that might do harm to the
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

dance culture traditions of Brazil, unwittingly so. I spoke of the ways


in which ‘culture’ and history, in our increasingly globalized capital/
neo-liberal world, becomes set aside as a value in favor of more
personal agendas for dancing that are the heart of neo-liberalism.

D
Society is no longer a coming-together of people in community but has
become an assemblage of stand-alone individuals. Choreographers

A
are encouraged to allow any influence to be used and transformed
without attention the deep wisdom and values that may be associated

LO
with the cultural tradition out of which the particular dance influence
emerged. In brief, the Western world has encouraged us to raid any
tradition we want for any purposes we have. In my talk I suggested
that our research needed to be a hedge against imperialism, having,
instead, a greater focus on those forms of dance not traditionally

N
explored within university settings. I explored various ways in which
dance traditions have become exploited for their content without
necessarily honoring the history of those traditions. When such
W
traditions have been explored they have been treated as a kind of
exotic flower to be admired but which was not necessarily allowed
to influence us in its ways of seeing and understanding the world
O

around us.
As I pursued my research into Brazilian dance I came to know
D

more and more of the rich Brazilian dance traditions as well as


that dance is deep in the core of Brazilian life. I worried about the
‘health’ of that tradition given the overwhelming psychic presence
and pressure of, in particular, the northern hemisphere, US culture
EE

dominating the rest of the world. These were some of the thoughts I
brought with me to the conference.
The conference presentations and evidence of outreach to
rural poor communities noted in the DVDs that were shared with
FR

me and displays of pictures of rural projects, as well as experiencing


the student Afro-Brazilian dance troupe, let me know that my
concerns were being addressed, on a daily basis, in the universities.
Further there were videos of dance brought to young children whose
lives, in the cities, are compromised by poverty and lack of access

8
PREFACE

to resources. Lastly, there were videos of ENGRUPEdança members


teaching regular classroom teachers how to bring dance into their
teaching. This last image shows the ways in which Brazilian dance is
already connected to the world outside of Brazil as these researchers

D
are practicing the kind of dance involvement for teachers pioneered
by Sue Stinson, the US leading figure in dance for children, among

A
others. These efforts evidence a concern for the kind of ‘care for
culture’ to which I was pointing in my remarks and show that there

LO
is some sense on the part of the Brazilian dance researchers and their
students that the Brazilian way needs to be remembered and fostered
for its value for the rest of the world rather than allow itself to be
supplanted by these external forces and influences. The task is to
carry forth to others what is being done in Brazil.
N
In that interest I want to briefly address the chapters in this
book for their specific contributions to international dance thinking
W
and practice. These comments will echo Dr. Lara’s introduction but,
I hope, add an international scholar’s perspective to the book.
O

Dr. Lara’s opening chapter on ‘dance as knowledge’ is an


important way to think about dance. So much of dance education
is about “learning to dance” rather than seeing dance as a way of
D

knowing that has its own special contribution to our humanness.


As she puts it, dance must engage in a ‘dialogue with science, with
art and philosophy’. In so doing, we can develop the contributions
EE

dance can make to other fields. This is an important agenda for us.
Dr. Rita Voss continues this line of thinking as she presents the idea
that dance uniquely hybridizes the natural body, art and culture. She
argues that the university should find ways to actively honor that
uniqueness and make official spaces for it. This suggests, of course,
FR

that such spaces do not presently exist. It is important to know that


while dance in the US may have some renowned dance departments
and has found a more official status, Dr. Voss’s argument is still
unique in that she is seeking that which makes dance more than just
an art-form but a marriage to a larger human project.

9
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Dr. Rita Antunes pursues a different agenda, a critique of the


lack of body in our education system, noting the importance of
recognizing the body as an entity that marks human presence in the
school routine. Schools in the US even when there is movement of

D
the children from place to place in the classroom, is thoughtless in
terms of body experience. So much of school life is cerebral, leaving

A
the body, emotions, and imagination to one side. Dr. Antunes’
work in establishing the importance of the body in education is
important and would be welcome in many other countries outside

LO
of Brazil. Dr. Marcio Noronha’s critical work on contemporaneity
shows that Brazil does not live in an isolated fashion but is open
to the trends in the world and his critique of contemporaneity is a
welcome cautionary study that reminds me of the important work of

N
Lewis Mumford who worried that we live as if we continue to leave
the errors of the past behind. Mumford noted, for instance, with
technology that as technology develops the old technologies do not
W
merely disappear but persist and continue to fruitfully affect how we
live. Dr. Noronha’s showing the archaic in the present reminds me
of this important truth.
O

Dr. Alba Vieira´s chapter is important to illustrate how


concepts discussed in contemporary research on dance abroad, such
D

as embodiment and internal authority, are treated in investigations


in Brazil in a contextualized way. It also introduces the concept of
‘productive loss’ – what we need to let go in order to grow, which
she has been developing since her doctorate in the United States.
EE

Dr. Vieira has something unique in her study: the valuing of


Brazilian students´ voices from fundamental school to allow them to
present their meanings on dance, as has been done by international
researchers in the field such as Eva Antilla, Sue Stinson and Karen
FR

Bond.
In Drs. Lima and Vieira´s chapter on ‘Dancing Coral: expanding
access of society to dance’, the central issue of what is dance today in
Brazil is explored and critiqued. The question raised is: what is being
lost through the media exposure to and emphasis upon Western

10
PREFACE

forms of dance. The authors explore this issue as they discuss the
impact of technology on how we live with each other and with the
physical world around us. The chapter alerts us to some of the issues
I raised about rampant hyper-individualism and a sort of imperialism

D
of the west upon the dance traditions of other places. They pursue
my concerns of culture loss and exoticization and do so in a way that

A
attends to the issues of a neo-liberal world. They present the kind of
thinking that challenges us to re-think what we are doing in dance.

LO
In this vein, Dr. Kathya Godoy presents the results of a study
of graduate dance students to better understand how people are
thinking about their involvement with dance as scholars of dance.
This is very important as, until we can understand the ground state
of the situation, there is little we could do to move the situation
N
forward. Dr. Godoy is presenting the field to itself and I consider
such reflection crucial to the health of the field. Lastly, the chapter
W
by Eliane Regina Tortola and Larissa Michelle Lara explores dance in
the social setting (a leisure setting) as alienated using Horkheimer’s
and Adorno’s notion of alienation. In so doing they show us that what
appears to be liberating (the club scene and so forth as expressions
O

of youthful élan and freedom from social restrictions) is actually a


distraction from our bodies and the political/economic world around
D

us. They present a concrete image of Horkheimer’s and Adorno’s


notion that the culture industry designs to make us numb and enables
us to not notice the problems in the world around us. This echoes
my concerns that present day post-modern dance with its focus on
EE

hyper-individuality and the ‘freedom’ to take anything from anybody


and transform it any way one likes is a kind of cultural violence. What
is also of value in this last chapter is the use not only of Horkheimer
and Adorno but also of French sociologist Caillois, demonstrating
FR

the ways in which Brazilian scholars can leverage outside influences


without losing their distinctive Brazilian voices.
This last point, about Brazilian voice, is the challenge and
concern with which I want to leave you. I am humbled by the
quality of thinking you will find within these pages believing that

11
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

these Brazilian scholars have important contributions to make to the


larger world, especially in the sense of insisting upon their voices
from Brazil. As you read, keep this in mind and seek ways to cultivate
what you can offer to the world as well as what the world can offer

D
to you.

A
Donald S. Blumenfeld-Jones
Arizona State University, AZ, USA

LO
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FR

12
Prefácio1

D
A
Ao compartilhar minhas reflexões com vocês, nesse prefácio,

LO
permitam-me situar o contexto desses pensamentos. Este contexto
envolverá minha introdução inicial ao evento no qual os artigos
que você encontra nessa coletânea foram apresentados, e também
minhas ideias antes de participar desse encontro. Estes pensamentos

N
mudaram desde minha participação, e quero compartilhar com vocês
o que vivenciei durante o evento e o valor significativo do que vocês
encontrarão nas páginas desse livro.
W
No verão de 2011, a Drª. Alba Pedreira Vieira, da Universidade
Federal de Viçosa, convidou-me para fazer a conferência de abertura
O

para o 3º Encontro ENGRUPEdança a ser realizado em outubro na


cidade de Maringá, na Universidade Estadual de Maringá. Drª. Larissa
Michelle Lara era a organizadora desse evento. Ambas foram muito
D

acolhedoras, tornando meus encontros com vários pesquisadores


de dança bastante produtivos, assim como as várias conversas que
tivemos sobre pesquisa em dança fora do contexto do encontro.
EE

As Doutoras Vieira e Lara, ao me apresentarem o tema do


evento, pediram-me para falar sobre ‘a importância das relações
internacionais entre pesquisadores de dança e grupos de pesquisa
em dança... com o intuito de ampliar nossas relações internacionais’.
FR

Como vocês verão, penso que os pesquisadores brasileiros já estão


conectados com o cenário internacional por meio de suas ideias. Isto

1 Prefácio escrito em língua inglesa por Donald Blumenfeld-Jones e traduzido por Loraine
Paiva de Souza Lora. Revisão da tradução por Alba Pedreira Vieira.
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

se tornará mais evidente em meus breves comentários, na sequência,


sobre os capítulos deste livro.
Quando preparava minha palestra, priorizei o papel da ‘cultura’

D
na reflexão sobre a dança, tomando cuidado, em minha discussão,
para não me posicionar, mesmo que acidentalmente, contra relações

A
internacionais que poderiam prejudicar as tradições culturais de dança
do Brasil. Falei das formas pelas quais cultura e história, em nosso
crescente mundo capitalista neoliberal e globalizado, são colocadas

LO
de lado em favor de agendas com valores mais individualistas –
que são o coração do neoliberalismo – para a dança. A sociedade
não é mais uma união de pessoas em comunidades, mas se tornou
um grupo de indivíduos solitários. Coreógrafos são encorajados a

N
permitir que qualquer influência seja usada e transformada sem a
devida atenção ao conhecimento e aos valores profundos que talvez
estejam associados à tradição cultural que influenciou o surgimento
W
daquele gênero específico de dança. Em resumo, o mundo ocidental
nos encoraja a atacar qualquer tradição a fim de conseguir o que
desejamos e alcançar nossos propósitos. Em minha fala, sugeri que
O

nossa pesquisa precisa confrontar o imperialismo, tendo, no entanto,


um foco maior naquelas formas de dança não tradicionalmente
D

exploradas no contexto universitário. Descrevi várias maneiras pelas


quais danças tradicionais se tornaram exploradas pelo seu conteúdo
sem que, necessariamente, se honrasse a história dessas tradições.
Quando tais tradições são exploradas, são tratadas como um tipo
EE

de flor exótica a ser admirada, mas a qual, não necessariamente,


permite-se que nos influencie com suas formas de ver e entender o
mundo ao nosso redor.
No decorrer da minha pesquisa em dança brasileira, descobri
FR

mais e mais de sua rica tradição, bem como que a dança está no cerne
do país. Preocupei-me com a ‘saúde’ dessa tradição dada a presença
gigantesca e pressão psicológica, em particular, do Hemisfério Norte
– a cultura norte-americana domina o resto do mundo. Essas foram
algumas das reflexões que eu trouxe para a conferência.

14
PREFÁCIO

As apresentações do evento, as evidências de articulação


com comunidades rurais economicamente carentes observadas
nos DVDs que foram compartilhados comigo e as exposições
de fotos de projetos rurais, assim como a experiência com um

D
grupo de estudantes de dança afro-brasileira, mostraram-me que
minhas preocupações estavam sendo abordadas, diariamente, nas

A
universidades. Além disso, havia vídeos sobre crianças cujas vidas
nas cidades eram comprometidas pela pobreza e falta de acesso a

LO
recursos. Por fim, havia vídeos de membros do ENGRUPEdança
ensinando professores generalistas a trazerem a dança para suas
aulas. Estes dois últimos vídeos demonstram as maneiras pelas quais
a dança brasileira já está conectada com o mundo fora do Brasil,
uma vez que esses pesquisadores estão praticando o modo de ensino
N
de dança para professores, iniciado por Sue Stinson, que é destaque
na América do Norte em dança para crianças, entre outros. Esses
W
esforços evidenciam a preocupação pelo tipo de ‘cuidado com a
cultura’, o qual eu discuti em minha palestra, e demonstram que há
alguma preocupação, por parte de pesquisadores de dança brasileiros
O

e seus estudantes, de que a forma brasileira seja lembrada e cuidada


pelo seu valor para o resto do mundo, ao invés de permitir que ela
seja suplantada por forças e influências externas. A tarefa é mostrar
D

aos outros o que está sendo feito no Brasil.


Nesse intuito, quero brevemente fazer referência aos
capítulos deste livro por suas contribuições específicas à prática e
EE

ao pensamento internacional em dança. Esses comentários irão


reafirmar a introdução da Drª. Lara; espero também que adicionem
uma perspectiva acadêmica internacional para o livro.
O capítulo de abertura da Drª. Lara em ‘Dança como
FR

conhecimento’ é uma importante forma de pensar sobre a dança.


Portanto, muito do ensino da dança é, sobretudo, ‘aprender a dançar’
ao invés de ver a dança como forma de saber que tem sua própria
contribuição especial para a nossa humanidade. Como ela diz, a
dança deve engajar-se em um “diálogo com a ciência, com a arte e

15
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

com a filosofia”. Ao fazer isso, podemos revelar as contribuições que a


dança pode fazer a outros campos. Esse é um compromisso importante
para nós. Drª. Rita Voss dá seguimento a essa linha de pensamento

D
quando apresenta a ideia de que a dança exclusivamente hibridiza o
corpo natural, a arte e a cultura. Ela argumenta que a universidade
deve encontrar formas para honrar ativamente essa singularidade

A
e criar espaços oficiais para esse fim. Isso sugere, é claro, que tais
espaços não existam atualmente. É importante saber que, enquanto

LO
a dança nos Estados Unidos pode ter alguns departamentos de
renome e encontra um status mais oficial, o argumento da Drª. Voss
ainda é único; ela está buscando aquilo que faz a dança mais do
que apenas uma forma de arte, mas um casamento com um projeto
humano maior.
N
Drª. Rita Antunes propõe uma linha diferente, uma crítica à
falta de corpo em nosso sistema de ensino, destacando a importância
W
de reconhecer o corpo como uma entidade que marca a presença
humana no cotidiano da escola. Nas escolas dos Estados Unidos,
mesmo quando há movimento das crianças de um lugar para o outro
O

na sala de aula, não se pensa nesse movimento como experiência do


corpo. Grande parte da vida escolar é cerebral, deixando o corpo,
D

as emoções e a imaginação de lado. Apontando o valor do corpo


na educação, o trabalho da Drª. Antunes é importante e seria bem-
vindo em muitos outros países fora do Brasil. O trabalho crítico do
EE

Dr. Márcio Noronha, sobre a contemporaneidade, mostra que o


Brasil não vive de forma isolada, mas está aberto para as tendências
do mundo e sua crítica da contemporaneidade é um estudo cautelar
bem-vindo que me lembra do importante trabalho de Lewis Mumford
ao afirmar que vivemos como se continuássemos a deixar os erros
FR

do passado para trás. Mumford observou, por exemplo, no que se


refere à tecnologia que à medida que esta se desenvolve, as velhas
tecnologias não apenas desaparecem, mas persistem e continuam a
afetar frutuosamente o modo em que vivemos. Ao mostrar o arcaico
no presente, Dr. Noronha me faz lembrar essa importante verdade.

16
PREFÁCIO

O capítulo da Drª. Alba Vieira é importante para exemplificar


como conceitos bastante discutidos na pesquisa contemporânea em
dança no exterior, tais como embodiment e autoridade interna, são
tratados em investigações no Brasil de uma maneira contextualizada.

D
Ela também apresenta o conceito de ‘“perca produtiva’” – o que
precisamos deixar de lado a fim de que haja crescimento, o qual

A
vem desenvolvendo desde seu doutorado nos Estados Unidos. A
Drª. Vieira apresenta algo único em seu estudo: valoriza as vozes de

LO
estudantes brasileiros do ensino básico para que estes apresentem
seus significados sobre dança, assim como tem sido feito por
pesquisadores internacionais da área como Eva Antilla, Sue Stinson
e Karen Bond.

N
No capítulo das Doutorasªs Lima e Vieira em ‘Dança Coral:
ampliando o acesso da sociedade à dança’, a questão central do que
é a dança hoje no Brasil é explorada e questionada. A questão que se
W
coloca é: o que está sendo perdido via exposição da mídia e a ênfase
nas formas de dança ocidentais? ª Em capítulo conjunto, as Drªs.
Lima e Vieira discutem o impacto da tecnologia sobre a forma como
O

vivemos uns com os outros e com o mundo físico ao nosso redor. Este
capítulo nos alerta para algumas das questões que levantei sobre
D

hiperindividualismo desenfreado e uma espécie de imperialismo


do ocidente sobre as danças tradicionais de outros lugares. Elas
compartilham minhas preocupações acerca da perda da cultura e de
sua exotização e o fazem de forma que nos atentemos para as questões
EE

de um mundo neoliberal. Apresentam o tipo de pensamento que nos


desafia a repensar o que estamos fazendo na dança.
Nesta linha de pensamento, Drª. Kathya Godoy apresenta o
resultado de um estudo com discentes de pós-graduação em dança
FR

para melhor entendermos como as pessoas pensam seu envolvimento


com a dança como pesquisadores dessa área. Isto é muito importante
pois, até que realmente entendamos questões básicas do estado da
arte, pouco poderemos fazer para transformar o quadro atual. Drª.
Godoy apresenta sua própria área e eu considero tal reflexão crucial

17
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

para o seu desenvolvimento. Por fim, o capítulo de Eliane Regina


Tortola e Larissa Michelle Lara explora a dança em uma perspectiva
social (dimensão do lazer), usando também a noção de alienação em
Horkheimer e Adorno. Com isso, elas nos mostram o que parece ser

D
liberdade (uma cena de casa noturna como expressões de juventude
élan e de liberação das restrições sociais), e que na verdade é distração

A
de nossos corpos e do mundo político e econômico ao nosso redor.
Elas apresentam um exemplo concreto da noção de Horkheimer

LO
e Adorno que a indústria cultural se desenvolveu para nos fazer
indiferentes e incapazes em perceber os problemas do mundo. Isso
reflete minhas preocupações de que a dança contemporânea nos
dias de hoje, com seu foco no hiperindividualismo e na ‘liberdade’
de tomar qualquer coisa de qualquer pessoa e transformar o que é
N
tomado da maneira como bem deseja, é um tipo de violência cultural.
O que é valioso também, nesse último capítulo, não é somente o uso
W
de Adorno e Horkheimer, mas do sociólogo francês Roger Caillois,
demonstrando caminhos para que pesquisadores brasileiros possam
se aproveitar de influências externas sem perder a especificidade de
O

suas vozes brasileiras.


Este último ponto, sobre a voz brasileira, é o desafio e a
D

preocupação com os quais eu quero deixá-los. Sinto-me orgulhoso


pela qualidade das ideias que vocês encontrarão nessas páginas,
pois acredito que esses acadêmicos brasileiros têm contribuições
importantes a fazer para o resto do mundo, especialmente no sentido
EE

de perseverar em compartilhar suas vozes brasileiras. Ao lê-las,


mantenha isso em mente e procure maneiras de cultivar o que você
pode oferecer ao mundo, assim como, o que o mundo pode oferecer
a você.
FR

18
Apresentação

D
A
Os dilemas que tocam a dança na contemporaneidade

LO
remetem aos desafios que os diferentes sujeitos precisam enfrentar
no intuito de concretizar ações que venham a contribuir com a
produção/disseminação de conhecimento e com o campo de
atuação profissional. A sociedade atual exige esforços no sentido

N
da radicalidade dos saberes produzidos e do compromisso com sua
propagação e recepção, a fim de promover o diálogo necessário
para o estabelecimento de processos intercomunicacionais que
W
conduzam ao pensamento crítico e interventor.
A inserção do Brasil no campo da produção mundial,
O

passando de país anônimo a país potencial de pesquisas e


investimentos, é uma das políticas implementadas no sentido de
alavancar a produção de conhecimento científico, sobretudo no
D

âmbito das pós-graduações. Produzir hoje é missão imputada a


qualquer pesquisador inserido em instituição de ensino superior
ou de pesquisa, embora pouco se discuta sobre a qualidade dessa
EE

produção e sua recepção, uma vez que a rapidez da escrita não


se dá na mesma proporção da disseminação do conhecimento
e de sua apreensão. A preocupação se instaura e nos leva a
arriscar profecias, sobretudo pensando no aumento do número
FR

de Programas de Pós-Graduação no Brasil, nas exigências que


se ampliam cotidianamente e na sobrecarga de trabalho que
toca o campo da vida. Eleger a ‘competição’ como elemento
motivacional para que os sujeitos superem a si mesmos e aos
outros é contribuir para que novas barbáries sejam instauradas,
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

com desconsideração da condição do ‘outro’ e de suas


particularidades.
O fato não leva a desacreditar na produção científica e nos

D
ganhos obtidos por meio dela, mas a olhar para ela com cautela, uma
vez que a rápida produção que alavanca a inserção internacional

A
não é sinônimo de qualidade. Daí que ao mesmo tempo em que se
incentiva essa difusão do conhecimento torna-se necessário criar
mecanismos capazes de avaliar essa produção, os quais possam

LO
garantir o ‘produzir bem’ e não o ‘produzir muito’.
Em meio às exigências contemporâneas relacionadas ao
fazer científico faz-se mister sobreviver, buscando alternativas
para que a produção do conhecimento tenha sentido e
N
relevância social sem perder o potencial humano. Para tanto,
estratégias são criadas no sentido de ações colaborativas que
W
possam transcender o plano individual rumo a formas solidárias
de exercer o pensamento crítico. Uma dessas ações se refere
à construção de redes de cooperação acadêmica, em que a
O

experiência de cada sujeito ou grupo signifique no trabalho do


outro e gere intercâmbios para além do campo burocrático e
formal.
D

A rede de cooperação acadêmica, artística e cultural em


dança – CooperacDANÇA – criada em 2007, é constituída
por quatro grupos de pesquisa certificados pelo CNPq, sendo
EE

eles: Corpo, Cultura e Ludicidade (UEM); Dança: Estética e


Educação (Unesp); Interartes (UFG) e Grupo de Pesquisa
Transdisciplinar em Dança (UFV). Os três primeiros estão
vinculados à pós-graduação, sendo, respectivamente: Programa
FR

de Pós-Graduação Associado em Educação Física UEM-UEL,


Programa de Pós-Graduação em Artes (Unesp), Programa de
Pós-Graduação em História (UFG). O grupo da UFV encontra-
se vinculado ao curso de Graduação em Dança do Departamento
de Artes e Humanidades. Tais grupos têm suas particularidades e

20
APRESENTAÇÃO

expressam anseios de interação e diálogo que possam alavancar


ações numa perspectiva multidisciplinar1.
A CooperacDANÇA surgiu com a motivação de fomentar

D
o diálogo e o trabalho em equipe no sentido da construção de
políticas colaborativas e trabalhos de cooperação interinstitucional;

A
superar dificuldades com as estruturas de organização universitária
e institucionais com relação ao ensino, à pesquisa e à extensão;
incentivar e realizar pesquisas de cunho multidisciplinar na interface

LO
dança e educação, acrescido de conhecimentos sobre corpo, ética,
estética, formação profissional, processos criativos, históricos,
políticos, culturais e sociais; constituir um fórum permanente de
discussões teóricas, epistemológicas e metodológicas por meio da

N
divulgação dos trabalhos científicos e acadêmicos; refletir sobre os
laços que unem pesquisa e arte, valorizando a relação teoria e prática,
artista-educador-pesquisador, professor-artista e artista-professor;
W
fomentar uma política de reconhecimento científico da produção
em arte e cultura.
O

A primeira ação que deu início à rede de cooperação em dança


foi a realização do Encontro Nacional de Grupos de Pesquisa em
Dança (ENGRUPEdança), em 2007, na Universidade Estadual
D

Paulista Júlio de Mesquita (Unesp-SP), criado para promover


um espaço de discussão sobre as produções de conhecimento
multidisciplinares em dança que vêm sendo desenvolvidas em todo
EE

o país por grupos de pesquisa certificados pelo CNPq. O segundo


encontro ocorreu na Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (Unirio), em 2009, e o terceiro na Universidade Estadual de
Maringá (UEM), em 2011. A realização desses eventos contribuiu
para o fortalecimento da rede de pesquisa e intercâmbio acadêmico
FR

entre Programas de Pós-Graduação e Curso de Graduação parceiros,

1 O Grupo de Pesquisa Artes do Movimento 1, da Universidade Federal do Estado do Rio


de Janeiro, colaborou com ações que deram impulso à CooperacDANÇA, sobretudo com
a realização do II Encontro Nacional de Grupos de Pesquisa em Dança, no ano de 2009.

21
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

intercâmbio que favorece a disseminação das pesquisas em âmbito


nacional e internacional, bem como a qualificação da produção de
conhecimento.

D
Essa obra é resultado desse diálogo em rede e marca iniciativas
acadêmicas que buscam espaços interinstitucionais como meios

A
de sobrevivência e crescimento. O trabalho isolado intensifica a
competição e acirra disputas. O trabalho compartilhado amplia
saberes e promove a qualificação dos grupos envolvidos. Daí buscar

LO
alternativas para que a produção do conhecimento em dança transite
pelo ensino, pesquisa e extensão que possam ser compartilhados e
sirvam como orientações possíveis de ser potencializadas por outros
atores sociais.

N
Os textos que constituem essa coletânea representam ações
iniciais para a materialização dos objetivos da rede de cooperação.
W
São marcos que evidenciam, primeiramente, a nossa abertura para
esse diálogo e para outras ações já realizadas ou em andamento, como
a participação de pesquisadores da rede em bancas do stricto-sensu, o
O

desenvolvimento de pesquisas interinstitucionais e a intensificação


do cotidiano colaborativo entre os grupos envolvidos. Ainda, esses
textos mostram constructos oriundos de investigações desenvolvidas
D

por pesquisadores em suas instituições, de experiências no campo


da dança e no interior de grupos de pesquisa e da pós-graduação,
dispostos em uma compilação que passa a ser compartilhada, nesse
EE

momento, com diferentes leitores. Certamente, esse impulso inicial


tende a fomentar debates que possam qualificar as produções
resultantes desse movimento da rede de cooperação, no âmbito da
pós-graduação e da graduação em áreas que tratem a dança numa
perspectiva multidisciplinar.
FR

Os textos que seguem são de pesquisadores participantes


da rede de cooperação de pesquisa em dança e de coautores que
integram de modo direto os grupos de pesquisa pelos quais os autores
são responsáveis. O tema inspirador de sua construção se refere aos

22
APRESENTAÇÃO

dilemas e desafios da dança na contemporaneidade e foi gestado em


uma das reuniões da rede de cooperação como algo que precisa ser
densamente cunhado no intuito de impulsionar as ações de todos
que participam desse projeto. Esse tema também foi o escolhido para

D
o III ENGRUPEdança realizado em Maringá, no ano de 2011.

A
Alguns dos dilemas que perfazem essa coletânea e que tocam
preocupações emergentes nos grupos de pesquisa que integram
a rede voltam-se para: a) a produção de conhecimento em dança

LO
(problemas epistemológicos); b) os desafios epistemológicos e
políticas de ação na graduação e pós-graduação em dança; c) a
fragmentação na abordagem de corpo e conteúdos de ensino; d)
os conceitos operacionais que perpassam a construção da arte na

N
contemporaneidade; e) o que ensinar e o que aprender de dança
hoje; f) as concepções sobre dança de profissionais atuantes no meio
artístico e educacional após a formação no stricto sensu; g) a dança
W
coral como meio de educação e congraçamento de sujeitos; h) o
processo de mercadorização da dança na sociedade atual que deturpa
o sentido da dança como arte. Tais dilemas conduzem diretamente
O

aos desafios que se colocam como ações necessárias aos sujeitos


diretamente envolvidos com essas problemáticas, seja no campo da
D

pesquisa e produção de conhecimento, seja no campo profissional


em diferentes esferas de intervenção.
‘Dimensão epistemológica da dança: leituras, prospecções
EE

e incompletudes’, de Larissa Michelle Lara, traz reflexões sobre a


dimensão epistemológica da dança como modo de fornecer subsídios
que orientem para a percepção de como esse campo de conhecimento
tem se constituído, seja na área de Ciências da Saúde, seja nas
Ciências Humanas, Letras e Artes. O texto discute a produção de
FR

conhecimento em dança, elencando suas bases constitutivas e os


saberes gerados dessa prática investigativa, problematizando sua
(in)suficiência e seus limites. Tais análises visam à configuração de
saberes que possam alavancar processos intercomunicativos pautados
no diálogo com a ciência, com a arte e com a filosofia no sentido da

23
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

elaboração de uma produção de conhecimento que tenha sentido


e que contribua diretamente com a pesquisa em dança e com seu
campo de intervenção.

D
Em ‘Desafios epistemológicos e políticas de ação na
graduação e pós-graduação em dança’, Rita Ribeiro Voss discute

A
a relação entre poder e conhecimento, implícita na construção
epistemológica da dança com o objetivo de propor políticas de
ação para a formação universitária. Recupera historicamente

LO
a fundação das ciências naturais, sua constituição política, a
formação de espaços de publicidade de suas ideias, bem como
a emergência dos institutos de pesquisa financiados pelos
governos europeus no século XVIII. Toma a dança como saber

N
singular em que convergem corpo, arte e cultura, o que a
torna híbrida. Daí entender que políticas de ação na formação
W
universitária em dança devem criar espaços em que sua
singularidade possa ser apreciada, seus resultados divulgados
de maneira que a exprima e se possa influir na organização de
O

seu conhecimento.
Com o texto intitulado ‘Corpoarte: releitura do corpo na
D

educação. Território do corpo no mundo dos saberes’, a inquietação


de Rita de Cássia Franco de Souza Antunes quanto à persistente
fragmentação na abordagem do corpo e conteúdos de ensino
é transmitida, levando-nos à reflexão sobre a necessidade de
EE

organização integrada e humanística dos saberes ensinados na escola.


Participante da linha de pensamento que defende o reconhecimento
do corpo como entidade que marca a presença humana no cotidiano
escolar, a autora reúne sua experiência na formação de professores e
FR

na participação no Grupo de Pesquisa Dança, Estética e Educação do


Instituto de Artes da Unesp para configurar o constructo corpoarte,
propondo sua inclusão como tema transversal nos sistemas oficiais
de ensino, que trata do ser em movimento no currículo escolar para
a cultura de paz no século XXI.

24
APRESENTAÇÃO

O texto de Marcio Pizarro Noronha intitulado ‘Reflexões em


estudos de teoria da arte e dança cênica’ se divide em duas partes.
Na primeira, denominada de ‘Scinestesia, embodied experience

D
[Performance? Body Art?], paradigma audiovisual enquanto conceitos
para a dança cênica’, o autor desenvolve um tema historiográfico e
estético acerca das relações entre as artes e suas linguagens. O texto

A
conta a história das artes do ponto de vista das relações entre as artes
e as suas formas fusionadas, o momento histórico da diferenciação

LO
das artes e a estética contemporânea do intervalo. Aponta ainda para
a presença do elemento sensorial como articulador das diferentes
manifestações artísticas da atualidade e disso ressalta o uso de
conceitos operadores para a leitura de obras artísticas. Na segunda
parte, denominada de ‘O conceito de contemporaneidade: uma
N
versão filosófica para o campo do estudo da arte’ trata da elaboração
do conceito de contemporâneo e o seu uso frequente para a definição
W
e conceituação de certas manifestações da dança cênica no cenário
do tempo presente. Aqui se trata de enfrentar os limites e os desafios
do uso do termo contemporâneo e revelar nele uma relação com a
O

categoria do tempo e o modo como elementos arcaicos, da memória


afetiva (emocional) e dos fantasmas e fantasias adentram o cenário
artístico.
D

O texto de Alba Pedreira Vieira, intitulado ‘Dança, educação


e contemporaneidade: dilemas e desafios sobre o que ensinar
EE

e o que aprender’, aborda relações entre dança, educação e


contemporaneidade. A autora compartilha com o leitor um projeto
artístico-educacional-investigativo que coordenou na cidade de
Viçosa-MG, em que foram desenvolvidas fruição e usufruição
em dança com estudantes de instituições não-particulares por
FR

meio de aulas teórico-práticas envolvendo vários gêneros de


dança e culminando com espetáculos e apresentações, bem como
participação dos alunos em projetos de extensão na universidade
e no Curso de Graduação em Dança da Universidade Federal de
Viçosa. Alba reflete sobre transformações em seu método de ensino

25
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

a partir da experiência e sugere uma proposta em educação em arte


que considere os contextos de discentes e docentes – um desafio
frente às teorias contemporâneas para o ensino da dança.

D
‘Transformações nas concepções sobre dança de profissionais
atuantes no meio artístico e educacional’ traz dados sobre a formação

A
continuada de profissionais atuantes no meio artístico e educacional,
identificando as concepções que eles possuíam sobre dança e arte,
bem como as possíveis reformulações conceituais decorrentes da

LO
formação no contexto da pós-graduação stricto sensu. Kathya Maria
Ayeres de Godoy apresenta reflexões oriundas do desenvolvimento
de um projeto de pesquisa pautado na elaboração teórica e prática
das relações existentes entre educação e estética na área de dança no

N
campo das artes e áreas afins. De modo específico, o texto identifica
quais as concepções que esses profissionais possuem sobre arte e o
que pensam sobre a área de dança; como eles visualizam a dança
W
no meio educacional e, em especial, se a passagem pelo mestrado
(formação continuada) traz contribuições a essa reflexão e atuação.
O

‘Dança coral: fazer e dançar’, de Maristela Moura Silva Lima


e Alba Pedreira Vieira apresenta a dança proposta pelo filósofo e
dançarino húngaro Rudolf Laban (1989-1958), como uma atividade
D

de integração entre as pessoas. As autoras avaliam que homens e


mulheres da sociedade contemporânea utilizam artefatos tecnológicos
no seu cotidiano que deveriam proporcionar maior tempo de lazer.
EE

No entanto, eles desfrutam de menos momentos lúdicos, sendo


dificultada a eles a vivência de momentos de felicidade coletiva.
Laban propõe a dança coral como recuperação do desgaste que o
movimento funcional (fazer) exerce sobre o corpo.
FR

Em ‘A mercadorização da dança nas noites urbanas: dilemas


contemporâneos’, de Eliane Regina Tortola e Larissa Michelle Lara,
é discutida a dança como produto à venda no lazer noturno. As
análises, mediadas pela antropologia urbana, pretendem refletir
a dança como produto no universo simbólico das relações sociais

26
APRESENTAÇÃO

estabelecidas no contexto das casas noturnas, discutindo os


interesses dos sujeitos na busca por sua prática, assumindo o desafio
de pensá-la para além dessa mercadorização. Incursões pela teoria
dos jogos do sociólogo francês Roger Caillois contribuem com essas

D
reflexões, sobretudo pela possibilidade de diálogo das categorias agon
(competição), ilinx (vertigem), alea (sorte) e mimicry (simulacro)

A
com a dança, as quais sinalizam para a dança no lazer noturno como
jogo, praticado por diferentes atores sociais no intuito de satisfazer

LO
necessidades imediatas relacionadas ao prazer potencializado pela
indústria da diversão.
As reflexões dispostas nessa coletânea representam uma
ação dos pesquisadores envolvidos no sentido de contribuir com

N
o campo de conhecimento da dança, materializando esforços para
empreender a rede de cooperação acadêmica. Dilemas e desafios
perfazem os textos e se colocam como inquietações dos autores que
W
integram essa compilação, ávidos em expressar, por meio da escrita,
sua racionalidade e experiência sensível. O ensejo é compartilhar
essa produção, reconhecendo sua incompletude e propensão a outras
O

interlocuções.
Larissa Michelle Lara
D

Maringá, jan. 2012


EE
FR

27
FR
EE
D
O
W
N
LO
A
D
1

D
Dimensão epistemológica da dança:

A
leituras, prospecções e incompletudes

LO
Larissa Michelle Lara

Introdução

N
Que é feito, ó almas livres, da vossa liberdade? Quase
eu vos julgaria semelhantes aos que longamente
presenciaram danças lascivas de jovens nuas: até as
W
novas almas dançam, agora (NIETZSCHE, [1988],
p. 303).
O

A materialização de uma atividade epistemológica junto à dança


requer reflexões que atentem para o papel assumido por essa prática
social no âmbito da produção de conhecimento, reconhecendo
D

seus mecanismos de legitimação em meio a interconexões com


outros saberes. Com isso, não destituo o sujeito de sua ação em
relação ao desenvolvimento dessa prática, uma vez que é por meio
EE

de sua racionalidade e sentido ético-estético que ele desenvolve


argumentações e se orienta por parâmetros que levem à revisão
constante e tensional desse campo1.
FR

1 O conceito de atividade epistemológica utilizado nesse texto parte dos estudos desenvolvidos
por Fensterseifer (2010-2011, p. 3). O autor esclarece que a atividade epistemológica “[...]
busca compreender a lógica de produção dos saberes das ciências nas inter-relações com o
contexto em que se legitimam (ou não) estes saberes, mas persegue também uma melhor
compreensão dos arranjos internos do fazer científico que, na sua demanda por objetivações,
‘esquece-se’ do não-dito no dito, ou seja, que toda pretensão de verdade, como sabiam os
gregos, vela ao desvelar”. Já o conceito de sentido ético-estético é cunhado em Lara (2011,
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Estudar dança é fomentar incursões por questões diversas, entre


as quais se encontram as de cunho epistemológico: o que é dança?,
quem dança?, para que se dança?, como surgiu a dança?, de modo

D
que as razões de sua existência possam ser compartilhadas e refletidas
por diferentes atores sociais. Nesse estudo, as reflexões perpassam
as necessidades conceituais em dança na tentativa de definir seu

A
campo, bem como a constituição da produção de conhecimento na
área e as instituições que se configuram como espaços de organização,

LO
produção, poder e difusão de saberes.
Trazer apontamentos sobre a dimensão epistemológica da dança
é fornecer subsídios que orientem para a percepção de como esse
campo de conhecimento tem se constituído, seja na área de Ciências

N
da Saúde, seja nas Ciências Humanas, Letras e Artes. Tais discussões
pretendem fomentar o debate sobre a produção do conhecimento,
W
instigando à configuração de processos intercomunicativos que
identifiquem problemas, apontem limites, estabeleçam desafios e
incitem ações coletivas com fins de aprimoramento intelectual,
O

científico e de intervenção.
O exercício de entender o processo de construção de um dado
D

conhecimento exige esforços para apreensão da dança não a partir


de uma “verdade”, mas da configuração de ‘verdades’ construídas
historicamente. Nos dizeres de Katz (2005, p. 256), “para teorizar
a dança, precisamos de olhos que possam ver o que não porta
EE

visibilidade plena”. Daí que reconhecer esse processo e pensá-


lo a partir de distintos campos de análise é exercitar a capacidade
comunicativa na tentativa de identificar e refletir sobre quais as
bases que alicerçam as diferentes teorias constitutivas e como elas se
FR

tornam legítimas no sentido de fundamentar ações práticas.

p. 21), entendido como “[...] a própria evidência do humano, em sua existência individual/
coletiva por meio das formas pelas quais o homem constrói e internaliza valores e regras,
assim como desenvolve sua sensibilidade, racionalidade e capacidade criadora” em meio a
formas morais, transgressoras, criativas ou disciplinadas.

30
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

Ao se configurar no campo das artes, a dança é ‘tradicionalmente’


ligada à dimensão do sensível, da criação e da não-racionalidade.
Numa sociedade movida pela razão e pautada em modelos de
ciência, a dança, quando vista em oposição ao campo racional é

D
percebida como conhecimento inferior, de uma rotina ‘não séria’
e de uma materialidade superficial. Sua densidade como arte e seu

A
potencial crítico são encobertos pelo senso comum predominante,
caracterizado, em muitos casos, pela dificuldade em percebê-la

LO
para além de um ‘fazer prático’. Daí se estabelecem dicotomias não
fáceis de ser sanadas, capazes de deturpar sentidos, finalidades e
avanços que possam aprimorar o debate acadêmico e o espaço de
intervenção.

N
A diversidade de manifestações dançantes existentes conduz a
dificuldades no trato conceitual do que seja dança. Aliás, esse dilema
não é próprio da dança. Muitos pesquisadores têm esboçado conceitos
W
que possam, minimamente, orientar o trâmite por determinada
temática no intuito de refinar seu discurso, contribuindo com seu
processo de legitimação junto à sociedade. Caillois (1986), por
O

exemplo, ao pensar a sociologia dos jogos, reflete se uma única palavra


jogo seria capaz de abarcar a amplitude de jogos existentes. Reflexão
D

similar pode ser feita em relação à dança, uma vez que ela congrega,
sob uma única nomenclatura, formas distintas de expressão do corpo,
desde uma perspectiva mecânica e reprodutora até uma ação crítica,
que objetive alguma transformação.
EE

Exercer a atividade epistemológica é, portanto, entender


como o conhecimento se organiza de modos diferenciados pela
ótica da ciência, por quem faz ciência e por aqueles que constroem
caminhos distintos para a produção de conhecimento, nem sempre
FR

reconhecidos como legítimos, mas que instigam reflexões. É esse


jogo de ‘areia movediça’ que abala as certezas que se configuram em
determinados campos, dando vazão a novas configurações teóricas e,
consequentemente, a uma produção de conhecimento que pode vir
a se tornar dominante.

31
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Esta atividade reflexiva em relação ao


conhecimento produz um efeito antidogmático em
torno das ‘verdades’ que produzimos e ensinamos.
Efeito contrário ao produzido por uma noção

D
de epistemologia que zela por um imperturbável
modelo de cientificidade forjador de verdades
definitivas diante das quais nos prostramos e que,

A
muito provavelmente, assim serão ensinadas. Afinal,
os professores não abrem mão de suas verdades se
não compreendem o caráter de construção (sócio-

LO
histórico) dessas verdades (FENSTERSEIFER,
2009, p.1, grifo do autor).

Desenvolver a atividade epistemológica é enxergar o campo para


além do dogmatismo, ultrapassando-o. Em relação à dança2 é procurar
N
tornar visíveis distintas produções do conhecimento e os caminhos
que os pesquisadores elegem para responder aos anseios investigativos,
W
desvendando seus dilemas e limites. Seguindo essa orientação,
as pretensões desse texto transitam pelos dilemas conceituais em
dança, pela configuração de sua produção de conhecimento e pelas
O

instituições que contribuem com a sistematização e disseminação de


pesquisas no Brasil.
D

Dilemas conceituais em dança


EE

Como ocorre com inúmeros termos que necessitam de


delimitação acadêmica, conceituar dança também é algo complexo e

2 Aproximações entre dança e epistemologia foram desenvolvidas por Katz (2010) e por
FR

Kleinubing, Saraiva e Melo (2011), embora com enfoques distintos. A primeira salienta o
processo de construção do saber científico e como ele se processa para entender a dança.
As demais autoras apresentam ideais estéticos e sociais compreendidos no balé clássico
para discuti-los, após, nas danças Moderna e Contemporânea. Vale ressaltar ainda que,
além desse texto escrito por mim sobre dança e epistemologia, o texto seguinte, de Rita
Ribeiro Voss também se envereda por essas questões, com abordagens distintas e também
complementares.

32
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

necessário. Reconhecer que a dança galga os espaços da indústria da


diversão (e a passos rápidos) traz dificuldades de pensá-la na dimensão
da arte e da educação, sobretudo conceitualmente. Isso porque ao

D
se vislumbrar a dança numa perspectiva da transformação, volta-
se para formas de expressão que se distanciam de um vocabulário

A
musical massivo empobrecedor, como o que apela para o erotismo
desnecessário, com letras frágeis, movimentos repetitivos e não-
criativos, e com manifestações artísticas que se constroem como

LO
engodo de alegria e distração. Como descreve Fabiano (2001, p.
145), a

[...] corte dos bufões oportunistas – verdadeiros

N
gigolôs emergentes do capital e seu séquilo de
alegres imbecis, que invadem a mídia atual como
ratos de esgotos culturais mais abjetos – às custas do
W
esvaziamento da consciência das massas engordam,
a não caber, as suas contas bancárias.
O

Procurando fugir dessa arquitetura de ‘deformação’ da


formação humana volto-me para o repertório de manifestações
D

dançantes que tenham papel educacional direcionado para a


alfabetização corporal, para a consciência crítica, para a libertação
do sujeito a partir das descobertas que vai realizando nas relações
EE

com o outro. A diversidade de expressões, princípios e formas


é reunida num único termo – dança – o que torna qualquer
ação intelectual desejosa de tratá-la conceitualmente bastante
onerosa. Isso leva a atentar para uma produção intelectual que
FR

seja organizada não no sentido de sua quantificação, mas da


qualificação e aprimoramento do debate.
Inúmeros foram os esforços para entender conceitualmente a
dança, os quais levaram à sua associação a deuses, religião, forças
sobre-humanas, comunicação com divindades, força interior, arte e

33
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

educação3. Algumas incursões conceituais são exitosas no ensejo de


apreensão do objeto; outras se encontram presas em sua especificidade
e, até mesmo, superficialidade, a exemplo do que observa Camargo

D
(1994, p. 30) ao afirmar que “a dança consiste na repetição de certos
movimentos rítmicos executados pelo corpo, especialmente pelas
pernas”. Ressalvado o tempo histórico desse conceito, observa-se

A
sua fragilidade e orientação ao tratar a dança a partir de um recorte
corpóreo (pernas) como representativo do ato em si, incapaz de

LO
abarcar as inúmeras formas de expressão do corpo.
O entendimento conceitual do que seja dança é uma
das necessidades acadêmicas no sentido de delimitar o objeto
investigativo. Entretanto, nem sempre essa façanha acadêmica é

N
suficiente para que o foco de pesquisa seja cunhado adequadamente.
Dar a essa iniciativa sua provisoriedade é entender que somos
históricos e que, num determinado momento, tal conceito pode
W
não mais responder de modo satisfatório aos anseios investigativos
e nem mesmo explicitar o que seja dado fenômeno para a sociedade.
Entretanto, esboçar preocupações e formas de pensar um dado objeto
O

de estudo continua sendo essencial, mesmo que nessa condição de


incompletude.
D

Embora não seja intuito desse texto trazer conceitos em


dança, mas problematizar seus sentidos e finalidades, a eleição de
algumas elaborações conceituais auxilia na discussão. Há percepções
EE

que, em síntese (nem sempre excludentes entre si; por vezes,


complementares), oriundas de alguns recortes que se tornaram
salientes nos escritos eleitos para essa incursão teórica, tratam dança
como: conteúdo, forma, técnica e poesia do movimento (DANTAS,
FR

1999); pensamento do corpo (KATZ, 2005); manifestação da


cultura do movimento (KUNZ, 2003); prática corporal e educação

3 Alguns desses temas foram desenvolvidos por pesquisadores reconhecidos por sua
contribuição ao campo da dança, como Portinari (1989), Bourcier (1987) e Garaudy
(1980) e auxiliam no entendimento histórico e/ou filosófico dessa manifestação.

34
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

estética (KLEINUBING; SARAIVA; MELO, 2011); sistema de


comunicação e modalidade de comunicação não-verbal (SIQUEIRA,
2006); manifestação cultural expressiva e linguagem (BRASILEIRO;
MARCASSA, 2008); movimento corporal (PARANÁ, 2008). Em

D
geral, tais percepções de dança estão voltadas ao entendimento dessa
manifestação nos campos artístico e educacional4.

A
Por vezes, a diversidade conceitual gera interrogações nem
sempre passíveis de serem solucionadas, uma vez que transcendem a

LO
experiência pessoal na tentativa de apreensão do objeto. Entretanto,
mais do que trazer alguns desses conceitos é preciso entender o que
leva as pessoas a conceituar dança de determinada maneira, quais
suas bases teóricas, como o fazem e quais as instâncias motivadoras

N
dos caminhos escolhidos. Nas palavras de Britto (2008, p. 20), “por
falta de recursos teóricos competentes para lidar com questões
conceitualmente sofisticadas, os temas difíceis relativos à sua
W
especificidade artística mantiveram-se alojados no campo dos
clichês e das licenças poéticas”. É o que ocorre, por exemplo, com
conceitos de dança pautados numa condição naturalizada do corpo
O

que dança (e não-cultural), que emana de condições interiores


do sujeito. Em acréscimo, “ao contrário do que sugere esta sua
D

naturalidade de consistir num corpo humano em movimento, a


dança não se dá a entender sem exercício intelectual” (BRITTO,
2008, p. 27).
EE

4 Cabe ressaltar a estruturação do conceito dança no Dicionário crítico de educação física


(GEHRES, 2005), obra em que essa manifestação é desenvolvida a partir de duas ‘posturas
científicas’. A primeira a vê como movimento, enfatizando sua percepção ‘anátomo-fisio-
psico-sócio-cinesiológica’ e, a segunda, como arte, contestando a dança como experiência
FR

empírica presente na dança como movimento. Gehres (2005, p. 125) conclui o verbete
afirmando que “[...] uma dança é uma forma de existência humana, a qual não pode
ser nos limites de uma descrição, demonstração ou apresentação – apesar da constância
‘aparente’ da sua forma – , pois se reconstrói a cada existencialização/execução nos corpos
dos dançarinos e das dançarinas”. Embora esse verbete traga singularidades para se pensar
esse campo, acaba restringindo o entendimento da dança a essas duas possibilidades
conceituais, camuflando, inclusive, sua análise como elemento de educação.

35
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Um dado conceito emerge na tentativa de delimitar o campo


investigativo no sentido de apreendê-lo o suficiente para que ele
seja esmiuçado e retrabalhado. No caso da dança não é diferente.

D
Entretanto, o esforço empreendido para essa finalidade conduz a
conceitos por vezes específicos, que não dão conta de agregar muitas
das manifestações dançantes. Por outro lado, os conceitos gerais

A
acabam por abarcar, além das danças, outras práticas corporais, dada
sua amplitude. Com isso, não se consegue, ao menos, delimitar o que

LO
seja dança, uma vez que se houver apropriação da mesma definição
conceitual para dança em outro conceito (teatro, por exemplo),
há o risco de se constatar um ajuste perfeito, o que demonstra a
incapacidade de precisão conceitual.

N
As tentativas de definição do objeto dança ocorrem a
partir daquilo que cada profissional se utiliza como alicerce
W
para pensá-la e refleti-la. A base teórica que sustenta
determinado conhecimento em dança é que se configura como
forma legitimadora dos saberes. Daí que, em dança, é possível
O

encontrar teorias orientadas pela fenomenologia de Merleau


Ponty (DANTAS, 1999), pela semiótica de Peirce (KATZ,
2005), pelo método dialógico de Paulo Freire (MARQUES,
D

2001), pelo materialismo histórico-dialético (PARANÁ, 2007),


entre outras. Essa diversidade de possibilidades conceituais
parte de um alicerce formado por teorias que as constituem e
EE

que, portanto, geram ‘verdades’.


Com isso, não advogo o relativismo conceitual em dança, mas
atento para as inúmeras possibilidades conceituais a partir das teorias
que dão base a essas incursões teóricas e para a inexistência de uma
FR

única teoria legitimadora desse campo. Há sim, várias teorias que têm
a sua força, singularidade e que se tornam base para investigações de
determinado pesquisador no exercício cotidiano de fundamentar sua
profissão e/ou produção de conhecimento. O dogmatismo em dança
não dá conta de explicitar o que seja dança, além de desconsiderar

36
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

a diversidade cultural5 e os conhecimentos produzidos a partir de


matrizes teóricas diferenciadas. Como lembra Tomanik (2004, p.
110), “recusar à ciência o status de único conhecimento válido ou

D
mesmo de um corpo de teorias acima das ideologias, não implica
desprezar o seu valor como um conjunto organizado e dinâmico de
idéias [...]”.

A
Por mais que o dogmatismo não seja o caminho orientador da
percepção do que seja dança, também é essencial lembrar que o

LO
relativismo é tão perigoso quanto o primeiro. Assumir o relativismo
é partir do pressuposto que toda teoria contém verdades (morais,
religiosas, políticas, científicas) que variam conforme a época, o
lugar, o grupo social e os sujeitos. Entretanto, ao fazê-lo, criamos

N
caleidoscópios de ‘verdades’ que impossibilitam, sobretudo, a
configuração de padrões mínimos de convivência em sociedade e que
tocam diretamente a vida. Assim, trabalhar com a fragmentação das
W
verdades em dança é dificultar formas organizacionais que garantam
um consenso mínimo para o trabalho cooperativo nesse campo,
favorecendo a convivência, a pesquisa em rede e o diálogo entre
O

saberes distintos.
Dos inúmeros conceitos eregidos sobre dança, passam a
D

ser representativos desse campo aqueles que conseguem cercar


minimamente o objeto, sem fechá-lo em demasia ou ampliá-lo
a ponto do próprio objeto nele não se reconhecer. Entretanto, o
EE

fato é que, em geral, ou se cai na especificidade que não garante


a diversidade de expressões dançantes ou na generalidade que
não reflete as particularidades do que seja o dançar. Por vezes, o
conceito atribuído à dança pode ser atrelado a outro termo que
FR

5 Martín-Barbero (2009, p. 154) esclarece que a diversidade deixou de ser apenas afirmação
da ‘pluralidade’ banalizada para assumir a ideia de alteridade e interculturalidade. O
estudioso assim esclarece: “Em poucas palavras, a diversidade cultural nos faz pensar e
intervir nas diversas formas de assimetria e de dominação que perduram e se renovam nas
contemporâneas formas de neutralização, funcionalização e destruição do que por meio da
‘alteridade’ tira nosso chão e desestabiliza as nossas habituais políticas culturais”.

37
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

mantém o mesmo efeito de sentido. Noutras vezes, esse conceito


não mais atende às necessidades históricas do momento atual.
Assim, tanto o conceito quanto a produção de conhecimento

D
sobre a temática eleita necessitam de constantes revisões e
refinamento.

A
As escolhas conceituais, metodológicas e aplicativas
implicadas num estudo histórico definem-se,

LO
portanto, pela regência lógica de uma dada
concepção de tempo: explicitada ou não, é ela o fator
de determinância do sentido de historicidade que
dá suporte às abordagens de análise e organização
ao procedimento interpretativo (BRITTO, 2008, p.
24-25).

N
Nos esforços em conceituar dança há, certamente, exercícios
W
racionais e escritos sensíveis. A tensão racionalidade/sensibilidade
marca formas de escrita e expressão do pensamento no campo da
dança. Há professores/pesquisadores que se utilizam da linguagem
O

poética e do campo emotivo para expressar, por palavras, aquilo


que entendem por dança e como a vivem em seu cotidiano.
Geralmente, essa forma específica de escrita encontra alicerce
D

em teorias que partem de um pensamento sensível, de formas


autobiográficas, de valorização das experiências pessoais e de
um aprendizado que se dá na relação com o outro. Entretanto,
EE

o trato com a dança também abre espaços para escritos em que


a sensibilidade não apareça necessariamente como elemento
motivador de determinada forma comunicacional. Nesses, os
sentimentos particulares cedem espaço a formas racionais de
FR

exercer o pensamento, em que os contextos político, moral,


histórico, entre outros, colocam-se como centrais às reflexões
propostas.
Se podemos perfeitamente identificar formas de compreensão
em dança que se colocam como escritos voltados a experiências

38
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

pessoais e outros que partem de abordagens sociais não há como


esquecer daqueles que exercem formas tensionais, ou seja, mesclando
sensibilidade e racionalidade, conjugando preocupações macro
e experiências micro, teoria e prática na tentativa de conhecer

D
determinado fenômeno.

A
Trazer reflexões sobre modos próprios de exercer o pensamento
acadêmico não é instaurar novas dicotomias, como se um campo
não sofresse a influência do outro. Também não é pensá-los

LO
como autônomos. Ao vislumbrar o ser humano, vejo formas
constitutivas que o perfazem e que se coadunam para compor
o todo. O que procuro ressaltar é que, no exercício acadêmico
há formas de escrita diferenciadas que procuram discutir um

N
mesmo objeto. Pode haver densidade ou fragilidade em qualquer
das formas adotadas, seja ela no enfoque da racionalidade, seja
ela no plano sensível. Entretanto, numa sociedade marcada pelo
W
pensamento racional e pelo entendimento de que os sentidos
enganam, a produção do conhecimento em dança que se alicerça
num modus operandis racional tende a sobreviver com menos
O

dificuldade no plano acadêmico no sentido de sua legitimação.


Não estou, com isso, fazendo a defesa desse tipo de construção,
D

mas do jogo tensional que perspective entender a dança em suas


contradições.
Mais do que retomar conceitos já desenvolvidos no campo
EE

da dança, a ideia é problematizar sua construção com vistas


ao reconhecimento da base teórica que os alicerça. Desvendar
o campo teórico de onde parte o pesquisador ao tratar
conceitualmente a dança e observar os recortes temporais feitos
por ele para essa discussão é empreender esforços na tentativa
FR

de perceber os motivos pelos quais esse conceito é expresso


de determinada forma. Como seres históricos e em constante
transformação, os conceitos esboçados em determinada etapa de
nossas vidas talvez não reflitam mais o que entendemos por dança
hoje. Daí ser necessário lembrar que o conhecimento é datado,

39
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

o que desobriga o pesquisador a redigir seus escritos mantendo


o mesmo pensamento de escritos anteriores. A capacidade de
aprendizado, de aprimorar percepções e de refinar o pensamento

D
crítico é algo a ser considerado e esperado no processo educacional
de qualquer sujeito e, notadamente se coloca como exigência ao
professor/pesquisador que trabalha com o campo da produção de

A
conhecimento e da formação.

LO
Panorama da dança na sociedade e produção de
conhecimento

N
Discutir dança e produção de conhecimento relacionada a
esse tema é ingressar num campo multidisciplinar que envolve
W
música, teatro, educação física, educação, arte, história,
antropologia, entre outros. Isso implica em não tratar de um
objeto que tenha ‘dono’, que seja propriedade de alguém,
O

pois eleger para si a exclusividade sobre um determinado


conhecimento é construir uma redoma que impede processos
comunicacionais que possam ser aprimorados na relação com o
D

outro.
A produção de conhecimento em dança acompanha
as transformações sociais e se perfaz de uma multiplicidade
EE

temática que envolve distintas relações, tais como: memória


da dança; dança e educação; dança e cultura popular; dança e
formação de professores/profissionais; dança e religião; dança
e cultura; dança e arte; dança e teatro; dança e gênero; dança
FR

e gerações; metodologia de ensino e técnicas de dança. Por


vezes, contribuições ao campo da dança não surgem exatamente
de estudiosos da dança em si, mas de profissionais com
capacidade crítica e analítica para promover o jogo tensional de
estranhamento e familiarização necessário para a percepção do

40
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

fenômeno com profundidade. Vale mencionar que uma das obras


mais instigantes sobre dança, intitulada Dançar a vida, não foi
escrita por dançarino ou estudioso direto da dança, mas por um
filósofo francês – Roger Garaudy6 – que desenvolveu reflexões

D
histórico-filosóficas para se pensar a dança, questionando suas
configurações e instigando o debate.

A
Na tentativa de propiciar visualizações sobre o que vem
sendo produzido em dança, com base no levantamento realizado

LO
por Villar (2011) e na base de dados do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
temas recorrentes em teses e dissertações realizadas no Brasil
são apresentados no Quadro 1 7. Tal produção, atualmente,

N
caracteriza-se pela diversidade temática e teórica, constituída
por profissionais de diversos campos do conhecimento (filósofos,
historiadores, professores/profissionais de educação física,
W
dança, teatro, música, psicólogos, pedagogos, entre outros). A
formação distinta desses pesquisadores, aliada aos campos de
conhecimento em que buscam sua formação, amplia a capacidade
O

de percepção da área de dança e reforça a necessidade de se


pensar em processos intercomunicacionais em sua abordagem,
D

em que o diálogo em diferentes esferas seja potencializado. O


Quadro 1 auxilia nessa visualização.
EE

6 A obra de Garaudy (1980) traz perspectivas singulares ao entendimento de dança e que


tocam reflexões filosóficas que aprimoram qualitativamente o debate acadêmico nesse
campo, trazendo apontamentos valiosos numa década de mudanças significativas em
relação à compreensão de corpo, humanidade e relações sociais.
FR

7 Observo que embora o exercício de relacionar temáticas a determinados eixos no sentido


de facilitar a discussão tenha sido feito para esse estudo, uma classificação com chances
de ser menos passível de distorções somente pode se dar por meio da ‘análise’ das teses
e dissertações produzidas sobre dança e campos afins. Ainda, ressalto que a produção
aqui relacionada focou teses e dissertações a partir dos temas desenvolvidos, uma vez
que a incursão por artigos, livros e capítulos de livros demandaria novos esforços, não
possibilitados nesse momento.

41
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Eixos aglutinadores de
Temas recorrentes em teses e dissertações sobre
categorias de pesquisa
dança
em dança

D
Corpo do bailarino-pesquisador-intérprete,
improvisação em dança, gestualidade em técnicas
específicas a partir de seus idealizadores (Delsarte,

A
Graham, outros), criação coreográfica, estudo
semiótico do corpo e seus códigos, literatura e
dança, teorias psicológicas e dança, emoção e

LO
voz, consciência corporal e meios eletrônicos,
Criação-improvisação- drama no corpo, crítica do juízo estético e
consciência em dança prática no processo de composição coreográfica
em dança, dança e estados de ânimo, dança
e linguagem corporal expressiva, biodança,
vivências corporais e autoconscientização,

N
criatividade e dança, dança e voz, dança e ritmo,
animações em labanotation, dança e poesia,
aspectos posturais de bailarinas clássicas, dança
W
e autoconceito da criança.

Dança para deficientes auditivos, dança sobre rodas,


Dança e deficiência dança e síndrome de down, dança e portadores de
O

lesão medular, dança e deficiência visual.

Estudo antropológico sobre a dança clássica indiana,


dança étnica indígena, danças circulares sagradas,
D

narrativas das danças no oriente, danças apolíneas


e dionisíacas, danças populares (batuques, dança
Dança-cultura-cultura de orixás, coco de zambê, bumba-meu-boi, ternos
popular de reis, festival folclórico de Parintins, dança e
EE

capoeira, dança de São Gonçalo, pastoril, maracatu,


dança entre ciganos, dança e festas populares,
quadrilhas juninas, práticas de batuques, corpo e
cultura popular, congadas).

Dança de salão na cultura e lazer, dança moderna,


FR

dança contemporânea, balé clássico (imagem


Modalidades
corporal, lesões, corpo masculino), movimento hip-
tradicionais de dança
hop, Butoh, dança expressionista, dança flamenca,
dança cênica, dança do ventre.

Continuação .../

42
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

/... Continuação

Dança para populações carentes, danças em terapia


ocupacional, dança na escola, arte da dança no

D
Dança-educação- ensino médio, dança em aulas de educação física,
formação-campos filosofia, estética e educação em dança, mulher
profissionais e dança, dança e ensino superior, dança e gênero,

A
dança e terceira idade, personal dance, danças e
brincadeiras.

História da dança, crítica de dança no Brasil,

LO
História-memória- memórias da dança, política cultural em dança,
comunicação-crítica da clubes do gênero dance. music, dança e mídia,
dança política da dança, dança e novas tecnologias, pós-
modernidade e dança, semiótica do gesto.

Quadro 1 – Temas presentes em teses e dissertações sobre dança no Brasil

N
* Quadro elaborado pela autora do texto.
W
Se antes da década de 1980 a preocupação sobre o campo de
conhecimento da dança recaía em estudos que primassem por seus
O

benefícios para o ser humano, numa dimensão biológico-fisiológico-


anatômica que se tornou a base para as preocupações pedagógicas,
outras necessidades passaram a ser geradas, envolvendo a
D

compreensão histórica, artística, cênica e educacional da dança em


paralelo ao entendimento de fatos constitutivos da organização da
vida. Daí em diante, outras inquietações emergiam envolvendo,
EE

sobretudo, formas de ensinar que passassem a reconhecer as


diferenças (o outro como ‘outro’), a questionar a busca de corpos
padronizados, esguios e ágeis para fazer dança, bem como a
negar o movimento pelo movimento, mecanizado e repetitivo. A
FR

organização do pensamento acadêmico-científico tornou-se um


dos desafios contemporâneos, associado à necessidade de ampla
visibilidade. Eis que surgem, então, algumas instituições vinculadas
ao campo da arte como mecanismos de regulação, controle e
disseminação da produção.

43
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Poder nos campos constitutivos da dança: a configuração


das instituições

D
Se por um lado a diversidade de conhecimentos existentes sobre
um mesmo fenômeno requer esforços na tentativa de criação de
espaços em comum para debate, diálogo e organização da produção,

A
por outro, essa diversidade na produção gera a constituição de locus
que conduz à configuração de blocos de poder que esboçam, por

LO
vezes, formas antidemocráticas de ação. A ânsia por espaços não
conquistados em determinadas associações, instituições, entre outros,
faz com que profissionais criem locais de obtenção da visibilidade
almejada, contribuindo, muitas vezes, para novas fragmentações no

N
âmbito das relações interpessoais e em âmbito acadêmico. Por outro
lado, se as forças em uma dada instituição inviabilizam a criação de
espaços comunicativos, a resistência se dá com a configuração de
W
outros tempos-espaços de debate e diálogo8.
Dificilmente passou despercebido a qualquer profissional que
O

trabalha com dança o desconforto gerado pelo Conselho Federal


de Educação Física (Confef) ao tentar delimitar os espaços de
atuação profissionais que se referem ao seu campo e os que eram de
D

propriedade da arte e da dança propriamente dita. Se por um lado


essa discussão gerou desavenças, descontentamentos, por outro,
obrigou os profissionais a reflexões filosóficas sobre sua área de
EE

atuação e quais conhecimentos lhes eram próprios (e se é que o são).


Em meio a esses impasses, o Conselho (que tenta representar parte
da área), define que se a dança é trabalhada na dimensão da saúde,
voltada para a atividade física, ela é de propriedade da educação
FR

8 Mesmo sendo a pós-graduação entendida como campo constitutivo de poder, representativo


da produção de conhecimento, ela não foi eleita como foco de debate nesse texto. A
intenção foi identificar campos que surgem de movimentos organizados envolvendo
artes cênicas, dança e educação física e que aprimoram ou dificultam as relações entre os
profissionais envolvidos, trazendo implicações à produção do conhecimento e configuração
das áreas.

44
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

física. Esse delimitador, que para alguns resolveu momentaneamente


os impasses quanto ao que seja de propriedade da educação física
e do que concerte a outra área do conhecimento, apenas reforçou

D
a necessidade de intensificar o debate relativo à profissão. Aliás,
restabeleceu a dúvida sobre a necessidade de um conselho para
pensar por seus profissionais e se não haveria formas autorreguladoras

A
da profissão9.
Vale ressaltar que o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte

LO
(CBCE), criado em 1978, antecede a criação do Conselho Federal
de Educação Física, sendo a entidade científica a congregar
pesquisadores ligados à área de Educação Física/Ciências do Esporte,
com liderança da Direção Nacional e colaboração de secretarias

N
estaduais e grupos temáticos. O Colégio veio, até então, sendo visto
como representativo da área, sobretudo em universos políticos, com
ampla representação do momento de democratização do país na
W
década de 1980. Foi a entidade que fomentou muitos dos debates
epistemológicos da educação física brasileira, contribuindo com a
criação de espaços para amplas discussões. A dança, nesse colégio,
O

não teve um GT específico, mas apenas lugar em alguns grupos e em


cursos oferecidos pela entidade.
D

Se algumas áreas entendem que a existência de conselhos é


o que garante a organização da área, outras avaliam que a reunião
de diferentes campos de atuação em associações contribui para a
EE

criação de nichos comuns em que a diversidade possa ser percebida e


valorizada. Uma dessas associações, a Abrace – Associação Brasileira
de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas – foi criada em
Salvador, em 1998, envolvendo cerca de 12 Programas de Pós-
Graduação, com os seguintes objetivos:
FR

9 O entendimento da dança como área que transcende a reserva de mercado do campo


profissional foi discutida por Lara (2002) no texto ‘Confef e dança: problemáticas inscritas
e escritas’, publicado em revista do próprio Conselho Regional de Educação Física, em que
a autora critica a forma com que a Educação Física, por força institucional, veio atuando
no sentido de regular o campo profissional da dança.

45
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

[...] incentivar a pesquisa, congregar os programas


brasileiros de pós-graduação, representar seus
associados junto a agências de coordenação e
financiamento, promover reuniões científicas e

D
artísticas, divulgar estudos, fomentar o intercâmbio
e a cooperação científico-artística entre grupos de
pesquisa, programas de pós-graduação e cursos de

A
graduação, identificar temas prioritários de pesquisa,
prestar serviços técnicos e viabilizar instrumentos
jurídicos que concorram para a realização destes

LO
objetivos10.

Essa associação, que agrega os profissionais que atuam no campo


da dança, do teatro e áreas afins, intensificou esforços no sentido da
criação de um território profícuo de produção de conhecimento na
N
área, com apoio direto do CNPq e de professores ligados a Programas de
Pós-Graduação. Passados mais de 12 anos, a Abrace constitui espaço
W
de produção do conhecimento a agregar diferentes pesquisadores.
Como campo constitutivo da dança e do teatro no âmbito da pós-
graduação, expõe tensões próprias da competição que rege a pesquisa
O

numa sociedade disforme. Como associação representativa de uma


área, organiza-se a partir de funções designadas àqueles responsáveis
D

diretos por gerir uma associação. Daí decorrem novamente forças


que se mostram, confrontos que se instauram e tensões que, por
vezes, nem se harmonizam e nem se coadunam.
EE

Como resultante de anseios de profissionais integrantes da


Abrace e que comungavam a necessidade de um espaço específico
para o campo da dança, surge a ANDA – Associação Nacional de
Pesquisadores em Dança, no ano de 2008, associação civil, de natureza
científica, que congrega pesquisadores, centros e instituições. Com
FR

a finalidade de desenvolver e estimular a pesquisa em dança no país,


promovendo sua difusão, a ANDA se propõe a:

10 Cf. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS.


Portal. Disponível em: < http://www.portalabrace.org/>. Acesso em: 12 fev. 2010.

46
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

I. reunir e congregar pessoas físicas e jurídicas


ligadas à pesquisa em dança no país; II. promover
congressos de pesquisadores em dança; III.
promover a realização de seminários, encontros

D
científicos dentre outros formatos de reuniões;
IV. promover, incentivar e divulgar trabalhos de
pesquisa relacionados com a dança; V. promover,

A
incentivar e divulgar a publicação, em seus
variados suportes, de pesquisas sobre dança; VI.
divulgar, de forma ampla e pública, as atividades

LO
desenvolvidas pela Associação; VII. prestar
colaboração a entidades públicas e privadas
em programas relativos à pesquisa em dança,
indicando assessorias, comissões, júris e curadorias,
dentre outros; VIII. promover acordos, contratos,
convênios e intercâmbio com entidades congêneres,

N
órgãos federais, estaduais, municipais e entidades
de caráter privado nacionais e internacionais; IX.
apoiar o desenvolvimento das pesquisas em dança
W
em nível de pós-graduação, pós-doutoramento e
também nos programas de iniciações científicas11
O

Em relação à constituição da ANDA, como em qualquer


associação ou outra formação institucional, os bastidores são
conhecidos apenas por aqueles que participam diretamente do
D

processo, como protagonistas da peça. Entretanto, intenções e


intencionalidades movem pessoas ao desenvolvimento de ações
que busquem modos propícios de intervenção, sejam pautados
EE

numa preocupação coletiva ou individual. Dessas ações decorrem,


certamente, problemas, uma vez que ensejos pessoais podem mover
condutas em prol do discurso de benfeitoria de uma coletividade,
pautado na ideia de falta de espaços acadêmicos para uma determinada
FR

área quando, na verdade, os motivos desencadeadores de uma nova


constituição encontram-se, necessariamente, na oportunidade de

11 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA. [2000?]. Estatuto.


Disponível em: <http://www.danca.ufba.br/anda/pdf/estatuto.pdf>. Acesso em: 12 jan.
2010.

47
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

alcance de poder, notoriedade e visibilidade tão caros ao mundo


acadêmico.
Em 2007, um grupo de pesquisa ligado ao Instituto de Artes

D
na Unesp realizou um diagnóstico dos grupos de pesquisa no
Brasil certificados pelo CNPq e que pesquisavam dança numa

A
dimensão multidisciplinar. Mais de 20 grupos atenderam aos
chamados, 12 confirmaram presença em evento e apenas sete
compareceram. Desses, quatro passaram a compor uma rede

LO
de cooperação acadêmica em pesquisa, cultura e arte com a
finalidade de qualificar as produções decorrentes dos grupos
em nível de pós-graduação, saindo do isolamento e buscando
práticas colaborativas. Ações de intercâmbio foram realizadas no

N
tocante a financiamento que pudesse alavancar a rede, embora
não hesitosas em alguns aspectos pela negação de fomento que
pudesse dinamizar esse processo.
W
A rede de cooperação, até o presente momento, vem se
colocando como um mecanismo de auxílio aos grupos constituintes
O

no sentido do reconhecimento de suas atividades e de sua produção.


Também é passível de interrogações, sobretudo a partir de grupos ou
pessoas que não o integram e desconfiam de suas reais intenções.
D

Isso indica que se determinado profissional integra a rede e assume


um posicionamento político frente a outros campos de atuação em
dança, divergentes de outros colegas de profissão, ele será avaliado,
EE

julgado e, talvez, penalizado por empreender esforços nessa direção.


Isso porque essas relações não estão ausentes de poder, envolvendo
mecanismos de sujeição que primam pelos ‘corpos dóceis’, usando
expressão de Foucault (1989).
FR

Independente dos motivos factuais que desencadeiam o


surgimento de novas instituições que agregam pessoas e saberes,
o fato é que a busca por espaços para produção e disseminação do
conhecimento pode conduzir ao enfraquecimento de um determinado
campo quando, ao invés de unir forças, gera a fragmentação. Por vezes,

48
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

desdobramentos de um dado campo, como o surgimento de uma nova


associação, conduzem à ruptura com seu campo originário, vendo-o
como opositor na missão de produzir conhecimento. Entretanto, não

D
é necessariamente a produção de conhecimento que não estabelece
um processo comunicativo, mas os atores sociais que se encontram
em campos opostos e se reconhecem como opositores, trazendo suas

A
vaidades como bandeiras de luta.
É praxe, em ciência, a necessidade de segmentar para pesquisar

LO
com densidade determinado fenômeno, fazendo o caminho inverso
(em alguns casos) para a reconstrução da totalidade a partir das
particularidades investigadas. A ideia das partes que constituem o
todo e do todo que se forma pelas partes é uma das configurações

N
para a construção de conhecimento crítico e interventor. Isso quer
dizer que a fragmentação por si mesma, sem retorno ou diálogo com
o todo, torna-se enfraquecida e desprovida de sua função social.
W
Campos específicos da produção do conhecimento que dialoguem
com diferentes frentes do conhecimento podem trazer contribuições
às pesquisas e ao meio profissional. Entretanto, torna-se crucial
O

encontrar os limites dessa fragmentação, pois, do contrário, haverá


uma associação para dança cênica, para dança jazz, para dança na
D

educação, para dança profissional, entre outras, inviabilizando a


reflexão filosófica sobre o que é a dança, como ela se constitui e
como se legitima seu campo, independente das várias manifestações
EE

existentes.
Mas, como administrar esses dilemas? Como lidar com as
vaidades acadêmicas que teimam em brotar nas relações interpessoais
e institucionais? Quais seriam as formas de resistência?
FR

É importante o entendimento, numa dimensão epistemológica


que o saber não se solidifica e que o campo da dança é amplo,
constituído por profissionais diversos, com formação específica em
dança ou não. Nessa perspectiva, não é a graduação em dança,
seja ela licenciatura ou bacharelado, que dá a certificação para

49
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

a qualificação do profissional que pesquisa ou que trabalha com


essa manifestação, mas o ‘como’ dessa formação. Há áreas afins
que embora ofereçam tempo menor de experiência formativa em

D
dança se comparado à graduação em dança procuram ampliar esse
tempo com cursos e saberes que vêm a somar a essa formação,
contribuindo para refiná-la. A graduação é um passo importante,

A
mas inicial. O professor/pesquisador se faz continuamente, em sua
prática cotidiana, escolhendo e aprimorando as temáticas que lhes

LO
são próprias, aprimorando sua prática de ‘laboratório’ e o exercício
intelectual.
Como forma de exemplificar os territórios de poder
constitutivos de um determinado campo, lembro o relato de

N
um professor universitário que teve seu nome contestado ao
participar de banca de concurso público para a disciplina dança
W
em universidade pública por ter a formação em Educação Física.
Tal problemática somente foi resolvida com o envio do curriculum
lattes do professor, em que constava sua trajetória de envolvimento
O

com pesquisa em dança, incluindo mestrado, doutorado e pós-


doutorado. Entretanto, os preconceitos ainda se colocam como
formas de conquista de territórios, em que se busca, a fórceps, os
D

espaços de atuação, quando eles precisariam ser alcançados com


dignidade, seriedade e trabalho.
EE

Considerações finais

As incursões realizadas nesse texto pelo campo epistemológico


FR

da dança procuraram focar alguns recortes no sentido de dar


visibilidade a alguns dilemas e postular ações que possam, senão
superá-los, refleti-los no sentido de uma intervenção. Tais recortes
deram-se pela reflexão acerca das tentativas de compreensão
conceitual da dança, pela produção de conhecimento em dança

50
1 DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA DANÇA

no Brasil e pelas instituições/associações/agrupamentos que


visam dar sistematicidade e visibilidade a essa produção a partir
da articulação de profissionais/professores/pesquisadores para

D
refletir esse campo.
As considerações aqui realizadas, embora sinalizem para

A
temas emergentes na contemporaneidade, revelam sua amplitude
e incompletude. Mostram apenas parte de um cenário porque
também se inscrevem em uma base que alicerça verdades. A

LO
pesquisadora/autora que aqui se expressa tem o seu próprio
locus, o que possibilita exercer sua racionalidade e capacidade
criadora. Posiciona-se em um ângulo e dele visualiza formas e
conteúdos. Daí a incompletude textual. O diálogo com outros

N
atores sociais pode gerar percepções diferentes que, por vezes,
levam à reconfiguração do todo.
W
Tematizar a dimensão epistemológica da dança é considerar que
os conhecimentos produzidos têm sua densidade e sua temporalidade.
As verdades partem de bases teóricas que alicerçam a construção de
O

conceitos e as metodologias refletem escolhas teóricas e formas de


pensar/agir. A diversidade temática não enfraquece o campo, mas
assinala o quão rico ele é, apontando para estados não-dogmáticos
D

possíveis do fazer científico. Tal diversidade aporta-se em bases


teóricas que, por vezes, se coadunam e, noutras, se opõem, exigindo
esforços para fugir de uma postura relativista, que é diferente do ato
EE

de reconhecer diferenças. Há um denso processo normativo no corpo


que dança e naquele que pesquisa e produz saberes, exigindo esforços
no sentido da construção de um jogo tensional entre pensamento
dogmático e relativo na pesquisa em dança.
FR

O entendimento conceitual de um dado campo, nesse caso,


do campo dança, contribui para configurá-lo e organizá-lo a partir
dos atores sociais que o perfazem. Entretanto, os esforços não são
consensuais porque os seres humanos que constituem o campo
também não o são. Há distintas formas de apreensão de um dado

51
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

fenômeno e modos diversos de visualizá-lo a partir das bases teóricas


que elegem.
A área da dança é abrangente, perceptível, sobretudo, pelas

D
produções decorrentes de pesquisa no Brasil e pela pós-graduação.
Isso nos leva a reconhecer espaços profícuos de articulação acadêmica

A
na dança que, embora sejam vistos em seus limites, carecem de
configurações efetivas das intersubjetividades envolvidas. Não é a
área que advoga competências e habilidades para a pesquisa e atuação

LO
em dança, mas a formação qualificada de cada sujeito na busca de
conhecimento. Se determinada formação na área de dança amplia
as possibilidades dessa qualificação, ela não a garante, o que exige
sapiência para transcender reservas de mercado rumo à capacidade

N
de perceber nichos de construtores de conhecimento que possam ser
parceiros acadêmicos.
W
É mister que as instituições que congregam profissionais da
dança materializem ações de modo a contribuir para a ampliação
e qualificação da área, evitando a fragmentação do conhecimento
O

e a criação de ‘deuses do saber’. Política, poder, crítica, capacidade


organizacional, integram as instituições, assim como vaidades e
desejos de visibilidade acadêmica. Lidar com problemáticas que
D

dificultam ações comunicativas no âmbito das instituições é desafio


de todo aquele que ocupa papel de gestão nesses organismos
e compromisso social com a formação de profissionais e de
EE

pesquisadores que buscam nesses espaços formas de qualificação e


desenvolvimento.
FR

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55
FR
EE
D
O
W
N
LO
A
D
2

D
Desafios epistemológicos e políticas de

A
ação na graduação e pós-graduação

LO
em dança1
Rita Ribeiro Voss

Entrando em cena
N
W
A dança revela-se híbrida por sua atividade mesma. É: corporal,
artística, cultural. Sua configuração como conhecimento acadêmico,
científico, deve desvelar a relação onde convergem o biológico, o
O

antropológico, o artístico, o pedagógico, o social e a constituem.


Não fosse assim, não haveria necessidade de cursos superiores, uma
vez que as escolas de dança cumprem o papel de formar estética e
D

tecnicamente seus profissionais. A dança pode ser considerada então


um lugar onde a relação corpo, cultura e arte pode ser apreciada e
ensaios podem ser realizados no sentido de compreender o próprio
EE

humano, para além da formação estritamente profissional.


Daí se anuncia o primeiro problema para os cursos de graduação
e pós-graduação: compreender a dança como fenômeno humano por
meio do estudo científico. Por ser um conhecimento em construção,
FR

a reflexão epistemológica ainda dá os seus primeiros passos. Uma


forma de enunciar suas premissas epistemológicas pode se dar senão

1 Trabalho apresentado no I Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança – ANDA,


realizado de 1º a 4 de dezembro de 2010 na Universidade Federal da Bahia, Salvador.
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

para estabelecer uma fronteira, um território pela composição de suas


interfaces, refletindo sobre o seu caráter híbrido e, ao mesmo tempo,
e por causa dessa mesma hibridez, os problemas que configuram sua

D
singularidade em relação aos demais saberes científicos e às artes.
O que não é pouco. É tarefa para uma geração, pelo menos, mesmo
considerando-se que as oportunidades para estudos e pesquisas são

A
promissoras com a abertura de cursos de graduação e pós-graduação
em dança, principalmente nas Universidades Federais, nos últimos

LO
anos.
Mas a importância da reflexão epistemológica não é apenas por
se tratar de uma questão de desvelamento de um fenômeno que se
quer estudar e compreender. Quando se propõe pensar numa ciência

N
está, também, posicionando-se com relação a seus fazeres e produtos.
A constituição e consolidação de um conhecimento novo implicam
em práxis diferenciadora dos demais saberes. É com o fazer, isto é,
W
com a organização do conhecimento da dança de maneira que teoria
e(m) prática produzam resultados, que estes podem ser publicizados,
trazidos à coletividade científica e à sociedade em geral. Isto é ocupar
O

um lugar de observação, de reflexão e de ação no mundo: um lugar


político.
D

Com isso, outro aspecto vem à tona: a relação entre conhecimento


e política, implícita na reflexão de natureza epistemológica. Isso
implica pensar a relação sujeito e objeto, isto é, um ‘eu’ (sujeito)
EE

que pensa o ‘mundo’ (objeto) onde intervém. A primeira implicação


é que não é possível falar desta relação de forma unívoca. Muitos
a entendem como uma relação apartada, outros contraditória,
dialética, ou ainda dialógica, e para alguns, autoecodependente. O
FR

importante é que cada perspectiva requer estratégias metodológicas,


instrumentos analíticos e resultados que estão intimamente ligados à
reflexão epistemológica.
Talvez por isso, uma reflexão que associa política e conhecimento
tenha sido proposta pelo I Encontro da ANDA, qual seja a de

58
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

identificar políticas de ação da associação com relação à graduação


e pós-graduação em dança. Pois é no terreno dos meios e resultados
de pesquisa, bem como a sua divulgação, que a dança demanda um
posicionamento tendo em vista sua consolidação, a exemplo de outras

D
áreas que estabeleceram políticas científicas cujo grau de sucesso das
ações mede-se pelo número de bolsas de professores e alunos, pelo

A
montante em dinheiro para financiamento de pesquisa, pela ocupação
de espaços acadêmicos e institucionais, sejam públicos ou privados.

LO
Isto significa ocupar lugares estratégicos em que os enunciados de
uma determinada área adquirem legitimidade pela ação política e se
materializam em realizações acadêmicas e científicas. É desta forma
que o conhecimento se relaciona com a política. E se o conhecimento
em dança se dá num lugar onde se insinua a sua hibridez é neste
N
terreno também que os resultados devem ser produzidos e marca a
sua singularidade em relação ao conhecimento, enquanto saber que
W
busca uma legitimidade.
No Brasil, os órgãos e agências de fomento de pesquisa
normatizam a produção acadêmica ao arrolar os itens necessários
O

para que um ‘bom projeto’ de pesquisa seja aprovado, seguindo o


modelo disciplinar das Ciências Naturais. A Capes, responsável pela
D

normatização das produções científicas na pós-graduação, age de


maneira muito mais incisiva, pois não apenas controla a produção
em termos quantitativos como também qualifica os resultados
de pesquisa, as produções bibliográficas em revistas e livros que
EE

também são avaliados de forma padronizada seguindo o referido


modo tradicional de ciência. O modelo de projeto científico segue
um padrão que arrola itens que um projeto deve apresentar e até
mesmo os aspectos formais que atendem geralmente à ABNT.
FR

Recentemente, a Capes criou a área temática interdisciplinar,


cujos estudos visam responder aos problemas que as disciplinas
sozinhas não podem resolver. Mas, paradoxalmente, esses programas
devem adequar-se ao modelo disciplinar que a instituição preconiza.
Com relação às artes, ainda que há bem pouco tempo as produções

59
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

artísticas tenham adquirido o mesmo status de produção científica


(artigos e livros), os meios, a linguagem se adequam à produção de
resultados de pesquisas em dança, que não são da mesma natureza

D
que o das demais ciências. Requer uma linguagem multimidiática,
para produzir comunicação, ao mesmo tempo, de natureza reflexiva e
experiencial. Estes meios atendem à natureza polissêmica, imagética,

A
comunicativa da dança. Como linguagem não verbal, o sentido dessa
arte se dá pelo não-dito, está implícito no dançar, daí a força que a

LO
imagem oferece à reflexão.
Um equívoco que salta aos olhos quando examinamos
as produções em Artes é que obviamente não produzirão os
denominados resultados esperados como os órgãos e agências

N
anteriormente referidos recomendam para as Ciências Naturais.
Pois enquanto as primeiras têm pressupostos abertos, as últimas
seguem um modelo cujos princípios estão assegurados pela
W
verificação, portanto toda experiência arrola resultados previsíveis,
o que não é o caso das Artes. Tal tratamento, então, não se revela
isonômico, porque a isonomia requer tratamento das necessidades
O

dos diferentes na medida de sua diferença. É interessante lembrar


o que diz Michel Foucault sobre o ‘saber’ como discurso produzido
D

em termos de sentido e de mundo, justamente por revelar


singularidades, inter-relações do sujeito do conhecimento com o
meio e um posicionamento discursivo:
EE

Um saber é o que podemos falar em uma prática


discursiva que se encontra assim especificada: o
domínio constituído por diferentes objetos que
irão adquirir ou não um status científico (o saber
FR

da psiquiatria, no século XIX, não é a soma do que


se acreditava fosse verdadeiro; é o conjunto das
condutas, das singularidades, dos desvios de que
se pode falar no discurso psiquiátrico); um saber
é também o espaço em que o sujeito pode tomar
posição para falar dos objetos de que se ocupa em
seu discurso (neste sentido, o saber da medicina

60
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

clínica é o conjunto de funções de observação,


interrogação, decifração, registro, decisão, que
podem ser exercidos pelo sujeito médico); um saber é
também o campo de coordenação e de subordinação

D
dos enunciados em que os conceitos aparecem,
se definem, se aplicam e se transformam […]
finalmente um saber se define por possibilidades de

A
utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso.
(FOUCAULT, 2008, p. 204).

LO
No entanto, a padronização do que deve ser um projeto de
pesquisa está longe de considerar, no que se refere a uma política
científica, as especificidades das diversas áreas do conhecimento.
A consequência de tal padronização pode ser observada no site da

N
Capes QUALIS que qualifica revistas e livros de programas e cursos
universitários do país. Ao utilizar os mesmos critérios de divulgação
científica para todas as áreas, o órgão entende que os conhecimentos
W
produzidos são equivalentes. Compreende-se então porque a maioria
das revistas na área das Artes é classificada como B5, que significa
uma pontuação baixa de produção só melhor do que C, que não
O

pontua.
As investigações em dança não só discutem e refletem sobre a
D

sua complexidade epistemológica como também utilizam meios de


pesquisa e divulgação que lhe são próprios, adequados em termos
de uma práxis acadêmica e científica. A produção de resultados
EE

científicos nas Ciências Naturais de fato, requer padronização,


pois se referem ao trabalho de verificação empírica, dentro de
um paradigma científico consolidado. Os artigos geralmente
são produzidos em equipe, seguem um roteiro de revisão
bibliográfica das experiências realizadas, informam as teorias
FR

mais recentes e descrevem metodologicamente a pesquisa. Daí,


preveem e relatam os resultados, que foram verificados por meio
de construção de hipóteses. Os artigos são mais propriamente
divulgação de resultados de pesquisa, um resumo de um relatório
mais detalhado.

61
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Já nas Ciências Humanas, a produção bibliográfica é


essencialmente discursiva e teórica, uma vez que não é possível
submeter o homem e suas interações com outros e com o meio

D
natural e social, ao controle e ao isolamento, a exemplo do que
faziam os nazistas, com o objetivo de verificação científica para
explicar o humano. A produção das Ciências Humanas é de outra

A
ordem. Depende de uma maturidade reflexiva, de discussões dos
princípios formadores de seus saberes, de paciência do pesquisador

LO
para se dedicar a um assunto que pode se abrir à cognição de maneira
lenta. No caso da Antropologia, da observação etnográfica, por
exemplo, uma investigação pode levar anos e o mesmo tempo para
uma elaboração importante em termos de resultados.

N
A produção em Artes se revela ainda mais complexa. Depende
de uma produção na interface do gráfico e imagético, das linguagens
W
verbais, não-verbais e sincréticas, em que o tempo de produção
depende em grande parte de uma variedade de meios de divulgação
disponíveis. É interessante notar que os pesquisadores em dança
O

utilizam em suas comunicações CD-ROM, DVDs, livros digitais,


cujas experiências de natureza performáticas ilustram ou mesmo
garantem a compreensão de muitas afirmações e conclusões de seus
D

trabalhos, justamente por ser uma arte do movimento.


Em vista do que foi enunciado, a proposição deste texto é
discutir três questões que se cruzam quanto às políticas de ação para
EE

a graduação e pós-graduação em dança. A primeira questão se refere


a distinguir ‘Política’ e ‘políticas’ para delinear proposições de política
de ação; a segunda problematiza o modelo de pesquisa e divulgação
de resultados das Ciências Naturais tomado como hegemônico por
FR

instituições de avaliação das produções científicas e agências de


fomento; a terceira volta-se à dança e seus saberes. Por último, a
discussão redunda em proposições de políticas emergentes na área.
Acentua-se aqui uma política científica com relação à constituição de
espaços de saber e de divulgação em que pese a sua singularidade, as

62
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

proposições epistemológicas e seus fazeres, como desafios a enfrentar


num momento rico de reflexão sobre a formação em dança.

D
Sobre política e políticas

A
Política é uma palavra problema, com várias acepções, desde
a do senso comum a da mais refinada filosofia, a depender da

LO
perspectiva sob a qual se emprega. Refere-se à pólis, ou à cidade, em
seu sentido grego, revelando ao mesmo tempo ação pública e relação
de poder entre os homens. No sentido clássico, o público se opõe ao
privado; significa que o cidadão é aquele que em uma determinada

N
coletividade, num período histórico, entende-se ser apto para agir
em benefício da cidade, como os homens livres, nela nascido, no
caso grego.
W
O poder na pólis estava relacionado à política, mas não àquele
da força bruta, da submissão de alguém ou de um grupo ao mais forte.
O

Ao contrário, significa o poder de organizar por outros meios a vida


comunitária. Significa, em seu sentido antropológico, a passagem do
estado de natureza para a cultura. Ou ainda, segundo Bruno Latour
D

(2000), o germe da ideia moderna de separar o natural do cultural,


o homem das coisas. Cansados de contendas que levavam às lutas
violentas, os homens abrem mão da força física em favor de um poder
EE

que emana do consenso, que se abre para a racionalidade.


Mas na história do Ocidente, poder e política sofreram mudanças
importantes. Passou-se de uma compreensão de política que se refere
à relação soberano-súdito este último sujeito à vontade de um rei
FR

portador de atributos especiais ligados a um sistema de crença em


que o monarca é aparentado com o divino, para um alargamento
do conceito pela participação política possibilitada pelo processo
democrático de acesso das massas ao cenário público, que se verificou
a partir do séc. XVIII. A democracia dos modernos também sujeitou

63
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

os políticos a um papel representativo por delegação do indivíduo na


sociedade civil, de onde emana todo o poder. Nesse sentido, o poder
não está encarnado numa pessoa, mas pertence a um ordenamento

D
jurídico. Está abstraído, regulado por um acordo. O poder difuso,
de que fala Foucault só pôde ser pensado como realidade concreta
porque o processo histórico o trouxe à baila.

A
Outra consideração de suma importância no âmbito desse texto
é a relação entre poder e saber. Desde a Grécia Antiga tal relação é

LO
explorada pela filosofia, que principia nos embates entre os sofistas
e os socráticos, assinalando uma paulatina passagem da mera
opinião para o discurso como argumentação sistemática, mediado
por uma lógica. A democracia sempre revelou uma relação com

N
o poder intangível, com o conhecimento, que na época moderna
se identifica com a ciência, cuja construção é narrativa. Certo
conhecimento, que depende da vontade individual e necessita do
W
convencimento da maioria, que se constitui em discursos legítimos
sobre o mundo.
O

É nesse sentido, que Lyotard entende a problemática discursiva


da ciência moderna. Para ele, trata-se de algo como a espera de um
herói que diga ‘quem’ legitimamente pode decidir pela sociedade:
D

Este modo de interrogar a legitimidade sociopolítica


combina-se com a nova atitude científica: o nome
EE

do herói é o povo, o sinal da legitimidade seu


consenso, a deliberação seu modo de normatização.
Disto resulta infalivelmente a ideia de progresso;
ela não representa outra coisa senão o movimento
pelo qual supõe-se que o saber se acumula, mas este
FR

movimento estende-se ao novo sujeito sociopolítico.


O povo está em debate consigo mesmo sobre o que é
justo e injusto, da mesma maneira que a comunidade
dos cientistas; o povo acumula as leis civis, como
os cientistas revisam à luz dos seus conhecimentos
produzindo novos ‘paradigmas’ (LYOTARD, 1988,
p. 54).

64
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

Em contraste, povo tem outro sentido para os saberes


tradicionais, o que marca uma mudança no interior do conhecimento.
Para Lyotard, o novo conhecimento, o científico, tem desde as suas

D
fundações características destrutivas dos demais saberes, o que
reforça seu caráter hegemônico:

A
Vê-se que este ‘povo’ difere completamente daquele
que está implicado nos saberes narrativos tracionais,

LO
os quais, como se disse, não requerem nenhuma
deliberação instituinte, nenhuma progressão
cumulativa, nenhuma pretensão à universalidade:
são eles os operadores do saber científico. Não
deve causar espanto que os representantes da
nova legitimação pelo ‘povo’ sejam também os

N
destruidores ativos dos saberes tradicionais dos
povos, percebidos de agora em diante como minorias
ou como separatismos potenciais cujo destino não
W
pode ser senão obscurantista (LYOTARD, 1988, p.
55).
O

De um lado, a ideia do individualismo burguês concomitante às


várias transformações que ensejaram o Renascimento, encontra na
razão o fiel da balança em termos de organização social e econômica.
D

De outro lado, a de ‘povo’, portadora de uma vontade geral, uma


concepção amorfa. Outros autores desenharam este mesmo cenário
como uma ameaça à democracia.
EE

É justamente com o problema do extremo individualismo e


da ascensão das massas, que as associações modernas emergem no
cenário político. No seio da Idade Média se formaram as corporações
de ofícios e mais tarde, as associações livres, que Alexis Tocqueville
FR

(2006) atribuiu um papel decisivo para a garantia dos princípios


democráticos. Para ele, a democracia estimulou sua formação que
se viu durante toda a época moderna até os nossos dias. Partidos,
sindicatos, associações agregam indivíduos por interesses de toda
espécie. Por haver metas, fins pragmáticos em torno de interesses, de

65
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

identidades, é que as políticas de ação podem ser pensadas no interior


das associações. Nisso repousa outra característica da política: uma
luta entre os vários grupos da sociedade civil com o objetivo de

D
interferir nas relações de poder, na organização do agrupamento
político, no Estado.

A
É nesse sentido que a palavra adquire uma dimensão mais
‘prática’. Se tomada com ‘p’ minúsculo, no sentido mais costumeiro
e cotidiano, a política refere-se à organização das coisas, quer

LO
seja no domínio do Estado ou de uma associação. Nesse sentido,
a política está sempre identificada com a ação. Como traduzem as
filosofias orientais, o homem está destinado à ação, a intervir no
mundo onde habita. A política responde à seguinte questão: com

N
que instrumentos podemos organizar as coisas e os fazeres de um
grupo, de uma coletividade, de uma associação humana? Assim,
toda política tem o objetivo de ordenar as ações, administrar e alocar
W
recursos, por meio de uma organização com o objetivo de produzir
resultados. Portanto, podemos falar de políticas de ação de um ponto
de vista bem pragmático, de avaliação dos meios adequados de ação
O

para se chegar ao um resultado pretendido.


Mas ‘política de ação’ também revela algo para além de seu
D

sentido mais pragmático. Em relação à ação, ainda que ordinária,


ainda que seja apenas exploratória, é direcionada por pressupostos,
princípios, ideias, perspectivas. No que se refere, então, à Política (com
EE

‘P’ maiúsculo), como conjunto de valores e princípios que compõem


uma visão de mundo com vistas a influir numa organização, no caso
acadêmica e científica, significa haver a anterioridade para a ação.
Nesse sentido, um agrupamento humano como a ANDA cujos
FR

interesses agregam pesquisadores em dança, deve responder questões


de suma importância para os fazeres e resultados que o grupo quer
produzir: Que problemas acionam a necessidade de ser organizar um
grupo com uma atuação política num meio acadêmico e científico?
Quais são os princípios que norteiam a ação do grupo? Qual é a sua

66
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

racionalidade, isto é, como os meios se articulam aos fins? Como


fomentar uma reflexão sobre a dança, isto é uma metarreflexão a
partir da emergência de saberes do grupo de pesquisadores que a

D
ela estão associados? Como relacionar saber e poder, de modo a
esclarecer as políticas científicas em relação à formação em dança?

A
Em suma, política, poder, conhecimento são aspectos que
precisam ser considerados quando se fala de políticas de ação em
dança. É preciso identificar princípios, pressupostos, que na verdade

LO
delineiam epistemologias no que se refere especificamente à dança,
como área do conhecimento. No entanto, é preciso assinalar
que a discussão em torno das questões anteriormente discutidas
não significa adotar axiomas, pressupostos fechados, verdades

N
engessadas. Implica em discutir e da discussão emergir epistemologias,
instrumentos teóricos, necessidades de pesquisa, objetivos e meios
W
adequados ao que ser quer alcançar com as pesquisas em dança no
Brasil, possibilitando a adoção de estratégias adequadas para a ação,
e no que se refere ao tema aqui considerado, influir na organização
O

curricular dos cursos de graduação e nos futuros programas de pós-


graduação.
D

Uma questão de poder


EE

Isabelle Stengers (2002), filósofa, para quem a ciência é


um projeto social, diz que nenhum problema científico emerge à
consciência dos cientistas que não seja um desafio colocado por
contingências humanas, necessidades que exigem conhecimento
FR

em relação a fazeres novos. As fundações da filosofia na Grécia e


da ciência moderna encontram-se na política. No primeiro caso, a
pólis demandou uma forma de pensar por meio da argumentação
lógica, sistematizada. A própria palavra lógica convoca seu sentido
político. Logos, λογική em grego, significa palavra, discurso e também

67
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

pensamento e pode ser definida “como a disciplina que privilegia


o estudo de conjunto coerente de enunciados” (ABBAGNANO,
2007, p. 722).

D
Ao abrir mão da força bruta para convencer pelo discurso, pelo
verbo, a pólis grega inventa a filosofia, estudo e desenvolvimento

A
das regras lógicas para o debate, o convencimento e a dissuasão:
necessidades da política. Também é política a fundação da ciência
moderna com seus modelos racionais, suas hipóteses explicativas

LO
do mundo, empiricamente verificáveis pela experimentação, que
constituiu seu campo de discurso e ação na sociedade por meio
confronto de duas verdades em disputa por hegemonia: a religiosa
e a científica. Seu discurso foi legitimado por uma nova forma de

N
provar uma verdade por meio da verificação e experimentação.
Embora não se trate, aqui, de reduzir tudo ao político, é no mundo
que as ideias mostram a sua inscrição corpórea, como revela o título
W
francês do livro Francisco Varela, L’inscription corporelle de l’esprit,
em que investiga a relação mente e experiência.
O

A fundação da ciência moderna e seu posterior desenvolvimento


jogam uma luz sobre o espaço ocupado pelas artes no conhecimento,
onde a dança se insere. Nessa visão, as artes são saberes suplementares,
D

entretenimento ou práticas adicionadas aos saberes principais, quais


sejam os das Ciências Naturais e Humanidades. Estão como que
na periferia, uma vez que não são ciências propriamente ditas, na
EE

perspectiva do modelo adotado de fazer e divulgar ciência. Por outro


lado, para confirmar essa situação das artes no panorama geral do
conhecimento, seus estudos, pesquisas e resultados são realizados
segundo as normas vigentes do trabalho científico, isto é, deve
FR

obedecer à padronização de um modelo de ciência.


Para entender como a hegemonia do modelo científico das
Ciências Naturais adquiriu o status que se está questionando, é
preciso retomar historicamente como a ciência se torna a detentora
de um saber sobre o mundo, cujo modelo se impôs às universidades

68
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

no século XIX, na Alemanha e se consolidou durante todo o


século XX. Obviamente, não é possível estabelecer no espaço
deste texto uma discussão profunda sobre as transformações

D
na forma de pensar, de conhecer que ensejaram a constituição
da ciência como discurso-verdade sobre o mundo. A intenção
aqui é lembrar, de forma sucinta, como a cultura científica das

A
ciências naturais entra na universidade e estende seu modelo,
metodologias, seus procedimentos formais às ciências humanas e

LO
também às pesquisas científicas em Artes. Com isso, se pretende
esclarecer que modelos e procedimentos científicos se referem ao
poder e aos territórios que influem no conhecimento em geral
e colocam sob suspeita outros saberes, não normatizados pela
ciência convencional.
N
Com relação a isso, verifica-se historicamente a mudança dos
fazeres científicos, da comunidade científica nos últimos quatro
W
séculos. Para Stengers (2002, p.18):
O

Indústria, Estado, exército, comércio só entrariam,


na verdade, na história das comunidades científicas
sob duplo título de fontes de financiamento e
D

beneficiários de subprodutos úteis? As questões


da história “externa” das ciências ressurgem aqui,
mas elas se tornam bem mais temíveis. Não se trata
mais de uma tese geral sobre a solidariedade entre
EE

as práticas científicas e seu ambiente. O cientista


não é mais produto de uma história social, técnica,
econômica, política como qualquer ser humano. Ele
tira partido ativo dos recursos desse ambiente para
fazer prevalecer suas teses e ele esconde estratégias
sob a máscara de objetividade.
FR

Para Stengers, o cientista passou a ser um ator que desempenha


um papel político, embora dissimuladamente o que diz fazer não
corresponde à observação de seus fazeres. Isto se dá, segundo a
autora, não porque:

69
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

[…] a invenção científica excederia as palavras,


mas porque as palavras têm uma função
estratégica que é necessário saber decifrar. O
cientista aqui, em vez de se privar heroicamente

D
de todo recurso à autoridade política ou ao
público, aparece acompanho de uma coorte de
aliados, todos aqueles cujo interesse foi capaz

A
de criar uma diferença nas controvérsias que o
opõem aos seus rivais (STENGERS, 2002, p. 18-
19).

LO
Discursos e fazeres revelam um domínio linguístico e, ao mesmo
tempo, práxis segundo políticas de ação, em que está em jogo uma
verdade hegemônica sobre o mundo. Se uma reflexão, que retome a

N
fundação de tais discursos que se traduzem no mundo como fazeres
científicos, destrói os tijolos de uma história heroica que a ciência
e seus historiadores insistem em contar, por outro lado, ilumina a
W
compreensão de que se trata de uma política científica segundo uma
disputa hegemônica no interior das Ciências Naturais e sobre as
demais áreas de saber.
O

A naturalização da ciência impede de ver a artificialidade. É


preciso retomar como o discurso científico e seus modelos entram
D

nos espaços acadêmicos para vislumbrar a diversidade dos saberes e


possibilitar uma equidade na avaliação dos resultados dos trabalhos
e pesquisa em dança.
EE

Discursos retomados
FR

A universidade é uma criação da Idade Média, sua fundação


data do século XIII. Floresceu no sec. XIV em todas as partes
da Europa de forma simultânea, segundo Peter Burke (2003). Os
modelos de Bolonha e, posteriormente o de Paris foram seguidos
por Oxford, Salamanca, Nápoles, Praga, Pavia, Carcóvia,

70
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

Louvain entre outras. Em meados do século XV podia-se contar


50 universidades em atividade, segundo o mesmo autor.
Três características marcavam as primeiras universidades e

D
devem ser assinaladas para entender a posterior ruptura ou corte
epistemológico que ensejará a constituição da ciência moderna. As

A
universidades eram corporativas e seu papel era o de transmissão de
conhecimento e não de descoberta, “os professores se limitavam a
expor as posições das autoridades (Aristóteles, Hipócrates, Tomaz

LO
de Aquino e outros)” (BURKE, 2003, p. 38). Com isso, pode-se
ver que o objetivo das universidades era o de conservação de um
conhecimento para manter a estrutura medieval, reproduzir a
sociedade e sua hierarquia social. Nela, nobres e clero acessam um

N
conhecimento proibido para aqueles que estão na base da pirâmide
social.
W
As disciplinas ministradas eram fixas e se restringiam às sete artes
liberais (autônomas em relação às atividades práticas) (LAUAND,
2000). Essas características revelam o caráter essencialmente teórico
O

dos estudos universitários, como também sua natureza artística, que


se compunham de saberes que se cruzam: O Trivium (arte de ensinar
pelos três caminhos): gramática, arte de falar corretamente; lógica,
D

arte de falar verdadeiramente ou logicamente e retórica, arte do


bem dizer; 2 – Quadrivium (arte de ensinar pelos quatro caminhos):
aritmética, geometria, astronomia e música. Os cursos de pós-
EE

graduação eram a teologia, o direito e a medicina. O conhecimento


está intimamente relacionado ao espírito escolástico de separar a
cidade dos homens e a cidade de Deus de Santo Agostinho, o filósofo
e teólogo da Igreja Católica. A verdadeira arte é uma manifestação
FR

sublime, que abstraída da vida do mundo, encerra a divindade pelo


verbo e pelas abstrações das duas artes de ensinar.
Mas é no seio do conhecimento medieval que por meio da ‘nova
filosofia’, ‘filosofia natural’ ou ‘filosofia mecânica’, que uma nova
cultura começa a tomar forma, a científica. Consequentemente, toma

71
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

forma também uma disputa política; uma luta por hegemonia, entre o
modelo medieval, influenciado pela verdade do dogma, e o científico,
cuja verdade deveria estar em consonância com a verificação de

D
natureza empírica, validação pela experimentação fundada pela
prática científica de Galileu. São emblemáticos para se falar dessa
fase, cujo apogeu foi o Renascimento, a filosofia natural de Francis

A
Bacon (1562 - 1626) e o nascimento das sociedades científicas, cujo
cerne encontra-se no denominado humanismo, em contraposição

LO
ao caráter teocrático da concepção de mundo medieval. Segundo
Burke, a nova forma de pensar

[...] envolvia a rejeição tanto da tradição clássica

N
quanto da medieval, inclusive de uma visão do
mundo baseada de Aristóteles e Ptolomeu. As
novas ideias estavam associadas a um movimento
W
em geral conhecido (a despeito de dúvidas sobre a
propriedade do rótulo) como Revolução Científica
(BURKE, 2003, p. 42).
O

O iluminismo encontrou nas associações e academias de artes


a forma de disseminação de novas ideias com base na razão e no
D

método, por meio de uma “pedagogia dissidente”, em meio ainda


à organização medieval do conhecimento nas universidades, pois
ensinavam a filosofia natural e a história natural. Enfim, no iluminismo
constituíram-se lugares onde as novas ideias e experiências podiam
EE

ser discutidas e trazidas a público. Também foi marcante, o que Burke


denomina de segundo maior desenvolvimento do período, a criação
de institutos de pesquisa. A palavra pesquisa adquire um sentido
diferente da curiosidade que até então tinha e passa a estar ligada a de
FR

estoque de conhecimento, que poderia se aperfeiçoado. As academias


científicas tinham o apoio dos governantes que financiavam as
pesquisas fora da universidade: “o cientista profissional do século
XIX surgiu a partir de uma tradição semi profissional” (BURKE,
2003, p. 49).

72
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

A reestruturação do currículo seguiu, ainda no


Renascimento, segundo Burke um padrão para a diferenciação
e especialização:

D
Novas disciplinas ganham autonomia apenas para
fragmentar-se, como as novas nações do século XX.

A
Em sua história da Academia Francesa de Ciências
(1709), seu secretário, Bernnard de Fontenelle,
comparou o estado da física em 1650 ao de um

LO
‘grande reino desmembrado’ (un grand royaume
dénembré), no qual províncias como a astronomia,
a óptica e a química tinham sido ‘virtualmente
independentes’ (BURKE, 2003, p. 94).

N
Mas essa reestruturação aconteceu de diversas formas em
diferentes universidades. Em algumas universidades a mudança
foi gradual. Nas universidades de Bolonha e de Roma, por
W
exemplo, o quadrivium foi se sobrepondo ao trivium. Mas em
muitas universidades foi adotado um sistema alternativo, que,
ainda segundo Burke, “invadiu e infiltrou o currículo”, o sistema
O

dos studia humanitatis, que se compunha de gramática, retórica,


poesia, histórica e ética. Outras disciplinas também foram sendo
D

agregadas aos estudos humanistas como a economia política, de


forma que, o novo sistema universitário abria a possibilidade dos
estudos de filosofia natural, que “ganhou gradativamente sua
independência em relação ao quadrivium, apenas para cindir-
EE

se em temas virtualmente independentes como física, história


natural, botânica e química” (BURKE, 2003, p. 95).
Nos séculos XVIII e XIX, a universidade, paulatinamente, perde
seu perfil humanista identificado, segundo Japiassu (2006), com a
FR

Paideia grega e passa a adotar os modelos científicos:

a partir da criação das Universidades de Berlim (por


Fichte e Humboldt – 1908) e de Londres (1828)
que a ciência, tomando distância da teologia e da

73
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

filosofia, começa seu processo de fragmentação


e compartimentação numa série divergente de
especialidades fechadas denominadas disciplinas
(JAPIASSU 2006, p. 23-24, grifo do autor).

D
É preciso, no entanto, marcar uma diferença entre o sistema

A
studia humanitatis das ciências humanas que, na esteira das ciências
naturais empreenderá a construção de uma ciência sobre o homem
em suas positividades. Segundo Foucault, nada há nos séculos XVI

LO
e XVIII que legasse ao século XIX uma preocupação com o ‘homem’
entendido como positividade, para a constituição de um saber
científico: “nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral,
nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação

N
do corpo humano, nenhuma análise da sensação ou das paixões”
(FOUCAULT, 1999, p. 475). Para o filósofo, a articulação de várias
ciências nos domínios da biologia, da linguística e da economia que
W
delimitaram as positividades do homem que vive, fala e produz é um
acontecimento da ordem do saber:
O

Compreende-se, assim, porque essas grandes


categorias podem organizar todo o campo das
D

ciências humanas: é que elas o atravessam de ponta


a ponta, mantém à distância, mas também reúnem
as positividades empíricas da vida, do trabalho
e da linguagem (a partir das quais o homem
EE

historicamente destacou-se como figura de saber


possível à formas da finitude que caracterizam o
modo de ser do homem (tal como se constituiu a
partir do dia em que a representação cessou de definir
o espaço geral do conhecimento). Essas categorias
não são, pois, simples conceitos empíricos de uma
FR

bem grande generalidade: elas são, na verdade,


aquilo a partir do qual o homem pode oferecer-se
a um saber possível; elas percorrem todo o campo
de sua possibilidade e o articulam fortemente comas
duas dimensões que o delimitam (FOUCAULT,
1999, p. 494-495).

74
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

Trata-se, pois, da constituição de uma ciência que corresponde


à grande mudança na ordem do saber, e que por isso requer a
delimitação de positividades possíveis, como o fez Emile Durkheim

D
ao delimitar a sociologia ao estudo dos fatos sociais. Estes podem ser
identificados nas estatísticas, na história, enfim onde quer que se
possa olhar a vida social em sua positividade. O saber sobre o homem

A
é construído historicamente do ponto de vista de sua objetividade, de
positividades, que funda um discurso sobre a verdade: a científica.

LO
Para Boaventura de Souza Santos, a ciência moderna é um
modelo global que institui uma forma hegemônica de explicação do
mundo. Para ele,

N
a nova racionalidade científica é um modelo
totalitário, na medida em que nega o caráter
racional a todas as formas de conhecimento que não
W
se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e
pelas suas regras metodológicas (SANTOS, 1995,
p. 11).
O

O racionalismo cartesiano e o empirismo baconiano concebem


apenas duas formas de conhecimento científico: o das disciplinas
D

formais, a lógica e a matemática; o das ciências empíricas, que


atendem ao modelo mecanicista das ciências naturais. Ao constituir
suas fronteiras, as ciências as concebem mais no espírito da ruptura
EE

com os saberes aos quais afrontara em sua fundação. Santos assim


sintetiza a construção de fronteiras bem definidas como “ostensivas
e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não
científicas (consideradas irracionais) potencialmente perturbadoras
FR

e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades, ou estudos


humanísticos” (SANTOS, 1995, p. 10).
Esta fragmentação do conhecimento em especialidades e
separação dos saberes em disciplinas não comunicantes é a base da
crítica de Edgar Morin à ciência e ao seu caráter reducionista. A

75
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

primeira rachadura se deu na separação entre ciência e filosofia, o


que resultou “na cisão entre o espírito e o cérebro”, que corresponde
à cisão da metafísica e das ciências naturais. No interior de cada área
também houve cisões que separaram e dispersaram disciplinas no

D
interior das ciências físicas (informação, computação e inteligência
artificial), das ciências biológicas (o sistema nervoso central, a

A
filogênese e a ontogênese do cérebro), das ciências humanas (a
linguística, a psicologia cognitiva, as diferentes psicanálises, a

LO
psicossociologia, a antropologia cultural, as sociologias da cultura,
do conhecimento, da ciência, as histórias das culturas, das crenças,
das ideais, das ciências) na filosofia (a teoria do conhecimento) e
entre ciência e filosofia (a lógica e a epistemologia) (MORIN, 1999,
p. 21). Morin denominou tal organização do conhecimento de novo
N
obscurantismo, uma patologia do saber que “cresce no coração
do saber, permanecendo invisível para a maioria dos produtores
W
desse saber, que sempre creem produzir unicamente para as Luzes”
(MORIN, 1999, p. 22).
O que dizer, então das Artes? Talvez sejam arredias às fronteiras,
O

sejam contrabandistas de saberes, indisciplinares por vocação. Elas


constituem o homem, são seu primeiro modo de conhecimento sobre
D

como mostram as pinturas rupestres. Revelam nossa mente mais


primeva no encontro do rito, mito, para indagar a vida e o universo,
como as danças que chegam ao homem contemporâneo por meio
das mais variadas tradições culturais. São também acionadores
EE

cognitivos, pois revelam que experiência humana e criatividade


constituem habilidades importantes para a prática artística. Abrem-
se por isso para a interdisciplinaridade, para as interfaces. Daí seu
caráter híbrido, a necessidade de transpor fronteiras disciplinares
FR

– que, na verdade, são arbitrárias, uma vez que se referem a uma


compreensão estreita de ciência.
As mudanças paradigmáticas hoje em curso, ensejadas pelo
desenvolvimento da própria ciência – principalmente da física nas
duas primeiras décadas do século XX, que abala bases seguras em

76
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

que ela se apoiava –, exigiram um balanço de seus resultados em


termos sócio-éticos. O quadro contemporâneo, em que se insere
uma reflexão importante sobre a ciência e seus resultados, revela os

D
pilares políticos de sua fundação e consolidação. Dizer que há uma
forma correta e verdadeira de fazer ciência é legitimar um modelo
que limita o humano e suas possibilidades de criatividade humana,

A
as flutuações que ensejam a mudança e a história, segundo a visão de
Ilya Prigogine (2001).

LO
É na investigação genealógica da fundação das Ciências
Modernas que as suas faces políticas, de confronto e luta por
consolidar suas verdades são desveladas. Só uma prática ritualística
de voltar ao ponto primordial da fundação da ciência impede de
N
perpetuar a sua crença na verdade única de suas descobertas
e nos livra dos mesmos enganos. Para Helena Katz e Christine
W
Greiner:

Alguns discursos se dizem e passa, com o ato que os


O

pronunciou e outros são retomados constantemente.


Mas como os discursos exercem o seu próprio
controle, deve-se forçá-los a tomar posições sobre
D

questões sobre as quais estavam desatentos. Eis a


tarefa das novas epistemologias (KATZ; GREINER,
2005, p. 127).
EE

Que dança é essa? (revisitado)


FR

Em 2008, escrevi um capítulo de livro, em que refleti sobre a


necessidade de discutir epistemologicamente os saberes da dança.
Parti de Kontaktof, coreografia de Pina Bausch, para entender como
o dançar e a sua apreciação instauram um domínio linguístico.
Aqui, neste espaço, se faz necessário outro tipo de reflexão, de

77
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

uma perspectiva mais pragmática. Mas, antes é preciso assinalar


considerações da ordem daquele capítulo.
O conhecimento de que falamos até agora com relação à dança

D
não se impõe por verdades absolutas. O engano estaria em querer
identificar uma única perspectiva definidora de um fenômeno humano

A
tão arredio à delimitação e respostas conclusivas, o que implica em
pensar ontologicamente uma epistemologia ou epistemologias da
dança. De uma perspectiva fenomenológica, como observa Umberto

LO
Eco:

O problema da relação do fenômeno com seu


fundamento ontológico, dentro de uma perspectiva

N
de abertura perceptiva, transforma-se no problema
de relação do fenômeno com a plurivalência das
percepções que dele podemos ter. […] Tais são os
W
problemas que a fenomenologia (da percepção de
Merleau-Ponty) coloca na própria base de nossa
situação de homens no mundo; propondo ao artista,
assim como ao filósofo e ao psicólogo, afirmações
O

que não podem deixar de ter uma função de


estímulo a sua atividade formativa: ‘É portanto
essencial à coisa e ao mundo apresentarem-se como
D

abertos...prometer sempre algo mais a ver (ECO,


2008, p. 59).

Os problemas colocados pela fenomenologia e retomados por


EE

Humberto Maturana, em muitas de suas obras, impedem uma visão


fechada do mundo, da vida, e das instâncias criativas das atividades
humanas como a arte. A dança institui um espaço singular, um
domínio linguístico, um saber:
FR

A dança inspira a constituição de um modelo


compreensivo que incorpora a tensão entre
constância e mudança, resistência e aderência à
norma e à regra, do indivíduo e da sociedade. Daí
é possível vislumbrar como ocorre a relação entre a

78
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

reorganização cognitiva e cultural que leva às novas


formas de pensar no sentido de constituir e recriar
outro mundo (VOSS, 2008, p. 141).

D
De uma perspectiva antropológica, a dança é tão antiga como
a própria humanidade, está nos ritos, nas práticas de sociabilidade,

A
nos costumes de um povo, nas religiosidades e nas artes. Está num
lugar, onde a simultaneidade de natureza e cultura no homem
acontece, isto é, onde o corpo, indisciplinar por natureza, adquire

LO
uma condição simbólica, encontra a cultura, que a tudo quer regrar,
disciplinar. Como Nietzsche (2007) nos fala de forma contundente,
em suas reflexões sobre a origem da tragédia, pode-se dizer com este
exemplo que a dança expressa o excesso de Dionísio e, ao mesmo

N
tempo, o regramento de Apolo. Como tudo que é humano não escapa
de sua condição e manifestação no mundo, até mais do que em as
outras artes, esta simultaneidade constitui o fenômeno da dança. E
W
por assim revelar-se está longe de constituir fronteiras rigidamente
demarcadas – e como se viu anteriormente tal delimitação é sempre
O

arbitrária – justamente porque está lá, onde a trágica condição


humana se insinua: a de ser ao mesmo tempo natureza e cultura.
O que disse Gil Delannoi, a respeito da tradução do imaginário nas
D

obras literárias, poder-se-ia falar sobre os saberes da dança:

[…] não são saberes no sentido em que o saber é


EE

cumulativo, contestável: entretanto, são vastas


formas de conhecimento […] repousam sobre a
ausência de verdade absoluta […] constituem uma
primeira medida da humanidade […] comunicam
o mistério da existência, as questões sem resposta,
FR

a diversidade das experiências (DELANNOI, 2007,


p. 303).

Em que se pese tal complexidade, as tarefas que cabem


aos pesquisadores e professores dos cursos de graduação e pós-
graduação em dança são, no entanto, pragmáticas. Mas no intuito

79
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

de introduzir questões que demandam princípios de organização


de projetos político-pedagógicos sobre os saberes que melhor
expressam o conhecer e o fazer científicos em dança e como
organizá-los esboçam-se algumas inquietações. Que princípios

D
de organização do pensamento dão os contornos das práticas
pedagógicas, já que o objetivo de ensinar a dança na escola não é a

A
de preparar um profissional. Por extensão, os cursos de graduação
têm a tarefa de capacitar formadores nos cursos de licenciatura e

LO
também de formar seres humanos mais plenos e felizes a partir da
experiência do corpo:

[…] o papel da dança na escola não é o de criar


dançarinos profissionais (porém não deixar

N
de percebê-los), é o de permitir a vivência de
possibilidades infinitas do universo do movimento,
estimulando a experiência do sistema corporal em
W
um amplo sentido: experiência, criação/produção e
análise/fruição artística (RENGEL, [2010?]).
O

O epistemológico, o pedagógico, o artístico e o técnico


estão entrelaçados e requerem discussões destas questões, que se
configuram em linhas mestras, eixos que se relacionam e podem
D

delinear princípios de organização do conhecimento em dança.


A investigação da relação corpo, arte, cultura, interfaces a
considerar do ensino/aprendizagem nos cursos de dança, se refere à
EE

discussão epistemológica. Daí, também nos cursos de especialização,


mestrado e doutorado e mesmo nos estágios pós-doutorais, uma
atenção e estímulos às pesquisas de natureza epistemológica. São
elas que possibilitam construir um canal de comunicação com a
FR

graduação cujos resultados se farão sentir nas salas de aula do ensino


básico.
A tarefa de educar as futuras gerações requer um afinamento
com a sociedade contemporânea, cujo desenvolvimento tecnológico
possibilita meios de comunicação mais rápidos e eficazes, como

80
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

também, simultaneamente, convive com as mais variadas tradições;


indígenas, orientais, africanas etc. Tal tarefa também requer de
alguma forma considerar a relação com o ambiente natural e

D
social. A dança então adquire uma dimensão que pode ser a de
engajamento com a vida, a sociedade e a natureza, uma dimensão
antropoética, na expressão de Edgar Morin (2002). Um exemplo

A
desta face socioambiental são os projetos de ação social na extensão
universitária, como o realizado pela Unesp em uma escola da

LO
periferia de São Paulo ‘Movimento e Cultura na Escola’ (GODOY;
ANTUNES, 2010) em que a dança assume os temas transversais
para crianças e jovens experimentarem e apreciarem a dança, por
meio de um ‘corpoarte’ (ANTUNES, 2010) inserido no mundo e

N
na sociedade. Sobressaem-se aqui questões axiológicas fundamentais
para a educação contemporânea.
W
O caminho que vai da universidade às escolas, isto é, da teoria
à sala de aula requer um tipo de pesquisa que se concentre no
corpo, o que requer técnicas. Mas, mais que uma questão técnica,
O

a teoria e(m) prática, por causa do caráter experiencial da dança


induz a pensar pesquisa como laboratório de experimentações,
a prática como pesquisa, isto é, considerar corpo que dança
D

enquanto dança (VOSS; ANTUNES, 2010), o que evoca a


necessidade do profissional da dança. A dimensão técnica traz
problemas às fronteiras erigidas entre a universidade e a escola
EE

de dança, separando pesquisadores acadêmicos e os denominados


‘independentes’, profissionais cujo interesse recai nas pesquisas de
suas experiências em dança. Como trazer o profissional de dança
para as pesquisas acadêmicas, é algo a se considerar. No Brasil, estas
FR

experimentações acontecem nos projetos de extensão universitária,


ou nas escolas de dança anexas aos cursos na universidade, que
se constituem em verdadeiros laboratórios para os trabalhos de
conclusão de curso, dissertações de mestrado e tese de doutorado.
Tais projetos e pesquisas ‘independentes’ liderados por profissionais

81
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

da área são fontes importantes e fundamentais de pesquisa em


dança.
A dimensão artística induz a dança a pensar filosoficamente

D
seu universo estético; suas transformações, rupturas, tecituras com a
realidade. Criação, expressão e apreciação artísticas estão imbricadas

A
na arte e seu sentido não é o da ordem do desvelamento, mas ao
contrário do mistério, das indagações e dos questionamentos. Por
isso, sua singularidade não se dá no fechamento sobre si mesma, mas

LO
numa prática poética, cujas reflexões suscitam a criação artística.
Ensinar e aprender uma arte como a dança é uma atividade
recursiva e reflexiva que recorre a uma aberta fundamental para
organizar dinamicamente os conteúdos dos cursos de graduação e as

N
possibilidades de pesquisa nos programas de pós-graduação.
W
Espaços para a dança: políticas e epistemologias
emergentes
O

A argumentação crítica deste texto se contrapõe a uma visão


D

corrente e naturalizada de ciência, e por meio de uma reflexão


filosófica compreende a sua ligação com a política e com o poder
que instaura padronizações e normatizações dos saberes e fazeres
acadêmicos e científicos. A delimitação de fronteiras arbitrárias
EE

na constituição dos domínios científicos não se dá sem resistência


e demanda o tratamento das diferenças disciplinares em suas
diferenças. O que é uma tendência da sociedade contemporânea,
que faculta a emergência de perspectivas e modelos plurais que
FR

incitam a discussão de epistemologias para delinear e compreender


as diversidades do modo de pensar.
No que se refere à dança, sua diferença em relação a outros
saberes não está delineada nas fronteiras epistemológicas. Ao
contrário, está no lugar de encontro corpo cultura arte. Este

82
2 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICAS DE AÇÃO...

encontro perfila o que insisto em denominar de singularidade aberta.


É preciso revelar tal singularidade pela reflexão epistemológica,
pelas pesquisas e resultados, também pelos meios de divulgação

D
científica com vistas a intervir na organização curricular dos cursos
de graduação e nas possibilidades de pesquisa na pós-graduação,
na captação de fomentos de pesquisas e à ocupação dos espaços

A
acadêmicos e científicos, consolidando as relações com as outras
áreas do conhecimento e influindo na tomada de decisões com

LO
relação à dança e nos instrumentos de avaliação de seus resultados.
A ocupação destes espaços requer a formação de fóruns
permanentes que garantam uma discussão epistemológica cuja
tarefa é fazer emergir as epistemologias que norteiam os projetos de

N
pesquisa. Importante ainda é a criação de espaços onde a publicidade
e comunicação das pesquisas possibilitem a divulgação de trabalhos
que fazem uso das mais diversas mídias além da divulgação tradicional
W
(artigos, livros) etc com a criação de espaços virtuais, como portal na
Internet. Os portais permitem uma comunicação em que os diversos
meios possibilitam a apreciação do fenômeno da dança. Como eu
O

disse anteriormente, as comunicações científicas demandam uma


apresentação em que as imagens são mais do que ilustrativas, pois
D

abrem a reflexão para as possibilidades interpretativas.


Por último, há um desafio maior para os cientistas-artistas da
dança, a de contribuir para o conhecimento em geral. Nesse sentido,
EE

as palavras do sociólogo Alberto Melucci são lapidares para pensar


o plural implícito nas discussões epistemológicas e políticas na
contemporaneidade de modo a se perguntar:
FR

[...] se e como é possível fundar uma epistemologia


pluralista e tolerante capaz de abrir-se passo a passo
a novas interpretações e de colocar em discussão
assuntos consolidados na ciência normal quando
uma comunidade científica tende a transformar
o consenso interno da organização em verdade
ontológica (MELUCCI, 2005, p. 35).

83
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Uma vez que nos comprometemos com tal tarefa, o exercício


da construção polifônica e polissêmica de um espaço político que dê
conta de tais demandas científicas e acadêmicas da dança, embora

D
não seja fácil, é uma garantia daquilo que caracteriza as sociedades
complexas: as diferenças quer sejam culturais, territoriais ou

A
individuais.
Por fim, os saberes da dança fornecem uma abertura para pensar

LO
uma ciência mais alegre, que arrefece os delírios hegemônicos e seu
desdém pelas outras formas de saber:

Dança agora sobre mil dorsos,

N
Dorsos de ondas, malícias de ondas –
Salve quem novas danças cria!
Livre – seja chamada a nossa arte
W
E gaia – a nossa ciência!
(NIETZSCHE, 2001, p. 313).
O

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D
EE
FR

86
3

D
Corpoarte: releitura do corpo na

A
educação a partir da plataforma

LO
educação física, arte, dança
Rita de Cássia Franco de Souza Antunes

Introdução
N
W
Este trabalho resulta da inquietação em relação à persistente
fragmentação na abordagem do corpo e dos conteúdos de
ensino, na escola; destacam-se aqui os da educação física, artes
O

e dança.
Vivendo esta época de mudanças constantes, profundas e
D

rápidas é surpreendente constatar a forte resistência da estrutura


escolar apoiada em padrões rígidos de ação e pensamento. E, essa
insistência no trabalho e trato da construção de conhecimento
de maneira estanque, infelizmente, conta com a colaboração de
EE

micro e macroestruturas de poder, efetivadas desde a intervenção


de órgãos de classes profissionais, da escola como instituição, até
a estrutura física e didático-pedagógica vigente em cada unidade
de ensino. Desse modo, justifica-se a inquietação quanto a essa
FR

fragmentação, principalmente quando o foco recai sobre a eficácia


da escola, em que tanto se aposta quando se pensa em incertezas
que acompanham a vertiginosa queda dos valores humanos, a
efervescência do supérfluo e do consumo; dilemas e desafios na
contemporaneidade que atingem a essência do ambiente escolar
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

na pessoa de cada aluno, que raramente é levado, mesmo dentro


dessa instituição, a refletir sobre essas circunstâncias e seu papel
social diante delas.

D
Dentre os temas a serem investigados no sentido da superação
de tamanho desafio, com este texto procuro contribuir para a

A
pesquisa em dança, conforme proposto no capítulo anterior,
dentro do eixo aglutinador da dança-educação-formação-campos

LO
profissionais; persistindo nos propósitos da rede de cooperação da
qual esta publicação é fruto, com ênfase no de superar dificuldades
com as estruturas organizacionais e institucionais com relação ao
ensino e à pesquisa, na interface dança e educação, acrescidos de
conhecimentos sobre corpo, ética, estética, formação profissional,
N
processos criativos, históricos, políticos, culturais e sociais. O
compromisso é estabelecido com a educação humanística para uma
W
vida criativa, proposta por Tsunessaburo Makiguti (1994) e Ikeda
(2001).
O fato recente que se destaca é a inclusão da dança no currículo
O

do ensino fundamental, que acirra o debate sobre a pertença da


dança à determinada categoria profissional, como visto no capítulo
D

anterior, assim como, sobre o planejamento e seus constituintes


trabalhados pelos professores e coordenação dentro da escola junto
aos conteúdos de ensino já existentes, dos quais destaco os da
EE

educação física e artes, conteúdos esses, ainda vivenciados de modo


fragmentado e desprovidos de significado como saberes fundantes da
natureza e criatividade humanas.
Em meio a esse contexto, o foco está sobre o corpo, no sentido
FR

do seu reconhecimento no cotidiano escolar, como entidade


que marca a presença humana e suas formas de manifestações
no mundo, recorrendo a pesquisas que consideram esse
fenômeno como fator determinante para solução de problemas
educacionais.

88
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

Abrindo caminhos

Desde 1993, atuo nessa linha de trabalho, incluindo pesquisa,


ensino e extensão, com o intuito de captar para o corpo, tanto o

D
olhar, quanto o pensar e agir acadêmicos, sob os quais professores
são formados inicial e continuadamente; assim como fazê-los refletir

A
sobre a adoção do corpo como mote à abertura e/ou ampliação de
possibilidades interativas entre os saberes do ser e do mundo, assim

LO
como entre os que ensinam e aprendem.
Em 2007, com o vínculo estabelecido com o Grupo de Pesquisa
Dança, Estética e Educação, do Programa de Pós-Graduação
do Instituto de Artes da Unesp – GPDEE/IA/Unesp, busquei

N
aproximações entre educação física e artes, tendo a dança como
ponte e sem perder de vista os demais componentes curriculares,
tratando-os como saberes abraçados, assim como as vidas que se
W
encontram em determinada época, numa determinada sala de aula,
onde se desvelam fenômenos em meio a processos intencionais
do prodígio humano, como o conhecimento do mundo e a sua
O

construção/desconstrução/reconstrução na vivência e convivência


humana.
D

O enfoque, portanto, recai sobre a inclusão do corpo, do ser em


movimento, no cotidiano escolar, criando-se um novo constructo:
o corpoarte, para colocar a cultura de paz no século XXI como uma
EE

proposição mergulhada em questões como as enunciadas por Almeida


(2005, p. 2, grifo do autor), que adoto plenamente, decorrentes dos
argumentos que expõe e serão apresentados neste texto:
FR

Como transformar nossas experiências pessoais,


intelectuais e profissionais em sementes que
fecundem uma ciência mais aberta, uma sociedade
mais feliz, um sujeito menos violentado e uma relação
mais harmônica entre os seres vivos e a natureza?
O que fazer para transformar a universidade, essa
fogueira de vaidades, em espaços catalizadores de

89
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

compromissos éticos afinados com o ideário de um


mundo mais humano e ao mesmo tempo não tão
‘demasiadamente humano?’ Como construir e dar
vida a argumentos que merecem ser defendidos,

D
pelo fato de se afinarem com os valores maiores de
preservação do planeta, da integridade bio-psíquica
do sapiens-demens e do respeito à diversidade

A
das formas de vida? Como realimentar um sujeito
social capaz de se perceber como um conjunto de
partículas desejantes? Como nos nutrir da auto-

LO
crítica, de forma a avaliar se o que dizemos em casa,
na escola, na rua e a nós mesmos, vale a pena ser dito
porque fecunda, gera esperança e produz vontade?
Como injetar no nosso sistema sangüíneo, de forma
individual e coletiva – mas nunca compulsoriamente
nem por decreto – enzimas e substâncias capazes

N
de constituir antídotos à ‘crueldade do mundo’
conforme a expressão de Edgar Morin? Se estamos
insatisfeitos com a gestão da sociedade, com a
W
instituição universitária, com a família e o mundo
do trabalho, como impedir que o discurso da
‘vitimização’ (Brucker) nos imobilize? Como fazer
valer as condições propriamente humanas de sonhar
O

e projetar um indivíduo menos fraturado?

Dados empíricos da observação do cotidiano escolar evidenciam


D

a carência de convívio das crianças com os adultos e até mesmo


com outras crianças dentro da mesma faixa etária, bem como a
diminuição dos momentos das brincadeiras, dos jogos e atividades
EE

artístico-culturais, sabidamente, plenas de potencial humanizador.


Correr pelo quintal ou pátio, dançar, subir em árvores, pintar,
compor, cantar, tocar instrumentos, brincar de pique (pega-pega),
pular, saltar, sumiram das ruas e estão circunstanciados à existência
FR

e/ou liberação de espaços delimitados, pré-determinados, do que


sobra para essas manifestações no meio urbano.
Com isso, a transmissão das práticas culturais de geração à
geração, nas ruas, festas e folguedos comunitários, foi sendo transferida
pela família e vizinhança para a escola, que ainda não assimilou essa

90
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

transferência para muito além do calendário festivo comemorativo.


Nem mesmo estabeleceu efetiva discussão sobre as relações entre
cultura e escola e sobre a cultura escolar, pois se assim o fizesse e de

D
modo eficaz, teria convocado as famílias e a sociedade para apurar o
quanto a quem de fato compete tamanha responsabilidade.

A
Resultados de pesquisas aplicadas evidenciam o ambiente
escolar como pouco acolhedor das necessidades de movimento
e expressão de seus protagonistas. Os principais indicadores

LO
apontados, a partir de estudos de distintas áreas, encontram-se o
tipo de construção e organização do espaço físico escolar; o currículo
e a grade horária (não obstante o pleno sentido da palavra ‘grade’),
passando pela seleção e modo de apresentação de conteúdos e; o

N
modo em que se estabelecem as próprias relações profissionais e
humanas na escola. O destaque cabe à recorrência da observação
dos componentes curriculares diretamente relacionados a essas
W
necessidades aparecerem coadjuvantes, distorcidos e degenerados.
São mantidos por força de lei e pressões de categorias profissionais,
como as de educação física e artes.
O

Como Freire (1989) afirma, ao matricular o aluno, as escolas


esquecem de matricular o seu corpo. Mais um exemplo, ao considerar
D

os desafios da inclusão da dança pelos Parâmetros Curriculares


Nacionais – PCN (BRASIL, 1997), é apresentado por Vieira (2008,
p.1), quando desenha com propriedade aspectos desse quadro de
EE

preocupação:

Essa inclusão indica que educadores oficialmente


reconhecem a importância do ensino da Dança
FR

tanto quanto uma linguagem artística como uma


área de conhecimento independente. Essa inclusão
implica ainda que as universidades brasileiras
precisam prover as instituições de ensino formal
com professores de dança bem preparados a fim de
assegurar transformações efetivas na educação em
Arte e em Dança no país. Espera-se que a educação

91
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

para e pela Dança possa possibilitar mudanças no


baixo status que a educação em Arte e em Dança
tem no Brasil porque a maioria da população
parece não apreciar a importância do seu ensino

D
em um país que enfrenta vários problemas sociais,
econômicos e políticos. Aquela inclusão também
aumenta a necessidade de que elaboradores de

A
políticas educacionais entendam o conhecimento,
perspectivas, bem como filosofias, significados e
experiências pedagógicas de professores em todos os

LO
níveis de ensino.

O esperado implica em admitir barulho, tempo livre, espaços


adequados, mais horários e profissionais especializados na escola,
na mesma proporção e relevância dedicadas aos conteúdos lógico-

N
formais. E ainda, demanda reformulações na postura do professor
neste aspecto, por ser o sujeito que detém a responsabilidade de
W
decidir e determinar a inserção dos conteúdos e o rumo do processo
ensino-aprendizagem.
Esses aspectos podem ser compreendidos quando se consideram
O

relações da escola e cultura quanto às bases sociais e epistemológicas


do conhecimento escolar. Forquin (1993, p. 9) conclui que “ninguém
pode ensinar verdadeiramente se não ensina alguma coisa que
D

seja verdadeira ou válida a seus próprios olhos” e Ribeiro (2006)


afirma que, em relação ao contexto, a ocidentalização do mundo,
o afastamento da vida real e a negação do sujeito em favor de um
EE

projeto de desenvolvimento científico tecnológico da sociedade


deram espaço à educação massificada, padronizada, aplainando
diferenças em favor de uma ‘mentalidade científica’ que desvelou
inevitável decadência de valores. “A lógica do progresso capitalista
FR

está em postergar sempre a realização dos homens, sentida muitas


vezes como inatingível” (RIBEIRO, 2006, p.12).
Esse modelo se estabeleceu de tal maneira no pensar, também
fluente na escola, que mesmo se impulsionando ações em contextos
multidisciplinares, o máximo que se consegue, quando se consegue,

92
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

é certa articulação por justaposições: de profissionais, conteúdos e


instrumentos e; esse modo de pensar impregnou os atos de sentir e
agir.

D
A ruptura com o aprisionamento corporal e a mera busca de
resultados quantitativos na escola demanda posicionamentos que

A
abraçam o diverso, o singular e as incertezas no trato, criação e
construção de distintos saberes e suas aproximações. Conforme
conclui Ribeiro (2006, p.18), impõe superar “o desafio para a

LO
complexidade: distinguir sem separar”.
No bojo das rupturas paradigmáticas recentes, que também
alcançaram a educação, a que se refere à visão de corpo na escola
no Brasil sofreu grande impulso com reflexões e reformulações
N
teóricas, até mesmo de denominações, disseminadas com a
produção científica em Educação Física, a partir das décadas
W
de 1970 e 1980, principalmente as inspiradas na Motricidade
Humana, trazidas pelo filósofo português Manuel Sérgio (1989),
como pesquisador visitante da Faculdade de Educação Física da
O

Universidade Estadual de Campinas – FEF/Unicamp. Foram ideias


que repercutiram inclusive na última reformulação curricular oficial
dos cursos superiores nessa área, incluindo o surgimento de novas
D

disciplinas que contemplam a Corporeidade e conteúdos afins,


assim como de novos cursos direcionados à Área de Humanidades
em vez da Saúde.
EE

A revisão da forma como o corpo se fez presente na escola induziu


o movimento de volta aos primórdios das práticas corporais, onde se
encontram práticas circenses, folguedos, jogos e outras manifestações
culturais espontâneas inerentes aos processos de sociabilização
FR

humana. Percorrendo o caminho de volta ao da afirmação positivista,


e de certo por um novo trajeto definido por conteúdos e bases atuais,
vejo o encontro da Educação Física com Artes; não só em objetos de
estudo e conteúdo, quanto nas nuanças da trajetória de lutas para se
firmarem no Sistema Educacional Brasileiro.

93
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

O relato que Silva e Araújo (2007) fazem das ações


empreendidas pelos expoentes ligados à arte/educação e cultura
mostra que os organizadores desse movimento não cessam esforços
em afirmá-lo como campo de conhecimento empírico-conceitual,

D
aberto a diferentes enfoques e agregando em seu ‘corpus’ uma
diversificada linha de atuação, estudo e pesquisa. O mesmo pode-

A
se afirmar em relação à educação física, quando se examinam
trabalhos críticos a essa fase, como os realizados por Bracht (2003)

LO
e Caparroz (2005).
Traçando um paralelo entre o entendimento extraído das
publicações desses quatro autores, é notória a semelhança quanto
aos entraves, embates e discussões travadas. O reconhecimento do

N
ensino tanto da educação física quanto de artes passa pelo mesmo viés
político, até ser admitida sua obrigatoriedade no currículo escolar.
Na gênese das justificativas para tal, existe em comum a visão liberal
W
de Rui Barbosa sobre a inclusão desses conteúdos com o objetivo
primordial de preparar o povo para o trabalho, influenciado ainda
pela concepção positivista de contribuição para a ciência. Nesse
O

sentido, o ensino da arte se pautaria no ensino do desenho como


veículo para o desenvolvimento do raciocínio e da racionalização da
D

emoção, desde que ensinada pelo método positivo, que subordinava


a imaginação à observação (SILVA; ARAÚJO, 2007). No caso da
educação física, foi forte a visão positivista em saúde, conferindo-lhe
caráter higienista baseado na sistematização de exercícios gímnicos
EE

resultante das iniciativas de médicos europeus que materializaram


sua afirmação científica nos primórdios.
Uma vez aceita essa inclusão, ainda houve época em que a
obrigatoriedade de seu ensino foi ameaçada, sendo esses conteúdos
FR

mantidos em condições acessórias revertidas por força da resiliência


das categorias profissionais, que resistiram às pressões, saindo ainda
mais fortalecidas, fazendo entrar em cena discussões aprofundadas,
como as que abordam as tendências conceituais e concepções de
ensino contemporâneas voltadas à prática pedagógica. Em linhas

94
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

gerais, conforme essas referências, desde o período jesuítico à


atualidade, essas tendências seguem em fases alternadas de ênfase
à técnica, à expressão e ao conhecimento em artes e, em educação

D
física, sucederam-se períodos de predominância da visão higienista,
técnico-desportivista, humanista e progressista, em ambos os casos,
atuando a influência de correntes histórico-filosóficas e formações

A
ideológicas.
Mas, também no ensino, não faltam exemplos de pontos de

LO
aproximação vivenciados entre educação física e artes.
Almeida e Pucci (2002) evocam o esforço em conjunto de todas
as áreas do conhecimento e convidam particularmente os professores
de educação física a fazerem parte do projeto Outras terras, outros
N
sons, reconhecendo o valor da integração de conteúdos no ensino
de arte, pois entendem que em todos os níveis de aprendizado da
W
música, “não devemos nos afastar do objetivo essencial que é o
desenvolvimento do próprio homem como um todo” (p.16). No
prefácio desse trabalho, Kater (2002) ressalta o importante papel
O

de difundir e socializar tanto informações quanto conquistas da


sensibilidade e da consciência humana pelos sons, referenciando-o
do seguinte modo:
D

Eis uma estratégia capaz de favorecer o equilíbrio


desejado nas chances de ampliação do conhecimento
EE

tanto individual quanto socialmente interativo.


Conjugar em proporções particulares música e
formação é o mesmo que resgatar a interação do
saber e o sabor (KATER, 2002, p. 9).
FR

Isso soa pertinente ao que se quer aqui aludir.


Claro (1995), com o seu método Dança Educação Física,
aponta caminhos para a aproximação desses componentes
curriculares, levando em consideração sua experiência como
atleta, dançarino, professor e coreógrafo, a partir da revisão de

95
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

literatura em neuropsicofisiologia, aprendizagem motora e práticas


corporais diversas com expressivo nível de aderência. Evidencia a
complexidade da formação e atuação profissional consistente quando
o corpo é objeto desses processos e, também, fomenta o estudo e a

D
pesquisa. Criou um curso de especialização de mesma denominação,
que contou com autores representantes desses saberes, dentre eles

A
Arantes (1990) e Marques (1999), as quais focaram a educação, a
escola e a formação do professor no que se refere ao corpo, o prazer,

LO
à educação física e a dança.
Na Proposta Curricular para a Educação Infantil do Município
de Bauru-SP (Bauru, 1996), uma equipe composta de profissionais
de Educação Física e Artes elaborou o capítulo “Conhecimento

N
Artístico”. Nessa publicação, corpo e movimento aparecem como
eixos de uma integração fluida, principalmente porque não estiveram
em pauta nem técnicas nem desportos. Corpo e movimento aparecem
W
imersos no universo da formação de pessoas realizadas – escolares a
tornarem-se versados na vivência de conceitos básicos que levam à
compreensão do que faz a presença do homem no mundo ser notada
O

e diferenciada das demais espécies; expressa e representada pelo


seu poder de comunicação que promove o saber de si, dos outros,
D

do mundo e suas responsabilidades, ponto forte comum a artes e


educação física.
Também, partindo das ideias de ultrapassar a visão dicotômica
EE

e abraçar uma perspectiva humanista para a educação física, nesta


última década, conforme mostra o conteúdo das edições da Discopo
(1994-2009), o Departamento de Educação Física e Esportes –
DEFE, da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP, passou a oferecer a disciplina
FR

Motricidade Humana a quase todos os cursos de graduação, voltada


à formação do ser humano para atuar no mercado profissional, em
particular na escola. Evoluiu dessa experiência para a atuação no
Centro Integrado de Educação Física e Artes, no qual o DEFE e
a Faculdade de Comunicação e Filosofia – Comfil atuam juntos;

96
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

um projeto financiado pelo Ministério da Educação e Cultura –


MEC, desenvolvido também em outras Unidades Federativas,
que aglutina, tentando aproximar, as duas áreas.

D
A inter e a transdisciplinaridade e a transversalidade no
ensino, propostas nos PCN (BRASIL, 1997, 1997a, 1997b),

A
buscam essa mesma aproximação, incluindo todos os componentes
curriculares. Mas até o momento é um desafio colocá-las em
prática; talvez em decorrência do antagonismo entre a formação

LO
profissional obtida sob influência de um sistema cartesiano, em
que são cobradas mais respostas que perguntas, mais memorização
em meio a tantos outros elementos e recursos cognitivos para o
transbordamento de capacidades. E, também, porque os temas

N
sugeridos se referem ao contexto e não a subjetividades inerentes
aos sujeitos do processo ensino-aprendizagem; além da patente
carência de uma competência-chave implícita nos PCN: a
W
criatividade.
Na época da publicação dos PCN, Cury (1996) procura
O

indicativos para identificar a medida do ‘mínimo’ que se procurou


prescrever para o sistema nacional de ensino sem que a criatividade
fosse empanada nas unidades federadas e nas próprias unidades
D

escolares e mostra a recorrência desse tipo de preocupação desde


outros tempos. Na primeira nota de rodapé, o autor apresenta o
seguinte trecho de parecer exarado por Teixeira (1952, p. 5, grifo do
EE

autor):

Anísio Teixeira, já em 1952, criticando o parecer


centralizador de G. Capanema ante o projeto de
FR

Lei de Diretrizes e Bases enviado pelo ministro


Clemente Mariani, afirmou que os educadores não
podem ser transformados em “rígidos intérpretes de
leis e regulamentos uniformes, [...] em executores
rígidos de programas oficiais, e os livros didáticos
em manuais ‘oficializados’ e conformes, linearmente
com os pontos dos ‘programas’.

97
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Cury (1996, p.6) também discute sobre os desafios da democracia


em relação a limites de participação entre ‘dirigentes e dirigidos’, e
sobre o grau de flexibilidade dos dispositivos normativos para que
não impeçam a crítica e a criatividade. E, defende:

D
[...] quem exerce a docência é quem ‘sente’ o peso

A
dessa tarefa, e nesse ‘sentir’ o professor ‘sabe’ um
caminho que nem sempre chega a quem entende
que ‘entende’ do assunto, mas nem sempre ‘sente’. É

LO
possível uma proposta curricular, em qualquer nível
administrativo, em que a legitimidade da proposta
não passe pela subjetividade dos profissionais da
educação? (CURY, 1996, p. 5, grifo do autor).

N
O Parecer CEB 04/98, de 29/01/1998, das Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1998) ressalta a
impossibilidade de o indivíduo renunciar a esse serviço a ser prestado
W
pelo poder público, sob pena para ambos, uma vez que ao último cabe
impô-la como obrigatória a todos e a cada um. Segundo termos em
que a relatora se coloca, “a magnitude da importância da Educação é
O

assim reconhecida por envolver todas as dimensões do ser humano: o


singulus, o civis, o socius, ou seja, a pessoa em suas relações individuais,
D

civis e sociais”. (p. 1). E, reconhecendo a necessidade de melhoria da


qualidade da educação, reproduz trecho dos PCN (BRASIL, 1997, p.
13), em que consta:
EE

A busca da qualidade impõe a necessidade de


investimentos em diferentes frentes, como a
formação inicial e continuada de professores, uma
política de salários dignos e plano de carreira, a
FR

qualidade do livro didático, recursos televisivos


e de multimídia, a disponibilidade de materiais
didáticos. Mas esta qualificação almejada implica
colocar, também, no centro do debate, as atividades
escolares de ensino e aprendizagem e a questão
curricular como de inegável importância para a
política educacional da nação brasileira.

98
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

Por conseguinte, de acordo com o Art. 26 da Lei de Diretrizes


e Bases da Educação Nacional, ficam ressaltados aspectos da
cultura da e na escola e a necessidade de compreender a dinâmica
desses aspectos legais transpostos para o cotidiano escolar, uma vez

D
que compete a cada unidade escolar do país concretizar a parte
diversificada do currículo (BRASIL, 1996).

A
Forquin (1993, p. 25) transcreve trecho em que P. W. Musgrave
(1972) afirma que o currículo constitui “um dos meios essenciais

LO
pelos quais se acham estabelecidos os traços dominantes do sistema
cultural de uma sociedade”. Considera que a quantidade de
conhecimento disponível, sua legitimação, avaliação, transmissão
e conservação exigem uma gestão. “Entre os principais processos

N
e procedimentos graças aos quais o currículo contribui para esta
gestão social dos saberes, vários autores atribuem uma importância
capital aos fenômenos de seleção”. Imediatamente se pergunta sobre
W
o quê e como proceder à seleção de conteúdos curriculares – seleção
necessária até porque o tempo de escolaridade é determinado.
Destaca, então, que “Denis Lawton (1975 apud FORQUIN, 1993,
O

p. 25) define o currículo escolar como o produto de uma seleção


no interior da cultura de uma sociedade” e; considera que dentre
D

os itens dessa seleção aparecem aspectos do modo de vida, tipos de


conhecimentos, atitudes e valores, todos tidos como suficientemente
relevantes para a transmissão ser garantida a gerações, de modo
profissionalizado e complexo, em todas as escolas e por todos os
EE

professores; mas serão diferentes tipos de seleções no interior da


cultura, de acordo com processos peculiares de organização do
currículo, que denomina curriculum planning, a partir da eleição de
prioridades e decisões por ações a serem postas em prática.
FR

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais, o


conceito de currículo envolve outros três, quais sejam: currículo
formal (planos e propostas pedagógicas), currículo em ação
(aquilo que efetivamente acontece nas salas de aula e nas escolas),
currículo oculto (o não dito, aquilo que tanto alunos, quanto

99
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

professores trazem, carregado de sentidos próprios criando as


formas de relacionamento, poder e convivência nas salas de aula).
E, destaca que quando nesse texto se referem a um paradigma

D
curricular estão se referindo a uma forma de organizar princípios
éticos, políticos e estéticos que fundamentam a articulação entre
áreas de conhecimento e aspectos da vida cidadã.

A
Desse modo, a intencionalidade entra em cena acompanhada
do respeito às individualidades dos participantes e dos processos

LO
educativos criativos, justamente por ser via de energia vital, som e
luz circulantes, que evidenciam a presença desses seres no mundo
– entidades de vida. Faz também se elevar o nível do compromisso
individual nas relações pessoais estabelecidas a partir do

N
conhecimento de si, do conhecimento/reconhecimento do mundo
e do “outro”, colocando o corpo não só do aluno, mas, em primeiro
lugar o do professor desde a sua formação profissional inicial, visando
W
à ampliação de sua capacidade comunicativa e de apropriação/
recriação do mundo (ANTUNES, 1997; GODOY, 2003).
O
D

Ações educativas para a vida criativa

Agir em direção à inserção de um novo tema transversal, o


corpoarte, considerando os objetivos deste trabalho, requer ainda
EE

que se explicitem princípios e fundamentos concernentes que tem


dado sustentação a análises e reflexões sobre a prática pedagógica
que também reveste esta formulação.
Da imersão e no entrelaçamento do exposto até então, destaco
FR

a expressão e comunicação que atravessam o trato dos componentes


curriculares, formando uma teia de saberes tecida com sensibilidade
e distinção quanto à presença e realizações humanas no mundo, na
comunidade e, por isso também, no cotidiano escolar. E, desse modo,
sobressai um tema transversal, que diferente dos que constam nos

100
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

PCN (BRASIL, 1997), volta-se ao sujeito e não a algo externo a ele.


A esse tema, aqui atribuo o nome corpoarte.
No particular e recentemente, o reforço à validade desta

D
iniciativa vem do exemplo trazido pela pesquisa realizada por Sgarbi
(2009), atenta à dança na prática pedagógica da Educação Infantil no

A
Ensino Público do Estado de São Paulo, que captura o momento em
que as professoras, cuja formação continuada fazia parte da pesquisa
e incluía um programa de atividades corporais, aproveitaram a visita

LO
à escola feita por um dirigente do sistema oficial de ensino, para
reivindicar a cessão de uma sala para que pudessem realizar essas
atividades nos horários instituídos, dentro do espaço escolar. Ao
mesmo tempo constatou que essas mesmas professoras começaram a

N
mudar a postura frente à dança nas suas próprias vidas, entendendo
a importância desse conteúdo na vida de todas as pessoas, dando
W
inclusive sinais de transferência deste saber para suas aulas.
Nesse mesmo âmbito, outro estímulo veio dos resultados
alcançados por Oliveira (2010) com a presença do Kung Fu no
O

treinamento do ator, experimentado com jovens de um projeto


cultural da Prefeitura de São Paulo, que em um dos seus trechos bem
D

expressa o todo do trabalho:

Era um mosaico de pessoas completamente


diferentes, mas que por terem um desejo comum se
EE

uniram em torno de um teatro que possibilitou um


diálogo e a construção coletiva na elaboração de
um discurso urgente para todos (OLIVEIRA, 2010,
p.181).
FR

Não obstante, essas duas autoras estão associadas ao Grupo


de Pesquisa Dança, Estética, Educação – GPDEE, vinculado ao
Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade
Estadual Paulista – IA/Unesp-SP, cujos projetos realizados
recentemente traduzem uma experiência positiva de aprofundamento

101
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

sem justaposições, como o ‘Dança Criança na Vida Real’ (GODOY;


ANTUNES, 2008) que, no mínimo, foi uma iniciativa importante
de apresentação e inclusão da dança no espaço escolar e, em

D
continuidade, resultou na experiência do Projeto Movimento e
Cultura na Escola, em que se trabalhou com o corpo das crianças
e dos professores a partir de temas idênticos com abordagens

A
distintas adequadas às respectivas características e expectativas dos
grupos. Em que se considere ainda a influência de Godoy (2003),

LO
líder desse grupo, desde seu trabalho com alunas em formação para
o magistério, o antigo Cefam, levanta depoimentos da direção da
escola, coordenação e das próprias alunas, reconhecendo o valor do
ensino de Artes no contexto escolar.

N
A compreensão, portanto, é de que a valoração do ser em
movimento no cotidiano escolar trata de romper com um ciclo vicioso
W
presente na cultura escolar, que pode começar pela apropriação
dos objetos de trabalho e estudo comuns à educação física e artes,
favorecendo essa ruptura, estabelecendo a materialização de
O

mudanças ansiadas por estudiosos de ambas as áreas, apesar de à


distância, que o texto de Kater (2002, p. 9) bem representa:
D

Que a função da música e de uma educação por


meio dela deixe urgentemente de se restringir às
festinhas-fetiches, aos clichês artísticos e artificiosos
EE

dos anuais dias do índio, da árvore, da pátria, da


mamãe e do papai. Que esses estereótipos cedam
gentilmente seu espaço no palco a realizações
próprias, sustentadas por intencionalidade
verdadeira e competência essencial, atributos dos
atos autenticamente criativos.
FR

O respaldo teórico para se alcançar essas ações autenticamente


criativas pode ser encontrado nas proposições pedagógicas de
Tsunessaburo Makiguti de educação para uma vida criativa, que
teve sua primeira publicação da tradução para o português, em 1994;

102
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

que se mantém tão atuais e pertinentes quanto em 1930 quando


foram lançadas em Tóquio. Antunes (1997) apresentou resultados
da pesquisa aplicada que realizou no campo da formação continuada
de professores da rede pública de ensino no interior do Estado de São

D
Paulo, baseada nessas proposições, e Ribeiro (2006) realizou estudo
das proposições de Makiguti, do ponto de vista epistemológico,

A
amparado pela incursão no Grupo de Pesquisa e Estudos da
Complexidade – Grecom, da Universidade Federal do Rio Grande

LO
do Norte (UFRN), que se alinha com o pensador Edgar Morin.
Ambas autoras focaram aspectos afeitos à reforma do sujeito com
base no sistema do bem, benefício e beleza em que se fundamenta
a Educação Soka. O ‘bem’ entendido como valor social ligado à
existência grupal coletiva; o benefício, como valores pessoais ligados
N
à existência individual voltada para si mesmo e; beleza, conceito
que inclui valores sensoriais ligados a partes isoladas da existência
W
individual (MAKIGUTI, 1994, p. 94).
Kazanjian Júnior (2001, p. v) inicia a apresentação que faz
à obra de mesmo nome, afirmando que a Educação Soka é um
O

movimento que “vem crescendo para renovar integralmente as


regras de educação para criar um mundo saudável e pacífico”.
D

Daisaku Ikeda (2001) é seu maior promotor, apresentando uma visão


budista para professores, estudantes e pais, empreendendo ações que
traduzem as proposições de Makiguti revitalizadas. Ele é filósofo e
o responsável pela atualização destas proposições com a autoridade
EE

de quem conviveu com o discípulo direto de Makiguti, Jossei Toda,


também educador, que em 1951 sucedeu Makiguti na presidência de
uma organização educacional situada em Tóquio, hoje expandida
para 192 países e territórios.
FR

Daisaku Ikeda, além de líder desse movimento, é também o


fundador do Sistema Soka de Ensino iniciado no Japão em 1964,
hoje abrange todos os níveis de ensino e que se estende a Cingapura,
Malásia, Hong Kong e Coreia do Sul, países em que funcionam
escolas de Educação Infantil; aos Estados Unidos da América

103
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

com a Universidade Soka da América e; em São Paulo, no bairro


Vila Mariana, há a primeira Escola Soka do Ocidente, que oferece
Educação infantil e Ensino Fundamental.

D
Ter a Educação Soka, na base de um sistema de ensino significa
dispô-lo a ser protagonizado por professores e alunos, que, assim

A
como na reprodução do Lótus, são simultaneamente flor e semente
da cultura, principalmente em relação aos círculos mais próximos:
família, comunidade escolar e vizinhança. O planejamento escolar

LO
prevê o empreendimento de ações que possam gerar múltiplos
interesses permeados de apreço pela vida; o que o justifica propósitos
altruísticos visando a experiências de vida compartilhada, solidária e
feliz enquanto cada pessoa, por ser única, realiza o que ninguém mais

N
poderá fazer em seu lugar. Tudo isso se volta ao objetivo da Educação
Soka, que é a felicidade do aluno enquanto estuda, felicidade a ser
entendida como a capacidade de evitar problemas e de enfrentá-
W
los quando inevitáveis, mantendo o estado de vida na rota do que
é favorável ao bem-estar pessoal e coletivo, incluindo o ambiente
natural de modo inseparável, interdependente; um viver a vida
O

passando seus eventos pelo filtro do bem-benefício e beleza.


Essa dinâmica coincide com o conceito de ‘currículo em ação’
D

trazido por Geraldi (1994), assim como exposto anteriormente, em


que o planejado deixa margens para que a prática pedagógica seja
implementada pelas presenças vivas de professores e alunos, que,
EE

como se espera, a cada dia e instante mudam com as vivências,


inclusive as que o próprio processo educativo no cotidiano escolar
propiciam.
Não há dúvidas quanto à dificuldade em se controlar variáveis
FR

intervenientes em processo ensino-aprendizagem como esse. Mas é


a condução adotada pelo professor em abarcar dimensões pessoais
e técnicas, que impregna, inevitavelmente, o ambiente escolar de
sua influência e valores. Suas decisões e determinação fazem toda
diferença, inclusive quando impede ou faz fluir eixos espiralados de

104
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

interdisciplinaridade e transversalidade na formação de tramas de


saberes tecidos coletivamente em dada sala de aula, com infinitas
possibilidades extraídas das realidades local, universal e suas trocas,

D
onde a educação formal ocorre. Desse modo, para que o corpo, ‘o ser
em movimento’, seja colocado em evidência como um desses eixos
para o ensino, depende da visão e escolhas que o professor faz como

A
autoridade da prática pedagógica.
De acordo com Parlebás (1987), o objeto de estudo em aulas

LO
de educação física deve deslocar-se do ‘movimento’ para o ‘ser que
se move’. Indo além, dentro dos propósitos deste estudo, ter o ‘ser
que se move’ integrando os componentes curriculares a partir da
educação física e artes, significa abrir a sala de aula à comunicação e

N
expressão – artes, literatura, o ser sensível – adentrando um campo de
significação abrangente, onde interagem com a sensibilidade fontes
e repositórios de saberes, como acionadores e operadores cognitivos
W
vivos no ‘corpoarte’.
Almeida (2005) aponta o fato de que os lugares oficiais de
O

transmissão da cultura – família, escola, religião –, em seus discursos


autorizados, exemplificam o que Roger Shattuch denomina de
conhecimento proibido. Ela afirma o seguinte:
D

[...] certamente escutamos muito pouco ou nada a


respeito da dimensão onírica da condição humana.
EE

É possível que nunca nos tenham dito com todas


as palavras, nem na escola, nem na nossa família,
nem na universidade, que a espécie humana é a
única que sonha acordada. Que, durante a vigília se
projeta pelo sonho, cria fantasmas que nos consome,
FR

personas que ao mesmo tempo, nos escondem e nos


desvelam. Desde criança aprendemos que a vida
em sociedade é marcada pela regra e que a regra é
gestada pela razão. Que a razão é um mecanismo ou
uma qualidade do pensamento capaz de domesticar
e impor limites às emoções humanas que seriam
responsáveis pelo desregramento, pela desordem e

105
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

pela selvageria social. Certamente o aprendizado


dessas verdades foi matizado e não homogêneo.
Os artistas, os poetas, e mesmo na ciência, os
pensadores não enclausurados nos paradigmas

D
da repetição e da ordem, experimentaram outras
verdades (ALMEIDA, 2005, p. 1).

A
Essa autora parte de dois argumentos, que são: a) o ato de
sonhar acordado, que se acha “na base da construção do sujeito, na

LO
sua projeção identitária para além dos condicionamentos biossociais”
(ALMEIDA, 2005, p. 1), pois funda sua aptidão para gerar utopias e
desejos e dialogar com a realidade e; b) a emoção, que não se reduz a
um aspecto afetivo, nem a um estado subjetivo do agenciamento de
estados psíquicos (supersensibilização diante de uma obra de arte, de

N
um filme, de um encontro afetivamente forte e inusitado), mas
W
[...] pode desdobrar-se no afetual mas não se reduz a
ele. É mais precisamente o atributo que impulsiona
as ações humanas e estrutura o sujeito como
argumentam Humberto Maturana e Boris Cyrulnik.
O

Por consequência a razão não é o contra ponto


da emoção, mas um estado de ser dessa atividade
cognitiva (ALMEIDA, 2005, p. 2, grifo do autor).
D

Nessa mesma linha de pensamento liderada por Morin (2000)


e Mariotti (2005) dedica uma fala sobre os saberes que contribuirão
EE

para esse tipo de pensamento, que concorre para a construção de


um novo tipo de conhecimento e de relações humanas. Os saberes
apontados se referem a valores que permearão conteúdos que integram
o arcabouço do conhecimento acumulado, reconhecido como lugar
legítimo das descobertas e criações humanas. O autor sintetiza os sete
FR

saberes para a educação no século XXI de Edgar Morin, reflexões de


Fernando Pessoa e outros escritores, em cinco saberes principais, que
demandam competências subjetivas, intrínsecas ao ser; marcas de
sua manifestação no mundo. São eles: saber ver, saber esperar, saber
conversar, saber amar, saber abraçar.

106
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

Vejo o enlace desses saberes convergir para as sutilezas da


educação para a vida criativa e da vida para a educação; abordagem
sensível imbricada com o intento de agora: o ‘corpoarte’ como tema

D
transversal do ensino.
Se o desejo é enfatizar o currículo em ação e o entendimento é

A
que ele começa pelo currículo formal que se forma por seleção, o que
fica em evidência são os critérios e, por conseguinte os valores que
os configuram.

LO
O que determina o nível de relevância reconhecido
entre sujeito e objeto são os critérios do sujeito que
avalia, e não a natureza do objeto avaliado. Uma

N
pessoa pode avaliar o mesmo objeto de inúmeras
maneiras, fazer diversas correlações e julgá-lo
(MAKIGUTI, 1994, p. 94).
W
Desse modo, se o que se almeja é a revitalização do ensino, uma
revitalização voltada à criação de valores humanos para a convivência
feliz e pacífica, o planejamento – lembrando o curriculum planning
O

citado por Forquin (1993) – será, na visão Makigutiana, baseado na


experiência e na interação, assim como na cognição e avaliação.
D

Sintetizando, a ‘experiência’ corresponde à atividade sensorial


ou intelectual e a interação, à atividade sensual ou emocional. A
abordagem sensorial e intelectual da compreensão leva à experiência
EE

que gera pensamento; a abordagem emocional e intuitiva do


pensamento leva à interação que gera sentimento. Quando
associadas, promovem visão abrangente da vida.
Quanto aos outros dois itens, em conjunto, ‘cognição e
FR

avaliação’ marcam o distintivo modo humano de lidar com o mundo


exterior, possibilitando a obtenção de um retrato mais completo da
realidade, com o maior número possível de informações. A cognição
se materializa por transferência da realidade física exterior para a
realidade conceitual interior por meio da linguagem – fenômeno

107
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

exclusivamente humano. Por outro lado, “nossa avaliação se baseia


na força da relação sujeito-objeto” (MAKIGUTI, 1994, p. 90);
implica em complexo contínuo de considerações, sendo o valor a

D
quantidade de importância atual reconhecida de um objeto material
ou simbólico, físico ou mental, na balança dos meios e fins.

A
Makiguti (1994) traz à tona, ainda, o contraponto ‘verdade e
valor’, mostrando que diferente da verdade, que é absoluta, implica
reconhecimento, exige provas, o valor é mutável, implica julgamento,

LO
e exige avaliação; a verdade é solitária; já os valores podem coexistir
até certo ponto. “A verdade não varia de acordo com a pessoa
ou o tempo, mas o valor não pode ser desvinculado das pessoas”
(MAKIGUTI, 1994, p. 74). Portanto, o que permeia escolhas, um

N
processo de seleção de conteúdos, sequências e estratégias de ensino,
por exemplo, não é a busca nem a definição de verdades, mas de
W
valores. Até porque, lembrando Makiguti (1994, p. 90), “o valor não
é inerente ao sujeito nem ao objeto; ele se manifesta na força da
atração ou repulsão entre os dois” [...]. “É reconhecido pelo sujeito
O

por sua relação direta ou indireta com ele na representação de um


elemento importante no meio ambiente” (MAKIGUTI, 1994, p.
91).
D
EE

Corpoarte. A fragilidade, essência e crescimento

Toda essa reflexão veio à tona numa incursão na área de artes,


instigada por estudos anteriores na área de educação física, com
enfoque mantido no estudo do corpo e movimento em educação para
FR

a cultura de paz no século XXI, tendo como propulsora a compreensão


de que enquanto se discute no plano teórico a pertença de conteúdos
e campo de atuação profissional a uma ou a outra, na dinâmica da
vida, há muito mais afinidades entre educação física e artes, mediados
pela dança, e; que na realidade escolar há um ‘currículo em ação’

108
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

em cujo cerne encontra-se a carência de educação para uma vida


criativa e altruística, a Educação Soka.
Neste sentido, até mesmo a interdisciplinaridade torna-se um

D
conceito a ser questionado, assim como o de transdisciplinaridade,
porque mantendo o radical disciplinar, guarda-se a herança cartesiana

A
no trato do conhecimento na escola. Aqui se propõe a visualização do
‘corpoarte’ em teia e em movimentos espirais, que podem se iniciar
em diversos pontos, como por exemplo, o da consideração da vida,

LO
do ser em que ela emana como corpo que a faz presença humana;
uma presença capaz de sentir e imaginar com recursos inerentes;
origem do arcabouço de saberes já construído e a ser (re)organizado
de modo a, conforme sugere Mariotti (2005), reaprendemos a ver,

N
esperar, conversar, amar e abraçar.
O ‘corpoarte’ converge para a temática desta obra no que tange
W
ao ensino da dança na escola, não como técnica, mas como arte em
movimento. Pois é na presença e expressão corporais que vislumbro
não só o ponto que aglutina conteúdos de ensino, mas que os
O

integra com a sensibilidade que marca e distingue cada ser humano


no mundo. Desse modo, do ‘corpoarte’ se abrem perspectivas de
ensino-aprendizagem porque está contido e ao mesmo tempo
D

contém a matéria-prima que preserva o equipamento a ser acionado


para que esse ensino-aprendizagem seja disparado como processo
e complexidade. É um termo para ser lido assim, sem tradução em
EE

qualquer outra língua.


Não obstante o que nos alerta a organizadora desta publicação
sobre o risco do relativismo, por um lado, e a ‘solidificação’ dos
‘deuses do conhecimento’, por outro, de certo, o risco da crítica advir
FR

da fragmentação prevalente em que esses ‘deuses’ também foram


forjados é iminente. Porém, toda a crítica é necessária para que os
ideais que geraram o corpoarte sejam fomentados e o trabalho escolar
possa se beneficiar; em que pesem fatores da existência, segundo
Ribeiro (2006, p. 104), como descritores para avaliação:

109
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

1) Aparência, atributos que discernem as coisas


como cor, forma, aspecto, e comportamento; 2)
Natureza, a qualidade inerente de uma coisa ou
ser que não pode ser apreciado de fora [...]; 3)

D
Entidade, a essência da vida que integra natureza
e aparência; [...]. 4) Poder, a energia potencial da
vida; 5) Influência, ação e movimento produzido

A
quando o poder inerente da vida é ativado. 6) Causa
interna, a causa latente na vida produz um efeito da
mesma qualidade, bem, mal e neutro. 7) Relação: a

LO
relação de causas indiretas com a causa interna. As
causas internas são também externas que auxiliam
as internas na produção de seus efeitos. 8) Efeito
latente: o efeito é produzido na vida quando uma
causa interna é ativada através de suas relações
com várias condições. 9) Efeito manifesto: o efeito

N
tangível e perceptível que emerge em tempo como
expressão de um efeito latente e, por essa razão, de
uma causa interna, outra vez, em relação a várias
W
condições. [...] O décimo fator, ‘consistência do
início ao fim’, diz respeito a um sujeito integral,
resultado da individuação e de sua singularidade no
mundo.
O

Portanto, pensar o ‘corpoarte’ como possibilidade de educação


D

para uma vida criativa, com harmonia e felicidade, sugere o lançar


de um novo olhar sobre o currículo, o ‘currículo em ação’, em que o
corpo engendra teias de saber, junto aos fios do prazer, do espontâneo,
do particular e imprevisível, como laçadas certeiras em meio às
EE

incertezas de um caminho desconhecido sempre, a ser aberto com


a mediação aberta a possibilidades e firmada nas âncoras do saber já
construído e da cultura, que darão margem ao novo.
Que se possa pensar em reforma educacional, sendo que o plano
FR

comece no interior da escola e, por isso, no interior dos sujeitos que


a frequentam. Uma reforma de dentro para fora; necessária; que
aconteça! Assim como, em suas fortes e extensas raízes fincadas, o
enxerto de ramos da educação física e artes ampliem o território do
corpo no fascínio do mundo dos saberes, no ‘corpoarte’.

110
3 CORPOARTE: RELEITURA DO CORPO NA EDUCAÇÃO

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111
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114
4

D
Reflexões em estudos de teoria da arte

A
e dança cênica1

LO
Marcio Pizarro Noronha

Ia. Parte. Scinestesia, embodied experience [Performance?

N
Body Art?], paradigma audiovisual enquanto conceitos
para a dança cênica
W
O que mais importa agora é redescobrir nossos
sentidos. Devemos aprender a ver mais, a ouvir
mais, a sentir mais. Nossa tarefa não é procurar o
O

máximo de conteúdo numa obra de arte, menos


ainda extrair de uma obra de arte um conteúdo
maior do que aquele que está lá. Nossa tarefa é
D

eliminar o conteúdo de modo que seja possível


ver a coisa em si. O objetivo de todo comentário
sobre arte deveria ser fazer as obras de arte – e, por
analogia, nossa própria experiência – mais, e não
EE

menos, reais para nós. A função da crítica deveria


ser mostrar como é que é, ou mesmo o que é que é,
e não mostrar o que significa. [...] Em vez de uma

1 Este ensaio é a segunda versão do capítulo do livro sobre Pesquisa em Dança, organizado
FR

pelo coletivo Engrupe, que reúne pesquisadores da área de Dança no Brasil. A introdução
deste texto foi originalmente escrita como parte de uma conferência para o Colóquio de
Estética da Universidade Federal de Goiás e aqui foi desdobrada e articulada, numa
re-escritura, com o texto que estava sendo escrito especialmente para este livro. Trata-
se de um texto de caráter teórico para o campo da pesquisa da Teoria e Historiografia
Interartes e estudos de Estética, enfatizando aspectos relacionados ao estudo da dança
cênica.
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte


(SONTAG, 1982, p. 23).

D
Introdução

A
Os estudos no campo das artes têm se dedicado à eleição
dos modelos que irão funcionar como meios explicativos e

LO
compreensivos (interpretativos) dos fenômenos, das obras,
dos processos e das teorizações decorrentes no domínio das
artes. Neste sentido, foram desenvolvidos diferentes modos de
tratamento da arte, envolvendo aí os relacionamentos entre as
diferentes linguagens (e o estatuto da arte enquanto linguagem),

N
o estudo das formas artísticas, as relações estruturais, as
abordagens de cunho semântico (e os problemas do conteúdo na
arte), os recursos à expressividade e às relações no campo sígnico.
W
Compreende-se assim que, tradicionalmente, as problemáticas
com as quais se depara o historiador e o teórico da arte – e,
neste caso, da dança enquanto arte – se refere aos problemas
O

da forma, do conteúdo, da expressão e, mais atualmente da


linguagem, seu vasto domínio de compreensão para o uso do
D

termo e os confrontos daí advindos, com o privilegiamento, na


atualidade, para enfrentamentos, distâncias e aproximações
entre os desenvolvimentos da linguagem na arte nas abordagens
EE

hermenêuticas (e da hermenêutica cultural), semióticas (e


semioses) e da filosofia analítica da linguagem 2.

2 Em texto recente, na produção do material de Teorias da Arte e da Cultura II, do curso


FR

de EAD – Artes Visuais, da FAV UFG, reconheço uma vertente fundada na concepção
das teorias contextuais da arte, relacionadas de modos diversos a um campo expandido
da cultura. Estas poderão enfatizar correlações com o debate marxista, com a Escola de
Frankfurt, com as leituras estruturalistas, pós-estruturalistas, com a hermenêutica, bem
como, na atualidade, com as vertentes e desdobramentos do pensamento pós-moderno,
dos Estudos Culturais e do multiculturalismo, gerando temas que serão desenvolvidos nos
estudos da Cultura Visual.

116
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

No desenvolvimento de uma historiografia e de uma


teoria Interartes-Intermídias, estas problemáticas se revelam
conscientes ao fazer artístico (e ao que denominamos de poéticas
artísticas, nas diferentes linguagens) no contexto renascentista,

D
quando da retomada do debate em torno do Ut Pictura Poesis
– cuja contribuição está em já enunciar no cerne do primeiro

A
pensamento moderno uma relação entre as linguagens, domínios
e fazeres artísticos, questionando a ordem e o fundamento do

LO
pensar-fazer artístico a partir das relações e hierarquias entre
a poesia e a pintura, ou seja, entre o texto e a imagem. As
relações evocadas se referem, em sua centralidade, aos aspectos
tecnopoiéticos (da técnica e da ‘poiética’) e da retórica, que daria
a matriz ou o campo disciplinar da época para afigurar o tema
N
das relações entre as artes. Assim, nas inversões entre pintura
e poesia, o tema se distende até o século XIX. De Leonardo a
W
Lessing, passando pelos simbolistas-alegoristas dos séculos XVI-
XVII, os textos nos dão um informe do modo como a arte pode
ser integrada ao conhecimento, bem como os deslocamentos
O

sofridos pela retórica e os estudos do símbolo virão a constituir


as matrizes históricas e teóricas da Estética (na filosofia) e das
abordagens científicas das semióticas (TODOROV, 1996).
D

Em meio a esta vasta historiografia das relações interartísticas-


intermidiais, encontramos o mais extenso capítulo, na perspectiva
ocidental do tema da arte, as teses do romantismo (alemão). O
EE

romantismo apreendido pela história social e cultural das artes


mais como movimento ou integração de estilos é, também, uma
formulação de cunho teórico e um programa de ação que, mesmo
quando não-sistemático, apresenta-se como uma extensa e complexa
FR

circunscrição de conceitos, formulando uma estética (filosófica),


uma filosofia da arte e os operadores de uma teoria e de uma ciência
da arte (no século XX).
Seus ensaios e fragmentos, muitas vezes entretecidos com
a abordagem crítica e histórica, e, portanto, privilegiando a

117
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

determinação de contextos para a análise, e, mais ainda, preocupados


com um novo programa de trabalho para as poéticas propriamente
ditas, numa reflexão sobre obras e processos criativos particulares,

D
encetou uma virada na direção de uma teoria circunscrita aos
objetos estético-epistêmicos (D’ANGELO, 1997; BENJAMIN, 2002;
ROSEN, 2004).

A
Vejamos como um contemporâneo trata esta problemática,
demonstrando as relações tecidas entre o conceito de crítica

LO
(romântica) e a obra do filósofo Walter Benjamin, para uma nova
perspectiva de tratamento da história na arte.

[...] relacionar a obra com a história embora

N
respeitando sua função essencial de se descolar do
tempo e do espaço históricos em que foi produzida.
O feito de Benjamin foi ter reconhecido e explorado
W
essa tensão, ter encontrado um meio de interpretar a
significação histórica de uma obra que não contesta
sua integridade supra-histórica [...].
E
O

[...] A ação crítica do tempo é um clichê muito


usado: é o tempo que separa as obras-primas da
arraia-miúda. Para Benjamin, o tempo tinha
D

outra função: a passagem do tempo não somente


decidia o êxito de uma obra, como – o que é
mais importante – separava nela o essencial do
inessencial, distinguia entre os elementos que
EE

falavam de imediato aos contemporâneos e aqueles


que tinham um interesse mais duradouro. Por isso
é que a pós-história de uma obra, a tradição que ela
criou, é tão indispensável ao crítico com sua pré-
história, suas fontes e a tradição de que proveio
(ROSEN, 2004, p. 162, 174).
FR

Desse modo, o romantismo descortina uma perspectiva do


ponto de vista de uma teoria da obra (para a história) e de uma
teoria da arte enquanto crítica de arte, saindo dos grandes sistemas
estéticos para invocar aquilo que a linguagem evoca, para além das

118
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

funções comunicacionais. Nestes termos, o momento é fundacional,


pois se trata de pensar que a obra erige, em torno de si, um arcabouço
conceitual e em sua poiesis determina a linha de tradição a que

D
remete, mas também a que irá criar e desenvolver, as prés e as pós-
histórias de uma obra.

A
O elemento é fundamental para o entendimento de como
certas operações artísticas irão desenvolver seus conceitos
internos, que descrevem as estruturas e processos que estão sendo

LO
propostos pela própria obra – raciocínio comum aos artistas e aos
pesquisadores das poéticas cênicas e visuais. É, portanto, desta
tradição da crítica romântica e da modernidade enviesada que
se retira a ideia de conceitos que, subsumidos aos momentos

N
produtivos, possam ultrapassar os procedimentos e servirem
enquanto operadores na e da linguagem, a fim de promover o
desenrolar de uma tradição (de um encadeamento de obras).
W
Conceitos operadores de obras e processos artísticos não são vistos
apenas como circunscritos às técnicas que permitem o desenvolver
de um trabalho, mas funcionam enquanto conceitos para além,
O

articulando a obra identificada a uma cadeia de tradição por ela


inventada.
D

É desse modo que elegemos alguns conceitos operacionais das


obras contemporâneas que serão utilizáveis no estudo da dança cênica
como modo adequado de desenvolver conceitos para uma escrita da
EE

história da arte no tempo recente: scinestesia e ‘performance’ (ambos,


em associação à visão háptica), audiovisual (paradigma cinemático
ou efeito-cinema).
Para chegar a eles, faremos uma passagem por certas
FR

constituições do século XX e as problemáticas apontadas neste século


para um entendimento de operações abrangentes das artes e das
relações entre as artes (interartes) e entre as artes enquanto mídias
(intermidialidades e a perspectiva da abordagem dos dispositivos em
arte).

119
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Passeio pelo século XX e adiante ... fusão, diferenciação,


intervalos

D
Este breve histórico enuncia uma parte daquilo que se afirmará no
século XX, acompanhando as abordagens teóricas desta formulação,
em que a problemática passou para o campo das correspondências

A
(incluem-se aqui as abordagens da estética comparada e o importante
estudo de Ettiénne Souriau) e para as diferentes abordagens formais-

LO
estruturais das linguagens (indicamos especialmente os estudos de
Praz e de Lévi-Strauss, com enfoques e correlações entre os diversos
estruturalismos e as também diversas semióticas).
As leituras simbólicas e as leituras em torno das teorias

N
das linguagens permitiram criar modelos sistêmicos – como o
estrutural e os semióticos – e modelos não-sistêmicos – algumas
das hermenêuticas, filosofias da suspeição, filosofias ‘esotéricas’ da
W
linguagem – que passaram a dominar o campo das teorias, da história
e da crítica de arte e das artes cênicas.
O

Seguindo a vertente propugnada nesta esteira das análises


simbólico-signícas do romantismo-modernismo, nosso texto passou a
procurar os conceitos que pudessem circunscrever, ao mesmo tempo,
D

obras-processos-constructos e historicidades-encadeamento.
Ainda dentro deste enquadre, na perspectiva que adotamos
e investigamos na atualidade, a do trajeto e desenvolvimento de
EE

uma teoria interartes, as relações não devem ser apenas observadas


do ponto de vista moderno (das linguagens, da autonomia) e suas
inter-relações. Isto seria apenas uma complexificação dos modelos
sistêmicos desenvolvidos por meio das estéticas comparativas e das
FR

correlações de ordem estrutural.


É preciso incorporar ao debate o modo como as categorias
tempo-espaço, nas condições de simultaneidade (de tempos) e
heterogeneidade (de espaços), acabam por provocar uma nova
configuração entre texto-imagem-corpo, escritura-visualidade-

120
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

performance (para integrar os termos corporalidade, corporeidade


e a dimensão estético-pragmática), afetando a produção de um
desenho (traço-movimento, rastro-resíduo) e de uma experiência

D
nas e das artes contemporâneas – artes visuais, audiovisuais, do
corpo e cênicas.

A
Desse modo, a perspectiva da historicidade adotada por uma
teoria interartes-intermídias se refere à formulação de um modelo

LO
que permita uma ‘re-situação’ do ponto de vista das linguagens e
um lugar adequado para os tratamentos designados como sendo da
forma-estrutura-semiótica – mantendo-se na cadeia desenvolvida
para a cultura do signo de Agostinho aos nossos dias (TODOROV,

N
1996). O tema já foi tratado em artigo publicado e aqui só cabe como
revisão3.
W
Nos termos de um debate promovido nos anos 1990, na vertente
francesa (representados pelos textos produzidos pela ESCOLA
DE IRCAM, de Dubois e de Rosalind Krauss), a reflexão sobre as
O

interartes-interartes assume os seguintes aspectos, conjugando


os elementos formais-estruturais-semioses com os que enfocam
D

os universos contextuais-historicidade (hermenêuticas filosóficas


e hermenêuticas culturais), criando um posicionamento estético
EE

3 No cruzamento de dois campos reconhecidos como clássicos de reflexão da arte


contemporânea, encontramos quase sempre os problemas da linguagem e os problemas do
conteúdo da arte, nas relações entre Gestalt (forma/conteúdo), uma anti-gestalt (o informe)
e, mais ainda, na sua dimensão de expressividade, e, nas tensões entre expressividade e
formatividade. Por outro lado, as experiências reconhecidas como integrando a formação
do mundo contemporâneo da arte ampliam estes temas da Gestalt, da expressividade e
da formatividade para as dimensões da abordagem contextual (sócio-histórica) e para
FR

a configuração de uma reflexão que se amplia na direção das relações entre a ética e a
estética ou, na esteira do surgimento de uma ético-estética como disciplina nova bem como
raciocínio interdisciplinar e que compromete o campo ético na promoção de uma estética
da ética das imagens. Esta reflexão de ordem teórica, resultante da produção de filósofos
(em sua maioria, pós-estruturalistas, desconstrucionistas, pragmatistas) se refere às formas
de uma arte que se enuncia no campo da produção pública e que pode ser identificada
numa certa ordenação histórica.

121
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

para a compreensão dos fenômenos e dos conceitos (e operadores


conceituais) das artes na contemporaneidade.
Os conceitos elencados se referem a operações que ocorrem

D
no domínio artístico abrangente, fazendo a função de um cenário
ou enquadre: a ‘fusão’ (criação de uma nova forma-arte pela soma

A
de todas as artes; modelo da ópera – Richard Wagner e a obra de
arte total; discurso da teatralização das artes – Michael Fried;
circo enquanto arte; artes conceitual e romance experimental,

LO
quando métodos filosóficos são incorporados à tessitura das
obras-produtos; arquitetura como modelo para a arte), a
‘diferenciação’ (princípio moderno da autonomia da obra de arte,
com fundamentos na estética kantiana e suas leituras aplicadas

N
ao alto modernismo; desenvolvimento de uma teoria da arte na
abordagem da crítica, nas inter-relações entre as metalinguagens
e a crítica interna da obra) e o ‘intervalo’ (como o termo já
W
enuncia, uma lógica do inter, do entre, num vai-e-vem do aquém
e do além ao através, demonstrando interesse pela determinação-
ultrapassagem-deslocamento de fronteiras, raciocínio topológico
O

e das semioses interartísticas; o modo da instalação, com alto


grau de aplicação de princípios construtivos às artes visuais;
D

produtos em interface; efeitos de dispositivos de certos media em


outros suportes de produção – os efeitos-cinema na leitura de
Dubois)4.
EE

Nestes termos, a adoção dos conceitos arquitetônico-


operacionais de ‘fusão, diferenciação e intervalo’ permite, todos
eles, o desenvolvimento de raciocínios em torno do objeto (um
objeto atravessado por múltiplos olhares disciplinares, como
na diferenciação), em torno do método (quando se transferem
FR

reflexões de um lugar a outro, na geração de produtos e conceitos

4 Irene Machado, pesquisadora brasileira da Semiótica Russa, identifica a possibilidade da


linguagem de um meio se deixar contaminar pelo de outro como as linguagens interagentes
(interatividade), envolvendo impressões sensoriais e suas potencialidades expressivas.

122
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

intermediários, tal como na fusão é o surgimento do conceito de


síntese de obra de arte total) e um raciocínio em torno dos trânsitos
temporais-espaciais, arregimentados pela escritura-visualidade-
performance, na produção de scinestesias (NORONHA, 2007a;

D
NORONHA, 2007b; NORONHA, 2007c), sendo algo que
está entre, no intervalo, aquém e além e por meio dos corpus

A
já constituídos. O raciocínio aqui é o de entender a situação
evocada pela obra-processo como geradora de uma estrutura

LO
num espaço descontínuo e num tempo múltiplo, promovendo, na
simultaneidade, diversos níveis de realidade.
Desse modo, a circunscrição de conceitos-enquadres
aos moldes de caminhos traçados por Yve-Alain Bois (2007)

N
indica que um formalismo estrutural (e não-morfológico) não
é superável e representa um passo na direção das questões
especiais ao campo estético e àquilo que fará a História da Arte.
W
E que, portanto, não devemos confundir a morfologia simples e
as analogias visuais com o que seja um efetivo estudo histórico-
teórico das artes5. Para este historiador-teórico, analogias
O

se referem não a significados comuns, mas a estratégias (e


possibilidades, condições que se assemelham). Assim, o problema
D

que já não era morfológico será tampouco semântico. Ele será


um problema de ordem de objetivos, condições e estratégias
de realização das obras. As semelhanças formais não revelam
relações contextuais e tampouco de caráter semântico. O que
EE

se refere ao contexto e à ordem semântica estaria muito mais


próximo de uma história dos conceitos. Portanto, desvelar
significados se refere a pensar o modo como certos conceitos
foram aparecendo e se modificando.
FR

5 O termo morfologia é do século XIX e está associado aos estudos da Biologia, da Linguística
e da Sociologia bem como à formação da disciplina da História da Arte. A análise
morfológica se refere à aparência externa dos objetos, uma configuração (figura, forma). A
forma de um objeto é na perspectiva do historiador italiano Ginzburg, o modo construído
da figura.

123
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Portanto, o anúncio de analogias deve ocorrer no denominado


nível estrutural, ou seja, aquele que irá garantir as operações e nelas
reunir um conjunto de obras que serão realizadas de acordo com estas
estratégias. Entendemos assim que o debate interartes-intermídias

D
ganha em complexidade, já que não se trata apenas de pensar com
um modelo analógico, o da fusão das artes, que culminaria na linha

A
das artes integradas (modelos da ópera ao circo e, portanto, tendo
como pano de fundo a dimensão do espetáculo e não dos operadores

LO
artísticos), mas se tratam efetivamente de objetivos, condições (de
produção) e estratégias de realização (processualidades) das obras
artísticas.
Após a circunscrição conceitual, estariam enunciadas as

N
condições para uma leitura da bacia semântica – e ai, todos os
temas, objetos e conteúdos adjacentes. Sendo assim, entendemos
que fusão, diferenciação e intervalo criam três grandes grupos
W
conceituais. Dentre eles, o que se avizinha como sendo o nosso
contemporâneo – a estratégia do tempo recente (para dar uso
ao termo, na perspectiva de uma historicidade e, questionar-
O

localizar o fato de se usar o termo contemporâneo para a


própria arte, adjetivando-a e completando-a) – é a noção de
D

intervalo 6.
O intervalo, a lógica do entre-dois, entre-mais, mais
ainda, necessita de um desdobrar-se em operadores internos
EE

a este campo de realização de obras-acontecimentos artísticos.


Mantendo o mesmo raciocínio estrutural, o intervalo subdivide-

6 A opção pelo termo intervalo segue esta linhagem francesa, mas também acena para
outras leituras em torno do uso do termo fronteiras entre as artes. O termo fronteira,
FR

mesmo quando pode estar designando as bordas, designando leituras pós-estruturalistas-


desconstrucionistas, remete aos debates do modernismo, já que este tem como condição
epistêmica a formação das fronteiras. O modernismo a que nos referimos aqui é justamente
o das relações clássico (Lessing) / moderno. Portanto, não se trata de um romântico /
moderno, neste ponto específico. Estas questões têm sido o alvo principal dos cursos de
historiografia da história interartes que desenvolvemos no PPG História da UFG desde o
ano de 2006.

124
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

se em operadores das/nas obras artísticas contemporâneas,


independentemente de elas serem ou não, classificáveis neste
campo enquanto integrantes de um gênero. São eles, como já
adiantamos na Introdução: a scinestesia e a ‘performance’ (ambos,

D
em associação à ‘visão háptica’) e o ‘audiovisual’ (desdobrado em
termos como ‘paradigma do filme, paradigma cinemático ou efeito-

A
cinema, artes espacio-visuais’). Este três elementos de caráter
conceitual se apresentam de modo forte nas obras artísticas –

LO
visuais, audiovisuais, do corpo e cênicas – ditas contemporâneas.
No âmbito de um ensaio, trataremos apenas de enunciar algumas
das questões em pesquisa e alvo de um texto de maior fôlego em
preparação.

N
Scinestesia, performance, audiovisual: inter-relações
W
/ interpelações de operadores da / na arte cênica
contemporânea. Conceitos operadores na dança
contemporânea
O

Dando uma volta, no colorido da história, identificamos


D

que, entre os anos 60 e 70, do século XX, as formulações da


arte ganham os contornos da problemática política e num acerto
entre as duas áreas – arte e política – temos a enunciação de
um conjunto de obras que buscam mais metonimizar o campo
EE

político, por contiguidade a ele. Por outro lado, também no


contexto dos anos 70 e na virada para os anos 1980, temos o
acento das relações sociais imbricadas no fazer artístico e sua
expansão para o campo educacional 7. Dando continuidade e
FR

7 Na década de 1980 e 1990, acentuam-se os modelos educacionais em arte voltados para


os problemas da cultura. A questão artística – tomada como linguagem desde a virada do
século XX, nos projetos da virada das vanguardas e dos modernismos – passa a ser pensada
a partir de um paradigma não-explicitado de ordem antropológica, especificado nos termos
do cultural e do contextual.

125
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

em desenvolvimento paralelo, na década de 1990, um sintoma


que se refere a este mal-estar em relação à arte – e até mesmo
ao uso desta palavra – acaba por constituir grupos de resistência
em torno de ações poéticas que provoquem uma falha nesta

D
ampla continuidade multicultural. Desse modo, campos como
o da estética relacional, acabam por enunciar um novo modo

A
da configuração das relações entre estética e ética, entre arte
e política, entre intervenção artística e educação em arte e

LO
educação estética. Nicolas Bourriaud aponta para a articulação
entre modos de viver e modos de agir, no interstício social-
cultural.
A arte – agora tida num todo como relacional – passa a ser

N
pensada aos moldes de vestíveis / comíveis / palpáveis, em suma,
atravessáveis. A arte é um tipo particular de trajeto, em que algo
se formaliza, retomando assim os problemas da forma sob outra
W
perspectiva. A forma é uma espécie de bloco afectual, reunificando
e enfrentando as divisões entre forma, conteúdo e expressividade.
As formas são formações, promovidas por objetos incompletos e/
O

ou transicionais que se completam no interator (noção de objeto


relacional) (BOURRIAUD, 2002).
D

De outro lado, aponta-se para uma forte presença e insistência


de uma realidade corpo – de um Real do corpo – nas ações artísticas.
A dança enquanto arte tornou-se paradigmática para a exploração
EE

deste objeto e sua transformação em sujeito da cena propriamente


dita (vejamos que a dança clássica se constitui num paradigma
que oscila entre uma narrativa sonoro-musical de um lado e um
argumento narrativo de outro, ao contar uma história dentro de uma
determinada diegese). A espetacularização cênica contemporânea e
FR

o reino das instalações e intervenções urbanas e todas as formas do


happening e da ‘performance’, articulam o senso político e a dimensão
pedagógica acima apontada com uma forma e uma presença do
corpo. O corpo passa a ser conteúdo da obra e sujeito da cena (sujeito
cênico), transformando-se na mais extensa e usável plataforma para

126
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

a produção de obras artísticas cênicas contemporâneas, tal como


remonta a este debate toda a obra teórica e de leitura de obras de
Anne Cauquelin.

D
Os artistas querem o Corpo e Um Corpo – uma unidade
individuada e que faça presença material. A ideia de corpo suporte

A
para a coreografia e para a espetacularização está muito distante
daquilo que se torna uma preocupação central nas artes cênicas (e
paradigmaticamente na dança cênica). Trata-se de tornar presente

LO
o corpo do artista ou aproximar, por contiguidade e metonímia ou
metáfora, o corpo da obra dos restos e do cotidiano do corpo do
artista. Esta presença marcada deve se confrontar inevitavelmente
com o Vazio e com a condição de seu isolamento no Tempo-

N
Espaço, tornando-se obrigatoriamente um início e um fim para
uma investigação que procura dar a sustentabilidade do tempo e do
W
espaço na existência de uma realidade última e precária, o que resta
do corpo próprio.
Assim, o corpo material-real-presencial e sujeito cênico é
O

lançado em dimensões imateriais para ser capturado no trajeto


de sua ação (‘performance’) no tempo e de sua posição (lugar) no
D

espaço. Em complementaridade, trata-se também da criação de


um corpus sensorium para traçar planos sonoros, deslocamentos
corporais no espaço (do movimento aos trajetos), envolvendo
ainda na tridimensionalidade (ou nos efeitos dela) o tato, o
EE

paladar, o olfato, a terceira dimensão, uma musculatura tátil e


impressiva, (re-)combinando procedimentos, médiuns e códigos
na constituição de linguagens mestiças/híbridas/interartísticas,
em amplas operações conceituais promotoras de um desafio
FR

à cultura, pois não se trata de um veto ao cultural, mas, antes


pelo contrário, um senso de experimentação que desorienta a
navegação convencionada culturalmente, obrigando a cada um
de nós, em nossa tarefa com e na arte, a reconquistar os seus
sentidos (MACHADO, 2000).

127
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Neste domínio, os gêneros artísticos (do pensamento aristotélico


ao classicismo) sofrem uma declinação, pois os regimes de produção
artística exigem uma compreensão articulada entre procedimentos,

D
médiuns e codificação, ou seja, não se trata de mimese-representação,
mas de como se pode, nas zonas de produção, explicitar mais ou
menos, de acordo com as premissas de interatuação nas obras, das

A
condições que as instituem.

LO
Nestas zonas de produção em arte – e nas artes cênicas em
particular –, o vídeo – e suas combinações em intervalos tais como,
vídeo-arte, vídeo-dança, vídeo-performance – tem demonstrado ser
uma mídia de grande capacidade de exploração, por conta de ser
uma zona entre-imagens e um modo de promover uma visualidade-

N
visibilidade – de fazer ver algo da ordem do registro –, transformando-
as em visualidades estáveis em torno do mundo contemporâneo. Mas
W
não somente o vídeo, a presença de sensores eletrônicos e outros
dispositivos de tecnologia de registro, de controle e de localização
em rede tornaram-se marcantes no cenário cênico contemporâneo.
O

São os novos encontros com o efeito de verdade ou, quem sabe, um


desejo do Real8. O registro como algo da ordem da poética integra-
se à dimensão do artista enquanto etnógrafo, comum ao mundo
D

hodierno.
Assim, ao observarmos diferentes manifestações,
EE

acontecimentos, obras e processos, temos dois termos que passam


a afirmar e caracterizar uma parcela significativa dos experimentos
da arte definida como sendo contemporânea: a ‘performance’ e o
audiovisual. Em ambas, uma dimensão por vezes mais scinestésica e,
por vezes, mais espácio-visual. No dizer da pesquisadora Giuliana
FR

Bruno (2007), esta inflexão tem uma dívida para com o conceito de
corpo e seu projeto historiográfico de realizar um Atlas of Emotion

8 O tema remete às questões do verossímil na estética mimética aristotélica e apresenta-se


repontuado na leitura de Anne Cauquelin, por exemplo.

128
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

com suas rotas hápticas9,10, propiciando um debate sobre as

configurações scinestésicas (sinestésicas-cinestésicas)11 nas artes do

D
9 Háptico é um termo que foi proposto pelo teórico da arte Alois Riegl. Ele desenvolveu
o termo a partir do seu trabalho enquanto curador de Museu de Arte e Indústria (artes
aplicadas), em Viena, no contexto da segunda metade do século XIX. A visão táctil é o que

A
caracteriza a sensibilidade para além da perspectiva óptica enunciada do Renascimento
para cá. Seu trabalho influenciou grandemente as teses de Walter Benjamin acerca da
teoria da forma da arte cinemática. Benjamin amplia as teses de Riegl e deixa de fazer a

LO
distinção entre óptico e háptico, compreendendo que esta perspectiva estava centrada
num uso limitador do termo, demonstrando a apreensão tátil de todo espaço que é, sem
dúvida, a investigação do nosso movimento no espaço. Nestes termos, consideramos que,
neste ponto temos uma grande contribuição das teorias modernas da dança para uma
nova apreensão de categorias como tempo e espaço no campo das pesquisas em artes e em
humanidades, pois é da dança moderna, nas viradas do final do século XIX e da primeira

N
metade do século XX, que a categoria do movimento e a dança enquanto investigação
do movimento no espaço que surgirão também novas teorizações para a arte, a história
e a cultura. A procura tomou a forma de um desenvolvimento das articulações entre
categorias da dança e as categorias do cinema (paradigma cinemático ou audiovisual) como
W
meio de pensar novas teorias e novas metodologias para a pesquisa. Estas observações não
resultam apenas de leituras advindas do campo da teoria, mas também são efeitos das
próprias criações contemporâneas e dos desafios por elas propostos para o desenvolvimento
de sistemas de crítica. Cf: BRUNO (2007), RYAN (2004), AUDET et al. (2007).
O

10 Rotas hápticas se referem justamente ao desenvolvimento de um tipo de sensibilidade


provocado especialmente pelo desenvolvimento do paradigma cinemático e suas afecções
na produção artística, tanto no plano dos processos e dos sistemas de produção quanto nos
D

processos e nos sistemas de apreensão (fruição, leitura, recepção) das artes e de espetáculos,
definindo as novas posições do artista, do teórico e do público. Por háptico entenderemos
aqui a transição de uma perspectiva óptica (centrada na categoria do olhar) e sua
passagem para uma visão ampliada para uma (e) motion [emoção-movimento] espacial-
temporal, em que a visão [paradigma visual hegemônico na organização dos sentidos] é
EE

reintegrada no sentido de localização, numa inseparabilidade entre exterior-interior e na


configuração de mapas mentais. Há ampliação dos sentidos enquanto modos de cognição
e o estabelecimento de sensos topográficos e realidades topológicas. (BRUNO, 2007).
11 Sinestésico-cinestésico se refere à reintegração de duas condições no campo da pesquisa da
linguagem. A primeira delas se refere à capacidade de tradução inter-percepções, num grau
indicial (plano semiótico), estabelecendo relações entre uma percepção de um domínio
FR

do sentido e outro domínio evocado. Esta discussão pode ser ampliada na história das
relações interartísticas para o tema retórico (desde a doutrina do Ut Pictura Poesis) ou para
o que pode ser denominado de hibridação conceitual (quando características semióticas
de um meio específico são transpostas para outro). O segundo termo, cinestesia, tem um
sentido de reintegrar aqui a perspectiva do corpo, pois o termo se refere à percepção dos
movimentos musculares, da massa corpórea e das posições dos membros, resultando em
jogos de: (des) equilíbrio e movimento-estático. Assim, se integramos ambos os termos

129
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

tempo recente. É desse modo que a historiadora reclama para esta


scinestesia um termo, o espácio-visual, correlacionando não apenas
à pintura e ao cinema, à fotografia e ao cinema, às artes cênicas e a

D
dança com o cinema e o vídeo, bem como a arquitetura (das salas
escuras) e o cinema, a arquitetura e a dança, convocando a uma
existência e uma rota háptica no espaço escuro, a da visão tátil (visão

A
carnalizada, embodied vision).
A scinestesia é também elemento integrado à performance [BODY

LO
ART] como prática poético-artística, expandindo a definição do
termo, tanto no plano semântico-linguístico12 quanto no das práticas
artísticas e nos circuitos institucionais13 – o que tenho denominado de
‘performance em campo expandido’, na paráfrase a Krauss. No plano

N
das práticas artísticas, a abertura da definição acaba por ganhar um
lugar próprio e expandir-se no contexto do mundo da arte afetando
as formas tradicionais de organização das práticas artísticas (como a
W
pintura, a escultura, dança clássica, teatro etc), enquanto ocupação
dos espaços (galerias de arte, museus), nas formas experimentais dos
O

num único termo scinestesia, tal como é a proposição na atualidade, estamos fortalecendo
os laços desta perspectiva propugnada pela arte compreendendo que a tela de projeção
é sempre um espaço geográfico habitável, ampliando-se a cada nova configuração da
D

tecnologia as condições de transformar este anteparo-tela numa superfície de multiplicação


de perspectivas (trajetos do olhar), num jogo constante entre situar-se e ver, pois estamos
sempre vendo como revisão, condição de ressituar-se no espaço, nas condições dadas pelo
sentido sinestésico. Assim, uma teoria da percepção ampliada passa a ser compreendida
EE

aqui enquanto uma teoria da linguagem. Ver aqui os trabalhos de autores como Walter
Benjamin e as teses recentemente recuperadas dos filósofos do romantismo, com ênfase
aqui para os artistas-teóricos do romantismo alemão.
12 No plano semântico, a noção de performance desdobra-se em concepções de Live Art
(experimentos de unificação da percepção com o psíquico e do pensamento com a ação,
incluindo interação e participação do público), Performance Art, Performance (Theater And
FR

Dance), Body Art e Action Art.


13 Quando RoseLee Goldberg situa a inserção da performance como forma de arte e como
linguagem autônoma na década de 1970, época na qual tendências como Body Art, Living
Art e Actual Art se tornam mais conhecidas e alcançam espaço em festivais e críticas
em revistas especializadas, ela confere à performance um estatuto de formalização e
comunicação de conceitos com a utilização de um ou múltiplos meios e linguagens, tendo
como tônica o desenrolar de um fluxo dinâmico em tempo real, uma ação viva.

130
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

trabalhos e nos LIVE EVENTS14, tornando-se mais e mais complexa,


na medida em que, cria um público próprio (muitas vezes cocriador) e,
a partir dos anos 70 do século XX, uma disciplina acadêmica tornada

D
ela própria um Departamento, a Performance Studies. A performance
tornara-se ponto de encontro entre artes, no qual formas de diálogo
não-convencionais confluiriam; zonas de entrelaçamento entre arte

A
e vida e a disposição a uma experimentação de fusão dos agentes/
artistas/interatores com a totalidade intertextual, multissensorial

LO
(visual, sonora, verbal, tátil) e experiencial do evento (HANNS,
2005, p. 43-44). Nestes termos, os Estudos de Performance tornaram-
se um tipo de conceito operacional e de crítica que toma posições em
relação a uma disciplina da tradição do século XIX, a História da

N
Arte, produzindo um metacomentário de ordem artística e de ordem
conceitual (do conceitual filosófico ao conceitual artístico) 15. E,
ainda mais, garante o reconhecimento de um estatuto intersemiótico
W
na produção artística, um estado comunicacional entre as diferentes
linguagens, privilegiando as ‘zonas de intervalo’ entre as artes16 e os
O

14 Na história das formações destas ações ao vivo e em tempo real, há um trânsito do


acontecimento que se dá num tipo de espaço público – da cidade – para um espaço de
ordem virtual – onde os acontecimentos em tempo real são dimensionados em lugares da
D

internet como blogs, myspace, youtube.


15 Portanto, não é somente as disciplinas nascidas no esteio dos estudos da cultura que
desenvolvem sistemas de crítica ao desenvolvimento da História da Arte. Também do
corpus da produção artística, a crítica artística se posiciona em face da teoria, da crítica e
EE

da história.
16 Esta noção de fronteira entre as artes e o seu trânsito permite o reconhecimento de uma
estética dos intervalos (ESCOLA DA IRCAM), com base na fundação de uma zona de
vazio entre uma arte e outra e o reconhecimento deste não-lugar enquanto possibilidade
de produção e manutenção do mistério, aos moldes de uma busca do sentido do sentido,
nos termos desdobrados da ontologia da obra de arte (hegeliana), passando por Nietzsche,
FR

Schopenhauer e chegando aos termos de Heidegger. Em outro texto, comentamos esta


ontologia do ponto de vista das relações entre arte e religiosidade e como esta busca do
sentido do sentido assume um lugar do sagrado e ou um lugar do vazio. É o caso que
será investigado na produção do vídeo sobre os Santuários Artísticos e o sagrado natural
(Kracjberg), o sagrado transcendental onde os objetos são eles próprios resíduos (uma forma
da arte povera?) e ruídos nos canais de uma comunicação com outros planos de realidade
(Dona Romana), a comunicação do natural (Nêgo) ou a afirmação de zonas fronteiriças e a

131
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

trânsitos do campo hegemônico na História da Arte (enquanto artes


plásticas e, posteriormente, Artes Visuais) para uma apreensão de
uma história entre imagem, texto, som, corpo.

D
Neste escopo, o paradigma fundacional da ‘performance’ é
anterior a ela e se refere justamente a esta experiência constituída

A
no cinema e da formação de um paradigma audiovisual (o que
gerará uma cultura audiovisual). Segundo Jean Lauxerois e Peter

LO
Szendy (IRCAM), no prefácio da apresentação dos textos-colóquio
sobre a diferença entre as artes (ou a diferença das-nas artes), o
cinema é, historicamente, a ‘forma(ção) interartística e intermidial’,
superando os modelos de fusão das artes que tinham como mote uma
teatralização na integração de todas as artes (a obra de arte total)17.
N
Assim, ‘performance’ pode ser observada como forma integrante do
paradigma do audiovisual e deste modo devemos pensar na abordagem
W
de sua documentação18. Se pensarmos desse modo, um procedimento
de identificação por indeterminação ocorre no paradigma do cinema,
ou seja, instala-se uma zona e uma estética típica do intervalo, um
O

invenção do vazio como lugar do artista (projeto transcendental do modernismo, semiótica


russa, Projeto Areal) Cf. AMBRIZZI; NORONHA (2006).
D

17 Os autores comentam o importante embate em torno de um conceito de teatro que estaria


implícito na obra de arte total chegando ao minimalismo, no dizer do historiador da arte, o
norte-americano, Michael Fried. Para eles, o cinema, seguindo um raciocínio desenvolvido
por Peter Greenaway não apenas afirma uma nova forma-arte – o filme enquanto arte –
EE

como também faz do cinema um paradigma audiovisual que contamina os modelos de


produção de todas as outras artes a partir do seu advento. Desse modo, há uma tensão
entre teatro e cinema, representando as estéticas da fusão e a do intervalo. De la Différence
des arts, textes réunis par Jean Lauxerois et Peter Szendy, IRCAM – Centre Georges-Pompidou /
L’Harmattan, 1997. Cursifs (en guise de préface).
18 O minissimpósio Atlas das Emoções (2008), sob organização e coordenação de Marcio
FR

Pizarro Noronha e Rosemary Fritsch Brum, tem como intuito a crítica de uma abordagem
historicista que privilegia a relação do cinema com os conteúdos sociais e culturais,
valorizando e marcando a forma-cinema como sendo um tipo complexo de arquitetura
e forma-meio relacional. Em artigo especialmente escrito para o simpósio desenvolvo a
crítica dos caminhos tomados por diferentes disciplinas no uso do cinema (ou melhor, dos
filmes em vídeo e em DVD) em espaços como a sala de aula e a maneira como estes estão
reduzidos a algo que não constitui a experiência-cinema.

132
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

fora do dentro, um extraterritorial. Nestes termos, o cinema nos


convoca agora a um tipo de reflexão sobre os modos de mostrar
e de perceber um trabalho (Dubois e os efeitos-cinema na arte

D
contemporânea). E as demais artes abrir-se-ão a este procedimento
do pensamento. Dos happenings (live events) às instalações, o que é
exposto é o próprio olhar – e a escuta – e as condições da produção

A
de uma sensibilidade audiovisual – uma sensibilidade ótico-sonora.
Esta forma-linguagem pode então sofrer a expansão do seu campo

LO
(fazendo referência aqui ao termo cunhado por Rosalind Krauss).
Se desde a fotografia nos referimos à arte do tempo, com o cinema,
o vídeo, a vídeo-arte e a arte digital aperfeiçoamos o controle desse
tempo19. Entendemos a interatividade como uma interferência do
espectador na temporalidade da obra (MACIEL, 2005).
N
No caso particular da dança, a fotografia, o cinema e, logo
depois, o vídeo, todos eles realizaram uma grande transformação e
W
ampliação-amplificação do conceito de dança, nas relações entre
dança e visualidade, entre corpo e imagem. Ainda temos de considerar
a nova consciência do espaço cênico enquanto espaço arquitetônico
O

e o modo como este elemento se integrou ao visual e recria relações


que redesenham a concepção de obra de arte total. Trata-se agora de
D

fazer um uso explícito destas experiências aos moldes de categorizações


e de conceitos operadores para a observação e avaliação crítica das
EE

19 Para este âmbito, vimos o desenvolvimento de uma cronologia internacionalizada em torno


da videoperformance e da videodança. Para a videoperformance, esta cronologia é deveras
ampla e complexa e deve sempre estar sendo referida aos contextos da performed fotografia,
dos filmes, das polaroides e dos eventos festivos na cena underground e, posteriormente,
no circuito institucional de galerias e de museus. No caso da videodança, a compreensão
promovida é a de que esta cronologia não-linear resulta em três momentos significativos
do cruzamento entre as operações fílmicas e as operações da dança. São eles, a dança como
FR

objeto do cinema-linguagem, a documentação em dança e a dança feita em vídeo e em


filme-película (um filme-dança). No primeiro momento, este encontro gerará as relações
entre cinema e dança por meio do objeto privilegiado do cinema: o filme. A dança é vista,
nas primeiras décadas do século XX, como sendo um excelente meio para a exploração
das possibilidades do cinema enquanto arte e enquanto técnica. Daqui, desdobrar-se-ão as
estabilizações desta operação fílmica (Deleuze), nas formas dos gêneros (o musical) e dos
estilos dentro dos gêneros de filmes.

133
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

obras. No trânsito entre scinestesia, ‘performance’ e audiovisual


configuram-se artes do intervalo, diferentes planos conceituais para
ativar a compreensão da arte – e das artes cênicas – do tempo recente

D
e o que faz dela a ‘arte contemporânea’ (conceitualmente falando).
Este formato do texto histórico tem-se como veio ou fio condutor
a perspectiva enunciada logo no início do texto, de re-encontrar

A
estruturas e conceitos que integrados às obras possam delas sair e
definir seu contorno, tal como o fizeram nossos precursores críticos

LO
do romantismo alemão.
Na segunda parte deste ensaio, adentraremos nas relações entre a
teorização da dança cênica denominada de dança contemporânea e o
desafio particular de (re)pensar o conceito de contemporaneidade.

N
W
IIa. Parte. O conceito de contemporaneidade: desafios e
dilemas de uma versão filosófica para o campo do estudo
da arte e da dança cênica
O

Um tripé para a ‘dança contemporânea’


D

Há um conjunto de questões que não cessam de causar ruído


ao produtor, ao artista, ao espectador-analista e ao público em geral.
Como se pode lidar com a complexidade e a promiscuidade de
EE

elementos, o tráfico propriamente dito entre conceitos, ideias, formas


e culturas no denominado cenário artístico hodierno?. Pensamos
que, no espaço reduzido de um exercício textual de crítica, teoria
e um pouco de historiografia podemos e devemos nos restringir ao
FR

exercício de leitura de categorizações que insistem em se apresentar


nos textos que tratam da problemática das artes contemporâneas.
Elas são exatamente as noções de corpo, o próprio conceito de arte
(e, no caso específico deste texto, da arte da dança) e o conceito de
contemporâneo. Em geral, este trio aparece conjugado nas formas

134
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

do corpo da dança na contemporaneidade, da dança contemporânea


no corpo, do corpo contemporâneo na dança, da dança do corpo na
contemporaneidade, da contemporaneidade da dança do corpo e da

D
contemporaneidade do corpo na dança. São arranjos variáveis de
um tripé de termos que deverão estar correlacionados aos conjuntos
teóricos do campo artístico-intermidial. Mas todos eles insistem

A
numa problemática comum de que existe um corpo, existe um corpo
que dança e um corpo da dança, e existe um corpo contemporâneo e

LO
que, portanto, existiria assim, por relação, um corpo contemporâneo
na dança, que se torna, também ela, contemporânea, manifestando
o universo sintomal do presente, saltando dele, para aquém e para
além do próprio tempo, mesmo quando situada nele, sob a forma de
uma posição diacrítica ou do que poderíamos tratar como sendo um
N
mal-estar da contemporaneidade e do corpo e, mais ainda, o mal-
estar do estado atual da arte ou da arte na atualidade.
W
Isto parece remeter a um conjunto de tautologias, jogos de
linguagem. Mas não se trata exatamente disso. Trata-se da condição
de descrever as conjugações possíveis e elencadas pela trinca dos
O

termos que ressaltam em nossos textos de crítica, história e teoria das


artes e da arte da dança.
D

Nestes termos vamos realizar um esforço conjunto de tratar de


um modo novo desta relação, deixando de lado a simples premissa
de que existe uma dança contemporânea e de que esta está sendo
EE

identificada por um conjunto de procedimentos, metodologias de


pesquisa e de processos de criação e seus conteúdos resultantes.
Vamos analisar a problemática que se põe para o mundo da
dança tensionando a existência dos termos, contemporâneo e corpo.
FR

Para pensar o contemporâneo convocamos uma relação ao tempo. E


para pensar o corpo convocamos a perspectiva de um incorporal e de
uma ausência. Sendo assim, vamos chamar um campo filosófico para
constituir o que se poderia chamar um tipo de patamar filosófico
para a produção artística contemporânea.

135
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Mergulhar nas trevas do presente: o contemporâneo


enquanto tempo

D
A contemporaneidade, portanto, é uma singular
relação com o próprio tempo, que adere a este

A
e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias, mais
precisamente, essa é a relação com o tempo
que a este adere através de uma dissociação e

LO
de um anacronismo. Aqueles que coincidem
muito plenamente com a época, que em todos
os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são
contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar
sobre ela (AGAMBEN, 2009, p. 59).

N
Vejamos que, de início, o filosófico já nos indica que falar em
W
contemporaneidade é tratar de uma relação com o tempo e a partir
de uma noção de tempo. Para Agamben, esta premissa se encontra
nas notas de aula de Roland Barthes quando este afirma que, aos
O

moldes de Nietzsche, ‘o contemporâneo é o intempestivo’, ou seja,


um tipo de postura de acerto de contas com sua própria época, de sua
cultura e civilização. Intempestivo designa justamente o inesperado e
D

o inoportuno, o inadequado e de um modo mais amplo o desajustado,


pois somente o desajuste pode fazer a exigência de um princípio
ético e político do acerto de contas. Este acerto se refere ao modo
EE

como toda época elege certos valores em detrimento de outros, ou


seja, se constroem a partir de velamentos, apagamentos, silêncios,
recusas. Para aceder a um olhar crítico – perspectivismo nietzschiano
e desconstrucionismo derridadiano – e lançar uma denúncia daquilo
FR

que foi banalmente considerado o mais atual, a característica e a


premissa lógica do presente, se faz necessária uma desconexão, uma
dissociação.
Desse modo, o contemporâneo é um conceito e uma relação
ao tempo que inclui o paradoxo do pertencimento no desajuste,

136
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

provocando uma inatualidade, um mal-estar do presente, uma


discronia ou um anacronismo no e do tempo.

D
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é
verdadeiramente contemporâneo, aquele que
não coincide perfeitamente com este, nem

A
está adequado às suas pretensões e é, portanto,
nesse sentido inatual; mas, exatamente por isso,
exatamente através desse deslocamento e desse

LO
anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de
perceber e apreender o seu tempo (AGAMBEN,
2009, p. 58-59).

Para o historiador e para um historiador da arte – e aqui, no


N
caso específico para uma história do campo cênico e da dança cênica
– parece uma heresia ao tempo fazer uso desta perspectiva, fundada
W
numa perspectiva de anacronismo (a-cronos), o que poderia designar
algo fora do tempo, mas, que, no entanto, apenas substantiva uma
relação imprópria com a ordem cronológica do tempo, ou seja,
O

uma desordem do Cronos não para instaurar uma sincronia – num


sistema de correlações – mas para reforçar esta ‘des-cronização’, a
D

descolonização do Tempo cronológico.


Assim, entendemos que contemporâneo é um sinônimo para
um efeito de ‘descronização’. Retomando o que foi afirmado na
EE

epígrafe:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular


relação com o próprio tempo, que adere a este
e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias, mais
FR

precisamente, essa é a relação com o tempo


que a este adere através de uma dissociação e
de um anacronismo. Aqueles que coincidem
muito plenamente com a época, que em todos
os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são
contemporâneos porque, exatamente por isso, não

137
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar


sobre ela (AGAMBEN, 2009, p. 59).

Este é um tipo de comentário ético-político com um fundo vital,

D
pois trata exatamente de um mal-estar para com sua própria época,
um desejo de fugir e a impossibilidade de fugir e daí o nascimento de

A
um modo crítico de se situar e um modo carnal e intenso de existir
no mundo. Ser contemporâneo trata de uma aderência mal resolvida

LO
ou de um ato de extirpação incompleto do qual resulta a marca e
a presença constante de um afeto. É nestes termos que Agamben
convoca a figura exemplar do poeta para pensar esta relação entre
sujeito e tempo que funda a condição da contemporaneidade e daí
entender que só existe contemporaneidade pelo fato de existir uma

N
posição subjetiva e sua exemplaridade evocada aqui na figura do
artista (poeta). Pois uma relação artística com uma época é sempre
W
marcada por um princípio vital e numa troca simbólica na qual o
sujeito ferido se constitui na mesma medida em que paga o óbolo
da sua carne. Agamben, ao analisar um poema russo, mostra que o
O

pagamento do artista é feito com sangue e vértebras, com carnalidade


e ferida, o preço de uma estruturação crítica.
Uma vida singular é capaz de reunificar – soldar – tempos cindidos
D

e distanciados por meio de um jogo de evocações e correspondências.


O tempo da vida individual olha para o tempo histórico e observa
a fratura e nomeia a descontinuidade existente entre vida e história
EE

(tempo linear, cronológico e evolutivo). O mundo caminha inexorável


e, inexorável é também o fim que se aproxima, quanto mais sentido
acumula mais fim se faz presente, como fantasma e como marca na
carne. Assim, uma atitude artística é a de fazer fraturas no tempo
FR

para oferecer a este Deus Cronos devorador a sua própria carne, pois
as artes tal qual a História são musas netas do Cronos (Tempo) e
filhas de Zeus e de Mnemosine (Memória).
O que se revela enquanto arte é a fratura e o que faz a sutura
é a operação que revela na historicidade uma continuidade possível

138
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

na impossibilidade estrutural de se ser contemporâneo e, ao mesmo


tempo, ser histórico, nos termos de uma inserção no tempo presente
e uma evocação/continuação fluida entre tempo passado, presente

D
e futuro.
Olhar para o tempo e para o seu próprio tempo impede a

A
banalização da continuidade, permite fazer reverberar (retornar)
o passado no presente (retorno do recalque) e como alucinação
da duração contínua, espiral do tempo eterno do passado no

LO
presente, um prolongamento do passado no presente (Bergson).
Mas é também um modo de valorização do instante presente e do
Real (bachelardiano). O Tempo olhado de frente só permitiria ver
a imaginação da memória – e a memória como sendo ela própria da

N
ordem ficcional – e um estado permanente de acesso ao mundo pela
via dos seus fragmentos imaginários.
W
E, mais ainda, aos moldes de Agamben, um modo de encarar a
obscuridade de cada época, a densificação e a expansão do campo de
luz para a zona de trevas e sombras que cada época deseja ocultar.
O

Assim, ser contemporâneo é mergulhar nas “trevas do presente”.


(Agamben). Ou seja, tal como já havia enunciado antes, este mal-
estar deve se aprofundar e adentrar, localizando-se não apenas
D

como condição ética e política, mas como sendo condição neural e


fisiológica de nossa experiência do tempo.
Trata-se de ver na (íntima) obscuridade. Ver n ‘o coração das
EE

trevas’. Neutralizar as luzes e ver nas sombras. O elogio da sombra.


Acessar a contemporaneidade pela via do fantasma, e, portanto,
na perspectiva de uma ‘a-cronia’, de uma inatualidade e de um
arcaísmo. Ou, mais ainda, uma experiência cósmica, nos termos de
FR

uma astrofísica dos corpos celestes.


Tudo isto continua a remeter a uma relação diacrítica e de
mal-estar com o tempo presente. Interpelar a escuridão para nela
perceber a luz que não se alcança. Estar à distância longínqua
daquilo que a nós se dirige e que nos convoca. Estar no presente e

139
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

não poder ser alcançado. Aguardar incessantemente o encontro que


não se cumpre, uma promessa messiânica no tempo. Assim, ficamos
nós também, anacrônicos, descompassados, deslocados em face do
presente ao qual pertencemos. Trata-se de se ter chegado antes ou

D
depois do acontecimento, sempre deslocados, desalinhados com o
tempo e com os acontecimentos.

A
Desse modo, a contemporaneidade é um modo particular de
tratar a época na qual se vive, vendo nas trevas a luz que se esconde

LO
num encontro marcado e impossível de acontecer, uma obliquidade
do encontro. É uma ‘descronização’ do tempo cronológico que
não nega a inexorabilidade da diacronia e, ao mesmo tempo, se
sente nela desconfortável, desalinhado, anacrônico, desordem das

N
temporalidades no presente e não apenas atualização do passado no
presente (continuidade entre passado e presente, tradição), mas dos
fundamentos arcaizantes revelados no presente. Não o passado, mas
W
o arcaico.
Assim, na qualidade do nosso tempo presente, tempo dos
O

dispositivos tecnológicos (mídias) e da moda, transbordam as


relações entre atualidade (presente) e inatualidade (arcaísmo), que
não se trata exatamente de um passado, mas de algo que continua
D

colado ao presente, mas que já não pode ser usado ou que mesmo
sendo usado não é considerado paradigmático. É o que ocorre
no paradigma imperante da superação contínua dos dispositivos
EE

tecnológicos. A aceleração e a pressão da tecnologia, além de serem


ameaças constantes aos processos de subjetivação, tornam-se elas
próprias as formas de uma relação que, a partir do presente, antecipa
futuros (e novos cenários, novas tecnologias, novas modas) e suprime
o presente, tornando-o rapidamente arcaico, verdadeiro lixo. Ao
FR

mesmo tempo, re-edita passados, sob a forma de fantasmagorias


(Benjamin) e fantasmas (Freud-Lacan), reatualizando e parodiando
todos os passados e evocando e dando vida aos mortos. Assim, ser
contemporâneo é também saber re-editar o arcaico e fazer vir à tona
não apenas a operação do recalque, mas erguer na fissura do presente

140
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

as relações que se dão na via de mão dupla, em direção ao futuro (de


volta ao futuro) e em direção ao passado.
Mais uma vez, Agamben, em outro texto, acerca das profanações,

D
aponta para a relação entre poesia, sagração e profanação. Um lugar
que no tempo presente foi ocupado em grande parte pelo artista e

A
pela ideia mais ampla de uma ‘vida como obra de arte’, como sendo
a posição representativa da contemporaneidade. Experimentando o
desafio propugnado pelas mídias, modas e dispositivos em geral, a

LO
vida como obra de arte numa ideia de um constante projetar-se /
lançar-se, mostrando-se como o que ainda não é, mas um vir-a-ser
(que é tanto abertura para a infinitude transcendente quanto para
a infinitude de todos os passados acumulados), e, neste movimento,

N
dizendo também o que já não é, ainda que esteja presente.
Ser contemporâneo é transgredir o tempo do presente no
W
presente, na pluralidade dos ‘aquis-e-agoras’ (Anne Cauquelin),
atual-inatual, vislumbrando as formações do tempo não apenas
como espetáculo da memória (narrativa; rememoração), mas como
O

acesso direto ao mundo do arcaico (revivescência).


D

O senso do arcaico no contemporâneo, a memória


emocional, o fantasma e o lugar da arte-dança
EE

Como vimos ao fim do tópico anterior, trata-se mesmo de


apreender outra formação de memória, memória de sensação,
memória de afeto e memória das emoções.
FR

Esta é a formulação de um conceito de memória mais adequada


aos que pesquisam uma história do corpo e no corpo e que afeta
diretamente uma compreensão não apenas do corpo estético-formal
do espetáculo bem como o corpo enquanto aisthesis – sensação,
afecção – e que, portanto, incide no processo de embodiment –

141
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

encarnação e processo de investigação das poéticas na carne e no


corpo.
Quando se remete ao mundo do arcaísmo, o atual se abre

D
instantaneamente ao inatual, eles se encontram unificados, às vezes
justapostos, reunidos, às vezes sobrepostos, em ocultamentos, mas

A
sempre identificados. A temporalidade presente carrega consigo,
portanto, o presente atual (o hodierno) e uma inatualidade do
tempo que não é exatamente a mesma coisa que a abertura ao

LO
passado (pela via da rememoração, recordação), mas um modo de
se relacionar ao passado que passa pelo arcaico, pela atualidade
presente do que já foi vivido e sentido. Assim, mais uma vez se
confirma a ideia de uma memória do afeto, uma memória que

N
tem seus fundamentos num corpo vivido-experimentado (corpo
Real, corpo material, corpo carne, corpo sensorial) e num corpo
emocional (a internalização psíquica do vivido-experimentado, sob
W
a forma de uma imagem psíquica das emoções, entendida como
sendo uma imagem rítmica).
O

[...] qual pode ser o conteúdo da imagem de uma


emoção? Quero dizer, o que é que figura nele?
D

Supondo que a imagem seja como um medalhão,


que motivo pode aparecer ali? Uma efígie, uma cena?
Para responder, preciso antes definir brevemente a
emoção como uma tensão, a tensão criada entre duas
sensibilidades que se enlaçam, ondulam e se ajustam
EE

à maneira de um casal de dançarinos evoluindo ao


ritmo da música. A emoção é a mais íntima tensão
do encontro carnal, desejante e simbólico [...] Ora,
o que interessa e permanecerá inscrito em imagens
são as variações ritmadas dessa tensão, a cadência
FR

da troca sensorial e sensual entre duas presenças que


frequentemente concordam e às vezes discordam.
O que constitui imagem e permanecerá inscrito
na memória inconsciente [...] não é a carícia real
[...], o que se inscreve e perdura no inconsciente é
a percepção dos tempos fortes e tempos fracos da
intensidade de seu contato carnal.

142
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

Compreendemos agora por que o conteúdo do


medalhão não pode ser nem figurativo nem
narrativo. A imagem da emoção não é em absoluto
uma figura. Ao contrário, devemos fazer um esforço

D
para renunciar a representá-la sob a forma visual. A
imagem da emoção não é visual, mas essencialmente
rítmica; ela é o traço de um ritmo, a marca em relevo

A
das variações ritmadas da intensidade emocional
(NASIO, 2009, p. 34-35).

LO
Combina-se assim, um arcaico remetido a uma memória do
afeto que se estabelece numa forma de imagem rítmica, uma imagem
que pode ser pensada aos moldes de um funcionamento partitural-
coreológico.

N
Nestes termos, o senso do arcaico contido na noção de
contemporaneidade convoca efetivamente a presença de uma
dimensão corporal, dos estados afectuais vividos pelo e no corpo. É
W
de um estado do corpo a uma revivescência que se pode falar, para
que surja não o passado rememorado (memória narrativa, memória
imaginarizada), mas o arcaísmo de todas as temporalidades, ou
O

seja, aquilo que se torna inatual a cada momento do vivido. E isto


surge pela emoção, fulgura como sendo um instante. Nestes termos,
D

a atualização do tempo e o sentido do termo anacrônico voltam a


estar no centro do nosso debate sobre a contemporaneidade. Pois o
anacronismo é uma nova produção do passado no presente, agora
EE

inventado e daí o passado altera o presente e o presente modifica


o passado novamente. É um senso produtivo do tempo que está em
jogo, um tempo de urgência e de ação, tal como na trilha já traçada
por Freud e por Benjamin.
FR

Vejamos o que nos diz Agamben (2009, p. 69-70):

De fato, a contemporaneidade se escreve no


presente assinalando-o antes de tudo como arcaico,
e somente quem percebe no mais moderno e
recente os índices e as assinaturas do arcaico pode

143
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo


da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está
situada apenas num passado cronológico: ela é
contemporânea ao devir histórico e não cessa de

D
operar neste, como o embrião continua a agir nos
tecidos do organismo maduro e a criança na vida
psíquica do adulto. A distância – e, ao mesmo tempo,

A
a proximidade – que define a contemporaneidade
tem o seu fundamento nessa proximidade com
a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais

LO
força do que no presente [...].
Os historiadores da literatura e da arte sabem que
entre o arcaico e o moderno há um compromisso
secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas
parecem exercitar sobre o presente um fascínio

N
particular quanto porque a chave do moderno
está escondida no imemorial e no pré-histórico.
Assim, o mundo antigo no seu fim se volta, para
W
se reencontrar, aos primórdios; a vanguarda, que se
extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico.
É nesse sentido que se pode dizer que a via de
acesso ao presente tem necessariamente a forma
O

de uma arqueologia que não regride, no entanto,


a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no
presente não podemos em nenhum caso viver e,
D

restando não vivido, é incessantemente relançado


para a origem, sem jamais poder alcançá-la. Já
que o presente não é outra coisa senão a parte de
não vivido em todo vivido, e aquilo que impede o
EE

acesso ao presente é precisamente a massa daquilo


que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a
sua extrema proximidade), neste não conseguimos
viver. A atenção dirigida a esse não vivido é a vida
do contemporâneo. E ser contemporâneo significa,
nesse sentido, voltar a um presente em que jamais
FR

estivemos.

O presente é o arcaico, como a criança que insiste em viver


em cada um de nós. É da atualidade da infância e de uma memória
infantil que se trata.

144
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

Então, apreendemos que o arcaico é justo o que desloca tempo-


espaço, trazendo para o tempo a perspectiva do fantasma, tal como o
recupera Derrida-leitor de Freud, um tema da temporalidade singular

D
ou do momento espectral, o que ele denomina de ‘sobrevida’. Nestes
termos, a cadeia de leituras de Benjamin-Freud, Benjamin-Agamben
e Freud-Lacan-Derrida nos informa da presença espectral que

A
desarticula a identidade (a si) do presente (vivo). Há algo para fora do
presente e do acontecimento que faz vivificar o arcaísmo. Portanto, o

LO
arcaico só pode falar de espectros e fantasmas, fantasmagorias (Freud,
Benjamin, Derrida). O que é Isto (novamente)? O Fantasma é o que
desarticula a presença do presente e que demonstra a nós a diferença
entre o presente em relação a si mesmo, ou seja, a inatualidade do
tempo presente a si-mesmo.
N
Em 1915, Freud já falava desta transitoriedade e isto poderia
W
já afirmar que há um trabalho do luto que se inicia no fantasma,
no espectro. A primeira atividade do luto é a espectralização do
tempo presente, fazendo contemporâneo aquilo que não está no
O

presente. Mais uma vez, como já afirmamos mais acima, isto é uma
definição ética e política e não prioritariamente histórica do tempo,
pois não trata de reclamar do luto apenas a reparação, a recuperação
D

(arqueológica) e a vingança – o Olho da História –, mas de


desarticular o presente para abrir a abissalidade na dupla direção do
passado e do futuro, exceder o presente em vias duplas, nomeando
EE

algo no futuro antecipado como passado. Isto é o que costumamos


denominar de Previsão. São as direções da ausência, daquilo que
não é mais e daquilo que ainda não aconteceu. O novo já está nos
sinais do presente, o antigo continua vivo. Então, o arcaico não é
FR

algo que possa ser simplesmente escavado. Ele volta dentro e por
trás de toda instância repressora (recalque). Ele opera justamente
no retorno do recalcado, naquilo que volta, surpreendendo-nos,
desarticulando tempo-espaço, vindo do futuro para ocupar o lugar
da própria instância repressora. Um pensamento das heranças, do

145
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

que vem e do que ainda não aconteceu ou do que foi abandonado


(rastro), algo da ordem messiânica.
Assim, a pontuação freudiana-derridadiana não irá tratar o tema

D
do fantasma apenas pela compreensão da Imagem e do Imaginário.
A questão posta pelo Arcaico se refere justamente a um sujeito

A
mergulhado no Irreal (não no Imaginário, aquilo que é da ordem da
cultura e do aprisionamento do Desejo na pequena esfera do ‘objeto
a.’). No Irreal, só há espaço para convocar o Mito, o correlato de todos

LO
os Fantasmas. O Fantasma não é necessariamente imaginarizável,
ele está atrás da cortina, acompanhando o medo, incomunicável,
inapreensível, impossível de ser encontrado ao fim da história, não
sendo alvo de negociação ou troca (cultural). Como avisa Derrida, o

N
Fantasma só surge. Ele aparece quando olhamos para o que não podia
ter sido visto – um intervisto do interdito. Ele só aparece quando o
que vemos nos olha – a nossa imagem no espelho abre a fenda para
W
encontro com o próprio Olhar. E essa imagem autônoma – fantasmal
– faz todos os Duplos. Esta condição demonstra o caráter mítico e
onírico do histórico. A história labiríntica é também mítica e, fusiona
O

o tempo da história com o tempo dos mitos, saída que não é apenas
do Imaginário, mas do Fantasma.
D

Uma arte e uma dança contemporâneas devem ser capazes


de manter certas atitudes programáticas em face do tempo,
diante da contemporaneidade e do modo como esta deve ser
EE

lembrada enquanto regime do arcaico. Lembremos: arcaico e


anacronismo numa perspectiva inaugurada por Freud para pensar
a contemporaneidade trata de modificar o sentido usual dos termos
dados. Não se pode pensar como um deslocamento equivocado ou
em desacordo, num sentido negativo do termo, como algo que já
FR

foi ultrapassado. É uma positivação da operação de negatividade.


A impropriedade cronológica, o descompasso, o uso proposital de
um deslocamento e de um mal-estar é uma posição ético-política
e estética. Trata-se de uma posição acerca do tempo e do presente,
uma posição que se sustenta num mal-estar em face da novidade e

146
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

um modo de se relacionar de modo deslocado e capaz de unificar


passado-presente-futuro de um modo peculiar (uma relação entre
arcaico e contemporaneidade – inatual e atual), simultaneidade

D
de temporalidades (tempos desarticulados, tempos fraturados) e
heterogeneidade de espaços (heterogênese dos lugares, clivagens
admitidas, fragmentação do espaço) mantendo sempre a abertura ou

A
a fratura, cujo preço a ser pago é devido com a própria carnalidade
que exige um apontamento para uma forma da memória que não

LO
exclusivamente imaginária e narrativa (memória rememoração),
mas como memória emocional, advinda de uma revivescência. A
convocação aqui é mais do Mito do que da História, o correlato do
Fantasma. E isto enuncia a presença do caráter mítico que cinde
toda a temporalidade histórica.
N
Assim, pensamos que, no caso específico das artes cênicas e da
dança cênica, há uma relação arcaica e anacrônica do corpo. O corpo
W
presença pode e deve ser olhado na perspectiva do corpo-fantasma, o
fantasma do corpo infantil e de nossa memória arcaica ou anacrônica,
memória emocional e rítmica, relacional, partitural e coreológica. Um
O

corpo que deve ser percebido não apenas enquanto a imagem visual
do corpo em cena. Um corpo que deve ser apreendido enquanto
D

coreologia, ritmo das trocas e relações tempo-espaço e atualização


permanente, jogo de compressão das múltiplas temporalidades nos
fragmentos do espaço tornado cênico.
EE

Esta revirada dos termos e o anacronismo da contemporaneidade


permitem à dança que se quer contemporânea não apenas fazer da
dança um modo de refletir sobre o corpo. Muito antes pelo contrário,
não é a dança que reflete o corpo. Mas a dança é o conceito do corpo
FR

(Alain Badiou). O corpo dançante ou movente é o inconsciente do


nosso corpo pulsional invocante, corpo rítmico ou corpo sonoro
(caixa de ressonância).
O corpo Real é um corpo sensação-emoção-desejo-Gozo e
um corpo pensante, movido por uma invocação rítmica interna e

147
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

da lei dionisíaca que visa desabitar o campo narrativo e imagético-


visual e instaurar uma linguagem de síncopes, de diástoles, de formas
promovidas por movimentos e suas parcelaridades.

D
Esta outra linguagem interna e rítmica dança e faz nascer um
corpo tal como um acontecimento, uma invenção de corpo (a noçao

A
de invenção de corpo encontra-se na esteira do pensamento de
Nietzsche e terá seguimento em Deleuze, bem como sua abordagem
crítica em Badiou e Didier-Weill). Diz Didier-Weill que se trata

LO
de um empuxo íntimo na extimidade, uma captura pelo Gozo em
toda a sua singularidade, a revalorização do passo-a-passo de uma
experiência. Este empuxo faz acontecer um corpo pela dança, como
linguagem rítmica que nasce na anterioridade do sujeito da língua,

N
num corpo que nasceu por ser habitado por uma pulsão invocante.
O que, aos moldes de Badiou, se traduz na figura do corpo pensante,
um corpo que se produz num estado (experiência) antes do Nome
W
(e das representações) e, mais ainda, antes do tempo cronológico
(sequencial) e dentro do tempo do Aion (acontecimentos). Mas
uma história sim, uma história afirmada pelo viés do Real e dos
O

acontecimentos.
A dança e a música comemoram, a imagem e a fala rememoram.
D

Ambas tratam de ações e acontecimentos como potências. A


dança faz acontecer o corpo revelado como casa-habitação e como
movimento-ação, religando corpo, sujeito e espírito-alma. Ele faz isto
EE

ao decantar no movimento o material (e o Real), a presença (o atual),


o inatual e a virtualidade (o incorporal do corpo). Para apreender
isto na história dos movimentos da dança – Nijinski, Graham,
Duncan, Cunningham, Nikolais – são significativos os embreantes
aqui nomeados. Eles partem de premissas que se desocupam do lugar
FR

de narrativa (história e diegese; memória narrativa; lembrança e


rememoração, incluindo aí a memória repetitiva do movimento) e
vão ao corpo como sendo o lugar de uma sensação-emoção. Estas
experimentações modernas serão altamente marcadas nas escolas
de Béjart e, mais profundamente, de Pina Bausch. Em ambos,

148
4 REFLEXÕES EM ESTUDOS DE TEORIA DA ARTE E DANÇA CÊNICA

reconhece-se o corpo emocional resultante de impressões (isto


tem forte associação com a perspectiva de corpo labaniano: corpo
emocional e um corpo resultante de tensões e ritmos internos de

D
tensão que se expressam na forma-movimento).
Deste modo, ao acionar nosso olhar fruidor e crítico, de

A
pesquisador e de audiência, devemos inverter a questão de como
se pensa o corpo que dança para a pergunta: o que pensa enquanto
dança o corpo? E enquanto pensa celebra a religação e a continuidade

LO
– a sutura – do corpo sonoro no corpo falante.
Se em ensaio anterior, reconhecemos os sinais da
contemporaneidade em categorias estéticas e de produção (e do
biotech body, como enuncia Anne Cauquelin), aqui, olhamos a
N
contemporaneidade enquanto lógica do tempo, não apenas um
coreografar dos movimentos – seja por relação, seja por interação –
W
mas um coreografar do tempo, coreografar das origens (arké, arcaico)
e também do Aion, pois a chave do contemporâneo se encontra no
imemorial e no arcaico. Estamos diante de uma perspectiva do fazer
O

artístico que propõe uma arqueologia dos gestos e dos movimentos,


não como reencontro de camadas ordenadas e cronológicas, mas
como restos de diferentes passados no corpo que nos relançam de
D

volta ao começo, atualização de elementos não-elaborados do vivido,


de não- vividos.
Eis o desafio propugnado ao artista na contemporaneidade.
EE

Como se re-encontrar o corpo dançante que não é apenas o


corpo videográfico ou corpo forma e conteúdo narrativo? E como
afirmar a posição estratégica da dança para pensar corporalmente a
experiência artística e o desconforto e o mal-estar do corpo sempre
FR

pressionado a se fazer comparecimento no mundo hodierno, mas


sempre percebido como o mais ausente? Saídas de si mesmo trazem
à tona as possibilidades da penetração estrangeira. O dançante
convoca a experimentar como se fosse a primeira vez, reivindicar
um corpo que não esteja saturado de imagens (corpo-imagem é uma

149
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

forma habitual da cultura e da civilização hodiernas) mas que seja


a reinvenção dos modos expositivos do corpo encenado. O corpo
pensante e pulsante (invocante) promovido pela dança interroga o

D
corpo falante e revela uma exterioridade íntima provocada justo pela
potência do ser dançante e dionisíaco que nos habita, segredo íntimo
do corpo e seus ritmos internos e grau de exposição máxima deste

A
mesmo corpo na exterioridade encenada do mundo.

LO
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N
W
O
D
EE
FR

153
FR
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LO
A
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5

D
Dança, educação e

A
contemporaneidade: dilemas e

LO
desafios sobre o que ensinar e o que
aprender
Alba Pedreira Vieira

Introdução
N
W
Quando refletimos sobre dilemas e desafios da dança na
educação, não há como deixar de lado o processo ensino-
O

aprendizagem. Discussões sobre o que ensinar e o que aprender


abordam, geralmente, o que o professor de dança deve ensinar
D

e o que seu aluno, supostamente, deve aprender. Tenho eu


mesma, como professora de dança há mais de 20 anos, no
Ensino Superior e Básico, confrontado-me com constantes
desafios sobre esta temática, o que instiga reflexões sobre o que
EE

o professor de dança aprende e o que seu aluno lhe ‘ensina’. Este


parece ser um jogo de inversão de papéis interessante, polêmico,
às vezes tenso, e no geral complexo. Tendo presente as diversas
inter-relações, bem como múltiplas interfaces e faces da dança
FR

na escola contemporânea, e as tênues e cambiáveis fronteiras


do ensinar e aprender em dança, o que espero com este texto é
contribuir para que possamos compreender e qualificar melhor
dois lados (ensinar e aprender) de uma mesma moeda (dança e
educação).
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Assim, a temática foco desse artigo se situa dentre os vários


dilemas e desafios enfrentados pelos sujeitos que dançam na
contemporaneidade. Pesquisadores brasileiros abordam alguns
estreitamente relacionados com a dança na educação, por exemplo:

D
Vieira (2008) comenta a inclusão da dança nos Parâmetros
Curriculares Nacionais em Arte e o aumento significativo do número

A
de cursos superiores de Dança no Brasil; Strazzacappa e Morandi
(2006) discutem a vontade de professores de escolas aprenderem

LO
‘receitas prontas’ de coreografias a serem ensinadas aos alunos para
que esses se apresentem nas datas comemorativas (festa junina, festa
de encerramento do ano escolar e outras); Marques (2010) enfatiza
a necessidade de ensinarmos a partir do contexto dos nossos alunos;
Lara e Vieira (2010) ressaltam a necessidade de se estabelecer um
N
‘jogo’ colaborativo entre professor e alunos no processo educacional
em dança.
W
A fim de contribuir com essa temática, esse texto tem o
objetivo de abordar dilemas e desafios nas relações entre dança,
educação e contemporaneidade, focando especificamente sobre
O

o que ensinar e o que aprender nesse universo. Meu ponto de


partida é o compartilhamento de um projeto artístico-educacional-
D

investigativo que coordenei em Viçosa, MG, no qual desenvolvemos


a fruição e usufruição em dança com estudantes de instituições não-
particulares.
EE

Esse artigo mescla descrição e reflexão sobre ações realizadas


em diversas instituições educacionais públicas como parte do projeto
anteriormente mencionado. Detalhamentos sobre onde e o que
aconteceu serão apresentados adiante no texto. Essa abordagem é
baseada no pensamento Tao chinês, em que ação e reflexão não podem
FR

existir separados. A ação, ou componente yang, de uma experiência


conota movimento levando a transformações. Por exemplo, diante
de um dilema, algo vibrante ocorre e essa energia faz com que as
pessoas busquem novos caminhos, novos desafios, novas direções.
Reciprocamente, a reflexão, ou componente yin, de uma experiência

156
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

conota significado. A reflexão nos permite organizar e interpretar


a ação de tal forma que qualquer mudança que tenha ocorrido é
compreendida e até mesmo apreciada. O dilema se torna então um

D
desafio que nos estimula a trilhar novos caminhos e desafios. Sem
reflexão, os aspectos positivos da ação são fugazes. Sem a ação –
que em dança inclui o movimento – a reflexão é postura intelectual

A
sem implicações no mundo real (SIMPSON; MILLER, BOCHER,
2006).

LO
Em meio às descrições das ações e resultados que apresento, e
das reflexões que desenvolvo, muitas camadas vão sendo reveladas,
como quando se descasca uma cebola. Compartilho significados
e elementos da educação da fruição e usufruição em dança

N
experienciada por estudantes da educação infantil e do ensino básico
de instituições não-particulares, e também discuto como esse estudo
e jornada educacional foram nutridos pela minha filosofia pedagógica
W
inicial, que mudou ao longo do caminho.
Foi a partir de uma filosofia pedagógica crítica (FREIRE, 1996)
O

que tudo começou. Deixei o país em 2003 e quando voltei ao Brasil


em 2007, após terminar meu doutorado em Dança na Universidade
Temple, nos Estados Unidos, retomei à minha condição de professora
D

no Curso de Graduação em Dança da Universidade Federal de Viçosa/


UFV. Trouxe comigo uma nova preocupação, ‘alfabetização em
dança’, o que alguns autores, por exemplo (BUCEK, 1998) nomeiam
EE

de educação estética em dança, outros somaesthetics1 (ARNOLD,


2005), e ainda há aqueles que denominam esse processo de educação
para apreciação da dança. Ann Dils (2007, p. 569) ainda usa o termo
‘alfabetização em dança’, um termo aplicado ao trabalho em que os
FR

“estudantes são familiarizados com a dança”.


Ao retornar ao meu país, após quatro anos em que aqui não
estive, tornei-me ciente das implicações que poderiam ocorrer nos

1 Tradução livre da autora: educação estética do soma.

157
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

próximos anos como fruto de desenvolvimentos recentes na arte e


na cultura no Brasil. Nos últimos anos, o governo brasileiro criou
e/ou aumentou o número de leis, bolsas, prêmios e financiamento
de projetos em arte. Houve também investimento na elaboração

D
de políticas públicas em arte. O principal objetivo dessas iniciativas
é manter, desenvolver e difundir a cultura. Esta é uma forma

A
de melhorar o acesso das pessoas à cultura e à arte, com base na
compreensão da importância da valorização cultural para o país.

LO
Para desenvolver uma discussão ampla e atualizada sobre
políticas que envolvem cada uma das linguagens artísticas, conselhos
foram criados e representantes setoriais da dança, em particular,
foram nomeados. Só no ano de 2010, até o momento, foram

N
realizadas a 9ª Reunião do Conselho Nacional de Políticas Culturais,
a Pré-conferência Setorial de Dança, a II Conferência Nacional de
Cultura, e a I Reunião do Colegiado Setorial de Dança. Como se
W
pode observar, há diversas iniciativas para permitir que a população
brasileira tenha acesso, experiencie e aprecie manifestações culturais
e artísticas. Como educadora e pesquisadora de dança, no entanto,
O

tenho observado que, pelo menos na cidade2 em que moro, o público


em geral, e estudantes em particular, estão ainda acostumados a
D

apreciar trabalhos oferecidos pela indústria cultural3, um termo


cunhado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento
(1947). A Indústria Cultural transforma a arte, incluindo a dança,
em um meio de ser igual. Um exemplo dessa proposição, retirada
EE

dessa minha pesquisa, é quando os estudantes apresentam respostas


iniciais (antes de iniciado o trabalho de campo) iguais para perguntas
como: ‘O que é a dança?’ e ‘Qual o gênero de dança que você mais
FR

2 Eu moro em uma cidade universitária, Viçosa, Minas Gerais, que tem uma população de
aproximadamente 80.000 pessoas.
3 Este termo denuncia uma discussão em que se afirma que nas relações de troca de
mercadorias, as quais todas as relações sociais são reduzidas, o trabalho cultural perde seu
brilho, sua singularidade e suas qualidades específicas. Ao tornar-se um valor de troca, há
uma dissolução da verdadeira arte e cultura.

158
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

gosta?’. A maioria deles diz que a dança é ballet clássico e eles


preferem hip-hop – ambos os gêneros são bem propagados pela
mídia (jornais, filmes, canais de televisão e revistas). O resultado
é que a indústria midiática alimenta um mercado que minimiza a

D
diversidade, e tem papel importante na formatação da sociedade por
meio do processo de padronização. Claro que há, nesse movimento,

A
iniciativas de resistência na apropriação cultural e fatores subjetivos
de parte da população, o que faz com que os meios de comunicação

LO
não sejam de todo hegemônicos. Mas esta discussão não é o objetivo
deste trabalho. Esse estudo foi realizado em Viçosa, MG, uma cidade
em que a maioria das crianças e adolescentes não tem a dança como
disciplina do currículo escolar.

N
Antes de a pesquisa ser iniciada, em conversas informais com
os alunos de muitas escolas, fiquei sabendo que a maioria preferia
hip-hop ou dança de rua, cujos elementos, tais como os passos,
W
são importados de culturas estrangeiras, sem uma reflexão mais
aprofundada sobre este tipo de atitude.4 Os alunos não percebem
que estão se colocando à margem da sua própria cultura. Portanto,
O

senti a necessidade de investigar e refletir sobre as contribuições da


‘alfabetização em dança’ (DILS, 2007); uma alfabetização que pudesse
D

permitir aos educandos conhecer outros gêneros dessa linguagem.


A dança é considerada uma arte efêmera e transitória. Mas
também tem os seus fixos e gêneros congelados, como o ballet
EE

clássico. No meu contato inicial com os participantes, observei que


os estudantes podem compreender o que as mensagens de uma obra
de ballet clássico transmitem o significado e os códigos corporais do
hip-hop. É difícil para a maioria dos alunos da Educação Infantil,
e do Ensino Fundamental e Médio, no entanto, perceber que a
FR

dança, como uma forma de arte, pode promover além de simples

4 Uma observação semelhante foi feita pelas pesquisadoras brasileiras Medrano e Valentim.
Ver seu artigo ‘A indústria cultural invade a escola brasileira’ (MEDRANO; VALENTIM,
2001).

159
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

entretenimento, da beleza dos corpos magros e da técnica refinada.


Muitos educandos nem sequer conhecem danças tradicionais
brasileiras como o congado, nem tampouco novos gêneros, como a

D
dança contemporânea. Outros ainda têm a ideia de que o virtuosismo
é uma prioridade na dança. Assim, na concepção e desenvolvimento
deste projeto, tentei encontrar estratégias que pudessem melhorar o

A
apoio à valorização e difusão cultural.

LO
Trajetórias nas escolas

O que apresento nesse texto é fruto de uma pesquisa-ação


N
desenvolvida de fevereiro de 2008 a setembro de 2010, a fim
de possibilitar alunos da Educação Infantil e do Ensino Básico
W
de instituições não-particulares de Viçosa estarem expostos a
múltiplas formas e expressões artísticas em dança. Atualmente, essa
pesquisa tem continuidade com alterações julgadas pertinentes para
O

qualificar o processo investigativo.5 Embora não tenha informações


demográficas completas sobre os participantes, foi possível observar
D

diversidade étnica, de gênero, e de nível de desenvolvimento real


do conhecimento (VYGOTSKY; LURIA, LEONTIEV, 1988)6. A
experiência de dança dos estudantes também foi diversificada: um
EE

número muito pequeno deles dançou balé clássico e/ou hip-hop ou


dança de rua em projetos artísticos da comunidade. Apenas alguns
alunos tiveram aulas de dança contemporânea. A idade deles variou
de três a 18 anos.
FR

5 Os subprojetos de ensino, pesquisa e extensão que são articulados com esse amplo projeto
contam com apoio financeiro do CNPq, Capes e Fapemig.
6 O desenvolvimento real, para os autores, já foi consolidado pelo sujeito e lhe possibilita
tornar-se capaz de resolver situações lançando mão de seu conhecimento de forma
autônoma. O nível de desenvolvimento real é dinâmico, e aumenta com os movimentos
do processo de aprendizagem.

160
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Do total de 1.000 participantes, 750 eram de dez escolas


(municipais ou estaduais) e 250 de quatro instituições não-
municipais e filantrópicas de Educação Infantil. Os alunos

D
tiveram duas oficinas de dança (50 min cada). Em 2008, o
projeto assim se desenvolveu: no primeiro semestre o trabalho
foi realizado com alunos do Ensino Médio, e no segundo semestre

A
foi desenvolvido com os alunos do sexto ao nono ano; em 2009,
no primeiro semestre, trabalhamos com os alunos do primeiro ao

LO
quinto ano; em todo ano de 2010, trabalhamos com educandos
do primeiro ao quinto ano, e do sexto ao nono ano; em 2011,
desenvolvemos o trabalho com discentes do primeiro ao quinto
ano. Durante dez meses de 2008, 2009 e 2010, os educandos

N
da Educação Infantil participaram das atividades do projeto. As
oficinas teórico-práticas desenvolvidas com os participantes lhes
ofereceram possibilidades de criar, recriar e valorizar o universo
W
da dança, além de serem apresentados a diferentes formas
e expressões artísticas, tais como dança de salão e do ventre,
flamenco, dança contemporânea, improvisação, dança de salão
O

e outros. Várias apresentações foram seguidas de diálogo entre


os artistas e o público. Os professores revisaram continuamente
D

o material pedagógico para negociar as necessidades, desejos e


interesses dos participantes com os deles próprios. Em muitas
oficinas, os alunos foram divididos em grupos para que cada um
se apresentasse e fosse observado por seus pares. Os estudantes
EE

também assistiram diversos trabalhos de dança ao vivo, de


grupos e/ou artistas profissionais e amadores (espetáculos,
números, mostras, instalações, performances e festivais em
teatros, em suas próprias escolas e no Curso de Dança da UFV)
FR

e na televisão (DVDs). Os participantes observaram aulas


de projetos de extensão e de alunos do Curso de Graduação
em Dança na universidade – ballet, dança contemporânea e
danças brasileiras. Finalmente, no final do semestre, muitos
participantes apresentaram seus trabalhos de dança, no teatro.

161
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

No processo de criação desses trabalhos, eles atuaram como


intérprete-criadores. As Figuras 1, 2, 3 e 4 explicitam diversos
momentos e propostas desenvolvidas no trabalho de campo: A
Figura 1 ao alto e à direita registra uma oficina prática com os

D
participantes do projeto em que alunos apreciam a dança de seus
colegas; a Figura 2 ao alto e à esquerda apresenta participantes

A
da Educação Infantil assistindo apresentação de dança-
teatro na própria instituição educacional; a Figura 3 abaixo

LO
e à direita demonstra estudantes em oficina prática de dança
contemporânea na escola; a Figura 4 abaixo e à direita mostra
participantes do projeto assistindo performance em dança no
teatro com bailarinos profissionais.

N
W
O
D
EE
FR

Figuras 1-4: diversos momentos e propostas desenvolvidas no trabalho de


campo.

162
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

As Figuras 5 e 6 ilustram outros procedimentos adotados no


trabalho de campo a fim de se desenvolver o alfabetismo em dança e
assim, mostram, respectivamente, participantes do projeto em diálogo
com artistas após espetáculo de dança no teatro, e apresentação de

D
participantes do projeto no palco.

A
LO
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Figuras 5 e 6: Demais estratégias desenvolvidas no trabalho de campo.

163
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Procedimentos metodológicos

Como explicado em outro artigo (VIEIRA, 2010a, p. 90),

D
Este estudo combina uma abordagem de ‘pesquisa
multi-metodológica’ (SCHUTZ et al., 2004, p. 227)

A
ao adotar a abordagem quanti-qualitativa que incluiu
a pesquisa-ação (KEMMIS; McTAGGART, 2005),
fenomenologia interpretativa (VAN MANEN,

LO
1997), a teoria de análise do discurso de Michel
Pêcheux (1982), e orientações socioconstrucionistas
(SARBIN; KITSUSE, 1994). Pode parecer uma
contradição mesclar métodos investigativos que
são aparentemente antagonistas. Na verdade, o
esforço é avançar o entendimento em pesquisa ao

N
usar princípios diferenciados de maneira que eles se
complementem.
W
Observações sistemáticas foram registradas ao longo do trabalho
de campo. Os alunos também responderam às mesmas perguntas,
sob a forma de dois questionários ‒ o primeiro foi aplicado antes
O

do trabalho de campo e o segundo após o seu término. Junto com


os colaboradores deste estudo, coletamos respostas escritas e orais e
desenhos das crianças que não sabiam ler (VIEIRA, 2010b). Nesse
D

artigo, apresento comparações entre vozes iniciais e finais dos alunos


(respectivamente, antes e após o trabalho de campo), e também seus
desenhos finais. A análise de dados utilizou princípios da abordagem
EE

hermenêutica. Concordo com Adshead-Lansdale (1999) que a


interpretação de dados conta muitas histórias, não apenas uma, e
neste estudo compartilho apenas uma versão possível. Essas ideias,
portanto, desafiam a noção de uma verdade universal na interpretação
FR

(VIEIRA, 2010a).7 Ademais, ao explorar significados, concordo com


Wazlawick (2006, p. 26) que:

7 Responsáveis pelos participantes assinaram autorizações para divulgação de dados e


imagens, e seus nomes foram mantidos no anonimato para preservar a sua identidade.
Também se omite, por questões éticas, os nomes das instituições.

164
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

[...] o significado não é compreendido como algo pré-


fixado, rígido, imutável, universalizado. Justamente
pelo seu uso deve ser entendido como algo dinâmico,
em constante movimento, relacionado aos sentidos

D
atribuídos pelos sujeitos e grupos de acordo com
suas formas de vida. Seriam estas ‘formas de vida’
que levariam aos ‘jogos de linguagem’, de acordo

A
com os usos das palavras, que não são os mesmos
entre as diferentes comunidades. Significados não
universais, permeados pelos sentidos atribuídos

LO
pelos sujeitos de acordo com o uso das palavras, em
seus contextos.

Vozes dos participantes


N
No questionário inicial da pesquisa, uma pergunta foi apresentada
W
aos participantes, ‘O que é dança para você?’, a fim de conhecer
significados que tinham sido construídos antes de uma exposição
direta a um trabalho educacional cujo foco fosse o alfabetismo
O

nessa linguagem artística. A maioria das respostas apontou a dança


como diversão. Como exemplo, temos as seguintes falas: “dança
D

para mim é você se soltar, se divertir”; “é uma terapia, uma forma


de se divertir”; “alegria, muita alegria.” Houve também um grande
número de respostas que associou a dança com movimentos, tais
EE

como: [Dançar é] “rebolar”, “rodar”, “mexer”, “aprender os passos”,


“mexer o esqueleto, “requebrar”, “movimento de dança”. Outras
respostas associaram a dança com gêneros específicos: “samba”,
“funk”, “hip-hop”, “balé”, demonstrado uma visão restrita da dança.
A mesma pergunta, feita ao final do trabalho de campo, mostrou
FR

que os participantes ressignificaram a dança. Assim, a análise dos


questionários finais revela respostas mais diversificadas, não tendo
uma resposta ‘vencedora’. Mas foi interessante notar que a dança
passou a ser vista como linguagem artística e elemento cultural,
e as seguintes falas ilustram essa afirmação: “é uma arte muito

165
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

interessante”; “arte de se movimentar com auxílio de música ou sem


ela”; “cultura que a gente aprende a conhecer”.
Em relação ao questionário inicial, aumentaram as respostas

D
referentes à dança como arte e cultura. Respostas assim são
particularmente significativas, uma vez que indicam que houve

A
uma ampliação dos olhares sobre esta linguagem artística, que não é
mais vista apenas como forma de “mexer o esqueleto” ou “suar para
ficar em forma” como dito inicialmente. Por seu caráter eclético, as

LO
aulas do projeto foram capazes de ampliar o interesse dos alunos, na
medida em que lhes revelou aspectos desse universo dançante, até
então inusitado.
O surgimento do termo cultura nas respostas é interessante,
N
uma vez que cultura e arte caminham juntas. Em nossa
prática, discutindo sobre os diferentes vocabulários de dança,
W
invariavelmente nos deparamos com culturas diferentes. Assim,
o projeto aumentou tanto o interesse pela dança quanto pela
cultura em geral. Também acreditamos que muitos participantes
O

que viam na dança somente uma oportunidade de diversão


descobriram outros aspectos da mesma durante o processo vivido
com a aplicação do trabalho de campo. Essa mudança em relação
D

à indagação, ‘o que é dança para você’, indica um resultado


positivo da atuação do projeto, uma vez que alterou a atitude dos
alunos sobre a dança.
EE

Outra resposta à pergunta ‘o que é dança para você’ encontrada


no questionário final chamou a atenção: “é uma terapia, uma
forma de dedicação, de responsabilidade, amadurecimento”. Essa
resposta é rica em elementos, pois alia a dança a vários aspectos,
FR

demonstrando que o participante entende sua complexidade.


Assim como esse discente, talvez outros também puderam observar
que ela é capaz de espairecer os ânimos das pessoas. Também
se aponta a dança como “dedicação” e “responsabilidade”, o
que pode ser fruto dos vários ensaios feitos para que os alunos

166
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

pudessem criar, montar, fazer elementos de ligação entre células


de movimento e, só assim, depois de muito esforço, sentirem
satisfeitos ao ponto de querer apresentar seu trabalho artístico.

D
Todo este processo parece ter levado este participante a ver a
dança como espaço de ‘amadurecimento’, como possibilidade de
atuar no crescimento pessoal.

A
As respostas “É uma forma da pessoa se expressar”; “um
jeito de se expressar”, presentes no questionário final, ilustram

LO
ressignificações da dança, a qual passou a ser vista como forma
de expressão. As respostas que aliaram dança à linguagem,
comunicação, expressão tiveram vários desdobramentos,
chegando mesmo a serem divididas nas subcategorias: [Dança é

N
se expressar...] “Com estilo” [leia-se gênero], “Com gestos”, “Com
os movimentos dos corpos” e “Com música”. A mudança pode ser
W
vista como positiva pelo simples fato de indicar diversificação da
forma que se pensa a dança, que não é mais somente percebida
como mero entretenimento.
O

Duas respostas no questionário final exemplificam diferentes


perspectivas em dança que merecem ser comentadas: Dançar é
D

“viver o momento”, “para mim a dança é muito legal, eu gosto


muito dos passos”. A dança como forma de “viver o momento”
indica uma experiência vivida, sentida e apreciada, portanto, não
perdida. Infelizmente, em muitos casos, uma resposta assim não
EE

seria encontrada caso perguntássemos ‘O que é a matemática para


você?’. A capacidade da arte, segundo Uriarte (2006), de interagir
com os indivíduos, em seu cotidiano, fortalecendo suas práticas e
dando sentido à sua história é o que possibilita ao indivíduo esse
FR

‘viver o momento’. Interagindo com o sujeito e fazendo, ao mesmo


tempo, com que ele interaja com a arte pode ajudá-lo a tornar-se
mais presente. Estar presente em dança significa estar consciente
do que se está fazendo no momento; essa presença inclui ‘viver
o momento’. Isso só é possível pelas pontes interativas que são

167
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

construídas entre o sujeito e sua ação, ou seja, quando se está


inteiro no que faz.
No questionário final, a dança também passa a ser

D
perspectivada como “uma aspiração”. Ser objeto de uma
aspiração indica algo que se deseja alcançar. Se no questionário

A
final da pesquisa um/a participante declara que a dança para
ele/a é uma aspiração, isso indica uma semente plantada. O
seu sonho, possivelmente, foi alimentado pelas experiências

LO
que viveu, o que nos faz refletir sobre a gratificação do nosso
trabalho. Dentre tantas dificuldades encontradas (e foram
várias) houve o brotar de uma aspiração. Essa pode ser uma
aspiração do educador.

N
Tanto no questionário inicial como no final, outra pergunta, ‘Qual
dança você já assistiu?’, buscou revelar que danças os participantes
W
conheciam – antes e após o trabalho de campo. No questionário
inicial as respostas apontaram, em grande parte, as danças da moda na
atualidade, tais como: funk, dança de rua, forró e axé. A análise final
O

aponta um significativo aumento desse leque de danças conhecidas,


surgindo outros gêneros: flamenco, dança contemporânea, dança de
salão, sapateado, balé e jazz. Esses vocabulários foram trabalhados
D

durante os meses de participação dos educandos em oficinas práticas


e fruição de vídeos, e ao assistirem apresentações e aulas do curso de
Dança da UFV. O repertório dos participantes aumentou e, com ele,
EE

a capacidade crítica em relação ao apreciar da dança, uma vez que


agora estão munidos de uma visão mais abrangente.
Um resultado interessante é em relação ao local onde essas
danças foram apreciadas; cresceu significativamente o número de
FR

participantes que disseram ter preferido as apresentações de dança


na escola, sendo que essa foi a resposta mais encontrada. Isso
indica que as apresentações ocorridas na escola foram marcantes,
talvez até mais do que aquelas realizadas no teatro e em outros
locais.

168
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Este resultado nos faz refletir acerca da importância de


apresentações artísticas no ambiente de ensino institucionalizado.
Inserida no âmbito escolar, a dança parece ganhar mais força e

D
significância por interagir diretamente com o contexto vivido pelos
alunos. A experiência com a fruição e a usufruição da dança na

A
escola não é esquecida facilmente, pelo contrário, permanece in-
corporada às lembranças da vida escolar. Essa relação criada é um

LO
ganho significativo. Por sua dimensão e significância, nós, educadores
na área, somos instigados por esses resultados a refletir sobre a
importância da escola trabalhar além da socialização de saberes
científicos, visando proporcionar uma formação ampla, também
cultural e artística, do sujeito8.
N
W
Desenhos dos participantes
O

Apresento os desenhos de alguns alunos, coletados após o


trabalho de campo e que ilustram ressignificações sobre a dança.
D

Todos os desenhos foram feitos pelos participantes em resposta à


pergunta final, ‘O que é dança para você?’. Os desenhos, em sua
maioria, possuem muitas pessoas juntas, de mãos dadas, e com
EE

expressões de felicidade nos rostos. Isso intensifica o poder da


dança na qualificação das relações interpessoais. Vide exemplo
dessas suposições nas Figuras 7 (que mostra professores e as
crianças dançando juntos) e 8 (criança se representa dançando
FR

com os colegas na creche).

8 Para outros artigos e informações sobre os projetos que englobam o programa ‘Educação
para as Artes’, vide os seguintes sites e blogs: <http://www.educacaoparaasartes.ufv.br/
index.php>; <http://educacaoparaasartes.blogspot.com/>; <http://www.facebook.
com/#!/profile.php?id=100002536470092&notif_t=friend_suggestion_accepted>.

169
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

D
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LO
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W
O

Figuras 7 e 8: Dança desen-


volvendo relações interpessoais.
D
EE
FR

Nos desenhos a seguir, sugerimos que as crianças dessem novos


sentidos à dança não somente como possibilidade de intensificar as
relações interpessoais (como no caso da Figura 9, em que a criança
representa um momento dançante em que todos, professoras e

170
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

educandos estão em um círculo), mas também intrapessoais (exemplo


na Figura 10, onde a criança se representa dançando sozinha e
esboçando um sorriso no rosto).

D
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O
D

Figuras 9 e 10: Dançando em círculo e sozinha: possibilidades de


desenvolvimento de relações inter e intrapessoais.
EE

Os próximos desenhos demostram como as crianças relacionaram


seu novo saber artístico ao conhecimento corporal, às emoções e
sensações – Figura 11, em que a criança relaciona dança e alegria
FR

por meio de um grande sorriso estampado no seu rosto, e Figura


12 em que a criança relaciona dança e afetividade com um grande
coração representando a professora ministrando aulas de dança, e
a si mesma e seus colegas, participando da aula e representados por
vários corações.

171
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

D
A
LO
Figuras 11 e 12: dança e saber sensível.

N
Na Figura 13, a criança desenhou pessoas dançando em
W
meio às carteiras da creche. Parece ser um novo olhar sobre
a possibilidade desse espaço para a dança, ou seja, a dança
O

na creche pode acontecer em qualquer lugar, até mesmo na


própria sala de aula.
D
EE
FR

Figura 13: dança e novas relações espaciais.

172
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Os dois desenhos apresentados a seguir (Figuras 14 e 15)


têm destaque especial, pois os participantes desenharam crianças
dançando e um brinquedo, no caso a pipa (usada por nós em uma

D
das oficinas de improvisação com objetos lúdicos). Esta relação de
brincadeira e dança é um excelente resultado do projeto que teve
como um dos objetivos específicos aliar a ludicidade à dança.

A
LO
N
W
O
D

Figuras 14 e 15: dança e ludicidade.


EE

Os resultados, no geral, parecem indicar que os sujeitos estão


em movimentos ‘dançantes’, ou seja, em processos de ‘improvisação’
FR

de sua constituição como atores sociais sensíveis, ativos, pensantes


nessa trama artística que integra processos e conexões individuais e
coletivas. Eles revelaram múltiplos significados e sentidos da dança,
aparentemente construídos a partir de experiências e vivências
propostas por esse projeto. A reflexão sobre dados empíricos e o

173
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

exercício da análise de resultados levaram-me às novas compreensões


teóricas sobre o que alunos e eu aprendemos nesse estudo. Discorro
sobre meu aprendizado a seguir.

D
A
E a artista-pesquisadora/educadora nisso tudo?

Meu próprio mundo pedagógico se expandiu por meio dessa

LO
‘dança’ com a complexidade e a riqueza da pesquisa em alfabetização
em dança ou educação da apreciação da dança. Transformações na
minha filosofia educacional aconteceram em momentos decisivos
desse trabalho. Compartilho a seguir um desses momentos.

N
Um dia, após muitas aulas em que os alunos foram expostos
a diversos gêneros de dança, um dos estudantes de seis anos me
W
disse: “Eu ainda amo hip-hop, e odeio todas as outras danças que
você nos mostra.” Nesse instante, o meu sangue ferveu, senti minha
face vermelha e inchada, e um nó imediatamente se formou no
O

meu estômago e na minha garganta. Prendi a respiração, ao mesmo


tempo em que apertei os lábios. Respirei fundo e me segurei para
não derramar lágrimas de frustração. Enquanto focava, fixamente,
D

o aluno, esse, talvez percebendo minha impotência em lhe oferecer


qualquer resposta, saiu correndo brincando. Enquanto ele se
distanciava, correndo e interagindo com os colegas, eu aos pouco
EE

consegui sair do lugar e dar os primeiros passos me recompondo


enquanto ‘educadora’.
Foi só dias mais tarde, quando entrei no processo de tornar
essa experiência uma ‘vivida’ (VAN MANEN, 1997)9 ao revisitá-la
FR

e refleti-la em todo meu corpo,10 é que fui capaz de me questionar:

9 Para van Manen (1997), a experiência humana só se torna vivida quando a revisitamos e
refletimos sobre ela.
10 Entendo o corpo como experiência que aglutina afetos, afeições, habitus (Thomas Csordas,
1994, em sua discussão sobre o embodiment).

174
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Será que esse aluno aprendeu o oposto do que tínhamos ensinado (ou
tentado ensinar) durante todo o trabalho de campo da investigação?;
Quantos alunos/participantes tiveram a mesma sensação?. Essas

D
perguntas foram cruciais para duvidar da eficácia do meu olhar
crítico que normalmente não quer aceitar apenas a preferência dos
estudantes para as culturas ditas ‘midiáticas’, principalmente as de

A
origem estrangeiras como hip-hop, dança de rua ou street dance,
funk.

LO
Também questionei: Como respeitar a preferência dos estudantes
e ainda desafiá-los a ir além de suas zonas de conforto – as quais são
dançar e assistir hip-hop e dança de rua? Essa questão foi seguida
por muitas outras: O que fazer com aqueles alunos que continuavam

N
não gostando de dança ‘de jeito nenhum’, mesmo depois de terem
sido expostos a tantos gêneros e vocabulários diferentes da dança?
Como posso auxiliar, da melhor forma, os alunos a melhorarem suas
W
capacidades para questionar suas tendências acríticas, pelo menos a
meu ver, de apreciar somente determinados gêneros de dança – os
favoritos divulgados na indústria cultural? Como lidar com alunos
O

(nesse estudo, principalmente adolescentes) que não estavam


interessados o suficiente na nossa proposta?
D

Evidentemente, não existem respostas simples e evidentes para


estas questões, nem é meu intuito tentar respondê-las de forma
conclusiva. Muitos arte-educadores/pesquisadores, provavelmente,
EE

concordarão comigo que lidar com a diversidade não é fácil. Nesse


estudo, a diversidade está relacionada tanto com aquela da dança
como com a diversidade de pessoas envolvidas – participantes e
membros da equipe.
FR

A meu ver, uma pesquisa só é satisfatória quando transformações


(de participantes e pesquisadores) ocorrem. Essa jornada foi recheada
de paixão, responsabilidade e compromisso com a dança na educação.
Mas para que ela pudesse ter continuidade em momentos cruciais de
frustração (como quando ouvi o comentário do estudante narrado

175
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

anteriormente), aberturas para autotransformações e modificações


dos caminhos foram fundamentais.
Da minha própria experiência nesse estudo, aprendi que a

D
transformação está relacionada com a descoberta de uma nova
maneira de encarar a vida. Assim, a transformação pessoal foi

A
ocorrendo, em um processo de embodiment (VIEIRA, 2007) à
medida que as seguintes perguntas me perturbavam mais e mais:
Preciso ampliar minha abertura para preferências das outras pessoas

LO
e ser menos autoritariamente crítica? Se sim, como equilibrar isso
com uma postura e proposta que abarca, simultaneamente, respeito
às preferências e estímulos para novos conhecimentos e gostos? O
que perdi quando o meu foco era, principalmente, o produto da

N
investigação e o cumprimento fiel dos seus objetivos?
Nessa investigação, trabalhando com muitos estudantes e
W
suas diversas realidades, descobri o ensino como, também, um
caminho heurístico de autodescoberta. Enquanto aprendi sobre os
outros, aprendi sobre mim mesma e minhas filosofias de ensino.
O

Muitas vezes, durante essa jornada, enfrentei o dilema da eficácia


ou competência, como arte-pesquisadora/educadora, versus o bem-
estar dos participantes.
D

Reflexões sobre minhas próprias experiências no presente estudo


tornaram-se então uma rica experiência vivida de aprendizagem e
estimularam ainda outras questões, tais como: Que tipo de estratégias
EE

pedagógicas mais deu certo com alguns estudantes, mas não com os
outros? Quais abordagens educacionais tiveram maior potencial para
qualificar as possibilidades de práxis artístico-pedagógica? Algumas
das propostas de ensino funcionaram melhor do que outras? Quais?
FR

Propostas recentes no ensino da dança têm focado no


contexto do aluno (MARQUES, 1999, 2003), mas aprendi nessa
jornada que precisamos ampliar nossa ‘dança’ para fluir entre os
dois polos – não focar nem somente no contexto do professor,
nem somente no contexto do aluno. Como o arte-educador e o

176
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

educando trazem para o momento educacional dois contextos,


realidades, valores e histórias de vida diversas, precisamos ter
equilíbrio entre esses dois mundos e sujeitos que se encontram.

D
Acredito que precisamos ‘dançar entre os dois polos’ (como sugeriu
a dançarina e coreógrafa alemã Mary Wigman), considerando
o contexto de ambos, artista-educador e discente, para que

A
possamos então desenvolver um trabalho artístico-educacional
que seja significativo para educandos e educadores.

LO
Considerações finais – Aprendendo ... sempre!

N
Esse artigo revelou a diversidade de propostas desenvolvidas em
um programa educacional em dança: os participantes, educandos do
ensino básico e da educação infantil não-fomal, participaram de aulas
W
semanais teórico-práticas de gêneros diversificados da linguagem, e
fruição de vídeos, apresentações e espetáculos ao vivo de diversos
estilos. Eles observaram aulas práticas dos alunos do Curso de
O

Graduação em Dança da Universidade Federal de Viçosa/UFV e,


finalmente, vários participantes se envolvem em processos criativos
D

de improvisação e composição coreográfica que resultam na produção


e apresentação destes alunos como bailarinos em espetáculos nos
teatros da UFV, nas próprias instituições educacionais, e em praça
EE

pública (VIEIRA, 2010b). Assim, todo semestre desde 2008, ocorre


uma mostra denominada ‘Ladrilho, Ladrilhando e Brincando’ – que
atingiu a sua sexta edição em 2011 – na qual os alunos vivenciam
o palco como intérprete-criadores, e a plateia como apreciadores.
Nas apresentações, como artistas, eles apresentam obras frutos de
FR

processos colaborativos com seus professores de dança nos vários


laboratórios criativos desenvolvidos ao longo do semestre. As
apresentações de dança dos participantes na Mostra ‘Ladrilho’
englobam elementos desenvolvidos e criados por eles mesmos durante
as aulas, por estímulos que são dados pelas professoras-pesquisadoras.

177
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Como público, eles assistem números de dança de outros artistas


convidados que mostraram trabalhos com diferentes gêneros (dança
contemporânea e do ventre, jazz, flamenco, ballet, forró, dentre

D
outros). Ao assistirem espetáculos de diferentes vocabulários,
incentivamos os alunos a desenvolverem suas potencialidades de
sensibilização, análise, contextualização, senso crítico e estético de

A
obras de arte. Os resultados obtidos após o desenvolvimento desse
intenso e variado trabalho de campo, revelaram ampliação do saber

LO
artístico dos participantes, colaborando assim, para a qualificação do
alfabetismo em dança.
Concordo com Clark Moustakas (2000) ao afirmar que ao
compreendermos as experiências, os sentimentos e os valores de

N
outras pessoas, podemos também experienciar autoconscientização e
autoconhecimento. Então, a descoberta e a reflexão fenomenológica
de novos significados nas experiências de participantes de uma
W
pesquisa, por exemplo, a aprendizagem dos participantes desse
estudo, pode trazer “possibilidades de autocompreensão individual
e coletiva bem como práxis reflexiva” (VAN MANEN, 1997, p. xi),
O

assim como aconteceu comigo.


Acredito que ampliei minha consciência de que sou plenamente
D

responsável por minhas decisões éticas; aprendi como, para cada


comunidade (de cada turma trabalhada nesse estudo) população,
certos tipos de ambiente, estruturas e relacionamentos de sala de
EE

aula são mais benéficos para que aqueles alunos atinjam sucesso
pessoal e coletivo.
Aprendi a tomar posse do meu ensino por ‘ser’ eu mesma, ou
seja, exercitei minha autoridade interna (FORTIN, 2010), ao invés
FR

de pretender ser uma educadora ideal que nunca se irrita, magoa,


frustra, chora e que, talvez, parece só existir na imaginação. Porque
eu estava tão acostumada à educação de estudantes de Ensino
Superior, minhas interações com os estudantes do Ensino Básico
e da Educação Infantil me levaram a explorar novas maneiras de

178
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

ser. Foi difícil para mim, assim como deve ter sido para o estudante
de seis anos que amava hip-hop, sair da minha zona de conforto. A
busca por formas alternativas de ‘ser’ me ensinou que, como eu tinha
que definir objetivos para esta pesquisa (especialmente porque ela

D
é financiada por agências de fomento), eu também tinha de pensar
o que mais importa: Que os objetivos da pesquisa fossem realizados

A
completamente ou o bem-estar dos alunos/participantes? Ou ainda,
como equilibrar ambos?

LO
Essas reflexões fazem parte do processo de autorreflexão que
procurei desenvolver concomitantemente às reflexões sobre os
dados coletados nessa pesquisa. É importante esclarecer que não
estou defendendo o isolamento do professor de dança, fechado em

N
seu próprio mundo, e se privando das riquezas das trocas. Porém,
realmente acredito que a reflexão autônoma é fundamental no
nosso cotidiano educacional, principalmente quando estamos
W
diante de situações imprevisíveis em que não há tempo para
consultar o conselho de amigos, colegas ou sugestões de teorias
educacionais. Como educadores em dança, precisamos desenvolver
O

nossa capacidade de aprender no coletivo e de forma independente


a partir de nossas experiências em salas de aula, estúdios, palcos,
D

pátios. Assim, a autorreflexão é um exercício que podemos nos


auxiliar no enfrentamento de dilemas e desafios cotidianos da
dança na educação na contemporaneidade.
EE

Após alguns anos de profundo envolvimento com a


investigação, sugiro que o nosso crescimento, aprendizado e
desenvolvimento como arte-educadores/pesquisadores incluem
in-corporação (embodiment) de experiências transformadoras,
para que essas se tornem parte do nosso ser (VIEIRA, 2007). Há
FR

duas dinâmicas no processo de embodiment que acredito serem


fundamentais: o nosso ‘eu’ que já trazemos construído a partir
de nossas histórias de vida e o embodiment que se constrói no
nosso dia a dia de relações com o outro e o meio ambiente que
nos cerca. Mas ressalto que essa divisão é meramente didática,

179
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

para que possamos entender o processo de embodiment, via lógica,


que predomina na cultura ocidental, e divide o conhecimento
produzido internamente daquele externamente do conhecimento

D
produzido no corpo (emoções, sentimentos e sensações) daquele
da mente (razão). O que é produzido pelo corpo e entre corpos
faz parte do processo de embodiment, a meu ver. Esse diálogo

A
constante faz parte das formas de se construir conhecimento no
mundo.

LO
Acredito, ainda, que para que fatos, acontecimentos,
experiências e vivências fiquem embodied ou façam realmente
parte do nosso ser, das nossas memórias e histórias de vida,
é necessário que estejamos corporalmente engajados no

N
momento que vivemos. Nossos múltiplos sentidos precisam
estar conectados ao dentro-fora, pois para mim não existe essa
separação rígida que se acredita ter no senso comum entre o
W
que é externo e interno. Há sim uma química que permite haver
ligação indissolúvel nas trocas constantes entre o conhecimento
que se processa no meu corpo e o conhecimento processado nas
O

trocas com o outro, o ambiente e meu ser por inteiro. Penso


que o conhecimento construído em dança se torna significativo
D

quando, no momento de sua elaboração, houver profunda


conexão interna-externa (com minhas sensações, sentimentos,
emoções e com o outros sujeitos e contexto). Nesses momentos,
EE

há sincronia (não necessariamente harmonia), como se o


conhecimento viesse de um só corpo ou uma unidade que
contém muitas partes diferenciadas. O conhecimento em
geral, e em dança em particular, aumenta suas chances de se
tornar embodied quando acionamos nossas múltiplas maneiras
FR

de perceber, fazendo conexões e mediando diferentes caminhos,


formas, possibilidades. Assim, podemos in-corporar (embody)
significados no grau máximo. Ao abraçarmos a construção
de significados como parte do processo de embodiment, temos
que considerar que esses significados estão em um ‘contato-

180
5 DANÇA, EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

improvisação’ constante, portanto, significados podem ser in-


corporados, tornando-se parte do nosso ser, mas assim como
nós mudamos, também podem se transformar significados
construídos. Nesse sentido, concordo com Csordas (1994) que

D
não há mundo estável. Sob esta perspectiva, embodiment se faz,
se constrói, ‘dança’ de acordo com a interminância existencial.

A
Os participantes desse estudo me ensinaram o que preciso
abrir mão, a fim de crescer. Eu denomino isso de ‘perda

LO
produtiva’ (VIEIRA, 2007). Acredito que nossos valores como
arte-educadores podem ser modificados (para melhor) quando,
por exemplo, desistimos de algo como a voz autoritarista do
pesquisador e do professor, do ensino centrado no conteúdo, e da

N
investigação centrada no cumprimento dos objetivos. Ao aceitar
‘perda produtiva’, como parte da vida investigativa- pedagógica,
podemos aprender a descobrir ou redescobrir os valores humanos
W
a partir da intensificação das relações intra e intersubjetivas. São
aspectos poderosos e vitais para que nós, como agentes sociais,
provoquemos transformações e que o nosso mundo contemporâneo
O

parece carecer tanto.


Reforço que o que apresento não são pontos de chegada,
D

mas caminhos. Acredito também, que, contradições fazem parte


da nossa constituição como seres humanos. Assim, penso ser
importante afinarmos nossos sentidos, nosso corpo presente e
EE

pensante com os dos alunos, para termos, discentes e docentes,


clarezas das nossas escolhas: quais caminhos optamos seguir ou
não. Eu apenas lhe convido a ‘ouvir outros tambores’, outras
possibilidades, que não colocam os contextos do educador e do
educando como caminhos dicotômicos, ou como se um fosse
FR

mais importante do que o outro. Voltando à perspectiva Tao,


que mencionei no início desse texto, um dilema que enfrentamos
é ver o contexto do professor e o contexto do aluno como
complementares, não oponentes. Esse é um desafio cujos caminhos
já começamos a trilhar.

181
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

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EE
FR

184
6

D
Transformações nas concepções sobre

A
dança de profissionais atuantes no

LO
meio artístico e educacional1
Kathya Maria Ayres de Godoy

Introdução
N
W
Os dilemas e desafios postos à área da dança nos últimos anos
têm gerado reflexões sobre o papel que essa linguagem desempenha
nos meios acadêmicos favorecendo uma ampliação, no cenário
O

brasileiro, de projetos educacionais e produções artísticas em eventos


culturais.
D

Um bom exemplo disso foi o V Congresso Nacional de Dança


– CONDANÇA 2005, que reuniu pelo quinto ano pesquisadores da
área, bailarinos e coreógrafos representantes dos estados brasileiros.
Simultaneamente ao evento, ocorreu também o II Encontro das
EE

Universidades que possuem cursos e projetos educacionais em dança


no Brasil que discutiu a necessidade de ampliação de graduações em
dança para a formação de profissionais habilitados para atuarem na
Educação Básica. Hoje, essa discussão já mostra resultados com a
FR

criação de novos cursos de graduação em Dança de Norte a Sul do


país. Esse desdobramento de ações evidencia um novo panorama
que vem sendo construído para a área da dança no Brasil.

1 Esse texto conta com a colaboração do pesquisador Ivo Ribeiro de Sá, da PUC/SP.
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Soma-se a esse quadro o Encontro Nacional de Grupos de


Pesquisa em Dança ‒ ENGRUPEdança, realizado em sua primeira
versão em 2007, a segunda em 2009 e a terceira em 2011; a criação

D
da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança – ANDA
em 2008, O I Congresso da ANDA (2010) e os Seminários de
Dança (2007, 2008, 2009 e 2010) que são eventos agregados ao

A
Festival de Dança de Joinville (o maior encontro mundial da área).
Esses eventos discutiram a dança como área de conhecimento e

LO
suas produções artísticas dentro e fora das Instituições de Ensino
Superior (IES).
Tendo em vista tal panorama, no início de 2006, foi criado, pela
Profª. Drª. Kathya Maria Ayres de Godoy, o grupo de pesquisa Dança:

N
Estética e Educação (GPDEE). Este grupo aglutina estudantes e
pesquisadores da área de dança e afins. Esses profissionais atuam no
cenário da dança de diferentes maneiras. São professores da Educação
W
Básica, do Ensino Superior, bailarinos, diretores e coreógrafos que
têm em comum a busca da reflexão sobre sua atuação artística e
educativa.
O

Um grupo de pesquisa institucional representa um locus de


produção científica reconhecido pelo meio acadêmico, e no caso
D

dessa linguagem específica, essa criação veio ao encontro das políticas


educacionais e preocupações estéticas da área. Isso só foi possível
porque o grupo vinculou-se ao Programa de Pós-Graduação Stricto
EE

Sensu em Artes – Mestrado/Doutorado – no Instituto de Artes da


Universidade Estadual Paulista – São Paulo/Brasil2.
Nesse sentido, a Professora Kathya desenvolveu o projeto de
pesquisa ‘A inserção da Dança no meio educacional: propostas e
FR

possibilidades de atuação de profissionais oriundos do Programa de

2 Neste programa foi criada a Área de Concentração Artes e Educação que tem como uma das
linhas de pesquisa – Processos artísticos, experiências educacionais e mediações culturais,
que se propõe a estudar os diversos processos artísticos em suas dimensões educacionais nas
perspectivas históricas e culturais.

186
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

Pós-Graduação em Artes da Unesp’ que se articulou às ações do


referido grupo. A pesquisa procurou revelar a elaboração teórica e
prática das relações existentes entre educação e estética na área de
dança no campo das artes e afins, com um olhar específico para a

D
formação continuada de profissionais atuantes no meio artístico e
educacional, identificando as concepções que eles possuíam sobre

A
dança e arte e as possíveis transformações destas a partir da passagem
pelo mestrado.

LO
Mas como existe grande procura para o ingresso no Programa
de Pós-Graduação – Mestrado – em Artes e o ingresso de 30
pesquisadores em média todo ano, para tal pesquisa, foram estudados
apenas os integrantes do Grupo de Pesquisa GPDEE em função do

N
acompanhamento longitudinal que a investigação exigiu.
Ao longo da pesquisa houve o ingresso de outros pesquisadores
W
que participaram de todas as ações propostas no estudo, mas seus
dados não foram considerados para análise, pois não houve a
participação no processo como um todo3.
O

Dessa maneira, foi possível obter um perfil dos profissionais


que procuram a formação continuada, a atuação e o alargamento
de suas possibilidades no mercado de trabalho da dança em São
D

Paulo (capital) e o que pensam sobre essa área de conhecimento.


Mas para este texto, que procura abordar os dilemas e desafios
que a dança vem enfrentando nesta última década, apresentamos
EE

um recorte da pesquisa, focando a metodologia desenvolvida para


obtenção dos dados e uma parte da discussão em relação às questões
que revelam as concepções e suas transformações durante o período
FR

3 Vale a pena salientar que a análise dos dados foi feita em parceria com o pesquisador Ivo
Ribeiro de Sá que pertence à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
e Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), porque tais dados revelaram
concepções sobre arte e dança que dialogam com o estudo das Representações Sociais, que
são objeto de estudo do pesquisador.

187
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

compreendido entre 2006 a 2009 sobre arte, dança e atuação


profissional dos participantes4.

D
A construção dos passos metodológicos da pesquisa

A
Optamos por trabalhar com uma metodologia voltada a um
estudo qualitativo (porque os participantes foram os alunos do

LO
programa de pós-graduação que estão integrados ao grupo de
pesquisa Dança: Estética e Educação) por meio da pesquisa-ação
porque o pesquisador desempenhou seu papel profissional numa
dialética que articula a imaginação e o distanciamento, a afetividade

N
e a racionalidade, o simbólico e o imaginário, a mediação e o desafio,
a autoformação e a heteroformação, a ciência e a arte (BARBIER,
2002), que se aproxima do papel que desempenhamos como líder do
W
referido grupo.
Como procedimentos metodológicos, definimos quatro etapas
O

para o desenvolvimento da pesquisa. A primeira etapa objetivou o


levantamento do perfil pessoal e profissional dos participantes e a
identificação dos projetos individuais de pesquisa. Essas informações
D

foram coletadas por meio das fichas de inscrições e projetos de


pesquisa apresentados no ingresso ao Programa de Mestrado em
Artes (2006) e que estavam na secretaria do referido programa.
EE

Enfrentamos um primeiro problema: se integraram ao grupo de


pesquisa sete participantes e não cinco, como proposto no projeto
inicial. Destes, dois passaram no exame de seleção do Mestrado e,
portanto, se tornaram alunos regulares e cinco foram aceitos como
FR

alunos especiais.

4 A pesquisa na íntegra se encontra à disposição para consulta nos acervos do Programa


de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Unesp, no Departamento de Artes
Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação (DACEFC) e na Biblioteca da
instituição.

188
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

Esse acontecimento exigiu uma decisão. Se por um lado, o critério


fosse permanecer apenas com os alunos regulares, haveria a exclusão
de cinco participantes. Se o critério fosse cursar o Programa de Pós-

D
Graduação, como aluno regular ou especial, contaríamos com sete
participantes. Assim, estabelecemos que todos os integrantes fariam
parte da pesquisa. Essa escolha também foi feita porque avaliamos

A
que esse procedimento não constrangeria nenhuma das pessoas.
A segunda decisão se deu em função da primeira. Como os

LO
participantes não estavam regularmente matriculados, decidimos que
ao invés de procurarmos nos arquivos do Programa de Pós-Graduação
os documentos que forneceriam o perfil pessoal e profissional dos
participantes e o projeto de pesquisa, seria prudente, embora mais

N
trabalhoso, usar outros instrumentos para a coleta desses dados.
Com tais informações elaboramos um questionário para obtermos
W
os perfis e agregamos a esse instrumento questões que permitiram
a análise inicial das concepções que esses participantes possuem
sobre arte, dança e educação. Denominamos esse instrumento de
O

Questionário de coleta 1, aplicado no início da pesquisa e ao final


da mesma. A análise das respostas fez parte da terceira etapa da
pesquisa.
D

Para conhecermos os projetos de pesquisa individuais, também


adotamos um procedimento diferenciado. Como o grupo de
pesquisa definiu que iria se encontrar semanalmente para discutir
EE

as ações e projetos que fariam parte de sua produção acadêmica,


aproveitamos para iniciar os encontros com a exposição de cada
projeto individual de pesquisa. Essa decisão foi importante porque
além de contribuir com informações pertinentes para este estudo,
FR

possibilitou aos participantes do grupo, o conhecimento de cada


pesquisa, a identificação de pontos convergentes e divergentes, e
ainda a integração e união entre eles. Essa dinâmica se deu durante o
primeiro semestre de 2006, pois entendemos que deveríamos dar voz
a todos os participantes, deixando-os livres para expor seus projetos e

189
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

refletir sobre eles. A partir dessas exposições, o grupo se tornou mais


cooperativo e solidário. Pedimos a cada participante que entregasse
seu projeto por escrito depois da exposição acrescentando as sugestões

D
dadas pelo grupo, como uma forma de exercício de síntese de ideias.
Com isso, pudemos sintetizar cada projeto individual. Esses relatos
foram aproveitados na análise final do estudo.

A
Na segunda etapa (2007), aplicamos o questionário 1 e
organizamos os relatos pessoais colhidos durante as reuniões do

LO
GPDEE. Esse material foi analisado e complementou os dados
obtidos na aplicação dos questionários 1 e 2.
A terceira etapa privilegiou a análise preliminar do questionário
1 que procurou dividir as questões em categorias a posteriori. Isso
N
quer dizer que foi necessário um olhar distanciado da pesquisadora
para o objeto de análise – questionário 1 –, para que fosse delimitado
W
um termo identificador do objetivo da pergunta. Por exemplo: O que o
levou a procurar o grupo de pesquisa? A categoria criada foi: Motivos
da procura pelo grupo de pesquisa.
O

Em seguida, passamos à análise das respostas dos participantes.


Para esse procedimento foi preciso grifar os termos, palavras e
D

expressões contidas nas respostas que mostrassem uma relação direta


com o que foi perguntado. Os termos, frases e expressões que não
identificaram tais relações foram desprezados.
EE

Posteriormente, foram organizados quadros interpretativos nos


quais buscamos divergências e convergências entre as respostas dadas
pelos participantes individualmente. Assim, os quadros destacaram
os elementos mais significativos dos conteúdos apresentados nas
FR

respostas dos questionários.


Depois desse procedimento traçamos uma linha de aproximação
entre os significados individuais apresentados nas respostas dos
participantes e uma organização textual desses significados por
similaridade dos conteúdos das respostas.

190
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

Desta forma, produzimos textos abaixo dos quadros


interpretativos que articularam as convergências e as divergências
extraídas das respostas dos participantes.

D
Segue abaixo um exemplo de organização dos quadros
interpretativos:

A
O que o levou a procurar o grupo de pesquisa?

LO
Participantes Motivos da procura pelo grupo de pesquisa

E. O ingresso no mestrado e a necessidade de compreender como

M. C.
área de Dança).
N
acontece a pesquisa acadêmica (metodologia, epistemologias na

Atualização sobre as pesquisas na área de Dança.


W
R. Ingresso no mestrado, entendimento de pesquisa acadêmica.

M. C. T. Auxílio para elaboração do meu projeto de pesquisa e atualização


O

sobre as pesquisas em dança.

F. Auxílio para elaborar e estruturar o meu projeto de pesquisa,


atualização de pesquisas (colher elementos), estudar a linguagem
D

da dança, participar da vida acadêmica.

C. Estudar a linguagem da dança na escola, linha de pesquisa


condizente com meu projeto de pesquisa.
EE

J. Voltar ao ambiente acadêmico, linha de pesquisa desenvolvida


pelo grupo, afinidade com as pessoas que pertencem ao grupo,
desejo de construção de uma carreira acadêmica.

Quadro 1: Formação profissional.


FR

Os conteúdos das respostas mostram a necessidade de estudar a


linguagem da dança, a atualização de conhecimentos e a compreensão
de como se dá a produção acadêmica na área (metodologia,

191
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

epistemologias etc), seja para elaboração da pesquisa-dissertação,


para aqueles que são alunos regulares, ou para aqueles que pretendem
ingressar em programas de Pós-Graduação oficialmente. Um outro

D
motivo aparente é a identificação com a linha de pesquisa. Somente
uma participante relatou a afinidade entre as pessoas que pertencem
ao grupo.

A
Passamos então para a quarta e última etapa. Nesta, aplicamos
e analisamos o que denominamos de questionário de coleta 2. Este

LO
terceiro instrumento manteve as mesmas questões do questionário
de coleta 1, acrescido da atuação profissional em 2007 e 2008.
Adotamos o mesmo procedimento de análise usado no
questionário de coleta 1 para o Instrumento 3 (questionário de coleta

N
2), ou seja, procuramos dividir as questões nas mesmas categorias a
posteriori adotadas anteriormente.
W
Das respostas dos participantes também foi feita a análise a partir
do grifo dos termos, palavras e expressões que mostrassem relação
direta com o que foi perguntado. Os termos, frases e expressões que
O

não identificaram tais relações foram desprezados.


A organização dos quadros interpretativos foi mantida,
D

buscando divergências e convergências entre as respostas dadas pelos


participantes individualmente, uma linha de aproximação entre os
significados individuais apresentados nas respostas dos participantes
EE

e uma organização textual desses significados por similaridade dos


conteúdos das respostas.
Assim, organizamos quadros interpretativos. A partir dessas
análises foi feita a interpretação comparativa (2009), nas quais
FR

identificamos os elementos que permaneceram e os que foram


alterados nas respostas dos participantes durante os anos de 2006,
2007 e 2008.
Nesse sentido escrevemos os textos com a intenção de mostrar
ao leitor as opções feitas para interpretação dos dados revelando as

192
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

contradições, avanços, diferenças, recuos, enfim, a construção das


opiniões, ideias, pensamentos e concepções que os participantes
tiveram ao longo da pesquisa5.

D
Segue abaixo alguns exemplos do que perguntamos e das
interpretações feitas a partir das respostas dadas pelos participantes:

A
Para compreendermos o entendimento dos participantes sobre
a arte, perguntamos ‘O que é arte para você?’ Definimos como

LO
categoria a ‘Opinião pessoal sobre Arte’. As respostas mostraram
que o ser humano se expressa por meio das linguagens artísticas.
Os participantes também disseram que a arte é comunicativa.
Concretização e transmissão de ideias, sentimentos, pensamentos e
emoções também são recorrentes no discurso dos participantes. E a

N
criatividade é o elemento que traduz esta manifestação.
Os discursos também revelam que a concepção de arte para
W
os participantes vincula-se à relação do homem com o mundo por
meio da sensibilidade e das técnicas (virtuosismo, destreza, criação
do objeto estético etc.). Um só participante mencionou a arte como
O

área de conhecimento.
Os participantes mantiveram a manifestação criadora e a
D

criatividade como elemento identificador da arte. Mas ela aparece


como área de conhecimento que dialoga, comunica e expressa ideias
e sentimentos por meio das linguagens artísticas com a sociedade.
EE

Nesse sentido, as respostas se aproximam de uma conceituação


crítica e reflexiva sobre a arte, o que não ocorria anteriormente.
Comparativamente, os participantes mudaram suas concepções
sobre arte relacionando alguns conceitos que já possuíam a
FR

compreensão da arte como área de conhecimento. Essa forma de


pensar os aproximou do meio científico.

5 O projeto de pesquisa foi apresentado ao Conselho de Ética da Unesp e os participantes


assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para garantia de seus de
privacidade de sua identidade.

193
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Ao indagarmos ‘O que é dança para você?’, as respostas


revelaram uma abertura para o aspecto educativo que até então,
os participantes não haviam explicitado nas respostas anteriores.

D
Mas a dança, para eles, ainda é definida como uma linguagem
artística que usa o corpo e o movimento expressivo como forma de
comunicação. Esses termos são recorrentes em todas as respostas.

A
Os elementos que a compõem são espaço, ritmo, forma, gestos que
também estão presentes nos discursos. Os termos técnica, estilos,

LO
métodos e sequências coreográficas revelam que, na opinião dos
participantes, essa linguagem possui uma característica voltada para
a especialização e codificação do movimento corporal.
Por outro lado vemos que dois participantes percebem a dança

N
como um componente de suas vidas quando se referem a ela com os
termos poesia, oração, sensibilidade fundamental e instrumental de
ações corporais cotidianas.
W
Outro aspecto que nos chama a atenção é a possibilidade do
trabalho individual e coletivo e o caráter lúdico que a dança traz
O

consigo. A identificação da dança como linguagem artística que


se utiliza do corpo e do movimento como forma de expressão e
comunicação é mantida, mas aparecem três elementos novos nessa
D

definição.
O primeiro é que é necessário um conhecimento do corpo por
parte de quem a pratica, bailarino/intérprete/aluno/professor, ou seja,
EE

a consciência corporal é mencionada na maior parte das respostas.


Outro elemento mencionado é o fato de proporcionar um ambiente
favorável de aprendizagem e, finalmente, ser uma manifestação
cultural, histórica que faz parte da sociedade e por isso é atribuído a
FR

essa manifestação o caráter transformador.


Houve ampliação no entendimento do que é dança porque
os participantes identificavam-na como uma linguagem artística
e, portanto, com função comunicativa, mas referenciada por uma
técnica. Esta identificação foi ampliada por elementos que se

194
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

relacionam à educação no sentido de favorecer a aprendizagem,


ganho de consciência corporal e que provocam transformações.
Você entende a dança como uma área de conhecimento? Por

D
quê?, foi a pergunta que revelou que todos os participantes concebem
a dança como uma área de conhecimento e admitem que ela pode

A
identificar uma cultura, um grupo social e uma época (tempo
histórico) por ser uma linguagem artística. Eles também relacionam
a dança a um aprendizado e ao ensino, pois consideram que esta

LO
linguagem possui conceitos que são sistematizados e interagem com
outras áreas (interdisciplinar).
Curiosamente, embora a maioria dos participantes compartilhe
da ideia que a dança é uma área de conhecimento que exige pesquisa,
N
aprendizado, amadurecimento, conceitos próprios, um deles vê
a dança como uma subárea da arte. O caráter interdisciplinar é
W
mantido, mas é fortalecida a visão da dança como elemento cultural
que constrói a história e a sociedade humana porque dá visibilidade
aos valores e às tradições de um povo.
O

Os participantes concebem a dança como área de conhecimento


e como linguagem artística que possui conteúdos próprios. Apenas
D

um dos participantes se refere à dança como subárea da arte, talvez


por conta da dança ser uma das quatro linguagens artísticas e
pelo fato do ser humano se manifestar por meio da arte. Também
EE

é evidenciado o fato da dança ser uma manifestação corporal que


revela costumes, tradições e valores de uma cultura.
Também pedimos para os participantes uma definição de
dança e os termos recorrentes foram: linguagem, comunicação,
FR

gesto, movimento expressivo, corpo, cultura, espaço e tempo. Esta


definição está muito próxima da questão ‘o que é dança’, pois alguns
participantes, quando questionados sobre isto, fazem referência à
área de dança e outros à manifestação corporal dança. Nesse sentido,
as perguntas são complementares e sugerem articulação.

195
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Os participantes colocam que a dança é uma linguagem artística


que tem no corpo sua expressividade máxima. Mas a expressividade
desse corpo se desenha no espaço por meio de uma apropriação

D
do mesmo. A forma, o gesto e o tempo somam-se, articulam-se,
interligam essa maneira de comunicar uma ideia.

A
A comunicação e a expressividade são elementos recorrentes na
definição de dança. As respostas também sugerem que a comunicação
e a expressão se dão por meio do corpo e do movimento que conta

LO
algo, narra uma história, ligada ao meio e à cultura.
Então as respostas obtidas na questão ‘Você acha que para se
trabalhar com dança é preciso uma formação específica? Por quê?
Qual?’ mostrou que para os participantes praticar dança, não garante

N
o ensino da dança, pois a construção de uma narrativa do corpo
necessita de imersão cultural e formação específica adquirida ao
W
longo da profissionalização na área. Por isso todos os participantes
admitem que é necessário um conhecimento específico.
Parecem concordar também que a experiência prática é
O

importante e alguns dizem que ela pode anteceder a teórica. Mas,


esses conhecimentos devem sempre estar articulados (teoria e
D

prática).
O ensino técnico (estilos, técnicas específicas, métodos) aparece
como fator relevante para o professor que pretende trabalhar com
EE

dança. Por outro lado, os participantes alegam que é importante uma


formação global articulando diversos saberes para além da técnica.
Finalmente, um participante diz que um conhecimento mais
geral da linguagem da dança para professores do Ensino Básico é
FR

suficiente para sua atuação e que o conhecimento amplo e específico


deve ser dado nas graduações para os professores atuantes a partir do
ciclo II (5º ao 9º ano do Ensino Fundamental).
Não há alterações nas respostas dos participantes em relação
a essa questão, mas apenas uma complementação em relação à

196
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

formação graduada inicial, na qual, uma participante coloca


que deveria haver elementos específicos dessa linguagem. A
mesma resposta sugere um programa de formação continuada

D
para professores do Ensino Infantil para se trabalhar com essa
linguagem específica.

A
Há consenso entre os participantes que é preciso uma
formação específica para se trabalhar com dança. A experiência
prática é necessária. Alguns veem que essa prática pode ser

LO
adquirida anteriormente à graduação e outros sugerem que exista
uma formação graduada na área ou afins que o habilite a trabalhar
com dança.
Ao indagarmos ‘O que você pensa da dança na educação?’
N
as respostas dos participantes colocam que a dança na educação
proporciona o desenvolvimento corporal (motor), a exploração dos
W
movimentos, o reconhecimento do corpo e a criatividade. Outro
ponto destacado se refere à relação da criança consigo, com o outro
e com o meio sociocultural por meio do ensino da dança.
O

As relações dessa área com outras também foram abordadas por


um dos participantes, sugerindo a interdisciplinaridade, assim como
D

a necessidade de incluir essa linguagem de fato desde a Educação


Infantil. Os participantes identificam a valorização da corporeidade
no processo educativo e o aspecto do prazer e da ludicidade que
EE

a prática da dança proporciona como elementos importantes na


educação integral do aluno.
Por fim, a relação entre a sensibilidade e o raciocínio como
forma de aquisição de conhecimento também foi elencada por um
FR

dos participantes. A inclusão na grade curricular do ensino formal foi


um aspecto mencionado pela maioria dos participantes.
Existe uma mudança no discurso dos participantes em
relação à dança como um conhecimento que integra a formação
da criança no sentido de capacitá-la para o exercício da cidadania

197
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

porque trabalha com a sensibilidade, com a relação do homem


com o mundo por meio do corpo comunicativo que expressa
ideias e emoções. E também dizem que esse é um espaço a ser

D
explorado – a dança na educação.
Para os participantes, a dança deveria fazer parte do currículo

A
da escola. Isso mostra a relevância que essa linguagem possui para
eles e como eles passaram a encará-la em relação à educação e a
sua inserção no espaço escolar. Esse espaço é algo a ser conquistado

LO
e explorado. Nesse sentido percebemos a necessidade da dança
estabelecer um diálogo com a educação.
Quando arguimos como os participantes enxergam a inserção
da dança no meio educacional, eles responderam que a linguagem da
N
dança no meio educacional é pouco explorada. Isso se deve à falta de
profissionais qualificados para esta área de atuação.
W
Os cursos superiores de arte e de pedagogia ainda não possuem
a linguagem da dança nos seus currículos. Há poucas graduações
em dança no país. Em uma década (2000 a 2010) passamos de 12
O

para 29 graduações em dança reconhecidas pela Capes. Na cidade de


São Paulo, contamos apenas três graduações, das quais apenas duas
D

formam licenciandos para Educação Básica. Portanto, as escolas não


possuem professores com formação em dança ou com conhecimento
para se trabalhar com ela. Então eles recorrem a danças para ilustrar
EE

festas temáticas (juninas, dia das mães etc) e, embora tenham


interesse em introduzi-las no contexto escolar, acabam por não fazê-
la de forma apropriada.
A dança também aparece no meio educacional como atividade
FR

extracurricular.
As respostas ainda revelaram que é preciso a capacitação dos
professores que já atuam nas escolas. Estes professores são pedagogos
e licenciados em educação física, por isso há a necessidade de
propostas de formação continuada em contexto no sentido de

198
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

habilitá-los para o desenvolvimento de um trabalho educacional e


artístico com a linguagem da dança.
A inserção da dança no meio educacional é tímida e em alguns

D
casos, equivocada. Temos as danças midiáticas como uma ilustração
desse equívoco. Isso ocorre porque de fato é necessário um projeto

A
político voltado para essa questão. Envolve também a mudança de
currículo dos cursos de formação inicial na área educacional, além
do estímulo para a abertura de novos cursos de graduação específicos

LO
na área de dança na cidade de São Paulo. Percebemos um tímido
avanço nesse sentido, isso sem falar que possuímos apenas uma pós-
graduação em dança no Brasil (UFBA). O contexto em relação à
área da dança merece uma discussão apropriada que deve ser feita

N
nos meios acadêmicos, eventos científicos, associações e redes de
cooperação, já citadas anteriormente.
W
Em relação à atuação profissional dos participantes, perguntamos
sobre a inserção em projetos artísticos e educacionais na área de
dança e se isto agregaria algo na formação profissional e pessoal.
O

Mas percebemos que os participantes tiveram entendimento


parcial do que foi perguntado, uma vez que todos, com exceção
D

de um, participaram do projeto de capacitação de professores, nas


linguagens de dança e música, na rede municipal de Jundiaí, cidade
circunvizinha a São Paulo. O desenvolvimento desse projeto se deu
EE

em 2006 – ano de criação do grupo.


Por outro lado, os participantes mencionaram a organização do
II Unidança, evento promovido pelo Instituto de Artes da Unesp
e pelo grupo de pesquisa, também ocorrido em novembro de 2006.
FR

Os participantes que fizeram referência a este projeto foram os


que estiveram envolvidos com o evento. E por ter sido um evento
com características marcadamente artísticas e não educacionais,
aparentemente, ganhou destaque, enquanto que a capacitação não
foi lembrada.

199
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Para eles, o II Unidança trouxe colaborações diversas como


aprender a organizar um evento, participar das decisões (temas,
abordagens), ir a campo (contatar as pessoas etc.), a produção em

D
si (iluminação, palco etc), o registro dos acontecimentos (vídeos e
fotos), além do trabalho em equipe.

A
Os participantes, em sua maioria, vincularam-se a projetos
artísticos na área de dança. Esses vínculos profissionais
possibilitaram estar em cena atuando e estar fora da cena, nos

LO
bastidores. Enfim, em ambas as atuações houve a reflexão sobre
o dançar, o que é necessário para a construção da cena artística,
desde o estudo e a pesquisa sobre o tema, até os recursos financeiros
para que o projeto aconteça.

N
Os outros projetos mencionados são individuais e bastante
variados e mostram que os participantes têm clareza que existe
W
integração entre os projetos artísticos em dança e a formação pessoal
e profissional, pois citam que é “necessário uma vivência prática a
respeito da dança para dialogar com os conhecimentos teóricos e
O

vice-versa”.
Uma só integrante não pretende se vincular a projetos artísticos
D

porque quer se dedicar à escrita da dissertação de mestrado. Todos


os demais pretendem se envolver e desenvolver um projeto na área.
A alegação para isso denota a necessidade do fazer artístico. Todos
dizem que os conhecimentos adquiridos na prática auxiliam na
EE

construção e reflexão sobre a dança. Isso apareceu timidamente nas


respostas iniciais, mas nas finais, há evidência desta necessidade e da
transposição de saberes para o ensino e para a pesquisa acadêmica.
Um aspecto que aparece nas respostas é a relação entre as
FR

experiências artísticas e educacionais com os projetos de pesquisa


que estão desenvolvendo, com destaque à ação, à reflexão e
volta à ação de uma maneira diferenciada. A construção desses
saberes em dança por meio da reflexão na e sobre a ação marca
a construção metodológica que o Grupo de Pesquisa Dança:

200
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

Estética e Educação vem se empenhando em estabelecer como


um diferencial na área.
A reflexão feita pelos participantes mostra a transposição de

D
saberes de uma experiência para outra. Tal transposição também
ocorreu de outras formas nos outros participantes, quando foi

A
relatado que o acompanhamento feito em um projeto de extensão
(IAdança) fez com que o participante retomasse alguns conceitos
aplicando-os na sua prática profissional. Essa reflexão também foi

LO
feita no sentido de articular os conceitos teóricos à prática e após
nova reflexão voltar à aplicação prática de outra maneira. Esse é o
praticum reflexivo de Schön (2000).
A opção do tripé ensino, pesquisa e extensão como estratégia
N
de trabalho do grupo de pesquisa também se evidenciou nas
respostas, pois o II Unidança – Encontro Universitário de Dança e
W
o ENGRUPEdança – Encontro Nacional de Grupos de Pesquisa em
Dança mostram que eventos científicos e culturais podem agregar
a extensão e a pesquisa acadêmica de diferentes maneiras e, no caso
O

dos participantes, estabelecer relações com o ensino e com seus


projetos de pesquisa individuais.
D

Mas a relação entre o ensino, a criação (fazer artístico)


e a pesquisa evidenciou-se em outros momentos da prática
profissional dos participantes. O exemplo disso foi o relato de
um participante com a criação da Coreografia Bonecário, projeto
EE

artístico desenvolvido com alunos EMEF Prof. Rodriguez de


Campos e apresentado na festa de cultura popular da própria
escola que tratou do mundo virtual dos bonecos, resgatando
as situações do imaginário infantil. Outra resposta indicou a
FR

implantação de um núcleo de dança denominado Núcleo de


Dança Criativa na UniSanta – Universidade Católica em Santos,
cidade do litoral paulista. Esses exemplos mostram que o vínculo
com o Programa de Pós-Graduação colaborou com a reflexão e a
atuação profissional desses participantes.

201
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Considerações finais

Este texto abordou alguns procedimentos adotados na pesquisa


‘A inserção da dança no meio educacional: propostas e possibilidades

D
de atuação de profissionais oriundos do Programa de Pós-Graduação
em Artes da Unesp’ que teve como preocupação a formação

A
continuada dos alunos de Pós-Graduação procurando explicitar
algumas transformações ocorridas nas concepções que eles possuíam

LO
sobre arte, dança e atuação profissional na passagem pelo mestrado.
A universidade é uma instituição cujas finalidades e estruturas
refletem o momento de desenvolvimento de uma sociedade, nas suas
coerências e contradições, e por isso, não pode se furtar em pensar

N
sobre a formação continuada dos alunos de Pós-Graduação. Ela é
uma agência que pode desencadear transformações na sociedade,
pela produção e socialização do conhecimento científico e pela
W
elaboração de valores em uma perspectiva crítica e independente,
tanto quanto possível (GODOY, 2003). A Pós-Graduação se coloca
como possibilidade de busca de informações que proporciona a
O

geração de ideias, descobertas e preparação profissional para a


atuação do aluno no mercado de trabalho, ou seja, proporciona a
D

formação de formadores.
O termo formação continuada passou a ser utilizado para
englobar a maneira pela qual os profissionais da educação podem
EE

se atualizar após sua formação inicial, realizada em cursos técnicos


de magistério, centros de formação e universidades. Desta maneira,
a formação contínua apresenta-se como condição importante
para o desenvolvimento das competências, habilidades e saberes
adquiridos durante a formação inicial, mas também representa
FR

espaço de construção e reconstrução de novos conhecimentos e


práticas pedagógicas, implicando em alterações na organização, nos
conteúdos, nas estratégias, recursos, refletindo-se positivamente
nas relações sociais estabelecidas entre alunos e docentes (SILVA,
2002).

202
6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

Essa ideia de processo permanente considera o estabelecimento


de um fio condutor que vá produzindo sentidos e explicitando
significados ao longo da prática profissional, criando ligações entre a

D
formação inicial e continuada e as experiências vividas pela pessoa
(MIZUKAMI et al., 2002).

A
As respostas dadas pelos participantes da pesquisa fortalecem
a ideia de busca de processo permanente colocada pela autora e
também revelam que as expectativas em relação à essa formação

LO
sofreram mudanças ao longo da pesquisa porque houve a ampliação
desse espaço de construção e reconstrução de novos saberes advindos
das relações sociais promovidas pelo convívio com os colegas do
Programa de Pós-Graduação em situações pedagógicas e artísticas e

N
com o grupo de pesquisa Dança: Estética e Educação.
As questões que nortearam esse estudo procuram trazer
W
aspectos que identifiquem quem são os alunos que procuram uma
formação continuada e como pensam a arte, a dança e a relação
delas com o meio educacional. A identificação de transformações
O

nestas concepções trouxe indícios da constituição das representações


sociais que os participantes possuem sobre a dança. Isto revelou a
necessidade de aprofundamento da análise dos dados, fruto de nova
D

pesquisa.
Embora a arte e a dança se configurem como áreas de
conhecimento, elas também se particularizam na medida em que
EE

manifestamos o que pensamos sobre elas. Esse pensamento advém


de uma interpretação de informações que circulam em um meio
social. Estas informações, por sua vez, só podem ser captadas a partir
do domínio de um código coletivo. Segundo Souza (1993), esses
FR

códigos coletivos são aqueles que exprimem as necessidades e as


expectativas, as esperanças e as angústias dos agentes sociais. Eles
produzem sentidos e, ao mesmo tempo, sistemas de representações.
Esses sistemas de representações, para Durkheim (1970), produzem
sentidos coletivos de obrigatoriedade que dão origem às maneiras de

203
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

pensar, agir e sentir das pessoas na sociedade. Assim, denominamos


de concepções estas formas de manifestação das pessoas frente meio
sociocultural (SÁ, 2001).

D
As concepções que os participantes revelaram sobre arte e
dança e a inserção destas no meio educacional se transformaram

A
na passagem pelo mestrado. A alteração se expandiu em função da
interpretação dos participantes sobre as informações obtidas ao longo
desse processo. O contato com o meio acadêmico especificamente na

LO
Pós-Graduação (em Artes) favoreceu o acesso a novos códigos que
se somaram a outros trazidos das vivências anteriores e da formação
inicial.
A atuação em projetos artísticos e educativos os auxiliou
N
no trânsito entre a produção artística individual e coletiva.
As respostas revelaram que a construção coletiva pode ser
W
individualizada nos projetos de pesquisa e que os saberes
advindos da ação refletida no coletivo podem subsidiar uma
ação diferenciada (SCHÖN, 1997). As situações de incerteza e
O

indefinição que são características comuns dos projetos artísticos


podem favorecer a construção e reconstrução de competências
D

necessárias na produção de uma pesquisa artística acadêmica, que


é a finalidade última do aluno do Programa de Mestrado em Artes
do IA. Tais pesquisas podem contribuir para discussão sobre os
dilemas e desafios que a dança deve enfrentar para se consolidar
EE

como área de conhecimento.


FR

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programas de formação de professores. In: ALARCÃO, I. (Org.). Formação
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6 TRANSFORMAÇÕES NAS CONCEPÇÕES SOBRE DANÇA...

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THIOLLENT, M. Notas sobre o debate sobre a pesquisa-ação. Serviço


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205
FR
EE
D
O
W
N
LO
A
D
7

D
Dança coral: ampliando o acesso da

A
sociedade à dança

LO
Maristela Moura Silva Lima, Alba Pedreira Vieira

O ócio e a tecnologia

N
A vida do homem contemporâneo é permeada de realidades
contrastantes. A tecnologia e a ciência oferecem rapidez, saúde e
W
conforto, mas ao mesmo tempo, demandam-lhe mais trabalho,
concentração e flexibilidade para satisfazer as exigências do
cotidiano. Neste contexto, as pessoas passam mais tempo envolvidas
O

em atividades de trabalho que garantam a sua sobrevivência e menos


tempo em atividades de lazer.
D

O homem primitivo usava seu corpo e suas habilidades para


executar um vasto repertório de movimentos para sobreviver e
enfrentar as intempéries da vida em grupo. Do ato de preparar a
EE

terra, plantar, cuidar, colher, limpar, debulhar, moer, cozinhar e


comer ocorria um longo tempo e requisitava do homem um trabalho
físico exaustivo. Ademais, a principal fonte propulsora das danças
rituais primitivas era a de oferecer experiências que fortalecessem
o sentimento de solidariedade e afinidade entre os membros das
FR

tribos. O uso de ferramentas e o desenvolvimento de máquinas que


substituíram as funções básicas para a sobrevivência isentaram o
homem do uso instrumental global do seu corpo e passou a exigir
ações especializadas, que requisitam o uso de partes isoladas, em
movimentos automatizados de produção em alta escala.
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

O uso da máquina, desde a época da Revolução Industrial,


colaborou para mudanças na sociedade moderna de maneira ambígua.
Na sociedade contemporânea, as novas tecnologias auxiliam alguns

D
aspectos em detrimento de outros. Na perspectiva de que tudo na
vida é relativo e de que depende do equilíbrio e do bom senso do
ser humano, o uso da máquina e das novas tecnologias para um

A
propósito benéfico tem alterado o uso do tempo e espaço do homem
contemporâneo.

LO
A rapidez com que se constroem edifícios e pontes, o deslocamento
para países distantes, a internet, as transmissões televisivas, fizeram
o mundo encolher, dando a impressão de que toda a humanidade
desfruta dos mesmos bens, apesar das diferenças étnicas e éticas. Por

N
outro lado, a aceleração do maquinário destruidor de seres humanos
e da natureza tem se tornado preocupante. O ruído perturbador
das motosserras, os aviões de guerra, as máquinas mortíferas de alta
W
precisão e amplitude, os hackers e navegadores expurgos da internet,
aceleram a destruição do planeta e da serenidade entre os homens.
O

Atualmente, a tecnologia tem permitido ao homem rapidez nas


tarefas do cotidiano e conforto no ambiente doméstico e de trabalho.
Os equipamentos eletrônicos permitem que alguém trabalhe, receba
D

as compras, pague as contas, assista filmes e sobreviva às exigências


do cotidiano em sua própria casa, sem receber um raio de sol em sua
pele. Lafargue (2003), em meados do século XIX, já preocupado com
EE

a renovação das indústrias pela mecânica moderna, e pelo excesso


de horas atribuídas ao trabalho, apresentou uma crítica à extrema
valorização da produção de bens materiais, do consumismo e suas
consequências na vida de relação social entre as pessoas:
FR

Mas, o que vemos? À medida que a máquina se


aperfeiçoa e dispensa o trabalho do homem com
uma rapidez e precisão que não param de crescer,
o operário, em vez de prolongar o seu repouso
proporcionalmente, redobra seu esforço, como se

208
7 DANÇA CORAL

quisesse rivalizar com a máquina (LAFARGUE,


2003, p. 45).

De Masi (2000), comentando sobre a intelectualização de

D
uma parcela da sociedade global, observa que as atividades mentais
prevalecem sobre as corporais. Entre as atividades intelectuais mais

A
apreciadas, a criatividade tornou-se um elemento fundamental
associada aos conceitos estéticos inovados pela rapidez que a

LO
transformação tecnológica permite. Arbitrariamente, se o homem
sobrevive com menos esforço físico e possui mais tempo para desfrutar
de momentos de lazer, o que o impede de se inteirar com outras
pessoas? Como a dança pode interferir e possibilitar o relacionamento
entre as pessoas em uma sociedade em que as pessoas estão muito

N
preocupadas em produzir e desfrutar dos bens materiais? Como a
dança pode qualificar a dimensão humanística que cada ser humano
W
possui de se doar e compartilhar coletivamente momentos de alegria,
prazer e felicidade? Um estudioso da arte da dança que aborda essas
questões é Rudolf Laban, cuja proposta será discutida nesse texto.
O
D

SOS ao Brasil

O homem do século XXI parece viver um conflito existencial


dramático quando uma parcela da sua identidade permanece apegada
EE

a laços culturais tradicionais, relacionados aos valores familiares,


hábitos e costumes perpetuados até o presente pelas experiências
de gerações passadas. Na visão de Hall (2003), as sociedades da
modernidade tardia, identificadas como as do período após a década
FR

de 1950, estão em constante transformação, em ritmo acelerado pela


tecnologia desenfreada e ao processo de globalização com um forte
impacto sobre a identidade cultural do indivíduo. Segundo esse autor,
a velocidade das informações veiculada pelos meios de comunicação
está causando uma ruptura com as tradições consagradas, incutindo

209
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

novos valores morais, éticos e estéticos que se fundem em uma


‘homogeneização cultural’. A questão da identidade de uma pessoa
perpassa pelo significado que os elementos culturais representam
socialmente, porém, torna-se difícil para a família e as instituições

D
educacionais competirem com a rapidez das informações que têm
afetado a noção de tempo e espaço, sugerindo novos modos de vida

A
e de relacionamentos. A perda de identidade se dá pelo rompimento
com as tradições em simples aspectos culturais que ao longo do

LO
tempo vão influenciando a língua, costumes e tradições (ALVES,
2004). Historicamente, o Brasil tem recebido enorme influência de
países europeus e norte-americanos, assim como em outros países
da América Latina fato que tem impedido a valorização da nossa
própria cultura.
N
O povo brasileiro apresenta características muito distintas e
manifestas na linguagem, na alimentação e nas tradições culturais,
W
pela sua dimensão continental e diversidade geográfica. A arte de
Jobim, por exemplo, traz uma verdade incontestável, quando afirma
que “O Brasil não conhece o Brasil, o Brasil, SOS ao Brasil”. Falta
O

ao povo brasileiro ufanismo, sentimento de orgulho pela pátria


(fora da época da Copa do Mundo) e honra de ter nascido em um
D

país tão privilegiado em recursos naturais, de climas amenos, sem


cataclismos severos que causam destruição e morte e uma cultura
extremamente rica e diversificada. Pela falta de acesso à educação
e informação sobre a beleza do seu país, a maioria dos brasileiros
EE

ignora as riquezas da sua própria cultura advinda da diversidade da


composição miscigenada da raça brasileira. Essa alienação cultural
impede que o brasileiro conheça e valorize detalhes importantes da
própria família, sua ancestralidade, aspectos importantes da cidade e
FR

da região em que habitam e de todo o país.


Atualmente, os meios de comunicação de massa e a falta de
bom senso e espírito humanitário dos governantes renegam as
características próprias da cultura brasileira e permitem a invasão de
notícias, programas e filmes, que transmitem ideias e valores pouco

210
7 DANÇA CORAL

edificantes e pobres de mensagens educativas. Os canais de televisão,


as emissoras de rádio e a comunicação pela internet atingem grande
número da população brasileira em grandes centros e nas áreas rurais

D
e a programação destes meios de comunicação não valorizam a arte e
as autênticas manifestações culturais do povo brasileiro.

A
É claro que os aparelhos de TV, rádio e computador não têm
vida própria e não se impõem nas salas de estar das famílias. Mas é
o homem que tem o domínio, o livre arbítrio para ligar ou desligar

LO
o aparelho acionando um simples botão. Entretanto, falta a este
homem espírito crítico, educação, para avaliar o que deve ser feito
e quando, e entender que pode fazer suas escolhas. Segundo dados
do IBGE (2000), o Brasil possui 34 milhões de jovens na faixa de

N
idade entre dez e 19 anos.1 Considerando esse patrimônio humano
fantástico, é inconcebível que em uma sociedade de população tão
jovem não haja investimento financeiro nessa faixa-etária, no campo
W
da educação e das artes, na busca de se promover uma conscientização
social, artística e cultural.
O
D

A invasão cultural estrangeira na sociedade brasileira

A partir da análise do nosso cotidiano, pode-se observar


as contradições e a forte influência da cultura europeia e norte-
EE

americana nos costumes da sociedade brasileira. É possível observar


a invasão das tradições das sociedades globalizadas no modus vivendi
do nosso povo. Podemos citar três exemplos que são refletidos no
modo de vestir, na padronização de itens comerciais e nos meios de
FR

comunicação.
O brasileiro, fruto de uma combinação étnica, renega o vestuário
de tecidos estampados com motivos desenhados impregnados de

1 Dados do censo demográfico realizado pelo IBGE em 2000.

211
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

cores e formas (isto só não acontece quando esta é ‘última tendência


da moda’), típicos das culturas africanas e indígenas, que ofereceram
um toque especial à nossa formação cultural. Por influência europeia

D
e norte-americana, a moda brasileira, principalmente no inverno,
segue uma linha clássica e monótona, fazendo uso de cores neutras
e escuras. No imaginário social dos países de primeiro mundo parece

A
ser inconcebível o traje com estampas diferentes, o que é considerado
brega e de mau gosto.

LO
No entanto, obedecemos, muitas vezes cegamente, às regras
de países que sofrem inverno rigoroso e frio por mais de seis meses,
anualmente. Nestes países as cores escuras são usadas por seu aspecto
prático e funcional, pois atraem o calor do sol e aquecem o corpo dos

N
seus usuários. Temos o nosso clima tropical, o nosso jeito de ser,
nossa ginga, a natureza exuberante em cores e formas e deveríamos
usufruir desta realidade.
W
A safra de produção de carros brasileiros de cores neutras é outro
exemplo de imposição do gosto estrangeiro. Atualmente, predomina
O

as versões metálicas do azul marinho ou petróleo, prata, preto,


dourado, verde escuro ou branco. São poucas as fábricas que lançam
novos modelos com cores alegres e vivas. Até a década de 1990, eram
D

lançados carros com variadas cores que enfeitavam ruas, avenidas


e estradas com diversos tons de amarelo, vermelho, azul e verde.
Uma questão paira no ar azul, amarelo e verde das pessoas que amam
EE

o Brasil de todo o coração. Por que o brasileiro não se liberta das


regras de padronização impostas pelos países ditos civilizados? Por
que não podemos ter um mundo mais colorido produzido pelas mãos
do homem?
FR

A padronização chegou aos meios mais populares de


comunicação, como o rádio. Uma grande parte dos comunicadores
se expressa de maneira sensacionalista, com reclames e chamadas,
emitidos com tons de vozes nivelados ao de emissoras de outros
Estados. De Norte a Sul do Brasil, a entonação dos comunicadores

212
7 DANÇA CORAL

de rádio está padronizada, negando a riqueza dos sotaques típicos


de cada região e da variedade de ritmos e música em comerciais,
neutralizando o impacto dos arranjos instrumentais da música

D
brasileira, tão rica e apreciada pelo mundo inteiro.
Comercialmente analisando, observamos que o turismo

A
nacional não é valorizado. É mais fácil, em termos de oferta e
economicamente falando, engajar-se numa viagem ao estrangeiro
do que a muitos lugares no Brasil. Entretanto, nosso Brasil é

LO
vendido lá fora a preços módicos e muitos estrangeiros vêm até
nós em busca do exótico, ansiosos também por apreciar nossos
ritmos e danças. Eles procuram pelo que é nosso, enquanto nossos
brasileiros se ocupam em se ‘atualizar’ com a cultura globalizada
e sem identidade.
N
W
Brasil: cultura rica em ritmos e danças
O

A música e as danças brasileiras são sempre reverenciadas como


exuberantes e ricas em ritmo e beleza por povos de outras culturas,
D

mas o brasileiro tem a tendência de modificar o que é autêntico


e valorizar o que é estranho aos nossos valores morais, éticos e
culturais. A invasão cultural estrangeira proporciona a distorção e
a desvinculação dos produtos culturais com as suas raízes e origens.
EE

Três exemplos podem ilustrar como este fenômeno tem afetado a


vivência das nossas manifestações autênticas por brasileiros de várias
faixas etárias. A cada ano aumenta o número de integrantes das
escolas de samba, que virou uma consequência do marketing visual
FR

proporcionado pelo grande espetáculo de brilho, pompa e ritmo.


Basta pagar uma taxa, dividida em suaves prestações ao longo do ano,
e a pessoa se integra ao número de figurantes da agremiação. Esta
possibilidade de desfilar no Sambódromo da Sapucaí, certamente,
nutre o ego do estranho participante e o bolso da escola, mas afirma

213
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

a alienação do mesmo com a comunidade e com a realidade daquela


escola de samba.
O hip-hop, como segundo exemplo, é um tipo de manifestação

D
cultural que nasceu nos guetos americanos, como um movimento
genuinamente negro, que se configura como expressão da identidade

A
das comunidades negras que representam um percentual de 48%
da população norte-americana. Associado ao rap (rhythm and
poetry), uma linguagem musicada que denuncia as mazelas sociais

LO
da sociedade americana em versos rimados, o hip-hop, tomou uma
dimensão de movimento cultural de protesto e reivindicação em
vários países. No Brasil, o hip-hop foi rapidamente absorvido pelas
populações da periferia das cidades, que se identificaram com a

N
problemática racial dos negros norte-americanos, e adotaram o
mesmo estilo para protestarem contra o sistema discriminatório da
sociedade brasileira. Na fusão do hip-hop com o ‘tempero’ rítmico
W
brasileiro surgiu a hibridização deste tipo de dança com a batida
do samba, divulgado pelo compositor e cantor Marcelo D2, entre
outros. Podemos afirmar que o rap não é nada mais que uma releitura
O

da literatura de cordel, que o povo nordestino já expressava no início


do século XX, como uma linguagem poética e sutil de comunicar sua
D

penúria, seus romances e de se afirmar como uma raça corajosa e


criativa. Ainda hoje, se mantém forte e presente o embate entre dois
repentistas que com suas violas desafiam a imaginação do oponente
e ao mesmo tempo satirizam temas relacionados à situação política,
EE

social e cultural do país.


O forró universitário serve também como exemplo da distorção
das nossas tradições. Surgiu como dança de salão, no início da
década de 1990, uma adaptação do forró nordestino, atividade
FR

social exercida desde o início do século XX, marca registrada da


musicalidade do povo do Nordeste. Esta prática social de lazer se
apresenta como uma releitura de uma das mais tradicionais danças
brasileiras, acrescida de sofisticação do casal que executa figuras
elaboradas e se envolvem em giros rápidos dos parceiros numa

214
7 DANÇA CORAL

acelerada movimentação de braços e pés, com uma forte intenção


performática. Assim, denominado, por ter sido originado nos redutos
estudantis universitários dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e

D
Espírito Santo, surgiu como novo formato no sentido da execução
exigindo os passos e deslocamentos da dama na ponta dos pés e
um posicionamento da cabeça dos parceiros fora do eixo central

A
do corpo, comprometendo a boa postura do casal. O autêntico
forró nordestino envolve os parceiros em um contato íntimo, com

LO
deslocamentos em passos miúdos, enfatizando o movimento dos
quadris de ambos, sem o exagero de figuras e giros estereotipados.
Ao som dos trios constituídos pelo acordeom, zabumba e o triângulo,
ou mesmo motivados por sons eletrônicos, os casais desfilam pelo
salão, dançando com modesta descrição.
N
Cabe aqui fazer alusão às danças de festas familiares e às
realizadas em locais públicos como discotecas e galpões. As danças
W
de salão estiveram em vanguarda durante muito tempo até que
com o advento das grandes guerras mundiais os pares, por falta
principalmente do parceiro masculino, se descaracterizaram. A
O

música, também em resposta às consequências das guerras, mudou


suas características estruturais. Inicia-se o rock, enfatizando
D

o dançar individual no salão e a mocidade adere a esta nova


forma de expressão. A dança aos pares permanece nos salões da
velha guarda e, internacionalmente, se perpetua com a dança
EE

competitiva, codificada e divulgada pelo Conselho Inglês de Danças


de Salão. Nas festas onde não há dança, as pessoas conversam
sentadas ou em pé, segurando um copo de bebida para manter as
mãos ocupadas e se sentirem mais à vontade. A música funciona
como apoio circunstancial do ambiente que acolhe os convivas,
FR

que permanecem conversando e se divertindo em pequenos


grupos. Nas festas onde as pessoas dançam, cria-se um ambiente
alegre e descontraído. Ao som da música, as pessoas ficam mais à
vontade, alteram o volume da voz para se comunicarem, ampliam
a gesticulação e demonstram maior descontração no ambiente. Os

215
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

amantes da dança se entregam às delícias do movimento, seja aos


pares, sozinho ou em grupo. São nestes momentos que as pessoas
passam a se integrar com outras, demonstrando sua maneira de
responder ao ritmo das músicas, de se relacionar com o outro em

D
um contexto que permite a exibição do seu modo de ser. Uma festa
onde as pessoas dançam assemelha-se à uma sessão de catarse,

A
de terapia em grupo. Neste momento são deixados de lado os
maneirismos e comportamentos socialmente aceitos, adequados à

LO
representação teatral da vida na sociedade, cedendo lugar à livre
expressão corporal e ao prazer.
Há festas, como as raves, em que música, dança e drogas criam
um clima ‘surrealista’, ‘alogênico’, ‘irreal’, onde os participantes

N
se ‘desligam’ da realidade em nome do prazer. Este ‘prazer’ tem
conotações diferentes para diferentes tipos de pessoas. Frances Rust
(1969) denomina estas danças de patogênicas.
W
Não é concebível compreender porque, precisamente nesta
fase histórica da humanidade, de tantas incertezas, contradições e
O

desesperanças e, sobretudo, de inquietação com o futuro do homem


na terra, os professores, educadores e dançarinos (e, sonhando
alto), políticos, empresários e pais de família, negligenciam a
D

mensagem de esperança que a arte da dança pode proporcionar. De


fato, se olharmos com mais cuidado, poderemos compreender que
cada ser humano é portador de uma riqueza infinita de expressões
EE

e comunicação por meio de seus movimentos. Celebrar a vida pela


dança sempre fez parte das atividades de todas as culturas. No
Brasil, terra de povo composta pela miscigenação de diversas etnias,
existem celebrações com festas populares entre elas: o Carnaval,
Frevo, Bumba-Meu-Boi, Quadrilha Junina e as festas dos Centros de
FR

Tradições Gaúchas, entre outras, que abrigam milhares de pessoas


capazes de gerar uma energia constante de demonstrações de ruas,
praças e clubes. A dança tem o poder de atuar como um instrumento
de comunicação para agregar pessoas e promover relações sociais.
É uma arte que pode favorecer as relações entre pessoas, ou seja,

216
7 DANÇA CORAL

parafraseando Vinicius de Moraes no Samba da Bênção de 1962


(CASTELLO, 1994), podemos dizer que a dança é a arte do
encontro.

D
A
Dança: arte da vida

A dança, como arte, se diferencia das outras; é intangível,

LO
existindo apenas no corpo da pessoa e morrendo com ela. Muita dança
se perdeu no tempo e no espaço e quem dançou reconheceu o seu
poder de expressão. Muita dança se multiplicou no tempo e no espaço
e quem dançou se apaixonou pelo que viu e ouviu. As evidências que

N
o homem primitivo dançava estão registradas em pinturas nas pedras
e vasos encontrados em cavernas e sítios arqueológicos com milhares
de anos de existência. Provavelmente, a batida de pés no chão devia
W
caracterizar a dança dos povos primitivos, costume mantido até hoje
como tradição dos ancestrais pelas tribos remanescentes em lugares
distintos da civilização moderna.
O

A função da dança ainda serve como meio de expressão do


homem com a natureza, com o outro e como comunicação da
D

força e individualidade dos povos. Súplica aos deuses, adoração,


agradecimento, ritos de passagens, imitação dos animais e cortejo
são motivos para a execução de dança firmando-se como a autêntica
EE

expressão dos povos que não usam a escrita para perpetuarem suas
tradições (KRAUS; CHAPMAN, 1981).
A dança está inserida em toda obra de arte, porque é por
meio do movimento de segurar a palheta, pincel, caneta, folha de
FR

papel, madeira, massa, cinzel para esculpir, digitação no teclado, da


gesticulação de todo o corpo e da dança das mãos e dedos que o
artista concretiza sua criação. Enquanto arte, a dança é produto da
expressão intencional que permite a liberação da índole criativa do
homem, transcende as ações no tempo e no espaço e se transforma

217
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

em algo inédito. É a arte de organizar movimentos com elementos


que possibilitam a criação improvisada ou previamente concebida
que traduzem a intenção expressiva do homem. Essa arte comunica

D
a liberdade de usar o corpo como instrumento da interpretação dos
conceitos de energia corporal, ritmo, espaço, valores estéticos e

A
culturais, bem como emoções de um povo, concretizadas por meio
de danças executadas individualmente, em pequenos ou grandes
grupos.

LO
A Arte do Movimento de Rudolf Laban

N
No final do século XIX, no tempo da efervescência dos
questionamentos sobre a mecanização da força de trabalho humano,
W
e os números de horas dedicadas à produção nasceu em Bratislava,
na Hungria, o filósofo e dançarino Rudolf Laban (1879/1958). Ele
revolucionou as artes cênicas no início do século XX e desenvolveu
O

a fundação de sua teoria na Alemanha e Inglaterra. Visualizava


arte em qualquer movimento, independente da sua função ou
D

propósito e dedicou sua vida a um corpo de conhecimento que


denominou ‘Arte do Movimento’ (SILVA, 1983). A esta teoria são
atribuídas todas as atividades em que o homem utiliza movimento,
EE

seja como meio de sobrevivência ou de expressão. Considerando


que o homem depende do movimento para viver e que a vida se
manifesta por meio do movimento, a extensão do seu estudo é muito
abrangente. Laban pregava que “o meio fundamental de expressão
FR

para a dança deveria ser nutrido da natureza, manifesto em uma


dinâmica baseada no contrapeso e na fluência, e na consciência da
tensão entre o corpo no espaço e no tempo. Como na natureza, o
bailarino era visto como em um ‘fluxo constante’” (VIEIRA, 2009,
p. 2).

218
7 DANÇA CORAL

Digno de nota é a visão de Rudolf Laban ao afirmar que


todo movimento é dança e pode-se interpretar essa afirmação
em um sentido amplo, metafórico e poético, olhando-se o mundo

D
em que se vive e as circunstâncias que se enfrenta no cotidiano
(LABAN, 1951). As surpresas de cada dia acontecem com o
movimento dos seres vivos e objetos que se deslocam no entorno

A
de pessoas, com seus ritmos próprios, oferecendo espetáculos
gratuitos de ação e drama. O balanço das folhas e flores, as ondas

LO
do mar, o passar das nuvens, o batimento cardíaco, a luta pela
sobrevivência são manifestações de dança.
Movimento é sinônimo de ritmo, de vida. Enfrenta-se nova
situação constantemente e essa novidade torna a vida interessante
N
e desafiadora. Cabe a todos deleitarem-se com a dança espontânea
que se cria a cada momento em casa, no trabalho, na rua, ao se
W
perceberem ocorrências momentâneas com a visão de um artista
que capta as cores, ritmos e movimentos do ambiente privado ou
público. No ambiente rural, pode-se observar o movimento das
O

árvores, animais no campo, passarinhos que transitam livremente,


fumaça de chaminés, charretes sacolejando nas estradas de terra e
D

ações de plantio e colheita. Na cidade, o corre-corre das pessoas,


engarrafamento de trânsito, construções, lojas, vira-latas e pessoas
populares da cidade circundam o transeunte que observa ou ignora a
EE

dança, movimento, frenética em sua volta.


A teoria da Arte do Movimento incorpora estudos amplos da
ação humana e o desenvolvimento de uma linguagem oral e escrita
que se desdobraram em enfoques específicos, tais como: dança-teatro,
FR

dança coral, dança educativa moderna e labanálise (labanotação e


esforço/forma). Atualmente, o estudo do esforço/forma é denominado
Análise de Movimento Laban ou Sistema Laban (NANNI; LIMA,
2005). Neste texto, enfatiza-se a importância da dança coral como a
arte do contato e união entre as pessoas.

219
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

A dança coral2

Coral de vozes cantadas ou faladas é conhecido, mas coral de

D
movimentos é pouco comum, apesar de ser muito antigo. É bem
possível que as primeiras danças dos seres humanos foram danças
corais. No processo de individualização as pessoas perderam o hábito

A
de se expressarem em grupos com exceção dos corais e das orquestras
de música.

LO
Um número de dançarinos reunidos em grupo e executando
um trabalho de dança coral produz efeitos que não são possíveis
de serem apresentados por um único dançarino. Esses efeitos são
atribuídos ao impacto artístico causado no público. Certos tipos de

N
dança possuem o objetivo de energizar os dançarinos e possuem,
consequentemente, valores recreativos e educativos aos próprios
dançarinos, independente do olhar dos espectadores. A dança coral
W
recreativa é formada por composições simples o bastante que podem
ser realizadas por qualquer pessoa. As danças corais representativas
da arte do movimento envolvem composições elaboradas, cujo
O

significado e beleza comunicam algo estético ao espectador. Em


ambos os casos, entretanto, existem elementos comuns que podem ser
D

encontrados na harmonia dos movimentos que compõem qualquer


forma valiosa de dança.
A dança coral é de grande proveito para o estudante em
EE

movimento. Uma das dificuldades em expressar ideias e sentimentos


com movimentos é a inibição, o medo de demonstrar livremente
a comoção interna que permite a criatividade. A maioria das
pessoas considera que esconder suas emoções e pensamentos sob a
FR

máscara impassível da imobilidade é um comportamento digno do


homem civilizado, portanto, nunca aprenderão a se movimentar

2 As ideias contidas nesta seção do artigo referem-se à tradução do artigo original, Notes on
Choric Dance, publicado no Laban of Movement Guild, Surrey, England, Bartle & Son Ltda.,
1939. Tradução livre feita por Maristela Moura Silva Lima.

220
7 DANÇA CORAL

com eficiência e beleza se reprimem constantemente sua expressão


espontânea de movimento.
A dança coral é uma das grandes fontes de animação e prazer

D
que proporciona a liberação dos efeitos negativos que a repressão
social impinge sobre o indivíduo. Se todas as pessoas ao nosso redor

A
se movimentam não há necessidade de esconder e não há razão para
sentir desconforto, inibição ou medo (é por meio do movimento
que mostramos nossa autêntica maneira de ser, de reagir frente às

LO
diversas situações que enfrentamos no cotidiano). A experiência
com a dança coral pode ser vivenciada em reuniões festivas ou em
encontros com propósitos definidos, cujo movimento improvisado
ou espontâneo não é artisticamente organizado.

N
O sacudir rítmico do corpo inteiro de um dançarino não pode
ser considerado dança no sentido da estética por excelência. Assim,
W
também, uma apresentação homogênea e a repetição de um gesto
rítmico de todos os membros de um grupo não pode ser considerada
uma dança coral de importância artística. A diversidade de temas de
O

movimentos contrastando entre si é comparável aos contrapontos de


cada grupo de instrumentos em uma orquestra, e esta sim é a forma
mais evoluída de uma dança coral.
D

As danças corais são compostas dos mesmos princípios que


regem a composição solística. Dançar em grupo requer técnica
específica em que a agitação de cada membro é adaptada à expressão
EE

de todo o grupo. Existem conteúdos expressivos de danças em grupo


semelhantes aos conteúdos de danças individuais e esses conteúdos
são expressos por formas definidas de movimento.
FR

Fazer e dançar

Dois aspectos fundamentais do movimento na teoria de Laban


são o ‘fazer’ e o ‘dançar’ (Doing and Dancing, LABAN, 1939).

221
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Para Laban, todo movimento é dança porque é uma expressão


natural do ser humano, e, consequentemente, todas as pessoas
são dançarinas por excelência (OTTE-BETZ, 1938). Pode-se

D
interpretar essa afirmação em um sentido amplo, metafórico e
poético, olhando-se o mundo em que se vive e as circunstâncias
que se enfrenta no cotidiano. Dança, no sentido amplo de recrear,

A
de recriar momentos, sensações agradáveis, ou apenas sentir
prazer de viver o momento presente. Dança, no sentido de estar

LO
vivo, aberto às situações corriqueiras ou especiais que preenchem
a vida (LABAN, 1959).
As surpresas de cada dia acontecem com o movimento dos seres
vivos e objetos que se deslocam no entorno de pessoas, com seus

N
ritmos próprios, oferecendo espetáculos gratuitos de ação e drama.
O balanço das folhas e flores, as ondas do mar, o passar das nuvens,
o batimento cardíaco e a luta pela sobrevivência são manifestações
W
de dança.
Podemos nos permitir estar despertos e abertos às sensações e à
O

imaginação que emergem do nosso corpo, o qual nos presenteia a cada


momento, tornando-nos, como sugere Robin (2004), dançarinos.
Dançarinos não no sentido cênico e estereotipado, mas capazes de
D

nos expressarmos segundo a nossa percepção das nuances de nossas


emoções e sentimentos que nos comovem a cada momento.
O movimento revela as características do que e de quem se
EE

move. Muitas vezes, alguém se surpreende observando o jeito de


uma pessoa andar ou gesticular enquanto conversa, carros passando
rápidos ou lentos, animais na rua, flores do jardim e toda dinâmica
do meio envolvente com tamanha movimentação.
FR

Laban (1939) entende que ‘fazer e dançar’ usam os mesmos


elementos básicos de composição, porém o primeiro tem uma
finalidade funcional, e o segundo uma finalidade expressiva. O
corpo é uma unidade e executa os dois tipos de movimentos: um,
com uma finalidade prática (segurar uma colher, vestir uma roupa);

222
7 DANÇA CORAL

outro, como uma forma de expressão (balanceio dos braços, saltitar


de alegria).
O fazer e o dançar tem raízes comuns na mobilidade do

D
corpo e na agitação da mente. As pessoas se revelam de forma
única no fazer e dançar, espelhando traços de personalidades e

A
vontades. Fazer é necessário para a sobrevivência do homem.
Dançar, embora não seja diretamente necessário à sobrevivência,
recupera o homem do desgaste do fazer (LABAN, 1939). Dançar

LO
amplia os horizontes do fazer humano, pois considera a natureza
lúdica que o homem possui e lhe permite atingir um equilíbrio
entre o mecânico e o sensível-criativo da alma humana. Neste
contexto, o esporte, as brincadeiras e o dançar são essenciais na

N
recuperação do desgaste do fazer.
A dança exerce efeito restaurador no corpo e espírito de quem
W
imerge na fluência de seus próprios movimentos. Quando uma criança
ou adulto se envolve com a dança, executa uma série de movimentos
que têm o único propósito de expressão pessoal. É esta imersão em
O

movimentos improvisados que ajuda a pessoa a se descobrir como


indivíduo original e a se conscientizar que seu corpo é um veículo
rico de expressão.
D

Dando vazão a uma de suas utopias, a de expandir a dança para


o maior número de pessoas, Laban passa a se apoiar na convicção
de que a dança poderia ser praticada por qualquer ser humano,
EE

além daqueles tecnicamente treinados. Com esses ideais, passa o


pesquisador a desenvolver o processo estético-político transformador,
voltado para a população em geral. Ele percebeu a necessidade
de preservar a espontaneidade em crianças e adultos, usando o
FR

movimento como maneira de revitalizar a energia humana (LABAN,


1990). No início de 1900, criou um modo de recreação popular em
vários países europeus e começou a se referir a esta dança em grupo
como Choric Dance ou Movement Choir, conhecido no Brasil como
‘dança coral’ ou ‘coro de movimentos’ (LABAN, 1939).

223
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Por um período de 20 anos (1905-1925), os corais de


movimentos se tornaram populares e se espalharam pela Europa,
oferecendo a oportunidade a milhares de pessoas de participar

D
desses eventos artísticos. Laban usava a sua invenção para ajudar
as pessoas a enxergarem além dos estilos formais da época e a
apreciar suas danças, em seus ritmos próprios e de acordo com

A
as suas capacidades individuais (CHAPMAN, 1974). Essas
danças corais forneceram experiências de alegria no movimento

LO
em grupos grandes ou pequenos, que não exigiam habilidades
sofisticadas.
O homem contemporâneo pode usufruir de todas as benesses
dos avanços tecnológicos. Mas o ser humano é, por excelência,

N
um ser social e precisa do outro para sobreviver e se realizar como
pessoa e deveria ter mais tempo para o lazer e o relacionamento
intersubjetivo. Nesse sentido, afirma Laban (1975, p. 85):
W
Na minha opinião, o verdadeiro propósito do
O

homem seria criar a vida com ocasiões festivas;


festiva, não no sentido de luxúria e ócio, mas uma
maneira de construir uma personalidade forte e
investir nas esferas que o distinguem do animal. As
D

grandes festas na vida, assim como os momentos


felizes do cotidiano, deveriam ser preenchidos com
uma atitude espiritual que deveria concentrar e
aprofundar o sentido de reciprocidade e apreciação
EE

da identidade pessoal de cada indivíduo. Considero


o modo simples de vida uma das mais importantes
fontes da felicidade humana.

Servos (1990) apontou reflexões sobre possíveis intenções


FR

controversas dos corais de movimento que ocorreram no período


nazista. Uma versão é se os corais de movimento faziam parte da
utopia transformadora tão almejada por Laban ou se teriam, mesmo
que inconscientemente, como fundamento desenvolver grandes
coreografias de massa do facismo. Para exemplificar essa segunda

224
7 DANÇA CORAL

versão, temos o convite feito à Laban pela equipe organizadora da


abertura dos Jogos Olímpicos de 1936 na Alemanha, para que ele
realizasse nessa cerimônia uma apresentação de dança coral que

D
representasse o espírito de união e poder do povo alemão. Outra
versão é que essa proposta poderia ter causado dúvidas ao sistema
tão massificante, que não permitia expressões individuais e tampouco

A
coletivas. Este tipo de manifestação em massa não agradava aos
ideais políticos vigentes e, para exemplificar essa justificativa, há o

LO
fato, citado por Foster (1977) que Laban foi exilado da Alemanha
em 1936 sem direito de levar seus esboços e projetos até então
realizados.
Vieira (2009, p. 14) esclarece que:

N
A Dança Expressionista foi mais divulgada no
Brasil na década de 40, por professores de dança e
W
bailarinos europeus que fugiam da guerra. Ou seja,
o gênero foi difundido no nosso país justamente
em uma época em que as pessoas tinham sede de
O

expressar as angústias sofridas pelo momento de


penúria trazido pela II Guerra Mundial. O contexto
político interno era regido pela ditadura de Getúlio
D

Vargas e a Dança Expressionista procurava pregar


justamente a liberdade de expressão do corpo
através dos movimentos, que procuravam traduzir
os pensamentos, os quais eram tolhidos.
EE

Na década de 1940, a ex-aluna de Laban, coreógrafa e


professora Maria Duschenes trouxe para o Brasil os preceitos da Arte
do Movimento expandindo seus trabalhos em escolas e bibliotecas
públicas, difundindo as concepções de liberdade de expressão para
FR

pessoas de várias faixas etárias e em espaços alternativos. Um grande


número de profissionais que participou de cursos e oficinas com Maria
Duschenes, em São Paulo, divulgou os conceitos de Laban, que se
tornaram conteúdos fundamentais no ensino e experimentações com
a arte da dança (VIEIRA; GENEGN, 2001).

225
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Outra importante propagadora dos princípios de Laban no Brasil,


segundo Vieira (2009), foi Nina Verchinina, que trabalhou no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro. Essa bailarina estrangeira chegou ao

D
Brasil em 1946 com experiência e gosto pela dança Expressionista.
Nasceu em Moscou e

A
estudou o Balé clássico tradicional com Olga
Preobajenska e o Balé Clássico mesclado com a

LO
Dança Expressionista com Bronislava Nijinska,
irmã de Vaslava Nijinski. Na Europa, a curiosa
Verchinina estudou também com Rudolf Laban,
absorvendo os ensinamentos revolucionários desse
precursor da Dança Expressionista (VIEIRA, 2009,
p. 12).

N
W
Exemplos de dança Coral

No Brasil, há vários exemplos de dança coral nas manifestações


O

artísticas que envolvem grandes números de pessoas, elaboradas


intencionalmente ou que ocorrem de maneira espontânea. Pode-
se citar os majestosos desfiles das escolas de samba exibidas no
D

Sambódromo e em outras cidades, e os duelos entre os cortejos dos bois


de Parintins e em São Luís do Maranhão. Estes cortejos que esnobam
cores, brilho e uma riqueza de coreografias se manifestam em tempos
EE

e espaços cuidadosamente projetados para serem apresentados sem


nenhum deslize. Estes dois exemplos, entretanto, envolvem um fator
competitivo acirrado que demanda atenção específica nos quesitos
de apresentação e no luxo dos participantes e da parafernália que
FR

abarca essas manifestações.


De caráter mais espontâneo, referem-se como exemplos de
duas danças corais, as rodas de ciranda e as quadrilhas de festas
juninas, que ainda se mantêm como as manifestações tipicamente
brasileiras. As rodas de ciranda, de origem portuguesa, chegaram

226
7 DANÇA CORAL

ao litoral brasileiro e foram adaptadas pelas mulheres de pescadores


que se entretinham, se movimentando em roda à espera de seus
companheiros. São danças corais que agregam pessoas que não se

D
conhecem e que, voluntariamente, vão se dando as mãos com um
único propósito de dançar juntos.

A
As festas juninas ainda sustentam uma forte tradição que se
impõe como um dos entretenimentos brasileiros mais populares,
mantida pelo incentivo das comunidades escolares, familiares ou

LO
de bairros. Também de origem europeia, sustentadas por uma forte
tradição religiosa católica atribuídas aos santos, estas festas envolvem
comidas e bebidas típicas, e a decoração peculiar do local onde são
realizadas. O grande estímulo para a participação destas festividades

N
são as quadrilhas que podem ser previamente organizadas ou acontecer
espontaneamente, sendo atraentes e fáceis de serem executadas por
crianças, jovens e idosos. Esta integração entre pessoas de diferentes
W
faixas etárias propicia um contentamento grupal que fortalece a
perpetuação desta tradição popular. Na evolução dos participantes
das quadrilhas alguns comandos são realizados com vocábulos da
O

língua francesa que ofereceram um caráter de nobreza a este tipo de


dança coral.
D

Os cortejos do Congado, Folia de Reis, Pastoris, Moçambique,


e muitas outras manifestações folclóricas de massa tipicamente
brasileiras exigem organização, disciplina e participação voluntária.
EE

Essas demonstrações de caráter competitivo ou apenas demonstrativo


possuem alto valor estético, demandam enorme boa vontade e
energia dos organizadores e participantes para o bom desempenho
de um enorme grupo, melhor dizendo, de uma multidão que interage
FR

em uníssono para um bem comum.


No Brasil, nas duas últimas décadas, surgiram dois tipos de
dança de natureza coletiva que também são consideradas danças
corais, pois possuem objetivos comuns: o de oferecer momentos de
felicidade aos participantes. Um tipo de dança coral preconizada

227
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

pelo dançarino e pesquisador alemão Benhard Wosien são as Danças


Circulares Sagradas, baseadas nas danças folclóricas tradicionais
europeias compiladas por este estudioso. São realizadas em círculo

D
com o objetivo de unir as pessoas por meio de movimentos realizados
em uníssono com propostas de sensações de júbilo coletivo e com
a interação de pessoas (WOSIEN, 2002). Os focalizadores, assim

A
denominadas as pessoas que promovem a realização deste tipo de
dança, consideram as dimensões holísticas que o poder da dança em

LO
conjunto proporciona aos indivíduos.
Outro tipo de dança coral surgida também na Alemanha, na
década de 1970, é a dança Sênior, criada sob a liderança de Ilse Tutt
e que chegou ao Brasil na década de 1990 como atividade lúdica

N
praticada em grupo, que ajuda a expressar as emoções, estimula a
memória e coordenação, além de ser um bom exercício físico que
pode ser realizado com a pessoa sentada. As coreografias combinam
W
ritmos estrangeiros, como polca e valsa, associados aos ritmos
brasileiros de chorinho, samba e marchinhas carnavalescas.
O

Dançar o momento presente


D

Quando Laban desenvolveu a sua teoria da Arte do Movimento


levou em consideração os novos padrões e formas de movimento que
EE

o mundo da crescente civilização exigia. Ele se preocupava com o


que denominava ‘o monstro negro da civilização moderna’ (LABAN,
1951), e das consequências da mecanização do gesto na qualidade
de vida e nas relações sociais que poderiam ser proporcionadas pelo
FR

movimento humano. Nas suas próprias palavras, ele considera que

A pessoa que se preocupa muito com detalhes


materiais da vida não pode ter tempo nem energia
para participar criativamente de uma comunidade
e do espírito festivo da vida, o que deveria ser a

228
7 DANÇA CORAL

suprema inspiração de toda cultura (LABAN, 1951,


p. 84).

Em muitas situações do dia a dia, entre uma tarefa e outra, o

D
homem sente, inconscientemente, a necessidade de interromper
seu movimento funcional, respirar fundo, alongar o corpo, olhar

A
pela janela e fugir momentaneamente da intensidade exigida
pelas ações que demandam responsabilidade e competência. Este

LO
mergulho em seus próprios pensamentos, revelado na liberdade
de expressão gestual, revela a necessidade de resgate da sua
individualidade, de acesso à intimidade pessoal, verdadeira e
refrescante.
Nas instituições educativas, nas empresas, em fábricas, nas
N
igrejas ou em todo ambiente onde se concentram muitas pessoas
que trabalham para um bem comum, dançar juntos deveria ser uma
W
prioridade de todo o grupo. É por meio de momentos de alegria coletiva
que as pessoas experimentam vibrações positivas, que energizam o
ser humano. Um provérbio popular afirma que a felicidade plena tão
O

almejada não existe, mas que consta de momentos felizes. O mundo


seria bem diferente se as pessoas se comprometessem a dançar juntas,
pelo menos 15 minutos por dia. Afinal, a vida é tão passageira e por
D

que não desfrutá-la com sabedoria?


EE

A organização coreográfica da dança coral

No início do século, os coros de movimento eram constituídos


de pessoas comuns, não ligadas à arte da dança que se dispunham
FR

participar dos eventos de massa, com o único intuito de se divertirem


e se integrarem socialmente e participarem de uma produção
artística de densidade estética. Assim como uma orquestra sinfônica
e um coral de vozes são organizados de acordo com o timbre dos
instrumentos musicais e das vozes, respectivamente, a dança coral

229
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

pode ser organizada de acordo com a estrutura física dos participantes,


divididos em três categorias.
As pessoas mais altas, consideradas longilíneas, com pernas

D
mais longas que o tronco se movimentava no nível alto, enfatizando
a parte superior do tronco, considerada como o centro de leveza do

A
corpo, executando movimentos mais leves e lentos. Os normolíneos,
de proporções mais equilibradas, se movimentavam com qualidades
mais fluentes e livres no nível médio, com possibilidades de maior

LO
movimentação na área dos quadris e parte superior das pernas.
Aos brevilíneos, pessoas de mais baixa estatura que apresentam
musculatura bem desenvolvida e ossatura mais pesada, eram
atribuídos movimentos mais energéticos, com possibilidades de

N
explosão, tendendo à queda e elevação com mais facilidade (OTTE-
BETZ, 1938).
W
A composição da dança coral compreende uma gama de
elementos derivados dos fundamentos estruturais do Sistema Laban
de Movimento, também designado como Análise de Movimento
O

Laban (LMA – Laban Movement Analysis) que engloba o estudo


das categorias Corpo, Esforço, Forma e Espaço (NANNI; LIMA,
2005). Essas categorias envolvem o estudo do movimento nas suas
D

características quanto à dinâmica, textura, ritmo, forma do corpo,


uso do espaço em direções, níveis e planos específicos e em formações
espaciais diversas.
EE

Para a montagem de uma dança coral, o coreógrafo deve ter


a sensibilidade para usar tais elementos de maneira equilibrada,
adequando-os ao tema e à concepção definida por todos os
participantes para que haja harmonia e a sensação de prazer coletivo.
FR

Laban enfatizava para seus pupilos a necessidade de envolver


dançarinos e não dançarinos na composição de danças em grupo para
se recuperar da mecanização dos gestos das atividades funcionais. Na
Figura 1 apresentam-se os elementos básicos do Sistema Laban de
Movimento.

230
7 DANÇA CORAL

Flexível Expandir
Leve Subir

D
Direto Fechar

A
Livre Controlada

Avançar Afastar

LO
Sustentado Súbito

Descer
Firme

Gráfico 1: Elementos do Sistema Laban sugeridos para a composição de


dança coral.
N
Fonte: Gráfico do Esforço (LABAN; LAWRENCE, 1974, p. 19) - Gráfico da Forma (WARD,
2001).
W
Outros elementos da dança que podem ser utilizados são: (i)
O

Formas Específicas do Corpo: Parede, Bola, Alfinete, Parafuso,


Pirâmide (FERNANDES, 2007); (ii) Direções: frente, atrás, direita,
esquerda, para cima, para baixo, diagonais, diametrais e transversais;
D

(iii) Níveis: alto, médio e baixo; (iv) Formações Espaciais: filas,


fileiras, círculos, semicírculos, círculos concêntricos, diagonais,
paralelas, túneis e caracóis.
EE

Há várias maneiras de se organizar os elementos citados para


composição de danças corais. A mais comum é a formação de
círculo, universalmente conhecida e, historicamente, a mais usada.
O fator de integração do círculo é mencionado em danças circulares
FR

sagradas, danças seniores, danças folclóricas em diversos países,


danças ritualísticas, dentre outros. Os movimentos devem ser de
fácil execução, tais como: andar e girar em várias direções e níveis,
movimentar o torso em expansão e contração e os braços em ações de
expansão e recolhimento, executar movimentos gestuais expressivos

231
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

e batidas de pés, flexionar e estender joelhos e pernas. A realização


de danças corais pode ocorrer em vários espaços alternativos (por
exemplo, quadras de esporte, ruas, restaurantes, salas de espera,

D
campos de futebol), diversas instituições (por exemplo, escolas,
empresas, clubes, asilos, hospitais, hotéis) e com todas as faixas
etárias.

A
Vários artistas-educadores no nosso país já têm se valido dos
princípios de Laban para desenvolver o processo educacional em

LO
dança. Nesse sentido, Vieira (2009, p.6) afirma que:

[...] o Brasil, ao se apropriar da Dança Moderna,


deu passos para não ficar atrasado no campo da

N
Dança, indo ao encontro do movimento mais amplo
que já vinha norteando o trabalho dos artistas das
outras linguagens. Ao mesmo tempo que devia se
W
conquistar o espaço para instauração do novo, as
pessoas na ânsia do que era novo, dispunham-se ao
aprendizado das novas formas de movimentação e
de trabalho corporal das novas propostas.
O

Os estudos de Laban sobre a coreologia estão presentes,


inclusive, no Parâmetro Nacional em Artes (BRASIL, 1997), porém,
D

incipientes ainda são os estudos sobre a proposta de dança coral.


Uma lacuna que pode ser preenchido ou um desafio que pode ser
superado, tendo em vista a potencialidade que possíveis releituras da
EE

dança coral podem trazer para a dança na educação em suas relações


com a sociedade.
FR

Considerações finais

A matéria-prima da dança, corpo-movimento e as infindáveis


possibilidades de criação, oferecem uma experiência somática direta,
que podem nutrir o desejo de se expressar cada vez mais, pois a

232
7 DANÇA CORAL

proposta é que se promova a sensação de liberdade. Um exemplo de


dança coral espontâneo é um ‘ôla’ em um estádio lotado onde todos os
torcedores, independente da escolha do time, se integram e desfrutam

D
de um movimento que envolve todo o corpo em uma unidade
humanizante. Outro exemplo é a expressão coletiva de pessoas que,
quando assistem a um espetáculo musical, acenam com os braços em

A
uníssono em sintonia com a música. Se essas formas de expressão
já acontecem por iniciativas de grupos de pessoas, acreditamos que

LO
essas propostas também devem fazer parte do processo educacional
em dança. As conexões intrapessoais simultâneas às interpessoais
(conexões, colaborações e trocas coletivas) das pessoas que criam
e executam a dança coral, deveriam fazer parte do processo de

N
formação dos brasileiros em ambientes formais e informais.
A partir dos exemplos citados neste texto, podemos refletir
W
e destacar a capacidade que o brasileiro tem de se organizar para
um bem comum que apresenta beleza e compartilhamento. Não
poderíamos agir assim também para erradicar a desigualdade social
O

que permeia os sistemas da educação, saúde e nutrição da nossa


sociedade?
D

As danças corais podem fornecer experiências de alegria no


movimento que não exigem habilidades sofisticadas de grandes ou
pequenos grupos. Funcionam como espelho, para refletir e expandir
EE

a riqueza de cada cultura, e para cada ser humano se expressar.

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O
W
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LO
A
D
8

D
A mercadorização da dança nas noites

A
urbanas: dilemas contemporâneos1

LO
Eliane Regina Crestani Tortola, Larissa Michelle Lara

Introdução

N
Os dilemas que tocam o campo da dança na contemporaneidade
ocorrem não apenas por meio de sua compreensão como campo de
W
conhecimento educativo, artístico e expressivo, com a finalidade de
celebrar a vida ou de executar movimentos técnicos que primem pela
beleza e pela estética. Tais dilemas focam, também, a dança como
O

mercadoria, ou seja, como produto à venda, exposto nas vitrines de


clubes, academias e casas noturnas, arquitetonicamente disseminado
por aqueles que investem em espaços de lazer que vendem dança.
D

A mídia representa aliada em ações que minimizam a liberdade e


autonomia em prol da homogeneização do gosto. À medida que
acentua a regulação de padrões massivos, a mídia focaliza a cópia e
EE

a repetição, cerceando os sujeitos em sua gestualidade expressiva e


criativa.
Somos constantemente bombardeados por danças prontas e
gestualidades pré-fabricadas. O processo cultural que permeia esse
FR

campo de conhecimento se corrompe por meio dos mecanismos da

1 As reflexões que constituem esse texto sobre a dança como mercadoria advêm de pesquisa
realizada em casas noturnas na cidade de Maringá-PR, materializada em dissertação de
mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação Associado em Educação Física UEM-UEL.
Cf. Tortola (2011).
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

indústria cultural2, a qual se encarrega de fazer da dança um produto


que incute valores, forma opiniões e faz parte do sistema de oferta e
demanda, próprio do mercantilismo.

D
O entendimento do que vem a ser dança no universo simbólico
das casas noturnas perpassa seu reconhecimento como produto

A
exposto nesses espaços urbanos e de forma atrativa para a conquista
de um número cada vez maior de consumidores. Quem pratica
dança, seja qual for o contexto, o faz por prazer ou por necessidades

LO
diversas como, por exemplo, pertencer a determinado grupo social
ou conquistar o sexo oposto.
Em nome da falsa identidade e democratização que a dança
parece suscitar nesses espaços, ao público é oferecido o consumo
N
padronizado de bens culturais. A produção e a disseminação de bens
moldados para a satisfação de necessidades iguais são justificadas por
W
meio de uma explicação tecnológica, em que a racionalidade técnica
é, na atualidade, racionalidade da própria dominação, o caráter
compulsivo da sociedade alienada em si mesma.
O

Esse mecanismo coloca-se como um tipo de cultura para as


massas, produzindo o imaginário cultural para que, ao viverem essa
D

estereotipia, não tenham a necessidade de buscar um investimento


cultural elevado, consistente, e passem, por isso mesmo, a negar ou
evitar aquilo que, culturalmente, seria um processo de constituição
EE

autêntico das relações sociais.


O consumo da dança em casas noturnas determina o
comportamento dos sujeitos que se identificam com determinado
tipo de dança e música, consumindo-os de modo a pertencer a um
FR

2 A indústria cultural é um termo explicado por dois autores da Teoria Crítica da Sociedade
da Escola de Frankfurt, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, que o empregaram pela
primeira vez, em 1947, de modo a discutir sobre a mercadorização da cultura, sua reificação
e banalização. Esse mecanismo adapta-se como sistema no qual todos os seres humanos
produzem e consomem de forma aligeirada, rompendo com a capacidade de mediação do
conhecimento, promovendo a gratificação imediata.

238
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

dado grupo social. Canclini (2008, p. 65) contribui diretamente


com tais reflexões ao afirmar que “[...] consumir é tornar mais
inteligível um mundo onde o sólido se evapora” e “[...] os desejos se
transformam em demandas e em atos socialmente regulados”. Essa

D
demanda está intimamente relacionada ao que está sendo veiculado
pela mídia pois, independente do ritmo, as músicas e danças são

A
repetidamente trazidas ao conhecimento dos sujeitos que, por vezes,
possuem apenas a televisão ou internet como meio de apropriação da

LO
realidade. O processo midiático reproduz o que deve ser consumido e
os consumidores não se furtam em fazê-lo, sem questionamentos.
Os vários tipos de dança são apresentados ao público, na
maioria das vezes, por meio da televisão, de modo a agregar as

N
pessoas mediante uma autoridade emocional que persiste e aliena.
Mas não é só por meio da televisão que as danças são apresentadas.
Elas também são disseminadas no contexto escolar, em academias,
W
clubes e festas. É mediante a repetição das danças, sob os mais
diversos mecanismos, como grupos musicais famosos, programas de
auditório e novelas que elas são aceitas e reproduzidas, confirmando
O

o que Adorno e Horkheimer (1985, p. 105) manifestam acerca


dos produtos da indústria cultural ‘alertamente’ consumidos, até
D

mesmo pelos distraídos. A dança, portanto, perde sua característica


de manifestação artística, uma vez que expressões, emoções e
sentimentos são desconsiderados, dando lugar a movimentos
empolgantes e atraentes. O prazer estético e os sentidos provocados
EE

pela apreciação da arte ficam enfraquecidos.


Tais encaminhamentos, mediados pela antropologia urbana,
pretendem refletir a dança como produto no universo simbólico
das relações sociais estabelecidas no contexto das casas noturnas,
FR

discutindo os interesses dos sujeitos na busca por sua prática,


assumindo o desafio de pensá-la para além dessa mercadorização,
objetivando aquilo que de melhor ela pode trazer ao humano, na
dimensão da arte. Para tanto, reflexões do sociólogo francês Roger
Caillois acerca do jogo e de suas características são trazidas para o

239
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

diálogo com dança, procurando entender como ela é visualizada na


dimensão do jogo no âmbito do lazer noturno.

D
A dança no lazer noturno

A
De modo a entender a dança como produto em casas noturnas
é necessário pensá-la no contexto do lazer. Como ressalta Marcellino

LO
(2006a), para que uma atividade seja entendida como lazer deve
atender a alguns valores ligados a atitude e tempo, possuindo um
caráter desinteressado, relacionado ao divertimento, ao descanso
e ao desenvolvimento pessoal, bem como a outras esferas da vida

N
social. Entretanto, para o autor, essas características se deturpam
nas “práticas compulsivas, ditadas por modismos ou denotadoras de
status”. (MARCELLINO, 2006a, p. 14).
W
De acordo com as orientações de Marcellino (2006a, p. 15),
devemos levar em consideração os riscos relacionados à utilização
O

do lazer como “possibilidade de fuga, fonte de alienação e simples


consumo”. No que se refere à dança na esfera do lazer e no contexto
das casas noturnas, tais características saltam aos olhos. Basta observar
D

a presença dos mecanismos da indústria cultural direcionando os


interesses das pessoas que frequentam esses espaços urbanos, as
músicas que as envolvem e as motivam para a prática da dança. Os
EE

modismos, os comportamentos padronizados presentes nas relações


sociais, são características imperceptíveis aos olhos do sujeito que
está envolvido com a prática e observáveis aos olhos atentos de um
pesquisador.
FR

São as discrepâncias relacionadas ao entendimento de lazer


que fazem com que a prática da dança também se diferencie nessa
esfera. Segundo as diversas compreensões acerca do conceito de
lazer trazidas por Marcellino (2006a), se levarmos em consideração
a prática da dança como atividade física, esta se constitui no campo

240
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

dos interesses físicos. No tocante aos interesses artísticos, a dança


está relacionada ao lazer por meio da busca pelo encantamento, pelo
prazer estético, pelo imaginário, pelos sentimentos suscitados pela

D
sua prática. Nas relações sociais, a dança como lazer se manifesta por
meio dos interesses sociais, o contato face a face, o relacionamento
e o convívio com outras pessoas, que ocorre em dados contextos, a

A
exemplo das casas noturnas.
Nesses espaços urbanos, a dança se ramifica de acordo com o

LO
estilo musical, com as relações estabelecidas entre os frequentadores
e o entendimento que cada ator social tem sobre o lazer. Nos centros
urbanos não há espaço suficiente para o lazer e tal equipamento se
torna um dos locais utilizados por consumidores de entretenimento,

N
gerando lucro à iniciativa privada. Marcellino (2006b, p. 73) comenta
o quanto o entretenimento deixou de estar tão somente ligado aos
valores de diversão tornando-se “lazer de mercadoria” e afirma ser a
W
falta de espaços vazios urbanizados um dos fatores mais importantes
para esse fenômeno. O autor explica o porquê desse pressuposto:
O

[...] nas grandes cidades atuais sobra pouca ou quase


nenhuma oportunidade espacial para convivência.
D

O vazio que fica entre o amontoado de coisas é


insuficiente para permitir o exercício mais efetivo
das relações sociais produtivas em termos humanos.
Os equipamentos urbanos para o lazer, quando
EE

concebidos, quase sempre são assumidos pela


iniciativa privada, que os vê como uma mercadoria
a mais para atrair o consumidor. As possibilidades
em termos de lucro são critérios levados em conta
para a construção e manutenção em funcionamento
dos equipamentos de lazer (MARCELLINO, 2006b,
FR

p. 73).

Para o autor, isto é um dos efeitos nocivos do processo de


urbanização crescente. Para obter mais lucro, a iniciativa privada
investe nesse mercado, utilizando o equipamento de lazer como local

241
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

para a inserção de duplas ou bandas na mídia. Duplas sertanejas são


fabricadas em larga escala e divulgadas nas casas noturnas, assim como
os grupos de pagode, rock, entre outros que iniciam suas carreiras
artísticas nesses espaços. Por conseguinte, destacamos a importância

D
das casas noturnas no processo de comercialização, disseminação
e padronização de gostos musicais. Janotti Júnior (2004, p. 194)

A
contribui com esse pensamento ao afirmar:

LO
A mundialização da cultura pressupõe segmentação
e circulação dos produtos musicais. Mesmo que de
maneira inconsciente, a mais radical das bandas de
heavy metal ou o mais obscuro dos DJs se valem
da diferenciação e de um circuito estabilizado de

N
consumo cultural para se posicionarem e serem
acolhidos por seu público potencial.
W
Cada espaço tem seu público e seu produto. Os sujeitos
frequentadores são submetidos aos diversos tipos de músicas,
interpretadas pelos mais variados grupos musicais. Por vezes a
O

própria casa noturna determina o repertório a ser tocado pela banda


que, para obedecer a um padrão estabelecido pela indústria cultural,
se subsumem a esses ditames. A aceitação dos atores sociais pelos
D

músicos que se apresentam é medida pela frequência dos últimos na


casa, ou seja, se a banda agrada a casa lota e isso reflete no consumo
da dança e do álcool. Porém, essa dependência retrata prazeres
EE

efêmeros, pois quando uma banda não agrada mais é trocada por
outra, mantendo a regularidade dos sujeitos que procuram novidades
e, consequentemente, a lucratividade dos administradores.
A busca pelo prazer, característica de muitas práticas de lazer,
FR

é evidenciada no período noturno, quando as atividades lúdicas


parecem possuir um caráter hedônico3, se considerarmos as

3 Caráter hedônico se refere a hedonismo, “tendência que consiste em considerar que o


prazer é um bem; em muitos casos julga-se que o prazer é o maior bem, ou identifica-se
‘prazer’ com ‘bem’. O bem em questão foi em muitos casos um ‘bem-estar’, no sentido literal

242
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

afirmações de Barral (2006, p. 24). O autor, em seus estudos sobre o


lazer em bares de Brasília, afirma que “grupos jovens encontram-se
em torno da bebida, da conversa, do riso, do encontro gratuito, o

D
que, de início, remete a formas ‘hedonistas’ de vivência do tempo
livre, onde parece imperar o princípio do prazer” (BARRAL, 2006,
p. 24).

A
Para compreender esse fenômeno, recorro às reflexões de

LO
Pimentel (2010b, p. 169) que, seguindo a conceituação de Michel
Maffessolli sobre a compreensão do lazer, explica:

[...] a busca pelo hedonismo não é um aspecto


isolado, mas se insere em um conjunto de

N
transformações no ethos presente, com retorno de
diversos elementos arcaicos que foram reprimidos
na modernidade e atualmente são, paradoxalmente,
W
‘desterritorizados’ e assimilados, graças à tecnologia
moderna, por novas formas de socialidades.
O

O autor, ao se referir à busca pelos prazeres efêmeros, próprios


do que ele categoriza como tribos urbanas, e aos aspectos gregários
do hedonismo, afirma que “o lazer vem sendo refúgio privilegiado do
D

hedonismo, no qual os ritmos muito breves e acelerados não criam


nada a que se apegar senão a própria vivência, que se basta por si
mesma” (PIMENTEL, 2010b, p. 170).
EE

O estar junto conforme afinidades é outro aspecto das tribos


urbanas em que não há “compromissos de estabilidade no futuro”.
Apoiado nas reflexões de Mafessoli, Pimentel (2010b, p. 170) aponta
para a transitoriedade nas relações estabelecidas:
FR

desse termo, muito similar à harmonia ou boa disposição antes apontada. Entretanto, como
houve muitas maneiras de entender ‘prazer’, houve também muitas formas de hedonismo.
Já que grande parte das polêmicas sobre o significado de ‘prazer’ e sobre a justificação ou
não justificação de sua busca ocorreram no terreno ‘moral’, considerou-se que o hedonismo
é uma tendência da filosofia moral” (MORA, 2001, p. 1291).

243
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Por serem menos apegadas a identidades fixas,


essas comunidades estéticas se fazem e desfazem
com frequência. Esse caráter efêmero das tribos
é compensado pela sua efervescência em torno

D
de temáticas que superam a noção política e
institucional vigente e têm grande apelo na
formação de grupos, tais como as festas, os esportes,

A
as viagens, a moda e a natureza.

Isso explica a necessidade de ‘estar dentro’ como sendo primordial

LO
para a sobrevivência do sujeito na sociedade. Inserir-se em um dado
grupo social é um dos requisitos para o sucesso de sua procura pela
diversão. O encontro, proporcionado pelo lazer em bares, casas
noturnas, entre outros equipamentos proporciona ao ator social

N
um estado de pertencimento, independente da faixa etária. Porém,
conforme as necessidades vão se modificando, uma busca por novos
grupos de afinidades ocorrem na medida em que os sujeitos perdem
W
o interesse por determinado tipo de entretenimento.
Nesse sentido, podemos refletir sobre o estar junto dançando,
O

que implica em um ritual com códigos gestuais que perfazem a


comunicação entre os sujeitos que frequentam espaços urbanos
de lazer noturno. O prazer de se sentir admirado, de conquistar o
D

outro, evocar seus pares, representar um personagem, sair de si,


demonstrando habilidades são encontradas nas relações entre os
atores sociais. Por ser a dança uma forma de comunicação não-
EE

verbal, o gestual corporal representa uma forma de comunicação que


vem assumindo características cada vez mais corruptíveis.
A ludicidade encontrada na prática da dança no contexto urbano
de lazer noturno é, por vezes, corrompida, no sentido da deturpação
FR

de sua apreciação e/ou criação estética. A dança é uma manifestação


artística e, como tal, é considerada por meio de sua esteticidade,
sendo a estética uma palavra “usada para designar a reflexão filosófica
sobre a arte” (JIMENEZ, 1999, p. 11). Nos estudos antropológicos da
arte, “o belo, assim como o feio, são valores relativos não somente a

244
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

uma cultura, a uma civilização, mas também a um tipo de sociedade,


aos seus costumes, à sua visão do mundo, em um dado momento
da história” (JIMENEZ, 1999, p. 23). É preciso entender a dança

D
também por esse viés, pois ela se manifesta esteticamente nos mais
diversos contextos, inclusive no das casas noturnas.

A
Entretanto, nesse contexto, a dança presente artisticamente por
meio da criação estética, tornou-se mercadoria, subordinada às leis

LO
da competição. Os sujeitos que praticam dança nas casas noturnas
a subsumem aos mecanismos da indústria cultural, tornando-a
corrompida, banalizada e erotizada para atender às demandas do
mercado midiático, principalmente por se tratar de uma prática de
lazer que, realizada de forma alienada, sofre corrupção de seu sentido/
significado.
N
Ao estudar as práticas de lazer desviantes, Pimentel (2010a)
W
traz contribuições significativas para o entendimento da corrupção
da dança no contexto das casas noturnas. O autor se faz valer das
explicações de Caillois, Csikzentmihalyi e de Rojek sobre o lúdico
O

de modo a nos levar à compreensão da corrupção das atividades


que são realizadas no tempo livre. Ele afirma que “o lúdico no
D

lazer pode assumir diferentes possibilidades, incluindo revelar-se


sociojuridicamente desviante” (PIMENTEL, 2010a, p. 84), e orienta-
nos quanto à necessidade de assumi-lo nem como bom, nem como
EE

ruim.

[...] o lúdico é um elemento humanizado não


satisfatoriamente controlável. Por ser incerto, pode
levar a pessoa a excessos, corrupções, revelações ou
FR

qualquer outro resultado. É parcial, portanto, elogiar


o lúdico porque ele é motivador da aprendizagem
ou se contrapõe ao sistema. Sua subversão é de
dimensão não-racional, que sempre demandará
decisões éticas sobre como frui-lo, com auxílio da
razão (PIMENTEL, 2010a, p. 106).

245
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

A corrupção da dança como prática de lazer nas casas noturnas


se dá na apropriação dessa manifestação cultural e artística de
maneira alienada, banalizando seu sentido estético, praticando-a

D
como falsa necessidade, por meio de uma ludicidade não-racional,
alimentando a indústria da diversão que a coloca como produto,
revelada nas exacerbações e sucedâneos da estereotipia. Assim, a

A
prática da dança, em seus aspectos lúdicos é percebida, nesse estudo,
como ‘jogo’ realizado nas casas noturnas, e, por meio das categorias

LO
trazidas por Caillois (1994), é possível compreender a dança na esfera
do lazer, de modo a elucidar as diferentes intenções que envolvem
sua prática.

N
O jogo da dança como prática de lazer e suas categorias:
W
competência, sorte/azar, representação e vertigem

A dança possui características que constituem importantes


O

fatores civilizatórios, as quais, pensadas a partir das disposições


psicológicas do jogo de que fala Caillois (1994), representam
campo denso de análise. A reflexão da dança como jogo, com
D

base na classificação de jogos trazida pelo sociólogo francês,


remete a estados do dançar presentes no contexto da dança como
mercadoria.
EE

Embora Caillois (1994) pense no jogo por seu caráter de


gratuidade, relacionado ao desinteresse, à improdutividade,
ao inútil, a toda atividade que não visa a interesses lucrativos,
capitais, ele ressalta que tais concepções não dão conta de
FR

conceituá-lo, pois o jogo também está relacionado a interesses


capitais, possuidor de regras, em que a liberdade e a invenção
podem desaparecer. Mas, entende também que as próprias regras
estabelecidas se dissipam. Sobre os diferentes sentidos dados ao
jogo, o autor explica:

246
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

Mas o jogo significa que os dois pólos subsistem e que


há uma relação que se mantém entre um e o outro.
Propõe e difundem estruturas abstratas, imagens de
locais fechados e reservados onde podem ser levados

D
a cabo concorrências ideais. Essas estruturas, essas
concorrências são, igualmente, modelos para os
comportamentos individuais. Com toda segurança

A
não são aplicáveis de maneira direta a uma realidade
sempre confusa, equívoca, emaranhada e variada
onde os interesses e as paixões não se deixam

LO
facilmente dominar por ela. Mas onde violência
e a traição são moeda corrente. Contudo, os
modelos sugeridos pelos jogos constituem também
antecipações do universo regrado que deverá
substituir a anarquia natural (CAILLOIS, 1994, p.
13-14).

N
O autor nos atenta para as questões relacionadas à polissemia
W
que cerca a compreensão do jogo. Para ele não se trata apenas
de uma atividade inútil e improdutiva, e sim, uma atividade que
envolve relações entre as intenções do jogo e a vontade de jogar, e
O

está diretamente relacionada ao fator tempo e espaço, uma vez que


o jogo é, para Caillois (1994, p. 32), “essencialmente uma ocupação
separada, cuidadosamente isolada do resto da existência, e realizada
D

em geral dentro de limites precisos de tempo e lugar”. Para jogar,


o sujeito necessita de espaço próprio e tempo determinado para a
atividade.
EE

Caillois (1994, p. 37) define jogo como atividade livre (no


sentido de não ser obrigatório), limitada (pelos fatores tempo e espaço
próprios), incerta (já que o desfecho não pode ser determinado),
improdutiva (não gera riquezas), regulamentada (sujeita a regras)
FR

ou fictícia (irreal em relação à vida normal). Tal definição pode ser


atribuída à dança, sobretudo no contexto das casas noturnas. Porém,
o sentido de gratuidade (não geradora de riquezas), só é percebido
pelo sujeito que dança, e não pelos sujeitos que a comercializam
em seus equipamentos urbanos de lazer. Para eles a dança é um dos

247
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

produtos expostos em sua vitrine, atrativo para o sujeito que procura


no lazer noturno a gratuidade do jogo por meio das atividades festivas,
mais especificamente, das festas como sendo de caráter cíclico que
“alia a ruptura no espaço a certo corte no tempo, que opõe ao

D
decorrer monótono da existência quotidiana um tempo excitante”
(CAILLOIS, 1994, p. 222).

A
Tomando como norte as afirmações do autor é possível
perceber, no contexto das casas noturnas, que a dança se manifesta

LO
numa dinâmica semelhante. Como jogo, a dança se dá num ritual,
desde o momento da preparação para a entrada no ambiente
dançante até a dança propriamente dita. Pode ser caracterizada
como jogo de destreza, de sedução, de representação de uma dada

N
realidade ou fantasia. Nesse jogo estão presentes os elementos
competitivos, as sensações vertiginosas e a regulamentação,
ou, até mesmo, a própria necessidade de extravasar emoções e
W
estresses cotidianos.
Para propiciar a compreensão do jogo, Caillois (1994) nos
O

apresenta quatro categorias que caracterizam sua prática. São elas: agon,
categoria do jogo que está intimamente relacionada à ‘competência’;
possui como característica o desejo de reconhecer a excelência de
D

suas qualidades e/ou competências, de modo a determinar seu mérito


pessoal. Por ser a categoria mais formal do jogo, tem por finalidade
demonstrar superioridade por meio da exatidão de regras. A dança,
EE

praticada na noite, possui tal característica quando observadas as


competições que cerceiam as relações entre alguns atores sociais que
dançam nas casas noturnas. Na ânsia de demonstrar habilidades e
competências, destacando-se entre os demais, o sujeito, no intuito
de garantir sua popularidade, realiza performances que comunicam
FR

sua intenção de ser aceito e admirado elos seus pares. Tal categoria se
corrompe quando a competição torna-se ‘desejo de poder’, ou seja,
quando o indivíduo que necessita não somente de aceitação e sim
de evidência e superioridade, camufla a prática do outro por meio
de movimentos exagerados e violentos, não permitindo aos demais

248
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

sujeitos a utilização do espaço para a dança. Com isso, demarca


território e potencializa o comportamento violento e competitivo. “A
necessidade de afirmar-se e a ambição de demonstrar ser o melhor”

D
(CAILLOIS, 1994, p. 119).
Outra categoria trazida por Caillois (1994), a alea, tem como

A
característica principal o fator sorte, ou ‘acaso’, dado que “o destino
é o único artífice da vitória”. Essa categoria nega o trabalho, as
habilidades e o treinamento. “Coloca todos em pé de igualdade

LO
diante do cego veredicto da sorte” (CAILLOIS, 1994, p. 48-50). O
acaso revela-se no mistério suscitado pelas práticas de lazer noturno,
em que o sujeito, ao sair de sua residência para se divertir, entrega-se
ao inesperado, à sorte da conquista e da inserção em seu grupo de

N
interesse. Ao dançar para conquistar ou para competir, o sujeito se
entrega ao acaso. Sua performance pode ser prejudicada por fatores
ambientais, espaciais e de interesse dos demais sujeitos envolvidos,
W
que podem, ou não, responder às suas investidas. Sua corrupção se
dá quando a superstição torna-se o combustível indispensável para
a prática do jogo e a manifestação livre e comunicativa da dança se
O

perde no acaso _ ‘a espera e a busca à mercê do destino’.


O imaginário, o ‘simulacro’, a mímica e o disfarce são
D

características da categoria mimicry, em que se encontram a


representação teatral e dramática. É a saída da realidade, a
representação de um personagem. É a imitação das danças da mídia,
EE

querer ser como o artista em evidência, extrapolar a rotina engessada


do cotidiano e se vestir de um personagem cuja criação depende de
sua racionalidade. O simulacro submete às ‘falsas’ ou ‘verdadeiras’
necessidades, de acordo com o seu próprio gosto ou com o gosto
FR

produzido e pode conduzir ao processo de alienação, em que o sujeito


passa a viver conforme as necessidades alheias, tomando-as para si,
caracterizando sua corrupção.
A entrega, a busca pela ‘vertigem’ e o êxtase, configuram a
categoria ilinx, presente nas atividades de lazer que apresentam giros,

249
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

quedas e saltos (CAILLOIS, 1994, p. 58). As danças da roda punk


o mosh, os giros e floreios do sertanejo universitário, do pagode, das
valsas e do vanerão apresentam tais características. Sua corrupção

D
está associada ao prazer etílico, em que o consumo de bebida, por
vezes, potencializa a performance do sujeito que dança, aumentando
os aspectos violentos, negativos e deturpadores do jogo. “O torpor,

A
a embriaguez, a nostalgia do êxtase e o desejo de um pânico
voluptuoso”.

LO
Presente no consumo da dança nas casas noturnas, tais categorias
e a tese de corrupção do jogo trazida por Caillois (1994) auxiliam no
entendimento dessa prática que vem sendo subvertida pelos atores
sociais que a perpetram alienadamente. Pautado nos estudo do autor,
N
Pimentel (2010a, p. 89) contribui para o entendimento da corrupção
da dança como jogo, afirmando:
W
[...] Caillois (1994) considera o jogo como equilíbrio
ideal da satisfação desses impulsos. Porém, as
O

pessoas podem perder o domínio sobre essas


atitudes e corrompê-las, fazendo da vida cotidiana
um jogo obsessivo. A corrupção para o autor vem
D

a ser especificamente não se controlar dentro do


ambiente de jogo, extrapolando o instinto lúdico de
forma destrutiva na sociedade.
EE

A corrupção se dá no abandono do que é lícito. A transgressão


das regras, sejam elas explícitas ou implícitas, é a condição para a
corrupção da dança no contexto das casas noturnas. As categorias
descritas acima apontam para a necessidade de um estudo aprofundado
FR

desse fenômeno e são elas que, atreladas ao entendimento dos


mecanismos da indústria cultural, nortearão as análises das práticas
dançantes dos sujeitos durante o percurso etnográfico, fornecendo
subsídios para a compreensão das relações estabelecidas entre os
consumidores e a dança.

250
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

O ator social face ao consumo da dança

A prática de lazer que ocorre no período da noite tem tempo


determinado para começar e terminar e possui equipamentos próprios

D
que incluem os espaços urbanos de lazer noturno. O consumidor é
um sujeito que se apropria do bem cultural dança, sendo essa forma

A
de apropriação diversificada, analisada com base na experiência
etnográfica. Ele busca, por meio da diversão, o prazer e a fruição,

LO
emoções submergidas no cotidiano do trabalho, mas que afloram
durante o consumo da dança como atividade de lazer nas casas
noturnas.
É justamente o prazer, em seu sentido hedônico que atrai o

N
consumidor para a prática da dança nesse contexto. As pessoas lidam
com a descartabilidade por meio de uma satisfação momentânea,
considerando as necessidades de comunicar-se, entreter-se,
W
relacionar-se como fundamentais para sua condição humana. O
sujeito que busca a dança como prazer e como ‘válvula de escape’
para se evadir das agruras do cotidiano massificante o faz sem
O

muitos questionamentos. Busca o que está mais acessível, sendo essa


acessibilidade demarcada, controlada e coagida.
D

Os consumidores, ao usufruírem da dança no contexto das


casas noturnas, são peças de uma engrenagem eficiente, cuja
mercadoria não se limita a um único objeto. Ao frequentar o
EE

‘espaço de venda’, o sujeito se cerca de uma série de cuidados que


vão desde a sua própria vestimenta ao comportamento, sempre
moldados pela mídia. Filas dispostas à frente das casas noturnas
são formadas por indivíduos que se vestem de forma semelhante.
Usam o mesmo estilo de cabelo, comportam-se e assumem uma
FR

postura padrão. Basta uma primeira inserção nas casas noturnas


para que o consumidor apreenda os artifícios para ‘estar dentro’
do contexto. Mancebo et al. (2002, p. 327) trazem contribuições
para esse pensamento explicando que “[...] a propaganda, parte
orgânica desse processo, visa orientar o consumidor na sua

251
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

pseudoliberdade de escolha e, mais que determinadas mercadorias,


vende estilos de vida, narcotiza as consciências, iludindo os
homens pelos excessos de imagens”.

D
Não é por acaso que encontramos atitudes semelhantes, danças
padronizadas, mulheres com a roupa igual a de uma determinada

A
artista da telenovela ou da cantora de sucesso. São muitas réplicas de
Beyonce, Ivete Sangalo, Avril Lavigne, Shakira, Rihanna, entre outras
cantoras nacionais e internacionais da atualidade que influenciam

LO
não só o estilo de se vestir, mas comportamentos e técnicas
corporais, como a forma de andar, dançar, gesticular, entre outras
características.

N
A promessa de dessublimação do homem é uma das
estratégias que garantiram a vitória da propaganda,
cuja eficiência se constitui na voz dominante dos
W
consumidores. Em outros termos, a indústria cultural
constrói seu domínio no homem, através das falsas
promessas de dessublimação, contidas nos estilos de
O

vida advogados pela publicidade (MANCEBO et


al., 2002, p. 327).
D

O consumidor, com suas necessidades pré-determinadas, é


parte integrante desse maquinário social de consumo desenfreado
e alimenta a engrenagem da indústria da diversão. Em grupos,
as pessoas compõem estilos, formam opiniões e buscam sempre
EE

unir-se a seus pares. Alguns deles serão trazidos, nesse estudo,


de modo a elucidar o entendimento do processo de venda do
produto dança nas casas noturnas, a exemplo do grupo de
universitários, formado por sujeitos de classe média-alta que
FR

frequentam espaços urbanos de lazer noturno, geralmente após


as 23h. Apesar de haver ramificações desse grupo no consumo
de diversas danças e estilos musicais, sua concentração dá-
se no contexto de disseminação do sertanejo universitário. Os
jovens universitários constituem, na sociedade administrada,

252
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

“um segmento da população particularmente decisivo pelo seu


protagonismo social – quer enquanto jovens estudantes, quer nos
seus destinos sociais potenciais”, pois neles são reveladas muitas

D
das “dinâmicas de mudança social e cultural mais importantes da
atualidade” (MACHADO et al., 2003, p. 47).

A
Diferentes atores sociais lotam bares e casas noturnas no intuito
de beber em demasia. Geralmente, no tempo livre, são poucos
que se envolvem em atividades culturais ou esportivas. Os jovens

LO
universitários costumam assistir a programas de televisão ou sair com
amigos. São nas idas a bares ou festas que o uso de álcool torna-
se exacerbado (PEUKER; FOGAÇA; BIZARRO, 2006, p.194). Os
autores explicam que:

N
O uso de álcool entre universitários também
pode ser favorecido de forma indireta. Estudantes
W
influenciam-se mutuamente em termos de beber
pela modelagem, imitação ou reforçamento do
comportamento de beber. A seleção de colegas, a
escolha do tipo de substância, o padrão de uso e
O

a forma como o consumo de substâncias de seus


pares é percebida parecem interagir neste processo.
As normas comportamentais estabelecidas em
D

relação ao beber podem servir para justificar os


comportamentos extremados observados entre
eles. Sabe-se também que universitários tendem
a superestimar tanto a aceitabilidade quanto o
EE

comportamento de beber propriamente dito de seus


pares.

O consumo etílico está presente nas composições de muitas


músicas que embalam as danças dos sujeitos no lazer noturno,
FR

os quais se vestem de acordo com o que é veiculado na mídia, se


comportam e dançam conforme gostos e necessidades padronizadas.
Muitos também são adeptos do pagode e forró que frequentam as
casas de músicas eletrônicas e procuram acompanhar as novidades
do universo cibernético.

253
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Diferente desse perfil, o consumidor idoso é aquele adepto


das danças de salão, frequentador de bailes em que há predomínio
do vanerão, das valsas e boleros. Sua participação na sociedade,

D
por vezes, restringe-se aos grupos de vizinhos, da própria família
e de religiosos. O idoso tende a participar assiduamente das
atividades que lhe conferem prazer, como é o caso das danças de

A
pares enlaçados.
Apresentados à sociedade como sujeitos pertencentes a um

LO
grupo denominado terceira idade, os idosos concentram suas
atividades nas relações sociais, familiares e no trabalho informal,
em que muitos já estão aposentados. Stucchi (2007, p. 44) define
essa fase da vida como a ‘idade do lazer’, pois a “velhice passou,

N
assim, a ser representada como uma fase a ser aproveitada”. Assim,
esse grupo é movido pelo sentimento nostálgico que é revitalizado
W
por meio de encontros com seus pares. Para eles, a vida na esfera
das associações, por exemplo, é um dos caminhos que permite
restabelecer as relações de amizade e afinidade. O lazer lhes
O

confere a transposição da esfera da ociosidade para a participação


nas atividades relacionadas ao seu universo de produção cultural.
Encontrar os amigos para dançar ou simplesmente para ouvir as
D

músicas que fazem parte do repertório destinado à sua faixa etária,


é algo próprio desse grupo, o qual é densamente focado pelas casas
noturnas quando lhes direcionam bailes em determinados dias da
EE

semana.
Outro segmento de público consumidor do produto
dança nas casas noturnas e que possui peculiaridades próprias
e marcantes é o grupo de GLBT (Gays, lésbicas, bissexuais e
FR

transsexuais). Para Crocco e Guttman (2006), “o segmento gay


possui preferências de consumo bastante distintas, enquadrando-
se como um padrão de conglomerado”. Os autores esclarecem,
com base nos estudos do estadunidense Philip Kotler, que as
preferências são conglomeradas quando o mercado revela um

254
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

banco de preferências diversas, caracterizadas como segmentos


de mercados naturais.
Para esse grupo de consumidores, a comunicação verbal entre

D
os pares, como forma de divulgação de suas preferências, é o meio
mais eficaz de atrair GLBTs para um dado espaço urbano de lazer,

A
assim como opiniões emitidas em colunas de jornais direcionadas
a esse público e a distribuição de flyers4 (CROCCO; GUTTMAN,
2006). Uma ramificação desse segmento são as denominadas

LO
drag queens5, que constituem, no universo GLBT, um grupo de
consumidores em potencial. Chidiac e Oltramari (2004, p. 471)
afirmam que:

N
[...] ser drag associa-se ao trabalho artístico, pois
há a elaboração de uma personagem. A elaboração
caricata e luxuosa de um corpo feminino é expressa
W
através de artes performáticas como a dança, a
dublagem e a encenação de pequenas peças. É
relevante mencionar a inserção das drag queens
O

nos meios de comunicação e na mídia, de forma


bastante expressiva. Elas estão saindo de espaços
exclusivamente GLBTT (Gays, lésbicas, bissexuais,
D

transexuais e transgêneros) para executarem


performances nos mais diversos ambientes.

Por ser um grupo voltado às necessidades artísticas e de


EE

manifestação da liberdade de ser homossexual, esse público possui


suas preferências voltadas à produção midiática. Ele está atento
aos produtos veiculados na mídia e produzidos pelos mecanismos
da indústria cultural, fato que nos leva a considerar os sujeitos
FR

inseridos no universo GLBT como consumidores em potencial do

4 São denominados flyers os panfletos de divulgação dos eventos programados para as noites
nas casas noturnas.
5 Personagens do universo GLBT que realizam performances imitando cantoras internacionais
de sucesso.

255
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

produto dança, vendido nas casas noturnas, em especial, naquelas


que veiculam as músicas thecno, eletrônica ou remix.
É importante ressaltar as características de um grupo de

D
consumidores que também possui suas peculiaridades. São os adeptos
do heavy metal. Eles geralmente não se interessam por nenhum outro

A
tipo de música e são atraídos pelas bandas ditas ‘metálicas’ de seu
universo. Lopes (2006, p. 72), em seus estudos sobre esse gênero
musical, afirma que

LO
No Brasil os fãs de heavy metal provêm
majoritariamente de camadas médias, embora o
ethos blue collar e metalúrgico pareça também estar

N
presente, como sugere a forte presença do gênero
no ABC paulista, área natal do guitarrista do
Sepultura, Andreas Kisser.
W
Eles são motivados pelas performances de seus artistas preferidos,
tanto na maneira de vestir quanto na gestualidade adotada. Possuem
O

um estilo de vida determinado por esse gosto musical. Na sua maioria,


vestem-se de preto, utilizam acessórios metálicos e tendem a perfurar
(uso de piercing) e tatuar o corpo com frequência. Como discorre
D

Lopes (2006), a predominância desse grupo se dá na classe média,


em que é exigido capital para a aquisição de CDs e instrumentos
musicais de modo a atender às necessidades de consumo e de lazer
EE

desses atores sociais.


Já os integrantes de um grupo de classe social marginalizada
– os consumidores do estilo funk – compõem um público fiel da
preferência musical, na sua maioria, oriundo das periferias. Eles
FR

assumem uma identidade comportamental e, assim como os adeptos


do heavy metal, possuem um estilo de fácil identificação. Garotas
que utilizam vestimentas expõem o corpo (saias muito curtas ou
calças muito justas) e uma linguagem específica os identifica. É
frequente encontrarmos consumidores do funk utilizando gírias em

256
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

suas interlocuções. Contribuições de Vianna Junior (1987, p. 90)


elucidam esse perfil de consumidor.

D
Podemos encontrar desde crianças 9/10 anos até
‘veteranos’ que já passaram dos trinta (as crianças
são bem mais numerosas que esses adultos). Mas o

A
grosso dos dançarinos tem por volta de 18 anos e,
em sua maioria, são negros, moradores das favelas
próximas ao clube (principalmente Morro do

LO
Estado). Eles chegam ao baile sempre em grupos,
acompanhados pelos amigos com quem vão
passar toda a festa juntos. Os grupos são formados
geralmente ou só por homens ou só por mulheres
(exceções: os casais de namorados que já chegam

N
ao baile de braços dados e que passam toda a festa
separados dos grupos maiores). As roupas seguem
um padrão inconfundível.
W
Os funkeiros são consumidores que buscam prazer por meio
das músicas que retratam suas vidas no interior das favelas, como
O

é o caso dos grupos do Rio de Janeiro. As canções também falam


dos corpos femininos e das práticas sexuais, tratadas sem restrições
por esse segmento do mercado fonográfico. Independente do
D

estilo musical, eles são agentes ativos da modernidade, produtores


de novos bens, tecnologias e equipamentos de entretenimento e
cultura, que se relacionam com o lazer tecnologizado do cinema e
EE

das rádios, manipulando, experienciando e relacionando-se com


novos imaginários, sensações e valores decorrentes desse encontro
(BARRAL, 2006). São eles que movimentam o mercado da dança
nesse contexto em que ela é colocada à venda. Possuem diferentes
FR

estilos e características que são influenciados pelo próprio mecanismo


de inculcação de valores e gostos provenientes do processo de
mercadorização dos bens culturais impostos pela indústria da
diversão. As prateleiras desses bens culturais são as casas noturnas,
cenário etnográfico dessa investigação.

257
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Para além da mercadorização: o despertar da arte como


desafio

D
Entendendo que o consumo da dança nesses espaços ocorre por
meio de uma teia de significados próprios do universo simbólico que
cerceia as práticas noturnas de lazer, a compreensão da maneira como

A
os consumidores se apropriam desse bem cultural se faz necessária
para que os profissionais que tratam do campo de conhecimento

LO
dança possam intervir em suas ações formativas, seja qual for o
espaço de atuação.
A tarefa educativa não deve se furtar de estabelecer conexões
com o processo midiático, de modo a conhecer os mecanismos que

N
corrompem a dança em sua dimensão artística. Há necessidade
de um diálogo reflexivo sobre o que é oferecido aos sujeitos que
consomem dança em seu tempo de lazer, não no sentido de evitar
W
o confronto, mas de provocar a apropriação consciente dos bens
culturais disponíveis no mercado.
O

Apoiado no pensamento habermasiano, Gomes (2010)


reconhece que a interação, que se dá dialogicamente é a base
para pensar a ação educativa coordenada e integrada pelo agir
D

comunicativo, almejando a emancipação “a partir da correspondência


estrutural entre atos de fala comunicativos e o mundo da vida que
se infere a idéia de que cultura, sociedade e personalidade têm, nas
EE

ações do tipo comunicativa, o seu meio de reprodução [...]”.


A interação é essencial ao entendimento do outro e ao
reconhecimento das necessidades humanas, sejam elas falsas ou
não, e o diálogo reflexivo sobre o que está disponível ao consumo e
FR

sua forma de apropriação. Assim, o educador parte do cotidiano do


sujeito, confrontando o que está posto e determinado pelo mercado
midiático com o fazer artístico e libertador. Ao sujeito em processo
de formação é dada, portanto, a possibilidade de dialogar com as
diversas realidades a ele apresentadas.

258
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

No que se refere à educação, Certeau (1995, p. 104) endende


que os estudantes não percebem o que lhes é ensinado e o “valor
de instrumentalidade cultural e social” que lhes é dado, sendo o

D
processo educativo discriminatório quanto mais operacional em
relação às expectativas socioculturais ele se torna. Isso ocorre pela
dificuldade em transformar as necessidades humanas e a produção

A
midiática em laboratório de reflexão da arte.
O autor discute que o poder cultural não está mais localizado

LO
no contexto escolar. “Ele infiltra-se em qualquer teto, e qualquer
espaço com as telas da televisão” (CERTEAU, 1995, p. 138),
personalizando e introduzindo em toda a parte os seus bens culturais,
fazendo-se íntimo dos sujeitos. Há, portanto, no processo educativo,

N
a incumbência de “formar um núcleo crítico” em que professores
e alunos elaborem uma prática reflexiva própria dessa informação
vinda de outros lugares.
W
A dança como arte é apropriada por meio dos mais diversos
mecanismos, sejam formais ou familiares e, dentre eles, o da indústria
O

cultural se faz presente. Daí ser mister as discussões e reflexões


acerca da apropriação da arte não se restringir a uma transmissão
de conhecimento pronta e codificada. Como aponta Barroco (2007,
D

p. 187), é necessário que a educação traga “a possibilidade de os


sujeitos se apropriarem e operarem com o conhecimento adquirido
(de qualquer natureza), estabelecendo ou realizando análises,
EE

relações, comparações, generalizações, etc”.


A arte revela, segundo a autora, as “diferentes maneiras do
existir humano, das ações e reações humanas, que promovem as
mudanças estruturais e conjunturais da sociedade” (BARROCO,
FR

2007, p. 195). O sujeito que consome dança nas casas noturnas,


por estar envolvido em um processo alienante pode, por vezes, não
apreciar artisticamente sua manifestação gestual. É nesse sentido que
o educador surge como revelador do fazer artístico, da apreciação
estética e da criação incutida nas gestualidades, independente de

259
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

onde elas se manifestarem. Barroco (2007, p. 197) acredita que a


arte oportuniza “o reconhecimento de valores positivos e negativos”,
que implica a própria humanidade do sujeito.

D
A capacidade do ser humano em desenvolver criticidade ocorre
quando lhe é apresentado à reflexão os valores existentes nos bens

A
culturais disponíveis. Ele pode, então, se fazer valer do que lhe é
oferecido, seja a dança nas casas noturnas ou a praticada no contexto
educacional de modo a fomentar seu fazer artístico. Revelar os

LO
mecanismos da indústria cultural é trazer o sujeito à realidade do que
está posto e que lhe é oferecido, sendo a sua apropriação consciente,
o descalçar dos preconceitos, da alienação e da padronização.

Considerações finais
N
W
É notório que a dança está perdendo seu sentido estético de
fruição artística para o suscedâneo determinado pela indústria da
O

diversão, pois é consumida em um tempo/espaço determinante de


relações sociais pré-estabelecidas, onde os gestos, o comportamento
e as vestimentas são padronizados. Os diversos tipos de danças
D

apresentadas ao consumidor o fazem acreditar no engodo de ter


sua liberdade de escolha adquirida quando, na verdade, está sendo
arrastado pelos mecanismos midiáticos para a compra da dança que
EE

todos dançam.
Assim como ocorre no processo de venda de produtos
industrializados, existem também danças para todos os públicos, para
os que ‘gostam’ de funk, sertanejo, pagode, rock, música eletrônica,
FR

vanerão, entre outros. O que determina a escolha são as relações entre


o indivíduo e a mídia, a qual veicula o produto ininterruptamente
até que o consumidor experimente, por curiosidade, e passe a
necessitar do prazer imediato proporcionado pelo êxtase e vertigem
momentâneos que o produto oferece.

260
8 A MERCADORIZAÇÃO DA DANÇA NAS NOITES URBANAS

A indústria cultural atua na corrupção do sentido/significado


dessa manifestação por meio de um mecanismo de repetição
contínua, levando às prateleiras da dança um produto pronto e

D
facilitado. Os atores sociais que frequentam esses espaços urbanos
acreditam estar consumindo o que realmente gostam quando, o
que ocorre, é o gosto produzido e subsumido pelas necessidades dos

A
sujeitos.
As categorias do jogo (agon, alea, mimicry e ilinx) são identificadas

LO
como elementos presentes na indústria cultural, potencializando
o processo de massificação da dança nas casas noturnas, em que
a necessidade de extravasar medos e angústias provocados pelas
mazelas da vida inumana e da exploração capitalista faz o consumidor

N
render-se aos sucedâneos do prazer hedônico. Ele entrega-se ao jogo
dos mistérios que a noite oferece, buscando o acaso, a surpresa, a
imprevisibilidade e a superação de suas próprias habilidades como
W
experiência de fluxo, chamando a atenção dos demais para suas
competências no domínio do movimento, revestindo-se de um
personagem, entregando-se ao simulacro da imaginação mediada
O

pelas formas estereotipadas de performances dançantes midiatizadas


e deleitando-se nas sensações vertiginosas e no êxtase provocado
D

pela entrega ao movimento.


O processo de corrupção da dança no lazer dá-se a partir da
deturpação da imagem corporal feminina, também como objeto de
EE

consumo. Pela dança se salientam formas e se evidenciam partes do


corpo ligadas ao desejo sexual, por meio de movimentos erotizados.
Os sujeitos se submergem na exacerbação da sexualidade e do
erotismo, na entrega ao acaso, forjando uma personalidade imposta,
FR

potencializando os aspectos competitivos das danças performáticas e


exibicionistas, contribuindo para lançar o sujeito às amarras sociais.
É importante a compreensão de que, apesar do que é exposto
pelos autores que investigam as engrenagens da indústria cultural,
nem tudo parece estar perdido. Os estudos apontam para um

261
DANÇA: DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

mecanismo que não nos dá condições de resistência. Entretanto,


postulamos que, mais importante que justificar a barbárie de suas
investidas é nos fazer valer delas a fim de apresentar aos sujeitos

D
alienados, os produtos que lhes são oferecidos, indicando-
lhes novos olhares para a dança como arte e entretenimento,
provocando transformações nos modos de apropriação desse bem

A
cultural.
As intervenções podem ocorrer por meio de uma ação educativa

LO
voltada para o entendimento desse mecanismo de banalização
das danças, promovido pelo processo da indústria da diversão. É
necessário entendê-lo para intervir e conhecê-lo para desafiá-lo, de
modo a nos apropriarmos do que é produzido pelo mercado musical

N
e gestual, instigando os sujeitos à reflexão do que está posto. Não
basta olhar com olhos indignados. É preciso, sim, conhecer essa
W
realidade que traz implicações ao campo educacional, sobretudo
quando se desconhece e/ou ignora as investidas midiáticas sobre o
ser humano. Daí ser mister favorecer a construção de um processo de
O

formação não distanciado do ator social, mas próximo a ele, que seja
mediador, interventor e emancipatório, de modo a despertar o fazer
artístico. São desafios que se põem em meio aos dilemas do corpo
D

que dança no lazer noturno, os quais se afirmam como centrais às


reflexões contemporâneas sobre o usufruto da dança nesse tempo/
espaço e sobre as formas pelas quais ela é subsumida pela sociedade
EE

de consumo, mais especificamente, pela indústria da diversão,


transformando-se em fonte alienadora ao invés de meio educativo e
transformador do ser humano.
FR

Referências

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