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Celso favaretto

tropicálía ©

al.eg orla e

a le g ri a
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Favaretto, Celso Femando, 1941-


Tropicália - Alegoria, Alegria/ Censo remando Fa
vâretto ; prefácio de Luiz Tatit. - 2. ed. rev. - SãoPaulo
Ateliê Editorial, 1996.

Bibliografia
ISBN: 8$85851-03-1

].. Música Popular - Brasil História e Crítica 2


Tropicalismo -- Música Brasil l. Título.

95-4447 CDl}781.630981

Índices para catálogo sistemática


1. Brasil : Tropicahsmo : Música popular 781.630981

I' edição: Março/ 1979(Kairós)


2aedição:Janeiro / 1996 Para jogo Ado!$o Hansen e lzon Kossooitch.
petiz carmuaZesm co&zbornç@
Pum Sõnü, graça azzzJ

Copynght© 1995 by Censo Femando Favaretto

ATE liÊ
"1: EdiToniAI

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AfONSO NUNES LOPES
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Fax:(O11)442-3896
SUMÁRIO

Prefácio.
15
Nota à Segunda Edição
17
Surgimento: Uma Explosão Colorida
A Mistura Tropicalista 27
Ingredientes da mistura tropicalista 27

V
47
Tropicalismo e antropofagia
A Cena Tropicalista 55

Tropicália: a bossa, a fossa, a roça 55


Pauis et circencis 68

O Procedimento Cafona 99
99
'#

Construção das imagens tropicalistas


114
O camavaltropicalista
121
Tropicalismo, Mercado, Participação
Letras de Canções 131

251
Discografia
153
Bibliografia
26 + TROplCÁLIA -- ALEGORIA, ALEGRIA

xonada, sendo freqüentemente maniqueísta. Manteve ace-


sa, durante toda a década, uma polêmica de grande alcan-
ce cultural, em tomo da oposiçãoentre al:te-alieDêdg.
e
.a:Ete-.piar!!Siga!!b.Havia agressividade, quando não des-
prezo, contra as tendências experimentalistas, assim como
uma recusada importação de fom\as, ritmos e estilos. ,a w r.ç 'r rT R d
Embora matizada, a atitude dessesgrupos gerou uma for-
ma de consciência participante, um público esclarecido,
TROPA.CÁLI.STA
politicamente avançado, que se distinguia, maniqueistica-
mente, de uma pequena elite, considerada reacionária,
por ser fom\alista.
O tropicalismo
nasceudessasdiscussões,
quejá se
exauriam, inclusive por força da repressão. Propunha ou-
tro tipo de discussão, substancialmente distinta das ante- Ingredientes da mistura tropicatista
riores como tática cultural, como proposta ideológica e
relacionamento com o público. Era uma posição definida- Não posso negar o que jú !i, nem
mente artística, musical. Rearticulando uma linha dê tra- possaesqwcer ottde üoo.
dição abandonada desde o início da década, retomando Nego-me a .blclorimr mm subde-
pesquisas do modernismo, principalmente a antropofagia smuolümmto para cotnpetlmr as dyi-
culdadestécnicas.
oswaldiana, rompeu com o discurso explicitamente políti-
co, para concentrar-senuma atitude "primitiva", que, CAErANO VELOSOI
pondo de-lado a "realidade nacional", visse o Brasil com
olhos novos. Confundindo o nível em que sesituavam as
discussões culturais,. o tropicalismo deu uma resposta
O procedimento inicial do tropicalismo inseria-se na
desconcertante à questão das relações entre arte e política.
linha da modernidade: incorporava o caráter explosivo do
momento às experiênciasculturais que vinham se proces'
bando; retrabalhava, além disso, as informações então vi-
vidas como necessidade,que passavampelo filtro da
importação. Este trabalho consistia em redescobrir e criti-

Nova Realidade", há um inventário das posiçõesestéticasdo período 1964-


1974,que retoma e complementaos balançosfeitos em 1968, 1972e 1973,na 1. Cf. depoimento a Décio Bar(Rmlidade, dez. 1968,p. 197)e a CardosAcuio (Àün
mesma revista.
chefe,16.12.1967,p.23).
28 B TROplCÁLIA -- ALEGORIA, ALEGRIA

A MISTURA TROPICALISTA . 29
car a tradição, segundo a vivência do cosmopolitismo dos
processos artísticos, e a sensibilidade pelas coisas do Bra- sua vez, é refratária a uma análise de tipo lingübtico, pois
sil. O que chegava,sejapor exigênciade transformar as a melodia não apresentaunidades significativas, semânti-
linguagens das diversas áreas artísticas, seja pela indús- cas. Além disso, a canção comporta o arranjo, o ritmo e a
tria cu]tura], foi acolhidoe misturado à tradição musical interpretação vocal, que se inserem em gêneros,estilos e
brasileira. Assim, o tropicalismo definiu um projeto que modas,dificultando a definiçãode uma unidade.A mu-
elidia as dicotomias estéticas do momento, sem negar, no dançade um desseselementospor si só pode configurar a
entanto, a posição privilegiada que a música popular ocu- passagem de um estilo, ou mesmo gênero, a outros. Veja-
pava na discussãodas questõespolíticas e culturais. Com se, a propósito, como a simples introdução da guitarra
isto, o tropicalismo levou à área da música popular uma elétrica nos acompanhamentos de .41€g'ía, ÁZqgrfa e Do-
discussãoque se colocavano mesmo nível da que já vinha mingo ?zoParqzzedesencadeou a hostilidade contra Caeta-
ocorrendo em outras, principalmente o teatro, o cinema e no e Gi], como se realmente estivesse em questão a
a literatura. Entretanto, em função da mistura que reali- integridade da música brasileira. Destaforma, o desenvol-
zou, com os elementosda indústria cultural e os materiais vimento do uso dos instrumentos eletrânicosnos arranjos
da tradição brasileira, deslocou tal discussão dos limites posteriores assim como a exploração de possibilidades vo-
em que fora situada, nos termos da oposição entre arte cais lancinantes por Gil e Gal, embora não representassem
fparticipante e arte alienada. O tropicalismo elaborou uma novidade, tiveram importância decisiva na modificação da
l nova linguagemda canção,exigindo que se reformulas- forma da canção no Brasil.
sem os critérios de sua apreciação,até então detemtina- A cançãotropicalista também se singulariza porjDtg:
l dos pelo enfoque da crítica literáüa. Pode-sedizer que o la,.brm
l tropicalismo realizou no Brasil a autonomia da canção,es- basicamente a míseetzscêlzee efeitos eletrõnicos(microfo-
l tabelecendc-a como um objeto enfim reconhecível como ne, alta-fidelidade, diversidade de canais de gravação, so-
l verdadeiramente artístico.
noridades estranhas) que ampliavam as possibilidades dol
C) tropicalismo efetuou a síntese de m inpna. arranjo, vocalização e apresentação. Caetano, por exem-l
relação que vinha se fazendo desde o modernismo. embo.; plo, no lançamento do disco Tropícálía,travestiu-se,apar
ra raramente conseguida, pois a ênfase recaía ora sobre o cendo de boá cor-de-rosa; para defender É Proibido Proíbíl
texto ora sobre a melodia. Por ser inseparavelmente musi- usou roupas de plástico colorido, colares de macumba.
cal e verbal, é difícil tanto compor a canção como analisá- enquanto um/z#píe americano promovia um happelzí7zg,i
la. Ela remete a diferentes códigos e, ao mesmo tempo, emitindo urros e sons desconexos. Também no programam
apresenta uma unidade que os ultrapassa: como não é um Divino Maravilhoso, da TV Tupi, aconteciamcoisasestra-
poema.musicado,o texto não pode ser examinado em si, nhas, que assustavam o público: organizavam-se ceias na
independerltemente da melodia -- se isso for feito, pode-se
ter, quando muito, uma análise temática. A música, por
2. Edgar Morin, "Não se Conhecea Canção", Língzageifzda CllZflírade Massa;Tele-
visãoe G Po, Petr6polis, Vozes, 1973,pp. 145 e ss.
30 ' TROplCÁLIA .: ALEGORIA, ALEGRIA A MISTURA TROPICALISTA . 31

beira do palco enquanto Gil cantava Ora pro Nobis, Caeta- desseselementos não musicais provinha do trabalho con-
no apontava um revólver para a platéia enquanto cantava junto que os tropicalistas realizaram com Glauber Rocha,
música de Natal, e até mesmo um velório chegou a ser or- Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Lygia Clark, JoséCelso.
ganizado, com o descerramentode uma placa com o epi- A essetrabalho somavam-se as contribuições dos músicos
táfio Aqui jaz o fropícalismo-- o que, aliás, mais que um de vanguarda, dos poetas concretos e da música pop.
lance de humor e auto-ironia, indiciava lucidez quanto Como disse CaetanoVeloso, da mistura disso tudo nas-
aos limites do movimento como manifestaçãode' van- ceuo tropicalismo; contudo, importa assinalarque nasceu
guardas. "A roupa" -- disse Caetano -- "combinava com a não apenas como proposta cu]tura], efetuada em termos
música e era diferente; refletindo o brilho dos refletores, antropofágicos, mas materializado no corpo da canção,de
criava um clima para o som"; a combinação do plástico cada canção.
(material industrial) com adereços de macumba funciona- Voltando à questão essencial, é no encontro de músi-
va como "um lembrete do nossosubdesenvolvimento". E ca e poesia ou, melhor, OPI
o h@píeJohnny Grass assim considerava sua interpreta- parao
ção: "Sou um instrumento, não um cantor. Tenho a res-
que muito contribuíram: a formação literária de seusinte-
ponsabilidadede entrar na hora certa e lançar sons que grantes(Drummond, João Cabral, Guimarães Rosa, Clari-
nem os instrumentos de sopro tiram"4
ce Lispector e, depois, Oswald de Andrade e a poesia
Estesrecursospermitiam enfatizar o efeito caáoníz e(i
concreta); a yixêM.,Mcalxallê4p(desde os ritmos re-
or, contribuindo para o impacto das construçõesparó-
dicc-alegóricas, essenciaisà constituição das imagens tro-
picahstas. Com eles, o tropicalismo reentronizava o .corpo smtado pela arte de Glauber ou de JoséCelso,de Hélio Oiticica ou de Rubens
na canção,remetendo-a ao reencontro com a dimensão ri- Gerdiman, e quis que seu corpo,qual peçade escultura,no coüdiano e no pal-
co, assumisse a contradição, se metamorfoseassena contradição que era falada
tual da música,exaltandoo que de abetonela existe.Cor- ou encenada pelos outros artistas, mas nunca vivida por eles. Quis que seu cor-
po, voz, roupa, letra, dança e música tomaram-se códigos, po, pelo seu aspecto plástico, cativasse o público e que fosse ele a imagem viva
assimilados na canção tropicalista, cuja introdução foi tão da sua mensagem artísticas-.]. Caetano trouxe para a arena da rua e do palco o
próprio corpo e deu o primeiro passo para ser superastropor excelênciadas
eficaz no Brasil que ée tomou uma matriz de criação para artesbrasileiras. O corpo é tão importante quanto a voz; a roupa é tão impor-
os compositores que surgiram a partir dessa época. Caeta- tante quanto a letra; o movimento é tão importante quanto a música.O corpo
no e Gil, principalmente o primeiro, não mais abandona- estápua a voz assimcomo a roupa estápara a letra e a dança para a música.
Deixar que os seis elementos não traba]hem em harmonia [-.] mas que se con-
ram esta orientação,fazendo do corpo, no palco e no tradigam em toda sua exteruão,de tal modo que secrie um estranhoclima lú-
cotidiano, uma espécie de escultura vivas. A incorporação dico, permutacional, como se o cantor no palco fosse um quebra-cabeça que só
pudesseser organizadona cabeçados espectadores.Criando de número para
número, Caetano preenchia de maneira inesperada as seis categorias com que
3.
Cf. À4azzc;ufe, 18.10.1975, P. 80. trabahava: corpo, voz, roupa, letra, dança, música"(Silviano Santiago, "Caeta-
4. Cf., respectivamente, Vya, n. 10, nov. 1968, e n. 7. out. 1968. no Veloso, os 365 Dias de Carnaval", CadernosdeJormZismo
e a)miinímção,n.
5.
'Caetanopercebeu esse caráter contraditório e sintético que estava sendo apre- 40, jan.-fev. 1973, p. 53).
A MISTURA TROPICALISTA . 33
32 ' TROplCÁLIA - ALEGORIA, ALEGRIA

gionais, as manifestaçõesfolclóricas e a música urbana, pois provocam um curto-circuito na estrutura da canção


Beatles e Bob Dylan, jazz e bossa nova até música de van-
até então praticada, originando um movimento de reno-
vação que não mais cessou.
guarda); e o conhecimento dos trabalhos de teatro, cinema
O trabalho dos tropicalistas aguçou e explidtou a função
e artes plásticas. O resultado deste trabalho antropofágico
crítica da produção artbtica: apontou, confomte aâm\ou Cae-
levou a um redimensionamentoda estrutura da canção,
não podendo ser entendido como simples influência ou tano Veloso,para a "necessidadede que cada gesto,cada
modo de se apresentar, cada arranjo, cada instrumer\to esco-
adaptaçãodecódigosouestilos.
lhido, opinassem sobre o panorama geral da música popular
Os tropicalistas realizaram a vinculação de texto e me-
lodia, explorandoo domír\io da entoação,o deslizar do no país"7. O conhedmento do Brasil proposto pelo tropicalb-f
mo volta-se simultaneamer\te para a tradição e o prever\te el
corpo na linguagem, a materialidade do canto e da fala,
vincula-se a esta fomta crítica de compor e cantar. A irnpor4
operados na conexão da língua e sua dicção, Hgados ao in-
tenda que atribuíram à reinteipretação de compositores e can.l
fracódigo dos sons que subjazem à manifestação expressi-
tores da tradição musical brasileira - alguns totalmente
lva. No canto brilham significaçõesque provêm da fricção esquerdos; outros, mais recattes, consideradosapenas co-
da língua com a voz, numa atividade em que a melodia
merciais pela lítica, e outros ainda estrangeiros, que marca-
trabalha a Ihgua, ocupando suas diferenças, "dizendo" o
ram o gosto do público e influenciaram a música popular
l que ela não diz. É um jogo estranho à comunicação, à re- brasileira -- decorre dessefato. O conhecimento das contradi-
presentaçãodos sentimentos, enfim, à expressão-- feito do
çõesbrasileiras é operado indiretamer\te pela metamoiíose
fluxo das durações,intensidadese pulsações,presentifi-
dessascontradições em estrutura de canção. Assim, ao desa-
cando o corpo no sistema de diferenças(descontinuida-
tualizarem interpretações tradicionais, como, por exemplo, as
des) que constitui a língua.
de Orçando Si[va, Roberto Car]os e Simona], os tropica]istas
l gSgg:..!99:!c..g..cgpt(2..jntQDsiüca..o...desejo.-ressaltando
não só os reinterpretaram, mas propuseram uma crítica de
l tê!!!tl2111B..g.,!ilt11iàLna.música.
manifestado na..dança.e iw
esülemas culturais. Ouçam-se, a propósito, as dtações de
l qçxo.-- e é aqui que melhor se apreende a relação entre o
Caetano em Paisagem útil, .41egHa,Áie8zü, Tr(picáiüz, dentre
erótico e o político. Esta inscrição do corpo na substância
outras. Tal trabalho prossegue com outros cantores e com-
viva do som tensionaa língua cantada,levando ao ultra- positores, alar de Caetano e Gil, obedecendo ao caminho
passamentodos fenómenosdecorrentesde sua estrutura,
rasgado por Caetano Veloso antes mesmo do surgimento
como estilos de interpretação, idioletos dos compositores,
do tropicalismo,conforme a declaração,extraída de um
mudanças rítmicas, variações de timbresó. Sob este ângu-
debate promovido pela Reoisfa Cíui/ização Brrzsíleíra, em 1966:
lo, as cançõestropicalistas adquirem grande importância,

7.
6. Cf. Roland Barões, "Le grain de la voix", Àlusqre mjaí, rl 9, 1973, p. 59; e rosé Mi- Cí. entrevista de CaetanoVeloso a JoséMiguel Wisnü, "Oculto e Óbvio'
lmmqzte,n. 6, 1978,p. 8.
guelWisnik, "Ondenão Há Pecado nem Perdão", 41nmmqia, n. 6, 1978, pp. 12-13.
34 ' TROPICÁLIA - ALEGORIA, ALEGRIA A MISTURA TROPICALISTA . 35

A questão da música popular brasileira vem sendo posta ultima- O problema básico que o tropicalismo se colocou foi o
mente em termos de fidelidade e comunicaçãocom o povo brasileiro. da situaçãoda cançãono Brasil. Tanto a retomadada li-
/ Quer dizer: sempre sediscute se o importante é ter uma visão ideológi-
l ca dos problemas brasileiros, e se a música é boa, desde que exponha nha evolutiva aberta pela bossa nova como a inclusão das
l bem essa visão; ou se devemos retomar ou apenas aceitar a música pri- infomtações da modernidade punham em crise o "nível
l mitiva brasileira. A única coisa.que saiu neste sentido - o livro do Tinho- médio" em que se encastelaraa produção musical; além
l rão -- defende a preservação do azzagb&tísnzo como a única salvação da disso, este prqeto tomou a forma de uma estratégia cultu-
l música popular brasileira.Por outro lado se resistea esse"tradicionalis-
mo" -- ligado ao analfabetismodefendido por Tinhorão -- com uma mo-
ral mais ampla, definindo uma posturapolítica singular,
dernidade de idéia ou de forma como melhoramento qualitativo. Ora, irttrütseca à estrutura da canção.Reinterpretar Lupicínio
a' música brasileira se moderniza e continua brasileira, à medida que Rodrigues, Ary Barroco, Orlando .Silva, Lucho Gatica.
toda infomtação é aproveitada(e entendida) da vivência e da compreen' Beatles, Roberto Carlos, Paul Anka; utilizar-se de cola-
são da realidade brasileira. Realmente, o mais importante no momento gens, livres associações,procedimentos pop eletrânicos, ci-
[-.] é a criação de uma organicidade de cultura brasi]eira, uma estrutura- nematográficos e de encenação;mistura-los, fazendo-os
ção que possibilite o trabalho em conjunto, inter-relacionando as artes e
os ramos intelectuais.Paraisto, nós da música popular devemospartir, perder a identidade, tudo fazia parte de uma experiência
creio, da compreensãoemotiva e racional do que foi a música popular radical da geração dos 60, em grande parte do mundo oci-
brasileira até agora; devemos criar uma pogsibiUdade seletiva como base dental. O objetivo era fazer a crítica dos gêneros, estilos e, f
de criação. Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro
dela, não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este conhecimento mais radicalmente, do próprio veículo, e da pequena bur-
guesiaque vivia o mito da arte. Em nenhum momento os l
que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerentecom elã.
SÓa retomada da Zín/mmolutíua podo nos dar uma organicidade para Uopicalistas perderam de vista o seu objetivo básico: des- \
selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz de o simples uso de instrumentos eletrõnicos, ruídos e vo- l
com frigideira, tamborim e um violão, sem sétimas e nonas,não resol- zes em .4Zegda,.4ie8Ha e Domízzgo }zo Parqzze,o emprego de
ve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua ne- recursos aleatóüos e seriais, a incorporação do grito por
cessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho
Gal Costa e até a trituração da melodia por Gi]berto Gi],
certeza que, se puder levar essanecessidade ao fato, ele terá contrabai-
l xo, violino, trompa, sétimos e nonas e tem samba.Aliás, João Gilberto mantiveram-se réis à linha evolutiva, reinventando e te-
l para mim é exatamente o ln071zelzto em que isto aconteceu:a informa- matizando criticamente a canção. As últimas músicas do
l ção da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, lzo período heróico do movimento atestam esta coerência:
dar zlnz passo à .Pelzfe da música .popular brasileira, deverá ser feita na Questãode Ordem, Dioino Maravilhoso, Cultura e Civilização,
[ medida em que João Gilberto fez. [-.] Não me considero saudosista e não
CinemaO/íznpzae Ob/efotzãoJdenf@cado
são exemplos sig-
l proponho uma volta àquele momento e sim uma retomada das melho- nificativos. Nesta última, inclusive, tematizam-se as di-
l res conquistas(as mais profundas) dessemomento. Mana Bethânia
\ cantando(3zrcará sugere esta retomada. E é a esfHdêlzcãz,
o gdlo8 versas dimensões da canção e mesmo a sua destinação -- o
iniludível envolvimento comercial. Crítica da musicalida-
de e autocrítica jamais se desligaram no tropicalismo. En-
8. "Que Caminhos Seguir na Música Popular Brasileira?", RCB,n. 7, 1966,pp.
cerrado o movimento, com a prisão de Caetanoe Gi], as
SlldSlb. reinterpretações e as experimentações são intensificadas a
36. TROPICÁLIA - ALEGORIA, ALEGRIA A MISTURATROPICALISTAe 37

partir do exílio londrino. .AraçáAzzlZ,LP de CaetanoVelo- Os músicos de Vanguarda e os tropicalistas realiza-


so lançado em 1973, é a sír\tese de todos os roteiros abertos ram um trabalho de equipe, no qual as regras eram inven-
l pelo tropicalismo, que, levados às últimas conseqüências, tadas em conjunto, não havendo imposição do material
l esgotam o período da experimentação. musical pelos primeiros, como se pode depreender das
' O passo à frente de Caetano Veloso obteve elemen- canções e deste testemunho de Rogério Duprat:
tos fundamentais na colaboração com os músicos de van-
A partir do disco Tr(pícálü a gente realmente se juntou pra valer. A
guarda de São Paulo, especialmenteRogério Duprat. A
gente trabalhava num sistema pouco convencional -- em tem\os da rela-
experimentação que estes realizavam com música alea-
ção compositor-cantor-arranjados. Eu já tinha sido arranjador, em 61/62,
tória, concreta e eletrânica, desde o início da década, fazendo os últimos ecosque podiam ter algum interessena bossanova.
centrava-se em pesquisa de novos materiais, a relação en- Depois disso, desinteressei-me, e todo o nosso grupo também, da música
tre música de vanguarda e música tradicional e relações popular. Não tínhamos nada a fazer com ela. O reencontro foi através de
dessas pesquisas com o sistema de produção-consumo Gil, com o Donzíngono Parque.Por sinal, quem nos pâs em cantata foi o
Suas atividades ultrapassaram a área musical: levados Júho Medaglia. Gil estava muito preocupado, porque estava querendo
ter a nova idéia do que fazer. Ele não queria mais entrar num esquemi-
pela necessidade de invenção, haviam chegado ao /zappe- nha "Fino da bossa". Estava torturado, realmente torturado. Quando
7zínge, integrados aos esforços de atualização cultural do acertamos e decidimos tudo(eu havia apresentado a eles os Mutantes),
Brasi], haviam tentado uma experiência de ensino na Uni- não pensamos que o pessoal se sentiria tão violentado. Você lembra os
.\ versidade de Brasília.Quando se produziu o tropicalismo, mil bolos que deram nessaatitude. O pessoal começava: "Mas como, bo
estavam disponíveis, sem horizontes de trabalho: o encon- tar guitana em festival de música popular brasileira?" - aquelenegócio.
A partir daí, a gente começou a trabalhar de fom\a muito estruturada.
tro com Caetanoe Gil foi, de lado a lado, um encontro
Eu não era um arranjador ao qual eles chegavam com a música pronta,
de interesses.A áreada música popular era a mais propí- nem eu dlegava com o arranjo pronto no estúdio pra gravar. A gente se
cia para aplicar a concepçãodo compositor de vanguar- reunia, pensava muito em cada música, o que convém e o que não con-
da como "(isÜzm' sonoro", de acordo com as atividades vém fazer, e tal. Já ouvi muita gente dizer: "Nãa, o mérito é seu, você é
variadas e despreconcebidas daqueles compositores que, que fez os arranjos, não sei o quê. Se não fosse você pâr as coisas, e tudo
mais..." Isso não é verdade, estou cansado de dizer e faço questão de in-
partindo do trabalhocom música erudita, tinham passado sistir. Eu tinha uma experiência,não só de esaiba musical -- quer dizer,
para a pesquisa de vanguarda, dedicando-se à produção do cara que senta e sabe fazer bolinhas no papel - mas experiência de
de trilhas sonoras para filmes publicitários(/í7zgies e spofs)e músicaerudita de vanguarda, essenegóciotodo. E a gentejá tava, na-
ananjos musicais. Trabalhavam segundo uma idéia não arte- quele momento, com toda a misturada do consumismo na cabeça;esses
sanal, voltados para o fato da urbanização e consumo, e para a papos com vocês, o pessoal do Grupo Noigandres. O Décio Pignatari,
renovação da tradição musical brasileira. Como os tropicalis- você e o Haroldo, a gente sempre estevemuito junto. Eram essestrês e
mais três músicos: o Júlio Medaglia, o Cozzella e eu. Naquele momento,
tas, preocupavam-se com a questão do nacionalismo na artes

po Manda,ver a enUevistade Júlio Medaglia, "Música, Nãamúsica, Antimúsi


9. Sobre a trajetória e as posições dos músicos de vanguarda, integrantes do gru- ca", O Estado de S. PatJZo Suplemento Literário, 22.4.1967, p. 5.
A MISTURA TROPI'êALISTA . 39
38 . TROPICÁLIA - ALEGORIA, ALEGRIA

real foi integrado devido ao interesse de atuàlização


em que já havíamos estadoem Brasília fazendo uma das últimas tentativas
eruditas, e em que a gente descobriuo mundo do consumo como uma Como diz Umberto Eco,
nova áreaa atacar,esseencontro me pareda inevitável. Então a gente reu-
nia todo mundo. Até o Guilherme Araújo, até você esteveem reuniões des- [-.] se não basta a presença de um novo mateijal para pennitir a apari-
seüpo O que vai, o que não vat o que convém,o que não conván e tal. ção de novas obras de arte esteticamente válidas, a presença de uma
Naquele tempo era mais Torquato Neto; alguma coisa do Capinam" nova "matéria" - com sua carga de sugestõese possibilidades fommti-
vas - constitui, sem dúvida, sempre um estímulo para a invenção de no-
vos modos de fomiar:z
Nessa colaboração, foram integrados elementos da
música de vanguarda, como: materiais provenientes de Parao tropicalismo,a retomadada linha evolutiva
dois pólos de composiçãocontemporânea-- o de Boulez- não se restringia às mudanças técnico-instrumentais; em-
Stockhausen, seguidor do rigor e do construtivismo da
pregar os elementos indicados acima, como respostaà pres-
l Escola de Viena(Schoenbergf Webem, Berg), englobando são da Jovem Guarda e dos Beatles,que evidendaram o
l experiências de música eletrânica e aleatória(em que, no desgaste das fom\as tradicionais da música popular brasilei-
entanto, o acaso é previsto e controlado pelo compositor); ra. Os novos materiais permitiram articular uma
e John Cage, responsável pela linha da antimúsica e do musical postulada tanto pelo interessede
happe7zíng,que provocou uma brusca ruptura com os con- ção quanto de reíleHrsobte.a.situação..cultural. As
ceitos tradicionais da arte, pelo tratamento indiscrimi-
ças musicais que o tropicalismo introduziu
nado do material sonoro e interessepelo consumo.Pela
para a discussão dos temas básicos da década de 60
criação de uma sintaxe não discursiva, as duas linhas con-
através do ataque às
fluem na prática dessacralizadorada tonalidade, de modo mas desgastadas da comunicação artística. Tal como
semelhante ao que vinha ocorrendo na literatura, no cine- estabeleceram no período pós-64, estas contribuíam
ma e nas artes plásticas. Finalmente, integrou-se a discus-
são sobre as relações entre [-.] para manter um certo sistema de convenções sociais, uma certa dia-
Ignorando o conflito qualidade-quantidade, devido ao in- lética entre os sentimentos e as noções morais, e, por último, a convicção
teressede estabelecervínculos novos com o público urba- de que para cada problema, por dramático que fosse,existia uma respos'
ta definitiva no âmbito da cultura ordenadae definida, institucionaliza-
no, trabalhandodentro da relaçãoprodução-consumo,a
da de acordo com alguns princípios imutáveis,que respondiampela
música erudita teria muito que aprender com a popular: ordem natural das coisas'a
por exemplo, o uso da curta duração e da condensação,
propostas pela tevên. A entrevista explicita que essemate-

12. Umbérto Eco,"Experimentalismo y Vanguardia", la Dí#niçión delArte, 2. ed


101.História da À4z2siaPopttZàrBrasileira, fase. 30, pp. 7-8, debate com Augusto de Barcelona,Martúlez Roca,1972.
Campos. 13. Umberto Eco, (p. cff., p. 237.
11. Cf. a er\trevista citada de JÚHoMedaglia.
40 © TROPICÁLIA -.: ALEGORIA, ALEGRIA A MISTURA TROPICALISTA © 41

l Abalando a ideologia da comunicaçãodifundida no finamente cultural brasileiro"ió. A integração da música


a
l meio musical e no público, as inovações tropicalistas deslo- ..29pcontribuiu para ressaltar o
l caiam os modos de recepçãoe discussão musical, redimen- nQ.e.ramerciaLda-tEopicahsmo-e, ao mesmo tempo, co-l
l sionando a questão da partidpação política na música. mentar o aKêlÊg na cultura brasileira. O efeito p(p epal
' O tropicalismo também integrou elementos da músi- adequado para descrever os ÇQntrastes-culturais, enfati-
ca pop, então moda mundial. A integração se deu devido à zando as de$cQlttinuidadeS,o absurdo e o proxtinciartismo
preocupaçãocom o consumo e, acima de tudo, devido às da vida brasileira. O pop foi em grande parte responsável
possibilidades apresentadaspelo pop de, combinando-se pela vitalidade do tropicalismo, que, assim, distinguiu-se
com outros elementos, produzir efeitos artísticos de crítica da idealização estetizante que predominava na música
à músicabrasileiraió.Assina,não é adequadaa idéia de brasileira. Combinando o folclore urbano com uma con-
que o pop foi integrado apenas por decorrência de sua ir- cepção dessacralizadora de arte, o pop se adequou à ativi-
radiação intemacionalis. Esta questão não escapou aos dade desestetizada do tropicalismo.
tropicalistas,que discutiram os vários aspectosda impor- A adequação entre a estética pop e a tropicalista pode
tação cultural e sentiram a necessidade de se defender ser explicitada através da caracterizaçãode seusprocedi-
dela. Para além das detemünações do mercado, sua dis- mentos. Fundamentalmente, ambas trabalham com uma
cussãotinha outro objetivo: evidenciar os "muros do con- concepçãode objeto estéticoresultante da composiçãode
montagem cubista e efeito de dessacralização dadaísta.
Embora tomem temas e técnicas da indústria cultural
14. "Nós sentimos que o uso da guitarra não era um negócio puramente musical e
sim um novo tipo de comportamentop(p que vinha envolvendo o mundo des- como ponto de referência para a crítica, ambas os ultra-
de 1960. Decidimos incluir em nossas atividades musicais os elementos desse
passam esteticamente. O que aproxima as duas estéticas é
novo comportamento.Não usamos a guitarra simplesmentepara d\atear Elas
o fato de não desconheceremos problemas da imagem --
Regína,Edu Lobo ou qualquer um que pertencesseà ortodoxia musical brasi-
leira. Queríamos mudar as coisas" (depoimento de Rogério Duprat, MRnüete, objeto tanto da modernidade artística como da indústria
18.10.1975,
P. 79). culturali7. O p(p e o tropicalismo analisam a sociedade de
15. Discutindo a questão do influxo extemo na vida cultural brasileira, Robeito
Sdtwmz ressaltouas ambiguidades da integração do modems em seus trabalhos:
consumo e sua forçosainscriçãono circuito de arte. Ao
"Nota sobre Vanguarda e Confom\esmo", Teolü e Práfia, n. 2; e "Remarques sur ressaltarem a efemeridade de fatos e valores e a imediatez
[a cu]ture et ]a po]itique au Brési],1964-1969",1a Tanps À4odenKa,
n. 288,1970,in- dos projetos, maliciosamenteindicam diferenciaçõesno
tuído em O Pn{ de FnmíZÜ e Ozlfms Eshda, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, pp.
f 61 e ss.Para ele, o tr(picalismo seria lauto da combinação que, nos momentos de
domínio da indústria cultural, propícias à crítica. O cará-
l pise, sempre se tem !epeüdo no Brasil, entre "manifutações mais avançadasda
l integmção imperialista intemadonal e da ideologia bwguesa antiga mais ultra-
passada". C(mjugando elementos pertencentes a fases diferentes do desenvolvi- 16. Cf. as entrevistas de Caetano e Gil a Hamilton de Almeida, O Bozüítüo, n. 38 e
mento capitalista,as htalções míticasdo tropicalismo seriam vítimas de inúmeras 37,respectivamente,1972.
aalbígüidades, principalmente pelo seu compromisso com o mercado.Diz de que 17. Cf. J. G. Merquior, "Sentido e Problen\ado Pap-Pope Híper-realismo",For17ai-
'sobre o fundo ambíguo da modernização, o limite entre a satsibMdade e o opor' lis7noe Tradíçlü À4cüenn, Rio de Janeirc-SãoPaulo, Foratse Universitáxía-
turismo, eltb'e a crítica e a integração, permanece incerto' Edusp,1974.
42. TROPICÁLIA - ALEGORIA, ALEGRIA A MISTURA TROPICALISTA . 43

ter espectral do mundo dos objetos e gadgefsé desmontado Campos insistiu em esclarecer que os concretos não influí-
no caleidoscópio de imagens deformadas pela operação ram sobre os tropicalistas a ponto de detemünar os rumos
\ parodística e pelo humor. Desatualizadas, as imagens do grupo baiano. Houve colaboração,como no casodas
l passam a designar aquilo que ocultavam -- os arcaísmos cul- relaçõescom os músicos de vanguarda: um encontro de
l rurais - com o que a sua montagem resulta em alegoria. interesses e, portanto, reciprocidadetP. Caetano Veloso as-
' Nas sociedades dependentes o p(p encontra uma re- sim viu tal relação:
serva imensa de formas culturais, mimetizadas, mitifica-
O fato de eles terem despertado nosso interesse pra detemünadas
das e instrumentalizadas, próprias para sofrer a operação coisas deve ter, sem dúvida nenhuma, influenciado nosso trabalho, aju-
de desatualização.Os tropicalistastiraram partido dessa dado a gente a descobrir novas maneiras de colocar as fomtas que a gen-
possibiEdade:montaram uma cenacom essesmitos, cli- te tava querendo colocar. De uma forma ou de outra. com a experiência
chêse indefinições, constituindo-se em hipérbole do kitsch, que eles tinham, eles nos darearam o caminho e o trabalho deles nos li-
submetida à devoração crítica. Essa operação produziu o berou a imaginação pra detemünados jogos fomlais que talvez não ti-
véssemosousado. Mas a gente nunca perdeu a consciênciade que são
efeito cafona, num lance de humor, confomte a variante
campos diferentes [-.]. De certa fomta, muito do que a gente fez antes de
pooldo P(Pi8. conhecê-losjá era resultado de coisas que, gente como eles, eles pró-
Além disso,o tropicalismo tinha em comum com o prios, tinham feito. Indiretamente. Porque,diretamente, o que eu fiz foi
pop o interesse de ]21QbleHêtizâi..Q$..CQ muito maisprofundamente influenciado, toda aquelacoisade tropicália
!jDgyggÊ=Lê=!j!!êéjÊjg=êJjâlês..de
uma área determinada se fom\u[ou dentro de mim no dia em que eu vi Tma alz Transe.[-.] E
também o dnema de Godard me despertou um interesse muito grande,
da jt»aentude -- os tllljS[U$itáJáos..!;aíd©s, em grande parte,
me influenciou muito, mais do que Bob Dylan, mais do que os Beatles20
da.dêsse.naédia. O tropicalismo não fugiu à regra: não te-
matizou o popular; explorou os mitos urbanos. Assim, não é cornetoafinnar que os tropicalistas te-
Finalmente,não se pode deixar de examinar as relações. riam posto em prática o projeto dos concretos; antes, que
entre o tropicalismo e a poesia concreta, tanto no nível da estes reconheceram no trabalho dos tropicalistas coinci-
teorização e organização do movimento, como no nível dênciacom o trabalho que realizavamjá há uma década--
das letras das canções.Em diversas ocasiões,Augusto de o de revisão crítica da literatura e crítica literária brasilei- .
ra. Ambos os movimentos coincidiram no interesse de l
18. Mesmo as pesquisas de sonorização e vocalização empreendidas pelos tropica- operar na faixa do consumo e, ainda, na tentativa de criar l
listas não atingiram a intensidade expressiva dos sons trágicos e landnantes do estratégias culturais que se opusessem às das correntesl
Imrd rock.Convém lembrar, ainda, que a música tropicalista difere do teatro de
nacionalistas e populistas. '
rosé Censo,exatamente porque este fez el?ressíonümap@. O tropicalismo está
mais próximo da estéticadÕ lixo, herdeira do dadabmo. Entende-se,assim, a
exploraçãoda sensibilidadepela violência no teatro de JoséCelso,e a do hu-
mor na música tropicalista. Estadistinção é importante para discutir o valor 19. Cf. Augusto de Campos, q). dt, p. 286 e ss.; e também Hísfórãzdl .NlzbfcaPq)zl.
puramentecatártico do choqueobtido por violentaçãofbica e o valor descons- hr Brasileira,fase.30,p. 8.
trutor do estranhamente produzido pela prática tropicalista. 20. Cf. O Bondítüo,n. 38,p. 30.
44 . TROPICÁLIA - ALEGORIA, ALEGRIA A MISTURA TROPICALISTA . 45

Como se depreende da declaração de Caetano, antes O uso intencional de procedimentosconcretosencon-


de conhecerem a poesia concreta e Oswald de Andrade, tra-se multiplicado em músicas posteriores ao movimen-
os tropicalistas (pelo menos Caetano e Gil) tinham feito to tropicalista. Em .AcrílíHco e .4iáomqa, Caetano procede
músicas que delineavam o movimentozi. O contato fome.'l verba-voco-visualmente manifestando o gosto plástico das
ceu-lhes os argumentos e as informações de que ngcessi-l sonoridades. Mas é no LP .ATaCa.Azul que leva às últimas
tavam para fundamentar e des'envolver o seu projeto.J conseqüências o modo de fom\ar concreto, fazendo o
A análise das letras das canções tropicalistas indica mesmo, aliás, quanto às experimentações musicais. Neste
um emprego discreto dos procedimentos típicos da poe- disco,há um refluxo do experimentalismodo movimento
sia concreta(sintaxe não discursiva, verba-voco-visualida- tropicalista; alguns procedimentos são depurados e per-
de, concisão vocabular). Com exceção de Batmacumba, o manecem nos discos seguintes, outros desaparecem, como
que se pode encontrar são referênciasliterárias(citações se tivessem cumprido o seu percurso. As experimentações
de Oswald de Andrade e Décio Pignatari em GeZéía Geral), brutas, acúmulo de informações/ do peiíçldnhÊióiçQ, são
uso reiterado da paródia e preocupaçãocom a shtese -- agora submetidas a um prqeto de tratar rigorosamente o
elementos,de resto,provenientes da informação modema material vocabular e sonoro. Este disco representaparat
Caetano o esgotamento da necessidade experimental e a l
que os tropicalistas já possuíam, principalmente por via lite-
rária e dnematográfica. O disco Domingo, de Caetano e Gal, liberação definitiva para a "retomada da linha evolutiva". l
A partir daí Caetanopassaa dar ênfasecadavez maior à
compõe'-sede músicas de um lirismo sintético, sem os exces-
reinterpretação do lirismo tradicional, segundo o seu antigo
sos verbais das músicas da época. Augusto de Campos diz
critério de seleçãoda tradição, ao mesmo tempo que conti-
que os tropicalistas empregaram processosde composição nua a desenvolvero seu ]iiísmo da banalidadecotidiana.
próximos aos dos poetas concretos-- H@!agen:iJWtaposi- .4ruçáazzz/ é, sem dúvida, tropicália rwísífed. Não revista e
çã2.Éilela.e-explosiva de scüioüdâdgsvocabulmes= ampliada, mas retomada e clarificada2s.Os procedimentos
[-.] não por influência direta da poesia concreta,mas levados pelo impulso do tropicalismo nele estão como que analisados,distingui-
do seu pi6prio comportamento criativo dentro da música popular. E se [-.] dos, cifrados na música título: "Araçá Azul é sonho-segredo
parece haver uma "tropicaliança" com os concretos, o que existe não é fru- / é brinquedo/ o nome mais belo dó medo".
to de nenhum cantata ou convutção, mas simplesmente de uma natural Os fatos até agora levantados fazem entender que tro-
comunidade de interesse, pois eles estão praticando no largo campo do
picalismo e poesia concreta convergiam na intenção de
consumo uma ]uta anal(Ba à que travam os concretos, na faixa mais restrita
dos produtores, em prol de uma artebrasileira de invençãoz modemidade, de modo que a poesia concretatomou-se
referênciaobrigatória do movimento. Não vai muito além
disso a relação entre os dois projetos; no nível ideológico,
21. Cf. Bahnp (ü Bossa,p. 204. Caetano a Augusto de Campos: "Você sabe, eu
compus TropiáZÜ uma semana antes de ver O Rei da Ve&i,â primeira coisa que
eu conheci de Oswald". 23. Cf. a análise deste disco feita por Antonio Risério Filho: "0 Nome mais Belo do
22. Cf. Augusto de Campos, op. cít., p. 293. Medo", .ZUímsGern&,Suplemento Literário, 21.7.1973,pp. 4-5.
46. TROPICÁLIA - ALEGORIA, ALEGRIA A MISTURA TROPICALISTA . 47

são bastante diferentes. Inscrevendo-se na ideologia de- te, falaramda realidadea um nível p'etnlingíjíSti.'cu"sem:
senvolvimentista, o movimento concreto pode ser consi- fQTHa,revolucionária.nãp há ute.revolucionária". Os tro-
derado tributário de uma visão tecnocráticada cultura, picalistas,por não vincularem sua prática a nenhum es-
Bll
quanto à sua ambição de alcançar para o país a dimensão quemaprévio de figuração do momento político, trataram
contemporânea de linguagem, sintonizando-se com os o desenvolvimento, assim como a questão do engajamen-
centros internacionais produtores de arte. Os seus princí- to, como integrantes de suas produções. As contradições
HI
pios - ucionabzaçõoü ordeun e-&ltilidade.social'-- caracte- da realidadeforam articuladasnuma atividade que des-
rísticos das ideQIQgjasÇQnstrutiva$.ao mesmo tempo que construía a ideologia dos discursos sobre o Brasil. Dessa
se conectavam às aspirações de reforma e modemização forma, o que nos concretos era um fim em si mesmo -- a
do desenvolvimentismo,investiam uma vontade de saber
linguagem absolutizada -, nos tropicalistas não passavade
que, pondo em xeque a teoria e a prática da poesia de 45 e
ingrediente.Não hipertrofiando o valor dos procedimen-
revendo a crítica e a história literária brasileiras, provou
as insuficiências da intelectualidade literária. Os concretos tos, problematizaram a produção mesma.

não se eximiram do momento político, tentando, inclusi-


ve, figura-lo: o "salto conteudístico-participante" foi esta
tentativa. O seu trabalho mais significativo deu-se na críti-
ca e na tradução, marcando com ele sua posição na déca- Tropicatismo e antropofagia
da de 60, cobrando,de outros grupos, produções teóricas
e'artísticas que dessem conta de sua reahdadez4.
O fr(pícalisz7zo é zllm lzeo-alztr(po-
Embora convergindo com. os concretos no prqeto de .@#s'"
modemidade, os tropicalistas deles se distinguiram por
nãQ..pç11na!!eçereln..RgWegeLê94aliz:!çêQ eXçerlQ!.das .for- CAETANO VENOSO

Jna$. 1ntemacionalistas, os concretos trataram o desenvol-


vimento como uma positividade, passando por cima do
fato da dependência,só explorando as virtualidades da A atividade dos tropicalistas foi associadaà antropo-
forma. Este é o seu formalismo, com que, paradoxalmen- fagia oswaldiana pela crítica e por eles próprios, enquan-
to proposta cultural e maneira de integrar procedimentos
de vanguarda. A..tEQ11aMplátiçadB..devntaçãQ,pressu'
24. Para uma análise ideológica do prqeto concreto, consultar: Ronaldo Brita, "As posto simbólico da antropofagla, foram erigidas em.Êg11â-
Ideologias Construtivas nó Ambiente Cultural Brasileiro", em Aracy Amaral
@giahá.sigado. uabalha..de ra:isco-iadicaLda. produção
(org.), Pro/eloG)nsfmtíz,oBTRsíleiro
m Arte (1950-1962),Rio de Janeiro-São Pau-
lo, Museu de Arte Moderna-Pinacotecado Estado, 1977; Wilson Coutir\ho, 3ylt;y.r3Lempreendido pela intelectualidade dos anos60 e
'Poesia Concreta: As Ambigüidades da Ordem"i loc. cít.; e "Poesia pelas Bre- parte significativa de artistas.Frente ao clima de polariza-
chas",(l»2ínílió,191,2.7.1976.

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