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V . 12 N .

1 JA N / JUN 2 0 1 5 I S S N 2 1 7 9 - 6 4 8 3
devires, belo horizonte, v. 12, n. 1, p. 01-228, jan/jun 2015
periodicidade semestral – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
ORGANIZAÇÃO DOSSIÊ DOCUMENTÁRIO E CINEMA DE ARQUIVO Sabrina Sedlmayer (UFMG)
Anita Leandro Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa)
César Guimarães Stella Senra
Julia Fagioli Susana Dobal (UnB)
Suzana Reck Miranda (UFSCar)
CONSELHO EDITORIAL Sylvia Novaes (USP)
Alessandra Brandão​(UNISUL)​
Amaranta César​(UFRB)​ EDITORES
Ana Luíza Carvalho (UFRGS) Anna Karina Bartolomeu
Andréa França​(PUC-Rio)​ André Brasil
​Â​ngela Prysthon​ (UFPE)​ Cláudia Mesquita
Anita Leandro​(UFRJ) César Guimarães
Beatriz Furtado​(UFC)​ Carlos M. Camargos Mendonça
Cezar Migliorin​(UFF)​ Mateus Araújo
Consuelo Lins (UFRJ) Roberta Veiga
Cornélia Eckert (UFRGS) Ruben Caixeta de Queiroz
Cristina Melo Teixeira (UFPE)
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Denilson Lopes (UFRJ)
Bruno Martins
Eduardo de Jesus (​PUC-MG​)​
Carlos M. Camargos Mendonça
Eduardo Morettin ​(​USP​)
Eduardo Vargas (UFMG) EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Erick Felinto (​UERJ​)​ Thiago Rodrigues Lima
Erly Vieira Júnior (​UFES​)
Fernando Resende​(UFF)​ COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Henri Gervaiseau​(USP)​ Glaura Cardoso Vale
Ismail Xavier (USP) Julia Fagioli
Jair Tadeu da Fonseca (UFSC) Maria Ines Dieuzeide
Jean-Louis Comolli (Paris VIII) Thiago Rodrigues Lima
João Luiz Vieira (UFF)
José Benjamin Picado (UFBA) IMAGENS
Leandro Saraiva (UFSCAR) Apocalipse. La 2eme Guerre Mondiale (Isabelle Clarke e Daniel
Costelle, 2009) (pág. 12)
Márcio Serelle (PUC/MG) O fundo do ar é vermelho (Chris Marker, 1977/1993) (pág. 28)
Marcius Freire (Unicamp) A patriota (Alexander Kluge, 1979) (pág. 52, 56, 62)
Mariana Balta​r (UFF) Perro Negro – Histórias da Guerra Civil Espanhola (Péter Forgács,
Maurício Lissovsky (UFRJ) 2005) (pág. 118)
Maurício Vasconcelos (USP) The Halfmoon file (Philip Schefner, 2007) (pág. 138)
Fogo Inextinguível (Harun Farocki, 1969) (pág. 190)
Osmar Gonçalves​ (​​UFC)​
O que resta do tempo (Elia Suleiman, 2009) (pág. 202)
Patrícia Franca (UFMG)
Paulo Maia (​UFMG)
Phillipe Dubois (Paris III)
Phillipe Lourdou (Paris X) APOIO
Ramayana Lira​(UNISUL)​ Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência
Réda Bensmaïa (Brown University) FAFICH – UFMG
Regina Helena da Silva (UFMG)
Renato Athias (UFPE)
Ronaldo Noronha (UFMG)

Publicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH)


Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Programa de Pós-Graduação em Comunicação / Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3409-5050

D 495 DEVIRES – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas


Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
(Fafich) – v.12 n.1 (2015) –

Semestral
ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)

1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Filosofia. 5.


Fotografia. 6. História. 7. Letras. I. Universidade Federal de
Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Sumário

06 Apresentação
Anita Leandro, César Guimarães e Julia Fagioli

Dossiê Documentário e cinema de arquivo: Escritas da história no cinema


12 O destino singular das imagens de arquivo: contribuição para um debate, se
necessário, uma “querela”
Sylvie Lindeperg

28 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto da retomada em O fundo do ar é vermelho


Julia Fagioli
52 Kluge e os arquivos: uma contra-escrita da História
Leonardo Amaral
76 Notas sobre o uso poético dos arquivos históricos: Nuit et brouillard
Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
98 Como representar o irrepresentável? O Holocausto no cinema documentário
Rafael Valles
118 Fragmentos de guerra: estética e política em El Perro Negro, de Péter Forgács
Jamer Guterres de Melo
138 O atrativo dos planos encontrados
Christa Blumlinger

Farocki e os arquivos
164 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki
Amélie Bussy
188 “A máquina sempre quer algo de você”. Entrevista com Harun Farocki
Ednei de Genaro e Hermano Callou

Fora-de-campo
204 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman
Maria Inês Dieuzeide
226 Normas de publicação
Apresentação
O cinema documentário aparece cada vez mais no cenário
contemporâneo como um lugar de memória, no sentido que os
historiadores deram a esse termo, com Frances Yates ou Pierre
Nora. Arte da fala, o documentário é um espaço privilegiado
para o registro do testemunho, na medida em que, além de
uma narrativa histórica, ele também traz à tona os silêncios e
lacunas que habitam as lembranças do passado. Mas, sobretudo,
o documentário se apresenta no panorama atual como uma
encruzilhada do fluxo contínuo das fontes documentais, orais
e visuais existentes – textos, fotografias, registros radiofônicos,
imagens fílmicas e materiais audiovisuais de diferentes suportes,
reunidos na mesa de montagem para se escrever a história.
Para enfrentar a complexidade e o volume da produção visual
do século XX, século das imagens e da valorização dos arquivos,
o documentário aperfeiçoou a maior invenção do cinema,
a montagem. À experiência poética, ele aliou investigação
histórica, colocando-se ao lado dos historiadores em seu esforço
de entendimento do passado.
Com esse primeiro volume do dossiê “Documentário e
imagens de arquivo”, a revista Devires traz uma série de artigos
que retomam o debate sobre o alcance historiográfico do cinema.
Numa abordagem estética de filmes escolhidos, os textos aqui
reunidos mostram, nas entrelinhas, que a montagem é um modo
de escrita da história em adequação com uma hermenêutica do
documento. O cruzamento de fontes documentais, procedimento
habitual de pesquisa histórica, ao ser feito na montagem, dá
acesso à uma compreensão diferenciada dos acontecimentos.
Maio de 68, a guerra da Espanha, o genocídio dos judeus, todos
esses grandes dramas históricos, sobre os quais os historiadores já
escreveram tanto, passam a ser vistos sob um novo ângulo quando
os documentos de arquivos a eles relacionados são retomados pelo
documentário. É o que acontece nos filmes evocados nesse dossiê.
Uma micro-história aparece no plano de detalhe do documento
trabalhado na montagem ou no cruzamento da imagem de
arquivo com fontes orais, clareando pontos obscuros da macro
história. Essa potência historiográfica da montagem explica, em
parte, a “atração dos arquivos”, fenômeno atual, analisado por
Christa Blumlinger num artigo desse volume, e denominado, por

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outros autores, em textos anteriores, de “impulso arquivístico”
(Hal Foster, 2004) ou “furor de arquivo” (Suely Rolsnik, 2009).
Exploradas ao extremo pela indústria cultural, as imagens
existentes necessitam do contraponto de um cinema rigoroso no
tratamento das fontes visuais, de maneira a afirmar seu “estatuto
científico”, como propõe Sylvie Lindeperg na abertura desse
dossiê. De Alexander Kluge a Chris Marker, de Alain Resnais a
Peter Forgács, de Godard a Farocki, esse último, entrevistado nesse
número, todos os cineastas cujo gesto de retomada é analisado
nos artigos que se seguem, compartilham uma responsabilidade
política em relação às imagens do passado. Com esse primeiro
volume do dossiê, a Devires procura colocar-se à altura do debate
sobre os arquivos que suas obras suscitam.

Anita Leandro, César Guimarães e Julia Fagioli

8 APRESENTAÇÃO / ANITA LEANDRO, CÉSAR GUIMARÃES e JULIA FAGIOLI


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 6-9, JAN/JUN 2015 9
DOCUMEN
IMAGENS D
NTÁRIO E
DE ARQUIVO
ESCRITAS DA HISTÓRIA NO CINEMA
O destino singular das imagens
de arquivo: contribuição para um
debate, se necessário uma “querela”

Sylvie Lindeperg
Historiadora, professora na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 12-27, JAN/JUN 2015


14 O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg
“Eu acho um pouco excessiva a aversão do público atual
contra tudo o que é taxado de polêmico ou que aparenta
sê-lo. Parece se esquecer de quantas questões importantes
só puderam ser esclarecidas graças aos contraditores, e que
os homens não entrariam em acordo sobre o quer que seja
se não fossem alvos de querelas sobre nada. ‘Querela’ é,
com efeito, o termo do qual se serve a conveniência para 1. Gotthold Ephraim Lessing,
estigmatizar toda discussão. E provocar querelas se tornou Laocoon ou des frontières de
tão inconveniente que temos menos vergonha de maldizer la peinture et de la poésie,
ou de odiar do que de dar prosseguimento a uma querela”, préface d’Hubert Damish,
Paris, Éditions Hermann,
Lessing, 1769. 1 1990, réédition 2002, p. 201.


Se os arquivos audiovisuais são, cada vez mais, objeto de
um entusiasmo generalizado, coloca-se a questão das tensões e
contradições engendradas pelos usos diversificados. Estas imagens,
de fato, entraram pouco a pouco no campo dos historiadores, sem
ter, contudo, o estatuto dos arquivos escritos. Além disso, uma das
tendências dominantes da produção documentária mainstream se
baseia, há anos, na disjunção operada entre, de um lado, a história
dos acontecimentos, deixada aos profissionais da história, e, de
outro lado, a história das imagens, considerada como um domínio
reservado ao diretor. Nessa perspectiva, em geral, a única tarefa
dos historiadores é validar “a exatidão histórica”. No entanto, aos
maus usos de antes, as tecnologias digitais acrescentam uma nova
dimensão, facilitando manipulações como a colorização ou a
sonorização dos planos. Sylvie Lindeperg descreve certas práticas
dominantes do documentário histórico que relega a imagem de
arquivo à função de mercadoria e oferece algumas pistas em prol
de um “estatuto científico” dos arquivos audiovisuais.
Desde o final do século passado, e de maneira acelerada
nos últimos anos, as imagens de arquivo são objeto de todas as
atenções. Seu atrativo se manifesta nos domínios da pesquisa, do
ensino, da criação. Elas também são exploradas pelas indústrias
culturais, que as levam ao conhecimento de um grande público,
com um novo look, proporcionado pelos efeitos . Se podemos
nos alegrar com esse entusiasmo generalizado, convém tomar
consciência das tensões e contradições engendradas por essas
múltiplas utilizações.
Fontes incontornáveis para a História do amanhã, as
imagens filmadas não gozam de um estatuto equivalente ao dos
arquivos escritos. Se elas entram, pouco a pouco, no laboratório

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dos historiadores, seu lugar ali dentro permanece marginal. A
invenção tardia do cinema e do audiovisual, as especificidades
técnicas do seu arquivamento, seu valor mercadológico e as
questões jurídicas que suas imagens levantam, as colocam à
margem das regras em vigor para a conservação e a comunicação
dos arquivos. Sua integridade se encontra, por vezes, ameaçada,
o acesso a elas permanece desigual. Suas utilizações onerosas,
frequentemente proibitivas, freiam igualmente a experimentação
de formas inovadoras de escritura da história, no âmbito dos
dispositivos pedagógicos e científicos.
Por serem entrelaçadas e interdependentes, essas questões
necessitam de uma reflexão de fundo associando historiadores,
cineastas, pedagogos, produtores, juristas, arquivistas,
2. É todo o sentido do conservacionistas…2 Eu me contentaria em indicar, aqui, algumas
seminário “A quem
pistas sobre o “estatuto científico” dos arquivos audiovisuais e
pertencem as imagens?” e
do programa de pesquisa sobre algumas práticas dominantes do documentário histórico,
sobre os fundos de arquivos me apoiando em exemplos emblemáticos.
audiovisuais que eu
implementei (mis en oeuvre)
na Universidade Paris 1,
com Agnès Devictor e Ania
A imagem como vestígio/rastro: confrontar o inteligível à perda
Szczepanska, no quadro
no LabEx Création, Arts,
Patrimoines.
Negligenciadas pelos historiadores por muito tempo, as
imagens filmadas começam, aos poucos, a serem reconhecidas
como fontes preciosas. Elas clareiam os acontecimentos de
maneira sensível, renovam os pontos de vista sobre eles,
reabrem suas perspectivas; elas guardam os rostos e gestos
de mulheres e homens do passado, dão corpo aos ausentes da
história, trazem à luz fatos e temas esquecidos. As imagens
de arquivo são também os sintomas das mentalidades de
uma época, de suas maneiras de ver e de pensar, de formar
a opinião, de construir as memórias e fixar os imaginários.
Elas testemunham, ainda, sobre o papel de agentes da
história e vetores da memória exercido pelo cinema e pelo
audiovisual. É que as câmeras fizeram mais do que registrar
o mundo. Filmando-o, elas contribuíram para modificá-lo
profundamente, fazendo surgir novas formas de historicidade
e de eclosão de acontecimentos. Nesse sentido, levar em conta
os arquivos audiovisuais excede, em grande medida, o domínio
da história cultural; eles constituem um material precioso para
uma história social, política, mental, simbólica dos mundos
contemporâneos.

16 O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg


Se essa constatação traça o seu caminho na “comunidade
científica”, os contemporaneístas franceses ainda são, no entanto,
muito reticentes em reconhecer a importância das imagens na
escrita da história, em integrá-las em suas pesquisas e atividades
de ensino. Os especialistas em imagens filmadas são mantidos
na periferia dos departamentos de história. E se seus trabalhos
são ignorados por seus pares de maneira menos sistemática,
eles exercem seus magistérios fora da disciplina. Essa tomada
de consciência, tardia e lenta demais, freia o indispensável
desenvolvimento de um ensino teórico e metodológico sobre
essas fontes arquivísticas de um gênero particular, uma vez que a
interpretação dos arquivos filmados deve ser submetida a regras
rigorosas, dado o seu manuseio delicado.
Por sua capacidade de tornar visível um passado que não
existe mais, os arquivos audiovisuais estão na origem de numerosas
imposturas. Em L’absent de l’histoire, Michel de Certeau compara
a posição do historiador com a de Robinson Crusoé na costa de
sua ilha, descobrindo “o vestígio de um pé descalço impresso na
areia”: “O historiador percorre as bordas de seu presente; ele
visita essas praias nas quais o outro aparece apenas como rastro
do que passou. Ali, ele instala sua indústria. A partir de pegadas
definitivamente mudas (o que passou não retornará mais e a voz
está perdida para sempre), […] constrói-se uma mise-en-scène da
operação que confronta o inteligível a essa perda”.3 3. Michel de Certeau,
L’absent de l’histoire, Paris,
A imagem filmada tem um quociente de realidade maior Maison Mame, 1973, p. 8-9
[tradução nossa]
do que o documento escrito; ela parece, assim, limitar a perda
existente no âmago do trabalho histórico. A captação da máquina
cinematográfica, por parecer conservar ao mesmo tempo a
pegada e o pé, oferece um excedente de real que está na origem
de numerosas ilusões. A voz registrada não é mais exatamente a
mesma, mas ela já não está mais totalmente perdida. Esse efeito
de presença dá a sensação de que algo do que passou retorna; ele
pode ser, nesse sentido, uma armadilha que atrapalha o trabalho
necessário de interpretação. O aparelho de gravação suprime,
ao mesmo tempo, a distância estrutural entre o advento de um
fato e sua inscrição, modificando profundamente as condições de
escrita e de produção da história.
No final do século XIX, Charles Seignobos e Charles-
Victor Langlois, ao mesmo tempo em que estabeleciam as
bases do método histórico e fixavam as regras de expertise dos

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documentos de arquivos, advertiam seus contemporâneos de
que a História não poderia jamais almejar o estatuto de ciência,
por não provir, de maneira alguma, da observação. Na mesma
época, a invenção dos irmãos Lumière suscitava o entusiasmo de
alguns contemporâneos; ela acenava com o amanhecer de uma
nova era, na qual, graças às câmeras, o conhecimento do passado
se tornaria uma “ciência exata”. O crítico do Journal des débats
profetizava que as cátedras de história seriam, em breve, “todas
elas ocupadas por simples apresentadores de lanterna mágica”,
acrescentando que, assim, muitos erros seriam poupados às
futuras gerações. Ainda em 1898, o jornalista do Petit Moniteur
comparava essas imagens a “fatias de passado engarrafadas”,
que bastaria deixar envelhecer, “como os grandes vinhos, antes
4. Le Petit Moniteur, 9 de
junho de 1898; Le Journal de serem liberadas para o consumo”, a fim de fazer “reviver”
des débats, 11 de maio de os séculos transcorridos.4 As imagens não seriam vestígios por
1898 (textos reunidos em
Boleslas Matuszewski, Écrits interpretar, mas fatos enlatados; sua conservação permitiria às
cinématographiques. Une gerações futuras observá-los. A História e o real seriam restituídos
nouvelle source de l’histoire
e La Photographie animée,
em sua plenitude; a câmera seria uma “testemunha ocular
Edição organizada por verídica e infalível”; a evanescência do testemunho e as falhas da
Magdalena Mazaraki, Paris,
memória humana seriam combatidas pela exatidão da reprodução
AFRHC/La, Cinématheque
française, 2006). analógica.
A ideia segundo a qual os arquivos filmados gozam de um
5. Segundo os termos de estatuto de “prova absoluta”,5 oferecendo uma verdade blindada,
Boleslas Matuszewski, ibid.
incontestável e intangível, nunca perdeu sua atualidade. Ao longo
de todo o século XX, essa crença conviveu, não sem paradoxo,
com formas cada vez mais sofisticadas de manipulação das
imagens, amplificadas pelos desenvolvimentos da montagem
e pelo advento do cinema sonoro. Assim, cada época projetou
sobre as imagens do passado sua psiquê, seus sonhos e seus
fantasmas, mobilizou-as a serviço da propaganda, forçou o
seu sentido, solicitou-as, violentou-as sem limites. Os arquivos
filmados encontram-se, assim, presos entre dois perigos opostos:
o curto-circuito da interpretação frente à ilusão de um passado
que retorna; e o comentário sem controle que abusa das imagens,
transformando-as em superfícies de projeção que refletem as
questões e os olhares do tempo presente.
Frente a essa constatação, os historiadores precisam
lembrar que seu ofício é o de estabelecer as fontes e interpretar
os documentos – sejam eles escritos, filmados ou fotografados – a
fim de progredir no conhecimento dos fatos e na inteligência do

18 O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg


passado. Cabe a eles também redobrar o rigor para pensar, sob
um novo ângulo, a partilha entre visibilidade e legibilidade, em
jogo na imagem em movimento. Essa atenção exige uma cultura
do cinema e do audiovisual, um conhecimento das técnicas e
maneiras de filmar, uma reflexão sobre o contexto das tomadas
e suas relações com o extracampo. A imagem filmada, não custa
repetir, oferece apenas uma porção do real, transformada e
enquadrada; ela é a expressão de um ponto de vista e, ao mesmo
tempo, um documento sobre as maneiras de filmar, de apreender
o mundo, de lançar um olhar sobre seus contemporâneos.
Enquanto o reconhecimento dos arquivos audiovisuais
nos lugares de pesquisa e formação tarda a se impor, aumenta,
cada vez mais, o número de historiadores que coloca o seu saber
a serviço do cinema e da televisão. Há uma grande variedade
dessas colaborações, às vezes muito frutíferas: elas ocupam todo
o espectro que vai dos documentários de grande público às obras
mais experimentais do cinema de criação. Se não cabe aqui estudar
suas modalidades, certas práticas merecem ser examinadas com
atenção, na medida em que elas engajam a responsabilidade dos
historiadores.

Imagens violadas
Há muitos anos, uma das tendências dominantes da
produção documentária mainstream se baseia na disjunção
operada entre a história dos acontecimentos e a história das
imagens. A primeira justificaria o apelo aos profissionais da
História, a segunda seria domínio reservado do cineasta.
Nessa perspectiva, a única tarefa dos historiadores é validar
os desdobramentos da narrativa e a “exatidão histórica” dos
comentários, sem se preocupar com a maneira como as imagens
de arquivo são organizadas, trabalhadas, interpretadas ou com
a forma como sua historicidade, natureza e estatuto são levados
em conta ou não. Essa disjunção coloca um problema: pode-
se, seriamente, respeitar a “verdade histórica”, se a história
das imagens é totalmente falseada, seu sentido violado, suas
determinações técnicas e ideológicas ignoradas, negadas? A
divisão do trabalho em vigor nessas produções audiovisuais
lhes permite se beneficiarem do rótulo histórico; nesse sentido,
esse selo científico legitima práticas a-históricas que o saber

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 12-27, JAN/JUN 2015 19


sobre as imagens, em constante progressão, torna cada vez mais
discutíveis.
Vários filmes sobre os acontecimentos do século XX
conheceram uma era da inocência em que a leitura equivocada
das imagens precedeu o tempo da História. Os primeiros
documentários sobre os campos nazistas foram tributários de
um saber balbuciante e de um conhecimento bastante lacunar
sobre as fotografias e planos de arquivo. Eles foram realizados
em uma época em que as demandas sociais, simbólicas e
6. Sobre esse tema, ver Sylvie políticas dirigidas às imagens eram outras.6 Hoje, o horizonte
Lindeperg, Nuit et brouillard. de leitura desses arquivos fotográficos e fílmicos é bem
Un film dans l’histoire, Paris,
Odile Jacob, 2007. diferente. Utilizar um plano de ficção para mostrar a chegada
de um comboio de deportados judeus nos trilhos de Birkenau,
ou ilustrar sua espera diante da câmara de gás com fotografias
de execuções à bala, tiradas em 1941 nos territórios da antiga
União Soviética, trai, com conhecimento de causa, o sentido das
imagens, e falseia a compreensão do acontecimento. O saber
histórico estabelecido ao longo dos anos permitiu esclarecer
as etapas sucessivas do extermínio dos judeus e distinguir os
campos de concentração dos campos de extermínio, inclusive
em termos de imagens. A vontade de destruir os vestígios e de
tornar o judeicídio invisível foi objeto de inúmeras reflexões
e o problema esteve na origem da obra matricial de Claude
Lanzmann, Shoah (1985). Aquilo que os cineastas dos anos
1940 e 1950 não podiam saber nem compreender chegou,
assim, ao conhecimento de seus sucessores. O fato de alguns
deles retomarem essas práticas deve-se, doravante, a um
engano deliberado ou a uma ignorância imperdoável. Essa
desenvoltura é particularmente preocupante quando esses
mesmos cineastas pretendem transmitir a história e empunham
as imagens como provas.
Ora, as tecnologias digitais acrescentam uma nova
dimensão a esses antigos abusos, facilitando a colorização e a
7. Acrescenta-se a isso, há sonorização dos planos.7 Esse design new look dos arquivos, que
muito tempo, a mudança os submete às maneiras de ver do presente, coloca, portanto,
do formato de 4/3 ao 16/9
que mutila as imagens de um problema particular, quando quem se serve deles o faz em
arquivo. nome da verdade histórica. É o caso de Isabelle Clarke e Daniel
Costelle na série Apocalypse, sobre a qual convém retornar,
em razão de seus efeitos e de sua midiatização, tão extrema
quanto unívoca.

20 O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg


Todo e seu contrário 8. Apocalypse La Première
Guerre mondiale, série em
A campanha de marketing em torno do último opus sobre cinco episódios, escrita e
realizada por Isabelle Clarke
a Grande Guerra8 impôs, de fato, a ideia de que os debates sobre e Daniel Costelle, produzida
a colorização haviam terminado. Ela opôs, de forma caricatural, por CC&C Louis Vaudeville
e Ideacom Internacional
os “antigos” – guardiões ortodoxos do preto e branco – aos (Canada), com a participaçao
“modernos”, adeptos do progresso, convencidos das virtudes da France Télévisions e TV%
Quebec, Canada, 2014.
da colorização. Ela conseguiu transformar a colorização num
falso problema, mascarando questões cruciais vinculadas a essa 9. Que os produtores da série
prática. Torna-se ainda mais importante lembrar tudo isso, na se lancem numa estratégia
de marketing agressiva, isso
medida em que este frenesi midiático sem matizes9 e seu cortejo se explica, amplamente, pela
de superlativos tornaram inaudíveis as vozes dos que contestam necessidade de amortizar
as somas consideráveis
esses argumentos e apontam suas contradições.10 que investiram. Que mídias
parceiras, como France Info
Os realizadores e os produtores de Apocalypse apresentam ou Le Nouvel Observateur, os
a “colorização” como a “única solução” que permite “tocar” e imitem, é lamentável, porém
esperado. Que uma maioria
“sensibilizar” um vasto público e, particularmente os jovens
esmagadora da imprensa
espectadores, quanto à História. Ela seria, neste sentido, um mal retome, sem discernimento,
necessário, uma concessão feita a seus hábitos de consumo. Essa os “elementos de linguagem”
comunicados pela produção,
justificativa, ainda que peremptória e condescendente no que diz é mais preocupante. Daniel
respeito aos adolescentes, mereceria, sem dúvida, ser debatida Psenny, no Le Monde (13 de
março de 2014), afirma que
seriamente pelos pedagogos.11 Porém, o argumento do “mal o debate sobre a colorização
menor” é imediatamente contradito por uma segunda afirmação: terminou; ele acredita
convencer seus leitores das
a colorização seria um “must” tecnológico colocado a serviço da virtudes da colorização, ao
verdade. evocar Les Femmes et la
Grande Guerre, documentário
Já que os cinegrafistas viam a guerra em cores, explicam feito “à base em arquivos
totalmente colorizados”,
os cineastas, o digital viria “consertar os defeitos” das imagens em projetado em 8 de março de
preto e branco, corrigir suas deficiências técnicas, torná-las “mais 2014 no Élysée, por iniciativa
de Najat Vallaud-Belkacem.
verdadeiras”.12 Em nome de um discurso tecnicista, a ausência é Além do argumento da unção
transformada em “mutilação” e o real confundido com seu registro. do Élysée e do patrocínio
da ministra dos direitos das
Embora os cinegrafistas envolvidos nesse conflito vissem o mundo
mulheres não terem peso,
em cores, eles estavam perfeitamente conscientes de fotografá-lo eu me permito assinalar
em preto e branco. Por outro lado, quando utilizavam – muito que essa projeção, à qual
assisti com uma dezena de
raramente – uma película em cores, eles assumiam sua escolha historiadores, foi feita em
e respondiam por suas imagens diante dos espectadores. Foi o preto e branco. Quem muito
quer…
caso de John Ford, quando filmou a batalha de Midway (1942),
servindo-se das cores para construir um hino à nação americana. 10. Entre os recalcitrantes,
Em uma perfeita continuidade cromática, o cineasta brinca com citemos de mémória:
Georges Didi-Huberman,
o brilho do pôr do sol para clarear os marines em repouso, antes “En mettre plein les yeux
do combate decisivo; em seguida, ele os mostra içando a bandeira et rendre Apocalypse
irregardable”, Libération,
estrelada, com o vermelho que se ilumina e, por fim, conclui seu 21 septembre 2009; André
filme com um V de vitória, traçado em letra de sangue. Quando Gunthert em seu blog,

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 12-27, JAN/JUN 2015 21


«L’Atelier des icônes» (e, a equipe de Apocalypse. La seconde guerre mondiale coloriza
em particular, o post de 7
arbitrariamente os planos de O triunfo da vontade, ela contribui,
novembre 2011 “Apocalypse
ou la trouille de l’histoire”); por sua vez, com a produção de uma imagem falsa. Tendo
Sylvie Lindeperg (La Voie des colocado em cena o congresso do partido nazista de 1934, em
images. Quatre histoires de
tournages au printemps-été busca do melhor registro possível, que oferecesse ao público a
1944, Lagrasse, Verdier, 2013, plena amplitude do evento, Leni Riefenstahl teria preparado e
capítulo 1 e diálogo com Jean-
Louis Comolli); Laurent Veray, escolhido efeitos específicos se seu filme tivesse sido filmado em
Les Images d’archives face à Agfacolor.
l’histoire. De la conservation
à la création, Poitiers, A colorização sistemática impede, portanto, de pensar
Scérén-Cndp-Crdp, 2011 e,
mais recentemente, no site as diferenças entre a maioria dos filmes e tomadas do conflito
de Télérama (“Apocalypse, registrados em preto e branco e os planos, infinitamente menos
une modernisation de
l’histoire qui tourne à numerosos, filmados em cores. Ela tampouco permite distinguir
la manipulation”, texto as imagens filmadas por profissionais daquelas filmadas
publicado em 25 de março
de 2014).
por amadores – alemães e americanos – que podiam, então,
dispor de película em cores para suas pequenas câmeras. Em
11. Ver a argumentação Apocalypse Hitler (2011) a homogeneização da imagem pela cor
de André Gunthert, artigo
citado, blog “L’Atelier des elimina, artificialmente, a distância existente entre esses filmes
icônes”. amadores e os arquivos “oficiais”, e camufla seus estatutos e usos
distintos. Da mesma forma que os filmes de Leni Riefenstahl, os
12. Ver, especialmente, suas
palavras no bonus da caixa cinejornais do regime nazista foram rodados em preto e branco e
de DVD de Apocalypse. La projetados em sala de cinema; eles contribuíram para forjar um
Seconde Guerre mondiale,
France 2 Editions, 2009.
imaginário contemporâneo sobre os acontecimentos; eles agiram
Os dois realizadores são no presente da história. Pois se o mundo da Segunda Guerra
reincidentes, à propósito
das imagens da Grande
Mundial era colorido antes de sua “captação”, o universo mental,
Guerra, quando dizem que as representações do conflito, o imaginário coletivo de grandes
“o preto e branco é um tipo nações beligerantes foram transmitidos em preto e branco.
de amputação, uma vez que
a cor é a realidade”, palavras Durante o mesmo período, as imagens amadoras permaneceram
citadas por Daniel Psenny. restritas aos círculos familiares; elas não foram vistas pelos
espectadores. Dentre essas sequências, é preciso ainda distinguir
as visões do mundo da guerra filmadas por profissionais dos “filmes
de família”. Os realizadores de Apocalypse Hitler misturaram
indistintamente às visões oficiais do regime nazista, imagens de
pessoas próximas do Fuhrer; eles semearam a confusão entre
as esferas públicas e privadas, correndo o risco de alimentar o
velho clichê do homem ordinário emergindo dos restolhos de um
monstro. Não se trata, evidentemente, de censurar essas imagens
amadoras, nem de negar o interesse nelas; mas é preciso estar
consciente de seu manuseio delicado, inventar um dispositivo que
permita distingui-las e confrontá-las com os arquivos oficiais.

22 O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg


Os artifícios de uma “realidade aumentada”
A colorização de Apocalypse aboliu todas essas diferenças
de natureza e estatuto, impondo uma falsa continuidade visual
entre imagens concebidas de diferentes pontos de vista.13 Ela 13. Ver Georges Didi-
Huberman, “Des images pour
permite também a Isabelle Clarke e Daniel Costelle tornarem
ne pas voir”, artigo citado.
menos discernível o amálgama persistente que produziram
entre documentos de arquivo e planos de ficção, mantendo os
espectadores na ilusão de que todos os acontecimentos do passado
teriam sido filmados.14 14. Como a introdução,
em uma sequência sobre
O fato dessa uniformização das cores ser realizada, em Auschwitz, de um plano de
La Dernière Étape (1948),
Apocalypse – La Première Guerre mondiale, com a participação ficção de Wanda Jakubowska
de especialistas da história militar, não a torna nem mais sobre o campo de mulheres
de Birkenau (Apocalypse. La
verdadeira, nem mais aceitável; pode-se mesmo considerar que
Seconde Guerre mondiale)
essa colaboração agrava a impostura. Pois tais historiadores, ou, ainda, a utilização de
apresentados como garantia de autenticidade, asseguram aos imagens de ficção filmadas
por Léon Poirier em 1928
realizadores o certificado de que as cores adicionadas são as para seu filme Verdun, vision
“verdadeiras cores” do passado. Deixemos de lado o fato de que a d’histoire (Apocalypse. La
Première Guerre mondiale).
expertise desses historiadores dificilmente vai além dos acessórios
militares – armamentos, bandeiras, uniformes – e permanece
ineficaz para “reencontrar” as nuances de um céu de inverno, a
cor dos cabelos de um soldado ou dos olhos de uma transeunte;
felizmente, sua arbitragem não é mais soberana diante do sangue
vermelho de uma ferida, da carnação de um rosto mutilado ou
de um corpo desmembrado.15 O verdadeiro problema é que esses 15. Sobre as questões
éticas levantadas pela
consultores históricos, seja qual for a extensão do seu saber, não colorização dos cadáveres
conferem às imagens suas “verdadeiras cores”: eles as submetem em Apocalypse. La Seconde
aos artifícios de uma realidade aumentada. Essa colorização Guerre mondiale, poupando
os dos judeus por razões
“certificada conforme”, que se obstina a negar os aspectos técnicos bastante contingentes, ver
e a historicidade das eras do visível, apenas reanima a velha Sylvie Lindeperg, La Voie des
images, op.cit. p. 35.
ilusão de um passado recuperado em sua completude, ampliando
a confusão entre o acontecimento e o seu registro filmado. As
imagens do passado não são consideradas como testemunhos,
como pontos de vista sobre o mundo, mas como “a realidade
visível das coisas, a verdade da própria história na medida em
que aparece como evidência na tela”.16 16. François Niney, Le
Documentaire et ses
Essa verdade histórica que já nasce pronta da imagem faux-semblants, Klincksieck,
2009, p. 116.
confere, por sua vez, de maneira abusiva, a autoridade do que é
visto ao comentário e às escolhas narrativas questionáveis dos dois
realizadores. Como sublinha André Gunthert, “Costelle e Claeke
abrigam uma narração unívoca por trás do material documental,

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 12-27, JAN/JUN 2015 23


mobilizado, ao mesmo tempo, como ilustração e garantia do
relato. Este método, aparentemente inatacável, não é nada mais
17. André Gunthert, artigo do que uma ilusão redobrada, típica da história oficial”.17
citado.
Os consultores históricos de Apocalypse – La Première
Guerre mondiale são capturados em outra contradição do discurso
de marketing que apresenta a colorização como meio ideal para
“modernizar” o conflito, apresentando aos espectadores imagens
“mais próximas” deles. Como explica Isabelle Clarke, o objetivo
18. Comentários feitos por confesso deles é “se reaproximar dos telejornais atuais”.18 Essa
Daniel Psenny (artigo citado). visão conscientemente a-histórica exibe todos os sintomas do
Encontramos a estética do JT
até na maneira de inscrever “presentismo”: ela nivela a distância temporal em relação ao
nas imagens o nome das passado, abole as distâncias e suprime as articulações. O passado
personalidades da época,
como Nicolas II, Georges V ou revisitado pelos realizadores de Apocalypse se vê obrigado a retornar
Guillaume II. a um presente inteiramente dilatado, cujos julgamentos morais,
maneiras de ver, de “ressentir”, de tornar sensível eles assumem;
um “presente maciço, invasivo, onipresente, que não possui outro
horizonte além de si próprio e que fabrica cotidianamente o passado
19. François Hartog, Régimes e o futuro de que necessita, dia após dia”.19
d’historicité. Présentisme et
expériences du temps, Paris, Assim, “modernizadas”, as duas Guerras Mundiais,
Le Seuil, 2003, p. 200.
tratadas por Isabelle Clarke e Daniel Costelle, comentadas pela
voz de Mathieu Kassovitz, submetidas à concepção gráfica da
“marca” Apocalypse, apresentam o mesmo rosto esticado pela
plástica das técnicas digitais. Cada episódio propõe ao espectador
um mergulho livre na imagem e no som, uma montagem agitada
e veloz que pulveriza a duração dos planos, uma visão do passado
governada apenas pela solicitação dos afetos e sentidos. E como
já se anuncia, com Stálin e a Guerra Fria, novas temporadas sob a
franquia “Apocalypse”, é de se esperar que todos os acontecimentos
do século XX, temerosamente revisitados por Clarke e Costelle,
sejam em breve submetidos à mesma visão escatológica da
História que renova o fatalismo dos povos diante da catástrofe,
nutre o terror impotente das vítimas diante da “loucura dos
tiranos”, em vez de tentar esclarecer as múltiplas causas de suas
tomadas de poder, em vez de despertar a inteligência crítica do
cidadão diante da História, de armar o olhar do espectador diante
da imagem.
São essas as obrigações de um serviço público que
respeita sua audiência. E pode-se considerar como fator
agravante que a série Apocalypse seja coproduzida pela France

24 O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg


Télévisions, financiada com dinheiro das taxas pagas por quem
tem televisão em casa. É ainda mais grave se pensarmos que
essa série interfere no ensino secundário (alguns professores de
escolas e liceus utilizam esses arquivos manipulados em aulas)
e no campo da conservação dos arquivos. O Institut national
de l’audiovisuel (Ina) não tem, ele mesmo, planos de criar um
serviço de colorização permitindo rentabilizar seus fundos e
vender imagens embelezadas? Aceitar-se-ia, sem debate, que o
Banco da França abrisse um escritório especializado em moeda
falsa ou que os Arquivos Nacionais começassem a retocar os
documentos sob sua responsabilidade, a fim de torná-los mais
atraentes? Essas diferenças mostram o nível do tratamento
singular reservado aos arquivos filmados, submetidos a uma
imprecisão jurídica persistente, relegados ao triste destino
de mercadorias, sobre as quais bastaria pagar os direitos
patrimoniais para se ver livre das servidões históricas e morais
que a utilização delas requer.

Por uma reflexão ética sobre o maltrato das imagens


A servidão dos arquivos filmados às leis atreladas do
comércio e do espetáculo não vai se limitar à colorização, uma
vez que as inovações técnicas oferecerão efeitos de real cada vez
mais “impressionantes”.20 Depois das fotografias em relevo, as 20. Para retomar uma das
pesquisas acústicas permitirão, em breve, recriar a voz de grandes expressões recorrentes da
campanha de marketing.
personagens do passado e fazê-los falar, partindo de documentos Nota do tradutor: no
mudos. Podemos apostar que conselheiros históricos serão, original, “époustouflants”,
termo utilizado na
mais uma vez, consultados, a fim de validar a textura da voz de linguagem comercial e
Rasputin ou do imperador Guilherme II. publicitária francesa,
para caracterizar, com
Se as técnicas digitais facilitam a metamorfose sem afetação, algo considerado
“impressionante”.
limite das marcas do passado, elas não deveriam suscitar uma
reflexão ética equivalente àquela que acompanha o progresso
da medicina? Se os avanços tecnológicos não podem ser postos
em causa nem, obviamente, proscritos21, os historiadores não 21. Sobre o assunto, ver
Sylvie Lindeperg, La Voie des
teriam a responsabilidade de apontar seus efeitos perversos, images, op.cit, p. 32-33.
de mascaramento da verdade histórica? O concerto midiático
empobrecedor orquestrado em torno de Apocalypse pretende
fazer de seu sucesso público um argumento de autoridade, que
o imporia como a receita de documentários do horário nobre, “a
única solução” para alcançar o “grande público”. É fazer pouco

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 12-27, JAN/JUN 2015 25


22. Daniel Costelle e caso dos realizadores – ainda existe, desses – que se destinam à
Isabelle Clarke atuam,
uma grande audiência com invenção formal e exigência, certos
permanentemente, em
todas as frentes – história, de que a conquista do público não pode ser obtida por meio do
pedagogia, edificação maltrato das imagens, desprezando a História.22
moral, “dever de memória”
– sem nenhuma crise de
Encorajar a diversidade, promover outros modos de
consciência ou receio de
contradição. Eles parecem fazer, discutir publicamente os usos dos arquivos fílmicos são
tão aptos a evocar a verdade necessidades ardentes. Elas levantam questões eminentemente
histórica (“Aqui está a
verdadeira história da políticas; elas engajam o futuro; elas prefiguram as condições de
Segunda Guerra Mundial”, escritura da História de amanhã.
afirmam sem pestanejar
na abertura da primeira
temporada de Apocalypse...)
quanto a se servir da licença
poética e da liberdade de
criação, quando precisam
justificar suas escolhas
narrativas.
Tradução de Julia Fagioli e Pedro Veras, revisada por Anita Leandro

26 O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg


DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 12-27, JAN/JUN 2015 27
O cinema de Chris Marker e o
duplo gesto de retomada em O
fundo do ar é vermelho

Julia Fagioli
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Minas Gerais, da linha de pesquisa Pragmáticas da Imagem, sob
orientação do Prof. André Brasil. É mestre pela mesma instituição.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015


Resumo: O que propomos neste artigo é uma comparação entre as duas versões do
filme O fundo do ar é vermelho (Chris Marker, 1977/1993), de modo a investigar as
diferenças entre as duas montagens e, ainda, se há, de uma à outra, uma mudança
de perspectiva. Para realizar essa análise, será imprescindível refletir sobre o
trabalho de montagem de Marker, característica essencial do seu cinema.
Palavras-chave: Montagem. O fundo do ar é vermelho. Retomada.

Abstract: What we propose in this article is a comparison between two versions of


the film A grin without a cat (Chris Marker, 1977/1993) in order to investigate the
differences between the two montages, and also if there is a change in perspective.
For this analysis, it will be essential to reflect on Marker’s work with montage as a
hallmark of his cinema.
Keywords: Montage. A grin without a cat. Retake.

Résumé: Nous procédons dans cet article à une comparaison entre les deux
versions du film Le fond de l’air est rouge (Chris Marker, 1977/1993), en vérifiant
les différences entre les deux montages, et l’éventuel changement de perspective
du cinéaste par rapport à l’histoire. Pour effectuer cette analyse, il sera essentiel de
réfléchir sur le travail de montage de Marker, marque de son cinéma.
Mots-clés: Montage. Le fond de l’air est rouge. Reprise.

30 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


Introdução
O trabalho de montagem de Chris Marker é a característica
mais marcante do seu cinema. É através da articulação entre
imagens e textos que ele desenvolvia os argumentos de seus
filmes. Em O fundo do ar é vermelho (Chris Marker, 1977/1993),
podemos perceber de forma particular esse gesto de Marker,
primeiro, pois há uma densa reflexão sobre os anos 1960 e 1970.
Ao retomar essas imagens, em 1993, ele mostra que as questões
políticas são uma preocupação permanente em sua obra. Sobre
sua relação com a história e a política, em uma de suas raras
entrevistas, Chris Marker afirma:

Muita gente acha que “engajado” significa “político”, e 1. No original: “Pour


a política, a arte do compromisso (como lhe é atribuído, beaucoup de gens, «engagé»
porque, se não há compromisso, existe apenas a força bruta, veut dire «politique»,
et la politique, art du
da qual temos tantos exemplos atualmente), me entedia
compromis (ce qui est tout
profundamente. O que me interessa é a História, e a política à son honneur, hors du
me interessa apenas na medida em que carrega a marca da compromis il n’y a que les
história no presente. Com uma curiosidade obsessiva (que eu rapports de force brute, on
identifico à de alguns dos personagens de Kipling, o elephant- en voit quelque chose en
boy de “Just-so stories”, por sua curiosidade insaciável): ce moment...), m’ennuie
indago como as pessoas conseguem viver em um mundo como profondément. Ce qui me
este? E vem daí a minha mania de perceber “como as coisas passionne, c’est l’Histoire,
et la politique m’intéresse
são”, neste lugar ou naquele.1
seulement dans la mesure
où elle est la coupe de
l’Histoire dans le présent.
Avec une curiosité récurrente
Ao montar um filme como O fundo do ar é vermelho, Chris (si je m’identifie à un
Marker deixa claro esse entendimento da política como “marca personnage de Kipling, c’est
l’enfant-d’éléphant des Just
da história no presente”. O diretor retoma imagens da história,
so stories, à cause de son
mais especificamente aquelas referentes aos movimentos sociais «insatiable curiosité») : mais
dos anos 1960 e 1970, não simplesmente para uma reconstrução comment font les gens pour
vivre dans un monde pareil
factual dos acontecimentos da época, mas para uma análise de D’où ma manie d’aller voir
um contexto social e político, a partir das imagens, visando não «comment ça se passe» ici
ou là”. Trecho de entrevista
só o passado, mas o próprio presente. com Chris Marker, disponível
em: http://next.liberation.
O filme, sabemos, possui duas versões. Uma primeira fr/cinema/2003/03/05/
montagem, de 1977, com quatro horas de duração, foi realizada rare-marker_457649 (DATA
DE ACESSO)
logo após um período de militância mais intensa, em que Marker
elabora uma espécie de balanço, uma reflexão em retrospecto
de tudo o que se passou, como, por exemplo, os movimentos
estudantis dos anos 1960, a organização do movimento operário
e dos partidos comunistas e a guerra do Vietnã. Porém, num
gesto de retomada, ou de repetição, quinze anos depois, Marker

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 31


remonta o filme e chega a uma segunda versão, com três horas
de duração. Uma comparação entre as duas versões do filme não
apenas mostra que há diferenças nas imagens e na montagem,
mas revela, também, uma mudança de perspectiva do montador,
uma mudança de tom do argumento central. Trata-se de um gesto
significativo na obra do diretor, pois o filme de 1977 remete a
um ciclo de sua carreira que muitos já acreditavam fechado. A
retomada da montagem, em 1993, desmistifica a separação
completa entre o cinema militante e o cinema ensaístico de
Chris Marker. Por isso, buscamos analisar mais detalhadamente
as semelhanças e diferenças entre as duas versões, levando em
consideração os acontecimentos históricos e os outros filmes de
Marker produzidos nesse intervalo, sendo essencial para realizar
esta análise compreender a importância da montagem em sua
obra, de modo geral.
O que podemos perceber ao comparar as duas montagens
de O fundo do ar é vermelho é que há mudanças pontuais, no
entanto significativas e reveladoras. Para comparar as duas
versões, foi preciso ver os dois filmes simultaneamente. Quando
havia diferenças, o filme mais recente foi pausado e, em todos os
casos, o filme de 77, mesmo com 60 minutos a mais, alcançava a
imagem congelada do filme de 93, de modo que o encadeamento
dos acontecimentos na montagem foi respeitado. Há um eixo
fílmico e uma organização lógica das imagens dos acontecimentos
que estão nas duas versões do filme. Ao longo da comparação,
percebemos que, apesar das diferenças entre as duas versões, há
uma forma de organizar os acontecimentos e os temas tratados
que é mantida. Além da divisão em duas partes, há uma outra
divisão temática, bem mais sutil, em blocos temáticos. Dentro dos
blocos é que detectamos as principais diferenças entre as duas
montagens, como veremos adiante com mais detalhe.
Em O fundo do ar é vermelho a reconfiguração do sentido
não recorre apenas a uma estratégia ou a um procedimento de
montagem, mas se realiza por meio de diferentes formas de associar
as imagens, tais como operações dialetizantes, serializações,
analogias, mimeses de gesto, associações entre arquivos de
imagens e de áudio. Assim, ao longo do filme – nas duas versões
– os efeitos produzidos pela montagem são diversos e complexos.
Por essa razão, a memória evocada no filme permanece aberta e
seu significado se altera à medida que as imagens são organizadas

32 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


de uma maneira ou de outra. Ao longo da comparação entre as
versões será possível compreender melhor como o diretor realiza
esses gestos e as implicações sensíveis produzidas por eles.

O gesto de montagem de Chris Marker
O fundo do ar é vermelho, de Chris Marker, além de um
gesto expressivo de montagem, é um filme exemplar de como a
temática da revolução atravessa a obra do diretor, pela riqueza
de materiais de arquivo reunidos e também pelo fato de que foi
montado em 1977, com quatro horas de duração e remontado em
1993, com três horas. Trata-se de um filme, com duas versões, que
mostra enfaticamente o caráter militante do cinema de Marker
e a importância do seu trabalho de montagem dos arquivos,
retomado no filme de 1993, quando reinicia um processo reflexivo
em relação às imagens, aos contextos em que foram produzidas
e como devem ser articuladas. Nas duas versões, mantém-se
a divisão em dois blocos: As mãos frágeis e Mãos cortadas. O
primeiro bloco tem como ponto de partida a guerra do Vietnã e
trata do surgimento e fortalecimento do socialismo. Já o segundo
bloco, parte da primavera de Praga para abordar o declínio do
socialismo ao redor do mundo.
O intervalo de 15 anos entre as duas versões incitou-nos
a analisar as diferenças entre as duas montagens e, ainda, buscar
indícios na obra de Chris Marker – tanto nos filmes anteriores a
1977, como naqueles realizados entre 77 e 93 – que pudessem
sugerir o porquê de se retornar às imagens e, por meio da
remontagem, lançar sobre elas um novo olhar. Para Catherine
Lupton (2005), Marker dá o tom do filme movido por aquilo
que tomava como uma amnésia histórica em relação ao período,
causada, principalmente, pelo tratamento dado pela televisão
ao tema, quando os ideais são substituídos por um relato frio –
pretensamente neutro – dos fatos. Ao contrário, o filme consiste
em um processo contínuo de recontextualização e reinterpretação
dos fatos (tomados em seu inacabamento) através da montagem
e do comentário.
O trabalho de montagem de Marker toma um
acontecimento passado e cria uma abertura para esse inacabamento
da história. A primeira versão do filme O fundo do ar é vermelho foi
realizada em 1977, logo após o momento de maior engajamento

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 33


2. Rhodiaceta é uma político de Marker. Em 1967, ele realiza Longe do Vietnã, com o
sociedade industrial têxtil
coletivo SLON (sociedade para o lançamento de novas obras) e
fundada em 1922 na França.
Após o início da greve na Até logo, eu espero, filme sobre a greve de um mês na fábrica de
sede em Lyon, os operários Rhodiaceta,2 na cidade de Besançon, na França. Em 1968, finaliza
de Besançon também iniciam
uma paralização. O filme “Até A sexta face do pentágono, sobre uma manifestação de estudantes
logo, eu espero” foi realizado em Washington contra a Guerra do Vietnã, além dos Cinetrácts.3
a pedido dos próprios
trabalhadores. Tratava-se Em 1969 cria, junto com o coletivo Groupes Medvedkine, Classe
de uma greve de caráter de lute, um filme panfleto sobre a luta operária. No início dos anos
original: ela teve duração de
um mês, a fábrica foi ocupada 1970, lança a série On vous parle de com filmes sobre Paris, Praga,
pelos operários, as ideias Brasil, Chile e Cuba.
eram inovadoras, no sentido
de que não se tratava apenas Após toda essa produção do final dos anos 1960 e início
do aumento do salário, mas
de um desequilíbrio ligado às dos anos 1970, Marker dispunha de um vasto repertório de
condições de trabalho. imagens sobre os movimentos sociais e sobre o comunismo ao
redor do mundo. O diretor recolhe então esse material, junto a
3. Os Cinetrácts são uma outras fontes de imagens de arquivo, e monta O fundo do ar é
série de 41 documentários
curtos – eles têm entre dois e vermelho. Os filmes citados acima possuem um caráter de urgência
quarto minutos – realizados política, de intervenção no momento em que são feitos, e tratam
por diretores franceses tais
como Chris Marker e Jean-Luc de cada um dos acontecimentos de forma bem específica. Em O
Godard em 1968. Os filmes fundo do ar é vermelho, Marker coloca esses acontecimentos em
tinham um cunho político
de esquerda, eram como
relação, criando uma reflexão mais densa e sofisticada sobre o
panfletos revolucionários. assunto.
A primeira versão possui uma hora a mais de imagens,
porém, ao remontá-la em 1993, Marker mantém a estrutura do
filme, composto de duas partes, conforme já mencionado: Mãos
frágeis e Mãos cortadas. De maneira geral, podemos afirmar que,
além dos 60 minutos a mais de imagens na primeira versão, a
diferença mais marcante está nos comentários. Na segunda
versão, os comentários possuem um caráter mais analítico e
reflexivo, funcionando como um argumento que vai sendo
construído ao longo de todo o filme. Já a primeira versão, possui
um volume maior de imagens, porém, não nos parece que há um
desejo de explicá-las o seu excesso, em alguns momentos, torna a
compreensão dos acontecimentos filmados um pouco mais difusa.
Tal fato pode ser associado justamente à proximidade do período
mais fortemente militante da carreira de Marker ao montar a
primeira versão.
A produção de uma imagem em meio a uma revolução,
ou em meio a uma situação de luta política, pode separá-la de
sua compreensão: só a montagem e um olhar reflexivo sobre as

34 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


imagens associadas permitem seu entendimento mais amplo. Ao
desenvolver uma reflexão sobre as imagens de arquivo, Sylvie
Lindeperg (2010) ressalta a importância da experiência a partir
da qual são produzidas. Para a autora, é preciso nos atentar a
dois momentos distintos e essenciais do cinema de arquivos:
uma tomada e uma retomada. Lindeperg considera a montagem
dos arquivos como uma “retomada”, mas chama atenção para a
importância da “tomada”, a saber, o olhar de quem a produziu.
Teríamos então, uma dupla operação: uma primeira legibilidade
(a tomada), que está na gênese da imagem; momento da captura,
em que se define um enquadramento, um campo e um fora de
campo. A segunda legibilidade, portanto, será dada na e pela
montagem.
A autora afirma ainda, que uma imagem se torna arquivo
a partir da forma como é utilizada e recontextualizada. Tomando
essas formulações como base, acreditamos que há, na remontagem
de O fundo do ar é vermelho, um duplo gesto de retomada das
imagens do filme. O primeiro deles, em 1977, diz respeito a uma
retomada das imagens de arquivos de outros cineastas e de outros
filmes realizados por Marker, após anos de militância intensa, de
trabalho com os coletivos, como os Groupes Medvedkine, o que
se reflete na primeira montagem como o ponto de vista de um
cineasta militante. A escolha das imagens nos permite perceber a
urgência da montagem, pois naquele momento, era preciso olhar
para aquelas imagens, mesmo que não fosse possível – tanto para
o diretor como para o espectador – compreendê-las totalmente.
Já na segunda retomada, quinze anos depois, é claro que há uma
primeira legibilidade – a da tomada – que permanece, porém,
trata-se de voltar a um filme montado quinze anos antes e lançar
a ele uma nova reflexão e não necessariamente voltar ao banco
de imagens (muito mais amplo), que foi consultado na primeira
montagem.
No intervalo entre as duas versões, o diretor realiza Sem
Sol, em 1983, filme considerado como um retorno ao cinema
pessoal, sem, no entanto, abandonar o viés político. Nele, o diretor
apresenta uma reflexão sobre a história e o tempo por meio da
montagem de imagens de arquivo e de uma narração de cartas
ficcionais escritas por um cinegrafista viajante. A montagem do
filme funciona como a organização de uma consciência coletiva,
privilegiando as relações entre a memória e a história: “Como em

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 35


4. No original: “Like Le O fundo do ar é vermelho, Sem sol está preocupado com as tensões
fond de l’air est rouge,
entre a memória cultural oficial e os eventos e experiências
Sunless is preoccupied
with the tensions between históricas que são diariamente reprimidas e negadas” (LUPTON,
official cultural memory and 2005: 159).4
those historical events and
experiences that it routinely
Outro trabalho marcante desse intervalo é Elegia a
represses and denies”
(LUPTON, 2005, p. 159). Alexandre (Chris Marker, 1992), realizado um ano antes da
remontagem de O fundo do ar é vermelho, em que Marker conta a
história de Alexandre Medvedkine – cineasta russo que inspirou
a denominação dos Groupes Medvedkine. Assim como Sem sol,
o filme possui um caráter ensaístico, pois seu argumento é
construído através de cartas de Marker a Medvedkine, que ele diz
ter escrito sem nunca entregar. Além disso, os dois cineastas eram
amigos e a motivação para o filme, neste momento, foi a morte
de Alexandre Medvedkine em 1989, o que reforça o tom pessoal
do filme. Por outro lado, em boa parte do filme são utilizadas
imagens dos filmes de Medvedkine e, o fato de que ele era um
cineasta militante (e nesse sentido uma fonte de inspiração a
Marker), faz com que Elegia a Alexandre ganhe um viés histórico
e político. Através das cartas, Marker faz um apanhado da história
da Rússia, bem como do cinema soviético.
Há referências a outros cineastas russos, como Dziga
Vertov e Sergei Eisenstein. Assim como em O fundo do ar é
vermelho, Marker retoma imagens de O encouraçado Potemkin,
mais especificamente aquelas da escadaria de Odessa, e as
articula com imagens mais atuais do local. Assim, Elegia a
Alexandre aparece como um indicativo do desejo de Marker de
retornar a esse período de militância dos anos 1960 e 1970,
porém, acrescentando ao filme essa inflexão mais pessoal do
comentário, presente na versão de 1993. Acreditamos que
esses filmes, produzidos no intervalo entre as duas montagens,
oferecem indícios de uma mudança de perspectiva de Marker
para além daquelas que estão explícitas nas alterações feitas na
montagem.

Mãos frágeis
As primeiras imagens em ambas versões são de O
Encouraçado Potemkin (Sergei Eseinstein, 1925), em referência
inicial ao comunismo, em que Marker indica, alternando
imagens, o contexto dos anos 1960, período que tratará mais

36 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


frontalmente. Existem algumas subdivisões do filme, que
acontecem de forma sutil, e que interpretamos como blocos
temáticos, pois todas elas são encadeadas pelos argumentos
do diretor. Os temas tratados nos blocos são os mesmos nas
duas montagens, o que muda, de fato, é a forma de abordá-
los. Num primeiro bloco temático, Marker toma a guerra do
Vietnã como ponto de partida para diversas manifestações pela
paz ao redor do mundo, sugerindo como isso impulsionou a
organização do movimento estudantil e o fortalecimento dos
partidos comunistas.
Nesse bloco surge uma das primeiras diferenças mais
marcantes entre as duas versões: após mostrar uma fala de Daniel
Cohn-Bendit – um dos líderes do movimento estudantil na França
– Marker monta uma sequência de imagens de Marchas militares
em La Paz, na Bolívia, em junho de 1967. A narração é descritiva,
com referências a Fidel Castro. Nas duas versões há imagens 5. No original: “Sur les murs
do livro de Régis Debray e de estudantes em bibliotecas, em de La Paz, en juin 67, on
referência ao movimento estudantil. Na primeira versão, temos, a voyait des “Viva Fidel”, des
faucilles et des marteaux,
princípio, um comentário de Chris Marker, em que diz: et aussi des affiches qui
réclamaient la mort pour
un nommé Régis Debray,
emprisionné pous ses
Sobre os muros de La Paz, em junho de 67, vimos os “Viva rapports avec la guérrilla
Fidel”, as foices e martelos e, também, os cartazes que dont on savait qu’il étaient
exigiam a morte de Régis Debray, preso por suas relações com philosophe, et qu’il avait
a guerrilha, que todos sabiam ser um filósofo e que acabara de écrit un livre publié chez
escrever um livro publicado pela editora Maspero, Revolução Maspero, Révolution dans la
na revolução?”. (MARKER, 1978, p. 38-39)5 révolution?” (MARKER, 1978,
p. 38-39)

6. No original: “Je ne pense


Logo em seguida, a voz é de François Maspero, que diz: pas que les bouquins que je
publie soient bons. Ça serait
formidable si on ne publiait
que des bons bouquins. Je ne
Eu não penso que os livros que eu publico sejam bons. Seria serais pas du tout l’éditeur
formidável se publicássemos bons livros. Eu não seria o editor que je suis, je serais un
que eu sou, eu seria um instituto de estudos marxistas, que institut d’études marxistes
definiria todos os conceitos, cientificamente e teoricamente e qui définirait tous les
que, uma vez definidos os conceitos, os utilizaria nesses livros concepts, scientifiquement
que seriam uma perfeição e que te diga que não será mais et théoriquement, et qui, une
necessário ter o livro para que a revolução aconteça... seria fois tout les concepts définis,
maravilhoso!”. (MARKER, 1978, p. 39)6 les utiliserait dans des livres
qui seraient une perfection
que je te dis qu’il n’y aurait
plus qu’à sortir le livre
pour que la révolution soit
As imagens são as mesmas, porém, na montagem de 93 faite... ce serait merveilleux!
nos deparamos com outra narração de Marker: (MARKER, 1978, p. 39).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 37


Dez anos depois, Daniel Cohn-Bendit diria sobre esse passado:
“Era a revolta estudantil. Utopias revolucionárias às quais
nenhuma chance poderia ser dada nesses países”. Nunca
esqueceremos como começou esse carrossel da morte. O
atentado contra Rudi para os alemães. Para os franceses a
condenação de Régis Debray na Bolívia. Eu estava lá. Vi os
Viva Fidel nos muros de La Paz, foices e martelos e também
cartazes pedindo a morte desse jovem filósofo teórico da
guerrilha que publicara um livro intitulado Revolução na
Revolução? Quase a mesma frase que Rudi. Esse livro cuja
inspiração era atribuída a Fidel Castro circulou tanto por
acampamentos quanto pelas livrarias europeias onde se
reunia a literatura da nova esquerda e onde uma geração ia
alimentar a sua fé revolucionária. Atenção, dizia Maspero.
Ler não basta. Não imagine que apenas um livro comece a
revolução.

Essa mudança de uma versão para a outra do filme é


significativa por duas razões: a primeira delas é o fato de que,
enquanto a versão de 77 é mais longa (há mais imagens e os
planos duram mais), na versão de 93, Marker acrescenta alguns
comentários ao seu argumento textual. O início do comentário é
bem parecido nas duas versões, trata-se de uma explicação do que
se vê nas imagens, contextualizando-as, quando Marker diz que
são de 1967, e faz a referência ao livro de Régis Debray, “Revolução
na revolução?”. Já na segunda parte do comentário da primeira
versão, a fala de François Maspero, responsável pela publicação do
livro de Debray, revela uma visão do momento do lançamento do
livro, no tom da fala percebemos uma esperança revolucionária,
por exemplo, quando diz, entusiasmado, como seria maravilhoso
o momento em que os conceitos e ideais marxistas fossem
incorporados e a revolução se tornasse, finalmente, possível.
Já no comentário de Marker, em 1993, quando se refere a uma
fala de Daniel Cohn-Bendit, em 1977, ou seja, dez anos depois
dos movimentos de 1967, ele não fala mais da esperança de
uma revolução, mas de uma utopia revolucionária. Apesar do
comentário ser atribuído a Cohn-Bendit, a escolha de inseri-lo
no filme, neste momento, é de Marker, que, ao invés de lançar
às imagens do acontecimento um olhar apaixonado, lança, desta
vez, um olhar mais distanciado e reflexivo.
Além disso, o fato de Marker acrescentar ao filme uma
fala como esta de Cohn-Bendit, também é significativo, pois
trata-se do principal líder do movimento estudantil em Paris

38 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


dizendo que aquele desejo revolucionário de 1967 e 1968, eram
apenas utopias. O acesso a essa fala do então estudante foi
posterior, dez anos após sua a primeira fala sobre os protestos
de 1967 na Alemanha, tratando-se, portanto, de uma reflexão
mais distanciada do acontecimento, o que possibilita abordá-lo
de outra maneira, tanto por parte de Cohn-Bendit, quanto por
parte de Marker. O comentário de Cohn-Bendit mostra que o líder
estudantil de 1967, após 10 anos, reconhece a fragilidade do
movimento, ao considerá-lo como uma “utopia revolucionária”.
Marker também mostra certa descrença ao repetir quase a mesma
expressão em seguida (“fé revolucionária”).

Figura 1: Fotogramas de O fundo do ar é vermelho (versão de 1993)

O bloco seguinte – em ambas as versões – traz como tema o


comunismo nos países da América Latina. A figura de Fidel Castro,
a partir daí, torna-se recorrente no filme, bem como as menções a
Che Guevara. Ele termina com a captura e a morte de Che e um
argumento conclusivo de Marker sobre o movimento estudantil e
suas “mãos frágeis”. No trecho seguinte, com a inscrição na tela:
“Porque as imagens se põem a tremer?”, os cineastas comentam
as imagens que produziram, referindo-se a possíveis defeitos nas
câmeras que alteram as imagens. Uma delas está em câmera lenta,
outra muito tremida e, mesmo inconscientemente, o sentido se altera
a partir da falha técnica, pois a imagem do acontecimento não o
representa fielmente, o que interfere na forma como o percebemos.
Marker trata agora da violência da repressão às manifestações.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 39


Nas sequências que abordam a noite das barricadas
em primeiro de maio de 1968 em Paris, nota-se outra diferença
significativa entre as duas versões. Na versão de 1977, há
um longo trecho – cerca de dez minutos – de imagens desse
acontecimento, enquanto, no áudio, ouvimos diversas gravações
de rádio da data pedindo que os manifestantes não atravessem
as barricadas; trata-se de um gesto de montagem de arquivos de
imagem e de áudio. A maioria das imagens é noturna, há muita
fumaça e tumulto, com manifestantes e policiais correndo. São
imagens feitas no calor das manifestações em que pouco se vê e
se compreende, senão a própria circunstância do acontecimento
em seu momento de emergência.

Figura 2: Fotogramas de O fundo do ar é vermelho (versão de 1977)

Já no filme de 1993, a maioria dessas imagens é retirada


e substituída por um comentário de Marker que, distanciado,
descreve o que aconteceu naquela noite. Talvez, após 15 anos
passados, as consequências do que aconteceu e a reflexão
desenvolvida a partir daí sejam, para o diretor, mais importantes,
de forma que, com os comentários que acrescenta ao longo da
segunda versão do filme, a dimensão analítica ganhe maior
ênfase. Na primeira versão, em que havia apenas a montagem
das imagens, sem um argumento desenvolvido que as amparasse,
a produção de sentido por parte do espectador se dava de forma
mais livre, porém, ao mesmo tempo, mais desamparada. Nesse

40 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


momento, a relação do espectador com as imagens estava
vinculada às circunstâncias históricas, inscrita na emergência das
imagens. Ao substituir as imagens pelo comentário, Marker deixa
mais claro seu ponto de vista, construído pela distância temporal
dos acontecimentos, as imagens produzidas no calor dos conflitos
são, agora, colocadas em perspectiva.
Nas duas versões, a primeira parte do filme – “Mãos
frágeis” – termina com um último bloco que mostra a destruição
após a noite das barricadas, a ocupação da Sorbonne e a
intensificação das greves na França. Há um longo trecho,
desde a morte de Che Guevara até o momento em que Marker
retoma as imagens de uma manifestação em Washington
contra a guerra do Vietnã que são, originalmente, do filme A
sexta face do pentágono (Chris Marker, 1968), em que todas as
imagens coincidem nas duas versões. Porém, daí até o fim da
primeira parte do filme, há várias imagens que foram retiradas
na remontagem, a começar por uma entrevista para a televisão
com Alain Peyrefitte, ministro da educação na França em
1968, falando sobre o movimento estudantil. Ele diz que as
manifestações são violentas e deploráveis. O trecho seguinte,
está nas duas versões: são imagens em câmera lenta de um
policial batendo em uma mulher e, logo depois, um retorno
à entrevista de Peyrefitte, que é encadeada a outras imagens
de manifestações com diferentes áudios de rádio e televisão,
nos quais a mídia repercute as manifestações e a violência
policial e também a dos manifestantes. Em seguida, na versão
de 1977, vemos muitas imagens de pessoas nas ruas, imagens
das manifestações, muitas cenas noturnas, com pouca narração.
Quando há narração, é uma voz feminina, que diz, por exemplo,
“nascimento de uma imagem”, ou “sob o pavimento...”. Já
no filme de 1993, muitas dessas imagens, especialmente as
noturnas, são retiradas do filme, e a narração, o comentário de
Marker, ganha um tom conclusivo, sobre a noite das barricadas:

E de repente, numa bela noite de primavera, nessa cidade que


na véspera se achava calma e próspera, vimos barricadas, vimos
carros em chamas, vimos burgueses nas janelas aplaudindo
estudantes e insultando a polícia. Vimos aparecerem inscrições
que se tornariam lendárias: “Sob os paralelepípedos, a praia”,
“É proibido proibir”. Vimos a polícia perseguir manifestantes
até dentro das casas, um prêmio Nobel acusando o ministro

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 41


da Educação no rádio, e pelo rádio, justamente, toda a cidade
e o país acreditaram que sua história estava se fazendo pelos
choques ocorridos numa única pequena rua do Quartier Latin.

A partir daí o que vemos, nas duas versões, são imagens


do dia após a noite das barricadas, seguidas de imagens de
manifestações em vários outros lugares do mundo, tais como
Japão, Chile e Brasil. Daí até o fim da primeira parte ainda há
diferenças entre as duas versões. Na mais antiga, há mais imagens
de entrevistas com operários e mais notícias de maio de 1968, ou
seja, o filme se mostra mais colado ao acontecimento. É possível
que Marker tenha suprimido essas imagens na segunda versão
para deslocar o foco principal dos acontecimentos de maio de 68
na França, conferindo igual importância aos movimentos de outras
regiões, tais como Venezuela, Cuba, Brasil, Tchecoslováquia, China
etc., mas também percebemos que aquelas imagens confusas de
manifestações em que pouco se vê – imagens de noticiários, áudios
de programas de rádios, entrevistas de operários durantes as
greves –, bem como a forma como são inseridas no filme, têm um
caráter muito mais urgente. A montagem, nesse caso, está mais
próxima dos acontecimentos, por isso é preciso, ainda, descrevê-
los, compreendê-los. No segundo caso, 15 anos mais tarde, por
mais que ainda não seja completa, a tentativa de compreensão dos
acontecimentos e a forma como eles são apresentados no filme
se dá de forma mais elaborada. Forma-se assim um pensamento
mais amplo sobre o crescimento dos movimentos sociais e do
comunismo em todo o mundo, oferecendo ainda um contexto
mais completo para se pensar o caso específico da França.

Mãos cortadas
A segunda parte do filme – Mãos cortadas – começa com
um cinejornal francês com imagens dos últimos dias de ocupação
de Praga em 1945. Inicia-se então um bloco temático sobre a então
Tchecoslováquia, com muitas referências ao stalinismo. Nesse
trecho, diversas imagens são retiradas na remontagem, mas não
há nenhuma alteração que nos pareça significativa em relação
ao argumento do filme. O bloco seguinte trata do comunismo na
China e do maoísmo. Há, em seguida, imagens de um encontro
entre Mao Tsé-Tung e Georges Pompidou (presidente da França

42 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


entre 1969 e 1974). Após as imagens desse encontro, Marker se
dedica ao fim do governo de Charles De Gaulle, ao referendo
que levou à sua renúncia, incluindo entrevistas com operários e
membros do Partido Comunista Francês sobre o assunto. Após a
renúncia de De Gaulle, a hipótese a ser desenvolvida no filme é
a necessidade de “união da esquerda”. Também nessa passagem,
há uma redução nas imagens da primeira para a segunda versão,
mas, novamente, o argumento e a estrutura se mantêm. A última
imagem, que está no filme de 77 e não no de 93, é de 5 de abril
de 1972, de uma greve de operários de uma companhia elétrica
em Saint-Brieuc, na França. Daí em diante, as imagens e a forma
como são organizadas são iguais nos dois filmes, porém ainda há
mudanças nos comentários.
A imagem seguinte é de 6 de abril de 1974, do velório
de Georges Pompidou, e Marker a insere no filme para explicar
que a morte do político gerou receio nos chefes de estado de
que houvesse um governo de esquerda na França. Em seguida,
vemos imagens da cidade de Ypres, onde se realiza todo ano
uma “Cat parade”. Em montagem associativa, vemos em seguida
gatos e pessoas em convulsão: são os habitantes de Minamata que
consomem água envenenada de mercúrio pela cia Chisso. Nas
cenas seguintes, as imagens são as mesmas para as duas versões:
trata-se de um encontro de acionistas da Chisso em Osaka no
dia 28 de novembro de 1970. A população invade o encontro
para protestar. Na versão de 1993, porém, há um comentário de
Marker:

Por toda parte, a luta contra os poderes organizados e


tradicionais encontrou o fracasso, a repressão. Então, outras
formas de ação aparecem, mais diretas, mais locais, nascidas
de uma situação concreta. Não se trata mais de tomar o poder
num futuro longínquo mas de se opor ao poder no mesmo
local onde ele se opõe a você. Em Minamata, os habitantes se
cotizam para comprar ações da Chisso e durante a assembleia
de acionistas em Osaka eles estão lá para atacar.

Mais uma vez, vemos que, mesmo com uma hora a menos
de imagens, no filme de 1993 o argumento se expande, talvez se
adense, movido por um distanciamento maior dos acontecimentos.
Além disso, se para o diretor a montagem é uma forma de permitir

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 43


que o espectador desenvolva um pensamento sobre as imagens,
as diferenças de uma versão para a outra revelam uma tomada de
posição mais clara e enfática de Marker. Isso não significa que a
segunda versão tenha um sentido fechado, significa apenas que,
enquanto na primeira versão, que é mais descritiva, constituída
por imagens que não necessariamente encontram explicações nos
comentários, o espectador ganha mais liberdade de interpretação,
e reage à emergência dos acontecimentos, na segunda versão, por
ser mais analítica, exige-se que o espectador também se distancie
dos acontecimentos. Esse distanciamento é, ao mesmo tempo,
devido ao tom do argumento e à distância temporal.
Logo em seguida, a América Latina volta a ser o tema
central com depoimento de Douglas Bravo – ativista venezuelano
– sobre seu projeto de revolução comunista na Venezuela. Há um
trecho sobre a consolidação do poder de Fidel Castro em Cuba,
bem como a repercussão desse processo nos Estados Unidos. O
último exemplo do filme é o de Salvador Allende, no Chile. Dele
vemos a primeira imagem como presidente, um longo discurso –
sem cortes – para trabalhadores da estatal Sumar em setembro
de 1972 e, logo depois, a sua última imagem, em 11 de setembro
de 1973, quando acena para as pessoas da sacada de um prédio,
antes de falecer. Todo esse trecho é exatamente igual nas duas
versões do filme. Temos então as imagens do discurso de Beatriz
Allende, filha de Salvador Allende, em Havana, ainda em setembro
de 1973. Ela está atrás de um púlpito, com a cabeça baixa, mal
vemos seu rosto. Sentado ao lado dela está Fidel Castro. Há um
corte e vemos em uma imagem aérea a multidão que a escuta. Ela
fala sobre o pai e transmite uma mensagem dele: “Diga a Fidel
que cumprirei o meu dever”. Ao terminar o discurso ela é muito
aplaudida e agora a câmera a mostra num plano fechado. A cabeça
continua baixa e sua expressão séria permanece. As imagens são
as mesmas, mas na versão mais recente há uma atualização, com
um fato ocorrido já no fim de 1977, com a legenda: “No dia 12
de outubro de 1977, Beatriz Allende se suicidaria em Havana,
como seu pai no Chile, quatro anos antes”. Percebemos aqui,
com clareza, a ideia de que a imagem de arquivo se transforma
no momento da retomada e que sua percepção está fortemente
vinculada ao contexto de reutilização. Neste momento do filme,
essa simples inscrição na tela confere um tom mais grave e
melancólico ao discurso de Beatriz Allende. O discurso continua

44 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


seguido de imagens em câmera lenta de Allende. Assim termina
esse último bloco temático do filme.
As imagens que se seguem são a conclusão do filme:
comemorações do primeiro de maio de 1977 em vários locais,
imagens de greves, logo depois um depoimento de Maria Augusta
Carneiro, a brasileira libertada pela ditadura por ocasião do
sequestro do embaixador dos Estados Unidos. As imagens são
do filme On vous parle du Brésil: Tortures, filmado em quatro
de setembro de 1969 em Cuba. Há um retorno às imagens de
greves e protestos. Vemos ainda imagens de uma exposição de
tanques militares e a última imagem do filme: lobos correndo,
alvejados por tiros disparados de cima de um helicóptero. Essa
é a sequência de imagens que encerra os dois filmes, porém, na
edição de 1993, há um comentário conclusivo e que remete a
diversos acontecimentos posteriores a 1977:

Imagine agora que quem fez essa montagem em 1977 de


repente tenha a oportunidade de ver essas imagens anos
depois. Poderia ser, por exemplo, 1993, 15 anos depois, o
espaço de uma juventude, a idade que tinham vários dos heróis
desse ano lendário: 1968. Poderíamos meditar sobre esse
tempo que passou e medir as mudanças com um instrumento
simples, enumerando as palavras que não fariam sentido
nos anos 60: Palavras como boat-people, AIDS, tatcherismo,
aiatolá, territórios ocupados, Perestroika, coabitação, ou essa
sigla que substituiu a URSS e ninguém consegue pronunciar:
C.E.I. A poderosa e temida União Soviética deixara de existir.
A motivação dessa transição havia sido “Direitos Humanos” e
agora era a “economia de mercado”. O terrorismo substituíra
o comunismo como encarnação do mal absoluto. Ainda
nem se compreendia que em certa época não era tão errado
sequestrar o embaixador dos EUA para libertar uma brasileira
dos seus carrascos.

Há aqui uma interrupção no comentário para a inserção


de um pequeno trecho do depoimento de Maria Augusta Carneiro
Ribeiro, líder estudantil carioca, para o filme On vous parle du
Brésil: Tortures (Chris Marker, 1969), sobre a tortura que sofreu
durante a ditadura no Brasil. Em seguida, a narração continua:

Hoje, o Brasil é uma democracia, o Chile também, até certo


ponto. O sonho comunista implodiu. O capitalismo ganhou a

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 45


batalha, senão a guerra. Mas uma lógica paradoxal faz com
que inimigos do totalitarismo soviético, homens dessa nova
esquerda a quem este filme é dedicado, tenham sido levados
no mesmo turbilhão. Revanche dos stalinistas. Sua oposição de
esquerda morreu com eles. Estavam ligados, como escorpião
e tartaruga. Lembrem-se de Orson Welles. Era o seu caráter.
Nosso autor ficaria maravilhado com os recursos da história
que tem mais imaginação que nós. Ele pensaria no fim do
filme como concebera em 1977, quando comparava o tráfico
de armas das grandes potências a estes caçadores que devem
manter a pequena população de lobos. Adivinhem quem elas
armam hoje. Um consolo, entretanto: 15 anos depois ainda
havia lobos.

Figura 3: Fotogramas de O fundo do ar é vermelho (imagens presentes nas duas versões)

No comentário final, Marker faz um apanhado dos


acontecimentos históricos posteriores a 1977, criando, assim,
uma atualização da sua reflexão. Ele se refere à quem montou o
filme de 1977 na terceira pessoa (“nosso autor”), indicando que
ele não é mais aquele militante de 15 anos antes. Esse mesmo
recurso foi utilizado em Sem sol, quando criou um personagem
alter ego, Sandor Krasna, um cinegrafista viajante. No argumento,
um tanto pessimista, ele diz que o “capitalismo ganhou a batalha,
senão a guerra”, ou seja, aquele desejo revolucionário, comunista,
presente no filme de 1977 foi destruído. Porém, por outro lado,
quando Marker diz que “15 anos depois ainda havia lobos”, ele
nos mostra ainda um traço de esperança, talvez, para ele, ainda
seja possível – e preciso – lutar.

O duplo gesto de retomada


Em nossa análise de O fundo do ar é vermelho, interpretamos
a rememoração como operação concreta de montagem. Uma vez
que tomamos a compreensão da história com algo inacabado e
contingente e não como um progresso ininterrupto e inevitável, a

46 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


historicidade poderia ser construída pelo cinema, já no momento
da tomada e, posteriormente, na montagem. Na esteira do
pensamento de Walter Benjamin buscamos, através da análise do
gesto de montar e remontar um filme, perceber de que modo a
montagem se concebe como operação de rememoração.7 Marker 7. Gostaria de agradecer
às valiosas contribuições
retoma imagens de uma década, visando não uma reconstrução
dos colegas do grupo
cronológica ou didática da história, mas, ao contrário, uma análise de pesquisa Poéticas da
das imagens dos acontecimentos, colocando-os em relação uns Experiência durante o
segundo semestre de 2014,
com os outros. Trata-se de uma contínua operação de retomada. quando nos dedicamos
Pois se no primeiro filme, de 1977, ele retoma as imagens ao estudo das teorias de
Walter Benjamin. Agradeço
produzidas por outros cineastas e por ele mesmo em outros especialmente ao professor
contextos, em 1993, o gesto de retomada é duplo, pois além da César Guimarães pelas
colocações sobre as
tomada, do que restou do olhar de quem produziu a imagem, há possíveis relações entre os
também o olhar lançado pelo próprio diretor, em 1977, quando gestos de rememoração e de
montagem.
montou as imagens pela primeira vez. Ou seja, trata-se de não
apenas de revisitar imagens de arquivo, mas de repensar a forma
como as montou pela primeira vez.
As imagens de arquivo ganham aí um papel essencial, pois
elas guardam vestígios dos acontecimentos que podem propiciar
a rememoração. Para Benjamin, a imagem deve ser lida para que
o acontecimento que ela retrata não seja perdido, e a memória
deve dar conta do acontecimento no presente, no cintilar de
um instante de perigo. O arquivo, mesmo que seja apenas uma
pequena parte do acontecimento, significa algo apesar de tudo e
suscita uma leitura. Essa parte não dá conta do todo, mas, apesar
de tudo, dá conta de alguma coisa (DIDI-HUBERMAN, 2008).
Reutilizar uma imagem de arquivo do passado é encontrar as
condições necessárias para reinscrevê-lo no curso da história.
Sobre as imagens de arquivo e a memória, Chris Marker afirma:
“o cinegrafista imagina (como fazem os cinegrafistas, pelo
menos aqueles que você vê nos filmes) sobre o significado dessa
representação do mundo da qual ele é instrumento, e sobre o
papel das memórias que ele ajuda a criar” (MARKER apud
8. No original: “the
LUPTON, 2005: 153).8 E é apenas por meio da montagem das
cameraman wonders (as
imagens de arquivo que se torna possível uma nova experiência, cameraman do, at least
que está ligada não só à memória, mas também à imaginação. those you see in movies)
about the meaning of this
representation of the world of
Ao se debruçar sobre as imagens de O fundo do ar é
which he is the instrument,
vermelho duas vezes em momentos distintos, Chris Marker and about the role of the
demonstra levar a sério a necessidade de rememoração dos memories he helps create”
(MARKER apud LUPTON,
acontecimentos passados, o que, no trabalho do diretor, se traduz 2005: 153).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 47


na montagem. A partir desse duplo gesto de retomada, o diretor
cria um processo de rememoração que não se encerra na primeira
montagem e, com isso, permite que o espectador também
rememore o acontecimento novamente. Com quinze anos entre
as duas versões, o espectador é convidado a olhar as imagens
novamente, e a renovar sua compreensão dos acontecimentos a
partir das mudanças históricas do período, mas também, a partir
da transformação da forma de Marker olhar as mesmas imagens.
Isso acontece pois há um corte no excesso de imagens do filme
de 1977, mas, principalmente, pelo acréscimo de comentários e
pela mudança no tom de alguns deles que, como vimos, são mais
reflexivos e analíticos e menos colados aos acontecimentos.
Na introdução ao curta-metragem Junkopia, que
realizou em 1981, Marker se refere a O fundo do ar do vermelho,
dizendo que o comentário funciona como um guia, porém é a
montagem que cria a abertura necessária para que o espectador
crie o seu próprio comentário em torno das imagens. Portanto, na
montagem está não só o gesto de rememoração de Marker, que a
partir do seu próprio olhar sobre a história organiza as imagens
de modo bem particular; mas também está o inacabamento, pois
a montagem permite que o espectador possa lançar o seu próprio
olhar às imagens e àquilo que elas carregam da história.
Giorgio Agamben, em seu texto sobre o cinema de
Guy Debord, ressalta a relação estreita entre cinema e história,
referindo-se, nesse caso, não a uma história cronológica, mas a
uma história messiânica, no sentido benjamininano. Para o autor,
“a experiência histórica se faz pela imagem, e as imagens estão
elas próprias carregadas de história” (AGAMBEN, 1995: s/p).
Como lugar de elaboração histórica, a montagem cinematográfica
oferece duas condições de possibilidade: a repetição e a paragem.
Para nossa análise da “remontagem” de um filme, interessa
mais especificamente a repetição, que consiste em tornar algo
novamente possível, aproximando-se, por isso, do gesto de
rememoração. O cinema produzido a partir de imagens de arquivo,
nesse sentido, ganha uma força política, pois elas são uma citação
do passado, um vestígio material que nos permite rememorá-lo.
Na esteira de Agamben, Anita Leandro afirma que é dessa maneira
que “a montagem torna possível o trabalho historiográfico e até
arqueológico por parte do espectador” (LEANDRO, 2010: 109).

48 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


Trata-se de um gesto de repetição, de retorno às
imagens, que permite a Marker uma nova rememoração (que
aqui se desenha como uma espiral). Ao remontar as imagens,
Marker torna essa memória novamente possível, porém com
um outro olhar. Se na montagem de 1977 há muito mais
imagens e, com isso, uma abertura maior para que o espectador
possa produzir um sentido particular em relação a elas, em
1993 os comentários ganham força, pois, talvez, após 15 anos,
Marker tenha olhado para as mesmas imagens a partir de
outra perspectiva, de forma mais distanciada. O período em
que Marker se dedicou à produção coletiva influenciou muito
seu estilo e, O fundo do ar é vermelho, montado em 1977,
funciona como um filme síntese desse momento e, ainda,
como o fechamento de um ciclo em sua obra. A partir daí,
a preocupação com a memória se torna ainda mais decisiva,
característica marcante da obra de Marker.
O que a remontagem de O fundo do ar é vermelho nos
mostra é que, apesar de trazer fatos novos em poucos momentos,
os acontecimentos históricos posteriores a 1977, tais como a
queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética
em 1990, influenciam o tom dos argumentos. Além disso, outro
aspecto fundamental é um gesto autoral mais enfático de Marker,
o que revela sua mudança de perspectiva como cineasta e
militante. A força das imagens e da tomada permanecem; porém,
o comentário ganha maior importância e isso pode ser atribuído
ao tom mais pessoal que vimos em filmes como Sem sol e O túmulo
de Alexandre.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. 1995. Disponível


em: http://www.intermidias.blogspot.com.br/2007/07/o-
cinema-de-guy-debord-de-giorgio.html. Acesso em: 07 de
setembro de 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images in spite of all. Four photographs
from Auschwitz. Chicago: University of Chicago Press, 2008.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 49


LEANDRO, Anita. O tremor das imagens: notas sobre o cinema
militante. In: Revista Devires, Belo Horizonte, v. 7, n. 2, p. 98-
117, jul-dez 2010.
LINDEPERG, Sylvie. Imagens de arquivos: imbricamento de
olhares. In: Catálogo Forumdoc.bh. Belo Horizonte: Filmes de
Quintal, 2010. (Entrevista concedida a Jean-Louis Comolli).
LUPTON, Catherine. Chris Marker: Memories of the Future.
Londres: Reaktion Books, 2005.
MARKER, Chris. Le fond de l’air est rouge: textes et description d’un
film de Chris Marker. Paris: François Maspero, 1978.

FILMOGRAFIA

Até logo, eu espero. Direção: Chris Marker, Mario Marret. Paris:


SLON – Iskra, 1967.
Junkopia. Direção: Chris Marker. Paris: Argos, 1981.
Longe do Vietnã. Direção: Jean-Luc Godard, Joris Ivens, William
Klein, Claude Lelouch, Chris Marker, Alain Resnais, Agnès
Varda. Paris: Sofracima, 1967.
O encouraçado Potemkin. Direção: Sergei Einsenstein. Moscou:
GosKino, 1925.
O fundo do ar é vermelho. Direção: Chris Marker. Paris: Iskra,
1977/1993.
Elegia a Alexandre. Direção: Chris Marker. Paris: Les films de
l’Astrophore, 1992.
On vous parle du Brésil: Tortures. Direção: Chris Marker. Paris:
Iskra, 1969.
Sem sol. Direção: Chris Marker. Paris: Argos, 1983.

50 O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli


Data do recebimento:
06 de abril de 2015

Data da aceitação:
09 de junho de 2015

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 28-51, JAN/JUN 2015 51


Kluge e os arquivos: a
contraescrita da história

Leonardo Amaral
Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Crítico de cinema e ensaísta. Curador
e membro das comissões de seleção do Festival de Curtas de BH e do Forumdoc.
BH. Roteirista e diretor de cinema.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015


Resumo: O cinema de Kluge promove uma contraescrita da história porque seus
filmes questionam as versões oficiais e correntes da história alemã, tal como
reproduzidas pelos livros didáticos e também disseminadas pelo senso comum.
Kluge volta sua atenção para os arquivos do passado que tendem a ser recobertos
pelo esquecimento. Em A patriota, o cineasta propõe a contraescrita a partir de uma
montagem ensaística que combina esses arquivos heteróclitos acumulados pelo
autor.
Palavras-chave: Arquivo. Contraescrita. Montagem. Ensaio.

Abstract: Kluge’s cinema promotes a counter-writing of history because his films


question the official and current versions of the german history, as played by
textbooks and also disseminated by common sense. Kluge turns his attention to
the archives of the past that tend to be covered by forgetfullness. In The patriot, the
filmmaker proposes a counter-writting from an essayistic editing combining these
heteroclite archives accumulated by the author.
Keywords: Archive. Counter-writing. Editing. Essay.

Résumé: Le cinéma de Kluge développe une contre-écriture de l’histoire car ses


films interrogent les versions officielles et actuelles de l’histoire allemande, telle
quelle est racontée dans les manuels didactiques et assimilée par le sens commun.
Kluge se tourne vers des archives du passé, souvent recouverts par l’oubli. Dans
La patriote, le cinéaste propose une contre-écriture de l’histoire, à partir de une
montage essayiste qui combine des archives hétéroclites accumulées par l’auteur.
Mots-clés: Archive. Contre-écriture. Montage. Éssais.

54 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


Vi em sonhos o terreno deserto. Era a praça do Mercado
de Weimar. Havia escavações em curso. Também eu
escavei um pouco a areia. E vi aparecer o pináculo
da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de
alegria, pensei: um santuário mexicano pré-animista, o
Anaquivitzli. Acordei rindo.
Walter Benjamin

Contraescrita da história
Um rosto feminino (fig. 1). Esta é a primeira imagem
de A patriota, acompanhada do seguinte comentário do
narrador: “Gabi Teichert, professora de história na região de
Hesse. Uma patriota que tem interesse por todos os mortos da
nação”. Este é o prólogo de A patriota, que alude à história da
Alemanha desde seu processo de unificação, no século XIX. Há
um paradoxo criado por Kluge nessa designação da professora
Gabi Teichert, personagem ficcional do filme. Ser patriota é
necessariamente se engajar nas questões nacionais e se alinhar
a uma história contada pelos vencedores. No entanto, não é
essa a atitude da professora; seu intuito é buscar outra história,
diferente daquela encontrada nos livros. Neste sentido, ela não
é uma patriota. Ao buscar a história dos mortos no período do
III Reich, Gabi Teichert se torna – por estranho que pareça –
uma contra-heroína nacional, ao se posicionar na contramão
de diversos princípios e movimentos constituidores da história
da Alemanha no século XX.
A personagem, ao se rebelar solitariamente contra
a história oficial, se engaja pessoalmente na escrita de outra
história alemã.1 Alexander Kluge concebe a história a partir de 1. Para Kluge, ser patriota,
tendo a história da Alemanha
seu Traverarbeit (trabalho de luto), ou seja, os personagens de como legado, é algo
seus filmes, para além da elaboração de suas vidas particulares, contraditório.
resgatam uma memória coletiva e se servem da rememoração como
meio de reescrita de história.2 Etimologicamente, Traverarbeit 2. A rememoração guarda
o sentido de uma memória
deriva de Arbeit, que significa trabalho, e Durcharbeitug, que coletiva que está para além
pode ser entendido como elaboração, perlaboração, trabalho da história oficial contada
pelos vencedores.
aprofundado, trabalhar através.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 55


Figura 1: Gabi Teichert

O uso do conceito por Freud, na psicanálise, tem a ver


com um trabalho aprofundado com e por meio do passado. Neste
caso, como afirma Paul Ricoeur (2008): a memória se distingue
da história porque se vincula à capacidade de produzir novas
narrativas a respeito dos fatos ocorridos, sem uma fidelidade
integral ao que efetivamente aconteceu. Kluge está em busca
desses relatos que promovem novas conexões com a experiência
histórica e que confrontam a história oficial. Podemos aproximar
esse gesto daquela concepção da história sustentada por Walter
Benjamin, tal como a caracteriza Jeanne Marie Gagnebin
(1994: 13): “cada história é o ensejo de uma nova história, que
desencadeia uma outra, que traz uma quarta etc.; essa dinâmica
ilimitada da memória é da constituição do relato, com cada texto
chamando e suscitando outros textos”. É assim que, logo após
apresentar Gabi Teichert, o cineasta lança mão de uma nova e
insólita narrativa: na tentativa de alcançar outros pontos de vista
acerca da história alemã, o filme adota a perspectiva do joelho de
um soldado de guerra, Wieland, morto na batalha de Stalingrado,
em 29 de janeiro de 1943.
Na sequência inicial, logo após a imagem do rosto de Gabi
Teichert, vemos, em sequência, um conjunto de imagens de corpos
de soldados mortos, acompanhados por um longo movimento em
travelling ao som da composição de Hanns Eisler para a obra Noite

56 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


e neblina (Alain Resnais, 1955). Noite e neblina mostra, de maneira
perturbadora, os locais onde ficavam alojados os judeus nos
campos de concentração, acompanhadas pela trilha de Eisler e pela
narração de um texto de Jean Cayrol, poeta francês sobrevivente
dos campos de extermínio. Os corpos atirados ao solo são excertos
do filme A última companhia (Curtis Bernhardt, 1930),3 filmado 3. Curtis Bernhardt foi um dos
cineastas alemães de origem
em Havelland, em Brandemburgo, e que faz parte de um ciclo de judaica que, perseguido,
filmes prussianos do período entreguerras que ressaltavam cenas imigrou para os EUA.
patrióticas da história da Prússia. Neste fragmento, Kluge combina
a trilha musical do filme de Resnais – e as significações a que ela 4. Esta imagem grotesca
remete – com imagens de arquivos de um filme patriótico de guerra, surge do poema “Das Knie”,
de Christian Morgenstern,
deixando em aberto os sentidos da ligação entre um e outro. Os poeta e escritor ligado à
efeitos de sentido produzidos pela combinação estão na lacuna literatura do absurdo e
do nonsense. A obra de
existente entre o som e a imagem. O som remete diretamente Morgenstern é fortemente
ao terror nazista, enquanto as imagens do filme de Bernhardt marcada pelo conteúdo
satírico e irônico, pelas
retomam as primeiras afirmações do nacionalismo germânico. A formas ilógicas e por
disjunção presente na cena proporciona uma lacuna no tempo, na situações incomuns, como
é o caso do poema em
qual se insere o nazismo e suas formas de repressão. O recurso
questão. O poema, citado
alegórico se dá exatamente a partir dessa lacuna. Nessa sequência no filme, faz parte do livro
inicial, Kluge apresenta uma cartela com o letreiro “O joelho”. Em Galgendichtung, publicado
em 1905.
seguida, ele oferece uma ilustração com uma árvore e muita neve,
ao passo que, mais ao fundo, é possível ver uma enorme tocha e um
5. “Das Knie”
casarão. Surgem, ainda na sequência, a narração feita pelo joelho,
Ein Knie geht einsam durch
que recita o poema de Christian Morgenstern4: die Welt.
Es ist ein Knie, sonst nichts!

“O joelho” Es ist kein Baum! Es ist kein


Zelt!
Na terra perambula um joelho solitário.
Es ist ein Knie, sonst nichts.
É apenas um joelho, nada mais. Im Kriege ward einmal ein
Não é uma barraca, não é uma árvore, Mann
erschossen un und un.
É apenas um joelho, nada mais.
Das Knie allein blieb
Na batalha, há muito tempo, um homem unverletzt
Foi crivado e pensou e pensou. als wärs ein Heiligtum.
O joelho sozinho escapou ileso Seitdem gehts einsam durch
die Welt.
Como se isso fosse apenas um tabu.
Es ist ein Knie, sonst nichts.
Desde então, perambula um joelho solitário,
Es ist kein Baum, es ist kein
É apenas um joelho, isso é tudo. Zelt.
Não é uma barraca, não é uma árvore, Es ist ein Knie, sonst nichts.
(Tradução nossa a partir da
É apenas um joelho, isso é tudo.5 versão em inglês)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 57


6. Coincidentemente, Em seguida, temos a Terra e a lua em rotação (em uma
o exército napoleônico
das várias referências de passagem do tempo), e um novo corte
também sofreu com esse
tipo de dificuldade e acabou apresenta a ilustração (vinda, talvez, de um conto) de um homem
derrotado em território subindo por uma encosta repleta de neve, tendo, ao lado, um castelo
russo. Não é por menos que
esta história é retomada por refletido na água (cabeça para baixo). O final da sequência apresenta
Kluge, que, em determinado pessoas caminhando na neve, tanques de guerra explodindo
momento do filme, apresenta
uma ilustração com a figura juntamente com soldados, imagens de explosão na guerra. Essas
de Napoleão, para afirmar, na figuras e imagens de arquivo não identificáveis remetem sempre à
narração, que este imperador
acabou derrotado e não pode Batalha de Stalingrado, na qual o exército nazista alemão sucumbiu
levar ao cabo seu projeto de diante do exército soviético por conta das dificuldades climáticas.6
expansão.
Essa relação se faz possível graças à narração do joelho, que afirma
ser a parte sobrevivente do soldado morto na batalha. As figuras de
7. A referência a Caspar
Friedrich, um dos mais corujas em árvores podem ser correlacionadas à série de pinturas e
importantes pintores do desenhos de Caspar Friedrich7 que mostram caixões, sepulturas e
Romantismo alemão, nos
auxilia a pensar a maneira
corujas. A iconografia do artista, que surge nesse primeiro momento
como Kluge traça um de A patriota, é o quadro Sarg am grab (1830): um caixão afundado,
paralelo entre algumas das
paisagens carregadas de
enferrujado e próximo de uma âncora. Em seguida, surge um outro
nostalgia, opressão, sombras quadro de Friedrich, Landschaft mit eule, grab und sarg (1837), com
e misticismo pintadas uma coruja sobre caixão e uma pá ao lado. O trabalho do artista
pelo artista e algumas
das imagens filmadas romântico tem uma referência no período gótico e uma forte
pelo cineasta no filme, em proximidade com um espírito de solidão e morte (algo bastante
especial, as paisagens
invernais e outonais significativo para uma narrativa que se propõe a buscar a história
presentes na obra. dos mortos no período do III Reich). A montagem ainda traz uma
foto de vários homens uniformizados e perfilados, para, em seguida,
apresentar movimentos panorâmicos que percorrem uma paisagem
da vegetação da Alemanha, enquanto o joelho-narrador afirma seu
8. “The knee can in this interesse na história da nação.
context also be read literally,
as concrete image for the O joelho tem como função anatômica conectar as junções
‘between’” (KAES, 1992: 113).
da perna e permitir que o corpo se movimente; ele é um elo entre as
partes superiores e inferiores do corpo humano. “Nesse contexto, o
9. “A central category
for Kluge, which can be joelho também pode ser lido literalmente, como imagem concreta
rendered only approximately do estar entre” (KAES, 1992: 113, trad. nossa).8 Ele funciona aqui
as seeing things in their
interconnection” (KAES, como um recurso de junção da montagem, “uma categoria central
1992: 113). para Kluge, que só pode ser realizada em aproximação, como a
visão das coisas em sua interligação” (KAES, 1992: 113, trad.
10. “Between the past and nossa).9 Assim sendo, o joelho torna-se o principal comentador e
the present, the dead and
the living, memory and fomentador das articulações promovidas pelo filme. Ele se torna
anticipation, the dream world a mediação básica “entre o passado e o presente, os mortos e os
of history and the waking
world of the moment” (KAES,
vivos, memória e antecipação, o mundo onírico da história e o
1992: 114). mundo desperto do momento” (KAES, 1992: 114, trad. nossa).10

58 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


Esse é apenas um dentre os vários recursos narrativos
e estilísticos utilizados na escritura do filme, com o intuito de
apresentar fragmentos, vestígios e esboços de pequenas estórias
que compõem o que poderíamos chamar de uma contraescrita da
história. O trabalho de Kluge é marcado pela heterogeneidade
de materiais expressivos, sob diversos registros, articulados por
uma operação de montagem que nem os encerra em um conjunto
totalizante, nem os alinha segundo uma teleologia.
Após a realização dos primeiros três longas-metragens,
o cinema de Kluge se aproxima mais do cruzamento entre ficção
e documentário. Outrora, o cineasta já fazia uso de algumas
imagens gráficas e iconográficas montadas entre as encenações
fictícias. Posteriormente, o autor passou a recorrer cada vez mais
a arquivos e materiais heteróclitos.
Podemos afirmar que o cinema de Kluge promove uma
contraescrita da história porque seus filmes questionam as versões
oficiais e correntes da história alemã, tal como reproduzidas
pelos livros didáticos e também disseminadas pelo senso comum.
Em especial, Kluge volta sua atenção para os acontecimentos
traumáticos que foram recobertos pelo esquecimento. Esse
gesto contradiscursivo está presente em diversas atitudes das
personagens femininas, que se colocam na contramão do discurso
oficial em seus respectivos contextos. Protagonistas de pequenas
estórias que se multiplicam, esses personagens promovem
o elo entre o presente e os arquivos do passado. Isso pode ser
reconhecido, por exemplo, na maneira “ingênua” como Gabi
Teichert indaga e provoca o presente.
A multiplicação das estórias menores é fundamental para
Kluge, como vemos no relato do joelho de Wieland, nas breves
encenações de situações do passado, como a dos oficiais no front
de guerra, ou, ainda, nas imagens documentais que mostram a
execução de soldados nazistas pelas forças aliadas na primavera
de 1945, seguidas pelos ataques aéreos estadunidenses sobre
pequenas cidades alemãs e pelos relatos acerca do bombardeio
britânico sobre o território germânico. A proliferação de
pequenas narrativas desafia a pretensão de uma narrativa
histórica totalizante e convoca o trabalho de uma montagem que
as associa livremente, aliada às reflexões de natureza ensaística.
Lembremos que, para Adorno (2003), o ensaio é uma escrita que
recusa, criticamente, a história monumental e acumulativa. O

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 59


ensaio é uma resposta à grandiloquência e à categorização dos
fatos em engavetamentos abstratos.
Em determinado momento de A patriota, a professora
Gabi Teichert parte para sua empreitada de escavar a história.
A história não está nos livros, mas enterrada nas valas do solo
pátrio, segundo seu modo de pensar e agir. De acordo com o
pesquisador Anton Kaes (1992: 108, trad. nossa):

Como uma arqueóloga amadora, ela busca traços e vestígios


do passado alemão. Em suas expedições através de dois mil
anos de história, ela desenterra tantas coisas contraditórias
que já não pode encontrar sentido nelas. A história se torna
11. “As an amateur para ela uma grande confusão.11
archaeologist, she searches
for traces and vestiges
of the German past. In
her expeditions through Nesse processo de escavação, o que se vê no filme é uma
two thousands years of conjunção de narrativas e arquivos heteróclitos que funcionam
history, she digs so many
contradictory things that she como peças de um quebra-cabeça historiográfico: desde o
can no longer make sense movimento alegórico presente na banda sonora (que narra a
of them. History becomes a
mere jumble to her” (KAES, história do joelho sobrevivente do oficial alemão) até a conversa
1992: 108). entre dois soldados em um campo de batalha. Essas partes desiguais
funcionam como tijolos de uma parede de construção improvável.
12. “When Gabi Teichert “Quando Gabi Teichert demonstra interesse, por exemplo, nas
shows interest, for instance,
centenas de pequenas histórias cotidianas que foram excluídas pela
in the hundreds of little
everyday stories that been historiografia ‘oficial’, ela lida com a história alemã de acordo com
excluded by the ‘official’ o espírito do projeto de Kluge” (KAES, 1992: 108, trad. nossa).12 O
historiography, she deals
with German history in the projeto de Kluge é norteado pelo seguinte questionamento: “o que
spirit of Kluge’s project” é a história de um país senão a mais vasta de todas as superfícies
(KAES, 1992: 108).
narrativas? Não uma história, mas muitas estórias” (KLUGE, 1981-
82: 206, trad. nossa).13 Essas pequenas estórias mostram, muitas
13. “And what else is the
history of a country but the vezes, aquilo que está fora dos livros, a vida ordinária na época
vastest narrative surface of retratada. Esse conjunto de estórias exibe uma forma de vida
all? Not one story but many
stories” (KLUGE, 1981-82: comum, abafada tantas vezes pelo estrondo dos grandes eventos.
206).
Nessa contestação reside o principal argumento de
Kluge, que percebe a história em seu movimento descontínuo
e fragmentário. Assim como Walter Benjamin, o cineasta
compreende a história a partir de suas fissuras e de seus aspectos
não-teleológicos. De acordo com o pensador alemão, a história não
se constrói linearmente. Ao contrário, é o presente que deve estar
sempre atento ao lampejar do passado (BENJAMIN, 1994). É desta
forma que Kluge insere as diversas pequenas estórias cotidianas de

60 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


personagens ordinários em suas buscas e trajetórias particulares.
Algo que ocorre, por exemplo, em outro filme do cineasta, O ataque
do presente contra o resto do tempo (1985), com a educadora que
tenta entregar aos parentes uma menina que perdeu os pais, ou
com a médica que se sente inútil em sua profissão e tenta encontrar
um novo tipo de engajamento social e histórico. Na fatura do filme,
o desenvolvimento desse argumento ganha corpo nas diversas
contraposições de personagens ordinários a um amontoado de
carros enferrujados em um ferro velho. A história se constrói em
analogia às ferragens, aos restos e aos vestígios esquecidos no
ambiente e tomados pela corrosão. Portanto, é preciso escavar e
recuperar, de algum modo, todo esse material.

Os arquivos e a história
Kluge nasceu em 14 de fevereiro de 1932, na cidade alemã
de Halberstadt. No dia 8 de abril de 1945, uma bomba aérea lançada
pelos Aliados explodiu a cerca de 10 metros de sua casa, deixando
em ruínas os arredores. O acontecimento, que marcou para sempre
a vida e a obra do cineasta, explica a grande quantidade de
referências a episódios de explosões de bombas durante a Segunda
Grande Guerra. Em A patriota, há uma encenação que mostra
dois oficiais responsáveis pelo desarmamento de bombas, além
da história de uma professora, Gerda Baethe, que, presa em casa
junto de seus filhos, tenta protegê-los das bombas que caem sobre a
cidade. Esse relato aparece em “Der Luftrangriff auf Halberstadt AM.
8 April 1945”, de autoria de Kluge, em um texto que reconstitui o
bombardeio à sua cidade natal durante a Segunda Guerra Mundial,
quando ainda era criança. O escritor narra a experiência da mãe e
dos filhos enquanto a cidade é arruinada pelas bombas:

Ela caiu com o impacto ocorrido a 5 metros de distância. O


quintal balançou com a onda de pressão do ar, seguindo uma
série de detonações: Woort, Kulkplatz, Paulsplan, a Igreja
Calvinista, etc. Gerda sentiu tudo distante. Afinal, ela não
conseguiu perceber tudo em nenhum mapa de operações para
ver isso. (KLUGE apud SEBALD, 2011: 55)

Kluge insere outra perspectiva acerca do bombardeio,


tanto em seu texto quanto em A patriota. Gerda Baethe escuta
os estrondos, mas não sabe exatamente o que ocorre e onde

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 61


ocorrem (fig. 2). A sua preocupação imediata é a de proteger os
filhos do perigo próximo e iminente. Algo que também ocorre com
outros personagens de A patriota envolvidos na situação. Após a
apresentação de várias ruínas de uma cidade (fig. 3), vemos uma
cova em um cemitério. Os sons de uma sirene revelam um estado
de perigo. Um homem salta para dentro da sepultura e nela se
esconde (fig. 4). No plano seguinte, o coveiro dorme encostado na
pá (fig. 5). O narrador nos revela então uma nova estória: “Outono
de 1943. O coveiro Bischof procura abrigo em uma sepultura recém-
cavada. Haverá muito trabalho a fazer. Mas ele acaba tirando uma
soneca”. O coveiro, assim como a mãe e os filhos, não consegue
ter a exata dimensão dos fatos e do perigo. Em seu instinto de
proteção imediata, ele salta para dentro da cova. Com o passar do
tempo, acaba adormecendo e não percebe o que ocorreu na cidade.
A operação de montagem realizada pela montadora
da maioria dos filmes de Kluge, Beate Mainka-Jellinghaus, traz
uma terceira estória que tem início com imagens de aviões e um
bombardeio em vários lugares (fig. 6). Na sequência das imagens,
uma nova encenação: dois oficiais de bombardeio fumam um
cigarro (fig. 7). O narrador afirma: “Dois pilotos de bombardeio
estão de volta de uma missão. Eles não conheciam a Alemanha.
Eles simplesmente aproveitavam o país durante dezoito horas”.
Outras imagens de arquivo dos pilotos britânicos. Eles pegam um
carro em grupo. O narrador relata: “Agora eles se dirigem até o
quartel para dormir”.

Figura 2: Gerda Baethe se esconde junto aos filhos


Figura 3: Cidade alemã é bombardeada
Figura 4: Coveiro Bishop se esconde das bombas
Figura 5: Coveiro Bishop cochila após os ataques
Figura 6: Ataque aéreo dos Aliados
Figura 7: Soldados fumam após o ataque

62 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


A descrição destas três cenas é fundamental para
compreender o método de concatenação de Kluge, que conecta
arquivos heterogêneos, à procura de conexões não usuais ou
insuspeitadas entre os acontecimentos históricos. Para ele, as
possibilidades oferecidas pela encenação e pelos procedimentos
documentais são múltiplas e inseparáveis. Um homem a fumar na
neve pode ser apenas o simples retrato de alguém em uma ação
cotidiana. No entanto, se essa imagem é colada a outra, a de aviões
de guerra e um bombardeio, ela se transforma em uma construção
ficcional. O homem que fuma na neve é parte integrante de uma
mesma história, que conjuga a família em seu desespero, tentando
se esconder das bombas, o coveiro que dorme em serviço e os
pilotos estrangeiros que acabaram de atacar uma cidade alemã.
Esta sequência faz parte da cena apresentada a partir de uma
visão de um telescópio. Nela, Kluge procura desconstruir algumas
definições costumeiras que opõem muito esquematicamente o
documentário e a ficção. A sequência traz os seguintes elementos:
uma cartela mostra o verbete “Documentário”. Em um plano
aberto, um homem, a uma grande distância, fuma um cigarro
em meio à paisagem branca e congelada. A lente grande-angular
mostra apenas a luz que vem do cigarro aceso. O comentário da
banda sonora diz: “Documentário! Um homem com um cigarro
a oitocentos metros de distância. Eu não conheço sua história”.
A seguir, vemos uma nova cartela: “Encenação”. Vemos um
esquadrão de bombardeio aéreo lançando bombas. Lá embaixo,
uma mãe e seus dois filhos estão sentados à mesa, ao lado de
uma maleta. Para David Roberts essa composição escapa à divisão
corriqueira entre documentário e ficção:

Kluge não almeja nem uma documentação objetiva do


bombardeio de Halberstadt, nem uma impressão ou
encenação humana, subjetiva, dos eventos. Seu objeto é,
antes, a dialética extremamente complexa entre o concreto
e o abstrato, o visível e o invisível, o momento e a história. 14. “Kluge is aiming neither at
(ROBERTS, 2012: 130, trad. nossa)14 an objetive documentation of
the bombing of Halberstadt
nor at a human, subjective
impression or staging of the
O que o filme faz é concatenar os eventos: os que sofrem events. His object rather is
the extremely complicated
sob o ataque das bombas, o trabalho do coveiro e os aviadores dialectic of the concrete and
que despejam as bombas. Essas três estórias acabam soterradas the abstract, the visible and
the invisible, the moment
pela História oficial narrada nos livros didáticos, esta que Gabi and the history” (ROBERTS,
Teichert insiste em contestar. A professora escava as ruínas para 2012: 130).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 63


trazer de volta os mortos, como na anedota alegórica do conto do
menino morto (presente no filme) que não se deixa enterrar: “Era
uma vez uma criança teimosa, que detestava Deus e sua mãe. Ele
estava em seu leito de morte. Mesmo depois de ser enterrado, sua
mão escapava da sepultura”. O trabalho de luto realizado pelo
filme se apresenta nessa relação da personagem com os mortos.
O luto também aparece nas diversas iconografias e nos diferentes
arquivos que aparecem conectados por textos e narrações.
Imagens documentais da campanha russa no inverno de 1942
são mostradas ao mesmo tempo em que um verso apócrifo é
declamado na banda sonora:

Um homenzinho que não era sábio


Construiu a sua casa sobre o gelo.
Disse: Ó Senhor, mantenha-o congelado
Ou então minha casinha eu vou perder.
Mas a pequena casa afundou
E o homenzinho se afogou.

Logo em seguida, acompanhamos Gabi dentro de


um automóvel, a chorar enquanto dirige. “O Trauerarbeit do
filme desponta em silêncio nas lágrimas da patriota: luto pelas
numerosas vítimas da guerra e pela pátria perdida; luto também
15. “The film’s trauerarbeit pela fria austeridade que mantém a sociedade unida” (KAES, 1992:
surfaces mutely in the 131, trad. nossa).15 A personagem chora por aqueles que perderam
patriot’s tears: mourning for
the many war victims and for suas vidas em uma história trágica. O interesse da personagem é o
the lost fatherland; mourning mesmo de Kluge: a busca pelos mortos soterrados pela história.
also for the cold rigidity that
keeps the society together”. A metáfora da escavação é um elemento fundamental
do método de Kluge e em sua desconstrução crítica da história
alemã. Seu gesto é benjaminiano, ao conceber essa história como a
acumulação de diferentes materiais de épocas diversas, sobreposto
em camadas variadas. Ao mesmo tempo, há também as questões
do trauma e do silêncio que, durante anos, acompanharam a
história alemã. Gabi questiona o presente por entender que o
passado é lacunar, envolvido por silêncios e interditos. Seu gesto
contestatório implica questionamentos fundamentais para essa
forma de pensar uma outra história. Para tanto, é preciso refletir
a respeito de alguns aspectos. Qual história o filme de fato atrita?
Por que, para o cineasta, é impossível se escrever uma história

64 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


patriótica da Alemanha? Quem são, de fato, os silenciados por
essa história? É possível falar de uma história dos vencidos nos
termos benjaminianos? Quais são os porquês do silêncio logo
após a experiência traumática da Segunda Guerra Mundial?
Se, em determinado instante, a própria Teichert diz que
“é impossível explicar a história aos alunos”, precisamos, então,
buscar alguns dos acontecimentos marcantes da história oficial
alemã a fim de entender melhor essas impossibilidades e para que
compreendamos essa outra história a ser contraescrita. De acordo
com Jacques Le Goff (2003: 18-19):

A palavra “história” (...) vem do grego antigo historie, em


dialeto jônico. Esta forma deriva da raiz indo-européia
wid-, weid-, “ver”. Daí o sânscrito vettas, “testemunha”, e o
grego histor, testemunha no sentido de “aquele que vê”. Esta
concepção da visão como fonte essencial de conhecimento
leva-nos à ideia de que histor, aquele que vê, é também
“aquele que sabe”; historein, em grego antigo, é “procurar
saber”, “informar-se”. Historie significa, pois, “procurar”.
É este o sentido da palavra em Heródoto, no início de suas
Histórias, que são investigações, “procuras”. (...) Ver, logo
saber, é um primeiro problema.

Essa definição entreabre uma série de significados para o


termo “história” presente nas línguas românicas. Essa procura das
ações realizadas pelos homens proposta por Heródoto acaba por
se constituir em uma ciência histórica. O objeto de pesquisa da
história seria, portanto, aquilo que é realizado pelos homens. Para
Paul Veyne (1968: 423-424), “a história é que quer uma série de
acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos”.
Essa definição da história pode ganhar um terceiro sentido, o
de narração, como afirma Le Goff (2003: 18-19): “Uma história
é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na ‘realidade
histórica’ ou puramente imaginária – pode ser uma narração
histórica ou uma fábula”. Ao conceber a história como narração,
o autor acaba por aproximar o processo historiográfico de uma
formulação pela linguagem a partir do tempo presente.
Para Le Goff, as novas orientações da história são: “crítica
do documento, o novo tratamento dado ao tempo, as novas
relações entre material e ‘espiritual’, as análises do fenômeno do
poder sob todas as suas formas, não só de seu aspecto político”

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 65


(LE GOFF, 2003: 143). Recorreremos, portanto, a alguns dos
conceitos da chamada Nova História, a fim de discutir outros
modelos de história, como, por exemplo, o positivista, criticado
por Walter Benjamin.
A concepção de história encontrada nos filmes e
no pensamento de Kluge está fortemente orientada pelos
questionamentos da própria história, bem como na maneira
como as questões nacionalistas se estabeleceram ao longo do
tempo. Esse pensamento mostra o quanto se torna complicado
reestruturar uma nova escrita da história sem esbarrar nas
dificuldades impostas pelas construções nacionalistas, patrióticas
e míticas presentes nessa história oficial. Assim como faz a
personagem Gabi Teichert, é preciso escavar a história alemã para
que se retome todas essas questões, para que dela retornem os
fantasmas que insistem em assombrar e a silenciar aqueles que
fazem parte, ao seu modo, desta mesma história.

Ensaio de uma contraescrita da história


Podemos dizer que, já nos movimentos da vanguarda dos
anos 1920, o ensaio – numa acepção mais ampliada – se fazia
presente, como, por exemplo, no cinema de Jean Epstein, Hans
Richter ou mesmo na obra de Sergei Eisenstein. No entanto,
na maioria das vezes, o ensaio se vinculava mais ao cinema
documentário do que às ficções. Coube a alguns críticos franceses
nas décadas de 1950 e 1960 a caracterização de algumas obras
como ensaísticas. É o que faz, por exemplo, Godard, quando
diz, em um de seus aforismos cinematográficos, que Rossellini
se expressava através do ensaio. Numa acepção restrita e mais
atenta aos princípios formais, Suzanne Liandrat-Guigues (2004)
afirma que o gesto ensaístico pode se dar diante das câmeras, na
mise-en-scène, ou ainda na montagem, na narração ou na banda
sonora.
Kluge, em A patriota, faz uso, sobretudo, dos
artifícios da montagem e da narração. Sua dicção ensaística
está diretamente conectada a esses dois recursos. O próprio
cineasta se constitui como narrador, ora se apresentando como
o próprio realizador do filme, ora a partir da alegoria do joelho
do soldado Wieland.

66 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


Na fatura da obra, a forma do ensaio encontra sua
manifestação cinematográfica, por assim dizer, nas operações da
narração e da montagem. A maneira como a narração aparece
nos filmes de Kluge pode ser aproximada, de acordo com Peter C.
Lutze (1998), de uma orientação modernista. Para o comentador,
a narração (tão fundamental na constituição do gesto ensaístico)
tem, em Kluge, um caráter que é, ao mesmo tempo, ambivalente
e inovador: o cineasta é fascinado pelo processo de narração
clássico, todavia rejeita, por diversas vezes, os modelos tradicionais
de narração. Admirador confesso do Primeiro Cinema, Kluge se
aproxima dessas obras na medida em que constrói seus filmes
através de histórias episódicas que surgem como interrupções a
um fio condutor de uma narrativa linear, que supostamente teria
uma unidade causal entre espaço e tempo. O cineasta se apropria,
muitas vezes, dessa estrutura que, desde o surgimento do cinema,
mostra a capacidade que esta arte tem de modificar a própria
realidade. Neste sentido, pode-se mesmo dizer que não existe,
no Primeiro Cinema, uma tentativa de ilusionismo. A admiração
de Kluge está diretamente relacionada a essa capacidade que o
cinema tem de criar suas fábulas com elementos do real.
Segundo Lutze, Kluge pode ser colocado no patamar de
Franz Kafka, por se constituir como um fabulista que não está
preocupado em constituir estórias com algum tipo de moral
explícita. Em seus primeiros filmes, Despedida de ontem (1966)
e Artistas na cúpula do circo: perplexos (1968), a narrativa é
estruturada pela trajetória de suas personagens principais. Existe
uma narração em off que procura ressaltar certos aspectos da
vida de Anita e Leni (a meta de ambas nos respectivos filmes é
bastante vaga, tanto que, ao final, as duas acabam retornando ao
mesmo lugar: Anita para a prisão, Leni sem uma solução para o
seu circo). Posteriormente, a partir de Trabalho ocasional de uma
escrava (1973), o próprio Kluge passou a narrar seus filmes. A
possibilidade de narrar propiciou ao diretor um maior controle 16. “Kluge’s voice has a
das entonações e inflexões dadas ao texto. “A voz de Kluge tem very distinctive warmth and
intelligence. He is often
um calor e uma inteligência muito peculiares. Muitas vezes, ele ironic, but in a gentle rather
é irônico, mas de um modo gentil em vez de sarcástico. Ele cria than sarcastic way. He creates
an omniscient narrator, but
um narrador onisciente, mas também pessoal, que não prega ou also a personal one, who
constrange, mas quase sussurra para a audiência” (LUTZE, 1998: does not preach or compel,
but rather almost whispers to
85, trad. nossa).16 Para Lutze, essa mudança torna-se cada vez the audience” (LUTZE, 1998:
mais importante enquanto fonte de informação narrativa: “esta 85).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 67


17. “This oral storytelling narração oral evidencia tanto o papel do diretor quanto o processo
foregrounds both the role of
de narração” (LUTZE, 1998: 64, trad. nossa).17 A alteração no
the director and the process of
narration” (LUTZE, 1998: 64). procedimento oral da narração transforma, também, a forma de
constituição narrativa dos filmes. Se em Despedida de ontem e
em Artistas na cúpula do circo: perplexos a narrativa ainda não
se mostrava tão fragmentária quanto nos filmes seguintes, em
Trabalho ocasional de uma escrava já é possível observar alguns
fragmentos de outras imagens que aparecem na narrativa, como
acontece com as inserções do filme soviético Chapaev (Georgi e
Sergei Vasileyev, 1934).
Em razão dessa mudança das formas de narração e
nos usos de outras imagens em seus filmes, é possível, segundo
Lutze, compreender as estruturas narrativas em dois extremos:
um modelo tradicional mais próximo ao de Hollywood, com uma
trama linear de desenvolvimento direto (presente, em parte, nos
primeiros longas-metragens); e um modelo modernista de colagem
de arquivos diversos de pequenas narrativas cujas interconexões
são de ordem temática e estilística. Para Lutze, A patriota poderia
ser visto como um filme de transição entre os dois modelos, por
sua tentativa de traçar uma trajetória da personagem principal,
mas também por trazer outras micronarrativas, além de exibir,
em sua montagem, diversos fragmentos de imagens e narrações
em off. O ensaio opera então a partir da narração, na tentativa de
organizar os diversos fragmentos.
Além da narração presente na banda sonora, Kluge
insere, em diversos momentos, intertítulos que possuem uma
função não somente narrativa: “esses títulos têm uma função
estilística de contraste visual e repetição” (LUTZE, 1998: 84,
18. “These titles have a trad. nossa).18 Estes intertítulos, muitas vezes, se constituem em
stylistic function of visual
contrast and repetition”
citações sem uma referência clara a respeito de sua autoria. Para
(LUTZE, 1998: 84). Miriam Hansen (1983: 65, trad. nossa), “o uso de aspas obsessivo
por Kluge, figurativamente falando, enfatiza o próprio ato de
19. “Kluge’s obsessive use of enunciação, suspendendo e provocando, ao mesmo tempo, a
quotation marks, figuratively questão da autoria: um discurso em busca de espectadores que
speaking, foregrounds
the act of enunciation podem lembrar e rever”.19 Para Kluge, o texto é também imagem,
itself, suspending and assim como são elementos visuais as imagens de arquivo de
simultaneously provoking
the question of authorship: velhos filmes documentários ou de ficção, fotografias encontradas
a discourse in search em arquivamentos pessoais, revistas, livros, frames ou desenhos,
of spectators who can
remember and revise”
pinturas e outros tipos de ilustração. Cabe à operação de
(HANSEN, 1983: 65). montagem a reunião desses materiais.

68 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


“A combinação desses (...) tipos de materiais são utilizadas 20. “The combination of
these (...) types of material
em três modos diferentes de narração: condensação, ilustração
are utilized in three different
e excerto” (LUTZE, 1998: 87, trad. nossa).20 Essas três formas modes of storytelling:
de narração representam, em boa medida, modos de ensaio na condensation, illustration, and
excerpt” (LUTZE, 1998: 87).
obra do autor. Lutze afirma que os três modelos de narração e
montagem aparecem de diversos modos. A condensação surge,
normalmente, vinculada a uma temática de longa duração ou
explicação. O cineasta condensa, então, essa temática a partir
de algumas imagens e da narração. “Como um bom modernista,
Kluge salienta esse processo de colagem e as diferenças entre os
materiais midiáticos através do uso de câmera lenta, quadros
congelados e efeitos de íris” (LUTZE, 1998: 87, trad. nossa).21 Um 21. “Like a good modernist,
Kluge foregrounds this
exemplo desse modo de narração pode ser observado na cena em process of collage and the
que o diretor apresenta a história da invasão napoleônica ao usar differences between the
media by using slow motion,
uma ilustração do imperador francês e também pela narração
freeze frames, and iris
presente na banda sonora. framing” (LUTZE, 1998: 87).

A ilustração está diretamente ligada à maneira encontrada


por Kluge de representar determinado conto, passagem ou texto
por ele narrado em off. Como exemplo, Lutze retoma uma cena
de Despedida de ontem em que o diretor narra uma passagem de
um livro infantil ilustrado na qual um mamute da era glacial se
descongela nos tempos modernos. Em A patriota, no instante de
apresentação do joelho do soldado Wieland, por meio da leitura
do poema de Morgenstern, o cineasta associa a narração a antigas
pinturas, desenhos, fotografias e imagens de arquivo, de modo a
22. “This technique allows
ilustrar alguns momentos da história da Alemanha. “Esta técnica Kluge to take literary
permite a Kluge pegar materiais literários, tradições orais, ou material, oral traditions,
or original material and
materiais originais e visualizá-los sem representá-los” (LUTZE, visualize it without enacting
1998: 88, trad. nossa).22 it” (LUTZE, 1998: 88).

O terceiro modo de narração introduz uma parte de uma


representação visual (cena de um filme ou fragmento de uma ópera)
para que nela se possa “usar a narração para fornecer o contexto e
explicar a ação” (LUTZE, 1998: 88, trad. nossa).23 Nessa operação, 23. “Use the narration to
Kluge faz uso apenas da parte ou do episódio de um determinado provide the context and to
explain the action” (LUTZE,
conto, livro ou peça que lhe interesse naquele momento. Em O 1998: 88).
ataque do presente contra o resto do tempo, o cineasta mostra alguns
excertos da ópera Tosca, de Giacomo Puccini, enquanto comenta
as ações dos intérpretes. Algo que também ocorre em A patriota na
cena em que o Ministro da Cultura alemão, especialista em contos
de fadas, comenta alguns ensinamentos morais encontrados nessas

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 69


24. “This oral storytelling estórias. Depois da explicação do Ministro, Kluge, em off, comenta
allows Kluge to tell
importância que esses contos possuem na constituição da história
many more parallels and
interconnections, than alemã. Como reitera Lutze (1998: 89, trad. nossa), “esta narração
he could using standard oral permite a Kluge criar muitos outros paralelos e interconexões
narrative techniques in
standard ways” (LUTZE, do que seria possível se ele usasse técnicas narrativas convencionais
1998: 89). de modos padronizados”.24
A organização do material pelos modos de narração e pela
montagem dá a ver o método ensaístico cinematográfico de Kluge.
Encontramos na escritura do filme as ranhuras deste “método
antimetodológico” (na forma adorniana do ensaio): em uma
sequência do filme, vemos o rosto de Gabi Teichert em close-up. Um
corte na montagem e temos a figura de elefantes sobre o casco de
uma tartaruga. Trata-se do mito do planeta em formato plano, que,
posteriormente, foi contestado por Copérnico. Para Kluge, existem
vários modelos de explicação do mundo ao longo da história e
várias mudanças no pensamento e nos paradigmas científicos.
Em outra cena, a professora de Hesse vasculha textos e
documentos. A câmera, posicionada do lado de fora, observa a ação da
personagem. O narrador afirma que ela corrige os trabalhos de seus
alunos nesse instante. Em um papel, lemos a seguinte mensagem:
“As montanhas se levantarão um dia, elas estão dormindo por
curto período de tempo”. Como podemos notar, há na operação de
montagem de A patriota um jogo complexo de relações. O trabalho
rotineiro da personagem é atravessado pelo aparecimento dos
elementos textuais que reconfiguram sua ação. Kluge abre espaço
para que as frases enigmáticas criem interpretações diversas. “Não
se trata aqui de restaurar a significação primária da imagem, mas
de ampliar o campo, de maneira a produzir um tipo de excesso de
sentido: o filme nasce, como afirma Kluge, na cabeça do espectador”
25. “Il ne s’agit pas ici de (BLÜMLINGER, 2004: 64, trad. nossa).25 Estamos diante de um
rétablir la signification
prèmiere de l’image, mais
processo ensaístico que conjuga imagens, sons e narração de uma
d’en élargir le champ, de maneira aberta, que deixa, propositadamente, parte do sentido
manière à produire une em suspenso. As informações e relatos dados na banda sonora
sort d’éxces de sens: le film
naît alors, comme dit Kluge, acabam por complicar e multiplicar as significações carregadas
dans la tête du spectateur” pelas imagens, textos e sons. Trata-se de trabalho meticuloso e
(BLÜMLINGER, 2004: 64).
polifônico que intercruza tempos, informações e imagens em um
tecido marcado por diversos pontos de vista. Kluge procura, assim,
organizar os materiais de acordo com um princípio de ruptura que,
como elucida Miriam Hansen, ocorre entre os diferentes níveis
cinematográficos: entre a imagem em movimento e a escrita, entre

70 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


a imagem, a voz e a música, entre períodos diferentes de imagens;
entre um sentido épico do tempo e da temporalidade dos números,
cenários e miniaturas.
As rupturas desse processo de criação podem ser observadas
em outra cena. Um homem cava um buraco. O narrador afirma:
“Enterrado sob a cidade de mentiras sem detonar bombas da
Segunda Guerra Mundial e objetos de valor do imperador Augusto
e os Celtas. Primeiramente ele encontrou apenas copos, potes,
utensílios. Agora eles são tesouros. O museu da história antiga está
equipado. Agora em todo lugar, um trator cava um pouco de terra,
e cidadãos, chamados de ladrões de tumbas, cavam e salvam os
tesouros da história”. A operação da montagem, nessa passagem,
reforça o caráter transformador que ela tem dentro da obra. Uma
simples escavação transforma utensílios simples em vestígios de
um passado soterrado. A história é escrita a partir dos materiais
encontrados por seus escavadores. No comentário do narrador, há
sempre uma orientação irônica: a história transforma utensílios
comuns em tesouros e os ladrões de tumbas em historiadores.
A reconfiguração do sentido de um objeto ao longo da história
é de grande interesse para o cineasta. Não é por menos que ele
reconhece que, em todos os vestígios soterrados, há uma maneira
de se contar a história. Para ele, qualquer um que vasculha e cava
a terra em busca dos vestígios age como um historiador.
A sequência seguinte traz um plano de Gabi Teichert ao
lado do coveiro da cena anterior. Ela pergunta o quão profundo ele
pode cavar. “Zero metros é a regra”. “Zero metros? Isso é nada”,
indaga a professora. Mais uma vez, a escavação torna-se uma
tentativa de Teichert de encontrar os vestígios dessa outra história
que não aquela encerrada nos livros que seus alunos leem em
sala de aula. Segundo Blümlinger, o objetivo de Godard em Aqui
e acolá (1975) é “atribuir a uma dada imagem uma nova imagem,
para criar um estágio intermediário que transporta o pensamento
ao coração da imagem. Nesse espaço vazio, a imagem pode ser
radicalmente colocada em questão” (BLÜMLINGER, 2004: 65,
26. “Il s’agit d’attribuer, à une
trad. nossa).26 Podemos dizer que esse tipo de deslocamento surge image donnée, une image
também em A patriota, na maneira com que Kluge se apropria nouvelle, pour créer un
entre-deux qui transporte la
de outras imagens e, através do artifício da narração, desloca
pensée au coeur de l’image.
os seus sentidos. Ao apresentar uma imagem de arquivo (como, Dans cet espace vide, l’image
por exemplo, a imagem de aviões de guerra em um bombardeio) peut être radicalement mise
en question” (BLÜMLINGER,
junto a uma encenação (os desarmadores de bombas em 2004: 65).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 71


conversa em um esconderijo, um bunker), esses dois fragmentos
são reconfigurados. O ensaio, que, segundo Adorno, possibilita
essa liberdade de elaboração frente a certo tipo de cientificismo,
garante a Kluge um procedimento admirável no deslocamento
das imagens, com possibilidades diversas de poder combiná-las e
delas obter uma escrita condizente com as propostas do filme em
relação a uma outra história da Alemanha.
O ensaio vem, portanto, promover conexão entre esses
fragmentos. O resultado de toda a busca e combinação seria o
gesto ensaístico e o olhar para a história. O emblema máximo dessa
empresa está na personagem de Gabi Teichert e na maneira como
ela questiona a história e ensaia uma outra. Kluge rompe com uma
tradição positivista e cientificista de se conceber a história para
dar vazão a um método que combina fatos, expressões artísticas,
literárias e memorialísticas. “O que continua importante é o fato
de Kluge ainda afirmar sua crença nos ‘fantasmas do passado’,
como Marx, Eisenstein e Brecht” (KOUTSOURAKIS, 2011: 222,
27. “What remains important trad. nossa).27 Koutsourakis ainda diz que, “apesar dele [Kluge]
is that Kluge still affirms
his belief in the ‘ghosts of
não partilhar totalmente das suas certezas ideológicas [desses
the past’, such as Marx, autores], ele constantemente volta a eles e os relê, de modo a
Eisenstein and Brecht”
questionar a naturalização do capitalismo” (KOUTSOURAKIS,
(KOUTSOURAKIS, 2011: 222).
2011: 222, trad. nossa).28 No ensaio cinematográfico, o cineasta
28. “Despite the fact that
e escritor encontra uma forma libertária para lidar com essas
he does not share their questões atravessadas pelo capitalismo e pela história.
ideological certainties, he
constantly returns back to Talvez, a liberdade concedida pela forma do ensaio e seus
them and re-reads them
lances mais inventivos necessitem dessa deriva indagadora (e
so as to question the
naturalization of capitalism” desnorteadora) à qual se entrega a protagonista. Em seu percurso,
(KOUTSOURAKIS, 2011: 222). Gabi Teichert faz diversas experiências: participa de conferências,
questiona seus contemporâneos, estuda livros e documentos, faz
medições dos corpos das pessoas e mistura, em um laboratório,
livros e documentos, perfura-os, corta-os, transforma-os em
líquido e bebe, a fim de compreender o que de fato busca. Talvez
essa busca tenha, também, algo a ver com o corpo daqueles que
experimentam as situações que permanecem invisíveis na escrita
corrente da história. Entre as pequenas estórias, os contos, os
mitos, as canções, as ilustrações e os acontecimentos históricos
talvez exista uma linha em zigue-zague a qual somente o ensaio
pode percorrer, livremente, passando por diferentes escalas de
temporalidade, para colocar em questão as causas até então
atribuídas aos fatos.

72 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


REFERÊNCIAS

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VEYNE, Paul. Histoire, Encyclopaedia Universalis, vol. VIII. Paris:
Encyclopaedia Universalis, 1968.

FILMES

AQUI e acolá (Ici et ailleurs). Jean-Luc Godard e Anne-Marie


Miéville, França, 1975, 52 min.
ARTISTAS na cúpula de circo: perplexos (Die Artisten in der
Zirkuskuppel: ratlos). Alexander Kluge, República Federal da
Alemanha, 1968, 103 min.
CHAPAEV (Chapaev). Georgi Vasilyev e Sergei Vasilyev, URSS,
1934, 96 min.
DESPEDIDA de ontem (Abschied von gestern). Alexander Kluge,
1966, República Federal da Alemanha, 1966, 84 min.
NOITE e neblina (Nuit et brouillard). Alain Resnais, França e
Alemanha, 1955, 20 min.
PATRIOTA, A (Die Patriotin) Alexander Kluge, República Federal
da Alemanha, 1979, 120 min.
TRABALHO ocasional de uma escrava (Gelegenheitsarbeit einer
Slavin). Alexander Kluge, República Federal da Alemanha,
1973, 87 min.
ÚLTIMA companhia, A (Die letzte kompagnie). Curtis Bernhardt,
Alemanha, 1930, 79 min.

74 Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral


Data do recebimento:
06 de abril de 2015

Data da aceitação:
09 de junho de 2015

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015 75


Apontamentos sobre o uso de
arquivos históricos: acerca de
Noite e neblina

Rodrigo Carreiro
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFPE).
Doutor e Mestre em Comunicação pela UFPE, e Bacharel em Jornalismo pela
Universidade Católica de Pernambuco.

Ricardo Lessa Filho


Mestrando do PPGCOM da UFPE, e jornalista formado pelo Centro Universitário
Cesmac (AL).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015


iResumo: Este artigo parte da análise de cenas de um dos mais importantes filmes
feitos sobre o Holocausto, Noite e neblina (Alain Resnais, 1955), para insistir
na validade histórica das imagens de violência produzidas durante o conflito,
argumentando que mesmo manipulações posteriores ou pequenas inexatidões
históricas na apresentação não são capazes de obscurecer, invalidar ou desvalorizar
o uso de fotografias e imagens em movimento como documentos históricos
Palavras-chave: Documentário. Arquivo. Holocausto. Alain Resnais.

Abstract: This paper makes an analysis of some images of one of the most important
films made about the Holocaust, Night and Fog (Alain Resnais, 1955), to insist on
the historical validity of the images of violence produced during the conflict. We
argue that even subsequent manipulations or minor historical inaccuracies in the
presentation of these images are not able to obscure, invalidate or depreciate the
use of photographs and moving images as historical documents.
Keywords: Documentary. File. Holocaust. Alain Resnais.

Résumé: Cet article analyse certaines images de l’un des films les plus importants
sur l’Holocauste, Nuit et Brouillard (Alain Resnais, 1955), en revenant sur la validité
historique des images de violence produite pendant la guerre. Nous soutenons
que même les manipulations ultérieures ou les petites imprécisions historiques
dans la présentation de ces images ne parviennent pas à masquer, à invalider ou la
valeur historique des documents photographiques et des images en mouvement du
génocide.
Mots-clés: Documentaire. Déposer. Holocauste. Alain Resnais.

78 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Introdução: sobre o valor dos arquivos documentais
Apesar de terem sido lançados com trinta anos de intervalo
entre si, Noite e neblina (Nuit et brouillard, Alain Resnais, 1955) e
Shoah (Claude Lanzmann, 1985) são, sem duvida, os dois filmes
mais conhecidos e aclamados que tematizaram o Holocausto
contra o povo judeu. Apesar disso, eles compartilham pouco
mais do que o evento histórico que lhes serve de tema; são filmes
de estética completamente diferente, a começar mesmo pela
duração – 32 minutos da produção de Resnais contra 566 minutos
do titulo concebido pelo historiador Lanzmann. Mas a diferença
mais marcante, e também mais polêmica, reside provavelmente
no uso que ambos dão aos arquivos como documento histórico.
Como se sabe, Shoah está fundado sobre um hercúleo
trabalho de pesquisa, através da qual Claude Lanzmann localizou
testemunhas do Holocausto, persuadiu-as a lhe conceder
depoimentos (alguns muito longos e minuciosos) e construiu
a narrativa inteiramente sobre a palavra falada dessas pessoas,
a maioria sobreviventes de campos de concentração nazistas.
Lanzmann recusou quase que completamente o uso de arquivos
de imagens da Segunda Guerra Mundial.

As imagens de arquivo são imagens sem imaginação.


Elas petrificam o pensamento e matam todo o poder de
evocação. Vale bem mais fazer o que fiz, um imenso trabalho
de elaboração, de criação da memória do acontecimento.
O meu filme é um ‘monumento’ que faz parte daquilo que 1. Les images d’archivé
monumentaliza como diz Gérard Wajcman. [...] Preferir o sont des images sans
arquivo fílmico às palavras das testemunhas, como se pudesse imagination. Elles pétrifient
mais do que estas, é reconduzir sub-repticiamente esta la pensée et tuent toute
desqualificação da palavra humana na sua destinação para a puissance d’évocation. Il
vaut bien mieux faire ce que
verdade. (LANZMANN, 2001: 274, trad. nossa)1
j’ai fait, un immense travail
d’élaboration, de création de
la mémoire de l’événement.
Mon film est un “monument”
A posição absolutamente inflexível de Lanzmann a esse qui fait partie de ce qu’il
respeito, aliada à quantidade nada desprezível de críticas que monumentalise, comme le
dit Gérard Wajcman. [...]
lançou em muitas ocasiões a várias obras que tentaram documentar Préférer l’archive filmique
e/ou discutir o Holocausto, lhe renderam críticas pessoais e uma aux paroles des témoins,
fama de enfant terrible, uma espécie de guardião carrancudo que comme si celle-là pouvait
plus que celles-ci, c’est
se apossou do evento histórico, atribuindo a si próprio a suposta subrepticement, reconduire
de protegê-lo de quaisquer tentativas de representação – porque cette disqualification de
la parole humaine dans sa
o Holocausto, para Lanzmann, é um evento irrepresentável. destination à la vérité.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 79


Essa posição tem sido objeto de contestação há muitas
décadas. Tomando Noite e Neblina como estudo de caso, este artigo
pretende examinar com rigor o uso de fotografias e registros de
imagem em movimento, feitos ao longo da guerra e utilizados
por Alain Resnais em seu filme, a fim de demonstrar que o caráter
delicado da obra não obscurece seu caráter documental e nem
seu valor simbólico, e que eventuais inexatidões históricas e/ou
retoques visuais, como aqueles realizados pelo diretor francês,
não reduzem em nada o caráter histórico de Noite e neblina,
tampouco provocando qualquer tipo de desvalorização da palavra
testemunhal, como sugere o argumento de Lanzmann.

Arquivos, memórias e História


O filósofo Georges Didi-Huberman descreve que o filme de
Resnais, tal como mais tarde Shoah, começa com a dor imóvel de
paisagens vazias ou, pior ainda, banais. Ele relembra a voz de Michel
Bouquet, declamando parte do texto escrito por Jean Cayrol (e
revisado por Chris Marker), que abre o filme: “mesmo uma paisagem
tranquila, mesmo uma pradaria com voos de corvos, colheitas e
queimadas, mesmo uma aldeia de férias, com uma feira e um sino,
podem conduzir simplesmente a um campo de concentração”.
Shoah, continua Didi-Huberman, perturbou-nos com as clareiras
vazias do campo de concentração de Chelmno, reconhecida por
Simon Srebnik, assim como Noite e neblina perturbou-nos com
seus campos vazios percorridos por extraordinários “travellings sem
tema” (DIDI-HUBERMAN, 2012: 165).
Esses travellings, também percebidos por Alain Fleischer,
apontam no filme de Resnais para um desapossamento do drama
e do espetáculo, nos quais o movimento da câmera captura não o
elemento humano, mas o vazio, o abismo, um fantasma:

Em travellings lentos, a câmera não se mexe senão nos


cenários vazios, reais e vivos – ligeira agitação dos tufos de
erva – mas vazios de qualquer ser, e de uma realidade quase
irreal à força de pertencer a um mundo que, para mais, é o de
uma improvável, impossível sobrevivência. A câmera parece
deslocar-se em vão, sem efeitos reais, desapossada do drama,
do espetáculo que estes movimentos parecem acompanhar,
mas que não são senão os de fantasmas invisíveis. Tudo está
vazio, imóvel e silencioso; fotografias seriam suficientes. Mas,

80 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
precisamente, a câmera move-se, ela é a única a mover-se, 2. La caméra ne bouge, en
ela é a única vida, não há nada a filmar, ninguém, só resta o lents travellings, que dans
cinema, não há nada de humano e de vivo a não ser o cinema, des décors vides, certes réels
diante de alguns vestígios insignificantes, derrisórios, e é este et vivants - légère agitation
des touffes d’herbe - mais
deserto que a câmera percorre, é sobre ele que ela inscreve o
vides de tout être, et d’une
rastro suplementar, rapidamente apagado, dos seus trajetos réalité presque irréelle à force
muito simples. (FLEISCHER, 1998: 33, trad. nossa)2 d’appartenir à un monde qui
est plus encore celui d’une
improbable, d’une impossible
survie. La caméra semble se
Durante a montagem do filme, neste raro momento em déplacer pour rien, à blanc,
que o homem pode controlar o nascimento da efígie, Resnais, dépossédée du drame, du
spectacle que ces mouvements
confrontado com a “nova” natureza daquelas imagens, foi semblent accompagner mais
acometido por uma vertigem insustentável: qui ne sont plus que ceux de
fantômes invisibles. Tout est
vide, immobile et silencieux, et
des photographies pourraient
Tinha certa impressão de irrealidade, porque pegar uma suffire. Mais précisément, la
dessas tomadas com outra, logo deslocá-la para obter certo caméra bouge, elle est seule
efeito... me dava má consciência, e ao mesmo tempo me à bouger, elle est la seule vie,
obrigava a refletir sobre a condição humana... fiz a montagem il n’y a rien à filmer, personne,
il n’y a que du cinéma, il
do filme em uma espécie de estado de vertigem. (RESNAIS
n’y a plus d’humain et de
apud LINDEPERG, 2009: 59 trad. nossa)3 vivant que le cinéma face à
quelques traces insignifiantes,
dérisoires, et c’est ce désert
que la caméra parcourt, c’est
Essa vertigem se apoderou de boa parte da equipe que sur lui qu’elle inscrit la trace
estava ajudando na montagem do filme, como aponta Sylvie supplémentaire, aussitôt
effacée, de ses trajets très
Lindeperg (2009: 59, trad. nossa) a partir da recordação de Henri simples.
Colpi, ao relatar o momento de pânico de Anne Sarraute, assistente
de direção, quando foi deixada sozinha por alguns minutos na sala de 3. Lenía cierta impresión de
irrealidad, porque pegar
montagem: “[ela] enlouqueceu quando viu na moviola uma tomada una de esas tomas com
que nunca havia visto, e que era um horror. Teve medo, saiu correndo otra, luego desplazarla para
obtener cierto efecto... daba
e veio nos buscar, com o coração batendo desesperadamente”.4 mala conciencia, y al mismo
Esta vertigem que é também um malaise, no sentido proposto por tiempo lo obligaba a uno a
reflexionar sobre la condición
Danielle Quinodoz (1997), como aquilo que pode causar uma humana... Se hizo el montaje
fraqueza, uma perda dos poderes mentais e físicos, sudorese fria, del film en una especie de
estado de vértigo.
náusea etc. A destruição absoluta a partir de uma montagem nos faz
sim compreender a profunda vertigem da equipe que trabalhava na 4. Enloqueció cuando vio
Rue de Poissy; afinal, como suportar tais imagens? Assim, en la moviola una toma que
nunca había visto, y que era
un horror. Tuvo miedo, salió
corriendo y vino a buscarnos,
[...] a vertigem não exclui o rigor, e o risco de cair, con el corazón latiendo
intencionalmente, na “má consciência”, cada tomada de Noite desaforadamente.
e neblina está colocada com uma precisão e uma maestria que
5. El vértigo no excluye el
provam o excepcional talento de um montador que dava a esta
rigor, y a riesgo de caer,
etapa do trabalho uma função equivalente a uma encenação. sabiéndolo, en la “mala
Este confronto da arte com a dor e o trágico foi produzido na conciencia”, cada toma de
Rue de Poissy. (LINDEPERG, 2009: 59, trad. nossa)5 Noche y niebla está colocada

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 81


con una precisión y una Há uma espécie de “outro mundo” habitando as imagens
maestría que prueban el
de Noite e neblina, como se um excerto das imagens de arquivo
excepcional talento de un
montajista que daba a esta que Resnais se utiliza tivessem sido capturadas a partir de
etapa del trabajo una función uma dimensão de vestígios inumanos: os corpos mutilados, os
equivalente a la puesta en
escena. Esta confrontación del corpos desmembrados das cabeças, os corpos ora incinerados
arte con el dolor y lo trágico se completamente, ora parcialmente, as crateras que atravessam a
produjo en la Rue de Poissy.
pele e a face humanas, a bacia que sustenta uma pilha de crânios de
homens e mulheres (e a máxima de Lévinas, que dizia que era o rosto
humano que impedia o homem de matar, foi aniquilado), os sabões
feitos a partir da gordura do corpo humano, os mortos esquálidos
que morrem de olhos abertos, a imagem dos “muçulmanos”, estes
6. Para mostrar hasta qué
homens mais mortos do que vivos... “para mostrar até que ponto se
punto se trata de otro mundo, trata de outro mundo”, diz Resnais, e “nos esforçamos para montar
nos esforzaremos por montar
cortos los planos generales y
curtos planos gerais e longos primeiros planos” (RESNAIS apud
largos los primeros planos. LINDEPERG, 2009: 59, trad. nossa).6
E diante das fusões entre a imagem-arquivo (as imagens
em preto e branco) e as imagens do presente (daquele presente de
1955, filmadas a cores), existe uma diferença estilística considerável,
perfeitamente visível ao analisarmos a duração média dos planos, a
saber: as imagens-arquivo duram de dois a cinco segundos, enquanto
as imagens coloridas duram aproximadamente entre quinze e vinte
segundos cada. Além disso, como mais detalhadamente aponta
Linderperg (ibid.), as tomadas coloridas que representam um terço
do filme são apenas vinte e oito, enquanto as tomadas em preto e
branco totalizam 279, trazendo a conclusão de que “um plano em
cores dura em média o mesmo que quatro ou cinco planos em preto
e branco”. O ritmo do filme, como escreve a historiadora francesa,
estaria dado pela oposição entre a alternância do movimento
“amplo e longo” das sequências coloridas, e o movimento “brusco,
entrecortado” das imagens de arquivo.
A preferência formal de Resnais por longos primeiros
planos em detrimento dos planos gerais curtos tem uma
consequência estética: fragmenta o corpo das vítimas e deixa um
rastro preparatório que evoca a transformação do ser humano
em coisa, alguma coisa que pode ser trocada, experimentada, ou
simplesmente exterminada.
Vale lembrar que as imagens de arquivo que Resnais
utiliza em Noite e neblina não são somente as imagens filmadas
dos campos nazistas (sejam quando estes ainda funcionavam,

82 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
sejam logo após a liberação), mas o cineasta francês também
recorre a imagens da genealogia do cinema para compor o
conjunto de arquivos que é o seu filme. Nos primeiros planos
de Noite e neblina, Resnais utiliza fotogramas de O triunfo da
vontade (1934) (fig. 1), de Leni Riefenstahl, assim como um
plano de A última etapa (1948) (fig. 2), de Wanda Jakubowska,
quando um grupo de soldados, cobertos por uma névoa que
amplifica a obscuridade da paisagem, vigia os deportados que
estão saindo dos vagões de um trem.

Figura 1: Imagem de O triunfo da vontade (1934) presente em Noite e neblina (1955)

Figura 2: Um plano de A última etapa (1948) presente em Noite e neblina (1955)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 83


7. No famoso artigo Le O sempre cirúrgico Serge Daney tinha razão, como aponta
travelling de Kapo, Daney
Didi-Huberman: Noite e neblina apostava em abalar a memória
escreve: “Eu ouvi o
comentário desolado de partindo de uma contradição entre documentos inevitáveis da
Jean Cayrol na voz de Michel história e marcas repetidas do presente.7 Estes documentos da
Bouquet e a música de Hanns
Eisler que parecia odiar história são as famosas imagens de arquivo – a preto e branco –, que
existir. Estranho batismo deixaram mudos de pavor os espectadores da época e que o cineasta
de imagens: compreender
ao mesmo tempo que os Claude Lanzmann, hoje, pretende refutar pelo que considera como
campos eram verdadeiros e falta de rigor histórico,8 embora o arquivo “felizmente não esgota
que o filme era justo. E que o
cinema – ele sozinho? – era nem seus mistérios nem sua profundeza” (FARGE, 2009: 12).
capaz de acampar nos
limites de uma humanidade Devido a sua natureza sobrevivente, não há razão para
desnaturada. Eu sentia que desprezar o arquivo, como fez Lanzmann, porque é ele mesmo uma
as distâncias estabelecidas
por Resnais entre o assunto prova possível do que foi o nazismo; testemunhos é aquilo que essas
filmado, o sujeito filmante e imagens-arquivo são, porque embora deslocadas e fragmentadas,
o sujeito espectador eram,
em 1959 como em 1955,
apesar de sua natureza incompleta, elas nos permitem pensar e
os únicos possíveis. Noite ver a ferida diante da humanidade que o Lager impôs. As marcas
e neblina, um ‘belo’ filme?
Não, um filme justo” (DANEY,
do presente, diz o Didi-Huberman, vêm do “olhar sem tema”
1992). que Resnais lança sobre as paisagens vazias dos campos nazistas
filmados em cores, “mas vêm também de uma vontade de dar todo
8. Didi-Hubernan revive o espaço sonoro do filme a dois sobreviventes das perseguições
um depoimento de Claude
Lanzmann a Vincente Lowy
nazistas:9 não testemunhos no sentido estrito da palavra, mas escritas
no seu livro L’Histoire voluntariamente distanciadas” (DIDI-HUBERMAN, 2012: 168).
infilmable, em que o
documentarista francês diz a Georges Didi-Huberman por fim aponta para a decisão
um projetista que, caso Noite
e neblina seja exibido na
formal – de índice radical – que Alain Resnais elege para o seu
sessão anterior a Shoah, ele documentário, e onde essa escolha comporta sempre uma aporia
cancelará a exibição do seu correlativa, já que o que é atingido num dado momento, perde-se
filme, já que nas palavras do
próprio: “a confrontação ou a noutro:
contiguidade dos dois filmes
não tem sentido. Mesmo se
o tema é idêntico, Shoah não
tem nada a ver com Noite e Nas escolhas que faz relativamente à duração dos planos e
neblina” (DIDI-HUBERMAN, à montagem, Resnais atinge esse poderoso sentimento de
2012, p.170). Essa é apenas presente, que nos dá uma representação sintética daquilo que
mais um dentre os tantos poderia ser “um campo” na Alemanha nazi. Consequentemente,
atos polêmicos de Claude “os campos” não se distinguem e a dimensão da análise
Lanzmann em relação a histórica passa para segundo plano (lembramos que a distinção
tudo aquilo que veio antes entre campos de exterminação e de concentração ainda não
ou depois de seu filme
era prática corrente na historiografia dos anos cinquenta).
Shoah. De alguma maneira,
Lanzmann tenta fazer de seu Consequentemente, a imagem dos corpos esqueléticos vem
filme a verdade absoluta constituir um “ecrã que se interpõe ao massacre de mulheres
da catástrofe, optando e de crianças perfeitamente sãs, conduzidas às câmaras de
pela não utilização de gás mal acabavam de descer dos vagões”. (DIDI-HUBERMAN,
outras imagenss, os outros 2012: 168)
testemunhos fissurados;
enfim, impossibilitando, à
luz de sua obra máxima,

84 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
As imagens de arquivo utilizadas em Noite e neblina que os vestígios de parte
fundamental da história
exibem um excerto fundamental da história dos campos nazistas,
sejam reavaliados, estudados
momentos desoladores e assombrosos, onde a natureza do novamente como um esforço,
testemunho e do arquivo reivindicam tanto as suas partes corroídas por mais frágil que ele seja,
de tentar compreender um
quanto seus papeis históricos e imprescindíveis. No panorama pouco mais dessa cesura
arquivista que Resnais monta, há um espectro de abandono, de legada à humanidade.

lacunas atravessadas, de gritos da morte sufocados; da imagem dos


9. Os dois sobreviventes
campos emana uma orfandade, um luto pelo homem exterminado das perseguições nazistas
pelo homem. O arquivo, como escreveu Arlette Farge (2009: a que Didi-Huberman faz
referência são justamente
20), “ao mesmo tempo que invade e imerge, ele conduz, por sua o poeta francês Jean Cayrol,
desmesura, à solidão”. Solidão e abandono que essas imagens em sobrevivente do campo de
Mauthausen-Gusen, que
sua dolorosa tarefa de transmissão legaram ao mundo. foi convidado por Resnais
para escrever o texto de
A imagem cesurada das câmaras de gás que o filme Noite e neblina, e Hanns
gravou à eternidade, aquele espaço onde o homem, como disse Eisler, compositor alemão
e responsável pela banda
Blanchot, foi destruído apesar de sua indestrutibilidade, este sonora do filme, que fugiu da
silêncio mesmo que contamina tanto o tempo da obra de Resnais: Alemanha nazista em 1933.
os fantasmas daqueles mortos por gaseamento habitam o quadro
do filme e o metro quadrado do chão, quando a câmera invade
uma das câmaras de gás, esta ruína absoluta criada pelo homem
para exterminar o seu semelhante, retirando-lhe qualquer
esperança, destituindo-o de qualquer verdade. Assim, recordemos

a foto de origem norteamericana que mostra os deportados


deitados em seus dormitórios em Buchenwald, a foto do
“muçulmano” tirada pelos ingleses em Sandbostel; a imagem
do deportado sustentado por seus camaradas em Wobbelin sob
o olhar dos soldados norteamericanos; a foto do moribundo
com os olhos desorbitados – que faz lembrar do olhar de Van
Gogh – tirada por Germaine Kanova no campo de Vaihingen 10. La foto de origen
em 13 de abril de 1945. (LINDEPERG, 2009: 61, trad. nossa)10 norteamericano que
muestra a los deportados
ocostados en sus camastros
en Buchenwald, la foto del
Ou ainda quando vemos um último efeito da montagem, “musulmán” tomada por los
ingleses en Sandbostel; la
igualmente criticado por certos historiadores, no que toca a sequência imagen del deportado sos
do “aniquilamento”. Mostrando a visita de Himmler a Auschwitz em tenido por sus camaradas
en Wobbelin bajo la
julho de 1942, o excerto do filme está organizado assim: mirada de los soldados
norteamericanos; la foto
del moribundo con los ojos
desorbitados – que hace
[...] travelling ao longo da coluna de pessoas detidas; comboio
recordar la mirada de Van
acentuado; trem de Dachau; fotografia do “Álbum de Auschwitz” Gogh – tomada por Germaine
que mostra a seleção na rampa de Birkenau; seis fotografias Kanova en el campo de
de homens, mulheres e crianças nus ou que se despem antes Vaihingen el 13 de abril de
de sua execução; plano fixo das caixas de Zyklon B; sequência 1945.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 85


11. Travelling a lo largo de em cores da câmara de gás. Esta montagem é tributária das
una columna de personas ambivalências da escritura do roteiro e da versão final do texto
detenidas; convoyen picado; de Jean Cayrol. Ocultando toda referência a “Solução final”,
tren de Dachau; fotografía o comentário apresenta implicitamente a câmara de gás como
del “Álbum de Auschwitz”
uma das modalidades da morte do conjunto de deportados. Mas
que muestra la selección
en la rampa de Birkenau;
sim, com exceção da tomada do trem com os cadáveres, filmada
seis fotografías de hombres, durante a liberação de Dachau, os documentos de arquivo que
mujeres y niños desnudos compõe esta sequência se referem, todos, à destruição dos
o que se desvisten antes judeus europeus. (LINDEPERG, 2009: 64-65, trad. nossa)11
de su ejecución; plano
fijo de las cajas de Zyklon
B; secuencia en colores
en la cámara de gas. Este E diante do profundo impacto que as imagens, à luz da
montaje es tributario de
las ambivalencias de la
montagem do filme, tiveram sobre Resnais e sua equipe, alguns
escritura del guión y de la equívocos históricos ocorreram, a saber: as seis fotografias exibidas
versión final del texto de em Noite e neblina mostram as vítimas fotografadas antes da
Jean Cayrol. Ocultando toda
referencia a la “Solución execução por tiros; no roteiro do filme, quando a quinta imagem
final”, el comentario aparece, a montagem nos leva a acreditar na legenda, “fotos alemãs
presenta implícitamente la
cámara de gas como una tiradas na União Soviética”, o que se revela um erro factual. A quarta
de las modalidades de la imagem, de mulheres nuas juntas a uma cova (algumas levam bebês
muerte del conjunto de
deportados. Pero, si se nos braços), como aponta Lindeperg (2009: 65, trad. nossa), é
exceptúa la toma del tren bastante conhecida e na verdade “se trata de mulheres e crianças
con los cadáveres, filmada
durante la liberación de judias no gueto de Mizocz, fotografadas antes de suas execuções
Dachau, los documentos de pela polícia ucraniana em outubro de 1942” .12 Como é destacado
archivo que componen esta
secuencia se refieren, todos,
por Clément Chéroux (2003) na sua coletânea de imagens e teorias
a la destrucción de los judíos sobre o erro fotográfico, essa famosa imagem, reproduzida tantas
europeos.
vezes, foi durante muito tempo usada erroneamente em vários livros
12. se trata de las mujeres
de história como sendo a entrada dos deportados na câmara de gás.
y los niños judíos del gueto
de Mizocz, fotografiados Se o arquivo foi incluído de forma historicamente
antes de su ejecución por la incorreta dentro do filme, distorcendo o seu significado original, é
policía ukraniana en octubre
de 1942.
compreensível que este erro tenha sido fruto de um maelstrom de
imagens sobreviventes, como ao mesmo tempo da violência que
quem as vê é compelido a suportar. Esta tarefa de resistência à
imagem do horror da catástrofe nazista, aliás, tem um momento
delicado e caro ao nosso trabalho, quando Resnais utiliza em seu
filme uma das quatro imagens tirada em agosto de 1944 pelo judeu
grego Alex, um dos membros do Sonderkommando, no Crematório
V de Auschwitz-Birkenau. Neste caso específico, a incorreção se
encontra no reenquadramento do fotograma (fig. 3) promovido
pelo cineasta francês, uma operação imagética sutil, mas que acaba
por reduzir a terrível circunstância em que a fotografia foi tirada
– ela elimina a assustadora sombra da porta, presente no arquivo
original, corte que acaba por excluir o perigo moral e o caráter
secreto e proibido do esconderijo do autor da foto, para o qual

86 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
a silhueta da escuridão foi cúmplice essencial do gesto heroico,
passível de punição com morte imediata. Tal sombra ameaçadora
está presente na foto original (fig. 4).

Figura 3: Foto de um dos membros do Sonderkommando reenquadrada para Noite e neblina,


mostrando cadáveres a serem incinerados

Figura 4: Foto original tirada pelo Sonderkommando

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 87


Diante dessas imagens fundamentais que nos permitem
apontar uma ideia do que foi a Shoah, apesar da natureza terrível
da mesma, que torna difícil qualquer pensamento lógico, por qual
motivo um filme como Noite e neblina, testemunho repleto de
vestígios – como é, de fato, todo o testemunho da catástrofe –,
sofreu e ainda sofre um afrontamento de especialistas da história
e autores de imagens, em particular a obstinada cruzada anti-
arquivo liderada por Claude Lanzmann, que apontam no filme de
Resnais uma natureza abjeta por causa da presença de arquivos
como este? Talvez seja porque o filme mostra, com uma rudeza
crua e chocante, aquilo que jamais deve ser extinto: a imagem da
destruição (quase) total do homem.
O arquivo, ao existir, não somente legitima
historicamente uma história de extremo horror e racismo,
mas também difunde e transmite um fragmento da dimensão
horrorífica daquilo nele gravado – uma dimensão que a
palavra, cuja validade histórica é defendida por Lanzmann, por
mais fundo no abismo que ela possa ir (caso, sem dúvida, dos
depoimentos contidos no filme Shoah), não conseguirá reter
de forma tão indelével como o fazem as imagens de arquivo
que Noite e neblina nos permite ver: a perpétua memória do
horror (real) cravado no cinema.
Mesmo nos equívocos que a utilização de imagens de
arquivo possam vir a conter, o arquivo, o seu relevo de catástrofe,
fundamenta a percepção de “onde as vidas colidem com o poder
sem que tenham optado por isso”, e que é “preciso ordenar
pacientemente essas situações trazidas à luz por esse choque
súbito, demarcar as descontinuidades e as distâncias”, porque
o “real do arquivo torna-se não apenas vestígios, mas também
ordenação de figuras da realidade; e o arquivo sempre mantém
infinitas relações com o real” (FARGE, 2009: 35).
Existe um momento, aproximadamente no nono
minuto do filme, em que o narrador do texto de Cayrol, Michel
Bouquet, diz: “onde o próprio sono era uma ameaça”, o que nos
remete à descrição onírica de Primo Levi em dois momentos
cruciais de sua obra literária: em seu primeiro livro É isto um
homem?, escrito entre 1946 e 1947, e A trégua, escrito em
1963. Sobre o relato presente no primeiro livro de Levi, Peter
Pál Pelbart explica:

88 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
[...] o sonho que o acometia anos antes, durante sua estadia
no campo: ele está em casa entre seus familiares, e lhes conta
a vida no campo, a cama dura, a fome, o controle dos piolhos,
o soco do kapo, mas ninguém escuta, continuam conversando
entre si, indiferentes. Este sonho era comum a muitos de seus
companheiros de infortúnio. (PELBART, 2000: 171)

Assim, Levi se pergunta: “Porque o sofrimento de cada


dia se traduz, constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre
repetida da narração que os outros não escutam?” (LEVI, 1988: 60).
O segundo relato destes fenômenos oníricos, Primo Levi relata na
última página de A trégua:

É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único


na substância. Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no
trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido
e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas,
mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação
definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o
sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma
diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário,
as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais
precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um
nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei
também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada
era verdadeiro fora do Lager. (LEVI, 2010: 214)

E Pelbart, por fim, lapida: “ainda está por ser escrita


a história dos sonhos no Holocausto, essas toneladas de
matéria etérea que deram estofo à noite dos internos, que os
acompanharam até o momento da morte, no campo ou fora dele”
(PELBART, 2000: 171). É justamente nesta perspectiva, de algo
que precisa ainda ser escrito, que o narrador de Noite e neblina,
no momento em que a câmera executa um travelling enfurnado
entre os dormitórios de um campo de concentração e com suas
imagens a cores, faz seu narrador dizer: “Destes dormitórios
de tijolo, destes sonos ameaçados, só conseguimos mostrar-lhe
um esboço... a cor”; o esboço, aquilo que precisa ser finalizado,
escrito, e que para além dos pesadelos materializados através do
subconsciente no momento do sono, quando acordados, narra
Bouquet, o deportado “reencontra a obsessão que dirige a sua
vida e os seus sonhos: comer”. A imagem mesma da gamela e da

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 89


sopa do Lager (espécie de lavagem para porcos) é um assombro
constantemente detalhado não somente em Levi, mas também
em Robert Antelme, Jean Améry, Wiesel e outros.
O arquivo, nas “infinitas relações com o real” de que
nos fala Farge (2009: 35), revelam constantemente as ligações
possíveis com os relatos testemunhais dos sobreviventes, porque
tanto o arquivo quanto o testemunho da catástrofe partilham
de uma natureza ruinosa e lacunar, ambos preenchidos pela
vulnerabilidade de suas presenças no mundo, e eles não podem
ser, como pretende Lanzmann, uma “imagem mínima”, algo “sem
imaginação”, excertos abjetos da catástrofe, que como reproduziu
o diretor de Shoah, teria sido um evento “sem imagens”,
irrepresentável, indizível, um acontecimento inserido no seio do
inimaginável. O arquivo, a fragmentação histórica que o compõe,
é um testemunho e como tal nos permite esboçar uma outra
intepretação possível – uma reconstrução desenhada a partir das
ruínas dos campos nazistas. Ele não pode ser desprezado, porque:

[...] por um lado, o arquivo desmembra a compreensão


histórica em virtude do seu aspecto de “fragmento” ou de
“vestígio bruto de vidas que de modo nenhum exigiam ser
assim contadas”. Por outro lado, “abre-se brutalmente a um
mundo desconhecido”, liberta um “efeito real” absolutamente
imprevisível que nos fornece o “esboço vivo” da interpretação
a reconstruir. (DIDI-HUBERMAN, 2012: 130)

O arquivo, esse esboço vivo da interpretação a reconstruir,


é também um “depósito que cataloga os traços do já dito para os
consignar à memória futura” (AGAMBEN, 2008: 145). É por isso
que Todorov (1995) insiste na noção do ‘não esquecer’ contida nas
imagens. Tal noção, aliás, que Claude Lanzmann parece querer
inverter, quando insiste que os registros em arquivo da Shoah são
abjetos, porque mostram aquilo que não deveria existir, e assim
propagam uma suposta cultura do esquecimento. Lanzmann chama
esse material de imagens ausentes, o que supõe erroneamente uma
lacuna imagética, algo não filmado ou capturado, quando na
verdade as imagens da catástrofe existiram aos milhões (a maior
parte destruídas pelos nazistas com a aproximação das tropas
aliadas dos campos de extermínio e de concentração), e as milhares
que sobreviveram a esse extermínio do arquivo estão, como escreve

90 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Didi-Huberman (2012: 91), sendo na verdade “mal vistas [...]: mal
descritas, mal legendadas, mal classificadas, mal reproduzidas, mal
utilizadas pela historiografia da Shoah”. Essas imagens ausentes
(essas imagens que não nos chegam, que não nos tocam, que não
a vemos e que não nos vê) não legitimam a ausência, mas antes
uma falta, e neste sentido a definição de Godard sobre as imagens
registradas da Shoah é exemplar: antes que por imagens ausentes, a
Shoah é composta por imagens faltantes.
A imagem-arquivo capturada pelo judeu grego Alex (fig.
3 e 4) e usada por Resnais em Noite e neblina tem o seu valor
irrefutável porque é uma imagem que prova e testemunha um
momento real a partir do congelamento de um gesto genocidário,
e mesmo que a imagem não nos diga tudo (a sua falta), ela nos
permite pensar um excerto possível daquele tempo por ela retido:
fagulhas, chamas e fumaça do extermínio do homem, cujos
cadáveres amontoados amplificam a noção terrível do horror que a 13. No tienen solamente el
valor de ser una prueba,
imagem instaura. E sobretudo, porque uma foto como essa não foi sino que son también
feita a partir do ponto de vista nazista, senão antes dos deportados, documentos. No son de
ninguna manera inútiles,
e “não tem somente o valor de ser uma prova, senão que são ni se puede pensar en
também documentos” e que “não são de nenhuma maneira inúteis, destruirlas; simplemente
hay que analizarlas como
nem se pode pensar em destruí-las”; assim simplesmente temos de documentos históricos
“analisá-las como documentos históricos que permitem aprofundar que permiten profundizar
nuestro conocimiento de
nosso conhecimento dos acontecimentos que representam” los acontecimientos que
(LINDEPERG, 2009: 68, trad. nossa).13 representan.

Conclusão: Bergen-Belsen, Georges Stevens e Godard


Sylvie Lindeperg, assim como Serge Daney, fala de
“documentos históricos”. De fato, o arquivo, como colocou a
historiadora francesa, é um documento que testemunha, sempre, uma
história (e o profundo sabor do arquivo, como também nos ensinou
uma outra historiadora francesa, Arlette Farge, reside justamente nos
rastros dos vencidos, no inesperado encontro com um arquivo que
obriga o seu estudioso a modificar toda a rota de seus estudos), e
que o desprezo por ele é negar a possibilidade de uma imersão ainda
mais profunda no seio da História. Assim, para compreendermos um
pouco mais da importância da imagem-arquivo diante da catástrofe,
podemos lembrar do episódio das filmagens do exército britânico no
momento da liberação dos prisioneiros do campo de concentração
de Bergen-Belsen (figs. 5 a 7), feitas por soldados ingleses, em

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 91


abril de 1945. A violência abismal dessas imagens continua, hoje,
intactamente a nos ferir, porque impele a tarefa soçobrante de
confrontar a “espécie humana”, como disse Robert Antelme (2013),
em seu limiar de extinção. Essas imagens capturadas pelas tropas
britânicas revelam a figadal importância de suas existências, porque
exige que vejamos, que olhemos apesar de tudo.

14. Como escreveu o filósofo


e historiador de arte francês
a propósito do produto final
que as imagens da liberação
de Bergen-Belsen tiveram
Figura 5, 6 e 7: Fotogramas de filmagens feitas por soldados ingleses em abril de 1945, no campo
nas mãos do “mestre do
de concentração de Bergen-Belsen
suspense”: “Hitchcock
compreendeu imediatamente
que esta espécie de processo Já as imagens dos momentos de liberação dos campos de
exigia uma montagem que
nada separasse; em primeiro Buchenwald e Dachau (figs. 8 a 11) foram filmadas pela batuta
lugar, era preciso não separar do cineasta americano George Stevens, diretor de filmes como
as vítimas dos carrascos, isto
é, mostrar conjuntamente os Um lugar ao sol (A place in the sun, 1951), Os brutos também
cadáveres dos prisioneiros amam (Shane, 1953) e Assim caminha a humanidade (Giant,
diante dos próprios
responsáveis alemães, 1956). Os serviços da armada americana, inclusive, pediram
daí a decisão de cortar o que John Ford, amigo pessoal de Stevens e cineasta consagrado
mínimo possível as longas
panorâmicas da filmagem,
em Hollywood, refletisse sobre o uso e a montagem dessas
cuja lentidão era tão imagens capturadas em 1945. Outro proeminente cineasta da
assustadora; em seguida, era
época, o inglês Alfred Hitchcock, também recebeu um insistente
preciso não separar o próprio
campo de concentração do pedido de seu amigo Sidney Bernstein para refletir sobre as
seu enquadramento social, imagens filmadas pelo exército britânico em Bergen-Belsen.
ainda que este fosse - ou
precisamente porque ele Didi-Huberman14 relata que o “mestre do suspense”, diante de
era - normal, cuidado, rural imagens de tipo “absolutamente novo”, não soube num primeiro
ou até bucólico. Desde o
início, Hitchcock e Bernstein momento como proceder, como montar as imagens, e cuja
compreenderam que o perplexidade deixara Alfred caminhando de “um lado para o
carácter insustentável destes
arquivos, que contrastavam outro”, sem saber o que fazer.
com tudo o resto - isto é,
com o resto da humanidade
para lá do arame farpado -,
podia suscitar a denegação,
a rejeição destas evidências
demasiado pesadas. Tanto
mais que a negação do
genocídio se inscreve na
própria diferença que separa
o campo de concentração
dos seus arredores mais
próximos” (DIDI-HUBERMAN,
2012, p.175-6). Figura 8 e 9: Corpos em Buchenwald e Dachau foram filmados por George Stevens

92 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Figura 10 e 11: Imagens são registros de soldados norte-americanos

Na obra-prima de Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinema


(1988-1998), o cineasta franco-suíço se utiliza de algumas
imagens filmadas por George Stevens em Buchenwald e Dachau,
e na monumental genealogia do cinema – e da imagem do século
vinte – resgatada e construída a partir de uma montagem sui
generis, Godard realiza uma fusão alhures impossível senão no
cinema, a saber: junta excertos de dois filmes de Stevens, filmes
absolutamente distintos em todos os níveis possíveis, isto é, alguns
planos de Buchenwald-Dachau e a imagem de um momento em Um
lugar ao sol onde Elizabeth Taylor acaricia Montgomery Clift; no
eclipse brutal que a montagem executa do momento de “felicidade
sombria” do filme com dois astros de Hollywood, um inesperado
horror invade estes tempos fundidos, como se toda a felicidade do
mundo para esses dois personagens, depois de 1945, tivesse um
sufocamento intrínseco a partir dos fantasmas dos campos nazistas
filmados alguns anos antes pelo mesmo diretor. Assim, o insight
de Didi-Huberman se torna uma peça basilar para definir este
momento definitivo da montagem cinematográfica – e na própria
concepção que, ao citar esta passagem, também reconhecemos a
nossa incapacidade de redigir algo mais preciso e profundo:

O que está morto, inclinado para a esquerda, parece gritar


ainda, exprimir um sofrimento sem fim; o que está vivo,
inclinado para a direita, parece apaziguado por uma
felicidade definitiva. Mas podemos continuar a perguntar em
que é que a vítima real e o amante fictício podem “responder”
mutuamente um ao outro. [...] É aí que intervém o pensamento
de Godard, inerente a todas as formas construídas no filme:
este é apenas um entre inúmeros exemplos que figuram nas
História(s) do Cinema e exprimem as tensões extremas da sua
grande “imagem dialéctica”. De facto, não podemos deixar
de compreender ou, pelo menos, de pressentir que, na sua
sucessão destes fotogramas, as felicidades privadas acontecem
sob um fundo de infelicidades históricas; que a beleza (dos

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 93


corpos massacrados, da história); que a ternura de um ser
em particular por outro ser em particular se destaca com
frequência sobre um fundo de ódio administrado por seres em
geral contra outros seres em geral. Este contraste filosófico
pode encontrar, como aqui, a sua expressão cinematográfica
no paradoxo de uma morte real a cores - Godard paralisou o
filme de Stevens em dois fotogramas - e de uma vida fictícia a
preto e branco. (DIDI-HUBERMAN, 2012: 186)

Godard explica sobre a efígie da “felicidade sombria” que


irradia de Elizabeth Taylor, e que o fascinou e a fez fundir com as
imagens da morte de Buchenwald e Dachau:

Há uma coisa que sempre me tocou muito num cineasta de


quem gosto mais ou menos, George Stevens. Em Um Lugar
ao Sol, encontrei um sentimento profundo de felicidade
que raramente encontrei noutros filmes, mesmo em filmes
melhores. Um sentimento de felicidade laico, simples,
perceptível, momentâneo, em Elizabeth Taylor. E quando
soube que Stevens tinha filmado os campos de concentração
e que, então, a Kodak lhe tinha confiado os primeiros rolos a
cores de dezesseis milímetros, não encontrei outra explicação
15. Godard rewrites an para quem em seguida ele pudesse ter feito este grande plano
episode of A Place in the de Elizabeth Taylor irradiando esta espécie de felicidade
Sun and puts the love affair sombria. (GODARD apud DIDI-HUBERMAN, 2012: 187)
between the beautiful heiress
played by Elizabeth Taylor
and the young careerist
played by Montgomery Clift in Jacques Rancière também comenta esta fusão godardiana
the light of the Image, reborn
from the death it had died a partir de uma leitura da imagem que ressuscita, que renasce na
in the camps that George silhueta da morte dos mortos nos campos nazistas:
Stevens filmed in 1945. […]
The young woman stepping
out of the lake appears
encircled, iconized, by a halo Godard reescreve um episódio de Um lugar ao sol e põe o
of light that seems to outline relacionamento amoroso entre a bela herdeira interpretada
the imperious gesture of a por Elizabeth Taylor a o jovem carreirista interpretado por
painted figure apparently Montgomery Clift à luz da imagem que renasce da morte
descended from the heavens.
que tinha morrido nos campos onde Georges Stevens filmou
Elizabeth Taylor stepping out
of the water is a figure for the em 1945. [...] A jovem mulher indo em direção ao lago
cinema itself being reborn aparenta estar cercada, iconizada por um halo de luz que
from among the dead. The parece um rastro do gesto imperioso de uma figura pintada
angel of the Resurrection and aparentemente a partir de uma descendência do paraíso.
of painting descends from the Elizabeth Taylor caminhando para fora da água é uma imagem
heaven of Images to restore que incarna o próprio cinema ressuscitado de entre os mortos.
to life both the cinema and É o anjo da Ressurreição e a pintura descende do paraíso das
its heroines. This is a strange
imagens para restaurar a vida tanto do cinema quanto de
angel, though, who seems to
have come down from heaven suas heroínas. Esse é um anjo estranho, que parece descer
without wings. do paraíso sem asas. (RANCIÈRE, 2006: 183-4, trad. nossa)15

94 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Deste renascimento do qual fala Rancière,16 desta 16. Essa presença do
renascimento na fusão
fusão cinematográfica em que a morte da morte nos campos é
de Godard, apontada por
emergida anos depois pela efígie de Elizabeth Taylor e de sua Rancière, é criticada por
efêmera “felicidade sombria”, impossível não lembrarmos das Didi-Huberman: “Não há
ressurreição, no sentido
ruínas da história da qual fala Walter Benjamin (2012: 17) a teológico do termo, porque
partir do quadro Angelus Novus de Klee, este anjo que “parece não há conclusão dialéctica.
Neste momento, o filme
preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente” acaba de começar. E logo
(Taylor olhando para Clift), e que “tem os olhos esbugalhados” depois de Liz Taylor surgir,
qual vénus, do meio das
(os olhos dos deportados filmados por Stevens em Buchenwald águas - sobre o fundo de
e Dachau) e cuja “cadeia de fatos que aparece diante dos nossos uma tradição iconográfica
facilmente reconhecível
olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente - surge, por sua vez,
acumula ruínas e lhas lança aos pés” (a inferência de Godard após uma imagem dilacerada,
resistente a qualquer leitura
descobrir que Stevens tinha filmado a liberação17 dos prisioneiros imediata. Algumas letras são
em 1945). Ruínas, a impossibilidade de ir ao futuro com a aí sobreimpressas: lemos
primeiro End, como no fim
imagem da catástrofe cravada nos riscos do rosto de Taylor, a
de todos os clássicos de
“felicidade sombria” da personagem eclipsada pela imagem da Hollywood. Mas percebemos
morte fundida por Godard: “ele gostaria de parar para acordar que a palavra - tal como as
História(s), como a própria
os mortos e reconstruir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que história e como a dialéctica
foi destruído” (BENJAMIN, 2012: 17). É, por fim, esta espécie de segundo Godard - não
acabou por causa disso.
torpor que consome toda a presença de Elizabeth Taylor, onde a Não será endlos (‘sem fim’,
memória da catástrofe corromperá toda a sua felicidade possível, ‘interminável’), e Endlösung
(‘Solução final’), que
o seu lugar ao sol. devemos ler aqui? Não será
o sem fim da destruição do
homem pelo homem que
Godard quer sublinhar com
esta história e com essa
prática de montagem?” (DIDI-
HUBERMAN, 2012: 190).

17. “Se George Stevens


não tivesse usado o
primeiro filme colorido em
dezesseis milímetros em
Auschwitz e Ravensbrück,
indubitavelmente a felicidade
de Elizabeth Taylor nunca
teria encontrado um lugar
ao sol” (GODARD apud
RANCIÈRE, 2006: 183).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 95


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a


testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.
ANTELME, Robert. A espécie humana. Rio de Janeiro: Record,
2013.
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012.
CHÉROUX, Clément. Fautographie. Petite histoire de l’erreur
photographique. Crisnée: Yellow Now, 2003.
DANEY, Serge. ‘Le travelling de Kapo’. In: Trafic, n°4,
automne,1992. Disponível em: http://www.geocities.ws/
ruygardnier/daneyotravellingdekapo.doc (tradução para o
português de Ruy Gardnier). Acesso em: 07/05/2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa:
KKYM, 2012.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.
FLEISCHER, Alain. L’Art d’Alain Resnais. Paris: Centre Georges
Pompidou, 1998.
LANZMANN, Claude. ‘Le monument contre l’archive!’. In:
Cahiers de mèdiologie, n. 11, pp. 271-279. Paris: CNRS
Editions, 2001. Disponível em http://mediologie.org/cahiers-
de-mediologie/11_transmettre/lanzmann.pdf. Acesso em:
14/05/2015.
LEVI, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
______. A trégua. São Paulo: Companhia de bolso, 2010.
LINDEPERG, Sylvie. Noche y niebla, un film en la historia. In:
Cuadernos de cine documental, n. 03, pp.58-73. Santa Fé:
Universidad Nacional del Litoral, 2009.
PELBART, Peter Pál. Cinema e holocausto. In: NESTROVSKI,
Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs). Catástrofe e
representação. São Paulo: Escuta, 2000, pp.171-183.
QUINODOZ, Danielle. Emotional vertigo: between anxiety and
pleasure. Nova Iorque: Routledge, 1997.

96 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
RANCIÈRE, Jacques. Film fables. Oxford e Nova Iorque: Berg
Publishers, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas: Papirus,
1995.

Data do recebimento:
06 de abril de 2015

Data da aceitação:
09 de junho de 2015

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 76-97, JAN/JUN 2015 97


Como representar o
“irrepresentável”? – uma análise
sobre a abordagem do Holocausto
no cinema documentário

Rafael V alles
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015


Resumo: Este artigo tem como objetivo interpretar a construção discursiva sobre
o Holocausto no cinema documentário e as implicações que isso pode trazer
para o entendimento desse fato histórico. Procurando analisar o uso da ideologia
na representação do Holocausto, este trabalho terá como estudo de caso o
documentário The specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal
Sivan, 1999).
Palavras-chave: Cinema documentário. Ideologia. Holocausto.

Abstract: This article aims to interpret the discursive construction about the
Holocaust in the documentary film and the implications this may bring to the
understanding of this historical fact. Trying to analyze the use of ideology in the
representation of the Holocaust, this work will have as case study the documentary
The specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal Sivan, 1999).
Keywords: Holocaust. Documentary film. Ideology.

Résumé: Cet article analyse la construction discursive de l’Holocauste dans le


film documentaire et ses implications dans la compréhension de cet événement
historique. Dans le but de comprendre l’utilisation de l’idéologie dans la
représentation de l’Holocauste, on partira d’une étude de cas du documentaire The
specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal Sivan, 1999).
Mots-clés: Holocauste. Cinéma documentaire. Idéologie.

100 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


1- Por trás do “irrepresentável”
Falar sobre as representações relacionadas ao Holocausto
é um convite para se adentrar um terreno complexo e perigoso.
Diante do pressuposto de que “os fatos que constituem o passado
não nos chegam em estado bruto; apresentam-se em forma de
relatos” (TODOROV, 2002: 169, trad. do autor).1 As construções 1. Traduzido do espanhol:
“los hechos que constituyen
discursivas sobre o Holocausto não estão isentas de escolhas sobre el pasado no nos llegan en
“como” relatar determinado evento. Ao assumirem intenções estado bruto; se presentan en
forma de relatos”. (TODOROV,
e escolherem abordagens, os relatos terminam revelando um
2002: 169)
desprendimento entre o discurso e o fato em si. Entender um
acontecimento histórico está longe de ser uma atividade simples
e objetiva.
Se essa constatação pode parecer evidente num primeiro
momento, o problema que existe entre o fato em si e as suas
representações tornou-se determinante para o entendimento das
implicações históricas geradas pelo Holocausto.

Como abordar o impossível que a guerra havia tornado


possível? A inquietação que tomou conta do pensamento
europeu após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo quando
os documentos do horror começaram a ser divulgados,
representou muito mais que simples perplexidade. Tendo
que enfrentar as evidências da barbárie nazista, parte dos
intelectuais da época viu-se compelida a reconsiderar as bases
de um humanismo que a realidade colocava radicalmente em
xeque. Mais ainda: a própria noção de humanidade tornou-se
frágil e, diante do saldo de onze milhões de mortos, alguns
se lançaram à urgência de repensá-la. (MORAES, 2000: 149)

É a partir dessa perplexidade e da impossibilidade


de reparar o genocídio cometido pelos nazistas que surge um
profundo questionamento sobre os limites para se abordar esse
fato histórico. Dentro de um contexto de pós-guerra, surgiram
sobreviventes dos campos de concentração e intelectuais
que começaram a trabalhar com a ideia da impossibilidade
de representação do que foi o Holocausto. Nomes como o
intelectual alemão Theodor Adorno afirmaram que “depois de
Auschwitz não se pode escrever uma poesia”; sobreviventes,
como o italiano Primo Levi, disseram que somente os que
morreram nos campos poderiam trazer no seu testemunho
a real dimensão do que foram as atrocidades nesses locais.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 101


É como se o ato de relatar o que foi a catástrofe terminasse
sempre revelando a impossibilidade de expressar o que as
pessoas ali vivenciaram.

Da reflexão sobre a impossibilidade de representação da


catástrofe, uma vez que o real está todo ele impregnado por
essa catástrofe, passou-se a uma condenação da representação
de um modo geral [...] No centro dessa discussão localiza-se
– como um poderoso buraco negro – a Shoah. Esse evento-
limite, a catástrofe, por excelência, da Humanidade e que
já se transformou no definiens do nosso século, reorganiza
toda a reflexão sobre o real e sobre a possibilidade da
sua representação. Busca-se agora uma nova concepção
de representação que permita a inclusão desse evento.
(SELIGMANN-SILVA, 2000: 75)

É diante do “irrepresentável” que se constrói todo um


debate sobre as construções discursivas referentes ao Holocausto. O
que pode se entender como “irrepresentável”? Como se pode definir
2. Traduzido do espanhol:
o que é ou não “representável” dentro dos relatos sobre os campos de
“Si entendemos en este concentração? Quem pode fazer isso? Por trás da impossibilidade de
nuevo sentido la singularidad
representação acaba se construindo uma posição de autoridade e um
del exterminio judío, si
declaramos que no tiene caminho de restrições. Segundo Tzvetan Todorov, posições como essa
relación alguna con cualquier acabam criando um sentido de “sacralização da catástrofe”. Partindo
otro acontecimiento
pasado, presente o futuro do ponto de que a sacralização é a construção do inalcançável, em
[...] nos prohibimos, al que se revela a impossibilidade de tocar algo ao se colocar numa
mismo tiempo, cualquier
lección para el resto de situação à parte dos demais, os discursos sobre o irrepresentável
la humanidad, cualquier impedem uma reflexão mais profunda sobre o próprio sentido do
‘puesta en servicio’. Sería
paradójico, como mínimo, Holocausto para a humanidade.
afirmar a la vez que el pasado
debe servirnos de lección
y que no tiene relación
Se entendemos neste novo sentido a singularidade do
alguna con el presente: lo
que es sacralizado de este
extermínio judeu, se declaramos que não tem relação alguma
modo no puede ayudarnos com qualquer outro acontecimento passado, presente ou
en absoluto en nuestra futuro [...] proibimo-nos, ao mesmo tempo, qualquer lição
existencia actual. Si se desea para o resto da humanidade, qualquer “colocação em serviço”.
mantener el acontecimiento Seria paradoxal, no mínimo, afirmar ao mesmo tempo que o
pasado en cuarentena, es passado deve nos servir de lição e que não tem relação alguma
todavía posible mantenerlo com o presente: o que é sacralizado deste modo não pode nos
en la memoria y actuar en
ajudar em nada na nossa existência atual. Se se deseja manter o
función de este recuerdo,
pero no podría ya servir para
acontecimento passado em quarentena, é ainda possível mantê-
comprender mejor la especie lo na memória e atuar em função dessa recordação, mas não
humana y su destino” poderia já servir para compreender melhor a espécie humana e
(TODOROV, 2002: 196). o seu destino. (TODOROV, 2002: 196, trad. do autor)2

102 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


Nesta recusa por aprofundar um estudo sobre as
implicações geradas pelo Holocausto na história do homem e do
século XX, também se acaba assumindo uma construção político-
ideológica de dominação discursiva sobre um fato histórico.
Se, por um lado, o sentido do “irrepresentável” procura trazer
uma dimensão mais profunda sobre uma catástrofe de grandes
proporções, por outro lado termina condenando uma questão tão
paradigmática ao silêncio e à impossibilidade de analisar suas
implicações sócio-históricas num contexto mais amplo.

[...] os que reivindicam atualmente a indizibilidade de


Auschwitz deveriam ser mais cautelosos nas suas afirmações.
Se quiserem dizer que Auschwitz foi um acontecimento único,
frente ao qual a testemunha deve, de algum modo, submeter
toda sua palavra à prova de uma impossibilidade de dizer,
então, eles têm razão. Se, porém, conjugando unicidade
e indizibilidade, fizerem de Auschwitz uma realidade
absolutamente separada da linguagem [...] então eles estarão
repetindo inconscientemente o gesto dos nazistas, e se
mostrarão secretamente solidários com o arcanum imperii.
(AGAMBEN, 2008: 157)

É partindo desse contexto que cabe aos estudos,


relatos e demais representações o papel de “dessacralizar” o
“irrepresentável”, de encontrar, nas suas lacunas e fissuras,
um meio em que se possam refletir de forma mais ampla e
profundamente as razões de o Holocausto ter se tornado tão
determinante para o entendimento do homem e do seu contexto
sócio-histórico. Será também diante desse pressuposto que o
cinema documentário assume seu protagonismo para se constituir
numa visão crítica sobre as construções discursivas relacionadas
ao genocídio judeu nos campos de concentração.

2. A representação do Holocausto no cinema documentário


O primeiro e inevitável questionamento que se coloca
na relação entre o cinema documentário e o Holocausto é como
esse tipo de representação audiovisual pode se posicionar diante
desse fato histórico. De que forma a questão do “irrepresentável”
e da busca por uma abordagem crítica inserem-se nesse mesmo
âmbito cinematográfico?

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 103


O primeiro passo para se responder a essas questões é
delimitar o que se entende por ideologia e como isso se relaciona
com a imagem e a construção discursiva no cinema documentário.
Tendo-se em conta a diversidade de recortes teóricos e
metodológicos, realizados por diversos autores, para definir o que
é ideologia, este artigo trabalha com o conceito definido por John
Thompson, no livro Ideologia e cultura moderna (1995).
Para Thompson, a ideologia é uma forma de entendimento
sobre como as construções simbólicas entrecruzam-se com as
relações de poder: “Estudar a ideologia é estudar as maneiras
como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de
dominação” (THOMPSON, 1995: 76). O autor faz uma importante
distinção entre dois tipos de concepções. São elas:
- Concepções neutras: aquelas que tentam caracterizar fenômenos
como ideologia, ou ideológicos, sem implicar que esses fenômenos
sejam, necessariamente, enganadores ou ilusórios, ou ligados com
os interesses de algum grupo em particular: “[...] é um aspecto
da vida social (ou uma forma de investigação social) entre outros,
e não é nem mais nem menos atraente ou problemático que
qualquer outro” (THOMPSON, 1995: 72).
- Concepções críticas: aquelas que têm um sentido negativo, crítico
ou pejorativo. As concepções críticas implicam que o fenômeno
caracterizado como ideologia – ou como ideológico – seja enganador,
ilusório ou parcial; e que a própria caracterização de fenômenos,
como ideologia, carregue consigo um criticismo implícito ou a
própria condenação desses fenômenos (THOMPSON, 1995: 73).
Dentro de uma concepção neutra, qualquer representação
artística e cinematográfica tem uma ideologia por assumir,
independentemente do desejo de uma transformação ou da
preservação da ordem social. Essa busca pela neutralidade não
significa necessariamente que a ideologia seja um campo em que
deve haver embates e vencedores, enquanto “um fenômeno que
deve ser combatido e, se possível, eliminado” (THOMPSON, 1995:
73). A concepção neutra é importante por entender que qualquer
construção simbólica está constituída por uma elaboração ideológica.
No entanto, essa concepção também pode assumir uma abordagem
muito ampla, que não consiga aprofundar uma análise mais crítica
sobre as especificidades existentes em propostas ideológicas, como,
por exemplo, na relação entre a ideologia e o poder.

104 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


Neste sentido, para se interpretar as construções discursivas
sobre o Holocausto no cinema documentário e as implicações que
isso pode trazer para o seu entendimento, é importante servir-se
de uma concepção crítica. Se as tensões existentes entre o real e
as suas representações nunca foram um ponto pacífico desde os
primórdios do cinema documentário, esse problema acentuou-se
justamente na metade do século XX, a partir do questionamento
sobre como representar o “irrepresentável” do Holocausto.
Falar sobre as imagens de arquivo dos campos de
concentração, por exemplo, por si só já constitui um problema
à parte dentro do cinema documentário, por se entender que
as divergências ideológicas nesse tipo de produção assumem
um forte embate no âmbito discursivo. Ao mesmo tempo em
que existem poucas imagens de arquivo pertencentes ao regime
nazista durante o Holocausto, grande parte das imagens feitas
pelas Forças Aliadas, após a vitória sobre os alemães, foram
excessivamente mostradas e reutilizadas para se tentar entender
o que foram os campos de concentração. A exposição de tais
imagens terminou criando, então, uma forte resistência por parte
de sobreviventes e intelectuais, que tratavam de afirmar que
esses registros fílmicos não traziam a real dimensão do que foi o
Holocausto, porque terminavam “banalizando o horror”.
Mais que discutir o fato histórico em si, a questão do
representar o Holocausto no cinema acabou se tornando um
campo de divergências discursivas. Um dos referentes para esses
embates e um dos maiores opositores das imagens de arquivo
sobre o Holocausto foi o francês Claude Lanzmann, realizador de
Shoah (1985). Recusando-se a utilizar qualquer tipo de imagem
de arquivo da época da guerra no seu documentário de nove
horas de duração, Lanzmann entende para se conhecer o que
foram os campos de concentração, é necessário realiza-lo através
de testemunhos dos sobreviventes. Shoah é um documentário que
busca trabalhar com a ausência de vestígios nos locais que foram
os campos de concentração 44 anos atrás (em relação à época da
realização de Shoah), para assim estabelecer um contraste com
a busca pela precisão dos testemunhos dos ex-prisioneiros na
reconstituição das suas vivências.
No entanto, o que parece ser um enfoque bastante
particular por parte de Lanzmann acaba se tornando uma posição
bastante ortodoxa quando o realizador afirma que as imagens

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 105


de arquivo existentes sobre os campos de concentração não são
válidas para o entendimento do que foi o Holocausto.

Eu sempre disse que as imagens de arquivo são imagens sem


imaginação. Elas petrificam o pensamento e matam todo
o poder evocativo. É muito melhor fazer o que eu fiz, um
trabalho de elaboração enorme, criando a memória do evento.
(LANZMANN, 2001: 274).

Para ele, esses arquivos são apenas informação que petrifica o


pensamento e perde o poder de evocação; não trazem uma
dimensão suficiente do que foi esse fato histórico. Lanzmann
propõe uma “criação da memória do acontecimento”, não uma
simples reconstituição do que aconteceu, mas a inscrição do tempo
nessa memória. Para o realizador, somente é possível entender o
Holocausto a partir de registros audiovisuais como os que estão
contidos no seu filme, no qual, por meio dos testemunhos, não
somente se constroem as imagens, mas se afirma a evocação
da memória, dos depoimentos que relatam os fatos. Segundo
Lanzmann, “meu filme é um “monumento” que é parte do que ele
3. Tradução do original: “Mon monumentaliza” (Lanzmann, 2001: 274).3
film est un « monument »
qui fait partie de ce qu’il Todavia, o filósofo francês Georges Didi-Huberman,
monumentalise”. (Lanzmann,
2001: 274).
defensor da tese de que as imagens de arquivo podem de alguma
forma revelar o que foi o Holocausto “apesar de tudo”, refere-
se à posição de Lanzmann como algo que sai do rigor “para
tornar-se discurso, depois dogma e, finalmente, rigorismo” (DIDI-
HUBERMAN, 2012: 123).

Eis o que se assemelha menos a um cogito do que à paixão


especular de um homem pelo seu próprio trabalho. [...]
Lanzmann ilude-se assim ao especular sobre um documento que
não existe, com fins bastante obscuros que o levam a não refletir
sobre os documentos que, de fato, existem. Ilude-se, sobretudo,
ao enraizar todo o seu discurso – não o seu filme, elaborado
desde 1985, mas a sua certeza dogmática reivindicada dez ou
quinze anos mais tarde – numa incompreensão obtusa do que
são um arquivo, um testemunho ou um ato de imaginação.
(DIDI-HUBERMAN, 2012: 128-129)

Na sua essência, a posição de Lanzmann pertence a um


contexto mais amplo de intelectuais que rejeitam uma liberdade e

106 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


uma diversidade de interpretações divergentes. A ideia de impor
certos limites à representação e de determinar como o Holocausto
deve ou não ser entendido termina revelando, assim, um profundo
caráter ideológico, que transcende o fato histórico em si. Posições
como a do realizador de Shoah assumem uma busca de dominação
discursiva na qual se pretende considerar uma referência
inquestionável para se entender o que foi o Holocausto. Ele assume
o que Thompson entende como “uma estratégia através da qual o
produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínio
que procura defender, ou justificar um conjunto de relações e com
isso persuadir uma audiência” (THOMPSON, 1995: 82-83).
Lanzmann, ao querer abolir as imagens de arquivo, constrói
uma estratégia simbólica de alguém que se considera com legítimo
direito para dizer o que deve ou não ser utilizado. Essa intenção
discursiva revela também uma busca pelo estabelecimento de boas
e más interpretações sobre o Holocausto. Por trás desse ponto
de vista, Lanzmann constrói um sentido de “monumentalizar” o
discurso, de tornar absoluta uma posição a partir da recusa de
outras que possam vir a questioná-la. Ao desqualificar as imagens
de arquivo, o realizador de Shoah também desqualifica outras
potenciais leituras e significações que ajudem a ampliar uma
compreensão sobre a complexidade do Holocausto.
Existem arquivos que podem revelar questões que vão
muito além de meras informações. É o que ocorre, por exemplo,
no filme Bilder der Welt und Inschrift des Krieges (Imagens do
mundo e inscrições da guerra, 1988), em que o documentarista
alemão Harun Farocki parte de algumas imagens feitas de
tomadas aéreas, realizadas por fotógrafos da força aérea norte-
americana que voaram sobre os campos de concentração alemães
em 1944, a sete mil metros de altitude. Como os soldados não
tinham ordem expressa para buscar os campos de concentração,
terminaram registrando fotos em que identificaram uma
central eléctrica, uma fábrica de carburadores e uma usina de
hidrogenação de carburadores. A questão é que somente em 1977,
quando oficiais da CIA voltaram a buscar esses mesmos arquivos
e analisaram as tomadas aéreas de Auschwitz, encontraram o
mirador, a casa do comandante, a oficina de registro, o muro
de execução, o Bloco nº 11 e o termo “câmara de gás”. Farocki
encontrou nesses vestígios da imagem uma forma para entender
o Holocausto.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 107


4. Traduzido do espanhol: Naquele momento essas imagens me pareceram um meio
“En aquel momento esas apropriado para mostrar os campos pela distância que mantêm
imágenes me parecieron das vítimas. Mais apropriadas que as imagens aproximadas: a
un medio apropiado para seleção na rampa, os prisioneiros famélicos nas barracas, as
mostrar los campos por la
montanhas de cadáveres removidas por uma retroescavadeira.
distancia que mantienen de
las víctimas. Más apropiadas
Com essas imagens se voltava a exercer uma violência simbólica
que las imágenes de cerca: sobre as vítimas. Inclusive com a melhor das intenções
la selección en la rampa, los terminava-se utilizando-as. Sobre estas imagens aéreas dos
prisioneros famélicos en las campos nazistas onde o indivíduo não é muito maior que um
barracas, las montañas de pixel, escrevi no seu devido momento o seguinte comentário: “A
cadáveres removidas por una personalidade encontra resguardo no granulado da fotografia”.
retro escavadora. Con esas (FAROCKI, 2013: 159, trad. do autor)4
imágenes se volvía a ejercer
una violencia simbólica sobre
las víctimas. Incluso con la
mejor de las intenciones se Foram necessários 33 anos para se descobrir o que
las terminaba utilizando.
Sobre estas imágenes aéreas a imagem já possuía desde o seu registro original. Os nazistas
de los campos nazis donde não perceberam que estavam sendo fotografados; os americanos
el individuo no es mucho
mayor que un pixel, escribí não perceberam o que fotografaram, e as vítimas tampouco
en su momento el siguiente perceberam algo. O olho da máquina conseguiu ir mais além do
comentario: ‘La personalidad
halla resguardo en el que o olho humano. O que se imaginava uma barraca de depósitos
granulado de la fotografía’” era, na verdade, um campo de concentração, e o que não se viu
(FAROCKI, 2013: 159).
dentro da própria imagem, em 1944, poderia ter contribuído
para mudar o próprio curso da história. No que Farocki chama
5. A partir do meu primeiro de “imagens operativas”5, ele terminou por encontrar uma forma
trabalho sobre o tema de realizar uma reflexão mais ampla sobre as possibilidades da
chamei ‘imagens operativas’
a essas imagens que não imagem técnica contida na fotografia e no cinema. Mais do que
estão feitas para entreter uma “imagem sem imaginação”, as imagens de arquivo desafiam
nem para informar.
Imagens que não buscam o nosso próprio imaginário: podem não somente escapar à nossa
simplesmente reproduzir percepção, como também dizer mais do que imaginamos.
algo, mas que são mais
precisamente parte de uma É neste sentido que, ao revelarem os vestígios de algo que
operação” (FAROCKI, 2013:
153, trad. do autor). pode ir mais além que a própria construção discursiva originária,
Traduzido do espanhol: “A as imagens de arquivo podem trazer um entendimento muito
partir de mi primer trabajo mais amplo sobre os fatos históricos. Trabalhos como o de Farocki
sobre el tema llamé ‘imágenes
operativas’ a estas imágenes
tornam-se essenciais para realizar um processo dialético sobre
que no están hechas para discursos ideológicos que pretendam assumir um sentido definitivo
entretener ni para informar.
para temas tão complexos. É num processo de confrontações entre
Imágenes que no buscan
simplemente reproducir algo, distintos arquivos e distintas perspectivas sobre esses arquivos
sino que son más bien parte que se poderão encontrar novos entendimentos críticos sobre o
de una operación” (FAROCKI,
2013: 153). Holocausto.

É preciso uma aposta, imaginária ou não, feita por sujeitos


para sujeitos. Um impulso, um movimento capaz de repor tais
imagens em jogo, de arriscá-las entre nós, de fazê-las circular

108 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


pelos nossos circuitos significantes. É preciso, pois, montar as
imagens, sobrepô-las a outras imagens, a outras associações.
[...] É preciso, de início, que as imagens nos identifiquem – o
que queremos delas, o que queremos de nós com elas? –, para
que, por nossa vez, possamos identificá-las. Presas fáceis, sim,
mas que não se deixam domesticar facilmente. (COMOLLI,
2015: 198)

Mais do que seguir a uma ideologia, mais do que constatar


uma “irrepresentabilidade”, cabe ao cinema documentário
confrontar posições com uma visão dogmática. Mais do que
afirmar o que se deve ou não fazer com as imagens de arquivo,
é necessário encontrar nelas os vestígios, para um entendimento
maior da sua representatividade histórica. É no trabalho de
associações entre materiais de arquivo e testemunhos que cabe
ao cinema seguir abrindo caminhos para um entendimento mais
profundo do que representou o Holocausto para o homem.

3. UMA ANÁLISE SOBRE O DOCUMENTÁRIO THE SPECIALIST


Na medida em que muito já se falou e se mostrou sobre
o Holocausto e as suas implicações, coube aos dois realizadores
israelenses Rony Brauman e Eyal Sivan a árdua tarefa de trazer
uma nova perspectiva dentro das representações cinematográficas
sobre esse tema, a partir do documentário The specialist, portrait of
a modern criminal (1999). Sem pretender ouvir os sobreviventes,
como fez Lanzmann, ou se concentrar em imagens relacionadas
aos campos de concentração, como fez Farocki, The specialist é
um documentário feito totalmente com materiais de arquivos que
abordam um importante fato histórico acontecido anos depois do
Holocausto, mas relacionado diretamente ao genocídio judeu: o
julgamento de Adolf Eichmann em Israel, no ano de 1961.
Partindo das 350 horas de registros audiovisuais do
julgamento, o documentário trabalha exclusivamente com esse
acervo para a sua construção narrativa, sem inserir qualquer outra
fonte que não sejam essas imagens. Tenente-coronel do regime
nazista, ex-chefe de Segurança do Terceiro Reich, Adolf Eichmann
foi o encarregado da expulsão dos judeus na Alemanha entre 1938
e 1941 e, logo depois, entre 1941 e 1945, organizou a deportação
de judeus, poloneses, eslovenos e ciganos para os campos de
concentração. Eichmann atuou diretamente nos processos de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 109


5. Traduzido do espanhol: extermínio, embora tenha feito isso por meio de documentos
“Eichmann, culpable de un
técnicos, no âmbito burocrático ao qual pertencia, sem sair do
crimen extraordinario, era
un hombre común, cuya seu escritório. Neste sentido, sua trajetória personificou o sentido
‘normalidad es mucho racional e burocrático contido no genocídio orquestrado pelos
más aterradora que todas
las atrocidades reunidas’, nazistas.
como lo subraya Hannah
Arendt. No es el genocidio,
que tiene precedentes en
la historia, sino el crimen Eichmann, culpado de um crime extraordinário, era um
administrativo y la ejecución homem comum, cuja “normalidade é muito mais aterradora
industrial lo que constituye que todas as atrocidades reunidas”, como destaca Hannah
el crimen moderno por Arendt. Não é o genocídio, que tem precedentes na história,
excelencia” (BRAUMAN; mas o crime administrativo e a execução industrial o que
SIVAN, 1999: 24). constitui o crime moderno por excelência. (BRAUMAN;
SIVAN, 1999: 24, trad. do autor)5

Ao abordar o referido julgamento, no documentário


vem à tona uma série de reflexões sobre as escolhas discursivas
buscadas pelos realizadores. Baseando sua abordagem no
conceito de “banalidade do mal”, formulado por Hannah Arendt
(1999), Brauman e Sivan definem o seu filme como “um ensaio
político sobre a obediência e a responsabilidade” (1999: 13, trad.
6. Traduzido do espanhol: do autor).6 Assim como na tese de Arendt, The specialist trabalha
“un ensayo politico com a ideia de que o horror do Holocausto não provém de uma
sobre la obediencia y la
responsabilidad” (BRAUMAN; anomalia ou uma patologia por parte dos nazistas, mas sim de
SIVAN, 1999: 13). uma série de mecanismos burocráticos movidos por técnicos que
tratavam de cumprir suas funções dentro do regime.
Se já não bastasse abordar um tema difícil, The specialist
é um documentário que pretende assumir riscos no que se refere à
representação dos nazistas. Brauman e Sivan decidem conceder a
palavra ao “inimigo”, propõem que as argumentações de Eichmann
sejam escutadas. Sem emitir juízos de valor que direcionassem
a visão do espectador, The specialist não cai na solução fácil de
pretender demonizar os nazistas e vitimizar os judeus. A proposta
do documentário é entender como a monstruosidade pode surgir
a partir de uma construção técnica e racional, operada por
homens “comuns”, e como esse fator torna-se central no embate
entre duas construções ideológicas (a nazista e a judaica) no
julgamento de Eichmann.
Na escolha dessa abordagem, o documentário abre
espaço para se refletir sobre até que ponto, nos depoimentos do
militar nazista, transparece um oficial seguindo os preceitos do

110 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


regime nazista ou um homem que contraria as suas convicções
por se encontrar acurralado em um julgamento. Esse fator de
ambiguidade faz de Eichmann um personagem desafiador,
tendo-se em conta que o filme não propõe um pré-julgamento
das posições que ele defende. É o que ocorre, por exemplo, na
conclusão, quando Eichmann, ao final do julgamento, decide
declarar o que gostaria de escrever no seu livro de memórias.
7. Traduzido do espanhol:
“EICHMANN – Declararé
para terminar que ya, en
EICHMANN – Declararei para terminar que já, nessa época, esa época, personalmente,
pessoalmente, considerava que esta solução violenta não se consideraba que esa
justificava. Considerava-a um ato monstruoso. Mas, para meu solución violenta no estaba
grande pesar, ao estar ligado por meu juramento de lealdade, justificada. La consideraba
no meu setor devia me ocupar da questão da organização dos como un acto monstruoso.
transportes. E não fui liberado desse juramento... (BRAUMAN; Pero para mi gran pesar,
SIVAN, 1999: 160, trad. do autor)7 al estar ligado por mi
juramento de lealtad, en mi
sector debía ocuparme de la
cuestión de la organización
de los transportes. Y
Ao assumir esta abordagem, The specialist buscou
no fui relevado de ese
afrontar uma ideologia dominante dentro do imaginário juramento...” (BRAUMAN/
judaico, aprofundando uma reflexão segundo a qual também SIVAN, 1999: 160).

se deveria incluir o ponto de vista nazista, para se realizar


8. Traduzido do espanhol:
uma reflexão mais ampla sobre o tema. Sem adotar a locução
“La doble imagen del mártir
enquanto forma condutora na estrutura do filme ou algum – sacrificio y redención – fue
outro elemento mais marcante de indução interpretativa no impuesta poco a poco en
un proceso de sacralización
espectador, como o uso de trilha sonora ou uma edição mais del genocidio de los judíos.
tendenciosa, este documentário assumiu decisões narrativas El éxito del término bíblico
Holocausto – sacrificio del hijo
que colocam em discussão não somente a “banalidade do mal” ofrecido a Dios – muestra la
nazista, mas também a própria construção ideológica judaica fuerza de esa transformación
religiosa. Así, las víctimas
nesse julgamento. judías fueron instaladas
en un status ambiguo de
inocencia absoluta, imagen
en espejo del veredicto
A dupla imagem do mártir – sacrifício e redenção – foi
de culpabilidad absoluta
imposta pouco a pouco em um processo de sacralização pronunciado por los nazis en
do genocídio dos judeus. O êxito do termo bíblico su contra. Esta absolutización
Holocausto – sacrifício do filho oferecido a Deus – mostra de la víctima, transmitida de
a força dessa transformação religiosa. Assim, as vítimas generación en generación
judias foram instaladas num status ambíguo de inocência con un éxito creciente, es la
absoluta, imagem no espelho do veredito de culpabilidade condición y la consecuencia
absoluta pronunciado pelos nazistas contrários a isso. Esta de la despolitización de un
acontecimiento en adelante
absolutização da vítima, transmitida de geração em geração
contemplado en su ‘radical
com um êxito crescente, é a condição e a consequência da singularidad’, ya que su status
despolitização de um acontecimento contemplado na sua de insuperable misterio
“radical singularidade”, já que seu status de insuperável sólo requiere el silencio y
mistério somente requer o silêncio e a meditação. la meditación” (BRAUMAN;
(BRAUMAN; SIVAN, 1999: 58-59, trad. do autor)8 SIVAN, 1999: 58-59).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 111


The specialist move-se numa linha bastante frágil entre
uma possível identificação do espectador com Eichmann e uma
posição crítica frente à “espetacularização” desse julgamento por
parte dos judeus israelenses. Acurralado numa pequena jaula de
vidro, participante de um julgamento cujo final já se mostrava
premeditado, o documentário assume o risco de colocar Eichmann
na posição de vítima de todo esse processo. Como afirmam
Brauman e Sivan, “foi nesse espaço tênue que separa identificação,
compreensão e indulgência onde quisemos avançar” (BRAUMAN;
9. Traduzido do espanhol: SIVAN, 1999: 102, trad. do autor).9 A “banalidade do mal” está
“fue en este espacio tenue
justamente em encontrar nessa delicada aproximação, entre a
que separa identificación,
comprensión e indulgencia familiaridade e a suposta ausência de anormalidade, uma forma
donde quisimos de encontrar o horror.
evolucionar” (BRAUMAN;
SIVAN, 1999: 102).
É preciso assinalar também que este documentário parte
de um contexto em que as imagens registradas do Holocausto já
estão onipresentes dentro de um amplo imaginário coletivo. Não
é necessário reafirmar essas imagens de arquivos dos campos
de concentração, mas sim buscar novas formas de abordá-las.
Brauman e Sivan partem do ponto de que “ninguém pode
hoje olhar como se expressa Eichmann sem ter imediatamente
presente o terror, no qual um dos principais atores foi ele”
10. Traduzido do espanhol: (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 102, trad. do autor).10 Assim como
“nadie puede hoy mirar
o documentário Shoah, de Lanzmann, The specialist recusa-
cómo se expresa Eichmann
sin tener inmediatamente se a expor imagens de arquivo dos campos de concentração,
presente el terror, uno de mas a diferença fundamental entre ambos é que, em vez de
cuyos actores principales ha
sido él” (BRAUMAN; SIVAN, descartar categoricamente esse tipo de arquivo, os realizadores
1999: 102). Brauman e Sivan as utilizam fora de quadro, enquanto fonte
para captar as reações de Eichmann. Nesta escolha de enfoque,
o documentário termina reforçando a reação de neutralidade de
Eichmann ao ver as imagens do genocídio operado pelos nazistas
sendo projetadas durante o julgamento. Por trás da frieza do
personagem, o documentário consegue captar sutilmente a
perversidade contida nele.
Outro fator que particulariza The specialist em relação
aos demais filmes sobre o Holocausto é como os judeus estão
representados dentro do documentário. Embora ao longo do filme
existam muitos depoimentos de judeus que relatam os trágicos
momentos vividos nos campos de concentração, o que mais chama
a atenção é o fato de aparecer o desejo por um ajuste de contas,
que encontra em Eichmann uma forma de vingar as atrocidades

112 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


cometidas pelos nazistas. Isso fica bastante evidente desde o
início do filme, quando o Fiscal General Hausner pronuncia o seu
discurso de abertura:

GENERAL HAUSNER: Senhoras, senhores, honorável Corte,


diante de vocês se encontra o destruidor de um povo, um
inimigo do gênero humano. Nasceu como homem, mas viveu
como uma fera na selva. Cometeu atos abomináveis. Atos tais
que quem os comete não merece já ser chamado homem. Pois
existem atos que se encontram mais além do concebível, que
se colocam do outro lado da fronteira que separa o homem
do animal. E solicito à Corte que considere que atuou por 11. Traduzido do espanhol:
vontade própria, com entusiasmo, ardor e paixão, até o final. “GENERAL HAUSNER:
Señoras, señores, honorable
(BRAUMAN; SIVAN, 1999: 108, trad. do autor)11
Corte, ante ustedes se
encuentra el destructor de
un pueblo, un enemigo del
género humano. Nació como
Conforme afirmam Brauman e Sivan, o julgamento de hombre, pero vivió como una
Eichmann assumia inclusive um caráter simbólico mais amplo fiera en la jungla. Cometió
actos abominables. Actos
do que um ajuste de contas: buscava uma forma de legitimação
tales que quien los comete
do recém-criado país israelense e uma forma de agregação do no merece ya ser llamado
próprio povo judeu, que, num primeiro momento, mostrou-se hombre. Pues existen actos
que se hallan más allá de lo
tão resistente à criação de um Estado judeu. Neste processo, concebible, que se ubican
a construção discursiva efetuada pelos israelenses tornava-se del otro lado de la frontera
que separa al hombre del
fundamental para o país assumir uma posição institucional sobre animal. Y solicito a la Corte
o Holocausto e assim conquistar o voto de confiança dos judeus. que considere que actuó
por propia voluntad, con
entusiasmo, ardor y pasión,
hasta el final” (BRAUMAN;
“Necessitava-se de um acontecimento que cimentasse à SIVAN, 1999: 108)
sociedade israelense – escreve Tom Seguev – uma experiência
coletiva, impressionante, purificadora, patriótica, uma catarse
12. “‘Se necesitaba un
nacional”. Se os serviços secretos israelenses não haviam sido
acontecimiento que
enviados para capturá-lo (a Eichmann) antes, com certeza cimentara a la sociedad
não foi devido à eficácia de sua proteção, que na Argentina israelí – escribe Tom
era mínima. (...) Era necessário reunir essa sociedade Seguev – una experiencia
fragmentada, e o processo Eichmann ia produzir esse efeito. colectiva, impresionante,
(BRAUMAN; SIVAN, 1999: 38-39, trad. do autor)12 purificadora, patriótica; una
catarsis nacional’. Si los
servicios secretos israelíes
no habían sido enviados
The specialist evidencia, assim, a “espetacularização” desse a capturarlo antes, con
seguridad no fue debido a la
julgamento, que existiu como uma forma de demonstrar um poder eficacia de su cobertura, que
emergente contido na política israelense, a fim de fazer justiça às en la Argentina era mínima.
(...) Era necesário reunir a
vítimas do Holocausto. Embora o documentário detenha-se em esa sociedad fragmentada,
alguns casos específicos nos quais Eichmann esteve diretamente y el proceso Eichmann
iba a producir ese efecto”
envolvido, por momentos essa confrontação entre o acusado e (BRAUMAN; SIVAN, 1999:
os seus julgadores concentra-se no nível estritamente moral, sem 38-39).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 113


13. Traduzido do espanhol: a necessidade de provas, como o é no caso em que o General
“EICHMANN – Era un hombre
Hausner pergunta se “alguém que se ocupava do extermínio dos
desdichado.
judeus era um criminoso”:
GENERAL HAUSNER – Era un
criminal?
EICHMANN – No quiero
EICHMANN – Era um homem de má sorte.
aventurarme a responder
esa pregunta, porque nunca GENERAL HAUSNER – Era um criminoso?
estuve en tal situación.
EICHMANN – Não quero me aventurar a responder a esta
GENERAL HAUSNER – Usted
pergunta, porque nunca estive em tal situação.
vio que Hess hacía eso en
Auschwitz. Lo consideró GENERAL HAUSNER – Você viu que Hess fazia isso em
usted como un criminal, un Auschwitz. Você o considerou como um criminoso, um
asesino?
assassino?
EICHMANN – Tenía piedad de
él, estaba desolado por él.
EICHMANN – Tinha piedade dele, estava desolado por ele.

GENERAL HAUSNER – Lo GENERAL HAUSNER – Considerava-o como um criminoso,


consideraba como un sim ou não?
criminal, sí o no?
EICHMANN – Não revelarei meus sentimentos íntimos.
EICHMANN – No revelaré (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 158, trad. do autor)13
mis sentimientos íntimos”
(BRAUMAN; SIVAN, 1999:
158).
The specialist revela um embate entre duas construções
ideológicas que, em diferentes contextos e fins, buscaram constituir
um discurso de poder. Sem assumir partido, sem pretender
vitimizar ou condenar judeus e nazistas, mas procurando entender
como se elaboram discursivamente ambas ideologias, Brauman e
Sivan buscaram desafiar o imaginário do espectador. Ao trazerem
uma perspectiva mais ampla e menos indutiva, este filme aponta
caminhos para se pensar a importância que têm as imagens de
arquivo no processo de reflexão sobre os discursos relacionados
ao Holocausto. Neste documentário, não está mais em jogo o
“irrepresentável”, a impossibilidade de representar o horror, mas
o desejo de confrontar paradigmas, de pensar as representações
sobre o Holocausto a partir de uma ótica mais ampla e crítica.

4. Considerações finais
Não é possível encontrar uma definição absoluta para se
entender o que foi o Holocausto. Diante de um acontecimento com
tantas implicações na história do século XX e na própria história do
homem, o seu entendimento não pode partir somente de estatísticas
e relatórios empíricos. A fim de se construir um conhecimento
mais amplo, é necessário partir também de uma reflexão sobre as

114 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


elaborações discursivas que procuraram se apropriar do que de fato
aconteceu ou que tentaram explicar isso. É preciso ver, na diversidade
de representações e testemunhos, na divergência de pontos de vista
e no uso de arquivos de diferentes fontes, um processo que não pode
ser fechado por conceitos definitivos ou afirmações categóricas.
É neste sentido que abordagens críticas como as que foram
propostas em The specialist aportam uma reflexão pertinente
para se entender como as imagens de arquivo inserem-se num
contexto de representações sobre o Holocausto. O documentário
de Rony Brauman e Eyal Sivan apresenta o mérito de encontrar,
nas imagens de arquivo do julgamento de Eichmann, um sentido
muito mais amplo do que serem meras ferramentas para fins
ideológicos, como fez o governo israelense na época em que essas
imagens foram registradas e mostradas ao vivo pela televisão.
Ao ressignificarem essas imagens, deslocarem esse material do
seu sentido original, The specialist traz à tona uma reflexão sobre
como as construções discursivas apropriam-se de um fato como o
Holocausto, para atender a determinados fins ideológicos. O que
está em jogo neste filme não são somente o julgamento e a figura
de Eichmann, mas um embate de duas construções ideológicas
pelo poder simbólico de um mesmo fato histórico: o genocídio
dos judeus nos campos de concentração nazistas.
The specialist comprova, portanto, que as imagens de arquivo
são muito mais do que “imagens sem imaginação”, porque elas
não apenas evidenciam uma elaboração discursiva na sua origem,
mas também desafiam a nossa percepção porque estão abertas
para novas formas de significação que ampliem ou que até mesmo
possam negar o seu sentido original. Essas imagens têm um caráter
transitório, podem ter a sua significação original transformada de
acordo com o contexto e com as intenções de quem pretenda utilizá-
las. É justamente nesta questão que reside tanto o seu potencial
como o seu perigo nesse processo de representação do real.
O cinema documentário também deve partir do pressuposto
de que não pode se transformar numa mera ferramenta de
propaganda de um discurso hegemônico, mas sim deve ser uma fonte
constante de questionamento sobre posições absolutistas. Assim
como o cinema deve evidenciar as dimensões trágicas do que foi o
Holocausto, também deve refletir sobre as suas fissuras, as questões
mal esclarecidas e as complexidades que ainda suscitam reflexões

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 115


sobre esse episódio da história recente. Através da análise dos seus
rastros, da busca pelos seus vestígios, as imagens de arquivo não
podem ser descartadas para se entender o Holocausto e a posição
que desempenham na sua representação. Cabe ao cinema – por meio
de obras como The specialist – o papel de resgatar essas imagens para
seguir assumindo uma posição questionadora diante da construção
dos discursos ideológicos de poder.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a


testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – Informe sobre a
banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BRAUMAN, Rony; SIVAN, Eyal. Elogio de la desobediencia. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 1999.
COMOLLI, Jean Louis. O espelho de duas faces. In: YOEL, Gerardo
(org.). Pensar o cinema – imagem, ética e filosofia. São Paulo:
Cosac Naify, 2015. p. 165-203.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa:
Imago, 2012.
FAROCKI, Harun. Desconfiar de las imágenes. Buenos Aires: Caja
Negra, 2013.
LANZMANN, Claude. Le monument contre l’archive? - Entretien
avec Claude Lanzmann. Les Cahiers de Médiologie. Paris:
Éditions Gallimard, n°11, p.271-279, 2001. Link: http://
mediologie.org/cahiers-de-mediologie/11_transmettre/
lanzmann.pdf
MORAES, Eliane Robert. A memória da fera. In: SELIGMANN-
SILVA, Márcio; NETROVSKI, Arthur (orgs.). Catástrofe e
representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000. p. 149-156.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In:
SELIGMANN-SILVA, Márcio; NETROVSKI, Arthur (orgs.).
Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000.
p. 73-98.

116 Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles


THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis:
Vozes, 1995.
TODOROV, Tzvetan. Memoria del mal, tentación del bien.
Barcelona: Ediciones Península, 2002.

FILMOGRAFIA

IMAGENS do mundo e inscrições da guerra (Bilder der Welt und


Inschrift des Krieges). Harun Farocki, Alemanha, 1988, 75 min.
SHOAH. Claude Lanzmann, França, Reino Unido, 1985, 280 min.
THE SPECIALIST, portrait of a modern criminal. Rony Brauman e
Eyal Sivan. Israel, França, Alemanha, Áustria, Bélgica, 1999,
128 min.

Data do recebimento:
06 de abril de 2015

Data da aceitação:
09 de junho de 2015

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2015 117


Fragmentos de guerra: estética
e política em El Perro Negro, de
Péter Forgács

Jamer Guterres de Mello


Doutorando em Comunicação e Informação pelo PPGCOM-UFRGS, onde pesquisa
as dimensões estéticas e políticas do uso de imagens de arquivo na obra de Harun
Farocki e Péter Forgács. Realizou estágio de Doutorado Sanduíche na Universitat
Autònoma de Barcelona, sob a supervisão de Josep Maria Català Domènech, foi
integrante da equipe de produção do festival Cine Esquema Novo, realizado em
Porto Alegre, nas edições de 2011 e 2013 e possui mestrado em Educação pelo
PPGEDU-UFRGS.
(MUITO EXTENSO)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015


Resumo: Este trabalho busca problematizar as dimensões estéticas e políticas
do uso de imagens de arquivo no documentário contemporâneo a partir das
contribuições de Jacques Rancière. Para tanto, nos debruçamos sobre El Perro
Negro (2005), filme em que Péter Forgács abre mão da tentativa de contar a história
da Guerra Civil Espanhola de um modo convencional ao se utilizar de imagens
amadoras. Podemos dizer que as dimensões estéticas e políticas do cinema
produzem novos agenciamentos dos regimes do visível e do enunciável.
Palavras-chave: Documentário. Imagens de arquivo. Estética. Política. Filmes de
família.

Abstract: This paper aims to question the aesthetic and political dimensions of the
use of archival footage in the contemporary documentary from the contributions of
Jacques Rancière. Therefore, we fix our attention on El Perro Negro (2005), a film in
which Péter Forgács gives up the attempt to tell the story of the Spanish Civil War in
a conventional manner, as he uses amateur images. We can say that the aesthetic
and political dimensions of cinema produce new agencies of the visible and the
enunciable regimes.
Keywords: Documentary. Archival footage. Aesthetic. Politics. Amateur movies.

Résumé: Cet article interroge les dimensions esthétiques et politiques de


l’utilisation d’images d’archives dans le documentaire contemporain, en partant
des réflexions de Jacques Rancière. Nous y analysons El Perro Negro (2005), film
dans lequel Péter Forgács renonce à l’idée de raconter l’histoire de la guerre civile
espagnole d’une manière conventionnelle, en revenant sur des images d’amateur.
Les dimensions esthétiques et politiques du cinéma produisent ainsi des nouveaux
agencements des régimes du visible et d’énoncés.
Mots-clés: Documentaire. Images d’archives. Esthétique. Politique. Film de famille.

120 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


O eixo central do pensamento de Jacques Rancière
incide sobre o problema da imagem em um conjunto de relações
indissociáveis entre estética e política. São reflexões críticas que
partem de campos distintos do saber como a filosofia, a literatura,
o cinema e a teoria da arte. Suas obras têm configurado os debates
contemporâneos sobre arte e política, constituindo linhas de
força que não cessam de produzir um pensamento de referência
constante nas análises e nas observações das imagens, sejam elas
artísticas ou midiáticas. Este artigo tem como ponto de partida uma
tentativa de aproximação entre as problematizações de Rancière e
algumas manifestações do arquivo observadas no documentário El
Perro Negro – Histórias da Guerra Civil Espanhola (El Perro Negro –
Történetek a Spanyol Polgárháborúból, 2005), do cineasta húngaro
Péter Forgács. Assim, seria possível pensar o arquivo em sua
potência de diferenciação, aspecto fundamental para compreender
como as imagens já existentes vêm sendo utilizadas – de forma
cada vez mais frequente – no documentário contemporâneo.
O objetivo deste texto é problematizar os agenciamentos
que possibilitam enunciar o arquivo e seus dispositivos estéticos e
políticos, segundo Jacques Rancière, e também suas condições de
visibilidade e dizibilidade, segundo Michel Foucault. Para tanto,
tratamos de pensar o uso de fragmentos de filmes caseiros não como
um discurso unificado ou singular próprio do mundo histórico, mas
como “práticas complexas, sedimentadas, ativas e contraditórias para
uma historiografia imaginativa e transformadora” (ZIMMERMANN,
2008: 17). Afirmar que as imagens não são apenas representações
do mundo, mas sim acontecimentos que tomam lugar, agem, atuam
e transformam este mundo é assumir um posicionamento político,
um gesto de colocar-se frente às imagens considerando-as como
potências de uma partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009a). Assim, o
arquivo deixa de ser apenas um artefato ou um documento histórico
para se converter em um sistema discursivo que estabelece relações
ativas tanto estéticas quanto sociais e políticas.

***

Segundo Jacques Rancière, há uma dimensão estética


que se expressa na ordenação social dos modos de visibilidade
e dizibilidade e, ao mesmo tempo, uma dimensão política

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 121


na reconfiguração dessa ordenação, na possibilidade de
agenciamento de novos modos de fazer, ver e dizer. Haveria,
então, um fundamento estético na política que, segundo o autor,
seria um modo de partilha (tanto no sentido de divisão quanto de
distribuição) de uma experiência sensível comum. É importante
ressaltar que as dimensões estética e política, para o autor, se
diferenciam do fenômeno da estetização da política apontado por
Walter Benjamin (1987). Não se trata, aqui, de uma estetização
da arte a serviço da política, do poder e do autoritarismo, como
discutido por Benjamin em relação ao regime nazista.
Ao evidenciar os paradoxos que acompanham o
pensamento moderno e adentram a pós-modernidade, Rancière
(1996a) produz uma série de problematizações no cerne das
questões que envolvem a imagem em suas dimensões estética e
política. Há, inclusive, um deslocamento das próprias noções que
estes termos (estética e política) designam na contemporaneidade.
A estética não estaria reduzida e submetida à filosofia da arte ou
às artes do belo, mas antes definiria as possibilidades de ruptura
e distribuição do sensível, um problema evidente de comunicação
que caracteriza a era moderna. A política, por sua vez, seria antes
um recorte comum do mundo sensível, uma composição entre
visibilidades e dizibilidades e uma possibilidade de reconfigurar
o espaço e o tempo, ao contrário de como é entendida num
sentido comum, na maneira como grupos sociais organizam seus
interesses.
Rancière define a política como uma cena que coloca
em jogo conflitos entre mundos perceptíveis, entre o que se
vê e o que se pode dizer sobre o que é visto, em sintonia com
o pensamento de Michel Foucault (2010). Toda atividade
política é um conflito, um “recorte dos tempos e dos espaços,
do visível e do invisível, da palavra e do grito que define ao
mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como
forma de experiência” (RANCIÈRE, 2009a: 16-17). Esta cena
política é produtora de dissensos, rompendo com a estabilidade
de conflitos pré-existentes, fazendo emergir as ações
daqueles sujeitos que, até então, não estavam em posição de
interlocutores. São os sujeitos do dissenso, aqueles que tomam
a palavra (ou a ação) sem tutela reconhecida, que se tornam
sujeitos políticos apenas quando assim o fazem, quando e onde
não teriam o poder de fazê-lo.

122 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


Existe, portanto, um princípio da emancipação política
que é essencial para a compreensão do problema estético na
contemporaneidade. As cenas do dissenso provocam rupturas
nas unidades do visível, permitindo a emergência de situações
que modificam nossa relação com os objetos e as imagens do
mundo, assim como nossas atitudes com relação ao ambiente
coletivo.
O dissenso expressa um processo de subjetivação política
não de um discurso a ser enunciado por um interlocutor com
lugar de fala definido, mas antes na própria criação da condição
de fala, por um interlocutor sem a devida autorização para
fazê-lo. Portanto, a constituição do comum não é exatamente a
partilha da possibilidade de fala na comunidade, da possibilidade
de tornar algo comum a todos ou a apropriação realizada por
um gênio criador, mas a subversão do inaudível que advém de
um lugar, um espaço onde geralmente não há fala por não haver
título para tanto.
Tomar o arquivo como dissenso – mais do que isso, pensar
o uso de imagens de arquivo enquanto práticas do dissenso no
cinema documentário – equivale a dizer que sua função enquanto
imagem não diz respeito apenas às palavras, enquanto discurso,
enquanto conteúdo, mas diz respeito também à sua própria
condição de fala, de enunciado, no sentido engendrado por
Michel Foucault (2010).
Este conjunto radical de relações entre estética e política,
quando endereçado ao problema da imagem, se configura em
uma importante reflexão para a constituição de um estatuto do
arquivo no documentário, uma vez que este se apresenta como
modo de circulação do sensível e oferece diversas possibilidades
de reconfigurar as formas de visibilidade e enunciação do real.
O arquivo, entendido nestes termos, possibilita maneiras de
constituir o visível e o invisível, de (des)organizar o sensível.
Para Rancière, a imagem não deve ser reduzida à sua
visualidade, pois nela operam também o dizível, o indizível e aquilo
que não é visível, portanto a imagem deve ser compreendida em
seu caráter paradoxal. A imagem é ao mesmo tempo autônoma
e elemento que compõe uma parte em um determinado fluxo
imagético. Com efeito, tomar a imagem pelo que ela possui de
meramente visual significa desconsiderar o complexo jogo de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 123


relações que define o seu amplo sentido e sua especificidade.
Diante desta série de paradoxos entre as operações, os modos
de circulação e o discurso crítico das imagens desenvolvida por
Rancière o intuito é o de tentar compreender a imagem de arquivo
no espectro dos fenômenos estéticos da contemporaneidade
a partir de seus sistemas de visualidades (visibilidades e
dizibilidades).
A imagem nunca é uma realidade simples. As imagens do
cinema são antes de mais nada operações, relações entre o dizível
e o visível, maneiras de jogar com o antes e o depois, a causa e
o efeito. Essas operações mobilizam funções-imagens diferentes,
sentidos distintos da palavra imagem. O encadeamento de dois
planos cinematográficos pode, assim, depender de uma imagéité
diferente. E, inversamente, um plano cinematográfico pode
pertencer ao mesmo tipo de imagéité que uma frase romanesca
ou um quadro (RANCIÈRE, 2012b: 14).
Neste contexto, o arquivo pode se configurar como um
elemento metamórfico destituído de seu caráter utilitário de
documento ou testemunho do passado. Ou melhor, o continuum
metamórfico das imagens coloca o arquivo no espaço do sensível
heterogêneo, o retira de um nível de superioridade ao qual o ideal
de testemunho o encerra, assumindo uma função ou um ofício
que não era exatamente o seu, tornando-se estranho a qualquer
finalidade que pudesse ser a ele conferida como atributo.
De fato, a imagem não se caracteriza apenas como
imagem, ela mesma em sua intransitividade, mas também como
alteridade apta a executar sua função em um meio expressivo
qualquer, que possibilite tecnicamente sua exibição. Trata-se
de pensar as imagens como operações, como “relações entre
um todo e as partes, entre uma visibilidade e uma potência de
significação e de afeto que lhe é associada, entre as expectativas
e aquilo que vem preenchê-las” (RANCIÈRE, 2012b: 11-12). As
operações seriam, para Rancière, um conjunto de capacidades
das imagens de conter múltiplas funções, nelas mesmas, que
se expressam como performance em um determinado meio de
exibição.
Quando associamos o arquivo a uma propriedade
operacional da imagem estamos trabalhando com uma
potência que não está diretamente ligada às características de

124 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


um dispositivo técnico (de captação ou exibição da imagem),
nem a um caráter interpretativo daquilo que se vê, de forma
estanque, mas antes a uma propriedade funcional, um efeito
que é determinado operacionalmente. Uma cena de um filme,
por exemplo, vista em uma sala de cinema, em uma televisão
ou em uma tela de celular não deixa de ser a mesma cena, nem
mesmo se torna algo completamente diferente em função de seu
dispositivo de exibição. Há aí um duplo movimento operacional
da imagem que se dá, menos pelas múltiplas interpretações
possibilitadas por formas distintas de recepção do que por sua
capacidade de executar diferentes performances em cada um
destes dispositivos.
Neste contexto, o autor desenvolve o que chama de
imagem pensativa, referindo-se a uma capacidade de autonomia
da imagem em relação à construção de significados. Portanto, se
a imagem, para Rancière, não é simplesmente um determinado
tipo de realidade, mas antes uma determinada ideia e, mais do
que isso, uma ideia polêmica de realidade, é possível afirmar que
existe uma potência das imagens que é de ordem tanto estética
quanto política. Assim, o uso de imagens de arquivo pode ser
discutido à luz dessas duas dimensões.
No regime estético da arte, a imagem é uma categoria
da partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009a), ou melhor, a arte
define-se – para além de uma aptidão técnica de produção
de objetos e performances – pela capacidade de dissenso, por
uma competência de recolocar em questão um certo estatuto
do senso comum (um modo dominante de apresentação das
coisas, um modo dominante de interpretação das imagens).
Portanto, existe uma ideia de arte como formas sensíveis e
modos de visibilidade, em ruptura, relativamente ao regime
geral das imagens, e é isso que interessa a este trabalho. Grosso
modo, os arquivos são imagens que se ignoram como imagens
e que se projetam como formas sensíveis que pertencem a um
outro sensorium, a um novo mundo sensível, dependente de sua
ressignificação.
Na esteira de Rancière, podemos dizer que não se pode
antecipar o efeito de uma obra de arte, portanto parece infrutífero
tomar o arquivo como objeto de apropriação no sentido exclusivo
de criação artística.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 125


[...] quando dizemos que uma imagem é pensativa [...] não
se supõe que uma imagem pense. Supõe-se que ela é apenas
objeto de pensamento. Imagem pensativa, então, é uma
imagem que encerra pensamento não pensado, pensamento
não atribuível à intenção de quem a cria e que produz
efeito sobre quem a vê sem que este a ligue a um objeto
determinado. (RANCIÈRE, 2009b: 103)

Podemos estabelecer agora uma propriedade de


pensatividade no arquivo, uma zona de indeterminação entre
pensamento e não pensamento, uma espécie de intervalo,
potência que está contida no interior do arquivo. Para isso é
preciso, portanto, definir o efeito do arquivo sem reduzi-lo à
intenção do cineasta ou à interpretação do sujeito observador.
A noção de estética como distribuição do sensível,
conforme determinada por Rancière, ajuda a pensar o arquivo no
plano das repartições do comum, como objeto político. O arquivo
pode, então, ser tomado como “um sistema de formas a priori
determinando o que se dá a sentir. [...] um recorte dos tempos e
dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que
define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política
como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2009a: 16).
O que distingue o arquivo das demais imagens não é
sua natureza, mas seus regimes de enunciação e visibilidade.
Os entrecruzamentos entre diferentes regimes podem chegar a
constituir, por si mesmos, modelos ou estratégias estéticas.
As abordagens de Michel Foucault sobre os sistemas de
pensamento e as práticas discursivas também podem produzir um
conjunto de questões bastante pertinentes para pensar algumas
das relações entre o documentário contemporâneo e o estatuto
do arquivo que se propõe neste artigo. Em Arqueologia do saber,
Foucault (2010) considera que o documento não é algo neutro,
mas antes fruto de um efeito de poder das sociedades históricas
a fim de conservar determinadas imagens do passado, ou seja, a
história acaba transformando certos documentos em monumentos.
O autor afirma que:

o documento, pois, não é mais, para a história, essa massa


inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens
fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas

126 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental,
unidades, conjuntos, séries, relações. (FOUCAULT, 2010: 7)

Com efeito, é este conjunto de relações de poder


estabelecido pelos interesses da própria sociedade que constitui
valor e sentido ao documento perante a história.

***

Péter Forgács é um artista multimídia e cineasta


independente que vive em Budapeste e se auto intitula um
colecionador de memórias. Seus filmes e videoinstalações são
fortemente marcados pelos mecanismos de manipulação de
filmes de família dos anos 1920 aos anos 1960 e são associados
a uma prática bastante específica de uso de imagens de arquivo,
uma apropriação interessada tanto no valor plástico e pictórico
quanto poético e simbólico dos fragmentos de filmes antigos.
Esta estratégia tem o intuito de explorar as possibilidades de uma
arqueologia poética da película, explorando os limites entre o
cinema e as artes visuais.
Em sua obra, com mais de 30 documentários produzidos
desde 1978, destacam-se A Família Bartos (A Bartos Család,
1988), O Turbilhão – Uma Crônica Familiar (A Malestrom, 1997),
O Êxodo de Danúbio (Dunai Exodus, 1998) e Hunky Blues – O
Sonho Americano (Hunky Blues – az amerikai álom, 2009). São
filmes que “optam por sublinhar a complexidade do conhecimento
sobre o mundo através de uma ênfase nas dimensões subjetivas
e afetivas” (REBELLO, 2012: 6). Os filmes de família são cada
vez mais explorados por cineastas que procuram dar lugar a
testemunhos pessoais, seja no sentido da micro história, como
Forgács, ou em obras autobiográficas como Alain Berliner ou
Jonas Mekas.
El Perro Negro é um filme de 84 minutos que mostra,
em sua maior parte, imagens caseiras captadas por dois
cineastas amadores que estiveram envolvidos diretamente
com os acontecimentos da Guerra Civil Espanhola. São eles
também os dois principais personagens do filme. Um é Joan
Salvans, filho de Francesc Salvans, um importante industrial

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 127


catalão, ambos assassinados por um anarquista chamado Pedro
el Cruel, seis dias após o início da guerra; e o outro é Ernesto
Noriega, estudante de Madri e membro do exército republicano
que é capturado e detido como prisioneiro e posteriormente
convertido em soldado nacionalista, tendo conseguido filmar
clandestinamente alguns detalhes do conflito. Podemos
1. O cineasta Jonas Mekas – chamar estes cineastas amadores também de filmadores1
nascido em 1922 na Lituânia
e radicado nos Estados
ou sujeitos da câmera, já que eles não produziam filmes no
Unidos desde 1939, dono sentido comercial do termo. Seus filmes não eram exibidos
de uma extensa filmografia
ao público, não ganhavam forma como filme, como cinema.
e reconhecido por sua
importância na história Trata-se de duas pessoas que tinham um particular interesse
do cinema experimental em registrar o cotidiano com uma câmera. O filme recorre
americano com seus filmes-
diário, marcos inaugurais do também a outros fragmentos de filmes amadores, alguns de
cinema autobiográfico – se procedência anônima, e a cenas de alguns filmes espanhóis,
intitula um filmador e não
um cineasta, em alusão à um emaranhado poético de imagens de arquivo que culmina
sua obsessão por filmar num olhar mais amplo sobre os acontecimentos de um período
praticamente tudo o que
envolve o seu cotidiano, bastante caótico da história espanhola.
mais do que filmar para
posteriormente produzir Apesar de ter uma construção nitidamente cronológica,
obras cinematográficas. El Perro Negro não é um filme exatamente linear. Como Joan
Este é um termo que define,
de certa forma, a ação de Salvans e seu pai são assassinados na primeira semana da
registro do cotidiano de Joan guerra e Ernesto Noriega produz suas imagens no decorrer
Salvans e Ernesto Noriega.
do conflito, há uma linearidade cronológica que mantém uma
predominância das imagens de Salvans na primeira metade
do filme, acentuando a exposição das imagens captadas por
Noriega da metade até o final. Porém, essa característica não
mantém uma linearidade óbvia no decorrer da obra, pois a
própria narrativa é constantemente fraturada e abalada por
elementos heterogêneos que se acentuam na medida em que o
filme avança. São elementos paradoxais que permeiam o filme,
como a constante fragmentação e a justaposição de cenas que,
apesar de documentais, parecem não ter ligação com a história
que vai sendo comentada pela narração em off: cenas de crianças
brincando, de barricada nas ruas ilustram metaforicamente o
conflito armado que se instaura na Espanha; o áudio de um
discurso do ditador Miguel Primo de Rivera junto a cenas de um
anão dançando de forma desengonçada; o uso de diversas cenas
de animais em meio ao discurso narrativo sobre os desfechos da
guerra; e a grande quantidade de cenas abstratas filmadas por
Salvans e Noriega que são utilizadas no filme sem uma proposta
narrativa definida (ver figura 1).

128 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


Figura 1

Logo no início do filme, nos primeiros minutos, são


revelados detalhes do assassinato do jovem cineasta amador e de
seu pai, arrancados da mansão La Barata, próxima a Barcelona,
onde a família Salvans vivia. Esta informação, colocada no início
do filme, equivale ao papel que o Holocausto desempenha na
narrativa de outros filmes de Forgács, pois “nos permite saber
que a pessoa que está filmando as imagens da vida luxuosa do clã
dos Salvans a partir dos anos 1920, que veremos nos 30 minutos
seguintes, vai, no final das contas, morrer de forma violenta”
(ROSENSTONE, 2012: 35). Aqui não se trata de uma comparação
do Holocausto com a Guerra Civil Espanhola, muito menos com
o assassinato violento de Joan Salvans e seu pai, mas antes de
um paralelo entre este assassinato com o papel narrativo que o
Holocausto desempenha no desenvolvimento da trama em alguns
filmes de Forgács. Em O Turbilhão – Uma Crônica Familiar (A
Malestrom, 1997), por exemplo, Forgács utiliza imagens de filmes
de uma família judia em um período prévio ao Holocausto. Neste
filme vemos imagens desta família em uma animada preparação
para uma viagem a um campo de trabalho quando, na verdade,
estavam rumo ao terror de Auschwitz. Em El Perro Negro,
Forgács deixa claro logo no início do filme que Joan Salvans e
seu pai foram assassinados na primeira semana da Guerra Civil
Espanhola, o que contribui especificamente para que o espectador
se posicione frente às imagens que compõem o restante do filme.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 129


As imagens de Joan Salvans e de Ernesto Noriega
potencializam uma possibilidade de ruptura da lógica dominante e
linear da história da Guerra Civil Espanhola, como a conhecemos.
As imagens carregam em sua essência a possibilidade de gerar o
dissenso entre a Grande História e as micronarrativas que fazem
parte dessa mesma história. Mais do que isso, os filmes domésticos
de Salvans e Noriega podem exercer a função de sujeitos do
dissenso, como definiu Rancière, ao abordarem a Guerra Civil
Espanhola sem ter o poder e o reconhecimento para fazê-lo.
À primeira vista, Péter Forgács tem por objetivo transformar
filmes de família em documentos que contam algo sobre a história
de uma época, mais especificamente da Guerra Civil Espanhola e
da Segunda Guerra Mundial. Podemos dizer que em seus filmes,
de modo geral, os registros pessoais, as imagens de uma memória
íntima e familiar, carregam rastros de uma memória do mundo.
Porém, é possível ir além e afirmar que a intimidade dos filmes
de família – e a possibilidade de reconfiguração do público e do
privado que se observa em filmes como El Perro Negro – pode
operar como um recorte comum do mundo sensível que opera na
contemporaneidade, exatamente como o conceito de política, à luz
de Jacques Rancière. Mais do que isso, as imagens da intimidade
dos contemporâneos da Guerra Civil Espanhola reconfiguram o
espaço e o tempo ao partilhar um outro mundo sensível, compondo
novas visibilidades e dizibilidades que, tornadas comuns em nosso
tempo, são suscetíveis de serem apreendidas. El Perro Negro pode,
portanto, ser considerado como um filme que coloca à prova as
imagens íntimas e amadoras.
Podemos também destacar o principio ensaístico de El
Perro Negro ao contar as histórias particulares de dois personagens
para chegar a uma narrativa maior que é histórica. O modo de
compor esta narrativa possui uma dimensão ensaística bastante
evidente. Parte de imagens de arquivo, de filmes de família, de
histórias íntimas, usa voz off e faz associações inusitadas entre as
próprias imagens. Em suma, produz pensamento sobre o mundo
histórico através de associações não tão óbvias entre as imagens e
os demais recursos apresentados no filme.
Tanto Salvans quanto Noriega possuem, de certa forma,
um senso estético apurado, o que provavelmente tenha despertado
o interesse de Forgács em trabalhar com suas filmagens. Ambos
produziram filmes amadores, entre o documentário e a ficção,

130 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


mas a maior parte das imagens utilizadas em El Perro Negro são
imagens do cotidiano pessoal e familiar. Joan Salvans produzia
filmagens de momentos importantes na mansão La Barata, como
casamentos, reuniões partidárias e encontros de negócio. Ernesto
Noriega captava imagens de sua namorada e seus amigos em
tom de descontração, criando sequências poéticas, como por
exemplo a de um de seus amigos mergulhando (ver figura 2).
É interessante notar que Forgács não apenas escolheu utilizar as
imagens captadas por estes dois filmadores, mas os coloca como
personagens principais do filme. Uma espécie de metalinguagem
cinematográfica onde a criação fala sobre o criador.

Figura 2

Forgács reitera em seus filmes uma série de estratégias


de manipulação do material encontrado. Não trabalha apenas na
montagem deste material, mas também interfere esteticamente
nas imagens das quais se apropria. Entre os recursos utilizados
reiteradamente na maioria de seus filmes estão a trilha sonora –
quase sempre composta por Tibor Szemzö – comentários lacônicos,
zooms, imagens congeladas, velocidade lenta, coloração e o uso
de imagens com efeito de negativo. Em El Perro Negro há uma
importante diferença de matizes entre as imagens de Salvans,
em tom sépia, e as imagens de Noriega, em tons frios. Em alguns
momentos aparecem oposições entre positivo e negativo (ver
figura 3), em outros aparecem elementos que parecem ter sido

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 131


colorizados pelo cineasta, como bandeiras vermelhas. Assim
como as narrações em voz off, que geram um tipo de confusão
referente à autenticidade dos comentários, as manipulações que
transformam esteticamente as imagens utilizadas no filme podem
causar estranheza no seu dispositivo narrativo. Em outras palavras,
são estratégias estéticas que evidenciam o caráter de criação no
documentário poético, sobrevalorizando as imagens de arquivo.

Figura 3

A trilha sonora também possui características importantes


na obra e confere ao filme um tom bastante ensaístico. Tibor
Szemzö, parceiro de Forgács em quase todos os seus filmes,
produz sons, ruídos, músicas específicas para cada obra. Em
El Perro Negro, a música acompanha o processo narrativo do
filme. Na primeira metade, junto às imagens de Joan Salvans,
há uma predominância de músicas típicas da Espanha, como o
flamenco. À medida que o filme avança e a narrativa vai ficando
cada vez mais fraturada, os comentários cada vez mais lacônicos
e desconexos, a música também vai se transformando. No terço
final do filme há predominância do jazz experimental. Todos os
ruídos parecem também minimamente orquestrados para cada
cena. Barulhos dos cascos de cavalo, de carroças, árvores caindo,
etc., possuem grande importância em um filme com imagens das
décadas de 1920 e 1930, pois são todas imagens que não foram
originalmente gravadas com som.

132 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


A partir desse conjunto de estratégias fortemente
marcadas no filme, podemos dizer que as imagens tomam uma
dimensão política através de seus agenciamentos estéticos. Não
há mais uma estabilidade entre passado e presente, entre história
e memória, entre público e privado, entre visível e invisível. Há
apenas acontecimento em seu estado bruto, em seu devir pleno.
O que se vê e o que não se vê estão em pleno jogo discursivo a
partir do conjunto de elementos que são colocados em relação
através das imagens, dos sons, das narrações, etc. Não se trata de
mostrar uma verdade escondida da Guerra Civil Espanhola que
teria a chance de ser revelada em filmes caseiros, mas de mostrar
imagens que trazem à tona as cenas comuns, cenas do dissenso.
As imagens são agenciadas esteticamente para gerar um dissenso
político, imagens que provocam rupturas nas unidades do visível
e, desta forma, fazem emergir situações que modificam nossa
relação com os fatos históricos, com as imagens do mundo, com
a história pré-estabelecida. Imagens caseiras que colocam em jogo
o acontecimento tanto quanto qualquer imagem que serviria de
discurso da história hegemônica. Acontecimento, para além do fato.
A maneira como a intimidade é colocada em jogo e o tipo
de intimidade que é provocada como visibilidade estabelecem
relações poéticas e políticas com fatos históricos que não são os
fatos puros da história como a conhecemos, pois esta história
não foi escrita a partir deste tipo de narrativa doméstica. Estão lá
vários dos elementos que nos remetem a uma memória coletiva da
Guerra Civil Espanhola: as bandeiras anarquistas, as imagens de
Franco e seus generais, Salvador Dalí, Luis Buñuel, Gabriel Garcia
Lorca. Imagens que Forgács recupera e as coloca em situação
limítrofe na relação com a intimidade dos filmes de família. É
como se pudéssemos reconhecer que há mais sobre a guerra a ser
visto do que as imagens que nos remetem a ela.
Péter Forgács percebe que nos filmes de família há uma
possibilidade de revelar uma ordenação social dos modos de
visibilidade e dizibilidade que até então não podia se revelar de
outra forma, como queria Rancière. Mais do que isso, os filmes
de família podem, por si sós, reconfigurar novos modos de fazer,
ver e dizer. Se não é possível voltarmos no tempo para descobrir o
passado, pois que não seja esta a tentativa do cinema documental.
As dimensões estéticas e políticas do cinema não passam por uma
arqueologia da memória e do passado no sentido de descoberta

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 133


científica, de uma verdade escondida nos ínfimos segredos da
história, mas antes por uma possibilidade de agenciamento desses
distintos modos de visibilidade e dizibilidade. Ou seja, para o
cinema, é mais produtivo criar essas condições do que tentar
encontrá-las nas imagens. Nada mais dissenssual que reconfigurar
politicamente uma dimensão estética das imagens de arquivo no
lugar de criar novas imagens que representem um fato histórico.
Outro aspecto pertinente a ser detalhado é que em El
Perro Negro há uma narração em voz off que a priori parece linear,
branda e explicativa, mas que está muito longe de ser a voz de Deus
do documentário expositivo. O surgimento, sem explicação óbvia
ou aparente, de outros narradores, elimina esta possibilidade de
narração linear e explicativa. Pelo contrário, ela apenas segue a
ordem sucessiva do tempo cronológico, mas acaba por confundir
a linha de raciocínio do filme ao se tornar cada vez mais difusa
e dissonante em relação às imagens. “Esse voiceover é, ao mesmo
tempo, intermitente e frequentemente tão desconectado das
imagens que ele força continuamente o espectador a pensar em
termos de metáforas visuais” (ROSENSTONE, 2012: p. 35).
O primeiro narrador é o próprio Forgács, que tece
comentários sobre os personagens, sobre a origem de algumas das
imagens e, evidentemente, sobre os aspectos mais gerais da Guerra
Civil Espanhola. O segundo narrador é, provavelmente, Ernesto
Noriega, que conta como conseguiu sobreviver como prisioneiro
de guerra e mostra, de forma difusa, como conseguiu continuar
filmando. Outros narradores surgem na segunda metade do filme,
como Buenaventura Durruti, anarquista revolucionário e militante
do movimento libertário espanhol. Percebe-se, na obra, uma
heterogeneidade de vozes que se confundem com as imagens.
Em El Perro Negro há uma série de paradoxos, frutos da
montagem e de outros recursos técnicos, mas que são produzidos
e possibilitados pelos próprios arquivos. Há uma cena onde o povo
grita “Viva a Espanha! Viva a Espanha!” em comemoração à tomada
do poder pelos militares, no final da Guerra Civil Espanhola, e logo
a seguir vem uma cena que mostra um cadáver. Ou, ainda, uma
cena onde aparece uma inscrição em uma parede: “viva o grande
partido comunista” e logo depois vemos alguns homens marcando
uma parede com um stencil do rosto do ditador Franco. O paradoxo
não é apenas a falta de um sentido em uma proposição, nem mesmo

134 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


uma contradição explícita do sentido em um discurso, como muitas
vezes é entendido no senso comum. Gilles Deleuze (2007) propõe
uma condição paradoxal do sentido e sugere que o paradoxo pode
ser usado como instrumento de análise da linguagem. O paradoxo
pode ser considerado, então, como um devir que se expressa em
duplo sentido e, neste caso, de forma contrária ao uso do termo
no senso comum, vinculado a identidades fixas. Mais do que isso,
o paradoxo é capaz de comunicar algo por meio da linguagem,
por meio da exterioridade dos acontecimentos enquanto efeitos
incorporais (DELEUZE, 2007).
Há também a evidência de paradoxos nas colisões
entre diferentes níveis de narrativa. Embora a macroestrutura
de El Perro Negro seja narrativa, estamos diante de um filme
totalmente composto por fragmentos de imagens que formam
blocos de construção da narrativa, ou seja, o conjunto narrativo
do filme é formado por vários fragmentos micro narrativos.
O que nos interessa é perceber, na esteira de Deleuze, que o
paradoxo não se constitui simplesmente ao fazer o sentido
seguir uma outra direção, mas fazer justamente que o sentido
tome, ao mesmo tempo, duas direções diferentes, ou melhor,
que o sentido possa absolutamente não ter uma, mas múltiplas
direções. A força do paradoxo é mostrar que um acontecimento
é o próprio sentido, que é comunicado e que se constitui na
linguagem (DELEUZE, 2007).
Podemos dizer também que o arquivo carrega, em sua
essência, algo de arquivo morto. Isto pode ficar um pouco mais
claro quando nos debruçamos com maior atenção sobre algumas
cenas em que algo ficcional – que não pretendia representar algo
documental, no sentido histórico – serve de motor para dar a ver
algumas características reconhecíveis em fatos históricos. Seria
um modo de fazer surgir outro regime de visibilidade, no sentido
de que o arquivo contém cenas ficcionais que não teriam outra
vida pra além de contar uma determinada história ficcional,
ali muito bem representada, mas que, ao serem retomadas e
recolocadas em funcionamento, podem desempenhar uma nova
função, desta vez documental. Como se estivessem sob a luz
de um roteiro da vida real – do passado – que seria capaz de
transportá-las de um sistema de invisibilidade para um sistema
de visibilidade.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 135


Nas cenas iniciais de El Perro Negro, Fórgacs utiliza de
forma alegórica imagens de um filme amador de ficção, produzido
por Joan Salvans, uma espécie de teatro filmado onde alguns
garotos dançam ritualisticamente e encenam a execução de um
suposto inimigo. Trata-se de uma alegoria tão emblemática para
o tema do filme que o cineasta resolve colocá-la como um possível
prefácio, antes mesmo dos créditos iniciais do filme. Ou seja, são
imagens que servem de prenúncio da Guerra Civil Espanhola,
apesar de sua carga ficcional, expediente contrário ao que seria
comum no documentário.

***

Podemos concluir que o uso do arquivo, da forma como


é praticado por Forgács, parece não fazer parte de um processo
homogêneo de distribuição e consumo das imagens, ao contrário
do uso banal do arquivo, largamente praticado no documentário
expositivo tradicional. Este uso clássico do arquivo não cria
dissenso, na medida em que usa o arquivo que teria voz, lugar
e identidade de arquivo, aquelas imagens que são registradas,
arquivadas, catalogadas, com um objetivo concreto – a possível
utilização como documento visual de um acontecimento factual
do mundo histórico. As imagens de El Perro Negro seriam
equivalentes aos sujeitos sem parte, aos sem voz de Rancière.
Aquelas imagens que não possuem valor de documento num
sentido mais amplo, mas que carregam em sua essência uma
potência de criar o dissenso em uma ordem constituída, ao
falarem como documentos, contando histórias.
O arquivo assume, assim, um papel essencial no
documentário contemporâneo ao se configurar como imagem
metamórfica, na concepção desenvolvida por Rancière. Desta
forma, o arquivo funciona como acontecimento do dissenso, uma
2. Na concepção desenvolvida operação política própria das imagens críticas2 e que se evidencia
por Georges Didi-Huberman
de forma mais ampla e nítida no uso de imagens de arquivo como
(1998).
aparece no filme de Péter Forgács.

136 Fragmentos de guerra / Jamer Guterres de Mello


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e


Política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São
Paulo: Editora 34, 1998.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São
Paulo: Editora 34, 1996a.
______. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996b, p. 367-382.
______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora
34, 2009a.
______. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009b.
______. A comunidade estética. In: Revista Poiésis, n. 17, p. 169-
187, Jul. de 2011.
______. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012a.
______. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012b.
REBELLO, Patrícia. Fazer ver ou tornar visível? A arquitetura da
memória em Péter Forgács. In: REBELLO, Patrícia; SAMPAIO,
Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da memória. São
Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012, p. 5-7.
ROSENSTONE, Robert. Tornando estranho o familiar: El Perro
Negro e a Guerra Civil Espanhola. In: REBELLO, Patrícia;
SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da
memória. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012,
p. 34-38. Data do recebimento:
06 de abril de 2015
ZIMMERMANN, Patricia. The home movie movement: excavations,
artifacts, minings. Berkeley: University of Carolina Press, Data da aceitação:
2008. 09 de junho de 2015

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 118-137, JAN/JUN 2015 137


O atrativo de planos encontrados*

Christa B lümlinger
Professora de Estudos Fílmicos na Universidade Vincennes-Saint-Denis (Paris 8).
Foi professora assistente na Universidade Paris 3 e professor convidada na Free
University Berlin.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015


Resumo: O impulso arquivístico que, segundo Hal Foster, caracteriza a arte
contemporânea, é também um fenômeno próprio do cinema. Este artigo não
pretende alimentar ainda mais a teoria do filme de found footage ou do filme de
montagem. Busca-se, antes, uma abordagem estética do gesto da retomada no
interior de três filmes (de Filipa César, de Jean-Louis Comolli com Sylvie Lindeperg
e de Philip Scheffner), colocando em cena o próprio dispositivo do arquivo, com
o objetivo de esboçar o campo epistemológico no qual intervêm as operações
estéticas de reutilização imagens e sons de arquivos ou de recomposição com
material pré-existente. Certos filmes de ensaio, retomando elementos da história
do cinema, se interessam pela qualidade epistêmica da técnica de registro e pela
unicidade da experiência própria ao visionamento e à escuta de um documento
visual ou sonoro. Este artigo propõe igualmente uma análise dos modos de afecção
suscitados pela retomada das imagens e dos sons, na medida em que formas
inerentes a essa arte arqueológica suscitam uma sensibilização ao dispositivo e às
lógicas temporais do arquivo — e, dessa maneira, uma potência de imaginação, que
tende à ficção.

Résumé: L’impulsion archivistique qui, selon Hal Foster, caractérise l’art


contemporain est aussi un phénomène propre au cinéma. Cet article ne cherche
pas à alimenter à nouveau la théorie du film de found footage ou du film de
montage, mais tente plutôt une approche esthétique du geste de la reprise au
sein de trois films (de Filipa César, de Jean-Louis Comolli avec Sylvie Lindeperg
et de Philip Scheffner) mettant en scène le dispositif même de l’ar- chive, en vue
notamment d’esquisser le champ épistémologique dans lequel interviennent les
opérations esthétiques de réutilisation ou de recomposition des images et des sons
d’archives. Certains films d’essai, reprenant des éléments de l’histoire du cinéma,
s’intéressent à la qualité épistémique de la technique d’enregistrement et à l’unicité
de l’expérience propre au vision- nement et à l’écoute d’un document visuel ou
sonore. Cet article propose également une analyse des modes d’affection créés par
la reprise des images et des sons, dans la mesure où des formes propres à cet art
archéologique suscitent une sensibilisation au dispositif et aux logiques temporelles
de l’archive — et par là une puissance d’imagination, tendant vers la fiction.

140 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


Se o cinema é habitado, desde os seus primórdios, por um * Artigo originalmente
publicado em francês:
“impulso arquivístico”, é porque sua emergência é contemporânea BLUMLINGER, Christa.
ao nascimento dos arquivos no sentido moderno.1 O desejo “L’attrait de plans retrouvés”.
de preservar alguma coisa do presente constitui uma espécie Cinémas. Revue d’Études
Cinématographiques, vol.
de imperativo temporal que leva à antecipação de um futuro 24, nºs 2-3, printemps 2014,
olhar e à construção de uma memória cultural (no sentido de pp.69-95.

Aby Warburg, de Maurice Halbwachs ou de Jan Assmann): uma


1. Invenções e técnicas
memória formada por suas técnicas de estocagem e transmissão. do final do século XVIII,
Hoje, esse desejo tornou-se um sintoma da arte contemporânea, desenvolvidas ao longo do
século XIX, contribuíram
particularmente atraída pelos materiais e suportes provenientes para criar uma nova
da história do cinema, e pelo “devir arquivo” das imagens do forma de arquivos que,
para além da utilidade
presente, sua capacidade de constituir “arquivos do futuro” administrativa, permitiam
(LINDEPERG, 2004: 200). O artista toma a liberdade de “tapar aos historiadores se
basearem em “documentos”
os buracos” de maneira diferente da do historiador, que só tem para construir a “história”
acesso a uma proporção ínfima do “concreto” que constitui de uma maneira diferente
daquela feita à partir de anais
seu objeto (VEYNE 1971: 194). Dessa forma, Walid Raad, por ou de relatos anteriores
exemplo, com o The Atlas Group, inventa falsos arquivos e uma (VEYNE, 1971, p. 114). Sobre
a contemporaneidade do
instituição libanesa fictícia, para tornar visível o invisível de sua nascimento do cinema e da
época; ele mostra, com esse gesto, a possibilidade de aparecimento era do arquivo, ver Doane
ou de desaparecimento deste ou daquele documento: a violência (2002, p. 221-222).

militar e política no Líbano, ocasionada pela ausência de um certo


tipo de vestígios sob a forma de coleções de fotografias e filmes.
Numa mesma direção, seu compatriota Akram Zaatari (2006),
trabalhando concretamente com arquivos fotográficos que ele
inscreve em um campo cultural de significações complexas, fala,
por sua vez, de uma “arte das escavações”.
Ao mesmo tempo, experimentamos um novo regime dos
arquivos, na medida em que a passagem ao digital afeta os níveis
técnicos, discursivos e políticos de sua organização, modificando
a estocagem, a conservação e a distribuição das fontes escritas e
das imagens. Sem dúvida, um projeto tão vasto como The Clock
(2011), de Christian Marclay, que, por meio da montagem de
trechos de filmes transformados em marcadores do tempo, simula
um verdadeiro relógio, não teria sido possível sem o suporte
digital. Essa instalação mostra também até que ponto o próprio
lugar da imagem de arquivo é questionado pelas últimas mutações
técnicas. Quando passam pela Internet, as imagens se deslocam
de maneira efêmera. A cultura de visionamento dos filmes
mudou. A consciência da historicidade do objeto filme (enquanto
objeto fabricado) pode se dissolver ao longo da transferência para

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 141


o digital, mesmo quando se trata de uma restauração. O uso do
DVD e das plataformas digitais leva a uma valorização do trecho,
na qual pode-se ver tanto os “riscos de fetichização do fragmento
e de sacralização do vestígio” (LINDEPERG, 2004: 199) quanto
um modo de visionamento capturador, possessivo, produzindo o
que Laura Mulvey (2006: 144) chama de um delayed cinema: um
“cinema desacelerado”, que produz “um espectador pensativo”.
Aqui, o desafio será, sobretudo, entender o efeito do grande
interesse pelos arquivos na criação contemporânea e avaliar
como certos planos são investidos ou reinvestidos de significação
e potência imaginária e afetiva, insuflados por uma espécie de
confusão temporal produtora de saltos, falhas, presenças e
sincronizações do não-sincrônico.
Se, no século XIX, no espaço ocidental, a idade moderna
do arquivo viu-se ligada a uma nova concepção de escrita
da história, o estatuto das fontes e o regime dos arquivos se
inscreveram, por sua vez, num dispositivo ao mesmo tempo
técnico e político. A relação conceitual entre arquivo e archè, que
Jacques Derrida (1995: 11 e 148) sublinha em sua abordagem
freudiana da questão, não conduz, nesse sentido, a um começo.
Ela remete, principalmente, a uma construção da história e
da memória. É precisamente nesse sentido que o poder e a lei
interferem enquanto mandamentos. Bem mais do que uma origem,
é preciso procurar uma proveniência (no sentido nietzschiano de
Herkunft). Essa nova tarefa do historiador pode ser formulada
com Foucault (1971: 152), para quem, em qualquer abordagem
genealógica, trata-se de “localizar os acidentes, os ínfimos desvios
— ou, ao contrário, as reviravoltas completas —, os erros, os
equívocos de avaliação [...] que geraram o que existe e que é
válido para nós”. Para o historiador Reinhart Koselleck (1979:
204), o pivô do pensamento da história e da temporalidade
histórica é, sobretudo, a distinção entre espaço de ação e espaço
de consciência, essa relação nova entre espaço de experiências e
2. “Uma fonte não pode horizonte de expectativa. Doravante, os arquivos serão o lugar
nunca dizer o que devemos
dizer”, sublinha Reinhart que “expõe o historiador à tensão produtiva entre uma teoria da
Koselleck (1979, p. 206), história e a relação com as fontes”.2 Por outro lado, o arquivo, no
assinalando que “o que faz
de uma história a História singular, pelo menos na acepção de Foucault (1969: 171), visa
não são apenas as fontes: um sistema geral, um nível particular “entre a língua que define o
é preciso uma teoria de
histórias possíveis para
sistema de construção das frases possíveis e o corpus que recolhe
poder fazer falar as fontes”. passivamente as palavras pronunciadas”. Trata-se, então, de

142 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


voltar à ideia de um arquivo geral (REVEL, 2002: 8) e ao estudo
das regras que definem, em determinada época, o que é dizível e
visível, conservado, apropriado ou reativado.
Quando os artistas ou os cineastas vão aos arquivos,
eles não se transformam em historiadores. Eles não escrevem
a história, pois eles se encontram num outro campo epistêmico
e expressivo, o das artes plásticas ou do cinema. Mas alguns
participam daquilo que Foucault (1969: 172) chama de descrição
do arquivo, no sentido em que este “dissipa essa identidade
temporal na qual gostamos de mirar a nós mesmos para conjurar
as rupturas da história” (cf. ed. brasileira). Paul Veyne (1978:
428) resume dessa maneira a abordagem arqueológica de
Foucault : “Toda história é arqueológica por natureza e não por
escolha: explicar e explicitar a história consiste em percebê-la,
primeiro, por inteiro; em reportar os pretensos objetos naturais a
práticas datadas e raras, que os objetificam; e em explicar essas
práticas, não a partir de um motor único, mas a partir de todas
as práticas vizinhas nas quais elas se ancoram”. Trata-se, então,
de um método em que as relações substituem os objetos. É nessa
perspectiva que Veyne, se apoiando em Kurt Badt, compara o
método de Foucault à pincelada de Cézanne: “Foucault não
faz mais pintura abstrata do que Cézanne; a paisagem de Aix é
reconhecível, mas impregnada de uma violenta afetividade: ela
parece sair de um terremoto” (428). É, justamente, esse tipo de
afetividade que nos interessa aqui, quando a pincelada apaga a
identidade prática dos objetos e dos rostos para criar um mundo
em que “tudo é individual, mesmo que nada o seja” (429). Sem
dúvida, foi o cinema de vanguarda que levou mais longe esse
gênero de transfiguração das imagens do real, em particular no
campo do found footage. A criação onírica de Phil Solomon é
um dos exemplos mais potentes disso. Devido à materialidade
e à plasticidade da película, bem como à carga mitológica das
imagens que ele recicla, o cineasta, em seu filme The Secret Garden
(1988), comunga, em certo sentido, a ideia derridiana do arquivo
secreto, ligada à paixão e destinada, por vezes, às “cinzas” do
arquivo, à sua destrutibilidade, àquilo que pode, “nesse mal de
arquivo, queimar” (DERRIDA, 1995: 155) ou, ao contrário, ser,
apesar de tudo, apenas dissimulado e, finalmente, conservado.
Solomon constrói uma forma poética da memória, renunciando
a qualquer fala, para permanecer estritamente no terreno do
sensível, do som e das imagens. Outros filme-ensaios de que

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 143


falaremos aqui, colocam em cena uma espécie de descrição do
arquivo, das atividades e relações que o produzem, com o intuito
de produzir um efeito de arquivo que, em vez de suprir a penúria
das imagens de um determinado episódio histórico, busca,
sobretudo, produzir uma certa sensibilização à arqueologia e à
riqueza desse ou daquele registro visual ou sonoro.
O impulso arquivístico não remete, simplesmente, a um
objeto qualquer, proveniente de uma outra época. Ele diz respeito,
sobretudo, a relações. É nesse sentido que em seu texto “An
Archival Impulse”, Hal Foster (2004: 4-5) se posiciona contra o
pressuposto dominante segundo o qual o lugar ideal da arte do
arquivo seria, hoje, “o mega-arquivo Internet”: à ideologia das
plataformas e das interfaces, ele opõe obras de arte voltadas para
a interpretação humana, e não para o reprocessing gerado por
máquinas e algoritmos. Assim, ele visa, particularmente, obras
abertas, indeterminadas como o conteúdo dos arquivos dos quais
elas se servem, o que implica no que Foster chama de “impulso
anarquivístico”: a arte dos arquivos estaria menos ligada às origens
absolutas do que aos rastros obscuros, dando origem a projetos
incompletos e anunciando, assim, trabalhos futuros. Ao argumento
de Foster (sua noção de anarquivo é bem diferente da ideia de
pulsão destruidora de Derrida), poderíamos associar a visão de arte
proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari, ligada, acima de tudo,
à experiência sensível: a obra de arte seria um “bloco de sensações”,
compondo, de maneira durável, em uma espécie de monumento,
um conjunto de “perceptos” que pode “se resumir a alguns traços
ou linhas” (DELEUZE & GUATTARI, 1991: 154-155); ou, ainda, ela
formaria “blocos de movimento/duração” (DELEUZE, 1998: 293),
como na constituição dos espaços-tempos próprios ao cinema. As
noções de duração e de monumento, em Deleuze e Guattari, não
remetem à conservação da obra em arquivos e museus ou por meio
da técnica, nem à sensação de um espectador, mas à sensação
enquanto ser que extrapola a experiência vivida e vale por si
próprio: “Mesmo se o material durasse apenas alguns segundos, ele
daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si mesma,
na eternidade que coexiste com esta curta duração” (DELEUZE &
GUATTARI, 1997: 157).
O que isso pode significar para uma arte do cinema
obcecada pelo arquivo? A partir de alguns exemplos, tentaremos
sondar momentos de retomada que se interessam menos pela

144 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


representação e pelo julgamento (em relação a um fato histórico,
em particular) do que pela experiência estética, pela sensação e
a ética do olhar. O documentário “de criação”, como é chamado,
se distingue da informação midiática justamente por liberar as
imagens e os sons de sua subordinação a discursos pré-existentes.
É nesse sentido que John Rajchman (2000: 125) explica o conceito
de arte em Deleuze pela criação de “planos de composição”, pela
abertura de espaços de possibilidades: “No mundo moderno,
de uma banalidade e rotina estupeficantes, feito de clichés,
de reproduções mecânicas ou automáticas, o desafio consiste
em extrair uma imagem singular, uma maneira de pensar e de
enunciar que seja vital, múltipla, e não uma teologia de reserva
ou um “objeto aurático”. Em Cinéma 2. L’image-temps, Deleuze
(1985: 32- 33) explica esse problema: em uma civilização do
clichê (que tende a tornar-se imagem sensório-motora) é preciso
repensar a ideia de imagem, a fim de produzir uma espécie de
liberação de qualquer programa prévio (contido na imagem-
ação), de qualquer ponto de vista externo ou olhar condicionado,
que esconda; uma nova imagem “ótica-sonora pura” produz,
em Godard ou Rossellini, por exemplo, “a imagem inteira e sem
metáfora que faz surgir a própria coisa”; uma imagem assim,
“inteira”, permitiria, justamente, “restaurar” tudo o que lhe foi
subtraído para torná-la interessante ou, ao contrário, criar uma
espécie de vazio, de rarefação.
Quando se trata de trabalhar com materiais de
filmes pré-existentes, esse programa estético é um duplo
desafio, tanto para o criador quanto para o espectador. Nesse
sentido, podemos mostrar em que medida esse ou aquele
plano de um filme, enquanto material para uma arte de
arquivos, não remete, obrigatoriamente, à indústria cultural,
infinitamente reciclável, ou a uma civilização do clichê, mas
pode, ao contrário, constituir um espaço-tempo específico
de experiência estética e de memória singular. Godard teve 3. Comentei, em outro texto,
uma visão premonitória disso tudo. Recorrendo amplamente algumas das numerosas
leituras do gesto sintomático
ao arquivo, e neste caso, essencialmente, à coleção privada de Godard, ancorado na
de vídeos de um cineasta-cinéfilo, suas Histoire(s) du cinema história cultural da cinefilia
francesa e numa vanguarda
sugerem uma ligação específica entre percepção e memória.3 que Peter Wollen chamou
Outros cineastas ou artistas tentaram produzir esse tipo de de “europeia”, em oposição
à vanguarda americana
temporalidade paradoxal, propondo um espaço virtual, menos (BLÜMLINGER, 2013:
enciclopédico e mais voltado para o próprio dispositivo do 249-262).

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 145


arquivo, para uma nova ficção ou, ainda, para a potência do
surgimento. Se a remontagem das Histoire(s), devido à sua
extrema fragmentação, constrói um bloco de sensações e dá
acesso à “própria coisa” que Deleuze chama de imagem-tempo,
a remontagem de milhares de filmes de ficção durante 24 horas,
como acontece em The Clock, de Marclay, produz um outro tipo
de carga memorial: aqui, o espectador se encontra ainda mais
orientado para a representação, uma vez que alguns planos ou
trechos, por sua duração, produzem a metáfora na imagem de
que fala Deleuze, criando objetos de memória providos de aura.
O fato de que, em Marclay, o princípio da escolha dos trechos
seja eminentemente conceitual (a presença de um indicador de
4. Sobre a dialética da
hora no som ou na imagem, sincronizado com o tempo real da
memória e do esquecimento recepção), conduz o espectador a uma tripla posição reflexiva:
nas Histoire(s) du cinéma,
sua atenção se volta para o modo de representação do tempo
ver, entre outros, Aumont
(1999). nos filmes citados (e assim, de uma certa maneira, para a sua
lógica narrativa), para o trabalho prévio de pesquisa sobre
5. É preciso lembrar que as
Histoire(s) du cinéma foram esses momentos precisos nos arquivos, nas bases de dados ou
igualmente mostradas no nas coleções, e para a sua própria capacidade de identificar,
cinema e que existe até
mesmo uma versão mais reconhecer e, até mesmo, de se lembrar desses filmes. Godard,
curta, condensada em 84 por sua vez, cria com as suas misturas densas de imagens e
minutos, intitulada Moments
choisis des Histoire(s) du sons uma consciência do efeito amnésico do cinema4 e de
cinéma (2004), feita para sua forma de experiência sensível. Se o conjunto de capítulos
salas de projeção. Os oito
capítulos da versão integral
das Histoire(s) foi, antes de tudo, criado para a televisão e
foram também mostrados destinado a uma fruição individual e privada, posteriormente
em contextos de exposições,
modulável, com o suporte DVD,5 a força da instalação de
como no dispositivo de
visão de Dan Graham, com Marclay reside em desafiar o espectador a determinar a duração
transparências e reflexos do visionamento em função de seu tempo de passagem pela
entre os espaços de visão,
apresentado na Documenta exposição e a escolher, assim, momentos precisos no interior
de 1997, dirigida por do espaço-tempo de um dia. É por isso que o atrativo principal
Catherine David.
de The Clock está na experiência exacerbada da consciência do
6. Os estudos sobre o found tempo. E é por isso também que o dispositivo de visão torna-se
footage e a remontagem,
com os quais contribuí crucial nesse contexto.
(BLÜMLINGER 2013), se
acumulam há alguns anos. Várias outras obras, ao retomarem planos de arquivos,
Sem ter a pretensão de avaliam a qualidade epistêmica do cinematógrafo e levantam
exaustividade, podemos
citar, depois de Tom Gunning, questões sobre a unicidade da experiência característica do
William Wees e Bart Testa, visionamento e da escuta das imagens e dos sons. Mas o objetivo,
alguns autores como Marco
Bertozzi, Livio Belloï, Nicole
aqui, não é, mais uma vez, alimentar a teoria do filme de found
Brenez, André Habib, Sylvie footage ou do filme de montagem.6 Tentaremos, sobretudo, uma
Lindeperg, Patrick Sjöberg,
Jeffrey Skoller ou ainda
abordagem estética do gesto da retomada em filmes que colocam
Georges Didi-Huberman. em cena o próprio dispositivo do arquivo, obras cuja forma é a do

146 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


filme-ensaio. No caso, três filmes que tornam sensível, sob formas
diversas, a historicidade dos planos retomados, o que os inscreve
numa lógica arqueológica.

Arquivo vivo
Num filme-instalação da artista portuguesa Filipa César,
vê-se uma citação célebre, proveniente de um curta metragem de
Alain Resnais e Chris Marker: “Um objeto morre quando o olhar
vivo lançado sobre ele desaparece”.7 Cacheu (2012), retomando 7. Essa frase do filme
de Alain Resnais e de
essa frase, mostra estátuas, como no filme citado, Les Statues
Chris Marker (autor do
meurent aussi (1953). Mas, diferentemente de Resnais e Marker, comentário), continua assim:
Filipa César não mostra a arte africana transposta para um museu “[...] e quando tivermos
desaparecido, nossos objetos
europeu; ela se interessa pelas esculturas dos colonizadores irão para onde mandamos os
deixadas na África. Trata-se de quatro estátuas gigantes, objetos dos africanos: para o
museu”.
representando o poder colonial português, localizadas pela artista
em um forte guineano, onde aguardavam restauração, e filmadas
por ela em 2012: “As condições sempre vivas de produção dessas
estátuas parecem mantê-las mortas-vivas”, diz uma conferencista
numa sala de exposição, rodeada de espectadores, diante de um
grande muro no qual o material reunido é projetado. Cacheu
revisita, assim, outros filmes, como o de um cineasta da Guiné
Bissau, Flora Gomes, autor do primeiro filme realizado depois da
independência de seu país, Mortu Nega (1988). Um plano mostra
duas das estátuas em questão, diante das quais passam duas
pessoas. Nessa conferência-performance, filmada com grande
cuidado, uma atriz comenta essas imagens e para diante delas,
com seu texto nas mãos, como se fosse uma guia de museu. De
vez em quando, ela entra na frente da imagem e seu corpo se
torna, assim, superfície de projeção.
“Cacheu” é o nome de uma fortaleza da Guiné-Bissau,
da qual as forças portuguesas se serviram para assegurar sua
presença militar e estabelecer o comércio de escravos no século
XVI. O filme de Filipa César mostra planos desse antigo forte
onde estão reunidas essas estátuas “mortas-vivas”, vestígios da
era colonial e sinais da condição pós-colonial, confrontados
aos rastros de sua “vida” anterior. Assim, vê-se as mãos de
um arquivista guineano folheando um álbum de fotografias e
parando na estátua de um general português particularmente
violento, Teixeira Pinto, colocada sobre o pedestal. A imagem

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 147


é acompanhada de uma outra frase das Statues de Resnais-
Marker: “Um dia, por sua vez, nossos rostos de pedra se
decomporão”.
A conferencista de Cacheu mostra, então, um trecho de
Sans soleil (1983), de Marker, o filme que, segundo ela, teria
encarnado visualmente essa frase premonitória de 1953. De
repente, ouve-se uma outra voz feminina, a de Alexandra Stewart,
a voz do filme de Marker em sua versão inglesa, evocando a
liberação da Guiné-Bissau por meio de planos que mostram
estátuas guineanas derrubadas: “Por que um país tão pequeno e
tão pobre interessaria ao resto do mundo? [...] Quem se lembra
de tudo isso? A História joga suas garrafas vazias pelas janelas”.
Durante a projeção desse trecho, a atriz se afasta, e o efeito da
projeção é tal que se pode mensurar com intensidade a confusão
temporal de Sans soleil. A precisão do trabalho de montagem de
Cacheu permite, justamente, intuir até que ponto essas imagens
de Sans soleil não são meros vestígios de um acontecimento (a
8. Chris Marker havia, na derrubada das estátuas), mas imagens carregadas de uma energia
verdade, formado cineastas
guineanos, ajudando-os que as conduz alhures, na direção de espectadores futuros,
a filmar o engajamento sem que esse destino possa ser canalizado para fins políticos. É
na luta pela libertação e
transformação política da justamente essa falta de destinação ou de determinação – o valor
Guiné. Esses planos provêm, de “garrafa vazia” dessas imagens, tão bem definido por Marker
provavelmente, de um desses
cineastas. Ver o testemunho
–, que confere, por sua vez, uma certa potência aos planos das
de Anita Fernandez no estátuas, hoje à espera de restauração.8
Arsenal, no contexto do
programa “Living Archive”, Cacheu faz parte do projeto “Fantasmas da liberdade”,
de 17 de junho de 2013.
dirigido por Tobias Hering, responsável pelo programa “Living
9. O Arsenal — Institut Archive”, do Arsenal, em Berlin,9 com a colaboração de Filipa César
für Film und Videokunst e Catarina Simão. Esse projeto reúne filmes realizados durante
(conhecido inicialmente
pelo nome de Freunde der períodos de transformação política ou neles inspirados, ou que
Deutschen Kinemathek e são, eles próprios, a expressão de um “tempo novo” (HERING,
fudado por Ulrich e Erika
Gregor) reuniu em cinquenta 2013: 110). Filipa César havia descoberto nos arquivos do Instituto
anos uma coleção de mais Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA) uma
de 8.000 filmes. “Living
Archive”, um vasto programa coleção de filmes militantes dos anos 1970, período de luta contra a
de valorização desses dominação portuguesa. Com a coleção em estado de deterioração,
arquivos, religa a pesquisa,
a programação e a criação
Filipa César (2013: 46) quis tirar esses “fantasmas de vinagre” de
artística contemporânea, suas latas e catalogá-los, para que se pudesse, em seguida, conservá-
visando assim não apenas a
los, projeto que ela conseguiu lançar a partir de sua própria atividade
possibilidade de conservação
dos arquivos mas, também, de artista e cineasta. Aqui, a dimensão espectral não se deve apenas
seu papel na formação do ao estatuto precário dos filmes da descolonização, da resistência e
novo na arte. Ver Schulte
Strathaus et al. (2013). da emancipação, geralmente mal conservados, ou à própria ideia de

148 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


liberdade que eles representam, ou, ainda, ao fato de que, por demais
ancorados nas esperanças de seu tempo, esses filmes com frequência
produzem anacronismos. Ela provém, antes, de uma pesquisa, no
seio dos arquivos, daquilo que Hering (2013: 111) chama de um
“terceiro cinema”:10 uma espécie de cinema em devir, para além 10. As formas possíveis de
um “terceiro cinema” (no
das utopias e das representações, um cinema que desestabilizaria sentido do manifesto de
o pacto em torno do seu próprio direito de liberdade; um cinema 1969 de Octavio Getino e
de Fernando Solanas), que
que levaria em conta, nesse face-à-face entre o antigo colonizado e
se descolonizaria em vários
o pós-colonizador, a existência de um terceiro, que seria “o outro do níveis e não se situaria nem
outro”, no sentido de Derrida (2001: 85-86), que apareceria, no seio do lado do cinema industrial
americano nem do lado de
de uma impossibilidade, enquanto possibilidade da ética. um cinema de autor europeu,
foram tema de diversos
debates ideológico-estéticos
ao longo dos anos 1970
O efeito fantasma (HENNEBELLE, 1979).

Assim, a cena e a performance podem servir para expor o


arquivo como processo de uma pesquisa e os documentos-filmes
como objetos vivos, dependendo do olhar de quem os ausculta.
Nessa perspectiva, o desafio do documentário Face aux fantômes
(2010), realizado por Jean-Louis Comolli, com Sylvie Lindeperg,
foi tornar sensível a espessura das fontes, mostrando, em ato, o
pensamento e o método da historiadora. Trata-se de “adaptar”
um livro11 sobre a historicidade das imagens utilizadas em Nuit et 11. Nuit et brouillard. Un film
dans l’histoire (LINDEPERG,
brouillard (1956) de Resnais, uma pesquisa arqueológica sobre a
2007).
gênese e a recepção do filme, logo, sobre o exato conhecimento
que orientou sua realização e sobre o contexto político e cultural
em que ele iria circular a seguir. A mise en scène a Comolli optou,
como a de Filipa César, pela projeção de trechos e pelo recurso a
uma conferencista. Nesse dispositivo, portanto, a autora do livro se
torna a coautora do filme, mas, sobretudo, uma espécie de atriz.
Aqui, o lugar da cena não é mais uma galeria, mas um estúdio de
filmagem, com acessórios variados: livros, fotografias, documentos
escritos, todo tipo de projetores e aparelhos midiáticos.
O primeiro plano mostra os trilhos dos travellings (du
filme de second niveau) do próprio filme de Comolli. Para quem
conhece o tema do livro, esses trilhos conduzem à essência do
parti pris de Resnais: filmar Auschwitz (e seus trilhos) dez anos
depois, a cores, e colocar, assim, de antemão, uma distância entre
o tempo dos arquivos e o tempo da filmagem. Comolli retoma
essa lição para nos fazer entender, por meio dos arquivos e da
micro-história na qual sua “atriz” nos mergulha, a relação que

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 149


se constrói entre espaço de experiências e horizonte de espera,
principalmente no que diz respeito à distinção entre campos de
concentração e campos de extermínio. A mise en scène, bastante
complexa, nos apresenta uma espécie de investigação, conduzida
por Comolli, ao interrogar Lindeperg no local, manipulando
documentos, ouvindo registros sonoros, visionando fotografias e
filmes, às vezes diante de uma telinha, outras vezes face à imagem
projetada, a fim de destrinchar o filme de Resnais e melhor apreciar
sua lógica de composição. Comolli dialoga com Lindeperg,
compara Nuit et brouillard a outros documentários da época,
confronta o filme ao que haviam dito, então, os historiadores,
mostra a circulação material das imagens de arquivo e cria, assim,
uma alternância entre a reconstrução do saber e das escolhas
políticas do pós-guerra e a evolução de nossa cultura histórica
nos últimos cinquenta anos. O que se torna evidente, graças à fala
da historiadora, é como se faz a história, como essa relação entre
arquivos e história se constrói e como a escrita da história e a de
um filme podem entrar em conflito com as questões de memória.
Face aux fantômes amplia a montagem de Nuit et brouillard no
espaço e no tempo, enriquecendo-o, graças a um dispositivo
aberto — inclusive às dimensões opacas do anarquivo —, graças
a outros documentos e testemunhos e, sobretudo, a uma leitura
erudita das suas imagens singulares, do seu comentário e da
sua música. Dessa forma, o agenciamento preciso de Resnais, às
vezes criticado ao longo dos anos, é explicado por meio de uma
abordagem genealógica, que traz à luz os desvios que “deram
origem ao que existe e que é válido para nós”. Juntos, o cineasta e
a historiadora se colocam, eles próprios, face aos fantasmas, para
avaliar o estatuto dessas imagens de corpos marcados. Comparadas
a tantos filmes (de informação, de propaganda) do imediato pós-
guerra, essas imagens aparecem, no filme de Resnais, como que
rarefeitas, irredutíveis ao papel de provas, com viés político. Os
12. O neologismo Schlagbild
planos e as fotografias dos internos não aparecem como “imagens
foi criado por Warburg no
contexto de sua iconografia impactantes” (no sentido do Schlagbild de Warburg12). Eles são
política da pesquisa das apresentados com precaução, dotados de um fora de campo e
imagens-fala. Um Schlagbild
é, ao mesmo tempo, uma de uma distância introduzida, entre outros, pelo efeito de real
espécie de imagem-choque dos lugares revisitados. Assim, Comolli projeta, por exemplo,
e uma imagem de marca,
funcionando como um um trecho de Nuit et brouillard no qual vemos um travelling dos
Schlagwort, uma palavra- alojamentos vazios de Auschwitz, acompanhado pelo comentário
chave ou um cliché que
circula nas mídias. Ver Diers de Jean Cayrol, sublinhando os limites dos planos rodados por
(1997). Resnais: “desse dormitório de tijolos, desses sonos ameaçados,

150 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


só podemos mostrar-lhes a casca, a cor”. Face aux fantômes
analisa o efeito desse “enquadramento” dos arquivos feito por
Resnais, dessa visita dos lugares que estão se tornando lugares
de memória. “Essas imagens, previne Lindeperg, se dirigindo a
Comolli, não permitem apreender o acontecimento, elas são, de
certa forma, impotentes”. A emoção, nesse filme, nasce da mise
en scène de um encontro entre um filme e uma pesquisadora. A
extrema atenção de Comolli à narrativa dessa atriz historiadora
de hoje, que ele filma sempre em planos aproximados, sua
maneira de fazer ouvir as vozes dos historiadores testemunhas
da época, de ver os detalhes de cada documento fotográfico ou
de projetar imagens do filme de Resnais, para compreender sua
organização, tudo isso contribui para produzir uma espécie de
laboratório sensível. Essa arqueologia coloca em evidência o risco
que o cineasta corre quando “tapa buracos” (assim Veyne qualifica
a tarefa do historiador), tentando encontrar uma forma artística.
Não é somente do ponto de vista do presente e de um
saber histórico concernente à morte das pessoas filmadas que certas
imagens de arquivo criam um efeito-fantasma. Referindo-se, em seu
último livro, à obra literária de Winfried Georg Sebald e aos filmes de
Marker, Lindeperg (2013: 122) mostra como a textura evanescente
dos planos — seu corpo material —, que torna-se particularmente
pregnante com uma visão imaginada em slow motion, pode contribuir
para “rasgar o véu da propaganda” de um filme nazista sobre o campo
de Terezín, que, transfigurando-os em fantasmas, tornou “eternos”
os “seres frágeis e ameaçados” que registrou. Ela mostra, assim, a
ambiguidade e a singularidade de toda experiência afetiva dos
planos provenientes do passado. Nesse contexto, é importante notar
que o exemplo poético escolhido — o visionamento de Theresienstadt
imaginado por Sebald em seu romance Austerlitz — implica a
projeção da cópia de um filme sobre o qual o tempo se inscreveu,
e não de um filme restaurado e digitalizado. Mesmo se podemos
dizer, com Derrida (1995: 132), que o arquivo é a priori, espectral,
“remetendo sempre a um outro, cujo olhar é impossível cruzar”,
cada filme situa o espectador de maneira diferente e singular diante
dos fantasmas. E se Georges Didi-Huberman (2002: 67), a princípio,
também atribuiu à imagem “sobrevivente” (no sentido de Warburg)
um valor espectral, visando exatamente seu efeito de aparição e
sua qualidade de rastro, por outro lado, ele não leva em conta as
implicações de sua sacralização, ao comentar a conhecida posição de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 151


Godard com respeito às “imagens que faltam” do nazismo, aquelas
que teriam documentado o ato de destruição dos judeus (ver Didi-
Huberman 2003: 206, e Lindeperg 2007: 111). Nesse contexto, a
acepção dada à palavra “sobrevivência” por Yosef Yerushalmi (1993:
151-152) e Derrida (1995: 96) parece ter uma nuance importante:
não é o retorno do espectro, “mas a sobrevida de um excesso de vida
que resiste ao aniquilamento”.

O corpo do arquivo
No que se refere ao cinema enquanto mídia fotográfica,
a ideia do excesso atravessa as teorias das imagens desde os anos
1920, mas raramente no sentido de Yerushalmi. Para Siegfried
Kracauer (1927: 59), por exemplo, para quem as fotografias
constituem, em sua totalidade, uma espécie de arquivo, um
“inventário geral da natureza”, mas de uma natureza “condenada
a querer dizer”, são o excesso quantitativo das imagens
fotográficas, sua acumulação e o continuum espacial, a lógica de
semelhança produzida pelo aparelho perspectivo, indutora de um
efeito ulterior de desagregação dos elementos, são esses excessos
que entravam sua função de memória e colocam em perigo seu
valor histórico. Para Kracauer ( 56), o fato do mundo ter se
tornado fotografável eterniza o presente fotografado: “Ele parece
ser salvo da morte; na verdade, ele fica exposto a ela”. Assim,
os jornais ilustrados (sobretudo os americanos) produzem, aos
olhos de Kracauer, uma tempestade de fotografias que resultam
na “indiferença ao que as coisas querem dizer”. Ao mesmo tempo,
seguindo sua teoria ontológica, a fotografia implicaria, em si, uma
“realidade fantasmática” (53), ela tornaria presente o mundo dos
mortos “na sua independência em relação aos humanos” (59). A
questão que se coloca consiste, evidentemente, em saber como
organizar de outra forma um inventário desse tipo, sem ter que se
submeter ao contexto de uma cultura industrializada, e em que
medida as novas mídias podem contribuir para isso. O próprio
Kracauer oferece uma visão utópica do problema no final de seu
texto, visando o cinema e suas capacidades de montagem.
Bem mais tarde, em 1986, Allan Sekula, em um texto
inaugural inspirado por Foucault, desenvolve uma ideia bem
diferente de arquivo em geral: na medida em que a omnipresença
da fotografia na vida cotidiana introduz, a partir do século XIX,

152 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


o fantasma panóptico de um arquivamento do corpo humano,
a fotografia teria reunido, de um modo geral, duas funções da
imagem — “honorífica” e “repressiva” —, sem que elas pudessem
ser claramente separadas ou atribuídas, respectivamente, à vida
burguesa e à realidade policial. Segundo Sekula (1986: 235), os
retratos teriam, de maneira implícita, ocupado um lugar no seio da
hierarquia social, com a vida privada se mantendo “à sombra” de dois
olhares públicos, um voltado para o alto e outro para baixo. Sekula
analisa, por exemplo, como a invenção do criminoso moderno,
inscrita em dois grandes paradigmas epistemológicos (a frenologia
e a fisiognomonia), não pode ser dissociada da construção de um
corpo respeitoso da lei. Ele fala, nesse sentido, de um “arquivo de
sombras”, uma espécie de arquivo geral, posicionando, inclusive, os
indivíduos no interior de um terreno social: “Esse arquivo contém
arquivos subordinados, territorializados, cuja interdependência
semântica é, normalmente, obscurecida pela “coerência” e pela
“exclusividade mútua” dos grupos sociais inscritos em cada um
deles”. Em um arquivo geral desse tipo, os rastros visíveis dos
corpos dos dirigentes políticos e dos chefes encontram o seu lugar,
da mesma forma que os dos corpos dos criminosos, dos loucos, dos
“não-brancos” ou dos pobres.
Desse ponto de vista estrutural, o arquivo fotográfico
pode, então, ser compreendido como um sistema epistemológico,
técnico e social que se concretiza em uma instituição, “fornecendo
uma relação de equivalência geral entre as imagens” (SEKULA,
1986: 242). Daí a importância da materialidade dos arquivos
e, portanto, do lugar deles, de seus suportes e de seu sistema
de inventário: “O artefato central desse sistema, diz Sekula,
não é o aparelho fotográfico, mas o armário de classificação”
(241-242). É, justamente, essa dimensão estrutural e material
que o documentário The Halfmoon Files (2007), do cineasta
berlinense Philip Scheffner traz à tona, a partir de uma pesquisa
arqueológica em torno do dispositivo complexo dos arquivos
multimídias criados durante a Segunda Guerra Mundial na
Alemanha, em um campo de prisioneiros de origem extra-
europeia, chamados, outrora, de “soldados coloniais”. A
concentração deles perto de Berlin, no Halbmondlager de 13. Halbmondlager significa
Wünsdorf, inicialmente prevista para criar um djihad a serviço “campo da lua crescente”.
Nele, os alemães internavam,
das forças da Tríplice Aliança (LANGE, 201013), estava associada sobretudo, os “soldados
a um quadro científico que tinha por objetivo o recenseamento coloniais” muçulmanos.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 153


antropológico e linguístico desses soldados pelas novas mídias.
O trabalho artístico do filme, como constata Friedrich Balke
(2009: 61), consiste em devolver a esse dispositivo complexo de
formação de um saber “sua dimensão de acontecimento e sua
presença [Gegenwärtigkeit] espectral”.
The Halfmoon Files é pontuado por longos momentos de
tela preta, durante os quais ouve-se o barulho dos arranhados
dos discos produzidos em laboratório pelos pesquisadores e
técnicos, nos quais foram gravados, segundo um procedimento
padronizado, números, contos, listas de palavras, lidas por
prisioneiros africanos ou indianos. Algumas fotografias,
cuidadosamente retomadas e comentadas, permitem apreciar
a mise en scène do registro das línguas por uma equipe dos
arquivos fonográficos, intimamente ligada às pesquisas
antropométricas feitas com instrumentos óticos. Além da
fotografia, do cinema e de diversos instrumentos de medida,
servia-se de um fonógrafo e de discos para gravação durável
14. Num documento das falas dos prisioneiros.14
fotográfico, vemos a
implicação dos corpos É, então, numa cena científica, que se produz a leitura
nesse processo de gravação
dos textos prescritos e, também, a produção dos sons por meio
em disco: diante de um
imenso corneto, estão os de peças de museu. Outras fontes, encontradas na cidade de
prisioneiros, os cientistas Wünsdorf e apresentadas como “todo o arquivo da história militar
lendo fichas de papel e
os técnicos controlando a da Alemanha”, dão a ver o contexto cultural e político desse tipo de
distância correta da boca da pesquisa antropológica, desenvolvida no contexto de uma espécie
pessoa que fala, em relação
ao corneto. de zoológico humano.15 Interessando-se por lendas e dispositivos
de apresentação das imagens e dos sons arquivados, o filme
15. Um livro alemão de desloca e desconstrói o olhar do poder científico, estreitamente
1916, intitulado O circo
étnico de nossos inimigos, ligado aos poderes militares e coloniais.
é apresentado em sua
historicidade midiática: o Há, em Halfmoon Files, dois registros sonoros que ecoam
livro é lido e rabiscado por um no outro, e dos quais Scheffner se serve para exemplificar a
uma garotinha que ocupa o
espaço vazio embaixo das ideia de arquivo geral, no sentido de Sekula, reunindo arquivos
fotografias dos “soldados territorializados, mas interdependentes, no plano semântico: um
coloniais” recrutados pela
Inglaterra ou pela França e deles deixa ouvir as vozes de prisioneiros originários da Índia; o
transformados em animais outro, a voz do imperador Guilherme II. A dimensão espectral
treinados por seus mestres
colonizadores.
dessas vozes sem corpo se transforma, ao longo do filme, numa
espécie de sobrevivência resistente (no sentido de Yerushalmi),
graças à existência de espaços de sensações, que produzem o
não-sincrônico, o desvio, a interrupção, a confusão. “O imprevisto
não é desejado”, explica o comentário, introduzindo a escuta
“cega” de um disco em que um prisioneiro chamado Baldeo

154 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


Singh pronuncia “guten Abend”. O plano seguinte mostra uma
ficha amarela desbotada, indicando a inscrição de “anotações
especiais” por parte dos cientistas. Nesse documento, vê-se uma
frase rabiscada em alemão: “No final, sem ser solicitado, Baldeo
Singh grita boa noite”.
Desse “boa noite”, que forma uma espécie de punctum
sonoro, passamos a um barulho indiscernível. Diante de uma
luz branca, a voz do cineasta recomeça o seu comentário para
explicar a dificuldade desse procedimento científico rigoroso,
ameaçado por irrupções e interrupções de todo tipo. Indo dessa
luz branca para uma bruma incerta e uma paisagem desfocada,
o comentário abre o espaço de possibilidades e os “buracos” do
historiador, especulando sobre a escolha dos temas, dependente
das informações pessoais dos prisioneiros, difíceis de serem
verificadas: por exemplo, esse homem que talvez não seja
originário da região do Punjab, mas que fala o punjabi e que
prefere passar na barraca dos cientistas para fazer gravações,
a fim de escapar ao seu trabalho cotidiano ou, simplesmente,
“porque ele quer falar com alguém”.
Ou ainda: um outro prisioneiro, escapando à regra,
transforma em riso a frase prevista pelos cientistas: “Eu sou
um prisioneiro de guerra em 1914. O imperador alemão cuida
muito bem de mim. Heil, Heil, Heil!” E o filme nos faz ouvir,
pouco depois, esse mesmo imperador, proferindo seu discurso
nacionalista, dirigido “ao povo alemão”, para anunciar a entrada
da Alemanha na Grande Guerra: “Chegou a hora de sacar a
espada. O inimigo nos ataca em plena paz. De pé! Armas em
punho!” Essa gravação sonora de um discurso pronunciado, na
verdade, por Guilherme II em agosto de 1914, data do fim da
guerra. Ela foi feita pelo mesmo cientista que havia organizado
o registro das vozes dos prisioneiros de guerra, Wilhelm Doegen,
diretor da comissão prussiana dos arquivos sonoros. Em vez de
sincronizar essa voz com uma fotografia que também, parece,
à primeira vista, prover o momento histórico do discurso, The
Halfmoon Files nos leva de volta ao dispositivo de gravação da
voz, minuciosamente descrito nas memórias de Doegen.
Religando dois tempos e duas mídias distintas, Scheffner
coloca em relação três regimes: o regime político e simbólico
do imperador que, num elã de reconstituição, quer guardar um

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 155


vestígio de seu discurso inaugural da Grande Guerra, mesmo
quando fica claro que vai perdê-la; o regime técnico, que permite
dissociar o tempo inicial de produção dessa voz (na sacada do
castelo) do tempo de seu registro para a eternidade; enfim, o
regime epistêmico, no qual se ancora essa prática, notadamente
pela ideia da criação de um “museu das vozes de todos os povos”,
no momento em que se inventa “a Primeira Guerra Mundial”.
Scheffner mostra, então, como a construção do corpo do
outro (classificado como não-branco pelos antropólogos e como
prisioneiro de guerra pelo poder imperial) se associa, no âmbito
de um arquivo geral, à construção do corpo do imperador. Esse
último, ultrapassando seu corpo real, mortal e falho, repetindo
seu discurso ao povo alemão para integrá-lo na eternidade
espectral do arquivo, institui o que Louis Marin (1981) chama de
fantasma de um corpo único, fundado não mais apenas no nome
próprio e seus ícones, mas apoiado também no gramofone e no
cinematógrafo, os dois “sistemas de inscrição” (Kittler, 1986) mais
modernos da época – nem que seja para construir e afirmar no
final da guerra a legitimidade política de sua autoridade. Assim,
mostrando não somente os objetos e os documentos, mas também
as relações entre as práticas que os objetivisam e as práticas
vizinhas nas quais essas relações se ancoram, o filme se torna,
ele próprio, arqueológico. O atrativo desses documentos visuais
e sonoros nasce da capacidade do filme de dotá-los de uma rede
de extracampos que permite adivinhar o próprio princípio que
regia, na época, sua visibilidade ou sua audibilidade, num ato
de sincronização que conserva a dimensão não-sincrônica daquilo
que Koselleck (2003) chama de “camadas do tempo”.
Rumo à ficção
Incluindo, numa abordagem que se pode qualificar de
“genealógica”, os acidentes, os ínfimos desvios ou, ainda, as
reviravoltas das imagens e dos sons provenientes dos arquivos,
os procedimentos dos três filmes comentados até aqui se situam
na fonte da fábrica da história. Isso não quer dizer, simplesmente,
que eles estão ligados, enquanto fábulas, à narrativa dos códigos
fundamentais de uma cultura (de suas técnicas e de seus esquemas
perceptivos), mas que eles levam em conta uma taxinomia que
conduz a um pensamento “sem espaço”, que Foucault (1966: 9)
chama, em Les mots et les choses, “heterotópico”: categorias “sem

156 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


eira nem beira, mas que, no fundo, repousam num espaço solene”,
de inspiração borgesiana, em que uma desordem heteróclita e
inquietante perturba a dimensão fundamental da fábula e a ordem
existente de uma classificação.
Interessando-se, antes de tudo, pelo que torna os
documentos em questão visíveis, audíveis ou legíveis, cada um dos
cineastas inventa um espaço do possível que tende à ficção: por meio
de uma performance que inclui a projeção de bobinas encontradas
e a apresentação da pesquisa das estátuas coloniais ainda “vivas”;
pela lógica de um livro sobre a trajetória dos materiais tratados
num filme e a encenação de uma historiadora se transformando
em atriz, no duplo sentido do termo; e, enfim, pela exposição das
técnicas culturais que produzem um arquivo, o estabelecimento de
ligações entre os campos heterógenos dos mitos e saberes e a arte
da montagem que os integra em blocos de sensações. Nas três obras
aqui evocadas, aparecem dois modos de afeto: um deles passa pela
mise en scène do dispositivo e pela sensibilização aos materiais; o
outro, pelo arquivo imaginado, numa abertura para a ficção.
Mas há, também, na criação contemporânea, uma
tendência geral a um devir ficção das imagens de arquivo. Não
no sentido de um gênero televisivo paródico, o mockumentary,
que faz referência às convenções de utilização dos arquivos
no documentário, mas no sentido daquilo que Deleuze (1985)
chama de “potências do falso”, valorizando o eventual efeito de
fabulação dos planos do real. Para Foucault (1977: 236), “existe a
possibilidade de trabalhar com a ficção num registro de verdade,
de induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, de forma
que o discurso de verdade possa suscitar, fabricar alguma coisa
que ainda não existe e que, então, se “ficcionaliza”. No cinema, a
riqueza das formas nesse campo é tal que, à guisa de conclusão,
podemos apenas assinalar algumas delas, sem nenhuma pretensão
de exaustividade.
Há, primeiramente, o “gênero” do ensaio, que mistura
ciência e arte, verdade e ficção, para desembocar não no terreno
das certezas, mas em uma rede de conexões. Assim, em sua
videoinstalação Lettre au pilote qui a désobéit (2013), Akram Zaatari
faz referência a um episódio da guerra de Israel contra o Líbano
em 1982, que ele próprio, ainda criança, havia documentado. Mas
em vez de revelar a identidade do piloto israelense em questão, o

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 157


filme se atarda em um certo número de objetos heteróclitos, como
o livro infantil Le Petit prince, escrito pelo escritor-aviador Antoine
de Saint-Exupéry durante uma outra guerra. Com frequência, a
evocação de uma história possível passa, primeiramente, pela pista
sonora. Um exemplo recente disso é Redenção (2013), de Miguel
Gomes, dedicado, sem dúvida por essa razão, a Raul Ruiz e a Chris
Marker. Essa fábula em quatro capítulos, relacionados a quatro
vozes off, tem uma montagem heteróclita de imagens impactantes
(Schlagbilder), provenientes de atualidades filmadas, fragmentos
de filmes de família e trechos de filmes de ficção. É uma mistura
de gêneros, submetida a uma lógica diacrônica. Redenção situa
suas narrativas em quatro países europeus, em quatro momentos
diferentes da história. Só se compreende os entrelaces enigmáticos
dessas confissões graças às datas que aparecem na ficha técnica
do final, com os nomes das personalidades históricas às quais são
atribuídas essas lembranças fabuladas. Há também cineastas que
inventam imagens de arquivo para melhor expor seu atrativo. É o
caso do filme onírico Tren de sombras (Le spectre de Thuit, 1997), de
José Luis Guerín, cujo título, “Trem de sombras”, se inspira do famoso
texto de Gorki sobre a experiência inquietante do cinematógrafo.
Guerín cria cenas mudas em preto e branco, no estilo do filme de
família dos anos 1920. Esses planos “reencontrados”, registrados
em suporte de prata, com seu claro-escuro particular acentuado
pelo acréscimo de uma pátina de película usada, se juntam, no
filme, a planos suntuosos em cores douradas, rodados em 35 mm
no mesmo lugar, mas na penumbra outonal. O som contribui para
a aparição de um mundo fantasmagórico de variações de luz e de
sombra, que transforma esse estudo melancólico em homenagem
poética às técnicas culturais e à memória do cinema. Enfim,
há, ainda, os filmes de ficção que integram planos de arquivo
(verdadeiros ou falsos), para criar efeitos múltiplos. É a longa
história que tem Citizen Kane como vedete. Mas é raro que a emoção
capaz de nascer desse tipo de incorporação seja suscitada por
meios tão sutis como os que emprega Edgardo Cozarinsky em seu
filme Nocturnos (2011), que segue a corrente de consciência de um
homem errante na noite de Buenos Aires, depois de ter esperado,
em vão, o retorno de uma mulher. Ao longo de encontros insólitos,
de reflexões e lembranças, encadeadas numa série de travellings
em ruas desertas, se superpõem, com intensidades variáveis, cenas
dramáticas (de violência, de catástrofe, de repressão e de guerra),

158 O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger


tiradas de filmes em preto e branco. Quanto mais progredimos
nessa série de trechos superpostos, que nos levam, pouco a pouco,
da ficção ao documentário, mais eles se impõem na ficção inicial,
acabando por assombrar os lugares de Buenos Aires filmados nos
dias atuais. São planos “reencontrados”, que escapam a qualquer
classificação, a qualquer determinação: fiel a Borges, Cozarinsky
mistura, assim, inextricavelmente, memória e sensação.

Tradução: Anita Leandro

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DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 138-161, JAN/JUN 2015 161


Farocki e
os arquivos
Sobre algumas ficções de arquivo
na obra de Harun Farocki

Amélie Bussy
Doutora em Artes (Historia, Teoria e Prática) pela Université Bordeaux Montaigne.
Vinculada ao Laboratório CLARE.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015


Resumo: Como a ficção pode ser um meio cinematográfico “apropriado” para
retomar os arquivos? Como ela pode ser um processo respeitoso em relação às
imagens e até mesmo produzir um ato potente de legibilidade, real, cinematográfico
e, porque não, testemunhal? Este artigo propõe um questionamento sobre as
virtudes ou “potências do falso” em duas sequências de filmes de Harun Farocki que
retomam imagens de arquivo, com o objetivo de entender qual é o alcance de um
comentário fictício, na perspectiva de uma história escrita com os meios do cinema.
Palavras-chave: Harun Farocki. Ficção. Potências do falso. Comentário. Arquivos.

Abstract: How can fiction be a « proper » way to retake archives? Can it be an


approach respectful of the images so much as to create a real, cinematographic,
strong manner to make the archives readable, and sustain their testimony? This
article will investigate on two filmstrips where Harun Farocki retake archives with
the “powers of the false” in order to understand what are the qualities of a fictionnal
commentary in his writing of history.
Keywords: Harun Farocki. Fiction. Powers of the false. Commentary. Archives.

Résumé: Comment la fiction peut-elle être un moyen cinématographique “adéquat”


pour reprendre les archives? Comment peut-elle constituer une démarche
respectueuse des images et même fonder un acte de lisibilité puissant, réel,
cinématographique et, osons-le, testimonial? Cet article se propose d’interroger
les vertus ou “puissances du faux” dans deux séquences de films de Harun Farocki
qui reprennent des archives, afin de saisir les qualités du commentaire fictif dans la
perspective d’une histoire écrite avec le cinéma.
Mots-clés: Harun Farocki. Fiction. Puissances du faux. Commentaire. Archives.

166 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
I. Introdução: o problema da ficção
Não é raro, no cinema de Harun Farocki, encontrar uma
crítica aos filmes de ficção e aos procedimentos por eles utilizados
para escrever a História. Em Wie man sieht (Como se vê, Farocki,
1986), o cineasta monta, a pouca distância uma da outra, duas
fotografias das ruas de Berlim, em 1919. Quando surge a primeira
imagem, a voz off chama a atenção para os diferentes adereços
que cobrem a cabeça de três homens fotografados: um boné de
operário, um chapéu de empregado administrativo e um capacete
de soldado. Armados, os três homens estão agachados atrás de
grandes rolos de papel de impressão de jornal, que lhes servem
de barricada. Em seguida aparece uma segunda fotografia dessa
mesma Berlim insurrecta, quando a capital viveu a insurreição
espartakista. Essa segunda imagem é a tal ponto parecida com
primeira que o comentário precisa anunciar: “Soldados rebeldes
de 1919”. Novamente, aparecem chapéu, boné e capacete. “É
tão fácil confundi-los com soldados do governo! (…) Difícil é
determinar, à primeira vista, quem se insurge e quem coopera!”,
diz, então, o comentário. E, com efeito, desse lado da barricada,
os mesmos tipos de chapéu sinalizam alguma coisa ao espectador. 1. Cada vez que lhe sugeriam,
para a trilogia Norte-Sul,
A originalidade da montagem comum às duas fotografias em Wie a noção de “comparação”,
man sieht reside, exatamente, na “indecidibilidade” dos signos da o cineasta Johan Van der
Keuken disse preferir a ideia
imagem, que funcionam como meios de acesso à História desse de justaposição” (KEUKEN,
período. Farocki propõe ao espectador a justaposição dessas duas Apud BOULEAU, 2013 :
777-778 ). Mesmo que não
fotografias, afim de apreender a questão do testemunho das possamos desenvolvê-la
imagens, interpelando, assim, a necessidade frequente na história mais adiante, nós a
de opor revolucionários e governo.1 Ora, acontece que essas duas empregamos aqui devido
à proximidade entre os
imagens, sendo as mesmas e, no entanto, diferentes, encorajam o intervalos empregados
resgate de uma complexidade dos acontecimentos e das escolhas por Farocki et Keuken
(fragmentação; intervalos
feitas pelos homens que deles participaram. Justamente, a sóbria entre as imagens; montagem
relação estabelecida por Farocki entre as duas fotografias convida em forma de constelação, ou
seja, repartição de diversas
a pensar a história a partir da linha tênue que separa aqueles que fontes de imagens que se
foram seus atores. alternam e retornam ao
longo da montagem). Aqui,
A força historiográfica dessa montagem só pode, no a justaposição se refere,
na realidade, à montagem
entanto, ser experimentada à luz de um outro comentário, que mental feita pelo espectador,
se refere, desta vez, ao cinema: face à essa difícil distinção dos uma vez que Farocki insere
entre as duas imagens
dois campos – entre quem se insurge e quem coopera – o cinema da Berlim insurrecta uma
de ficção teria encontrado uma saída astuciosa, diz Farocki. Ele entrevista com o doutor
Cooley, fonte de imagem que
teria dado sinais distintivos (como se distribui qualidades aos retorna várias vezes em Wie
personagens de ficção – bons ou malvados) e teria atribuído, a man sieht.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 167


um campo, “cartucheiras em cruz sobre o peito, por exemplo”. Se
é impensável para o cinema de ficção não distinguir dois campos
opostos e, talvez, até mesmo não separar bons e maus, Wie man
sieht critica o sentido “pleno” dos signos do cinema de ficção,
seu aspecto voluntariamente reducionista, a cartucheira em cruz
sobre o peito sendo característica de um cinema que não confia
no espectador para “ver” as imagens e apreender os homens na
história, nem confia na capacidade do cinema em tornar-se um
potente analista de imagens confusas, lacunares, cujas falhas
representativas constituem, na verdade, o próprio lugar de seu
testemunho, mesmo sem mostrar tudo.
Dois anos depois, em Bilder der Welt und Inscrift des
Krieges (Farocki, 1988), Harun Farocki criticará o telefilme
Holocaust por ele apresentar uma versão kitsch do horror,
enquanto que os historiadores falarão, alguns anos mais tarde,
de uma americanização do Holocausto (WIEVIORKA, 2013: 153,
159; MAYERS, 2005). O problema colocado por esse telefilme
não reside, no entanto, na dimensão “épica” do “drama” que foi
essa série. A questão não diz respeito a sua qualidade nem a sua
recepção. Ela tem a ver, na verdade, com as críticas implicitamente
formuladas em Bilder der Welt contra a série. Preocupado com a
veracidade, o diretor de arte da série televisiva teria se servido
de um desenho do deportado e sobrevivente Alfred Kantor, afim
de dar à ficção um aspecto “realista”. O decorador que seguiu
os desenhos de Kantor, reproduzindo as indicações “DR Kassel”
marcadas no vagão de um trem, se encontra exposto, em Bilder
der Welt, à crítica do espectador. No entanto, a montagem de
Farocki não questiona a pessoa do decorador e nem mesmo o
realismo do detalhe, mas aquilo que o próprio desejo de realismo
implica, ou seja, o procedimento por meio do qual a ficção apaga o
sobrevivente e as razões de sua vontade de desenhar os campos de
forma realista: a ausência e a interdição de fotografias no campo.
De fato, colocando sua vida em perigo, sob risco de morte, Kantor
desenhava esboços de Auschwitz, conservados e escondidos por
seus companheiros detentos. O risco que eles enfrentavam, a
necessidade de realismo do desenho, se encontram, literalmente,
apagados na representação fictícia de Holocaust. O problema não
é o realismo desse telefilme, mas o reemprego de um realismo
ancorado nos próprios traços do desenho, um desenho que
exige, na verdade, concretamente, cinematograficamente, não
ser “traído” (RANCIÈRE, 2012: 66). O telefilme kitsch Holocaust

168 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
se serve dos detalhes do desenho de Kantor sem, no entanto, 2. Do ponto de vista de
um pensamento sobre o
enfrentá-lo, sem propor, dele, um novo uso e uma visibilidade
reemprego das imagens
inédita para o presente.2 de arquivo, questão que
se coloca na prática dos
cineastas, poderíamos
opor utilitarismo e uso: “se
servir” da imagem implica
numa servidão do arquivo
a um outro propósito ou
representação (utilitarismo
do arquivo); o uso, por
sua vez, implica numa
convocação dos valores da
própria imagem reempregada
(mesmo que ficcional, a
retomada do arquivo leva
em consideração a imagem,
seus signos, sua matéria, sua
produção).

Figura 1: O cinema de ficção teria encontrado uma saída astuciosa

Aquilo que as ficções do cinema têm dificuldade em


realizar, o lugar da crítica, Harun Farocki torna compreensível
aos seus espectadores, procedendo “de outra forma”.3 Em 3. Ideia desenvolvida
Wie man sieht, primeiramente, e, depois, em Bilder der Welt, igualmente por Didi-
Huberman no segundo e
a remontagem de duas imagens, com um intervalo entre elas, no quinto tomos de L’Oeil
propõe uma legibilidade histórica dos arquivos, sem negar a de l’Histoire, a propósito de
Farocki e Godard. Na obra
dimensão material e indiciária das fotografias ou dos desenhos desse último, tratar-se-ia
que Farocki retoma. O arquivo, na obra de Farocki, deve ser de “tornar necessária uma
forma totalmente diferente de
entendido na sua materialidade; deve-se prestar certa atenção contar histórias” (DIDI-
à razão de ser das imagens, aos seus sinais, às necessidades de HUBERMAN, 2015: 68).
Sobre o cineasta Farocki,
suas estéticas. A escolha de uma forma tem, na verdade, sempre ele fala de uma “outra
a ver com uma maneira de ver o mundo e de mostrá-lo. No economia”, que “libera a
potência do olhar” (DIDI-
entanto, seria equivocado opor ficção e arquivo, sentido pleno HUBERMAN, 2010: 105-108).
do signo e trabalho em torno do vestígio, lacunar. Isso porque,
por um lado, os documentários atribuem um valor pleno aos
arquivos retomados (há uma positividade do arquivo em certos
filmes que atribuem um valor probatório à imagem de arquivo,
tida como capaz reproduzir o passado ou o de fazê-lo surgir
na tela); por outro lado, os filmes de ficção trabalham com a
capacidade do cinema de convocar o que desapareceu, de
mostrar o que não podemos (ou não pudemos) mostrar... Talvez
devêssemos nos perguntar, sobretudo, como é que as condições

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 169


4. O questionamento de para a retomada de uma imagem de arquivo ou para a narração
Bilder der Welt sobre a
de uma história confiam ou não na capacidade do espectador
“vontade de controle do real
por meio de sua redução, de traduzir os filmes, de ler as imagens.4 O problema não
sua submissão ao visível” seria tão complicado se não concernisse, a fortiori, a questão
(ROLLET, 2011: 56) não
seria uma questão para o da retomada das imagens e das vítimas dos campos. Presente
cinema? E essa questão com vinte anos de intervalo em Bilder der Welt (1988) e Respite
não corresponderia à crítica
de Farocki às duas ficções (Farocki, 2007), a questão concerne intimamente o cinema
evocadas, ou seja, essa de Farocki. Os procedimentos cinematográficos, mas também
“submissão” da imagem
histórica, do desenho de jurídicos e históricos relacionados ao tratamento dos arquivos
Kantor, das fotografias de foram sempre objeto de preocupação do cineasta, inclusive em
Berlin, a um discurso e
uma representação que um texto recente, intitulado “Comment montrer des victimes?”
“controlam o real”? (FAROCKI, 2009), no qual ele se posiciona novamente contra a
mutilação dos arquivos:

“O expert habitual explicava que os principais criminosos


tinham, assim, escapado ao seu castigo. Para ilustrar seu
argumento, o filme mostrava, alternadamente, nazistas e
montes de cadáveres. Cada imagem durava em torno de três
segundos. Essa forma de utilizar as imagens dos mortos é
revoltante.” (FAROCKI, 2009: 16).

Difícil não pensar, trinta anos depois, no que o cineasta


já dizia sobre o Vietnã: “Mostra-se uma imagem para trazer a
prova de alguma coisa que ela não pode provar” (Farocki, citado
por BLÜMLINGER, 2002: 13). Aí está o cerne da questão que
animou o debate na França em torno da exposição dos quatro
clichés dos membros do Sonderkommando e que a torna tão
perigosa. Se Claude Lanzmann sempre se recusou a retomar
qualquer imagem de arquivo, estabelecendo uma separação
entre a prova pela imagem e a multiplicidade dos testemunhos
oculares e orais, fundamentando toda a sua poética nessa
exigência, o cinema de Harun Farocki – que é, essencialmente,
um cinema de retomada – se apega a essas mesmas imagens que
Lanzmann recusa, propondo uma crítica e uma nova legibilidade
para elas.
Para além de uma crítica da representação, as duas
retomadas de imagens do cinema de ficção em Wie man sieht e
Bilder der Welt continham, então, as questões a serem colocadas
no âmbito de uma retomada ficcional das imagens de arquivo no
trabalho de Farocki. A crítica ao telefilme Holocaust elaborada

170 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
por Harun Farocki aponta para o fato de que o cinema precisa
respeitar a matéria e a memória dos arquivos, uma vez que a
escrita da história pelas testemunhas depende de sua retomada.
Tanto nos filmes que ele critica, quanto em seus próprios
filmes, o respeito pela memória das testemunhas residiria nos
procedimentos utilizados para tratar os documentos. Haveria,
assim, algo inerente aos arquivos a preservar e a não trair, quando
são retomados para escrever a história. Mas será que a ficção,
enquanto elemento “imaginativo” do cinema, não estaria mais
propensa a desviar os arquivos do que, realmente, a respeitá-los?
Em que medida uma ficção de arquivo pode dar acesso à história
contida na imagem?
No livro L’Épreuve du réel à l’écran (A provação do real na
tela), François Niney evoca a potência do comentário nos filmes
de Chris Marker, uma voz off geralmente poética, que lança mão
de formas de interlocuções múltiplas e de formas epistolares, por
vezes ficcionais. Ele evoca a presença, na obra de Marker, de um
comentário imaginativo, para endereçar ao espectador as imagens
retomadas, “re-tourner”5 essas imagens (NINEY, 2002: 93-112), 5. Niney faz um jogo de
palavras com os verbos
ou seja, transformar as tomadas em retomadas, ou as retomadas
“tourner” (filmar) e
em tomadas, ao ponto de questionar a capacidade do cinema de “retourner” (“filmar de
escrever o passado no “futuro anterior” (Ibidem: 106). De fato, a novo”, mas, também, virar
do avesso; devolver; voltar
questão da ficção não pode ser tão facilmente descartada, quando se atrás; provocar emoção, no
fala de cinema de arquivo. No final de seu livro, Niney consagra um sentido de “sacudir”). Nota
da tradutora.
capítulo às “Virtudes do falso”, tomando como exemplo L’Ambassade
(Chris Marker, 1973) e a “interferência ficção/documentário” nesse
filme que, embora rodado num apartamento em Paris, remete ao
Chile de Pinochet. Sobre a “produção de verdade” do comentário
ficcional, pode-se ler essa frase importante: “trata-se de fazer
com que o espectador compreenda que a realidade, lá, ultrapassa
essa ficção aqui” (NINEY, 2002: 305). Na mesma perspectiva das
reflexões de Deleuze sobre as “potências do falso”, na Imagem-Tempo,
6. O documentário já admitiu
seria, necessário, no entanto, aproximar a questão formulada pelo o uso da ficção há muito
filósofo aos filmes de Jean Rouch e de Pierre Perrault, sobre o devir tempo (aliás, eles já foram
separados algum dia?).
ficcional de pessoas reais (DELEUZE, 1985: 195-199), da questão Niney e Deleuze sublinharam
específica da retomada dos arquivos. Num documentário, a ficção muito isso. Nas duas obras
que citamos, esses autores
não poderia criar um devir ficcional de documentos reais que nos tentaram, cada qual ao seu
convidaria, como na obra de Rouch, a perceber o lugar em que o modo, mostrar que o cinema
era capaz de colocar em jogo
estatuto do arquivo muda de estatuto, passando, incessantemente, o real, com seus próprios
da condição de documento à de imagem de cinema?6 meios.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 171


Apesar de suas críticas severas à ficção, Harun Farocki
não recusa, de modo algum a sua utilização. Muito pelo contrário,
a ficção percorre seus filmes e sua aparição perturba, com
conhecimento de causa, obras que acreditávamos documentais.
Trata-se de reativar, no espectador, uma avaliação das imagens
e de encorajar, nele, uma presença crítica face aos arquivos,
que, muito frequentemente, tomamos pelo próprio passado, seu
registro, sua reprodução. Em Farocki, a ficção sustenta o gesto da
retomada; para não ofuscá-lo, ela o reitera: a ficção acentua uma
certa verdade da imagem, evidenciando que os arquivos não são
apresentados ao espectador mas re-apresentados e re-montados.
Afinal, porque a ficção não é legítima para retomar uma imagem
de arquivo, na medida em que, antes de ser histórica, uma imagem
é, sobretudo, uma imagem? Mas, então, como ela pode ser um
meio “apropriado”? Como ela pode constituir um procedimento
respeitoso em relação às imagens e até mesmo produzir um ato de
legibilidade potente, real, cinematográfico e, mesmo, testemunhal?
É a partir dessas questões que propomos uma reflexão sobre as
virtudes ou potências do falso nas duas sequências dos filmes de
Harun Farocki aqui evocadas, construídas à base de imagens de
7. Informação talvez
arquivo, a fim de cernir as qualidades de um comentário ficcional,
desconhecida dos na perspectiva de uma história escrita com o cinema.
espectadores no momento
em que ele realiza esse filme,
em 1988, ou seja, depois do
lançamento do Shoah de II. Isso é uma fotografia: Bilder der Welt e o comentário ficcional
Claude Lanzmann, em 1985,
e antes que o debate francês Que a ficção é “produtora de verdade” (NINEY, 2002:
em torno das imagens dos
campos não ganhasse 320) para o arquivo e que ela é uma escolha adequada para
tanto espaço, até chegar a recolocar em cena uma imagem, é algo comprovado por uma das
episódios mais recentes.
sequências mais conhecidas e comentadas de Bilder der Welt. Ela
8. Sylvie Lindeperg analisou começa com a aparição, discretamente reenquadrada e legendada,
com muita fineza o quanto
de uma fotografia da Aussortierung – a “Seleção”. Um pouco antes,
essas informações sublinham,
com crueldade, “os efeitos de Farocki havia nos informado, com essa mesma fotografia, que os
eufemização da legendagem SS tinham feito, de fato, imagens de Auschwitz,7 reunidas em um
dos clichés fotográficos”
do Álbum de Auschwitz e álbum folheado pelo cineasta. Se “a razão de ser desse álbum (...)
remetem o espectador à continua misteriosa” (ROLLET, 2011: 65), Farocki tenta, assim
sobrevivência e à “experiência
dos testemunhos presentes mesmo, dar as informações de que dispõe sobre a proveniência
nos lugares”, testemunhos das imagens, explicando, em voz off, de maneira simples e sóbria,
que permitiram “reconhecer
e ver o que estava inscrito que as fotografias que vemos foram tiradas por dois SS da seção
na fotografia, mas que não “Effekten” (Efeitos).8 No entanto, parece que essas informações
podia ter sido lido nem
interpretado” (LINDEPERG, só têm importância em função de sua correlação com o cliché
2008: 40). fotográfico que se segue. O estudo de Farocki não se debruçará

172 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
sobre o “Álbum de Auschwitz” em seu conjunto nem sobre suas
consequências. Em vez disso, deterá longamente o seu olhar sobre
uma única fotografia: a de uma mulher no momento em que ela
chega no campo, imagem feita, justamente, por um desses dois SS.
A imagem da chegada ao campo vem logo após a da
“seleção”, vista em plano aberto. Uma mulher fotografada olha
para nós. Atrás dela, vemos uma fila de homens que esperam. Uma
mão pega o paletó do primeiro deles, deixando transparecer que
se trata do gesto da triagem. Sylvie Lindeperg levanta a hipótese
de que a força dessa fotografia viria desse encontro entre o pano
de fundo da “seleção” e a passagem pela triagem (COMOLLI e
LINDEPERG, 2008: 31). Juntos, os dois planos da foto formariam
o “punctum” dessa imagem.9 Sylvie Rollet, quanto a ela, prefere 9. Barthes definiu,
falar do conjunto de reenquadramentos sucessivos operados por inicialmente, o punctum
na Câmera clara, como o
Farocki para mostrar o rosto dessa jovem, capturado na foto: encontro do primeiro plano
e do pano de fundo –freiras
passando atrás de soldado
é o que faz da fotografia da
Com efeito, a retomada da fotografia da jovem na rampa de insurreição na Nicarágua
Auschwitz é acompanhada por uma série de reenquadramentos mais do que uma fotografia
que, isolando-a do resto dos deportados, produzem uma de guerra que, ao contrário,
singularidade. Enquanto o fotógrafo nazista registra uma solicitaria de nossa parte
operação de rotina (…), Farocki enquadra o acontecimento apenas um olhar estudioso
único de um destino particular. (ROLLET, 2011: 69) (BARTHES, 1980: 42-44).

Rollet dá continuidade, aqui, de maneira notável, ao


estudo dessa imagem, pois desta vez são três reenquadramentos
sucessivos realizados pelo próprio Farocki na montagem que
permitem compreender, de outro modo, como essa foto nos dá
acesso ao destino dessa mulher como um destino singular. O
comentário ficcional empregado na sequência produz igualmente
essa singularidade. Mas se ele reitera o caráter pungente dessa
imagem, é, antes de tudo, porque insiste no gesto do fotógrafo:

Uma mulher chegou em Auschwitz. O fotógrafo instalou sua


câmera. E quando essa mulher passa diante dele, ele tira uma
foto – da mesma forma como ele olharia para ela na rua, porque
ela é bonita. A jovem vira o rosto, apenas o suficiente para captar
esse olhar fotográfico e ver, de soslaio, o homem que olha para
ela. É assim que, numa avenida, seu olhar esquivaria o de um
senhor atento, para ir se pousar sobre uma vitrine. Por meio desse
olhar furtivo, ela tenta se transportar para um mundo em que há
avenidas, senhores, vitrines, longe daqui. (FAROCKI, 1988)

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 173


Entre as imagens do Álbum de Auschwitz, essa é,
certamente, uma das únicas que, pelo olhar dirigido ao fotógrafo,
nos assinala essa condição da fotografia: para que uma imagem
seja produzida, é preciso um sujeito fotografando e um sujeito
fotografado. A voz off insiste exatamente nesses elementos. “Ele
aperta o botão”, ela diz. “Quando essa mulher passa diante dele,
ele aperta o botão, da mesma forma que ele olharia para ela na rua,
porque ela é bonita”. Em seguida, vem a ficcionalização do olhar
da mulher: “É assim que, numa avenida, seu olhar se esquivaria do
olhar de um senhor atento, para ir se pousar sobre uma vitrine”. O
comentário ficcional insiste na produção do cliché fotográfico. Ele
revela que, no momento da tomada, a imagem precisou de mais
do que da presença dessa mulher, solicitando, também, a presença
10. Difícil não pensar nessa do fotógrafo, fora de campo.10 A ficção constitui uma tentativa
célebre fotografia de um
soldado americano com
de apreender como o sujeito fotografado, da mesma forma que o
sua arma apontada para a fotógrafo, pôde, no campo de Auschwitz, viver essa situação, que
têmpora de um vietnamita. necessita da co-presença de ambos – a situação de produzir uma
Harun Farocki reconstitui
essa cena com crianças imagem. Aliás, deve ser o que despertou o interesse de Farocki por
e acrescenta um terceiro essa fotografia, mais do pelas outras do mesmo álbum. Cineasta
personagem, o que tira a
foto, mostrando, assim, a que sabe o que é produzir uma imagem, Farocki singulariza ao
mise en scène do documento. extremo a foto, escolhendo abordá-la a partir da relação filmador-
É uma forma de apresentar,
de novo e pelos meios da filmado, fotógrafo-fotografado, questão já abordada por Comolli:
ficção, um fora de campo/
contracampo da imagem,
no entanto implicitamente
Para localizar as coordenadas de um plano ou de uma fotografia,
presente: o do produtor
da imagem, que aperta o
acho que é preciso levar em conta não apenas as suas condições
botão do aparelho (Voir espaço-temporais e político-históricas, mas também o que está
BLÜMLINGER, 1995: 30). em jogo na relação entre filmadores e filmados. Eu diria que
se alguma coisa é documentada, é essa relação. O documento
sobre a relação entre fotógrafo e fotografados torna-se
extremamente precioso. São relações verdadeiramente ligadas
a um momento, a um instante preciso, a um acontecimento
preciso. (COMOLLI e LINDEPERG, 2008: 33)


Nessa sequência, para mostrar que a imagem provém dessa
história de olhares e que ela documenta isso, Farocki recorre a uma
ficção. É justamente por isso, porque Farocki exagera, porque seu filme
recoloca em cena a fotografia e a re-produz, cinematograficamente,
no presente (“ele aperta o botão”), que o arquivo fotográfico,
vestígio de um instante único, começa a ganhar vida. Com a imagem
do campo de Auschwitz, aparecem as condições de realização da
foto, que tornaram possível esta imagem e não outra. Alguns verão,

174 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
no entanto, com reticência, essa história banal de sedução sugerida
entre o homem e a mulher, para chamar a atenção para a troca de
olhares, o “mal gosto do comentário” de que fala Rancière (2015: 99).
Por que transpor a cena para uma avenida, com senhores, vitrines,
mulheres? Há muito tempo o documentário moderno entendeu que,
da dissociação entre a imagem e o som, nascem distâncias férteis o
suficiente para produzir uma terceira imagem, mental, proveniente
do encontro, no plano, dos dois elementos separados. Essa ficção,
vinda de fora, ajuda a “criar uma situação” para que o arquivo seja
visto. Trata-se, realmente, nessa sequência, de dizer que o SS e essa
mulher se comportam “como” numa avenida? O próprio espectador
não acredita nesse interpretação. Melhor: ele se choca com ela.
Farocki “força” esse encontro entre a narração da ficção e a imagem,
para que o arquivo se estratifique, com novos sentidos. Por exemplo,
a presença da avenida ou de um mundo de vitrines só reforça a
presença, aqui e agora, dessas duas pessoas, como se a sentença final
do comentário (“num mundo em que há avenidas, senhores, vitrines,
longe daqui”), mais do que o desejo dessa mulher de não ver o que se
passa, de se transportar para outro lugar, longe de Auschwitz, fizesse
“o espectador compreender que aquela realidade ultrapassa esta
ficção” (NINEY, 2002: 305). A simplicidade da história de sedução –
sua banalidade – devolve o campo à sua própria realidade, realidade
que aquela imagem poderia, no fim das contas, esconder.
Uma das “potências do falso” consiste em abrir um
caminho para pensar, ver e perceber os arquivos de outro modo.
Por meio da ficção, Farocki provoca deslocamentos múltiplos
de sentido e mantém o espectador ativo face àquilo que vê, às
maneiras de interpretar os arquivos. Para isso, ele desenvolve um
método, feito de estranhos desajustes:

(Eu) não mostro nada por razões estritamente sintomáticas,


nada que não me sirva para justificar. Eu tento sempre evitar as
interpretações que desaparecem com o filme – que o pilham,
de alguma forma – na exegese. Uma de minhas estratégias
consiste em interpretar um filme em excesso ou de maneira
deliberadamente equivocada. Talvez essa interpretação salve
alguma coisa. (FAROCKI, 2002: 96)

Na verdade, essa estratégia contribui para que o


questionamento se faça o mais perto possível das imagens que
estamos vendo. A interpretação excessiva de um plano ou de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 175


uma imagem de arquivo, como essa ficção que acompanha a
mulher na sua chegada ao campo de Auschwitz, permite não
“pilhar” a imagem, como faria um expert, isto é, não diluí-la em
uma “exegese” que, da mesma forma que os adeptos da prova
irrefutável pela imagem, a fariam dizer tudo. Na obra de Farocki,
a ficção, ao se assumir enquanto tal, é uma porta, uma via, um
acesso à imagem e ao que ela documenta, e não ao passado “tal
como ele foi” (BENJAMIN, 1990: 435). Seu método de retomada
de filmes para montar Os operários saem da fábrica o comprova.
O comentário ficcional de Bilder der Welt und Inscrift des Krieges é
uma sobre-interpretação da foto. Aquilo que ele “salva”, ou antes,
aquilo que ele traz à superfície da imagem, são as condições de
sua tomada. Mas porque tornar presente esse outrora que deu
origem à imagem? Porque Farocki se detém, em seu próprio filme,
na gênese do arquivo? Porque razão ir tão longe na remontagem?
Ao mesmo tempo em que o fotógrafo captura o rosto
dessa mulher, ficamos sabendo que ela vai morrer. Como, a partir
dali, suportar seu olhar fotografado? A imagem, último vestígio,
produzida na iminência da morte, ganha um outro sentido
quando o comentário se distancia da ficção das avenidas, para
anunciar: “O campo, dirigido pelos SS, vai destruí-la. E o fotógrafo
que captura, que eterniza sua beleza, também faz partes desses
mesmos SS”. Essa mulher de rosto muito claro, muito bonito, e
que Farocki transporta para uma avenida, é eternizada e eliminada
por um mesmo gesto: o da tomada. “Eternizar a beleza”: a ficção
dava, então, um acesso a essa imagem?

Figura 2: “Talvez essa interpretação salve alguma coisa” (FAROCKI, 2002: 96)

176 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
Roland Barthes foi, talvez, quem melhor compreendeu
a dramaturgia da fotografia, de suas temporalidades próprias,
dos rostos e dos mortos que ela capturou... Em A câmara clara,
ele fala do retrato que Alexandre Gardner fez de Lewis Payne:
“A fotografia é bela e o rapaz também” (BARTHES, 1980: 148).
E, como ele explica, o “puctum” (Ibidem: 149), nela, não é
tanto o fato de que Lewis Payne espera na sua cela a morte por
enforcamento, em 1865. Ele provém da reunião intempestiva
do antes e do depois para o espectador atual, da estranha
cristalização, na foto, desses dois tempos, que podemos, agora,
reunir: “ele morreu e ele vai morrer” (Idem). Segundo Barthes,
11. Barthes diz: “é a ênfase
esses dois tempos configuram a dramaturgia da fotografia.11 Ele dilacerante do noema (“isso
nos fala, assim, de sua qualidade testemunhal: essa dramaturgia foi”), sua representação pura.
(…) Eu me estremeço (…)
não provém da pessoa filmada ou fotografada e de seu passado, por causa de uma catástrofe
mas da imagem e de sua capacidade de evocar, ao mesmo tempo, que já aconteceu” (Ibid.:
148-149).
a morte e a vida do fotografado, ao permitir-nos dizer dessa
pessoa: “ela morreu e ela vai morrer”.12 Aliás, se aprofundarmos 12. É o que Sylvie Rollet,
essa reflexão e aproximarmos dela o pensamento de Agamben em seu comentário sobre
essa sequência, denomina
sobre o testemunho e o arquivo, quando o filósofo diz, em O como “o momento único
que resta de Auschwitz, que a testemunha é “o que resta”, “o que da tomada no passado” e o
“futuro anterior de sua morte
sobreviveu” (AGAMBEN, 2003 :17), não ficaremos surpresos com programada” (ROLLET, 2011 :
o fato de que a mulher fotografada em Bilder der Welt, a vítima, 69). Ela diz que é a retomada
que “coloca em contato”
a desaparecida, não é a testemunha real. Ela está morta quando esses dois momentos. Nós
vemos sua foto; a sobrevivente é a imagem, a imagem de seu pensamos que é a imagem,
e somente ela, uma vez lida,
olhar, a imagem de seu desejo de responsabilizar aquele que a mais tarde, que apresenta
captura e de se esquivar dele, a imagem de seu rosto fotografado essa temporalidade
heterogênea ao espectador.
por um SS. A imagem é a testemunha. Farocki apenas a sustenta.
Compreende-se melhor, então, que o cinema tenha o
dever de retomar essa imagem de arquivo e de levar a fundo o seu
valor testemunhal, seja por meio da ficção ou do documentário,
da montagem ou da mise en scène. Pode-se considerar “adequada”
qualquer retomada que torne possível a com-preensão e a
apropriação do arquivo. Vimos que a ficção permitia localizar
na imagem de arquivo aquilo que remete à sua tomada, ou seja,
aquilo que informa o espectador sobre a produção do documento.
Ela fornece, então, uma indicação importante para a história,
pois, mais do que nutri-la com um simples contexto, a narração
ficcional da tomada da fotografia propõe um conhecimento
íntimo das formas fílmicas ou fotográficas. Ela se debruça sobre o
que desencadeou a produção do documento visual, como no caso

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 177


da relação filmador-filmado. Mais ainda, ela nos informa também
sobre “o que resta” na imagem e que permite ao cineasta apreender
essas informações: a relação filmador-filmado, tal como ela se
inscreve no rosto da mulher que se volta para a câmera. Visível
na superfície da imagem, esse ínfimo vestígio autoriza o cineasta
a retomar a foto dessa maneira. Ele torna possível a retomada
ficcional do documento, sem que o cineasta tenha, no entanto,
que demonstrar um controle excessivo do mesmo. É esse “resto”
que guia o trabalho da retomada, que leva a mão do cineasta a
reenquadrar ou que o convida a produzir uma ficção. Não se trata,
então, de um “puro desvio”, como na obra de Debord, mas de
um “autêntico método, impuro”, “experimental”, como diz Didi-
Huberman, “fundado em uma afinidade com a imagem” (DIDI-
HUBERMAN, 2010: 99). Os dois sentidos da palavra “permitir”
aqui empregados, “autorizar” e “tornar possível”, dizem o quanto
Farocki escolhe minuciosamente as suas ferramentas, o quanto
o cineasta está sempre em busca de um gesto adequado para a
retomada dos arquivos. Quanto à ficção em seus filmes, ela só
se apropria da imagem para poder sustentar alguma coisa que
essa imagem contém e que é preciso levar à tela. Isso o cineasta
mesmo diz, e está presente em sua maneira de decupar e de
montar. Em Schnittstelle (Farocki, 1995), ouvimos Farocki dizer:
“Hoje não posso mais pensar em um filme se não estou na mesa
de montagem. Eu escrevo de dentro das imagens, depois as leio”.
Uma outra virtude ou potência do comentário ficcional de
Farocki é a de escrever fundamentalmente uma história para as
vítimas. Ele traz consigo a exigência de memória dos mortos que
se encontram na superfície da imagem, levando em conta o fato
de que uma memória apropriada só pode provir de uma forma de
filmar e de mostrar. Harun Farocki transmite, nessa sequência, toda
a importância de dois gestos: o da tomada inicial da fotografia e
o de sua retomada. Trata-se de nos situar em uma relação com
a imagem marcada pelo desejo de que uma outra história seja
escrita para aquela mulher. Colocando-nos diante do seu rosto,
imperceptível, claro e belo, eternizado pelo SS que a fotografa, a
13. Sobre isso, ver a ficção do comentário, ao restituir o contexto da tomada no seu
distinção pertinente conjunto, nos torna solidários em relação à morte da fotografada,
que Didi-Huberman faz
entre desaparecimento à sua destruição, e não simplesmente ao seu desaparecimento.13
e destruição no texto Do arquivo à ficção, da tomada à retomada, trata-se de escavar
dedicado a Farocki em
L’Oeil de l’Histoire 2 (DIDI-
passagens cinematográficas da história para o cinema. “De repente,
HUBERMAN, 2010: 103-104) um rosto, ali, me olha”: virtude do comentário, que consiste em

178 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
sustentar a aparição da imagem, em partilhar o destino dessa
mulher, ao inventar “um gesto de cinema para se colocar diante
do acontecimento” (LINDEPERG, 2007: 92), para responder à
exigência “daquele que viveu, ali” (BENJAMIN, 2000: 99).
Há uma outra razão para o uso do comentário. Farocki sabe
que essa fotografia não constitui uma prova do extermínio dos judeus.
O problema consiste, sobretudo, em não criar o desejo de prova, em
observar uma regra de parcimônia que visa estabelecer e delimitar,
aos olhos do espectador, o testemunho de uma imagem. A distinção
entre testemunha e vítima (entre a imagem que é a testemunha
sobrevivente e a vítima, na superfície da imagem) serve, justamente,
para compreender que cabe à retomada da imagem atualizar o vestígio
e lembrar que o gesto de tirar uma foto pode evocar o de tirar uma
vida. É o que faz a ficção, um meio propriamente cinematográfico
e imaginativo, quando ela nos propõe enfrentar a imagem do rosto
dessa mulher, plenamente conscientes do tempo que dela nos
separa. Aquilo que foi registrado no momento da tomada precisa
ser retomado, afim de elevar o arquivo à potência de uma imagem
que, sabendo-se imagem, pode também tornar imaginável o que ela
não mostra. A imaginação e a prova foram sempre os dois freios ou
interdições impostos à representação ficcional ou documental dos
campos de concentração e de extermínio. A maior virtude da ficção
está na possibilidade de mostrar o seu avesso, a saber, o fato de que ela
é apenas uma narrativa, impossibilitada de testemunhar plenamente.
Ao contrário do que foi dito anteriormente, a ficção, quando encontra
as propriedades documentais da imagem que a autorizam a retomar
os arquivos, não é apenas apropriada. Ela só se torna adequada ao
mostrar, de maneira pertinente, sua “impropriedade fundamental”,
isto é, ao abordar as imagens como mediações e não como o real, ao
mostrar que um arquivo não testemunha sobre o passado tal como
ele foi, mas sobre a sua captura numa imagem parcial e lacunar.

III. “Rodaríamos um filme?”: Respite e a interpretação sucessiva


dos arquivos
A adequação dos meios escolhidos por Farocki em Respite
já foi comentada por vários autores, com ênfase na escolha das
cartelas pretas (DESPOIX, 2008: 89-91; LINDEPERG, 2009: 27-
30; DIDI-HUBERMAN, 2010: 111). Entrecortando as imagens de
arquivo filmadas, as cartelas interpelam um material encontrado

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 179


pelo cineasta no Memorial de Westerbork, o material bruto de
um filme inacabado, rodado em 1944 a pedido dos nazistas e
destinado a enaltecer o campo transitório holandês. As cartelas
de texto inseridas por Harun Farocki serão o único comentário
sobre as imagens, nesse filme que ele preferiu deixar mudo.
Diferentemente de Bilder der Welt, não é mais a relação imagem-
som que fabrica, então, nossa leitura e nossa apreensão dos
arquivos, mas uma relação texto-imagem que obriga Farocki a
mostrar as imagens várias vezes. Sobretudo, a interferência entre
a imagem e o comentário depende de um antes e um depois, e
não mais de uma simultaneidade. Com efeito, ora as cartelas
designam o que acabamos de ver, para nos ajudar a observar
certos detalhes dessas imagens que, apesar da propaganda de
onde provêm, deixam transparecer alguma coisa do campo de
concentração; ora elas propõem uma interpretação das imagens
filmadas, dificilmente legíveis. As cartelas permitem re-ver o que
foi visto, fazendo dos arquivos um objeto de olhar e de leitura, de
ver e de saber.
A cena que nos interessará aqui é aquela do trabalho na
fazenda. Trata-se de uma sequência do filme na qual o cineasta
desenvolve, de maneira explícita, uma leitura dos arquivos,
interpretando-os ao extremo, a fim de mostrar a irresolução dos
planos. O material retomado por Farocki não foi apenas encomendado
pelo SS Albert Konrad Gemmeker, mas também foi filmado por
Rudolf Breslauer, um prisioneiro judeu do campo. A ambivalência
dos planos se deve, então, à “identidade da equipe de realização”
(LINDEPERG, 2009: 27). Quem sabe se Breslauer não queria
filmar para documentar o campo? Em que medida ele se submeteu
efetivamente ao protocolo de filmagem encomendado? Farocki não
faz essas perguntas diretamente às imagens. Embora ele tenha lido
inúmeros textos e documentos sobre Westerbork e complementado
seu visionamento dos arquivos com uma pesquisa documental,
Respite acaba sendo, antes de tudo, um filme que se debruça sobre
o que as imagens trazem como possibilidade de acesso ao campo de
concentração. Mesmo se os documentos ajudam Farocki nessa tarefa,
o filme procede a um movimento contrário, partindo das imagens,
em direção ao saber. Trata-se, assim, de não fazer as imagens
dizerem aquilo que não contêm. Se atendo ao material filmado de
Westerbork e apenas a ele, Farocki oferece a essas imagens do campo
de concentração transitório a ocasião de poderem, enfim, revelar sua

180 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
própria especificidade e dar acesso à história da deportação a partir
daquilo que elas registraram, mostraram, produziram, daquilo de
que elas são o vestígio.
Foi vendo os filmes de Resnais et Leiser, nos quais eles
retomam alguns planos do campo de Westerbork – principalmente
a sequência da plataforma ferroviária, “uma das únicas imagens
existentes da deportação” –, que Farocki teve a ideia de fazer de
Respite um filme mudo, tendo como única fonte as imagens de
Westerbork e, como comentário, apenas algumas cartelas pretas
de intertítulos. Farocki se insurge contra a remontagem operada
por Resnais e Leiser, que procura mostrar e fazer acreditar que
esses trens chegam em Auschwitz: “Porque esse tipo de sugestão?
Não podemos acreditar no que nos mostram, quando não há
nenhuma imagem?” (FAROCKI, 2009: 23). A retomada dessas
imagens, e somente essas, diz respeito ao poder do cinema de
mostrar e fazer imaginar aquilo que não tem nenhuma imagem.
Eu diria até mais: é considerando a potência dos arquivos que
existem e o que eles mostram que Farocki torna possível escrever
uma história dos campos a partir das raras imagens que foram
rodadas ali, das imagens lacunares de que dispomos.
A cena dos trabalhos na fazenda começa, justamente, com
uma cartela branca do filme encomendado, inacabado: “Unser
Bauernhof” (nossa fazenda).14 Enquanto cena que se inscreve 14. Mais uma vez, “a ironia
da legenda” das imagens
em uma lógica de apresentação do campo de concentração como filmadas...
pequena empresa viável, seu ponto de vista poderia simplesmente
ser atribuído ao seu mandatário, o SS Gemmeker. Mas o “nós”
da cartela introduz, de antemão, algo implícito. Na imagem,
vemos apenas detentos fazendo o trabalho da lavoura, com um
ardor particular. Dois deles, anuncia uma cartela, teriam até
“substituído um cavalo”, a fim de expor, por conta própria, sua
condição de trabalhadores e justificar sua utilidade. É aqui que
aparece a primeira tentativa de sobre-interpretação de Farocki:
“Isso só pode querer dizer: nós somos os seus animais de carga”.
Sentenciosa, a frase é completada por uma segunda cartela: “Nós
fazemos o trabalho que, normalmente, é feito pelas máquinas e
pelos animais”. Farocki arrisca, aqui, uma leitura das imagens. Ele
insinua que haveria uma convergência dos objetivos dos detentos
com os do mandatário do filme, Gemmeker (mostrar que o campo
é viável, para não fechá-lo) e, também, uma forma de “adesão” dos
filmados “à sua missão!” (ROLLET, 2011: 105). “Percebe-se bem o

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que essa […] tradução tem de provocador”, escreve Sylvie Rollet
sobre o assunto (Idem). No entanto, é ela que nos indica que as
imagens do filme de Westerbork contêm vários olhares cruzados e
difíceis de ler... Claramente exageradas, as cartelas não proferem
uma verdade; elas tentam traduzir essa impressão surda de que
os arquivos evocam, potencialmente, um espaço em que detentos
e algozes parecem não estar separados, mas envolvidos em uma
relação reveladora daquilo que Primo Levi chamou de “zona
cinza”. Aliás, é por isso que Farocki não pode parar por ali. É
preciso completar as imagens com outras traduções contraditórias,
submetê-las a um texto e uma leitura, a fim de tornar “palpável”
o que, nas tomadas, é tão inextricável. Em primeiro lugar, são
as imagens que vão resistir a essa interpretação. A esse “querer
dizer” que Farocki assinalava como unívoco (“isso só pode querer
dizer”) se opõe o conteúdo relativamente vivo dos planos que
ele utilizou. Um dos dois homens que substituem o cavalo sorri
do fundo do plano, até chegar perto da câmera. A jovem que,
pouco depois, descarrega os tijolos, sorri, igualmente, em seu
labor, como o resto do grupo. “Essas imagens em que os homens
substituem os animais como força de trabalho são, sem dúvida,
aviltantes, mas elas deixam transparecer, ao mesmo tempo, um
tom idílico”, como diz Philippe Despoix (2008: 91). E, de fato,
essas imagens, que só podiam significar uma coisa, “podem ser
lidas de outra maneira”, anuncia o filme.
Os planos retomados por Farocki revelam, doravante,
uma beleza frágil. Os corpos e os gestos, filmados em câmera
lenta e contra-plongée, fazem pensar nos filmes soviéticos que
mostram o trabalho na lavoura. A segunda interpretação proposta
por Farocki tem como efeito, justamente, apreender esse outro
aspecto dos planos rodados por Breslauer. Em câmera lenta,
é como se os “detentos semeassem terras novas. Como se eles
desenvolvessem alto que lhes fosse próprio, uma nova sociedade,
talvez”, como o comentário nos convida a crer. Com certeza, essa
versão idílica é tão inverossímil quanto a primeira, que falava da
adesão dos detentos. Mas ela convida, antes de tudo, a observar
o valor dos planos, a prestar atenção nos corpos daqueles que,
semeando batatas, descarregando tijolos, parecem convocar a
esperança. Como se, pela empatia da leitura proposta, o que era
visto como participação se tornasse, agora, uma afirmação, isto é,
a recusa, talvez, de uma reação ao confinamento do campo, uma

182 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
participação no seu mecanismo. “Como se desenvolvessem algo
que lhes fosse próprio”, diz a cartela. Por que temos dificuldade
em acreditar nisso? Essa sobre-interpretação de Farocki faz pairar
a dúvida sobre a forma como os detentos viviam no campo de
concentração transitório. Ela deixa transparecer também que,
nesse campo de concentração, podia ter lutar a afirmação de
si, mesmo a pessoa estando confinada e condenada ao trabalho
forçado. Farocki propõe não mais a adesão como modo de leitura,
mas uma resistência, apesar do confinamento.
A opção por “oferecer várias leituras possíveis do material”
(DESPOIX, 2008: 92) ou várias “traduções sucessivas” (ROLLET,
2011: 104) faz com que Respite dê conta da ambiguidade das
imagens, remetendo à ambivalência que liga detentos, filmadores
e algoz... O mais interessante é que Farocki propõe pensar em algo
como uma “zona cinza” própria ao cinema, ligada ao contexto
de filmagem e àquilo que cada um esperava do filme. Mas como
não se pode saber ao certo o que uma imagem quer dizer, tanto
mais porque o filme em questão permaneceu inacabado, Farocki
interpela as imagens e navega entre diferentes polos de sentidos,
às vezes interpretando em excesso, outras vezes reformulando
uma interpretação que parecia definitiva. Em sua observação, ele
leva constantemente em conta elementos de mise en scène que,
não se sabe, podem ter sido desejados somente pelo filmador
(o estilo russo dos planos); ele parece atento à imagem que os
filmados oferecem de si mesmos, que pode ser lida de várias
formas. Se ele põe em dúvida a atribuição das imagens, entre o
olhar nazista do mandatário e o olhar judeu do filmador, e, ainda,
o desejo dos filmados, é para não circunscrever os homens e os
arquivos a uma explicação causal e fechada. Trata-se de devolver
o passado ao seu próprio possível, às resistências dos filmados, às
contradições da história.
Essas sobre-interpretações correspondem, ainda,
ao exemplo da Berlim insurrecta de 1919, no qual Farocki
justapõe duas imagens, dizendo que elas se parecem: trata-se de
compreender que o cinema de retomada talvez não tenha o objetivo
de “ultrapassar as diferenças” ou decidir sobre o que pertence a
um olhar ou a outro, mas de tratar os arquivos “no jogo de sua
instância”, como dizia Foucault (2001: 733). Esse jogo, em Respite,
está extremamente ligado à filmagem e às condições segundo as
quais uma imagem pode documentar um olhar e um ponto de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 183


vista. Atento aos elementos da tomada, aos filmados, à superfície
da imagem, a qualquer sinal que testemunhe sobre a encomenda
(as cartelas brancas, por exemplo), tanto quanto ao valor idílico
dos planos, Harun Farocki mostra que é impossível decidir por
um único aspecto. Para isso, ele é levado a inventar uma forma de
mise en scène das imagens que interpela incessantemente o que nós
vemos. As cartelas sucessivas de Respite exigem um olhar atento
à singularidade de cada plano. Cada informação cinematográfica
visível no arquivo é uma via de acesso à complexidade oculta do
plano, rumo à complexidade da história.

Tradução do francês: Anita Leandro

* NB: Nós utilizamos os títulos REFERÊNCIAS*


originais em alemão, com
exceção de Respite, cujo Filmes
título original é o título em
inglês, uma vez que o filme L’Ambassade. Réalisation : Chris.Marker. Paris: Les films du jeudi,
foi realizado no contexto do
Jeonyu Digital Project de 2007.
1973. DVD ARTE Editions (20 min.), son., couleur.
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Historia Films, Ministère de la Culture, 1985. Edition DVD
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Wie man sieht. Auteur et Producteur: Harun Farocki. Berlin:
Harun Farocki Filmproduktion, 1986. Editions DVD Absolut
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Bilder der Welt und Inscrift des Krieges. Auteur et Producteur: Harun
Farocki. Berlin: Harun Farocki Filmproduktion, 1988. DVD
Editions Survivance (75 min.), son., couleur et noir&blanc,
legendado: français/english.
Schnittstelle, Installation vidéo double écran. Réalisation: Harun
Farocki. Production: Musée Moderne d’Art de Villeneuve
d’Ascq, Harun Farocki Filmproduktion. 2 vidéos (Beta SP),
son., couleur (23 min.)
Respite. Auteur et Producteur: Harun Farocki. Berlin: Harun
Farocki, 2007. DVD Editions Survivance (40 min.), muet,
n&b/Version en, de & fr.

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Montaigne, Bordeaux, 2014.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 164-187, JAN/JUN 2015 187


Entre
vista
190 ENTREVISTA COM HARUN FAROCKI / EDNEI DE GENARO E HERMANO CALLOU
“A máquina sempre quer algo de você”
Entrevista com Harun Farocki
Ednei de Genaro
Doutorando em Comunicação na Universidade Federal Fluminense

Hermano Callou
Mestre em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 188-201, JAN/JUN 2015 191


A entrevista a seguir aconteceu em 21 de janeiro de 2014,
no apartamento de Harun Farocki em Friedrichshain, em Berlim.
Farocki respondeu gentilmente a nossa lista de perguntas,
produzida em razão de nossas pesquisas acadêmicas (doutorado
e mestrado) sobre a obra do artista. A entrevista durou cerca de
quarenta e cinco minutos, nos quais Farocki nos surpreendeu
com a naturalidade, a simplicidade e o bom humor com que
nos respondia. Com o seu falecimento, o cineasta não pode
ver o resultado da entrevista, como havíamos combinado, nem
responder as nossas perguntas adicionais.
Nós tínhamos decidido explorar um pouco a sensibilidade e
a experiência de Farocki no que diz respeito ao papel do aparato
técnico e às estratégias políticas e estéticas relevantes em sua
obra. Como retorno, obtivemos um discurso sobre a materialidade
presente na relação entre humano e não-humano na produção
cinematográfica, que destaca o valor que o artista atribui às
imagens em si mesmas.
O cineasta sempre procurou se afastar das tentativas naturais
de demarcação de seus trabalhos por críticos e teóricos. Dada a
multiplicidade de suas ocupações e posições (crítico, cineasta,
professor, artista visual, montador, pensador), Farocki sempre
procurou desviar-se de qualquer palavra-chave que poderia
fechar sua obra em um sentido dado. Farocki filme-ensaísta?
Crítico das imagens? Arqueólogo? Em cada oportunidade, ele
preferiu manter o pensamento indeterminado ou, como ele diz
na entrevista, a “cabeça aberta”.

Ednei de Genaro e Hermano Callou (E.G. H.C.): Atualmente,


é muito comum descrever o seu trabalho como uma espécie de
arqueologia. O que você acha disso?
Harun Farocki (H.F.): Eu acho a palavra “arqueologia” um
pouco dramática. Se você for para esses arquivos totalmente
esquecidos, ligar e testar todos os materiais, ainda assim a palavra
“arqueologia” é um pouco exagerada. Para mim, arqueologia
significa quando nós encontramos culturas – como na Grécia –
das quais nós não temos nenhum conhecimento, apenas alguns
elementos testemunhando sua existência. Isso para mim é
arqueologia. Não acho que um tipo de história do cinema tende
a ser já arqueologia, especialmente agora com quase todos os
arquivos em sites como o youtube, acessíveis on-line. Então, acho
a palavra dramática. Continue, por favor.

192 ENTREVISTA COM HARUN FAROCKI / EDNEI DE GENARO E HERMANO CALLOU


E.G. H.C.: A gente gostaria de te perguntar, ainda assim, sobre a
relação entre a montagem e o teu trabalho com os arquivos. Qual
“arqueologia” se torna possível através da prática da montagem?
H.F.: Há quinze ou vinte anos na Holanda, era inteligente dizer
que os arquivos não significavam apenas alguma coisa que
deveria ser guardada, mas também alguma coisa que precisava
ser trabalhada – alguém tem que lidar com os arquivos. E existiam
cineastas que faziam filmes com old footage. Eu acho isso uma
ideia muito interessante, fazer uso do patrimônio dos arquivos.
E é isso o que eu tenho tentado fazer. Se você olhar as imagens
guardadas há cinquenta ou cem anos, talvez possa achar agora
leituras diferentes do que as pretendidas então, quando o olhar
frio do aparato estava somente gravando alguma outra coisa.
Você sabe o texto de Rancière1 sobre o filme de Chris Marker2 no 1. Farocki se refere ao
ensaio de Jacques Rancière
qual se vê o Czar e o policial e tal? Então, a câmera quer apenas
“Documentary Fiction:
gravar e ela não distingue as intenções do cineasta e o que não é Marker and the Fiction of
intenção do cineasta. Isso é de algum modo uma grande vantagem Memory”, incluído em Film
Fables, 2006 [traduzido
porque há um suplemento documental nessas imagens “frias”. para o português como “A
A montagem, em sentido amplo, pode tornar esses significados ficção documentária: Marker
e a ficção da memória” in:
acessíveis. A fábula cinematográfica.
Trad. Christian Pierre Kasper.
Campinas: Papirus, 2013]..
E.G. H.C.: Gostaríamos de perguntar agora sobre a sua concepção
da máquina, do aparato técnico. Você sabe, a ideia do olhar da 2. Farocki se refere ao filme
Elegia a Alexandre (Le
câmera como um olhar da máquina foi uma ideia muito forte tombeau d’Alexandre, Chris
no começo do cinema, com Vertov e outros. Nós acreditamos Marker, 1993)
que você é de algum modo fiel a tal ideia, de que o olhar da
câmera não é redutível ao olhar humano, que é como um olhar
não-humano. Então, como você leva em consideração tal ideia em
seu trabalho?
H.F.: Eu acho que um aspecto da questão, que eu acabei de
comentar, é que uma máquina grava qualquer coisa – qualquer
coisa que esteja dentro do frame. E não somente alguma coisa que
você pretendeu destacar. Anos depois, você pode ler um significado
diferente, que não foi intencional. Isso também pode acontecer
na pintura: as pessoas que pedem para esses pintores famosos
pintarem sua filha favorita ou noiva ou amante. Eles podem
alcançar também diferentes significados em relação àqueles que
eles intencionaram. Se você pensa no que as pessoas chamam
de câmera subjetiva... hoje em dia, em videogames, você também
tem uma câmera atrás da pessoa, do atirador, você anda pela rua
e pelo cenário e vê que estranha construção de um ponto de vista

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 188-201, JAN/JUN 2015 193


subjetivo é essa. Ela deveria ser um ponto de vista subjetivo, ela
deveria ser uma perspectiva, mas ela não é, é claro, o mesmo que
um olhar humano, porque, claro, nós não somos máquinas – nós
estamos olhando fragmentos e os estamos comparando. Estamos
fazendo um milhão de operações mentais quando olhamos para
uma imagem. O que a gente vê não são apenas cores, pontos e
luz, nossa percepção é bem mais complexa. A literatura tenta nos
descrever (tal percepção), por exemplo, no fluxo de consciência
de James Joyce.

E.G. H.C.: Hoje em dia a questão da delegação das ações humanas


para a máquina é cada vez mais real. Desde os anos 1980, pelo
menos, nós podemos ver você fazendo apontamentos abundantes
sobre isso nos seus filmes. Como você pode explicar a questão
hoje?
H.F.: A questão é: o que a palavra “delegação” significa? Deixar a
máquina trabalhar para nós não significa delegar o trabalho para a
máquina. Provavelmente delegação é um processo complexo. Para
mim, o termo “delegação” não significa muita coisa. Você pode
tentar delegar algo, mas não consegue realmente, porque depois
a máquina sempre quer algo de você. No nível mais simples, o que
pensamos primeiramente foi que quando tivéssemos o computador
nós não teríamos que trabalhar mais. Hoje com o grande interesse
que a indústria tem em produzir software, passamos dez horas
por dia na frente do computador. Hoje temos mais trabalho do
que antes. Nesse sentido, eu acho que “delegação” é uma palavra
complicada. No meu filme Imagens do mundo e inscrições da
guerra, de 1988, eu lidei com esse aspecto parcialmente. Por
um lado, mostrei o início da gravação automática e técnica da
história pela fotografia. Hoje, é claro, há vários outros meios, mas
naqueles dias, era a fotografia aérea. Na época da guerra, já havia
máquinas registrando informações históricas, mas por outro lado
temos no filme essas pessoas “fora de moda” em uma espécie de
odisseia: dois homens de Auschwitz, que tinham testemunhado
o que se passava, escaparam para contar ao mundo o que viram.
Trata-se do antigo método historiográfico, que é de certa forma a
base de nossa ideia de história.

E.G. H.C.: Sobre a questão do trabalho com arquivos digitais,


nós podemos lembrar que você trabalhou em um projeto com o
arqueólogo da mídia alemão Wolfgang Ernest. Você poderia nos

194 ENTREVISTA COM HARUN FAROCKI / EDNEI DE GENARO E HERMANO CALLOU


contar qual foi o objetivo?
H.F.: Mais de doze anos atrás, houve um congresso em Berlim,
no qual nós pedimos às pessoas para comentarem as seguintes
questões: como imagens podem comentar imagens? Como
podemos localizar imagens em arquivos sem o uso da linguagem?
Até hoje, se você tem um arquivo, você tem que ter pequenas
notas avisando “isto aqui é de Colônia”, “isto aqui é de 1919”
ou o que seja. Ter um outro meio de consulta significaria ter um
software que perguntasse: quais imagens são sobre fábricas? Nós
temos esta imagem de uma fábrica, que outras fábricas podemos
encontrar? Nós temos hoje software para isso, no Google e tal, mas
ainda não funciona como se gostaria. Ele não te ajuda realmente
como uma ferramenta. Pode te ajudar a encontrar rostos, como
na polícia, mas ainda não funciona de modo a criar uma ordem
própria. Foi sobre isso a conferência.

E.G. H.C.: Temos também uma questão sobre a mesa de


montagem. Você parece dar muita importância aos diferentes
tipos de mesa de edição. Você mesmo já falou que o seu trabalho
com o vídeo mudou a sua maneira de trabalhar com imagens, na
medida em que (na mesa de edição de vídeo) há dois monitores.
Como você reflete sobre as mudanças na mesa de montagem e
nos programas de edição? Como essas mudanças influenciam a
maneira de você fazer filmes?
H.F.: Em linhas gerais, eu acho que o desenvolvimento tecnológico
é bom, a qualidade do som e da imagem melhorou. Eu não penso
muito no aspecto negativo. Já na época em que eu trabalhava
com filme, era minha ambição não distinguir entre produção e
pós-produção. Eu começava editando logo no primeiro dia. Isso
tem se tornado cada vez mais fácil com a edição no computador.
Voltando da viagem das filmagens em Frankfurt, no trem, eu
já posso ir editando, fazendo alguns testes. Para mim isso tem
deixado tudo mais concreto, mais sobre a qualidade real da
imagem, não sobre as minhas intenções, porque você já tem
alguma coisa e você pode começar a pensar o que vai se encaixar
com ela, qual vai ser a próxima imagem. Você pode comparar
imagens de fato, comentar imagens com outras imagens, que é
uma coisa que eu amo fazer.

E.G. H.C.: Você pode falar mais sobre essa ideia de não diferenciar
produção e pós-produção? Desde quando você começou a tentar

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 188-201, JAN/JUN 2015 195


fazer isso?
H.F.: A partir principalmente dos anos 1980, em Imagens do mundo
e inscrição da guerra (1988) e em Como se vê (1986). O que eu
procurava superar era esse modelo tolo de que primeiro você tem
um roteiro e depois você tem que traduzi-lo para o filme concreto.
Isto, é claro, não é algo novo, muitos cineastas também puderam
improvisar. Godard também improvisa um pouco, Cassavetes
também. O que está em questão é improvisar um pouco mais. Se
você, tecnicamente, diz: eu começo filmando, eu edito um pouco
e daí surge a nova ideia para a próxima filmagem. Esse processo
é muito comum quando você está pintando ou escrevendo um
livro, onde você não tem primeiro um conceito e depois tem que
executá-lo. Você vai passo a passo.

E.G. H.C.: Nos seus trabalhos encontramos referências às


vanguardas estéticas. Críticos afirmam que sua forma de
montagem se aproxima da teoria do distanciamento de Brecht
e da pop art, por exemplo, mas mantém distância do método de
détournement de Debord. O que você acha disso?
H.F.: Em certo sentido, eu meu aproprio de certos elementos
pop estranhos também em meus filmes, de livros escolares
e de diferentes fontes. Em certo sentido eu trabalhei com
détournement, mas não de maneira tão forte. Mas eu também
tenho às vezes a tendência de me apropriar de materiais de fontes
distintas. Em meus filmes sobre tecnologia militar, eu cito por
exemplo propagandas em vídeo da indústria armamentista – não
é totalmente diferente.

E.G. H.C.: O gesto humano parece ser algo muito importante no


seu trabalho. Em A expressão das mãos, você tenta pensar como
o cinema procura criar uma gramática dos gestos. Você está
interessado também, por exemplo, nos gestos do trabalho, nos
seus documentários observacionais. O que você diria que está
procurando quando analisa o gesto?
H.F.: Muitas coisas. Na sintaxe cinematográfica, é muito presente
a visão do rosto. Por que o rosto? Isto é de certa forma esquisito
– digamos assim, bourgeois. Um empreendimento burguês. Se eu
tirar meus óculos, eu reconheço as pessoas que eu conheço pelo
jeito que elas andam. De alguma forma, é muito mais típico o
modo como alguém se move, como alguém se comporta. Esses

196 ENTREVISTA COM HARUN FAROCKI / EDNEI DE GENARO E HERMANO CALLOU


aspectos são interessantes. A cinematografia também os inclui,
ela também inclui os outros gestos, mas nós acabamos tendo
todas essas expressões faciais. A câmera normalmente não está
realmente focada em outros aspectos dos movimentos corporais.
O Lobo de Wall Street (Martin Scorsese, 2013) é sobretudo sobre
rostos, rostos, rostos.

E.G. H.C.: Em filmes como Doutrinamento (1987), Os criadores do


império das compras (2001) ou, recentemente, Um novo produto
(2012), você leva em conta uma estratégia de observação de
gestos e discursos no locus sensível dos capitalismos e biopoderes.
Você já falou uma vez da sua surpresa diante da facilidade de pôr
uma câmera nesses ambientes. Você poderia elaborar isso?
H.F.: Eu disse que não foi difícil conseguir uma permissão para
filmar porque eles não tinham nada a esconder. Eles não têm esse
inacreditável conhecimento científico que eles sempre fingem ter.
As regras da indústria de shoppings exigem apenas duas mãos ou
alguma coisa assim para serem contadas. Não é grande coisa. Por
isso eles constroem esse grande decorum, fingindo que fazem algo
científico. Nesse sentido, eles não têm nada a esconder, porque
eles não sabem muita coisa. Eu pesquisei bastante e sempre
pensei que seria muito difícil filmá-los, que eles teriam segredos.
Na verdade, eles não têm segredo nenhum – esse é o verdadeiro
segredo que eles tentam guardar!

E.G. H.C.: Em uma entrevista você disse que os seus filmes dos
anos 1970 e 1980 estão de certa forma politicamente obsoletos.
Nós gostaríamos de saber o que você queria dizer com isso e o que
você acha que ainda está vivo em filmes como Entre duas guerras
(1978).
H.F.: Eu só queria dizer que, ideologicamente, contar a história
da República da Alemanha do ponto de vista tecnológico
sintomaticamente é interessante, mas, claro, se você está
interessado em história, você sabe que ela não é redutível ao
determinismo tecnológico, às forças produtivas, como eu procurei
fazer. Todas as especificidades que formam a história deste século
estão de alguma forma desaparecidas. Nesse sentido, eu acho
obsoleto, porque isso revela um estranho dogmatismo, que não
tem mais nenhum valor significativo – felizmente. Existe um autor
alemão que escreveu bons livros sobre os movimentos políticos

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 188-201, JAN/JUN 2015 197


dos anos 1960 e 1970 que disse que, nos anos 1970, de tudo
que os cinco ou dez mil jovens mais inteligentes na Alemanha
escreviam e falavam dia e noite, nem uma palavra sequer tem
valor nos dias de hoje. Eu concordo mais ou menos com isso.

E.G. H.C.: Nos últimos anos, desde que começou a trabalhar


com instalações, você parece assumir uma outra abordagem
em relação ao comentário discursivo. Você está, digamos assim,
mais lacônico, não parece mais tão interessado em voz em off.
Você parece esperar ainda mais das imagens em si mesmas.
Gostaríamos de saber o que isso mudou na sua reflexão sobre
imagem e política.
H.F.: Vocês estão certos, mas há algumas exceções. Em 2003,
Reconhecer e perseguir teve muitos comentários. Mas em geral,
está certo. A série Jogos sérios (2004) é mais ou menos baseada
em um pequeno paradoxo: você tem as mesmas imagens para
se preparar para a guerra e para curar o trauma da guerra. De
alguma forma, é uma ideia muito simples. Eu gosto então de
colocar mais comentário estrutural do que o comentário falado.
A simplicidade sem simplificação é um objetivo importante. Em
galerias e museus, onde eu tenho mostrado esses trabalhos, as
coisas tendem a ser mais curtas. Eu também encontro vantagens
nisso, porque em espaços de arte as coisas podem ser mostradas
em paralelo. Eu acho vantajoso exibir em paralelo, com capítulo
1, 2, 3, etc. Eles estão todos separados e ao mesmo tempo são
um tipo de estrutura. Você tem capítulos verdadeiramente
autônomos, mas que têm uma inter-relação, que se relacionam
uns com os outros, e você não precisa mediá-los como em um
filme convencional.

E.G. H.C.: Você acredita que o ambiente da instalação contribui


para uma mudança no estilo do comentário?
H.F.: Ele contribui sim, como um tipo de montagem espacial. É
uma abordagem diferente.

E.G. H.C.: Ainda sobre o tema do espaço das artes e da


instalação: Raymond Bellour, em La Querelle des Dispositifs
(2012), escreveu que o momento de crise da sala escura, do
cinema tradicional, representa uma abertura para novos modos
e questões, especialmente em diálogos com vários campos da

198 ENTREVISTA COM HARUN FAROCKI / EDNEI DE GENARO E HERMANO CALLOU


arte contemporânea. Nesse livro, entre outros autores, Bellour
analisa você como um exemplo. Como você vê esse processo
contemporâneo de mudança?
H.F.: Bellour também falou que o estado do cinema e da televisão
hoje em dia está terrível e que, por isso, ainda há muitos bons
filmes sendo feitos pelo mundo. Uma crise pode ser também
libertadora. Uma crise pode significar que uma nova forma de
cinematografia ou uma nova forma de percepção pode aparecer.
Um pouco como nossas formas de comunicação, que estão ficando
mais complexas. Nesse sentido, há uma crise, sem dúvida, mas a
crise pode ser algo positivo.

E.G. H.C.: Queremos saber como a ideia de um filme ou uma


instalação se inicia. Você começa já com tudo na cabeça? Você
já falou aqui que procura não planejar muito, procura fazer o
trabalho de pós-produção durante a produção – há muito espaço
para surpresa então. Em Interface (1995), você fala que não
consegue mais escrever sem que tenha duas imagens na sua
frente! Gostaríamos de saber como a relação entre produção e
pós-produção, palavras e imagens, se põe em jogo durante seu
processo criativo.
H.F.: Na maior parte das vezes, quando você trabalha com
dinheiro da televisão, você tem que se inscrever e ter um projeto.
Nessa situação, claro, eu preciso inventar alguma coisa, digamos
cinco ou dez páginas. Em alguns casos eu não tenho a menor
ideia da forma que o filme vai tomar – eu finjo saber! – mas tento
manter a cabeça aberta. Eu quero manter o horizonte aberto.
Como eu consigo meus meios de sobrevivência agora de galerias
e museus, eu não posso dizer “eu preciso disso” ou o que quer que
seja, mas eu tenho que esperar por oportunidades, como alguma
exposição que me ofereça algum dinheiro para realizar alguma
ideia. Eu aprendi a manter pensamentos na minha cabeça sem
que eu saiba realmente onde eles vão dar! Assim que vejo uma
oferta de dinheiro, eu começo a tentar ajustá-los. Algumas vezes
funciona, algumas vezes não funciona tão bem. Algumas vezes
é previsível, algumas vezes não. É muito difícil, mas eu acho
muito bom não ter esse impulso idealista, “este é meu projeto,
como posso conseguir o financiamento?”, mas achar os recursos
e alguma ideia que se adeque a eles. Isso é uma coisa que muitas
pessoas fizeram na sua vida, como os pintores que tinham que

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 188-201, JAN/JUN 2015 199


esperar por um trabalho. Nesse sentido, não é muito importante
se eu escrevo na frente de duas imagens, na mesa ou o que seja.
Só é importante que a forma que o filme tome esteja baseada nas
imagens que você realmente tem e em seu próprio julgamento.

E.G. H.C.: Podemos nos referir a sua posição intelectual como


um “pensador de mídias” e descrever seu trabalho como uma
“forma de pensamento” ou uma “forma que pensa”. O que você
acha disso? Especificamente, estamos interessados nas relações
entre montagem e pensamento. Que tipo de pensamento você
está procurando na montagem ou na mídia do filme?
H.F.: Com toda modéstia, eu tento achar meios nos quais não
apenas as palavras criem as ideias ou o discurso cinematográfico,
mas que de algum modo a forma – a montagem – do filme
contribua para tal. Desta maneira, pode soar um pouco poético
ter “imagens que pensam” ou “filmes que pensam” etc, mas esta
é de fato uma das minhas ambições: achar alguma autonomia da
forma cinematográfica, pela qual você não apenas repita coisas
que já existem no papel e as traduza para a forma do filme. Eu
tento achar alguma autonomia para a forma do cinema – este é de
fato um dos meus objetivos.

E.G. H.C.: Pensamos que no seu trabalho tanto o gesto


iconoclástico quanto o gesto iconofílico estão suspensos. Você
parece achar uma espécie de terceiro caminho. Gostaríamos de
perguntar sobre a sua posição diante das “imagens do mundo”.
Como você se comporta diante delas? Como a elaboração de uma
forma de montagem ajudaria a pensá-las?
H.F.: Eu sou muito, muito idiossincrático em relação a palavras.
Eu sou às vezes fóbico das palavras – eu odeio algumas expressões,
não exatamente por causa de uma má construção, mas porque o
seu sentido está conectado a uma cadeia ruim de significados.
Acontece algo muito próximo com as imagens. Eu acho alguma
coisa, eu revelo alguma coisa, que poderia realmente ajudar o
filme, constituir um bom argumento e tal, e eu não consigo usar,
porque há essa falta de intensidade – eu não consigo descrever
exatamente o que é. Eu tento manter um certo aspecto intuitivo:
eu apenas assisto às imagens e elas devem se revelar fortes o
suficiente, senão elas precisam deixar o filme. É de certa forma
como na vida: existem as pessoas que você acaba conhecendo que

200 ENTREVISTA COM HARUN FAROCKI / EDNEI DE GENARO E HERMANO CALLOU


você não decide, mas apenas descobre depois, se vocês vão se ver
frequentemente, se vão se tornar amigos, se vão compartilhar a
vida juntos de certa forma ou se elas vão simplesmente deixar
seu horizonte. Eu lido com as imagens também dessa maneira.
Elas não precisam ser belas, nem precisam ser únicas e tal, às
vezes elas podem ser quase vulgares, mas elas precisam ter certa
tensão, aspectos interessantes, algum sentido contraditório. Isso
é o que é importante.

E.G. H.C.: Você acha que a ideia de soft montage veio com o
intuito de construir tal abordagem?
H.F.: De certa forma, essa ideia de não apenas falar “A ou
B”, mas “A e B” também. Como Deleuze falou a respeito de
Godard, as imagens não estão se excluindo umas às outras, mas
estão construindo uma relação entre elas. Isso é, de fato, uma
abordagem diferente em relação às imagens, que vai mais além
do iconoclasmo. Por um lado você tem a soft montage, porque
há a conjugação de imagens separadas, por outro lado, você tem
a inter-relação de um primeiro e um segundo filme no espaço
expositivo, o que não é exatamente uma soft montage. É mais
como uma batalha ou alguma coisa assim. É um pouco cacofônico
– eu não sei se há uma expressão equivalente para imagens, como
caco-imagens, eu não sei. Nesse sentido, a montagem pode ser
pesada em certas partes da obra.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 188-201, JAN/JUN 2015 201


Fora- d
e-campo
O que resta do tempo: ficção
e política no cinema de Elia
Suleiman

Maria Ines Dieuzeide


Doutoranda em Comunicação Social pela UFMG

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015


Resumo: Neste artigo, empreendemos uma análise do filme O que resta do tempo,
de Elia Suleiman (2009), buscando a maneira com que o diretor instaura outras
configurações para um cotidiano marcado pelo conflito israelo-palestino. No percurso
da análise, valemo-nos do pensamento de Jacques Rancière sobre a ficção como
um modo de operação de dissenso e redistribuição do sensível. A opção pelo tom
do burlesco, aliada a particulares características de enquadramento e construção
temporal, operam fissuras na ordem consensual e instauram outras possibilidades
de compreensão (ou invenção) da vida sob a ocupação israelense.
Palavras-chave: Ficção. Política. Cinema palestino. Elia Suleiman.

Abstract: In this article, we engage in an analysis of the film The time that
remains (Elia Suleiman, 2009), seeking the way the director establishes different
configurations for a life marked by the Israeli-Palestinian conflict. In the course of the
analysis, we take the thought of Jacques Rancière about fiction as a dissent mode
of operation and redistribution of the sensible. The option for the burlesque tone,
combined with particular characteristics of framework and temporal construction,
operates cracks in the consensual order and introduces other possibilities of
comprehension (or invention) of life under Israeli occupation.
Keywords: Fiction. Politics. Palestine Cinema. Elia Suleiman.

Résumé: Dans cet article, nous avons entrepris une analyse du film Le temps qu’il
reste (Elia Suleiman, 2009), en ordre de rechercher la manière dont le réalisateur
établit différentes configurations pour une vie marquée par le conflit israélo-
palestinien. Au cours de l’analyse, nous mettons à profit la pensée de Jacques
Rancière sur la fiction comme un mode de redistribution du sensible. Le choix du
ton burlesque, combiné avec des caractéristiques particulières des cadres et de la
construction temporel, provoque les fissures dans l’ordre consensuel et apporte
d’autres possibilités de compréhension (ou d’invention) de la vie sous l’occupation
israélienne.
Mots-clés: Fiction. Politique. Cinéma Palestinien. Elia Suleiman.

206 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
Neste ensaio, propomos uma análise do filme O que resta do
tempo – crônica de um presente ausente (2009), o último da trilogia
palestina do diretor Elia Suleiman, composta ainda por Intervenção
Divina (2002) e Crônica de um desaparecimento (1996). Nos três
filmes, acompanhamos o personagem Elia Suleiman – às vezes
identificado em letreiros ou em outras inscrições pelas iniciais E. S.
–, um palestino auto-exilado interpretado pelo próprio diretor, na
tentativa do retorno à terra natal. Este personagem, cuja biografia
acompanha, em alguma medida, a do homônimo criador, já estava
sendo gestado desde seu primeiro curta-metragem, Homage by
assassination (1992). Neste, filmado enquanto o diretor ainda
vivia em Nova York, pela primeira vez encontramos o personagem
E. S., um cineasta palestino em vias de realizar seu primeiro filme.
Enquanto aguarda uma entrevista a ser realizada por telefone – a
qual não se concretiza –, ele reflete sobre o exílio no seu pequeno
apartamento, onde revê imagens da família e acompanha o
desenrolar da Guerra do Golfo pela televisão.
Convocando uma forma de narrativa mais próxima do dia-
a-dia, aquela de quem escreve “do simples rés-do-chão” (CANDIDO,
1993), a trilogia palestina elabora, de maneira bastante peculiar, o
cotidiano presenciado pelo personagem interpretado por Suleiman.
Em Crônica de um desaparecimento (1996), acompanhamos pela
primeira vez o retorno de E. S. à casa dos pais. Sem se deter
em apresentações de personagens ou construções de intrigas, o
filme se desenrola em planos fixos que dão conta de pequenos
episódios e situações recorrentes, às vezes acompanhados de
brevíssimos comentários digitados em uma tela de computador.
O comentário, na maior parte das vezes, se restringe à marcação
temporal “no dia seguinte”, inscrição que ganha conotação irônica
ao indicar meramente a passagem dos dias, em uma sucessão que
não trará nenhuma novidade ou revelação. Na primeira parte,
intitulada “Nazaré – diário pessoal”, esses pequenos episódios
estão relacionados à vida da família e a um pequeno universo de
1. Desenvolvemos uma
vizinhos e amigos. Na segunda parte, “Jerusalém – diário político”,
primeira análise de Crônica
o caminho de E. S. cruza com o de uma jovem e misteriosa mulher de um desaparecimento em
que, no final do filme, será responsável por reger um complexo e trabalho apresentado no
V Encontro Anual da AIM,
louco balé de viaturas israelenses pelas ruas da cidade.1 ocorrido em maio de 2015 em
Lisboa. No presente artigo,
O segundo filme, Intervenção divina, também se estrutura desenvolvemos algumas
em duas partes, novamente centradas nas cidades de Nazaré e questões que já tinham
sido apontadas naquela
Jerusalém – mais especificamente, na barreira entre Ramalá apresentação.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 207


2. Em 29 de novembro de e Jerusalém. A primeira parte se detém no cotidiano do pai de
1947, depois do fim da
Suleiman e dos poucos vizinhos. As relações entre os personagens
Segunda Guerra Mundial,
a Organização das Nações são sempre tensas, presas em enquadramentos rígidos e em
Unidas aprova a divisão situações que beiram o absurdo. Ausente durante toda a primeira
da Palestina (então sob
administração britânica) parte, E. S. aparecerá após um colapso sofrido por seu pai,
em dois estados: um judeu quando tem início a segunda parte do filme. O personagem se
e outro árabe. Em 14 de
maio de 1948, o presidente dividirá, então, entre as idas ao hospital e os encontros furtivos
da Agência Judia para com uma namorada misteriosa e poderosa: ela consegue, com
a Palestina, David Ben-
Gurion, anuncia a fundação passo firme e olhar desafiador, derrubar o posto de controle de
do Estado de Israel. Os fronteira com seu simples caminhar; no final do filme, se revelará
palestinos, com o apoio
de países árabes vizinhos, guerreira ninja, com poderes de super-herói capaz de dar fim a
não reconhecem o novo um grupo de soldados israelenses em treinamento. Aqui também
país e tem início a chamada
Guerra de Independência
alguns comentários pontuarão a estrutura do filme, dessa vez
de Israel, que os palestinos escritos em pequenos post-its que o personagem cola nas paredes,
denominam Nakba, a
terminando com a breve anotação “papai morreu”.
primeira de uma série de
conflitos entre árabes e
israelenses. A guerra termina
O que resta do tempo – crônica de um presente ausente,
em 1949. Israel não só vence, filme sobre o qual nos debruçaremos nesta análise, elabora uma
como consegue a ampliação espécie de flashback emoldurado pela chegada de Suleiman à
do Estado judeu.
casa agora habitada unicamente pela mãe, numa viagem de táxi
3. A Guerra dos Seis Dias
do aeroporto à cidade de Nazaré, percurso interrompido por uma
(1967) consistiu em um
conflito armado entre Israel grande tempestade. Entre o início da tempestade e a calmaria
e uma liga de países árabes: desenrola-se a história da ocupação palestina, desde a criação do
Egito, Jordânia e Síria,
apoiados pelo Iraque, Kuwait, Estado de Israel até os dias de hoje. Dividido meio frouxamente
Arábia Saudita, Argélia e em quatro partes, o filme desfila episódios importantes da
Sudão. Israel sai vencedor,
ampliando a ocupação para a história do lugar, contados por meio de acontecimentos vividos,
Cisjordânia, o setor oriental na primeira parte, pelo pai do personagem, e depois por Elia
de Jerusalém e as Colinas de
Golã, na Síria. criança, adolescente e finalmente adulto, sempre calcados na
banalidade de situações cotidianas da família e dos absurdos a que
4. Nasser foi Presidente da
República do Egito de 1954 são submetidos pela repressão israelense. Com grandes elipses
até sua morte, em 1970. demarcadas por alguns segundos de tela preta, em O que resta
Participou do movimento
que aboliu a monarquia
do tempo sublinha-se a fundação do Estado de Israel em 19482 e
no Egito e promoveu o a resistência palestina, que leva à prisão de Fuad (pai de Elia); a
pan-arabismo (política de
infância do diretor, marcada pelo recrudescimento da ocupação
reunião dos países árabes
em uma grande comunidade israelense após a Guerra dos Seis Dias3 e pontuada, no filme, pela
de interesses). morte de Gamal Abdel Nasser em 1970;4 a juventude, correndo
5. A Intifada é um levante ao lado da Primeira Intifada Palestina,5 quando Elia é associado
espontâneo da população aos manifestantes árabes e aconselhado a deixar o país; e os dias
da Palestina, armada com
pedras e paus, contra a atuais, quando Suleiman visita sua mãe durante as festas de fim
presença israelense nos de ano. Nesse último segmento, o personagem transitará entre
territórios ocupados. A
Primeira Intifada, à qual o Nazaré – a casa materna, agora sob os cuidados de um vizinho

208 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
policial e uma empregada asiática – e Ramalá – onde presencia filme faz referência nesse
momento, se dá no fim da
a atual resistência árabe. Por fim, temos uma espécie de posfácio
década de 1980, e a Segunda
em que o personagem retorna outra vez à casa da família, agora se passa nos anos 2000.
para testemunhar os últimos momentos de vida de sua mãe.
Para efeitos de análise do filme, enumeramos e
contextualizamos os episódios essenciais que pontuam a narrativa.
Eles não são, no entanto, de modo algum explicados pelo diretor, mas
apenas apreendidos de passagem – uma notícia vista na televisão
(a morte de Gamal Abdel Nasser) ou um acordo caricatamente
assinado e “imortalizado” em fotografia (o acordo entre as forças
militares israelenses e o governo de Nazaré em 1948). Como
os filmes anteriores, O que resta do tempo valoriza as pequenas
situações cotidianas, caracterizando-se por uma estrutura baseada
na fragmentação e repetição de episódios, mediada por múltiplas
referências e citações a outros filmes ou gêneros cinematográficos,
aproximando-se especialmente do burlesco. Assim como outros
diretores da tradição burlesca (Jacques Tati e Buster Keaton, por
exemplo, são referências confessas), o diretor cria para si um
personagem com quem partilha não só o corpo, mas também o
nome, a profissão, alguns episódios biográficos. Nos três filmes,
E. S. é um personagem interpelado pelas situações cotidianas,
sem a elas reagir. Sua figura impotente parece apenas observar
os episódios, a partir de uma distância (não só espacial, mas
encarnada em sua postura/atuação) que o coloca num lugar quase
à parte, deslocado, como se não fosse mais possível a integração
ao cotidiano para alguém que retorna do exílio. Parece-nos que
a experiência de exílio e retorno é fundamental na elaboração da
obra de Suleiman e, tal como equacionada nos filmes, permite um
olhar distanciado, mas não desimplicado, dirigido ao presente.
Assim, se fazem necessárias algumas palavras acerca 6. Edward Said escreveu
vários textos sobre a cruzada
do exílio palestino antes de continuarmos. Suleiman nasceu na empreendida pelo sionismo
década de 1960 na cidade de Nazaré, território que desde 1948 para apagar da região da
Palestina a existência
pertence a Israel. Ali, o árabe-palestino vive numa condição que do povo palestino. É de
o pensador Edward Said (2012: 118) chamou de “exílio interno”: seus textos (ademais do
subtítulo do filme que aqui
“ganhou o status jurídico de um indivíduo menos real do que analisamos) que tomamos a
qualquer um que pertencesse ao ‘povo judeu’”. Ainda que o diretor expressão de uma “presença
ausente”, que se refere à
efetivamente tenha saído do país na década de 1980, vivendo
condição dos palestinos
entre Estados Unidos (onde começou sua carreira de cineasta) vivendo sob a ocupação
e Europa, a “presença ausente” comum aos árabes habitantes de israelense, desprovidos de
direitos básicos como o da
Israel faz do exílio algo bastante peculiar ao povo palestino.6 própria terra.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 209


Vivendo já há mais de seis décadas sob o jugo israelense,
desde a expulsão de suas terras em 1948, os palestinos assistem a
uma repetição farsesca do jogo político internacional, marcada por
sucessivas incursões do exército israelense em territórios palestinos
(Gaza e Cisjordânia). Essas incursões terminam com um cessar
fogo sempre provisório, quando a situação volta ao “normal”: o
território e a população palestina são controlados e bloqueados
pelo governo israelense, que lhes nega o direito de viver em um
estado viável e soberano nas terras que historicamente foram suas.
Idelber Avelar destaca, nesse contexto, as “inúmeras distorções,
falsificações, encobrimentos de indícios de limpeza étnica e uma
massiva e poderosa campanha de propaganda do estado sionista”
(AVELAR, 2009) que atravessa a história palestina.
Edward Said, no ensaio “Entre mundos”, no qual reflete
sobre seu trabalho de escritor, ressalta a necessidade constante de
afirmar a existência de sua própria história:

“Não existem palestinos”, disse Golda Meir em 1969, e isso


estabeleceu para mim e muitos outros o desafio algo absurdo
de refutá-la, de começar a articular uma história de perda e
expropriação que tinha de ser deslindada, minuto a minuto,
palavra por palavra, polegada por polegada, da verdadeira
história da criação, da existência e das realizações de Israel. Eu
trabalhava quase que inteiramente com elementos negativos,
com a não-existência, a não-história que eu precisava de
algum modo tornar visível apesar das oclusões, representações
erradas e negações (SAID, 2003: 310).

O povo palestino não é só marcado pela invisibilidade


política e histórica, mas também pela privação do território: além
dos milhares de mortos, dois terços da população foram expulsos de
suas terras no Nakba, o grande desastre para os palestinos, também
chamado de Guerra de Independência de Israel, em 1948. Além da
expulsão, todas as propriedades foram tomadas e, de acordo com
Said (2003: 291), “eles deixaram de existir como povo”:

[…] fizeram com que não existíssemos lá, nos tornaram


invisíveis, e a maioria de nós foi expulsa e rotulada como não-
povo; uns poucos ficaram dentro de Israel e foram chamados
juridicamente de “não-judeus”, em vez de “palestinos”. O
resto deixou de existir oficialmente, e a maioria, que fugiu

210 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
para o mundo árabe, foi confinada em campos de refugiados;
aprovaram-se leis odiosas para eles, que se tornaram refugiados
sem pátria. No mundo árabe e na esfera internacional, nossa
história e nossa existência nacional não foram reconhecidas
ou foram tratadas como uma questão local. (SAID, 2003: 292)

A questão palestina tem múltiplas facetas e complicadores.


O que aqui nos interessa é refletir sobre as formas encontradas para
a organização e narração dessa história e da experiência presente,
as ficções possíveis para a configuração dessas vidas marcadas
pelo exílio – e o exílio em dupla perspectiva, como mostramos: ele
não se restringe aos que foram obrigados a sair e oficialmente não
têm para onde retornar, mas se estende também aos que ficaram,
expatriados em sua própria terra. Como organizar narrativamente
o tempo, uma vez que o espaço foi suprimido?
Em O que resta do tempo, parece-nos que, ao retratar a
zona de conflitos entre palestinos e israelenses, o diretor busca na
coreografia da banalidade absurda do cotidiano os elementos que
podem dizer algo sobre o mundo que o cerca. Ao refletir sobre
a obra elaborada pelo cineasta, encontramos nas relações entre
política e ficção estabelecidas pelo filósofo Jacques Rancière um
caminho para nos aproximarmos de um cinema que, ao colocar em
cena um cotidiano violentamente controlado, inventa maneiras
de romper com “a lógica do consenso que submete previamente
as imagens a seu sentido” (RANCIÈRE, 2013: 14).

Política, arte, ficção


Num primeiro momento, parece-nos importante delinear
um contorno para os termos com os quais estamos lidando. Jacques
Rancière trabalha a noção de política como algo que opera no
campo da “partilha do sensível”. Traçaremos um percurso que nos
leva da ideia da partilha do sensível para a definição de política
que daí decorre, compreendendo como a arte trabalha enquanto
reconfiguração do sensível – nesse caso, inseparável da dimensão
política, como veremos – e qual a reflexão sobre a ficção que se
instaura com isso.
Rancière parte de uma reformulação do conceito
de política. Para o autor, a política não tem a ver, como
frequentemente associamos, com os processos de consentimento

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 211


ou consenso, com a organização dos poderes e a gestão das
populações, que distribuem lugares e funções, e os sistemas
que legitimam essa distribuição – para isso, o autor guarda o
termo polícia. A palavra política é reservada para o conjunto
de atividades que vêm justamente perturbar essa ordem, essa
distribuição de espaços. A política opera pelo dissenso “no
sentido mais originário do termo: uma perturbação no sensível,
uma modificação singular do que é visível, dizível, contável”
(RANCIÈRE, 2006: 372).
A política se configura no campo da “aparência”, do que
aparece. O que está em jogo é a partilha do sensível, o que “faz ver
quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do
tempo e do espaço em que essa atividade se exerce” (RANCIÈRE,
2009: 16). A política é o que instaura mas também reconfigura
o sensível, e opera no âmbito do dissenso, de um confronto que,
mais do que disputa de pontos de vista, se define como “um
conflito sobre a constituição mesma do mundo comum, sobre
o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos dos que nele falam
para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele são
designados” (RANCIÈRE, 2006: 374).
Ao compreender que a política se dá no campo do
sensível, nas determinações sobre o que se dá ou não a ver, o
autor identifica uma dimensão estética na base da atividade
política, e vincula-a à arte: ambas são operações que caminham
em movimentos afins. As práticas artísticas são processos que
intervêm na distribuição geral das formas de visibilidade, que
configuram outras formas, que podem subverter ou desconstruir
os modos estabelecidos de ver e de pensar o mundo visível,
consensual. Assim, a relação entre arte e política vai muito além
de uma “representação” de estruturas sociais ou de conflitos, de
uma mensagem mobilizadora ou conscientizadora do público. A
arte é política na medida em que configura modos de perceber
ou de sentir espaços e tempos, e altera ou determina maneiras
de habitar esse espaço-tempo. “Ela é política enquanto recorta
um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto
os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que
ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência
específica, em conformidade ou em ruptura com outras”
(RANCIÈRE, 2010: 46).

212 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
É a partir dessa concepção de arte e política que
a noção de ficção é definida pelo autor. Não se trata, de
maneira nenhuma, de uma divisão entre gêneros – a ficção
como o oposto ao documental, ou a ficção como o fabular, em
oposição ao real –, mas de uma possibilidade de configuração e
distribuição do sensível. A ficção diria respeito aos “rearranjos
materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que
se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer”
(RANCIÈRE, 2009: 59).
A ficção, entendida como construção do espaço que
abriga o que pode ser dito ou visto, é o que configura as diversas
apreensões do real, não sendo privilégio ou exclusividade das
artes. Não há real em si, mas maneiras como os objetos de nossas
percepções são configurados, por meio de ficções. E há inclusive
a ficção dominante, aquela que constrói consensos, evitando se
deixar apreender como ficção, fazendo-se passar pela realidade.
Assim, o trabalho da ficção, seja ela a da ação política ou a da
forma artística, é de fraturar, de imprimir fissuras no consenso,
desenhando outras paisagens do visível.
O que nos importa pensar são os modos como os artistas
ou as obras concedem sentido ao que antes não era visto, como
eles mudam os referenciais daquilo que pode ser visível e
enunciável. O que nos desperta interesse são os modos como a
arte – o cinema, neste caso – mostra de outro jeito, correlaciona
o que aparentemente não tem relação, produz rupturas
no aparente. Para Rancière, é neste sentido que devemos
compreender a ficção:

Ficção [...] é o trabalho que realiza dissensos, que muda os


modos de apresentação sensível e as formas de enunciação,
mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações
novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o
visível e sua significação. Esse trabalho muda as coordenadas
do representável; muda nossa percepção dos acontecimentos
sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o
modo como nosso mundo é povoado de acontecimentos e
figuras. (RANCIÈRE, 2012b: 64-65)

É em diálogo com esses conceitos que abordamos a obra


de Elia Suleiman.

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A ficção de um “presente ausente” – os quadros, o espaço, a
encenação
Na reflexão sobre O que resta do tempo, gostaríamos
de nos ocupar, num primeiro momento, com o trabalho de
reconfiguração do espaço em que se colocam palestinos e
israelenses em conflito, observados a partir da distância que
mencionamos na apresentação da trilogia. No filme, predomina
um distanciamento vinculado, pela imagem, ao personagem/
diretor, que tudo observa sem nunca pronunciar uma palavra.
De modo recorrente, podemos vê-lo olhando o que se passa
na cidade através de janelas, varandas ou sentado na calçada,
uma postura observativa traduzida pela imobilidade do olhar: o
uso frequente da câmera fixa e o enquadramento mais aberto,
próximo ao ângulo natural da percepção humana. A distância,
no entanto, não é apenas física, relacionada ao personagem, mas
é acentuada também pelas múltiplas mediações propostas pelos
recursos cinematográficos (destacadamente aqueles herdeiros
do burlesco), que desnaturalizam – e “estranham” – o cotidiano
marcado pela ocupação militar.
Em uma das sequências que se passam na juventude
de Suleiman acompanhamos uma “disputa” entre médicos e
soldados por um paciente, num comprido corredor de hospital.
A cena decorre em um longo plano aberto, bloqueado pela série
de batentes das janelas do corredor, pelo qual passam médicos
com a maca, correndo para um lado, seguidos de soldados; após
uma pausa, voltam os soldados com a maca, seguidos pelos
médicos, que recuperam o paciente. A situação repete-se algumas
vezes, até que os médicos sejam violentamente reprimidos pelas
armas dos soldados, que “ganham” a disputa. Ainda que trágica,
a cena ilustra a dimensão cômica da encenação do filme, filiada
ao burlesco, que trabalha com corpos e objetos no espaço da
cena para subverter e contestar os ordenamentos e as regras.
Mesmo que os soldados tenham saído “vitoriosos”, esta exposição
dos modos de funcionamento da ordem vigente ressalta a sua
dimensão risível, ridícula, desmontando-a.
Lembremos aqui das reflexões de Henri Bergson acerca do
cômico, desenvolvidas no livro O riso – Ensaio sobre a significação
da comicidade (2001). O autor reflete sobre o desenho caricato, o
teatro e a comédia dos palhaços e bufões, tradição que chegará ao

214 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
cinema burlesco. Neste ensaio, o autor destaca como risível aquilo
que mostra a rigidez mecânica no lugar da maleabilidade e da
flexibilidade de uma pessoa viva. A comicidade, para o autor, viria
de certo desvio da naturalidade da vida, do imbricamento entre
a vida e o mecânico, o corpo e a coisa: “A comicidade é esse lado
da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, aspecto dos
acontecimentos humanos que, em virtude de sua rigidez de um
tipo particular, imita o mecanismo puro e simples, o automatismo,
enfim o movimento sem a vida” (BERGSON, 2001: 64-65). É por
isso que a repetição é recurso frequente na comédia: a vida não
deveria repetir-se; nas situações de repetição, pressentimos o
mecânico, o automático, funcionando por trás do vivo.
A “mecanicidade” dos personagens de O que resta do
tempo é ressaltada por uma encenação bastante elaborada,
impressa nas pequenas ações cotidianas dos personagens. Nos
quadros fixos, o filme desenvolve arranjos gráficos utilizando
elementos cênicos e figurantes geometricamente posicionados,
em composições bastante equilibradas, em meio aos quais a
ação principal irá se desenrolar em movimentos coreografados:
no ambiente íntimo da casa, por exemplo, durante a infância de
Elia, todos levam a xícara à boca ao mesmo tempo, com trocas
marcadas de olhares. Esse automatismo dos corpos, ao mesmo
tempo em que insere toques sutis de comicidade, ressalta a
“feitura” do filme, a ficção como o espaço de reelaboração do
vivido. O componente cômico é, em outras sequências, reforçado
também pela postura de “observador distanciado” assumida pelo
personagem, que estranha o cotidiano e consegue perceber ali
a incongruência de uma situação considerada “normal”, o que
acentua nos outros personagens a inconsciência do automatismo
de suas ações.
No último segmento do filme, acompanhamos o
personagem Elia melancólico e observador na grande cidade
ocupada, Ramalá. A sequência começa ainda no hotel, com o
plano fechado no rosto do personagem que dorme. O ambiente
está completamente silencioso, até que irrompem sons de gritos,
tiros, correria, que despertam o personagem. Ao se aproximar da
janela, Suleiman vê manifestantes em confronto com soldados
israelenses. O personagem volta para a cama, e o barulho do
confronto é subitamente interrompido; em meio ao silêncio, só
ouvimos um rangido de rodinhas. Elia se aproxima da janela de

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 215


novo e vê que o som é de um carrinho de bebê, levado por uma
mulher que desafia os soldados. Assim que ela passa, o confronto
continua. Na cena seguinte, Elia sai do hotel e, por sobre um
muro, acompanha com o olhar um morador que sai de casa para
colocar o lixo na rua. O telefone do homem toca, e ele começa
uma conversa banal, caminhando distraidamente de uma calçada
a outra. Atrás dele, um tanque de guerra, desproporcional para
aquela cena tão pacata, persegue com sua mira o indiferente
morador, até que ele volte para casa, sempre ignorando o grande
canhão. Tudo é filmado em um plano aberto lateral, intercalado
por alguns planos frontais do rosto de Suleiman, escondido atrás
do muro. O som exagerado que ouvimos na cena – o ruído do
giro da mira, mais alto até que a voz do morador – acentua os
movimentos da máquina, e torna mais notável a indiferença do
homem que fala ao telefone. Quando o morador entra novamente
em casa, a mira do tanque varre a rua até apontar diretamente
para a câmera – parece apontar para Elia, mas também nos
mira, espectadores. Sobre o som ambiente da rua, soam rajadas
que poderiam ser disparos dos policiais que dispersavam os
manifestantes na cena anterior. Mas o corte nos leva para uma
casa/boate durante a noite, e a música eletrônica que anima a
festa é o que sintetiza aquelas batidas/disparos. A casa, vista do
exterior, cercada por vidraças, abriga vários jovens dançando.
Um carro do exército se aproxima, avisando, em vão, do toque
de recolher. Parados ali, sem conseguir acabar com a festa, os
soldados são envolvidos pelo ritmo da música, balançando a
cabeça enquanto continuam anunciando o toque de recolher.
A sequência, parece-nos, poderia dialogar diretamente
com a ideia de política proposta por Jacques Rancière: aquilo
que desestabiliza a ordem, a “distribuição sensível dos corpos em
comunidade” (RANCIÈRE, 2006: 372). Suleiman coloca em jogo
esse sistema policial, figurado nos corpos autômatos dos homens
fardados. Aqueles jovens árabes impedidos de uma vida comum
nos territórios israelenses ignoram a ordem estabelecida, criando
maneiras de ocupar seus espaços. O diretor, ao escancarar na cena
o componente absurdo do funcionamento da repressão, quebra
a ordenação do mundo instaurado, oferecendo a possibilidade
de novas compreensões ou novas configurações do visível/
dizível. Parece haver uma preocupação em colocar o “inimigo”
em cena, mas deslocado de sua aparição recorrente: os soldados

216 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
israelenses aparecem sob um modo derrisório, diminuídos em seu
poder, personagens que, na figuração do cotidiano proposta por
Suleiman, não são muito mais do que corpos que fazem funcionar
a máquina da ocupação, inconscientes de seus gestos.
De acordo com Bazin (1991: 64), “se o burlesco triunfou
antes de Griffith e da montagem, foi porque a maioria das gags
dependia de uma comicidade do espaço, da relação do homem
com os objetos e com o mundo exterior”. Com Suleiman, como
tentamos mostrar, a comicidade passa, em grande medida, pela
coreografia dos gestos, numa relação particular com os espaços
e os objetos em cena. Parece-nos que esta é uma das estratégias
de instauração do dissenso, que contribui, quase sempre, para
propor outra visibilidade aos que vivem sob o conflito. Pela
via da encenação burlesca, os opressores são destituídos do
poder com que oprimem os palestinos. Quando Fuad foge
pela cidade, no início do filme, observamos com ele, de longe,
homens fardados em um pequeno beco, saqueando uma casa.
Um deles traz um gramofone e coloca para tocar uma valsinha,
que servirá como base para que dois soldados desenvolvam
passos de uma dança patética, enquanto dobram juntos um
grande lençol branco.
Em diálogo com a encenação burlesca, marcada
pela repetição de acontecimentos e atuações rigidamente
coreografadas, é preciso atentarmo-nos para o espaço
enquadrado pela câmera. Naquela sequência do hospital
descrita anteriormente, mais uma característica importante
do filme se destaca: a vinculação ambígua do enquadramento
ao ponto de vista do personagem de Suleiman. Após vermos
os soldados levarem o paciente, um corte nos leva ao quarto
onde Fuad é atendido, acompanhado por Elia, que olha para
fora por uma janela, estabelecendo uma ligação entre ponto de
vista da câmera e ponto de vista do personagem. Essa ligação,
que muitas vezes aparece clara, por vezes nos engana: é o caso
da cena em que Fuad dirige sozinho pela estrada, que está
bloqueada por um caminhão tombado, carregado de armas
israelenses. A sequência se desenvolve em plano fixos nos quais
a câmera, ora olhando para Fuad, ora olhando para o caminhão,
permanece ostensivamente presa ao banco do carona, sugerindo
uma presença ao lado do motorista que, no entanto, não se
concretiza no corpo de nenhum personagem.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 217


Acreditamos que as escolhas bem marcadas do ponto de
vista da câmera, assim como os modos de enquadrar essas vistas
em planos fixos, contribui para ressaltar não só a imobilidade
e a impotência do personagem principal (e, talvez, a nossa,
espectadores), mas se relaciona também com a aposta no
cinema como possibilidade de construir, ou restituir, um espaço
e uma imagem aos palestinos, uma resposta ao processo de
desterritorialização sofrido por eles. Lembremos, por exemplo,
dos interiores das casas palestinas que aparecem na primeira
parte de O que resta do tempo: simétricos, amplos, iluminados,
decorados, e que afirmam uma existência violentamente apagada
pela ocupação israelense.
Por outro lado, o diretor propõe intervenções fantasiosas
sobre a realidade, que também dizem respeito aos modos de
ocupação do espaço. No último segmento do filme, temos a
emblemática cena em que Suleiman, adulto, na cidade de Ramalá,
munido de uma vara para salto em altura, tenta transpor o muro
que faz a divisão entre as regiões árabe e israelense (e com
esse gesto coloca em jogo, simbolicamente, as ideias de nação,
território, bloqueio). Qual o lugar de um povo sem território?
Como dar lugar a essa gente?
Os interiores das casas somam grande parte do filme,
fazendo com que os corpos, que obedecem a uma gestualidade
quase autômata, não tenham amplo espaço de ação e
movimentação. A mise-en-scène é precisa, com o espaço cênico
arquitetado para manter os personagens restritos a determinados
cômodos, muitas vezes reenquadrados por móveis, portas ou
janelas. Quando Suleiman reencontra sua mãe, já velhinha, na
casa agora habitada por uma empregada asiática e seu marido
policial israelense (ambos cuidadores da senhora), ele a observa
na varanda. Ainda ocupando o mesmo espaço da juventude,
a mulher não mais escreve cartas, simplesmente fica ali. Em
diferentes momentos do dia, a velha senhora aparece no centro
do plano, enquadrada pela janela da casa, sentada à mesa, de
perfil, com a cidade ao fundo. Seu olhar está perdido no vazio.
Na noite de ano novo, os fogos de artifício colorem o céu com as
cores da bandeira palestina. A empregada corre para ver, e impele
a mãe de Elia a que olhe também. Mas, uma vez mais, a mulher
desloca seu olhar para o vazio. Ainda que a cidade esteja ali, é
como se não houvesse horizonte para aquele olhar.

218 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
Nos espaços externos, o que vemos é uma cidade quase
esvaziada de corpos. Não há outras presenças que não aquelas
estritamente necessárias. Além de vazia, a cidade é um espaço não
demarcado: há esquinas, ladeiras, escadas, mas não se apreende, em
sua totalidade, a configuração do lugar. Voltemos ao início de O que
resta do tempo: a primeira cena do filme, depois do crédito do título,
mostra um soldado caminhando por uma pequena rua, num plano
frontal. Um corte nos mostra um grupo de civis armados sentados
em mesas distribuídas na calçada. O plano é também frontal, e eles
acompanham com os olhos o soldado que passa. Novamente, há um
corte para o soldado. Estabelece-se um diálogo entre os civis e o
soldado, num esquema de plano e contraplano que, no entanto, não
se dá sobre o mesmo eixo: a câmera varia entre um plano frontal da
rua e um plano frontal da calçada, formando um ângulo de 90º entre
elas. O soldado procura por uma cidade, os civis lhe dão a direção
apontando com o braço. O soldado se põe a caminhar, e os civis o
enviam para outro lugar. Esse jogo de plano e contraplano com eixo
variado e deslocamento das direções – dos braços que apontam e
da marcha do soldado – faz imperar a confusão espacial, dando a
ver o espaço desconfigurado do filme, ao mesmo tempo em que se
distancia da solução mais recorrente no cinema clássico – o plano/
contraplano sobre o mesmo eixo. Por fim, o soldado senta-se à mesa
com os civis, já não havendo mais lugar para onde ir.

A narração dos restos: os giros do tempo


Em O que resta do tempo, Elia, criança, leva para casa
diversas vezes um prato de lentilhas oferecido pela tia Olga, mas
que vai direto para o lixo. A tia, por não enxergar direito, sempre
confunde os personagens na televisão com membros da própria
família. Ao longo da infância e juventude de Elia, vemos por três
vezes seu pai e um amigo serem interrompidos durante a pescaria
noturna por guardas israelenses que, sem saírem do jipe em que
fazem a ronda, apontam uma luz forte e fazem bobas perguntas
de rotina: enquanto querem saber de onde são e se levam seus
documentos, perguntam também se não sentem frio, se os peixes
estão fisgando ou se em Nazaré não tem mar.
Ainda que acompanhemos o crescimento de Elia, temos
a sensação de imutabilidade do cotidiano, de imobilidade,
reforçada também pela repetição de enquadramentos. A mãe,

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 219


na varanda, sentada à pequena mesa em que lê ou escreve, é
mostrada recorrentemente sempre no mesmo ângulo, como se
nada mudasse. Elia, em sua juventude, observa pela janela do
quarto o confronto entre palestinos e israelenses, e a cena se repete
no quarto do hotel em Ramalá, com o personagem já adulto.
Ressaltando a pouca transformação pela qual passa o mundo
retratado pelo filme, a repetição vai além daquilo que sucede a
um mesmo personagem, parecendo ser geracional: no início do
filme, presenciamos Fuad, sentado com companheiros armados
na calçada de um café, esperando o que virá após a rendição de
Nazaré; no fim do filme, é Elia e seus amigos que ocupam aquela
mesma calçada, agora esperando não se sabe o quê.
Se, como dissemos, a repetição dos gestos contribui para
a instauração da comicidade, a repetição das situações, com
mínimas modificações, nos prende a um presente que não acena
com possibilidades de futuro. No desenrolar da coreografia das
banalidades, os personagens parecem presos em um “presente
ausente”. O que há é o retorno constante aos mesmos gestos, às
mesmas situações, numa estrutura quase cíclica. Essa elaboração
temporal tem íntima relação com o contexto social e político
sobre o qual o filme se detém: a repetição farsesca das ofensivas
militares e dos acordos internacionais que mantêm a terra e os
palestinos sob ocupação israelense, tal como destacou Idelber
Avelar (2009).
Ao mesmo tempo, as descontinuidades da montagem
criam uma construção temporal singular que, por meio da ficção,
dá forma a uma experiência da vida sob a ocupação israelense,
experiência marcada pela violência, pelo apagamento da história,
pelo exílio, e que por isso não pode ser totalizante, consensual,
conclusiva. A figura do personagem encarnado por Suleiman
é sempre a de alguém deslocado, distante, impotente, que
observa os acontecimentos, o cotidiano. Mas, se o personagem é
impotente, o filme, de seu lado, se vale dos recursos da ficção para
estabelecer uma possibilidade de retorno ao vivido para reformulá-
lo, reapresentá-lo sob novas formas, novas configurações, guiado
por outra temporalidade.
Suleiman parece optar por um controle da cena, do
plano, da montagem, não para organizar o desestruturado, e
sim para ressaltar o estatuto aleatório, absurdo, irracional do
mundo. O diretor coloca em cena a experiência da vida sob a

220 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
ocupação israelense, e a forma cinematográfica possível para essa
vida parece passar, pelo que vemos em O que resta do tempo, pela
encenação coreografada e pelo cotidiano desnaturalizado; pela
construção do espaço no quadro, que confina e complexifica as
relações entre corpo e espaço; e pela fragmentação dos episódios,
que instaura uma temporalidade difusa. O que temos no filme
é uma suspensão da continuidade temporal, que dá lugar à
rememoração da história. Ainda que o filme siga uma cronologia
que remete aos marcos importantes da ocupação e da resistência
palestina, as partes que o compõem estão estruturadas em
episódios que quebram a sucessão dos acontecimentos, e impõem
uma temporalidade mais confusa. Isso fica mais evidente se
pensamos, por exemplo, nas cartas escritas pela mãe à cunhada
na abertura da segunda e da terceira partes: ao narrar situações
cotidianas, as cartas antecipam alguns acontecimentos da vida da
família, e a montagem que o filme faz, em seguida, retorna com os
episódios contados, numa sucessão que embaralha a progressão
natural dos fatos narrados. Quando ela conta da tentativa de
suicídio do vizinho, por exemplo, um som interrompe a escrita da
carta, um corte nos mostra a vizinha que chega à porta pedindo
ajuda, e ao voltarmos para a cozinha onde a mãe escrevia, já
estamos em outro tempo.
Esses sutis jogos de montagem, câmera, corpo e espaço
traduzem uma outra apreensão do lugar e do tempo. Como
ressaltam Ângela Prysthon e Marcelo Pedroso (2013: 482), há
neste cinema uma militância que

[…] guarda talvez a faculdade de atenuar temporariamente,


no campo do sensível, o pesar da violência, da morte, da dor
que atravessa décadas de conflito, mas que talvez justamente
por trazer essa aparente – e falsa – leveza, consegue repor em
jogo o peso de tal fardo histórico, contribuindo para introduzir
novas perspectivas de entendimento do estado das coisas.

Julgamos que em O que resta do tempo a elaboração


de uma narrativa fragmentada e descentrada, com o controle
rigoroso da mise-en-scène e da construção temporal, é um modo
de afirmar o cinema como lugar de criação, de reinvenção ou
de desnaturalização dos sentidos e das ficções construídas pelo
poder. Se há aqui um forte componente político, no sentido

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 221


mais tradicional do termo, uma vez que trata-se de um cinema
realizado em uma região de conflito, de disputa por território
e autonomia, não há, por outro lado, um tratamento usual do
tema. Como nos lembra Jacques Rancière, o que está em jogo é
a maneira como o cineasta trabalha com a ficção e com os dois
significados da palavra política que a caracterizam:

[…] a política como aquilo de que trata um filme – a história


de um movimento ou de um conflito, a revelação de uma
situação de sofrimento ou de injustiça – e a política como
estratégia própria de uma operação artística, vale dizer, um
modo de acelerar ou de retardar o tempo, de reduzir ou de
ampliar o espaço, de fazer coincidir ou não coincidir o olhar
e a ação, de encadear ou não encadear o antes e o depois, o
dentro e o fora. (RANCIÈRE, 2012a: 121)

Suleiman opta por um caminho que se esquiva das formas


imagéticas e narrativas recorrentes. O filme se revela político não
só porque retrata a vida sob a ocupação, mas porque se vale das
operações de ficção para recolocar no jogo essa vida, deslocando
a ordem policial por meio das operações do burlesco, da repetição
e do trabalho de reconfiguração do espaço e do tempo. Nas
condições do exílio constituintes do povo palestino, como narrar,
tematizar, construir imagens para um retorno que é sempre
incompleto? Lembremos que, já no início do filme, essa questão
surge: quando o taxista se perde na tempestade e não consegue
estabelecer contato pelo rádio, ele se pergunta, repetidamente:
“Que faço agora? Como voltar para casa? Onde estou?”. A forma
do filme nos leva a pensar que, para Suleiman, o lugar do cinema
face ao cotidiano de exceção (criado pela ocupação israelense)
só pode ser um lugar “exilado”, um lugar que aproveita o
distanciamento conquistado no exílio e o transforma em imagem,
em uma tradução espacial de uma aposta política.

222 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
REFERÊNCIAS

AVELAR, Idelber. A questão humanitária definitiva do nosso


tempo. In: O biscoito fino e a massa. Disponível em: <http://
www.idelberavelar.com/archives/2009/02/a_questao_
humanitaria_definitiva_do_nosso_tempo.php>. Acesso em:
19 set 2014.
BAZIN, André. O cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BERGSON, Henri. O riso: Ensaio sobre a significação da
comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
PRYSTHON, Ângela; PEDROSO, Marcelo. Elia Suleiman e as
crônicas contra a desaparição. Contemporânea - comunicação
e cultura. Salvador, v.11, n.3, p. 471-488, set-dez 2013.
Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/
contemporaneaposcom/article/view/8859/6738>. Acesso
em 4 jun 2014.
RANCIÈRE, Jacques. El poder del cine político, militante, “de
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Bassas Vila. Cinema Comparat/ive Cinema. v. I, n. 2, p. 9-17,
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______. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto,
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______. Política da arte. Urdimento. Revista de Estudos em Artes
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______. A partilha do sensível: estética e política. 2. ed. São Paulo:
Ed. 34, 2009.
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2. reimp. São Paulo/ Rio de Janeiro/ Brasília: Companhia
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DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 223


SAID, Edward. A questão da Palestina. São Paulo: UNESP, 2012.
______. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.

FILMOGRAFIA

CRÔNICA de um desaparecimento (Chronicle of a disappearance).


Elia Suleiman, Palestina, Israel, EUA, Alemanha, França, 1996,
88 min.
HOMAGE by assassination. Elia Suleiman, EUA, 1993, 25 min.
INTERVENÇÃO divina (Yadon ilaheyya). Elia Suleiman, França,
Alemanha, Palestina, 2002, 92 min.
O QUE RESTA do tempo: crônica de um presente ausente (The
time that remains). Elia Suleiman, Reino Unido, Itália, Bélgica,
França, 2009, 109 min.

224 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
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Pareceristas Consultados

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Benjamim Picado (UFBA)
César Guimarães (UFMG)
Cezar Migliorin (UFF)
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Consuelo Lins (UFRJ)
Eduardo de Jesus (PUC-MG)
Henri Gervaiseau (USP)
Jair Tadeu (UFSC)
João Luiz Vieira (UFF)
Roberta Veiga (UFMG)
Ruben Caixeta (UFMG)
Stella Senra

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