1 JA N / JUN 2 0 1 5 I S S N 2 1 7 9 - 6 4 8 3
devires, belo horizonte, v. 12, n. 1, p. 01-228, jan/jun 2015
periodicidade semestral – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
ORGANIZAÇÃO DOSSIÊ DOCUMENTÁRIO E CINEMA DE ARQUIVO Sabrina Sedlmayer (UFMG)
Anita Leandro Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa)
César Guimarães Stella Senra
Julia Fagioli Susana Dobal (UnB)
Suzana Reck Miranda (UFSCar)
CONSELHO EDITORIAL Sylvia Novaes (USP)
Alessandra Brandão(UNISUL)
Amaranta César(UFRB) EDITORES
Ana Luíza Carvalho (UFRGS) Anna Karina Bartolomeu
Andréa França(PUC-Rio) André Brasil
Ângela Prysthon (UFPE) Cláudia Mesquita
Anita Leandro(UFRJ) César Guimarães
Beatriz Furtado(UFC) Carlos M. Camargos Mendonça
Cezar Migliorin(UFF) Mateus Araújo
Consuelo Lins (UFRJ) Roberta Veiga
Cornélia Eckert (UFRGS) Ruben Caixeta de Queiroz
Cristina Melo Teixeira (UFPE)
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Denilson Lopes (UFRJ)
Bruno Martins
Eduardo de Jesus (PUC-MG)
Carlos M. Camargos Mendonça
Eduardo Morettin (USP)
Eduardo Vargas (UFMG) EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Erick Felinto (UERJ) Thiago Rodrigues Lima
Erly Vieira Júnior (UFES)
Fernando Resende(UFF) COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Henri Gervaiseau(USP) Glaura Cardoso Vale
Ismail Xavier (USP) Julia Fagioli
Jair Tadeu da Fonseca (UFSC) Maria Ines Dieuzeide
Jean-Louis Comolli (Paris VIII) Thiago Rodrigues Lima
João Luiz Vieira (UFF)
José Benjamin Picado (UFBA) IMAGENS
Leandro Saraiva (UFSCAR) Apocalipse. La 2eme Guerre Mondiale (Isabelle Clarke e Daniel
Costelle, 2009) (pág. 12)
Márcio Serelle (PUC/MG) O fundo do ar é vermelho (Chris Marker, 1977/1993) (pág. 28)
Marcius Freire (Unicamp) A patriota (Alexander Kluge, 1979) (pág. 52, 56, 62)
Mariana Baltar (UFF) Perro Negro – Histórias da Guerra Civil Espanhola (Péter Forgács,
Maurício Lissovsky (UFRJ) 2005) (pág. 118)
Maurício Vasconcelos (USP) The Halfmoon file (Philip Schefner, 2007) (pág. 138)
Fogo Inextinguível (Harun Farocki, 1969) (pág. 190)
Osmar Gonçalves (UFC)
O que resta do tempo (Elia Suleiman, 2009) (pág. 202)
Patrícia Franca (UFMG)
Paulo Maia (UFMG)
Phillipe Dubois (Paris III)
Phillipe Lourdou (Paris X) APOIO
Ramayana Lira(UNISUL) Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência
Réda Bensmaïa (Brown University) FAFICH – UFMG
Regina Helena da Silva (UFMG)
Renato Athias (UFPE)
Ronaldo Noronha (UFMG)
Semestral
ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
06 Apresentação
Anita Leandro, César Guimarães e Julia Fagioli
Farocki e os arquivos
164 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki
Amélie Bussy
188 “A máquina sempre quer algo de você”. Entrevista com Harun Farocki
Ednei de Genaro e Hermano Callou
Fora-de-campo
204 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman
Maria Inês Dieuzeide
226 Normas de publicação
Apresentação
O cinema documentário aparece cada vez mais no cenário
contemporâneo como um lugar de memória, no sentido que os
historiadores deram a esse termo, com Frances Yates ou Pierre
Nora. Arte da fala, o documentário é um espaço privilegiado
para o registro do testemunho, na medida em que, além de
uma narrativa histórica, ele também traz à tona os silêncios e
lacunas que habitam as lembranças do passado. Mas, sobretudo,
o documentário se apresenta no panorama atual como uma
encruzilhada do fluxo contínuo das fontes documentais, orais
e visuais existentes – textos, fotografias, registros radiofônicos,
imagens fílmicas e materiais audiovisuais de diferentes suportes,
reunidos na mesa de montagem para se escrever a história.
Para enfrentar a complexidade e o volume da produção visual
do século XX, século das imagens e da valorização dos arquivos,
o documentário aperfeiçoou a maior invenção do cinema,
a montagem. À experiência poética, ele aliou investigação
histórica, colocando-se ao lado dos historiadores em seu esforço
de entendimento do passado.
Com esse primeiro volume do dossiê “Documentário e
imagens de arquivo”, a revista Devires traz uma série de artigos
que retomam o debate sobre o alcance historiográfico do cinema.
Numa abordagem estética de filmes escolhidos, os textos aqui
reunidos mostram, nas entrelinhas, que a montagem é um modo
de escrita da história em adequação com uma hermenêutica do
documento. O cruzamento de fontes documentais, procedimento
habitual de pesquisa histórica, ao ser feito na montagem, dá
acesso à uma compreensão diferenciada dos acontecimentos.
Maio de 68, a guerra da Espanha, o genocídio dos judeus, todos
esses grandes dramas históricos, sobre os quais os historiadores já
escreveram tanto, passam a ser vistos sob um novo ângulo quando
os documentos de arquivos a eles relacionados são retomados pelo
documentário. É o que acontece nos filmes evocados nesse dossiê.
Uma micro-história aparece no plano de detalhe do documento
trabalhado na montagem ou no cruzamento da imagem de
arquivo com fontes orais, clareando pontos obscuros da macro
história. Essa potência historiográfica da montagem explica, em
parte, a “atração dos arquivos”, fenômeno atual, analisado por
Christa Blumlinger num artigo desse volume, e denominado, por
Sylvie Lindeperg
Historiadora, professora na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne
Se os arquivos audiovisuais são, cada vez mais, objeto de
um entusiasmo generalizado, coloca-se a questão das tensões e
contradições engendradas pelos usos diversificados. Estas imagens,
de fato, entraram pouco a pouco no campo dos historiadores, sem
ter, contudo, o estatuto dos arquivos escritos. Além disso, uma das
tendências dominantes da produção documentária mainstream se
baseia, há anos, na disjunção operada entre, de um lado, a história
dos acontecimentos, deixada aos profissionais da história, e, de
outro lado, a história das imagens, considerada como um domínio
reservado ao diretor. Nessa perspectiva, em geral, a única tarefa
dos historiadores é validar “a exatidão histórica”. No entanto, aos
maus usos de antes, as tecnologias digitais acrescentam uma nova
dimensão, facilitando manipulações como a colorização ou a
sonorização dos planos. Sylvie Lindeperg descreve certas práticas
dominantes do documentário histórico que relega a imagem de
arquivo à função de mercadoria e oferece algumas pistas em prol
de um “estatuto científico” dos arquivos audiovisuais.
Desde o final do século passado, e de maneira acelerada
nos últimos anos, as imagens de arquivo são objeto de todas as
atenções. Seu atrativo se manifesta nos domínios da pesquisa, do
ensino, da criação. Elas também são exploradas pelas indústrias
culturais, que as levam ao conhecimento de um grande público,
com um novo look, proporcionado pelos efeitos . Se podemos
nos alegrar com esse entusiasmo generalizado, convém tomar
consciência das tensões e contradições engendradas por essas
múltiplas utilizações.
Fontes incontornáveis para a História do amanhã, as
imagens filmadas não gozam de um estatuto equivalente ao dos
arquivos escritos. Se elas entram, pouco a pouco, no laboratório
Imagens violadas
Há muitos anos, uma das tendências dominantes da
produção documentária mainstream se baseia na disjunção
operada entre a história dos acontecimentos e a história das
imagens. A primeira justificaria o apelo aos profissionais da
História, a segunda seria domínio reservado do cineasta.
Nessa perspectiva, a única tarefa dos historiadores é validar
os desdobramentos da narrativa e a “exatidão histórica” dos
comentários, sem se preocupar com a maneira como as imagens
de arquivo são organizadas, trabalhadas, interpretadas ou com
a forma como sua historicidade, natureza e estatuto são levados
em conta ou não. Essa disjunção coloca um problema: pode-
se, seriamente, respeitar a “verdade histórica”, se a história
das imagens é totalmente falseada, seu sentido violado, suas
determinações técnicas e ideológicas ignoradas, negadas? A
divisão do trabalho em vigor nessas produções audiovisuais
lhes permite se beneficiarem do rótulo histórico; nesse sentido,
esse selo científico legitima práticas a-históricas que o saber
Julia Fagioli
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Minas Gerais, da linha de pesquisa Pragmáticas da Imagem, sob
orientação do Prof. André Brasil. É mestre pela mesma instituição.
Résumé: Nous procédons dans cet article à une comparaison entre les deux
versions du film Le fond de l’air est rouge (Chris Marker, 1977/1993), en vérifiant
les différences entre les deux montages, et l’éventuel changement de perspective
du cinéaste par rapport à l’histoire. Pour effectuer cette analyse, il sera essentiel de
réfléchir sur le travail de montage de Marker, marque de son cinéma.
Mots-clés: Montage. Le fond de l’air est rouge. Reprise.
Mãos frágeis
As primeiras imagens em ambas versões são de O
Encouraçado Potemkin (Sergei Eseinstein, 1925), em referência
inicial ao comunismo, em que Marker indica, alternando
imagens, o contexto dos anos 1960, período que tratará mais
Mãos cortadas
A segunda parte do filme – Mãos cortadas – começa com
um cinejornal francês com imagens dos últimos dias de ocupação
de Praga em 1945. Inicia-se então um bloco temático sobre a então
Tchecoslováquia, com muitas referências ao stalinismo. Nesse
trecho, diversas imagens são retiradas na remontagem, mas não
há nenhuma alteração que nos pareça significativa em relação
ao argumento do filme. O bloco seguinte trata do comunismo na
China e do maoísmo. Há, em seguida, imagens de um encontro
entre Mao Tsé-Tung e Georges Pompidou (presidente da França
Mais uma vez, vemos que, mesmo com uma hora a menos
de imagens, no filme de 1993 o argumento se expande, talvez se
adense, movido por um distanciamento maior dos acontecimentos.
Além disso, se para o diretor a montagem é uma forma de permitir
REFERÊNCIAS
FILMOGRAFIA
Data da aceitação:
09 de junho de 2015
Leonardo Amaral
Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Crítico de cinema e ensaísta. Curador
e membro das comissões de seleção do Festival de Curtas de BH e do Forumdoc.
BH. Roteirista e diretor de cinema.
Contraescrita da história
Um rosto feminino (fig. 1). Esta é a primeira imagem
de A patriota, acompanhada do seguinte comentário do
narrador: “Gabi Teichert, professora de história na região de
Hesse. Uma patriota que tem interesse por todos os mortos da
nação”. Este é o prólogo de A patriota, que alude à história da
Alemanha desde seu processo de unificação, no século XIX. Há
um paradoxo criado por Kluge nessa designação da professora
Gabi Teichert, personagem ficcional do filme. Ser patriota é
necessariamente se engajar nas questões nacionais e se alinhar
a uma história contada pelos vencedores. No entanto, não é
essa a atitude da professora; seu intuito é buscar outra história,
diferente daquela encontrada nos livros. Neste sentido, ela não
é uma patriota. Ao buscar a história dos mortos no período do
III Reich, Gabi Teichert se torna – por estranho que pareça –
uma contra-heroína nacional, ao se posicionar na contramão
de diversos princípios e movimentos constituidores da história
da Alemanha no século XX.
A personagem, ao se rebelar solitariamente contra
a história oficial, se engaja pessoalmente na escrita de outra
história alemã.1 Alexander Kluge concebe a história a partir de 1. Para Kluge, ser patriota,
tendo a história da Alemanha
seu Traverarbeit (trabalho de luto), ou seja, os personagens de como legado, é algo
seus filmes, para além da elaboração de suas vidas particulares, contraditório.
resgatam uma memória coletiva e se servem da rememoração como
meio de reescrita de história.2 Etimologicamente, Traverarbeit 2. A rememoração guarda
o sentido de uma memória
deriva de Arbeit, que significa trabalho, e Durcharbeitug, que coletiva que está para além
pode ser entendido como elaboração, perlaboração, trabalho da história oficial contada
pelos vencedores.
aprofundado, trabalhar através.
Os arquivos e a história
Kluge nasceu em 14 de fevereiro de 1932, na cidade alemã
de Halberstadt. No dia 8 de abril de 1945, uma bomba aérea lançada
pelos Aliados explodiu a cerca de 10 metros de sua casa, deixando
em ruínas os arredores. O acontecimento, que marcou para sempre
a vida e a obra do cineasta, explica a grande quantidade de
referências a episódios de explosões de bombas durante a Segunda
Grande Guerra. Em A patriota, há uma encenação que mostra
dois oficiais responsáveis pelo desarmamento de bombas, além
da história de uma professora, Gerda Baethe, que, presa em casa
junto de seus filhos, tenta protegê-los das bombas que caem sobre a
cidade. Esse relato aparece em “Der Luftrangriff auf Halberstadt AM.
8 April 1945”, de autoria de Kluge, em um texto que reconstitui o
bombardeio à sua cidade natal durante a Segunda Guerra Mundial,
quando ainda era criança. O escritor narra a experiência da mãe e
dos filhos enquanto a cidade é arruinada pelas bombas:
FILMES
Data da aceitação:
09 de junho de 2015
Rodrigo Carreiro
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFPE).
Doutor e Mestre em Comunicação pela UFPE, e Bacharel em Jornalismo pela
Universidade Católica de Pernambuco.
Abstract: This paper makes an analysis of some images of one of the most important
films made about the Holocaust, Night and Fog (Alain Resnais, 1955), to insist on
the historical validity of the images of violence produced during the conflict. We
argue that even subsequent manipulations or minor historical inaccuracies in the
presentation of these images are not able to obscure, invalidate or depreciate the
use of photographs and moving images as historical documents.
Keywords: Documentary. File. Holocaust. Alain Resnais.
Résumé: Cet article analyse certaines images de l’un des films les plus importants
sur l’Holocauste, Nuit et Brouillard (Alain Resnais, 1955), en revenant sur la validité
historique des images de violence produite pendant la guerre. Nous soutenons
que même les manipulations ultérieures ou les petites imprécisions historiques
dans la présentation de ces images ne parviennent pas à masquer, à invalider ou la
valeur historique des documents photographiques et des images en mouvement du
génocide.
Mots-clés: Documentaire. Déposer. Holocauste. Alain Resnais.
78 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Introdução: sobre o valor dos arquivos documentais
Apesar de terem sido lançados com trinta anos de intervalo
entre si, Noite e neblina (Nuit et brouillard, Alain Resnais, 1955) e
Shoah (Claude Lanzmann, 1985) são, sem duvida, os dois filmes
mais conhecidos e aclamados que tematizaram o Holocausto
contra o povo judeu. Apesar disso, eles compartilham pouco
mais do que o evento histórico que lhes serve de tema; são filmes
de estética completamente diferente, a começar mesmo pela
duração – 32 minutos da produção de Resnais contra 566 minutos
do titulo concebido pelo historiador Lanzmann. Mas a diferença
mais marcante, e também mais polêmica, reside provavelmente
no uso que ambos dão aos arquivos como documento histórico.
Como se sabe, Shoah está fundado sobre um hercúleo
trabalho de pesquisa, através da qual Claude Lanzmann localizou
testemunhas do Holocausto, persuadiu-as a lhe conceder
depoimentos (alguns muito longos e minuciosos) e construiu
a narrativa inteiramente sobre a palavra falada dessas pessoas,
a maioria sobreviventes de campos de concentração nazistas.
Lanzmann recusou quase que completamente o uso de arquivos
de imagens da Segunda Guerra Mundial.
80 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
precisamente, a câmera move-se, ela é a única a mover-se, 2. La caméra ne bouge, en
ela é a única vida, não há nada a filmar, ninguém, só resta o lents travellings, que dans
cinema, não há nada de humano e de vivo a não ser o cinema, des décors vides, certes réels
diante de alguns vestígios insignificantes, derrisórios, e é este et vivants - légère agitation
des touffes d’herbe - mais
deserto que a câmera percorre, é sobre ele que ela inscreve o
vides de tout être, et d’une
rastro suplementar, rapidamente apagado, dos seus trajetos réalité presque irréelle à force
muito simples. (FLEISCHER, 1998: 33, trad. nossa)2 d’appartenir à un monde qui
est plus encore celui d’une
improbable, d’une impossible
survie. La caméra semble se
Durante a montagem do filme, neste raro momento em déplacer pour rien, à blanc,
que o homem pode controlar o nascimento da efígie, Resnais, dépossédée du drame, du
spectacle que ces mouvements
confrontado com a “nova” natureza daquelas imagens, foi semblent accompagner mais
acometido por uma vertigem insustentável: qui ne sont plus que ceux de
fantômes invisibles. Tout est
vide, immobile et silencieux, et
des photographies pourraient
Tinha certa impressão de irrealidade, porque pegar uma suffire. Mais précisément, la
dessas tomadas com outra, logo deslocá-la para obter certo caméra bouge, elle est seule
efeito... me dava má consciência, e ao mesmo tempo me à bouger, elle est la seule vie,
obrigava a refletir sobre a condição humana... fiz a montagem il n’y a rien à filmer, personne,
il n’y a que du cinéma, il
do filme em uma espécie de estado de vertigem. (RESNAIS
n’y a plus d’humain et de
apud LINDEPERG, 2009: 59 trad. nossa)3 vivant que le cinéma face à
quelques traces insignifiantes,
dérisoires, et c’est ce désert
que la caméra parcourt, c’est
Essa vertigem se apoderou de boa parte da equipe que sur lui qu’elle inscrit la trace
estava ajudando na montagem do filme, como aponta Sylvie supplémentaire, aussitôt
effacée, de ses trajets très
Lindeperg (2009: 59, trad. nossa) a partir da recordação de Henri simples.
Colpi, ao relatar o momento de pânico de Anne Sarraute, assistente
de direção, quando foi deixada sozinha por alguns minutos na sala de 3. Lenía cierta impresión de
irrealidad, porque pegar
montagem: “[ela] enlouqueceu quando viu na moviola uma tomada una de esas tomas com
que nunca havia visto, e que era um horror. Teve medo, saiu correndo otra, luego desplazarla para
obtener cierto efecto... daba
e veio nos buscar, com o coração batendo desesperadamente”.4 mala conciencia, y al mismo
Esta vertigem que é também um malaise, no sentido proposto por tiempo lo obligaba a uno a
reflexionar sobre la condición
Danielle Quinodoz (1997), como aquilo que pode causar uma humana... Se hizo el montaje
fraqueza, uma perda dos poderes mentais e físicos, sudorese fria, del film en una especie de
estado de vértigo.
náusea etc. A destruição absoluta a partir de uma montagem nos faz
sim compreender a profunda vertigem da equipe que trabalhava na 4. Enloqueció cuando vio
Rue de Poissy; afinal, como suportar tais imagens? Assim, en la moviola una toma que
nunca había visto, y que era
un horror. Tuvo miedo, salió
corriendo y vino a buscarnos,
[...] a vertigem não exclui o rigor, e o risco de cair, con el corazón latiendo
intencionalmente, na “má consciência”, cada tomada de Noite desaforadamente.
e neblina está colocada com uma precisão e uma maestria que
5. El vértigo no excluye el
provam o excepcional talento de um montador que dava a esta
rigor, y a riesgo de caer,
etapa do trabalho uma função equivalente a uma encenação. sabiéndolo, en la “mala
Este confronto da arte com a dor e o trágico foi produzido na conciencia”, cada toma de
Rue de Poissy. (LINDEPERG, 2009: 59, trad. nossa)5 Noche y niebla está colocada
82 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
sejam logo após a liberação), mas o cineasta francês também
recorre a imagens da genealogia do cinema para compor o
conjunto de arquivos que é o seu filme. Nos primeiros planos
de Noite e neblina, Resnais utiliza fotogramas de O triunfo da
vontade (1934) (fig. 1), de Leni Riefenstahl, assim como um
plano de A última etapa (1948) (fig. 2), de Wanda Jakubowska,
quando um grupo de soldados, cobertos por uma névoa que
amplifica a obscuridade da paisagem, vigia os deportados que
estão saindo dos vagões de um trem.
84 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
As imagens de arquivo utilizadas em Noite e neblina que os vestígios de parte
fundamental da história
exibem um excerto fundamental da história dos campos nazistas,
sejam reavaliados, estudados
momentos desoladores e assombrosos, onde a natureza do novamente como um esforço,
testemunho e do arquivo reivindicam tanto as suas partes corroídas por mais frágil que ele seja,
de tentar compreender um
quanto seus papeis históricos e imprescindíveis. No panorama pouco mais dessa cesura
arquivista que Resnais monta, há um espectro de abandono, de legada à humanidade.
86 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
a silhueta da escuridão foi cúmplice essencial do gesto heroico,
passível de punição com morte imediata. Tal sombra ameaçadora
está presente na foto original (fig. 4).
88 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
[...] o sonho que o acometia anos antes, durante sua estadia
no campo: ele está em casa entre seus familiares, e lhes conta
a vida no campo, a cama dura, a fome, o controle dos piolhos,
o soco do kapo, mas ninguém escuta, continuam conversando
entre si, indiferentes. Este sonho era comum a muitos de seus
companheiros de infortúnio. (PELBART, 2000: 171)
90 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Didi-Huberman (2012: 91), sendo na verdade “mal vistas [...]: mal
descritas, mal legendadas, mal classificadas, mal reproduzidas, mal
utilizadas pela historiografia da Shoah”. Essas imagens ausentes
(essas imagens que não nos chegam, que não nos tocam, que não
a vemos e que não nos vê) não legitimam a ausência, mas antes
uma falta, e neste sentido a definição de Godard sobre as imagens
registradas da Shoah é exemplar: antes que por imagens ausentes, a
Shoah é composta por imagens faltantes.
A imagem-arquivo capturada pelo judeu grego Alex (fig.
3 e 4) e usada por Resnais em Noite e neblina tem o seu valor
irrefutável porque é uma imagem que prova e testemunha um
momento real a partir do congelamento de um gesto genocidário,
e mesmo que a imagem não nos diga tudo (a sua falta), ela nos
permite pensar um excerto possível daquele tempo por ela retido:
fagulhas, chamas e fumaça do extermínio do homem, cujos
cadáveres amontoados amplificam a noção terrível do horror que a 13. No tienen solamente el
valor de ser una prueba,
imagem instaura. E sobretudo, porque uma foto como essa não foi sino que son también
feita a partir do ponto de vista nazista, senão antes dos deportados, documentos. No son de
ninguna manera inútiles,
e “não tem somente o valor de ser uma prova, senão que são ni se puede pensar en
também documentos” e que “não são de nenhuma maneira inúteis, destruirlas; simplemente
hay que analizarlas como
nem se pode pensar em destruí-las”; assim simplesmente temos de documentos históricos
“analisá-las como documentos históricos que permitem aprofundar que permiten profundizar
nuestro conocimiento de
nosso conhecimento dos acontecimentos que representam” los acontecimientos que
(LINDEPERG, 2009: 68, trad. nossa).13 representan.
92 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Figura 10 e 11: Imagens são registros de soldados norte-americanos
94 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Deste renascimento do qual fala Rancière,16 desta 16. Essa presença do
renascimento na fusão
fusão cinematográfica em que a morte da morte nos campos é
de Godard, apontada por
emergida anos depois pela efígie de Elizabeth Taylor e de sua Rancière, é criticada por
efêmera “felicidade sombria”, impossível não lembrarmos das Didi-Huberman: “Não há
ressurreição, no sentido
ruínas da história da qual fala Walter Benjamin (2012: 17) a teológico do termo, porque
partir do quadro Angelus Novus de Klee, este anjo que “parece não há conclusão dialéctica.
Neste momento, o filme
preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente” acaba de começar. E logo
(Taylor olhando para Clift), e que “tem os olhos esbugalhados” depois de Liz Taylor surgir,
qual vénus, do meio das
(os olhos dos deportados filmados por Stevens em Buchenwald águas - sobre o fundo de
e Dachau) e cuja “cadeia de fatos que aparece diante dos nossos uma tradição iconográfica
facilmente reconhecível
olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente - surge, por sua vez,
acumula ruínas e lhas lança aos pés” (a inferência de Godard após uma imagem dilacerada,
resistente a qualquer leitura
descobrir que Stevens tinha filmado a liberação17 dos prisioneiros imediata. Algumas letras são
em 1945). Ruínas, a impossibilidade de ir ao futuro com a aí sobreimpressas: lemos
primeiro End, como no fim
imagem da catástrofe cravada nos riscos do rosto de Taylor, a
de todos os clássicos de
“felicidade sombria” da personagem eclipsada pela imagem da Hollywood. Mas percebemos
morte fundida por Godard: “ele gostaria de parar para acordar que a palavra - tal como as
História(s), como a própria
os mortos e reconstruir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que história e como a dialéctica
foi destruído” (BENJAMIN, 2012: 17). É, por fim, esta espécie de segundo Godard - não
acabou por causa disso.
torpor que consome toda a presença de Elizabeth Taylor, onde a Não será endlos (‘sem fim’,
memória da catástrofe corromperá toda a sua felicidade possível, ‘interminável’), e Endlösung
(‘Solução final’), que
o seu lugar ao sol. devemos ler aqui? Não será
o sem fim da destruição do
homem pelo homem que
Godard quer sublinhar com
esta história e com essa
prática de montagem?” (DIDI-
HUBERMAN, 2012: 190).
96 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
RANCIÈRE, Jacques. Film fables. Oxford e Nova Iorque: Berg
Publishers, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas: Papirus,
1995.
Data do recebimento:
06 de abril de 2015
Data da aceitação:
09 de junho de 2015
Rafael V alles
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
Abstract: This article aims to interpret the discursive construction about the
Holocaust in the documentary film and the implications this may bring to the
understanding of this historical fact. Trying to analyze the use of ideology in the
representation of the Holocaust, this work will have as case study the documentary
The specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal Sivan, 1999).
Keywords: Holocaust. Documentary film. Ideology.
4. Considerações finais
Não é possível encontrar uma definição absoluta para se
entender o que foi o Holocausto. Diante de um acontecimento com
tantas implicações na história do século XX e na própria história do
homem, o seu entendimento não pode partir somente de estatísticas
e relatórios empíricos. A fim de se construir um conhecimento
mais amplo, é necessário partir também de uma reflexão sobre as
REFERÊNCIAS
FILMOGRAFIA
Data do recebimento:
06 de abril de 2015
Data da aceitação:
09 de junho de 2015
Abstract: This paper aims to question the aesthetic and political dimensions of the
use of archival footage in the contemporary documentary from the contributions of
Jacques Rancière. Therefore, we fix our attention on El Perro Negro (2005), a film in
which Péter Forgács gives up the attempt to tell the story of the Spanish Civil War in
a conventional manner, as he uses amateur images. We can say that the aesthetic
and political dimensions of cinema produce new agencies of the visible and the
enunciable regimes.
Keywords: Documentary. Archival footage. Aesthetic. Politics. Amateur movies.
***
***
Figura 2
Figura 3
***
Christa B lümlinger
Professora de Estudos Fílmicos na Universidade Vincennes-Saint-Denis (Paris 8).
Foi professora assistente na Universidade Paris 3 e professor convidada na Free
University Berlin.
Arquivo vivo
Num filme-instalação da artista portuguesa Filipa César,
vê-se uma citação célebre, proveniente de um curta metragem de
Alain Resnais e Chris Marker: “Um objeto morre quando o olhar
vivo lançado sobre ele desaparece”.7 Cacheu (2012), retomando 7. Essa frase do filme
de Alain Resnais e de
essa frase, mostra estátuas, como no filme citado, Les Statues
Chris Marker (autor do
meurent aussi (1953). Mas, diferentemente de Resnais e Marker, comentário), continua assim:
Filipa César não mostra a arte africana transposta para um museu “[...] e quando tivermos
desaparecido, nossos objetos
europeu; ela se interessa pelas esculturas dos colonizadores irão para onde mandamos os
deixadas na África. Trata-se de quatro estátuas gigantes, objetos dos africanos: para o
museu”.
representando o poder colonial português, localizadas pela artista
em um forte guineano, onde aguardavam restauração, e filmadas
por ela em 2012: “As condições sempre vivas de produção dessas
estátuas parecem mantê-las mortas-vivas”, diz uma conferencista
numa sala de exposição, rodeada de espectadores, diante de um
grande muro no qual o material reunido é projetado. Cacheu
revisita, assim, outros filmes, como o de um cineasta da Guiné
Bissau, Flora Gomes, autor do primeiro filme realizado depois da
independência de seu país, Mortu Nega (1988). Um plano mostra
duas das estátuas em questão, diante das quais passam duas
pessoas. Nessa conferência-performance, filmada com grande
cuidado, uma atriz comenta essas imagens e para diante delas,
com seu texto nas mãos, como se fosse uma guia de museu. De
vez em quando, ela entra na frente da imagem e seu corpo se
torna, assim, superfície de projeção.
“Cacheu” é o nome de uma fortaleza da Guiné-Bissau,
da qual as forças portuguesas se serviram para assegurar sua
presença militar e estabelecer o comércio de escravos no século
XVI. O filme de Filipa César mostra planos desse antigo forte
onde estão reunidas essas estátuas “mortas-vivas”, vestígios da
era colonial e sinais da condição pós-colonial, confrontados
aos rastros de sua “vida” anterior. Assim, vê-se as mãos de
um arquivista guineano folheando um álbum de fotografias e
parando na estátua de um general português particularmente
violento, Teixeira Pinto, colocada sobre o pedestal. A imagem
O corpo do arquivo
No que se refere ao cinema enquanto mídia fotográfica,
a ideia do excesso atravessa as teorias das imagens desde os anos
1920, mas raramente no sentido de Yerushalmi. Para Siegfried
Kracauer (1927: 59), por exemplo, para quem as fotografias
constituem, em sua totalidade, uma espécie de arquivo, um
“inventário geral da natureza”, mas de uma natureza “condenada
a querer dizer”, são o excesso quantitativo das imagens
fotográficas, sua acumulação e o continuum espacial, a lógica de
semelhança produzida pelo aparelho perspectivo, indutora de um
efeito ulterior de desagregação dos elementos, são esses excessos
que entravam sua função de memória e colocam em perigo seu
valor histórico. Para Kracauer ( 56), o fato do mundo ter se
tornado fotografável eterniza o presente fotografado: “Ele parece
ser salvo da morte; na verdade, ele fica exposto a ela”. Assim,
os jornais ilustrados (sobretudo os americanos) produzem, aos
olhos de Kracauer, uma tempestade de fotografias que resultam
na “indiferença ao que as coisas querem dizer”. Ao mesmo tempo,
seguindo sua teoria ontológica, a fotografia implicaria, em si, uma
“realidade fantasmática” (53), ela tornaria presente o mundo dos
mortos “na sua independência em relação aos humanos” (59). A
questão que se coloca consiste, evidentemente, em saber como
organizar de outra forma um inventário desse tipo, sem ter que se
submeter ao contexto de uma cultura industrializada, e em que
medida as novas mídias podem contribuir para isso. O próprio
Kracauer oferece uma visão utópica do problema no final de seu
texto, visando o cinema e suas capacidades de montagem.
Bem mais tarde, em 1986, Allan Sekula, em um texto
inaugural inspirado por Foucault, desenvolve uma ideia bem
diferente de arquivo em geral: na medida em que a omnipresença
da fotografia na vida cotidiana introduz, a partir do século XIX,
REFERÊNCIAS
Amélie Bussy
Doutora em Artes (Historia, Teoria e Prática) pela Université Bordeaux Montaigne.
Vinculada ao Laboratório CLARE.
166 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
I. Introdução: o problema da ficção
Não é raro, no cinema de Harun Farocki, encontrar uma
crítica aos filmes de ficção e aos procedimentos por eles utilizados
para escrever a História. Em Wie man sieht (Como se vê, Farocki,
1986), o cineasta monta, a pouca distância uma da outra, duas
fotografias das ruas de Berlim, em 1919. Quando surge a primeira
imagem, a voz off chama a atenção para os diferentes adereços
que cobrem a cabeça de três homens fotografados: um boné de
operário, um chapéu de empregado administrativo e um capacete
de soldado. Armados, os três homens estão agachados atrás de
grandes rolos de papel de impressão de jornal, que lhes servem
de barricada. Em seguida aparece uma segunda fotografia dessa
mesma Berlim insurrecta, quando a capital viveu a insurreição
espartakista. Essa segunda imagem é a tal ponto parecida com
primeira que o comentário precisa anunciar: “Soldados rebeldes
de 1919”. Novamente, aparecem chapéu, boné e capacete. “É
tão fácil confundi-los com soldados do governo! (…) Difícil é
determinar, à primeira vista, quem se insurge e quem coopera!”,
diz, então, o comentário. E, com efeito, desse lado da barricada,
os mesmos tipos de chapéu sinalizam alguma coisa ao espectador. 1. Cada vez que lhe sugeriam,
para a trilogia Norte-Sul,
A originalidade da montagem comum às duas fotografias em Wie a noção de “comparação”,
man sieht reside, exatamente, na “indecidibilidade” dos signos da o cineasta Johan Van der
Keuken disse preferir a ideia
imagem, que funcionam como meios de acesso à História desse de justaposição” (KEUKEN,
período. Farocki propõe ao espectador a justaposição dessas duas Apud BOULEAU, 2013 :
777-778 ). Mesmo que não
fotografias, afim de apreender a questão do testemunho das possamos desenvolvê-la
imagens, interpelando, assim, a necessidade frequente na história mais adiante, nós a
de opor revolucionários e governo.1 Ora, acontece que essas duas empregamos aqui devido
à proximidade entre os
imagens, sendo as mesmas e, no entanto, diferentes, encorajam o intervalos empregados
resgate de uma complexidade dos acontecimentos e das escolhas por Farocki et Keuken
(fragmentação; intervalos
feitas pelos homens que deles participaram. Justamente, a sóbria entre as imagens; montagem
relação estabelecida por Farocki entre as duas fotografias convida em forma de constelação, ou
seja, repartição de diversas
a pensar a história a partir da linha tênue que separa aqueles que fontes de imagens que se
foram seus atores. alternam e retornam ao
longo da montagem). Aqui,
A força historiográfica dessa montagem só pode, no a justaposição se refere,
na realidade, à montagem
entanto, ser experimentada à luz de um outro comentário, que mental feita pelo espectador,
se refere, desta vez, ao cinema: face à essa difícil distinção dos uma vez que Farocki insere
entre as duas imagens
dois campos – entre quem se insurge e quem coopera – o cinema da Berlim insurrecta uma
de ficção teria encontrado uma saída astuciosa, diz Farocki. Ele entrevista com o doutor
Cooley, fonte de imagem que
teria dado sinais distintivos (como se distribui qualidades aos retorna várias vezes em Wie
personagens de ficção – bons ou malvados) e teria atribuído, a man sieht.
168 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
se serve dos detalhes do desenho de Kantor sem, no entanto, 2. Do ponto de vista de
um pensamento sobre o
enfrentá-lo, sem propor, dele, um novo uso e uma visibilidade
reemprego das imagens
inédita para o presente.2 de arquivo, questão que
se coloca na prática dos
cineastas, poderíamos
opor utilitarismo e uso: “se
servir” da imagem implica
numa servidão do arquivo
a um outro propósito ou
representação (utilitarismo
do arquivo); o uso, por
sua vez, implica numa
convocação dos valores da
própria imagem reempregada
(mesmo que ficcional, a
retomada do arquivo leva
em consideração a imagem,
seus signos, sua matéria, sua
produção).
170 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
por Harun Farocki aponta para o fato de que o cinema precisa
respeitar a matéria e a memória dos arquivos, uma vez que a
escrita da história pelas testemunhas depende de sua retomada.
Tanto nos filmes que ele critica, quanto em seus próprios
filmes, o respeito pela memória das testemunhas residiria nos
procedimentos utilizados para tratar os documentos. Haveria,
assim, algo inerente aos arquivos a preservar e a não trair, quando
são retomados para escrever a história. Mas será que a ficção,
enquanto elemento “imaginativo” do cinema, não estaria mais
propensa a desviar os arquivos do que, realmente, a respeitá-los?
Em que medida uma ficção de arquivo pode dar acesso à história
contida na imagem?
No livro L’Épreuve du réel à l’écran (A provação do real na
tela), François Niney evoca a potência do comentário nos filmes
de Chris Marker, uma voz off geralmente poética, que lança mão
de formas de interlocuções múltiplas e de formas epistolares, por
vezes ficcionais. Ele evoca a presença, na obra de Marker, de um
comentário imaginativo, para endereçar ao espectador as imagens
retomadas, “re-tourner”5 essas imagens (NINEY, 2002: 93-112), 5. Niney faz um jogo de
palavras com os verbos
ou seja, transformar as tomadas em retomadas, ou as retomadas
“tourner” (filmar) e
em tomadas, ao ponto de questionar a capacidade do cinema de “retourner” (“filmar de
escrever o passado no “futuro anterior” (Ibidem: 106). De fato, a novo”, mas, também, virar
do avesso; devolver; voltar
questão da ficção não pode ser tão facilmente descartada, quando se atrás; provocar emoção, no
fala de cinema de arquivo. No final de seu livro, Niney consagra um sentido de “sacudir”). Nota
da tradutora.
capítulo às “Virtudes do falso”, tomando como exemplo L’Ambassade
(Chris Marker, 1973) e a “interferência ficção/documentário” nesse
filme que, embora rodado num apartamento em Paris, remete ao
Chile de Pinochet. Sobre a “produção de verdade” do comentário
ficcional, pode-se ler essa frase importante: “trata-se de fazer
com que o espectador compreenda que a realidade, lá, ultrapassa
essa ficção aqui” (NINEY, 2002: 305). Na mesma perspectiva das
reflexões de Deleuze sobre as “potências do falso”, na Imagem-Tempo,
6. O documentário já admitiu
seria, necessário, no entanto, aproximar a questão formulada pelo o uso da ficção há muito
filósofo aos filmes de Jean Rouch e de Pierre Perrault, sobre o devir tempo (aliás, eles já foram
separados algum dia?).
ficcional de pessoas reais (DELEUZE, 1985: 195-199), da questão Niney e Deleuze sublinharam
específica da retomada dos arquivos. Num documentário, a ficção muito isso. Nas duas obras
que citamos, esses autores
não poderia criar um devir ficcional de documentos reais que nos tentaram, cada qual ao seu
convidaria, como na obra de Rouch, a perceber o lugar em que o modo, mostrar que o cinema
era capaz de colocar em jogo
estatuto do arquivo muda de estatuto, passando, incessantemente, o real, com seus próprios
da condição de documento à de imagem de cinema?6 meios.
172 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
sobre o “Álbum de Auschwitz” em seu conjunto nem sobre suas
consequências. Em vez disso, deterá longamente o seu olhar sobre
uma única fotografia: a de uma mulher no momento em que ela
chega no campo, imagem feita, justamente, por um desses dois SS.
A imagem da chegada ao campo vem logo após a da
“seleção”, vista em plano aberto. Uma mulher fotografada olha
para nós. Atrás dela, vemos uma fila de homens que esperam. Uma
mão pega o paletó do primeiro deles, deixando transparecer que
se trata do gesto da triagem. Sylvie Lindeperg levanta a hipótese
de que a força dessa fotografia viria desse encontro entre o pano
de fundo da “seleção” e a passagem pela triagem (COMOLLI e
LINDEPERG, 2008: 31). Juntos, os dois planos da foto formariam
o “punctum” dessa imagem.9 Sylvie Rollet, quanto a ela, prefere 9. Barthes definiu,
falar do conjunto de reenquadramentos sucessivos operados por inicialmente, o punctum
na Câmera clara, como o
Farocki para mostrar o rosto dessa jovem, capturado na foto: encontro do primeiro plano
e do pano de fundo –freiras
passando atrás de soldado
é o que faz da fotografia da
Com efeito, a retomada da fotografia da jovem na rampa de insurreição na Nicarágua
Auschwitz é acompanhada por uma série de reenquadramentos mais do que uma fotografia
que, isolando-a do resto dos deportados, produzem uma de guerra que, ao contrário,
singularidade. Enquanto o fotógrafo nazista registra uma solicitaria de nossa parte
operação de rotina (…), Farocki enquadra o acontecimento apenas um olhar estudioso
único de um destino particular. (ROLLET, 2011: 69) (BARTHES, 1980: 42-44).
Nessa sequência, para mostrar que a imagem provém dessa
história de olhares e que ela documenta isso, Farocki recorre a uma
ficção. É justamente por isso, porque Farocki exagera, porque seu filme
recoloca em cena a fotografia e a re-produz, cinematograficamente,
no presente (“ele aperta o botão”), que o arquivo fotográfico,
vestígio de um instante único, começa a ganhar vida. Com a imagem
do campo de Auschwitz, aparecem as condições de realização da
foto, que tornaram possível esta imagem e não outra. Alguns verão,
174 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
no entanto, com reticência, essa história banal de sedução sugerida
entre o homem e a mulher, para chamar a atenção para a troca de
olhares, o “mal gosto do comentário” de que fala Rancière (2015: 99).
Por que transpor a cena para uma avenida, com senhores, vitrines,
mulheres? Há muito tempo o documentário moderno entendeu que,
da dissociação entre a imagem e o som, nascem distâncias férteis o
suficiente para produzir uma terceira imagem, mental, proveniente
do encontro, no plano, dos dois elementos separados. Essa ficção,
vinda de fora, ajuda a “criar uma situação” para que o arquivo seja
visto. Trata-se, realmente, nessa sequência, de dizer que o SS e essa
mulher se comportam “como” numa avenida? O próprio espectador
não acredita nesse interpretação. Melhor: ele se choca com ela.
Farocki “força” esse encontro entre a narração da ficção e a imagem,
para que o arquivo se estratifique, com novos sentidos. Por exemplo,
a presença da avenida ou de um mundo de vitrines só reforça a
presença, aqui e agora, dessas duas pessoas, como se a sentença final
do comentário (“num mundo em que há avenidas, senhores, vitrines,
longe daqui”), mais do que o desejo dessa mulher de não ver o que se
passa, de se transportar para outro lugar, longe de Auschwitz, fizesse
“o espectador compreender que aquela realidade ultrapassa esta
ficção” (NINEY, 2002: 305). A simplicidade da história de sedução –
sua banalidade – devolve o campo à sua própria realidade, realidade
que aquela imagem poderia, no fim das contas, esconder.
Uma das “potências do falso” consiste em abrir um
caminho para pensar, ver e perceber os arquivos de outro modo.
Por meio da ficção, Farocki provoca deslocamentos múltiplos
de sentido e mantém o espectador ativo face àquilo que vê, às
maneiras de interpretar os arquivos. Para isso, ele desenvolve um
método, feito de estranhos desajustes:
Figura 2: “Talvez essa interpretação salve alguma coisa” (FAROCKI, 2002: 96)
176 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
Roland Barthes foi, talvez, quem melhor compreendeu
a dramaturgia da fotografia, de suas temporalidades próprias,
dos rostos e dos mortos que ela capturou... Em A câmara clara,
ele fala do retrato que Alexandre Gardner fez de Lewis Payne:
“A fotografia é bela e o rapaz também” (BARTHES, 1980: 148).
E, como ele explica, o “puctum” (Ibidem: 149), nela, não é
tanto o fato de que Lewis Payne espera na sua cela a morte por
enforcamento, em 1865. Ele provém da reunião intempestiva
do antes e do depois para o espectador atual, da estranha
cristalização, na foto, desses dois tempos, que podemos, agora,
reunir: “ele morreu e ele vai morrer” (Idem). Segundo Barthes,
11. Barthes diz: “é a ênfase
esses dois tempos configuram a dramaturgia da fotografia.11 Ele dilacerante do noema (“isso
nos fala, assim, de sua qualidade testemunhal: essa dramaturgia foi”), sua representação pura.
(…) Eu me estremeço (…)
não provém da pessoa filmada ou fotografada e de seu passado, por causa de uma catástrofe
mas da imagem e de sua capacidade de evocar, ao mesmo tempo, que já aconteceu” (Ibid.:
148-149).
a morte e a vida do fotografado, ao permitir-nos dizer dessa
pessoa: “ela morreu e ela vai morrer”.12 Aliás, se aprofundarmos 12. É o que Sylvie Rollet,
essa reflexão e aproximarmos dela o pensamento de Agamben em seu comentário sobre
essa sequência, denomina
sobre o testemunho e o arquivo, quando o filósofo diz, em O como “o momento único
que resta de Auschwitz, que a testemunha é “o que resta”, “o que da tomada no passado” e o
“futuro anterior de sua morte
sobreviveu” (AGAMBEN, 2003 :17), não ficaremos surpresos com programada” (ROLLET, 2011 :
o fato de que a mulher fotografada em Bilder der Welt, a vítima, 69). Ela diz que é a retomada
que “coloca em contato”
a desaparecida, não é a testemunha real. Ela está morta quando esses dois momentos. Nós
vemos sua foto; a sobrevivente é a imagem, a imagem de seu pensamos que é a imagem,
e somente ela, uma vez lida,
olhar, a imagem de seu desejo de responsabilizar aquele que a mais tarde, que apresenta
captura e de se esquivar dele, a imagem de seu rosto fotografado essa temporalidade
heterogênea ao espectador.
por um SS. A imagem é a testemunha. Farocki apenas a sustenta.
Compreende-se melhor, então, que o cinema tenha o
dever de retomar essa imagem de arquivo e de levar a fundo o seu
valor testemunhal, seja por meio da ficção ou do documentário,
da montagem ou da mise en scène. Pode-se considerar “adequada”
qualquer retomada que torne possível a com-preensão e a
apropriação do arquivo. Vimos que a ficção permitia localizar
na imagem de arquivo aquilo que remete à sua tomada, ou seja,
aquilo que informa o espectador sobre a produção do documento.
Ela fornece, então, uma indicação importante para a história,
pois, mais do que nutri-la com um simples contexto, a narração
ficcional da tomada da fotografia propõe um conhecimento
íntimo das formas fílmicas ou fotográficas. Ela se debruça sobre o
que desencadeou a produção do documento visual, como no caso
178 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
sustentar a aparição da imagem, em partilhar o destino dessa
mulher, ao inventar “um gesto de cinema para se colocar diante
do acontecimento” (LINDEPERG, 2007: 92), para responder à
exigência “daquele que viveu, ali” (BENJAMIN, 2000: 99).
Há uma outra razão para o uso do comentário. Farocki sabe
que essa fotografia não constitui uma prova do extermínio dos judeus.
O problema consiste, sobretudo, em não criar o desejo de prova, em
observar uma regra de parcimônia que visa estabelecer e delimitar,
aos olhos do espectador, o testemunho de uma imagem. A distinção
entre testemunha e vítima (entre a imagem que é a testemunha
sobrevivente e a vítima, na superfície da imagem) serve, justamente,
para compreender que cabe à retomada da imagem atualizar o vestígio
e lembrar que o gesto de tirar uma foto pode evocar o de tirar uma
vida. É o que faz a ficção, um meio propriamente cinematográfico
e imaginativo, quando ela nos propõe enfrentar a imagem do rosto
dessa mulher, plenamente conscientes do tempo que dela nos
separa. Aquilo que foi registrado no momento da tomada precisa
ser retomado, afim de elevar o arquivo à potência de uma imagem
que, sabendo-se imagem, pode também tornar imaginável o que ela
não mostra. A imaginação e a prova foram sempre os dois freios ou
interdições impostos à representação ficcional ou documental dos
campos de concentração e de extermínio. A maior virtude da ficção
está na possibilidade de mostrar o seu avesso, a saber, o fato de que ela
é apenas uma narrativa, impossibilitada de testemunhar plenamente.
Ao contrário do que foi dito anteriormente, a ficção, quando encontra
as propriedades documentais da imagem que a autorizam a retomar
os arquivos, não é apenas apropriada. Ela só se torna adequada ao
mostrar, de maneira pertinente, sua “impropriedade fundamental”,
isto é, ao abordar as imagens como mediações e não como o real, ao
mostrar que um arquivo não testemunha sobre o passado tal como
ele foi, mas sobre a sua captura numa imagem parcial e lacunar.
180 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
própria especificidade e dar acesso à história da deportação a partir
daquilo que elas registraram, mostraram, produziram, daquilo de
que elas são o vestígio.
Foi vendo os filmes de Resnais et Leiser, nos quais eles
retomam alguns planos do campo de Westerbork – principalmente
a sequência da plataforma ferroviária, “uma das únicas imagens
existentes da deportação” –, que Farocki teve a ideia de fazer de
Respite um filme mudo, tendo como única fonte as imagens de
Westerbork e, como comentário, apenas algumas cartelas pretas
de intertítulos. Farocki se insurge contra a remontagem operada
por Resnais e Leiser, que procura mostrar e fazer acreditar que
esses trens chegam em Auschwitz: “Porque esse tipo de sugestão?
Não podemos acreditar no que nos mostram, quando não há
nenhuma imagem?” (FAROCKI, 2009: 23). A retomada dessas
imagens, e somente essas, diz respeito ao poder do cinema de
mostrar e fazer imaginar aquilo que não tem nenhuma imagem.
Eu diria até mais: é considerando a potência dos arquivos que
existem e o que eles mostram que Farocki torna possível escrever
uma história dos campos a partir das raras imagens que foram
rodadas ali, das imagens lacunares de que dispomos.
A cena dos trabalhos na fazenda começa, justamente, com
uma cartela branca do filme encomendado, inacabado: “Unser
Bauernhof” (nossa fazenda).14 Enquanto cena que se inscreve 14. Mais uma vez, “a ironia
da legenda” das imagens
em uma lógica de apresentação do campo de concentração como filmadas...
pequena empresa viável, seu ponto de vista poderia simplesmente
ser atribuído ao seu mandatário, o SS Gemmeker. Mas o “nós”
da cartela introduz, de antemão, algo implícito. Na imagem,
vemos apenas detentos fazendo o trabalho da lavoura, com um
ardor particular. Dois deles, anuncia uma cartela, teriam até
“substituído um cavalo”, a fim de expor, por conta própria, sua
condição de trabalhadores e justificar sua utilidade. É aqui que
aparece a primeira tentativa de sobre-interpretação de Farocki:
“Isso só pode querer dizer: nós somos os seus animais de carga”.
Sentenciosa, a frase é completada por uma segunda cartela: “Nós
fazemos o trabalho que, normalmente, é feito pelas máquinas e
pelos animais”. Farocki arrisca, aqui, uma leitura das imagens. Ele
insinua que haveria uma convergência dos objetivos dos detentos
com os do mandatário do filme, Gemmeker (mostrar que o campo
é viável, para não fechá-lo) e, também, uma forma de “adesão” dos
filmados “à sua missão!” (ROLLET, 2011: 105). “Percebe-se bem o
182 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
participação no seu mecanismo. “Como se desenvolvessem algo
que lhes fosse próprio”, diz a cartela. Por que temos dificuldade
em acreditar nisso? Essa sobre-interpretação de Farocki faz pairar
a dúvida sobre a forma como os detentos viviam no campo de
concentração transitório. Ela deixa transparecer também que,
nesse campo de concentração, podia ter lutar a afirmação de
si, mesmo a pessoa estando confinada e condenada ao trabalho
forçado. Farocki propõe não mais a adesão como modo de leitura,
mas uma resistência, apesar do confinamento.
A opção por “oferecer várias leituras possíveis do material”
(DESPOIX, 2008: 92) ou várias “traduções sucessivas” (ROLLET,
2011: 104) faz com que Respite dê conta da ambiguidade das
imagens, remetendo à ambivalência que liga detentos, filmadores
e algoz... O mais interessante é que Farocki propõe pensar em algo
como uma “zona cinza” própria ao cinema, ligada ao contexto
de filmagem e àquilo que cada um esperava do filme. Mas como
não se pode saber ao certo o que uma imagem quer dizer, tanto
mais porque o filme em questão permaneceu inacabado, Farocki
interpela as imagens e navega entre diferentes polos de sentidos,
às vezes interpretando em excesso, outras vezes reformulando
uma interpretação que parecia definitiva. Em sua observação, ele
leva constantemente em conta elementos de mise en scène que,
não se sabe, podem ter sido desejados somente pelo filmador
(o estilo russo dos planos); ele parece atento à imagem que os
filmados oferecem de si mesmos, que pode ser lida de várias
formas. Se ele põe em dúvida a atribuição das imagens, entre o
olhar nazista do mandatário e o olhar judeu do filmador, e, ainda,
o desejo dos filmados, é para não circunscrever os homens e os
arquivos a uma explicação causal e fechada. Trata-se de devolver
o passado ao seu próprio possível, às resistências dos filmados, às
contradições da história.
Essas sobre-interpretações correspondem, ainda,
ao exemplo da Berlim insurrecta de 1919, no qual Farocki
justapõe duas imagens, dizendo que elas se parecem: trata-se de
compreender que o cinema de retomada talvez não tenha o objetivo
de “ultrapassar as diferenças” ou decidir sobre o que pertence a
um olhar ou a outro, mas de tratar os arquivos “no jogo de sua
instância”, como dizia Foucault (2001: 733). Esse jogo, em Respite,
está extremamente ligado à filmagem e às condições segundo as
quais uma imagem pode documentar um olhar e um ponto de
184 Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
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Tese
BUSSY, Amélie. Reprise(s) de Harun Farocki, la possibilité d’une
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625p. Arts (Histoire, Théorie, Pratique) – Université Bordeaux
Montaigne, Bordeaux, 2014.
Hermano Callou
Mestre em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro
E.G. H.C.: Você pode falar mais sobre essa ideia de não diferenciar
produção e pós-produção? Desde quando você começou a tentar
E.G. H.C.: Em uma entrevista você disse que os seus filmes dos
anos 1970 e 1980 estão de certa forma politicamente obsoletos.
Nós gostaríamos de saber o que você queria dizer com isso e o que
você acha que ainda está vivo em filmes como Entre duas guerras
(1978).
H.F.: Eu só queria dizer que, ideologicamente, contar a história
da República da Alemanha do ponto de vista tecnológico
sintomaticamente é interessante, mas, claro, se você está
interessado em história, você sabe que ela não é redutível ao
determinismo tecnológico, às forças produtivas, como eu procurei
fazer. Todas as especificidades que formam a história deste século
estão de alguma forma desaparecidas. Nesse sentido, eu acho
obsoleto, porque isso revela um estranho dogmatismo, que não
tem mais nenhum valor significativo – felizmente. Existe um autor
alemão que escreveu bons livros sobre os movimentos políticos
E.G. H.C.: Você acha que a ideia de soft montage veio com o
intuito de construir tal abordagem?
H.F.: De certa forma, essa ideia de não apenas falar “A ou
B”, mas “A e B” também. Como Deleuze falou a respeito de
Godard, as imagens não estão se excluindo umas às outras, mas
estão construindo uma relação entre elas. Isso é, de fato, uma
abordagem diferente em relação às imagens, que vai mais além
do iconoclasmo. Por um lado você tem a soft montage, porque
há a conjugação de imagens separadas, por outro lado, você tem
a inter-relação de um primeiro e um segundo filme no espaço
expositivo, o que não é exatamente uma soft montage. É mais
como uma batalha ou alguma coisa assim. É um pouco cacofônico
– eu não sei se há uma expressão equivalente para imagens, como
caco-imagens, eu não sei. Nesse sentido, a montagem pode ser
pesada em certas partes da obra.
Abstract: In this article, we engage in an analysis of the film The time that
remains (Elia Suleiman, 2009), seeking the way the director establishes different
configurations for a life marked by the Israeli-Palestinian conflict. In the course of the
analysis, we take the thought of Jacques Rancière about fiction as a dissent mode
of operation and redistribution of the sensible. The option for the burlesque tone,
combined with particular characteristics of framework and temporal construction,
operates cracks in the consensual order and introduces other possibilities of
comprehension (or invention) of life under Israeli occupation.
Keywords: Fiction. Politics. Palestine Cinema. Elia Suleiman.
Résumé: Dans cet article, nous avons entrepris une analyse du film Le temps qu’il
reste (Elia Suleiman, 2009), en ordre de rechercher la manière dont le réalisateur
établit différentes configurations pour une vie marquée par le conflit israélo-
palestinien. Au cours de l’analyse, nous mettons à profit la pensée de Jacques
Rancière sur la fiction comme un mode de redistribution du sensible. Le choix du
ton burlesque, combiné avec des caractéristiques particulières des cadres et de la
construction temporel, provoque les fissures dans l’ordre consensuel et apporte
d’autres possibilités de compréhension (ou d’invention) de la vie sous l’occupation
israélienne.
Mots-clés: Fiction. Politique. Cinéma Palestinien. Elia Suleiman.
206 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
Neste ensaio, propomos uma análise do filme O que resta do
tempo – crônica de um presente ausente (2009), o último da trilogia
palestina do diretor Elia Suleiman, composta ainda por Intervenção
Divina (2002) e Crônica de um desaparecimento (1996). Nos três
filmes, acompanhamos o personagem Elia Suleiman – às vezes
identificado em letreiros ou em outras inscrições pelas iniciais E. S.
–, um palestino auto-exilado interpretado pelo próprio diretor, na
tentativa do retorno à terra natal. Este personagem, cuja biografia
acompanha, em alguma medida, a do homônimo criador, já estava
sendo gestado desde seu primeiro curta-metragem, Homage by
assassination (1992). Neste, filmado enquanto o diretor ainda
vivia em Nova York, pela primeira vez encontramos o personagem
E. S., um cineasta palestino em vias de realizar seu primeiro filme.
Enquanto aguarda uma entrevista a ser realizada por telefone – a
qual não se concretiza –, ele reflete sobre o exílio no seu pequeno
apartamento, onde revê imagens da família e acompanha o
desenrolar da Guerra do Golfo pela televisão.
Convocando uma forma de narrativa mais próxima do dia-
a-dia, aquela de quem escreve “do simples rés-do-chão” (CANDIDO,
1993), a trilogia palestina elabora, de maneira bastante peculiar, o
cotidiano presenciado pelo personagem interpretado por Suleiman.
Em Crônica de um desaparecimento (1996), acompanhamos pela
primeira vez o retorno de E. S. à casa dos pais. Sem se deter
em apresentações de personagens ou construções de intrigas, o
filme se desenrola em planos fixos que dão conta de pequenos
episódios e situações recorrentes, às vezes acompanhados de
brevíssimos comentários digitados em uma tela de computador.
O comentário, na maior parte das vezes, se restringe à marcação
temporal “no dia seguinte”, inscrição que ganha conotação irônica
ao indicar meramente a passagem dos dias, em uma sucessão que
não trará nenhuma novidade ou revelação. Na primeira parte,
intitulada “Nazaré – diário pessoal”, esses pequenos episódios
estão relacionados à vida da família e a um pequeno universo de
1. Desenvolvemos uma
vizinhos e amigos. Na segunda parte, “Jerusalém – diário político”,
primeira análise de Crônica
o caminho de E. S. cruza com o de uma jovem e misteriosa mulher de um desaparecimento em
que, no final do filme, será responsável por reger um complexo e trabalho apresentado no
V Encontro Anual da AIM,
louco balé de viaturas israelenses pelas ruas da cidade.1 ocorrido em maio de 2015 em
Lisboa. No presente artigo,
O segundo filme, Intervenção divina, também se estrutura desenvolvemos algumas
em duas partes, novamente centradas nas cidades de Nazaré e questões que já tinham
sido apontadas naquela
Jerusalém – mais especificamente, na barreira entre Ramalá apresentação.
208 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
policial e uma empregada asiática – e Ramalá – onde presencia filme faz referência nesse
momento, se dá no fim da
a atual resistência árabe. Por fim, temos uma espécie de posfácio
década de 1980, e a Segunda
em que o personagem retorna outra vez à casa da família, agora se passa nos anos 2000.
para testemunhar os últimos momentos de vida de sua mãe.
Para efeitos de análise do filme, enumeramos e
contextualizamos os episódios essenciais que pontuam a narrativa.
Eles não são, no entanto, de modo algum explicados pelo diretor, mas
apenas apreendidos de passagem – uma notícia vista na televisão
(a morte de Gamal Abdel Nasser) ou um acordo caricatamente
assinado e “imortalizado” em fotografia (o acordo entre as forças
militares israelenses e o governo de Nazaré em 1948). Como
os filmes anteriores, O que resta do tempo valoriza as pequenas
situações cotidianas, caracterizando-se por uma estrutura baseada
na fragmentação e repetição de episódios, mediada por múltiplas
referências e citações a outros filmes ou gêneros cinematográficos,
aproximando-se especialmente do burlesco. Assim como outros
diretores da tradição burlesca (Jacques Tati e Buster Keaton, por
exemplo, são referências confessas), o diretor cria para si um
personagem com quem partilha não só o corpo, mas também o
nome, a profissão, alguns episódios biográficos. Nos três filmes,
E. S. é um personagem interpelado pelas situações cotidianas,
sem a elas reagir. Sua figura impotente parece apenas observar
os episódios, a partir de uma distância (não só espacial, mas
encarnada em sua postura/atuação) que o coloca num lugar quase
à parte, deslocado, como se não fosse mais possível a integração
ao cotidiano para alguém que retorna do exílio. Parece-nos que
a experiência de exílio e retorno é fundamental na elaboração da
obra de Suleiman e, tal como equacionada nos filmes, permite um
olhar distanciado, mas não desimplicado, dirigido ao presente.
Assim, se fazem necessárias algumas palavras acerca 6. Edward Said escreveu
vários textos sobre a cruzada
do exílio palestino antes de continuarmos. Suleiman nasceu na empreendida pelo sionismo
década de 1960 na cidade de Nazaré, território que desde 1948 para apagar da região da
Palestina a existência
pertence a Israel. Ali, o árabe-palestino vive numa condição que do povo palestino. É de
o pensador Edward Said (2012: 118) chamou de “exílio interno”: seus textos (ademais do
subtítulo do filme que aqui
“ganhou o status jurídico de um indivíduo menos real do que analisamos) que tomamos a
qualquer um que pertencesse ao ‘povo judeu’”. Ainda que o diretor expressão de uma “presença
ausente”, que se refere à
efetivamente tenha saído do país na década de 1980, vivendo
condição dos palestinos
entre Estados Unidos (onde começou sua carreira de cineasta) vivendo sob a ocupação
e Europa, a “presença ausente” comum aos árabes habitantes de israelense, desprovidos de
direitos básicos como o da
Israel faz do exílio algo bastante peculiar ao povo palestino.6 própria terra.
210 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
para o mundo árabe, foi confinada em campos de refugiados;
aprovaram-se leis odiosas para eles, que se tornaram refugiados
sem pátria. No mundo árabe e na esfera internacional, nossa
história e nossa existência nacional não foram reconhecidas
ou foram tratadas como uma questão local. (SAID, 2003: 292)
212 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
É a partir dessa concepção de arte e política que
a noção de ficção é definida pelo autor. Não se trata, de
maneira nenhuma, de uma divisão entre gêneros – a ficção
como o oposto ao documental, ou a ficção como o fabular, em
oposição ao real –, mas de uma possibilidade de configuração e
distribuição do sensível. A ficção diria respeito aos “rearranjos
materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que
se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer”
(RANCIÈRE, 2009: 59).
A ficção, entendida como construção do espaço que
abriga o que pode ser dito ou visto, é o que configura as diversas
apreensões do real, não sendo privilégio ou exclusividade das
artes. Não há real em si, mas maneiras como os objetos de nossas
percepções são configurados, por meio de ficções. E há inclusive
a ficção dominante, aquela que constrói consensos, evitando se
deixar apreender como ficção, fazendo-se passar pela realidade.
Assim, o trabalho da ficção, seja ela a da ação política ou a da
forma artística, é de fraturar, de imprimir fissuras no consenso,
desenhando outras paisagens do visível.
O que nos importa pensar são os modos como os artistas
ou as obras concedem sentido ao que antes não era visto, como
eles mudam os referenciais daquilo que pode ser visível e
enunciável. O que nos desperta interesse são os modos como a
arte – o cinema, neste caso – mostra de outro jeito, correlaciona
o que aparentemente não tem relação, produz rupturas
no aparente. Para Rancière, é neste sentido que devemos
compreender a ficção:
214 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
cinema burlesco. Neste ensaio, o autor destaca como risível aquilo
que mostra a rigidez mecânica no lugar da maleabilidade e da
flexibilidade de uma pessoa viva. A comicidade, para o autor, viria
de certo desvio da naturalidade da vida, do imbricamento entre
a vida e o mecânico, o corpo e a coisa: “A comicidade é esse lado
da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, aspecto dos
acontecimentos humanos que, em virtude de sua rigidez de um
tipo particular, imita o mecanismo puro e simples, o automatismo,
enfim o movimento sem a vida” (BERGSON, 2001: 64-65). É por
isso que a repetição é recurso frequente na comédia: a vida não
deveria repetir-se; nas situações de repetição, pressentimos o
mecânico, o automático, funcionando por trás do vivo.
A “mecanicidade” dos personagens de O que resta do
tempo é ressaltada por uma encenação bastante elaborada,
impressa nas pequenas ações cotidianas dos personagens. Nos
quadros fixos, o filme desenvolve arranjos gráficos utilizando
elementos cênicos e figurantes geometricamente posicionados,
em composições bastante equilibradas, em meio aos quais a
ação principal irá se desenrolar em movimentos coreografados:
no ambiente íntimo da casa, por exemplo, durante a infância de
Elia, todos levam a xícara à boca ao mesmo tempo, com trocas
marcadas de olhares. Esse automatismo dos corpos, ao mesmo
tempo em que insere toques sutis de comicidade, ressalta a
“feitura” do filme, a ficção como o espaço de reelaboração do
vivido. O componente cômico é, em outras sequências, reforçado
também pela postura de “observador distanciado” assumida pelo
personagem, que estranha o cotidiano e consegue perceber ali
a incongruência de uma situação considerada “normal”, o que
acentua nos outros personagens a inconsciência do automatismo
de suas ações.
No último segmento do filme, acompanhamos o
personagem Elia melancólico e observador na grande cidade
ocupada, Ramalá. A sequência começa ainda no hotel, com o
plano fechado no rosto do personagem que dorme. O ambiente
está completamente silencioso, até que irrompem sons de gritos,
tiros, correria, que despertam o personagem. Ao se aproximar da
janela, Suleiman vê manifestantes em confronto com soldados
israelenses. O personagem volta para a cama, e o barulho do
confronto é subitamente interrompido; em meio ao silêncio, só
ouvimos um rangido de rodinhas. Elia se aproxima da janela de
216 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
israelenses aparecem sob um modo derrisório, diminuídos em seu
poder, personagens que, na figuração do cotidiano proposta por
Suleiman, não são muito mais do que corpos que fazem funcionar
a máquina da ocupação, inconscientes de seus gestos.
De acordo com Bazin (1991: 64), “se o burlesco triunfou
antes de Griffith e da montagem, foi porque a maioria das gags
dependia de uma comicidade do espaço, da relação do homem
com os objetos e com o mundo exterior”. Com Suleiman, como
tentamos mostrar, a comicidade passa, em grande medida, pela
coreografia dos gestos, numa relação particular com os espaços
e os objetos em cena. Parece-nos que esta é uma das estratégias
de instauração do dissenso, que contribui, quase sempre, para
propor outra visibilidade aos que vivem sob o conflito. Pela
via da encenação burlesca, os opressores são destituídos do
poder com que oprimem os palestinos. Quando Fuad foge
pela cidade, no início do filme, observamos com ele, de longe,
homens fardados em um pequeno beco, saqueando uma casa.
Um deles traz um gramofone e coloca para tocar uma valsinha,
que servirá como base para que dois soldados desenvolvam
passos de uma dança patética, enquanto dobram juntos um
grande lençol branco.
Em diálogo com a encenação burlesca, marcada
pela repetição de acontecimentos e atuações rigidamente
coreografadas, é preciso atentarmo-nos para o espaço
enquadrado pela câmera. Naquela sequência do hospital
descrita anteriormente, mais uma característica importante
do filme se destaca: a vinculação ambígua do enquadramento
ao ponto de vista do personagem de Suleiman. Após vermos
os soldados levarem o paciente, um corte nos leva ao quarto
onde Fuad é atendido, acompanhado por Elia, que olha para
fora por uma janela, estabelecendo uma ligação entre ponto de
vista da câmera e ponto de vista do personagem. Essa ligação,
que muitas vezes aparece clara, por vezes nos engana: é o caso
da cena em que Fuad dirige sozinho pela estrada, que está
bloqueada por um caminhão tombado, carregado de armas
israelenses. A sequência se desenvolve em plano fixos nos quais
a câmera, ora olhando para Fuad, ora olhando para o caminhão,
permanece ostensivamente presa ao banco do carona, sugerindo
uma presença ao lado do motorista que, no entanto, não se
concretiza no corpo de nenhum personagem.
218 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
Nos espaços externos, o que vemos é uma cidade quase
esvaziada de corpos. Não há outras presenças que não aquelas
estritamente necessárias. Além de vazia, a cidade é um espaço não
demarcado: há esquinas, ladeiras, escadas, mas não se apreende, em
sua totalidade, a configuração do lugar. Voltemos ao início de O que
resta do tempo: a primeira cena do filme, depois do crédito do título,
mostra um soldado caminhando por uma pequena rua, num plano
frontal. Um corte nos mostra um grupo de civis armados sentados
em mesas distribuídas na calçada. O plano é também frontal, e eles
acompanham com os olhos o soldado que passa. Novamente, há um
corte para o soldado. Estabelece-se um diálogo entre os civis e o
soldado, num esquema de plano e contraplano que, no entanto, não
se dá sobre o mesmo eixo: a câmera varia entre um plano frontal da
rua e um plano frontal da calçada, formando um ângulo de 90º entre
elas. O soldado procura por uma cidade, os civis lhe dão a direção
apontando com o braço. O soldado se põe a caminhar, e os civis o
enviam para outro lugar. Esse jogo de plano e contraplano com eixo
variado e deslocamento das direções – dos braços que apontam e
da marcha do soldado – faz imperar a confusão espacial, dando a
ver o espaço desconfigurado do filme, ao mesmo tempo em que se
distancia da solução mais recorrente no cinema clássico – o plano/
contraplano sobre o mesmo eixo. Por fim, o soldado senta-se à mesa
com os civis, já não havendo mais lugar para onde ir.
220 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
ocupação israelense, e a forma cinematográfica possível para essa
vida parece passar, pelo que vemos em O que resta do tempo, pela
encenação coreografada e pelo cotidiano desnaturalizado; pela
construção do espaço no quadro, que confina e complexifica as
relações entre corpo e espaço; e pela fragmentação dos episódios,
que instaura uma temporalidade difusa. O que temos no filme
é uma suspensão da continuidade temporal, que dá lugar à
rememoração da história. Ainda que o filme siga uma cronologia
que remete aos marcos importantes da ocupação e da resistência
palestina, as partes que o compõem estão estruturadas em
episódios que quebram a sucessão dos acontecimentos, e impõem
uma temporalidade mais confusa. Isso fica mais evidente se
pensamos, por exemplo, nas cartas escritas pela mãe à cunhada
na abertura da segunda e da terceira partes: ao narrar situações
cotidianas, as cartas antecipam alguns acontecimentos da vida da
família, e a montagem que o filme faz, em seguida, retorna com os
episódios contados, numa sucessão que embaralha a progressão
natural dos fatos narrados. Quando ela conta da tentativa de
suicídio do vizinho, por exemplo, um som interrompe a escrita da
carta, um corte nos mostra a vizinha que chega à porta pedindo
ajuda, e ao voltarmos para a cozinha onde a mãe escrevia, já
estamos em outro tempo.
Esses sutis jogos de montagem, câmera, corpo e espaço
traduzem uma outra apreensão do lugar e do tempo. Como
ressaltam Ângela Prysthon e Marcelo Pedroso (2013: 482), há
neste cinema uma militância que
222 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
REFERÊNCIAS
FILMOGRAFIA
224 O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman / Maria Ines Dieuzeide
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 204- 225, JAN/JUN 2015 225
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8 - As referências bibliográficas das citações devem aparecer no corpo do texto. Ex. (BERGALA,
2003: 66)
10 - O envio dos originais implica a cessão de direitos autorais e de publicação à revista. Esta
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