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Dirigidapor J. Guinsburg
carlos calado
OJAZZCOMO
ESPETACULO
::lã't\xs'PERSPECTIVA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(CânaaraBrasileíia do Livro, SP,Brasil)
Direitos reservadosà
EDITORA PERSPECTl\H S.A
SUMÁRIO
ApKKSENTAÇÃoJÓ Sobres 17
A Expressão e a Improvisação 39
A Máscara no Espetáculo Jazzístico 48
/2
2. O RIrUAL E O TEATRO POPULAR: DUAS MATRIZES NA 4 NOTASSOBREA MÚSICA POPUI,ARBRASILnRA E O JAZZ 221
PRÉ-HISTÓRIADO JAZZ 65 Similaridades na Música Negra do Brasil com os EUA 22]
Africa: Música e Ritual 221
65 Os Antepassados Comuns ..
O Núcleo Africano 225
65 O Pregão
A Linguagem dos Tambores 67 O Vissungo 226
A Música de Feitiçaria 227
Um Ritual Africano: o Hoodoo 71
80 A Música Negra nas Irmandades Católicas 228
Manifestações Ritualísticas nas Raízes do Jazz
81 A Música Instrumental dos Barbeiros 229
O Field Holler e o StreetCry
O Lundu e o Maxixe 231
A Work Some 83
Jazz e Espetáculo à Brasileira 233
O Rins-Short e o Spirituat 88
O Blues Pixinguinha e os Jazz Ba/rds 233
92
97 As Orquestras 241
O Teatro Popular nas Raízes do Jazz
O Minstre{ 97 A Bossa Nova 245
Foltm de S. PauhÜ.
41. Citado por Robert Reisner, gira T&e Lega/zd of C/mr#e Parker
London, Quartet Books, 1978, p. 55.
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comunicação poderiam agem fluir de um músico para ouço, num Sistema extensão mais natural daquela atitude cerebral e nada emotiva
musical que continha seus próprios recursos dejeecfZ)acÉ42. dos primeiros bebo/)pera.Mesmo que a atitude do músico bop
não fosse Àof, isto é, desprezassequalquer emocionahsmoou
Como se pôde observar até aqui, o bop trouxe não apenas gesticulação típicos dos jazzme/z mais tradicionais, ainda assim,
mudançasestilísticas, mas também uma nova relação entre o em seu aspecto puramente musical, o bop mantinha certos ele-
músico e a platéia, aproximando a exibição musical do concerto mentos Aor, tanto em sua sonoridade agressiva como em sua di-
propriamente dito. O músico e a música passavam para o centro nâmica nervosa, além de um certo humor.
das atenções e não mais a dança. Na verdade, o bop apenasin- Embora seja difícil precisar onde e quando esseestilo co-
troduziu essa mudança. Algumas conentes surgidas posterior- meçou a ser praticado, sua origem é comumenteligada ao nome
mente, no início dos anos 50, radicalizaram essa nova atitude ao de um destacadobeóopper:o trompetista Miles Davas.Miles li-
introduzir vários elementos da música erudita em seus estios e derou um grupo de músicos,brancosem sua maioria e até
composições.A partir daí as diferenças entre um concerto de
aquele momento desconhecidosdo grande público, que se reu-
música clássica e um de jazz eram quase inexistentes. O con- niram para uma série de gravações,entre janeiro de 1949e
certo estava definitivamente inscrito na evolução das fonnas do março de 1950. Ao lança-las, posteriormente, a gravadora Ca-
espetáculojazzbtico. pital intitulou-as "The Birth of the Cool"44. Entre essesmúsi-
cos estavam o ananjador Gil Evans, o sax barítono e arranjador
O pool, o west coast, o progressivo e a third stream Gerry MulHgan, o pianista John Lewis e o sax alto Lee Konitz.
O traço mais original dessegrupo era sua fomlação: além do
nos clubes notumos, as próprias platéias parecem conceber nossamúsi-
tradiciona] trio de base(piano, baixo e bateria),mais dois sa-
ca como um tipo de música de câmara. Todos ficam quietos, e se alguém
faz qualquer barulho, é colocado para fora mpidamente pelas pessoasdo xofones, trompete e trombone, apareciam uma tuba e uma
local trompa -- instrumentos bastante incomuns para o jazz daqueles
djm
O comentário é de John Graas, trompetista e compositor Evidentemente, essa fomiação nada usual trazia conse-
norte-americanoque atuou ao lado de Stan Kenton, Shorty quências sonoras, o que, ao lado da bagagem erudita da maioria
Rogers e Gerry Mulligan, além de outros músicos da Costa de seus integrantes, acabava por constituir uma nova proposta
Oeste dos EUA. Introduzida pelo bebop, essanova fonnu de em tem)os do jazz modemo. As dinâmicas eram mais brandas,
espetáculojazzístico foi ainda mais exacerbadapor vários esti- perfazendo um som mais calmo e inüospectivo. Os andamentos
los ou escolas que surgiram a partir de uma espécie de reação ao eram moderados e a sonoridade geral era limpa, sem vibrato. O
bop, ainda no Hmaldos anos 40. Algumas negavammais, ousas jazz modemo acabava de encontrar seu correspondente sonoro
menos, mas o certo é que todas elas tomaram o bebop como à atitude coo/ introduzida pelo bebop. Para qualiHlçá-la, o temia
referência para as transfomiações que operaram sobre o jazz da mais imediato não poderia ser outro: coo/.
época. Apesar da própria figura de Miles Davis indicar a partici-
A primeira dessas escolas -- e talvez a mais significativa em pação negra na fomiulação do coo/ -- estilo que já tinha no sax
função da evolução estilística -- foi o coo/. Em tempos gerais, de Lester Young um evidente precursor -- o certo é que essa
esse estilo nada mais é que um abrandamento do beóop original, tendência a "esfriar" o Z)op acabou sendo dominada por músi-
um bop "esfriado". Abas, vendo-se a questão pelo aspwto cê- cos brancos. Quase todos eles tinham fomiação erudita, o que
nico, pode-se perfeitamente definir esseestilo jazzbtico como a demarcava uma diferença básica em relação aos músicos do be-
bop. No fundo, eram duas tradiçõesque se defrontavam:a
clássico-européia e a afro-americana.
42. Ortiz b{. Walton, .A/zz.slc.: .Bbck, WTAüe a/zd .B&e. New Yoík
Willian Monos, 1972,pp. 95-96. 44. Miles Davis and His Orchestra,T/zeColzWhre
Bir/h oÍ //zeCo
43. Citado por Shapiro, Op. cír., p. 399. oZ/disco/Capitol/EMl-Odeon, SC 13012, 1972, 33 rpm, estéreo, 12 pol.
161
Uma face significativa desse confronto foi a denominação Um dos músicosmais populares dessacorrente de jazz com
dada a duas escolas(na verdade duas regiões geogránlcas com influências eruditas foi o pianista e compositor Dava Brubeck.
característicasdiferentes entre si) jazzbticas: a West Coast e a Seu grau de popularidade pode ser avaliado pelo fato de ter sido
East Coast. A primeira compreendia músicos, em sua maioria o segundo músico de jazz a aparecer na capa da revista rime
brancos, que foram atraídos para as principais cidades da Cali- (anteriomlente, apenas Duke Ellington havia conseguido essa
fórnia, em função das oportunidades oferecidas pela indústria distinção). Aluno do compositor contemporâneoDarius Mi-
cinematográHlca
de HoHywood, por volta de 1950. Entre eles Ihaud -- cuja influência, ao lado de Bach, Bartók e Rachmani-
destacavam-seferry Mulhgan, o trompetista Shorty Rogers, o noff, é sensívelem sua obra, entre outros elementoseruditos --
clarinetista Jimmy Giuffre e o saxofonista Wardell Gray. Na Brubeck lançou-se primeiramenteno circuito universitário
verdade, o temia wesf boas/ é freqüentemente substituído por norte-americano. As vezes classificado como membro do wesf
coo/, não havendo uma diferenciação precisa entre ambos. coasr, outras como do progreisive, ele discorda do tempo:
Já o temia eas/ opas/ é principalmente utilizado em obras
históricas e críticas, fomiulado como oposição ao wes/ boas/. As pessoasme perguntam porque alguns de nós se irritam com os
Seus praticantes, em geral negros, atuavam na região de New rótulos que têm sido colocadosem nossamúsica. Chamem-nadecontem-
porânea. Você não pode realmente chamar o jazz de hoje ''progressivo'
York e se aproximavam mais do b/lias, do./ü/zAye do Àan/ #op, porque Jelly Roll Mortos estava fazendo a mesma coisa trinta anos aüás...
estilos que serão analisadosmais adiante. Entre essesmúsicos
então por que usar o termo?
destacavam-seo bateristaArt Blakey, o contrabaixistaCharles Kenton? Bem, é um exemplo do por quê não usá-lo. Eu não acho
Mingua e os saxofonistasSonny Rollins e John Coltrane. que ele ou qualquer um de nós esteja fazendo qualquer coisa que não tenha
Como se nota de imediato, a diferença fundamental entre sido feita antes por Stravinsky, Bartók, e os outros. Eu gostaria que você
me dissessealguma coisa que é completamente nova e progressiva no jazz.
essasduas escolasjazzísticas encontra-se na fomiação dos mú-
Seu melhor exemplo seria Lennie Tristano.- Hindemith e Schoenberg
sicos que as integravam. Foi justamente essa tendência dos mú- estão mais avançados no limbo atonal do que ele, ou qualquer um de nós,
sicos brancos -- a utilização de elementos da música erudita eu- e certamente estão explomndo o sistema dodecafónico e o atonalismo40
ropéia -- que ativou o aparecimento de algumas escolas e estilos,
como é o caso do progressíve e da r/lira sacam, que em alguns Boa parte do sucessode Brubeck, principalmenteno meio
momentos se confundem. mais estritamente jazzístico, devia-se à sua associaçãocom o
O termo progressiva, ao que parece idealizado pelo anan- sax a]to e compositor Paul Desmond. Não só a sonoridade lírica
jador e óa/zdleader Stan Kenton, aplicava-se em geral a deter- e coo/ de seu sax, assim como algumas composições importantes
minados arranjos para big ba/zds que utilizavam elementos da -- o caso de "Take tive", o tema mais característico da dupla --
música contemporâneaeuropeia. Para Kenton, a música erudita devem ser creditadas a Desmond, como fundamentais no su-
já não era capaz de acompanhar as necessidadesestéticas do cesso de Brubeck. Uma referência do próprio saxofonista, a
homem contemporâneo -- daí sua opção pelo jazz "progressi- respeito de seu enconüo com Brubeck, capta um pouco da
vo perfomlance de palco do pianista:
45. Citado por Shapiro,(1)p.cíf., pp. 384-385. 46. Citado por Shapiro, Op. clf., pp. 385-386
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pacientes e várias ouvidas a mais, antes de começar a entender em que al. daí o termo "terceira corrente": as correntes clássicae jazzística
tuta ele estava47. formando uma terceira.
As apresentações do MJQ não ficavam devendo nada a um
Exacerbando a atitude coa/ a partir da utilização de ele- concerto erudito de música de câmma. A conespondênciaentre
mentos do concerto erudito, Brubeck é um bom exemplo da sua música e pe/$0/7zza/zcecénica era quase total, levemente
imagem dos músicos wesf coair, geralmente de fonnação clássi- quebrada apenas por Jackson e suas baquetas:
ca e erudita. No entanto, mais que eie, o grupo que levou às úl-
timas consequênciasessa nova atitude, não só em nível musical A música dessaformação de ''jazz de câmara'' agrada tanto em New
pomo também cinicamente, foi o Modem Jazz Quartet. York quanto em Pauis. Sempre de wzmX:ú'zg, como os músicos clássicos,
todos de barba, os quatro componentes do Modem Jazz Quartet üaduzem
Fomiado em 1952, esse grupo era integrado pelo pianista
em som as idéias de John Lewis. Não é bebop, não é coo/: é uma fórmula
John Lewis, que já havia participado das gravações do "Birth original, um jazz refinado e swingante, que vai do bZüesmais comum a
of the Cool", maiso vibrafonistaMilt Jackson,o baixistaPercy Johann Sebastian Bach, passando pela bossa-nova ou pela interpretação de
Heathe o bateristaConde Kay. A duplaLewis e Jackson,es- peças tradicionais49.
trelas do grupo, refletia de certo modo o caráter ambivalentede
sua música. Embora os dois tenham trocado experiências com Um filme que registraa apresentação
do MJQ no Festival
os principais criadores do bop, como Parker, GiUespiee Monk, de Jazz de Monterey, na Califómia, em meadosda décadade
suas atitudes e papéis musicais eram bastante diversos no grupo, 60, consuma com precisão a descrição de Frank Ténot. O vo-
na verdade, complementares: lume e a intensidade de sua execução são bem mais baixos e, em
geral, qualquer sentido de entusiasmo é pouco perceptível.
Uma das razõesdo sucessoda associaçãode John e Milt está na di- Quanto muito este aparece nos movimentos frenéticos de Milt
ferença de setastemperamentos.John é um intelectual refinado e ínteres-, Jackson, batendo com as baquetas no teclado de seu vibrafone,
gadopela teoria, enquanto Milt é mais instintivo e direto. A dupla ti .hao ainda assim sem demonstrações de emocionalismo. Já Lewis
mesmo amor pelo b/ae.y, mas enquanto John buscava de modo bem cere-
bml captar sua essência,Milt realizava instintivamente uma espécie de mantém sua atitude totalmente compenetrada,impassível, com
retomo às fontes dessa música. Com efeito, muito poucas vezes na história gestos muito discretos e mínimos ao piano. Até mesmo a bate-
do jazz ocorreu tantaintegração entre dois músicos. Como escreveuLu- ria, instrumento geralmente mais "barulhento" na tradição jaz-
cien Malson, ''Milt Jackson comenta o pensamento de John Lewis, dá-lhe zíktiça, é abrandadapor Clonnie Kay, que a toca suülmente,uti-
o impulso que falta a este. Não há nadamais antagónicoqueessesdois lizando também sininhos e outros recursos da percussão erudita.
homens. Um im(5vel, impenetrável, com dedos que deslizam sobreo te- Na soma final, a aünosfera é de austeridade e comedimento50
clado como que guiados pelas leis do movimento mínimo; o outro irri-
quieto, rápido como um raio, pronto sempre a martelar loucamenteno vi- Duas décadasdepois(o quarteto voltou a atuar em 1981), o
brafone. É como se John Lewis impusesse continuamente a calma a um estilo de apresentação do grupo permanece basicamente o mes-
interlocutor que quasenão o escuta''48. mo. Foi o que se viu em seu "concerto" no Frw Jazz Festival, cm
setembro de 1988. Uniformizados, com ternos azuis, gravatas lis-
Em atividade ininterrupta até 1974, o Modem Jazz Quartel tradas e uma espécie de insígnia no peito, tocaram com a mesma
foi talvez o grupo instrumental quc mais tempo se manteve unido precisão e sincronia de sempre seu jazz de câmara. Os toques de
em toda a história do jazz. E também o exemplo mais bem-suce- maior frenetismo com Jackson atacandoas teclas de seu vibrafo-
dido da chamada fÀird süeam, escola que buscava unir as formas ne são balanceadas pela concisão do piano de Lewis e a percussaõ
e disciplinas da música clássica e barroca(como a fuga e o con- de Kay. Quase tudo é comedido e coeso nesse quarteto, que che
traponto, por exemplo) aos procedimentos e técnicas jazzísticas
164 }65
ga a lembrar(sem qualquer conotação pejorativa) uma máquina era ampliado por uma aura de intensidade emocionale expressão
de tocarjazz erudito. de sentimentos. Suas apresentações refletiam com vigor a atitude
Com o coo/, o weif coast e, principalmente, o progresiive e a emotiva dos adeptos dojazz./bnÃy:
fAird süeam, o concerto de caráter erudito firmava uma nova re-
lação entre osjazz/nze/z
e suasplatéias. A dança era definitivamen- para o amador do jazz, Horace não tem apenas a reputação de um
instrumentista, mas igualmente a de um compositor feliz, de um armnjador
te deixada de lado por eles, buscando dessa maneira conferir o eülcaz, de um chefe de grupo cheio de dinamismo e de um chefe de escola
estado de arte à sua música. No entanto, reações que eram ao be- respeitado(entre 1954 e os primeiros anos 60, o./ü/z&yapareceucomo uma
óop, estes estilos e escolastambém foram logo atacadospelo verdadeira terra prometida à maior parte dos jovem músicos negros). Paraa
abandono das raízes africanas e negras que sua música implicava. lenda, a memória conserva esta visão: um pequenohomem de tez clara,
C) retomo às origens, ao ó/filese ao bop, foi a pronta respostaaos crispada, sobre seu banco, os braços colados ao corpo; executando com os
estilos eruditos. pés, perto dos pedais, uma dança louca ao ritmo da improvisação. Uma me-
cha negra cai sobre a vista; um riso demoníaco destapa o rosto; os punhos
deslocam-seem anancadas.Homce é, talvez, o único.»znzmncapazde:
O funky e o hard bop num só trecho, encharcar completamente com suor não só a camisa como
também toda a roupaSI
A partir da expansãodos estilos jazzísticas influenciados pe-
la música erudita européia, já em meados dos anos 50 uma espé- Como se pode notar, a atitude coo/ introduzida pelos bebop-
cie de reação podia ser sentida, principalmente na Costa Leste /2ers sofreu mais um golpe. E agora desferido por músicos que
dos EUA. Seus adeptos buscavam uma volta às raízes negras do eram praticamentediscípulosde Charlie Parker ou Bud Powell.
Passada quase uma década da eclosão do bop, jazz/nzencomo Sol-
jazz, através de suasJ'armasmais primitivas, como o b/êlese
o cospe/. A sofisticação c europeização dos estilos cooZ,os pro ver, Art Blakey,Clifford Brown e SonnyRollins,entreoutros,
ponentes dessa reação negra respondiam com uma música mais tentam responder à crescenteerudição do jazz fazendo-o retor-
simples e de alto grau emotivo. Um termo, em particular, passou nar às suasraízes, vmrendo dele qualquer espéciede intelectua-
a scr muito utilizado para explica' e denominar essanova maneira lismo. Baseado no blues e na música religiosa negra, esse novo
de tocarjazz:./ün©. estilo tanto dá uma nova forma ao veio bebop como reaproxima
o jazz de suas origens rituais. Não só nas pe/g0/7 za/ices de Horace
Originalmente, o termo./ülzAy significava um forte cheiro ou
fedor, além de algo suta ou indecente. Mas a partir dessa época, Silvar, como nas de vários outros músicos dessaépoca, o transe
primeiramente entre os músicos negros de jazz, passou a ser volta a frenqüentar as apresentações de jazz. Curiosamente,
sinónimo de harmonias menos complicadas, ritmos mais passados o bop retorna com força, um pouco modificado, ou melhor, sim-
e execuções francamente emocionais. Outro termo bastante utili- plificado melódica e. ritmicamente, mas agora totalmente disso-
zado em relação a essenascente estilo era sou#ü/(cheio de alma), ciado da atitude coo/. Revalorizado, o bebop passa a chamar-se
deixando claras certas implicações religiosas que permearam sua /mrd bop, segundo os instrumentos e composições de uma nova
geração. A ressonância dessa nova atitude negra foi grande e a geração de músicos.
prova disso encontra-seaté mesmofora dos limites do jazz. E interessante notar que a denominação/mrd bop não parece
A soz{/ mmic dos anos 60 e o./ünk, muito populm nos anos 70 e ter sido aditada em função de aspectos estritamente musicais.
em fase de redescobertanos dias de hoje, tiveram sua origem São várias as obras e analistas que apontam uma certa inade-
exatamente nesse movimento de idéias. quação do termo. Na verdade, o bebop original, tocado por Par-
Um músico considerado como um dos iniciadores desseesti- ker, Giaespie e companhia, era muito mais/mrd musicalmente.
lo é o pianista e compositor Horace Silvar, que se tornou conhe- Isto é, suas melodias eram mais complexas e angulosas, seus an-
cido a partir de sua associaçãocom o baterista Art Blakey, outro
criador do ./ü/z#y.Solver desenvolveu uma maneira muito pessoal
de tocar b/ues lentos e médios, ou mesmo velhas canções de igre- 51. Alain Gerber,''HoraceSilvar'', in JazzÃ/ode/vm,
Braga,Edi
ja(as golpe/ sonos), cujo caráter fundamentalmente percussivo torialPlano,s.d.,p.123.
166 /Ó7
T'
damentos eram mais velozes, quase frenéticos, suasevoluções nas alguns anos de sua introdução, o concerto dejazz erudito re-
rítmicas mais intrincadas. A denominação/mrd, no entanto, é to- cebia a resposta mais vigorosa possível. A atitude compenetrada
talmente apropriada quanto à atitude de seus músicos em cena, e polida da wesf coam/e congéneres era contraposta pelo concerto
em geral bastante envolvidos emocionalmente, refutando a antiga catártico e emocional dos/mrd óoppers.
atitude coo/,fria e distante.
Outro músico, que também extrapolou não só o/mrd bop em
Um exemploparticularmente radical dessanova atitude tra- direçãoao ./}eejazz como contribuiu decisivamentepara a evo-
zida pelo/azrd bop e depois estendida ao ./}ee Jazz podia ser en- lução do concerto jazzístico rumo ao /zappenlng, foi Charles
contrado no saxofonista e compositor John Coltrane, cm geral Mingua. Contrabaixista, pianista, compositor, arranjador e ba/zd
reconhecido como o mais importante saxofonista e improvisador leader, sua obra constitui um verdadeiro painel de influências e esti-
surgido após Chame Parker. Depois de tocar com vários mestres los integrando num só corpo a tradição e a vanguardajazzística.
do bop, como GiEespie,Thelonious Monk, Bud Powell e Miles Sua carteira musical pode explicar um pouco dessamistura
Davis, Coltrane lançou-se à carreira individual, a partir de 1957. estilibtica. Atuou ao lado de músicos do jazz tradicional, como
Progressivamente, suas apresentações iam se tornando cada vez Louis Armstrong e Kid Ory. Depoisacompanhouo swl/zgde
mais frenéticas e tempestuosas: Lionel Hampton e integrou o "jazz de câmara" do trio de Red
Nervo. Em seguida começa a se aproximar do bebop e, em 1953,
Era por ocasiãodas atuações públicas do sexteto que John semostrava
mais arrebatado, afrontando o furor das platéias, frustradas nos seushábitos
funda seu "Jazz Workshop", laboratório musical onde começaa
queridos. Com efeito, nenhum dos velhos critérios podia ser aplicado a esta fazer experünentaçõesimportantes ao lado de Teo Macero, J. J.
tumultuosa agressãosonora. Perante ela, ficávamos obrigatoriamente nus, Johnson e John Lewis, entre outros. Desde então Mingus passaa
desannados,vulneráveis(-.)[)esprezando a exigência de regu]aridade rít- desenvolver sua concepção totalmente original para a época, on-
mica, aspirava, dir-se-ia, a enlouquecer cada vez mais o ritmo, a comuni-
de a improvisação coletiva era elemento fundamental. Um bom
car-lhe o canse onde os sons seinebriavam já(...). E John, o rosto desfigu-
rado numa máscara de esforço, agitava o seusax, impotente para o abancar exemplo desse procedimento aparece em sua composição "Wed-
à ferida dos lábios. Ninguém antes dele havia improvisado tão longamente e nesday Night Prayer Meeting"S3, onde uma espécie de cerimónia
tão furiosamente,ninguém havia ióanifestado uma avidez tão crispada.A religiosa negra é simulada. Mingua impulsiona os músicos com
JacquesBenls, por exemplo, dada ele a impressão de um ''cão correndo atrás
dacauda''S2
gritos, como se fosse um pregador em meio a sua congregação de
fiéis. A atmosfera de ritual se completa durante o solo do saxo-
A referência a nunca antes alguém ter improvisado de modo fonista Booker Ervin, quando todosparamde tocar seusinstru-
mentos e o acompanham apenas com palmas, bem ao estilo dos
tão extenso e furioso não é exagero. As apresentaçõesde Coltra-
rituais negros. A tradição abro serve de tema para um arranjo
ne caracterizavam se por um grau muito intenso de execução so-
inovador e altamente expressivo.
nora, onde solos com vinte minutos ou mais de duração eram
freqüentes. Suas exibições frenéticas deixavam evidentes a volta Essa constante busca de agressividade levou Mingus a expe-
rimenta os mais diversos elementos em sua música. Um exemplo
ao transe e ao êxtase proporcionado pela música, elemento quc o
jazz moderno havia abandonado até aquele momento. Coltrane é o de sua colaboração com o poeta Langston Hughes, marcando
a breve eclosãodo movimento"Jazz & Poetry", no final dos
levou sua música, principalmente quando apresentadaao vivo
anos 50. Já em 1961, no álbum OA yeaA, ele compõe "Passions
frente a uma platéia, ao mais alto grau de expressão e paroxismo
of a Man", "na qual evoca 'a constante luta entre prazer e frus-
que um concerto poderia conter. É bastante possível que sua
morte prematura, aos 41 anos de idade, em 1967, tenha uma certa tração, entre vida e morte, presente no interior de todos nós'.
Numa ousada pesquisa, Mingus mescla música e recitação, teatro
relação com essaentrega total em suasapresentações. Seu esfor-
ço físico empreendido nessasocasiões ultrapassava claramente os e psicodrama"s4
limites humanos de uma pe/yb/7zzanceinstrumental. Passados ape-
53. ''Charles Mingus'', Gigante.s do Jazddisco/ Abril Cultural, 1980
33 rpm, estéreo,12 pol.
52. Alain Gerber, ''John Coltrane'', inlazz.A/oderzzo,p. 54. 54. Pino Candini, ''Charles Mingua'' , in G@anre.s(ü Jan, p. 6.
168 }69
MODELO 2: O CONCERTO As referências pessoais e autobiográficas são inúmeras na
obra de Mingua, como em "Clown" (Palhaço), que ele mesmo
Voltando à proposição de relacionar os níveis de teatralidadedo es explica:
petáculo jazzístico com a improvisação musical, o concerto apresentaa se
guinte conformação geral: Um dia sentia-me feliz e tocava ao piano uma melodia alegre. Depois
encontrei uma dissonância que entristecia. Então dei-me conta que estetre-
cho devia compreender duas partes. A história é a de um palhaço que tenta
agradar às pessoas-- como fazem os músicos de jazz -- mas que ninguém
gosta de sua expressão. A minha versão acabavano seuúltimo suspiro, com
aspessoasprontas para rir. Julgam que isso faz parte do número e se diver-
tem muito. Mas gosto da maneiracomo JeanShepherdmodificou o final;
deixa mais liberdade ao auditor. Ensaiamosuma vez em minha casae de-
OCONCERTO pois em estúdio.As palavrasque tinha escritoJeanShepherdpara esta
canção mudavam de cada vez. Improvisava mesmo no interior da história.
Quanto aos músicos, Jimmy Knepper conduz tudo neste trecho, salvo aspa'
TEATRALIDADE lavras. Toda a orquestrao segue.Quando atingimos um passoque não é
apoiado pelas palavras, Jimmy imita um palhaço...55.
A origem do happening
./': /
evento "há três salaspata essetrabaho, cada uma diferente em