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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
 
IDEAIS DEMOCRÁTICOS E REALIDADE
 
Seguido por três artigos adicionais:
O Pivô Geográfico da História
O Mundo Redondo e a Conquista da Paz
O Escopo e os Métodos da Geografia
 
 
HALFORD J. MACKINDER
O autor foi diretor da London School of Economics and Political Science; Professor de
Geografia na Universidade de Londres; e Lector de Geografia na Universidade de Oxford.
 
Edição brasileira de 2020.
Tradução para o português de Ulisses S. Bigarelli e Alessandra P. Zorkin a partir da
edição da National Defense University Press, Washington, DC, 1996.
Revisão técnica e Apresentação à edição brasileira por José William Vesentini.
 
 
ESSCONTEÚDO
 
Apresentação à edição brasileira..............
 
Preâmbulo, por Ervin J. Rokke................
 
Introdução, por Stephen V. Mladineo
 
Prefácio do Autor..................................
 
Capítulo um – PERSPECTIVA
 
Capítulo dois – O MOMENTO SOCIAL
 
Capítulo três - O PONTO DE VISTA DO MARINHEIRO
 
Capítulo quatro - O PONTO DE VISTA DO TERRENO
 
Capítulo Cinco - A RIVALIDADE DOS IMPÉRIOS
 
Capítulo Seis - A LIBERDADE DAS NAÇÕES
 
Capítulo Sete - A LIBERDADE DOS HOMENS
 
Capítulo Oito – PÓS-ESCRITO
 
Apêndice - NOTA sobre um incidente no Quai d’Orsay, 25 de janeiro de
1919
 
 
ARTIGOS ADICIONAIS
 
O Pivô Geográfico da História........................
 
O mundo redondo e o triunfo da paz .................
 
O Escopo e os Métodos da Geografia......................
 
Apresentação à edição brasileira
José William Vesentini
Professor Livre Docente aposentado do Departamento de Geografia da
Universidade de São Paulo; autor de várias obras, entre as quais: A Capital da Geopolítica:
um estudo geográfico-político sobre a implantação de Brasília (SP, Ática, 1987)1; Novas
Geopolíticas (SP, Contexto, 2011, 5ª edição); e Geografia e Geopolítica: ensaios e
resenhas (formato digital, eBook Kindle, 20202)
 
É com enorme prazer que atendo à solicitação de Ulisses S. Bigarelli
e Alessandra P. Zorkin, que me pediram para fazer uma revisão e uma
apresentação desta obra clássica – por sinal, não apenas do livro de 1919,
Ideais democráticos e realidade, como o título sugere, mas também de
outros três artigos de Mackinder, um de 1904 (O pivô geográfico da
história), outro de 1943 (O mundo redondo e o triunfo da Paz) e o último
de 1887 (O escopo e os métodos da geografia).
Inicialmente, cabe ressaltar a louvável iniciativa dos tradutores, que
se dispuseram a este esforço sem visar qualquer ganho monetário, pois me
afirmaram que seu objetivo era colocar esta tradução em sites que permitem
downloads gratuitos de obras já tornadas públicas, como estas de
Mackinder. O mérito dos tradutores torna-se maior ainda quando
recordamos que este livro e os três artigos anexos vêm preencher uma
lacuna, que existe em nosso idioma, sobre as obras tidas como clássicas da
geopolítica.
O texto mais antigo desta coletânea, aquele publicado originalmente
em 1887, a bem da verdade, nada tem a ver com geopolítica. É a
interpretação do Autor a respeito da geografia britânica da sua época.
Contudo, ele fornece uma chave para o entendimento do seguinte, o de
1904, que por sinal é o artigo do Autor mais mencionado, aquele no qual
engendrou originalmente os conceitos de Ilha-mundo e, principalmente, de
área-pivô, que depois passou a ser chamada de heartland ou terra-coração,
com a sua importância para uma eventual hegemonia na escala mundial. Os
demais escritos são reformulações ou atualizações das ideias que o autor
expressou no texto de 1904, feitas em decorrência da Primeira Guerra
Mundial (este livro de 1919), e da Segunda Grande Guerra (o curto texto de
1943).
Este livro de 1919, Ideais democráticos e realidade, é na verdade o
escrito do Autor onde suas teorias geopolíticas estão melhor e mais
longamente explicitadas. No sucinto artigo de 1943, feito a pedido da
revista norte-americana Foreign Affairs antes mesmo do término da
Segunda Guerra Mundial, ele tão somente reafirma a validade de seus
conceitos no mundo pós-guerra que se anuncia – Mackinder tem convicção
que a guerra já está ganha naquele momento e logo os aliados irão ocupar
Berlim –, e comenta brevemente sobre o advento do poder aéreo, dizendo,
contudo, que provavelmente não vai acrescentar nada de essencialmente
novo frente à estratégia militar e, principalmente, argumenta que a União
Soviética iria sair da guerra como uma grande vitoriosa, ocupando quase
todo o heartland de uma forma tal que nenhuma potência anterior havia
conseguido. Apesar disso, ele ainda continuava preocupado com um
eventual reerguimento da Alemanha, contra o qual propõe uma cooperação
eficaz e duradoura entre os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França, o
primeiro em profundidade de defesa no Atlântico norte – o Midland Ocean,
como ele denomina – e com suas imensas reservas de indústrias, agricultura
e mão de obra treinada; a segunda como um bastião, um aeródromo ou um
fosso-fortaleza; e a França como uma cabeça de ponte defensável, essencial
para o poder anfíbio das outras duas potências. Não conseguindo,
evidentemente, visualizar a futura divisão da Alemanha e a guerra fria que
se iniciaria logo após o final do conflito, ele sugere que a União Soviética
também coopere nessa empreitada visando impedir que a Alemanha
novamente se reerga e tente controlar a maior e mais estratégica parte da
Eurásia.
Nesse mencionado artigo de 1887, sobre o objetivo e os métodos da
geografia, Mackinder defende o ponto de vista que até então a geografia
tinha sido uma exploração da superfície terrestre, plena de aventuras por
terras ainda desconhecidas e não mapeadas. Evidentemente que terras
desconhecidas pelos europeus e, notadamente, pelos britânicos, pois os
textos de Mackinder expressam sempre um ponto de vista do Reino Unido,
da necessidade de manter seu império e seu sistema político democrático e,
principalmente, de os resguardar contra inimigos reais ou eventuais. Essa
fase exploratória da geografia, todavia, teria chegado ao seu final com as
viagens até os polos, até as regiões ártica e antártica, e agora que toda a
superfície terrestre é conhecida e mapeada, praticamente não existe mais
espaço para geógrafos exploradores ou aventureiros no estilo dos que
existiram até então3 – e do qual ele próprio foi um dos participantes,
embora de menor expressão. (Ele participou da expedição britânica que fez
a primeira escalada do monte Quênia, na África). O labor da geografia
doravante seria o de pesquisas de campo e trabalhos teóricos – pesquisas
tanto de geografia física como de humana; ele falava em geografia política,
mas o entendimento dessa expressão na época, pelo menos no Reino Unido,
vai além do estudo geográfico da política e abarca também os aspectos
econômico, demográfico e cultural. Ele advoga uma relação necessária
entre essas duas divisões da disciplina, afirmando que o estudo fisiográfico
por si só não é geografia e tampouco o estudo da sociedade sem relações
com o seu meio ambiente.
Nesse sentido, o seu texto de 1904, considerado seminal da
geopolítica (embora ele nunca tenha usado esse rótulo), foi exatamente a
sua primeira contribuição para esta nova fase da geografia britânica. Uma
reflexão teórica baseada na sua experiência como viajante e explorador –
sua carreira começou com estudos exploratórios de ciências (geologia e
biologia) e geografia física, antes de se dedicar aos estudos de história,
direito e economia, sendo que nestas duas últimas, além de ciências, ele
também obteve diplomas universitários; em geografia ele nunca conseguiu
o bacharelado ou a licenciatura pela simples razão que isso ainda não
existia no Reino Unido. Foi inclusive graças ao seu esfôrço, junto com
alguns colegas da Real Sociedade Geográfica (na época uma poderosa
organização que congregava comerciantes, industriais, membros da família
real e geógrafos-exploradores que se dedicavam ao conhecimento de terras
inexploradas e, portanto, potencialemente úteis ao império), que surgiram
posteriormente os primeiros departamentos de geografia no país, e que a
disciplina escolar geografia foi introduzida nos currículos das escolas
básicas. Em síntese, nesse artigo de 1887 ele anuncia uma nova fase para a
geografia, com a necessidade de ela doravante ter uma natureza mais
científica e menos voltada para explorações de terras no além-mar, e
pleiteia sua maior valorização pelas universidades e pelo sistema escolar
britânicos. Uma nova fase voltada essencialmente para pesquisas e estudos
teóricos, e o texto de 1904 expressa a sua contribuição teórica para uma
abordagem geográfica – que ele entendia como o estudo das influências do
meio ambiente sobre a história humana – a respeito do equilíbrio de forças
na história da Eurásia, com especial destaque para os confrontos entre os
poderes marítimo e terrestre, e sobre as invasões asiáticas que contribuíram
para constituir a Europa ocidental.
Este importante artigo de 1904, “O pivô geográfico da história”,
junto com este livro de 1919, “Ideais democráticos e realidade”, que é o seu
trabalho mais volumoso, são seus textos mais citados, às vezes elogiados e
muitas vezes criticados. O artigo é tido como o pontapé inicial da
geopolítica, embora essa não fosse a sua intenção: seu objetivo era uma
reflexão geográfica com vistas a mostrar a importância da localização
relativa, do relevo, da hidrografia, do clima e da vegetação nativa, do
povoamento e das características dos povos para as grandes potências e para
as relações de força no espaço mundial. Uma reflexão de natureza histórica
e geográfica, que procura evidenciar a importância dessas condições
geográficas para as grandes potências em diversos momentos da história –
Egito, Atenas, Roma, etc. –, tendo sempre em perspectiva a oposição entre
poder marítimo e poder terrestre.
A palavra geopolítica, cabe lembrar, surgiu após esse artigo de
Mackinder. Foi engendrada pelo jurista, historiador e político (foi deputado)
sueco Rudolf Kjeléen, que, num artigo publicado em 1905, “As grandes
potências” – e posteriormente num livro de 1916, “O Estado como forma de
vida” –, propôs esse rótulo como uma (pretensa) nova ciência que estudaria
a influência das condições geográficas na política, fazendo uso, à sua
maneira, de ideias e conceitos principalmente de Ratzel, de quem foi aluno.
Kjeléen tinha uma concepção de Estado como organismo que luta pela
sobrevivência na selva das disputas territoriais, um entendimento que não
podemos, de forma alguma, encontrar em Mackinder. Este encarava o
Estado não como um organismo e sim como instituição representante dos
interesses (econômicos, sociais, culturais) de uma sociedade e afirmava que
as guerras importantes, aquelas entre grandes potências, aconteciam devido
ao desenvolvimento econômico desigual das nações, das economias
nacionais4 – o que poderia implicar em disputas por mercados, por materias
primas, por mão de obra, por territórios e áreas estratégicas, mas que em
geral o motivo mais importante estava nos confrontos de interesses
econômicos5. De forma realista, e com grande presciência, Mackinder
enxergou em 1904 um cenário de praticamente uma pré-guerra, que logo
eclodiu em 1914; e, em 1919, reafirmou que, se os vencedores não
conseguissem controlar o ímpeto germânico para o rearmamento e o
controle do heartland, uma nova guerra mundial iria ocorrer, o que de fato
ocorreu em 1939-456.
Ele foi etiquetado como determinista ou até de adepto do militarismo
por alguns críticos, mas se pensarmos na época em que viveu e em que seus
artigos foram publicados, podemos notar que ele não fez nenhuma previsão
das guerras como acontecimento inevitáveis, mas afirmou de forma realista
que elas sempre ocorrem devido à natureza dos Estados com seus interesses
conflitantes e suas disputas, o que implicava em fortes probabilidades de
essas guerras virem a ocorrer. Ademais, ele também não asseverou que as
condições geográficas determinavam inexoravelmente a política dos
Estados, o desenvolvimento econômico ou a correlação de forças no espaço
mundial. Apenas enfatizou que as condições geográficas – entre estas, ele
valorizava a localização relativa, a extensão territorial e os recursos
naturais, as barreiras ou facilidades que o terreno oferece aos
descocamentos (pensando, evidentemente, na tecnologia do seu tempo), o
controle de certas áreas estratégicas para os deslocamentos (pelo mar ou por
terra), etc – podiam favorecer ou obstar tanto o desenvolvimento
econômico7 como o desenrolar dos conflitos militares.
Seus críticos em geral se restringiram ao ditado emblemático com o
qual ele encerrou o livro de 1919 – “Quem governa a Europa Oriental
comanda o Heartland; Quem governa o Heartland comanda a Ilha-Mundo;
Quem governa a Ilha-Mundo comanda o Mundo.” –, como se resumissem
todas as suas ideias. Afirmam que essa proclamação é simplista e sem
fundamento. Essas críticas, contudo, revelam uma falta de leitura atenta –
ou muitas vezes sequer superficial8 – de toda a explanação que fundamenta
essas frases de impacto. (Mackinder tinha convicção que eram apenas frases
de impacto). Esse tipo de crítica, a bem da verdade, é semelhante à
desvalorização de toda a obra de Marx a partir tão somente de frases
isoladas e também emblemáticas, tais como “O capitalismo produz
inevitavelmente uma crescente pauperização do proletariado” ou “A
revolução social com o final do capitalismo é eminente”, que vistas
isoladamente sem dúvida que são simplistas e até derrisórias se atentarmos
para os acontecimentos posteriores que as desmentiram cabalmente. Como
também é semelhante à crítica muitas vezes feita à obra de Maquiavel
somente pela célebre e emblemática assertiva que para os príncipes, os
governantes, é melhor serem temidos do que amados. Acontece que não se
pode criticar um autor com base em frases deslocadas do seu contexto,
frases que isoladamente podem parecer disparates, mas que entendidas
dentro de todas as exaustivas explicações dos autores, e dentro do contexto
nos quais eles viviam – a importância das condições geográficas para a
correlação de forças e para a guerra, em Mackinder; a análise rigorosa do
capitalismo do seu tempo por Marx; e os procedimentos do príncipe para
conquistar ou manter seu principado, em Maquiavel – são apenas frases
mais de efeito com um sentido de advertência, ou chamamento à ação, para
o interlocutor ao qual se dirigiam.
Essas três frases de Mackinder, nesse sentido, foram colocadas no seu
texto de 1919 principalmente com vista a chamar a atenção das autoridades
britânicas para o perigo representado pelo controle do heartland – isto é, do
maior poder terrestre com todos os seus recursos – por parte de algum
Estado da Europa continental, principalmente a Alemanha e/ou a Rússia,
embora eventualmente a China, como ele especulou, e a ameaça que isso
poderia representar para as democracias ocidentais. Assim como essas
frases emblemáticas de Marx serviam basicamente para conclamar o
(hipotético) proletariado mundial para a (pretensa) necessidade de sua luta
contra o capitalismo, e essa lição de Maquiavel era um aviso para o
príncipe: ele tinha antes de tudo que usar da autoridade para com os
inimigos, reais ou potenciais, inclusive com atos de violência física,
traições, prisões, subornos ou intrigas, para garantir a ordem social e
notadamente o seu domínio sobre o principado – e temos que lembrar que o
autor não escrevia em/para regimes democráticos, que não existiam, e sim
frente à realidade política da sua época.
Mackinder já foi reiteradamente acusado de fatalista ou determinista,
inclusive de ter uma concepção histórica alicerçada no darwinismo, ou até
no malthusianismo, mas ele próprio desmentiu esse ponto de vista ao
afirmar categoricamente que “No passado, sob influência da teoria
darwiniana, chegou-se a pensar que as formas de organização que se
adaptem melhor ao seu meio natural são as que devem sobreviver. Hoje
percebemos, conforme emergimos de nossa prova de fogo, que a vitória
humana consiste em nos elevarmos acima desse mero fatalismo.”9
Nesses termos, as condições geográficas eram para ele
importantíssimas, a base sobre a qual viviam as sociedades, mas nunca
implicavam em algum fatalismo ou destino inevitável. Ele via nos seres
humanos o agente ativo da história, em especial os Estados com sua
organização, sua economia nacional, seu regime político, seus valores e sua
vontade, o maior ou menor acerto de suas estratégias em função dos
desafios com que se defrontam, etc. E enfatizava que a chave para o
desenvolvimento econômico estava no aumento da produtividade do
trabalho – e essa maior produtividade, segundo ele, faz com que num
mesmo espaço possa viver mais e mais pessoas, embora nunca de forma
ilimitada, o que significa uma expansão da inteligência humana sobre as
limitações iniciais do meio ambiente.
Há no principal trabalho do Autor, neste livro de 1919, uma expressão
– going concern –, e uma palavra – organizer –, que são essenciais para a
compreensão de suas ideias e ao mesmo tempo, como os tradutores me
confirmaram, difíceis de serem traduzidas devido ao fato de mudarem de
sentido conforme o contexto. A expressão going concern pode significar
um empreendimento que funciona, uma estratégia ou empreitada eficiente e
voltada para objetivos realistas, como pode também significar uma
engrenagem voltada para objetivo de lucro ou para o crescimento da
economia nacional em detrimento dos seres humanos, que são tratados
somente como instrumentos ou força de trabalho. E a palavra
“organizador”, que ele aplica tanto a indivíduos quanto a Estados, também
pode assumir uma conotação positiva ou negativa conforme a situação. Um
organizador seria um pessoa – ou uma política estatal – que pensa em
termos de “objetivos e meios”, sendo a própria população tida como um
meio, uma ferramenta – e não um fim em si, como para o idealista. O
organizador, portanto, busca sempre a eficiência, a ordem e a disciplina,
muitas vezes até de forma autocrática. De uma forma geral, Mackinder vê
esse organizador com viés negativo: o perigo de um organizador que
controle o heartland, ou a burocracia e a perda de liberdades gerada pelo
controle da sociedade por um organizador. Mas em alguns casos ele pensa
que um organizador é necessário, mesmo numa democracia, para enfrentar
o caos (como aquele gerado pela Revolução Francesa seguida pelo Terror e
pela desarticulação da economia), para um going concern visando ampliar a
produtividade e, consequentemente, o bem estar social pela expansão
econômica, ou ainda para fazer frente a ameaças externas. O organizador
para ele sempre é um realista, que pensa objetivamente atendo-se aos fatos,
ao contrário do idealista, que mesmo sendo indispensável na democracia e
até na civilização, pensa em termos de princípios e sem grande preocupação
com a realidade. O ideal para ele – mesmo tendo plena ciência que isso é
extremamente difícil – seria um estadista ao mesmo tempo realista (embora
não um organizador autocrático) e que incorpore as ideias utópicas de
liberdade, fraternidade e igualdade.
O grande infortúnio de Mackinder não foi o de ser desmentido pelos
acontecimentos, como argumentou Raymond Aron. Foi mais o de ser
indentificado com Kjeléen, Mahan, Haushofer e outros, como se ele fosse
um geopolítico com ideias semelhantes a estes, pertencente a uma mesma
escola de pensamento – aquela que Aron afirmou engendrar um
“esquematismo geográfico” ou ainda “ideologias geográficas.”10 O
geógrafo britânico tinha perspectivas distoantes das desses mencionados
autores; ele não era dogmático, tampouco tinha uma concepção organicista
do Estado e muito menos a crença na “superioridade” natural de alguma
“raça” ou no “destino manifesto” de alguma nação, como era comum na
geopolitik germânica ou até, de forma um pouco mais nuançada, em outros
autores como o estadunidense Mahan. Era um estudioso da história
econômica e militar, que examinou as condições que possibilitaram certa
hegemonia regional ou mundial (pensando-se no “mundo conhecido”
daqueles povos e não em toda a superfície terrestre) de vários Estados ou
impérios em diferentes momentos da história – Egito, Atenas, Cartago e
Roma na antiguidade, o império mongol, o império turco-otomano, etc.,
além do império britânico –, e mostrou que a localização geográfica, assim
como outros fatores ambientais, sempre desempenharam o seu papel,
embora nunca como fator exclusivo que dispensaria os demais (a estratégia
militar, a produção econômica total e em especial sua produtividade, o
efetivo demográfico, as decisões políticas, etc.). Ao contrário, esses demais
fatores sempre se entrecruzaram e se somaram a essas condições
geográficas, muitas vezes com proeminência.
Um de seus exemplo foi a explicação para o império britânico. O fato
de a Grã-Bretanha ser insular – portanto, relativamente protegida das
guerras e invasões que eram constantes no continente europeu –, assim
como a existência de reservas de minério de ferro e carvão de boa
qualidade, e mão de obra disponível para a indústria, foram fatores
fundamentais para a eclosão da Revolução Industrial e da subsequente
formação do império que exerceu inegável supremacia mundial em grande
parte dos séculos XVIII e XIX. Mas o Japão também era insular e nem por
isso formou um poder marítimo – pelo contrário, ele preferiu se isolar até
ser obrigado se abrir para o comércio externo. E sem o sistema político e
jurídico inglês, que permitia certas liberdades que não existiam em nenhum
outra sociedade naquele momento, sem o seu sistema de propriedade, sem a
decisão (política) de expandir o poder naval e a indústria, sem a decisão e a
estratégia adequadas para controlar no além-mar territórios ricos em
recursos (naturais e humanos) ou rotas estratégicas para o comércio, essa
supremacia jamais teria ocorrido.
Até mesmo a visão comum nos manuais de geopolítica, que vêm
Mackinder como o propugnador do “poder terrestre” em oposição a Mahan,
que seria o evangelista do “poder marítimo”, é exagerada e, no limite,
enganosa. Sem dúvida que Mackinder num certo sentido se opôs à
proeminencia “natural” ou permanente do poder marítimo, especialmente
com a crescente unificação da parte continental da Eurásia através da
expansão das redes ferroviárias, algo que começava a ameaçar a supremacia
do poder marítimo iniciada com as grandes navegações europeias. Mas ele
não advogou o oposto, uma supremacia constante ou inevitável do poder
terrestre. Ele mostrou, nos exemplos históricos que examinou, que muitas
vezes é o poder marítimo que prevalece (como nos casos do Egito, de
Atenas ou de Cartago em seu apogeu) e outras vezes o terrestre (como
Roma, Macedônia ou o império mongol) e que tudo depende do contexto,
do momento e da região do globo, e que o ideal é ter um equilíbrio, um
robusto poder terrestre associado a um forte poder marítimo. Evidentemente
que, pela época em que viveu e escreveu, ele não podia imaginar um poder
aéreo muito ativo e decisivo para uma hegemonia mundial - ele mencionou
os aviões, em 1919, apenas como auxiliares a serviço do poder terrestre; e
em 1943 ele especula sobre a possibilidade de um poder aéreo, mas sempre
assinalando que o controle de bases terrestres, inclusive bases aéreas, é
fundamental. Tampouco podia imaginar um poder aeroespacial, e menos
ainda um poder cibernético. Daí então a inadequação das críticas pelas
quais ele ignorou outros poderes além do marítimo e do terrestre. Mas sem
dúvida que pesquisas e reflexões nesse sentido – isto é, sobre a
importâncias desses novos poderes, inclusive hoje da mídia e das redes
globais de comunicações (algo sem a menor importância na época de
Mackinder), podem enriquecer esta rica temática interdisciplinar que passou
a ser conhecida como geopolítica. A bem da verdade já existem centenas,
ou talvez até milhares de trabalhos, muitos de excelente qualidade, a
respeito da geopolítica do poder aeroespacial, do Oriente Médio, da
Antártida, do Ártico, de disputas territorial-religiosas, de disputas pelo
controle de meios de comunicações, etc., e como se sabe, o início desse
“resgate” da geopolítica ocorreu com Yves Lacoste e sua entourage ao
redor da revista Hérodote – Revue de Géographie et de Géopolitique,
editada trimensalmente na França desde 1976.
Mackinder apontou, por exemplo, que o poder terrestre de Roma só
suplantou definitivamente Cartago e se tornou num império mundial após
ter desenvolvido uma frota de navios para o transporte de soldados e de
mercadorias, ou seja, um poder marítimo. O poder marítimo é essencial
para controlar as veias e artérias por onde corre o comércio mundial, base
do desenvolvimento econômico, podendo assim estrangular um poder
terrestre que não seja autosuficiente – como, aliás, nenhum Estado nacional
o é, por maior que seja o seu território11. Mas o poder terrestre é a base, o
local onde se produz alimentos, onde existem materias primas e mão de
obra, onde se localizam as indústrias. Sem essa base, o poder marítimo se
esvazia. Por isso, afirmou Mackinder, todo poder terrestre deve também ter
acesso aos mares, e todo poder marítimo deve ter bases terrestres de apoio.
Mais do que um pretenso “teórico do poder terrestre”, Mackinder foi
um proponente de certo equilíbrio, ou, antes de tudo, alguém que procurou
advertir as autoridades britânicas que a base euroasiática do heartland – a
imensa área do globo onde se concentra a maior parte da população e dos
recursos mundiais – era importantíssima para garantir o império e também
impedir o estrangulamento do seu poder marítimo por um Estado que
controlasse todos esses recursos. E o inverso também seria verdadeiro,
como aliás perceberam os teóricos alemães que leram Mackinder: sem um
bom poder marítimo, um Estado de base terrestre, mesmo que imensa,
poderia ser estrangulado pelo controle das vias oceânicas por um rival. Por
sinal, foram os estrategistas alemães reunidos na Zeitschrift für Geopolitik,
editada por Karl Haushofer e publicada de 1924 até 1944 com enorme
tiragem para a época, que popularizaram o nome “geopolítica”; e como eles
fizeram, à sua maneira, amplo uso das ideias e conceitos de Mackinder, o
geógrafo britânico ficou marcado como o grande teórico desse campo de
estudos.
Mackinder argumentou que, com a construção de extensas redes
ferroviárias no continente europeu, inclusive até o extremo leste da parte
continental da Ásia, a “era colombiana”12 estava chegando ao seu final e,
com ela, a supremacia do poder marítimo. Reiterando: isso não significava,
para ele, que agora haveria uma supremacia inexorável do poder terrestre e
sim que o poder marítimo britânico – e também o norte-americano –
deveria se preocupar com o controle daquela rica e imensa região eurasiana
seja pela Alemanha (o que ele mais temia), seja pela Rússia ou até no futuro
eventualmente pela China, como ele aventou ainda em 1904 e mais uma vez
com presciência.13
Voltemos agora à questão da geopolítica e da identificação, comum
em boa parte dos que examinaram essa temática desde pelo menos os anos
1930, segundo a qual Mackinder seria parte desse mesmo conjunto de
teóricos que inclui Kjeléen, Haushofer e outros – às vezes se inclui até
Ratzel nesse conjunto, como se ele tivesse sido um geopolítico! –, e que
toda geopolítica implicaria no pressuposto de condicionamento, pelas
condições geográficas, dos traços dos Estados nacionais e em especial de
suas disputas14.
Na realidade, esse ponto de vista equivocado nasceu da rejeição frente
à Geopolitik alemã dos anos 1920, 30 e 40 – e durante várias décadas toda e
qualquer geopolítica passou a ser suspeita e taxada de determinista ou
defensora de algum expansionismo territorial. Mas a situação mudou a
partir do final dos anos 1970, com o surgimento das “geopolíticas críticas”,
ou “novas geopolíticas” de uma forma geral, aquelas que não mais
enxergam o Estado como único agente das relações internacionais ou das
disputas e conflitos na escala mundial, aquelas que valorizam igualmente a
geoeconomia ou a geocultura, aquelas que não partem de um ponto de vista
do Estado, como as geopolíticas clássicas, e sim de outros atores ou
sujeitos, etc. Sem dúvida que o espaço geográfico – e os territórios –
continua a ser importantíssimo em qualquer geopolítica, mas isso nada tem
a ver com determinismo ambiental.
Como já argumentamos, Mackinder não pode ser identificado com as
concepções organicistas ou até às vezes racistas de autores como Kjeléen ou
Haushofer. Eles fizeram uso de seus conceitos, como os de ilha-Mundo ou
heartland, e por vezes criaram novos conceitos similares, mas com outras
perspectivas e visões de mundo. Aquela geopolítica clássica, que de fato
tinha uma perpectiva darwinista de luta – econômica, militar e
principalmente territorial – entre os Estados no cenário internacional,
tornou-se relativamente obsoleta com as mudanças que ocorreram a partir
de 1945 – mudanças políticas, territoriais, econômicas, tecnológicas,
demográficas e culturais, nos meios de comunicações e de transportes, etc.
Mackinder certamente que escrevia de um ponto de vista britânico, ou,
como ele preferia, das democracias ocidentais, pensando nas suas
estratégias frente às ameaças que poderiam vir do heartland, especialmente
se ele fosse controlado por uma – ou uma associação entre elas – grande
potência autocrática como eram Rússia e Alemanha. Contudo, ele reiterou
em seus escritos, especialmente neste de 1919 e depois também no curto
ensaio que publicou em 1943, que o ideal não seria a supremacia de um ou
alguns Estados poderosos para dividirem o espaço mundial entre si (como
pretendia Haushofer), e sim um equilíbrio, com uma associação
internacional que evitasse as guerras e inclusive provovesse a expansão
mundial da democracia e do desenvolvimento industrial com o objetivo de
se atingir uma situação de cooperação, e não mais de antagonismos, entre
os Estados nacionais. Nesse sentido – e também pela inegável importância
daquela imensa região da Eurásia, com todos seus recurnos humanos,
naturais e econômicos, que ele denominou heartland –, as ideias de
Mackinder continuam a ter validade nos dias atuais, tanto que autores como
Kennedy, Kaplan, Marshall, Kissinger ou Brzezinsk, dentre vários outros,
ainda fazem uso delas15. E a própria reedição da obra do autor pela
National Defense University Press, de Washington, em pleno 1996 e após o
final da guerra fria, com apresentações elogiosas de dois oficiais de alta
patente e professores de estratégia em academias militares, demonstra que
as ideias de Mackinder não estão tão ultrapassadas assim – embora o
mesmo não poderia ser dito das obras de Kjeléen, Haushofer ou mesmo
Mahan.
Ao fazermos essa afirmação – a de que a obra de Mackinder não está
tão ultrapassada como querem alguns – não estamos, evidentemente,
sugerindo que suas idéias continuam totalmente válidas sem quaisquer
correções, ou que não há extemporaneidades ou até equívocos em várias de
suas reflexões. Sem dúvida que há. Seu entendimento de geografia – e das
condições geográficas –, por exemplo, é datado: hoje os geógrafos se
referem mais a um “espaço construído” pela humanidade e não tanto –
embora esta continue a existir – às influências das condições fisiográficas
sobre as sociedades. A geografia física, portanto, mesmo permanecendo
como extremamente importante, não é mais, como ele defendia, o ponto de
partida obrigatório para se analisar e compreender a realidade social e as
relações entre os Estados. A Alemanha já não inspira mais aquela fobia que
se percebe em Mackinder, que demonstrava tendências germanófobas – ou
talvez eslavofóbicas – e taxava os prussianos (que considerava mais como
eslavos e distintos dos “verdadeiros alemães”, que seriam aqueles das
regiões mais ao sul e sudoeste) como um povo rude e imbuído de uma
kultur autoritária.16 E com a atual globalização e revolução científico-
tecnológica, essa separação entre os continentes – ou entre o Reino Unido e
o continente europeu – como uma barreira extremamente eficaz talvez já
não tenha mais sentido pela diminuição da importância das distâncias ou
dos obstáculos físicos como montanhas, canais e até mares. Mas Mackinder
já intuia isso, pois desde 1919 falava num “mundo redondo” (hoje diríamos:
globalizado) e no qual existe somente um único continente e várias ilhas
gravitando ao seu redor. E, nos dias atuais aviões (e até drones) permitem o
transporte de cargas de forma extremamente rápida e muitas vezes a
distâncias longínquas sem os obstáculos encontrados pelos navios ou pelos
transportes por terra; isso sem falar nos foguetes teleguiados ultrassônicos,
como os que a China testou com sucesso neste ano de 2021, que se movem
com velocidade cinco vezes a do som (que é de 1350 Km/h) e orbitam a
Terra com o próprio impulso, sendo manobráveis e podendo serem
desviados da rota inicial.
Uma das críticas a Mackinder neste mundo pós-guerra fria, no qual
vem ocorrendo uma multiplicação de estudos geopolíticos e, ao mesmo
tempo, de críticas a respeito, foi a de Yves Lacoste, que, como
supramencionado, liderou uma revalorização da geopolítica a partir de
1976, procurando renovar essa área de estudos e desvinculá-la daquela
geopolitik alemã. Menciono aqui esta leitura crítica, que no fundo é
superficial e não contesta com argumentos sólidos o núcleo mesmo da
teoria estratégica mackinderiana, apenas devido à importância desse autor
francês, que com sua aguda análise da estratégia norte-americana na Guerra
do Vietnã, onde ele demonstrou que a geografia (física e humana) do
território era fundamental para o raciocínio estratégico, e depois, com a
criação dessa revista Hérodote, ele encabeçou uma retomada deste campo
de estudos pela academia em vários países do mundo. Como o próprio
Lacoste admite, foi somente em 2012 que resolveu comentar as ideias de
Mackinder – inclusive reiterando que foi uma das raríssimas vezes, nos 36
anos de existência dessa sua revista voltada para temas geopolíticos, que
saiu um artigo de qualquer um dos colaboradores fazendo alguma
referência a esse geógrafo britânico clássico!17 Ele aponta várias
insuficiências no artigo de Mackinder de 1904, mas em geral fazendo
referência a fatos ou processos que este deixou de mencionar – algo que,
salvo nas raríssimas exceções em que a omissão de determinados fatos
comprometem a tese principal de uma obra (o que não é o caso aqui), tem
pouca relevância para uma crítica séria, pois qualquer estudo, especialmente
nas ciências humanas e sociais, nunca consegue esgotar totalmente o
assunto abordado e sempre deixa de mencionar alguns importantes fatos
correlatos. Mas sobre o que Mackinder realmente escreveu, as criticas de
Lacoste são superficiais e somente repetem alegações de centenas de
críticos anteriores. E o pior de tudo é que muitas vezes esses comentários
do tipo “deixou de atentar para isso ou aquilo” têm por base pesquisas que
sequer existiam na época em que Mackinder escreveu esse seu artigo
seminal de 1904, no qual Lacoste concentrou a sua leitura. Lacoste parece
ter se motivado a escrever este seu artigo por dois motivos principais:
primeiro, porque como ele afirma logo no início, a geopolítica encabeçada
por Mackinder entrou nos currículos das escolas de guerra e de negócios na
França, além de estar sendo cada vez mais ensinada pelos professores de
história e geografia; segundo, com a preocupação de desancar a obra do
estadunidense Robert Kaplan18, que cita Mackinder de forma elogiosa
dezenas de vezes e obteve um enorme sucesso editorial não apenas em
inglês, mas também em francês (para irritação do chauvinista Lacoste) e em
vários outros idiomas para os quais foi imediatamente traduzida.
O método usado por Lacoste foi o de fazer citações textuais de longos
trechos do artigo de Mackinder, seguidos por comentários sobre a falta de
alguma informação sobre o assunto abordado, ou da pretensa inadequação
do que foi dito. Entre estas, os principais problemas que Lacoste detectou
foram que Mackinder não define com precisão o conceito chave de
heartland (deixaremos para comentar este questionamento, que não é
apenas de Lacoste, para o final desta apresentação), que ele é extremamente
conservador e defensor do imperialismo britânico e, como não podia deixar
de ser, que ele é determinista. Tirando a imprecisão do conceito de
heartland, são mais xingamentos do que críticas no sentido rigoroso do
termo. Lacoste assinala que: “A tese de Mackinder é, portanto,
estreitamente determinística e, em suma, bastante rudimentar, uma vez que
torna um grande dado geológico, neste caso extensões muito vastas de
planícies, a causa fundamental da existência do Império Russo. [...] Kaplan
tem uma concepção bastante grandiloquente da geografia, da qual ele tem
uma ideia muito vaga. O que me parece surpreendente em suas longas
referências a Mackinder é que ele não parece perceber as inadequações
estratégicas da tese do heartland, que se tornaram evidentes hoje.”19
O mais importante, entretanto, é que Lacoste não demonstra por qual
motivo essa tese, esse conceito estratégico de heartland, estaria inadequada
hoje. Ele apenas contrasta Mackinder com Nicholas Spykman, estranhando
que aquele primeiro não fez nenhum comentário sobre as teorias deste, que
teria demonstrado que o rimland (o anel exterior ou, no vocabulário de
Mackinder, os crescentes) é que seria a região estrategicamente mais
importante no espaço mundial. Lacoste, de forma nada original, critica
aquelas três frases de efeito de Mackinder (“Quem controla a Eurásia...”) e
as substitui pelas de Spykman: “Quem controla a rimland governa a
Eurásia; Quem governa a Eurásia controla os destinos do mundo”. E aí
conclui o seu texto, afirmando que a China está se tornando uma
superpotência nessa região do rimland e, por isso, a tese de Spykman seria
mais correta que a de Mackinder.
Mas por quê seria? Lacoste não produz nenhum argumento para
responder a essa questão. Em síntese, um comentário crítico tosco, que não
faz jus à importância nem do geógrafo/geopolítico francês e tampouco à do
britânico. Ademais, ele parece não ter percebido que, ao concluir dessa
forma seu comentário crítico, está endossando – e não refutando, como
pretendia – a teoria mackinderiana, pois a frase emblemática de Spykman
termina com a afirmação que “quem governa a Eurásia controla os destinos
do mundo”, e isso é exatamente o que o geógrafo britânico havia afirmado!
A única diferença essencial é que Spykman deixou de lado, pelo menos
nessa conclusão – embora ele tenha feito toda a sua argumentação teórico-
estratégica a partir de Mackinder – o heartland, mas este forma a maior
parte da Eurásia, é onde estão a grande maioria dos recursos – população,
indústrias, agricultura, cidades e, inclusive, meios de transportes – e, dessa
forma, a frase de efeito de Spykman pouco muda em relação à de
Mackinder. Inclusive o exemplo da China pouco tem a ver com sua
localização e sim com determinadas decisões políticas implementadas a
partir de meados dos anos 1970.20
Spykman, na verdade, foi uma espécie de continuador de Mackinder,
embora com outro ponto de vista, aquele dos Estados Unidos e não mais o
da Grã-Bretanha. Ele escreveu sua obra a pedido do presidente Roosevelt, e
sua grande inovação foi “ler” o espaço mundial a partir de uma perspectiva
norte-americana com mapas de projeção polar centrados no polo Norte.
Mackinder, por sua vez, tinha utilizado mapas com a projeção de Mercator
centrados na Europa e no meridiano de Greenwich21. Por sinal, Mackinder,
no livro de 1919, se queixa dos então precários mapas disponíveis em seu
país, e mesmo assim fez uso apenas deles apesar de um dos debatedores,
Spencer Wilkinson, quando ele leu seu artigo de 1904 antes da publicação,
ter chamado a sua atenção para isso. Mas qualquer aluno que estudou
geografia até o ensino médio sabe que não existe uma projeção cartográfica
que seja melhor ou “mais verdadeira” que as demais – isso, é claro, desde
que a escala e os detalhes representados sejam semelhantes. São apenas
perspectivas diferentes do mesmo globo. Mackinder estava preocupado com
as ameaças ao império britânico, e Spykman em elaborar uma estragégia
para os Estados Unidos no mundo pós-guerra (a publicação de sua obra
geopolítica é de 1942)22. O geógrafo inglês foi o primeiro a imaginar um
“mundo redondo”, totalmente integrado, no qual se destacava a imensa
“ilha” da Eurásia, inclusive pelas principais potências da sua época – Reino
Unido, França, Alemanha e Rússia. (Em 1904, os Estados Unidos ainda
despontavam como eventual grande potência). O geopolítico norte-
americano precisava pensar na política externa do seu país, inclusive a
estratégia militar, nesse mundo unido, que ele aceitou integralmente pela
interpretação de Mackinder, e com isso, ele assinalou que a tradicional
posição de isolamento dos Estados Unidos não eram mais possíveis no
cenário mundial que se desenhava após esse grande conflito. Assim, longe
de ter “superado” Mackinder, como argumentam alguns, inclusive Lacoste,
ele fez uma leitura em outra perspectiva e num outro momento (em relação
ao artigo de 1904), inclusive bastante diferente, daquele no qual Mackinder
elaborou sua teoria. Num certo sentido, podemos dizer que ele procurou
atualizar a teoria da Ilha-Mundo e do heartland sob uma nova perspectiva, a
da estratégia norte-americana no mundo após a Segunda Guerra Mundial. E
convém lembrar o fato óbvio que os Estados Unidos não estão no
continente europeu, logo Spykman enfatizou o rimland e não o heartland.
Mas ambos, Mackinder e Spykman, forneceram subsídios para os
estrategistas norte-americanos na guerra fria contra a União Soviética, e
ambos continuam a serem citados – embora não apenas eles, e nem sempre
sendo seguidos à risca – nas estratégias deste mundo pós-guerra fria.
*****
Numa obra clássica, o historiador e diplomata Edward H. Carr
afirmou que o realismo é indispensável para a crítica ao idealismo, ou da
mentalidade utópica, mas que todo pensamento político lúcido deve ter por
base tanto a realidade como também a utopia.23 Isso se aplica com justeza a
Mackinder. Mesmo sendo um realista e adepto de um Estado e uma
economia eficientes – tanto na busca de uma maior produtividade como de
um poder militar pronto a responder aos desafios –, ele também era um
democrata e temia antes de tudo o controle do heartland por parte de
Estados autocráticos como a Alemanha e/ou a Rússia. Ele lastimou que os
ideais da Revolução Francesa tenham se enfraquecido e desembocado num
autocrata militarista como Napoleão – por sinal ele via com clareza, em
1919, esse mesmo perigo na Rússia, que para ele estava se transformando
numa hedionda ditadura burocrática. Encarava isso como uma tendência
das revoluções alicerçadas em valores idealistas ou utópicos: o de serem
transformadas pela realidade e desembocarem na prevalência de práticas
opostas a esses ideais24.
Lamentando que o regime democrático é incapaz de pensar
estrategicamente, ele criticou o idealismo das autoridades dos Estados então
protagonistas nas relações internacionais que considerava como as grandes
democracias – Grã-Bretanha, França e Estados Unidos –, por não
conseguirem enxergar a realidade ou o perigo representado pelo
expansionismo prussiano (antes de 1914) ou o eventual rearmamento da
Alemanha (depois de 1918). Entretanto, ao mesmo tempo, argumentou que
tanto o realismo como o idealismo eram necessários numa política bem
sucedida – sem idealismo, afirmou, a civilização deixaria de progredir e se
estagnaria ou até regrediria. Em 1919 ele depositava suas esperanças na
formação da Liga das Nações, criada exatamente no ano de publicação de
Ideais democráticos e realidade, mas que desde o início nasceu
desfigurada, sem a principal potência do momento – os Estados Unidos não
ingressaram devido ao veto do Congresso, que contrariou o desejo do
idealizador dessa liga, o presidente Wilson –, e sem qualquer proposição
efetiva que obstasse o descumprimento das cláusulas do pós-guerra por
parte dos perdedores, especialmente a Alemanha. Nasceu enfim como um
sonho idealista que não se adaptava à realidade, uma sociedade de nações
sem qualquer poder efetivo para garantir o seu objetivo de manter a paz.
Mackinder afirmou que o século XVIII tinha colocado em pauta o
ideal de liberdade, o século XIX o da nacionalidade, e o século XX, ele
imaginava, o de uma Liga das Nações que evitasse novas guerras. Mas
nenhuma associação internacional sem poder de fazer cumprir suas
determinações seria eficaz, e, ao mesmo tempo, uma sociedade com tal
poder poderia resultar numa tirania mundial. Ou seja, uma lucidez realista
que esse sonho idealista que ele próprio professava, o de uma sociedade
internacional que garantisse a paz e relações econômicas de cooperação
entre as nações, era difícil de ser conciliado com a realidade das soberanias
nacionais em constantes disputas de poder: “Para manter a justiça entre os
indivíduos, o poder do Estado é invocado, e agora reconhecemos, após o
fracasso do direito internacional em evitar a Grande Guerra, que deve
haver seja algum poder ou, como dizem os advogados, alguma sanção para
a manutenção da justiça entre as nações. Mas o poder que é necessário
para a vigência da lei entre os cidadãos facilmente se transforma em
tirania. Seria possível estabelecer uma potência mundial que seja suficiente
para manter a lei entre grandes e pequenos Estados, e ainda assim não
desembocar em uma tirania mundial?”25
Teria Mackinder sido um determinista e um conservador, como
afirmaram vários autores e Lacoste repetiu? Se taxarmos como
determinismo a opinião que as condições ambientais exercem alguma
influência sobre a história dos povos, e sobre cada sociedade humana no seu
território, então a lista dos deterministas teria centenas ou até milhares de
páginas, incluindo não apenas geógrafos, mas também eminentes filósofos,
historiadores, sociólogos, antropólogos, arqueólogos, economistas,
médicos, biólogos, inclusive entre estes dois últimos alguns notórios
ganhadores do prêmio Nobel. Existem os que levam a sério essa concepção
extrema. Mas se adotarmos o critério mais sensato que determinismo é a
crença no condicionamento inexorável da sociedade humana pelo ambiente,
então essa lista se reduziria a poucos e sem dúvida Mackinder não faria
parte dela. Várias vezes, em seus escritos, ele fez afirmações como estas:
“O Homem altera seu ambiente e a dinâmica desse ambiente em sua
posteridade é, consequentemente, alterada. A relativa importância das
características físicas varia de época para época de acordo com o estado
de conhecimento e de civilização material.”26 Isso nada tem de
determinismo e é uma afirmativa sem dúvida aceita pela imensa maioria
dos pesquisadores tanto nas ciências humanas como nas naturais. Se
pensarmos nas civilizações ou potências que ele analisou perscrutando a
influência das condições geográficas – Atenas, Cartago ou Roma, na
antiguidade; império mongol, império britânico, etc. – é evidente que o
peso dessas condições era bem maior do que nos dias atuais e não há
qualquer dúvida que certos fatores ambientais – por exemplo, a situação
insular da Grã-Bretanha no século XVIII, a posição do Egito antigo no vale
do Nilo, a posição geográfica de Atenas na antiguidade, etc. – exerceram
enorme influência (evidentemente que também somadas a outros fatores
ambientais, demográficos, econômicos e de decisões políticas, além
evidentemente de circunstâncias ocasionais que sempre têm o seu papel)
sobre a realidade dessas sociedades.
Mackinder foi um conservador? Tudo depende da definição desse
termo. Se imaginarmos conservadorismo numa acepção vulgar, e
infelizmente comum no Brasil, como alguém que é reacionário (como se
essas duas posições fossem idênticas!), que é contra as mudanças sociais
visando maior igualdade ou liberdade, contra o progresso, contra os direitos
democráticos e por aí afora, então nosso Autor não foi um conservador. Ele
até elogiou os ideais da Revolução Francesa de igualdade, fraternidade e
liberdade, como também via com bons olhos os ideais socialistas da
Revolução Russa, que para ele se iniciou em fevereiro de 1917. Mas ele era
antes de tudo um realista e acreditava que os ideais utópicos, conquanto
fossem elogiáveis e inclusive “o sal [fertilizante] da terra”, numa expressão
que usou, se chocavam com a realidade, e essas revoluções via de regra
acabariam se transformando em tirania. E para ele não era nenhuma
catástrofe a decadência da hegemonia britânica e a (possível) ascensão de
uma potência mundial como os Estados Unidos, ou até mais remotamente
da França, pois os considerava como países democráticos e o que ele de
fato mais temia era a hegemonia mundial de uma potência autocrata como
eram a Rússia ou a Alemanha. Mas se considerarmos como conservador
alguém apegado às tradições, inclusive às tradições democráticas, alguém
que acredita no nacionalismo e na autonomia nacional de todos os povos,
que apregoa maior igualdade principalmente de oportunidades, e que
acredita sinceramente no dever de levar as conquistas da modernidade – isto
é, da ciência e da tecnologia modernas – para o mundo mais pobre, então
Mackinder foi um conservador. Inclusive depois de sua carreira acadêmica
e de ter ocupado cargos de assessoria no governo britânico, ele se lançou na
política e durante doze anos foi membro do Congresso pelo Liberal
Unionist Party, que se associou com o partido Conservador e,
posteriormente, se fundiu neste. Mas o conservadorismo britânico tem uma
longa história e não se confunde com reacionarismo27. Mackinder elogiava
a democraca, mas desaprovava o liberalismo, algo raro na época. Era um
crítico da burocracia, vista apenas como um mal necessário, e adepto do
federalismo e da descentralização política e econômica, tanto dentro dos
Estados como no plano internacional. Ele criticava tanto o laissez faire
quanto o protecionismo “científico” que ele enxergava na Alemanha, ou
seja, um comércio controlado com vistas a levar vantagem exportando
produtos com alto valor agregado e importando matérias primas. Pensava
que ambos going concerns, ambas essas engrenagens produtivas que se
impuseram às sociedades (a britânica e a alemã), resultavam em
desequilíbrios – em desenvolvimento desigual das nações –, e assim a
confrontos que poderiam levar a guerras. Apesar de realista, ela defendia o
ideal utópico de uma federação mundial com cooperação entre os Estados
nacionais, inclusive com uma associação intenacional que cuidasse para que
não houvesse grandes desigualdades entre as economias nacionais. E do
ponto de vista geoestratégico, ele defendia a autonomia nacional dos povos
da Europa central – tchecos, eslovacos, poloneses, romenos, croatas,
sérvios, húngaros e outros. Isso tanto por ideal – o nacionalismo e a
independência nacional para ele eram valores importantes que foram
criados no século XIX –, como também e principalmente para formar um
cinturão de Estados independentes entre a Alemanha e a Rússia. Esse
cinturão, a seu ver, iria amortecer os choques entre essas duas principais
potências do heartland e, assim, impedir que uma delas controlasse sozinha
(ou tendo a outra como subordinada) essa imensa e estratégica região da
Ilha-Mundo.
Cabe, para encerrarmos, examinar a assertiva que Mackinder não
definiu com precisão o seu conceito chave e essencial de heartland. Existe
realmente uma variação da região de abrangência da área pivot, terra-
coração ou heartland nos textos de 1904, 1919 e 1943 – às vezes ele
enfatiza a Europa oriental, às vezes ela não entra, e outras vezes é uma
imensa região desde o extremo leste da parte continental da Ásia até a parte
costeira da Europa ocidental, excluindo apenas as áreas áridas e as regiões
geladas do norte. Ele também mencionou um segundo heartland que seria a
África subsaariana, vista por ele como poder terrestre apesar de sua extensa
costa banhada pelos oceanos Atlântico e Índico.
Ele argumentou que as condições históricas mudaram e, assim, o
conceito também deve ser redefinido em função das alterações na realidade.
Em suas palavras: “O conceito [de heartland] não admite uma definição
precisa no mapa porque se baseia em três aspectos distintos da geografia
física, que, embora se reforcem uns aos outros, não são exactamente
coincidentes. Primeiro [...] a mais vasta planície da face do globo. Em
segundo lugar, correm por aquela planície alguns grandes rios navegáveis;
alguns deles vão para norte até ao mar Árctico e são inacessível a partir do
oceano, porque [o Ártico] está coberto de gelo, enquanto outros fluem para
águas interiores, tais como [os que fluem para o mar] Cáspio, que não tem
saída para o oceano. Em terceiro lugar, existe aqui uma zona de pastagem
[estepes] que, até o último século e meio, apresentou condições ideais para
a alta mobilidade de povos nômades por camelos e cavalos. [...] Não
obstante estas aparentes discrepâncias, o heartland fornece uma base física
suficiente para o pensamento estratégico. Ir mais longe e simplificar
artificialmente a geografia e seria enganador.”28
Qualquer geógrafo sabe que não é possível definir de forma exata
cartograficamente – isto é, na realidade espacial – determinados conceitos
como, por exemplo, o de “regiões pobres e ricas”, quer num município,
quer no Brasil ou no mundo. Pode-se adotar vários critérios – de um
determinado patamar de renda familiar ou de IDH, dentre outros –, mas
sempre fica a dúvida se esse limite é de fato o mais correto e sempre vão
existir exceções de ambos os lados (das regiões ou conjuntos de países
pobres e das dos ricos); e se esse mapa for refeito dez ou vinte anos depois,
sempre existirão diferenças frente àquele primeiro, mesmo que os critérios
usados sejam idênticos. É evidente que esse fato não invalida as tentativas
de se delimitar com a maior precisão possível essa situação, tentativas
importantes não apenas por razões teóricas, mas inclusive para se agir sobre
a realidade. Porém, exatidão não é realmente possível – seja nos conceitos,
seja nos mapeamentos –, e temos que aceitar certa indeterminação que
existe na realidade e, portanto, nos conceitos. E o mesmo vale para
praticamente qualquer outra realidade – ou conceito, que afinal é apenas um
instrumento para se compreender a realidade.
Mesmo se analisarmos a questão de um ponto de vista
epistemológico, veremos que Mackinder não estava equivocado: apenas o
positivismo é que cobra definições exatas e invariáveis para os conceitos –
ou para os objetos de estudo de cada disciplina. Mas até nas ciências tidas
por vezes como exatas, alguns dos seus mais eminentes membros – na
física, por exemplo – já afirmaram que usam os conceitos como ferramentas
que podem ser entendidas de forma relativamente diferentes conforme a
situação às quais se aplicam. Karl Popper, que examinou as obras e manteve
diálogos sobre esse assunto com cientistas como Einstein, Heisenberg,
Tarski, Godel e outros físicos ou matemáticos com teorias revolucionárias,
chegou à conclusão que não existe nem pode existir exatidão nos conceitos
científicos. Ele concluiu que: “Meu argumento principal é o seguinte: não
creio que se possa falar sobre a exatidão, a não ser no sentido relativo de
exatidão suficiente [apenas] para um objetivo particular determinado — o
objetivo de resolver um problema dado. Assim, os conceitos não podem ser
“explicados”, a não ser dentro do contexto de uma situação-problema
definida. Em outras palavras, a adequação só pode ser avaliada se
confrontarmos um problema genuíno (que não precisa ser um problema de
explicação), para cuja solução precisamos elaborar uma “explicação” ou
“análise”.29
Nesse mesmo sentido, vários autores examinaram o uso de
determinados conceitos chave nas obras de Marx – ideologia, classe social,
alienação, técnica e outros –, e observaram que cada um deles é usado,
dependendo da época ou do contexto, com vária definições ou sentidos
relativamente diferentes, embora aparentados. Contudo, isso não quer dizer
que vale tudo, que se pode usar um conceito de uma forma e com um
sentido completamente diferente logo mais adiante. Significa apenas que há
certas variações, dentro da mesma lógica do conceito, dependendo da
realidade – ou do problema, como diria Popper – para a qual ele está sendo
aplicado. É exatamente isso que encontramos nas variações do conceito de
heartland por Mackinder. Nas ciências sociais, para mencionarmos apenas
mais um exemplo, disserta-se longamente sobre o capitalismo, que na
verdade é um conceito chave e essencial; porém, não existe de fato uma
definição exata desse conceito – nem mesmo apenas nas obras de Marx; e
menos ainda se examinarmos como esse conceito foi usado por Weber, por
Shumpeter e por outros grandes cientistas sociais. Em síntese, essa crítica
ao uso relativamente diferente do conceito de heartland por Mackinder em
suas diversas obras, ou da dificuldade que ele teve em delimitar com
precisão essa região pivô, na verdade não tem muita pertinência. O
importante é a compreensão de como essa ferramenta, esse conceito, está
sendo usada em tal ou qual contexto – e nunca o de se prender a uma
definição exata e invariável, que seria uma camisa de força que
obtaculizaria a compreensão da realidade – ou o entendimento de um texto.
 
 
*****
 
Ao fazermos a revisão desta tradução, notamos que existem muitas
referências a lugares, acontecimentos ou autores com os quais,
provavelmente, os leitores atuais não estão familiarizados. Assim, com
vistas a facilitar o entendimento do texto, fizemos observações entre
colchetes para explicações curtas, e Notas do Revisor, como rodapés, nas
ocasiões em houve a necessidade de explicações mais longas. Mas nenhuma
dessas observações ou explicações altera o texto original do Autor, elas
apenas visam esclarecer referências da época em que ele viveu e que em
geral já não fazem mais parte do nosso referencial, dos fatos que nos são
familiares.
São Paulo, outubro de 2021.
 
 
PREÂMBULO
 
ERVIN J. ROKKE
Tenente General, Força Aérea dos EUA
Presidente da National Defense University
 
O efeito estratégico da geografia nas relações entre as nações
tem sido assunto de estudo sério e de especulação. Esta obra de Halford J.
Mackinder, Democratic 1deals and Reality, que apareceu logo após a
Primeira Guerra Mundial, é certamente um marco na análise do assunto.
Mackinder tornou famosas as ideias geoestratégicas de "heartland" e
"rimland" que influenciou uma geração de pensadores estratégicos.
Em 1939, no entanto, uma nuvem caiu sobre o trabalho de
Mackinder porque os nazistas aplicaram com sucesso alguns de seus
princípios em seus marcha da conquista. Isso prejudicou a reputação de
Mackinder, e suas obras desapareceram dos currículos militares e das
faculdades civis no Ocidente.
Em 1942, os planejadores estratégicos aliados mais uma vez
reconheceram o valor do trabalho de Mackinder, que eles usaram na
engenharia para derrotar Alemanha. Na década de 1950, a influência de
Mackinder diminuiu à medida que as estratégias ocidentais de contenção da
União Soviética passou a dominar a política e o planejamento militar.
Desde o fim da Guerra Fria, no entanto, como preocupações estratégicas
regionais substituíram as da bipolaridade global, a relevância do seu estudo
é mais uma vez evidente.
Esta obra de MacKinder, infelizmente, ficou esgotada por mais de
uma década. Então, para atender às necessidades de uma nova geração, a
UDN preparou a presente edição, fazendo pequenas correções editoriais em
algumas passagens e adicionando uma esclarecedora introdução que vê esse
texto sob uma perspectiva contemporânea.
Por terem ajudado a tornar esta nova edição uma realidade, nós
reconhecemos uma dívida de gratidão a três membros da família NDU: o
distinto professor visitante de direito e diplomacia Eugene Rostow, cuja
ideia era reviver para o leitor moderno este honrado estudo; o capitão
Stephen Mladineo,USN, aposentado, ex-professor de estratégia na
Faculdade Nacional de Guerra, que preparou o texto e redigiu uma
introdução; e a Srta. Mary Sommerville, editora sênior da editora NDU, que
editou o livro e preparou-o para publicação.
 
INTRODUÇÃO
Stephen V. Mladineo30
 
A ideia de republicar esta obra de Halford J. Mackinder pertence ao
professor Eugene V. Rostow. Observando que este volume clássico sobre
geopolítica tinha ficado esgotado por algum tempo, ele sugeriu seu título
como apropriado para as Edições Clássicas de Defesa da National Defense
University. Por trás dessa ideia estava a percepção de que Mackinder tem
algo de valor a dizer neste mundo pós-Guerra Fria. Embora não seja uma
teoria explicativa universal buscada por alguns cientistas sociais, seu
conceito de heartland serve como base para discussão nas explicações
geopolíticas dos eventos mundiais.
Embora suas opiniões sejam frequentemente contrastadas com os
escritos de Alfred Thayer Mahan, Mackinder aceitou a descrição de Mahan
da preeminência histórica do poder marítimo. Mas por analogia e extensão
ele creditou o desenvolvimento de ferrovias na Eurásia por possibilitar aos
governantes do Heartland desafiarem essa preeminência.
Halford J. Mackinder foi um educador, geógrafo, explorador,
advogado, membro do Parlamento, economista e diplomata. Ele nasceu em
Gainsborough, Lincolnshire, Inglaterra, em fevereiro de 1861. Filho de um
médico, ele estudou ciências no Epsom College e na Christ Church em
Oxford. Ao concluir seu programa em Oxford, ele estudou direito em
Londres, enquanto lecionava na Christ Church [faculdade da Universidade
de Oxford] e também ajudava a liderar extensões universitárias incipientes
em Bath, Manchester, Salisbury e em outros lugares, onde lecionou e
conduziu tutoriais sobre geografia física. Com essa experiência, os
pensamentos de Mackinder sobre o ensino de geografia começou a tomar
forma. Foi eleito para a Royal Geographic Society31.
Ele apresentou um artigo à sociedade, em janeiro de 1887, intitulado
"O escopo e os métodos de Geografia”32. Abrindo com a pergunta “O que é
geografia?”, sua apresentação foi polêmica para o público, alguns dos quais
eram oficiais do exército e da marinha que se ressentiram da afronta de um
jovem acadêmico sem experiência no exterior. Seu argumento era que a
geografia deveria servir como uma ponte entre as ciências físicas e as
ciências sociais. O impacto dos fatos geográfico sobre a sociedade e o efeito
da sociedade sobre o meio ambiente são essencial para a disciplina. Ele
escreveu em um momento em que as principais explorações do globo
haviam sido concluídas. Não havia mais terras para descobrir. Os pólos
norte e sul haviam sido atingidos recentemente.
Na época, a geografia física ensinada era geologia, e o ensino de
geografia política exigia pouco mais do que recitação de fatos
demográficos. Conquanto a criação da disciplina de geografia na Inglaterra
não possa ser creditado inteiramente a Mackinder, sua polêmica
apresentação à Sociedade Geográfica Real e a discussão subsequente sobre
ela teve um impacto e levou à criação de cadeiras de geografia nas
universidades de Oxford e de Cambridge com o apoio da Sociedade
Geográfica.
Em 1904, Mackinder apresentou um artigo à Sociedade Geográfica
intitulado "O Pivô Geográfico da História”33. Neste artigo, ele primeiro
ofereceu a teoria da "área pivô", uma designação para a área central da
Eurásia, que foi protegido das potências marítimas da época. Ele raciocinou
que o desenvolvimento do potencial de energia desta área poderia permitir à
potência continental que a controlaria dominar o mundo. Expandindo este
conceito e com a experiência recente da Primeira Guerra Mundial, ele
ampliou o escopo de seu conceito de "pivot area", agora rebatizado de
"heartland" [terra-coração] em sua obra Democratic 1deals and Reality de
191934. Comparando o seu conceito com o sussurrado aviso por um
escravo, "Você é mortal", para o retorno vitorioso do legionário romano,
Mackinder emitiu sua advertência freqüentemente citada:
 
Quem governa a Europa Oriental comanda o Heartland
Quem governa o Heartland comanda a Ilha-Mundo
Quem governa a Ilha-Mundo comanda o Mundo.
 
Mackinder tinha em mente a construção de uma paz estável baseada
em um equilíbrio de poder projetado para evitar o ressurgimento da
Alemanha como o "organizador" que controlaria os recursos do Heartland.
Os críticos de Mackinder costumam se concentrar nessas três linhas,
citando sua inadequação como explicação, previsão ou prescrição. Michael
Howard35 chama-os de "disparates auto-evidentes". Incluindo nessa crítica
a todos os geopolíticos, Howard observa que eles simplesmente “omitem
muito”.
Visto no contexto de eventos históricos, os conflitos entre potências
terrestres e potências marítimas, e os avanços tecnológicos que ocorrem
durante Primeira Guerra Mundial, a visão de Mackinder não era universal
nem excessivamente especial. Sua frase pretendia ser uma advertência, um
aviso para os políticos da época. Foi pouco levado em consideração naquele
momento, apesar de ter sido presciente em sua antecipação do
ressurgimento alemão e do status posterior de superpotência da União
Soviética. Mackinder inclusive havia sido presciente ao observar que "a
democracia recusa pensar estrategicamente, a menos e até que seja obrigado
a fazê-lo para fins de defesa”36.
Seu aviso imediato dizia respeito ao potencial ressurgimento da
Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Reconhecendo que a Rússia
pouco poderia representar perigo para o curto prazo, ele, no entanto,
raciocinou que a paz no pós-guerra exigia um amortecedor viável entre os
dois grandes "organizadores" históricos [do heartland] para evitar a
ascendência de qualquer um deles para desafiar os poderes das nações
litorâneas, que ele chamou de crescentes [rimland] interno e externo. Ele
combinou esse requisito com a necessidade de se fundar uma Liga das
Nações que fosse eficaz.
Em seu livro de 1982, Mackinder: Geografia como auxiliar do
Estado, W. H. Parker analisa, categoriza, detalha e refuta em grande parte
cerca de uma centena de críticas diferentes à teoria de heartland. Ele
observa que "Freqüentemente, o crítico interpretou mal ou entendeu mal o
que Mackinder escreveu; em geral, ele parece ter lido muito pouco sobre
Mackinder, ou está apenas repetindo as alegações de outros”37.
O principal crítico de Mackinder foi o professor Nicholas Spykman,
da Universidade de Yale. Embora Spykman tenha aceitado as descrições de
Mackinder de world island, heartland, inner [interior, interno] e os
crescentes internos e externos, sua perspectiva era diferente. Enquanto a
escrita de Mackinder se concentrava nos "organizadores"38 e o potencial
uso ofensivo de seu poder terrestre, o foco de Spykman estava nas
democracias. Essas nações na periferia da Ilha-Mundo39 tinham uma visão
defensiva, para ser totalmente articulada só mais tarde, como a teoria da
contenção de George Kennan40.
Spykman rebatizou o crescente interno de rimland [terra-orla] e
argumentou com base em sua análise da política de poder que o slogan de
Mackinder deveria ser reformulado como "Quem controla a rimland
governa a Eurásia; quem governa a Eurásia controla os destinos do
mundo41.
Spykman diferiu de Mackinder em sua interpretação geopolítica,
mas esta foi construída a partir dos conceitos de Mackinder. Se não for por
outro motivo, a teoria de Mackinder é importante porque definiu o
vocabulário da discussão geopolítica. Sem a construção teórica de
Mackinder não teria sido possível as perspectivas de Spykman e de vários
outros geopolíticos.
Alguns criticaram a definição imprecisa de Mackinder de heartland.
Às vezes ele incluiu a Europa Central, outras vezes a excluiu. Em seu artigo
de 1943, "O Mundo Redondo e a conquista da Paz”, ele rejeitou a
necessidade de ser muito preciso, argumentando que a definição de
heartland surgiu de várias condições geográficas que não eram coincidentes.
Ele continuou a argumentar que os limites exatos não eram necessários para
descrever um conceito estratégico, e que suas definições eram adequadas.
Outro conjunto de críticas aborda seu tratamento dos Estados
Unidos. Alguns argumentam que a América do Norte deve ser considerada
como um heartland separado. Mackinder reconheceu o potencial da
democracia americana, mas não teria aplicado o termo heartland devido à
sua natureza marítima. Ele especulou que a África pode se desenvolver em
um segundo heartland, com seus atributos de autocontenção e o afastamento
do mar, mas o conceito não se aplica muito bem aos Estados Unidos
marítimos.
Ele é igualmente acusado de ignorar os vastos recursos e potencial
da América do Norte. Mas se lembrarmos que a escrita de Mackinder era
uma advertência [em especial para o Reino Unido], ele não estava
preocupado com o poder da América do Norte, considerando-as parte do
crescente exterior. Ele estava de fato preocupado com os [eventuais]
"organizadores", aqueles que usariam o potencial de poder do heartland
para dominar o mundo.
Alguns críticos acusam Mackinder de exagerar o potencial de poder
do heartland. Outros afirmam que sua teoria ignora a tecnologia, tendo sido
superada pelo advento do poder aéreo. Outros críticos debatem sua teoria
sob bases filosóficas, éticas, políticas ou até por razões ideológicas. Outros
ainda asseveram que toda obra de geopolítica é suspeita.
A geopolítica foi um tanto desacreditada pelo desenvolvimento da
Geopolitik alemã durante os anos entre guerras. Karl Haushofer, um
geógrafo alemão e chauvinista, distorceu as ideias de Mackinder e outros
para justificar o expansionismo alemão. Junto com muitos outros alemães,
Haushofer acreditava que a Alemanha não deveria ter perdido a Primeira
Guerra Mundial, e que o tratamento pós-guerra da Alemanha foi injusto.
Construindo sua teoria a partir do conceito de heartland, Haushofer
argumentou a necessidade alemã de lebensraum [espaço vital]. Junto com
outros estudos pseudocientíficos, como aqueles que comprovam a
superioridade da raça ariana, o uso de Haushofer da geopolítica para
propósitos de propaganda influenciaram os objetivos expansionistas dos
nazistas.
Alguns críticos acusam Mackinder de determinismo. Eles enxergam
seus avisos do que poderia acontecer com base no potencial geográfico
como se fossem previsões do que deve acontecer. Mas esses críticos
interpretaram mal Mackinder, que argumentou que o Homem, e não a
geografia, é quem controla o futuro. Por causa de condições geográficas, as
pessoas que controlavam o heartland iriam tem uma vantagem enorme.
Em 1943, Mackinder foi convidado a atualizar sua teoria à luz do
desenvolvimentos que levaram à Segunda Guerra Mundial. Ele respondeu
com uma defesa de sua tese inicial em sua obra, "O Mundo redondo e a
conquista da Paz”, dizendo que o conceito de heartland era "mais válido e
útil hoje" do que quando ele escreveu sobre isso. Ele esboçou uma visão
geográfica de uma aliança de uma potência capaz de controlar o heartland, a
União Soviética, com as potências oceânicas que possuíam "uma cabeça de
ponte na França, um aeródromo com fosso na Grã-Bretanha e uma reserva
de mão de obra treinada, agricultura e indústrias no leste dos Estados
Unidos e Canadá”. Essa ideia formou a base para sua visão de equilíbrio de
poder. Embora sua principal preocupação continuasse sendo a Alemanha,
ele reconheceu a possibilidade de que outros Estados tivessem o potencial
de estabelecer hegemonia sobre o heartland. Descartando a Rússia como
uma ameaça imediata em função [das vicissitudes] de sua revolução, ele
não a descartou no longo prazo. Ele até postulou a China como um
potencial "organizador" final do heartland.
A teoria geopolítica teve muitos anos para se desenvolver desde que
esta obra de Mackinder foi publicado pela primeira vez. Spykman foi um
dos primeiros teóricos. Entre outros geopolíticos estava Alexander P. De
Seversky, um dos principais defensor de uma visão de mundo centrada no
Ártico. Sua obra Victory Through Air Power and Air Power: Key to
Survival [de 1942], ele expressou a opinião de que o poder terrestre e o
marítimo tornaram-se subordinados ao poder aéreo.
O geógrafo Saul B. Cohen, em Geografia e Política em um Mundo
Dividido [de 1963], propôs uma nova estrutura que divide o globo em áreas
geoestratégicas ou regiões correspondentes às esferas de influência das
grandes potências mundiais; elas incluem regiões independentes como sul
da Ásia, e o que ele chamou de shatterbelts [faixas-quebradas], grandes e
estrategicamente localizados regiões ocupadas por uma série de Estados
conflitantes e presas entre os interesses opostos das grandes potências
vizinhas.
Apesar da evolução da teoria geopolítica, o alerta o valor da obra
Ideais Democráticos e Realidade não diminuiu após 77 anos. O potencial
para o retorno de governos autocráticos no heartland de Mackinder
permanece. O fim da Guerra Fria não acabou com a ambição expansionista
ou de controle. Apesar dos ideais democráticos, ainda existe a possibilidade
de um ressurgente poder autocrático em busca de hegemonia sobre a
Eurásia central. Mackinder não prevê isso, ele apenas alerta para a
consciência da ameaça.
 
 
PREFÁCIO
H. J. Mckinder
1° de fevereiro de 1919
 
 
Este livro, seja qual for o seu valor, é o resultado de mais do que o
pensamento meramente febril de tempo de guerra; as ideias sobre as quais
se baseia foram publicadas em esboço há uma boa dúzia de anos.
Em 1904, em um artigo sobre "O Pivô Geográfico da História", lido
antes na Royal Geographical Society, eu esbocei as ideias de Ilha-Mundo e
heartland [terra-coração]; e em 1905, escrevi na National Review sobre o
assunto de "Poder humano como uma medida de força nacional e imperial",
um artigo que eu acredito que primeiro deu voga ao termo manpower
[poder do Homem]. Naquilo termo está implícito não apenas a ideia de lutar
com o uso da força, mas também com produtividade, ao invés de riqueza,
como o foco do raciocínio econômico. Se eu agora me aventurar a escrever
sobre esses temas mais extensamente, é porque eu sinto que a guerra
fortaleceu, e não abalou, meus pontos de vista anteriores.
 
IDEAIS DEMOCRÁTICOS E
REALIDADE
UM ESTUDO NA POLÍTICA DE
RECONSTRUÇÃO
 
 
Capítulo um - PERSPECTIVA
 
Nossas memórias ainda estão cheias de detalhes vívidos de um
absorvente bem estar social; há, por assim dizer, uma cortina entre nós e as
coisas que aconteceram anteriormente, mesmo em nossas vidas. Mas o
tempo tem perspectivas mais amplas, e devemos começar a pensar em
nossa longa guerra como um único grande acontecimento, uma catarata no
curso do rio da história. Os últimos quatro anos [1914-18] são importantes
porque foram resultado de um século e o prelúdio de outro. Tensões entre as
nações haviam se acumulado lentamente e, na linguagem da diplomacia
agora existe uma détente. A tentação do momento é acreditar que a paz
incessante seguirá apenas porque os homens estão cansados, e isso
determinaria que não haverá mais guerra. Mas a tensão internacional vai se
acumular novamente, embora lentamente no início; houve uma geração de
paz depois de Waterloo. Quem entre os diplomatas em volta da mesa no
Congresso de Viena, em 1814, previu que a Prússia se tornaria uma ameaça
para o mundo? É possível para nós classificar o leito do rio da história
futura como o de não haver mais cataratas? Esta é a tarefa diante de nós se
quisermos que a posteridade pense menos maldosamente em nossa
sabedoria do que pensamos na dos diplomatas de Viena.
As grandes guerras da história - tivemos uma guerra mundial a cada
cem anos nos últimos quatro séculos – são os resultados, diretos ou
indiretos, do crescimento desigual das nações, e o crescimento desigual não
se deve totalmente ao grande gênio e energia de alguns povos em
comparação com outros; em grande medida, é o resultado da desigualdade
na distribuição de fertilidade e oportunidade estratégica em face do globo.
Em outras palavras, não existe na natureza algo como igualdade de
oportunidade para as nações. A menos que eu interprete mal os fatos de
geografia, eu iria mais longe e diria que o agrupamento de terras e mares, e
de fertilidade e caminhos naturais, é tal que se presta ao crescimento de
impérios e no final de um único império mundial. Se nós quisermos realizar
nosso ideal de uma Liga das Nações que deve evitar a guerra no futuro,
devemos reconhecer essas realidades geográficas e tomar medidas para
conter a sua influência.
No século passado, sob influência da teoria darwiniana, chegou-se a
pensar que as formas de organização que se adaptem melhor ao seu meio
natural seriam as que devem sobreviver. Hoje percebemos, conforme
emergimos de nossa prova de fogo, que a vitória humana consiste em nos
elevarmos acima desse mero fatalismo. A civilização é baseada na
organização da sociedade para que possamos prestar serviço uns aos outros,
e quanto mais elevada for a civilização, mais intensa tende a ser a divisão
do trabalho e mais complexa a sua organização. Uma grande e avançada
sociedade tem, por conseguinte, um impulso poderoso; não é possível
brecar ou desviar repentinamente seu curso sem destruir a própria
sociedade. Assim acontece que observadores destacados são capazes de
prever com anos de antecedência que se aproxima um confronto de
sociedades que seguem caminhos convergentes em seu desenvolvimento. O
historiador comumente prefacia sua narrativa de guerra com um relato da
cegueira dos homens que se recusaram a ver o que estava inscrito nos fatos,
mas a questão é que, como qualquer outra going concern [empresa em
funcionamento], uma sociedade nacional pode ser moldada para uma
direção desejada enquanto é jovem, mas quando é velha seu caráter é fixo e
incapaz de qualquer grande mudança em seu modo de existência. Hoje,
todas as nações do mundo estão prestes a começar de novo; estaria ao
alcance da presciência humana reorientar seus cursos no sentido de que,
apesar da tentação geográfica, elas não colidam novamente nos dias de
nossos netos?
Em nossa ansiedade de repudiar as ideias historicamente associadas
ao equilíbrio de poder, será que não existe algum perigo em permitir que
concepções meramente jurídicas governem nossos propósitos em relação à
Liga das Nações? É nosso ideal que a justiça seja feita entre as nações,
sejam elas grandes ou pequenas, exatamente como é o nosso ideal que deve
haver justiça entre os homens, seja qual for a diferença de suas posições na
sociedade. Para manter a justiça entre os indivíduos, o poder do Estado é
invocado, e agora reconhecemos, após o fracasso do direito internacional
em evitar a Grande Guerra, que deve haver seja algum poder42 ou, como
dizem os advogados, alguma sanção para a manutenção da justiça entre as
nações. Mas o poder que é necessário para a vigência da lei entre os
cidadãos facilmente se transforma em tirania. Seria possível estabelecer
uma potência mundial que seja suficiente para manter a lei entre grandes e
pequenos Estados, e ainda assim não desembocar em uma tirania mundial?
Existem dois caminhos para tal tirania, um é a conquista de todas as
nações nações por uma delas, o outro é a transformação do próprio poder
para que ele possa ser exercido para coagir a nação sem lei. No nosso atual
grande replanejamento da sociedade humana, devemos reconhecer que a
habilidade e o oportunismo do ladrão são fatos anteriores à lei do roubo.
Em outras palavras, devemos imaginar nosso vasto problema como homens
de negócios lidando com realidades de crescimento e oportunidades, e não
apenas como advogados definindo recursos e direitos.
Meu esforço, nas páginas seguintes, será medir a relativa
importância das grandes características do nosso globo conforme testado
pelos eventos da história, incluindo a história dos últimos quatro anos, e
depois para considerar como podemos ajustar melhor nossos ideais de
liberdade a essas realidades do nosso globo terrestre. Mas primeiro
devemos reconhecer certas tendências da natureza humana como exibida
em todas as formas de organização política.
 
 
Capítulo dois – MOMENTO SOCIAL

"Àquele que tem será dado"


 
 
No ano de 1789, o lúcido povo francês, em sua cidade-cérebro de Paris, teve
visões generosas – Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Mas a seguir o idealismo
francês perdeu seu domínio sobre a realidade e se transformou, por ironia do destino,
na pessoa de Napoleão. Com sua eficiência militar, Napoleão restaurou a ordem, mas
ao fazê-lo organizou uma potência francesa na qual a própria lei era uma negação da
liberdade. A história da grande Revolução Francesa e o Império influenciaram todas
as subsequentes teorias do pensamento político; parecia uma tragédia no antigo
sentido grego de um desastre predestinado no próprio caráter do idealismo
revolucionário.
Quando, por conseguinte, em 1848, os povos da Europa estavam novamente
em um espírito de visão, seu idealismo era de natureza mais complexa. O princípio
da nacionalidade foi adicionado ao da liberdade, na esperança de que a liberdade
pudesse ser assegurada contra o organizador exagerado pelo espírito independente
das nações43. Infelizmente, naquele ano de revoluções, o bom navio do idealismo
novamente arrastou sua âncora, e aos poucos foi varrido pelo destino na pessoa de
Bismarck. Com sua eficiência prussiana, Bismarck perverteu o novo ideal da
nacionalidade alemã, assim como Napoleão havia pervertido os ideais franceses mais
simples de liberdade e igualdade. A tragédia do idealismo nacional, que acabamos de
ver consumado, não foi, no entanto, predestinado na desordem da liberdade, mas no
materialismo do organizador, comumente conhecido como Kultur44.
A tragédia francesa foi a simples tragédia do colapso do idealismo; mas a
tragédia alemã foi, na verdade, a tragédia do realismo substituído. Em 1917, as
nações democráticas de toda a terra pensaram que tinham visto uma grande luz no
fim do túnel quando o Czar russo caiu e os Estados Unidos entraram na guerra. Por
enquanto, de qualquer forma, a Revolução Russa seguiu o caminho revolucionário
comum, mas ainda colocamos nossa esperança na democracia universal. Do ideal de
liberdade do século dezoito e o ideal de nacionalidade do século XIX, podemos
acrescentar nosso ideal de Liga das Nações do século XX. Se uma terceira tragédia
acontecer, será em grande escala, pois os ideais democráticos são hoje professados
pela maior parte da humanidade.
Os alemães, com sua Realpolitik, sua política da realidade – algo a mais em
relação à política meramente prática – consideram esse desastre como sendo, mais
cedo ou mais tarde, inevitável. O senhor da guerra e a casta dos militares prussianos
podiam estar lutando pela mera manutenção de seu poder, mas grandes e inteligentes
setores da sociedade alemã agiram sob a persuasão de uma filosofia política que não
era menos sincera ao ser realizada porque hoje acreditamos que ela estava errada.
Nesta guerra alemã, as antecipações provaram-se erradas em muitos aspectos, mas
isso tem sido porque os tornamos assim por alguns sábios princípios de governo, e
por um esforço extenuante, apesar de nossos erros de política. Nosso o teste mais
difícil ainda está por vir. Qual o grau de reconstrução internacional necessário se o
mundo deseja permanecer um lugar seguro para as democracias? E, no que diz
respeito à estrutura interna dessas democracias, que condições devem ser satisfeitas,
se quisermos ter sucesso em aproveitar os ideais que inspiraram heroísmo nesta
guerra, no pesado arado de reconstituição social? Não pode haver perguntas mais
importantes. Poderemos conseguir casar sobriamente nosso novo idealismo com a
realidade?
 
*****
 
Os idealistas são o sal da terra; sem eles para nos mover, a sociedade logo
estagnaria e a civilização desapareceria. O idealismo, no entanto, foi associado a dois
tipos muito diferentes de temperamento. Os antigos idealismos, como o budismo,
estoicismo e cristianismo medieval, foram baseado na abnegação; os frades
franciscanos se comprometeram com a castidade, pobreza e serviço. Mas o idealismo
democrático moderno, o idealismo das revoluções americana e francesa, é baseado
na auto-realização. Seu objetivo é que cada ser humano viva uma vida plena e
respeitosa. De acordo com o preâmbulo da Declaração de Independência Americana,
todos os homens são criados iguais e dotados dos direitos de liberdade e da busca da
felicidade.
Essas duas tendências de idealismo corresponderam historicamente a dois
desenvolvimentos da realidade. Nos tempos antigos, o poder da natureza sobre o
homem ainda era grande. A dura realidade impõe limites às suas ambições. Em
outras palavras, o mundo como um todo era pobre, e a resignação era o único
caminho geral para a felicidade. Poucos poderiam, sem dúvida, obter alguns
objetivos na vida, mas às expensas da servidão de muitos. Até a chamada
democracia de Atenas e a utopia platônica foram baseadas sobre a escravidão. Mas o
mundo moderno é rico. Não é em pouca medida que o Homem agora controla as
forças da natureza, e todas as classes, anteriormente resignadas ao seu destino,
tornaram-se imbuídas da ideia de que a par de uma divisão mais justa da riqueza
deveria haver igualmente uma igualdade de oportunidades.
Esta realidade moderna do controle humano sobre a natureza, sem a qual os
ideais democráticos seriam fúteis, não se deve apenas ao avanço do conhecimento
científico e às invenções. O maior controle que o Homem agora exerce é
condicional, e não absoluto como o que a natureza exerce sobre o Homem pela fome
e pestilência. Riquezas humanas e a correlativa segurança têm por base a divisão e
coordenação do trabalho, e o constante aperfeiçoamento dos complicados
instrumentos que substituíram as ferramentas simples da sociedade primitiva. Em
outras palavras, a potência da riqueza moderna está condicionada à manutenção da
nossa organização social e de seu capital. A sociedade é uma preocupação constante
e não pequena parte do nosso bem-estar pode ser comparada com a "boa vontade"
intangível de um negócio. O proprietário de uma empresa depende dos hábitos de
seus clientes
não menos do que do funcionamento regular das máquinas em sua fábrica;
ambos devem ser mantidos em boas condições e com preocupação com sua
constante renovação; mas se o negócio parar, eles apenas têm um valor de ruptura - o
maquinário se transforma em sucata, e a “boa contade” se reduz às dívidas contábeis.
A sociedade repousa no fato de que o homem é uma criatura de hábitos. Por
interligação dos vários hábitos de muitas pessoas, a sociedade obtém uma estrutura
que pode ser comparado com o de uma máquina em execução. A Sra. Bouncer45 foi
capaz de formar uma sociedade simples, para a ocupação de uma sala, porque Box
dormia à noite e Cox durante o dia, mas sua sociedade estava deslocada quando um
de seus inquilinos tirou férias, e nesse interim mudou seu hábito. Deixe qualquer um
tentar perceber o que aconteceria a si mesmo se todos aqueles de quem depende –
carteiros, ferroviários, açougueiros,
padeiros, impressores e muitos outros – de repente mudarem suas
rotinas estabelecidas; ele então começará a avaliar que o enorme grau de poder do
Homem moderno sobre a natureza se deve ao fato de que a sociedade é uma
preocupação constante [going concern] ou, na linguagem do engenheiro, tem
retroalimentação. Pare essa dinâmica tempo suficiente para desequilibrar os hábitos
dos homens uns com os outros, e a sociedade rapidamente cairá na simples realidade
de controle pela natureza. Um grande número de pessoas morreria em consequência.
O poder produtivo, em suma, é um elemento muito mais importante para a
realidade da civilização moderna do que a riqueza acumulada. O total de riqueza
visível de um país civilizado, não obstante a antiguidade de alguns de seus tesouros,
é geralmente estimado como igual à produção de não mais de sete ou oito anos. O
significado desta declaração não reside em sua exata precisão, mas no significado
prático do rápido crescimento para os homens modernos, devido à sua dependência
de uma maquinaria de produção, mecânica e social, que nas últimas quatro ou cinco
gerações tornou-se cada vez mais delicada e complicada. Para cada avanço na
aplicação da ciência, tem havido uma correspondente mudança na organização
social. Não foi por mera coincidência que Adam Smith estava discutindo a divisão
do trabalho quando James Watt estava inventando a máquina a vapor. Nem, em
nosso próprio tempo, é por coincidência que ao lado da invenção da combustão
interna do motor – a chave para o automóvel, submarino e avião – deve haver uma
correspondente expansão do sistema de crédito. Lubrificação de maquinaria de metal
depende de hábitos dos homens vivos. A suposição de alguns entusiastas científicos
que o estudo das artes humanas deixou de ser importante não suporta um exame; a
gestão de homens, pelo alto ou por baixo, é mais difícil e mais importante do que
nunca sob o condições da realidade moderna.
Descrevemos os gerentes da maquinaria social como organizadores, mas sob
esse termo geral são comumente incluídas duas categorias distintas. Em primeiro
lugar, temos administradores, que não são estritamente organizadores em absoluto –
ou criadores, isto é, de novos órgãos em um organismo. É função do administrador,
para manter a máquina social em funcionamento, reparar e cuidar da sua
lubrificação. Quando os homens morrem, ou param por razões de problemas de
saúde ou aposentadoria por idade avançada, é seu dever preencher os lugares vagos
com homens devidamente treinados de antemão. Um capataz de obras é
essencialmente um administrador. Um juiz administra a lei, exceto na medida em
que de fato, embora não na teoria, ele a cria. No trabalho do administrador puro e
simples não há ideia de progresso. Dada uma certa organização, eficiência é o seu
ideal – suavidade perfeita de trabalho. Sua doença característica é chamada de
"burocracia". Uma sociedade complicada, bem administrada, tende de fato a uma
estagnação chinesa46 pela própria força de seu impulso. Um negócio de longa data e
bem administrado amiúde pode ser vendido por uma grande quantia no mercado.
Talvez a ilustração mais marcante do impulso social pode ser vista na imobilidade
própria dos mercados. Todo vendedor gostaria de estar onde os compradores têm o
hábito de se reunir para ter certeza da venda de seus produtos. Por outro lado, todo
comprador se puder vai para o lugar onde os vendedores costumam se reunir para
que ele possa comprar mais barato como resultado de sua competição. Muitas vezes
as autoridades tentaram em vão descentralizar os mercados de Londres.
Para valorizar o outro tipo de organizador, o criador do mecanismo social,
vamos novamente considerar por um momento o curso comum das revoluções. Um
Voltaire critica a preocupação corrente do governo francês; um Rousseau pinta o
ideal de uma sociedade mais feliz; os autores da Grande Enciclopédica provam que
as bases materiais para tal sociedade existe. As novas ideias são assimiladas por
alguns entusiastas bem-intencionados, no entanto inexperientes na difícil arte de
mudar os hábitos da humanidade média. Elas [essas novas ideias] agarraram uma
oportunidade para alterar a estrutura da sociedade francesa. Incidentalmente, e
infelizmente, elas diminuem sua velocidade. Parada de trabalho, quebra real dos
implementos de produção e do governo, remoção dos administradores práticos e sua
substituição por amadores desajustados se combinam para reduzir a taxa de produção
do necessário para a vida, e o resultado é que os preços sobem e a confiança e o
crédito caem. Os líderes revolucionários estão, sem dúvida, dispostos a ser pobres
por um tempo, a fim de realizar seus ideais, mas milhões de famintos se erguem ao
seu redor. Para ganhar tempo, os milhões são levados a acreditar que a escassez se
deve a alguma interferência dos poderes depostos, e o Terror inevitavelmente se
segue. Afinal os homens se tornam fatalistas e, abandonando os ideais, procuram
algum organizador que deve restaurar a eficiência. A necessidade é reforçada pelo
fato de que inimigos estrangeiros estão invadindo o território nacional, e que menos
produção e relaxamento da disciplina reduziram o poder defensivo do Estado. Mas o
organizador necessário para a tarefa de reconstrução não dever ser um mero
administrador; ele deve ser capaz de projetar e fazer, e não meramente reparar e
lubrificar a maquinaria social. Então Camot, que "organiza a vitória", e Napoleão,
com seu Código Civil, ganham fama eterna pelo esforço criativo.
A possibilidade de organização, no sentido construtivo, depende de
disciplina. A sociedade em funcionamento é constituída por uma miríade de
interligações dos diferentes hábitos de muitos homens; se a estrutura social em
execução é alterada, mesmo em alguns aspectos relativamente pequenos, um grande
número de homens e mulheres devem, simultaneamente, mudar vários de seus
hábitos de maneiras complementares. Era impossível introduzir o horário de verão
exceto por um decreto do governo, pois qualquer adesão parcial à mudança de hora
teria confundido a sociedade. A conquista do horário de verão era, portanto,
dependente da disciplina social, visto assim não nos hábitos dos homens isolados,
mas no poder de mudança simultânea e correlacionada desses hábitos. Em um
pedido Estado, o senso de disciplina torna-se inato, e a polícia é apenas raramente
chamada para aplicá-lo. Em outras palavras, comando leva à disciplina social para a
alteração de hábitos, e estes se tornam eles mesmos um hábito. Disciplina militar, na
medida em que consiste em atos únicos na palavra de comando, é de uma ordem
mais simples, mas o soldado profissional sabe bem a diferença entre a disciplina
habitual e até mesmo o mais inteligente luta por homens treinados rapidamente.
Em tempos de desordem, o entrelaçamento de hábitos produtivos se quebra
passo a passo, e a sociedade como um todo se torna progressivamente pobre, embora
ladrões de um tipo ou de outro possam enriquecer por um tempo. Ainda mais sério,
no entanto, é o fracasso do hábito da disciplina, pois isso implica a perda do poder de
recuperação. Considere a que passo a Rússia foi trazida por um ano de cumulativas
revoluções; sua condição era como aquele terrível estado de paralisia quando a
mente ainda vê e dirige, mas os nervos não conseguem provocar qualquer resposta
dos músculos. Uma nação não morre quando é assim ferida, mas o todo mecanismo
de sua sociedade deve ser reconstituído, e rapidamente, e os homens e mulheres que
sobrevivem ao seu empobrecimento não devem esquecer o hábitos e perder as
aptidões de que depende sua civilização. A história não mostra qualquer remédio,
mas a força sobre a qual fundar um novo núcleo de disciplina em tais circunstâncias;
mas o organizador que se apóia na força tende inevitavelmente a tratar a recuperação
da mera eficiência como seu fim. O idealismo não floresce sob seu domínio. Foi
porque a história fala claramente a este respeito, que tantos idealistas das últimas
duas gerações foram internacionalistas; a recuperação militar de disciplina é
comumente alcançada pela conquista de outro país ou incidentalmente frente a uma
resistência nacional bem-sucedida à invasão estrangeira.
O grande organizador é um grande realista. Não que ele não tenha
imaginação – longe disso; mas sua imaginação se volta para "objetivos e meios", e
não a fins elusivos. Sua mente é a de Marta e não a de Maria47. Se ele for um capitão
da indústria, os contadores em seu pensamento são trabalho e capital; se ele for um
general de exércitos, são unidades e suprimentos. Se ele for um industrial, sua
organização visa fins financeiros intermediários, e se ele for um soldado visa a
vitória. Mas dinheiro e vitória são apenas as chaves para as extremidades posteriores,
e essas extremidades permanecem elusivas
para ele o tempo todo. Ele morre ainda ganhando dinheiro, ou, se for um soldado
vitorioso, chora como Alexandre porque não há mais mundos para conquistar. Seu
único cuidado é que o negócio ou o exército que ele possui deve ser administrado de
forma eficiente; ele é duro com seus administradores. Acima de tudo, ele valoriza o
hábito da disciplina; sua máquina deve responder prontamente ao comando.
O organizador inevitavelmente passa a considerar os homens como suas
ferramentas. Sua mente é o inverso da do idealista, pois ele move homens em
brigadas e deve, portanto, ter em conta as limitações materiais, enquanto o idealista
apela para a alma em cada um de nós, e as almas são aladas e podem voar. Isso não
significa que o organizador é descuidado com o bem-estar da sociedade abaixo dele;
pelo contrário, ele considera a sociedade como força de trabalho a ser mantida em
condições eficientes.Isso é verdade quer ele seja militar ou capitalista, desde que seja
clarividente. Na esfera da política, o organizador vê os homens como existindo para
o Estado – para o Leviatã do filósofo Hobbes. Mas o idealista democrático apenas
tolera o Estado como um mal necessário, pois este limita a liberdade.
Nas democracias estabelecidas do Ocidente, os ideais de liberdade foram
transmutados nos preconceitos do cidadão comum, e é sobre esses "hábitos de
pensamento" que a segurança de nossa liberdade depende, em vez dos êxtases
passageiros do idealismo. Por mil anos, tais preconceitos se enraizaram sob a
proteção insular da Grã-Bretanha; eles são o resultado de um experimento contínuo e
devem ser tratados pelo menos com respeito, salvo se estejamos preparados para
pensar em nossos antepassados como tolos. Um desses preconceitos48 é que não é
sensato levar um especialista ao cargo de ministro de Estado. No tempo atual de
guerra, quando a liberdade mesmo numa democracia deve conviver com a eficiência,
há quem afirme que os especialistas que temos instalados em alguns dos altos cargos
devem ser sucedidos por outros especialistas, e que nosso preconceito é antiquado.
No entanto, mesmo em tempo de guerra a Grã-Bretanha voltou a ser um ministro da
guerra civil! O fato claro é que as ineficiências da normalmente eficaz Constituição
Britânica são apenas o reverso da verdade de que a democracia é incompatível com a
organização necessária para a guerra contra as autocracias. Quando o atual ministro
chileno veio pela primeira vez à Inglaterra, ele foi entretido por alguns membros da
Câmara dos Comuns. Referindo-se à mãe dos parlamentos, visto do distante
Pacífico, e num resmungo crônico em relação ao governo parlamentar que ele
encontrou em sua chegada em Londres, ele exclamou: "Vocês se esquecem de que
uma das principais funções de parlamentos é impedir que as coisas sejam feitas!"
O pensamento do organizador é essencialmente estratégico, enquanto que o
do verdadeiro democrata é ético. O organizador está pensando em como usar
homens; mas o democrata está pensando nos direitos dos homens, sendo que direitos
são pedras no caminho do organizador. Sem dúvida o organizador deve ser um
mestre, pois, dada a obstinação da natureza humana e a inveteração do hábito, ele
faria pouco progresso de outra forma. Mas ele é um mau mestre supremo, por causa
de sua mente focada em "objetivos e meios". O nêmesis do idealismo democrático,
se romper com os laços de realidade, é a regra suprema do organizador e da sua cega
eficiência. O organizador começa inocentemente; sua mente executiva se revolta
com a desordem e, sobretudo, com a indisciplina que o cerca. A eficiência do
soldado sem dúvida salvou a França revolucionária. Mas tal é o ímpeto da
preocupação que leva adiante seu próprio criador. Para melhorar a eficiência de seu
labor, ele deve no final procurar controlar todas as suas atividades – trabalhando e
pensando, além de lutando. Ele está no comando supremo, e a ineficiência é uma dor
para ele. Portanto, Napoleão acrescentou ao seu grande exército e ao seu código
civil, também sua concordata com o papado, por meio da qual o sacerdote se tornaria
seu servo. Ele poderia ter desfrutado de uma paz duradoura após o Tratado de
Amiens, mas deve continuar a preparar a guerra. Finalmente ele foi impelido para
sua Moscou, assim como um grande ganhador de dinheiro vai exceder a si mesmo e
terminar em falência.
Bismarck foi o Napoleão dos prussianos, seu homem de sangue
e ferro, mas ele diferia de seu protótipo francês em certos aspectos que, para o nosso
propósito presente, merecem atenção. O fim dele foi diferente do fim de Napoleão.
Não houve banimento para Elba após Moscou, nenhuma prisão em Santa Helena
após um Waterloo. É verdade que, depois de trinta anos no comando, o antigo piloto
foi substituído em 1890 por um novo capitão com a mente de um pirata, mas foi por
causa de sua cautela e não devido à falta de ambição. Napoleão e Bismarck tinham
mentes supremas da ordem dos "objetivos e meios", mas havia algo mais em
Bismarck. Ele não era apenas um grande empresário, tal como o Napoleão descrito
por Emerson. Nenhum estadista ajustou a guerra para a política com um julgamento
melhor que Bismarck. Ele lutou três curtas campanhas bem-sucedidas, e fez três
tratados de paz, e de cada um que resultou uma colheita de vantagens para a Prússia.
E que diferente tratados eles eram! Após a guerra de 1864 contra a Dinamarca,
Bismarck convenceu [as autoridades de] Schleswig e de Holstein da ideia, além de
qualquer dúvida, de construir um canal em Quiel49. Após a Guerra de 1866 contra a
Áustria, ele se recusou a tomar a Boêmia e, assim, ofendeu tanto seu rei que eles não
se reconciliaram totalmente até depois das vitórias de 1870. Não pode haver dúvida
de que nesta clemência Bismarck previu um tempo em que a Prússia poderia precisar
da aliança com a Áustria. Em 1871, após Sedan e o cerco de Paris, Bismarck cedeu à
pressão do partido militar e anexou a Alsácia e Lorena.
O grande chanceler tinha, na verdade, o que o prussiano, via de regra, carece,
uma visão sobre as mentes das outras nações. Seus métodos eram preferencialmente
psicológicos. Tendo alcançado a unidade alemã a partir da Prússia, ele não travou
mais guerras. No entanto, ele conseguiu grandes feitos e por um tempo ele governou
a Europa – e o seu método não foi a mera exploração do poderio militar. No
Congresso de Berlim, de 1878, ele garantiu a ocupação das províncias da Bósnia e
Herzegovina para a Áustria, e assim aprofundou a rivalidade entre a Áustria e a
Rússia na Península Balcânica. No mesmo Congresso de Berlim, em particular ele
incitou a França a ocupar Túnis, e quando a França finalmente efetuou essa
ocupação, como ele previu, a Itália ficou profundamente ofendida. A aliança dual
com a Áustria em 1879 foi seguida pela tríplice aliança com Áustria e Itália em
1881. Era como se ele tivesse enviado seu cão pastor ao redor de seu rebanho para
conduzir suas ovelhas a ele. Por sutilezas da mesma ordem, ele antagonizou a França
com a Grã-Bretanha, e também a Grã-Bretanha com a Rússia. Mas ele também
tratou da sua política doméstica. Em 1886, ele deixou de lutar com o Vaticano e
conseguiu o apoio do partido católico, neutralizando assim a tendência socialista na
província da Renânia, que é industrial e católica, e também a tendência regionalista
[autonomista] no reino católico da Baviera.
O verdadeiro paralelo não deve ser traçado entre Napoleão e Bismarck, mas
entre Napoleão e toda a casta governante prussiana. O fim dessa casta, que agora
estamos testemunhando, é como o fim de Napoleão; o homem cegamente
organizador vai para sua Moscou, e os homens cegamente organizadores de Estado
ao seu Armagedom. Kultur é o nome dado à filosofia e a educação que imbuiu toda
uma raça com a mentalidade de "objetivos e meios". Os franceses são artísticos e,
portanto, um povo idealista; Napoleão prostituiu seu idealismo com a glória de seu
gênio. Bismarck, por outro lado, era filho da Kultur materialista, mas, acima da
média de sua raça, ele pode contar também com a força espiritual.
A Kultur teve sua origem não nas vitórias de Frederico, o Grande, mas na
derrota de Iena. O governo de Frederico, no século XVIII, era tão pessoal como o de
Napoleão, enquanto que a Prússia do século XIX, por trás de qualquer que fosse o
pretexto, era governada por uma oligarquia de "especialistas" intelectuais –
funcionários, burocratas, professores. Frederico, como único organizador, criou
apenas administradores, e o resultado foi que, quando ele morreu, deixou a Prússia
como um mero mecanismo a ser quebrado na batalha de Iena.
No próprio inverno de Iena, o filósofo Fichte veio dar uma palestra em
Berlim, enquanto ainda esta ainda estava ocupada pelos franceses. Não havia
nenhuma universidade na capital prussiana daqueles dias, e as palestras
foram entregues não a jovens estudantes, mas aos cérebros mais maduros do país na
febre de uma grande crise. Fichte ensinou a filosofia de patriotismo em uma época
em que as universidades alemãs se dedicavam à adoração abstrata do conhecimento
e da arte. Nos próximos anos, entre 1806 e 1813, foi estabelecida essa estreita
ligação entre o exército, a burocracia e as escolas, ou, em outras palavras, entre as
necessidades do governo e os objetivos da educação, que constituíam a força
essencial e perversa do sistema prussiano. O serviço militar universal foi
correlacionado com a escolaridade também obrigatória e universal, inaugurada na
Prússia duas gerações antes da educação inglesa sob a Lei de 1870; a Universidade
de Berlim, com um professorado brilhante, foi estabelecida como irmã do grande
Estado-Maior. Portanto, o conhecimento na Prússia não era mais perseguido
principalmente como um fim em si, mas como um meio para um fim, que foi a busca
de sucesso por um Estado que havia experimentado um amargo desastre. Além
disso, era um Estado de acampamento no meio de uma planície, sem os baluartes
naturais de uma Espanha, França ou Grã-Bretanha. O fim determina os meios, e uma
vez que o objetivo prussiano era força militar, com base na necessidade de disciplina
rígida, os meios eram inevitavelmente materialistas. Julgado do ponto de vista de
Berlim, foi uma coisa maravilha que impressionou a Kultur, ou a mentalidade
estratégica da educada classe de todo um povo, mas do ponto de vista da civilização,
foi um impulso fatal dado a uma nação – fatal no longo prazo, tanto para a
civilização quanto para aquela nação.
Nos tempos que correm, tivemos como referência o mapa de guerra alemão.
Isto pode ser questionado, no entanto, se a maioria das pessoas na Grã-Bretanha e
dos Estados Unidos perceber totalmente o papel educativo desempenhado pelo mapa
na Alemanha durante as últimas três gerações. Mapas que são aparatos essenciais da
Kultur, e todo alemão educado é um geógrafo em um sentido que é verdade para
muito poucos ingleses ou norte-americanos. Ele tem sido ensinado a ver em mapas
não apenas os limites convencionais estabelecidos nos pedaços de papel, mas
oportunidades físicas permanentes – "meios e significados” no sentido literal das
palavras. Sua Realpolitik vive em sua mente como um mapa mental. O ensino sério
de geografia nas escolas secundárias e universidades alemãs datam do início da
Kultur. Foi organizado pela geração após Iena, principalmente pelo trabalho
de quatro homens – Alexander von Humboldt, [Heinrich] Berghaus, Carl Ritter e
[Karl] Stieler –, que estavam vinculados à nova Universidade de Berlim e à
desde então famosa casa de mapas de Perthes, em Gotha. Até hoje, não obstante tudo
o que foi feito por duas ou três casas de mapas excepcionais neste país [Reino
Unido], se você quiser um bom mapa, transmitindo com precisão e ainda
graficamente os contrastes fundamentais, você deve frequentemente recorrer a um de
origem alemã. A razão é que na Alemanha muitos cartógrafos são geógrafos
acadêmicos e não apenas agrimensores ou desenhistas. Eles podem existir, porque há
um grande público educado para apreciar e pagar por mapas desenhados de forma
inteligente50.
Neste país, nós valorizamos o lado moral da educação, e talvez seja
intuitivamente que negligenciamos a geografia materialista. Antes da guerra, não
poucos professores, que eu saiba, se opuseram à geografia como uma disciplina de
educação com a alegação de que ela tendia a promover o imperialismo, assim como
eles se opuseram à educação física porque tendia ao militarismo. Podemos rir de tais
excessos de cautela política, como homens de séculos anteriores zombavam dos
anacoretas que se escondiam do mundo, mas o protesto em cada caso foi contra um
excesso na direção oposta.
Berlim-Bagdá, Berlim-Herat, Berlim-Pequim – não ouvidos como simples
palavras, mas visualizadas com mapas de relevo mental – envolvem, para a maioria
dos anglo-saxões, um novo modo de pensamento, introduzido recentemente e de
forma imperfeita entre nós pelos mapas toscos dos jornais. Mas um prussiano, seu
pai e seu avô debateram esses conceitos durante todas suas vidas, lápis na mão. Ao
providenciar os termos detalhados de paz, nosso estadistas terão, sem dúvida, o
conselho de excelentes informações geográficas de especialistas, mas os
representantes alemães não terão por trás deles apenas alguns especialistas, mas um
grande público geograficamente instruído, há muito familiarizado com todos os
aspectos importantes das questões que surgirão, e rápidos em dar um suporte
previdente aos seus líderes. Isso pode facilmente tornar-se uma vantagem decisiva,
especialmente se nosso povo passar para um estado de espírito magnânimo. Seria
curioso se o sucesso de Talleyrand e Metternich, na diplomacia secreta de 1814,
fosse repetido pelos porta-vozes dos Estados derrotados, no momento atual, nas
condições impostas à diplomacia pelo governo popular!51
O hábito de pensar em mapas não é menos prenhe na esfera de economia do
que na da estratégia. É verdade que o laissez-faire tinha
pouco uso para isso, mas a cláusula da "nação mais favorecida" que a Alemanha
impôs à derrotada França no Tratado de Frankfurt teve um significado bastante
diferente para a mente estratégica alemã em comparação ao que era anexado por
cobdenitas52 honestos. O burocrata alemão construiu toda uma estrutura vantajosa
para o comércio alemão. De que forma a Grã-Bretanha, sob seus céus do norte, teve
a cláusula da nação mais favorecida quando a Alemanha concedeu uma concessão à
Itália em matéria de impostos sobre a importação do azeite? Não haviam também
vagões ferroviários vindos da a Itália, que podem muito bem retornar carregados
com as exportações alemãs? Todo o sistema da maioria dos tratados comerciais
volumosos e intrincados entre a Alemanha e seus vizinhos foi baseado em um estudo
minucioso de rotas comerciais e de localização de áreas produtivas. O oficial alemão
estava pensando nos detalhes concretos de "viver", enquanto sua contraparte estava
absorvida pelo princípio negativo de "deixar viver".
 
*****
 
O Kaiser Wilhelm nos disse que esta guerra era uma luta entre duas visões do
mundo. "Ver" é uma característica do organizador; ele vê coisas de cima. Kipling
concordou com o Kaiser, mas na linguagem de homens simples, quando ele declarou
que há sentimento humano e sentimento alemão. O organizador, como organizador, é
inevitavelmente desumano. Sem dúvida, tanto o Kaiser quanto o poeta se
expressaram de forma a enfatizar tendências opostas; mesmo uma democracia deve
ter organizadores, assim como deve haver algum sinal de bondade até entre os
adeptos da Kultur. A verdadeira questão é saber qual deve ter a última palavra no
Estado – os idealistas ou os organizadores. Internacionalistas estão em uma revolta
fútil contra todas as organizações quando eles deveriam estar na guerra do
proletariado contra a burguesia.
A democracia se recusa a pensar estrategicamente a menos que seja forçada a
fazê-lo para fins de defesa. Isso, é claro, não impede a democracia de declarar guerra
por um ideal, como foi visto durante o Revolução Francesa. Uma das inconsistências
de nossos pacifistas hoje é que eles freqüentemente exigem intervenção nos assuntos
de outras nações.
Na Idade Média, grandes multidões desorganizadas começaram a marchar
contra o infiel e pereceram inutilmente pelo caminho. Não foi por falta de
advertências que as democracias ocidentais não estavam preparadas para a guerra
atual. Ao mesmo tempo, no início deste século, para citar apenas o caso da Grã-
Bretanha, três vozes honradas estavam apelando para nosso povo soberano e não
foram ouvidas: Lord Rosebery clamou por eficiência, Sr. Chamberlain para a defesa
econômica, e Lord Roberts para o treinamento militar. Democracia implica na regra
do consentimento pelo cidadão médio, o qual não vê as coisas do alto dos morros,
pois seu trabalho deve estar nas planícies férteis. Não há nada de bom nos trilhos
característicos do governo popular, e eles [os democratas] as vêem como qualidades
e não como meros defeitos. O presidente Wilson o admite quando diz que,
doravante, devemos fazer o mundo um lugar seguro para as democracias. Também a
Câmara dos Comuns britânica admitiu isso quando ministros responsáveis
orgulhava-se do fato de que, exceto no que diz respeito à força defensiva do
Marinha, não estávamos preparados para a guerra.
O democrata pensa em princípios, sejam eles – de acordo com sua
idiossincrasia – ideais, preconceitos ou leis econômicas. O organizador, por outro
lado, pensa na construção de planos e, como um arquiteto, deve considerar o terreno
para suas fundações e os materiais com os quais irá construir. Deve ser uma
consideração concreta e detalhada, pois os tijolos podem ser mais adequado para
suas paredes, mas pedra para seus lintéis, e madeira e ardósia para seu telhado. Se
for um Estado que ele está fundando – e não uma nação já formada –, ele deve
considerar cuidadosamente o território que é desejável ocupar e as estruturas sociais
– não leis econômicas – que são para ele o resultado da história. Assim ele opõe sua
estratégia à ética do democrata.
Moralistas ferozes não permitem atenuação do pecado, por mais persistente
que seja a tentação, e grande, sem dúvida, deve ser a recompensa no céu para o
morador da favela [slum-dweller] que se "mantém a linha". Mas os reformadores
práticos gastam muito tempo pensando sobre o problema da habitação. Ultimamente,
nossa política moralistas têm sido muito feroz. Prega-se o caminho estreito do "não
anexações, não indenizações”. Em outras palavras, eles se recusaram a reconhecer as
realidades da geografia e da economia. Tínhamos apenas um grão de semente de
mostarda de fé na natureza humana média, não poderíamos remover as montanhas!
O senso prático, no entanto, nos avisa que seria sensato aproveitar a
oportunidade presente, quando as nações democráticas estão armadas de forma
eficiente, para tornar o mundo um lugar seguro para as democracias e para seus
negócios normais. Em outras palavras, devemos cuidar do problema da fundação da
nossa futura Liga das Nações. Devemos contar prescientemente com as realidades do
espaço e do tempo, e não se contentar apenas em estabelecer no papel bons
princípios de conduta. O que é bom pode nem sempre aparecer da mesma forma
mesmo para aqueles que agora são aliados, e certamente não parecerá bom para
nossos inimigos de hoje, pelo menos durante algum tempo.
"Sem anexações, sem indenizações" foi sem dúvida um grito de guerra,
embora seus autores não tenham pretendido apoiar as tiranias existentes. Mas é com
certeza legítimo observar que há uma grande diferença entre a atitude do advogado
com suas presunções, salvo prova em contrário, e a do empresário desligado de
fórmulas. Este faz coisas, enquanto que o primeiro, na melhor das hipóteses, permite
que elas aconteçam.
No passado, a democracia olhou com desconfiança para as atividades até
mesmo de governos populares, e nisso mostrou um sábio autoconhecimento.
Costumava-se pensar, e mais cedo ou mais tarde será pensado novamente, que a
principal função do Estado em países livres é prevenir coisas tirânicas de serem
feitas por criminosos em casa ou invasores do exterior. A opinião média dos
cidadãos não é uma sólida base para ousadas inovações. Aventureiros, sozinhos ou
em grupos, devem, portanto, abrir o caminho para o progresso. Em Estados militares
e burocráticos é de outra forma; Napoleão poderia ser um pioneiro, assim como
Joseph II53 se seus súditos conservadores não tivessem se revoltado com sucesso
contra ele. Na Prússia, todo o progresso foi planejado pelo Estado, mas o progresso
significou apenas aumento de eficiência!54
No entanto, para salvar a democracia em seu recente perigo, suspendemos as
próprias salvaguardas da democracia, o que permitiu que nossos governos se
organizassem não apenas para a defesa, mas também para o ataque. Tivesse a guerra
sido mais curta, e teria sido um mero parêntese na história. Mas ela foi longa, e as
estruturas sociais foram em parte perdidas e em parte desviadas para novos usos, de
modo que hábitos e interesses adquiridos foram dissolvido, e toda a sociedade é
agora como barro em nossas mãos, se apenas tivermos a astúcia para moldá-lo
enquanto ele ainda está maleável. Mas a arte do molde de argila, assim como o
trabalho em metal quente, não reside apenas em saber o que se poderia fazer, mas
também levar em conta as propriedades do material com o qual se está trabalhando.
O moldador não deve ter apenas objetivos artísticos, mas também conhecimento
técnico; sua iniciativa humana deve levar em conta a realidade; ele deve ter em
mente seus "objetivos e meios" quando tenta forjar suas ideias na argila.
Enquanto o artista se esforça até o dia de sua morte para aprender cada vez
mais sobre o meio em que ele trabalha – não apenas no senso científico, mas de
forma prática "tátil", ganhando, como dizemos, maior comando sobre seu material –,
assim tem ocorrido com o conhecimento de humanidade em geral no que diz respeito
às realidades do mundo redondo em que devemos praticar a intrincada arte de viver
juntos. Não é apenas porque acumulamos vastas enciclopédias de fatos, mas pela
razão de que, ao vivermos através de cada nova época, vemos todo o passado e todo
o presente com novos olhos e de novos pontos de vista. É obvio que estes últimos
quatro anos de guerra causaram uma mudança na perspectiva humana diferente
daquela de toda a vida anterior daqueles que entre nós já têm cabelos grisalhos. No
entanto, quando olhamos para trás com nosso conhecimento atual, não está claro que
as correntes de pensamento agora tão tumultuosas já estavam assentando suavemente
cerca de vinte anos atrás? Nos últimos anos do século passado e nos primeiros deste,
os organizadores em Berlim e as minorias em Londres e Paris já haviam discernido a
nova tendência dessas correntes.55
Proponho tentar retratar algumas das realidades, geográficas e
econômicas, em sua perspectiva para o século XX. Muitos fatos são velhos e
familiares. Mas, na linguagem do escolástivo medieval há uma grande diferença
entre vera causa e causa causans - mera aprendizagem acadêmica e a realização que
impulsiona para a ação.
 
 
Capítulo três
O PONTO DE VISTA DO MARINHEIRO
 
“E Deus disse: Que as águas se juntem em um só lugar"
 
Os fatos físicos da geografia permaneceram substancialmente os
mesmo durante os cinquenta ou sessenta séculos de história humana registrada.
Florestas foram derrubadas, pântanos drenados e desertos podem ter se alargado,
mas os contornos de terra e água e a localização das montanhas e rios não mudou,
exceto nos detalhes. A influência das condições geográficas sobre as atividades
humanas, no entanto, depende não apenas das realidades como as conhecemos agora,
mas em um grau ainda maior do que os homens imaginaram em relação a elas. O
oceano sempre foi um ao longo da história, mas para fins humanos eficazes, havia
dois oceanos, o ocidental e o oriental, até o cabo da Boa Esperança ser ultrapassado,
apenas quatrocentos anos atrás. Aconteceu que o almirante Mahan, nos últimos anos
do último século, ainda podia basear uma nova mensagem em relação ao poder
marítimo em um texto extraído do primeiro capítulo do livro de Gênesis. O oceano
era um oceano todo o tempo, mas o significado prático dessa grande realidade não
era totalmente compreendido até alguns anos atrás – talvez só agora esteja sendo
compreendido na sua totalidade.
Cada século teve sua própria perspectiva geográfica. Homens ainda vivos,
embora passassem da idade do serviço militar, eram ensinados a partir de um mapa
do mundo em que quase todo o interior da África estava vazio; no entanto, no ano
passado, o general Smuts poderia falar na Sociedade Geográfica Real sobre a
ambição alemã de controlar o mundo a partir do agora explorado terreno vantajoso
da África Central. A perspectiva geográfica do século XX difere, no entanto, de
todas as dos séculos anteriores em mais do que apenas extensão. Em linhas gerais,
nosso conhecimento sobre a área geográfica agora está completo. Ultimamente
temos alcançado o Polo Norte, e foi descoberto que está no meio de um mar
profundo, e descobriu-se que o Polo Sul está sobre um alto planalto. Com estas
descobertas finais, o livro dos pioneiros foi fechado. Nenhuma nova considerável
terra fértil, nenhuma cordilheira importante e nenhum rio de primeira classe podem
mais ser a recompensa de uma aventura. Ademais, mal o mapa do mundo havia sido
esboçado e já se iniciaram as reivindicações de propriedade política [soberania]
sobre toda a terra emersa no globo. Quer pensemos na interconexão física,
econômica, militar ou política das coisas na superfície do globo, somos agora
apresentados pela primeira vez a um sistema fechado. O conhecido não passa mais
do meio conhecido para o desconhecido; não há mais elasticidade da política
expansionista para terras desconhecidas. Cada choque, cada desastre ou cataclisma,
agora é sentida até mesmo pelos antípodas, e pode de fato daí retornar, como as
cinzas no ar da erupção do vulcão Krakatoa em 1883 foram impulsionadas em anéis
por todo o globo até que convergiram para um ponto no hemisfério oposto, e daí
retornaram para se encontrar mais uma vez sobre Krakatoa, o local de sua origem.
Cada ação da humanidade, doravante, será ecoada e ecoada da mesma maneira em
todo o mundo. Em última análise, é por isso que cada Estado importante estava
fadado a ser atraído para a guerra recente na medida em que ela durou tempo
suficiente para isso.
Até hoje, no entanto, nossa visão das realidades geográficas é colorida pelos
nossos preconceitos do passado. Em outras palavras, a sociedade humana ainda se
relaciona com os fatos da geografia não como eles são, mas em grande medida em
como eles foram abordados no curso da história. É apenas com um esforço que ainda
podemos percebê-los na verdadeira e específica perspectiva do século vinte. Esta
guerra nos ensinou rapidamente, mas ainda há um grande número de nossos cidadãos
que olham para um faroeste vívido, no primeiro plano, mas enxergam apenas um
fundo oriental muito apagado. Para avaliarmos, então, onde estamos agora, valerá a
pena considerar brevemente as etapas pelas quais chegamos. Vamos começar com as
fases sucessivas da perspectiva do marinheiro.
 
FIGURA 1 – NILO, UM MUNDO-RIO À PARTE
 
Image

 
 
 
 
*****
FIG. 2 – A navegação costeira desenhada na mesma escala que a
navegação fluvial da Figura 1
Image

 
 
 
Imagine um vasto deserto amarelado, erguido algumas centenas de metros
acima do nível do mar. Imagine um vale com encostas rochosas íngremes escavadas
neste planalto deserto, e o fundo do vale atapetado com uma faixa de solo negro, no
meio do qual serpenteia para o norte por quinhentas milhas por um rio prateado
navegável. Esse rio é o Nilo, que flui de onde as rochas graníticas de Assuã quebram
sua navegabilidade na primeira catarata até onde suas águas se dividem na cabeça do
delta. Da borda do deserto até a outra borda através do vale é uma distância de umas
dez ou vinte milhas. Fique em uma das bordas com o deserto atrás; a descida rochosa
cai de seus pés para a faixa de planície [fluvial] abaixo, e longe sobre as inundações
do de verão, ou o verde do crescente inverno, ou as douradas colheitas da primavera,
você se depara com uma parede de rocha oposta subindo para o outro deserto. Os
recessos nessas frentes de rocha foram esculpidas há muito tempo em templos
cavernosos e tumbas, e as salientes em poderosas efígies de reis e deuses. O Egito,
neste longo cinturão afundado [o vale do Nilo], era antigamente civilizado porque
todas as vantagens físicas essenciais foram nele combinadas para o trabalho dos
homens. De um lado um solo rico, água abundante e um Sol poderoso; daí a
fertilidade para o sustento de uma população abastada. No outro lado, era uma suave
hidrovia de meia dúzia de milhas ou menos para cada lado. Também havia força
motriz para o transporte, uma vez que a corrente do rio carregava os navios para o
norte, e os ventos de Etesian – conhecidos no oceano como ventos Alísios – os
traziam novamente para o sul. Fertilidade no solo e uma linha de comunicação, mão-
de-obra e facilidades para sua organização; existem assim os ingredientes essenciais
para um reino.
Somos solicitados a imaginar a condição inicial do Egito como a de um vale
mantido por uma série de tribos que lutavam entre si em frotas de grandes canoas de
guerra, assim como tribos posteriores lutaram no rio Congo em nosso próprio tempo.
Alguma dessas tribos, tendo derrotado seus vizinhos, ganhou posse de uma seção
mais longa do vale, uma mais extensa base material para sua força de trabalho, e
com base nisso organizou conquistas ainda maiores. Por fim, toda a extensão do vale
foi submetida a um governo único, e os reis de todo o Egito estabeleceram seu
palácio em Tebas. Para o norte e para o sul, de barco no Nilo, viajaram seus
administradores – seus mensageiros e seus magistrados. A leste e a oeste existia a
forte defesa propiciada pelos desertos, e no limite norte, um cinturão de pântano ao
redor da costa do delta do Nilo protegia contra contra os piratas do mar56.
Agora leve sua mente para o "grande mar", o Mediterrâneo. Você
têm essencialmente os mesmos ingredientes físicos do Egito, mas
em uma escala maior, e você pode colocar neles não um mero reino e sim o império
Romano. Da costa fenícia por duas mil milhas a oeste encontra-se uma ampla via
marítima até sua entrada em Gibraltar, e em ambos os lados estão áreas costeiras
férteis com chuvas de inverno e colheita sob o brilho do Sol no verão. Mas há uma
distinção a ser feita entre os moradores ao longo das margens do Nilo e ao longo da
costa do Mediterrâneo. As condições da atividade humana são relativamente
uniformes em todas as partes do Egito; cada uma das tribos constituintes teria seus
fazendeiros e seus barqueiros. Mas as competições em torno do Mediterrâneo
tornaram-se especializadas; alguns se limitavam a cultivar seus campos e navegar em
seus rios, mas outros deslocaram a maior parte de sua energia à náutica e ao
comércio exterior. Lado a lado, por exemplo, moravam os egípcios cultivadores de
milho e donos de casa e os aventureiros fenícios. Um esforço longo e mais
sustentado de organização era, portanto, necessária para soldar todos os reinos do
Mediterrâneo numa única unidade política.
A pesquisa moderna deixou claro que o líder da corrida marítima
da antiguidade ocorreu sempre daquela praça de água entre a Europa
e a Ásia, que é conhecida alternativamente como mar Egeu e o arquipélago [grego],
o "Mar Chefe" dos gregos. Marinheiros deste mar parecem ter ensinado aos fenícios
seu comércio nos dias em que, até então, o grego não era falado nas "ilhas dos
gentios". É do mais profundo interesse para o nosso propósito atual observar que o
centro de civilização no mundo pré-grego do Egeu, de acordo com os indícios da
mitologia e da escavação recente, ocorreu na Ilha de Creta. Teria sido essa a primeira
base do poder marítimo? Daquela ilha saíram os marinheiros que, navegando para o
norte, viram a costa do Sol nascente à direita e do Sol poente à esquerda, e nomeou
aquele como Ásia e este de Europa? Foi de Creta que o o povo do mar se estabeleceu
ao redor das outras margens da "câmara marinha" do Egeu, formando até hoje um
verniz costeiro de população grega diante de povos de outras raças algumas milhas
para o interior? Existem tantas ilhas no arquipélago que o nome se tornou, como o
delta do Nilo, um dos termos descritivos comuns da geografia. Mas Creta é o
maior e mais fecundo deles. Temos aqui uma importante e firme instância que serviu
de base maior para o poder marítimo? A força de trabalho do mar deve ser nutrida
pela fertilidade da terra em algum lugar, e outros fatores sendo iguais – como a
segurança e a energia das pessoas –, esse poder controlará o mar, que é a base dos
maiores recursos.
A próxima fase do desenvolvimento do Egeu ensina aparentemente a mesma
lição. Tribos montadoras de cavalos de língua helênica vieram do norte da península
que agora forma a parte continental da Grécia, e se estabeleceram, helenizando os
primeiros habitantes. Esses helenos avançaram para o limbo terminal da península, o
Peloponeso, estreitamente anexado para o continente pelo istmo de Corinto. Daí,
organizando o poder do mar em sua base peninsular relativamente considerável, uma
das tribos helênicas, os dórios, conquistaram Creta, uma região menor, embora
completamente de base insular.
Alguns séculos se passaram, durante os quais os gregos navegaram ao redor
do promontório ao sul do Peloponeso no mar Jônico, colonizando ao longo das
margens desse mar. Assim, a península passou a ser uma cidadela no meio do mundo
marinho grego. Ao longo da costa externa das águas gêmeas, mares Egeu e Jônico,
os colonos gregos eram apenas uma franja exposta ao ataque por trás. Só na
península central eles foram relativamente seguros, embora não absolutamente,
como a sequência mostra.
Para a costa oriental externa do Egeu, os persas desceram do interior contra
as cidades gregas à beira-mar, e a frota ateniense transportou ajuda da cidadela
peninsular para os parentes insulares ameaçados, unindo-se assim o poder marítimo
com o poder terrestre. Um ataque marítimo persa foi derrotado em Maratona, e os
persas então recorreram à estratégia óbvia de um poder terrestre confuso; sob o rei
Xerxes eles marcharam de volta, fazendo uma ponte de barcos sobre o estreito de
Dardanelos, entrando na península pelo norte, com a vistas a destruir o ninho de
onde surgiram as vespas que os picaram e voaram evasivamente para longe. O
esforço persa falhou e foi reservado para os macedônios, meio gregos e meio
bárbaros, estabelecidos na raiz da própria península grega, encerrar o primeiro ciclo
do poder marítimo ao conquistarem a base marítima grega ao sul e, em seguida,
marcharam na Ásia, através da Síria e do Egito, no caminho destruindo Tiro dos
fenícios. Assim, eles fizeram um "mar fechado" do leste do Mediterrâneo ao privar
tanto os gregos quanto os fenícios de suas bases. Feito isso, o rei macedônio
Alexandre poderia avançar despreocupadamente na alta Ásia. Podemos falar da
mobilidade dos navios e do longo braço da frota, mas, afinal, o poder marítimo
depende fundamentalmente de bases adequadas, produtivas e seguras. O poder
marítimo grego passou pelas mesmas fases do poder fluvial egípcio. O fim de ambos
eram iguais; sob a proteção de uma marinha, o comércio movia-se com segurança
sobre uma via fluvial porque todas as margens eram mantidas por um mesmo poder
terrestre.
 
FIG. 3 – Os mares gregos, Egeu e Iônico, mostrando a base de
Creta insular e a base da península grega; também a marcha de
Xerxes para flanquear o poder marítimo de Atenas
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FIG. 4 – Latium, uma fértil base marítima
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Vamos agora para o Mediterrâneo ocidental. Roma começou como uma
cidade fortificada em uma colina, ao pé da qual havia uma ponte e um cais fluvial.
Esta cidade portuária era a cidadela e o mercado de uma pequena nação de
fazendeiros, que cultivaram o Lácio, a "vasta terra" ou planície, entre os Apeninos e
o mar. O "pai" Tiber era para fins de transporte apenas um riacho, navegável pelas
pequenas embarcações da época, que fica a algumas milhas da costa, no meio da
planície, mas isso foi o suficiente para dar a Roma vantagem sobre seus rivais, as
cidades situadas sobre as colinas albanas e etruscas em suas vizinhanças. Roma teve
a ponte e o porto mais interno, assim como Londres.
Com base na produtividade das terras do Lácio, os romanos partiram do
Tibre para trafegar nas costas do Mediterrâneo ocidental. Logo eles entraram em
competição com os cartagineses, que eram baseados sobre a fertilidade do vale
Merjerdeh, no promontório oposto da África. A primeira Guerra Púnica ou Fenícia
se seguiu, e os Romanos vitoriosamente asseguraram o mar. Eles então começaram a
ampliar sua base anexando toda a parte peninsular da Itália até o rio Rubicão. Na
segunda Guerra Púnica, o general cartaginês, Aníbal, se esforçou para flanquear o
poder marítimo romano marchando ao redor dele, como Xerxes e Alexandre tinham
feito em relação às suas potências marítimas opostas. Ele carregou seu exército sobre
os estreitos ocidentais da África para a Espanha, e então avançou através da Gália do
Sul para a Itália. Ele foi derrotado, e Roma anexou as costas mediterrâneas da Gália
e Espanha. Ao tomar a própria Catargo na Terceira Guerra Púnica, Roma fez um
"mar fechado" do Mediterrâneo ocidental, pois todas as costas eram mantidas por um
único e mesmo poder terrestre.
Restava a tarefa de unir os controles do ocidente e das bacias orientais do
Mediterrâneo, conectadas pelo estreito da Sicília e o estreito de Messina. As legiões
romanas marcharam para a Macedônia e daí para a Ásia, mas a distinção entre o
Ocidente latino e o Oriente grego permaneceu, como ficou evidente quando a guerra
civil começou entre os governadores romanos do Ocidente e do Oriente, César e
Antonio. Na batalha marítima de Actium, uma das mais decisivas do história do
mundo, a frota ocidental de César destruiu a frota oriental de Antônio. Daí em
diante, durante cinco séculos, todo o Mediterrâneo foi um "mar fechado"; e
consequentemente pensamos no Império Romano principalmente como uma
potência terrestre. Nenhuma frota era necessária, exceto algumas embarcações da
polícia, para manter um comando tão completo da via marítima arterial do
Mediterrâneo, assim como os reis do Egito sempre exerceram sobre a rota do Nilo.
Mais uma vez, o poder terrestre encerrou um ciclo de competição sobre a água,
privando o poder marítimo de suas bases. É verdade que tinha ocorrido a culminante
batalha marítima de Ácio, e que a frota de César havia vencido a recompensa de
todas as frotas bem-sucedidas, o comando sobre todos os mares circundantes. Mas
esse comando não foi posteriormente mantido no mar, mas na terra, mantendo
seguras as costas.
 
FIG. 5 – Duas famosas marchas com vistas a flanquear o poder
marítimo, também uma vitória que “fechou” o Mediterrâneo
 
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Quando Roma completou a organização de sua rodada de poder no
Mediterrâneo, seguiu-se uma longa época de transição, durante a qual o
desenvolvimento oceânico da civilização ocidental foi gradualmente preparado. A
transição começou com o sistema viário romano, construído para a maior mobilidade
das legiões em marcha. Após o fim das Guerras Púnicas, quatro províncias de língua
latina circundaram o Mediterrâneo ocidental - Itália, Gália do Sul, leste e sul da
Espanha e a África cartaginesa. O limite externo da província africana era protegida
pelo deserto do Saara, e a Itália tem na parte traseira o fosso do Adriático, mas na
Gália e na Espanha, Roma se encontrou com um desconfortável vizinho, as tribos
celtas independentes. Assim, o dilema familiar do império se apresentou; para
avançar e terminar com a ameaça, ou para entrincheirar-se e deixá-la em paz. Um
grupo de pessoas viris escolheu o primeiro curso, e a fronteira e as estradas foram
transportados para o oceano ao longo de mil milhas de fachada entre o cabo de São
Vicente e a foz do Reno. Como consequência a porção latina do Império passou a ser
baseada em duas características da geografia física: por um lado estava o mar latino
– o oeste do Mediterrâneo; e por outro lado estava a península Latina, entre o
Mediterrâneo e o oceano.57
Júlio César penetrou no golfo da Biscaia e construiu uma frota
com a qual derrotou a frota do [povo gaulês] veneti da Bretanha. Então porque os
celtas da Grã-Bretanha estavam ajudando seus parentes gauleses, ele cruzou o canal
e os derrotou na base da ilha. Cem anos depois os romanos conquistaram toda a parte
inferior e mais frutífera da Grã-Bretanha, e assim eliminou o risco de ascensão de
um poder marítimo ao largo da costa gaulesa. Desta forma, o canal também se
tornou um "mar fechado", controlado pelo poder terrestre.
Depois de quatro séculos, o poder terrestre de Roma diminuiu e os mares em ambos
os lados da península Latina deixaram de ser "fechados". Os nórdicos invadiram o
mar do Norte a partir de seus fiordes, e através do canal da Mancha e do estreito de
Gibraltar, chegaram até mesmo nos recessos do Mediterrâneo, envolvendo com seu
poder marítimo toda a grande península. Eles tomaram bases avançadas nas ilhas da
Grã-Bretanha e na Sicília, e até mesmo mordiscaram as bordas do continente na
Normandia e no sul da Itália. Ao mesmo tempo, os camelos sarracenos desceram da
Arábia e tiraram do Império suas províncias ao sul do Mediterrâneo, ou seja,
Cartago, Egito e Síria.
 
FIG. 6 – O mar latino, mostrando o território romano após as
guerras púnicas
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Em seguida, eles lançaram suas frotas na água, e apreenderam parte da
Sicília e parte da Espanha como bases no exterior. Assim, o Mediterrâneo deixou de
ser a via arterial de um império, e se tornou o fosso da fronteira que dividiu a
cristandade do Islamismo. Mas o maior poder marítimo dos sarracenos permitiu-lhes
manter a Espanha, embora situada ao norte desse fosso, assim como anteriormente o
maior poder marítimo de Roma permitiu-lhe manter Cartago, embora localizada ao
sul do Mediterrâneo.
Por mil anos a cristandade latina foi assim aprisionada na península Latina e
sua ilha anexa da Grã-Bretanha. Mil e quinhentas milhas a nordeste, medidas em
linha reta, das costas do oceano desde o Promontório Sagrado dos antigos [cabo ao
norte da Córsega] até o estreito de Copenhagen, e 1.500 milhas a leste, medidas no
mesmo caminho, fica a sinuosa costa mediterrânea do Promontório Sagrado até o
estreito de Constantinopla. Em cada estreito, uma península menor avança em
direção da península principal, a Escandinávia de um lado, e a Ásia Menor pelo
outro; e atrás das grades de terra assim formadas estão duas bacias circunvizinhas, o
mar Báltico e o mar Negro. Se a Grã-Bretanha for considerada como equilibrando a
Itália, a simetria da extremidade distal da península principal é tal que você pode
colocar uma cruz latina sobre ela com a cabeça na Alemanha, os braços na Grã-
Bretanha e na Itália, os pés na Espanha e o centro na França, tipificando assim
aquele império eclesiástico das cinco nações que, embora deslocada para o norte,
eram o herdeiro medieval do mundo romano. Em direção ao leste, no entanto, onde
os mares Báltico e Negro começam a definir o caráter peninsular da Europa, o
contorno é menos bem formado, pois a península Balcânica se projeta para o sul,
apenas afinando finalmente na pequena península histórica da Grécia.
Não é tentador especular sobre o que poderia ter acontecido se
Roma não tivesse se recusado a conquistar os territórios a leste do Reno? Quem pode
dizer se com isso uma única potência marítima poderosa, totalmente latinizada desde
o mar Negro até o Báltico, não teria comandado o mundo de sua península base?
Mas a Roma clássica era principalmente mediterrânea e não um poder peninsular, e a
fronteira Reno-Danúbio deve ser considerada como demarcação de uma expansão
desde o Mediterrâneo, em vez de a realização incompleta de uma política peninsular.
 
FIG. 7 - A península itálica, ocupada pelas modernas nações
românicas
 
 
 
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Foi a "abertura" novamente dos mares em ambos os lados que fizeram uma
Europa compactada no sentido peninsular. A reação teve que ser organizada, ou as
pressões do norte e do sul teriam obliterado a cristandade. Então Carlos Magno
ergueu um império montado no Reno, metade latino e meio alemão de fala, mas
totalmente latino eclesiasticamente. Com este império como base, as Cruzadas foram
posteriormente empreendidas. Visto em grande perspectiva, nesta distância de tempo
e do ponto de vista do marinheiro, as Cruzadas, se bem sucedidas, teriam tido como
efeito principal o “fechamento” mais uma vez do Mediterrâneo. A longa série dessas
guerras, estendendo-se por dois séculos, teve dois cursos. Por um lado, frotas foram
enviadas de Veneza e Gênova para Jaffa e Acre na costa síria; por outro lado, os
exércitos marcharam pela Hungria, ao longo do famoso "corredor" do Morava e
vales de Maritza, e através de Constantinopla e da Ásia Menor para a Síria. A
comparação é óbvia entre essas campanhas dos Cruzados por terra de uma base
alemã até as costas do Mediterrâneo, e a campanha semelhante de Alexandre a partir
de sua base macedônia. Muitos paralelos podem, de fato, ser traçados entre os meio-
gregos macedônios e os alemães meio latinos. Nenhum grego de sangue puro
deixava de considerar um macedônio como uma espécie de bastardo! Mas a posição
deles na ampla raiz da península grega capacitou os macedônios a conquistarem a
base marítima grega, assim como a posição dos alemães na ampla raiz da grande
península latina sempre os tornou perigosos para as bases marítimas latinas além do
Reno e dos Alpes.
Os povos da civilização latina foram assim endurecidos por um inverno de
séculos, chamado de Idade das Trevas, durante o qual foram sitiados em sua terra
natal pelos maometanos, e não conseguiram escapar através de suas surtidas que
foram as cruzadas. Somente no século XV, o tempo amadureceu para a grande
aventura no oceano que iria formar o mundo europeu. Vale a pena fazer uma pausa
para considerar ainda mais o ambiente único em que a linhagem ocidental de nossa
raça humana desenvolveu o empreendimento e a tenacidade que lhe deram a
liderança mundial na modernidade. A Europa é apenas um pequeno canto da grande
ilha que também contém a Ásia e a África, mas o berço dos europeus foi apenas
metade da Europa - a península Latina e as penínsulas subsidiárias e ilhas agrupadas
ao seu redor. Amplos desertos ficam ao sul, que apenas poderia ser cruzado em cerca
de três meses nas costas de camelos, de modo que os povos negros ficaram
separados dos brancos. O oceano estende-se a oeste e, ao norte há um oceano
congelado. Para o nordeste existiam intermináveis florestas de pinheiros e rios
fluindo para o mar Ártico, congestionado pelo gelo, ou para águas interiores como o
mar Cáspio, que é separado do oceano. Apenas para o sudeste havia rotas de óasis
praticáveis que levam ao mundo exterior, mas estas foram fechadas, mais ou menos
completamente, do século VII ao XIX, pelos árabes e turcos.
 
FIG. 8 – Mostrando a Germânia no gargalo da península latina e
no gargalo da península grega
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FIG. 9 – Os caminhos fluviais e costeiros do navegador europeu. A
Europa corresponde a apenas 2% da superfície terrestre. Isso foi
sua prisão durante a cristandade medieval, mas a base marítima
da moderna cristandade
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Em qualquer caso, no entanto, o sistema europeu de vias navegáveis foi
separado pelo istmo de Suez do oceano Índico. Portanto, do ponto de vista do
marinheiro, a Europa era uma concepção bastante definida, embora o homem da
terra possa pensar nela como uma fusão com a Ásia. Era um mundo à parte, mas
dentro desse mundo havia ampla fertilidade, e em seus caminhos de água uma
provisão natural para a intimidade de uma família de nações. Caminhos aquáticos,
com suas bifurcações e cruzamentos, com os barqueiros ainda navegando entre os
rios e entre estes e as costas, mas não se aventurando em alto mar. Além disso, nos
dias relativamente sem estradas, que se seguiram à decadência do sistema viário
romano, os barqueiros frequentavam muitas
das cabeceiras dos rios, que agora abandonamos como se não valessem mais a pena
neles navegar.
Houve duas circunstâncias afortunadas em relação à época medieval na
Europa. Por um lado, os infiéis não tinham sob seu controle uma mão-de-obra
inesgotável, pois se baseavam em regiões áridas e subáridas, desertos e estepes, e em
terras de oásis comparativamente pequenas; por outro lado, a península latina não foi
seriamente ameaçada ao longo de sua fronteira oceânica, pois os nórdicos, embora
ferozes e cruéis enquanto permaneceram pagãos, tinha bases nos fiordes, vales ainda
menos extensos e menos frutíferos do que os oásis, e onde quer que eles se
instalassem – na Inglaterra, Normandia, Sicília ou Rússia – seu pequeno número foi
logo absorvido nas populações locais. Assim, toda a força defensiva da Europa
poderia ser lançado contra o perigo sudeste. Mas assim que a civilização europeia
ganhou impulso, havia energia para gastar com a fronteira oceânica; Veneza e
Áustria foram suficientes para a luta posterior contra os turcos.
Após os ensaios, sem resultado prático, dos nórdicos forçando um caminho
através do gelo do norte da Groelândia, os portugueses se voltaram para encontrar
um caminho marítimo para as Índias ao redor da costa da África. Elas foram
inspirados para a aventura pela liderança do príncipe Henrique, "o Navegador", meio
inglês e meio português. À primeira vista parece estranho que pilotos como
Colombo, que passaram suas vidas em viagens costeiras, indo muitas vezes de
Veneza para a Grã-Bretanha, poderiam empreender uma exploração para o sul, uma
vez que saíram do estreito de Gibraltar. Ainda mais estranho parece que, quando
finalmente eles se propuseram a descobrir o contorno da África, levou duas gerações
de viagens quase anuais antes que Vasco da Gama liderasse o caminho para o
Oceano Índico. A causa de suas dificuldades era física. Por mil milhas, da latitude
das Ilhas Canárias à de Cabo Verde, a costa africana é um deserto tórrido, por causa
do vento seco que sopra da terra sem cessar. Pode ser relativamente fácil navegar
para o sul com aquela brisa constante, mas como a viagem de volta poderia ser
realizada por navios que não podiam navegar perto do vento como um veleiro
moderno e ainda não tinham ousado navegar para o vasto oceano cruzando o vento,
nem ainda trilhando tediosamente o caminho de casa ao largo da costa sem
suprimentos de água e alimentos frescos, em uma época em que a praga do escorbuto
ainda não fora dominada?
Assim que os portugueses encontraram o caminho do oceano para os mares
indianos, os europeus logo se desfizeram da oposição das barcaças árabes. A Europa
teve seus inimigos na retaguarda; tinha navegado para a parte traseira da terra, assim
como Xerxes, Alexandre, Anibal e os cruzados marcharam em volta para a parte
traseira do mar.
Daquela época até a abertura do canal de Suez, em 1869, os marinheiros da
Europa continuaram em número cada vez maior a completar a travessia do cabo da
Boa Esperança e navegar para o norte no oceano oriental até a China e o Japão.
Apenas um navio, o Vega do Barão sueco Nordenskiold, até hoje fez a passagem ao
redor do norte da Ásia – com infinito risco, e em dois anos – e não circunavegou o
triplo continente, pois voltou para casa pelo canal de Suez. Nem a viagem terrestre
para as Índias foi realizada, exceto como uma aventura, até o século passado. O
comércio com as Índias foi conduzido por mar, costeando – sem dúvida de uma
forma ousada, de um ponto a outro –, ao redor do grande promontório ao sul cujas
margens eram europeias e africanas de um lado, e africanas e asiáticas do outro. Do
ponto de vista do tráfego para as Índias, o mundo era um grande cabo, de pé para o
sul, entre a Grã-Bretanha e o Japão. Este promontório mundial foi envolvido pelo
poder marítimo, como haviam sido antes os promontórios grego e latino: todas as
suas costas estavam abertas ao comércio marítimo ou ao ataque do mar. Os
marinheiros escolheram naturalmente como bases locais de seu comércio ou guerra
pequenas ilhas ao largo da costa continental, como Mombaça, Bombaim, Cingapura
e Hong Kong, ou pequenas penínsulas, como o cabo da Boa Esperança e Aden, uma
vez que essas posições ofereciam abrigo para seus navios e segurança para seus
depósitos. Quando ficaram mais fortes e ousados, eles colocam suas cidades
comerciais, como Calcutá e Xangai, perto da entrada de grandes rios em zonas
produtivas, populosas e com mercados. Os marinheiros da Europa, devido à sua
maior mobilidade, portanto, tiveram por cerca de quatro séculos superioridade sobre
os homens da terra da África e da Ásia.
A passagem do perigo iminente para a cristandade, por causa do relativo
enfraquecimento do Islã, foi, sem dúvida, uma das razões para o desmembramento
da Europa medieval no fim da Idade Média; já em 1493, o Papa teve que traçar sua
famosa linha através do oceano, de pólo a pólo, a fim de impedir as brigas de
espanhóis e portugueses. Como resultado dessa separação, surgiram cinco potências
oceânicas concorrentes: portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses –
no lugar do único poder que, sem dúvida, teria sido o ideal dos cruzados.
 
FIG. 10 – O Mundo-Promontório
 
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FIG. 11 – A planura inglêsa, uma fértil base marítima
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Assim, o resultado de mil anos de transição, desde o mundo antigo às
condições modernas do poder marítimo, é tal que induz uma comparação entre as
penínsulas grega e latina, cada uma com sua ilha deslocada. A Grécia peninsular e a
Creta insular anteciparam em suas relações a península latina e a ilha da Grã-
Bretanha. Sob os dórios, os maiores recursos do continente peninsular foram
utilizados para a conquista de Creta, mas em um momento posterior, a rivalidade de
Esparta e Atenas impediu uma plena exploração da península como base marítima.
Então, no caso da grande península e grande ilha, a Grã-Bretanha foi conquistada e
mantida por Roma a partir do continente peninsular; mas quando a Idade Média
estavam terminando, várias bases marítimas rivais ocuparam a península latina, cada
uma delas aberta ao ataque por trás, como Atenas e Esparta estiveram abertas à
invasão macedônia. Destas bases marítimas latinas, uma, Veneza, era voltada para o
Islã, enquanto que as outras lutavam contra feudos pelo comando do oceano, de
modo que no final a pequena base insular britânica, que não é vizinha de nenhuma
base peninsular unida, tornou-se a casa de um poder que envolvia e continha a
grande península.
Dentro da própria Grã-Bretanha, é verdade que não havia unidade efetiva até
o século XVIII, mas os fatos da geografia física determinaram a predominância de
ingleses no sul da ilha, seja como inimigo ou parceiro dos escoceses e galeses. Dos
dias normandos até o crescimento das modernas indústrias a partir das minas de
carvão, a nação inglesa foi quase exclusivamente simples em sua estrutura. É isso
que torna a história da Inglaterra o épico que é, até que as histórias da Escócia e da
Irlanda chegam para confluir suas correntes com ela. Uma planície fértil entre as
montanhas do oeste e do norte e dos mares estreitos do leste e do sul, um povo de
fazendeiros, um único rei, um único parlamento, um rio de maré, uma única grande
cidade para o mercado central e porto – esses são os elementos sobre os qual a
Inglaterra foi construída, cujos faróis de alerta brilhavam nos topos das colinas de
Plymouth a Berwick-on-Tweed, naquela noite do reinado de Elizabeth quando a
Armada Espanhola entrou no canal. Numa escala menor, anteriormente o Lácio, o
Tibre, a cidade, o Senado e o povo de Roma apresentaram uma unidade semelhante e
um executivo de força semelhante. A verdadeira base histórica do poder marítimo
britânico foi nossa planícia inglesa fértil e separada [dos conflitos frequentes no
continente]; carvão e ferro em torno das fronteiras da planície foi uma adição de
tempos posteriores. A bandeira branca da marinha real é, com alguma justiça
histórica, a bandeira de São Jorge, embora com uma "diferença" para os sócios
menores58.
Todas as características do poder marítimo podem ser estudadas na história
britânica durante os últimos três séculos, mas a base doméstica, produtiva e segura, é
a única coisa essencial à qual todas as outras foram adicionadas. Dizem que devemos
agradecer a Deus diariamente por nosso canal, mas quando eu olho para a gloriosa
colheita desta planície inglesa neste crítico ano de 1918, me parece que nosso
agradecimento como um povo marítimo não deve ser menos que para o nosso fértil
solo. Creta insular teve que ceder ao dórios oriundos da grande península.
Quatro vezes nos últimos três séculos tentaram derrubar o poder marítimo
britânico a partir da costa penisular oposta – da Espanha, da Holanda e duas vezes da
França. Por fim, depois de Trafalgar, o poder marítimo britânico envolveu
definitivamente a península Latina, tendo bases subsidiárias em Gibraltar, Malta e
Helgoland. A linha costeira continental tornou-se a fronteira britânica efetiva, não
obstante os corsários inimigos, e a Grã-Bretanha poderia preparar à vontade a guerra
sobre o mar. Então, ela empreendeu as campanhas "peninsulares" na Espanha, e
desembarcou exércitos na Holanda em ajuda de seus aliados militares. Ela até
antecipou Gallipoli59 trazendo seus exércitos de Walcheren e Corunha.
Quando a Guerra Napoleônica acabou, o poder marítimo britânico, quase
sem competição, englobou aquele grande promontório mundial que se ergue
encaminhando para o cabo da Boa Esperança entre a Grã-Bretanha e o Japão. Os
navios mercantes britânicos no mar faziam parte do império britânico; o capital
britânico se aventurou no exterior em países estrangeiros, fazendo parte dos recursos
britânicos, controlados a partir da cidade de Londres e disponíveis para a
manutenção da potência dentro e fora dos mares. Foi um orgulho, e essa lucrativa
posição parecia tão segura que o povo vitoriano pensou que era quase a ordem
natural das coisas que nossa Grã-Bretanha insular deveria governar os mares em
todo o mundo. Éramos, talvez, um povo não muito popular no resto do mundo; nossa
posição atrás de um canal parecia uma vantagem injusta. Mas navios de guerra não
podem navegar nas montanhas, e desde as guerras francesas da Plantagenetas que
não buscamos fazer conquistas europeias permanentes, então, no geral, podemos
esperar que o veredicto de historiadores estrangeiros sobre nossa Grã-Bretanha do
século XIX possa assemelhar-se ao do famoso estudante que descreveu seu diretor
como "uma besta, mas apenas uma besta”60.
Talvez o resultado mais notável do poder marítimo britânico foi a posição no
oceano Índico durante a geração anterior à guerra. O “RAJ” [domínio] britânico na
Índia dependia do apoio do mar, mas de todas as águas entre o cabo da Boa
Esperança, Índia e Austrália, não havia habitualmente nenhum navio de guerra
britânico ou mesmo um cruzador de primeira classe. Com efeito, o oceano Índico era
um "mar fechado". Propriedade da Grã-Bretanha ou "protegida" da maioria das
linhas costeiras, e as fachadas restantes eram ilhas, como as Índias Orientais
Holandesas, ou territórios como os portugueses Moçambique e a África Oriental
alemã, que, embora sejam continentais, eram inacessíveis por via terrestre da
Europa. Exceto no golfo Pérsico, não poderia haver base rival para o poder marítimo
que combinou segurança com os recursos necessários, e a Grã-Bretanha estabeleceu
um declarado princípio político que nenhuma base marítima podia ser fundada nas
costas persas ou turcas do golfo Pérsico.
Superficialmente, há uma semelhança impressionante entre o Mediterrâneo
fechado dos romanos, com as legiões ao longo da fronteira do Reno, e o oceano
Índico fechado, com o exército britânico na fronteira noroeste da Índia. A diferença
está no fato de que, enquanto o fechamento do Mediterrâneo dependia das legiões, o
fechamento dos mares indianos foi mantida pelo longo braço do próprio poder
marítimo a partir da sua base doméstica.
 
*****
 
No rápido levantamento anterior das vicissitudes do poder marítimo, não
consideramos aquele lema desgastado de um único mestre dos mares. Todos agora
percebem que, devido à continuidade dos oceanos e a mobilidade dos navios, uma
batalha decisiva no mar tem imediato resultados de longo alcance. César venceu
Antônio em Actium, e em seguida as ordem de César foram executadas em todas as
margens do Mediterrâneo. A Grã-Bretanha obteve sua vitória culminante em
Trafalgar e poderia negar todos oceanos para as frotas de seus inimigos, poderia
transportar seus exércitos para qualquer costa que ela quisesse e remove-los
novamente, poderia carregar suprimentos para casa de fontes estrangeiras, poderia
exercer pressão nas negociações com qualquer Estado ofensivo que tenha uma frente
para o mar.
Nossa preocupação aqui tem sido em relação às bases do poder marítimo e a
relação destes com o poder terrestre. No longo prazo, essa é a questão fundamental.
Antes eram frotas de canoas de guerra no Nilo, e o Nilo estava fechado para
eventuais contendores por um único poder terrestre controlando suas bases férteis
através todo o comprimento destas. Uma base insular cretense foi conquistada a
partir de uma maior base peninsular grega. O poder terrestre da Macedônia fechou o
leste do Mediterrâneo aos navios de guerra de gregos e fenícios, privando-os de suas
bases. Hannibal atingiu por terra a base peninsular do poder marítimo romano, e essa
base foi salva por vitória em terra. César conquistou o domínio do Mediterrâneo pela
vitória na água, e Roma então reteve o controle dela pela defesa de fronteiras
terrestres. Na Idade Média, a cristandade latina se defendeu no mar desde a sua base
peninsular, mas nos tempos modernos, porque Estados concorrentes cresceram
dentro dessa península, passou a existir nela várias bases do poder marítimo, todas
abertas ao ataque por terra, e o domínio dos mares passou para um poder que tinha
uma base menos ampla, uma ilha, mas felizmente uma ilha com solos férteis e com
carvão. A partir desse poder marítimo insular, aventureiros britânicos construíram
um império ultramarino de colônias, plantações, depósitos e protetorados, e
estabeleceram, por meios de exércitos marítimos, potências terrestres locais na Índia
e no Egito. Impressionantes foram então os resultados do poder marítimo britânico e
talvez exista hoje uma tendência a negligenciar os avisos da história e considerar o
poder marítimo em geral como tendo, inevitavelmente, por causa da unidade dos
oceanos, a última palavra na rivalidade com o poder terrestre.
 
*****
 
Nunca o poder marítimo desempenhou um papel maior do que na guerra
recente e nos eventos que levaram a ela. Esses eventos começaram cerca de vinte
anos atrás com três grandes vitórias conquistadas pela frota britânica sem o disparo
de uma arma. O primeiro foi em Manilha, no oceano Pacífico, quando uma esquadra
alemã ameaçou intervir para proteger uma esquadra espanhola, que estava sendo
derrotada por uma esquada norte-americanas, e os britânicos apoiaram os
americanos. Sem enfatizar indevidamente aquele único incidente, ele pode ser
tomado como típico das relações das potências durante a guerra entre a Espanha e os
Estados Unidos, guerra que deu a este país americano destacadas posses no Atlântico
e no Pacífico, e levou à construção do canal do Panamá, para ganhar as vantagens de
insularidade para a mobilidade de seus navios de guerra. Foi então um primeiro
passo para a reconciliação dos corações britânicos e norte-americanos. Além disso, a
Doutrina Monroe foi mantida em relação à América do Sul.
A segunda dessas vitórias da frota britânica foi quando manteve o oceano
durante a Guerra da África do Sul, de conseqüência vital para a manutenção do
domínio britânico na Índia; e o terceiro foi quando manteve o estreito da Coreia
aberto durante a Guerra Russo-Japonesa e, incidentalmente, manteve a porta aberta
para a China. Em todos os casos, a história teria sido muito diferente sem a
intervenção da frota britânica. No entanto, e talvez como consequência, o
crescimento da frota alemã sob sucessivas leis da Marinha, induziram a retirada de
esquadrões de batalha britânicos no Extremo Oriente e no Mediterrâneo, e
cooperação nesses mares com as potências marítimas japonesas e francesas.
A própria Grande Guerra começou no velho estilo, e foi apenas em 1917 que
os novos aspectos da realidade se tornaram evidentes. Logo nos primeiros dias de
luta, quando a frota britânica já havia assumido o comando do oceano, envolvendo,
com o auxílio da frota francesa, todo o teatro peninsular da guerra terrestre. As
tropas alemãs nas colônias germânicas foram isoladas, os navios mercantes alemães
foram expulsos dos mares, a força expedicionária britânica foi transportada através
do canal sem a perda de um homem ou cavalo, e suprimentos britânicos e franceses
foram trazidos com segurança pelo oceano. Em uma palavra, os territórios da Grã-
Bretanha e da França foram então usados para o propósito da guerra, e sua fronteira
conjunta foi avançada para dentro do alcance de tiro da costa alemã – não foi um
pequeno ponto de partida para a temporária, embora profundamente lamentada,
perda de certos departamentos franceses. Depois da batalha do Marne o verdadeiro
mapa de guerra da Europa teria mostrado uma fronteira franco-britânica seguindo a
costa norueguesa, dinamarquesa, alemã, holandesa e belga – a uma distância de três
milhas no caso das costas neutras – e em seguida, correndo como uma linha sinuosa
através da Bélgica e França até o Jura na fronteira com a Suíça. A oeste dessa
fronteira, seja por terra ou mar, as duas potências poderiam preparar sua defesa
contra o inimigo. Nove meses depois, a Itália resolver se juntar aos Aliados,
principalmente porque seus portos foram mantidos abertos pelo poder marítimo
aliado.
Na frente oriental também se mantinha o velho estilo de guerra. O poder
terrestre era dividido em duas forças opostas, e externa às duas, apesar de seu
incongruente Czar, a Rússia era aliada do poder marítimo do Ocidente democrático.
Em suma, uma disposição das forças que de modo geral repetia a de um século antes,
quando o poder marítimo britânico apoiou os portugueses e espanhóis “na
península", e foi aliado dos poderes terrestres das autocracias do leste europeu.
Napoleão lutou em duas frentes, que nos termos de hoje podemos descrever como
ocidental e oriental.
Em 1917, porém, ocorreu uma grande mudança devido ao ingresso dos
Estados Unidos na guerra, a queda do Czar russo e o colapso subsequente da força
de combate russa. A estratégia mundial desse jogo foi totalmente alterada. Temos
lutado desde então – e podemos nos dar ao luxo de dizê-lo sem ferir nenhum de
nossos aliados – para tornar o mundo um lugar seguro para as democracias. Tanto no
que diz respeito ao idealismo. Mas é igualmente importante que tenhamos em mente
a nova face da realidade. Temos lutado ultimamente, no final da guerra, um duelo
direto entre o poder terrestre e o poder marítimo, e o poder marítimo tem colocado
cerco ao poder terrestre. Conquistamos, mas a Alemanha também conquistou ao
estabelecer o seu poder marítimo em uma base mais ampla do que em qualquer
momento na história, e de fato na base mais ampla possível. O continente comum da
Europa, Ásia e África, agora é efetivamente, e não apenas teoricamente, uma ilha.
Agora e sempre, para não esquecermos, vamos chamá-lo de Ilha-Mundo nos termos
que descreveremos a seguir.
Uma das razões pelas quais os marinheiros não aceitam muito bem a
generalização implícita da expressão "Ilha-Mundo", é que eles não podem fazer uma
viagem ao redor dela. Uma calota polar, de 3.200 quilômetros de diâmetro, flutua no
mar Ártico, com uma borda encalhada nos bancos de areia ao norte de Ásia. Para os
fins comuns de navegação, portanto, o continente não é uma ilha. O marinheiro dos
últimos quatro séculos tratou disso como um vasto promontório que se estende para
o sul de um vago norte, como o pico da montanha pode surgir das nuvens de
fundações ocultas. Ainda no século passado, desde a abertura do canal de Suez, a
viagem para o leste ainda era feita ao redor de um promontório, embora com uma
ponte em Cingapura em vez da cidade do Cabo.
Este fato e sua vastidão têm feito os homens pensarem em continente,
embora este diferisse das outras ilhas em mais do que tamanho. Falamos de suas
partes como Europa, Ásia e África exatamente da mesma maneira que falamos das
partes do oceano como Atlântico, Pacífico e Índico. Na teoria até mesmo os gregos
antigos consideravam-no insular, mas eles falaram dele como o "Mundo". As
crianças em idade escolar são ensinadas sobre isso como o "Velho Mundo", em
contraste com um certo par de penínsulas que juntos constituem o "Novo Mundo".
Os marinheiros falam disso apenas como "o continente", a terra contínua.
Vamos considerar por um momento as proporções e relações desta recém-
realizada Grande Ilha61. Está colocada, por assim dizer, no ombro da Terra com
referência ao Pólo Norte. Medindo de pólo a pólo ao longo do meridiano central da
Ásia, temos primeiro mil milhas de mar coberto de gelo até a costa norte da Sibéria,
então cinco mil milhas de terra até o ponto sul da Índia, e então sete mil milhas de
mar até a calota antártica de terras cobertas de gelo. Mas medido junto o meridiano
da Baía de Bengala ou do Mar da Arábia, a Ásia tem apenas cerca de três mil e
quinhentas milhas de diâmetro. De Paris para Vladivostok são seis mil milhas, e de
Paris ao cabo da boa Esperança é uma distância semelhante; mas essas medidas em
um globo por navegação são vinte e seis mil milhas. Se não fossem os impedimentos
de gelo à sua circunavegação, marinheiros práticos teriam falado há muito tempo da
Grande Ilha ou por algum nome similar, pois é apenas um pouco mais do que um
quinto do tamanho do oceano.
 
FIG. 12 – Esses círculos repesentam a área relativa da Ilha-
Mundo e seus satélites
 
Image

 
 
FIG. 13 – Esses círculos representam a população relativa da Ilha-
Mundo e seus satélites
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A Ilha Mundial termina em pontos a nordeste e sudeste.Em um dia claro,
você pode ver do promontório do nordeste no Estreito de Bering ao início do longo
par de penínsulas, cada um medindo cerca de um vigésimo sexto do globo, que
chamamos de Américas. Superficialmente, não há dúvida de uma certa semelhança
com simetria no Velho e no Novo Mundo; cada um consiste em duas penínsulas,
África e Eurásia em um caso, e América do Norte e do Sul no outro. Mas não há
semelhança real entre eles. O norte e a costa nordeste da África por quase quatro mil
milhas são tão intimamente relacionado com as costas opostas da Europa e da Ásia, e
o Saara constitui uma ruptura muito mais eficaz na continuidade social do que o
Mediterrâneo. Nestes dias da navegação aérea chegando, a força marítima usará a
hidrovia dos mares Mediterrâneo e Vermelhos apenas pela tolerância do poder
terrestre, uma nova cavalaria anfíbia quando está em questão a competição com o
poder marítimo.
Mas as Américas do Norte e do Sul, estreitamente conectadas no Panamá,
são insulares para fins práticos, em vez de peninsulares uma em relação à outra. A
América do Sul não está apenas ao sul, mas também no caminho a leste da América
do Norte; as duas terras estão em escalão, como diria um soldado, e o amplo oceano
circunda a América do Sul, exceto para uma pequena proporção de seu contorno.
Um fato semelhante é verdadeiro para a América do Norte com referência à Ásia,
pois se estende para o oceano a partir do estreito de Bering e, como pode ser visto
em um globo, o caminho mais curto de Pequim a Nova York é através do estreito de
Bering, uma circunstância que pode algum dia ter importância para o viajante por via
férrea ou aérea.
O terceiro dos dos assim chamados novos continentes, a Austrália, fica a mil
milhas do ponto sudeste da Ásia, e mede apenas a cinquentagésima parte da
superfície do globo. Assim, os chamados novos continentes são do ponto de vista de
extensão apenas satélites do velho continente. Há um oceano cobrindo nove
duodécimos do globo; há um continente - a Ilha-Mundo - cobrindo dois décimos do
globo; e há muitas ilhas menores, das quais América do Norte e América do Sul são,
para fins efetivos, duas que juntas cobrem a parte restante de um duodécimo. O
termo "Novo Mundo" implica implica uma perspectiva errada, agora que podemos
ver na realidade espacial e não apenas nas aparências históricas.
A verdade, vista com uma visão ampla, é que no grande promontório
mundial, estendendo-se para o sul até o Cabo da Boa Esperança, e com uma base
marítima da América do Norte, em grande escala temos ainda um terceiro contraste
de península e ilha ao lado da península grega, a ilha de Creta, e a península Latina e
a ilha Britânica. Mas há essa diferença vital, que o promontório mundial, quando
unido por modernas comunicações terrestres, é de fato um mundo-ilha, possuíndo
potencialmente as vantagens da insularidade e de recursos incomparavelmente
grandes.
Há algum tempo, os principais estadunidenses reconhecem o fato de que seu
país não é mais um mundo à parte, e o presidente Wilson trouxe ao seu povo a essa
visão quando eles consentiram em entrar na guerra. Mas a América do Norte não é
mais um continente; neste século vinte, está encolhendo para se tornar uma ilha. Os
americanos costumavam pensar em suas três milhões de milhas quadradas como o
equivalente de toda a Europa; algum dia, eles disseram que haveria um Estados
Unidos da Europa como irmãos dos Estados Unidos da América. Agora, embora eles
possam não ter percebido, eles não devem mais pensar na Europa sem a Ásia e a
África. O Velho Mundo tornou-se insular, ou em outras palavras, uma unidade,
incomparavelmente a maior unidade geográfica em nosso globo.
Existe um notável paralelismo entre a curta história da América e a história
mais longa da Inglaterra; ambos os países têm agora passado pela mesma sucessão
de estágios colonial, continental e insular. Os assentamentos anglo-saxônicos ao
longo da costa leste e sul da Grã-Bretanha muitas vezes foram considerados como
antecipando os treze colônias inglesas ao longo da costa leste da América do Norte,
Nem sempre se lembra que houve uma fase continental na história da Inglaterra para
ser comparada com a de Lincoln nos Estados Unidos. As guerras de Alfredo, o
grande, e Guilherme, o conquistador, eram em boa parte entre facções rivais da
Inglaterra, com a intervenção dos nórdicos, e a Inglaterra não era efetivamente
insular até a época de Elizabeth, porque só então ela estava unida e livre da
hostilidade da Escócia, portanto com uma unidade em suas relações com os vizinhos
do continente. Os Estados Unidos são hoje uma unidade, pois o povo americano
lutou contra suas diferenças internas, e é insular, porque os eventos estão levando os
americanos a perceber que seu chamado continente fica no mesmo globo que o
grande continente.
Imagine no mapa do mundo esta guerra tal como foi travada no ano de 1918.
Foi uma guerra entre ilhéus e continentais, não pode haver dúvida disso. Foi lutada
principalmente no continente através da frente terrestre da França peninsular; e
expandida do outro lado pela participação da Grã-Bretanha, Canadá, Estados Unidos,
Brasil, Austrália, Nova Zelândia e Japão – todos insulares. França e Itália são
peninsulares, mas mesmo com essa vantagem não aguentariam até o fim na guerra
não fosse pelo suporte dos insulares. Índia e China, enquanto a China esteve no front
da guerra na Manchúria, podem ser considerados guardas avançados de britânicos,
americanos e do poder marítimo japonês. Java holandesa é a única ilha com grande
população que não está na aliança Ocidental, mas também não está do lado dos
continentais. Não pode haver engano quanto ao significado desta unanimidade dos
ilhéus. O colapso da Rússia clareou nossa visão da realidade, como a Revolução
Russa purificou os ideais para os quais temos lutado.
Os fatos aparecem na mesma perspectiva se considerarmos a população do
globo. Mais de quatorze dezesseis avos de toda a humanidade vive no grande
continente, e quase um décimo sexto a mais no estreito deslocamento das ilhas da
Grã-Bretanha e do Japão. Ainda hoje, após quatro séculos de emigração, apenas
cerca de um décimo sexto vive nos continentes menores. Nem há tempo susceptível
de alterar essas proporções materialmente.
Se o meio oeste da América do Norte pudesse suportar, digamos, outra
centena de milhões de pessoas, é provável que o interior da Ásia ao mesmo tempo
teria uns duzentos milhões a mais do que agora, e se o clima tropical de parte da
América do Sul puder alimentar cem milhões a mais, então as partes tropicais da
África e das Índias podem abrigar, de maneira improvável, duas centenas de milhões
a mais. A floresta do Congo sozinha, submetida à agricultura, manteria cerca de
quatrocentos milhões de almas se povoada com o mesma densidade da ilha de Java,
e a população javanesa continua crescendo. Além disso, temos o direito de supor
que, dado o seu clima e história, o interior da Ásia não alimentaria uma população
tão vigorosa como as da Europa, América do Norte ou Japão?
E se o grande continente, a Ilha-Mundo inteira ou uma grande parte dela, em
algum momento futuro se tornarem uma base única e unida de poder do mar? Não
seriam as outras bases insulares superadas no que diz respeito a navios tripulados e
no tocante aos marinheiros? Suas frotas sem dúvida poderiam lutar com todo o
heroísmo encontrado em suas histórias, mas o fim seria praticamente predestinado.
Mesmo na guerra atual, a América insular teve que vir em ajuda à Grã-Bretanha
insular, não porque a frota britânica não pudesse ter se garantido até o presente os
mares, mas para que isso tivesse ocorrido teria que assegurar uma paz com a
Alemanha, ou melhor uma trégua, e a Grã-Bretanha seria inevitavelmente superada e
vencida depois de alguns anos.
A rendição da frota alemã foi um deslumbrante acontecimento, mas com toda
a sobriedade e se quisermos ter uma visão de longo prazo, será que não devemos
ainda contar com a possibilidade de que boa parte do grande continente seja algum
dia unido sob uma única influência, e que um poder marítimo invencível possa ser
nele baseado? Que possamos não ter nos dirigido para fora de perigo nesta guerra, e
ainda deixarmos pelos nossos acordos a abertura para uma nova tentativa no futuro?
Não deveríamos reconhecer que essa é a grande ameaça final à liberdade do mundo,
e adotarmos uma preocupação estratégica para nos prevenir contra ela em nosso
novo sistema político?
Vejamos a seguir o assunto do ponto de vista do soldado, dos homens de
terra.
 
 
Capítulo quatro
O PONTO DE VISTA DO TERRENO
 
Há quatro séculos, toda a perspectiva da humanidade mudou em
uma única geração pelas viagens dos grandes pioneiros, Colombo, Da
Gama e Magalhães. A ideia da unidade do oceano, antes apenas inferida
pela semelhança das marés nas águas do Atlântico e do Índico, de repente
se tornaram parte do sistema mental dos homens práticos. Uma revolução
semelhante está em andamento na geração atual com a rápida realização da
unidade do continente devido aos métodos modernos de comunicação por
terra e ar. Os ilhéus demoram a entender o que está acontecendo. A Grã-
Bretanha entrou na guerra pela defesa de seus vizinhos, Bélgica e França,
vendo talvez vagamente que ela mesma foi ameaçada por seus perigos, mas
quase unânime em sua decisão apenas por causa de um laço moral, de seu
vínculo em relação à Bélgica. Os Estados Unidos ficaram chocados com a
tragédia lusitânia e foram finalmente levado à guerra por causa do
desrespeito contínuo dos submarinos alemães aos direitos dos países
neutros. Nem as nações anglo-saxônicas viram claramente o significado
estratégico da guerra. Eles tinham uma visão externa do continente, como a
dos marinheiros que nomearam a Guiné, Malabar, Coromandel e Murman
de "costas". Nem em Londres nem em Nova Iorque, a política internacional
era comumente discutida na forma como é discutida nos cafés da Europa
continental. Para apreciar a visão continental, devemos portanto deixar de
lado nosso ponto de vista de fora, do grande cinturão das "costas".
Comecemos "brigando" com nossos dados, pois só assim seremos
capazes de raciocinar convenientemente sobre as realidades que o
continente apresenta para o pensamento estratégico. Quando você está
pensando em coisas grandes, você deve pensar em linhas gerais; o coronel
de batalhão pensa em campanhas, mas o general na divisão de brigadas. No
entando, com o propósito de formar nossas brigadas, ele terá a necessidade,
no início, de entrar em maiores graus de detalhes geográficos. O extremo
norte da Ásia é a costa inacessível, cercada de gelo, exceto por uma estreita
faixa de água que se abre aqui e ali ao longo da costa no curto verão devido
ao derretimento do gelo local, entre as banquisas e a terra. Acontece que
três dos maiores rios do mundo, o Lena, o Yenisei e o Obi, correm no
sentido norte através da Sibéria até esta costa, e são, portanto, na prática
apartados do sistema geral de navegação fluvial62. O sul da Sibéria é outra
região drenada por lagos salgados sem saída para o oceano; também o são
as bacias dos rios Volga e Ural fluindo para o mar Cáspio, e do Oxus e do
Jaxartes, que fluem para o mar de Aral.
 
FIG. 14 – Mostrando a grande parte da Europa e da Ásia na qual
os rios fluem para o norte gelado ou para lagos salgados sem saída
para o oceano; também como a África faceia a Europa e a Ásia
por 4000 milhas
(projeção de áreas iguais)
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Os geógrafos normalmente descrevem essas bacias internas como
"continentais". Juntas, as regiões de drenagem ártica e continental atingem
quase a metade da Ásia e um quarto da Europa, e formam uma grande
mancha contínua no norte e no centro do continente. Todo esse trecho,
estendendo-se para a direita do outro lado da costa plana e gelada da Sibéria
até as costas tórridas e íngremes do Baluchistão e do Irã, têm ficado
inacessível à navegação para o oceano. A abertura dele por ferrovias, pois
antes praticamente não tinha estradas, e por rotas de avião em um futuro
próximo, constitui uma revolução nas relações dos homens com as
realidades geográficas mais amplas do mundo. Chamemos essa grande
região de heartland do continente.
O norte, o centro e o oeste do heartland formam uma planície,
elevando-se apenas algumas centenas de metros acima do nível do mar.
Nessa maior planície no globo estão incluídos a Sibéria ocidental, o
Turquestão e a bacia europeia do Volga, pois os montes Urais, embora
sejam de uma longa extensão, não são de altura importante, e termina a
cerca de trezentas milhas ao norte do Cáspio, deixando uma ampla porta de
entrada da Sibéria para a Europa. Passemos a falar desta vasta planície
como a grande planície. Em direção ao sul, a grande baixada termina ao
longo do sopé de um planalto, cuja elevação média é de cerca de meia
milha, com cumes de montanhas subindo até uma milha e meia. Este
planalto sustenta em suas costas largas três países; por conveniência,
podemos descrever tudo isso como o planalto persa ou iraniano. O
heartland, no sentido da região de drenagem ártica e continental, inclui a
maior parte da grande planície e a maior parte do planalto iraniano; estende-
se, portanto, até a borda longa, alta e curva das montanhas persas, além das
quais fica a depressão ocupada pelo vale do rio Eufrates e o golfo Pérsico.
Agora viajemos em imaginação para o oeste da África. Ali, entre as
latitudes das ilhas Canárias e de Cabo Verde, há uma costa deserta; essa
costa desértica é o personagem sempre lembrado que, por tanto tempo,
frustrou os esforços dos marinheiros medievais para fazer a viagem para o
sul em torno da África. Com uma largura de mil milhas, o Saara se espalha
daí, através do norte da África, do Oceano Atlântico ao vale do Nilo. O
Saara não é um deserto em toda parte; existem muitos oásis – vales
trincheirados com poços para a infiltração de água no subsolo em seus
fundos, ou colinas acidentadas contra os quais às vezes as nuvens se reunem
–, mas essas são exceções minúsculas e esparsas sobre uma área estéril e
sem rios que é quase tão grande quanto toda a Europa. O Saara é a maior
fronteira natural ininterrupta no mundo; ao longo da história tem sido uma
barreira entre os homens de pele branca e negra.
Entre o Saara e o heartland há uma grande lacuna que é ocupada
pela Arábia63. As duas margens do Vale do Nilo são conhecidas como líbia
a oeste e árabe a leste; e mais longe, além do baixo Eufrates, no sopé das
montanhas persas, há o distrito conhecido como Arabistão ou país dos
árabes. Em completa harmonia, portanto, com o uso local, a Arábia pode
ser considerada como uma propagação de oitocentas milhas do Nilo para
além do Eufrates. De sopé das montanhas Taurus, ao norte de Aleppo, até o
golfo de Aden, mede nada menos que 1.800 milhas. Metade dessa Arábia é
deserto, e quanto à outra metade são estepes principalmente secas; embora
esteja nas mesmas latitudes do Saara, são mais produtivas e suportam uma
população mais considerável de beduínos nômades. Além disso, tem oásis
maiores e, portanto, cidades maiores. O que, no entanto, mais distingue a
Arábia do coração e do Saara é o fato de ser atravessada por três grandes
cursos de água em conexão com o oceano – o Nilo, o mar Vermelho, e o
Eufrates e o golfo Pérsico. Nenhum desses três, no entanto, oferece
naturalmente uma passagem completa através do cinturão árido. O Nilo era
navegável a partir do Mediterrâneo apenas até a primeira catarata, no meio
do deserto, embora eclusas tenham agora sido construídas em Assuã, o que
dá acesso até a segundo catarata; e a navegação do Eufrates sobe apenas até
um ponto que fica a cem milhas do Mediterrâneo. Hoje é verdade que o
canal de Suez une o Mediterrâneo ao mar Vermelho, mas não foi só o istmo
que anteriormente impedia o tráfego por esta rota; persistentes ventos norte
da corrente de vento alísio sopram no extremo norte do mar Vermelho, que
é cercado de rochas, e os navios à vela não querem tentar a viagem ao norte
para o canal, que, portanto, têm sido relativamente inútil exceto para
navegação a vapor.
 
FIG. 15 – A grande planície que se extense a oeste até a Europa,
além dos limites do heartland. A fronteira leste do heartland é
mostrada incuindo o alto platô que se extende até o Pacífico, e os
rios indianos
 
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A antiga rota marítima do mar Vermelho para o Mediterrâneo partia
de Kosseir, na costa oeste, sobre o deserto até o Nilo, em Keneh, e então
descia pelo Nilo; aquilo foi o caminho seguido pelo exército britânico
quando enviado da Índia para o Egito mais de cem anos atrás, na época da
invasão napoleônica do Egito e da Palestina.
Conclui-se da descrição anterior que o heartland, Arábia e o Saara
juntos constituem um amplo cinturão curvo inacessível para os navegantes,
exceto pelas três vias navegáveis da Arábia. Este cinturão estende-se
completamente por todo o grande continente do Ártico às costas atlânticas.
Na Arábia, atinge o Oceano Índico e, como consequência, divide o restante
do continente em três regiões cujos rios correm para o oceano sem gelo.
Essas regiões são as encostas da Ásia no Pacífico e na Índia; as penínsulas e
ilhas da Europa e o Mediterrâneo; e o grande promontório da África ao sul
do Sahara. Este último difere das outras duas regiões em um aspecto muito
importante. Seus rios maiores, o Níger, o Zambeze e o Congo, e também
seus rios menores, como o Orange e o Limpopo, correm através do planalto
do interior, e caem abruptamente sobre sua borda para distâncias
relativamente curtas em direção ao mar nas estreitas planícies costeiras. O
longos cursos de planalto desses rios são navegáveis por milhares de
milhas, mas para fins práticos são como que completamente separados do
oceano como os rios da Sibéria. O mesmo, é claro, é verdade para o Nilo
acima das cataratas. Podemos, portanto, considerar o interior da África ao
sul do Saara como um segundo heartland.
Vamos nos referir a esse heartland como o segundo, ou heartland do
sul, em contraste com o heartland primeiro ou do norte, aquela da Eurásia.
Apesar de suas latitudes muito diferentes, os dois heartlands apresentam
outras semelhanças marcantes. Um grande cinturão de floresta,
principalmente do tipo perene dos pinheiros e abetos, espalha-se do norte da
Alemanha e a costa do Báltico até a Manchúria, conectando-se a manchas
de florestas, por assim dizer, das florestas da Europa até as da costas do
Pacífico. Ao sul desta zona de florestas, o heartland está aberto, com
árvores apenas ao longo das margens dos rios até as montanhas. Este vasto
campo aberto é uma luxuriante pradaria ao longo da fronteira sul da
floresta, e brilhante com flores do bulbo na primavera, mas para o sul, como
a aridez aumenta, a grama se torna mais grossa e esparsa. Todo esse pasto,
com áreas mais ricas e mais pobres, é convenientemente chamado de
estepes, embora esse nome pertence propriamente apenas às faixas menos
férteis do sul que cercam as manchas de deserto do Turquestão e da
Mongólia. As estepes foram provavelmente o habitat original do cavalo, e
do camelo de duas corcundas na sua parte sul (Fig. 18).
O heartland do sul também tem suas amplas pastagens abertas, que
no Sudão aumentam gradualmente de fertilidade a partir da orla do Saara
em direção à floresta tropical da costa da Guiné e do Congo. As florestas
não se espalham completamente pelo litoral do oceano Índico, mas deixam
um cinturão de planalto gramado que conecta as savanas do Sudão com as
da África do Sul, e este imenso terreno aberto, assim contínuo do Sudão ao
cabo Veld, é a casa dos antílopes, zebras e outros grandes animais com
cascos, que correspondem aos cavalos e asnos selvagens do heartland do
norte. Embora a zebra não foi domesticada com sucesso e o sul-africano
nativo não tinha nenhum animal de carga usual, o cavalo e o camelo da
Arábia foram logo introduzidos no Sudão. Em ambos os heartlands,
portanto, embora em maior medida no norte do que no sul, a mobilidade
com o auxílio de animais está disponível para substituir a mobilidade fluvial
e costeira dos navios dos litorais do Atlântico e do Pacífico.
O heartland do norte ou eurasiano é adjacente à Arábia, como
vimos, para muitas centenas de milhas onde o planalto iraniano desce até o
vale do Eufrates; o heartland do sul, em seu canto nordeste na Abissínia e
Somaliândia abarca, embora com um intervalo na costa, o sul do fértil
ângulo da Arábia, conhecido como Iêmen. Portanto, as estepes da Arábia
enquadram seus desertos, e servem de passagem terrestre entre os
heartlands norte e sul; e há também o caminho pelas margens do Nilo
através da Núbia. Assim, será percebido que o heartland do norte, a Arábia
e o heartland do sul oferecem um caminho amplo e gramado para os
cavaleiros e camelos da Sibéria através da Pérsia, Arábia e Egito para o
Sudão, e que, exceto pela mosca tsé-tsé e outras pragas, os homens
provavelmente penetram a cavalo e camelo em direção ao sul quase até o
cabo da Boa Esperança.
Fora da Arábia, do Saara e dos dois heartlands, restam na Ilha-
Mundo apenas duas regiões comparativamente pequenas, mas aquelas duas
regiões são as mais importantes do globo. Em torno do Mediterrâneo, e nas
penínsulas e ilhas europeias, habitam quatrocentos milhões de pessoas, e
nas costas sul e leste da Ásia, ou nas Índias, para usar a expressão histórica,
habitam oitocentos milhões de pessoas. Nessas duas regiões, portanto,
vivem três quartos dos habitantes do mundo. Do nosso ponto de vista atual,
a maneira mais pertinente de afirmar este grande fato é dizer que quatro
quintos da população do grande continente, da Ilha-Mundo, vive em duas
regiões que juntas medem apenas um quinto de sua área.
 
FIG. 16 – A ilha mundial dividida em seis regiões naturais
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FIG. 17 – O heartlando do sul.
LEGENDA: =cordilheiras; ←linhas da invasão árabe
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Essas duas regiões se assemelham em aspectos muito importantes.
Em primeiro lugar, seus rios são em sua maior parte navegáveis
continuamente até o oceano. Nas Índias, temos esta série de grandes rios
descendo para o mar aberto: Indo, Ganges, Brahmaputra, Irrawady, Salwen,
Menam, Mekong, Songho, Sikiang, Yangtse, Hoangho, Peiho, Liauho,
Amur. A maioria deles são navegáveis a partir de seus bocas por algumas
centenas de milhas; um encouraçado britânico a vapor uma vez subiu o
Yangtse até Hankou, a quinhentas milhas do mar. Não há muito espaço para
rios tão grandes na Europa peninsular, mas o Danúbio, o Reno e o Elba
transportam um grande tráfego em conexão direta com o oceano.
Mannheim, trezentas milhas rio [Reno] acima, foi um dos os principais
portos da Europa antes da guerra; barcaças de cem metros ao longo e de
carga de mil toneladas jaziam ao lado de seus cais. Para o resto, a
peninsulação da Europa limita o desenvolvimento de rios, mas ela própria
oferece facilidades ainda maiores para a mobilidade por água.
A semelhança dessas duas "Terras Costeiras" não se limita ao
navegabilidade de seus rios. Se nos afastarmos da zona mais árida no mapa
de pluviosodade da Ilha-Mundo, as manchas indicativas de apenas chuvas
locais, devido às áreas montanhosas, percebemos de imediato a
preeminência de fertilidade devido às chuvas generalizadas tanto nas
planícies como nas montanhas. Os ventos das monções do verão carregam a
umidade do oceano do sudoeste para a Índia e do sudeste para a China; os
ventos de oeste do Atlântico trazem chuva em todas as estações sobre a
Europa, e no inverno sobre a região mediterrânea. Ambas as áreas costeiras,
portanto, são ricas para o cultivo e, por esse motivo, alimentaram suas
grandes populações. Assim, a Europa e as Índias são regiões dos aradores e
marinheiros; apesar de que o heartland do norte, a Arábia e o heartland do
sul têm a maioria de suas terras não aradas e são inacessíveis aos navios do
mar. Por por outro lado, elas são naturalmente adequadas à mobilidade dos
cavaleiros e homens montados em camelos, com seus rebanhos de gado e
de ovelhas. Mesmo no savanas da África tropical, onde cavalos e camelos
estão ausentes, a riqueza dos nativos é formada principalmente por gado e
ovelhas. Estas são, é claro,amplas generalizações, com muitas exceções
locais; contudo, não são menos verdadeira e podem ser vistas como
suficientemente descritiva de imensas realidades geográficas64.
Vamos agora chamar a história em nosso auxílio, pois nenhuma
ideia prática, nenhuma ideia que move os homens à ação, pode ser
apreendida estaticamente; nós devemos encentar isso com um impulso de
pensamento, seja de nossa própria experiência ou da história da raça. Os
oásis do Oriente são contados na poesia como os jardins do mundo só
porque estão localizados no deserto!
A história registrada começa nos grandes oásis ao redor do norte da
Arábia. A primeira política internacional da qual temos conhecimento
estava preocupada com o intercâmbio entre dois Estados que tinham
crescido nas planícies aluviais do baixo Eufrates e do baixo Nilo; a
manutenção de diques para impedir a entrada de água e de canais para
distribuir a água, inevitavelmente, deu um impulso à ordem e à disciplina
social. Existia uma certa diferença nas duas civilizações que podem muito
bem ter sido a base do intercâmbio entre elas. No Egito, os lados rochosos
do vale relativamente estreito ofereciam pedra para construção, e o papiro
fornecia um material para escrita; considerando que a construção era de
tijolos na ampla planície da Babilônia, as tabuletas de argila exibiam as
inscrições cuneiformes. A estrada entre as duas civilizações corria para o
oeste do Eufrates até o ângulo sírio do deserto da Arábia, além dos poços de
Palmyra, para Damasco, que foi construído no oásis formada pelos córregos
Abana e Pharpar, que descem de Anti-Líbano e Hermon. De Damasco,
havia formas alternativas para ir o Egito; a inferior pela costa, e a superior
ao longo da borda do planalto do deserto, a leste do vale do Jordão.
Afastada, no cume rochoso da Judeia, entre estes caminhos superiores e
inferiores, ficava a fortaleza da colina de Jerusalém.
 
FIG. 18 – As estepes
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FIG. 19 – Arábia do Norte
 
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FIG. 20 – Os conquistadores móveis das terras aradas
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Em um mapa monástico, contemporâneo das Cruzadas, que ainda
está pendurado na catedral de Hereford, Jerusalém está marcada como o
centro, o umbigo do mundo, e no chão da Igreja do Santo Sepulcro, em
Jerusalém, até hoje eles mostram ao visitante o ponto que é o centro. Se
nosso estudo das realidades geográficas, como agora os conhecemos em sua
integridade, está nos levando a conclusões corretas, os eclesiásticos
medievais não estavam muito errados. Se a Ilha-Mundo é inevitavelmente a
principal sede da humanidade neste globo, e se a Arábia, como a terra de
passagem da Europa para as Índias, e do heartland norte para o heartland do
sul, ou seja, o centro dessa ilha mundial, então a cidadela da colina de
Jerusalém tem uma posição estratégica com referência às realidades do
mundo que não diferem essencialmente de sua posição ideal na perspectiva
da Idade Média, ou sua posição estratégica entre a antiga Babilônia e o
Egito. Como a guerra mostrou, pelo canal de Suez passa um rico tráfego
entre a Europa e as Índias, dentro de uma impressionante distância de um
exército baseado na Palestina, e uma ferrovia está sendo construída através
da planície costeira de Jaffa, que conectará o sul com o heartland do norte.
Quem controlar Damasco, além disso, terá acesso de flanco à rota
alternativa entre os oceanos para o baixo vale do Eufrates. Não pode ser
totalmente uma coincidência que uma mesma região possa ser o ponto de
partida da história e, agora, da travessia dos pontos mais vitais dos
modernos transportes terrestres.
 
 
 
 
 
No início da história, encontramos os filhos de Shem, os semitas,
conquistando as margens cultivadas dos desertos árabes; não há qualquer
semelhança entre a faixa de seus assentamentos ao redor do mar de areia e
as povoações dos gregos ao redor do mar Egeu. A invasão da terra
prometida de além do Jordão pelos beni-israel, os filhos de Israel,
provavelmente foi apenas uma das muitas descendências semelhantes dos
beduínos. Os caldeus, de cuja cidade de Ur, fronteiriça ao deserto, Abraão
migrou para a Palestina ao longo da trilha batida, foram os semitas que
suplantaram os não semitas acadianos na terra que tornou-se a Babilônia; e
a dinastia dos reis pastores no Egito também era aparentemente de origem
semita. Então aconteceu que todos os povos da Arábia – árabes, babilônios,
assírios, sírios, fenícios e hebreus – falavam dialetos da mesma família
semita. Hoje, o árabe é a língua universal deste os montes Taurus até o
golfo de Aden, e das montanhas persas nos oásis no Saara até a oeste do
Nilo.
 
FIG. 21 – Um mapa redondo medieval
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O planalto da Arábia cai abruptamente para as costas marítimas em
todas as direções, menos uma; para o nordeste cai gradualmente em degraus
até a depressão ocupada pelo Eufrates e pelo golfo Pérsico. Aquela
depressão tem mil e oitocentas milhas de comprimento, a partir do
desfiladeiro pelo qual o Eufrates corre pelo seu vale de origem no planalto
armênio até o estreito de Ormuz, na sua foz no golfo Pérsico; em todo o seu
comprimento é margeado pela cordilheira das montanhas persas, no
planalto iraniano à beira do heartland. Um dos grandes eventos da história
clássica ocorreu quando os persas desceram das montanhas altas para a
planície do Eufrates sob seu rei Ciro, e, após conquistarem a Babilônia,
atravessaram a estrada síria através de Damasco para a conquistarem o
Egito.
O desfiladeiro pelo qual o Eufrates desce do planalto armênio fica a
mais de oitocentas milhas em linha direta da foz do rio e apenas um pouco
mais de cem milhas do canto nordeste do mar Mediterrâneo, perto de
Aleppo. Logo a oeste deste desfiladeiro, há o planalto da Armênia, com
cerca de uma milha e meia de elevação média, que defronta o tabuleiro
peninsular da Ásia Menor, de altitudes muito menores. Um segundo grande
acontecimento na história clássica foi quando os macedônios, sob o rei
Alexandre, tendo cruzado os Dardanelos e atravessado o centro aberto da
Ásia Menor, desceram pelos Taurus para a Cilícia, e atravessaram a Síria
em direção ao Egito, e depois do Egito voltaram através da Síria até o
Eufrates, e desceram o Eufrates até a Babilônia. É verdade que Alexandre
conduziu assim seus macedônios por terra na Arábia, mas seu ataque foi
realmente baseado no poder marítimo, como fica evidente pela rápida
ascensão que a seguir ocorreu dos grandes portos de língua grega de
Alexandria e de Antioch65, as capitais costeiras, ou seja, dos navios indo
para o interior.
Se esses fatos forem considerados com um olhar geográfico, um
cinturão de fertilidade será visto estendendo-se para o noroeste do Eufrates,
depois curvando-se para o sul ao longo das montanhas coletoras de chuva
da Síria, e terminando para o oeste no Egito. É um cinturão populoso, pois é
habitado por lavradores assentados. Exceto por dois intervalos de
esterilidade, a estrada principal da antiguidade percorria seus campos de
milho da Babilônia a Mênfis. A chave para alguns dos maiores eventos da
história antiga pode ser encontrada na sujeição dos povos desta faixa
agrícola em relação à raça vizinha de mobilidade superior. Do sul, com toda
a profundidade da Arábia por detrás, os camelos avançaram a nordeste para
a Mesopotâmia, a noroeste para a Síria a oeste para o Egito; do nordeste,
com toda a vasta profundidade do heartland atrás deles, os cavaleiros
desceram do planalto iraniano para a Mesopotâmia; e do noroeste, seja
através da península da Ásia Menor ou diretamente para a costa do Levante,
vieram os marinheiros para a Síria e o Egito, tendo atrás deles todos cursos
de água da Europa! (Veja-se a Fig.20).
Na Ásia, os romanos tomaram o controle da porção oeste das
conquistas macedônias. Com o Reno e o Danúbio defendidos pelas legiões,
foi demarcada a extensão da penetração romana ao norte do Mediterrâneo,
como também no alto Eufrates, onde esse rio corre do norte para sul antes
de dobrar para sudeste, foi demarcado o limite, defendido por outras
legiões, de sua penetração a leste do Mediterrâneo. O Império Romano era,
de fato, em sentido amplo, um império local; pertencia inteiramente à costa
Atlântica. As outras províncias que tinham estado sob o domínio macedônio
cairam na época romana para os partas, sucessores dos persas, que por sua
vez haviam descido do planalto iraniano para a Mesopotâmia.
Mais uma vez surgiu a oportunidade dos homens a camelos.
Inspirado pela pregação de Maomé, os árabes do oásis central de Nejd, e de
sua extensão ocidental na Hedjaz de Meca e Medina, enviaram os exércitos
sarracenos que expulsarem os partas da Mesopotâmia, e os romanos da
Síria e do Egito, e estabeleceram uma rede de capitais – Cairo, Damasco e
Bagdá – na antiga via de fertilidade. Desta base fértil, o poder sarraceno foi
levado para todas as regiões ao redor de maneira a tentar construir um
verdadeiro império mundial. No nordeste, os maometanos ascenderam de
Bagdá para o Irã pela mesma passagem que havia sido usada pelos partas e
persas, e se espalharam até mesmo no norte da Índia. Para o sul eles
cruzaram do promontório da Arábia no Iêmen até a costa sul africana do
Saara, e penetraram com seus camelos e cavalos através de toda a extensão
do Sudão. Assim, como uma vasta águia, seu império de poder terrestre
espalhou suas asas desde o centro árabe, nas bordas do heartland do norte,
bem como nas profundezas da Ásia, e por outro lado, no heartland do sul,
nas profundezas da África.
Mas os sarracenos não se contentavam com um domínio baseado
apenas nos meios de mobilidade próprios de suas estepes e desertos; como
seus predecessores, os fenícios e os sabeus [do reino de Sabá], eles foram
para o mar. Para o oeste eles viajaram ao longo da costa norte da África,
tanto no mar como por terra, até que chegaram a dois países, os Estados da
Barbária66 e a Espanha, em cujos amplos planaltos, não totalmente estéreis
como o Saara, nem ainda florestados como a maior parte da península
europeia, eles repetiram em certa medida as condições de sua própria pátria.
Por outro lado, a leste do Iêmen, na foz do mar Vermelho, e de Omã até a
abertura do golfo pérsico, eles navegaram na monção de verão para a costa
do Malabar, no sudoeste da Índia, e até mesmo para as distantes ilhas
malaias, e voltaram para casa na monção de inverno. Assim, as barcaças
árabes esboçaram um império marítimo, que se extendia do estreito de
Gibraltar ao estreito de Málaca, do portão do Atlântico ao portão do
Pacífico.
Este vasto desenho sarraceno de um domínio ao norte e ao sul de
homens a camelos atravessados por um domínio de navegadores de oeste a
leste padecia de um defeito fatal: faltava em sua base árabe a mão de obra
necessária para torná-lo fértil. Mas nenhum estudante das realidades, do
qual deve vir o pensamento estratégico de qualquer aspirante de governo na
escala mundial, pode ignorar o aviso assim dado pela história.
 
*****
 
O Império Sarraceno foi derrubado, não da Europa ou das Índias,
mas vindo do heartland – um fato significativo. A Arabia é circundada por
mar, mas com desertos em quase todas outras partes exceto em direção ao
heartland. O poder marítimo a oeste dos árabes foi, sem dúvida,
confrontado por Veneza e Gênova, e o seu poder marítimo a leste foi
subjugado pelos portugueses depois que estes contornaram o cabo da Boa
Esperança; mas a queda dos sarracenos na própria Arábia foi devido ao
poderio terrestre turco. Devemos dar mais atenção às características do
grande heartlando do norte, em primeiro lugar para aquela extensa zona de
gramíneas que, ao sul da zona da floresta, se estende por toda a sua largura
de oeste a leste a alguma distância das partes costeiras.
As estepes começam no centro da Europa, onde a planície húngara é
completamente cercada por uma faixa de montanhas arborizadas, os Alpes
orientais e Cárpatos. [Veja-se fig.18]. Atualmente, campos de trigo e milho
substituíram em grande parte a vegetação nativa, mas cem anos atrás, antes
das ferrovias, as terras baixas da Hungria a leste do Danúbio eram cobertas
por uma pradaria, e a riqueza dos húngaros era constituída quase
exclusivamente por gado e cavalos. Além da barreira florestal dos Cárpatos
começam as estepes do cinturão principal, estendendo-se para o leste da
costa do mar Negro até as bordas ao sul da floresta russa. A borda da
floresta cruza a planície russa sinuosamente, mas em uma direção
geralmente oblíqua, do extremo norte dos Cárpatos, no quinquagésimo
paralelo de latitude, até o pé dos montes Urais no quinquagésimo sexto
paralelo. Moscou fica perto da floresta, onde estão as amplas clareiras que
constituía toda a Rússia habitada até a recente colonização na estepe em
direção ao sul. Assim como nas regiões do Volga e do Don, os campos de
trigo já substituíram grande parte da estepe, mas até cem anos atrás os
postos cossacos avançados da Rússia ainda estavam baseados nos rios
Dnieper e Don, em cujas margens as árvores mudavam o aspecto geral
formado por vastas extensões neve ou de vegetação rasteira.
As florestas que cobrem o final dos montes Urais formam um
promontório ao sul nas estepes abertas, mas a vegetação de gramíneas é
contínua através do portal da planície que leva da Europa para a Ásia desde
a cordilheira dos Urais ao extremo norte do Mar Cáspio. Para além dessa
porta de entrada, as estepes se expandem novamente em uma extensão
ainda maior do que na Europa. Ao norte delas ainda existem as florestas,
mas ao sul há agora os desertos e as estepes subáridas do Turquestão. A
ferrovia transiberiana atravessa a zona gramada de Chelyabinsk, e sua
estação no sopé oriental dos montes Urais, onde as linhas de Petrogrado e
Moscou une-se a Irkutsk no rio Angara logo abaixo de seu curso para o lago
Baikal. Os campos de trigo estão começando em grande parte a substituir as
gramíneas ao longo da linha da ferrovia, mas as faixas de povoamento
assentado ainda são estreitas, e em grandes áreas ainda predominam os
cavaleiros tártaro e khirghiz, que ainda são nômades.
A borda da floresta se curva para o sul ao longo da fronteira entre a
Sibéria ocidental e a oriental, pois a Sibéria oriental está repleta de colinas e
montanhas arborizadas, que gradualmente vão tendo menores altitudes a
partir do platô Transbaikal, no promontório nordeste da Ásia, em direção ao
estreito de Bering. A zona de gamíneas se expande para o sul com a floresta
e continuam para o leste, sobre o nível inferior do planalto Mongol. Há uma
gradual elevação da grande planície da Mongólia através do "estreito seco"
da Zungaria, entre as montanhas Tianshan, ao sul, e as montanhas Altai, ao
norte. Além da Zungaria, as estepes, agora em nível de terra firme,
continuam contornando a borda sul da floresta Altai e as montanhas
Transbaikails, com o deserto de Gobi ao sul, até que elas alcançam os
afluentes superiores do rio Amur. Lá há um cinturão de floresta ao longo da
face externa oriental da cordilheira Kingan, pelo qual o planalto mongol cai
para a planície da manchúria, mas há uma última pastagem isolada na
Manchúria, a ser comparada com as pastagens igualmente isoladas da
Hungria, a cinco mil milhas de distância, na extremidade oeste do cinturão
de estepes. As estepes da Manchuria, no entanto, estendem-se até a costa do
Pacífico, pois há uma faixa costeira de montanhas, densamente florestadas,
que emolduram o campo aberto e desviam o curso leste do rio Amurm, que
vai desembocar em sua foz ao norte.
Vamos imaginar essa longa faixa de estepes sem as ferrovias
modernas e os campos de milho, e povoá-la novamente com tártaros a
cavalo, que não são outros senão turcos; diz-se que a língua turca de
Constantinopla pode até hoje ser entendida pela tribo ártica no foz do rio
Lena. Por alguns motivos recorrentes – pode ter sido devido a períodos de
anos de seca – essas hordas tártaras móveis de vez em quando, ao longo da
história, reuniam todas as suas forças e juntos marchavam como uma
avalanche devastadora sobre os povos sedentários da China ou da Europa.
No Ocidente, ouvimos falar deles primeiro como os hunos, que em meados
do século V cavalgaram até a Hungria sob o comando de um grande e
terrível líder, Átila. Da Hungria eles atacaram em três direções – a noroeste,
oeste e sudoeste. A noroeste, eles causaram tanta comoção entre os
germânicos que aquelas tribos mais próximas do mar, os anglos e os saxões,
em boa parte se dirigiram em direção à água, para um novo lar na ilha da
Grã-Bretanha. A oeste, eles penetraram na Gália, mas foram derrotados no
grande batalha de Chalons, onde os francos, os godos e os romanos
provinciais, ficando ombro a ombro contra o inimigo comum vindo do
leste, começaram aquela fusão da qual surgiu o moderno povo francês. Ao
sul, Átila avançou até Milão, destruindo em seu caminho as importantes
cidades romanas de Aquiléia e Pádua, cujos habitantes fugiram para as
lagoas à beira-mar e aí fundaram Veneza. Em Milão, Átila foi recebido pelo
papa Leão I de Roma e, por uma razão qualquer, não continuou com a sua
marcha devastadora, resultando daí que a Sé Romana angariou um grande
prestígio. Assim, pode-se dizer com muita verdade que a partir da reação
dos homens da costa contra este golpe de martelo do heartland, surgiram as
nacionalidades inglesa e francesa, o poder marítimo de Veneza e a
instituição medieval suprema do papado. Quem sabe se grandes coisas – e,
esperemos, benéficas – poderão surgir a partir da reação frente ao golpe de
martelo impelido pelos nossos modernos hunos?67
Os ataques hunos cessaram após alguns anos, pois é provável que
seu efetivo demográfico não era muito considerável; a força de um golpe
pode ser medido tanto à sua velocidade quanto pelo seu peso. Mas alguns
remanescentes provavelmente permaneceram nas estepes húngaras pouco
habitadas e foram absorvido por novas tribos de cavaleiros que avançaram
do leste para oeste, os ávaros, contra os quais Carlos Magno fez guerra, e
que contribuiram para constituir os magiares. No ano 1000, esses turcos
magiares, que fizeram muita devastação na Germânia durante o século
anterior, foram convertido ao cristianismo de Roma, e desde então alguns
tornaram-se uma espécie de baluarte para a cristandade latina, de modo que
novas tribos tártaros não foram mais admitidas na Hungria. Mas a vida
econômica dos magiares em geral continuou baseada nas estepes até menos
de cem anos atrás.
Quando lembramos que através dos vários séculos da Idade das
Trevas os pagãos nórdicos com seus navios praticavam a pirataria nos
mares do norte, os infiéis sarracenos e mouros em seus navios praticavam a
pirataria no Mediterrâneo, e as tribos turcas montadas vindas da Ásia
invadiram o coração da península cristã, e que esta foi fechada por poder
marítimo hostil, temos alguma ideia do golpe, como entre o pilão e o
almofariz, que foi usado para a construção da Europa moderna. O pilão foi
o poder terrestre do heartland.
 
FIG. 22 – Florestas e estepes do leste da Europa
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*****
Se esses eventos históricos forem acompanhados no mapa, o fato
estratégico de significado decisivo que emerge é que as terras baixas e
contínuas da grande planície se sobrepõem à drenagem continental e ártica
do heartland no leste da península europeia. Não houve qualquer
impedimento para evitar que os cavaleiros cavalgassem para o oeste nas
regiões drenadas por rios totalmente europeus como o Dnieper e o Danúbio.
Em nítido contraste com esta passagem aberta do heartland na Europa, há
um sistema de barreiras poderosas que separam o heartland ao longo de sua
fronteira leste e sudeste com as Índias. Ao redor ds terras populosas da
China e da Índia ficam a leste e ao sul encostas das terras altas mais
maciças do globo; a face sul da cordilheira do Himalaia, curvando-se por
1.500 milhas ao longo do norte da Índia, sobe de níveis de 300 metros
acima do mar para picos de 28.000 e 29.000 pés. Mas o Himalaia é apenas a
borda do platô Tibetano, que é tão grande quanto França, Alemanha,
Áustria e Hungria juntas, e de uma altitude média de 15.000 pés, ou a altura
do pico Mont Blanc nos Alpes. Em comparação com tais fatos, a distinção
entre as terras altas e as terras baixas, por exemplo entre o planalto iraniano
e a grande planície, torna-se insignificante. O Tibete, com seus
concomitantes Himalaia, Pamirs, Karakoram, Hindu Kush e Tianshatr –
eles se juntam nas alturas tibetanas – não tem paralelo na superfície
terrestre em relação à sua grandeza. Quando o Saara for cruzado e
recruzado diariamente pelo tráfico da civilização, é provável que o Tibete, o
"telhado do mundo", ainda se inclinará em torno de seus flancos que
separam radicalmente as rotas terrestres entre a China e a Índia, dando
assim um significado especial para as fronteiras entre esses dois países.
O norte do Tibete, no qual em uma parte considerável existe uma
drenagem continental, portanto, está incluído no heartland, que se espalha
até o planalto Mongol, que também em grande parte está no heartland. Este
planalto Mongol é de uma altitude muito mais baixa do que o Tibete, e é de
fato comparável em altitudes média com o planalto iraniano. Dois cursos
naturais correm pela região árida da Mongólia para prosseguirem na fértil
planície da China; o que passa pela província de Kansu, ao redor do canto
nordeste do Tibete, para a grande cidade de Sinan [hoje parte de Tongren,
na província de Guizhou], de um milhão de habitantes; e o outro
diretamente para o sudeste do Lago Baikal até Pequim, cidade que também
tem cerca de um milhão de habitantes. Sinan e Pekin, portanto, apenas
dentro das terras baixas da China, são capitais fundadas por conquistadores
do heartland.
Do outro lado do planalto iraniano até a Índia, também existem dois
caminhos naturais, aquele sobre o lado elevado, mas estreito, do Hindu
Kush, descendo o vale Cabul, e o outro ao longo do terminal Kaibar Pass
para a travessia do rio Indo em Attock; o outro através de Herat e Kandahar,
rodeando as extremidades das cordilheiras afegãs pelo desfiladeiro de Bolan
até o Indo. Imediatamente a leste do rio Indo está o deserto indiano, que se
estende desde o oceano a uma curta distância do Himalaia, e os cursos dos
rios Bolan e Kaibar convergem pela antecâmara do Punjab para a entrada
interna da Índia, que é a passagem deixada entre o deserto e as montanhas.
Aqui está Delhi, à frente da navegação do rio Jumna-Ganges, e Delhi é uma
capital fundada, como Sinan e Pekin na China, pelos conquistadores do
heartland. Por estes caminhos estreitos e difíceis, tanto a China quanto a
Índia têm sido repetidamente invadidos por povos oriundos do heartland,
mas os impérios assim fundados geralmente logo se tornam desvinculado
dos hábitos dos homens das estepes. Isso ocorreu, por exemplo, com os
moguls da Índia, descendentes dos mongóis do interior.
 
*****
A conclusão a que esta discussão conduz é que a ligação entre o
heartland, e especialmente entre as suas regiões ocidentais mais abertas do
Irã, Turquestão e Sibéria, é muito mais íntima entre a Europa e a Arábia do
que com a China e a Índia, ou ainda com o heartland sul da África. As
fronteiras naturais do deserto do Saara e as alturas tibetanas não têm
equivalente no heartlando do norte, onde a Arábia praticamente se funde
com a Europa. A estreita conexão destas três regiões é bem tipificada por
aquela fórmula geográfica pela qual tentaremos agora descrever alguns
aspectos essenciais da história da Mesopotâmia e da Síria; os lavradores da
Mesopotâmia e da Síria sempre foram expostos às descidas de cavaleiros do
heartland, dos camelos da Arábia e dos marinheiros da Europa. No entanto,
e de fato apenas por causa de sua natureza transitória – a fronteira entre o
heartland, por um lado, e Arábia e Europa pelo outro lado, vale a pena
prosseguir com alguns cuidados.
A longa cordilheira das montanhas persas se curva para oeste ao
redor da extremidade superior da Mesopotâmia e se torna a cordilheira de
Taurus, que é a margem sul do planalto peninsular da Ásia Menor. A
superfície da Ásia Menor é um remendo de estepes, beirando o deserto
central, onde lagos salgados recebem alguns dos riachos oriundos da
cordilheira de Taurus; mas os rios maiores correm para o norte, para o mar
Negro. Além do intervalo feito pelo mar Egeu, temos a grande bacia do
Danúbio, também escoando para o mar Negro; as correntes de proa dos
afluentes do Danúbio erguem-se quase à vista do Adriático, mas no alto dos
planaltos Ilíricos, cujas íngremes bordas exteriores formam a parede das
montanhas acima da bela costa da Dalmácia. Essa parede é chamada de
Alpes dináricos.
Assim, os Tauros e os Alpes dináricos apresentam degraus íngremes
para o Mediterrâneo e o Adriático, mas enviam longos rios até o mar Negro.
Mas para o mar Egeu, rompendo as terras altas em direção o mar Negro, e
ainda para os Dardanelos, que formam as bordas do heartland, e o mar
Negro e todos os rios que vão afluir para um sistema de drenagem
“continental”. Quando os Dardanelos são fechados ao poder terrestre pelo
poder marítimo do Mediterrâneo, como aconteceu na Grande Guerra, essa
situação é de fato realizada com vistas a controlar os movimentos humanos.
 
FIG. 23 – As altitudes tibetanas e a abordagem da Índia e da
China a partir do heartland
 
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FIG. 24 – O heartland, com a adição das bacias dos mares Báltico
e Negro, e os mais elevados (platôs) vales dos rios indianos e
chineses
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Os imperadores romanos colocaram sua capital oriental em
Constantinopla, a meio caminho entre as fronteiras do Danúbio e do
Eufrates, mas Constantinopla era para eles mais do que uma cidade-ponte
da Europa para a Ásia. Roma, a potência mediterrânea, não anexou a costa
norte do mar Negro, e esse mar, portanto, era ele próprio uma parte da
fronteira do império. As estepes foram deixadas para os citas, como os
turcos eram então chamados, e ao longo da costa da Criméia, no máximo
algumas estações comerciais eram pontilhadas por marinheiros. Assim,
Constantinopla foi o ponto a partir do qual a potência marítima do
Mediterrâneo mantinha a fronteira marítima do meio, como o poder
terrestre das legiões mantinha a oeste e a leste fronteiras ao longo dos rios.
Sob Roma, dessa forma, o poder marítimo avançou para o heartland,
entendendo-se esse termo em um sentido amplo e estratégico, o que inclui a
Ásia Menor e a península Balcânica.
A história posterior não é menos transparente para os fatos
subjacentes da geografia, embora na direção inversa. Alguns dos turcos da
Ásia Central se desviaram do caminho para a Arábia e cavalgaram sobre os
planaltos e montanhas da Armênia, na estepe aberta da Ásia Menor, e
fizeram dessa região o seu lar, assim como os turcos magiares apenas um ou
dois séculos antes tinham circundado o norte do mar Negro até a estepe
húngara. Sob grandes líderes da cavalaria da dinastia otomana, esses turcos
cruzaram os Dardanelos, e, seguindo o "corredor" da Maritza e os vales da
Morávia, através das montanhas dos Balcãs, conseguiram conquistar a
Hungria magiar. A partir do momento em que a cidade de Constantinopla
caiu nas mãos dos turcos, em 1453, o mar Negro foi fechado para os
marinheiros venezianos e genoveses. Sob Roma, o reino dos marinheiros
tinha avançado para a costa norte do Mar Negro; sob o otomano turco, o
reino dos cavaleiros foi avançado pelo heartland até os Alpes Dináricos e os
montes Tauros. Este fato essencial foi mascarado pela extensão do domínio
turco na Arábia fora do heartland; mas hoje, quando a Grã-Bretanha
conquistou novamente a Arábia para os árabes, isso é evidente. Dentro do
heartland, o mar Negro tem sido ultimamente o caminho da expansão
estratégica para o leste do nosso inimigo alemão.
Definimos o heartland originalmente de acordo com a drenagem dos
rios; mas a história, como ela é recontada, não mostra que para os
propósitos de pensamento estratégico, deveria ser dada uma extensão um
pouco mais ampla? Considerado do ponto de vista da mobilidade humana, e
dos diferentes modos de mobilidade, é evidente que uma vez que o poder
terrestre pode hoje fechar o mar Negro, toda a bacia desse mar deve ser
considerada como heartland. Apenas o rio Danúbio na Baviera, de muito
pouco valor para a navegação, pode ser tratado como do lado de fora.
Devemos acrescentar mais uma circunstância, e então teremos
diante de nós toda a concepção do heartland, à medida que ele emerge dos
fatos da geografia e da história. O Báltico é um mar que agora pode ser
"fechado" pelo poder terrestre. O fato de a frota alemã em Kiel ter sido
responsável pelas minas e submarinos que impediram os esquadrões aliados
de entrar no Báltico não pode, naturalmente, denegar a afirmação de que o
fechamento foi realizado pelo poder terrestre; os exércitos aliados na França
estavam lá em virtude do poder marítimo, e os alemães nas defesas
marítimas do Báltico estavam lá como resultado do poder terrestre. Isto é de
importância primordial no que diz respeito aos termos de paz que devem
nos garantir contra uma guerra futura: que devemos reconhecer que, sob as
condições atuais, como foi admitido pelos ministros responsáveis na
Câmara dos Comuns, as frotas dos insulares não podem mais penetrar no
Báltico assim como não podem no mar Negro.
O heartland, para fins de pensamento estratégico, inclui o mar
Báltico, o Danúbio médio e baixo navegáveis, o mar Negro, a Ásia Menor,
a Armênia, a Pérsia, o Tibete e a Mongólia. Dentro dele, portanto, o
Brandemburgo-Prússia e a Áustria-Hungria, bem como a Rússia, formavam
um vasta base tripla de força de trabalho que faltava aos cavaleiros da
história. O heartland é uma a região para a qual, nas condições modernas, o
poder marítimo pode ter seu acesso recusado, embora sua parte oeste fica
sem a região de drenagem ártica e continental. Há uma circunstância física
marcante que o une graficamente; toda essa região, até mesmo à beira das
montanhas persas com vista para a tórrida Mesopotâmia, fica sob a neve no
inverno. A linha indicativa de uma temperatura média de congelamento
durante todo o mês de janeiro passa do cabo norte da Noruega para o sul,
apenas dentro do "guarda" das ilhas ao longo da costa norueguesa, passando
pela Dinamarca, atravessando o meio da Alemanha para os Alpes, e dos
Alpes para o leste ao longo da faixa dos Balcãs. A baía de Odessa e o mar
de Azofare ficam congelados praticamente todo o ano, mas também a maior
parte do mar Báltico. Numa visão a partir da Lua, no meio do inverno um
vasto escudo branco revelaria o heartland em seu maior significado.
Quando os cossacos russos policiaram as estepes pela primeira vez,
no final da Idade Média, uma grande revolução foi efetuada, pois os
tártaros, como os árabes, não tinham a força de trabalho necessária para
fundar um império duradouro, mas atrás dos cossacos estavam os
camponeses russos, que hoje cresceram para se tornar num povo de cem
milhões nas planícies férteis entre os mares Negro e Báltico. Durante o
décimo nono século, o domínio do czar russo expandiu-se no grande
heartland, e parecia ameaçar todas as terras marginais da Ásia e da Europa.
No final do século, no entanto, os alemães da Prússia e a Áustria
decidiram subjugar os eslavos e explorá-los para a ocupação do heartland,
através da qual correm as vias terrestres para a China, Índia, Arábia e o
heartland africano. Os militares alemães estabeleceram colônias em
Kiauchau e na África Oriental como terminais de projetadas rotas terrestres.
Os exércitos de hoje têm à sua disposição não só a ferrovia
transcontinental, mas também o automóvel. Eles também têm o avião, que é
de natureza bumerangue, uma arma do poder terrestre contra o poder
marítimo. Além disso, a artilharia moderna é formidável contra os navios.
Em suma, uma grande potência militar na posse do heartland e da Arábia
poderia facilmente tomar posse das encruzilhadas do mundo em Suez. A
força marítima teria tido imensa dificuldade em manter o canal se uma frota
de submarinos tivesse sido baseada no mar Negro desde o início da guerra.
Derrotamos o perigo nessa ocasião, mas os fatos da geografia permanecem
e oferecem uma oportunidade estratégica cada vez maior para o poder
terrestre em oposição ao poder marítimo.
É evidente que o heartland é um fato físico tão real dentro da Ilha-
Mundo assim como é a própria Ilha-Mundo dentro do oceano, embora seus
limites não sejam tão claramente definidos. Até cerca de cem anos atrás, no
entanto, não havia disponível uma base de mão de obra suficiente para
começar a ameaçar a liberdade do mundo de dentro desta cidadela da Ilha-
Mundo. Não serão meros pedaços de papel, mesmo que sejam a
Constituição de uma Liga das Nações, que nas condições de hoje
fornecerão uma garantia suficiente de que o heartland não se torne
novamente o centro de uma guerra mundial. Agora é a hora, quando as
nações estão enfraquecidas, de considerar quais garantias, com base em
dados geográficos e econômicos da realidade, podem ser fornecidas para a
futura segurança da humanidade.
Tendo-se isso em vista, valerá a pena verificar como as condições
para a tempestade estão se reunindo no heartland na presente ocasião.
 
FIG. 25 – Mostrando a fronteira do heartland onde o poder
marítimo mediterrâneo entra no mar Negro: +++++, e onde o
poder terrestre avança da estepe até os montes Tauros e os Alpes
dinários
 
 
 
FIG. 26 – A Terra-Mundo unida, como veremos em breve, por
ferrovias e rotas aéreas, sendo estas em sua maioria paralelas às
principais linhas ferroviárias
Image

 
Capítulo Cinco
A RIVALIDADE DOS IMPÉRIOS
 
Um paralelo muito interessante pode ser traçado entre o avanço dos
marinheiros da Europa ocidental sobre o oceano e o avanço coetâneo dos
cossacos russos através do estepes do heartland. Yermak, o cossaco,
cavalgou sobre os montes Urais até a Sibéria em 1533, dentro de uma dúzia
de anos, após a viagem de Magalhães ao redor do mundo. O paralelo pode
ser repetido em relação aos nossos próprios dias. Foi uma coisa inédita no
ano 1900 que a Grã-Bretanha deveria manter um quarto de milhão de
homens na sua guerra contra os boers na distância de 6 mil milhas do
oceano; mas foi um feito notável para a Rússia colocar um exército de mais
de um quarto de milhão de homens contra os japoneses na Manchúria em
1904 a uma distância de quatro mil milhas por via férrea. Nós temos o
hábito de pensar que a mobilidade marítima supera em muito a mobilidade
na terra, e assim aconteceu por um tempo; mas é bom lembrar que
cinquenta anos atrás, noventa por cento da navegação do mundo ainda era
movida por velas, e que a primeira ferrovia já havia sido inaugurada na
América do Norte.
Uma das razões pelas quais geralmente deixamos de avaliar o
significado do policiamento das estepes pelos cossacos é que pensamos
vagamente na expansão colonial aí empreendida pela Rússia, com uma
densidade que vai diminuindo gradualmente das fronteiras alemã e austríaca
por milhares de milhas a leste até o estreito de Bering , sobre toda a área
colorida no mapa com uma tonalidade e rotulado como um único país. Na
verdade, a Rússia – a verdadeira Rússia que forneceu mais de oitenta por
cento dos recrutas para os exércitos russos durante os primeiros três anos da
guerra – é uma realidade muito menor do que a simplicidade do mapa
parece indicar. A Rússia, que é a pátria do povo russo, encontra-se
totalmente na Europa, e ocupa apenas cerca de metade do que normalmente
chamamos de Rússia. Assim entendida, as fronteiras terrestres da Rússia
são em muitos lugares quase tão bem definidas quanto são as costas da
França ou da Espanha. Trace uma linha no mapa de Petrogrado para o leste
ao longo do alto Volga até a grande curva desse rio em Kazan, e daí em
direção ao sul ao longo do médio Volga até a segunda grande curva em
Czaritzin, e finalmente para sudoeste ao longo da parte inferior do rio Don
até Rostof e o mar de Azof. Dentro desta linha, ao sul e a oeste dela, há
mais de uns cem milhões de russos. Eles, o principal estoque da Rússia,
habitam a planície entre o Volga e os Cárpatos e entre o Báltico e mar
Negro, com uma densidade média de talvez cento e cinquenta pessoas por
milha quadrada, e esta faixa contínua de população termina mais ou menos
abruptamente ao longo da linha indicada.
Ao norte de Petrogado e Kazan fica o norte da Rússia, uma vasta
terra de florestas sombrias com pântanos ocasionais, mais da metade do
tamanho de toda a região definida como a pátria russa. O norte da Rússia
tem uma população de menos de dois milhões, e menos de três habitantes
por milha quadrada. A leste do Volga e do Don, até os montes Urais e o mar
Cáspio, fica a Rússia oriental, quase tão grande quanto a Rússia do norte, e
com uma população também de cerca de dois milhões. Mas no Vale Kama,
entre o norte e o leste da Rússia, é um cinturão de terras colonizadas, que se
estendem para o leste de Kazan e Samara até a cordilheira dos Urais, e
sobre essa cordilheira, passando pelas minas de Ekaterinburg, na Sibéria e
do lado oeste da Sibéria a Irkutsk, perto do Lago Baikal. A população nessa
cintura além do Volga talvez seja de uns 20 milhões. O total disso, de Kazan
e Samara a Irkutsk, desde que é ocupado por lavradores e não por
cavaleiros errantes, é constituído por um povoamento recente.
O médio Volga, fluindo para o sul de Kazan a Czaritzin, é um fosso
notável não só para a Rússia, mas para a Europa. A costa oeste, conhecido
como banco de colinas, em oposição ao banco de prados do outro lado, é
uma encosta de colina com cerca de trinta metros de altura, com vista para o
rio por setecentas milhas; é a beira da planície habitada que fica um pouco
acima do nível do mar. Fique no topo desta borda, olhando para o leste
através do largo rio abaixo de você, e vai perceber que a Europa populosa
fica em suas costas e, de frente, onde os prados baixos desaparecem na meia
esterilidade das estepes mais secas para o leste, você tem o início das
alturas da Ásia Central.
Um comentário prático marcante sobre esses grandes aspectos
físicos e contrastes sociais foram fornecidos nos últimos meses pela guerra
civil na Rússia. Em todo o norte da Rússia, existem apenas duas ou três
cidades maiores do que um vilarejo, e uma vez que os bolcheviques têm por
base populações urbanas, eles têm pouca influência ao norte do Volga.
Além disso, os esparsos assentamentos rurais, principalmente de
silvicultores com seus modos de vida simples, não tem base para um
sentimento político agrário e, portanto, nenhuma simpatia camponesa para
com os bolcheviques. Como resultado, a ferrovia de Archangel até Vologda
no alto Dwina permaneceu aberto por muito tempo para comunicação com
o oceano e o oeste. A linha Transiberiana vai de Petrogrado a Vologda, e há
uma linha direta de Moscou para Vologda, que pode ser considerada como
deixando a Rússia propriamente dita e entrando no norte da Rússia na ponte
sobre o Volga em Iaroslav. Foi por essas razões que as embaixadas aliadas
se estabeleceram em Vologda quando saíram de Petrogrado e Moscou: além
da conveniência de comunicações alternativas com Archangel e
Vladivostok, elas estavam fora da Rússia bolchevique.
Ainda mais significativa foi a ação dos tcheco-eslovacos no tronco
de Moscou da linha Transiberiana. Avançando dos montes Ural, com o
apoio dos cossacos dos Urais, eles tomaram Samara no ponto onde a
ferrovia chega ao planalto central, e tomaram a grande ponte sobre o rio em
Syzran. Eles até penetraram um curto caminho ao longo da linha para
Penza, na Rússia real, mas através de áreas pouco povoadas. Além disso,
eles navegaram o rio para Kazan. Na verdade, eles estavam pairando ao
redor da borda da verdadeira Rússia, ameaçando-a de fora. A expedição
britânica de barco de Archangel pelo rio Dwina até Kotlas, e daí pela
ferrovia para Vyatka na linha Transiberiana, parece uma empresa menos
temerária quando vista à luz destas realidades.
Esta definição da verdadeira Rússia dá um novo significado não
apenas para a Rússia, mas também para a Europa do século XIX. Vamos
examinar aquela Europa, com a ajuda do mapa. Todas as regiões ao norte da
Escandinávia, Finlândia e Rússia, e também da Rússia oriental para o sul do
Cáucaso, são excluídas por serem meros vazios, e com eles também
excluimos o domínio turco na Península Balcânica. Temos que lembrar que
Kinglake, quando escreveu Eöthen em 1844, considerou que estava
entrando no oriente quando foi transportado pelo rio Save para Belgrado. A
fronteira entre os impérios austríaco e turco como foi estabelecida pelo
Tratado de Belgrado em 1739, não foi alterada até 1878.
Assim, a verdadeira Europa, a Europa dos povos europeus, a Europa
que, com suas colônias ultramarinas, é a cristandade, era uma concepção
social bem definida; sua fronteira terrestre corria direto de Petrogrado para
Kazan e, em seguida, ao longo de uma linha curva do Kazan, para os rios
Volga e Don até o mar Negro, e pela fronteira turca para perto da cabeça do
Adriático. Em uma extremidade desta Europa está o cabo São Vicente em
frente ao mar; na outra extremidade está o cabo terrestre formado pelo
cotovelo do Volga em Kazan. Berlim fica quase exatamente a meio caminho
entre São Vicente e Kazan. Se a Prússia tivesse vencido esta guerra, era sua
intenção que a Europa continental de São Vicente a Kazan, com a adição do
heartland asiático, deveria ter se tornado a base naval a partir de onde ela
teria lutado contra a Grã-Bretanha e os Estados Unidos na próxima guerra.
 
FIG. 27 – Mostrando os limites da mais densa população russa: ---
-----
Image

 
 
FIG. 28 – A Europa real, leste e oeste, com a adição da Barbéria,
os Balcãs e a Ásia Menor
Image

 
Vamos agora dividir nossa Europa em leste e oeste por uma linha
traçada do Adriático ao mar do Norte, na qual Veneza e Holanda podem
estar a oeste, e também aquela parte da Alemanha que foi alemã desde o
início da história europeia; mas a leste ficam Berlim e Viena, pois a Prússia
e a Áustria são países que o alemão conquistou e teutonizou mais ou menos
à força. Sobre o mapa assim dividido, vamos "pensar" sob uma nova
perspectiva a história das últimas quatro gerações.
 
*****
 
A Revolução Inglesa limitou os poderes da monarquia, e a
Revolução Francesa afirmou os direitos do povo. Devido à desordem na
França, e suas campanhas militares no exterior, o organizador Napoleão foi
expelido. Napoleão conquistou a Bélgica e a Suíça, se cercou de reis
subservientes na Espanha, Itália e Holanda, e fez uma aliança com a
subordinada Federação do Reno ou, em outras palavras, com a velha
Alemanha. Assim, Napoleão havia unido toda a Europa ocidental, exceto a
Grã-Bretanha insular. Então ele avançou contra a Europa oriental e derrotou
a Áustria e a Prússia, mas não as anexou, embora ele as compelisse a agir
como seus aliados quando ele depois marchou para a frente contra a Rússia.
Muitas vezes ouvimos falar dos vastos espaços para a retirada russa depois
de Moscou; mas, na verdade, Napoleão em Moscou quase marchou através
da Rússia habitada de seu tempo68. Napoleão foi derrotado em parte pelo
esgotamento de seu efetivo demográfico francês, mas principalmente
porque seu reino da Europa ocidental foi envolvido por poder marítimo
britânico, pois a Grã-Bretanha foi capaz de trazer para si suprimentos de
fora da Europa e cortar a Europa ocidental de suprimentos semelhantes.
Ela, como é natural, se aliou às potências da Europa oriental, mas a única
maneira pela qual poderia se comunicar efetivamente com estas era através
do mar Báltico. Isso explica suas duas incursões navais em Copenhaguem.
Devido ao seu domínio do mar, a Grã-Bretanha era, portanto, capaz de
desembarcar seus exércitos na Holanda, Espanha e Itália, e minar a força
napoleônica na retaguarda. É interessante notar que a vitória culminante de
Trafalgar e o ponto de inflexão de Moscou estavam quase que nos dois
extremos da nossa verdadeira Europa. A guerra napoleônica foi um duelo
entre a Europa ocidental e a oriental, cujas áreas e populações eram quase
uniformemente equilibradas, mas a superioridade do maior
desenvolvimento da Europa ocidental foi neutralizada pelo poder marítimo
britânico.
Depois de Waterloo, a Europa oriental foi unida pela Santa Liga das
três potências – Rússia, Áustria e Prússia. Cada uma das três avançou
alguma parcela a oeste, como que atraídas por um ímã naquela direção. A
Rússia obteve a maior parte da Polônia e, assim, estendeu uma península
política no coração da península física da Europa. A Áustria levou a costa
do Dálmata e também Veneza e Milão no continente do norte da Itália. A
Prússia obteve uma região separada na velha Alemanha do ocidente, cujo
território foi dividido nas duas províncias da Renânia e Westfália. Esta
anexação dos alemães à Prússia provou ser algo muito mais significativo do
que a adição de poloneses à Rússia e dos italianos para a Áustria. A
Renânia é um país há muito tempo civilizado e que até agora ainda aceita as
leis do Código Napoleônico. A partir do momento em que os prussianos
forçaram assim seu caminho para a Europa ocidental, uma luta tornou-se
inevitável entre a Renânia liberal e o Brandemburgo conservador de Berlim.
Mas essa luta foi adiada durante algum tempo devido ao esgotamento da
Europa.
O poder naval britânico, ao mesmo tempo, continuou envolvendo a
Europa ocidental de Heligoland, Portsmouth, Plymouth, Gibraltar e Malta.
Por mudanças precipitadas nos anos de 1830 a 1832, a reação temporária no
oeste chegou ao fim e as classes médias chegaram ao poder na Grã-
Bretanha, França e Bélgica. Nos anos de 1848 a 1850, o movimento
democrático espalhou-se a leste do Reno e a Europa central estava em
chamas com as idéias de liberdade e nacionalidade, mas de nosso ponto de
vista, dois eventos, e dois apenas, foram decisivos. Em 1849 os exércitos
russos avançaram para a Hungria e colocaram os magiares novamente
submetidos a Viena, permitindo assim aos austríacos reafirmar sua
supremacia sobre os italianos e os boêmios. Em 1850 ocorreu aquela
conferência fatal em Olmotz, quando a Rússia e a Áustria se recusaram a
permitir que o rei da Prússia aceitasse a coroa alemã que tinha sido
oferecida a ele de Frankfurt, no ocidente. Assim, a continuação da unidade
da Europa oriental foi afirmada, e o movimento liberal da Renânia estava
definitivamente vencido.
Em 1860, Bismarck, que esteve em Frankfurt, e que também tinha
sido embaixador em Paris e Petrogado, foi chamado ao poder em Berlim, e
resolveu basear a unidade alemã não no idealismo de Frankfurt e do
ocidente, mas na organização de Berlim e do oriente. Em 1864 e 1866,
Berlim invadiu a Alemanha ocidental, anexando Hanover e, assim, abrindo
o caminho na Renânia para o militarismo junker. Ao mesmo tempo, Berlim
enfraqueceu sua concorrente Áustria ao ajudar os magiares a estabelecer o
governo dual da Áustria-Hungria, privando a Áustria de Veneza. A França
havia recuperado anteriormente Milão para o ocidente. A Guerra de 1866
entre a Prússia e a Áustria foi, no entanto, em essência apenas uma guerra
civil; isso se tornou evidente em 1872 quando a Prússia, tendo mostrado
que seu poder era irresistível na guerra contra a França, formou a Liga dos
Três Imperadores [da Prússia, Áustria e Rússia], e assim reconstituiu
durante algum tempo a Santa Aliança na Europa oriental. O centro de poder
no leste da Europa, entretanto, era agora a Prússia, e não mais a Rússia, e a
Europa oriental estabeleceu uma considerável "rampa" renana contra a
Europa ocidental.
Por cerca de quinze anos após a guerra franco-prussiana, Bismarck
dominou a Europa oriental e a ocidental. Ele dominou o oeste dividindo os
três poderes românicos – França, Itália e Espanha. Ele conseguiu isso
utilizando a Barbária, a "ilha do oeste" do Árabes. A França ocupou a parte
central da Barbária, conhecida como Argélia, e Bismark a encorajou a
estender seu domínio para o leste, em Túnis, e para o oeste, no Marrocos.
Com isso, ele ocasionou um conflito da França com a Itália e a Espanha. Na
Europa oriental havia uma rivalidade semelhante entre a Rússia e a Áustria
em relação à península Balcânica, mas aqui o esforço de Bismarck foi para
manter seus dois
aliados juntos. Portanto, depois de fazer a dupla aliança com a Áustria em
1878, Bismarck negociou seu tratado secreto de resseguro com a Rússia.
Ele desejava uma sólida Europa oriental sob controle prussiano, e ao
mesmo tempo uma divisão na Europa ocidental.
 
*****
 
Os eventos que assim resumimos, não constituem tão somente
história passada e morta. Eles mostram a oposição fundamental entre
Europa oriental e a ocidental, uma oposição que se torna de importância
mundial quando lembramos que a linha que atravessa a Alemanha, indicada
pela história, é a fronteira entre leste e oeste a que temos, por outros
motivos, considerados como demarcação do heartland no sentido
estratégico visto a partir das terras costeiras.
Na Europa ocidental, existem dois elementos principais, o românico
e o teutônico. Tanto que as duas principais nações, Grã-Bretanha e França,
nos tempos modernos estão preocupadas em não haver nenhuma conquista
de uma frente a outra. O canal [da Mancha] está entre elas. Para a Idade
Média, é verdade que durante três séculos os cavaleiros franceses
governaram a Inglaterra, e que por outro século os ingleses tentaram
governar a França. Mas essas relações terminaram por bem quando a rainha
Maria perdeu Calais. As grandes guerras entre os dois países no século
XVIII foram travadas principalmente para impedir a monarquia francesa de
dominar o continente europeu. As restantes foram guerras de rivalidade
colonial e comercial. Até agora, da mesma forma, desde a existência do
elemento teutônico ao longo do Reno, certamente não havia no passado
hostilidade frente aos franceses. Os alsacianos, embora alemães na fala,
tornaram-se – é um dos grandes fatos da história operando até hoje –
franceses no coração. Mesmo o que agora é a província do Reno da Prússia
aceitou, como vimos, o Código Napoleônico.
Na Europa Oriental, há também dois elementos principais, o
teutônico e o eslavo, mas nenhum equilíbrio foi estabelecido entre eles
como entre os elementos românicos e teutônicos da Europa ocidental. A
chave para toda a situação na Europa oriental – e é um fato que não pode
ser muito claro no momento presente – é que os alemães alegam domínio
sobre os eslavos. Viena e Berlim, logo após a fronteira da Europa ocidental,
já estão dentro do território que era eslavo no início da Idade Média; eles
representam o primeiro passo do alemão fora de seu país natal como
conquistador para o leste. Na época de Carlos Magno, os rios Saale e Elba
dividiram os eslavos do alemães, e até hoje, apenas a uma curta distância ao
sul de Berlim, existe o círculo [ou distrito] de Cottbus, onde o campesinato
ainda fala o wendish, idioma eslavo de toda a região há alguns séculos. Fora
deste pequeno wendish remanescente, o campesinato eslavo aceitou a
língua dos barões alemães que os governam em suas grandes propriedades.
No sul da Alemanha, onde o campesinato é verdadeiramente alemão, a terra
é mantida por pequenos proprietários.
Sem dúvida que há uma diferença na impressão causada aos
estrangeiros pelos austríacos e os prussianos de nascimento nobre; essa
diferença vem, evidentemente, do fato de que os austríacos avançaram para
o leste a partir de terras do sul da Alemanha, enquanto os prussianos vieram
do norte. Mas na Prússia e na Áustria, os grandes proprietários de terras
foram
autocratas antes da guerra, embora comumente pensemos no junker como
apenas prussiano. O campesinato de ambos os países estava em estado de
servidão até relativamente pouco tempo atrás.
O território estendido pela Prússia nas direções nordeste e sudeste
tem um profundo significado histórico para aqueles que lêem história no
mapa, e é a história no mapa que constitui uma das grandes realidades com
as quais devemos lidar na nossa atual reconstrução. O mapa que mostra a
distribuição de idiomas nos diz, neste caso, ainda mais do que o mapa
político, pois mostra três línguas da fala alemã e não apenas dois. O
primeiro fica a nordeste ao longo da costa do Báltico; representa uma
conquista alemã com a teutonização forçada na Idade Media. No litoral, os
mercadores hanseáticos de L0beck e os cavaleiros teutônicos, não mais
ocupados com as Cruzadas, conquistaram todas as terras litorâneas até onde
hoje fica Petrogrado. Por subseqüente, a história de metade desta faixa de
"germanidade '' foi incorporada pela monarquia de Berlim, e a outra metade
se tornou nas províncias bálticas do czar russo. Mas as províncias do
Báltico mantiveram, até os nossos dias, sua comunidade mercantil alemã de
Riga, sua Universidade alemã de Dorpat, e seus barões alemães como
proprietários. Sob o Tratado de Brest-Litovsk, o elemento alemão, deveria
novamente ter governado nestas terras da Curlândia e da Livônia.
O segundo caminho dos alemães foi subindo o rio Oder até sua
nascente no portão da Morávia, o vale profundo que sai da Polônia em
direção a Viena, entre as montanhas da Boêmia, por um lado, e as
montanhas dos Cárpatos, por outro lado. Os assentamentos alemães ao
longo do alto Oder tornaram-se a Silésia, da qual a maior parte foi tirada da
Áustria pela Prússia sob Frederico, o Grande. A importância dessas faixas
de lingua alemã a nordeste e sudeste é ainda mais acentuado pela província
de fala polonesa de Posen, no ângulo de reentrada entre elas.
O terceiro caminho dos alemães para o leste foi descendo o
Danúbio, e também através de passagens ao sul dos Alpes orientais. Isso
acabou por se tornar no arquiducado austríaco em Viena e no ducado da
Caríntia – de língua alemã – nos Alpes austríacos. Entre a Silésia e os
austríacos alemães projeta-se a oeste a província da Boêmia, principalmente
da fala eslava. Não esqueçamos que a Boêmia e Posen mantiveram suas
línguas nativas, e que as três faixas da língua alemã representam três
correntes de conquista.
Além dos pontos mais extremos dessas três invasões principais de
germanidade, existem muitas colônias alemãs de fazendeiros e mineiros
espalhados, algumas delas de origem muito recente. Elas ocorrem em
muitos pontos na Hungria, embora para fins políticos até agora os alemães
vêm se identificando com a tirania magiar. Os saxões da Transilvânia
compartilham com os magiares daquela região uma posição privilegiada em
meio a uma população subalterna de camponeses romenos.69 Na Rússia,
uma cadeia de assentamentos alemães fica a leste através do norte da
Ucrânia quase até Kiev. Apenas no médio Volga, perto da cidade de Saratof,
chegamos à última mancha desses colonos alemães.
 
FIG. 29 - As ilhas onde sobrevivem falantes de wendlsh (eslavo)
em Kottbus, rodeados pela maré da língua alemã.
Image

 
 
Não devemos, no entanto, pensar na influência alemã entre os
eslavos como sendo limitado a essas manchas da língua alemã, embora elas
sejam um fator muito poderoso assim como foi em qualquer lugar que a
kultur Alemã entrou. O reino eslavo da Boêmia foi completamente
incorporado ao sistema imperial alemão; o rei da Boêmia foi um dos
eleitores do imperador segundo a Constituição que só deixou de vigorar em
1806, após a batalha de Austerlitz. Os poloneses, os tchecos, os eslavos do
sul da Croácia e os magiares são católicos romanos – isto é, do ramo latino
ou ocidental da Igreja, e isso certamente significou uma extensão da
influência alemã em oposição à Igreja grega dos russos. Após o cerco de
Viena, em 1683, os austríacos alemães avançaram passo a passo no século
XVIII, expulsando da Hungria os turcos que vieram antes deles, até que
pelo Tratado de Belgrado, de 1739, fixaram a linha que por mais de cem
anos delimitou o poder turco frente à cristandade. Os austríacos sem dúvida
que prestaram um grande serviço à Europa, mas o efeito incidental, até
agora, foi que tanto os croatas, os magiares, os eslovacos e os romenos da
Transilvânia estavam preocupados apenas em substituir o domínio do
alemão pelo turco. Quando Pedro, o grande, mudou a capital russa no início
do século XVIII de Moscou para Petrogrado, ele passou de um ambiente
eslavo para um ambiente alemão, fato registrado no nome alemão São
Petersburgo. Como consequência, ao longo dos séculos XVIII e XIX, a
influência alemã foi grande no governo russo. A burocracia russa, da qual o
czar dependia, em grande proporção, era recrutada entre os cadetes de
famílias das províncias baroniais alemãs do Báltico.
Assim, a Europa oriental não se consistiu, como a Europa ocidental,
em um grupo de povos independentes uns dos outros, e – até que a Alsácia
fosse tomada pela Prússia – sem sérias questões de fronteira; o leste da
Europa tem constituído uma grande e tripla organização de domínio alemão
sobre uma população principalmente eslava, embora a extensão do poder
alemão, sem dúvida, variou em diferentes partes. Neste fato, temos a chave
para o significado da reviravolta de 1895, quando foi concluído a
incongruente aliança franco-russa entre democracia e despotismo. Quando a
Rússia aliou-se à França contra os alemães, ficou implícito algo mais do
que um reembaralhamento das cartas na mesa de jogo de Europa. Algo
fundamental aconteceu na Europa oriental desde o ponto de vista de Berlim.
Antes daquele grande e significativo evento, tinham ocorrido longas
discussões entre os governos russos e austríacos em função de sua
rivalidade nos Bálcãs, mas estas foram de natureza das brigas de família,
não menos do que foi a curta guerra entre a Prússia e a Áustria em 1866.
Quando a Rússia avançou para o Danúbio contra a Turquia, em 1853, e a
Áustria reuniu suas forças para ameaçar a Rússia nos Cárpatos, a amizade
da Santa Aliança, que tinha subsistido desde 1815, foi sem dúvida suspensa
até que Bismarck reuniu novamente os três despotismos em sua Liga dos
Três Imperadores de 1872. Mas aconteceu que, durante esse interregno, a
Rússia não estava em posição de avançar novamente contra os turcos,
devido às perdas
que ela experimentou na Guerra da Crimeia e, portanto, não houve
nenhuma violação irremediável entre ela e a Áustria. Mas a Aliança dos
Três Imperadores não poderia durar muito depois que a Áustria mostrou
suas ambições balcânicas ao ocupar as províncias eslavas da Bosnia e
Herzegovina, em 1873. Alguns anos desconfortáveis se seguiram, nos quais
a força alemã passou a aumentar, antes que a Rússia fosse convencida que a
alternativa diante dela era uma aliança com os franceses republicanos ou a
aceitação de uma posição de subordinação à Alemanha, como aquela a que
a Áustria foi reduzida.
 
FIG. 30 – Mostrando as três áreas de fala alemã e os
assentamentos de fala alemã a leste, espalhando-se até o Volga.
(l) Prússia. (2) Silésia. (3) Áustria.
Image

 
 
*****
 
Examinemos agora a história da Europa ocidental e da oriental
durante a Era Vitoriana. Houve, no entanto, uma história contemporânea da
não-Europa, que devemos levar em consideração. A guerra naval que
culminou na batalha de Trafalgar teve o efeito de dividir o fluxo da história
do mundo em duas correntes separadas por quase um século. A Grã-
Bretanha envolveu a Europa com seu poder marítimo, mas exceto nas vezes
em que era necessário intervir em torno o Mediterrâneo oriental por causa
de seus interesses nas Índias, ela não desempenhou nenhum papel sério na
política da península europeia. O poder marítimo britânico, no entanto,
também envolveu o grande promontório mundial que termina no cabo da
Boa Esperança e, operando a partir da orla marítima das Índias, entrou em
rivalidade com o poder russo-cossaco, que estava completando
gradualmente seu domínio sobre o heartland. Desde o extremo norte do
grande rio Amur, os russos desceram para a costa do Pacífico antes da
Guerra da Crimeia. É comum atribuir a abertura do Japão à ação do navio
americano Commodore Perry, em 1853, mas a presença dos russos na ilha
Sacalina e até mesmo mais para o sul, em Yesso (Hokkaido), tinha feito
algo para preparar o caminho. No que diz respeito à Grã-Bretanha, a
ameaça russa mais imediata ocorreu, é claro, além da fronteira noroeste da
Índia.
No século XIX, a Grã-Bretanha fez o que quis no oceano, pois os
Estados Unidos ainda não eram poderosos e a Europa estava totalmente
ocupada com suas guerras. Frete e mercados eram o objetivo dos lojistas da
nação sob o regime da escola de de pensamento político de Manchester. As
principais ofertas de novos mercados estavam entre as vastas populações
das Índias, pois a África era inexplorada e as Américas ainda não eram
populosas. Portanto, enquanto a Grã-Bretanha podia ter anexado quase
todas as costas fora
da Europa, exceto a costa atlântica dos Estados Unidos, ela se limitou aos
portos de escala para seu transporte marítimo para as Índias, embora tenha
sido forçada, pela ação de seus aventureiros, a anexar novas posses
coloniais. Mas ela foi compelida a fazer um avanço constante na Índia, do
tipo que a velha Roma conhecia tão bem, e uma nova província após outra
foi sendo anexada com o propósito de privar invasores de bases contra o
território já possuído.
O mapa revela de uma só vez os aspectos estratégicos essenciais da
rivalidade entre a Rússia e a Grã-Bretanha durante o século XIX. Rússia, no
comando de quase todo o heartland, estava batendo nas portas das Índias. A
Grã-Bretanha, por outro lado, estava batendo nas portas marítimas da
China, e avançando para o interior, a partir das costas da Índia, para
enfrentar a ameaça do noroeste. O domínio russo no heartland tinha por
base seu efetivo demográfico na Europa oriental, transportado às fronteiras
com as Índias pela mobilidade da cavalaria cossaca. O poder britânico ao
longo da frente marítima das Índias era baseado no efetivo demográfico das
ilhas distantes da Europa ocidental, e foi disponibilizado no oriente pela
mobilidade dos navios britânicos. Obviamente, havia dois pontos críticos
nas viagens alternativas em torno do oeste para o leste; esses pontos que
conhecemos hoje como o "cabo" [da Boa Esperança] e o "canal" [de Suez].
O cabo estava muito longe de todas as ameaças terrestres ao longo do
século XIX; a África do Sul era praticamente uma ilha. O canal não foi
inaugurado até 1869, mas sua construção foi um evento que antes mesmo
representou uma ameaça. Foi o francês Napoleão que deu ao Egito e,
portanto, também para a Palestina, sua importância moderna, assim como
foi o francês Dupleix que, no século XVIII, mostrou que era possível
construir um império na Índia da costa para dentro, nas ruínas do Império
mongol, que foi construído de Delhi para fora. Ambas ideias, a de Napoleão
e a de Dupleix, eram essencialmente ideias de poder marítimo, e surgiram
naturalmente na França, na península de oeste da Europa. Com sua
expedição ao Egito, Napoleão atraiu a frota britânica para a batalha do Nilo
no Mediterrâneo, e também atraiu o exército britânico da Índia, pela
primeira vez no exterior, para o vale do Nilo. Quando, portanto, o poder
russo no heartland aumentou, os olhos tanto da Grã-Bretanha quanto da
França estavam necessariamente direcionados para Suez, os da Grã-
Bretanha por razões práticas óbvias, e as da França em parte pela razão
sentimental da grande tradição napoleônica, mas também porque a
liberdade do Mediterrâneo era essencial para o seu conforto na península
ocidental.
Mas o poder terrestre russo, aos olhos das pessoas daquele tempo,
não representava uma ameaça na Arábia. A saída europeia natural do
heartland ficava à beira-mar através do estreito de Constantinopla. Vimos
como Roma traçou sua fronteira através do mar Negro, e fez de
Constantinopla uma base local de seu poderio marítimo mediterrâneo contra
os citas das estepes. A Rússia, sob o czar Nicolau, procurou inverter esta
política e, ao comandar o mar Negro e sua saída para o sul, desejava
estender seu poder terrestre até os Dardanelos. O efeito foi inevitavelmente
unir a Europa ocidental contra ela. Quando a intriga russa envolveu a Grã-
Bretanha na primeira Guerra Afegã, em 1839, a Grã-Bretanha não
conseguia ver com serenidade os acampamentos do exército russo no
Bósforo voltados para defender o Sultão [da Turquia] do ataque de
Mehemet Ali, o insurgente quediva do Egito que vinha através da Síria.
Entretanto, a Grã-Bretanha e a França atacaram Mehemet Ali na Síria, em
1840.
Em 1854, a Grã-Bretanha e a França estiveram novamente
envolvidas em ações contra a Rússia. A França assumiu o protetorado dos
cristãos no Oriente Próximo, e seu prestígio a esse respeito estava sendo
prejudicado por uma intriga russa a respeito dos lugares sagrados em
Jerusalém. Então a França e a Grã-Bretanha se envolveram no apoio aos
turcos, quando os exércitos russos marcharam contra eles no Danúbio. Lord
Salisbury, pouco antes de sua morte, declarou que, ao apoiar a Turquia nós
apostamos no cavalo errado. Mas quão certa é essa interpretação em relação
a meados do século passado? O tempo é a essência da política
internacional; há um oportunismo que é a tática da política. Em relação às
coisas que não são fundamentais, não é reconhecido que nas relações
sociais normais, é possível dizer a coisa certa na hora errada? Em 1854, era
o poder russo o centro de organização na Europa oriental, e ainda não o
poder alemão, e a Rússia estava pressionando através do heartland contra as
Índias, e pelo estreito de Constantinopla estava buscando avançar do
heartland para o oeste, e a Prússia estava apoiando a Rússia.
Em 1876, a Turquia estava novamente em apuros e foi novamente
apoiada pela Grã-Bretanha, embora sem o apoio da França. O resultado foi
o de afastar o poder russo de Constantinopla, mas ao custo de dar aos
alemães seu primeiro passo em direção ao corredor dos Balcãs por permitir
que os austríacos controlassem as províncias eslavas, até então sob domínio
turco, da Bósnia e Herzegovina. Na ocasião, a frota britânica atravessou o
Dardanelos para dentro até a visão dos minaretes de Constantinopla. A
grande mudança na orientação da política russa ainda não havia ocorrido, e
nem a Rússia nem a Grã-Bretanha tinham previsto os métodos econômicos
de acumular força de trabalho que Berlim estava prestes a recorrer.
Quando olhamos para trás, para o curso dos eventos durante os cem
anos após a Revolução Francesa, e consideramos a Europa oriental como o
que ela era, em geral uma única força nos assuntos do mundo, não
percebemos que as pessoas da era vitoriana, muitas vezes pensavam a
política da Europa como se fossem de fora dela, quando de fato nunca
houve essa separação? A Europa oriental estava no comando do heartland, e
foi combatido pelo poder marítimo da Grã-Bretanha por mais de três
quartos da margem do heartland, da China através da Índia até
Constantinopla. França e Grã-Bretanha eram comumente aliados em ação
em relação a Constantinopla. Quando, em 1840, houve o perigo de guerra
na Europa por causa da disputa entre o kedive e o sultão, instintivamente
todos os olhos se voltaram para o Reno, onde a Prússia havia estabelecido
postos avançados em suas províncias. Foi nesse momento então que uma
canção [patriótica] alemã, o "Die Wacht am Rhein", foi escrita! Mas a
ameaça de guerra contra a França não era em relação à Alsácia e Lorena,
mas em apoio à Rússia; em outras palavras, a disputa era entre o leste e o
oeste da Europa.
Em 1870, a Grã-Bretanha não apoiou a França contra a Prússia.
Com a sabedoria do presente sobre os eventos passados, não deveríamos
talvez perguntar se não deixamos, neste caso, de apostar no cavalo certo?
Mas os olhos dos ilhéus ainda estavam cegos pela vitória de Trafalgar. Eles
sabem o que é desfrutar do poder do mar, da liberdade do oceano, mas eles
esqueceram que o poder marítimo é, em grande medida, dependente do
produtividade das bases sobre as quais repousa, e que a Europa de leste e o
heartland seriam uma poderosa base marítima. No período bismarckiano,
além disso, quando o centro de gravidade da Europa oriental estava sendo
deslocado de Petrogrado para Berlim, talvez não cause estranheza que
nossos patrícios falhassem em perceber o caráter subordinado das brigas
entre as três autocracias e o caráter fundamental da guerra entre a Prússia e
a França.
A recente Grande Guerra surgiu na Europa com a revolta dos
eslavos contra os alemães. Os eventos que levaram a isso começaram com a
ocupação austríaca das províncias eslavas da Bósnia e Herzegovina, em
1878, e a aliança da Rússia com a França em 1895. A entente de 1904 entre
a Grã-Bretanha e a França não foi um evento do mesmo significado; nossos
dois países cooperaram mais frequentemente do que nunca no século XIX,
mas a França foi mais rápida em perceber que Berlim havia suplantado
Petrogrado como o centro de perigo no leste da Europa, e nossas duas
políticas foram, em conseqüência, moldadas a partir de ângulos diferentes
durante alguns anos. Europa ocidental, tanto a insular quanto peninsular,
deve necessariamente se opor a qualquer tentativa de poder com vista a
organizar os recursos da Europa oriental e do heartland. Visto na luz dessa
concepção, a política britânica e francesa nos cem anos passados assume
uma grande consistência. Nos opusemos ao meio-alemão czar russo porque
a Rússia era a força dominante e ameaçadora, tanto no leste europeu quanto
no heartland, por meio século. Nos opusemos ao kaiser totalmente alemão,
porque a Alemanha tomou a liderança do czar na Europa oriental e então
teria esmagado os revoltosos eslavos, dominando Europa oriental e o
heartland. A kultur Alemã, e tudo o que ela significa em termos de
organização, fariam dessa dominação alemã um castigo de escorpiões em
comparação com os chicotes da Rússia.
 
*****
 
Até agora, estivemos pensando na rivalidade dos impérios do ponto
de vista de oportunidades estratégicas, e chegamos à conclusão de que a
Ilha-Mundo e o heartland constituem a realidade final em relação aos
poderes marítimo e terrestre, e que o leste da Europa é essencialmente uma
parte do heartland. Mas continua a haver a necessidade de considerarmos a
realidade econômica do poder humano. Nós vimos que a questão de uma
base, não apenas segura, mas também produtiva, é vital para o poder
marítimo; a base produtiva é necessária para o sustento dos homens não só
para a tripulação dos navios, mas para todos os serviços terrestres em
conexão com o transporte, um fato hoje mais claramente percebido na Grã-
Bretanha do que nunca antes. Em relação ao poder terrestre, vimos que os
homens montados a camelos e cavalos da história passada não conseguiram
manter impérios duradouros por falta de de efetivo demográfico adequado,
e que a Rússia foi o primeiro inquilino do heartland com uma força humana
realmente ameaçadora.
Mas poder humano não implica apenas uma contagem de pessoas,
embora se todos os outros fatores forem iguais, o número de pessoas é
decisivo. O poder do Homem [manpower] também não depende meramente
do número de seres humanos eficientes, embora saúde e habilidades são de
primeira importância. O poder do Homem – o poder dos homens – é
também, nestes dias modernos, muito fortemente dependente da
organização ou, em outras palavras, do going concern, da preocupação
constante com o funcionamento social. A kuttur alemã, a filosofia dos
"objetivos e meios", tem sido perigosa para o resto do mundo porque
reconhece ambas as realidades, geográficas e econômicas, e pensa apenas
em termos delas.
A economia "política" da Grã-Bretanha e a economia "nacional" da
Alemanha vieram da mesma fonte, o livro de Adam Smith. Ambas aceitam
como alicerces a divisão do trabalho e a competição para fixar os preços
pelos quais os produtos do trabalho serão trocados. Ambas, portanto, podem
reivindicar estar em harmonia com a tendência dominante do pensamento
no século XIX, conforme expresso por Darwin. Elas diferem apenas na
unidade de competição. Na economia política, a unidade é o indivíduo ou a
empresa; na economia nacional tende a ser o Estado em oposição aos
demais Estados. Este foi o fato apreciado por List, o fundador da economia
nacional alemã, sob cujo impulso o zollverein prussiano, ou união
aduaneira, foi ampliado até incluir a maior parte da Alemanha. Os
economistas políticos britânicos deram as boas-vindas ao zollverein,
considerando-o como uma parcela de seu próprio livre comércio. Na
verdade, ao eliminar a competição em maior ou menor grau para o exterior,
a economia nacional almeja substituir a competição de meros homens ou
empresas por grandes organizações nacionais. Em uma palavra, os
economistas nacionais pensam dinamicamente, mas os economistas
políticos em geral pensam estaticamente.
Este contraste de pensamento entre kultur e democracia, a princípio
não foi de grande significado prático. Nos anos cinquenta e sessenta do
século passado, os alemães estavam em suas guerras. Os fabricantes
britânicos eram o cão superior e, como Bismarck disse uma vez, o livre
comércio é a política do mais forte. Foi somente após 1878, data da
primeira tarifa científica, que a espada econômica da Alemanha foi
desembainhada. Essa data marca aproximadamente uma grande mudança
nas artes do transporte para a qual nem sempre se atribui a devida
importância. Foi então que as ferrovias construídas pelos britânicos na
América, e navios britânicos construídos em aço no Atlântico, começaram a
transportar cargas a granel.
O fato novo do transporte a granel – trigo, carvão, minério de ferro,
petróleo –, se pensarmos sobre isso a partir do oeste do Canadá, é que uma
comunidade de um milhão de pessoas cria alimentos à base de cereais para
vinte milhões, e que os outros dezenove milhões estão à distância – no leste
do Canadá, leste dos Estados Unidos e Europa. Antes de 1878, cargas
relativamente leves de commodities como algodão, madeira e carvão eram
transportadas pelo oceano em um navios a vela, mas todo o volume das
cargas do mundo era insignificante se medirmos pelos padrões de hoje. A
Alemanha entendeu que sob estas novas condições, era possível aumentar o
efetivo demográfico onde bem pretendesse, inclusive na própria Alemanha,
com alimentos e matérias-primas importados, para fins estratégicos.
Até então os alemães, assim como os britânicos, emigraram
livremente, mas os alemães, não menos do que as populações britânicas nos
novos países, aumentaram a demanda por produtos manufaturados
britânicos. Então o número de ingleses cresceu em casa, bem como nas
colônias e nos Estados Unidos. Cobden e Bright previram isso; eles
pretendiam ter alimentos baratos e matérias-primas baratas para fazer
exportações baratas. Mas o resto do mundo viu nosso livre comércio como
um método de império em vez de liberdade; o reverso da medalha foi
apresentado para eles: eles deveriam ser lenhadores e marceneiros para a
Grã-Bretanha. Os ilhéus britânicos, infelizmente, cometeram o erro de
atribuir sua prosperidade principalmente às importações livres, ao passo que
foi principalmente devido ao seu going concern, sua organização e
preocupação permanentes, e o fato de que ela havia sido iniciada antes de
ter concorrentes. Era porque eles eram "os fortes" em 1846, que poderiam
adotar o livre comércio com vantagem imediata e sem desvantagem séria
imediata.
A partir de 1878, a Alemanha começou a aumentar sua força de
trabalho, estimulando o emprego em casa. Um de seus métodos era a tarifa
científica, uma peneira através da qual as importações eram "peneiradas",
de modo que as mercadorias deveriam conter um mínimo de mão de obra e,
principalmente, de mão de obra qualificada. Mas todos outros meios foram
utilizados com uma preocupação permanente visando uma grande produção
nacional. As ferrovias eram comprados pelo Estado e com tarifas
preferenciais concedidas. Os bancos eram colocado sob o controle do
Estado por um sistema de participação acionária, e o crédito foi organizado
para a indústria. Cartéis e associações reduziram o custo de produção e de
distribuição. O resultado foi que sobre o ano de 1900 a emigração alemã,
que tinha estado em constante queda, cessou completamente, exceto que
logo em seguida foi equilibrada pela imigração.
A ofensiva econômica foi aumentada por métodos de expansão ao
exterior. As linhas de navegação foram subsidiadas, e os bancos foram
usados como postos avançados de comércio em cidades estrangeiras.
Combinações internacionais foram organizadas sob controle alemão, em
grande parte com a ajuda dos judeus de Frankfurt. Finalmente, em 1905, a
Alemanha impôs esse sistema de tratados comerciais a sete nações vizinhas,
o que significou a sujeição econômica destas. Uma dessas nações foi a
Rússia, então fraca pela guerra [com o Japão] e pela revolução [os sovietes
de 1905]. Esses tratados teriam levado dez anos para serem elaborados –
uma característica eflorescência da kultur!
O rápido crescimento alemão foi um triunfo da organização ou, em
outras palavras, do estratégico, da mentalidade de "objetivos e meios". As
ideias científicas fundamentais foram, a maioria delas, importadas, e a
alardeada educação técnica alemã era apenas uma forma de organização.
Todo o sistema foi baseado em uma compreensão clara da realidade do
going concern, da preocupação permanente em formar e organizar a mão-
de-obra.
Mas o going concern é um fato implacável, pois o primeiro atributo
político do animal homem é a fome. Nos dez anos antes da guerra, a
Alemanha estava crescendo a uma taxa de um milhão de almas por ano – a
diferença entre nascimentos e óbitos. Isso significava que o going concern
produtivo não apenas deve ser mantido, mas que seu "indo" [sua dinâmica]
deve ser constantemente acelerado. No decorrer de quarenta anos, a fome
da Alemanha por mercados havia se tornado uma das realidades mais
terríveis do mundo. O fato de que o tratado comercial com a Rússia estava
para ser renovado em 1916 provavelmente não estava desconectado da
força militar; a Alemanha exigia, a todo custo, um eslavo subordinado para
fornecer a ela comida e para comprar suas mercadorias.
Os homens de Berlim que, em 1914, puxaram a alavanca e
libertaram a inundação represada de mão de obra alemã, até onde chegam
nossas informações, que foi analisada e corrigida por intensa investigação,
têm uma responsabilidade para com a geração infeliz que teve que lutar
contra essa terrível ameaça. Mas antes a história de sua culpa será
compartilhada por aqueles que, nos anos anteriores, estabeleceram o going
concern. Neste assunto, estadistas britânicos e o povo britânico não serão
considerados como totalmente inocentes.
A teoria do livre comércio diz que as diferentes partes do mundo
devem se desenvolver com base em suas instalações naturais, e que
diferentes comunidades devem se especializar e prestar serviço umas às
outras trocando seus produtos livremente. Acreditava-se firmemente que o
livre comércio assim feito conduziria à paz e a fraternidade entre os
homens. Essa pode ter sido uma ideia sustentável na época de Adam Smith
e por uma geração ou duas depois. Mas, as condições modernas do going
concern, ou em outras palavras, a preocupação em acumular força
financeira e industrial, é capaz de superar a maioria das vantagens naturais.
O going concern de Lancashire, a indústria do algodão, é um exemplo disso
em grande escala. Deve manter uma estreita diferença de preço em linhas
baratas de exportação ou perderá um mercado, e assim um grande going
concern pode se dar ao luxo de cortar preços. Portanto, Lancashire manteve
sua indústria de algodão por um século contra todos os concorrentes, apesar
das fontes da matéria-prima e dos principais mercados para seus produtos
estarem em partes distantes do mundo. Carvão e clima úmido são suas
únicas vantagens naturais, mas eles podem ser encontrados em outros
lugares. A indústria de algodão de Lancashire continua em virtude do
momento.
O resultado de toda especialização, entretanto, é tornar o
crescimento desequilibrado. Quando o estresse começou depois de 1878, a
agricultura britânica declinou, embora a indústria britânica continuasse a
crescer. Mas, atualmente, desenvolveu-se desequilíbrio mesmo dentro da
indústria britânica; os ramos de algodão e construção naval ainda crescem,
mas os ramos químico e elétrico não aumentam proporcionalmente. Não foi
apenas a penetração alemã que deliberadamente roubou nossas indústrias-
chave, mas o funcionamento normal da especialização, em um mundo que
estava se tornando industrialmente ativo fora da Grã-Bretanha, estava
fadado a produzir alguns desses contrastes. A Grã-Bretanha se desenvolveu
amplamente naquelas indústrias nas quais ela gradualmente concentrou seus
esforços. Portanto, ela, não menos que a alemã, tornou-se "faminta por
mercado", e por mais extenso que fosse o mundo inteiro, não havia mercado
suficiente para suas próprias linhas especiais.
A Grã-Bretanha não tinha tarifas disponíveis como base de
negociação; a esse respeito, ela ficou nua diante do mundo. Portanto,
quando ameaçada em algum mercado vital, ela só poderia devolver com
ameaças de poder marítimo. [Richard] Cobden provavelmente previu isso
em seus últimos dias, quando declarou a necessidade de uma forte marinha
britânica, mas a doutrina da escola de Manchester estava tão persuadida de
que o comércio livre contribuía para a paz que deram pouca atenção aos
requisitos industriais especiais do poder marítimo; a seu ver qualquer
comércio era igualmente bom, desde que fosse lucrativo. A Grã-Bretanha
ainda estava lutando por seus mercados na América do Sul quando sua frota
manteve a doutrina Monroe contra a Alemanha no incidente de Manilha, e
pelo mercado indiano quando sua frota manteve a Alemanha à distância
durante o guerra no sul da África, e para a porta aberta para seu mercado na
China quando sua frota apoiou o Japão na guerra contra a Rússia. Será que
Lancashire não percebeu que foi pela força que a importação gratuita de
algodões foi imposta à Índia? Sem dúvida, a Índia lucrou muito com o
equilíbrio propiciado pelo domínio britânico, e nenhum grande peso de
culpa precisa repousar na consciência de Lancashire nesta matéria; mas o
fato é que repetidamente, tanto dentro como fora do império, Lancashire,
amante da paz e do livre comércio, foi apoiada pela força do Império. A
Alemanha tomou nota desse fato e construiu sua frota, e essa frota existindo
até o fim da guerra, neutralizou o poderoso esforço britânico que poderia ter
sido disponível para apoiar o nosso exército na França.
O ímpeto do going concern é muito difícil de mudar numa
democracia. A única esperança do futuro é que, como resultado da lição
desta guerra, mesmo a democracia pode aprender a ter uma visão mais
ampla. Em um comunidade economicamente desequilibrada, a maioria está
no lado mais desenvolvido e é a maioria que escolhe os governantes numa
democracia. Os interesses adquiridos, como consequência, tendem a se
reproduzir cada vez mais profundamente: ambos interesses – do trabalho,
em ganhar e comprar de maneiras particulares, e do capital, em obter lucro
dessas mesmas maneiras; na média há nada a escolher entre trabalho e
capital a esse respeito; ambos têm uma visão curta.
Mas há a mesma dificuldade de mudar a preocupação permanente
em
uma autocracia, embora essa dificuldade seja sentida de forma diferente. A
maioria em uma democracia não mudará sua rotina econômica, e a
autocracia muitas vezes não ousa fazer isso. A Alemanha sob o Kaiser
visava um império mundial, e para alcançá-lo recorreu aos apropriados
expedientes econômicos para aumentar sua força de trabalho; atualmente
ela não ousa mudar sua política de muito sucesso, mesmo quando isso a
conduzia à guerra, pois a alternativa seria a revolução. Como Frankenstein,
ela havia construído um monstro incontrolável.
Em minha opinião, tanto o livre comércio do tipo laissez-faire
quanto a proteção do tipo predatório são as políticas do império, e ambas
contribuem para a guerra. Os britânicos e os alemães ocuparam assentos em
trens expressos na mesmo linha, mas em direções opostas. Provavelmente
por volta de 1908 uma colisão era inevitável; chega um momento em que os
freios não têm mais
tempo de funcionar. A diferença na responsabilidade britânica e alemã pode
talvez ser assim expressa: o maquinista britânico começou primeiro, e
correu descuidadamente, negligenciando os sinais, enquanto o maquinista
alemão blindou deliberadamente o seu trem para suportar o choque, o
colocou na linha de frente para a britânica e, no último momento, abriu suas
válvulas de aceleração.
O going concern é, atualmente, a grande realidade econômica; ele
foi usada criminalmente pelos alemães e cegamente pelos britânicos. Os
bolcheviques devem ter esquecido que ele existia.
 
 
 
Capítulo Seis
A LIBERDADE DAS NAÇÕES
 
Os aliados venceram a guerra. Mas como ganhamos? A realidade
está cheia de avisos. Fomos salvos, em primeiro lugar, pela prontidão da
frota britânica, e pela decisão que a enviou para o mar; assim, as
comunicações britânicas com a França foram protegidas. Esta prontidão e
decisão foram o resultado do hábito britânico de olhar para a única coisa
essencial no meio de muitas coisas que deixamos de lado; é o caminho do
amador bem sucedido. Fomos salvos, em segundo lugar, pela maravilhosa
vitória do gênio francês na [batalha do] Marne, preparado por muitos anos
de profunda reflexão na grande École Militaire francesa; em outros
aspectos, o exército francês não estava tão pronto quanto poderia estar,
exceto na coragem. Fomos salvos em terceiro lugar pelo sacrifício – não foi
menos que isso – do antigo exército profissional britânico em Psyres, um
nome que ficará na história ao lado das Termópilas. Fomos salvos, em
suma, por um gênio e heroísmo excepcionais como resultado de uma recusa
média em prever e preparar: ambos como testemunhos eloquentes da força
e da fraqueza da democracia.
Então, por dois anos a luta se estabilizou e se tornou uma guerra de
trincheiras em terra e de submarinos no mar, uma guerra de atrito na qual o
tempo contava a favor da Grã-Bretanha e contra a Rússia. Em 1917, a
Rússia colapsou e então quebrou. A Alemanha conquistou no leste europeu,
mas adiou a sujeição total dos eslavos a fim de primeiro derrubar seus
inimigos. A Europa ocidental teve que pedir ajuda os Estados Unidos, pois
ela sozinha não teria sido capaz de reverter a situação na parte leste do
continente. Mais uma vez, foi necessário tempo, porque os Estados Unidos,
a terceira das maiores democracias, estava ainda menos preparado do que as
outras duas para ir à guerra.
E o tempo foi comprado pelo heroísmo dos marinheiros britânicos,
o sacrifício da navegação mercante britânica, e a resistência dos franceses e
soldados britânicos contra uma ofensiva na França que quase os esmagou.
Em resumo, nós mais uma vez atuamos com um insight correto frente à
organização alemã, e finalmente acabamos ganhando. Na décima primeira
hora, a Grã-Bretanha aceitou o princípio do comando estratégico único,
dando mais uma vez oportunidade para a Ecole Militaire.
Mas todo esse registro de lutas oceânicas e na Europa ocidental, tão
esplêndido e ainda assim tão humilhante, tem muito pouca relação direta
com o cenário internacional agora reassentado. Não houve disputa imediata
entre a Europa oriental e Europa ocidental; passou o tempo em que a França
teria atacado a Alemanha para recuperar a Alsácia e a Lorena. A guerra,
nunca nos esqueçamos, começou como um esforço alemão para subjugar os
eslavos que estavam em revolta contra Berlim. Todos nós sabemos que o
assassinato do austríaco (alemão) arquiduque na Bósnia eslava foi um
pretexto, e que o austríaco (alemão) ultimato à Sérvia eslava foi o método
de forçar a guerra. Mas não nos cansamos de repetir que esses eventos
foram o resultado de um antagonismo fundamental entre os alemães, que
desejavam ser senhores na Europa oriental, e os eslavos, que se recusaram
se submeter a eles. Tivesse a Alemanha optado por ficar na defensiva em
sua curta fronteira em direção à França, e se ela tivesse jogado sua força
principal contra a Rússia, não é improvável que o mundo estivesse
nominalmente em paz hoje, mas assombrado por uma Europa oriental
alemã no comando de todo o heartland. Os povos insulares britânicos e
americanos não teriam percebido o perigo estratégico até que fosse tarde
demais.
A menos que se crie problemas para o futuro, não se pode agora
aceitar qualquer resultado da guerra que não acabe finalmente com a
questão entre alemães e eslavos na Europa oriental. Deve-se ter um
equilíbrio entre alemães e eslavos, com verdadeira independência de cada
um. Não podemos nos dar ao luxo de deixar uma situação de conflito na
Europa oriental e no heartland, pois ofereceria espaço para ambição no
futuro – e escapamos por muito pouco do perigo recente.
Um general romano vitorioso, ao entrar na cidade, em meio a todo o
esplendor de um “trinfo” de virar a cabeça, tinha atrás dele na carruagem
um escravo que sussurrou em seu ouvido que ele era mortal. Quando nossos
estadistas estão conversando com o inimigo derrotado, algum arejado
querubim deve sussurrar para eles de vez em quando este ditado:
Quem governa a Europa oriental comanda o heartland:
Quem governa o heartland comanda a Ilha-Mundo:
Quem governa o Mundo-Ilha comanda o mundo.
 
*****
 
O visconde Gray certa vez atribuiu todo o curso trágico da recente
violação do direito público da Europa quando a Áustria rasgou o Tratado de
Berlim ao anexar a Bósnia e Herzegovina em 1908. Sem dúvida foi um
marco na história, mas a ocupação original dessas duas províncias eslavas
da Turquia pela Áustria em 1878, sob aquele próprio Tratado de Berlim,
talvez estivesse mais perto da fonte. Significou, para a mente eslava, que o
alemão prussiano estava por trás do austríaco no seu avanço sobre os
territórios pelos quais os eslavos haviam lutado contra os turcos. A Guerra
de 1876, devemos lembrar, começou com um levante dos eslavos da Bósnia
e Herzegovina contra a Turquia, e se tornou europeia por causa da simpatia
dos vizinhos eslavos da Sérvia e Montenegro, que os impeliu a também
lutar contra os turcos. Depois de 1878, seguiu-se alguns anos de hesitação
russa enquanto a Alemanha estava começando a construir seu poder
humano [man-power]. Então, em 1895, veio a aliança entre o czar e a
República Francesa. A França precisava de um aliado por causa da ferida
alsaciana ainda aberta em seu lado; A Rússia precisava de um aliado porque
temia o valentão alemão ao seu lado. Rússia e França não eram vizinhos, de
modo que a incompatibilidade entre democracia e autocracia não foi, nessas
circunstâncias, um impedimento suficiente para obstar essa aliança. Era, no
entanto, uma medida necessária para que a Rússia se mantivesse em pé.
Em 1905, quando a Rússia estava fraca após a guerra contra o Japão
e sua primeiro revolução, a Alemanha impôs-lhe uma tarifa punitiva. Em
consequência, em 1907 a Rússia foi tão longe a ponto de aceitar um
entendimento até com a Grã-Bretanha, sua rival de duas gerações e aliada
do seu último inimigo, o Japão. Não temos, novamente, evidências sobre a
tensão que existia na Rússia, especialmente se nos lembrarmos da
influência alemã na sua corte e na burocracia.
Portanto, quando em 1908 a Áustria empreendeu essa nova ação
agressiva na Bósnia e Herzegovina, à qual o visconde Gray concedeu tanta
importância, ela desferiu um golpe onde já havia hematomas. A pequena
vizinha Sérvia protestou, e a irmã mais velha Rússia a apoiou, pois
significava o fechamento definitivo da porta para as aspirações históricas de
nacionalidade sérvia, orgulhosamente detida desde a grande derrota de
Kosovo no século XIV. Mas o Kaiser de Berlim vestiu sua "armadura
brilhante" em Viena, e balançou seu "punho fechado" no rosto do czar em
Petrogrado. Mais alguns anos desconfortáveis, e então, em 1912, veio a
Primeira Guerra dos Balcãs, quando os eslavos dos Balcãs se uniram e
derrotaram o exército turco treinado pela Alemanha. Em 1913, os eslavos
búlgaros, em vez de submeter a disputa a respeito da divisão do território
retirado da Turquia para a arbitragem do Czar, como havia sido estabelecido
pelo Tratado da Aliança dos Balcãs, foram persuadidos por intriga alemã a
atacar os eslavos sérvios. A Segunda Guerra Balcânica se iniciou, na qual
os búlgaros foram derrotados devido à intervenção dos romenos, e o
Tratado de Bucareste assinalou um severo choque à ambição alemã, e deu
uma nova esperança aos eslavos subjugados pela Áustria.
O notável relatório enviado de Berlim a Paris, três meses após o
Tratado de Bucareste, por M. Jules Cambon, o embaixador da França, deixa
claro que a Alemanha decidiu então obter por força militar, tão logo
surgisse uma oportunidade, a posição que ela falhou em vencer
vicariamente [isto é, através dos búlgaros]. O acúmulo de evidências mostra
que, menos de uma semana após o assassinato do arquiduque Franz
Ferdinand, a Alemanha decidiu aproveitar esse pretexto para forçar a
questão. A Áustria tentou impor termos de punição tão duros à Sérvia por
sua suposta cumplicidade no assassinato, que nenhuma nação livre poderia
aceitar, e quando a Sérvia tinha ido ao limite máximo da concessão, e até
mesmo a Áustria hesitou, a Alemanha se apressou em afirmar sua disputa
na Rússia com um ultimato para todas as nações eslavas. Tivesse a Rússia
se submetido, como em 1908, e ela teria aceitado a renovação do tratado
com a Alemanha em 1916 sem outra opção exceto uma rendição à
escravidão econômica. Tudo isso é uma história familiar, mas é necessário
te-la em mente se quisermos apreciar o fato de que a chave para o
reassentamento está no leste [europeu], embora a luta decisiva tenha sido
travada no ocidente.
Como é que a Alemanha cometeu o duplo erro de invadir a França,
e de invadi-la através da Bélgica? A Alemanha conhecia a fraqueza da
Rússia; não havia ilusão sobre o "rolo compressor" para com ela. Sua
escolha da ofensiva mais difícil deve ter sido na suposição de que a
provavelmente as democracias britânica e norte-americana estavam
adormecidas. Ela imaginou o super-homem alemão para governar o mundo,
e pensou ter visto um atalho para este objetivo no lugar do caminho mais
longo através do heartland, cujo controle cairia para ela inevitavelmente,
podendo assim privar os ilhéus de sua "cabeça de ponte" na França. Mas
havia outra e forte razão para essa atitude. Ela estava nas garras do destino
econômico. Lutava contra os eslavos por mercados, por matérias primas e
por territórios mais amplos para cultivar; um milhão de pessoas estavam
sendo adicionadas anualmente à sua população. Mas para desenvolver essa
poderosa necessidade para com seu efetivo populacional, tão forte para
conquistas desde que mantido seu crescimento, mas tão insaciavelmente
faminto, ela seguiu Hamburgo70 e tudo que Hamburgo representava para as
indústrias domésticas e para a aventura ao exterior. Hamburgo teve seu
próprio impulso, e não era para o leste. Assim, a estratégia alemã foi
influenciada pela necessidade política. O resultado foi que Berlim cometeu
um erro fundamental; lutou em duas frentes, sem decidir totalmente em
qual delas pretendia vencer. Você pode atacar os dois flancos do seu
inimigo, a direita e a esquerda, mas, a menos que sua força seja suficiente
para os aniquilar, você deve decidir de antemão qual golpe deve ser a finta e
qual será o verdadeiro ataque. Berlim não decidiu entre seus objetivos
políticos – Hamburgo e o domínio ultramarino, ou Bagdá e o heartland – e,
portanto, seu objetivo estratégico também era incerto.
 
*****
 
O erro alemão, sob um destino irresistível, nos deu a vitória, mas é
essencial que devemos focar nosso pensamento no reassentamento dos
assuntos da Europa oriental e do heartland. Se nós aceitarmos qualquer
coisa menos do que uma solução completa para a questão oriental em seu
sentido mais amplo, teremos ganhado tão somente uma trégua, e nossos
descendentes se encontrarão sob a necessidade de novamente por em
marcha seu poder para o cerco do heartland. A essência do reassentamento
deve ser territorial, pois na Europa de leste, e ainda em maior medida no
restante do heartland, temos regiões cujo desenvolvimento econômico
apenas começou. A menos que você olhe para o futuro, o crescimento dos
povos desequilibrará o seu assentamento.
Sem dúvida que se pode dizer que a mentalidade alemã será alterada
pela derrota. Apenas um homem otimista, no entanto, é que pode confiar na
mudança na mentalidade de qualquer nação para fundar a futura paz do
mundo. Olhe para trás, para o velho Froissard71 ou para Shakespeare, e
você vai encontrar seu inglês, escocês, galês e francês com todas suas
características essenciais já fixadas. O prussiano é um definitivo tipo de ser
humano com seus pontos bons e ruins, e seremos sábios se agirmos na
suposição de que sua espécie se manterá fiel ao seu tipo. Por maior que seja
a derrota que no final possamos ter infligido ao nosso principal inimigo,
iremos apenas anular nossas próprias realizações se não reconhecermos no
alemão do norte uma das três ou quatro raças mais varonis da humanidade.
Mesmo com a revolução na Alemanha72, não tenhamos tanta certeza
em relação ao seu efeito final. As revoluções alemãs de 1848 foram quase
cômicas pela sua futilidade. Desde Bismarck, só houve um alemão
chanceler com visão política, e ele – Von Bülow – declarou em seu livro
sobre a Alemanha imperial que "o alemão sempre conquistou seu mais
importantes feitos sob uma orientação forte, constante e firme”. O fim da
presente desordem pode ser apenas uma nova organização implacável, e os
organizadores implacáveis não param quando alcançam os objetivos que, no
início, colocaram diante deles.
Será respondido, é claro, que embora a mentalidade prussiana
permaneça inalterada, e embora uma democracia prussiana realmente
estável será lenta em seu desenvolvimento, que a Alemanha, de qualquer
maneira, está tão empobrecida que não poderá fazer mal durante a maior
parte deste século. Mas nessa ideia não existe uma leitura errada da real
natureza da riqueza e pobreza nas condições modernas? Não é a capacidade
produtiva que agora conta ao invés de riqueza fixa? Não devemos todos nós
– e agora, em certo grau, até mesmo os norte-americanos – gastar nosso
capital fixo, e não devemos todos nós, incluindo os alemães, estarmos
encetando novamente uma corrida produtiva praticamente do zero? O
mundo ficou surpreso na rapidez com que a França se recuperou de seu
desastre de 1870, mas o poder da produção industrial na época não era nada
comparado com o que é agora. Um cálculo sóbrio em relação à Grã-
Bretanha leva à conclusão que seu maior poder produtivo, devido à
reorganização e os novos métodos forçados pela guerra, deve em breve
exceder em muito os juros e os fundo de amortecimento até mesmo de suas
vastas dívidas de guerra. Sem dúvida que temos as resoluções de Paris, e
podemos negar a uma Alemanha refratária as matérias-primas com as quais
ela poderá competir conosco. Se recorrermos a esse método, entretanto,
adiaremos a Liga das Nações, que continuará a ser uma liga dos aliados.
Além disso, existe de fato a certeza de que venceríamos em um cenário
econômico de guerra? Podemos prejudicar a Alemanha, sem dúvida, mas
uma desvantagem pode apenas conduzir a um maior esforço. Napoleão não
limitou o exército prussiano depois da vitória em Iena para 42.000 homens,
e não foi o esforço prussiano para contornar essa proibição que originou
todo o moderno sistema de exércitos nacionais de serviço curto? Guerra
econômica, com a Alemanha
explorando os eslavos e ocupando o heartland, iria no final apenas enfatizar
a distinção entre o continente e as ilhas, e entre o poder terrestre e o
marítimo, e ninguém que contempla a unidade do Grande Continente sob a
ferrovia nas modernas condições pode ver despreocupadamente a
preparação para a guerra mundial que seria inevitável, ou prever o resultado
final dessa guerra.
Nós, as nações ocidentais, incorremos em tantos enormes sacrifícios
neste conflito que não podemos confiar em nada do que possa acontecer em
Berlim; em qualquer caso, devemos estar seguros. Em outras palavras, nós
devemos resolver a questão entre alemães e eslavos, e devemos
providenciar que a Europa oriental, como a Europa ocidental, seja dividida
em nações independentes. Se fizermos isso, não vamos apenas reduzir a
Alemanha à sua posição adequada no mundo, uma posição grande o
suficiente para qualquer país isolado, como também teremos criado os pré-
requisitos para uma Liga das Nações.
Alguns imploram que, se infligirmos uma paz decisiva, deixaremos
tal sentimentos amargos que nenhuma Liga das Nações viável poderá
vingar. Eles tinham em mente, é claro, os resultados da anexação da Alsácia
em 1871. Mas as lições da história não devem ser apreendidas apenas de
um único ângulo. A grande guerra civil norte-americana foi travada até o
fim, e hoje os sulistas são tão leais à União quanto os nortistas; as duas
questões, a da escravidão negra e a do direito de determinados Estados se
separarem da Federação, foram finalmente decididas e deixaram de ser
causas de briga. A Guerra dos Bôeres foi travada até o fim, e hoje o general
Smuts é um membro honorário do Gabinete Britânico. A guerra de 1866,
entre a Prússia e a Áustria, foi travada até o fim, e dentro de uma dúzia de
anos, a Áustria formou a dupla aliança com a Prússia. Se não garantírmos
os resultados completos da vitória, encerrando a questão entre o alemão e o
eslavo, então deixaremos um mal-estar que não será baseado no
desvanecimento da memória de uma derrota, mas sim na irritação cotidiana
de milhões de pessoas.
 
*****
 
A condição de estabilidade no rearranjo territorial do leste da
Europa é que a divisão deve ser em três e não em dois sistemas de Estados.
É uma necessidade vital que haja uma faixa de Estados entre a Alemanha e
a Rússia73. Os russos, por um lado, durante uma ou duas gerações, devem
permanecer irremediavelmente incapazes de resistir à penetração alemã sob
qualquer organização social, exceto a de uma autocracia militar, a menos
que eles sejam protegidos de um ataque direto. O campesinato russo não
sabe ler; eles obtiveram a única recompensa que procuravam quando
tomaram partido dos revolucionários das cidades, e agora como pequenos
proprietários, eles mal sabem como administrar suas próprias terras. A
classe média sofreu tanto que estava pronta para acatar ordens até mesmo
dos odiados alemães. Quanto aos operários das cidades, apenas uma
pequena minoria da população russa – mas por causa de sua relativa
educação e de seu comando dos centros de comunicação – a kultur sabe
bem como "influenciá-los". Na opinião de quem conhece melhor a Rússia,
um governo autocrático de algum tipo é quase inevitável se ela depender de
sua própria força para lidar com os alemães.
Os eslavos e as nações afins, que habitam a fronteira entre os
alemães e os russos, entretanto, são de um calibre muito diferente.
Considere os checos: eles não resistiram à prova contra o bolchevismo? E
não afirmaram a sua capacidade de nação em condições espantosas frente à
Rússia? Não mostraram a mais extraordinária capacidade política na criação
e na manutenção da Boêmia eslava, embora cercada de três lados pela
Alemanha e no quarto lado pela Hungria? Eles também não fizeram da
Boêmia uma colmeia da indústria moderna e uma sede de aprendizagem
moderna? De qualquer forma, não lhes falta vontade de ordem e de
independência.
Entre o Báltico e o Mediterrâneo, você tem esses sete povos não
alemães, cada um na escala de um Estado europeu do segundo ranking – os
poloneses, os boêmios (tchecos e eslovacos), os húngaros (magiares),
eslavos do sul (sérvios, croatas e eslovenos), os romenos, os búlgaros e os
gregos. Destes, dois estão entre nossos presentes inimigos, os magiares e os
búlgaros. Mas os magiares e os búlgaros são cercados pelos outros cinco
povos, e nenhum deles será poderoso para causar dano sem o apoio
prussiano.
Vamos contar esses sete povos. Primeiro temos os poloneses, uns
vinte milhões deles, com o rio Vístula como sua hidrovia arterial, e as
cidades históricas de Cracóvia e Varsóvia. Os poloneses são pessoas mais
civilizadas do que os russos, mesmo naquela parte da Polônia que está
ligada à Rússia; na província prussiana de Posen, eles têm aproveitado as
vantagens da kultur, sem algumas das degradações desta incorporadas no
mestre alemão. Sem dúvida que existem fortes correntes litigantes entre os
poloneses, mas agora que a aristocracia polonesa da Galiza74 não é mais
subornada pelo trono de Habsburg para oprimir os rutenos da Galiza
oriental, pelo menos um motivo de litígio, um interesse particular, deve ter
desaparecido.
De alguma forma, a nova Polônia deveria ter acesso ao mar Báltico,
não só porque isso é essencial para sua independência econômica, mas
também porque é desejável ter navios poloneses no Báltico, que é um mar
estrategicamente fechado do heartland e, além disso, deveria haver ser uma
barreira territorial completa entre a Alemanha e a Rússia. Infelizmente, a
província da Prússia oriental, principalmente de fala alemã e junker por
sentimento, deveria ser separada da Alemanha por alguma faixa territorial
da Polônia indo para o mar. Por que não devemos contemplar um
intercâmbio de povos entre a Prússia a leste do Vístula e o Posen polonês?75
Durante esta guerra, empreendemos coisas muito mais vastas, ambos por
meio de transporte e também de organização. No passado, para lidar com
tais dificuldades, os diplomatas recorreram a todas formas de "servidões",
como diriam os advogados fundiários. Mas o direito de passagem sobre a
propriedade de terceiros geralmente se torna inconveniente e leva a
disputas. Não valeria a pena para a humanidade arcar com o custo de um
remédio radical, neste caso, um remédio justo e até generoso para com
indivíduos em todos os aspectos? Cada proprietário deveria ter a opção de
trocar sua propriedade e manter sua nacionalidade, ou de reter sua
propriedade e mudar a sua nacionalidade. Mas se ele selecionar esta última
alternativa, não se deve criar direitos especiais em relação a escolas e outros
privilégios sociais. Os Estados Unidos nas suas escolas impõe severamente
a língua inglesa para todos os seus imigrantes. Porque os conquistadores
dos velhos tempos fizeram seu trabalho impiedosamente, países como
França e Inglaterra são hoje homogêneas e livres dessa mistura de rostos
que tornaram o Oriente Próximo uma praga para a humanidade. Por que não
deveríamos usar nossos modernos poderes de transporte e organização para
alcançar a mesma condição feliz de negócios – justa e generosamente? As
razões para fazer isso neste caso específico são de longo alcance: a região
polonesa Posen disporia de uma baía muito ameaçadora na fronteira
oriental da Alemanha, ao passo que uma Prússia oriental alemã seria um
trampolim para a penetração alemã na Rússia.76
Os próximos entre nossos povos "fronteiriços" são os tchecos e os
eslovacos, até recentemente cortados pela linha que separa a Áustria da
Hungria, já que os poloneses foram separados pelas fronteiras entre a
Rússia, a Prússia e a Áustria. Os tchecos e eslovacos somados somam cerca
de nove milhões; eles constituem um dos pequenos povos mais varonis da
Europa, e eles são equipados com um país notável, oferecendo carvão,
minerais, madeira, energia hídrica, milho e vinho, e centrado na linha
principal da ferrovia do Báltico e Varsóvia a Viena e o Adriático.
Então chegamos aos eslavos do sul – Iugo significa sul – em suas
três tribos de eslovenos, croatas e sérvios. Seu número é de cerca de doze
milhões. Eles também foram separados pela linha entre Áustria e Hungria, e
se dividem entre as igrejas ricais latina e grega. Para quem conhece os
Balcãs, é um testemunho eloquente da tirania austro-húngara que eslovenos
e criatas não tenham feito o Pacto de Corfu com os sérvios ortodoxos
gregos. Os eslavos do sul teriam acesso aos portos dalmatianos do
Adriático, e uma das principais ferrovias do mundo percorrerá o vale Save
até Belgrado, e depois através do “corredor” de Morava e Maritza até
Constantinopla.
A Romênia é o próximo Estado deste oriente médio da Europa. O
foco natural da Romênia é o grande bastião dos Cárpatos da Transilvânia,
com vales frutíferos, montanhas metálicas, poços de petróleo e esplêndidas
florestas. O campesinato da Transilvânia é romeno, mas uma "privilegiada"
minoria de magiares e "saxões" tornaram-se governantes. Aqui novamente
não deve ser um feito totalmente impossível para o estadista providenciar
uma troca equitativa de casas, ou uma aceitação total da nacionalidade
romena, mesmo porque devemos admitir que a hostilidade entre saxões e
romenos não é tão aguda quanto aquele entre o prussiano e o polonês.
 
Fig. 31 – A camada média de Estados entre a Alemanha e a
Rússia. Muitas questões de fronteiras ainda devem ser
determinadas
Image

 
 
O resto da Romênia, o reino atual, é um solo gelado a leste e ao sul
da Transilvânia, regado pelos rios transilvânicos. Este fértil talude é uma
das principais fontes de petróleo, trigo e milho na Europa; os doze milhões
de romenos serão um povo rico. Em Galatz, Braila e Constanza existem
portos no mar Negro, e será de interesse primordial para todos os povos
livres que haja
navios romenos naquele mar, pois é naturalmente uma água fechada do
heartland. Será que nunca haverá o tempo em que a Liga das Nações será
capaz de olhar os mares Báltico e Mar Negro sem preocupação com um
militarismo todo poderoso controlando o heartland? Civilização consiste no
controle da natureza e também de nós mesmos, e a Liga das Nações, como
um órgão supremo da humanidade unida, deve vigiar de perto o heartland e
seus possíveis organizadores pela mesma razão que a vigilância de Paris e
Londres pela polícia é considerado um problema nacional e não apenas uma
preocupação municipal.
Os gregos foram os primeiros de nossos sete povos desse camada
média a alcançar sua emancipação do controle alemão nesta guerra pela
simples razão que eles estão fora do heartland e, portanto, acessíveis ao
poder marítimo. Mas, nestes dias de submarinos e aviões, a posse da Grécia
por uma grande potência do heartland provavelmente levaria com ele o
controle da Ilha-Mundo; a história da Macedônia seria reencenada.
Voltemos agora aos magiares e búlgaros. A verdade é que ambos
foram explorados pelos prussianos, embora não submetidos. Todos que
conhecem Budapeste estão cientes do sentimento profundamente estranho
dos magiares em relação aos alemães; a recente aliança foi estritamente de
conveniência e não de corações. A casta magiar dominante, de cerca de um
milhão de pessoas, tem sido opressora dos outros nove milhões de sua
própria raça não menos do que sua própria subordinação aos alemães. A
aliança com a Prússia – pois na realidade foi uma aliança com a Prússia
mais do que com a Áustria – foi estritamente em troca de apoio à oligarquia
magiar. Sem dúvida que os magiares geraram profundos sentimentos de
hostilidade entre eslavos e romenos, mas se não houver mais lucro na
exploração de eslavos em nome da Alemanha, uma Hungria democrática
mais cedo ou mais tarde se adaptará ao novo ambiente. Os búlgaros
lutaram, vamos lembrar, como aliados dos sérvios contra os turcos, e as
relações entre sérvios e búlgaro, embora por enquanto estremecidas, são do
tipo de uma desavença familiar. É uma diferença que cresceu apenas
recentemente e baseada em grande parte na rivalidade eclesiástica de
fundação recente [isto é, as igrejas ortodoxas sérvia e búlgara]. Os búlgaros
não devem ser autorizados a explorar a traição sofrida na Segunda Guerra
dos Balcãs, mas se um acordo equitativo for ditado pelos Aliados, ambas as
nações, a búlgara e a sérvia, profundamente cansadas da guerra, o aceitarão
alegremente. Por vinte anos, apenas uma vontade contou na Bulgária, a do
Czar alemão Ferdinand.
O ponto mais importante de significado estratégico em relação a
essas camadas intermediárias da Europa oriental são Polônia e Boêmia, os
mais civilizados deles, que se situam ao norte, na posição mais exposta à
agressão prussiana. A segurança da Polônia e da Boêmia não pode ser
garantida, a menos que se constituam como o ápice de uma ampla cunha de
nações independentes, estendendo-se dos mares Adriático e Negro ao
Báltico; sete Estados independentes, com um total de mais de sessenta
milhões de pessoas, atravessado por ferrovias que os ligam de forma segura
uns com os outros, e tendo acesso aos mares Adriático, Negro e Báltico, e
ao oceano, irão juntos efetivamente equilibrar os alemães da Prússia e da
Áustria, e nada menos que isso será suficiente para esse objetivo. Além
disso, a Liga das Nações deve ter o direito, de acordo com o direito
internacional, de enviar frotas de guerra aos mares Negro e Báltico.
 
*****
 
Ao ser realizado um grande acordo de estadistas internacionais
como este, acreditamos que não exista qualquer impossibilidade para
realizar o ideal democrático da Liga das Nações, cuja miragem nossos
povos ocidentais têm enxergado lá longe, sobre o deserto de guerra. Quais
são as condições essenciais
que devem ser estabelecidas se desejarmos uma Liga das Nações que seja
real e potente? O visconde Gray, em seu panfleto recente, estabeleceu duas
dessas condições. A primeira era que "a ideia deve ser adotada com
seriedade e condenação pelos chefes executivos dos Estados”. O segundo é
que "os governos e povos dos Estados dispostos a fundar essa Liga devem
entender claramente que ela irá impor alguma limitação sobre o ação
nacional de cada um, e pode acarretar algumas obrigações inconvenientes.
As nações mais fortes devem abrir mão do direito de fazer prevalecer seus
interesses contra os mais fracos pela força".
São teses excelentes e muito necessárias, mas será que são
suficientes? Antes de assumir qualquer obrigação geral, não é bom
considerar o que provavelmente ela significa em termos concretos? Sua
Liga terá que contar com certas realidades. Havia antes da guerra um liga
das nações incipiente; seus membros eram os Estados participantes do
sistema de direito internacional. Não tivemos que lutar na guerra apenas
porque dois dos maiores Estados violaram o direito internacional, primeiro
um em relação a outro, e depois um dos Estados menores quase conseguiu
derrotar um dos mais poderosos dessa incipiente liga, que interveio em
nome da lei? Em face disso, seria de fato bastante adequado dizer que as
nações mais fortes devem "renunciar" ao direito de fazer prevalecer o seu
interesse pela força contra o mais fraco? Em uma palavra, nossos ideais não
nos envolvem em um círculo, a menos que disfarcemos a realidade?
Não é claro que, se a Liga for para durar, não deve haver nenhuma
nação forte o suficiente para ter alguma chance contra a vontade geral da
humanidade? Ou, para colocar a questão de outra forma; não deve haver um
parceiro predominante ou mesmo um grupo de parceiros nessa liga. Existe
algum caso de uma federação de sucesso com um parceiro predominante?
Nos Estados Unidos você tem os grandes estados de Nova York,
Pensilvânia e Illinois, mas nenhum deles conta mais do que uma pequena
fração do todo que é a União. No Canadá você tem Quebec e Ontário se
equilibrando, de modo que as províncias menores do domínio
provavelmente nunca serão intimidadas por qualquer uma. Na Comunidade
da Austrália, você tem os estados aproximadamente iguais de New South
Wales e Victoria. Na Suíça nem mesmo o grande cantão de Berna é
predominante. A Federação Alemã não foi um pretexto para o domínio da
Prússia? A predominância da Inglaterra não é a principal dificuldade, no
caminho de devolução dentro as ilhas britânicas, mesmo se os irlandeses
concordassem entre si? Esta guerra não se originou do fato que se permitiu
que uma Alemanha quase dominante surgisse na Europa?
As grandes guerras do passado na Europa não se originaram no fato de que
um Estado tornou-se muito poderoso no sistema europeu, seja sob
Napoleão, Luís XIV, ou Felipe II? Se a Liga das Nações quiser ter alguma
chance de sucesso, não será necessário enfrentar essas evidências ao invés
de encobri-las?
Não há também outra realidade com a qual se deve considerar,
aquela do going concern? Se as nações dessa Liga quiserem estabelecer
uma vida tranquila, existem duas maneiras diferentes, me parece, que terão
que enfrentar na realidade do going concern: a respeito do presente e do
futuro. O que significa esta realidade no presente será melhor transmitido
pela consideração concreta do Estados existentes como com os territórios a
serem unidos.
O Império Britânico é um going concern [uma preocupação
constante ou empreendimento bem sucedido]. Você não vai persuadir a
maioria dos britânicos a arriscarem a coerência do Império, que tanto
triunfantemente resistiu ao teste desta guerra, para qualquer esquema de
papel de uma Liga universal. Conclui-se, portanto, que as unidades políticas
do Império Britânico só podem crescer por um processo gradual em seu
lugar como unidades da Liga. No entanto, as relações de seis deles já são de
independência de fato, sob a comunidade britânica. Só no ano passado foi
proferida a última palavra sobre esse assunto. Os primeiros ministros dos
domínios devem, doravante, se comunicar diretamente com o primeiro-
ministro do Reino Unido, e não mais por meio de um secretário colonial
subordinado; o parlamento em Westminster não deve mais ser chamado de
Parlamento Imperial, mas apenas de Parlamento do Reino Unido. Resta
apenas que o rei deve não ser mais chamado de rei do Reino Unido e dos
domínios de além dos mares, mas que a igualdade de todos os domínios
deve ser reconhecido por alguns como o rei de toda a comunidade britânica.
Até mesmo a respeito das realidades – embora em tais assuntos os nomes se
tornem realidades –, não temos agora a certeza de que cada um deles –
Reino Unido, Canadá e Austrália – terá sua própria frota e exército, a serem
colocados sob um único comando estratégico apenas no início da guerra?
No que diz respeito à população, também é não é uma questão de apenas
alguns anos antes de Canadá e Austrália igualarem a pátria-mãe em efetivo?
Teremos então os três domínios menores – Nova Zelândia, África do Sul e
Newfoundland [ilha de Terra Nova] –, que contam mais por causa do
equilíbrio entre os três domínios principais.
França e Itália são going concerns. Eles vão entrar em uma Liga em
que o Império Britânico é uma unidade? Felizmente, alcançamos o
comando estratégico único nas fases posteriores da guerra, de modo que o
nome Versalhes agora tem um significado histórico adicional. Não mais
apenas por meio de seus embaixadores, mas nas pessoas de seus primeiros-
ministros, Reino Unido, França e Itália adquiriram o hábito de tomarem
decisões em conjunto. Esses três países da Europa ocidental não estão
inaptos por qualquer desigualdade decisiva de tamanho para serem
membros semelhante de uma Liga. Não é provável que ocorram ocasiões
em que os primeiros-ministros do Canadá e da Austrália podem ser
chamados para conferências com os primeiros-ministros do Reino Unido,
da França e da Itália? Estas serão ocasiões de ainda mais valor se você
reconhecer as realidades de hoje e não tentar fazer progressos somente no
papel. Temos que lembrar que isso exigiu o perigo da ofensiva alemã de
1918 para garantir a unidade de comando estratégico.77
Então, o que dizer dos Estados Unidos? Não adianta fingir que os
estados americanos separados podem ser unidades em sua Liga; a
República
lutou a maior guerra da história, antes desta guerra, a fim de manter eles
juntos. No entanto, os Estados Unidos formam algo como um predominante
parceiro em relação aos países aliados separados da Europa ocidental. Os
Estados Unidos devem estar em sua liga; e isso significa que, para uma
associação que funcione, as seis unidades do Império Britânico devem ser
mantidos juntos como um contrapeso. Felizmente, três mil milhas de
fronteira indefesa na América do Norte constitui um fato de bom presságio,
embora, para ser franco,
significaria mais se os países que essa fronteira separou [EUA e Canadá]
fossem menos desiguais; o teste teria sido mais severo.
Mas a necessidade de uma razoável igualdade de poder entre um
número considerável de membros da Liga, de modo que em crises futuras –
e elas ocorrerão – eles não possam ficar expostos ao perigo de
predominância em qualquer momento, é menos urgente em relação ao
insular do que aos membros continentais. Existem as limitações óbvias do
poder marítimo; há também limites naturais que definem a extensão de
qualquer base de poder insular, ou mesmo peninsular. O teste da Liga estará
no coração do continente. Lá a natureza oferece todos os pré-requisitos de
domínio final do mundo; a humanidade deve previnir que isso ocorra pela
sua clarividência e pela obtenção de garantias sólidas. Apesar de suas
revoluções, os povos alemão e russo foram e são empreendimentos em
constante movimento, cada um deles com um poderoso momento histórico.
Portanto, deixe os idealistas, que agora que as nações estão presas a
um único sistema mundial, ver com razão na Liga das Nações a única
alternativa ao inferno na Terra, e concentre sua atenção numa adequada
subdivisão da Europa de leste. Com uma camada intermediária de Estados
realmente independentes entre a Alemanha e a Rússia, eles alcançarão seu
fim, e sem isso eles não o farão. Qualquer mera linha de trincheira entre os
alemães e a Rússia, como foi contemplado por Naumann no seu Europa
Central, teria deixado alemães e eslavos ainda em dupla rivalidade, e
nenhuma estabilidade duradoura poderia ter ocorrido. Mas a camada
intermediária, com suporte pelas nações externas da Liga Mundial, poderá
colocar um fim na dominância da Europa oriental por apenas dois sistemas
estatais. Além disso, os Estados desse nível de igualdade aproximada de
poder, serão eles próprios um grupo muito aceitável para fazerem parte da
Liga.
Uma vez assim, remova a tentação e a abertura para o império
mundial, e quem pode dizer o que acontecerá entre os povos alemão e
russo? Já há indícios de que a Prússia, que ao contrário Inglaterra ou
França, é uma estrutura puramente artificial, será quebrada em vários
estados federais. Em uma região, os prussianos pertencem por história à
Europa oriental e em outra à Europa ocidental. Não é provável que os
russos formarão afinal vários estados unidos em algum tipo de federação
livre? Alemanha e Rússia transformaram-se em grandes impérios fora da
oposição um para o outro; mas os povos da camada intermediária –
poloneses, boêmios, húngaros, romenos, sérvios, búlgaros e gregos – são
são muito diferentes para se unirem em uma federação para qualquer outra
finalidade exceto a de defesa comum. Mais ainda, como eles são todos tão
diferentes dos alemães e dos russos, eles podem ser confiáveis para resistir
a qualquer nova organização de qualquer grande vizinho pretendendo fazer
um império na Europa do leste.
Existem certas posições estratégicas no heartland e na Arábia que
devem ser tratadas como de importância mundial, pois sua posse pode
facilitar ou impedir a dominação mundial. No entanto, não se pode concluir
que seria sábio confiá-las imediatamente a uma não experimentada
administração internacional; aqui, também, é muito necessário ter em mente
a verdade do going concern [de um empreendimento em funcionamento].
Condomínio, como regra geral, não tem tido sucesso, pois os agentes da
defesa conjunta quase inevitavelmente tomam partido das nacionalidades
locais ou de partidos com os quais se identificam. O método mais eficaz de
controle internacional parece ser o de comissionar algum poder como
curador para a humanidade – um poder diferente, é claro, no caso de
posições diferentes. Foi o método tentado experimentalmente quando à
Áustria-Hungria foi confiada a administração da Bósnia e Herzegovina no
Congresso de Berlim, e teve sucesso no que diz respeito ao avanço material
das províncias protegidas. Não há razão para que, sob estas novas
condições, não se considere a República norte-americana e o Império
Britânico como curadores da paz no oceano e nos estreitos que conectam as
bacias ao oceano, como nos casos do Panamá, Gibraltar, Malta, Suez, Aden
e Cingapura. Isso, no entanto, equivaleria apenas a uma regularização da
realidade já existente. O teste do princípio, como da maioria dos outros
princípios mundiais, está em conexão com o heartland e a Arábia. Os ilhéus
do mundo não pode ser indiferente ao destino de Copenhague ou de
Constantinopla, ou ainda do canal de Kiel, por uma grande potência no
heartland e Europa oriental, que poderiam se preparar, dentro dos mares
Báltico e Negro, para a guerra no oceano. Durante a guerra atual, toda a
força naval dos Aliados foi usada para manter o mar do Norte e o leste do
Mediterrâneo. Uma campanha submarina adequada, baseada no mar Negro
desde o início da guerra, provavelmente teria dado segurança a um exército
operando por terra contra o canal de Suez. Segue-se, portanto, que a
Palestina, a Síria e a Mesopotâmia, o Bósforo e o Dardanelos, e as saídas do
Báltico devem ser internacionalizadas de alguma maneira. No caso da
Palestina, Síria e Mesopotâmia, tem sido entendido que a Grã-Bretanha e a
França fariam esse controle. Por que não devemos resolver o problema de
Constantinopla fazendo dessa cidade histórica a Washington da Liga das
Nações? Quando a rede de ferrovias cobrir a Ilha Mundial, Constantinopla
será um dos lugares mais acessíveis do mundo por ferrovia, navio a vapor e
avião. De Constantinopla, as nações líderes do Ocidente podem irradiar luz
precisamente por essas regiões, oprimidas durante muitos séculos, nas quais
a luz é mais desejável do ponto de vista da humanidade em geral; de
Constantinopla, podemos soldar o Ocidente e o Oriente, e penetrar
permanentemente no heartland com liberdade oceânica.
A sede nacional judaica na Palestina será um dos mais importantes
resultados da guerra. Esse é um assunto do qual agora podemos nos permitir
falar a verdade. O judeu, por muitos séculos foi trancado no gueto e
excluído dos cargos mais honrosos na sociedade, tratado de uma maneira
desequilibrada que se tornou odiosa para o cristão médio por razão de suas
excelentes, não menos que por suas deficientes, qualidades. Uma
penetração alemã tem sido realizada nos grandes centros comerciais da
mundo, em grande medida, pela agência judaica, assim como a dominação
alemã no sudeste da Europa foi alcançado através de Magiares e turcos com
assistência judaica. Os judeus estão entre os chefes dos bolcheviques da
Rússia. O judeu sem-teto e intelectual prestou-se a esse trabalho
internacionalista, e a cristandade não tem grande direito de se surpreender
com o fato. Mas você não terá espaço para essas atividades em uma Liga de
de Nações independentes e amigas. Portanto, uma casa nacional, no centro
físico e histórico do mundo, deve fazer com que o judeu "alcance a si
próprio”. Padrões de julgamento, trazido aos judeus por judeus, deve
resultar, mesmo entre aquelas grandes comunidades judaicas que
permanecerão como
preocupações fora da Palestina. Isso, no entanto, implicará na aceitação
franca
de uma nacionalidade, que alguns judeus procuram evitar. Há quem tente
distinguir entre a religião judaica e a raça hebraica, mas certamente a visão
popular de sua ampla identidade não está muito errada.
Nas vastas e populosas regiões da Ásia e da África que se
encontram além do cinturão dos grandes desertos e planaltos, existem
empreendimentos em funcionamento tais como o Raj britânico na Índia, e
seria uma verdadeira loucura tentar abalar isso na pressa de realizar uma
simetria mundial para a sua Liga das Nações. Mas é essencial que nem
Kiauchau nem a África oriental possam voltar sob o domínio que os levou,
com uma perspectiva estratégica, para o dia em que exércitos marchando
por terra deveriam encontrar em cada um deles uma cidadela já preparada;
que os levou, aliás, com a intenção clara de que os chineses e os africanos
deveriam ser utilizados como mão-de-obra subsidiária para ajudar na
conquista da Ilha-Mundo. Que papel pode ser desempenhado por essa
metade da raça humana que vive nas "Índias", ninguém pode prever, mas é
um dever dos povos insulares proteger os índianos e os chineses de uma
conquista vinda do heartland.
O sudoeste da África alemã e as colônias alemãs da Australásia não
devem ser devolvidos; o princípio da independência dentro da Liga implica
nisso, que cada nação deve ser autônoma na sua própria casa, e esse
princípio é válido em relação à África do Sul e à Austrália. Qualquer outro
princípio deixaria as sementes para futuras disputas e impedirá o
desarmamento.
 
*****
Tanto no que diz respeito ao início da Liga das Nações e do going
concern no presente, resta-nos falar sobre o going concern no futuro [isto é,
a reconstrução da ordem mundial de forma eficiente]. O visconde Gray
descreveu o estado de espírito que será necessário quando abordarmos este
grande empreendimento internacional: não há algo mais preciso a ser dito
sobre esse assunto também?
Eu expressei minha convicção de que tanto o livre comércio do
laissez-faire como a proteção predatória do tipo alemão são princípios de
império, e que ambos contribuem para a guerra. Felizmente, os britânicos
mais jovens
têm se recusado a aceitar o livre comércio de Manchester; eles usaram a
independência fiscal que lhes foi concedida pela pátria para perseguir essa
economia ideal que foi prenunciado pelo grande estadista americano,
Alexander Hamilton – o ideal de uma nação verdadeiramente independente,
equilibrada em todo o seu desenvolvimento. Isso não significa, de forma
alguma, que não deve haver um grande comércio internacional, mas deve
ser um comércio tão controlado e tendendo sempre para o equilíbrio, com
com vistas a não concentrar riquezas em uma pequena parte, e, assim,
eliminar qualquer equidade na recuperação, econômica.
Nenhuma Liga das Nações estável parece possível se alguma nação
tiver permissão para praticar "penetração" comercial, pois o objetivo
daquele
penetração é privar outras nações do seu quinhão das formas mais
qualificadas de emprego, e é inevitável que uma dor generalizada deve
resultar na medida em que essa penetração for bem-sucedida. Nem, para
falar claramente, há qualquer grande diferença no resultado se algumas
nações sentirem que estão
reduzidas à posição de lenhadores e madeireiros devido à especialização
industrial de outro país sob um regime de cobdenismo irrestrito; onde quer
que uma indústria seja tão desenvolvida em um país que não pode se
contentar nada menos do que com o mercado mundial para seus produtos, o
equilíbrio econômico dos outros países tende a ser prejudicado. Nenhum
país importante, depois desta guerra, vai permitir ser privado de qualquer
indústria "chave" ou "essencial".78 Porém, uma vez que você tiver esgotado
essas duas categorias, descobrirá que poderia muito bem ter adotado o ideal
de posição atraente de independência econômica geral, em vez de ser
conduzido de um expediente para outro como mera defesa. Se tentar manter
uma negativa cobdenista com exceções, você irá, nas condições do mundo
que se abrem diante de nós, muito em breve formar um corpo grande e
desajeitado de máquinas meramente ad hoc. Um sistema geral de baixas
tarifas e recompensas permitiria que você lidasse com rapidez e leveza com
cada dificuldade à medida que surgirem porque teria o controle de um
maquinário apropriado em suas mãos. Mas não estou entrando em detalhes
sobre essas questões de maquinaria; estou lidando com a questão do ideal e
desejável. O cobdenista acredita que o comércio internacional é bom por si
só, e essa especialização entre os países, desde que surja cegamente sob a
orientação de causas naturais, não deveria ser frustrada. O berlinense, por
outro lado, também incentivou a especialização econômica entre as nações,
mas atua cientificamente, acumulando em seu próprio país as indústrias que
mais requerem empregos altamente qualificados. O resultado é o mesmo em
cada caso; uma preocupação permanente da indústria aperta a nação e a
priva, como também priva outras nações, da verdadeira independência. As
diferenças resultantes acumulam-se ao ponto de disputas e colisões.
Existem três atitudes mentais em relação ao going concern que
significam tragédia. Existe o laissez-faire, que é rendição e fatalismo. Essa
atitude produz uma condição comparável à de uma moléstica provocada por
auto-negligência; o corpo humano é um going concern que, tornando-se
desequilibrado em suas funções, é organicamente afetado de modo que, no
final, nenhum conselho médico ou mesmo o bisturi do cirurgião pode cessar
a doença que significa a paralisação da própria vida. Não restam dúvidas,
sob o sol cálido da Grã-Bretanha no meio do século passado, que a filosofia
política mais sábia era viver para o dia e confiar na providência.
Felizmente, a doença não progrediu para um estágio fatal quando chegamos
à mesa do cirurgião em agosto de 1914. Mas um milhão de homens em
idade militar, classificados como inaptos para o serviço militar, constituem
um sintoma que quase os faz agradecer a Deus que a guerra veio quando
eles estavam nessa situação.
A segunda atitude mental em relação ao going concern é aquela do
pânico. Esta tem sido a atitude da Prússia, embora estivesse oculta pela
lisonjeira filosofia do super-homem, não menos agradável, enquanto era
mais crível do que a religião reconfortante do laissez-faire. Kultur, no
entanto, quer dizer cruelmente obcecado com a ideia de competição e
seleção natural, como finalmente expressa no darwinismo, e assustados, os
prussianos decidiram que se, no final, os homens devem devorar uns aos
outros para sobreviver, eles, de qualquer forma, iriam ser os canibais!
Então, eles cultivaram assiduamente a força e a eficiência do lutador pelo
prêmio. Mas o monstro going concern no qual eles transformaram o seu
país ficou mais e mais faminto, e finalmente eles tinham que deixá-lo se
alimentar. Metade das coisas cruéis e egoístas que são feitas neste mundo
são feitas por motivos de pânico.
A terceira atitude é a do anarquista e do bolchevique – eles sem
nenhuma dúvida se vêem como distintos, mas se você quebra a dinâmica
social ou a faz em pedaços, isso faz pouca diferença na prática. Essa atitude
significa suicídio social. É vital que a disciplina seja mantida nas
democracias ocidentais durante o período de reconstrução, seja o que for
que o bolchevismo faça nas regiões leste ou central da Europa. Os
ocidentais são os vencedores, e só eles são capazes de evitar que o mundo
inteiro tenha que passar pelo ciclo repetido com tanta frequência no caso de
nações individuais – idealismo, desordem, fome e tirania. Desde que não
tenhamos pressa em desmantelar a maquinaria do funcionamento social, e
realizarmos nossos ideais por atos graduais e com disciplina social,
devemos manter a produção estável, isto é, a realidade fundamental na qual
repousa, agora mais do que nunca, a civilização. A desordem de todo um
mundo, não podemos esquecer, implica a ausência de qualquer base
nacional remanescente como fulcro para a restauração da ordem e, portanto,
o prolongamento indefinido da anarquia e da tirania. Demorou vários
séculos para atingirmos novamente o estágio de civilização que foi
alcançado antes que o mundo romano da antiguidade tenha se despedaçado.
Mas ficar à deriva nas garras do going concern leva uma nação à
doença, e se não devemos entrar em pânico porque isso resulta em crime,
nem ainda sofrer revolta porque isso acaba em suicídio, que curso
permanece aberto para nós? Certamente o de controle, que em uma
democracia significa autocontrole. Se esta guerra provou alguma coisa,
provou que estas forças gigantescas da produção moderna são capazes de
controle. Foi assumido antecipadamente por muitos que uma guerra
mundial traria um colapso financeiro tão geral que ela não poderia ocorrer.
No entanto, quando ela realmente aconteceu, os sistemas de crédito
britânicos e alemães foram facilmente separados pelo simples dispositivo de
usar o crédito nacional para garantir o crédito individual que se retirou do
solo inimigo.
Se você uma vez admitir que o controle do going concern [da
máquina produtiva] é o seu objetivo, então a unidade ideal de sua Liga deve
visar o desenvolvimento econômico nacional balanceado. As matérias-
primas estão distribuídas desigualmente no mundo, mas as necessidades
primárias dos homens, além do crescimento dos alimentos básicos próprios
de cada região, formam nestes dias apenas uma parte relativamente pequena
da indústria total. Os minerais devem ser extraídos das minas e os produtos
tropicais só podem ser cultivados dentro dos trópicos, mas tanto os minerais
quanto os produtos tropicais são agora fáceis de transportar, e as indústrias
de ponta podem, portanto, serem localizadas à escolha da vontade de
humanidade. Somos o que nossas ocupações nos fazem; todo homem
maduro é impresso com as características da sua vocação. Assim também é
com as nações, e nenhuma nação que se preze, portanto, permitirá ser
privada de sua participação nas indústrias de ponta. Mas essas indústrias
estão tão interligadas que não podem ser desenvolvidas, exceto em
equilíbrio umas com as outras. Segue-se, portanto, que cada nação se
esforçará para o desenvolvimento em cada grande linha de atividade
industrial, e deve ser permitido que alcance isso.
Este é o ideal, estou firmemente persuadido, que contribuirá para a
paz. Na sociedade comum, é notoriamente difícil para pessoas com fortunas
muito desiguais serem amigos num sentido verdadeiro; aquele lindo
relacionamento não é compatível com mecenato e dependência. A
civilização, sem dúvida, consiste na troca de serviços, mas deve ser uma
troca igual. Nossa economia do dinheiro tem avaliado como igual serviços
de valor desigual do ponto de vista da qualidade da indústria e do emprego
que cada uma fornece. Para o contentamento das nações, devemos tentar
assegurar alguma igualdade de oportunidades para o desenvolvimento
nacional.
 
 
Capítulo Sete
A LIBERDADE DOS HOMENS
 
A partir da consideração das realidades apresentadas pela geografia
do nosso globo, chegamos à conclusão que, se a liberdade das nações deve
ser assegurada, ela deve ter como base uma abordagem razoável da
igualdade de recursos entre um certo número das nações maiores. Também
vimos que, dada a realidade imperiosa do going goncern, é necessário que
as nações sejam tão controladas em seu crescimento econômico que elas
não tendam a se desequilibrar e entrar em confronto. Mas o que esses
princípios têm a ver com a liberdade dos homens e mulheres? Será que as
nações livres em uma Liga serão capazes de dar mais liberdade para seus
cidadãos? Certamente os homens que têm lutado, os homens que estiveram
navegando em nossos navios através do perigo nos mares, e as mães e
esposas que trabalharam, esperaram e prantearam em casa, não objetivam a
mera vitória sobre um perigo que os ameaçava; eles têm visões positivas de
maior felicidade em suas próprias vidas ou na vida de seus entes queridos.
Analisemos, deste ponto de vista, as etapas sucessivas de idealismo
democrático que mencionamos nas páginas iniciais deste livro. A
Declaração Americana de Independência reivindica para todos aos homens
o direito de buscar a felicidade. A Revolução Francesa cristalizou esta frase
na única palavra Liberdade, e acrescentou Igualdade, que implica controle,
e Fraternidade, que implica autocontrole. Fraternidade é da essência de uma
democracia bem-sucedida, a mais elevada, porém, a mais difícil de todas as
formas de governo, uma vez que exige mais do cidadão médio. Esse é o
primeiro ciclo do pensamento democrático; ele diz respeito direta e
obviamente à liberdade dos homens.
Em meados do século XIX começou o segundo ciclo, que se volta
para a liberdade das nações. A reivindicação da nacionalidade é o direito de
um grupo local de homens de buscar a felicidade juntos, com suas próprias
formas de controle visando garantir a igualdade entre eles. Sentimento
fraterno não é algo fácil de alcançar a menos que as pessoas tenham sido
criadas juntas; daí o papel desempenhado pela história no sentimento
nacional. Mas o mero nacionalismo reivindica apenas o direito de buscar a
felicidade juntos; não é nada até chegarmos à Liga das Nações, a partir da
qual avançaremos para um ideal que foi pensado em um estágio equivalente
ao de a grande trilogia da Revolução Francesa. Algum grau de controle pela
Liga é reconhecidamente necessária para garantir a igualdade das nações
perante a lei, e acredito que também para o ideal de desenvolvimento
equilibrado de cada nação tem que haver um autocontrole que está implícito
na fraternidade. Sem um desenvolvimento equilibrado, as nações
certamente vão adquirir fomes ou necessidades específicas, sejam por
decisões desleixadas ou criminosas, que só poderão ser satisfeitas à custa de
outras nações. Em outras palavras, só podemos garantir permanentemente a
igualdade entre as nações pelo controle interno [das nações] como também
externo [pela Liga]. Mas isso envolve a afirmação de que a política
doméstica deve ser conduzida tendo em vista os seus efeitos na política
externa, um truísmo no sentido superficial, mas carregando implicações
mais profundas do que são comumente admitidas.
Isso significa, creio eu, na seguinte implicação, entre outras – que,
uma vez que as nações são sociedades locais, sua organização, para
perdurar, deve ser baseada predominantemente nas comunidades locais
dentro de cada uma delas, e não em todos os "interesses" do país. Essa é a
velha ideia inglesa da Casa dos Comuns. A palavra commons é,
obviamente, idêntica à palavra francesa communes, que quer dizer
comunidades; uma Casa das Comunidades – condados e burgos – seria a
verdadeira tradução moderna. Na verdade, os cavaleiros e os burgcsses da
Idade Média representavam comunidades de vida muito mais completa e
equilibrada do que a vida artificialmente equalizada existente nos dias de
hoje.
Se a verdadeira organização da nação for por classes e interesses –
essa é a alternativa para a organização por localidades79 – é quase inevitável
que as classes correspondentes em nações vizinhas se agregem, e ocorrerá o
que tem sido descrito como a clivagem horizontal da sociedade
internacional. Felizmente, a Torre de Babel foi o início do going concern,
do grande empreendimento conhecido como os diferentes idiomas, e isso
tem impedido o internacionalismo. Mas o desenvolvimento da luta moderna
entre capital e trabalho levou ao uso de algumas frases e palavras
internacionais que contêm algumas ideias-chave no sentido corrente; elas
correspondem, infelizmente, a certas realidades sociais que foram
rapidamente ganhando importância quando esta guerra veio sobre nós.
Associações internacionais de capital estavam obtendo tal poder de
intimidação em relação a Estados mais fracos, e estavam sendo usados pela
Alemanha para fins de expansão, ou, em em outras palavras, para destruir o
equilíbrio econômico e social das nações rivais. O trabalho também
procurou seguir esse exemplo e tentou se organizar de forma internacional.
Assim surgiu a ideia da luta de classes entre o proletariado internacional e
capitalismo internacional. Durante o progresso da guerra, conseguimos
quebrar a organização internacional do capital. Temos agora que trabalhar
para reverter tudo o que foi alcançado a este respeito, e persistir com uma
organização internacional que surgiu com o propósito exato de lutar contra
o capital internacional? Não menos do que tal reversão ocorrerá se o ímpeto
do trabalho em organizar-se internacionalmente funcionar, o que levaria a
uma ressuscitação da organização internacional do capitalismo. A guerra
econômica que iria se seguir só poderia terminar no bolchevismo ou na
vitória do um dos partidos, e esse partido se tornaria o verdadeiro governo
do mundo, um novo império de organizadores. Se o trabalho vencesse, logo
descobriremos que os organizadores do trabalho não são diferentes de seus
predecessores militares ou capitalistas no tocante ao essencial, isto é, que
eles se apegariam ao poder e continuariam cegamente a se organizar até
serem derrubados por uma nova revolução. Assim, as rodas da história
girariam novamente com as mesmas fases recorrentes de desordem e
tirania, e futuros alunos seriam ensinados a reconhecer mais uma "era", a do
proletariado, que se seguiu às eras do eclesiasticismo, militarismo e
capitalismo. Torne-se o trabalho supremo, e seus líderes do futuro não
hesitarão mais usar metralhadoras contra multidões que protestarem, assim
como qualquer outro autocrata em pânico no redemoinho do poder.
Mas se se considerar que a organização baseada nas comunidades
locais é essencial para a vida estável e, portanto, pacífica entre as nações,
pois as comunidades locais devem ter uma vida tão completa e equilibrada
quanto a
da própria nação. De nenhuma outra forma se pode impedir que uma
organização de "classes” e “interesses" atravesse poderosamente sua
organização local. Desde que permita que uma grande metrópole drene a
maior parte dos melhores cérebros jovens das comunidades locais, para
citar apenas um exemplo do que ocorre, por quanto tempo essa organização
indevidamente centrada na metrópole vai se tranformar numa organização
de classes e interesses na escala nacional? Acredito que, se olharmos para a
questão do ponto de vista da liberdade dos homens ou das nações,
chegaremos à mesma conclusão; que a única coisa essencial é deslocar a
organização da classe, com os seus gritos de batalha e remédios meramente
paliativos, colocando no lugar um ideal orgânico, o de uma vida equilibrada
nas províncias, e sob as províncias, o de uma vida equilibrada nas menores
comunidades.
 
*****
 
 
Vamos abordar o assunto do outro ângulo, que é o da liberdade dos
homens. O que o homem comum quer? [John Stuart] Mill diz que depois da
comida e da habitação, ele quer liberdade, mas o democrata mais moderno
enfatiza não apenas a liberdade de aproveitar as oportunidades, mas
também a
igualdade mesma de oportunidades. É a oportunidade de poder realizar seus
potencial, de viver uma vida de ideais e de ações para a realização desses
ideais, que o homem saudável – em número cada vez maior – está pedindo.
Esses ideias podem ser de amor e da educação nobre para seus filhos, ou de
poder realizar sua destreza no seu ofício, ou de religião e salvação de almas,
ou de excelência em algum tipo de esporte, ou de constituição da sociedade
e do seu aprimoramento, ou da valorização da beleza e da expressão
artística; mas de uma forma ou de outra ele deseja o brilho de uma vida
inteligente, o que aliás implica no reconhecimento da sua dignidade
humana.
Pela educação elementar geral, começamos a ensinar a arte de
discutir as ideias àqueles que na sociedade antiga eram escravos. O homem
totalmente analfabeto pensa apenas em termos concretos; portanto, foi por
esse motivo que os grandes mestres religiosos falaram lentamente em
parábolas. O homem analfabeto não está aberto nem aos prazeres nem aos
perigos do idcalismo. Sem dúvida, nossas comunidades ocidentais estão
passando por um estágio perigoso nesta geração. Pessoas parcialmente
educadas estão em uma condição muito suscetível, e o mundo hoje é
constituído principalmente por pessoas semi-educadas. Elas são capazes de
apreender ideias, mas não adquiriram o hábito de testá-las e de suspendê-as
mentalmente enquanto isso não ocorre. Em outras palavras, a maioria das
pessoas hoje está muito aberta a “sugestões”, fato bem conhecido dos
experientes em eleições, que raramente param para argumentar com seu
público. A sugestão é o método do propagandista alemão.
Agora a expressão "igualdade de oportunidades" envolve duas
coisas.
Em primeiro lugar controle, porque dada a natureza humana média, não
pode haver igualdade sem controle; e em segundo lugar, implica em
liberdade de fazer e não apenas de pensar, ou seja, oportunidade para trazer
ideias para o teste da ação. O Sr. Bernard Shaw diz que "Quem pode, faz;
aquele que não pode, ensina”80. Apenas se interpretarmos os vocábulos
"pode" e "não pode" como implicando oportunidade e falta de
oportunidade, aí então este epigrama um tanto cínico transmite uma verdade
vital. Aqueles a quem foram dadas a oportunidade de testar suas ideias se
tornaram pensadores responsáveis, mas aqueles que não têm essa
oportunidade podem continuar, por um tempo, a gostar das ideias, mas de
forma irresponsável e, como dizemos, academicamente. A última condição
é, precisamente, que grande parte das classes trabalhadoras não pratica uma
leitura inteligente dos jornais, e alguns deles sabem disso e lamentam.
Qual é a ruína de nossa vida industrial moderna? Certamente
monotonia – monotonia do trabalho e de uma mesquinha vida social e
comunitária. Não admira que nossos homens antes da guerra se refugiavam
nas apostas no futebol. A maioria das decisões de responsabilidade são
reservadas para alguns, e esses poucos não são até mesmo vistos em seu
trabalho, pois eles estão longe, nos grandes centros.
O que foi que, nas últimas duas ou três gerações, deu tal força para
o movimento de nacionalidade? A nacionalidade não tinha grande
influência
na Idade Média, ou mesmo nos tempos modernos até o século XIX. Surgiu
à medida que os Estados modernos não apenas aumentaram em tamanho,
mas também desempenhavam funções mais amplas dentro da comunidade.
Movimentos nacionalistas são baseados na inquietação de jovens
inteligentes
que desejam ter espaço para viver uma vida de ideias e estar entre aqueles
que "podem" porque estão autorizados a fazer isso. No antigo mundo grego
e no
mundo medieval, a malha social era tecida de forma tão entrelaçada que
havia um grande âmbito em qualquer cidade considerável. Não é esse fato
que torna a história da cidade tão interessante até chegarmos ao século
XVIII e então ela fica tão banal? Recapitule a história de uma das nossas
cidades britânicos mais importantes, e veja se isso não é verdade. Quando
você chegar às últimas gerações, essa história torna-se mera estatística de
crescimento material; no
melhor alternativa, a cidade se especializa de alguma maneira importante,
mas deixa de ser um organismo completo. Todas as suas instituições são de
segunda categoria, porque seus melhores funcionários foram embora, a
menos que haja algum estabelecimento ou indústria de mais do que apenas
fama local, e esse estabelecimento ou indústria geralmente esmaga a real
vida local ao invés de a desenvolver.
Por que Atenas e Florença foram as fontes maravilhosas da
civilização
que as tornaram os professoras do mundo? Elas eram pequenas cidades,
como agora contamos o tamanho das cidades, mas eram cidades soberanas
tanto no sentido político quanto no econômico. Os homens que apertaram
as mãos uns dos outros nas ruas, e cujas famílias casavam entre si, não eram
meramente mestres rivais da mesma indústria ou comerciantes concorrentes
do mesmo ramo, mas a categoria principal da actividade humana era
representada num círculo íntimo. Pense na escolha de atividades abertas
para serem exercidas por um jovem florentino capaz, e lembre-se que
sempre havia opções em sua cidade natal, sem necessidade de ir para
alguma distante capital. Em vez de prefeito, ele podia ser primeiro-ministro;
em vez de capitão de territórios, ele podia ser um general liderando a força
militar da cidade em alguma batalha – uma pequena batalha, sem dúvida,
mas o suficiente para dar a maior oportunidade para a atividade da sua
mente; se ele fosse um pintor, escultor ou arquiteto, seria empregado nos
monumentos de sua própria cidade, em vez de vê-los projetados por algum
grande homem visitante. Claro que ninguem está sugerindo que nós
devemos retornar às instituições de Atenas ou de Florença, mas o fato é que
você empobreceu sua vida local da maior parte do seu valor e interesse em
prol de um desenvolvimento de âmbito nacional.
Você tem certeza que a essência da demanda por autonomia na
Irlanda, e em menor grau na Escócia, não vem principalmente de jovens
que estão ansiosos, embora não percebam isso totalmente, por igualdade de
oportunidades ao invés de contra uma suposta opressão da Inglaterra? Os
boêmios alcançaram um notável desempenho econômico sob a tirania
austríaca, e ainda assim eles lutam por sua nacionalidade tcheco-eslovaca.
Não existe uma verdade do mesmo gênero na insubmissão dos delegados
sindicais de nossas fábricas contra os executivos do sindicato dos
escritórios de Londres?
É o princípio do laissez-faire que tem causado tanto estrago em
nossa vida local. Por cem anos temos nos curvado diante desse going
concern como se fosse um deus irresistível. Sem dúvida isso é uma
realidade, mas ela pode ser desviada a seu serviço se houver uma política
inspirada por um ideal. O laissez-faire não é essa política; é um mero
render-se ao destino. Você me diz que centralização é a "tendência" da
época; eu lhe respondo que é a tendência cega de todas as épocas – não foi
dito, há mil e novecentos anos, que "àquele que tem, deve ser dado"?
Considere o crescimento de Londres. Uma população de um milhão
há um século aumentou para mais de sete milhões hoje; ou, para abordar
um ponto mais essencial, a Londres de um século atrás continha um décimo
sexto [1/16] da população da Inglaterra e agora tem um quinto. Como isso
aconteceu? Quando o Parlamento foi originalmente criado, era necessário
para pagar aos membros para que comparecessem, pois eles estavam
ocupados com suas absorventes vidas locais, e em pouco tempo também se
começou a multar os comunitários que não votavam para eleger seus
representantes. Essa foi a sucessão real das coisas, uma federalização que
foi imposta à forte atração local.
Quando se introduziu as estradas asfaltadas, as principais vias
formavam uma rede até Londres; elas trouxeram a vida do país para
Londres, minando-a em prol do crescimento de Londres. Quando as
ferrovias foram construídas, as linhas principais formaram uma rede até
Londres, e os
expressos correm para cima para baixo, alimentando Londres e ordenhando
o país. Atualmente, o Estado também tem de intervir para acentuar a
tendência à centralização no estabelecimento de serviços tais como o
correio de encomendas. Assim, ocorre que as cidades mercantis por cento e
cinquenta quilômetros ao redor são degradados no que diz respeito à
variedade de suas vidas.
Sequer em 20% das mudanças, o londrino lucra de alguma forma.
Se ele mora num subúrbio, é atirado através de um tubo para um sala de
escritório na cidade, e depois volta para seu quarto no subúrbio; apenas aos
sábados e domingos ele tem tempo para a vida comunitária, e então se
diverte com os vizinhos que não estão ligados a ele por nada de essencial.
Na grande maioria dos casos, ele nunca entra em contato direto com uma
mente grande e treinada, exceto por meio de páginas impressas; para ele,
como para o trabalhador industrial do país, sua vida de ideias são desligadas
de sua vida de trabalho, e ambas sofrem infinitamente em consequência
disso.
A centralização, no entanto, é apenas uma forma de um processo
mais geral que eu chamaria de segregação de funções sociais e econômicas
devido ao fatalismo nacional na presença do going concern. Permitiu-se que
a vida industrial enchesse certos distritos e saísse de outros distritos pobres.
Admito que, no passado, isso era em alguma extensão inevitável devido à
necessidade de geração de energia perto das minas, mas não na proporção
em que ocorreu. Com o controle adequado, poderíamos ter substituiu isso
pelas "regiões vilas", onde existem comunidades dependentes de uma
fábrica ou de um pequeno grupo delas, em que ricos e pobres, patrões e
empregados, poderiam ser mantidos juntos em uma relação de vizinhança
responsável; mas ao invés disso, se permitiu as extremidades de bairros
ricos e pobres crescerem separadamente em suas grandes cidades.
Certamente, a característica essencial do verdadeiro estadista é a previsão, a
prevenção de doenças sociais; mas o nosso método por um século
consecutivo foi estar à deriva, e quando as coisas ficaram ruins aplicamos
remédios paliativos – legislações de fábricas, legislações de habitação e
assim por diante. Como as coisas estão hoje, o único remédio orgânico é
descentralização urbana a qualquer custo.
Essas ideias se aplicam não apenas à indústria, mas também à nossa
área educacional, às instituições e profissões voltadas para o ensino. Nosso
sistema inglês é “comprar” – devemos usar palavras certeiras para a
concorrência que existe entre as faculdades – os melhores cérebros jovens
através de bolsas de estudos numa concorrência de nível nacional. Em
meados do século passado, nós abolimos, em em grande medida, o sistema
de bolsas de estudo fechadas, que vinculava escolas particulares a
faculdades particulares; isto foi, na minha opinião, de longe o sistema mais
saudável. Por costume social, adiciona-se a esses alunos um número de
outros estudantes afortunados de famílias abastadas espalhadas por todo o
país. Então eles são recrutados para as escolas públicas de Oxford ou de
Cambridge; desde o início você tira os estudantes do seu ambiente local.
Depois das universidades, muitos deles vão pas um serviço civil
centralizado, uma profissão jurídica centralizada e até mesmo uma
profissão médica centralizada. Vão trabalhar em Londres, que vai esgotar
suas vidas durante seus melhores anos. Alguns deles vão se dar bem e
brilhar nessa grande, segregada e inatural competição de inteligências, e
então as pessoas se queixam ao governo devido aos advogados! Todo o
sistema resultou de um momento histórico; quando o centro, o leste e o sul
da Inglaterra eram todo o país que contava, Oxford e Cambridge eram
universidades locais, e Londres era o centro natural do mercado. Mas, no
século passado, as estradas e ferrovias possibilitaram à metrópole atrair para
si as carreiras mais brilhantes que se originaram no interior. O lugar natural
de uma pessoa excepcional deve ser o de liderar o seu povo local e ajudá-
los a suportar os seus fardos. O seu cérebro excepcional servirá melhor a
nação se permanecer no seu próprio local particular.81
Uma das dificuldades mais sérias no caminho da realização de umaa
comunidade local equilibrada reside na diferença do dialeto falado pelas
pessoas comuns e pelas classes altas. Na Inglaterra depois da conquista
normanda, nossos camponeses falavam inglês, mas nossos cavaleiros se
expressavam em francês, e nossos sacerdotes em latim, e o resultado era
que um cavalheiro se sentia mais em casa com um cavalheiro da França do
que com seu próprio povo, e assim também era com os padres. Existe hoje
uma diferença assim curiosa, me parece, entre o povo escocês e o inglês.
Na Inglaterra, as classes profissionais superiores vão para as
mesmas escolas e universidades que as classes proprietárias, e os
mercadores e capitães da indústria também mandam seus filhos para essas
mesmas escolas. Portanto, existe uma linha de clivagem social, como
mostrado pela fala e postura, entre as classes superiores e as médias e
baixas. Na Escócia, por outro lado, as pessoas das camadas mais altas da
sociedade enviam seus filhos, em sua maior parte, para as escolas públicas
inglesas e para as universidades inglesas, enquanto os ministros das igrejas
escocesas, os advogados nos tribunais escoceses, e os médicos e professores
são treinados principalmente nas universidades locais, que são também
frequentadas pelos filhos dos comerciantes e industriais numa extensão
muito maior do que na Inglaterra. O resultado, creio eu, é que a aristocracia
escocesa tem sido, em maior grau do que na Inglaterra, separada do povo.
Eu não os culpo, pois eles têm estado meramente à deriva, nas garras do
destino. Diz-se que um certo baronete escocês, que tinha oito lindas filhas,
algumas delas se aproximando da idade de casamento, as colocou todas
numa carruagem e as mandou embora de Edimburgo para Londres, porque
todos os jovens escoceses de sua classe que tinham dinheiro, ou inteligência
para ganhar dinheiro, já tinham ido para lá! No final do século XVIII, e no
início do século XIX, Edimburgo foi um dos faróis da Europa, com seu
matiz próprio de chama. Hoje, é mais um exemplo da futilidade de tentar
separar a economia dos outros aspectos da vida de uma nação ou de uma
província.
 
*****
 
Quer raciocinemos a partir da liberdade das nações, ou a partir da
liberdade dos homens, chegamos às mesmas conclusões. A nação que deve
ser fraterna com as outras nações, deve ser independente em um sentido
econômico como em qualquer outro; deve ter e manter uma vida completa e
equilibrada. Mas não pode ser independente se é dividida em interesses de
classes que estão sempre procurando se aliar para lutar contra interesses de
classes equivalentes das outras nações. Portanto, você deve basear a
organização nacional nas comunidades provinciais. Mas as províncias
devem ter algum poder para satisfazer as aspirações locais, que devem
dispor de uma vida própria completa e equilibrada, exceto nas contribuições
para o fundo de reservas federal. Isso é precisamente o que a verdadeira
liberdade dos homens requer, um espaço para uma vida plena em suas
próprias localidades. A organização por interesses de classes ou por
interesses nacionais resulta de conflitos, mas não pode satisfazer, pois suga
para a metrópole as principais carreiras. A maior parte das habitações
precárias, e muitas outras aflições materiais do povo, são o resultado do
esvaziamento da vida local, pois todas resultam de ofensas contra o
princípio de se manter uma vida completa e equilibrada.
Províncias de vida completa, é claro, implicam em um sistema
federal. Isto significa não uma mera descentralização, mas uma
descentralização
das diferentes funções sociais para as unidades locais. Sem dúvida que essa
é uma tendência na atualidade, no mundo anglo-saxão, no que diz respeito à
administração governamental. Os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a
África do Sul são, em maior ou menor grau, federais, e na Grã-Bretanha
parece que não estamos muito longe de nos constituirmos dessa forma.
Apenas a questão irlandesa bloqueia o caminho, mas é intrinsecamente uma
questão pequena, e não devemos permitir que brigas de quatro milhões de
pessoas impeçam permanentemente o remédio orgânico para os males de
mais de quarenta milhões de pessoas. Uma divisão da Inglaterra em
províncias do norte e do sul provavelmente será necessário, a fim de
remover a realidade do parceiro predominante, mas do nosso ponto vista
essa divisão seria em
em si mesmo uma coisa boa. Para atingir esse objetivo, no entanto, não
seria suficiente dar às províncias apenas autonomia em relação a "gás e
água"; elas devem estar tão envolvidos na vida econômica de suas regiões
que tanto patrões como empregados terão como base de suas organizações
as áreas das províncias. Se cada unidade da sociedade – a nação, a
província, a localidade – tivesse o direito de tomar as medidas adequadas
para manter a completude e o equilíbrio de sua vida, a necessidade de uma
ampla difusão de organização de qualquer classe ou interesse, exceto para
fins informativos, gradualmente deixaria de ser urgente.
Considere a vida das árvores. Nas florestas da natureza, a
competição é
severa, e nenhuma árvore atinge o crescimento completo e equilibrado do
qual é capaz. As árvores da floresta intermediária lutam para subir para a
luz; as da fronteira espalham-se unilateralmente; e nas favelas existem
todos os tipos de podridão e parasitismo. Se, como no sonho de Dante,
existirem espíritos aprisionados nas árvores, podemos imaginar uma
floresta repleta de associações de folhagens contra as raízes por enviar
muitos troncos, e uma associação das raízes contra a folhagem para evitar o
ar e a doce luz. Mas seriam associações fúteis, porque cada árvore consiste
em raízes e folhagens. O paisagista da civilização, com seus remédios
orgânicos, pode alcançar a beleza perfeita de árvores. Ele as planta
separadamente, para que possam crescer independentemente, cada uma de
acordo com o ideal de sua espécie; ele guia a muda, poda a árvore jovem e
elimina a doença da árvore madura. Então nós apreciamos um dos pontos
turísticos mais inspiradores da terra, um parque de árvores nobres, cada
uma completa e equilibrada em seu crescimento. Apenas os macacos e
esquilos, que saltam de galho em galho, têm sofrido a exploração
internacional elusiva dos aproveitadores da floresta.
Esta parábola do paisagista contém também a ideia de que as
funções
de crescimento e controle são separados e devem ser mantidos separados.
Quando funcionários do Estado tornam-se socialistas e tentam iniciar em
vez de
meramente assegurar o crescimento, eles se tornam menos capazes de suas
próprias funções, que é crítica – compreensiva e simpática, mas ainda assim
crítica. O temperamento da crítica é incompatível com o entusiasmo
artístico e formativo. Tivemos muito poucas críticas baseadas na vigilância
para os sinais de desequilíbrio no crescimento. O Conselho Britânico do
comércio sob o regime do laissez-faire estava tão imbuído pela
conveniência de não fazer nada, que não tinha equipamentos necessários
nem mesmo para perceber o que o going concern [neste caso, o crescimento
desequilibrado e centralizado baseado no laissez-faire] estava fazendo.
Sistemas federativos de autoridade de cada instância, sejam da Liga das
Nações ou dos Estados, devem consistir essencialmente em departamentos
defensivos e de observação, e os departamentos de vigilância ou observação
devem emitir avisos e repetir esses avisos até que a opinião pública nas
localidades seja esclarecida enquanto ainda houver tempo para prevenir o
crescimento de algum monstruoso going concern que fatalmente irá
perturbar o equilíbrio da nação ou do mundo. Nos Estados Unidos, o
cuidado com a agricultura é, creio eu, deixado para os Estados federados,
mas o Federal Bureau of Agriculture é quem emite alertas para a
necessidade de conservação dos recursos naturais do país. Em Roma já
temos um Instituto Internacional de Agricultura [a atual FAO], que coleta as
estatísticas de colheitas mundiais e busca estabilizar os mercados e preços
por meio de oportunos avisos; prestou serviços consideráveis aos Aliados
durante esta guerra.
Não tenho dúvidas de que homens práticos me dirão que esse ideal
de crescimento econômico completo e equilibrado em cada localidade é
arcaico e contrário a toda tendência da época. Dizem que só se pode obter
uma produção ótima e barata pelo método de organização mundial e
especialização local. Eu admito que essa é a tendência atual, e que pode dar
a resultado material por algum tempo. Mas se você cria animais, não chega
um momento em que se foi tão longe quanto possível na consanguinidade
que, então, é novamente o momento de se recorrer à mestiçagem?
Atenas e Florença foram ótimas porque viram a vida como um todo.
Se perseguirmos implacavelmente as metas da eficiência e do baixo custo,
produziremos um mundo em que os jovens nunca verão a vida completa,
mas apenas um aspecto da vida; os organizadores nacionais e internacionais
são os únicos que detêm as chaves para uma visão completa. É dessa forma
que você terá um suprimento contínuo de cérebros frutíferos e felizes,
porque são trabalhadores intelectualmente ativos? Todas as especializações
contêm o
sementes de morte; o exército mais ousado deve, às vezes, esperar o
abastecimento das colunas que estão na retaguarda. No crescimento e
contentamento dos cérebros, está envolvido algo muito mais sutil do que
qualquer educação técnica ou local de trabalho saudável. Não deveríamos
ser muito mais ricos do que estamos, no final de um século de procura na
obteção de riquezas o mais rápido possível?
Eu sei que esta guerra definiu seus controladores, e seus comitês
internacionais de controladores, para gerenciar um vasto comércio com a
única preocupação de não nos deixar morrer de fome. Mas na crise temos
que usar muito acertadamente nosso capital de intelecto e experiência.
Esses homens são o que são porque construíram empresas sempre com
medo de falências; Eles cresceram com a vida empresarial sempre em suas
mãos. Ótimas organizações, sejam associações ou serviços governamentais,
na medida em que oferecem uma vida protegida não darão frutos ilimitados
a tais homens.
Muitos insistem que crédito e seguro devem ter bases amplas, e
concordo: sua função é eliminar as deficiências locais devido às diferentes
estações e ao variável sucesso dos empreendimentos. No entanto, temos que
reconhecer que representam o perigo de uma situação financeira
descontrolada no mundo. A Liga das Nações pode ter que assumir essa
função, para que não sejamos regidos apenas por um dos "interesses" da
sociedade. Existem dois cursos abertos para nós em relação crédito e
seguro: controlá-los federalmente, ou para combatê-los e equilibrá-los pela
organização internacional de outros "interesses". A autoridade federal, seja
da Liga ou dos Estados, é constituída de comunidades em pleno
crescimento, e não pode, pela sua natureza, aspirar o império, uma vez que,
em todos os lugares, consiste no equilíbrios entre os homens. Mas grandes
organizações especializadas, comandadas por especialistas, irão
inevitavelmente lutar pela supremacia, e essa competição
deve terminar no governo de um especialista de um tipo ou de outro. Isto é
império, por isso desequilibrado.
 
*****
 
Pode-se agora perceber que fizemos o circuito do mundo, e que todo
sistema é agora um sistema fechado, e que agora não se pode alterar nada
sem alterar o equilíbrio do todo, e que não existem mais costas desérticas
ou refúgios nos quais o pensamento incompleto pode descansar sem ser
perturbado? Vamos tentar o pensamento lógico e simétrico, mas prático e de
forma cautelosa, porque temos a ver com um poderoso going concern. Se
você o parar ou mesmo desacelerar seu funcionamento, ele vai lhe punir
implacavelmente. Se você deixá-lo funcionar sem orientação, ele levará
você até uma nova catarata. Você não pode guiá-lo criando meras cercas e
as consertando quando quebrarem, porque o going concern consistem em
centenas de milhões de seres humanos que estão "perseguindo" a felicidade,
e irão invadir todas as suas cercas como um exército de formigas. Você só
pode guiar a humanidade pela atração de ideais. É por isso que o
cristianismo vence, depois de dezenove séculos, através de todos os
obstáculos criados pela crítica de seus credos e de seus milagres.
O que precisamos, em minha opinião, para orientar nossa atual
reconstrução, é uma visão de estadista em favor de uma nação equilibrada,
e um equilíbrio entre provícias, não tendendo nem para o livre-comércio
nem para o protecionismo. Se persistimos com tal ideal, por uma geração
ou duas, poderemos mudar gradualmente o going concern, para que
tenhamos nações e províncias fraternas, em vez de guerras, e interesses
organizados sempre se esforçando para estender seus limites ao campo
internacional, com a finalidade de flanquear interesses opostos que existem
em outras nações. Lembre-se de como aquele curioso ideal negativo de
laissez-faire, através algumas gerações que gradualmente o assimilaram,
refez toda a textura da sociedade britânica, de modo que levou a esta guerra
mundial para derrubar os interesses conflitantes que se expandiram.
Neste momento, parece-me, estamos pensando de forma
fragmentada em nossa reconstrução, de acordo com aquele ideal pré-guerra
do filantropo filantropo – habitação, temperança, conciliação industrial e o
resto. Mas se você construir trezentas mil novas casas, e colocá-as apenas
onde elas são "desejadas", você pode apenas estar novamente à deriva,
embora com um lastro mais pesado.
Na guerra, gradualmente subimos para a concepção do único
comando estratégico, e do controle econômico único. Será que teremos
coragem para medidas semelhantes com o objetivo de alcançar a paz,
embora devam ser mais sutis e menos executivas porque vão lidar com o
crescimento e não com destruição?
 
"A culpa, caro Brutus, não está em nossas estrelas
Mas em nós mesmos, que somos subordinados"
 
 
 
 
Capítulo Oito
PÓS-ESCRITO
 
Desde a redação deste livro, participei como candidato nas eleições
parlamentares da Escócia, tendo como adversários um liberal e um
socialista. Do liberalismo, agora não há nada que possa ser dito de útil; um
individualismo robusto será sempre um dos elementos do carácter da nossa
raça britânica, qualquer que seja o destino do partido político em face de
sua expressão no século XIX. Mas a sempre recorrente propaganda do
socialismo está atualmente em uma fase muito significativa. Um mero
socialismo burocrático tem sido criticado devido a acontecimentos recentes;
quanto mais sabemos do funcionamento do burocratismo dominante
durante a guerra, menos provável, penso eu, é que o desejemos como um
mestre permanente. Meu oponente socialista pretendia tirar a propriedade
da terra e abolir os juros sobre o capital; em outras palavras, ele começaria
com uma revolução confiscatória; mas essa não era a essência de sua
posição. Seus apoiadores jovens, com uma fé ardente em seus olhos,
embora muitas vezes sem capacidade de expressar seus argumentos –
foram, em quase todas as reuniões, corajosamente defensores dos
bolcheviques russos. Existem dois lados do bolchevismo; existe a mera
violência do travesti de jacobino, derrubado em um certo estágio da maioria
das grandes revoluções; e existe o idealismo "sindicalista". Para fazer
justiça, é o último
aspecto do bolchevismo que realmente atrai e mantém meu jovem escocês
antagonista. Os bolcheviques estão em revolta contra um parlamentarismo
com base nas comunidades locais ou, como eles diriam, em tantas
pirâmides com cada uma delas com o seu capitalista no topo. Seu ideal é de
uma federação
de sovietes ou sindicatos profissionais – sovietes de trabalhadores, de
camponeses, e, se você quiser, de profissões. Portanto, os bolcheviques,
tanto em Petrogrado como em Berlim, têm se oposto sistematicamente à
reunião de assembleias com o objetivo de constituir constituições
parlamentares sobre
o modelo "burguês" ocidental. Sua revolta é por uma organização de
interesses mais do que por localidades.82 Pelas razões declaradas neste
livro, tal organização iria, em minha opinião, levar inevitavelmente à guerra
marxista das classes internacionais, do proletariado contra a burguesia, e,
finalmente, de uma seção do proletariado contra as outras seções – basta ver
que os trabalhadores urbanos russos estão em conflito com os camponeses
russos. O fim só poderia ser anarquia mundial ou uma tirania mundial.
Assim, volto para o silêncio da minha biblioteca com a convicção
que o que escrevi é pertinente com as correntes quentes da vida real nesta
grande crise da humanidade. Nossa velha concepção inglesa da casa de
Commons ou Comunidades, a concepção americana da Federação de
estados e províncias, e o novo ideal da Liga das Nações, são todos eles
opostos às políticas executadas nos moldes tirânicos da Europa oriental e do
heartland, sejam dinásticas ou bolcheviques. Pode ser o caso que a tirania
bolchevique é uma reação extrema contra a tirania dinástica, mas não é
menos verdade que os russos, os prussianos e as planícies húngaras com sua
uniformidade generalizada de condições sociais, são favoráveis tanto à
marcha do militarismo quanto à propaganda do sindicalismo. Contra esta
águia de duas cabeças do poder terrestre, os ilhéus ocidentais devem lutar.
Mesmo em suas próprias penínsulas ou ilhas, os métodos modernos de
comunicação são obstáculos tão naturais
que a organização por interesses constitui uma ameaça real. No heartland,
onde os contrastes físicos são poucos, é apenas com a ajuda de um ideal
consciente, moldando a vida política na direção das nacionalidades, que
seremos capazes de consolidar a verdadeira liberdade. Mesmo que apenas
como base para a “penetração” neste perigoso heartland, os povos
oceânicos devem se esforçar para enraizar cada vez mais firmemente sua
própria organização por localidades, cada localidade com uma vida própria
tão completa e equilibrada quanto as circunstâncias permitirem. O esforço
deve ir para baixo através das províncias para as cidades. Bairros ricos e
pobres dividem nossas cidades em castas; devemos atenuar esses contrastes
a qualquer custo. O interior, no qual os líderes bem-sucedidos visivelmente
atendem aos interesses de seus irmãos mais fracos, deve ser nosso ideal.
Houve um tempo em que um homem se dirigia a seus "amigos e
vizinhos". Ainda temos nossos amigos, mas muitas vezes eles estão
espalhados pela terra e pertencem à nossa própria casta na sociedade. Ou, se
acontecer de eles estarem por perto, não é porque nossa casta se congregou
em seu próprio bairro da cidade? Assim foi no início da Idade Média,
quando afirmam que três homens podem se encontrar no mercado, um que
obedece ao direito romano, outro aos costumes dos francos e um terceiro ao
dos godos. Assim é hoje na Índia com hindus, maometanos e cristãos.
Assim também foi na Florença do século XIV, na Atenas de Péricles ou na
Inglaterra elisabetana.
Entre muitos de nós, em nossa civilização urbana e suburbana, a
velha e grande palavra vizinho quase caiu em desuso. É para a vizinhança
que o mundo hoje chama em voz alta, e para a recusa desta vida cada vez
mais desordenada por causa das modernas oportunidades de comunicações.
Vamos recuperar a posse de nós mesmos, para que não nos tornemos mero
escravos da geografia do mundo, explorados por organizadores
materialistas.
Boa vizinhança ou dever fraterno para com aqueles que são nossos
vizinhos,
é o único fundamento seguro de uma cidadania feliz. Suas conseqüências
estendem-se para cima da cidade, através da província até a nação, e desta
até a Liga das Nações. É ao mesmo tempo o remédio para a favela dos
pobres e para o tédio dos ricos, da guerra entre classes e da guerra entre
nações.
 
Apêndice
NOTA SOBRE UM INCIDENTE NO QUAI D'ORSAY, 25 DE
JANEIRO DE 1919
 
Os representantes das nações aliadas se reuniram na segunda sessão
plenária da Conferência em Paris. Uma resolução estava diante deles para
nomear comitês com a finalidade de discutir propostas para a Liga das
Nações e outros assuntos. A constituição dos comitês – que estabeleceu que
as cinco grandes potências (Estados Unidos, Império Britânico, França,
Itália e Japão) teriam dois membros cada uma, e as potências menores
teriam cinco membros para todas em conjunto –, foi determinada pelo
Conselho dos Dez, que possui apenas representantes das grandes potências.
Essa constituição foi trazida agora para o plenário para endosso. Não havia
um grande descontentamento entre as potências menores. Sir Robert
Borden, em nome do Canadá, perguntou por quem e com que autoridade a
constituição dos comitês havia sido decidida; a
questão deveria ter sido submetida à Conferência. Os delegados da Bélgica,
Brasil, Sérvia, Grécia, Portugal, Czecho-Eslováquia, Romênia, Sião e China
pediram a palavra para reivindicar representações especiais para os seus
respectivos países. Então M. Clemenceau [da França], de seu cadeira, onde
se sentou entre o Sr. Wilson [Estados Unidos] e o Sr. Lloyd George [Grã-
Bretanha], resolveu falar. Ele apontou que com o fim das hostilidades, as
grandes potências tinham doze milhões de homens no campo de batalha;
que eles poderiam ter decidido o futuro do mundo por sua própria
iniciativa; mas que, inspirado por novos ideais, eles convidaram as
potências menores para cooperar com eles. A resolução então foi aprovada,
nemine contradicente [de forma unânime], sem alteração.
Assim, o domínio do mundo ainda depende da força, não obstante o
pressuposto jurídico da igualdade entre Estados soberanos, sejam eles
grandes ou pequenos. O tema deste livro, que devemos basear nossa
proposta da Liga na realidade, se quisermos que ela perdure, portanto, é
válido. Cabe observar, além disso, que o número das grandes potências –
cinco – é precisamente o total da Tríplice Entende e da dupla Aliança pré-
guerra (tripla apenas com a Itália), cuja hostilidade causou a guerra. Segue-
se que seremos capazes de manter nossa Liga enquanto os cinco poderes,
agora aliados, continuarem a concordar. Seu número não é suficiente para
prevenir um grande predomínio de um ou dois deles. Sem dúvida que uma
nova Alemanha e uma nova Rússia irão um dia aumentar esse número para
sete. Talvez os poderes menores, tomando nota do fato nítido que ficou
evidente por este incidente, comecem a federar entre si. Um grupo
escandinavo, um grupo da camada intermediária da Europa oriental
(Polônia e Iugoslávia), e um grupo espanhol da América do Sul
(provavelmente também incluindo o Brasil) podem, talvez, serem
efetivados. Em qualquer caso, a Liga deve prestar o serviço de trazer a
opinião da humanidade para uma justa revisão de tratados obsoletos antes
que eles se tornem irremediavelmente desajustados. Mas vamos deixar de
lado a hipocrisia: a democracia deve levar em conta conta a realidade.
 
 
 

ARTIGOS ADICIONAIS
 
O PIVÔ GEOGRÁFICO DA HISTÓRIA*
* The Geographical Pivot of History, texto lido na Sociedade Geográfica Real, Londres,
em 25 de janeiro de 1904. Publicado in: Geographical Journal, Vol.23 (1904), pp. 421-37.
 
Quando os historiadores, num futuro remoto, olharem para o grupo
dos séculos em que vivemos e vê-los de forma resumida, como hoje
olhamos as dinastias egípcias, pode muito bem ser que descrevam os
últimos 400 anos como a Época Colombiana, e dirão que ela terminou
pouco depois do ano 1900. Ultimamente tem sido lugar comum falar da
exploração geográfica como quase terminada, e tornou-se fato reconhecido
que a geografia deve ser desviada para o objetivo de levantamento intensivo
e síntese filosófica. Em 400 anos, o esboço do mapa de mundo foi
completado com precisão aproximada, e mesmo nas regiões polares as
viagens de Nansen e Scott reduziram de forma muito estreita a última
possibilidade de descobertas dramáticas. Mas o início do século XX é
apropriado como o final de uma grande época histórica, embora não apenas
por causa desse feito, por maior que ele seja. O missionário, o conquistador,
o agricultor, o mineiro, e por último o engenheiro, seguiram de perto as
pegadas do viajante pelo mundo, mal descobertos os seus mais remotos
rincões, e já podemos fazer a crônica de sua apropriação política
virtualmente completa.
Na Europa, América do Norte, América do Sul, África e Australásia,
dificilmente haverá uma região que se deixou conhecer sem que já tenha
ocorrido uma reivindicação de propriedade, exceto o resultado de uma
guerra entre as potências civilizadas ou semicivilizadas. Mesmo na Ásia
provavelmente testemunhamos os últimos movimentos do primeiro jogo
que foi travado entre o cavaleiro de Yermak, o cossaco, e os marinheiros de
Vasco da Gama. De modo geral, pode-se contrastar a Época Colombiana
com a idade que a precedeu, descrevendo as suas características essenciais,
como a expansão da Europa contra resistências quase insignificantes,
enquanto que a cristandade medieval ficou comprimida em apenas em uma
estreita região ameaçada pela barbárie externa. A partir do momento atual, a
era pós-Colombiana, voltaremos a ter que lidar com um sistema político
fechado, embora de alcance nada menos que mundial. Toda explosão de
forças sociais, ao invés de ser dissipada em um circuito ao redor de espaço
desconhecido e caos bárbaro, será fortemente recoada até as longínquas
partes do globo, e por isso os fracos elementos no organismo político e
econômico do mundo serão destroçados. Há uma ampla diferença do efeito
causado pela queda de uma granada em um terreno plano e a sua queda em
meio aos espaços fechados das rígidas estruturas de um navio ou de uma
grande edificação. Provavelmente alguma semiconsciência desse fato é que
está finalmente desviando grande parte da atenção de estadistas em todas as
partes do mundo da expansão territorial para a luta pela relativa eficiência.
Parece-me, portanto, que na presente década, estamos pela primeira
vez em posição de tentar, com algum grau de completude, uma correlação
entre grandes generalizações geográficas e grandes generalizações
históricas. Pela primeira vez, podemos perceber algo da proporção real de
recursos e eventos em escala mundial, e pode-se perseguir uma fórmula que
expresse pelo menos certos aspectos do nexo da causalidade geográfica
sobre a história universal. Se tivermos sorte, a fórmula deveria ter um valor
prático na definição da perspectiva de algumas das forças concorrentes no
momento atual da política internacional. A frase familiar sobre a marcha
para o oeste do império é uma tentativa empírica e fragmentária do gênero.
Proponho esta noite, descrever as características físicas do mundo, que
acredito terem sido de longe as mais coercitivas para a ação humana, e
apresentar algumas das principais fases da história como organicamente
ligados a elas, mesmo em épocas quando eram desconhecidas pela
geografia. Meu objetivo não é discutir a influência deste ou daquele tipo de
recurso, ou ainda fazer um estudo de geografia regional, mas sim expor a
história humana como parte da vida do organismo mundial. Reconheço que
posso apenas alcançar um aspecto da verdade, e não tenho nenhum desejo
de perder-me em um excessivo materialismo. É o Homem quem tem a
iniciativa, e não a natureza, embora esta em grande medida o controle.
Minha preocupação é com o controle físico geral, ao invés de com as causas
da história universal. É óbvio que apenas uma primeira aproximação da
verdade pode ser esperada. Devo ser humilde para com os meus críticos.
O já falecido Professor Freeman declarou que a única história que
conta é aquela do Mediterrâneo e das raças europeias. Em certo sentido, é
claro, isso é verdade, pois ela está entre essas raças que originaram as
ideias, que tornaram os herdeiros da Grécia e de Roma dominantes em todo
o mundo. Em outro sentido, muito importante, no entanto, essa limitação
tem um efeito restritivo sobre o pensamento. As ideias que vão formar uma
nação, ao contrário de uma mera multidão de animais humanos, têm sido
geralmente aceitas sob a pressão de uma aflição comum, e sob uma
necessidade comum de resistência a uma força externa. A ideia da
Inglaterra foi forjada pela heptarquia dos conquistadores dinamarqueses e
normandos; a ideia da França foi forjada mediante concorrência de francos,
godos, romanos e hunos em Chalons, na Guerra dos Cem Anos com a
Inglaterra; a ideia de Cristandade, nascida das perseguições romanas, foi
amadurecida pelas Cruzadas; a ideia dos Estados Unidos foi aceita, e o
patriotismo local colonial destruído, somente na longa guerra pela
independência; a ideia do Império Alemão foi aprovada relutantemente no
sul da Alemanha só depois de uma luta contra a França em aliança com o
norte da Alemanha. O que eu poderia descrever como a concepção literária
da história, concentrada nas ideias e nas civilizações que seriam seus
produtos, tende a perder de vista os movimentos elementares cuja pressão é
comumente a causa excitante dos esforços nos quais grandes ideias são
nutridas. Uma personalidade repelente desempenha uma função social
importante ao unir os seus inimigos, e foi sob a pressão externa da barbárie
que a Europa alcançou sua civilização. Peço-lhes, portanto, por um
momento para olharem para a Europa e sua história como subordinada a
história asiática, pois a civilização europeia é, num sentido muito real, o
resultado da luta secular contra a invasão asiática.
O contraste mais notável no mapa político da Europa moderna é a
vasta área da Rússia, ocupando metade do continente, frente àquele grupo
de territórios menores habitados pelas potências ocidentais. Do ponto de
vista físico há, naturalmente, como um contraste entre a planície inteira do
leste e o rico complexo de montanhas e vales, ilhas e penínsulas, que juntos
formam o restante desta parte do mundo. A primeira vista, parece que
nestes fatos familiares temos uma correlação entre o ambiente natural e a
organização política tão óbvia que dificilmente será digna de descrição,
especialmente quando verificamos que em toda a planície russa um inverno
rigoroso se opõe a um verão quente, e as condições da existência humana,
assim, se revelam pouco uniformes. No entanto, uma série de mapas
históricos, tais como os contidos no Atlas de Oxford, revelará o fato de que
essa coincidência da aproximação da parte europeia da Rússia com a
planície oriental da Europa não é só uma questão dos últimos cem anos,
mas que em todos os tempos anteriores havia uma reafirmação persistente
de outra tendência no agrupamento político. Dois grupos de Estados
normalmente dividiram o sistema político do país em norte e sul. O fato é
que o mapa topográfico não expressa o contraste físico particular que até
pouco tempo controlou o movimento e a colonização na Rússia. Quando a
camada de neve desaparece da face norte da grande planície, é seguida
pelas chuvas, cujo volume máximo ocorre em maio e junho junto ao mar
Negro, mas que se postergam até julho e agosto perto dos mares Báltico e
Branco. No sul, o final do verão é um período de seca. Em consequência
deste regime climático, que no norte e noroeste da floresta interrompe-se
apenas nos pântanos, no sul e sudeste há uma estepe gramínea ilimitada,
com árvores de maior porte apenas ao longo dos rios. A linha separando as
duas regiões corria diagonalmente em direção ao nordeste desde o extremo
norte dos Cárpatos até um ponto nos Urais, situado mais perto de sua
extremidade meridional do que da setentrional.
 
Figura 1 – A Europa antes do século XIX
Image

 
 
Moscou encontra-se um pouco ao norte desta linha, ou, em outras
palavras, do lado em que está a floresta. Fora da Rússia, o limite da grande
floresta corria para o oeste quase exatamente através do centro do istmo
europeu, que é de 800 milhas entre o os mares Báltico e o Negro. Além
disso, na Europa peninsular, as florestas estendem-se através das planícies
da Alemanha ao norte, enquanto as terras da estepe ao sul contornaram o
grande baluarte transilvânico dos Cárpatos e se estenderam até o Danúbio,
através do que são hoje os milharais da Romênia até o Iron Gates [parque
florestal na Romênia]. Uma área isolada de estepes, conhecida localmente
como Pusstas, hoje largamente cultivada, ocupou a planície da Hungria,
envolvida pela borda da floresta dos Cárpatos e da cordilheira dos Alpes.
Em todo o oeste da Rússia, exceto no extremo norte, a derrubada das matas,
a drenagem dos pântanos e o preparo dos solos das estepes modificaram
recentemente as características da paisagem, que em grande parte obliterou
uma distinção que anteriormente era muito coercitiva para a humanidade.
Antigamente a Rússia e a Polônia estavam completamente
estabelecidas nas clareiras da floresta. Por outro lado, uma notável sucessão
de povos nômades turanianos – hunos, ávaros, búlgaros, magiares, cazares,
pechenegues, cumanos, mongóis e calmucos – veio através das estepes,
desde o século V ao VII, originários de lugares desconhecidos e remotos da
Ásia, tendo cruzado o portão de entrada que se forma entre os montes Urais
e o mar Cáspio. Sob o comando de Átila, os hunos se estabeleceram no
meio dos Pusstas [estepes húngaras], nos confins do Danúbio e nas margens
das estepes, daí avançando para o norte, oeste e sul contra os povos
sedentários da Europa. Uma grande parte da história moderna poderia ser
escrita como um comentário sobre as mudanças que, direta ou
indiretamente, decorreram desses ataques. Os anglos e os saxões,
possivelmente, foram então levados a cruzar os mares para fundar a
Inglaterra na [ilha da] Grã-Bretanha. Os francos, os godos e os provinciais
romanos foram obrigados, pela primeira vez, a lutarem lado a lado no
campo de batalha de Chalons, fazendo uma frente comum contra os
asiáticos, que estavam inconscientemente unindo a França moderna. Veneza
foi fundada a partir da destruição de Aquiléia e Pádua, e até mesmo o papa
Leão obteve um decisivo prestígio na sua mediação bem sucedida com
Átila, em Milão. Essa foi a safra de resultados produzidos pela nuvem de
cavaleiros cruéis e sem ideais que pairou sobre a planície sem obstáculos –
um golpe, a partir do grande martelo asiático, como que batendo livremente
pelo espaço vazio. Os hunos foram seguidos pelos ávaros. Foi por uma
batalha contra estes povos que a Áustria foi fundada e Viena fortificada,
como resultado das campanhas de Carlos Magno. Os magiares vieram em
seguida e, por invadirem incessantemente de sua base na estepe da Hungria,
aumentaram a importância do posto avançado austríaco e, então, desenhou
o foco político da Alemanha para leste, à margem do Reno. Os búlgaros se
estabeleceram como uma casta dirigente ao sul do Danúbio e deixaram seu
nome no mapa, apesar de seu idioma ter se submetido ao dos eslavos, seus
servos. Talvez a ocupação mais longa e mais eficaz das estepes russas foi a
dos cazares, que eram contemporâneos ao grande movimento sarraceno: os
geógrafos árabes conheciam o mar Cáspio como mar de Khazar. No final,
porém, chegaram novas hordas da Mongólia e, durante dois séculos, a
Rússia, restrita às florestas do norte, manteve-se tributária aos khans
mongóis de Kipchak [império mongol que ocupava uma extensa área do sul
do leste europeu e da atual Rússia] por toda a estepe, e assim o
desenvolvimento da Rússia foi adiado e distorcido num momento em que
no resto da Europa ele avançava rapidamente.
Cumpre assinalar que os rios que correm desde a floresta até os mares
Negro e Cáspio, cruzam toda a extensão de estepe que serviu de caminho
para os povos nômades, e às vezes ocorreram movimentações desses povos
ao longo do curso dos rios, em ângulo reto em relação ao movimento dos
cavaleiros. Assim como os missionários do cristianismo grego subiram pelo
rio Dnieper até a cidade de Kiev, ou como anteriormente os varangianos
nórdicos tinham descido pelo mesmo rio em seu caminho para
Constantinopla. Ainda antes, os godos teutônicos surgiram por um
momento sobre o rio Dniester, tendo atravessado a Europa a partir da costa
do Báltico no mesmo sentido sudeste. Mas este episódio não invalida a
generalização mais ampla. Por milhares de anos, uma série de povos a
cavalo surgiu da Ásia através do amplo espaço entre os montes Urais e o
mar Cáspio, circulando pelos espaços abertos do sul da Rússia e se
estabeleciam na Hungria, desferindo o golpe crítico no próprio coração da
península europeia, moldando assim a história dos grandes povos ao seu
redor que se viam na necessidade de lhes fazer frente: os russos, os alemães,
os franceses, os italianos e os gregos bizantinos. Que eles tenham
estimulado uma reação saudável e poderosa, em vez de esmagar a oposição
sob uma
despotismo generalizado, se deveu ao facto de que o poder de sua
mobilidade era condicionado pelas estepes, e necessariamente cessou nas
florestas e montanhas circundantes
Um poder rival era o dos vikings, propiciado pela mobilidade de seus
barcos. Descendo da Escandinávia, eles alcançaram as costas europeias,
tanto ao norte como ao sul, e penetraram no interior pelos caminhos dos
rios. Mas o âmbito da sua ação era limitado, pois, de um modo geral, o seu
poder foi eficaz apenas nas proximidades da água. Assim, os povos
estabelecidos da Europa estavam presos entre duas pressões – a dos
nômades asiáticos do leste e, nas outras três direções pelos piratas do mar.
Diante de sua própria natureza e de uma pressão que não foi tão
esmagadora, ambas foram estimulantes. Vale ressaltar que a influência
formativa dos escandinavos foi superada em importância apenas pela dos
nômades, já que sob seus ataques ambas, Inglaterra e França, avançaram
muito em seus caminhos em direção à unidade, ao passo que a unidade da
Itália foi por eles quebrada. Anteriormente, Roma havia mobilizado o poder
de seus povos estabelecidos na península graças às suas estradas, mas essas
estradas romanas entraram em decadência e não foram substituídas até o
século XVIII.
É provável que a invasão dos hunos não tenha sido de forma alguma a
primeira da série asiática. Os citas, que figuram nos relatos de Homero e
Heródoto como bebedores de leite de égua, obviamente praticaram as
mesmas artes da vida e eram provavelmente da mesma raça que os
posteriores habitantes das estepes. Os elementos celtas nos nomes dos rios
Don, Donetz, Dneiper, Dneister e Danúbio, possivelmente, expressam a
passagem de populações de hábitos similares, embora não necessariamente
de raça idêntica, mas não é improvável que os celtas tenham vindo das
florestas do norte, como posteriormente os godos e os veregues ou
varangianos. No entanto, a grande cunha de populações às quais os
antropólogos caracterizaram como braquicéfalos, que caminhou do oeste ,
através da Europa central, desde a Ásia braquicéfala até a França,
aparentemente é uma intrusa entre as populações dolicocéfalas do norte,
oeste e sul que muito provavelmente eram provenientes da Ásia83.
O pleno significado da influência asiática sobre a Europa, entretanto,
não é muito perceptível até chegarmos às invasões mongóis do século XV,
mas antes de analisar os fatos essenciais destas invasões é aconselhável
mudar o nosso ponto de vista geográfico da Europa, de modo que possamos
considerar o Velho Mundo na sua totalidade. É óbvio que, uma vez que a
precipitação é derivada do mar, o coração da maior massa de terra deverá
ser relativamente seco. Não estamos, portanto, surpresos ao descobrir que
dois terços da população de todo o mundo está concentrada em áreas
relativamente pequenas, ao longo das margens do grande continente – na
Europa, ao lado do oceano Atlântico; nas Índias e na China, ao lado dos
oceanos Índico e Pacífico. Um vasto cinturão quase desabitado – onde
praticamente não chove – formado de terras extensas como o Saara, cruza o
Norte de África até a Arábia. A África Central e Meridional84 foram quase
tão completamente separadas da Europa e da Ásia durante a maior parte da
história, como foram as Américas e a Austrália. De fato, a fronteira sul da
Europa foi – e é – o Saara, em vez do mar Mediterrâneo, pois é o deserto
que separa o homem branco do negro. A massa de terra contínua da
Eurásia, assim incluída entre o mar e o deserto, mede 21 milhões de milhas
quadradas, ou metade de todas as terras do globo, se excluirmos do cálculo
os desertos do Saara e da Arábia. Há muitos desertos de destaque
espalhados pela Ásia, do nordeste da Síria e da Pérsia até a Manchúria, mas
nenhum vazio comparado ao Saara. Por outro lado, a Eurásia é
caracterizada por uma distribuição muito notável de drenagem de rios. Ao
longo de uma imensa porção do centro e do norte, os rios têm sido
praticamente inúteis para a finalidade da comunicação humana com o
mundo exterior. O Volga, o Oxus e o Jaxartes desaguam em lagos salgados;
o Obi, o Yenesei e o Lena desaguam no mar congelado do norte.
 
Fig. 2 – Drenagem continental e ártica
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Fig. 2 – Divisão política do leste europeu na época da terceira
cruzada
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Fig. 3 – Divisão política do leste da Europa na ascensão de Carlos
V
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Estes são seis dos maiores rios do mundo. Há na mesma área muitos
rios menores, mas ainda consideráveis como o Tarim e o Helmund, que
também não conseguem atingir o oceano. Assim, o núcleo da Eurásia,
embora seja uma malha com pequenos retalhos de deserto, é em seu
conjunto uma estepe fornecendo extensos pastos, ainda que escassos, e não
são poucos oásis alimentados por rios, mas é inteiramente não penetrável
por caminhos de água que levam ao oceano. Em outras palavras, temos
nesta imensa área todas as condições para a manutenção de uma esparsa,
mas num agregado considerável, população de nômades criadores de
cavalos e camelos. O seu reino está limitado ao norte por um cinturão de
floresta subártica e pântanos, onde o clima é muito rigoroso para o
desenvolvimento de assentamentos agrícolas, exceto nas extremidades leste
e oeste. No leste, a floresta se estende ao sul para a costa do Pacífico na
terra de Amur e na Manchúria. Da mesma forma, a oeste, na Europa pré-
histórica, a floresta era a vegetação predominante. Assim enquadrado no
nordeste, norte e noroeste, as estepes espalham-se continuamente por 4 mil
milhas a partir de Pusstas, na Hungria, para o pequeno deserto de Gobi, na
Manchúria e, exceto em sua extremidade ocidental, elas não eram cortadas
por rios que drenam para um oceano acessível, pois podemos negligenciar
os esforços muito recentes para o comércio com a foz do Obi e do Yenisei.
Na Europa, na Sibéria ocidental e no Turquestão ocidental, as terras de
estepe são baixas, chegando em alguns lugares a estar abaixo do nível do
mar. Mais ao leste, na Mongólia, elas estendem-se sobre platôs; mas a
passagem de um nível para o outro, sobre as cordilheiras nuas e não
escarpadas do árido heartland, apresenta pouca dificuldade.
 
Fig. 4 – A drenagem continental e ártica
 
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As hordas, que finalmente caíram sobre a Europa em meados do
século XIV, reuniram suas forças nas primeiras 3 mil milhas de distância
nas estepes da alta Mongólia. Os estragos causados por alguns anos na
Polônia, Silésia, Morávia, Hungria, Croácia e Sérvia, no entanto, não eram
senão os mais remotos e transitórios resultados da grande agitação
ocasionada pelos nômades do leste associados com o nome de Gengis
Khan. Enquanto a horda de ouro ocupou a estepe de Kipchak, a partir do
mar de Aral, por meio do espaço entre os montes Urais e o mar Cáspio, ao
pé dos montes Cárpatos, outra horda, descendo ao sudoeste, entre o mar
Cáspio e os montes Hindu Kush, na Pérsia, Mesopotâmia, e até mesmo na
Síria, fundaram o domínio de Ilkhanate. Outro terço, posteriormente,
atingiu o norte da China, conquistando Catai. A Índia e o sudeste da China,
ou Mangi, foram por um tempo protegidas pela barreira incomparável do
Tibet, cuja eficácia talvez não exista no resto do mundo exceto o deserto do
Saara e as calotas polares. Mas em um momento posterior, nos dias de
Marco Polo no caso do Mangi, e nos de Tamerlão no caso da Índia, o
obstáculo foi contornado. Assim aconteceu que, nestes casos típicos e bem
registrados, todas as margens constantes do Velho Mundo, mais cedo ou
mais tarde, sentiram a força expansiva da energia móvel [a cavalos ou
camelos] originária das estepes. Rússia, Pérsia, Índia e China fizeram-se
tributários ou receberam dinastias mongóis. Mesmo o incipiente poder dos
turcos na Ásia Menor foi derrubado por meio século.
Como no caso da Europa, em outras terras periféricas da Eurásia há
registros de invasões anteriores. A China teve, mais de uma vez, que
submeter-se à conquista do norte; a Índia, várias vezes a conquistas vindas
do noroeste. No caso da Pérsia, no entanto, ao menos um dos antigos
invasores tem um significado especial na história da civilização ocidental.
Três ou quatro séculos antes dos mongóis, os turcos seljúcidas, emergentes
da Ásia central, invadiram por este caminho uma imensa área de terra, que
podemos descrever como a dos cinco mares – Cáspio, Negro, Mediterrâneo,
Vermelho e Persa. Eles se estabeleceram em Kerman, em Hamadan e na
Ásia Menor, e derrubaram o domínio sarraceno de Bagdá e Damasco. Foi
aparentemente para punir o tratamento dado aos peregrinos cristãos em
Jerusalém que a cristandade empreendeu a grande série de campanhas
conhecidas coletivamente como as cruzadas. Embora tenham falhado em
seus objetivos imediatos, elas tanto agitaram e uniram a Europa que
podemos considerá-las como o início da história moderna – outro exemplo
marcante do avanço europeu estimulado pela necessidade de reagir à
pressão oriunda do coração da Ásia.
A concepção de Eurásia a que chegamos desse modo é a de uma terra
contínua, rodeada por gelo ao norte, pela água nas outras partes, medindo
21 milhões de milhas quadradas, ou seja mais de três vezes a área da
América do Norte; e cujo centro e norte com cerca de 9 milhões de milhas
quadradas, representam mais do que o dobro da Europa, sem ter nenhum
curso de água que chegue ao oceano, mas que por outro lado, e excetuando
a zona dos bosques subárticos, são geralmente favoráveis para a mobilidade
de homens montados a cavalos e camelos. Ao leste, sul e oeste desse
heartland, estão as regiões periféricas, dispostas em um vasto semicírculo
acessível aos navegantes. De acordo com a conformação física, essas
regiões são em número de quatro, e não é menos notável que, de um modo
geral elas, respectivamente, coincidem com as áreas de domínio das quatro
grandes religiões – budismo, bramanismo, islamismo e cristianismo. As
duas primeiras são as terras de monções, uma voltada para o oceano
Pacífico, e a outra voltada para o oceano Índico. A quarta é a Europa,
regada pelas chuvas do Atlântico a partir do oeste. Aquelas três juntas,
medindo menos de sete milhões de milhas quadradas, tem mais de um
bilhão de pessoas ou dois terços da população mundial. A terceira,
coincidindo com a terra dos cinco mares, ou como é mais frequentemente
descrita, o Oriente Médio, em brande medida está privada de umidade pela
proximidade com a África e, exceto nos oásis, é escassamente povoada. Em
certa medida, participa das características tanto do cinturão periférico
quanto da área central da Eurásia. É emendada com o deserto e
essencialmente desprovida de floresta, e por isso é adequada para a
circulação dos nômades. Porém, é predominante marginal, pois o mar e os
rios que nela desembocam fazem com que ela seja acessível ao poder
marítimo e ao seu controle a partir dele. Como consequência,
periodicamente ao longo da história, tem existido nessa região impérios do
tipo que essencialmente pertencem ao cinturão marginal, baseados em
populações agrícolas dos grandes oásis da Babilônia e do Egito, e em livre
comunicação marítima com os mundos civilizados do Mediterrâneo e das
Índias. Mas, como seria de se esperar, estes impérios foram sujeitos a uma
série sem precedentes de revoluções, algumas incursões por citas, turcos e
mongóis da Ásia central, e outras pelos esforços dos povos do
Mediterrâneo para conquistar caminhos por terra a partir do oeste para o
oceano oriental. Aqui está o ponto mais fraco na cintura das civilizações
antigas, porque o istmo de Suez dividia o poder marítimo em oriental e
ocidental, e os desertos áridos da Pérsia, que avançam da Ásia central para
o golfo Pérsico, ofereciam constantes oportunidades para os nômades de
chegar à beira do oceano, dividindo a Índia e a China de um lado, e o
mundo mediterrâneo de outro. Enquanto os oásis babilônicos, sírios e
egípcios eram fragilmente mantidos, os povos das estepes podiam usar os
planaltos abertos do Irã e da Ásia menor como postos avançados de onde
podiam atacar a Índia através do Punjab, o Egito através da Síria e a
Hungria passando pela ponte quebrada [dos estreitos] do Bósforo e do
Dardanelos e chegando até a Hungria. Viena estava na porta da Europa
interior sofrendo os ataques do nômades, tanto dos que vinham do caminho
direto, que era a estepe russa, como os que vinham pelo lado sul dos mares
Negro e Cáspio.
Aqui, temos ilustrada a diferença essencial entre os controles
sarracenos e turcos do Oriente Próximo. Os sarracenos eram um ramo da
raça semítica, essencialmente povos do Eufrates e do Nilo, e dos oásis
menores da Ásia Menor. Eles criaram um grande império, valendo-se de
duas mobilidades permitidas pela sua terra – a cavalo e a camelo, por um
lado, e a navio pelo outro. Em diferentes momentos as suas frotas
controlaram tanto o Mediterrâneo quanto a Espanha, e as ilhas Malawi no
Oceano Índico. De sua posição estrategicamente central entre os oceanos
orientais e ocidental, eles tentaram a conquista de todas as terras ao redor
do Velho Mundo, imitando Alexandre e antecipando Napoleão. Poderiam
até ameaçar as terras de estepe. Totalmente distintos tanto da Arábia, quanto
da Europa, Índia e China, eram os turanianos pagãos vindos do coração
fechado da Ásia – os turcos que destruíram a civilização sarracena.
A mobilidade sobre o oceano é a rival natural da mobilidade sobre os
cavalos e camelos no coração do continente. Foi sobre a navegação de rios
que desaguam nos mares e oceanos que se baseou o estágio fluvial da
civilização, aquele da China sobre o Yangtzé, da Índia sobre o Ganges, da
Babilônia sobre o Eufrates e do Egito sobre o Nilo. Foi essencialmente
sobre a navegação do Mediterrâneo que se baseou o que se tem descrito
como estágio talassocrático da civilização, tanto dos gregos como dos
romanos. Os sarracenos e os vikings mantinham seu domínio através da
navegação das costas oceânicas.
O resultado mais importante da descoberta do caminho marítimo para
as Índias foi ligar as navegações costeiras ocidental e oriental da Eurásia,
embora por um caminho tortuoso, porém, que em certa medida neutralizou
a vantagem estratégica da posição central dos nômades da estepe,
pressionando-os sobre sua retaguarda. A revolução foi iniciada pelos
grandes marinheiros da geração colombiana dotou a cristandade da
mobilidade de poder mais ampla possível, com exceção da mobilidade
aérea. O oceano único e contínuo que envolve as divididas terras insulares
é, por certo, a condição geográfica fundamental de união para o comando
do mar, e para toda a teoria das modernas estratégias e políticas navais, tais
como expostas por escritores como os do capitão [Alfred] Mahan e do Sr.
Spencer Wilkinson. O enorme efeito político que gerou foi o de inverter as
relações entre Europa e Ásia, porque na Idade Média a Europa estava
encerrada entre um deserto intransponível ao sul, um oceano desconhecido
a oeste, vastidões geladas ou cobertas de florestas ao norte e nordeste, e ao
leste e a sudeste era constantemente ameaçada pela mobilidade muito
superior dos homens montados em cavalos e camelos. A Europa agora
surgiu para o mundo, multiplicando por mais de trinta vezes a superfície do
mar e das terras costeiras a que tinha acesso, e envolveu sua influência ao
redor do poder terrestre eurasiático, que até então, tinha ameaçado sua
própria existência. Novas europas foram criadas em terras sem ocupação,
descobertas em meio às águas, e o que a Bretanha e a Escandinávia já eram
para a Europa desde épocas anteriores, agora a América e a Austrália, e até
certo ponto a África subsaariana, se tornaram para a Eurásia. Grã-Bretanha,
Canadá, Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Japão são agora um anel
de bases externas e insulares para o poder marítimo e de comércio,
inacessível ao poder terrestre da Eurásia.
Mas o poder terrestre ainda permanece, e os acontecimentos recentes
voltaram a aumentar a sua importância. Enquanto os povos marítimos da
Europa ocidental cobriram o oceano com suas frotas, colonizaram os
continentes exteriores e, em graus variados, fizeram as margens oceânicas
da Ásia tributárias suas, a Rússia organizou os cossacos e, emergindo de
suas florestas setentrionais, policiou as estepes ao assentar ali seus próprios
nômades em combate com os nômades tártaros. O século [da dinastia]
Tudor viu a expansão da Europa ocidental para o mar, viu também o poder
russo se desenvolver a partir de Moscou em direção à Sibéria. O ataque
violento dos cavaleiros para o leste, cruzando toda a Ásia, foi um fato quase
tão prolífico de consequências políticas como foi o contorno do cabo da
Boa Esperança, embora esses dois eventos estivessem, por muito tempo,
separados.
É, provavelmente, uma das coincidências mais marcantes da história
que a expansão marítima e a expansão terrestre da Europa deveriam, em
certo sentido, continuar a antiga oposição entre romanos e os gregos.
Poucos fracassos tiveram consequências de maior alcance do que o fracasso
de Roma em latinizar os gregos. Os teutônicos foram civilizados e
cristianizados pelos romanos, e os eslavos principalmente pelos gregos.
Foram os teutônicos romanos que, nas épocas mais recentes, embarcaram
rumo ao oceano; foram os eslavos gregos que cavalgaram sobre as estepes,
conquistando os turanianos. Assim, o poder terrestre moderno difere do
poder marítimo não menos na fonte de seus ideais do que nas condições
materiais de sua mobilidade85.
Na vigília dos cossacos, a Rússia emergiu na segurança de seu
isolamento nas florestas do norte. Talvez a mudança de maior importância
intrínseca que teve lugar na Europa, no século passado, foi a migração dos
camponeses russos para o sul, de modo que, enquanto as ex-colônias
agrícolas terminavam na fronteira da floresta, o centro da população de toda
a Rússia europeia encontra-se agora para o sul desse limite, no meio dos
campos de grãos que substituíram as estepes a oeste. Odessa tem aqui se
destacado com a rapidez de uma cidade americana.
Uma geração atrás, os navios a vapor e o canal de Suez pareceram ter
aumentado a mobilidade do poder marítimo em relação ao poder terrestre.
As ferrovias atuaram, principalmente, como alimentadoras do comércio em
alto-mar. Mas as ferrovias transcontinentais agora estão mudando as
condições do poder terrestre, e em nenhum lugar elas tiveram tanto efeito
como no heartland da Eurásia, em vastas áreas onde nem madeira e nem
pedra estavam disponíveis para a construção de estradas. As ferrovias
fazem as maiores maravilhas na estepe, porque substituem diretamente a
mobilidade do cavalo e do camelo. O atual estágio de desenvolvimento das
rodovias foi aqui omitido.
Na questão do comércio, não se deve esquecer que os tráfegos
oceânicos, embora relativamente baratos, geralmente envolvem a
manipulação das mercadorias quatro vezes – na fábrica de origem, no cais
de exportação, no cais de importação e no interior do armazém para
distribuição ao varejo pelo caminhão –, ao passo que o transporte
ferroviário continental pode ser acionado diretamente da fábrica
exportadora ao armazém de importação. Assim, o comércio oceânico nas
margens tende, igualando os outros fatores, a formar uma zona de
penetração em volta dos continentes cujo limite interno é marcado
aproximadamente por uma linha ao longo do custo de quatro
movimentações de frete oceânico, enquanto que o frete ferroviário, desde a
costa vizinha, equivale ao custo de duas movimentações do frete ferroviário
continental. Ingleses e Alemães dizem que o carvão compete, nesses
termos, através do caminho para a Lombardia.
As ferrovias russas têm um caminho limpo de 6 mil milhas de
Virbalis, a oeste, até Vladivostok, a leste. O exército russo na Manchúria é a
evidência mais significativa de poder terrestre móvel, como o exército
britânico na África do Sul é a de poder marítimo. É verdade que a ferrovia
Transiberiana ainda é uma única e precária linha de comunicação, mas o
século não terá transcorrido antes de toda a Ásia ser coberta por ferrovias.
Os espaços dentro do Império Russo e da Mongólia são tão vastos, e suas
potencialidades em população, trigo, algodão, combustível e metais são
incalculáveis. Isso inevitavelmente vai se transformar num vasto mundo
econômico que, mais cedo ou mais tarde, será inacessível ao comércio
oceânico.
Ao considerarmos esta revisão rápida das correntes mais amplas da
história, uma certa persistência de relações geográficas não fica evidente?
Não é a região pivô da política mundial essa extensa zona da Eurásia que é
inacessível às embarcações, mas que na antiguidade estava aberta aos
cavaleiros nômades e hoje está prestes a ser coberta por uma rede de
ferrovias? Existiam e existem nela condições de mobilidade de poder
militar e econômico de longo alcance, ainda que limitado. A Rússia
substituiu o Império Mongol. Sua pressão sobre a Finlândia, a
Escandinávia, a Polônia, a Turquia, a Pérsia, a Índia e a China substituiu as
forças centrífugas das invasões dos homens da estepe. No mundo em geral,
ela ocupa posição central estratégica comparável àquela realizada pela
Alemanha na Europa. Ela pode atacar por todos os lados e ser atingida por
todos os lados, salvo ao norte. O pleno desenvolvimento da sua mobilidade
ferroviária moderna é apenas uma questão de tempo. Também não é
provável que qualquer possível revolução social vá alterar suas relações
essenciais com os grandes limites geográficos de sua existência.
Reconhecendo de forma sensata os limites de seu poder fundamental, seus
governantes se desfizeram do Alasca, pois é como uma lei política para a
Rússia não possuir nada ao longo do mar, assim como para a Grã-Bretanha
é ser suprema sobre o oceano.
 
Fig. 5 – Os assentos naturais de poder
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Fora da área pivô, em um amplo inner [interior] crescente, estão
Alemanha, Áustria, Turquia, Índia e China, e em um outer [externo]
crescente, estão Inglaterra, África do Sul, Austrália, Estados Unidos,
Canadá e Japão. Na condição atual do equilíbrio de poder, a Rússia como o
Estado pivô não é equivalente a quaisquer outros Estados periféricos, e há
espaço para um equilíbrio com a França. Os Estados Unidos recentemente
se tornaram uma potência oriental86, afetando o equilíbrio europeu, não
diretamente, mas através da Rússia, e irão construir o canal do Panamá para
tornar seus recursos do Mississipi e do Atlântico disponíveis no Pacífico.
Desse ponto de vista, a divisão real entre leste e oeste será encontrada no
oceano Atlântico.
A reviravolta do equilíbrio de poder em favor do Estado pivô,
resultando em sua expansão sobre as terras marginais da Eurásia, permitiria
o uso de vastos recursos continentais para a construção de frotas navais, e o
império mundial estaria à vista. Isso poderia acontecer se a Alemanha se
aliasse à Rússia. A ameaça de um evento como esse deve, portanto, lançar a
França em aliança com os poderes marítimos, e França, Itália, Egito, Índia e
Coreia se tornariam cabeças de ponte onde marinhas estrangeiras poderiam
apoiar exércitos para compelir os Estados pivôs a prepararem forças
terrestres, prevenindo-os de concentrar toda sua força em embarcações. Em
uma escala menor, isso é o que conseguiu fazer Wellington em sua base
marítima de Torres Vedra durante a Guerra Peninsular. Isso não pode afinal
revelar a função estratégica da Índia no sistema imperial britânico? Não é
essa a ideia subjacente à concepção do Sr. Amery de que a frente militar
britânica se estende da África do Sul até o Japão, através da Índia?
O desenvolvimento das vastas potencialidades da América do Sul
pode ter uma influência decisiva sobre o sistema. Pode reforçar os Estados
Unidos, ou, por outro lado, se a Alemanha desafiasse a doutrina Monroe
com sucesso, poderia separar Berlim do que eu talvez possa descrever como
uma política pivô. As combinações particulares de poder postos em
equilíbrio não são materiais; minha tese é que, do ponto de vista geográfico,
é provável que as combinações mais prováveis ocorram em torno do Estado
pivô, que é sempre suscetível de ser grande, mas com mobilidade reduzida
em comparação com os poderes periférico e insulares que o rodeiam.
Falei como geógrafo. O saldo real do poder político em um dado
momento, por um lado, é produto das condições geográficas, tanto
econômicas como estratégicas e, por outro lado, de números relativos:
equipamentos, bravura e organização dos povos concorrentes. Na proporção
em que estas quantidades são precisamente estimadas estamos propensos a
ajustar nossas diferenças, sem o recurso brutal das armas. E as quantidades
geográficas nesse cálculo são mais mensuráveis e mais próximas a serem
constantes do que as humanas. Portanto, devemos esperar que a nossa
fórmula se aplique igualmente à história passada e presente da política. Os
movimentos sociais de todos os tempos desenvolveram-se essencialmente
ao redor das mesmas características físicas, já que duvido que o progressivo
dessecamento da Ásia e da África, mesmo se comprovados, tenham
alterado vitalmente o meio ambiente humano em épocas históricas.
Considero que a marcha do império para oeste foi uma breve rotação do
poder marginal em volta das margens sudoeste e oeste da região pivô. As
questão dos Próximo, Médio e Extremo Oriente estão relacionadas ao
equilíbrio instável das potências interiores e exteriores naquelas partes do
crescente periférico onde o poder local é, no presente, mais ou menos
insignificante.
Em conclusão, seria correto apontar que a implantação de algum novo
controle da área interior, em substituição ao controle da Rússia, não tenderia
a reduzir o significado geográfico da posição pivô. Fossem os chineses, por
exemplo, organizados pelos japoneses para derrubar o Império Russo e
conquistar seu território, eles poderiam constituir o perigo amarelo para a
liberdade do mundo só porque eles acrescentariam uma frente oceânica aos
recursos do grande continente, uma vantagem que, até agora, a Rússia
negou como inquilina da região pivô.
 
*****
 
DEBATES APÓS A LEITURA DO TEXTO*
*NOTA DOS TRADUTORES: Estes debates realizados após a leitura do texto por
Mackinder na Real Sociedade Geográfica de Londres não consta na edição da National
Defense University Press, a partir da qual esta obra foi traduzida. Mas, por consideramos
esses debates como importantes – inclusive o Autor, no texto que publicou após essa
leitura, faz referências a eles –, resolvemos transcrevê-los aqui a partir da tradução feita por
Thiago Alberto Coloda e Bianca de Andrade, publicada na Revista de Geopolítica, Natal-
RN, v. 2, nº 2, p. 3 – 27, jul./dez. 2011.
 
Antes da leitura do documento, o presidente disse: “Estamos sempre
muito felizes quando podemos induzir o nosso amigo, Sr. Mackinder, a se
dirigir a nós sobre qualquer assunto, porque tudo que ele nos diz com
certeza é interessante, original e valioso. Para mim não há necessidade de
apresentar um velho amigo da Sociedade e, portanto, vou pedir-lhe para ler
o seu artigo”.
E após a leitura do artigo, o presidente disse: “Esperamos que o Sr.
Spencer Wilkinson venha oferecer algumas críticas sobre o trabalho do Sr.
Mackinder. É claro que não será possível evitar a política geográfica em
certa medida”.
SPENCER WILKINSON87: “Ocorreu-me que a coisa mais natural e
mais sincera de se dizer, no início, é tentar expressar a gratidão que, estou
certo, cada um aqui sente por ter ouvido a exposição de um dos trabalhos
mais estimulantes que li por um longo tempo. Quando eu estava vendo o
texto, olhei com pesar para algumas cadeiras que estão aqui desocupadas, e
lamento profundamente que uma parte delas não fosse ocupada por
membros do gabinete [do governo de sua Majestade], porque eu concluí
que no trabalho do Sr. Mackinder há duas principais doutrinas
estabelecidas: a primeira, que não é totalmente nova – eu acredito que foi
previsto há alguns anos atrás, no século passado – que desde a melhoria da
navegação a vapor moderna foi estabelecido um sistema político único em
todo o mundo. Não me lembro da expressão exata que o Sr. Mackinder
usou, acho que ele disse que a diferença era algo como entre um escudo cair
em uma estrutura fechada e caindo do espaço. Eu gostaria de expressar o
mesmo, dizendo que, ao passo que apenas meio século atrás os estadistas
ocupavam algumas casas de um tabuleiro de xadrez, enquanto o restante
dele estava vago; nos dias de hoje o mundo é um tabuleiro de xadrez
fechado, e todos os movimentos dos estadistas devem levar em conta todas
as casas do mesmo. Eu mesmo só posso desejar que tivéssemos ministros
que pudessem ter mais tempo para estudar as suas políticas a partir do ponto
de vista que não se pode mover qualquer peça sem considerar todos as casas
do tabuleiro. Estamos muito acostumados a olhar nossa política como se ela
fosse cortada em compartimentos à prova d’água, como se cada um deles
não tivesse qualquer ligação com o resto do mundo, ao passo que me parece
que o grande fato de hoje é que qualquer movimento que seja feito em uma
parte do mundo afeta o conjunto das relações internacionais mundiais – o
que, parece-me, é lamentavelmente negligenciado, tanto na política
britânica como nas discussões populares, e sou extremamente grato ao Sr.
Mackinder por ter previsto isso com tanta tensão em seu texto. Então, o
outro ponto – o ponto principal, na minha opinião, que ele trouxe para nós –
é realmente sobre a enorme importância para o mundo da moderna
expansão da Rússia. Eu não posso dizer que estou plenamente convencido
de algumas analogias históricas do Sr. Mackinder, ao menos que encaremos
o texto como se ele nos levasse a um caminho adiante. O Sr. Mackinder nos
levou até 400 anos atrás, e nos falou da época colombiana. Bem, eu não
posso ser capaz de ir 400 anos em frente; se alguém puder ir uma geração
adiante, seria um grande feito se alguns de nós pudesse gerenciá-la. Agora,
esses grandes movimentos de tribos da Ásia central para a Europa e para os
diferentes países marginais podem, penso eu, serem superestimados em sua
importância. Eles deixaram sobreviventes ocasionais do passado, mas não
deixaram o mundo muito mais rico em ideias, e muito raramente
representaram qualquer alteração permanente das condições da
humanidade, e eles têm sido possíveis porque as forças de expansão da Ásia
central bateram sobre uma Europa muito dividida. Por exemplo, o
movimento dos turcos otomanos, e antes os movimentos turcos sobre o
Império Bizantino e a região que tinha sido o Império Bizantino,
invariavelmente, atingiu regiões em que o governo estava em decadência ou
obsoleto, e a maior parte dos movimentos que atingiu a Europa central, ao
norte do mar Negro, alcançaram a Europa num momento em que o governo
estava muito pouco organizado, e quando os Estados tinham muito pouca
solidariedade entre si. Portanto, eu espero que eles não proporcionem
confrontos futuramente; e eu deveria estar disposto a viver sobre o
fenômeno do contrabalanço, que você teve no oeste da Europa em uma
pequena ilha, que, após ter atingido a sua própria unidade política, e tendo
vivido um conflito pela sua própria independência, desenvolveu seu poder
marítimo, sendo capaz de afetar as regiões marginais para adquirir uma
enorme influência que nos foi revelada no mapa no qual o Sr. Mackinder
mostrou o Império Britânico, de modo exagerado, porque é um mapa na
projeção de Mercator, que exagera o Império Britânico, com exceção da
Índia. Minha crença é que um Estado insular como o nosso pode, se manter
o seu poder naval, e assegurar no equilíbrio entre as forças divididas que
atuam na área continental, e eu acredito que isso tenha sido a função
histórica da Grã-Bretanha desde que se tornou um Reino Unido. Agora nós
encontramos um Estado menor em ascensão ao lado oposto do continente
eurasiático, e não vejo uma razão preocupante para supor que esse Estado
não seja capaz de exercer na orla oriental do continente asiático um poder
decisivo e de influência igual ao que as ilhas Britânicas, com uma
população menor, exerce sobre a Europa”.
 
SIR THOMAS HOLDICH88: “Quando se faz uma leitura como a que
o Sr. Mackinder acaba de nos propiciar, tão cheia de pensamentos e tão
completamente bem elaborada, com tal quantidade de informações para a
reflexão, ele tem uma grande capacidade de assimilação moral, e muito
mais segurança do que eu possuo, quer para criticar ou mesmo para discutir.
Mas não é apenas uma questão que eu gostaria de perguntar ao Sr.
Mackinder, e em correlação aos fatos das condições geográficas com a
história da raça humana, parece-me mesmo um pouco menos importante. O
Sr. Mackinder disse-nos que, no início das coisas, as raças mongóis
começam a partir de um centro na alta Ásia, espalhando-se para fora, para o
oeste, sul e leste, encontrando, no entanto, o Tibete como uma barreira
impossível em seu caminho, e nunca exatamente ocupando a Índia. Mas
devemos lembrar que antes de os mongóis se espalharem, havia outras
tribos da Ásia central que espalhavam-se igualmente em distritos que não
estavam tão longe da posição que os mongóis ocuparam pela primeira vez –
os citas e os arianos –, e que eles conseguiram encontrar o caminho para a
Índia. Isso, no entanto, é uma questão de detalhe. O que eu gostaria de saber
do Sr. Mackinder é o que ele considera ser o motivo original da expansão
extraordinária do país que estamos dispostos a considerar ser o berço da
raça humana89, para todas as diferentes partes do mundo. Era simplesmente
o instinto nômade do povo, uma espécie de compulsão hereditária que os
obrigava a fluir para o exterior, ou foi uma alteração real nas características
físicas do país em que moravam? Sabemos que as condições físicas do
mundo se alteraram muito ao longo do tempo, e parece-me impossível
conciliar a ideia de um país com grande território, que deve ter tido uma
população abundante, e ter suportado essa população. Somente você pode
dizer como em condições de um poder agrícola abundante, tais pessoas
tiveram o desejo de migrar e vagar por outras partes do mundo, procurando
não se sabe o que. Imagino, mesmo, que um dos grandes motivos, um dos
grandes motivos convincentes, é que todas estas migrações têm sido
realmente provocadas por uma alteração das condições físicas da terra. Esse
é um ponto que me parece ser bastante importante quando estamos
discutindo um assunto como este, que traz as condições da geografia como
suporte sobre os fatos da história. Existe apenas outra questão que foi pouco
referida, e dubiamente pelo Sr. Mackinder, que eu posso mencionar. Ele
apontou para a América do Sul como um possível fator nesse cinturão
externo de poder, que seria levar a coerção para suportar a força interior de
giro sobre o sul da Rússia. Agora, pelo que eu tenho visto ultimamente, não
tenho a menor dúvida de que esse será o caso. Eu olho a enorme
potencialidade da América do Sul como uma potência naval. Eu acredito
que, no curso de, digamos, o próximo meio século, apesar de o fato de que
agora a Argentina vendeu dois navios para o Japão e Chile, vendeu um par
de navios para nós – a despeito desse fato, haverá um aumento da força
naval da América do Sul, decorrentes de causas puramente naturais, para a
defesa de sua própria costa e a proteção do seu próprio tráfego, que só será
comparável ao extraordinário desenvolvimento que vimos durante a última
metade do século no Japão. Isto parece-me, certamente, ser um dos fatores,
se olharmos adiante, com o qual, no futuro da política naval do mundo,
teremos que reconhecer”.
 
Sr. AMERY90: “Eu acho que é sempre muito interessante se
pudermos ocasionalmente ficar longe dos detalhes da política cotidiana e
tentar ver as coisas como um todo, e isso é o que a leitura do Sr. Mackinder
mais tem nos estimulado esta noite. Ele nos deu toda a história e política
comum em uma grande síntese abrangente. Lembro-me de quando estudei
Heródoto na universidade, ele fez toda a história baseada sobre a grande
luta entre o leste e o oeste. O Sr. Mackinder faz toda a história e política
baseada no mesmo, sobre a grande luta econômica entre o grande interior
do coração continental Eurasiático e as pequenas regiões marginais e ilhas
externas. Eu não tenho certeza de que essas duas lutas não são uma – ou a
mesma –, porque agora nós descobrimos que o mundo é uma esfera, leste a
oeste têm apenas existência em termos relativos. Eu poderia criticar uma
coisa que o Sr. Mackinder disse, quando ele fala da Rússia como herdeira
da Grécia. Não era a herdeira da antiga Grécia helênica, mas do Bizantino,
e o Bizantino era herdeiro da antiga monarquia Oriental com a linguagem
grega e um toque de civilização romana jogado sobre ele. Gostaria de
voltar, se eu pudesse, por um momento a esta fundação geográfica e
econômica a qual o Sr. Mackinder construiu a base desta leitura. Eu acho
que poderia imaginar algo um pouco diferente. Há, a meu ver, não duas,
mas três forças econômico-militares. Se começarmos com o mundo antigo,
você tem uma divisão geográfica ampla para a ‘estepe’ do interior, uma
terra marginal rica adequada para a agricultura, e o litoral; e você tem em
correspondência com elas, três sistemas econômicos e militares. Há o
sistema econômico e militar do país agrícola, o sistema do litoral e as
pessoas da borda marítima, e o sistema das estepes; cada um tinha suas
peculiares fraquezas e fontes próprias de força. O mais forte em muitos
aspectos foi o Estado marginal e agrícola. Lá você teve os grandes impérios
militares, o egípcio, o babilônico, o império romano, o seu grande exército
e infantaria de camponeses, o seu grande desenvolvimento da riqueza. Mas
havia alguns elementos de fraqueza. Sua própria prosperidade, ou os
defeitos de sua forma de governo, levaria finalmente à preguiça e fraqueza.
Agora, fora aquele, você tem outros dois sistemas. Você teve o sistema de
estepe, cuja força militar se estabeleceu, primeiramente, por sua
mobilidade, e, secundariamente por sua inacessibilidade ao poder agrícola
mais lento. Quanto às supostas ‘hordas’ de invasores que vieram do interior,
eu não acredito que sempre houve grandes hordas e grandes populações no
interior. O fato é este, as populações das estepes eram pequenas como
agora, mas tinham ampla mobilidade diante de exércitos que eram mais
pesados e lentos e não conseguiram atacá-las. Em tempos normais, quando
os Estados agrícolas eram fortes, os povos das estepes simplesmente fugiam
deles, e os outros encontraram muita dificuldade para conquistá-los. Você se
lembra da dificuldade das legiões romanas diante dos partas, e eu acho que
nós podemos encontrar um exemplo muito mais recente da dificuldade de
um estado civilizado na conquista de um poder estepe. Pouco tempo atrás,
todo o exército britânico esteve ocupado na tentativa de forçar cerca de
40.000 ou 50.000 agricultores que viviam em uma terra de estepe seca.
Aquela fotografia que o Sr. Mackinder estava me mostrando lembra
exatamente do que poderia ter sido evitado alguns meses atrás, na África do
Sul. Quero dizer, essa figura de vagões cruzando o rio estava, exceto para a
forma do telhado sobre o vagão, exatamente como a figura do comando dos
bôeres atravessando um vento. Tivemos a mesma dificuldade que todos os
poderes civilizados tiveram com as pessoas da estepe. Agora, sempre que os
poderes nos países civilizados periféricos vêm crescendo e permitindo que
pequenos exércitos sejam contratados para fazer o seu trabalho, eles
entraram em dificuldades, e é aí onde, me parece, a força das estepes
sempre entra. Não há nenhuma grande força econômica na base, mas o fato
de que eles poderiam se retirar em seus desertos inacessíveis, e vir sobre
outros em momentos de fraqueza, deram ao povo das estepes seu poder.
Então há o terceiro sistema, o dos povos da costa marítima: tinham muito
menos força militar genuína, mas eles tiveram maior mobilidade – a
mobilidade, quero dizer, dos vikings ou dos sarracenos quando governaram
o Mediterrâneo, e dos ingleses elisabetanos quando enfrentaram a Espanha.
Chegando aos tempos mais modernos, tem havido certa mudança ainda
maior nas condições agrícolas, e no desenvolvimento, fora dos velhos
Estados agrícolas das nações industrializadas.
Então eu iria notar, também, que muitos países que foram de estepes
tornaram-se agrícolas e industriais. Você tem isso, e você tem também o
fato de que, muito raramente na história, você tem um Estado aumentado
seu poder sistêmico sozinho. Os turcos começaram por ser um povo das
estepes, e desceram e tomaram conta da Ásia Menor; eles então formaram
uma força militar regular, e construíram o grande império turco; finalmente,
por um período se tornaram a principal potência naval no Mediterrâneo. Da
mesma forma, você encontra os romanos, que, a fim de vencer os
cartagineses, tornaram-se um poder marítimo tão bom quanto no poder
terrestre; e, de fato, para um poder ser grande, deve ter finalmente estes dois
poderes. Os romanos eram uma grande potência militar com a região
marginal como sua base e com o poder do mar atrás deles. Nós mesmos
sempre tivemos como base a riqueza industrial da Inglaterra. O Império
Russo, que abrange a região das grandes estepes, que não está mais nas
mãos dos povos da idade das estepes, é realmente uma parte do mundo
agrícola, que conquistou economicamente a estepe e está se transformando
em uma grande potência agrícola e industrial e, portanto, dando um poder
que a estepe genuína nunca teve; o Sr. Mackinder se refere ao fato de que
foi apenas no século passado que as raças agrícolas ocuparam e povoaram
as estepes do sul da Rússia propriamente dita, dominando-as por completo.
E eles estão fazendo o mesmo na Ásia central; de fato, o antigo povo da
estepe tem sido totalmente comprimido, e você tem, aproximando-se mais,
dois poderes industriais-militares: um saindo de um centro continental, e
outro começando a partir do mar, mas gradualmente indo mais para o
continente a fim de formar uma grande base industrial. Sem um poder
marítimo próprio, porque ainda lhe falta a grande indústria, e apesar de ter
uma população grande , [a Rússia] é muito fraca para ameaçar e realmente
se manter na luta mundial. Eu não pretendo fazer muito mais observações,
mas há apenas um ponto, uma palavra que o Sr. Mackinder me sugeriu. A
mobilidade a cavalo e camelo realmente passou, e agora é uma questão de
mobilidade ferroviária contra uma mobilidade no mar. gostaria de dizer que
a mobilidade no mar tem aumentado enormemente seu poderio militar em
relação ao que era antigamente, especialmente o número de homens que
podem ser transportados. Nos velhos tempos, os navios tinham mobilidade
suficiente, porém, eles levavam poucos homens, e as incursões dos povos
marítimos eram relativamente fracas. Não estou a sugerir nada de político
agora, apenas afirmo um fato, que quando digo que o mar é muito melhor
para transportar tropas do que qualquer outro meio, a exceção, claro, de
quinze ou vinte linhas de estrada de ferro paralelas. O que eu me refiro a
isto: é que o mar e a estrada de ferro vão futuramente – pode ser logo ou
pode demorar um pouco – serem completados pelo ar como meio de
locomoção, e quando chegamos ao que (como estamos falando das grandes
épocas colombianas, eu acho que pode ser permitido olhar um pouco para a
frente) – quando chegarmos a isso, uma grande ação de distribuição
geográfica deve perder a sua
importância, e os poderes bem sucedidos serão aqueles que têm a maior
base industrial. Não importa se eles estão no centro de um continente ou
numa ilha, as pessoas que detiverem o poder industrial, o poder da
invenção, o poder da ciência, serão capazes de derrotar todos os outros.
Deixarei isso como uma sugestão de despedida”.
 
Sr. HOGARTH91: “Como é tarde e a temperatura está bastante baixa,
não vou ocupar o tempo com observações muito longas. Nós tivemos,
certamente, um texto maravilhosamente sugestivo, e acho que não é
necessário informar o leitor sobre o texto, e ninguém que tenha ouvido isso
tentou e pensou de forma imperial. Gostaria apenas de perguntar ao Sr.
Mackinder, quando ele responder, para me esclarecer sobre um ponto. Será
que ele realmente quer dar a entender que – eu acho que é um fato
interessante, se a intenção for realmente essa – se o estado de coisas que se
passa no interior da área pivô será totalmente diferente de tudo o que foi
visto lá antes? Ou seja, algo como se um estado estacionário de coisas tem
sido questionado, e o país está sendo desenvolvido, até que ele seja mesmo
capaz de exportar seus produtos para o resto do mundo, e por isso nunca
veremos novamente o estado de coisas que já existiu em toda a história
antiga, em que uma grande região central, que tem continuamente enviado
suas populações para oeste, rumo aos países marginais, enquanto esses
países têm devolvido as suas influências da civilização, cada uma
funcionando sobre a outra. A última observação que eu gostaria de fazer é
de reforçar a objeção do Sr. Amery à continuidade histórica greco-eslava
proposta pelo Sr. Mackinder. Receio que não posso aceitar a divisão da
civilização entre os gregos e os romanos. A Rússia pode ser chamada de um
país civilizado neste momento, penso eu, não por ter sido civilizada pela
Igreja Ortodoxa, na verdade eu ainda tenho que aprender sobre alguma
influência civilizadora exercida pela Igreja Ortodoxa em grande escala. Sua
civilização é muito mais devido à cultura social que foi introduzida por
Pedro, o Grande, e que era mais romano do que grego. Mas é à minha
primeira pergunta que eu gostaria que o Sr. Mackinder desse uma resposta
clara. Gostaria de saber o que ele prevê seriamente sobre qual será o efeito
no mundo desta nova distinção entre as áreas periféricas e o pivô central”.
 
Sr. MAKINDER: “Eu tenho que agradecer a todos os oradores por
pontilhar os meus “is” e por cortar os meus “ts”. Estou encantado por
encontrar a minha fórmula de trabalho tão bem entendida. Eu quero dizer
exatamente o que diz o Sr. Hogarth, quero dizer que pela primeira vez na
história registrada – e isto é em resposta a Sir Thomas Holdich também –
você tem uma grande população estacionária sendo desenvolvida nas
estepes. Esta é uma revolução mundial que temos que enfrentar e
considerar. Duvido muito, e aí eu concordo com o Sr. Amery, que os
números que vieram do coração da Ásia eram muito grandes. Parece-me
que, como ele coloca, a sua mobilidade era a própria essência da coisa toda.
Um pequeno número de pessoas vindo das estepes poderia fazer muitas
coisas, dada a mobilidade relativa em comparação com a população
agrícola. Com relação a questão do Sir Thomas Holdich sobre o que deve
tê-los enviado adiante, Sir Clements Markham apontou que os nômades não
migram de uma única vez. Eu tratei com o fato de que durante mil anos os
povos nômades vieram através da Rússia. Não vejo que, quando você tem
essa constante sucessão de descidas às terras periféricas, você é chamado a
perguntar sobre qualquer mudança física especial para explicá-la. Devido
aos registros que temos, desde os tempos gregos mais antigos, descrevendo
os bebedores de leite das éguas, e retratando o modo de vida nômade, eu
começo com o fato de que estes povos eram nômades e permaneceram
nômades por dois mil anos, e eu não vejo nenhuma evidências de que nós
precisamos pôr a explicação em qualquer grande mudança no meio
ambiente, ou assumir qualquer grande concentração populacional. Tanto
quanto eu posso ver, Sven Hedin recusa a ideia de que se deve
necessariamente recorrer a uma grande mudança climática, a fim de
explicar a existência de migrações vindas da Ásia central. Você tem ventos
fortes e muita areia, e de vez em quando a areia é varrida ao longo de
centenas de milhas através do deserto. A areia determina o fluxo dos rios e
a posição dos lagos, e algumas grandes tempestades desviam um rio para
outro curso, o suficiente sem dúvida para arruinar uma cidade abandonada
pela água. O simples fato é que havia nômades, e que não foram os países
ricos a serem saqueados. Isso me parece quase suficiente para a minha
teoria. No futuro, penso eu, você é obrigado a ter diferentes províncias
econômicas, umas baseadas principalmente no mar e outras no coração do
continente sobre ferrovias. Eu não acho que o Sr. Amery tem considerado
suficientemente o fato de haver exércitos muito maiores que não podem ser
movidos maritimamente. Os alemães marcharam cerca de um milhão de
homens para a França, eles marcharam e usaram as ferrovias para o
reabastecimento. A Rússia, por seu sistema de tarifas, por outro lado,
experimenta constante aceleração na realização do que eu posso chamar de
sistema não oceânico. Toda sua política, pelo seu sistema de tarifas, por sua
quebra de bitola no transporte ferroviário, consiste em separar-se da
concorrência externa oceânica.92 No que diz respeito aos fundamentos da
riqueza industrial para o poder marítimo, eu concordo absolutamente. O que
eu sugiro é que, a grande riqueza industrial na Sibéria e na Rússia europeia
– e uma conquista de algumas das regiões marginais – daria a base para
uma frota necessária para fundar o império mundial. O Sr. Amery tem uma
forma de colocar os três poderes um pouco diferente da minha, mas é
essencialmente a mesma. Eu questiono sobre uma mobilidade interna
terrestre, uma margem densamente povoada, e sobre as forças marítimas
externas. É verdade que os homens a camelo e a cavalo estão
desaparecendo, mas minha sugestão é que o transporte ferroviário irá tomar
o seu lugar, e então você será capaz de poder ir de um lado a outro desta
área. Meu objetivo não é de prever um grande futuro para este ou aquele
país, mas fazer uma fórmula geográfica que pode se adaptar a qualquer
equilíbrio político. Houve um ponto em relação aos gregos-eslavos: no
sentido em que o Sr. Hogarth e Sr. Amery tenham me questionado, eu
concordo com eles, mas depois de tudo, o que eu não posso deixar de sentir
é que o cristianismo caiu em dois solos muito diferentes – o filosófico grego
e o jurídico romano, os teutônicos e os eslavos, e que os tem influenciado
de formas diferentes. No entanto, isso é um mero incidente, e se eu
qualifico a minha declaração falando dos bizantinos, vou então chegar perto
do que o Sr. Amery pergunta, e eu acho não há a necessidade de introduzir
os exemplos de Roma, que o Sr. Hogarth apresentou. No que se refere às
potencialidades da terra e do povo, gostaria de salientar que hoje, na
Europa, são mais de 40 milhões de pessoas na estepe russa, e não de forma
ainda densamente ocupada, e provavelmente a população russa vai
aumentar mais depressa do que qualquer outra grande população civilizada,
ou semicivilizada, no mundo. Com uma população francesa decrescente, e
um aumento mais lento da britânica, e as populações de nativos dos Estados
Unidos e Austrália quase chegando a uma estagnação, você tem que encarar
o fato de que, em cem anos, 40 milhões de pessoas ocuparam um simples
canto da estepe. Acho que você está no caminho para uma população que
será numerada na casa dos cem milhões, e esta é uma tendência que você
deve levar em conta na atribuição de valores às quantidades variáveis de
população, na equação do poder para o qual eu estava buscando uma
fórmula geográfica. O ponto que diz respeito à Coreia e ao golfo Pérsico,
que foi colocado pelo Sr. Spencer Wilkinson, ilustra exatamente a minha
correlação das questões do Extremo Oriente, Oriente Médio e Oriente
Próximo. Eu represento isso como sendo a atual forma temporária de
colisão entre as forças internas e as externas agindo através da zona
intermediária, que é a sede das forças independentes. Concordo plenamente
que a função da Grã-Bretanha e do Japão é agir sobre a região marginal,
mantendo o equilíbrio de poder contra as forças expansivas internas. Eu
acredito que o futuro do mundo depende da manutenção desse equilíbrio de
poder. Parece-me que a nossa fórmula deixa claro que devemos cuidar para
que não sejamos expulsos da região periférica. Devemos manter nossa
posição e, então, aconteça o que acontecer, estaremos bastante seguros. O
aumento da população nas regiões do interior e a estagnação do crescimento
nas regiões periféricas podem ser bastante sérios, mas talvez a América do
Sul venha para nos ajudar”.
 
O PRESIDENTE93: “Eu confesso que tenho estado fascinado pelo
texto do Sr. Mackinder, e eu podia ver pela atenção com que foi ouvido pela
plateia que todos compartilhavam o meu sentimento a este respeito. O Sr.
Mackinder tem trabalhado a velha história desde os primórdios da história,
a luta entre Ormuzd e Ahriman94, e ele mostrou-nos como a luta continuou
desde os primórdios da história até os dias atuais. Ele explicou tudo isso
para nós com um brilho de descrição e de ilustração, com uma compreensão
aguda sobre o assunto, e com uma clareza de argumentação que raramente
tivemos igual nesta sala. Tenho certeza que será dado votos unânimes de
agradecimento ao Sr. Mackinder por seu trabalho interessante desta noite”.
 
 
 
O MUNDO REDONDO E O TRIUNFO DA PAZ *
*The Round World and the Winning of the Peace. In: Foreign Affairs, Vol.21 (July 1943),
pp. 595-605.
 
Pediram-me para levar adiante alguns dos temas com os quais lidei
em meus escritos anteriores, em particular para considerar se o meu
conceito estratégico de ''heartland'' perdeu todo o seu significado sob as
condições da guerra moderna. A fim de definir o conceito em seu contexto,
devo começar com um breve relato de como originalmente ele se formou.
Minha memória mais antiga de assuntos públicos remonta ao dia de
setembro de 1870 quando, ainda menino, acabava de começar a frequentar a
escola secundária local. Levei para casa a notícia, que aprendi com um
telegrama afixado na porta do correio, que Napoleão III com todo seu
exército se rendeu aos prussianos em Sedan. Isso foi um choque para os
ingleses, que ainda se moviam mentalmente após Trafalgar e a retirada de
Moscou, mas o efeito total disso não foi percebido até alguns anos depois.
A supremacia da Grã-Bretanha nos oceanos ainda não tinha sido desafiada,
e o único perigo que ela via naquele momento para seu império ultramarino
estava na posição asiática da Rússia. No decorrer neste período, os jornais
de Londres eram rápidos em detectar evidências de intrigas russas em todos
os rumores de Constantinopla e em todos os distúrbios tribais ao longo da
fronteira noroeste da Índia.
Trinta anos depois, na virada do século, [o almirante Alfred] Von
Tirpitz começou a construir uma frota alemã de alto mar. Eu estava, nesse
momento, ocupado na configuração do ensino de geografia política e
histórica nas universidades de Oxford e Londres, e estava observando os
eventos atuais como um professor, de olho para generalização. O
movimento alemão significava, eu enxerguei, que essa nação que já possuía
a maior terra organizada e ocupava uma posição estratégica na parte central
da Europa, estava prestes a se tornar um poder forte o suficiente no mar
para neutralizar o poder marítimo britânico. Os Estados Unidos também
estava subindo continuamente ao posto de grande potência. Por enquanto,
no entanto, seu aumento só poderia ser medido em tabelas estatísticas,
embora na minha infância, alguém já havia ficado impressionado com a
desenvoltura americana, pois eu lembro em nossa sala de aula, na escola,
uma foto da batalha entre o Merrimac e o Monitor95, a primeira nave
blindada e o primeiro navio-torre. Assim, logo surgiram os Estados Unidos
e a Alemanha ao lado da Grã-Bretanha e da Rússia como grandes potências
mundiais.
Os eventos particulares dos quais surgiu a ideia do heartland foram
a guerra britânica na África do Sul e a guerra russa na Manchúria. A guerra
da África do Sul terminou em 1902, e na primavera de 1904, a guerra russo-
japonesa era claramente iminente. O texto que apresentei na Royal
Geographical Society no início desse último ano, intitulado "O Pivô
Geográfico da História", portanto, tinha por base eventos da atualidade, mas
também um pano de fundo de muitos anos de observações e reflexões.
O contraste apresentado pela guerra britânica contra os bôeres, onde
se lutou a 6 mil milhas de distância através do oceano, e a guerra travada
pela Rússia em uma distância comparável através da extensão por terra pela
Ásia, naturalmente sugeria um contraste paralelo entre Vasco da Gama
contornando o cabo da Boa Esperança em sua viagem às Índias, perto do
final do século XV, e a cavalgada de Yermak, o cossaco, à frente de seus
cavaleiros, ao longo da cordilheira dos Urais até a Sibéria, no início do
século XVI. Essa comparação, por sua vez, levou a uma revisão da longa
sucessão de invasões feitas pelas tribos nômades da Ásia central, através da
antiguidade clássica e da Idade Média, sobre as populações assentadas no
crescente dos subcontinentes: Europa peninsular, Oriente Médio, Índias e
China propriamente dita. Minha conclusão foi que:
 
Na presente década, estamos pela primeira vez em uma posição de
tentar, com algum grau de integridade, uma correlação entre as
generalizações geográficas mais amplas e as generalizações
históricas igualmente amplas. Pela primeira vez, podemos perceber
algo da real proporção de recursos e eventos no palco de todo o
mundo, e podemos buscar uma fórmula que deve expressar certos
aspectos de alguma forma qualquer da causalidade geográfica na
história universal. Se nós formos felizes, essa fórmula deve ter um
valor prático como uma configuração das perspectivas de algumas
das forças concorrentes na atual política internacional.
 
A palavra heartland ocorreu uma vez no artigo de 1904, mas
incidentalmente como um termo descritivo e não técnico. As expressões
"área pivô” e "Estado pivô "foram usados em seu lugar da seguinte
maneira:
 
O excesso de equilíbrio de poder em favor do Estado pivô,
resultado de sua expansão sobre as terras marginais da Euro-Ásia,
permitiria o uso de vastos recursos continentais para construção de
frotas, e o império do mundo estaria então à vista. Isso poderia
acontecer se a Alemanha se aliasse com a Rússia. Em conclusão,
podemos expressamente apontar que a substituição da Rússia por
algum novo controle da área do interior, não tenderia a reduzir a
importância geográfica da posição pivô. Fossem os chineses, por
exemplo, organizados pelos japoneses para derrubar o Império russo
e conquistar seu território, e eles poderiam constituir o perigo
amarelo para a liberdade no mundo só porque eles acrescentariam
uma fachada oceânica aos recursos do grande continente.
 
No final da Primeira Guerra Mundial, meu livro "Ideais
democráticos
e Realidade" foi publicado em Londres e em Nova Iorque. Claramente o
rótulo "pivô", que era apropriado para uma tese acadêmica no início do
século, e não era mais adequado ao cenário internacional tal como ele
emergiu daquela primeira grande crise da nossa revolução mundial: daí o
uso de "Ideais", "Realidades" e “Heartland". Mas o fato é que, mesmo
quando critérios adicionais foram aplicados, a tese de 1904 ainda era
suficiente como pano de fundo para uma estimativa da posição quinze anos
depois [em 1919], o que nos deu a certeza de que a fórmula procurada havia
sido encontrada.
 
*****
 
Voltamo-nos agora para o objetivo principal do presente artigo: a
elaboração de uma estimativa provisória do valor do conceito de heartland
em uma pesquisa preliminar sobre o mundo vindouro [aquele após a
Segunda Guerra Mundial]. Deve-se entender que estou lidando com
estratégia, que sem dúvida é eficaz em tempos de paz não menos do que em
tempo de guerra. Não tenho a presunção de me juntar aos grandes debates
já em curso, que imaginam cenários ao longo das várias gerações que virão.
Eu centralizo meus pensamentos nos anos durante os quais o inimigo ainda
está a ser contido enquanto, na linguagem de Casablanca96, sua filosofia de
guerra está sendo liquidada.
O heartland é a parte norte e o interior da Eurásia. Isto estende-se
desde a costa do Ártico até os desertos centrais, e tem como limites a oeste
o amplo istmo entre o mar Báltico e o mar Negro. O conceito não admite
definição precisa no mapa pela razão que é baseado em três aspectos
separados da geografia física, que, embora se reforcem mutuamente, não
são exatamente coincidentes. Primeiro de tudo, temos nesta região, de
longe, a planície mais ampla da face do globo. Em segundo lugar, flui
através dessa planície alguns grandes rios navegáveis; alguns deles vão para
o norte, para o mar Ártico, e são
inacessível pelo oceano porque este é entupido por gelo, ao passo que
outros fluem para águas interiores, como o mar Cáspio, que não têm saída
para o oceano. Em terceiro lugar, existe aqui uma zona de pastagem
[estepes] que, até no último século e meio, apresentava condições ideais
para o deslocamente de alta mobilidade dos povos nômades montados em
camelos e cavalos. Das três características mencionadas, as bacias
hidrográficas são as mais fáceis de serem representadas cartograficamente;
a divisão de água que delimita todo o grupo de rios árticos e "continentais"
em uma única unidade isolam nitidamente no mapa uma vasta área coerente
que é a heartland de acordo com esse critério particular. A mera exclusão da
mobilidade marítima e do poder marítimo, entretanto, é um diferencial
negativo, embora importante; era a planície e o cinturão de pastagens que
ofereceram as condições propícias ao outro tipo de mobilidade, aquela
própria da pradaria. Quanto às pastagem, elas atravessam toda a largura da
planície, mas não cobrem toda a sua superfície. Apesar dessas aparentes
discrepâncias, o heartland fornece uma base física suficiente para o
pensamento estratégico. Ir mais longe e simplificar a artificialmente a
geografia e seria enganoso.
Para o nosso presente propósito, é suficientemente preciso dizer que
o
território da União Soviética é equivalente ao heartland, exceto em uma
direção. A fim de demarcar essa exceção – uma importante exceção –,
vamos desenhar
uma linha direta, com cerca de 3.500 milhas de comprimento, a oeste do
estreito de Bering, para a Romênia. A 3 mil milhas do estreito de Bering,
essa linha vai cruzar o rio Yenisei, fluindo para o norte a partir das
fronteiras da Mongólia para o oceano Ártico. A leste desse grande rio
encontra-se uma região geralmente acidentada de montanhas, planaltos e
vales, cobertos quase até o final com florestas de coníferas; chamarei isso
de Lenaland [terra do Lena], com o seu centro característico, o grande rio
Lena. Isso não está incluído no heartland da Rússia. Essa lenaland russa
tem uma área de 3,75 milhões de milhas quadradas, mas uma população de
apenas seis milhões de pessoas, dos quais quase cinco milhões estão
estabelecidos ao longo da ferrovia transcontinental de Irkutsk até
Vladivostock. No restante deste território existem em média mais de três
milhas quadradas para cada habitante. Os ricos recursos naturais – madeira,
energia hídrica e minerais – ainda estão praticamente intocados.
A oeste de Yenisei fica o que eu descrevi como o heartland russo,
uma planície que se estende por 2.500 milhas de norte ao sul, e 2.500
milhas de leste
a oeste. Ele contém 4,25 milhões de milhas quadradas e uma população de
mais de 170 milhões. A população está aumentando em cerca de três
milhões por ano.
A maneira mais simples e provavelmente a mais eficaz de apresentar os
valores estratégicos do centro da Rússia é compará-los com os da França.
No caso da França, no entanto, o contexto histórico é o da Primeira Guerra
Mundial, enquanto no caso da Rússia é o da Segunda Guerra Mundial.
A França, assim como a Rússia, é um país compacto, e apesar de ser
amplo, não é tão completo quanto o heartland e, portanto, com uma
extensão menor de fronteiras a serem defendidas. É cercada por mar e
montanhas, exceto a nordeste. Em 1914-18 não havia países hostis atrás dos
Alpes e dos Pirenéus, e as frotas da França e seus aliados dominaram os
mares. Os franceses e os exércitos aliados implantados na fronteira aberta
do nordeste, estavam assim bem defendidos em ambos os flancos, e seguros
na retaguarda. O trágico portal de baixa altitude no nordeste, através do
qual tantos exércitos avançaram para dentro e para fora, tem 300 milhas de
largura entre os Vosges97 e o mar do Norte. Em 1914, a linha de batalha
girou em torno dos Vosges, voltada para o [rio] Marne; e no final da guerra,
em 1918, girou para a frente no mesmo pivô. Através dos quatro anos de
intervalo, essa frente elástica cedeu e dobrou, mas não cedeu frente ao
grande ataque alemão na primavera de 1918. Assim, isso provou que havia
espaço suficientet dentro do país tanto para defesa em profundidade como
para um recuo estratégico. Infelizmente para a França, no entanto, sua
principal área industrial ficava naquela região a nordeste onde a batalha foi
travada.
A Rússia repete, no essencial, o padrão da França, mas em uma
maior
extensão e com sua fronteira aberta voltada para oeste em vez de nordeste.
Na guerra atual, o exército russo está alinhado nessa fronteira. Em sua parte
traseira está a vasta planície do heartland, disponível para a defesa em
profundidade e para uma retirada estratégica. Para trás, esta planície recua
para o leste nos baluartes naturais constituídos pela "inacessível" costa do
Ártico, a região selvagem de lenaland atrás do [rio] Yenisei e a orla
montanhosa do Altai até o Hindu Kush, tendo em sua retaguarda os desertos
tibetanos e iranianos de Gobi. Essas três barreiras têm amplitude e
substância, e de longe se destacam em valor defensivo frente às costas e
montanhas que cercam a França.
É verdade que a costa do Ártico não é mais inacessível de forma
absoluta no sentido em que era até a alguns anos atrás. Comboios de navios
mercantes, auxiliado por poderosos navios quebra-gelos, com aviões à
fremte fazendo reconhecimento como guias para a travessia dos blocos de
gelo, têm trafegado entre os rios Obi e Yenisei, e até mesmo para o rio
Lena; mas uma invasão hostil através da vasta área de gelo circunpolar e
sobre os musgos da Tundra e as florestas de Taiga do norte da Sibéria,
parece quase impossível em face da defesa aérea soviética baseada em terra.
Para completar essa comparação entre a França e a Rússia, vamos
considerar as escalas relativas de alguns fatos paralelos. O heartland russo
tem quatro vezes a população, uma fronteira aberta quatro vezes mais
ampla e
vinte vezes a área da França. Essa fronteira aberta não é desproporcional
para a população russa; e para igualar a amplitude do desenvolvimento
soviético, a Alemanha teve que esgotar sua limitada reserva de efetivo
humano diluindo-a com tropas menos eficazes retiradas dos países
ocupados. Em um aspecto importante, no entanto, a Rússia começou sua
segunda guerra com a Alemanha numa posição não muito melhor do que
aquela da França em 1914; como ocorreu com a França, sua agricultura e
suas indústrias mais desenvolvidas estavam no caminho direto do invasor.
O segundo Plano quinquenal teria corrigido essa situação se a agressão
alemã tivesse demorado mais alguns
anos. Talvez essa tenha sido uma das razões de Hitler para quebrar seu
tratado
com Stálin em 1941.
As vastas potencialidades do heartland, no entanto, para não falar
das reservas naturais em lenaland, estão estrategicamente bem localizadas.
Indústrias estão se expandindo rapidamente em localidades como o sul dos
Urais, no próprio pivô da área-pivô, e na rica bacia de carvão de Kuznetsk a
sota-vento das grandes barreiras naturais a leste do alto rio Yenisei. Em
1938, a Rússia produziu mais dos seguintes alimentos do que qualquer
outro país no mundo: trigo, cevada, aveia, centeio e beterraba sacarina.
Mais manganês
foi produzido na Rússia do que em qualquer outro país. Estava lado a lado
com os Estados Unidos em primeiro lugar no que diz respeito à produção de
ferro, e ficou em segundo lugar na produção de petróleo. Quanto ao carvão,
Mikhaylov escreveu que os recursos de carvão nas bacias de Kuznetsk e
Krasnoyarsk têm cada uma capacidade para abastecer todo o mundo por
300 anos.98 A política do governo soviético, durante o primeiro Plano
Quinquenal, consistia em equilibrar as importações e exportações. Exceto
em muito poucas commodities, o país é capaz de produzir tudo o que ele
requer.
Tudo considerado, a conclusão inevitável que se segue é que a
União Soviética emerge desta guerra como conquistadora da Alemanha, e
ela deve ser classificada como a maior potência terrestre do globo. Além
disso, ela será a potência na posição defensiva estrategicamente mais forte.
O heartland
é a maior fortaleza natural da terra. Pela primeira vez na história, ele é
ocupado por uma guarnição suficiente em número e qualidade.
 
*****
 
Não posso fingir que esgotei o assunto heartland, a cidadela do
poder terrestre no grande continente do mundo, em um pequeno artigo
como este. Mas algumas palavras devem ser dedicadas a outro conceito
para equilibra-lo.
De Casablanca veio ultimamente o apelo para destruirmos a
filosofia alemã dominante. Isso pode ser feito apenas irrigando a mente dos
alemães com a água limpa de uma filosofia rival. Eu suponho que, para
digamos dois anos a partir do momento em que a ordem de "cessar fogo"
for dada, os aliados ocuparão Berlim, julgarão os criminosos, reconstituirão
fronteiras e vão fazer um tratamento cirúrgico completo para que a geração
mais velha da Alemanha,
que morrerá impenitente e amarga, não possa novamente deturpar a história
para as gerações mais jovens. Mas obviamente seria mais do que inútil
colocar professores estrangeiros para lecionarem na Alemanha inculcando a
teoria da liberdade. A liberdade não pode ser ensinada; só pode ser dada
àqueles que podem usá-la. No entanto, um canal poluído pode ser limpo de
forma muito eficaz se for controlado por fortes aterros de poder em ambos
os lados – o poder terrestre a leste, no heartland, e o poder marítimo a oeste,
na bacia do Atlântico norte. Enfrentar a mente alemã requer uma certeza
duradoura de que qualquer guerra travada pela Alemanha deve ser uma
guerra em duas frentes inabaláveis, e os próprios alemães vão resolver o
problema.
Para que isso aconteça será necessário em primeiro lugar que exista
uma cooperação eficaz e duradoura entre os Estados Unidos, a Grã-
Bretanha e
a França, a primeira em profundidade de defesa, a segunda como um
bastião, um fosso-fortaleza – uma Malta em uma escala maior –, e a terceira
como uma cabeça de ponte defensável. Esta última não é menos essencial
do que as outras duas, porque o poder marítimo deve, em última instância,
ser anfíbio se quiser equilibrar o poder terrestre. Em segundo lugar, é
necessário que esses três e também o quarto conquistador, a Rússia, se
comprometam a cooperar instantaneamente se houver ameaça de violação
da paz, para que o demônio nunca mais possa se erguer na Alemanha e
acabe morrendo por inanição.
Algumas pessoas hoje parecem sonhar com uma potência aérea
global que irá "liquidar" frotas e exércitos. Estou impressionado, no
entanto, com as amplas implicações de uma declaração recente de um
aviador prático: "O poder aéreo depende absolutamente da eficiência de sua
organização na terra". Este é um assunto muito amplo para ser discutido
dentro dos limites deste artigo. Só podemos dizer que ainda não foi
apresentada nenhuma prova de que a luta aérea não seguirá a longa história
de todos os tipos de guerra, que apresentam alternâncias de superioridade
tática ofensiva e defensiva, e portanto acarretando poucas mudanças
permanentes nas condições estratégicas.
Não pretendo prever o futuro da humanidade. O que me preocupa
são as condições sob as quais começaremos a construir a paz quando a
vitória na guerra for alcançada. Em relação aos padrões do mundo pós-
guerra, que pela primeira vez estão sendo estudados por muitas pessoas, é
importante que uma linha seja cuidadosamente desenhada entre projetos
idealistas e mapas realistas e acadêmicos apresentando conceitos –
políticos, econômicos, estratégicos e assim por diante – com base no
reconhecimento de fatos comprovados.
Com isso em mente, pode-se chamar a atenção para uma grande
característica da geografia global: um cinto, por assim dizer, pendurado em
torno das regiões ao norte. Começa com o deserto do Saara, e na medida em
que nos movemos para leste, é seguido pelos desertos da Arábia, Irã, Tibete
e Mongólia, e então se estende por meio das regiões selvagens da lenaland,
Alasca e o escudo laurenciano do Canadá, até ao cinturão subárido do oeste
dos Estados Unidos. Esse cinturão de desertos e áreas selvagens são uma
característica de primeira importância na geografia global. Dentro dele
estão duas características relacionadas de significado quase igual: o
heartland e a bacia do Midland Ocean (o Atlântico Norte) com seus quatro
subsidiários – o Mediterrâneo, o Báltico, o mar Ártico e o Caribe. Fora da
cintura está o grande oceano (o Pacífico, o Índico e o Atlântico Sul) e as
terras que drenam para ele – terras das monções asiáticas, Austrália,
América do Sul e África subsaariana.
Arquimedes afirmou que poderia erguer o mundo se pudesse
encontrar um ponto de apoio sobre o qual apoiar sua alavanca. Todo o
mundo não pode ser levantado de volta para a prosperidade de uma única
vez. A região entre o Missouri e o Yenisei, com suas grandes rotas troncais
para aeronaves mercantes entre Chicago-Nova Iorque e Londres-Moscou, e
tudo o que o desenvolvimento deles representar, deve ser o primeiro a ser
organizado, pois deve ser o sustentáculo. Sabiamente, a conquista do Japão
deve espera um pouco. No devido tempo, a China irá receber capitais em
escala generosa como uma dívida de honra, para ajudar na sua aventura
romântica de construir para um quarto da humanidade uma nova
civilização, nem muito oriental nem muito ocidental. Então as relações com
o mundo exterior serão relativamente fáceis, com a China, os Estados
Unidos e o Reino Unido liderando o caminho, os dois últimos cada um
seguido por seu rastro de comunidade de nações livres, e embora suas
histórias tenham sido diferentes, o resultado será semelhante. Mas a
primeira tarefa a ser empreendida na reconstrução econômica certamente
terá que ser na área dentro do cinturão do deserto, para que uma civilização
inteira não
degenere no caos. Que pena que a aliança, negociada depois de Versalhes,
entre os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, não foi não
implementada! Quanta dificuldade e tristeza esse ato poderia ter salvado!
 
*****
 
E agora, para completar minha imagem do padrão do mundo
redondo,
deixe-me acrescentar, brevemente, três conceitos aos dois já visualizados.
Para
os propósitos do que vejo descrito nos escritos americanos como "grande
estratégia”, é necessário construir amplas generalizações na geografia não
menos do que na história e na economia.
Descrevi meu conceito de heartland, que não tenho hesitação em
dizer que é mais válido e útil hoje do que era a vinte ou quarenta anos atrás.
Eu disse como ele se situa no largo cinturão de defesas naturais do mar
Ártico coberto de gelo, à lenaland florestada e acidentada e às montanhas
asiáticas e planaltos desérticos asiáticos. Esse cinturão está incompleto, no
entanto, por causa de um portal aberto, com mil milhas de largura, entrando
desde a Europa peninsular até a planície interior através do amplo istmo
entre o mar Báltico e o mar Negro. Pela primeira vez em toda a história, há
dentro desta vasta fortaleza natural uma guarnição adequada para negar a
entrada para o invasor alemão. Dado esse fato, e as defesas para os flancos
e a retaguarda que eu descrevi, a largura absoluta desse portal é uma
vantagem, pois fornece a oportunidade de derrotar
o inimigo, obrigando-o a fazer uma utilização intensiva de seu efetivo
populacional. E sobre o heartland, e abaixo dele, há um estoque de ricos
solos para o cultivo, e de minérios e combustíveis para extração –
praticamente o mesmo de tudo o que se encontra abaixo dos Estados
Unidos e do domínio canadense.
Eu sugeri que uma corrente de contrafilosofia de limpeza,
canalizada
entre barreiras inacessíveis de poder, pode varrer da mente alemã a sua
magia negra. Certamente ninguém vai ser louco o suficiente para fazer com
que professores estrangeiros exorcizem os espíritos malignos da alma da
nação alemã conquistada. Tenho confiança suficiente para afirmar que, após
os primeiros e inevitáveis anos punitivos, as democracias conquistadoras
dificilmente manterão guarnições com o número e espírito necessários
estacionadas nas terras conquistadas; pois não adianta pedir aos democratas
que persistam numa atitude contrária ao próprio espírito e à essência da
democracia. O fluxo de limpeza pode ser melhor liberado para fluir de
alguma fonte regeneradora alemã, entre as margens do poder. Eu mencionei
um dentro do heartland e o outro dentro dos territórios das três potências
anfíbias, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. As duas forças amigas
que se confrontam no fluxo do canal teriam a mesma potência e deveriam
estar sempre igualmente prontas para a ação necessária. Então a Alemanha
viveria continuamente sob a ameaça de guerra imediata em duas frentes,
caso ela incaia novamente em qualquer violação dos tratados que proibam a
preparação material para a guerra ou a doutrinação da juventude, que é
outra forma de preparação para a guerra. As guarnições democráticas em
seus países de origem seriam, a título de exemplo, os professores.
Nesta proposta segue meu segundo conceito geográfico, o de o
Midland Ocean – o Atlântico Norte – e seus mares e bacias hidrográficas
dependentes. Sem trabalhar nos detalhes desse conceito, deixe-me
mencionar novamente seus três elementos – uma cabeça de ponte na
França, um aeródromo com fosso
na Grã-Bretanha, e uma reserva de mão de obra treinada, agricultura e
indústrias no leste dos Estados Unidos e do Canadá. Tanto quanto o
potencial de guerra estabelece, tanto os Estados Unidos como o Canadá são
países atlânticos, e uma vez que uma guerra terrestre instantânea estiver em
vista, tanto a cabeça de ponte quanto o aeródromos com fosso são
essenciais para a energia anfíbia.
Quanto aos três conceitos restantes farei pouco mais do que um
esboço, e apenas por uma questão de integridade e equilíbrio globais.
Cingindo a unidade gêmea recém-descrita – o heartland e a bacia do
Atlântico norte –, aparece no globo um manto das vazios, constituindo um
espaço de terra praticamente contínuo cobrindo cerca de doze milhões
milhas quadradas, isto é, cerca de um quarto de toda a terra do globo. Nesta
vasta área vive hoje uma população total de menos de trinta milhões, ou,
digamos, um septuagésimo da população do globo. Os aviões irão, é claro,
voar ao longo de muitas rotas neste cinturão de região selvagem; e através
dele serão construídas estradas principais. Mas por muito tempo ainda, esse
cinturão vai quebrar a continuidade social entre as principais comunidades
humanas no globo terrestre.99
O quarto dos meus conceitos abrange ambos os lados do Atlântico
Sul, as florestas tropicais da América do sul e da África. Se estas forem
utilizadas pela agricultura e habitadas com a densidade atual da ilha tropical
de Java, poderão sustentar um bilhão de pessoas, desde que a medicina
torne os trópicos produtivos para a energia humana tal como as zonas
temperadas.
Em quinto lugar, e por último, um bilhão de pessoas das antigas
civilizações orientais habita as terras de monções da Índia e da China. Eles
devem crescer em prosperidade nos mesmos anos em que a Alemanha e o
Japão estiverem novamente domesticados para a civilização. Eles irão então
equilibrar os outros bilhões que vivem entre o Missouri e o Yenisei. Um
equilíbrio global dos seres humanos. E felizes, porque equilibrados e,
portanto, livres.
 
SOBRE O ESCOPO E OS MÉTODOS DE
GEOGRAFIA*
*The Scope and Methods of Geography", Proceedings of the Royal Geographical Society.
Vol.9 (1887), pp. 141-60.

O que é geografia? Esta parece uma pergunta estranha de se abordar


em uma Sociedade Geográfica, mas há pelo menos duas razões pelas quais
ela deve ser respondida, e respondida agora. Em primeiro lugar, os
geógrafos têm estados ativos ultimamente nas reivindicações visando elevar
sua ciência para uma posição mais honrada no currículo de nossas escolas e
universidades. O mundo, e especialmente o mundo do ensino, responde
com a pergunta: "O que é geografia?" Há um toque de ironia nessa
pergunta. A batalha educacional que está sendo travada agora mudará a
resposta que pode ser dada a esta pergunta. A geografia pode ser tornar uma
disciplina [científica] ao invés de um mero corpo de informações? Essa é
apenas um problema de ponta na questão maior do objetivo e métodos da
nossa ciência.
Outro motivo para insistir neste assunto é que esta preocupação vem
do interior da própria disciplina. Por meio século, várias sociedades
[geográficas] e, acima de tudo, nossas próprias, têm sido ativas na
promoção da exploração do mundo. O resultado natural é que agora
estamos perto do final do jogo das grandes descobertas. As regiões polares
são os únicos grandes espaços em branco restantes em nossos mapas do
mundo. Um Stanley nunca mais poderá revelar um Congo aos olhos
encantados do mundo. Por um tempo ainda, um bom trabalho será feito na
Nova Guiné, na África, na Ásia central e ao longo das fronteiras das regiões
congeladas. De vez em quando, um Greely [Adolphus Greely, explorador
das regiões polares] irá receber o antigo toque de boas-vindas, e provará
que não estão faltando heróis. Mas como os contos de aventuras crescem
menos e menos, e à medida que seu lugar é cada vez mais ocupado pelos
detalhes das pesquisas de ordenação, até mesmo companheiros das
sociedades geográficas perguntarão com desânimo: "O que é geografia?"
Nem é preciso dizer que este artigo não seria escrito se fosse minha
crença que a Royal Geographical Society deve fechar em breve sua história
– um Alexandre corporativo chorando porque não tem mais mundos a
conquistar. Nosso trabalho futuro é prenunciado por artigos como esses do
Sr. Wells sobre o Brasil, do Sr. Buchanan sobre os oceanos e do Sr. Bryce
sobre as relações entre a história e a geografia100. No entanto, haverá
grandes vantagens em direcionar nosso caminho para a nova veia com
nossos olhos, até certo ponto pelo menos, abertos. Uma discussão dessa
questão no presente momento provavelmente terá a vantagem adicional
incidental de nos fornecer novas armas em nossa luta educacional.
A primeira investigação para a qual devemos voltar nossa atenção é
esta: a geografia é um ou vários assuntos? Mais precisamente, a geografia
política e a física são duas etapas de uma investigação, ou são assuntos
separados a serem estudados por métodos diferentes, um como apêndice
da geologia, e o outro da história? Grande destaque foi recentemente dada a
esta questão pelo presidente da Seção Geográfica da Associação Britânica.
Em seu discurso em Birmingham, ele assumiu uma posição muito definida.
Ele disse: “É difícil conciliar o amálgama do que se pode considerar
geografia 'científica' com história. Uma está completamente separada da
outra como a geologia em relação à astronomia".
É com grande relutância e timidez que me atrevo a discordar de uma
autoridade tão justamente considerada como Sir Frederick Goldsmid. Eu só
faço isso porque tenho a firme convicção de que a posição [por ele]
assumida em Birmingham é fatal para as melhores perspectivas da
geografia. Além disso, eu fiquei sabendo que Sir Frederick Goldsmid, se for
confrontado com argumentos mais sólidos, está bastante pronto para
abandonar a conclusão a que chegou nesse pronunciamento. Em uma
discussão tão difícil, seria extremamente presunçoso eu assumir que os
meus argumentos são mais sólidos. Eu os apresento apenas porque, até onde
posso ver, ele ainda não foi atendido e não lhe foi apresentado nenhum
argumento para derrubar o seu ponto de vista. Talvez o senhor Frederick
Goldsmid tenha somente expressado a vaga opinião sobre o assunto que
atualmente está na mente da maioria das pessoas. Isto é o mais provável,
porque em sua própria fala, ele usou argumentos que apoiam uma visão
oposta àquilo que ele próprio formulou.101
Na mesma página da qual tiramos essa citação, podemos encontrar
um parágrafo expressando a mais alta aprovação da obra do Sr. Bryce,
"Geografia em relação à História”. A proposição central do Sr. Bryce é que
o Homem é em grande parte "a criatura de seu ambiente". A função da
geografia política é traçar a interação entre Homem e seu ambiente. Sir
Frederick Goldsmid exige que a geografia política dê aos nossos futuros
estadistas um "domínio total" das "condições geográficas". Até agora,
nenhuma contestação pode ser feita ao seu ponto de vista. Mas ele parece
imaginar que o "domínio total" de que fala pode ser obtido a partir do que
resta depois que o "físico e o científico" da geografia foram eliminados.
Antes de prosseguir, vamos ver se podemos refinar nossa definição [de
geografia] com avanços. A fisiologia responderia à definição da ciência que
traça a interação do homem e o seu ambiente. É a função da fisiologia, da
física e da química examinarem a ação das forças [que atuam sobre a
humanidade], independentemente da maior parte das localidades. É
especialmente característico da geografia traçar a influência da localidade,
isto é, do ambiente em suas variações locais102. Quando não faz isso, trata-
se de mera fisiografia e o elemento topográfico essencial foi omitido.
Proponho-me, portanto, definir a geografia como a ciência cuja principal
função é rastrear a interação do homem na sociedade na medida em que seu
ambiente varia localmente.103
Antes que essa interação possa ser considerada, os elementos que
nela interagem devem ser analisados. Um desses elementos é a variação
ambiental104, e a análise disso, acredito, é a função da geografia física.
Assim, somos levados a uma posição em antagonismo com as noções
correntes. Sustentamos que nenhuma geografia política racional pode
existir que não seja construída sobre e a partir da geografia física. No
momento presente, estamos sofrendo os efeitos de uma geografia política
irracional, isto é, aquela cuja função principal não é traçar relações causais
e sim apresentar um conjunto de informações isoladas para serem
guardadas na memória. Tal geografia nunca pode ser um disciplina
[científica], portanto nunca pode ser honrada pelo professor, e deve sempre
falhar em atrair mentes de uma amplitude tal que possam ser governantes
de homens.
Mas pode ser retrucado: para fins de geografia política, você não
pode ficar satisfeito com um conteúdo mais superficial e mais fácil de
aprender do que aquela análise fornecida pela geografia física? Em
resposta, nós apresentaremos nossa posição a seguir. Esse tipo de
procedimento tem sido experimentado e tem falhado. É praticamente mais
fácil aprender a análise profunda da ciência, aumentando e satisfazendo em
todos os pontos os instintos que nos levam sempre a fazer a pergunta "por
quê?", do que adquirir um
quantidade suficiente de informações das listas de nomes da velha escola da
chamada geografia descritiva. Eliminar a topografia, que é a geografia com
os "motivos porquê", é algo quase unanimimente rejeitado tanto pelos
mestres como pelos alunos.
Existem outras razões para nossa posição, de importância ainda
maior
do que a conveniência prática no ensino. Mencionarei três. O primeiro é o
seguinte. Se você aprender o que os antigos geógrafos chamam de "as
características físicas em suas relações causais”, o avanço torna-se cada vez
mais fácil. Os novos fatos se encaixam de maneira ordenada no esquema
geral. Eles lançam uma nova luz sobre todos os conhecimentos previamente
obtidos, iluminando-os em muitos pontos. No entanto, quando o método de
descrição é adotado, e ainda mais o de enumeração, cada fato adicional
acrescenta uma quantidade cada vez maior de fardo a ser suportado pela
memória. É como jogar outro seixo em um monte de cascalho. É como
aprender matemática tentando lembrar fórmulas em vez de compreender os
princípios.
Nossa segunda razão é, em resumo, a seguinte. Uma análise
superficial tende a levar ao erro: por um lado, por não ir além de
semelhança superficial em coisas essencialmente diferentes; por outro lado,
falhando em detectar a semelhança essencial de coisas superficialmente
diferentes.
A terceira razão é esta: a mente que compreendeu vividamente em
suas relações verdadeiras os fatores do ambiente, é mais susceptível de
apresentar férteis sugestões de novas relações entre o meio ambiente e o
Homem. E mesmo que não haja um projeto de fazer a ciência avançar, esse
aprendizado levará a uma apreciação rápida, vívida e, portanto, duradoura
do relações que foram detectadas por outros.
Faremos agora uma pausa para resumir nossa posição em uma série
de proposições.
1. Concorda-se que a função da geografia política é detectar e
demonstrar as relações que subsistem entre o Homem na
sociedade e as variações locais do seu meio ambiente;
2. Como preliminar, os dois fatores [fisicos e humanos] devem ser
analisados;
3. É função da geografia física analisar um destes fatores, as
variações ambientais;
4. Nada mais pode desempenhar adequadamente esta função
porque... em primeiro lugar, nenhuma outra análise pode exibir
os factos nas suas relações causais e na sua verdadeira
perspectiva. Por conseguinte nenhuma outra análise irá, em
primeiro lugar, servir ao professor como disciplina escolar e, em
segundo lugar, atrair as mentes superiores entre os alunos; em
terceiro lugar, economiza o poder limitado da memória; em
quarto lugar, deve ser igualmente digna de confiança; e em
quinto lugar, deve ser igualmente sugestiva.
Agora devemos esperar a contestação segundo a qual que estamos
pedindo o impossível. Nossa resposta é que isso ainda não foi tentado. A
geografia física geralmente tem sido realizada por aqueles já
sobrecarregados com geologia, e a geografia política por aqueles carregados
de história. Ainda temos que ver o homem que, ocupando a posição central,
a posição geográfica, deve examinar igualmente as partes da ciência e as
partes da história que são pertinentes para a sua investigação. O
conhecimento é um só, no final das contas, mas a extrema especialização
dos dias atuais parece esconder esse fato de um certo tipo de mente. Quanto
mais nos especializamos, mais espaço e mais necessidade haverá de trazer
para os alunos as relações entre as disciplinas especificas. Uma das maiores
lacunas que existe é entre as ciências naturais e o estudo da humanidade. É
dever do geógrafo construir uma ponte sobre um abismo que, na opinião de
muitos, está perturbando o equilíbrio da nossa cultura. Corte qualquer parte
da geografia e você a mutila em sua parte mais nobre.
Ao falar assim, não estamos cegos para a necessidade de
especialização
dentro da própria geografia. Se você quiser fazer um trabalho original na
ciência, você deve se especializar. Para este propósito, seja físico ou
político, a geografia é tão complicada quanto qualquer outro objeto de
estudos. Além disso, o tema específico de um trabalho não precisa estar
inteiramente dentro do domínio do físico ou do político; pode estar na
fronteira. A geografia é como uma árvore que cedo se divide em dois
grandes ramos, cujos ramos podem, não obstante, estarem
inextricavelmente entrelaçados. Você seleciona alguns galhos adjacentes,
mas eles podem brotar de ramos diferentes. Como disciplina escolar, no
entanto, e como base para toda especialização frutífera dentro do assunto,
insistimos sobre um ensino voltado para a compreensão da geografia como
um todo.
Esta questão de possibilidade nos leva naturalmente a inquirir a
respeito das relações da geografia com as ciências vizinhas. Não podemos
fazer melhor do que adotar a classificação aproximada do Sr. Bryce do meio
ambiente. Primeiro, temos as influências devido à configuração da
superfície da terra; em segundo lugar, as pertencentes à meteorologia e ao
clima; e em terceiro lugar, o produtos que um país oferece à indústria
humana.
Primeiro, então, quanto à configuração da superfície terrestre. Nós
temos aqui, um pomo de discórdia entre os geógrafos e os geólogos. Estes
últimos afirmam que as causas que determinaram a forma da litosfera são
tratados por sua ciência, e que não há nem espaço nem necessidade do
geógrafo físico. O geógrafo em conseqüência danificou sua ciência ao se
recusar a incluir entre seus dados os da geologia, e quando o faz menciona
somente os mais básicos. A rivalidade deve ser bem conhecido por todos
aqui presentes. Não produziu nada além de mal à geografia. Duas ciências
podem ter dados idênticos em parte, mas ainda assim não deve resultar em
brigas, pois os dados, embora idênticos, são vistos de diferentes pontos de
vista. Eles são agrupados de maneiras diferentes. Tampouco o geólogo deve
exibir tal fraqueza. Em cada
passo em seu próprio estudo, ele depende de outras ciências. A
paleontologia é a chave para a idade relativa dos estratos, mas não tem
sentido fora da biologia. Alguns dos problemas mais difíceis da física e a
química estão dentro do reino da mineralogia, especialmente, por exemplo,
as causas e métodos do metamorfismo. A melhor tentativa de se encontrar
uma medida comum do tempo geológico e o histórico repousa na
interpretação astronômica de [James] Croll das épocas glaciais recorrentes.
Mas basta disso. A verdadeira distinção entre geologia e geografia parece-
me residir nisto: o geólogo olha para o presente para que ele possa
interpretar o passado; o geógrafo olha para o passado para que possa
interpretar o presente. Esta linha já foi traçada para nós por um dos maiores
geólogos. Em seu 'Text-book of Geology', Archibald Geikie apresenta a
seguinte determinação lúcida disso:
“Uma investigação da história geológica de um país envolve duas
linhas distintas de pesquisa. Podemos primeiro considerar a natureza
e o arranjo das rochas que sustentam a superfície, com vista a
averiguar as sucessivas mudanças na geografia física e na vida
vegetal e animal que elas narram. Mas além da história das rochas,
podemos tentar traçar o da própria superfície, a origem e
vicissitudes das montanhas e planícies, vales e ravinas, picos,
passagens e bacias de lago, que foram formadas a partir das rochas.
As duas investigações traçadas de trás para frente fundem-se uma na
outra, mas tornam-se cada vez mais distintas à medida que são
entendidas por tempos sucessivos. Isto é óbvio, por exemplo, [no
fato] que uma massa de calcário marinho que se eleva em grupos de
vales, apresenta duas imagens nitidamente contrastantes para a
mente. Vista do lado de sua origem, a rocha nos traz um fundo do
mar sobre a qual foram acumuladas as relíquias de gerações de uma
luxuriante fauna marinha calcária. Podemos ser capazes de rastrear
cada camada, para marcar com precisão seus conteúdos orgânicos, e
estabelecer a sucessão zoológica da qual esses fundos marinhos
sobrepostos são os registros. Mas podemos ser totalmente incapazes
de explicar como esse calcário formado pelo mar ficou como está
agora aqui, elevando-se em colinas, e lá afundando em vales. As
rochas e seus conteúdos constituem um assunto de estudo, a história
de seu cenário atual outra."105
A mesma ideia é endossada pelo Professor Moseley em sua palestra
sobre "Os aspectos científicos da educação geográfica". Citamos dele a
seguinte passagem dentre muitas outras nessa mesma linha:
“Em relação à geografia física como uma parte da geologia a ser
dela separada, a razão pela qual tal separação deve ser efetuada é
que temos reunido para um tratamento especial um assunto que é
muito mais necessário e adequado para fins educacionais gerais do
que a geologia como um todo, o que despertará muito mais a atençaõ
dos alunos e atuará como uma alavanca para promover o estudo de
outros ramos da ciência como estudos especiais, inclusive da própria
geologia. [...] O principal argumento que sempre é levantado contra
o estabelecimento de cátedras de geografia física nas universidades é
que o assunto já é tratado pelos professores de geologia; mas o
professor Geikie evidentemente não tem essa visão, e aponta em sua
carta já referida que a 'Geologia está a cada dia aumentando em seu
escopo, que já é muito vasto para os poderes físicos mesmo do mais
infatigável professor.’"106
Nesta passagem, o Professor Moseley defende o estabelecimento de
uma cadeira de geografia física nas universidades. Não se deve concluir que
ele se opõe à unidade da geografia. Isto é deixado claro por outras partes da
sua palestra: "Possivelmente, embora no momento não seja possível para
garantir a representação da geografia como um todo, por causa do
aparente imprecisão de seus limites e os ataques que sofre por todos os
lados, os quais tornam maior uma chance de sucesso se tentarmos
pressionar [agora] pelas reivindicações da geografia física”. E novamente
ele reafirma: "Não é necessário que a geografia física faça parte de cada
educação liberal como um assunto especialmente adaptado para fins de
aprendizagem geral, e como a única base verdadeira sobre a qual pode ser
fundada um conhecimento que é denominado geografia política?”
Talvez em nenhum lugar o dano causado à geografia pela teoria que
nega sua unidade pode ser visto do que no caso da geografia física. O
assunto foi abandonado aos geólogos, e tem como consequência um viés
geológico. Fenômenos como vulcões, fontes termais e geleiras, foram
agrupados em capítulos, independentemente das regiões em que ocorrem.
Do ponto de vista do geólogo, isso é suficiente – ele está olhando para sua
pedra de roseta; a compreensão do hieróglifos individuais são de grande
importância, mas o significado da passagem inteira, o relato do evento
registrado é, para o efeito
de interpretar outros registros, sem importância. Mas tal ciência não é
realmente geografia física, e o Dr. Archibald Geikie nos diz claramente em
seu 'Elementos de Geografia Física”107 que ele está usando essa expressão
como equivalente à fisiografia. A verdadeira geografia física objetiva nos
dar uma descrição causal da distribuição das características da superfície
terrestre. Os dados devem ser reagrupados em uma base topográfica. Se me
é permitido
arriscar colocar o assunto de forma um tanto abrupta, pode-se dizer que a
fisiografia pede um determinado recurso, "Por que é assim?"; A topografia
por sua vez indaga, "Onde está?"; e a geografia física "Por que está lá?"; e a
geografia política, "Como isso age sobre o homem na sociedade, e como ele
reage?”; a geologia pergunta: " O que o enigma do passado ajuda a
resolver?". A fisiografia é um degrau, um assunto comum para o geólogo e
o geógrafo. Os quatro primeiros assuntos são da seara do geógrafo. As
perguntas vêm em sequência. Pode-se parar em qualquer uma delas, mas
minha opinião é que não pode responder uma com vantagem a menos que
você tenha respondido àquelas que a precedem. A geologia propriamente
dita, em sentido estrito, é desnecessária à sequência do argumento.
Daremos duas ilustrações da inadequação para fins geográficos das
geografias físicas (geológicas) presentes, mesmo quando consideradas
como fisiografias. O primeiro é o destaque indevido dado a temas como
vulcões e geleiras. Isso me foi apontado várias vezes pelo seu secretário
adjunto, Sr. Bates. É perfeitamente natural nos livros escrito por geólogos.
Vulcões e geleiras são fenômenos que deixam para trás traços mais
marcantes e característicos. Portanto, do ponto de vista geológico, eles são
os mais importantes e dignos
de estudo especial. Mas o resultado lembra um livro sobre biologia escrito
por um paleontólogo. Nele devemos esperar encontrar apenas a concha do
caracol, descrita em detalhes, mas negligenciando as partes moles de
dentro, muito mais importantes.
Minha outra ilustração é prática, que deve apelar para a experiência
de todos os viajantes atenciosos. Digamos que você vá fazer uma viagem
até o Reno: você deve ser muito pouco curioso se não fizer a si mesmo as
seguintes perguntas: “Por que depois de passar por muitos quilômetros de
terra plana através da qual o Reno serpenteia quase no mesmo nível da área
circundante, de repente chegamos a uma parte de seu curso em que passa
por um desfiladeiro?” “Porque quando chegamos a Bingen, aquele
desfiladeiro cessa ainda mais repentinamente, e seu lugar é tomada por um
vale em forma de lago delimitado por cadeias de montanhas paralelas?”
Nenhuma geografia física comum que eu tenha visto responde
adequadamente a questões como essas. Se acontecer de você ter um
conhecimento especial do assunto, você pode olhar para a revista da
sociedade geológica, de 1874, e encontrará um artigo encantador sobre este
assunto escrito por Sir Andrew Ramsay. Mas isso implica tempo e
oportunidade para pesquisa em periódicos especializados, e mesmo assim
sua recompensa será leve, pois apenas algumas regiões isoladas foram já
estudadas dessa forma.
Vou encerrar esta parte do assunto com uma tentativa construtiva.
Vou selecionar uma região familiar a todos, para que sua atenção possa ser
concentrada mais no método do que no assunto. Vamos pegar o sudeste da
Inglaterra. O método usual de tratar a geografia de tal região seria descrever
de um ponto de vista físico primeiro a costa e depois a superfície. As
escarpas e enseadas da costa e as colinas e vales da superfície seriam
enumeradas em ordem. Em seguida, teríamos uma lista das divisões
políticas e uma outra lista das cidades principais, indicando os rios que as
cortam. Em alguns casos, uns
poucos fatos interessantes, mas isolados, seriam adicionados, como ganchos
mentais nos quais pendurar os nomes. A parte política de tal trabalho,
mesmo na melhor das hipóteses não vai além de bom sistema mnemônico.
Para a parte física, todos os livros didáticos concorrem em cometer o que é,
do meu ponto de vista, um erro fundamental. Eles separam as descrições da
costa das da superfície. Isso é fatal para a demonstração na devida
perspectiva da cadeia de causas e efeitos. Os acidentes da superfície e da
costa são semelhantes e resultaram da interação de duas forças, a resistência
variável dos estratos rochosos e a variação dos poderes erosivos da
atmosfera e do mar. Os poderes erosivos, sejam superficiais ou marginais,
atuam sobre um mesmo conjunto de rochas. Por que deve haver um
Flamborough Head? Por que deveria haver um Yorkshire Wold?108 Eles são
apenas duas arestas da borda de uma mesma massa de camadas erguidas de
calcáreo.
Vamos então tentar construir uma geografia do sudeste da Inglaterra
mostrando uma série contínua de relações causais. Imagine um grande
lençol de calcáreo jogado sobre a terra, como uma toalha de mesa branca
sobre a mesa. Deixe a folha ser enrugada com algumas dobras simples,
como uma toalha de mesa colocada por uma mão descuidada. Uma linha de
sulcos109 desce o [rio] Kennet até [a cidade de] Reading e depois segue o
Tâmisa até o mar. Uma linha de crista passa para o leste através da planície
de Salisbury e depois para o centro do Weald. Uma segunda linha de sulcos
segue o vale do Frome e suas continuações submarinas, o Solent e Spithead.
Finalmente, ainda uma segunda linha de cristas se extende até a ilha de
Purbeck e é agora membro destacado da ilha de Wight. Imagine essas
cristas e sulcos intocados pelas forças erosivas. As curvas dos estratos
seriam paralelas com as da superfície. As cristas seriam achatadas e amplas.
Os sulcos seriam planos e largos. O sulco Kennet-Tâmisa aumentaria de
largura à medida que avança para o leste. As encostas que unem o fundo do
sulco ao topo da ondulação variariam em inclinação. Não se pretende que a
terra nunca exibiu tal imagem. A sublevação e as forças erosivas têm
sempre agido simultaneamente. Tal como acontece com as Casas do
Parlamento, o processo de ruína começou antes que a construção fosse
concluída. A eliminação da erosão é apenas um expediente para mostrar o
simples arranjo das rochas, cuja simplicidade é mascarada pela aparente
confusão da ruína. Adicione mais um fato, que acima e abaixo do calcáreo
duro encontra-se em camadas de argila mole, e recorremos à geologia para
tudo o que precisamos.
O trabalho do moldador está completo; o cinzel agora deve ser
aplicado. Os poderes do ar e do mar rasgam nosso tecido em farrapos. Mas
é como se o tecido tivesse sido endurecido com amido, e uma vez que
estava enrugado sobre a mesa, os sulcos e cristas que descrevemos não
caíram. Suas arruinadas bordas e extremidades projetam-se rigidamente
como cordilheiras e cabos. Os sulcos fundos, enterrados sob a argila,
produzem linhas de vale ao longo das bacias de Londres e Hampshire. Na
argila macia, o mar se expandiu, produzindo a grande enseada da foz do
Tâmisa, e os canais do mar mais estreitos, porém mais intrincados, que se
estendem do porto de Poole através do Solent até Spithead, e que se
ramificam nas águas e portos de Southampton, Portsmouth, Langstone e
Chichester. A borda levantada da folha de calcáreo produz a longa cadeia de
colinas, que, sob os vários nomes de Berkshire Downs, Chiltern e
Gogmagog Hills, e East Anglian Heights, delimitam a bacia de Kennet-
Tâmisa para o noroeste. As colinas do norte e do sul ficam de frente umas
para as outras, tal como as molas de um arco do qual a pedra-chave foi
removido. O mesmo arco forma a planície de Salisbury e seu
prolongamento para o leste nas terras altas de calcáreo de Hampshire; mas
aqui a pedra-chave, embora danificada, não foi completamente gasta. As
cabeças de praias e as terras florestais do norte e do sul são apenas a
projeção para o mar dos intervalos de colinas. O fato de as colinas do norte
não terminarem em um único promontório, como cabeça de praia, mas em
uma longa linha de penhascos, as duas extremidades dos quais são
marcados pelas terras florestais do norte e do sul, podem servir para chamar
a atenção para uma relação que frequentemente existe entre as encostas da
superfície e o mergulho dos estratos. Mencionamos o fato de que, se nosso
sistema simples de sulcos e cristas fosse realmente obtido, as encostas
conectando os topos das cristas e os sulcos variariam em inclinação.
Lembrando a posição de uma cadeia de montanhas em ruínas "restaurada",
devemos nos lembrar não apenas de sua direção, mas também a inclinação
relativa de suas duas faces. Uma será produzida pelos estratos de mergulho,
a outra será a escarpa onde os estratos foram interrompidos. Vai depender
do mergulho dos estratos se, quando escalamos a escarpa, veremos à nossa
frente uma descida acentuada ou um planalto ondulado. Contraste, a este
respeito, os dois planaltos de calcáreo que formam as grandes projecções de
East Anglia e Kent com as cordilheiras estreitas, os Chilterns e o Hog's
Back. A escarpa noroeste dos Chilterns é contínua com a face escarpada
ocidental de East Anglia. O declive sudeste de Chilterns é contínua com o
declive que forma o largo planaltos de Norfolk. O mergulho é acentuado no
caso dos Chilterns, e leve no de Norfolk. Da mesma forma, as terras altas de
Kent são um prolongamento do Hog's Back. As faces com colinas do sul
diferem, mas pouco, enquanto a encosta norte do Hog's Back é íngreme,
embora sua continuação em Kent seja apenas suavemente inclinada. Esta
expansão terminal das cadeias de montanhas tem sido de grande
importância na história da Inglaterra, como pode ser visto atualmente. As
expansões podem ser consideradas como dependentes do alargamento a
leste da bacia do Kennet-Tâmisa. Pode-se notar que as margens do estuário
do Tamisa estão, em geral, em paralelo com os montes que marcam as
bordas da bacia, a costa norte é paralela com a curva traçada pelas colinas
desde Hunstanton Point até os Chilterns, o paralelo sul com a gama mais
reta do North Downs.
Os rios do distrito dividem-se naturalmente em três classes. Na
primeira, há aqueles que fluem descendo a encosta de East Anglia. Como
consequência, eles são numerosos e aproximadamente paralelos. Eles não
combinam para formar um grande riacho e apresentam no mapa uma
aparência de árvore. Em segundo lugar, temos aqueles que descem pelos
grandes sulcos, o Kennet e o Tâmisa abaixo de Reading, por um lado, o
Frome com seu prolongamento submarino pelo Solent e Spithead, do outro
lado. Os muitos afluentes do Tamisa são óbvios, mas o caráter semelhante a
uma árvore de Frome não é óbvio, a menos que sua continuação submarina
seja tomada em consideração. Em seguida, o Frome, o Stour, o Avon, o
Test, o Itchen e o Medina, se combinariam para formar um grande rio, tendo
foz a leste da Ilha de Wight. Esse tipo de rio deve muito provavelmente ter
existido. Por último, existem os riachos que passam por ravinas através das
camadas de calcáreo, o Tâmisa acima de Reading e os vários pequenos rios
do Weald. Esta circunstância é incompreensível, a menos que suponhamos
que os estratos em arcos foram anteriormente completos. Então, esses
riachos fluiriam pela encosta plana do cume, seguindo as leis hidrostáticas
ordinárias. A única característica proeminente dessa área, que exigiria uma
explicação especial além da flexão das rochas, é o banco de cascalho que
formam o Dungeness.110
Sendo esta a anatomia geral do terreno, qual tem sido a sua
influência
no Homem? No meio da floresta e do pântano, três amplas terras altas se
destacaram nos primeiros dias, como grandes aberturas nas quais o Homem
poderia se estabelecer com menos resistência da natureza. Na linguagem
dos celtas, eram conhecidos como "Gwents", um nome depois corrompido
pelos conquistadores romanos ao latim "Ventae". Eles eram os planaltos de
calcáreo com se estava familiarizado, o topo em arco de Salisbury Plain e
Hampshire e as expansões terminais das faixas de calcáreo em East Anglia
e em Kent. Em East Anglia estava Venta Icenorum; em Kent e
Canterbury111, ainda podemos encontrar relíquias de outro “Gwent”. A
primeira sílaba de Winchester112 completa o trio. Mais tarde, mas ainda nos
primeiros tempos, eles foram os primeiros lares das três raças que
compunham o hospedeiro alemão. Os anglos se estabeleceram em Norfolk e
Suffolk, os jutos em Kent e os saxões em Hampshire. Posteriormente,
Winchester, Canterbury e Norwich foram as cidades principais da época
medieval inglesa. Até hoje, pelo menos, o isolamento de duas dessas
regiões deixou seus traços nas características marcadas de suas populações.
As Fens [Fenlands, a leste da Inglaterra] isolaram Norfolk, as florestas de
Weald isolaram Kent. Seus povos assumiram posições distintas em nossa
história. Os "homens de Norfolk" e os "homens de Kent" foram de uma
disposição rebelde notável.
Havia quatro grandes cidades no leste e no sul; nós mencionamos
três. A quarta foi Londres. As condições geográficas determinaram a
grandeza da metrópole. No mapa deixa claro, de forma evidente, que as
Fens e Weald obrigariam as linhas de comunicação de Norfolk e Kent por
um lado, e o resto da Inglaterra, por outro lado, a passarem na direção geral
de Londres. Kent fica mais próximo do continente e, portanto, a rua Watling
não era apenas uma rua de Kent , mas também a estrada para Flandres.
Onde as colinas estreitam o Tâmisa, formando pântanos, há o cruzamento
natural da rua Watling, primeiro através de uma balsa e depois de uma
ponte. Este ponto fica entre Tower Hill e as alturas de Dulwich e
Sydenham. Bermondsey, a ilha de Bermond, era um ponto seco, erguendo-
se como um degrau entre os arredores dos pântanos. A existência de terreno
sólido nas margens imediatas da água mais profunda, que é necessário,
como a "decolagem" para uma ponte ou ferry, é também necessário para um
local de desembarque. Aqui temos então um cruzamento de
condições naturais num local que é um ponto de paragem natural para
ambos [para quem vai para o continente e para quem vem de lá para a ilha],
daí ser um local em que uma cidade certamente seria edificada. Essa cidade
será de maior
importância se um caminho é por terra e o outro por água, pois é então um
local de transbordo. Será ainda mais importante se for o ponto de encontro
necessário do tráfego fluvial e marítimo. Ainda mais plena de significado é
a posição da foz do Tamisa relativamente à do Scheldt [rio perto de
Antuérpia, que desemboca no mar do Norte]. A posição geográfica
determina a grandeza ligada de Londres e de Antuérpia, e também grande
parte da política continental da Inglaterra. Assim, muitos fatores
conspiraram para a grandeza de Londres. Isto é um fato para ser lembrado.
É o segredo do seu persistente crescimento desde os tempos mais
longínquos. A importância de uma dada característica geográfica varia com
o grau de civilização do homem. Uma cidade que depende de uma
vantagem pode cair a qualquer momento. Uma única descoberta mecânica
pode efectuar uma mudança.113
Chega de cidades. Finalmente, a questão das divisões políticas. Há
dois tipos de divisões políticas, naturais e arbitrárias. O contraste
apresentada pela antiga divisão da França em províncias e pela
revolucionária divisão em departamentos servirá para indicar a distinção.
Esta é o resultado de um processo inconsciente, tal como o acréscimo de
Estados mais pequenos por um Estado maior. O outro é o produto de uma
legislação consciente. Na Inglaterra existem os dois tipos. Nas terras
centrais temos divisões arbitrárias, condados com os nomes de suas cidades
principais, os quais supostamente se originaram da partição da Mércia.114
No leste e no sul, por outro lado, a divisão em condados são mais naturais e
levam nomes que indicam suas origens distintas. No caso de divisões
arbitrárias, as fronteiras também são provavelmente arbitrárias. No caso de
divisões naturais, as fronteiras também são naturais e podem ser de dois
tipos. Imigrantes se espalham de um centro, até encontrarem obstáculos
físicos ou até que encontrem a oposição de outros assentamentos
centrífugos. Na região com a qual estamos lidando, podemos encontrar
alguns excelentes exemplos deste último. Os habitantes de Surrey, Kent, e
Sussex estabeleceram-se nos planaltos calcáreos, e se expandiram
lentamente para a floresta até que suas guardas avançadas se encontraram
no centro. As linhas de fronteira desses condados são exatamente o que
deveríamos esperar sob essas circunstâncias. Com isso podemos comparar a
fronteira dividindo Berkshire e Hampshire de Surrey e Sussex. Isso cruza
uma região de áreas comuns, situada principalmente nas areias de Bagshot.
Tal terra estéril seria indigna de ocupação a menos que a terra melhor
tivesse tivesse sito preenchida. Pegue novamente a região dos Fens. Cinco
condados enviam pessoas até esses pântanos.
O tempo nos proíbe de ir mais longe neste assunto. Estes são os
resultados mais amplos. A partir de uma consideração do dobramento do
calcáreo e de sua dureza em comparação com os estratos acima e abaixo
dele, podem ser demonstradas as causas dos dois grandes promontórios, as
duas grandes enseadas, e as três grandes aberturas de planalto que
determinaram as posições, o número e a importância das principais cidades
e divisões políticas do sudeste da Inglaterra. Os mesmos processos de
raciocínio podem ser continuado em qualquer grau de detalhe necessário. A
geografia de qualquer
outra região pode ser tratada de maneira semelhante. Além disso, tendo uma
vez dominado as poucas noções geológicas simples envolvidas, uma
concepção gráfica e precisa de uma terra pode ser transmitida em algumas
frases. O esforço necessário para compreender a primeira aplicação do
método pode ser maior do que o exigido pelos métodos mais antigos. Sua
beleza reside no fato de que cada nova conquista proporciona maior
facilidade de aquisição.
Vamos resumir nossos resultados sobre a relação da geologia com a
geografia na forma das seguintes proposições:
1. É essencial conhecer a forma da litosfera [isto é, o relevo].
2. Isso só pode ser lembrado de forma precisa e vívida, entendendo
as causas que o determinaram.
3. Uma dessas causas é a dureza relativa e a disposição das rochas.
4. Mas nenhum dado ou raciocínio geológico deve ser admitido a
menos que seja pertinente ao argumento geográfico. Deve ajudar a
responder
a pergunta: "Por que um determinado recurso está onde está?"
As duas classes restantes de fatores ambientais do Sr. Bryce
demandam uma atenção menor. A distinção entre meteorologia e geografia
deve ser prática. Não se deve exigir do geógrafo muito de meteorologia, e
muito menos quanto ao negócio de previsão do tempo. Apenas as médias e
as condições climáticas recorrentes é que estão ao seu alcance. Neste ponto
ele deve se contentar muitas vezes em adotar os resultados da meteorologia,
assim como a própria meteorologia adota os resultados da física. É um erro,
especialmente dos alemães, que incluiram muito [de geologia e
meteorologia] em geografia. A geografia se oriente sobre muitos assuntos,
mas tem não que incluir em seu objeto esses assuntos. Até o grande [Oscar]
Peschel inclui em seu Physische Erdkunde uma discussão sobre o
barômetro e uma demonstração das fórmulas necessárias nas correções
barométricas. Essas digressões são a causa das repetidas acusações que os
geógrafos são meramente diletantes em todas as ciências. É nossa opinião
que a geografia tem uma esfera de estudos separada. Seus dados podem se
sobrepor aos de outras ciências, mas sua função é apontar determinadas
novas relações entre esses dados. A geografia deve apresentar um
argumento contínuo e o teste sobre se um determinado assunto deve ser
incluído ou não deve ser este: “Isso é pertinente à linha principal do
argumento?” Até que ponto são permitidas digressões com vistas a provar
que se está a argumentar deve ser uma questão a ser equacionada na prática.
Como regra geral, os dados devem ser excluídos se forem função de
qualquer outra ciência prová-los.
A última categoria do Sr. Bryce inclui a produção de uma região. A
distribuição de minerais é obviamente incidental à estrutura da rocha, e
precisamos consultá-la apenas para dar outra espiada no assunto que temos
desenvolvido anteriormente. No que diz respeito à distribuição dos animais
e plantas, devemos aplicar o teste a que nos referimos no último parágrafo:
“Até que ponto é pertinente à linha principal do argumento geográfico?” Na
medida em que os animais e plantas em questão formam um elemento
apreciável do meio ambiente do Homem, até agora sua distribuição tem
sido muito pertinente. Na medida em que essa distribuição dá evidências de
mudanças, como a separação das ilhas dos continentes ou uma retração da
camada de neve, nesses casos também é pertinente. Mas o estudo da
distribuição de animais e plantas em detalhes, e com a finalidade de
compreender a evolução desses seres, em nenhum sentido faz parte da
geografia. Isso faz parte da zoologia ou da botânica, para as quais um
estudo preliminar de geografia é necessário.
A verdade é que os limites de todas as ciências devem naturalmente
ter compromissos. O conhecimento, como já dissemos, é somente um. Sua
divisão em diferentes ciências é uma concessão à fraqueza humana. Como
um exemplo final disso, trataremos agora da relação da geografia com a
história. Em seus estágios elementares, elas devem obviamente andar de
mãos dadas. Nos seus estágios superiores, elas divergem. O historiador
encontra ocupação plena no estudo crítico e comparativo de documentos
originais. Ele não tem nem o tempo e nem geralmente a virada de olhos
para sondar a ciência [isto é, as condições de geografia física] por si mesmo
com a finalidade de selecionar os fatos e teorias de que necessita. É função
do geógrafo fazer isso por ele. Por outro lado, o geógrafo deve ir à história
para a verificação das relações que esses dados sugerem. O conjunto de leis
que regem essas relações, que podem evoluir com o tempo, tornaria
possível escrever muitas histórias "pré-históricas". [A obra] Making of
England, de John Richard Green, é amplamente uma dedução das
condições geográficas do que deve ter sido o curso da história.
Resta definir o que considero ser a linha principal de argumento
geográfico. Farei isso em duas etapas. A primeira vai ser geral, como pode
ser obtida no plano de estudos de uma universidade, no curso de palestras
ou no índice no início de um livro didático. O segundo será uma aplicação
especial disso para a solução de um problema definido – as razões pelas
quais Delhi e Calcutá deveriam ter sido, respectivamente, a velha e a nova
capital da Índia.
Pressupomos um conhecimento de fisiografia. Nós então podemos
começar com a ideia de um globo sem relevo, e construir uma concepção da
terra por analogia com a mecânica. Primeiro, as leis de Newton são
demonstradas em sua simplicidade ideal numa hipótese de rigidez absoluta.
Somente depois que elas forem assimiladas na mente é que se introduz as
tendências de elasticidade e fricção. Aí então introduziríamos o estudo da
geografia. Imagine nosso globo sem terra, composto de três esferas
concêntricas – a atmosfera, a hidrosfera e a litosfera. Duas grandes forças
mundiais estariam em ação, o calor do sol e a rotação da terra em seu eixo.
Obviamente a circulação de ventos teria uma influência sem impedimentos.
Em seguida, apresente o terceiro conjunto de forças mundiais, a inclinação
do eixo da terra em relação ao plano de sua órbita e a revolução da Terra em
torno do Sol. O resultado seria uma marcha anual de trópico a trópico da
zona calma sem separação por barreiras. A quarta e última das causas que
temos denominado globais seria a variação secular na elipticidade da órbita
terrestre e na obliquidade do seu eixo. Isso produziria variações
semelhantes na intensidade e na circulação anual dos ventos alísios.
Até agora evitamos variações longitudinais. Considerando a
latitude, altitude, estação do ano e período secular, as condições climáticas
seriam dedutíveis de muito poucos dados. Agora abandonamos nossa
hipótese original. Vamos conceber o mundo como ele é, com períodos tão
quentes como tão frios, tanto encolhendo como enrugando. É aquecido, é
resfriando, portanto, está encolhendo, e a crosta externa mais resfriada está
em conseqüência, se enrugando. A litosfera não é mais concêntrica com a
atmosfera e a hidrosfera. O leito do oceano é moldado por montes e sulcos.
Os montes se projetam na hidrosfera, e através desta para a atmosfera. Eles
agem como obstáculos no caminho das correntes mundiais. Eles podem ser
comparados às pedras no leito de um riacho rápido no qual as correntes
colidem e são desviadas. Eles saltam sobre eles ou se dividem sobre eles.
Isso é puramente ação mecânica e é bem vista na divisão da corrente
marítima sul equatorial no cabo de São Roque. O Cabo de São Roque tem
uma influência distinta no clima da Inglaterra. A ação de “saltar para cima"
é visível no caso de ventos sobre as cadeias de montanhas e, como
consequência, cobrindo suas encostas com umidade. Mas, além da ação
mecânica, existem causas térmicas de variação, devido principalmente às
diferentes temperaturas da terra e da água – daí as monções. A existência
dos grandes enrugamentos têm um significado especial. Fossem os
continentes estendidos para o leste e oeste, em vez das três grandes faixas
ao longo do Equador, e o clima seria aproximadamente organizado pela
latitude.
Assim, podemos progredir constantemente na análise da superfície
do mundo. Conceba o mundo como sem relevo, e você verá a potência
motora de
circulação do ar e da água. Substitua sua concepção por uma de um mundo
enrugado, e você vai entender como por obstrução mecânica e
irregularidade térmica, com suas correntes simples, são diferenciadas em
correntes de complexidade quase infinita, mas ainda ordenada. Mas
devemos avançar um
estágio adiante. A forma da litosfera não é fixa. O encolhimento ainda está
em andamento. Velhas rugas são levantadas e novas rugas aparecem.
Conforme elas se levantam, sua destruição começa. As correntes trabalham
sempre na remoção dos obstáculos que atrapalham o seu curso. Eles tendem
a atingir a simplicidade ideal de circulação. Assim, os recursos da superfície
da Terra estão mudando constantemente. Sua forma precisa é determinado
por sua história passada, bem como pelas condições presentes. As
mudanças recentes são o assunto de um dos capítulos mais fascinantes da
geografia. Planícies são construídas pelo acúmulo de detritos. Continentes
podem gerar ilhas. A evidência é retirada de uma centena de fontes – das
linhas de migração de pássaros, da distribuição de animais, ou das
profundezas dos mares vizinhos.
Cada capítulo sucessivo postula o que aconteceu antes. A sequência
de argumentos é ininterrupta. Da posição dos obstáculos e o curso dos
ventos pode ser deduzida da distribuição das chuvas. Da forma e
distribuição dos enrugamentos e da distribuição das chuvas segue a
explicação do sistema de drenagem. A distribuição dos solos depende
principalmente da estrutura da rocha, e em uma consideração de solo e
clima segue a divisão do mundo em regiões naturais baseadas na vegetação.
Não estou aqui referindo à distribuição de espécies botânicas, mas para os
amplos tipos que podem ser chamados de roupas vegetais do mundo, os
desertos polares e tropicais, as florestas terperadas e tropicais, e as regiões
que podem ser agrupadas como planícies de grama [estepes e pradarias].
Passando agora para a segunda fase da investigação, cabe fazer uso
de dois termos técnicos. Um é “meio ambiente" como uma região natural.
Quanto menor a área incluída, maior tende ao número de condições
uniformes ou quase uniformes em toda a área. Assim temos ambientes de
diferentes ordens, cujas extensão e intensidade, para emprestar uma frase
lógica, variam inversamente. O mesmo ocorre com as comunidades. Uma
"comunidade "é um grupo de pessoas com certas características em comum.
Quanto menor a comunidade, maior tende a ser o número de características
comuns. As comunidades são de diferentes ordens – raças, nações,
províncias, cidades – as duas últimas expressões usadas no sentido de
grupos corporativos de pessoas. Pelo uso preciso desses dois termos, podem
ser introduzidas discussões sobre os efeitos de um meio ambiente em duas
comunidades diferentes, ou de uma mesma comundade em dois ambientes
diferentes. Por exemplo, esta questão: Como as condições geográficas
diferenciaram o povo inglês em três ambientes, Grã-Bretanha, Estados
Unidos e Austrália?
Em todos os lugares, as questões políticas dependerão dos
resultados do inquérito físico. Certas condições de clima e solo são
necessárias para uma agregação mais densa de populações . Uma certa
densidade populacional parece necessária para o desenvolvimento da
civilização. À luz de tais princípios, poderiam ser discutidos certos
problemas como o contraste entre as antigas civilizações de planalto do
Novo Mundo, no Peru e no México, e as antigas civilizações das terras
baixas do Velho Mundo, no Egito e na Babilônia. Mais uma vez, estratos
comparativamente não perturbados geralmente sustentam amplas planícies
que parecem especialmente favoráveis ao desenvolvimento de povos
homogêneos, como os russos e os chineses115. Ainda de novo, a
distribuição de produtos animais, vegetais e minerais tem feito muito para
determinar as características locais da civilização. Considere a esse respeito
a série apresentada pelo Velho Mundo, o Novo Mundo e a Austrália em
matéria de riqueza comparativa em cereais e animais de carga.
Um dos capítulos mais interessantes trataria da reação do homem na
natureza. O homem altera seu ambiente e a dinâmica desse o ambiente em
sua posteridade é, consequentemente, alterada. A relativa importância das
características físicas varia de época para época de acordo com o estado de
conhecimento e de civilização material. A melhoria de iluminação artificial
tornou possível a existência de um grande comunidade em São Petersburgo.
A descoberta do Novo Mundo e da rota do cabo para a Índia acabou
produzindo a queda de Veneza. A invenção da máquina a vapor e do
telégrafo elétrico tornaram possível o grande tamanho dos Estados
modernos. Podemos multiplicar esses casos. Podemos agrupá-los em
categorias, mas nosso objetivo hoje é apenas indicar as possibilidades do
assunto. Uma coisa, no entanto, deve
sempre ser levada em consideração. O curso da história em um determinado
momento, seja na política, na sociedade ou em qualquer outra esfera da
atividade humana, é produto não só do meio ambiente, mas também do
momentum adquirido no passado. O fato de o Homem ser principalmente
uma criatura de hábitos deve ser reconhecido. O inglês, por exemplo,
suportará muitas anomalias até se tornarem incômodos com certo grau de
virulência.
A influência dessa tendência deve ser sempre levada em consideração na
geografia. Milford Haven, no atual estado de coisas, oferece muito mais
vantagens físicas do que Liverpool para o comércio americano; porém, é
improvável que o Liverpool venha a dar lugar a Milford Haven, em
qualquer horizonte do futuro imediato. É um caso de vis inertiae.
Propomos passar agora para a ilustração especial que tínhamos
prometido. Começaremos pela nascente. Do calor do Sol e da rotação da
Terra, demonstramos o sistema de ventos alísios. A partir da influência
desse calor na vasta massa da Ásia, deduzimos a variação do sistema de
monções. Dentro da área das monções são coletados cerca de setecentas das
oitocentos milhões da pluviosidade total da Ásia. De lado a lado, a monção
sudoeste se estende até o Himalaia. A umidade do oceano Índico, em
consequência, inunda sua face sul. Assim, toda a importância da direção das
cadeia de montanhas é estabelecida. As chuvas arrastaram detritos das
montanhas, que formam a planície fértil em sua base. Portanto, ao longo do
sopé sul do Himalaia, temos um cinturão de terras que possui as condições
de clima e solo necessários para sustentar uma grande população. Com
efeito, encontramos dois quintos da população de toda a península
concentrada nas províncias de Bengala, Noroeste e Punjab, embora estas
três províncias têm pouco mais de um sexto da área total. Entretanto, a
abundante umidade da monção, juntamente com a altura do Himalaia (a
altura é uma consequência da novidade comparativa do enrugamento),
produzem um abundante sistema glacial acima da linha de neve. Um
resultado disso é que os rios da planície são perenes e constantemente
navegável. Assim, temos duas condições favoráveis ao desenvolvimento da
civilização, densidade populacional e facilidade de comunicação.
Uma rica comunidade civilizada constitui uma região tentadora para
o conquistador. Agora, os conquistadores são de dois tipos: lobos terrestres
e lobos marinhos. Como será que eles teriam acesso às suas presas no vale
do Ganges? Considere primeiro a fronteira terrestre da Índia. A nordeste, no
Himalaia, ela é praticamente intransitável para um invasor.116 A noroeste
existe a cordilheira Sulaiman, atravessada por muitas passagens. Das terras
altas iranianas, das quais esta região é a parede limite, vieram
sucessivamente ondas de conquistadores. Mas, dentro da linha de
montanhas, o obstáculo é muito mais eficaz, o Thar ou grande deserto
indiano, com sua continuação no grande Rann de Katch. Esta barreira se
estende paralelamente às montanhas Sulaiman perto do mar quase até o
Himalaia. Entre o deserto e o sopé do Himalaia, o cinturão fértil é mais
estreito. Por aquele portão deve passar quem quer que ganhe acesso ao vale
do Ganges. Alexandre avançou por essa entrada. Quando ele desviou para a
direita e seguiu o rio Indo, a Índia foi salva. Perto da extremidade leste da
passagem está Delhi. Fica à frente da navegação Jumna-Ganges, o local de
transbordo da terra ao transporte marítimo. É, portanto, um centro natural
de comércio. É também a base natural de operações do conquistador
asiático, com sua esquerda flanqueada pelas montanhas, sua direita pelo
deserto, e sua linha de comunicações seguras na parte traseira. A
importância estratégica da região não escapou aos britânicos. Aqui está
Simla, a capital de verão da Índia. Aqui também os acantoamentos do
exército estão localizados de maneira mais densa. Aqui ocorreram muitas
batalhas, principalmente com vistas a Delhi. E agora em relação a Calcutá.
Do mar, a Índia é singularmente inacessível. A costa leste é batida por uma
forte ressaca. Tivemos que construir um porto em Madras com grande
despesa. A costa oeste tem muitos portos bons, mas em sua retaguarda estão
as encostas íngremes dos portões ocidentais. Encharcado pelas monções,
eles são densamente revestidos de florestas, que até hoje são a morada de
algumas das raças mais selvagens do mundo. Através das ferrovias de
Bombaim, eles agora podem ser transpostos sobre as montanhas, mas até
recentemente eles devem ter sido uma eficaz barreira para a comunicação.
Os portugueses instalaram-se em Goa e não puderam avançar. A possessão
inglesa em Bombaim foi a nossa primeira na Índia117, ainda que a
presidência [administração colonial] em Bombaim tenha sido a última a se
expandir. A única grande entrada natural pelo mar é pela foz do rio Ganges.
Aqui, no [rio] Hoogly, os britânicos se estabeleceram em Calcutá. É o local
de junção do rio e do transporte por mar e, portanto, um centro comercial. É
também a base natural de operações para os conquistadores de além-mar.
Daí eles estenderam sua influência por toda a parte. As antigas presidências
de Bombaim e Madras foram sucedidas por uma única província, mas a
presidência de Bengala deu origem a Bengala, ao Noroeste, ao Punjab e às
províncias centrais; podemos também adicionar Assam e Burma. Em suma,
nas duas extremidades do cinturão fértil estão os dois portões da Índia – o
passo de Khaibar e o Hoogly. Ao longo desse cinturão, a grande via fluvial
é o Jumna-Ganges. Em qualquer extremidade da navegação pelo rio,
encontra-se uma capital estratégica e comercial, Delhi por um lado,e
Calcutá pelo outro118.
Assim, completamos nossa pesquisa e os métodos e o escopo da
geografia. Eu acredito que, nas linhas como eu esbocei, uma geografia pode
ser
elaborada para satisfazer de uma vez os requisitos práticos do estadista e do
comerciante, os requisitos teóricos do historiador e do cientista, e os
requisitos intelectuais do professor. Sua amplitude inerente e multifacetada
devem ser reivindicadas como seu principal mérito. Ao mesmo tempo,
temos que reconhecer que estas são as mesmas qualidades que a tornarão
"suspeita" para uma era de especialistas. Ela seria como um protesto
permanente contra a desintegração da cultura com que somos ameaçados.
Nos dias de nossos pais, os clássicos antigos eram o elemento comum na
cultura de todos os homens, uma base sobre a qual os especialistas podiam
se encontrar. O mundo está mudando, e parece que [o domínio dos]
clássicos também estão se tornando uma especialidade. Quer nos
arrependamos da mudança que as coisas tomaram ou se nos regozijamos
com isso, é de qualquer forma nosso dever encontrar um substituto. Para
mim, parece que a geografia combina algumas das qualidades necessárias.
Para o homem prático, quer ele pense na eficiência do Estado ou no
acúmulo de riqueza, é uma reserva de informações inestimáveis; para o
aluno é uma base estimulante a partir da qual se pode traçar uma centena de
perpectivas especiais; para o professor seria ser um instrumento para a
evocação do poder do intelecto, exceto para aquele tipo de professores
antiquados que medem o valor disciplinar de um assunto pela repugnância
que ele inspira nos alunos. Tudo isso, reiteramos, é a partir do pressuposto
da unidade da disciplina. A alternativa seria separar o científico do prático.
Mas como resultado teríamos a ruína de ambos. A prática será rejeitada
pelo professor e será considerada indigesta no final de sua carreira. O
científico será negligenciado pela maioria dos homens, porque falta o
elemento de utilidade para a vida cotidiana. O homem do mundo e o
estudante, o cientista e o historiador, perderão sua plataforma comum. O
mundo será mais pobre.
Notas

[←1]
Há uma edição reformulada e com um posfácio, disponível no site da
Amazon: https://www.amazon.com.br/Capital-Geopol%C3%ADtica-
geogr%C3%A1fico-pol%C3%ADtico-implanta%C3%A7%C3%A3o-
Bras%C3%ADlia-ebook/dp/B08KR7Q9Q4/ref=sr_1_35?
__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&keywords=
vesentini&qid=1639941297&s=books&sr=1-35.
[←2]
Disponível na Amazon: https://www.amazon.com.br/Geografia-
Geopol%C3%ADtica-ensaios-resenhas-Vesentini-
ebook/dp/B08MVFBLMM/ref=sr_1_36?
__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&keywords=
vesentini&qid=1639941297&s=books&sr=1-36.
[←3]
O filme “As montanhas da Lua”, com roteiro e direção de Bob Rafelson
(Mountains of the Moon, EUA, 1990), com base em fatos verídicos, narra as
aventuras de dois geógrafos-exploradores desse período, que se
aventuraram no coração da África em busca da nascente do rio Nilo, e cujos
debates sobre o assunto na Real Sociedade Geográfica de Londres eram
objeto de enorme atenção por parte de comerciantes, industriais, militares e
membros da família real britânica. Para uma explanação acadêmica dessa
fase de viagens e aventuras, e da formação das sociedades geográficas, cf.
CAPEL, H. Filosofía y ciencia en la geografía contemporânea. Barcelona,
Barcanova, 1984, 2ª ed.
[←4]
MACKINDER. H. Democratic Ideals and Reality, NDU Press, Defense
Classic Edition, 1996, p.1.
[←5]
Paul KENNEDY (Ascensão e queda das grandes potências, RJ, Campus,
1989) vai nessa mesma direção, afirmando que a ascensão e o declínio das
grandes potências mundiais se deve fundamentalmente ao maior ou menor
crescimento das economias nacionais, que tal como no entendimento de
Mackinder, constituem o alicerce fundamental do poder militar.
[←6]
Raymond ARON (Paz e Guerra entre as Nações, editora UNB, 1986, 2ª ed.,
p.268) afirmou que “Mackinder teve a pior sorte dos conselheiros de
príncipes: foi ouvido pelos estadistas, mas ignorado pelos acontecimentos.”
Acredito que o inverso é que é verdadeiro, pois, grosso modo, as
considerações de Mackinder foram previdentes em relação aos
acontecimentos que se seguiram às suas duas principais obras, a de 1904 e
a de 1919, mas os estadistas britânicos, estadunidenses e franceses – que
na sua opinião eram idealistas e tinham uma confiança utópica na paz – é
que não prestaram a devida atenção às suas advertências. O trabalho de
MELLO, Leonel Itaissu A. – Quem tem medo da Geopolítica?,
Hucitec/Edusp, 1999 –, que contém uma exaustiva análise da obra de
Markinder, também questiona essa afirmativa de Aron, inclusive indo além
ao procurar demonstrar que, mesmo neste mundo pós-guerra fria, as ideias
do geógrafo britânico continuam vivas e ainda apresentam relevantes
contribuições para o entendimento da política internacional de poder.
[←7]
SACHS, Jeffrey (O fim da pobreza, Cia das Letras, 2005) examina, dentre
outros fatores, a importância das condições geográficas para o maior ou
menor desenvolvimento econômico das economias nacionais, algo que em
alguns casos, segundo ele, é de fundamental importância. Mas, como se
trata de um economista proeminente, ninguém tem a ousadia de acusa-lo de
determinista, o que sem dúvida ocorreria se fosse um geógrafo.
[←8]
Na introdução feita por Stephen V. Mladineo à edição da National Defense
University Press, contida neste volume, ele menciona um autor (W. H.
Parker) que pesquisou os comentários críticos sobre Mackinder em centenas
de livros e artigos e chegou à conclusão que a maior parte sequer leu as
obras do autor criticado, mas tão somente repetiu alegações que outros
fizeram.
[←9]
MACKINDER. H. Democratic Ideals and Reality, cit., p.2. Essa referência à
emergência de nossa prova de foto refere-se à Primeira Guerra Mundial, que
há poucos meses tinha chegado ao seu final.
[←10]
Cf. ARON, R. Paz e Guerra entre as Nações, cit., p.273.
[←11]
Essa afirmação não leva em conta somente – nem principalmente – a
quantidade e a variedade dos recursos naturais ou do efetivo demográfico.
Muito mais importante são as trocas com outras sociedades: nenhuma
economia nacional se desenvolveu – nem a Inglaterra do século XIX, nem os
Estados Unidos posteriormente, nem o Japão pós-guerra, nem os “tigres
asiáticos”, tampouco a China nos dias atuais, etc. – sem um forte e
indispensável apoio no comércio internacional e na incorporação de
tecnologia e valores externos. Mesmo num prazo mais longo, se pensarmos
na ideia de progresso material, isso também é verdadeiro: numa obra
clássica, Claude LÉVI-STRAUSS (Raça e História, Unesco, 1960) mostrou
que toda civilização que progrediu sempre incorporou elementos de outras, e
todas que se fecharam para as trocas e influências externas ficaram
estagnadas ou até regrediram.
[←12]
Mackinder considera que com a expansão marítimo-comercial europeia dos
séculos XV e XVI se iniciou uma nova fase na história mundial, a era
Colombiana, na qual a Europa saiu do seu isolamento medieval, no qual era
encurralada por poderosos adversários de poder marítimo (os sarracenos) e
principalmente de poder terrestre (os inúmeros povos que invadiram a
Europa a partir da Ásia), e com isso pôde crescer econômica e
demograficamente e, durante alguns séculos, exercer um domínio sobre o
resto do mundo graças sobretudo ao seu poder marítimo. Mas essa era teria
chegado ao fim no século XX com a expansão das ferrovias, que permitiram
maior mobilidade e maior transporte de carga por terra.
[←13]
Pode-se especular se Mackinder hoje estaria preocupado com a expansão
chinesa para oeste – populações oriundas da China já constituem maioria
em regiões a leste da Rússia e partes da Ásia central, a “nova rota da seda”
com a construção de ferrovias, gasodutos e oleodutos, empreendimentos
agrícolas, minerais e industriais, etc., desde a China até a Europa ocidental,
e também em grande parte da África, sempre sob a liderança e
investimentos principalmente chineses, podem significar um controle do
heartland ainda maior do que ele temia que ocorresse com a Alemanha no
início do século XX.
[←14]
A supracitada obra de ARON reproduz esse ponto de vista, embora seja
muito mais bem argumentada e erudita que as demais que o repetem;
ademais, pela data de sua publicação, 1962, ainda se podia aceitar a
identificação de todo esse campo de estudos com Kjeléen, Haushofer e a
geopolitik alemã. Contudo, em plena terceira década do século XXI, uma
recente obra coletiva – GUZZINI, S. (Org.). O retorno da Geopolítica na
Europa?, editora da Unesp, 2021 – reproduz mais uma vez essa falácia, com
alguns dos autores, especialmente o organizador, afirmando reiteradamente
que qualquer obra de geopolítica implica, necessariamente, num
determinismo pelas condições ambientais. É bem verdade que existe um
viés corporativista nessa obra, com autores de relações internacionais
procurando desqualificar qualquer outro especialista que ouse escrever
sobre “sua” temática (como se eles tivessem algum objeto de estudos
exclusivo), mas no fundo revela um total desconhecimento das “novas
geopolíticas” ou “geopolíticas críticas” contidas em obras de vários autores
recentes – historiadores (Kennedy, Kissinger), geógrafos (0’Tuathail, Parker,
Agnew), cientistas políticos (Luttwak, Brzezinsk), sociólogos (Huntington),
economistas (Wallerstein, Ohmae) e outros – dos anos 1980 até o presente.
[←15]
Zbigniew BRZEZINSK ( The Grand Chessboard: American Primacy and Its
Geostrategic Imperatives, New York, Basic Books, 1997), por exemplo,
afirma num estilo bem mackinderiano que os EUA não deverão continuar por
muito tempo sendo hegemônicos no espaço mundial porque é provável que
uma potência a Eurásia ocupe esse lugar devido à maior população,
recursos e poderio econômico desse imenso continente. Podemos também
especular se os conceitos – sem dúvida que geopolíticos – de hardpower e
softpower, de Joseph Nye, não foram inspirados no de manpower, de
Mackinder.
[←16]
Mackinder, como aliás grande parte das pessoas e até dos intelectuais do
século XIX (basta lembrar dos impropérios de Marx contra os “preguiçosos
mexicanos” ou contra o “atrasado povo indiano” com suas “superstições”
religiosas), sem dúvida que acreditava na “superioridade da civilização
europeia”. E usava o termo “raças” como sinônimo para povos, algo também
comum na época, afirmando que existiam raças “selvagens”, “civilizadas” e
“semicivilizadas”. Mas essa era uma perspectiva ligada ao desenvolvimento
material e à democracia no estilo europeu ou estadunidense, e não a algo
visto como natural e alicerçado na biologia. Tanto que ele temia uma
eventual ascensão da China, que reconhecia como uma efetiva civilização
antiga, ou que propôs em 1943, como um possível objetivo após o final da
guerra, a introdução de uma filosofia democrática nas escolas alemãs para
mudar a mente daquela “raça”, que ele considerava estar poluída por uma
filosofia autoritária. Como se vê, um uso incorreto (pelo menos para nós,
hoje) de termos como raça ou civilização, mas sem qualquer conotação de
diferenças biológicas inatas, tal como era para os nazistas, para Haushofer e
colaboradores da sua revista.
[←17]
LACOSTE, Y. Le pivot géographique de l'histoire: une lecture critique. In:
Hérodote, n.146-7, 2012, disponível in: https://www.cairn.info/revue-
herodote-2012-3-page-139.htm. O fato de essa revista negligenciar as ideias
de Mackinder, como Lacoste esclarece, é que sua linha editorial tem por
base a ideia que o criador da geopolítica foi Heródoto, na antiguidade, que
teria sido um “teórico do imperialismo ateniense”. A partir daí, Lacoste e
colaboradores criaram toda uma interpretação da geopolítica como uma
“geografia estratégica”, como o “uso da geografia para lutas espaciais”, e a
geopolítica clássica da primeira metade do século XX passou a ser vista
como apenas mal-entendidos.
[←18]
The revanche of Geography. What the map tells us about aoming conflicts
and the battle against fate. N.York, Elsevier, 2012, que na verdade é uma
ampliação do ensaio com o mesmo título que o Autor publicou em 2009 na
revista Foreign Policy.
[←19]
LACOSTE, Y. Op.cit. Desnecessário dizer que essa contestação sobre o
império Russo é superficial. Quando o leitor passar a examinar este livro de
Mackinder, logo irá perceber que ele não atribuiu a esse “dado geológico”,
isto é, à imensa planície eurasiana, a formação desse império, nem
esqueceu de mencionar o crescimento populacional russo (como Lacoste
havia apontado antes dessa citação), mas sim que esse império foi
construído a partir da reação dos governantes russos frente às invasões
asiáticas. Inclusive, como o leitor irá perceber, Mackinder assinala que esse
império, no início, se formou fora desse “dado geológico”, nas clareiras das
florestas ao norte, exatamente para se proteger dessas invasões. Somente
depois que essas hordas de invasores (ou migrantes, como afirmam vários
autores) se enfraqueceram, e que a população russa (cossaca) cresceu
suficientemente, aponta Mackinder, é que se iniciou a expansão a leste pela
planície.
[←20]
Não se pode esquecer que esse “milagre chinês” foi ocasionado
essencialmente por decisões políticas tanto dos Estados Unidos como da
China. A China, após a morte de Mao Tse Tung, passou a adotar uma
política econômica e comercial pragmática – basta lembrarmos da frase de
Deng Xiao Ping, nomeado líder do partido Comunista em 1976: “Não importa
a cor do gato [ou seja, a ideologia], contanto que ele cace o rato”. O atual
líder, Xi Jinping, prossegue nessa mesma linha realista de incentivar
capitais estrangeiros, de ampliar o comércio externo (na época de Mao o
objetivo era obter a autossuficiência) e, inclusive, com a “nova rota da seda”,
de expandir a influência chinesa até o heartland. E também decisões dos
Estados Unidos tiveram enorme peso, desde a diplomacia de Kissinger no
governo Nixon, quando a China passou a ser tratada como parceira
preferencial, o que ocasionou desde aquela época até hoje sucessivos
déficits na balança comercial estadunidense com a China, na casa de
centenas de bilhões de dólares a cada ano. Sem a decisão do governo
norte-americano de permitir que suas principais empresas se instalassem na
China, o que logo foi seguido por empresas de outros países como França,
Alemanha, Reino Unido, etc., esse deslanche econômico chinês não teria
ocorrido. Mas a China soube tirar vantagem dessa conjuntura favorável,
atraindo empreendimentos com seus baixos impostos e salários, além de
outras facilidades – como preços de energia, transportes e comunicações,
mão de obra educada e disciplinada, investimentos na infraestrutura –, para
com o tempo desenvolver uma tecnologia nacional (em grande parte copiada
das empresas multinacionais e também gerada pelas centenas de milhares
de cientistas e engenheiros que a China enviou para estudarem nas
melhores universidades norte-americanas ou europeias). É até ridículo tentar
explicar esse arranque chinês pela sua posição no rimland.
[←21]
A citada obra de MELLO, Leonel I. A., Quem tem medo da Geopolítica?,
analisa muito bem este fato.
[←22]
A obra principal desse Autor, esgotada há décadas em português, foi
novamente reeditada no Brasil : SPYDMAN, N. J. Geografia da Paz, ed.
Hucitec, 2020.
[←23]
CARR, E. H. Vinte anos de crise, 1919-1939. Editora da UNB, 2001, 2ª ed.,
p.117-23. Esta obra, por sinal, possui certa similaridade com a de Mackinder
de 1919, embora tenha mais uma perspectiva temporal do historiador – e
não uma abordagem espacial como a do geógrafo. Ambos analisam e
tentam extrair lições das guerras e em especial da primeira grande guerra,
ambos criticam o idealismo de autoridades que imaginavam uma situação
utópica de convivência pacífica entre as grandes potências e não
enxergaram a realidade de uma pré-guerra, e ambos estavam preocupados
com a construção de uma nova ordem internacional que impedisse novos
violentos conflitos armados entre as potências.
[←24]
Michel FOUCAULT (Microfísica do Poder, Graal, p.215) vai nessa mesma
linha de raciocínio, sugerindo que toda utopia política, quando chega ao
poder resulta em totalitarismo. Mackinder pensa que isso ocorre porque o
pensamento utópico desconhece a realidade e é por ela transformada;
Foucault vai além e pensa que isso se deve à própria essência da utopia,
que imagina uma sociedade transparente de ponta a ponta, sem as zonas
escuras e os conflitos que são inerentes à democracia.
[←25]
MACKINDER, op.cit., p. 2-3.
[←26]
MACKINDER. “On the scope and methods of geography”. In: Democratic
ideals and reality, op.cit., p.151.
[←27]
Mark LILLA (A mente naufragada. Sobre o espírito reacionário. Cia das
Letras, 2018) mostra com propriedade que conservadorismo e reacionarismo
são filosofias políticas bem diferentes. E João Pereira COUTINHO (As ideias
conservadoras. Três estrelas, 2014) faz um estudo sobre a tradição
conservadora britânica e mostra que o que mais a distingue não é ser contra
mudanças – pelo contrário, elas são bem vindas desde que graduais e não
forçadas pela violência ou pelo autoritarismo –, e sim contra a utopia, o
pensamento revolucionário que pretende mudar radicalmente a sociedade
de uma hora para outra sem levar em conta as tradições, os costumes ou
mesmo a vontade da população.
[←28]
MACKINDER, op.cit., p.198.
[←29]
POPPER, K. Conjecturas e Refutações, Editora da UNB, 1980, p. 311.
[←30]
Stephen V. Mladineo foi professor de Estratégia de Segurança Nacional e
Reitor Associado de Programas do Corpo Docente e Acadêmico do U.S.
National War College da National Defense University. Oficial de carreira da
Marinha, entre outras atribuições ele serviu como oficial comandante do USS
BERGALL SSN-667. Desde sua aposentadoria no posto de capitão, ele está
empregado como cientista da Equipe do Laboratório Battelle Pacific
Northwest, no Departamento de Energia em Washington. Formado pela
Academia Naval dos Estados Unidos, Mladineo possui graus de M.A. da
State University of New York em Albany e do U.S. Naval War College.
[←31]
B. W. Blouet, Halford Mackinder: A Biography, 3-30.
[←32]
Texto que foi acrescido ao final desta obra, em Artigos Adicionais.
[←33]
Texto que está inserido no final deste volume.
[←34]
H.j. Mackinder, Democratic Ideals and Realist, p. 50.
[←35]
Michael Howard, Parameters XVIII, 3 (September 1988): 14.
[←36]
Mackinder, op.cit: 23.
 
[←37]
PARKER, W. H. Mackinder: Geography as an Aid to Statecraft. Oxford
University Press: 198.
[←38]
NOTA DO REVISOR: com esse termo “organizador, neste caso específico
Mackinder estava pensando nos Estados que poderiam controlar o
heartland, em especial a Alemanha ou eventualmente a Rússia.
[←39]
NOTA DO REVISOR: Neste caso, Spykman estava pensando no Reino
Unido e especialmente nos Estados Unidos.
[←40]
NOTA DO REVISOR: a doutrina de contenção [conteinment policy] foi
elaborada em 1946 pelo diplomata estadunidense George F. Kennan.
Consistia numa estratégia para conter o avanço soviético na época da
guerra fria, também chamada de teoria do dominó porque imaginava que se
caísse uma peça (um país adotando o socialismo), as outras peças vizinhas
iriam caindo uma de cada vez.
[←41]
N.j. Spykman, The Geography of the Peace, 43.
 
 
[←42]
NOTA DO REVISOR: Mackinder estava pensando aqui numa espécie de
poder acima dos Estados nacionais.
[←43]
NOTA DO REVISOR: Mackinder faz referência à reação romântica e
nacionalista – expressa por autores/ideólogos como Herder, Fichte ou Hegel
– que se seguiu à invasão da Prússia pelo exército de Napoleão, que
chegou a ocupar Berlim. Alguns desses autores, como Fichte e Hegel, no
início saudaram a Revolução Francesa e a ideia de liberdade para todos que
ela proclamou, mas depois passaram a fazer coro à reação nacionalista
contra o invasor e até mesmo apoiaram a repressão implementada pelo
governo autocrata de Frederico Guilherme III, que possibilitou que,
posteriormente e a partir da Prússia, o primeiro-ministro Otto von Bismark
unificasse a Alemanha.
[←44]
NOTA DO REVISOR: Kultur, do alemão, é um vocábulo normalmente
identificado com uma cultura (nacional) com ênfase na eficiência e na
subordinação dos indivíduos ao Estado. Os nazistas fizeram amplo uso
desse sentido do vocábulo.
 
[←45]
NOTA DO REVISOR: Sra. Bouncer é personagem de uma comédia teatral
intitulada Box and Cox, de autoria de John M. Morton. Foi encenada pela
primeira vez em 1847, em Londres, e devido ao sucesso foi reencenada
várias outras vezes até inícios do século XX.
[←46]
NOTA DO REVISOR: No início do século XX ainda se falava na China como
um “gigante adormecido” devido à sua aparente estagnação e o fácil
controle que potências estrangeiras exerciam em seu território. Hoje essa
imagem, como é evidente, está completamente ultrapassada.
[←47]
NOTA DO REVISOR: Referência a uma passagem do evangelho de Lucas,
em que Jesus visitou uma casa onde viviam duas irmãs, Marta e Maria, e a
primeira continuou com seus afazeres domésticos enquanto a segunda
escutava o visitante. De acordo com a lógica do texto de Mackinder, Marta
seria uma “organizadora” realista sem tempo ou paciência para devaneios
idealistas, ao passo que Maria teria uma mente aberta a ideais utópicos.
[←48]
NOTA DO REVISOR: O Autor usa aqui o termo preconceito [prejudice] não
no sentido usual em português, que sempre encerra algo negativo ou
prejudicial (cf verbete no dicionário Aurélio ou no Houaiss), mas sim como
noções do bom senso que foram legadas pelos antepassados e que não
são, necessariamente, incorretas. Tanto que logo mais adiante ele vai elogiar
Bismark – que não era militar e sim historiador, diplomata e jurista – como o
maior ministro de guerra dos últimos tempos.
[←49]
NOTA DO REVISOR: Referência à construção do canal entre os mares do
Norte e Báltico na atual província de Schleswig-Holstein, no norte da
Alemanha. Antes da guerra de 1864, a segunda entre Prússia e Dinamarca,
essa região formava dois ducados ligados à Dinamarca.
 
[←50]
Em meu discurso para a Seção Geográfica da Associação Britânica em
Ipswich, em 1895, pode ser encontrado um relato da ascensão da escola
alemã de geografia.
[←51]
É verdade que existe um senso geográfico “cavalar"entre aqueles de nós
que viajaram. É verdade, também, que mantemos atlas em nossos
escritórios e bibliotecas, para serem consultados assim como
consultaríamos um dicionário para a grafia de uma palavra. Mas a grafia
correta nem sempre implica poder literário! Um senso treinado na
perspectiva geográfica é essencial para o modo de pensamento aqui em
questão.
[←52]
NOTA DO REVISOR: Refere-se a partidários de Richard Cobden, um
político e empresário inglês do século XIX conhecido pelo seu radicalismo na
defesa do laissez faire e na ojeriza à intervenção do Estado na economia.
Ele defendia a paz, a não intervenção no estrangeiro e, principalmente, o
livre comércio sem os obstáculos das leis ou medidas protecionistas.
[←53]
NOTA DO REVISOR: Joseph II foi imperador do Sacro Império Romano –
que abrangia um complexo multiétnico de territórios nas atuais Europa
ocidental e central – de 1765 a 1780. Adepto do absolutismo esclarecido,
tinha compromissos com a secularização do Estado, com a liberalização e
com reformas modernizantes, o que lhe causou uma significativa oposição.
[←54]
Doze anos atrás, conheci um oficial prussiano que me disse que passou a
vida tentando economizar meia hora na mobilização.
[←55]
Chamberlain renunciou ao Gabinete para se libertar como líder em
setembro,1903, e Lord Roberts renunciou ao cargo de comandante-chefe
com uma ideia semelhante em Janeiro de 1904.
 
[←56]
Cf. The Dawn of History, do Professor J. L. Myres.
 
[←57]
Não sei se esses nomes, Mar Latino e Península Latina, foram usados de
antemão. Parece-me que servem para cristalizar generalizações
importantes, e proponho usar eles daqui em diante.
 
[←58]
NOTA DO REVISOR: O Autor aqui se refere à bandeira de São Jorge,
considerado um santo guerreiro, adotada por Londres e pela Inglaterra em
1190, que passou a ser usada pela marinha real. É branca com uma imensa
cruz vermelha no centro – mas com a inclusão, no seu canto superior
esquerdo, da atual bandeira do Reino Unido, que além da Inglaterra, inclui
os “parceiros menores” Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales.
[←59]
NOTA DO REVISOR: Refere-se à campanha de Galipoli, durante a Primeira
Guerra Mundial, quando tropas da Entende (da Grã-Bretanha, França e
Rússia) invadiram essa península e istmo turcos, pois a Turquia era aliada
da Alemanha e através desse istmo era possível bombardear Constantinopla
por navios.
[←60]
NOTA DO REVISOR: o Autor faz referência à Greyfriars School, uma fictícia
escola pública inglesa que é o cenário da série do escritor Charles Hamilton,
iniciada em 1908 e que obteve grande sucesso. O aluno mais famoso, Billy
Bunter, descreve o autoritário disciplinador Henry Quelch como uma besta,
mas pelo menos uma besta justa.
[←61]
Seria enganoso tentar representar as declarações que se seguem em forma
de mapa. Eles só podem ser apreciados em um globo. Portanto, eles são
ilustrados por diagramas; veja as Figs. 12 e 13.
 
[←62]
Isso é verdade até os dias de hoje, embora com a ajuda de quebra-gelos
modernos esforços estão sendo feitos, especialmente pela empresa
Tyneside, para abrir um caminho direto para as bocas do Obi e Yenisei, o
que pode talvez resultar no estabelecimento de um tráfego marítimo de
verão para a Sibéria Ocidental.
 
 
[←63]
NOTA DO REVISOR: devemos lembrar que o autor escreveu esta obra em
1918 e naquele momento ainda não existiam os atuais países da região –
Arábia Saudita, Iraque, Líbano, Jordânia e outros – e toda essa região era
denominada Arábia.
[←64]
Realidades, vale dizer, que condicionaram a história e, assim, conduziram ao
presente distribuição da população e civilização. Essas mesmas realidades
hoje começaram a assumir novos aspectos devido à maior organização da
produção de alimentos nas pastagens mais ricas.
 
[←65]
NOTA DO REVISOR: Atual Antáquia, na Turquia, às margens do
Mediterrâneo e do rio Orontes.
[←66]
NOTA DO REVISOR: Estados ou nações da antiguidades que se
localizavam na região onde hoje existem Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia.
[←67]
NOTA DO REVISOR: O Autor aqui faz uma ironia, mas com um toque de
esperança, sobre a possibilidade de mudanças progressivas – a expansão
da democracia e uma Liga das Nações eficaz – que poderiam surgir a partir
do final da Grande Guerra de 1914-18.
[←68]
E, portanto, através do território, que poderia fornecer suprimentos para os
exércitos em conflito.
 
[←69]
As declarações aqui feitas são deixadas na forma que existia antes da
guerra, pois a memória deles é mais potente do que o ainda vago
reagrupamento do futuro.
[←70]
NOTA DO REVISOR: O Autor está se referindo ao fato que foi em
Hamburgo – que era uma cidade autônoma e com rápido crescimento
industrial e comercial devido à localização estratégica do seu porto, na foz
do Reno no mar do Norte – que primeiro se iniciou a mobilização para a
guerra logo após o assassinato do herdeiro do trono Austro-Húngaro em
Saravejo. Incitados pela burguesia local, que se ressentia da supremacia
britânica, mais de 200 mil citadinos se alistaram para a guerra, antes mesmo
que ela fosse declarada, e seu inimigo não era a Sérvia, acusada de
cumplicidade com o atentado, e sim a França e a Grã-Bretanha, vistas como
principais obstáculos para a expansão industrial e imperialista de Hamburgo.
O Kaiser de Berlim, então, como mostra Mackinder, se deixou levar por esse
entusiasmo militarista da cidade (que era mais importante que Berlim do
ponto de vista econômico) e optou por fazer a guerra em duas frentes,
contra os eslavos e contra os ocidentais.
[←71]
NOTA DO REVISOR: Referência a Jehan Froissart, importante historiador e
poeta do século XIV.
[←72]
NOTA DO REVISOR: Referência à revolução alemão iniciada em novembro
de 1918, que derrubou a monarquia e a substituiu por uma república
parlamentar que passou a ser conhecida como República de Weimar.
[←73]
Os detalhes da discussão do reassentamento territorial que se seguirá, é
claro, torna-se em grande parte obsoleto com o anúncio das decisões do
Congresso de Paz. Meu objetivo, porém, não é tanto debater certas
soluções para os problemas imediatos que nos confrontam, e sim fornecer
um aspecto concreto da ideia geral que procuro elaborar. Meu propósito
ainda terá servido se tivermos em mente que o que escrevi sobre estes
detalhes representam as perspectivas para o Natal de 1918.
[←74]
NOTA DO REVISOR: Galiza era uma região situada a sudeste da Polônia e
que hoje pertence à Ucrânia.
[←75]
Desde que escrevi este parágrafo, M. Venizelos, numa entrevista para um
correspondente do Times, datada de Paris, 14 de janeiro de 1919, usou
estas palavras: "Isso ainda deixaria algumas centenas de milhares de gregos
sob domínio turco no centro da Ásia Menor. Para isso há apenas um cura, e
essa é o encorojamento de uma transferência total e mútua da população."
[←76]
Para atender ao óbvio argumentum ad hominem, deixe-me dizer que não
vejo realmente necessidades estratégicas comparáveis para o caso da
Irlanda.
 
[←77]
Desde que escrevemos estas linhas, a Conferência de Paris tratou o Império
Britânico como um híbrido – uma unidade para alguns propósitos.
 
[←78]
A distinção entre esses dois termos nem sempre é observada. Indústrias-
chave são aquelas que, embora sejam relativamente pequenas, são
necessárias para outras indústrias muito maiores. Assim, por exemplo,
corantes de anilina foram utilizados na Grã-Bretanha antes da guerra nas
fábricas de têxteis e de papel que tinham o valor de dois milhões de libras
por ano. Essa proporção lembra uma chave que abre uma porta fechada.
Indústrias essenciais, por sua vez, não têm essa natureza de uma chave
pequena, tal como, por exemplo, neste século XX, as indústrias de aço. É
bom preservar a distinção, porque diferentes medidas defensivas podem
talvez ser necessárias nos dois casos.
 
[←79]
Como foi apontado pelo Sr. H. G. Wells, embora ele iria – erroneamente, eu
penso – ceder às tendências atuais e aceitar a organização por "interesses".
 
[←80]
Bernard Shaw – Man and Superman, 12ª edição, p. 230
 
[←81]
Como filho leal de Oxford, que reconhece com gratidão o que devo à sua
Alma Mater, eu não a faria florescer menos e sim mais ao mudar algumas de
suas funções inferiores para superiores.
 
[←82]
O soviete profissional dos camponeses é apenas acidentalmente local; não é
local no sentido completo de combinar vários interesses locais em uma
comunidade.
 
[←83]
1 Ver ‘Raças da Europa’, pelo Prof. W. Z. Ripley (Kegan Paul, 1900).
[←84]
NOTA DO REVISOR: partes do continente que hoje chamamos de África
subsaariana.
[←85]
Esta afirmação foi criticada na discussão que se seguiu à leitura do texto na
Sociedade Geográfica. Reconsiderando o parágrafo, eu ainda acho que é
substancialmente correto. Mesmo a Grécia Bizantina poderia ter sido outra
se Roma tivesse completado a subjugação da Grécia antiga. Não duvido que
os ideais professados fossem bizantinos em vez de helênicos, mas não
eram romanos. Este é o ponto.
 
[←86]
NOTA DO REVISOR: O autor se refere aqui à ocupação das Filipinas pelos
Estados Unidos em 1898.
[←87]
NOTA DO REVISOR: Henry Spencer Wilkinson era professor de história
militar na universidade de Oxford. Foi um sério leitor do teórico alemão Carl
von Clausewitz e exerceu influência sobre assuntos militares da Grã-
Bretanha, inclusive sobre estratégias durante a Guerra dos Bôeres.
[←88]
NOTA DO REVISOR: O coronel Thomas Holdich, engenheiro e geógrafo, foi
presidente da Royal Geographical Society e reconhecido como um
especialista em fronteiras. Integrou a comissão da fronteira afegã (1884-6), a
comissão da fronteira de Tasmar (1894) a de Pamir (1895), a entre Pérsia e
Buchistão/Índia (1896) e a definição da fronteira nos Andes entre Argentina e
Chile (1902).
 
 
[←89]
NOTA DO REVISOR: No início do século XX ainda se acreditava que o
berço da espécie ou raça humana era a Ásia, interpretação já obsoleta pelas
descobertas arqueológicas dos mais antigos fósseis do homo sapiens na
África, a verdadeira terra onde a nossa espécie se originou.
[←90]
NOTA DO REVISOR: Leopold Amery foi jornalista, político e membro de
vários gabinetes (ministérios) no governo britânico. Em 1917, como
secretário do gabinete de guerra no governo Lloyd George, ele redigiu a
(controversa) Declaração de Balfour, que estabelecia um lar na Palestina
para os judeus.
[←91]
NOTA DO REVISOR: David George Hogarth foi professor de arqueologia em
Oxford e responsável por várias escavações arqueológicas realizadas na
Grécia e no Oriente Médio no final do século XIX e inícios do XX. Durante a
Primeira Guerra Mundial, foi nomeado membro da divisão geográfica da
defesa naval britânica.
 
[←92]
As aduanas russas anulam isso, sem dúvida, pois por razões econômicas
foram colocadas na área pivô e em consideráveis seções da terra marginal,
embora não nas costas oceânicas.
[←93]
NOTA DO REVISOR: O Presidente da Royal Geographical Society nesta
época era Sir Clements Robert Markham, geógrafo, explorador (participou
das primeira expedições britânicas ao Ártico e expedições na Ásia, Panamá
e cordilheira dos Andes) e escritor. Também foi oficial na administração
colonial britânica na Índias.
[←94]
NOTA DO REVISOR: Referência ao zoroastrismo, antiga religião da Pérsia,
na qual há uma oposição maniqueísta entre a bondade, representada pelo
deus Ormuzd, e a maldade do deus Ahriman.
[←95]
NOTA DO REVISOR: Refere-se à batalha naval, durante a guerra civil norte-
americana, que envolveu, entre outros barcos, a fragata a vapor Merrimac,
dos confederados, e o navio Monitor, da União. É considerada uma batalha
exemplar na história naval: os dois barcos eram blindados com ferro e essa
batalha simbolizou o fim da era dos navios militares de madeira.
[←96]
NOTA DO REVISOR: Refere-se aqui à Conferência de Casablanca, de
1943, onde os aliados discutiam a próxima fase da guerra.
[←97]
NOTA DO REVISOR: Cadeia de montanhas de baixas altitudes a nordeste
da França e próximos à fronteira com a Alemanha.
[←98]
N. Mikhaylov, "Soviet Geography," London: Methuen, 1937.
 
 
[←99]
Algum dia, aliás, quando o carvão e o petróleo acabarem, o Saara pode se
tornar a armadilha para capturar a energia direta do sol.
 
[←100]
NOTA DO REVISOR: Percebe-se aqui como a escola geográfica britânica,
em inícios do século XX, estava defasada em relação às alemã e francesa.
Sequer existia ainda o ensino da geografia nas escolas básicas do Reino
Unido e nenhum departamento de geografia nas universidades. Havia a
disciplina geografia, que Mackinder lecionava em universidades, mas não
para cursos de formação de geógrafos. inclusive foi graças aos esforços de
Mackinder e outros, congregados nas Sociedades Geográficas, que a
disciplina foi introduzida nos currículos escolares e departamentos de
geografia foram criados em universidades. A geografia britânica era até essa
época voltada para explorações visando conhecer e mapear áreas em todo
o mundo, inclusive com intima ligações com o imperialismo. Mas as demais
escolas geográficas mencionadas já tinham superado essa fase de
explorações e aventuras em terras (supostamente) ainda desconhecidas,
tendo já produzido excelentes obras de reflexão teórica, inclusive
alicerçadas em trabalhos de campo, tais como as de Humboldt, Ritter,
Ratzel, Rettner e outros, na Alemanha, ou de Elisée Reclus, Vidal de la
Blache e outros, na França.
[←101]
Sir Frederick Goldsmid escreveu uma resposta muito cortês a este
parágrafo. Dela eu concluo que não atribuí às palavras o significado que ele
pretendia. Eu sinto muito por isso. No entanto, deixo o parágrafo tal como
está porque acredito que o meu significado das palavras não é antinatural,
não há um significado anormal anexado às palavras. Elas [as declarações
de Goldsmid] podem ser facilmente utilizadas contra os geógrafos, e com
maior peso porque vêm de um conhecido amigo da geografia.
[←102]
NOTA DO REVISOR: O Autor aqui adota aquela posição kantiana que a
geografia seria uma ciência corológica, que estuda os fenômenos em sua
interação em áreas específicas da superfície terrestre, diferente das ciências
sistemáticas (Física, Química, Biologia, Pedagogia, etc.), que estudam cada
uma um dos fenômenos em si, em suas características essenciais e
independentes do local onde ocorrem, e das ciências cronológicas, como a
História, que estuda os fenômenos da sociedade humana no tempo.
[←103]
Para outra definição de um ponto de vista bastante diferente, veja meu
discurso na abertura do discussão: "[A geografia] é a ciência da distribuição,
isto é, a ciência que estuda o arranjo das coisas em geral na superfície
terrestre.”
[←104]
O outro elemento, naturalmente, é o Homem na sociedade. A análise disso
será mais curta do que a do meio ambiente. Podemos considerar isso nas
linhas de "Física e Política" de [Walter] Bagehot. As comunidades de
homens devem ser vistas como unidades na luta pela existência, mais ou
menos favorecidos por seus respectivos e variados ambientes. Algumas
páginas a seguir iremos definir “comunidade” e "meio ambiente".
[←105]
Archibald Geikie, 'Text-book of Geology,' 1882, p. 910.
[←106]
R. G. S. Educational, 1886, p. 228, Professor Moscley.
[←107]
Nova edição, 1884, p.3.
 
[←108]
NOTA DO REVISOR: Flamborough Head são falésias calcáreas e Yorkshire
Wold são colinas calcáreas; ambos na região de Yorkshire, Inglaterra. Esse
tipo de calcáreo branco é chamado de giz, cré ou greda.
[←109]
Sulcos e cristas são aqui usados no sentido de sinclinal e anticlinal. Eles
devem ser cuidadosamente distinto de vale e colina. Os dois estão
frequentemente relacionados causalmente, como aponto neste artigo,mas
eles estão longe de serem idênticos.
 
[←110]
Omiti neste esboço a explicação para Leith Hill e a Cordilheira da floresta de
Sussex. Eles também dependem da flexão das rochas; mas explicar sua
causa exigiria muito espaço em um artigo que pretende apenas indicar
métodos e não esgotar o assunto.
[←111]
J.R. Green, in: Making of England, 1882, p.9, afirma isso. Mas Isaac Taylor
deriva Kent de “Cenn”, uma forma gaélica de “Cymric pen”, uma cabeça,
uma projeção – Cf. Words and Places, 1885, p.148.
[←112]
Venta Belgarum.
[←113]
Neste relato da "grandeza" de Londres não indiquei o significado completo
da colina da Torre. O "dun" ou "hill-fort" [que servia como local alto e de fácil
defesa] sem dúvida decidiu a localidade precisa de Londres; mas outros
fatores, como os já referidos, determinaram a sua grandeza.
[←114]
Cf. J.R. Green, "Conquest of England," 1883, p. 141, note. But compare
Isaac Taylor, "Words and Places," 1885, p. 179.
[←115]
NOTA DO REVISOR: No final do século XIX ainda se acreditava que os
povos russo e chinês seriam homogêneos, ao passo que hoje os
reconhecemos como povos bastante heterogêneos. Segue-se que essa
tentativa de generalização do Autor, de relacionar característica do ambiente
com o tipo de povo, sem dúvida é muito mais complexa – e inclui vários
outros fatores, além do ambiente – do que uma interação simples e direta.
[←116]
Só uma exceção é registrada na histórica. Um exército chinês uma vez
conseguiu alcançar Nepaul.
[←117]
Nossa posse mais antiga. Tínhamos fábricas em Surat e em Fort George um
pouco antes.
[←118]
Calcuttá – Kali Katta –, a aldeia da deusa Kali. Isso sugere a pergunta: Por
que deveria esta vila em particular ter se transformado em uma metrópole ao
invés de qualquer outra vila? Poderíamos propor o termo "seleção
geográfica" para esse processo por analogia com a "seleção natural".
 

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