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by herdeiros de Dmitri Volkogonov


Prefácio e notas © 1991 Harold Shukman, Phoenix Press Direitos de edição da obra em língua portuguesa no
Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados.
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Título original russo: Triyumf i Tragediya: politicheskii portret I.V. Stalina Caderno de imagens: As ilustrações
pertencem ao arquivo do autor.

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

V893s
Volkogonov, Dmitri, 1928-1995
Stalin: triunfo e tragédia / Dmitri Volkogonov; tradução: Joubert de Oliveira Brízida. – 2. ed. – Rio
de Janeiro:Nova Fronteira, 2017.
Recurso digital

Tradução de: Stalin : triumph and tragedy Formato: ebook


Requisitos do sistema: Adobe digital editions Modo de acesso: World wide web
ISBN: 9788520941447 (recurso eletrônico) 1. Stalin, Iosif, 1879-1953. 2. Chefes de Estado - União
Soviética - Biografia. 3. União Soviética - História - 1925-1953. I. Brízida, Joubert de Oliveira. II.
Título.

17-39583
CDD 923.1
CDU 929:320
SUMÁRIO

Nota do tradutor inglês


Prefácio
Introdução

1° VOLUME

PARTE I: ARDOR DE OUTUBRO

1 – Um retrato
2 – Fevereiro, o prólogo
3 – Os atores coadjuvantes
4 – O levante
5 – Salva por sorte
6 – Guerra civil

PARTE II: O AVISO DO LÍDER

7 – Camaradas em armas
8 – O secretário-geral
9 – A carta ao Congresso
10 – Stalin ou Trotsky?
11 – As raízes da tragédia
PARTE III: OPÇÃO E LUTA

12 – Construindo o Socialismo
13 – Leninismo para as massas
14 – Desalinho intelectual
15 – A derrota do “Inimigo nº 1”
16 – A vida particular do líder

PARTE IV: DITADURA OU DITADOR?

17 – O destino do campo
18 – O drama de Bukharin
19 – Ditadura e democracia
20 – O Congresso dos Vitoriosos
21 – Stalin e Kirov

PARTE V: O MANTO DO LÍDER

22 – Personalidade dominante
23 – O intelecto de Stalin
24 – Cesarismo
25 – À sombra do chefe
26 – O fantasma de Trotsky
27 – Um vencedor popular

PARTE VI: O EPICENTRO DA TRAGÉDIA

28 – Inimigos do povo
29 – Farsa política
30 – Quadros no banco dos réus
31 – A “trama” Tukhachevsky
32 – O monstro stalinista
33 – Culpa sem perdão
2° VOLUME

PARTE VII: NO LIMIAR DA GUERRA

34 – Manobras políticas
35 – Reviravolta
36 – Stalin e o Exército
37 – O arsenal de defesa
38 – O assassínio do exilado
39 – Diplomacia secreta
40 – Omissões fatais

PARTE VIII: INÍCIO CATASTRÓFICO

41 – Choque paralisante
42 – Tempos cruéis
43 – Desastres e esperanças
44 – O cativeiro e o general Vlasov

PARTE IX: O COMANDANTE SUPREMO

45 – O quartel-general
46 – Amanhecer em Stalingrado
47 – O comandante e seus generais
48 – Ideias de um estrategista
49 – Stalin e os Aliados

PARTE X: CLÍMAX DO CULTO

50 – O preço da vitória
51 – Cortina de segredos
52 – Um acesso de violência
53 – O líder envelhece
54 – Ventos gélidos

PARTE XI: AS RELÍQUIAS DO STALINISMO

55 – Anomalia histórica
56 – Dogmas mumificados
57 – Burocracia absoluta
58 – Deuses terrenos são mortais
59 – Derrota pela História

Cronologia
Notas
Nota do tradutor inglês

É praticamente impossível transpor com coerência todos os nomes russos, a não ser
com uma variedade de anotações especiais que exigiriam seu próprio glossário.
Parece muito pedante insistir com Aleksandr ou Trotskii (ou Trockij, ou Trotskiy),
quando Alexander e Trotsky são facilmente reconhecíveis. As referências
bibliográficas, no entanto, aparecem como normalmente encontradas nos catálogos
das bibliotecas, para garantir uma identificação correta. O nome do senhor objeto
deste livro apresenta um problema diferente de transliteração. A forma inglesa do
primeiro nome de Stalin é Joseph, e “Joseph Stalin” é bastante comum. Todavia,
como ele é aqui frequentemente mencionado na forma totalmente russa do primeiro
nome seguido do patronímico, considerou-se que “Joseph Vissarionovich” ficaria
estranho e que “Iosef Vissarionovich” teria o mérito de maior precisão, além de se
adaptar melhor às iniciais “I.V.”, com as quais muitas vezes Stalin rubricava
documentos. Portanto, optamos por Iosef.
Os revolucionários profissionais normalmente adotavam codinomes, ou
“apelidos de partido”, em geral ao assinar pela primeira vez publicações ilegais, ou
em seguida à sua primeira prisão ou primeiro interrogatório pela polícia secreta
czarista. Assim, Vladimir Ulyanov adotou Lenin, derivado do nome do rio Lena, da
Sibéria, onde esteve exilado, enquanto Leon Bronshtein assumiu o nome de um de
seus guardas na prisão e virou Trotsky.
Parece que alguns adotaram nomes para criar imagem: por exemplo, Vyacheslav
Skyrabin acabou Molotov, o “Martelo”, ao passo que Lev Rozenfeld tornou-se
Kamenev, “Homem de Pedra”, e Iosef Djugashvili escolheu Stalin, o “Homem de
Aço”. Outros simplesmente buscaram o anonimato com nomes russos comuns,
enquanto os judeus, que eram desproporcionalmente numerosos no movimento,
encontraram no pseudônimo russo a vantagem adicional do anonimato étnico, em
face da força policial antissemítica. Quando é apropriado, mencionamos o nome
real ou original.
Prefácio

A história soviética escrita, como a própria União Soviética, passa no momento


pelas mais profundas mudanças. Praticamente todo princípio e axioma dos últimos
sessenta anos foi contestado e rejeitado. Acadêmicos soviéticos radicais já começam
inclusive a desfolhar a coroa dourada do halo de Lenin e muitos afirmam que a
doutrina marxista dos meados do século XIX é irrelevante para as necessidades dos
dias presentes.
Essa nova tendência de desvendar a verdade começou em 1956, quando
Khruschev fez seu “discurso secreto” no XX Congresso do Partido Comunista da
União Soviética, condenando Stalin pelos expurgos sangrentos dos anos 1930. Mas
essa fase durou pouco porque o regime de Brejnev, apenas interessado em si mesmo
e temendo solapar sua própria legitimidade, deu fim ao debate. Nada mais pôde ser
dito sobre o assunto (exceto pelos dissidentes) até que a gerontocracia se extinguiu.
Por volta de 1985, Brejnev, Andropov e Chernenko já tinham deixado o palco, e
uma nova geração personificada por um Gorbachov com cinquenta e quatro anos de
idade estava no limiar do poder. Vinham homens inflamados em 1956 pela crença
de que o sistema podia ser reformado, modernizado e eficiente, e trouxeram a
público as ideias que nutriram por trinta anos. A União Soviética entrou no período
de sua perestroika ou reconstrução.
Vacilante, depois com maior confiança, o novo regime apresentou também a
glasnost, a transparência, que afinal significa dizer a verdade, dar fim à prática
stalinista de manipular a opinião pública com mentiras de todo tipo, e abrir perante
o público assuntos que o partido sempre considerou de sua exclusiva
responsabilidade e não partilháveis. A transparência teve início na primavera de
1986 com o desastre da usina elétrica nuclear de Chernobyl, que se alastrou sobre a
vida de europeus ocidentais e arrancou uma franqueza inusitada das autoridades
soviéticas. Surgida uma fresta na cortina, tendo o Estado admitido suas imperfeições
pela primeira vez, intelectuais soviéticos começaram a testar cautelosamente o novo
clima. Manuscritos que dormiam havia muito tempo nas gavetas foram tirados e
oferecidos aos editores, que ainda estavam longe de saber da reação que provocariam
quando fossem publicados. A censura ainda vigorava – e aliás permaneceu, pelo
menos nominalmente, até o verão de 1990 –, mas os autores, antes encorajados pelo
espírito de 1956 a escrever com fidelidade sobre 1917 e os anos seguintes,
começaram a se manifestar. Anatoly Rybakov não soube até abril de 1987 se seu
romance (escrito vinte anos antes) sobre Stalin, Children of the Arbat, seria
publicado na União Soviética, mas o foi, e, aos poucos, memórias e livros de não
ficção começaram a aparecer. Nos primeiros meses de 1988, principiando com
Nikolai Bukharin, os Bolcheviques da Velha Guarda exterminados por Stalin como
“inimigos do povo” foram reabilitados postumamente, e seus julgamentos,
oficialmente denunciados como feitos com base em provas falsas. Nomes de “não
pessoas” puderam ser mencionados sem provocar represálias, e o processo vem se
mantendo incólume desde então, culminando no início de 1990 com um debate
aberto e não ideológico sobre Trotsky.
Já era tempo de aparecer um estudo competente e bem documentado sobre
Stalin e sua época. Até há um ano ou dois, a maior parte das revelações não era feita
por historiadores profissionais, mas por jornalistas e escritores, e, na verdade, os
historiadores, para quem os arquivos continuavam – e em boa parte continuam –
fechados, criticavam-se por esse estado de coisas. Porém, Dmitri Volkogonov não
era um membro típico da intelligentsia: tratava-se de um coronel-general responsável
pela educação política do Exército e por suas atividades editoriais. Nessa posição,
vinha tendo acesso raro aos arquivos, conversara com chefes do partido e com
militares dos altos escalões, havia muito aposentados, com experiências pessoais da
era de Stalin, dos julgamentos e expurgos, do ambiente no quartel-general durante a
guerra, do comportamento pessoal de Stalin e de sua vida familiar.
Entre os acervos de arquivos que Volkogonov usou neste livro, o mais
importante é o do Partido Comunista, depositado no Instituto de Marxismo-
Leninismo. Aqui, pela primeira vez, tem-se um lampejo, entre outras coisas, dos
debates havidos nas plenárias do Comitê Central durante o período e que, melhor
que qualquer outro documento, dão um sabor do ambiente que imperava na chefia.
Os arquivos do Exército e da NKVD proporcionam uma imagem única da
mentalidade e do comportamento dos comandantes militares e altos membros do
aparato comunista. Entrevistas com auxiliares de Stalin e suas famílias acrescentam
muito ao nosso conhecimento de como Stalin vivia. Chega a dar um frio na espinha
ler seus comentários lacônicos sobre as listas de sentença de morte que lhe eram
apresentadas pelos assistentes e sua total desconsideração pelos mais angustiantes
pedidos de clemência a ele enviados por pessoas diversas, como uma solitária
camponesa e o teórico “favorito” de Lenin, Nikolai Bukharin. Volkogonov
examinou a biblioteca particular de Stalin e fez uso das anotações às margens dos
livros e dos trechos sublinhados, de modo a lançar mais luz sobre o modo de pensar
de Stalin. Enquanto outros historiadores soviéticos continuam batendo às portas dos
arquivos, para eles firmemente trancadas, é de duvidar que outro livro com tão vasta
e rica coleção de documentos venha a ser escrito sobre esse período.

Nascido em 1928 em Chita, na Sibéria Oriental, Volkogonov é filho de um técnico


em agricultura e de uma professora. Em 1937, seu pai foi preso e, soube ele depois,
fuzilado. O restante da família foi então mandado ao exílio em Krasnoyarsk, na
Sibéria Ocidental. Em 1945, Volkogonov alistou-se no Exército e, a despeito de seu
passado politicamente duvidoso, progrediu rápido na carreira, entrando na
Academia Militar Lenin em 1961, onde se formou e chegou ao magistério.
Transferido em 1970 para o departamento de propaganda do Exército, adquiriu a
reputação de linha-dura que advogava a doutrinação ideológica militar, e escreveu
numerosos livros sobre o assunto.
No entanto, ao mesmo tempo, ele colhia material para um livro sobre a era de
Stalin que não se limitaria a jogar a culpa no ditador e em seus acólitos. Em vez
disso, identificaria como causa da perigosa situação da União Soviética a
combinação letal do comunismo autoritário de Lenin com a implacável impulsão de
Stalin pela onipotência pessoal e sua criminosa manipulação das rivalidades internas
e da inércia do partido, mais o caráter passivo dos russos e seu amor por líderes
fortes, sua ignorância da democracia e sua ausência de autonomia pessoal.
Como muitas das figuras mais radicais da vida pública soviética, Volkogonov
admitiu em público não mais acreditar nos dogmas e mitos que antes aceitara
cegamente. Reconheceu que não emergiu, como os dissidentes que admirava, um
advogado ostensivo da verdade e da justiça. A exemplo de muitos outros que
estavam na linha de frente do movimento da reforma, também aceitou ter vivido
duas vidas mentais, perseguindo uma carreira na educação militar, enquanto reunia
subsídios nos desvãos do passado tão assiduamente como qualquer dissidente
perseguido. Começou a escrever seu livro em 1978 e completou a primeira parte em
1985.
Tal grau de desamor não poderia continuar por muito tempo sem
consequências. Em 1985, foi alertado de que sua pesquisa histórica era incompatível
com o trabalho que fazia na administração política central, e que teria de optar por
uma ou outra atividade. Escolheu tornar-se diretor do Instituto de História Militar
do Exército, no qual completou seu livro sobre Stalin. Lá compilou também
detalhes completos sobre os expurgos no corpo de oficiais e reuniu documentos até
então inéditos para um estudo em grande escala sobre Trotsky, ora completo.
Prepara-se para encetar uma reinterpretação de Lenin.
Uma das mais surpreendentes características da nova cena soviética tem sido o
surgimento de jornalistas e historiadores, de economistas e físicos, de filósofos,
músicos e poetas como políticos radicais, muitos deles membros do partido, que se
tomaram de inspiração nos anos 1950, mas mantiveram a cabeça baixa durante a era
de Brejnev. Como eles, mas singular entre os militares mais antigos, Volkogonov,
deputado do povo no parlamento russo, esposou abertamente a filosofia da
democracia liberal, a economia de mercado e uma nova carta livremente negociada
de união das repúblicas, ou de sua independência, se assim preferirem. Em julho de
1990, pediu a condenação oficial dos crimes de Stalin e, de fato, um mês depois, o
governo soviético expediu um decreto condenando Stalin por “violar os direitos
básicos sociais e econômicos do povo soviético e por privá-lo das liberdades que a
sociedade democrática considera naturais e inalienáveis”.
Quanto ao Partido Comunista, Volkogonov considera que lhe falta capacidade
para se adaptar ao regime democrático e que perdeu a iniciativa política para grupos
democráticos mais em sintonia com as necessidades do povo. Chamou a atenção,
durante o XXVIII Congresso, em julho de 1990, para o fato de que, se o partido
não se harmonizasse com os princípios gêmeos do império da lei e do primado da
democracia, e fracassasse ante o desafio de competir pelo poder em igualdade de
condições com outros partidos, estaria fadado ao mesmo destino dado aos partidos
comunistas da Europa Oriental em 1989.
O tema sobre o qual Volkogonov fundamenta tanto seu livro quanto sua
atividade como político é o da consciência. O fracasso em exercitar a consciência
levou os bolcheviques a privarem o povo de poder, a se alinharem com a ideia
ruidosamente falsa de Stalin de estar servindo à causa do socialismo e a tolerarem os
mais horrendos crimes cometidos, na história da Rússia, contra a sociedade.
Hoje, o teste da consciência na União Soviética é ser capaz de admitir que as
conquistas do país nos últimos setenta anos, tais como são, poder-se-iam conseguir
e, na verdade, superar, por métodos diferentes, políticas distintas, líderes outros, e
que qualquer dessas alternativas teria consignado o regime comunista à
marginalidade utópica.
Harold Shukman
St Antony’s College, Oxford
Agosto de 1990
Agradecimento do autor

O autor expressa profundo agradecimento àqueles colegas que lhe deram irrestrita
ajuda na preparação deste livro, muito especialmente A.P. Balashov, F.D. Bobkov,
G.A. Volkogonova, I.Ya. Vyrodov, N.N. Yefimov, I.P. Kalinina, Yu.I. Korablev,
B.I. Kaptelov, E.I. Katsman, N.G. Fokina e G.G. Chernobrovkin.
Introdução

Stalin morria. Deitado no assoalho da sala de jantar de sua dacha em Kuntsevo, ele
desistira de tentar levantar-se e apenas erguia a mão esquerda, de tempos em
tempos, como se pedindo por socorro. Seus olhos entreabertos não podiam ocultar
o desespero com que fitava a porta. Debilmente, seus lábios formavam palavras
silenciosas. Algumas horas decorreram desde o derrame, mas não havia ninguém ao
seu lado. Finalmente, alarmados com a falta de qualquer sinal de vida no interior da
casa, seus seguranças entraram cautelosamente na sala de jantar. Não estavam
autorizados a chamar um médico de imediato. Uma das mais poderosas figuras da
história da humanidade não pôde contar com eles para que o fizessem, já que era
necessária a intervenção pessoal de Beria. Quando, afinal, Beria foi encontrado,
achou que Stalin apenas pegara num sono profundo depois de um pesado e tardio
jantar, e só depois de dez a doze horas médicos aterrorizados foram trazidos para
examinar o líder moribundo.
Foi um modo profundamente simbólico e por demais irônico de morrer. O
líder, em sua agonia de morte de muitas horas, não foi capaz de convocar ajuda
quando dela precisou. E aquele era o homem, o semideus, que com poucas palavras
poderia enviar milhões de pessoas de uma extremidade a outra do país. No
momento, era refém da “ordem” burocrática que ele mesmo aperfeiçoara.
A linha invisível entre o ser e o não ser só pode ser cruzada numa direção.
Mesmo os líderes não podem retroceder. Saberia Stalin que enfrentava não só a
morte física, mas também a política? Para seus contemporâneos, sua morte era uma
grande tragédia. Eles não achavam então que aquele homem encarava as mortes de
milhões como nada mais que um segredo de Estado. A morte deixou para seus
sucessores a interminável tarefa de tentar entender o que ele tinha criado, e de
discutir acirradamente o “enigma” do próprio Stalin. A morte não o isentou. Todas
as suas ações e seus crimes seriam submetidos ao julgamento da história. Os mitos
desmoronam por si mesmos, mas só podem ser totalmente banidos pela verdade.
Apenas Stalin sabia toda a verdade sobre ele mesmo. Gostava das coisas em preto
e branco, porém fez de tudo para assegurar que sua história de vida fosse contada em
cores vivas. Não sei se ele tinha consciência da antiga lei romana do “julgamento da
memória” segundo a qual qualquer coisa que não fosse do gosto de determinado
imperador tinha de ser relegada ao esquecimento pelos historiadores. De qualquer
forma, essa lei meramente sublinhava a inutilidade de se tentar arregimentar a
memória humana. A lembrança vive (ou morre) segundo leis muito diferentes. A
história vai sendo continuamente feita. Ela não tem rascunhos. Só na mente pode-se
“rebobinar” o passado, como um filme. Stalin entendia isso e se esforçava para
garantir que não ficassem imagens desnecessárias na crônica. Sabia-se sobre ele
apenas aquilo que ele queria que se soubesse.
Ao perder Lenin num momento crucial, quando foi necessário tomar decisões
históricas sobre os métodos a empregar para construir o socialismo, o partido
comunista entrou numa fase de ferrenha luta interna. A velha guarda leninista não
estava suficientemente alerta para o perigo que Stalin representava tanto para o
partido quanto para o Estado ainda inseguro. Isso levou os novos administradores
políticos a medidas crescentemente punitivas, em vez de construtivas. Sabemos
agora que Stalin não seria o objeto de uma biografia como esta se não tivesse
apelado para a força como instrumento decisivo na consecução de seus planos
políticos, sociais e econômicos. A mudança de direção política, que começou no
final dos anos 1920 e se tornou marcantemente aguda depois do XVII Congresso do
Partido Comunista, de 1934, resultou num período de anos amargos, durante o
qual apenas a grande carga de energia social gerada pela Revolução de Outubro e a
lealdade do partido ao leninismo impediram que o povo duvidasse dos valores
socialistas e interrompesse o processo de reestruturação do mundo começado por
Lenin. Portanto, não surpreende que a avaliação da personalidade de Stalin tenha
sofrido alteração importante à medida que a verdade foi emergindo.
Hoje, a maioria, quando pensa sobre Stalin, lembra-se do ano trágico de 1937
com sua repressão e o esmagamento dos valores humanos. Mas, para ser preciso,
deve-se dizer que aquilo que pensamos ser 1937 teve início, na realidade, em 1º de
dezembro de 1934, quando Kirov foi assassinado, e seus contornos podem ser
retraçados ainda mais cedo, ao final dos anos 1920. Com o conhecimento de Stalin,
começou a formar-se um monstruoso abcesso de ilegalidade. Não pode haver perdão
para os responsáveis, mas devemos também lembrar que naqueles anos foram
construídos a usina hidrelétrica do Dnieper e o complexo metalúrgico de
Magnitogorsk, e Stakhanov e assemelhados cumpriam suas tarefas. Foi quando o
patriotismo do povo soviético cresceu chegando ao píncaro na Grande Guerra
Patriótica.* Por isso, quando condenamos Stalin por seus crimes, é política e
intelectualmente errado, e moralmente desonesto, negar, em princípio, as conquistas
do sistema e suas possibilidades. Tais conquistas não foram conseguidas graças ao
modo de pensar e agir de Stalin, mas a despeito dele. Mais se poderia alcançar se
fossem aplicados métodos mais democráticos. Ao condenar Stalin e seus cúmplices,
não devemos estender mecanicamente nosso julgamento aos milhões de pessoas
comuns cuja fé na sinceridade dos ideais da revolução permaneceu inabalável.
Durante toda a vida, Stalin tentou (com algum sucesso) transformar uma de suas
fraquezas em virtude. Já durante a revolução, quando tinha que visitar uma fábrica
ou um regimento, ou comparecer a um comício na rua, ou misturar-se com a
multidão, experimentava uma sensação de insegurança e medo que, com o tempo,
aprendeu a esconder. Não gostava de falar para plateias, nem era bom nisso.
Conquanto seu estilo fosse simples e claro, sem voos fantasiosos, frases de efeito ou
poses teatrais, o pesado sotaque georgiano e a forma monótona de se expressar
tornavam seus discursos inexpressivos. Não era de admirar, pois, que ele falasse
menos em comícios e manifestações do que qualquer outro membro do entourage
de Lenin. Preferia redigir resoluções e instruções, ou escrever cartas ou relatórios
para jornais sobre eventos políticos. Era escritor medíocre de argumentação tão
razoavelmente coerente quanto invariavelmente categórica. Seus artigos para jornais
são em branco ou preto, sem tons intermediários. A clareza latina de seus artigos
francos foi, talvez, uma de suas qualidades atraentes.
Mais tarde, Stalin acostumou-se com a tribuna, mas em circunstâncias
diferentes. A plateia ouvia agora o seu tom calmo de voz em respeitoso silêncio à
espera de cortá-lo com ensurdecedores aplausos. Seus discursos se revestiam então da
natureza dos sermões de pároco. Stalin adotou a regra de não entrar em contato
direto com as massas. Com raras exceções, jamais visitou uma fábrica ou uma
fazenda coletiva, jamais viajou a qualquer das repúblicas, ou foi ao front durante a
guerra. Sua voz ressoaria de tempos em tempos do vértice da pirâmide, enquanto
milhões ouviam em santificado terror na sua base. Transformou o distanciamento
num atributo de culto. Tenhamos sempre em mente que foi um mestre em fazer
passar seus erros, omissões e crimes como conquistas, sucessos, visão, sabedoria e
constante preocupação com o povo.

*
Meu trabalho baseia-se em material e documentos do partido que estão sob guardas
diversas: os Arquivos Centrais do Partido, os Arquivos da Corte Suprema da URSS,
os Arquivos Centrais do Exército, os Arquivos do Ministério da Defesa, os Arquivos
do Estado-Maior das Forças Armadas, os arquivos de diversos museus, e outros [cf.
Notas]. Sobre o aspecto militar das atividades de Stalin, tomei conhecimento de
muitos documentos interessantes, originais e nunca publicados, do Ministério da
Defesa. Um exame superficial das decisões de Stalin, dos documentos do Exército e
da lembrança de seus contemporâneos nos diz que muitas vezes ele não acreditava
no que advogava. Por exemplo, lendo-se as minutas de sentenças do Colégio Militar
da Suprema Corte no caso dos generais D.P. Pavlov, V.E. Klimovskikh, A.T.
Grigoryev e A.A. Korobkov, acusados de envolvimento numa “conspiração
antissoviética e num colapso intencional do comando do front ocidental”, Stalin
rabiscou: “Nada deste absurdo.” Cortou as expressões “conspiração antissoviética” e
“objetivos conspirativos” e acrescentou em seu lugar: “mostraram covardia, não
tiveram autoridade e eficiência, permitiram a quebra da cadeia de comando”.
Embora a acusação continuasse injusta, e as sentenças proferidas em 22 de junho de
1941 fossem rigorosas ao extremo, Stalin não mais achou apropriado o velho jogo
de “conspiradores”, em face do perigo mortal para si e para o país.
Ao passar os olhos sobre as ordens de Stalin, escritas em traço firme e legível, em
geral com lápis azul ou vermelho, perguntei-me onde estariam as fontes mais
profundas de sua irracionalidade, aspereza e astúcia. No copioso alimento da
educação religiosa dogmática que recebeu nos primórdios da vida? Ou na dolorosa
sensação de inadequação intelectual que sentia nos congressos do partido, em
Londres e Estocolmo, sentado a ouvir os brilhantes discursos de Lenin, Plekhanov,
Axelrod, Dan e Martov? Proviria sua irracionalidade do amargor causado pelas sete
prisões e cinco fugas por que passou antes de outubro de 1917? A partir dos 19 anos
de idade, nada mais fez a não ser viver na clandestinidade do movimento,
cumprindo instruções dos comitês do partido, sendo preso, obtendo passaportes
falsos e mudando-se de um lugar para outro. Nunca ficou muito tempo na prisão,
sempre fugia e voltava à clandestinidade. No entanto, a ideia de escapar para o
exterior nunca lhe ocorreu.
Meu trabalho neste livro foi muito facilitado por matérias do Pravda de um
período de trinta anos, bem como de jornais como Bolshevik, Politrabotnik
(Trabalhador Político) e muitos outros que eram publicados nos anos 1920. No
exterior, existe abundante literatura sobre Stalin. Alguns dos livros – por exemplo, as
obras de Giuseppe Boffa, Louis Aragon e Anna Louisa Strong – dão uma imagem
bastante acurada. Há também dezenas de trabalhos publicados para desacreditar –
com a “ajuda” de Stalin – a própria noção de socialismo. Sem perceber, Stalin fez
mais para sujar o nome do socialismo que qualquer livro de Leonard Schapiro, Isaac
Deutscher, Robert Tucker ou Robert Conquest. De especial interesse é o
testemunho de estadistas estrangeiros que conheceram Stalin, por exemplo, Franklin
D. Roosevelt, Winston Churchill, Charles de Gaulle, Mao Tse-tung, Enver Hoxha
e, é claro, as memórias de sua filha, Svetlana Alliluyeva.
Estudei os escritos de opositores de Stalin dentro do país, como Trotsky,
Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky e outros, todos eles camaradas em
armas de Lenin. Nenhum poderia se considerar protegido de Stalin, diferentemente
de Kaganovich, Molotov, Voroshilov, Malenkov, Zhdanov e outros que cresceram
para tomar o lugar dos primeiros. Nisso, Stalin seguiu a velha regra dos ditadores:
gente promovida por eles demonstra mais lealdade e não aspira ao cargo supremo.
Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Bukharin e outros eram mais conhecidos do que
Stalin no começo dos anos 1920. Durante os anos de revolução e de guerra civil,
Trotsky foi incomparavelmente mais popular que Stalin, no partido e no país todo.
Líder reconhecido da Revolução de Outubro e um teórico que, em 1927, já tinha
publicado vinte e um livros, Trotsky passou à história como criador do Exército
Vermelho. Tinha considerável talento para escrever e frequentemente se pôs diante
do espelho da história tentando justificar sua ambição de liderar o partido. Mais
parecia gostar da ideia dele mesmo na revolução do que da revolução em si. Lendo
sua correspondência, surpreendeu-me descobrir que, mesmo nos períodos iniciais da
guerra civil, Trotsky já se preocupava com o que dele diria a história. Cartas de
admiração a ele enviadas, bilhetes que recebeu durante os numerosos discursos, listas
de diplomatas pedindo audiência, relatos de jornal sobre sua ação – tudo
meticulosamente arquivado e preservado. Trotsky estava convicto, e não sem
alguma razão, de que, após a morte de Lenin, a liderança poderia ser dele.
Trotsky disparava a maioria de suas setas críticas, oblíqua ou diretamente, sobre
Stalin, embora também seja verdade que grande parte delas foi atirada depois de sua
expulsão da União Soviética. Sua caracterização de Stalin como “a mais marcante
mediocridade de nosso partido” é bem conhecida. Por outro lado, era comum em
Trotsky fazer observações semelhantes sobre outros adversários. Descreveu Zinoviev
como “mediocridade incômoda”, Vandervelde (presidente da Internacional
Socialista que, em 1917, escreveu sobre a Revolução Russa), como “mediocridade
brilhante”, e Tsereteli, membro menchevique do governo de Kerensky durante
1917, “mediocridade talentosa e honesta”. Após sua expulsão da União Soviética e
até o fim da vida, Trotsky foi tomado por uma única, permanente e obsessiva
paixão, seu ódio a Stalin, como mostra seu último e inacabado livro – Stalin. É
verdade que Trotsky alega não haver motivação pessoal no livro: “Nossos caminhos
divergiram tanto e há tanto tempo e, aos meus olhos, ele é instrumento tão claro de
forças históricas estranhas e hostis a mim, que meus sentimentos para com ele
diferem dos que tenho em relação a Hitler ou ao Mikado. O elemento pessoal
esvaiu-se há muito tempo.”1 Apesar disso, ninguém escreveu de forma tão cáustica
contra Stalin, com um grau tal de caricatura e invectiva. Mas também ninguém
concorreu tanto para a exposição de Stalin.
No dia em que Lenin morreu, Stalin enviou o seguinte telegrama a Trotsky, que
estava no sul: “Dizer camarada Trotsky que camarada Lenin morreu subitamente 21
de janeiro seis horas cinquenta minutos. Morte causada paralisia centro respiratório.
Funeral sábado 26 de janeiro. Stalin.”2 Ao assinar a mensagem, Stalin deve ter
pensado que era chegada a hora da guerra sem piedade pela liderança. Mas saberia
ele que, mesmo que sobrepujasse Trotsky, não se livraria dele? Os métodos de uma
burocracia autoritária, usando a coerção e o “aperto dos parafusos” que Stalin
aplicaria, eram exatamente os que Trotsky advogava. Talvez tenha sido essa uma das
razões da tragédia que despontava. A luta política travada pelos dois, que durou até
o momento em que Trotsky foi assassinado, em agosto de 1940, influiu
profundamente na perspectiva de Stalin, que considerava Trotsky seu principal
inimigo político.
Tive o testemunho de muita gente que, ou conheceu Stalin, ou foi arrastada no
redemoinho dos eventos causados por suas decisões. Muita coisa surgiu de conversas
com ex-membros do funcionalismo do Comitê Central, com comissários, membros
da NKVD, altas figuras do Exército, levadas pelo destino a encontros pessoais com
o secretário-geral e cujas vidas foram, muitas vezes, alteradas da forma mais trágica
por alguma decisão do “líder”. Depois de meus artigos para o Pravda e o
Literaturnaya Gazeta, recebi umas três mil cartas, muitas de pessoas que contavam
casos pavorosos.
Meu livro tem o subtítulo Triunfo e tragédia para indicar como o triunfo de um
homem foi a tragédia para todo um povo. No seu discurso para o XX Congresso do
partido, Khruschev pôs o problema ao seu modo: “Não se pode dizer que suas ações
foram as de um déspota louco. Ele acreditava agir no interesse do partido, das
massas trabalhadoras e da defesa das conquistas da revolução. Essa foi a tragédia!”
Julgo a ênfase de Khruschev mal empregada. Sua avaliação justifica Stalin. Em
nome do poder ilimitado, Stalin cometeu crimes inomináveis, mas Khruschev não
viu nisso a tragédia.
Stalin logo se habituou ao uso da força como atributo obrigatório do poder
ilimitado. É lógico presumir que a máquina punitiva, que ele colocou a todo vapor
no final dos anos 1930, capturou a imaginação não só dos funcionários de escalões
mais baixos mas do próprio Stalin. É possível que o deslizamento para a coação
como método universal tenha ocorrido em vários estágios. Primeiro, a luta contra
inimigos reais, que bem reais eram; depois, a supressão de seus inimigos pessoais,
também verdadeiros; no estágio seguinte, a máquina funcionou com seu momento
próprio e, finalmente, a força foi vista como um teste de lealdade ao líder e à
ortodoxia. A sombra de ameaça externa criou uma mentalidade de cerco na
população, que chegou ao ápice em 1937 e foi resultado direto da força assumindo
precedência sobre a lei, o deslocamento do poder popular por substitutivos de culto.
Podia-se demonstrar ortodoxia, fé cega e lealdade ao líder fazendo
desavergonhadas acusações de “sabotagem”, “jogo duplo” e “espionagem”. Como
seria possível imaginar que todos os membros do Politburo nomeados em maio de
1924 durante o XIII Congresso do partido, com a única exceção de Stalin, se
transformariam em “inimigos”? Stalin liquidou seus “inimigos”, e as ondas
continuaram se sucedendo. Triunfou uma força do mal. É difícil explicar por que
precisou continuar “extirpando” boas pessoas depois de ter se livrado dos rivais.
Aliás, bem antes da maioria, alguns bolcheviques da NKVD viram o perigo
iminente da suspeita e da repressão universais; ainda assim, só de suas fileiras, 23 mil
foram vítimas da falta total de lei.
Todavia, na análise final, mesmo o pior que a história pudesse perpetrar não
poderia evitar que o povo criasse em seu próprio país algo que o levasse próximo da
concretização de seus altos ideais. Mesmo nos anos mais amargos, não faleceu a
crença nos valores humanistas dentro do coração de milhões de soviéticos. A
tragédia foi terem tomado Stalin como símbolo e incorporação humana do
socialismo. Afinal, mentiras repetidas muitas vezes acabam parecendo verdades. Na
mente popular, a deificação do líder justificou todos os efeitos negativos que
acompanharam a cata dos “inimigos”, creditando também todos os sucessos à
sabedoria e à determinação de um homem. Além do mais, Stalin aderiu ao uso da
propaganda na promoção de seus esquemas grandiosos. Ao tomar decisões de vulto,
especialmente nas grandes reuniões, gostava de citar os clássicos socialistas, embora a
esse respeito revelasse uma típica fraqueza humana. A maioria das pessoas, mesmo os
onipotentes, precisa de uma escora ideológica, seja a autoridade doutrinária, sejam
as ideias perenes de um grande antecessor, mesmo que, no caso, não passasse de
camuflagem intelectual. O triunfo do líder e a tragédia do povo encontraram
expressão no dogmatismo e na burocracia do sistema, na onipotência do aparato e
na lavagem cerebral de milhões, mas também no patriotismo e no internacionalismo
do povo soviético, no seu genuíno espírito cívico e em seus esforços heroicos.
Meu trabalho foi muito ajudado pelas memórias de famosos comandantes do
Exército soviético tais como I.Kh. Bagramyan, A.M. Vasilievsky, A.G. Golovko,
A.E. Yeremenko, G.K. Zhukov, I.S. Konev, N.G. Kuznetsov, K.A. Meretskov,
Moskalenko, K.K. Rokossovsky, S.M. Shtemenko e outros. É verdade que essas
memórias foram escritas numa época em que muito se desconhecia sobre Stalin e na
qual, depois do XXII Congresso do partido, o stalinismo, para todos os efeitos e
fins, foi inacessível a análises francas e completas. Os militares, em particular no alto
escalão, receberam todo o peso da crueldade de Stalin, porém, com exceção de A.V.
Gorbatov e de uns poucos outros que conseguiram descrever a tempo aquilo por
que passaram, ninguém foi capaz de revelar coisa alguma. O assunto era
praticamente proibido. Existe outro lado do problema. Quando a guerra começou,
Stalin, contra a vontade, foi compelido a parar com a repressão dentro do país. Os
comandantes do Exército, nas suas memórias, ocuparam-se dos aspectos militares e
do papel exercido pela autoridade política de Stalin na derrota do fascismo. Isso,
sem dúvida, explica porque a maioria dos escritores militares apresenta Stalin sob
uma luz positiva e deixa fora da imagem muito daquilo que eles sofreram em suas
mãos. E algumas dezenas de milhares deles, que às vésperas da guerra caíram no
sangrento triturador do expurgo, pereceram. Sabe-se hoje que, no começo da guerra,
Stalin apelou repetidas vezes para a punição cruel de muitos militares, usando-os
como bodes expiatórios pelas pesadas perdas soviéticas.
Em retrospecto, é inacreditável a leniência do povo soviético, sobretudo do povo
russo. De onde vem ela? Dos 250 anos de domínio tártaro e da sucessão de guerras
para libertar-se dos grilhões? Da luta contra o inverno russo e da grande extensão
territorial? Ou deriva da sabedoria da experiência histórica, na fé de que estava certo
e no apego à tradição histórica? Talvez da convicção de que tomara o rumo correto
em 1917. Embora não se conscientizasse disso até ser muito tarde, o povo só
poderia ficar humilhado pelos rituais quase religiosos de glorificação do mandante
do país. Uma coleção de cantos de exaltação, de hinos ridículos de boas-vindas, de
cartas a Stalin chamando-o de “pai”, “sol”, “líder sábio”, “gênio imortal”, “grande
timoneiro”, “comandante inflexível” constituiria um belo monumento a tal
humilhação. A mente burocrática superava a si mesma na invenção de epítetos sem
levar em conta o quanto afrontavam diretamente a dignidade do povo.
Seria de todo irrealista admitir que, não fora o vácuo político que se seguiu à
morte de Lenin, a evolução socialista da sociedade poderia ter acontecido sem as
distorções causadas por Stalin e seus cúmplices nas décadas de 1930, 1940 e 1950?
A tragédia não era inevitável. Claro que é mais fácil falar hoje sobre possíveis
alternativas do que fazer a opção nos idos de 1920. Mais fácil analisar as
circunstâncias do que lidar com elas. “O historiador está sempre certo ao comparar
suas hipóteses com as coisas como se passaram”, escreveu Jean Jaurès. “Está correto
quando diz: ‘Eis aqui os erros do povo, e aqui, os do governo’, e quando imagina
como tudo seria se tais erros não fossem cometidos.”3 Havia alternativas disponíveis.
Da morte de Lenin ao início dos anos 1930, Stalin ganhou a reputação de ser
um dos mais severos e mais obstinados dos líderes. Ele não tinha as qualidades para
substituir Lenin, mas nenhum dos outros tinha. Intelectual e moralmente, ele não
estava à altura da maioria dos líderes da revolução, mas na luta pela sucessão o que
valeu foi a determinação, a vontade política e a astúcia. A despeito de suas
“imperfeições”, Stalin tinha algo que faltou aos outros, isto é, a possibilidade de usar
o aparelho do partido ao máximo em benefício próprio. O aparato era, na sua visão,
o instrumento ideal do poder. E nem todos os bolcheviques tinham ouvido o alerta
de Lenin sobre Stalin.
Stalin conseguiu, temporariamente, disfarçar suas qualidades negativas, depois
que os delegados ao XIII Congresso do partido ouviram a opinião de Lenin a seu
respeito, e isso o ajudou a garantir o apoio da maioria dentro do partido. Nessas
circunstâncias, a chance dos demais postulantes não era muito grande. Muitas altas
figuras do partido, de início, simplesmente não levaram Stalin em conta, e quando o
fizeram, já era muito tarde.
Stalin, além do mais, era um grande ator. Encarnava muitos personagens com
consumada habilidade: o chefe modesto, o defensor da pureza dos ideais do partido
e, mais tarde, o líder e pai do povo, grande comandante, teorista, connaisseur das
artes, profeta. Mas, principalmente, Stalin tentou o papel de aluno dedicado e
camarada em armas do grande Lenin. Tudo isso grangeou-lhe, gradualmente,
popularidade dentro do partido e no país inteiro.
Entretanto, a questão é menos de personalidades que do potencial democrático –
por defeituoso que fosse – que Lenin começara a criar, mas que não se manteve.
Décadas depois, ainda estamos tentando identificar quem poderia ter sido a
alternativa de Stalin. O mais provável é que o núcleo dirigente de leninistas do
partido tivesse cumprido o “Testamento” de Lenin. Mas a velha guarda revelou uma
confusão e uma miopia inexplicáveis, em vez de expressar a ideia coletiva, a vontade
coletiva. Se tivessem sido criados dispositivos de segurança democráticos para a
defesa da sociedade, notadamente sob a forma de liderança coletiva autêntica, o
problema de encontrar uma figura destacada para liderar não teria sido tão decisivo.
Se, por exemplo, o estatuto do partido tivesse fixado e confirmado um período
preciso para o mandato do secretário-geral e de outros cargos eletivos, é possível que
não acontecesse o culto a Stalin. Como as coisas se passaram, o destino do país
dependeu por demais da questão histórica de quem deveria estar no leme.
Malgrado o fato de que, no sentido formal, a autoridade de Stalin jamais foi
testada, ele praticamente abandonou a noção de socialismo de Lenin. O comentário
de Plutarco vem-nos logo à mente: “Quando o destino eleva às alturas um caráter
mau por meio de atos de grande importância, põe-lhe à mostra a falta de
substância.”4 O que chamamos de stalinismo foi exatamente o caso. Pode-se discutir
a legitimidade do conceito, mas é indiscutível que há um fenômeno social específico
por trás dele. Ele surgiu da deformação dos princípios democráticos, sem os quais o
socialismo perde tanto sua efetividade quanto seu atrativo.
Para mim, o stalinismo é sinônimo de alienação da classe trabalhadora do poder,
de instalação de uma burocracia multiface e da imposição de fórmulas dogmáticas
na mente do povo. O exercício da autocracia resultou num tipo específico de
alienação que, por sua vez, deu lugar a uma apatia geral, à redução do significado
real dos valores socialistas e ao freio do dinamismo do movimento. Stalin projetou
sua vultosa e nociva sombra sobre cada lado de nossa vida e não tem sido nada fácil
libertarmo-nos desse eclipse dogmático e burocrático.
Sendo verdade que os ideais socialistas foram preservados pelo povo, é também
verdade que o povo jamais descreu da “ideia russa”. As muitas tentativas de
introdução de reformas receberam, normalmente, a poderosa resposta reacionária.
Dos dezembristas de 1825 a Bukharin nos anos 1920 e a Khruschev nos 1950, os
reformadores sofreram derrotas. É importante lembrar disso. O fato de Stalin ser
derrubado do pedestal não significa a erradicação do stalinismo, e não se pode
desprezar a possibilidade de alguma forma de neostalinismo igualmente maléfico ser
restaurada. Não se trata de uma profecia, apenas de um alerta da história.
Nota

* Como é chamada na Rússia a Segunda Guerra Mundial. [N. T.]


PARTE 1
Ardor de outubro

Não há revolução sem consciência.


Jean Jaurès
[1]
Um retrato

N o começo de 1917, Iosef Vissarionovich Djugashvili, ou Stalin, como era


então conhecido, tinha 37 anos de idade. Havia diversos anos, morava
em Stylaya Kureika, na região de Turukhansk, no Círculo Ártico. As
nevascas que acumulavam neve no teto da choupana davam-lhe tempo bastante para
que a mente vagasse para momentos memoráveis de sua vida. Por exemplo, para
aquele dezembro de 1905 quando conheceu Vladimir Ilyich Lenin no encontro do
partido em Tammerfors. Ele comparecera aos congressos de Estocolmo e Londres e
apreciara a arte da política em ação, os oponentes buscando acordos e defendendo
seus princípios, e os debates ruidosos intercalados de conversas amistosas nos
intervalos. Isto sempre lhe causou perplexidade.
Suas raras viagens ao exterior tinham-lhe deixado a sensação vagamente
desconfortável de que não era capaz de competir com a argumentação brilhante e a
conversação espirituosa de gente como Plekhanov, Axelrod ou Martov. Irritado e
intelectualmente frustrado sempre que encontrava essas pessoas, começou a
desenvolver sua duradoura hostilidade pelo estilo de vida emigré, pelo estrangeiro e
pela intelligentsia, que discutia sem cessar em torno das mesas de cafés baratos ou no
quarto esfumaçado de hotéis pequenos e decaídos, defendendo calorosamente
escolas diferentes de filosofia e de teoria econômica.
A vida de Stalin anterior a outubro fora marcada por sete prisões e cinco fugas de
masmorras czaristas ou exílio interno. O futuro líder não gostava de relembrar em
público aquela fase de sua vida. Jamais se referia à sua participação nos roubos
armados – “expropriações” – executados para reforçar os cofres do partido
bolchevique, ou aos seus tempos de Baku, quando clamou pela “unificação com os
mencheviques a qualquer preço”, ou a seus primeiros e lamentáveis esforços
literários. Certa vez, rememorou um de seus primeiros poemas, escrito quando
seminarista de 16 ou 17 anos. Eram versos dos quais gostava e que chegaram a ser
publicados no jornal Iveria. Evocando memórias do seu Cáucaso nativo, os versos
denotavam desespero, mas também acalentavam vagas esperanças. Enquanto os
recitava – para sua própria surpresa – quase murmurando, como se rezasse, a
senhoria esticou o pescoço por duas vezes para bisbilhotar pelo vão da porta o que
fazia seu inquilino caucasiano. Com uma gotejante vela acesa junto ao cotovelo,
Stalin estava sentado, um livro aberto ao colo, o olhar perdido na janela coberta de
gelo. De há muito, abdicara dos poemas ingênuos de sua juventude e de tudo que
fosse considerado sentimental pela intelligentsia. Até mesmo com a mãe pouco se
correspondia. Depois de uma infância dura e de uma vida na clandestinidade,
sempre fugindo, tornara-se frio, calculista e desconfiado.
Stalin aprendera a afastar os pensamentos desagradáveis, mas a lembrança do
rosto de sua esposa, falecida havia dez anos, atingida pelo tifo, pairava sempre em
algum lugar. Ele recordava o casamento sigiloso na igreja de São David, em junho
de 1906, celebrado pelo colega seminarista Khristofor Tkhinvoleli. A bela
Yekaterina Svanidze – Kato – tinha os olhos cheios de afeto voltados amorosamente
para aquele marido que desaparecia por longos períodos para então, subitamente,
reaparecer. A vida em comum foi breve. A doença privou Stalin do único ser
humano que, provavelmente, amou. As fotografias do funeral da esposa mostram-no
encolhido e magro, cabelo despenteado, de pé ao lado do túmulo, aparentando
genuíno pesar.
As sementes da aspereza e da insensibilidade nele plantadas durante a infância
criaram raízes fortes. Na vida de homem caçado desde os 19 anos, aprendera muito,
em especial manha e parcimônia, e também a esperar. O distanciamento e a reserva
evidentes em seus primeiros anos se transformaram com o tempo em fria falta de
piedade. Contudo, acostumou-se ao uso de uma máscara que dava a impressão de
homem calmo e afável, quando estava com outras pessoas.
Por que o jovem Djugashvili se tornou revolucionário? Teria sido pelo contato
com alguns fragmentos de vida intelectual na Escola Teológica de Gori e no
Seminário de Tiflis onde estudou? Teria sido a insatisfação com a vida religiosa
reclusa que o atraiu para a companhia de pensamento rebelde? Ou, talvez, foram
seus olhos abertos pelo “ABC do Marxismo”, panfleto popular que lhe caiu nas
mãos? Ninguém sabe ao certo. De todo modo, se ele não tivesse feito na virada do
século a mudança decisiva, posto que nebulosa, da inclinação religiosa para as
opiniões seculares heréticas, um vilarejo georgiano qualquer o teria recebido, um
dia, como jovem padre ortodoxo, pastor espiritual de um rebanho humano. Sua
vida monótona seria apartada do mundo pelas montanhas majestosas da Geórgia e
pelos pequenos problemas de uma paróquia empobrecida, pelos cuidados com sua
própria prole e pelos devaneios sobre a excitante Tiflis. Como poderia Stalin saber,
filho de um sapateiro pobre, que os caprichos do destino e a força das circunstâncias
o levariam um dia a algo infinitamente maior que a posição de um pároco de aldeia?
Antes de 1917, ninguém poderia supor que o revolucionário clandestino seria
rapidamente alçado, depois de 1922, ao píncaro do poder. Tirando do caminho as
sólidas fileiras dos camaradas de Lenin, Stalin logo emergiu entre os líderes e,
depois, assumiu o comando. Não houve quem antevisse que, após a morte de Lenin,
esse grupo de bolcheviques famosos se dissolvesse e sumisse com tamanha rapidez.
Quanto mais Stalin subia, menos restava daqueles que ajudaram Lenin a acender a
tocha revolucionária. Antes da revolução, ele era, possivelmente, mais conhecido
entre os diversos ramos do departamento de polícia do que entre os outros
revolucionários. A cada escaramuça com Djugashvili, os gendarmes o fotografavam
de frente e de perfil. Por mais negligentes que fossem na vigilância dos presos, os
guardas eram meticulosos na descrição de seus “criminosos de Estado”. As fotos
confirmam suas legendas de um Djugashvili magro, cabelos pretos e abundantes,
bigode fino, sem barba, marcas de varíola no rosto, cabeça oval, testa plana, mas não
larga, sobrancelhas arqueadas, fundos olhos castanhos com um toque amarelado,
nariz reto, altura mediana de 1,65m, queixo pronunciado, voz suave, marca de
nascença na orelha esquerda, braço esquerdo definhado e com o segundo e o
terceiro dedos do pé esquerdo colados. Os guardas da segurança de Estado, ao
tempo do poderoso Stalin, não iriam se preocupar com tais trivialidades. Nem iria
qualquer prisioneiro político de seu governo empreender cinco fugas, como ele
conseguira. Quando se tentou descobrir o destino das incontáveis vítimas de Stalin,
as marcas de nascença e as alturas exatas dos “inimigos do povo” fizeram pouca
diferença. Tanto no critério quanto na escala, as imagens seriam bem diferentes.

Os traços físicos de Stalin talvez não sejam tão interessantes quanto as características
políticas e morais que apresentava em 1917. Embora possa não ter sido um vilão
desde cedo, é importante saber que tipo de infância teve para entender sua
personalidade como adulto.
Pouco se sabe de seu tempo de menino, já que nem ele mesmo foi expansivo a
esse respeito. Seus pais, Yekaterina e Vissarion Djugashvili, eram camponeses pobres
que mais tarde passaram a morar em Gori, sempre carentes de recursos. Dos três
filhos, Mikhail e Georgii faleceram antes de atingir um ano de idade, restando
apenas Iosef, ou Soso, como era chamado. Mas este também quase morreu de
varíola aos cinco anos, fato que iria constar com regularidade das fichas policiais em
vista das marcas deixadas no rosto. Segundo I. Iremashvili, um menchevique
georgiano que conheceu a família, o pai de Stalin, o sapateiro, bebia demais e
espancava mulher e filho com frequência. Antes de cair no pesado sono dos
bêbados, socava as orelhas do filho teimoso que, claramente, não tinha amor algum
ao pai. O castigo imerecido endureceu-o, e logo Stalin aprendeu com astúcia a evitar
esses encontros. Sua mãe, por outro lado, dedicou-se de corpo e alma ao filho.
Graças à sua insistência e a seu enorme esforço, Soso conseguiu uma vaga na escola
teológica e, depois, no seminário. A discórdia familiar persistiu e, inevitavelmente, o
casal se separou, com o pai mudando-se para Tiflis, onde morreu sozinho numa
pensão e foi enterrado como indigente.
Stalin saiu de casa quando se tornou revolucionário profissional. Parece que,
depois de 1903, só viu a mãe umas quatro ou cinco vezes. Ela o visitou em Moscou
pela primeira vez quando ele se tornou secretário-geral, e Stalin a viu pela última vez
em 1935. Foi o desejo desesperado da mãe analfabeta de ajudá-lo na vida que deu a
Stalin as primeiras oportunidades, porém tudo indica que ele jamais refletiu sobre
isso. Já idosa, dois anos depois do último encontro, em julho do terrível ano de
1937, a mãe de Stalin morreu em paz.
O escritor alemão Emil Ludwig perguntou a Stalin, em 1931, o que o teria
empurrado para o pensamento revolucionário:
“Teriam sido, talvez, maus-tratos por parte dos pais?”
“Não”, replicou Stalin, “meus pais não tinham instrução, mas, absolutamente,
não me tratavam mal.”1 Mas o que sabemos dos seus primeiros anos indica que ele
apenas se referia à mãe.
Como aluno das instituições teológicas, Stalin demonstrou consideráveis
habilitações e uma memória fenomenal. Evidenciando ilimitado interesse pelo
Velho Testamento como pelo Novo, e assimilando os textos religiosos com mais
rapidez que os outros meninos, tentou captar a noção de um só Deus portador do
bem absoluto, do poder absoluto e do conhecimento absoluto. O estudo
prolongado da teologia como síntese dos dogmas e dos princípios morais,
entretanto, cedo perdeu a graça. Sem que ele disso se apercebesse, durante a vida de
estudante de teologia, certas linhas de pensamento e de comportamento tomaram
forma em sua mente. A dez anos de estudo religioso devem somar-se outros tantos
de prisão e exílio vividos por Koba, como ele se autodenominava, adotando o nome
de um herói de O patricida, do escritor georgiano A. Kazbegi. Excluído pela
sociedade, o sentimento de insatisfação do jovem revolucionário com sua sina foi se
enrijecendo até a condição de amargura permanente. Sem dúvida, sua personalidade
foi afetada pela incongruente mistura de postulados religiosos – primeiro aceitos,
depois rejeitados – e o papel de proscrito social, que se combinaram para nele criar
uma atração pela atividade “rebelde”. Vinte anos de seminário e de cadeias só
podiam exercer influência sobre seus sentimentos, mente e caráter.
Por exemplo, ele tinha forte propensão para sistematizar, categorizar e localizar
nichos intelectuais para qualquer tipo de conhecimento, o que sinaliza uma forma
catequizadora de pensar. Por sua vez, isso criava a impressão de um homem
organizado e lógico. Igualmente, faltava-lhe o senso da autocrítica. Toda a vida,
acreditou em postulados, primeiro os cristãos e, depois, os marxistas. O que não se
ajustasse ao leito procustiano* de seus conceitos era logo tachado de heresia e,
depois, de oportunismo. E como raramente duvidava do acerto das ideias e teorias
em que acreditava, não achava necessário sujeitá-las à crítica. Mentalmente, jamais
se afastou dos preceitos clássicos do marxismo. Talvez pusesse a fé acima da verdade,
mas nunca admitiu isso, nem para si mesmo. A fé nos ideais e nos valores é
meritória, mas não deve desbancar a verdade. A espécie de educação que Stalin
recebeu e as privações da infância talvez tenham se mesclado para tornar muito
improvável que ele pudesse, um dia, lidar racional e humanamente com o poder e a
responsabilidade que iria adquirir.
Stalin viu desde cedo que só podia contar consigo mesmo. Seus companheiros
em Baku e Tiflis diziam muitas vezes: “Koba, você é determinado demais.” Ele
gostou de ouvir isso e decidiu fazer desse atributo sua marca registrada, adotando
seu nome de tom metálico: a partir de 1912, passou a assinar-se “Stalin, o homem
de aço”. Não foi o único que quis simbolizar uma personalidade forte com um
nome adotado: L.B. Rozenfeld, por exemplo, um tipo bem menos marcante que
Djugashvili, optou por Kamenev, “homem de pedra”. O tempo mostraria que a
pedra não aguentava o aço. Stalin queria crer em sua própria força, em sua própria
invulnerabilidade, em sua própria posição como chefe regional. A fé, como cimento
do dogmatismo, permaneceu com ele para sempre.
Sua educação religiosa alimentou um modo de pensar que virou qualidade
permanente, ainda que ele mesmo, como líder, muito criticasse o dogma, tal como o
entendia em sua forma simplista e vulgar. Inclinava-se a canonizar as proposições
marxistas e, muitas vezes, chegou a conclusões profundamente erradas. Por
exemplo, ao considerar absoluto o significado da luta de classes, engendrou, nos
anos 1930, a falsa formulação de que “a luta de classes mais se aguça à medida que
avança a construção do socialismo”. O oportunismo, o facciosismo e as ideias
alternativas eram para Stalin o mesmo que inimigos de classe. O ex-seminarista viu
na ditadura do proletariado um meio de coerção social em vez de um princípio
construtivo.
No caminho da revolução, Stalin assimilou as máximas do marxismo, mas não
teve talento criativo para aplicá-las. A influência de sua educação religiosa (que outra
não teve) expressou-se não no conteúdo dos pontos de vista, mas na sua forma de
pensar. Até o fim da vida, jamais conseguiu livrar-se das algemas do dogmatismo.
Na realidade, Stalin não teve amigos íntimos; por certo, ninguém com quem
tenha tido relações afetuosas por toda a vida. O cálculo político, o sangue-frio nas
situações emocionais e a insensibilidade tornaram impossível para ele criar e
conservar amizades. Daí causar surpresa que, no fim da vida, ele se lembrasse de
alguns colegas da escola teológica e do seminário. Durante a guerra, notou um dia
que seu assistente A.N. Poskrebyshev guardava grande soma de dinheiro no cofre.
Com espanto e suspeita, olhando diretamente para Poskrebyshev e não para o
dinheiro, Stalin perguntou de onde vinha aquilo. “São seus salários como deputado.
Acumulam-se há anos”, explicou o assistente, e continuou, “só tiro o necessário para
pagar suas quotas ao partido”. Stalin nada disse, porém, alguns dias mais tarde, deu
ordem para que quantias substanciais fossem remetidas para Peter Kopanidze,
Grigory Glurdjidze e Mikhail Dzeradze. O próprio Stalin redigiu a ordem:

1. Para meu amigo Pete – 40.000


2. 30.000 rublos para Grisha
3. 30.000 rublos para Dzeradze
9 de maio de 1944. Soso

No mesmo dia, escreveu um bilhete em georgiano:

Grisha!
Aceite este meu pequeno presente.
9 de maio de 1944. Soso2

Há várias notas semelhantes no arquivo pessoal de Stalin. Nos seus setenta anos, e
em meio à guerra, começou, subitamente, a revelar tendências filantrópicas.
Contudo, os amigos de que se lembrava eram os da juventude distante como
estudante teológico. Surpreende ainda mais porque Stalin jamais mostrou inclinação
pela sentimentalidade, por arroubos de amizade ou pela gentileza. Não obstante, há
evidência de um outro gesto benevolente que fez depois da guerra, enviando a
seguinte carta para o assentamento de Pchelok, no distrito de Parbig em Tomsk:

Camarada Solomin, V.G.


Recebi sua carta de 16 de janeiro de 1947, enviada através do acadêmico Tsipin. Não esqueci de você nem
dos outros camaradas de Turukhansk, nem esquecerei, tenho certeza. Anexo 6.000 rublos de meu salário de
deputado. Não é grande soma, no entanto, será útil para você. Desejo-lhe saúde.
I. Stalin3

O velho bolchevique I.D. Perfilyev, exilado durante o período soviético, disseme


que Stalin, quando esteve no exílio juntamente com ele, em Turukhansk, teve um
caso amoroso com uma mulher de lá, e que ela teve um filho. O próprio Stalin
jamais mencionou tal fato, e não consegui saber se ele, alguma vez, preocupou-se
com essa mulher, ou se apenas contentou-se com o bilhete para os amigos de
Turukhansk.
Sua frieza, sem sombra de dúvida, acentuou-se nos anos que passou como
revolucionário, vivendo na clandestinidade de 1910 a 1917, entrando e saindo de
prisões e exílios. Todos os que o conheceram testemunharam seu poder
extraordinário de autocontrole e impassibilidade. Ele podia dormir em meio ao
barulho, receber com indiferença sentenças de prisão e aguentar com estoicismo as
condições horrorosas da viagem para o exílio sob escolta policial. Possivelmente, a
única ocasião em que ficou abalado foi com a morte da jovem esposa, atacada pelo
tifo, deixando-o com um bebê de apenas dois meses de idade, Yakov, alimentado
por uma bondosa ama de leite chamada Monaselidze.
Em Turukhansk, onde, desde o início de 1914, ele passou seu último período de
exílio com Ya. M. Sverdlov e outros revolucionários, Stalin revelou-se insociável e
melancólico. Em diversas cartas do exílio, Sverdlov o descreveu como “um grande
individualista na vida diária”.4 Stalin já era membro do Comitê Central do partido
quando chegou ao exílio, juntando-se a outros membros como o próprio Sverdlov,
S.S. Spandaryan e F.I. Goloshchekin, mas voltou-se para dentro de si mesmo.
Parecia só se interessar pela caça e pesca. Certa vez, é verdade, mostrou vontade de
aprender esperanto no livro didático que um dos exilados levara, mas logo se
entediou. Sua existência de eremita só se interrompia nas ocasionais viagens para
visitar Suren Spandaryan, que morava no vilarejo de Monastyrskoe. Exceto um ou
outro aparte embaraçoso, geralmente ficava em silêncio nos encontros organizados
pelos outros exilados. Dava a ideia de que, ou estava esperando que alguma coisa
acontecesse, ou já se cansara das fugas. De qualquer maneira, sua passividade social
foi marcante nos dois ou três anos que antecederam a revolução.
Poder-se-ia esperar que, inspirado pelo sucesso do panfleto que escrevera em
janeiro de 1913 em Viena, intitulado “O marxismo e a questão nacional”, Stalin
passasse seu longo tempo de exílio escrevendo mais. Mesmo que a peça publicada
devesse muito à mão editorial de Lenin, Stalin sabia que o líder bolchevique dava
valor ao panfleto;5 ainda assim, não conseguiu inspiração para aprofundar o estudo
do problema. A falta de qualquer atividade criativa ou social durante aquele período
relativamente longo é prova de sua depressão. Ao longo de quatro anos, com acesso
a uma biblioteca e muito tempo livre, Stalin não fez esforço algum para empreender
qualquer ação séria. Ocorre que ele se comportara exatamente do mesmo modo
durante dois períodos distintos de exílio, em 1908 e 1910, em Solvychegodsk.
Parece que o isolamento parcial ou total dos centros revolucionários fazia com que
mergulhasse numa espera passiva, a menos que escapasse.
Os revolucionários, no exílio ou na prisão, geralmente leem muito. A prisão é,
para eles, uma espécie de universidade. G.K. Ordzhonikidze relembra que, quando
esteve na fortaleza de Shlisselburg, em São Petersburgo, leu Adam Smith, Ricardo,
Plekhanov, Alexander Bogdanov, William James, Frederick W. Taylor,
Klyuchevsky, Kostomarov, Dostoievsky, Ibsen e Bunin.6 Stalin também leu
bastante, encantado com a forma ineficiente com que o regime czarista lutava com
seus “coveiros”: não era preciso trabalhar, a leitura era permitida até a saciedade da
alma e podia-se até fugir, desde que houvesse vontade para tanto. Daí,
provavelmente, chegou ele à conclusão, proclamada mais de uma vez, de que uma
autoridade forte precisava de “órgãos punitivos” fortes.
Por ocasião dos expurgos dos anos 1930, ele iria apoiar a proposta de Yezhov
sobre alterações no sistema de cativeiro dos presos políticos. Instigado por Stalin, o
pleno do Comitê Central, em fevereiro-março de 1937, introduziu um item especial
no decreto resultante do relatório de Yezhov, a saber, que “o regime prisional para
os inimigos do poder soviético (trotskystas, zinovievistas, SRs etc.) é intolerável. As
prisões mais parecem casas de repouso obrigatório. [Os presos] podem conviver,
escrever cartas à vontade uns para os outros, receber encomendas, e assim por
diante”.7 É claro que foram tomadas providências. Não haveria mais “universidades”
para aqueles desafortunados. Os que foram bater em locais de exílio distantes
durante o regime de Stalin tiveram de batalhar muito para, simplesmente, se
manterem vivos, e muitos fracassaram nesse intento. Até mesmo uma fuga ocasional
era um acontecimento e tinha que ser reportado a Stalin. Por exemplo, em 30 de
junho de 1948, o ministro do Interior deu conhecimento a Stalin e Beria de que,
em 23 de junho, no campo de trabalhos corretivos de Ob, sob a responsabilidade da
agência de construção da Ferrovia do Norte, um grupo de 33 prisioneiros desarmou
dois de seus guardas, apoderou-se de dois rifles e 40 projéteis e conseguiu fugir pela
margem esquerda do rio Ob. Em 19 de julho, a situação era a seguinte: quatro
prisioneiros haviam sido mortos, doze recapturados e o restante estava sendo
perseguido.8 Stalin ordenou que um funcionário responsável se deslocasse para o
local, organizasse a recaptura dos fugitivos que restavam e submetesse um relatório
direto a ele quando a operação terminasse. Decididamente, Stalin não modelou seus
órgãos punitivos nos do czar.
Ao ler os jornais, que chegavam com muitos dias de atraso ao posto de
carruagens de Stanok, Stalin não podia deixar de perceber que grandes eventos
estavam por vir. Porém, quando estalou a Primeira Guerra Mundial, ele deu fim a
toda atividade social, passando a impressão de que, embora de início se preparasse
para fugir, não mais desejava interromper o exílio. Tinha duas razões. Primeira, seria
difícil manter-se na ilegalidade nas condições de tempo de guerra e, segunda, não
queria ser recrutado pelo Exército. Aliás, em fevereiro de 1917, quando a comissão
de conscrição, em Krasnoyarsk, o convocou, ele foi julgado incapaz para o serviço
militar em virtude de deformidades físicas, ou seja, o braço atrofiado e o pé
defeituoso.
Ao longo de quatro anos, ele esteve passivo, não escreveu quase nada e não se
comportou, de modo algum, como um membro do Comitê Central do partido.
Spandaryam e Sverdlov tornaram-se os líderes efetivos no exílio e os outros se
congregaram em torno deles. É possível que esse período de longa depressão mental
tenha sido um tempo de escolha pessoal para Stalin, tempo de reflexão. Chegava aos
quarenta anos de idade e seu futuro permanecia nebuloso. Não tinha qualquer
qualificação ou experiência profissional, praticamente não trabalhara um dia sequer.
Durante trinta anos, o país e o partido seriam governados por um homem sem
profissão e sem habilitações, a menos que seja considerada profissão a meia-
formação de padre. Molotov, pelo menos, completou o curso secundário, e
Malenkov, que largou a universidade, desde cedo revelou-se um apparatchik assíduo
da máquina do partido. Stalin, diferentemente de Kaganovich, era incapaz de
consertar até um par de sapatos. O espaço para “profissão ou habilitação” dos
formulários policiais era sempre preenchido com “empregado de escritório”.
Quando tinha que preencher o registro para os congressos e conferências do partido,
Stalin ficava em posição incômoda para responder à pergunta sobre a natureza de
sua ocupação e sua origem social. Por exemplo, no formulário do XI Congresso, em
1922, no qual foi delegado sem direito a voto, em resposta à questão: “A qual
categoria social você pertence? (operário, camponês, escriturário)”, ele não pôde
escrever coisa alguma.9
Revolucionário profissional, Stalin sabia bem menos sobre a vida de um
trabalhador, de um camponês ou de um funcionário de escritório do que sobre um
prisioneiro ou um exilado. Nas circunstâncias, talvez isso fosse inevitável, mas ele
tinha outra persistente característica de sua personalidade, isto é, parecia saber muita
coisa a respeito da vida dos operários. Depois, chegaria a hora em que ele “saberia
tudo e poderia fazer qualquer coisa”. O demorado silêncio em Turukhansk é
provável que tenha sido de certa forma um longo período de “revisão”. Já era tarde
demais para abandonar a carreira revolucionária. As notícias de um ambiente contra
a guerra e a ascensão do movimento revolucionário em Petrogrado aos poucos
restabeleceram-lhe a autoconfiança e o trouxeram de volta à forma de combatente.
Os gélidos ventos polares parece que, verdadeiramente, congelaram os poderes
intelectuais de Stalin durante aqueles quatro anos. Foram, talvez, os anos mais
improdutivos e inertes de sua vida, mesmo na companhia de outros bolcheviques
bastante vivazes. Assim, ele esperou, avaliando a situação e refletindo sobre o futuro.
Que lembranças passariam por sua cabeça? Os congressos do partido que
frequentara, a prisão em Batum, o apartamento de Alliluyev, o filho pequeno que
não via por tanto tempo? Talvez suas atividades como “expropriador” em nome de
Lenin? Durante o período imediatamente após a revolução de 1905, alguns dos
membros mais radicais da ala bolchevique do partido consideraram legítima a
execução de roubos em benefício da causa. Os testemunhos escritos de Dan,
Martov, Souvarine e outros membros da ala menchevique indicam que “o militante
caucasiano Djugashvili” participou de diversos roubos, se não diretamente, pelo
menos como um dos organizadores. Em especial, Martov assevera que o ataque
particularmente audacioso, em 1907, aos cossacos que faziam a escolta de um
carregamento de dinheiro em Tiflis “não daria certo sem Stalin”. Roubaram cerca
de 300 mil rublos. Martov escreveu: “Os bolcheviques caucasianos se envolveram
em diversas e ousadas empreitadas de natureza expropriatória: o sr. Stalin sabe disso
e ele foi certa vez expulso do partido por seu comprometimento em
expropriações.”10 Stalin tentou com persistência que Martov respondesse à acusação
de calúnia, destacando, porém, a afirmação de que teria sido expulso do partido, e
evitando a acusação de cumplicidade nos roubos.
Seus anos de atividade revolucionária, se bem que em nível provincial, e a aura
romântica de “expropriador” que cumprira prisão e exílio criaram para Stalin a
reputação de “militante” e homem de ação, fama essa que, afora os anos passivos no
exílio, ele provavelmente merecia.
Lenin, por certo, teve parte destacada no surgimento de Stalin como marxista.
Sua primeira carta a Stalin, então na vila de Novaya Uda, na província de Irkutsk,
foi escrita em dezembro de 1903. Lenin era muito atencioso para com
revolucionários das minorias das terras fronteiriças nacionais, e Djugashvili
despertara sua atenção por causa de umas curtas matérias escritas que publicara na
imprensa do partido e em função das conversas com outros camaradas. A carta de
Lenin para Stalin elucida alguns fundamentos da organização partidária. Stalin
referiu-se a ela pela primeira vez em público no fim de janeiro de 1924, numa
reunião em memória de Lenin promovida pelos guardas da segurança do Kremlin,
por ocasião de um término de curso. Na sua voz rouca e inexpressiva, Stalin falou
sobre os encontros com Lenin:

Conheci Lenin em 1903. Na realidade, não foi um encontro pessoal e sim postal, já que se deu por
correspondência. Não foi uma carta longa, mas continha uma crítica ousada e corajosa sobre o trabalho de
nosso partido e era uma exposição extraordinariamente clara e concisa de todo o plano de trabalho do
partido para o futuro imediato. Aquele pequeno e audacioso bilhete reforçou minha crença de que o partido
tinha em Lenin sua águia sobranceira. Não posso me perdoar por ter feito com aquela carta aquilo que o
revolucionário experiente na clandestinidade fez com muitas outras missivas, ou seja, lancei-a às chamas.11

Stalin não podia se queixar de falta de atenção de Lenin. Na véspera da revolução, o


Comitê Central do partido, sob a presidência de Lenin, discutiu especificamente a
organização da fuga do exílio de Sverdlov e de Stalin.12 Pouco antes, Lenin enviara
120 francos suíços para Stalin em Turukhansk.13 Também tomara em boa nota a
carta enviada do exílio na qual Stalin aventou a possibilidade de publicar seus dois
artigos “Da autonomia cultural-nacional” e “O marxismo e a questão nacional”
como um livreto único.14
Stalin encontrou-se com Lenin por diversas vezes antes de 1917. O tempo mais
longo que juntos passaram foi em Cracóvia. Tinham se reunido antes no IV
Congresso em Estocolmo e no V em Londres. Anos mais tarde, Stalin lançou nova
luz sobre aqueles encontros. Já em 1931, declarou: “Sempre que fui ao exterior para
vê-lo – em 1906, 1907, 1912, 1913 ...”,15 deixando transparecer que não viajara ao
exterior para reuniões do partido, mas para encontrar-se com Lenin. Essa mudança
de ênfase fortaleceu, depois, o conceito de “dois líderes”, e ajudou a criar o mito de
que a relação especial entre os dois era anterior à revolução. É também verdade que
Stalin sempre foi especialmente cauteloso sobre essas ilações.
Perito na arte da sobrevivência na clandestinidade, Stalin também dominava os
segredos da transformação. Era uma coisa no Politburo, outra quando discursava
nos congressos e ainda outra quando conversava com os trabalhadores que recebiam
o prêmio Stakhanov. Tais mudanças nem sempre saltavam aos olhos, mas ocorriam.
Como confirmaram as pessoas que trabalharam próximas a ele, Stalin era bem mais
abrupto com os do círculo íntimo do que quando “se exibia” em público. Todos
temos nossos papéis; alguns, nós desempenhamos, intencionalmente ou não, melhor
que outros. Mas os que ocupam posições elevadas na hierarquia social são,
literalmente, atores, talvez porque estejam tão destacadamente em exposição que
qualquer trivialidade é notada. A autoridade de um homem sobre os outros
depende, é claro, de seu poder, mas também de impressões, da “visibilidade” de sua
imagem, da atração que exerce ou não como líder.
O trabalho que ele desenvolveu em Baku, Kutaisi e Tiflis evidenciou
significativas qualidades de organizador. Todavia, mesmo então, revolucionários
perspicazes observaram que Stalin encarava a organização partidária como um
aparato, um mecanismo, a máquina para o processamento de ordens. Outros
bolcheviques caucasianos, como A.S. Yenukidze, P.A. Dzhaparidze e S.G.
Shaumyan, eram mais conhecidos localmente que Djugashvili. Stalin pode ter sido
igual a esses bolcheviques em termos de formação e experiência prática como
revolucionário, mas claramente perdia para eles em popularidade pessoal.
Juntamente com o fim da dinastia dos Romanovs, acabou o exílio para Stalin.
Poucos poderiam prever, então, que, no período de um ano, desabaria o edifício
secular do czarismo, entregando a arena para a batalha entre dois princípios, um
novo e revolucionário, outro antigo e conservador. Stalin, cujo “retrato de frente e
de perfil” ainda era completamente desconhecido, teria seu papel nesse conflito.
Nota

* Na mitologia grega, leito de ferro em que Procusto, famigerado salteador, deitava suas vítimas que ali deveriam
caber perfeitamente. Por isso. se fossem maiores, cortava-lhes os pés, se fossem menores, estirava-lhes o corpo.
[N. T.]
[2]
Fevereiro, o prólogo

E nquanto as garras geladas de Kureika ainda se fechavam em torno de seus


exilados, eventos sem precedentes se desenrolavam na Rússia europeia. A
guerra fazia sua colheita terrível já por trinta meses. Stalin estava longe das
trincheiras enlameadas e manchadas de sangue e dos cadáveres enrijecidos de
soldados presos no arame farpado. Mas, das escassas notícias que chegavam, sabia
que a produção industrial caíra de forma drástica, que o povo passava fome e que o
descontentamento crescia velozmente. A guerra levara o império Romanov à crise.
Uma explosão revolucionária era iminente.
A classe média esperava que fosse encontrada uma solução, seja por alguma
adaptação da monarquia, seja pela formação de uma democracia nos moldes
ocidentais. A sucessão desesperada de ministros só exacerbava as dificuldades do
regime. Nos três anos de guerra, o presidente do conselho de ministros mudara
quatro vezes, e dezenas de outras substituições tiveram lugar nos altos cargos do
Estado. No front, as coisas estavam ainda piores. O ministro da guerra, general A.A.
Polivanov, enviou o seguinte cabograma da linha de frente para o palácio:
“Deposito minha confiança em nossas vastidões intransponíveis, em nossos atoleiros
e na misericórdia de nosso benfeitor, Nicolau, o protetor da Santa Rússia.”16
Nicolau II, malgrado toda a sua falta de imaginação, conseguiu manobrar
inteligentemente buscando meios-termos e fazendo concessões parciais para salvar a
monarquia. Mas chegara sua hora. Três semanas antes do colapso da autocracia, o
presidente da última Duma e líder do Partido Outubrista, M.V. Rodzianko, disse
ao czar: “Sire, não vos restou nenhum homem confiável ou honesto: os melhores,
ou foram afastados, ou se retiraram, e os que ficaram têm péssima reputação.”
Rodzianko argumentou com Nicolau rogando que “outorgasse uma constituição ao
povo” para salvar o trono.17 Mas nada poderia salvá-lo.
O evento singular mais significativo do primeiro ato da Revolução de Fevereiro
foi a queda da autocracia. Os exilados, inclusive Stalin, acreditavam na possibilidade
do colapso, mas não esperavam que fosse tão súbito. Lembrando-se das lições da
revolução de 1905 e do que lera sobre a Revolução Francesa, Stalin então sabia que
a raison d’être daqueles revolucionários profissionais estava prestes a ser justificada
pelos eventos que se avizinhavam.
Um dos personagens do drama, V.V. Shulgin (que retornou do exílio no
Ocidente para a URSS em 1945, onde viveu até quase os cem anos de idade),
descreveu os detalhes em suas memórias, Dni (“Os dias”). Quando, como emissários
do Comitê Provisório, ele e A.I. Guchkov chegaram a Pskov, em 2 de março de
1917, para receberem instruções sobre a abdicação do czar, contavam ainda com a
salvação da monarquia. “O Imperador”, escreveu Shulgin, “mostrava-se tranquilo
como sempre. Quando Guchkov terminou uma fala repleta de contradições,
Nicolau, num tom de voz monótono, que não passava o menor sinal de emoção,
declarou: ‘Resolvi abdicar ao trono. Até as três horas de hoje, pensei em fazê-lo em
favor de meu filho Alexis. Mas, depois, mudei de ideia em favor de meu irmão
Miguel.’”18 Miguel, no entanto, logo declinaria da coroa.
Enquanto isso ocorria, os exilados de Monastyrskoe e Kureika já estavam em
Krasnoyarsk e Kansk, e Stalin e Kamenev se encontravam em Achinsk. Quando
souberam que o grão-duque Miguel recusara a coroa, ficaram extasiados e
mandaram-lhe um telegrama de congratulações por sua “magnanimidade e espírito
cívico”. O telegrama foi assinado por Kamenev. Nove anos depois, na tentativa de
explorar ao máximo “o fraco de Kamenev pela monarquia”, um Stalin que parecia
anormalmente excitado disse:

O fato teve lugar em Achinsk, em 1917, depois da Revolução de Fevereiro, quando o camarada Kamenev e
eu éramos, juntos, exilados. Estávamos num jantar ou numa reunião, não me lembro bem, mas, naquele
encontro, diversos cidadãos, inclusive Kamenev, enviaram um telegrama para Miguel Romanov [...]
[Kamenev esbravejou de seu assento: “Admita que está mentindo! Por que você não admite isso?”] Silêncio,
Kamenev! [Kamenev gritou de novo: “Admita que você está mentindo!”] Cale-se Kamenev, ou será pior para
você. [E. Thälmann, diretor do encontro, repreende Kamenev.] O telegrama para Romanov como primeiro
cidadão da Rússia foi enviado por diversos negociantes mais o camarada Kamenev. No dia seguinte, tomei
conhecimento do fato, que me foi contado pelo próprio camarada Kamenev, o qual veio a mim e me disse
que tinha feito aquela burrice. [Kamenev bradou novamente de sua cadeira: “Você está mentindo. Jamais lhe
disse isso!”] O telegrama foi publicado em todos os jornais, exceto nos bolcheviques. Aí está o fato número
um.
Agora, o fato número dois. Tivemos nossa conferência do partido em Petrogrado, em abril, e os delegados
debateram se, em face do telegrama, simplesmente seria permitida a eleição de Kamenev para o Comitê
Central. Duas reuniões bolcheviques fechadas tiveram lugar, nas quais Lenin defendeu Kamenev,
argumentando em seu favor, com alguma dificuldade, para que fosse indicado candidato ao Comitê Central.
Só Lenin poderia salvar Kamenev. Eu também o defendi naquela ocasião.
Agora, o fato número três. É bem verdade que o Pravda apoiou o desmentido publicado pelo camarada
Kamenev, já que esse era o único meio de salvá-lo e de defender o partido contra os ataques do inimigo.
Dessa forma, veem todos que o camarada Kamenev é bastante capaz de mentir para o Comintern e de iludi-
lo. Só mais duas palavras. Como o camarada Kamenev tentou, ainda que debilmente, negar a evidência de
um fato, permitam-me coletar as assinaturas daqueles que participaram da conferência de abril e que
insistiram em vedar o acesso do camarada Kamenev ao Comitê Central por causa do telegrama. [Trotsky, de
seu lugar: “Só lhe faltará a assinatura de Lenin!”] Camarada Trotsky, você tem que permanecer quieto!
[Trotsky: “Você não me intimida, você não me intimida!”] Você está negando a verdade, e é à verdade que
você deve temer. [Trotsky: “Você fala sobre a verdade stalinista, que é rude e desleal.”] Estou coletando as
assinaturas dos que acham que o telegrama foi assinado por Kamenev.19

De qualquer maneira, a dinastia dos Romanovs chegou ao fim. Como Shulgin


escreveu: “A Rússia não era mais uma monarquia, mas também não era uma
república. Era uma forma de Estado que não tinha nome. O que começara com um
pogrom dos judeus acabou se transformando na queda de uma dinastia de trezentos
anos.”20 Os da “velha guarda”, todavia, não se entregaram com tanta facilidade.
Ressurgiriam, na ocasião oportuna, sob a forma de exércitos Brancos, com o apoio
das forças da intervenção. Em seu Ocherki russkoy smuty (“Uma história dos
problemas russos”), A.I. Denikin lembrou que o general Krymov, do 3º Corpo de
Cavalaria, propôs “limpar Petrogrado pela força das armas e, é claro, com
derramamento de sangue”. Denikin lamentou, com um suspiro, não ter seguido esse
conselho a tempo.21 Porém, nos dois últimos dias de fevereiro, acabaram todas as
esperanças de deter a revolução. O comandante militar da capital perdeu o último
vestígio de autoridade sobre as unidades para as quais os bolcheviques dirigiram sua
propaganda. Na noite de 28 de fevereiro, os ministros do último governo czarista
estavam presos na fortaleza de Peter-Paul. Triunfara na Rússia a revolução burguesa-
democrática de fevereiro. Ela foi o prólogo de outubro.
Mesmo antes do recebimento da notícia oficial, milhares de exilados das
fronteiras remotas se prepararam para viajar para Petrogrado, Moscou, Kiev,
Odessa, Tiflis, Baku e outros centros revolucionários.
Stalin e um grupo desses ex-exilados compraram suas passagens ferroviárias de
terceira classe e, sentados em seus vagões, com o olhar difuso e ansioso pelas janelas,
viram o trem rasgar as extensões siberianas, deixando suas depressões e tédios nas
margens congeladas do Yenisei. Stalin olhava os vilarejos pobres enquanto “viajava
para a revolução”. Sabia que seria hospedado pelos Alliluyevs. Durante os longos
anos de exílio, se recebera correspondência regular de alguém, fora de Sergei
Yakovlevich Alliluyev, seu futuro sogro, um bolchevique que entrará em nossa
história porque, em julho de 1917, esconderia Lenin para que não fosse achado pelo
Governo Provisório.
Ao se aproximarem dos Urais e em todas as paradas seguintes, os exilados, dos
quais havia alguns em cada trem, eram recebidos com ruidosas boas-vindas.
Cantava-se a “Marselhesa”, discursos jorravam e havia uma generalizada atmosfera
de júbilo. O retórico Kamenev e o fervoroso Sverdlov também fizeram discursos,
assim como outros passageiros. Stalin acompanhou a euforia em silêncio.
Àquela altura, a maré democrática estava alta. A classe média baixa, ora se
inclinando pelos capitalistas “progressistas”, ora pelo proletariado, adernava a nau
do Estado com força cada vez maior. Crescia um ambiente reformista. O
sentimento era de que, com a derrocada da autocracia, estava alcançado o objetivo
principal. “A gigantesca onda pequeno-burguesa varreu tudo”, escreveu Lenin.
“Sobrepujou o proletariado consciente tanto numérica quanto ideologicamente.”22
O grande pêndulo social oscilou para lá e para cá, entre a esquerda e a direita,
simbolizando um aspecto singular da Revolução Russa que foi a existência de dois
centros do poder. Numa das alas do Palácio Tauride (onde costumava reunir-se a
Duma de Estado, o velho pseudoparlamento czarista) instalou-se o Comitê
Provisório da Duma de Estado – o “brinquedinho do governo”, nas palavras de
Milyukov – com o tom dado pelos Kadets (os democratas constitucionais), ou
burguesia “de esquerda”. Na outra ala, chefiado pelos mencheviques N.S.
Chkheidze, M.I. Skobelev e pelo SR (socialista revolucionário) A.F. Kerensky, o
soviete de Petrogrado estava reunido como órgão do poder revolucionário. Seu
comitê executivo incluía bolcheviques e mencheviques, porque esses mencheviques,
que desfrutavam de status legal antes de fevereiro, tinham feito bom uso das
oportunidades. Suas fileiras contavam com intelectuais, propagandistas e teóricos
socialistas de renome. Lenin ainda estava no exílio na Suíça, ao passo que Bubnov,
Dzerzhinsky, Muranov, Rudzutak, Ordzhonikidze, Sverdlov, Stalin, Stasova e
outros líderes do partido ou ainda se encontravam exilados, nas prisões, ou nos
campos de trabalho forçado.
Os mencheviques do soviete acompanharam os membros da Duma na aprovação
da transferência do poder estatal para o Governo Provisório. Em uníssono, Tsereteli
e Kerensky recitaram o refrão “o novo governo revolucionário operaria sob o
controle do soviete”, e essa era “a vontade da história”. Sua demagógica retórica
revolucionária agitadora das multidões e sua insistência na mesma tecla do
significado emocional daquele momento fizeram com que a opinião pública
favorecesse o Governo Provisório. Stalin, como muitos outros, foi levado pela
corrente.
Kerensky, que muito fez em prol da burguesia, também queria proteger os
representantes da dinastia, “para caso de necessidade”. Num dos ensaios que
escreveu já em fuga, e intitulado “A partida de Nicolau II para Tobolsk”, assim se
expressou:

A despeito de todos os rumores e insinuações, o Governo Provisório [...] decidira, bem no início de março,
enviar a família real para o exterior. No soviete de Moscou, em 7 [20] de março, em resposta à gritaria de
“Morte ao czar! Executem o czar!”, eu mesmo disse: “Isso jamais acontecerá enquanto estivermos no poder.
O Governo Provisório assumiu a responsabilidade pela segurança do czar e de sua família. Cumpriremos essa
obrigação até o fim. O czar e sua família serão mandados para a Inglaterra. Eu os acompanharei pessoalmente
até Murmansk.”23

“Minha declaração”, continuou Kerensky, “causou uma explosão de raiva nos


sovietes de ambas as capitais, mas, no verão, quando se tornou impraticável manter
a família real por mais tempo em Tsarskoe Selo, o Governo Provisório recebeu a
notificação [do governo inglês] comunicando que, até o fim da guerra, era
impossível a entrada do ex-monarca e de sua família em território britânico.”24 A
família real foi então despachada para Tobolsk. Ao mesmo tempo, o Governo
Provisório fez quanto pôde para vestir a revolução no manto da reconciliação.
Mantendo o poder, como disse Kerensky, a burguesia estava também decidida a
“deixar que o povo tivesse voz”.
A revolução completara, àquele estágio, sua primeira fase. A percepção era
adormecida pelo poder dual. Ostensivamente, o poder estava nas mãos do Governo
Provisório, junto com a antiga burocracia estatal, enquanto, em paralelo, o soviete
de Petrogrado fervilhava com o fermento revolucionário criado pelos representantes
dos operários e dos soldados. Duas ditaduras coexistiam coladas uma à outra.
Nenhuma das duas detinha poder total, mas uma não podia tirar a autoridade da
outra. Por mais que fosse socialmente ambíguo, o poder dual não conseguiria
desacelerar o alçamento revolucionário das massas. Em 2 de março de 1917, por
exemplo, o Izvestiya publicou a famosa Ordem Nº 1 anunciando a introdução de
princípios democráticos no Exército: eleição de comitês dos soldados, abolição dos
postos e títulos, ordens só obedecidas com a aprovação dos sovietes, observância da
disciplina revolucionária, direitos civis iguais para oficiais e praças.
Antes da volta de Lenin, um papel especial foi desempenhado pelo Bureau Russo
do Comitê Central que, em março, cooptou três novos membros, entre eles, Stalin.
O bureau confirmou a composição do conselho editorial do Pravda, e dele passou a
fazer parte Stalin. O ressurgimento do jornal proletário (proibido desde o começo
da guerra) causou um impacto enorme.
Como se saiu Stalin nas revoluções de fevereiro e outubro? Qual foi sua
verdadeira função? O que foi ele: um líder, um forasteiro, um figurante?

Segundo a Breve biografia, “durante esse período importante, Stalin congregou o


partido para a batalha que objetivava transformar a revolução burguesa-democrática
numa revolução socialista. Com Molotov, orientou os trabalhos do Comitê Central
e do Comitê Bolchevique de Petrogrado. Os bolcheviques tiravam direções
ideológicas dos artigos de Stalin”.25 É descrito como líder da revolução, como se já
tivesse substituído Lenin. Os documentos não dão qualquer fundamento a tais
assertivas; Stalin não deu “direções”. Depois de sua chegada a Petrogrado, nada mais
foi do que um dos muitos funcionários do partido. Seu nome raramente é citado no
grupo particular de pessoas que executaram as instruções do Comitê Central. De
fato, ele era membro de órgãos políticos importantes, mas, no decurso daqueles
meses, pouco apareceu. Reconhecido praticamente por ninguém fora de um
pequeno círculo, Stalin foi pessoa ignorada, um “representante das minorias
nacionais”. Simplesmente, um desconhecido. Esta é a verdade.
Trotsky, que ficou conhecidíssimo depois de seu retorno do exterior, quando
descreveu esse período da vida de Stalin em seu livro A Revolução de Fevereiro,
assinalou que “a posição no partido se tornou mais complicada, em meados de
março, depois da volta do exílio de Kamenev e Stalin, os quais deram uma forte
guinada para a direita no leme da política oficial”. Trotsky sublinhou que Kamenev
passara vários anos no exterior com Lenin, no centro teórico do partido, e era um
escritor e tribuno, ao passo que Stalin, o chamado ativista prático, carente da
necessária “visão teórica, bem como de amplos interesses políticos, para não falar do
conhecimento de línguas estrangeiras, era inseparável do solo russo”. A facção
Kamenev-Stalin “transformou-se [...] com efeito, num grupo parlamentar por trás
dos bastidores para ‘fazer pressão’ sobre a burguesia”.26 Embora algumas das
acusações de Trotsky a Stalin – como, por exemplo, a de que este era favorável a
uma política defensiva de guerra – não sejam totalmente justificadas, ele, apesar
disso, acerta quando diz que ao pensamento de Stalin pré-outubro faltava visão e
que tal fato, em várias ocasiões, levou a uma preocupação estreita e míope com as
coisas práticas.
Stalin não foi apanhado de surpresa pela Revolução de Fevereiro. Malgrado a
longa depressão, sua fé na inevitabilidade da revolução estava implícita. Se a verdade
não estivesse envolvida pela capa da fé, para ele, tratava-se de uma verdade inferior.
Embora tal abordagem não seja, em si, negativa, ela encerra o perigo do pensamento
dogmático. A fé num programa, numa linha de ação, nas decisões, na “linha justa”,
ajudaram-no sempre a permanecer convicto da correção de suas ações. Ele viu a
queda da monarquia como fatalidade revolucionária e, sem dúvida, esperava que ela
ocorresse em seu tempo, se bem que, de repente, entendesse que a causa à qual
devotara sua vida não era uma questão de mera chance histórica, era algo mais.
[3]
Os atores coadjuvantes

S talin chegou a Petrogrado em 12 de março, pelo calendário antigo.* Como


seria de prever, ninguém foi recebê-lo na estação onde desembarcou em
companhia de Kamenev e Muranov. A cidade estava ocupada com outras
questões. Carregando sua mala de papelão, Stalin dirigiu-se à casa dos Alliluyevs,
sendo acolhido como parte da família. No mesmo dia, encontrou alguns membros
do Comitê Central e, naquela mesma noite, foi eleito para seu Bureau Russo e para
o conselho editorial do Pravda. Depois do silêncio de Kureika, foi difícil sua
adaptação ao barulho e à agitação. A partir do momento da chegada, Kamenev,
Muranov e Stalin assumiram, praticamente, o controle do jornal, e, quase de
imediato, “perderam o compasso” por diversas vezes, teórica e politicamente, e não
por acaso. Stalin não era um pensador forte e independente, não tinha posição
precisa nem um entendimento claro da dinâmica do período pré-outubro. Estava
acostumado a obedecer ordens e a executar a “linha”. Na nova situação, teve de
tomar suas próprias decisões. O primeiro tropeço foi permitir a publicação de um
artigo de Kamenev chamado “O Governo Provisório e a Democracia Social
Revolucionária”, no qual o autor dizia de forma clara do que o partido tinha que
apoiar o Governo Provisório, já que este “lutava genuinamente contra os
remanescentes do antigo regime”. Tal afirmação contrariava as diretrizes de Lenin.
Logo no dia seguinte, Kamenev, bem conhecido por ser escritor versátil e rápido,
publicou outro artigo, intitulado “Sem diplomacia secreta”, em que praticamente
esposou a posição “defensista revolucionária”. Enquanto o exército alemão prosseguir
a guerra, escreveu ele, quem é revolucionário “tem que se defender firmemente em
seu posto e responder bala com bala, granada com granada. Sobre isso, não há
dúvida”.27 As opiniões meio mencheviques de Kamenev não encontraram oposição
em Stalin, ele mesmo autor de um artigo publicado no dia seguinte ao de Kamenev,
chamado “Sobre a Guerra”. Apesar de ser, de um modo geral, contra a guerra, o
artigo contradizia frontalmente o ponto de vista de Lenin. Stalin via saída para a
guerra imperialista “se fosse exercida pressão sobre o Governo Provisório para que
anunciasse sua disposição em logo abrir negociações de paz”.28
(A seu crédito, deve-se ressaltar que Stalin admitiu publicamente seu erro, num
discurso para a facção comunista do Comitê Central dos sindicatos. Disse ele que
sua atitude em relação ao Governo Provisório quanto à questão da paz fora uma
“posição gravemente errada porque gerava ilusões pacifistas, fortalecia o
‘defensivismo’ e tornava a educação revolucionária das massas mais difícil”.29
Acrescentou que esta era a posição de todo o partido embora algumas de suas
organizações adotassem atitude própria. Mais tarde, quando Stalin se tornou
“infalível”, uma confissão pública como essa seria, é claro, impensável.)
Uma semana depois do artigo de Stalin, o Bureau aprovou uma resolução
alinhada com seu pensamento sobre a questão da guerra e da paz. Porém, na
ausência de Stalin, a influência de Kamenev no Pravda é que foi decisiva. Kamenev
foi o verdadeiro herói do “interregno” na liderança bolchevique e contribuiu para o
crescimento das tendências “defensivas”, meio mencheviques, que floresceram em
março. Stalin não tinha a autoridade para se contrapor a ele. Mesmo na falta de
Lenin e de outros destacados bolcheviques, Stalin não conseguiu se comportar como
líder quando o partido, acabado de emergir da clandestinidade, necessitou de
liderança enérgica. Sverdlov, Kamenev e Shlyapnikov apareceram mais que Stalin
durante o complexo momento em que a direção política e as táticas do partido
estavam sendo definidas.
Seguramente, Stalin não poderia adivinhar que Lenin iria determinar uma linha
para a revolução socialista quando chegasse em Petrogrado um mês depois. Estava
muito envolvido com as manobras políticas, que via como um fim em si mesmas. A
ausência de Lenin foi muito sentida em março. Objetivos definidos não poderiam
ser determinados pelo intelecto comum e pelo fervor revolucionário de Stalin, e o
recém-chegado de Kureika não tinha condições de elevar e ampliar suas
perspectivas. Um preeminente intelectual menchevique, N.N. Sukhanov (Gimmer),
escreveu em suas memórias: “Na arena política, Stalin não passava de uma nódoa
cinzenta e vaga.”30 Os outros membros do Bureau, entre os quais P.A. Zalutsky,
V.M. Molotov, A.G. Shlyapnikov, M.I. Kalinin e M.S. Olminsky, eram igualmente
incapazes de executar com coerência as ordens que Lenin dera em suas “Cartas de
longe”, em resposta aos eventos de fevereiro. Parecia que Stalin, Kamenev e alguns
dos outros não conseguiam se livrar totalmente de suas ilusões “defensivas” e da fé
no Governo Provisório, e consideravam as reformas democráticas burguesas, de fato,
o ápice das conquistas.
A hesitação de Stalin era compreensível. Ele não tinha um conceito de como a
grande ideia deveria ser concretizada. As Revoluções de Fevereiro e Outubro
expuseram-lhe a debilidade, os rasos fundamentos teóricos, o baixo nível de
iniciativa, a incapacidade (até então) de converter slogans políticos em proposições
programáticas concretas. Ninguém jamais o recriminou por não entrar na refrega ou
por buscar os caminhos mais fáceis, temeroso de confrontar o inimigo político.
Determinação nunca lhe faltou, mas o observador atento notaria que aquele
revolucionário profissional era extremamente vulnerável, e Stalin sabia disso.
Como já mencionamos, sempre que tinha de comparecer a uma oficina ou uma
fábrica, a uma unidade do Exército ou uma manifestação de rua, Stalin passava por
grande ansiedade, a qual, enfim, aprendeu a esconder com o passar do tempo. Ao
contrário de outros revolucionários, nunca teve atração pelas massas, nem ficava à
vontade no meio delas e, além disso, ou por causa disso, não sabia bem como se
dirigir às grandes multidões. Um operário (A.I. Kobzev), que ouviu Stalin discursar
num comício em Petrogrado, em abril de 1917, escreveu: “O que ele disse pareceu
certo, foi fácil de entender e bastante simples, contudo, de uma certa forma, você
não conseguia, depois, se lembrar do discurso.” Portanto, não surpreendia o fato de
Stalin falar bem menos nos encontros e manifestações do que qualquer outro líder
bolchevique.
Quando Lenin e Trotsky retornaram, em abril e maio, respectivamente, ficou
ainda mais difícil para Stalin discursar em grandes eventos, em particular a partir do
momento em que Lunacharsky, Volodarsky, Kamenev, Zinoviev e outros tribunos
brilhantes começaram a ir aos comícios. Trotsky, por exemplo, escolheu o Circo
Moderno como local favorito e sempre o superlotou. Muitas vezes foi carregado pela
plateia até a tribuna. Ficou a impressão de que Trotsky, às vezes, se preocupava
menos com o conteúdo dos discursos do que com o efeito provocado na plateia.
Como Sukhanov anotou no seu diário de sete volumes sobre a revolução, publicado
em 1922-23, nas primeiras semanas após seu retorno, Trotsky terminava um
discurso rotineiro no Moderno e corria para a fábrica Obukhov, depois para a
fábrica Trubochny, em seguida para a Putilov, a Baltiisky e, então, da Manège para
os quartéis. Parecia falar em toda parte ao mesmo tempo. Stalin, é claro, não podia
ombrear com esse Cícero da revolução. Trotsky deslumbrou-se com o crescimento
da própria popularidade e sabia, melhor que ninguém, incendiar uma plateia.
Quando ouvia Trotsky falar, Stalin alimentava uma hostilidade que beirava o ódio.
Trotsky era o centro das atenções, e todos sentiam atração por ele, ao contrário de
Stalin, a quem, especialmente antes de outubro, Trotsky, simplesmente, “não
notava”.
Em vez de aparecer em público, Stalin escrevia sobre eventos políticos para os
jornais. Entre março e outubro, publicou mais de sessenta artigos e comentários
numa grande variedade de documentos bolcheviques. Embora fosse apenas escritor
mediano, sua argumentação era consistente e, invariavelmente, categórica.
Expressava-se com simplicidade elementar, sem terminologia abstrusa, definições
complexas ou proezas de lógica. Expunha verdades simples que ninguém lembraria
décadas mais tarde, caso não tivessem sido escritas por ele.
Era mais do seu feitio permanecer na sede, trabalhando nos órgãos de controle,
como o bureau, o Comitê Central e o soviete.** Já em março, o bureau atribuiu-lhe
a missão adicional de membro do comitê executivo do soviete de Petrogrado. As
reuniões do bureau eram quase diárias para debater questões práticas e distribuir
mais e mais tarefas novas a seus membros. Dessa forma, Stalin mantinha contato
com as organizações do partido no Cáucaso e noutras regiões.
Naquela ocasião, organizações unificadas de bolcheviques e mencheviques foram
criadas em numerosas províncias. O Comitê Central combateu tal prática, como
sempre o fez, se bem que sua abordagem de tal questão não fosse a mais
recomendável. Num momento em que a cooperação podia fortalecer a luta contra a
autocracia e, mais tarde, contra a burguesia, ela talvez devesse ser encarada como
uma concessão política para se atingirem objetivos específicos. Stalin, em particular,
foi fervoroso em desmanchar e suprimir tais alianças, mesmo que elas pudessem ter
contribuído para robustecer a influência bolchevique.
Se uma linha conciliatória ameaçasse ideais, pontos do programa ou conquistas
concretas, talvez se justificasse destruir as organizações unificadas. Contudo, o
esforço concentrado contra os mencheviques, e mais ainda contra os SR, socialistas
revolucionários, causou mais prejuízos que benefícios. O que se deve lamentar é
que, com o tempo, essa abordagem virou tradição. Quando os fascistas dos anos
1930 apontavam suas armas para nós, ainda estávamos olhando os social-
democratas como nossos “principais inimigos”.
Quando Lenin chegou à Rússia em 3 de abril (16, no calendário novo), foi
recebido às nove da noite em Beloostrov, a primeira estação em solo russo, por
representantes do Comitê Central e do comitê de Petrogrado do partido, bem como
por delegações de trabalhadores. Entre os que o receberam, estavam Kamenev,
Alexandra Kollontai, Stalin, Maria Ulyanova (irmã de Lenin), F.F. Raskolnikov e
A.G. Shlyapnikov. Mal entraram na cabine reservada trocando calorosos
cumprimentos, e Lenin já os surpreendia, como lembrou Raskolnikov, com a
pergunta: “Que andam vocês escrevendo no Pravda? Lemos alguns exemplares do
jornal e os xingamos bastante!”
A chegada de Lenin foi presenciada por Sukhanov, que cita o discurso de boas-
vindas de Chkheidze, no qual o líder menchevique disse que “a missão principal [...]
é defender nossa revolução contra quaisquer intromissões, venham elas de dentro ou
de fora. Esperamos que você se junte a nós na perseguição desse objetivo”.
Sukhanov registra que Lenin se comportou como se tudo aquilo não tivesse coisa
alguma a ver com ele. “Olhava em torno, ou para as flores do buquê recebido, que
pareciam totalmente fora de propósito. E, então, dando as costas para o grupo de
boas-vindas, replicou: ‘Caros camaradas, soldados, marinheiros e operários. Fico
feliz ao cumprimentar em vocês a vitoriosa revolução russa. Em vocês, saúdo a
vanguarda do Exército proletário mundial. Está chegando a hora em que nosso
camarada Karl Liebknecht convocará os povos a voltarem suas armas contra os
exploradores capitalistas. A revolução russa que vocês fizeram abriu uma nova era.
Viva a revolução socialista mundial!’”31
Ali, na estação, Stalin sentiu o internacionalismo de Lenin apagando suas
próprias dúvidas ingênuas e atitude errônea para com o Governo Provisório. O
próprio Stalin mais tarde lembrou que, na noite de 3 de abril, “muitas coisas se
tornaram bem mais claras”. Lenin, apesar de vir “de longe”, entendia melhor que os
outros o significado do momento. No dia seguinte, no Palácio Tauride, quando
Lenin tornou públicas suas dez “Teses de Abril”, Stalin ficou maravilhado com seu
poder intelectual. As teses demoliram por completo sua postura cautelosa expondo o
perigo da política de esperar para ver. A admiração de Stalin, todavia, era menos um
tributo de respeito ao líder do que apreço pelo impacto da nova ideia, uma avaliação
que nem todos compartilhavam. Para os camaradas em armas de Lenin, o líder do
partido não era inviolável. Em vista da situação sem precedentes, bem como da
novidade das ideias de Lenin, até mesmo figuras de realce do partido não estavam
prontas para aceitar o programa do líder. Achavam que a estada no exterior o
afastara da realidade russa e que ele se tornara um radical extremado. Só na Sétima
Conferência do partido, no final de abril, Lenin conseguiu o apoio da maioria do
Comitê de Petrogrado. Tendo feito seu precavido discurso de março, Stalin achou
que a argumentação de Lenin era uma censura direta à sua posição. Sukhanov
anotou em seu diário que o discurso de Lenin deixou “muitas cabeças tontas”. Na
reunião de 4 (17) de abril, só Alexandra Kollontai pronunciou-se em sua defesa.
Muitos bolcheviques (e não apenas Zinoviev e Kamenev, como os historiadores
soviéticos se acostumaram a dizer) não podiam concordar com o ponto de vista de
Lenin, e os conceitos por ele expostos foram alvo de críticas severas.
Na Sétima Conferência do partido, de 24-29 de abril (que tornou público o fato
de seus 151 delegados representarem um partido de oitenta mil membros),
Kamenev atacou Lenin por não entender que as circunstâncias do momento
ditavam que se formasse um bloco com o Governo Provisório.32 Entre outros que
discordaram de Lenin, estiveram Smidovich, Rykov, Pyatakov, Milyutin,
Bagdatyev, cujos discursos seriam mais tarde classificados por Stalin como
“traiçoeiros”, “hostis”, “contrarrevolucionários” e incluídos no catálogo de seus
“crimes”. Após ter falado Bubnov, que advogou a monitoração do Governo
Provisório “de cima e de baixo”, Stalin defendeu as Teses de Lenin. Entretanto, seu
discurso foi pálido e não convincente. Como os argumentos são os músculos das
ideias, e Stalin careceu de argumentação, seu pronunciamento causou pouco
impacto na posição de Bubnov.
O relatório de Stalin sobre a questão nacional, todavia, teve maior peso. Nele,
asseverou que “a organização do proletariado de um estado de acordo com as
nacionalidades só poderia aniquilar a ideia da solidariedade das classes”.33 O
caminho mais certo para a classe trabalhadora de um Estado multinacional era o da
criação de um partido unificado, disse ele. Essa era uma orientação contida na
política leninista desde o início do século. O discurso, em si, foi um esforço
consciente e sem brilho de um “enrijecido revolucionário prático”, porém, como
regra naqueles dias difíceis, Stalin tentava se apegar a uma posição “intermediária”,
acreditando ser esta a atitude mais ponderada numa ocasião em que as coisas se
alteravam de maneira tão veloz.
Da mesma forma, os documentos da época evidenciam que Stalin era pouco
mais que um funcionário de modesto realce dentro da organização partidária. Por
exemplo, numa crônica compilada em 1924 para o período de junho a setembro de
1917, enquanto Savinkov é citado mais de quarenta vezes, Skobelev mais de
cinquenta e Trotsky mais de oitenta, o nome de Stalin só aparece nove vezes. Pode-
se objetar que a abordagem estatística não diz tudo, mas ela nos dá uma ideia dos
papéis individuais vistos sob a ótica da opinião pública. Exceto pela listagem dos
vários comitês de que participou, no caso de Stalin, é difícil encontrar-se na
compilação algo de concreto sobre suas atividades. O principal motivo disso talvez
seja sua falta de iniciativa revolucionária. Ele era um bom executor, mas não tinha
imaginação. Em março, mesmo como membro do Comitê Central e na ausência de
Lenin, foram escassos os seus atributos de liderança em escala nacional, e ele não foi
capaz de sugerir nada mais original do que “não devemos forçar os acontecimentos”.
O fato de Stalin ter permanecido em segundo plano em 1917 não se deveu apenas à
sua passividade social, mas também ao papel de executivo, para o qual tinha
indiscutível talento. Nos meses tempestuosos de 1917, ele foi incapaz de elevar-se
acima das tarefas do dia a dia. Trabalhando ao lado de personalidades bem mais
fulgurantes, é pouco provável que se consumisse de ambição. As missões de menor
relevância que cumpriu, no entanto, foram-lhe conferindo, imperceptivelmente,
autoridade política estável entre os líderes bolcheviques, e, na Sétima Conferência,
ele foi reeleito para o Comitê Central.
Notas

* O calendário russo era 13 dias atrasado em relação ao do Ocidente até janeiro de 1918, quando passou a
coincidir com este. Assim sendo, a Revolução “de Fevereiro” ocorreu em março pelo Calendário Novo,
enquanto a Revolução “de Outubro” é comemorada, desde 1918, no dia 7 de novembro.

** Russo sovet, conselho. [N.T.]


[4]
O levante

C om o retorno de Lenin, o papel de Stalin se estabeleceu com mais clareza


como o de executor das ordens da liderança. Sua colaboração foi
inestimável nas operações sigilosas, na criação de vínculos com os comitês
do partido, e na organização das coisas que surgiram durante a preparação para o
levante armado.
O Comitê Executivo Central dos Sovietes, eleito no I Congresso dos Sovietes de
Toda a Rússia, que se reuniu entre 3 e 24 de junho, não era um órgão bolchevique.
Compreendia 123 mencheviques, 119 socialistas revolucionários e 59 bolcheviques,
entre os quais Stalin.34 Suas decisões, como o comitê em si, eram conciliatórias para
com o novo governo. Isso ficou bastante claro depois que o Governo Provisório
suprimiu com violência, no início de julho, uma manifestação inspirada pelos
bolcheviques. Claro também ficou que a revolução socialista não poderia ser
alcançada por meios políticos. Lenin escreveu mais tarde que “nosso partido
cumpriu sua indubitável obrigação ao marchar, em 4 de julho, ombro a ombro com
as massas acertadamente indignadas e ao tentar dar à manifestação um caráter o
mais possível pacífico e organizado. Isso porque, em 4 de julho, a transferência
pacífica do poder para os sovietes ainda era uma possibilidade”.35 As lideranças SR e
menchevique, no entanto, já tinham “escorregado para o fundo do revoltante poço
contrarrevolucionário” – nas palavras de Lenin – ao fazer um acordo com o
Governo Provisório que resultou no emprego de tropas contra os manifestantes. A
instável coexistência dos dois centros de autoridade chegara ao fim e se atingira um
novo estágio – o da preparação para a tomada do poder pelos bolcheviques.
O Governo Provisório preparava contra Lenin a acusação de ser agente alemão.
Ao saber de sua prisão iminente, o líder refugiou-se, com a ajuda de Stalin, no
apartamento dos Alliluyevs onde, no início de julho, se reuniram membros do
Comitê Central, inclusive Nogin, Ordzhonikidze, Stasova e Stalin. A questão
principal era se Lenin deveria ou não se entregar à “justiça”, como demandavam as
autoridades. Antes da reunião, Lenin declarara: “Se o governo ordenar minha prisão
e o TsIK (Comitê Executivo Central dos Sovietes) ratificar a ordem, eu me
entregarei em qualquer local indicado pelo comitê.”36 As opiniões se dividiram.
Alguns argumentaram que ele deveria se entregar caso o TsIK desse algumas
garantias. Porém, M.I. Liber e N.A. Anisimov (membros mencheviques do TsIK)
declararam que não havia garantias que pudessem dar. Em vista dos abertos
comentários feitos pela imprensa contra Lenin e outros líderes bolcheviques, ficou
claro que os reacionários desejavam do governo um julgamento sumário deles.
Depois de discussões prolongadas, Lenin foi persuadido a não se render e a
esconder-se fora de Petrogrado por algum tempo.37 Inicialmente, Stalin não tomou
posição, mas depois ficou frontalmente contra a apresentação de Lenin aos
tribunais, alertando que ele poderia ser assassinado caso se rendesse.
Essa atitude era plenamente justificada. V.N. Polovtsev, um ex-membro da
Duma, lembrou em suas memórias que o funcionário enviado a Terioki, na
Finlândia, para prender Lenin, perguntou-lhe:

“Como devo entregar esse cavalheiro – inteiro ou em pedaços?”


Respondi, com um sorriso malicioso, que as pessoas quando são presas geralmente tentam escapar...

A experiência de Stalin na clandestinidade foi, sem dúvida, bastante útil, e o plano


para tirar Lenin de Petrogrado com a colaboração de amigos confiáveis foi muito
bem montado.
Nessa ocasião altamente dramática, um evento importante teve lugar na vida
pessoal de Stalin: ele conheceu a filha de Alliluyev, Nadezhda, que seria sua futura
segunda esposa. Vinte anos mais velho que ela, Stalin conhecera a família nos idos
de 1890, quando chegou pela primeira vez em Baku. Aliás, sua filha Svetlana
Alliluyeva escreveu em Vinte cartas para um amigo que, em 1903, Stalin salvou a
vida da futura esposa quando ela tinha dois anos de idade e caiu ao mar, sendo por
ele resgatada. Retornando certo dia para casa, Nadezhda encontrou o apartamento
repleto de gente que jamais vira. Começaram a perguntar-lhe insistentemente sobre
a situação na rua. Muito nervosa, a moça contou que ouvira dizer que as pessoas
acusadas pelo levante de julho eram “agentes secretos de Wilhelm, que já tinham
escapado de submarino para a Alemanha e que seu líder era Lenin”. Quando
percebeu que o herói do boato estava no apartamento, ficou terrivelmente
envergonhada.
Os visitantes pararam com as perguntas e reexaminaram a situação. A ideia de
que Lenin não se entregasse era a correta, já que o governo, evidentemente,
planejava uma desforra. Lenin teve de trocar de roupa, usar um disfarce e partir para
a Finlândia via Sestroretsk. O próprio Alliluyev relembrou mais tarde: “Saímos
numa determinada noite para a estação Primorsky. Yemelyanov, um operário
membro do partido desde 1904, foi na frente, seguido a curta distância por
Vladimir Ilyich e Zinoviev, com Stalin e eu cobrindo a retaguarda. O trem já estava
na estação, e os três que iam viajar embarcaram no último vagão. Stalin e eu
esperamos a partida e fomos embora.” As lembranças de Alliluyev não são muito
exatas. Zinoviev não estava entre os viajantes, pois já se encontrava foragido, e o
trabalhador V.I. Zof foi um dos que acompanharam o disfarçado Lenin.
A despeito de suas múltiplas tarefas, Stalin começou a passar mais tempo no
apartamento dos Alliluyevs. O homem duro e frio estava atraído pela pura e ingênua
moça, quase uma menina, que iria se tornar sua esposa. De sua parte, Nadezhda
observava com interesse o “velho conspirador”, como ele se apresentara a ela.
Stalin, então, tornou-se um dos traços de união entre Lenin e o Comitê Central.
Há todos os motivos para se supor que Lenin confiou instruções e conselhos a ele.
Na véspera do VI Congresso do partido, por exemplo, Stalin encontrou-se com
Lenin.38 Não existem atas, mas a marca de Lenin está claramente impressa em todos
os documentos principais do congresso. Lenin ficou muito satisfeito ao saber que os
delegados já representavam um partido de 240 mil filiados. As fileiras haviam
triplicado em apenas quatro meses, fato encarado pelo líder como aprobatório da
linha de ação que tomara. Seus artigos, como “A situação política”, “Sobre palavras
de ordem” e “Uma resposta”, deram as bases para as decisões do congresso. Uma
resolução especial foi deferida aprovando a não entrega de Lenin, e sua linha sobre o
levante armado também recebeu apoio.
Na cena política, com o partido na semiclandestinidade, ficou com Stalin e
Sverdlov a execução das instruções de Lenin. Ainda praticamente desconhecido
pelas massas, o papel de Stalin dentro da organização cresceu constantemente.
Em 10 de outubro, voltando da longa ausência, Lenin compareceu a uma
reunião do Comitê Central no apartamento do menchevique Sukhanov, cuja esposa
era bolchevique. Sverdlov presidiu o encontro. Lenin assegurou que a situação
política “está agora madura para a transferência do poder. [...] Temos que discutir o
aspecto técnico. Tudo depende disso”.39
A imprensa reportou que o suprimento de cereais para a capital escasseava de
forma alarmante. A câmara da capital solicitou ao prefeito que conclamasse a
população a permanecer calma, enquanto começava uma sessão especial para
debater a situação dos alimentos. Entrementes, Lenin convocava todas as
organizações e todos os soldados e operários a se engajarem no preparativo direto e
intensificado de uma sublevação armada. O Comitê Central do partido montou um
centro de operações, dirigido por Bubnov, Dzerzhinsky, Uritsky, Sverdlov e Stalin,
para supervisionar a organização do levante.
Na noite de 24 de outubro, Stalin esteve no quartel-general bolchevique, o
Instituto Smolny, onde o Comitê Revolucionário Militar estava sediado. Nessa
noite, uma unidade de cadetes apareceu para prender Lenin. Os integrantes da
unidade foram desarmados pelos Guardas Vermelhos e levados para a fortaleza
Pedro-Paulo. Uma reunião do Comitê Central ocorreu naquela mesma noite. No
dia seguinte, Kamenev propôs que não fosse permitido que qualquer membro do
Comitê Central deixasse o Smolny sem instruções especiais, acrescentando que, caso
o Smolny fosse destruído, o baluarte passaria a ser o cruzador Aurora. Stalin não
participou da reunião.40 Naquela noite, o Comitê Revolucionário Militar tomou de
assalto o Palácio de Inverno, onde o Governo Provisório estava entrincheirado.
Em 25 de outubro, Guardas Vermelhos ocuparam posições-chave, os regimentos
de cossacos de Petrogrado recusaram apoio ao Governo Provisório, e as linhas
telefônicas do Estado-maior e do Palácio de Inverno foram cortadas. Naquela tarde,
uma sessão especial do soviete de Petrogrado foi aberta sob a presidência de Trotsky.
Em meio a ruidosos aplausos, ele anunciou que não existia mais Governo
Provisório, que os prisioneiros haviam sido libertados e que telegramas foram
enviados ao Exército notificando a queda do antigo regime.
A organização do levante fora da responsabilidade do centro dirigido pelos cinco
homens práticos, inclusive Stalin, e do Comitê Revolucionário Militar, que fez
grande trabalho no recrutamento de forças para o golpe decisivo. Em sua carta
histórica de 24 de outubro para o Comitê Central, Lenin insistira com toda a
liderança afirmando: “Neste entardecer ou à noite, teremos que aprisionar o
governo, desarmando os cadetes etc. e dominando-os, caso haja alguma resistência.
Não podemos esperar! Poderíamos perder tudo! O governo vacila. Temos que
acabar com ele a qualquer custo! Retardar a ofensiva seria a morte!”41
A exortação de Lenin foi acatada e a revolução aconteceu. Suas primeiras
medidas importantes foram ratificadas no II Congresso dos Sovietes aberto em 25
de outubro. Durante esses eventos, Stalin não foi visto. Ele executava as ordens de
Lenin, garantindo a circulação delas pelos comitês e preparando material para
publicação. Seu nome não é citado em documento algum referente àqueles dias e
noites históricos.
No congresso, o líder menchevique Martov tentou aprovar uma moção pela
busca de solução pacífica para a crise. Em nome do comitê central socialista
revolucionário, Gendelman propôs uma resolução condenando a tomada do poder,
porém, mesmo entre os SR, só conseguiu sessenta votos a favor; 93 votaram contra.
O Bund [Liga] judaico, os mencheviques-internacionalistas e os Poalei-Tsion
(Operários Sionistas) retiraram-se do plenário. Enquanto isso, numa atmosfera
carregada de fumaça de tabaco e de cheiros humanos, descrita com detalhes por
John Reed em seu livro Dez dias que abalaram o mundo, o congresso continuou
trabalhando durante toda a noite.
Depois de aprovar os decretos de Lenin sobre terra e paz, o congresso nomeou
um Comitê Executivo Central para Toda a Rússia (VTsIK), no qual 62 de seus 101
membros eram bolcheviques. No entanto, a liderança bolchevique não estava unida.
Kamenev, Zinoviev, Nogin e Milyutin batiam-se por que o poder fosse dividido
com os outros partidos. Seguiu-se acirrada batalha política em que Bubnov,
Dzerzhinsky, Stalin, Sverdlov, Stasova, Trotsky, Ioffe, Sokolnikov e Muranov
ficaram do lado de Lenin.
O poder estava nas mãos dos bolcheviques, mas os autores da Revolução de
Fevereiro não aceitavam a situação. Em 29 de outubro de 1917, os mencheviques
lançaram um manifesto ao país:

Cidadãos da Rússia! Em 25 de outubro, o Conselho Provisório da República Russa foi forçado, à ponta de
baioneta, a se dispersar e, no momento, a suspender suas operações.

Com as palavras “liberdade e socialismo” nos lábios, os que usurparam o poder apelam para a violência,
exercendo um mando arbitrário. Prenderam membros do Governo Provisório, inclusive os ministros
socialistas, e os encarceraram em celas czaristas. Sangue e anarquia ameaçam cobrir a revolução, afogar a
liberdade e a república e causar a restauração da velha ordem. Esse regime deve ser visto como o inimigo do
povo e da revolução que é.42

Em poucos dias, o jornal que publicou a declaração e outros de oposição foram


fechados pelos bolcheviques.
Deve ficar perfeitamente esclarecido que os bolcheviques tomaram o poder com
o apoio dos Revolucionários Socialistas de Esquerda. Se bem que discordassem dos
bolcheviques em diversas questões, os SR de Esquerda situavam-se no fluxo
principal da corrente revolucionária. Organizados como partido separado em
novembro de 1917, eles expressavam, tanto quanto sua matriz, o Partido
Revolucionário Socialista, os grandes interesses dos camponeses. Eram contra a
ditadura do proletariado e favoráveis a uma representação mais ampla dos partidos
socialistas no Conselho de Comissários do Povo, porém, no momento crucial,
fecharam com os bolcheviques. Em dezembro de 1917, aceitaram participar do
governo soviético e receberam um terço das pastas. Entre os que aceitaram cargos
estavam I.Z. Steinberg, P.P. Proshyan, A.L. Kolegaev, V.E. Trutovsky, V.A.
Karelin, V.A. Algasov, M.N. Brilliantov.
Um pluralismo socialista como esse proporcionava, por certo, excepcional
oportunidade histórica. Lenin percebeu isso quando afirmou que a união dos
bolcheviques com os SR de Esquerda “poderia ser uma ‘coalizão honrosa’, uma
união honrosa, porque não há diferença fundamental entre o trabalhador
empregado e o camponês explorado”.43 Se essa união tivesse sobrevivido, é possível
que muitas das características trágicas associadas com o monopólio do poder
político não tivessem medrado. Todavia, nem os SR de Esquerda nem os
bolcheviques estavam bem conscientes da importância histórica de sua aliança, e o
colapso da união no verão de 1918 foi a fonte de males futuros. Deve-se dizer, de
passagem, que Stalin sempre considerou os SR de Esquerda um típico partido
pequeno-burguês, mais tendente à contrarrevolução que à revolução. Infelizmente,
ele não era o único que pensava assim. A oportunidade de consolidar o pluralismo
revolucionário se perdeu no verão de 1918, e o resultado foi o monopólio político, a
uniformidade de pensamento e a ausência de uma forma alternativa de autoridade
que cedo desaguaram no mando cruel de um só homem.
Como Stalin se comportou nos dias críticos de outubro? Qual foi seu papel real?
Por que seu nome aparece tão pouco nos relatos, embora ele fosse membro de
diversos órgãos importantes?

A propaganda abastecida pela Breve biografia objetivou consolidar a ideia de que só


existiram Lenin e Stalin: Lenin e Stalin inspiraram e organizaram a vitória de
outubro; como companheiro próximo de Lenin, Stalin foi o responsável direto pela
preparação de todos os aspectos do levante; seus artigos foram publicados em cadeia
por toda a imprensa bolchevique provincial; ele convocou seus representantes
regionais, aos quais atribuiu diversas missões, e dirigiu apenas por meio de
“convocações” e “instruções”. Mas essa era a terminologia dos anos 1930. Os
autores da biografia tiveram dificuldade em dizer alguma coisa de concreto
exatamente porque Stalin nem “dirigiu” nem “orientou ou instruiu” quem quer que
fosse. Nada mais fez que executar ordens de Lenin e decisões do Comitê
Revolucionário Militar.
Quando forças do Governo Provisório fecharam o órgão central de divulgação
do partido, Rabochii Put, em 24 de outubro, Stalin estava lá dando apoio aos
Guardas Vermelhos que o defendiam. No mesmo dia, o jornal publicou um artigo
dele intitulado “Do que precisamos?”, no qual continuava a clamar pela convocação
da assembleia constituinte.* Esse artigo, afinal, fazia eco à malfalada carta de 11 de
outubro de Kamenev e Zinoviev, que eles chamaram “Sobre a situação presente”, na
qual se opunham à decisão do Comitê Central de desencadear a revolta armada.
Escreveram: “Estamos com uma arma apontada para a cabeça da burguesia e, sob tal
ameaça, não se pode esperar que ela convoque a assembleia.” Stalin também chegou
a levantar a questão da assembleia, e na véspera do levante, nada menos que isso.
Bem verdade que igualmente disse: “O governo [dos liberais] deveria ser substituído
por um governo de sovietes...”44
O primeiro cargo de Stalin no novo governo soviético foi o de Comissário das
Nacionalidades. Ainda assim, conquanto fosse um dos integrantes da equipe de
líderes que enfrentava problema atrás de problema em 1917, jamais foi autor de
iniciativa importante alguma, nem sugeriu ideias originais. Na verdade, contudo,
deve ser dito que, em 28 de novembro de 1917, numa reunião do Conselho de
Comissários do Povo (Sovnarkom), Stalin ficou sozinho contra todos, opondo-se
inclusive a Lenin, quando votou contra a entrega de liberais importantes para
julgamento nos tribunais revolucionários como inimigos do povo.45 Porém, no
geral, foi um líder de segunda ou terceira categoria.
A despeito de ser membro de cada órgão revolucionário que se possa imaginar,
na prática, Stalin não teve, verdadeiramente, responsabilidades concretas. No
entanto, nada lhe escapou. Ficou pasmo com a energia de Trotsky, com a
capacidade de trabalho de Kamenev, com a impulsividade de Zinoviev. Em diversas
ocasiões, deu atenção às palavras de Plekhanov, a quem dedicava sentimentos que
quase chegavam ao respeito, e se surpreendeu certa vez quando o ouviu dizer com
amargura: “A história russa ainda não moeu a farinha para fazer o bolo do
socialismo.” “Pai do marxismo russo” e um dos fundadores do partido, Plekhanov
foi além: classificou como “delírios” as Teses de Abril de Lenin, condenou a
Revolução de Outubro e, no devido tempo, o Tratado de Brest-Litovsk. Jogado na
vala do reformismo superficial pela corrente revolucionária e desiludido com o fato
de os acontecimentos não corresponderem à sua teoria, Plekhanov partiu para a
Finlândia. Não podia aceitar a revolução, mas também não podia lutar contra ela.
Era homem de princípios políticos morais.
Em 4 de junho de 1918, numa reunião conjunta do Comitê Executivo Central
para Toda a Rússia (VTsIK), do soviete de Moscou e dos sindicatos locais, à qual
Lenin compareceu, fez-se um minuto de silêncio pela morte de Plekhanov, falecido
em maio. Stalin ficou perplexo. Para ele, quem discordasse publicamente da causa
era um inimigo para sempre. Da mesma forma, considerou excessivos o elogio
póstumo de Trotsky e o obituário no Pravda escrito por Zinoviev. Na perspectiva
de Stalin, revolução era luta. Ou se é aliado, ou inimigo. Em particular, chamou de
“liberalismo” esses sinais de respeito a Plekhanov, uma ressaca de sentimentalismo
intelectual, indigna de revolucionários. Seus camaradas de partido teriam, um dia, a
oportunidade de ver a coerência de Stalin a esse respeito.
Três anos depois da sublevação armada, em 7 de novembro de 1920, um grupo
de participantes no levante se reuniu para uma noite de rememorações. Stalin foi
convidado, mas preferiu não ir. Mas muitos outros compareceram, inclusive
Trotsky, Sadovsky, Mekhonoshin, Podvoisky e Kozmin. Lenin foi citado várias
vezes, bem como Trotsky, Kamenev, Zinoviev e um bom número de outros
revolucionários. Os registros do encontro foram preservados, e o nome de Stalin não
aparece uma vez sequer. Nem em conexão com o Comitê Revolucionário Militar,
nem ligado ao trabalho dos bolcheviques entre as massas silenciosas de soldados e
marinheiros ocorreu a qualquer dos presentes lembrar seu nome. Para eles, Stalin
não passara de um extra insignificante.
Transformado em “autocrata”, foi penoso para Stalin conviver com sua
insignificância e seu desconhecimento. Nos anos 1930, ele só tolerava ouvir sobre os
eventos da Revolução de Outubro se fossem descritos à luz do conceito dos “dois
líderes”. De início, os verdadeiros heróis da revolução foram submetidos ao
“silêncio”, ao “expurgo histórico” ou à “reedição”. Entre 1937 e 1939, foram
fisicamente eliminados. Na altura dos anos 1940, podia-se contar nos dedos da mão
os líderes revolucionários ativos. Só permaneceram aqueles que ajudaram a criar a
nova biografia do líder. À proporção que diminuía o número de veteranos de
Outubro, mais inflado se tornava o papel de Stalin.
Naturalmente, Trotsky, que a partir de 1919 fez de Stalin o objeto principal de
seus ensaios críticos, foi fulminante. Em A escola stalinista de falsificação, afirma que,
em 1917, Stalin esteve quase sempre silencioso nos encontros e, de modo geral,
seguiu a linha de Lenin: “Não teve qualquer iniciativa. Não fez uma só proposta
independente, e não há ‘historiador-marxista’ do novo tipo que possa alterar esse
fato.”46
Em 1924, depois da morte de Lenin, Trotsky publicou um perfil do líder
falecido, no qual incluiu o seguinte diálogo:
“Ora bem”, disse-me Vladimir Ilyich logo após 25 de outubro, “se nos matarem,
será que Sverdlov e Bukharin darão conta do recado?” “Talvez não nos matem”,
repliquei com uma gargalhada.
“É isso mesmo!” exclamou Lenin, e riu também sonoramente.
“Quando esse perfil foi publicado”, lembrou Trotsky mais tarde em Minha vida,
“... Stalin, Zinoviev e Kamenev ficaram profundamente ofendidos com o que
escrevi, embora não tentassem contestar sua correção. Um fato é um fato: Lenin não
fez menção a qualquer um deles como seu sucessor, apenas a Sverdlov e Bukharin.
Nenhum outro nome passou por sua cabeça.”47
Contudo, não se devem tomar as palavras de Trotsky ao pé da letra, sabendo-se
quão ambicioso e sedento de poder ele era, e levando-se em conta que se via como
único “herdeiro” legítimo de Lenin. Pode-se dizer igualmente que, em 1924,
Trotsky também tentava consolidar sua própria posição e reputação na luta pelo
poder. Quanto a Stalin, era doentiamente sensível a qualquer coisa publicada que
pudesse obscurecer sua participação – não mais que modesta – na Revolução de
Outubro, ou exagerar a de Trotsky. Foi em grande parte isso que provocou o
discurso de Stalin, em novembro de 1924, na reunião plenária da fração comunista
dos sindicatos, e que só em 1928 foi publicado pela editora estatal, a Gosizdat,
como folheto em separado. Nele, Stalin fez a seguinte análise sobre a atuação de
Trotsky na revolta de outubro:

É verdade que o camarada Trotsky lutou bem no período de outubro. Mas não foi o único, outros lutaram
igualmente bem, como os SR de Esquerda, que se postaram ombro a ombro com os bolcheviques. Mas por
que razão Lenin, ao selecionar os integrantes do centro prático de operações para o levante, não incluiu o
nome de Trotsky, mas nomeou Sverdlov, Stalin, Dzerzhinsky, Bubnov e Uritsky? Como se vê, o centro não
incluiu o “inspirador”, “a figura central”, “o único líder do levante”, o camarada Trotsky. Como é possível
jogar tal fato com a opinião corrente sobre o papel especial do camarada Trotsky?48

Aí há outro exemplo da prestidigitação de Stalin com os fatos: foi o Comitê


Revolucionário Militar que comandou a sublevação, não o centro prático.
Passados poucos anos da revolução, assistiu-se, então, ao esforço de dois líderes
do partido para engrandecer suas próprias participações no levante, desprezando a
contribuição do outro. Embora não se possa falar propriamente de uma liderança de
gabinete durante a Revolução de Outubro, o papel de Stalin, repito, foi limitado à
preparação de instruções do Comitê Central e à circulação delas pelos órgãos
revolucionários. Não há evidência de sua participação nos combates, na organização
de destacamentos armados ou nas visitas aos navios e fábricas com o intuito de
incitar as massas. Por força das circunstâncias, ele ficou no quartel-general da
revolução, certamente no palco central, mas como figurante. Stalin não tinha dons
intelectuais, atrativo moral, entusiasmo flamejante ou energia efervescente, tão
valiosos nessas ocasiões. No vértice da revolução esteve Lenin. Abaixo dele ficou a
figura de Trotsky, mais abaixo, Zinoviev, Kamenev, Dzerzhinsky e Bukharin.
Abaixo destes, uma legião de bolcheviques da escola leninista e, em algum lugar no
meio dela, Stalin.
Se bem que Stalin fosse filiado ao partido desde os anos 1890, membro do
Comitê Central a partir de 1912, integrante de vários sovietes, comitês e conselhos
editoriais, e comissário das Nacionalidades, tudo isso apenas lhe conferia status
oficial (ou seja, burocrático). Sua presença em reuniões e conferências meramente
atestava o fato de ele pertencer aos altos escalões da liderança. Tal situação permitiu
que conhecesse e estudasse uma ampla gama de pessoas, penetrasse cada vez mais
profundamente no mecanismo do aparato partidário e adquirisse experiência
política. Permitiu também que crescesse a avaliação que Lenin dele fazia como
operador político confiável, não apenas capaz de tomar as decisões e empreender as
ações naturais de um simples executivo, como também de concretizar acordos
hábeis, manobrando e identificando os elementos principais de um vasto espectro de
problemas. No bolchevismo de Outubro, Stalin foi um centrista que soube sentar,
esperar e se adaptar.
Nota

* Em seguida à Revolução de Fevereiro, o novo governo foi pressionado a convocar uma assembleia constituinte
em que se determinasse a natureza do novo Estado. As eleições organizadas pelo Governo Provisório acabaram
ocorrendo depois da tomada do poder pelos bolcheviques, os quais receberam votos de menos de um quarto das
cadeiras da Assembleia, prontamente desfeita pela força depois de sua primeira e única sessão em 18 de janeiro
de 1918.
[5]
Salva por sorte

A Revolução de Outubro viu o rompimento das comportas russas, e a


enchente social arrasou tudo que estava à sua frente. O principal mês do
ano crucial da história russa foi excepcionalmente tormentoso e triunfal
para os bolcheviques. Em poucos meses, eles passaram de partido relativamente
pequeno a poderosa força política. No entanto, a lua de mel foi breve. Problemas,
adiados por muito tempo, vieram à tona como perigos ameaçadores e mortais no
fim daquele ano inesquecível. Ao tomar o poder, os bolcheviques prometeram ao
povo terra, paz e pão. Começaram dando terra, e a terra suscitou a esperança de pão.
Mas a paz não dependia só dos bolcheviques. Da mesma forma que não se pode
bater palmas com uma só mão, não pode haver paz de um lado só, mormente uma
paz justa, democrática, sem anexações e reparações. Porém, como consegui-la com
as hordas dos Habsburgos e dos Hohenzollerns pisoteando territórios russos
ocidentais?
Ninguém entendeu o drama daquele momento melhor que Lenin. Com poucos
dias de presidente do Conselho dos Comissários do Povo (Sovnarkom, Sovet
Narodnykh Komissarov, o “ministério”), ele já dava instruções a A.A. Ioffe, que
deveria chefiar a delegação para negociar a paz com o alto comando alemão.
De início, pareceu que a paz seria rapidamente alcançada porque fora assinado
um armistício já em 2 de dezembro de 1917, com validade até 1º de janeiro de
1918. As conversações começaram logo. Ioffe tinha o apoio de Kamenev e de outros
bolcheviques e SR de Esquerda. Mas a situação mudara: forças nacionalistas
mandavam agora em Berlim e queriam os máximos ganhos possíveis. Sabiam que as
trincheiras russas já estavam quase desertas e que a delegação soviética tinha por trás
a mera sombra do que fora o poderio russo. Os alemães apresentaram condições de
paz que representariam a perda de vastas extensões de território russo.
Lenin demonstrou visão e força de vontade singulares. Se não assinarmos o
tratado, disse ele, por mais duro e injusto que seja, “o exército de camponeses,
intoleravelmente exausto da guerra, logo depois das primeiras derrotas, que devem
acontecer em poucas semanas e não meses, derrubará o governo socialista dos
trabalhadores”.49 A sorte da revolução estava em jogo. Dois pontos de vista
diametralmente opostos colidiram no Comitê Central, no qual os comunistas da
extrema esquerda conseguiram maioria contra Lenin, defendendo a ideia de uma
“guerra revolucionária”.
Os esquerdistas, que incluíam Bukharin, Bubnov, Preobrazhensky, Pyatakov,
Radek, Osinsky e Lomov, argumentavam que a União Soviética poderia contar com
a ocorrência de um movimento revolucionário na Europa. Pyatakov dizia que, de
fato, sem um movimento desses, a revolução russa estava liquidada. Uma sublevação
revolucionária contra o imperialismo alemão instigaria o proletariado a tomar seus
próprios governos. Os sintomas revolucionários, que já eram vistos em muitos países
europeus, foram interpretados pelos comunistas da esquerda como sinais do início
de uma conflagração continental, que, por sua vez, deflagraria a revolução mundial.
A segunda fase das negociações de Brest-Litovsk foi chefiada por Trotsky, o qual,
a despeito de uma mudança de tendência no Comitê Central em favor da assinatura
do tratado de paz, deu um passo inesperado. Em 10 de fevereiro de 1918, de
repente, declarou encerradas as conversações de paz. Disse ele:
Nossos soldados-camponeses têm que retornar ao campo de modo que, na primavera vindoura e em
condições pacíficas, trabalhem a terra que a revolução tomou dos latifundiários e colocou nas mãos do
campesinato. Nossos soldados-operários têm que retornar às fábricas, não para produzir armas de destruição,
mas as ferramentas da criação. Estamos saindo da guerra. Expediremos um decreto para a desmobilização
total de nossos exércitos. Nessas circunstâncias, apresento a seguinte declaração assinada:

Em nome do Conselho de Comissários do Povo, o governo da República Federativa Russa, por intermédio
deste, leva ao conhecimento dos governos e povos que estão em guerra conosco, bem como dos países aliados
e neutros que, ao declinar a assinatura de um tratado de anexação, a Rússia, de sua parte, declara que o
estado de guerra com a Alemanha, a Áustria-Hungria, a Turquia e a Bulgária está terminado.
Decreto determinando a total desmobilização para as tropas russas em todo o front é expedido juntamente
com esta declaração.
Brest-Litovsk, em 10 de fevereiro de 1918
Comissário do Povo para Relações Exteriores L. Trotsky
Membros da delegação: V. Karelin, A. Ioffe, M. Pokrovsky, A. Bitsenko
Presidente Medvedev do TsIK de Toda a Ucrânia.50

Três dias mais tarde, numa reunião do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia,
Trotsky tentou mostrar que sua decisão de “revolucionar” o movimento
revolucionário no Ocidente e que a palavra de ordem “nem paz nem guerra” seriam
apoiadas até pelas tropas alemãs. Na realidade, o slogan escancarou o centro da
Rússia para o agressor e, em poucos dias, tropas alemãs começaram a avançar em
toda a frente. Depois de um acalorado debate, o Comitê Central aprovou, por sete
votos contra quatro, a aceitação dos termos da Alemanha.
Nas palavras de Chicherin, o sucessor de Trotsky, a Alemanha ofereceu uma paz
predatória “com um revólver apontado para a testa da Rússia revolucionária”. A
Rússia perdeu Polônia, Lituânia, Estônia, Kurland, Kars, Batum e algumas ilhas
bálticas. O partido ainda teve que defender o tratado perante o VII Congresso de
Emergência do Partido e do IVº Congresso Extraordinário de Sovietes de Toda a
Rússia, ambos ocorridos em março com uma diferença de uma semana.
Stalin permaneceu passivo em relação a este caso, não porque discordasse de um
lado ou do outro, mas por ser a questão complicada demais para ele. Por exemplo,
numa reunião do comitê central, em 23 de fevereiro, quando Lenin ameaçou
renunciar se não concordassem em fazer a paz, Stalin começou a vacilar, mas sem
antes chegar a perguntar se “a renúncia de alguém a um cargo significa também
demissão do partido?”. Lenin respondeu que não.
A confusão que, por vezes, assaltava Stalin ficou particularmente evidente
quando se formulou a ideia de que “a honra da revolução tem precedência sobre sua
morte”. Lomov, por exemplo, declarou: “Não deixem que a renúncia de Lenin
assuste vocês. A revolução é mais preciosa.” Uritsky disse que “essa paz vergonhosa
não salvará o regime soviético”. Em meio a tão diversificadas opiniões, Stalin adotou
uma posição indecisa: “Talvez não tenhamos que assinar o tratado.” Ao que Lenin
replicou: “Stalin está errado quando diz que não temos que assinar. Precisamos sim
assinar os termos. Se não o fizermos, estaremos assinando a sentença de morte do
regime soviético num prazo de três semanas. O regime soviético não está temeroso
de tais termos. Não tenho a menor hesitação. Não estou dando um ultimato para
que o tratado seja retirado. Não é de uma ‘frase revolucionária’ que estou em
busca.”51 Lenin aparou todos os argumentos contra e, a partir do momento que os
submeteu à sua crítica, Stalin passou a se sentir melhor e alinhou-se com seu líder.
No Congresso do Partido, Lenin conseguiu demonstrar a necessidade vital de se
adotar a dura opção que fizera. Stalin sobrepujou suas dúvidas íntimas e encontrou
forças para seguir Lenin até o fim. Trotsky também ficou firme em sua própria
posição, declarando não considerar nenhuma das duas posturas decisiva para a
sobrevivência do regime.
Malgrado a versão oficial soviética, a opinião de Lenin sobre a posição de
Trotsky não foi de preto ou branco. Pronunciando o discurso de encerramento
sobre o relatório político do Comitê Central, em 8 de março de 1918, ele disse:

Ademais, devo tratar da posição do camarada Trotsky. Dois lados devem ser considerados sobre o que ele
tem feito: quando começou as negociações em Brest e explorou tão brilhantemente a oportunidade para
agitação, todos concordamos com ele. O camarada Trotsky citou parte da conversa que teve comigo, mas
posso adicionar que houve um acordo entre nós de que deveríamos sustentar a posição até que os alemães
dessem seu ultimato, quando então nos renderíamos. As táticas de Trotsky, já que visavam a retardar as
coisas, estavam corretas: tornaram-se incorretas quando o estado de guerra se declarou encerrado sem que paz
alguma fosse assinada.52

Subsequentemente, entretanto, os escritos soviéticos começaram a descrever a


posição de Trotsky como traição. Quanto a Bukharin, seu desacordo foi claro:

O ponto de vista que nos oferece o camarada Lenin é inaceitável para nós. [...] Mas, a mim parece que, pelo
menos, estamos propondo uma saída. Essa saída, que o camarada Lenin rejeita e que nós consideramos
necessária, está numa guerra revolucionária contra o imperialismo alemão.53

Esse romantismo revolucionário da esquerda, contudo, desfez-se no rochedo do


pragmatismo mais sóbrio de Lenin.
[6]
Guerra civil

A pausa para tomar fôlego proporcionada pela paz de Brest-Litovsk foi curta.
A intervenção militar estrangeira, dando esperança de desforra para a
burguesia e para os proprietários de terra, começou logo em março-abril de
1918. Rebeliões e explosões contrarrevolucionárias foram provocadas por oficiais
brancos. Alastraram-se cossacos e nacionalistas. Já arrasado por anos de guerra, o
país estava de novo tomado das chamas do conflito. A república não tinha
fronteiras, apenas fronts.
A extinção do regime soviético parecia iminente, ainda mais pela impressão de
que se abrira uma temporada de caça aos comissários. Em Petrogrado, o SR Leonid
Kanegisser matou a tiros Moisei Uritsky; em julho, foi assassinado o comissário dos
Fuzileiros da Letônia, Semyon Nakhimson; o comissário para os Alimentos da
república do Turcomenistão, Alexander Pershin, morreu pelas mãos de insurgentes
em Tashkent; em maio de 1918, Fedor Podtelkov e Mikhail Krivoshlykov,
bolcheviques muito conhecidos da região do Don, foram enforcados pelos cossacos;
o tenente-general Alexander Taube, que se bandeara do exército czarista para os
bolcheviques e se tornara comandante do quartel-general siberiano, caiu prisioneiro
dos brancos e foi torturado. Porém, o golpe mais duro ocorreu em Moscou quando,
depois de falar aos trabalhadores em frente à fábrica de Mikhelson, Lenin levou
vários tiros da SR Fanny Kaplan.
Uma fronteira de sangue dividiu então pelo meio a Rússia, rasgada pela guerra
interna. Em sua ferocidade implacável, a guerra civil russa refletiu o profundo ódio
de classes que rachou a nação em dois campos hostis. Como regra, não se faziam
prisioneiros. Os Russos Brancos matavam a golpes de baioneta os feridos do
Exército Vermelho em macas. A luta era sem quartel. O tifo arrasava as linhas de
frente. Reféns eram levados para fossas e mortos. A vida não tinha qualquer valor. O
apelo de classe era mais forte que a simpatia, a piedade, a sabedoria ou a razão. O
combate não era apenas entre forças armadas das classes rivais, envolvendo, na
verdade, a maior parte da população. O país encharcou-se do sangue de
compatriotas. O maior catalisador da guerra civil foi a intervenção armada
estrangeira. “Foi o imperialismo mundial”, observou Lenin, “o verdadeiro
provocador de nossa guerra civil e o responsável por sua longa duração”.54 O
governo declarou a República Soviética campo de batalha e criou o Soviete Militar
Revolucionário da República (o Revvoensoviet, Revolutionniy Voennij Sovet), sob a
chefia de Trotsky.
Stalin se tornou mais visível durante a guerra civil, ao cumprir as missões do
Comitê Central, crescentemente complexas e com diversificados encargos. Em
meados de março de 1918, quando o laço da fome começou a apertar as artérias dos
centros políticos e industriais da Rússia, a cidade de Tsaritsyn, no sudeste do país à
margem do Volga, assumiu grande importância, mais devido à situação dos
alimentos do que a considerações militares. Em 31 de maio, Lenin assinou
instruções do Sovnarkom, pondo Stalin e A.G. Shlyapnikov na chefia geral dos
alimentos para o sul e investindo-os de poderes especiais.55 Desde seu retorno a
Petrogrado, em abril de 1917, Lenin tivera ocasião de encontrar-se com Stalin por
diversas vezes e já o considerava um executor confiável. O georgiano taciturno
raramente fazia perguntas ou levantava dúvidas em público sobre as decisões do
Comitê Central, desempenhava qualquer tarefa e, de modo geral, demonstrava
satisfação com o papel que lhe cabia. Com a mesma calma, recebeu sua comissão
para Tsaritsyn. Antes da partida, foi informado de que Lenin, em adição à ordem do
Sovnarkom, instruíra A.N. Aralov, um membro responsável da equipe do
comissariado da Guerra, para selecionar um destacamento de quatrocentos homens,
entre os quais cem Fuzileiros da Letônia, a fim de seguir com Stalin.56
Tsaritsyn estava firmemente cercada pelos cossacos, e Stalin, mal chegou, teve
que tomar decisões militares. Juntou-se ao soviete militar regional, que logo
conseguiu reunir unidades Vermelhas dispersas, promoveu a mobilização e
organizou novas divisões e destacamentos especiais, bem como uma coluna de trens
blindados e alguns trabalhadores auxiliares. Por requisição de Stalin, Lenin enviou
um telegrama urgente para as autoridades locais encarregadas do transporte fluvial,
ordenando-lhes que seguissem, sem discutir, as instruções e ordens expedidas pelo
plenipotenciário especial do Sovnarkom – I.V. Stalin.57
A situação em Tsaritsyn passou a proporcionar maior segurança quando
unidades do antigo V Exército foram transferidas do Donbass* para lá, sob o
comando de Voroshilov. É interessante assinalar que Stalin não transmitia seus
relatórios via Trotsky, o comandante em chefe e presidente do Revvoensoviet, a
quem estava operacionalmente subordinado, mas o desbordava para chegar a Lenin,
mesmo nas questões mais triviais. Na maioria dos telegramas de Stalin
caracteristicamente faltam quadro geral e avaliações e prognósticos políticos; são
mensagens pragmáticas. Em consequência das medidas tomadas pelo centro e pelo
soviete militar, Tsaritsyn ficou pronta para suportar um sítio prolongado. O assalto
dos Brancos, sob o comando do general Denikin, fracassou, embora recebesse o
apoio do ex-oficial czarista coronel Nosovich, que agira como especialista militar
para o regime soviético, mas que, naquela ocasião, mudara de novo de lado,
tornando-se um traidor. Tsaritsyn, como outros locais em que Stalin serviu durante
a guerra civil, não só se transformou em nome lendário como, de fato, adquiriu um
significado mitológico na história soviética.
Stalin mostrou tendências ditatoriais em momentos críticos. Numa nota para o
centro, escreveu: “Persigo quem merece, blasfemo contra eles, e espero restaurar em
breve a situação. Fiquem certos de que não pouparei ninguém, nem a mim mesmo
nem aos outros, mas todos terão comida. Se nossos ‘especialistas’ (uns remendões!)
militares não estivessem dormindo ociosos, a linha jamais teria sido rompida, e o
fato de que ela está restabelecida não foi por mérito deles, mas a despeito deles.”58 A
traição de Nosovich e de diversos outros ex-oficiais czaristas reforçou a suspeita de
Stalin contra os especialistas militares, suspeita essa que ele não fazia questão de
esconder. Stalin prendeu grande número deles e os encarcerou numa balsa
especialmente adaptada, na qual muitos foram fuzilados. Ele teve seguidores. Isso fez
com que Lenin, quando discursou no VIII Congresso do partido, condenasse a
guerra de guerrilha e declarasse, inequivocamente, que “um exército regular é nossa
prioridade principal, temos que constituir um exército regular com especialistas
militares”.59 Stalin não protestou publicamente contra esse ponto de vista, porém,
até mesmo no final dos anos 1930, a condição de ex-integrante do corpo czarista de
oficiais era fator agravante para os comandantes do Exército Vermelho.
Constituído por Stalin, pelo presidente do soviete de Tsaritsyn, S.K. Minin, e
pelo comandante do front, P.P. Sytin, o Revvoensoviet da frente sul não operou
numa atmosfera amigável. Stalin era de opinião que todas as decisões deveriam ser
tomadas coletivamente, enquanto Sytin, como comandante que aplica lógica
militar, procurava evitar os intermináveis “entendimentos” e “esclarecimentos” que
acompanhavam o processo de tomada de decisões. Stalin informou Moscou que
Sytin não era confiável. Sytin respondeu com um relatório escrito ao Revvoensoviet
da República no qual asseverou que Minin, Stalin e Voroshilov estavam emperrando
sua ação como comandante do front ao demandarem a aprovação do soviete militar
para as questões mais corriqueiras, e que isso complicava em demasia os
procedimentos operacionais.60 Stalin venceu a disputa e Sytin foi chamado de volta
no início de novembro de 1918.
Os especialistas militares – ex-oficiais do czar – sob o comando de Stalin ficaram
sujeitos a constantes monitorações e avaliações. Stalin sabia que Trotsky estava ao
lado deles, e os dois já tinham tido uma série de rixas telegráficas, dando assim base
para sua profunda e mútua antipatia, que se transformou em hostilidade e, depois,
em ódio.
Stalin não se preocupou em visitar trincheiras, enfermarias, pontos de reunião ou
postos de observação. Ficava sempre no posto de comando, despachando
incontáveis telegramas, convocando comissários e comandantes, exigindo relatórios
e sumários, distribuindo ameaças de cortes marciais e mandando gente de volta para
“serem observadas de perto”. Com frequência, chegava à sanção extrema, dando
ordens para que sabotadores ou militares suspeitos – que, a seu ver, solapavam a
causa – fossem mortos. No seu discurso para o VIII Congresso do partido, Lenin fez
uma referência direta às execuções de Stalin em Tsaritsyn e ao desacordo que
tinham nesse assunto.61 A guerra civil, no entanto, era de fato sangrenta, e Stalin
mostrava-se, então, mais confiante do que estivera em 1917. Como Carrier, o
comissário da Convenção descrito por Jules Michelet na sua história da Revolução
Francesa, Stalin encarava como naturais as explosões desenfreadas de paixões e
violência selvagem em nome da consecução de fins. Ele já acreditava no grande
efeito da violência e no seu emprego justificado contra os inimigos.
Seu estilo era inquietante para muitos comandantes perspicazes que já então
sentiam que aquele homem tinha pulso de ferro, que era difícil empurrá-lo a tomar
uma decisão espontânea ou exercer influência sobre seus planos. Por exemplo, em
19 de maio de 1919, Antonov-Ovseyenko queixou-se ao Comitê Central contra
uma atitude injusta tomada contra ele como comandante do exército ucraniano.
Ressaltando o frágil apoio dado a ele pelo centro, escreveu que “Lev** Davidovich
[Trotsky] entende isso” e “tão logo o camarada Stalin começou a falar grosso, os
camaradas ucranianos pararam com as intrigas e se voltaram para suas atribuições”.
Isso confirma, indiretamente, que Stalin, com efeito, teve influência sobre o curso
dos eventos no front.
Faltando-lhe conhecimento operacional e tático, Stalin confiou principalmente
na disciplina, no dever do proletariado, na consciência revolucionária e nas
frequentes ameaças de “castigo revolucionário”. Depois de Tsaritsyn, ele se tornou
mais autoconfiante entre os outros membros do Comitê Central e do Sovnarkom.
Já então, era bem mais conhecido pelos líderes do partido e comandantes. Por certo,
não revelou especiais talentos militares ao executar as instruções de Lenin no front.
Seus relatórios não contêm avaliação da situação operacional, nem discussão sobre o
desdobramento das forças, ou ideias originais quaisquer. Suas ordens operacionais
eram extremamente simples, para não dizer primitivas. Por exemplo, em outubro de
1919, Ordzhonikidze, que estava no XIV Exército do Revvoensoviet, reportou que
o Exército se preparava para retomar a cidade de Kromy e precisava de reforços.
Stalin replicou:

O objetivo de nossa última ordem era dar-lhe a oportunidade de reorganizar esses regimentos num só grupo
para destruir os melhores regimentos de Denikin. Repito, para destruir, porque estamos falando de
destruição. A captura de Kromy pelo inimigo não passa de um episódio que pode ser corrigido, ao passo que
nossa missão principal não é empregar os regimentos como unidades individuais de assalto, mas investir
sobre o inimigo como um grupo maciço e numa direção única e definida.62

Embora o que predominasse fosse o tom ameaçador em suas ordens, suas


habilitações como líder militar é que foram louvadas em prosa e verso nos livros e
nas dissertações doutorais dos anos 1930 e seguintes. Voroshilov, por exemplo,
escreveu sobre ele como “o maior chefe militar de todos os tempos”. Mas Stalin não
foi chefe militar e sim o representante político do centro e membro de diversos
sovietes revolucionários militares. Muitos outros membros do Comitê Central
contribuíram tanto quanto ele para a vitória na guerra civil.
O envolvimento pessoal de Stalin na guerra civil foi marcado não só por seus
deveres de dois comissariados – das Nacionalidades e do Controle do Estado –, mas
também no campo político, de propaganda e, digamos, militar. Lenin
frequentemente o fazia emissário do Comitê Central para uma inspeção, uma
verificação, ou para obter informações exatas. Assim, em junho de 1918, Lenin
telegrafou a Stalin dizendo que as ordens do governo concernentes ao afundamento
de navios da Esquadra do mar Negro eram para cumprimento à risca sob pena de os
responsáveis serem proscritos. Stalin foi aconselhado a enviar alguém a Novorossiisk
para cumprir a missão.63 Falando, mais tarde naquele mês, numa conferência de
sindicatos e comitês de fábricas, Lenin, em resposta a uma pergunta sobre o destino
da Esquadra do mar Negro, anunciou: “Os comissários do povo Stalin e
Shlyapnikov logo retornarão a Moscou e vos dirão o que aconteceu.”64
Quando Lenin instruiu Stalin, que ia para o front, viu nele não só um membro
do Comitê Central, mas também o representante de um país multinacional cuja
sorte dependia da união da Rússia com as outras repúblicas. Preparando seu decreto
para o Politburo sobre a defesa do Azerbaijão, por exemplo, Lenin expediu
instruções a Stalin “para arrebanhar o maior número possível de muçulmanos
comunistas de todas as regiões para trabalharem no Azerbaijão”.65
Stalin teve papel de líder político nas fases da guerra civil. Quando da primeira
tentativa de liquidar o regime soviético, por ocasião da rebelião do general Krasnov,
no inverno de 1917, Stalin participou da organização da defesa de Petrogrado e da
mobilização das forças, juntamente com Dzerzhinsky, Ordzhonikidze, Podvoisky,
Sverdlov e Uritsky. Ajudou a preparar as guarnições para o combate, a construir
linhas de defesa e a criar unidades da Guarda Vermelha nas fábricas.
Mesmo naqueles estágios iniciais, muita gente se convenceu de sua energia e
inflexibilidade, quando ele emitia ordens e dava instruções num tom de voz que não
convidava a objeção. Ao mesmo tempo, os membros do partido notaram sua
natureza vingativa e rancorosa. Em dezembro de 1918, Stalin e Voroshilov
acusaram A.I. Okulov, um membro do front sul do Revvoensoviet, de
desorganização. Por insistência de Stalin, Lenin passou a seguinte resolução: “Em
vista das péssimas relações existentes entre Voroshilov e Okulov, consideramos
essencial a substituição de Okulov.”66 Depois de concordar com Stalin, Lenin disse
em seu discurso para o VIII Congresso, em defesa de Okulov: “O camarada
Voroshilov disse coisas tão terríveis que era de pensar que Okulov havia destruído o
Exército. Isso é uma monstruosidade. Okulov seguia a linha do partido e informou-
nos que a guerra de guerrilha ainda era empregada.”67 Stalin bateu de frente de novo
com Okulov em junho de 1919, dessa vez quando este exigiu que o distrito militar
de Petrogrado ficasse sob o comando do front ocidental. Stalin, que então era do
Comitê Central e representante do Conselho de Defesa em Petrogrado, fez tamanha
insistência que obrigou Lenin a enviar um telegrama ordenando que Okulov fosse
mandado de volta “para evitar que o conflito crescesse”.68 Stalin lembrar-se-ia de
Okulov no final dos anos 1930.
Lenin, provavelmente, começou a utilizar Stalin a partir do momento em que a
revolta de Dukhonin foi esmagada. Em 9 de novembro de 1917, tendo ao lado
Stalin e Krylenko, Lenin se dirigiu diretamente ao QG de Dukhonin. Comandante
supremo do Exército russo imediatamente após o colapso do governo de Kerensky, e
monarquista por convicção, Dukhonin não deu confiança às ordens do governo
soviético. Depois de uma áspera troca de palavras, Lenin deu um comando conciso:
Dukhonin deveria deixar o cargo de comandante em chefe e ser substituído pelo
segundo tenente-alferes N.V. Krylenko, como comissário da Guerra. No dia
seguinte, o novo comandante em chefe marchou para o quartel-general
acompanhado por uma unidade com quinhentos combatentes. A despeito dos
esforços de Krylenko e de outros, Dukhonin foi linchado.
Lenin e o Revvoensoviet também usaram Stalin para identificar as causas das
várias derrotas e catástrofes no front. Isso era necessário não apenas pelos vários
aspectos da desorganização típicos da atividade de tropa, como também,
ocasionalmente, pela traição manifesta de monarquistas e Guardas Brancos
fingindo-se de companheiros de viagem. Quando o III Exército sofreu uma grande
derrota na região de Perm, em dezembro de 1918, criando assim a oportunidade
para que o almirante branco Kolchak unisse suas forças do norte com as unidades
inglesas, francesas e americanas que ocupavam significativo território em Murmansk
e Archangel, o Comitê Central enviou uma comissão especial a Vyatka, sob a chefia
de Stalin e Dzerzhinsky, encarregada da missão de descobrir as causas da derrota e
de tomar as medidas necessárias para corrigir a situação.
Os emissários agiram com determinação e rapidez. Um grupo identificado como
responsável pela derrota foi entregue a um tribunal militar. Comandantes e
comissários fracos foram removidos das funções. Ênfase passou a ser dada ao
trabalho político no Exército Vermelho, ao fortalecimento da disciplina e à melhora
dos suprimentos. Sempre desconfiado dos técnicos militares, e armado com fatos
reais de traição por parte de diversos ex-oficiais czaristas, Stalin agiu com particular
dureza e sem piedade.
Como resultado das providências tomadas, o III Exército, juntamente com o II,
foi capaz de restabelecer a situação com um contra-ataque em janeiro. Stalin
escreveu no relatório para o centro que “a capacidade combatente da tropa foi
restaurada. Um expurgo sério nas instituições soviéticas e partidárias está sendo
procedido na retaguarda. Comitês revolucionários foram estabelecidos em Vyatka e
cidades do distrito. As comissões extraordinárias provinciais [Chekas] foram
depuradas e recompletadas com novo pessoal”.
As avaliações de Stalin, como sempre, foram categóricas. Por exemplo, o
Revvoensoviet do III Exército “consiste em dois membros, um dos quais
(Lashevich) comanda, enquanto o outro (Trifonov), não se sabe bem o que faz –
não provê suprimentos ou educação política do exército e, em geral, não faz coisa
alguma. Na verdade, o III Exército não tem Revvoensoviet”.69
Sem citar Trotsky, o relatório de Stalin fala de “líderes fracos” no Revvoensoviet
da República, cujo trabalho é apenas expedir “ordens genéricas”. Os exageros de
Stalin, contudo, provocaram medidas corretivas. Por ordem sua, muitos
funcionários caíram num tribunal militar. Em 5 de fevereiro, o Comitê Central,
revendo os relatórios dos plenipotenciários, determinou: “Todos os presos pela
comissão Stalin-Dzerzhinsky no III Exército ficarão à disposição das instituições
apropriadas.” Stalin veio a conhecer melhor Dzerzhinsky naquela viagem e este
último, aparentemente, passou a respeitar bastante sua meticulosidade e sua
determinação.
Com o tempo, ele veio a revelar essa determinação até em suas comunicações
com o centro. Numa carta para Lenin, de 3 de junho de 1920, exigiu uma solução
imediata para o front da Crimeia: “Ou estabelecemos um armistício verdadeiro com
Wrangel e, ao fazê-lo, temos a oportunidade para retirar uma ou duas divisões
daquele front”, escreveu ele, “ou rejeitamos qualquer negociação com Wrangel, não
esperamos que ele se estabeleça defensivamente e o atacamos agora para que,
resolvido o problema, liberemos forças para o front polonês. A situação atual, que
não nos dá respostas claras na Crimeia, está se tornando intolerável”.70 Lenin
escreveu imediatamente para Trotsky:

É, obviamente, utópico. Não nos custará muitas vidas? Estaremos matando uma multidão de nossos
soldados. Isso precisa ser treinado e testado dez vezes. Sugiro a seguinte resposta: Sua proposta para uma
ofensiva na Crimeia é tão séria que temos que fazer um balanço e pensar seriamente sobre ela. Aguarde nossa
resposta. Assinado Lenin e Trotsky.71

Trotsky replicou dizendo que, ao se dirigir diretamente a Lenin, Stalin quebrara a


ordem das coisas: o comandante do front sudoeste, A.I. Yegorov, deveria ter feito o
relatório. Lenin fez uma anotação: “É provável que isso tenha sido feito por malícia.
Mas o assunto tem que ser discutido urgentemente. Que medidas extraordinárias
são necessárias?”72
Malgrado o esforço de Lenin para aparar as arestas entre Trotsky e Stalin, eles
continuaram frios e desconfiados um com o outro. Ao futuro secretário-geral
contrariava observar a crescente popularidade de Trotsky, que considerava
imerecida. Nas raras visitas que fazia a Moscou, o pessoal do Revvoensoviet da
República mostrava a Stalin diversos telegramas de conteúdo semelhante. Por
exemplo:
Ao presidente Trotsky do Revvoensoviet
No primeiro aniversário da Revolução de Outubro [...] os cidadãos de Kochetovka, distrito de Zosimov,
província de Tambov, resolveram mudar o nome da vila em sua homenagem, chamando-a de Trotskoe.
Pedimos sua permissão para chamar nossa vila com o nome que nos é tão querido como líder e inspirador do
Exército Vermelho. Presidente do soviete S. Nechaev

Aliás, as primeiras cidades soviéticas a trocar de nome (hoje Gatchina e Chapaevsk)


foram chamadas Trotsk.
A correspondência de guerra entre Lenin e Stalin tem muitos exemplos de
irritação: em fevereiro de 1920, Lenin determinou ajuda para o front caucasiano e
Stalin respondeu: “Não sei por que devo fazê-lo. Isso é da responsabilidade do
Revvoensoviet da República, cujos membros, até onde sei, são perfeitamente
capazes, e não de Stalin, sobrecarregado de trabalho.”73 Lenin disse-lhe para cumprir
a missão e “parar de intrigar a respeito de responsabilidades departamentais”.74
Todavia, sugestões maldosas de Stalin continuaram detectadas em seus
relatórios. Em 4 de agosto, Lenin pediu-lhe um relato da situação no sul e uma
apreciação geral.75 Stalin desalentou-se. De um lado, não queria responsabilidade
pelas “decisões políticas mais importantes”, mas tampouco tinha capacidade para
fazer prognósticos. Replicou então: “Realmente não sei por que você precisa de
minha opinião e, além do mais, não estou em condições de descobrir o que você me
pediu, portanto, vou me limitar simplesmente ao relato, sem quaisquer
comentários.”76 Ele era um autêntico executor das ordens do centro, mas quando
algo mais lhe era solicitado, sua sensibilidade a ofensas e mal-entendidos aflorava e
se mesclava com a provocação de maldade que Lenin identificara.
Da mesma forma que os diversos fronts nos quais, como diversos outros
proeminentes bolcheviques, Stalin serviu durante a guerra civil, o distrito de
Petrogrado enfrentou uma situação grave na primavera de 1919. O general branco
Yudenich e forças aliadas de intervenção planejavam tomar a capital-símbolo da
revolução. O VII Exército e a Esquadra do Báltico foram encarregados da defesa da
cidade. Forças inimigas superiores se aproximavam da Vermelha Selo (antes,
Tsarskoye Selo) e de Gatchina. O comando do Exército Vermelho começou a
transferir unidades fortes de outras frentes para Petrogrado. Sendo plenipotenciário,
Stalin estava constantemente ou no soviete de Petrogrado ou no QG da defesa.
Como sempre, seus métodos eram ditatoriais, quer estivesse substituindo pessoal
incompetente, quer prendendo quem considerava responsável pela situação, quer na
organização dos suprimentos, quer “sacudindo” a liderança local. Foi descoberta
uma conspiração no quartel-general do front ocidental e do VII Exército. Os
conspiradores foram, naturalmente, fuzilados. A lei dos bandos foi dando lugar,
gradualmente, a uma disciplina eficiente e à determinação revolucionária. Entre os
organizadores da defesa de Petrogrado estavam Remezov, Tomashevich, Pozern,
Shatov, Peters e Stalin, ao qual, como a Trotsky, foi outorgada a Ordem da
Bandeira Vermelha em reconhecimento aos serviços prestados.
Relatos anteriores sempre afirmavam que, aonde Stalin fosse enviado, a situação
melhorava, mas isso estava longe da verdade. Ademais, Stalin sempre seguia com um
grupo, e sua principal atuação era como cumpridor das ordens do centro e de Lenin.
No campo militar, seus serviços foram mesmo muito modestos. Porém, já em 1918,
seus camaradas no centro sabiam que ele não era simplesmente um executor
dedicado, mas também um especialista em medidas “extraordinárias”, ou seja,
punitivas. E sabiam também que ele estava começando a demonstrar sinais de
autocongratulação. Num cabograma para o centro, Stalin reportou a destruição de
dois fortes defendidos pelos brancos, acrescentando que “os especialistas da marinha
estão dizendo que [as ações] contrariaram toda a ciência naval. Só posso deplorar
essa chamada ciência. Considero meu dever declarar que devo, daqui por diante,
agir como venho operando, malgrado minha reverência pela ciência”.77
Quando Stalin retornou de uma de suas viagens rotineiras, recebeu uma missão,
no aparato do Comitê Central, de dirigir o dia a dia. Diversos telegramas partidos
dos fronts mostram que ele já fora alçado a um nível de poder real. Por exemplo, em
15 de novembro de 1921, Trotsky enviou-lhe o seguinte cabograma: “Temos que
resolver, com firmeza e de uma vez por todas, o problema das brigadas nacionais
transcaucasianas e dos depósitos militares”, e prosseguiu indagando como conseguir
a aprovação de três decisões do Politburo a esse respeito. É um dos raros telegramas
de Trotsky para Stalin. Cada um se esforçava ao máximo para não tomar
conhecimento do outro. A aversão mútua surgira à primeira vista e, no íntimo,
Stalin continuava a considerar Trotsky um menchevique. Não gostava da
autoconfiança de Trotsky, de sua eloquência e autoridade, de sua capacidade de
manter-se em evidência. Não apreciava a maneira pela qual Trotsky, como
presidente do Revvoensoviet da República, andava pelos fronts num trem especial,
acompanhado por um vagão blindado, às vezes dois, com um enorme destacamento
de jovens militares do Exército Vermelho envergando túnicas de couro. Stalin se
sentia provocado pelo conforto de que Trotsky se cercava, e tanto invejava como
desprezava o eloquente comissário, com sua fanfarronice e popularidade. Por outro
lado, não condenou Trotsky quando este declarou, mais tarde e publicamente: “Não
se pode criar um exército sem repressão. Não se pode conduzir as massas para o
combate mortal a menos que se tenha a pena de morte no arsenal de comando.”78
Secretamente, Stalin concordava com essa linha de raciocínio, e ele próprio recorreu
a tais medidas em situações críticas – e não foi o único a fazê-lo. Em 12 de maio de
1920, Berzin, um membro do Revvoensoviet no front sudoeste, reportou que
unidades do XIV Exército desertaram no front polonês e que “foi dada ordem para
fuzilamento de um entre cada dez homens que haviam desertado”.79
A guerra civil foi rude para com seus inimigos, mas o foi também para seus
próprios. Nosovich, o ex-chefe do distrito militar caucasiano do norte, já citado por
ter se bandeado para os brancos, relembrou que Stalin não hesitava quando seguro
de que confrontava um inimigo. Assim, em Tsaritsyn, um engenheiro chamado
Alexeyev, seus dois filhos e uma boa quantidade de ex-oficiais czaristas foram
acusados de pertencer a uma organização contrarrevolucionária. A decisão de Stalin
foi sucinta: “Fuzilamento.” As pessoas eram sumariamente executadas sem qualquer
julgamento. Stalin reputava lógico tal procedimento, uma vez que acreditava
piamente na “universalidade” e implacabilidade das ações punitivas que
concorressem para a consecução do “resultado” político adequado.
Numa reunião do Comitê Central de 25 de outubro de 1918, foi debatida, entre
outros assuntos, uma carta de Stalin relatando sabotagem nos suprimentos do X
Exército. Ele pedia, insistentemente, que o comandante do front e membros do
soviete militar fossem julgados por tribunal militar. Todavia, o Comitê Central, sob
a presidência de Sverdlov, decidiu “não julgar ninguém, mas instaurar uma
sindicância”. As solicitações de Stalin foram rejeitadas.
Noutra ocasião, Stalin, então membro do Revvoensoviet do front sul, discordou
de Smilga, outro dos membros, a respeito da direção do ataque principal sobre as
forças de Denikin. Para Stalin, não bastava a correção de seu argumento, era preciso
humilhar o oponente. Em vez de debater calmamente os prós e contras com seus
camaradas, os quais, afinal de contas, eram todos membros da mesma organização,
ele se aferrava à posição com uma atitude que beirava a hostilidade ácida. Três anos
mais tarde, numa de suas últimas notas, Lenin comentou sobre o amargor de Stalin
quando lidava com questões importantes. E “a amargura generalizada”, frisou,
“normalmente desempenha o pior papel na política”.80 Quando Stalin enfrentava
um desacordo ou uma argumentação desfavorável, apelava para a autoridade do
centro, referia-se às ordens de Moscou e expressava dúvidas quanto à confiabilidade
política do oponente. Na verdade, todos que entraram em conflito com ele durante
a guerra civil iriam pagar alto preço duas décadas depois. Stalin tinha uma memória
odiosa.
Como membro do Revvoensoviet do front sul por um tempo relativamente
longo, Stalin logo estabeleceu uma linguagem comum com seu comandante A.I.
Yegorov, futuro marechal da União Soviética. Chefe militar poderoso, Yegorov seria
alvo da repressão, com o conhecimento de Stalin, durante o expurgo sangrento de
1937. Stalin não respondeu à carta de Yegorov na qual o militar pedia clemência, a
despeito de ser lembrado que, durante a guerra civil, “os dois, mais de uma vez,
comeram na mesma bandeja do rancho”. Ainda assim, houve um episódio no qual
Stalin intercedeu em favor de Yegorov, se bem que de forma estranha. Uma
proposta de Trotsky para a destituição de Yegorov do cargo de comandante do front
debatia-se em Moscou, e foi pedida a opinião de Stalin. Em 4 de junho de 1920, ele
enviou um cabograma a Trotsky:

Faço veemente objeção à substituição de Yegorov por Uborevich, o qual não está pronto para tal função, ou
por Kork, que não tem condições para ser comandante de front. Foram Yegorov e o comandante em chefe
[S.S. Kamenev] que deixaram a Crimeia escapar por entre nossos dedos, porque o comandante em chefe
estava em Kharkov havia duas semanas antes do avanço de Wrangel e partiu para Moscou sem entender que
o exército [de Wrangel] estava desintegrado. Não acho que tenhamos, no momento, alguém melhor que
Yegorov. Seria melhor, então, substituir o comandante em chefe, que flutua entre o extremo otimismo e o
maior pessimismo, atrapalha todo mundo e confunde o comandante do front, não tendo nada de positivo a
oferecer.81

Stalin, provavelmente, defendeu Yegorov porque a ideia de sua substituição partira


de Trotsky. Quanto aos que “deixaram escapar a Crimeia por entre nossos dedos”,
Stalin fora um deles. Já em 1920, podia-se ver Stalin declarando peremptoriamente
que o comandante em chefe S.S. Kamenev “atrapalha todo mundo”. O atributo
vital de Stalin vinha sendo, por muito tempo, sua capacidade de infligir dano moral.
E, à proporção que sua posição se firmava, tal qualidade se tornava mais perigosa e
má.
Depois do sucesso inicial contra a Polônia, o Exército Vermelho teve uma séria
derrota em 1920 e, quase vinte anos depois, Stalin iria culpar Yegorov,
Tukhachevsky e outros líderes militares pelo “retardo criminoso decorrente de seus
esquemas traiçoeiros”. Jamais passaria por sua cabeça que, como membro do soviete
militar, ele era também responsável pelos sucessos e fracassos das forças no front.
Em 2 de agosto de 1920, o Politburo decidiu separar uma parte do front
sudoeste e criar um front sul independente. O soviete militar do front tabelou uma
proposta de transferência dos XII e XIV Exércitos e do 1º Corpo de Cavalaria para o
front ocidental. Houve incapacidade de concluir tal operação com rapidez. Em 13
de agosto, Stalin e Yegorov reportaram para Kamenev, o comandante em chefe, que
as forças do front já estavam por demais distendidas e que a alteração nas missões
básicas dos exércitos seria impossível naquelas circunstâncias.82
Quando Kamenev deu nova diretriz para o comando do front sudoeste referente
à transferência dos XII e XIV Exércitos e do 1º Corpo de Cavalaria, a ordem foi
assinada por R.I. Berzin, pois Stalin se recusou a fazê-lo. Tempo precioso se perdera
com discussões e negociações. A retirada de forças para Lvov só começou em 20 de
agosto, e a chegada dessas forças foi muito tardia para resultar em qualquer ajuda. É
claro que a responsabilidade por tal erro estratégico foi do Revvoensoviet da
República e do comandante em chefe do front. No entanto, afinal de contas, Stalin
concordara, em 5 de agosto, com a ideia da transferência dos três grandes comandos
para o front ocidental, mas depois emperrara tudo, com sérias consequências. Stalin
não fez esforço especial para que sua própria proposta fosse implementada, mesmo
tendo sido ratificada por Moscou. Ele foi tão culpado por esse importante fracasso
quanto Trotsky, Tukhachevsky, Yegorov e outros. Contudo, é evidente que Stalin
jamais sonharia em admitir sua própria omissão. Já começava a desenvolver instintos
de infalibilidade.
Ao analisar o resultado do erro, Lenin disse que “quando nos aproximamos de
Varsóvia, nossas tropas estavam tão exaustas que não tinham forças para levar
adiante sua vitória, enquanto as tropas polonesas, encorajadas como estavam pelo
levante patriótico em Varsóvia e vendo-se em seu próprio país, encontraram apoio e
renovada oportunidade para progredir. Ocorreu que a guerra nos deu a chance de
chegar quase à devastação completa da Polônia, mas, no momento decisivo,
carecemos de força”.83 Da maior significação é o fato de os historiadores militares
subsequentes procurarem realçar a contribuição “especial” de Stalin para as
iniciativas vitoriosas nos fronts sul, leste e noroeste, sem jamais mencionarem seu
papel na campanha da Polônia, porque não teriam nada de bom a dizer.
Deixando-se de lado as coisas terríveis e imperdoáveis que ele iria fazer no
futuro, e supondo-se que Stalin não nasceu um patife, pode-se afirmar que ele deu
algumas contribuições para a guerra civil. Mas foram contribuições de um emissário
cumpridor de ordens. Não trouxe nenhum “marco decisivo” dos que, mais tarde,
lhe foram atribuídos. Ao mesmo tempo, deve-se lembrar que Stalin, desde os
primeiros estágios da revolução, foi membro dos mais altos órgãos do partido:
primeiro, no Comitê Central e, depois, no Politburo e no Orgburo. Gradualmente,
em especial quando a guerra civil chegava ao fim, a posição de Stalin foi se tornando
mais forte e ele se transformou numa das figuras-chave do núcleo governante do
partido.
O exame das atividades de Stalin durante esse período mostra que ele ficava atrás
de muitos outros líderes partidários. Como teórico, não passava de superficial, e não
tinha os dons da oratória, uma consideração importante num tempo de convulsões
revolucionárias históricas. Ninguém poderia dizer que fosse homem “compreensivo”
e “bom”. Manifestamente, faltavam-lhe as qualidades morais que, de um modo
geral, são associadas à virtude. No entanto, possuía alguma coisa que seus
correspondentes não revelavam, a saber, um alto grau de firmeza de propósitos e a
capacidade de perseguir obsessivamente uma ideia concreta. Tais qualidades
impressionaram as pessoas que com ele operaram nas numerosas tarefas para as
quais foi designado. Com certeza, a formação de Stalin como líder deveu-se, em
grande parte, aos anos de guerra civil. Revelou faro pelo poder, entendia como ele
funcionava, tanto no centro como nas localidades, e se convenceu de que a aplicação
de pressão nos momentos críticos podia levar ao resultado desejado.
Muitos dos líderes do partido eram membros da intelligentsia, ou, como Stalin
realçou sarcasticamente em certa ocasião, no final dos anos 1920, eram “escritores”.
Nunca falou um pouco mais sobre esse tópico, principalmente porque Lenin
também era um “intelectual”, “escritor” e emigré. Mas o intelecto de Lenin era tal
que Stalin, tendo lançado o conceito de “segundo líder” que estava “sempre junto a
Lenin”, jamais expressou uma única observação crítica sobre seu próprio mestre.
Quando, entretanto, Lenin o criticava – sobre as nacionalidades, o monopólio
comercial do estrangeiro, os assuntos militares e outras questões – Stalin,
normalmente, em silêncio, concordava com ele. O poder psicológico de Lenin sobre
Stalin era claro.
O delgado stratum intelectual constituído pela “velha guarda de Lenin” fracassou
no momento crítico e permitiu que um homem com propensões ditatoriais e
cesaristas usurpasse o poder no partido e no Estado. Todos se consideravam
leninistas, porém foram incapazes de cumprir o testamento do líder da revolução.
Como e por que isso aconteceu? Por que não se buscou outra alternativa? Essa
pergunta desafiará os estudiosos da história soviética por muito tempo ainda. O
passado não é um teatro de sombras. O que lá impera não é o efêmero e sim o
irreversível.
Notas

* A bacia do Donetz. [N.T.]

** Forma russa de Leon mais o patronímico de Trotsky. Seu nome original era Leib Davidovich Bronshtein.
PARTE II
O aviso do líder

A coragem mais rara é a coragem de pensar.


Anatole France
[7]
Camaradas em armas

L enin raramente se queixava da saúde e, enquanto ele esteve em forma, jamais


se discutiram nomes de possíveis sucessores. Contudo, tão logo os primeiros
sinais de desgaste e doença começaram a surgir, no final de 1921,
começaram especulações sobre os camaradas mais próximos do líder. Depois da
morte de Lenin, seus médicos afirmaram no atestado que o mal surgira nos últimos
meses de 1921, mas é provável que já viesse aumentando lentamente por algum
tempo. Em março de 1922, os doutores não conseguiram detectar qualquer
desordem orgânica, no entanto, em vista das constantes fortes dores de cabeça e da
visível exaustão, ele foi aconselhado a descansar por alguns meses e mudou-se para
Gorky. No início de maio, todavia, apareceram os incipientes sintomas de problema
cerebral. O primeiro ataque manifestou-se em prostração geral, perda da fala e
grande redução no movimento do braço e da perna do lado direito. Em julho,
houve melhora substancial, e o progresso foi tão grande em agosto e setembro que
ele voltou a trabalhar em outubro, embora em ritmo bem mais lento. Em
novembro, fez três discursos longos e programáticos.1
Com 51 anos de idade quando foi acometido pela doença, pelos padrões de hoje,
era um homem ainda novo, mas desde o retorno a Petrogrado, em 1917,
praticamente não descansara. Trabalhava de 14 a 16 horas por dia. Segundo seus
secretários, na doença, Lenin comentou que apenas duas vezes tivera um intervalo, a
primeira em Razliv, quando se escondia do Governo Provisório, e a segunda por
cortesia de Fanny Kaplan, que atirou nele.
No final de 1921, ao conscientizar-se da doença iminente, Lenin viu que, ao sair
de cena, poderia haver um racha na liderança do partido. Talvez lhe tenha então
passado pela cabeça a ideia de um “testamento” político. Em novembro de 1922,
como que prevendo outro derrame, devolveu os livros lidos ao bibliotecário, Sh.M.
Manucharyants, com o pedido especial para ficar com Testamento político (de Cartas
não publicadas) de Engels. Escreveu na capa: “Deixar na estante. 30.11.1922.
Lenin.”2
Menos de um mês mais tarde, na noite de 26 de dezembro, ainda não refeito de
um derrame sério, Lenin ditou para L.A. Fotieva a terceira parte de sua “Carta ao
Congresso”. Esta carta mostra que, mesmo sobrecarregado com os problemas de
então, Lenin se preocupava muito com o futuro e com o que aconteceria quando
faltasse. Ele era o líder por ter personificado o partido bolchevique antes, durante e
depois da revolução, mas não tinha status oficial. Quem eram as pessoas próximas a
ele? Como chegaram à crista da revolução? Que conseguiram na vida? Como Stalin
aparecia na galáxia dos camaradas de Lenin?

É sempre difícil passar da guerra à paz, porém, nas condições da Rússia depois da
guerra civil, não se tratava de uma simples questão de ir da guerra para a paz.
Anarquia, devastação, fome – faltam palavras para descrever o grau de sobressalto,
deformação e esfacelamento da sociedade russa no início dos anos 1920. A Rússia
era uma vasta ilha revolucionária num mar de estados hostis. O país vivia uma
convulsão, pois províncias e distritos se rebelavam abertamente ou em resistência
passiva à nova ordem. A revolução vencera, sobrevivera e consolidara o poder dos
sovietes, mas o novo regime quase nada podia fazer pelos trabalhadores e
camponeses. A política econômica do governo durante os primeiros três anos – o
chamado Comunismo de Guerra – significou a nacionalização da indústria e do
comércio, salários em mercadorias para operários e empregados, tomada à força da
produção do campo e trabalho obrigatório para a classe média. Nada disso cumpria
as promessas dos bolcheviques: o direito ao trabalho, descanso, seguridade social e
educação. Para escapar à perspectiva do comunismo da pobreza, o país precisava
daquelas ideias ousadas e medidas enérgicas que só o partido podia produzir. Ele era
o eixo espiritual e político em torno do qual a vida ainda girava. No início de 1921,
mais de 20 mil células congregavam acima de 730 mil membros do Partido
Comunista, quase um quarto deles no Exército Vermelho.
O Comitê Central, sob a chefia de Lenin, era o cérebro do regime. Tinha poucos
integrantes. Por exemplo, o X Congresso do partido indicou um Comitê Central de
25, com 15 candidatos a membros. A composição foi apenas marginalmente
aumentada pelo XI Congresso, o último de Lenin, para 27 e 19. Enquanto Lenin
viveu, os plenos em geral ocorriam duas vezes por mês. O núcleo da organização
eram os homens de Moscou, que arcavam com a maior parte do trabalho, a saber, a
solução dos problemas da construção econômica e militar, a criação de vínculos com
os elementos nacionais no partido, a condução de problemas como o dos
Centralistas Democráticos* e o da Oposição dos Trabalhadores,** e a implantação
da Nova Política Econômica-NEP. Além do mais, alguns dos membros do comitê
pertenciam a essas mesmas facções ou plataformas que hoje seriam chamadas de
“informais” ou “não institucionais”. Tudo era estranho e novo. O partido se
transformou na força orientadora, e seu poder tornou-se real. Portanto, muita coisa
dependia da posição política, das qualidades morais e do profissionalismo dos que
operavam dentro do núcleo do partido.
Lenin foi a única pessoa indicada para o Comitê Central em todos os congressos
de pós-guerra – o X, o XI e o XII (embora não comparecesse ao último). Seu
exemplo, sua experiência e seus trabalhos teóricos tiveram influência única sobre o
Comitê Central e seu núcleo dirigente; e sua ausência foi profundamente sentida.
No relatório sobre a organização para o XII Congresso, em 17 de abril de 1923,
Stalin declarou:

Dentro do Comitê Central, há um núcleo de dez a 15 homens de tal forma capacitados em equacionar o
trabalho político e econômico de nossos órgãos que correm o risco de se transformar em algo como sumo
sacerdotes do governo. Isso pode ser uma boa coisa, mas tem também seu lado perigoso, pois esses
camaradas, ao acumularem grande experiência em governo, podem ser afetados pelo convencimento, fechar-
se em si mesmos e isolar-se do trabalho com as massas. [...] Se não se cercarem de uma nova geração de
futuros líderes bem ligados ao trabalho nas localidades, essas pessoas altamente qualificadas têm tudo para se
fossilizar e se afastar das massas.3

Lenin ainda era vivo quando Stalin pronunciou tais palavras, e essa parte do
discurso banhou-se na noção de Lenin de que o núcleo líder deveria ser
constantemente renovado. O transcurso de 15 anos mostraria tais pontos de vista
mudados para algo bem diferente, embora, por volta de 1937-38, Stalin ainda fosse
capaz de dizer belas coisas, se bem que praticando exatamente o oposto. Mas no
início dos anos 1920 tal dualismo de palavras e atos ainda não se evidenciava. No
congresso, ele assim falou sobre os companheiros e discípulos de Lenin:

O núcleo do Comitê Central, tão bom em governança, está ficando velho e precisa de reposição. Sabeis do
estado de saúde de Vladimir Ilyich, sabeis que os outros membros do núcleo estão bastante gastos. Porém,
até o presente, não há ninguém para substituí-los, esse é o problema. É difícil criar líderes de partido, leva
tempo, de cinco a dez anos, ou mais. É mais fácil fazer a guerra com outro país com a ajuda da cavalaria de
Budyonny que forjar dois ou três líderes oriundos das fileiras que possam se transformar realmente nos chefes
futuros do país.4

Embora tal argumentação parecesse razoável, a média dos membros do Comitê


Central pelos padrões atuais era bastante jovem. Lenin, que ainda não chegara aos
cinquenta, era o mais idoso. Os integrantes do corpo principal estavam nos
quarenta, a idade considerada pelos gregos como ápice da glória existencial, quando
a fortaleza física e a força intelectual devem estar em harmonia.
O núcleo da liderança durante os primeiros anos depois da revolução apresentava
diferenças enormes em histórico, experiência revolucionária, educação e, é claro,
preferências e aversões pessoais. Praticamente metade dos camaradas mais próximos
de Lenin passara anos de exílio no exterior, participara de incontáveis conferências,
congressos e reuniões de caráter social-democrata, socialista, humanitário e cultural.
Stalin não se ajustava a esse padrão. Sua esperteza e astúcia natural e sua precaução
calculada provinham de escola duvidosa. Vinte e poucos anos duros de educação
religiosa e exílio interno, e a falta de experiência de classe trabalhadora ou de
qualquer instrução profissional o transformaram no executor de uma ideia. Antes de
qualquer outro do entourage de Lenin, ele notara a importância e percebera o poder
a derivar de um aparato. A maioria dos colegas de Lenin subestimava claramente o
papel das estruturas anônimas da autoridade.
Gradualmente, Stalin arquitetou sua própria atitude para com cada membro do
núcleo mandante, que ele descreveu como “bom de governança” e que era
extremamente variado. O próprio Stalin, como dissemos, carecia de autoafirmação
quando confrontado com a atitude superior e autoconfiança de Trotsky, mas
entendeu mais tarde que seu rival muitas vezes apenas fazia pose ou se deleitava com
uma frase elegante. Durante a revolução e a guerra civil, os atributos de Trotsky
como orador ajudaram-no a brilhar. Sua popularidade alastrou-se e granjeou-lhe
seguidores, entre os quais pessoas que não o viam só como “segundo”, mas como
potencial líder futuro do partido. Acabou se revelando um homem cujo talento
principal não estava na organização e sim na oratória e numa mente perspicaz, por
vezes paradoxal. Foram tais qualidades que lhe permitiram liderar pessoas, inspirar
tropas no front e, artificialmente, inflar sua própria popularidade. Quando chegou a
hora de tarefas mundanas, o chefe do Exército Vermelho começou rapidamente a
murchar. Mesmo algumas de suas boas ideias eram apresentadas de forma tão
provocativa que lhe causaram perda de apoio. Trabalho de debulhar nos bastidores
não era para ele. Precisava de um slogan e de um palanque onde pudesse falar e fazer
gestos de efeito.
Talvez antes que a maioria, Stalin identificou os pontos fortes e fracos de
Trotsky. Consciente da enorme popularidade do rival, Stalin tentou de início
estabelecer com ele relações, senão amistosas, pelo menos estáveis. Certa ocasião,
Stalin apareceu sem se anunciar na residência de Trotsky, situada em
Arkhangelskoe, nos subúrbios de Moscou, para cumprimentá-lo pelo aniversário.
Não foi um encontro caloroso. Cada um sentiu a antipatia do outro. Doutra feita,
com a ajuda de Lenin, Stalin tentou melhorar a relação. Sabe-se disso por um
telegrama de Lenin para Trotsky, datado de 23 de outubro de 1918, no qual relata
uma conversa que tivera com Stalin. Como membro do Conselho de Defesa, Stalin
deu sua estimativa da posição em Tsaritsyn e mostrou desejo de trabalhar mais
cerradamente com o Revvoensoviet da República. Lenin acrescentou:

Ao transmitir a você as declarações de Stalin, Lev Davidovich, solicito que pense sobre elas e diga, primeiro,
se concorda em discuti-las pessoalmente com Stalin, para o que ele viria até aqui, e, segundo, se você acha
possível, em certas circunstâncias concretas, desprezar a fricção existente e trabalhar em conjunto, coisa que
Stalin deseja muito. Quanto a mim, creio ser necessário todo e qualquer esforço para um bom trabalho
conjunto com Stalin.5

No entanto, nada resultou. Trotsky não pôde esconder sua atitude superior. Como
ele próprio escreveu sobre Stalin:

Invejoso e ambicioso por demais, só podia perceber sua inferioridade intelectual e moral ao longo de toda a
jornada. [...] Só muito tarde, percebi que ele vinha tentando estabelecer alguma espécie de relação de
intimidade. Porém, repugnavam-me aquelas mesmas qualidades que poderiam favorecê-lo... a saber, a
estreiteza de seus interesses, seu pragmatismo, sua rudeza psicológica e o cinismo especial do provinciano que
foi liberado de seus preconceitos pelo marxismo, mas que não os substituiu por uma visão filosófica bem
refletida e mentalmente absorvida.6

Stalin chegou a realçar em alguns discursos o papel de Trotsky na revolução e na


guerra civil, mas não conseguiu melhorar a atitude distante de Trotsky em relação a
ele.

Luzes fulgurantes da galáxia foram Zinoviev (nome verdadeiro Radomyslsky) e


Kamenev (nome real Rozenfeld), que são geralmente tratados como um duo.
Partilhavam das mesmas opiniões e raramente discutiam um com o outro. Zinoviev,
que teve posição de destaque no partido por longo tempo, era a figura mais
importante do par. Sua carreira foi marcada por píncaros retumbantes e abismos
profundos. Membro do partido desde 1901, esteve exilado por muitos anos no
exterior, onde dedicou-se principalmente a escrever. Durante o Outubro de 1917,
tanto Zinoviev como Kamenev mancharam bastante seus históricos revolucionários
ao ficarem abertamente na imprensa contra o levante armado. Lenin mais tarde
escreveu: “o episódio de Outubro não foi, evidentemente, acidental”.7
Zinoviev atingiu o ápice como presidente do comitê executivo do Comintern,
cargo que ocupou por sete anos. Escreveu inúmeros artigos, providenciando
diligentemente para que fossem publicados como brochuras separadas e até mesmo
como edição especial de suas obras compiladas, ostentando a silhueta de sua cabeça
na capa. Refinou muitas de suas melhores qualidades vivendo próximo a Lenin, seja
no exterior, seja depois da revolução. Lunacharsky foi até o ponto de qualificar
Zinoviev como um dos esteios de Lenin, “um dos quatro ou cinco homens que
representaram a preponderância de mentes políticas no partido”. Segundo
Lunacharsky, Zinoviev era visto por todos como “o auxiliar mais próximo e mais
confiável de Lenin”.8
Zinoviev possuía energia sobre-humana, mas sofria de mudanças de estado de
espírito, oscilando entre o mais desenfreado otimismo e o desespero que podia
chegar às raias da depressão ou da histeria “fria”. Com frequência, necessitava de
incentivo e sacudidas. Durante muito tempo, foi condescendente, até arrogante,
para com Stalin. No início dos anos 1920, mexia com Stalin, um pouco em tom de
brincadeira, sobre o estilo primitivo de seus artigos, os quais, para ele, padeciam de
tautologia e falta de colorido. O próprio Zinoviev sabia escrever num estilo leve e
aforístico, e alguns de seus artigos são muito ricos em conteúdo. Em “Das primeiras
batalhas pelo leninismo”, por exemplo, demonstra sutilmente a inconsistência do
pleito de Trotsky por uma posição especial no partido.
Como líder da organização partidária em Petrogrado, Zinoviev tentou, ao seu
tempo, exibir firmeza e mesmo maneirismos ditatoriais, embora tenha perdido a
cabeça quando Yudenich se aproximou da cidade. Isso foi testemunhado por Stalin,
que acabara de chegar a Petrogrado, e Zinoviev, de imediato, mentalmente
registrado como um maricas vaidoso e ambicioso. Até a morte de Lenin, Stalin
tentou manter certo tipo de relações amistosas com Zinoviev e Kamenev. Quando
Lenin teve, no começo de novembro de 1922, uma conferência com Zinoviev,
Kamenev e Stalin, deu logo a impressão de que o trio era extremamente chegado,
unido e amigo. Essa impressão, todavia, não durou muito, já que cada membro da
troika tinha seus planos ambiciosos próprios. Ninguém poderia prever que,
precisamente por iniciativa de Stalin, Zinoviev seria por duas vezes expelido do
partido e readmitido, e que a expulsão final, ocorrida em 1934, precedesse de pouco
sua execução. Kamenev teve destino semelhante.
Zinoviev foi um dos melhores oradores do partido e foi quem apresentou o
relatório político no XII e no XIII Congressos do partido. Foi dos que aprovaram a
existência de um núcleo na liderança. Falando ao XIV Congresso, em 1925,
afirmou:
Vladimir Ilyich estava doente e tivemos que realizar nosso primeiro congresso sem ele. Vocês sabem da
discussão havida sobre o núcleo que se formara no Comitê Central, e que o XII Congresso aceitou silencioso
a ideia de que esse núcleo, com o apoio total do Comitê Central, é evidente, continuasse a liderar o partido
até o restabelecimento de Ilyich.9

Zinoviev, como Kamenev, foi considerado por muito tempo um dos amigos
próximos de Stalin. Quando foi removido do Politburo, em 1926, achou que seu
afastamento não seria por muito tempo. Na noite de Ano-novo, ele e Kamenev,
levando garrafas de conhaque e champanhe, apareceram de surpresa no apartamento
de Stalin. A impressão foi de que a revolução mundial tinha estourado. Eles
conversaram da forma cordial de sempre e recordaram velhos tempos e amigos, mas
não trocaram uma só palavra sobre a saída do Politburo. “Koba” foi hospitaleiro e
deu uma calorosa recepção aos antigos “chapas”. Dirigiu-se a eles com simplicidade
e sinceridade, como se não fosse o responsável pelo afastamento de ambos do
Politburo no outubro anterior. O duo sentiu-se flutuando no ar. Mas Stalin já
decidira havia muito tempo que os serviços daqueles dois, que muito sabiam sobre
ele, não eram mais necessários.
Haveria outra oportunidade em que os dois viriam, ou melhor, seriam trazidos à
presença de Stalin. Como antigos companheiros de Lenin e ex-membros do
Politburo, que contaram com altas posições depois da morte do líder, vinham
escrevendo da prisão cartas a Stalin, em 1936, quando, de repente, Stalin reagiu.
Eles entraram no gabinete do homem que tanto subestimaram e lá, além do próprio
Stalin, encontraram Voroshilov e Yezhov. Stalin não respondeu ao cumprimento
nem os convidou a sentarem-se. Andando de um lado para o outro, ofereceu-lhes
um acordo: a culpa deles já fora estabelecida e um novo julgamento poderia impor a
sentença máxima. Mas ele relembrava os serviços passados. Se confessassem tudo no
julgamento, especialmente a liderança direta de Trotsky sobre suas atividades
subversivas, salvaria a vida deles, ou melhor, tentaria salvar. Depois tudo faria para
libertá-los. Eles precisavam decidir. O caso exigia. Seguiu-se longo silêncio.
Zinoviev, que era o mais fraco e mais submisso dos dois, disse mansamente: “Está
bem, concordamos.” Estava acostumado a falar em nome de Kamenev. Dois meses
depois, foram fuzilados.
Esta história me foi relatada na Sibéria, em 1947, por um prisioneiro conhecido
como Boris Semyonovich. No vilarejo onde eu vivia com minha mãe, irmão e irmã,
foi apressadamente construído um campo de prisioneiros em 1937. Alguns dos
presos tinham a categoria “sem escolta”, isto é, podiam, vez por outra, atravessar o
perímetro do confinamento. Boris Semyonovich era sapateiro e esteve em minha
casa duas ou três vezes para consertar minhas botas impermeáveis e as de meu
irmão. Até sua prisão em 1938, integrara a força de segurança do próprio presídio
onde Zinoviev e Kamenev estavam detidos. Acompanhara os dois para o encontro
com Stalin. Na noite em que foram levados para a execução, tiveram
comportamentos diferentes. Embora ambos tivessem escrito a Stalin várias vezes
pedindo clemência e, aparentemente, esperassem por isso (afinal, ele prometera),
sentiram que era o fim. Kamenev caminhou em silêncio pelo corredor, apertando
nervosamente as mãos. Zinoviev ficou histérico e teve que ser carregado. Em menos
de uma hora, dois outros antigos participantes do núcleo do Comitê Central
cruzaram a fronteira fatídica. Ao tempo em que estiveram no poder, fizeram mais do
que ninguém para consolidar a posição de Stalin. O pagamento pelo serviço foi o de
suas vidas.
Vale a pena lembrar que Stalin conheceu Kamenev muito bem durante o tempo
de exílio dos dois em Turukhansk, quando ouviram pela primeira vez as notícias
sobre a Revolução de Fevereiro. Stalin reconheceu então em Kamenev uma mistura
de erudição e certa impulsividade, uma capacidade de tomar decisões rápidas e
categóricas, e, com a mesma rapidez, rejeitá-las. A atitude de Stalin em relação a
Kamenev foi muito influenciada pelo fato de este ter sido o vice de Lenin no
Sovnarkom e presidir com frequência os plenos do Comitê Central, assim como
congressos do partido. Em princípio, durante a vida de Lenin, Kamenev foi também
presidente do Politburo.
Embora Zinoviev e Kamenev fossem bons tribunos e escritores, careciam de
“espinha” e eram capazes de súbitas mudanças de posição em momentos cruciais,
em função de ambição, prestígio ou interesses pessoais. Intencionalmente ou não,
foram infelizes em levar sua luta com Stalin para a órbita do aparato partidário,
onde, com todas suas capacidades, eram muito pequenas suas chances de sucesso.

Conquanto conhecedor de suas fraquezas, Lenin apoiou-se muito em Zinoviev e


Kamenev, particularmente neste, que desempenhou muitas comissões pessoais para
o líder. Era reconhecida a capacidade de Kamenev de abrandar as bulhas que
ocorriam nas relações internas do partido. Embora menos popular que Zinoviev, era
mais sólido e mais intelectual. Tinha ideias próprias, era competente em
generalizações teóricas, corajoso e decidido. O discurso que pronunciou em 21 de
dezembro de 1925 (aniversário de Stalin) perante o XIV Congresso do partido
merece passar à história:
Somos contra a criação de uma teoria da “liderança”, somos contra a confecção de um “chefe”. Somos contra
um secretariado que, na prática, reúne a política e a organização, postando-se acima do órgão político.
Somos a favor de um Politburo organizado internamente de forma tal que, enquanto congrega os políticos
do partido, seja genuíno detentor, órgão superior que é, de poder total; e somos a favor de um secretariado
subordinado ao Politburo e executor das instruções deste. Pessoalmente, digo que nosso secretário-geral não é
a pessoa para unir em torno de si a equipe do antigo QG bolchevique. Precisamente por ter dito isso, em
pessoa e inúmeras vezes, ao camarada Stalin, e por ter repetido incontáveis vezes ao grupo de companheiros
leninistas, é que reitero meu ponto de vista neste congresso: cheguei à conclusão de que o camarada Stalin
não pode desempenhar o papel de unificador da equipe bolchevique. Comecei esta parte de meu discurso
com as seguintes palavras: “somos contra a teoria da liderança de um só homem, somos contra a criação de
um chefe!”10

Palavras corajosas. E ditas em público, num tempo em que o mando pessoal de


Stalin começava a despontar, foram alertas de peso que devem ser creditados a
Kamenev. Ele parecia ter assimilado melhor que os outros o preceito bolchevique do
pensamento destemido. Por que nenhum dos membros do “grupo de camaradas
leninistas” saiu em apoio de observações tão sóbrias e proféticas de um dos que
faziam parte do núcleo governante? Mas não foram só “leninistas” os culpados pela
visão míope da situação, Kamenev também o foi: suas negaças dissimuladas,
afastando-se e aproximando-se de Trotsky na batalha contra Stalin, criaram a
justificada impressão de que seu comportamento era em grande parte motivado por
ambição pessoal. Em vez de enfraquecido, Stalin ficou mais forte porque, afinal de
contas, Kamenev atacara o secretário-geral como membro de uma “oposição”.
As relações entre Trotsky, Zinoviev e Kamenev eram complicadas. Apesar de ser
casado com a irmã de Trotsky, Kamenev não tinha ligações chegadas com o
cunhado. A questão central era que ambos postulavam a liderança do partido, em
especial quando ficou claro que a saúde de Lenin entrava em estado crítico. Trotsky
publicou suas sensacionais Lições de Outubro que mostraram Zinoviev e Kamenev
em posição bem pouco lisonjeira. Os dois, por sua vez, exigiram a expulsão de
Trotsky do Politburo e do partido. Stalin ainda não era, entretanto, o homem que
seria nos anos 1920 e 1930. No XIV Congresso, quando o Comitê Central limitou-
se a demitir Trotsky do cargo de comissário da Guerra, Stalin disse:

Não concordamos com Zinoviev e Kamenev porque sabemos que uma política de cortes vem carregada de
perigos para o partido, que o método da divisão, o do sangue quente – e é sangue que eles demandam – é
arriscado e contagioso: hoje, cortamos uma pessoa, amanhã, outra, no dia seguinte, uma terceira pessoa – o
que vai sobrar do partido?
O congresso aplaudiu, mas dois ou três minutos mais tarde, encerrando o seu
discurso, Stalin diria, comentando o fechamento do jornal Bolshevik de Leningrado:
“Não somos liberais. Para nós, os interesses do partido estão acima da democracia
formal. Sim, somos capazes de proibir a publicação de um órgão de facção, e
proibiremos essas coisas no futuro.”11 Tais palavras foram recebidas com uma
ovação. Os delegados gostaram da firmeza e da determinação de Stalin, mas como
poderiam adivinhar que logo Stalin estaria pronto para exercitar o “método do
corte”, ou que muitos deles viriam a subir o patíbulo da guilhotina?
Vamos dar um pequeno salto à frente. Kamenev já fora expelido do núcleo
central e trabalhava como diretor do Instituto de Literatura Mundial. Numa das
rotineiras visitas de Yagoda a Stalin, o patrão disse: “Fique de olho em Kamenev.
Acho que ele está ligado a Ryutin.*** Lev Borisovich [Kamenev] não é de desistir
facilmente. Eu o conheço há mais de vinte anos. É um inimigo.” Yagoda procedeu
conforme orientado. Kamenev foi preso em 1934, julgado em 1935 e sentenciado a
cinco anos. Foi julgado de novo no mesmo ano e, dessa vez, recebeu dez anos. No
fim de 1936, seu caso foi cancelado, para sempre. Naquela ocasião, no entanto,
Stalin precisava de Zinoviev e Kamenev para sua luta com Trotsky, a quem via
como inimigo principal seu e do partido.
Stalin rapidamente revelou-se um administrador bastante bom. Ao cumprir suas
tarefas, deu especial atenção às necessidades dos membros do Politburo e de outras
figuras importantes do Comitê Central. Na sua cabeça, as pessoas que considerava
mais influentes eram as que, em particular, chamava os “escritores”, ou seja, os ex-
emigrados. Não podia negar que eles possuíam elevado nível intelectual,
fundamentação teórica e vasto conhecimento geral. E isso despertava nele um certo
ressentimento, como se quisesse dizer: “Enquanto preparávamos a revolução, lá
estavam eles lendo e escrevendo.”
Certa vez, quase se expressou abertamente a respeito. Um secretário provincial
estava para ser confirmado como representante do Comitê Central quando deixou
escapar que o companheiro mal sabia ler ou escrever. Stalin resolveu o caso dizendo:
“Ele jamais esteve no exterior, como poderia aprender? Vai se sair bem.”
Entre os assistentes de Lenin havia muitas pessoas talentosas. Stalin logo notou
que Bukharin, Rykov e Tomsky, embora não formassem um grupo especial,
mostravam-se diligentes na solução dos problemas econômicos e industriais do país.
Eram bons economistas, ou tecnocratas, como diríamos hoje. Infelizmente, nos anos
1930 e nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, não havia lugar nos
altos escalões do poder para economistas e tecnocratas autênticos. De um modo
geral, seus lugares eram ocupados por administradores e burocratas como
Kaganovich e Malenkov. Aliás, num sistema de diretrizes a comando, os
economistas eram de pouca utilidade, já que muita coisa era feita ao arrepio das leis
econômicas.
Nikolai Ivanovich Bukharin era, sem dúvida, a figura de proa desse trio. Seu
primeiro livro, A teoria econômica da classe do lazer, publicado antes da Primeira
Guerra Mundial, penetrou profundamente na origem das relações econômicas. No
primeiro volume do seu Economia, publicado em 1920, propôs-se a revelar o
processo de transformação de uma economia capitalista em socialista, porém,
assaltado pela luta e pelas circunstâncias mutantes, jamais preparou o segundo
volume. No Economia, escreveu que “as pessoas não construíram o capitalismo, ele
se fez por si mesmo. Quanto ao socialismo, ele é um sistema organizado que
estamos forjando. O principal para nós é encontrar um equilíbrio entre todos os
elementos do sistema”. Como o conhecimento de Stalin sobre economia era apenas
rudimentar, ele prestou bastante atenção em Bukharin.
As relações entre os dois naquele tempo não foram particularmente difíceis:
afinal, Bukharin era pessoa de fácil convívio, o tipo tranquilo de intelectual. Por
vezes, pareceu que eram amigos íntimos. Ao passarem a viver em apartamentos
vizinhos no Kremlin, Stalin percebeu de imediato que Bukharin não tinha planos
ambiciosos. Ao contrário, achava incompreensível e desagradável a disputa pela
liderança e os atritos que isso gerava entre os vários membros do Politburo; levou
muito tempo para que ele tomasse posição na contenda entre o “triunvirato” e
Trotsky. Este depois classificou as intervenções de Bukharin no debate como “forma
estranha de promoção da paz”. Bukharin valorizava, em primeiro lugar, a autoridade
de Lenin, conquanto muitas vezes discutisse asperamente com ele, e, em segundo
lugar, a autoridade coletiva do Politburo.
A postura de Stalin em relação a Alexei Ivanovich Rykov era de cautela, não
apenas porque ele assumiu o lugar de Lenin como presidente, mas também por ser
excepcionalmente direto e franco. Por isso, nem sempre se deu bem com os colegas.
Smilga, por exemplo, pediu ao Comitê Central dispensa de suas tarefas como vice-
presidente do Conselho de Economia para Toda a Rússia e como chefe da agência
principal de combustíveis (Glavtop) por ser impossível trabalhar com Rykov.
Quando Lenin viu a carta de Smilga, escreveu a Stalin dizendo que Smilga não
deveria se afastar e que membros do partido sabiam e deviam acertar os ponteiros
entre eles mesmos.
Rykov normalmente dizia na cara das pessoas o que pensava, e escrevia da
mesma forma. Em 1922, publicou um trabalho intitulado “Situação econômica do
país e conclusões para o trabalho futuro”. Na verdade, passava a dar apoio à NEP e
se opunha às tentativas de resolver por comandos os problemas econômicos.
Envolveu-se com a Goelro (Comissão Estatal para a Eletrificação da Rússia), com a
Dneprostroy (Estação Geradora de Energia do Dnieper), com a Turksib (Ferrovia
Turquestão-Siberiana), com o crescimento do movimento cooperativista, com o
primeiro Plano Quinquenal e com outras iniciativas importantes do Estado
socialista. Foi Rykov quem, mais tarde, tentou convencer Stalin e seus seguidores de
que o socialismo deveria desenvolver e melhorar as relações comerciais e financeiras,
e não tolher a independência econômica dos produtores diretos. Mas, que lástima, a
conversa era em línguas distintas.
Quando, no final dos anos 1920, Stalin já adquirira maior peso político, Rykov
certa vez disse diretamente: “Sua política não tem nem cheiro de economia!” O
secretário-geral ficou impassível, mas jamais esqueceu a zombaria.
Na realidade, jamais esqueceu coisa alguma. Sua memória fria de computador
retinha milhares de nomes, fatos e eventos firmemente armazenados nas células. E
ele não esqueceu que Lenin tinha Rykov em altíssima conta e que seu nome figurava
nos trabalhos do líder com pouco menos frequência que o de Stalin. Como
presidente do Sovnarkom a partir de 1926, Rykov também presidia o Conselho do
Trabalho e da Defesa, e os comitês de ciência e de desenvolvimento do pensamento
científico. Stalin não esqueceu que Rykov fez um discurso no soviete de Moscou,
em 1927, no qual disse que não era permitido recorrer-se novamente aos métodos
do Comunismo de Guerra e criticou severamente os que se opunham à NEP,
classificando tais ataques de “inusitadamente nocivos e perigosos” e demandando
um fim para os métodos coercitivos no campo onde, em suas palavras, era essencial
manter a “legalidade revolucionária”. Seu primeiro cargo no governo soviético fora o
de comissário de Assuntos Internos, mas renunciou poucos dias depois porque o
governo era composto totalmente de bolcheviques, não era uma coalizão. Muitos
anos depois, ele falou pela última vez num pleno do Comitê Central quando
repudiou as monstruosas acusações de espionagem, sabotagem e terrorismo
imputadas a ele. Stalin sorriu maliciosamente: “Ele foi sempre assim.”
Bukharin e Rykov se preocupavam com a sorte dos agricultores russos, enquanto
Trotsky – e Stalin que, em essência, concordava com ele – considerava-os “material
para a transformação revolucionária”. Era impossível não notar a popularidade de
Bukharin e Rykov. Eles andavam sem guarda-costas, eram acessíveis e atenciosos. A
gente comum sempre deu valor a tais qualidades em seus líderes. Stalin chamava isso
de “jogo para a plateia”.
Stalin também desconfiava de Mikhail Ivanovich Tomsky (nome real,
Yefremov). Participante de três revoluções e sindicalista, Tomsky sabia como se dar
valor. Stalin tolerou aquele “amigo de Rykov” até que Kaganovich e Shvernik
entraram para o presidium do Soviete Central dos Sindicatos e depuseram Rykov
das funções de presidente. Quando Tomsky cometeu suicídio, em 22 de agosto de
1936, em sua dacha de Boltsevo, Stalin disse: “O suicídio confirma sua culpa
perante o partido!” Na verdade, fora um ato de protesto extremo contra o mando de
Stalin.
Posição notável na chefia foi ocupada por Felix Edmundovich Dzerzhinsky,
apelidado por Bukharin de “jacobino proletário”. Foi um dos primeiros membros
do partido e um dos organizadores da Democracia Social do Reino da Polônia e
Lituânia, no começo do século. Ao analisar, mais tarde, o papel desempenhado por
Dzerzhinsky, Karl Radek, membro do Comitê Central e farol-guia no Comintern,
observou:

Nossos inimigos inventaram a lenda sobre os olhos e ouvidos da Cheka**** que tudo via e tudo ouvia, e
sobre o onipresente Dzerzhinsky. Pintaram a Cheka como um exército enorme que cobria todo o país,
estendendo seus tentáculos ao seu próprio campo. Não entenderam a fonte do poder de Dzerzhinsky. Ela
derivava da força do partido bolchevique: da confiança total das massas trabalhadoras e dos pobres.12

As relações de Stalin com Dzerzhinsky não foram ruins, em particular depois que
cumpriram juntos diversas missões no front da guerra civil. Após a morte prematura
de Dzerzhinsky, Stalin, que não era de derramar grandes elogios, disse: “Ele foi
consumido pelo trabalho apaixonado que fazia em prol da causa proletária.”
Mikhail Vasilyevich Frunze tinha uma personalidade atraente, se bem que sua
figura não o realçasse. Stalin, que também experimentara prisão e exílio, tinha por
ele grande consideração, já que Frunze fora por duas vezes condenado à morte em
1907, passara muitas semanas na cela dos sentenciados à pena capital e passara por
trabalho forçado diversos anos. Poucos sabiam em detalhe o quanto ele fizera pela
vitória nos fronts Oriental, do Turcomenistão e do Sul. Até Stalin ficou
impressionado com a liderança calma e com o alto grau de determinação política e
militar que demonstrou. Durante seu breve mandato como comissário para as
Questões Militares e Navais, em 1925, Frunze destacou-se pela inteligência e pela
abordagem original da doutrina militar, pela reforma das forças armadas e pelas
técnicas operacionais da guerra moderna.
Sofria de úlcera estomacal, que preferia tratar com medicina conservadora e,
geralmente, conseguia controlar a dor rotineira e constante. Uma equipe de
médicos, no entanto, recomendou a cirurgia. De acordo com diversos testemunhos,
por exemplo, o do livro Tak bylo (“Eis como foi”) de I.K. Gamburg, e o do conto
Povest nepogashchennoy luny (“História de uma lua inextinguível”) de Boris Pilnyak,
Stalin e Mikoyan visitaram Frunze no hospital e instaram para que o cirurgião
professor Rozanov realizasse a operação. Pouco antes da cirurgia, Frunze escreveu
um bilhete à esposa: “Neste momento, sinto-me completamente em forma, e é uma
bobagem pensar em operação, muito menos fazê-la. Ainda assim, as duas equipes
insistem nela.”13
É difícil avaliar a veracidade dos rumores que correram depois da morte de
Frunze, se foi a mão do destino, ou a de alguém que o atacou. Muitos médicos
expressaram a opinião de que a operação, bastante simples até para os padrões
daquele tempo, não era necessária. No funeral, Stalin disse: “Talvez seja até melhor
que velhos camaradas cheguem à sepultura de forma tão quieta e tranquila.
Infelizmente, será bem mais difícil sua substituição pelos jovens camaradas.”14
Houve quem detectasse um significado oculto naquelas palavras, mas não há base
para afirmativas categóricas. Frunze, caso sobrevivesse, teria, por certo, um papel
importante, e Stalin sabia disso.
Um dos mais destacados organizadores do Comitê Central foi Yakov
Mikhailovich Sverdlov, homem totalmente destituído de ambições pessoais, como
Lunacharsky a ele se referiu. Era o exemplo clássico do funcionário dedicado. “Ele
tinha ideias ortodoxas sobre tudo e foi não mais que um reflexo da vontade geral da
diretriz de cima. Pessoalmente, jamais emitiu orientações próprias, meramente as
transmitia, quer do Comitê Central, quer de Lenin.” Quando falava, segundo
Lunacharsky, parecia um editorial de jornal do partido. Não obstante, era possuidor
de algo que poucos tinham, ou seja, da captação brilhante das pequenas nuances das
atitudes no partido, e uma extraordinária capacidade de organização. Com efeito,
quando foi decidido que o secretariado deveria ter um só chefe e que o secretário-
geral do Comitê Central deveria ocupar o cargo, Sverdlov já estava preenchendo
aquela função. Stalin gostava da maneira eficiente com que Sverdlov conduzia as
reuniões do comitê. Numa sessão memorável de março de 1918, a agenda era a
situação na Ucrânia, uma declaração dos Comunistas de Esquerda, a evacuação do
Pravda, a supervisão do segmento militar, uma declaração de Krylenko e o caso
Dybenko. O país fervia. Sverdlov pegou o livro de capa de oleado preto onde
registrava as minutas, olhou em torno para os presentes, inclusive Lenin, Zinoviev,
Artem Sergeyev, Sokolnikov, Dzerzhinsky, Vladimirsky e Stalin, e, suavemente,
solicitou a todos que não se afastassem da pauta.15 Depois de sua morte inesperada,
Lenin disse que uma tal pessoa não podia ser substituída; para isso, seria necessário
todo um grupo de funcionários.
Muitos aspectos do caráter são forjados no trabalho com um grupo de colegas
que pensam da mesma forma ou que até são competidores. Como um dos
integrantes da coorte de Lenin, Stalin iria absorver muita coisa valiosa e duradoura
do próprio líder ou de seu entourage. Mas nem todas as características humanas são
passíveis de mudança. Os atributos caldeados nos primeiros anos de vida, tais como
a mania do sigilo, o cálculo, a aspereza, a desconfiança, a insensibilidade podem,
com o correr do tempo, tornar-se mais enraizados, e não abrandados. Stalin, bem
cedo, começou a manifestar a qualidade descrita por Hegel como “probabilismo”,
isto é, o tipo de personalidade que, tendo cometido um ato moralmente
repreensível, tenta justificá-lo mentalmente e representá-lo para si mesmo como
bom. Assim era Stalin. Uma vez certo de que o líder incontestável estava seriamente
enfermo, ele começou, passo a passo, seu grande jogo de maximizar a própria força
dentro da liderança. A princípio, tentou convencer a si mesmo de que aquilo era
necessário “para a defesa do leninismo”. Depois, tudo o que fez considerou
moralmente justificável em nome da “construção do socialismo num país”. O
probabilismo acabou ocupando lugar importante em seu arsenal de métodos
políticos. O povo tinha que saber, acreditava ele, que tudo que fazia era em nome
do povo.
Parece claro que muitos daqueles que cercavam Lenin por muito tempo não
enxergaram através de Stalin. Alguns o viam simplesmente como um executor,
outros, como o representante razoavelmente eficaz dos elementos minoritários
nacionais dentro do partido, enquanto para outros não passava de uma
mediocridade típica dos círculos governamentais de qualquer regime ou sistema. Os
camaradas de Lenin o subestimaram, ao passo que Stalin entendeu perfeitamente
todos eles. Mesmo os companheiros mais próximos de Lenin, como Zinoviev,
Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky, Rudzutak e Kosior, terminariam como
“inimigos do povo” porque Stalin assim o decidiu. Afinal, ele prestou muita atenção
ao fato de o Exército Vermelho ter sido comandado durante a guerra civil quase que
exclusivamente por seus “inimigos”: Trotsky, Blyukher, Yegorov, Tukhachevsky,
Uborevich, Dybenko, Antonov-Ovseyenko, Smilga, Muralov, mais centenas e
milhares de outros “traidores”.
Lenin não percebeu, mas Stalin constatou com sagacidade que os “capitães da
indústria” eram, na sua quase totalidade, “sabotadores”, como Pyatakov, Zelensky,
Serebryakov, Lifshits, Grinko, Lebed, Semenov e milhares de outros. Só Stalin
entendeu que o serviço diplomático soviético estava infestado de “espiões”, como
Krestinsky, Rakovsky, Sokolnikov, Karakhan, Bogomolov, Raskolnikov. Quantos
“homens de duas caras” ele identificou e desmascarou em praticamente todas as
esferas do Estado! Pessoa assim seria realmente uma “mediocridade”? Trotsky estava
errado. Robespierre disse na Convenção em 5 de fevereiro de 1794 que “o primeiro
princípio de nossa política tem que ser o de governar o povo com ajuda da razão e
tratar os inimigos do povo com a ajuda do terror”.16 O sistema de Robespierre foi
dualista, não universal. O “princípio” político de Stalin foi monístico – todos
tinham que ser governados pelo método único da coação. Duvido que qualquer dos
camaradas de Lenin sonhasse, em seus pesadelos mais terríveis, que tal monstro era
cevado em seu meio, exatamente ali no núcleo da liderança.
Notas

* Facção do partido formada em 1920 pelos ex-Comunistas de Esquerda V.V. Osinsky, T.V. Sapronov, V.N.
Maximovsky. Eram pela gerência coletiva e não de um só homem, contra o controle do partido central nas
localidades, e exigiam liberdade para facções e grupos no partido.

** Formada em 1920 por A.G. Shlyapnikov, M.K. Vladimirov, A.M. Kolontal, Yu.Kh. Lutovinov, C.P.
Medvedev, considerava os sindicatos a forma mais elevada de organização da classe trabalhadora, e não o
partido, e propunha que a administração da economia nacional fosse entregue aos sindicatos.

*** Em 1932, Mikhail Ryutin distribuiu um longo documento pedindo um ritmo mais lento para a
industrialização e a coletivização, democracia partidária e a remoção de Stalin.

**** A Cheka, sigla do Comissariado Extraordinário para o Combate à Contrarrevolução e à Sabotagem,


fundada em dezembro de 1917, com Dzerzhinsky à sua frente, foi a precursora da GPU, da NKVD e da KGB,
isto é, da polícia política.
[8]
O secretário-geral

N os cerca de seis anos que restaram de vida a Lenin depois da Revolução de


Outubro, anos repletos de feitos, de esperanças e desilusões, ele só
conseguiu esboçar por alto o que estava por vir.
O XI Congresso do partido foi seu último. O relatório sobre a organização foi
feito por Molotov, cuja descrição do estado interno do partido mostrou quão
sobrecarregadas de trabalho estavam as várias seções do Comitê Central. “Durante o
ano”, disse ele, “22.500 trabalhadores do partido passaram pelo Comitê Central, ou
seja, quase sessenta por dia”. Levantou a questão da movimentação dos quadros,
mantendo registros adequados e introduzindo mais organização no trabalho do
aparato do comitê, e sublinhou que, no correr do ano, o número de sessões e a
quantidade de matérias apreciadas cresceram 50%, com o consequente aumento no
número de conferências e de encontros não partidários. Os delegados expressaram
insatisfação com o trabalho do centro. Osinsky, por exemplo, reprovou o Politburo
por perder tempo com assuntos tais como se deveria ou não passar o Palácio Boyar
para o Comissariado da Terra, ou sobre a distribuição de gráficas para essa ou aquela
instituição.17 O congresso propôs que a melhora na administração do partido e do
país fosse entregue a três órgãos do Comitê Central, a saber, o Politburo, o Orgburo
e o Ekonomburo.
As minutas dos primeiros congressos pós-revolucionários do partido são
caracterizadas pela sinceridade e franqueza dos debates. Imperava, naturalmente, a
crítica, enquanto elogio, deferência e adulação eram desconhecidos. Ninguém
buscava a unidade por ela mesma. Havia líderes, mas não cultos. Por exemplo,
malgrado a grande consideração em geral emprestada às ideias e argumentações de
Lenin, seu relatório para o XI Congresso foi bastante criticado por diversos
delegados. Para surpresa da assembleia, Ryazanov (nome verdadeiro, Goldendakh)
disse:
Nosso Comitê Central é uma instituição especial. Diz-se que o parlamento inglês pode tudo, só não
transforma homem em mulher. Nosso Comitê Central é muito mais poderoso: transformou mais de um
homem altamente revolucionário em mulher velha, e a quantidade delas vem crescendo rapidamente.
Enquanto o partido e seus membros não tomarem parte na discussão coletiva de todas as matérias que são
levantadas em seu nome, e enquanto tais iniciativas estiverem caindo como neve na cabeça dos membros do
partido, continuaremos com o que o camarada Lenin chamou de mentalidade do pânico.18

Discussões francas sobre tudo o que pudesse afetar a vida do partido eram a norma,
ao passo que observações críticas semelhantes feitas nos anos 1930 seriam encaradas
como “destrutivas”, e a aprovação unânime, o apoio irrestrito e a bajulação
passariam a ser a regra. As atas dos congressos ao tempo de Lenin foram modelos de
democracia, de camaradagem ideológica e de abertura da mais alta – dentro do
partido.
Já em 1920, o trabalho do dia a dia do aparato do Comitê Central mostrou que
o secretariado necessitava de alguém para cuidar de sua própria organização. No
pleno de 5 de abril de 1920 do Comitê Central ficou decidido que Krestinsky,
Preobrazhensky e Serebryakov seriam nomeados secretários, que a indicação de um
secretário-executivo não poderia tardar e que, em adição aos três secretários, o
Orgburo deveria incluir Rykov e Stalin.19 As atas do Comitê Central (normalmente
anotadas em blocos escolares) demonstram que a questão da indicação de um só
secretário-executivo foi levantada muito antes de 1922. Depois do XI Congresso,
um dos secretários foi especialmente destacado, enquanto, antes disso, Stasova,
Krestinsky e Molotov tinham sido nomeados secretários-executivos. Agora, no
entanto, tratava-se da elevação da função ao status de secretário-geral. De quem foi a
ideia, de onde havia partido? A evidência é da origem em Kamenev e Stalin. Segue-
se, portanto, que Lenin era conhecedor da inovação iminente.
De acordo com a intenção manifesta no XI Congresso, o pleno de 3 de abril de
1922 escolheu um Politburo, um Orgburo e um Secretariado. Também decidiu
adotar o cargo de secretário-geral, e Stalin foi nomeado naquele mesmo dia. Isso,
aliado ao fato de ele ser membro do Politburo e do Orgburo, significou o
desempenho simultâneo de três importantes funções no partido. Ao mesmo tempo,
Molotov e Kuibyshev, que eram membros candidatos do Politburo, foram
nomeados secretários. Hoje se pergunta por que Stalin e não outro recebeu o cargo?
Quem o indicou? Qual a participação de Lenin na nomeação? A nomeação de Stalin
para secretário-geral significou a concessão a ele de poderes extras? A resposta a tais
indagações nos encaminha à história do partido e do país, mas também vai à raiz de
males futuros. Voltemo-nos, portanto, para os documentos imparciais.
Os membros do Comitê Central que participaram da sessão plenária foram
Lenin, Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Stalin, Dzerzhinsky, Petrovsky, Kalinin,
Voroshilov, Ordzhonikidze, Yaroslavsky, Tomsky, Rykov, A.A. Andreyev, A.P.
Smirnov, Frunze, Chubar, Kuibyshev, Sokolnikov, Molotov e Korotkov, enquanto
os candidatos a membros incluíram Kirov, Kiselev, Krivov, Pyatakov, Manuilsky,
Lebed, Sulimov, Bubnov, Badaev e Solts, que era membro da comissão central de
controle.
O primeiro assunto debatido no plenário foi a composição do Comitê Central.
Quanto à função de presidente, o plenário resolveu “confirmar a aceitação unânime
do costume de não ter presidente. Os únicos funcionários oficiais do Comitê
Central são seus secretários: o presidente é escolhido em cada sessão”.
Foi levantada então a questão do porquê, na lista dos membros do Comitê
Central escolhidos pelo congresso, havia notas sobre indicação de Stalin, Molotov e
Kuibyshev como secretários. Kamenev explicou, e o pleno anotou, que, “com a
aprovação total do congresso, ele anunciara durante as eleições que, a despeito de
algumas cédulas estarem marcadas com nomes de candidatos ao posto de secretário,
o pleno não deveria ficar inibido quanto a fazer sua própria seleção, porque aquilo
indicava meramente as preferências de uma seção particular de delegados”.20 Tais
preferências derivavam acima de tudo de Kamenev, Zinoviev e, às ocultas, de Stalin.
Oficialmente, o congresso nomeou apenas membros do Comitê Central, mas há
evidência de que Kamenev esforçou-se para assegurar a seleção de futuros
secretários. Em outras palavras, ele queria um “homem seu” chefiando o aparato do
Comitê Central. Suas relações eram excelentes com Stalin, o qual, mais de uma vez,
deu grande destaque a sua posição especial de ex-vice de Lenin no Sovnarkom e
havia grande deferência por ele como talvez a figura mais alta da hierarquia. Muitos
sinais indiretos indicam que Kamenev tentava garantir o cargo para Stalin, com o
conhecimento deste. Stalin gostava da função e já tinha identificado as vantagens
nela implícitas.
O pleno foi mais adiante em suas decisões: “O posto de secretário-geral e os de
dois secretários devem ser criados, o camarada Stalin como secretário-geral e os
camaradas Molotov e Kuibyshev como secretários.” Lenin propôs que secretários
não tivessem outra tarefa que seu papel de liderança e instruiu Stalin para encontrar
vices e assistentes que o aliviassem do trabalho nos sovietes e na Inspetoria de
Operários e Camponeses.21
Ao tempo da nomeação de Stalin, os médicos de Lenin insistiam para que ele
seguisse um regime de vida rigoroso. De fato, foi em abril de 1922 que eles
decidiram pela necessidade de um longo repouso e ar de montanha, e propuseram
uma viagem ao Cáucaso, mas essa cura teve que ser adiada e Lenin continuou
trabalhando. Ele desejava que o aparato do Comitê Central evitasse a burocracia
para não emperrar. Por proposta de Lenin, o Politburo reunia-se uma vez por
semana, mas havia trabalho diário a ser feito. O secretariado preparava os
documentos para as sessões do Politburo, transmitia suas decisões para os
encarregados pela execução e cumpria as ordens de seus membros. Apesar de não se
envolver diretamente com as questões relacionadas com economia, defesa,
administração do estado ou educação, desempenhava parte importante na
administração geral do aparato do partido. Uma vez que os órgãos principais eram
dirigidos por bolcheviques importantes, que não davam muita atenção aos detalhes
técnicos, ficou resolvido que um dos membros do Politburo seria responsável por
todo o trabalho do secretariado, com o cargo de secretário-geral. Para firmar bem: a
proposta concreta sobre a candidatura de Stalin foi feita por Kamenev, o qual
também presidiu o pleno que indicou o secretário-geral. Tudo leva a crer que essas
questões foram examinadas antes com Lenin.
Stalin era qualificado para a função? Evidentemente que sim. Era membro do
partido desde 1898 e do Comitê Central desde 1912, como também participava do
gabinete do Comitê Central, do Orgburo e do Politburo. Único integrante do
Politburo a ocupar dois postos estatais – o de comissário das Nacionalidades e a
Inspetoria de Operários e Camponeses – representava também o Comitê Central na
junta da Vecheka-OGPU (Administração Política Unificada do Estado) e era
membro do Revvoensoviet da República e do Conselho do Trabalho e da Defesa – e
isso não esgota a lista de cargos que exercia quando se tornou secretário-geral.
Indiscutivelmente, essas são provas de que sua contribuição para a reestruturação
da sociedade, sua experiência com as atribuições da administração política e do
Estado e sua inclinação pelo trabalho de organização eram reconhecidos e acatados
por muitos dos velhos bolcheviques. Sua ascensão ao cargo de secretário-geral,
portanto, não surpreendeu. Grande parte dos outros líderes continuava a considerar
o cargo como essencialmente rotineiro. Tudo isso ocorria enquanto Lenin estava
vivo e bem. A questão da chefia do partido e do Estado simplesmente não era
cogitada. Havia um líder incontestável, que era Lenin. Na nova função, Stalin
continuava pouco conhecido pelo partido e pelo país. Dentro da liderança, contudo,
suas qualidades positivas e negativas passavam a ficar mais evidentes.
Para o traçado completo do caráter de Stalin serão necessárias décadas, se é que
um dia chegaremos a ele. Ele sabia disfarçar os sentimentos. Poucas pessoas
chegaram a vê-lo irado. Era capaz de tomar as decisões mais duras com absoluta
serenidade. Com o decorrer do tempo, seus auxiliares mais próximos passaram a ver
nisso grande sabedoria e perspicácia. Não conhecia a comiseração, nem o amor filial
ou o de um pai por filhos e netos. Destes, poucas vezes viu os filhos de sua filha
Svetlana e os filhos de seu primogênito Yakov. Sua vida particular era totalmente
segregada. Vivia para o trabalho. Decisões, ordens, reuniões, discursos. O mundo
era em preto e branco, e tudo que não se coadunasse com a “linha” era ruim. Meios-
tons eram imperceptíveis. Sua forma preferida de raciocínio era a lógica binária, sim
ou não. Era categórico e de um fim só, não distinguia a grande faixa de diversidade
entre esses dois polos. Seu estilo, suas anotações, seus discursos e relatórios eram
concisos, quase telegráficos. Gostavam disso, consideravam Stalin prático, homem
que conhecia as obrigações, sem sentimentalismos, homem de negócios. Ele não
gostava da palavra “humanismo”. À época, ninguém tinha ideia desses fatos. No
Comitê Central, pensava-se que, para Stalin, nada havia acima da disciplina
partidária, do dever partidário, da “linha” do partido.
Ao longo de 1922 e no início de 1923, quando a doença finalmente o
incapacitou, Lenin, preocupado com a solução política e organizacional de muitos
problemas, enviou dezenas de notas, projetos e cartas a Stalin. Decorridos nove
meses e depois de algumas decisões infelizes, Lenin percebeu que Stalin não fora
uma boa escolha para secretário-geral e que deveria ir para outra função.
Uma das decisões equivocadas de Stalin, por exemplo, foi o apoio que deu, em
maio de 1922, a uma proposta de Sokolnikov e Bukharin para acabar com o
monopólio estatal do comércio exterior. Lenin opôs-se categoricamente a essa
medida.22 Em setembro de 1922 – Lenin recuperado do primeiro e sério ataque –,
Stalin saiu-se com a ideia da “autonomização”, isto é, a unificação das repúblicas
nacionais por meio da adesão à Federação Russa. Na realidade, essa ideia não era a
criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas a de uma República
Federativa Socialista Soviética Russa, na qual as outras entidades nacionais teriam
direito à autonomia. Stalin já fizera aprovar sua proposta na comissão especial do
Comitê Central criada para apreciar a matéria. Lenin reagiu de imediato numa carta
endereçada a Kamenev, mas dirigida aos membros do Politburo:

Camarada Kamenev. Sem dúvida, você já recebeu a resolução da comissão do camarada Stalin sobre a
entrada de repúblicas independentes na RFSSR. [...]
Na minha opinião, essa é questão da maior importância. Stalin mostra certa tendência para apressar as coisas.
Você deve dar cuidadosa atenção a isso (certa vez, você teve intenção de tratar do assunto e chegou mesmo a
dar os primeiros passos), e Zinoviev também.23
Provavelmente, ninguém visitou Lenin em Gorky, durante a enfermidade, com a
frequência de Stalin. Por vezes, Lenin o convidava, a fim de se atualizar sobre as
questões correntes, noutras, o secretário-geral tomava a iniciativa. Na miríade de
assuntos levantados por Lenin, inquietava-o a saúde de Dzerzhinsky, de Tsyurupa, e
de outros camaradas que não estavam bem na ocasião. Chegou mesmo a discutir o
estado de saúde de Stalin, tendo primeiro falado num telefonema com o médico do
secretário-geral, V.A. Obukh.
Em 26 de setembro de 1922, Lenin chamou Stalin a Gorky, e tiveram uma
conversa de três horas,24 na qual o líder enfatizou que o problema da unificação das
repúblicas era importante demais e não podia haver açodamento. Propôs uma nova
base em princípio para a criação do Estado unido: a unificação voluntária das
repúblicas independentes, inclusive a Rússia, numa União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, com a preservação de direitos totalmente iguais para todas. Stalin jamais
divergiu publicamente de Lenin e, em geral, aceitava logo seus argumentos, embora
nessa questão nacional considerasse “liberal” a posição do líder.25
Essas conversas frequentes não eram apenas uma maneira de Lenin obter
informações, dar conselhos e apresentar sugestões, mas serviam também para
instruir o chefe do aparato do Comitê Central. Durante os muitos encontros, Lenin
por certo formou boa ideia sobre os pontos fortes e fracos de Stalin, e os
comentários que fez sobre ele, no final de 1922 e início de 1923, resultaram de
análises e reflexões profundas. A questão nacional, em particular, e o modo de Stalin
equacioná-la abriram os olhos de Lenin para alguns novos aspectos da personalidade
do secretário-geral, e também para algumas facetas morais. Nas anotações intituladas
“Sobre a questão das nacionalidades ou Autonomização”, Lenin descreveu a ideia de
Stalin como um afastamento do internacionalismo proletário. Na conclusão, fez
uma avaliação política e moral de Stalin: “Acredito que um papel crucial foi aqui
representado pela pressa de Stalin e por sua propensão a recorrer a métodos
administrativos, bem como por sua animosidade em relação ao infame
‘nacionalismo social’. Animosidade em política, em geral, dá os piores resultados.”26
Ordzhonikidze foi também admoestado por usar a força física durante a viagem
que fizera ao Cáucaso. Ele chefiou a comissão que tentou pôr ordem no conflito
surgido com os líderes do partido comunista da Geórgia, mas se revelou inadequado
para a missão. Além do mais, quando a situação lhe estava sendo explicada, agrediu
Mdivani, um membro do Comitê Central local. Lenin escreveu que “nenhuma
provocação, nem mesmo insulto, podem justificar tal violência russa, e o camarada
Dzerzhinsky está irreparavelmente errado ao tratar o ato com tanta
superficialidade”.27 Foi o fato de Stalin não tomar posição de princípio nesse
conflito que permitiu a Lenin observar publicamente que o secretário-geral não só
agiu com açodamento e usou métodos “administrativos”, ou seja, coercitivos, mas
mostrou animosidade no trato de assuntos políticos.
O diário dos secretários de Lenin mostram que ele voltou repetidamente à
questão. As anotações de L.A. Fotieva, por exemplo, indicam que Lenin solicitou
material adicional sobre o incidente. Stalin recusou o envio dos subsídios
argumentando que se deveria evitar qualquer tensão desnecessária ao enfermo. Mas
Lenin insistiu. Em 5 de março de 1923, portanto cinco dias antes de sofrer o outro
derrame que o privou da fala, escreveu a Trotsky: “Solicito-lhe com veemência que
tome a si a defesa do caso georgiano no Comitê Central do partido. No momento,
está sendo ‘processado’* por Stalin e Dzerzhinsky, e não confio na imparcialidade
deles. Para ser honesto, muito pelo contrário!”28
No mesmo dia, Lenin ditou outra carta, dessa vez para Stalin. A missiva parece
ser de caráter pessoal, mas só parece. A razão para essa carta remontava a dezembro
de 1922 quando Lenin ditara para a esposa, Krupskaya, uma série de cartas de
enorme interesse para o futuro do partido. Durante a noite de 22 de dezembro,
aparentemente depois de ditar uma carta para Trotsky sobre o monopólio do
comércio exterior, a saúde de Lenin piorou. O braço direito e a perna direita ficaram
paralisados. Os membros do Politburo foram informados. No dia seguinte, Stalin,
pelo telefone, repreendeu Krupskaya nos termos mais rudes por “quebrar o regime
do líder enfermo”. Abalada pela aberta falta de tato e de cortesia de Stalin,
Krupskaya escreveu naquele dia a Kamenev:

Lev Borisovich, por eu ter escrito uma breve nota, ditada por Vladimir Ilyich com a permissão dos médicos,
Stalin permitiu-se atacar-me ontem da forma mais ofensiva. Não cheguei ontem no partido. Ao longo de
trinta anos, jamais ouvi grosserias de um membro do partido. O partido e Lenin não são menos caros para
mim do que para Stalin. Preciso agora de todo meu autocontrole. Sei melhor que qualquer médico o que
deve ou não ser dito para Ilyich, como também sei o que o incomoda ou não e, de qualquer forma, sei
melhor que Stalin.

Krupskaya prosseguiu solicitando a Kamenev que protegesse sua vida privada contra
“interferência tão crua e contra abusos e ameaças imerecidos”. E concluiu:

Não duvido da unanimidade da decisão da comissão de controle que deu a Stalin o direito de ameaçar-me,
mas não tenho força nem tempo para desperdiçar com farsa tão estúpida. Também sou humana e meus
nervos foram esgarçados ao limite.
N. Krupskaya29
De acordo com a vontade do Politburo, Stalin estava “protegendo” o líder contra
perturbações, mas é fácil ver que o isolamento de Lenin quanto às informações e sua
influência limitada sobre a situação do partido entraram nos planos de Stalin para
fortalecer sua posição durante aquele período.
Kamenev levou o conteúdo da carta de Krupskaya ao conhecimento de Stalin.
Este, sem discutir, escreveu imediatamente a Krupskaya, desculpando-se e
explicando que seu procedimento se devera exclusivamente à preocupação com
Lenin. É difícil aquilatar se houve ou não sinceridade na desculpa. Stalin era
totalmente pragmático a respeito de princípios morais, e infringiria qualquer um se
lhe conviesse. Fosse como fosse, Lenin só soube do incidente, por intermédio de
Krupskaya, cerca de dois meses depois, em 5 de março de 1923. Ele viu o fato como
algo mais que pessoal. Logo depois, convocou a secretária, M.A. Volodicheva, e
ditou o bilhete para Trotsky sobre o plenário do Comitê Central que iria apreciar o
caso georgiano. Disse à secretária para ler o bilhete para Trotsky pelo telefone e
trazer-lhe a resposta tão logo possível. Então, ditou a seguinte carta para Stalin:
Respeitado camarada Stalin
Foi um insulto seu chamar minha esposa ao telefone e ofendê-la. Embora ela tenha dito a você que está
disposta a esquecer o que foi dito, ela contou a Kamenev e Zinoviev o que ocorreu. Não estou disposto a
esquecer com tanta facilidade o que é feito contra mim, porque nem é preciso frisar que o que é feito contra
minha mulher considero contra mim. Portanto, por favor considere se vai retirar o que disse e vai se
desculpar, ou estarão cortadas as relações entre nós.
Com respeito
Lenin, 5 de março de 1923.30

O tom de Lenin foi conciso e sóbrio. Ninguém ainda no partido sabia que ele
escrevera, em dezembro de 1922, sua “Carta ao Congresso” dando sua avaliação das
qualidades pessoais dos líderes do partido e recomendando a remoção de Stalin do
cargo de secretário-geral. A carta de 5 de março apenas acrescenta detalhes da
imagem política e moral que formara de Stalin. Lenin, finalmente, chegara à
conclusão de que, a despeito de o partido não ter escolha senão a de tolerar tais
comportamentos de membros de suas fileiras, as falhas morais de Stalin eram
absolutamente inconcebíveis num líder. Profeticamente, ele viu no caráter de Stalin
maus augúrios para a questão toda da liderança do partido. No dia seguinte, ditou
seu último documento em que Stalin figurou:

Aos camaradas Mdivani, Makharadze e outros.


Cópias para os camaradas Trotsky e Kamenev
Respeitados camaradas,
Acompanho a causa de vocês de todo coração. Fiquei horrorizado com a rudeza de Ordzhonikidze e com a
conivência de Stalin e Dzerzhinsky. Estou preparando notas e um discurso em favor de vocês.
Com respeito
Lenin, 6 de março de 192331

Lenin não conseguiu escrever nem notas nem discurso. Quatro dias depois, outro
derrame impossibilitou-o até mesmo de ditar. Toda evidência – principalmente suas
três últimas mensagens ditadas em 5 e 6 de março – indica, porém, que as ações de
Stalin na questão georgiana convenceram Lenin por completo de que sua Carta ao
Congresso estava bem fundamentada. Não foi fácil para Lenin aceitar o
desapontamento. A escolha que fizera em abril de 1922 fora má. Todos tinham
errado, inclusive ele. Mas o erro podia ser corrigido. Não lhes era possível ter uma
pessoa completamente amoral à frente do aparato do Comitê Central, um homem
potencialmente tão perigoso para a causa. Se Stalin fora capaz de ser insultuoso,
hipócrita e ofensivo com uma pessoa tão próxima a Lenin como Krupskaya, de que
forma se comportaria com os outros? Teria havido uma boa razão para o declínio
tão acentuado da saúde de Lenin durante os primeiros dez dias de março? Os
eventos dramáticos daquela ocasião – o caso georgiano e o desentendimento com
Stalin – devem ter acelerado a marcha de sua doença. O estado de espírito de Lenin
pode ter predisposto o líder para o derrame fatal.
No final, a ideia de “autonomização” de Stalin foi rejeitada, e a política de Lenin
sobre as relações de nacionalidade foi adotada. No Congresso dos Sovietes, aberto
em 30 de dezembro de 1922, foi proclamada a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas-URSS. A carta de Lenin sobre o assunto – que, aliás, só veio a público
trinta anos mais tarde – foi a base do relatório apresentado por Stalin. O relatório,
bem como a “Declaração sobre a Formação da URSS”, que ele também fez,
centraram-se na ideia do internacionalismo proletário, no compromisso de todas as
nacionalidades com a amizade, a solidariedade de classe e a dedicação aos ideais
revolucionários. Reiterando as ideias de Lenin, sem citá-lo, Stalin declarou que a
tarefa especial da nova união era a de fazer desaparecer a desigualdade nacional
herdada do passado.
Lenin estava doente, porém, ainda assim, pôde insistir na perseguição de uma
solução mais equitativa para a questão nacional, num vasto país que abarcava mais
de cem nacionalidades. Stalin dificilmente desejaria solução diferente, mas lhe
faltavam perspicácia e inteligência para lidar com problema tão difícil. Em suas
memórias, Trotsky afirma que só a doença de Lenin “evitou que ele destruísse Stalin
politicamente”. Escreve também que a teimosia de Stalin frequentemente causou
perturbação em Lenin, agravando seu estado de saúde. É eloquente o fato de, nove
meses apenas depois da elevação de Stalin ao cargo de secretário-geral, Lenin já
expressar a urgente necessidade de sua remoção. A esse respeito, a Carta ao
Congresso e os últimos ensaios e cartas que, juntos, são conhecidos como seu
Testamento são de importância seminal para o entendimento da personalidade
política e moral de Stalin.
Nota

* Jogo de palavras com o idioma russo, em que “perseguido” e “processado” são iguais.
[9]
A carta ao Congresso

O destino dos últimos escritos de Lenin foi dramático. Parte substancial foi
envolvida num manto de sigilo stalinista e sonegada ao partido. Só depois
de 1956 e do XX Congresso que rascunhos seus, como “Da outorga de
poderes ao Gosplan”, “Sobre as nacionalidades ou autonomização”, “Carta ao
Congresso” e alguns outros lembretes vieram à luz. Seu artigo “Como reorganizar o
Rabkrin [Inspetoria de Operários e Camponeses] – Propostas ao XII Congresso” foi
impresso numa única cópia para que ele a visse. Depois da publicação de versão
cortada, uma carta especial foi enviada aos comitês provinciais dizendo que se
tratava de páginas do diário de Lenin doente, que recebera permissão para escrever
porque a ociosidade mental tornara-se intolerável para ele. Essa peça de indelicadeza
foi conjuntamente assinada por Andreyev, Bukharin, Kuibyshev, Molotov, Rykov,
Stalin, Tomsky e Trotsky, em 27 de janeiro de 1923.
As preocupações de Lenin, despertadas pelos indícios de autoritarismo que
identificara, eram incompreensíveis para Stalin e muitos outros. O pensamento
principal dos últimos escritos de Lenin, entretanto, era fundamentalmente otimista:
que o socialismo tinha futuro na Rússia. As questões cardeais, como
industrialização, reestruturação da agricultura com base em princípios cooperativos
voluntários, transformação da cultura em propriedade do povo, administração
estatal, tudo era visto por ele pelo prisma da concessão de poder às pessoas comuns
do povo e da introdução da democracia em todas as facetas da vida social. A
evolução que tinha em mente também requeria novas pessoas, e isso, para Lenin, era
então a principal providência.
Antonio Gramsci, debatendo as origens do cesarismo, expressou certa vez a
interessante ideia de que quando forças contendoras se exaurem mutuamente, uma
terceira força pode emergir para então prevalecer sobre os dois lados.32 Na Rússia, a
questão, provavelmente, não foi tanto de grupos particulares de pessoas como forças
sociais – o operariado, os camponeses e o partido – e sim, como Lenin expressou, “a
vasta e ilimitada autoridade da mais fina das camadas, a velha guarda do partido”.33
O socialismo só poderia ser construído sobre as bases do sábio compromisso social
proposto por Lenin: o da aplicação da Nova Política Econômica-NEP* [Novaya
Ekonomicheskaya Politika] juntamente com o gradual alastramento no campo da
agricultura cooperativa voluntária. Qualquer outra política redundaria numa luta
com os agricultores e na consolidação dos métodos autoritários do governo. E o
totalitarismo sempre tem que ter seus Césares. Como outros líderes, Stalin não
entendeu quando Lenin disse que “nosso partido é um pequeno grupo de pessoas
comparado com a população do país”34 e que a NEP se tornaria a condição-chave
do movimento na direção do socialismo.
Os bolcheviques eram produto do proletariado urbano. A união com os
camponeses, mesmo que não em termos iguais, deveria vir da oportunidade de os
camponeses possuírem sua própria terra e exercerem o livre comércio. A gente do
campo só seria atraída para o socialismo por via do cooperativismo voluntário, como
Lenin anteviu, e a NEP destinava-se a cimentar as relações entre eles e os operários.
Mesmo dentro da “mais fina das camadas”, o topo do partido, nem todos
entenderam bem o que Lenin tinha em mente e o perigo que o povo corria se fosse
tomado outro caminho. Uma rota distinta implicaria repressão e rápido desvio para
o autoritarismo e o cesarismo.
Doente como estava, Lenin corria contra o tempo, temeroso de não poder
refletir sobre o futuro. No outono de 1922, teve uma réstia de esperança e pôde
retornar ao serviço ativo. Venceria ele de novo a enfermidade?
Bukharin relembra a satisfação de todos ao testemunharem a volta do líder ao
trabalho, no IV Congresso do Comintern, em 13 de novembro de 1922:

Nosso coração parou quando vimos Lenin subir ao pódio, pois sabíamos o enorme esforço que fazia. Corri
em sua direção e cobri-o com um sobretudo, pois ele transpirava de exaustão, camisa ensopada, gotas de suor
nas sobrancelhas, olhos cavados, mas com um brilho radiante, clamando por vida, como se a grande alma
entoasse loas ao trabalho.
Chorando de alegria, Clara Zetkin lançou-se para Ilyich e começou a beijar as mãos do velho. Envergonhado
e comovido, ele inverteu o movimento e tentou beijar as mãos dela. Ninguém percebia que a doença havia
lhe corroído o cérebro, e que o fim trágico e pavoroso estava perto.35

Evidentemente, Lenin sabia. Por isso, insistiu e fez apelos. Na manhã de 24 de


dezembro, Stalin, Kamenev e Bukharin discutiram a situação. Não tinham direito
de impor a Lenin que descansasse; no entanto, cuidado, atenções e tranquilidade
máxima eram essenciais. Decidiram que seria permitido a Lenin ditar cinco a dez
minutos por dia, sem corresponder-se ou esperar respostas de seus bilhetes.
Reuniões foram proibidas. Nem amigos nem empregados domésticos poderiam
levar a ele quaisquer notícias sobre a vida política, pois isso poderia absorver sua
atenção e perturbá-lo.36
Durante a doença, Lenin esteve cercado de secretários e secretárias. Ditava notas
para o Politburo, solicitava a transmissão de recados pelo telefone, pedia dados e
números, subsídios e documentos. Os secretários eram N.S. Alliluyeva (esposa de
Stalin), M.A. Volodicheva, M.I. Glyasser, Sh.M. Manucharyants, L.A. Fotieva e
S.A. Flakserman. Volodicheva estava de serviço em 23 de dezembro de 1922,
quando Lenin começou a ditar sua Carta ao Congresso. Suas anotações no livro de
serviço são concisas:

Ditou quatro minutos. Passou mal. Médicos presentes. Antes de começar, disse: “Quero ditar uma carta para
o Congresso. Escreva!” Ditou rápido, mas é óbvia sua péssima condição.37

O XII Congresso começaria em abril, e, se Lenin não estivesse em condições de


comparecer, sua carta poderia ser lida aos delegados. Suas frases foram bem
construídas e cuidadosamente refletidas. “Eu vos recomendaria com grande
empenho que sejam feitas pelo Congresso várias mudanças em nosso sistema
político.” Sem dúvida, sua cabeça estava voltada para pontos fundamentais:
democracia no partido, o poder do povo na sociedade e a maneira de atingir esses
objetivos. A democracia deveria ser a alavanca principal e o meio para se atingir a
nova ordem.

Desejo compartilhar convosco algumas considerações que reputo importantíssimas.


Encabeçando a lista, coloco o aumento em algumas dezenas ou mesmo até uma centena do número de
membros do Comitê Central. Penso que o Comitê Central enfrentaria grandes perigos se o curso dos eventos
se virar contra nós (o que não deve ser descartado) sem termos feito essa reforma.
Considero que o partido tem o direito de pedir da classe operária e obter sem grande esforço cinquenta ou
cem membros para o Comitê Central.
Essa reforma aumentaria enormemente a solidez de nosso partido e facilitaria muito sua luta em meio aos
estados hostis que, na minha opinião, podem e devem se tornar mais ativos no futuro próximo. Creio que tal
reforma multiplicaria por mil a estabilidade de nosso partido.38

Como primeiro passo para a concretização da ideia de Lenin, isto é, garantir a


democratização autêntica em todos os aspectos da vida do partido e do Estado, os
operários, constituindo a força principal da revolução, precisavam ser mais bem
representados no comitê central, o qual, em si, deveria crescer de duas ou três vezes.
Um comitê central completamente renovado, que incorporasse representação mais
ampla e se aproximasse mais das massas, diminuiria a probabilidade de que conflitos
entre pequenos grupos extravasassem e tivessem efeito de vulto sobre todo o partido.
Ademais, Lenin alertara que a situação internacional poderia logo se agravar.
Tinham que se apressar.
É importante relembrar que, com bastante frequência, Lenin não era bem
compreendido por seus camaradas. E quando o era, nem sempre recebia apoio total:
por exemplo, outubro de 1917, Brest-Litovsk, Nova Política Econômica, ampliação
do comitê central pelo recrutamento de operários. Mas fora capaz de arrastar a
caravana revolucionária atrás de si pela força avassaladora dos argumentos e da
determinação. Jamais saberia que seus alertas mais temíveis seriam desprezados, e
que seus últimos desejos em relação a Stalin não seriam atendidos.
Voltemos à Carta.

Tenho em mente a estabilidade como garantia contra um divisionismo no futuro próximo, e proponho que
sejam avaliadas diversas considerações de ordem pessoal.
É minha opinião que membros do Comitê Central como Stalin e Trotsky são fundamentais, nessa ordem de
ideias, para a estabilidade. A meu ver, as relações entre eles constituem toda uma metade do perigo de divisão
a ser evitado e que, aliás, pode ser evitado aumentando-se o efetivo do Comitê Central para cinquenta ou
cem membros.39
Muitos acadêmicos soviéticos ainda persistem em dar peso político insuficiente a Trotsky, cujas relações com
Stalin perfaziam “toda uma metade do perigo”. Lenin percebeu que Trotsky era mais popular que Stalin,
mas tinha consciência do controle que o último adquirira. As relações estremecidas entre as duas figuras
centrais corriam o risco de transbordar para um conflito que dividiria o partido.
Tendo se tornado secretário-geral, o camarada Stalin concentrou ilimitado poder em suas mãos, e não estou
muito certo de que ele sempre usará tal poder com cuidado suficiente.40

De onde provinha o “ilimitado poder” do secretário-geral? Ele era responsável por


todos os problemas correntes, muitos deles de interesse vital para o partido. Mas seu
poder principal resultava de ter o comando da seleção e promoção de membros do
partido para o centro e para as localidades. Isso significava milhares de membros. De
início, a maioria das pessoas não viu as possibilidades ligadas à distribuição de
funcionários do partido. Stalin, no entanto, logo fez a conexão entre aparato e
partido. Lenin continuou:

Por outro lado, o camarada Trotsky, como seu conflito com o Comitê Central sobre o Comissariado das
Vias de Comunicação já mostrou, distingue-se por suas excepcionais qualificações. Pessoalmente, talvez seja
o homem mais capaz no Comitê Central de hoje, mas é excessivamente autoconfiante e por demais atraído
pelo lado puramente administrativo do trabalho.41

Ao preparar-se para dizer tais palavras, Lenin deve ter pensado que, se Trotsky
tivesse uma determinação revolucionária mais firme, poderia ser um líder com
calibre de estadista. Talvez tenha lembrado, sorridente, do discurso de Trotsky sobre
o Exército Vermelho, no último congresso, quando, em vez de enfeixá-lo com
conclusões gerais sobre a maneira de aprimorar a estrutura militar, ele começou a
falar sobre a “instrução básica militar-cultural dos soldados”. Para uma plateia
animada, ele disse:

Vamos tentar que os soldados não tenham piolhos. Trata-se de importante tarefa de instrução, porque é
necessário ser persistente, incansável, firme, exemplar e repetitivo para libertar as massas de pessoas da sujeira
em que cresceram e que as vem consumindo. Isso porque soldado com piolho não é soldado, é meio soldado.
Quanto ao analfabetismo, é um caso de piolheira espiritual. Provavelmente, podemos liquidar com ela por
volta de 1º de maio e, então, prosseguir com o trabalho sem diminuir a pressão.42

Lenin gostou da expressão “analfabetismo é piolheira espiritual”. Trotsky era bom


em inventar, de improviso, aforismos brilhantes. Na realidade, o publicista com
frequência sobrepujava o político que existia nele, da mesma forma que a vaidade
muitas vezes dominava o bom senso, ou o desejo de agradar a plateia punha a
modéstia de lado. Não, ele e Stalin não aprenderiam a conviver. Ambos eram
ambiciosos e evidentes polos opostos. Prosseguiu:

Essas qualidades dos dois proeminentes líderes do atual Comitê Central podem, inadvertidamente, conduzir
a uma cisão.
Não me deterei nos atributos pessoais de outros membros do Comitê Central. Direi apenas que o episódio
de outubro envolvendo Zinoviev e Kamenev, embora não tenha sido acidental, não deve ser pessoalmente
imputado a eles, do mesmo modo que o não bolchevismo de Trotsky não deve ser transformado em acusação
pessoal.**
Dos membros mais jovens do Comitê Central, quero dizer umas poucas palavras sobre Bukharin e Pyatakov.
Eles são, no meu entender, as mais destacadas forças (entre as mais jovens), e se deve ter em conta o seguinte
sobre os dois: Bukharin não é apenas um teórico do partido muito valioso e importante, mas é também
legitimamente considerado o favorito de todo o partido, no entanto, é altamente duvidoso que sua visão
teórica possa ser considerada marxista por completo, já que existe algo de escolástico nele (jamais estudou a
dialética e jamais a entendeu, penso eu).43

A secretária de serviço naquele dia, depois de tomar o ditado, registrou:

No dia seguinte [24 de dezembro], durante o intervalo das seis às oito, Vladimir Ilyich chamou-me de novo.
Alertou-me de que tudo que ditara ontem (dia 23) e hoje (dia 24) era absolutamente secreto. Repetiu isso
várias vezes. Disse-me para guardar tudo que ditara em lugar especial, sob especial responsabilidade, e
considerá-lo como categoricamente secreto.44
Infelizmente, Fotieva, que era encarregada da secretaria do Sovnarkom e também
tomava os ditados de Lenin, ignorou suas instruções e logo informou Stalin e alguns
outros membros do Politburo sobre as notas de Lenin de dezembro, de modo que
sua “Carta” não surpreendeu a direção do partido.
Lenin continuou ditando no dia seguinte, 25 de dezembro:

Quanto a Pyatakov, é um homem de invulgar determinação e de notáveis capacitações, mas se inclina demais
pelo aspecto administrativo do trabalho para que a ele se confie uma matéria política séria.45

Em 26 de dezembro, Lenin ampliou suas ideias sobre o alargamento da democracia


interna no partido. Ele também via isso como um compromisso com a melhora da
administração do Estado que “na verdade, herdamos do antigo regime, uma vez que
foi impossível reformá-lo em tão curto tempo, em particular, com a guerra, a fome,
e tantas coisas”.46 Acrescentou que o comitê central deveria ser aumentado pela
convocação de camponeses, assim como de operários, e considerava a presença deles
nas sessões do Politburo como essencial.
Junto com essas ideias, Lenin continuou voltando à sua inquietação principal, a
questão das personalidades. Quem deveria ser o líder se ele morresse? Sabia que, em
sua ausência, o cargo de secretário-geral, com seu “ilimitado poder”, se tornaria
decisivo. Como fora impedido pela doença de presidir o comitê central, um dos
membros do Politburo fora alçado, automaticamente, ao posto de destaque. Stalin,
como secretário-geral, era responsável pela condução das questões do dia a dia do
secretariado, e então ficou patente que, se Lenin não melhorasse – o que o próprio
Lenin não acreditava, já que escrevia seu “testamento” –, Stalin tentaria reforçar sua
posição como chefe potencial. Mas Trostky poderia tentar o mesmo. Haveria
conflito, haveria divisão. Seu aconselhamento e seu alerta deveriam, pois, ser mais
específicos. Alguns dias depois, em 4 de janeiro, ele adicionou seu famoso pós-
escrito:

Stalin é por demais rude e este defeito, perfeitamente aceitável nas relações entre nós comunistas, não é
admissível num secretário-geral. Portanto, proponho que os camaradas encontrem a maneira de retirá-lo
dessa função e entreguem o cargo a alguém que seja superior ao camarada Stalin em todos os aspectos, ou
seja, mais paciente, mais leal, mais respeitoso e atencioso para com os camaradas, de humor menos
inconstante etc. Tais considerações podem parecer uma trivialidade, mas acredito que, do ponto de vista da
prevenção de um rompimento e em função do que eu disse sobre as relações entre Stalin e Trotsky, não se
trata de um assunto trivial, ou então é a espécie de trivialidade que pode assumir significação decisiva.47
Stalin não revelara até então ambição política de vulto. Parecia ser fiel à grande
ideia, embora, talvez, a entendesse de forma diferente. Porém, como bolchevique, o
escudete de sua reputação política ainda estava incólume. Política e moralidade,
contudo, andam de braços dados e, quando entram em descompasso, pode resultar
a intriga ou a ditadura. O pós-escrito de Lenin revela seu cuidado com o futuro,
mas não demonstra animosidade pessoal. Lenin estava acima dessas coisas.
“Conquanto fosse um oponente político duro e explorasse quaisquer instrumentos
da luta política, exceto os golpes baixos”, escreveu Lunacharsky sobre ele, “não se
percebia rancor nas suas atitudes para com adversários”.48
Lenin sentiu que os defeitos de Stalin podiam se tornar fontes de muitos
problemas, mas Trotsky também era motivo de preocupação, e não só por sua
arrogância acentuada no nível político. O fato de sua tardia adesão aos bolcheviques
poderia ter consequências. Seu extremismo de esquerda o colocara, muitas vezes, em
confronto com o comitê central, ao passo que suas pretensões eram tão elevadas que
chegara a se ofender, em setembro de 1922, quando convidado a ocupar o cargo de
vice-presidente do Sovnarkom – isto é, ser o segundo de Lenin. Esperava uma
posição especial. Mal escondia a própria opinião de que era um gênio, e parecia
mesmo acreditar que, se o desejo de Lenin de que se removesse Stalin fosse
atendido, ele se tornaria o líder do partido.
Ao propor a substituição de Stalin, Lenin, sabiamente, deixou em aberto a
questão de quem o substituiria, porque, se indicasse um “príncipe herdeiro”, estaria
estabelecendo uma sucessão e, assim, expressando dúvida sobre a capacidade de o
comitê central encontrar o melhor candidato. Quando fez a avaliação dos líderes
mais conhecidos, Lenin deixou claro que nenhum deles tinha as condições para
liderar o partido. Nem um só. Todavia, também quis deixar patente que o partido
não deveria buscar seu líder noutro lugar. Implicitamente, dizia que a “velha
guarda” estava capacitada a exercer a liderança coletiva, a qual, depois de criar
salvaguardas para que o poder não fosse capturado por um só homem, poderia
selecionar qualquer um entre uma dúzia ou mais de figuras bem conhecidas para
servir de número um entre iguais. Nesse caso, o fato de este ou aquele indivíduo ser
mais ou menos talentoso não teria tanta importância. Acima de tudo, o sistema
democrático, de acordo com as normas constitucionais e partidárias, estaria
trabalhando em apoio daquilo que servisse melhor aos interesses do país.
Mas seria precisamente com a ajuda da velha guarda que Stalin criaria seu
próprio sistema burocrático. Para entender por que, para estranheza generalizada,
Stalin foi alçado ao topo da pirâmide, têm-se que considerar diversos fatores: o
passado autocrático da Rússia e a ausência de hábitos democráticos na nova
sociedade, a baixa cultura política do povo e do partido, a grande necessidade de
maturidade das massas que o sistema de um só partido impunha, a falta de proteção
legal contra os abusos de poder e a peculiar natureza da estrutura de classes da
URSS.
Além do mais, havia o “segredo de invulnerabilidade” de Stalin, talvez a
característica mais importante de todas. Ele usurpou o direito de apresentar,
interpretar e comentar das ideias de Lenin a ponto de o povo acreditar, no final, que
ele caminhava lado a lado com o líder, que era, de fato, o camarada em armas,
pupilo e sucessor de Lenin. Stalin foi um fenômeno social, histórico, espiritual,
moral e psicológico. Lenin parece ter pressentido que o secretário-geral usaria seu
poder ilimitado para transformar o sistema emergente numa burocracia totalitária, e
concluído que Stalin não poderia ir adiante dentro do núcleo governante do
partido. Mas o alerta de Lenin só pode ser propriamente entendido contra o pano
de fundo do triunfo iminente de Stalin.
Dois meses antes do XII Congresso, um pleno do comitê central debateu uma
série de teses referentes à reorganização dos órgãos centrais do partido com base no
ensaio de Lenin “Como reorganizar a Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses” e
num suplemento intitulado “Melhor menos, mas melhor”. Decidiu-se que o tema
da organização constituiria item especial da agenda do congresso, tal como Lenin
sugerira. As teses advogavam o aumento no tamanho do comitê central de 27 para
quarenta e instavam para que o Politburo prestasse contas regulares aos plenos do
comitê central. Três representantes da comissão central de controle deveriam
comparecer às reuniões do Politburo, nas quais providenciariam para que
“autoridade alguma, nem mesmo a do secretário-geral ou a de qualquer membro do
comitê central, possa impedir que façam inquirições, inspecionem documentos e
obtenham informações essenciais, assegurando-se da estrita correção das
atividades”.49
Afora essa supervisão do órgão eleito da liderança, Lenin queria uma comissão
especial para acompanhar o trabalho do comitê central e do Politburo, no
interregno entre os fóruns comunistas. O plenário aceitou, efetivamente, os
argumentos de Lenin e concordou em aumentar a comissão central de controle (a
CCC) e estreitar os vínculos entre os órgãos do partido e o controle do Estado.
Quem poderia prever que o papel da CCC seria reduzido ao registro de questões
partidárias insignificantes e que acabaria totalmente abolida por Stalin no devido
tempo?
Embora já havia um ano na função de secretário-geral, Stalin não conseguira
imprimir, para o público externo, qualquer marca particular. O plenário submeteu o
relatório dele sobre “Fatores nacionais no partido e na construção do Estado” a uma
crítica séria. Tomando suas teses apenas como base, o plenário fez uma série de
observações sobre questões de princípio. Ficou resolvido que as teses seriam
apresentadas a Lenin depois que sobre elas se trabalhasse. Os textos de Stalin
mostram muitas lacunas em seu conhecimento, se bem que fosse considerado um
especialista no assunto. O plenário nomeou uma comissão constituída por Stalin,
Rakovsky e Rudzutak para trabalhar nas teses.50
Lenin sentia que a revolução vitoriosa requeria uma revisão, que seus argumentos
necessitavam de correção. Mas ele era também um homem de seu tempo. Não tinha
dúvida sobre a ditadura de uma classe que era parcela insignificante comparada com
os camponeses, e não voltou à ideia do pluralismo revolucionário que advogara no
final de 1917, nem condenou o emprego da força como meio revolucionário para
resolver problemas sociais. Viveu as circunstâncias daquela ocasião; embora pudesse
enxergar bem mais à frente do que muitos e, de fato, percebesse o perigo para a
democracia do partido com a predominância de um só líder, não foi capaz de
antever os riscos para a sociedade toda ao se confiar na infalibilidade de um partido
único. Fica-se com a sensação de que ele não teve tempo de dizer tudo o que queria.
Embora não duvidasse da ortodoxia do dogma marxista do século XIX, a
importância de seus últimos escritos não pode ser exagerada.
Como frequentemente ocorria, Trotsky assumiu posição própria no plenário. Na
sua opinião, a ampliação do comitê central deixá-lo-ia pesado, tirando-lhe a
“estabilidade necessária” e, em última análise, “ameaçava causar prejuízo extremo à
precisão e à correção de seu trabalho”. Propôs que se formasse um conselho do
partido com duas ou três dúzias de pessoas. Esse órgão daria diretrizes ao comitê
central e fiscalizaria seu desempenho. Na verdade, Trotsky estava propondo poder
dual e centros duais no partido. O plenário rejeitou a proposta depois de apenas um
pequeno debate. Como sabemos, o XII Congresso aceitou as proposições de Lenin e
criou a Comissão Central de Controle-Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses
como órgão unificado. Algumas das ideias de seu Testamento começaram a entrar
em vigor enquanto ainda estava vivo, mas longe de serem todas.

As cinco cópias feitas da Carta foram lacradas em envelopes: uma para a secretária
de Lenin, três para Krupskaya e a quinta para o próprio Lenin. O líder disse à
secretária, M.A. Volodicheva, para escrever nos envelopes que só poderiam ser
abertos por ele ou, depois de sua morte, por Krupskaya, mas Volodicheva não teve
forças para escrever “depois de sua morte”. Somente a primeira parte da Carta,
referente à ampliação do comitê central, foi transmitida a Stalin, e essa proposta foi
levada ao congresso como parte do relatório do secretário-geral sobre a atividade
organizacional do comitê central, sem que, no entanto, a autoria de Lenin fosse
citada. Lenin ainda estava vivo, e os envelopes permaneciam lacrados. Sob a
presidência de Kamenev, o congresso elegeu Lenin por unanimidade (e só ele!) para
o novo comitê central e enviou calorosas congratulações para o líder, para
Krupskaya e para a irmã de Lenin, Maria.51
Em março de 1923, Lenin foi arrasado por outro derrame cerebral que o
impossibilitou de exercer qualquer influência ulterior sobre as questões partidárias,
em especial para que as ideias contidas em seu “Testamento” vigorassem. A questão
de um futuro líder assumiu então absoluta importância.
Notas

* Política apresentada por Lenin no X Congresso do partido, em março de 1921. Permitia a empresa privada na
agricultura, no comércio e na maioria das pequenas indústrias para restaurar a economia nacional e pacificar o
campesinato.

** Na véspera da conquista do poder pelos bolcheviques, Zinoviev e Kamenev, acreditando que um levante
armado seria prematuro, publicaram na imprensa sua objeção. O “não bolchevismo” de Trotsky refere-se ao fato
de que ele só se filiou ao partido bolchevique em agosto de 1917.
[10]
Stalin ou Trotsky?

N ão fica bem claro para qual congresso Lenin enviou sua “Carta”. Ele
escreveu: “Eu vos recomendaria com grande empenho que sejam feitas
pelo Congresso várias mudanças em nosso sistema político” – e parece ter
tido em mente o XII, mas não o disse. Ademais, sua saúde, quando aquele congresso
foi aberto, em abril de 1923, de fato impediu que insistisse para que a Carta fosse
lida aos delegados. Surgira também uma situação imprevista. As instruções que
deixara insistiam que a abertura dos envelopes ocorresse depois de sua morte.
Portanto, é possível que a Carta fosse endereçada ao XII Congresso e também ao
XIII. Como a questão do secretário-geral não foi levantada no XII, ela assumiu
absoluta importância depois do derrame sofrido por Lenin em março, a partir do
qual ele não pôde mais se comunicar.
Após março de 1923, Stalin, como secretário-geral, tomou providências para
fortalecer sua posição. A autoridade que detinha foi robustecida no XII Congresso,
em que ele teve maior visibilidade que qualquer outro delegado, já que apresentou
relatórios sobre a organização do comitê central e sobre fatores nacionais nas
estruturas do partido e do Estado, bem como pronunciou os discursos de
encerramento das duas matérias. Seus relatórios foram escritos na forma
notavelmente esquemática de seu estilo pessoal. Gostava de ordenar seus
pensamentos de acordo com a importância, o que tendia a causar boa impressão por
oferecer clareza e precisão. Assim, ele criou a expressão “rédeas de condução” para a
união do partido com o povo. “A rédea guia de condução”, disse ele, eram os
sindicatos, nos quais “não temos agora oponentes fortes”. A segunda rédea era
formada pelas cooperativas de agricultura e consumo, se bem que, admitiu, “ainda
não somos suficientemente fortes para libertar os produtores primários da influência
das forças que nos são hostis”, querendo dizer os kulaks.* A terceira “rédea de
condução” eram as organizações da juventude, nas quais os ataques dos adversários
eram particularmente contundentes. Ele chegou a enumerar e categorizar, de acordo
com o nicho que ocupavam, diversas outras “rédeas”: o movimento das mulheres, as
escolas, o Exército, a imprensa. Tentou dar rótulos retóricos a cada um desses
elementos: a imprensa era “a língua do partido”; o Exército, “o ponto de reunião de
operários e camponeses”, e assim por diante.52 De modo tipicamente seu, enquanto
não dizia coisa alguma sobre o conteúdo do manejo dessas “rédeas de condução”, era
prolixo a respeito das forças hostis “que resistem a nós”. Sem dúvida, a luta de
classes prosseguia, embora, naquela ocasião, menos ostensivamente; ainda assim,
Stalin continuava a viver de rixas, embates e confrontos com inimigos,
espalhafatosos e efêmeros.
Depois do derrame de Lenin, em março, Stalin se tornou mais ativo, passando a
tratar menos com Zinoviev e Kamenev, menos ainda com Bukharin, e
rarissimamente com Trotsky. Sua autoridade política dentro do partido cresceu
lenta, mas consistentemente, e seu papel no Politburo começou a ganhar destaque.
Conseguiu-o mediante o paulatino isolamento de Trotsky, coisa só alcançável com a
ajuda de Zinoviev e Kamenev.
Numa entrevista com o autor, A.P. Balashov, um antigo bolchevique que
trabalhou no secretariado de Stalin, descreveu um incidente no Politburo
envolvendo uma colisão entre Zinoviev e Trotsky:

Todos estavam do lado de Zinoviev, que disparou contra Trotsky. “Você não vê que está cercado? Suas
artimanhas não funcionarão, você está em minoria, está sozinho.” Trotsky ficou furioso, e Bukharin tentou
colocar panos quentes. Era muito comum Stalin reunir-se com Zinoviev e Kamenev antes da sessão para o
acerto de uma posição. No secretariado, chamávamos esses encontros da troika “a pandilha”. Nos anos 1920,
Stalin teve sempre dois ou três assistentes. Em diversas ocasiões, eram Nazaretyan, Kanner, Dvinsky, Mekhlis
e Bazhanov. Todos sabiam da má vontade de Stalin em relação a Trotsky e procediam de acordo.

Zinoviev e Kamenev nutriam planos ambiciosos e, por temerem mais Trotsky que
Stalin, foram facilmente atraídos para o lado deste. Quando, em 8 de outubro de
1923, Trotsky escreveu uma carta aos membros do comitê central com severas
críticas à liderança partidária, Stalin, sentindo-se objetivamente em seu direito,
atacou os métodos políticos do rival.
Trotsky tinha o apoio de um grupo de bolcheviques que assinaram a chamada
“Plataforma dos 46”, figuras preeminentes como Preobrazhensky, Pyatakov, Kosior,
Osinsky, Sapronov e Rafail, entre outros. A principal crítica de Trotsky ao comitê
central era a de “o partido não ter planos de como fazer novos avanços”. Reiterava
ideias ligadas à “dura concentração industrial”, com o fechamento de fábricas
importantes, ao “endurecimento com os agricultores” e insistia de novo na
necessidade da “militarização do trabalho”. Esses pontos merecem exame.
No seu discurso no IX Congresso, em março de 1920, Trotsky afirmara que “as
massas trabalhadoras não podem ser nômades; como os russos de tempos passados,
elas têm que ser transferidas, designadas e comandadas como soldados. Esta é a base
da militarização do trabalho e, sem ela, não pode haver conversa séria sobre a
industrialização em novas bases. Não podemos chegar a ela em condições de ruína e
fome”.53 Três anos mais tarde, ele ainda acreditava que a aplicação de métodos
militares para a indústria e para a agricultura não perdera a oportunidade. Favorável
ao “comunismo de quartel”, Trotsky caía muitas vezes em contradição: gostava de
falar sobre a ausência da democracia no partido, porém insistia no emprego da
militarização para o bem comum, durante o período de mudança. Seja como for, ao
lançar um debate sobre questões econômicas no outono de 1923, quando Lenin
estava seriamente doente, ele, de certa maneira, colocou em xeque a política do
comitê central sobre o assunto e, pior, comprometeu a atuação de Stalin como
secretário-geral. Não obstante, a autoridade de Trotsky decaiu, ao passo que a de
Stalin aumentou.
Um pleno conjunto do comitê central e da CCC, em outubro de 1923,
condenou Trotsky. Ele só teve apoio de dois dos 114 participantes do encontro.
Com efeito, mesmo antes da reunião, já estava isolado na luta pela liderança do
partido. Foi completamente derrotado. Tentou então recorrer ao Exército, pois ali
ainda tinha considerável autoridade. Ajudado por um velho aliado, Antonov-
Ovseyenko, que chefiava a administração política do Revvoensoviet, propôs que as
forças armadas se manifestassem contra a linha do comitê central. Todavia, com
poucas exceções, os comunistas do Exército e da Marinha recusaram-lhe apoio. O
XIII Congresso de janeiro de 1924, que debateu a matéria, não só condenou
Trotsky como aprovou uma série de resoluções no campo econômico. Em
consequência, Trotsky admitiu que seus ataques ao comitê central e a discussão que
iniciara eram uma tentativa sua de se tornar líder do partido. Não se pode deixar de
notar, no entanto, que Trotsky provocou os debates em ocasiões bastante
desfavoráveis para ele e, na verdade, sabia de antemão que seria derrotado. Ao
superestimar sua própria influência intelectual, subestimou o controle que Stalin
conseguira e sua capacidade de lançar mão de quaisquer meios.
Emblemático foi que, em outubro de 1923, justamente quando Trotsky acendia
o conflito interno no partido, Lenin visitava Moscou pela última vez. Como a sentir
que seus temores sobre um rompimento iam se concretizando, ele se fez conduzir à
capital em 18 de outubro, contrariando os médicos. No último dia da estada, fitou
através do vidro do carro, pela vez derradeira, a Praça Vermelha, as cúpulas do
Kremlin, as ruas de Moscou e os pavilhões da exposição de agricultura. Antes de
partir para Gorky, pegou alguns livros com seu bibliotecário no Kremlin. Não se
encontrou com nenhum de seus camaradas. A silenciosa e quase secreta visita fora
uma despedida particular da capital dessa agitada terra.
Durante a revolução e a guerra civil, e por algum tempo depois, Trotsky só
perdia em popularidade para Lenin. Por exemplo, os nomes dos líderes nos plenos
do comitê central apareciam nesta ordem: Lenin, Trotsky, Zinoviev, Kamenev,
Stalin, Rudzutak, Tomsky, Rykov, Preobrazhensky, Bukharin, Kalinin, Krestinsky,
Radek, Andreyev. Mas a popularidade de Trotsky não se refletia no número de seus
seguidores pessoais. Situação paradoxal: Stalin, que não era popular, personificava a
linha do partido.
Contudo, fica claro nas obras de Trotsky que ele não partilhava na totalidade as
ideias de Lenin. Por exemplo, depois da morte de Lenin, Trotsky tentou usar a ideia
de democracia socialista como arma, enquanto ainda defendia métodos autoritários.
Deu a impressão de estar mais próximo do bonapartismo, do cesarismo e da
ditadura militar que da ideia de o povo exercer poder genuíno. Com a mesma idade
de Stalin (eles nasceram com apenas duas semanas de diferença em 1879), Trotsky
era um intelecto mais refinado, mais brilhante, mais rico. Testemunhas da época e
biógrafos, todos, concordam que suas proposições eram vivazes, sua cultura
solidamente europeia, sua energia ilimitada, que era tribuno majestoso e
amplamente lido. Mas exagerava a importância de sua própria personalidade,
mostrava-se superior, era arrogante, autoritário e categórico com todos, exceto
Lenin, e parecia intolerante com as ideias de outros. Naturalmente, criaram aversão
a ele.
Stalin foi identificando os pontos fracos de Trotsky e passou a utilizá-los ao
máximo naquela briga particular. Trotsky não dava atenção especial à
“meticulosidade” de seus muitos discursos e observações, cuidando mais dos
aforismos que encaixava para torná-los mais paradoxais e notáveis. Certa vez, numa
conversa com Lenin, ele se saiu com uma incisiva advertência que chegou aos
ouvidos de Stalin: “O cuco em breve estará piando a morte da República Soviética.”
De outra feita, falando a delegados de um congresso do Comintern, comentou que,
se a revolução não explodisse logo na Europa e na Ásia, “a tocha se apagava na
Rússia”. Era o argumento realmente sólido de que Stalin precisava para acusar
Trotsky de capitulação e falta de fé. E quanto mais Trotsky tentava se justificar,
mais parecia acusar-se. Stalin começava a se mostrar um lutador de tenacidade e
habilidade incomuns; batê-lo não era fácil.
Como outros líderes do partido, Lenin, a despeito de reconhecer a capacidade
literária e o talento organizador de Trotsky, bem como sua extrema vaidade,
também via nele limitação política, decorrente da compreensão esquerdista de
muitas ideias marxistas importantes. Fica patente que Lenin tentava levar Trotsky
na direção que julgava recomendável e, sem dúvida, se o líder vivesse mais, a vida de
Trotsky teria sido diferente.
Mais tarde, no exílio, Trotsky tentou muito propagar a noção de que Lenin
buscara atraí-lo para um “bloco” contra Stalin e, com a ajuda do próprio Trotsky,
no XII Congresso, remover o secretário-geral de seu cargo. Em Minha vida, Trotsky
escreveu:

Lenin, sistemática e persistentemente, preparou a situação para que, no XII Congresso e na presença de
Stalin, um golpe maciço fosse desferido contra a burocracia, a proteção mútua entre os burocratas, o arbítrio,
a teimosia, a grosseria. [...] Com efeito, Lenin conseguiu declarar guerra a Stalin e seus aliados, embora só os
diretamente envolvidos soubessem disso, não o partido.54

Por que Trotsky faria tais confissões, até certo ponto sensatas? Sobretudo, para
mostrar que Lenin o considerava sucessor. Com tal objetivo, ele comentou a Carta
ao Congresso de Lenin, concluindo que “o propósito inegável do Testamento era
facilitar o trabalho da liderança para mim. Lenin queria naturalmente conseguir isso
com a menor fricção possível”. Essas palavras dão todo o significado da longa
batalha de Trotsky. Ele jamais aceitou a amargura de sua derrota pessoal. Afinal de
contas, chegara a ver-se líder.
A dubiedade da versão de Trotsky é revelada pelo que Lenin realmente escreveu.
Lenin não tinha a menor necessidade de formar qualquer espécie de “bloco” com
Trotsky contra Stalin. Sua autoridade era inconteste. O fato de, às vezes, não ser
entendido por alguns altos intelectuais é outra questão. Quando adoeceu, houve
tentativas de explicar os mal-entendidos como frutos da enfermidade, da dificuldade
de comunicação e do fato de o líder estar muito distante e isolado. Mas não há
dúvida de que, se ele estivesse bem de saúde, seu único desejo pessoal e solidamente
motivado, a saber, a substituição do secretário-geral numa reunião do Politburo,
teria sido concretizado. Lenin podia considerar Stalin inadequado para o posto, mas
a candidatura de Trotsky não era muito melhor. Nenhum dos dois “líderes
notáveis” deveria assumir o leme da gigantesca nau do Estado russo.
As relações entre Trotsky e Stalin já eram complicadas antes da morte de Lenin.
Stalin sentira que Trotsky ambicionava a liderança. Tinha o adversário como
“aventureiro” e “impostor”, fazendo eco ao que Lenin dissera sobre o passado
menchevique de Trotsky. Com sua excelente memória, Stalin juntou os muitos
erros, zigue-zagues, desvios e voltas de Trotsky, organizando uma fieira para futuro
desmascaramento, argumentações, críticas, julgamentos. Não esqueceu da
fraseologia radical de esquerda de Trotsky em Brest-Litovsk, nem de sua ordem para
o fuzilamento de um grande número de trabalhadores políticos no front oriental,
por causa da traição de alguns militares, tragédia só evitada pela intervenção de
Lenin. Lembrou-se da proposta de Trotsky para o envio de corpos de cavalaria à
Índia para dar início à revolução, e não esqueceu do cuco que iria piar o fim do
regime soviético.
Stalin não gostou do fato de, logo depois da guerra civil, Trotsky cercar-se de um
batalhão de assistentes e secretários que o ajudaram a organizar vasto arquivo,
manter correspondência e preparar documentos e subsídios para infindáveis artigos e
discursos, facilitando seu impulso criativo. Stalin acreditava que Trotsky via os
incontáveis problemas da Rússia, em grande parte, pelo prisma de seus próprios e
estreitos interesses carreiristas, egoístas e sedentos de poder, sem levar em conta as
dificuldades da situação social e política. A relação entre os dois logo se tornou
mútua e profundamente hostil. Trotsky, diga-se, não se dava mal só com Stalin. A
rigor, não tinha aliados próximos entre os outros líderes. Mesmo a curta aliança com
Zinoviev e Kamenev seria costurada sobre plataforma antistalinista e destituída de
princípios. Ademais, Trotsky subestimou Stalin seriamente, a “destacada
mediocridade”, como começou a chamá-lo depois de expulso do Politburo.
Após o derrame de Lenin, Stalin passou a considerar-se encarregado de evitar
que Trotsky se tornasse líder do partido. A derrota deste no debate lançado por seus
seguidores reduziu muito suas chances, independentemente da decisão que o
congresso pudesse tomar a respeito da Carta de Lenin. Stalin se convenceu – e
repetia isso nos círculos fechados, talvez como autojustificativa – de que, se Trotsky
assumisse a liderança do partido, as conquistas da revolução correriam sério risco.
Trotsky não apenas desprezou a determinação e o intelecto de Stalin, mas
também, com seus incontáveis ataques, discussões e artigos polêmicos,
inevitavelmente fortaleceu a autoridade do secretário-geral, fazendo com que este
emergisse defensor da herança de Lenin e protetor da unidade do partido. Quanto
mais Trotsky investia contra Stalin, mais caía sua popularidade. O fator da queda
não foi tanto Stalin, mas o fato publicamente percebido de que Trotsky estava,
afinal, atacando a linha do partido, o centro. Assim, o próprio Trotsky ajudou a
consolidar a posição política de Stalin. Aos olhos do partido, Stalin nunca pareceu
oscilar para a esquerda ou para a direita, mas demonstrou flexibilidade, e às vezes
esperteza sutil, apoiando-se contra Trotsky em seus dois futuros inimigos – Zinoviev
e Kamenev. Janeiro de 1924 foi um tempo dolorosamente triste. No dia 19 daquele
mês, Kalinin informou ao Politburo que os médicos de Lenin mostravam-se, então,
decididamente otimistas quanto a seu gradual retorno ao trabalho. Lenin já
caminhava, e já eram lidos para ele documentos sobre questões de Estado. Havia
claros sinais de esperança, mas que se esboroaram rapidamente.
A nenhum país semidestruído convém uma liderança em constante conflito
interno, no entanto, o XIII Congresso do Partido, que teve lugar em meados de
janeiro de 1924, apresentou exatamente esse paradoxo. Debateu questões
econômicas rotineiras e deu realce político à oposição trotskysta.
Em 19 e 20 de janeiro, Krupskaya leu em doses homeopáticas para Lenin relatos
sobre o andamento da conferência. Lembrou mais tarde que, quando ele ficou
agitado no sábado, dia 19, ela lhe disse que as resoluções tinham sido aprovadas por
unanimidade. O debate sobre a oposição foi cáustico. Zinoviev e Kamenev, futuros
aliados de Trotsky, exigiram sua expulsão do comitê central e do Politburo. Terá
Lenin visto aí os indícios de rachadura emanando da força de uma única
personalidade? Deve ter percebido que seus avisos tinham-se tornado terrível
realidade.
Suas condições pioraram sensivelmente no dia 21 de janeiro e ele faleceu às
18h50. O atestado de óbito confirmou a opinião dos médicos de que a causa
subjacente da doença fora esclerose pronunciada das células do cérebro motivada
pela tensão do esforço mental excessivo; a causa imediata da morte foi hemorragia
cerebral. Trotsky, que se encontrava no sul, por alguma estranha razão não
compareceu ao enterro, embora tivesse tempo suficiente para estar presente. Da
estação ferroviária de Tiflis, passou um telegrama, em 22 de janeiro, contendo um
artigo para o Pravda que continha as seguintes linhas:

E, pois, Ilyich não há mais. O partido está órfão. A classe trabalhadora está órfã. É este o sentimento que traz
a notícia da morte do professor, do líder.
Como prosseguir? Encontraremos o caminho, não nos desviaremos dele?
Nossos corações estão partidos pela dor sem limite porque, por uma grande graça da história, nascemos
contemporâneos de Lenin, com ele trabalhamos e dele aprendemos.
Como avançaremos? Com a flama de Lenin em nossas mãos...55

Foi convocada uma sessão plenária extraordinária do comitê central para a noite de
22 de janeiro e, no dia 27, o corpo de Lenin foi entronizado no Mausoléu da Praça
Vermelha. O II Congresso dos Sovietes de Toda a União, aberto em 26 de janeiro,
aprovou a resolução de que a memória de Lenin devia ser imortalizada. Uma
cerimônia fúnebre teve lugar no Teatro Bolshoi, coberto de negro para a ocasião.
Às 18h30 daquela noite, o presidente do comitê executivo central, Kalinin,
solicitou que os membros do presidium do comitê executivo e do comitê central
ocupassem seus lugares na plataforma. Conforme as autoridades soviéticas
descreviam até recentemente a ocasião, foi como se Stalin, ao proferir seu “voto”,
tivesse sido o único orador. A verdade é que muitos outros falaram. O discurso de
Stalin, como de hábito escrito de próprio punho, foi pronunciado no estilo
passional de um juramento e no formato catequista de sempre. Tudo categorizado.
Num hino à fortaleza e ao sacrifício que se tornaria característico até o fim de sua
vida, ele disse: “Nos esquivaremos de incontáveis golpes [...] não pouparemos nossas
vidas [...] na construção do reinado do trabalho na terra, não no céu.”56 Em nome
do partido, Stalin jurou honrar o título de membro do partido, proteger sua
unidade, reforçar a ditadura do proletariado, fortalecer a união de operários e
camponeses e das repúblicas irmanadas, e permanecer fiel ao internacionalismo.
Nada sobre o poder do povo ou a democracia socialista ou a liberdade.
Possivelmente, isso estava implícito na promessa de reforço da ditadura do
proletariado, que, afinal, tinha seu lado não violento. É mais provável, porém, que
Stalin não tenha, simplesmente, sentido necessidade de tais sutilezas.
Começara um novo capítulo da história. O sucessor de Lenin como presidente
do Sovnarkom foi Rykov, enquanto Kamenev tornou-se presidente do Soviete do
Trabalho e da Defesa. Continuando secretário-geral, Stalin ficou à espera do
resultado do XIII Congresso onde seria lida a Carta do falecido Lenin. Mas, que
sabia ele da Carta? Os testemunhos são contraditórios.
Nota

* A palavra, cujo significado literal é punho, caracterizava, em termos soviéticos, os camponeses abastados. Na
realidade, qualquer agricultor relativamente bem-sucedido era assim rotulado.
[11]
As raízes da tragédia

S eguindo a vontade de Lenin, Krupskaya entregou a carta com o pós-escrito


ao comitê central em 18 de maio de 1924, cinco dias após a abertura do XIII
Congresso do partido, capeando-os com uma nota de próprio punho, em que
dizia que Lenin expressara o firme desejo de que, após sua morte, suas anotações
fossem levadas à atenção do congresso do partido que se seguisse.57 Com base num
relatório submetido pela comissão designada para receber as anotações de Lenin, o
plenário, que se reuniu na véspera do congresso, concordou que os documentos
fossem lidos “dentro das delegações, ficando bem entendido que eles não devem ser
reproduzidos”.58
Infelizmente, ninguém no Politburo se mostrou em condições ou quis entender
por completo as ideias de Lenin. O XIII Congresso lidou com muitas questões
importantes, mas todas relacionadas com assuntos da ocasião, não com o futuro. A
ideia central de Lenin, a do aumento do poder do povo, não foi a preocupação
principal do congresso. Nisso, talvez, assentou a semente das desditas que viriam.
Embora tanto o XII quanto o XIII congressos tenham, de fato, ampliado o
comitê central, os nomeados, ainda que valiosos, eram predominantemente ex-
revolucionários profissionais, enquanto o cerne da ideia de Lenin era uma expansão
do comitê central pela entrada de operários e camponeses.
De forma parcial, Zinoviev discutiu a questão da democracia socialista, que
tanto inquietara Lenin. Citou um “engenheiro burguês” que ora servia ao regime, o
qual dissera que não bastava proporcionar as necessidades básicas, as gentes tinham
que desfrutar também dos “direitos do homem”. Enquanto não gozarmos de tais
direitos, afirmara o engenheiro, permaneceremos inertes. Se não for reconhecido
que “o homem é o mais alto valor no estado”, o povo continuará com fraca
iniciativa nas áreas social e trabalhista. No entanto, a resposta de Zinoviev a esse
estado de espírito que imperava na intelligentsia foi: “Não devemos perder tempo
com esse assunto. É óbvio que pessoas assim vão ver tais direitos em nossa república
como veem suas próprias orelhas num espelho.”59 Zinoviev não era o único no
comitê central que carecia de uma concepção humanista profunda do socialismo. A
ignorância daqueles homens também alimentou as raízes de males futuros. É
verdade que, passados apenas seis anos e meio da revolução, sem o mando
autoritário do partido a República Soviética dificilmente teria resistido ao furioso
assalto dos inimigos internos e externos. Mas a negligência dos princípios
democráticos viria à tona mais cedo ou mais tarde.
A Carta de Lenin não foi tratada como deveria no congresso. Uns poucos
escolhidos deram conhecimento dela a um limitado número de delegações.
Kamenev mostrou-se particularmente ativo, indo de delegação em delegação. A
Carta não foi discutida, como tal, pelo congresso. Depois das “leituras”, a comissão
encarregada dos documentos de Lenin apresentou verbalmente uma resolução
preparada com antecedência, pela qual se impôs a Stalin tomar conhecimento das
críticas de Lenin, e deu-se por encerrado o assunto. Esse procedimento com a Carta
significou que seu conteúdo jamais foi totalmente apreciado e, portanto, ela não foi
utilizada para fortalecer as normas democráticas da vida partidária, tampouco para
imprimir mudanças estruturais no escalão de comando, ou para elevar uma nova
figura ao cargo de secretário-geral. Por outro lado, quase um ano e meio decorrera
desde a Carta ser escrita e, naquele período, Stalin tivera que declarar guerra a
Trotsky, o qual, pouco antes da morte de Lenin, atacara acerbamente a linha do
partido e a Nova Política Econômica. Ao defender o partido daquela investida,
Stalin, na realidade, defendia a si mesmo, mas era apoiado pela maioria partidária e
isso fazia com que os delegados acreditassem que a remoção de Stalin seria o
reconhecimento de que Trotsky estava certo.
Muitos delegados não atinavam com os estratagemas da política e confundiam
muito a forma com a substância. Foi graças em grande parte a seus memoráveis
discursos que Trotsky manteve a popularidade por tanto tempo. Em parte porque
os delegados estavam submetidos a um certo grau de “processamento” e pressão,
mas também devido ao baixo nível de sua cultura política, muitos não entenderam a
razão de um documento vital como a Carta não ter sido debatido abertamente no
congresso, a necessidade de tamanho sigilo e o porquê da não publicação das
propostas de Lenin. Cultura política subdesenvolvida, não só da maioria da
população mas do partido, foi também fonte importante de males no porvir.
Entrementes, a consciência daqueles bolcheviques de cultura política mais elevada,
que entenderam que o Testamento de Lenin merecia exame acurado, foi silenciada
pelo slogan da “unidade”. Não exerceram a faculdade de julgamento moral, e não
foi a última vez que isso ocorreu. A ascensão de um novo líder se processaria em
condições nas quais a democracia foi apequenada e emasculada, o partido
transformou-se numa máquina de poder e a consciência de muitos, que deveriam ter
protestado pública e ostensivamente contra a usurpação do poder por uma só
pessoa, permaneceu embotada. O fato é que expressar a própria consciência
demanda coragem intelectual e, como regra, a ansiedade medrosa revelou-se mais
forte. A liberdade não tinha grande prioridade no credo bolchevique.
Quando Stalin ouviu falar da Carta de Lenin, anunciou sua renúncia ao cargo.60
Se fosse aceita, as coisas poderiam ter sido bem diferentes. Ele tomou a decisão
correta, como qualquer bolchevique em sua posição deveria ter feito, mas não foi
um ato decisivo. Na verdade, Stalin deu por duas vezes sua demissão nos anos 1920.
Na segunda vez, depois do XV Congresso, em dezembro de 1927, ele agiu mais
categoricamente. A oposição trotskysta-zinovievista fora derrotada e o congresso
assinalou formalmente o fato. No primeiro pleno depois do congresso, Stalin
apresentou uma solicitação ao comitê central:

Considero que as circunstâncias recentes forçaram o partido a manter-me neste cargo, como alguém rigoroso
o suficiente para servir de antídoto à oposição. Agora, a oposição foi derrotada e expelida do partido. Além
do mais, temos instruções de Lenin e acho que chegou a hora de cumpri-las. Portanto, solicito ao plenário
que me desobrigue do cargo de secretário-geral. Asseguro-vos, camaradas, que o partido só tem a ganhar com
isso.61

Naquele instante, porém, sua autoridade havia crescido, e ele era visto no partido
como quem lutara pela unidade e se expusera contra os vários facciosos. Sua
renúncia foi recusada de novo. Stalin, sem dúvida, esperava por isso, e encenou a
demissão como um ato para fortalecer sua posição.
Voltando ao XIII Congresso, Kamenev e Zinoviev tomaram providências para
que as exortações de Lenin pela substituição de Stalin não fossem atendidas.
Persuadiram o secretário-geral a retirar sua declaração verbal e, juntos, engendraram
uma fórmula para que Stalin pudesse levar em conta as observações do líder
falecido. Pessoalmente, cabalaram junto às principais delegações, praticamente
desqualificando a ideia de Lenin, enquanto reabilitavam seu futuro coveiro. A
principal motivação dos dois foi impedir que Trotsky ocupasse o posto mais
elevado, que eles mesmos ambicionavam. Estiveram menos preocupados com a sorte
da revolução, a vontade de Lenin ou o destino do país. O mais velho imperativo do
mundo vigorou, a saber, interesse pessoal, ambição, vaidade. Como Trotsky, no
entanto, também eles subestimaram Stalin grosseiramente. No início dos anos 1920,
Zinoviev, por exemplo, repetira para um círculo íntimo, “Stalin é um bom executor,
mas precisa sempre ser orientado e se deixa levar. Não tem qualificações para a
liderança”. Zinoviev e Kamenev esperavam, aparentemente, que Stalin
permanecesse na função de secretário-geral apenas para administrar o secretariado,
enquanto outro fazia o papel de primeiro violino no Politburo, e esta pessoa,
naturalmente, seria Zinoviev. Stalin percebeu a manobra da dupla e, por algum
tempo, passou-lhe a impressão de submissão. Providenciou que ninguém, senão
Zinoviev, apresentasse o relatório político ao congresso. Temente de Trotsky, a
dupla não encarava Stalin como perigo. De sua parte, Trotsky mostrou-se passivo
no congresso. Parecia só esperar ser convocado. Tal era a situação no núcleo do
comitê central.
Hoje, décadas depois, é possível ver que as pessoas que se interpuseram no
caminho dos desejos de Lenin foram Zinoviev e Kamenev, e, é claro, Stalin, que não
poderia ter feito coisa alguma sem eles. Aquele era o mesmo Zinoviev, capaz de
vangloriar-se publicamente do fato de que, durante dez anos completos, de 1907 a
1917, fora o pupilo mais próximo de Lenin, e de que ninguém apoiara Lenin com
tanta assiduidade em Zimmerwald e Kienthal quanto ele. Por seu turno, Kamenev
era íntimo da família Ulyanov e não escondia tal fato. De uma forma ou de outra,
aqueles gêmeos políticos passaram a crer que assumiriam papéis de destaque depois
da morte de Lenin. Foram eles, juntamente com Stalin, que tomaram a decisão de
não tornar pública a Carta de Lenin. E, conquanto esse documento tivesse sido
publicado num boletim de atividades do XV Congresso, por sugestão de
Ordzhonikidze, seu conteúdo não chegou a seções amplas do partido ou da nação.
Tão logo derrotou Trotsky, Stalin perdeu o interesse em Zinoviev e Kamenev e,
em mais 12 anos, iria calmamente ordenar-lhes o extermínio físico. Quantas vezes,
em desespero, os dois se recordariam da ocasião em que, desdenhando a Carta de
Lenin, eles próprios deram ao ditador e seu futuro carrasco a ajuda necessária? Diga-
se, em nome da honestidade, que quando Stalin rompeu com eles, assumiram uma
posição de “princípio” e se voltaram contra o secretário-geral. Já durante o XIV
Congresso, em dezembro de 1925, Kamenev, um dos líderes na “nova oposição”,
pronunciou palavras verdadeiras, mas tardias: “Cheguei à convicção de que o
camarada Stalin não preenche os requisitos de um unificador do quartel-general
bolchevique” – mas os delegados tomaram tal pronunciamento apenas como ataque
de rotina da parte de um membro de facção. Todavia, nada altera o fato de que
foram eles, contra a vontade de Lenin, que mantiveram Stalin no cargo de
secretário-geral.
Naquelas circunstâncias, tendo perdido o debate, Trotsky procurou salvar as
aparências adotando uma posição flexível. Zinoviev classificou seu pronunciamento
ante o XIII Congresso “não como um discurso de congresso”, mas sim
“parlamentar” – ele não se dirigiu aos delegados, mas ao partido como um todo, e
tentou “não dizer tudo o que pensa”. O discurso de Trotsky, com efeito, foi
inusitado. Sua crítica principal foi à burocracia do aparato do partido. Reforçou sua
argumentação citando Lenin e Bukharin, e atacou a chefia do comitê central de sua
posição de inovador e combatente em defesa das tradições revolucionárias do
partido. Segundo Trotsky, era a burocracia do aparato, em todos os escalões, que
gerava o facciosismo, e havia doses de verdade em sua alegação.
Mas Trotsky pensava mais em si do que no partido. Continuava o mesmo;
precisava da toga da democracia como cobertura verbal para seus ataques à linha
adotada pelo comitê central. Porém, o partido não esquecera que ele fora um dos
iniciadores do “comunismo de quartel” que deflagrara a degeneração burocrática. O
XIII Congresso não fez progresso algum no desenvolvimento da democracia
visualizada por Lenin. Muitos talvez tivessem pensado que a remoção de Stalin
robusteceria a posição de Trotsky. E, caso este não se tivesse comprometido com o
desafio de outubro de 1923, suas chances na sucessão seriam bastante altas, mesmo
não contando com a maioria da velha guarda. Pode-se, então, dizer que Stalin reteve
o cargo graças à “ajuda” de Trotsky.
As fundações democráticas da estrutura do partido e do Estado foram apenas
delineadas por Lenin. Ele não teve tempo para produzi-las. Tome-se apenas uma das
facetas da democracia: a do rodízio entre os funcionários governantes. Mesmo que
Stalin tivesse permanecido no cargo, caso seu mandato fosse limitado por um
procedimento estabelecido, as deformações aparecidas depois no seu culto à
personalidade talvez não ocorressem. É perfeitamente compreensível que a rainha
Victoria, Catarina, a Grande, ou o Xá do Irã pudessem permanecer no trono por
décadas, já que eram monarcas. Mas a presença prolongada de Stalin como chefe do
partido e do Estado, virtualmente sem ser cerceado por alguém ou algo, só poderia
levar a problemas. A proposta de Lenin ao XII Congresso, constante de sua nota
sobre a reorganização da Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses, antevia a
renovação compulsória nos órgãos diretores do partido e limites nas funções do
comitê central e nos sovietes. Esses primeiros surtos de democracia não despertaram
atenção e cedo viram-se engolfados pelo emaranhado mais poderoso do
dogmatismo, da burocracia e do mando mecanizado via administração. O futuro
culto ao “grande líder” não surgiu por acidente.
No começo, não houve indícios externos de que a usurpação do poder ocorria.
Ao contrário, Stalin batalhou contra Trotsky sob a bandeira de uma liderança
coletiva em oposição ao bonapartismo, aos métodos ditatoriais, à pretensão de
liderança individual e à ambição desenfreada revelados pelo adversário. Trotsky
continuava explorando o capital político que amealhara na guerra civil, sem
perceber que ele minguava com rapidez. Ao atacar Trotsky, Stalin propunha uma
alternativa mais progressista e democrática, a liderança coletiva, se bem que já
planejasse transformá-la gradualmente em proveito próprio. O primeiro a tirar do
caminho era, naturalmente, Trotsky. No meio-tempo, era mister não forçar a
situação. A composição do Politburo depois do XIII Congresso, por conseguinte,
permaneceu a mesma, e até Trotsky ainda manteve seu lugar. O único rosto novo
foi o da estrela ascendente do partido – Bukharin. A descrição que Lenin fez dele –
“o favorito do partido” – acelerou seu avanço para os postos mais elevados.
Dzerzhinsky, Sokolnikov e Frunze tornaram-se candidatos a membro do Politburo.
O secretariado assumiu nova feição com Stalin como secretário-geral, Molotov
como segundo secretário e Kaganovich como secretário – uma base de apoio bem
mais segura, na perspectiva do secretário-geral. Stalin, provavelmente, sobrevivera ao
pior momento de sua carreira política: não deixara o importante cargo, a despeito
dos anseios de Lenin, e sua posição na chefia fora revigorada.

A Carta de Lenin desapareceu das vistas do partido durante décadas. Ela não foi
publicada no Leninskii sbornik (“Miscelânea de Lenin”), malgrado a promessa de
Stalin de fazê-lo. É bem verdade que a Carta aflorou algumas vezes nos anos 1920
em decorrência da luta interna no partido. Chegou mesmo a ser publicada no
Boletim nº 30 do XV Congresso do partido (tiragem: 10 mil cópias), com o
carimbo “Apenas para membros do VKP(b)”,* sendo distribuída para comitês
provinciais e para as frações comunistas do comitê central dos sindicatos; parte dela
foi impressa no Pravda de 2 de novembro de 1927. Portanto, não procede a
afirmação de que o partido nada sabia a respeito dela. Mas o não cumprimento
imediato da vontade de Lenin tornou difícil fazê-lo mais tarde, ainda mais porque
Stalin, a princípio, tentou mudar seu comportamento, ao menos para uso externo.
O principal motivo, contudo, foi que, aos olhos do partido, Stalin se transformara
no líder da maioria do comitê central que estava em conflito com os oposicionistas,
mesmo que tal oposição, como regra, só expressasse diferenças intelectuais, pontos
de vistas distintos e alternativas. Stalin, entretanto, empenhou-se para fazer com que
os termos “oposição” e “facção” fossem entendidos como sinônimos de hostilidade.
Gerações subsequentes de membros do partido só ouviram falar na Carta de
Lenin no XX Congresso, em 1956. Esse tipo de segredo foi pernicioso, já que erodiu
os elementos democráticos existentes e, inevitavelmente, criou a impressão de que a
verdade podia ser sequestrada. Vale a pena ressaltar que Karl Radek escreveu em
“Resultados do Décimo Segundo Congresso do RKP”, publicado em 1923, que
algumas pessoas desejaram “capitalizar” em cima das últimas cartas de Lenin
dizendo que “elas continham coisas secretas”, fato que impossibilitou sua
publicação.62
No final, a tentativa de esconder a verdade revelou-se inútil, não sem antes
danificar consideravelmente a conscientização pública, a cultura política e os valores
espirituais da sociedade soviética. A mania do segredo era inata em Stalin e, em
consequência dela, carimbos de sigiloso apareceriam em todos os tipos de arquivos,
até em documentos elementares. Claro que existem segredos de estado – e
continuarão existindo –, mas tornar secretas correspondência comum e informações
rotineiras passou a ser um estilo. Ninguém parecia perceber que a imposição de
segredo excessivo na vida social e do Estado lavrava o solo para a corrupção. No
centro de todos os segredos estava o próprio Stalin, reagindo pessoalmente contra o
fluxo constante das informações.
O texto da Carta de Lenin foi, graças em parte aos esforços de Trotsky,
publicado repetidas vezes no Ocidente. Primeiro, nos Estados Unidos, com um
extenso comentário antissoviético feito por aliado de longa data de Trotsky, Max
Eastman. Depois, na França, nos anos 1930, Boris Souvarine, cidadão francês de
origem russa e colaborador do L’Humanité, também o analisou. Trotsky trabalhou
muito e com afinco para atrair atenção para a Carta, porém, no final de sua vida, só
tinha uma interpretação para ela: Lenin havia proposto a remoção de Stalin do
cargo e recomendara aos delegados que fizessem de Trotsky, o mais capaz e
inteligente dos candidatos, líder do partido. Repetiu isso com tanta frequência em
seus livros que é bem provável que passasse a acreditar na história.
As ideias de Lenin, tal como expressas no Testamento, subentendiam um amplo
espectro de medidas democráticas. Ele propôs o aumento no fluxo de sangue novo
no partido e na liderança do Estado, o fortalecimento do papel dos sindicatos,
juntamente com o dos sovietes, das organizações sociais e dos órgãos de segurança, e
que a liderança prestasse mais contas aos operários. Mesmo que não fizesse
referências a plebiscitos, referendos, pesquisas de opinião, fiscalização obrigatória da
liderança ou rotação estrita nos quadros do partido, e outras características similares
da democracia, estava implícito um sentido de equidade no que advogou no fim da
vida.
O desleixo do partido quanto a esse princípio básico iria ter seu preço em todas
as esferas da vida. Não obstante, para dar ao sistema político o que lhe é devido,
grande atenção foi dispensada em instruir o povo e as gerações sucessivas sobre a
revolução, o socialismo e o comunismo. A imagem do “novo homem” ideal foi
propagada como modelo do indivíduo do futuro. Já nos anos 1920, a despeito do
surgimento de tendências burocráticas, o lado ideológico da reestruturação da
sociedade recebeu importância primordial. Simplicidade, parcimônia pública,
ausência do sentimento de posse na vida comunitária cotidiana, prontidão na
resposta a todos os reclamos da sociedade, profunda aversão à indiferença cultural,
ao materialismo e ao consumismo, e um alto nível de espiritualidade estranha aos
valores comerciais: essas características nas pessoas dos anos 1920, 1930 e 1940
testemunham que a burocracia não sufocou o melhor que existia nelas. O povo
manteve a fé na ideia.
Depois da morte de Lenin, Stalin, que não se dispunha a trocar a cabine de
comando por um mero ministério ou outro, tomou seu destino nas próprias mãos.
Mas o perigo do que estava por acontecer já estava lá, no sistema centralizado. Os
alertas de Lenin foram desprezados. A velha guarda, aferrada que estava à luta
interna, não aceitou o papel da liderança coletiva. A liberdade conquistada enevoou-
lhe a visão do porvir.
Como Nikolai Berdyaev escreveu: “A experiência da Revolução Russa confirmou
uma antiga ideia minha, qual seja, a de que a liberdade não é democrática, é
aristocrática. As massas sublevadas não se interessam pela liberdade, não precisam
dela, nem se dispõem a arcar com a responsabilidade por ela.”63 Ideia discutível, sem
dúvida, mas verdadeira quando aplicada às massas e à velha guarda, que foram
incapazes de lidar com a liberdade.
Nota

* No seu XIV Congresso, em 1925, o Partido Comunista de Toda Rússia (bolcheviques) – de sigla RKP(b) –
tornou-se o Partido Comunista de Toda União (bolcheviques) – de sigla VKP(b).
Parte III
Opção e luta

A verdade é filha do tempo, não da autoridade.


Francis Bacon
[12]
Construindo o Socialismo

A s dores do parto da nova sociedade continuavam. Depois do XIII


Congresso, Stalin começou a recuperar a confiança que esteve prestes a
perder. Antes da morte de Lenin, ele dificilmente podia cogitar sobre
ambições pessoais sérias. Mal se pode dizer com absoluta certeza que, mesmo
depois, acreditasse que o aparentemente impossível fosse se realizar.
Muitos dos livros da biblioteca que começou a organizar no pequeno
apartamento que ocupou no Kremlin, a partir de 1920, eram de edições pré-
revolucionárias. Faziam parte da coleção obras de Marx, Engels, Plekhanov,
Lafargue, Rosa Luxemburgo, Lenin, Tolstoy, Garshin, Tchekov, Gorky, Uspensky,
bem como de escritores menos conhecidos. Muitos contêm anotações a lápis,
palavras sublinhadas e marcas.
Pensamentos de Napoleão tem observações a lápis ao lado do parágrafo onde o
imperador relembra: “Foi precisamente naquela noite em Lodi,* que passei a crer
em mim como pessoa incomum, consumida pela ambição de concretizar grandes
coisas, até então apenas fantasias.”1 Será que Stalin acreditava que a permanência no
cargo de secretário-geral, contra o desejo de Lenin, era sua Lodi? Provavelmente, foi,
de fato, o ponto culminante de sua carreira política: aos 45 anos de idade, ele não se
sentia, de forma alguma, mais fraco que seus colegas do Politburo e do comitê
central.
Pensou cada vez mais a respeito disso nos raros momentos de folga que
desfrutava na sua dacha em Zabolovo, nas cercanias de Moscou. No início dos anos
1920, havia centenas de mansões, villas e casas de subúrbio abandonadas no entorno
da capital. Seus ex-proprietários tinham fugido para o exterior, submergiram no
banho de sangue da guerra civil ou viram seu “luxo burguês” simplesmente
confiscado. Muitas dessas casas foram convertidas em hospitais e orfanatos para
crianças extraviadas ou abandonadas, depósitos de suprimentos, ou sanatórios para
as instituições que proliferavam no Estado. Não longe de Usovo, havia cerca de uma
dúzia dessas villas. A que pertenceu ao barão do petróleo Zabolovo foi destinada a
Stalin, enquanto as demais o foram para Voroshilov, Shaposhnikov, Mikoyan,
Gamarnik e outros líderes militares, do partido e do Estado.
O filho de Stalin, Vasili, nasceu em 1921 e, alguns anos mais tarde, chegou
Svetlana. Pouco antes de ela nascer, Yakov, fruto do primeiro casamento do
secretário-geral, juntou-se à família. A esposa de Stalin, Nadezhda Sergeyevna
Alliluyeva, 22 anos mais nova que ele, lançou-se com zelo e dedicação à tarefa de
organizar um lar simples. Eles viviam modestamente com o salário de Stalin, até que
ela começou a trabalhar, primeiro no jornal Revolução e Cultura, depois, na
secretaria do Sovnarkom e, finalmente, a estudar na Academia Industrial. Certa vez,
durante o jantar, Stalin disse subitamente a ela: “Jamais gostei de dinheiro porque,
normalmente, nunca o tive.” Interessante é que os arquivos contêm recibos, que ele
passava a Stasova, de adiantamentos que recebeu sobre “os salários do mês seguinte”
nos valores de 25, 60 e 75 rublos.
Posteriormente, o casal contratou uma babá e uma empregada. Ainda não existia
a enorme equipe do pessoal de segurança, os mensageiros, as dezenas de outros
cargos depois criados. Os líderes daqueles dias iniciais evitavam o termo
“empregados”, de conotação burguesa, e chamavam o pessoal de “equipe de
serviço”. Como os líderes daquele tempo, Stalin vivia com simplicidade, no
orçamento familiar e nas normas do partido. Em outubro de 1923, o comitê central
e a CCC distribuíram um documento especial a todos os comitês do partido.
Listando as medidas adotadas pelo IX Congresso do partido de setembro de 1920, o
documento estipulava que não seria permitido usar recursos do Estado para a
melhoria de instalações particulares, para mobiliar uma dacha, para dar bônus e
recompensas em espécie a funcionários, e exigia dos membros do partido a mais
estrita observância da conduta moral. Os salários dos “especialistas” e funcionários
não podiam ser muito discrepantes dos de operários comuns. Ignorar aquelas
orientações, concluía a circular, seria ir de encontro à democratização e levaria à
“desmoralização do partido e ao enfraquecimento da autoridade dos comunistas”. A
circular sublinhava também o princípio de Lenin de que “funcionários comunistas
não têm direito a gratificações pessoais, bônus e pagamento de horas extras”.2 Nos
dias de Lenin, existia mesmo uma lei não escrita para que os membros do comitê
central cedessem aos fundos do partido os direitos autorais por seus escritos.
Os líderes partidários de então não tinham posses de valor, e mesmo falar sobre
tais coisas era encarado como sinal de mau gosto, filistinismo, e até mentalidade
antipartidária. Stalin tinha uma propensão natural para a austeridade material.
Quando faleceu, descobriu-se que era proprietário de diminutos bens pessoais –
alguns uniformes, um par de botas de feltro bordado e um sobretudo de couro de
carneiro. Ele não ligava para objetos, amava o poder.
Quando as circunstâncias permitiam, havia reuniões aos domingos,
frequentemente na dacha de Stalin. Bukharin e sua esposa compareciam, como
também Yenukidze, Mikoyan, Molotov, Voroshilov e Budyonny, quase sempre
com mulheres e filhos. Budyonny cantava canções russas e ucranianas acompanhado
por um acordeão, e podiam até dançar. Trotsky jamais visitou Stalin em sua dacha.
O grupo reunia-se em torno de uma mesa e ficava horas debatendo a situação
interna e as questões internacionais. O sogro de Stalin, o antigo bolchevique S.Ya.
Alliluyev, que era muito respeitado, geralmente estava presente, repetindo histórias
dos “velhos tempos”. Era membro do partido desde sua fundação e se orgulhava
disso. Havia discussões, algumas vezes bem acaloradas, mas existia bastante
intimidade e os convivas tratavam uns aos outros por “ty”, sem que ninguém
sentisse necessidade de ser obsequioso, muito menos bajulador ou insinuante. Stalin
era mais um entre iguais.
Dez anos antes, aquelas pessoas eram párias da sociedade, e agora estavam à
frente de um Estado gigantesco cujas feridas provocadas pela guerra e pela rebelião
mal tinham cicatrizado. Muitas questões tratadas naqueles encontros entrariam,
mais tarde, na agenda do Politburo. Por exemplo, em certa ocasião Molotov revelou
a soma de dinheiro que o Tesouro vinha perdendo com a quantidade de grãos
utilizada na fabricação de bebidas ilegais. Poucos dias depois, em 27 de novembro
de 1927, saiu uma ordem do Politburo, assinada por Stalin, formando uma
comissão permanente encarregada do combate à vodka destilada caseiramente, à
cocaína e ao jogo (em especial a lotto).3 Igualmente, depois de um debate sobre as
causas da doença e morte de Lenin, ficou decidido que certas medidas deveriam ser
tomadas melhorando os cuidados médicos da liderança do partido. No pleno do
comitê central de 31 de janeiro de 1924, foi aprovada a resolução que selecionava
“um camarada particular para monitorar a saúde e as condições de trabalho dos
membros da liderança”.4
Tudo começou com “trivialidades”. O pensamento elitista da liderança que
pregava o igualitarismo deu lugar a outros privilégios: diversas suplementações
(“envelopes”), vagões ferroviários privados, vilas no sul, enormes “equipes de
serviço”. Debatiam muito “como instilar o socialismo”. A direção fora bastante clara
no começo, mas como segui-la, a que velocidade, com que meios? Tudo isso estava
longe de ser evidente. Depois que os convidados se iam, Stalin caminhava para cá e
para lá durante muito tempo, pensando no dia seguinte. Adquirira tanto
responsabilidade como receio pelo futuro, mas também ficara mais vaidoso, ganhara
mais autoestima: seria, talvez, essa fase de luta e falta de definição a sua Lodi?
O ideal ocorre quando poder e sabedoria entram em harmonia, coisa rara. Como
regra, o futuro é do mais forte e não, infelizmente, do mais sábio. Sócrates disse que
os filósofos deveriam ser governantes, e os governantes, filósofos. Força sempre
precisa da sensatez. A despeito de por longo tempo o povo soviético confundir sua
astúcia e seus métodos ladinos com sabedoria, Stalin tinha poder, mas não era
moderado, e quando chegou a hora de selecionar os meios para levar as grandes
ideias à vida cotidiana, tal característica desempenhou papel trágico.
A energia das massas tinha sido liberada, a questão era como dirigi-la para o
objetivo, para o ideal, para as alturas, que mesmo Lenin achara que estavam
próximos. A imprensa partidária vivia apinhada de artigos escritos por especialistas
aconselhando maneiras de proceder. Tudo era tão novo. Por vezes, parecia que um
slogan era suficiente para fazer as coisas caminharem sozinhas.
No final de 1924, em Kislovodsk, Trotsky escreveu seu livro Lições de Outubro,
no qual tentou de novo amesquinhar o desempenho dos outros líderes da revolução
com o propósito de estabelecer a base “teórica” de sua reivindicação pela liderança.
Como o jornal Bolshevik (nº 14, 1924) assinalou, ele deixara de ser um “cronista”
para se transformar num perseguidor preconceituoso. Tentou mostrar que, durante
a revolução, “o comitê central estava certo quando concordava com Trotsky e
Lenin, e errado quando discordava de Trotsky”. Uma revolução, escreveu Trotsky,
tem suas marés, e quando se perde uma delas, pode-se perder a revolução. Ele por
certo sabia pegar a onda bem no ponto mais alto. A revolução, para ele, acontecera
porque Lenin e Trotsky estavam à testa, a despeito da maioria dos “Velhos
Bolcheviques”.
Trotsky argumentou novamente que a Revolução dependia de forma decisiva da
“sequência com que ocorra revolução nos vários países da Europa”.5 Em A revolução
permanente (refeito na forma de livro, em 1928, de artigo originalmente publicado
em 1905), ele escreveu com maior ênfase ainda que a revolução socialista em um só
país era impensável, que “manter a revolução proletária dentro dos limites nacionais
só poderia significar um regime temporário, ainda que prolongado, como a
experiência da União Soviética demonstrou”. Para a questão de como construir o
socialismo, Trotsky, efetivamente, deu a resposta, “pela espera da revolução
mundial, impulsionando-a”. Trotsky acreditava que revoluções de outubro
espocariam no mundo, uma atrás da outra, e que o Exército Vermelho teria que
ajudar outros países para a grande sublevação. Isso poderia ser considerado bazófia
esquerdista, não o “crime” que mais tarde lhe foi imputado. Ao contrário de Stalin,
Trotsky tinha em si um poderoso traço de revolucionário romântico.
Sobre a teoria da “revolução permanente”, Trotsky escreveu: “A Rússia não pode
caminhar independentemente para o socialismo. Porém, tendo aberto a era das
transformações sociais, ela pode dar impulso ao desenvolvimento socialista da
Europa e, dessa forma, ser levada ao socialismo pelo rebocador dos países
avançados.”6 Essa era sua visão antes de 1917. Ele mudou um pouco de posição
depois da revolução e elaborou seu ponto de vista na forma de um diálogo:

Stalin: “Então você nega que nossa revolução pode conduzir ao socialismo?” Trotsky: “Acredito, como
sempre acreditei, que nossa revolução pode e tem que levar ao socialismo ao assumir um caráter
internacional.”

Mais adiante, ele explica: “O segredo de nossas contradições teóricas repousa no fato
de que você se atrasou em relação ao processo histórico e agora tenta se recuperar.
De uma certa forma, tal fato também explica o segredo de nossos erros
econômicos.” A teoria da construção do socialismo em um só país, segundo
Trotsky, era incompatível com a teoria da revolução permanente. Só a
superindustrialização, à custa do setor agrícola, como escreveu Preobrazhensky em
apoio a Trotsky, poderia prover o Estado com a base industrial e a possibilidade de
socialismo.
O conhecimento de Stalin sobre economia era extremamente superficial, mas ele
podia perceber que o país atravessava estágio perigoso. Os debates e argumentos no
partido, que se processavam por quase uma década, não eram apenas uma batalha
sobre o nível e o caráter da sociedade democrática, mas também uma busca da
maneira de desenvolver a economia. Se Stalin tivesse maior percepção econômica,
seria capaz de ver nos últimos artigos de Lenin os esboços de uma concepção de
socialismo que incorporava um vínculo entre a industrialização e a agropecuária
cooperativa voluntária, um poderoso crescimento da cultura das grandes massas,
uma melhora nas relações socialistas e o incondicional desenvolvimento dos
princípios democráticos na sociedade. Porém Stalin jamais entendeu
adequadamente a profecia de Lenin de que a NEP enfeixaria todos esses problemas
com um só nó: que ao se ligar a cidade ao campo, liberando-se as alavancas
econômicas, e por intermédio do comércio e da antiga industriosidade do homem
de negócios, “a Rússia socialista emergiria da Rússia da NEP”.7
De início, Stalin interessou-se pelas opiniões econômicas de Bukharin,
Preobrazhensky, Strumilin e Leontiev, mas achou a terminologia abstrusa que
empregavam difícil de acompanhar. Não tendo jamais pisado numa fábrica ou
sentido o cheiro da terra arada na primavera, e por nunca ter conseguido dominar o
“economês”, ele, finalmente, admitiu a possibilidade de uma “escassez de bens” sob
o socialismo – que ainda aí está hoje em dia. Falando com honestidade, ele bem que
tentou compreender alguma coisa de economia. Por exemplo, leu o livro de O.
Ermansky, A organização científica do trabalho e o sistema de Taylor. Talvez o tenha
lido porque Lenin elogiou a obra de Ermansky (um menchevique cujo nome real
era Kogan) por ser capaz de expor “o sistema de Taylor, mostrando, e isso é por
demais importante, seus lados positivos e negativos”.8
No entanto, a julgar por seus trabalhos escritos, bem como por suas anotações e
assertivas, mas principalmente por suas medidas práticas, fica patente que o credo
econômico de Stalin era mais do que simples. O país tinha que ser forte, não
meramente forte, mas poderoso. Em primeiro lugar, ele precisava ser totalmente
industrializado; em segundo, o campo levado para mais próximo do Socialismo. O
método deveria ser a mais ampla confiança na ditadura do proletariado, que Stalin
entendia puramente em termos coercitivos. Em 1926, escreveu no Bolshevik (nº 9-
10, 1926): “Estamos tentando equacionar tarefas maiores e mais sérias, cuja solução
nos levará com segurança e sucesso na direção do socialismo, porém, à proporção
que as tarefas se tornarem maiores, as dificuldades crescerão.” Essa fórmula teria um
eco sinistro no seu ditado de mais tarde: “A luta de classes se intensifica quanto mais
rápido progredimos para o socialismo.” Em meados dos anos 1920, Stalin tinha
apenas uma percepção embaçada do caminho para a construção do socialismo,
todavia, sem sombra de dúvida já tinha seu método na cabeça: força, comando,
diretrizes, ordens. Em outras palavras, ditadura.
Ao ler os intermináveis discursos de figuras de proa do partido sobre o destino
do socialismo na URSS, Stalin sentiu que a ampla gama de pontos de vista provinha
não só de diferenças nas posições intelectuais e teóricas dos autores, mas também do
fato de a realidade se revelar muito mais complexa do que os bolcheviques previam.
Como Bukharin escreveu francamente, em 1925:

Eis como nos acostumamos a ver o problema: conquistaríamos o poder, tomaríamos quase tudo em nossas
mãos, introduziríamos imediatamente a economia planejada, puniríamos os recalcitrantes remanescentes e
dominaríamos o restante, e isso seria tudo. Hoje, vemos com clareza que não é assim que é feito.9

Stalin dificilmente discordaria disso, mas sentia que o grande perigo estava em
Trotsky. Acabara de saber que o rival declarara num círculo de seguidores que
“alguns novos grandes do partido não podiam perdoá-lo pelo papel que
desempenhara em outubro”. Saindo dos lábios de Trotsky, o termo “grandes” só
podia significar Stalin e, aparentemente, esse não era o pior epíteto que o adversário
e seus aliados vinham empregando contra ele.
Se bem que as relações com Kamenev e Zinoviev permanecessem, pelo menos na
fachada, satisfatórias, Stalin sentiu que suas maneiras francas e a constante influência
que exercia não eram muito do agrado da dupla. Passou a perceber isso com mais
intensidade depois do XIII Congresso. No relatório que fez sobre cursos para
secretários de comitês distritais, Stalin criticara Kamenev por ter afirmado a
existência de uma “ditadura do partido”, e concluiu dizendo, acompanhado por
expressões de apoio dos delegados: “Não temos uma ditadura do partido e sim uma
ditadura do proletariado.” Deve-se realçar que Bukharin, que à época partilhava a
ideia da “ditadura do partido”, declarou no plenário do comitê central de janeiro de
1924:

Nossa tarefa é perceber dois perigos: o primeiro vem da centralização de nosso aparato. O segundo é o da
democracia política que pode resultar se a democracia for muito longe. A oposição, entretanto, só vê o perigo
da burocracia. Não enxerga o risco da democracia política além do risco da burocracia. [...] Para apoiar a
ditadura do proletariado, temos que dar suporte à ditadura do partido.

Ao que Radek acrescentou: “Nós somos um partido ditatorial num país burguês
trivial.”10
Mas Stalin, que não via necessidade de lutar contra muitos, criticou apenas
Kamenev. Para ele, o importante era não correr as frentes, mas tratar de cada uma a
seu tempo. De imediato, a parelha política contra-atacou. A crítica de Stalin foi
considerada, numa reunião do Politburo, inadequada ao companheirismo e
imprecisa quanto à verdadeira posição de Kamenev. Stalin, de pronto, pôs seu cargo
à disposição. Foi a segunda vez que o fez como secretário-geral, e não seria a última.
A demissão foi mais uma vez recusada, e exatamente por Kamenev, com o apoio de
Zinoviev. Stalin percebeu uma crescente ambiguidade nos dois oponentes.
Evidentemente, eles ainda temiam Trotsky, porém, mais uma vez, mudavam de
direção como um cata-vento. De que valia o livro Leninismo de Zinoviev? Na
verdade, ele tentava de novo camuflar e justificar seu comportamento e o de
Kamenev em outubro de 1917, e o desacordo dos dois com Lenin. Stalin tinha
memória maligna e iria usar decididamente tais fatos no futuro.
Tão logo se visse livre de Trotsky, cuidaria daqueles “boquirrotos
inescrupulosos”. Até mesmo ele, que transformara a rudeza em uma de suas
virtudes, por vezes se enervava com a postura afirmativa de Zinoviev. Falando no
pleno do comitê central de 14 de janeiro de 1924 sobre o assunto “lista de
discussão”, Zinoviev fez comentários excessivamente francos sobre muitos membros
do comitê e sobre outros bolcheviques que tomavam parte no debate, como se fosse
um comandante de companhia avaliando subordinados. “Pyatakov”, declarou ele
presunçosamente, “é um bolchevique, mas seu bolchevismo ainda é imaturo. Verde
e imaturo”. De Sapronov, disse: “Ele tem os dois pés no chão, porém não representa
nada mais que leninismo.” Osinsky “denota um desvio de tipo mais intelectual, não
tendo absolutamente nada em comum com o bolchevismo”. Tampouco deixou de
atingir Trotsky de passagem, o que deve ter sido muito agradável para Stalin,
embora não houvesse conexão óbvia: “Certa vez, quando chegamos em Copenhague
para um congresso, nos foi dada uma cópia do jornal Vorwärts na qual havia um
artigo anônimo afirmando que Lenin e seu grupo eram criminosos e expropriadores.
O autor do artigo foi Trotsky.”11
Enquanto, sentado, Stalin ouvia tudo aquilo, deve ter passado por sua mente que
Zinoviev já se via chefe. Não emitiu opinião sobre o discurso no plenário, mas, dois
anos mais tarde, iria desmantelar pedra por pedra a posição de Zinoviev. Em maio
de 1926, numa nota para os membros da delegação do partido ao Comintern, Stalin
escreveu:

Referindo-se aos seus 17 anos de atividade literária, o camarada Zinoviev se jacta de que não cabe aos
camaradas Stalin e Manuilsky ensinar-lhe a necessidade de combater a tendência de ultraextremismo de
esquerda. Não é preciso provar que o camarada Zinoviev se acha um grande homem, porém se o partido
também pensa assim, há dúvida.
De 1898 até a Revolução de Fevereiro de 1917, nós, os velhos ilegais, despende-mos tempo e trabalho em
todas as regiões da Rússia, mas jamais encontramos o camarada Zinoviev fosse na clandestinidade, na prisão
ou no exílio.
Nós, os velhos ilegais, sabemos que existe uma galáxia de antigos membros que entraram no partido bem
antes do camarada Zinoviev, e que o construíram sem fanfarronice ou espalhafato. Como comparar aquilo
que o camarada Zinoviev chama de atividade literária com o trabalho que todos os nossos velhos ilegais
empreenderam sub-repticiamente durante vinte anos?12

Em meados da década de 1920, os adversários de Stalin já entendiam que aquela


“destacada mediocridade” era um político excepcional, sagaz, ladino e determinado.
Os líderes do partido e do Estado que tiveram com ele qualquer tipo de ligação logo
se conscientizaram disso. Quando se examina esse período da história, sente-se,
inevitavelmente, que as grandes questões da opção histórica eram, com frequência,
empurradas para segundo plano pelas ambições pessoais dos líderes, e que o debate
sobre a maneira de construir o socialismo foi severamente afetado pelas rivalidades
pessoais. Os contendores principais foram Stalin, Trotsky e Zinoviev. Por trás da
rixa, existiam as questões concretas de política e economia, de atitudes para com o
camponês, das formas de industrialização, da teoria e prática do movimento
comunista internacional. Vez por outra, a diferença sobre tais questões era, de fato,
de importância secundária e o acordo poderia sair com base no denominador
comum. Ainda assim, as ambições pessoais, a rivalidade, o combate irreconciliável,
em especial entre Stalin e Trotsky, imprimiam à disputa um tom dramático que
fazia com que quaisquer ideias que diferissem das suas fossem logo descritas por
Stalin como hostilidade de classe, capitulação, revisionismo, traição, e assim por
diante.
Deve-se também ressaltar que Stalin não se fixou de imediato em determinado
conceito sobre a forma de construir a nova sociedade. Nem sempre entendia ou,
talvez, não partilhava das ideias de Lenin, especialmente aquelas dos últimos ensaios
e cartas. Stalin, com frequência, voltava mentalmente às concepções do Comunismo
de Guerra, foi compelido a tolerar por algum tempo a NEP e entendeu que, sem
uma união cerrada e orgânica entre a classe operária e os camponeses, seria
impossível lidar com todos os problemas. A escolha que fez foi marcada por uma
gradual inclinação pelo cesarismo, o mando de um só, a ditadura, sem que o povo
pudesse manifestar-se sobre seu próprio destino. Stalin não foi um teórico. Seus
argumentos normalmente se baseavam em citações, reforçadas pelo impulso da
vontade. Mentalmente, sintonizava com os métodos coercitivos de Trotsky e, a esse
respeito, foi, na realidade, o líder bolchevique que mais se aproximou dele. Tal
afinidade interna, adornada pela antipatia pessoal, sustentou, paradoxalmente, a
aversão e a repulsão mútuas entre os dois polos de ambições.
Meditando sobre as atitudes de Zinoviev e Kamenev, Stalin desdenhou: “E são
essas as pessoas que escrevem sobre leninismo?” Ele, sim, é que poderia escrever
sobre o assunto, mas para que todos sentissem seu entendimento totalmente oposto
ao de seus companheiros de viagem temporários. No meio-tempo, precisava atacar
Trotsky. Stalin preparou-se com particular cuidado para o discurso que faria no
plenário das frações comunistas dos sindicatos, em 19 de novembro de 1924.
Falando depois de Kamenev, intitulou seu texto “Trotskysmo ou leninismo?”
Todo o discurso foi devotado ao ataque a Trotsky, com referências de passagem
à defesa de Zinoviev e Kamenev, classificando como “acidental” o episódio em que
os dois se envolveram em outubro: “O desencontro durou apenas uns poucos dias,
isso porque, em Zinoviev e Kamenev, tínhamos leninistas, bolcheviques de
verdade.” Começou, então, a fazer perguntas retóricas à plateia:

De que serviam os recentes discursos de Trotsky sobre o partido? Qual o significado, o objetivo, a intenção
de tais discursos quando o partido não quer o debate, está sobrecarregado de tarefas prementes e precisa do
trabalho conjunto para a restauração da economia, e não de uma batalha renovada sobre velhas matérias? Por
que Trotsky tem que puxar o partido de volta a novas discussões?

Dando sequência à sua tirada, Stalin passeou o olhar pelo salão e respondeu ele
mesmo, de forma áspera e num tom de voz profundo e uniforme:

A julgar por todos os fatos, a “motivação” é que Trotsky faz outra (mais uma!) tentativa de preparar o terreno
para substituir o leninismo pelo trotskysmo. Trotsky precisa, desesperadamente, desestabilizar o partido e os
quadros que tomaram parte no levante, para que então possa desbancar o leninismo.13

Havia certa verdade nisso. Ao mesmo tempo em que cobria Lenin e o leninismo
com adjetivos elogiosos, Trotsky, gradual e repetidamente, lançava dúvidas sobre
certos argumentos leninistas a respeito da construção do socialismo. Segundo ele,
socialismo na Rússia era uma impossibilidade sem o apoio de outros países; a
industrialização não podia ser concretizada apenas às expensas do campo; a NEP era
o primeiro passo para a capitulação; o plano das cooperativas era prematuro;
Outubro era mera continuação da Revolução de Fevereiro; sem o treinamento em
“exércitos de trabalho”, o povo não entenderia as “vantagens do socialismo”, e vai
por aí. Tendo-se em mente que Zinoviev e Kamenev, ao formarem a “nova
oposição” que “iria sitiar” Stalin, já estavam encontrando Trotsky a meio caminho,
o discurso de Stalin, primeiro contra Trotsky e, depois, contra seus novos aliados,
poderia àquela altura ser qualificado como uma “defesa do leninismo”. Havia pouco
pensamento construtivo no que foi dito pelo secretário-geral, especialmente quando
se considera que Trotsky não estava de todo errado, em particular no que dizia
respeito aos perigos da burocracia. Stalin ainda lutava com meios lícitos, embora o
que “defendesse” fossem citações e não sua motivação intelectual. Concluiu assim
seu pronunciamento no pleno: “Eles falam de repressões contra a oposição e da
possibilidade de rompimento. Isso é um despropósito, camaradas. Nosso partido é
resistente e poderoso. Não permitiria rompimento algum. Quanto a repressões, sou
decididamente contra.”14
Naquela ocasião, Stalin revelou generosidade ao não criticar Zinoviev e
Kamenev, e mesmo ao protegê-los de Trotsky. Os fundadores da “nova oposição”,
no entanto, não aceitaram o ramo de oliveira. Numa reunião do Politburo no início
de 1925, Kamenev, apoiado pelo confrère, declarou que o atraso tecnológico e
econômico soviéticos em relação aos países capitalistas que os circundavam
representava um obstáculo insuperável para a construção do socialismo. Com efeito,
Zinoviev e Kamenev haviam formado um bloco com Trotsky, o mesmo Trotsky ao
qual endereçaram crítica devastadora poucos meses antes, precisamente sobre o
mesmo tema. O ataque da “nova oposição” à política do partido necessitava de
resposta e uma diretriz partidária sobre passos adicionais a tomar na esfera da
construção socialista. Para tanto, era de enorme importância a XIV Conferência do
partido no final de abril de 1925. Stalin, naquela oportunidade, não apresentou
relatório, tampouco participou do debate. Os relatórios essenciais foram feitos por
Rykov sobre cooperativas, por Dzerzhinsky sobre a indústria metalúrgica, por
Tsyurupa sobre imposto na agricultura, por Molotov sobre estrutura do partido, por
Solts sobre legalidade revolucionária, e por Zinoviev sobre tarefas do Comintern.
Por tradição ou inércia, a conferência foi presidida por Kamenev, da mesma forma
que presidia o Sovnarkom e o Politburo. Mas aquela seria a última vez. Nem ele
nem Zinoviev jamais estariam de novo à frente de reuniões como aquela. É provável
que o assunto mais importante tratado pela conferência tenha sido a proposição que
declarou que, a despeito da tese de Zinoviev, a vitória do socialismo era possível na
URSS, mesmo no contexto de uma desaceleração da revolução mundial. Todavia, a
vitória do socialismo só poderia ser considerada completa quando houvesse garantias
internacionais contra a restauração do capitalismo.
O debate sobre a legalidade socialista foi crucial. Solts, que abriu a discussão e
que partilhara o exílio com Stalin em Turukhansk em determinado período,
observou que, depois da vitória da revolução, “sentimos mais a necessidade de
aprimorar nossa economia que a de legalidade revolucionária”. Agora, entretanto,
disse ele com intenção manifesta, “os membros do partido [...] têm que entender
que nossas leis, em todas as suas manifestações, tanto confirmam como reforçam o
edifício que queremos construir e robustecer, e que, desrespeitando essas leis,
destruiremos tal edifício”.15
Alguns dias depois da conferência, Stalin fez um discurso para ativistas da
organização partidária de Moscou. Chamou uma parte do discurso de “Sobre o
destino do socialismo na União Soviética”. Mais uma vez, sujeitou Trotsky à crítica
vitriólica e zombou de novo de sua teoria da “revolução permanente”. Falando com
sentimento e convicção, explicou a essência da vitória final e completa do socialismo
na URSS. Os primeiros sinais do papel e do lugar especiais que iria ter e ocupar no
partido surgiram ali. Deixando a modéstia de lado, citou, à exaustão, ideias e
afirmativas de sua própria lavra. Ao expor suas proposições corretas (até então),
preparava o partido para aceitar a noção de que ele tinha um direito particular de
postular a verdade.
Stalin testou seus pontos de vista não só nos discursos para o comitê central e na
imprensa, como também nas poucas ocasiões diante de operários. Seu assistente,
Tovstukha, escreveu um dos discursos que o secretário-geral pronunciou nas
Oficinas Stalin da Ferrovia Outubro, em 1º de março de 1927. Stalin, marcando o
compasso com a mão, explicou pausadamente:

Estamos completando a mudança total de um país agrário em um industrial, sem o concurso do mundo
exterior. Como os outros países fizeram essa jornada?
A Inglaterra criou a indústria pelo roubo em suas colônias durante duzentos anos inteiros. Não há a hipótese
de enveredarmos pelo mesmo caminho.
A Alemanha arrancou cinco bilhões [de francos] da França derrotada. Porém, esse curso, o do roubo
mediante guerras vitoriosas, também não nos convém. Nossa causa é de paz.
Existe uma terceira rota, a escolhida pela Rússia czarista. E ela contempla empréstimos estrangeiros e acordos
secretos à custa dos operários e dos camponeses. Não podemos seguir tal rota.
Temos o nosso caminho, que é o da poupança própria. Não o percorreremos sem cometer enganos, falhas
haverá. Mas o edifício que estamos construindo é tão grande que esses enganos e falhas, no final, não terão
importância.16

No dia seguinte, o jornal Rabochaya Moskva publicava um relato:

Os aplausos surgem como rajadas de metralhadoras. O homem, envergando o cáqui dos soldados, calçando
botas surradas, e cachimbo na mão, posta-se diante da plateia. “Vida longa para Stalin! Vida longa para o
[comitê central]!” Bilhetes são passados a Stalin. Enroscando o bigode preto, ele os estuda com atenção. O
salão permanece silencioso, e Stalin, secretário-geral do partido e o homem que deu nome à oficina, começa
sua conversa com os operários.

Essas aparições de Stalin eram extremamente raras. Ele preferia discursar em


conferências, no Kremlin ou nos plenos do comitê central. E sua presença pública
foi se tornando ainda mais escassa. Quanto mais enigmático e impenetrável é o
chefe, mais combustível proporciona para as lendas a seu respeito.
Os preparativos para o XIV Congresso do partido (distinto da XIV Conferência)
tiveram lugar com o pano de fundo dos primeiros sucessos na construção econômica
e cultural. Em 1925, a produção total do setor agrícola chegou a 112% dos níveis de
antes da guerra. Fato notável. A NEP começava a dar frutos. A produção industrial,
que durante cinco anos dera mostras de total ruína, atingiu três quartos da situação
anterior ao conflito. Surgiram as primeiras instalações industriais, em especial usinas
geradoras de energia. E tudo isso quando os melhores economistas estrangeiros
prediziam que os níveis pré-guerra só seriam alcançados em 15 ou vinte anos.
Resultados substanciais foram também conseguidos na batalha contra o
analfabetismo. Uma rede de escolas foi criada, em particular nas repúblicas
nacionais. Medidas importantes foram tomadas para criar um sistema de educação
superior e uma série de providências de vulto adotadas para acelerar o trabalho
educacional e cultural. A Academia de Ciências para Toda a Rússia foi transformada
na equivalente para Toda a União. Naquela oportunidade, obras de reputação
mundial foram produzidas pelos historiadores M.N. Pokrovsky e V.I. Vernadsky,
pelo geneticista N.I. Vavilov, pelo agrogeólogo V.P. Vilyams (Williams), pelo
químico N.D. Zelinsky, pelos geólogos A.E. Fersman e I.M. Gubkin, pelo físico
A.F. Ioffe e muitos outros pioneiros da ciência soviética.
O Exército Vermelho foi organizado com sucesso para períodos de paz e, ao
mesmo tempo, foram empreendidas reformas militares. O trabalho ganhou impulso
especial quando Trotsky foi removido do cargo de comissário do povo do Exército e
da Marinha pelo pleno do comitê central de janeiro de 1925, e substituído por
M.V. Frunze.
Vale a pena lembrar um incidente que teve lugar naquele pleno. Zinoviev e
Kamenev nele tomaram uma atitude inesperada. Para o lugar de Trotsky como
comissário do Exército e da Marinha, e de presidente do Revvoensoviet, Kamenev
propôs Stalin. Essa jogada teve mais de uma interpretação. É possível que Zinoviev e
Kamenev, sentindo o crescente poder de Stalin, decidissem transferi-lo para outra
posição responsável e respeitada, de modo a tirá-lo do posto de secretário-geral no
congresso seguinte, mediante o ressuscitamento da Carta de Lenin. Ou talvez
esperassem matar dois coelhos com uma só cajadada, afastando Trotsky
definitivamente e desferindo, ao mesmo tempo, forte golpe em Stalin. Ora, se
Trotsky fez a parte de um coelho, Stalin não foi tão cordato. O Secretário-Geral
demonstrou clara surpresa, até mesmo irritação, com a proposta de Kamenev, como
muitos membros presentes do comitê central puderam testemunhar. A proposta de
Kamenev foi derrotada por maioria de votos. A matéria foi discutida sem a presença
de Trotsky, que dera parte de doente. Esse pleno foi, em linhas gerais, importante
para Stalin, pois a posição de Trotsky ficou ainda mais enfraquecida e não houve
apoio para Zinoviev e Kamenev. No “jogo das combinações”, o secretário-geral se
mostrou capaz de fazer aquilo que os adversários não conseguiram, ou seja, debilitar
tanto Trotsky quanto a velha dupla. O influente trio Stalin, Zinoviev e Kamenev
estava, de fato, desfeito, porque o secretário-geral não via mais uso para o mesmo.
O XIV Congresso do partido se aproximava. Seria um marco do debate sobre as
maneiras de industrializar a economia do país. Ainda assim, em dezembro de 1925,
quando ele teve lugar, era difícil acreditar na concretização do que saía publicado
nos jornais. O Dnieper ainda continuava rolando mansamente sem que represa
alguma domesticasse suas águas; no itinerário previsto para a Ferrovia Turquestão-
Siberiana tempestades de areia formavam grandes dunas; o local da famosa Fábrica
de Tratores de Stalingrado ainda era um terreno baldio; ninguém poderia sequer
sonhar que, no curso do Plano Quinquenal, os altos-fornos de Magnitka estariam
dominando as elevações circundantes, nem que os pioneiros da ciência dos foguetes
estivessem perto da era dos voos espaciais – no início dos anos 1930, seria lançado o
primeiro foguete soviético, o Gird-X (Grupo para o estudo da propulsão de
foguetes, 1932-34).
As condições, decididamente, melhoravam. A Nova Política Econômica deu aos
bolcheviques oportunidades históricas. Com efeito, era o primeiro modelo de
“socialismo de mercado” capaz de sustentar a máquina do empreendimento sob
novas circunstâncias. A NEP facilitou o rápido crescimento da agricultura. A
indústria se aproximava dos níveis pré-guerra. Os observadores viam na comissão
estatal de eletrificação não apenas um meio de eletrificar o país, mas um caminho
para a elevação da economia socialista às alturas de uma nova estrutura política. Mas
era apenas o começo e dependia da ultrapassagem de muitos obstáculos.
Os preços foram estabelecidos pelos trustes industriais que começaram a operar
segundo princípios comerciais. Surgiram as distorções. Por exemplo, por um bom
pedaço de sabão, um corte de tecido de algodão ou um balde de parafina, um
camponês tinha que vender de três a quatro vezes mais grãos do que em 1913. O
descontentamento cresceu e tornou-se motivo de inquietação. As esperanças na
criação de subsídios não se concretizaram, empréstimos dos Estados capitalistas não
se materializaram, e o comércio de exportação nem chegou a 50% do nível anterior
à guerra. Um milhão e meio de desempregados enchiam as divisões de oferta de
ocupações. Um em cada dois adultos do sexo masculino não sabia ler ou escrever.
Não havia como comprar máquinas e ferramentas. Na realidade, nenhuma
construção de vulto estava em curso. Mesmo assim, os jornais estampavam que o
país vivia às vésperas de mudanças enormes. Parecia que o jovem Estado não tinha
escolha: para sobreviver num mundo complexo e perigoso tinha que correr. Foi
nessa atmosfera que o XIV Congresso teve lugar. A figura dominante do encontro
foi Stalin, principalmente porque apresentou o relatório político, item principal da
agenda. Confirmando a posição assumida na XIV Conferência, o congresso aprovou
resolução asseverando que, “em geral, a vitória do socialismo (não no sentido de sua
vitória final) é definitivamente possível em um só país”. O congresso afirmou que a
mudança para a industrialização era a tarefa principal para a reestruturação da
sociedade, enquanto os delegados reconheceram que tal caminho demandaria
pressões e sacrifícios máximos. A questão do tempo foi debatida, embora ninguém
tivesse noção clara do que significava.
Afora o trato das principais questões econômicas, o congresso viu-se de novo na
luta contra a “nova oposição”, cujas forças mais expressivas estavam representadas
pela delegação de Leningrado chefiada por Zinoviev. E foi este quem apresentou o
relatório da oposição. Seu discurso para o congresso, contudo, soou extremamente
brando, seus argumentos e os de seus seguidores, fracos e inconvincentes. Eles
alertaram, com boas razões, para o perigo da burocratização do partido, a qual, na
perspectiva deles, já começara. Não obstante, suas alegações tinham características
por demais pessoais para surtirem o efeito desejado sobre os delegados. Foi nessa
ocasião que, como já mencionamos, Kamenev afirmou abertamente: “Cheguei à
conclusão de que o camarada Stalin não pode desempenhar o papel de unificador do
Estado-maior bolchevique.” Porém, enquanto ele falava, a maioria dos delegados
começou a bradar “Stalin! Stalin!” numa ovação ao secretário-geral. Stalin sentiu que
sua “defesa do leninismo”, que não cansava de praticar, ganhava apoio dentro do
partido. Foi exatamente sobre o monopólio da “defesa do leninismo” e de sua
interpretação, combinado com o baixo nível de cultura política da maior parte dos
membros do partido, que repousou sua popularidade. A autoridade de Stalin foi,
aos poucos e quase sem ser notada, atingindo a extensão de todo o partido. Um
fator decisivo foi também o fato de Stalin, desde a morte de Lenin, passar a falar em
nome da “liderança coletiva” e a advogar que fossem tornadas públicas as demandas
urgentes de Lenin que as massas mais entendiam: restauração da economia nacional,
desenvolvimento de cooperativas, reativação do comércio, aumento da alfabetização.
Stalin pareceu jamais inclinar-se para oposição alguma, mas tal impressão foi
apenas criada porque ele proclamava todas as suas medidas, decisões, críticas e
propostas como puramente “leninistas”. Na realidade, com frequência apoiou
grupos diversos e chegou a dar alguns passos em falso, mas “corrigiu” rapidamente
sua posição. Aprendeu como ninguém a projetar essa posição de leninista. Em nome
da verdade, deve ser dito que muitas das ideias que defendeu (se bem que não todas)
eram de fato leninistas, mas ficou óbvio que sua noção de leninismo passou a ter um
tom cada vez mais autocrático. Diversos membros do partido muitas vezes ligaram a
linha do partido ou o trabalho do comitê central a um determinado indivíduo e, na
ausência de Lenin e de um líder evidente, Stalin, o “unificador do estado-maior
bolchevique”, emergiu como quem deu expressão pessoal aos primeiros sucessos na
economia, à política de unidade do partido e ao revigoramento do setor agrícola.
Ficou suficientemente claro para a maioria dos delegados que Zinoviev, Kamenev e
Trotsky eram impulsionados nos seus ataques ao comitê central pelo desejo de se
apoderarem da liderança. A derrota da oposição foi irrestrita.
Essa fase de conflito no partido também se refletiu na organização. O comitê
central reconvocou Zinoviev para presidente do comitê executivo do Comintern e,
por iniciativa da delegação soviética, o cargo foi logo totalmente abolido. S.M.
Kirov substituiu Zinoviev como chefe da organização partidária de Leningrado.
Kamenev foi destituído dos cargos de vice-presidente do Sovnarkom e presidente do
Conselho do Trabalho e da Defesa. Tanto Zinoviev como Kamenev retiveram suas
posições no Politburo, enquanto Voroshilov e Molotov ingressaram nele pela
primeira vez, reforçando muito, dessa forma, a posição de Stalin.
No discurso de encerramento do relatório político, que durou mais de uma hora,
Stalin sujeitou novamente Zinoviev, Kamenev, Sokolnikov, Lashevich e seus
seguidores a uma crítica cáustica e concluiu reafirmando a linha do partido sobre a
construção do socialismo e sobre o fortalecimento da unidade nas fileiras partidárias.
Por outro lado, não pôde passar despercebido o fato de Stalin citar constantemente
seus próprios discursos e artigos, e de fazê-lo sem o mínimo acanhamento, enquanto
aqueles de visão política – desafortunadamente, muito poucos – não tinham como
deixar de se conscientizar sobre a maneira sem-cerimônia de o secretário-geral
distribuir críticas. Stalin respondeu de forma insultuosa a um discurso de
Krupskaya, tachando-o de “asneira definitiva”. Mais tarde, voltaria a Krupskaya,
declarando com certa dose de incitação de massas: “Em que aspectos, então, a
camarada Krupskaya é diferente de qualquer outro camarada com responsabilidade?
Pensa você que os interesses de alguns camaradas podem ser colocados acima dos do
partido e de sua unidade? Para nós bolcheviques, a democracia formal é um
recipiente vazio, e os interesses reais do partido são tudo.” Chamou Lashevich de
formulador de esquemas, disse que Sokolnikov gostava de causar desordens com
seus discursos, Kamenev era um desnorteado, Zinoviev, um histérico, e por aí foi.17
Parece que Stalin começava a deslizar para a posição em que até a democracia
informal era considerada por ele um recipiente vazio. A imperdoável aspereza em
relação a Krupskaya não foi, é claro, apenas falta de tato político contra sua pessoa e
contra a memória de Lenin, mas também vingança dissimulada pela rememoração
de cartas, chamadas telefônicas e conversas em que ela se envolveu durante o tempo
de vida de Lenin. Stalin jamais perdoou a alguém coisa alguma.
Evidentemente consciente de que tinha se excedido em algumas partes do seu
discurso de encerramento, Stalin recorreu a um expediente que iria utilizar também
em outras ocasiões. Justificou a rudeza na crítica ao artigo “A filosofia de uma
época” de Zinoviev, dizendo que ela era endereçada tão somente ao hostil e ao
estranho, e se devia apenas à maneira franca de seu temperamento. Gradualmente,
transformou o lado repulsivo de sua natureza em virtude do partido, quiçá, numa
qualidade revolucionária. Lamentavelmente, já àquela época, a do XIV Congresso
de 1925, não havia comunista, fosse delegado ou membro do comitê central, capaz
de avaliar, com calma e dignidade, a personalidade de Stalin e sua propensão para a
espécie de crítica insultuosa que, na ocasião devida, passaria a funcionar como um
julgamento.
Stalin, é evidente, não omitiu Trotsky no exame crítico que fez dos
oposicionistas. Sentindo o estado de espírito da maioria e livrando-se da proposta de
Kamenev de transformar o secretariado em simples organização técnica, ele
enfatizou ser contra o “banimento” de certos membros da liderança do comitê
central. Calculou, em função do ambiente, que era prudente declarar mais uma vez
que, se os camaradas insistissem, “estava pronto para deixar o cargo sem qualquer
estardalhaço”. “A expulsão significa sangue”, declarou em meio a aplausos, “e é
maneira perigosa e contagiante de proceder. Hoje, afastamos uma pessoa, amanhã,
outra, no dia seguinte, uma terceira – que há de sobrar do partido?” Falou como
político experiente, angariando cada vez mais o apoio dos delegados e mostrando
desinteresse pessoal e preocupação com o futuro do partido. Ao mesmo tempo que
escarnecia da oposição e a criticava, revelava sua “magnanimidade” pelo uso de
frases como “Bem, boa sorte para eles!”. Conquanto já tivesse decidido que chegara
a hora de abandonar a companhia de Zinoviev e Kamenev, Stalin demonstrou
querer a paz: “Somos pela unidade, somos contra expulsões. A política da expulsão
nos repugna. O partido deseja a unidade e vai consegui-la, com Zinoviev e
Kamenev, se assim o quiserem; sem eles, caso não o desejem.”18
Dignas de nota no discurso de encerramento foram as diversas proposições de
Stalin que, se tivessem sido implementadas, evitariam o pior período da história do
partido. Por exemplo, cercado pelos aplausos e pela aprovação óbvia dos delegados,
anunciou:

O pleno decide tudo e chama a atenção dos líderes quando começam a perder o equilíbrio. Se alguém sai da
linha, o pleno o traz de volta, e isso é tanto essencial como necessário. O partido não deve ser conduzido fora
do coletivo. Depois de Ilyich, é uma asneira pensar assim, uma asneira falar nisso.
Trabalho coletivo, liderança coletiva, unidade no partido, unidade nos órgãos do comitê central e
subordinação da minoria à maioria – é disso que precisamos agora.19

Infelizmente, essas louváveis proposições não foram escoradas por regulamentos que
governassem o rodízio na liderança ou a duração do mandato do secretário-geral e
de outros postos elevados. Foi precisamente sobre essas questões que Lenin escreveu
suas teses referentes à melhora do aparato. O XIV Congresso foi o último da era
Stalin em que a crítica e a autocrítica fizeram parte integral dos procedimentos da
reunião. A crítica foi declinando sem parar de congresso em congresso. Somente
Stalin, e os que agiam sob suas ordens, emitiram críticas a partir de então, e o
resultado foi que a estagnação intelectual, o dogmatismo e o formalismo burocrático
viraram regra.
Ao optar pela construção socialista e pela industrialização, o congresso
transformou-se em ponto de referência da história do país, mas os princípios
democráticos não foram, da mesma maneira, formulados para desenvolvimento
ulterior. Despercebida ao lado da grande ideia, nascia sua própria negação. A
batalha entre esses dois princípios sinalizou a origem do triunfo vindouro do “Líder”
e da tragédia do povo. Nem todos perceberam que pagariam o fortalecimento
econômico com as liberdades pessoais. Não era um paradoxo, e sim da lei da
autocracia.
Nota

* Vilarejo onde Napoleão conseguiu brilhante vitória na campanha italiana de 1796-1797.


[13]
Leninismo para as massas

V endo-se à frente do núcleo do comitê central, Stalin rapidamente entendeu


que, além de possuir dons de organizador e “pulso forte”, características
que se tornaram familiares para muitos no aparato, ele tinha que se mostrar
teórico. De um lado, a mudança de estágio para a criação de uma sociedade
renovada requeria a compreensão teórica de uma vasta gama de questões. Tudo era
novidade, fosse na esfera econômica, na social ou na cultural. Embora os
delineamentos do conceito da construção socialista tornassem possível visualizar a
direção geral para a qual a vida devia caminhar, os argumentos de Lenin, no
entanto, requeriam aplicação concreta na prática imediata.
De outro lado, Stalin sabia que o líder do partido, que muito desejava ser,
precisava ter sólida reputação de marxista teórico. Sabia também que seus artigos
não tinham deixado grande impressão na opinião pública. A maioria deles fora
escrita com objetivos correntes e específicos, e nada mais era do que uma série de
peças entediantes na confusão de slogans, ideias e apelos que foram regurgitados
pela revolução. Na realidade, quando procurava se consolidar no topo da liderança
depois da morte de Lenin, ele publicou alguns trabalhos teóricos, por exemplo,
“Anarquismo ou bolchevismo?” Pode-se aquilatar o nível filosófico deste artigo
citando-se apenas um fragmento:

Os burgueses estão gradualmente perdendo o chão sob seus pés e recuam dia após dia. Por mais fortes e
numerosos que possam hoje ser, no final, serão derrotados. Por quê? Porque estão se desintegrando como
classe, tornando-se fracos e velhos, verdadeiros pesos mortos. Isso deu lugar a uma bem conhecida posição
dialética: tudo que existe, isto é, tudo que cresce de um dia para outro, é racional, e tudo que se desintegra de
um dia para outro é irracional e, portanto, não pode evitar a derrota.20

O primitivismo e a ingenuidade dessas deduções são depressivamente óbvios, mas


não evitaram que o acadêmico Mitlin as descrevesse como “um aspecto clássico do
novo”. Outros artigos de Stalin, como “O marxismo e a questão nacional” (1913),
“A revolução de outubro e a questão nacional” (1918), “Sobre estratégia e tática dos
comunistas russos” (1923), da mesma forma, tiveram pouca repercussão. Cedo ele
percebeu não ter feito contribuição significativa para a teoria marxista, e que Lenin,
por ter descerrado a cortina do futuro, deixara sua marca em todas as esferas nas
quais Stalin se viu envolvido, e que, intelectualmente, ele, Stalin, não chegava aos
pés do líder falecido.
A acirrada luta interna que continuava a sacudir o partido compeliu,
efetivamente, Stalin a propagar no front mais amplo possível a herança de Lenin,
suas ideias e argumentações. Ele se mostrou à altura da tarefa: sua maneira
categórica de pensar não poderia ter sido mais útil. Sentenças curtas e telegráficas,
nenhum termo sofisticado, nenhuma profundidade, e sim clareza, clareza e mais
clareza. As palestras publicadas se tornaram populares. Agitadores as usaram na
campanha para minorar a ignorância política da população. Na ocasião adequada,
Questões do leninismo e Fundamentos do leninismo, de Stalin, foram canonizados e
transformados por zelosos propagandistas stalinistas em pequenos livros dogmáticos
e revelaram-se ideais para tal tipo de adaptação. De fato, sem as citações, pouco mais
eram que sinais de pontuação. As edições saíam uma atrás da outra.
A percepção de milhões de soviéticos foi condicionada por muitas proposições
dessas obras, ideias leninistas que o secretário-geral reformulou segundo sua
interpretação. Assim, ao definir a essência da ditadura do proletariado, ele quase se
restringiu ao seu aspecto coativo e o “limpou” de qualquer conteúdo democrático.
Nos dias de hoje, por exemplo, é impossível ler “Sobre a política de liquidação dos
kulaks como classe” sem estremecer em pensar no que estava por trás daquilo.
O intelecto de Stalin – assunto que retomaremos mais adiante – foi conformado
sob influência da educação religiosa dogmática, da experiência na luta revolucionária
e da convivência seletiva com a obra dos fundadores do socialismo marxista. É claro
que ele não tinha um entendimento completo da relação entre teoria e prática, entre
fatores objetivos e subjetivos, e da essência das leis do desenvolvimento social. Sua
assertiva de que tudo na natureza e na sociedade é programado a ferro tem,
indubitavelmente, gosto de fatalismo: “O sistema socialista seguir-se-á ao capitalista
como o dia vem depois da noite.” Para ele, a teoria marxista era como a bússola de
um navio que, de qualquer forma, chegará a outra praia, mas o fará mais
rapidamente com a bússola.
Toda a história do partido, tal como apresentada no Curso resumido de Stalin,
nada mais é que uma cadeia de vitórias para uns e derrotas para outros, os espiões,
os agentes duplos, os inimigos, os criminosos. Ele colocava tudo no leito
esquemático de Procusto, em que o real deveria ser idêntico ao teórico, segundo a
teoria que expunha. Na lógica de Stalin, tudo o que acontecera era esperado: o
crescimento dos partidos comunistas, a derrocada da “aberração de direita”, a
“traição” dos socialdemocratas. A criatividade, o livre-arbítrio, o voo da imaginação,
a audácia intelectual – nada disso tinha vez.
A mente de Stalin era prisioneira da abordagem esquemática. Assim, por
exemplo, existiam três características básicas da dialética, quatro estágios no
desenvolvimento do bloco de oposição, três aspectos básicos do materialismo, três
características do Exército Vermelho, três raízes fundamentais do oportunismo, e
assim por diante. Talvez não fosse uma maneira ruim de ensinar, porém, catalogar
toda a teoria dessa forma e reduzi-la a alguns aspectos, peculiaridades, estágios e
períodos significa empobrecer os estudos sociais e fomentar uma visão dogmática.
A certa altura, começaram a surgir elementos rituais no trabalho de Stalin. É
difícil encontrar nuances em seu pensamento, ou transições, reservas, ideias originais
ou paradoxos. Seu modo de pensar é uniforme, tudo o que fluiu de sua caneta foi
apresentado como desenvolvimento do marxismo-leninismo. O que afirmava
passava a ser um programa; o que não estivesse de acordo com suas diretrizes era
suspeito, senão adverso. Ao vulgarizar, simplificar e dar a tudo uma qualidade direta
e categórica, as opiniões de Stalin adquiriram uma característica primitiva e
ortodoxa. Provavelmente, jamais duvidou de que teria inspiração de gênio, como
indica seu gosto pela autocitação. A despeito de tudo isso, entretanto, havia um
forte atributo inerente ao seu pensamento (além do mais, atributo que tinha em
comum com Lenin): o seu lado prático. Ele tentava ligar cada proposição teórica a
necessidades concretas, o que não pode ser dito de todos os teóricos marxistas. Por
outro lado, a natureza mecânica e automática de seu raciocínio, bordejando o
fatalismo, muitas vezes imprimiu um quê de caricatura aos seus escritos.
O debate dos anos 1920 sobre a forma de construir a sociedade socialista foi
acompanhado de renovada atividade teórica por parte dos líderes do partido. O
Pravda e o Bolshevik publicaram com regularidade artigos de Trotsky, Zinoviev,
Kamenev, Stalin, Kalinin, Yaroslavsky e outros. Alguns líderes que se tornaram
bastante ativos no assunto. Trotsky, por exemplo, nos dez anos que sucederam a
revolução, publicou com sucesso 21 volumes de suas obras. Em 4 de dezembro de
1924, o Pravda anunciou que o ramo de Leningrado da agência estatal de
publicações estava prestes a começar a edição dos trabalhos de Zinoviev em 22
volumes. O comitê responsável chegou a dizer que se tratava de algo como uma
“enciclopédia dos trabalhadores”. O Pravda também noticiou a publicação de uma
compilação intitulada Outubro, consistindo em artigos selecionados de Lenin,
Bukharin e Stalin. Muitos trabalhos de Bukharin apareceram naquela oportunidade,
tais como “As contradições do capitalismo contemporâneo” e “Da Nova Política
Econômica e nossas tarefas”.
Stalin deu o melhor de si para acompanhar o movimento, mas a maior parte de
seus escritos dos anos 1920 não foi devotada tanto à popularização do leninismo
como o foi à polêmica com os líderes dos vários grupos, oposições e facções. Talvez
tenha sido no curso do enérgico e sonoro arremesso de lama que ele se tornou um
“teórico”. Trotsky pensava assim. No seu livro A escola stalinista da falsificação, ele
observou que Stalin transformou-se em teórico na batalha contra o trotskysmo. A
mente de Stalin foi aguçada por todos aqueles embates e “desmascaramentos”. Seus
discursos nos congressos e conferências, nas sessões plenárias e nas reuniões do
Politburo eram ásperos, resolutos e implacáveis, embora concedesse a si mesmo
ocasionais expressões de “fraqueza” liberal quando era taticamente prudente fazê-lo.
Por exemplo, em 11 de outubro de 1926, fez um relatório ao Politburo “Sobre
medidas para mitigar a luta interna no partido”, embora fosse também verdade que
essas “medidas mitigadoras” estavam formuladas em cinco pontos que os líderes
oposicionistas teriam que aceitar, caso desejassem continuar membros do comitê
central.
A polêmica com os oponentes ideológicos forjou uma transformação em Stalin.
Ele aprendeu a utilizar a retórica e adicionou uma dimensão pessoal e ofensiva à sua
mordacidade costumeira, passando a qualificar os outros de “tagarela”, “difamador”,
“mentalmente confuso”, “ignorante”, “vaca de presépio”. Divertia-o a reputação
adquirida de combatente grosseiro, porém impiedoso, pela unidade do partido,
contra o facciosismo e pela pureza do leninismo. No discurso de encerramento do
XIV Congresso, em que, como já ressaltamos, atacou Kamenev, Zinoviev e
Sokolnikov, praticamente se apossou do direito, como secretário-geral, de ser rude a
seu bel-prazer. Rodeado de gargalhadas de aprovação dos delegados, declarou: “Sim,
camaradas, sou franco e grosso, esta é a verdade. Não posso negá-la.”21
Sua franqueza grosseira, como vimos, com frequência era do tipo insultuoso.
Respondendo, por exemplo, ao jurista S. Pokrovsky, que tentara esclarecer a atitude
de Stalin em relação à revolução proletária, o secretário-geral iniciou sua carta
tachando-o de “descarado narcisista” e a terminou no mesmo tom: “Você não
entendeu coisa alguma, nada sobre a revolução burguesa que se regenerou na
revolução proletária. A conclusão a tirar é que é necessário o descaramento de um
ignorante e o gosto de um equilibrista medíocre de corda bamba para inverter o
sentido das coisas dessa forma.”22 Fazia juízos com absoluta certeza: aqui a verdade,
lá, o engano. Como Rabindranath Tagore observou: “Batemos a porta atrás de
nossos erros. A verdade fica confusa: como vai entrar agora?”
À proporção que cresciam sua autoridade e sua importância política, Stalin fiava-
se cada vez mais nas próprias assertivas para dar suporte à sua argumentação, que
passou a ser ministrada como verdade proveniente do alto. E quanto mais isso
ocorria, menos Stalin se dava conta. Assim, tendo feito uma palestra na
Universidade Sverdlovsk sobre a definição de leninismo, ele repetiu tal definição
praticamente como verdade perfeita e universal em seu trabalho Questões do
leninismo. Citando afirmações suas, ele adicionaria frases como: “Tudo isso está
correto, pois vem do leninismo.” Com o tempo, tornou-se comum ele encaminhar
os leitores a seus próprios artigos e livros. Numa polêmica em 1926 sobre a
possibilidade de construir o socialismo na URSS, ideia que reivindicou ser de sua
autoria, escreveu: “Você deve pegar o Bolshevik [de Moscou] nº 3 e ler meu artigo.
Facilitaria as coisas para você.” E aproveitou a oportunidade para repisar um tema:
“A classe operária, em união com os laboriosos camponeses, pode dar um fim aos
capitalistas em nosso país”; “a oposição diz que não somos capazes de acabar com
nossos capitalistas e de construir a sociedade socialista”; “se não tivéssemos em
mente que podíamos liquidar com nossos capitalistas, a conquista do poder não
teria sentido”.23 A ênfase na “liquidação” dos remanescentes das classes exploradoras
ficou muito clara em 1926, embora não fosse o objetivo principal daquela ocasião.
Com o passar do tempo, ela iria maturar numa teoria profundamente errada sobre o
agravamento da luta de classes à medida que a sociedade caminhava para o
socialismo. “Surrar” e “liquidar” cedo se transformariam na ocupação fundamental
de Stalin.
A despeito do nível primitivo e vulgar das generalizações teóricas que saíam da
pena de Stalin, ele muito se orgulhava de dar definições e formular interpretações.
Aí se incluíam, por exemplo, a essência do leninismo, das nações, da estratégia e
tática política, dos desvios, para citar apenas algumas. É possível que sua atividade
tenha contribuído para a popularização do leninismo, porém, inclinado que era pelo
pensamento dogmático, Stalin canonizou literalmente suas definições e se tornou
capaz de devotar um discurso inteiro à prova de que este ou aquele oposicionista
não conseguira entender determinada questão.
Talvez o aspecto mais negativo das contribuições teóricas de Stalin esteja no fato
de ele ter arrancado a essência humanista do socialismo e a substituído,
gradualmente, pelo que pode ser chamado de “socialismo sacrificial”. Com tal
perspectiva, no tempo devido, ele permitir-se-ia, com a maior descontração,
desencadear repressões sem precedentes e aplicar a força em amplo espectro como
principal alavanca na vida econômica. O stalinismo foi um misto de burocracia e
socialismo de quartel adornado com terminologia dogmática. Hoje, sabemos que
não se pode classificar uma sociedade de “socialista” pelo simples fato de praticar
um alto grau de propriedade pública, ou de priorizar mais os valores do coletivo em
relação ao individual, ou por planejar tudo de cima para baixo. O socialismo
autêntico ocorre quando o homem é o centro das atenções, e onde a democracia, o
humanismo e a justiça social são propriedades intrínsecas. Uma abordagem dessas
não tem lugar para a violência, para o distanciamento do povo do poder, para
líderes semideuses.
Deve-se ressaltar que Stalin trabalhava pessoalmente nos seus artigos e discursos.
Vários assistentes, que serviram em sua secretaria em ocasiões diversas,
testemunharam tal fato, malgrado a grande carga de trabalho que pesava sobre ele.
Apesar disso, Stalin também lia bastante. Diariamente, eram-lhe encaminhados
livros selecionados, extratos de artigos, resumos da imprensa partidária local,
resenhas de publicações estrangeiras e as cartas mais interessantes.
Entre 1924 e 1928, Stalin consultou professores das academias Industrial e
Comunista sobre assuntos de ciências sociais. Achava-se particularmente fraco em
filosofia; em história, pisava em terreno firme; e não mostrava interesse especial em
expandir seus conhecimentos de economia. Com a prolongada experiência no cargo,
no qual lidou com problemas vastamente diversificados, desenvolveu um senso sutil
e uma mente extremamente prática, e tornou-se capaz de avaliar rapidamente uma
situação, de encontrar o caminho em meio a um labirinto de variáveis e de
identificar os vínculos importantes. Observador por natureza, de excelente memória
para fisionomias, nomes e fatos, a rica experiência do convívio com larga faixa das
pessoas mais cultas e preparadas do entourage de Lenin não podia deixar de
influenciá-lo e nele deixar algumas qualidades. Embora não fosse um teórico, era
superior a muitos de seus colegas na abordagem pragmática da teoria, e na
capacidade de ligar, para os melhores resultados, a teoria com a prática.
Tendo escolhido um objetivo, Stalin podia mostrar extraordinária persistência
em persegui-lo. Isso fica evidente em seus trabalhos escritos. Naturalmente, fez
algumas emendas em seus artigos e panfletos, mas, em princípio, repetia sem cansar
o que antes dissera, produzindo um efeito semelhante ao do livro didático. Por ter
afirmado certa vez que “o leninismo é a teoria e a prática da revolução proletária em
geral, e a teoria e a prática da ditadura do proletariado em particular”, ele
transformou esta definição em dogma. Sem dúvida, numa época em que o regime
lutava pela sobrevivência, tal postura serviu ao propósito de tornar os ideais e
objetivos de Lenin mais fáceis de entender. Não obstante, a redução das ideias de
Lenin a não mais que ditadura do proletariado foi o prelúdio dos muitos enganos
cometidos na prática subsequente do estadismo soviético.
Creio que foi Remarque que disse que os ditadores sempre começam
simplificando. Stalin foi um mestre da simplificação e o responsável pela
implantação de esquemas primitivos tanto na teoria como na história do partido.
Talvez, em função do baixo nível da cultura geral e política entre os trabalhadores,
isso fosse necessário, entretanto, já no início dos anos 1930, estudos mais sérios e
mais profundos simplesmente não podiam ser publicados. Por décadas, a teoria da
ciência social mergulhou na estagnação. O dogmatismo medrou no solo de
conceitos simplistas e frequentemente errôneos. Dogmatismo é como um navio que
fundeia: as ondas continuam, o navio está firme, mas a sensação de movimento
persiste. A atitude de Stalin sobre ideologia era profundamente pragmática: a
ideologia corrente tinha que funcionar no país como cimento, não como explosivo.
Muitos de seus argumentos teóricos acabaram sendo fonte de grandes desditas
sociais. Sediadas num ambiente mental irremediavelmente cinzento, as ideias de
Stalin careciam de dinamismo e excluíram a inovação criativa da política.
O pleno do comitê central de 14 e 15 de janeiro de 1924 proporciona um
exemplo disso. O encontro tratou de várias questões. Zinoviev relatou a situação
internacional e, tanto ele como os que falaram depois, criticaram o fracasso na
Alemanha, onde, na opinião deles, perdera-se uma oportunidade revolucionária. No
seu discurso, Stalin focalizou o papel de Radek nos eventos. “Sou contra a punição
de Radek por seus erros na questão alemã”, disse. “Cometeu muitos, dos quais
destacarei sete.” Um dos truques favoritos de Stalin era estender os erros dos
adversários numa longa corda de reboque. Segundo Radek, Stalin prosseguiu: “O
inimigo principal na Alemanha é o fascismo, e Radek diz que é necessário formar
uma coalizão com os socialdemocratas, ao passo que nossa conclusão é pela
necessidade de uma batalha de morte contra os socialdemocratas.”24 A miopia
política de Stalin custaria caro para os comunistas como também para as futuras
forças democráticas. Sua falta de imaginação impedia-o de analisar questões
complexas.
Outro exemplo de sua falta de visão teórica ocorreu durante o pleno de outubro
de 1924 do comitê central, quando se debateu a questão do “trabalho no campo”.
Molotov relatou. Zinoviev, que era tão ignorante em questões agrárias quanto
Molotov e Stalin, pronunciou longo discurso no qual, apesar de tudo, descreveu
com relativa justeza a situação geral:

O que discutimos aqui não é apenas uma questão de trabalho no campo, mas uma atitude geral em relação
aos camponeses, ou seja, questão bem mais ampla que, sem dúvida, frequentará a agenda por alguns anos
vindouros, já que colide com o problema do exercício da ditadura nas circunstâncias presentes.25

Stalin, no seu discurso, listou uma série de recomendações políticas e teóricas nas
quais se pode detectar o embrião de grandes erros do futuro. A primeira coisa que
devemos fazer, disse ele, “é vencer de novo os camponeses”. Em segundo lugar,
temos que entender que “o campo de batalha mudou”. Em terceiro lugar, “temos
que formar quadros nas aldeias”.26 O ano era 1924, mas Stalin já falava como se
estivesse em 1929.
[14]
Desalinho intelectual

O filósofo Evgeny Trubetskoy, discípulo de Vladimir Solovyov, expôs em


sua obra As duas bestas a ideia de que a Rússia foi ameaçada por dois
extremos, a “besta negra da reação e a besta vermelha da revolução”. Para
muitos expoentes culturais essas “bestas” não eram simples figuras da imaginação. A
flutuação artística e intelectual oscilou loucamente entre a não aceitação pura e
simples de qualquer ideia de revolução e sua glorificação extasiada. Muitos outros,
no entanto, não definiram de imediato suas posições.
Kipling escreveu em belos versos que o poder da longa noite termina quando
ainda falta uma hora para o amanhecer. A força da antiga ordem fora quebrada na
Rússia, mas não era razoável esperar-se que todos os artistas se erguessem para
saudar o amanhecer que se aproximava. Os grandes bulevares e as ruas laterais da
literatura fermentavam. As principais questões que inquietavam a intelligentsia
diziam respeito ao lugar que a cultura ocuparia no “novo templo”, ao problema da
liberdade artística, à atitude em relação aos valores do passado. Alguns escritores
acreditavam piamente que o único futuro da literatura russa estava em seu passado.
Muitos outros temiam que a tempestade revolucionária viesse a ameaçar não apenas
a eles, mas também à cultura russa como tal.
A maior parte da intelligentsia não aceitou a revolução, se bem que, da mesma
forma, nem todos se tornaram inimigos dela. Boa parte provavelmente ficaria feliz
em parar na Revolução de Fevereiro, com alguma forma de parlamento e outras
características do liberalismo pluralista. Seu desalento e sua confusão intelectual
persistiram por alguns anos, findos os quais emergiram duas tendências
diametralmente opostas: ou a aceitação total das ideias da Revolução de Outubro,
ou sua rejeição completa, com longas hesitações e graduais mudanças mentais ao
longo do caminho. A delgada antologia Smena vekh (“Mudando os marcos”),
publicada em Praga em junho de 1923, foi um bom exemplo desse processo. A
maioria de seus autores era de tendência constitucional democrata, ou estivera ativa
no campo Branco, e, agora, queria a “capitulação”.
Klyuchnikov, Potekhin, Bobrishchev-Pushkin e Ustryalov declararam que, por
ironia da história, os bolcheviques tinham se transformado em “curadores da causa
nacional russa”. Aliás, Stalin se referiu com frequência, nos seus discursos dos anos
1920, ao movimento Mudando os Marcos como indício de que o lado inimigo se
desintegrava. Os escritores do Smena vekh deixaram claro que consideravam o
bolchevismo utópico, mas reconheciam que, sendo refugiados russos, “a história não
perderia tempo com eles”. Seus pensamentos nostálgicos, pintados em cores
eslávicas, sinalizavam, contudo, algo mais importante, ou seja, que uma parte da
intelligentsia tinha se tornado defensora da Rússia socialista. Os instintos
corporativos foram abafados pelo sentimento nebuloso de vinculação à pátria-mãe, e
os intelectuais se harmonizaram, por mais dolorosamente que fosse, com as novas
realidades vigentes no país.
Todavia, como dissemos, a maioria deles não aceitou o bolchevismo. Uma das
mais extremadas nessa rejeição foi a poetisa Zinaida Gippius. Em Seraya knizhka
(“O livro cinzento”) e Chernyi bloknot (“Bloco negro de notas”), condenou
francamente as ideias revolucionárias que, para ela, sepultaram a cultura russa:

É tudo em vão: a alma está cega


Estamos destinados aos vermes e larvas
Nem mesmo restam as cinzas
Na terra da justiça russa.

Sobre a posição política assumida pelo marido, Dmitri Merezhkovsky, e por ela
mesma, disse orgulhosamente: “Está bem, talvez estejamos apenas protegendo o
branco da roupa dos émigrés.” Eles tinham visto na Pátria “o reino do Anticristo”.
Até mesmo Trotsky, que se mostrava bastante tolerante para com essa dúvida
intelectual e considerava inevitável a confusão da intelligentsia, fez uma irritada sátira
da “choradeira” de Gippius. Escreveu que a arte dela, que mesclava cristianismo
místico e erótico, mudara no momento em que “um soldado do Exército Vermelho,
com botas de tachões, pisou em seus graciosos pés. De imediato, ela começou a
lamúria na qual é possível identificar-se a voz de uma bruxa obcecada com a ideia da
santidade da propriedade”.27
A faixa de interesses estéticos de Stalin era incomensuravelmente mais estreita
que a de Trotsky, e, em particular, não se deixava excitar quer pelos decadentes,
quer pelos iconoclastas. Talvez tivesse pouca noção das obras de Gippius, Balmont,
Belyi, Lossky, Osorgin, Shmelyov e muitos outros que deixaram sua marca na
história cultural russa. Empírico e destituído de valores emocionais, Stalin encarava
todo o edifício da cultura em termos estritamente pragmáticos: isso ajuda, ou não? É
esse o caminho? Será perigoso? Critérios estéticos, se é que os possuía, não tinham
papel decisivo em seu modo de pensar. Ele expressaria seu credo sobre literatura e
arte duas décadas mais tarde nos jornais Zvezda e Leningrad, no veredicto
funestamente bem conhecido. Para ele, as artes permaneciam encapsuladas no
modelo binário primitivo: “nossas” e “deles”.
Mesmo grande, o número de emigrados, excedendo talvez dois e meio milhões
de pessoas e abarcando todos os tipos de intelectuais, estava longe de ser um caso de
hostilidade generalizada à União Soviética. Além do mais, seus destinos foram bem
diversos. Alguns terminaram nas favelas de Xangai ou nas pensões de Paris. Outros
voltaram à Rússia e, desses, alguns até conseguiram retomar suas carreiras literárias,
enquanto outros não conseguiram se adaptar ao novo ambiente social e, então, ou se
calaram para sempre, ou caíram no moedor de carne stalinista.
Os que permaneceram na Rússia soviética também reagiram de formas diversas.
Rapidamente, surgiram associações, entre elas a União dos Escritores Camponeses,
os Irmãos Serapion, a Pereval (“Travessia”), a Associação de Escritores Proletários de
Toda Rússia, a Associação de Artistas da Rússia Revolucionária, a Kuznitsa (“a
Forja”), a Frente Esquerda de Arte. Nos clubes friorentos e nos palácios sem
aquecimento houve debates sobre cultura proletária, literatura, política e o uso ou
não dos valores da cultura burguesa. Surgira uma oportunidade única para criar e
consolidar o pluralismo artístico. Os métodos de comando, que marcariam o
fenecer das artes, ainda não predominavam.
Stalin não viu nada de perigoso nesse novo mosaico de escolas e tendências
literárias, especialmente porque muitos escritores falavam entre si sobre a revolução,
o novo mundo, o novo homem. Até mesmo as preocupações sectárias e de
vanguarda com os métodos radicais pareciam pouco mais que ingênuas e divertidas.
Como a arte em si, o pluralismo daqueles anos iniciais era espontâneo e, por breve
período de tempo, fez contribuições ao cinema, à música, à literatura, à pintura e à
escultura, que ocuparam lugar no tesouro da herança cultural russa.
Muitos escritores e artistas amadureceram com rapidez na atmosfera de estufa da
revolução, e debates, contendas e competições entre as várias escolas foram
resultados naturais. Foi uma pena, para dizer o mínimo, que, em poucos anos, tal
ambiente de indagações se evaporasse no cadinho do estilo burocrático do
pensamento uniformizado e que, no clima que se seguiu, emergisse uma pletora de
livros de interesse absolutamente efêmero. Em dois números do jornal Bolshevik, P.
Ionov escreveu um artigo sobre a cultura proletária no qual afirmou que “arte pura”,
imune à influência das tormentas sociais, dos choques econômicos e dos conflitos de
classes, era uma impossibilidade. Replicando, Leopold Averbakh perguntou: “Quem
vai reformar quem?”28
Um editorial do Bolshevik intitulado “Quadros de comando e a revolução
cultural” deu a resposta concisa: os assuntos culturais deveriam ser governados por
meios administrativos, isto é, pelos quadros, ou “construtores do socialismo”.29
Porém, tão logo adquiriram alguma instrução, começaram a demolir igrejas, ao
passo que as associações criativas autônomas foram desaparecendo, e a
individualidade silenciando. Foi essa a triste sorte, por exemplo, de todo um grupo
de “poetas camponeses”, cuja chama mais fulgurante fora Sergei Yesenin, e
Bukharin, ainda um radical, concorreu para tanto. A liberdade de criação foi se
tornando cada vez mais programada e, em consequência, mais estreita. E a arte,
despida de espírito humano, já ia se transformando em representante da cultura.
Stalin passou a acompanhar com atenção a efervescência no mundo literário.
Sabia que a revolução cultural, que despertara mudanças enormes na consciência
social, fatalmente estimularia também um acentuado interesse em relação aos valores
culturais em geral, e à literatura criativa em particular. Em meados da década de
1920, a alfabetização crescera marcantemente. A melhoria nas repúblicas nacionais
foi especialmente surpreendente. Comparado com 1922, o número de operários
alfabetizados na Geórgia, em 1925, cresceu 15 vezes; no Cazaquistão, cinco vezes;
no Quirguistão, quatro vezes; e assim foi em outras regiões. As principais fontes de
alfabetização e de cultura dos trabalhadores surgiram nos clubes de operários das
cidades e nas cabanas de leitura das vilas. A impressão de periódicos triplicou a
marca de 1913. Começou em escala maciça a organização de bibliotecas.
Montaram-se estúdios cinematográficos em Odessa, Yerevan, Tashkent e Baku.
Mais se editava literatura criativa.
O Politburo discutiu repetidas vezes a maneira de criar condições para levar
cultura às massas e fortalecer a influência do bolchevismo sobre elas. Em junho de
1925, aprovou a resolução “Sobre a política do partido no campo da literatura
criativa”, recomendando uma atitude atenciosa para com os velhos mestres.
Também adotou outra resolução, proposta por Stalin, que destacava a necessidade
de manter a pressão sobre o movimento Mudando os Marcos. Ademais, a resolução
ressaltou: “O partido tem que tomar todas as medidas para desenraizar interferências
incompetentes e não autorizadas da burocracia nas questões literárias.”30
Os asseclas de Stalin mantinham-no informado sobre os novos livros e artigos de
autoria de escritores proletários. É claro que ele não podia ler tudo, mas depois que
sua biblioteca foi reorganizada, muitos dos livros de encadernação barata do período
permaneceram em sua coleção, com anotações de próprio punho em vermelho, azul
ou lápis comum. A maioria dos comentários, por coincidência, foi feita em
vermelho. A julgar por tais anotações, parece que Stalin se familiarizou com
Chapaev, de Furman, com A rebelião e A corrente de ferro, de Serafimovich, com as
histórias de Vsevolod Ivanov, com Cimento, de Gladkov, com as obras de Gorky,
que amava, e com a poesia de Bezymensky, Bedny e Yesenin, entre outros.
Evidentemente, fez anotações também em À espera, de Platonov, porém,
aparentemente irritou-se com aquele talentoso escritor, como certa vez confessou a
Fadeyev. Stalin ignorava em grande parte os clássicos ocidentais, em geral suspeitoso
do Ocidente e de sua democracia “em desintegração”.
Amava o teatro e o cinema da mesma forma que os grandes latifundiários se
encantavam com o teatro de seus servos. Foi frequentador assíduo do Teatro
Bolshoi nos anos 1930 e 1940 e assistia, à noite e com regularidade, novos filmes no
Kremlin ou em sua dacha. De certa forma, eles proporcionavam uma janela para sua
vida reclusa. Não escondia o fato de não gostar muito de pintura, a forma de arte
que menos apreciava. Muitas vezes, debateu sobre a arte com escritores como
Gorky, Bedny, Fadeyev e, é claro, Lunacharsky, e também com outros membros do
Politburo, que entendiam tão pouco do assunto quanto ele.
Em algumas manifestações públicas, Stalin aproveitou a oportunidade para dar
opinião sobre escritores e suas obras, normalmente em termos tão categóricos que
não encorajavam resposta. Por exemplo, numa carta a Bill-Belotserkovsky, censurou
o diretor do Bolshoi, D. Golovanov, por seu ataque à prática de atualizar
automaticamente o repertório à custa dos clássicos. Stalin descreveu a situação como
“golovanshchina” (ou seja, ditadura de Golovanov) e como “expressão de um estado
de coisas antissoviético”.31 Tal julgamento, nos anos 1930, custaria a cabeça de
alguém. Na mesma carta, comentou que as peças de Bulgakov eram encenadas com
tanta frequência “porque não há quaisquer de nossas próprias peças suficientemente
boas para apresentação. Na terra de cego quem tem um olho é rei”. Este era o
melhor de Stalin, não mostrando qualquer dúvida sobre seu próprio conceito,
confiante e desdenhoso do processo intelectual dos artistas.
Ele podia também ser áspero com aqueles que, normalmente, tratava com
deferência, como Demyan Bedny, um bolchevique desde 1912 que logo ganhou
reputação como poeta proletário depois da revolução. A atualidade de suas fábulas,
poemetos, canções, livretos de rimas, contos e parábolas valeu-lhe duradoura
popularidade entre as massas. Porém, num certo número de obras (“Separando pela
força”, “Saia do fogão”, “Sem piedade”), ele criticava a inércia e outras tradições
negativas do passado que a sociedade soviética carregava consigo. O departamento
de propaganda do comitê central encarou tal opinião como antipatriótica; Bedny foi
convidado a comparecer ante o comitê central para uma “conversa” e reclamou
numa carta a Stalin. A resposta do secretário-geral foi pronta: “De repente, você está
bufando e se queixando de grande pressão [...] Pensa que o comitê central não tem o
direito de criticá-lo? Acha que as decisões dele não se aplicam a você? Não acha que
está atacado de ‘presunção,’ essa desagradável doença?” Stalin concluiu achando que
a crítica de Bedny era uma calúnia contra o operário russo, contra o povo soviético e
contra a URSS. “Esta é a verdade, e não as lamentações vazias de um intelectual
amedrontado que tagarela sobre pretensos desejos de isolar Demyan ou de não mais
publicar Demyan.”32
Apenas poucos anos antes, em junho de 1925, o próprio Stalin compilara a
regulamentação da política do partido sobre a literatura, que condenava qualquer
“vestígio de patrulhas literárias” e “a pretensiosa, semialfabetizada e presunçosa
arrogância comunista”. No fim daquela década, ele já tinha esquecido as sábias
diretrizes. Os “quadros de comando” operavam no campo da cultura com crescente
desenvoltura, e a efervescência e confusão intelectual gradualmente desvaneceram
em todos os níveis da administração.
Eram decorridos só três ou quatro anos da ocasião em que Stalin solicitara que
seus agradecimentos fossem levados a Bedny por seus versos “autênticos,
partidários” sobre Trotsky, publicados no Pravda de 7 de outubro de 1926 sob o
título “Tudo tem fim”, que diziam assim:

Nosso partido foi por muito tempo


Alvo de políticos acabados!
Por fim, chegou a hora
De dar um fim a este descalabro!

Stalin gostou do poema e telefonou a Molotov e outros para dizer isso. Todos
aprovaram a sátira política de Bedny, e o secretário-geral observou: “Há menos
leitores para o que escrevemos sobre Trotsky do que para esses versos”, o que, sem
dúvida, era verdade. E bastou o poeta mudar um pouco de tom, revelando
“ressentimento”, para que Stalin se tornasse frio, irritadiço, autoritário e censor.
Sabendo que o destino de seus trabalhos dependia do julgamento de Stalin, os
escritores pediam-lhe, com frequência, a opinião. Seus resumos eram normalmente
condescendentes e, quase sempre, apontavam “fraquezas”, embora, ocasionalmente,
distribuíssem elogios. Por exemplo, ele escreveu a A. Bezymensky: “Li os dois: O tiro
e Um dia em nossa vida. Não há nada de ‘burguesia trivial’ ou de ‘antiparidário’
neles. Ambos podem ser considerados modelos para a arte revolucionária e
proletária de nossos dias.”33
Testemunhas com acesso às informações afirmaram que Stalin estudava as
personalidades políticas de escritores, poetas, cientistas e expoentes culturais. Ele
sabia que nem todos aceitavam a revolução, como atestava a emigração em larga
escala que ocorrera. Tomou conhecimento de uma carta a Lunacharsky (comissário
do povo para a Educação e a Cultura) do escritor russo Vladimir Korolenko,
publicada postumamente em Paris, onde ele falecera em 1921, na qual o intelectual
expressava sua inquietação com o emprego da repressão na Rússia pós-
revolucionária, que iria desacelerar o crescimento da conscientização socialista.34
Stalin decidiu que a carta era falsificação. Também ficou perturbado com um artigo
de Zamyatin, intitulado “Tenho medo”, publicado num pequeno jornal de
Leningrado, o Dom Iskusstv (“Casa das artes”). Zamyatin recebeu permissão para
deixar o país em 1932; ele foi para a França e nunca mais voltou; de lá, em carta a
Stalin, disse que não poderia continuar escrevendo “atrás de grades”. Em 1920, ele
afirmara, destemperadamente, mas com exatidão:

A literatura só existe quando é criada por loucos, eremitas, heréticos, sonhadores, rebeldes e cépticos, e não
por funcionários confiáveis que apenas fazem seu trabalho. Temo que não teremos literatura genuína alguma
enquanto o povo russo for encarado como criança cuja inocência há que proteger. Temo que não teremos
literatura genuína alguma até que nos curemos desse novo tipo de catolicismo que tem tanto receio da
heresia quanto os antigos homens.35

A percepção de diversos escritores foi capturada num livro do filósofo marxista


Alexander Bogdanov, que competira em certa ocasião com Lenin pela liderança dos
bolcheviques. No livro ele asseverou que o trabalho criativo autêntico só era possível
sem coação, quando o sistema social não gerasse fé em fetiches, mitos e clichês.36
Bogdanov estava, claramente, atacando o conceito da ditadura sobre a literatura
criativa. Foi demais para Stalin, que sentiu que pessoas como Bogdanov sabiam que
a interminável repetição dos mitos revolucionários fazia com que eles se tornassem,
no final, indistinguíveis dos preceitos bíblicos. Com efeito, muitos dos mitos
expostos por Stalin em seu Curso resumido seriam tomados como verdadeiros sem
qualquer consideração crítica ou racional. Ele tinha que “cercar” esses intelectuais
“espertinhos”.
Stalin começou a pensar em canalizar as ideias artísticas para o aprimoramento
do nível das massas, bem como para a solução da enorme soma de problemas
enfrentados pelo país. Raciocinou, porém, em termos de medidas administrativas:
regulamentos, expulsão dos que não servissem à causa, censura. De fato, a esse
respeito, ele concordava com Trotsky, conquanto não desejasse tornar público tal
entendimento comum. Em Literatura e revolução, Trotsky declarara
categoricamente que tinha que existir “censura severa” na terra do proletariado
vitorioso.37 Conselho que Stalin acataria. Ajudaria os artistas a fazerem a escolha
correta! Mas como? Precisava pensar sobre isso. A censura política seria um
elemento capital. Ele não entendeu que, nesse particular, um papel importante seria
desempenhado pela consciência intelectual, um atributo invariável da democracia.
Durante a doença de Lenin, a GPU, com apoio de Stalin, tomara uma
providência inusitada: 160 pessoas – escritores, cientistas, filósofos, poetas,
historiadores, a fina flor da cultura russa – foram expulsas do país. Em 31 de agosto
de 1922, o Pravda publicou um artigo, com o significativo título “O primeiro
aviso”, no qual foram apresentados os motivos para a intensificação da luta contra os
inimigos da revolução no campo da cultura. A gênese e a consolidação do princípio
do realismo socialista foram acompanhadas de uma falta de entendimento e de uma
confusão espiritual por parte de muitos que trabalhavam na esfera cultural. Em vez
de ajudarem os artistas a compreenderem seu lugar na reconstrução revolucionária
do país, os que labutavam no “front ideológico” destacaram apenas os aspectos
pragmáticos do princípio e os transformaram em diretrizes. A expulsão,
indubitavelmente, teve o intuito de servir como um sinal – métodos repressivos
seriam aplicados ao setor cultural.
Os assistentes de Stalin faziam-lhe, por vezes, relatos sobre o que os émigrés
estavam escrevendo. Quando lhe mostraram a obra em diversos volumes de P.
Krasnov, Da águia de dupla-cabeça à bandeira vermelha, publicada pelo ex-general
branco em Paris, em 1922, Stalin nem se dignou a tocar nos livros, dizendo:
“Quando o porco conseguiu escrever isso?” No entanto, com o apoio de Stalin,
diversos escritores e poetas, inclusive A. Kuprin e Alexey Tolstoy, retornaram à
União Soviética. Na ocasião em que o secretário-geral soube, em 1933, que Ivan
Bunin se tornara o primeiro russo a receber o prêmio Nobel, comentou: “Bem,
agora ele jamais desejará voltar. Que disse ele no discurso?” Ao ler um pequeno
extrato do pronunciamento de Bunin em Estocolmo, em que o laureado afirmara
que “o principal para um escritor é ter liberdade de pensamento e liberdade de
consciência”, Stalin nada disse, mas ficou pensativo. Não podia entender: não fora
dada a Bunin a chance na URSS de pensar e raciocinar de acordo com sua
consciência intelectual? Não era verdade que ele, Stalin, não se opunha à liberdade
de pensamento, desde que servisse à ditadura do proletariado? É certo que não podia
se lembrar do que Bunin escrevera, mas tinha uma noção vaga, não de todo
imprecisa, de que “aquele escritor da pequena nobreza profetizara algo sobre o
mistério da morte e o reinado de Deus”. Não pensou mais em Bunin. Quando,
algum tempo depois, foi-lhe passada uma pilha de jornais ocidentais, num dos quais
– o Sovremennye Zapiski (“Notas contemporâneas”) – estava a matéria “O general
vermelho”, de Bunin, dedicado à Revolução Russa, Stalin não o leu.
Outro émigré sobre o qual Stalin se mantinha informado era Vladislav
Khodasevich, que escreveu sobre “a seca da primavera criativa no exílio”. Porém, o
beco sem saída em que esses escritores estavam não interessava ao secretário-geral.
Ele conhecia um pouco melhor seus próprios poetas soviéticos. Ouvira dizer que os
“poetas kulaks” N. Klyuev, S. Klychkov e P. Vasiliev tinham enveredado pelo
caminho da balbúrdia e da contrarrevolução, mas fosse Averbakh, fosse qualquer
outro do departamento de propaganda política do comitê central, já os tinha
colocado na linha. Na realidade, Stalin, de maneira geral, não dava muita atenção à
poesia, a despeito de ter escrito durante a juventude umas três dezenas de poemas
ingênuos. Jamais teve tempo para se familiarizar com a música e o ritmo da poesia, e
menos ainda para ler alguma, afora ter utilizado uns poucos versos de Pushkin, em
Tsaritsyn, como base para um código que informava o número de comboios de pão
a caminho.
Stalin se preocupava mais com os escritores de Moscou, de Leningrado e de
outras regiões do país do que com os exilados. Tinha, por exemplo, opiniões
conflitantes sobre o Ano desnudo de Pilnyak, a Cavalaria vermelha de Babel, e as
obras de Platonov, Kin, Vesely, Tynyanov e Khlebnikov, ao passo que havia
aprovado de imediato os trabalhos de Furmanov, Fedin, Alexei Tolstoy e Leonov.
Gostava de alguns dos filmes de Vertov, Kuleshov, Eisenstein, Pudovkin e Emler.
Ouviu dizer que as peças Oliver Cromwell, de Lunacharsky, Amor de primavera, de
Trenev, O trem blindado 14-69, de Vsevolod Ivanov, e Virineya, de Seifullina,
estavam sendo bem recebidas. Sua esposa, Nadezhda, assistiu-as na companhia de
colegas do Comissariado das Nacionalidades. Era confortador saber que grandes
diretores, como Nemirovich-Danchenko e Konstantin Stanislavsky, montavam
peças soviéticas. A revolução no teatro fortaleceria a revolução no mundo real.
Stalin tinha parca informação sobre o que ocorria no mundo das belas-artes e da
música. Zombava de todas as experiências em “arte industrial”, bem como dos
esforços dos vanguardistas, construtivistas, futuristas e cubistas. Quem apoiava tais
“excêntricos”, aos quais não entendia – e duvidava que outros entendessem – não
estava, na sua opinião, comprometido com uma causa séria.
Os próprios artistas viviam um infindável e rubro debate. Com frequência, suas
rixas não diziam respeito ao respaldo ou não à revolução, mas sim às formas de arte,
à liberdade de expressão, sobre como “ler o mostrador” da nova cultura. Os nomes
das incontáveis uniões e associações novas se espalhavam pelas páginas dos jornais
como um mosaico. Stalin achou que chegara a hora de pôr alguma ordem naquele
caleidoscópio. É verdade que não tratou pessoalmente do assunto enquanto esteve
ocupado com as sucessivas oposições políticas. Mas julgava que o comissário do
povo da Cultura, Lunacharsky, estava dando “licença” demais.
O partido precisava de unidade, de uma linha de ação que fosse consenso da
maioria. O último congresso tinha conseguido muito nesse particular. Ficava cada
vez mais claro para Stalin que, sem a industrialização e o coletivismo na agricultura,
o partido não seria capaz de executar seu programa social. Enquanto ainda existiam
o czar, os proprietários de terra e os burgueses, as dificuldades da batalha se
justificavam. Mas, agora, decorridos dez anos desde a revolução! Na realidade,
acabara a exploração, a terra fora cedida aos camponeses e os operários receberam a
oportunidade de gerenciar as fábricas. Então, por que tanto descontentamento? Por
que as coisas não andavam com a velocidade que todos queriam? Talvez a oposição
não estivesse de todo errada.
Havia falatório generalizado sobre o aparato. O Pravda, por exemplo, acabara de
publicar um relatório de Lebed sobre “Medidas para melhorar o aparato estatal e
combater a burocracia”. Escrevia sarcasticamente:

Quais são as falhas de nosso aparato estatal? No fundo, o status inflado e a qualificação inferior dos que nele
trabalham, o que também é verdade para as organizações soviéticas das localidades. Estruturas desajeitadas,
duplicação de funções, burocracia demasiada, seleção ruim dos especialistas com base no entendimento
inadequado de habilitações e, finalmente, fiscalização deficiente, por vezes de todo inexistente, dos escalões
superiores sobre a execução das tarefas, ou sobre o trabalho das próprias instituições.38

O poeta Mayakovsky escreveu na mesma linha. O germe da ideia de que devia se


ver livre dessa cansativa oposição ia se formando na cabeça de Stalin, e de que ele
teria que fazê-lo em defesa da aceleração do grande projeto de reestruturação,
embora, àquela altura, ainda não soubesse como proceder. Um programa dessa
natureza tornaria mais fácil a pressão sobre a intelligentsia, de modo a encabrestá-la
totalmente para a causa da industrialização e da transformação da economia agrária.
Ajudaria também a minorar a confusão mental dos artistas. Não podia haver arte
neutra numa sociedade de classe. Os bem conhecidos velhos mestres teriam que ser
utilizados para treinar escritores operários e camponeses. Não deveria haver lugar
para elementos antiproletários na cultura soviética.
A incerteza intelectual dos artistas passou a ser vista por Stalin como nada mais
que heresia contrarrevolucionária, se bem que não tão perigosa, é verdade, como a
pregada por Trotsky. A luta neste front parecia ter chegado ao seu ponto
culminante. Antes de analisarmos a fase final da batalha com Trotsky, entretanto,
convém fazer observações ulteriores sobre a cultura, sobre a intelligentsia e sobre a
atitude de Stalin em relação a elas. A característica principal desta atitude foi a total
falta de respeito pela liberdade – liberdade de criação, liberdade de expressão,
liberdade de entendimento. E isso não foi acidental. Stalin achava natural a negação
da liberdade de pensamento em nome da força e do poder.
[15]
A derrota do “Inimigo nº 1”

T rotsky gostava de viajar. Desfrutava dos feriados e tratava bem de si mesmo.


Na verdade, vários médicos o atendiam. Até mesmo durante os piores anos
seguintes à guerra civil, ele dava um jeito de escapar para um refúgio de
descanso a fim de caçar e pescar um pouco. Na primavera de 1926, decidiu ir a
Berlim para uma consulta médica. O Politburo tentou dissuadi-lo da viagem por
razões de segurança, mas ele insistiu. Seus documentos de viagem foram preparados
com o nome de Kuzmenko, um membro da câmara ucraniana do Comissariado da
Educação. Trotsky e a esposa se despediram de Zinoviev e Kamenev na estação e
seguiram viagem acompanhados do ex-comandante de seu trem blindado, Sermuks.
Trotsky não era o mais astuto dos políticos. Na luta com Stalin, metia-se em
dificuldades, por exemplo, não comparecendo ao funeral de Lenin, ou não
aparecendo nas reuniões do Politburo. Cada período de férias ou estação de caça,
bem como sua atividade literária, o afastavam das questões políticas. Entrementes,
Stalin usava todas as ausências de Trotsky para fortalecer a própria posição.
Nos anos derradeiros, Trotsky teria tempo para refletir sobre sua vida e, numa de
suas obras, escreveu que, durante a viagem a Berlim, chegara à conclusão de que não
havia possibilidade de conciliação com Stalin, de que um deles teria que desistir, e
de que este seria Stalin. Lembrara-se de que Zinoviev e Kamenev estavam então ao
seu lado e de que tinham concluído que os três juntos seriam capazes de arrancar a
iniciativa do secretário-geral. Portanto, pensara que ainda era possível evitar um
Termidor, fazendo com que Stalin cumprisse o testamento de Lenin.
Além dos ataques públicos a Trotsky, Stalin trabalhava nos bastidores para
reduzir a influência do rival. Como testemunhou A.P. Balashov, funcionário da
secretaria de Stalin, o secretário-geral quase sempre reunia seus aliados antes de uma
reunião do Politburo para discutir maneiras de solapar Trotsky. “Sabíamos”, disse
Balashov ao autor, “que Stalin cozinhava outro prato anti-Trotsky”.
Quando o Secretário-Geral descobriu que Trotsky ainda era mencionado nos
programas de estudos políticos do Exército como “Chefe do Exército Vermelho de
Operários e Camponeses”, sua reação foi imediata. Escreveu a Frunze, em 10 de
dezembro de 1924, propondo uma correção imediata daqueles programas. A
resposta de Frunze, alguns dias depois, veio com um relatório anexo do chefe do
departamento político do Exército, Alexinsky, estipulando: “Trotsky não mais
figura nos programas de estudos políticos como líder do Exército Vermelho”. Stalin
tomou também providências para que, na segunda metade de 1924, o nome de
Trotsky não mais fosse adotado por cidades e fábricas, e para que poucas notícias
simpáticas sobre o rival aparecessem na imprensa.
No intervalo entre o XIV e o XV congressos, Stalin organizou e presidiu diversas
reuniões – sessões combinadas do comitê central e da CCC, sessões do comitê
central do Politburo –, em que foram discutidas as atividades da oposição e tomadas
decisões. Diversas posições foram adotadas em relação a Trotsky e seus seguidores:
advertências foram expedidas, exigidas punições pelo partido, houve expulsões dos
conselhos editoriais de órgãos partidários. Rachas enormes logo apareceram na
oposição. Com o apoio de outros líderes do partido, Stalin conseguiu a saída de
Zinoviev do Politburo, em julho de 1926, seguida da remoção de Trotsky, em
outubro. Kamenev foi dispensado de suas atribuições como membro candidato. Um
pleno do comitê central decidiu pela impossibilidade do desempenho de funções no
Comintern por parte de Zinoviev. Outros oposicionistas foram também retirados de
seus cargos no partido e no estado.
Num relatório à XV Conferência do partido, de outubro-novembro de 1926,
“Sobre a oposição e a situação interna do partido”, Stalin criticou acerbamente o
trio oposicionista e seus aliados. Expôs as mesmas ideias no mais amplo sétimo
pleno do comitê executivo do Comintern, em dezembro do mesmo ano. As
anotações para esses discursos mostram que ele preparou o “desmascaramento” dos
faccionários com todo o cuidado. Fraquezas e “pecados” foram listados:

1. Trotsky, Zinoviev, Kamenev: não apresentam fatos, só invenções e mexericos.


2. Fazer Trotsky explicar com quem estava alinhado antes de Outubro: com os mencheviques de esquerda ou
com os de direita?
3. Por que Trotsky não foi membro da Zimmerwald de Esquerda?*
4. Stalin realmente está perseguindo o meio-menchevique Mdivani? É boato.
5. No IV Congresso, Kamenev disse que foi um erro “abrir fogo sobre a esquerda”. Kamenev é esquerdista?
6. Trotsky afirma que se “antecipou” às Teses de Abril de Lenin. Está comparando uma mosca com uma alta
torre de observação.
7. Telegrama de Kamenev a [o Grão-Duque] Mikhail Romanov.
8. Zinoviev insistiu na aceitação dos terríveis termos de Urqhart na concessão.**
9. Zinoviev: “ditadura do partido” etc.

Stalin coligiu meticulosamente todos os delitos dos adversários, de vulto e


insignificantes – que não eram poucos – e atirou-os incansavelmente na fogueira da
contenda. No plenário de dezembro, pronunciou um discurso com o título “Uma
vez mais sobre a tendência social-democrata em nosso partido”, que durou cerca de
cinco horas. A direção principal de seu ataque foi resumida na pergunta,
“Leninismo ou Trotskysmo?” Reuniu todos os reles e corriqueiros deslizes
cometidos pela oposição, mas não tentou responder a suas opiniões com argumentos
intelectuais. Para ele, bastava açoitá-los com insultos.
Naturalmente, a oposição teve a oportunidade de defender-se, mas não
convenceu. Por exemplo, gastou muito tempo tentando persuadir os delegados a
concederem uma hora para seus discursos, depois pediram mais meia hora, e mais
dez minutos, e mais 15. Os anais da conferência mostram que, afora uma fieira de
citações de Marx e Lenin, e deles próprios membros da oposição, não houve uma
linha de defesa contra a acusação de facciosismo.
Nem Trotsky, com sua reputação de orador, teve argumentos satisfatórios para
justificar os inúmeros ataques que fez ao comitê central e ao partido. Ao fim de uma
declaração longa e confusa, meramente disse: “Não admitimos as opiniões que nos
foram imputadas.” Yu.M. Larin (o nome verdadeiro era Lurie e sua filha era a
última esposa de Bukharin), que falou depois dele, observou com sagacidade que
todos estavam presentes numa ocasião em que “a revolução superava alguns de seus
líderes”. Acrescentou que os discursos da oposição tinham sido “mera argumentação
literária sobre citações e sobre interpretações de diversas passagens de diferentes
obras”. Trotsky, Zinoviev e Kamenev não tinham “se comportado como líderes
políticos, e sim como letrados sem responsabilidades”.39 Outros oradores
comentaram (com despercebida ironia, em vista do que iria acontecer no futuro)
que Trotsky e seus seguidores queriam industrializar o país às expensas do
campesinato e sem consideração pelas consequências sociais.
O combate contra Trotsky não foi travado apenas no comitê central e na CCC,
mas também no Comintern. Trotsky era membro do comitê executivo do
Comintern e quando, em maio de 1927, a revolução chinesa foi alvo de debate,
Stalin resolveu atacar Trotsky também nesse campo. O discurso que fez no X Pleno
do comitê executivo do Comintern, em 24 de maio de 1927, não é muito
conhecido e merece uma citação mais longa:
Tentarei o mais possível evitar o elemento pessoal nessa polêmica. Os ataques pessoais desferidos por Trotsky
e Zinoviev contra membros individuais do Politburo e do Presidium do Comitê Executivo do Comintern
não merecem nossa atenção. Parece que o camarada Trotsky gostaria de se autodescrever como algum tipo de
herói nos encontros do comitê executivo, com o objetivo de transformar o trabalho deste comitê – sobre o
perigo de guerra, a revolução chinesa, e assim por diante – num simples trabalho sobre a questão dele
mesmo. Creio que o camarada Trotsky não é digno de tanta atenção [voz na plateia: “Muito bem!”], em
especial quando parece mais um ator que um herói, e não devemos, de forma alguma, confundir heróis e
atores. Não estou dizendo que Bukharin e Stalin não se ofendem quando pessoas como os camaradas
Trotsky e Zinoviev, cujos desvios social-democratas foram detectados pelo mais amplo VII Pleno do comitê
executivo, atacam os bolcheviques sem a mínima razão. Pelo contrário, eu me sentiria profundamente
insultado se meio-mencheviques como os camaradas Trotsky e Zinoviev me elogiassem em vez de me
atacarem.40

Por mais superficial que esse discurso possa ter sido, foi incisivo e irado, e afixou
rótulos nos oposicionistas, aviltando-os como políticos práticos. O comitê executivo
do Comintern preparou-se para a expulsão de Trotsky, o que ocorreu em 27 de
setembro daquele mesmo ano, 1927. Se bem que não estivesse totalmente isolado,
Trotsky continuou travando uma batalha perdida. Depois do seu exílio da União
Soviética e até 1940, ele seria o único a continuar se arriscando, atacando e
acusando Stalin, porém, quanto mais isso se prolongava e mais encolerizada se
tornava a voz solitária de Trotsky, mais patente ficava que sua luta era menos pela
revolução e seus ideais do que por si mesmo. Até seu último dia de vida, jamais se
conformou com o absurdo de ele, o quase gênio, ter sido posto na chuva e no sereno
pelo “velhaco da Ossetia”. Logo passaria a usar conceitos marxistas para apequenar
Stalin, enquanto, de sua parte, o secretário-geral nunca deixaria de ver Trotsky com
o mais profundo ódio pessoal e como a incorporação do mal, símbolo da
degeneração.
Entrementes, os oposicionistas não aprenderam a lição, e a luta prosseguiu. Na
primavera de 1927, enviaram um novo programa ao comitê central, apoiado por 83
aliados de Trotsky. Depois de diversas reuniões do comitê central e da CCC,
Trotsky e Zinoviev foram expulsos do comitê central em outubro de 1927, e do
partido no mês seguinte, uma iniciativa ratificada pelo XV Congresso do partido,
quando se reuniu em dezembro do mesmo ano. Entre os 25 membros ativos da
oposição expulsos do partido na mesma ocasião estava Kamenev, embora ele e
Zinoviev fossem readmitidos mais tarde e mesmo chegassem a fazer declarações de
arrependimento no XVII Congresso do partido.
Conquanto seja verdade que a batalha com a oposição teve lugar contra um pano
de fundo internacional de crescente tensão e um quadro interno de
desenvolvimento da industrialização, é também verdade que Stalin provocou a
refrega. Os debates infindáveis desviaram a atenção do partido de suas tarefas
vitalmente importantes, e a condição partidária interna foi discutida repetidas vezes
dentro do Comintern; mas lá também Trotsky e seus aliados não conseguiram
praticamente apoio algum. Sua aura de herói do partido havia se dissipado. Passou a
ser visto pelo partido e pelo movimento operário internacional como discursador e
pretenso líder.
Por mais paradoxal que possa parecer, foi Trotsky e ninguém mais quem
reforçou a posição de Stalin. Ao impingir ao partido um debate sem fim sobre sua
rixa com Stalin, Trotsky, sem querer, reforçou a autoridade do secretário-geral como
novo líder. Foi emblemático o fato de Stalin ter sido o único orador do XV
Congresso a receber estrondosa ovação tanto pelo relatório como pelo discurso de
encerramento. Ele não pode ser acusado de “encenação” ou de “preparação de
enredo” na condução do evento: a maioria dos delegados simplesmente o viu como
lídimo chefe emergente do partido, impressão fortalecida pelos pouco convincentes
discursos da oposição, que perdera o vigor. Como Trotsky relembrou encolerizado:
“A única preocupação de Zinoviev e seus amigos foi a de render-se enquanto havia
tempo. [...] Esperaram comprar o perdão, até mesmo ser favorecidos de alguma
forma, caso demonstrassem seu afastamento de mim...”41
Ficou claro para todos que a aliança de Trotsky com seus antigos inimigos
surgira só para concentrar forças contra Stalin, enquanto este último, cuja ambição e
fé em seu próprio destino não paravam de crescer, não perdeu a oportunidade de
ouro que se lhe apresentou. Tendo começado a batalha no plano ideológico, passou
a agir então para a destruição política completa de Trotsky.
Um pleno conjunto do comitê central e da CCC de 23 de outubro de 1927 foi
convocado para discutir a agenda do XV Congresso que se aproximava. Quando o
plenário concordou que o congresso deveria debater a oposição de Trotsky, gritos
partiram da plateia e notas foram passadas para a mesa dos trabalhos reclamando
que o comitê central havia escamoteado o Testamento de Lenin e descumprido sua
vontade. Stalin não pôde mais silenciar sobre a questão. Seu discurso de uma hora
de duração foi rancoroso e pleno de indisfarçável ódio por Trotsky. Mais uma vez,
repassou todos os pecados do líder rejeitado, remontando a 1904. Sabedor de que a
arma principal de Trotsky era o aviso de Lenin a respeito de suas deficiências
pessoais, Stalin contra-atacou na mesma linha:

A oposição pensa que pode “explicar” sua derrota dando como razão a rudeza de Stalin, a teimosia de
Bukharin e Rikov, e assim por diante. Isso é muito fácil. É apenas palavrório, não é explicação. [...] No
período entre 1904 e a Revolução de Fevereiro, Trotsky confraternizou com os mencheviques durante todo o
tempo, e se batia numa luta desesperada contra o partido de Lenin. Naqueles tempos, Trotsky foi derrotado
repetidas vezes pelo partido de Lenin. Por quê? Seria talvez por causa da rudeza de Stalin? Mas Stalin não era,
então, secretário do comitê central; naqueles dias, estava bem longe dos exílios no exterior, conduzindo a luta
na clandestinidade contra o czarismo, enquanto a batalha entre Trotsky e Lenin era travada no exterior.
Portanto, o que a rudeza de Stalin tem a ver com tudo isso?42

Stalin lançou seu ataque sob o estandarte da defesa de Lenin, a quem Trotsky,
naqueles dias, chamara – entre outras coisas – de “Maximilien Lenin”, clara alusão
aos métodos ditatoriais de Robespierre. Desferiu golpe contundente em Trotsky ao
realçar que um dos panfletos iniciais do rival, “Nossas tarefas políticas”, fora
dedicado ao menchevique P.B. Axelrod. Triunfalmente e acompanhado de brados
de aprovação da plateia, Stalin leu a dedicatória: “Ao meu prezado professor, Pavel
Borisovich Axelrod.”

Pois muito bem, faça bom proveito de nosso “prezado professor” Pavel Borisovich Axelrod! Bom proveito!
Agora, venerável Trotsky, é melhor correr, porque Pavel Borisovich está decrépito e pode morrer a qualquer
momento, e talvez você se atrase para o encontro com seu “professor”.43

Relembrando o pleno de julho-agosto de 1927, Stalin lamentou ter dissuadido os


camaradas da expulsão imediata de Trotsky e Zinoviev do comitê central. “Fui
talvez muito generoso e cometi um erro...” Mas agora, ao contrário, pedia o apoio
“daqueles camaradas que queriam expulsar Trotsky e Zinoviev do comitê central”.44
Quanto à “Carta ao Congresso” de Lenin, Stalin deu sua própria interpretação:

Ela foi mostrada vezes sem conta, e ninguém está tentando esconder coisa alguma, isso porque o Testamento
de Lenin foi endereçado ao XIII Congresso do partido, foi lido lá, e o congresso, por unanimidade,
concordou em não publicá-lo, porque, aliás, Lenin não solicitou sua publicação, nem queria isso.45

Como mostrou nossa análise das últimas cartas de Lenin, Stalin estava distorcendo a
verdade histórica. Jamais ficou esclarecido se Lenin endereçou as cartas ao XII ou ao
XIII Congresso. O Testamento foi lido apenas para os delegados, não para o
congresso. E esse congresso não tomou decisão, muito menos por unanimidade,
sobre sua não publicação, e só havia a palavra de Stalin afirmando que Lenin não
desejara aquela publicação.
Durante o evento, sentindo sua crescente força e percebendo que tinha,
praticamente, o total apoio do plenário, Stalin decidiu-se pela batalha no campo em
que era mais vulnerável, e mentiu deslavadamente no decorrer do processo.
Explorou o fato de que, por insistência do Politburo (sobretudo por sua própria), o
Bolshevik de setembro de 1925 publicou uma declaração de Trotsky referente ao
Testamento. Cedendo à pressão de Stalin na ocasião, Trotsky escrevera:

Desde que ficou doente, Vladimir Ilyich escreveu com frequência propostas, cartas etc. aos órgãos dirigentes
do partido e a seus congressos. Todas essas cartas etc. foram naturalmente sempre entregues aos destinatários
e levadas à atenção dos XII e XIII Congressos, e sempre, é claro, tiveram a influência adequada sobre as
decisões do partido. [...] Vladimir Ilyich não deixou testamento e, pela própria natureza de suas relações com
o partido, bem como pela natureza do partido em si, fica excluída a possibilidade de um tal testamento, de
modo que qualquer conversa sobre ocultação ou não cumprimento de um testamento não passa de invenção
maliciosa e, na verdade, vai contra a intenção de Vladimir Ilyich.46

Poderia Trotsky ter adivinhado que, ao tentar se dissociar dos rumores que
circulavam no Ocidente, os documentos sigilosos de Lenin tinham alcançado o
Ocidente por suas mãos, ficaria totalmente encurralado num canto? Os sinos, no
final das contas, dobravam por ele. Aos olhos do plenário, o líder da oposição
revelou-se mais uma vez um político intrigante, e Stalin não perdeu a chance de
acabar com ele. Citando o artigo do Bolshevik, Stalin mirou diretamente no alvo:

Isso foi escrito por Trotsky, por ninguém mais. Que fundamento podem ter agora Trotsky, Zinoviev e
Kamenev para tagarelarem sobre uma tal “ocultação” do Testamento de Lenin por parte do comitê central e
do partido? [...]
Tem-se dito que, em seu Testamento, Lenin sugeriu que, em face da “rudeza” de Stalin, o congresso deveria
considerar sua substituição no cargo de secretário-geral por alguma outra pessoa. Isso é absolutamente
verdadeiro. Sim, camaradas, sou rude em relação àqueles que, traiçoeira e rudemente, destroem e dividem o
partido. Jamais escondi isso, nem vou fazê-lo agora. Talvez se exija uma certa gentileza para com esses
divisionistas. Mas não consigo agir assim. Logo na primeira sessão do comitê central que se seguiu ao XIII
Congresso, solicitei ao pleno dispensa de minhas obrigações de secretário-geral. O próprio congresso
debatera o assunto. Todos os delegados, inclusive Trotsky, Kamenev e Zinoviev, por unanimidade, forçaram
Stalin a continuar no posto. Que deveria eu fazer? Fugir de meu dever? Não é da minha natureza, jamais fugi
de uma tarefa, não tenho direito a fazê-lo, seria o mesmo que a deserção. Um ano mais tarde, solicitei
novamente ao pleno que me dispensasse e, mais uma vez, fui compelido a permanecer. Que mais poderia ter
feito?
É significativo que o Testamento não contém uma só palavra, uma só pista, sobre erros de Stalin. Fala apenas
na rudeza de Stalin. Porém, a rudeza não é, nem pode ser, uma deficiência da linha política de Stalin ou de
suas posições.47

Sentado no salão, Trotsky sentiu que aquela tirada devastadora e triunfante de


Stalin representava sua morte política. Como escreveria mais tarde, no México,
depois do discurso de Stalin, ficou com a sensação de que a lâmina da guilhotina
pendia sobre sua cabeça. Como outros revolucionários daquela ocasião, Trotsky
conhecia bem a história da Revolução Francesa. Não podia esconder a satisfação
quando se lembrava das últimas palavras de Robespierre para a Convenção: “A
República pereceu! Vem aí o reinado dos salteadores!” Naturalmente, só via a si
mesmo como Robespierre. Contudo, diferentemente do francês não podia contar
com os sans-culottes parisienses. Trotsky era um marechal de campo sem exército. O
partido era hostil a ele, e já cansara de suas intrigas. Estava tudo acabado.
O diálogo que deve ter passado pela cabeça do derrotado quase-líder e quase-
ditador deve ter sido autodestrutivo. Como pudera ele, Trotsky, ter subestimado
tanto o bigodudo da Ossetia? A sombria ideia de que tinha perdido a vez o
apoquentou mesmo em vida de Lenin. Mas não podia sonhar que seria
publicamente esmagado por alguém em tão pouca evidência naqueles dias. Mais
tarde, no exterior, Trotsky leria um livro do émigré Essad Bey que explicava tudo:

Trotsky e Stalin eram dois pólos opostos no partido comunista. Nem em termos pessoais, nem políticos,
convergiam em ponto algum. Trotsky era o europeu brilhante, o jornalista experimentado e conceituado, e
Stalin, o típico asiático, um homem sem vaidades ou necessidades pessoais, com a mente fria e calculista de
um conspirador oriental. Dois homens assim só poderiam odiar um ao outro. Stalin tinha uma aversão física
por Trotsky, ao passo que este sentia enorme desprazer só em olhar para Stalin, para seu rosto marcado de
varíola.48

Trotsky pronunciou seu último discurso como figura do partido no pleno de


outubro de 1927. Depois escreveria que desejava, mas fracassou completamente,
alertar os “cegos” de que “o triunfo de Stalin não duraria muito e que o colapso de
seu regime viria subitamente. Os vitoriosos do momento estavam muito confiantes
na força. Vocês estão nos expulsando, mas não evitarão nossa vitória”. Debruçando-
se sobre a tribuna e tentando silenciar o alarido que se instalara no salão, Trotsky leu
rapidamente seu pronunciamento, da mesma forma que os “coladores”, como
frequentemente chamara Stalin e outros líderes do partido. A audiência não prestou
atenção, interrompendo-o com gritos: “Calúnia!” “Mentiras!” “Falador!” “Abaixo o
faccioso!” Trotsky tentou se ver livre rapidamente do que tinha escrito sobre o
enfraquecimento do princípio revolucionário no partido, o domínio do aparato, a
criação da “facção mandante” que conduzia o país e o partido num ambiente de
reação política. A despeito do fato de que muito do que dizia estava certo, ele não
deu argumentos convincentes ou ideias socialistas claras. O ódio que devotava a
Stalin e ao comitê central ficou bem claro, mas não encontrou eco no plenário,
tampouco entre os comunistas que leriam o discurso nos anais do XV Congresso.
Por ocasião do décimo aniversário da Revolução de Outubro, os seguidores de
Trotsky decidiram que tomariam parte nas comemorações como uma passeata, em
colunas próprias, carregando cartazes irrepreensíveis: “Abaixo o kulak, o nepista e o
burocrata!” “Abaixo o oportunismo!” “Pela vontade de Lenin!” “Pela unidade
bolchevique!” Foram feitas tentativas para levantar retratos de Trotsky e Zinoviev,
mas Stalin tomara medidas acauteladoras e a milícia dispersou os grupos de Trotsky.
Zinoviev, que fora a Leningrado para a ocasião, e Trotsky, que desfilava de
automóvel pelas ruas e praças de Moscou, descobriram que tinham apenas apoio
minúsculo. Talvez Trotsky tenha se recordado do II Congresso dos Sovietes, dez
anos antes, quando despedira a figura de Martov que partia com as palavras: “Vá
para o lixo da história, que é seu lugar!” As mesmas palavras eram então disparadas
contra ele, quando tentou apelar para a multidão na Praça da Revolução, a caminho
da Praça Vermelha. Atiraram pedras e os vidros de seu carro estilhaçaram. Stalin o
despejava no esgoto da história. Em apenas dez anos, a meteórica carreira de
Trotsky no partido chegara a um fim catastrófico.

Depois da expulsão de Trotsky do partido, Zinoviev e Kamenev tentaram convencê-


lo à autocrítica, a admitir que estivera errado. Mas Trotsky, malgrado o que sobre
ele foi escrito e dito, sempre se viu pelo prisma do futuro, e como era ambicioso e
vaidoso, levou em consideração a forma com que os historiadores pesariam um
sucesso temporário na avaliação geral que dele fariam.
As duas famílias de Trotsky teriam que beber do amargo fel. Sua primeira
esposa, Alexandra Sokolovskaya, e suas duas filhas, Zina e Nina, bem como os
maridos, eram seus zelosos aliados. Ele afastou-se da família por volta de 1902,
quando a filha mais nova tinha apenas quatro meses de idade. De início, escrevia do
exterior à esposa, mas o tempo e a constituição de nova família lançaram Alexandra
e suas filhas naquilo que ele mesmo chamava de “esfera do irreparável”. Como
escreveria em Minha vida, em 1929: “A vida separou-nos, mas nada poderia destruir
nossa amizade e nossa afinidade intelectual.” Depois da revolução, as duas filhas
desfrutaram da glória refletida do pai, para partilharem com ele o ostracismo poucos
anos mais tarde. O destino dos membros dessa família foi triste. Por sua heterodoxia
política e por pertencerem a “um clã de inimigos” – ou por serem “elementos
socialmente perigosos de origem”, como foi dito nos anos 1930 – Stalin cobraria
um preço horroroso.
A segunda esposa de Trotsky, Natalya Sedova, também começou a vida como
revolucionária. Por algum tempo, viveram juntos em São Petersburgo usando o
nome falso Vikentiev. Ela esteve sempre ao seu lado, compartilhando o triunfo de
sua ascensão durante a revolução e a guerra civil, bem como as infindáveis andanças
do exílio.
Trotsky teve dois filhos no segundo casamento. O mais velho, Lev, que estava
sempre com o pai, foi trotskysta ativo e morreu muito jovem em circunstâncias
misteriosas, em Paris, depois que seu pai foi banido da URSS. O mais jovem, Sergei,
deixou o lar quando seu pai vivia no Kremlin, declarando que achava a política
“censurável”. Não se filiou à Konsomol, juventude comunista, e mergulhou na
ciência. Recusando-se a acompanhar o pai no exílio, Sergei, como filho de Trotsky,
estava, é claro, condenado. Em janeiro de 1937, apareceu no Pravda um artigo
intitulado “Filho de Trotsky, Sergei Sedov, tentou envenenar operários”. Já exilado
em Krasnoyarsk, Sergei foi declarado “inimigo do povo”. Numa reunião da
fundição de uma planta industrial para a fabricação de máquinas, um dos capatazes,
de nome Lebedev, declarou: “Tínhamos trabalhando conosco um engenheiro filho
de Trotsky, Sergei Sedov. Este adequado fruto de um pai que se vendeu ao fascismo
tentou envenenar um grande grupo de operários com o gás proveniente de um
gerador.” No mesmo encontro, foram feitas observações sobre o sobrinho de
Zinoviev, Zaks, e seu “protetor”, o gerente da fábrica, Subbotin. Estava selada a
sorte de pessoas que eram assim acusadas.
Todos os filhos de Trotsky pereceram no rodamoinho sangrento para o qual
foram tragados devido à luta do pai com Stalin, e isso cercou seu exílio com uma
aura de martírio aos olhos do Ocidente. Natalya sobreviveu tanto ao marido como a
Stalin e viveu para testemunhar o XX Congresso.
No começo, em nome da “história”, o secretário-geral prometeu publicamente
“não tocar na família de Trotsky”, mas o destino de seus integrantes foi doloroso.
Alguns parentes distantes conseguiram escapar incólumes e ainda vivem, com nomes
diversos em Moscou, onde conversaram com o autor; todavia, a maioria deles
passou uma vida dura após o banimento do parente famoso.
Nos cerca de 15 livros que escreveu no exílio, Trotsky quase sempre focalizou o
próprio destino, em particular pouco antes de seu assassinato. História da Revolução
Russa, Que mais?, O testamento oculto de Lenin, A moral deles e a nossa, Diário do
exílio, Minha vida, A Terceira Internacional depois de Lenin trazem a marca de um
egocentrismo trágico. Achava intolerável que não se falasse, escrevesse ou discutisse
sobre ele. A fama, a popularidade e a glória passaram a ter mais valor para ele que o
alimento. Os mencheviques que, em certa ocasião, partilharam suas opiniões,
passaram a escrever artigos cáusticos sobre sua pessoa.
David Dallin escreveria:
Trotsky faz o possível para garantir, Deus o livre, que as pessoas não comecem a se esquecer dele. Dia e noite,
escreve grandes livros e pequenos artigos, publica boletins de família e variações sobre o mesmo tema em
diversas línguas: a traição de Stalin, sua deslealdade com a revolução chinesa e a carinhosa afeição de Lenin
por Trotsky. Mas a humanidade é ingrata e, com o tempo, lembrará de Trotsky, mas falará cada vez menos
sobre ele.49

O Politburo debateu diversas vezes como lidar com Trotsky, cujos ataques tinham
mudado de forma – já não eram contra o partido, mas antissoviéticos –, e decidiu
afastá-lo de Moscou. Primeiro, ele foi obrigado a mudar-se do Kremlin. Zinoviev,
Kamenev, Radek e outros líderes também se mudaram. Ioffe cometeu suicídio logo
depois da derrota de Trotsky. Zinoviev e Kamenev resolveram se retratar no
congresso vindouro. “Lev Davidovich”, escreveram a Trotsky, “chegou a hora de
termos a coragem da rendição”. Haviam perdido de forma decisiva o jogo e
tentavam pegar um estribo do trem da história. Logo se chegou à decisão de enviar
Trotsky para Alma-Ata, no sul do Cazaquistão, e as providências para isso, segundo
alguns, ficaram a cargo de Bukharin.
Durante a partida, alguns aliados de Trotsky tentaram fazer um protesto
político. Trotsky recusou-se a deixar a casa e entrar no carro, e teve que ser
fisicamente arrastado e igualmente empurrado para dentro do trem, enquanto seu
filho mais velho bradava “Camaradas, vejam como levam Trotsky à força!”
Sua esposa descreveu a cena:

Houve uma tremenda manifestação na estação. O povo esperava, gritando “Vida longa para Trotsky!”, mas
ninguém o via em lugar algum. Onde estaria? Em torno do carro que fora reservado para nós, juntara-se
grande multidão. Jovens amigos colocaram um imenso retrato de L.D. em cima do carro. As pessoas davam
“hurrahs” de júbilo. O trem partiu, primeiro um solavanco, depois outro; moveu-se lentamente um pouco à
frente para logo depois parar subitamente. Os manifestantes se postaram diante da locomotiva; penduraram-
se aos vagões e interromperam o deslocamento, exigindo Trotsky. Correu um boato pela multidão de que
agentes da GPU tinham levado L.D. secretamente para o interior do trem e impediam que ele aparecesse
para os que vieram vê-lo. O nervosismo que tomou conta da estação foi indescritível. Houve confrontos com
a polícia e com agentes da GPU, com baixas de ambos os lados. Prenderam gente.50

No Kremlin, Stalin seguia atentamente os acontecimentos, e se mantinha informado


sobre o que se passava por meio das constantes chamadas telefônicas, durante as
quais murmurava: “Nenhuma vacilação! Nenhuma concessão! Os cúmplices de
Trotsky têm que ser isolados! Faça isso rapidamente e sem demora!” Ficou
caminhando no gabinete para lá e para cá, enquanto pensava. Algum tempo mais
tarde, nos anos 1930, ao tomar conhecimento dos recentes discursos de Trotsky no
exterior, vociferou: “Cometemos dois erros naquela ocasião. Deveríamos tê-lo
deixado por algum tempo em Alma-Ata e não permitir, absolutamente, que saísse
do país. O outro erro foi: como deixamos que viajasse levando tantos documentos?”
Em Alma-Ata, Trotsky continuou sua atividade política. Todo mês, enviava
centenas de cartas e telegramas para diversos endereços. As anotações de seu filho
mais velho mostram que a correspondência clandestina levada a efeito por Trotsky
em Alma-Ata, entre abril e outubro de 1928, chegou a cerca de 800 cartas políticas e
550 telegramas enviados, e mais de mil cartas e 700 telegramas recebidos.51 Além
disso, cartas e outros itens iam e vinham por mensageiros particulares. Ele tentava
reativar a oposição. Seu papel de líder em desgraça conferia-lhe certa autoridade
moral. O exílio não mudou sua maneira de pensar, nem ele se sentiu impelido a
interromper a tentativa de semear a dissensão dentro do partido. Para sua mente
alerta, Stalin passara a personificar o mal termidoriano e era o presságio de futuras
desgraças.
Um ano mais tarde, em janeiro de 1929, o Politburo decidiu, depois de longas
discussões e várias opções, que Trotsky, a esposa e o filho Lev deveriam ser banidos,
via Odessa, para Constantinopla. Quando o vapor Ilyich se aproximava de
Constantinopla, em 12 de fevereiro, Trotsky resolveu chamar a atenção da opinião
mundial. Sua declaração para o presidente da Turquia, Kemal Pasha, estava vazada
nos seguintes termos:
Prezado Senhor
À porta de Constantinopla, tenho a honra de informar-lhe que cheguei à fronteira da Turquia não por
vontade própria, e que só cruzarei esta fronteira submetido à força.
Solicito-lhe, Senhor Presidente, que aceite meus votos de consideração.
L. Trotsky
12 de fevereiro de 192952

Dessa forma, Trotsky lançou-se em dez anos adicionais da mais ferrenha luta contra
Stalin e, por vezes e sem o querer, contra o próprio Estado que ajudara a criar e
defender.
A principal causa de seu drama pessoal repousou no fato de que, em última
análise, ele pôs suas ambições pessoais em primeiro lugar e por elas enfrentou um
oponente inescrupuloso. O desenlace foi acelerado pela colisão pessoal dos “dois
destacados líderes”. Dono de uma mente original e poderosa, e em função de seu
caráter altamente ambicioso, Trotsky aos poucos entrou nas fileiras dos inimigos
irreconciliáveis do socialismo stalinista. Seu ódio pessoal pelo secretário-geral com
frequência venceu a decência elementar, mesmo em relação aos ideais e valores que
tão recentemente proclamara.
Mal chegado à angra de Constantinopla, naquele plúmbeo fevereiro, Trotsky
passou à imprensa ocidental uma compilação de seis de seus ensaios intitulada Que
aconteceu e como. Num dos ensaios, fazia uma afirmativa que tentara disfarçar
apenas seis meses antes, a saber, que a teoria do socialismo em um só país era uma
maquinação reacionária, “o maior e mais criminoso solapamento do
internacionalismo revolucionário”. Era uma teoria, clamou ele, com base
administrativa, não científica.53 Quando Stalin leu essas declarações, que chegaram
na correspondência matinal duas semanas depois, disse, na presença de um de seus
assistentes: “Finalmente, o porco parou de fingir.”
Agora que estava no exterior, Trotsky preocupava-se constantemente em
preservar sua reputação de revolucionário. Continuou publicando coleções de suas
obras, muitas vezes apelando para invenções e interpretações forçadas, tudo com o
objetivo de atingir Stalin o mais dolorosamente possível, e de apresentar-se ao
espelho da história como o homem que Lenin queria como sucessor, intenção
frustrada pela traição de Stalin. Diga-se que Trotsky enxergara através de Stalin
antes dos outros e não se curvara a ele; mas combatendo Stalin, Trotsky conseguira
também insultar toda a nação. No volume vinte da coleção de seus trabalhos, ele se
permitiu alguns comentários mordazes sobre o povo russo. Na sua opinião,
“nenhum funcionário estatal na Rússia jamais chegou a mais que uma imitação de
terceira categoria do Duque de Alba, de Metternich ou de Bismarck”, e nos campos
da ciência, da filosofia e da sociologia, “a Rússia deu ao mundo precisamente nada”.
Só um político que pensa ser um predestinado a desempenhar apenas papéis
relevantes na história seria capaz de assertivas tão chauvinistas e eslavofóbicas. No
exterior, Trotsky passou a se chamar o único homem para quem o planeta inteiro se
tornara acessível sem um visto. Como antes, tentou representar o papel de “segundo
gênio”:

Trouxeram Lenin para a revolução atravessando a Alemanha num trem lacrado. Contra a minha vontade,
arrastaram-me para Constantinopla no vapor Ilyich. Portanto, não considero meu exílio a última palavra da
história.

Ainda esperava voltar, mas o destino decidiu de forma diferente, e ele deveria
continuar banido para sempre.
Notas

* Na Primeira Guerra Mundial, ala radical do movimento socialista antiguerra, dominado por Lenin.

** Leslie Urqhart, negociante inglês que, em 1923, tentou um acordo sobre uma concessão soviética importante
em termos muito duros, que o Sovnarkom não aceitou.
[16]
A vida particular do líder

M uitos que conheceram e viram Stalin no que se pode chamar de


ambiente doméstico – médicos, seguranças, equipe de secretaria,
escritores, chefes militares – contaram-me que, de um modo geral, sua
vida privada e o trabalho se confundiam. Dias de folga não existiam para ele, e o
padrão de seus dias variava pouco. É verdade que, no final da vida, quando a idade o
obrigou a ser mais vagaroso, já não ia todos os dias ao Kremlin, mas trabalhava em
sua dacha. Ocasionalmente, era lá que tinham lugar algumas reuniões do Politburo,
e lá também que recebia ministros, altas patentes das forças armadas e visitantes
estrangeiros. Stalin criou o hábito de trabalhar sem descanso nos anos difíceis logo
depois da revolução. Na realidade, houve ocasiões em que membros do Politburo e
outros sentaram-se, aos domingos, à mesa de jantar de Stalin e lá ficaram
madrugada adentro. Porém, mesmo então, por mais “livres” que fossem as
conversas, sempre recaíam nos problemas que o país e o partido enfrentavam.
A liderança dos anos 1920 vivia com bastante modéstia. Inicialmente, Stalin
ocupou um pequeno apartamento a ele distribuído por ordem de Lenin. Uma carta
de Lunacharsky, de 18 de novembro de 1921, pede que seja encontrado algo mais
confortável para Stalin. Quando Lenin leu a carta, enviou um bilhete ao chefe da
segurança, A.Ya. Belenky (nome real, Khatskelevich): “Isso é novidade para mim.
Não existe nada melhor?”54 Há também uma nota de Lenin para A.S. Yenukidze
solicitando que a questão do apartamento de Stalin fosse resolvida com presteza e
pedindo para ser informado pelo telefone quando o caso estivesse solucionado. De
fato, Stalin logo mudou-se para as instalações de antigos serviçais, no Kremlin, um
ambiente pouco elegante, com alguma mobília original, assoalho gasto e janelas
pequenas.
O novo morador, no entanto, raramente era encontrado lá, pois chegava tarde
da noite e saía bem cedo. No início dos anos 1920, passou a ficar mais tempo na
dacha de Zabolovo e, nos anos 1930, em Kuntsevo. Mandou fazer constantes
reformas na dacha. Nos últimos anos, mandou construir um pequeno chalé de
madeira, próximo à grande villa, e para lá se transferiu. Como me contou A.N.
Shelepin, que foi chefe da KGB e membro do Politburo no início dos anos 1970:

Quando Stalin faleceu, teve que ser feito inventário de seus bens, tarefa que se revelou bem simples. Não
havia antiguidades nem objetos de valor de qualquer espécie, afora um piano estatal. A mobília era barata e o
forro das cadeiras de braços estava bastante solto e gasto. Não havia nem mesmo um só quadro “autêntico”,
eram todos reproduções em simples molduras de madeira. Pendurada em posição central na sala de estar
ficava uma fotografia ampliada de Lenin e Stalin tirada em Gorky, em setembro de 1922, pela irmã de
Lenin, Maria.*
Havia dois tapetes no assoalho. Stalin dormia com um cobertor do Exército. Além do uniforme de marechal,
seu vestuário consistia em um par de ternos de confecção barata, um deles de lona, botas de feltro bordado e
um sobretudo de couro de carneiro.

Como já mencionamos, esse “ascetismo” era meramente externo, já que Stalin


utilizava também diversas villas na área de Moscou e no sul, bem como desfrutava
de uma vasta equipe de serviçais. Todos os seus desejos eram prontamente
atendidos, mas ele fazia o possível para sublinhar a simplicidade “proletária” de seu
estilo de vida. A aversão de Stalin pela “Europa” e pelas coisas estrangeiras foi levada
para sua vida doméstica; não gostava de objetos importados, se bem que insistisse
durante toda a sua existência que não havia relação direta entre a postura política ou
moral de um homem e sua atitude em relação a valores, estilo de vida ou bens. O
importante era saber concentrar no principal, o que, para ele, era o poder, o poder
como um objetivo, como um meio e como um valor eterno. O enfeite doméstico
desse poder não tinha importância. Em 1938, ele escolheu outro apartamento no
Kremlin, num edifício soberbo construído no século XVIII por Kazakov para o
Senado. Tinha belas janelas, pé-direito elevado e escadarias amplas, quartos de
hóspedes, guardas e recepcionistas, e ocupava quase todo o andar, sendo o piso de
cima reservado para a equipe de serviços. Mas Stalin pouco o utilizou, preferindo a
dacha próxima. Tinha outra dacha um pouco mais afastada, que também não usava.
No seu septuagésimo aniversário, Stalin recebeu de Beria uma dacha nas
margens de um reservatório próximo a Moscou e foi persuadido a conhecê-la. O
líder que envelhecia foi ver a bela casa, escondida entre pinheiros altos e abetos
vermelhos. “Que espécie de ratoeira é essa?”, disparou Stalin para Beria, cheio de
suspeitas. Passeou pelos aposentos sem mesmo tirar o casaco, deu uma volta pela
parte externa, olhou para as pessoas que o acompanhavam, entrou no carro sem
dizer uma palavra e foi embora. Nunca mais voltou àquele lugar.
O modo de vida de Stalin não era saudável. Notívago desde o início dos anos
1920, dificilmente saía para uma caminhada, fumava desbragadamente, só parou de
fumar menos de um ano antes da morte, fato de que, aparentemente, se orgulhava.
Bebia um pouco de vinho georgiano seco antes do jantar. Não tinha o costume de
gastar longas horas no que chamava de passatempo aristocrata da caça e pesca. O
pensador do século XIX Alexander Herzen escreveu certa vez ao amigo Nikolai
Ogarev dizendo que o propósito da vida humana era expressar todas as facetas da
personalidade, aprendendo a “viver em todas as dimensões”. Stalin viveu uma só
dimensão, a do trabalho. Era escravo do trabalho. Auxiliares lembravam que nas
raras ocasiões em que passeava pela propriedade, aquela figura vergada dava uma ou
duas voltas pelo caminho pavimentado, parava diante de um canteiro de flores ou
de um arbusto de lilases e parecia admirar o milagre da natureza, comparando talvez
a ordem eterna com o estado de seus assuntos.
Poderia ter recém-olhado uma pasta de Voroshilov com questões de todos os
tipos: pedindo sua permissão para que motoristas de tratores e de colheitadeiras
fossem isentos do serviço militar; solicitando-lhe revisão de uma proposta para a
construção de novas casas para o Exército; um relatório sobre o discurso do líder
polonês Pilsudski; extratos da imprensa tcheca; um relatório sobre carta do
comandante do 26º Regimento Caucasiano a respeito de um mal-entendido com o
emissário de Moscou, Gostintsev; uma carta de Ilyushin sobre a necessidade de
desenvolver a construção de dirigíveis e novas defesas aéreas, e assim por diante. E
quantos telegramas teria ditado hoje! Por exemplo:

Ao secretário do distrito de Sasov, vila Prosyanye Polyany, Ryazan.


Recebi telegrama da professora Shirinskaya, da escola tártara. Ela precisa ser protegida da aspereza
desnecessária e dos excessos do secretário Ivanov do comitê distrital de Kadom, que invadiu o apartamento
dela com o pretexto de retirar um guarda-louças desnecessário do pai da professora, privando-a da paz
necessária para o trabalho e fazendo-a até pensar em se matar.
Por favor, atue imediatamente para garantir Shirinskaya contra tais violações e informe ao Comitê Central
sobre o resultado.55

Pastas com tais assuntos eram-lhe diariamente entregues por Tovstukha, seu
assistente, se bem que, aos poucos, tais questões passassem a ser tratadas pela
secretaria. No final de sua vida, contudo, Stalin comprazia-se em lidar com essas
questões triviais, especialmente se tivessem relação com indicações para funções ou
com funcionários arrogantes, dissidentes ou teimosos.
Quanto mais sua influência crescia no partido e nas questões de Estado, mais
avidamente as pessoas levavam-lhe matérias para “sua atenção pessoal”. Por que o
comissário encarregado não resolvia o problema da convocação dos motoristas de
tratores ou da construção de novas casas? Um secretário não poderia dar solução ao
problema da desditosa professora? Mas o fato é que Stalin acostumou-se à ideia de
que as pessoas não podiam passar sem ele, que tinha que fazer tudo.
Deve ter percebido que a centralização universal, emoldurada pelos ritos
burocráticos mais complexos, o estava transformando em prisioneiro do sistema, e
que isso poderia retardar ou até mesmo ser desastroso para a causa. Para que serviam
os comissários do povo, onde estava a flexibilidade deles? Que faziam as incontáveis
agências e escritórios para Toda a União? Ele sabia muito bem, mas não queria que
as coisas fossem diferentes. Se o governo de um só é subdividido, deixa de ser de um
só. Pouco a pouco, tudo convergiu para depender de suas decisões; em certa
medida, das decisões de seu entourage.
Cinema e teatro foram as únicas incursões a que se permitiu em sua vida de
trabalho. Tornou-se um hábito, desde o fim dos anos 1920, assistir a um ou dois
filmes por semana, em geral, depois da meia-noite. Qualquer filme que fosse
comentado era exibido na tela do pequeno cinema do Kremlin ou na sala da dacha.
Certa vez ele disse a líderes do departamento de propaganda do partido que “o
cinema nada mais é que ilusão, mas suas leis são ditadas pela vida”. Via no cinema
um instrumento educacional, como, aliás, encarava a arte em geral.
Pelas mãos da esposa, passou a frequentar o teatro. Foram vistos juntos, em
muitas ocasiões, nos teatros de Moscou e, depois da morte de Nadezhda, o teatro
passou a fazer parte integral de sua vida, em particular o Bolshoi. Parece que assistiu
a todas as suas produções várias vezes. Como A.I. Rybin, um de seus seguranças e,
mais tarde, gerente do Bolshoi, relatou-me, Stalin assistiu ao Lago dos cisnes na
véspera do derrame fatal, talvez pela vigésima ou trigésima vez. Normalmente ia
sozinho, sentando-se, depois que as luzes do teatro eram diminuídas, num canto de
trás de seu camarote. Às vezes, ia ao ensaio geral e, depois da encenação,
invariavelmente, cumprimentava pessoalmente os bailarinos. O cinema e o teatro
foram os únicos desvios “líricos” em sua existência, a qual, por sua vez, era
totalmente dedicada ao alargamento de seu poder e influência pessoais mediante o
sistema da tomada de decisões.
Vida pessoal significa, acima de tudo, vida familiar. Nadezhda Sergeyevna
Alliluyeva era 22 anos mais nova que Stalin. Praticamente ao terminar o ginásio
tornou-se esposa do líder do partido. Os documentos, os relatos de testemunhas,
bem como as memórias da filha, Svetlana, concordam em que ela tinha um
temperamento bastante equilibrado. Na ocasião devida, filiou-se ao partido,
trabalhou no Comissariado das Nacionalidades e estudou. Foi também uma das
secretárias de plantão de Lenin, em Gorky. Quando foi decidido mudar a capital de
Petrogrado para Moscou, Stalin levou os pais da esposa e todos passaram a residir
juntos no pequeno apartamento do Kremlin.
Nadezhda logo habituou-se à atmosfera de consultas, reuniões, jornadas e lutas
intermináveis que faziam parte da vida do marido. Muitas das cartas, telegramas,
ordens e diretrizes encontradas entre os documentos de Stalin são assinadas não
apenas pelos secretários do líder, tais como Nazaretyan, Tovstukha, Kanner,
Mekhlis e Dvinsky, mas também por Nadezhda. Seus grandes olhos de escolar
perscrutaram avidamente o mundo do marido. Percebeu que ele pertencia ao
trabalho, e só a ele, porém, inicialmente, não se deu conta do pouco tempo e pouco
espaço que sobrariam para ela. Stalin não necessitava de companhia. Quando o
repreendia, o que era feito com frequência, com a acusação “Você não se interessa
pela família e pelas crianças”, ele a interrompia asperamente, algumas vezes com
palavras de baixo calão. Em certa medida, Nadezhda encontrou consolo no
trabalho, no estudo e nos encontros com outras mulheres de líderes, como Polina
Semenovna Zhemchuzhina (esposa de Molotov), Dora Moiseyevna Khazan (de
Andreyev), Maria Markovna Kaganovich e Esfir Isayevna Gurvich (segunda mulher
de Bukharin). (Vale a pena ressaltar que, entre os líderes bolcheviques de origem
russa, muitos tinham esposas judias, o que pode ser, pelo menos, parcialmente
explicado pelo fato de que as judias intelectuais foram relativamente numerosas e
ativas no movimento revolucionário.)
Nasceram dois filhos do casamento de Stalin com Nadezhda: Vasili em 1922 e
Svetlana em 1926. Foi então que Yakov, filho dele com a primeira esposa,
Yekaterina Svanidze, foi viver com eles. Era apenas sete anos mais jovem que a
madrasta, a qual, é claro, cuidou do rapaz, tão evidentemente carente de amor
paternal. Enquanto trabalhava, uma babá tomava conta das crianças. Mas havia
sempre muitos parentes em volta, fosse no apartamento do Kremlin ou na dacha
Zublovo. Além dos pais de Nadezhda, seus irmãos, Fedor e Pavel eram também
visitantes frequentes, bem como sua irmã, Anna, e os de sua família. Vinham ainda
os parentes da primeira esposa de Stalin. Depois da morte de Nadezhda, em 1932, o
barulho e a agitação foram esmorecendo e, finalmente, cessaram de todo.
Stalin, claramente, não desejou tomar parte ativa na criação dos filhos, nem era
capaz de fazê-lo. Via-os muito raramente, talvez num domingo, quando eles eram
levados à dacha, ou no sul, em Sochi, Livadia ou Mukhalatka, onde gostava de
passar as férias, antes da guerra. Não é incomum os filhos de pessoas famosas
crescerem com problemas. Os filhos de Stalin pouco conheciam o pai, e ele lhes
dedicava tempo escasso. Segundo Svetlana, certa vez Vasili revelou-lhe um “segredo”
ao contar que “papai foi georgiano quando jovem”.
O destino do filho mais velho, Yakov, foi o mais trágico. Sua relação com o pai
era muito ruim. Stalin achava, erradamente como se viu mais tarde, que ele tinha
caráter fraco. Não gostava da escolha de esposas que o filho fizera, nem da primeira
nem da segunda, Iyulia Isaakovna Meltser. Ele teve dois filhos desses casamentos.
Svetlana Allilueyva relembra que, desesperado pela frieza com que o pai o tratava,
Yakov tentou até se matar, mas a bala o atravessou e ele sobreviveu, embora tenha
ficado doente por muito tempo. Quando Stalin o viu, depois dessa expressão
extrema de alienação, saudou-o com uma piada: “Hah! Errou a pontaria!”
Com a permissão do pai, Yakov completou os estudos no Instituto de
Engenharia Ferroviária de Moscou, trabalhou na usina geradora da Fábrica Stalin e,
então, declarou que queria se alistar no Exército. De acordo com as ordens dos
assistentes de Stalin, Yakov Djugashvili foi matriculado para as sessões noturnas de
instrução e, depois, transferido para o curso de quatro anos de formação da
Academia de Artilharia do Exército Vermelho.
Consultando a folha de serviços do tenente Ya.I. Djugashvili, pode-se ter uma
ideia do questionário que todos os oficiais tinham que responder quando
compilavam o próprio curriculum vitae. Para que se respire a atmosfera psicológica
daqueles tempos, bastam algumas das dezenas de perguntas formuladas:

Você já foi membro da Direita Trotskysta, dos nacional-chauvinistas ou de outras organizações


contrarrevolucionárias, quando e onde?
Você já se desviou da linha geral do partido, ou teve alguma hesitação? Se hesitou, sobre quais questões e
quanto tempo a hesitação durou?
Você serviu no Exército Branco ou no Exército da Intervenção, em unidades nacionalistas antissoviéticas
(partidários de assembleias constituintes, petliuristas, musavatistas, dashnaks, mencheviques georgianos, ou
os bandos de Makhno, de Antonov, ou outros quaisquer), quando, onde, em que função, como chegou lá,
em que unidades serviu, por quanto tempo?

Yakov passou no teste, mas nem todos se deixaram convencer. Por exemplo, Ivanov,
Kobrya, Timofeev, Sheremetov e Novikov (as iniciais não aparecem nos arquivos),
oficiais da academia, assinaram a seguinte avaliação do filho de Stalin:

Desenvolvimento político satisfatório. Disciplinado, porém não adquiriu conhecimento adequado das regras
militares referentes à atitude perante os oficiais superiores. Não teve instrução prática. Pouco treinamento em
tática de infantaria. Seus trabalhos acadêmicos deixam muito a desejar. Conseguiu menções “satisfatório” e
“bom” nos exames.
A despeito da recomendação de seus superiores imediatos de que fosse designado
comandante de batalhão com o posto de capitão, o instrutor-chefe, Sheremetov, foi
de opinião diferente: “Concordo com a avaliação, mas penso que o posto de capitão
só deve ser concedido depois que ele servir um ano como comandante de bateria.”
Todos concordavam que Yakov era pessoa honesta, decente e tímida, e que
parecia destruído pela hostilidade do pai. Yakov revelou-se nervosamente
desconfortável na função de comandante, talvez sentindo que patinava em gelo fino:
ele desbordara diversos cursos e seu rendimento não fora bom. Isso deve ter
influenciado de forma fatídica nos momentos críticos de seu serviço ativo.
Yakov serviu no front desde os primeiros dias da Segunda Guerra Mundial. De
acordo com os registros, lutou bravamente e cumpriu seu dever até o fim, mas sua
unidade foi cercada e ele caiu prisioneiro. Existe uma fotografia rara que mostra um
grupo de oficiais alemães olhando com ostensiva curiosidade para o capitão Ya.
Djugashvili. O mais interessante na fotografia é a expressão de Yakov e sua postura:
olhar fixo nos inimigos, com ódio estampado na face e punhos cerrados. Os nazistas
tentaram explorar o fato de ele ser prisioneiro de guerra com propósito de
propaganda, distribuindo panfletos com a fotografia, mas ela foi em geral
considerada falsificação.
Em vez de sofrer com a situação do filho, Stalin temeu que a força de vontade de
Yakov fosse quebrada no campo de concentração e que ele passasse para os alemães.
Nas memórias de Dolores Ibarruri, publicadas em Barcelona em 1985, surge um
fato desconhecido que ainda precisa ser desmentido ou corroborado. Escreve ela
que, em 1942, foi formado um grupo especial de comando para ser lançado à
retaguarda das linhas inimigas a fim de libertar Yakov, então em Sachsenhausen. O
grupo incluía o espanhol José Parro Moiso, que portava documentos com nome de
um oficial da Divisão Azul franquista. A operação acabou em fracasso e o grupo foi
aniquilado.56 Yakov acabou mostrando caráter muito mais forte do que o creditado
por seu pai. Ele também receava que, sob tortura, lavagem cerebral e drogas, viesse a
capitular e se tornasse um traidor aos olhos do pai e da nação. Tal pensamento era
pior que a morte. Se bem que não se dobrasse nos infernos pelos quais passou –
Hammelburg, Lübeck e Sachsenhausen –, sua força começava a se esvair. Em 14 de
abril de 1943, jogou-se na cerca de arame farpado e foi fuzilado por um guarda.
Da mesma forma que com muitas outras pessoas, Stalin estava errado em relação
ao filho. Svetlana Alliluyeva afirma que, depois da vitória em Stalingrado, seu pai
lhe disse en passant: “Os alemães propuseram trocar Yasha por um dos seus. [...]
Como se eu fosse barganhar com eles! Não, guerra é guerra...”
A sorte de seu outro filho não foi menos trágica. Stalin foi incapaz de fazer dele
um homem. Depois da morte da mãe, o menino foi praticamente criado por Vlasik,
chefe da segurança de Stalin. Porém, vivendo num ambiente de bajulação e
tolerância, o resultado foi uma pessoa amoral, caprichosa e fraca. Na realidade,
combateu bem, mas não tão bem para começar a guerra já como capitão e terminá-
la tenente-general. A folha de serviços do tenente-general Vasili Iosifovich Stalin dá
eloquente testemunho da farta distribuição de postos e favores que ocorria no
entourage de Stalin, com o conhecimento do secretário-geral. Consideremos apenas
alguns fatos do grosso arquivo sobre Vasili: aos vinte anos de idade, V.I. Stalin
atinge imediatamente o posto de coronel (ordem nº 01192 do comissário do povo
da Defesa, de 19 de fevereiro de 1942); aos 24, torna-se major-general da Força
Aérea (decreto do Sovnarkom de 2 de março de 1946) e, um ano mais tarde,
tenente-general. Embora completamente “verde” e apenas piloto mediano, assume a
Inspetoria da Força Aérea. Em janeiro de 1943, passa a comandar o 32º Regimento
de Caças; um ano depois, o 3º Regimento; em fevereiro de 1945, é nomeado
comandante da 286ª Divisão de Caças; em 1946, comandante de Corpo e, logo a
seguir, subcomandante depois comandante da Força Aérea. A carreira meteórica de
Vasili não se deveu, é evidente, às suas habilitações especiais ou qualidades pessoais.
No curso da guerra, como atestam os relatórios de seus superiores, participou de 27
sortidas e derrubou um avião inimigo, um Focke-Wulf 190; foi agraciado duas vezes
com a Ordem da Bandeira Vermelha, com a Ordem de Alexander Nevsky, com a
Ordem de Suvorov 2ª Classe e com diversas outras condecorações.
O tenente-general E.M. Beletsky e o coronel-general N.F. Papivin, ambos da
Força Aérea, fizeram a seguinte avaliação de Vasili:

Irascível e nervoso por natureza, carece de autocontrole; têm havido incidentes de violência física contra
subordinados. Na vida privada, comportou-se de maneira incompatível com o posto de comandante de
divisão, registrando-se atitudes inconvenientes em festas das equipes de voo, grosseria em relação a oficiais e
mostra de irresponsabilidade quando dirigiu um trator do aeródromo à cidade de Shiaulyai e entrou em
conflito e pugilato com os guardas da NKVD do posto de controle. Não goza de boa saúde, em especial no
sistema nervoso, e é extremamente irritadiço, condição que revelou recentemente quando participou de
muito pouco treinamento de voo. [...] Todas as deficiências acima diminuem significativamente sua
autoridade como comandante e são inconciliáveis com as obrigações de comandante de divisão.

Observações semelhantes estão registradas em outros relatórios, todos concluindo


que Vasili Stalin deveria ser mandado de volta à Academia para mais estudo. Foi a
única solução encontrada por destacados generais, como S.I. Rudenko e E.Ya.
Savitsky, para poupar seus subordinados das ações desse “príncipe dissoluto”.
Coberto de honrarias e bênçãos por aduladores que só buscavam interesses
próprios, Vasili tornou-se, quase sem ser percebido, um consumado alcoólatra.
Pode-se bem imaginar os tormentos experimentados por suas esposas – as quatro –
nas mãos de um homem em constante degradação. Ele não era pessoa especialmente
interessante, mas foi prova concreta de que aquele que abusa do poder corrompe
todas as pessoas em que toca, inclusive os filhos. Os césares, quando atingem o ápice
do mando, deixam quase sempre para trás um rastro de filhos com imperfeições no
corpo e na alma, moralmente liquidados, enquanto o ditador ainda vive e se
compraz com sua própria imoralidade.
Depois que foram apresentados os relatórios sobre seu mau comportamento,
Vasili foi removido do cargo de comandante da aviação da região militar de Moscou
e deslizou, rapidamente, ladeira abaixo. Vinte e um dias após a morte do pai, o
tenente-general V.I. Stalin, de apenas 36 anos de idade, foi excluído das forças
armadas e proibido de usar uniforme militar pela Ordem nº 10726 do ministro da
Defesa. Todos haviam perdido a esperança, e o ex-piloto terminou a vida ainda
jovem, destruído pelo álcool.
A.N. Shelepin, minha principal fonte de informações sobre Vasili, disseme que
ele foi preso depois da morte do pai. Algumas de suas faltas anteriores, como abuso
de poder e outras, foram desenterradas. A filha de Vasili, Nadezhda, insiste que não
houve julgamento ou investigação, porém, apesar disso, o pai foi condenado a oito
anos. Houve uma tentativa de mantê-lo fora de circulação, já que dizia a todo o
mundo que o pai fora envenenado. Shelepin continuou:

Khruschev solicitou-me que fosse à prisão de Lefortovo para onde Vasili fora transferido da prisão em
Vladimir. O prisioneiro estava fazendo alguma coisa num torno – “trabalho educacional”, chamavam eles.
Quando o trouxeram à minha presença, ele se ajoelhou e soluçou. “Perdoe-me, perdoe-me, não o deixarei
mal de novo.” Conversei com Khruschev sobre a visita. Ele ficou silencioso, depois me disse: “Traga-o aqui.”
No dia seguinte, Vasili foi levado à presença de Khruschev. De novo, caiu de joelhos, implorou e chorou.
Khruschev pegou-o nos braços e chorou também, e os dois conversaram por longo tempo sobre Stalin.
Depois disso, ficou decidido que Vasili seria solto imediatamente. A resolução foi preparada e Vasili foi
libertado. A permissão insistia que ele adotasse seu nome oficial de Vasiliev.

Era o nome que o próprio Stalin usara para assinar uma série de ordens durante a
guerra. Shelepin prosseguiu:

A despeito de sua falta de determinação, Vasili recusou-se veementemente a fazer isso. Foi para casa e disse à
filha que pensava em tornar-se gerente de uma piscina. Mas amigos logo o trouxeram aos velhos dias. Um
mês depois de sair da prisão, dirigindo um carro em estado de embriaguez, envolveu-se num acidente.
Xingando-o a não mais poder, Khruschev perguntou: “O que devemos fazer? Se o prendermos de novo,
morrerá, se não o fizermos, morrerá também.”
Foi decidido que Vasili deveria ser afastado. Kazan foi o local escolhido, e assim começou seu “exílio”,
acompanhado da esposa de então. Lá, num apartamento de um só cômodo, ele teve tempo para revisar sua
curta e exaltada vida. Lá também soube da notícia de que, em 31 de outubro de 1961, o corpo de seu pai
fora removido do Mausoléu [de Lenin]. A prisão, a doença, a vodka e a maldade dos antigos “amigos”
haviam-no transformado num completo inválido.

A vida de Vasili foi uma ilustração em miniatura da esterilidade moral do


stalinismo. Ele morreu em 19 de março de 1962. Na lápide, não foi gravado o
nome Stalin, que usou durante toda a vida, nem Vasiliev, que lhe quiseram
impingir, mas Djugashvili. Deixou sete filhos, quatro dele e três adotados.
O ditador, que podia ordenar o corte acelerado de um canal, a construção de um
palácio, ou o banimento de milhões de pessoas para o arame farpado dos campos de
concentração, revelara-se inútil como pai. E foi só ele o responsável pela vida infeliz
do filho mais novo. Por certo, a mesma acusação pesará sobre Stalin quando os
historiadores examinarem o destino de Svetlana. Ao que tudo indica, ela ainda na
escola, Stalin amou-a mais do que aos filhos homens.
Embora difícil de imaginar, ele escrevia, com frequência, bilhetes amorosos para
a filha. Por exemplo:

Minha pequena dona de casa, Setanka, saudações!


Recebi todas as suas cartas. Obrigado por elas! Não as respondi porque ando muito ocupado. Como tem
passado, como vai seu inglês, você está bem? Eu estou muito bem e alegre, como sempre. Fico muito
solitário sem você, mas o que posso fazer senão esperar. Mando um beijo para minha pequena dona de casa.

A guerra separou pai e filha, aparentemente para sempre. A intimidade e a


cordialidade familiares desapareceram. Svetlana crescia e, como todas as moças de
sua idade, arranjou o primeiro namorado. Alexander Yakovlevich Kapler era
jornalista e diretor de filmes (e judeu). Foi preso e sentenciado a cinco anos, depois
a mais cinco. Do campo, escreveu a Stalin:
Prezado Iosef Vissarionovich
Fui sentenciado por uma comissão especial sob a acusação de declarações antissoviéticas. Não admiti isso na
ocasião, nem admito agora. Fui condecorado com a Ordem de Lenin e a Ordem de Stalin primeira classe.
Trabalhei na produção dos filmes Ela defende a mãe-pátria, Kotovsky e Um dia de guerra. Só admito minha
falta de modéstia. Deixe-me ir para o front. Imploro-lhe.
27 de janeiro de 1944. A. Kapler

Stalin solicitou a Beria um relatório sobre Kapler e lhe relataram: “Kapler tem uma
irmã na França. Conheceu os correspondentes americanos Shapiro e Parker. Não
admite sua culpa, mas foi desmascarado pelos relatórios da agência. 16 de março de
1944.”57 Não é difícil adivinhar em qual dos dois documentos Stalin preferiu
acreditar.
Os dois primeiros casamentos de Svetlana fracassaram, como também o terceiro,
quando ela escolheu um estrangeiro. Este terceiro marido faleceu em Moscou e, na
ocasião em que, em 1966, ela levou o corpo para ser enterrado na Índia, decidiu
permanecer no exterior. Lá, também, não foi feliz e regressou à URSS em 1984. De
novo, não conseguiu se ajustar, partindo para o Ocidente.
Talvez os filhos de Stalin tivessem crescido de maneira diferente se a mãe não
morresse. A evidência indica que nesse caso também Stalin foi a causa indireta (ou,
possivelmente, não tão indireta) de sua morte. Na noite de 8 de novembro de 1932,
ela, aparentemente, matou-se. O motivo de ação assim trágica provavelmente foi
uma discussão, muito pouco notada pelos que estavam nas proximidades, ocorrida
durante uma pequena celebração. Entre os presentes, estavam Molotov e
Voroshilov, com as esposas, e diversas outras pessoas do círculo íntimo do
secretário-geral. Nadezhda, ao que tudo indica, não suportou outra das rudes
invectivas do marido. Foi para o quarto e atirou em si mesma. Foi encontrada na
manhã seguinte quando a governanta, Karolina Vasilievna Til, foi acordá-la. Uma
pistola Walther jazia no assoalho. Stalin, Molotov e Voroshilov foram chamados.
Há suposições de que ela deixou um bilhete sobre o suicídio, porém, como muitos
segredos – grandes e pequenos – isso permanece na penumbra.
Quando soube do ocorrido, Stalin ficou arrasado. Contudo, mesmo então,
continuou fiel a seu credo amoral: não se sentiu em absoluto responsável pela morte
da esposa, mas viu nela uma traição a si mesmo. Parece que jamais lhe passou pela
cabeça que sua insensibilidade e falta de afeto pudessem feri-la tão profundamente a
ponto de, num momento de maior perturbação mental, provocar o ato extremo. Ele
não compareceu à cerimônia fúnebre e, passado pouco tempo, os amigos íntimos já
tentavam arranjar outro casamento com uma pessoa de suas relações. Tudo parecia
certo, porém, por razões conhecidas só por Stalin, o matrimônio não aconteceu. No
fim da existência, viveu solitário, confiando suas necessidades pessoais a uma
governanta, Valentina Vasilievna Istomina, que assumiu a responsabilidade de
cuidar dele permanentemente, acompanhando-o até nas férias na Crimeia. Quando
Stalin faleceu, ela jogou-se sobre seu peito na presença do Politburo e deu vazão em
voz alta ao seu pesar. Evidentemente, ele fora mais íntimo dela que de seus
camaradas em armas.
Bem no final da vida, Stalin começou a dar mostras de sinais de respeito pela
memória da esposa. Sua fotografia surgiu na sala de estar e no estúdio da dacha,
bem como no apartamento no Kremlin. É provável que, como muitas outras
pessoas, estivesse tomando consciência de que o fim se aproximava. Ou seria esta
mesma consciência atormentando-o nos anos de declínio?
Não há dúvida de que Nadezhda amou Stalin e de que tentou o melhor de si
para ajudá-lo em seu trabalho. Os familiares dizem que, durante os últimos anos de
vida, ela entrou em grande depressão. Talvez Stalin também a tivesse amado ao seu
modo, todavia, obcecado como era pela causa, por seus planos, seu trabalho e pelo
êxtase do poder, não tivesse lugar em seu coração para esposa, filhos e parentes. No
lugar de sentimentos, tinha fios de aço. Podia passar semanas sem ver um membro
sequer da família, embora quisesse saber como eles estavam. Teve netos que jamais
viu, ou tentou ver. Os filhos de Vasili com a primeira esposa, Nadezhda e
Alexander, por exemplo, passaram por momentos dolorosos, pois foram ignorados
pelo homem a respeito de quem todos proclamavam “Stalin pensa em nós!”
Quando houve a prisão de Alexander Semenovich Svanidze, irmão da primeira
esposa e com quem o secretário-geral mantivera relações estreitas, parece que Stalin
não se surpreendeu com o fato de um homem que ele conhecera durante toda a
vida, literalmente desde a infância, poder se tornar um “inimigo”. Todo o edifício
de sua moralidade mostrava-se pontilhado de lacunas. Era impossível encontrar e
sensibilizar nele qualquer vestígio de sentimento humano. Seu segundo filho
representou meramente uma carga. Stalin não encontrou outro meio que não os
insultos para interromper a queda de Vasili. Sua filha tornou-se completamente
distante e estranha para ele depois dos dois casamentos malogrados. Era indiferente
aos netos, e quanto à mãe, raramente dispensou-lhe atenção.
Talvez estas páginas não sejam as mais importantes para o retrato político de
Stalin, mas é significativa sua insensibilidade em relação à moral e à “moralização”.
Para ele, a política tinha sempre prioridade sobre a moralidade. Porém, no exame da
personalidade de figura tão singularmente complexa, é precisamente aqui que se
revela um dos segredos de seu caráter. O desprezo que devotava aos valores humanos
normais ficou evidente desde cedo. Ele desdenhava da piedade, da simpatia, da
comiseração. Só dava valor aos atributos fortes. Sua mesquinhez espiritual, que
evoluiu em excepcional aspereza e, mais tarde, em crueldade, custou a vida da esposa
e arruinou a existência dos filhos.
Ainda pior, Stalin não teve também lugar para valores morais na política. O
“desmascaramento” de um colega como “inimigo do povo” era, aos seus olhos, o
mais nobre dos comportamentos. Quando, com a permissão de Stalin, Beria
prendeu Bronislava Solomonovna, esposa de seu assistente mais próximo,
Poskrebyshev, os pleitos que o inditoso marido fez ao chefe para que a libertasse,
segundo sua filha, Galina, invariavelmente tiveram a seguinte resposta: “Não
depende de mim. Nada posso fazer. Só quem pode resolver é a NKVD.” A pobre
mulher recebeu a usual e ridícula acusação de espionagem. Mãe de dois filhos, ficou
presa durante três anos e depois foi fuzilada. Ainda assim, seu marido e pai de seus
filhos trabalhava de 12 a 14 horas por dia ao lado de Stalin, levando-lhe
documentos, preparando sindicâncias, convocando pessoas, transmitindo as ordens
do chefe. “E Beria, que ordenara sua prisão”, disseme Galina, “ainda nos visitava em
casa. Da mesma forma que éramos visitados por pessoas bem conhecidas como
Shaposhnikov, Rokossovsky, Kuznetsov, Khruschev, Meretskov. Stalin conhecia
pessoalmente minha mãe e, é evidente, sabia que a acusação de espionagem era
infundada. O irmão de mamãe viajara ao exterior para comprar equipamento
médico, o que foi a base para a acusação, e ele também, é claro, foi fuzilado”.
Pode ser que, com a prisão das pessoas próximas e queridas daqueles que
trabalhavam mais cerradamente com ele, Stalin estivesse testando suas lealdade e
devoção. Nenhum deles – Kalinin, Molotov, Kaganovich, Poskrebyshev – deixou
extravasar o mais leve vestígio de que suas vidas familiares tinham sido
despedaçadas. Tal submissão deve ter proporcionado a Stalin grande satisfação,
enquanto os observava absorvidos com suas obrigações. Totalmente despido de
atributos apropriados, a monstruosa amoralidade de Stalin e a crueldade de suas
ações se ajustavam perfeitamente a um filme de terror. Incrível o fato de
Poskrebyshev ter acreditado no “Não depende de mim”. E, por certo, Beria dizia
algo parecido quando o visitava em casa. Aquelas pessoas viviam num mundo de
mentiras, cinismo e crueldade.
De alguma forma, habituamo-nos a pensar que o humanismo e as normas
universais do comportamento decente pertencem à província da moralidade
pequeno-burguesa. Não obstante, a moralidade surgiu bem antes da conscientização
política, legal, ou mesmo religiosa. Ela despontou tão logo as pessoas começaram a
viver em grupos e, sem ela, o homem jamais teria se transformado em homem.
Brecht certa vez observou: “Antes que um homem possa se sentir homem, alguém
tem que chamá-lo.” Stalin foi uma personalidade forte que só buscou grandeza e
poder ilimitado. Contudo, um “reino do terror”, como escreveu Berdyaev, “não é
apenas ação física, com prisões, torturas, punições – é, sobretudo, ação mental”.58 A
prática stalinista gradualmente deificou a violência sem consideração por sua base
moral. Para Stalin, os parâmetros morais da revolução e a construção de um novo
mundo nada mais eram que moralidade burguesa. Nem tinha ele a menor dúvida
sobre a correção de sua própria moral. Num livro do século XIX do anarquista russo
Bakunin, Stalin sublinhou a frase: “Não perca tempo duvidando de si mesmo,
porque este é o maior desperdício de tempo jamais inventado pelo homem.” Talvez
Bakunin pudesse se permitir tais pensamentos, mas ele não era o secretário-geral de
um grande partido.
Nota

* Disseram tratar-se de fotomontagem.


Parte IV
Ditadura ou ditador?

Oh, maldita lisonja, quão doce a caçada!


Com seu laço, a captura é farta.
Eurípedes
[17]
O destino do campo

E m 21 de dezembro de 1929, Stalin fez cinquenta anos. A glorificação


interminável, a genuflexão diante do altar por parte de uma multidão de
aduladores, adorando-o como concedente de todas as bênçãos, ainda não
começara. As pastas com milhares de mensagens com aleluias e dezenas de milhares
de congratulações, e os artigos de fundo, começando e terminando com loas ao seu
nome ainda estavam por vir.
Mas já uma boa metade da edição “de jubileu” do Pravda era devotada a Stalin.
Havia artigos de Kaganovich, “Stalin e o partido”, de Ordzhonikidze, “Rochedo
bolchevique”, de Kuibyshev, “Stalin e a industrialização do país”, de Voroshilov,
“Stalin e o Exército Vermelho”, de Kalinin, “O timoneiro do bolchevismo”, de
Mikoyan jogando com as palavras, “O soldado de aço do partido bolchevique”, e
por aí vai. Tinham sido lançadas as bases da glorificação. O Comitê Central e a
CCC enviaram parabéns ao “melhor leninista”. As manchetes dos jornais
proclamaram Stalin “o autêntico continuador da causa de Marx e Lenin”, “o
organizador e líder da industrialização e do coletivismo socialista”, “o líder do
partido do proletariado”, e outras mais. As celebrações não poderiam ser mais
oportunas para fixar a atenção pública no homem que tinha lidado de forma tão
decisiva com a oposição, ou, como era então chamada, “o desvio”. A popularidade
de Stalin passou a crescer rapidamente. Já estava então patente, para quem tinha
olhos de ver, que, no quinquagésimo aniversário, ele denotava mais confiança e
autoridade.
Molotov e Kaganovich desejavam celebrações mais espetaculares. Stalin os
conteve, não por modéstia, mas pela recordação dos cinquenta anos de Lenin em
1920. Por mais de uma vez, lembrou-se das palavras de Lenin a seu respeito,
especialmente quando tinha que fazer uma opção entre coisas essenciais. Só é
possível fazer uma escolha verdadeira quando se tem a capacidade de assumir a
posição daqueles que dependem da decisão. Stalin não tinha tal capacidade, mas
sabia exercer moderação, em particular no início de sua ascensão. A memória do
cinquentenário de Lenin o deixava em desconforto. A data foi comemorada no
comitê do partido em Moscou, se bem que Lenin não esteve presente. Stalin quis
dizer alguma coisa inusitada e inesperada e escolheu logo a capacidade do líder em
reconhecer os próprios erros, alguns dos quais o secretário-geral passou a enumerar,
concluindo assim: “Algumas vezes o camarada Lenin admitiu seus enganos em
matérias de enorme importância. Ficamos particularmente cativados por sua
simplicidade. É tudo o que tenho a dizer, camaradas.” Pelos aplausos tépidos da
plateia ficou demonstrado o sentimento dos camaradas a respeito daquele discurso
de cinco minutos que não teve nada de comemorativo.
Por que Stalin escolheu marcar a ocasião mencionando os erros de Lenin? Estaria
querendo mostrar que não era marionete de ninguém, ou desejaria ser diferente?
Qualquer que fosse a verdade, a lembrança daquela noite o incomodava. Quando o
vice-chefe dos arquivos centrais do partido, V. Adoratsky, solicitou-lhe permissão
para incluir o discurso numa antologia a ser chamada Sobre Lenin, Stalin não
deixou. Escreveu no memorando de Adoratsky: “O discurso foi taquigrafado bem
no essencial, mas precisaria de edição. Preferiria que você não o publicasse: não é de
bom-tom falar sobre enganos de Ilyich.”1
O sentimento de desconforto logo evaporou. No início de 1925, Stalin aceitou a
proposta de Molotov para perpetuar seu nome na impressão de obras coligidas,
inclusive do discurso embaraçoso. Depois disso, Kalinin e Yenukidze,
respectivamente presidente e secretário do Comitê Executivo Central de Toda a
Rússia, assinaram uma ordem trocando o nome da cidade de Tsaritsyn para
Stalingrado; a província Tsaritsyn passaria a ser província Stalingrado; o distrito
Tsaritsyn, distrito de Stalingrado, o volost Tsaritsyn, volost Stalingrado; e a estação
ferroviária de Tsaritsyn, estação Stalingrado.2
Era 10 de abril de 1925, mal passado um ano da morte de Lenin, Stalin
fracassara num de seus primeiros julgamentos de consciência. Não que sofresse a
menor aflição ao dar seu “humilde” consentimento para a onda de troca de nomes
que começara. Em 1927, os jornais estamparam “congratulações ao jornal Borba de
Stalingrado”, assinadas por ele mesmo, e isso viraria norma. Fábricas, parques,
jornais, navios e palácios de cultura que levassem seu nome personalizariam seu
pleito por eternidade.

Nós, russos, quase todos temos raízes no campo. Quando as ensolaradas memórias
de infância nos vêm à mente, sentimo-nos de volta aos vilarejos, às aldeias, com o
cheiro da neve derretendo, os tordos empoleirados nas cercas, o gelo escurecendo
nos córregos, a estreita e amarronzada linha dos montes Sayan ao sul, o chiado dos
trenós deslizando pelas ruas da vila. E os rostos dos que partiram há tanto tempo.
Raramente sabemos quem foram nossos ancestrais. Quem é capaz de lembrar até
mesmo os nomes dos bisavós? Eles desapareceram no passado distante e obscuro.
Caso fosse possível reunir de novo todos os nossos parentes do passado em torno de
uma grande mesa familiar, os ícones pendurados nas paredes, escurecidos pela
fumaça, estariam olhando para baixo e vendo camponeses. Camponeses barbudos
em camisas de morim, mãos calejadas pela lida sem descanso, os doces e gentis olhos
de suas esposas já envelhecidas aos quarenta anos, que normalmente deram à luz ao
lado de um campo, e muitas crianças com cabelos cor de palha, metade das quais,
pelo menos, não sobreviveria à infância. Inevitavelmente, haveria um ou dois que
fizeram a campanha das guerras turca, japonesa e alemã, com as medalhas de São
Jorge orgulhosamente ostentadas. Essa gente analfabeta teria sido guiada na vida
pela moral da vila, ou seja, pela ortodoxia russa, como também pelo trabalho, pela
família e pela ideia da mãe-pátria. Um dos membros do grupo talvez soubesse ler e
talvez assinasse a revista ilustrada Niva. Tudo que nos restou desses mujiks, desses
camponeses, foi a lembrança. Ainda assim, no início dos anos 1930, a avassaladora
maioria de nossos concidadãos vivia no mundo camponês. E foi nesse mundo que a
verdadeira revolução ou, mais exatamente, algo como um holocausto sancionado de
cima, teve lugar.
É verdade que os primeiros embates ferozes ocorreram em 1917, quando as
terras que pertenciam à pequena nobreza, à coroa e aos mosteiros foram tomadas.
Em meados de 1918, comitês de pobres voltaram suas atenções para os camponeses
mais bem-sucedidos, os chamados kulaks, e expropriaram metade de suas terras.
Implementos agrícolas e gado foram distribuídos aos camponeses pobres e de
situação média, e os kulaks diminuíram em quantidade. O setor agrícola passou a
ser constituído, em sua maior parte, por camponeses remediados. A Nova Política
Econômica deu aos camponeses a oportunidade de negociarem sua produção,
depois do pagamento de uma taxa fixa em espécie. No final de 1923, enquanto
Lenin ainda vivia, a agricultura soviética exportou pouco mais que dois milhões de
toneladas de trigo. Considerada ridícula a ideia de importar cereais, exportá-los era
visto como coisa perfeitamente normal.
Embora melhorasse muito a produção de grãos durante o período de
reconstrução, foi principalmente o abastecimento de cereais para consumo interno
que aumentou, ao passo que a utilização desses grãos para o comércio estatal se
atrasou, e a produção total tinha ainda um longo caminho para alcançar os níveis de
antes da guerra. Os baixos preços pagos aos camponeses e a escassez de bens
manufaturados para venda nas vilas perpetuavam essa situação. A criação de
cooperativas de produtores estava apenas em seus primeiros estágios. A NEP
proporcionava segurança para os camponeses pobres e de situação mediana e,
naturalmente, também fortalecia a posição dos kulaks. Talvez seja interessante
ressaltar que os ideais socialistas não são, necessariamente, sinônimos de pobreza e
de repúdio à riqueza. O marxismo só condena a riqueza amealhada à custa do
trabalho dos outros. Os kulaks deviam as posses adquiridas ao suor do rosto.
Lenin havia antevisto que o campo apresentaria o maior obstáculo à mudança
socialista, mas acreditava na propaganda, na eletricidade, nos tratores e nos livros.
Disse que, para garantir a ampla participação dos camponeses nas cooperativas, via
NEP, “precisamos de toda uma época histórica. Chegaremos a um final feliz dessa
época em uma década ou duas”.3 Num de seus últimos escritos, fez uma avaliação
significativa: “Podemos agora dizer que, para nós, o simples crescimento das
cooperativas é o equivalente [...] ao crescimento do socialismo. [...] Com o
cooperativismo a pleno vapor estaremos pisando com os dois pés em solo
socialista.”4 O plano de Lenin para as cooperativas não foi, infelizmente, totalmente
detalhado, em especial no que concerne à sua aplicação na prática.
O rebaixamento da taxa em espécie deixou mais do excedente agrícola, em
particular cereais, na mão dos camponeses remediados e bem-sucedidos, e o poder
de compra desses camponeses cresceu proporcionalmente. Havia, no entanto, uma
escassez de bens no país todo, e, portanto, era natural que os camponeses não se
mostrassem ávidos por vender grãos já que, no processo, pouca coisa existia para
comprar. O de que eles necessitavam não era papel-moeda, mas máquinas e outros
bens industriais, todos extremamente caros. Em consequência, o suprimento de
alimentos para as cidades começou a faltar e, por volta de 1927, pairava no ar uma
crise de grãos. Os kulaks e os camponeses médios seguravam seus estoques, à espera
de que os preços subissem e de que houvesse mais bens no mercado.
A oposição tentou explorar as dificuldades surgidas entre o Estado e os
camponeses. Por exemplo, no XV Congresso do partido, Kamenev acusou a
liderança de subestimar o elemento capitalista no campo e, com efeito, pleiteou
medidas mais fortes contra os kulaks. Os oposicionistas tinham antes instado o
governo a utilizar a força para fazer a coleta do devido sobre uma antecipação de
safra de 2,5 a 3 milhões de toneladas de grãos. O Politburo, debatendo um relatório
que Stalin faria ao congresso do partido, teve bom senso para rejeitar a proposta.
Stalin disse ao congresso:

Aqueles camaradas que pensam que podemos nos livrar dos kulaks com meios administrativos, empregando
a GPU, estão errados. Eles acham que basta expedir uma ordem, carimbá-la e pronto. Pode ser um método
fácil, mas está longe de ser eficaz. Os kulaks só podem ser derrotados por meios econômicos. E com base na
legalidade soviética. E legalidade soviética não é uma expressão vazia.5

Mas as palavras manifestamente sensatas de Stalin e suas práticas eram dois mundos
à parte. Ele, simplesmente, não tinha conhecimento sobre o problema agrário.
Durante toda a vida, só uma vez visitou uma região agrícola, e isso aconteceu em
1928 quando foi à Sibéria providenciar a entrega de grãos. Nunca mais pôs os pés
numa aldeia.
O XV Congresso adotou a política da coletivização da agricultura e introduziu
medidas ajuizadas para sobrepujar as dificuldades que o campo experimentava com
o suprimento de grãos. A.I. Mikoyan, por exemplo, observou que os bens de
consumo estavam empilhados nas cidades e nunca alcançavam o campo, onde a
demanda por eles era enorme:

Para que tenhamos um sucesso expressivo na entrega de grãos, precisamos de uma autêntica revolução. Tal
sucesso seria alcançado com o transporte de bens das cidades para o campo, mesmo ao custo temporário do
esvaziamento dos mercados das cidades (por uns poucos meses), para conseguirmos tirar os grãos dos
camponeses. Se não efetuarmos tal revolução, enfrentaremos dificuldades extraordinárias que serão sentidas
em toda a nossa economia.6

Assim, para fortalecer a união entre o camponês e a classe operária, a solução para os
problemas prementes da vila poderia ser encontrada com meios econômicos, bem
como políticos. Na realidade, essas eram as bases do plano cooperativo de Lenin.
Tratava-se, precisamente, de um sistema de “cooperativados civilizados”, disse ele,
que permitiria um máximo de unidade para os interesses sociais e os pessoais. O
importante seria não apelar apenas para os métodos de comando, coação e diretrizes,
mas sim observar as leis da economia e aplicar as alavancas econômicas com
eficiência. Todavia, não era esta a opção de mais fácil adoção sob circunstâncias de
rápidas mudanças sociais.
O relatório do congresso sobre a atividade do partido no campo, apresentado por
Molotov, que era o secretário do Comitê Central responsável pelas questões rurais,
foi, no conjunto, sensato. Assinalou que “o progresso da economia privada no
caminho socialista é um processo lento e longo. Levará alguns anos para que o
indivíduo se desloque para a economia social (coletiva)”. Sublinhou que a coerção
era inadmissível:

Quem nos diz agora para aplicar uma política de [...] retirada compulsória de dois a quatro milhões de
toneladas de grãos, mesmo que tomemos isso de apenas 10% dos camponeses (isto é, não só dos kulaks, mas
também dos camponeses médios), essa pessoa é um inimigo dos camponeses e dos operários, um inimigo da
união entre camponeses e operários, por mais bem intencionada que seja a proposta.

Neste ponto, Stalin gritou “Muito bem!” e continuou emitindo exclamações


semelhantes de encorajamento enquanto Molotov prosseguia com o discurso.7
O congresso pareceu tomar uma estrada de amplos métodos cooperativos
econômicos, seguindo o princípio do voluntariado. A resolução adotada declarou
que a experiência mostrava “a correção total do plano cooperativo de Lenin,
segundo o qual a indústria socialista conduziria a economia dos pequenos
proprietários do campo pela trilha do socialismo, exatamente por intermédio das
cooperativas”.8 Além disso, o congresso condenou explicitamente os esforços para
impor métodos de comando ao problema dos camponeses. A despeito disso, logo
depois do congresso, Stalin começou a falar sobre a necessidade de “acelerar a
catraca” da industrialização e da coletivização. Ele apreciou bastante um artigo do
futuro acadêmico, S.G. Strumlin, que formulou o credo da economia “dirigida”,
estipulando que a tarefa não era a de estudar a economia, e sim alterá-la; o partido
não estava amarrado por quaisquer leis, nem existia fortaleza que os bolcheviques
não fossem capazes de tomar; são os seres humanos que determinam o tempo.9
Stalin, com frequência, citou e adaptou essas frases em seus próprios discursos e
artigos, já que, melhor que outras, elas refletiam precisamente suas intenções. O
secretário-geral começou então uma mudança de rumo na direção de medidas
extremas.
No final de dezembro de 1927 e início de 1928, ordens agourentas com a
assinatura de Stalin começaram a aparecer nas vilas, exigindo que fosse aumentada a
pressão sobre os kulaks e que se começasse de imediato o trabalho de coletivização
da agricultura. É possível que tais decisões tenham sido tomadas em função das
dificuldades no suprimento de cereais, porém, a tentativa de resolver artificialmente
o problema dos alimentos forçando o processo de nacionalização era um
afastamento de vulto do plano cooperativo de Lenin.
A impressão foi que a vasta maioria do partido se viu atraída para o lado de
Stalin pela própria natureza grandiosa de seu propósito de fazer uma revolução
social no campo. A tendência militante da ala de esquerda era muito mais ativa e
eficiente dentro da massa comunista. A ideia de que todos os problemas muito
antigos podiam ser resolvidos com um só golpe devastador era bem mais atraente
que a abordagem equilibrada e calma requerida pela situação.
Por natureza, Stalin era pessoa muito cautelosa; no entanto, lançou-se na
coletivização total de milhões de propriedades camponesas, sabendo que aquela
massa de gente semialfabetizada não estava preparada para ela. Sua visão utópica e
dogmática do problema camponês encontrou expressão em sua intenção de tornar o
produtor agrário em pouco mais que um dente inerte na engrenagem da máquina
agrícola. Para tanto, o camponês deveria ser afastado dos meios de produção e
distribuição dos alimentos. Com efeito, Stalin dispôs-se a trocar o status social do
camponês de produtor livre para trabalhador sem direitos. E para conseguir isso, fez
das medidas extremas um modo de vida. O plenário do Comitê Central de julho de
1928 apoiou Stalin. O partido concordou com a incorporação do uso da força ao
sistema.
O método do comando na economia substituiu as leis econômicas e,
gradualmente, provocou a morte da NEP, juntamente com o desaparecimento do
interesse material do camponês, de seu espírito empreendedor e de seu compromisso
com o trabalho. Alguns dos esquerdistas que caíram em desgraça pela ligação com
Trotsky foram também favoráveis a “providências decisivas” no campo e deram
apoio a Stalin. Declarações de arrependimento foram feitas por Pyatakov,
Krestinsky, Antonov-Ovseyenko, Radek, Preobrazhensky e outros, e houve sua
readmissão no partido. Pyatakov tornou-se presidente do Banco Estatal e, mais
tarde, vice-comissário do povo para a indústria pesada.
O primeiro Plano Quinquenal previa que 85% das propriedades dos camponeses
seriam transformados em cooperativas no prazo de cinco anos, sendo que até 20%
destas últimas seriam fazendas coletivas. Por pressões vindas de cima, porém, ficou
decidido que na Ucrânia, no norte do Cáucaso e no baixo e médio Volga o processo
deveria estar completado em um ano. Stalin causou o fim da NEP com o emprego
de medidas draconianas.
Em janeiro de 1928, ele foi à Sibéria, onde, em seus discursos nas reuniões locais
do partido e de grupos que cuidavam da economia, deu ênfase especial ao uso da
força contra os kulaks. Sua viagem teve as características de uma visita de inspeção
do comandante às guarnições. Em cada escala, Stalin convocava os funcionários do
partido e dos sovietes, ouvia brevemente o que tinham a dizer e então,
invariavelmente, fazia o mesmo julgamento: “Vocês estão trabalhando mal! Têm
sido indolentes e indulgentes com os kulaks. Cuidado; que não haja agentes kulaks
entre vocês. Não permitiremos por muito tempo esse descalabro.” Seguindo-se a
essa tirada, vinham as inevitáveis recomendações concretas:
Vão olhar as fazendas dos kulaks e verão que seus silos e celeiros estão abarrotados; observem que eles têm
que deixar grãos a céu aberto, cobertos com toldos, porque não há mais espaço interior para eles. Os kulaks
têm em torno de mil toneladas de excedentes em grãos por fazenda. Proponho que:
a. vocês exijam que os kulaks entreguem imediatamente seus excedentes a preços estatais;
b. se eles recusarem a submissão à lei, vocês os enquadrem no Artigo 107 do código criminal da República
Federativa Socialista Soviética Russa e confisquem o cereal para o Estado, 25% a serem redistribuídos entre
os camponeses pobres e os mais pobres dos remediados.
Vocês devem unificar firmemente em fazendas coletivas as menos produtivas propriedades individuais de
camponeses.10

O estilo repressivo alastrou-se e passou a ser encorajado. A base teórica e política do


slogan “Por um ritmo furioso na coletivização!” espalhado por alguns dos mais
zelosos administradores, seria encontrada no artigo de Stalin “O ano da grande
ruptura”. Uma certa mudança na opinião pública em favor das cooperativas – se
bem que não das fazendas coletivas, apenas de uma forma de cooperativa – foi
interpretada por Stalin como desejo por parte dos camponeses médios de tentar a
sorte na agricultura coletiva. Novas ordens e instruções resolutas foram expedidas.
Uma semana depois de seu quinquagésimo aniversário, Stalin discursou numa
conferência de agricultores marxistas e declarou, antes mesmo que o Comitê Central
expedisse suas disposições: “De uma política de limitação das tendências
exploradoras dos kulaks, passamos a uma política de liquidação dos kulaks como
classe.”11
O ano de 1937 é considerado pela mente pública como o auge da repressão e do
terror na história soviética. Uma parte significativa da intelligentsia foi atingida e,
portanto, não surpreende que tanto se tenha escrito sobre a época. Aquele ano
tornou-se o epicentro da atenção pública. Contudo, no final dos anos 1920 e
começo dos 1930, o tacão de ferro pisoteou número bem maior de pessoas, entre as
quais, possivelmente, uma boa quantidade de genuínos inimigos do regime, porém
uma imensidade de inocentes completos: camponeses médios misturados aos kulaks,
e camponeses apenas teimosos, juntamente com suas famílias. A cooperação entre
pequenas propriedades talvez fosse necessária, mas o seria a repressão em massa?
Claro que não. Todo o processo deveria ser conduzido em base voluntária.
Para facilitar a “deskulakização”, Stalin mandou preparar um documento
esboçando as características de um kulak: ele tem uma receita anual por cabeça que
excede 300 rublos, mas não menos que 1.500 por família; está envolvido em
comércio; negocia aluguel de equipamentos, máquinas e galpões de fazendas; tem
um moinho, batedeira de manteiga etc. E qualquer desses itens caracteriza um
camponês como kulak. Como se vê, os critérios não eram sociais, mas de posses
materiais, dificilmente uma base para determinação de classe em termos marxistas.
Na realidade, criava-se a possibilidade de incluir na categoria de kulaks a faixa mais
ampla de elementos sociais. A agricultura, em seu conjunto, experimentou um
trauma quase tão pernicioso quanto qualquer outro que o século XX pudesse causar.
Os camponeses mais laboriosos, mais capazes, foram os mais duramente atingidos.
Por volta de janeiro de 1929, uma comissão especial do Comitê Central
preparara uma minuta de decreto com a ementa: “Dispõe sobre o ritmo da
coletivização e métodos para ajudar o Estado na construção dos kolkhozy.”* Os
prazos para a concretização, propostos pela comissão, a conselho escrito de próprio
punho por Stalin, foram reduzidos pela metade. Sem uma razão lógica e sem levar
em conta os prós e contras da argumentação, Stalin insistia que ela fosse feita com
rapidez, rapidez e mais rapidez. Indagações, relatórios e panfletos inundavam os
escritórios das secretarias provinciais e distritais. Uma onda de comissários
despencou sobre as vilas. Alguns prometiam “tratores, querosene, sal, fósforos,
sabão, você conseguirá tudo isso quanto mais rápido se filiar ao kolkhoz!” Outros
agiam mais rispidamente: “Quem não quer entrar para o kolkhoz é inimigo do
regime soviético!” Paixões se incendiaram, aconteceram rusgas, apareceram armas de
fogo, representantes do partido e ativistas locais do kolkhoz foram assassinados,
incontáveis cartas foram enviadas a Moscou com queixas e pedidos de justiça. A
necessidade objetiva da agricultura coletiva, que começava a se materializar de
diversas formas voluntárias, passou então a ser vinculada a todo um sistema de duras
medidas administrativas, políticas e legais.
O abuso tornou-se padrão. A palavra “deskulakização” entrou no vocabulário e
cobriu o tratamento dispensado a mais de um milhão de propriedades camponesas,
nem todas kulaks. Segundo alguns cálculos, não existiam mais que cerca de 900 mil
fazendas kulaks no começo da coletivização, uns 3% de todas as propriedades rurais.
Muitas centenas de milhares de famílias tiveram casas, ferramentas, bens móveis e
valores confiscados, e foram transferidas para áreas remotas. É pouco provável que o
número exato de pessoas arrastadas por aquele rodamoinho de ilegalidade jamais
seja conhecido. Além das providências econômicas para reduzir a influência dos
kulaks sobre as vilas, foram empregados os meios mais cruéis para completar seu
extermínio. De acordo com alguns números, em 1929, mais de 150 mil famílias
foram exiladas para a Sibéria e para o norte, enquanto, em 1930, a quantidade
cresceu para 240 mil e, em 1931, para mais de 285 mil. Mas o processo tivera início
em 1928 e se estendeu além de 1931. Minhas próprias estimativas levam a um total
de 8,5 a 9 milhões de homens, mulheres, idosos e crianças afetados pela
“deskulakização”, a maioria deles totalmente desenraizados de seu hábitat nativo.
Mataram muitos por resistirem, e muitos pereceram no caminho. Em alguns locais,
seja por zelo irrestrito, seja por interesse pessoal, o processo envolveu em sua teia
também camponeses médios. Estimo que, de uma forma ou de outra, alguma coisa
em torno de 6 a 8% de todos os lares camponeses foram sugados na voragem.
Naturalmente, centenas de milhares de kulaks aceitaram humildemente o que
estava acontecendo, e poder-se-ia esperar que as medidas rigorosas fossem apenas
aplicadas àqueles que oferecessem ostensivamente resistência antissoviética. Se assim
fosse, a maioria das propriedades kulaks poderia ter participado da nacionalização,
ou processo cooperativo, por meios fiscais, tais como taxação diferenciada ou
obrigações de produção. Entretanto, não foi assim, e a recusa em induzir o kulak ao
processo deixou-o num desolador dilema: ou lutava, ou esperava pela expropriação e
o exílio. Foi a pressa e a crueldade com que questões que envolviam milhões de
pessoas foram tratadas que conduziram à tragédia.
É reveladora uma conversa que Stalin teve com Churchill, em 14 de agosto de
1942, sobre os kulaks. As negociações tinham terminado e o secretário-geral
convidou o primeiro-ministro inglês para jantar no apartamento do Kremlin.
Molotov e um intérprete estiveram presentes durante a longa conversa. Churchill,
em suas memórias, reproduz assim a ocasião:

“Diga-me”, [perguntou a Stalin] “as tensões desta guerra foram pessoalmente tão ruins para o senhor quanto
pôr em vigor a política das fazendas coletivas?”
O assunto inflamou de imediato o marechal.
“Oh, não”, disse ele, “a política das fazendas coletivas foi uma luta terrível.” “Imaginei que o senhor achasse
muito ruim”, disse eu, “porque o senhor não estava tratando com alguns milhares de aristocratas ou grandes
proprietários, mas com milhões de pessoas pequenas”.
“Dez milhões”, replicou ele, levantando as mãos. “Foi assustador. Demorou quatro anos. Era absolutamente
necessário para a Rússia, para evitarmos fomes periódicas, para arar a terra com tratores. Tínhamos que
mecanizar nossa agricultura. Quando dávamos tratores aos camponeses, eles estragavam em poucos meses. Só
as fazendas coletivas com oficinas poderiam manter os tratores. Tivemos muita dificuldade para explicar isso
aos camponeses. Não adiantava argumentar com eles. Depois que se dizia tudo a um camponês ele respondia
que tinha que ir para casa consultar a esposa e consultar o cão pastor.” Esta última era expressão nova para
mim com aquela acepção. “Depois das consultas, sua resposta era sempre que não queria fazenda coletiva e
que preferia ficar sem tratores.”
“Estes são os que o senhor chama de kulaks?”
“Sim”, respondeu, mas não repetiu a palavra. Depois de uma pausa: “Tudo foi muito ruim e difícil – mas
necessário.”
“Que aconteceu?”
“Oh, bem”, disse, “muitos deles concordaram em se juntar a nós. Alguns receberam terras próprias para
cultivar na província de Tomsk, ou na província de Irkutsk, ou mais para o norte ainda, mas a maior parte
deles era muito impopular e acabou liquidada por seus trabalhadores.”12
O número dez milhões passou a ter ampla circulação e, conquanto minha estimativa
seja menor, ela não apequena de forma alguma a escala da tragédia humana. Foi o
primeiro terror em massa imposto por Stalin a seu próprio país. Os anos de
coletivização constituíram o ponto de inflexão crucial nos camponeses como na
nação toda. A possibilidade de perseguir as cooperativas voluntárias e o
desenvolvimento segundo as linhas de mercado da Nova Política Econômica estava
perdida. A coação extrema tornou-se fator determinante na conformação do
sistema.
No meio-tempo, a coletivização continuou. Stalin recebeu dezenas de milhares
de cartas com reclamações, agonias, perplexidades, temores e ódios, mas a máquina
criminosa continuou triturando vidas humanas em poeira. Foi só em 2 de março de
1930 que Stalin, sem poder mais demonstrar indiferença ante o vulto do protesto e
da resistência dos camponeses, publicou seu famoso artigo no Pravda intitulado
“Aturdidos com o sucesso”. O segundo parágrafo é hoje lido como um hino à
repressão: “O fato é que, pelo 20 de fevereiro deste ano, 50% das propriedades
rurais na URSS estavam coletivizados. Isto significou que, em 20 de fevereiro de
1930, mais que dobramos o previsto no Plano de Cinco Anos para a coletivização.”
Parece que jamais passou por sua mente a consideração da história humana que
estava por trás daqueles números frios. Tampouco produziu estatísticas sobre os que
tinham sido exilados, despojados e assassinados. Com frequência se ouve que uma
operação daquela magnitude não poderia ser efetuada sem dor, suavemente e sem
erros. A coletivização, afinal de contas, mexera com quatro quintos de toda a
população. Mas, quem deu a Stalin o direito de tirar a liberdade de escolha do
homem comum, e de tomar decisões em nome dele? Stalin esquecera suas próprias
palavras de alerta: “O kulak tem que ser conquistado por meios econômicos e com
base na legalidade soviética!” Numa só palavra, virou norma para Stalin encarar
qualquer decisão, situação ou argumento como ficção, caso não correspondessem ao
seu plano do momento.
Stalin chega à conclusão no seu artigo – como se um referendo nacional tivesse
sido realizado a respeito – de que o trabalho na terra por companhias ou comunas
não serviria às necessidades contemporâneas da mudança socialista na vila. Só as
fazendas coletivas poderiam fazê-lo. Para o “agrário” Stalin, que nunca mais pisou
numa vila, a fazenda coletiva era o único meio aceitável para organizar a produção
agrícola. Como Khruschev iria dizer no XX Congresso do partido, em 1956, Stalin,
a partir de então, “estudou agricultura só pelo cinema”. Evidente exagero, mas é
difícil imaginar qualquer outro líder tentando equacionar todos os tipos de
problemas sem sair de seu gabinete. Uma das piores características de Stalin foi sua
incapacidade de admitir seus erros. Mesmo nesse artigo, os culpados pelos
“excessos”, os “aturdidos com o sucesso” e os tomados de “obsessão burocrática por
decretos” existiam só nas províncias.
Depois do “Aturdidos com o sucesso”, Stalin foi de novo afogado com cartas dos
camponeses e teve que explicar mais uma vez a posição do partido sobre a
coletivização. Suas generalizações, intencionalmente ou não, por vezes tiveram o
efeito de desacreditar a própria ideia de reestruturação da agricultura pelo caminho
das cooperativas. Por exemplo, ele escreveu para alguns granjeiros coletivizados:
“Alguns acham que o artigo ‘Aturdidos com o sucesso’ se refere ao resultado de uma
iniciativa pessoal de Stalin. É evidente que isso não faz sentido. Foi o resultado do
reconhecimento do Comitê Central.” E mais: “É difícil deter as pessoas quando
estão num estouro selvagem na direção do abismo, e voltá-las a tempo para o
caminho certo.”13
Merece menção o fato de que, quando toca em questões sociais, econômicas e
culturais, Stalin emprega terminologia militar, como “reconhecimento”, “front”,
“ofensiva”, “retirada”, “reorganização de forças”, “cerrando a retaguarda”,
“empregando a reserva”, “destruição total do inimigo”. Lenin usara termos
semelhantes quando delineou sua tática para a organização do partido, mas Stalin
falava sobre a “aniquilação dos kulaks como classe”. Sintetizando seu entendimento
da essência e método da transformação da aldeia, disse aos agricultores marxistas em
dezembro de 1929 que, para transformar a pequena vila de camponeses em cidade
socialista, devemos “plantar grandes fazendas socialistas no campo, tanto estatais
quanto coletivas”.14 Na verdade, elas serviriam de equipes para a liquidação de todo
um grupo social dentre os camponeses, sem necessidade de discussões num pleno do
Comitê Central ou do devido exame de todas as consequências. Dez anos mais
tarde, um editorial do Bolshevik diria o seguinte do discurso “agrário” de Stalin:

O partido bolchevique, sob a liderança do camarada Stalin, ofereceu um surpreendente modelo para resolver
a questão camponesa. [...] A coletivização completa, com base na liquidação dos kulaks como classe,
representou um triunfo do programa de Stalin para a economia no campo. O programa militante [...] foi
exposto pelo camarada Stalin num documento da maior força teórica – seu discurso para a conferência de
agricultores marxistas.15

Por deliberação de um Politburo chefiado por Molotov e sob pressão de Stalin, o


Comitê Central, em janeiro de 1930, aprovou uma resolução “Sobre medidas para
liquidação das fazendas kulaks em áreas de coletivização total”. Esta diretriz do
partido provocou tensão no campo por fechar as fazendas coletivas aos kulaks, cuja
situação então tornou-se desesperadora. Foram também usadas contra eles as
medidas mais impiedosas, inclusive o confisco total de suas posses e a deportação
das famílias para regiões distantes. Como reação, os ataques kulaks ao regime
soviético aumentaram, por vezes se estendendo por amplas áreas. As ações contra o
setor mais bem-sucedido dos camponeses resultaram numa onda de protestos,
banditismo e sublevações armadas contra as autoridades.
A produção de grãos entrou imediatamente em declínio, logo seguida por
acentuada queda na criação de gado. A iniciativa inata do camponês foi cortada pela
raiz. A produtividade do trabalho no kolkhoz caiu abaixo do nível das fazendas
individuais, com sérias e inevitáveis consequências. Teve início uma grande matança
de animais em muitas regiões: comparado com 1928, o rebanho chegou entre
metade e um terço em 1933. Para evitar que a carne fosse salgada, a venda de sal foi
drasticamente reduzida. A área arada de terra encolheu. Centenas de milhares de
famílias foram arrancadas de suas terras e ficaram sem teto.
Stalin foi informado sobre o que acontecia no campo, mas não se sensibilizou.
Certa vez, quando sentiu um laivo de dúvida sobre a escolha da política, lembrou-se
das palavras do velho rebelde anarquista Bakunin: “A vontade é todo-poderosa;
nada é impossível para a vontade.” O objetivo mais elevado sempre justificou os
meios que fossem necessários para alcançá-lo. Ele acreditava que os camponeses
simplesmente não sabiam o que os esperava. Aqueles que se opunham à política
eram, aos seus olhos, não camponeses perplexos, mas políticos incapazes de ver as
vantagens da ofensiva forçada sobre a vila. Não importava para Stalin que tal
ofensiva estivesse sendo montada contra homens de macacões surrados, analfabetos,
sustentados por suas tradições e responsabilidades, presos por cordão umbilical aos
seus tratos de terra. Para Stalin, o camponês era um meio para a consecução de um
objetivo elevado, objetivo superior a qualquer coisa.
Entrementes, especialmente no início de 1928, quando Stalin visitou a Sibéria
(14 de janeiro a 6 de fevereiro), um conflito surdo ocorria dentro do Politburo. De
início com cautela, depois com crescente persistência, Bukharin, apoiado por Rykov
e Tomsky, fazia campanha contra a política de Stalin. Não se tratava de um grupo
“de direita”, como logo depois seria chamado, mas tão somente um grupo de líderes
cuja orientação para o problema do campo era mais equilibrada e moderada.
Sem citar nomes e utilizando linguajar esópico, Stalin e Bukharin começaram a
se criticar mutuamente. Por exemplo, em 28 de maio de 1929, Stalin fez um
discurso no Instituto de Professores Vermelhos, onde Bukharin gozava de
considerável popularidade, já que, havia pouco, tornara-se o único acadêmico entre
a liderança. Foi esse exatamente o ambiente que Stalin escolheu para lançar dúvida
sobre Bukharin como “defensor dos kulaks”. Seus ataques cuidadosamente
preparados contra Bukharin foram camuflados, mas ninguém tinha dúvida sobre
quem estava na linha de tiro. Lendo discurso escrito, Stalin disse:

Alguns veem a saída para a situação no retorno da agricultura dos kulaks. Sugerem que o regime soviético se
apoie em duas classes opostas: a classe kulak e a classe operária.
Por vezes se diz que o movimento das fazendas coletivas está em oposição ao movimento cooperativista,
como se a coletivização fosse uma coisa e o cooperativismo outra. É claro que isso não está correto. Alguns
vão ainda mais longe e insinuam que as fazendas coletivas contradizem o plano de Lenin para as
cooperativas. Nem é preciso dizer que tal contradição realmente não existe.16

Melhor do que ninguém, Bukharin sabia que Stalin forçava o processo de


coletivização porque ele tornaria mais fácil expropriar grãos. E, nisso, Stalin estava
certo: se a produção agrícola fosse incluída no sistema de comando, seria mais
simples retornar efetivamente ao Comunismo de Guerra. Como exemplo disso, em
1928, ano em que a coletivização começou, os camponeses entregaram cerca de
15% de sua produção total de grãos, enquanto em 1932 a quantidade chegou pouco
acima de 30%. Mas a que preço! No norte do Cáucaso, na Ucrânia, no Volga e em
outras regiões grassou a fome. Os números exatos de vidas humanas perdidas não
são conhecidos, mas não podem ser muito menores que os dos mortos na
coletivização em si.
A fome não foi causada apenas pela seca que assolou as principais áreas agrícolas,
mas também pela coletivização, que desorganizou a vida nas fazendas, pela extração
forçada da produção e pela natureza desbalanceada da economia do país em geral. A
população urbana crescia anualmente de 2 a 2,5 milhões de pessoas. Em função dos
baixos preços pagos pelo estado, o setor de fazendas coletivas não podia alimentar
toda a nação. A partir do momento em que começou a coletivização, o camponês
perdeu todos os vestígios de autointeresse material. Além do mais, o Estado
continuou exportando grãos. Eram necessárias divisas para comprar equipamentos e
máquinas no exterior, e Stalin, que tinha pressa, insistia nisso, e suas ordens tinham
que ser cumpridas. Em muitas áreas, em particular na Ucrânia, as cotas completas
de grãos continuaram sendo retiradas. A industrialização foi concretizada não apenas
pelo trabalho dedicado dos operários, mas também pelo sacrifício incalculável e
amargo dos camponeses.
A fome forçou pessoas a roubarem cereais, e Stalin pôs em vigor, em 7 de agosto
de 1932, uma nova lei de proteção da propriedade socialista. Fazendo anotações na
minuta, escreveu: “Quem quer que tente [apropriar-se] de propriedade pública deve
ser encarado como inimigo do povo.”17 O roubo de propriedade no kolkhoz seria
passível de execução ou dez anos em campo de concentração. Stalin exigiu que a lei
fosse cumprida incondicionalmente. No início de 1933, mais de 50 mil pessoas,
muitas famintas, haviam sido sentenciadas.
Por instruções de Stalin, nada podia ser escrito sobre a fome que se espalhara por
uma população de 25 a 30 milhões de pessoas. As regiões da Ucrânia e do Volga
sofreram particularmente. A despeito do problema nas safras, os requisitos estatais
para a entrega de grãos e de outros produtos permaneceram imutáveis. Além do
mais, os kolkhozy, que mal estavam de pé, receberam ordens para aumentar o
suprimento de grãos, e qualquer decréscimo de sua parte seria interpretado como
sabotagem ou “solapamento da política do partido no campo”. Enquanto milhares
de vilas eram lançadas na confusão, os camponeses faziam resistência passiva, não
comparecendo, por exemplo, ao trabalho.
A fome e a ausência de direitos nas fazendas coletivas faziam com que seus
membros infringissem a lei de várias formas, de modo a proporcionarem um
mínimo para os famintos. A situação viria a público da seguinte maneira. Um jornal
publicou que “Notícias chegadas do norte do Cáucaso dão conta de que tendências
autointeresseiras de kulaks estão aparecendo em algumas fazendas estatais e coletivas
no tocante à produção de grãos. No kolkhoz Khuton, malgrado o fato de o plano de
cotas de mil centners (10 mil kg) não ter sido atingido, a administração decidiu por
si própria armazenar grãos para distribuição aos kolkhozniks”.
Falando em fevereiro de 1933 para o primeiro congresso de toda a URSS dos
“kolkhozniks de choque” – isto é, trabalhadores das fazendas coletivas que tinham
quebrado recordes de produção –, Stalin não fez menção à fome, muito menos à
necessidade de ajudar os que enfrentavam problemas, comentando apenas sobre
“deficiências e dificuldades” no campo. Ele esboçou a tarefa dos kolkhozniks com
total clareza:

Só exigimos uma coisa de vocês: que trabalhem com honestidade, dividam a receita da fazenda coletiva de
acordo com o trabalho realizado, cuidem dos tratores e da maquinaria, assegurem-se de que os cavalos sejam
adequadamente tratados, executem suas tarefas de operários e camponeses, fortaleçam o kolkhoz e livrem-se
de qualquer kulak ou seus lacaios que tiverem se infiltrado entre vocês.18

Este era o modo de Stalin impor o socialismo na vila, mediante o poder do Estado.
Por certo que o grão era necessário para a aquisição de equipamento industrial no
exterior, para aumentar o suprimento das cidades que cresciam rapidamente e para
criar estoques estatais, mas não se impunham medidas tão extremadas. Os métodos
de comando substituíam então, por completo, os econômicos. Não só o kulak foi
eliminado; também o foi, no processo, o granjeiro individual, e todos pelo uso da
força. Reportando para o Comitê Central, em 1934, Stalin foi bastante inequívoco:
“Temos que criar uma situação na qual o indivíduo, ou seja, o lavrador privado,
enfrente dificuldades maiores e tenha menos oportunidades que o kolkhoznik.
Temos que dar mais um aperto no parafuso das taxas.”19
Aumentou a pressão não só sobre os agricultores individuais como também sobre
as fazendas coletivas, transformando-as em elementos sem direitos, em vez de donas
de suas próprias terras. Uma nova espécie de camponês foi criada, alienado da terra
e dos frutos de seu trabalho. As pessoas perdiam o direito de cuidar de si próprias.
Com o tempo, a perplexidade e a confusão dariam lugar à apatia, como Bukharin
receava.
No discurso para o Instituto de Professores Vermelhos, distorcendo de tal forma
a posição de Bukharin a ponto de torná-la irreconhecível e chamando-o de “o
defensor dos kulaks” que não entendia o plano de Lenin para as cooperativas, Stalin,
pela primeira vez, revelou publicamente a controvérsia. De sua parte, Bukharin,
também sem citar nomes, atacou o uso do método de comando na economia.
Como principal teórico no Politburo, repetidamente afirmou que sem uma
economia rural florescente, um programa vitorioso de industrialização era
impossível. Pressão, requisição forçada e repressão no kolkhoz eram inadmissíveis. O
resultado de tal embate de opiniões não estava claro no início de 1928. De início, os
únicos aliados óbvios de Stalin eram Molotov e Voroshilov, enquanto Bukharin
tinha o apoio de Rykov e Tomsky. Um terceiro elemento, constituído por
Kuibyshev, Kalinin, Mikoyan e Rudzutak, vacilava e tentava conciliar os dois
principais antagonistas. A vitória na batalha virtualmente dependia desse terceiro
elemento “centrista”. Como de hábito, Stalin demonstrou ser mais habilidoso e
sofisticado nas manobras de bastidores e, em consequência, os plenos do Comitê
Central e da CCC em abril, julho e novembro adotaram uma atitude dura em
relação à proposta alternativa de Bukharin para a questão no campo.
Stalin não podia deixar de saber que a política repressiva para a nacionalização da
agricultura conduziria, essencialmente, à restauração dos princípios do Comunismo
de Guerra. Em vez de uma taxa fixa sobre a venda de grãos, foram impostas cotas
compulsórias de produção. E esse sistema persistiria por décadas.
Bukharin, ao contrário, propunha uma abordagem evolutiva para mudar o
campo, no curso da qual as cooperativas, ou o setor socializado, iria gradualmente
induzindo o agricultor individual pelo exemplo e pelos meios econômicos. Bukharin
não estava certo em tudo, especialmente na avaliação de longo prazo tanto das
mudanças em si como do ritmo delas, visualizando apenas que o processo levaria
muitos anos. O país não podia esperar tanto tempo. Apesar disso, a luta de
Bukharin contra o uso da coação sobre milhões de camponeses, que eram cidadãos
do Estado soviético, justificava-se em termos morais e políticos.
Repetindo: a reestruturação da economia agrária poderia ter sido concretizada
por inteiro sem o recurso ao terror e à tragédia que, em escala e consequências,
excedeu as repressões de 1937-38. Nem é preciso mencionar que, em ambos os
casos, o emprego da força foi criminoso. A bem-sucedida “liquidação dos kulaks
como classe” inflou a autoconfiança de Stalin como ditador, e ele não hesitou em
arrasar todos os que ainda podiam, ou viessem a poder, voltar-se contra ele.
A “revolução agrária” forçada de Stalin condenou a agricultura soviética a
décadas de estagnação. A experiência sangrenta, que custou milhões de vidas, não
trouxe alívio ao país. Embora ninguém pudesse dizer, as práticas do Comunismo de
Guerra haviam voltado às aldeias. Em reuniões sem conta, Stalin pintou uma
imagem triunfante na agricultura. Na realidade, o livre-comércio definhou
rapidamente, já que os kolkhozy não tinham excedentes de grãos para vender.
Mesmo assim, Stalin continuou buscando caminhos para impor métodos ainda mais
severos ao governo das vilas, já então amedrontadas em atordoado silêncio.
Conferências sem fim tiveram lugar e inúmeras resoluções foram aprovadas com
objetivo expresso de conseguir uma melhora na agricultura, mas a situação só
piorou. Tudo conspirava para afastar os kolkhozniks da terra, dos meios de
produção, e da distribuição e administração. Medo e apatia se abateram sobre as
vilas. Os kolkhozy viviam sob comando, sem que ninguém se desse conta de que
deveria imperar o princípio da cooperação. A primeira vítima do stalinismo foi o
camponês.
Assim, pereceu a Nova Política Econômica e, com ela, a linha moderada do
Politburo, e assim também começou a se dissolver a liderança coletiva no partido.
Passou a prevalecer o patente desejo de Stalin de decidir, ele mesmo, todas as
questões.
O enorme atrativo do socialismo, gerado pela Revolução de Outubro, começou a
esmaecer. Até hoje, os oponentes do socialismo referem-se às questões camponesas
quando querem tocar em nossas mais dolorosas feridas. Não há como negar que
Stalin deu muita munição e argumentos de peso para o descrédito de uma ideia tão
sedutora. Ao tomar a decisão sem precedente de utilizar a força contra seu próprio
povo, Stalin cortou as veias de um vasto grupo social que tinha se beneficiado
bastante com a revolução, e que poderia continuar fazendo bom uso daquele
benefício.
Um novo capítulo se abre na biografia de Stalin a partir do final de 1928. Não
apenas estavam afastados seus rivais pela liderança como tem início a fase que nos
acostumamos a chamar de “culto da personalidade”. A remoção de Bukharin foi um
importante marco nesse processo.
Nota

* Plural do russo kolkhoz, kollektivnoye khozyaynstvo, fazenda coletiva. [N.T.]


[18]
O drama de Bukharin

N enhum retrato político de Stalin estaria completo se não lançássemos


também luz sobre seu entourage, seus camaradas em armas, os
incondicionais da tolerância, o pessoal do sim e seus oponentes. Outro
lado do caráter de Stalin é revelado no drama de Bukharin, que se desenrolou nos
anos 1920 com o ato final da tragédia ocorrendo na década de 1930.
Stalin e Bukharin tiveram longa e estreita ligação que parecia ser para sempre. A
partir de 1927, por insistência de Stalin, Bukharin mudou-se para o Kremlin e,
depois da morte da esposa, Stalin chegou mesmo a trocar de apartamento com
Bukharin porque o secretário-geral, segundo sua própria explicação, queria escapar
das recordações daquela noite fatídica. Nikolai Ivanovich Bukharin, uma pessoa
sensível, cultivava os sentimentos de amizade, decência e sinceridade em suas
relações. Os dois dirigiam-se um ao outro pelo tratamento familiar de “ty”. Stalin
chamava Bukharin de “Nikolai” e Bukharin sempre tratava o secretário-geral pelo
seu antigo apelido de revolucionário, “Koba”. No período de 1924 a 1928, Stalin
ouviu com atenção os pontos de vista de Bukharin, asseverando frequentemente em
público “que Lenin tinha em altíssima conta aquela mente teórica superior” e que o
partido reverenciava suas qualidades inatas. Bukharin encarava a amizade como algo
de valor espiritual, até sagrado, e não a desprezaria como fez Stalin em abril de
1929, num pleno do comitê central e da CCC.
Stalin abriu seu discurso naquela reunião referindo-se exatamente a sua amizade
com Bukharin:

Camaradas, não vou tratar de assuntos pessoais, muito embora o elemento pessoal desempenhe papel
impressionante nos discursos de alguns do grupo do camarada Bukharin. Não o farei porque o elemento
pessoal é trivial e não vale a pena perder tempo com insignificâncias. Bukharin falou sobre nossa
correspondência pessoal. Leu diversas cartas nas quais fica claro que, ontem, éramos amigos, mas que agora
nos distanciamos politicamente. Acho que todas essas queixas e lamúrias não valem um tostão furado. Não
constituímos um círculo familiar ou uma côterie de amigos do peito, somos o partido político da classe
trabalhadora.20
Ao, praticamente, parafrasear as observações de Marx sobre Danton, Stalin tentava
convencer o Politburo e o comitê central de que, embora Bukharin estivesse no pico
da montanha, ele era, em certa medida, o líder do lodo, dos indecisos. Pareceu
razoável dizer que os interesses da causa estavam acima das relações pessoais, mas
achar que a amizade não valia um tostão furado foi uma afirmação repulsiva. O
ingênuo idealista Bukharin acabara de receber uma aula de maquiavelismo: sua
amizade e seus pontos de vista nada mais eram que trivialidades para Stalin. Mas
nem sempre fora assim.
A.P. Balashov, que trabalhou no gabinete de Stalin, disse-me que quando eram
distribuídas cédulas de votação ao secretário-geral no Politburo, ele frequentemente
perguntava, sem sequer levantar a cabeça: “Bukharin é a favor?” Segundo Balashov,
Stalin levava muito em consideração a opinião de Bukharin quando era necessário
chegar a uma conclusão sobre matéria específica.
Que tipo de homem era Bukharin? Por que, de todos os camaradas em armas de
Lenin que estavam na liderança após sua morte, é Bukharin o que desperta
memórias afetuosas mescladas com tristeza? Por que Lenin o chamou de “favorito
do partido”, e por que Stalin destruiu essa figura de tanto relevo?
Nascido em Moscou em 1888, filho de um mestre-escola, Nikolai Bukharin,
como a maioria dos líderes bolcheviques, não tinha origem proletária. E como eles,
Bukharin era a prova de que para ser um líder era preciso possuir alguns dos
adornos de cultura mundial. De um modo geral, só os das classes mais preparadas
podiam adquirir, desenvolver e aplicar tais qualidades à prática social.
Como estudante do departamento de economia da faculdade de direito de
Moscou, engajou-se na propaganda entre operários e estudantes, tornando-se
membro do partido bolchevique em 1906. Pouco encorpado, mas ágil e esperto,
com pouca barba e cabelos ruivos sobre a testa larga, era visto tanto no distrito
industrial do outro lado do rio como nos encontros estudantis. Preso em 1910,
escapou de Onega, na província de Archangel, e ficou no exterior até depois da
Revolução de Fevereiro.
Os seis anos que passou no exterior foram-lhe extremamente valiosos. Lá,
conheceu Lenin, que lhe dedicava não só cordialidade mas grande afeição, a
despeito das acesas discussões que os dois travavam. O acadêmico Bukharin passava
a maior parte de seu tempo nas bibliotecas e dominou rapidamente o inglês, o
francês e o alemão. Ainda no exterior, escreveu dois importantes trabalhos, A teoria
econômica da classe do lazer e Imperialismo e economia mundial.
Em Nova York, durante a Primeira Guerra Mundial, Bukharin conheceu
Trotsky, com quem, malgrado as muitas diferenças nos campos teórico e político,
manteve relações cordiais por quase dez anos. Foi em Nova York que ouviu a notícia
da Revolução de Fevereiro. O caminho de casa foi longo: preso no Japão, foi depois
colocado sob guarda em Vladivostok por se engajar na agitação entre os soldados, só
chegando a Moscou em maio de 1917. Logo se tornou editor do Pravda, cargo que
reteve por quase 12 anos, com apenas um breve intervalo. Como editor do principal
jornal do partido, desempenhou papel de destaque nas decisões sobre política
partidária e propaganda.
Bukharin não era bom em intrigas, fingimento ou “diplomacia”. Por exemplo,
em 1918, durante as semanas dramáticas em que o novo Estado negociou em Brest-
Litovsk a paz com a Alemanha, ele se tornou o virtual líder da oposição a Lenin. Ao
longo de dois meses, chefiou vários grupos de “esquerdistas” que eram contra o
tratado e a favor de deflagrar uma guerra revolucionária.
Seu sentimento comunista de esquerda não era uma fantasia passageira. Durante
a guerra civil, foi a personificação de uma política radical de esquerda e, na
realidade, foi um dos principais proponentes da política do Comunismo de Guerra.
Em Economia do período de transição, escreveu que elementos de repressão e
comando na economia eram “o custo da revolução”. Tal “custo” era, de fato, uma
“lei revolucionária”. De acordo com Bukharin, a revolução proletária primeiro
destrói a economia, depois a reconstrói em ritmo acelerado.
Suas opiniões como teórico do Comunismo de Guerra foram melhor expressas
no ABC do comunismo, livro que escreveu com a colaboração de E. Preobrazhensky,
outro jovem e talentoso teórico. Nos anos 1920, Stalin tinha em alta conta este
“catecismo” comunista. O ABC descrevia de forma enciclopédica as proposições
elementares sobre revolução, guerra de classe, ditadura do proletariado, papel da
classe operária, programa comunista etc. Fez enorme sucesso, foi reeditado vinte
vezes e vendido no exterior. Graças à sua publicação, que explanou os principais
problemas do movimento revolucionário vistos de uma posição radical de esquerda,
Bukharin ficou tão conhecido quanto Trotsky, Zinoviev ou Kamenev. Sua
reputação no exterior, por muito tempo, foi de “sumo sacerdote da ortodoxia
marxista”.
Boas razões havia para tanto. Por exemplo, na sua coleção de artigos teóricos
Ataka, publicada em 1924, escreveu que a revolução mundial iminente ocorreria
num país atrás do outro, e que o processo não seria interrompido por “todas essas
‘ligas das nações’ e asneiras com que os social-traidores* estão sintonizados”.21
Bukharin parecia ser, durante a revolução e a guerra civil, um revolucionário radical,
talvez um tanto romântico, que era pelas medidas mais extremadas. Naquele tempo,
entretanto, quaisquer ideias supraestado, supranacionais ou universais eram
descartadas como burguesas, e não só pelos marxistas ortodoxos.
A rápida mudança que ocorreu na cabeça de Bukharin poucos anos depois foi,
por isso, ainda mais surpreendente. Ele não fez segredo do fato de que sua evolução
mental foi influenciada sobretudo pelos últimos artigos de Lenin. Bukharin analisou
a Nova Política Econômica em profundidade. Com Lenin enfermo, Bukharin o
visitou com frequência, e os dois passaram horas discutindo questões de teoria e a
prática da construção socialista. Embora seja muito difícil achar pistas e fazer certas
suposições sobre aquelas conversas, o fato é que, a partir de 1922-23, Bukharin se
tornou membro da ala moderada da liderança.
Enquanto Trotsky via a NEP como primeiro sinal da “degeneração do
bolchevismo”, para Bukharin ela era a oportunidade perfeita para que o socialismo
desse novas possibilidades à economia e à sociedade, com base no potencial para
empreendimentos das antigas estruturas abandonadas. Falando numa reunião da
organização partidária de Moscou, em abril de 1925, Bukharin asseverou:

O que temos que fazer agora é dar estímulo para que a atividade econômica da pequena burguesia se
combine com a crescente riqueza privada para assegurar que nossa economia se torne mais forte. [...] Quanto
maior a capacidade de nossas fábricas, maior será nossa produção e, a partir dela, mais a cidade guiará a vila;
a classe operária ficará em condições de orientar, de forma gentil, conquanto firme, o camponês para o
socialismo.22

Numa determinada ocasião, pelo início de 1925, Stalin e Bukharin tiveram uma
conversa séria sobre economia. Ela se resumiu às dúvidas de Stalin sobre a NEP e à
defesa de Bukharin da política. Em suas anotações, Bukharin registrou a conversa.
Stalin repisou com ênfase o ponto de que depender muito tempo da NEP “sufocaria
os elementos socialistas e ressuscitaria o capitalismo”. Ele não entendia de leis
econômicas e só acreditava em “pressão do proletariado”, “diretrizes do partido”,
“linha resolvida”, “limitação dos potenciais exploradores” e coisas do gênero. Foi
uma longa conversa, mas, mesmo assim, Bukharin percebeu que Stalin não entendia
nem confiava na NEP, e que, como Trotsky, via nela uma ameaça para as
conquistas da revolução. Desanimado com o que ouvira, Bukharin decidiu tornar
público pela imprensa seu próprio entendimento da NEP. Usando a argumentação
que utilizara no discurso para a organização de Moscou, publicou um longo artigo
no Bolshevik, intitulado “Da Nova Política Econômica e nossas tarefas”, do qual são
os dois seguintes fragmentos:
O ponto da NEP, que Lenin descreveu como a política econômica correta [...] é que toda uma série de
fatores econômicos que não podiam até agora fertilizar-se mutuamente, trancados que estavam a sete chaves
pelo Comunismo de Guerra, já podem realizar a fertilização e, assim, impulsionar o crescimento econômico.
A NEP significa menos pressão, mais liberdade nas trocas, porque a liberdade não é mais uma ameaça para
nós. Significa menos reação administrativa e mais luta econômica, maior desenvolvimento nas trocas
econômicas. Significa lutar contra o empreendedor privado, não pisoteando-o ou fechando sua loja, mas
tentando produzir bens nós mesmos e vendê-los mais baratos, melhores e de mais alta qualidade.23

Stalin não destacou o artigo para fazer comentários, embora o pontilhasse de


observações nas margens. Não podia entender como era possível dar liberdade ao
setor privado. Não representaria isso, seguramente, solapar a ditadura? Foi sua
estreiteza mental e a natureza primitiva de seu pensamento econômico que, no final,
empurraram-no para a opção pelo método burocrático de comando da economia
nacional e para a rejeição das grandes oportunidades criadas pela NEP. Ele ouvia e
lia Bukharin, mas em algum lugar lá no fundo, crescia a irritação com a “capitulação
econômica” de Bukharin.
Depois da morte de Lenin, Bukharin foi promovido de candidato a membro do
Politburo a membro titular. Sua autoridade se baseava, primordialmente, na
reputação como novo teórico marxista, no sentimento humano e em ser pessoa
excepcionalmente acessível. Neste particular, era o oposto absoluto de Stalin.
Durante muito tempo, ficou de fora das lutas entre facções. Zinoviev tachou-o,
sarcasticamente, de “pacificador”, depois que não teve o apoio de Bukharin contra
Stalin. Até 1928, foi leal com todos e procurou situar-se acima da contenda. Para
ele, o importante era mapear as principais tendências para o desenvolvimento social
e econômico do país e o caminho para sua reconstrução. Neste sentido, ficou
veementemente contra a Lei Preobrazhensky, cujo ponto principal era que a
superindustrialização num país como a Rússia só se conseguiria “espremendo-se” ao
máximo os recursos do campo. Devemos creditar a Preobrazhensky o fato de se
opor ao emprego da força contra os camponeses, advogando em vez disso que taxas
desiguais nas relações de mercado entre indústria e agricultura deveriam ser impostas
em base ampla.
Era convicção de Bukharin que “a cidade não deve roubar o campo”, que apenas
uma aliança política, combinada com uma econômica, poderia ajudar a acelerar o
desenvolvimento da economia industrial e agrícola. Em outras palavras, o teórico da
NEP era favorável às relações harmônicas entre cidade e campo, embora admitindo
certo viés no estágio inicial da extração de recursos do interior. O que significava
dizer: embora a indústria devesse crescer mais rapidamente, os modos de transferir
recursos do setor rural deviam ser moderados.
Alguns loucos podem sugerir que desencadeemos uma Noite de São Bartolomeu contra a burguesia agrícola,
e podem até tentar provar que isso corresponderia à linha de classe e seria perfeitamente possível. O
problema é que se trata de uma enorme estupidez. Não temos a menor necessidade de fazer isso. Não
ganharíamos coisa alguma e perderíamos bastante. Preferimos deixar que o camponês burguês desenvolva sua
economia e tomar dele muito mais do que tomamos do camponês médio.24

Note-se que Bukharin, ao falar na limitação do “camponês burguês” no processo de


dispor a economia agrária em bases cooperativas, tinha em mente métodos
econômicos, não administrativos. Na essência, era o plano de Lenin da coletivização
sem repressão, requisições, pressões ou ameaças. Em 1928 e mais especificamente
em 1929, contudo, Stalin classificava as ideias de Bukharin como afastamento do
leninismo e de “planos diversionários hostis do desvio de direita”, uma heresia
oportunista de “elementos contrários ao socialismo”.
Bukharin tentou mostrar que não existiam mais na União Soviética forças
políticas hostis importantes e organizadas capazes de constituir ameaça séria ao
Estado socialista. Se a violência fosse empregada contra o camponês, argumentou
ele, teria consequências dolorosas e de longo alcance. Embora tudo isso se revelasse
verdadeiro no devido tempo, Bukharin esqueceu dois fatores. Primeiro, um ritmo
lento de coletivização, que levasse décadas, poria em risco a própria existência do
socialismo na Rússia; em segundo lugar, a industrialização exigia vultosos recursos e
o campo era a única fonte. A linha de ação ótima deveria estar nalgum ponto entre
as duas posições.
De 1925 a 1927, Stalin e Bukharin foram as duas figuras mais influentes do
partido. E foi, de fato, Bukharin quem ajudou Stalin em seu conflito com Trotsky,
Zinoviev e Kamenev, se bem que tentasse, ao mesmo tempo, ser leal com eles.
Quando os três deixaram o Politburo, a influência de Stalin e Bukharin sobre
questões correntes e estratégicas cresceu visivelmente. Não tardou para que Stalin se
enraivecesse com os oposicionistas que atacavam Bukharin, dizendo: “Então querem
o sangue de Bukharin? Pois é bom que saibam que não o daremos!” A imagem, não
menos que a defesa em si, foi memorável.
Os dois líderes de ponta do Politburo, em certo sentido, se complementavam.
Enquanto Stalin se ocupava com os assuntos políticos e organizacionais, Bukharin se
esforçava pela formulação e pelo estabelecimento de princípios políticos que dessem
base à política partidária. Não seria exagero dizer que, até o começo de 1928, Stalin
apoiava-se firmemente em Bukharin nas questões econômicas e seguia seus pontos
de vista. É claro que uma das características de Stalin era pegar as ideias de outros
líderes e fazer com que parecessem suas. Da mesma forma que se apropriou de
muitos slogans de Trotsky sobre métodos de comando, também valeu-se de
Bukharin para preencher as lacunas de seu conhecimento do problema agrário.
Como então se explica o fato de, em 1928, ele começar a distanciar-se de Bukharin?
Por que, subitamente, começou a rotular opiniões que já esposara de “desvios da
direita”? Por que a amizade pessoal se deteriorou tão rapidamente transformando-se
em ódio completo?
Parece que foram diversas as razões. Em primeiro lugar, Stalin se alarmou com o
crescimento da popularidade de Bukharin como teórico, figura política e líder
charmoso, no partido e no país em geral. Naqueles tempos, a autoridade de
Bukharin dentro do partido era quase igual à do próprio secretário-geral. Stalin
ficou em alerta quando leu um artigo de Bukharin, dedicado a Lenin, que dizia o
seguinte:

Porque não temos Lenin, também não temos autoridade unitária. Só podemos ter, no presente, autoridade
coletiva. Não há ninguém que possa dizer: “Sou indene de faltas e consigo interpretar os ensinamentos de
Lenin com 100% de correção.” Todos tentam, mas quem reivindica os 100% está concedendo à sua pessoa
um papel demasiado grande.25

Stalin achou que o alvo daquelas palavras era ele. Afinal de contas, em todas as
palestras que proferiu sobre as fundações do leninismo na Universidade Sverdlov
falara como intérprete dos ensinamentos de Lenin. E, de qualquer forma, que
história era aquela da não existência de autoridade unitária? O que dizer da
autoridade do secretário-geral? Stalin ficou também inquieto com a quantidade de
seguidores de Bukharin, entre os quais Astrov, Slepkov, Maretsky, Tseitlin, Zaitsev,
Goldenburg e Petrovsky, que começavam a se destacar na imprensa, nas
universidades e no aparato do partido. Slepkov e Astrov tinham se tornado editores
do Bolshevik, Maretsky e Tseitlin trabalhavam no Pravda, Zaitsev estava na comissão
central de controle, a CCC, e assim por diante. Stalin temeu que a influência
política e ideológica de Bukharin crescesse demais no partido e no país.
Outro motivo residia no caráter arbitrário e obstinado do secretário-geral. A
coletivização – isto é, a revolução real no campo executada pela força vinda de cima
– começara vitoriosamente no conjunto, melhor, pelo menos, do que Bukharin
imaginara. Pelos relatórios recebidos, Stalin se convenceu de que, exercida a medida
apropriada de pressão, as expectativas preliminares poderiam ser radicalmente
aumentadas. De qualquer forma, acreditava que aquela política resolveria
rapidamente a crise dos cereais.
Mas a crise se aprofundou. Stalin disse repetidas vezes ao círculo mais íntimo:
“Sem uma ruptura decisiva no campo, não teremos pão.” Molotov e Kaganovich
concordaram avidamente com ele. Stalin, aos poucos, se convenceu de que o
cronograma para a reestruturação da economia agrária deveria ser encurtado duas ou
três vezes. Então, quando a pressão provocou uma resistência amortecida, porém
alastrada, dos camponeses, em especial dos kulaks, ele subitamente viu, num
lampejo de “gênio”, que a solução estava em apressar a “liquidação da classe”, por
métodos puramente administrativos e políticos.
As discussões no Politburo sobre esta questão se tornaram mais acaloradas. Stalin
recebeu o apoio de Molotov, Kaganovich e Voroshilov, enquanto Bukharin tinha
Rykov e Tomsky ao seu lado. Os aliados de Bukharin eram também favoráveis à
coletivização e à “ofensiva contra os kulaks”, mas sem expropriações ou repressão.
Acreditavam que, no final, o método econômico de pressão surtiria efeito. Kalinin,
Rudzutak, Mikoyan e Kuibyshev estavam indecisos. Se entendessem melhor a
situação, teriam dado o apoio a Bukharin, e tudo poderia ter sido bem diferente.
Afinal, o próprio Bukharin não era contra a industrialização nem contra a
coletivização: era, sim, contra o emprego da força no cumprimento dessas tarefas
históricas. E como vidas humanas estavam em jogo, não se tratava de questão trivial.
Na opinião de Bukharin, todas as transformações, no fim, deveriam servir à
humanidade e ao socialismo, e não o caminho inverso. A consciência moral dos
membros do Politburo que decidiam sobre a linha de ação ótima, não
necessariamente a mais radical, não era, infelizmente, tão refinada quanto a de
Bukharin. E, assim, perdeu-se outra oportunidade de agir com consciência. Até
mesmo Trotsky, que olhava o conflito de fora, disse a seus seguidores que “a direita
pode derrubar Stalin”, levando em conta que tinha em suas fileiras os chefes de
governo, os sindicatos e a liderança intelectual. Parecia haver uma chance. Todavia,
o equilíbrio instável não durou muito, embora tivesse parecido por um breve
momento que a linha moderada de Bukharin fosse prevalecer. Àquela altura, Stalin
já era um mestre imbatível na condução dos casos à sua maneira.
Rykov, sucessor de Lenin como presidente do Conselho de Comissários do
Povo, e Tomsky, líder praticamente perpétuo dos sindicatos, não encaravam Stalin
como líder inconteste, porém deram apoio a Bukharin por convicção, não por
motivos pessoais. Stalin não conseguira influenciar sua opinião. Pyatakov certa vez
chamou Rykov e Tomsky de “nepistas convictos” com alguma razão. O problema
foi que a batalha contra Stalin se desenrolou a portas fechadas e num círculo
restrito. Além do mais, o risco que Bukharin e seus seguidores corriam de ser
considerados facciosos não era desprezível. Por mais que Bukharin estivesse
convencido da natureza desastrosa da política de Stalin, não conseguiu criar uma
base mais ampla de apoio entre os que não aceitavam a repressão, a ditadura ou as
medidas “extraordinárias”. Tentou voltar a ter um diálogo pacífico com Stalin, mas
o secretário-geral só aceitava a rendição completa. O líder em desgraça entrou em
agonia: “Algumas vezes fico pensando à noite: temos o direito de continuar
silenciosos? Não é falta de coragem?”26 Mas não ousou esbravejar. Respeitando e, ao
mesmo tempo, desprezando Stalin, esperou até o dia de sua morte – em vão, como
sabemos – que Stalin recuperasse a racionalidade, a decência e a tolerância.
A relação entre os dois líderes deteriorou-se rapidamente depois que o famoso
artigo de Bukharin “Observações de um economista” saiu no Pravda, em 30 de
setembro de 1928. Persistentemente, Bukharin bateu na tecla da necessidade e da
possibilidade de se fomentar o desenvolvimento da indústria e da agricultura numa
atmosfera livre de crises, e pela mobilização de todos os meios econômicos
disponíveis: “Supercentralizamos tudo.” Passada uma semana, o Politburo
condenou o artigo, e Stalin lançou-se ao ataque decisivo. Debates prolongados e
veementes ocorridos no Politburo não chegaram a um meio-termo. Muitas das
sessões não tiveram atas, anotando-se apenas as decisões. Estas mostram que Stalin
ganhava terreno paulatinamente. Bukharin ficou em minoria. Rykov cedeu em
diversos pontos e Tomsky cambaleou. Stalin começou a exigir que Bukharin
“abandonasse sua linha de raciocínio de desacelerar a coletivização”. Numa ríspida
troca de palavras, Bukharin, irado, chamou Stalin de “insignificante déspota
oriental”. Stalin não respondeu. Porém, internamente, deveria estar pensando: “Não
preciso mais dele.”
A relação já conturbada ficou ainda pior. Porém, mesmo antes desses
acontecimentos, Bukharin, sentindo que a posição dos moderados enfraquecia,
tomara uma atitude que se revelaria desastrosa: de repente, na noite de 11 de junho
de 1928, visitou Kamenev em seu apartamento e tentou estabelecer ligação com a
antiga oposição que ele mesmo ajudara Stalin a destruir. Visitou Kamenev em
outras duas oportunidades. Em todas as ocasiões, ficaram a sós. O que esses dois
camaradas de Lenin conversaram, provavelmente nunca saberemos com certeza. De
acordo com Trotsky, Kamenev anotou que Bukharin estava furioso e deprimido.
Repetia sem cessar, “a revolução está arruinada”, “Stalin é um intrigante da pior
espécie”, e parecia achar que nada havia a fazer para melhorar as coisas. Os aliados
de Trotsky fizeram circular esta suposta conversa num panfleto clandestino datado
de 20 de janeiro de 1929. Não há como se possa confirmar sua veracidade.
Nesse meio-tempo, Stalin foi seguramente informado daqueles contatos e, no
plenário de abril de 1929, usou-os da maneira mais convincente contra Bukharin.
Tais contatos não foram bons para os moderados e permitiram que Stalin colasse em
Bukharin o rótulo de “faccioso”. Àquela altura, o teórico decidiu apelar para a
opinião pública. No aniversário da morte de Lenin, 24 de janeiro de 1929, publicou
um artigo no Pravda intitulado “Testamento político de Lenin”, que constituía o
relatório a ser feito na sessão comemorativa do quinto ano do falecimento de Lenin.
O artigo descrevia o plano de Lenin para a construção do socialismo, a
importância da NEP, a necessidade de que as decisões fossem tomadas
democraticamente, e assim por diante. Bukharin escreveu que os artigos de Lenin
recomendavam “a industrialização do país com base na poupança, no
aprimoramento da qualidade do trabalho, juntamente com a organização dos
camponeses em linhas cooperativas, ou seja, com os meios mais simples e mais
fáceis, a fim de atrair os camponeses para a construção socialista, sem recorrer a
qualquer forma de repressão”. Esta fórmula era, em quase todas as suas palavras, a
essência da opinião de Bukharin sobre as questões enfrentadas pelo partido no
momento.
Porém, o ponto principal estava no próprio título do artigo, pois ele lembrava
aos comunistas (os que sabiam e os que se recordavam) que o Testamento pedira a
remoção de Stalin do cargo de secretário-geral para outra função qualquer. Era o
último fio de esperança, em particular porque Bukharin escreveu que “a consciência
não pode ser desprezada na política, como alguns pensam”.
É preciso realçar que, com toda sua inteligência e por mais profética que fosse
sua visão do porvir, Bukharin tardou muito a entender Stalin. A destruição do
“grupo Bukharin”, iniciada por Stalin, foi completada pelos plenos de abril e
novembro de 1929 do comitê central e da CCC, que revisaram a questão dos
“desvios de direita” no partido. Stalin fez um discurso de três horas no qual
desancou Bukharin por recusar-se a aceitar o meio-termo oferecido pelo Politburo,
em 7 de fevereiro de 1929, meio-termo que seria o equivalente à rendição total. Isso,
de acordo com Stalin, significava que o partido tinha então “a linha do comitê
central e a linha do grupo Bukharin”. A despeito das relações amistosas que
mantiveram antes de janeiro de 1928, Stalin optou por registrar na ocasião as “fases
de diferença” entre eles, pontilhando sua fala com expressões depreciativas como
“asneira”, “lixo”, “livrinho de Bukharin”, “abordagem não marxista”, “palavrório”,
“marxista impostor”, “boquirroto”, “confusão semianárquica de Bukharin”.
Houvera boas razões para que Bukharin fosse considerado o teórico de proa do
partido desde a morte de Lenin, e agora Stalin decidira retirar a coroa de sua cabeça:
“Como teórico, não é um marxista completo, é um teórico que precisa estudar um
pouco mais se deseja ser teórico marxista.”27 E, aqui, Stalin não perdeu a
oportunidade de citar o que Lenin dissera sobre Bukharin, em especial na segunda
parte de seu pronunciamento, quando afirmou haver “algo de escolástico nele
(jamais estudou dialética e creio que nunca a entendeu completamente)”. Portanto,
era um “teórico sem dialética, um teórico escolástico”. Stalin passou a enumerar
todos os desacordos que Bukharin tivera com Lenin, caracterizando-os como
“tentativas de ensinar ao professor”. Aquilo, prosseguiu sarcasticamente, era
inteiramente compreensível, considerando-se quão recentemente o “teórico
escolástico” tornara-se “pupilo de Trotsky [...] e ainda ontem procurara alianças
com os trotskystas contra os leninistas, correndo para eles pela porta dos fundos!”28
– referência às visitas de Bukharin a Kamenev.
Todo o discurso foi nessa linha, distribuindo críticas devastadoras contra Rykov,
Tomsky e contra o alvo principal. Bukharin e Rykov foram destituídos de seus
cargos, embora permanecessem membros do Politburo. O discurso só foi publicado
alguns anos mais tarde na coleção de obras de Stalin, mas como a resolução do
plenário circulou por todas as organizações locais do partido, o processo de punição
dos “direitistas” começou a ocorrer em todas as regiões. O Pravda e outros jornais
passaram a estampar com regularidade matérias com acusações pesadas contra a
“direita”. Com efeito, estava sinalizada a coletivização forçada, com seus excessos e
com o fim violento do antigo modo de vida dos camponeses. Ninguém mais falava
no princípio do voluntariado. Mesmo então, Bukharin continuava achando que
20% de crescimento industrial era o máximo que a economia agrícola podia
garantir. Stalin tinha expectativas bem mais altas.
Em novembro de 1929, a linha geral do partido para a agricultura foi
confirmada quando Stalin escreveu que “os camponeses estão agora se juntando às
fazendas coletivas não como grupos individuais, como costumavam fazer, mas como
vilas inteiras, grupos de vilas, distritos e até regiões”.29 Contudo, Bukharin recusava
o “arrependimento” que vinha sendo instado a mostrar e, em 17 de novembro de
1929, foi removido do Politburo. No entanto, uma semana mais tarde,
atormentados pela dor de consciência da própria pusilanimidade, Bukharin, Rykov
e Tomsky escreveram uma carta breve para o comitê central na qual condenavam a
posição assumida por eles mesmos: “Consideramos ser nosso dever afirmar que o
partido e o comitê central estavam certos nesta discussão. Nossas opiniões acabaram
se revelando errôneas. Reconhecendo nossos enganos, devemos conduzir uma
batalha decisiva contra todos os afastamentos da linha geral do partido e, acima de
tudo, contra o desvio de direita.”30
Stalin não gostou de não ver na declaração menção específica ao fato de ele estar
certo, mas não tinha importância. Bukharin estava acabado.
É muito pouco provável que, por aquela ocasião, muitas pessoas fossem capazes
de antever o que o futuro reservava para Bukharin, ou mesmo apenas de prever a
derrota, de um modo geral, daquela ala moderada da liderança do partido. Por
outro lado, os críticos e analistas de fora da União Soviética foram um pouco mais
perspicazes. Em abril de 1931, saiu um artigo na edição do jornal menchevique
Sotsialischeskii Vestnik** com os resultados da Nova Política Econômica, no qual se
dizia que Stalin fazia o máximo para “destroçar qualquer sonho de um retorno à
NEP e para acabar com qualquer sonho de evolução”.

O secretário-geral tentou várias vezes submeter os comunistas de direita, mas, devido a uma série de razões
internas, a punição não foi levada ao extremo, e o fim violento de Rykov, Tomsky e Bukharin foi adiado. O
processo de expeli-los tanto do aparato como do partido ainda não se completou. Os defensores da NEP, que
são sensíveis às necessidades dos camponeses (embora psicologicamente incapazes de romper com a ideia da
ditadura), já foram destituídos de seus cargos, mas ainda não foram declarados inimigos do povo. A ditadura
já os está encarando e logo tratará deles.31

Tendo-se “retratado”, Bukharin passou a sofrer terrivelmente como resultado de sua


própria inconsistência. Por que, agonizava ele, não fui capaz de convencer o
Politburo? Ele sabia que não estava certo em tudo. Uma arremetida para
industrialização era, sem dúvida, o certo a ser feito. Sacrifícios não poderiam ser
evitados, mas que forma deveriam tomar? Seguramente não de vidas humanas. Até o
fim, ele não conseguiu se conformar com os métodos de violência total empregados
contra os camponeses: a “liquidação” ou controle dos kulaks poderia ter sido feita
com métodos puramente econômicos. O drama de Bukharin ainda não entrara na
fase trágica. Ninguém no partido poderia prever os sangrentos anos da década de
1930. E que tudo aconteceria quase dez anos depois de Bukharin capitular, em
novembro de 1939.
Notas

* Jargão comunista para os partidos socialistas, a maioria no Ocidente, organizados na Segunda Internacional.

** Fundado em Berlim por Martov em 1920, o Jornal Socialista, órgão da ala menchevique do RSDRP
Rossijskoj Social-Demokraticeskoj Rabocej Partii – Partido dos Trabalhadores Social-democrata Russo – foi
transferido em 1933 para Paris. Depois, de 1940 até 1963, passou a ser publicado em Nova York.
[19]
Ditadura e democracia

N o início dos anos 1930, ficou claro para os que tinham capacidade de
perceber que as palavras de Lenin – “O aparato não nos pertence, nós
pertencemos a ele”32 – tornaram-se realidade. A ditadura da burocracia, a
burocracia coletiva, nascera. E ela, gradualmente, gerou uma elite, toda uma
hierarquia de chefes. O governo por decretos passou a ser o principal meio de inter-
relacionamento social. Tudo era decidido dentro dos gabinetes. Reuniões, sessões,
congressos e plenários meramente “aprovavam” ou “davam apoio”. O poder do
povo nada mais era que uma expressão vazia. As engrenagens da máquina
burocrática não se movimentavam com rapidez, mas eram inexoráveis. Stalin
manejava o principal painel de controle, observando o produto de sua inspiração
através das janelas do Kremlin. A mudança para o socialismo fora deformada em
mudança para o stalinismo.
Stalin jamais entendeu, ou quis entender, a essência da democracia proletária, o
próprio significado de poder do povo. Em seus arquivos, podemos ver que a
democracia para ele nada mais era que liberdade para dar apoio – e apenas dar apoio
– às decisões do partido. E como Stalin acreditava que personificava o partido, a
democracia autêntica consistia em aprovar suas argumentações, suas deliberações,
suas intenções. Nem todos logo se deram conta de que, ao lidar com Trotsky,
Zinoviev, Kamenev e com outros que pensavam de forma diversa, Stalin não fazia
menção às diferenças em relação a si, e sim ao afastamento do leninismo. A
identificação de suas próprias opiniões e atitudes com as de Lenin foi um dos
instrumentos mais inteligentes utilizados por Stalin. Nem todos tiveram de imediato
a percepção de que, graças a essa estratégia, ninguém parecia ter razão quando
discutia com ele. Para que isso acontecesse, era preciso que, primeiro, Lenin fosse
destronado.
Ademais, Stalin também conseguia apresentar seus erros sobre a questão
nacional, sua atitude negativa a respeito da continuação da NEP, sua falsa
concepção de luta de classes, seu entendimento deturpado sobre a essência da
coletivização e seu exagero sobre o papel do aparato como se fossem interpretações
corretas do leninismo. Certa vez, durante o embate que travaram antes da expulsão
de Bukharin do Politburo, Stalin trocou com ele as seguintes palavras:

Stalin, irado: “Vocês são um bando de não marxistas, uns curandeiros, charlatões. Nenhum de vocês
entendeu Lenin!”
Bukharin: “E você foi o único que entendeu?”
Stalin: “Repito, você não entendeu Lenin. Já se esqueceu das tantas vezes que o atacou por esquerdismo,
oportunismo e desorganização?”

Com quase as mesmas palavras, Stalin iria coagir Bukharin no pleno de abril de
1929 do comitê central e da CCC. A fonte de muita infelicidade futura pode ser
encontrada na usurpação que Stalin procedeu da interpretação de Lenin, e ninguém
se mostrou capaz de revelar a profunda impropriedade do pleito dogmático do
secretário-geral pela exclusividade nesse papel.
No pleno de janeiro de 1933, ao sintetizar os resultados do Primeiro Plano
Quinquenal, Stalin incluiu uma seção especial sobre as tarefas e o efeito da luta
contra “os remanescentes das classes hostis”. A despeito de dizer “remanescentes”,
conclamou uma “luta implacável contra eles”. E nenhuma palavra quanto à
reeducação ou quanto à possibilidade de que “ex-pessoas” e suas famílias fossem
levadas para o novo estilo de vida, o que talvez ajudasse mais efetivamente a
mudança de suas visões e de seus “instintos de classe”. Ao descrever o cenário social,
ele disse:

Os remanescentes das classes moribundas – industriais e seus serventes, negociantes privados e seus títeres,
ex-nobres e ex-párocos, kulaks e seus lacaios, ex-oficiais e ex-soldados Brancos, milícias e policiais –
infiltraram-se em nossas fábricas, nossas instituições e agências, nossas ferrovias e empresas de transporte
fluvial e na maior parte de nossas fazendas estatais e coletivas. Esgueiraram-se e lá estão escondidos,
disfarçados de “operários” e “camponeses”, e alguns chegaram a se infiltrar até mesmo no partido.
O que trouxeram consigo? É claro que trouxeram o ódio contra o regime soviético, seus sentimentos de
hostilidade feroz às novas formas de economia, modo de vida, cultura. [...] Só lhes resta fazer o jogo sujo e
prejudicar os operários e os agricultores coletivos. E o fazem da maneira que podem, na surdina. Incendeiam
depósitos e quebram máquinas, e alguns deles, inclusive professores, vão tão longe em sua atividade
destruidora que injetam vírus da peste e antrax no gado de nossas fazendas coletivas e estatais, e forçam o
alastramento da meningite em nossos cavalos, e assim por diante.33

Depois de ouvirem uma descrição tão sombria da situação no início de 1933, as


pessoas decentes ficaram aturdidas. Só havia inimigos, destruidores, remanescentes
de classes exploradoras ainda tão perigosos quanto tinham sido nos anos iniciais do
poder soviético. É evidente que ainda existiam muitas pessoas hostis ao regime, mas
nada parecido com a ameaça que Stalin pintara. Mas ele o fez para ficar em
condições de dizer: “Uma ditadura forte e poderosa do proletariado se faz necessária
agora para transformar em pó os últimos remanescentes das classes agonizantes e
para destroçar seus esquemas desonestos.”34 Jogava na intensificação da função
punitiva e coercitiva da ditadura do proletariado.
Stalin fez muitos discursos assim no fim dos anos 1920 e início de 1930.
Começou a se formar, gradualmente, um estado de espírito na população que, ao
lado do zelo revolucionário, do entusiasmo e do otimismo coletivo, mostrava os
primeiros indícios de suspeita, desconfiança em relação a concidadãos e propensão
para acreditar nos mitos mais grotescos sobre “inimigos do povo”. A insanidade
absoluta de 1937-38 não teria ocorrido se a população não viesse sendo preparada
por muito tempo. Milhões de pessoas, vivendo, de fato, num Estado cercado pelo
mundo capitalista, foram se acostumando aos poucos à ideia de que entre seus
amigos, concidadãos e colegas de trabalho, na universidade, na unidade do exército
ou no grupo cultural, escondiam-se inimigos que só esperavam a hora. Uma
convocação, um slogan, uma diretriz seriam capazes de aprestar muitas delas para
“esmagar os últimos remanescentes do capitalismo”. Dali para o terror era só um
passo ou, no mínimo, para a predisposição a desencadeá-lo. De sua parte, Stalin
acreditava que o uso da violência era elemento orgânico da construção pacífica do
socialismo. “A repressão”, disse no XVI Congresso do partido em 1930, “é um
elemento necessário para o progresso”.35 Stalin não podia entender por que as
pessoas que escreviam na imprensa social-democrata do exterior, e Trotsky, que
estava em desacordo com elas, eram tão veementes nos ataques ao aparato do
partido e à ditadura. Não saberiam que, obviamente, esses eram os instrumentos
mais importantes do poder? Vezes sem conta Stalin persuadia a si mesmo de que o
aparato, historicamente, fora a arma da ditadura. Não se podia falar de socialismo
ou democracia sem a ditadura. É claro que era a ditadura do burocrata, não do
proletariado, que Stalin consolidava.
Ele falou bastante sobre igualdade e interesses sociais como premissas básicas da
democracia socialista. Numa conversa, em 1936, com um grupo da equipe do
comitê central responsável pelos livros didáticos escolares, sublinhou que:

Nossa democracia tem que colocar sempre o interesse geral em primeiro lugar. O pessoal quase não vale nada
comparado ao social. Enquanto existirem ociosos, inimigos e ladrões da propriedade socialista, isso significa
que ainda existirão pessoas estranhas ao socialismo, e significa também que temos que persistir na luta.

“O pessoal quase não vale nada...” e o que pertence a todos não pertence a ninguém.
O senso de propriedade simplesmente se evaporou quando o igualitarismo foi
imposto. Um trabalhador não poderia receber milhares por uma invenção, mesmo
que ela desse lucro de milhões, porque seria “demais” para uma pessoa.
Paulatinamente, surgiu um tipo de trabalhador receoso da “sobrecarga” de trabalho,
que encarava com naturalidade folhas falsas de serviço e roubos à luz do dia. “Ora, o
Estado não vai sentir falta disto”, raciocinaria ele. “O pessoal quase não vale nada...”
E era a “democracia” de Stalin que sustentava tal tipo de atitude. As pessoas, quase
sempre, se motivavam pela necessidade, pelo medo e por outras alavancas do sistema
em cujo vértice se postava o autocrata.
Stalin não proferia discursos contra a democracia, porque o seu entendimento de
democracia era o de um déspota. Afinal de contas, existiram imperadores romanos
que não tiveram pejo em criar parlamentos obedientes com os atributos
apropriados, tais como eleições, juramentos e representações formais. A democracia,
como expressão do poder socialista do povo, era aceitável por Stalin, desde que
reforçasse sua ditadura pessoal. Numa conversa com H.G. Wells, o secretário-geral
colocou o poder no centro de seu raciocínio como “uma alavanca da mudança”,
alavanca da nova legalidade e da nova ordem. Nada ele amava mais que o poder, o
poder completo, ilimitado, consagrado pelo “amor” das multidões. E nisso foi bem-
sucedido. Nenhum outro homem no mundo jamais conseguiu um sucesso tão
fantástico: exterminar milhões de seus próprios concidadãos e receber em troca a
adulação cega de todo o país. Não obstante, isso fazia parte do entendimento
stalinista da relação entre ditadura e democracia.
Com o correr do tempo, a noção de “sacrifício”, ou de “custo”, tornou-se para
Stalin um dos atributos essenciais do socialismo. Quando um novo projeto foi
formulado para a Sibéria Setentrional, a “ordem de planejamento” incluiu um
elemento para cobrir as “perdas naturais”. A NKVD chegou a prever “dotações”
para as regiões, reservas especiais de trabalho forçado para os “locais socialistas”. A
partir do fim dos anos 1920, não havia escassez do barato trabalho escravo. Todas as
iniciativas para o emprego de prisioneiros encontravam apoio em Stalin. Bastava que
resmungasse para um assistente, ou que rabiscasse “de acordo” no documento, para
que a proposta de uma agência referente à utilização de centenas ou milhares de
“inimigos”, numa região ou noutra, ganhasse aprovação oficial.
Dando um salto à frente, seria interessante frisar que, em suas notas para Stalin,
Beria frequentemente afirmava que as tarefas de construção da NKVD eram tão
grandes que os “recursos humanos” se mostravam inadequados.36 Stalin captou a
ideia. Em 25 de agosto de 1938, o Presidium do Soviete Supremo da URSS reuniu-
se para debater a libertação antecipada de prisioneiros de bom comportamento.
Stalin objetou:

Não podemos dar um jeito para que essa gente permaneça nos campos de prisioneiros? Se isso não acontecer,
nós os liberamos, eles voltam para casa e retomam a antiga vida. O ambiente no campo de prisioneiros é
diferente, lá é mais difícil o mau comportamento. Afinal, já temos o empréstimo [estatal] voluntário-
compulsório. Então, tenhamos também a permanência voluntária-compulsória.37

Stalin fora bastante claro e, em consequência, foi aprovado um decreto “sobre


campos da NKVD” segundo o qual “quem quer que esteja sentenciado em campos
da NKVD da URSS tem que cumprir toda a pena fixada pelo tribunal”.
Voltando ao início dos anos 1930, o resultado do definhamento dos princípios
democráticos foi a criação de uma máquina de repressão e de um poderoso aparato
punitivo. O dogmatismo nas ciências sociais, na ideologia e na propaganda se alastra
rapidamente. A falta de democracia logo levou aos primeiros vestígios de
inchamento do papel de uma só pessoa, de exaltação de seus méritos, do traço da
figura de Stalin como Messias mítico.
A reação de Stalin a tudo isso foi interessante, veja-se o extrato de uma conversa
que teve com Emil Ludwig, em 13 de dezembro de 1931:

Ludwig: De um lado, as pessoas do exterior sabem que a URSS é um país onde, supostamente, tudo é
decidido coletivamente, porém, de outro lado, também sabem que tudo é decidido por um homem só.
Quem decide na verdade?
Stalin: As decisões tomadas por uma só pessoa são sempre, ou quase sempre, decisões unilaterais. Em
qualquer coletividade, há pessoas cujas opiniões têm que ser levadas em conta. Nossos operários jamais
tolerariam o mando de um homem só sob quaisquer circunstâncias.
[Ludwig pergunta como Stalin encara os métodos jesuítas.]
Stalin: Seus principais métodos abarcam a campana, a espionagem, a infiltração na mente das pessoas, o
escárnio – que há de bom nisso?
Ludwig: O senhor esteve constantemente em risco e correndo perigo. Foi perseguido, tomou parte em
batalhas. Alguns de seus amigos mais próximos morreram. O senhor ainda está vivo. O senhor acredita em
destino?
Stalin: Não, não acredito. Isso é apenas bobagem supersticiosa e uma ressaca da mitologia. Outro poderia
estar em meu lugar, e deveria mesmo estar. [...] Não acredito em misticismo.38

Dizer uma coisa e fazer outra passou a ser norma para Stalin: condenar o culto à
liderança enquanto o reforçava, criticar as práticas jesuítas ao mesmo tempo em que
as encorajava na vida soviética, falar sobre liderança coletiva ao passo que a reduzia
ao mando de um só homem. A deificação dos autocratas normalmente é feita com
base na falsidade.
No início da década de 1930, Stalin interrompeu por completo suas raras visitas
às províncias, fábricas e unidades do exército. Por um lado, seu conhecimento era
diminuto sobre a produção e não desejava imiscuir-se com assuntos terrenos tais
como tecnologia, rendimentos, produtividade etc. Por outro lado, vivia assaltado
pela sensação permanente de que se engendrava um atentado contra sua vida. Afinal
de contas, inimigos não faltavam, e Trotsky, ou qualquer outra das “ex-pessoas”,
poderia chegar a extremos. Seus órgãos de segurança não paravam de alertá-lo. Por
exemplo, Ulrikh informou:

Em 16 de dezembro [1935], depois de duas semanas de investigação feita a portas fechadas pelo collegium
militar da Suprema Corte da URSS, foi sentenciado um grupo de espiões e terroristas que planejava um ato
terrorista [terakt] na Praça Vermelha, em 7 de novembro de 1935, sob as ordens de um cidadão alemão.
Foram condenados à pena de morte G.I. Sher, V.G. Freiman, S.M. Pevzner, V.O. Levinsky...39

Stalin não precisava continuar lendo. “Estão atrás de mim”, pensou. Mas não
conseguiriam, seriam todos desentocados.
Stalin raramente fazia aparições públicas porque, segundo sua natureza sutil,
sabia que quanto menos fosse visto pelo povo, mais fácil seria cultivar a espécie de
imagem que queria projetar. O enigmático, o misterioso e o fechado guardavam
equivalência com o sagrado, o lendário e o sobre-humano. Portanto, em vez de
visitar fábricas, ele estudava cuidadosamente os documentos, assistia com
regularidade aos noticiários do cinema, ouvia numerosos relatórios e punha-se de pé
por longos períodos de tempo, cogitando diante de mapas.
Ele gostava de olhar mapas e examinar seu vasto país como um soberano. Isso,
mesmo de forma inadequada, dava-lhe uma ideia da maneira com que milhões de
pessoas laboravam para dar vida aos seus decretos. Podia correr com o dedo sobre a
Transiberiana, ou localizar Magnitogorsk, a represa hidrelétrica do Dnieper, o canal
ligando o mar Branco ao Báltico, a bacia produtora de carvão de Kuznets, e deixava
os olhos correrem até as regiões de Kolyma, mas, para tanto, tinha que dar diversos
passos diante do mapa. Depois de um desses rotineiros exames do território russo,
subitamente, telefonou a Voroshilov e perguntou se o Exército Vermelho estudava
geografia. Os militares conheciam bem a geografia de seu próprio país? Na sua
cabeça, o simples olhar num mapa para a mãe-pátria provocaria orgulho, bem como
dedicação à causa e à ideia. Voroshilov, que não estava preparado para aquela
pergunta, deu uma resposta um tanto desencontrada e prometeu investigar. No dia
seguinte, o departamento de política do Soviete Militar Revolucionário preparou
um memorando que Voroshilov transmitiu a Stalin como se segue:

Em resposta à sua indagação sobre o estudo da geografia no Exército Vermelho, posso informar que a
geografia é obrigatoriamente estudada por todos os integrantes do Exército Vermelho em programas
especiais. Além do estudo de geografia como parte do programa de instrução geral, ela é também ministrada
nos cursos políticos. Atenção especial é dada ao estudo de mapas.
No corrente ano, o departamento político do Revvoensoviet distribuiu 220 mil mapas, 10 mil atlas, 8 mil
mapas nas línguas nacionais das repúblicas e 10 mil globos, que foram se juntar ao material já existente nas
unidades.40

Stalin leu satisfeito o relatório e olhou de sua cadeira para o mapa na parede:
enquanto a distância permitiu, pôde distinguir as localidades de Stalingrado,
Stalino, Stalinsk, Stalinabad.
Logo depois da morte de Lenin, cresceu a prática duvidosa de dar o nome de
figuras do Estado e do partido a cidades e regiões, fábricas, institutos educacionais,
teatros, e assim por diante. Tornou-se norma os jornais publicarem relatórios sobre
a consecução das metas do plano trimestral da Fábrica Stalin de Produtos Químicos,
de Moscou, da Tecelagem Voroshilov, em Tver, das Fábricas de Papel Zinoviev Nº
1 e Nº 2, em Leningrado, da Fábrica de Vidros Bukharin, em Gus-Khrustalnyi, e
outras. No fim dos anos 1920 não havia, praticamente, distrito em que o nome de
Stalin não fosse adotado por um ou outro corpo administrativo, cultural ou de
produção. Deste modo, o povo ficava subliminalmente imbuído da ideia de que
Stalin desempenhava papel excepcional no destino da nação. A glorificação do líder
podia ser ouvida em qualquer relatório ou discurso corriqueiro, e o “líder” local
providenciava para que parcela dessa glória se refletisse sobre ele.
Juramentos de devoção transformaram-se em partes inevitáveis da vida social ao
tempo de Stalin e, sendo de importância tão vital para os que os proferiam,
sobreviveram por décadas após sua morte. O processo fazia mais que deificar o líder,
também insultava toda a população, já que, embora criadora de tudo o que existia
no país, era forçada a se colocar na posição de agradecida. A impressão que,
inevitavelmente, ficava era que, tendo desistido da crença de Deus no céu, o povo o
recriava na terra.
E era de fato um ato de criação. As vozes mais elevadas e mais exaltadas na
glorificação eram as de Molotov, Voroshilov e Kaganovich, e, por mais paradoxal
que pareça, também as de Zinoviev, Kamenev, Bukharin e alguns outros velhos
bolcheviques em desgraça. Os artigos e discursos de Zinoviev, penitenciando-se por
pecados passados e louvando a “perspicácia e a sabedoria do líder do partido,
camarada Stalin”, incomodam um pouco quando lidos. Nem Bukharin conseguiu
evitar algumas observações lisonjeiras. Teriam eles perdido realmente a fé na causa
pela qual lutaram, ou o senso de autossobrevivência tomara conta de seus sentidos?
Em paralelo com a glorificação na literatura oficial, começou um quase
imperceptível processo de revisão da história e de criação da noção de que teriam
havido dois líderes na Revolução de Outubro, Lenin e o onipresente Stalin, que
estava sempre ao seu lado. No prefácio da coleção em seis volumes das obras de
Lenin, seu editor, Adoratsky, anotou que os escritos de Lenin deveriam ser lidos em
conjunto com os de Stalin, porque o secretário-geral havia exposto de maneira
concentrada as ideias de Lenin no seu livro Fundamentos do leninismo, e por aí
seguiu seu raciocínio.
Em agosto de 1931, antes que o culto à personalidade atingisse o zênite, foram
feitas tentativas para imortalizar Stalin em biografias políticas. Existe uma carta no
arquivo de Stalin escrita por Yaroslavsky, que diz o seguinte: “Hoje, antes de partir,
Sergo [Ordzhonikidze] telefonou-me para dizer que falara com você sobre um livro
chamado Stalin que ele deseja escrever...” As habituais anotações a lápis na carta
registram: “Camarada Yaroslavsky, sou contra. Acho que ainda não chegou a hora
das biografias.”41
Decisão sensata. O campo ainda não fora dobrado de todo, a floresta de fábricas
estava em crescimento, a maioria dos integrantes da velha guarda de Lenin ainda
estava viva e, entre eles, alguns que bem conheciam o que Stalin fora havia apenas
dez anos. Panegíricos começavam a aparecer. O principal era agir gradualmente,
com consistência e sem volta. Era importante comportar-se publicamente com
modéstia e moderação. Acabara de testemunhar os aplausos que explodiram com
renovado vigor quando ocupara uma cadeira na segunda fila da plataforma, e não na
primeira como todos esperavam. A plateia ficou na ponta dos pés para poder ter
rápida visão dele. A hora das biografias chegaria logo.
No meio-tempo, eram tomadas providências para que cartas e relatórios de
devoção fossem enviados ao líder. Por exemplo, a Comuna Stalin, na vila de
Tsasuchey, no distrito de Olovyannikovsk da Sibéria Oriental, informou de sua
intenção de semear 320 hectares em vez dos propostos 262,5. “Somos favoráveis à
linha geral do partido sob a liderança do comitê central bolchevique e do melhor
dos leninistas, o camarada Stalin! Somos pela concretização total do Plano de Cinco
Anos em quatro anos e pela liquidação dos kulaks como base para a coletivização
completa!”42
Tais cartas passaram a ser adotadas nas reuniões de todas as empresas, institutos e
fazendas estatais e coletivas. Era o início da deformação da mente pública que, a
partir de então, passaria a ser nutrida apenas com o culto a mitos. A propaganda
emprestou ênfase crescente à fé: qualquer coisa que fosse formulada ou dita por
Stalin tornava-se imutável e verdadeira e não necessitava de provas. Em outras
palavras, Stalin era um semideus. No fim, esses mitos, que se transformaram em
base de toda a vida social, foram reduzidos a duas proposições simples.
Primeira, o líder do partido e da nação é um homem sábio ao grau mais elevado.
A força de seu intelecto é capaz de dar resposta a todas as questões do passado, de
entender o presente e de perscrutar o futuro: “Stalin é o Lenin de hoje.”
Segunda, o líder do partido e da nação é a personificação total do bem absoluto e
se preocupa com todos. Repudia o mal, a ignorância, a traição, a crueldade. Ele é
aquele homem de bigodes, sorridente, que carrega ao colo uma menininha agitando
a bandeira.
[20]
O Congresso dos Vitoriosos

O fim dos anos 1920 e o início da década de 1930 limitaram uma fase
importante na ascensão de Stalin. Sua autoridade cresceu
acentuadamente e os antigos oposicionistas, inclusive Bukharin,
buscaram de todas as formas provar sua lealdade a ele, bem como suas novas
“avaliações” e a “concordância total com a linha geral do partido”. Por exemplo,
Zinoviev e Kamenev tentaram diversas vezes restabelecer as boas relações com Stalin
e foram visitá-lo na dacha para selar a paz.
É normal tomar-se como tragédia pessoal a experiência da demissão de um alto
cargo, e aquelas figuras políticas não foram exceção. Kamenev, embora apenas perto
dos 45 anos de idade, pareceu ter desistido de tudo, envelheceu e os cabelos ficaram
grisalhos antes do tempo. Ao telefone ou em conversas frente a frente com Stalin
procurava sempre uma oportunidade para fazer referências cautelosas ao tempo que
passaram juntos, ociosos, às margens do rio Kureika, ou ao fato de que os três – ele,
Zinoviev e Stalin – foram camaradas em armas próximos de Lenin, ou aos eventos
dramáticos que cercaram a indicação de Stalin para o cargo de secretário-geral.
Tanto Zinoviev quanto Kamenev, mas especialmente o último, jamais perderam a
esperança de um dia retornar aos altos escalões da hierarquia do partido.
Stalin sabia perfeitamente o que se passava e sua atitude era de condescendência.
Por vezes, até encorajava os camaradas em desgraça. Porém, estava ciente de que as
pessoas às quais devia, em boa medida, sua posição de então não eram mais
necessárias, e poderiam até se transformar mais tarde em perigo. Zinoviev e
Kamenev o conheciam muito bem, e ele não gostava de quem sabia mais sobre ele
do que o prescrito pela propaganda oficial. Com a aproximação do XVII Congresso
do partido, no início dos anos 1930, toda a sua atenção estava concentrada na
revolução da agricultura, na avalanche da indústria e em garantir a consolidação de
seus seguidores.
O congresso que ocorreu em fevereiro de 1934 ficou conhecido na propaganda
stalinista como o “Congresso dos Vitoriosos”. O próprio Stalin, no seu relatório
para o comitê central, descreveu as vitórias obtidas pelo partido e pelo país como
“grandes e inusitadas”. A nação, de fato, dera um grande salto para a frente em
1934. A minuta do relatório de Stalin, por ele mesmo rascunhado e revisado
cuidadosamente, mostra em cada página e em cada parágrafo que procurou inflar
tais conquistas. Acreditava que os enormes sacrifícios feitos pelo país mereciam a
demonstração de resultados. Páginas inteiras foram reescritas pelo secretário-geral
com a intenção de mostrar ao partido e ao povo que sua liderança era profícua,
eficiente e vitoriosa.
Stalin destacou o fato de que, nos cerca de três anos decorridos desde o
congresso anterior, a produção industrial havia dobrado. Novos ramos da indústria
estavam instalados: fabricação de máquinas-ferramentas, automóveis, tratores,
produtos químicos. Motores, aviões, máquinas agrícolas, borracha sintética, nitratos,
fibras artificiais eram fabricados na URSS. Orgulhoso, anunciou que milhares de
projetos estavam contratados, inclusive alguns gigantescos, como a hidrelétrica do
Dnieper, as indústrias de Magnitogorsk e Kuznets, os caminhões dos Urais, os
tratores de Chelyabinsk, os automóveis de Kramatorsk, e muitos outros. Nenhum
relatório anterior feito por Stalin continha tantos fatos, números, tabelas e planos.
Ele tinha o que dizer ao congresso.
Os anos 1930 são conhecidos como os da grande tragédia, mas foram também
tempos de entusiasmo sem precedentes, conquistas e enormes esforços dos
trabalhadores. Fica até difícil hoje imaginarmos como milhões de pessoas, a grande
maioria sustentada apenas pelas necessidades mais comezinhas da vida, acreditaram
estar genuinamente criando um futuro comunista e que não apenas seus destinos,
mas o do proletariado do mundo, dependiam de seu sacrifício. Alguns extratos do
Pravda – que Stalin sempre lia por completo, sem fazer seleção alguma, marcando
trechos ocasionais a lápis – são ilustrativos:

Um relatório coletivo dos trabalhadores de petróleo de Baku, discutido em 40 reuniões por cerca de 20 mil
empregados da indústria petrolífera e suplementado por 53 relatórios locais e 254 cartas de operários, diz:
“Graças ao esforço dos trabalhadores e especialistas, e sob a experimentada liderança do partido leninista, o
Plano Quinquenal para o petróleo foi completado em dois anos e meio.”

Magnitogorsk relatou:

Uma espécie completamente nova de equipe emergiu na seção de construção da oficina de alto-fornos – uma
equipe de escavação totalmente autofinanciada. A mudança para essa escavação autofinanciada deu excelentes
resultados, pois foram batidos recordes mundiais no carregamento de caminhões.
Da Tartária:

A colheita e a distribuição de grãos vêm sendo procedidas concomitantemente com o anúncio da preparação
do segundo congresso de Kolkhozniks de Toda a Tartária e da conquista do direito de incluir um
representante local na delegação que levará o relatório ao camarada Stalin. Ocupar o primeiro lugar no placar
de Toda a União é o slogan mais popular no kolkhozy da Tartária.

Tudo isso pode parecer a fé ingênua e de olhos radiantes em Stalin, por parte de
milhões de pessoas simples que construíram as bases do que temos hoje. No
entanto, não se pode deixar de admirar o indomável entusiasmo, o orgulho pelas
conquistas e a certeza de que o futuro estava em suas mãos. A força sem paralelo do
esforço heroico, o alto nível de espírito cívico e a fé na justiça e num futuro melhor,
mesmo mesclados com o culto à personalidade, derivaram da gigantesca energia
social liberada por Outubro de 1917. Aquela gente, aqueles criadores, normalmente
descritos por Stalin como “as massas”, por vezes como “as engrenagens”, são parte
da história soviética que não deve ser esquecida.
Ao mesmo tempo, os jornais publicavam matérias que hoje, com o que sabemos,
provocam calafrio. Em meados de julho de 1933, o Pravda disse que “os camaradas
Stalin e Voroshilov chegaram a Leningrado e, na companhia do camarada Kirov,
foram no mesmo dia visitar o canal mar Branco-mar Báltico. Depois de
inspecionarem as obras do canal e as instalações de hidroengenharia, navegaram pelo
mar Branco do porto de Soroka até Murmansk”. Duas semanas mais tarde, o
governo anunciou a abertura do Canal Stalin mar Branco-mar Báltico e a
condecoração dos que se destacaram na construção. Foram agraciadas oito pessoas
com a Ordem de Lenin: G.G. Yagoda, subchefe da OGPU; L.I. Kogan, chefe do
projeto do Canal do mar Branco; M.D. Berman, chefe do soviete de campos
corretivos de trabalhos forçados da OGPU; N.A. Frenkel, vice-chefe do projeto;
Ya.D. Rapoport, vice-chefe do projeto; S.G. Firin, chefe do campo corretivo de
trabalhos forçados dos mares Branco-Báltico; S.Ya. Zhuk, vice-chefe engenheiro do
projeto; e K.A. Verzhbitsky, vice-chefe da construção.43
Falando mais tarde ao XVII Congresso, Kirov diria: “Construir esse canal, em
tão pouco tempo e naquele local, foi realmente trabalho heroico, e temos que
creditá-lo aos nossos chekistas que supervisionaram a obra e, literalmente, fizeram
milagres.”44 Teria sido mais correto dizer que o milagre foi feito por centenas de
milhares de presos. Não havia falta deles. Depois da “deskulakização” de mais de um
milhão de lares e da política dura contra os “remanescentes das classes
exploradoras”, a OGPU tinha à sua disposição vastos recursos humanos para
construir bem mais que o Canal do mar Branco. A nominata dos condecorados com
a Ordem de Lenin não deixa dúvida de como e por quem o canal, que recebeu o
nome de Stalin, foi construído. A ideia de usar presos na economia não era nova.
Em meados da década de 1920, Trotsky, em sua proposta de trabalho militarizado,
aconselhou que “os elementos hostis ao Estado deveriam ser mandados em escala
maciça para os locais de construção do Estado proletário”. O conselho de um “líder
destacado”, evidentemente, não passaria despercebido pelo outro.
Não foi tão fácil para Stalin relatar sucessos na agricultura. Honestamente
falando, foram criadas mais de 200 mil fazendas coletivas e 5 mil estatais, mas tinha
que ser admitido que o desenvolvimento da agricultura fora “muitas vezes mais
lento que o da indústria”. Ele também reconheceu que “na realidade, o período sob
avaliação foi menos de crescimento rápido e decolagem que da criação de condições
para crescimento e decolagem no futuro próximo”.45
Tendo desbaratado, em dez anos desde a morte de Lenin, inúmeras “oposições”,
Stalin acabou ficando “sem trabalho”. Chegou a falar sobre isso: se, no XVI
Congresso, ele ainda teve que liquidar discípulos de vários agrupamentos, no atual
não havia a quem derrotar. Embora também naquela ocasião, “se baixarmos a
guarda”, disse em clara contradição, “os resíduos da ideologia renascerão na mente
de alguns membros do partido” e temos que estar prontos para esmagá-los. Mas
Stalin raramente “esmagava” ideologia, apenas aqueles que esposavam uma
ideologia. Tendo proclamado que o país caminhava para a criação de uma
“sociedade socialista sem classes”, ele tirou a conclusão imediata de que a ausência
de classes só seria alcançada “por meio do fortalecimento dos órgãos da ditadura do
proletariado, por intermédio da expansão da luta de classes”.46
Pode parecer que, acreditando no valor universal dos métodos repressivos e
vendo a ditadura do proletariado, sobretudo, como arma de coação, Stalin
simplesmente não percebeu quão ruinosa essa política poderia ser. Pelo contrário,
no “Congresso dos Vitoriosos”, pleiteou mais um aperto nos parafusos. Quanto a
democracia, ele entendia muito bem que qualquer acréscimo no poder do povo
corresponderia a uma redução em sua autoridade pessoal. Era autoritário por
natureza, um déspota com alguma pitada do oriental de seu passado distante. Em
1928, Bukharin o chamara de Genghis Khan.
Como secretário-geral do partido, ele tomou providências para que, entre os
1.225 delegados ao congresso, houvesse uns tantos representantes das várias facções,
“oposições” e “desvios”. Fazia tempo que eles já tinham se arrependido ou retratado,
e buscavam maneiras de se colocar à disposição de Stalin. Nem todos eram
oportunistas ou pessoas sem princípios. Muitos tinham se arrependido sinceramente
de seus erros insignificantes porque não queriam ficar fora do partido e também
apoiavam a linha da construção forçada do socialismo.
Stalin encorajou Kaganovich com especial desvelo para que garantisse que, entre
os delegados, houvesse alguns cuja retratação fortalecesse ainda mais o poder do
líder. Quando se leem, décadas depois, os discursos desses delegados, pode-se
imaginar a humilhação sentida por tais pessoas enquanto se penitenciavam, como
que em êxtase religioso, simplesmente para gratificar a vaidade de um homem.
Muitos delegados perceberam isso. Kirov foi um dos que disseram que esses antigos
oposicionistas “estão agora tentando [...] pegar o bonde da celebração geral,
procurando dançar a mesma música, apoiar nosso desenvolvimento generalizado.
[...] Bukharin, por exemplo. A mim parece que tenta entoar a mesma melodia, mas
desafina. Nada direi sobre o camarada Rykov ou sobre o camarada Tomsky”.47
Que disseram no congresso esses antigos membros do Politburo e discípulos de
Lenin?
Bukharin, o ex-favorito e teórico do partido:

Por sua brilhante aplicação da dialética de Marx-Lenin [sic], Stalin estava inteiramente certo quando
destroçou toda uma série de premissas teóricas do desvio de direita, formuladas sobretudo por mim. [...] É
dever de todo membro do partido congregar-se em torno do camarada Stalin como incorporação pessoal da
mente e da vontade do partido, como seu líder, teórico e prático.48

É difícil acreditar-se que tais palavras saíram da boca de um homem de consciência


perfeitamente limpa.
Rykov, primeiro presidente do Sovnarkom depois de Lenin:

Quero descrever o papel do camarada Stalin nos primeiros anos seguintes à morte de Vladimir Ilyich. [...]
Como, na qualidade de líder e organizador de nossas vitórias, ele se sobressaiu naquela ocasião. Quero
descrever a maneira como o camarada Stalin imediatamente se destacou entre os líderes de então.49

E este fora o homem que sempre primara pela franqueza, por ser incorruptível e por
ter grande coragem cívica.
Tomsky, líder dos sindicatos:

É meu dever declarar diante do partido que só pelo fato de o camarada Stalin ser o mais coerente e o mais
brilhante dos pupilos de Lenin, só por ser o camarada Stalin o mais perspicaz e o de melhor visão, e porque
ele conduziu firmemente o partido pelo correto caminho leninista, esmagando-nos com punho forte, já que
melhor equipado, teórica e praticamente, para a luta contra a oposição – só por causa disso foram disparados
ataques contra o camarada Stalin.50

Tomsky tinha a reputação de ser um membro do partido que se aferrava até o fim
aos seus princípios.
Zinoviev, depois de repetidas derrotas, era de novo membro do partido:

Sabemos agora que na luta conduzida pelo camarada Stalin, travada exclusivamente num alto nível de
princípios e num elevado nível estratégico, não houve o mínimo laivo de qualquer coisa pessoal.

Ele chamou o relatório de Stalin chef d’oeuvre, e prosseguiu então de maneira


exaustiva e insinuante relatando “o triunfo da liderança, o triunfo daquele que está à
testa dessa liderança”.

Quando fui readmitido no partido, Stalin me disse: “O que prejudicou você, e ainda prejudica aos olhos do
partido, não foram tanto os enganos sobre princípios, mas a falta de franqueza em relação ao partido que se
evidenciou em você com o passar dos anos.”

Ouviram-se então gritos partidos da assembleia de “Muito bem! Muito bem dito!”
Zinoviev prosseguiu:

Podemos hoje ver como os melhores dentre os camponeses avançados das fazendas coletivas empenham-se
para vir a Moscou, ao Kremlin, batalhando para ver o camarada Stalin, para vê-lo com os próprios olhos,
talvez tocá-lo com as próprias mãos, esforçando-se por receber as ordens diretamente dele, de modo a poder
levá-las de volta às massas.51

Só o temor de ser lançado para sempre no lixo político poderia induzir Zinoviev a
fazer tais declarações humilhantes. Da mesma forma, desapontando a própria
dignidade intelectual e suas consciências, Kamenev, Radek, Preobrazhensky,
Lominadze e outros, derrotados por Stalin na guerra de facções, manifestavam agora
submissão completa a ele.
Sentado na segunda fileira, seu lugar então costumeiro, Stalin olhou com
evidente indiferença quando Kamenev subiu à tribuna. Lembrou-se do modo com
que Kamenev, como presidente de vários congressos e sessões do Politburo,
costumava orientar o debate para a direção desejada fazendo observações
impacientes. Certa vez, quando a relação entre os dois já não era boa, Stalin tentava
listar da tribuna os erros da oposição quando Kamenev disparou: “Camarada Stalin!
Você está contando ovelhas: uma, duas, três? Seus argumentos não são mais
inteligentes que as ovelhas.” Ao que Stalin replicou: “Levando-se em conta que você
é uma das ovelhas...”
Que diria Kamenev agora? Naquele evento, sua retratação foi uma súplica
indecente de auto-humilhação:

Esta era em que vivemos e na qual ocorre o presente congresso é uma nova era [...] passará à história, sem
dúvida, como a era de Stalin, da mesma forma que a anterior foi a era de Lenin, e cada um de nós,
especialmente nós, tem a obrigação de resistir com todos os meios e com toda nossa energia à mais leve
oscilação de sua autoridade. [...] Quero declarar desta tribuna que o Kamenev, aquele que lutou com o
partido e sua liderança de 1925 a 1933, é um defunto político, que desejo progredir sem arrastar a velha pele
atrás de mim, se me perdoam a expressão bíblica. Vida longa para nosso, nosso líder e comandante, o
camarada Stalin!52

Enquanto ouvia com indisfarçável satisfação todos aqueles louvores, Stalin


recordou-se que Kamenev, numa conversa com Trotsky, o chamara de “selvagem
feroz”, que Zinoviev o alcunhara “o sanguinário da Ossetia”, que Bukharin
frequentemente o ferira ao citar seu desconhecimento de línguas estrangeiras, que
Radek, na primeira edição de seu livro Retratos e panfletos nada tivera absolutamente
para falar sobre ele, e que Preobrazhensky, que se tinha como grande teórico, o
chamara em 1922 “o ignoramus”.
Então aquela era sua revanche? Não, pensou ele, isso seria pensar pequeno.
Bastava que o partido soubesse que ele estivera certo em todos os assuntos
palpitantes, em todos os debates e em todos os pontos de inflexão. E quem dizia não
era ele, e sim seus antigos adversários. Dali por diante, todos ficariam sabendo que
ele não só tinha determinação política e capacidade de organização – o que se sabia
havia muito tempo – mas que também era portador de sabedoria especial, de visão
longínqua, capacidade para se antecipar aos eventos e pulso firme.
Congresso dos Vitoriosos? Talvez Congresso do Vitorioso fosse mais certo.
Todavia, Stalin esperava ter mais de um novo título generosamente concedido à
sua pessoa. Khruschev e Zhdanov, por exemplo, chamaram-no “líder genial” pela
primeira vez, Zinoviev foi o primeiro a expressar a fórmula “Marx, Engels, Lenin,
Stalin”. Kirov o chamou “o maior estrategista da emancipação dos labutadores de
nosso país e do mundo inteiro”. Voroshilov disse que “pupilo e amigo” de Lenin,
Stalin era também seu “escudeiro” – uma contradição absurda.
Cansado de ouvir loas à sua genialidade, saber, grandeza, larga visão e punho de
ferro, Stalin prestou especial atenção ao que os delegados do exército iriam dizer, e
ficou desapontado com a falta generalizada de elogios no discurso de Tukhachevsky.
Mais uma vez, o herói da guerra civil soava sua própria trombeta, expondo os planos
de sua autoria para a reestruturação técnica do exército. Já lhe fora dito que suas
ideias eram por demais fantasiosas, mas lá estava ele novamente... Stalin lembrou-se
da longa carta que Tukhachevsky lhe escrevera, em 1930, queixando-se de que o
Estado-Maior do Exército Vermelho tachara suas propostas para a modernização do
exército de “memorando de um louco”.53 Stalin soubera então que a carta de
Tukhachevsky era voltada contra ele, como secretário-geral, e não contra
Voroshilov, o comissário do povo para a Defesa, com quem as relações de
Tukhachevsky estavam estremecidas. Stalin não gostou de ouvir um julgamento tão
independente vindo de um líder militar que, evidentemente, via mais longe que
Voroshilov, cujo conhecimento militar ficara congelado com a experiência na guerra
civil. Stalin já sabia o que Tukhachevsky ia dizer porque Voroshilov entregou-lhe
uma cópia do discurso na véspera do congresso.
No seu discurso, Voroshilov ainda conseguiu cunhar nova expressão: “O Stalin
de Aço”.54 Stalin ficou também contente em ouvir Dolores Ibarruri,* Bela Kun** e
outras figuras estrangeiras do Comintern declararem que ele era agora o líder não só
dos bolcheviques, mas de todo o proletariado mundial.
Foi no último dia do congresso que Stalin, subitamente, sentiu a fragilidade e a
qualidade transitória de tudo na vida. Os eventos decorriam suavemente, e tudo
parecia dentro da normalidade, seja na escolha dos membros do comitê central e dos
novos órgãos do partido e do controle soviético, seja pela nomeação do Politburo,
embora tudo isso tivesse sido “acertado” de antemão. A celebração triunfal do líder
parecia caminhar sem esforço para sua conclusão prefixada. A comissão de auditoria
estava fechando seu trabalho quando ocorreu o inesperado. Kaganovich e o
presidente da comissão, Zatonsky, ambos muito ansiosos e alarmados, vieram
correndo se encontrar com Stalin.
A.I. Mikoyan, candidato a membro e depois membro pleno do Politburo de
1926 a 1966, descreveu com detalhes o trabalho do congresso em suas memórias, e
diversas outras figuras registraram de forma semelhante aqueles acontecimentos. Em
A história do PCUS (em russo), publicado em 1962, há uma nota relatando que “a
situação anormal surgida dentro do partido causou alarme a uma seção dos
comunistas, em particular entre os antigos grupos leninistas. Muitos, especialmente
os que estavam familiarizados com o Testamento de Lenin, sentiram que chegara a
hora de deslocar Stalin do cargo de secretário-geral para outra função qualquer”.
Segundo Mikoyan (que fora informado pelos velhos bolcheviques A. Snegov, O.
Shatunovskaya e N. Andreasyan, um membro da comissão de auditoria),
Kaganovich participou nervosamente a Stalin o inesperado resultado da votação: dos
1.225 delegados, três votaram contra Kirov e perto de trezentos, quase um quarto,
votaram contra Stalin. Era inacreditável!
Ninguém pode agora dizer exatamente qual a reação de Stalin às notícias, porém,
de acordo com Mikoyan, foi tomada rapidamente a decisão de se deixar apenas três
votos contra Stalin, de se continuar com os três votos contra Kirov e de se destruir
todas as outras cédulas de votação. A prática de então consistia na distribuição de
tantas cédulas quantos fossem os postos a preencher, cada cédula com um só nome;
em outras palavras, tratava-se de uma eleição sem escolha, onde era necessária
apenas a maioria simples. Mesmo que os trezentos votos contrários fossem
computados, Stalin ainda seria eleito para o comitê central e, sem dúvida,
continuaria como secretário-geral.*** Mas pareceu impossível avaliar naquela
ocasião os efeitos políticos que a publicação dos resultados poderia provocar. Todos
veriam de imediato que a grandeza de Stalin era efêmera – que o rei estava nu.
Segundo os mesmos relatos, um grupo de velhos bolcheviques, conhecedor do
resultado, procurou Kirov e propôs que ele anuísse em ser colocado como secretário-
geral. Kirov recusou e, aparentemente, informou Stalin do que se passara. Malgrado
sua natureza dramática e sua falta de precisão, a história é bem plausível. Em
primeiro lugar, existiam muitos antigos oposicionistas entre os delegados que
tinham se voltado contra a personalidade de Stalin. Depois, existiam muitos que
tinham experimentado pela primeira vez a rudeza descuidada de Stalin e seu modo
ditatorial. Contudo, a posição dentro do partido era tal que ninguém ousava criticar
Stalin ostensivamente, muito menos propor sua remoção para outro cargo. A
oportunidade de dar expressão à consciência apresentou-se, no entanto, sob a forma
de votação secreta. Se a acusação feita por Mikoyan vier um dia a ser
consubstanciada, explicará mais completamente a mudança de atitude de Stalin em
relação a Kirov que, aos olhos do secretário-geral, passou a ser um verdadeiro rival.
Noutro capítulo, testemunharemos o destino trágico que se abateu sobre a
esmagadora maioria dos delegados no Congresso dos Vitoriosos, isso porque, depois
daquela votação, Stalin passou a ver em cada um deles um inimigo potencial.
Notas * Conhecida como La Pasionaria, a líder dos comunistas na Guerra Civil
Espanhola refugiou-se na URSS de 1938 a 1977 e morreu na Espanha em 1989.

** Líder comunista da fracassada revolução soviética húngara. Refugiado na URSS desde 1920, ele tomou parte
na guerra civil, assumiu postos soviéticos e foi figura destacada no Comintern. Foi preso como trotskysta em
1938 e morreu num campo de prisioneiros em 1939.

*** Depois desse congresso, o secretário-geral não mais se apresentou candidato à reeleição. Aliás, para o fim de
sua vida, os documentos de Estado e do partido já não o listavam como secretário-geral.
[21]
Stalin e Kirov

D iscursando no XVII Congresso, A.S. Yenukidze frisou o fato de Stalin ter


se cercado de pessoas com quem podia discutir qualquer questão
surgida,55 e era verdade, de fato, que o entourage do secretário-geral
incluía diversas figuras interessantes, entre as quais Sergei Kirov. Talvez ele não
devesse ser incluído no entourage, pois trabalhou na Transcaucásia e depois em
Leningrado, mas Stalin o considerava do círculo próximo. Yenukidze, que também
era amigo íntimo de Stalin, exagerou quando disse que o líder estava cercado “pelos
melhores de nosso partido”. Eram pessoas talentosas, camaradas em armas de longa
data e decentes, mas havia também os que concordavam com tudo, jamais
contradiziam o chefe e cuja principal preocupação era adivinhar sua vontade e fazê-
la. Ao lado de Stalin, em especial no final da década de 1930 e início da de 1940,
existiam também alguns que não mereciam classificação diferente de criminosos.
Stalin não era estúpido. Queria amigos confiáveis e leais, porém, em particular,
executivos que não o questionassem e entendessem com um gesto suas intenções.
Tentou dar a impressão para consumo público, é claro, de que as relações baseadas
em lealdade pessoal não eram compatíveis com as questões de Estado. Por exemplo,
respondendo à carta de Shatunovsky, membro do partido, escreveu:

Você fala em sua “devoção” a mim. Talvez a expressão tenha escapado. Talvez... Mas se não escapuliu,
aconselho-o a descartar o “princípio” da devoção a indivíduos. Este não é o jeito bolchevique. Devote-se à
classe operária, ao partido dela, ao Estado. Isso sim é necessário e é bom. Mas não misture com devoção a
pessoas, que é mania supérflua de intelectuais.56

Belas palavras, mas, pena, não condiziam com sua prática. Antes de tudo, ele era um
grande hipócrita e, como regra, cercava-se de gente que não lhe trouxesse
problemas. Isso se aplicava principalmente aos assistentes, entre os quais
Nazaretyan, Bazhanov, Kanner, Maryin, Dvinsky, Tovstukha e Poskrebyshev. Stalin
era mais ligado a estes dois últimos.
Tovstukha podia adivinhar as intenções de Stalin ao menor sinal. Bem versado
em teoria, era capaz de formular uma ideia e detectar as falhas intelectuais num
documento. Stalin o apreciava particularmente pela devoção ao trabalho. Existe uma
anotação no arquivo de Stalin para Zinoviev, Kamenev e Bukharin, datada de 1923,
especificando que “Tovstukha não deseja tirar férias. Está registrada uma solicitação
minha de férias imediatas para o camarada Tovstukha que ele não levou para
apreciação”.57 Depois disso, Stalin admoesta Tovstukha por ter falado com
Kamenev sobre as férias que não tirou. No fim de tudo, o infeliz assistente ainda
teve que escrever uma carta a Stalin, com cópia para Kamenev, declarando que
“jamais falei ao camarada Kamenev ou a qualquer outra pessoa que desejava entrar
em férias, e que o camarada Stalin não deixou”.
Quase a título de piada, Kamenev rascunhou: “Confirmo que o camarada
Tovstukha jamais, em qualquer lugar, a qualquer tempo e de nenhuma forma falou
comigo sobre suas férias, mas disse que poderia desenvolver trabalho maior sobre
Lenin se começasse mais cedo seu expediente no comitê central. Rogo que não me
seja imputada a responsabilidade pela morte de Tovstukha.”58
B. Bazhanov trabalhou para Stalin pouco tempo. Oriundo de família com
histórico intelectual, logo conquistou o respeito do secretário-geral. A tarefa de
Bazhanov era preparar a ata das reuniões do Politburo, mas tinha dificuldade em
esconder suas próprias opiniões. Conseguiu fugir para a Pérsia em 1928 e de lá para
a Inglaterra. Durante algumas décadas, ganhou a vida publicando comentários sobre
o que sabia, mas quando o material escasseou, inventou bastante.
Durante muitos anos, Stalin manteve em sua equipe Lev Zakharovich Mekhlis,
que chegou, por breve tempo, a ser o chefe dos assistentes. Mekhlis nasceu em
Odessa, de início foi menchevique, entrou para o partido comunista em 1918 e
conheceu Stalin durante a guerra civil. Desempenhou importantes funções no
aparato e no Pravda, foi comissário do povo para Controle do Estado e chefe da
administração política principal do Exército Vermelho. Se bem que não fosse de
todo destituído de capacidade, seu modo de pensar se assemelhava, decididamente,
ao de um policial, e, com regularidade, era um dos que mantinham Stalin
“fielmente informado” sobre os outros líderes do partido. Não se pode dizer que
fosse homem de ideias. Certa vez pediu o autógrafo de Stalin em Sobre Lenin e
leninismo, que acabara de ser publicado. O secretário-geral escreveu: “Ao meu jovem
companheiro de trabalho, camarada Mekhlis, do Autor. 23.05.24.” Mekhlis jamais
abriu o livro: as páginas ressecadas e amareladas permaneceram intocadas.
A influência de Mekhlis deve ser medida não pelos cargos que ocupou, mas pela
atitude de Stalin em relação a ele. O assistente o acompanhava com frequência, e os
dois passavam juntos longos períodos. Stalin atribuiu-lhe missões altamente
confidenciais. Os arquivos contêm um volume inteiro de relatórios pessoais de
Mekhlis sobre diversos locais. Centenas de comentários, telegramas e mensagens em
código tratam de um único assunto: “o inimigo está tentando tomar o poder”, “falta
de cuidado por todo o lado”, “a benevolência está matando a causa”, “precisamos de
métodos mais rigorosos”. Talvez Stalin tenha confiado mais em Mekhlis que nos
outros. O assistente sabia farejar “inimigos” em todos os cantos, por mais absurdos
que pudessem parecer. Em julho de 1937, quando o conjunto Bandeira Vermelha
de canto e dança excursionava pelo leste, Mekhlis passou um telegrama em código
para Stalin:

Informo: a situação do conjunto Bandeira Vermelha é difícil. Concluí que um grupo de espiões e terroristas
tenta tomar o controle. Demiti no ato 19 pessoas. Fazendo uma investigação sobre ex-oficiais, filhos de
kulaks, elementos antissoviéticos. Convoquei o chefe da agência especial. Deve o conjunto continuar se
apresentando?59

Boa pergunta, pois metade do conjunto já estava presa. Esse era o homem que agia à
sombra de Stalin, desempenhando papel especial e sinistro.
No entanto, o assistente que desfrutou da maior confiança e, provavelmente, o
colaborador mais próximo de Stalin foi A.N. Poskrebyshev, que Khruschev chamou
no XX Congresso de “fiel escudeiro de Stalin”. Ex-assistente hospitalar e filho de
um sapateiro de Vyatka, trabalhou no aparato do comitê central por volta de 1922
e, a partir de 1928, passou a ser assistente de Stalin, encarregado de uma seção
especial. Já membro do comitê central e vice no Soviete Supremo, foi feito major-
general por Stalin durante a guerra. Poskrebyshev era conhecido por sua assiduidade
e extraordinária capacidade de trabalho. Sua filha mais velha, Galina Alexandrovna
Yegorova, disseme que seu pai trabalhava dezesseis horas por dia. Embora, pouco
antes da morte de Stalin, Beria tivesse conseguido afastar Poskrebyshev do Kremlin,
até o fim de sua vida ele permaneceu devotado servo do patrão. A propósito, sua
primeira esposa era parente distante de Trotsky, fato que, no fim, teve trágica
influência.
Sua filha disseme também que ele se arrependeu amargamente de não ter feito
um diário, mas calculou que uma tal indiscrição iria adicionar risco desnecessário à
sua já insegura existência.
Todas as informações que Stalin recebia, fosse qual fosse o caráter, vinham de
Poskrebyshev, que sabia tanto quanto o mestre o que acontecia no partido e no país
todo. Foi o funcionário perfeito: não raciocinava, não questionava e estava sempre
presente no trabalho. Sua tarefa nos corredores do poder era, no entanto, bem mais
significativa do que indica sua posição oficial, graças à distinção que Stalin lhe
conferia. Conquanto Poskrebyshev não fosse um homem cruel, as pessoas
procuravam agradá-lo, já que muito dependia de como e quando ele apresentasse o
assunto delas.
O antigo comissário do povo para as Ferrovias, I.V. Kovalev, que ao longo de
toda a guerra informava duas a três vezes por dia a Stalin sobre o movimento de
tropas, chamava Poskrebyshev de “castanha dura de quebrar”, sempre à disposição
das convocações de Stalin, a cabeça calva inclinada sobre um montão de papéis.
“Tinha memória de computador, a resposta exata para qualquer pergunta. Era uma
enciclopédia ambulante.”
Havia gente que Stalin classificava como de sua equipe, mas também outras,
como Malenkov, Kaganovich e Voroshilov, que se distinguiam por concordar
sempre com Stalin sobre qualquer assunto.
Voroshilov, por exemplo, tentou em tudo o que fez, por trivial que fosse, apoiar
o líder. Quando o destacado chefe militar I.E. Yakir, preso e condenado à morte,
escreveu a Stalin jurando ser absolutamente inocente dos crimes a ele imputados, a
resposta do secretário-geral foi um lacônico rabisco na pasta: “Ele é um patife e
pessoa venal”, ao que Voroshilov acrescentou: “Definição totalmente acurada.”60
Yakir, um dos mais talentosos líderes do exército, era subordinado de Voroshilov,
que, pessoalmente, o conhecia muito bem.
Enquanto Molotov, Kaganovich e Voroshilov eram pessoas próximas a Stalin
que faziam quaisquer de suas vontades, outros havia igualmente próximos que
conseguiram preservar um bom nome. Um deles foi Sergei Mironovich Kirov,
bolchevique com histórico leninista totalmente dedicado à causa, o tipo de homem
simples e de respostas prontas. Onde trabalhava, era apreciado como líder acessível e
afável. Quando Stalin o enviou ao Azerbaijão, seu dossiê do partido registrou:
“Estável em todos os aspectos [...] Trabalhador vigoroso [...] Mais que persistente
no cumprimento de suas atribuições. Equilibrado e com grande tato político [...]
Excelente jornalista [...] Orador magnífico, de primeira classe...”61
O partido na Transcaucásia guardou boas lembranças dele. Em seguida ao XIV
Congresso, em que a “nova oposição” tentou usar a organização partidária de
Leningrado como base de apoio, o comitê central enviou Kirov à segunda capital
para servir como secretário da cidade e dos comitês regionais. Segundo seu biógrafo
Yu. Pompeyev, um dos amigos mais íntimos de Kirov, Sergo Ordzhonikidze,
escreveu o seguinte ao comitê regional:

Caros amigos. A rixa de vocês nos custou muito: ela nos tirou o convívio com o camarada Kirov. Grande
perda para nós, mas que lhes dará a força de que vocês precisam. Tenho certeza de que tudo será resolvido
para vocês dentro de poucos meses. Kirov é um camponês excepcionalmente bom, mas não conhece
ninguém além de vocês. Não tenho dúvidas de que o cercarão com amigável confiança. Almejo-lhes
completo sucesso.
P.S. Favor cuidar bem de Kirych,* pessoal, senão ele ficará perambulando sem teto e sem o que comer.62

Stalin conhecia Kirov desde outubro de 1917. É difícil saber o que o atraiu naquele
homem de sorriso constante, saudavelmente vigoroso. Normalmente, passavam
juntos as férias, suas famílias se davam, embora, de modo geral, trabalhassem a
considerável distância um do outro. Numa nota para Ordzhonikidze, escrita em
Sochi, Stalin perguntou sobre o estado de saúde de Kirov, uma raridade de fato, já
que Stalin não se interessava pela saúde de ninguém, só pela própria:

Caro Sergo
Então, o que está Kirov fazendo por aí? Tomando a água medicinal Narzan para a úlcera? Essa beberagem
pode acabar com vocês. Qual foi o impostor que “receitou” isso?
Saudações à Zina
Cumprimentos a todos da Nadya. Do amigo Stalin
Sochi, 30 de junho de 1925.63

Provavelmente, não existia outra figura a quem Stalin dedicasse tanta atenção,
afeição mesmo, como Kirov. Gostava daquela pessoa aberta e descomplicada.
Sempre que Kirov aparecia em algum lugar logo muita gente o rodeava. Ele era a
vida e a alma do partido. Comparado com o inescrutável Molotov, o carrancudo
Kaganovich, ou com o bajulador Voroshilov, Kirov era alguém com quem era
possível manter uma relação autenticamente humana.
Stalin deu exemplares de seus livros com dedicatórias a muito poucas pessoas.
Kirov, no entanto, recebeu um exemplar do Sobre Lenin e o leninismo com uma
mensagem que ninguém poderia supor que o secretário-geral fosse capaz de
expressar: “Para S.M. Kirov, meu amigo e amado irmão, do autor. 23.05.24. Stalin”
Todo ditador tem suas fraquezas. Talvez Stalin gostasse do sorriso de Kirov, de
sua face russa jovial, de sua falta de malícia, sua obsessão pelo trabalho. Certa vez,
num domingo, quando jogavam boliche na dacha de Stalin – o secretário-geral
tinha um ajudante de cozinha chamado Khorvosky como parceiro, e Kirov jogava
com o general Vlasik –, Stalin perguntou ao seu convidado: “Do que você mais
gosta, Sergei?”
Kirov pareceu surpreso, mas respondeu: “Um bolchevique deve gostar mais do
trabalho que de sua esposa!”
“Mas o que mais?”
“Bem, ideias, claro”, disse Kirov falando sério.
Stalin balançou o braço num gesto vago, mas não perguntou mais nada.
Provavelmente, conjeturando como se podia “gostar de uma ideia”. Será possível
que Kirov tivesse dito aquilo só para impressionar? Contudo, Stalin sabia muito
bem que Kirov não era homem de dissimulações. Sabia também que Kirov, mais do
que ninguém, podia exercer influência, até sobre ele. O caso Ryutin fora um bom
exemplo. Em 1918, M.N. Ryutin comandara o distrito militar de Irkutsk, em 1920,
fora secretário distrital do partido em Irkutsk, e na segunda metade da década de
1920, secretário do comitê partidário do distrito de Krasnaya Presnya, em Moscou,
membro do conselho editorial do Krasnaya Zvezda (“Estrela Vermelha”) e um dos
candidatos a membro do comitê central. Depois, foi afastado das funções. Em 1932,
disseram a Stalin que Ryutin estava fazendo circular um longo documento
intitulado “A todos os membros [do partido]”, cujo alvo era primordialmente
Stalin, descrito como nada menos que um ditador, com uma arma antileninista na
mão. Stalin não só demandou ao Politburo a expulsão do partido de Ryutin como
também a pena de morte. Foi a primeira vez que tentou decidir o destino de alguém
antes do resultado de um julgamento. O Politburo ficara em silêncio. Diante dos
membros parecia estar uma tentativa de Ryutin de criar uma “organização
contrarrevolucionária”, mas pena de morte... A liderança do partido ficou confusa.
Naquele ponto, Kirov se agigantou: “Não devemos fazer isso. Ryutin não é um caso
sem esperança, simplesmente saiu dos trilhos. [...] Quem sabe quantas mãos teriam
escrito aquela carta. [...] Seremos mal entendidos...” Por alguma razão, Stalin
concordou imediatamente. Ryutin pegou dez anos e faleceu em 1938. Todavia,
Stalin não deixou de notar que Kirov expressara sua opinião corajosamente, sem
mesmo cogitar se deveria consultá-lo primeiro.
Quando P.P. Postyshev, presidindo o XVII Congresso, anunciou: “Com a
palavra o camarada Kirov”, o salão explodiu numa ovação. Todos se levantaram, até
Stalin. A assembleia aplaudiu aquele outro “favorito do partido” por longo tempo.
Só Stalin tinha sido festejado assim. O discurso de Kirov foi extremamente vivaz e
informativo e, como todos os outros no congresso, generosamente salpicado de
louvores ao secretário-geral. Neste particular, Kirov até sobrepujou muitos dos
tribunos. Lamentavelmente – e isso deve ser entendido – embora sempre exista a
oportunidade para que se exercite a consciência, por vezes, ou quase sempre, só se
pode fazê-lo ferindo as normas do comportamento comum. E quase sempre no
limite de um ato cívico. Nem Kirov nem ninguém estava preparado para esse ato no
congresso onde, aos olhos dos delegados e com a ajuda deles, o culto à personalidade
de Stalin era uma realidade.
Não obstante, como vimos, na relativa privacidade do voto secreto, as eleições
para os cargos mais elevados do partido deram uma desagradável surpresa a Stalin.
Seu triunfo foi bastante ofuscado, mas ele não deu mostras de desapontamento;
tinha a capacidade de manter uma máscara de equanimidade nas situações mais
críticas, pois aprendera havia muito tempo que isso causava maior impressão no
povo do que o alvoroço, a energia ostensiva e a imponente pose de “líder”. Tendo
feito a leitura de que um significativo número de delegados não estava satisfeito por
ele ter se tornado um líder autocrático, manteve uma calma exterior. Depois daquele
momento, tudo correu segundo o planejado. No pleno do comitê central que teve
lugar depois do congresso, Kirov foi eleito membro do Politburo e do Orgburo, e
secretário do comitê central, permanecendo como secretário da organização do
partido em Leningrado. Stalin pensava em transferi-lo de Leningrado para Moscou,
mas mudou de ideia.
A partir do XVII Congresso, em janeiro de 1934, a carga de trabalho de Kirov
aumentou. Sua responsabilidade como membro do comitê central era com a
indústria pesada e a madeireira, e, dessa forma, foram muitas as oportunidades para
que fosse a Moscou. Como antes, Stalin telefonava para ele nas ocasiões de suas
meteóricas visitas e os dois se encontravam para debater as questões do momento.
Tudo parecia ter voltado à situação anterior e indicava que Kirov ainda era “amigo e
amado irmão”. Podia ser que a atitude de Stalin tivesse esfriado, que a relação dos
dois assumisse caráter mais oficial, e que o secretário-geral chegasse a repreender
Kirov diversas vezes por algum engano trivial ou outro, mas nem a documentação
disponível nem as pessoas que entrevistei, e que bem conheciam os dois,
confirmaram tal versão. Por outro lado, Stalin era mestre em disfarçar seus
sentimentos e intenções.
A notícia de que Kirov fora assassinado no Instituto Smolny de Leningrado, em
1º de dezembro de 1934, causou grande surpresa. Em 3 de dezembro, o relatório de
uma investigação preliminar apontou Leonid Vasilyevich Nikolaev, nascido em
1904 e ex-empregado da Inspetoria de Operários e Camponeses de Leningrado,
como o assassino.64
Eram decorridos apenas dois dias desde que Kirov e outros delegados de
Leningrado tinham retornado do pleno, onde fora feito o anúncio importante e
bem-vindo de que o racionamento de pão e de outros alimentos ia terminar. Na
viagem de trem, foi animadamente debatida a medida de há muito esperada. Toda a
população ficaria aliviada com a notícia! Houve troca de opiniões também sobre a
peça Dias dos Turbins, de Bulgakov, a que tinham assistido, e debates sobre o
próximo encontro do grupo partidário de Leningrado, marcado para 1º de
dezembro. De um modo geral, Kirov chegou em casa entusiasmado e pronto para
retomar o trabalho.
No dia da reunião com o grupo do partido, Kirov terminou seu relatório e se
dirigiu ao Smolny. Passou pelo corredor, trocando comentários e cumprimentos
com diversas pessoas, virou à esquerda e entrou numa estreita passagem que levava
ao seu escritório. Um homem de aparência comum caminhou na sua direção.
Quando Kirov chegou à porta do escritório, dois tiros foram ouvidos. As pessoas
acorreram e o encontraram estirado no chão de bruços; o assassino tremia
histericamente ainda com a arma na mão.
Duas horas mais tarde, Stalin, Molotov, Voroshilov, Yezhov, Yagoda, Zhdanov,
Agranov, Zakovsky e alguns outros estavam a caminho de Leningrado em trem
especial. Ao chegarem na estação, Stalin ofendeu com palavras de baixo calão o
pessoal da NKVD local que fora recebê-lo e chegou a dar uma bofetada em
Medved, o chefe da agência. Medved e seu assistente, Zaporozhets, foram em
seguida transferidos para o Extremo Oriente e, em 1937, executados. De acordo
com alguns relatos, o próprio Stalin conduziu o primeiro interrogatório de Nikolaev
na presença daqueles que o tinham acompanhado de Moscou. De imediato, ficou
claro que havia muitos aspectos misteriosos no crime. Khruschev aludiu a isso no
XX Congresso, quando descreveu as circunstâncias da morte de Kirov como
enigmáticas e que ainda precisavam ser adequadamente examinadas. Disse haver
motivo para pensar que o assassino, Nikolaev, tivera ajuda de um dos seguranças de
Kirov. Um mês e meio antes do assassinato, Nikolaev fora preso por
comportamento suspeito, mas logo libertado sem mesmo ter seu apartamento
revistado. Também foi altamente suspeito, continuou Khruschev, o fato de, em 2 de
dezembro, um chekista, guarda-costas de Kirov, ter morrido num acidente de carro
quando era conduzido para interrogatório, acidente em que nenhum dos outros
passageiros sofreu qualquer ferimento. Depois do assassinato, os chefes da NKVD
de Leningrado foram sentenciados a penas leves e, depois, fuzilados em 1937.
Khruschev conjeturou que os chefes foram mortos para encobrir qualquer pista que
pudesse levar aos verdadeiros cabeças do atentado. Borisov, o chekista que morreu
no acidente, era o chefe dos seguranças de Kirov e, segundo algumas fontes, alertara
Kirov sobre a possibilidade de uma tentativa de assassinato. Fosse como fosse, o
homem que prendera Nikolaev duas vezes por seguir Kirov portando uma arma, e
que depois foi solto por ordem de alguma autoridade, não mais existia.
Os arquivos que pesquisei não fornecem outras indicações para que se possa ser
conclusivo a respeito do caso Kirov. O que fica patente, no entanto, é que o
assassinato não foi executado por ordens de Trotsky, Zinoviev ou Kamenev, como
foi logo a seguir publicado na versão oficial. Pelo que sabemos de Stalin, por certo
houve um toque seu no evento. A remoção de duas ou três camadas de testemunhas
indiretas leva sua marca registrada.
O julgamento de Nikolaev foi extremamente rápido. Apenas 27 dias após a
ocorrência, foi publicada a sentença oficial, descrevendo Nikolaev como membro
ativo de uma organização trotskysta-zinovievista clandestina. A declaração foi
assinada pelo vice-procurador da URSS, A.Ya. Vyshinsky, e pelo investigador
especial L. P. Sheinin. Como era de se esperar, todos os envolvidos no atentado,
inclusive Nikolaev, foram fuzilados.
Mas, por que “como era de se esperar”? Porque no próprio dia do assassinato,
por iniciativa de Stalin (e sem ser discutido pelo Politburo), foi editado um decreto
governamental introduzindo certas emendas no Código Penal. Stalin estava com
tanta pressa que não houve “tempo suficiente” até para que o decreto fosse assinado
por Kalinin, presidente do Comitê Executivo Central – ou seja, o chefe de governo.
O documento, incorporando o credo do mando arbitrário, foi assinado pelo
secretário do comitê executivo A.S. Yenukidze e estabeleceu que:

1. As autoridades investigadoras são instruídas a acelerar os casos daqueles acusados do planejamento ou da


execução de atos terroristas.
2. Os órgãos do judiciário são instruídos a não retardar as sentenças dos envolvidos em crimes desta categoria
com a suposição de uma possível clemência, já que o Presidium do Comitê Executivo Central considera
inaceitável a clemência em tais casos.
3. As agências do Comissariado das Questões Internas são instruídas a executar as penas de morte dos
criminosos da categoria acima com a brevidade possível, após pronunciada a sentença.65

Diversos casos que estavam sendo revistos em Moscou e em outras regiões foram
acelerados sob a nova regulamentação. Como Kirov foi assassinado em Leningrado e
a investigação vinculou o crime aos zinovievitas, uma grande quantidade de
“conspiradores” foi presa no final daquele mês e levada a julgamento em janeiro de
1935. Entre eles estavam Zinoviev e Kamenev, Yevdokimov, Bakaev, Kuklin,
Gessen e outros. Nenhuma prova foi conseguida que ligasse os acusados ao crime.
Depois do XVII Congresso, Zinoviev, a despeito de não ter sido reeleito para o
comitê central, reviveu de alguma forma e pensou que a tempestade havia passado e
que dias melhores viriam. Chegou a escrever e publicar um artigo no Bolshevik
intitulado “O significado internacional da última década”. Seria seu último.
Quando menos esperava, foi preso. Depois que leu nos jornais o relatório sobre o
assassinato, juntamente com os comentários sobre os “canalhas trotskystas-
zinovievistas”, sofreu total colapso interno. Soube então que o pior o esperava.
Interrogado pela NKVD e de novo nas mãos do procurador, teve que “confessar”
que, “de uma forma geral”, o antigo grupo antipartido podia ter alguma
“responsabilidade política” pelo que havia ocorrido. E isso foi suficiente. Não houve
necessidade de argumentação ulterior ou de “provas judiciais”. Estava acabado o
primeiro ensaio dos julgamentos políticos. Zinoviev recebeu dez anos, Kamenev,
cinco, e o restante foi condenado a sentenças semelhantes, todas com aprovação
antecipada de Stalin. Desta maneira, continuou o drama dos dois antigos camaradas
de Lenin. Presunçosos, inconsistentes, provavelmente insinceros no
arrependimento, perturbados, tudo isso eles podiam ser, mas certamente não eram
criminosos.

O assassinato de Kirov sinalizou a aproximação de uma era sinistra. O povo


acreditou que ex-revolucionários estavam envolvidos com atividades terroristas e
subversivas, que, aparentemente, havia destruidores, ladrões e generalizados
inimigos de classe na sociedade. Como não existia informação objetiva nem o
menor grau de abertura, as condições eram favoráveis à manipulação da mente de
milhões de pessoas. Em milhares de reuniões, exigiram-se providências mais
decisivas contra os terroristas. Nos anos 1930, o povo ainda não perdera a fé na
grande ideia e era, portanto, possível mobilizá-lo com um slogan, ou inflamá-lo com
uma visão. Contudo, também era possível fazê-lo acreditar em “espiões, inimigos,
diversionistas e terroristas”. A imprensa concorria constantemente para aumentar a
tensão “revelando” e relatando sobre novo “centro inimigo”, “conspiratório” ou
“tergrup” (grupo terrorista), um atrás do outro.
O 1º de dezembro de 1934 aumentou consideravelmente, como Stalin iria dizer,
a “importância” do pessoal punitivo da NKVD, que começou a crescer em efetivo.
Como órgãos estatais, eles logo se rivalizariam com os comitês do partido e, no final,
os eclipsariam totalmente. O tópico mais popular dos jornais seria a “necessidade de
redobrar a atenção”, enquanto a propaganda pela imprensa lançaria as sementes da
suspeita em todas as cabeças. Muitos líderes passariam a ser seguidos por agentes da
NKVD. Stalin que, como já mencionamos, demonstrava extrema ansiedade quanto
à possibilidade de um atentado contra sua vida, redobrou a segurança pessoal e
reduziu a um mínimo suas aparições públicas. As pessoas comuns ficaram com a
impressão de que havia inimigos disfarçados em cada fábrica, kolkhoz e instituto
universitário. Qualquer falha, desastre, interrupção ou acidente passou a ser
associado à sabotagem. Criou-se uma atmosfera na qual Stalin pôde empreender seu
expurgo sangrento contando com o apoio das massas desinformadas.
Mesmo antes da morte de Kirov, Stalin providenciara pessoalmente a nomeação
de diversos indivíduos que iriam desempenhar papel de relevo na luta contra os
“inimigos do povo”, personagens cruciais na ilegalidade dos anos que se
aproximavam. Os dois mais destacados seriam: N.I. Yezhov, membro do Orgburo e,
desde o início de 1935, secretário do comitê central, um dos organizadores do
expurgo de 1935-36; e A.Ya. Vyshinsky, um ex-menchevique que se tornou vice-
procurador e, depois, procurador da URSS, a cujo nome ficaram ligados os infames
e vergonhosos julgamentos políticos de 1937-38.
Ordens, circulares e a imprensa clamavam pela erradicação e o desmascaramento
dos “inimigos”. Que não eram poucos, como ficou depois demonstrado.
Numerosos relatórios sobre a descoberta e o desvendamento de “inimigos”
inundaram o centro do poder. Por exemplo:

Ao camarada I.V. Stalin, Comitê Central VKP(b)


Ao camarada V.M. Molotov, Conselho do Comissariado do Povo
A Câmara de Segurança Estatal da Administração do Comissariado do Povo das Questões Internas
completou sua investigação do caso de um grupo terrorista contrarrevolucionário que preparava a execução
de um ato terrorista contra o camarada Vladimir Ivanov, membro do Comitê Central, secretário do Comitê
Regional Norte e membro do Comitê Executivo Central.
São acusadas as seguintes sete pessoas: N.G. Rakitin, P.V. Zaostrovsky, P.N. Popov, G.N. Levinov, N.I.
Ivlev, A.V. Zaostrovsky, N.A. Koposov. Destas, apenas P.N. Popov admitiu culpa completa.
Propomos que o caso Rakitin seja apreciado na sessão itinerante do collegium militar da Suprema Corte da
URSS, em Archangel, de acordo com o Ato de 1º de dezembro de 1934.
Achamos que os principais acusados Rakitin, P.V. Zaostrovsky e Levinov devem ser sentenciados ao
fuzilamento e que o restante tenha a liberdade privada por diversificados períodos. Solicitamos instruções.

23 de janeiro de 1935
A. Vyshinsky V. Ulrikh

Ao secretário do Comitê Central I.V. Stalin


L.I. Belozir foi sentenciada à morte. Como membro de uma organização clandestina contrarrevolucionária
de nacionalistas ucranianos, ela recrutou Shcherbin e Tereshchenko que deveriam executar um ato terrorista
contra os camaradas Postyshev e Balitsky durante as celebrações de outubro de 1934 em Kiev.
Sob interrogatório, Belozir recusou-se obstinadamente a prestar qualquer informação e também declarou que
não solicitaria clemência. Em vista disso, solicito permissão para executar a sentença de Belozir.
Os camaradas Vyshinsky e V. A. Balitsky consideram permissível que se execute a sentença.
3 de fevereiro de 1935 V. Ulrikh
Ao secretário do Comitê Central I.V. Stalin
Em 9 de março deste ano, na cidade de Leningrado, a sessão itinerante do collegium da Corte Suprema da
URSS, sob minha presidência, examinou a portas fechadas o caso dos cúmplices de Leonid Nikolaev, Milda
Draule, Olga Draule e Roman Kuliner.
Em resposta à minha pergunta sobre a razão por que obtivera permissão para comparecer ao encontro do
partido em Leningrado, em 1º de dezembro, onde o camarada Kirov discursaria, Milda Draule respondeu
que “desejava ajudar Leonid Nikolaev”. “Como?” “Isto dependeria das circunstâncias.” Estabeleceu-se assim
que a acusada tencionava ajudar Nikolaev na execução do ato terrorista.
Os três foram sentenciados à pena máxima do fuzilamento. A sentença foi executada na noite de 10 de
março.
Solicito instruções para o envio ou não de uma declaração à imprensa.
11 de março de 1935 V. Ulrikh66

A “justiça” tinha a velocidade do raio: julgamento no dia 9, execução na noite de 10


e comunicação ao sacerdote supremo no dia 11. O relatório de Ulrikh mostra quão
superficial era todo o processo. Isso iria tornar-se a regra.
Este último “caso” merece que nos estendamos um pouco. Cerca de um ano
antes do evento, correu um boato de que a ex-mulher de Nikolaev, Milda Draule,
estava tendo um caso amoroso com Kirov. Gente que conheceu Kirov nega isso
vigorosamente. Provavelmente, alguém desejava inflamar o neurótico Nikolaev
contra Kirov. Quando Ya. Agranov e L. Sheinin deram início às investigações,
Nikolaev primeiro declarou que o motivo do assassinato fora vingança, mas depois
admitiu que agira para o grupo clandestino trotskysta-zinovievista. Aparentemente,
o nome de Draule fora utilizado pelos planejadores do crime para tornar Nikolaev
“mais determinado”. De qualquer forma, tanto Milda como Olga Draule
representavam um risco, e foi decidido que deveriam ser eliminadas, o que foi
convenientemente feito.
Stalin manteve a pressão. Em meados de 1935, foi publicada, com intenções
óbvias, sua entrevista com H.G. Wells, realizada um ano antes. Nela, Stalin
asseverou que o ponto principal da ditadura do proletariado era a repressão.
À pergunta de Wells – “Sua propaganda não está fora de moda, sendo como é a
propaganda dos métodos coercitivos?” –, Stalin replicou:
Os comunistas não idealizam em absoluto o emprego da coação. Mas não podem ser apanhados de surpresa,
não podem contar que o mundo antigo deixe a cena por vontade própria, podem sim vê-lo a defender-se pela
força e, portanto, os comunistas dizem aos operários: “Preparem-se para responder à força com a força...”
Que bem faz um chefe militar que distrai o aprestamento de seu exército, um chefe militar que não entende
que o inimigo não se renderá e, pois, tem que ser liquidado?67

Como ele gostava do verbo “liquidar”. Em inúmeros discursos, pleiteou que a


oposição, ou os remanescentes das classes exploradoras, ou os kulaks, os
degenerados, os agentes duplos, os espiões e terroristas fossem liquidados. E
liquidados foram, bem como os inimigos potenciais. Enquanto as resoluções do XIII
Congresso, expressando a vontade dos que eram familiarizados com a Carta de
Lenin, e enquanto os alertas de Lenin sobre sua pessoa estivessem vivos na mente de
Stalin, sua atitude com os oposicionistas seria idêntica à que assumia contra
inimigos ideológicos. Todavia, como vimos, os congressos do partido continuaram
demonstrando certo grau de independência. Os que se retratavam eram
normalmente readmitidos com relativa rapidez, recebiam atribuições responsáveis e
recomeçavam a publicar seus artigos. Por exemplo, Zinoviev e Kamenev,
reintegrados ao partido em junho de 1928, expressaram abertamente a esperança de
que “o partido requisitasse de novo sua experiência”, sem dúvida pensando em altos
cargos. Bukharin, Rykov e Tomsky ainda eram alcunhados pela imprensa de
“cúmplices dos kulaks”, mesmo assim foram eleitos para o comitê central pelo XVI
Congresso. Tal tolerância não era só meritória, representava também um resquício
de democracia partidária. Stalin achava extremamente irritantes aquelas
intermináveis “oscilações” de certas pessoas a esse respeito. Para ele, ditadura e
democracia eram incompatíveis.
Logo ele se decidiria por manter a sociedade num estado de permanente “guerra
civil”. Era mais fácil manipular e governar um povo em constante alerta, sempre
observando o próximo. E, com a ajuda de seu entourage, manteria a sociedade nesse
estado de tensão política até o fim de sua vida.
O assassinato de Kirov proporcionou um pretexto excelente para intensificar o
curso que a política doméstica ia tomando. Stalin não podia esquecer que um
quarto dos delegados presentes ao XVII Congresso votara contra ele. Quantos mais
da mesma espécie existiriam no país todo? Poucos naquela ocasião poderiam supor
que, dos 1.225 delegados daquele congresso, 1.108 logo seriam presos, e que a
maioria pereceria nas celas e campos de prisioneiros da NKVD. Dos 139 candidatos
a membro do Comitê Central eleitos no congresso, 98 seriam presos e fuzilados. E
grande parte deles era constituída dos mais ativos participantes da Revolução de
Outubro, bem como da reconstrução do país depois de seu colapso e do grande
salto da foice para o estado industrial moderno. A “velha guarda” leninista foi
conscientemente liquidada porque sabia demais. Stalin queria executivos devotados,
funcionários de uma geração mais nova, pessoas que não conhecessem sua vida
pregressa.
Por isso, em meados de 1935, ele aboliu a Sociedade dos Antigos Bolcheviques e
a Sociedade dos Ex-Presos Políticos. Os arquivos dessas associações ficaram sob
responsabilidade de uma comissão constituída por Yezhov, Shkiryatov e Malenkov.
Tais arquivos poderiam muito bem ter servido, no pesadelo do final dos anos 1930,
para dar suporte às acusações contra muitos Velhos Bolcheviques de “crimes”
cometidos quarenta anos antes.
Esse período assinalou também o começo da ascensão de L.P. Beria, primeiro
secretário do Comitê Central do Partido Comunista da Geórgia. Lá pelo meio de
1935, o Comitê Central do partido para Toda a Rússia publicou uma “obra” de
Beria intitulada “Sobre a questão da história das organizações bolcheviques na
Transcaucásia”. Impresso em bom papel e desfrutando de capa dura, uma raridade
naqueles dias, metade do livro consistia de citações de Stalin e de ilimitadas
exaltações ao “líder”. Porém, mais significativo, ele continha uma denúncia política
ostensiva contra dois proeminentes bolcheviques, Yenukidze e Orakhelashvili. A
despeito do fato de o primeiro deles ser amigo pessoal de longa data de Stalin e
membro do Comitê Central e do Comitê Executivo Central, o destino de ambos foi
selado. Stalin sempre acreditou em denúncias, e Beria assimilou rapidamente tal
característica. Na verdade, Orakhelashvili tentou protestar escrevendo para Stalin e
anexando a minuta de uma réplica para publicação no Pravda. A resposta de Stalin
pode ser considerada uma rejeição da declaração do Velho Bolchevique:

Ao camarada Orakhelashvili,
Recebi sua carta.
1. O comitê central não pretende (e não tem razão para isso) levantar essa questão de seu trabalho no IMEL
[o Instituto Marx-Engels-Lenin]. Você ficou superexaltado e decidiu levantá-la. Pura perda de tempo. Fique
no Instituto e continue fazendo seu trabalho.
2. Uma carta ao Pravda poderia ser publicada, mas não acho satisfatório o texto de sua carta. Em seu lugar,
eu retiraria dela toda a sua “beleza polêmica” e todas as “excursões” à história, e mais os “protestos decisivos”,
e diria simples e brevemente que tais e tais enganos foram cometidos, mas que as críticas do camarada Beria a
tais enganos foram, digamos assim, demasiado duras e não se justificam pela natureza dos enganos. Ou
alguma coisa nesta linha. 08 VIII 35 I. Stalin68

O país e o partido postavam-se no limiar de eventos terríveis. O homem que


santificara apenas os aspectos repressivos da ditadura do proletariado tornara-se um
ditador. Encômios tais como “amado chefe”, “líder militar genial”, “sábio arquiteto”
não podiam esconder o fato de que ele era um ditador bem pintado. As pessoas não
o viam assim à época e passariam décadas para que entendessem desta forma. No
meio-tempo, 1934 findou com um trágico presságio. Primeiro, o “Congresso dos
Vitoriosos”, depois, a preparação para o Terror. Teria talvez, desafiando o
calendário histórico, 1937 começado em 1º de dezembro de 1934?
Nota

* Contração de Kirov e Mironych, sobrenome e patronímico abreviados.


Parte V
O manto do líder

Sejam os falsos deuses repudiados, mas não só!


Procure-se sob as máscaras a razão de existirem.
Alexander Herzen
[22]
Personalidade dominante

E nquanto crescia o culto a Stalin no período que se seguiu ao XVII


Congresso, o secretário-geral tomou medidas para reduzir drasticamente a
característica coletiva da tomada de decisões. Ele não necessitava mais da
opinião dos outros. Entre 1934 e sua morte em 1953, houve apenas dois congressos
e uma conferência do partido, e só vinte e duas reuniões plenas do comitê central.
Treze anos se passaram entre o XVIII e o XIX congressos, e o comitê central não se
reuniu uma só vez nos anos de 1942, 1943, 1945, 1946, 1948, 1950 e 1951. Este
comitê não era mais o “Areópago da sabedoria” que fora em 1931, apenas uma
chancelaria do partido, um instrumento conveniente para a execução das decisões de
Stalin. De fato, o partido transformara-se numa máquina obediente para a execução
das ordens da “personalidade dominante”. E dizer que, em 1925, enquanto
preparava o XIV Congresso e editava as minutas dos estatutos do partido, Stalin
frisara a especial importância de convocar anualmente congressos regulares e instara
para que o comitê central tivesse pelo menos uma sessão plenária a cada dois meses.
O crescimento das tendências burocráticas fortaleceu a noção peculiar que Stalin
tinha sobre unidade partidária. Como vimos, nos anos 1920 a política do partido
sofrera oposição de grupos significativos de comunistas que estavam longe de ser
“inimigos”. Algumas vezes, as discordâncias surgiam de uma avaliação particular da
situação, e noutras, deviam-se a características individuais. Rememorando tais
“oposições” e “agrupamentos”, parece que, na essência, preocupavam-se com as
seguintes questões: como a democracia deveria ser desenvolvida em termos de
política concreta, qual deveria ser a relação entre o líder e o partido, e qual o papel a
ser desempenhado pelas massas no processo revolucionário? Em muitos casos, os
oposicionistas eram simplesmente contra o autoritarismo e não desejavam aceitar a
posição unilateral sobre uma determinada ideia, ou seja, a psicologia uniforme pela
qual Stalin se batia.
Havia naqueles primeiros dias muita gente que não subscrevia o programa do
partido. Como regra, cogitavam de outros ideais ou programas sociais. No X
Congresso de março de 1921, que teve como pano de fundo o caos econômico, a
ameaça externa e a proliferação de vários grupos de oposição no partido, Lenin
instituiu sua notória resolução que baniu as facções. Depois de seu relatório, o
congresso resolveu que todos os grupos facciosos deveriam ser desfeitos
imediatamente. Enfrentando a crescente inquietação e o descontentamento da classe
operária com as ações do partido, a resolução deixou claro que a unidade partidária
era particularmente necessária naquela ocasião, e que era essencial a total confiança
entre os membros do partido e a avant-garde amistosa do proletariado.1 Ao mesmo
tempo em que tal regra desempenhava papel importante para a congregação
partidária, seu propósito não era sufocar o pensamento alternativo ou evitar o
embate de opiniões. Ela fora concebida para não deixar que essas diferenças de
pontos de vista resultassem na formação de grupos rivais que ameaçassem a
existência do partido como tal.
Stalin explorou essa resolução com frequência quando atacava os vários “desvios”
e “oposições”, porém, gradualmente, os termos “oposição” e “oposicionista”,
quando usados por ele, adquiriram a conotação de “inimigo”. Com o passar do
tempo, qualquer opinião que divergisse da de Stalin, mesmo que fosse particular e
de uma figura de destaque do partido, seria condenada como “luta contra o
partido”, ou “atividade hostil”. Na perseguição da unidade, como dogmaticamente
entendida pelo secretário-geral, ele matou aos poucos a salutar troca de opiniões, a
livre expressão de ideias por parte dos comunistas e a crítica que estes podiam fazer
aos órgãos partidários do alto escalão. A igualdade sem pensamento tornou-se
norma na vida partidária. Stalin destruiu sistematicamente o princípio democrático
das discussões internas do partido. Para ele, unidade significava dedicação,
obediência sem questionamentos, presteza para apoiar quaisquer decisões partidas
dos órgãos superiores, e, ao forçar o estabelecimento dessas características, ele
próprio encorajou o hábito do pensamento dogmático no partido enquanto destruía
a iniciativa criativa das massas.
No entanto, o afastamento do cânone “ortodoxo”, por mais insignificante que
fosse, não era condenado apenas em termos dogmáticos. Discursando para o pleno
do comitê central, em janeiro de 1938, Malenkov citou a expulsão do partido de
um certo Kushchev, na organização partidária de Sarachinsk, em Kalmykia. O
seguinte diálogo acontecera durante uma sessão de educação política:
Pergunta: “Podemos construir o socialismo num só país?”
Kushchev replicou: “O socialismo pode ser construído num só país e nós o
estamos construindo.”
“Mas será que construiremos o comunismo num só país?”
“Sim, construiremos o comunismo num só país.”
“E quanto ao comunismo total?”
“Sim, também o construiremos.”
“E construiremos o comunismo final?”
Kushchev parou para pensar: “Sem uma revolução mundial, o comunismo final
é um pouco mais duvidoso. Mas preciso examinar Questões sobre leninismo e ver o
que o camarada Stalin diz sobre isso.”2

Por expressar dúvida, o infeliz Kushchev foi expelido do partido e perdeu o


emprego. Mas não era o dogmatismo nem a expressão do culto a Stalin que exigiam
uniformidade partidária tão rigorosa, que preocupavam Malenkov: era a trama dos
“inimigos” entrincheirados “em cada fábrica, em cada fazenda coletiva ou estatal”.
Kushchev escorregara levemente e os “inimigos” logo exploraram a situação
expulsando-o do partido. Esta foi a lógica de Malenkov.
Tal interpretação distorcia qualquer entendimento de unidade que pressupusesse
uma síntese da vontade coletiva e a oportunidade de expressar livremente a opinião
que se pudesse ter. Afinal de contas, a resolução do X Congresso sobre unidade
tinha considerado que o partido continuaria a lutar incessantemente contra todas as
formas de burocracia, que tentaria novos métodos para ampliar a democracia e o
empreendimento.3 Agora, qualquer comunista que ousasse apresentar uma nova
proposta ou iniciativa, ou discordasse em qualquer aspecto da política partidária,
corria o risco de ser insultado ou classificado no conjunto dos “inimigos”. Dos
comunistas, esperava-se que cada vez mais “apoiassem” ou “aprovassem”, e cada vez
menos participassem do debate sobre questões importantes do partido e da vida
social. E, no processo, o “líder” foi se colocando automaticamente acima do partido
e se transformando em “personalidade dominante”.
Por sugestão de Stalin, o XVII Congresso aboliu a Comissão Central de
Controle-CCC que vinha supervisionando o trabalho do comitê central e do
Politburo. Suas atribuições foram transferidas para os órgãos centrais e para o
próprio Stalin.
Aos poucos, as decisões de Stalin passaram a ser aceitas por todos como decisões
do partido. A partir de meados da década de 1930, suas diretrizes eram registradas
como ordens do comitê central ou como instruções gerais. Seu poder tornou-se
praticamente ilimitado. Por exemplo, antes e durante a guerra, tempo em que o
“plantão noturno” virou norma para os líderes do partido, Stalin convidava com
frequência diversos membros e candidatos a membro do Politburo para jantar em
sua dacha de Kuntsevo. Os mais assíduos eram Molotov, Voroshilov, Kaganovich,
Beria e Zhdanov. Convidados menos regulares àquelas sessões noturnas eram
Andreyev, Kalinin, Mikoyan, Shvernik e Voznesensky. Questões de Estado e do
partido, bem como assuntos militares, eram debatidos por todos, mas Stalin os
resumia conclusivamente. Malenkov e, por vezes, Zhdanov registravam os debates
como minutas do Politburo. Dissensões não ocorriam. Os camaradas tentavam de
todas as formas adivinhar de antemão a opinião de Stalin e dizer “sim” na ocasião
oportuna. Jamais ocorria um desacordo de princípios com Stalin, o qual, de vez em
quando, chegava a se irritar com tamanha submissão. Por exemplo, na véspera do
XVIII Congresso, em 1939, o relatório que Stalin preparava foi apreciado e todos
em torno da mesa foram unânimes em expressar sua aprovação. Stalin, sentado, a
tudo ouvia e, de repente, explodiu: “Ah! Mostrei a vocês uma versão que joguei fora
e todos entoaram aleluias. O discurso que na verdade vou fazer é completamente
diferente!”
Todos pararam de pronto e desceu um silêncio incômodo. Beria recuperou-se de
pronto. “Mas se pode sentir sua mão nesta versão. Então, se você ainda a reviu é de
imaginar quão forte o relatório final vai ficar!”
O Politburo eleito no XVII Congresso consistiu de Andreyev, Voroshilov,
Kaganovich, Kalinin, Kirov, Kosior, Kuibyshev, Molotov, Ordzhonikidze e Stalin.
Ele se reuniu com razoável frequência, embora nem sempre completo. A maioria das
questões era decidida por um pequeno grupo que incluía Stalin, Molotov,
Kaganovich e Voroshilov, mais, a partir de certa data, Zhdanov e Beria. Na ocasião
azada, Stalin criaria vários comitês dentro do Politburo, chamados “os cinco”, “os
sete”, “os nove”. Como Khruschev revelou no XX Congresso, tal sistema foi
institucionalizado por um decreto especial do Politburo. É evidente que, mesmo nos
dias de Lenin, o comitê central criara comissões especiais para lidar com questões
surgidas, em geral, num contexto político mais ou menos complexo. Não obstante,
por mais importantes que pudessem ser, suas decisões só podiam ser ratificadas em
sessão formal do Politburo ou do comitê central. Sob Stalin, era, é claro, sua opinião
que orientava as pequenas comissões e, em consequência, o partido todo. Ele
gostava de ouvir os outros membros da liderança expondo seus pontos de vista, e
esperava até o fim para dar o seu, que, normalmente, enfeixava o assunto.
Nos numerosos documentos que reviu, Stalin simplesmente rabiscava “De
acordo”, “A favor”, “Talvez” e, por vezes, encaminhava um documento para os
colegas-membros, deste ou daquele órgão, a fim de que emitissem opinião, embora
pouca atenção desse a elas.
Por exemplo, em 1936, Pyatakov escreveu a Stalin solicitando permissão para o
voo experimental do balão estratosférico CO-35-1, “dependendo de condições
meteorológicas favoráveis”. O secretário-geral anotou na carta, como se pedisse
assessoramento: “Ao camarada Voroshilov. Que acha você?” Voroshilov respondeu:
“Acho que a permissão pode ser concedida. 7.4.36.” Um pouco mais abaixo,
aparece um despacho bastante categórico: “Sou contra. I. Stalin”4
Em tais circunstâncias, o colegiado logo se transformou em aprovação coletiva
automática do que o líder quisesse, ficando então muito bem lançadas as verdadeiras
fundações do absolutismo burocrático.
Examinando o resultado de muitos referendos que circularam pela liderança, seja
por votações nominais ou votos postais sobre diversos assuntos, não encontrei um só
exemplo de alguém que, mesmo indiretamente, questionasse as propostas
gritantemente erradas ou até mesmo criminosas apresentadas por Stalin. Adiante,
detalharei mais este problema. Por ora, repito que ninguém da liderança do comitê
central fez qualquer tentativa para agir com a consciência quando a oportunidade se
apresentou, por mais tardia que fosse. Ninguém quis fazer objeção a Stalin, nem de
forma delicada. Mesmo às portas do ostracismo, eles concordavam docilmente com
a opinião do líder, embora sabendo que nada mitigaria seu destino. E, ainda assim,
o Comitê Central não era composto inteiramente de submissos concordantes
promovidos por Stalin.
A relação entre o partido e seu líder, acreditava Stalin, deveria consolidar-se por
meio de publicações de massa, acessíveis ao partido e ao povo. Assim eram o livro
didático História do Partido Comunista de Toda a Rússia (bolcheviques), o curso
resumido, publicado em 1938 e, dez anos mais tarde, a Biografia resumida de I.V.
Stalin. No Bolshevik nº 9, de 1937, Stalin publicou uma carta aos compiladores do
tão falado Curso resumido. A principal ênfase do livro, escreveu ele, deveria ser na
luta do partido contra as facções e grupamentos, contra as tendências
antibolcheviques. Evidentemente, a história do partido consistia de muito mais que
a luta contra facções, mas em qualquer livro didático escrito sobre este princípio,
Stalin, inevitavelmente, ocupava o centro do palco.
Tampouco hesitou em instruir os compiladores a recorrerem às próprias ideias
dele, Stalin. Por exemplo, sugeriu que se referissem à “carta de Engels a Bernstein de
1882, a qual cito em meu relatório sobre o desvio social-democrata no partido para
o Sétimo Pleno do Comitê Executivo do Comintern, juntamente com meu
comentário sobre ela”. Sem os comentários, acrescentou ele, “a luta contra as facções
e tendências no [partido] parecerá mera arruaça, e os bolcheviques poderão ser
tachados de incorrigíveis e infatigáveis arruaceiros e criadores de caso”.5 A equipe de
autores, agindo sob as ordens do comitê central, logo terminou o Curso resumido
que permaneceu por longo tempo como principal, senão o único, guia para a
educação política do povo soviético. Lançado com quase 43 milhões de exemplares,
o livro saiu repleto de referências à “genialidade”, à “sabedoria” e à “visão” de Stalin.
A primeira edição declara: “A comissão do comitê central, sob a liderança do
camarada Stalin e com sua ativa participação, planejou o Curso resumido da história
do [partido].” Esta fórmula não agradou a Stalin, e a Biografia resumida do
secretário-geral, cuidadosamente editada por ele e publicada mais tarde, contém
uma variante “melhorada”: “Em 1938, a História do [partido]: curso resumido
apareceu, escrita pelo camarada Stalin e aprovada por uma comissão do comitê
central do [partido].”6
Não o envergonhou nem um pouco o fato de um livro tão laudatório a seu
respeito ter sido escrito por ele mesmo. Isso meramente confirmou a base ideológica
de seu papel absoluto como líder e de seu controle sobre o partido e o Estado.
Tendo se livrado fisicamente de todos os mais renomados camaradas de Lenin,
cuidava agora de apagá-los também da história. Afora Lenin e Stalin, o Curso
resumido não menciona concretamente qualquer outro indivíduo como criador da
revolução e do socialismo. Ele só cita “inimigos”.
O livro se tornou leitura fundamental para os comunistas, estudantes
universitários e todo o amplo sistema estatal de educação política. Consistia quase
integralmente de uma série de “axiomas” de Stalin: houve dois líderes na revolução,
Lenin e Stalin; o principal crédito pela construção do socialismo na URSS era de
Stalin; depois de Lenin, só houve um líder e este foi o “sábio”, “visionário”,
“corajoso”, “decisivo” etc. etc. Stalin. Por intermédio dessa maciça publicação, a
versão stalinista correu toda a população. Estilo simples e argumentos primitivos
tornaram-no acessível a todos como meio auxiliar de instrução e passou a ocupar
posição central no sistema educacional que emergiu em meados da década de 1930.
Depois da publicação em 1º de outubro de 1938, Stalin convocou uma reunião
dos propagandistas de Moscou e Leningrado e disse-lhes, entre outras coisas, que
“uma das razões para a publicação desse livro é acabar com o fosso entre o marxismo
e o leninismo”. Prosseguiu, sem o menor sinal de embaraço: “O livro Fundamentos
do leninismo de Stalin apresenta a nova e particular contribuição que Lenin fez ao
marxismo. Eu não diria que ele inclui tudo, mas proporciona todas as contribuições
essenciais feitas ao marxismo por Lenin.”7 Ali estava a mais elevada homenagem que
podia ser prestada ao livro, e ele o fazia a uma obra de sua autoria. Àquela altura, já
se considerava tanto um líder singularmente sábio como um grande teórico.
O imperador Tibério, segundo Suetônio, conhecia com antecedência seu futuro
e havia muito tempo antevira o ódio e a ignomínia que esperavam por ele.8 Stalin
não se preocupava com tais pensamentos. Seus documentos contêm ampla evidência
de que ele acreditava estar imortalizado na mente das pessoas. Depois do XVII
Congresso, ao contrário de Tibério, ele tomou providências para consolidar sua
glória por séculos. Seu mando autocrático foi sendo gradualmente reforçado por
uma série de atos e ritos de culto. Por exemplo, foram instituídos os Estipêndios
Stalin e os Prêmios Stalin. A ordem, expedida em agosto de 1925 pelo governo e
com a participação de Stalin, para a instituição do Prêmio Lenin foi simplesmente
esquecida e só reviveu em setembro de 1956. O hino nacional, para o qual Stalin
concorreu pessoalmente, falou em seu papel no destino da Pátria:

Stalin nos fez leais ao povo,


Ao trabalho e ao feito heroico nos inspira.

S. Mikhalkov e El-Registan, compositores do hino, submeteram a letra a Stalin, o


qual fez emendas que ainda podem ser vistas nos arquivos. No lugar de “União
nobre de povos livres”, Stalin inseriu “União indestrutível de repúblicas livres”. A
segunda parte da letra foi bastante emendada. Foram-lhe apresentados os seguintes
versos:

O sol da liberdade brilhou através da tempestade,


Lenin iluminou-nos o caminho do futuro,
Fomos alçados por Stalin, o eleito do povo,
Ao trabalho e ao feito heroicos nos inspirou.

Depois que o lápis de Stalin trabalhou sobre os versos, o segundo e o terceiro


ficaram assim:

O grande Lenin iluminou nosso caminho,


Stalin nos fez leais ao povo...

Mikhalkov e El-Registan naturalmente concordaram de imediato com as alterações


feitas por Stalin, como também o fizeram Molotov, Voroshilov, Beria, Malenkov e
Shcherbakov, reunidos por Stalin na noite de 28 de outubro de 1943. Dessa forma,
o secretário-geral fez mais que meramente “aprovar” a letra final. Por exemplo, sem
explicar por que não gostou, ele rejeitou toda uma estrofe:
Viva por século, oh, terra do socialismo,
Faça com que nossa bandeira leve paz ao mundo,
Viva e seja forte gloriosa pátria-mãe,
Nosso grande povo a defenderá.9

O hino não fazia menção ao partido, malgrado a dose requerida de referências ao


seu secretário-geral. A ideia de que Stalin não era somente o líder do partido, mas de
toda a nação, foi sendo gradualmente inculcada na mente do povo, uma ideia
publicamente expressa de forma concentrada, em dezembro de 1939, por um
membro do Politburo – Nikita Khruschev:

Todos os povos da União Soviética veem Stalin como seu amigo, seu pai e líder.
Stalin, em sua simplicidade, é o amigo do povo.
Stalin, em seu amor pelo povo, é o pai do povo.
Stalin, em sua sabedoria como líder da luta dos povos, é o líder dos povos.10

Num capítulo intitulado “O líder dos povos”, o menestrel de Stalin, Yaroslavsky


(nome real, Gubelman), escreveu: “Começando nos anos 1890, o camarada Stalin
percorreu o mesmo caminho de Lenin, sempre junto a Lenin e jamais se desviando
daquela rota.”11
Ao lado dos elogios, o autor, talvez inadvertidamente, deixou escapar algumas
verdades. Por exemplo, em diversas passagens Yaroslavsky realça “a inclemência de
Stalin com os inimigos”.
Ao ler aquelas efusões, Stalin sentiu cada vez mais que ainda tinha algo a
percorrer antes de chegar ao pináculo de sua ascensão. Nenhum czar foi alvo de
tantos louvores. No fim, ele passou a crer em seu papel terrestre messiânico, como
todo-poderoso infalível que tudo via. Quanto mais seu triunfo como líder era
celebrado com cerimônias, mais profundas se tornavam as raízes da tragédia
nacional no solo social.
Deve-se frisar que esses rituais de culto, além do suporte que davam a Stalin
como governante absoluto, também desempenhavam uma função estabilizadora e
unificadora, ainda que baseada no dogma. Na ausência da democracia socialista, a
instilação da fé no líder e de sua infalibilidade e sabedoria cedo produziu resultados.
A despeito da horrível repressão dos anos 1930, do totalitarismo estatal e da
ditadura, os alicerces da sociedade soviética permaneceram firmes.
[23]
O intelecto de Stalin

A descrição que Trotsky faz de Stalin de “uma destacada mediocridade” foi


amplamente aceita como exata, mas seria realmente plausível? Poderia
alguém com tão pequena capacidade mental ter sido membro dos mais
altos órgãos do partido desde 1912, ou merecer a descrição de Lenin como um dos
“destacados líderes”, ou sair do emaranhado complexo de contradições políticas dos
anos 1920 como vitorioso sobre pessoas mais habilitadas que ele em muitos
aspectos?
O fato é que seus crimes, suas artimanhas, sua crueldade e sua inclemência com
aqueles a quem considerava inimigos acabaram dominando qualquer avaliação de
sua personalidade. E traços como estes põem em relevo o caráter moral de um
homem, não sua inteligência. Nesse sentido, o intelecto excepcional de Stalin –
acredito que tinha – foi emoldurado por atributos que só podem ser definidos como
anti-humanos; no senso moral, ele foi quase anulado pela vinculação inextricável às
manifestações do mal. Poder-se-ia dizer, em suma, que Stalin tinha uma “mente
excepcionalmente malévola”. Qualquer falha moral representa em si mesma enorme
lacuna no intelecto, criando uma zona cinzenta na mente, desprovida de qualquer
vestígio do bem. É possível afirmar que uma carência moral na personalidade é
capaz de reduzir até uma mente poderosa às funções de máquina calculadora, um
mecanismo lógico em nível racional, porém um equipamento impiedoso.
Tendo sentido com frequência uma inadequação humilhante na conversa com
seus oponentes antes da revolução, Stalin dispôs-se a não desempenhar o papel de
figurante nas discussões futuras e fez de tudo para ampliar ao máximo o escopo de
seu conhecimento político e teórico. Em paralelo com sua enorme carga de
trabalho, esforçou-se por elevar seu plano intelectual. Os arquivos contêm
documentos bastante interessantes os quais, a despeito de seu tamanho, merecem
citação mais completa.
Em maio de 1925, Stalin encarregou Tovstukha de organizar uma boa biblioteca
pessoal para ele. Hesitante, o assistente perguntou que espécie de livros ele tinha em
mente. Stalin preparou-se para ditar uma lista mas, subitamente, sentou-se em sua
escrivaninha e, sob o olhar de Tovstukha e quase sem pensar, levou de dez a quinze
minutos para escrever às pressas o rol abaixo, anotado a lápis num caderno escolar
comum de exercícios:

Nota para o bibliotecário. Minha sugestão (e pedido):

1. Os livros devem ser organizados por assunto, não por autor: a) filosofia; b) psicologia; c) sociologia; d)
economia política; e) finanças; f) indústria; g) agricultura; h) cooperativas; i) história russa; j) história de
outros países; k) diplomacia; l) comércio exterior e interno; m) assuntos militares; n) questões nacionais; o)
congressos e conferências do partido, do Comintern e outros (com resoluções, sem decretos e sem códigos
jurídicos); p) posição dos operários; q) posição dos camponeses; r) Komsomol (tudo o que existe em edições
separadas); s) história da revolução em outros países; t) 1905; u) Revolução de Fevereiro de 1917; v)
Revolução de Outubro de 1917; w) Lenin e leninismo; x) história do RKP e do Comintern; y) sobre
discussões no RKP (artigos e panfletos); z) sindicatos; aa) literatura criativa; ab) crítica artística; ac)
periódicos políticos; ad) periódicos científicos; ae) diversos dicionários; af) memórias.
2. Livros a destacar da lista acima e arrumar em estantes separadas: a) Lenin; b) Marx; c) Engels; d) Kautsky;
e) Plekhanov; f) Trotsky; g) Bukharin; h) Zinoviev; i) Kamenev; j) Lafargue; k) Luxemburgo; l) Radek.
3. Todos os demais livros devem ser classificados por autor (exceto quaisquer livros didáticos, revistas
populares, literatura antirreligiosa de baixa qualidade, e assim por diante, que devem ser colocados num
lado).12

Levando-se em conta que isso foi rabiscado quase sem reflexão, e também em
função da “cultura de livro” daquela época, uma certa amplitude de visão fica aqui
claramente demonstrada. No topo da pirâmide, ele pôs os fundamentos do
marxismo, a história e diversas áreas específicas do conhecimento diretamente
relacionadas com a atividade política e com a luta contra as oposições.
A execução de ideias por meio de ação e de comportamento dá certa medida de
um intelecto. A biblioteca de Stalin e as marcas que deixou nela, portanto, oferecem
algum material a respeito.
Muitos dos livros do Kremlin, da dacha ou do apartamento, alguns dos quais
com o ex-líbris “Biblioteca nº... I.V. Stalin”, apresentam anotações, marcas e
comentários à margem. Obras coligidas de Lenin, por exemplo, está repleto de
trechos sublinhados, tiques e pontos de exclamação nas margens. Fica também claro
que certas passagens foram examinadas mais de uma vez, já que marcadas em
vermelho, azul e lápis comum. Os tópicos que parecem ter despertado maior
interesse são as opiniões de Lenin sobre ditadura do proletariado, sua luta com os
mencheviques e os socialistas revolucionários, e seus discursos nos congressos do
partido.
Dos escritos de contemporâneos seus, Stalin consultou com mais frequência os
de Bukharin e os de Trotsky. Por exemplo, o panfleto de Bukharin “A técnica e a
economia do moderno capitalismo”, publicado em 1932, está coberto de marcas do
lápis vermelho de Stalin, em especial o que o autor diz sobre forças da produção e
relações na produção. O livro de M. Smolensky, Trotsky, publicado em 1921 em
Berlim, está sublinhado nos trechos em que o autor critica seu arqui-inimigo:
“Trotsky é irritadiço e impaciente”, tem “uma natureza imperial que adora
dominar”, “gosta do poder político”, “Trotsky é um genial aventureiro político”.13
De todas as fontes disponíveis, Stalin buscava munição contra seus rivais, tais como:
o panfleto de Trotsky “Terrorismo e comunismo”, de 1920; “A guerra e a crise do
socialismo”, de Zinoviev; “N.G. Chernyshevsky”, de Kamenev; “Principais estágios
do desenvolvimento do Partido Comunista na Rússia”, de A. Bubnov; “Sobre a
história da luta do bolchevismo contra o luxemburguismo”, de I. Narvsky; “Sobre a
estabilização do capitalismo”, de Jan Sten, e outros. Tudo que se relacionava com
“luta” parecia despertar sua atenção.
Ele teve a vida toda um interesse por literatura histórica, sobretudo biografias de
imperadores e czares. Fez um estudo cuidadoso do Curso de história russa, de I.
Bellyarminov, de História do Império Romano, de R. Vipper, de Ivan, o Terrível, de
Alexei Tolstoy e de uma miscelânea intitulada Os Romanovs. Todos os livros
didáticos de faculdades e universidades por ele colecionados nos anos 1930 e 1940
ostentam marcas de minucioso exame.14 Evidentemente, viu na história russa, como
interpretada por ele, um meio para formar a espécie de opinião pública que aceitaria
seu mando autoritário.
Os assistentes assinalavam tudo que achavam pudesse interessá-lo nos periódicos
sérios e, na pausa de trinta a quarenta minutos que diariamente fazia na condução
dos negócios oficiais, ele passava os olhos pelos artigos e folheava os últimos
romances publicados. Ocasionalmente, acionava a campainha para chamar um
assistente e pedia ligação com um escritor ou com o chefe de um dos sindicatos de
criação, de modo a poder dar pessoalmente congratulações ou fazer comentários.
Por vezes, pegava a caneta para fazê-lo. Depois de ler Nas estepes da Ucrânia, de
Korneichuk (1940), por exemplo, logo escreveu o seguinte bilhete:
Respeitado Alexander Yevdokimovich
Li o seu livro Nas estepes da Ucrânia. Trata-se de obra maravilhosa, artisticamente inteira, jovial e alegre. Só
me preocupo se não é um pouco alegre demais. Existe o perigo de o excesso de alegria numa comédia desviar
a atenção do leitor em relação ao conteúdo.
Aliás, inseri algumas palavras à página 68. Elas tornam as coisas mais claras. Cumprimentos!
I. Stalin

Ele adicionara o seguinte:

1 - “a taxa seria então cobrada não em função do número de cabeças de gado, mas sim da área do trato de
terra do kolkhoz...”
2 - “crie quanto gado quiser no kolkhoz, a taxa permanecerá a mesma...”15

Sempre atento para as oportunidades práticas, aproveitou a obra de Korneichuk


para esclarecer uma regulamentação recente do comitê central. Também não se fazia
de rogado para comentar o que não gostava. Depois de ler a peça O suicida, de N.
Erdman (1931), escreveu ao produtor, Stanislavsky:
Respeitado Konstantin Sergeyevich
Não considerei muito boa a peça Suicídio.* Meus camaradas mais próximos acham-na vazia e até perigosa.
Não digo que a representação não atinja seu objetivo. O Kultprop** (ou seja, o camarada Stetsky) o ajudará
nisso. Existem camaradas que entendem de questões artísticas. Sou um diletante nessas coisas.
Saudações
9 XI 31 I. Stalin16

Querendo passar a impressão de “liberal” para os círculos artísticos, Stalin aqui


alardeia diletantismo, porém, na verdade, seus julgamentos sobre peças, livros,
filmes, música e arquitetura eram categóricos ao extremo. Fazendo declarações sobre
praticamente tudo, como primeira pessoa do Estado, ele, na realidade, tornou-se um
diletante universal, o que, por sua vez, fortaleceu sua imagem de líder onisciente.
Stalin também acompanhava de perto o que era publicado no exterior. Quase
tudo sobre Trotsky e da autoria de Trotsky foi traduzido para ele em uma só cópia.
Lia também as publicações dos emigrados. Em dezembro de 1935, quando B. Tal,
gerente da seção de imprensa e publicações do comitê central, pediu ao Politburo
que especificasse quais subscrições deveriam ser assinadas, em 1936, da lista seguinte
de publicações de émigrés brancos, Poslednie novosti, Vozrozhdenie, Sotsialisticheskii
vestnik, Znamya Rossii, Byulleten’ ekonomicheskogo kabineta Prokopovicha,
Kharbinskoe vremya, Novoe Russkoe slovo, Sovremennye zapiski, Illustrirovannaya
Rossiya,*** Stalin disparou: “Assine todas!”17
Havia um armário especial em seu gabinete no qual guardava grande quantidade
de literatura totalmente hostil de emigrados, inclusive praticamente todos os
trabalhos de Trotsky, intensamente comentados e com muitos trechos destacados.
Qualquer entrevista dada ou declaração feita por Trotsky no Ocidente eram
imediatamente traduzidas e entregues a Stalin.
Por mais que se possa dizer dele, o fato é que sua criação religiosa evidentemente
teve efeito duradouro, testemunhado em sua atitude para com a literatura
antirreligiosa, que ele chamava simplesmente sem valor, e também em alguns de
seus discursos e escritos, por exemplo, seu dramático pronunciamento pelo rádio,
em 3 de julho de 1941, quando se dirigiu ao povo soviético como “irmãos e irmãs”,
um vocativo que aquele povo não costumava ouvir. Depois da celebração de seu
quinquagésimo aniversário, em 1929, ele enviou a seguinte nota de agradecimento,
redigida de próprio punho, ao Pravda: “Recebo suas congratulações e cumprimentos
em nome do grande partido da classe trabalhadora que me deu à luz e me criou à
sua imagem e semelhança.”18
Numa conversa entre Stalin e Churchill em Moscou, em agosto de 1942, o
assunto caiu em Lloyd George que (como o próprio Churchill) fora um dos
instigadores da intervenção aliada contra os bolcheviques durante a guerra civil.
Stalin fez um silêncio, depois suspirou, como se resumisse tudo o que acontecera
naqueles tempos distantes: “Tudo isso está no passado, e o passado a Deus
pertence.”19 Ninguém está querendo sugerir que o elemento religioso desempenhou
parte central no comportamento de Stalin, mas sua mente dogmaticamente
moldada indica fortemente uma origem religiosa. Ele adorava fórmulas, definições e
interpretações fixas. Para fazer calar ou esmagar “inquestionavelmente” seus
oponentes, passava horas procurando a palavra ou expressão correta nos clássicos
marxistas. Assim, no pleno conjunto do comitê central e da CCC de abril de 1929,
acusou Bukharin de “não saber seu Lenin”.
Numa reunião anterior ao pleno, Bukharin argumentara com bastante
racionalidade que a transferência de recursos excessivos da agricultura para a
indústria imporia um “tributo insuportável” sobre o campo. Stalin anotou
rapidamente: “exploração feudal militar dos camponeses” e “tributo”; depois, passou
grande parte da noite em sua biblioteca com Tovstukha explorando os trabalhos de
Lenin. Após muita pesquisa, encontrou o que queria – uma série de argumentos
“devastadores”, assim pensava. No plenário, declarou:

Bukharin destruiu a si mesmo quando alegou que a literatura marxista não tolerava a palavra “tributo”. Ele se
irritou e se surpreendeu com o fato de o comitê central e o marxismo em geral permitirem-se o uso da
palavra “tributo”. Mas, qual o motivo de tanta surpresa, se se pode mostrar que, há muito tempo, foram
conferidos direitos civis a esta palavra nos artigos de um marxista, ninguém menos que o camarada Lenin?
[Pausa] A não ser que Bukharin ache que Lenin não preenche os requisitos de marxista?

Stalin passou então a citar “Do infantilismo e da mentalidade pequeno-burguesa da


‘esquerda’”, “Sobre o imposto em espécie”, “Tarefas rotineiras do poder soviético”,
onde Lenin empregou a palavra “tributo” num contexto completamente diferente.
Uma voz no salão protestou. “Mas Lenin jamais aplicou o conceito de ‘tributo’ ao
camponês médio.” Stalin respondeu calmamente:

Pensaria você talvez que o camponês médio está mais próximo do partido que a classe operária? Então você é
um marxista falsificado. Se é possível falar em “tributo” em relação à classe operária – a classe operária que o
nosso partido representa –, então por que não se pode dizer o mesmo a respeito do camponês médio que, no
fim das contas, é nosso aliado?20
A questão original, sobre o uso da palavra “tributo”, foi assim enterrada sob uma
típica troca de opiniões sobre “ortodoxia”.
Os infindáveis debates dos anos 1920 sem dúvida afiaram o intelecto de Stalin
como polemista. Na verdade, ele em geral recorria a um truque que encurralava o
oponente: apresentava-se como defensor de Lenin, argumentando como se só ele
soubesse como interpretar o líder corretamente. Em quase todos os debates,
encontrava de imediato uma citação ou expressão adequadas de Lenin, quase sempre
de um contexto inteiramente diverso. Há muito entendera que, armando-se com
citações de Lenin, tornar-se-ia praticamente invulnerável. Certa vez, quando debatia
questões do Comintern, Zinoviev, cujas relações com Stalin já estavam abaladas,
provocou: “Você usa citações de Lenin como um certificado de sua própria
infalibilidade. Devia procurar os significados!” Stalin disparou de volta: “E o que há
de mal em ter um ‘certificado’ de socialismo?”
No fim, o pensamento rígido, a agressividade, a militância e a rudeza permitiram
que Stalin levasse vantagem sobre seus oponentes. É estranho, mas quanto mais sutis
e frequentemente mais convincentes eram os argumentos de Trotsky, Zinoviev,
Kamenev e Bukharin, menos apoio encontravam entre os delegados no salão,
enquanto as invectivas abusivas, cruéis e quase sempre primitivas de Stalin,
estreitamente ligadas ao seu pleito de estar “defendendo Lenin”, a linha geral do
partido, a unidade do comitê central, e assim por diante, eram rapidamente
absorvidas pelos membros partidários. Possuidor de uma mente pragmática, ele não
se preocupava muito, ao contrário de Trotsky, com o estilo elegante; ao contrário de
Zinoviev, com os aforismos retóricos; ou de Kamenev, com a racionalidade
intelectual; ou de Bukharin, com a argumentação teórica. A principal arma de Stalin
era acusá-los de querer uma revisão de Lenin, enquanto ele resguardava o líder. E, a
partir do início dos anos 1930, esta passou a ser a versão oficial.
O modo de pensar de Stalin era esquemático. Como vimos, ele gostava de ter
tudo no devido “escaninho” e era levado a reduzir as ideias à sua forma mais simples
e a popularizá-las quase ao ponto de pastiches primitivos. Se os oponentes
divulgavam suas proposições de forma diferente, ele os ofendia pela “abordagem não
marxista”, pela “demonstração de tendências pequeno-burguesas” ou pelo
“escolasticismo anárquico”. Seus relatórios e discursos eram sempre estruturados
dentro de uma moldura rigorosa de enumerações, particularidades, características,
níveis, direções, tarefas. Esta foi uma das razões pelas quais seus trabalhos eram
populares, uma vez que, acessíveis pela simplicidade, podiam ser captados pelo
povo. Todavia, ao mesmo tempo em que tal modo de pensar talvez pudesse ter
facilitado a popularização das ideias de Stalin, ele algemou severamente a capacidade
criativa do povo, pois não demandava análise profunda ou entendimento da
complexidade e interdependência do mundo.
É provável que Stalin não tenha pensado, como Nero, que o estudo da filosofia
“era um estorvo para o futuro governante”, contudo, parece que ele foi
intelectualmente incapaz de conseguir o menor domínio sobre o assunto. O ponto
mais fraco de seu intelecto era a impossibilidade de entender a dialética. Ele tinha
consciência disso, já que devotou muito tempo e esforço na tentativa de enriquecer
seu conhecimento filosófico. Por recomendação dos diretores do Instituto dos
Professores Vermelhos, convidou, em 1925, Jan Sten, filósofo de renome entre os
Velhos Bolcheviques, para ministrar-lhe aulas particulares sobre dialética. Sten, que
era subdiretor do Instituto Marx-Engels e foi, mais tarde, executivo do aparato do
comitê central, fora delegado em diversos congressos do partido, era membro da
CCC, e homem de opinião independente. Nomeado tutor filosófico de Stalin, Sten
planejou um programa especial que incluía o estudo de Hegel, Kant, Feuerbach,
Fichte e Schelling, bem como de Plekhanov, Kautsky e Bradley. Duas vezes por
semana, numa hora determinada, ia ao apartamento de Stalin e tentava elucidar seu
pupilo nos conceitos hegelianos da substanciação, da alienação, da identidade entre
realidade e razão. Tentava, em outras palavras, passar-lhe um entendimento do
mundo real como manifestação de uma ideia. A abstração irritava Stalin, mas ele se
controlava, sentava-se e ouvia a voz monótona de Sten, perdendo por vezes a
paciência e o interrompendo com perguntas tais como “O que tudo isto tem a ver
com a luta de classes?” ou “Quem emprega toda essa bobagem na prática?”
Lembrando a seu aluno que a filosofia de Hegel, como a de outros pensadores
germânicos, se tornara uma das fontes do marxismo, Sten prosseguia imperturbável.
“A filosofia de Hegel”, afirmava ele, “é, com efeito, uma enciclopédia de idealismo.
O método dialético é desenvolvido em seu sistema metafísico com alto grau de
genialidade. Marx disse que Hegel pusera a dialética de cabeça para baixo, e que era
hora de pô-la em pé, para que fosse vista racionalmente.” Visivelmente agastado,
Stalin interrompia: “Mas o que tudo isso tem a ver com a teoria do marxismo?”
Sten, pacientemente, tentava resumir e explicar a sutileza da filosofia de Hegel ao
seu pupilo pouco perceptivo, porém, apesar de seus melhores esforços, Stalin não se
mostrava capaz de captar as noções básicas daquela filosofia, como testemunharam
seus próprios “trabalhos filosóficos”. Parece que tudo o que restou daquelas lições
foi a hostilidade ao professor. Juntamente com N. Karev, I.K. Luppol e com outros
filósofos que eram discípulos do acadêmico A.M. Deborin, Sten foi declarado um
teórico “adulador de Trotsky” e, em 1937, acabou preso e executado. A mesma
sorte parecia destinada a Deborin, que fora muito ligado a Bukharin no final dos
anos 1920 e que, em 1930, foi rotulado por Stalin como “idealista militante
menchevique”. No entanto, ele foi poupado, se bem que proibido de desenvolver
qualquer trabalho científico ou público.
Um encontro da Academia Comunista teve lugar em outubro de 1930 para
debater “as diferenças no front filosófico”. Na realidade, foi uma longa condenação
de Deborin por sua “subestimação do estágio leninista no desenvolvimento da
filosofia marxista”. Deborin apresentou uma valente defesa, mas Milyutin, Mitin,
Melonov e Yaroslavsky “firmaram” sua culpa, juntamente com as de Sten, Karev e
Luppol, por “subestimação da dialética materialista”. As paixões no mundo
acadêmico continuaram a fervilhar depois daquele encontro. Os acadêmicos não
podiam aceitar o emprego de métodos policiais em seu trabalho. A filosofia foi,
provavelmente, a primeira vítima da “pesquisa científica” stalinista. O secretário-
geral deixou bem claro que só deveria haver um líder nas ciências sociais e que este
era o papel do líder político, quer dizer, dele mesmo.
Dois meses mais tarde, em dezembro de 1930, ele falou sobre “o front filosófico”
no birô do partido do Instituto de Professores Vermelhos, cujo diretor era Abram
Deborin. O discurso é exemplo eloquente de seu pensamento filosófico, do nível de
sua racionalidade e, simplesmente, de sua falta de tato. De acordo com a ata da
reunião, ele disse:

Temos que virar de pernas para o ar e revolver o monte de estrume que se acumulou na filosofia e nas
ciências sociais. Tudo o que foi escrito pelo grupo de Deborin precisa ser destruído. Sten e Karev podem ir às
favas. Sten jacta-se bastante, mas é apenas um pupilo de Karev. Sten é um rematado preguiçoso. Só o que
sabe fazer é falar. Karev tem uma cabeça enorme e pavoneia-se por aí como uma bexiga inflada. Na minha
opinião, Deborin é caso perdido, mas deve permanecer como editor do periódico**** para que tenhamos
alguém para derrotar. O conselho editorial ficará com dois fronts, mas teremos a maioria.

As perguntas começaram a chover tão logo Stalin parou de falar: “Pode-se comparar
a batalha sobre a teoria com o desvio político?”
Stalin respondeu: “Não só pode, deve, sem dúvida.”
“E que dizer dos ‘esquerdistas’? Você lidou com os ‘direitistas’.”
“O formalismo vem surgindo sob camuflagem esquerdista”, replicou Stalin.
“Anda servindo seus pratos com tempero esquerdista. Os jovens têm um fraco pelo
esquerdismo. E estes senhores são bons cozinheiros.”
“Em que o Instituto deve se concentrar na área da filosofia?”
“Em derrotar, esta é a questão principal”, replicou Stalin. “Derrotar em todos os
lados, e onde não tenha havido derrota antes. Os deborinitas encaram Hegel como
um ícone. Plekhanov tem que ser desmascarado. Ele sempre olhou com certo
desdém para Lenin. Até Engels não está correto em tudo. Existe um lugar neste
comentário sobre o Programa Erfurt a respeito do crescimento dentro do
socialismo. Bukharin tentou utilizá-lo. Não seria mau se pudéssemos implicar
Engels em algum lugar dos escritos de Bukharin.”21
Dessa forma, Stalin, que não sabia praticamente nada de filosofia, “instruía” os
filósofos. A questão principal era “derrotar”. Quanto à filosofia marxista, explicou o
que deveria constar numa seção especial do Curso resumido: uma série de frases
curtas e incisivas dividindo a filosofia em diversas características básicas, como
muitos soldados cobertos e alinhados. Talvez esse “ABC filosófico”, mais algumas
outras fontes, ajudassem na campanha contra o desconhecimento, mas depois que
apareceram os trabalhos de Stalin, a filosofia murchou, pois ninguém mais teve
coragem de escrever coisa alguma sobre o assunto. Não se passara um mês e o
comitê central já aprovava uma resolução sobre o periódico Pod znamenem
marksizma. Os adeptos de Deborin, que estavam congregados em torno do editor
do periódico, foram alcunhados “grupo de mencheviques idealistas”.
A.P. Balashov disseme que Stalin absorvia uma quantidade colossal de
informações diariamente, inclusive relatórios, telegramas, cifras e cartas, e que, em
quase todos os documentos, ele apunha instruções ou comentários expressando
concisamente sua atitude e, assim, estabelecendo decisões definitivas sobre grande
variedade de questões. Depois de examinar por alto uma pilha de cartas e de nelas
escrever seus comentários habitualmente lacônicos – tais como “Grato por seu
apoio”, “Ajudem este homem”, “Bobagem” –, ele quase sempre selecionava uma ou
duas e preparava respostas com alguma substância. Por exemplo, em 1928, um
veterano bolchevique que vivia em Leningrado escreveu perguntando sobre o perigo
da restauração do capitalismo e se havia quaisquer desvios no Politburo. Stalin
destacou uma folha de um bloco de anotações e escreveu com sua letra grande e
clara:

Camarada Shneer,
O perigo da restauração do capitalismo existe. O desvio de direita subestima a força do capitalismo. E a
esquerda nega a possibilidade da construção do socialismo em nosso país. Eles propõem executar seu
fantasioso plano de industrialização ao custo de uma divisão com os camponeses.
No Politburo não há desvios, nem de direita nem de esquerda.
Com saudações camaradas.
I. Stalin22

No auge do Stakhanovismo,***** nos anos 1930, os mineiros de carvão Stakhanov e


Grant mandaram uma proposta ao governo “sobre a formação de engenheiros e
técnicos”, segundo a qual deveria haver a dispensa dos stakhanovitas, durante um ou
dois dias da semana de trabalho de seis dias, para que pudessem estudar. Como era
nova e revolucionária, a ideia foi discutida pela imprensa e granjeou considerável
apoio. Stalin leu a proposta e escreveu sinteticamente a Ordzhonikidze: “Este não é
um assunto sério.”23
É difícil retraçar as qualidades intelectuais que permitiram que Stalin lidasse
criativamente com problemas à proporção que surgiam. Ele sempre tentava agir de
acordo com um plano, ou um dogma, ou algum postulado de noção preconcebida.
Ao mesmo tempo, era capaz de exercitar o pensamento intuitivo e podia ver o ponto
em que as coisas chegariam vários estágios à frente. Nessas ocasiões, o seu processo
mental ficava obscurecido e apenas o resultado era visível, fosse uma decisão, uma
generalização, uma conjetura, ou uma suspeita. O processo intuitivo desborda o
pensamento lógico e produz de imediato uma “saída” de forma sumária. É claro que
uma suspeita sem fundamento frequentemente surge quando existe deficiência na
consciência moral. E isso ocorria com Stalin. Ele podia virar-se para um camarada e
afirmar: “Você está evitando olhar nos meus olhos!” A suspeita patológica neste caso
era menos uma manifestação de pensamento intuitivo do que o fato de que suas
suspeitas careciam de base na realidade e eram, em vez disso, expressão de uma
postura profundamente errônea e paranoica que deu lugar ao surgimento de uma
propensão a ver potenciais inimigos em todos os cantos.
O conhecimento permite que um homem se torne competente, as emoções têm
possibilidade de enobrecê-lo e a força de vontade pode transformar suas convicções e
iniciativas em realidade por intermédio da ação. A vontade assemelha-se aos
músculos da mente, a força motivadora do intelecto. Uma vontade forte tem
capacidade de tornar um intelecto ativo e determinado – a espécie de intelecto que
pode ser encontrada entre os comandantes militares. Não surpreende que tenham
sido exatamente estes últimos os primeiros a notar que Stalin era dotado de um
intelecto forte.
Um capítulo próprio trata de Stalin como comandante militar, porém, com o
propósito de descrever suas qualidades intelectuais, o testemunho de dois destacados
chefes militares, os marechais G.K. Zhukov e A.M. Vasilievsky, que trabalharam
muito próximos a Stalin, merecem atenção. Zhukov detectou em Stalin “a
capacidade para formular uma ideia concisamente, uma mente naturalmente
analítica, grande erudição e memória prodigiosa”. Tinha também um caráter
fechado e dado a caprichos. Normalmente calmo e racional, ele podia ter lapsos de
aguda irritação. Em tal estado, perdia a objetividade e transformava-se visivelmente:
empalidecia e seu olhar se tornava carregado e ameaçador.24
Relembrando traços de Stalin, o marechal Vasilievsky destacou sua memória
fenomenal:

Jamais conheci outra pessoa com tamanha memória. Ele conhecia pelo nome todos os comandantes do
exército e do front, dos quais havia mais de uma centena, e sabia até o nome de alguns comandantes de
corpos e de divisões. [...] Durante toda a guerra, Stalin guardou na cabeça a composição das reservas
estratégicas e podia citar qualquer formação a qualquer hora.25

A capacidade de Stalin de apreender rapidamente a essência de uma situação


também causou profunda impressão em Winston Churchill: “Pouquíssimas pessoas
neste mundo podiam compreender em tão poucos minutos as razões com as quais
todos nós vínhamos batalhando havia meses, e ele viu tudo num piscar de olhos.”26
Parece inquestionável que Stalin era dotado de consideráveis poderes intelectuais,
além de objetividade e determinação altamente desenvolvidas, e que, mais do que a
força das circunstâncias ou a mera chance, foram essas qualidades que fizeram dele
um dos camaradas em armas de Lenin durante a revolução e a guerra civil. Ele foi
capaz de demonstrá-las na ocasião em que elas eram mais necessárias, e talvez tenha
sido por isso que tanto se evidenciaram. Talvez como consequência, Stalin passou a
acreditar em si mesmo, e talvez também tenha se tornado capaz de fazer coisas que
os outros julgavam impossíveis. Por outro lado, quando Zhukov e Vasilievsky
escreveram sobre Stalin, havia muita coisa que eles ainda não sabiam e, mais
importante, muita coisa que não podiam dizer.
Conquanto seja possível afirmar-se que Stalin teve um intelecto excepcional, a
verdade é que ele estava bem longe de ser um gênio. Nem era em absoluto realista a
respeito de sua própria capacidade, mas emitia julgamentos em quase todos os
campos do conhecimento, de política e economia à linguística, dando aulas tanto a
diretores de cinema quanto a agrônomos, e impondo opiniões peremptórias tão
facilmente nas questões militares quanto na preparação de textos históricos. Na
maior parte, seus pontos de vista eram os de um amador, se não de um completo
ignorante, mas o coro de elogios que saudava quaisquer de suas assertivas elevava
aquelas opiniões às raias da revelação do alto.
Por exemplo, por iniciativa de um grupo de arquitetos (e de acordo com decisão
tomada já em 1922), Molotov e Kaganovich apresentaram a Stalin a proposta de
construção de um Palácio dos Sovietes no lugar da soberba catedral de Cristo
Salvador. Stalin aprovou o plano de pronto, desvendando totalmente sua imensa
falta de consideração pelos monumentos importantes da cultura russa. Ninguém
pensou em consultar a população russa, que tinha contribuído com dinheiro para a
construção da catedral havia apenas cinquenta anos, o que ela desejava, e o edifício
foi devidamente explodido em 5 de dezembro de 1931. Quando ocorreram as
explosões, Stalin, no seu escritório no Kremlin, tremeu e perguntou ansiosamente:
“Onde é o bombardeio? Que explosões são essas?” Poskrebyshev explicou que,
segundo a decisão de julho sobre o local do Palácio dos Sovietes, que Stalin
aprovara, a catedral de Cristo, o Salvador, estava sendo demolida. Stalin relaxou e
não prestou mais atenção às explosões que continuaram por mais uma hora; mas
voltou à leitura de relatórios locais sobre o progresso da coletivização. Provavelmente
nem sabia que a catedral fora construída com a contribuição dos centavos da gente
comum, e que o interior e as esculturas eram obras de Vereshchagin, Makovsky,
Surkov, Pryanishnikov, Klodt, Ramazanov e outros mestres famosos. A catedral,
construída para ficar de pé por séculos, foi demolida por razões “ateístas” e
arquiteturais.
O arquiteto do Palácio dos Sovietes, B. Iofan, escreveu sobre o evento:

Era 1931. A catedral de Cristo, o Salvador, ainda estava de pé no centro de uma grande praça às margens do
rio Moscou. Com uma cúpula dourada, enorme e desajeitada, parecendo um bolo ou um samovar, dominava
as casas e as pessoas em torno com sua arquitetura oficial, fria e sem vida, um reflexo da autocracia russa sem
talento e dos construtores “muito bem-postos” que tinham criado aquele templo para os mercadores e os
latifundiários. A revolução proletária está levantando corajosamente sua mão contra esse incômodo edifício
que simboliza o poder e o gosto dos lordes da velha Moscou.

Iofan descreveu, extasiado, os “comentários de gênio” que Stalin fizera sobre o plano
para o Palácio. Suas sugestões “audaciosas” visualizavam um palácio que se ergueria
a mais de 300 metros, com uma figura de Lenin de 100 metros de altura no seu
topo, enquanto o grande salão não teria menos que 21 mil lugares. A megalomania
de Stalin ficou patente em seus comentários sobre o projeto. Por que o pódio era tão
pouco elevado em relação ao salão? Tem que ser bem mais alto! Não deve haver
candelabros, a iluminação tem que vir da luz refletida. Os motivos artísticos
principais deveriam expressar as seis partes do juramento prestado por Stalin depois
da morte de Lenin. Ele deixou perfeitamente claro que o projeto não era apenas de
um Palácio dos Sovietes, mas de um monumento à sua glorificação, à glorificação
do líder, por séculos. Toda a grandiosa estrutura cívica deveria espelhar a “ideia da
criatividade da democracia soviética de muitos milhões...”27 E que democracia!
Onde tudo, desde a forma do edifício à sua fachada, passando pela iluminação, a
altura dos pilares, os motivos das esculturas e mosaicos, suas próprias proporções e
muitos outros aspectos estritamente profissionais, era determinado por um só
homem que, em sua “genialidade”, achava perfeitamente normal que fosse o único a
dar as ordens finais!
A política sempre teve prioridade quando a discussão era sobre história, cultura
ou arte. Por exemplo, quando Khruschev anunciou, no pleno de fevereiro-março de
1937, que “na reconstrução de Moscou, não devemos temer a remoção de uma
árvore ou de uma pequena igreja, ou de uma catedral ou outra”,28 recebeu a
aprovação silenciosa de Stalin. Os valores culturais tinham importância secundária
e, em qualquer caso, ele era o árbitro definitivo sobre o que era valioso. A sorte de
muitas obras de arte dependeu tão somente de sua decisão.
A mente de Stalin era desprovida do adorno de qualquer característica nobre, de
um traço de humanismo, para não falar do amor pela humanidade. Em julho de
1946, por exemplo, Beria reportou que seus campos de correção estavam com mais
de 100 mil presos incapacitados para o trabalho e cuja manutenção custava uma
fortuna ao Estado. Recomendou que os portadores de doenças incuráveis e os
mentalmente perturbados fossem libertados de imediato. Stalin concordou, mas
insistiu que os criminosos especialmente perigosos e os condenados a trabalhos
forçados, por mais doentes que estivessem, deveriam permanecer presos.29
Notas

* O nome da peça é O suicida, a pessoa que se mata. Stalin chamou de Suicídio, o ato em si.

** Departamento de Cultura e Propaganda.

*** Jornais publicados em Berlim, Paris, Nova York, Praga e Harbin por grupos de emigrados que iam da
extrema direita aos conservadores, liberais e socialistas.

**** Pod znamenem marksizma (“Sob a bandeira do marxismo”).

***** Campanha publicitária enganosa, com base no desempenho quebrador de recordes de um mineiro
chamado Stakhanov, usada para aumentar a produção pela criação de condições artificiais de trabalho.
[24]
Cesarismo

N o início de 1937, Lion Feuchtwanger, o escritor alemão, visitou Moscou.


O resultado foi o livro Moscou 1937 (relato de minha viagem para meus
amigos), publicado em Amsterdam. Ele não escondeu o fato de que
escreveu como simpatizante, e seu livro, com efeito, foi uma verdadeira coonestação
do sistema soviético. Sua simpatia pela URSS cresceu com a visita, mas o que ele
não pôde deixar de notar – e ao que devotou grande parte do livro – foi o lugar
ocupado por Stalin na vida do povo soviético:

A adoração e o culto ilimitado com que a população cerca Stalin é a primeira coisa que causa admiração no
visitante estrangeiro à União Soviética. Em todos os cantos, em cada intercessão de ruas, em lugares
adequados e inadequados, podem-se ver gigantescos bustos e estátuas de Stalin. Os discursos ouvidos, não
apenas os políticos, mas até sobre assuntos científicos e artísticos, são preparados como glorificação a Stalin e,
por vezes, tal deificação toma formas de mau gosto.30

Quando Feuchtwanger conversou com Stalin sobre isso, o secretário-geral


simplesmente sorriu maliciosamente e deu de ombros, observando que “os operários
e camponeses estão muito ocupados com outras questões para se preocuparem com
bom gosto”, e pilheriou sobre as centenas de milhares de retratos daquele homem
bigodudo ampliado a tamanhos monstruosos, que, nas procissões, ficavam olhando
para ele.31 Indo um pouco além de Stalin na tentativa de explicar as origens e
precondições daquela maciça adoração ao ídolo, Feuchtwanger escreveu que a
veneração ao líder

aumentou organicamente com o sucesso da construção econômica. O povo era grato a Stalin pelo pão e pela
carne, pela ordem em suas vidas, por sua educação e pela criação de um exército que velava por seu bem-
estar. O povo tinha que ter alguém a quem expressar sua gratidão pela inquestionável melhora nas condições
de vida e, para tanto, não selecionara algo abstrato, como o “comunismo”, mas algo real, um homem, Stalin.
[...] A reverência sem limites a ele, pois, não é ao homem Stalin, mas ao símbolo de uma construção
econômica patentemente vitoriosa...32
Essa ingênua explanação agradou tanto a Stalin que ele fez com que o livro fosse
traduzido para o russo com velocidade espantosa e publicado com uma enorme
tiragem. O livro foi talvez o único jamais publicado na União Soviética sob o
mando de Stalin que reconhece a existência do culto ao líder e oferece alguma
explicação para ele. Stalin personificava tanto os ideais socialistas quanto a realidade
e, portanto, de acordo com o autor, o povo devia ao líder sua gratidão.
O culto à liderança era humilhante para o povo, até mesmo insultuoso. Era o
cesarismo no século XX, a usurpação do poder por uma pessoa mantidos os
símbolos formais da democracia. Como tal prática surgiu e em que ambiente
prosperou?
Ao identificar as fontes do culto à liderança é possível entender-se o porquê de
Stalin ter sido tão popular, a despeito de sua crueldade e de seu desprezo pelas
normas humanas elementares. Como vimos, o principal esteio do culto foi a falta de
princípios democráticos no partido e no Estado. Um povo que vivera séculos à
sombra da coroa czarista não podia em poucos anos livrar-se de velhos hábitos. O
czar, a dinastia e a pompa czarista foram destruídos, mas o antigo modo de pensar,
com tendência à idolatria de uma poderosa figura soberana, persistira.
Nikolai Berdyaev escreveu em 1918 em O destino da Rússia:

A Rússia é, culturalmente, um país atrasado. Há trevas bárbaras lá, um primarismo asiático sombrio e
caótico. O atraso russo tem que ser sobrepujado pela atividade criativa e pelo desenvolvimento cultural. A
Rússia mais original será a vindoura, a nova Rússia, e não a velha Rússia atrasada.33

Foi este atraso que veio à tona em muitos dos processos sociais desencadeados
depois da revolução, quando a democracia não estava em evidência. Mesmo
enquanto Lenin viveu, houve muita glorificação aos líderes, demasiado
reconhecimento de seus “méritos especiais”. O sistema em si não contemplava
restrições ou mecanismos críticos do tipo que só seria genuinamente encontrado no
pluralismo revolucionário. Se os socialistas revolucionários de esquerda tivessem
permanecido em cena, seria difícil imaginá-los juntando-se ao coro de louvação de
Stalin.
O primeiro a notar o perigo de se transformar um líder em conceito ideológico
foi Trotsky que, em 1927, escreveu suas reminiscências de Lenin sob o título “Da
santimônia”:
O falecido Lenin, parece, renasceu: talvez esteja resolvido o caso da ressurreição de Cristo. Mas o perigo
começa com a burocratização da estima e a automação de atitudes em relação a Lenin e seus ensinamentos.
N.K. Krupskaya disse, recentemente, boas e simples palavras, contra os dois perigos. Ela disse que não
deveriam existir tantos monumentos em homenagem a Lenin nem deveriam ser fundadas instituições
desnecessárias e inúteis com seu nome.34

A erradicação do ambiente aberto no partido e nas funções do estado que se seguiu


ao XVII Congresso marcou o fim formal de uma era. Os anos 1920 foram muito
mais convenientes, tudo podia ser debatido. Por exemplo, foi considerado normal o
Pravda publicar que, no XIV Congresso, a resolução sobre o relatório de Stalin e
Molotov recebera 559 votos a favor e 65 contra, ou que, em 1º de setembro de
1926, havia 1.026.000 desempregados registrados no país. O povo podia descobrir a
maior parte do que desejava saber sobre as questões sociais, econômicas, culturais,
financeiras ou históricas.
A partir do início da década de 1930, a verdade começou a ser distribuída em
doses limitadas, e o resultado foi que as pessoas ficaram incapacitadas de julgar sua
liderança. Com o passar do tempo, Stalin e seu entourage, bem como suas ações,
estariam separados do povo por uma cortina impenetrável. Os exemplos mais
gritantes, é claro, foram os expurgos e o terror. Que se sabia deles? Publicamente
eram aplicados apenas às figuras importantes, cientistas bem conhecidos, destacados
líderes militares “desmascarados” como inimigos do povo e cuja exposição tinha a
intenção de, em parte, servir como exemplo. Os milhões de desventurados, que
foram a grande massa das vítimas, desapareciam sem ser notados, na calada da noite,
com frequência para sempre. A monstruosa sentença imposta a tantas pessoas – dez
anos sem direito a correspondência – era em si um ato de censura. Que se sabia a
respeito das “reuniões especiais” promovidas pela NKVD em julho de 1934?
Acreditava-se naquele tempo que sua autoridade não ia além da condenação ao
exílio ou à pena de cinco anos, porém, mais tarde, soube-se que ela sentenciava
pessoas inocentes ao fuzilamento ou a 25 anos de trabalhos forçados.
Gradualmente, o povo aprendeu a se contentar com apenas parte da verdade.
Assim, por exemplo, em 20 de fevereiro de 1938, foi-lhe dito que os quebra-gelos
Taimyr e Murman haviam resgatado quatro exploradores soviéticos aprisionados
pelo gelo flutuante no mar da Groenlândia, mas nada lhes foi revelado sobre os
preparativos para o julgamento de Bukharin que deveria ocorrer no prazo de duas
semanas.
Quando a verdade era um luxo, uma palavra ou ato descuidados podiam ser
vistos como ataque ao monopólio da verdade como proclamada pelo líder. Assim,
falando no pleno de fevereiro-março de 1937, o delegado Mogushevsky detectou
perigo no trabalho da rádio de Minsk:

A rádio de Minsk vem difundindo programas antissoviéticos. Em 23 de janeiro, transmitiu as acusações


contra o centro trotskysta. Depois da irradiação das acusações e de um relatório sobre a sessão matutina do
tribunal, foi posto no ar um concerto de Chopin que incluía a conhecida Sonata em si menor. Não foi
coincidência, e sim uma grande sutileza: a marcha fúnebre não foi transmitida porque isso seria muito óbvio,
então tocaram toda a sonata. Nem todos captaram que ela abarcava a marcha. Não, não foi coincidência.35

Para os que dependiam de Stalin, demonstrar tal tipo de “vigilância” em relação aos
“inimigos do povo” era uma maneira de manter o emprego e mesmo a vida. Por
exemplo, foi em tais circunstâncias que Kabakov,* secretário do partido em
Sverdlovsk, achou “danos” numa área diferente. Ele disse no pleno: “Descobrimos
uma tenda em que as compras eram embrulhadas em cópias do relatório de
Tomsky.** Pesquisamos e chegamos à conclusão de que organizações comerciais
haviam comprado substancial quantidade de tal literatura. Quem pode dizer se esse
material impresso está sendo utilizado apenas como papel de embrulho?”36
Stalin não teria sido capaz de envergar a toga de imperador – mesmo que ela
fosse uma modesta túnica do exército – se não tivesse conseguido primeiro dominar
a mente do povo. Ele bem sabia que precisava garantir a fé como líder todo-
poderoso e estimular o entusiasmo das gentes, trombeteando suas vitórias e
censurando seus fracassos, em sua maior parte devidos “ao esforço dos inimigos e
destruidores”. Foi bem-sucedido neste particular. O entusiasmo das pessoas não era
artificial: o trabalho delas era quase sempre de autossacrifício. Quando exigiam a
pena de morte ou punições severas para os traidores, estavam sendo sinceros. Até
Alexei Stakhanov escreveu:

Quando os julgamentos tiveram lugar em Moscou, primeiro de Zinoviev, depois de Kamenev e, ainda
depois, de Pyatakov e sua quadrilha, nós pedimos que eles fossem fuzilados. Mesmo as mulheres de nosso
assentamento, que jamais se interessaram por política, cerraram os punhos quando leram o que os jornais
publicavam. Dos mais idosos aos jovens, todos exigiam que os bandidos fossem destruídos.37

Gerações eram formadas com a crença fundamental de que tudo que seu grande
líder fazia estava certo, e muito poucos tinham quaisquer dúvidas. Hoje, quando
quase todos os inimigos políticos de Stalin foram reabilitados, a história do partido
naqueles anos aparece sob uma luz bastante diferente. Ocorrera uma luta pela
liderança e pela escolha dos meios para a construção de uma vida nova. Algumas
pessoas fizeram opções erradas, muitas tinham opiniões que divergiam das adotadas
pelo partido, mas poucas eram, como Stalin as descrevia, inimigas. Ainda assim, o
tênue vestígio de suspeita contra elas desenvolveu-se em pesadas acusações e resultou
num fim trágico.
Stalin frequentemente tratava dos assuntos sem dar uma decisão escrita. Devo ter
examinado alguns milhares de itens de correspondência endereçada pessoalmente a
ele sobre as questões mais diversas: relatórios sobre o progresso da safra, deportação
de povos inteiros, notificação de sentenças executadas, remoção de membros dos
altos escalões, construção de fábricas para o exército, cabogramas decodificados de
fontes de inteligência, traduções de artigos da imprensa ocidental, cartas pessoais
para ele e todas as espécies de esquemas, invenções e ideias loucas. Estimo que li
entre cem e duzentos documentos por dia, que iam de uma simples folha a pastas
completas. Na maioria dos casos, ele simplesmente apunha suas iniciais no papel.
Antes de levar o material para a apreciação do chefe, Poskrebyshev anexava um
pequeno pedaço de papel com uma proposta de decisão e o nome de seu autor.
Stalin raramente dava despachos longos. Se concordava com um plano, só rubricava
a folha de papel, ou escrevia “De acordo”, e a devolvia ao assistente para a pilha de
despachos.
Ocasionalmente, Stalin dava a entender ao partido e ao povo que era contra a
glorificação e a idolatria. Tais atitudes, no entanto, eram apenas jogo para a plateia.
Existe, por exemplo, a seguinte carta nos arquivos:

Para os camaradas Andreyev (Detizdat***) e Smirnova.****


Sou decididamente contra essa publicação de Histórias da infância de Stalin. O livro tem muitos erros
factuais. Mas isto não é o principal. O importante é que o livro tem a tendência de instilar na mente do povo
soviético (e do povo em geral) um culto a personalidades, a líderes e a heróis infalíveis. Isto é perigoso e
nocivo. A teoria de “heróis” e a “multidão” não é bolchevique, é própria dos SR [socialistas revolucionários].
[...] O povo cria heróis, os bolcheviques rejeitam heróis.
Aconselho-vos a queimar o livro.
16 de fevereiro de 1938. I. Stalin38

Essa nota cuidadosamente escrita, na verdade, foi calculada para fortalecer a


glorificação de Stalin, não para interrompê-la. Quem seria então capaz de dizer que
ele não era modesto? Mas havia um outro lado naquela história, ou seja, ele não
gostava de menções à sua infância. Tamanho abismo se abrira entre ela e o pináculo
da posição atingida que ficava atordoado só em pensar nele. De qualquer forma, por
que as pessoas precisavam saber o que ele fora no passado, quando tudo que
necessitavam era conhecer o que era agora?
Stalin se deleitava em ouvir outras observações sobre sua modéstia. No plenário
de fevereiro-março de 1937, Mekhlis disse que “já em 1930, o camarada Stalin
enviou-me a seguinte carta para o Pravda, que vou me permitir ler sem sua
permissão”:

Camarada Mekhlis,
Existe uma recomendação para que se publique a instrutiva história anexa sobre um kolkhoz. Cancelei tudo
o que se referia a “Stalin” como o “vozhd do partido”, “o líder do partido” e coisas semelhantes. Creio que
esses ornamentos laudatórios só causam males.
A carta deve ser publicada sem tais epítetos.
Com saudações comunistas. I. Stalin39

Tais observações só tencionavam criar lendas sobre “a excepcional modéstia do


camarada Stalin”, homem “totalmente desprovido de vaidade”.
Stalin sabia que qualquer grau de descentralização ou de robustecimento do
papel dos órgãos do partido e de elevação da importância das organizações sociais
podiam, mais cedo ou mais tarde, levar a uma crise intelectual e política para a
própria ideia do culto à liderança. Portanto, era essencial para ele manter a mente
pública algemada pelo dogmatismo, alimentando-a com trabalhos de sua lavra. O
povo acreditava nos artigos e discursos de Stalin (cada vez menos frequentes) e
olhava seus retratos onipresentes com fé no coração. Desde a infância sabiam:
“Stalin pensa em nós.”
Esta lavagem cerebral continuada fez mais do que condicionar a mente dos
jovens, resultou também na degeneração dos quadros. A partir de então, o único
trabalhador útil passou a ser aquele que desejava concordar com as ideias,
argumentos e decisões mais absurdos, contanto que levassem o nome de Stalin.
Mikoyan não poderia ter acreditado em suas próprias palavras quando, por ocasião
do vigésimo aniversário da Cheka (OGPU-NKVD), em 1937, disse: “Aprendam o
estilo stalinista de trabalho com o camarada Yezhov, da mesma forma que ele
aprendeu com o camarada Stalin!”40 No entanto, este passou a ser o modo com que
todos tinham que falar, exercessem funções no alto ou no baixo escalão, ou não
tivessem cargo algum. A consciência, a oportunidade de exercitá-la, foi sufocada.
Como Yevtushenko escreveu em seu poema “Medo”:

O povo foi domado aos poucos,


E tudo foi lacrado.
Ensinado a gritar quando deveria estar silente,
Quieto ficou quando devera esbravejar.
Quieto ficou quando devera esbravejar.
Notas

* Logo seria executado.

** Tomsky já havia sido declarado inimigo do povo, e suicidara-se.

*** Editora de livros infantis.

**** Autora de Rasskazy o detstve Stalina (Histórias da infância de Stalin).


[25]
À sombra do chefe

D epois do XVII Congresso, o Politburo era um órgão profundamente


alterado, já que a velha guarda fora praticamente varrida pela tempestade
interna. Stalin sentia-se desconfortável com a proximidade dos antigos
companheiros porque o conheciam em todos os seus diferentes estados de espírito –
firme e hesitante, imperturbável e confuso, afável e deplorável. Também sabiam que
só existira um líder na revolução – Lenin – e que Stalin fora apenas terceiro ou
quarto violino. Sabiam que em tudo, menos determinação, Stalin era inferior a
muitos. Não havia espaço suficiente na cabine de comando para Trotsky, que o via
como uma mediocridade, ou para Bukharin, que o considerava um déspota asiático,
ou para Rykov, que não respeitava ninguém a não ser Lenin, ou para Zinoviev e
Kamenev, pois ambos pensavam que, como amigos mais próximos de Lenin, um
deles deveria sucedê-lo. Ademais, não viam Stalin como seu líder. O secretário-geral
precisava de novos camaradas em armas.
Entre os sobreviventes, novas caras surgiam ao lado de Stalin, seja no Mausoléu,
na plataforma das assembleias ou na mesa do Politburo: A.A. Andreyev, K.Ye.
Voroshilov, L.M. Kaganovich, M.I. Kalinin, S.M. Kirov, S.V. Kosior, V.V.
Kuibyshev, V.M. Molotov, G.K. Ordzhonikidze, bem como A.I. Mikoyan, G.I.
Petrovsky, P.P. Postychev, Ya.E. Rudzutak, V.Ya. Chubar e, mais tarde, A.A.
Zhdanov e R.I. Eikhe. Do grupo, Stalin rapidamente separou um núcleo
constituído por Molotov, Kaganovich e Voroshilov. No entanto, cedo começaram a
aparecer lacunas nas fileiras: Kirov assassinado, Kuibyshev faleceu em 1935,
Ordzhonikidze cometeu suicídio, enquanto Kosior, Postyshev, Rudzutak, Chubar e
Eikhe foram eliminados no grande expurgo. Entre 1937 e 1939, seis membros do
Politburo e um candidato a membro estiveram num dos mais angustiosos episódios
da história russa, mas não foram meras testemunhas; todos, particularmente o
núcleo dos três, se envolveram cerradamente nos eventos. Nas palavras de Goethe, o
mal seguiu-se ao mal, e a ilegalidade se tornou a lei em todo o império.
Mas não era um império, tratava-se do primeiro Estado socialista dos operários e
camponeses, o primeiro em que eles haviam conquistado o poder e o primeiro em
que cederam tal poder para um “grande líder”. Contudo, ninguém do círculo de
Stalin teve a coragem para arremessar as palavras de Goethe sobre o líder, ou para
tentar interromper o processo. Que espécie de gente era aquela que borboleteava à
sombra do chefe?
Em Zhukovka, subúrbio de casas de verão nas cercanias de Moscou, ainda podia
ser visto, na primavera de 1986, um senhor idoso, de testa alta e com o indefectível
pincenê, arrastando vagarosamente os pés ao compasso das pancadinhas de sua
bengala e voltando seus olhos castanho-amarelados para os raros passantes. O
sobretudo surrado e as botas gastas do velho eram provas de que seu dono tinha
visto e experimentado muitas coisas. Mas ninguém poderia supor que ele chegaria
aos 97 anos de idade e que era nada mais nada menos que o ex-presidente do
Sovnarkom, o ex-membro do Politburo, o ex-comissário do povo das Questões
Internas e um dos cúmplices mais próximos de Stalin, Vyacheslav Mikhailovich
Molotov.
Molotov fora secretário do Comitê Central e candidato a membro do Politburo
sob Lenin e, embora a história tenha registrado observações desagradáveis feitas por
Lenin a seu respeito – uma delas, que “sob seu nariz gerava-se a mais vergonhosa e
estúpida burocracia”41 –, ele foi um dos últimos dos moicanos que trabalharam com
Lenin havia todos aqueles anos. O poeta F. Chuev encontrou-se frequentemente
com Molotov e, nas conversas comigo, em 1985, descreveu-o como “modesto,
preciso e frugal. Providenciava para que nada fosse desperdiçado, para que nenhuma
luz ficasse acesa em salas vazias. Quando faleceu em 1986, um envelope continha
sua caderneta de poupança com 500 rublos para o funeral”.
Era o homem que trabalhara com Trotsky, Bukharin e Rykov. Churchill e
Roosevelt o conheceram bem, e ele se sentou durante horas em negociações com
Hitler e Ribbentrop como um dos arquitetos do Pacto Nazi-Soviético de Não
Agressão e do Tratado sobre as Fronteiras. Muitos cidadãos soviéticos se recordam
das palavras dramáticas que proferiu, ele e não Stalin, ao meio-dia de 22 de junho
de 1941: “Nossa causa é justa. O inimigo será esmagado. A vitória será nossa.” Este
episódio será examinado em detalhes mais adiante. Por ora, notemos que Stalin
estava tão pasmo com o começo catastrófico da guerra que recusou os apelos do
Politburo para que ele mesmo discursasse e, em vez disso, encarregou seu “braço
direito” da tarefa.
Por muitas décadas, Molotov foi a sombra de Stalin, sempre ao seu lado nas
reuniões do Politburo, no Mausoléu, nos artigos de jornal, nas conferências
internacionais. Mesmo quando o Pravda publicava seus artigos estampava ao lado
um grande retrato de Stalin.
Em que pensava aquele homem nos anos de declínio, vivendo no apartamento
de Moscou na rua Granovsky ou na vila oficial de Zhukovka? O que lhe vinha à
mente? Talvez a reunião do Comitê Central de dezembro de 1930, quando Rykov
foi afastado da função de presidente do Conselho de Ministros e o próprio Stalin
propôs Molotov para substituí-lo? Naquela oportunidade, Molotov declarou que
“passara na escola do bolchevismo sob a supervisão direta de seu melhor professor,
Lenin, e sob a supervisão do camarada Stalin. Tenho orgulho disto”.
Nada o mudou nas décadas pós-Stalin. Pouco antes de falecer, Molotov disse a
Chuev que “se não fosse Stalin, não sei o que teria sido de nós”. No fim da vida,
considerava Stalin um gênio e estava convencido de que Tukhachevsky fora a força
armada dos “direitistas” e de que Rykov e Bukharin arquitetaram uma conspiração.
Afirmava que “1937 permitiu que evitássemos uma quinta-coluna na guerra”.
Admitia que houve muitos erros, “que muitos comunistas honestos pereceram, mas
que, com métodos suaves, não manteríamos aquilo que conquistáramos”. Tendo
sobrevivido às mais violentas tempestades da história, a mente daquele homem
parara de funcionar. Como executor obediente, zeloso e sofisticado dos desejos de
Stalin, Molotov teve imensa responsabilidade pela corrupção da legalidade e pela
repressão como instrumento do poder.
No famoso pleno de fevereiro-março de 1937, Molotov apresentou um relatório
sobre as “lições da sabotagem, ação diversionária e espionagem praticadas por
agentes nipo-germano-trotskystas”. Todo o discurso nada mais foi que a
conclamação por um massacre social:

As hesitações de ontem de comunistas vacilantes já se transformaram em atos de sabotagem, de ação


diversionária e de espionagem pelo acordo com os fascistas e para vantagem destes últimos. Temos que
responder golpes com golpes, temos que esmagar em todos os lugares estes destacamentos precursores de
subversivos do lado fascista. Temos que nos apressar para concluir esta tarefa e não devemos nos atrasar nem
demonstrar hesitação.42

Molotov não mostrou hesitação. Tampouco seu brado pela conclusão da tarefa caiu
no vazio. Em junho daquele ano, um informante reportou a Stalin que G.I. Lomov,
velho bolchevique e membro da equipe do Sovnarkom, parecia ser ligado a Rykov e
Bukharin. Stalin perguntou a Molotov: “O que você acha?” A resposta foi rápida e
incisiva: “Sou pela prisão imediata do porco Lomov.”43
Estava selada a sorte de Lomov: prisão, interrogatório, sentença, execução.
Membro do partido desde 1903, delegado da histórica Conferência do Partido de
abril de 1917, membro do Comitê Executivo Central da URSS, Lomov foi, como
tantos outros milhares de bolcheviques honestos, listado como “inimigo do povo”
com uma penada. Foi Molotov quem sancionou a prisão de Kabakov, primeiro
secretário do comitê partidário regional de Sverdlovsk, de Ukhanov, comissário da
Indústria Leve, de Krutov, presidente do comitê executivo regional do Extremo
Oriente, e de muitos outros. Dos 28 membros do Soviete de Comissários do Povo,
que ele presidiu, mais da metade foi fuzilada.
Era um homem duro. Em março de 1948, Rodionov, presidente do conselho de
ministros da Rússia, pediu-lhe algum tipo de auxílio a fim de encontrar
acomodações para 2.400 exilados doentes e muito idosos. A resposta de Molotov foi
áspera: “O comissário das Questões Internas da URSS acomodará 2.400 exilados
inválidos e muito idosos em campos de concentração.”44
Molotov foi muito útil a Stalin. Podia captar as intenções do chefe ao menor
sinal, e sua capacidade de trabalho tornou-se lendária, como o próprio Stalin
ressaltou várias vezes na presença de outros membros do Politburo. No
quinquagésimo aniversário de Molotov, em 1940, Stalin propôs que o nome da
cidade de Perm mudasse para Molotov, embora já existissem muitas outras cidades,
vilas e fazendas com este nome.
Por volta dos anos 1930, Stalin já se livrara de todos os teóricos. É claro que ele
mesmo era o “teórico-chefe”, mas condescendia que, em certas ocasiões, um de seus
auxiliares, normalmente Molotov, tentasse alguma coisa. Adoratsky instou Stalin a
escrever um artigo sobre estratégia e tática do leninismo para a Enciclopédia filosófica
que era preparada pela Academia Comunista. A resposta de Stalin foi a seguinte:
“Estou terrivelmente ocupado com questões práticas e, portanto, impossibilitado de
atender sua solicitação. Tente Molotov, ele está de férias e talvez encontre tempo
disponível.”45
Claro que Molotov não era um teórico, porém, comparado com Kaganovich,
Andreyev, Voroshilov e o restante, a preferência tinha que recair sobre ele. Sem a
presença de Bukharin, o único “intérprete” e “gerador de ideias” era o próprio
Stalin. Por conseguinte, não surpreende o fato de que, durante os anos 1930 e 1940,
os estudos sociais tivessem pequeno espaço no que concerne às inovações. Elas,
simplesmente, não podiam ocorrer. Não causa igualmente admiração que, em tais
circunstâncias, Molotov se considerasse até um pouco teórico.
Por trás da fachada imperturbável, extremamente reservada e inescrutável do
polido decoro oficial de Molotov se escondia uma determinação forte e malévola.
Assíduo no apoio a Stalin nas questões internas, ele foi também porta-voz diligente e
expedito da política externa soviética. Sem cúmplices como Molotov, o stalinismo
não teria sido possível.

Não menos zeloso que Molotov foi Lazar Moiseyevich Kaganovich, outro
sobrevivente até a grande idade dourada. Em novembro de 1988, comemorou seu
nonagésimo quinto aniversário no seu apartamento na Orla Frunze, à beira-rio em
Moscou e, provavelmente, esperou sobrepujar Molotov vivendo até os cem anos.*
S.I. Senin, que trabalhou para N.A. Voznesensky depois da guerra, disseme sobre
Kaganovich:

Ele era o chefe da comissão das indústrias de guerra certa ocasião em que tive que lhe entregar alguns
documentos. Eu calçava um novo par de botas. Kaganovich pegou os papéis e começou a olhar fixamente
para minhas botas.
“Tire-as”, ordenou.
“Por quê?”, gaguejei confuso.
“Tire-as, e rápido!” Não estava disposto a dar explicação.
Kaganovich pegou as botas, virou-as para um lado e para outro, depois passou a mão pelos canos.
Finalmente, jogou-as no chão e disse num tom satisfeito: “Você tem, de fato, um bom par de botas. Vi logo,
fui sapateiro.”

Ele teria se saído melhor se continuasse sapateiro, mas fez uma opção em 1911,
quando acompanhou o irmão mais velho para se filiar ao partido comunista.
Conheceu Stalin em Moscou, em 1918, quando trabalhava na comissão de Toda a
Rússia para a organização do Exército Vermelho. Foi enviado ao Turquestão em
1920, mas, quando Stalin se tornou secretário-geral, foi chamado de volta a Moscou
e encarregado da seção do Comitê Central responsável pela instrução dos
organizadores. Com um grau mínimo de educação formal, porém de elevada
capacidade administrativa, Kaganovich começou sua rápida ascensão através das
fileiras do partido e dos serviços.
Stalin gostava de Kaganovich por três motivos: sua capacidade sobre-humana de
trabalho; sua total falta de qualquer opinião – antes mesmo de conhecer o assunto
em pauta, ele dizia: “Estou de absoluto acordo com o camarada Stalin” – sobre
questões políticas; e sua incondicional disposição para executar instruções,
especialmente as do secretário-geral. Em determinada ocasião, depois do XVIII
Congresso do partido e antes da reunião do Politburo, Stalin perguntou-lhe:
“Lazar, você sabia que nosso Mikhail** anda de conchavos com os direitistas? As
evidências são fortes”, acrescentou Stalin com o olhar de quem está testando.
“Ele deve ser tratado de acordo com a lei”, conseguiu dizer Lazar com a voz
trêmula. Depois da sessão, ele telefonou ao irmão e falou-lhe sobre a conversa. O
processo foi acelerado. Mikhail decidiu não esperar pela prisão e suicidou-se no
mesmo dia.
Stalin dava valor a tais pessoas, aquelas que julgavam ter que persistir provando
sua lealdade a ele, e não com trivialidades ou bajulação servil. Kaganovich deu uma
demonstração de tal lealdade no pleno agonizantemente longo de fevereiro-março
de 1937. A máquina de punição ainda não estava totalmente pronta, acabara de ser
estabelecida e era ajustada com o trituramento de membros do partido, da
intelligentsia, da classe operária, dos camponeses, dos militares; ainda assim,
Kaganovich já estava superando a si próprio. Num discurso de duas horas, o
comissário para as Ferrovias informou sobre os primeiros resultados do “teste”:

No aparato político do comissariado para as Ferrovias, desmascaramos 220 pessoas. Na divisão de


transportes, demitimos 485 ex-milicianos, 220 SR e mencheviques, 572 trotskystas, 1.415 oficiais Brancos,
285 saqueadores, 443 espiões. Todos eles ligados ao movimento contrarrevolucionário.46

Não é difícil imaginar o que Kaganovich quis dizer com “demitimos espiões e
saqueadores” das ferrovias. Stalin deve ter ficado satisfeito com a “análise” de seu
comissário quando ele, ardorosamente, continuou a expor aos delegados:

Estamos lidando aqui com uma gangue de desesperados agentes de informações. Seus métodos em relação às
ferrovias são particularmente sofisticados. Serebryakov, Arnoldov e Lifshits exploraram o baixo nível de
segurança do acesso, organizaram descarrilamentos e estorvaram os esforços do movimento stakhanovista.
Dano especial foi causado por Kudrevatykh, Vasiliev, Bratin, Neishtadt, Morshchikhin, Bekker, Kronts e
Breis que atrasaram a entrada em serviço da locomotiva FD. O edifício da linha Moscou-Donbass foi
sabotado. Pyatov sabotou a construção da linha TurkSib; Mrachkovsky sabotou a linha Karaganda-
Petropavlovsk; Barsky e Eidelman sabotaram a linha Eikhe-Sokur.47

A despeito de os jornais publicarem a concretização dos planos sobre fretes, sobre


invenções e sobre o movimento Krivonos,*** Kaganovich manteve a pressão:
“Shermergorn, o chefe da construção ferroviária, cometeu sabotagem. O Camarada
Stalin disse-nos mais de uma vez que ele era homem mau e um inimigo. O
camarada Stalin fez-nos um alerta claro e aconselhou que mantivéssemos o olho nele
e o checássemos bem.”
“Era um homem bastante suspeito”, aparteou Mikoyan.
“Aquele porco do Serebryakov”, continuou Kaganovich, “deu informações
precisas sobre os centros industriais de defesa e traçou os planos de sabotagem.”48
Todo o discurso foi neste mesmo tom, nomeando e imprecando contra bandos
inteiros de saqueadores que estavam, aparentemente, engajados por completo na
destruição, na criação de gargalos, na confecção de planos falsos e na desorganização
do frete:

O patife do Yeshmanov foi o chefe da linha Moscou-Donetsk a partir de 1934. Depois que este cargo lhe foi
retirado e ele não conseguiu qualquer outra função, dirigiu-se diretamente ao camarada Yezhov na NKVD
para uma permissão de residência. Falou com Arnoldov sobre as reprimendas, houve muita conversa, mas
ninguém o quis. Ele agora está sob o cuidado e o controle do camarada Yezhov.49

Como o restante do círculo de Stalin, o profundamente ignorante Kaganovich


tentou conseguir alguma reputação como teórico. O Comitê Central expedira uma
diretriz ordenando que os chefes de instituições, empresas e agências conduzissem
estudos sobre o marxismo-leninismo para suas equipes dirigentes. I.V. Kovalev, ex-
membro da equipe do comissariado para as Ferrovias durante a guerra, disseme o
seguinte:

Kaganovich reuniu um grupo de gerentes e abriu o seminário. Logo pediu para que eu tomasse a palavra.
Ressaltei o fato de o proletariado, em função de sua posição e de sua capacidade para agir apenas
espontaneamente, só ser capaz de desenvolver consciência sindical. Kaganovich dirigiu-me um olhar feroz e
então explodiu: “Que bobagem! E daí que eles tenham consciência sindical? O proletariado pode desenvolver
qualquer coisa! Consciência proletária!”
Olhamos uns para os outros. Por mais que eu tentasse explicar, citando Lenin, a necessidade de se incutir a
teoria científica na cabeça do proletariado, ele não conseguiu absorver a ideia. Olhando-me com suspeita,
logo deu o encontro por encerrado e nunca mais empreendeu tarefa tão espinhosa.

Kaganovich firmou sua autoridade por meio das viagens para “eliminação de
dificuldades” que fez por ordem de Stalin. Estas visitas, por exemplo, às
organizações partidárias em Chelyabinsk, Ivanovo, Yaroslavl e a outros centros
provinciais, resultaram na remoção por atacado e na investigação de funcionários
locais que normalmente acabaram em tragédia. Stalin estava muito satisfeito com o
trabalho do seu “Lazar de Ferro”, como o chamava.
Kaganovich agia totalmente por iniciativa própria, guiado tão somente pelas
instruções de Stalin para “investigar bem um local e ser decisivo. Não amoleça”. Os
documentos mostram que, mesmo antes do processo completo, Kaganovich fixava
pessoalmente as sentenças, ou alterava arbitrariamente as palavras de um
testemunho para revelar uma trama contra ele, como comissário.
Tornou-se chefe da seção do Comitê Central responsável pela nomeação para
cargos importantes. Stalin logo percebeu seu zelo, sua dureza e seu
comprometimento com a função. Aos 33 anos de idade, em 1926, foi feito
candidato a membro do Politburo. Em 1925, por recomendação de Stalin, fora
enviado à Ucrânia para chefiar a organização partidária da república, onde se
instalara uma situação difícil. Suas relações com o chefe do soviete ucraniano de
comissários do povo, V.Ya. Chubar, se deterioraram, o que, na ocasião oportuna,
teria consequências fatais para este último. Os conflitos de Kaganovich com os
outros líderes ucranianos do partido continuaram e, em 1928, ele retornou a
Moscou para se tornar primeiro-secretário da cidade e dos comitês provinciais do
partido. No XVI Congresso do partido, em 1930, foi nomeado membro titular do
Politburo.
Sua influência foi particularmente grande na primeira metade da década de
1930. Como comissário do povo das Ferrovias, visitava constantemente as
províncias onde a coletivização não caminhava bem, e logo depois de suas aparições,
as coisas começavam a andar rapidamente. Stalin não mostrava a menor
preocupação com os métodos utilizados pelo “Lazar de Ferro”. Cruel e
extremamente grosseiro por natureza, Kaganovich foi o tipo de homem clássico do
sistema, o burocrata que se imiscuía em qualquer função sem a menor cerimônia.
Sua visita ao Cáucaso Setentrional resultou num aumento dos camponeses
“deskulakizados” enviados ao norte. Em Moscou, ele removia sumariamente quem
quer que não cumprisse uma ordem; impulsionado pela ignorância, proibia a
encenação de peças teatrais; como chefe da comissão do Comitê Central para o
expurgo no partido foi impiedoso. Sob o pretexto da reconstrução de Moscou,
Kaganovich foi um dos responsáveis pela destruição de muitos monumentos
históricos, tais como a Catedral de Cristo Salvador, a Torre Sukharev, o Mosteiro da
Paixão, os Portais Iversk. Numa só palavra, ele foi um “sucesso” completo, e para
demonstrar seu reconhecimento àquele decidido camarada, Stalin fez dele um dos
primeiros condecorados da Ordem de Lenin, quando ela foi criada, em 1930.

Outro dos camaradas próximos de Stalin nos anos 1930 foi Kliment Yefremovich
Voroshilov. Ele se juntou bem cedo ao movimento revolucionário e, em 1906, foi
um dos delegados ao IV Congresso do partido, onde conheceu Lenin, Stalin e
outras figuras de destaque. Depois de anos de prisões e períodos de exílio, estava em
Petrogrado para a Revolução de Fevereiro. Lutou em vários fronts na guerra civil e
foi notado na batalha por Tsaritsyn, quando se estabeleceu sua amizade com Stalin.
Sua reputação como herói da guerra civil deveu-se em grande parte ao patronato de
Stalin. Para falar a verdade, ele combateu com grande coragem, mas sem muita
reflexão. Falando no VIII Congresso, Lenin declarou: “O camarada Voroshilov diz:
‘Não tínhamos especialistas militares e sofremos 60 mil baixas.’ Isto é terrível. As
massas tomarão conhecimento do heroísmo do exército de Tsaritsyn, mas dizer que
manobramos sem especialistas militares não é nada defensável para a linha do
partido.”50
Durante a guerra civil, Voroshilov serviu no 1º Corpo de Cavalaria, combatendo
no front norte, no Cáucaso, na Crimeia, contra as forças anarquistas de Makhno e
tomando parte na repressão ao levante de Kronstadt, em março de 1921, quando os
soldados e marinheiros da Esquadra do Báltico se rebelaram contra o governo
bolchevique, que eles mesmos ajudaram a conquistar o poder. Por tudo isso, foi
duas vezes condecorado com a Ordem da Bandeira Vermelha. Membro permanente
do comitê central logo após o X Congresso de 1921, tornou-se membro do
Politburo depois do XIV Congresso. Com a morte de Frunze, foi nomeado
comissário do povo do Exército e para Questões Navais. Seu sucesso nesta esfera
pode ser em parte explicado pelo fato de que, durante seu tempo de comissariado,
bem como nas academias militares e em diversos círculos, existiram muitos teóricos
militares intelectualmente criativos, tanto os que subiram com a revolução quanto
os que foram oficiais do antigo exército. Entre eles, estavam B.M. Shaposhnikov,
que escreveu Os cérebros do exército, M.N. Tukhachevsky, autor de Questões de
estratégia moderna, K.B. Kalinovsky, K.I. Velichko, A.I. Verkhovsky, A.M.
Zaionchkovsky, V.F. Novitsky, A.A. Svechin, R.P. Eideman, I.E. Yakir, e muitos
outros.
Já pelo fim dos anos 1920, existiam biografias, livros e artigos sobre Voroshilov.
Havia um distintivo de peito chamado “Fuzileiro Voroshilov” e o carro de combate
pesado KV recebeu tal designação em sua homenagem (seu substituto, o IS,
homenageou Stalin). A glória de Voroshilov foi, de fato, de âmbito nacional, mas
Stalin pouco se preocupava com isso porque, nos anos 1930, ele era saudado como
“o homem que executa a vontade do líder”, ou como um “marechal Vermelho sob a
orientação do camarada Stalin”, ou ainda “comissário de Stalin”. O secretário-geral
o conhecia melhor do que ninguém; sabia de seu verdadeiro valor. A ideia
generalizada é que os dois eram autênticos amigos, mas na amizade genuína não
pode haver devedores, e Voroshilov sempre se julgou em débito com Stalin por sua
glória, status, cargos, recompensas e a posição ocupada.
Na década de 1930, Voroshilov foi um executor completamente irrefletido, sem
opinião própria. Não tinha a capacidade sobre-humana de trabalho de Kaganovich,
nem o intelecto e a astúcia de Molotov, tampouco a cautela e a ponderação de
Mikoyan, e era inferior a muitos outros membros do Politburo em diversos
aspectos. Mas Stalin o valorizava pela aura de lenda que se formara em torno do
“líder do Exército Vermelho”. Stalin estava seguro de que, no momento crucial, o
comissário lhe daria apoio sem pestanejar. E não estava errado. Quando Stalin
desencadeou seu expurgo, Voroshilov postou-se, inabalável, ao seu lado, enquanto
as chamas consumiam três marechais da União Soviética e centenas, até milhares, de
oficiais do Exército Vermelho. No seu discurso para o pleno de fevereiro-março de
1937, Voroshilov citou pelo nome muitos “inimigos do povo” que haviam se
infiltrado no Exército Vermelho e demonstrou isso mencionando saqueadores
trotskystas que não estavam entre os altos escalões. Leu a seguinte carta que recebeu
em agosto de 1936 de um tal major Kuzmichev:

Para o Comissário da Defesa


K.E. Voroshilov
Estou sendo acusado de ser membro de um grupo terrorista contrarrevolucionário que planeja um atentado
contra sua vida. A verdade é que entre 1926 e 1928 fiz parte de uma organização trotskysta. Desde 1929,
venho tentando me acertar. Em você, vejo não apenas o chefe do Exército Vermelho, mas também um
homem extremamente responsável. Sou possuidor de duas condecorações da Ordem da Bandeira Vermelha.
Como poderia eu ser incluído numa gangue de fascistas assassinos?
Não há dúvida de que irão me fuzilar. Talvez dentro de uns poucos anos, os trotskystas expliquem porque
caluniaram um homem honesto, e quando a verdade for revelada, solicito que você restaure meu bom nome
junto à minha família. Desculpe os rabiscos, mas eles não me cederam mais papel algum.

Nesse ponto, Voroshilov correu o olhar pela audiência e concluiu dramaticamente:


“E, dez dias mais tarde, ele confessou que tencionavam executar o ato terrorista no
distrito de Belaya Tserkov durante as manobras.”51 Voroshilov sabia perfeitamente
bem como tais confissões eram arrancadas. Disse ao plenário, dirigindo-se, é claro, a
Stalin, que, com frequência “falou com Yezhov sobre as pessoas que estavam sendo
exoneradas do exército”. Por vezes, disse ele, “defendo indivíduos. Mas a realidade é
que, nos dias de hoje, pode-se ficar numa situação desagradável: defende-se alguém
que depois se revela um inimigo real, um fascista”. Evidentemente, isto estava por
trás de sua reação a uma carta que Yakir escreveu na véspera de sua execução, em
junho de 1937:
Para K.E. Voroshilov
Em memória dos muitos anos de trabalho honesto no Exército Vermelho, peço-lhe que cuide de minha
família e que ela seja ajudada, uma vez que está desamparada e não tem culpa de nada. Solicitei o mesmo a
N.I. Yezhov.

Em 10 de junho, Voroshilov rabiscou na carta: “Duvido por completo da


honestidade de um desonesto.”52
Existem diversos volumes de documentos assinados ou minutados por
Voroshilov. Um deles contém cartas de oficiais que conseguiram escrever a ele, antes
de serem julgados ou executados, solicitando, implorando, clamando por ajuda. Há
cartas de Goryachev, Krivosheyev, Sidorov, Khakhanyan, Bukshtynovich,
Prokofiev, Krasovsky. A carta de M.G. Yefremov,**** que escreveu em linha
semelhante para Stalin e Mikoyan, diz o seguinte:
Camaradas
De posse de todas as evidências para reverter a acusação a mim imputada pelos fascistas Dybenko e
Levandovsky para minha vergonha, fiquei tão confuso na reunião do Politburo de 18.iv.38, que esqueci de
revelar a prova de minha inocência e de minha lealdade ao partido de Lenin e de Stalin. O comandante do
exército Dybenko disse algo inacreditável a respeito dele mesmo. Deve ter enlouquecido depois das
manobras, porque, de outra forma, não consigo entendê-lo, já que isso foi em 1934! De acordo com
Dybenko, ele me “recrutou”, mas diz que a tarefa era de recrutar os oficiais.
Todos os meus irmãos são comunistas, quatro deles oficiais do Exército Vermelho. Meu filho de 17 anos é
membro do Komsomol. Minha mãe, minhas irmãs e seus 12 filhos vivem no kolkhoz “Caminho da
Liberdade”, na região de Orel. Meu tio foi enforcado em 1905 por ter tomado parte em um motim naval,
meu pai foi assassinado por kulaks. Eu mesmo fui operário em Moscou. Combati na China durante a guerra.
Fui ferido. Recebi a Ordem de Lenin, três condecorações da Ordem da Bandeira Vermelha e a Ordem da
Bandeira Vermelha do Trabalho.
Rogo-lhes que terminem logo com meus sofrimentos e tormentos.
Para sempre ao dispor, Mikhail Yefremov53

Como milhares de outras, esta carta não teve resposta. Na realidade, Yefremov,
assim como Bukshtynovich e Krasovsky, tiveram sorte e sobreviveram, mas não
graças a Voroshilov. Nem ele nem ninguém tinha interesse em interromper o
trabalho do moedor de carne. No despacho de sindicâncias, ele sancionava
laconicamente prisões, punições e execuções. Cito abaixo os textos de alguns
telegramas, dos quais existem, literalmente, milhares entre 1937 e 1938:

Khabarovsk. Re-Blyukher. Número 88. Julgar.


Sverdlovsk. Re-Gorbachev. Número 39. Prender.
Polyarnoe. Re-Comandante da Frota Polar do Norte. Número 212. Julgar e sentenciar convenientemente.
Sverdlovsk. Re-Gailit. Procurar, prender e dar a sentença mais rigorosa.
Leningrado. Re-Dybenko e Mager. Número 16758. Prender e julgar.
Tbilisi. Re-Kuibyshev e Apse. Número 344. Julgar e fuzilar.54

Entre abril e maio de 1937, Voroshilov enviou a Stalin uma nota atrás da outra do
seguinte tipo: “Solicito que as seguintes pessoas, que foram dispensadas do Exército
Vermelho, sejam exoneradas do Conselho de Guerra do Comissariado de Defesa da
URSS: M.N. Tukhachevsky, R.P. Eideman, R.V. Longva, N.A. Yefimov, E.F.
Appog.”55 Ele então riscou a palavra “exoneradas” e a substituiu por “expelidas”,
muito embora soubesse muito bem para onde seriam “expelidas”. Nos dias
seguintes, ele mandou para Stalin notas semelhantes, mas com outros nomes:
Gorbachev, Kazansky, Kork, Kutyakov, Feldman, Lapin, Yakir, Uborevich,
Germanovich, Sangursky, Oshley e muitos outros. Parece que não dava a mínima
para o fato de o soviete de guerra do Comissariado de Defesa ser constituído quase
que totalmente de “espiões”, “fascistas” e “trotskystas-bukharinistas”. O importante
era não contrariar, e sim fortalecer, a linha do camarada Stalin. Como estava mais
em evidência para a opinião pública do que os outros, Voroshilov foi o membro da
troika menos ofuscado por Stalin. Não obstante, isso não teve o menor efeito sobre
sua falta de julgamento independente ou sobre suas ações.

Juntamente com Beria, esses três – Voroshilov, Kaganovich e Molotov – têm


enorme responsabilidade pelos crimes cometidos por Stalin, mas uma
responsabilidade que tem que ser também partilhada pelos muitos que
simplesmente votaram a favor das “sábias decisões” de Stalin e disseram “sim” a elas.
A gradação das faltas varia, mas a história decidirá quem foi mais ou menos culpado.
Andreyev, Zhdanov, Kalinin, Mikoyan, Malenkov, Khruschev e algumas outras
figuras dos escalões elevados da liderança do partido e do Estado nada fizeram para
limitar o mando pessoal de Stalin.
Notas

* Kaganovich faleceu em 1991. [N.T.]

** Irmão de Kaganovich, bolchevique desde 1905, foi comissário da indústria de fabricação de aviões.

*** P.F. Krivonos, maquinista do depósito Slavyansk, teve desempenho sem precedentes com sua locomotiva e
deu seu nome ao movimento dos operários ferroviários congêneres. Cf. Stakhanov.

**** Yefremov foi oficial que sobreviveu, chegou aos altos escalões e lutou na Segunda Guerra Mundial. Morreu
em combate em 1942.
[26]
O fantasma de Trotsky

T rotsky não estava mais presente, contudo Stalin passou a odiá-lo ainda mais
em sua ausência, e o espectro do rival voltava com frequência para
assombrar o usurpador. Stalin passou a se recriminar por ter concordado
que Trotsky se exilasse. Nem para si mesmo admitia temer Trotsky naqueles
tempos, porém, por certo, temia pensar nele. O pensamento de que jamais seria
capaz de resolver o “problema” de Leib Davidovich (como tendia a se dirigir a
Trotsky em sua mente, usando a forma ídiche para Lev), fazia-o ferver de ira
violenta. Em determinada ocasião, perdeu o controle e quase revelou publicamente
seus sentimentos. Conversando com Emil Ludwig sobre o assunto da autoridade,
declarou subitamente:
“Trotsky também teve grande autoridade, mas, e daí? Tão logo voltou as costas
para os trabalhadores foi esquecido.”
“Completamente esquecido?”, perguntou Ludwig.
“Ocasionalmente se lembram dele... com hostilidade.”
“Todos com hostilidade?”
“Quanto a nossos operários, eles se lembram de Trotsky com hostilidade,
irritação e ódio.”56
É possível que muitos operários lembrassem de Trotsky de forma pouco
generosa, mas era Stalin, sobretudo, quem se recordava dele com hostilidade,
irritação e ódio. Pensava em Trotsky quando sentava e ouvia Molotov, Kaganovich,
Khruschev e Zhdanov. Trotsky tinha intelectualidade de calibre diferente, com suas
percepções de administrador e seus talentos como orador e escritor. Era muito
superior em todos os aspectos a esse bando de burocratas, mas também superior a
Stalin, que sabia disso. “Como pude deixar um inimigo desses escapulir entre meus
dedos?” – quase gemia ele. Em dada oportunidade, confessou a um círculo íntimo
que aquele fora o maior engano que cometera na vida.
Outro motivo para o ódio crescente derivava do fato de que – embora não
admitisse nem para si mesmo – descobria muitas vezes que seguia a abordagem de
Trotsky em política prática. Lembrava-se de que, certa vez, quando o Politburo
debatia a NEP, Trotsky declarara que “a classe trabalhadora só caminhará para o
socialismo à custa de grandes sacrifícios, canalizando todas as suas energias, e dando
seu sangue e sua coragem”. Afirmara em outubro de 1922 num congresso do
Komsomol e vivia repisando que, sem “exércitos de trabalhadores”, “militarização
do trabalho” e “total abnegação”, a revolução corria o risco de jamais caminhar do
“reino da necessidade para o reino da liberdade”. Quase a totalidade dos 15 volumes
das obras de Trotsky é devotada à “militarização do trabalho”. Falando em 12 de
janeiro de 1920 num encontro das frações comunistas dos sindicatos, ele
reivindicou que “batalhões de choque” fossem enviados a locais especialmente
importantes “de modo que eles possam aumentar a eficiência pelo exemplo pessoal e
pela repressão”. Era necessário aplicar “métodos coercitivos, estabelecer condições
militares em [...] áreas imprescindíveis. Temos que nos valer da conscrição pelo
emprego de métodos militares”.57 Eis a expressão clássica do comunismo de quartel.
E Trotsky, que foi um de seus defensores no início dos anos 1920, jamais o
abandonou por completo, embora deva ser lembrado que tais ideias foram expressas
sob condições de guerra civil.
Stalin sempre se impressionou por qualquer ideia que implicasse o povo,
voluntariamente, “dando seu sangue e sua coragem” pela causa. No exílio, Trotsky
se referia com frequência a Stalin como um “imitador”, querendo presumivelmente
indicar sua tendência em se apoderar das ideias dos outros no campo da
metodologia social. Mas a principal razão para Stalin temer o fantasma de Trotsky
foi que este criou sua própria organização, a Quarta Internacional, e pôs Stalin no
mesmo nível de Hitler, fato intolerável para o secretário-geral. O espectro criava
uma vingança mais dolorosa que qualquer outra que pudesse ser arquitetada por
Stalin. Por vezes, parecia que a batalha que julgara terminada, quando o Ilyich
deixou despercebidamente o porto de Odessa levando Trotsky a bordo, em 10 de
fevereiro de 1929, apenas começava.
Apesar de tudo, era uma batalha desigual. Num canto, o líder ascendente que se
propôs a inculcar no partido e no povo um sentimento de ódio contra Trotsky,
como traidor e assecla fascista. No outro canto, o líder derrotado que não
economizava retórica para mostrar que Hitler e Stalin se mereciam mutuamente.
Apoiado por pequenos grupos nos vários países em que esteve exilado, Trotsky
foi capaz de influir na opinião pública. Seus discursos, ao vivo ou impressos, foram
sempre eficientes. Como antes, seu alvo principal era Stalin, a quem alcunhou de
“coveiro da revolução”. Trotsky sabia muita coisa. Durante a revolução e a guerra
civil atuara mais próximo de Lenin que Stalin. Mais de uma vez, Lenin saiu em sua
defesa, conhecedor que era dos talentos de Trotsky como organizador e
propagandista. Stalin se lembrava de que, quando a relação entre os dois ainda era
tolerável, ele tinha concordado fundamentalmente com muitas das ideias
esquerdistas de Trotsky. Por exemplo, quanto ao avanço sobre Varsóvia para
acelerar a conflagração revolucionária e quanto à organização da campanha na Ásia.
Trotsky também acreditava que a Ásia era mais revolucionária que a Europa e que,
portanto, se uma organização revolucionária fosse criada ao sul dos Urais, uma
marcha sobre a Ásia para dar velocidade à revolução naquele continente era política
realista. Em tais circunstâncias, a revolução na China e na Índia seria
definitivamente vitoriosa. Stalin não fazia objeção a esta análise.Trotsky desejava
aumentar o ritmo: ele não mais pensava numa escala russa, mas em termos da
revolução mundial. Num certo sentido, era um romântico da sublevação mundial e
muitos de seus planos de longo prazo nos anos 1920 estavam ligados a este objetivo.
Todavia, Stalin entendeu que falar publicamente sobre tais “pecados” de Trotsky
significava nublar um pouco sua própria pessoa, já que era então o “herdeiro” das
causas revolucionárias do Outubro de 1917.
A ideia de que Trotsky não falava só em seu nome, mas também dos silenciosos
aliados e dos oposicionistas dentro da URSS, era particularmente dolorosa para
Stalin. Quando lia as obras do rival, tais como A escola stalinista da falsificação, Carta
aberta aos membros do partido bolchevique ou O Termidor stalinista, o líder quase
perdia o autocontrole. Fora tão cego! Poderia estar errado quando disse às frações
comunistas dos sindicatos, em novembro de 1924, que Trotsky funcionara bem
durante o levante revolucionário, mas perdera o azimute e caminhava para a
derrota?58 Afinal de contas, o rival sofrera derrota total, mas não se rendia, ainda
continuava lutando. Vezes sem conta Stalin se atormentava ao pensar em seu erro:
por que deixara Trotsky sair do país? Agora, tinha que pagar pelo lapso de descuido.
Os cúmplices de Trotsky preparavam uma trama contra ele, montando ações
diversionárias, executando atos de espionagem, organizando uma clandestinidade, e
ele, Stalin, nada fizera durante todos aqueles anos.
No seu discurso para o pleno de fevereiro-março de 1937 “sobre as inadequações
no trabalho do partido e as medidas para a liquidação dos trotskystas e outros
agentes duplos”, Stalin destacou o “elo principal”, ou seja, o “trotskysmo
contemporâneo”. Dirigindo-se à plateia como se fosse constituída de escolares,
perguntou: “Que é o trotskysmo?” E deu a resposta: “O trotskysmo contemporâneo
é um bando desesperado de saqueadores. Sete ou oito anos atrás”, continuou, “era
uma equivocada tendência antileninista. Mas agora é uma gangue de saqueadores
fascistas.” E continuou:
Kamenev e Zinoviev negaram que tivessem uma plataforma política. Estavam mentindo. Durante o
julgamento de 1937, Pyatakov, Radek e Sokolnikov não negaram a existência de tal plataforma. A
restauração do capitalismo, o desmembramento territorial da União Soviética (a Ucrânia para os alemães, as
províncias marítimas para os japoneses); na eventualidade de um ataque de nossos inimigos – sabotagem e
terror. Tudo isto é a plataforma do trotskysmo.59

Dessa forma, Stalin amarrou todos os seus inimigos, derrotados ou potenciais, com
a mesma corda trotskysta.
Está na hora de os historiadores chegarem a uma avaliação mais acurada sobre
Trotsky. Já me referi a suas qualidades intelectuais e morais, por contraditórias e
controversas que fossem. Ele tinha uma fraqueza incurável, isto é, a convicção de
que era um gênio, crença que era incapaz de esconder. Suas ambições derivavam
disso. Aqueles que dizem que, se Trotsky tivesse derrotado Stalin, a União Soviética
não seria governada por ditadura diferente, não estão necessariamente errados.
Contudo, em função da grande inteligência e da cultura de Trotsky, é muito
duvidoso que cometesse os crimes de Stalin.
A verdade é que, durante a revolução e a guerra civil Trotsky só perdia em
importância para Lenin. É impossível saber o que Trotsky seria se Lenin vivesse.
Uma coisa é certa: entre 1917 e 1924, ele não foi hostil à revolução e ao socialismo.
Foi, isso sim, inimigo consistente de Stalin. Os ataques antissoviéticos aos quais
recorreu em seus últimos anos foram resultado lógico de sua batalha contra Stalin.
Provavelmente, tais ataques foram nocivos à causa soviética, mas a seu crédito deve-
se dizer que não se dobrou ao despotismo do secretário-geral. Dos primeiros a
perceber que Stalin preparava um terror reacionário soviético, ele acertou em muitas
coisas. Como Lunacharsky escreveu:

Trotsky foi homem arrogante e irritadiço. No entanto, depois que se associou aos bolcheviques, foi só em sua
atitude em relação a Lenin que Trotsky sempre revelou – e continua a revelar – uma docilidade prudente que
chega a ser tocante. Com a modéstia de todos os grandes homens, ele reconhece a primazia de Lenin.60

Porém, como já mencionei alhures, Trotsky gostava bem mais de se ver na


revolução do que da ideia da revolução em si. A raiz de sua tragédia não foi tanto a
luta contra o stalinismo e sim a disputa com Stalin pela sucessão, e o
desapontamento pelas esperanças frustradas meramente reforça o elemento pessoal
de seu modo de pensar.
Que perigo real representava Trotsky nos anos 1930? Que influência tinha no
progresso social e político da URSS? É importante esclarecer essas questões porque o
“perigo trotskysta” serviu como desculpa para uma grande tragédia na história do
país.
Enquanto Stalin fortalecia seu mando pessoal, Trotsky perambulava pelo
mundo, da ilha de Prinkipo ao mar de Mármara, à França, à Noruega e, finalmente,
ao México. De início, esperava um breve retorno à URSS, acreditando que Stalin
não duraria muito. As deficiências intelectuais do Secretário-Geral, sua ignorância,
rudeza e astúcia eram por demais óbvias, raciocinava Trotsky, e tendiam a gerar
crescente oposição e a multiplicar inimigos. Este foi outro dos erros de Trotsky.
Acreditava que, em função de sua popularidade generalizada, todos os elementos
hostis a Stalin se grupariam em torno dele. Enquanto vagava pelos montes marrons
de Ada, em Prinkipo, lembrava que aquele era o lugar para onde os governantes
bizantinos exilavam seus inimigos, e ele agora abrigava um dos “arquitetos da
revolução russa”, como descrevia a si mesmo em seu diário.
No começo, a imprensa ocidental reagiu um tanto cautelosamente ao exílio de
Trotsky. Por um breve momento, correram rumores de que Stalin o deportara
intencionalmente para que sublevasse os trabalhadores dos países capitalistas. A
imprensa alemã e a inglesa chegaram a entrar em detalhes, referindo-se a Trotsky
como o “detonador revolucionário”; por causa disso, não lhe ofereceram de
imediato asilo político. Entretanto, aos poucos foi ficando claro que, embora
continuasse a condenar veementemente o fascismo, a burguesia filistina e a expansão
imperialista, a força principal de sua ira estava dirigida, acima de tudo, contra Stalin
e contra o regime stalinista.
Com a ajuda de seus seguidores, que faziam a peregrinação a Prinkipo vindos de
vários países, Trotsky começou a estabelecer contato com vários grupos hostis ao
Comintern, ao regime stalinista e a Stalin pessoalmente, e logo lançou O boletim da
oposição em diversas línguas. Conseguiu até mesmo introduzir, antes de 1935,
alguns poucos exemplares na União Soviética, deixando claro que desejava
restabelecer o contato com os antigos aliados, como observa seu biógrafo, Isaac
Deutscher. No terceiro volume de sua biografia, escreve Deutscher que, por
exemplo, por intermédio de Sobolevicius-Senin (pseudônimo de Jack Soble), um
correspondente alemão em Moscou, Trotsky obtinha importantes informações
soviéticas, inclusive estatísticas, para seus livros e artigos. Sobolevicius e seu irmão
administravam a correspondência de Trotsky com seus seguidores na URSS,
providenciando cifras, cartas por canais especiais, números de caixas postais, e coisas
do gênero.61 Malgrado a precariedade de tais contatos, até 1935 Trotsky foi capaz de
obter informações sobre a URSS e de enviar suas próprias cartas por meios ilegais.
Quando deixou a União Soviética, Trotsky levou consigo trinta caixas com
arquivos e livros, descuido que, mais tarde, Stalin imputou aos órgãos de segurança
que cuidaram da deportação. Os quatro longos anos passados em Prinkipo foram
tempos de espera, de análise e determinação da futura linha de ação. Gradualmente,
foi se conscientizando de que não seria chamado de volta a Moscou e então decidiu
que a única maneira de “se manter à tona” era por meio da luta contra Stalin,
embora não tivesse ainda uma ideia clara de como fazê-lo. Mas não aceitava por
completo a ideia de que aquele era seu exílio final e de que jamais poria de novo os
pés na pátria-mãe.
Sentado no pequeno quarto que lhe servia de estúdio, janela voltada para o mar,
Trotsky folheava as páginas de suas obras coletadas. Se bem que pontilhada de
gritante egoísmo do autor, a melhor delas, como ele mesmo reconhecia, era a
História da Revolução Russa, que escreveu depois do rompimento com Stalin. Outro
volume, devotado a retratos de figuras políticas, de escopo extraordinariamente
amplo, e escrito, como sempre, de forma engajada, não inclui um estudo separado
de Lenin, embora ele seja bastante mencionado.62 Ele leu de novo o discurso que
pronunciara havia tanto tempo, no VII Congresso: “O congresso do partido, a mais
alta instituição partidária, rejeitou indiretamente a política que eu, entre outros,
seguia [...] portanto, estou abrindo mão de todos os cargos, qualquer que seja sua
importância, com que o partido me distinguiu.”63
Até aquela ocasião, Stalin era pouco mencionado nos trabalhos de Trotsky, com
a possível exceção do volume sobre cultura, onde havia referências indiretas. Quanto
à democracia e à burocracia, ele escreveu que “a construção socialista só é possível
com o crescimento da democracia genuína e revolucionária das massas laboriosas.
Onde existe a burocracia, inevitavelmente surge o mochalinstvo. O princípio
principal do mochalinstvo* é a obsequiosidade no obedecer. Obedecer a quem? Ao
chefe...”64 Concluiu que tudo que lhe restava era lutar contra Stalin, não tanto
contra o sistema mas contra o homem.
Segundo Deutscher, antes da derrota final e da deportação, Trotsky, juntamente
com Zinoviev e Shlyapnikov, tentou organizar grupos insignificantes de aliados no
exterior em partidos comunistas e de trabalhadores. Na França, eles foram liderados
por homens como Albert Rosmer, Boris Souvarine e Pierre Monatte, na Alemanha,
por Arkadi Maslov e Ruth Fischer (ex-camaradas de Zinoviev), na Espanha, por
Andrés Nin, na Bélgica, pelos ex-comunistas Van Overstraaten e Lesoil. Pequenos
grupos de trotskystas surgiram em Xangai, Roma, Estocolmo e em diversas outras
cidades e capitais. Foi com tal composição fragmentária que Trotsky esperava erigir
um novo movimento de credo anti-stalinista. Mas não tinha uma base social séria,
nem um programa sério. O anti-stalinismo não possuía muito atrativo para uma
organização de âmbito mundial. Portanto, Trotsky começou de novo a ruminar a
ideia da “revolução permanente” e de suas variantes, mostrando que “a doutrina do
socialismo em um só país era uma distorção nacional-socialista do marxismo”.
Todavia, o elemento constante de seu “programa” continuou sendo o anti-
stalinismo fanático, sem poder esconder sua animosidade pessoal pelo homem, a
injúria provocada pelas ambições frustradas e sua dor interna pela perda da família
na Rússia. Trotsky esperava que seu anti-stalinismo ostensivo encontrasse amplo eco
nos partidos comunistas, mas isto não aconteceu.
Para muitos comunistas de diversos países, as conquistas soviéticas na economia,
cultura e educação estavam associadas ao nome de Stalin. Os infames julgamentos
políticos ainda não haviam começado e pouco se conhecia de Stalin para que o
Ocidente tivesse alguma percepção de seu caráter. A tentativa de Trotsky de exercer
pressão sobre a União Soviética e sobre Stalin e sua política estava fadada ao
fracasso, enquanto qualquer esperança de “levantar” os antigos aliados dentro da
URSS contra Stalin era ainda menos realista. Por meio de artigos, comunicados à
imprensa, discursos e entrevistas, no entanto, ele conseguiu, quase
inadvertidamente, criar uma impressão provocativa de que o número de seus
seguidores crescia e de que as forças anti-stalinistas se consolidavam.
Desafortunadamente, isto não ocorria, mas Stalin, homem agudamente
desconfiado, levou a sério muitas daquelas declarações sem compromisso.
Stalin se consumia de ódio, mas nada podia fazer. Muitas das obras de Trotsky
eram dirigidas contra ele, mesmo em seus títulos: A escola stalinista da falsificação,
Crimes de Stalin e Stalin, sendo que este último não pôde ser completado por causa
de sua morte. A coletânea das obras de Trotsky foi publicada em dezenas de países, e
foi delas que a opinião mundial formou a imagem de Stalin, não dos livros de
Feuchtwanger e Barbusse. O sombrio déspota asiático saiu das páginas de Trotsky
manhoso, cruel, fanático, estúpido e vingativo. Trotsky pegou pesado, e só em
pensar nele Stalin era incendiado pelo desejo da vingança. Em cada trotskysta, via
um fragmento de Trotsky e, então, exigiu que não houvesse piedade com eles.
Enquanto estava na Noruega, em 1936, Trotsky escreveu A revolução traída.
Nele, apela para que comunistas, ex-membros da oposição, antigos mencheviques,
SR e dissidentes de outros partidos organizem um coup d’état, ou o que chama de
“revolução política”. Seu ódio por Stalin e o desespero de sua própria posição
tornavam impossível uma avaliação sóbria da situação política dentro da URSS. O
livro contém não só um relato do passado, visto através das lentes de Trotsky, como
também um prognóstico de longo prazo para o desenvolvimento social na União
Soviética. Todavia, sua análise é defeituosa, porque a predição de uma revolução
política contra Stalin se baseia tão somente em seu desejo apaixonado de derrotar o
“líder”. Prevê também que, se a Alemanha desencadeasse uma guerra contra a
URSS, Stalin dificilmente evitaria a derrota.
Stalin leu a tradução de A revolução traída numa só noite, espumando de raiva.
Foi a gota d’água. Por alguns anos, vinha alimentando duas decisões em sua mente
e, então, decidiu executá-las. Em primeiro lugar, precisava remover Trotsky a
qualquer custo da arena política. Sabia que qualquer tentativa de assassinato, por
mais dissimulada que fosse, teria sua inspiração e organização ligadas a ele. Em
segundo lugar, estava ainda mais convencido então da necessidade de uma
liquidação final e obstinada de todos os inimigos potenciais de dentro do país. É
possível que nem ele soubesse o alcance de tal decisão. Sentia que chegara a hora em
que não poderia haver mais hesitação, ainda mais que Yezhov – muitas vezes
transpirando vodka – trazia-lhe constantes relatos de que ex-oposicionistas estavam
ativos.
Stalin lembrou-se do quase esquecido affair Blyumkin. Blyumkin foi o
revolucionário socialista que assassinou o embaixador alemão, conde Mirbach, em
Moscou, em 1918, na tentativa de descontinuar as conversações de paz que se
realizavam em Brest-Litovsk. Foi sentenciado ao fuzilamento, mas graças à
intercessão de Trotsky, a pena foi comutada para “penitência por ter lutado em
defesa da revolução”. Blyumkin trabalhou por algum tempo na equipe de Trotsky,
tornou-se íntimo dele e depois foi servir na GPU. Quando retornava à URSS, vindo
da Índia via Constantinopla, em 1929, visitou Trotsky em Prinkipo. De acordo
com Deutscher, Trotsky entregou ao ex-auxiliar o texto de um discurso para seus
seguidores em Moscou e também lhe deu alguns conselhos sobre como lutar contra
Stalin. Blyumkin foi imediatamente preso à sua chegada na URSS; talvez tivesse
sido seguido em sua viagem a Prinkipo, ou talvez tivesse falado descuidadamente a
alguém sobre sua viagem. Entretanto, é provável que o relato de I.A. Sats, secretário
de Lunacharsky, esteja mais próximo da verdade. Segundo ele, Blyumkin entregou a
Radek um pacote que Trotsky lhe havia endereçado, e também transmitiu uma
mensagem verbal. Quando Blyumkin saiu, Radek, sem abrir o pacote, chamou
Yagoda e falou-lhe sobre a visita. Yagoda fez um relato a Stalin e o “mensageiro” foi
preso de pronto. Radek gozou de uma indulgência de curta duração. Blyumkin foi
fuzilado depois de rápido julgamento. A sorte não iria lhe sorrir duas vezes.
Existiriam outros Blyumkins por perto, seguindo instruções de Trotsky? Quem
seriam? Quem poderia avaliar a escala total da ameaça? Até aonde Trotsky estendera
sua teia? Talvez muitos trotskystas tivessem ficado intimidados com a execução de
Blyumkin, mas quem poderia garantir que todos os seguidores de Trotsky estavam
aterrorizados até a passividade?
Em diversos discursos, Stalin proclamou que o trotskysmo era a principal
plataforma hostil sobre a qual todos os inimigos da União Soviética estavam
grupados. O fantasma de Trotsky expandiu todas as proporções, levando-as ao
ponto de ameaça ao Estado. Stalin via “a mão de Trotsky” em todos os fiascos e
desastres. Nos julgamentos políticos de 1937-38, as acusações principais eram a
manutenção de vínculos diretos com Trotsky, a recepção de suas ordens ou
instruções, ou mesmo o encontro com ele em Berlim ou Oslo, e assim por diante.
No pleno de fevereiro-março de 1937 e em similares – ocorreram quatro deles
naquele ano – as expressões “Trotsky”, “trotskysmo”, “espiões e assassinos
trotskystas” foram ouvidas mais que quaisquer outras. Fosse qual fosse o tópico em
discussão, o espectro de Trotsky pairava sobre o salão.65 Para Stalin, Trotsky
tornara-se a personificação do mal universal.
A situação real era bem diferente. Mesmo no ponto mais alto, em meados dos
anos 1920, Trotsky tinha poucos aliados no partido. Depois da deportação, alguns
permaneceram leais, mas no máximo eram uns cem. Uns achavam que Trotsky há
muito deixara de lutar pelo socialismo e conduzia uma vendetta pessoal que beirava
o antissovietismo. Outros condenaram o trotskysmo e abandonaram de todo a vida
política. Os que Stalin “perdoou” e permitiu que retornassem a Moscou – inclusive
Rakovsky, Preobrazhensky, Muralov, Sosnovsky, Smirnov, Boguslavsky e Radek –
receberam cargos de terceiro escalão nos comissariados do povo da Economia e da
Educação, mas não lhes foi permitido voltar à cena política. A avassaladora maioria
deles se retratou publicamente por intermédio da imprensa, e nenhum representava
o mínimo risco para o sistema ou para a estabilidade interna da sociedade.
Stalin sabia que emasculara todos intelectualmente ao forçá-los a renunciar ao
esquerdismo, a condenar a teoria da revolução permanente e a aceitar o leninismo
segundo a interpretação do secretário-geral. Mas sabia também que, no fundo de
seus corações, não estavam totalmente reconciliados e isso, para ele, era um grande
perigo. Em sua natureza insincera, supunha naturalmente que todos nutrissem
qualidades semelhantes.
Na verdade, a ameaça representada pelo trotskysmo não era nada de vulto.
Depois de 1935, como mostram suas cartas e publicações, Trotsky perdeu quase
todo o contato com a URSS. Os jornais e as rádios eram suas principais fontes de
informações. Enquanto filtrava e espremia os dados necessários, continuava a pensar
que era capaz de influenciar o processo social, político e econômico na URSS. Stalin
forçava-se a acreditar que isto era possível porque precisava de um pretexto para
acabar de uma vez por todas com aqueles que não compartilhavam suas opiniões ou
com os que pudessem agir de forma hostil no futuro. Pensar sobre as predições de
Trotsky o perturbava mentalmente, e só o título do último livro do rival, Crimes de
Stalin (publicado poucos meses depois do julgamento político, de janeiro de 1937
em Moscou, de Pyatakov, Radek, Sokolnikov, Serebryakov e outros), era suficiente
para tirá-lo do sério.
Ao afirmar que a União Soviética não suportaria um embate com os países
capitalistas, Trotsky apenas proclamava que a posição de Stalin não tinha a menor
esperança. Suas palavras ecoavam nos ouvidos de Stalin como presságio agourento:

Amanhã, Stalin pode se transformar em carga pesada para o grupo governante. [...] Stalin está prestes a
concretizar sua trágica missão. Quanto mais parece que não precisa de ninguém, mais perto está a hora em
que ninguém precisará dele. Nessa ocasião, Stalin dificilmente ouvirá palavras de gratidão pelo que fez. Sairá
de cena levando nos ombros o peso de todos os seus crimes.66

Ao movimentar-se para liquidar os remanescentes da antiga oposição e, assim,


retirar de Trotsky qualquer esperança de concretização de suas profecias, Stalin
também procurava desferir um golpe mortal no adversário.
Nas leituras que fez de Trotsky, Stalin não viu apenas apelos políticos à ação. Ao
longo de toda a sua obra, Trotsky afirmava que a presença de Stalin no Olimpo do
poder era puro acidente, um gracejo de mau gosto da história. Isso feria o “líder”
mais que qualquer outra coisa. Em História da Revolução Russa, Stalin leu:

Da extraordinária significação que teve a chegada de Lenin, deve-se inferir que os líderes não são
acidentalmente criados, que são gradualmente selecionados e mui treinados ao longo de décadas, que não
podem ser caprichosamente substituídos, que sua exclusão mecânica da luta deixa o partido com uma ferida
aberta e, em muitos casos, pode paralisá-lo por um período longo.67

O fantasma estava sempre lá, ao lado do homem que envergava o manto do


imperador, mesmo que o espectro ainda fosse de uma pessoa viva e distante de
Moscou. Talvez, ao pensar naquele fantasma, Stalin tenha se recordado do
congresso do partido em Londres, ocorrido havia tanto tempo, quando viu Trotsky
pela primeira vez, com sua cabeleira ruiva, movimentos enérgicos, o pincenê, o
discurso eloquente, os gestos teatrais. Trotsky atraíra a atenção de todos. Em
diversas ocasiões, o olhar de Trotsky recaiu sobre o sombrio caucasiano que ainda
era conhecido pelo nome de Djugashvili. Naquela oportunidade, fora Trotsky quem
dera as cartas e Stalin quem constituíra o espectro silencioso. Poderia o jovem
revolucionário ter imaginado então que aquele misterioso membro de um grupo de
combate no Cáucaso iria se transformar em acompanhante e inimigo até o fim de
sua vida, uma vida que seria interrompida, para grande alegria de Stalin, em 21 de
agosto de 1940?
Nota

* Mochalin é um personagem da peça de Griboyedov, O infortúnio da esperteza, que emprestou seu nome ao
carreirismo bajulador.
[27]
Um vencedor popular

M esmo com a artificialidade dos meios empregados para consegui-la, a


popularidade de Stalin era autêntica entre as massas, cujas opiniões
sobre ele e sobre as questões da nação se baseavam em aparências,
normalmente porque não tinham nem a oportunidade nem a inclinação para sondar
mais profundamente o que acontecia. Tratava-se de um tempo em que a
uniformidade de pensamento era imposta por todos os meios disponíveis. Desde o
jardim de infância, as crianças eram ensinadas a entoar versos pela saúde do grande
líder. Ninguém podia se dar ao luxo de não amar Stalin; mesmo assim, ainda surge a
pergunta: por que ele era tão popular?
Uma das razões pode ser que, apesar das enormes falhas morais e do sacrifício
físico, a sociedade não se degradara, e diversas conquistas foram consumadas nas
esferas econômica, social e cultural. Sem dúvida, se o líder tivesse calibre moral mais
apurado, as conquistas teriam sido maiores, mas a verdade é que a natureza
patológica do culto a Stalin não retardou por inteiro o desenvolvimento da
sociedade.
Mudanças de vulto foram empreendidas no desenvolvimento industrial. As
estatísticas, se bem que exageradas, indicam que o plano de Lenin para a
eletrificação da indústria foi concretizado. Por volta de 1935, a produção bruta da
indústria pesada era 5,6 vezes maior que antes da guerra.68 Tendo vivido a derrocada
industrial provocada pela Primeira Guerra Mundial e pela guerra civil, o povo não
poderia deixar de ficar admirado com a enorme energia e a espantosa impulsão
liberadas pela Revolução de Outubro. Podia dizer para si mesmo: “Somos capazes
de muita coisa! Vamos completar o Plano de Cinco Anos em quatro anos!” E, como
que confirmando as palavras de Stalin – “A vida ficou melhor, ficou mais alegre!” –
no fim da década de 1930, centenas de novas fábricas e oficinas industriais, estradas,
cidades, palácios da cultura, casas de repouso, hospitais, escolas e laboratórios
haviam surgido, modificando o cenário.
As coisas estavam consideravelmente piores no interior, onde os atos criminosos
da “deskulakização” danificaram por décadas o setor agrário. Se, antes da
coletivização, existiam 25 milhões de pequenos lares rurais, dos quais 35% eram de
camponeses pobres, 60% de camponeses remediados e 5% de kulaks, em meados
dos anos 1930, 90% dessas unidades rurais estavam coletivizadas. Contudo, isso não
significou um aumento decisivo na produção. Entre 1909 e 1940, a safra de cereais
cresceu apenas 19%, a produção de carne, 15%, a de leite, apenas 14%, enquanto a
de lã caiu 20%.69
O emprego da repressão como instrumento principal da coletivização não só deu
nascimento a prolongada tensão social, como também foi historicamente “vingado”
pelo crônico atraso nesta esfera. Os alardes feitos por Stalin a respeito de conquistas
na agricultura eram todos sem fundamento. Técnica, especialistas, educação e
cultura podem muito bem ter chegado às fazendas coletivas, mas a substituição das
antigas estruturas pelas novas provou ser dificílima.
As estatísticas da educação impressionavam mais. Existiam cerca de sete vezes
mais especialistas com nível superior do que em 1913, enquanto a educação
secundária cresceu quase vinte e oito vezes.70 O analfabetismo caiu drasticamente. A
imprensa, o rádio e o cinema tiveram influência direta sobre uma população, a qual
dedicava todas as suas energias na construção da sociedade socialista.
A maioria do povo sentia que aquele era apenas o início, que amanhã ou depois
de amanhã novos horizontes se abririam para uma melhora no modo de vida, nas
condições de trabalho e na previdência social. Quando terminou o racionamento de
comida, tanto os bens industriais quanto os itens de alimentação passaram a ser mais
fartos nas lojas e, embora comparada com a dos dias presentes a vida fosse mais
dura, mais abarrotada de pessoas e com maiores carências, a atmosfera geral era de
otimismo. A mídia proclamava que todos os sucessos presentes e futuros se deviam à
“orientação sábia do líder”. Desde a tenra idade, as crianças aprendiam que “Stalin
pensa em cada um de nós”, “se não fosse Stalin, não seríamos uma potência
industrial, não teríamos um teto sobre nossas cabeças e a certeza de um pedaço de
pão”. Assim, a despeito dos crimes que campeavam, o povo prosseguia construindo,
criando, esforçando-se. Paradoxalmente, numa ocasião em que milhares e milhares
de inocentes pereciam no esmeril de Stalin, aqueles poupados desta sorte amarga
frequentemente surpreendiam o mundo com suas conquistas.
Em junho de 1937, quase ao mesmo tempo em que Tukhachevsky e outros
chefes militares eram sumariamente julgados, o Pravda informou que V. Chkalov,
G. Baidukov e A. Belyakov haviam feito o primeiro voo sem escalas entre Moscou e
a América do Norte, via Pólo Norte, em seu ANT-25. Em março de 1937, o Pravda
publicou que Alexei Stakhanov estabelecera um novo recorde em seu trabalho ao
extrair 102 toneladas de carvão em seis horas na Mina Central Stalin, ou seja, 16
vezes o normal para um mineiro de sua seção! Num turno apenas, ele ultrapassara a
meta de sua seção em 83 toneladas.71 Mas até isso tinha que ser, de alguma forma,
vinculado a Stalin. No livro História de minha vida, Stakhanov escreveu:

Quando me lembro de tudo, quando organizo meus pensamentos, só consigo dizer uma coisa: obrigado,
camarada Stalin! O camarada Stalin proporcionou a mim, um trabalhador comum, mais apoio do que jamais
imaginei. Agora, acostumei-me com a expressão, “movimento Stakhanovista”. Vejo com frequência meu
nome nos jornais e me ouço mencionado nas reuniões. Francamente, no início eu não entendia nada. Mas
agora acho correto chamar nosso movimento de stalinista, pois foi a classe trabalhadora que se pôs em
marcha na campanha stalinista pelo avanço técnico, o que acabou resultando no meu recorde e no de meus
camaradas. Foi o camarada Stalin quem aumentou a amplitude de nosso movimento.72

Os pioneiros do trabalho, os inovadores, os entusiastas e os patriotas recebiam


publicidade não por seus feitos, mas através do prisma da liderança e da participação
e preocupação de Stalin com cada um deles; os sucessos alcançados robusteciam a
popularidade do líder, algumas vezes das formas mais inesperadas. Recebi uma carta
de S.E. Plost, um membro do partido cujo pai, oficial político do Exército
Vermelho, dera-lhe o nome de Stali atendendo uma solicitação de seus estudantes
na Academia Político-Militar Lenin. Seu pai foi preso em 15 de maio de 1937 como
“inimigo do povo” e fuzilado em 4 de novembro do mesmo ano. Stali Plost
sobreviveu carregando o nome do déspota que assassinara seu pai.
A campanha de desmascaramento e destruição de “inimigos” foi também ligada
à autoridade e à popularidade de Stalin. A imprensa repisava constantemente a ideia
de que “saqueadores trotskystas-zinovievitas” planejavam atos terroristas contra a
liderança do partido e do Estado e, sobretudo, “queriam matar o camarada Stalin”,
insistia também em que “o camarada Stalin, que está em constante perigo, atenderá
quem quer que tenha cometido enganos mas se disponha a melhorar”. No pleno de
fevereiro-março de 1937, Molotov leu uma das cartas do líder como exemplo da
“atitude solícita do camarada Stalin para com os quadros”.

Ao secretário do comitê da cidade, camarada Golyshev, Perm.


O comitê central recebeu informação concernente à perseguição e à difamação do gerente da fábrica de
motores, Poberezhsky, em função de seus pecados passados como trotskysta. Considerando que tanto
Poberezhsky quanto seus companheiros de trabalho laboram agora conscientemente e têm a confiança total
do comitê central, solicito que o camarada Poberezhsky e seus companheiros de trabalho sejam protegidos
contra tal difamação e que uma atmosfera de total confiança seja criada em torno dele.
Informe imediatamente o comitê central sobre as medidas tomadas.73
“Esta é a forma de tratar antigos camaradas trotskystas que agora trabalham
honestamente em seus cargos”, concluiu Molotov. Mesmo no auge da repressão,
Stalin esforçava-se por passar a imagem de pessoa justa e atenciosa. A população, de
seu lado, aceitava de bom grado suas conclamações pelo aumento da vigilância e
pela necessidade de uma luta mais vigorosa contra os “inimigos do povo”, e
respondia favoravelmente à “exposição” evidente, desconsiderando qualquer
mitificação ou fingimento.
Stalin era meticuloso nos detalhes, caso tivessem relação com sua imagem
pública. Sua maneira simples de trajar e discursar causava uma grande impressão.
Segundo Feuchtwanger:

Definitivamente, Stalin não é um grande orador. Fala lentamente e sem brilho algum, numa voz um tanto
abafada que sai com dificuldade. Desenvolve seus argumentos com lentidão, atentando para o senso comum
popular, a fim de que eles sejam captados devagar, mas com firmeza. Quando o secretário-geral ergue seu
dedo indicador e exibe um sorriso atraente e malicioso, não cria uma distância entre ele e a audiência, como
ocorre com outros tribunos.74

Stalin preparava-se cuidadosamente para suas raras aparições públicas. Tovstukha,


depois, Poskrebyshev eram instruídos a encontrar uma dúzia de citações
interessantes nos clássicos, na literatura e no folclore marxistas. Como Antonov,
membro da equipe de Voroshilov, reportou: “Os pesquisadores para os discursos de
Stalin ajudam-no a selecionar estatísticas convenientes para o assunto. Os
comissários adequados recebem ordens para proporcionar informações. O camarada
Stalin escolhe o que quer no material coligido. Nenhum pesquisador sugere texto
algum.”75
O secretário-geral sempre adotou um tom litúrgico em seus discursos. Gostava
da forma catequizadora da pergunta e a resposta, da pergunta e a explanação.
Frequentemente, utilizava refrões ou a repetição consciente para conseguir o efeito
hipnótico, assim pensava. E, com efeito, esse estilo contido, pormenorizadamente
ensaiado, causava impacto. Acima de tudo, convencia as pessoas quanto à sua
sabedoria, e nada torna um líder tão popular quanto a crença do povo em suas
qualidades intelectuais.
Nenhuma fotografia de Stalin podia ser publicada sem sua aprovação, e mais
tarde a de Poskrebyshev. Stalin gostava de aparecer em uniforme militar como
personificação da “austeridade proletária”, segurando uma criança no colo como “o
pai do povo”, no seu uniforme de generalíssimo como “grande líder e vencedor da
guerra”. Todas as fotografias oficiais primam pela monótona falta de expressão,
enquanto aquelas em que não posou, como as tiradas com N.S. Vlasik ou Nadezhda
Alliluyeva, por exemplo, são mais espontâneas e interessantes, se bem que quase
todas de péssima qualidade para reprodução.
Ao consolidar seu mando pessoal, Stalin criou uma hierarquia completa de
líderes em todo o país. Podia-se estabelecer uma precedência oficiosa de postos só
em olhar os jornais dos anos 1930. É claro que no topo da pirâmide estava o
“melhor pupilo de Lenin”. As reportagens seguiam um padrão: diziam que as
plateias recebiam de pé o líder; os aplausos ganhavam intensidade e se
transformavam em ovação; ouviam-se alguns “hurrahs!” obrigatórios; o autocrata só
conseguia falar depois de muito tempo de explosão de verdadeiro êxtase; o ambiente
era de exaltação, de idolatria real, e os epítetos não tinham limite.
Os jornais também escreviam sobre Molotov, Kaganovich e Voroshilov em
termos de “glorioso camarada em armas de Stalin”, “obstinado bolchevique-
leninista”, “comissário stalinista”, “líder da escola stalinista” e assim por diante. Os
chefes dos escalões menores, como os secretários regionais do partido ou chefes de
agências importantes, eram citados como “equilibrados”, “verdadeiros
bolcheviques”, “chekistas excepcionais”, “líderes dedicados”. Porém, conquanto
essas pessoas ficassem nos degraus significativamente inferiores da escada, eram
responsáveis por repúblicas, regiões ou comissariados inteiros e, até 1934, eram
mencionados como líderes em escala regional. Mais abaixo ainda, ficavam os que
executavam os planos do “gênio” para a industrialização ou a coletivização, ou
organizavam subscrições para a força aérea, planejavam encontros e manifestações,
participavam da “deskulakização” e cobriam os quadros de honra ao mérito com
seus retratos. Os que conseguiam sobreviver a uma década eram promovidos ao
nível imediatamente superior. As vagas eram muitas. Esta precedência de postos
representava uma das fundações do sistema stalinista: menos poder do povo
significava mais chefes.
Stalin sabia que a população, particularmente o camponês, nutria ocultas
tradições “czaristas”. Oprimida e mantida na ignorância por séculos, ela só poderia
ficar com marcas profundas, com uma fé irracional na onipotência de qualquer
mandante, em especial o da capital. A predisposição dos camponeses ao culto
idólatra não era restrita a Stalin, aplicava-se a qualquer autoridade.
As pessoas simples escreviam com frequência para Stalin. As respostas eram
preparadas por um dos secretários, ordenando que os chefes locais tomassem
providências quanto às solicitações. Muitas vezes, Stalin respondia de próprio
punho. Fotocópias de tais respostas são encontradas às dezenas nos arquivos. Como
esta:
À família Klimkin. Leningrado.
Prezados camaradas!
Por causa do trabalho excessivo, estou atrasado na resposta, pelo que me desculpo. Já tomei medidas em
relação à solicitação de vocês. Ordens de pagamento já foram enviadas: de 100 rublos para o comitê central
para a Organização Internacional de Auxílio aos Combatentes da Revolução (MPOR) e de 300 rublos para o
kolkhoz “Chama da Revolução” no distrito de Khoper, um pioneiro na coletivização de massa.
Anexo uma foto que as crianças pediram.
Saudações! 7.04.30 I. Stalin76

Tais cartas foram mais tarde utilizadas em maciças campanhas de propaganda como
“exemplos da simplicidade do líder e de sua consideração com o povo”.
Fica claro que Stalin não estava preocupado apenas com o que hoje chamamos
de problemas de administração, mas também com a “técnica do governo de um só
homem”. Ele fez um estudo cuidadoso dos livros Sobre a natureza do absolutismo, de
V. Vorovsky, O Estado, a burocracia e o absolutismo na história da Rússia, de M.
Alexandrov, O destino do governante, de Yu. Kazmin, e de obras similares. Sua
abordagem da literatura histórica não era, evidentemente, a de um leitor
desinteressado; buscava analogias, estudava “receitas” sobre a técnica do poder e suas
sutilezas psicológicas. Aprendeu, por exemplo, que seus discursos nas reuniões
importantes do Kremlin causavam grande impacto nas cabeças e muita emoção na
plateia. Ao longo de todo o ano de 1935, falou no Kremlin numa reunião de
construtores ferroviários (30 de julho), para mulheres “trabalhadoras de vanguarda”
na colheita de beterrabas (10 de novembro), para destacados motoristas de
máquinas agrícolas (1º de dezembro), para homens e mulheres kolkhozniks do
Tadjiquistão e do Turcomenistão (4 de dezembro), para motoristas de tratores (20
de dezembro), e assim por diante. Cada encontro desses era amplamente divulgado
pelos meios e apresentado nos noticiários do cinema. À medida que sua
popularidade crescia, entretanto, Stalin decidiu reduzir a frequência de tais eventos:
quanto menos aparecesse, mais significativas seriam suas aparições, e sua reclusão
daria margem ao aparecimento de mitos, lendas oficiais e clichês enfeitados sobre
sua pessoa.
Um país que vivera séculos sob a autocracia não podia trocar sua pele psicológica
apenas com a sedução. Era necessário algum tempo. Portanto, Stalin colocou ênfase
especial na criação da fé no líder, no cuidado e preocupação com o povo e na sua
equidade. Transferiu a culpa de todos os seus erros e crimes para os ineptos e os
destruidores, para a estupidez dos funcionários e para os líderes locais, os quais ou
não entenderam ou deturparam suas instruções. Esta tática funcionou às mil
maravilhas. Ainda hoje há gente com a opinião de que a tragédia de Stalin deveu-se
“à confiança que depositou em Yezhov”, e mais tarde em Beria, que “havia muita
coisa que ele não sabia” e que “ele não tinha ideia da extensão da repressão”. Tudo
isso foi resultado da impecável campanha de muitos anos de lavagem cerebral. Para
fins externos, sua essência era simples: todos os sucessos e vitórias se deviam a Stalin;
todos os excessos, abusos e derrotas eram consequências do não cumprimento
adequado de suas ordens.
A popularidade de Stalin pode também ser explicada, como já mencionei, pelo
baixo nível de cultura política das massas. Tão logo entendeu que podia se
transformar num líder de longo prazo – o primeiro indício surgiu em 1927 e foi
confirmado no XVII Congresso de 1934 –, Stalin dispôs-se em fazer disso uma
proposição atraente para o povo. Filmes e livros começaram a aparecer que tratavam
de personalidades fortes, ditadores, czares “progressistas”. Em paralelo com a arte
genuinamente revolucionária, foram produzidas obras que apresentavam o papel do
indivíduo como absoluto. Stalin consultou pessoalmente Sergei Eisenstein e Nikolai
Cherkasov sobre a imagem de Ivan, o Terrível, no filme de mesmo nome.
O entourage do Secretário-Geral muito concorreu para fortalecer sua
popularidade, endeusando-o para cair nas suas boas graças. Sempre desconfiado,
Stalin via intenções e significados em cada palavra ou gesto descuidado. Ele mesmo
analisou escrupulosamente os gentis artigos de adulação – que só diferiam nos
títulos – escritos para comemorar seus sexagésimo e septuagésimo aniversários.
Examinou pilhas de livros e revistas que continham referências à sua pessoa. Sua
vaidade era insaciável, embora pudesse disfarçá-la em público para realçar o mito da
“modéstia extraordinária”. Para fins de propaganda e, por certo, para angariar
simpatia e ganhar favores, os membros de seu entourage competiam entre si na
busca dos melhores qualificativos, de comparações elevadas, de analogias históricas.
Neste mister, perderam todo o senso da medida. Em 1939, com o moedor de carne
em pleno funcionamento, os assistentes de Stalin, Poskrebyshev e Dvinsky,
escreveram sobre ele como um homem adornado com as mais altas qualidades
humanitárias. O artigo, intitulado, “Professor e amigo da humanidade”, inclui
trechos como o abaixo:

Stalin entrou na revolução com a imagem de Lenin em sua mente e em seu coração. Ele pensa em Lenin o
tempo todo. Mesmo quando seus pensamentos estão imersos em problemas que exigem decisão, sua mão
rabisca mecanicamente palavras como “Lenin [...] professor [...] amigo...” Quantas vezes, depois de um dia
de trabalho, nos desfizemos de páginas escritas em toda a sua extensão com essas palavras.77
Esses confeitos açucarados, acreditavam os autores, não só influenciariam as pessoas
como também seus sentimentos. Há provas de que, durante as reuniões, Stalin não
rabiscava nada parecido com “Lenin [...] professor [...] amigo...” em seu canhenho.
Os arquivos contêm registros que vão de documentos de importância histórica até
notas insignificantes, de relatórios de congressos até mensagens rabiscadas como
“Camaradas Andreyev, Molotov, Voroshilov: hora de parar. Deem um fim aos
discursos. O pleno tem que terminar às quatro. I.S”. Enquanto ouvia
distraidamente os pronunciamentos numa reunião do Politburo, escrevinhava na
capa de um livro com o título O perigo direitista em nosso partido:

Stalin. Reconhecimento. Professor. Sobre o perigo direitista. Sobre o perigo direitista em nosso partido.
Mukhalatka. Reunião privada. Tóquio. Professor. Sokolnikov. Editora “Priboi” dos trabalhadores. Fogo.
Discussão. Molotov.78

Os rabiscos de Stalin no final dos anos 1920 só nos dizem uma coisa: que aquilo
que Poskrebyshev e Dvinsky relatam sobre os pensamentos subliminais de Stalin,
além de muitas outras coisas, não faz o menor sentido.
Por outro lado, a popularidade de Stalin era uma forma, por contorcida que
fosse, de autodefesa social. Quem não desejasse atrair suspeitas tinha que evitar
qualquer “escorregão da língua” nas suas referências ao líder. O respingo mais
insignificante e não intencional sobre o papel de Stalin como líder poderia terminar
em tragédia. O sociólogo A. Fedorov contou-me que, no fim da década de 1940, na
fábrica de motores de tratores perto de Vitebsk, aconteceu o seguinte: o escritório
fora recentemente pintado e chegara a hora de pendurar os retratos nas paredes; um
jovem operador de tratores entrou na sala e derrubou sem querer um dos retratos de
Stalin que estava encostado, tentou recuperar o equilíbrio e, acidentalmente, pisou
no rosto do líder; um silêncio assustador desabou sobre as pessoas que estavam na
sala, e um dos gerentes passou uma descompostura no motorista; três dias mais
tarde, o jovem infeliz foi apanhado e só voltou a ser visto depois do XX Congresso.
Embutida na popularidade estava uma permanente camada oculta de medo.
Nem todos a sentiam constantemente. Os que sabiam da existência da repressão e a
tinham experimentado continuavam a elogiar Stalin enquanto escondiam seu
conhecimento do que se passava. A popularidade do secretário-geral era assim
sustentada tanto pela manipulação da opinião pública, com base nas conquistas do
povo, quanto pelo medo frequentemente incerto da punição real em caso da menor
crítica a ele. Como consequência natural da suspeita e da mania de espionagem
implantadas na mente pública, a delação generalizada passou a ser a norma.
Contudo, seria errado supor-se que todos os cidadãos soviéticos amavam Stalin
fanaticamente e que ele era popular para todos. Havia uma camada substancial de
comunistas pré-revolucionários conhecida como velha guarda leninista. Eles
conheciam a história do partido e a contribuição real que cada líder fizera para a
Revolução de Outubro, não as contadas pelo secretário-geral no Curso resumido, e a
maioria deles só veio a saber da existência de Stalin depois da revolução e da guerra
civil, quando, como vimos, ele não esteve na linha de frente. Portanto, a atitude do
“líder” em relação a esses antigos leninistas era bastante “parcial”. Ele sabia que,
embora os da velha guarda não dissessem nada, a imagem que tinham do secretário-
geral era diferente da que desejava passar. Aquelas pessoas com passado
revolucionário eram uma pedra no seu caminho.
Stalin via que, apesar do progresso, muita coisa não estava sendo conseguida. A
agricultura era o caos, se bem que a safra de 1936 tivesse sido boa. Como antes, o
país enfrentava sérias dificuldades econômicas e sociais. A despeito do tempo que
transcorrera desde a revolução e do slogan “a vida é melhor e mais alegre”, Stalin
ainda conclamava pelo aperto dos cintos pelo bem do amanhã. O padrão de vida
não melhorara tanto assim. Se Stalin dizia que a culpa era dos destruidores, o povo –
evidentemente não propenso a se autoacusar – acreditava, em particular porque
existiam muitos ex-oposicionistas e pessoas com reputações manchadas para pagar a
conta. Todos podiam ver evidências de solapamento na economia e na
administração.
Molotov, Kaganovich, Yezhov e Malenkov, este último fazendo carreira
acelerada, perceberam rapidamente a direção do pensamento de Stalin e captaram as
ideias contidas em suas assertivas. Curvado sob o peso de seu casaco de soldado,
como que encolhido ante o olhar de seus inimigos potenciais, Stalin parecia sinalizar
que só a completa erradicação destes tornaria sua posição inflexivelmente segura. Era
necessária ação decisiva. Um golpe maciço contra seus inimigos indistintos serviria,
no seu modo de ver, para justificar os desastres e enganos de sua política econômica,
como também para livrar-se daqueles que torciam por sua derrota. Depois da
guerra, Molotov acrescentou que, ao acabar com seus inimigos, Stalin estava
olhando bem para o futuro: ele exterminara aqueles que, numa guerra contra o
fascismo, poderiam ter ficado ao lado de Hitler.
Para Stalin, pareceu que sua hora havia chegado. Dali por diante, ninguém seria
capaz de desafiar seu mando pessoal. A tragédia se aproximava. A decisão
amadureceu e foi finalmente tomada quando estava em Sochi, bem distante de
Moscou. Em 25 de setembro de 1936, enviou um telegrama a Molotov, Kaganovich
e outros membros do Politburo em Moscou. Estava assinado por Stalin e Zhdanov,
o qual, no XVII Congresso, tornara-se secretário do comitê central e passara a gozar
rapidamente da confiança do secretário-geral. O telegrama foi o seguinte:

Consideramos de absoluta necessidade e urgência que o camarada Yezhov seja nomeado Comissário do Povo
para as Questões Internas. Yagoda mostrou-se totalmente incapaz de desmascarar o bloco trotskysta-
zinovievista. A OGPU está atrasada quatro anos a este respeito. Isso foi notado por todos os trabalhadores do
partido e pela maioria dos representantes da NKVD.79

Fora dado o terrível e monstruoso sinal. Não era possível imaginar a quantidade
enorme de “espiões, saqueadores e terroristas” que seria descoberta. Pareceu que eles
não estavam entre nós, mas que nós estávamos entre eles! Stalin fora bastante
encorajado pelo indiscriminado apoio público à acusação estatal no recente
julgamento de Zinoviev e Kamenev. Antes mesmo de o julgamento ter lugar e de as
circunstâncias do caso terem sido publicadas, a imprensa e o rádio já entoavam
jubilosamente “Destruição para as víboras”, “Morte aos inimigos”, “Sem piedade
com agentes duplos”. Stalin sentiu que conseguira bastante: ao escamotear a verdade
do povo, transformara-o numa massa pela qual ele próprio assumiria a
responsabilidade. Entre seus outros crimes, este talvez tenha sido o pior.
Parte VI
O epicentro da tragédia

Tudo entender
Não é tudo perdoar.
Erich Kästner
[28]
Inimigos do povo

A no-novo de 1937. A habitual azáfama das celebrações corria solta nas


cidades e vilas do vasto país. Nos clubes e nos apartamentos abarrotados,
enfeitavam-se pinheiros. Os homens já estavam de posse de uma ou duas
garrafas de vodka e, nas grandes cidades, adquiriam algum vinho decente para as
mulheres. Nos últimos dois anos, as vitrines e prateleiras das mercearias tinham sido
uma verdadeira festa. A edição de Ano-novo do Pravda, por exemplo, publicou uma
pequena nota sob o título “Compras de festas” dizendo:

Os moscovitas compraram ontem enormes quantidades de uma grande variedade de vinhos, da champanhe
ao moscatel soviéticos, bem como centenas de tipos de linguiças, peixes defumados, bolos, tortas e frutas.
Milhares de funcionários da “Gastronomia”, da “Mercearias” e de outras lojas de alimentação estavam
entregando as compras de seus consumidores para as comemorações do Ano-novo.

Nos comissariados e birôs do partido tomavam-se as últimas providências para o


relatório anual. E muito havia a relatar. No ano que passara, a Planta Industrial de
Máquinas de Kharkov entrara em funcionamento, a Fábrica de Celulose de Kama
fora oficialmente inaugurada, começara a construção da Indústria de Processamento
do Magnésio de Solikamsk, entrara em operação a Usina Hidrelétrica de Konakar,
na Armênia, começara também a operação da Indústria de Processamento de Peixe,
em Murmansk, simultaneamente com centenas de outros empreendimentos de
diversas dimensões. Tudo isso impressionava pela quantidade, se não pela qualidade.
Até o comissariado da indústria de defesa, só constituído em 1936 e que não
concretizara o planejamento em uma série de itens, enviou um relatório que abria
dizendo “A indústria de defesa será a melhor do país”. Stalin ficara satisfeito com os
relatórios dos comissários Kaganovich, Mikoyan e Lyubimov: o transporte
ferroviário, o comércio e a indústria leves e locais finalmente apresentavam
pequenos excedentes. Era bom que o povo visse que Stalin não jogava palavras ao
vento. Ele decretara que 1936 seria o ano do trabalho duro: o planejado era um
crescimento de 22% nos meios de produção e de 23% nos bens de consumo. Por
ordem sua, o Pravda publicou um artigo de fundo com o título “Um plano para
elevar o bem-estar do povo”, realçando que as palavras do grande líder, “a vida está
melhor, está mais alegre”, seriam verdadeiras para sempre.1
A pulsação do país era mais forte e mais rápida. O povo ainda vivia pobremente,
vestia-se mal, a existência era contida e dura, se bem que o país como um todo
batalhasse com vistas ao futuro. Era considerado de mau gosto falar em interesses
individuais; todos estavam envolvidos com a causa comum. Os objetivos do Estado
excluíam o completo e harmonioso desenvolvimento da pessoa, ainda assim os
valores socialistas de todo o sistema de relações dependiam da vontade e do modo
de pensar de um só indivíduo, e era obrigatória a adoração em seu altar ideológico.
Um editorial no Pravda de 1º de janeiro de 1937 intitulado “O grande timoneiro
nos conduz”, fechava com o seguinte panegírico: “A nau do Estado soviético está
bem equipada e armada. Não teme tempestades. Mantém o curso. Foi
brilhantemente planejada para enfrentar elementos hostis em tempo de guerra e na
revolução proletária. É dirigida por um gênio, o timoneiro Stalin.” O artigo era
acompanhado por um enorme retrato de Stalin encimando um mar de pessoas.
Alguém na multidão portava um retrato de Lenin.
Os jornais do início de 1937 repassavam mais do que a atmosfera
frequentemente tensa da vida dos trabalhadores: também alertavam sobre o perigo
da ameaça que vinha do exterior. Traziam matérias de Mikhail Koltsov transmitidas
da Espanha, detalhes do afundamento do navio soviético Komsomol perpetrado
pelos fascistas, a outorga do título de Herói da União Soviética a um grupo de
oficiais do Exército Vermelho “pela exemplar execução de missões especiais e muito
difíceis do governo”. Todos sabiam que se tratava de heróis “espanhóis”.
Nos primeiros dias de dezembro de 1936, o XVIII Congresso Extraordinário dos
Sovietes adotou uma nova Constituição Soviética que proclamava liberdades e
direitos democráticos amplos e fundamentais, inclusive a liberdade de consciência,
de expressão, de imprensa e de reunião, acentuando a inviolabilidade da pessoa e a
privacidade da correspondência.
Stalin tinha a capacidade de se transformar instantaneamente. No silêncio de seu
gabinete, um Stalin assinava listas de nomes de pessoas que deveriam ser presas e
executadas, e também aprovava planos para sentenças desumanas; ao passo que, na
tribuna, movendo o braço num amplo movimento de decapitação, outro Stalin
declarava que a nova Constituição “não se limita à fixação de direitos civis formais,
porém muda o centro de gravidade para a questão da garantia de tais direitos”.2
Apenas poucos meses antes, na sua última reunião com Zinoviev e Kamenev, de
acordo com alguns relatos, ele declarara:
Nossos princípios não permitem que derramemos sangue de antigos membros do partido, por maiores que
tenham sido seus pecados. Os líderes de nosso partido não olvidam nem direitos nem responsabilidades. O
julgamento, no qual vocês ajudarão o Estado, não é dirigido contra vocês, e sim contra Trotsky. Tudo isto é
necessário ao regime soviético.3

Stalin poderia ter lembrado de pelo menos uma dúzia de cartas de Zinoviev
implorando clemência. Poderia recordar a carta que Yagoda lhe entregara, em 17 de
dezembro de 1934, quando Zinoviev foi investigado e preso, na qual o velho
bolchevique escreveu, entre outras coisas:

Não sou culpado de nada, nada, nada em relação ao partido, em relação ao comitê central e em relação a
você pessoalmente. Juro por tudo que é mais sagrado a um bolchevique. Juro pela memória de Lenin.
Não posso nem imaginar a causa das suspeitas sobre minha pessoa. Rogo-lhe que acredite em minha palavra
de honra. Estou abalado até o fundo de minha alma.4

A resposta de Stalin foi a ordem para acelerar o julgamento de Zinoviev e,


exatamente um mês depois, em 16 de janeiro de 1935, o velho companheiro de
partido foi sentenciado a dez anos, tendo sido obrigado, preliminarmente, a
confessar crimes não cometidos e a denunciar os nomes de todas as pessoas que
pôde lembrar como “antigos participantes da luta antipartidária”. Stalin jamais fazia
as coisas pela metade. Um ano mais tarde, Zinoviev e Kamenev estavam de novo nas
barras do tribunal e sorveram o fel até o fim. O de que Stalin se lembrava não era a
sentença e sim a humilhação que Zinoviev experimentara ao implorar compaixão.
Stalin era o tipo de sádico que não se satisfaz por completo com a morte de sua
vítima. É necessária a capitulação total. Talvez se recordasse da carta de Zinoviev de
14 de abril de 1935:

Cheguei a um ponto em que me sento, fico olhando para seu retrato nos jornais e o dos outros membros do
Politburo, e penso: meus caros, olhem dentro de meu coração que por certo verão que não sou mais seu
inimigo, que sou de vocês, de corpo e alma, que entendi tudo e estou pronto a fazer qualquer coisa para
merecer seu perdão e sua generosidade.5

Poderia Stalin ter pensado, enquanto estivera sentado ao lado de Zinoviev no


Politburo (de 1919 a 1926), que a vida daquele homem como a de milhões de
outros passaria a não significar nada para ele? Poderia Zinoviev ter sonhado,
enquanto discutia questões russas com Lenin em Genebra, nas vésperas da revolução
ou em seus momentos mais sombrios, que, num determinado dia, um desconhecido
exilado interno, nada menos que um companheiro de partido, iria decidir, sem a
mínima comiseração, se ele deveria viver ou morrer numa masmorra em 25 de
agosto de 1936?
“Garantias”? As afirmações de Stalin de que os direitos do povo seriam
garantidos pela nova constituição não tinham valor. Será que os autores da
constituição entendiam assim? Entre os que trabalharam em sua redação estavam
Akulov, Bubnov, Bukharin, Gamarnik, Yegorov, Krylenko, Tukhachevsky,
Eideman, Uborevich, Yakir e outras figuras destacadas do partido, militares e vultos
sociais. Quando criaram a lei fundamental do Estado, colocando no papel o poder
do povo soviético, não sabiam que, a despeito de estarem sacramentados no
documento, todos aqueles direitos e garantias seriam impiedosamente
desrespeitados. No governo de Stalin, a Constituição não daria proteção. Quase na
mesma ocasião, o procurador da URSS, A.Ya. Vyshinsky, dava os retoques finais na
peça acusatória de duração fantasticamente longa que proferiria com tanta emoção
no segundo julgamento-espetáculo dos “conspiradores trotskystas”, em 28 de
janeiro de 1937.

Enquanto desejavam Feliz Ano-novo uns aos outros, os cidadãos soviéticos não
podiam imaginar quão sangrento seria o ano que começava. Por mais paradoxal que
possa parecer, passariam cerca de vinte anos para que se conscientizassem disso, já
então muito distantes no tempo de tudo que ocorrera. Entrementes, precisaram
expressar indignação e maldizer os “fascistas degenerados”, “espiões” e “terroristas”.
Stalin já alertara o povo quando, em janeiro de 1933, disse que, em certas
circunstâncias, “os grupos desbaratados dos velhos partidos revolucionários, os SR,
mencheviques, nacionalistas burgueses do centro e da periferia, poderiam ter
sobrevivido e causar novas agitações, bem como os remanescentes dos trotskystas
contrarrevolucionários e dos diversionistas de direita”.6 Parecia agora que causavam
novas agitações! Tendo o sucesso como pano de fundo, os desastres – que não eram
poucos – de fato pareciam “sabotagens”. E não havia Stalin dito que o inimigo
oculto estava apenas ganhando tempo? Quanto maiores as vitórias do povo
soviético, mais forte a resistência. Era isto que ele tinha em mente ao aguçar a luta
de classes, levando ao limite a ameaça da resistência!
Na véspera do XVII Congresso do partido, foi publicado um livro sobre a
construção do Canal do mar Branco (com trabalho escravo). Trinta e seis escritores
soviéticos, sob a direção editorial de Gorky, Averbakh e Firin, contribuíram com
louvores para a primeira tentativa de reeducar “inimigos do povo em amigos”. Foi,
escreveram eles, “um esforço vitorioso sem precedentes para converter antigos
inimigos do proletariado [...] e da sociedade soviética em representantes qualificados
da classe trabalhadora e mesmo entusiastas do trabalho nacionalmente importante”.
“É extraordinariamente mais difícil”, continuaram, “retrabalhar material humano
do que madeira, pedra ou metal.” Engenheiros, acadêmicos, professores e milhares
de outros intelectuais foram assim transmudados em “camaradas em armas” do
proletariado. Seu único crime fora o de pensar diferentemente de Stalin, o qual,
como afirmaram os autores, era dotado de

uma determinação brilhantemente organizada, da mente penetrante de um grande teórico, da coragem de


um líder talentoso, da intuição de um autêntico revolucionário que tinha sutil compreensão das qualidades
dos outros e que, enquanto cultivava as melhores dessas qualidades, batalhava incessantemente contra aquelas
que impediam que tais pessoas as desenvolvessem ao limite máximo.7

Mas não eram certas “qualidades” que estorvavam Stalin. Eram pessoas. Muita,
muita gente. Toda esta gente “não abatida” estava (potencialmente) impedindo que
ele se consolidasse como único líder ilimitada e universalmente amado. Ele não
esquecera que Bukharin e outros haviam sido companheiros de partido: o infortúnio
daquelas pessoas era que tampouco elas tinham esquecido e muito sabiam sobre ele.
Ele lera em algum lugar, possivelmente em Cosimo de Medici: “Existe um preceito
de que não devemos perdoar nossos inimigos. Mas não existe um sobre o perdão
para nossos antigos amigos.” Stalin não pensava em perdoar qualquer das duas
categorias.
Quem primeiro empregou a aterradora expressão “inimigos do povo”? Já vimos
que, em seu desterro na Sibéria, Stalin ficara impressionado com o que lera sobre a
Revolução Francesa, em particular com a determinação de Robespierre, o qual, no
momento crítico, conseguiu uma lei para simplificar os processos jurídicos contra os
“inimigos da revolução”. Mas, ao contrário de Robespierre, Stalin padecia de um
medo mortal de atentados contra sua própria vida. Portanto, as acusações imputadas
a incontáveis desafortunados tiveram fulcro no famoso Artigo 58 sobre “atos
terroristas dirigidos contra representantes do regime soviético”. A julgar pelos
procedimentos legais daquela ocasião, pensar-se-ia que milhares e milhares de
cidadãos soviéticos não pensavam noutra coisa que em dar cabo do líder e de seu
entourage.
Se bem que a expressão “inimigo do povo” fosse usada antes de 1934, foi a partir
daquele ano que Stalin conferiu-lhe conteúdo definido. Uma “carta secreta” do
comitê central para as organizações partidárias nas regiões e nas repúblicas, datada
de 29 de julho de 1936 e claramente de autoria de Stalin, salientou que um inimigo
do povo normalmente se mostrava “dócil e inofensivo”, que fazia de tudo para se
“infiltrar furtivamente no socialismo”, que não aceitava o socialismo e que, quanto
mais desesperançada ficasse sua posição, mais inclinado “se tornaria a medidas
extremadas”.8
A.A. Yepishev, que trabalhou no Ministério da Segurança Estatal de 1951 a
1953, disseme que Beria exultava em citar a ideia, que atribuía a Stalin, de que “um
inimigo do povo não é apenas aquele que realiza sabotagem, mas o que duvida da
correção da linha do partido. Existem muitos deles entre nós e temos que liquidá-
los”. Yepishev, que não era muito expansivo a seu próprio respeito, disse com
franqueza:

Consegui, com muita dificuldade, escapar do covil de Beria. Depois de repetidas solicitações para retornar ao
trabalho no partido, Beria zombou maliciosamente e disse: “Você não quer trabalhar comigo? Tudo bem,
faça o que quiser.”
Poucos dias depois, fui enviado para Odessa, nomeado novamente como primeiro-secretário do comitê
regional do partido, mas o chefe local do MVD logo chegou-se a mim e disse que eu deveria permanecer em
casa no dia seguinte. Eu sabia que isso significava prisão a qualquer momento. E entre os que trabalharam
com Beria, aqueles que tinham dúvidas eram encarados como os piores inimigos do povo. Fui salvo por um
milagre: o próprio Beria foi preso naquela ocasião.

Inimigo do povo era, portanto, quem não se encaixasse no padrão de Stalin e


nada tinha em comum com o mesmo conceito aplicado à Revolução Francesa, na
qual Stalin fora visivelmente buscar a noção. Robespierre, ao estabelecer a ditadura
revolucionário-democrática, viu inimigos na “aristocracia tirânica e naqueles que
amealharam suas fortunas por meios injustos”, ao passo que, para Stalin, inimigo era
quem quer que não partilhasse, ou pudesse não partilhar, de seu ponto de vista. Na
realidade, ninguém se opunha ao mando pessoal de Stalin, mas ele sentia que
muitos, especialmente a velha guarda de Lenin, não aprovavam secretamente seu
tipo de socialismo. Isso foi suficiente para que o secretário-geral chegasse à terrível
decisão. Com a ajuda do aparato ideológico, Stalin criou gradualmente uma
atmosfera de suspeição no país, preparando o povo para o iminente e sangrento
expurgo.
A esmagadora maioria dos cidadãos acreditava piamente tratar-se de uma luta de
vida e morte contra quem ainda queria restaurar o capitalismo. Já em janeiro de
1937, os jornais publicavam matérias como “Espiões e assassinos”, “Mercadores da
mãe-pátria”, “Trotskysta, destruidor, diversionário, espião”, “O mais abjeto dos
abjetos”, “Quadrilha trotskysta de restauradores capitalistas”. Estas constantes
massagens na mente pública produziram resultados, e o povo se indignava ao ouvir
referências à torpeza daqueles que tinham conseguido se esconder por tanto tempo.
Como tudo isto aconteceu? Por que Stalin e seus asseclas foram capazes de
convencer o povo e o partido de que estavam cercados de inimigos? De que forma
surgiu a mania de espionagem e sabotagem? Em boa medida, o pleno de fevereiro-
março do Comitê Central dá uma resposta.
Muitos relatórios foram apresentados no pleno que durou duas semanas. O
secretário do Comitê Central, A.A. Zhdanov, abriu a reunião com seu relatório
sobre o trabalho nas organizações partidárias para o preparo das eleições para o
Soviete Supremo sob novo sistema eleitoral, e sobre a reestruturação do trabalho
político do partido. Zhdanov, que desfrutava naquela oportunidade das boas graças
do líder, expressou algumas ideias aparentemente sensatas. Por exemplo, sublinhou
o fato de que “o novo sistema eleitoral significou muito maior abertura [glasnost] na
atividade das organizações soviéticas”. Adequadamente, levantou a questão da
democracia interna no partido como condição importante para o bem-estar moral
partidário. Porém, àquela altura, citou Stalin, dizendo que “embora nos surpreenda
o trabalho cultural da ditadura”, os órgãos repressivos continuavam tão necessários
naquela ocasião quanto foram ao tempo da guerra civil. Temos que estar alertas,
continuou, porque, “enquanto nosso povo adormecido apenas se arrasta, nossos
inimigos já estão ativos”. A situação no partido, acrescentou, não era simples. Os
quadros estavam se estreitando; muitos inimigos haviam emergido neles. “A prática
perigosa da cooptação enraizou-se e está indo longe demais. Tal prática infringe o
direito legítimo de os membros do partido tomarem parte na eleição de seus órgãos
diretores.”
Expôs então alguns números interessantes. Até cerca de 59% dos membros e
candidatos a membros dos birôs dos comitês dos distritos e das cidades haviam sido
cooptados. Em Kiev, por exemplo, em 19 de outubro de 1934, quatorze pessoas
tinham sido cooptadas de uma só vez para o comitê da cidade; muitas delas,
descobriu-se, eram inimigas do povo. Em Kharkov, dos 158 membros e 34
candidatos a membros eleitos para o comitê da cidade, durante a IV Conferência do
partido da cidade, 61 foram cooptados e só restaram 59 do total. E o birô do comitê
da cidade fora totalmente cooptado, com uma só exceção. Em 4 de abril de 1936,
continuou Zhdanov, o comitê do Distrito Lenin, em Kharkov, discutiu a “expulsão
de todo um grupo de pessoas”. Até o grupo ativista fora convidado. Por quê? Para
que existissem dez pessoas na reunião do comitê distrital na qual seria debatida a
expulsão de 12 pessoas! Então, dez engoliram outros 12! Isto provocou gargalhadas
entre os delegados.9
Zhdanov prosseguiu por bom tempo citando exemplos similares. Eles não eram
apenas sintomáticos das práticas antidemocráticas do partido. A organização estava
dominada por uma situação na qual a ilegalidade era a regra, bem como por uma
atitude permissiva em relação ao emprego disseminado da repressão. Stalin e sua
equipe haviam criado um clima moral que possibilitava o desvio das soluções
administrativas para o emprego franco da força contra potenciais oponentes.
Quando houve o pleno, Stalin já efetuara um “reconhecimento em força” ao
lidar com Zinoviev, Kamenev e outros bolcheviques. Aquela gente postava-se no seu
caminho, sabia muito sobre ele. Sabia, por exemplo, das reuniões em seu estúdio
quando tramou com Zinoviev e Kamenev contra Trotsky; conhecia as incontáveis
intrigas, as adulterações que introduzira em antigos documentos do partido (por
exemplo, arquitetara a distribuição de uma nota, por intermédio de Vladimir Sorin
e Yelena Stasova, pedindo alterações nas minutas de uma reunião do comitê central
de 23 de fevereiro de 1918 sobre a paz de Brest-Litovsk);10 sabia da misteriosa
enfermidade e morte de Frunze, e assim por diante. Zinoviev e Kamenev estavam na
prisão, mas Stalin almejava despachá-los para o esquecimento final.
Em 15 de agosto de 1936, por intervenção pessoal de Stalin, Zinoviev e
Kamenev foram submetidos a novo julgamento. O tribunal não estava ainda
organizado, tampouco as acusações tinham sido esclarecidas, e os jornais e o rádio já
bradavam que não deveria haver complacência com os “inimigos do povo”. A
vingança de Stalin não teve meio-termo: seus antigos camaradas foram sentenciados
à morte e executados. As cartas a ele enviadas implorando perdão restaram sem
respostas. Ele esperava que, com Kamenev, fossem enterradas as palavras que aquele
bolchevique pronunciara no XIV Congresso, “Cheguei à conclusão de que o
camarada Stalin não preenche os requisitos de um unificador para a equipe do
quartel-general bolchevique”, e que Zinoviev levasse consigo sua avaliação de que
Stalin, “o sanguinário da Ossetia [...] não tem ideia do significado de consciência”.
Fossem quais fossem as acusações, nem Kamenev, nem Zinoviev eram inimigos do
socialismo ou do povo. Stalin não gostava de ficar restrito a apenas uma faixa dos
inimigos desarmados e, portanto, como centenas e milhares de outros, os familiares
de Kamenev e Zinoviev ou foram exilados ou também exterminados. A esposa de
Kamenev, seus dois filhos (um deles ainda menor), seu irmão e a mulher deste
irmão, todos pereceram.
Os relatórios apresentados no pleno por Molotov, Kaganovich e Yezhov trataram
de um só assunto: “As lições de sabotagem, diversionismo e espionagem dos agentes
nipo-germano-trotskystas.” Careciam de qualquer análise racional ou compreensão
real da situação pela simples razão de que o assunto em si era uma miragem, uma
aparição. Palavras fortes foram ouvidas, juramentos feitos, e os primeiros
“resultados” divulgados.
Abrindo seu relatório, Molotov disse que estava substituindo Sergo
Ordzhonikidze que, em 18 de fevereiro, uma semana antes da abertura do plenário,
suicidara-se. O boletim governamental noticiou que ele falecera de ataque cardíaco.
Segundo muitas pessoas que bem conheciam a família, Ordzhonikidze estava
deprimido com a mania de espionagem e a caça às bruxas, motivos de ásperas
discussões com Stalin. Em represália, Stalin enviou ao camarada relatórios recebidos
da NKVD sobre sua pessoa, sinalizando às claras que onde havia fumaça havia fogo.
Ordzhonikidze sentiu que Stalin demandava sua completa subserviência sob pena de
partilhar a trágica sorte dos outros. Para enfeixar tudo isto, Stalin solicitou-lhe um
relatório para o XVII Congresso sobre a “Sabotagem na indústria pesada”.
Ordzhonikidze devia incriminar com a própria voz muitos chefes da indústria, e
tomar parte direta naquele mando arbitrário que nenhum bolchevique autêntico
podia aceitar. Ele aproveitou a chance de agir com a consciência, embora não da
forma mais eficiente, mesmo que, naquelas circunstâncias, tenha sido a mais
honrosa. A turma de Yezhov enviara a Ordzhonikidze um dossiê sobre seu irmão,
Papuli. Diversos outros parentes seus foram presos, e ele foi literalmente induzido à
decisão fatídica.
Stalin chegou ao apartamento de Ordzhonikidze e deu instruções para que um
relato “substancial” do suicídio fosse divulgado para os jornais. De acordo com os
parentes, o secretário-geral confiscou o bilhete deixado pelo suicida, cujo conteúdo
provavelmente jamais saberemos. Ao encurralar Ordzhonikidze, Stalin liquidou o
único membro de seu entourage que não compartilhava da sua abordagem de terror.
(Tornou-se norma para Stalin perseguir um homem até a morte, depois pegar a alça
de seu caixão, ou o cofre das cinzas, fazer uma oração fúnebre e confortar os
parentes.) O funeral de Ordzhonikidze retardou a abertura do pleno. Ele não foi o
único a se retirar daquela maneira: houve também Tomsky, Gamarnik, Sabinin e
Lyubchenko, para citar apenas alguns.
Molotov pontilhou seu relatório com números e com uma imensa lista de nomes
de “inimigos do povo” escondidos na indústria pesada. Toda a quadrilha, disse ele,
era liderada por Pyatakov. Para provar que a sabotagem se alastrara pela economia e
que havia também uma luta aberta sendo montada contra ela, Molotov apresentou
uma estatística sinistra sobre a quantidade de gente que trabalhava na burocracia dos
seguintes comissariados do povo e fora condenada até 1º de março de 1937:
Indústria Pesada – 585, Educação – 228, Indústria Leve – 141, Ferrovias – 137,
Terra – 102,11 e por aí foi, citando 21 ministérios. Em todo o relatório, Molotov
deu ênfase especial à noção de que todos aqueles destruidores tinham agido por
instrução do “centro trotskysta”. Explicou a estratégia da sabotagem citando o
slogan de Trotsky: “Golpes sensíveis devem ser desferidos em pontos sensíveis.”
Mesmo que fossem aceitos os fatos sobre os malfeitores, Molotov não podia
deixar de saber que empreendimentos industriais de enorme vulto vinham sendo
realizados em velocidade alucinante, por “carga de cavalaria”. A tecnologia atrasada,
baixa produtividade, cultura técnica e disciplina deficientes, e a incompetência só
poderiam resultar em interrupções de todos os tipos, inclusive incêndios e desastres.
Tudo aquilo, porém, tinha de ser explicado como “ação dos destruidores
trotskystas”.
O relatório de Kaganovich sobre a situação no setor ferroviário teve tom idêntico
e também listou nomes. Não querendo ficar atrás de Molotov, ele igualmente
relatou que o comissariado das ferrovias não estava inerte nem perdia tempo na
caçada ao inimigo. Não é difícil imaginar os meios que empregou para
“desmascarar” e “mandar embora” (nas suas palavras) milhares de indivíduos. O
mais surpreendente é uma variedade tão grande de “inimigos” vir trabalhando nas
ferrovias em cooperação aparentemente amistosa. Eles eram ex-milícias, SR,
mencheviques, trotskystas, oficiais Brancos, demolidores e espiões.
Yezhov seguiu o padrão estabelecido por Molotov e Kaganovich, revelando que,
praticamente, havia inimigos por todos os lados. Um pigmeu físico e moral, Yezhov
foi agraciado na véspera do pleno com o novo título de Comissário Geral da
Segurança do Estado, título que apenas Beria iria também ostentar. O relatório de
Yezhov foi abertamente dirigido para a intensificação da campanha de denunciar
“inimigos internos”:

No período de diversos meses, não me recordo de uma única ocasião em que alguém, fosse um gerente
industrial ou um chefe de comissariado, tivesse me telefonado por iniciativa própria para dizer: “Camarada
Yezhov, há algo estranho a respeito de fulano ou sicrano, alguma coisa não está certa, encarregue-se dele.”
Simplesmente isto não aconteceu. O normal, quando alguém levanta a questão da prisão de um sabotador ou
de um trotskysta, é o rápido aparecimento de camaradas para defendê-los.12

Num memorando especial aprovado pelo pleno sobre o relatório de Yezhov foi
anotado que o comissário das Questões Internas estava atrasado pelo menos quatro
anos na luta contra os inimigos. Em outras palavras, Stalin achou que o expurgo
deveria ter começado nas vésperas do XVII Congresso do partido. A NKVD foi
encarregada de “realizar a tarefa de desmascarar e atacar os trotskystas e outros
agentes até a última instância, de modo a esmagar a menor manifestação de sua
atividade antissoviética”.13 Mas isto foi apenas o prelúdio. Os participantes do
pleno, em sua maioria homens de bom senso, ficaram mais alarmados com o modo
de Molotov, Kaganovich e Yezhov apresentarem os fatos investigados do que
convencidos da existência de sabotagem generalizada. Faltava o histórico político e
teórico. Os oradores tinham desvendado o panorama em que os inimigos operavam,
mas o que estavam realmente fazendo e o porquê de suas ações não ficaram
esclarecidos. Pode-se agora apenas especular o que passou pela mente dos delegados.
Já tinham decorrido três anos desde o “Congresso dos Vitoriosos” e vinte anos de
poder soviético e, de novo, estavam frente ao quase universal “perigo de restauração
do capitalismo”. Tendo em grande parte livrado o comitê central da velha guarda
leninista, Stalin recorria uma vez mais às medidas extremas.
Era necessário um programa preciso. O líder o formulou. Fazia-se mister uma
base teórica para o terror contra os “inimigos”. Stalin a criou. O povo tinha que ser
levantado para liquidar os “trotskystas e outros agentes duplos”, o secretário-geral
também planejou este encargo. Considerando-se as cuidadosas formulações, e a
estrutura impecável do relatório que ele apresentou como discurso de encerramento,
que compôs de próprio punho, fica patente que Stalin via o sangrento expurgo que
estava a ponto de sobrevir como da maior importância.
Seu relatório recebeu o título de “Inadequações do trabalho do partido e as
medidas para a liquidação dos trotskystas e outros agentes duplos”. Os frequentes
trechos sublinhados, as inserções e as notas à margem com sua caligrafia clara
testemunham o cuidado em sua preparação. Ele não se permitiu a listagem
individual de funcionários hostis, à maneira destemida de Molotov, Kaganovich e
Yezhov. Como orador principal, colocou cada coisa em sua prateleira apropriada.
Primeiro, definiu a noção de “segurança política” e depois enfocou as consequências
do cerco capitalista realçando que ele representava uma ameaça real que tinha que
ser constantemente levada em conta durante a construção do socialismo, e ligou-o
ao “perigo trotskysta”. Os próprios trotskystas foram por ele caracterizados como
“um bando de destruidores desesperados e sem escrúpulos, diversionistas, espiões e
assassinos que operavam sob as ordens de serviços estrangeiros de informações”.
Potencialmente, classificou o trotskysmo como principal ameaça ao socialismo, e
chegou à seguinte conclusão de longo alcance:

Quanto mais avançarmos, quanto mais sucesso conseguirmos, mais exasperados se tornarão os remanescentes
das classes exploradoras destruídas, mais cedo apelarão para formas extremadas de luta, mais difamarão o
Estado soviético e mais recorrerão aos meios desesperados como a solução última dos condenados.14
Desde o fim dos anos 1920 e de novo em 1934 e 1937, Stalin vinha pregando que a
luta de classes se aguçaria com o progresso do socialismo, um conceito na verdade
paradoxal em seu tom e irracional no conteúdo. Mas Stalin era um pragmático.
Tinha de encontrar uma base teórica para o processo de expurgo total que
preparava. Ninguém, afora ele, estava capacitado para a missão, e era ele quem
precisava da fundamentação. Em 1934, garantira que as classes exploradoras estavam
liquidadas na URSS e agora, três anos depois, mostrava de repente que a luta estava
se “aguçando”. Disse ao plenário que isso era possível porque ex-oposicionistas
tinham se camuflado e vinham executando atividades subversivas clandestinas,
consolidando suas forças e ganhando tempo. Citou “seis teorias podres” que
evitavam que o partido destruísse completamente os trotskystas: não se deveria
pensar que cumprir o plano antes do tempo derrotaria os destruidores; ou que o
movimento stakhanovista por si só acabaria com a sabotagem; era errado supor,
como alguns, que os trotskystas não estavam congregando forças, e por aí
prosseguiu.
Enquanto os outros relatores se concentraram em fatos concretos de sabotagem,
Stalin, como sempre, encaixou tudo dentro de um quadro bem estruturado. No seu
pronunciamento final de 5 de março, declarou que “há sete pontos que o pleno não
aclarou”. Entre eles, fez alguns julgamentos corretos, por exemplo, que diversos ex-
trotskystas tinham assumido posições boas e “não deveriam ser desacreditados”. Fez
diversas declarações “típicas de líderes” como a de que, vez por outra, dever-se-ia dar
ouvidos à voz das “pessoas comuns”, externou algumas palavras de ordem tais como
“no futuro, esmagaremos nossos inimigos, como o fazemos agora e fizemos no
passado”. Valendo-se de sua forma preferida de aforismos simples que todos podiam
entender, declarou: “Para ganhar uma batalha são necessários diversos exércitos.
Para perdê-la bastam uns poucos espiões. Para construir uma grande ponte
ferroviária há necessidade de milhares de operários. Para destruí-la, bastam apenas
alguns homens.”15
A resolução adotada concernente ao relatório de Stalin abrangeu 27 pontos
categóricos, aos quais acrescentou detalhes finais com seu próprio lápis. Entre eles:

— condenar a prática de subestimação do front da propaganda;


— condenar a prática de transformação dos plenos em ocasiões aparatosas;
— condenar a cooptação e a transformação das eleições em ocasiões vazias;
— condenar agrupamentos [artelnost] na distribuição das forças do partido;
— condenar a prática de uma atitude insensível em relação ao destino de membros individuais do partido.16
Infelizmente, o aparente bom senso desses postulados não desempenhou papel
algum no tratamento dispensado aos membros do partido, nem evitou rachaduras
posteriores nas fundações partidárias. Por exemplo, dois dias antes de concordar
com a “condenação da atitude insensível”, a sorte de Bukharin e Rykov foi selada e,
no mês anterior, Pyatakov, Radek, Sokolnikov e outros tinham sido condenados. Já
de muito tempo àquela parte, o fosso entre palavra e ação não tinha relevância para
Stalin. Na prática, o que se destinava ao consumo geral era mais ou menos
respeitável, razoavelmente democrático no tom e legal em termos contemporâneos.
O que ele dizia no círculo íntimo era para ser mantido em segredo estrito. E foi
exatamente assim quanto a Bukharin e Rykov.
O pleno aprovou resolução para o caso de Bukharin e Rykov, que ainda eram
candidatos ao comitê central na ocasião. O decreto foi rascunhado por uma
comissão de 36 membros chefiada por Mikoyan e que incluía Andreyev, Stalin,
Molotov, Kaganovich, Voroshilov, Kalinin, Yezhov, Shkiryatov, Krupskaya (viúva
de Lenin), Kosior, Yaroslavsky, Zhdanov, Khruschev, Yakir, Beria, Eikhe, Bagirov,
Budenny, Chubar, Kosarev, Postyshev e Gamarnik.17
Antes de a comissão se reunir, Bukharin preparou um longo e apaixonado
memorando desmentindo cada acusação. Também escreveu diversas cartas a Stalin
tentando convencê-lo de que a “prova” se inspirava num grupo de “inimigos do
povo” presos, e de que não tinha nada a ver com terrorismo, espionagem ou
qualquer atividade dessas. Conseguiu também falar duas ou três vezes com Stalin
pelo telefone que ainda era mantido em seu apartamento. Stalin o tranquilizou:
“Nikolai, não entre em pânico. Vamos resolver tudo. [...] Não acreditamos que você
seja inimigo. Mas como você foi implicado por Sokolnikov, Astrov, Kulikov e
outros agentes duplos, que admitiram ser sabotadores, temos que examinar tudo
com calma. Não se preocupe!”
Bukharin explodiu:“Como é possível sequer imaginar que sou cúmplice de
grupos terroristas?”
“Não se afobe, Nikolai, não se afobe. Vamos resolver tudo.” Stalin tirava
baforadas de seu cachimbo.
A comissão não deu atenção às explicações de Bukharin e Rykov. Seus
“argumentos” principais foram como antes: participantes de um “centro trotskysta
paralelo” declararam que Bukharin, Rykov e futuros “operadores isolados” sabiam
sobre as destruições e atividades terroristas do “centro” e as apoiaram. Bukharin
entrou em desespero enquanto Rykov manteve a compostura, ao entenderem que
enfrentariam o mesmo fado de Zinoviev e Kamenev, recentemente fuzilados, e o de
Pyatakov, Muralov, Drobnis, Shestov e outros “traidores torpes” liquidados logo a
seguir. Bukharin começou uma greve de fome contra as acusações monstruosamente
injustas.
Na noite de 26 de fevereiro e novamente na manhã de 27, Bukharin telefonou a
Poskrebyshev e informou que ele e Rykov desejavam comparecer ante a comissão
que já começara a funcionar, mas que, apesar de os dois serem candidatos a membro
do Comitê Central, não os convocava para todas as suas sessões. Só Uborevich e
Akulov apertaram-lhes a mão. A comissão plenum sobre o caso de Bukharin e Rykov
abriu os trabalhos. Mesmo antes de Yezhov começar o relato, Stalin exclamou:
“Bukharin está em greve de fome. A quem seu ultimato é dirigido, Nikolai, ao
Comitê Central?”
“Vocês estão prestes a me expulsar do partido...”
“Peça perdão ao Comitê Central.”
Como acontecera antes, Bukharin perdeu o autocontrole. Pensou detectar um
laivo de esperança nas palavras de Stalin. Mas também sabia que a revisão de seu
caso envolveria material coletado pela NKVD em sua investigação, e que sua
justificativa, tanto escrita quanto verbal, seria meramente interpretada como
tentativa de “iludir o partido”. É possível apenas imaginar o que Bukharin e Rykov
sentiram ao se chocarem com uma parede de incompreensão e de hostilidade
programada. Os membros da comissão tinham diante deles fatos que se baseavam
em “evidências” e “testemunhos” obtidos por meios inadmissíveis de homens já
condenados.
Quando Mikoyan, presidente da comissão, sugeriu que fizesse uma confissão
completa e admitisse sua participação em atividade antissoviética, Bukharin deu
uma resposta áspera sem levantar-se:
“Não sou Zinoviev ou Kamenev e não mentirei sobre mim mesmo.”
“Se você não confessar”, respondeu Mikoyan com malevolência, “estará apenas
provando que é um fascista mercenário. Já estão escrevendo nos jornais que nossos
julgamentos são uma provocação. Você está preso! Confesse!”
Bukharin prosseguiu: “Há gente na NKVD cometendo arbitrariedades sem
precedentes com cobertura da autoridade partidária.”
“Sim, e é para lá que vamos mandar você”, interrompeu Stalin. “Espere só para
ver.”
É provável que só Stalin, Yezhov e o círculo mais próximo soubessem que as
acusações eram falsas. Bukharin e Rykov sempre levaram uma vida aberta e
dificilmente seriam inimigos. Stalin percebeu hesitação nos outros membros da
comissão quando apreciaram a justificativa escrita de Bukharin e, portanto,
procurou encerrar o debate apresentando uma decisão preparada com antecedência.
Uma resolução de Yezhov foi posta em votação mediante chamada nominal. Eram
propostos “a destituição de Bukharin e Rykov como candidatos a membro do
comitê central e o julgamento por tribunal militar com a penalidade extrema da
morte por esquadrão de fuzilamento”. Postyshev disse que era “favorável à expulsão
e ao julgamento, mas não à execução”; Antipov, Khruschev, Nikolaev e Shkiryatov
foram da mesma opinião; Budenny, Manuilsky, Shvernik e Kosarev apoiaram a
“expulsão, julgamento e execução”.
Stalin percebeu que não haveria decisão unânime e, então, fez um lance
cuidadosamente calculado. “Proponho”, declarou, “que Bukharin e Rykov sejam
expulsos do partido, mas que o caso seja repassado à NKVD para investigação.” Ele
sabia que isso era tão monstruoso quanto “expulsão, julgamento e execução”, mas
desejava passar a impressão de conciliador humanitário. Possivelmente, sua proposta
deu a Bukharin e Rykov um tênue fio de esperança. Foi natural que, depois da
sugestão de Stalin, os demais da comissão emitissem declarações brandas.
Krupskaya, Vareikis, Molotov e Voroshilov apoiaram a proposta do secretário-geral.
Kosior, Petrovsky e Litvinov reiteraram a fórmula de Postyshev do julgamento sem
execução. Os registros históricos mostram que, no entanto, mesmo depois da
proposição de Stalin, Kosarev e Yakir, que seriam as próximas vítimas da ilegalidade,
votaram pela expulsão, julgamento e fuzilamento. Como se pode ver, diversos
membros da comissão estabeleceram a sentença mesmo antes do julgamento,
enquanto outros deram opiniões que, aparentemente, não iam à pena fatal. Como
presidente, Mikoyan não emitiu seu ponto de vista. Foi decidido depois da primeira
chamada que deveria haver nova rodada, e a proposta de Stalin recebeu apoio
unânime:

1. Bukharin e Rykov deverão ser destituídos da função de candidatos a membro do Comitê Central; não
deverão ser julgados, mas seu caso deve ser encaminhado à NKVD;
2. Comissão constituída pelos camaradas Stalin, Molotov, Voroshilov, Kaganovich, Mikoyan e Yezhov
preparará uma minuta de resolução com base nesta decisão.18

A resolução aprovada para o caso Bukharin-Rykov contém anotações e emendas de


Stalin por todos os lados. Com efeito, foi uma instrução política e um modelo
metodológico para a abordagem de casos semelhantes. O plenário não só aprovou a
tese de Stalin sobre o agravamento da luta de classes como proporcionou um
exemplo de como responder aos atos “hostis”. A resolução era composta de três
pontos que podem ser assim resumidos:
1. Com base nas evidências da investigação, o Comitê Central concluiu que os camaradas Bukharin e Rykov,
no mínimo, sabiam da atividade criminosa, terrorista, de espionagem e diversionária do centro trotskysta,
mas a encobriram, cometendo, portanto, ato criminoso.
2. Com base nas evidências da investigação e em função das acareações, o Comitê Central concluiu que os
camaradas Bukharin e Rykov, no mínimo, sabiam da organização de grupos terroristas criminosos por seus
discípulos e seguidores Slepkov, Tseitlin, Astrov, Maretsky, Nesterov, Rodin, Kulikov, Kotov, Uglanov,
Zaitsev, Kuzmin, Sapozhnikov e outros, e não só nada fizeram para barrá-los como os encorajaram.
3. O Comitê Central concluiu que o memorando do camarada Bukharin ao comitê central, no qual tenta
repudiar o depoimento dos acima citados trotskystas e terroristas de direita não passa de um documento
injurioso. Levando-se tudo em consideração e tendo-se em conta o fato de que, durante a vida de Lenin,
Bukharin teve uma luta contra o partido e contra o próprio Lenin (como Rykov também o fez), todo o
acontecido não foi nem acidental nem inesperado, e, portanto [o restante está com a caligrafia de Stalin],
Bukharin e Rykov devem ser expulsos de membros candidatos do Comitê Central e das fileiras do [partido].
Seja seu caso remetido à NKVD.19

Mal Bukharin e Rykov deixaram a sala ao término da audiência da comissão, foram


presos. Todavia, eram por demais conhecidos pelo povo e pelo partido para serem
despachados com rapidez. Um julgamento era indispensável e para assegurar que os
acusados estivessem prontos para ele era necessário algum tempo. Seguiu-se um
longo intervalo de 13 meses entre o pleno e o último ato da tragédia.
A decisão do pleno deu um poderoso impulso a todo o processo. Já em março de
1937, nas regiões e nas repúblicas, comitês do partido se reuniram para ouvir as
instruções de Stalin e também para a apresentação dos primeiros resultados de seu
cumprimento. O relatório de Zhdanov, em Leningrado, em 15 de março de 1937,
serve como bom exemplo:

Em vista do acontecido, Bukharin e Rykov não se revelaram diferentes dos zinovievitas e trotskystas. São
todos uma gangue de bandidos. Não me recordo de comportamento tão vergonhoso ou mais desprezível que
o de Bukharin e Rykov. Foram necessários quatro dias para que arrancássemos deles a verdade, mas
esperamos em vão que demonstrassem um lampejo ou um vestígio de atitude humana com o partido. Como
eles disseram, não éramos seus juízes.

Zhdanov prosseguiu aviltando ainda mais Bukharin perante os comunistas de


Leningrado dizendo-lhes que sua greve de fome não passou de uma encenação. “Por
volta da meia-noite, ele ingeriu uma refeição bem mais nutritiva que a habitual e às
dez da manhã anunciou sua greve de fome.”20
Zhdanov tinha alguns fatos a relatar sobre o “trabalho” que já fora feito em
Leningrado para revelar “inimigos”. “Oito grupos de sabotadores tinham sido
descobertos nas ferrovias Kirov e Outubro, dez grupos em fábricas, na NKVD, na
defesa antiaérea e no aparato do partido.” “Ninhos de inimigos” foram logo
desvendados no distrito Vyborg (13 pessoas), no distrito Vasilievsky (12) e no
distrito Kirov (12). No total, 223 funcionários do partido. “Vocês bem podem
imaginar a confusão no aparato do partido!”, advertiu.
Acompanhado de urros de indignação, Zhdanov pintou um quadro lúgubre do
domínio do inimigo na cidade que era o berço da revolução: “Entre 1933 e 1936,
183 pessoas foram graduadas pelo Instituto dos Professores Vermelhos, 32 delas já
foram presas. Das 130 que restaram em Leningrado, 55 foram declaradas inimigas
do povo.”21 Cenas semelhantes de destempero ruidoso tiveram lugar por toda parte
no país, enquanto a perplexidade, a infelicidade e o medo permaneciam silenciosos e
sem meio de expressão.
[29]
Farsa política

E m seguida ao julgamento de Zinoviev e Kamenev, começou em Moscou,


em 23 de janeiro de 1937, o dos chamados “17”, ou seja, de Pyatakov e 16
outros. O objetivo era mostrar que Trotsky usara os acusados para organizar
atos de destruição e para preparar o retorno do capitalismo na URSS. O julgamento
foi tão bem encenado que Pyatakov, a despeito de sua força de vontade, chegou a
descrever com eloquência um encontro que tivera com Trotsky em Oslo (onde
jamais fora) e declarou que Trotsky

na sua diretriz, estabeleceu duas possíveis variantes para nossa chegada ao poder. A primeira seria antes da
guerra e a segunda durante a guerra. Trotsky via a primeira variante como resultado de um golpe terrorista
concentrado. O que ele tinha em mente era a execução simultânea de atos terroristas contra alguns líderes do
partido e do Estado, especialmente contra Stalin e seus auxiliares mais próximos. A segunda variante, que
Trotsky considerava a mais provável, viria na derrota militar.22

Stalin derrotara Zinoviev e Kamenev pela exaustão e pela fraude. Dobrou Pyatakov
e seus “parceiros” pela tortura.
Outro julgamento foi particularmente deprimente. Tratou-se do chamado
“julgamento dos 21”, cujas vítimas foram Bukharin, Rykov, Krestinsky, Rakovsky,
Rozengolts e outros. Stalin usava os tribunais para exterminar fisicamente os últimos
oponentes, mas o alvo político, como sempre, era Trotsky. O duelo entre os dois
prosseguiu. Nas poucas páginas do sumário de culpa contra Pyatakov e os outros,
Trotsky foi mencionado nada menos que 51 vezes. Os documentos do julgamento
de Bukharin e seus coacusados seguiram a mesma linha. Quando os procedimentos
judiciais começaram, Trotsky, do México, fez constar que os réus, de fato,
partilhavam seus pontos de vista, mas que só estavam sendo julgados pelas ideias
deles. Em quase todas as edições do seu Boletim, ele publicou matérias sobre
Rakovsky, Krestinsky e Rozengolts, demonstrando a “incompatibilidade” deles com
Stalin, e frisando sua solidariedade aos mesmos. Publicou protestos regulares contra
a perseguição de seus “seguidores”. A defesa que fez dos “inimigos do povo” foi
muito útil a Stalin e proporcionou argumentos “suplementares”.
Stalin pressentiu a aproximação da guerra. Ele não podia deixar de perceber que
via o mundo exterior através dos olhos de Trotsky. Conquanto temesse admitir até
para si mesmo, sabia, quando lia os trabalhos de Trotsky, que o rival não profetizava
em vão. Em Revolução traída, por exemplo, Trotsky escreveu:

Será possível esperarmos que a União Soviética saia da guerra que se aproxima sem derrota? Para esta
indagação franca, dou uma resposta igualmente franca: se a guerra permanecer apenas uma guerra, então a
derrota será inevitável para a União Soviética. Nos campos tecnológico, econômico e militar, o imperialismo
é incomparavelmente mais forte.23

Soava como uma sentença de apocalipse não só para o socialismo como também
para Stalin. O secretário-geral, no entanto, não entregaria os pontos com tanta
facilidade. Antes que a guerra começasse, precisava livrar-se de todos os possíveis
cúmplices do fascismo. Enquanto se preparasse para a guerra, tinha que sumir com
qualquer potencial quinta-coluna. Hitler não poderia encontrar apoio local na
União Soviética. Segundo F. Chuev, Molotov, pouco antes de falecer, confirmou
que, na véspera da guerra, Stalin dispôs-se a acabar com qualquer colaboracionista
soviético no seio da sociedade.
Noutro nível, Stalin precisava explicar a razão do padrão de vida relativamente
baixo e das incontáveis dificuldades experimentadas pela economia do país. “Saques
e sabotagem” era a resposta. Funcionários obedientes logo captaram a mensagem, e
seus relatórios diários continham informações apropriadas. Por exemplo, em 19 de
outubro de 1937, foram apresentados os seguintes relatórios:

Na vila de Tabory, nos Urais, por danos causados ao kolkhoz, cinco homens foram sentenciados ao
fuzilamento.
Minsk. Pela contaminação intencional da farinha de trigo, cinco homens foram sentenciados à morte.
Saratov. Um grupo trotskysta-direitista despejou grande quantidade de óleo no Volga. Nove homens
receberam pena de morte, inclusive o professor N.A. Orlov, da Universidade de Saratov.
Leningrado. Seguindo ordens da Gestapo, foram provocadas interrupções sistemáticas no sistema regional de
energia de Leningrado, resultando em trabalhadores feridos. Dez homens receberam a pena de
fuzilamento.24

A lista de relatórios semelhantes é longa. Acima da assinatura de V. Ulrikh, aparecia


a anotação lacônica: “Todas as sentenças cumpridas.” Com frequência, havia
também um rabisco no canto rubricado por Poskrebyshev: “Camarada Stalin foi
informado.”
Tais tragédias em massa tornaram-se regra depois dos julgamentos-shows de
janeiro de 1937 e março de 1938. Stalin estava então seguro de que todos no país
sabiam exatamente quem estava prejudicando o progresso, vendendo a pátria-mãe
ao inimigo, organizando tentativas para assassiná-lo e ao seu entourage, e
executando ordens de Trotsky. Os julgamentos políticos agiram como detonadores
de uma explosão de terror generalizado não só contra potenciais inimigos de Stalin,
mas também, como aconteceu na indiscutível maioria dos casos, contra vítimas
acidentais, em particular administradores de fábricas e instituições que tinham
passado por algum infortúnio, tais como um incêndio, explosão, uma interrupção
ou parada total da produção. A certa altura de 1937, a repressão saiu do controle.
Em muitos comissariados e outras agências a delação tornou-se forma de
sobrevivência. Tudo isso foi consequência dos primeiros e grandes julgamentos
políticos.
Stalin concordou com o extermínio de pessoas, evidenciando excepcional e
aterradora falta de sentimentos. Listas imensas de indivíduos e grupos eram a ele
enviadas. Encontrei apenas um documento nos arquivos de Stalin que mostra um
certo grau de compaixão de sua parte:

Ao Camarada I.V. Stalin


O escritório do Procurador foi procurado pela esposa de A.S. Kuklin, que foi sentenciado em 18 de janeiro
de 1936 a dez anos de prisão. Kuklin está preso na penitenciária Butyrki. Segundo um relatório médico de 7
de janeiro deste ano, Kuklin tem um tumor maligno no esôfago. Ele está clinicamente desenganado.
Solicito suas instruções.
22 de março de 1936 A. Vyshinsky

Na parte de baixo, Vyshinsky anotou: “O Camarada Ulrikh tem ordem do


Camarada Stalin para libertar Kuklin imediatamente.”25
Por outro lado, ele sancionou a execução de seu ex-assistente, A. Nazaretyan, do
ex-secretário de Lenin, N. Gorbunov, de seu amigo e ex-secretário do comitê
executivo central, A. Yenukidze, de A. Kosarev, a quem ele mesmo descrevera como
“líder autêntico da juventude”, de seu próprio tutor filosófico, Jan Sten, de A. Solts,
com quem partilhou a clandestinidade pré-revolucionária, de Semen Uritsky, oficial
de informações por ele muito considerado, de L. Karakhan, ex-vice-comissário do
povo de Relações Exteriores, que o secretário-geral apresentava como exemplo para
os outros, de Ya. Agranov, um chekista e antigo amigo, de A. Bubnov, ao lado de
quem cumpriu as ordens de Lenin durante a guerra civil, de I. Vareikis, “um
bolchevique duro”, em suas próprias palavras, e concordou com a prisão de G.
Broido, seu ex-vice no comissariado para as Nacionalidades.
Ao repassar as infindáveis listas de indivíduos presos ou executados, Stalin podia
ver todos os chefes do partido, regionais e das repúblicas, com quem se dera,
cientistas com quem tivera contatos pessoais, dúzias de escritores e outras figuras
culturais cujo destino só foi definitivamente conhecido nestes últimos anos. Havia
listas de pessoal do Comintern e de muitos militares, milhares deles. Milhares de
nomes, milhares de vidas, milhares de pessoas que o glorificavam, que estavam
prontas a cumprir quaisquer de suas ordens. Muitos conseguiram escrever cartas de
despedidas a ele, diversas das quais foram lidas. Mas isto nada alterou. Ele não
conhecia piedade ou condescendência, tampouco camaradagem ou senso de honra.
Bastava que escrevesse ou balbuciasse “De acordo” a Poskrebyshev para que todas
essas pessoas desaparecessem. E bem cedo, Vyshinsky, Ulrikh e Yezhov azeitaram
tão bem a máquina punitiva que Stalin passou apenas a tomar conhecimento de
estatísticas impessoais.
Na véspera dos julgamentos, evidentemente, Stalin fazia diversas reuniões com
Vyshinsky e Ulrikh. Tais encontros, que, sem dúvida, serviam para o secretário-geral
dar instruções, não foram minutados e não há vestígio deles nos arquivos. Stalin
gostava de Ulrikh, talvez devido ao estilo lacônico daquele advogado do exército, à
brevidade bastante concisa de seus relatórios sobre a safra sangrenta que batia
diariamente na mesa de Stalin em grandes quantidades nos anos de 1937 e 1938.
Alguns têm nada mais que as iniciais de Stalin; na maioria, abundam as de
Poskrebyshev.
O fluxo constante de relatórios, que se transformou em avalanche, teria afetado o
moral de qualquer pessoa, aterrorizando-a e abalando-lhe o íntimo. Stalin, no
entanto, no auge da repressão, não deixou de ir ao teatro, de assistir filmes em sua
dacha, de receber os comissários, de expedir decretos e outros documentos, de
organizar ceias à meia-noite, de ditar cartas, de comentar os artigos do Pravda e do
Bolshevik. Mesmo que acreditasse piamente que o terror estava eliminando inimigos
reais do povo, ainda assim surpreende ao extremo sua falta absoluta de sentimentos
e sua crueldade. Ele ficava observando enquanto Ulrikh assinava centenas e centenas
de sentenças de morte com total indiferença, um juiz desprovido de emoções, ideal
para Stalin e componente vital da guilhotina.
Baixo, atarracado e de óculos, Vyshinsky era um tipo completamente diferente.
Stalin admirava a eloquência do procurador-geral, as tiradas mortíferas com as quais
paralisava literalmente suas vítimas no banco dos réus. No final, a maioria dos
acusados só podia encontrar palavras de concordância com ele. Stalin agraciou-o
com a Ordem de Lenin por sua atuação no julgamento de Bukharin. Seu discurso
de encerramento naquela ocasião, em 11 de março de 1938, deve ter causado viva
impressão:

Todo o país, dos mais jovens aos mais idosos, espera e exige só uma coisa: que os traidores e os espiões que
venderam nossa pátria ao inimigo sejam exterminados como cães raivosos!
O povo só requer uma coisa: que os vermes abomináveis, os traidores odiados, sejam exterminados.
O tempo passará. Os túmulos dos execrados vendilhões ficarão cobertos de ervas daninhas e do desprezo
eterno do honesto povo soviético, de todo o povo soviético.
Ao passo que sobre nossa terra feliz, brilhante e clara como sempre, o sol lançará seus raios fulgurantes. Nós,
o povo, continuaremos como antes palmilhando nosso caminho já então livres de qualquer traço da vileza e
da podridão do passado, e liderados pelo amado líder e mestre, o grande Stalin.26

O líder e mestre ficou encantado com tanto entusiasmo, e Vyshinsky tornou-se vice-
presidente do Conselho de Ministros,* depois ministro das Relações Exteriores,
vencedor do Prêmio Lenin e alvo de outras provas do favor de Stalin.
Não menos que o próprio Stalin, Vyshinsky entendeu a importância da farsa
política cuja representação dele se esperava. O último julgamento, em março de
1938, assistiu à consumação do processo de lavagem cerebral pública. As acusações
foram as de sempre: execução das ordens de Trotsky, ações de espionagem e
sabotagem, preparação do país para a derrota vindoura, desmembramento da União,
atentados contra Stalin e outros líderes destacados.
Para garantir o sucesso, os julgamentos tiveram um longo “tempo de ensaio”.
Diversos meses foram gastos na tentativa de dobrar os acusados. Os investigadores
usaram vasta gama de meios para obter a confissão desejada, a qual, contrariando as
normas jurídicas, serviria como prova principal da culpa. Alguns depoimentos
duraram até três meses, outros, apenas alguns dias. Vieram então os ensaios
humilhantes. Uma vez vergados, os réus eram forçados a memorizar a versão
adequada, a fazer declarações preparadas “desmascarando” pessoas nomeadas.
Depois de incontáveis repetições do vergonhoso embuste, os “diretores” eram
informados de que tal ou qual “ator” estava pronto para sua “performance”. Houve
contratempos ocasionais.
Por exemplo, no resumo que o meirinho leu para a corte em 2 de março de
1938, foi dito que o acusado, N.N. Krestinsky, “entrou em contato pérfido com a
intelligentsia alemã em 1921”, e chegou a um acordo com os generais Seekt e Hasse
sobre a colaboração com o Reichswehr por 250 mil marcos anuais de trabalho
trotskysta. Quando o presidente da corte perguntou se Krestinsky era culpado, o
acusado, contrariando seu testemunho anterior, começou a negar tudo. Houve
comoção nos corredores. A corte suspendeu os trabalhos. Stalin foi informado.
Explodiu de ódio. “Prepararam tudo muito mal.” E deixou claro que não queria o
fato repetido. Providências foram tomadas e, na mesma noite, Krestinsky voltou ao
“normal”.

Krestinsky: “Confirmo completamente o testemunho que dei na investigação preliminar.”


Vyshinsky: “Nesse caso, qual foi o significado de sua declaração de ontem, que só pode ser vista como uma
provocação trotskysta ao tribunal?”
Krestinsky: “Ontem, sob a influência de grave e momentânea vergonha interior, causada pelo fato de estar no
banco dos réus e de ouvir a leitura das acusações, com o agravante de meu péssimo estado de saúde, eu não
estava em condições de dizer a verdade, nem em condições de dizer que era culpado.”
Vyshinsky: “Esta é uma resposta definitiva?”
Krestinsky: “Solicito que a corte registre a declaração de que reconheço total e completamente que sou
culpado de todas as sérias acusações pessoalmente a mim imputadas e que me responsabilizo por inteiro pela
traição que cometi.”27

Afora uns poucos desencontros como o citado, os julgamentos correram sem


problemas. Os réus concordavam com o promotor, aceitando as acusações
monstruosas com espírito desarmado, e acrescentavam de moto próprio um detalhe
aqui e ali referente aos seus descaminhos. Deve ter sido um momento sem paralelo
de colaboração entre corte e acusados. Quase ninguém contra-argumentava a
respeito de coisa alguma. Quase todos só se autoacusavam.
O caso de Bukharin foi particularmente doloroso de assistir. Seis meses antes da
prisão, ele escrevera a Stalin e a outros membros do Politburo. O julgamento de
Zinoviev, Kamenev e seus 14 “cúmplices” estava para começar. Durante tal
processo, no qual os acusados denunciariam Bukharin, Tomsky e Rykov, o
promotor, Vyshinsky, anunciaria investigações sobre o “caso Bukharin”. Quando
Bukharin voltou da Ásia Central, onde passara as férias, soube que tinha sido aberto
um “processo” contra ele. O ex-“favorito do partido” ficou aflito. De imediato,
sentou-se e escreveu uma carta a Stalin. Foi impossível encontrar esta carta, mas ele
escreveu missivas semelhantes a outros membros do Politburo e a Vyshinsky, e duas
de tais cartas, endereçadas a Voroshilov, foram achadas e dão uma ideia da forma
com que o drama de Bukharin se transformou em tragédia:

Prezado Kliment Yefremovich


Você,** sem dúvida, recebeu a carta que dirigi aos membros do Politburo e a Vyshinsky. Escrevi na noite
passada ao secretariado do Camarada STALIN e solicitei que ela fosse circulada, já que contém tudo o que de
importante se relaciona com as acusações monstruosamente chocantes de Kamenev. (Como escrevi, estou
tendo uma sensação de semirrealidade; será um sonho, uma miragem, uma loucura, uma alucinação? Não, é
realidade.) Gostaria de perguntar a todo o mundo: Vocês de fato acreditam nisto? Realmente?
É verdade que escrevi um artigo sobre Kirov. Aconteceu que, por acaso, quando eu estava (merecidamente)
em desgraça e doente, ele me visitou, conversamos o dia inteiro, colocamos tudo em pratos limpos; ele me
cedeu seu vagão ferroviário particular, enviou-me de volta a Moscou e tratou-me com tal consideração que
não esquecerei até o dia de minha morte. Portanto, poderia eu ter escrito alguma coisa que não fosse sincero
a respeito de Sergei [Kirov]? Pergunte honestamente a si mesmo. Se eu demonstrasse insinceridade, deveria
ser preso e exterminado de pronto, porque não precisamos de vilãos desse tipo. Se vocês acharam que fui
“insincero”, e me deixaram solto, então vocês são uns covardes que não merecem respeito...
É verdade que pensei – e que continuarei pensando enquanto tiver um cérebro dentro de minha cabeça –
que seria uma insensatez, do ponto de vista internacional, ampliar a base da burrice (o que significaria ir ao
encontro do desejo do poltrão Kamenev! Tudo o que ele queria era tentar provar que não estavam agindo
sozinhos). Mas não falarei sobre isso, senão vocês pensarão uma vez mais que estou usando a alta política
como desculpa para pedir tolerância.
Mas quero a verdade; e a verdade está do meu lado. Pequei muito contra o partido durante meu tempo e
sofri muito por causa disto. Porém declaro, quantas vezes forem necessárias, que, nos anos recentes, defendi a
política partidária e a liderança de KOBA com grande convicção, sem jamais ter sido subserviente.
Foi muito bom voar acima das nuvens anteontem: oito graus abaixo de zero, claridade de diamante,
respirando a paz da vastidão.
É provável que o que escrevi não faça sentido. Não se irrite. Talvez não seja muito agradável para você
receber uma carta minha neste momento. Sabe Deus, tudo é possível.
Contudo, “apenas por garantia”, eu gostaria de assegurar-lhe (já que você tem tido uma atitude correta em
relação a mim), que sua consciência pode ficar absolutamente tranquila: eu não o deixei mal. Não sou
absolutamente culpado de coisa alguma e, mais cedo ou mais tarde, isto ficará patenteado, por mais que
queiram enodoar meu nome.
Pobre Tomsky! Pode ser que ele “tenha se envolvido”. Não sei. Não descarto a possibilidade. Ele vivia
isolado. Talvez se eu o tivesse visitado ele não ficasse tão deprimido e não se envolvesse. A vida humana é tão
complicada! Mas tudo isto é poesia e estamos tratando de política, não de questões poéticas, e política
bastante dura.
Fico terrivelmente feliz que os cães [Zinoviev e Kamenev] foram fuzilados. Trotsky foi destruído pelo
julgamento e isto logo ficará totalmente claro. Se eu ainda estiver livre quando a guerra irromper, vou me
alistar para lutar (palavra feia), e você me fará um último favor deixando que eu ingresse no exército mesmo
como soldado raso (nem que seja para ser atingido por uma bala envenenada de Kamenev).
Certa vez, recomendei que você lesse o drama sobre a Revolução Francesa escrito por Romain Rolland.
Desculpe esta carta confusa: milhares de pensamentos correm por minha cabeça como cavalos bravios, e não
possuo rédeas fortes para contê-los.
Envio-lhe um abraço porque me considero limpo.
Nik. Bukharin 1.IX.36

Depois de ler a carta, Voroshilov decidiu que devia enviá-la imediatamente para
Stalin, como também respondê-la, deixando que Stalin e os outros tomassem
conhecimento do conteúdo de sua resposta. De qualquer forma, ele tomou o
cuidado para estabelecer um álibi político envolvendo seus assistentes. Dois
documentos foram rapidamente preparados:
Ultra-Secreto. PESSOAL. Para os Camaradas

STALIN
MOLOTOV

KAGANOVICH
ORDZHONIKIDZE

ANDREYEV
CHUBAR

YEZHOV
Com referência à carta de BUKHARIN a vós enviada em 1.IX.36, de nº 2389ss, anexo ao presente, por
ordem do Camarada K.YE. VOROSHILOV, a resposta de VOROSHILOV a BUKHARIN e uma cópia da
resposta de BUKHARIN.
Anexos: 3 páginas.
Comandante Divisionário Khmelnitskii
Ajudante do Comissário para a Defesa da URSS
4.IX.36

A resposta de Voroshilov ao ex-camarada foi condizente com o espírito da


moralidade que vigorava entre os auxiliares mais próximos do autocrata.

Ao Camarada BUKHARIN
Respondo à carta em que você se permitiu fazer ataques vis à liderança do partido. Se você esperava com tal
carta convencer-me de sua completa inocência tudo o que fez foi convencer-me de que devo, a partir de
agora, afastar-me ao máximo de você, independentemente do resultado de seu caso. E se você não repudiar
por escrito os inqualificáveis epítetos contra a liderança partidária vou considerá-lo um ser desprezível.
K. Voroshilov 3.IX.36***

Pode-se bem imaginar o choque que Bukharin deve ter tido ao receber esta carta,
embora, no íntimo, soubesse que a lâmina da guilhotina de Stalin estava suspensa
sobre sua cabeça. É possível que tenha se lembrado das palavras de Robespierre para
a Convenção de 8 do Termidor, na véspera de sua execução: “Eles chegaram à
tirania com a ajuda de canalhas, onde chegarão aqueles que lutam contra eles? Aos
seus túmulos e à imortalidade.” Bukharin lutou? Ao ler a devastadora carta de
Voroshilov, encontrou forças para responder ao comissário de Stalin:

Camarada VOROSHILOV
Recebi sua missiva consternadora.
Minha carta foi fechada com “Envio-lhe um abraço.”
A sua termina com “ser desprezível”.
O que pode ser escrito depois disto?
Todo homem tem, ou deveria ter, seu orgulho pessoal. Mas eu gostaria de acabar com um mal-entendido
político. Escrevi-lhe uma carta de natureza pessoal (que agora lamento muito) enquanto experimentava um
grave transe psicológico: considerando-me perseguido, escrevi para um grande homem; eu estava
enlouquecendo e só pensava no que poderia acontecer, ou que alguém pudesse acreditar que eu era culpado.
Por isso, esbravejei e escrevi: “Se vocês me acharam ‘insincero’ (por exemplo, que escrevi insinceramente
meus artigos sobre Kirov), e ainda assim me deixaram livre, então foram covardes etc.” E mais: “E se você
mesmo não acredita que Kamenev andou armando... etc.” Bem, então, segundo você, isso significa que penso
que você é covarde ou que estou chamando nossos líderes de covardes? Ao contrário: o que quero dizer é que,
uma vez que todos sabem que vocês não são covardes, isso significa que não acreditam que escrevi artigos
insinceros. Por certo, esta parte é clara em minha carta!
Porém, se minha carta foi tão confusa que pôde ser tomada como um ataque, então – não por um temor do
tipo de Judas, mas genuinamente – por três vezes, por escrito ou da maneira que lhe aprouver, retiro aquelas
frases, embora não quisesse dizer o que você pensou.
Considero maravilhosa a liderança do partido. E em minha carta a você, a despeito da possibilidade de que
nós dois tenhamos cometido enganos, escrevi: “Houve ocasiões na história em que pessoas maravilhosas e
políticos superlativos também incorreram em erros de natureza honesta.” Não era assim a minha carta? É
exatamente o que penso sobre nossa liderança. Admiti isso no passado e não canso de repeti-lo agora. Ouso
até achar que provei tal atitude com a atividade que desenvolvi nos últimos anos.
Seja como for, peço-lhe que desfaça esse mal-entendido. Desculpo-me muito por minha última carta e não
mais o incomodarei com outra. Ando extremamente nervoso. Foi isso que fez com que escrevesse a carta. Na
realidade, tenho que permanecer o mais calmo possível enquanto aguardo o desfecho da investigação que,
seguramente, provará minha completa falta de envolvimento com os bandidos. Porque aí reside a verdade.
Adeus.
Bukharin 3.IX.3628

Bukharin escreveu “Adeus”, porém, uma vez mais, Stalin afrouxou o nó em torno
do pescoço da vítima sufocada. O Pravda de 10 de setembro de 1936 publicou que,
na ausência de provas incriminadoras, o caso estava encerrado. Mas foi apenas um
pequeno alento, e chegara então a hora para que Bukharin seguisse o script que lhe
fora preparado.
No seu julgamento, por mais patéticos que tivessem sido seus apelos a
Voroshilov, lutou para se mostrar à altura da situação em seus próprios termos.
Percebendo que estava condenado, tentou, por vezes diretamente, noutras usando
linguagem esópica, e ainda noutras em forma de sátira trágica, lançar dúvida sobre
as acusações. É provável que, ao se despedir da vida, estivesse visualizando o futuro.
Naquele que foi o momento mais trágico de sua existência, ele foi capaz de preservar
a presença de espírito e o intelecto aguçado. Foi sua última tentativa de externar
dignidade:

Vejo-me [...] política como juridicamente, um responsável por sabotagem, conquanto pessoalmente não me
recorde de ter dado ordens para que fosse cometida sabotagem.
O cidadão Procurador afirma que, juntamente com Rykov, sou um dos mais importantes organizadores da
espionagem. Qual a prova? Teria sido o testemunho de Sharangovich, do qual não ouvi falar antes do
sumário de culpa?
Nego categoricamente que tenha tomado qualquer parte nos assassinatos de Kirov, Menzhinsky, Kuibyshev,
Gorky ou Maxim Peshkov.**** Segundo o depoimento de Yagoda, Kirov foi assassinado por ordens partidas
do “Bloco Trotskysta-Direitista”. Eu nada soube disto.
A lógica severa da luta foi acompanhada pela degeneração de nossa psicologia, de nossa própria degeneração,
da degeneração do povo.29

Stalin recebia, por intermédio de Yezhov, de Vyshinsky e de outros, relatórios


diários sobre o andamento do julgamento. Perguntava sobre alguns pontos e dava
diversos conselhos. Foi o primeiro que viu o filme e fotografias do júri com os
acusados. Por ordens suas, o “show” foi amplamente divulgado pela imprensa escrita
e pelo rádio; jornalistas estrangeiros e até diplomatas foram convidados a
acompanhá-lo. Todos ficaram surpresos com o fato de os criminosos “confessarem”
em termos ideais. Não foram necessárias peritagens nem investigações
suplementares, tampouco argumentações forenses ou diálogos entre acusação e
defesa. O promotor fazia seu solo e o restante simplesmente fazia um obbligato. Até
Feuchtwanger, malgrado a tendenciosidade de seu livro Moscou 1937, teve que
admitir:

Se um diretor fosse chamado a levar para o palco aquele julgamento, teria que gastar alguns anos e um bom
número de ensaios para conseguir tal trabalho de equipe dos acusados; eles foram bem conscientizados,
ficaram bastante alertas para não cometer quaisquer deslizes em relação uns aos outros e demonstraram
preocupação com muito comedimento. Em suma, os hipnotizadores, envenenadores e funcionários da corte
que preparam os acusados, a par de outras qualidades excepcionais, com certeza foram extraordinários
diretores e psicólogos.30

Feuchtwanger estava certo em parte; os organizadores da farsa, em especial o


diretor-chefe, eram mestres no ofício, mas, além da intimidação e dos atos de
violência na investigação, houve outra razão para os acusados não se queixarem.
Durante semanas e meses disseram-lhes que a confissão era necessária para o partido
e para o povo. Só “uma confissão nos ajudará finalmente a desmascarar os
criminosos”. Significava não só confessar mas delatar outros. Parece que muitos
acusados foram movidos por tal motivação, se bem que ela aflorasse de forma
diferente em cada declaração final. O acusado G.F. Grinko disse: “Aceito como
adequadas a sentença mais severa e a punição mais rigorosa.” O acusado N.N.
Krestinsky afirmou: “Meus crimes contra a pátria e contra a revolução são imensos,
e recebo sua sentença mais dura como totalmente merecida.” O acusado A.I. Rykov:
“Desejo que todos aqueles que ainda não foram desmascarados ou desarmados o
sejam imediata e ostensivamente. Gostaria de servir de exemplo para eles sobre a
inevitabilidade do desarmamento.” O acusado N.I. Bukharin: “Ponho-me de
joelhos diante do país, do partido e de todo o povo.”31
Stalin deve ter ficado satisfeito em saber que, embora enfrentassem a morte, os
inimigos do povo e do partido não se rebelaram, mas disseram o que deles foi
pedido. Encarou as “confissões completas” como vitória pessoal, sem suspeitar que
elas continham as sementes de sua inevitável derrota moral. Mas sabia também que
Bukharin resistira por três meses depois da prisão. Eles o ameaçaram e pressionaram,
porém o acadêmico em desgraça, mesmo na prisão, tentou uma série de cartas para
convencer Stalin, como o fizera no pleno de fevereiro-março, de que “há uma
conspiração e existem inimigos do povo, mas os principais devem ser procurados
dentro da NKVD”.
Stalin não reagiu a tais sinais. Talvez, ao considerar o gélido silêncio resultante
de suas cartas a Stalin, Bukharin pensasse na oportunidade que tivera recentemente
para escapar daquele destino. Ele passara de fevereiro a março de 1936 no exterior,
com uma pequena delegação, para comprar material de arquivo sobre Marx e
Engels. Já naquela ocasião, tinha ideia sobre qual poderia ser sua sorte, porém, como
Robespierre, achou que só atingiria a imortalidade em sua terra natal.*****
Algum tempo antes, Stalin enviara a seguinte instrução do comitê central às
autoridades locais da NKVD:

O comitê central [...] autoriza o emprego da coação física pela NKVD, a começar em 1937. É bem sabido
que os serviços burgueses de informações usam a coação física do tipo mais revoltante contra representantes
do proletariado socialista. Por que então os órgãos socialistas devem ser mais humanos com os agentes
fanáticos da burguesia e inimigos declarados da classe trabalhadora e das fazendas coletivas? O comitê central
julga que a coação física deve ser utilizada excepcionalmente e, de agora em diante, empregada contra
inimigos conhecidos e revelados do povo, mas, nestes casos, encarada como método permitido e correto.32
Essa “exceção” tornou-se regra e foi utilizada tão logo um acusado dava os primeiros
sinais de resistência nas “conversas” com os investigadores.
Como Bukharin ainda não estava revelando coisa alguma e a “investigação”
ameaçava se estender bastante, Stalin ordenou que Yezhov utilizasse “todos os
meios”. Já vimos, das cartas que enviou a Voroshilov (e Stalin) em setembro de
1936, que o estado emocional de Bukharin tornara-se precário com o progresso do
terror. Então, com as ameaças feitas contra sua jovem esposa e o filho recém-
nascido, ele desabou completamente. Passou a assinar qualquer invenção
monstruosa que os investigadores arquitetassem, rotulando-o de “trotskysta”, “líder
do bloco”, “conspirador”, “traidor”, “organizador da sabotagem”, e assim por
diante. É dolorosa a leitura de suas palavras:

Confesso que sou culpado dos crimes mais abomináveis que podem existir: traição contra a mãe-pátria
socialista, organização de levantes kulaks, preparação de atos terroristas, filiação a uma organização subversiva
antissoviética. Confesso ainda mais que sou culpado de tramar um “golpe palaciano”...33

Conquanto Stalin se mostrasse bem radiante, deve ter percebido, ao ler alguns
relatórios dos interrogatórios, o sarcasmo disfarçado dos acusados enquanto
respondiam aos organizadores do “espetáculo” com ironia macabra:

Vyshinsky: “Acusado Bukharin, é ou não é fato que seu grupo de cúmplices no


Cáucaso Setentrional teve ligações com círculos no exterior de emigrados cossacos
Brancos? Rykov falou sobre isto. Slepkov falou sobre isto.”
Bukharin: “Se Rykov falou sobre isto, não tenho motivos para desacreditar nele.”
Vyshinsky: “Como conspirador e líder, este fato era do seu conhecimento?”
Bukharin: “Do ponto de vista da probabilidade matemática, pode-se dizer com
probabilidade alta que se trata de um fato.”
Vyshinsky: “Deixe-me perguntar de novo a Rykov: este fato era do
conhecimento de Bukharin?”
Rykov: “Pessoalmente, calculo pela probabilidade matemática que ele deve ter
sabido disto.”34

Stalin captou a zombaria: perguntaram sobre vínculos com emigrados Brancos e eles
falaram sobre “probabilidade matemática”! Depois de cada sessão do júri, os réus
eram lembrados de que não apenas sua sorte estava em jogo, como também a de
seus mais próximos e queridos dependia da inteireza e da correção de seus
depoimentos.
Stalin estava decidido a evitar qualquer escorregão no julgamento dos 21;
Bukharin e seus cúmplices tinham que estar completamente “maduros”. Além do
mais, tal julgamento precisava ser o sumário do primeiro estágio do expurgo maciço
e do terror. Ele via aquele júri não apenas como um ato penal, coroando o
extermínio dos inimigos mais perigosos, mas também como uma lição de âmbito
nacional sobre a vigilância, a irreconciliabilidade e o ódio de classe por quem
resistisse a ele e, por consequência, ao socialismo. Ordenou, portanto, que o
julgamento tivesse ampla difusão pelos jornais e pelo rádio, e que fossem
organizados comícios para exigir “o extermínio dos vermes fascistas”.
Ele sabia que os julgamentos-shows fortaleceriam ainda mais seu poder, uma vez
que o povo e o partido não poderiam deixar de tirar a lição de que qualquer
oposição não tinha a mínima chance. Usou aqueles júris para instalar um sistema de
controle social mútuo pelo qual todos vigiavam todos, e apenas ele permanecia
acima da espreita e dos informantes. Mesmo as pessoas mais próximas a ele não
deveriam se sentir seguras, como o destino de Kosior, Postyshev, Rudzutak, Chubar
e muitos outros provaram eloquentemente.
Por outro lado, os julgamentos eram montados de forma a deixar Stalin na
sombra. Poucos foram seus pronunciamentos públicos sobre os júris e, para a
maioria da população, seu verdadeiro papel passou despercebido. Ele criou a ilusão
de que os inimigos e espiões estavam sendo julgados pelo próprio povo. Mas na
realidade, se toda a nação tivesse ficado responsável pelos procedimentos dos
tribunais, é certo que o resultado teria sido o mesmo. O país não tinha arrefecido da
luta de classes, da revolução, da guerra civil e da coletivização. Qualquer relato sobre
um terakt despertava viva indignação. O fascismo testava sua força na Espanha, a
Alemanha se militarizava, montavam-se pactos anti-Comintern, o mundo capitalista
olhava para a “Rússia Bolchevique” pelo tubo dos canhões.
Como escreveu o Vechernyaya Moskva de 15 de março de 1938:

A história não conhece crimes e atos diabólicos como os cometidos pela quadrilha do “Bloco Trotskysta-
Direitista” antissoviético. A espionagem, a sabotagem, os saques do bandido-chefe Trotsky e seus asseclas
Bukharin, Rykov e outros provocam um sentimento de raiva, ódio e desprezo não só no povo soviético mas
em toda a humanidade progressista.
Tentaram matar nosso querido líder, o Camarada Stalin. Em 1918, atiraram no Camarada Lenin,
interromperam a vida promissora de Sergei Mironovich Kirov, assassinaram Kuibyshev, Menzhinsky e
Gorky. Traíram a mãe-pátria.
O glorioso serviço soviético de informações, liderado pelo comissário stalinista Nikolai Ivanovich Yezhov,
esmagou o ninho de víboras desses vermes.
Desta forma, a Nação se transformou num bando de linchadores. Foi assim que a
manipulação da opinião pública criou o fenômeno da unidade em torno de uma
ideia falsa; que Stalin procedeu a lavagem cerebral em milhões de pessoas.
Os destruidores eram vistos por todos como inimigos, e não poderia ser de outra
forma. Em 13 de março, dia em que terminou o julgamento, o carro ZIS número
200.000 saiu da linha de montagem da Fábrica de Automóveis Stalin, em Moscou,
o plano trimestral das minas de carvão de Karaganda foi cumprido dentro do
previsto, e os moscovitas e visitantes da cidade puderam viajar pela primeira vez na
linha circular Pokrovsky do Metrô L.M. Kaganovich. Os melhores kolkhozes da
região de Tula começavam a instalar água corrente. Cada república, cada região,
queria prestar seus respeitos ao líder pelas novas conquistas. A atmosfera ia ficando
elétrica à medida que novas cidades e estradas eram construídas e o povo sentia que
a vida começava a melhorar. Mais e mais recordes eram atingidos e quebrados,
enquanto esses “inimigos” tinham planejado destruir tudo o que era mais caro à
nação.
A manipulação tornou-se mais fácil com a falta de abertura e de informação
genuína. Sem uma impressão dos primeiros vinte anos de regime soviético, sem o
clima mental dos anos 1930 e sem os imperativos que ditavam o comportamento do
povo, é impossível entender-se o drama social e a convulsão trágica que se
apossaram do país.
Não é só hoje que se mostra incredulidade e se pergunta por que tantos acusados
confessaram crimes não praticados. Este foi um dos maiores mistérios para a
imprensa ocidental daquele tempo, e Stalin, que sondava o estado de espírito
interno e estrangeiro, reagiu imediatamente. Seguindo sua determinação, o Pravda
publicou o artigo “Por que eles confessam?” Nele dizia que quando Vyshinsky
perguntava aos acusados se houvera alguma pressão para que confessassem, eles
negavam veementemente. Confirmavam que a investigação fora a mais correta
possível e que não houvera qualquer tipo de coerção direta ou indireta. O acusado
Muralov, por exemplo, asseverou que durante sua prisão fora tratado o tempo todo
“de maneira educada e civilizada”. Eles haviam conspirado. Havia provas. As
acusações foram estritamente baseadas nos fatos. Os acusados se sentiam
humilhados com o peso das evidências inquestionáveis.35 Enquanto esperava que a
opinião internacional se formasse, Stalin antevia o pior. Naturalmente, todos se
entreolhavam com a predisposição dos réus para não se defenderem e para
endossarem as acusações de maneira amistosa, porém, sem qualquer conhecimento
histórico, a imprensa ocidental jamais foi além de uma condenação abstrata à
“antidemocracia”. Stalin enfureceu-se com Trotsky porque ele publicava
comentários e refutações quase diários na imprensa ocidental e anunciava que
pretendia encenar seu próprio “antijulgamento”.
O artigo de Trotsky crítico e denunciador no Boletim da oposição nº 65, de
1938, levou Stalin à loucura. Com sarcasmo e perspicácia característicos, Trotsky
expôs a natureza absurda dos julgamentos:

Nessa atividade criminosa, os comissários do povo, funcionários, embaixadores e secretários invariavelmente


recebem suas ordens de uma agência, não de seu líder oficial, mas de um exilado. Basta Trotsky piscar um
olho na direção dos veteranos da revolução para que eles se transformem em agentes de Hitler e do Mikado.
Seguindo “instruções” de Trotsky, expedidas por meio do melhor correspondente da TASS, os chefes da
indústria, da agricultura e dos transportes destroem os recursos produtivos do país. Por ordem do “Inimigo
Público nº 1”, seja da Noruega seja do México, os ferroviários desarticulam os transportes militares no
Extremo Oriente, enquanto médicos altamente respeitados envenenam seus pacientes no Kremlin. Este é o
quadro fantástico pintado por Vyshinsky, mas aí surge uma dificuldade. Sob o regime totalitário é o aparato
que implementa a ditadura. Então, se meus cúmplices estão ocupando os postos principais do aparato, como
é que Stalin está no Kremlin e eu no exílio?

Stalin descompôs Yezhov pela fabricação “cretina” dos casos e, mais uma vez,
especulou se não era hora de dar um fim a toda a campanha. Decidiu que, enquanto
existissem pessoas que vissem, mesmo que apenas mentalmente, Trotsky como uma
alternativa, ele deveria continuar.
Os julgamentos políticos tinham ainda outro objetivo. Com ajuda deles, Stalin
queria mostrar que todos os antigos oposicionistas – trotskystas, bukharinistas,
zinovievistas, mencheviques, dashnaks, SR, anarquistas, bundistas – foram
antissocialistas, e que tinham infectado os cidadãos soviéticos que trabalhavam no
exterior, tais como diplomatas, figuras culturais, gerentes industriais, cientistas, até
mesmo os que cumpriam seu dever internacional na Espanha. Muitos emigrados
que retornaram à terra natal e comunistas estrangeiros que trabalhavam no
Comintern ou em suas organizações em Moscou foram também rotulados como
“inimigos do povo”, juntamente com quem quer que tivesse sido anteriormente
expelido do partido, tivesse qualquer relutância em relação ao partido ou expressasse
dúvida política. Os parentes dos acusados eram automaticamente considerados
“inimigos”. Mesmo na NKVD houve grande número de vítimas, alguns por
tentarem sabotar as encenações jurídicas criminosas, enquanto outros foram
tachados na categoria de “inimigos” por zelo excessivo. Seus líderes se
transformaram também em tipos perigosos porque sabiam demais. Assim, Yagoda,
Frinovsky e Berman, entre muitos outros, foram acusados de cometer excessos,
distorções e “atividades destruidoras nos órgãos da NKVD”. Da mesma forma,
tornou-se um risco ter conhecido Lenin, ou ter combatido o czarismo e, portanto,
ainda que instintivamente, conhecer os valores da liberdade e da democracia. E, é
claro, existiram pessoas que sabiam mais sobre Iosef Djugashvili do que era bom
para elas.
A suspeita aumentou o momentum da violência. V. Zakharov, M. Motsiev e
outros trabalhadores ferroviários em Arzamas dificilmente entendiam as ideias de
Trotsky, porém foram exatamente aquelas ideias, combinadas com a “intenção de
cometer sabotagem terrorista” que os levaram à sentença de morte em 31 de
outubro de 1937. Como Ulrikh reportou a Stalin, “todos os acusados confessaram
inteiramente sua culpa”.
Uma característica dos julgamentos foi o desejo de Stalin de não apenas destruir
seus oponentes, reais ou imaginários, mas primeiro arrastá-los pelo lamaçal da
amoralidade, da delação e da traição. Todos os júris foram exemplos sem
precedentes de autodegradação, autoperjúrio e autoacusação. Quase sempre, os fatos
assumiam um tom ridículo quando os acusados afirmavam insistentemente ser
traidores, espiões e assassinos. Kamenev, por exemplo, afirmou nada menos que:
“Servimos ao fascismo, organizamos a contrarrevolução contra o socialismo.”
Promessas de benevolência, ameaças de repressão contra as famílias e a tortura física
sistemática acabaram por vergar essas pessoas e forçaram-nas a desempenhar seu
papel humilhante de acordo com a cena armada pelos “sumos sacerdotes da justiça”.
Stalin permaneceu nos bastidores enquanto seus assistentes, Vyshinsky e Ulrikh,
apresentavam o cínico espetáculo.
Quando aqueles irmãos de infortúnio, Bukharin e Rykov, foram destituídos da
condição de candidatos a membro do comitê central, Stalin deu-lhes um fio tênue
de esperança dizendo-lhes que a “NKVD esclareceria tudo”. Ao enfrentarem o
colegiado militar da Corte Suprema da URSS um ano mais tarde – “do outro lado
da muralha”, como disse Bukharin – sentiram que a taça da velhacaria estava cheia
até a borda, e eles foram forçados a sorvê-la toda.
Notas

* Os comissários do povo passaram a se chamar “ministros” em 1946.

** Bukharin emprega a forma familiar de tratamento.

*** Voroshilov dirigiu-se a Bukharin pela forma familiar de tratamento ao longo de toda a carta.

**** Filho adotivo de Gorky.

***** Boris Nicolaevsky, em Power and the Soviet Elite (Nova York, 1965), descreve seus encontros com
Bukharin nessa viagem. Bukharin estava acompanhado da esposa grávida, mas quando sugeriram que ele ficasse
no exterior, diz-se que respondeu: “Não acho que seria capaz de viver sem a Rússia. Estamos todos acostumados
com as coisas de lá e com as tensões da vida.”
[30]
Quadros no banco dos réus

E m 4 de maio de 1935, no Kremlin, Stalin discursou para uma turma de


formandos do Exército Vermelho. Os jovens oficiais e comissários políticos,
com seus talabartes estalando de novos, distintivos novos de colarinho e
modernas platinas de posto orgulhosamente ostentadas nos ombros, fixaram o olhar
na figura baixa e encorpada. Uns poucos gestos acompanharam a voz branda que
ecoou no absoluto silêncio do salão do Kremlin. Stalin discursou lentamente,
olhando ocasionalmente para o texto escrito que tinha diante de si:

Lembro-me de uma ocasião na Sibéria, onde estive exilado. Era primavera e as águas corriam altas. Trinta e
poucos homens saíram para recolher madeira que o grande rio carregava. Retornaram à vila pelo anoitecer,
mas faltava um deles. Quando perguntei o que tinha acontecido, simplesmente disseram: “Ficou por lá.”
Então perguntei: “Como assim? Ficou por lá como?” Eles responderam com indiferença: “Provavelmente se
afogou. E daí?” E um deles saiu às pressas resmungando alguma coisa a respeito da forragem da égua.
Quando os recriminei por se importarem mais com os animais do que com as pessoas, um deles disse, com
aprovação geral: “Por que nos preocuparmos com gente; podemos fazê-las a qualquer momento. Agora, tente
fazer uma égua...”

A plateia se entreolhou. Erguendo o dedo indicador encurvado, como a marcar o


paradoxo daquela resposta, Stalin continuou:

A atitude indiferente em relação ao povo demonstrada por alguns de nossos líderes e sua incapacidade de dar
valor aos seres humanos são uma ressaca da atitude idêntica com respeito às pessoas que acabo de mencionar.
Então, camaradas, se quisermos vencer a fome do povo das regiões e desejarmos que nosso país tenha
quadros capazes de fazer avançar a tecnologia, colocando-a em ação, temos primeiro que aprender a valorizar
gente, apreciar os quadros, prezar todo o trabalhador que seja capaz de fazer o bem por nossa causa. Temos,
finalmente, que entender que o capital mais valioso do mundo e o mais decisivo são as pessoas, os quadros.
Entender que, nas presentes circunstâncias, “os quadros determinam tudo”.36
Desta forma, já em 1935, Stalin estava consciente da escassez de pessoal, mas o
extermínio dos quadros estava ainda por ocorrer. Grandes lacunas logo surgiriam
nos escalões elevados do partido, do Estado e da administração econômica, no
exército profissional e na intelligentsia técnica e criativa, bem como nas organizações,
nas províncias e nas repúblicas. Centenas de milhares de pessoas seriam aniquiladas
como se atingidas por uma praga terrível. No início de 1939, Stalin ordenou que o
conselho superior dos quadros do Exército Vermelho apresentasse detalhes
estatísticos sobre o corpo de oficiais do exército e da marinha. Estudou as tabelas em
silêncio por algum tempo: quase 85% dos oficiais tinham menos que 35 anos de
idade. Folheou vagarosamente os relatórios. Talvez pensasse nos marechais e outros
oficiais que tinha despachado. Vira muitos deles ali no Kremlin. Estaria lembrando
o discurso de Voroshilov de 26 de novembro de 1938? O comissário, parecendo
anunciar grande vitória, dissera: “No curso do expurgo efetuado no Exército
Vermelho em 1937-1938, nos livramos de mais de 40 mil homens. [...] No período
de dez meses, em 1938, mais de 100 mil novos oficiais foram formados.”37
Restavam apenas dez dos cinquenta e tantos membros do antigo Conselho de
Guerra. Qualquer que tenha sido o pensamento que ocorreu ao contemplar as
lacunas assustadoras, Stalin decidiu aumentar o número de academias e escolas
militares. Mas tais lacunas, no entanto, não se restringiam aos militares.
O ex-comissário de Vias de Comunicação, I.V. Kovalev, disseme:

Em 1937, fui nomeado chefe da Ferrovia Ocidental. Cheguei em Minsk e fui direto ao escritório da
administração. Estava vazio. Não havia ninguém para me passar a função. Meu antecessor, Rusakov, fora
preso e fuzilado. Chamei os vices. Não havia nenhum. Tinham sido presos. Procurei qualquer pessoa e só
encontrei um estranho e terrível silêncio. Pareceu que um tornado passara por ali. Fiquei admirado que os
trens ainda rodassem e imaginei quem poderia estar controlando aquela gigantesca operação. Fui ao
apartamento de um conhecido que trabalhava na administração da ferrovia. Para minha surpresa, encontrei-o
em casa com a esposa, que estava em lágrimas.
“Por que não está trabalhando?”, perguntei mesmo antes de cumprimentá-lo. “Estou esperando. Eles
disseram que vêm me pegar hoje. Olhe só, botei na mala algumas camisas limpas. Nasedkin, da NKVD, está
expurgando um em cada dois. Provavelmente, vai paralisar a ferrovia.”
Depois de formar uma ideia da situação e de recuperar a compostura, telefonei a Stalin em Moscou – afinal
de contas, se a ferrovia não funcionasse como se esperava, eu seria o próximo da fila. Poskrebyshev atendeu.
Relatei-lhe a situação. De uma forma ou de outra, a turbulência terminou rapidamente. Também não era
para menos, não sobrava ninguém para ser preso.

Era este o padrão em todo o país, como ilustram os extratos do pleno de 1937.
Durante o debate sobre o relatório de Molotov, que tratou da campanha eleitoral
(que de eleições teve muito pouco, pois centrou-se mais nos inimigos do povo), o
secretário Sobolev do comitê regional do partido de Krasnoyarsk disse:

Estamos agora desmascarando e destruindo inimigos: bukharinistas, rikovistas, trotskystas, kolchakistas,


sabotadores; estamos esmagando todos esses porcos de nossa região. Eles estão nos atacando abertamente.
Posso dizer que a forma favorita de sabotagem é o incêndio provocado.

Peskarev, da região de Kursk, deu um quadro semelhante, de ângulo distinto:

Como os vilões, saqueadores e inimigos do povo estão ativos há muito tempo na liderança de nossos
tribunais e procuradorias regionais, aconteceu que eles lançaram o peso da política punitiva sobre pessoas
totalmente inocentes; em três anos, 18 mil ativistas de kolkhozes e de vilarejos foram condenados, quase
sempre apenas porque um cavalo mancou ou porque chegaram atrasados no trabalho.38

Não possuo números oficiais da quantidade de vítimas de 1937-38. É improvável


que ainda existam. As estatísticas mais precisas são as do comissariado da Defesa.
Com base no material existente, tais como listas dos delegados, estatísticas parciais,
relatórios locais, arquivos das cortes de justiça e diversas declarações de Stalin,
Molotov e Beria, entre outros, pode-se fazer uma estimativa prudente entre 4,5 e
5,5 milhões de pessoas presas, das quais entre 800 mil e 900 mil foram sentenciadas
à morte. Quantidade incalculável morreu nos campos de concentração. A imprensa
publicou diversos números, porém, até que os arquivos relevantes sejam totalmente
abertos e um estudo completo seja feito, nenhuma extrapolação ou trabalho
especulativo dará uma estimativa confiável. Os documentos que examinei
testemunham que, depois da guerra, o número de campos de concentração e de
colônias de trabalhos corretivos não foi reduzido, ao contrário, aumentou, e que a
quantidade de presos permaneceu mais ou menos constante por vários anos.
Portanto, a quantidade de prisioneiros, digamos, em 1947 ou 1948, dá uma
indicação sobre a de 1937-38. Por exemplo, em 18 de fevereiro de 1948, V.
Abakumov e S.N. Kruglov escreveram a Stalin: “De acordo com suas instruções,
estamos anexando uma minuta de plano para a organização de campos e de prisões
de regime fechado para a detenção de criminosos de Estado particularmente
perigosos.”39 Kruglov deu prosseguimento ao assunto em 7 de março de 1948 com
outro relatório onde era afirmado que “em 1º de janeiro de 1948, existiam
2.199.535 prisioneiros em campos e colônias. Vinte e sete novos campos foram
construídos”.40
A isto deve ser adicionada a população presa, sobre a qual não existem dados,
mas que estimo não superior a 30% dos presos em campos e colônias de exílio. Um
relatório de Kruglov para Stalin, datado de 23 de janeiro de 1950, acrescenta que:
“Em 1º de janeiro de 1950, existiam 2.550.275 presos, 22,7% dos quais por
atividades contrarrevolucionárias. 366.489 estão condenados a mais de dez anos de
prisão. Dois novos campos de regime fechado foram construídos para espiões,
sabotadores, terroristas, trotskystas, direitistas, mencheviques, SR, anarquistas,
nacionalistas, emigrados brancos. O espaço médio para cada preso é de 1,8m2.”41
Tais números, repito, não incluem a população presa. Além do mais, os campos
estavam consideravelmente abarrotados àquele tempo com cidadãos soviéticos que
tinham servido na polícia nazista, ou que tinham sido sentenciados em virtude de
levantes nacionalistas contra o regime soviético nos territórios ocidentais ao fim da
guerra, bem como com os deportados de áreas liberadas e aprisionados só por isso.*
Assim, se incluirmos a população presa, o número de encarcerados fica entre três e
quatro milhões, e não apenas em 1948-49. É pouco provável que as quantidades de
1937-38 fossem muito maiores que as de 1948-49. Nem poderia ter aumentado
muito naqueles anos amargos aquilo que Kruglov chama eufemisticamente de
“espaço útil para viver”. Os prisioneiros dos campos “viviam” em beliches de três
camas. É também importante notar que o efetivo dos gulags era constantemente
completado com as chegadas diárias, que muitos não suportavam as condições e
morriam, e que determinada percentagem era regularmente libertada. Contudo, é
pequena a possibilidade de a máquina punitiva ter recebido mais de quatro a cinco
milhões de pessoas num dado ano, porém, enquanto os números oficiais não forem
conhecidos tudo é especulação.
A principal responsabilidade pessoal por tais fatos horríveis recai, é evidente, em
Stalin. Ele deu pessoalmente instruções a Yezhov sobre a direção e a escala da
repressão, muitas vezes indicando pessoas a “verificar”. Para evitar o emprego da
expressão “pena de morte” em comunicações escritas ou telefônicas, ele falava em
“punição da primeira categoria”. Os documentos mostram que ele foi diretamente
responsável pela prisão e execução de R. Eikhe, Ya. Rudzutak, V. Chubar, S. Kosior
e P. Postyshev, entre muitos outros. Na relação de dúzias de outras pessoas do
comitê central por ele indicadas para “verificação”, estavam: A. Stetsky, chefe da
seção de agitação e propaganda, B. Tal, chefe da seção de imprensa, Ya. Yakovlev,
chefe da seção rural, K. Bauman, chefe da seção de ciência, e F. Zaitsev, um
funcionário da comissão de controle. A “verificação” levava ao fuzilamento.
Quando a situação atingiu proporções maciças, Stalin aprovava penas de morte
por listas, mas, em 1938, cansado de tal procedimento, delegou às cortes e aos
tribunais o direito de decisão própria. No XX Congresso, Khruschev disse que, em
1937-38, Yezhov enviou a Stalin 383 listas com milhares de nomes do partido, do
Estado, do Komsomol, do exército e da área econômica. Todas as sentenças foram
confirmadas por Stalin. É improvável que o secretário-geral tenha se restringido a
essas listas. Deve ter havido muitas mais. Como os carimbos e assinaturas de outros
líderes estavam nelas, muitas desapareceram depois do XX Congresso. Em abril de
1988, A.N. Shelepin disseme que uma série completa de listas que ostentavam a
assinatura de Khruschev foi retirada dos arquivos por I.A. Serov, então vice-ministro
da Segurança Estatal, cumprindo ordens do próprio Khruschev. Elas foram
entregues a este, o qual, a despeito dos passos corajosos para expor os crimes de
Stalin, desejou, em qualquer caso, dissociar-se completamente deles.
Stalin também se preocupou bastante para que seu nome não aparecesse
sancionando as “punições de mais alto grau”. Existem muitas cartas endereçadas a
ele, bem como a Voroshilov, Molotov e outros, implorando clemência. Todos os
que escreveram tais cartas pereceram. Uma vez que elas eram frequentemente lidas
sem que fossem rubricadas ou assinadas, Stalin deve ter optado por proferir
verbalmente sua decisão e, em alguns casos, não autorizar em absoluto a revisão de
um caso, de vez que a sorte do solicitante já estava de qualquer forma decidida. Foi
esta ocultação de seu papel que levou à lenda, ainda hoje vigorante, de que “ele nada
sabia” da repressão. Somente a ignorância da situação real pode explicar a
ingenuidade de D.A. Lazurkina, uma bolchevique da velha guarda, que disse no
XXII Congresso, em 1961, que, durante todo o tempo em que esteve na prisão ou
em campos de concentração, jamais blasfemou contra Stalin: “Ao longo de todo
aquele período, defendi Stalin, a quem outros presos e companheiros acusavam. Eu
dizia para eles: ‘Não, não é possível que Stalin tenha permitido o que está
acontecendo no partido. Não é possível.’”42
Stalin e seus sequazes fizeram da violência um modo de vida. Como Khruschev
disse: “O mando arbitrário de um só encorajou e permitiu a emergência do mando
arbitrário de outros. As prisões em série e o exílio de muitos milhares de pessoas,
sem julgamento ou qualquer investigação normal, criaram um clima de insegurança
e de medo generalizados.”
Diversos plenos do comitê central tiveram lugar durante 1937, nos quais, além
das eleições para o Soviete Supremo, dos erros cometidos nas expulsões de membros
do partido, ou das medidas para melhorar a produtividade das Fábricas de Tratores
e de Máquinas, e de outros assuntos, os delegados invariavelmente debatiam a
composição do comitê central. Isto significava que o expurgo no órgão mais elevado
era contínuo. Por exemplo, no pleno de outubro, 24 membros e candidatos a
membro foram removidos, inclusive Zelensky, Lebed, Nosov, Pyatnitsky,
Khataevich, Ikramov, Krinitsky, Vareikis, Grinko, Lyubchenko, Yeremin, Deribas,
Demchenko, Serebrovsky, Rozengolts, Ptukha e Shubrikov. Tachados, então, de
“inimigos do povo”, todos foram bolcheviques de grande reputação e espinha dorsal
dos quadros do partido.43 O padrão era o mesmo em todos os plenos. Por exemplo,
a seguinte resolução foi aprovada no de dezembro:

Com base em evidência incontestável, o pleno considera necessário expelir do comitê central e prender como
inimigos do povo: Bauman, Bubnov, Bulin, Mezhlauk, Rukhimovich e Chernov, que se transformaram em
espiões alemães e agentes da okhranka [polícia secreta] czarista; Mikhailov, vinculado às atividades
revolucionárias de Yakovlev; e Ryndin, ligado ao trabalho contrarrevolucionário de Rykov e Sulimov.

Uma anotação com a caligrafia de Stalin aparece um pouco abaixo: “Todos estes
admitiram sua culpa.”44
Mais da metade do comitê central era constituída de “espiões” e “agentes da
polícia secreta czarista”! Vinte anos depois do colapso da dinastia Romanov, seu
departamento de polícia ainda funcionava como se nada tivesse acontecido!
Pesquisei nas listas amareladas que circularam entre os membros do comitê central
para que votassem e não encontrei um só voto negativo, uma só objeção ou
qualquer expressão de dúvida. Somente achei “De acordo”, “Sou favorável”,
“Concordo decididamente”, “Uma decisão correta”, “Uma medida necessária”, e
assim por diante. As consciências estavam embotadas pela mentira e pelo medo.
No final de 1938, praticamente não havia candidatos para preencher o
assustador número de vagas. Dos 139 membros e candidatos a membro do comitê
central, eleitos no XVII Congresso, 98, ou seja, 70% tinham sido presos e
executados em 1937-38. Na verdade, esta não foi a sorte apenas do comitê central,
mas dos delegados em geral. E 80% dos que tinham direito a voto haviam sido
bolcheviques desde antes de 1921. Stalin não podia esquecer que perto de 300
delegados haviam votado contra ele. Quem eram? O ditador viu um inimigo em
cada um.
As repúblicas e regiões cedo se viram drenadas de seus recursos humanos. Muitos
comitês de oblasts** perderam simplesmente seus primeiros-secretários; todos os
secretários do partido viram-se, nas palavras de Kaganovich, “morando” com
Yezhov. Apenas Stalin tinha as estatísticas oficiais. Seja o que for que ele fez com
essa gente, demonstrou grande coerência, e tendo decidido pela linha de ação,
resolveu segui-la até as últimas consequências.
De acordo com I.D. Perfilyev, um bolchevique da Velha Guarda que passou
muitos anos em campos de concentração e que me contou a história, certa vez, na
companhia de Molotov, enquanto apreciava uma lista de rotina com Yezhov, Stalin
resmungou sem se dirigir a ninguém em particular: “Quem irá se lembrar de todos
esses desclassificados em dez ou vinte anos? Quem se recorda dos nomes dos
boyars*** de quem Ivan, o Terrível, se livrou? Ninguém... O povo tinha que saber
que estava se vendo livre de todos esses inimigos. No final, todos tiveram o que
mereciam.”
“O povo entende, Iosef Vissarionovich, entende e o apoia”, replicou Molotov
automaticamente. Ambos sabiam que o povo estava silenciado. Os gritos de apoio
eram as vozes da ignorância, da ilegalidade e da intimidação.
O preceito de Stalin sobre “aprender a apreciar as pessoas, valorizar os quadros”
constituía o auge da blasfêmia. Yezhov, nomeado candidato a membro do Politburo
em outubro de 1937, propôs que a NKVD começasse a preparar listas de pessoas
que, em qualquer ocasião, tivessem sido investigadas por tribunal militar. O
relatório de Ulrikh mostra como tais casos foram tratados e quantos foram
“desvendados”:

Ao Comissário de Segurança Estatal, Primeira Classe, Camarada Beria, L.P. Durante o período de 1º de
outubro de 1936 e 30 de setembro de 1938, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS e o colegiado
itinerante em sessenta cidades sentenciou:

30.514 ao fuzilamento
5.643 à prisão

36.157 no total
15 de outubro de 1938 V. Ulrikh45

Naqueles dois anos, Yezhov e, mais tarde, Beria enviaram a Stalin incontáveis listas
de “espiões”, juntamente com a sugestão de sentença (a maioria fuzilamento),
mesmo antes de os tribunais se reunirem. Primeiro, eles recebiam um relatório de
Ulrikh, dos quais o seguinte é um exemplo:
Em setembro de 1938, o colegiado militar da Suprema Corte da URSS, em Moscou, Leningrado, Kiev,
Kharkov, Khabarovsk e outras cidades sentenciou:

1.803 ao fuzilamento
389 à prisão
2.192 no total 45a

Para o mês de outubro, seriam mais 3.588, mas isso só se aplicava aos tribunais
militares. As cortes comuns também estavam funcionando.
Khruschev não tinha o direito moral de dizer, como o fez no XX Congresso:
“Não podemos encarar os atos de Stalin como comportamento de um déspota
louco. Ele considerou necessário agir daquela forma no interesse do partido e das
massas laboriosas, em nome da defesa de nossas conquistas revolucionárias. Esta foi
a tragédia!” Isto não é verdade. Stalin não poderia deixar de saber que o terror que
desencadeou prosseguiria com base na total violação da legalidade socialista. Não
poderia deixar de saber que os julgamentos eram farsas do início ao fim. É bem
possível que, genuinamente, quisesse uma sociedade florescente e o bem-estar de
seus concidadãos, e, sem dúvida, desejava um Estado forte. Porém, o que não quis
foi perguntar aos membros daquela sociedade como eles desejavam chegar à
consecução dos ideais socialistas.
A despeito de sua determinação em alcançar os objetivos que estabelecera para si
mesmo, por vezes chegou a hesitar quando, de repente, o volume da repressão
começou a repercutir. Isto explica o debate travado no pleno de janeiro de 1938
sobre os enganos cometidos pelas organizações do partido na expulsão de membros.
Foi Stalin quem levantou a questão. Ao ouvir relatórios de Malenkov, Bagirov,
Postyshev, Kosior, Ignatiev, Zimin, Kaganovich, Ugarov, Kosarev, teve que ficar
admirado com a amplitude do terror, com a ilegalidade e com a efetiva destruição
dos quadros. Postyshev relatou que, ao chegar a Kuibyshev, encontrou todos os
órgãos do partido paralisados pelo expurgo; em nada menos que trinta comitês
distritais permaneciam apenas dois ou três membros, o que significava que não mais
funcionavam. De imediato, Stalin, Beria, Yezhov, Malenkov e Molotov acusaram
Postyshev!
Os documentos indicam que a decisão de “afundar” Postyshev fora tomada antes
do plenário. Quase todos os oradores realçaram seus erros. Acompanhado por
comentários de aprovação de Stalin, Kaganovich, o crítico principal, disse entre
outras coisas:
Conheço bem Postyshev. O Comitê Central enviou-me a Kiev no ano passado quando descobriu que o
Camarada Postyshev cometera os maiores erros na liderança das organizações partidárias de Kiev e
ucranianas. Em Kiev, Postyshev revelou-se um trabalhador que violou, na prática, as ordens do partido, daí a
razão de o comitê central tirá-lo de lá. A cegueira de Postyshev em relação aos inimigos do povo chega a ser
quase criminosa. Não foi capaz de vê-los mesmo quando todas as evidências apontavam para eles. [...] Ao
observá-lo nos corredores e ao ouvi-lo discursar neste plenário não posso deixar de dizer que você não está
sendo leal com o comitê central.

“Sempre fui leal em toda a minha vida”, tentou protestar Postyshev. Kaganovich
continuou:

O que Postyshev disse aqui no pleno é a repetição de conversas hostis ao partido. Ele parece não querer ver
que promovemos mais de 100 mil novas pessoas. Esta é uma grande vitória stalinista.46

Ao falar da “grande vitória stalinista”, Kaganovich deixou inadvertidamente


escapar a escala das reposições causadas pelos líderes colocados fora de ação.
Discursos de Yaroslavsky, Kosarev e Ugarov escalaram as críticas a Postyshev
com acusações e condenações diretas. Ele estava claramente escolhido como a vítima
da vez. Kaganovich conseguiu transferir sua aversão pessoal a Postyshev para o
restante da liderança, mas os eventos subsequentes no pleno mostraram que o
cenário tinha sido preparado com antecedência por Stalin. Foi deixado para Ignatov,
segundo secretário do comitê regional de Kuibyshev, o disparo do tiro de
misericórdia, quando ele disse com todas as letras que o que Postyshev fizera fora
“antipartidário”. Kaganovich, de pronto, fez o ataque final:
“Você não está sendo leal com o comitê central neste momento. Está tomando
uma linha hostil. Postyshev está acabado como líder político.”
“Reconheço total e completamente que o discurso que hoje fiz aqui”, disse
Postyshev levantando-se, “foi incorreto e antipartidário. Mesmo enquanto o
pronunciava não podia entender o que fazia. Peço que o pleno me perdoe. Não
apenas jamais estive com os inimigos como sempre lutei contra eles.”
Agora, só Stalin poderia salvar Postyshev. Porém, depois de esperar pela
humilhação plena do velho bolchevique que tentara fazer seu próprio julgamento, o
secretário-geral assentou sua sorte:

Formamos uma opinião aqui no Presidium do Comitê Central ou, se preferirem, no Politburo, que, depois
de tudo o que aconteceu, medidas têm que ser tomadas com respeito ao Camarada Postyshev. Na nossa
opinião, ele deve ser removido da filiação como candidato ao Politburo, mas permanecer como membro do
comitê central.47
Foi realizada uma votação que, é claro, resultou unânime. Postyshev ficou em
liberdade por apenas um mês. Por ordem de Stalin, a comissão de controle do
partido, em fevereiro, minutou um decreto sobre ele que foi baixado pelo Politburo.
Seu conteúdo principal foi formulado e aprovado pelo próprio Stalin. Postyshev foi
acusado das seguintes transgressões:

Dissolução de 35 comitês distritais do partido.****


Provocação contra sovietes. (Trinta e quatro deputados tinham sido removidos numa só sessão do soviete da
cidade.)
Recrutamento de quadros para trabalhar no campo, desmantelamento de edifícios públicos, destruição por
deitar fogo na safra.
Enquanto em serviço em Kuibyshev, Postyshev estorvou o trabalho da NKVD no desmascaramento de
inimigos ao desferir golpes contra comunistas honestos.
Assistentes de Postyshev, tanto na Ucrânia como em Kuibyshev, tornaram-se inimigos (espiões).
Postyshev sabia da existência de uma organização contrarrevolucionária trotskysta de direita no território.
Todas as ações acima de P.P. Postyshev devem ser consideradas antipartidárias e tendentes a beneficiar
inimigos do povo. P.P. Postyshev deve ser expulso do [partido].48

Todos os restantes 49 membros e candidatos a membro do comitê central votaram


por escrito nessa resolução, mas não existe uma cédula com o nome de Stalin.
Como sempre, ele cuidou para não deixar vestígios.
Postyshev foi preso e executado. A “preocupação de Stalin com os quadros” foi
bem ilustrada com o caso deste bolchevique de velha cepa que não leu pela cartilha
do líder. O secretário-geral precisava apenas ouvir um item de informação, uma
conversa, uma única frase para decidir sobre um indivíduo. Segundo Perfilyev,
depois de “verificar” Postyshev, Molotov relatara a Stalin:
“Postyshev é politicamente perigoso.”
“Por que mantê-lo então?”, perguntou Stalin.
Nem todo o mundo notou, ou melhor, prestou a devida atenção à rixa entre
Kosarev e Mekhlis no plenário de janeiro. No seu discurso, Kosarev criticou
efetivamente a administração política do Exército Vermelho, chefiada por Mekhlis,
por sua fraca organização do trabalho entre o Komsomol: “Existem 500 mil
membros de organizações da juventude no exército, no entanto apenas uns poucos
milhares deles se filiam ao partido anualmente.”
Mekhlis, imediatamente, esquivou-se da acusação com uma resposta azeda: “O
Comitê Central do Komsomol não trata dos Komsomols do exército. Sugeri a
Beloborodov***** que entrasse no exército para operar os Komsomols de lá, mas ele
recusou. Só querem fazê-lo a partir do Comitê Central.”49
Esta troca de palavras sem dúvida exacerbou a hostilidade entre os dois e pode
muito bem ter sido responsável pelo destino posterior de Kosarev.
Ao debater os erros cometidos no campo do pessoal, o pleno tomava o
conhecido caminho de culpar “inimigos” ocultos por enganos e excessos. Esta foi, de
fato, a conclusão do próprio pleno: “Chegou a hora de desmascarar todas as
organizações partidárias e seus líderes, e de destruir de uma vez por todas a
totalidade dos inimigos camuflados que se infiltraram em nossas fileiras.”50 A
diretriz de Stalin, expedida no pleno de fevereiro-março de 1937, ainda prevalecia:
os excessos e desacertos na luta contra os inimigos do povo eram causados por
trotskystas e outros saqueadores ainda não desvendados. Como vemos, então, a
cintilação para uma abordagem sensata daquilo que resultou no massacre de 1937-
38 ainda era muito pálida. Consoante o modo de pensar de Stalin, o único defeito
no sistema de violência era responsabilidade de seus executores.
Em vez de buscar a causa dos excessos no tratamento criminoso de comunistas,
novo ímpeto foi dado à procura de “inimigos”. Quando o secretário regional
Kudryavtsev do partido comunista ucraniano, em Kiev, falava nas reuniões do
partido, invariavelmente perguntava: “Vocês não fizeram denúncia escrita sobre
ninguém?” O resultado de tantos reclamos pela vigilância foi uma enxurrada de
denúncias enviadas sobre quase metade dos membros regionais do partido. Uma das
primeiras vítimas foi o próprio Kudryavtsev.
A destruição dos quadros e a onda de denúncias e informes que a acompanhou
significaram que diversas pessoas inescrupulosas, afora a possibilidade de acerto de
contas, ainda se promoveram e, muitas vezes, fizeram boas carreiras no partido, em
cargos estatais e no exército. O pleno de janeiro de 1938 aprovou resolução
estabelecendo que “alguns comunistas-carreiristas, que buscam destaque pessoal e
benefícios com a expulsão de membros do partido, estão se protegendo contra
possíveis acusações de vigilância inadequada por meio do engajamento na repressão
indiscriminada de filiados ao partido”.51 Este reconhecimento perfeitamente correto
do perigo para o partido decorrente desses carreiristas e informantes não foi,
contudo, vinculado à linha geral de repressão do partido, e aí residiu outra fonte
profunda de distorções e da tragédia.
Uma mentira leva a outra; e as mentiras tendem a se transformar em bolas de
neve. Ao “aguçar” arbitrariamente a luta de classes, Stalin provocou uma onda de
falsidades contra a qual a sociedade revelou-se indefesa. As mentiras dos órgãos de
segurança de Yezhov acopladas às falsidades das cortes e da procuradoria, às
mentiras da imprensa e aos incontáveis discursos em prol de “sentenças justas”,
criaram uma situação singular. Onde achar as causas do massacre? Em lugar algum.
Para quem seria possível apelar? Para ninguém. Seria possível revelar os vilões? Não
era permitido.
Tomemos um exemplo típico. Existe um grande número de denúncias de todas
as espécies no arquivo de Beria. Vou citar uma delas sem nomear seu autor porque
ele já deve ter filhos e netos crescidos. (De passagem, devo dizer que, ao fazer
referência a muitos nomes no texto deste livro, procurei não causar desconforto às
pessoas mencionadas, se bem que a história não seria história se tudo fosse contado
de forma codificada.) Eis a denúncia:

Camarada Malenkov,
Sou subcomandante de uma unidade de tropas do interior da NKVD. Foi organizada uma reunião para a
outorga ao Camarada Stalin da Medalha da Vitória. Porém, apenas oficiais foram convidados para a reunião,
as praças não. Coisa estranha. O general Brovkin conduziu o encontro. Três ou quatro pessoas discursaram e,
com isso, a reunião foi encerrada. Depois, foi-nos dito que a unidade seria empregada na colheita da safra e
que o chefe da seção política, Kuznetsov, fora transferido para outra função alhures.
Uma ocasião politicamente tão importante, como um encontro dedicado à condecoração do Camarada
Stalin com a Medalha da Vitória, foi perdida, desperdiçada, apequenada.

Malenkov adicionou uma nota para Beria: “A reação do destinatário foi a


‘natural’.”52
O pleno de fevereiro-março de 1937 não apenas decidiu que “o comissariado do
Interior deve completar sua tarefa de desmascaramento e aniquilação dos trotskystas
e outros agentes, e esmagar as menores manifestações de sua atividade
antissoviética”. Também estipulou que os quadros fossem fortalecidos.53 Naqueles
dias, isso só poderia significar o cumprimento cego e fanático das ordens do líder.
Quem possuísse um traço, pequeno que fosse, de consciência não poderia sobreviver
na NKVD. Homens como Abakumov, Kruglov, Merkulov, Yezhov, Beria,
Kobulov, Mamulov e Rukhadze, entre outros arrivistas, não subiram na NKVD por
mérito, mas exatamente por não o possuírem.
Notas

* Essas categorias são tratadas com maior detalhe em capítulo posterior.

** Províncias. [N.T.]

*** Aristocracia medieval russa. [N.T.]

**** Na realidade, eles simplesmente pararam de funcionar, uma vez que 3.500 comunistas de Kuibyshev foram
expulsos do partido no período de cinco meses, em 1937.

***** Secretário do comitê central do Komsomol.


[31]
A “trama” Tukhachevsky

S talin amava tudo o que se relacionava com o Exército. As Forças Armadas


eram sua preocupação especial. Ele gostava de se olhar num grande espelho
quando envergava a farda de marechal; uma túnica cuidadosamente
engomada com platinas douradas era sua ideia de perfeição estética. Lembrava com
orgulho dos anos de guerra civil: com exceção de Trotsky, provavelmente, estivera
em maior número de fronts que qualquer outra pessoa.
Em termos pessoais, sabia que quase todos os oficiais, de comandante de corpo
para cima, a maioria dos marechais e comandantes do exército desde a guerra civil,
e, a partir de meados dos anos 1930, todas as nomeações dos altos escalões do
Exército Vermelho, haviam sido feitas por ele. Quando um candidato era
entrevistado, Stalin ouvia atentamente seu breve relato, olhando diretamente nos
olhos do pretendente, permanecia silencioso e depois conversava por sete a dez
minutos. Seu interesse era pela experiência pessoal, conhecimento do campo de
batalha, opiniões sobre a reestruturação do exército à luz do progresso técnico. Fazia
perguntas inesperadas, tais como: “Seriam necessários distritos fortificados nas atuais
circunstâncias?” ou “O que você acha do novo Estado-maior de campanha?” No fim
da conversa, cumprimentava o nervoso oficial com um aperto de mão meio frouxo,
desejava-lhe sorte na nova função e dizia que esperava contar com a firme execução
da linha do partido. Fixava então, de novo austeramente, os olhos nos do
interlocutor; precisava saber se o oficial era pessoalmente leal a ele.
Stalin passava muitas horas com comissários, projetistas, cientistas e fabricantes
cujo ofício fosse a produção de material bélico. Normalmente, inspecionava em
pessoa os novos modelos em teste. Convocava reuniões sobre vários aspectos
militares e pouco falava, mas conduzia a reunião com as perguntas e comentários
que fazia. Em 1939, por exemplo, passou um dia inteiro discutindo com o Estado-
maior de Serviços os modelos e a qualidade dos uniformes de combate e de passeio
para oficiais e praças.
Tal preocupação, evidentemente, não era apenas motivada pelo amor às questões
militares. Como qualquer outro líder, Stalin sabia que a posição de um país no
mundo, seu regime político e sua autoridade internacional dependiam em grande
parte não só do poderio econômico como também da força militar. Todos os seus
discursos daquela época expressam alarme com a ascensão do fascismo e o
crescimento da ameaça imperialista tanto no Ocidente como no Oriente. Sem
exagero, pode-se dizer que suas maiores prioridades então eram o Exército Vermelho
e a NKVD. E foi precisamente por meio da NKVD que, a partir do fim de 1936,
ele começou a receber notícias alarmantes.
Os primeiros sinais de uma colisão iminente entre Stalin e os militares foram
percebidos na Alemanha. O chefe do serviço de informações do Exército Vermelho,
S. Uritsky, relatou a Stalin e Voroshilov, em 9 de abril de 1937, que circulavam
rumores em Berlim sobre a existência de oposição à liderança soviética entre os
generais e acrescentou com segurança que ninguém acreditava nos boatos, citando
como prova a afirmativa de um tal Arthur Just, no jornal Deutsche Algemeine
Zeitung de que “hoje, a ditadura de Stalin desfruta de total apoio. Seria muito
estranho um abalo nos alicerces do exército nesta ocasião. Nada é mais importante
no presente para Stalin do que a confiança irrestrita no Exército Vermelho”.54 Tudo
indica que o secretário-geral também pensava assim, mas rumores semelhantes de
uma conspiração de generais estavam começando a chegar de outras fontes, de
modo que ele decidiu “sacudir os alicerces” do exército para testar a “confiança
incondicional”.
Primeiro, Yezhov enviou uma nota a Stalin de uma organização de emigrados
brancos em Paris, Russkii Obshchevoinskii Soyuz (União Geral Militar Russa), que
afirmava estar sendo preparado na URSS um coup d’état por um grupo de oficiais
dos altos postos. Dizia-se que o grupo era liderado pelo marechal M.N.
Tukhachevsky. Stalin repassou a nota para Ordzhonikidze e Voroshilov “como
informação” sobre seu conteúdo. Não se conhece a reação dos que a leram. O mais
provável é que a natureza claramente inverossímil da nota não tenha impressionado
nenhum deles, nem o sempre desconfiado Stalin, que tendia a acreditar em qualquer
documento ou arquivo da NKVD. Uma digressão se faz necessária.
De acordo com A.I. Rybin, que trabalhava àquela época numa seção da NKVD
e mais tarde foi um dos seguranças de Stalin, quando foi feito um relatório verbal ao
secretário-geral sobre os “contatos” de M.Ye. Koltsov com “agências de informações
estrangeiras”, ele deu pouca atenção. Stalin conversara recentemente com o escritor
e tivera boa impressão dele. Todavia, quando lhe mostraram um arquivo contendo
denúncias sobre duas pessoas relacionadas cerradamente com Koltsov, ele ordenou
que fossem tomadas providências. Não concebia ser enganado havendo alguma
coisa escrita. Yezhov e mais tarde Beria exploraram esta propensão em acreditar em
qualquer coisa posta no papel. As denúncias mais absurdas e fantásticas
encontravam campo fértil na mente de Stalin.

Muita gente que teve relação estreita com Stalin no ápice de seu mando me falou
de sua atitude extraordinariamente suspeitosa, que se estendia até o círculo
imediato, seus assistentes e pessoas chegadas. Segundo A.N. Shelepin, Stalin
determinou que Beria checasse sua equipe de segurança. Beria demonstrava estar
atento “descobrindo” periodicamente um “espião” ou um “terrorista” entre o
pessoal de Stalin. Vez por outra, relatava sobre sinais ou fatos suspeitos que recebera.
Foi assim que, certa vez, ordenou a prisão de um servente da limpeza, Fedoseyev, e
de sua esposa por arquitetarem um terakt. Até as gardênias que ficavam no exterior
das janelas tinham que ser mantidas podadas à altura de cinquenta centímetros ou
menos, para evitar que alguém se escondesse por trás delas. Ninguém sabia se Stalin
passaria a noite dormindo no divã do estúdio ou na cama do pequeno quarto,
portanto, as camas permaneciam disponíveis e arrumadas nos dois lugares.
Ninguém, exceto Beria, ousava entrar no quarto de Stalin sem ser chamado.
Quando se dirigia à dacha na limusine blindada, acompanhada por um comboio
de outros veículos, Stalin sabia que cada viagem daquelas representava uma
operação completa para a segurança. Ao lado do motorista, Mitrokhin, ia um dos
seguranças, Tukov ou Starostin (nos anos 1940). Se Stalin detectasse uma expressão
que não fosse do seu gosto no olhar de qualquer deles, a pessoa jamais voltava a
trabalhar para ele. Deve ser ressaltado que, apesar dos mitos fabricados por Beria e
seu círculo sobre atentados contra a vida do secretário-geral, nada há registrado a
este respeito.
Khruschev referiu-se à desconfiança patológica de Stalin que se estendeu aos
membros do Politburo. Provavelmente, só confiava em Vlasik e Poskrebyshev, e
talvez em Valya Istomina, sua “empregada”, a jovem que se mudou para sua casa
logo depois da morte da esposa, Nadezhda Alliluyeva. Ela cuidou dele até o fim da
vida e tentou proporcionar-lhe os maiores confortos possíveis. A despeito do
temperamento um pouco ríspido de Stalin, ele frisou mais de uma vez o cuidado
simples e sincero que ela lhe devotava. Porém, a suspeita quase maníaca foi um dos
traços dominantes de sua personalidade.
Por conseguinte, a informação a ele remetida pelo presidente Benes da
Tchecoslováquia aumentou sensivelmente suas dúvidas sobre Tukhachevsky. Várias
fontes – inclusive Winston Churchill – acreditam que Stalin foi fisgado por um
documento arquitetado em Berlim sobre uma trama de Tukhachevsky e dos
generais. O serviço alemão de contrainformação, chefiado pelo almirante Canaris,
copiara a assinatura de Tukhachevsky e a apôs num documento em Berlim, nos idos
de 1926, sobre a cooperação com uma empresa alemã de tecnologia aeronáutica.
O objetivo de tal medida ardilosa era passar a ideia de que Tukhachevsky
mantinha contatos secretos com alguns generais alemães para derrubar Stalin pela
força. Um incêndio na noite de 1º de março de 1937 e o roubo de documentos
foram encenados em Berlim para explicar o aparecimento em Praga daquele
documento específico.
Benes, sem dúvida, agiu com a melhor das intenções ao enviar o documento para
Moscou, onde Stalin, embora alertado, não fez mais do que encaminhá-lo a Yezhov
naquela ocasião. Foi feita uma investigação sigilosa sobre Tukhachevsky e recolhido
mais “material” a seu respeito. Os eventos, então, provavelmente ganharam maior
impulsão, como B.A. Viktorov, ex-vice-chefe da procuradoria militar, relatou-me.
Ele dirigiu um grupo especial de promotores e investigadores militares que foi
organizado depois do XX Congresso para reabilitar os injustamente condenados por
Stalin.
Entre muitos outros itens interessantes, Viktorov lembrou o caso de um
investigador chamado Radzivilovsky, que foi sentenciado em 1937 por violar a
legalidade, cujo depoimento contém o seguinte trecho:

Eu trabalhava na administração da NKVD da região de Moscou. Frinovsky [um assistente de Yezhov]


chamou-me à sua presença para saber se eu estava envolvido com os casos de quaisquer militares importantes.
Disse-lhe que trabalhava no caso de um ex-comandante de brigada chamado Medvedev. Frinovsky afirmou
que eu tinha que “desenvolver uma linha sobre uma trama importante e arraigada no Exército Vermelho, e
que o papel e o serviço de Yezhov para o comitê central deveriam parecer enormes”. Comecei a trabalhar.
Naturalmente, não foi de imediato que consegui de Medvedev a prova necessária de uma trama no Exército
Vermelho. Yezhov foi informado sobre o depoimento. Ele interrogou Medvedev pessoalmente, que lhe disse
e a Frinovsky que seu testemunho fora falsificado. Yezhov deu ordens para que todos os meios fossem
empregados a fim de Medvedev retornar à história original. As notas sobre o depoimento de Medvedev,
obtidas por meio de tortura física, foram levadas às instâncias superiores.

Tukhachevsky e os outros “conspiradores” foram presos logo depois disso.


Literalmente no dia seguinte, foi dito a Stalin que Trotsky anunciara na última
edição do Boletim da oposição que “a insatisfação entre os militares com a ditadura
de Stalin indica uma possível revolta”. Antes de tomar medidas contra
Tukhachevsky, que era muito popular, Stalin queria ouvir o que Molotov,
Voroshilov e Yezhov tinham a dizer. Molotov acreditou na história (e, diga-se de
passagem, continuou acreditando até o fim de seus dias), enquanto Voroshilov
extravasou sua antiga aversão a Tukhachevsky, e Yezhov mostrou que desejava se
promover à custa do caso. Todos os três foram favoráveis à prisão dos conspiradores.
Em 24 de maio, o seguinte documento, assinado por Stalin, circulou entre os
membros do comitê central requisitando seus votos:

Com base em fatos que denunciam Rudzutak, membro do Comitê Central, e Tukhachevsky, candidato a
membro, como participantes de um bloco conspirativo antissoviético trotskysta de direita [sic!] e responsáveis
por trabalho de espionagem contra a URSS para a Alemanha fascista, o Politburo do comitê central coloca
em votação a proposta de expulsão de Rudzutak e Tukhachevsky do partido, e de encaminhamento de seus
casos ao comissariado de Questões Internas.55

A votação foi a favor por unanimidade. Ninguém teve qualquer dúvida, ninguém
saiu em defesa das vítimas. Líderes militares que bem conheciam Tukhachevsky dos
dias de guerra civil tomaram cegamente por verdadeiras as palavras dos
provocadores, sem mesmo tentarem ouvir o que o marechal tinha a dizer. O
momentum da ilegalidade já era muito forte. Ninguém expressou desejo de conhecer
o que estava por trás da expressão “com base em fatos que denunciam...” Alguns
membros foram além da resolução de Stalin. Budenny, por exemplo, escreveu na
cédula de votação: “Definitivamente, sim. Estes patifes têm que ser punidos.”
Mekhlis, como de hábito, sublinhou várias vezes o seu “sim”. Nem Voroshilov, nem
Yegorov, que serviram com Tukhachevsky, nem Khruschev ou Mikoyan, que iriam
mais tarde condenar este ato ilegal, tiveram coragem para se abster do fatídico
“sim”. Por razões não explicadas, Stalin, como sempre, deixou sua cédula de votação
em branco.
Stalin conhecia Tukhachevsky desde a guerra civil, sabia da excelência de seu
comando do V Exército e se lembrava da ordem do Revvoensoviet de 28 de
dezembro de 1919: “Seja o Comandante do V Exército, Camarada M.N.
Tukhachevsky, agraciado com a Honraria da Arma Dourada por bravura pessoal,
ampla iniciativa, energia, eficiência e conhecimento da profissão, tudo isto
demonstrado nas vitoriosas ações do Exército Vermelho no Oriente, na captura de
Omsk.”56
Enquanto ouvia os relatos de Yezhov sobre os interrogatórios de M.N.
Tukhachevsky, I.E. Yakir, I.P. Uborevich, A.I. Kork, P.E. Eideman, B.M. Feldman,
V.M. Primakov e V.K. Putna, Stalin meditava sobre o mais jovem daqueles oficiais
dos altos escalões, cinco deles marechais da União Soviética. O secretário-geral
sempre reconheceu a alta qualificação profissional de Tukhachevsky, a originalidade
de seu pensamento estratégico e seu indubitável talento como teórico. Por outro
lado, desde a guerra civil, sempre guardou uma desconfiança hesitante nos
“especialistas burgueses” e veio a desgostar do marechal por sua independência e
pela coragem de suas opiniões, como também tinha conhecimento das más relações
entre Tukhachevsky e Voroshilov. Recordou-se de uma nota de Gamarnik, chefe da
seção política do Exército Vermelho, informando que Tukhachevsky propusera o
afastamento dos chefes das administrações políticas distritais, proposta que tanto
Gamarnik quanto Stalin consideraram “absolutamente incorreta e prejudicial em
tempo de paz e de guerra”.57 Naquela oportunidade, Stalin apoiara Gamarnik.
Tinha também conhecimento de que Voroshilov alimentava uma opinião invejosa
sobre as teorias de Tukhachevsky58 porque elas o tornavam mais consciente de que,
por sua falta de preparo, ele estava se apegando a noções ultrapassadas de
organização militar. Portanto, a posição de Tukhachevsky como primeiro vice de
um comissário que lhe era incomensuravelmente inferior em termos intelectuais, de
qualquer forma, dificilmente poderia perdurar. Era improvável que Voroshilov desse
o devido valor a Tukhachevsky, e a transferência deste último para um cargo de
menor realce veio na ocasião oportuna quando foi nomeado para comandar o
distrito militar do Volga. Tal comissão não durou muito.
Também estava claro para Stalin que Tukhachevsky era superior a Voroshilov
em todos os aspectos. Mas isto era comum. Um chefe não precisa ser mais
inteligente que seus subordinados. O importante era a “linha”, e nisto Voroshilov se
mostrava melhor, enquanto Tukhachevsky... Era difícil acreditar em tudo que
Yezhov reportava, porém até Trotsky dera algumas pistas em seu livro A Revolução
traída. Numa recente entrevista em Oslo, o “cidadão sem um visto” dissera: “Nem
todo o mundo no Exército Vermelho é dedicado a Stalin. Eles ainda se lembram de
mim.” E Trotsky e Tukhachevsky conheciam um ao outro. [...] À proporção que lia
os documentos, Stalin forçou-se a crer que a história da conspiração não só era
verdade como constituía verdadeira ameaça. Fosse como fosse, Yezhov relatara que
os “conspiradores haviam confessado”.
Stalin ordenou que um julgamento fechado fosse rapidamente feito. Todos
deveriam ser fuzilados. Acenou com a cabeça para sua mesa onde um exemplar do
Bolshevik estava aberto num artigo de Tukhachevsky “Sobre o novo Estado-maior
de campanha do Exército Vermelho”. Os eventos se movimentaram com tal rapidez
que o editor não tivera tempo de excluí-lo da publicação. No início de junho de
1937, antes do julgamento, o conselho de defesa (cujos membros foram todos
executados no espaço de seis meses) ouviu o relatório de Yezhov e Voroshilov sobre
o desvendamento de “uma infame organização militar contrarrevolucionária e
fascista”. Os maquinadores operavam havia muito tempo, dizia o relatório, e suas
atividades eram cerradamente relacionadas com círculos militares alemães. Além
disso, eles planejaram o assassinato de líderes do partido e do Estado para conquistar
o poder com a ajuda da Alemanha fascista. O destino de Tukhachevsky estava
definido. Em 11 de junho de 1937, menos de duas semanas depois de sua prisão,
teve lugar o julgamento fechado, que só foi mencionado pela imprensa naquele
mesmo dia. A sentença foi anunciada no dia seguinte.
O júri foi conduzido com rapidez extrema e com extrema falta de justiça. Foi
aberto às nove da manhã e a sentença lida pouco depois do almoço. O tribunal foi
constituído pelo advogado militar V.V. Ulrikh, pelos marechais do exército S.M.
Budenny e V.K. Blyukher, pelos comandantes de exército, primeira classe, B.M.
Shaposhnikov e I.P. Belov, comandantes de segunda classe do exército Ya.I. Alksnis,
P.Ye. Dybenko e N.D. Kashirin, e pelo comandante divisionário Ye.I. Goryachev.
Aos acusados foram negados o conselho de defesa e o direito à apelação,
determinados pela lei de 1º de dezembro de 1934.
Tukhachevsky, Yakir, Uborevich, Putna, Primakov, Kork, Eideman e Feldman
sentaram de frente para os antigos camaradas de exército. Todos se conheciam
bastante bem. Ninguém naquele tribunal poderia supor que havia ali conspiradores
e espiões. Os réus devem ter sentido uma ponta de esperança, pois seus juízes, que
com eles serviram por 25 anos sob a mesma bandeira, poderiam dar ouvidos, se não
à voz da justiça, pelo menos a um senso de espírito de corpo.
Ya.B. Gamarnik estava também previsto para o julgamento, seja como acusado,
seja como membro do júri. Sua filha V.Ya. Kochneva descreveu o último dia dele
para mim:

Meu pai caiu doente no fim de maio, ou porque sentiu que as coisas caminhavam para um desenlace ou por
causa de um ataque de diabetes. Segundo minha mãe – eu tinha apenas 12 anos – ele sabia que
Tukhachevsky fora preso em 27 de maio e que Uborevich, Yakir e o restante tinham sido apanhados dia 29,
no trem.
Blyukher foi visitar meu pai no dia 30. Eram velhos amigos dos dias de Extremo Oriente. Conversaram por
longo tempo. Depois, meu pai disse à minha mãe que fora convocado para juiz do caso Tukhachevsky.
“Mas como posso fazer isso?”, exclamou. “Sei que eles não são inimigos. Blyukher disse que se eu não for
poderei ser preso.”
Blyukher voltou para uma conversa rápida no dia 31. Depois vieram outras pessoas e selaram a sorte de meu
pai. Disseram-lhe que tinha sido transferido de função e que seus assistentes, Osepian e Bulin, já estavam
presos. Recebeu ordens para permanecer em casa. Tão logo os agentes da NKVD saíram, ouviu-se um tiro
no escritório. Quando minha mãe e eu corremos, estava tudo acabado.
Acho que o tiro foi uma resposta à proposta de Stalin para que meu pai fizesse parte do júri sobre seus
amigos do exército. Uma resposta à ilegalidade. Ele não achou outra maneira de fazê-lo. Minha mãe foi presa
e sentenciada a oito anos de prisão como “esposa de um inimigo do povo”, e a mais dez anos em campo de
concentração “por ajudar um inimigo do povo”. Jamais a vi de novo e, aparentemente, morreu no campo em
1943. Fui mandada para um abrigo de jovens. Quando fiz 16 anos, em 1941, recebi uma pena de seis anos
por ser “elemento socialmente perigoso”. Assim começaram meus tempos de exílio...

Eis a história típica de milhares e milhares de famílias inocentemente reprimidas.


O julgamento foi feito com velocidade relâmpago. Tudo tinha sido combinado
de antemão. Ulrikh ligou principalmente a “trama” aos contatos dos acusados com
os militares alemães. Como sabemos, Tukhachevsky, em 1926, chefiara uma
delegação militar soviética a Berlim. Yakir fizera cursos na Alemanha em 1929.
Kork fora adido militar lá. Muitos outros tinham se encontrado com representantes
alemães em recepções diplomáticas, manobras e diversas reuniões. Todos eles, com
exceção de Primakov, negaram veementemente qualquer “vínculo de espionagem”
com a Alemanha. Tukhachevsky, por exemplo, disse à corte que “os encontros e
conversações com representantes militares alemães foram puramente oficiais e
tinham acontecido antes que Hitler chegasse ao poder”.
Os réus confessaram uma certa medida de “danos”, não como ato premeditado,
mas como deficiências e omissões na instrução militar, na construção de instalações
bélicas e em questões de mobilização. Uma das principais acusações se baseou na
exigência de Tukhachevsky pela rápida constituição de unidades blindadas e
mecanizadas em detrimento da cavalaria. Foi a este respeito que Ulrikh se aliou
firmemente a Budenny, o comandante da Cavalaria Vermelha na guerra civil. Como
os réus se recusavam a confirmar os resultados da investigação preliminar, o
presidente do tribunal perguntava insistentemente: “Você confirma o depoimento
que fez à NKVD?” – indagação que os compelia a aderir à versão preparada de caso
pensado antes do julgamento. Como hoje está perfeitamente estabelecido, todos os
réus foram submetidos à tortura física.
A acusação final foi que “para garantir o sucesso da trama, os acusados
tencionaram se livrar de Voroshilov”. A isto, Tukhachevsky, Kork e Uborevich
replicaram que, juntamente com Gamarnik, desejaram levantar junto ao governo a
questão da remoção de Voroshilov do cargo de comissário, uma vez que ele era
incompetente. Tal fato foi tomado pela corte como evidência de “atividade
conspirativa”. Mas os réus repeliram com vigor qualquer noção de espionagem para
a Alemanha fascista ou de preparo de um golpe contrarrevolucionário. Em suas
declarações finais, juraram devoção à pátria-mãe, ao povo, ao exército e, em
particular, realçaram a lealdade ao “Camarada Stalin”. Solicitaram leniência à corte
em relação aos enganos e imperfeições que pudessem ter cometido no desempenho
de suas atribuições.
Contudo, as palavras finais de Primakov introduziram uma nota dissonante nos
procedimentos. Ele confirmou por completo as acusações oficiais e declarou que
“todos os conspiradores estavam unidos sob a bandeira de Trotsky e pela dedicação
ao fascismo”. Disse que dera aos investigadores os nomes de setenta pessoas que ele
sabia com certeza que estavam envolvidas na conspiração militar-fascista. De acordo
com Primakov, os líderes do golpe tinham uma “segunda pátria”: Putna, Uborevich
e Eideman possuíam parentes próximos na Lituânia, Yakir tinha família na
Bessarábia, e a família de Eideman estava nos Estados Unidos. Depois de meses de
tortura, Primakov diria o que os investigadores quisessem. Enquanto os outros
ficaram presos apenas duas semanas antes do julgamento, Primakov, um herói da
guerra civil, passara mais de um ano em Lubyanka, e era um homem arrasado.
Somente investigadores com determinadas características serviam então na
NKVD: cínicos, cruéis e sádicos. O general do exército A.V. Gorbatov, que
experimentou os círculos do inferno stalinista, relembra:

Por acaso, descobri que o nome de meu investigador-monstro era Stolbunsky. Não sei onde ele se encontra
agora. Se estiver vivo, gostaria que lesse estas linhas e sentisse o desprezo que lhe devoto, embora eu ache que
já sentisse àquela época. Posso ainda ouvi-lo sussurrando perversamente enquanto me arrastavam, exausto e
coberto de sangue: “Você vai assinar, vai assinar.” Sobrevivi ao tormento por duas sessões, mas quando
começou a terceira eu só queria morrer.

O investigador do caso Tukhachevsky, que particularmente se superou, foi Ushakov


(nome real, Ushminsky). Ele era o responsável pelos casos especiais. No seu
depoimento para a comissão de reabilitação depois do XX Congresso, escreveu:

Feldman foi o primeiro a ser preso. Negou categoricamente qualquer participação na trama, em especial
contra Voroshilov. Peguei seu arquivo pessoal e, depois de lê-lo, cheguei à conclusão que Feldman tinha
laços de amizade com Tukhachevsky, Yakir e diversos generais de destaque. Convoquei Feldman a meu
gabinete, tranquei a porta e, na noite de 19 de maio, ele já estava assinando uma declaração sobre um golpe
que implicava Tukhachevsky, Yakir, Eideman e os outros. Depois me deram Tukhachevsky para interrogar,
e ele confessou no dia seguinte. Sem deixá-lo dormir, arranquei dele fatos e mais fatos, nomes e mais nomes
dos conspiradores. Até mesmo no dia do julgamento, consegui testemunho adicional de Tukhachevsky
incriminando Apanasenko e outros na conspiração.59
O próprio Vyshinsky participou de uma das sessões do interrogatório de
Tukhachevsky, forçando-o a assinar as seguintes palavras: “Confesso minha culpa.
Não tenho queixas.” Na realidade, todos os acusados escreveram cartas com
reclamações e pleitos de clemência a Stalin, Molotov e Voroshilov.
Os camaradas de Tukhachevsky também passaram pelo tratamento “vigoroso”,
pela intimidação, pela ameaça aos familiares e pela tortura física. Ao longo dos
interrogatórios, era-lhes dito que só salvariam suas vidas com a confissão.
Antes que as sentenças fossem pronunciadas, Ulrikh e Yezhov mantiveram Stalin
informado sobre o progresso do julgamento e o comportamento dos réus. Ulrikh
depositou obsequiosamente a minuta das sentenças sobre a mesa do secretário-geral.
Sem mesmo olhar para os auxiliares, Stalin declarou: “De acordo.” Então, depois de
breve silêncio, perguntou:
“Quais foram as últimas palavras de Tukhachevsky?”
“A víbora disse que era dedicado à pátria-mãe e ao camarada Stalin. Pediu
clemência”, respondeu Yezhov de pronto. “Mas ficou claro que não estava sendo
sincero, ele não baixou a guarda.”
“E quanto à corte? Como se comportaram os membros do júri?”
“Só Budenny tomou parte ativa, o restante ficou em silêncio a maior parte do
tempo. Alksnis, Blyukher e talvez Belov fizeram uma ou duas perguntas.”
Stalin tivera, desde o início, dúvidas sobre os membros da corte e decidiu de
imediato vigiá-los de perto. Exceto Budenny e Shaposhnikov, todos seriam presos
logo depois. Kashirin e seus dois irmãos, literalmente, no espaço de poucos dias.
Os apelos por perdão não foram respondidos. Stalin não era chegado a
“branduras”. Na noite de 12 de junho de 1937, todos os acusados foram fuzilados,
inclusive Primakov, malgrado as promessas de que sua vida seria salva em troca de
admissões “de coração aberto”. “Nenhuma compaixão para os traidores e espiões da
mãe-pátria” foi o título de um artigo do Bolshevik sobre o julgamento de
“Tukhachevsky e Cia.”, descritos como se “desempenhassem o mesmo papel de
Franco, o desprezível inimigo do povo espanhol”.60
O massacre dos quadros militares estava apenas começando. A NKVD
trabalhava a todo o pano. Cada chamada telefônica, cada telegrama, cada relatório
do órgão disparava todo um processo, mais vítimas, mais sofrimento. Dois dos
telegramas de Mekhlis são ilustrativos:

Comissariado da Defesa, Shchadenko,


Administração Política do Exército Vermelho, Kuznetsov.
O chefe do Estado-maior Lukin é pessoa extremamente duvidosa, que se mistura com inimigos e tem seus
vínculos com Yakir. O comandante de brigada Fedorov deve ter bastante material a respeito dele. Meu
relatório sobre Antonyuk contém muita coisa sobre Lukin. Não seria um grande erro se vocês expulsassem
Lukin de imediato.
27 de julho Mekhlis

Ao Camarada Stalin
Despedi 215 trabalhadores políticos, dos quais uma boa parcela foi presa. Mas estou longe de terminar o
expurgo do aparato político, particularmente nos escalões inferiores. Penso que não devo sair de Khabarovsk
antes de, pelo menos, fazer uma boa triagem nos quadros comunistas.61

Com aprovação de Stalin, Mekhlis e os seus forjaram as derrotas de 1941 que iriam
resultar em milhões de novas vítimas. As listas de comandantes militares e
trabalhadores políticos que pereceram se assemelham a um inacreditável, terrível e
infindável obituário. Entrementes, a tragédia continuou. O comandante de brigada
Medvedev, o qual, sob tortura, fizera o depoimento requerido contra
Tukhachevsky, foi fuzilado. Da mesma forma que Yagoda antes dele, Yezhov
dispôs-se a apagar qualquer vestígio. A maioria dos membros da corte especial que
condenara Tukhachevsky e os outros foram eles próprios despachados. Vale ressaltar
uma carta de Dybenko para Stalin:

Prezado Camarada Stalin


Parece que o Politburo e o governo concluíram que eu sou um inimigo de nossa mãe-pátria e de nosso
partido. Politicamente isolado, sou um cadáver ambulante. Mas, por que e qual a causa? Como poderia eu
saber que aqueles americanos que apareceram na Ásia Central na qualidade de representantes oficiais da
NKVD e do OGPU eram agentes especiais de informações? No caminho para Samarkand, jamais fiquei
sozinho com eles por um segundo sequer. De qualquer forma, nem falo inglês.
Sobre a provocação de Kerensky publicada na imprensa da Guarda Branca, afirmando que sou um agente
alemão, será possível que os Guardas Brancos de Kerensky querem se vingar de mim depois de vinte anos de
trabalho honesto e devotado ao partido? Isto é simplesmente monstruoso.
Duas notas que estão com Yezhov, escritas pelos empregados do Hotel Nacional, contêm uma ponta de
verdade – quando conhecidos vinham me visitar no hotel, eu bebia com eles. Mas nunca houve orgias
alcoólicas.
Supostamente, fiquei num quarto próximo ao dos representantes da embaixada. Esta é mais uma de toda
uma gama de provocações.
Espalha-se que eu tenho tendências kulaks a respeito da reconstrução agrícola. Este despropósito só pode ter
sido divulgado pelos camaradas Gorkin, Yusupov e Yevdokimov, com quem trabalhei durante os nove
últimos anos.
Camarada Stalin, rogo-lhe que reveja todos estes fatos e remova de mim tal nódoa vergonhosa, porque não a
mereço.
P. Dybenko62
Poucos dias mais tarde, o comandante de exército Dybenko, membro do partido
desde 1912, presidente do Tsentrobalt,* foi preso, “julgado” e fuzilado. Stalin
meramente anotou na carta de Dybenko “Para Voroshilov”. Nem Stalin nem
Voroshilov, no entanto, quiseram se aborrecer com o destino do bolchevique da
Velha Guarda.
Convencido, senão da existência, pelo menos da possibilidade de uma
conspiração “militar-fascista”, Stalin já especulava sobre quem, na ausência de
Tukhachevsky, poderia liderá-la. Acabara de ler um relatório da Alemanha enviado
por Alexandrovsky, vice-chefe de informações militares. Continha uma avaliação da
liderança do Exército Vermelho feita por militares germânicos. Por alguma razão,
eles achavam que Blyukher era um russo de ascendência alemã e que era o mais
influente e competente dos líderes militares soviéticos. Consideravam Yegorov um
“comandante extremamente forte” com “uma mente analítica”. Stalin não precisava
de pessoas assim. Preferia os submissos Voroshilov e Budenny, com suas mentes
comuns.
Enquanto caminhava pelos jardins da dacha de Kuntsevo, pode ser que Stalin
tenha se lembrado de que, pouco depois de editar o decreto de 20 de fevereiro de
1932, privando Trotsky e os que o seguiram da cidadania soviética, o rival publicara
uma carta aberta ao Presidium e ao comitê executivo central asseverando que “a
oposição passou por cima do decreto de 20 de fevereiro da mesma forma que um
operário pula sobre uma poça d’água a caminho da fábrica”, e terminou com o
brado de “Livrai-vos de Stalin!”. Logo após, Trotsky declarou num discurso que
“mesmo nos mais altos escalões da chefia do exército há gente que não está satisfeita
com Stalin e que apoia meu pleito por sua derrubada. E a quantidade não é
pequena”.
Agora, sem Tukhachevsky, restavam quatro influentes militares, quatro
marechais. Stalin não tinha dúvidas sobre Voroshilov. Sua vida fora toda baseada
num mito passado e sempre dependera de Stalin. Budenny era um veterano severo e
nada mais. Ainda assim, Yezhov reportou que a esposa de Budenny tinha contatos
com estrangeiros de alguma espécie. Seria melhor ficar de olho. Porém, nenhum dos
dois seria capaz de se rebelar contra o secretário-geral. Mas Blyukher e Yegorov, os
quais conhecia desde a guerra civil, tinham mudado flagrantemente. Estavam
diferentes. Os alemães haviam feito comentários específicos sobre eles. E Voroshilov
não se satisfizera com Yegorov como chefe do Estado-maior. Era necessário que
Yezhov investigasse uma carta sobre Yegorov que Stalin recebera. Ela dizia:
Na minha opinião, diversas das mais importantes matérias sobre a organização do Exército Vermelho e sobre
o desdobramento estratégico-operacional de nossas forças armadas foram decididas erradamente e é possível
que causem danos. Isto poderia implicar grande fracasso e numerosas baixas extras na primeira fase da guerra.
Solicito-lhe, Camarada Stalin, que verifique a atuação do marechal Yegorov como chefe do Estado-maior, já
que, de fato, ele é responsável pelos erros cometidos na instrução e no desdobramento estratégico-operacional
de nossas forças armadas, e na estrutura organizacional.
Não conheço nem o presente nem o passado político do Camarada Yegorov, mas sua atividade prática como
chefe do Estado-maior desperta dúvidas.

7 de novembro de 1937
Membro do partido desde 1912 Ya. Zhigur63

Yan Matisovich Zhigur era comandante de brigada e trabalhava num dos


departamentos da Escola de Estado-Maior do Exército Vermelho. Muitos homens
honestos saíram dos trilhos devido aos continuados reclamos por vigilância, e à
desordem causada pela ilegalidade que se transformou em norma naqueles anos de
pesadelo. Ex-alferes do exército czarista, Zhigur aceitou a revolução e tomou parte
na guerra civil. Foi ferido duas vezes e ganhou a Ordem da Bandeira Vermelha, mas
sua carta a Stalin não o salvou. Foi logo preso e executado.
Não obstante, Stalin determinou a Poskrebyshev que dissesse a Yezhov para
verificar Yegorov e, passados poucos meses, este último já tinha cumprido a missão,
no curso da qual um dos antigos colegas de Yegorov, que mais tarde se tornaria
importante líder militar, foi compelido a escrever uma carta. Nela, o camarada em
armas do marechal afirmou:

Em novembro de 1917, num congresso do I Exército em Stokmozgof, ouvi um discurso do então tenente-
coronel SR de direita A.I. Yegorov, no qual ele chamou Lenin de aventureiro e emissário dos alemães. Em
suma, o discurso conclamava os soldados a não acreditarem em Lenin.64

Se bem que o destino de Yegorov já estivesse determinado, a carta “confirmou” que


ele era um “destruidor”. Quando os resultados da investigação foram debatidos por
um pequeno grupo que incluía Molotov e Voroshilov, ficou decidido que Yegorov
seria afastado do Comitê Central e que seu caso seria encaminhado à NKVD,
especialmente à luz de outro fato comprometedor que surgira em relação à sua
esposa.
Entre 28 de fevereiro e 2 de março de 1938 circulou entre os membros do
comitê central a seguinte resolução assinada por Stalin:
Em vista do fato, estabelecido durante a acareação entre o Camarada Yegorov e os conspiradores presos
Belov, Gryaznov, Grinko e Sedyakin, de que o Camarada Yegorov está politicamente mais manchado do que
se pensava antes daquela ocasião, e levando-se em consideração que sua esposa, nascida Tseshkovskaia, à qual
ele é muito unido, revelou-se espiã polonesa de longa data, como foi evidenciado no próprio depoimento
dela, o comitê central reconhece a necessidade de remover o Camarada Yegorov da função de candidato a
membro do Comitê Central.65

Mais uma vez, a votação foi unânime e, de novo, a cédula de votação de Stalin foi
deixada em branco.
Restava ainda um marechal “duvidoso”, Vasily Konstantinovich Blyukher, talvez
o mais destacado líder militar de antes da guerra. Ele foi o primeiro a ser
condecorado com a Ordem da Bandeira Vermelha, da qual possuía quatro graus,
recebeu a primeira Ordem da Estrela Vermelha, e uma de suas duas Ordens de
Lenin foi das primeiras a serem outorgadas.
Stalin não ficou satisfeito com a atuação de Blyukher durante a campanha da
Mongólia, em julho-agosto de 1938, quando os japoneses capturaram território
soviético na fronteira acima do lago Khasan. Voroshilov expedira uma ordem para
que o inimigo fosse destruído, mas Blyukher, como comandante do Exército
Separado da Bandeira Vermelha no Extremo Oriente, recusou lançar-se de
afogadilho sobre o inimigo, preferindo preparar-se cuidadosamente. Foi chamado
na linha direta para falar com Stalin. Tiveram um diálogo curto, porém áspero:

Stalin: “Como é, Blyukher, diga-me por que ignorou a ordem do comissário da Defesa para um bombardeio
aéreo sobre todo o nosso território ocupado pelos japoneses, inclusive os montes Zaozernaya?”
Blyukher: “Relatando. A Força Aérea está pronta para decolar. Só houve um pequeno atraso na decolagem
devido a condições meteorológicas desfavoráveis. Neste exato minuto, dei ordem a Rychagov [comandante
da Força Aérea] para colocar os aviões no ar, independentemente de qualquer coisa, e efetuar o ataque. Os
aviões estão decolando agora, mas temo que seja inevitável atingirmos nossas próprias unidades bem como
assentamentos coreanos.”
Stalin: “Diga-me com honestidade, Camarada Blyukher, você quer mesmo combater os japoneses? Se não
quiser, declare logo, como um bom comunista, mas se quiser, acho que você tem que chegar lá sem retardos.
Não entendo sua preocupação com a possibilidade de bombardeio de assentamentos coreanos, nem seu
temor de que a força aérea seja incapaz de cumprir a missão por causa da neblina. Quem disse que você não
pode atingir a população coreana durante uma confrontação armada com os japoneses? Por que se inquietar
com os coreanos quando nosso povo está atirando nos japoneses? O que significa um pouco de neblina para
a aviação soviética, quando ela deseja realmente defender a honra da pátria-mãe soviética? Estou esperando
por sua resposta.”
Blyukher: “A Força Aérea recebeu ordem para decolar, e o primeiro grupo de caças o fará às 11h20.
Rychagov promete começar o ataque às 13h. Voarei para Voroshilov [a localidade] com Mazepov e
Bryandinsky [oficiais de Estado-maior da Força Aérea] tão logo comece a operação. Aceitamos suas ordens e
as cumpriremos com precisão bolchevique.”66
Mekhlis, que fora enviado para o Leste, instigara a liderança em Moscou com
relatórios sobre um comando supostamente indeciso no Exército do Extremo
Oriente, comprometendo assim Blyukher.
Stalin logo convocou Blyukher a Moscou, embora não tivesse a intenção de
conversar com ele. O marechal ficou sem função por algum tempo e depois, em 22
de outubro de 1938, foi preso. A ordem de prisão levou a assinatura de Yezhov, o
qual, em poucas semanas, iria, ele próprio, se juntar aos milhares que consignara ao
esquecimento.
Blyukher foi lançado no moedor de carne exatamente na ocasião em que este
desacelerava. De início, ficou a impressão de que poderia sobreviver. Uma instrução,
expedida em novembro de 1938 pelo conselho de ministros e pelo Comitê Central,
fez referências às violações grosseiras da legalidade no processo investigativo, mas
Beria, que já estava encarregado do caso Blyukher, a ignorou. O marechal foi
interrogado durante diversos dias, mas resistiu bravamente, negando vinculação com
qualquer “golpe trotskysta-fascista”. Será que, enquanto era torturado, lembrou-se
de sua participação no ardiloso julgamento de Tukhachevsky? Naquela ocasião,
desperdiçara a oportunidade de demonstrar probidade para mitigar o destino do
primeiro marechal soviético; agora, estava no lado mais fraco.
Segundo B.A. Viktorov, que também conduziu esta reabilitação, Blyukher foi
visto pela última vez em 5 e 6 de novembro, irreconhecível depois de ser
impiedosamente espancado. Seu rosto era uma posta de sangue e um dos olhos fora
arrancado. Os inquisidores de Beria se esmeraram para terminar sua terrível tarefa
antes do grande feriado nacional de 7 de novembro. Em 9 de novembro, Blyukher
morreu nas masmorras de Beria devido às torturas sofridas. Morreu, mas não cedeu:
não assinou as monstruosas mentiras.
A lista dos oficiais que pereceram é infindável; constituíam a flor do corpo de
oficiais, com experiência da guerra civil, e a maioria deles relativamente jovem. O
golpe nas forças armadas soviéticas foi imenso. Quem poderia pensar que as
sementes da provocação lançadas pela Gestapo, pelos emigrados Brancos e,
inadvertidamente, por Trotsky encontrariam solo tão fértil? Quase todos os vice-
comissários distritais, a maioria dos membros do conselho de guerra, quase a
totalidade dos comandantes de distritos militares e comandantes do exército foram
expurgados. Pelas estatísticas disponíveis, em 1937-38, cerca de 45% das equipes
políticas e de comando do exército e da marinha, de comandante de brigada para
cima, foram exterminados. Como o próprio Voroshilov reportou ao conselho de
guerra, no fim de novembro de 1938, o Exército Vermelho fora “depurado de mais
de 40 mil homens... Alterações enormes foram efetuadas na liderança do exército:
permaneceram apenas dez dos membros originais do conselho de guerra”. Não é
difícil imaginar a situação experimentada pelos distritos militares.
No seu relatório para Moscou do início de março de 1938, o comandante do
distrito militar de Kiev, S.K. Timoshenko, e o membro do conselho de guerra N.S.
Khruschev descreveram como grande vitória o fato de 3 mil “inimigos” terem sido
expurgados das tropas do distrito, dos quais mais de mil foram presos. Praticamente
todos os comandantes de corpos e de divisões foram substituídos. “Como
consequência do extermínio dos elementos trotskystas-bukharinistas, cresceu o
poderio das forças distritais.”67
Silêncio e inação não foram as únicas respostas ao expurgo no exército.
Incontáveis relatórios passaram a chegar dos departamentos políticos descrevendo a
dúvida, a confusão e a pura descrença que campeavam nas unidades. Por exemplo:

Tenente Shkrobat, não membro do Partido, 101º Regimento de Artilharia: “Não posso acreditar em Stalin
quando afirma que Yakir e Tukhachevsky são inimigos do povo.”
Zubrov, integrante do Exército Vermelho: “Sob Nicolau, eles não puderam enforcar número suficiente de
pessoas; agora, podem fuzilar. Mas não vão conseguir exterminar todos.”
Trushinsky, instrutor da escola de artilharia: “Seria o próprio Stalin um trotskysta?”
Comandante Naval Kirilov: “Não creio que Bukharin e outros sejam inimigos do povo e do socialismo. Eles
só quiseram mudar a liderança do partido.”68

Tais relatórios eram normalmente acompanhados de uma nota especificando:


“cópias foram remetidas à NKVD para investigação”. Enquanto muitos viam e não
diziam nada, existiram vozes de protesto às autoridades. Por exemplo, o comandante
de brigada S.P. Kolosov escreveu ao comissário de defesa Voroshilov:

Dois comandantes encontram-se num bonde. “Então, como vão as coisas? Conosco é como um massacre
tártaro. Prenderam fulano e sicrano...” O outro diz: “Tenho medo de abrir a boca. Fale o que falar, se você
diz algo errado, é logo tachado de inimigo do povo. A covardia passou a ser a norma.”
Investigue quantos você já expulsou do Exército Vermelho em 1937 e tome consciência por si próprio da
dura verdade.
Você pode me chamar de inimigo-do-povo-trotskysta-alarmista etc. Não sou um inimigo, mas acho que
caminhamos para um beco sem saída.
5 de dezembro de 1937 Kolosov69

Não sei o que aconteceu com Kolosov, mas sua carta mostra que nem todos
permaneceram silenciosos. Muitos se alarmaram com a sangria sofrida pelo exército
às vésperas de tempos de provação, porém a ânsia de Stalin em preservar seu poder a
qualquer custo, mesmo que a ameaça a ele fosse puramente imaginária, sobrepujou a
preocupação principal com a segurança do país.
Nota

* Comitê central da Esquadra do Báltico em 1917-18, a organização revolucionária bolchevique dos


marinheiros.
[32]
O monstro stalinista

A violência chegou ao máximo no início de 1938. Stalin recebia mais e mais


relatórios sobre a situação catastrófica nas fábricas, nas ferrovias, nos
comissariados. A repressão prosseguia com impulsão própria. As prisões
geravam “cúmplices”; a chance para os carreiristas subirem degraus produzia
denúncias em cascata, quase sempre vingança de parentes. A situação saiu do
controle. No verão de 1938, Stalin decidiu que era tempo de se livrar de seus
funcionários, acusando-os de “excessos”, “exorbitâncias” e “abusos de autoridade”.
Responsabilizou os executores de sua política por todos os pecados, pensáveis e
impensáveis. Yezhov, a quem começou a observar mais de perto quando o fez
membro candidato do Politburo, perdeu toda a sua importância. Infelizmente,
àquela altura, a imprensa criara uma imagem de Yezhov como “chekista talentoso”,
“o mais leal pupilo de Stalin”, “um homem que conhece as pessoas”. Escrevendo
para o Pravda, até Mikhail Koltsov descreveu o degenerado como “maravilhoso e
implacável bolchevique que dia e noite, sem se levantar da cadeira, está desvendando
e cortando as ligações da conspiração fascista”.
Stalin descobriu rapidamente que Yezhov era um alcoólatra carente por
completo de flexibilidade e percepção políticas. Ele não ligava para o total cinismo
de Yezhov, ou para sua má índole ou crueldade – Yezhov frequentemente conduzia
os interrogatórios em pessoa –, mas não gostava de pessoas sem força de vontade
trabalhando com ele. E alcoolismo era, ao seu ver, a marca registrada da falta de
determinação. Os homens que cercavam o secretário-geral, tais como Molotov,
Kaganovich, Zhdanov, Voroshilov, Andreyev, Khruschev, Poskrebyshev e Mekhlis,
além da absoluta lealdade tinham que ter vontade forte para mostrar tal lealdade. A
fim de testá-la, sem ser municiado por Yezhov ou Beria, que não ousariam fazer isso,
Stalin prendeu alguns parentes de quase todos eles. Se algum tentasse defender os
familiares estaria demonstrando intolerável fraqueza política. Determinação política
significava estar disposto a sacrificar qualquer coisa em nome da lealdade a Stalin.
Assim, necessitando um bode expiatório, Stalin selecionou Yezhov. Por volta de
setembro-outubro de 1938, com Yezhov ainda nominalmente no cargo, era Beria
quem, de fato, dirigia a NKVD, como indicam os relatórios de Ulrikh, datados de
outubro de 1938 e endereçados ao “comissário das Questões Internas Beria”.
Yezhov, destituído da função de comissário em 7 de dezembro de 1938, veio à tona
novamente como comissário do povo do Transporte Hidroviário. Em 21 de janeiro
de 1939, sentou-se ao lado de Stalin durante as comemorações dos 15 anos da
morte de Lenin, mas, depois disto, evaporou-se.
Não pertencia a qualquer órgão de direção do partido por ocasião do XVII
Congresso, em março de 1939. Foi preso durante uma reunião no comissariado do
Transporte Hidroviário. Dois homens entraram apressadamente na sala e ficaram na
porta; Yezhov entendeu de imediato que o fim chegara; caiu de joelhos e implorou
perdão. Foram-lhe concedidas umas poucas semanas. Sabe-se que ele foi fuzilado,
mas – como ocorreu com muitos milhares de suas vítimas – quando, onde e com
base em que acusações permanecem indeterminados.
Com as bênçãos de Stalin, Beria estava firmemente estabelecido no cargo no fim
de 1938. Sua primeira tarefa foi se livrar da equipe de Yezhov. Homens pervertidos
como Frinovsky, Zakovsky e Berman, que faziam seu horripilante trabalho desde o
tempo de Yagoda, foram condenados, executados e substituídos pelo bando de
Beria, igualmente pervertido, que incluía Merkulov, Kobulov, Goglidze, Tsanava,
Rukhadze e Kruglov.
Por que Stalin escolheu Lavrenti Pavlovich Beria? Já o conhecia bem
anteriormente? Como Beria conquistou a confiança de Stalin com tanta rapidez?
Como foi que um oportunista como Beria galgou os mais altos degraus da escada
em tão pouco tempo, tornando-se membro do Politburo, primeiro vice-presidente
do conselho de ministros, marechal da União Soviética e Herói do Trabalho
Socialista?
Stalin conheceu Beria por volta de 1929-30 quando tratava de sua saúde em
Tskhaltubo. Beria, como chefe do GPU transcaucasiano, ficou responsável pela
segurança pessoal do secretário-geral. Conversaram diversas vezes e Beria revelou
grande intuição para captar os desejos de Stalin. No início de sua carreira, explorou
o conhecimento que sua esposa, Nina Gegechkori, e o irmão dela, um
revolucionário, tinham com Sergo Ordzhonikidze. Isto deve tê-lo ajudado no
começo, mas Ordzhonikidze logo percebeu as características de Beria e se mostrou
extremamente hostil à sua promoção. Beria contou também com a oposição séria de
diversos outros bolcheviques da velha guarda. Por exemplo, Tite Illarionovich
Lordkipanidze, comissário das questões internas para a Transcaucásia e membro da
NKVD desde que fora Cheka nos dias de Lenin, tentou abrir os olhos de Moscou
para aquele lobisomem. Stalin, no entanto, afastou Lordkipanidze da função e, em
1937, Beria livrou-se dele para sempre. O caminho de Beria para o topo ficou
crivado de vítimas como esta.
Beria impressionou Stalin pela capacidade de apreensão e autoridade, pelo
comportamento decisivo e pelo excelente conhecimento da situação nas repúblicas
do Cáucaso. Foi possivelmente o secretário do comitê partidário transcaucasiano L.
Kartvelishvili quem disse a Stalin que Beria tivera ligações com vários movimentos
nacionalistas locais na guerra civil. Stalin também foi alertado acerca do acentuado
carreirismo de Beria, mas encarou tais fatos como positivos, uma vez que pessoas
assim podiam ser sempre controladas. Foi o caso de Vyshinsky que, tendo sido
menchevique, assinara a ordem de prisão de Lenin expedida pelo Governo
Provisório chefiado por Kerensky em 1917. Pois não era de se ver como agora
mostrava vontade! Ou de Mekhlis, outro ex-menchevique, dedicado como poucos a
Stalin.
Em outubro de 1931, Stalin providenciou para que Beria trabalhasse para o
partido como segundo secretário do comitê regional e, apenas dois ou três meses
mais tarde, propôs sua promoção a primeiro secretário. Na verdade, teve que
transferir Kartvelishvili, Oralkhelashvili, Yakovlev e Davdaryani da região porque
eles se opunham à candidatura de Beria. Em poucos anos, aos olhos de Stalin, Beria
botou “ordem” no Cáucaso. Mostrava-se satisfeito com o fato de que, em todos os
plenos de 1937-38, os eficientes comentários e observações de Beria se alinharam
perfeitamente com seu pensamento e seus discursos, em especial no pleno de
fevereiro-março de 1938: “Como você aceitou Vardanin quando o expulsamos da
Transcaucásia?”, despejou contra Yevdokimov, secretário da organização partidária
nos mares Aral e Negro. “Por que promoveu Asilov”, continuou, “quando já o
tínhamos expulsado do partido?” E mais: “No cumprimento das instruções do
Camarada Stalin sobre o trabalho com os quadros, desmascaramos sete membros do
comitê central da Geórgia e dois membros do comitê da cidade de Tbilisi. Só em
1936, prendemos 1.050 trotskystas-zinovievistas.”70 Sua nomeação para comissário
veio três semanas depois de uma instrução do comitê central e do Sovnarkom, de 17
de novembro de 1938, “Sobre prisões, a diretoria de promotoria pública e a conduta
dos interrogatórios.”
Em seguida ao XVIII Congresso, algumas pessoas condenadas injustamente
foram reabilitadas, mas tratou-se de uma operação cosmética quando comparada aos
números totais: quanto mais se responsabilizasse Yezhov e se admitisse a prática de
atos maciços de ilegalidade, mais nódoas seriam lançadas sobre Stalin. E isto não
seria permitido. Primeiro, se fez justiça a todas as pessoas ligadas à defesa. Stalin
sabia que o exército estava enfraquecido às vésperas da guerra, por conseguinte,
ordenou a libertação de alguns oficiais ainda não derreados pela NKVD, bem como
de diversos cientistas e projetistas.
A loucura de 1937-38 perdia impulsão, mas os órgãos de segurança não estavam
ociosos. Mais de 23 mil integrantes da NKVD pereceram no fim dos anos 1930,
entre os quais muitos que tentaram – e fracassaram – colocar um freio no volante da
violência.
Fica claro que homens como Yagoda, Yezhov, Beria, Vyshinsky e Ulrikh
constituem um modelo de abuso, criminalidade e degeneração moral. Quanto às
tentativas para abrir os olhos de Stalin sobre essa natureza de seus sicários, ele já bem
a conhecia, pois foi ele mesmo que apoiou seus piores excessos. Com Molotov ao
seu lado, Stalin aprovou cerca de quatrocentas listas com nomes a serem
processados, só pelos tribunais militares. Com um simples “De acordo” e sua
assinatura ele enviava para o esquecimento final centenas de pessoas de uma só vez.
O falecido marechal K.S. Moskalenko, que tomou parte na prisão e julgamento
de Beria, disseme que, quando o degenerado foi sentenciado em 23 de dezembro de
1953, ajoelhou-se em lágrimas, contorcendo-se e rogando clemência, na sessão
especial da Suprema Corte da URSS que teve lugar no edifício do quartel-general do
distrito militar de Moscou.
Existem depoimentos não documentados de que Beria pretendia usurpar o poder
à medida que Stalin envelhecesse. É provável que Stalin soubesse disso, uma vez que
a relação entre os dois esfriou consideravelmente no ano e meio finais da vida do
ditador. Entre as muitas pessoas que me fizeram relatos sobre tal possibilidade,
muito interessante foi o testemunho de M.S. Vlasik, esposa do tenente-general N.S.
Vlasik, ex-chefe da administração principal do Ministério da Segurança do Estado (a
KGB). Por mais de 25 anos, Vlasik chefiou a segurança pessoal de Stalin; sabia
muita coisa e gozava da confiança do secretário-geral. Beria o odiava, mas Stalin não
permitia que fosse tocado. Contudo, poucos meses antes da morte de Stalin, Beria
conseguiu comprometer Vlasik, bem como Poskrebyshev, afastando-os do
entourage do líder. Vlasik foi preso e condenado a dez anos e ao exílio. Quando
retornou, após a morte de Stalin, disse que estava totalmente convencido de que
Beria “ajudara” Stalin a morrer, separando-o, primeiro, de seus médicos. Vlasik
colocou isto nas memórias que ditou para a esposa pouco antes de falecer.
Se Stalin teve ou não morte natural, o sistema daquele tempo era tal que a
substituição de um ditador por outro era uma possibilidade real. A liderança,
todavia, encontrou finalmente coragem e perspicácia para desarmar o monstro. Um
importante fator para tanto foi a conscientização de que Beria poderia muito bem
tentar se livrar de todos. Sua única relação mais estreita era com Malenkov. Como o
marechal Moskalenko me contou, o julgamento de Beria ocorreu no gabinete de um
oficial do distrito militar de Moscou, enquanto Malenkov, Khruschev, Molotov,
Voroshilov, Bulganin, Kaganovich, Mikoyan, Shvernik e alguns outros, sentados no
Kremlin, ouviam-no através de uma ligação telefônica instalada especialmente para a
ocasião.
Stalin fez ouvidos de mercador para os alertas quanto ao caráter malévolo de
Beria; aquele assassino era conveniente a seus propósitos. Num dos plenos de 1937,
Kaminsky, o comissário do povo para a Saúde, tentou revelar a verdadeira
personalidade de Beria, mas foi preso e executado logo depois da reunião. Kedrov,
um velho bolchevique, fez tentativa semelhante, com o mesmo resultado: a acusação
contra ele fabricada depois de seu fuzilamento. O homem cuja tarefa exigia o maior
apego à lei, e a nada fora dela, foi, de fato, a personificação da ilegalidade e do
mando arbitrário. Nada era sagrado para Beria. Ele só venerava a violência. Quase
sempre satisfazia suas necessidades sádicas conduzindo pessoalmente os
interrogatórios, muitos dos quais terminaram em tragédia. Ainda assim, amava a
música, e conta-se que possuía uma coleção única de discos clássicos; um prelúdio
de Rachmaninof levava-o às lágrimas. Stalin que, aparentemente, era ascético e
puritano, não podia deixar de saber que Beria era também um devasso repugnante.
O chefe da segurança pessoal de Beria, o coronel Nadoraya, trazia-lhe qualquer
moça que fosse do seu agrado, e a menor resistência convertia-se em consequências
trágicas tanto para a moça quanto para sua família.
Ye.P. Pitovranov, que trabalhou na NKVD desde antes da guerra e que depois se
tornou chefe da administração e vice-comissário, disseme que apenas sobreviveu
porque foi preso por ser “brando com os inimigos do povo”. Segundo ele, Beria não
era só absolutamente imoral como também apolítico por inteiro. Pitovranov achava
que Beria não entendia nada de marxismo e não conhecia nenhuma das obras de
Lenin. A política não significava nada; somente o poder sobre outras pessoas lhe
interessava. É difícil entender como ele permaneceu no topo por tanto tempo, em
função do muito que Stalin dele sabia. Talvez com Beria Stalin sentisse uma
“química” especial que não seria fácil substituir.
De sua parte, Beria gostava de demonstrar a relação especial com Stalin na frente
dos outros membros do entourage e, muitas vezes, trocava impressões com o chefe
em georgiano, o que só agravava o medo dos outros em relação ao monstro. O que
poderiam estar falando os dois? Seria sobre algum deles?
Durante a guerra, Stalin deu ao ministério de Beria a missão de reconstruir
pontes, construir ramais ferroviários, perfurar galerias de minas, tudo isto feito, é
claro, com trabalho escravo, em tempo recorde. A atuação de Beria em “tempo de
guerra” consistiu em duas viagens ao Cáucaso como membro do Comitê de Defesa
do Estado. A primeira vez foi em agosto de 1942, a segunda, em março de 1943. Os
documentos mostram que, mesmo então, em nome de Stalin, ele se livrara de
pessoas que não lhe convinham, ordenando execuções e aterrorizando os militares.
Se fez acompanhar de Kobulov, Mamulov, Milshtein, Piyashev, Tsanava,
Rukhadze, Vlodzimirsky e Karanadze. Criou uma atmosfera de tensão, nervosismo,
suspeita e denúncias mútuas nos vários quartéis-generais. Protestos débeis dos
comandantes locais a Stalin foram ignorados em Moscou. Só a presença de Beria era
capaz de paralisar a capacidade dos generais de pensarem criativamente, já que
ninguém queria ser a próxima vítima. Quando ele foi embora com sua enorme
comitiva, todos suspiraram aliviados.
Beria não era só poderoso por operar a maquinaria punitiva, mas porque
também controlava o vasto sistema dos gulags. Quando os americanos lançaram as
bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, Stalin ordenou que a pesquisa
nuclear soviética fosse acelerada e deu a Beria a responsabilidade pela gerência da
tarefa. Com a ajuda de obedientes subordinados e a aprovação de Stalin, ele
estabeleceu laboratórios científicos e técnicos dentro dos campos de prisioneiros. O
fato de a bomba atômica soviética ter sido inventada em curto período de tempo
não se deveu, é evidente, a Beria. As mentes não tolhidas trabalhando em condições
normais teriam, sem dúvida, resolvido o problema bem mais rápido.
A crueldade de Beria não conhecia limites. Milhares de apelos foram ignorados.
Um exemplo é a seguinte carta escrita a ele em fevereiro de 1944:

Da prisioneira Alexandra Ivanovna Gerasimova.


Campo de Trabalho Corretivo de Temnikov.
Fui sentenciada em 1937 a oito anos de prisão. Estou pagando por meu marido V.I. Gerasimov [ex-vice-
comissário de questões internas do Azerbaijão que foi fuzilado]. Não sei até hoje qual a sua culpa. Vivi com
ele 12 anos e sei que ele foi honesto, trabalhador incansável que se dedicou ao partido e ao país. Sinto que
sou absolutamente inocente. Jamais cometi um crime, mesmo em pensamento. Trabalhei dos 16 anos até o
dia de minha prisão.
No dia de minha prisão, deixei dois bebês com minha mãe, que é totalmente desprovida de meios para
sustentá-los. As crianças estão crescendo. Elas precisam da mãe e da ajuda que uma mãe pode proporcionar.
Rogo-lhe que aprecie meu caso e dê-me o direito de viver com meus filhos, de trabalhar e de criá-los. Tenho
vivido todos esses anos em campos, mas conservo a esperança de que a verdade e a justiça vencerão as
mentiras e as injustiças em nosso país. Tal crença tem-me dado forças para viver separada de meus bebês.

Anexada à carta há uma nota do detetive Lyubimov da NKVD do Azerbaijão, que


fora o encarregado do “caso”: “Ela não confessou coisa alguma. Uma sessão especial
em 1939 manteve a sentença em vigor.”71 Beria simplesmente confirmou a sentença
sem tomar qualquer outra providência.
[33]
Culpa sem perdão

N em verbalmente nem por escrito, Stalin jamais ordenou publicamente


que a repressão de 1937-38 fosse intensificada. Mesmo o discurso que fez
no pleno de fevereiro-março de 1937, publicado de forma resumida no
Pravda, conclamou apenas por uma maior vigilância contra o perigo do trotskysmo,
e seguiu por esta linha. Este e os outros discursos no mesmo pleno criaram uma
atmosfera opressiva quando foram divulgados, já que Stalin orientara dos bastidores
os procedimentos. Sua assinatura pode ser encontrada em muitos dossiês de
“inimigos do povo” presos. Por exemplo, ele editou a resolução sobre o relatório de
Yezhov para o pleno, inclusive os seguintes pontos:

b. Anotamos a fraca situação do processo investigativo. As investigações com frequência dependem dos
criminosos e de sua boa vontade em prestar ou não testemunhos completos.
c. O sistema que foi organizado para os inimigos do regime soviético é intolerável. Suas acomodações mais
parecem casas de repouso compulsório do que prisões (eles escrevem cartas, recebem encomendas e assim por
diante).72

A NKVD recebeu ordem para equacionar tais deficiências de imediato, e não é


difícil imaginar como a missão foi cumprida.
Mesmo depois da instrução de 1938, que resultou num certo arrefecimento,
Stalin determinou que alguns casos ainda em aberto fossem completados. Em vez de
uma revisão calma e racional, seguida da libertação dos inocentes com pedidos de
desculpas, as últimas ondas de prisões levaram mais e mais pessoas para o
confinamento e para os campos. Num relatório importante endereçado a Stalin,
datado de 16 de março de 1939, Ulrikh escreveu:
De 24 de fevereiro a 14 de março de 1939, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, em Moscou, fez
julgamentos fechados de 436 pessoas; 413 foram sentenciadas ao fuzilamento. As sentenças se
fundamentaram na Lei de 1º de dezembro de 1934.
Os acusados seguintes confessaram culpa total: S.V. Kosior, V.Ya. Chubar, P.P. Postyshev, A.V. Kosarev,
P.A. Vershkov, A.I. Yegorov, I.F. Fedko, L.M. Khakhanyan, A.V. Bakulin, B.D. Berman, N.D. Berman,
A.L. Gilinsky, K.V. Gei, P.A. Smirnov [ex-comissário da Marinha], M.P. Smirnov [ex-comissário do
Comércio] e outros.
No tribunal, alguns réus negaram os depoimentos dados na investigação preliminar, mas ficaram
completamente expostos por outras provas.73

O memorando afirma que A.I. Yegorov confessou e foi sentenciado. Isto é falso.
Yegorov não confessou e morreu quando era interrogado.
Stalin lembrou-se de que, em julho de 1938, depois do escrutínio para membros
e candidatos a membro do comitê central, Vlas Yakovlevich Chubar fora afastado
do cargo de candidato a membro do Politburo, função que ocupava desde o XV
Congresso. Ele escrevera um longo e analítico memorando a Stalin sobre o
aprimoramento da indústria de material bélico. Stalin o leu cuidadosamente e
percebeu o tom profissional dos argumentos e das propostas, mas o fim do
documento não foi do seu agrado. Chubar escreveu:

Estava me preparando para fazer um relatório sobre todas estas considerações, porém, mais uma vez, as coisas
saíram do controle, e, de novo, sem que eu tivesse culpa. Ofende e dói admitir que, por causa da torrente de
difamações e intrigas criadas pelos inimigos do povo, tive que me afastar da função, mas caso você resolva me
dar uma missão estarei, como sempre e em qualquer lugar, lutando honesta e conscientemente pela causa,
pelo florescimento da URSS e do comunismo.74

Stalin, evidentemente, achou que Chubar estava armando alguma coisa e enviou a
carta a Yezhov. Quando leu o relatório de Ulrikh sobre a execução de Chubar e
outros, colocou-o calmamente de lado e voltou sua atenção para a solicitação de M.
Mitin e P. Pospelov de permissão para escreverem uma Breve biografia de I. V.
Stalin.
Ye.P. Pitovranov confirmou que era inútil tentar convencer Stalin à compaixão:

Quando fui preso por ser “brando com os inimigos do povo”, disse para mim mesmo que estava tudo
acabado. Nenhum membro dos altos escalões da NKVD jamais saiu vivo de Lefortovo. Dividia minha cela
com L. Sheinin, o investigador que mais tarde virou escritor. Sentado, dia após dia, esperando pelo golpe
final, também lutava dolorosamente por encontrar uma saída. E aconteceu que consegui. Pedi um pedaço de
papel e escrevi uma carta a Stalin. Como chefe de uma das principais divisões da NKVD, eu havia me
encontrado diversas vezes com ele em recepções. Não pedi coisa alguma, nem complacência nem perdão.
Escrevi apenas que tinha algumas ideias para melhorar o serviço de informações. Dei um jeito para que o
diretor da prisão viesse a minha cela e lhe disse: “Eles sabem sobre esta carta ‘lá em cima’, portanto, se ela não
chegar ao destinatário certo, será pior para você.”
Soube que falaram com Stalin sobre a carta. Ele telefonou para minha divisão e perguntou por que eu estava
preso. Foi-lhe dito. Depois de uma pausa, mandou: “Tragam-no de volta para a função. Ele parece ser um
homem inteligente.” Poucos dias depois, fui subitamente libertado. Arranquei poucas palavras de Stalin, mas
sabia que fora bem-sucedido ao lidar com a psicologia do ditador: não implorei compaixão como os outros,
simplesmente formulei ideias novas.

Mas o que funcionou para Pitovranov não teve o mesmo resultado para Chubar e
outros. Por exemplo, Eikhe escreveu para Stalin:

Cheguei à mais humilhante fase de minha vida: minha culpa genuinamente séria perante o partido e perante
você. Confessei minha culpa em atividade contrarrevolucionária. Mas eis a situação: não fui capaz de
suportar a tortura a que fui submetido por Ushakov e Nikolaev, principalmente o primeiro. Ele sabia que
minhas costelas quebradas não tinham sarado e usou isso para infligir terrível dor durante o interrogatório,
fazendo com que eu traísse outros e a mim mesmo.
Peço-lhe que reveja meu caso, não para poupar-me, mas para desvendar toda a pútrida provocação que,
como uma serpente, enleou tantas pessoas por causa de minha fraqueza e minha criminosa injúria. Jamais
traí você ou o partido. Sei que devo morrer devido a uma miserável e torpe provocação fabricada contra mim
por inimigos do partido e do povo.75

A carta ressoava a agonia da morte inescapável, mas deixava transparecer também


um delgado fio de esperança. Ao ler a carta de Eikhe, Stalin sabia que fora ele, o
homem mais importante do partido e do Estado, quem soltara a serpente da
provocação. Nem mesmo consultou outros membros do Politburo. Uma vez dada a
ordem para a prisão de Eikhe, a sorte estava lançada. Nunca mudava de ideia.
Foi também mostrado a Stalin o depoimento de Rudzutak em seu julgamento –
um julgamento, ressalte-se, que só durou vinte minutos:

Minha única solicitação à corte é que ela notifique ao Comitê Central que ainda existe na NKVD um centro
que fabrica inteligentemente casos e força pessoas inocentes a confessarem crimes não cometidos: os acusados
não têm a oportunidade de provar que não tiveram participação nos crimes que são mencionados nas
confissões, arrancadas sob tortura. Os métodos utilizados são tais que as pessoas têm que mentir e difamar
inocentes.76

Rudzutak requereu uma audiência com Stalin, mas a resposta foi ultrajante. Ele não
esquecia que Rudzutak visitara-o em maio de 1937, pouco antes de sua prisão. Não
prestou atenção ao que Rudzutak tinha a dizer, mas ficou tentando detectar se o
alerta de Yezhov de que o interlocutor fora recrutado pela inteligência estrangeira na
conferência de Gênova de 1922 tinha alguma validade.
Naquela noite, no ato de assinar a concordância soviética com a expedição ao
Polo Norte, notou, entre outras, a assinatura de Rudzutak e, após um momento de
hesitação, riscou-a com seu lápis. No dia seguinte, 24 de maio de 1937, ditou o
texto de um memorando a ser distribuído aos membros do comitê central. O
documento especificava que existiam provas incontestáveis de que Tukhachevsky e
Rudzutak eram espiões germano-fascistas. Tukhachevsky só viveu mais duas
semanas, Rudzutak, cerca de um ano.
Incontáveis documentos atestam a monstruosa impiedade de Stalin. Na nota de
Yezhov anexada à lista de pessoas que aguardavam julgamento pelo colegiado militar
por crimes capitais, Stalin rabiscou rapidamente: “Fuzilem todos os 138” – e
Molotov adicionou sua assinatura. Ou na solicitação de Yezhov pela execução por
fuzilamento de quatro listas de 313 inimigos do povo, 208 homens e 15 mulheres, e
de duzentos militares, Stalin escreveu, “De acordo”, e tanto ele como Molotov
assinaram.77 Em 12 de dezembro de 1938, Stalin e Molotov aprovaram a execução
de 3.167 pessoas.78
O impacto de tanta desumanidade com as vidas de pessoas comuns vem sendo
muito bem descrito em outros lugares, nas publicações ocidentais e soviéticas.
Recebi numerosas cartas de cidadãos soviéticos descrevendo seus sofrimentos.
Citarei apenas duas, a primeira de Vera Ivanovna Deryuchina, de Belaya Tserkava,
que tem quase noventa anos de idade:

Quando vieram prender meu marido, que era mineiro, um stakhanovista que trabalhava em quatro turnos,
pensei que se tratava de engano. Eles disseram: “Não se lamente, sua tola. Seu marido estará de volta em uma
hora.” Mas ele só voltou 12 anos depois. E estava aleijado. O que passei, com crianças pequenas e uma mãe
idosa, é difícil de descrever. Nos expulsaram do apartamento. Por todos os lados, éramos rotulados como a
família de um inimigo do povo. Todos teríamos morrido se não contássemos com pessoas generosas.
Mencione minha história num canto qualquer de seu livro.

E outra de um moscovita, Stepan Ivanovich Semenov, que passou 15 anos nos


campos. Dois de seus irmãos foram fuzilados e sua esposa morreu na prisão. Hoje,
ele é um idoso sem filhos ou netos. Escreveu:

A pior coisa é não ter ninguém esperando por você, ninguém que precise de você. Eu e meus irmãos
poderíamos ter tido filhos e netos, famílias. O maldito Tamerlão esmagou e pisoteou tudo. Acabou com o
futuro de cidadãos que nem tinham nascido. Não permitiu que nascessem, matando mães e pais. Levo
minha vida solitária e ainda não consigo entender como não vimos que nosso “líder” era um monstro, como
o povo deixou que aquilo acontecesse?

Todos lembramos de Stalin pelas fotografias, estátuas e monumentos onde ele


frequentemente é mostrado com o braço erguido, apontando o caminho, com um
sorriso caloroso e olhos cintilantes. Poucos podem imaginar a profundidade de sua
crueldade patológica, a ausência de bondade, a astúcia que se escondia por trás
daquela fachada. Além dos líderes, políticos e de outros campos, e dos milhões de
anônimos que sofreram em suas mãos, os próprios parentes não escaparam de sua
insanidade. Um dos mais minuciosos pesquisadores da vida de Stalin, V.V.
Nefedov, descobriu muitas coisas acerca do destino da família do tirano. No lado de
sua primeira esposa, Yekaterina Semenovna Svanidze, os seguintes foram vítimas:

1. Alexander Semenovich Svanidze, irmão de Yekaterina. Membro do partido desde 1904, foi comissário das
finanças na Geórgia e, até 1937, trabalhou no comissariado de finanças da URSS. Um dos amigos mais
próximos de Stalin, foi acusado de espionagem e fuzilado.
2. Maria Anisimovna Svanidze, esposa de Alexander. Cantora de ópera, foi presa em 1937 e recebeu a pena
de dez anos de prisão. Morreu no campo de prisioneiros.
3. Ivan Alexandrovich Svanidze, filho de Alexander. Preso como “filho de um inimigo do povo”, retornou do
exílio em 1956.
4. Maria Semenovna Svanidze, irmã de Yekaterina. Foi secretária particular de A.S. Yenukidze de 1927-34.
Presa em 1937, morreu na prisão.
5. Iyulia Isaakovna (Meltser) Djugashvili, esposa do filho de Stalin, Yakov, foi presa e libertada em 1943.

No lado de sua segunda esposa, Nadezhda Sergeyevna Alliluyeva:

1. Anna Sergeyevna (Alliluyeva) Redens, irmã de Nadezhda, presa em 1948, recebeu dez anos por
“espionagem” e foi libertada em 1954.
2. Stanislav Frantsevich Redens, marido de Anna, foi comissário para as questões internas na Transcaucásia e
no Casaquistão, delegado aos XV, XVI e XVII congressos do partido, membro da CCC e da comissão
central de revisão. Preso como “inimigo do povo” em 1938 e executado em 1941.
3. Ksenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do irmão de Nadezhda, Pavel, foi presa em 1947 e libertada em
1954.
4. Evgenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do tio de Nadezhda, P. Ya. Alliluyev, foi sentenciada a dez anos
por “espionagem” e solta em 1954.
5. Ivan Pavlovich Alliluyev (Altaisky), filho de P.Ya. Alliluyev. Membro do partido desde 1920 e editor do
jornal Sotsialisticheskoe zemledelie (“Agricultura socialista”), foi preso em 1938 e sentenciado a cinco anos.
Libertado em 1940, com a ajuda de S.Ya. Alliluyev, sogro de Stalin.
O prontuário de Ivan Alliluyev sobreviveu. Ele foi sentenciado por “filiação a uma
organização contrarrevolucionária” e cumpriu pena no “Sorok-lager”. Descreveu
seus companheiros de prisão: comandante de brigada Kholodkov, chefe da
administração do distrito militar de Moscou chamado Lapidus, e um ingênuo
homem chamado Zhilu, que se tornara “inimigo do povo” por ter, certa vez,
sentado ao lado de Kosarev na mesa diretora de uma reunião do Komsomol na
Ucrânia. Soube-se depois que o idoso sogro de Stalin decidiu ajudar Ivan, mas não
teve coragem de pedir a Stalin. Dirigiu-se, então, a Beria e Kobulov e,
provavelmente só naquela vez, Beria foi piedoso.
Stalin foi imparcial na sua crueldade: todos foram tratados igualmente, e ele se
desinteressava pela pessoa tão logo ficasse “exposta”. É provável que só tenha havido
uma exceção. Quando foi informado de que Alexander Svanidze, irmão de sua
esposa, fora sentenciado à morte como espião alemão, vociferou: “Vamos esperar
que ele peça perdão.” Antes de sua execução, contaram a Alexander o que Stalin
dissera, ao que ele replicou: “Perdão de quê? Não cometi crime algum.” Foi
devidamente fuzilado. Quando Stalin soube da maneira como o amigo de infância e
cunhado morrera, disse: “Vejam como ele era teimoso: preferiu morrer a pedir
perdão.”
PARTE VII
No limiar da guerra

O maior dos erros é imaginar que nunca erramos.


Thomas Carlyle
[34]
Manobras políticas

E ra uma escura noite de inverno, em 1939. A laboriosa Moscou dormia. As


únicas luzes amortecidas vazavam pelos postigos cerrados das janelas dos
comissariados, do prédio do Estado-maior e da Lubyanka, o vasto e
monolítico quartel-general da NKVD. Membros do Politburo, comissários e líderes
militares debruçavam-se, como sempre, sobre o trabalho noturno. O hábito de
trabalhar até altas horas surgira gradualmente. Stalin já tinha o costume de não ir
para a cama antes da meia-noite, porém, com o agravamento da situação
internacional, passou a ficar no escritório até duas ou três da manhã, às vezes, até
mais tarde. Quanto à NKVD, seu período usual de maior atividade era à noite.
Stalin burilava o discurso que faria no XVIII Congresso do partido a ser
realizado em 10 de março de 1939 por decisão do pleno de janeiro. O rascunho
inicial para o discurso, preparado pelo aparato do Comitê Central, já estava
irreconhecível. Stalin reescrevera algumas vezes dezenas de páginas. Queria
transmitir duas ideias. A primeira, que o mundo estava prestes a experimentar novas
convulsões. O sistema pós-guerra de tratados seria desmantelado. As nuvens de uma
nova guerra mundial baixavam no horizonte: “Uma nova guerra imperialista
tornou-se um fato”, como ele escreveu. Em segundo lugar, queria destacar o sucesso
do socialismo. Na sua opinião, o país tornara-se mais forte com o esmagamento dos
“capitulacionistas e destruidores”. Depois de ler diversas vezes as páginas de
estatísticas, escreveu:

Sobrepujamos os principais países capitalistas em tecnologia de produção e no ritmo de desenvolvimento


industrial. Isto é muito bom. Mas não é suficiente. Temos que ultrapassá-los também no sentido econômico.
Podemos e vamos fazê-lo. Temos que forjar novos quadros para a indústria. Mas leva tempo, e muito tempo.
Não podemos superar economicamente as nações capitalistas mais importantes em dois ou três anos. Isto
demandará mais tempo.1
Chamou então Poskrebyshev e pediu a lista dos delegados do último congresso e
os nomes dos que tinham sido eleitos para o Comitê Central. Ao abrir a pasta
delgada, viu que talvez mais da metade dos nomes eram-lhe bem conhecidos;
alguns, dos dias do comissariado para as nacionalidades, outros, da coletivização, e
assim por diante. Conhecia praticamente todos os delegados do Exército. Pesquisou
mais e sublinhou os nomes de ex-membros e ex-candidatos a membros do
Politburo: Rudzutak, Kosior, Chubar, Postyshev. Estava feliz por ter se livrado
deles, que viviam insistindo para que ele investigasse a NKVD e “seus ninhos de
provocadores”.
Notou ao folhear o arquivo que muitos nomes estavam assinalados com um
“vn”, feito a lápis por Poskrebyshev, algumas vezes com uma data ao lado. Percebeu
que a data indicava quando a sentença, normalmente a morte, fora executada e, aos
poucos, deu-se conta de que “vn” significava “inimigo do povo”*. Começou a
especular sobre quem ficara de fora, mas tranquilizou-se ao lembrar que três em
cada dez delegados do XVII Congresso votaram contra ele. No dia seguinte, disse a
Molotov: “Acho que nos livramos completamente do peso-pesado da oposição.
Precisamos de novas forças, de sangue novo no partido.” Uma declaração branda
que não casava com a realidade. Desde o XVII Congresso, o partido perdera cerca
de 330 mil membros. Agora, precisava ser recompletado por uma geração jovem
stalinista. Em 1939, mais de um milhão de pedidos de filiação seriam aceitos pelo
partido. Tornava-se um partido stalinista.

Voltando ao relatório, Stalin acrescentou:

Nos meios ocidentais, afirmam alguns que o expurgo dos espiões, assassinos e saqueadores das instituições
soviéticas – da laia de Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Yakir, Tukhachevsky, Rozengolts, Bukharin e outros –
“abalou” o sistema soviético e causou desintegração. Mexericos baratos como esses só merecem nosso
desprezo. Em 1937, Tukhachevsky, Yakir, Uborevich e outros patifes foram executados. Houve, então,
eleições para o Soviete Supremo da URSS. O governo soviético recebeu 98,6% de todos os votos. No
começo de 1938, Rozengolts, Rykov, Bukharin e outros da mesma escória foram fuzilados. Tiveram lugar,
em seguida, eleições para os sovietes supremos das repúblicas. O governo soviético recebeu 99,4% dos votos.
Onde, então, os sinais da “desintegração” e por que não se revelaram nas eleições?2

A despeito da situação evidentemente enfraquecida do partido e do extermínio de


seu elemento intelectual juntamente com os quadros técnico e militar, Stalin
continuava a sustentar que a “liquidação persistente dos trotskystas e de outros
agentes duplos” seria justificada com o tempo.
De qualquer forma, desde os primeiros meses de 1939, ele voltara a se preocupar
mais com os assuntos externos. Acertadamente, não achava que a Segunda Guerra
Mundial começara em 1º de setembro de 1939 com a invasão da Polônia por
Hitler; o Japão já vinha combatendo na Coreia; a Itália havia invadido a Etiópia e a
Albânia; alemães e italianos tinham intervindo contra a Espanha republicana; a
Alemanha anexara a Áustria e, exatamente no dia em que foi aberto o XVIII
Congresso, ocupou a Tchecoslováquia. A conflagração se alastrava em todas as
direções. Stalin perguntou por que tantos países faziam concessões sistemáticas aos
agressores, e respondeu à sua própria indagação: “A principal razão é porque a
maioria dos países não agressivos, sobretudo Inglaterra e França, não subscreve a
segurança coletiva e a resistência conjunta aos agressores, e mudou da posição de
não intervenção para a de ‘neutralidade.’”3
Ao ouvir as notícias, durante o XVIII Congresso, de que a Alemanha tomara a
província de Memel, na Lituânia, e de que o presidente Hacha da Tchecoslováquia
assinara o Pacto de Berlim, que marcava o fim do Estado tchecoslovaco, Stalin
determinou que Litvinov, comissário das relações exteriores, enviasse uma nota a
Berlim por intermédio de Schulenburg, o embaixador alemão em Moscou,
condenando fortemente as ações germânicas e chamando a atenção dos líderes
alemães para o fato de que “o governo soviético não pode reconhecer a inclusão das
terras tchecas no império alemão, tampouco de terras da Eslováquia, de forma
alguma”.4
Nas condições de um conflito mundial, era essencial ter uma estratégia que
permitisse à URSS dar continuidade aos planos de desenvolvimento social e
econômico do país, buscando ao mesmo tempo garantir sua defesa. Segundo Stalin,
os advogados da não intervenção “ingressavam num jogo grande e perigoso”. A
URSS viu-se compelida a tomar parte nessas manobras políticas mesmo sem ter um
objetivo definido em vista. A questão normalmente discutida, com a presença de
Litvinov em diversas ocasiões, foi sobre que linha assumir. O período de lua de mel
das frentes populares na Europa chegara ao fim. O continente parecia silenciar à
espera das hordas de Hitler. Franco triunfou na Espanha, e os partidos marxistas,
muitos deles esmagados ou na clandestinidade, olhavam cheios de expectativa para
Moscou. Mas a influência do Comintern, graças a Stalin, havia minguado.
Ao identificar a política do partido com a do Comintern e ao impor seus ditames
ao corpo internacional de comunistas, Stalin desacreditara aquele órgão. O
Comintern e suas organizações irmãs – a Juventude Internacional Comunista, o
Sindicalismo Internacional e o Comitê Internacional de Assistência ao Trabalho –
foram aniquilados pela criminosa repressão de 1937-38. Os líderes dos partidos
comunistas de Áustria, Hungria, Alemanha, Letônia, Lituânia, Polônia, Romênia,
Finlândia, Estônia e Iugoslávia, que tinham sido banidos de seus países e buscaram
asilo em Moscou, foram os mais atingidos. A lista de vítimas é longa, mas alguns
nomes devem ser mencionados: os líderes alemães H. Remmele, H. Eberlein, H.
Neumann; os poloneses E. Pruchniak, J. Lenski, M. Koszutska; o secretário-geral
grego A. Kontas; o iraniano A. Sultan-Zade; os iugoslavos M. Gorkic, V. Copic, M.
Filippovic; os finlandeses E. Hülling, A. Shotman e G. Rovio; Fritz Platten, o amigo
suíço de Lenin; os húngaros Bela Kun e L. Gavro; e o búlgaro P. Avramov.
Stalin foi particularmente cínico no tratamento ao partido comunista polonês,
cuja liderança ele praticamente eliminou por completo. Bielewsky, o último
membro do Politburo do partido polonês, foi preso em setembro de 1937. Embora
os arquivos não contenham provas documentais, evidências secundárias indicam
que, quando foi mostrada a Stalin a minuta do decreto do Comintern abolindo o
partido polonês porque “agentes do fascismo polonês trabalhavam nele”, sua
resposta foi da maior eloquência: “Isto já deveria ter sido feito há dois anos. Tinha
que ser abolido, mas não vejo a menor necessidade de que isto seja mencionado para
a imprensa.” Na realidade, o decreto nem sequer foi discutido em uma sessão
plenária do Comitê Executivo do Comintern, recolheram apenas os votos de seis de
seus 19 membros.
Ao fazer da organização do Comintern um braço de seu próprio aparato, Stalin
provocou acentuado aumento dos métodos repressivos daquele órgão, o que, por
sua vez, enfraqueceu muito o controle do comunismo internacional sobre as massas,
favorecendo de forma substantiva a ascensão do fascismo. Quanto à social-
democracia, Stalin colocou-a no mesmo nível do fascismo; mais ainda, culpou o
“reformismo” e a “traição” dos social-democratas pelo declínio da onda
revolucionária no Ocidente. Este foi outro erro que teria consequências sérias e que
emergiu de raízes profundas. Temos que retornar brevemente aos anos 1920. Em
janeiro de 1924, pouco antes da morte de Lenin, houve um pleno do Comitê
Central no qual foi discutido, entre outros assuntos, um relatório de Zinoviev sobre
a situação internacional. Ao criticar Radek por enganos cometidos na “questão
alemã”, Stalin apareceu com a ideia tremendamente falaciosa, a qual permeou aos
poucos o pensamento do Comintern, de que a social-democracia era a principal
inimiga dos movimentos trabalhista e comunista, de que ela proporcionava as
condições para o fascismo e, por isso, deveria ser combatida até a morte.5 Aferrou-se
a tal ideia e, assim, em vez de unir a classe operária na luta contra Hitler, Stalin
jogou o partido comunista contra os social-democratas e enfraqueceu a resistência
ao fascismo, que era a verdadeira ameaça aos movimentos trabalhista e comunista.
Voltando a 1939, entre as opiniões formuladas por seu entourage sobre questões
internacionais, Stalin talvez só tenha considerado as de Molotov. Só Molotov,
considerou ele, tinha a exata combinação de flexibilidade e firmeza, e foi com
Molotov que montou a posição apresentada ao XVIII Congresso. Faltavam poucas
horas para a abertura do congresso, quando Stalin reformulou quatro pontos que
expressavam duas ideias correlatas.
Primeira, a de que deveria continuar a busca de caminhos pacíficos para impedir,
ou ao menos adiar, o estalar da guerra, essencialmente pela aplicação do plano
soviético para a segurança coletiva da Europa. Não se deveria permitir a formação de
uma frente ampla antissoviética. Fazia-se necessário observar a máxima segurança e
desviar as provocações inimigas.
Segunda, a de que todas as medidas necessárias, até mesmo as mais extremas,
deveriam ser tomadas para preparar e aperfeiçoar a defesa do país, em especial o
aprestamento do Exército Vermelho e da Marinha. (Questões sobre maior reforço
da defesa do país seriam debatidas na Décima Oitava Conferência do Partido, em
fevereiro de 1941.)
Stalin se preocupava com o aprimoramento das agências de política exterior do
país pela maximização das oportunidades diplomáticas. Litvinov, que tinha ideias
próprias, não era do agrado de Stalin, e, logo depois das festividades do Primeiro de
Maio de 1939, Beria voltou a atenção para aquele comissário. Surgiram os sinais de
prisão iminente: um vácuo criou-se em torno de Litvinov, ele não foi convidado
para reuniões importantes, a NKVD fez “visitas” noturnas a seus assistentes e a
pessoas de suas relações, e ele foi afastado do Comitê Central. O pior parecia
inevitável. Seus arquivos foram lacrados no comissariado. A NKVD esquadrinhou
as anotações que ele fazia em seus diários diplomáticos. Entre elas, estava um de seus
últimos relatórios para Stalin, que dizia:

Anexo um relato de minha conversa de hoje com o embaixador inglês e uma tradução da minuta da
declaração inglesa. [...] Ela só convida para uma reunião de consulta, ou seja, exatamente a mesma coisa que
estamos propondo. A impressão é a de que um novo pacto dos quatro, excluindo Alemanha e Itália, terá
alguma importância política. Não creio que Beck** concorde em assinar nem mesmo essa declaração.6

Litvinov tinha esperança de formar uma aliança antifascista com as democracias


ocidentais. Numa carta de março de 1939 a Ya.Z. Surits, plenipotenciário soviético
na França, comunicou que “demonstramos nossa concordância explícita com a
proposta direta de uma declaração dos quatro. [...] Decidimos, por nós mesmos, não
assiná-la sem a Polônia”. A resposta da Polônia, foi, no entanto, “suficientemente
clara para percebermos que era negativa”.7 Com o intuito de oferecer a melhor
proteção contra uma guerra mundial, Litvinov também acreditava que uma aliança
entre a URSS e as democracias ocidentais protegeria os pequenos estados prestes a
ser engolidos pela Alemanha nazista. Depois de receber Baltrushaitis, o enviado
lituano a Moscou, Litvinov anotou em seu diário que este lhe trouxera uma cópia
do acordo germano-lituano sobre Memel e lhe descrevera os detalhes. Ribbentrop
fora extremamente rude com Ju, o ministro do Exterior lituano, Urbshis,
entregando-lhe a minuta do acordo e exigindo sua assinatura imediata. Quando
Urbshis protestou, Ribbentrop declarou que a cidade de “Kovno [Kaunas] seria
totalmente varrida do mapa se o acordo não fosse logo assinado, e que os alemães
estavam com tudo preparado para cumprir a ameaça. Ribbentrop, no final,
concordou em deixar que Urbshis fosse a Kovno, contanto que retornasse
imediatamente com o acordo assinado”.8
Como Litvinov era de descendência judia – seu nome de origem era Vallakh –
deve ter ficado óbvio para Stalin que seu comissário de relações exteriores não
poderia confiar em Hitler e que continuaria a insistir em uma aliança com as
democracias ocidentais. Nessas circunstâncias, Stalin não poderia ter confiança nele
e, de fato, disse a Beria para cerrar a observação sobre o comissário, mas, talvez num
capricho de tirano, ordenou que nada de pior fosse feito. Como não existem provas
documentais, Stalin deve ter dado instruções orais para que Litvinov fosse destituído
e substituído por Molotov, um russo “de verdade”. A remoção de Litvinov foi
interpretada em Berlim como “bom sinal”. O enviado soviético temporário a
Berlim, G.A. Astakhov, informou a Moscou que os alemães viam agora
possibilidade de melhorar as relações com a URSS: “As precondições para tanto
foram melhoradas com a saída de Litvinov.”9 Stalin achou que ao colocar naquela
função o homem considerado a segunda pessoa do Estado, mostrava ao mundo a
importância que a URSS emprestava às questões internacionais. Talvez, também, o
russo Molotov fosse mais palatável para Hitler que o judeu Litvinov, e vice-versa. A
documentação disponível, todavia, nada diz a respeito de tal suposição.
Em 1938, enquanto Hitler se preparava para tomar conta da Tchecoslováquia,
Stalin deu ordens a Litvinov em diversas oportunidades (em março, abril, maio,
junho e agosto) para procurar maneiras de tornar pública a disposição e presteza da
União Soviética em defender aquele país. Em 20 de setembro, Moscou respondeu
afirmativamente a uma consulta de Praga que perguntava se a URSS estava disposta
a defender a Tchecoslováquia contra a invasão iminente.10 O comissário da Defesa
assinou uma ordem para que tropas fossem concentradas no distrito militar de Kiev,
enquanto deslocamentos operacionais de forças eram executados no distrito militar
especial bielorrusso para a formação do grupamento apropriado. Os distritos
fortificados e a defesa antiaérea foram postos em prontidão para o combate. No fim
de setembro, o chefe do Estado-maior, B.M. Shaposnikov, enviou um telegrama aos
distritos militares do oeste: “Integrantes do Exército Vermelho e oficiais subalternos
temporários que estejam servindo não deverão ser licenciados até que haja
notificação específica.”11 A mobilização parcial foi desencadeada em diversos
distritos. Mais de setenta divisões foram colocadas em aprestamento operacional.
Foi nessa ocasião que se assinou o Acordo de Munique, e Stalin entendeu que o
medo do “contágio comunista” era mais forte que a voz da razão. Ele estava certo.
Sob pressão inglesa e francesa, o governo tcheco capitulou a Hitler. A França
praticamente renegou seu acordo com os tchecos. Naquelas condições, raciocinou
Stalin, era crucialmente importante evitar que os estados imperialistas formassem
um bloco contra a União Soviética. Primeiro Litvinov e depois Molotov foram
instruídos a explorar maneiras de desarticular a trama imperialista contra a URSS.
Stalin se inquietava bastante com o conteúdo do Acordo de Munique, com o texto
da declaração anglo-germânica de não agressão assinada em setembro de 1938 e
com os termos do acordo similar franco-germânico assinado em dezembro. Tais
entendimentos, na realidade, conferiam liberdade de ação a Hitler no leste e
poderiam servir de base para uma aliança antissoviética. Stalin sabia que, se isso
acontecesse, seria difícil imaginar posição pior para o país.
Mesmo antes do XVIII Congresso, o secretário-geral determinou que o
comissário das relações exteriores abordasse Inglaterra e França para que se estudasse
a proposta de conversas tripartites com o objetivo de procurar maneiras de barrar
novas agressões nazistas. Para colocar pressão sobre Hitler, a Inglaterra e a França
concordaram, mas suas verdadeiras intenções logo afloraram. Diversas fontes
indicam que Londres e Paris desejavam, sobretudo, dirigir a agressão de Hitler para
o leste; portanto, ouviram com relutância a proposta soviética de um baluarte
defensivo. Litvinov escreveu a I.M. Maisky, o enviado soviético em Londres:
“Hitler, no momento, dá a impressão de não entender os sinais ingleses e franceses
de liberdade de movimento no leste, mas talvez entenda, se Inglaterra e França
fizerem mais do que insinuações em suas propostas.”12
Os diários de Molotov e de seu assistente, V.P. Potemkin, ambos partícipes de
frequentes encontros com os embaixadores William Seeds e P. Naggiar, inglês e
francês, respectivamente, mostram que, em termos gerais, aqueles diplomatas não
descartavam a possibilidade de uma aliança militar com a URSS, mas se recusavam
claramente a discutir questões concretas. Repetidas vezes perguntaram se a remoção
de Litvinov como comissário do Exterior significava uma mudança na política
externa soviética.13 Durante uma conversa em 11 de maio de 1939, G. Pailliard,
chargé d’affaires francês interino, perguntou a Molotov:
“A política externa soviética será a mesma que era com Litvinov?”
“Sim”, replicou Molotov. “Alterações ocorrem com mais frequência nos
governos inglês e francês sem causar dificuldades especiais.”
“Devemos supor que o artigo no Izvestiya intitulado ‘Sobre a Situação
Internacional’ expressa a opinião do governo?”
“É a opinião do jornal. O Izsvestiya é o órgão dos sovietes, dos representantes dos
trabalhadores, que são órgãos locais. O Izsvestiya não deve ser encarado como
oficial.”14 O cinismo de Molotov ia a esse ponto.
Oficialmente, ele não se afastou da linha de Litvinov, mas observadores mais
perspicazes sabiam que a Alemanha tinha agora uma oportunidade melhor para
obstar a formação de uma aliança entre a URSS e as democracias ocidentais, e a
Alemanha tudo fez para explorar tal possibilidade. Na véspera das conversas
tripartites, Schulenburg conseguiu uma audiência com Molotov e disse a ele com
todas as letras que a URSS e a Alemanha não tinham diferenças políticas e que as
chances eram muito grandes para que seus interesses mútuos fossem pacificamente
compatibilizados. Molotov, ainda inseguro sobre o rumo que as conversações
tripartites tomariam, respondeu evasivamente que “o governo soviético é favorável
às gestões do governo alemão para melhorar nossas relações”.15 As missões inglesa e
francesa chegaram então a Moscou, e Stalin aprovou a linha que seria seguida pela
delegação soviética naquelas conversações.
Nos primeiros dias de agosto de 1939, a equipe de Beria preparou dossiês
extensos sobre os membros das missões militares inglesa e francesa, inclusive Drax,
Barnett, Heywood, Doumenc, Valin e Vuillaume. Resultou que Drax fora
recentemente nomeado assistente do rei e recebera a Ordem de São Estanislau
czarista; Doumenc seria membro do conselho supremo francês de defesa em
novembro e era especialista na mecanização do Exército, mas nunca se envolvera
com a política.16 Stalin não se interessou por informações deste tipo, mas logo viu
que, afora uns poucos generais, as delegações eram compostas em sua maioria por
oficiais relativamente novos. Disse a Molotov e Beria:

“Eles não estão sendo sérios. Essa gente não tem autoridade de decisão. Londres e Paris estão de novo
jogando pôquer, mas gostaríamos de saber se eles são capazes de levar adiante manobras europeias.”
“Ainda assim, acho que as conversações devem ter lugar”, disse Molotov encarando Stalin.
“Bem, se têm que acontecer, que aconteçam”, concluiu Stalin brandamente.
Enquanto prosseguiam os encontros das três delegações militares, o quadro real logo se revelou. As potências
ocidentais não desejavam estender suas garantias aos estados bálticos. Ademais, estavam facilitando a
reaproximação destes últimos com a Alemanha. Ao mesmo tempo em que as conversações ocorriam, Hitler
impunha condições à Letônia e à Estônia. Sob o governo do almirante Horthy, a Hungria começou a tomar
uma linha hostil em relação à URSS. A política do governo polonês permaneceu praticamente inalterada.
Nas reuniões que teve com Hitler, em janeiro de 1939, o coronel Beck afirmara que “a Polônia não atribui
significação aos chamados sistemas de segurança”, que estavam de todo falidos. Ribbentrop respondeu que
Berlim esperava que “a Polônia tome uma posição mais francamente antissoviética, caso contrário não
teremos provavelmente interesses comuns”.17 Sabe-se hoje que o rei Carol II da Romênia, durante uma visita
secreta à Alemanha, dissera a Hitler que “a Romênia é predisposta contra a Rússia, mas não podemos dizer
isto abertamente porque somos vizinhos. Não obstante, a Romênia jamais permitirá a passagem de tropas
russas, embora frequentemente se afirme que uma promessa de permissão foi feita à Rússia. Não é o caso”.18

Como chefe da delegação soviética, Voroshilov tinha diretrizes a seguir, aprovadas


por Stalin em 4 de agosto, de título “Considerações para as conversas com a
Inglaterra e a França”, que apontavam a Alemanha como agressor principal e
listavam cinco situações em que “nossas forças deverão se movimentar”. Os
comissariados da Defesa e do Exterior tinham computado com precisão a
quantidade de carros de combate, de artilharia e o número de divisões que Rússia,
Inglaterra e França teriam que desdobrar, “dependendo do cenário”, também
previram a direção dos ataques principais, a ordem de operações para a coordenação
das ações, e assim por diante. A URSS estava disposta a entrar com 120 divisões:

Na eventualidade de um ataque contra nós por parte do agressor principal, devemos exigir a apresentação
pela Inglaterra e pela França de 86 regimentos de infantaria, seu avanço decisivo por volta do décimo sexto
dia de mobilização, a mais ativa participação da Polônia na guerra e também a passagem irrestrita de nossas
tropas, trens e caminhões através do corredor de Vilna*** e da Galícia. O cenário no qual o principal agressor
pode atacar a URSS envolveria o uso pela Alemanha dos territórios finlandês, estoniano e letão, e
possivelmente o romeno.19

Bem cedo ficou patente, no entanto, que as missões ocidentais tinham ido a
Moscou para emitir impressões gerais e para informar Londres e Paris a respeito dos
“planos em grande escala de Moscou”, e não para chegar a um acordo concreto e
exequível.
Mas Stalin sentiu necessidade de abordar novamente a Inglaterra e a França com
uma proposta definida para um acordo de cinco ou dez anos de assistência mútua,
incluindo de obrigações militares. Na essência, tal assistência significava que, em
caso de agressão contra qualquer dos signatários, os outros se obrigavam a prestar
auxílio. A URSS definiu com exatidão quais países entre o mar Báltico e o mar
Negro tinha em mente. Londres e Paris não deram resposta. Stalin enviou
mensagens para apressá-los, mas os representantes ocidentais não tinham autoridade
para tomar decisões tão importantes. Como Stalin acabou sabendo, seus parceiros
de negociação estavam, além do mais, dando continuidade ao esforço secreto para
chegar a um entendimento aceitável com Hitler. Estava claro que Inglaterra e
França procuravam apenas ganhar tempo enquanto buscavam o resultado mais
favorável para suas perspectivas, sem levar em conta os interesses soviéticos. Com
efeito, as potências ocidentais não apresentaram ideias concretas para uma ação
conjunta contra a Alemanha. Sua intenção era claramente deixar que a URSS
desempenhasse o papel principal na resistência a uma possível agressão alemã, sem
dar garantias de que assumiriam uma parcela das dificuldades.
Stalin perdeu a paciência. Como regra, ele chegava aos seus objetivos dando
pequenos passos seguros, mas, naquela ocasião, comportou-se como um jogador de
xadrez que corria contra o tempo. Ele acabou de uma vez por todas com as
conversações tripartites na manhã de 20 de agosto, quando Voroshilov mostrou-lhe
uma nota do almirante Drax, ao qual, como ao seu correspondente francês, fora
pedida uma resposta rápida às propostas soviéticas. Drax escreveu:

Caro marechal Voroshilov


Lamentamos ter que informar que, até agora, as delegações inglesa e francesa não receberam resposta alguma
para a questão política que o senhor solicitou que transmitíssemos aos nossos governos.
Em vista do fato de que devo presidir a próxima sessão, sugiro que nos encontremos às 10h de 23 de agosto,
ou mesmo antes, se uma resposta chegar nesse meio-tempo.
Atenciosamente
Drax, almirante-chefe da delegação inglesa.20

“Chega desse jogo”, disparou Stalin irritado. Naquele momento, ele dificilmente
achou que haveria qualquer reunião em 23 de agosto. Mas houve uma, embora com
participantes totalmente diferentes. Reuniões com membros do Politburo, militares
e diplomatas ocorriam todos os dias no espaçoso escritório de Stalin, no Kremlin.
Pelo fim do verão de 1939, ficou evidente para a liderança soviética que, com a
Alemanha nazista a oeste e o Japão militarista a leste, não havia em quem se apoiar.
O argumento do secretário-geral no XVIII Congresso parecia justificado: o
anticomunismo e a falta de vontade inglesa e francesa para seguir uma política de
segurança coletiva abriram as comportas para a agressão por parte do pacto anti
Comintern. Londres e Paris pareciam cegas para o perigo real, movidas pelo
interesse próprio e pelo ódio ao socialismo. Políticos míopes diziam: deixemos que
Hitler faça sua cruzada anticomunista no leste. Para eles, Hitler era o mal menor.
A União Soviética foi deixada com uma opção muito limitada, mas Stalin
conscientizou-se de que a devia aceitar, por mais negativa que fosse a reação em
outros países. Pragmático como era, abandonou os princípios políticos e, uma vez
seguro de que as conversações anglo-franco-soviéticas não dariam em nada, recorreu
à opção alemã assiduamente oferecida por Berlim. Seu raciocínio foi o de que não
havia outra escolha. A alternativa era pôr a URSS em confrontação com a ampla
frente antissoviética, o que seria bem pior. Ele não tinha tempo para considerar o
que as futuras gerações diriam. A guerra chegava e ele precisava adiar sua deflagração
a qualquer custo.
Depois de debater com o Politburo as providências para ativar o contato com
Berlim, e que instruções deveriam seguir para o enviado soviético lá, determinou
que Dvinsky, assistente de Poskrebyshev, descobrisse toda a literatura disponível
sobre Hitler, fascismo e suas origens sociais. Queria entender melhor o fenômeno
do nacional-socialismo, sobre o qual tinha dito no XVII Congresso: “Por mais
profunda que seja a investigação, é impossível achar um átomo de socialismo
nele.”21 Naquela noite, passou um bom tempo com Mein Kampf de Hitler,
sublinhando as passagens em que o autor escreveu sobre a impulsão eterna da
Alemanha para o sul, seu novo interesse no leste e na colonização de novas terras: “E
quando se fala em terras novas na Europa, só se pode pensar na Rússia e em suas
áreas fronteiriças. [...] O objetivo futuro de nossa política externa não deve ter uma
orientação para o Ocidente ou para o Oriente, mas uma política para leste no
sentido da aquisição do território que necessitamos para nossa nação germânica.” Ao
ler aquelas linhas, Stalin viu que nada deteria Hitler. A pergunta era: quando ele
daria a partida?
Stalin leu também o livro de Conrad Heyden, The History of German Fascism, e
grifou as observações espalhafatosas que Hitler fizera, já em 1922, sobre a posição de
poder que os judeus, supostamente, tinham conseguido na Alemanha. Stalin sabia
que, algum dia, combateria aquele degenerado. Portanto, o primeiro homem no
Estado socialista, investido de todo o poder político, estava lidando com um líder
que personificava um Estado extremista e militarista. Tudo resultaria na colisão de
dois ditadores ou na sua aliança? Estaria Trotsky certo ao dizer que Stalin era igual a
Hitler? O secretário-geral continuou a leitura do livro de Heyden e anotou o trecho
em que o autor afirma: “Hitler não sabe o que promete, suas promessas não podem
ser as de um parceiro confiável. Ele as quebra de acordo com seus interesses...”22 Era
este o homem que lhe oferecia um pacto de não agressão? Motivado, como Hitler
dizia, pelo “clamor da Providência”, consideraria um pacto com Stalin como um
pacto com o diabo, sem qualquer obrigação ou restrição.
No material trazido por Dvinsky havia relatórios de Berlim. O serviço soviético
de informações levantara o poderio das Forças Armadas alemãs no verão de 1939: a
força terrestre tinha um efetivo aproximado de 3,7 milhões de homens e quase
metade dela era mecanizada, 3.195 carros de combate, mais de 26 mil canhões e
morteiros, um efetivo de quase 400 mil na Força Aérea, com mais de 4 mil aviões, e
um efetivo naval de cerca de 160 mil homens, com 107 navios de guerra. Sem
dúvida, a Força mais poderosa no mundo capitalista. Milhares de antifascistas
haviam sido executados, enquanto cerca de um milhão de alemães definhavam nas
prisões e campos de concentração – números, afinal, que não impressionariam
Stalin.
Os comentários zombeteiros que Stalin fizera sobre a guerra iminente pareciam
agora fora de propósito e ingênuos. Em 1934, em meio a aplausos estrondosos, ele
dissera que a guerra seria

mais perigosa para a burguesia, porque seria travada não apenas nos fronts, mas também na retaguarda do
inimigo; os burgueses não deveriam duvidar de que os incontáveis trabalhadores amigos da URSS, na Europa
e na Ásia, atacariam a retaguarda dos opressores que dessem início a uma guerra criminosa contra a pátria-
mãe dos operários de todas as terras.23

Deixando de lado os relatórios de informações, ele abriu um livro chamado


Germany Arms, da escritora inglesa Dorothy Woodman, e ficou particularmente
impressionado com o capítulo sobre a preparação ideológica para a guerra. A
simples escala do condicionamento ideológico do povo alemão e das Forças
Armadas foi uma revelação. Os apelos e as palavras de ordem eram dirigidos menos
à razão e ao intelecto que ao instinto e ao sentimento nacionalista. Os rituais e o
fanatismo cego de toda uma hierarquia de führers eram concebidos para obumbrar a
consciência das massas e para treinar executantes irracionais e cruéis. Os ideólogos
fascistas haviam criado uma atmosfera de exaltação psicológica, histeria nacionalista
e psicose política, e utilizavam-na para seus próprios objetivos. Stalin sabia que seria
perigoso entrar num acordo com pessoas assim. Porém, sem um acordo com a
Inglaterra e a França, ele, simplesmente, não estava pronto para enfrentar Hitler.
Stalin estava maduro para uma decisão. Ou fazia um tratado com a Inglaterra e a
França, ou um pacto com Hitler, ou, a pior hipótese, permanecia no isolamento. A
primeira opção era a mais desejável, já que faria a URSS partícipe de uma coalizão
antifascista, com enorme potencial material e vantagem moral. Mas, premido pelo
tempo, ele não podia esperar mais, particularmente porque Londres e Paris não se
mostravam muito inclinadas a uma reaproximação com a URSS. O erro de Stalin
foi exagerar a possibilidade de que a Inglaterra e a França formassem um bloco com
a Alemanha nazista.
Uma situação muito peculiar surgira em agosto. As conversações tripartites não
progrediam. Ao mesmo tempo, Moscou fazia desesperadamente contato com
Berlim. Poucas pessoas sabiam que conversas secretas anglo-germânicas também
ocorriam em Londres. O embaixador alemão, Dirksen, e o representante do
primeiro-ministro, Horace Wilson, tentavam “construir pontes”. Stalin leu o
despacho de Astakhov enviado de Berlim em 12 de agosto: “O conflito com a
Polônia está em uma escalada em ritmo crescente, eventos decisivos podem ocorrer
a qualquer momento. [...] A imprensa está sendo perfeitamente correta conosco. Em
contraste, o ridículo em relação à Inglaterra tem ultrapassado os limites do
decoro.”24 No dia seguinte, Astakhov reportou que “o governo alemão aceitou nossa
oferta de conversações para melhorar as relações e deseja iniciá-las o mais breve
possível”.25
Em 15 de agosto, Schulenburg entregou a Molotov sua nota, que dizia:

O governo alemão é de opinião que, entre o mar Báltico e o mar Negro, não existe questão que não possa ser
resolvida em completo acordo pelos dois países. Isto inclui a questão marítima do Báltico, os Estados
bálticos, a Polônia, o Sudeste, e outras.26

Em 17 de agosto, Molotov recebeu Schulenburg, o qual declarou que as


conversações deveriam começar com Ribbentrop naquela semana. Falando em
nome de Stalin, como deixou claro, Molotov asseverou que “antes de começarem as
conversações sobre a melhora das relações políticas, devem ser concluídas as
conversações sobre o acordo de crédito e comércio”.27
Em 19 de agosto, Schulenburg voltou a se encontrar com Molotov e relatou que
“há medo em Berlim de um conflito entre Alemanha e Polônia. Os acontecimentos
futuros não dependem da Alemanha”. Insistiu em que Ribbentrop fosse
imediatamente convidado a Moscou para concluir o tratado de não agressão.
Molotov concordou com uma visita em 26-27 de agosto.28 O acordo sobre crédito
foi assinado com velocidade relâmpago. Hitler pressionava bastante; 26 de agosto
era muito tarde para ele. Aquela era a data em que pretendia atacar a Polônia. Stalin,
de maneira nada característica, concordava com Berlim ponto após ponto. Hitler,
finalmente, perdeu a paciência e enviou seu famoso telegrama de 20 de agosto, do
qual seguem alguns trechos:

Ao Sr. Stalin
Moscou
20 de agosto de 1939

1. Saúdo sinceramente a assinatura do novo acordo de comércio germano-soviético como um primeiro passo
para a reestruturação das relações germano-soviéticas.
2. Assinar um pacto de não agressão com a União Soviética significa para mim a consolidação da política
alemã de longo prazo...
3. Aceito a minuta de pacto de não agressão que vosso ministro do Exterior Molotov transmitiu, mas
considero urgentemente necessário elucidar diversas questões relacionadas com ele da forma mais rápida
possível ...
4. A tensão entre a Alemanha e a Polônia tornou-se insuportável. O comportamento da Polônia em relação a
uma grande potência é tal que uma crise pode ocorrer a qualquer momento...
5. Penso que, se é intenção dos dois estados agirem em conjunto nas novas relações, seria bom não perder
mais tempo. Assim, novamente proponho que o senhor receba meu ministro do Exterior na terça-feira, 22
de agosto, ou, o mais tardar, na quarta-feira, 23 de agosto [...]

Ficaria muito satisfeito em receber sua resposta imediata.


Adolf Hitler29

O Führer tomara a peito a iniciativa. O tom de ultimato era evidente. Stalin leu o
telegrama diversas vezes, sublinhando com de azul a frase “uma crise pode ocorrer a
qualquer momento” e a sentença final.
Notas

* Vrag naroda, em russo.

** Joseph Beck, ministro do Exterior polonês.

*** Vilna é a forma russa de Wilno em polonês e Vilnius em lituanês.


[35]
Reviravolta

S talin e Molotov passaram um longo tempo olhando a mensagem, ouviram de


novo o que Voroshilov pensava sobre as conversações com ingleses e franceses
e tentaram verificar informes sobre contatos de Berlim com Paris e Londres
que ameaçassem a formação de uma ampla aliança antissoviética. Pesaram prós e
contras e chegaram a uma decisão final. Stalin se levantou, caminhou de um lado a
outro algumas vezes, olhou para Molotov e começou a ditar:

Ao Chanceler da Alemanha A. Hitler

21 de agosto de 1939
Meus agradecimentos por sua carta. Espero que o pacto germano-soviético de não agressão seja um ponto de
inflexão na direção do sério progresso nas relações políticas entre nossos países.
O povo de nossos países precisa de relações pacíficas. A concordância do governo alemão em assinar um
pacto de não agressão criará a base para o fim da tensão política e para o estabelecimento da paz e da
cooperação entre nossos países.
O governo soviético instruiu-me a informar-lhe que concorda com a visita a Moscou do Sr. Ribbentrop em
23 de agosto.
I. Stalin30

Ribbentrop voou para Moscou em 23 de agosto e, no mesmo dia, o Pacto de Não


Agressão foi assinado. Sua duração estava prevista para dez anos (Ribbentrop, já em
19 de agosto, propusera vinte e cinco anos). Durante a discussão, Ribbentrop
insistiu em inserir no preâmbulo uma nota sobre “o carácter amistoso das relações
soviético-alemãs”. Quando Molotov o informou de tal insistência, Stalin rejeitou-a:
“O governo soviético não poderia honestamente afirmar ao seu povo que mantém
relações amistosas com a Alemanha, já que por seis anos o governo nazista vem
jogando baldes de lama sobre o governo soviético.”31 Um mês depois, Stalin cederia
também neste ponto.
Simultaneamente, as conversações anglo-franco-soviéticas foram interrompidas.
Voroshilov disse à imprensa: “As conversações com a Inglaterra e a França não
foram suspensas por causa do pacto de não agressão com a Alemanha, e sim, ao
contrário, a União Soviética assinou o pacto de não agressão com a Alemanha
porque as conversações militares com a Inglaterra e a França chegaram a um
impasse.”32 A última reunião das delegações ao encontro tripartite ocorrera na tarde
de 21 de agosto, justamente quando Schulenburg entregava a nota alemã a
Molotov. O chefe da delegação francesa, general J. Doumenc, relatou ao primeiro-
ministro Daladier:

A sessão programada ocorreu de manhã. Uma segunda sessão aconteceu à tarde. Durante as duas reuniões
trocamos observações polidas sobre o retardo no problema político da passagem [através da Polônia]. Um
novo encontro, cuja data não foi fixada, só haverá se formos capazes de responder afirmativamente.33

O governo polonês, entretanto, não permitiria a passagem das tropas soviéticas na


eventualidade de uma guerra; não que sua decisão fosse mudar algo, uma vez que a
ampulheta da política mundial escorria rapidamente. Stalin ganhou dois anos.
Hitler chegou mais perto do próximo estágio de seu plano. A notícia da viagem de
Ribbentrop a Moscou, de acordo com Maisky em Londres, “causou [...] a maior
preocupação nos círculos políticos e governamentais. Sentimentos despertaram:
espanto, confusão, aborrecimento, medo [sic!]. O clima de hoje chegou à beira do
pânico”.34
Depois do inesperado acordo com Hitler, Stalin foi mais além. Concordou com
diversos tratados suplementares, conhecidos como “os protocolos secretos”, que
deram um caráter distintamente negativo a um passo que, não fora isso, teria sido
um passo forçado e talvez necessário. O entendimento de Stalin com Hitler sobre o
destino das terras polonesas foi particularmente impudente, pois equivalia à
liquidação de um Estado independente. Os originais desses protocolos, ao que
parece, não foram vistos por ninguém, e o que tem circulado por anos,
provavelmente, são cópias do que Ribbentrop trouxe a Moscou. Todavia, não pode
haver qualquer dúvida de que um acordo, documentado ou verbal, relativo às
fronteiras dos “interesses de Estado” alemães e soviéticos, de fato existiu. Mais
adiante, voltaremos ao assunto.
Olhando de hoje, o Pacto de Não Agressão parece extremamente deslustrado, e
uma aliança com as democracias ocidentais seria, em termos morais, imensamente
preferível. Mas nem a Inglaterra nem a França estavam dispostas a uma aliança. Do
ponto de vista do interesse de Estado, a União Soviética não tinha outra alternativa
aceitável. A recusa em tomar qualquer atitude dificilmente teria detido a Alemanha.
A Wehrmacht e a nação estavam sintonizadas em tal grau de aprestamento que a
invasão da Polônia era uma conclusão predeterminada. A assistência à Polônia foi
dificultada não só pela atitude de Varsóvia, mas também pela falta de preparo da
União Soviética. A rejeição ao pacto poderia conduzir à formação de uma ampla
aliança antissoviética e ameaçar a própria existência do socialismo.
De qualquer forma, Inglaterra e França tinham assinado pactos semelhantes com
a Alemanha, em 1938, e estavam em conversações secretas com Hitler no verão de
1939 com o objetivo de criar um bloco antissoviético. É comum a afirmativa de que
o pacto deflagrou a Segunda Guerra Mundial, enquanto também é comumente
esquecido que, naquela ocasião, as potências ocidentais já tinham sacrificado a
Áustria, a Tchecoslováquia e Memel no altar de Hitler, e que a Inglaterra e a França
não tinham feito coisa alguma para salvar a República da Espanha.
Não se faz menção ao fato de que a Polônia, outra das vítimas de Hitler,
também assinou um pacto de não agressão com ele. O Führer planejara seu ataque à
Polônia para 11 de abril de 1939, bem antes que Molotov e Ribbentrop rabiscassem
suas assinaturas no Pacto. Na verdade, Hitler chegou a discutir a tomada da Polônia
numa reunião bastante anterior, em 22 de janeiro de 1939, e seus projetos em
relação àquele país eram conhecidos por todos. A liderança soviética, em particular
Stalin, já no início de 1939, tinha conhecimento do ataque à Polônia concebido por
Hitler. Em junho daquele ano, um agente soviético de informações teve um
encontro com o doutor Kleist, chefe da seção do leste de Ribbentrop, e foi-lhe dito
que:

O Führer não permitirá que o resultado das conversações afete sua intenção de resolver a questão polonesa de
uma forma radical. O conflito germano-polonês será equacionado por Berlim sejam as conversações bem ou
malsucedidas. [...] A ação militar contra a Polônia está planejada para o fim de agosto ou início de
setembro.35

A data do ataque planejado era conhecida em Washington, Londres e Paris, mas lá


havia a esperança de que a captura da Polônia por Hitler só acelerasse sua invasão da
URSS.
Stalin não podia esquecer que em Munique, em setembro de 1938,
representantes da Inglaterra, França, Alemanha e Itália reuniram-se sem pensar um
só instante na União Soviética. O arranjo pragmático com Hitler naquela ocasião
significou mais que a traição à Tchecoslováquia. Em 4 de outubro, poucos dias
depois do vergonhoso acordo, o embaixador francês em Moscou, R. Coulondre,
examinou francamente a essência do acordo dizendo: “Depois da neutralização da
Tchecoslováquia, a Alemanha abrirá o caminho para o leste.” No mesmo dia do
acordo, 30 de setembro, Chamberlain e Hitler assinaram sua declaração sobre não
agressão e sobre consultas.
Evidentemente, Stalin sabia bem das falhas morais e ideológicas do pacto que
acabara de assinar. Trotsky exultou de satisfação no México: “Stalin e Hitler deram
as mãos. O stalinismo e o fascismo formaram uma aliança.” Muitos partidos
comunistas se angustiaram com o pacto, pois achavam difícil aceitar qualquer tipo
de acerto com os fascistas. Para muitos cidadãos soviéticos também ficou a
impressão de que Stalin e as democracias ocidentais não eram tão sábios quanto
deveriam ser.
Mas a máquina de guerra de Hitler já estava girando e só precisava de um
pequeno toque. Muitos jornais europeus e americanos abordaram o assunto. Em 24
de agosto de 1939, o presidente Roosevelt fez um apelo para que Hitler e o
presidente polonês Mosticki chegassem a um acordo, e o rei Leopoldo III dos Belgas
fizera pedido semelhante no dia anterior. Em 26 de agosto, August Daladier incitou
Berlim à razão e a dar início ao diálogo com Varsóvia. O papa fez dois apelos
similares. Stalin nada disse. Na ausência de outras opções, apostara todas as fichas
em Hitler. No meio-tempo, não podia fazer coisa alguma, apenas se preparar e
esperar pelo ataque inevitável.
Stalin não tinha ainda partido para a dacha quando, às duas horas da manhã de
1º de setembro, lhe entregaram um telegrama cifrado enviado de Berlim
informando que, na noite de 31 de agosto, pretensas tropas polonesas invadiram
uma estação de rádio alemã na cidade de Gleiwitz, na Alta Silésia, mataram alguns
funcionários alemães e passaram a transmitir uma declaração conclamando a
população polonesa à guerra. Stalin entendeu de imediato que se tratava do pretexto
de Hitler para iniciar as hostilidades e enviou instruções ao embaixador soviético em
Berlim para que reportasse os acontecimentos ulteriores. Veio a resposta de que a
rádio de Berlim estava tocando música marcial e que não havia nova informação
oficial. Stalin concluiu que o golpe seria desferido a qualquer momento.
Ele foi acordado por Poskrebyshev bem cedo na manhã seguinte com a notícia
de que tropas alemãs haviam entrado na Polônia. Stalin se lembrou da recente
conversa que Molotov tivera com o embaixador polonês, W. Grzibowski, na qual
ouvira: “A Polônia considera impossível assinar um pacto com a URSS por causa da
impossibilidade prática de prestar ajuda à União Soviética do lado polonês.”36 Stalin
e Molotov concluíram que o governo polonês simplesmente não queria ficar de
mãos amarradas por qualquer acordo com a URSS sobre garantias para a segurança
polonesa.
Entre os despachos que Poskrebyshev lhe trouxe, Stalin leu: “Esta manhã, 4 de
setembro, Hitler partiu para o front no leste. Cruzou a antiga fronteira do corredor
polonês e parou próximo a Kulm.” No período de uma semana, pensou Stalin, as
tropas de Hitler poderiam estar próximas à fronteira soviética. Uma nova situação
estratégica viera à tona. As tropas da fronteira já tinham recebido ordens para elevar
a prontidão para o combate. De acordo com os planos existentes e o entendimento
germano-soviético, as forças da URSS deveriam ficar em condições de invadir a
Polônia oriental.
Apesar da bravura dos poloneses, foi uma batalha desigual. Hitler empregou no
ataque 62 divisões, inclusive 11 blindadas e mecanizadas, com 3 mil carros de
combate e 2 mil aviões. Ficou patente que o Führer não esperava que a campanha
polonesa durasse mais que um par de semanas. A Inglaterra e a França não estavam
em condições de ajudar. Em 17 de setembro de 1939, o primeiro-ministro Molotov
falou no rádio:

Ninguém conhece a atual situação do governo polonês.* A população polonesa foi abandonada à própria
sorte por seus infelizes líderes [...] O governo soviético encara como dever sagrado oferecer ajuda aos seus
irmãos ucranianos e bielorrussos na Polônia [...] O governo soviético instruiu o comando do Exército
Vermelho para mandar suas tropas cruzarem a fronteira para proteger a vida e os bens da população da
Ucrânia ocidental e da Bielorrússia ocidental.37

Stalin ordenou que uma nota de conteúdo semelhante fosse entregue ao embaixador
polonês em Moscou. Analisando-se com a perspectiva de hoje e do ponto de vista
soviético, tal providência era justificada: o território em que as forças soviéticas
entraram era, de fato, habitado por ucranianos e bielorrussos.
As unidades dos distritos militares especiais bielorrusso e de Kiev não
encontraram resistência para cruzar a fronteira polonesa. Stalin leu despachos de
Timoshenko, Vatutin, Purkaev, Gordov, Khruschev e outros. Um de Mekhlis
despertou sua atenção especial:

A população ucraniana está recebendo nossas tropas como autênticos libertadores [...] As pessoas saúdam
nossos oficiais e praças, trazem maçãs, tortas, água potável e tentam colocá-las nas mãos de nossos soldados.
Como regra, até as unidades mais avançadas são recebidas por populações inteiras que saem às ruas. Muitos
choram de alegria.37ª

Timoshenko e Borisov informaram que o encontro com as tropas alemãs nem


sempre transcorreu bem. Em Lvov, “nossas tropas foram recebidas à bala pelos
alemães. Em consequência, dois carros blindados foram incendiados, um terceiro foi
posto fora de ação, três homens nossos foram mortos e cinco ficaram feridos. Nossos
blindados destruíram dois canhões alemães, matando um oficial e três praças”.38
Dois dias depois da invasão alemã da Polônia, o enviado soviético à Alemanha,
A. Shkvartsev, apresentou suas credenciais a Hitler e depois reportou para Stalin:

Li na cerimônia o discurso que escrevi em Moscou e que o senhor aprovou. Hitler replicou: “O povo alemão
está feliz com a assinatura do tratado germano-soviético de não agressão. Este pacto servirá à causa da
cooperação entre os dois povos. Como consequência da guerra, a situação existente desde o Tratado de
Versalhes de 1920 será revogada. Com a revisão, Rússia e Alemanha estabelecerão de novo as fronteiras como
eram antes da guerra.39

Stalin sublinhou as últimas linhas com traços grossos de lápis vermelho. Na


tentativa de evitar o envolvimento imediato com a guerra, ele acabou se tornando
um participante da “revisão”.
Na esteira da derrota da Polônia, surgiu a dolorosa questão da deportação de um
grande número de cidadãos poloneses para a URSS. A imprensa ocidental e a
polonesa forneceram números pouco precisos sobre as quantidades envolvidas em
tais deportações. Trabalhando nos documentos de Molotov, encontrei um que fora
preparado para Beria pelo vice-comissário das questões internas Chernyshev. O
documento era destinado a figurar num relatório para Stalin e diz:

No período de 1939 a junho de 1941, 494.310 ex-cidadãos poloneses chegaram à União Soviética. No
mesmo período saíram do país:
42.492 ex-prisioneiros de guerra que foram entregues aos alemães; 42.400 que foram soltos e enviados à
Ucrânia e à Bielorrússia.

As expressões “ex-cidadãos poloneses” e “ex-prisioneiros de guerra que foram


entregues aos alemães” causam certa estranheza. Afinal de contas, se a União
Soviética não estava em guerra, de onde vinham esses “prisioneiros de guerra”? O
mesmo documento declara:
No momento da conclusão do tratado de amizade entre o governo da URSS e o de W. Sikorski (30 de julho
de 1941) existiam 389.382 homens mantidos em prisões, campos e locais de exílio. Destes, de acordo com o
decreto de 12 de agosto de 1941 do Presidium do Soviete Supremo da URSS, 339.041 foram anistiados. Em
1942, 119.865 homens foram evacuados para o Irã (com o Exército de Anders, de 76.110 militares e 43.755
civis). No momento há 218.000 poloneses na URSS.40

Este memorando para Stalin foi assinado em 2 de novembro de 1945. Diversos


documentos atestam o retorno para a Polônia de praticamente todos os poloneses.
Por exemplo, Beria escreveu a Molotov, em 24 de novembro de 1945:

Em 20 de outubro, os campos da NKVD detinham 27.010 cidadãos poloneses presos e internados em


território polonês durante o período 1944-45, no curso da operação de limpeza realizada na retaguarda do
Exército Vermelho. De acordo com as instruções do Camarada Stalin, 12.289 deles deverão ser libertados e
retornar à Polônia. O restante, pelo final deste ano. Um certo número dos detidos por espionagem e
sabotagem continuará preso.41

Em 1943, próximo à estação ferroviária de Katyn, na floresta das cercanias da vila de


Kozy Gory, foi descoberta uma enorme vala comum com os restos mortais de
milhares de oficiais poloneses. Os nazistas logo afirmaram que aquilo era coisa de
“mãos soviéticas”, enquanto uma comissão especial em Moscou declarava que
aquele era simplesmente mais um exemplo da brutalidade nazista. Documentos
encontrados numa seção especial dos arquivos centrais soviéticos deixam claro que
Katyn foi, de fato, trabalho da agência de Beria, embora não tenha ainda sido
achado até agora documento algum com sua assinatura ou com a de qualquer um de
seus asseclas ordenando o massacre. Ou a ordem foi destruída depois do ato, ou foi
dada verbalmente. O fato é que o caminho para o Gólgota foi encontrado.
Existe uma prova documental do departamento da NKVD responsável pelos
prisioneiros de guerra, chefiado àquela época pelo capitão P. K. Suprunenko.
Depois dos eventos de setembro de 1939, Beria expediu a Ordem nº 0308 sobre a
organização deste departamento especial. Os oficiais do Exército polonês estavam
presos em três campos: 6.287 homens em Ostakhov, 4.404 em Kozelsk e 3.891 em
Starobelsk. Nos meses de abril e maio de 1940, 15.131 poloneses foram removidos
desses campos, mas jamais chegaram a lugar nenhum. É, no entanto, sabido que, em
1941, os alemães não capturaram campos que contivessem prisioneiros poloneses;
nenhum vestígio desses homens foi encontrado em outros campos, tampouco foram
construídos novos campos para oficiais poloneses. Outro documento, porém,
assinado em 21 de maio de 1940 pelo coronel Stepanov, vice-chefe da seção especial
responsável por tropas de guarda, menciona a “bem-sucedida execução das medidas
apropriadas para esvaziar o campo da NKVD de Kozelsk”.
Nenhum dos documentos que vi sobre cidadãos poloneses, que estavam em
território soviético à disposição de Stalin, contém números precisos dos mortos.
Mas estamos nos adiantando muito.

Enquanto observava o crescimento da ameaça representada pela expansão da


Alemanha para o leste, nos meses que se seguiram à invasão da Polônia, Stalin
tomou uma série de decisões objetivando a consolidação política do flanco ocidental
do país. Na época que vacilou entre chegar a um entendimento com as potências
ocidentais ou fazer um pacto com o diabo, ele também teve considerações nacionais
e territoriais em mente. Stalin tomara parte na guerra civil e fora implicado na
derrota do Exército Vermelho para os poloneses em virtude de sua recusa em
deslocar o XII Exército e o 1º Corpo de Cavalaria do front sudoeste. Este episódio
foi causa de permanente aborrecimento e Stalin chegou a providenciar a erradicação
da evidência documental. Em 1925, Brezanovsky, membro de seu secretariado,
enviou um telegrama para o arquivo de Kiev solicitando o despacho dos “arquivos
de Stalin” que ele tinha triado e coletado.42 Os arquivos foram devidamente
despachados pelo prazo de seis meses como determinavam os regulamentos.
Passados os seis meses, os arquivos centrais de Kiev começaram a bombardear
Brezanovsky solicitando o retorno da documentação. Em 24 de dezembro de 1925,
Brezanovsky telegrafou: “A Administração do Secretariado do Comitê Central, por
meio deste, notifica que nenhum material foi recebido pelos Arquivos do Comitê
Central.”43 E não fora recebido mesmo; os arquivos foram entregues diretamente a
Stalin e, como aconteceu com outras pastas de documentos do secretário-geral,
nenhuma pista sobre eles foi encontrada até os dias de hoje.
O Tratado de Paz de Riga, de 1921, que pôs fim à guerra soviético-polonesa,
cedeu territórios ocidentais da Ucrânia e da Bielorrússia à Polônia e marcou a
fronteira a leste da chamada Linha Curzon. Como Ribbentrop tocou
cautelosamente por várias vezes na velha ferida, fica claro que o fracasso das
conversações com a Inglaterra e a França teve ainda outra dimensão. Stalin visava
recuperar as terras perdidas pela União Soviética depois da guerra civil.
Com base nos distritos militares especiais bielorrusso e de Kiev, foram criadas
duas frentes com os exércitos III, IV, V, VI, X, XI e XII. A tropa só poderia disparar
suas armas quando atacada. Ocorreram apenas combates isolados. Na realidade, não
houve resistência. A maioria étnica de ucranianos e bielorrussos recebeu de bom
grado a chegada das forças soviéticas.
Em uma semana, por volta de 25 de setembro, as tropas russas tinham
progredido de 250 a 350 quilômetros e chegado à linha dos rios Bug Ocidental e
San, como rezava o entendimento secreto alemão-soviético, que, mais adiante,
examinaremos em detalhe. Em novembro de 1939, esses territórios tornaram-se
oficialmente partes das Repúblicas Socialistas Soviéticas Ucraniana e Bielorrussa.
Em junho de 1940, o governo soviético conseguiu reaver a Bessarábia e a Bukovina
do Norte por meios pacíficos e, por intermédio de um acordo com o governo da
Romênia, a fronteira foi restabelecida ao longo dos rios Prut e Danúbio. Formara-se
assim a República Socialista Soviética da Moldávia.
Stalin acreditava que Hitler não recuaria no acordo a que tinham chegado sobre
os estados bálticos. Absolutamente cínico na sua atitude em relação aos povos e
governos da região, os quais, ingenuamente, confiavam nele, Stalin manipulou essa
confiança dizendo que, uma vez que os regimes soviéticos lá instalados em 1917-18
haviam sido derrubados, seria adequado falar em sua “reinstalação”. No final de
setembro e início de outubro, Stalin mandou que Molotov propusesse a Lituânia,
Letônia e Estônia a assinatura de um tratado de assistência mútua. Depois de breve
hesitação, algumas rixas internas e consultas a Berlim, os governos bálticos
assinaram tratados permitindo a entrada de unidades do Exército Vermelho. Por
solicitação dos governos bálticos, o efetivo da força soviética era menor que o dos
exércitos de Lituânia, Letônia e Estônia. Os contingentes militares soviéticos
deveriam permanecer em seus quartéis e não interferir nas questões internas
daqueles países, embora Stalin soubesse muito bem que a presença do Exército
Vermelho fatalmente influiria no ambiente político.
Centenas de documentos referentes a esses eventos estão preservados nos
arquivos centrais do Exército Vermelho. A responsabilidade pelo acerto dos efetivos
e dos locais de desdobramento das tropas soviéticas, dos aeródromos e bases navais,
das ferrovias, do pagamento dos alojamentos, terrenos, linhas de comunicações e
assim por diante, de acordo com os protocolos e acordos secretos suplementares,
Stalin pôs nas mãos de Molotov e de Potemkin, seu vice-comissário do Exterior, do
vice-comissário da defesa Loktyonov, do vice-comissário de comércio Exterior
Stepanov, do vice-comissário do Exército e da Marinha Levchenko, e de diversos
outros funcionários, cuja tarefa foi negociar todas as questões financeiras,
diplomáticas, militares e de organização com os representantes locais.
Para além de alguma discordância inevitável, cada um dos lados seguiu, de
maneira geral, o espírito e a letra dos tratados. Por vezes, os parceiros bálticos iam
além. Por exemplo, quando estalou a guerra soviético-finlandesa, o adido militar em
Riga, coronel Vasiliev, reportou para Moscou: “Em 1º de dezembro, o general
Hartmanis declarou que, ‘Se, pelas circunstâncias da guerra, vocês precisarem de
pistas de pouso para seus aviões, podem utilizar nossos aeroportos, incluindo o de
Riga.’”44 O governo lituano informou Moscou de que “foi constituído um comitê
para garantir a produção de alimentos e de forragem para as Forças Armadas [do
Exército Vermelho] na Lituânia”.45 No início de dezembro de 1939, durante a visita
a Moscou do comandante em chefe do Exército estoniano, general Johan Laidoner
– um ex-tenente-coronel do Estado-maior czarista – ficou a impressão de que
relações amistosas surgiam entre os dois Estados e suas Forças Armadas.46
Quando Hitler tomou Paris, em junho de 1940, Stalin sentiu que, se o Führer
não invadisse logo a Inglaterra, ficaria propenso a voltar seus olhos para o leste, e
então, consciente do despreparo e fazendo esforços esporádicos para compensar o
tempo perdido, deu um novo passo. Em meados de junho de 1940, Moscou
solicitou permissão aos governos da Lituânia, da Letônia e da Estônia para ter
contingentes adicionais em seus territórios. O tom utilizado foi de ultimato.
Encorajado pelo recente sucesso, ele já estava falando grosso com os Estados
bálticos, como atesta o fato de ter enviado Zhdanov, Vyshinsky e Dekanozov para a
região. Em outubro de 1940, Pozdnyakov, que acompanhara Dekanozov, reportou
para Stalin e o Politburo: “A composição política do principal órgão lituano ainda é
desfavorável, isto é, a diferenciação de classe ainda não teve lugar naquele órgão, ou
seja, o elemento hostil não foi derrubado da sela e faz trabalho antissoviético
congregando as tropas em linhas nacionalistas.”47 É fácil imaginar o que Dekanozov
e os outros propuseram para derrubar o elemento hostil da sela. Tais são as páginas
amargas que enchem a crônica criminosa do stalinismo.
Ao passo que o aspecto moral da anexação dos Estados bálticos era distintamente
negativo, o ato em si era positivo, em função das ameaças que pairavam sobre a
URSS e sobre aqueles mesmos Estados. Porém, como de hábito, Stalin utilizou a
força e a coerção, e a presença das tropas soviéticas foi o principal fator que permitiu
atingir o objetivo político da “reunificação”. Dekanozov, apesar de tudo, reportou a
Stalin e Molotov, nos primeiros dias de julho de 1940:

Um grande comício e manifestação teve lugar em Vilna em 7 de julho. Cerca de 80 mil pessoas participaram.
Os principais slogans eram “Vida longa para a 13ª república soviética!”, “Proletários do mundo todo, uni-
vos!”, “Vida longa para o Camarada Stalin!”, e outros assim. A manifestação aprovou um voto de boas-vindas
à União Soviética e ao Exército Vermelho. Foi realizado um concerto da banda do Exército da Lituânia, ao
qual compareceram o presidente e diversos membros do governo e do Estado-maior. [...] Seria oportuna uma
visita à Lituânia de artistas soviéticos. Solicito uma ordem urgente para que sejam enviados Mikhailov,
Lemeshev, Nortsov, Shpiller, Davydova, Ruslanova, Kozolupova** e uma companhia de balé com
Lepeshinskaya.48

É razoável supor que, se as tropas soviéticas lá não estivessem, os alemães teriam


entrado nos estados bálticos mesmo antes de junho de 1941, uma vez que já tinham
um plano para “germanizar” parte da população e liquidar o restante, como mostra
um memorando de 1940 de Rosenberg. A esmagadora maioria da população báltica
era favorável, em agosto de 1940, à incorporação de seus países à União Soviética.
Stalin participou pessoalmente das conversações e do trabalho para o acerto dos
detalhes, resultando que, embora a vontade das populações bálticas tenha se
expressado, o processo inteiro foi manchado por diversas ações tipicamente
stalinistas. O secretário-geral concentrou todo o esforço no fortalecimento da
posição estratégico-militar da URSS, sem se preocupar com os métodos
empregados.
Animado com o sucesso de suas medidas nas fronteiras ocidentais, Stalin se
concentrou então no noroeste. Inquietava-se com a proximidade da fronteira
finlandesa em Leningrado e com a óbvia inclinação da Finlândia pela Alemanha.
Houve conversações com o objetivo de compelir os finlandeses a afastarem a
fronteira de Leningrado em troca de compensações territoriais, mas o ministro do
Exterior da Finlândia, V. Tanner, tinha instruções de seu chefe de Estado, o
marechal de campo C. Mannerheim, um ex-general do Exército czarista, para não
ceder ante os russos. Desta forma, o normalmente cauteloso Stalin perdeu o senso
da realidade e decidiu apelar para a pressão política e até militar, a fim de chegar ao
que não obtinha com diplomacia. No fim de novembro, começaram as
recriminações mútuas a respeito de troca não provocada de tiros, em particular nas
proximidades da aldeia soviética de Mainilo. Molotov entregou ao representante
finlandês A.S. Irne-Koskinen uma nota que continha uma exigência com sabor de
ultimato, “pela imediata retirada de vossas tropas para uma distância de 20 a 25
quilômetros da fronteira, na península da Karélia”. Dois dias mais tarde, o enviado
respondeu que seu governo estava “pronto para negociar retiradas mútuas de tropas
até alguma distância da fronteira”. A Finlândia aceitara o desafio, e sendo
igualmente inflexível, anunciou sua mobilização. Em 28 de novembro de 1939, a
URSS denunciou o tratado finlandês-soviético de não agressão de 1932. Para dizer o
mínimo, nem Moscou nem Helsinki esgotaram todos os meios a fim de evitar a
guerra.
Stalin imaginara bastar-lhe o ultimato e, ainda mais, deslanchar ações militares
para que o governo finlandês concordasse com todas as suas reivindicações. Foi
encorajado pelos relatórios otimistas do soviete do distrito militar de Leningrado e
pelos relatórios de Beria. Em 5 de outubro, por exemplo, Beria informara Stalin e
Voroshilov sobre dados de inteligência recebidos de Londres:

O enviado inglês na Finlândia reportou por duas vezes que o marechal de campo Mannerheim lhe pedira
para comunicar ao governo inglês que, em breve, a Finlândia espera dos soviéticos demandas semelhantes às
feitas à Estônia, ou seja, acesso às bases navais e aos aeródromos das ilhas finlandesas. De acordo com sua
declaração, a Finlândia terá que atender às exigências soviéticas.49

Stalin confiava em que os finlandeses logo capitulariam. As operações militares


tiveram início em 30 de novembro e continuaram por quase quatro meses. Um
alerta de Shaposnikov para que não se subestimassem os finlandeses mostrou-se
totalmente justificado. No meio disso, Stalin cometeu outra tolice política
importante: autorizou a formação em Moscou de um “governo da República
Democrática Finlandesa” chefiado pelo comunista finlandês Otto Kuusinen. Em 2
de dezembro, Kuusinen e Molotov assinaram um tratado de assistência mútua e
amizade entre a União Soviética e a “República Democrática Finlandesa”.50 No
estilo tipicamente stalinista, tais decisões e a guerra inglória levada a efeito pela
URSS causaram o isolamento internacional do país. Em 14 de dezembro, a União
Soviética foi expulsa da Liga das Nações. A declaração da agência de notícias TASS
sobre o acontecido leva a marca registrada da mão de Stalin: “Na opinião dos
círculos soviéticos, esta decisão absurda da Liga das Nações provoca um sorriso
irônico e só escandalizará seus patéticos autores.”51
Mas não era caso de sorrisos. As forças do distrito militar de Leningrado se
atolaram em longas e desgastantes batalhas. Os finlandeses tinham organizado
defesas brilhantes e resistiram aos ataques com algum sucesso. Finalmente, Stalin
percebeu a situação e, numa reunião do Soviete Principal de Guerra, conclamou que
“passos decisivos sejam dados”. Dois exércitos, sob o comando de K.A. Meretskov e
V.D. Grendal, foram empregados na península da Karélia. S.K. Timoshenko
recebeu o comando da frente, A.A. Zhdanov foi nomeado membro do soviete de
guerra e I.V. Smorodinov foi feito chefe do Estado-maior. O papel de Stalin, no que
os finlandeses chamaram a Guerra do Inverno, foi o de membro do Soviete
Principal de Guerra. Os volumes de documentos sobre aquela campanha inglória
mostram de forma clara que a chefia militar e política soviética perdeu simplesmente
a cabeça, a ponto de, certa altura, Moscou passar a expedir ordens táticas diretas
para as forças, desbordando os quartéis-generais do comando.52
Depois de um mês de preparação para romper a Linha Mannerheim, as forças
soviéticas entraram em ação em 11 de fevereiro de 1940. A superioridade em
equipamento e efetivos, no final, prevaleceu. Uma das ordens de operações de 9 de
fevereiro de 1940 para as tropas soviéticas, assinada por Timoshenko, Zhdanov e
Smorodinov, falava na “glória perpétua” com que se cobriria o Exército Vermelho
naquela campanha.53 Mas não haveria glória perpétua. A Linha Mannerheim foi
penetrada a um custo muito alto para a União Soviética. Assinou-se um tratado de
paz no início de março de 1940.
Stalin ficou visivelmente desconcertado. O mundo inteiro testemunhara o baixo
nível de preparo do Exército Vermelho. Tão logo a guerra acabou, ele decidiu
substituir Voroshilov, não sem antes ouvir o relatório do marechal para o Soviete
Principal de Guerra e para um pleno do Comitê Central. O longo relatório de
Voroshilov, que carrega as marcas das anotações e emendas de Stalin, foi intitulado
“Lições da Guerra com a Finlândia”. Entre outras coisas, o marechal afirmou:

Tenho a dizer que nem eu como comissário da Defesa, nem o Estado-maior, tampouco o comando do
Distrito Militar de Leningrado tínhamos qualquer ideia sobre as peculiaridades e dificuldades envolvidas
nesta guerra [...] O Exército finlandês, bem organizado, equipado e treinado para as condições e fainas locais,
demonstrou grande capacidade de manobra, defensiva obstinada e muita disciplina.
Desde o início da ação militar, o centro estabeleceu um QG do Soviete Principal de Guerra consistindo dos
Camaradas Stalin e Voroshilov, do chefe do Estado-maior Camarada Shaposhnikov e do comissário naval
Camarada Kuznetsov (que comparecia apenas para as questões navais). Um participante ativo e permanente
do QG foi o Presidente do Sovnarkom Camarada Molotov, embora não fosse membro efetivo. O QG, ou
mais precisamente, seu membro ativo, o Camarada Stalin, conduziu efetivamente todas as operações e todo o
trabalho organizacional do front.

Voroshilov percorreu várias páginas para descrever as inadequações das informações


no Exército Vermelho, o pobre suprimento técnico, a desajeitada organização das
comunicações, as inapropriadas condições da alimentação e dos uniformes para o
inverno, e por aí foi:

Muitos comandantes dos altos escalões não estiveram à altura dos cargos. O QG teve que afastar muitos
oficiais antigos e integrantes de Estados-maiores não só porque suas lideranças nada traziam de bom, mas
também porque elas causavam danos perceptíveis. O Exército Vermelho conseguiu sua vitória relativamente
rápida sobretudo porque, desde a deflagração da guerra até o final vitorioso, a conduta efetiva do conflito
armado foi assumida pelo Camarada Stalin...54
No discurso de encerramento, Stalin afirmou, com correção, que era hora de
“renunciar ao culto da guerra civil que apenas reforça nosso atraso”. Reclamou que
ainda existiam muitos participantes da guerra civil nas chefias, estorvando o
caminho de “engenheiros da guerra” mais jovens e mais criativos.55 Embora fosse
verdade que o culto da guerra civil constituía um obstáculo, não se podia dizer que a
velha guarda mantinha alguma influência: ela fora toda (exceto Voroshilov)
aniquilada pelo expurgo. De qualquer maneira, Stalin passou a saber então que
espécie de comandante guerreiro era Voroshilov. O Exército Vermelho revelou
enormes deficiências. Hitler ficou a um só tempo surpreso e deleitado. Suas
estratégias tinham se baseado em cálculo acurado. Uma vitória a grande custo era
equivalente a uma derrota moral. Tanto Stalin como Hitler entenderam assim e
cada um tirou suas próprias conclusões. Stalin, contudo, dispunha de menos tempo
para reflexões. Assaltou-o uma falta de autoconfiança não muito comum. A partir
daquele momento, ficou obcecado pela ideia de que, se Hitler não fosse provocado,
não atacaria. Quando as forças de defesa da fronteira soviética derrubaram uma
aeronave alemã que penetrara o espaço aéreo soviético, Stalin deu ordens
pessoalmente para que fosse enviado um pedido de desculpas. A Alemanha
beligerante tinha, na realidade, um aliado não beligerante na URSS, e Berlim
tomou, rapidamente, nota de tal fato. Nas manobras de grandes efetivos, Stalin
exercitava o aspecto defensivo. Enquanto isto, Hitler estava quase pronto para
começar sua campanha do leste.
Embora hoje tenhamos razão para condenar Stalin, temos que reconhecer
também que, em vista das circunstâncias daquela ocasião, muitas das medidas que
tomou para retardar a guerra e fortalecer as defesas ocidentais da URSS foram, de
certa forma, impostas a ele. Acreditou por demais na palavra de Hitler e cometeu
diversos erros que preferiu não lembrar mais tarde, embora tenha dito aos
comandantes do Exército Vermelho no Kremlin, em 24 de junho de 1945, que
“nosso governo cometeu muitos enganos”. Para ser mais exato, houve erros não
apenas no curso da guerra mas também antes dela. Talvez o maior e mais sério
tenha sido a assinatura do tratado alemão-soviético de amizade e segurança das
fronteiras de 28 de setembro de 1939. Segundo o tratado, as fronteiras e esferas de
influência dos dois estados ficaram definidas com um mapa anexado. A fronteira era
diferente daquela acertada pelos “protocolos secretos” do pacto de 23 de agosto de
1939. Ela ficava estabelecida ao longo dos rios Narev, Bug e San.
A “amizade” entre o Estado socialista e o fascista foi adotada nas conversações
Molotov-Ribbentrop de 27-28 de setembro de 1939, em Moscou, com Stalin
tomando parte direta nelas, tal como fizera em agosto. Há evidências sinalizando
que Stalin estava consciente, mesmo antes da guerra, de que cometera um erro. No
desespero por evitar ou, pelo menos, retardar a guerra, ele cruzara a última fronteira
ideologicamente justificável, e isto teria consequências de longo alcance.
Notas

* Naquela noite, a cúpula do governo polonês deixou o país, e o alto-comando do Exército partiu no dia
seguinte.

** Todos eles cantores populares e músicos.


[36]
Stalin e o Exército

À s vésperas da guerra, o Exército contava com a afeição do país. Heróis


nacionais surgiram nas campanhas da Mongólia, na Espanha e na guerra
finlandesa, e não havia falta de candidatos ao ingresso nas academias militares. O
serviço militar era considerado uma carreira honrosa. As lideranças política e militar
não tinham contrariedades com a disciplina e a conscientização política dos
soldados, os quais acreditavam em Stalin e no partido, embora as feridas abertas
pelo expurgo ainda não estivessem completamente cicatrizadas. Mesmo assim, a
guerra finlandesa, a despeito de ser apresentada como uma vitória, deixava o povo
curioso sobre o porquê de um Exército tão poderoso como o descrevia a imprensa
ter demorado quatro meses para subjugar as forças de um país pequeno como a
Finlândia. Stalin ficou mais envergonhado que os outros com a Guerra do Inverno,
mas é evidente que não pôs a culpa em si mesmo. Em março de 1940, deixou claro
que alguém teria que responder pelo acontecido. O escolhido foi Voroshilov.
Apesar de não ser militar, Stalin gradualmente passou a ver que Voroshilov não
era capaz de comandar o Exército. Não conduzira bem o quartel-general durante a
campanha de Khalkin Gol, nem na guerra finlandesa. Segundo Zhukov, depois de
Khalkin Gol, quando foi nomeado para comandar o distrito militar de Kiev, de
repente Stalin começou a falar sobre Voroshilov: “Ele se jactava em afirmar que
responderíamos pelo triplo toda a vez que fôssemos atingidos. ‘Está tudo bem, tudo
ótimo, Camarada Stalin, está tudo pronto’ – mas depois, o que houve?”56
Voroshilov deixou a função de comissário da Defesa em maio de 1940, embora
tenha se tornado vice-presidente do soviete de comissários e presidente do Comitê
de Defesa da URSS. Seu cargo de comissário da Defesa foi assumido por S.K.
Timoshenko, feito também marechal da URSS. A primeira grande decisão do novo
comissário, ratificada por um decreto do Sovnarkom de 6 de junho de 1940, foi a
organização do corpo mecanizado com duas divisões blindadas e uma divisão
motorizada. Apenas seis meses antes, a administração do corpo blindado fora
desmantelada. Stalin não tinha opinião própria nesses assuntos, valendo-se do que
achavam os generais D.G. Pavlov e G.I. Kulik, que automaticamente recaíam em
suas experiências na Espanha, e da opinião de Shaposhnikov, chefe do Estado-
maior, e de seu vice Smorodinov, que confirmaram a importância daquele tipo de
grandes unidades.
No final dos anos 1930, ao reconhecer que o Exército estava muito embebido
pela guerra civil, Stalin nomeou Zhdanov e N.A. Voznesensky para chefiarem uma
comissão de análise da situação do Exército e da Marinha. Eles chegaram à sensata
conclusão de que o “comissariado ainda não resolvera o problema do emprego
operacional das Forças na guerra moderna” e de que a situação fora agravada pelo
grande número de jovens e inexperientes integrantes dos quadros. É evidente que
isso se devia, em grande parte, à repressão em massa de 1937-38, que atingira
principalmente os oficiais mais antigos, a administração política e a organização
central do comissariado. Os números mostram que, de maio de 1937 a setembro de
1938, 36.761 homens foram expurgados do Exército e mais de 3 mil da Marinha,57
alguns deles, é verdade, meramente licenciados das fileiras. Como resultado da
repressão, foram afastados todos os comandantes de distritos, 90% dos chefes e vice-
chefes dos Estados-maiores regionais, 80% dos comandantes de corpos e de divisões
e 90% dos oficiais de Estado-maior. A consequência foi uma sensível queda na
qualidade intelectual dos oficiais. No início de 1941, somente 7,1% dos oficiais em
comando tinham frequentado uma escola de altos estudos militares, 55,9% só
tinham formação secundária, 24,6% haviam sido formados em cursos comprimidos
e 12% dos oficiais e do pessoal político não tinham qualquer instrução militar.58
Vyshinsky e Ulrikh propuseram que o processo de expurgo fosse simplificado de
forma que uma conferência especial da NKVD tivesse competência para retirar a
carta patente de um oficial, o que, previamente, só podia ser feito mediante sentença
judicial. Em abril de 1938, Ulrikh demonstrou a necessidade de “aprovar a remoção
do colegiado militar da Suprema Corte, e de organizar o Tribunal Militar da
URSS”.59 Stalin vivia num mundo em que novos “inimigos” tinham que ser
encontrados todos os dias, e sua paranoia contagiava o entourage, seus carrascos e o
país de modo geral. Os distritos militares e as academias receberam ordens como
esta, enviada à administração política do Exército Vermelho em Moscou:

Nomeie uma comissão para investigar e rever a equipe de instrutores da Academia Lenin. Se alguém do
grupo Tolmachev ainda estiver por lá, transfira todos imediatamente.
5 de julho de 1938 Mekhlis60
Embora a repressão tenha arrefecido no início de 1939, em 14 de junho Ulrikh
reportou para Stalin e Molotov que “um grande número de casos estava pendente
contra membros de organizações trotskystas-direitistas, nacionalistas burgueses e de
espionagem: 800 casos no distrito militar de Moscou, 700 no distrito do Cáucaso
setentrional, 500 no distrito de Kharkov, 400 no distrito da Sibéria. Por questões de
segurança, sugerimos que não se permita a presença dos acusados nos julgamentos.
Aguardo suas ordens”.61 Não existe registro da resposta de Stalin neste documento,
porém, em vista da enorme lacuna no efetivo de oficiais e do fantasma da guerra, é
possível que Stalin tenha rejeitado a proposta como um exemplo de “erros e
calúnias”. A partir daquele instante, o definhamento do Exército e da Marinha
começou a diminuir. Mesmo assim, a situação em alguns distritos militares era
simplesmente catastrófica e, no Exército em conjunto, o segmento mais vulnerável
era o corpo de oficiais. Pelo verão de 1941, cerca de 75% dos oficiais e 70% dos
comissários políticos estavam em suas funções havia menos de um ano. A espinha
dorsal do Exército não tinha a necessária experiência de comando.
Stalin sabia que a séria escassez de oficiais era agravada pelo inadequado
treinamento para a guerra moderna. O discurso que proferiu em 5 de maio de 1941
no Kremlin para formandos do Exército Vermelho refletiu esses pensamentos. Foi
um pronunciamento de rara franqueza e revelou muitos segredos de Estado. Por
exemplo, para elevar o moral dos jovens oficiais, ele falou sobre a reestruturação
fundamental do Exército e do aumento substancial no seu efetivo. Naquele início de
1941, Stalin disse-lhes que o Exército tinha 300 divisões, das quais um terço era de
divisões mecanizadas, mas não complementou a informação esclarecendo que mais
de um quarto do número total de divisões estavam em processo de organização e
que muitas tinham acabado de ser criadas.
Como sempre, destacou a vocação ofensiva do Exército: “O Exército Vermelho é
uma organização moderna, e um Exército moderno significa um Exército ofensivo.”
Ali estava um grande erro, pois negligenciava a importância da defesa estratégica e
das operações defensivas. A doutrina militar oficial da URSS era defensiva, mas
Stalin e os comandantes, que repetiam como papagaios seus pontos de vista,
proclamavam que a melhor defesa era o ataque. Os regulamentos, ordens, diretrizes,
os discursos do comissário e, agora, o próprio Stalin expressavam só uma ideia: “A
guerra seria travada no território do inimigo e a vitória seria alcançada com pouco
derramamento de sangue.”
Por que a Alemanha derrotava seus inimigos? Seria ela invencível? Neste ponto
do discurso, Stalin explicou com muita sinceridade o triunfo da Wehrmacht na
Europa Ocidental: “Os alemães foram capazes de afastar os Aliados da Inglaterra e
da França.” É evidente que o único aliado nessas circunstâncias fora a própria União
Soviética. “O Exército alemão não é invencível. Ele marcha agora sob a bandeira da
expansão, sua autoconfiança e sua arrogância crescem. Mas isto prenuncia o pior.”
Falsas ideias tornaram-se parte do pensamento militar soviético, como se pode ver
numa revisão operacional do Estado-maior do Exército Vermelho onde está
afirmado que a Alemanha saiu-se vitoriosa em 1940 “por causa das circunstâncias
que lhe foram muito favoráveis” e “não sem a intervenção de acidentes
fortunosos”.62 Uma minuta de projeto sobre propaganda política para o Exército
Vermelho declarava que “o Exército alemão não mais se interessava por
aprimoramentos na técnica militar. Parte significativa do Exército alemão está
cansada da guerra”.63
Contudo, alguns argumentos de Stalin faziam sentido, muito embora o Exército
não tivesse tempo para fazê-los vigorar. As academias militares do Exército
Vermelho, afirmou, estão defasadas no tempo e treinam para a “guerra de ontem”.
A experiência de Khalkin Gol não foi válida, disse ele, porque os japoneses não
tinham um Exército moderno. Era uma guerra ocidental, a guerra finlandesa, que
deveria servir de lição sobre guerra moderna. Pouco antes do período de formaturas,
Stalin convocara o Soviete Militar Principal para ouvir palestras de G.K. Zhukov,
K.A. Meretskov, I.V. Tyulenev, D.G. Pavlov, G.M. Shtern, P.V. Rychagov e A.K.
Smirnov, entre outros. Ênfase especial foi dada ao melhor aprestamento
operacional, à execução de operações ofensivas e à concentração de forças e meios
para a consecução do sucesso estratégico. O problema da fase de abertura das
hostilidades não foi tratado. Bastante interessante foi o pronunciamento do chefe do
Estado-maior, P.S. Klenov, o qual comentou que “a primeira fase da guerra era da
maior importância, uma vez que o inimigo aplicaria todo o seu poderio para evitar
que nos conduzíssemos de forma organizada”.64
Stalin registrou o comentário de Meretskov de que os regulamentos do Exército
Vermelho estavam desatualizados65 e ordenou uma revisão imediata, embora não
tenha sido possível terminá-la antes do início da guerra. Mas nem Stalin nem o
comissário da defesa notaram que, com exceção de Tyulenev, ninguém levantou a
questão das operações defensivas modernas.66 Todos tinham aprendido sobre
estratégia ofensiva e aqueles militares intelectuais que entendiam da profissão com
uma perspectiva mais ampla e com abordagens mais modernas e flexíveis haviam
sido exterminados por Stalin.
A despeito do Pacto, o secretário-geral começou a ver então nuvens de
tempestade no horizonte ocidental. Ao mesmo tempo, acreditava equivocadamente
que Hitler não atacaria no leste antes de vencer no ocidente: ele jamais se engajaria
numa guerra de duas frentes, e Stalin enfatizou esta noção nos seus discursos da
ocasião, notavelmente o de 5 de maio de 1941, no Kremlin. Entretanto, ele também
estava encantado com a facilidade com que a Wehrmacht esmagara os exércitos
ocidentais, mas não achava que o Exército Vermelho aprenderia as lições devidas
com suficiente rapidez. Estudou a análise sobre a operação das forças alemãs
preparada para ele pelo Estado-maior e, em conversas com Timoshenko, realçou a
necessidade de intensificar a instrução.
No entanto, havia muita coisa que ele não sabia. Por exemplo, não tinha
conhecimento da avaliação alemã do Exército Vermelho feita no início de 1941. Só
depois da guerra ficou esclarecido que Hitler, assim que soube dos expurgos de
1937-38, determinou a preparação de um relatório de informações sobre a situação
do corpo de oficiais do Exército Vermelho. Seis meses antes da guerra, com base nos
relatos do coronel Krebs, adido militar alemão em Moscou, e em outras fontes, o
Führer concluiu que o Exército Vermelho era quantitativa e qualitativamente fraco.
“Causa uma impressão pior que a de 1933. A Rússia vai precisar de anos para
recuperar o nível anterior...”67
Seria difícil encontrar um precedente na história em que um dos lados, às
vésperas de um conflito mortal, tenha infligido tanto dano a si próprio. Zhukov se
lembrou deste particular nos jogos de guerra com grandes efetivos realizados em
dezembro de 1940, quando recebeu o comando dos “Azuis”, ou seja, do lado
alemão, enquanto Pavlov, general de exército e comandante em chefe do distrito
militar especial do Ocidente, comandou os “Vermelhos”. De acordo com Zhukov, o
general executou suas operações exatamente nas linhas em que as batalhas reais iriam
se desenrolar, seis meses depois. Afirmou que sua tática foi ditada pela configuração
das fronteiras, pelo terreno e pelas circunstâncias. Deduziu que os nazistas fariam os
mesmos cálculos. Ainda que os árbitros dos jogos de guerra retardassem
artificialmente a progressão dos “Azuis”, em oito dias eles avançaram até o distrito
de Baranovichi. Quando, em janeiro de 1941, Zhukov apresentou seu relatório
sobre os exercícios ao Soviete Principal de Guerra, alertou quanto ao desfavorável
sistema de distritos fortificados ao longo da nova fronteira, sugerindo que eles
recuassem cerca de 100 quilômetros. Tal comentário era uma crítica a uma decisão
tomada por Stalin, porém o secretário-geral ouviu com atenção a proposta, mas
ficou intrigado com o poderio dos “Azuis” e por que forças tão poderosas como as
alemãs tinham sido consideradas na regra de nossos próprios jogos? Zhukov replicou
que aquilo correspondia às reais possibilidades da Alemanha e se baseava numa
avaliação autêntica das forças que ela poderia empregar contra nós na fase de
abertura das hostilidades, ganhando, desta forma, flagrante superioridade com o
primeiro ataque.
Stalin considerou abrangente o relatório de Zhukov, ficou admirado com a
maneira desassombrada com que o militar defendeu sua posição e, em fevereiro de
1941, nomeou-o chefe do Estado-maior, uma das melhores decisões que tomou
nesse campo, como os eventos futuros iriam confirmar.
Completados os lances diplomáticos de 1939 que descrevemos, o raciocínio de
Stalin ficou dividido. De um lado, os tratados eram favoráveis aos alemães pois
ajudavam Hitler a evitar uma luta em duas frentes, o que possivelmente faria com
que respeitasse seus termos. De outro lado, sendo um oportunista por natureza, o
Führer poderia não seguir necessariamente a lógica normal. Toda a sua estratégia
impulsiva se baseava no cálculo de fatores de curto prazo, tais como surpresa, astúcia
e imprevisibilidade. Por conseguinte, Stalin seguiu de perto cada passo político e
militar de Hitler, bem como o curso de sua blitzkrieg de 1940 no oeste. Também
ordenou que Timoshenko tivesse a responsabilidade total pelo aprestamento da
tropa.
Ao longo de 1940, Timoshenko visitou todos os distritos militares do oeste, pôs
diversas unidades em prontidão e avaliou os cursos de treinamento e as manobras.
Todas as suas visitas foram noticiadas pela imprensa, como também as de outros
chefes militares. As viagens de inspeção revelaram muitas deficiências de vulto. Os
militares e os oficiais políticos careciam de experiência e demonstravam lerdeza no
domínio dos novos elementos para o treinamento do combate. Os componentes
básicos da força combatente estavam abaixo do nível médio, o que se aplicava
também à força aérea.68
Nos dois anos que decorreram antes que a URSS entrasse na guerra, Stalin
tentou claramente aumentar a qualidade e o efetivo das Forças Armadas, mas seu
trabalho baseou-se na premissa falaz de que ele seria capaz de evitar, ou pelo menos
de adiar, a guerra. Como o escritor Konstantin Simonov recorda de uma conversa
com Zhukov: “Stalin estava convencido de que, com o Pacto, dera um tombo em
Hitler. Mas aconteceu justamente o contrário.” Zhukov disse que “a maioria dos
que o cercavam apoiou os julgamentos políticos que Stalin fizera antes da guerra,
especialmente a noção de que, se não fizéssemos nenhuma provocação, nem
déssemos um passo em falso, Hitler não romperia o Pacto e não nos atacaria”.69 Esta
linha de pensamento era ardentemente defendida por Molotov, o qual, depois de
sua viagem a Berlim em novembro de 1940, continuou insistindo em afirmar que
Hitler não atacaria a URSS.
[37]
O arsenal de defesa

E m meados de novembro de 1940, o Izvestiya publicou que “no contexto das


relações amistosas que existem entre nossos dois países e da atmosfera de
confiança mútua, uma troca de opiniões tivera lugar entre V.M. Molotov, o
chanceler A. Hitler, o ministro do exterior J. Ribbentrop, o marechal Goering e o
vice de Hitler no partido, R. Hess”. Na realidade não havia tal “confiança mútua”.
Molotov chegou em Berlim em 12 de novembro parecendo apreensivo, e a tensão e
a desconfiança entre os “amigos” foi crescendo a olhos vistos.
No seu gabinete cavernoso, Hitler encarou intensamente o visitante e passou de
imediato ao seu tema preferido: as potências do Eixo estavam à beira do triunfo, o
Império Britânico logo seria martelado e era hora de decidir que tipo de mundo se
seguiria à proclamação da Nova Ordem. A Alemanha tinha interesse nisso e,
esperava ele, a Rússia também. Molotov ouviu sem interromper, enquanto Hitler
dividia o mundo em esferas de influência. Mas quando o Führer fez uma pausa e
virou-se para o representante soviético à espera de uma reação, Molotov observou
friamente que não via sentido na discussão de tais pontos. Hitler empertigou-se
visivelmente, mas Molotov não se intimidou e começou a fazer perguntas
incômodas: por que existia uma missão militar alemã na Romênia; por que a
Alemanha estava deslocando tropas para a Finlândia. Hitler perdeu o interesse pela
conversa e sugeriu suspendê-la até o dia seguinte. Os dois lados falavam claramente
línguas diferentes e ambos entenderam que os acordos de um ano antes estavam
mortos. Tinham cumprido sua finalidade: com eles, a Alemanha blefara a URSS e
ganhara liberdade de ação; a URSS ganhara tempo. Sentindo a desconfiança dos
alemães, Molotov retornou ao seu hotel, o Bellevue, e tentou se consolar
imaginando que Hitler não incorreria no mesmo erro cometido pela Alemanha na
Primeira Guerra Mundial, lutando em duas frentes. De sua parte, de acordo com os
relatos de Beria, os governos ocidentais acreditavam que a aliança militar germano-
soviética era para valer.70 Stalin, no entanto, tinha dúvidas crescentes a respeito da
política alemã. E ainda não sabia que, enquanto Molotov estava em Berlim, o
general F. Halder, chefe do Estado-maior das forças terrestres germânicas, expunha
ao marechal de campo Brauchitsch, comandante em chefe das mesmas forças, a
última versão da Ordem nº 21, ou Operação Barbarossa, para a invasão da URSS.
Hitler pretendia não ser emboscado, como Napoleão, pelo inverno russo, portanto
fixou a data da invasão para 15 de maio de 1941.71 A campanha estava planejada
para durar oito semanas.
A despeito de continuar aferrado, como Molotov, ao mito de que Hitler
manteria o Pacto e evitaria a guerra em duas frentes, Stalin pôs mãos à obra na
intensificação das defesas do país. Existia potencial para tanto. O país contava então
com uma das mais vigorosas bases industriais do mundo, apesar do baixo nível da
qualidade, gerida por comissários fortes como I.F. Tevosyan, V.A. Malyshev, A.I.
Shakhurin, I.A. Likhachev, D.F. Ustinov e B.L. Vannikov.
Haviam encontrado chefes industriais que podiam trabalhar juntamente com as
organizações do partido para conseguir o impossível nos momentos críticos, para
fabricar material de emprego militar em tempo fantasticamente curto. Stalin
conhecia pessoalmente todos os seus comissários e muitos gerentes de fábricas e,
com frequência, convocava-os para consultas. Vannikov lembrava de que o próprio
Stalin participou diretamente do desenvolvimento da indústria de defesa, se bem
que o membro do Politburo oficialmente responsável pela missão fosse N.A.
Voznesensky (cujo importante papel durante a guerra tem sido muito desprezado).
Não sendo um especialista, Stalin, nos seus contatos com os projetistas, valia-se mais
da “pressão”, ou mesmo das ameaças, que da ciência. Vannikov recorda de Stalin
dizendo: “Projetistas guardam sempre alguma coisa em reserva, nunca lhe mostram
todas as possibilidades: você tem que pressioná-los duramente.” E Stalin sabia fazer
isso. Ustinov relembrou em suas memórias que todo um sistema de artilharia foi
criado no curtíssimo prazo sem precedentes de dezoito dias.72 O envolvimento de
Stalin com as questões de defesa, no entanto, muitas vezes resultava em efeitos
danosos. Por exemplo, nas vésperas da guerra, o marechal Kulik, então chefe da
administração principal da artilharia, juntamente com Zhdanov propuseram
aumentar o calibre dos canhões dos carros de combate de 45mm e 75mm para
107mm. Stalin concordou de pronto, lembrando-se dos canhões deste último
calibre durante a guerra civil. Contudo, ele estava raciocinando com a artilharia de
campanha, enquanto o que estava sendo proposto requeria blindados muito mais
pesados. O comissário de armamentos Vannikov e os gerentes de fábricas Elyan e
Fradkin protestaram timidamente com Stalin, Zhdanov e Kulik, mas foi em vão. Os
argumentos dos engenheiros não convenceram Stalin. Uma reunião foi convocada e,
de acordo com as lembranças de Vannikov, a conversa assumiu um tom ameaçador.
Stalin vociferou para os presentes: “Vannikov não quer fazer canhões de 107mm
para os carros de combate.” Zhdanov logo o apoiou: “Vannikov é contra tudo, é seu
modo de trabalhar.” Não adiantava e era perigoso argumentar.
A ordem de Zhdanov, sancionada por Stalin, interrompeu no limiar da guerra a
produção de canhões de calibres menores para os blindados. Foi um engano terrível,
e o curso da guerra logo tornou necessária a revogação daquela ordem e o retorno à
fabricação dos antigos canhões. Mas perdera-se tempo. Um mês depois da
deflagração da guerra, Stalin achou seus bodes expiatórios, Zhdanov e Kulik, a
quem acusou diretamente ante o Politburo, incapaz de admitir seu próprio erro.
A Décima Oitava Conferência do Partido, em fevereiro de 1941, foi devotada
quase que por inteiro às questões de defesa. O relatório de Malenkov, secretário do
Comitê Central que estava muito ativo na ocasião, foi sobre “A missão das
organizações do partido no campo da indústria e dos transportes” e tratou da
conversão da indústria para a produção de guerra. Stalin propôs que, em 1941, a
produção industrial aumentasse em 17 a 18%. Aquilo não parecia fora da realidade.
Em 1940, por exemplo, a fabricação de material bélico crescera 27% em relação à
de 1939. É fácil esquecer-se, quando se pensa nos horrores do stalinismo, que existia
também o surpreendente fenômeno socialista de devoção ao trabalho e orgulho
pelas conquistas. É verdade que, muitas vezes, as pessoas eram motivadas pelo medo,
porém, apesar disso, tornavam realidade planos que hoje seriam considerados
fantasias. A nação estava preparada para um período de sacrifício desde que fosse
pela salvação da Mãe Pátria. E não se trata de palavras vazias. Se o orçamento da
defesa no período de 1928 a 1933 foi de apenas 5,4% do produto nacional bruto,
em 1941 cresceu para 43,4%,73 o que representou sérias provações para o povo. O
descumprimento das ordens de Stalin podia ter consequências desastrosas, e todos
sabiam disso. Mas a influência não foi só das ameaças. O povo sabia que uma guerra
se aproximava e que teria de fazer o impossível. Quando Hitler invadiu a URSS,
2.700 aviões de modelos novos e 4.300 carros de combate, metade deles também de
um novo modelo, tinham sido fabricados.74
A maior produção foi acompanhada de severa disciplina em todos os campos,
com medidas administrativas e penais extraordinariamente duras aplicadas aos que
prejudicavam a produção. O nível de ausência no trabalho caiu drasticamente, mas
Stalin dizia repetidas vezes a Poskrebyshev que era necessário mais esforço: “Diga
aos comissários que a batalha pela disciplina apenas começou!”
Ao mesmo tempo, Mekhlis, o novo comissário para o Controle do Estado,
conduziu a campanha de Stalin para extrair mais esforço por parte dos líderes do
partido. Na Décima Oitava Conferência do Partido, por exemplo, seis membros do
Comitê Central, incluindo M.M. Litvinov e Ye.A. Shchadenko, foram rebaixados a
membros suplentes; quinze perderam suas posições como membros candidatos,
entre eles a mulher de Molotov, Polina Zhemchuzhina; nove pessoas foram
afastadas da comissão central de revisão. A razão apresentada foi a de que elas “não
cumpriram a missão”. Os comissários M.M. Kaganovich, M.F. Denisov, I.P.
Sergeev, Z.A. Shashkov, A.A. Ishkov e V.V. Bogatyrev foram todos alertados de que
“se não se comportassem corretamente, se não concretizassem as tarefas a eles
atribuídas pelo partido e pelo governo, seriam rebaixados de seus cargos nos órgãos
de direção partidária”. Tal alerta revelou-se fatal para alguns. Entrementes, as
funções vagas foram principalmente assumidas por militares, incluindo-se Zhukov,
A.I. Zaporozhets, I.V. Tyulenev, M.P. Kirposonov, I.S. Yumashev e I.P.
Apanasenko, entre outros. O próprio Stalin passou a trabalhar de dezesseis a
dezessete horas por dia, e o reflexo amarelado de seus olhos esmaeceu pela falta de
sono e excesso de trabalho.
Ele sabia que só com mobilização total dos recursos do país poderia enfrentar o
desafio que se avizinhava, embora não o esperasse para muito breve. Em maio de
1941, o Comitê Central decretou, “com o objetivo de coordenar completamente a
ação dos sovietes e dos órgãos do partido, e para a garantia da unidade absoluta de
suas atividades”, que Stalin passava a ser o presidente do Sovnarkom, acumulando
com a função de secretário-geral.
Suas decisões demandavam sacrifícios. Por exemplo, para superar o atraso na
indústria aeronáutica, o Politburo, em setembro de 1939, determinou a construção
de nove fábricas de aviões novas, que deveriam estar prontas entre 1940 e 1941, e a
remodelação de outras tantas fábricas. A indústria começou então a funcionar em
ritmo frenético. Diariamente, seu comissário reportava a Stalin sobre o número de
aviões e de motores fabricados. As pessoas tinham que permanecer nos laboratórios
e nas oficinas dias e dias seguidos. A produção deu um salto, se bem que os novos
modelos só ficaram disponíveis na segunda metade de 1940.
Tal produção forçada teve também um preço. A qualidade dos aviões, com
frequência, deixou a desejar, e passou a ocorrer um vergonhoso aumento no número
de avarias e de desastres. Stalin, é claro, acusou o pessoal da força aérea de
sabotagem e, depois de ler a última lista de desastres, ordenou que fosse feito um
relatório pelo comissário da Defesa. Em 12 de abril, Timoshenko e Zhukov
reportaram:

O Soviete Principal de Defesa do Exército Vermelho examinou a questão das panes e acidentes na Força
Aérea e concluiu que, longe de diminuir, o número deles vem crescendo devido à falta de disciplina por parte
das tripulações e da equipe de comando, que leva a violações elementares das regras de segurança de voo. Esta
falta de disciplina causa uma perda média diária de dois a três aviões, totalizando de 600 a 900 por ano. Só
no primeiro trimestre incompleto de 1941 houve 71 panes e 156 desastres, matando 141 tripulantes e
destruindo 138 aeronaves.

O memorando pedia o afastamento do chefe da administração da força aérea,


Rychagov, e que diversos oficiais comandantes fossem julgados por corte marcial.
Stalin aprovou a proposta, acrescentando: “Concordo, com a única observação de
que o Camarada Proskurov seja também incluído na lista e julgado juntamente com
o Camarada Mironov [ambos altos oficiais antigos de Estado-maior da força aérea].
Esta é a coisa honesta e justa a fazer.”75
Houve também dificuldades na produção de tanques, artilharia e munição. Os
projetistas Koshkin, Morozov e Kucherenko criaram o excelente tanque médio T-34
em curto tempo, porém, juntamente com o tanque pesado KV, apenas cerca de 2
mil carros de combate estavam prontos quando a guerra começou. Os foguetes
foram inventados pelos cientistas soviéticos antes da guerra, mas a produção em
série de quantidades significativas só começou durante a guerra, quando a Katyusha,
uma plataforma capaz de lançar dezesseis granadas em dez segundos, proporcionou
poder de fogo muito eficiente às forças soviéticas.
A produção de novas armas mal tinha iniciado, na véspera das hostilidades. No
seu livro sobre economia de guerra, publicado em 1948, N.A. Voznesensky
escreveu: “A guerra pegou a indústria bélica soviética em pleno processo de domínio
da tecnologia, e a produção em massa de equipamento moderno de emprego militar
ainda não estava organizada.”76 Em março de 1941, disseram a Stalin que só havia
peças sobressalentes para suprir 30% de todas as unidades blindadas e mecanizadas
do Exército,77 e que seriam necessários mais três ou quatro anos para completar o
trabalho. A posição não era melhor na aviação, onde só haviam sido fabricados 10 a
20% dos novos modelos, e o quadro era mais ou menos o mesmo em todos os
aspectos da indústria militar. Como Timoshenko e Zhukov reportaram um mês
antes de a guerra começar: “A concretização do plano para o suprimento de
tecnologia militar que o Exército Vermelho necessita com tanta urgência é
extremamente insatisfatória.” Stalin, o Politburo e os comissários buscaram uma
solução e a encontraram levando ao limite máximo o esforço da população soviética.
A produção passou a aumentar em um setor e diminuir em outro, passando de uma
arma para outra, como, por exemplo, dos canhões da artilharia para as armas dos
aviões e dos carros de combate, a despeito das críticas feitas ao processo. Em função
das circunstâncias, no entanto, pode-se entender por que tais métodos foram
adotados.
Stalin também se preocupou com a agricultura. A eficiência do trabalho no setor
agrícola era extremamente baixa, comparada com a da indústria, e a explicação que
sempre davam ao secretário-geral era a de que os kolkhozniks passavam a maior parte
do tempo nas hortas de fundo de quintal ou nos tratos de terra próximos às suas
casas e não na produção coletiva. A.A. Andreyev recebeu ordem para estudar o
problema, e o relatório que fez para um pleno do final de maio de 1939 foi
intitulado “Sobre as medidas para proteger as terras das fazendas coletivas públicas
contra o esbanjamento em benefício dos tratos privados dos agricultores coletivos”.
O ponto forte do relatório de Andreyev foi que métodos drásticos deveriam ser
impostos limitando a área dos tratos de terra privados e fixando um mínimo
absoluto de dias de trabalho a ser ganho por cada membro do grupo de camponeses,
o artel.* Mais uma vez, então, a força das ameaças, e não medidas econômicas, foi
empregada para resolver o problema.
O pleno foi presidido por Molotov. Não houve ata, mas diversos extratos,
diálogos e anotações sobreviveram nos arquivos, mostrando que Stalin e outros
líderes confiavam na técnica das diretrizes e na coação para administrar a
agricultura. Andreyev relatou que, no oblast de Kiev, 5,8% dos integrantes do artel
não trabalhavam no kolkhoz e que 18% dos kolkhozniks ganhavam apenas cerca de
cinquenta dias de trabalho, enquanto Shcherbakov relatou que, no distrito de
Nogin do oblast de Moscou, 32% das famílias não faziam qualquer trabalho
coletivo.78 O silêncio pesado do auditório foi quebrado pela voz de Stalin:

“As pessoas que não trabalham no kolkhoz foram identificadas?”


Andreyev: “Não foi possível identificá-las, Camarada Stalin. Alguns são trabalhadores por temporada, outros
são parasitas que exploram o kolkhoz.”
Stalin: “Existem alguns que não ganham dia de trabalho em absoluto?”
Andreyev: “Sim, nem um só dia de trabalho. Vivem totalmente de seus tratos privados.”
Stalin: “Eles podem trabalhar ou são inválidos?”
Andreyev: “São trabalhadores sazonais muito idosos, mas desorganizam. Seu comportamento confunde os
kolkhozniks que trabalham honestamente.”
Pelo restante do pleno, os participantes só debateram maneiras de “compelir”, “obrigar”, “limitar”, “forçar”
os camponeses a produzirem mais. Bagirov, de Baku, propôs a nacionalização de todas as hortas de fundo de
quintal, ao que Stalin replicou: “Temos que pensar sobre isso. Você deve apresentar planos detalhados.”
Bagirov: “Deveríamos formular uma resolução?”
Stalin: “Sim.”

Zhdanov escreveu de imediato uma resolução pedindo que Bagirov submetesse uma
proposta de nacionalização das hortas caseiras. Apresentou também para apreciação
do plenário uma emenda proposta por Stalin no sentido de que “todos os
administradores de fazendas coletivas que permitirem que kolkhozniks e forasteiros
depositem feno nas matas em bases individuais deverão ser demitidos do kolkhoz e
julgados por infringir a lei”. Como resultado, grandes extensões de pradarias
permaneceram sem cultivo e os kolkhozniks foram proibidos de ter feno até em
ravinas e matas fechadas. Houve apenas uma objeção, a de Kulikov – as iniciais não
eram normalmente anotadas naquele tempo – que disse: “Tenho que fazer o
seguinte comentário: aqui na página 3 está especificado imposto em espécie que os
granjeiros particulares têm de pagar em grãos. A região de Krasnoyarsk tem de pagar
15% em cereais. Onde obterão esses grãos para julho? Com que reservas ficarão?”
Até Stalin deu mostras de dúvida: “Se publicarmos a diretriz em nome do Comitê
Central e do Sovnarkom”, perguntou, “não causaremos confusão para os
kolkhozniks?”
“Não, pelo contrário, eles passarão a se comportar”, vieram algumas vozes
inseguras do salão. “O povo espera por isso há muito tempo.”
Nos últimos meses que antecederam a guerra, como mencionamos, a pulsação
do trabalho foi acelerada. Jornais e rádios davam notícias sobre a guerra, a Batalha
da Inglaterra, a suspensão temporária dos bailes de salão na Alemanha, a
transformação da Polônia num Governo Geral e sobre as conquistas econômicas da
URSS. Difundiram também as instruções de Stalin ao Gosplan para que fosse feito
um plano geral econômico para os 15 anos seguintes a fim de atingir o objetivo
principal de “sobrepujar os países capitalistas na produção per capita de ferro gusa,
aço, combustíveis, energia hidroelétrica, máquinas e bens de consumo”.79
Nota

* O dia de trabalho era uma unidade de produção, e o artel, um grupo de operários ou camponeses.
[38]
O assassínio do exilado

E m meio ao esforço geral para elevar o potencial de defesa da União


Soviética, subitamente, Stalin recebeu a muito esperada notícia do exterior
de que Trotsky fora assassinado. A caça ao exilado durara alguns anos, mas
Trotsky vinha sendo bem protegido por seus seguidores e pela polícia. Stalin criara
uma unidade especial para lidar com o “problema” e, por diversas vezes, mostrara a
Beria sua insatisfação com a indecisão de seus agentes e sua falta de desenvoltura.
Agora estava feito. O duelo acabara. Ainda assim, Stalin não sentiu qualquer alegria
especial. Se acontecesse em 1937-38, teria sido diferente, pois então via a sombra de
Trotsky por trás de qualquer inimigo importante, a mão do rival parecia estar em
tudo, e suas predições tornavam-se realidades. Trotsky fora o principal acusado em
todos os grandes julgamentos, mas, depois da insanidade daqueles anos, o ódio de
Stalin de alguma forma tinha arrefecido. Com a liquidação dos aliados de destaque
do rival, o próprio Trotsky começou a parecer menos perigoso. O fantasma da
guerra era bem mais sombrio e ameaçador que o “cidadão sem visto”.
Stalin ordenou que a informação fosse confirmada e, em 22 de agosto de 1940,
apareceu uma breve notícia no Pravda:

Nova York, 21 de agosto (TASS). Segundo jornais dos EUA, em 20 de agosto, houve um atentado contra
Trotsky, que estava morando no México. O assassino disse chamar-se Jacques Mortan Vandendraish e
pertence ao círculo dos seguidores mais próximos de Trotsky.

Em 24 de agosto, o Pravda publicou que Trostky fora sepultado. O homem que


planejara o assassinato de Kirov, Kuibyshev e Gory acabara sendo morto e por sua
própria gente. Stalin leu com atenção o artigo. Ênfase demasiada em espiões. Será
que ele batalhara apenas com um espião durante todos aqueles anos? E por que
evidenciar tanto quem o matara? Como se o crime tivesse ocorrido em Moscou e
soubéssemos tudo sobre ele. A escolha infeliz de algumas palavras poderia pôr tudo a
perder.
Mas pouco a pouco, o significado da notícia foi se entranhando e Stalin passou a
saborear a ideia de que seu inimigo mais perigoso, mais inteligente e mais persistente
não mais existia, e desfrutou do triunfo dos vitoriosos. Livrara-se de todos os velhos
inimigos. Do núcleo original, sobrara apenas ele.
Logo depois da notícia sobre a morte de Trotsky, Beria, com o conhecimento de
Stalin, determinou a “liquidação de todos os trotskystas nos campos de prisioneiros”
e, na véspera da guerra, outra onda de terror varreu o país, quase despercebida pelo
sistema judiciário. Pechora, Vorkuta, Kolyma e Solovki tornaram-se testemunhas
silenciosas de uma vingança sangrenta executada “tendo em mira” o líder
assassinado da Quarta Internacional.
Apenas os títulos dos artigos de Trotsky já eram suficientes para irritar Stalin:
“Stalin, o intendente de Hitler”, “Os gêmeos celestiais: Hitler e Stalin.” Enquanto
os lia, Stalin podia ouvir claramente a voz de Trotsky recitando: “A URSS está à
beira do abismo. Todos os trunfos de Stalin de nada valerão contra os recursos e o
poderio que Hitler possui e usará contra a União Soviética.”
Ao predizer catástrofe para Stalin, Trotsky expressava a esperança de que o
“estado dos trabalhadores tivesse a chance de sobreviver”. Ele não desejava a derrota
da União Soviética, apenas que Stalin perecesse, o que esperava acontecer com a
guerra. Stalin lembrava a maneira como fora decidido o exílio de Trotsky para o
exterior. O Politburo levantara o assunto em diversas ocasiões. Em discussões
oficiosas, Kirov, Rykov, Tomsky, Kuibyshev, Mikoyan e Petrovsky adotaram
posição de cautela: talvez Trotsky tivesse mudado de ideia? E se ele confessasse?
Talvez pudesse receber uma função no segundo escalão? Afinal de contas, ainda era
muito popular. Mas Stalin não se dispunha a tal tipo de reconciliação. Sabia que,
enquanto Trotsky estivesse vivo e na URSS, ele, Stalin, estaria em desconforto.
Depois desta espécie de troca de opiniões, que ainda era possível àquele tempo,
decidiram sondar Trotsky. Um emissário foi de Moscou a Alma-Ata. Uma ou duas
semanas mais tarde chegou um telegrama: Trotsky não tinha consciência de
qualquer culpa ou de qualquer motivo para conciliação com Stalin. O secretário-
geral leu o telegrama e passeou o olhar por seus camaradas: pois não lhes tinha dito!
Tinha certeza de que Trotsky ainda era um inimigo armado. Ninguém se opôs à
decisão de mandar o rebelde para fora do país.
Segundo os registros de Trotsky sobre este evento, publicados postumamente em
Diários do exílio, ele dissera ao emissário que não queria a reconciliação e que Stalin
era incapaz disso, de modo que todo o affair tenderia a acabar num banho de
sangue. E que ao ser reportada tal declaração ao Politburo, Stalin teria dito que o
exílio no exterior era a única solução. Quando, mais tarde, o secretário-geral soube
que Trotsky trabalhava num livro cujo título seria simplesmente Stalin, previu uma
obra particularmente venenosa. Porém, transcorreu o ano de 1938 sem qualquer
sinal do livro, depois 1939 e já se chegara a 1940; será que o livro ia sair? Mesmo
assim, pressionou Beria para que executasse sua missão.
Todavia, não poderia saber que Trotsky, tendo decidido ser o biógrafo de seu
inimigo mortal, condenara-se a um fracasso de criação. Stalin foi seu livro mais
fraco, que só transmitiu bílis, raiva e vingança. Exercitando sua férrea força de
vontade, conseguiu escrever sete capítulos, no centro dos quais estava Caim com as
máscaras de Soso e Koba, o revolucionário, líder poderoso do país e do povo.
Mesmo sem lê-lo – e foi a única entre as obras publicadas de Trotsky que Stalin
jamais folheou – é de imaginar seu conteúdo, sabendo-se da relação entre o autor e
o objeto do livro. Foi escrito com a tinta negra do ódio. Napoleão certa vez
observou que tudo tem um limite, até o ódio. Quando se ultrapassa o limite, algo se
perde, seja a verdade, a razão ou a tranquilidade.
Nesta obra não acabada, Trotsky perdeu seu talento como publicista, escritor e,
mais importante, como historiador objetivo. Muito do que escreveu sobre Stalin é
verdade, mas também há muita suposição e muita especulação, tudo na tentativa de
mostrar como Caim se transformou em Super Caim. Segundo o autor, Stalin nasceu
vilão; desde a infância foi um monstro moral. Nem é preciso provar a deficiência
científica de tal abordagem. Ninguém pode ser considerado um criminoso nato.
Não se pode observar Stalin sob o mesmo prisma em 1918, em 1924 ou em 1937.
É a mesma pessoa, mas também não é. Em dez anos, depois que sucedeu Lenin,
mudou acentuadamente. E é aí que reside a dificuldade para que se trace seu perfil
político: enquanto, aparentemente, batalhava pelos ideais do socialismo – por mais
tortuosa que fosse sua interpretação – cometeu crime atrás de crime.
No esforço para destronar o líder da Quarta Internacional, Stalin, é claro, foi
ajudado e encorajado pelo Comintern. Mesmo durante o período de reação que se
seguiu ao colapso das Frentes Populares, muita gente ainda pensava que a URSS era
o único bastião contra o fascismo e contra a guerra que se aproximava. A
propaganda soviética no exterior, feita por numerosos e diversificados canais,
difundia a ideia de que Trotsky era um cúmplice do capitalismo, um espião e
organizador de atos diversionários contra a URSS. Martelada de diversas formas, a
ideia surtiu algum efeito. Onde Trotsky estivesse, fosse na França, na Noruega ou
no México, enfrentava numerosos inimigos intelectuais e políticos. Não eram
apenas membros de partidos comunistas, de sindicatos ou de organizações
progressistas, mas também os próprios seguidores, que se frustraram com a
futilidade de seu programa.
A Confederação dos Trabalhadores do México e o Partido Comunista
Mexicano, sob a liderança de Lombardo Toledano, protestaram acerbamente contra
a ida de Trotsky para o México e, durante toda a sua permanência no país, diversas
organizações fizeram campanhas por sua expulsão. Temendo o assassinato, Trotsky
reduziu drasticamente suas excursões pelas montanhas ou pela cidade e passou a
receber pouquíssimas visitas. Gradualmente, diversos de seus familiares e amigos
desapareceram ou o abandonaram. Entre os que permaneceram próximos estavam
Alfred e Margarita Rosmer, que conheciam Trotsky e sua esposa Natalya Sedova
desde a Primeira Guerra Mundial. Certa vez, numa conversa com os Rosmers,
Trotsky afirmou que Stalin envenenara Lenin. Com a falta de provas adequadas, ele
criava novas e mais horríveis máscaras para o retrato que pintava. Sustentou que, ao
saber da Carta de Lenin para o Congresso, Stalin decidira acelerar os
acontecimentos. Mas até os Rosmers ficaram em dúvida. Trotsky argumentou que,
como Stalin matara todos os camaradas em armas de Lenin, por que não mataria o
próprio líder?
As organizações trotskystas do México, ajudadas pelo governo mexicano,
conseguiram encontrar uma grande casa para Trotsky no subúrbio de Coyoacán. Ela
virou verdadeira fortaleza, com portões de ferro, um sistema especial de alarme e
uma alta muralha de concreto com guarita. Pelo menos dez policiais e agentes
especiais vigiavam a residência 24 horas por dia. Trotsky até vestia colete à prova de
balas quando saía de casa. De sua praça fortificada, fez declarações e deu entrevistas
prevendo a morte rápida de Stalin e a provável vitória alemã sobre a URSS. Os dois
últimos anos de sua vida foram dedicados à guerra ideológica contra sua antiga terra
natal. Em abril de 1940, escreveu uma conclamação intitulada: “Carta aos
trabalhadores soviéticos: Vocês estão sendo enganados!” Foi, praticamente, um
apelo pela deposição de Stalin. Quatro meses antes de morrer, Trotsky escreveu:

A Revolução de Outubro foi feita no interesse dos trabalhadores soviéticos, não no dos novos parasitas. Por
causa do retardo da revolução mundial, da fadiga e, em grande medida, do atraso dos trabalhadores
soviéticos, especialmente dos camponeses, uma nova casta de parasitas, repressora e contra o povo, chefiada
por Stalin, paira sobre a república soviética.

Trotsky perde, então, o senso da realidade e apela para que o povo se levante contra
essa “nova casta”. Para tanto, “um novo partido é necessário, uma organização
revolucionária honesta e corajosa de trabalhadores destacados. A Quarta
Internacional se dispõe a criar tal partido na URSS”. E a conclamação termina com
a reiteração das constantes prioridades de Trotsky:

Abaixo o Caim Stalin e sua camarilha!


Abaixo a burocracia predatória!
Vida longa para a URSS, fortaleza dos trabalhadores!
Vida longa para a revolução socialista mundial!
Com saudações fraternas. 25 de abril de 1940. 80

Depois de ler isso, Stalin convocou Beria e alertou-o de que estava cansado de tudo
aquilo e de que estava começando a duvidar se a NKVD queria mesmo cumprir a
missão. Beria fez várias reuniões e redobrou o esforço para liquidar Trotsky. Parece
que foi tomada a decisão de explorar toda a insatisfação sentida por diversos
organismos públicos com as atividades trotskystas, em particular durante a guerra
civil na Espanha. Como o pintor mexicano comunista David Alfaro Siqueiros
escreveu no seu livro They called me the Dashing Colonel, mesmo enquanto ainda
estavam na Espanha, ele e seus amigos decidiram que “fosse como fosse, o quartel-
general de Trotsky no México tinha que ser destruído, ainda que à força”.81
A guerra de palavras entre Trotsky e as organizações comunistas de vários países
era música para os ouvidos de Berlim, se bem que não externasse sua imensa
satisfação. Em diversos documentos, o Comintern condenou vigorosamente a
Quarta Internacional e seu líder “por fazerem o jogo das forças da guerra”. Foi neste
cenário que aconteceram dois atentados contra a vida de Trotsky, o segundo, bem-
sucedido. O primeiro ocorreu em 24 de maio de 1940 induzido por um grupo
disfarçado de policiais e liderado por Siqueiros. Eles crivaram de balas o quarto de
dormir de Trotsky, mas o alvo e sua esposa conseguiram se refugiar num canto do
aposento e ninguém saiu ferido. Ficou claro, então, que os perseguidores estavam
decididos. Trotsky não tinha os meios nem o desejo de fugir. Não se esconderia
nem se calaria. A polícia mexicana não conseguiu encontrar os criminosos e
começaram até a circular histórias nos jornais mexicanos e americanos de que todo o
drama fora encenado pelo próprio Trotsky para comprometer o partido comunista
mexicano e Stalin. Quando o inspetor de polícia perguntou se tinha ideia de quem
poderia ser o responsável, Trotsky respondeu: “É claro”, e cochichou no ouvido do
inspetor – “o autor do ataque é Iosef Stalin.”
O verdadeiro assassino, no entanto, estava exatamente lá. “Jacques Mornard” era
amigo da trotskysta americana Sylvia Agelof, uma das secretárias de Trotsky. Fora
um visitante regular da casa de seu alvo desde 1939, embora só tenha se encontrado
com Trotsky pela primeira vez em maio de 1940. Tinha contatos nos círculos de
negócios onde se passava por canadense de nome Frank Jacson. De alguma forma,
ganhou a confiança de Trotsky e conversaram em diversas ocasiões, normalmente
sobre “personalidades fortes”. A esposa de Trotsky mais tarde se lembrou de que ela
e o marido chegaram a especular se não se tratava de algum tipo de fascista. Na
realidade, “Jacson” era Ramon Mercader del Rio, um espanhol a serviço de Stalin.
Em meados de agosto, “Jacson” pediu a Trotsky para corrigir um artigo de sua
autoria. Trotsky fez alguns comentários. Na noite de terça-feira, 20 de agosto,
“Jacson” voltou com o artigo corrigido e dirigiu-se ao estúdio de Trotsky para
mostrar a versão. Trotsky lia atentamente um manuscrito. “Jacson” entrou no
aposento e, como mais tarde demonstrou, colocou a capa de chuva sobre uma
cadeira, tirou uma picareta de gelo de alpinista do bolso dela e, com os olhos
fechados, atingiu com toda a força a cabeça de Trotsky. A vítima, como “Jacson”
relatou no tribunal durante seu julgamento, “emitiu um terrível e lancinante grito
que escutarei por toda a minha vida”. A agonia de morte de Trotsky durou quase 24
horas.
Uma carta foi encontrada com “Jacson” na qual ele se dizia “um seguidor
desiludido de Trotsky que viera ao México com objetivo diferente”. A ideia de
“matar o criminoso” amadurecera enquanto estava no país. A carta explicava que ele
não podia perdoar Trotsky por “conspirar com os líderes dos países capitalistas”. A
imprensa cedo começou a indagar quem seria realmente aquele homem. Quem
guiara sua mão? E logo em coro deu a resposta: foram Stalin, a NKVD e os
comunistas. “Jacson” Mercader, entretanto, durante todo o cumprimento da pena
de vinte anos em prisão mexicana, questionado por médicos e psiquiatras, jamais se
afastou da história original.
Na verdade, ele fora o instrumento de uma operação que deveria ter sido
realizada por um grupo maior de pessoas sob a direção de um homem da NKVD
chamado Eitingon. A escolha final do autor do atentado recaiu no ex-tenente do
Exército republicano espanhol, Ramon Mercader, de 27 anos àquela época. Ele não
só tinha experiência de combate como também estava convicto de que o levante
anarquista e trotskysta contra o governo republicano em maio de 1937 havia
recebido a bênção de Trotsky. Mercader ainda estava “quente” da guerra e viu o
assassinato de Trotsky como um nobre ato revolucionário.
Depois da morte de Trotsky, Beria foi promovido, tornando-se comissário geral
da segurança do estado, sete meses mais tarde. Ele passou a administração para V.N.
Merkulov, enquanto retinha o posto de comissário para as Questões Internas, ao
qual foi adicionado o de vice-presidente do Sovnarkom.
Stalin mal se continha em esperar a divulgação do conteúdo do testamento e da
última vontade de Trotsky. A maior parte foi escrita em 27 de fevereiro de 1940 e
tinha principalmente relação com o bem-estar material da esposa, mas Trotsky
encontrou espaço para escrever alguma coisa sobre Stalin:

Este não é lugar apropriado para que eu, de novo, refute a injúria torpe e estúpida de Stalin e de suas
agências: não existe mancha em minha honra revolucionária. Nem direta nem indiretamente entrei em
conchavos, tampouco conversei com inimigos da classe trabalhadora. Milhares de oponentes de Stalin
pereceram como vítimas de tais acusações falsas.82
[39]
Diplomacia secreta

P ara Stalin, diplomacia significava chegar a decisões e, se necessário, a meios-


termos que garantissem condições externas favoráveis à consecução dos
planos grandiosos que ele anunciara no último congresso. Como chefe,
podia dizer que dirigia o país para a meta de alcançar e ultrapassar os países
capitalistas desenvolvidos, mas precisava de tempo e de paz, paz a qualquer preço.
Por causa disso, tirou Litvinov do cargo de comissário do exterior, já que o julgava
por demais antifascista, substituindo-o por Molotov. Todos os caminhos tinham
que ser explorados para evitar que a URSS entrasse em guerra. Ele não era pelas
formas clássicas de diplomacia, com visitas, congressos, conferências internacionais e
cimeiras, preferindo, em vez disso, a correspondência confidencial, os emissários
especiais e as conversas particulares, participando pessoalmente se a situação exigisse
um relevo importante. Mas era crucial que apenas um reduzido número de pessoas
ficasse engajado na diplomacia como um dos braços da política externa do país. Os
comissariados do Interior e do Exterior tinham que supri-lo com fatos e informações
necessários sobre a real situação, sobre as implicações e tendências ocultas, a fim de
que ele pudesse tomar as decisões. Dando valor especial ao sigilo, há muito
esquecera o primeiro decreto do Estado soviético, ou seja, aquele sobre a “Paz”, que
condenara a diplomacia secreta; entre dezembro de 1917 e fevereiro de 1918,
enquanto Trotsky foi o comissário do Exterior, o governo divulgara mais de uma
centena de documentos sigilosos dos arquivos do ministério czarista das relações
exteriores.
Stalin, com frequência, pensou em tentar envolver os EUA na crise mundial que
se avolumava, mas não estabeleceu um contato construtivo com o presidente dos
Estados Unidos até a guerra. Fortemente desconfiado do colosso transatlântico,
tinha também dúvida se havia muita coisa que os EUA pudessem fazer na Europa.
Quando, em 15 de abril de 1939, Roosevelt escreveu a Hitler e Mussolini – a sua
chamada “surpresa de sábado” – oferecendo-se como intermediário imparcial de
todas as questões importantes e apelando para que os líderes fascistas prometessem
uma trégua de dez ou quinze anos sem atacar trinta países de uma lista da Europa e
do Oriente Médio,83 Stalin de pronto se mostrou surpreso e cético. Debatendo a
questão com Molotov, disse: “Somente um idealista poderia imaginar que tais
propostas seriam mesmo discutidas. Hitler pegou o freio nos dentes e não será fácil
detê-lo agora.”
“Ainda assim foi uma iniciativa nobre”, replicou Molotov, “mesmo que o
mundo não esteja preparado para reconhecer isso.”
Decidiu-se que a URSS divulgaria sua opinião sobre a atitude de Roosevelt, e
um telegrama foi imediatamente enviado com a assinatura de M.I. Kalinin, o qual,
como chefe de Estado, só tinha, é claro, tomado parte formal na deliberação:
Senhor Presidente
É meu agradável dever expressar profunda simpatia e sinceras congratulações que sinto pelo nobre apelo que
o senhor fez aos governos da Alemanha e da Itália. Esteja certo de que sua iniciativa encontrará a mais
calorosa acolhida no coração dos povos da União Socialista Soviética que se preocupam sinceramente com a
preservação da paz no mundo inteiro.
16.v.v.39 Kalinin84

Quando o enviado especial aos EUA, K.A. Umansky, foi recebido pelo presidente
em 30 de junho de 1939, Roosevelt limitou-se a expressar o desejo de que as
conversações anglo-franco-soviéticas chegassem a bom termo. Umansky passou um
cabograma para Moscou dizendo que o presidente “não se dispunha a usar seu
considerável poder moral e material para exercer influência sobre a política inglesa e
francesa”.85 A política externa foi, ocasionalmente, debatida no Politburo, mas
sempre depois de assentada por Stalin e Molotov. Por vezes, eles convocavam
especialistas dos comissariados interno e externo, bem como pessoal de informações
do Exército, para assessorá-los sobre questões específicas, porém a política era
determinada por Stalin com aconselhamento e sugestões de Molotov, cujos pontos
de vista nem sempre coincidiam com os de seu chefe.
Entrevistado pelo escritor Konstantin Simonov, Zhukov contou que esteve
presente no gabinete de Stalin durante o debate de matérias importantes com seu
círculo mais próximo: “Testemunhei discussões, altercações e resistência obstinada
sobre alguns pontos, especialmente da parte de Molotov, e a situação chegava a tal
ponto que Stalin se via obrigado a elevar a voz, extremamente excitado, enquanto
Molotov simplesmente se levantava, com um sorriso estampado no rosto, e
mantinha sua posição.”86 Stalin ficou impressionado com o que Molotov contou de
seus encontros com Hitler. O próprio Stalin só conheceu Ribbentrop.
Frequentemente se referia aos líderes nazistas como “desonestos”. De acordo com F.
Haus, chefe do departamento jurídico do departamento alemão do exterior, mesmo
durante as negociações sobre a conclusão do Pacto, Stalin não se conteve e
resmungou sarcasticamente para a delegação alemã alguma coisa relacionada com
“fraude”. E, na ocasião da própria assinatura, Stalin disse: “É evidente que não
esquecemos que o objetivo final de vocês é atacar-nos.” Nas discussões que
sustentava com Molotov sobre a possibilidade que tinha de retardar a guerra, o
secretário-geral várias vezes voltou ao assunto da figura de Hitler, sabendo muito
bem o quanto, num Estado totalitário, dependia da vontade do ditador. Mas, no
trato com os alemães, Stalin mal escondia seu maquiavelismo. Quando o Pacto foi
assinado, Stalin levantou sua taça de champanhe e brindou sem ironia: “Bebamos
em hora do novo Stalin anti Comintern! Bebamos pela saúde do líder do povo
alemão, Hitler!”
Ribbentrop, de pronto, correu para o telefone do escritório de Molotov, onde as
negociações ocorreram, e reportou para Hitler que o Pacto fora assinado e o que
Stalin dissera. Como um jubiloso Ribbentrop disse imediatamente a Stalin, Hitler
replicara: “Oh, meu grande ministro do Exterior! Você não sabe quanto conseguiu!
Transmita minhas congratulações a Herr Stalin, o líder do povo soviético.” Quando
ouviu isto, Stalin voltou-se para Molotov e deu-lhe uma quase imperceptível
piscadela.
O Pacto poderia não ter sido assinado em 23 de agosto pois, naquele dia, os dois
gigantescos aviões de transporte Condor, que conduziam a delegação de Ribbentrop
a Moscou, receberam tiros quando sobrevoavam a região de Velikie Luki. As
unidades de defesa antiaérea que vigiavam o espaço aéreo daquela rota não
receberam alertas específicos e só por sorte os aviões alemães não foram abatidos.
Este fato foi confirmado por M.A. Liokumovich, que servia na unidade que abriu
fogo, numa entrevista com o autor. Naturalmente, no mesmo dia, um encorpado
grupo de agentes da NKVD voou de Moscou para investigar o incidente e encontrar
os autores da “provocação”.
A segunda ação com que Stalin se envolveu foi o deslocamento da fronteira
soviética mais para oeste, assunto que já apreciamos, mas que vamos detalhar um
pouco mais. A decisão de tomar a Ucrânia e a Bielorrússia ocidentais, em face do
avanço dos exércitos alemães, foi, a meu ver, justificável e, de um modo geral, veio
ao encontro do desejo da classe trabalhadora da população local. Porém,
infelizmente, a ação de Stalin, violando o Tratado de Riga de 1921, foi influenciada
por seus acordos com Hitler sobre fronteiras futuras e “rearranjos” territoriais. Na
ausência de originais, podemos citar diversos outros documentos que confirmam
plenamente que houve um entendimento.
Em 10 de setembro de 1939, Beria enviou uma nota a Molotov: “Em conexão
com futuras alterações no desdobramento das tropas de fronteira da NKVD dos
distritos militares bielorrusso e ucraniano, a linha de fronteira do Estado soviético
fica aumentada de 1.412 para 2.012 quilômetros, ou seja, de 600 quilômetros.”
Beria propôs que um novo distrito militar fosse formado por cinco unidades de
fronteira.87 Quando as tropas soviéticas entraram na Ucrânia e na Bielorrússia
ocidentais, a linha demarcatória entre elas e as forças alemãs foi estabelecida segundo
um mapa secreto acertado pelos dois lados nas negociações de agosto. Isto se deduz
do seguinte documento:
Do adido militar alemão em Moscou, general Köstring, para o Estado-maior do Exército Vermelho:
1. Solicito que o Chefe do Estado-maior do Exército Vermelho, Shaposhnikov, seja informado de que, às
22h30, recebi a resposta de meu governo pela qual, seguindo as negociações, a cidade de Drogobych foi
entregue hoje, 24 Set 39, às 18h, sem dificuldades, a unidades do Exército Vermelho.
2. Ficou acertado também que a cidade de Sambor será entregue na manhã de 24 Set. Repito que não
surgiram dificuldades durante as conversações e estou muito satisfeito com o fato de tudo ter corrido tão
bem.
3. É meu dever reportar que, segundo o pessoal de nossa Força Aérea, grandes reservatórios de petróleo estão
queimando em Drogobych há dez dias. Circulam rumores locais de que eles foram incendiados por alemães,
mas peço que não acreditem, já que tal material também era necessário para nós.
4. No que respeita a vagões ferroviários, o Estado-maior do Exército Vermelho sabe que agimos de acordo
com os protocolos.
Isto é tudo o que eu desejava reportar de imediato. Köstring
Recebido pelo ajudante do Chefe do Estado-maior do Exército Vermelho, comissário regimental Moskvin.88

Outros documentos semelhantes mostram que Stalin achou necessário concordar


com esses e outros “detalhes”, tais como a entrega a Hitler de diversos grupos de
alemães e austríacos antifascistas que haviam sido detidos nos anos 1930, e que
agora estavam em prisões ou sob investigação. Durante as reuniões de agosto entre
Molotov e Schulenburg, o embaixador alemão levantou várias vezes a questão dos
“cidadãos alemães presos na URSS”, e sua entrega ao Reich.89 Depois da assinatura
do Pacto, e mais ainda depois dos protocolos secretos, Hitler não teve dificuldade
em conseguir o que queria.90
A recusa da Inglaterra, nas conversações tripartites, em dar garantia mais ampla
de segurança aos Estados bálticos não deixou sombra de dúvida de que aqueles
Estados seriam presas fáceis para Hitler. Como consequência das negociações de 28
de setembro de 1939, um acordo de assistência mútua foi assinado com a Estônia,
em 5 de outubro com a Letônia, e em 10 de outubro com a Lituânia, à qual Vilna e
a região de Vilna estavam incorporadas. Stalin tomou parte em todas as
conversações e cerimônias ligadas aos tratados bálticos, demonstrando a importância
que a URSS emprestava a tais acordos. Outro passo significativo foi a nota soviética
à Romênia, de 26 de junho de 1940, exigindo a devolução da Bessarábia, cuja
tomada pela força a URSS jamais reconhecera.
Mas Stalin não seria Stalin se as providências que tomou não fossem também
acompanhadas de sofrimento e dor. Em todos os territórios anexados, na Ucrânia e
Bielorrússia ocidentais, no Báltico e na Moldávia (Bessarábia), ele determinou de
imediato a “triagem dos elementos hostis”: kulaks, burguesia, negociantes, ex-
guardas brancos, nacionalistas ucranianos em geral, todos categorias “suspeitas”.
Muitos deles tomaram o conhecido caminho da Sibéria.
Os acordos econômicos, comerciais e de fronteiras tinham a intenção de
reafirmar o entendimento germano-soviético sobre neutralidade e, levando-se em
conta a natureza desconfiada de Stalin, surpreende que ele não tenha se posto em
estado de alerta em função de algumas ações de Berlim. Por exemplo, em janeiro de
1941, os alemães se recusaram a assinar o chamado “Acordo Econômico” por um
prazo longo, depois limitaram-no a 1941. Stalin foi também informado de que, na
véspera da assinatura do tratado que estabelecia a fronteira alemã-soviética do rio
Igorek até o mar Báltico, os funcionários alemães fizeram grandes concessões, sem
brigar por onde passaria a linha divisória em cada colina, desavenças normais em
qualquer negociação sobre fronteiras. Como o Pravda ressaltou, o tratado sobre
fronteiras “foi negociado em tempo extremamente curto, como jamais ocorreu na
prática mundial”. Stalin e os outros líderes soviéticos deveriam ter percebido que os
alemães não se preocupavam com a exatidão da demarcação porque a estavam
considerando puramente temporária. O Plano Oldenburg, que acompanhou a
Operação Barbarossa, visualizava a fronteira do futuro império bem mais para o leste.
Hitler não concebia suas ideias sobre o Lebensraum alemão em cima de abstrações,
mas Stalin carecia do estadismo e da perspicácia para dar o devido valor a estas e
outras noções. Em vez disso, manteve-se prisioneiro de seu próprio cálculo errado
sobre a oportunidade da invasão alemã.
Durante esse período pré-guerra, houve uma ação diplomática final pela qual
Stalin foi responsável, que foi o tratado de neutralidade assinado com o Japão. No
final de março de 1941, o ministro nipônico do Exterior, I. Matsuoka, chegou em
Moscou. A primeira rodada de negociações não produziu resultados, uma vez que os
japoneses insistiam em que a URSS lhes vendesse a Sakalina do Norte. Stalin, que
participou das conversações, permaneceu em silêncio enquanto o ministro japonês
falava, mas logo golpeou a demanda com uma frase simples: “O senhor está
brincando?” Pareceu que as negociações seriam rompidas. Matsuoka despediu-se
friamente dos anfitriões soviéticos e partiu para Berlim, retornando depois em 8 de
abril para novas conversas. Um tratado afigurava-se inviável, pois os japoneses
continuavam com seus pleitos inaceitáveis. Porém, naquela ocasião, a firmeza de
Stalin deu frutos porque, no dia previsto para a partida de Matsuoka, este recebeu
novas instruções de Tóquio, retirou as reivindicações e o tratado sobre neutralidade
foi assinado na mesma noite. A posição da URSS no Extremo Oriente melhorou
sensivelmente com aquele ato. Os japoneses concordaram também com o respeito à
integridade territorial e à inviolabilidade da República Popular da Mongólia. O
tratado, porém, não deixou de trazer inconveniências para o lado soviético. O
governo chinês se opôs abertamente a ele. Já em 27 de agosto, em seguida à
assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop, o embaixador chinês em Moscou, Sung
Fo, solicitou uma audiência com o vice-comissário de relações exteriores, S.A.
Lozovsky, e declarou francamente: “Estamos preocupados com duas questões: 1) os
rumores de um pacto de não agressão entre a União Soviética e o Japão, e 2) os
rumores de um acordo entre Inglaterra e Japão. Da perspectiva dos interesses
nacionais da China, nenhum dos dois é bom. Se a URSS fizer um pacto de não
agressão com o Japão, isso levaria inevitavelmente a uma diminuição de sua
assistência à China.” Lozovsky respondeu: “No que tange a um acordo de não
agressão entre Japão e URSS, de nada sabemos. Houve uma ocasião em que a URSS
propôs tal medida, mas o Japão declinou. A questão agora não está na agenda.”91
Essa fora a posição dezoito meses antes, mas agora Stalin estava ávido por reduzir
a pressão no seu flanco oriental.
Durante os últimos cinco anos, as relações entre Japão e URSS vinham sendo
marcadas pelo conflito, pela fricção, pela frequente e áspera troca de notas e por
importantes escaramuças armadas. A mais séria delas – envolvendo um milhão de
soldados! – ocorrera na Mongólia, em Khalkin Gol e no lago Khasan, e, sem dúvida,
foi a razão para que, finalmente, os japoneses decidissem assinar o tratado. Stalin
sabia que proporcionava liberdade de ação aos japoneses para o desencadeamento do
Plano Tanaka, de 1927, para a conquista do Pacífico, mas não tinha escolha –
Hitler era ameaça maior.
Matsuoka partiu naquela mesma noite e, poucos minutos antes de o trem deixar
a estação, Stalin surgiu, acompanhado de um grande número de seguranças, para
apresentar despedidas pessoais, deixando o ministro japonês em total estupefação.
Ao apertar a mão dos convidados que partiam, Stalin reiterou a importância que
conferia ao tratado recém-assinado, bem como à declaração de respeito mútuo pela
integridade territorial e a inviolabilidade de Manchukuo e da República Popular da
Mongólia. Aproveitou também a oportunidade para agradecer aos diplomatas
alemães que acompanhavam Matsuoka.
Stalin estava dividido: sabia que a guerra seria inevitável, mas, apesar disso,
recusava-se a acreditar que era iminente. Por isso, repetia com insistência que “não
podemos ser provocados”. Os alemães, nesse ínterim, percebendo que o único
objetivo de Stalin era ganhar tempo, tornaram-se mais atrevidos. Por exemplo, a
partir do início de 1941, aviões alemães passaram a violar às dezenas a fronteira,
avançando cada vez mais no espaço aéreo soviético. Mesmo se forçados a aterrar, os
aviões e as tripulações eram imediatamente devolvidos à Alemanha. Quando, pouco
antes da guerra, uma unidade soviética de fronteira abateu um avião de
reconhecimento matando dois tripulantes, Stalin ordenou a punição dos
responsáveis enquanto passou um telegrama ao enviado soviético em Moscou,
Skornyakov, determinando: “Vá imediatamente a Goering e expresse pesar pelo
incidente.”92
Quando Mussolini viu que não podia se estabelecer nos Bálcãs sem ajuda, apelou
para o Führer, que concordou, desde que o exército italiano fosse colocado
totalmente sob comando alemão. Na oportunidade em que as forças de Hitler
começaram a se concentrar para a invasão da Grécia e da Iugoslávia, esta última
propôs um tratado de não agressão e de amizade com a URSS. Já em 17 de janeiro
de 1941, Stalin dissera a Berlim que a URSS considerava a parte oriental da
península balcânica como zona de segurança soviética, e que não poderia ficar
indiferente aos eventos que ocorressem na região. Como um sinal a mais a Hitler de
que a URSS não desejava espraiar a guerra pelos Bálcãs, Stalin assinou o Pacto
URSS-Iugoslávia, em 5 de abril de 1941. Hitler, contudo, decidiu humilhar Stalin e
ignorou os dois sinais; poucos dias depois da assinatura do tratado aludido, forças
alemãs invadiram a Iugoslávia.
Ficou claro desde meados de 1940, tanto para Stalin como para Hitler, que as
relações entre eles estavam se deteriorando. Hitler convidou Stalin a visitar Berlim,
mas Moscou decidiu enviar Molotov no lugar do secretário-geral. Na véspera da
partida de Molotov, em novembro de 1940, ele e Stalin, com a presença de Beria,
gastaram longo tempo tentando decifrar o que Hitler poderia querer e o que os
soviéticos poderiam fazer para que a paz persistisse por pelo menos mais um par de
anos.
Molotov foi recebido na estação ferroviária de Berlim por Ribbentrop, Keitel,
Ley, Himmler e outros nazistas do alto escalão, cuja presença deixava patente o
grande significado que Hitler emprestava à visita. Com a derrota inevitável da
Inglaterra, como eles supunham, desejavam atenuar o temor de seu poderoso
vizinho e deixá-lo desprevenido.
Como já mencionamos, durante as negociações, Hitler e Ribbentrop passaram
mais de duas horas tentando distrair Molotov com conversas sobre “esferas de
influência”, “iminente desmoronamento do Império Britânico” e coisas assim.
Molotov, por seu lado, demonstrava completo desinteresse pelos planos globais
germânicos e insistia em conseguir respostas para questões concretas, tais como: por
que havia tropas alemãs na Finlândia; quando seriam as tropas alemãs retiradas da
Bulgária e da Romênia; por que a Hungria se juntara ao Pacto Tripartite [de
Alemanha, Itália e Japão]. Hitler ficou muito desapontado. Nada que dissesse
desviaria o rumo de Molotov, que continuava deixando claro que a única
preocupação de Moscou naquele momento eram as suas relações com a Alemanha.
Quando Hitler acompanhou Molotov ao Grande Salão da nova Chancelaria, pegou
o soviético pelo braço e disse: “Eu sei que a História se lembrará de Stalin. Mas
também se lembrará de mim.” Molotov, impassível como de hábito, replicou: “Sim,
senhor, claro que se lembrará.”
Poucas semanas mais tarde, em 18 de dezembro, Hitler sancionou o plano da
Operação Barbarossa, especificando que “o poder fundamental das forças terrestres
da Rússia desdobradas no oeste daquele país tem que ser destruído por meio de
operações decisivas que utilizem o emprego do movimento rápido e profundo dos
blindados como pontas de lança. A retirada e a dispersão das tropas combatentes
inimigas pelas vastidões do território russo têm que ser evitadas”.93 Mas Molotov
não percebeu nada disso e continuou acreditando que, embora fosse acontecer, a
guerra não viria imediatamente.
Stalin foi muito cuidadoso na observância dos termos do Pacto de Não Agressão
com a Alemanha e, no primeiro aniversário de sua assinatura, a imprensa soviética
abriu considerável espaço para o Pacto. Por sua vez, os alemães mal assinalaram a
ocasião. Entretanto, um mês depois, em 27 de setembro, eles assinaram o Pacto
Tripartite com Japão e Itália, que permitia que os dois países continentais criassem a
“nova ordem na Europa”, enquanto o Japão ficava livre para fazer o mesmo no
Extremo Oriente. No dia seguinte, quando o tratado alemão-soviético sobre
amizade e fronteiras completava um ano, os alemães o comemoraram. Ao ler os
relatórios da embaixada soviética em Berlim, Stalin ficou admirado com a audácia
de Hitler.
Discutindo os últimos eventos com Molotov, Stalin, que então já deveria estar
ciente da realidade com que se defrontava, persistiu em sua crença de que a guerra,
apesar de inevitável, ainda estava dois ou três anos longe. Em vez de consultar seus
líderes militares e seus diplomatas, confiou no próprio julgamento, embora soubesse
que, de qualquer forma, aqueles auxiliares tentariam concordar com ele. A
burocracia que cultivara com tanta assiduidade só era capaz de aprovar suas decisões.
Ele colhia então os frutos do mando de uma só pessoa. Zhukov se lembrou de certa
ocasião em que Stalin esbravejou para dois funcionários qualificados de seu
secretariado:
“De que adianta falar com vocês? A tudo que eu digo vocês só sabem responder
‘Sim, Camarada Stalin’, ‘É claro, Camarada Stalin’, ‘O senhor tomou a decisão mais
sábia, Camarada Stalin.’”
Afora Molotov, Voznesensky e Zhdanov, que, se não discordavam realmente de
Stalin, pelo menos ofereciam a oportunidade de algum debate, todos os outros
membros do Politburo nada mais faziam que, obedientemente, concordar com ele.
Para Stalin, aqueles ocupantes de altos cargos eram meros executores de suas ordens.
Ninguém duvidava do seu juízo de valor. Mesmo quando suas decisões, às vésperas
da guerra, pareciam confrontar a realidade, ninguém se permitia pensar que o líder
estivesse errado. Eles simplesmente achavam que não tinham entendido por
completo tudo o que se passava na mente do mestre. Zhukov recordava-se da
enorme fé que depositava na sapiência política de Stalin e na sua capacidade de adiar
a deflagração da guerra.94
Nos últimos dois meses que antecederam a guerra, Stalin recebeu alguns
relatórios de diferentes fontes, não só de informações e diplomáticas, alertando-o
quanto ao iminente ataque de Hitler à URSS. Os governos inglês e americano
também mandaram avisos. Churchill, já então primeiro-ministro, enviou um
relatório afirmando que os alemães deslocavam consideráveis efetivos de suas tropas
para o leste. Stalin descartou o alerta como outra tentativa inglesa de empurrar a
URSS ao confronto com Hitler. Mais tarde, em Moscou, em 1942, ele disse a
Churchill que não precisou de tais avisos porque sabia perfeitamente que Hitler
atacaria. Só esperava ganhar mais uns seis meses ou algo perto disso.95 Alertas
semelhantes se acumularam a tal ponto que Stalin julgou prudente checá-los com a
própria Berlim. Em 14 de junho de 1941, ordenou à TASS que publicasse um
desmentido sobre rumores de concentração de tropas germânicas nas fronteiras da
URSS, tachando-os de tolice e de propaganda canhestra de forças hostis à Alemanha
e à URSS:

A Alemanha está observando os termos do Pacto de Não Agressão com tanto escrúpulo quanto a URSS e,
portanto, os rumores sobre intenções da Alemanha de violar o Pacto e atacar a URSS não têm fundamento,
devendo o deslocamento de forças alemãs dos Bálcãs para áreas a leste e nordeste da Alemanha estar
vinculado a outros motivos não ligados às relações germano-soviéticas.

Uma declaração estranha como esta foi explicada, depois da guerra, por um
funcionário soviético importante como uma sondagem diplomática normal, mas foi
lida por milhões de cidadãos soviéticos e por todas as Forças Armadas, resultando
num efeito profundamente desorientador. Tal “sondagem” deveria ter sido
conduzida secretamente e os resultados divulgados pelo menos aos comandantes
superiores das forças armadas, ao comissariado de Defesa e aos distritos militares.
Por toda parte, ela foi entendida da mesma maneira, de acordo com L.M. Sandalov,
oficial de Estado-maior durante a guerra:
Vinda de um órgão estatal competente, uma declaração daquelas tendeu a entorpecer a vigilância das forças.
Os oficiais se convenceram de que havia circunstâncias desconhecidas que faziam com que o governo se
despreocupasse e ficasse seguro quanto às nossas fronteiras. Os oficiais deixaram de pernoitar nos quartéis.
Os soldados começaram a se desequipar para dormir.96

Enquanto Berlim ignorava a declaração, o povo soviético, treinado para acreditar em


tudo, ficou ainda mais convicto de que a guerra era improvável. Ao passo que o
tempo escoava e as tropas alemãs progrediam obviamente para o leste, Stalin ainda
se valia da diplomacia, do envio de notas, da publicação de comunicados da TASS,
deixando de tomar a decisão de pôr as forças armadas em prontidão total para o
combate.
Moscou esperou a resposta alemã com inquietação crescente. Todavia, a
embaixada soviética em Berlim reportou que os alemães se recusavam
peremptoriamente a responder. Uma nota relatando uma violação de espaço aéreo
foi passada a Berlim, mais uma vez sem provocar resposta. Em Moscou, Molotov
convocou o embaixador alemão para explicar o incidente e também para forçar uma
resposta à nota da TASS, ao mesmo tempo em que, em Berlim, o embaixador
soviético tentava um encontro com Ribbentrop. Tudo em vão. Enquanto Stalin
esperava por garantias alemãs sobre o Pacto, Hitler escreveu em 21 de junho a
Mussolini para dizer que esperava completo sucesso em sua campanha no leste:

O que quer que aconteça, Duce, nossa posição não vai piorar com esse passo, só pode melhorar...
Agora que tomei a decisão, sinto-me mais livre. Considerei a cooperação com a União Soviética, a despeito
da tentativa sincera de encontrar uma détente, por demais onerosa. Porque a mim ela parecia um
rompimento com meu passado, minha visão e meus compromissos anteriores. Estou satisfeito por sacudir
esse peso moral.
[40]
Omissões fatais

U m mês antes do ataque alemão, Stalin, falando a um grupo de auxiliares


mais próximos, disse: “O conflito é inevitável, talvez em maio do ano que
vem.” Pelo início do verão de 1941, reconhecendo que a situação ficava
explosiva, aprovou a formatura antecipada de cadetes, e foi assim que jovens oficiais
e comissários políticos, quase sem direito à licença de trânsito, foram classificados
diretamente nas unidades que estavam com efetivos desfalcados. Depois de muita
hesitação, Stalin decidiu também convocar 800 mil reservistas, completando as
dotações em pessoal de 21 divisões dos distritos militares da fronteira. Infelizmente,
isso foi feito duas ou três semanas antes do ataque.
Em 19 de junho, as tropas receberam ordem para começar a camuflar pistas de
pouso, instalações de transportes, bases e depósitos de combustíveis, e dispersar as
aeronaves pelos campos de pouso. As ordens foram dadas desesperadamente tarde e,
mesmo assim, Stalin temia que “todas essas medidas provoquem as forças da
Alemanha”. Timoshenko e Zhukov tinham que lhe solicitar duas ou três vezes para
que aprovasse ordens operacionais. Embora concordasse com os militares, ele se
apegava à ideia de que Hitler não arriscaria lutar em duas frentes e não percebia que,
de fato, não havia uma segunda frente real, em meados de 1941.
A natureza dos erros de cálculo de Stalin não residia somente em suas avaliações
equivocadas, em suas previsões erradas, ou mesmo na determinação do agressor,
embora, evidentemente, todos esses fatores estivessem presentes. Seus enganos
imperdoáveis derivaram do mando pessoal. É difícil acusar os comissários ou o
Soviete Principal de Guerra, quando a imagem do chefe era a de um líder infalível e
sábio. A lembrança dos julgamentos políticos ainda era muito recente, e qualquer
“mal-entendido”, “objeção” ou sinal de “imaturidade política” poderia resultar e
ainda resultava em sérias consequências.
Para agradar Stalin, todos falavam sobre a “invencibilidade do Exército
Vermelho”, o “endurecimento das atitudes do proletariado na Alemanha” e sobre
como as dificuldades internas do capitalismo fariam com que aquelas nações
“implodissem”. A imprensa escrita, o rádio e até os especialistas acadêmicos diziam
coisas semelhantes. Por exemplo, Ye. Varga, renomado assessor econômico de Stalin
(que mais tarde caiu em desgraça), disse durante uma palestra proferida na
Academia Político-Militar Lenin, em 17 de abril:

Levanta-se a questão: haverá vitoriosos e derrotados nesta guerra, ou ela perdurará por tanto tempo que
nenhum dos lados será capaz de derrotar o outro? Os interesses da URSS demandam a preservação da paz até
que uma crise revolucionária amadureça nos países capitalistas. Se surgir uma situação assim, os regimes
burgueses se enfraquecerão, o proletariado conquistará o poder e a União Soviética terá de ir, e irá, em ajuda
das revoluções proletárias de doutros países.97

Tais opiniões estavam disseminadas pelo país naquela ocasião e tinham sido
herdadas da guerra civil. Por outro lado, mesmo àquele tempo, funcionavam mentes
mais sóbrias e corajosas. Por exemplo, em 1940, um grupo da academia acima
citada preparou um documento de 35 páginas sobre “Ideologia militar” que foi
mostrado a Stalin. Em paralelo com o pensamento ortodoxo que vigorava, uma série
de questões heréticas foi levantada. Os autores enfrentaram de peito aberto as causas
do fracasso da URSS na guerra soviética-finlandesa: o baixo nível cultural dos
oficiais, a propaganda falsa sobre a invencibilidade do Exército Vermelho, a
“apresentação incorreta das missões internacionais do Exército Vermelho”, o
“preconceito prejudicial e profundamente arraigado, inevitável e praticamente sem
exceção, de que as populações dos países em guerra com a URSS supostamente se
levantariam e bandeariam para o lado do Exército Vermelho”. Conversas sobre
“invencibilidade levam à arrogância, à superficialidade e à negligência da ciência
militar; no campo da tecnologia, conduzem ao atraso; e no campo da teoria militar,
ao desenvolvimento unilateral de noções de combate em detrimento de outras”. O
estudo da teoria estrangeira de guerra, segundo o memorando, fora suprimido por
completo, enquanto as melhores tradições do exército russo não foram
popularizadas. A experiência de Khalkin Gol e do lago Khasan era desconhecida da
chefia militar: “O material sobre essas batalhas permanecia envolto em mistério pelo
Estado-maior.” O despacho de Stalin não passou de um “Arquive-se”.98 A sorte dos
autores do trabalho não é conhecida.
Na minha opinião, o maior erro de Stalin foi a assinatura do tratado de amizade
e fronteiras com Hitler, em 28 de setembro de 1939. Seria suficiente – e há
justificativa para tanto – assinar o Pacto de Não Agressão do mês anterior, menos os
protocolos secretos. Nas resoluções do Comintern e nas do XVIII Congresso do
partido, o nazismo foi adequadamente definido como um regime terrorista,
militarista e ditatorial, e como a falange mais perigosa do imperialismo mundial.
Nas mentes soviéticas, ele era a personificação do inimigo de classe em forma
concentrada. E agora, não mais que de repente, eram seus melhores amigos!
É difícil explicar o desvio cínico de Stalin para uma política de coonestação do
fascismo. Pode-se até entender a tentativa de escorar o Pacto de Não Agressão com
acordos de comércio e laços econômicos. Mas negar todas as anteriores premissas
ideológicas antifascistas foi demais. Os planos expansionistas da Alemanha não eram
entendidos com propriedade por Stalin. Por exemplo, a “Declaração dos Governos
Soviético e Alemão” assevera que “o acordo mútuo é de opinião que o fim da guerra
entre Alemanha, de um lado, e a Inglaterra e a França, do outro, viria ao encontro
dos interesses de todos os povos”.99 No entanto, estes povos poderiam muito bem
perguntar como isso seria possível. Deveriam aceitar e se conformar com a tomada
da maior parte da Europa por Hitler? Como poderia a Polônia, em ruínas que
estava, aprovar a “assistência mútua” assinada por Molotov e Ribbentrop?
Em sua busca desesperada para evitar a guerra, Stalin foi longe demais, pois as
concessões que fez nada adicionaram ao Pacto em si, exceto o atrevimento nazista e
a confusão soviética. É verdade que Stalin foi muito influenciado em sua política
alemã por Molotov, cujas muitas afirmações tontearam tanto o público soviético
quanto nossos aliados no exterior. Exemplificando, o discurso que pronunciou –
aprovado por Stalin – no Soviete Supremo, em 31 de outubro de 1939, inclui o
seguinte trecho:

A Alemanha está na posição de um estado que se esforça pelo fim rápido da guerra e pela paz, enquanto a
Inglaterra e a França, que ontem clamavam contra a agressão, são agora pela continuação do conflito armado
e contra a paz [...] Círculos governantes na Inglaterra e na França tentaram recentemente se apresentar como
lutadores pelos direitos democráticos dos povos contra o hitlerismo, com o governo inglês declarando que
seu objetivo na guerra era, nem mais nem menos, a “aniquilação do hitlerismo” [...] Não faz o menor
sentido, como é também criminoso, travar tal guerra para “aniquilar o hitlerismo” sob o falso estandarte da
luta pela “democracia” [...] Nossas relações com a Alemanha melhoraram fundamentalmente. Isto aconteceu
pelo fortalecimento de nossas relações de amizade, nossa colaboração prática, e por meio de nosso apoio
político à Alemanha no esforço que faz pela paz.100

Afora o fato de tal mudança de linha política e ideológica causar perplexidade na


mente pública, ela também revelava uma total falta de princípios. Stalin, que
mandara milhões de pessoas para a morte ou para os campos de trabalho pela mais
tênue suspeita de “impureza” ideológica, demonstrava uma excepcional falta de
escrúpulo ao confraternizar com o fascismo. Embora muitos membros do
Comintern não entendessem as razões de mudança ideológica tão súbita, não havia
o que pudessem fazer para alterar a linha oficial do Comintern. Até junho de 1941,
a organização conflitou com os partidos comunistas e trabalhistas europeus quanto à
avaliação do caráter antifascista da luta de seus países. Como no final dos anos 1920
e início dos 1930, as setas mais afiadas do Comintern foram reservadas para o
ataque aos socialdemocratas como “cúmplices do militarismo”. O slogan “Fim para
a guerra!” deixou de ter sentido. Como dar um fim à guerra se Hitler dominava
metade da Europa? Moscou não tinha resposta. A palavra “fascista” desapareceu do
vocabulário da liderança soviética. Berlim estava feliz. No seu discurso para o
Reichstag, em 1º de setembro de 1939, Hitler pôde dizer com toda razão: “O Pacto
foi ratificado em Berlim e Moscou. [...] Faço minhas cada uma das palavras que o
comissário do exterior Molotov disse sobre este assunto.”101
Os propagandistas do país, de um modo geral, e do Exército Vermelho em
particular, estavam numa posição incômoda. Por exemplo, como propagandista-
chefe do Exército, Mekhlis expediu uma ordem para as agências políticas e para as
organizações partidárias, declarando:

A instrução política dos jovens oficiais deve incluir a “lei sobre o serviço militar universal”, o discurso do
Camarada Voroshilov na quarta sessão do Soviete Supremo, o juramento militar, a lei sobre punição para a
traição, regras e regulamentos, o relatório do Camarada Molotov “sobre a ratificação do Tratado Alemão-
Soviético de Não Agressão”.102

Este último tópico da instrução foi acrescentado à mão por Mekhlis. Quando ele
submeteu a minuta a Stalin no dia anterior, o líder disparou: “Não irrite os alemães.
O Krasnaya Zvezda* anda sempre escrevendo sobre fascistas e fascismo. Acabe com
isso. A situação está mudando. Não devemos ficar apregoando a questão. Cada coisa
a seu tempo. Hitler não deve ficar com a impressão de que tudo o que fazemos é nos
prepararmos para a guerra contra ele.”103
Stalin confiava em que Mekhlis encontraria uma maneira de sufocar os
comentários antifascistas na imprensa e, ao mesmo tempo, de ordenar a injeção de
desconfiança nos nazistas na instrução política do Exército. Relatórios recebidos pela
administração da propaganda no Exército, depois de alcançados os entendimentos
germano-soviéticos, contêm alguns exemplos concretos do modo distorcido com
que os instrutores estavam avaliando a situação:
Engenheiro Militar de 2ª classe Nechaev: “Com a ratificação do Pacto [...] não podemos mais chamar a
instrução de tiro de ‘fogo no fascismo’. Não deve haver mais agitação e propaganda contra o fascismo, já que
nosso governo não tem mais diferenças com ele.”
Karatun, instrutor de Engenharia Militar da Academia: “Não temos ideia do que e como escrever agora –
fomos criados antifascistas, agora é o inverso.”
Primeiro-tenente Gromov, Distrito Militar de Kiev: “Pensando bem, a Alemanha parece que enganou todo o
mundo. Ela agora vai se servir dos pequenos países, porém, em face do Pacto de Não Agressão, não
poderemos fazer coisa alguma.”104

Hoje é difícil estabelecer com precisão quem sugeriu a introdução da palavra


“amizade” no título do tratado. Se foi o lado soviético, fica evidenciado o seu
descuido político. Se foram os alemães, tratou-se de um ataque calculado à
consciência nacional de toda a nação. Em qualquer caso, Stalin não estava a
cavaleiro da situação, e é duvidoso que Molotov estivesse correto quando disse mais
tarde que Stalin “adivinhou a tempo a intenção de Hitler”.
A forma como foi preparado o plano para a defesa do país e para o
desdobramento das Forças Armadas representa outra omissão séria. Pouco depois da
assinatura do Pacto, o Estado-maior recebeu instruções pessoais de Stalin para a
formulação deste plano. Sob a chefia de Shaposhnikov, o planejador-chefe foi o
futuro marechal, então coronel, A.M. Vasilievsky, cuja ideia básica era a de que o
Exército deveria estar preparado para lutar em duas frentes: na Europa contra a
Alemanha, e no Extremo Oriente contra o Japão, “sendo o teatro ocidental a
principal área de operações”. Esperava-se que o inimigo concentrasse seu esforço
principal nos setores oeste e noroeste, regiões em que o Exército Vermelho deveria,
portanto, grupar suas forças.105 Contudo, o plano foi rejeitado pelo comissário da
Defesa por não ter levado suficientemente em consideração o que as forças soviéticas
poderiam fazer para destruir o inimigo.
O plano de defesa revisado ficou pronto para apreciação por volta de agosto de
1940. Fora preparado sob o chefe do Estado-maior K.A. Meretskov, mas tendo, de
novo, Vasilievsky como encarregado do planejamento, o qual, mais uma vez,
sustentou que as forças soviéticas deveriam ser concentradas no setor ocidental. O
plano foi submetido a Stalin em 5 de outubro. O Secretário-Geral ouviu com
atenção as explicações do comissário da Defesa e do chefe do Estado-maior, olhou
para o mapa diversas vezes, caminhou pela sala por algum tempo e finalmente disse:

Não compreendo bem a insistência do Estado-maior em concentrar nossas forças no setor oeste. Eles dizem
que Hitler desfechará seu ataque principal na direção de Moscou pela rota mais curta. Mas eu acho que a
coisa mais importante para os alemães são os cereais da Ucrânia e o carvão da bacia do Donets. Agora que
Hitler está instalado nos Bálcãs, é ainda mais provável que lance seu ataque principal do sudoeste. Quero que
o Estado-maior pondere de novo e apresente um novo plano no prazo de dez dias.106

Enquanto definia o plano de defesa, o Estado-maior trabalhava simultaneamente


num documento de avaliação intitulado “Opiniões sobre os princípios do
desdobramento estratégico das Forças Armadas no oeste e no leste, em 1940-1941”.
Nele, a Alemanha era identificada como a grande ameaça, e a missão principal era
criar uma defesa sólida de fronteira com fortificações de campanha para impedir a
penetração do inimigo em território soviético, dando assim tempo para a
mobilização total. A partir de então, montar contra-ataques fortes para empurrar de
volta o inimigo e levar a luta ao seu território.
Pouco antes de estalar a guerra, Stalin, de forma característica, mandou que lhe
trouxessem um exemplar do manual de campanha do Exército Vermelho. O volume
apresenta todos os sinais de sua leitura muito atenta. Entretanto, as observações que
ele fez no Soviete Principal de Defesa e nas reuniões com figuras militares
importantes indicam que, em vez da doutrina militar e estratégica, ele confiava no
bom senso matizado de cautela. Entrou na guerra como um político confiante e não
como um pensador militar.
O novo plano de defesa foi apresentado a Stalin para outra avaliação em 14 de
outubro de 1940. Suas sugestões, evidentemente, haviam sido incorporadas,
significando que a orientação básica das forças fora alterada para o sudoeste.107
Entrementes, o serviço militar de inteligência sabia muito bem que a força principal
da Wehrmacht, consistente de três de seus quatro exércitos blindados, estava
direcionada para Smolensk e Moscou. Ainda assim, nenhum dos chefes militares
teve coragem ou argumentos para persuadir Stalin. Os altos cargos do Estado-maior,
além do mais, se encontravam ocupados por homens promovidos do distrito militar
especial de Kiev: S.K. Timoshenko, comissário da Defesa; Zhukov, que se tornou
chefe do Estado-maior em fevereiro de 1941; N.F. Vatutin, primeiro-vice de
Zhukov; S.K. Kozhevnikov, chefe da seção política do Estado-maior. Todos
consideravam o sudoeste de primordial importância, a par de, é evidente,
conhecerem o pensamento de Stalin. Um documento de 1940, relativo ao
desdobramento e preparado pelo novo chefe do distrito militar especial de Kiev,
M.A. Purkaev, afirmava sem reservas que o ataque principal do exército alemão
deveria ser esperado no sudoeste.108
A aprovação do plano por Stalin foi acompanhada da nomeação de Zhukov para
chefe do Estado-maior. No período de seis meses, três generais haviam ocupado a
função: em agosto de 1940, Shaposhnikov fora substituído por Meretskov, que
agora passava o cargo a Zhukov.
Por natureza homem determinado e resoluto, Zhukov acreditava que, uma vez
que Hitler atacaria primeiro, os alemães teriam uma vantagem decisiva. Discutiu
suas ideias e suas dúvidas com Timoshenko e, em 15 de maio de 1941, enviou a
seguinte nota manuscrita a Stalin:

Como a Alemanha está agora totalmente mobilizada e com sua retaguarda organizada, ela tem a capacidade
de nos surpreender com um ataque inopinado. Para evitar isso, penso ser essencial que tiremos a iniciativa do
comando alemão, surpreendendo suas forças durante o desdobramento, por meio de um ataque exatamente
no estágio de desdobramento, sem dar tempo a eles para organizar uma frente ou coordenar suas forças.

Zhukov concluiu declarando que o primeiro e absoluto objetivo do Exército


Vermelho era a destruição da força principal do inimigo nos setores central e
norte.109
Assim, pois, cinco semanas antes da catástrofe, Zhukov propunha a Stalin uma
mudança radical, ou seja, que a União Soviética lançasse um ataque contra os
alemães. Não existem indicações no memorando de Zhukov sobre a forma com que
Stalin reagiu. Ao contrário, no início de junho, o secretário-geral ordenou o reforço
do setor sudoeste com mais 25 divisões. No fim de abril de 1941, fontes de
informações da NKVD reportaram que “a invasão alemã da União Soviética foi
finalmente decidida e ocorrerá em breve. O plano operacional prevê um ataque
relâmpago na Ucrânia seguido de rápida progressão para o leste”.110
Foi uma tentativa alemã para desorientar a chefia soviética. Como Zhukov
escreveu muito tempo depois: “Hoje sabemos dos alertas sobre um ataque iminente
à União Soviética e sobre a concentração de forças inimigas em nossas fronteiras.
Porém, na ocasião, conforme documentos alemães capturados iriam revelar, Stalin
recebia relatórios de espécie bem diferente.”111 Todavia, o secretário-geral não
repassava ao seu Estado-maior todas as informações que pousavam em sua mesa. Por
exemplo, como já citamos, ele descartou o telegrama de aviso de Churchill como
uma provocação, e o telegrama só foi conhecido pelo Estado-maior bem depois de
ter chegado a Moscou.
Seguindo o mesmo pensamento, soube pelo acadêmico B.N. Ponomarev, antigo
integrante do Comintern e secretário do partido, que, a certa altura da primavera de
1941, provavelmente no final de maio, dois comunistas austríacos chegaram a
Moscou “vindos de lá”. Mostravam-se alarmados com a enorme escala dos
preparativos militares que tinham visto na Alemanha e nas fronteiras ocidentais da
União Soviética, e com as infindáveis colunas de carros de combate, artilharia e
caminhões que se deslocavam dia e noite para o leste. Ponomarev passou essa
informação a Georgi Dimitrov,** que a levou a Stalin. Dimitrov disse a Ponomarev
no dia seguinte: “Stalin recebeu calmamente a notícia dos austríacos e disse que já
conhecia muitos daqueles sinais, mas que não via razão para qualquer inquietação
específica.” Ainda no dia anterior, por exemplo, o Politburo apreciara o esquema de
férias e a maioria dos membros e candidatos a membro estava aproveitando a
oportunidade para usufruir do descanso de verão. “O primeiro a ir para o sul [em
férias] será A.A. Zhdanov, e ele, afinal de contas, é membro do soviete de guerra do
distrito da fronteira.” “E, com essa observação”, disse Dimitrov, “Stalin considerou
o assunto encerrado.”
A perplexidade de Ponomarev quanto à razão de Stalin não poder ou não querer
ver o perigo foi expressa por muitos outros. Zhukov, provavelmente, foi quem
melhor a colocou quando disse que todas as ações e ideias de Stalin às vésperas do
conflito estavam subordinadas ao esforço para evitar a guerra, o que gerou nele uma
certa crença de que ela não ocorreria. Porém, não teria o chefe do serviço militar de
informações, F.I. Golikov, seguramente informado Stalin de que, pelo início de
março de 1941, a Wehrmacht era constituída por oito milhões de homens, 12 mil
carros de combate, 52 mil canhões e cerca de 20 mil aviões? Era óbvio que a
Alemanha não manteria forças de tal expressão inativas por muito tempo. E Stalin
não podia deixar de saber que a força principal daquele Exército estava então
concentrada na sua fronteira ocidental.
Por outro lado, Stalin recebia relatórios de tipo diferente como, por exemplo,
sobre a relutância ao combate do povo germânico, deserções no Exército alemão,
ambiente derrotista, conversas que se processavam nas tropas do leste a respeito de
pacifismo, com comentários de que, se a Alemanha entrasse em guerra com a
Rússia, acabaria derrotada, e sobre sentimentos semelhantes.112 Existissem tais
opiniões realmente ou fossem forma sutil de desinformação, o fato é que elas se
ajustavam ao estado de espírito de Stalin.
Zhukov disse a Simonov que, no começo de 1941, quando cresceu
acentuadamente o fluxo de relatórios sobre a concentração de tropas alemãs na
Polônia, Stalin escreveu uma carta pessoal a Hitler para dizer que estava surpreso
com aqueles eventos, porque passavam a impressão de que o Führer se preparava
para lutar com a URSS. Hitler respondeu com uma carta também pessoal, frisando
que ela era confidencial, na qual disse que a informação era correta, que muitas
unidades de tropa estavam, de fato, grupadas na Polônia. Seguro de que o conteúdo
da missiva não passaria de Stalin, queria, no entanto, explicar que suas tropas na
Polônia não objetivavam ataque à União Soviética, e que tencionava observar
estritamente o Pacto com a honra devida a um chefe de Estado. Encontrou um
argumento no qual, segundo Zhukov, Stalin deve ter acreditado, a saber, que os
ingleses estavam efetuando pesados bombardeios no centro e no oeste da Alemanha
e que, como o inimigo, do ar, podia observar livremente o terreno, ele se via
obrigado a deslocar um grande efetivo de tropas para o leste. Ao mesmo tempo,
Köstring, o adido militar alemão em Moscou, dizia a funcionários soviéticos que as
forças germânicas estavam entrando em licença – “deixemos que descansem”.113
Na diretriz do comissário de Defesa “Sobre os resultados da inspeção da
instrução para o combate para o período de inverno e ordens para o período de
verão”, assinada por Timoshenko e Zhukov em 17 de maio de 1941, não há em
absoluto menção a missões para os distritos militares ocidentais, nem a um aumento
da vigilância e do aprestamento, tampouco a organização da defesa e da preparação
para repelir ataques aéreos maciços ou penetrações de grande número de carros de
combate. As diretrizes repisam observações de rotina sobre “inadequações da
instrução individual do soldado” e sobre a “ausência completa de ordens de
operações”.114
Não obstante, os serviços militares de informações continuaram remetendo
relatórios alarmantes. No fim de maio de 1941, o coronel Bondarev, de Kiev,
relatou a incessante chegada de novas unidades blindadas, de artilharia e de
infantaria na Polônia Oriental: “Continua a concentração de forças na fronteira
soviética. A preparação para a guerra segue em ritmo acelerado.”115 No setor
ocidental, o coronel Blokhin do serviço de informações reportou que,
“especialmente a partir de 25 de maio, as preparações da Alemanha contra a URSS
foram intensificadas” e que um espião alemão submetido a interrogatório revelou
que devia retornar com suas informações à cidade de Ciechanow não depois de 5 de
junho, porque lhe fora dito que as operações militares contra a União Soviética
eram uma possibilidade para breve.116 O comissário da Defesa enviou diversas
missões para inspecionarem as unidades blindadas nos distritos de fronteira, e os
resultados foram coligidos num relatório datado de 17 de junho. Mas ele contém
apenas críticas normais como: 1) a instrução é intermitente e não coordenada; 2) o
quadro de trabalho do treinamento da artilharia está defasado de dois a três meses;
3) a coordenação entre as diferentes categorias de tropas dentro das unidades é
deficiente; 4) os regimentos mecanizados estão treinando como tropa a pé e não têm
conhecimento adequado sobre sua missão; 5) as comunicações por rádio carecem de
instrução; e assim por diante, totalizando 17 itens.117
O chefe da propaganda política do Exército, A.I. Zaporozhets, fez um giro de
inspeção pelas fortificações ao longo da nova fronteira ocidental e seu relatório para
Stalin não foi nada animador: “A maioria dos distritos fortificados nas nossas
fronteiras ocidentais não está preparada para o combate. As posições preparadas de
artilharia não têm canhões. Os distritos fortificados não contam com a quantidade
necessária de instalações permanentes e especialmente construídas.”118 Stalin
repassou o relatório a Timoshenko com a sugestão de que os engenheiros de
construção trabalhassem com mais afinco.
Zhukov disse depois que Stalin resistiu a todas as tentativas do comando militar
para pôr a tropa em prontidão na fronteira ocidental. Seu temor de “provocar”
Hitler tornou-se quase uma obsessão. É possível até entender o desejo de não dar a
Hitler um pretexto para atacar, mas é difícil que Stalin imaginasse que o Führer
atacaria caso provocado, se a invasão da URSS já não figurasse em seus planos.
Nesse meio-tempo, Hitler consultou seus especialistas militares, ouvindo deles que o
transporte ferroviário das tropas alemãs para o leste estaria completado em 19 de
junho, e que, pela noite de 21 de junho, os primeiros aviões de ataque voariam em
baixa altitude para novos aeródromos próximos à fronteira soviética, a leste do
Vístula. Hitler alterou apenas um detalhe do plano: fixou a Hora-H para às três da
manhã, e não 3h30, de 22 de junho. Relatórios chegaram na noite de 20 para 21 de
junho a respeito da retirada do arame farpado na fronteira e também do grande
número de aviões alemães violando o espaço aéreo soviético.119
Talvez possamos entender melhor o drama daquelas últimas horas se atentarmos
para um importante traço da personalidade de Stalin que era o da grande prudência.
Naturalmente, nos assuntos corriqueiros do dia a dia a questão da audácia não se
fazia sentir, mas nos importantes ele era extremamente circunspecto. Por exemplo,
em outubro de 1917, sua iniciativa foi mínima porque ele não compreendia por
completo o que estava ocorrendo. Em 1934, não explorou a morte de Kirov da
maneira que, de imediato, pretendeu, mas esperou até 1937-38 para “desenraizar os
inimigos do povo”, o que, nas suas próprias palavras deveria ter sido feito quatro
anos antes. Teve paciência e aguardou que a mente pública chegasse à condição
necessária, gota a gota. Bukharin chegou mesmo a chamá-lo de “o grande
administrador de doses”.
Contudo, sua hipercautela no trato com Hitler foi contraproducente porque o
Führer o sobrepujou em esperteza. O comportamento de Stalin foi ditado não só
pela visualização das consequências de uma guerra “prematura”, mas também por
uma profunda insegurança pessoal. A Rússia enfrentava sozinha o mundo
capitalista. Qualquer passo em falso poderia conduzir a resultados irreparáveis.
Berlim notou que Stalin evitava de forma obsessiva as “provocações” e concluiu que
a URSS estava fraca. Quando Stalin ordenou que as tropas do setor ocidental e as
unidades de fronteira não empregassem o armamento contra os aviões alemães que
violassem o espaço aéreo, os germânicos concluíram de pronto que a cautela se
transformara em indecisão.
Na véspera do estalar da guerra, o coronel-general M.P. Kirponos, comandante
do distrito de Kiev, reportou diversos casos de desertores alemães que tinham
passado a fronteira. Eles revelaram que os germânicos iriam atacar naquela noite.
Timoshenko telefonou imediatamente para Stalin. Depois de uma pausa, Stalin
requisitou sua presença, juntamente com Zhukov e Vatutin. Zhukov relembrou
mais tarde que, quando chegaram, todo o Politburo já estava reunido. Stalin, como
de hábito, caminhava de um lado para outro e, tão logo os viu, perguntou: “Bem, e
então?” Houve completo silêncio. Finalmente, a voz de Timoshenko quebrou a
tensão: “Temos que dar ordens imediatas para que todas as tropas dos distritos de
fronteira entrem em alerta total para o combate.” Stalin retrucou: “Leia isto.”
Zhukov leu a minuta de uma ordem do Estado-maior que acentuava a necessidade
de ação decisiva de acordo com o plano para repelir o inimigo. Stalin interveio:

Seria prematuro expedir agora esta ordem. Talvez seja possível resolver a situação por meios pacíficos.
Devemos soltar uma ordem breve dizendo que um ataque pode ocorrer se provocado por ação alemã. As
unidades de fronteira não devem se deixar provocar por qualquer coisa que possa causar dificuldades.120

Enquanto os militares se retiravam para cumprir suas determinações, Stalin


resmungou, como se falasse consigo mesmo: “Acho que Hitler está tentando nos
provocar. Seguramente, não decidiu começar a guerra.”
O Politburo dispersou-se às três horas da manhã. Era a noite mais curta do ano.
Stalin olhava para as ruas vazias através das janelas de sua limusine, sem saber que as
aeronaves alemãs já estavam voando para bombardear cidades e aeródromos
soviéticos. Mal tinha encostado a cabeça no travesseiro quando bateram
cautelosamente na porta. Saiu do quarto e o oficial de serviço lhe disse: “O general
Zhukov solicita uma conversa telefônica com o senhor sobre um assunto que não
pode esperar!” Stalin tirou o telefone do gancho e ouviu o breve relato de Zhukov
sobre os ataques de aviões inimigos a Kiev, Minsk, Sebastopol, Vilna e a outras
regiões. O general disse então: “Entendeu o que eu disse, Camarada Stalin?” O
ditador ficou calado. Zhukov perguntou de novo: “Camarada Stalin, entendeu o
que eu disse?” Stalin, finalmente, entendeu. Eram quatro horas da manhã de 22 de
junho de 1941.
Notas

* Estrela Vermelha, o jornal do Exército Vermelho.

** Líder comunista búlgaro do Comintern.


PARTE VIII
Início catastrófico

As nações pagam pelos erros de seus estadistas.


Nicolai Berdyaev
[41]
Choque paralisante

S talin, por fim, conseguiu murmurar: “Venha ao Kremlin com Timoshenko.


Diga a Poskrebyshev para convocar todos os membros do Politburo.”
Retornou ao Kremlin e subiu ao seu escritório pela entrada privativa. Ao
passar pelo empalidecido Poskrebyshev, disse rispidamente: “Mande todos para cá,
agora!”
Em silêncio e com cautela, os membros do Politburo foram entrando, seguidos
de Timoshenko e Zhukov. Sem cumprimentar ninguém, Stalin foi logo dizendo,
não se dirigindo a qualquer dos presentes em particular: “Ponham o cônsul alemão
ao telefone.” Molotov deixou a sala. Caiu pesado silêncio. Em torno da mesa,
sentavam-se Andreyev, Voroshilov, Kaganovich, Mikoyan, Kalinin, Shvernik, Beria,
Malenkov, Voznesensky e Shcherbakov. Quando voltou, Molotov percebeu todos
os olhares convergindo para sua pessoa. Ocupou seu lugar e gaguejou: “O
embaixador informou que o governo alemão nos declarou guerra.” Olhou para um
pedaço de papel que empunhava. “A razão formal é a de sempre: ‘A Alemanha
Nacionalista decidiu se antecipar a um ataque dos russos.’”
O silêncio parecia quase palpável. Stalin se sentou e encarou Molotov com olhos
enraivecidos, como se estivesse lembrando da confiante predição do auxiliar, feita
seis meses antes, de que Hitler jamais travaria uma guerra em duas frentes, e que a
URSS tinha bastante tempo para reforçar suas fronteiras ocidentais. “Bastante
tempo...” Stalin sentiu-se traído. Os outros ficaram esperando que falasse e
expedisse suas ordens.
Timoshenko quebrou o silêncio:
“Camarada Stalin, posso fazer um relatório da situação?”
“Sim.”
O 1º vice-chefe do Estado-maior, major general N.F. Vatutin, entrou na sala.
Seu breve relato revelou pouca informação nova: depois de uma tempestade de
artilharia e de ataques aéreos sobre diversos alvos nos setores de oeste e noroeste,
grandes efetivos de tropas alemãs haviam invadido o território soviético. As unidades
de fronteira, que receberam o impacto do ataque principal, tiveram pesadas baixas,
mas não desertaram de seus postos. O inimigo efetuava constante bombardeio dos
aeródromos soviéticos. O Estado-maior não tinha mais informações a prestar.
Stalin nunca tivera um choque tão grande na vida. Sua confusão era óbvia, como
também a raiva por ter sido enganado e o medo ante o desconhecido.
Os membros do Politburo permaneceram ao seu lado no escritório durante todo
o dia, esperando por notícias da fronteira. Só deixavam a sala para fazer uma
chamada telefônica, tomar um chá ou esticar as pernas. Pouco falaram, esperando
que os reveses fossem apenas passageiros. Ninguém duvidava de que Hitler receberia
uma resposta à altura.
Malenkov tinha na pasta uma minuta de decreto para a administração principal
da propaganda política no Exército Vermelho, que Zaporozhets lhe entregara em
meados de junho. (Zaporozhets foi substituído no segundo dia de guerra por
Mekhlis.) Malenkov entregara a minuta a Stalin em 20 de junho; ela vinha sendo
preparada desde o discurso de Stalin, de 5 de maio de 1941, para os formandos
militares, quando o secretário-geral disse que a guerra era inevitável e que tínhamos
que nos preparar incondicionalmente para destruir o fascismo. Os pontos
importantes do decreto, que Stalin não tivera a oportunidade de aprovar antes da
deflagração da guerra, eram que a situação estava repleta de surpresas e que a
determinação revolucionária e a presteza constante para passar ao ataque
mostravam-se essenciais. Toda a propaganda deveria focar na instrução para a
capacitação política, moral e combatente dos militares, de modo que pudesse ser
travada uma guerra justa, ofensiva e abrangente.1
Além de Malenkov, somente Zhdanov vira a minuta. Ela fora concebida dentro
do espírito do plano de desdobramento que Zhukov apresentara a Stalin em maio,
onde também fora citada a necessidade de “surpreender o inimigo e esmagar sua
força principal na ex-Polônia e na ex-Prússia Oriental”.2 O Estado-maior e a
administração principal política acreditavam que a defesa deveria ser de curto prazo,
uma vez que as tropas estavam sendo treinadas para o ataque. Por causa disso, a
ideia de que um ou dois dias do início da guerra estavam sendo catastróficos não
passou pela cabeça da liderança política e militar.
O decreto estava atrasado em um dia. Stalin não entendia, e ninguém lhe
explicou – Timoshenko temia por demais o secretário-geral – que a preparação para
a guerra implicava um cronograma muito apertado. O tempo necessário para pôr
uma divisão em alerta total variava de quatro a vinte e quatro horas. O distrito
militar ocidental, por exemplo, precisava de quatro a vinte e três horas.3 O decreto
da defesa foi emitido pelo Estado-maior aos vinte minutos de 22 de junho de 1941.
Recebido nos distritos militares à 1h20, demandou dos comandantes locais mais
uma hora ou hora e meia para que acionassem seus dispositivos, e isso significou que
as tropas tiveram menos que uma hora para a execução das ordens.
Muitas divisões só entraram em alerta total quando já estavam sob ataque aéreo.
Diversas unidades e companhias foram forçadas a enfrentar colunas de carros de
combate alemães sem mesmo ter chegado às suas posições predeterminadas. A
penetração conseguida pelas unidades alemãs altamente móveis, que atingiu
cinquenta ou sessenta quilômetros no primeiro dia, foi uma surpresa total. A
segunda linha soviética que se deslocou para a fronteira se viu também sob ataque de
aviões alemães, os quais conseguiram a supremacia aérea desde o início das
hostilidades. As tropas soviéticas passaram por um fluxo infindável de refugiados.
Todas as comunicações estavam cortadas. Os comandantes ficaram sem ideia da
situação e, enquanto isso, Stalin esperava por notícias animadoras.
Quando, na manhã de 22 de junho, surgiu a questão de quem deveria
comunicar à nação o ataque alemão, todos, naturalmente, se voltaram para Stalin.
Quase sem hesitar, ele deixou claro que se recusava. Tem sido geralmente aceito que
Stalin agiu daquela forma porque, como Mikoyan, por exemplo, relembrava, estava
em tal estado depressivo que “não sabia o que dizer ao povo, uma vez que o ensinara
a pensar que não haveria guerra, mas, caso ela viesse, o inimigo seria batido em seu
próprio território e, agora, seria forçado a admitir que estávamos sendo derrotados
nas primeiras horas”.4
Acredito que tudo se passou de forma um pouco diferente. A questão do
comunicado à nação foi decidida bem cedo naquela manhã quando ninguém em
Moscou ainda sabia que “estávamos sendo derrotados”. Todos entendiam que
haveria guerra, mas ela chegou muito de repente. Stalin não tinha ideia clara do que
acontecia na fronteira. Provavelmente, não quis se dirigir à nação enquanto a
situação não ficasse esclarecida. No dia 22, não chegaram notícias de vitórias, e ele
ficou alarmado e confuso, mas confiava em que, no prazo de duas ou três semanas,
daria o troco a Hitler pela violação do acordo e, então, apareceria diante do povo. O
choque paralisante só o atingiu depois de quatro ou cinco dias quando, finalmente,
compreendeu que a invasão era uma ameaça mortal para ele, não só para o país. Isto
se deduz das duas ordens que aprovou, às 7h15 e às 21h15 do dia 22 de junho,
assinadas por Timoshenko, Malenkov e Zhukov.
De manhã, depois de decidido que Molotov se dirigiria à nação e que também
seria declarada a mobilização de todos os 14 distritos militares, Stalin, ainda
desconhecedor da escala da catástrofe, exigiu que os militares “destruíssem o inimigo
invasor com golpes devastadores”. Timoshenko, de imediato, passou a compor o
documento, conhecido pela história como Ordem nº 2 do Soviete Principal de
Guerra, endereçado a todos os distritos militares ao longo da fronteira do oeste e do
sudoeste, com cópia para o comissário da Marinha:

Em 22 de junho, às 4h, a Força Aérea alemã desencadeou incursões de bombardeio totalmente não
provocadas sobre nossos aeródromos e cidades ao longo da fronteira ocidental. Simultaneamente, forças
alemãs abriram fogo de artilharia sobre várias localidades e cruzaram nossa fronteira.
Em vista da audácia do ataque alemão à União Soviética, determino que:
1. As forças utilizem todo o seu poderio e todos os meios para cair sobre as tropas inimigas e destruí-las onde
elas violarem a fronteira soviética. Até segunda ordem, nossas tropas terrestres não deverão cruzar a fronteira.
2. Aviões de reconhecimento e de combate deverão identificar os locais em que o inimigo concentrou seus
aviões e sua força terrestre. Bombardeiros de grande altitude e bombardeiros de mergulho têm de destruir
totalmente a força aérea inimiga no solo e suas principais concentrações de forças terrestres. Os ataques
aéreos devem ser executados até a extensão de 100 a 150 quilômetros do território alemão. Königsberg e
Memel devem ser bombardeadas. O território finlandês e o território romeno não deverão, até ordem em
contrário, ser bombardeados.
22.6.41, 7h15. Timoshenko, Zhukov, Malenkov5

A diretriz mal parece um documento militar, mas leva a marca registrada de Stalin.
É um ato de vontade política, de determinação em punir o vizinho pérfido, e revela
pouco indício de uma intenção de acabar rapidamente com a guerra. Por outro
lado, fica difícil explicar o porquê de as tropas terrestres não poderem cruzar a
fronteira até segunda ordem. Ao expedir a determinação para que as principais
concentrações de tropas inimigas fossem destruídas, Stalin ainda não sabia que, no
primeiro dia de combate, as forças do distrito ocidental perderiam 738 aviões, dos
quais 528 seriam destruídos no solo. O quadro era semelhante nos outros distritos.
Nas primeiras horas da guerra, os alemães conseguiram supremacia aérea total,
destruindo, num só dia, 1.200 aeronaves soviéticas.
Stalin pressionou seus militares para obter informação consistente, porém, de
lado algum chegavam boas notícias. A situação na frente noroeste era desastrosa. O
comandante do VIII Exército, do distrito militar do Báltico, P.P. Sobennikov,
lembrou de que não havia um plano preciso para a defesa da fronteira. As tropas
estavam principalmente engajadas no trabalho de construção nos distritos
fortificados ou nos aeródromos. As unidades tinham efetivos incompletos. As
instalações permanentes não estavam prontas. Pela manhã, praticamente todos os
aviões do distrito militar do Báltico tinham sido destruídos no chão e restavam
apenas quatro ou cinco para apoiar as operações do VIII Exército. Acrescentou com
amargura que:
Ordens conflitantes começaram a chegar para levantar barreiras, lançar campos de minas, e assim por diante,
para, em seguida, uma contraordem cancelar tudo, mas, logo depois, a ordem era repetida para que tudo
fosse feito de imediato. Pessoalmente, recebi uma ordem do chefe do Estado-maior distrital, o tenente-
general P.S. Klenov, na noite de 22 de junho, dizendo categoricamente que, pelo amanhecer, eu deveria
retirar minhas tropas da fronteira. Era possível sentir um nervosismo extremo, a falta de coerência e o medo
de provocar a guerra. Da mesma forma que as tropas, os Estados-maiores também estavam desfalcados.
Tinham comunicações e meios de transporte inadequados. Não estavam prontos para o combate.6

Enquanto isso, Stalin esperava ansiosamente, levantando a cabeça cheio de


expectativa a cada pessoa que entrasse na sala. No primeiro dia, um copo de chá foi
sua única refeição. Achava os comandantes muito morosos, sem determinação e sem
entenderem direito a diretriz expedida naquela manhã. Acostumado a conseguir que
as coisas fossem feitas pela pressão e pela ameaça aos que comandavam, a inação teve
um efeito depressivo sobre ele. Finalmente, perdeu a paciência e, pondo fim a uma
discussão com Molotov, Zhdanov e Malenkov sobre uma proposta de Timoshenko
para a criação de um Quartel-General Principal de Comando, levantou-se de súbito,
começou a caminhar de um lado para outro e, segundo Zhukov, ordenou que
oficiais antigos do quartel-general do Estado-maior fossem despachados
urgentemente para os fronts oeste e sudoeste. “Naquele mesmo dia, de pronto”,
Shaposhnikov e Kulik deveriam voar para se juntarem a Pavlov, enquanto Zhukov
iria para junto de Kirponos. Voltou à mesa e, encarando ameaçadoramente os
outros, repetiu: “Imediatamente!”
Convencido de que novos impulsos a partir do centro, urgentes e enérgicos, se
faziam necessários, Stalin ordenou que Vatutin formulasse outra ordem, expedida
naquele dia pelo Soviete Principal de Guerra (no dia seguinte, o quartel-general sob
a chefia de Timoshenko seria criado), e que emergiu, fortemente editada por Stalin,
como Ordem nº 3. Ela especificava que, entre 23 e 24 de junho, as forças soviéticas
teriam que destruir o inimigo no setor Suvalki das frentes noroeste e oeste por meio
de “ataques concentrados concêntricos”, e, utilizando táticas semelhantes, todos os
corpos blindados soviéticos e a Força Aérea do setor sudoeste, bem como os V e VI
Exércitos, deveriam envolver e destruir o inimigo nos setores de Vladimir-Volynia e
Brody, e deveriam capturar Lublin por volta de 24 de junho. “Do Báltico, até a
fronteira com a Hungria, permito o cruzamento da fronteira, e as operações devem
desconsiderar tais fronteiras.”7
Às dez horas daquela noite, Vatutin trouxe a notícia de que a infantaria do
Exército Vermelho repelira ataques na maior parte da fronteira com pesadas baixas
para o inimigo.8 A vida pareceu recomeçar e o ânimo melhorou bastante. Stalin e
seu entourage ainda não tinham conhecimento de que as forças germânicas tinham
feito uma penetração profunda em território soviético. As ilusões só começaram a se
dissipar na manhã de 23 de junho, quando fracassaram as tentativas de contato com
as equipes dos quartéis-generais de campanha, e baixou um crescente sentimento de
que o comando estava perdendo o controle das tropas. Foi exatamente isso que
aconteceu na frente oeste ao longo do dia. O general Pavlov enviou dois telegramas,
um ao comandante do X Exército, perguntando quem era responsável pelo fato de o
corpo blindado não ter atacado: “Sem retardo, ative a operação, não entre em
pânico, assuma a chefia. O inimigo deve ser assaltado de forma organizada, não
como uma carga sem liderança. Você tem de conhecer sobre cada divisão, onde ela
está, quando e o que está fazendo e o que conseguiu.”9 A segunda ordem de Pavlov,
assinada também por Ponomarenko e Klimovskikh, foi para os comandantes dos
III, IV, X e XIII Exércitos, sendo a última que expediria. No prazo de um mês, ele
estaria diante do pelotão de fuzilamento:

Não mais tarde que 21h desta noite, 25 de junho, prepare as unidades para a retirada. Carros de combate na
vanguarda, cavalaria e forte defesa antiaérea na retaguarda.
A retirada deve se processar rapidamente, dia e noite, sob a cobertura de uma retaguarda firme. O
movimento retrógrado deve ser efetuado em larga frente. O primeiro lance deverá ser de 60 quilômetros, ou
mais, num dia. A tropa deverá ter liberdade para prover sua própria subsistência, retirando o que for
necessário dos recursos locais e fazendo uso do que for preciso para tanto.10

Pavlov parecia não saber que os alemães já tinham capturado ou destruído os


depósitos de combustível e os meios de transporte de que o Exército necessitava para
realizar uma retirada com ordem, e o resultado foi que a operação teve lugar em
condições pavorosas e à completa mercê da Força Aérea alemã e das rápidas
manobras de desbordamento das unidades mecanizadas alemãs.
Nos últimos dias de junho, Stalin se conscientizou da amplitude da ameaça fatal
e, por algum tempo, simplesmente perdeu o autocontrole e caiu em profundo
choque psicológico. Entre 28 e 30 de junho, segundo testemunhas, Stalin ficou tão
deprimido e abatido que não mais agiu como líder. Em 29 de junho, ao deixar o
Comissariado da Defesa na companhia de Molotov, Voroshilov, Zhdanov e Beria,
soltou o verbo aos gritos: “Lenin nos legou uma grande herança e nós, seus
herdeiros, fodemos tudo!” Perplexo, Molotov, voltou-se para ele, mas, como os
outros, não disse coisa alguma.11
O choque foi grande, porém não durou muito. Antes que ele o atingisse, Stalin
procurou fazer alguma coisa, expediu ordens e tentou inspirar as agências
governamentais para demonstrarem energia. Em 23 de junho, durante um debate
sobre a criação de um QG do chefe do Estado-maior, Stalin surpreendeu a todos
quando interrompeu bruscamente as discussões para propor: “Um Instituto de
assessores permanentes deve ser criado em associação com o Quartel-General,
consistindo dos Camaradas marechal Kulik, marechal Shaposhnikov, Meretskov,
chefe da força aérea Zhigarev, Vatutin, chefe da defesa antiaérea Voronov, Mikoyan,
Kaganovich, Voznesensky, Zhdanov, Malenkov, Mekhlis.”12
Malenkov e Timoshenko, que tinham preparado o documento sobre o novo
quartel-general, trocaram olhares, mas, é evidente, nada disseram, e a ordem de
Stalin foi enviada aos distritos militares com a assinatura de Poskrebyshev. O
Instituto, entretanto, morreu quietamente em duas semanas, sem ter na realidade
funcionado.
Outra omissão de Stalin e do Estado-maior às vésperas da guerra foi a de não
terem formulado a criação de um órgão especial para liderar o país em tempo de
guerra, ou seja, o Comitê de Defesa do Estado, e um órgão superior de liderança
militar, o QG do Comando Supremo. Órgãos deste porte só foram organizados
com a guerra começada. E, como já observamos, o Estado-maior estava
enfraquecido pela sucessão rápida de chefes. Tais falhas cobraram alto preço.
Boas notícias não havia. Os tanques alemães se aproximavam de Minsk.
“O que você disse? O que está acontecendo em Minsk? Será que entendeu
direito? Como você sabe disso?”
“Não, Camarada Stalin, não entendi errado”, murmurou Vatutin em resposta:
“O front oeste entrou praticamente em colapso.”
Na verdade, o caos se instalara na maioria das frentes. Ordens eram expedidas,
por exemplo, esperando que tropas atacassem depois de marcharem em retirada
cerca de 300 quilômetros. Quando os contra-ataques tinham sucesso, a manobra
perdia impulsão por falta de combustível. Se não eram dados os meios a um
comandante para que cumprisse uma ordem impossível, ele podia ser ameaçado de
execução por seu superior, e a própria ordem, com toda a probabilidade, seria, de
qualquer forma, revogada. No ar, os alemães tinham total liberdade de ação, porque
a Força Aérea soviética não era vista em parte alguma.13
Stalin sentiu que o olhar do povo caía sobre ele. Proclamara com frequência a
invencibilidade do Exército Vermelho e, agora, a ele parecia não haver esperança
para a situação. Quando Vatutin mostrou no mapa que o VIII e o XI exércitos
recuavam em direções divergentes, Stalin viu claramente que o colossal fosso entre
as frentes oeste e noroeste chegara a 130 quilômetros. As forças principais do front
oeste ou estavam cercadas ou tinham sido destruídas. As da frente sudoeste, ao
contrário, pareciam sustentar razoavelmente bem suas posições. Por que não ouvira
os especialistas e construíra defesas no front oeste? Em todas as suas campanhas
europeias, Hitler fora direto à capital para conseguir a capitulação rápida do país.
Por que os estrategistas não ressaltaram tal característica?
Em estado de aflição, Stalin se comportou de forma hesitante, dividindo o
tempo entre a dacha próxima e o Kremlin, mas, em geral, aparecendo muito pouco.
Timoshenko, então também chefe do Estado-maior, estava claramente em má
situação. Todo mundo sabia que Stalin ainda detinha poder e autoridade, mas agia
impulsivamente e seu estado depressivo era visível. Isso, naturalmente, se refletia em
certo grau sobre o comando militar, e algumas de suas ordens traziam a marca do
desespero, como, por exemplo, mandando que regimentos de infantaria a pé
destruíssem os carros de combate das formações inimigas que ficassem sem
combustível,14 ou dando instruções detalhadas sobre o emprego de unidades
blindadas que deveria ser deixado à decisão dos comandantes locais.15
Stalin foi para a dacha naquela noite e deitou-se sem tirar a roupa. Incapaz de
pegar no sono, levantou-se e foi à sala de jantar, onde havia sempre uma luz acesa
acima do retrato de Lenin. Os painéis escuros de carvalho que cobriam as paredes
casavam com seu ânimo acabrunhado. Vagando de sala em sala, olhando para os
telefones instalados em três locais distintos, esperando que tocassem a qualquer
momento trazendo mais notícias ruins, abriu a porta da sala do oficial de serviço e
deparou com o major general V.A. Rumyantsev. O general se aprumou rapidamente
no aguardo de ordens do chefe. O olhar do secretário-geral perdeu-se pela sala, sem
se fixar no militar, e, então, Stalin fechou vagarosamente a porta e voltou para seu
quarto.
Mikoyan deixou interessantes memórias sobre aquela ocasião. Recordou-se de
que ele, Molotov, Malenkov, Voroshilov, Beria e Voznesensky resolveram propor a
Stalin a criação de um Comitê de Defesa do Estado, que assumiria todo o poder
estatal. Seria chefiado por Stalin:

Decidimos procurá-lo. Ele estava na dacha próxima.


Molotov disse que Stalin se encontrava em tal estado de prostração que não se interessava por coisa alguma,
perdera a iniciativa e não estava nada bem. Voznesensky, assustado ao ouvir aquilo, disse: “Você toca o
barco, Vyacheslav, e nós o apoiaremos.” A ideia era de que, se Stalin continuasse a se comportar daquela
maneira, Molotov iria nos liderar e nós o seguiríamos. Tínhamos certeza de que poderíamos organizar a
defesa e conduzir uma guerra adequada. Nenhum de nós estava desanimado.
Chegamos à dacha de Stalin. Ele estava sentado numa cadeira de braços da pequena sala de jantar. Levantou
o olhar e disse: “O que vocês vieram fazer aqui?” Tinha um ar estranho estampado no rosto, e a pergunta
também era muito estranha. Afinal de contas, ele deveria ter nos convocado.
Falando em nosso nome, Molotov disse que o poder tinha que ser concentrado para garantir rapidez no
processo de tomada de decisões e, de alguma forma, colocar o país de novo nos trilhos. Stalin deveria chefiar
esta nova agência. O secretário-geral não fez objeção e disse apenas: “Ótimo.”16

O QG e o Estado-maior começaram então a tentar a organização de novas linhas de


defesa para substituir o front oeste que os alemães haviam varrido. O ânimo de
Stalin mudou rapidamente da apatia para uma agitação nervosa e, em 29 de junho,
ele apareceu por duas vezes, inesperadamente, no Comissariado da Defesa e disse
poucas e boas à liderança militar. Com a face acinzentada pela fadiga, olhos
intumescidos, ele, por fim, ficara ciente da escala do perigo que pairava sobre seu
país. Se nada de extraordinário fosse feito, se não fossem mobilizadas todas as forças,
os alemães poderiam chegar em poucas semanas a Moscou. Os primeiros passos para
assumir o controle, não só de si mesmo como da situação, foram talvez típicos:
começou a demitir seus chefes militares.
Em 30 de junho, criou-se formalmente o Comitê de Defesa do Estado, tendo
Stalin como chefe. Sua primeira providência foi livrar-se do general Pavlov como
comandante da frente oeste, substituindo-o por Timoshenko. No mesmo dia, o
coronel-general F.I. Kuznetsov, comandante do front noroeste, ordenou a retirada
do rio Dvina ocidental e a ocupação dos distritos fortificados de Ostrov, Pskov e
Sebezh. Tão logo soube da ordem, Stalin demitiu Kuznetsov e determinou que seu
substituto, major general P.P. Sobennikov, restaurasse a posição anterior no Dvina.
As tropas, que então executavam desordenada retirada, não estavam em condições
nem de atacar nem de prover a autodefesa. Sentindo a desordem soviética, os
alemães atacaram o ponto de junção do VIII e do XXVII exércitos e foram bem-
sucedidos.
Stalin ficou arrasado com a notícia de que Minsk havia caído. Foi para a dacha e
lá ficou o dia inteiro sem retornar ao Kremlin. Molotov e Beria foram vê-lo, mas
não há registro da conversa que tiveram.
Certa ocasião, perguntei ao marechal K.S. Moskalensko, com quem servi em
meados da década de 1970, por que omitira em suas memórias qualquer menção ao
encontro que Stalin, Molotov e Beria tiveram com o embaixador búlgaro Ivan
Stamenov, em julho de 1941. Ele replicou que ainda não chegara a hora para tais
revelações e, ainda mais, não existiam provas concretas. Indaguei então se ele achava
confiável o que Beria dissera sobre o fato. O marechal respondeu: “Tudo o que ele
disse sobre o assunto quase não tem justificativa. De qualquer forma, em função da
posição de Stalin naquele momento, é difícil pensar em qualquer coisa que pudesse
ajudá-lo.”
O que aconteceu foi que, em 2 de julho de 1957, houve uma reunião do grupo
partidário do Comissariado da Defesa para debater uma carta do Comitê Central
sobre “o grupo antipartido de Malenkov, Kaganovich, Molotov e outros”. Zhukov
leu o relatório, e diversos militares antigos tiveram também a oportunidade de se
pronunciar, inclusive I.S. Konev, R.Ya. Malinovsky, F.F. Kuznetsov, M.I. Nedelin,
I.Kh. Bagramyan, K.A. Vershinin, F.I. Golikov, K.A. Meretskov e A.S. Zheltov. Ao
chegar a vez de Moskalenko falar, ele disse:

Quando o procurador-geral Rudenko e eu tratávamos do caso Beria, descobrimos que ele havia dito que, já
em 1941, Stalin, Beria e Molotov discutiram em particular a questão da rendição à Alemanha fascista,
concordando com a entrega a Hitler das repúblicas soviéticas bálticas, da Moldávia e de grande parte da
Ucrânia e da Bielorrússia. Eles tentaram contatar Hitler por intermédio do embaixador búlgaro. Nem um
czar russo jamais fizera isso. É interessante notar que o embaixador revelou ter maior calibre do que esses
líderes e disse que Hitler nunca derrotaria os russos, e que Stalin não deveria se preocupar com aquilo.17

Ao me relatar o caso, Moskalenko acrescentou que, segundo Beria, Stalin


permanecera calado durante o encontro com o embaixador búlgaro. Só Molotov
falara, solicitando ao embaixador que contatasse Berlim. De acordo com Beria,
Molotov descrevera a oferta de território em troca de uma cessação de hostilidades
como um “possível Segundo Tratado de Brest-Litovsk” e dissera que, se Lenin tivera
a coragem de dar tal passo, nós agora tínhamos a intenção de fazê-lo. No entanto, o
embaixador declinou da ação de mediador, e disse mais: “Mesmo que vocês recuem
para os Urais, ainda assim ganharão a guerra.” Moskalenko terminou dizendo que
era difícil concluir quanto daquilo correspondia à verdade. “Sabemos que Stalin
entrara num estado de colapso nos primeiros dias da guerra. Não havia sentido para
que Beria inventasse tudo aquilo, especialmente porque o ex-embaixador confirmou
os fatos numa conversa conosco.”
O povo esperava um pronunciamento de Stalin. Ainda acreditava no líder; nele
depositava sua confiança. Foi possivelmente isso que o tirou do estado de colapso
mental. Decidiu falar pelo rádio em 3 de julho, mas estava difícil encontrar palavras
para explicar o que acontecera, as derrotas, a derrocada dos tratados germano-
soviéticos. As margens das folhas em que foi escrito o discurso contêm anotações tais
como: “Por quê?” “A destruição do inimigo é inevitável.” “O que tem que ser feito?”
Um pronunciamento com aparência inusitada para ser o discurso do primeiro
homem do país. Contém as principais ideias formuladas em 29 de junho pelo
Comitê Central e pelo Sovnarkom.
No discurso, Stalin tentou explicar, ou melhor, justificar, por que as forças
alemãs tinham tomado a Lituânia, a Letônia, parte da Ucrânia, a Bielorrússia e a
Estônia. Tudo podia ser resumido numa única frase: “O fato é que as forças alemãs,
como as de um país já em guerra, estavam totalmente mobilizadas, e 170 divisões,
estacionadas perto da fronteira soviética, foram lançadas contra nós; encontravam-se
inteiramente preparadas e só esperavam pelo sinal para atacar, enquanto as soviéticas
tiveram que ser mobilizadas e deslocadas para as fronteiras.”
Foi então que ele mentiu, ao dizer que as melhores divisões alemãs haviam sido
destroçadas. Naturalmente, quando mencionou o Pacto Nazi-Soviético, não disse
coisa alguma sobre os vergonhosos tratados “de amizade e fronteiras”. Mas sua voz
adquiriu um tom mais confiante quando afirmou ser necessário “colocar todo o
nosso esforço em pé de guerra”. Foi então que descreveu pela primeira vez a guerra
como “patriótica”, admitiu a necessidade da “formação de unidades de
guerrilheiros” e “a deflagração de uma batalha implacável empregando todos os
meios, quaisquer que sejam, desorganizadores de retaguardas, desertores, semeadores
do pânico”, e foi quando, também pela primeira vez, expressou a esperança de unir
os esforços dos povos da América e da Europa na luta contra os exércitos de Hitler.
Fechou o discurso declarando que “o Comitê de Defesa do Estado está trabalhando
com denodo e conclama o povo todo a se congregar em torno do partido de Lenin e
de Stalin”.18
O discurso teve efeito poderoso ao dar respostas simples às muitas perguntas que
atormentavam o povo. Paradoxalmente, a principal causa do começo catastrófico da
guerra, ou seja, o mando pessoal de Stalin, incorporava então as esperanças da
população. A fé funcionava.
[42]
Tempos cruéis

E m 10 de julho, o QG do Estado-maior transformou-se em Quartel-General


do Alto Comando e, em 8 de agosto, passou a ser QG do Alto Comando
Supremo, sob a liderança do secretário-geral. Daquele dia até o fim da
guerra, Stalin foi o Comandante Supremo. Desde 30 de junho, chefiara o Comitê
de Defesa Estatal e, em 19 de julho, tornou-se comissário para a Defesa.
Trabalhando de dezesseis a dezoito horas por dia, passando noites sem dormir, ele
acabou ainda mais áspero, intolerante e, com frequência, malvado. Todos os dias,
assinava ordens referentes à orientação militar, política, econômica e ideológica, e
deve ser dito que esse grau de concentração de poder num único par de mãos teve
seus aspectos positivos, bem como seu lado negativo. A centralização tornou possível
consolidar esforços em circunstâncias extremas. Por outro lado, a persistência da
autocracia enfraquece a possibilidade de pensamento independente e de iniciativa
em todos os níveis.
Na realidade, apenas duas ou três pessoas trabalhavam em contato direto com
Stalin. Dos membros do Politburo, afora Stalin, um papel destacado era
desempenhado por Voznesensky, Zhdanov e Khruschev. Voznesensky foi muito
ativo no trato dos problemas econômicos do país. Zhdanov e Khruschev, como
membros de conselhos de guerra, constituíam canais eficientes dos propósitos de
Stalin. Quanto a Voroshilov, depois da primeira débâcle, perdera a confiança
operacional do secretário-geral. Era da responsabilidade de Kalinin o ato de
transformar as intenções de Stalin em ordens e ele fazia também parte da
propaganda. Mikoyan e Kaganovich lidavam com os transportes e com o
suprimento de alimentos, porém, embora fossem também membros de conselhos de
guerra dos fronts, raramente se envolviam com questões militares, se descontarmos o
breve período de serviço de Kaganovich na frente sul.
O executor verdadeiro dos desejos de Stalin no Comitê Central era Molotov. Em
diversas ocasiões, visitou o front, notavelmente o de Stalingrado, cumprindo
determinações do secretário-geral, contudo, por lhe faltar competência militar, não
deixou qualquer vestígio de sua presença na esfera castrense. De 30 de junho de
1941 até o fim da guerra, Molotov foi vice-presidente do Comitê de Defesa do
Estado e se ocupou, em particular, com as questões internacionais. As
responsabilidades de Beria incluíam a “limpeza” da retaguarda, a organização de
campos para prisioneiros alemães de guerra e a indústria de material bélico que
funcionava nas prisões e nos campos de concentração. Por ordem de Stalin, ele foi
duas vezes ao front do Cáucaso Setentrional. Andreyev cuidava da agricultura e dos
suprimentos para o front. Como o papel de Stalin no conflito foi se tornando tão
vasto, o Comitê Central praticamente saiu de cena, e suas funções foram assumidas
por seu próprio aparato, enquanto o papel desempenhado pelas organizações locais
do partido, nas frentes e na retaguarda, foi enorme. Durante a guerra, ocorreu
apenas um pleno, em janeiro de 1944. Em outubro de 1941, os membros foram
convocados para um pleno em Moscou e esperaram dois dias por ele, mas Stalin e
Molotov não tiveram tempo para reuni-lo. De qualquer forma, Stalin não viu por
que delimitar as funções dos órgãos da alta administração, uma vez que dirigia todos
eles, fosse o Comitê Central, o Sovnarkom, o Alto Comando Supremo, o Comitê
de Defesa do Estado, o Quartel-General do Estado-maior ou o Comissariado da
Defesa, e ele assinava documentos empregando todos e qualquer um desses títulos.
Até a batalha de Stalingrado, suas ordens tenderam a ser um tanto impulsivas e
erráticas, superficiais e incompetentes. Normalmente, eram punitivas, em especial
depois de uma derrota. Em 10 de julho, por exemplo, quando ficou claro que o
front noroeste não poderia ser mais mantido, e chegaram relatos da atuação de
grupos diversionários na retaguarda, Stalin agiu de imediato:

O Quartel-General do Alto Comando e o Comitê de Defesa do Estado estão totalmente insatisfeitos com o
trabalho da equipe do quartel-general do front noroeste.
Em primeiro lugar, oficiais que não cumprem ordens, abandonam suas posições e deixam o perímetro
defensivo sem permissão, ainda não foram punidos. Com tal atitude liberal em relação a covardes, os esforços
da defesa serão infrutíferos.
As unidades de ataque não fizeram nada até agora, não vemos resultados de seu trabalho e, como
consequência da inação dos comandantes divisionários, de corpos e de fronts, partes da frente noroeste vêm
constantemente recuando. Chegou o momento de dar um basta nesta situação vergonhosa. O comandante,
um membro do conselho de guerra, o promotor e o chefe do 3º departamento [isto é, a NKVD] devem se
dirigir às unidades mais avançadas e tratar in loco do problema dos covardes e dos traidores.19
Nada havia sido feito antes da guerra para a construção de um abrigo antiaéreo no
QG do Estado-maior, se bem que Timoshenko e Zhukov tivessem insistido nessa
providência. Nem no Kremlin, tampouco nas dachas, Stalin contava com quaisquer
abrigos. Nos primeiros meses da guerra, todavia, ele muitas vezes passou parte do
tempo numa casa da rua Kirov, vizinha de alguns escritórios do Estado-maior. A
estação de metrô Kirov, que fora isolada da rede principal, constituiu um excelente
abrigo contra bombardeios aéreos. No inverno de 1941, um abrigo antiaéreo foi
construído na dacha mais próxima, equipado para o contato direto com os fronts.
Nos mapas preparados pelo Estado-maior, Stalin podia ver claramente as três
direções pelas quais Hitler desenvolvia seu avanço: no noroeste, para Leningrado, no
oeste, para Moscou, e no sudoeste, para Kiev. É provável que a primeira decisão
importante de guerra que Stalin tomou tenha sido a criação de três QGs, um para
cada setor, e por volta de 10 de julho, eles estavam montados: o comando noroeste
foi dado a Voroshilov, com Zhdanov como membro do soviete de guerra; o
comando oeste foi para Timoshenko, com N.A. Bulganin como membro do soviete
de guerra; no comando sudoeste ficou S.M. Budenny, com Khruschev como
membro do soviete de guerra. A ideia dos três comandos separados foi boa, mas eles
tiveram dificuldades para agir efetivamente porque Stalin não se dispôs a delegar-
lhes o poder necessário. As ordens iam diretamente às forças sem passar pelos
comandos, e as equipes de Estado-maior eram ignoradas. Ademais, como a criação
não fora adequadamente planejada, faltou pessoal e apoio técnico aos comandos, e
eles logo se transformaram em alvos dos insultos de Stalin por “passividade e falta de
determinação”.
A frente norte não deu motivo de grande preocupação porque as ações só
começaram lá no fim de junho. A situação no front noroeste foi bem diferente. Em
pouco mais de duas semanas, as forças soviéticas recuaram cerca de 450
quilômetros, abandonando as repúblicas bálticas e deixando de explorar as valiosas
posições defensivas proporcionadas pelos rios Neman e Dvina Ocidental. O novo
comandante, Sobennikov, não se mostrou à altura da expectativa e Stalin o
substituiria no prazo de seis semanas.
Mas foi a frente oeste que causou o maior alarme. Por volta de 10 de julho, as
tropas soviéticas tinham recuado quase 500 quilômetros. Com 44 divisões, Pavlov
não fora capaz sequer de fazer frente ao ataque inimigo. Stalin estava resolvido a
investigar e colocar sob julgamento imediato o comando ocidental.
As perdas soviéticas eram colossais. Algo como 30 divisões haviam sido
praticamente aniquiladas, enquanto 70 delas perderam mais da metade dos efetivos;
aproximadamente 3.500 aviões tinham sido destruídos, juntamente com mais da
metade dos depósitos de combustíveis e de munições. E isso depois de apenas três
semanas de guerra! É claro que os alemães pagaram também alto preço, ou seja,
cerca de 150 mil oficiais e praças, mais de 950 aeronaves e várias centenas de carros
de combate. Porém, mais tarde veio à tona que as baixas soviéticas eram
artificialmente reduzidas, enquanto as alemãs eram aumentadas. Depois de duas
semanas de batalha, a seguinte estatística foi apresentada a Stalin:

Perda de aviões:
O mínimo do inimigo 1.664
Nossas perdas 889
Perdas de carros de combate:
Inimigo 2.625
Nossos 901
Perdas humanos do inimigo: Mortos 1.312.000

Na luta acirrada dos diversos setores, além do mais, o inimigo teve pesadas baixas, mas como nossas tropas
retraíam, foi impossível contabilizar as perdas. Muitas baixas não computadas foram infligidas aos
paraquedistas em ações isoladas.
Existem 30.004 prisioneiros, mais um número indeterminado de paraquedistas.
Nossos desaparecidos e aprisionados, até 29 Jun, eram de cerca de 15 mil.
Cinco submarinos inimigos foram afundados no Báltico e um no mar Negro.
Duas aeronaves inimigas de apoio ao combate naval foram destruídas.20

Com tais relatórios era impossível conhecer a posição real, a relação de forças e o
número de aviões, carros de combate e homens disponíveis. Mas aquelas estatísticas
eram propositalmente distorcidas por gente acostumada a mentir para Stalin em
função do culto ao líder, e ele as tomava por dados concretos sem jamais imaginar
que estava sendo enganado. Mas mesmo assim, o poderio alemão declinou
consideravelmente depois da força do primeiro ataque, e os exércitos de Hitler não
atingiram seu principal objetivo, que era a destruição do Exército Vermelho.
O Exército lutava. Estava retraindo, mas estava lutando. Estudando os mapas,
Stalin aos poucos chegou à conclusão de que seria uma longa guerra e que, se a
URSS pudesse sobreviver à primeira fase, haveria uma chance de vitória. Já em 5 de
julho, quando ordenou que o Estado-maior condecorasse os que se distinguissem
por bravura especial, inclusive com a primeira comenda de tempo de guerra de
Herói da União Soviética, disse ao departamento de propaganda que espalhasse as
histórias sobre o heroísmo soviético. “Lembrem-se da conclamação de Lenin: A
Pátria Socialista corre perigo! Façam o povo saber que é possível e é preciso esmagar o
porco fascista!”
Além dos assuntos militares, Stalin também passava várias horas por dia nas
questões econômicas. Em 4 de julho, Voznesensky e Mikoyan submeteram à
apreciação do Comitê de Defesa do Estado a minuta de um plano de economia de
guerra que Stalin assinou quase sem ler. Voznesensky conseguiu relatar
apressadamente que, em 30 de junho, o Sovnarkom aprovara um plano de
mobilização econômica geral que previa a colocação da economia em pé de guerra
no mais curto tempo possível. Shvernik, responsável pelo soviete de evacuação,
acabara de reportar que, até então, só as fábricas próximas à fronteira haviam sido
deslocadas, mas que a derrocada militar exigia agora uma abordagem mais
abrangente.
Na prática, por volta de janeiro de 1942, 1.523 fábricas, das quais 1.360
dedicadas à produção de material de emprego militar, seriam transferidas totalmente
para o leste e postas em operação, uma conquista extraordinária da maior
importância. No setor agrícola, hoje sabemos que, em novembro de 1941, foi
tomada a decisão de criar alguns milhares de seções políticas nas estações de
máquinas e tratores e nas fazendas estatais. A gigantesca perda de terras e o fluxo da
mão de obra rural para o Exército impuseram pesada carga sobre a agricultura para
que ela alimentasse o Exército e o país.
Homem central de todo este esforço, Stalin fez da guerra um modo de confirmar
plenamente sua ditadura absoluta. O ex-comissário dos Transportes, I.V. Kovalev,
fez-me o seguinte relato daquele período:

Lembro de ter sido chamado, como chefe da administração dos transportes militares, para uma reunião no
Kremlin. Lá, vi chefes ferroviários, militares e membros das equipes do Comitê Central. Kaganovich estava,
como também Beria, encarregado temporariamente dos transportes. Stalin entrou na sala. Todos nos
levantamos. Sem qualquer preâmbulo, ele disse: “O Comitê de Defesa do Estado tomou a decisão de criar o
Comitê dos Transportes. Proponho o Camarada Stalin para chefe desse comitê.” Foi exatamente assim que
ele falou. Recordo de mais alguma coisa que ele disse naquele encontro: “Transporte é uma questão de vida
ou morte. O front está na mão dos transportes. Lembrem-se, descumprimento das ordens do Comitê de
Defesa do Estado significa tribunal militar.” Disse isto calma, mas deliberadamente, e um calafrio percorreu
minha espinha.
No curso da guerra, tive que me reportar dezenas de vezes, senão centenas, a Stalin sobre a movimentação de
trens para os diferentes setores do front. Algumas vezes, quando era o caso de uma carga especial, tinha que
mantê-lo informado de duas em duas horas. Em dada ocasião, um trem “perdeu-se”. Pensei que tinha sido
em determinada estação, mas não foi lá. Stalin mal pôde conter a raiva: “Se você não encontrá-lo, general,
será mandado para o front como soldado.”* Ao sair do gabinete, branco como uma folha de papel, ainda
ouvi Poskrebyshev acrescentar: “Cuide para não se enganar. O chefe está no fim da sua corda.”
Quando eu ia ao Kremlin, normalmente Molotov, Beria e Malenkov estavam na sala de Stalin. Naquela
época, achei que eles só atrapalhavam. Não perguntavam coisa alguma, ficavam apenas sentados e ouviam,
fazendo ocasionalmente anotações. E, durante o tempo todo, Stalin se ocupava dando instruções, falando ao
telefone, assinando documentos, chamando Poskrebyshev para lhe dar ordens, e os três lá sentados, olhando
para Stalin ou para quem entrasse. Testemunhei a cena dezenas e dezenas de vezes. Era como se Stalin
precisasse deles, fosse para cuidar de qualquer coisa que viesse a surgir, fosse como testemunhas para a
história.
Como regra, Kaganovich não estava presente; aquele trabalhava dezoito horas por dia, xingando e
ameaçando todo mundo e não poupando ninguém, nem mesmo a si próprio. Mas jamais o vi sentado no
escritório de Stalin, como os outros três. Quando Stalin falava ao telefone, emitia apenas umas poucas frases
e colocava o aparelho no gancho. Era lacônico e esperava que os outros também o fossem. Não era de bom
alvitre dar-lhe dados aproximados: ele baixava ameaçadoramente o tom da voz e dizia: “Você não sabe? Que
está fazendo, então?”
A despeito dos muitos encontros que tive com ele, comparecia a cada um deles em estado de pavor. Meu
temor era que perguntasse alguma coisa e eu não soubesse a resposta. Ele era uma pessoa inacreditavelmente
fria. Em vez de dizer “olá”, acenava simplesmente com a cabeça. Fazia meu relato e, se não houvesse
perguntas, deixava rapidamente a sala com um suspiro de alívio. Era o mais breve possível. Poskrebyshev
aconselhou-me a agir assim. As pessoas sentiam-se oprimidas pelo poder de Stalin, também por sua memória
fenomenal e pelo fato de que sabia muita coisa. Ele fazia com que todos se sentissem ainda menos
importantes do que na verdade já eram.

Nos primeiros meses da guerra, Stalin passou muito tempo tratando de detalhes
irrelevantes, tais como distribuição de minas e fuzis, construção de valas antitanques
pela população civil, exame de comunicados à imprensa para o Informburo. Certa
vez, aconteceu que um documento do Estado-maior para as Forças Armadas
permaneceu sem ser notado por oito horas e quinze minutos no departamento de
codificação. Quando Stalin soube disso, determinou que o coronel I.F. Ivanov e o
primeiro-tenente B.S. Krasnov fossem punidos e afastados do Estado-maior Geral, e
que o departamento passasse a operar como devia.21 Enquanto isso, havia decisões
de crucial importância a serem tomadas nos dias terríveis daquele agosto quente.
Porém, era hábito que Stalin desenvolvera ao longo dos anos decidir e fazer tudo ele
mesmo, e pelos outros. A situação nos fronts, contudo, cedo iria acarretar uma
mudança no estilo e nos métodos de trabalho do Supremo.
Ao aprovar ou desaprovar as propostas do Estado-maior, ele buscava
constantemente meios de dar maior impacto a suas ações. Por exemplo, quando
soube que não existiam armas para equipar os reforços, ordenou aos quartéis-
generais que expedissem a seguinte instrução para as forças:

Tem que ser explicado a todo comandante, oficial político ou soldado que perder armas no campo de batalha
é uma violação séria do juramento militar, e que os culpados devem responder de acordo com as leis de
tempo de guerra. As equipes de civis encarregadas do recolhimento de armas devem ser reforçadas com
militares e ser responsabilizadas pela coleta de qualquer armamento abandonado no campo de batalha.22
Sua resposta a uma situação difícil era sempre torná-la ainda mais difícil.
Exemplificando, Zhdanov e Zhukov no relatório sobre a situação em Leningrado
mencionaram o fato de que, no ataque às posições soviéticas, os alemães
empurravam mulheres e crianças, homens e mulheres idosos para a frente,
colocando os defensores em situação mais delicada ainda. As mulheres e crianças
gritavam: “Não atirem! Somos dos seus!” As tropas soviéticas não sabiam o que
fazer. A reação imediata de Stalin foi típica de seu caráter:

Dizem que os porcos alemães que avançam sobre Leningrado empurram velhos, mulheres e crianças na
frente. Ouço que há bolcheviques em Leningrado que consideram impossível empregar suas armas contra
essas pessoas. Acho que, se existirem tipos assim entre os bolcheviques, eles devem ser logo destruídos porque
são mais perigosos que os fascistas alemães. Aconselho não serem sentimentais, arrasem o inimigo e seus
cúmplices forçados ou não. Atirem nos alemães e nos seus acompanhantes, sejam quem forem, com o que
tiverem à mão, acabem com os inimigos, não importa se compelidos ou voluntários. Ditado às 4h de 21 Set
41 pelo Camarada Stalin. Assinado B. Shaposhnikov23

O pensamento de Stalin nos primeiros meses da guerra ainda era claramente


influenciado pela guerra civil – talvez mesmo pela guerra de 1812! Em setembro de
1941, por exemplo, depois de uma conversa com Budenny, ele demonstrou um
súbito e renovado interesse pela cavalaria. Na ocasião em que o Estado-maior
completava seu trabalho sobre as lições dos dois primeiros meses de guerra, para ser
enviado aos comandantes de frente e de exércitos, Stalin mandou acrescentar o
seguinte:

Ponto Quatro.
Nosso exército subestima um pouco a importância da cavalaria. Na situação atual do front, quando a
retaguarda do inimigo está distendida por algumas centenas de quilômetros em terreno com muita vegetação,
e se encontra totalmente incapaz de proteger-se contra ações diversionárias importantes de nossa parte,
ataques rápidos da Cavalaria Vermelha podem ter um papel relevante na desorganização da administração e
do suprimento das forças inimigas. Se unidades de nossa cavalaria, que se encontram dispersas e ociosas,
puderem ser empregadas contra a retaguarda do inimigo, ele ficaria em situação crítica, enquanto nossas
forças seriam aliviadas de muita pressão. O Estado-maior Geral acredita que tais incursões devem ser
executadas por algumas dezenas de divisões de cavalaria ligeira das forças com vocação para o ataque, cada
uma delas com efetivo aproximado de 3 mil homens em transportes leves, sem sobrecarregar nossos serviços
de retaguarda.24

Não de todo desprovida de sentido, a ideia, todavia, era muito ultrapassada, mas a
situação chegara a tal ponto de desespero que Stalin procurava panaceias em quase
qualquer método.
Pavlov não saía da cabeça de Stalin. Antes de se tornar comandante em chefe da
frente oeste, ele causara uma boa impressão. É verdade que não tinha muita
experiência, e sua ascensão depois da Espanha fora rápida. Por que seu quartel-
general se comportara com tanta negligência? Stalin, convenientemente, esqueceu
que, em meados de junho, Pavlov enviara dois ou três despachos codificados
urgentes requisitando permissão para deslocar tropas a fim de ocuparem posições no
terreno, sugerindo a mobilização parcial e realçando a necessidade do fortalecimento
do distrito com comunicações e carros de combate novos. Mesmo assim, a pergunta
importunava Stalin: como pôde Pavlov perder tudo de forma tão miserável?
Chamou Poskrebyshev e perguntou: “Quem, além de Pavlov, foi mandado ao
tribunal militar? Quando será o julgamento? Onde está a minuta de sentença?
Chame Ulrikh!” Poskrebyshev trouxe uma pasta fina e a deixou em cima da mesa.
Seu título era “(Minuta) Sentença”:

Pela URSS, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, constituído de: Presidente: advogado militar
V.V. Ulrikh;
Membros: advogados militares divisionários A.A. Orlov e D.Ya. Kandybin; Secretário: advogado militar A.S.
Mazur.
Numa sessão fechada em Moscou, em .... de julho de 1941, os seguintes casos foram julgados:
1. Pavlov, Dmitri Grigoryevich, nascido em 1897, ex-comandante do front oeste, general de exército.
2. Klimovskikh, Vladimir Yefimovich, nascido em 1895, ex-chefe do Estado-maior do front oeste, major-
general. Ambos acusados de crimes capitulados nos Artigos 63-2 e 76 do Código Penal Bielorrusso.
3. Grigoryev, Andrei Terentyevich, nascido em 1889, ex-chefe das comunicações do front oeste, major
general.
4. Korobkov, Alexander Andreyevich, nascido em 1897, ex-comandante do IV Exército, major general.
Ambos acusados de crimes capitulados no Artigo 180, parágrafo b, do Código Penal Bielorrusso.

A minuta prosseguia dizendo que as investigações preliminares estabeleceram que:

Os acusados Pavlov e Klimovskikh participaram de uma conspiração militar antissoviética e que se valeram
de suas posições para trabalhar para o inimigo por não treinarem o pessoal sob seu comando para a ação
militar, e que, com seus objetivos conspiratórios em mente, enfraqueceram a preparação para a mobilização
das tropas no distrito militar, perturbaram a organização das forças e entregaram armas ao inimigo sem luta,
causando grande dano à capacidade combatente do Exército Vermelho.

Stalin pulou grande parte do documento que continuava nesta linha, mas leu a
seção final:
Desta forma, a culpa de Pavlov e Klimovskikh [...] e de Grigoryev e Korobkov [...] foi estabelecida. Em
consequência do acima exposto e de acordo com os Artigos 319 e 320 do Código do Processo Penal da
URSS, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS sentencia que:
1. Pavlov, Dmitri Grigoryevich
2. Klimovskikh, Vladimir Yefimovich
3. Grigoryev, Andrei Terentyevich
4. Korobkov, Alexander Andreyevich
sejam despojados de seus postos, Pavlov como general de exército e o restante como major generais, e sujeitos
todos os quatro à mais alta forma de punição, ou seja, o fuzilamento, e que seus bens pessoais sejam
confiscados. A sentença é final e não comporta apelação.25

Stalin voltou-se para Poskrebyshev e disse: “Aprovo a sentença, mas diga a Ulrikh
para retirar toda esta bobagem de ‘atividade conspiratória’. O caso não deve se
prolongar. Nada de recursos. E, depois, os fronts devem ser informados para que
saibam que os derrotistas serão punidos sem clemência.”
Tudo fora decidido antes do julgamento, de modo que, quando ele ocorreu, em
22 de julho, necessitou apenas cumprir formalidades. Os réus pediram para ser
enviados ao front em qualquer situação; mostrariam sua lealdade à pátria-mãe e seu
dever militar com derramamento do próprio sangue. Instaram para que a corte
acreditasse que todo o ocorrido se devera às condições extremamente desfavoráveis.
Não negaram suas culpas. Eles as expiariam na batalha. Ulrikh bocejou e disse:
“Vamos com isso!” Os acusados foram fuzilados naquela noite. (A sentença seria
anulada pelo Estado-maior Geral, com quinze anos de atraso, em 5 de novembro de
1956.)26 Korobkov foi especialmente desafortunado. De acordo com o relatório do
coronel-general L.M. Sandalov ao general V.V. Kurasov, embora o exército de
Korobkov tivesse sofrido pesadas perdas, ainda operava e não tinha, como muitos
outros comandos, perdido a ligação com o quartel-general do front. No fim de
junho de 1941, ficou decidido que um dos oficiais comandantes do front oeste
deveria ser “pinçado” para julgamento pelo desastre, e como se sabia onde Korobkov
estava, sua sorte foi selada.27
Pavlov e os outros tinham progredido rapidamente na carreira graças à dizimação
no corpo de oficiais ocorrida em 1937-38, e, sem dúvida, careciam de treinamento e
experiência adequados, mas eram totalmente devotados ao seu país. Foram muitos
os casos assim. Kirponos e Kuznetsov, como Pavlov, tiveram carreiras meteóricas e,
da mesma forma, seu patriotismo foi inadequadamente sustentado por qualidades
de liderança. Stalin foi o verdadeiro responsável pelo início catastrófico da guerra,
porém, como de hábito, precisou de bodes expiatórios, exacerbando a natureza já
cruel da guerra com sua própria crueldade.
Muitos homens da estatura de Korobkov poderiam ter chegado ao topo, mas
não conseguiram. Muitos morreram em combate; muitos outros, tendo exaurido
todas as possibilidades de continuar combatendo e não desejando cair prisioneiros
ou ficar sujeitos à justiça de Stalin, cometeram suicídio. Existem numerosos casos
registrados em documentos.28
A história de alguns outros generais não foi menos trágica. Em agosto de 1941,
os órgãos de segurança reportaram a Stalin que dois generais, o comandante do
XXVIII Exército, tenente-general V.Ya. Kachalov, e o comandante do XII Exército,
major general P.G. Ponedelin, tinham se rendido voluntariamente e trabalhavam
então para os alemães. Stalin ordenou que fossem julgados. Nem todas as ordens
eram cumpridas de imediato: se tivessem sido, talvez os alemães não chegassem às
portas de Moscou no outono! Mas aquela ordem foi logo executada, e os dois
generais foram julgados in absentia em outubro de 1941, e sentenciados ao
fuzilamento, “privados de todos os seus bens pessoais e despojados de suas
condecorações soviéticas”.29
Jamais ocorreu aos miseravelmente cínicos informantes de Stalin que Kachalov
fora morto, em 4 de agosto de 1941, pelo impacto direto de uma granada, mas, até
1956, sua família teve que carregar o estigma do parentesco com “um inimigo da
pátria-mãe”. O destino do major general Ponedelin foi ainda pior. Cercado em
agosto de 1941, ele foi seriamente ferido e caiu prisioneiro inconsciente. Quatro
longos e amargos anos nos campos de concentração de Hitler não o dobraram.
Serviu como suporte para os camaradas mais fracos e se recusou a colaborar com os
nazistas. Depois da libertação e da repatriação em 1945, foi preso e condenado a
cinco anos nos campos soviéticos, mesmo tendo sido sentenciado à morte in
absentia, em 1941. O general fez um apelo pessoal a Stalin em 25 de agosto de 1950
e foi de novo condenado à morte. Desta vez, a sentença foi executada.
Dos milhões de militares soviéticos que caíram em mãos dos alemães, os que
conseguiram escapar e voltaram às linhas amigas foram imediatamente colocados em
“campos especiais para averiguação”. Existem muitos relatórios assinados por Beria
sobre a maneira com que estes campos funcionavam. Depois de “checados”, alguns
militares foram enviados para destacamentos recém-formados, outros foram
executados no ato, e ainda outros foram sentenciados a longos anos em campos de
concentração.30 Conquanto o caso de Pavlov seja o mais conhecido, a verdade é que,
ao mesmo tempo, Stalin sancionou a prisão de um grande número de outros
generais, alguns dos quais, no final, retornaram ao front, enquanto outros
terminaram nos campos ou foram fuzilados.31
A suspeita de Stalin em relação a seus generais tampouco se restringiu à fase de
abertura das hostilidades. Em agosto de 1942, por exemplo, ele passou um
cabograma para Vasilievsky e Malenkov em Stalingrado:

Surpreendo-me com o fato de o inimigo ter feito precisamente o mesmo tipo de avanço por trás de nossas
linhas no front de Stalingrado que o realizado no ano passado no front de Bryansk [...] Deve ser ressaltado
que o comandante do front de Bryansk era o mesmo Zakharov e que o ajudante do Camarada Yeremenko
era o mesmo Rukhle. Vale a pena pensar sobre isso. Ou Yeremenko não entende a ideia de um segundo
escalão enquanto as divisões da vanguarda não estão sob fogo, ou estamos lidando aqui com alguém que
alimenta sentimentos inamistosos e dá aos alemães detalhes exatos de nossos pontos fracos.32

O major general Rukhle foi imediatamente preso, mas a sorte lhe sorriu e ele
sobreviveu. Stalin não podia se livrar do costume de apelar para medidas severas e
cruéis, mas todos àquela época acreditavam que providências duras se justificavam
em tempos difíceis.
Nota

* Não era ameaça vazia. O major-general N.A. Moskvin foi rebaixado por ordem de Stalin e mandado para a
frente de combate como soldado. (TsAMO, f.33. op. 11 454, d. 179.l.1)
[43]
Desastres e esperanças

N o início de agosto de 1941, Shaposhnikov foi chamado à dacha, por volta


da meia-noite, para fazer um relato a Stalin sobre a situação em todos os
fronts. Para Stalin, foi a mais sombria das exposições, casando muito bem
com o gosto de fel – disse a Poskrebyshev – que tinha na boca desde que a guerra
começara. Referindo-se ao mapa que estendeu na mesa de Stalin, Shaposhnikov
começou:
“Podemos dizer que perdemos por completo a primeira fase da guerra. Ainda são
travadas batalhas nas vias de acesso a Leningrado mais distantes, no distrito de
Smolensk e na área defensiva central de Kiev. Nossa resistência ainda não é forte.
Temos que desdobrar nossas tropas ao longo do front mais ou menos sem saber
onde o inimigo, amanhã, atacará com força concentrada. O inimigo está com toda a
iniciativa estratégica. O problema aumenta com a inexistência de tropas em segundo
escalão e de reservas poderosas em muitos setores. No ar, o inimigo tem total
supremacia, embora tenha perdido muitos aviões.* Das 212 divisões do exército
ativo, apenas noventa têm 80% ou mais de seu efetivo. A defesa das vias de acesso a
Leningrado está adquirindo alguma ‘elasticidade’ e o dinamismo da progressão
alemã pode não dar em nada. Parece que devemos deslocar toda a esquadra do
Báltico para Kronstadt.** Pesadas baixas são inevitáveis.”
“O engajamento em Smolensk permitiu que detivéssemos o inimigo no front
mais perigoso, o de oeste. De acordo com nossos cálculos, cerca de sessenta divisões
alemãs participaram da ação, totalizando algo em torno de meio milhão de homens.
Como sabe o Camarada Stalin, para consolidar a frente, os exércitos XIX, XX, XXI
e XXII foram deslocados para lá ainda no início de julho. Porém, ainda existe
sensível falta de tropas e, muitas vezes, as divisões constituem apenas uma linha.
Nossa tentativa de montar um contra-ataque com os exércitos XXIX, XXX, XXIV e
XXVIII foi apenas parcialmente bem-sucedida, já que permitiu que o XX Exército e
o XVI Exército rompessem o cerco e voltassem à linha de defesa. Nosso contra-
ataque interrompeu o ataque inimigo.”
Stalin interveio: “Que papel teve o front central nesse engajamento?”
“Temos razões para achar que o ataque principal do agrupamento alemão será
desviado para lá”, replicou Shaposhnikov. “Mas uma única linha de frente, com 24
divisões incompletas, causa séria preocupação. É provável que tenhamos que
constituir outro agrupamento de frentes naquela região.”
De tudo aquilo, Stalin tirou a conclusão de que o Exército Vermelho era capaz
de deter o inimigo, mesmo onde ele concentrasse seu esforço principal.
Shaposhnikov continuou:
“Não tivemos capacidade para manter a antiga fronteira [...] Os alemães, na
realidade, cortaram o front em dois, separando o V Exército dos exércitos VI, XII e
XXVI, e, amanhã, o VI e o XII Exércitos também estarão cortados.”
“Estou apreensivo com o Dnieper e com Kiev. Temos que fazer alguma coisa”,
disse Stalin.
“Já foram expedidas ordens para se formar uma linha de defesa forte na margem
leste do Dnieper.”
“Podemos entrar em contato agora com o QG do sudoeste?”, perguntou Stalin.
“Se Kirponos e Khruschev não estiverem junto às tropas, o contato é possível.”
Poucos minutos mais tarde, Kirponos e Khruschev estavam ao telefone e tiveram
uma longa conversa na qual Stalin insistiu que a linha fosse mantida a qualquer
preço e fez-lhes sugestões sobre como grupar as forças, empregando
temporariamente a cavalaria como infantaria com esse objetivo. Kirponos e
Khruschev responderam que estavam fazendo o possível para evitar que os alemães
atravessassem o rio e tomassem Kiev, e pediram urgentes reforços. Algumas de suas
divisões estavam reduzidas a uns dois ou três mil homens.33
A defesa de Kiev foi um fracasso. O VI e o XII exércitos combateram, cercados,
até 7 de agosto e, então, deixaram de existir. Um grande número de combatentes
caiu prisioneiro. Percebendo que as tropas do front sul corriam o risco da captura,
Budenny solicitou permissão a Stalin a fim de recuá-las para o corte do rio Ingul.
Stalin ficou furioso e negou a permissão, indicando, em vez disso, outra linha de
defesa.34 Ordenou a transferência para o setor sudoeste de 19 divisões de infantaria e
5 de cavalaria, as quais, embora criadas, não estavam bem organizadas nem
treinadas. Tampouco estavam bem armadas. Não se saíram bem em combate. No
caos resultante, muitas entraram em pânico e abandonaram suas posições sem
autorização.
Quando Stalin tomava conhecimento de que uma posição defensiva
recentemente ocupada fora abandonada, ou explodia de raiva ou ficava apático.
Contrariando seu hábito de não tirar conclusões rápidas ou julgar as pessoas
prematuramente, fazia, então, as duas coisas simultaneamente. Numa determinada
ocasião, foi I.V. Tyulenev, comandante do front sul e bem conhecido de Stalin dos
velhos tempos, que se transformou em alvo. Stalin enviou um telegrama a Budenny:

O comandante de front Tyulenev acabou se tornando incompetente. Não sabe como avançar nem como
recuar sua tropa. Perdeu dois exércitos de uma forma com que não se perderiam nem dois regimentos.
Sugiro que você vá de imediato ao encontro de Tyulenev, veja por si mesmo como está a situação e reporte
prontamente sobre o plano de defesa. Acho que Tyulenev está desmoralizado e não é capaz de comandar o
front. Ditado por telefone às 5h50 de 12 Ago 41.35

A despeito das ordens enérgicas de Stalin, a situação no front sul piorou, chegando a
uma crise no fim de agosto. Stalin tentou contato com um comandante atrás do
outro, nem sempre com sucesso. Em dada oportunidade, tendo sido recém-
informado de outra retirada não autorizada, ditou a Ordem nº 270, de 16 de agosto
de 1941. Em total desespero, recorreu à habitual orientação punitiva. Esta ordem
pouco conhecida retrata bem o estilo pessoal de Stalin. Ela menciona comandantes,
oficiais políticos e simples soldados que se saíram honrosamente de situações
difíceis, mas continua:

Por outro lado, o tenente-general Kachalov, comandante do XXVIII Exército, demonstrou covardia e se
entregou, enquanto seu QG e suas unidades romperam o cerco; o major general Ponedelin se rendeu, como
também o major general Kirilov do 13º Corpo de Fuzileiros. Foram fatos vergonhosos. Covardes e desertores
devem ser destruídos.
Ordeno que:
1. Quem quer que remova seu distintivo de posto durante a batalha e se renda deve ser considerado desertor
mal-intencionado, cuja família tem que ser presa por parentesco com o violador do juramento e traidor da
pátria. Tais desertores têm que ser fuzilados no ato.
2. Os que forem cercados têm que lutar até o fim e tentar chegar às linhas amigas. Os que preferirem a
rendição têm que ser aniquilados por quaisquer meios disponíveis, e suas famílias privadas de toda a
assistência e subsídios estatais.
3. Os corajosos e os bravos devem ser promovidos com mais assiduidade.
Esta ordem é para ser lida em todas as companhias, esquadrões, baterias.36

Tendo ditado o texto impulsivo sem hesitação alguma, Stalin deixou-o como
estava, não o editou, mas determinou que os nomes de Molotov, Budenny,
Voroshilov, Timoshenko, Shaposhnikov e Zhukov fossem acrescentados na
assinatura, embora nem todos estivessem presentes.
Em torno do fim de agosto, Stalin recebeu uma carta do escritor Vladimir
Stavsky, que acabara de passar dez dias no front próximo a Yelnya. Um trecho da
carta é o seguinte:

Prezado Camarada Stalin,


Diversas de nossas unidades operam maravilhosamente e desferem poderosos golpes sobre os fascistas.
Depois que o fulgurante e enérgico major Camarada Utvenko assumiu o comando da 19ª Divisão, os
regimentos destruíram o 88º Regimento de Infantaria e repeliram muitos contra-ataques alemães [...] As
unidades passam por treinamento de combate, acumulam experiência nas batalhas, estudam as táticas alemãs
e derrotam os germânicos.
Mas aqui, no XXIV Exército, as coisas foram longe demais. Segundo o Estado-maior e a seção política, de
480 a 600 homens foram fuzilados por deserção, pânico e outros crimes. Oitenta homens foram indicados
para condecorações. Anteontem e hoje, o comandante do Exército Camarada Rakutin e o chefe da seção
política Camarada Abramov enfrentaram corretamente a situação.37

O único comentário de Stalin sobre a carta foi assinalar o dado das execuções para a
atenção de Mekhlis. Nesse ínterim, uma das maiores tragédias da guerra se
aproximava. Em 8 de agosto de 1941, Stalin estava de novo na linha com Kirponos:

Stalin: “Chamou a atenção o fato de que o front decidiu entregar logo Kiev ao inimigo, supostamente por
falta de tropas capazes de defender a cidade. Isso é verdade?”
Kirponos: “Alô, Camarada Stalin. Você foi mal-informado. O conselho de guerra e eu estamos fazendo o
possível para não deixar que Kiev seja capturada em hipótese alguma. Todos os nossos pensamentos e nossas
energias estão voltados para que o inimigo não conquiste Kiev.”
Stalin: “Muito bom. Envio meus cumprimentos e o desejo de sucesso. Isto é tudo.”38

Em 15 de setembro, o primeiro e o segundo grupos alemães de carros de combate


fecharam o círculo no distrito de Lokhvitsa, cercando assim a força principal do
front sudoeste. Os exércitos V, XXVI, XXXVII e partes do XXI e XXVIII acabaram
numa armadilha. Quatro dias antes, enquanto o laço era apertado em torno das
unidades minguantes, Stalin e Kirponos tiveram sua última conversa:

“Priluki, Alô. Kirponos, Burmistenko e Tupikov na linha.”


“Moscou, Alô. Stalin, Shaposhnikov e Timoshenko aqui. Sua proposta para recuar as tropas para o corte do
rio, cujo nome você sabe [o Psyol], me parece perigosa. Você deve lembrar que, quando recentemente retirou
as tropas do distrito de Berdichev-Novgorod-Volynsky, conseguiu uma posição bem melhor no rio Dnieper,
porém, mesmo assim, perdeu dois exércitos, e o inimigo se reagrupou na margem leste do Dnieper. Segue-se
a conclusão de que:
1. Você tem que reconstituir imediatamente seu poder de combate, mesmo ao custo do distrito fortificado de
Kiev e de outras forças, e, em coordenação com Yeremenko, desencadear ataques desesperados sobre o grupo
inimigo de Konotop.
2. Você tem que organizar imediatamente uma posição defensiva no rio Psyol, ou em algum lugar daquela
linha, formando uma frente ao norte e a oeste, forte em artilharia, e então retirar cinco a seis divisões para
trás de tal posição.
3. Somente depois disso, isto é, após a formação de um punho contra o grupo inimigo de Konotop e o
estabelecimento da posição defensiva no Psyol, você deverá começar a evacuação de Kiev.
Kiev não deverá ser abandonada, nem suas pontes destruídas, sem permissão do QG do Estado-maior. Isso é
tudo. Adeus.”
Kirponos: “Suas ordens são claras. Isso é tudo. Adeus.”39

Seria o último “adeus” de Kirponos. Enquanto o círculo não se fechasse, seria


possível romper o cerco. Em 17 de setembro, às 5h, o soviete de guerra solicitou
mais uma vez permissão de Stalin para que isso fosse feito e, de novo, ele recusou a
retirada e sancionou apenas o recuo do XXXVII Exército, sob o comando de A.A.
Vlasov, para a margem leste do Dnieper. A posição tornou-se crítica. Malgrado as
determinações de Stalin, no anoitecer de 17 de setembro, o soviete de guerra decidiu
tirar tropas do cerco. Mas perderam tempo. Além disso, o QG do front ficou sem
contato com os exércitos. As companhias e unidades dispersas travaram batalhas
violentas durante dez dias na tentativa de rasgar a armadilha na direção do leste. Isso
ajudou um pouco, mas o QG do Estado-maior, sem o controle da situação, ainda
enviava, em 22 e 23 de setembro, telegramas animadores a Kirponos. Por exemplo:

Mais determinação e mais calma. A vitória está garantida. Só existem forças inimigas triviais contra você.
Concentre sua artilharia nos pontos de penetração. Nossa aviação opera em seu apoio. Nossas tropas estão
atacando Romny. Repito: mais determinação e mais calma. Reporte com mais frequência.40

Foi uma catástrofe apavorante. Foram cercados 452.720 homens, incluindo cerca de
60 mil oficiais.41 O inimigo apoderou-se de enormes quantidades de armamento e
de equipamento. Kirponos, seu chefe de Estado-maior, Tupikov, e o membro do
conselho de guerra, Burmistenko, pereceram nas últimas batalhas, juntamente com
milhares de outros soldados. Mesmo que Kirponos tivesse conseguido romper o
cerco, Stalin jamais o perdoaria. Na realidade, Stalin e o Estado-maior foram os
principais responsáveis pela tragédia, se bem que também seja verdade que o
quartel-general do front não conseguiu administrar as forças que, sob melhor
liderança, talvez evitassem o triste destino. Muitas vezes, a valentia não era apoiada
pela capacidade, pela organização e pela competência. A derrota em Kiev inclinou
rapidamente a balança em favor do inimigo ao longo de todo o front.
Sem sinais de emoção, Stalin simplesmente ordenou a Shaposhnikov. “Feche a
brecha imediatamente. Imediatamente!” Shaposhnikov disse: “Penso que o
necessário nessa difícil situação é um pulso forte e uma cabeça com experiência.
Provavelmente, o melhor candidato para a missão seja Timoshenko.” Stalin
concordou. “E Khruschev deve ser nomeado para o conselho de guerra, com o
major general A.P. Pokrovsky como chefe do Estado-maior.” “Que seja”, concluiu
Stalin.
As perdas no primeiro ano de guerra foram verdadeiramente monumentais,
mesmo levando-se em conta a manipulação que os números experimentaram. Só em
Kiev, cerca de meio milhão de homens, de uma forma ou de outra, desapareceram
em ação. Certo dia, Stalin escreveu um bilhete para Shaposhnikov solicitando
detalhes sobre as baixas soviéticas nas proximidades de Vitebsk.42 Normalmente não
muito preocupado com a família, de súbito, seu filho Yakov veio-lhe à mente. Em
meados de agosto, Zhdanov, que estava no conselho de guerra do front noroeste,
enviara-lhe um envelope especialmente selado. Ele continha uma folha de
propaganda com uma fotografia de Yakov em conversa com dois oficiais alemães,
acompanhada do seguinte texto:

Este é o filho mais velho de Stalin, Yakov Djugashvili, comandante de bateria do 14º Regimento de
Artilharia de Campanha da 14ª Divisão Blindada, que se rendeu próximo a Vitebsk em 16 de julho,
juntamente com milhares de outros oficiais e praças. Por ordem de Stalin, Timoshenko e seus comissários
políticos andam dizendo a você que os bolcheviques não se entregam. Mas os homens do Exército Vermelho
estão se bandeando para o lado alemão o tempo todo. Para amedrontá-lo, os comissários lhe dizem que os
alemães tratam muito mal seus prisioneiros. O exemplo do próprio filho de Stalin mostra que isto é uma
mentira. Ele se rendeu porque qualquer resistência ao Exército Alemão é inútil.43

A sorte de Yakov só preocupava Stalin de um único ponto de vista. O pai achava


que teria sido melhor o filho morrer em combate do que cair prisioneiro e,
possivelmente, ser usado pelos nazistas, pessoa fraca que era, para difundir sua
propaganda contra o próprio pai e contra seu país. Era insuportável pensar nisso.
Naquela noite, quando estavam sozinhos, Molotov lhe disse que o chefe da Cruz
Vermelha Sueca, conde Bernadotte, enviara uma mensagem verbal por intermédio
do embaixador da Suécia, perguntando se Stalin lhe delegaria poder, ou a qualquer
outra pessoa, para negociar a libertação de Yakov. O secretário-geral ponderou por
um minuto ou dois, olhou para Molotov e, então, começou a falar sobre um
assunto totalmente diferente. Molotov jamais levantou de novo a questão.
Stalin esperava receber informações precisas sobre o que ocorria, mas quando seus
comandantes lhe relatavam francamente os fatos, sua reação, quase sempre, era a de
acusá-los de alarmismo. Durante a crise de Kiev, por exemplo, Tupikov reportou:
“A situação no front torna-se mais difícil a cada minuto. É o começo da catástrofe
que vocês sabem, e é só uma questão de dias.”44 Stalin telegrafou de volta dizendo
que a mensagem de Tupikov denotava pânico.45 Dali por diante, os comandantes
mostraram cautela em dizer a verdade para Stalin, caso ela não fosse agradável. A
conversa de 4 de setembro de 1941 entre Zhukov e o major-general K.I. Rakutin,
comandante do XXIV Exército, é típica do período. Zhukov censurou Rakutin por
ter lançado seus tanques na batalha “sem raciocinar”, perdendo-os, como também
por fazer relatórios falsos.
Rakutin: “Vou sair esta manhã para investigar o problema, já que acabei de
receber o relatório...”
Zhukov: “Você é um general, não um detetive. Mande-me um relatório escrito
para que eu possa apresentá-lo ao governo. Shepelovo foi ocupada ou isso é lorota
também?”
Rakutin: “Shepelovo não foi ocupada. Eu mesmo vou verificar amanhã e
relatarei para você. Não mentirei.”
Zhukov: “O principal é: acabe com essas mentiras que saem do seu Estado-maior
e lide adequadamente com a situação, ou não será nada bom para você.”46
Rakutin fora iludido pelos subordinados que reportaram sucesso não existente.
Isto aconteceu com frequência, pois as pessoas mentiam com medo da punição.
Rakutin não investigou o problema porque, afinal de contas, morreu em combate
apenas um mês depois.
Em meados de setembro de 1941, Shaposhnikov observou para Stalin que, se
todas as divisões tivessem lutado tão bem quanto as melhores unidades, o inimigo
teria sido barrado bem antes. Stalin, que estava louco para elevar o moral da tropa,
determinou que o Estado-maior encontrasse uma forma de distinguir as melhores
unidades, a fim de estimular e dar exemplo para o restante do exército. Resultou a
Ordem nº 308, de 18 de setembro, criando as Guardas Soviéticas e renomeando as
100ª, 127ª, 156ª e 161ª divisões de infantaria como Divisões de Guardas por suas
bravura, disciplina e organização, aumentando pela metade o soldo de seus oficiais e
dobrando o das praças.47
Em março de 1942, Stalin convocou uma reunião para discutir propostas do
QG do front sudoeste. Compareceram Voroshilov, Timoshenko, Shaposhnikov,
Zhukov e Vasilievsky. Timoshenko sugeriu um ataque amplo no sul, com o
emprego de forças dos três fronts e partindo da linha Nikolaev-Cherkassy-Kiev-
Gomel. Shaposhnikov objetou dizendo que as reservas eram insuficientes e que seria
mais prudente manter uma defensiva ativa ao longo de toda a frente, dando-se
especial atenção ao setor do centro. Stalin observou: “Não podemos ficar sem fazer
alguma coisa, esperando que o inimigo ataque primeiro.” A ideia de Zhukov foi
atacar no setor ocidental e manter a defesa ativa no restante do front. Timoshenko
firmou posição e Voroshilov o apoiou, mas Vasilievsky se opôs. As opiniões ficaram
divididas e todos esperaram pela palavra de Stalin. Chegara o momento de ele tomar
uma decisão genuinamente estratégica, mas optou por um meio-termo tíbio: as
forças do setor sudoeste executariam um único ataque local contra o grupo inimigo
em Kharkov, como um passo na direção da libertação total da bacia do Donets.
Ninguém fez qualquer objeção. Raramente isso ocorria no QG do Estado-maior
Geral.
Stalin supôs que um ataque em direções convergentes – a partir do distrito ao sul
de Volchansk e da cabeça de ponte de Barvenkovo – deixaria o inimigo em situação
difícil. O que não sabia era que os alemães preparavam um ataque às forças
soviéticas no saliente de Barvenkovo. O plano de Stalin, portanto, era risco puro.
A ofensiva de Kharkov teve lugar em 12 de maio e começou bem. As tropas
avançaram 50 quilômetros em três dias quando, de repente, os alemães
desencadearam poderoso ataque do sul contra o flanco da força soviética que
progredia. Uma série de ordens contraditórias foi expedida. Aparentemente, por
volta de 18 de maio, Timoshenko solicitou a Stalin que parasse a ofensiva (não foi
encontrado registro documental da conversa dos dois). Stalin recusou: “Vamos
enviar duas divisões de infantaria e duas brigadas blindadas. O front sul tem que ser
mantido. Os alemães em breve estarão desgastados.”
Mais tarde, durante o XX Congresso do partido, Khruschev culpou diretamente
Stalin pelo desastre de Kharkov. Lembrou-se de que procurou contato com o
Kremlin a partir do front. Malenkov pegou o telefone e Khruschev exigiu falar com
Stalin, o qual, a poucos passos de distância, disse para Malenkov continuar
atendendo a chamada. Khruschev disse para solicitar a Stalin que suspendesse a
ofensiva, ao que o secretário-geral replicou: “Deixe as coisas como estão!”
Zhukov dá uma versão diferente para os eventos, colocando a culpa nas
lideranças dos setores sul e sudoeste. Escreve em suas memórias que o Estado-maior
teve consciência do perigo iminente antes dos fronts. Já em 18 de maio, argumenta,
o Estado-maior era favorável à interrupção da ofensiva. “Naquela noite, houve uma
conversa com Khruschev no front, que assumiu a mesma linha da equipe do QG do
sudoeste, ou seja, que o perigo representado pelo grupo inimigo em Kramatorsk era
exagerado e que não havia necessidade de suspender a ofensiva.” Foi nesse relatório
que Stalin confiara, ignorando as preocupações do Estado-maior Geral. Zhukov
descarta os pleitos de Khruschev quanto ao envio de relatórios alarmantes: “Posso
servir de testemunha, pois participei das conversações com o comandante-
supremo.”48 Zhukov repete várias vezes que Stalin fiou-se nos relatórios de
Khruschev e Timoshenko, deixando de dar o devido peso às análises mais
ponderadas do Estado-maior Geral.
À proporção que o exército blindado de Kleist intensificava o ataque e alargava a
brecha no front, Stalin foi se conscientizando de que, em um dia ou dois, as tropas
soviéticas ficariam presas na “ratoeira” de Barenkovo; portanto, finalmente, deu a
ordem para que o saliente de Barenkovo fosse mantido. Mas já era tarde. O VI e o
LVII exércitos e o Corpo de Exército do general L.V. Bobkin, que avançavam sobre
Krasnograd, caíram no cerco e foram praticamente aniquilados. Se Stalin entendeu
as causas daquilo que foi outra grande tragédia da guerra, ou se ficou consciente de
sua falibilidade como estrategista e tático, é difícil dizer. De qualquer forma, tanto
ele quanto o Estado-maior estavam aprendendo as lições sangrentas da guerra.
Em decorrência das funestas derrotas na Crimeia e em Kharkov, Stalin concluiu
que era hora de aumentar a atividade guerrilheira. No fim de maio de 1942, assinou
a Ordem nº 1.837 criando a equipe do QG central guerrilheiro a ser vinculada ao
Estado-maior. QGs de guerrilhas deveriam ficar adidos também aos sovietes de
guerra dos fronts sudoeste, de Bryansk, oeste, de Kalinin, de Leningrado e da
Karélia. A importância política e militar do movimento foi demonstrada pelo fato
de que seu Estado-maior do QG central deveria incluir P.K. Ponomarenko, do
Comitê Central, V.T. Sergienko, da NKVD, e G.F. Korneyev, da divisão de
informações do Comitê de Defesa.
Quando pareceu que o front sul estava mais ou menos estabilizado, Stalin sentiu
que era hora de intervir novamente. Às 2h de 26 de junho de 1942, tendo ouvido o
relatório rotineiro de Vasilievsky, Stalin não deixou que saísse e disse:
“Espere um momento, quero dizer mais alguma coisa sobre a derrota de
Kharkov. Hoje, quando perguntei ao Estado-maior do sudoeste se o inimigo fora
detido em Kupyansk e como ia a formação das defesas no rio Oskol, não consegui
nada de sensato da parte deles. Quando essa gente aprenderá a combater? Os QGs,
por certo, já deveriam ter tirado algumas lições da derrota de Kharkov. Quando
começarão a cumprir as ordens do Estado-maior? Eles têm que ser lembrados disso.
Aqueles que merecerem deverão ser punidos e, enquanto isso, eu gostaria de mandar
uma carta pessoal para a liderança de lá. O que você acha?”
“Acho que seria útil”, replicou Vasilievsky, e Stalin começou a ditar a carta
seguinte em nome do Comitê de Defesa, sem se dar ao trabalho de consultar
nenhum de seus membros:

Nós aqui em Moscou, os membros do Comitê de Defesa do Estado e o Estado-maior, decidimos substituir o
Camarada Bagramyan no cargo de chefe do Estado-maior do comando sudoeste. O Estado-maior considera
o Camarada Bagramyan insatisfatório não só como chefe do Estado-maior que foi convocado para reforçar as
ligações e as lideranças dos exércitos, como também como simples provedor de informações cuja
responsabilidade é a de dar conhecimento ao Estado-maior, de forma honesta e confiável, sobre a situação no
front. Além do mais, o Camarada Bagramyan provou ser incapaz de aprender com a catástrofe que ocorreu
na frente sudoeste. No curso de umas três semanas, o front sudoeste, graças à sua atitude negligente, não
apenas perdeu a operação ganha pela metade em Kharkov, como também conseguiu entregar ao inimigo
outras 18 ou 20 divisões.

Stalin fez uma pausa e perguntou: “Como é o nome daquele general que foi
derrotado juntamente com Samsonov em 1914? Aquele com o nome alemão?”
“Rennenkampf”, respondeu Vasilievsky.
“Sim, é isso. Correto, vamos continuar.”

Esta catástrofe é tão fatal em suas consequências como o foi a sofrida por Rennenkampf e Samsonov na
Prússia Oriental. Depois de tudo o que aconteceu, o Camarada Bagramyan poderia ter aprendido alguma
coisa, se quisesse. Infelizmente, não há indício disso. Agora, como antes da catástrofe, a ligação do Estado-
maior com os exércitos não é satisfatória, nossa informação é de pobre qualidade.
Estamos enviando o Camarada Bodin, vice-chefe do Estado-maior, para servir como seu chefe temporário de
Estado-maior. Ele conhece esse front e pode fazer um bom trabalho. O Camarada Bagramyan é nomeado
chefe de Estado-maior do XXVIII Exército. Se ele se sair bem nessa função, levantarei o assunto de sua
indicação para a promoção.
Obviamente, o Camarada Bagramyan não é todo o problema. Ainda existem os erros cometidos pelo soviete
de guerra, sobretudo pelos Camaradas Timoshenko e Khruschev. Se tivéssemos que contar ao país a escala
total do revés sofrido, e por que ainda passa o front, temo que o povo iria tratá-los de maneira bem áspera.
Boa sorte.
26 Jul 42, 2h. Stalin49

O ano começara bem. O contra-ataque fora de Moscou, de 5 de dezembro de 1941


a 7 de janeiro de 1942, constituiu a primeira grande ofensiva soviética coordenando
todos os três fronts. O país vibrou. O inimigo fora empurrado entre 100 e 250
quilômetros. Parecia ser o ponto de inflexão. Então, houve um desembarque bem-
sucedido na Crimeia, vitória em Tikhvin, o cerco de um grande grupamento
inimigo em Demyansk. Porém, como escreveu Suetônio: “Nenhuma vitória traz
tanto quanto uma derrota leva”, e houvera mais de uma derrota...
Stalin ficara abalado com os reveses, mas bem menos do que com a ameaça que
pairou sobre a capital em outubro de 1941, quando foi atormentado por
pressentimentos alarmantes. O Comitê de Defesa declarara o estado de sítio.
Naqueles dias sombrios, o inimigo desferiu golpe atrás de golpe, e Stalin sentiu que
só um milagre poderia salvá-lo. Mas foi o povo que o salvou, o povo que encontrou
forças para resistir firme.
Em 17 ou 18 de outubro de 1941, Stalin convocou uma reunião matinal no
Kremlin com Molotov, Malenkov, Mikoyan, Beria, Voznesensky, Shcherbakov,
Kaganovich, Vasilievsky e Artemiev. Quando todos se acomodaram, Stalin começou
a listar as providências para a evacuação das figuras importantes do Estado e do
partido, e para a instalação de explosivos nos edifícios mais relevantes, na
eventualidade da captura de Moscou. Defesas anticarro e contra infantaria deveriam
ser montadas em todas as vias de acesso que conduzissem à cidade. Foi preparado
um plano de deslocamento do governo para Kuibyshev, e do Estado-maior para
Arzamas. O secretário-geral disse que ainda havia esperança de uma boa solução,
uma vez que divisões chegariam em breve da Sibéria e do Extremo Oriente.50
“Não entregaremos Moscou!”, “Não recuaremos mais!”, eram os slogans
bradados pelos cidadãos soviéticos quando, depois do primeiro sentimento de
pânico, uma determinação calma retornou, em meados de outubro, às ruas da
capital. Diversas baterias antiaéreas foram instaladas em torno da dacha próxima de
Stalin e a segurança foi reforçada. Certa ocasião, quando, nas primeiras horas da
madrugada, saltava do carro para entrar em casa, ele ouviu o forte ronco de
inúmeros aviões no céu, e permaneceu parado de pé ao lado do veículo. Poderia ele
ter imaginado, quatro meses antes, que sua dacha ficaria a menos de um dia de
deslocamento dos tanques alemães? Alguma coisa caiu ao lado do caminho.Vlasik
abaixou-se e pegou um fragmento shrapnel ainda quente de granada, passando-o a
Stalin. O chefe da segurança tentou persuadir o líder a entrar em casa (um abrigo
seria construído mais tarde), mas ele permaneceu lá por alguns minutos, como se
estivesse sentindo pela primeira vez a proximidade do hálito mortal da guerra. E foi
então que, também pela primeira vez, teve desejo de visitar o front.
No final de outubro, uma comitiva de vários carros deixou Moscou pela
autoestrada Vokolamsk, entrando por uma estrada vicinal depois de alguns
quilômetros. Stalin queria apreciar o disparo de uma salva de tiros, mas o chefe da
segurança não permitiu que a coluna avançasse mais. Eles esperaram. Stalin ouviu as
explicações de um oficial do front oeste, olhou por longo tempo os lampejos
avermelhados no horizonte e depois foi embora. No caminho de volta, um blindado
pesado salpicou de lama a limusine de Stalin. O motorista, A. Krivchenko, se
desesperou, e Beria insistiu para que Stalin trocasse de carro. Pelo amanhecer, a
excursão “ao front” havia terminado.
Certa vez, em meados de outubro, quando o secretário-geral se preparava para se
deslocar para a dacha, Beria informou-o, um tanto nervoso, que não deveria ir,
explicando em georgiano, quando Stalin lhe lançou um olhar irritado, que a dacha
fora minada e se encontrava pronta para ser explodida. Stalin ficou raivoso, mas
logo acalmou-se. Beria também lhe disse que um trem especial estava pronto para
ele numa das estações de Moscou, bem como quatro aviões, inclusive o seu Douglas
DC-3 privativo. Stalin nada disse. Ponderou sobre o assunto, mas uma coisa dentro
de si lhe disse que, enquanto o exército e o povo soubessem que ele, Stalin, ainda
estava em Moscou, iam se sentir mais seguros; portanto, depois de longa
deliberação, decidiu permanecer até o amargo fim. Sabia que a evacuação da capital
prosseguia a pleno vapor e que os objetivos militares estavam sendo preparados para
explosão. Beria sugeriu que, se eles tivessem que sair, o metrô também fosse
destruído.
Stalin tampouco tinha certeza se Leningrado resistiria. Em 25 de outubro de
1941, enviou um telegrama para Fedyuninsky, Zhdanov e Kuznetsov dizendo que
eles pareciam não estar cientes da situação crítica das forças no front de Leningrado:

Moscou está em posição delicada e não pode fornecer novas reservas. Ou vocês rompem o cerco nos
próximos dois ou três dias e dão um escape para o leste para nossas tropas, caso Leningrado não possa ser
mantida, ou serão feitos prisioneiros. Exigimos uma ação rápida e decisiva. Concentrem oito ou nove
divisões e abram caminho para leste. Isto é essencial, possa Leningrado ser mantida ou render-se. Para nós, o
Exército é mais importante. Exigimos ação decisiva.

Isto foi repetido numa mensagem posterior de Vasilievsky para o tenente-general


M.S. Khozin, comandante do LIV Exército, que foi nomeado comandante do front
de Leningrado quatro dias depois: “Peço que você leve em consideração que, neste
caso, não estamos falando tanto em salvar Leningrado mas em salvar e retirar o
exército.”51
No discurso pelo rádio de 9 de novembro de 1941, do qual Stalin recebeu uma
transcrição de interceptação, Hitler disse que o Exército Alemão avançara sobre
Leningrado o suficiente para manter e completar o cerco da cidade, enquanto “o
inimigo morre de inanição. Se uma força com poder suficiente ameaçar o
rompimento de nosso cerco darei ordem para que Leningrado seja tomada de
roldão. Mas a cidade está firmemente sitiada, e tanto ela como seus habitantes estão
em vossas mãos”.52
A reação de Stalin à notícia da tragédia de Leningrado, onde centenas de
milhares, de fato, morriam de fome, foi digna de nota. O general Fedyuninsky me
relatou uma conversa que ele e um grupo de líderes da cidade tiveram com Stalin
depois que o bloqueio foi levantado. O general disse a Stalin que Leningrado se
transformara em cidade-fantasma. Corpos jaziam nas ruas porque não havia gente
para recolhê-los. A pior coisa, disse Fedyuninsky, é que a pessoa que morre de
inanição permanece consciente até o fim. Inclusive o medo desaparece. “É como
apreciar a aproximação da própria morte. O sítio de Leningrado foi uma das
grandes tragédias da história humana.” Stalin replicou: “A morte não ceifava só os
de Leningrado. Morria gente também nos fronts e nos territórios ocupados.
Concordo que a guerra é horrenda quando não há saída para a situação, e a inanição
é uma dessas situações. Nada mais havia que pudéssemos fazer por Leningrado. A
própria Moscou estava por um fio. Morte e guerra são inseparáveis. Leningrado não
foi o único local a sofrer nas mãos de Hitler, aquele porco.”
Mas Moscou resistiu, e o segundo furioso assalto alemão à cidade entrou em
colapso. Stalin logo determinou a Zhukov que preparasse a contraofensiva e,
quando os alemães chegaram, literalmente, aos subúrbios de Moscou, caindo de
exaustos, a ordem foi dada e, desta vez, a vitória chegou. Os nazistas
experimentaram a primeira derrota importante na Segunda Guerra Mundial.
Pareceu que chegara o ponto de inflexão. Foi possível, então, restaurar a fé do povo
na possibilidade de vitória e acabar com o clima fatalista de fracasso, ante o mito da
invencibilidade alemã. Em alguns aspectos, Stalin revelou-se um bom psicólogo.
Sabia que não deveria deixar Moscou, que o Informburo não deveria publicar
boletins que denotassem pânico e que os jornais deveriam difundir os atos de
bravura e os sucessos das Forças Armadas. Na véspera do aniversário da Revolução,
em 1941, perguntou a Molotov e Beria: “Como vamos realizar o desfile militar?
Talvez duas ou três horas mais cedo?” Os dois pensaram que tinham entendido
errado. Uma parada, com os alemães, literalmente, às portas de Moscou? Como se
desconhecesse as dúvidas deles, Stalin continuou:
“As defesas antiaéreas em torno de Moscou devem ser reforçadas. Os principais
chefes militares estão no front. Budenny comandará o desfile e Artemiev estará à
frente da tropa. Se houver um ataque aéreo durante a parada e resultarem mortos e
feridos, eles deverão ser rapidamente removidos e o desfile deve prosseguir. Um
noticiário cinematográfico será preparado e distribuído em grandes quantidades por
todo o país. Os jornais farão grande cobertura. Lerei um relatório na reunião
cerimonial e farei um discurso do palanque. O que vocês acham?”
Molotov ponderou: “E quanto ao risco? Há um risco, embora eu admita que a
repercussão política, aqui e no exterior, será enorme.”
“Então, está decidido. Tome as providências devidas”, disse Stalin a Beria, “mas
ninguém, a não ser Budenny, Artemiev e uns poucos indivíduos confiáveis, deverá
ter conhecimento da parada até o último minuto.”
Foi, sem dúvida, uma iniciativa corajosa e de longo alcance, refletindo a mão
segura com que Stalin influenciava a opinião pública e guiava o estado mental da
população, e isso numa ocasião em que muitos duvidavam do resultado da guerra.
Os nazistas tinham encontrado inúmeros cúmplices nos territórios ocupados, e
Stalin sabia que os fracassos soviéticos solapavam a fé. Encarava a rendição em massa
como traição, embora jamais reconhecesse em público que existiam tantos
prisioneiros soviéticos nas mãos dos alemães. Quando falou na reunião cerimonial
do soviete de Moscou, no metrô Mayakovsky, em 6 de novembro de 1941, declarou
que “nos quatro meses de guerra, perdemos 350 mil mortos e 378 mil desaparecidos
em ação”.53 Já então, Stalin era um mestre na manipulação e, na verdade, na
invenção de fatos com fins de propaganda. Ele sabia que existiam bem mais
“desaparecidos em ação”, mas não era o catastrófico começo da guerra que ele via
naqueles números, e sim os erros políticos no treinamento das pessoas, a
inadequação dos órgãos punitivos, a influência do inimigo, os sobreviventes da luta
de classes. A este respeito, ele não era nem o psicólogo sutil, nem o político sóbrio,
tampouco o “sábio pai da nação”. Era, isto sim, o Stalin de 1929-33, 1937-38. O
íntimo de um homem muda lentamente. No caso de Stalin, o medo do cerco do
inimigo permaneceu com ele durante toda a vida. De outra forma, ele simplesmente
não teria sido Stalin.
Notas

* Em 30 de setembro de 1941, a Força Aérea soviética tinha perdido 96,4% dos aviões que possuía quando a
guerra começou. (TsAMO, f.35. op. 11 285. d. 9. l. 324)

** Ilha fortificada a cerca de 20 milhas fora de Leningrado.


[44]
O cativeiro e o general Vlasov

A invasão nazista causou muitas infelicidades, entre elas os prisioneiros, o


cativeiro. Um homem tendo que escolher entre a vida e a morte na guerra,
normalmente escolhe a vida, mesmo que isto signifique a perda da
liberdade e do seu senso de dignidade social. No último conflito de âmbito
mundial, o cativeiro foi quase equivalente à morte porque a avassaladora maioria
dos prisioneiros de guerra soviéticos pereceu, de fato, nos campos alemães. Em maio
de 1918, o governo soviético informara à Cruz Vermelha Internacional e aos
governos do mundo que as convenções sobre vítimas da guerra, como “todos os
outros acordos e convenções internacionais relativos à Cruz Vermelha e respeitados
pela Rússia antes de 1917, são agora reconhecidos e serão honrados pelo governo
soviético russo”. A nova Convenção de Genebra sobre prisioneiros de guerra, de
1929, não foi, no entanto, ratificada pela União Soviética.54
Milhões de soldados soviéticos caíram em mãos alemãs nos primeiros dezoito
meses da guerra. Quantidades exatas sobre as baixas e prisioneiros soviéticos ainda
não foram publicadas na URSS. Chegaram a níveis fantásticos. Farei meus próprios
cálculos num capítulo adiante.
Em diversas ocasiões dos primeiros meses da guerra, Stalin quis saber a escala das
perdas. O Estado-maior e a divisão de pessoal do Comissariado da Defesa
produziram relatórios, mas, claramente, faziam pouca ideia da posição real. Os
arquivos contêm gráficos mostrando quantos foram mortos e feridos, quantos
adoeceram e quantos desapareceram em ação, quantos cavalos ficaram
incapacitados, quantos aviões, armas e carros de combate foram perdidos. Mas não
há tabelas com as quantidades de prisioneiros de guerra. Um dos relatórios afirma
que, em junho e julho de 1941, 72.776 homens estavam desaparecidos em todos os
fronts.55 Os números dobram se acrescentarmos os números de agosto e setembro,
mas também sabemos que, só no distrito de Kiev, 452.720 homens foram cercados
e que a maioria deles foi aprisionada. Existem alguns cálculos oficiosos que são mais
precisos. Por exemplo, o procurador-chefe do Exército Vermelho, V.I. Nosov,
informou a Mekhlis, em 24 de setembro de 1941, que, dos 7 mil combatentes da
299ª Divisão de Infantaria do L Exército, que combatia na autoestrada Bryansk-
Roslavl, restavam menos de 500. Cerca de 500 haviam morrido, 1.500 estavam
feridos e 4 mil tinham desaparecido em ação.56
O próprio Stalin admitiu, indiretamente, a grande quantidade de soldados
“desaparecidos” num telegrama a Timoshenko, Khruschev e Bodin:

O Estado-maior considera intolerável e inadmissível que, por diversos dias, o soviete de guerra não tenha
mandado notícias sobre o destino do XXVIII e do LVII Exércitos e do 22º Corpo Blindado. De diversas
fontes, o Estado-maior tem conhecimento que os Estados-maiores destes exércitos recuaram para trás do
Don, mas nem tais Estados-maiores nem os sovietes de guerra informaram ao Estado-maior para onde essas
forças foram e o que lhes aconteceu, se ainda combatem ou caíram prisioneiras. Eram cerca de quatorze
divisões nestes exércitos e o Estado-maior deseja conhecer seu paradeiro.57

Em novembro de 1941, Hitler proclamou que o sucesso da Alemanha na guerra era


evidente, uma vez que a nação já tinha feito 3,6 milhões de prisioneiros, “e proíbo
que qualquer inglês estúpido diga que isso não foi provado. Quando uma instituição
militar alemã calcula alguma coisa o resultado é sempre correto”.58 Existem várias
estimativas sobre o número de prisioneiros de guerra soviéticos nos estudos
ocidentais, algumas baseadas em cálculos da Wehrmacht de junho de 1941 a abril
de 1945, que totalizam 5,16 milhões.59 Acredito que tal número resultará exagerado
quando todos os fatos forem conhecidos. No entanto, fundamentados no que agora
sabemos, nos primeiros dezoito meses de guerra, cerca de três milhões de homens,
ou seja, 65% das Forças Armadas soviéticas, foram feitos prisioneiros.
Qual a atitude de Stalin em relação a esses prisioneiros? Além da proibição oficial
da rendição, ele também suspeitava de provável traição. Qualquer militar que tivesse
sido aprisionado não era, aos seus olhos, digno de confiança. Se voltasse ao país, era
transferido para uma unidade de lançamento de campos de minas ou enviado a
campos especiais de concentração onde a NKVD pudesse “checá-lo”. Em agosto de
1942, Stalin sancionou a construção de três destes campos.60
O secretário-geral interessava-se particularmente pela sorte dos generais
desaparecidos, e expediu instruções especiais para investigar o que acontecera com
Kachalov, Ponedelin, Vlasov, Yefremov, Potapov, Rakutin, Samokhin e Lukin. Já
apreciamos os casos de Kachalov e Ponedelin. Quando Yefremov e Vlasov
desapareceram, Stalin ordenou que Beria fizesse uma sindicância, e existe um
telegrama de Zhdanov ao general Sazonov solicitando informar imediatamente ao
Estado-maior o que sabia sobre Vlasov.61
Eles não encontraram Vlasov, porém o próprio general logo deixou conhecida
sua posição, como veremos mais adiante. Quanto a Yefremov, seu destino foi
descoberto por acidente. Uma mulher do vilarejo de Slobodka, no distrito
Temkinky de Smolensk, deu parte de que no fim de abril de 1943 vira alguns
soldados “enterrando um general”. O fato foi levado às autoridades superiores, onde
se suspeitava que o general havia se rendido. Em consequência, a sepultura foi
escavada, o corpo identificado, seus ferimentos confirmados como incapacitantes e
um relatório submetido a Stalin, que acabou por reabilitar Yefremov, efetivamente,
por ter atirado em si próprio para evitar a captura iminente.
Muitos generais desapareceram em ação entre 1941 e 1942, a maioria morta na
tentativa de romper os cercos. Os que sobreviveram, ou definharam ou morreram
nos campos alemães. Alguns, como o major general P.V. Sysoev, preso em julho de
1941, conseguiram escapar em 1943, mas tiveram que passar três anos num campo
soviético sendo “checados”. Outros foram executados por traição. Uns poucos,
como Rikhter, Malyshkin e Zhilenkov, passaram, de fato, para o lado alemão.
Pode-se imaginar que Stalin, tendo “limpado” toda a sociedade entre 1937 e
1939, não esperava que alguém colaborasse com os ocupantes. Como vimos,
décadas mais tarde, Molotov afirmou que Stalin havia “destruído a quinta-coluna”
antes da guerra. É claro que não foi assim. Antes de tudo, a gente que Stalin
liquidou não era inimiga. Os Quislings e Lavals não estavam todos no Ocidente: a
União Soviética teve também seus próprios colaboradores e traidores. Haviam
decorrido apenas 21 anos desde a revolução e existiam muitas pessoas que se sentiam
prejudicadas pelo regime. Muitas outras foram motivadas pelo temor aos nazistas e
pelo desejo de se adaptar e sobreviver, enquanto outras, especialmente em 1941,
acharam que os alemães tinham chegado para ficar. Por fim, existiram os fracos, os
venais, os tipos simplesmente criminosos que estavam prontos para cometer a
traição. Exemplificando, Beria relatou a Malenkov, em dezembro de 1941, que um
tal A.I. Ulyanov caíra prisioneiro como soldado raso e fora enviado para a
retaguarda pelos alemães como capitão duas vezes condecorado como Herói da
União Soviética. Foi logo desmascarado.62
Eram casos isolados, mas houve também diversas formas organizadas de
colaboração, das quais o caso mais gritante foi o do tenente-general A.A. Vlasov,
comandante do II Exército de Assalto, no front de Volkhov. Quando Stalin soube,
em junho de 1942, que aquela força fora cercada no distrito de Masnoy Bor,
recebeu calmamente a notícia. Afinal de contas, quantos outros exércitos haviam
sido isolados! Todavia, a partir da batalha de Moscou, ele ficou mais confiante em
que o resultado da guerra não dependia mais de uma vitória aqui ou uma derrota
ali: a causa Aliada estava a caminho da vitória. Também sabia que em Vlasov, o
segundo na hierarquia do front, o II Exército de Assalto tinha um chefe experiente;
além do mais, Stalin o havia promovido a tenente-general havia três meses como um
dos melhores oficiais de alta hierarquia do front.
Poucos dias mais tarde, Stalin perguntou a Vasilievsky como os eventos tinham
transcorrido e o que ocorrera desde então. Vasilievsky lembrou-lhe que, em 21 de
maio, ele ordenara que o agrupamento de Volkhov do front de Leningrado atacasse
o inimigo a partir do oeste, enquanto o LIX Exército atacaria do leste, destruindo
assim as tropas inimigas no saliente de Priyutin-Spasskaya Polist. As forças
combinadas do LIX Exército e do II Exército de Assalto, mais o flanco direito do
LII Exército, garantiriam uma cabeça de ponte na margem oeste do rio Volkhov e
fechariam a rodovia e a ferrovia Leningrado para evitar a junção das forças inimigas
com seus agrupamentos de Novgorod e Chudov, restaurando, assim, a linha
Novgorod-Leningrado.63
“Então, como você deixou que o II Exército de Assalto fosse cercado?”,
perguntou Stalin.
“Quando forças inimigas importantes começaram a ameaçar o II Exército de
Assalto pelo norte, solicitei repetidamente que Khozin enviasse reforços para o setor
de Volkhov.”
“O que fez Khozin?”, indagou Stalin, rispidamente.
“O front só deu a ordem em 25 de maio, tarde demais. Em três ou quatro dias,
as linhas de suprimento do Exército foram cortadas e ele se viu isolado.” Vasilievsky
explicou que passou telegrama a Khozin para que agisse com maior determinação e
acelerasse o deslocamento de suas forças.64
Stalin então perguntou se fora feito contato com Vlasov.
“Não”, respondeu Vasilievsky. “Seu último relatório foi por volta do início de
junho.”
“Talvez o agrupamento operacional de Volkhov devesse organizar um front
separado?”, sugeriu Stalin.
Vasilievsky concordou: “Há seis exércitos naquele agrupamento. Eles devem ser
capazes de resgatar o II Exército de Assalto.”
“Tire Khozin e nomeie Govorov comandante em chefe do front de Leningrado.
O comandante do novo front de Volkhov deve ser Meretskov. Se você não faz
objeção, redija as ordens”, concluiu Stalin.*
Outros eventos logo desviaram de Vlasov a atenção de Stalin, se bem que,
quando a rádio alemã começou a divulgar rumores de que “um dos maiores
exércitos soviéticos” fora cercado, Stalin determinou que o Sovinformburo
preparasse um comunicado especial que dizia:

Em 28 de junho, o bureau alemão de informações divulgou nota do QG de Hitler sobre a destruição do II


Exército de Assalto e dos exércitos LII e LIX do front de Volkhov, alegando que eles foram cercados por
tropas fascistas alemãs na margem oeste do rio Volkhov. De fato, os exércitos LIX e LII atacaram do leste e o
II Exército de Assalto do oeste, cortando as ligações entre unidades inimigas que foram, em sua maior parte,
destruídas, sendo que só umas poucas foram jogadas para posições de onde puderam escapar. Portanto, não
se justificam comentários sobre a destruição do II Exército de Assalto.

Stalin deu uma olhada no comunicado e o passou a Poskrebyshev, dizendo: “É


melhor não falar nada.” Poucas horas mais tarde, em 29 de junho de 1942,
entretanto, o Sovinformburo foi instruído para divulgar um comunicado diferente:

Os escribas nazistas estão citando cifras astronômicas de 30 mil supostos prisioneiros de guerra e falando em
maior quantidade ainda de mortos. Nem é preciso dizer que se trata de típica mentira nazista. Segundo
dados ainda não confirmados, pelo menos 30 mil alemães foram mortos [...] Partes do II Exército de Assalto
recuaram para posições preparadas. Perdemos aproximadamente 10 mil mortos e 10 mil desaparecidos em
ação.

A simetria destes dados já era bastante suspeita àquela época e agora sabemos que
milhares e milhares de combatentes soviéticos foram tragados pelos pântanos na
operação malplanejada e que ainda estão listados como “desaparecidos”.
Em determinada ocasião, poucas semanas depois, Beria, que juntamente com
Molotov ainda se encontrava tarde da noite na dacha de Stalin, tirou um
documento de sua indefectível pasta e o mostrou a Stalin.
“O que é isso?”
“Dê uma olhada. Veja onde está o desaparecido comandante do II Exército de
Assalto”, replicou Beria.
Stalin passou os olhos pelo documento que era “Uma proclamação do comitê
russo dos soldados e oficiais do Exército Vermelho para todo o povo russo e todas as
nações da União Soviética”:

O Comitê Russo tem os seguintes objetivos: derrubar Stalin e sua súcia, concluir uma paz honrosa com a
Alemanha, criar uma Nova Rússia. Convocamos você a se juntar ao Exército Russo de Liberação que luta em
aliança com a Alemanha.
Presidente do Comitê Russo tenente-general Vlasov
Secretário do Comitê Russo tenente-general Malyshkin65

Havia passes para o cruzamento das linhas, “Uma carta aberta de Vlasov sobre os
motivos pelos quais tomei o caminho da luta contra o bolchevismo”, e publicações
semelhantes.
Stalin pôs de lado os documentos e perguntou a Beria: “Podem ser falsificações?
O que se sabe sobre Vlasov? Há confirmação?”
Beria replicou: “Há, sim. Vlasov está trabalhando para os alemães.”
“Como deixamos que escapasse antes da guerra?”, interveio Molotov.
Como resposta, Beria tirou a ficha pessoal de Vlasov de sua pasta. Stalin leu que
ele nascera na província de Nizhni Novgorod (Gorky) no seio de uma família
mediana (isto é, nem rica nem pobre) de camponeses. Não tinha parentes além da
esposa e do pai idoso. Beria sublinhou a anotação de que Vlasov completara a escola
religiosa e estudara durante dois anos num seminário teológico antes de 1917.
Combatera na guerra civil e todos os seus serviços posteriores foram bem-sucedidos:
a 99ª Divisão de Infantaria, sob seu comando, estivera entre as melhores no distrito
de Kiev. Antes, desempenhara missão especial na China. Comandara o 4º Corpo
Mecanizado que combateu com bravura em Przemsyl e Lvov, e fora promovido para
comandar o XXXVII Exército que defendia Kiev. Saíra-se muito bem naquela
missão, recebera o XX Exército e, finalmente, o II Exército de Assalto.
Em 20 de abril de 1942, o próprio Stalin assinara a ordem nomeando-o
comandante “combinado” – um termo raro no vocabulário militar – do II Exército
de Assalto e vice-comandante em chefe do front de Volkhov.66 Fora condecorado
com a Ordem de Lenin e a da Bandeira Vermelha. Tinha um histórico irretocável.
O relatório de 1938 do partido a seu respeito afirmava que “ele está fazendo muito
para liquidar os remanescentes da sabotagem nas unidades”. Seus avaliadores foram
oficiais renomados como Kirponos, Muzychenko, Parusinov e Golikov. O único
comentário numa certidão datada de 19 de novembro de 1940 referia-se a um
desejo “de dedicar atenção ao emprego e à manutenção dos cavalos”. Ao longo de
toda a ficha havia observações como “Dedicado à causa do partido de Lenin-Stalin e
à da Pátria-Mãe”. Numa avaliação de 24 de janeiro de 1942, o general Zhukov
escrevera que Vlasov era bem treinado operacionalmente e estava totalmente
capacitado para comandar um exército. Receber um “totalmente capacitado” de
Zhukov não era façanha pequena naqueles tempos sisudos.
Stalin não acreditava que Vlasov pudesse fazer muita coisa importante para os
alemães, mas entendeu que, depois do anúncio da formação do Exército Russo de
Liberação, poderia esperar o surgimento de outras organizações nacionais como
aquela, e estava certo.
Em 1942, as autoridades germânicas começaram a explorar os acampamentos à
procura de desertores que desejassem não apenas servir no exército de Vlasov, como
também nas diversas legiões nacionais: georgiana, armênia, turquestã, caucasiana,
báltica e outras. Muito esforço foi feito com esse intuito, mas pouco resultou.
Alguns prisioneiros de guerra se filiaram a estas legiões como meio de sobrevivência
e como uma possível maneira de voltarem às suas forças, mas também existiram
aqueles que se deixaram levar pela propaganda nacionalista. Alguns “legionários”
chegaram mesmo a tentar cruzar as linhas em uniformes confeccionados pelos
alemães, sem saber ao certo o destino que os esperava. Por exemplo, em 3 de
outubro de 1942, Bergenov, Khasanov e Tulebaev, três soldados da legião turquestã,
procuraram companheiros durante quatro dias, toparam com unidades soviéticas e
disseram que grande parte de seu batalhão desejava retornar à sua unidade. Em 8 de
outubro,Tsulaya e Kabakadze apareceram numa zona de defesa da 2ª Divisão de
Guardas e pediram ajuda para que um destacamento da legião georgiana cruzasse a
linha.67
Os alemães eram bastante otimistas em relação às legiões que formaram nas
repúblicas bálticas, cujas populações só viviam sob mando soviético por apenas um
ano antes da guerra. O comando alemão, contudo, apenas as empregou como
auxiliares, na guarda de instalações e estradas e, ocasionalmente, em expedições
punitivas. Depois da guerra, esses legionários foram julgados e exilados. O governo
báltico solicitou às autoridades soviéticas que decretassem uma anistia. Em 16 de
março de 1946, V.T. Latsis, primeiro-ministro da RSS da Letônia, e Ya.E.
Kalberzin, primeiro-secretário do partido letão, escreveram a Moscou:

Durante a ocupação temporária da RSS da Letônia, os agressores germânicos mobilizaram obrigatoriamente


toda a força de trabalho, sendo que alguns de seus integrantes foram deportados para campos de trabalho
forçado na Alemanha, enquanto outros foram recrutados para as chamadas legiões do Exército alemão. Estes
últimos foram depois exilados por seis anos para regiões do norte.
Solicitamos que seja permitido àqueles que apenas serviram nas legiões que retornem à RSS da Letônia.68

Stalin normalmente repassaria tais tipos de comunicações a Molotov e Beria, mas


sua atitude em relação a quem havia se bandeado para os alemães era invariável.
Depois da liberação do Cáucaso Setentrional, Beria reportou que:
A NKVD acha que seria sensato deportar de Stavropol, Kislovodsk, Pyatigorsk, Mineralnye Vody e
Essentuki as famílias de bandidos, cúmplices ativos dos alemães, traidores da Pátria-Mãe e aqueles que
passaram voluntariamente para o lado germânico, e assentá-los permanentemente na RSS do Tadjiquistão
como colonos especiais. As quantidades envolvidas são 735 famílias ou 2.238 pessoas. Solicito suas ordens.69

Stalin deu sua aprovação. Mantinha-se informado sobre as legiões por intermédio da
NKVD. Entendia que, a despeito de aquelas unidades não representarem uma
grande força, poderiam ser politicamente significativas. Sua posição para com elas,
demonstrada nos documentos, foi uniformemente irreconciliável, muito embora
elas constituíssem efetivos pequenos.
Por exemplo, Kobulov reportou a Beria que, nos distritos do Cáucaso
Setentrional, na semana anterior, houvera seis incidentes. Oito bandidos foram
mortos, inclusive dois paraquedistas alemães, 46 bandidos foram presos e 37 armas
capturadas. O Exército Vermelho perdeu oito homens. O chefe do bando Kayakent,
Ilyasov-Nadzmuddin, foi morto, e o bando de S.Kh. Temirkanov, aniquilado.70 De
forma semelhante, Beria enviou o seguinte relatório de Kobulov para Stalin, em 20
de julho de 1944:

Como resultado da varredura nas florestas do distrito de Kazburun, na RSS Autônoma de Kabardino-
Balkária, em 12 de julho, um paraquedista alemão foi capturado, de nome Kh.Kh. Fadzaev (ex-membro do
Konsomol, caucasiano, que trabalhou para a polícia alemã no vilarejo de Urukh, alistou-se no Exército
alemão em 1943 e tem a graduação de sargento-maior). Diversos outros paraquedistas estão presos, dois deles
ainda estão sendo procurados. O restante ou morreu ou está preso.71

Relatórios similares chegavam da Crimeia e de outras regiões. Em vez de lidar com


criminosos e traidores individuais, Stalin e Beria agiram de acordo com os planos
preparados por Serov, Kobulov, Momulov, Tsanava e outros mestres em tais
assuntos, e deportaram nações inteiras do Cáucaso Setentrional, da Kalmíkia e da
Crimeia para o leste. Os documentos testemunham que existiram muitos vira-
casacas, mas quantos heróis saídos desses povos serviram com distinção no Exército
Vermelho! Só os chechênios e os inguches deram trinta e seis Heróis da União
Soviética.
No curso de 1944, por ordem de Stalin, centenas de milhares de chechênios,
inguches, balkares, karachays, tártaros da Crimeia, kalmyks e turcomenos foram
deportados. Um dos poucos estudos acadêmicos sobre o assunto é o do historiador
Dr. Kh.M. Ibragimbeili.72 No meio-tempo, Beria reportou para Stalin que 26.359
famílias kalmyks, totalizando 93.139 pessoas, haviam sido deportadas para as regiões
de Altai e Krasnoyarsk, e para os oblasts de Omsk e Novosibirsk.73
Stalin acompanhava estes desenvolvimentos com a mesma assiduidade que
dedicava às posições dos fronts. Mas, no caso das deportações, não encontrava
resistência porque os envolvidos eram normalmente idosos, mulheres e crianças, e
Beria chegou a relatar que “durante a operação de despejo e transporte não houve
incidentes”. Stalin ficou satisfeito e ordenou a Beria que “destacasse aqueles que
tinham executado as ordens de deportação de maneira exemplar”. Beria agiu
rapidamente e respondeu:

De acordo com suas instruções, submeto à sua apreciação uma minuta de decreto do Presidium do Soviete
Supremo da URSS sobre condecorações e medalhas para os participantes que mais se destacaram na
deportação de chechênios e inguches. Dezenove mil membros da NKVD, da KGB e da Smersh** tomaram
parte, mais cerca de 100 mil oficiais e membros das forças da NKVD, dos quais uma parcela substancial
participou da deportação dos karachays e kalmyks, e serão envolvidos na próxima deportação dos balkares.
Como resultado destas três operações, cerca de 650 mil chechênios, inguches, kalmyks e karachays já foram
enviados para as regiões orientais da URSS.74

Stalin chegara a ponto de acusar nações inteiras de traição, e mais de 100 mil
soldados foram empregados para deportar velhos, mulheres e crianças. Se ele tivesse
seguido esta lógica até o extremo, depois da formação do Exército Russo de
Liberação, teria deportado todos os russos e todos os ucranianos – na realidade,
todas as nações da URSS!
O movimento Vlasov surgiu por uma série de razões: as grandes derrotas, os
sentimentos de injustiça nacional e social entre alguns representantes (e seus filhos)
de antigas classes privilegiadas, o medo da reação de Stalin por cair prisioneiro.
Quanto mais o Exército Vermelho era vitorioso em fazer o inimigo refluir, menor a
quantidade dos prisioneiros de guerra soviéticos que se juntavam aos alemães e, pelo
final de 1942 e em 1943, a quantidade minguou para praticamente zero. Falando
aos agitadores que trabalhavam no seio das tropas não russas, o chefe da
administração política do Exército Vermelho, A.S. Shcherbakov, observou que em
agosto de 1942, no front de Leningrado, ocorreram 22 casos de homens que
passaram para o lado alemão, enquanto em janeiro de 1943 foram apenas dois.
Depois, não houve mais caso algum.75
No seu livro Die Geschichte der Wlassow Armee, História do Exército Vlasov,
Joachim Hoffmann afirma, aparentemente com base nos arquivos de Vlasov, que,
por volta de maio de 1943, a Wehrmacht contava com noventa batalhões russos e
quase outras tantas legiões nacionais à sua disposição.76 Tais quantidades são
grosseiramente infladas, e a tentativa de retratar o movimento Vlasov como
alternativa viável para o bolchevismo é inconvincente ao extremo. As formações de
Vlasov não eram compostas de “combatentes ideológicos” e sim de uma mistura de
criminosos e nacionalistas, essencialmente de pessoas que se encontravam em
situação desesperadora e estavam convencidas de que ali estava uma possível forma
de sobrevivência. O fato de Vlasov recorrer a emigrados brancos da estatura do
comandante cossaco P.N. Krasnov, do general A.G. Shkuro, do general Sultan-
Girei Kluch e de outros bem atesta a pobreza ideológica do movimento.
Foi principalmente o sucesso militar soviético que solapou o movimento Vlasov,
dissipando-o como fez à depressão, ao pânico e à apatia que tinham provido solo
fértil para as defecções. Não obstante, Stalin preferiu explicar o movimento Vlasov
como evidência de que nem todos os “inimigos do povo” haviam sido
desmascarados antes da guerra. Uma supervisão estrita foi mantida sobre os que
retornaram do cativeiro, medidas especiais seriam introduzidas nos fronts, com ação
punitiva contra os que manifestassem dúvida sobre a capacitação de seus
comandantes. A checagem nos territórios liberados e a vigilância sobre a retaguarda
do Exército Vermelho ficaram a cargo da NKVD e, como demonstram seus
relatórios regulares, Beria fez seu trabalho em grande escala. Por exemplo:

Em 1942, as tropas da NKVD responsáveis pela segurança na retaguarda do Exército Vermelho, no processo
de limpeza do território liberado das mãos do inimigo, prenderam 931.549 pessoas para averiguações.
Destas, 582.515 eram militares e 349.034, civis.
Do número total, 80.296 foram desmascaradas e presas (como espiões, traidores, membros de esquadras
punitivas, desertores, bandidos e elementos criminosos semelhantes).77

Beria e sua equipe não se limitaram a trabalhar no lado soviético, mas também
tentaram descobrir o que acontecia nas unidades de prisioneiros de guerra formadas
pelos alemães. Beria, que normalmente despachava sozinho com Stalin ou na
companhia de Molotov, em certa ocasião mostrou a Stalin as anotações feitas
durante o interrogatório do major general A.E. Budykho, que escapara de um
campo de concentração alemão e se juntara a um grupo de guerrilheiros. Ele então
definhava num campo de concentração soviético em Oranienburg, onde a maioria
de seus colegas de prisão era constituída por oficiais que tinham sido prisioneiros de
guerra dos alemães. Budykho fez um relato detalhado, descrevendo a chegada ao
campo do representante pessoal de Vlasov, o general Zhilenkov, e de outros oficiais
do Exército Russo de Liberação.
Zhilenkov fora secretário de um comitê do partido do distrito de Moscou antes
da guerra e progredira rapidamente na carreira, graças ao expurgo nas organizações
partidárias. Como membro do soviete de guerra do XXXII Exército no front oeste,
ele fora cercado e caiu prisioneiro. Oportunista bajulador, ao se ver, subitamente,
entre oficiais antigos do partido, logo se transformou em colaborador. O mesmo
aconteceu com outro dos auxiliares de Vlasov, o tenente-general Malyshkin, chefe
do Estado-maior do XIX Exército. Fora preso em 1938 e libertado no começo da
guerra. Quando Beria reportou sobre diversos generais que tinham sido condenados
e depois libertados, Stalin quis saber quem tinha feito a petição em favor de
Malyshkin. Lamentou o tempo perdido para ouvir relatos sobre todos os traidores
desconsiderados nos anos 1930.
Em fevereiro e março de 1943, foram realizados julgamentos in absentia, nos
quais Vlasov e outros foram condenados à morte. As sentenças foram executadas em
agosto de 1946, depois que os sentenciados foram capturados pelas forças soviéticas
e repatriados.
No fim, Stalin deve ter pensado que tudo que os Vlasovs armaram não fez a
menor diferença. O país já tinha passado pelo pior. Seria difícil encontrar um início
de guerra mais melancólico que o de junho de 1941. Todas as autoridades civis e
militares de proa achavam que a URSS, na melhor das hipóteses, sobreviveria por
três meses. Mas o povo soviético as desmentiu. Contudo, a inacreditável resistência
e a obstinação sem limites seriam creditadas à “sábia liderança” de Stalin, o
responsável mais direto pela catástrofe.
Notas * Surgiram também informações de que Khozin era muito dado à bebida
e de que levava mulheres para seu apartamento — ele alegou que elas iam lá
para assistir filmes (TsPA IMI. F.77. op. 3 . d. 133. 1. 1-4.)

** Sigla russa de Smyert Shpiona, “Morte aos Espiões,” um apelido da Voyenna Kontra Razvedka, a
contrainteligência militar.
PARTE IX
O comandante supremo

Aos olhos do povo, general que vence não fez erros.


Voltaire
[45]
O quartel-general

S talin não foi o líder militar genial descrito em tantos livros, filmes, poemas,
monografias e histórias. Tampouco era dotado do grande poder de
prognosticar que lhe atribuem. Dado o molde dogmático de sua mente, seria
até de admirar que o tivesse. Mais significativo ainda, embora determinado e
inflexível, carecia de habilitações profissionais militares. Chegou a alguma sapiência
estratégica à custa de tentativa e erro salpicada de sangue. Seu histórico civil era
totalmente inadequado ao posto de Supremo Comandante em Chefe e, na verdade,
sua reputação como líder guerreiro foi sustentada pela capacidade coletiva do
Estado-maior Geral e pelos excepcionais talentos de algumas das personalidades que
trabalharam próximo a ele durante a guerra. Entre elas, sobretudo Shaposhnikov,
Zhukov, Vasilievsky e Antonov. Destituído de real experiência militar, Stalin, em
especial durante os primeiros dezoito meses de guerra, não dominava a concepção
do trabalho da máquina militar, o sentido de tempo operacional, as distâncias reais,
ou mesmo o que as tropas podiam ou não executar. Em consequência, muitas de
suas ordens não foram cumpridas, já que eram irrealistas, apressadas ou irrefletidas.
Por exemplo, em 28 de agosto de 1941, ele determinou que a força aérea de dois
fronts destruísse algumas formações de carros de combate com o emprego de não
menos que 450 aeronaves, e a operação deveria começar ao amanhecer do dia
seguinte.1 Até em termos de informações, para não falar em logísticos, esta ordem
revela completa ausência de percepção do que é esperado que tal força consiga.
Como Supremo, era como se supusesse que bastava expedir a ordem para que o
sistema entrasse em ação, sem ideia de como ele funcionava. Pouco a pouco, no
entanto, foi aprendendo e, ao tempo de Stalingrado, segundo Zhukov, “ele tinha
uma boa compreensão das questões estratégicas amplas”.2 Contudo, uma boa
compreensão não corresponde a conhecimento estratégico. Aí sim foi que entrou a
contribuição coletiva do Estado-maior, cujo papel foi excepcional.
Na véspera da guerra, Zhukov e Timoshenko levantaram para Stalin a questão
da criação de um ou dois centros de controle especialmente equipados para a
direção das Forças Armadas. Em maio de 1941, pela segunda ou terceira vez, eles
propuseram a formação do Quartel-General do Estado-maior Geral, o qual, entre
outras coisas, instituiria o treinamento em todo o país com o propósito de colocar a
economia em pé de guerra. Stalin, em princípio, considerou boa a ideia de um QG
do comando supremo, mas não tomou decisão concreta e ninguém mais tocou no
assunto, ainda mais porque todos sabiam que ele permaneceria apenas em dois
locais – no Kremlin ou na dacha próxima. Raramente ia à outra dacha em
Semenovsky e acabou por transformá-la, em novembro de 1941, em casa de feridos
de guerra. O QG do Supremo Comandante em Chefe foi, portanto, a sala de Stalin
no Kremlin, na dacha das proximidades, na casa da rua Kirov ou no edifício do
Estado-maior.
Como Stalin desempenhava diversas funções — não havia ordem do Comitê
Central, do Sovnarkom ou do Soviete Supremo que não passasse por seu crivo —, e
por causa do fluxo constante de funcionários para consultá-lo sobre qualquer
questão a qualquer hora do dia ou da noite, ninguém sabia ao certo qual era o órgão
específico que estava “operacional” em determinado momento. Podia ser o
Politburo, com seus militares cooptados, ou o Comitê de Defesa do Estado,
juntamente com outros comitês, ou o Estado-maior, com alguns membros do
Politburo. Por vezes, Stalin aclarava a situação dizendo “Registre isso como ordem
do Comitê de Defesa”, ou “Isso deve ser formulado como uma diretriz do Estado-
maior”. Em algumas ocasiões, Malenkov anotava as minutas de uma discussão como
ordens do Politburo. Praticamente tudo que Stalin pronunciava era final e decisivo,
a despeito da maneira com que a ordem fosse redigida. A impressão é que ele dava
pouco valor à sua filiação formal a este ou àquele comitê. Não obstante, isso causava
dificuldades para os funcionários que tinham que decidir, para o cumprimento das
determinações, qual agência deveria desempenhar a tarefa.
Como regra, não eram tomadas anotações ou preparadas minutas. Os arquivos
de Stalin estão repletos de documentos contendo relatórios, inquéritos, ordens e
prescrições, mas não há praticamente nada sobre debates do Estado-maior a respeito
de questões estratégicas. Depois de recuperado do choque inicial, Stalin reunia dois
ou três membros do Estado-maior e, juntos, equacionavam e resolviam problemas
operacionais. Desde o início, os oficiais dos altos escalões do Estado-maior
aprenderam que, quando convocados, deveriam chegar com propostas e argumentos
totalmente preparados. Isso fortalecia o papel de Stalin como árbitro superior e
sumo sacerdote.
Os integrantes da equipe do secretário-geral sabiam que cada membro do
Comitê de Defesa do Estado era responsável por determinado setor: munições,
aviões, transportes, relações exteriores, e assim por diante. Não havia tal divisão de
responsabilidades no QG de Stalin, o qual dirigia os fronts na base do dia a dia com
a ajuda do Estado-maior Geral, do Estado-maior da Força Aérea e de repartições do
Comissariado de Defesa. No lugar de assessores servindo na equipe de Stalin, um
instituto de representantes dele começou a funcionar “de forma espontânea” dentro
das Forças Armadas. Em geral, Stalin não retinha os homens do Estado-maior em
Moscou, parecia preferir vê-los em missão em diferentes locais. Assim, Zhukov,
Timoshenko, Vasilievsky, Voronov e, no começo, Mekhlis, todos responsáveis por
tarefas cruciais, faziam frequentes visitas às tropas.
Stalin esperava que reportassem diariamente, fosse por escrito fosse por telefone,
e os recriminava, por vezes com veemência, quando não o faziam no devido tempo.
Nas suas memórias, Vasilievsky, com quem Stalin mantinha, pode-se dizer, boas
relações, cita parte de um dos telegramas recebidos do chefe, datado de 17 de agosto
de 1943. O texto completo merece citação:

São quase 3h30 de 17 de agosto e você ainda não se dignou em reportar para o Estado-maior sobre os
resultados da operação de 16 de agosto e em fazer sua avaliação da situação.
Faz muito tempo que o responsabilizei, como um plenipotenciário do Estado-maior, a enviar relatórios ao
fim de cada dia de operações. Quase sempre, você tem se esquecido desta responsabilidade.
Dia 16 de agosto foi o primeiro de uma operação importante no front sudoeste, onde você é o representante
do Estado-maior. E parece que fica satisfeito por esquecer seu dever para com este Estado-maior, e não envia
relatório.
Você não pode usar a desculpa da falta de tempo, porque o marechal Zhukov faz exatamente o mesmo no
front e remete relatórios diários. A diferença entre você e Zhukov é que o marechal é disciplinado e conhece
suas obrigações. Enquanto você é indisciplinado e descura destas obrigações.
Vou alertá-lo pela última vez que, se você, uma vez mais, se permitir esquecer seu compromisso com o
Estado-maior, será afastado do cargo de chefe do Estado-maior e enviado para o front.3

Seria difícil encontrar um único marechal ou oficial de alto posto que servisse no
Estado-maior, ou inspecionasse as tropas como representante deste Estado-maior,
ou comandasse um front, que não tivesse experimentado este tipo de tratamento da
parte de Stalin, quase sempre imerecido.
Igualmente, se, depois da visita de um emissário do Estado-maior, a situação
naquele setor do front não melhorasse, Stalin tiraria as “conclusões adequadas”. Em
fevereiro de 1942, ele enviou Voroshilov ao front de Volkhov. A reputação do
marechal como líder militar inferior já estava estabelecida e, ao não conseguir coisa
alguma também naquela ocasião, Voroshilov se viu em posição embaraçosa quando
Stalin propôs através da linha direta que ele assumisse o comando do front. O
marechal começou a recusar. Isto foi demais para o Supremo e, um mês depois,
quando Voroshilov já tinha retornado de Volkhov, Stalin ditou um memorando
“sobre o trabalho do Camarada Voroshilov” que iria acabar como uma decisão do
Politburo, tomada em 1º de abril de 1942. Vale a pena citá-la, mesmo de forma
abreviada:

Primeiro. A guerra contra a Finlândia, em 1939-40, revelou grandes deficiências e atrasos na liderança do
comissariado de Defesa. Faltaram morteiros e metralhadoras ao Exército Vermelho, inexistiram inventários
precisos sobre aviões e carros de combate, os uniformes de inverno da tropa eram inadequados, como
também os produtos alimentícios concentrados. Seções importantes como artilharia, instrução militar,
administração da Força Aérea, foram negligenciadas. Tudo isso fez com que a guerra se arrastasse, causando
baixas desnecessárias. Como comissário da Defesa naquela oportunidade, o Camarada Voroshilov foi
compelido, no pleno do final de março de 1941, a admitir a inadequação — que ficara exposta — de sua
liderança do comissariado. O Comitê Central se viu obrigado a afastá-lo da função.
Segundo. No começo da guerra contra a Alemanha, o Camarada Voroshilov foi indicado para o comando do
front noroeste, com a missão principal de defender Leningrado. Como se demonstrou mais tarde, ele foi
incapaz de cumprir a missão e não organizou a defesa da cidade. O Camarada Voroshilov cometeu vários
erros no desempenho de suas atribuições: expediu ordens para que comandantes de batalhões da Guarda do
Interior fossem eleitos, ordens revogadas pelo QG do Estado-maior, já que poderiam levar à desorganização e
ao enfraquecimento da disciplina no Exército Vermelho; estabeleceu um soviete de defesa de Leningrado,
mas não se incluiu nele: tal ordem foi igualmente revogada pelo QG do Estado-maior por ser incorreta e
prejudicial, uma vez que os trabalhadores da cidade poderiam pensar que o Camarada Voroshilov não se
juntara ao soviete de defesa por não acreditar na possibilidade de defender Leningrado; perdeu tempo com
batalhões de trabalhadores armados com armas leves tais como espingardas, lanças, facas e coisas semelhantes,
e negligenciou as defesas de artilharia da cidade...
Terceiro. Por sua própria solicitação, o Camarada Voroshilov foi enviado, em fevereiro, como representante
do Estado-maior, ao front de Volkhov para cooperar nas ações, e ficou lá cerca de um mês. Sua estada, no
entanto, não produziu os resultados esperados. Desejando, mais uma vez, dar ao Camarada Voroshilov a
chance de empregar sua experiência no trabalho da linha de frente, o Comitê Central sugeriu que ele próprio
assumisse o comando direto do front. Mas o Camarada Voroshilov recebeu negativamente a proposta e não
quis arcar com a responsabilidade, apesar de este front ter agora importância crucial para a defesa de
Leningrado, apresentando a desculpa de que o front de Volkhov era difícil e ele não queria fracassar na
missão.
Em vista do acima citado, o Comitê Central:
Primeiro: reconhece que o Camarada Voroshilov não esteve à altura da missão que lhe foi confiada no front.
Segundo: está transferindo o Camarada Voroshilov para trabalhos de retaguarda na guerra.4

Ao se referir constantemente ao “Camarada Voroshilov” neste zombeteiro e


sarcástico “decreto”, Stalin deixava patente que o antigo “primeiro marechal” estava
completamente acabado. A despeito do estilo tipicamente stalinista, aquela foi, no
entanto, uma decisão sensata. Mas Voroshilov teve sorte: não foi cassado, como o
marechal Kulik, e voltaria à tona depois da morte de Stalin, tornando-se chefe de
estado em 1953. Outros enfrentaram julgamento mais rigoroso. Uma derrota no
front ou um relatório de insucesso poderiam representar demissão imediata, prisão e
as piores consequências. Darei dois ou três exemplos.
Em 22 de fevereiro de 1943, o XVI Exército do front oeste começou sua
ofensiva, atacando em Bryansk a partir do sudoeste de Sukhanichi e pelo norte.
Contudo, as defesas inimigas aguentaram firmes e o ataque perdeu força. Com base
num relatório rotineiro do Estado-maior de 27 de fevereiro, Stalin chegou à
conclusão de que o Exército deveria estar marcando passo. Sem procurar obter
esclarecimentos e sem consultar ninguém, Stalin ditou a Ordem do Estado-maior nº
0045, demitindo o coronel-general I.S. Konev do comando do front oeste por
incompetência.5 Konev pelo menos teve a chance de provar seu valor em combate,
outros não foram tão venturosos. O comandante do front caucasiano, Kozlov, por
exemplo, recebeu ordem de prender o major general Dashichev, comandante do
XLIV Exército, por falta de capacidade profissional, e de enviá-lo imediatamente a
Moscou.6
Jamais hesitando no trato de oficiais em termos individuais, Stalin movimentava
constantemente os comandantes de um posto a outro, muitas vezes sem justificativa
plausível. Afastado de uma função e nomeado para outra em fevereiro de 1943,
Konev desapontou Stalin, em junho, por algum motivo e foi de novo transferido.7
O secretário-geral parecia achar que essas “movimentações laterais” melhoravam a
liderança e, é claro, ninguém pensava em contradizê-lo.
A falta de conhecimento militar de Stalin logo ficou evidente para os integrantes
do Estado-maior e eles começaram a fazer tentativas próprias para dar uma certa
ortodoxia às ordens do líder. Os chefes militares encaravam como normal a
incompetência militar de um político, mas não podiam expressar seu pensamento
quanto a Stalin a este respeito. Zhukov, depois que passou para a reserva, disse ao
historiador militar N.G. Pavlenko que Stalin “sempre, de alguma forma,
permaneceu um civil”.
O planejamento estratégico era desenvolvido por Stalin de acordo com as ideias
de Shaposhnikov, Zhukov e Vasilievsky. De início, ele apenas expressava sua
opinião sobre propostas do Estado-maior. Mais tarde, entretanto, quando
Shaposhnikov deixou o Estado-maior para ser diretor da Academia Militar
Voroshilov, Stalin o convidaria para as reuniões, a fim de ouvir as propostas das
várias seções. O método de Shaposhnikov consistia em escutar as opiniões dos
comandantes de fronts, fossem verbais ou escritas, e só então abordar o problema da
preparação de um plano final de operações. Stalin, no começo, ficou desanimado
com o enfadonho, “longo e rotineiro trabalho”, como definiu. Mas Shaposhnikov,
cujo trabalho como professor de Zhukov, Vasilievsky, Antonov e do próprio Stalin
ainda não foi reconhecido, explicou pacientemente que aquilo era o mínimo
necessário, dizendo que “algumas operações demandavam apenas dias de concepção,
enquanto outras precisavam de meses”. Stalin sabia que Shaposhnikov estava certo,
mas sentia ainda mais sua falta de experiência naquele campo. Todavia, logo
encontrou uma linha de conduta apropriada para o planejamento operacional que,
enquanto preservava sua imagem de chefe guerreiro, permitia que minimizasse o
risco para sua reputação. Os arquivos mostram que ele trabalhava, normalmente,
suas ideias em dois níveis. Um deles era geral, como na reunião do Estado-maior de
janeiro de 1942, quando disse: “Não podemos permitir que o inimigo recupere o
fôlego, temos que persegui-lo na direção oeste.”8 Este pensamento expressava um
desejo que espelhava o estado de espírito do povo, mas carecia de qualquer conceito
estratégico preciso. Era a intenção de um estadista, não a de um líder militar. O
outro nível no qual contribuía era o do ajuste ou refinamento de um plano
concreto, de uma ideia ou de um cronograma, porém, como ali suas observações em
geral tinham aspecto conclusivo ou sumariante, tendiam a deixar sua marca. O
plano todo era trabalhado em seus detalhes pelo Estado-maior, mas os toques
cosméticos de Stalin no quadro final criavam a impressão de que era autor da obra
completa.
Completamente insensível em relação às incontáveis tragédias causadas pela
guerra, Stalin era guiado pelo desejo de infligir o maior dano possível ao inimigo,
independentemente do custo humano para o povo soviético. Os milhares e os
milhões de vidas humanas tornaram-se para ele estatísticas oficiais e frias. Duas
ordens terríveis ditadas por Stalin ilustram tal fato. A primeira, nº 0428 de 17 de
novembro de 1941, determinava que:

1. Todos os locais habitados até uma distância de 40 a 60 quilômetros na retaguarda das tropas alemãs, e de
20 a 30 quilômetros de cada lado das estradas, deverão ser destruídos e reduzidos a cinzas. Tal objetivo deve
ser alcançado pelo emprego imediato da Força Aérea, do fogo de artilharia e de morteiros em grande escala,
de equipes de reconhecimento, de tropas equipadas com esquis e de guerrilheiros diversionistas armados com
bombas a petróleo.
2. Cada regimento deve ter uma equipe de voluntários de 20 a 30 homens para destruir e incendiar locais
habitados. Os que se distinguirem na missão da destruição de assentamentos populacionais deverão ser
indicados para honrarias do governo.9

Os incendiários puseram mãos à obra. É possível que tal política de terra arrasada
tenha provocado dificuldades para o inimigo, mas as criou também para muitos
cidadãos soviéticos cujos tetos eram as únicas e frágeis esperanças de sobreviver, de
esperar que seus entes queridos e mais próximos retornassem e de salvar seus filhos.
Se a decisão foi tomada à luz da necessidade militar ou por crueldade insana
permanece em aberto, porém, em qualquer caso, foi um ato caracteristicamente
stalinista e impiedoso. O general N.G. Lyashchenko me descreveu um episódio
desta aterradora história:

No fim de 1941, eu comandava um regimento de uma posição defensiva. Havia dois vilarejos à nossa frente,
Bannovskoe e Prishib, se bem me recordo. Recebemos ordem da divisão para incendiar as aldeias que
estivessem ao nosso alcance. Estávamos no interior do abrigo e eu explicava como iríamos cumprir a missão
quando, subitamente, infringindo todos os regulamentos, o rádio-operador, um sargento de meia-idade,
intercedeu.
“Camarada Major. Aquele é meu vilarejo! Minha esposa e meus filhos, e minha irmã e seus filhos estão todos
lá. Como podemos incendiá-lo? Todos morrerão!” “Não se meta, cabe a nós resolver”, eu disse.
Mandei que o sargento se retirasse e conferi com os comandantes de batalhões. Lembro-me de chamar a
ordem de “estúpida”, o que quase me complicou, uma vez que ela partira de Stalin. Mas fui salvo da polícia
de segurança pelo general R.Ya. Malinovsky e pelo membro do soviete de guerra I.I. Larin. Quanto aos dois
vilarejos, nós os capturamos na manhã seguinte com a permissão do comandante divisionário Zamortsev, e
demos um jeito de não destruí-los.

A segunda instrução, nº 170 007, foi enviada ao comandante do front de Kalinin,


em 11 de janeiro de 1942 e determinava a captura de Rzhev, uma cidade de 54 mil
habitantes:

No curso do dia 11 e, o mais tardar, no dia 12 de janeiro, a cidade de Rzhev tem que ser capturada. O
Estado-maior recomenda para este objetivo o emprego de toda a artilharia, morteiros e Força Aérea a fim de
que a cidade inteira seja destroçada, sem que haja qualquer hesitação em destruí-la.
Confirme o recebimento desta ordem e informe quando ela foi cumprida. I. Stalin10

É evidente que fazia sentido destruir, durante a retirada, tudo aquilo que o povo
construíra, tais como pontes, ferrovias, fábricas e objetivos semelhantes
estrategicamente importantes. Mas de que valia para os alemães uma pobre
choupana de camponês?
[46]
Amanhecer em Stalingrado

J á se escreveu o suficiente sobre a grande campanha de Stalingrado para que eu


tenha que entrar aqui em grandes detalhes. Em vez disso, proponho-me a
focalizar o papel do Supremo Comandante em Chefe naquela batalha crucial.
No começo de junho de 1942, tendo o inimigo rompido através das defesas
soviéticas em grande profundidade, no limite entre os fronts de Bryansk e oeste, o
XXI e o XL exércitos ficaram cercados. Stalin enviou Vasilievsky às pressas para o
sul, mas os relatórios que ele mandou não foram nada animadores. Os alemães
alargaram a brecha para cerca de 300 quilômetros no curso da semana seguinte e,
em poucos dias, a força atacante penetrou de 150 a 170 quilômetros, flanqueando
pelo norte os principais exércitos do front sul. Os alemães, então, atacaram de novo,
dessa vez na direção de Kantemirovka. Analisando a ameaça em seu mapa, Stalin
ficou assustado com a visão catastrófica de o front sudoeste ser cercado, como em
1941, pela segunda vez. No entanto, já então aprendera alguma coisa e, tendo
assimilado as questões estratégicas concretas que estavam em jogo, não foi contra a
retirada dos exércitos IX, XXVIII, XXXVII e XXXVIII. O Estado-maior expediu a
ordem urgente para que fosse preparada a defesa de Stalingrado.
Stalin teve então a oportunidade de julgar sua própria falta de visão. Em maio,
seguindo-se à débâcle de Volkhov, Vasilievky propusera o reforço das reservas
estratégicas nos setores sudoeste e sul. Stalin discordou. Ele se preocupava com
Moscou. Agora, enormes efetivos de tropas precisavam ser deslocados urgentemente
para enfrentar nova crise estratégica. A situação piorou porque muitas unidades
recuavam em completa desordem, e muitas divisões e unidades haviam perdido as
ligações com seus quartéis-generais já por diversos dias. Mais uma vez, os Junkers e
Messerschmidts alemães eram donos do céu e podiam castigar a seu bel-prazer as
tropas que se retiravam aos milhares. Por vezes, parecia que o caos e a confusão de
junho de 1941 estavam se repetindo. Stalin passava telegramas um atrás do outro,
ordenando que os comandantes de fronts restaurassem a ordem entre as forças que
se retiravam, que lutassem até o último homem, que não recuassem sem
autorização, e assim por diante. Eis alguns exemplos:
O inimigo penetrou em sua frente com pequenos efetivos. Você tem boa chance de destruí-lo. Reúna os
aviões dos dois fronts e jogue-os contra o inimigo. Mobilize os trens blindados e os ponha na linha circular
em torno de Stalingrado. Use cortina de fumaça para desorientar o inimigo. Faça contato com o inimigo
também à noite, não só de dia. Utilize ao máximo o fogo de artilharia e de foguetes.
Mais uma vez, por incompetência e ineficiência, Lopatin deixou o front de Stalingrado em má situação.
Exerça uma supervisão efetiva sobre ele e organize uma segunda linha por trás do exército dele.
Mais importante, não entre em pânico, não tema esse audacioso inimigo e mantenha a fé em nossa vitória.
23 de agosto de 1942.11

Quando ia se encontrar com Stalin, naqueles dias de julho e agosto de 1942, o chefe
do Estado-maior, Vasilievsky, sentia-se um carneiro a caminho do matadouro.
Stalin não escondia a irritação, tomava decisões impulsivas, passava sucessivos
telegramas com a mesma mensagem. Começaria, de novo, a mudar generais de um
lado para o outro, exigia entrar em ligação com quartéis-generais em sucessão, e
sempre dava a mesma ordem: lutar até a morte. Entrementes, as tropas recuavam.
Em 29 de julho de 1942, depois de um despacho rotineiro com Vasilievsky, Stalin
de repente parou de caminhar pela sala e lançou-se em outro assunto: “Esqueceram
a Ordem do Estado-maior nº 270 de 16 de agosto de 1941. Eles se esqueceram!
Redija outra na mesma linha: ‘A retirada sem autorização é um crime que será
punido com todo o rigor de tempo de guerra...’”
“Quando quer que eu traga a nova ordem?” “Ainda hoje. Venha tão logo esteja
pronta.”12
Naquela noite, ele assinou a famosa Ordem nº 227 do Comissariado da Defesa
da URSS, com muitas mudanças e emendas de próprio punho. O documento, que
permaneceu cuidadosamente escondido nos arquivos militares por muitos anos,
tornou-se acessível recentemente e tem sido reproduzido em diversas publicações.
Eu gostaria de citar aqui apenas aquelas partes que refletem a interferência direta de
Stalin, seu modo de redigir as sentenças, seu estilo pessoal:

O inimigo está lançando no combate mais e mais tropas descansadas e, independentemente das baixas que
sofre, avança lentamente pelas profundezas do território soviético, capturando novos distritos, devastando
nossas cidades e vilas, violando, saqueando e assassinando nossa população. Parte das forças do front sul
deixou-se influenciar pelos boateiros do pânico e abandonou Rostov e Novocherkassk sem grande resistência,
cobrindo seus estandartes com a desonra.
Algumas pessoas pouco inteligentes no front consolam-se dizendo que podemos recuar ainda mais para o
leste porque temos muito território, muita terra, muita gente, e que não chegaremos à escassez de grãos;
usam isto para justificar seu comportamento vergonhoso na linha de frente. Mas este tipo de conversa é
totalmente falso, mentiroso e só serve para ajudar o inimigo.
Depois da perda da Ucrânia, da Bielorrússia, do Báltico, da bacia do Donets e de outras regiões, ficamos com
território menor do que tínhamos. Segue-se daí que existe menor população, menos cereais, menos metais,
menos fábricas e moinhos. Perdemos mais de 70 milhões de habitantes, mais de 12 milhões de toneladas de
grãos e 10 milhões de toneladas de metais por ano. Perdemos até nossa superioridade em reservas humanas e
de cereais sobre a Alemanha. Recuar mais significaria nossa destruição e, conosco, a da Pátria Mãe.
Nem mais um passo para trás! Esta é a palavra de ordem daqui por diante.
Não mais toleraremos que oficiais e comissários, pessoal político, unidades e destacamentos abandonem suas
posições de combate por vontade própria. Não mais toleraremos que oficiais, comissários e pessoal político
permitam que boateiros do pânico determinem a situação no campo de batalha e induzam outros
combatentes a recuarem, deixando o front aberto ao inimigo. Tais boateiros e os covardes deverão ser
eliminados no ato.
a) a mentalidade da retirada tem que ser decisivamente banida.

b) os comandantes de exército que permitirem o abandono voluntário das posições deverão ser afastados e
enviados de imediato ao QG do Estado-maior para enfrentar de pronto o tribunal militar.

c) formem-se de um a três batalhões punitivos (com cerca de 800 homens cada) dentro dos limites do front,
para os quais devem ser enviados oficiais antigos e dos postos intermediários e oficiais políticos de postos
correspondentes.13

Stalin então voltou à ideia, formulada num telegrama de setembro de 1941 para
todos os fronts, de que cada exército devia formar um grupo de tropa de confiança,
com efetivo não maior que divisão, cuja missão seria deter o fluxo de soldados em
pânico, utilizando as armas se necessário.14 A velha ideia veio de roupa nova:

De três a cinco destacamentos bem armados (até 200 homens cada) deverão ser organizados dentro de um
exército e colocados diretamente à retaguarda das divisões inconfiáveis, e devem atirar, no ato, em boateiros
do pânico e covardes, na eventualidade de retiradas desordenadas e causadas por esse pânico. Dependendo
das circunstâncias, de cinco a dez companhias de presos (efetivo de 150 a 200 homens) devem ser formadas
dentro do exército e posicionadas em locais perigosos, a fim de que eles possam expiar com seu sangue os
crimes que cometeram contra a Pátria Mãe.
Esta ordem deve ser lida para todas as companhias, esquadrões, baterias, tripulações e quartéis-generais.15

Pânico reinava em muitas unidades. A instrução psicológica fora negligenciada antes


da guerra e, é claro, o próprio corpo de oficiais fora dizimado pelos expurgos. Sabe-
se bem que, sob tensão e quando a confiança é perdida, uma reação emocional
negativa ao perigo pode escalar para o comportamento descontrolado. O instinto de
multidão se alastra e solapa a capacidade de pensamento racional. Stalin tentou
enfrentar este problema com o emprego de unidades de “vigilância” e companhias
de presos, mas nada fez para elevar o perfil dos comandantes e oficiais políticos
naquelas condições extremas. Nem se policiou na expedição de regulamentos
ameaçadores. Em 1942, como em 1941, grande número de soldados escapou do
cerco, quer em grupos, quer individualmente. Os oficiais eram imediatamente
despachados para campos da NKVD. E como a posição em julho-agosto ficou ainda
mais delicada, Stalin foi além. Os oficiais que permanecessem em território ocupado
pelo inimigo por qualquer período de tempo e não servissem com os guerrilheiros, e
que estivessem naquela ocasião em campos especiais da NKVD, deveriam receber a
oportunidade “de pegar em armas para provar sua lealdade à Pátria Mãe”. Unidades
especiais de infantaria de assalto deveriam ser organizadas com exatamente 929
desses oficiais para combater nas partes mais ativas do front.16
Enquanto isso, os eventos foram se sucedendo e avolumando no período de
agosto a novembro de 1942, quando atingiram o ponto mais alto. Ainda assim, na
oportunidade em que a sorte de Leningrado estava por um fio, Vasilievsky
determinou que uma equipe do Estado-maior, constituída por A.A. Gryzlov, S.I.
Teteshkin e N. Boikov, concebesse um cenário para a captura do agrupamento de
ataque da vanguarda inimiga por meio de uma ação combinada partindo do norte e
do sul. Existe um mapa que mostra os primeiros esquemas de Boikov para a futura e
famosa operação. Stalin ainda não sabia o que se passava. O ano que ele descrevera
como o “da destruição do ocupante alemão” parecia se transformar em outro grande
desastre para a União Soviética. Ficou no escritório por diversos dias seguidos,
adormecendo por curtos períodos, sempre advertindo Poskrebyshev para acordá-lo
depois de duas horas de descanso. De uma vez, penalizado com a carga de trabalho
do chefe, Poskrebyshev deixou-o dormir por mais meia hora.
Stalin olhou para o relógio e censurou mansamente o auxiliar: “De repente,
virou filantropo! Vá, coloque-me Vasilievsky na linha. Rápido! O filantropo
careca...”
Vasilievsky, que voara de Stalingrado dois dias antes, atendeu a chamada. Stalin
logo perguntou se a 1ª de Guardas e os exércitos XXIV e LXVI já tinham engajado
o inimigo e se a munição tão esperada havia chegado. Vasilievsky reportou a
situação existente na noite de 3 de setembro: uma das formações alemãs de tanques
havia penetrado até os subúrbios de Stalingrado. Stalin interveio furioso: “Que é
que há com eles? Será que não entendem que, se entregarmos Stalingrado, o sul do
país ficará isolado do centro e que, provavelmente, não teremos capacidade para
defendê-lo? Não entendem que não se trata de uma catástrofe só para Stalingrado?
Perderíamos nossa principal hidrovia e, logo depois, também nosso petróleo!”
Vasilievsky replicou calmamente, mas a tensão estava clara em sua voz: “Estamos
deslocando tudo o que pode combater para os locais ameaçados. Penso que ainda há
uma chance de não perdermos a cidade.”
Stalin telefonou de novo para Vasilievsky alguns minutos mais tarde, e este não
foi encontrado. Boikov atendeu. Stalin ordenou-lhe que achasse Zhukov em
Stalingrado e lhe passasse a mensagem que começou a ditar:
A situação em Stalingrado piorou. O inimigo está a dez quilômetros da cidade. Stalingrado pode ser
capturada hoje ou amanhã se o agrupamento norte não der ajuda imediata. Diga aos comandantes das forças
ao norte e noroeste da cidade que eles têm que atacar o inimigo e prestar assistência ao povo de Stalingrado.
O atraso é indesculpável. Equivale ao crime. Empregue todos os aviões para defender a cidade. Existe agora
pequena quantidade deles dentro da cidade.
3.9.4217

Zhukov logo foi obrigado a reportar que as forças do front não tinham
conseguido abrir um corredor para realizar a junção com as forças da frente sudeste
dentro da cidade. A linha de defesa alemã foi substancialmente reforçada com forças
deslocadas das cercanias de Stalingrado. Continuar atacando com as mesmas tropas
soviéticas não fazia sentido e poderia causar pesadas perdas. Stalin convocou
Zhukov e Vasilievsky a Moscou.
Lá, debruçados sobre mapas e com assessores do Estado-maior, resolveram
adotar a tática do desgaste do inimigo pela resistência obstinada e pelo atrito,
enquanto era preparado um contra-ataque de vulto. O ataque principal foi
planejado para cair sobre os flancos das forças alemãs que estavam sendo cobertas
por soldados romenos, tropa menos ameaçadora. O plano foi apresentado a Stalin
em 13 de setembro e estava destinado a se tornar um dos clássicos da Segunda
Guerra Mundial. Foi como um despertar e não foi Stalin, e sim seus dois chefes
militares que o conceberam. A princípio, o secretário-geral não se impressionou
muito, ressaltando que o principal era manter Stalingrado e não permitir que os
alemães avançassem mais na direção de Kamyshin. Parece que não gostou muito da
audácia do plano ou o considerou inexequível. Toda a sua atenção estava voltada
para a defesa de Stalingrado.
Entrementes, em Stalingrado, os alemães investiram a cidade e, por mais de dois
meses, dia e noite, o combate prosseguiu com um nível de ferocidade sem
precedentes. Enquanto os alemães, no começo da batalha, mediam sua progressão a
partir do sudoeste em termos de dezenas de quilômetros, depois passaram a alguns
quilômetros; em setembro, tiveram que raciocinar em apenas centenas de metros
por dia e, a partir de outubro, consideraram um avanço de 40 a 50 metros como
uma grande vitória. Em meados de outubro, pararam de vez. A Ordem nº 227 de
Stalin era então cumprida à risca. Apesar de os alemães terem 22 divisões em
Stalingrado, mais outras tantas formações de seus aliados, a máquina de guerra
nazista emperrara.
Em novembro, Stalin passou quase todos os dias pensando sobre a operação
futura nos três fronts – Stalingrado, sudoeste e Don. O plano recebeu a
denominação provisória de “Uranus” e Stalin insistiu em que ele permanecesse do
conhecimento apenas de um número restrito de pessoas. A responsabilidade pela
coordenação das três frentes foi entregue a Vasilievsky. Quando o contra-ataque foi
desfechado em 19 de novembro, é provável que tenha aumentado a confiança de
Stalin na vitória, não por causa da superioridade soviética em homens e armamento,
mas porque nenhuma operação anterior fora preparada com tanto esmero e
precisão. É verdade que, uma semana antes do início, Stalin foi tomado de dúvida,
particularmente porque o poder aéreo soviético equivalia ao do inimigo, e ele
sempre atribuíra enorme importância a este vetor do combate. Ficou tão
preocupado que chegou a pensar em adiar a operação, telegrafando em 11 de
setembro a Zhukov para dizer que, se Yeremenko e Vatutin tivessem aviação
inadequada, a ação fracassaria: “A experiência nesta guerra tem mostrado que só se
pode vencer os alemães com superioridade aérea.” Se isto não pudesse ser garantido,
continuou, “seria melhor adiar a operação por algum tempo”.18 No entanto,
confiando totalmente na possibilidade de Zhukov levar o plano a bom termo,
quatro dias antes do previsto para o desencadeamento da operação passou outro
telegrama dizendo que ele, Zhukov, tinha total liberdade de ação para julgar quando
a ofensiva deveria ser lançada.19
Zhukov exercitou seu critério e, em 19 de novembro, as forças combinadas das
frentes sudoeste e do Don entraram em ação, seguidas no dia seguinte pelas do front
de Stalingrado. Por volta de 23 de novembro, o agrupamento inimigo que se
encontrava em Stalingrado foi cercado. Stalin sempre gostou de geografia e de
esquadrinhar mapas do mundo. Já então, aprendera a interpretar uma carta militar,
marcada pelo Estado-maior com símbolos azuis e vermelhos, linhas denteadas,
círculos em torno de reservas de distritos e linhas tracejadas assinalando o
deslocamento de carros de combate. Quando, em 23 de novembro, ele viu um
enorme anel vermelho mostrando as forças soviéticas formando uma linha fechada,
ficou excitado e nervoso; excitado porque, finalmente, as forças soviéticas o haviam
conseguido, e logo na simbólica cidade chamada Stalingrado. Ainda não sabia a
quantidade de tropa alemã que estava dentro do laço – 330 mil, como se viu depois
– mas sabia que, se a operação chegasse a uma conclusão vitoriosa, seria um ponto
de inflexão na guerra. Ficou nervoso porque esperava que o comando alemão fizesse
tudo ao seu alcance para tirar as 22 divisões da Wehrmacht da armadilha. As forças
soviéticas tinham certa vez fechado um cerco, em Demyansk, mas não conseguiram
destruir o inimigo sitiado. Agora, a iniciativa estratégica estava com o Exército
Vermelho, embora algum tempo ainda iria se passar até que o general Paulus fosse
dobrado. Em 24 de dezembro, Paulus expediu uma ordem para suas forças cercadas,
da qual foi encaminhada uma transcrição para Stalin. Dizia:
Ultimamente, os russos vêm fazendo incessantes tentativas para entrar em negociações com o exército ou
suas unidades. Seu objetivo é muito claro: querem quebrar nossa determinação em resistir por meio de
promessas nessas conversas de rendição. Todos sabemos o que nos espera se o exército parar de resistir: a
morte certa nos aguarda, seja por uma bala inimiga, seja de fome e sofrimento em vergonhoso cativeiro
siberiano. Uma coisa é certa: quem se render jamais verá de novo seus entes mais próximos e queridos. Só
temos uma saída: lutar até o último cartucho, a despeito do frio e da fome crescentes. Portanto, qualquer
tentativa de negociação deverá ser repelida, deixada sem resposta, e os emissários com bandeiras de paz,
rechaçados à bala. Enquanto isto, continuemos no aguardo da libertação, que já está a caminho.20
[47]
O comandantes e seus generais

D urante a guerra, Stalin pouco tempo teve para ler outra coisa que não
despachos, telegramas codificados, planos operacionais e correspondência
diplomática, mesmo assim os arquivos contêm um memorando de
Poskrebyshev para ele com uma lista de 15 livros sobre a arte da liderança militar.
Os que Stalin marcou com uma estrela incluem Kutuzov, de S. Borislov, o primeiro
volume das obras de Napoleão, The Science of Winning, de Suvorov, e The Brains of
the Army, de Shaposhnikov. Nem foi por acaso que, no começo das hostilidades, ele
mandou pendurar em sua sala retratos de Suvorov, o maior soldado da Rússia no
século XVIII, e de Kutuzov,* o herói da derrota de Napoleão na Rússia. Da mesma
forma, quando discursou brevemente para as tropas na Praça Vermelha, em 7 de
novembro de 1941, disse: “Sejamos inspirados nesta guerra pela imagem corajosa de
nossos grandes antepassados – Alexander Nevsky, Dimitry Donskoy, Kuzma Minin,
Dimitry Pozharsky, Alexander Suvorov, Mikhail Kutuzov! Que o estandarte
vitorioso do grande Lenin vos proteja!”21
Stalin frequentemente recorria aos grandes líderes guerreiros do passado russo,
evocando neles a fé na vitória, e criou as Ordens de Suvorov, Kutuzov, Bogdan
Khmelnitsky, Alexander Nevsky, Nahkimov e Ushakov – todos heróis de guerra da
velha Rússia – para condecorar seus generais. Entendendo por instinto o valor da
tradição militar para estimular o orgulho e a honra nacionais, determinou que
fossem escritos panfletos sobre estes antigos líderes guerreiros para distribuição no
front.
Como já vimos, a maior influência sobre Stalin como líder militar foi exercida
por Shaposhnikov, Zhukov, Vasilievsky e Antonov, e foi por intermédio deles que
Stalin aprendeu as exigências fundamentais da tática, a respeito da qual permaneceu
no nível da mediocridade, e as da estratégia, onde se saiu bem melhor. Dos quatro,
que foram, todos, em algum momento, chefes do Estado-maior ou vices-Supremo
Comandante em Chefe, pode-se dizer que, provavelmente, a contribuição de
Shaposhnikov foi a maior. Ele não teve a ventura de ver a culminância das grandes
vitórias soviéticas porque faleceu em março de 1945, mas sua influência intelectual
sobre a chefia militar está fora de dúvida.
Como marechal e professor, Shaposhnikov, que fora coronel do exército czarista,
combinava elevada cultura militar com excelente educação, muita experiência como
comandante, profundidade teórica e imenso charme pessoal. Não acostumado a se
curvar à vontade dos outros, quando Stalin conheceu melhor Shaposhnikov,
percebeu com mais acuidade sua própria falta de conhecimento e de lógica.
Shaposhnikov não tinha personalidade dominadora, expressando-se por meio de sua
mente sutil, flexível e de amplo discernimento, e Stalin, evidentemente, achou
Shaposhnikov irresistível. Todos notaram isto, e Zhukov escreveu sobre o grande
respeito de Stalin pelo marechal: “Ele sempre se dirigiu a Shaposhnikov como Boris
Mikhailovich, seu nome e patronímico, e jamais levantou a voz enquanto
conversavam, mesmo que discordasse. Shaposhnikov foi a única pessoa autorizada a
fumar em seu escritório.”22
Foi um raro exemplo de confiança de Stalin em especialistas militares do antigo
regime, o restante dos quais ele liquidara antes da guerra. Shaposhnikov foi um dos
poucos aos quais Stalin recorreu sem ficar envergonhado em busca de uma
explicação, um conselho, uma ajuda. Era típico de Stalin dar atenção àqueles em
quem reconhecesse a presença de grande inteligência. O comandante da artilharia,
marechal N.N. Voronov, recordou-se de certa vez em que presenciou Shaposhnikov
reportando para Stalin. O chefe do Estado-maior mencionou que, a despeito das
providências tomadas, nenhuma informação chegara de dois fronts. Stalin
perguntou-lhe: “Você já puniu essas pessoas que não querem nos contar o que
acontece em seus fronts?” Shaposhnikov replicou que já tinha dado uma repreensão
aos dois comandantes, mas, a julgar por seu tom de voz, assemelhava uma
repreensão à forma mais extrema de punição. Stalin deu um sorriso triste e lhe disse:
“Qualquer célula do partido distribui reprimendas. Isto nem constitui punição para
um militar.” Shaposhnikov então lembrou-lhe de uma antiga tradição militar, a
saber, quando o chefe do Estado-maior censura um general comandante, este último
tem que pedir na hora demissão do comando. Stalin olhou para Shaposhnikov
como se estivesse diante de um idealista incorrigível, mas não disse coisa alguma. A
inteligência do ex-coronel czarista desarmava Stalin e foi essa qualidade que o
ajudou, com tato, a ensinar ao líder o pensamento estratégico, a habilitação militar e
até a tática.
Se Shaposhnikov repassou a Stalin a dura lógica do conflito armado, a
importância das linhas de defesa e de ataque, o papel das reservas estratégicas
durante as operações, foi Zhukov quem inspirou Stalin como homem de
determinação inquebrantável e cuja liderança militar não admitia meios-termos. O
general A.A. Yepishev, oficial político de elevada posição durante a guerra e, mais
tarde, chefe da administração política do exército, disseme que Stalin alimentara a
ideia de pôr funcionários da alta administração no front já durante a guerra civil, e
daí a razão de mandar constantemente tais pessoas para a frente de combate durante
a Segunda Guerra Mundial. Stalin considerava Zhukov seu representante principal
porque confiava em que o militar cumpriria suas ordens, por mais duras que fossem
e dessem no que dessem. A formidável contribuição de Zhukov para a derrota dos
alemães em Moscou, para a salvação de Leningrado, também em Stalingrado e
numa série de outras operações é amplamente reconhecida. Foi natural, portanto,
que, com a continuação da guerra, a popularidade de Zhukov crescesse e aí, então, a
atitude de Stalin para com ele tornou-se mais reservada; na arrancada final para
Berlim, Stalin não o encarregou da coordenação da campanha nas três frentes,
reservando-a formalmente para si mesmo, e enviando Zhukov para comandar o
front bielorrusso. O secretário-geral não pretendia partilhar a glória da vitória com
ninguém, ainda mais com um líder guerreiro tão popular como Zhukov.
Stalin sabia que o marechal Zhukov não lhe deixava nada a dever em dureza de
caráter. Notou isto em particular no início da guerra. Por exemplo, nos primeiros
dias de setembro de 1941, o comandante do front de Leningrado, Voroshilov, e o
membro do soviete de guerra do front, Zhdanov, pediram permissão a Stalin para
preparar os navios de guerra da Esquadra do Báltico da Bandeira Vermelha para
serem afundados, caso a rendição de Leningrado se tornasse uma possibilidade.
Stalin consentiu e, por volta de 8 de setembro, Voroshilov e Zhdanov assinaram a
instrução devida. Foi então que, na ocasião em que o soviete de guerra dava os
últimos retoques na ordem, Zhukov chegou num voo de Moscou com plenos
poderes delegados por Stalin. “Eis meu mandato”, disse, mostrando a Voroshilov
que era o novo comandante em chefe do front. “Proíbo a destruição dos navios.
Existem neles quarenta tripulações completamente prontas para a batalha.”
Recordando o episódio em 1950, Zhukov escreveu: “Por que explodir as
belonaves? Sua destruição era provável, mas se assim fosse, que afundassem em
combate, disparando seus canhões. Quando os alemães progrediam ao longo da
costa, os marinheiros atiraram, e eles simplesmente correram. E também correriam
dos canhões de 16 polegadas. Imaginem o poder!”23 Ao saber por intermédio de
Zhdanov que Zhukov tinha, de fato, revogado uma das ordens expedidas por ele, o
Supremo, Stalin não fez qualquer comentário: não pôde deixar de admirar a audácia
e a visão do comandado, e deixou claro que delegava a Zhukov a autoridade para
decidir o que deveria ser feito. Stalin sabia que, numa crise, Zhukov seria impiedoso
e não tergiversaria. Tal característica o impressionava e estava em harmonia com seu
próprio modo de ser. Zhukov era implacável com os alarmistas do pânico e com os
covardes, e era capaz de tomar as providências mais duras contra eles, se as
circunstâncias assim o ditassem. Num momento crítico de setembro de 1941,
durante a defesa de Leningrado, ditou a Ordem nº 0064, divulgando para todos os
oficiais políticos e do exército, bem como para as praças, que quem abandonasse seu
posto sem permissão por escrito seria fuzilado sem tergiversação.24
Stalin muitas vezes explodiu com Zhukov, em especial no começo da guerra. Em
julho de 1941, quando a situação no distrito de Vyazma era crítica, Zhukov propôs
a montagem de um contra-ataque no distrito de Yelnya para evitar que os alemães
alcançassem a retaguarda do front oeste. Sem esperar que ele completasse a ideia,
Stalin esbravejou: “Que contra-ataques? Para que falar bobagens? Nossas tropas não
são capazes nem de organizar uma defesa adequada e vem você falar em contra-
ataques!”
Zhukov replicou: “Se você acha que eu, o chefe do Estado-maior, falo bobagens,
solicito que me dispense e mande para o front, onde posso ser mais útil do que sou
aqui.”
Mekhlis, que estava presente, protestou: “Quem lhe deu o direito de falar com o
Camarada Stalin desta forma?”
Em consequência daquela dura troca de palavras, Zhukov foi nomeado
comandante das reservas, porém, malgrado os esforços de Beria e Mekhlis para
indispor o marechal com ele, Stalin não pôde prescindir da ajuda do destacado
militar como seu principal solucionador de problemas. Nos primeiros dias de
outubro de 1941, quando uma série de atabalhoadas iniciativas do agrupamento
central do exército soviético levou ao cerco de significativa parte do front oeste e das
reservas, Stalin enviou Zhukov para lidar com a desastrosa situação. O marechal
lembrava-se de que Stalin lhe dissera: “Veja a confusão em que Konev nos meteu.
Em três ou quatro dias os alemães podem chegar a Moscou. O pior é que nem
Konev nem Budenny sabem onde estão as tropas deles nem o que o inimigo pode
fazer. Konev tem que ser punido. Vou enviar amanhã uma comissão especial
chefiada por Molotov.”
Com poderes extraordinários, Zhukov conseguiu estabilizar a posição e, graças a
ele, Konev escapou do tribunal militar, pois o interventor o resgatou ao nomeá-lo
seu vice para o front oeste. Stalin logo viu que não eram apenas a autoconfiança, a
decisão e o pulso firme que permitiam a Zhukov conseguir de imediato mudanças
na organização das operações militares; sua mera presença no front sempre
empolgava a tropa e aumentava o espírito combatente. O general I.F. Minyuk
disseme que, quando Golikov e Khruschev perderam o controle de seus homens em
Belgorod, no front de Voronezh, “Zhukov, praticamente, assumiu o comando e, de
forma surpreendente, a tropa percebeu que na mente do marechal não havia lugar
para dúvidas. Quando tudo parecia perdido, e a situação se tornava desesperançada,
ele permanecia calmo, composto, decisivo e determinado. O perigo não o
amedrontava; pelo contrário, ficava mais resoluto, transformava-se numa mola
fortemente comprimida.”
Stalin não tinha favoritos. Simplesmente confiava mais em algumas pessoas que
em outras. Afora ao que vinha, em certo grau, de Beria, ele dava pouca atenção ao
que seu entourage lhe contava sobre indivíduos. É bem conhecido o fato de que,
depois da guerra, Beria e Abakumov engendraram um caso contra Zhukov. Usaram
até álbuns de fotografias onde o marechal aparecia ao lado de militares e políticos
americanos, ingleses e franceses. Grampearam seus telefones, vasculharam seus
arquivos pessoais e interceptaram sua correspondência. Numa ordem assinada por
Stalin em 9 de junho de 1946, há uma referência ao que um alto chefe da guerra
escrevera à liderança sobre “fatos concernentes ao desonroso e pernicioso
comportamento do marechal Zhukov para com o governo e o Supremo
Comandante em Chefe”. Fora dito que Zhukov perdera a modéstia, “creditando a si
mesmo o mérito de ter conquistado as maiores das grandes vitórias” e tornando-se o
centro de um grupo de descontentes.25 Mas Stalin não era desprovido de bom senso
e interrompeu o processo em vez de afastar o líder guerreiro que tinha se coberto de
tanta glória. Não há dúvida de que a prisão de Zhukov foi planejada. Stalin
convocou uma sessão especial, à qual compareceram Beria, Kaganovich e outros
membros de proa do partido, bem como militares dos altos escalões, e, com base em
testemunhos de alguns generais presos, Zhukov foi acusado de “ter concedido a si
mesmo o laurel de grande vitorioso”. Alguns generais, como, por exemplo, P.S.
Rybalko, falaram em defesa de Zhukov. Stalin hesitou e decidiu que, em vez de
prendê-lo, mandaria Zhukov para algum posto remoto, primeiro Odessa e depois os
Urais. A decisão final foi de Stalin e de mais ninguém.
Por vezes, diz-se que Stalin era duro, mas justo. Cita-se o caso do tratamento que
dispensou ao filho mais novo, Vasili, removido sem meias medidas do posto por
Stalin por não cumprir sua missão, mas, na verdade, por Vasili ter desmerecido o
pai. Stalin demitiu seu filho duas vezes, antes e durante a guerra. Em 26 de maio de
1943, Beria relatou a Stalin que o alcoolismo de Vasili, então comandante de um
regimento da força aérea, estava de novo causando problemas. Furioso, Stalin ditou
imediatamente a seguinte ordem ao marechal do ar Novikov:

1. V.I. Stalin deve ser imediatamente afastado do cargo de comandante de regimento da força aérea e não
deve ser comissionado para outro comando sem minha ordem.
2. Tanto ao regimento quanto ao seu ex-comandante, coronel Stalin, deve ser dito que o coronel Stalin está
sendo afastado por alcoolismo e libertinagem e porque está levando o regimento à ruína e à perversão.
3. Você deve me informar que estas ordens foram cumpridas.26

Depois de uma demissão simbólica, no entanto, contemporizadores reportaram que


o coronel Stalin “recobrara o bom senso” e estava novamente pronto para
desempenhar suas atribuições de comandante. Pelo final de 1943, ele foi promovido
para o comando de uma divisão aérea.
Stalin, invariavelmente, era desapiedado e inexorável em suas decisões sobre
questões de pessoal. Por certo, era capaz de mudar de opinião, quase sempre depois
do fato e sem influência externa. De hábito, não explicava suas deliberações. Podia
criar, desta forma, a impressão de que sua opinião sobre candidatos era determinada
pelas necessidades da função e pelas qualidades individuais. Substituiu todos os seus
chefes militares em uma ocasião ou outra, normalmente por boas razões, mas
também lhes deu a oportunidade de demonstrar que o erro anterior fora acidental.
Dar-lhes a chance, contudo, não significava que esquecera o deslize passado.
Exemplificando, quando surgiu a questão de quem deveria executar a aniquilação
final do inimigo em Stalingrado, as opiniões ficaram divididas. Beria propôs
Yeremenko, enquanto Zhukov preferiu Rokossovsky. Como lembrou Zhukov,
Stalin ouviu os dois lados e depois decidiu:

“Na minha avaliação, Yeremenko está abaixo de Rokossovsky. A tropa não gosta de Yeremenko.
Rokossovsky tem maior autoridade. Yeremenko foi muito mal como comandante do front de Bryansk. É
pretensioso e fanfarrão.”
“Yeremenko ficará terrivelmente sentido”, comentou Zhukov.
“Não somos meninas de ginásio. Somos bolcheviques e devemos colocar chefes valorosos no comando.”27

Stalin sabia que Zhukov era muito rígido como chefe. Quando comandava as
operações ofensivas no front oeste, no verão de 1942, ele deu uma ordem da qual
não podia se orgulhar e à qual jamais se referiu mais tarde. Seu relatório para Stalin
sobre os resultados da operação deixa claro que espécie de ordem exarou:

De modo a alertar os destacamentos quanto à retirada, à covardia no combate e aos alarmistas do pânico, a
primeira linha de cada batalhão de assalto era seguida por um carro de combate transportando oficiais
especialmente selecionados pelos sovietes de guerra do exército. Em consequência dessas medidas, o XXXI e
o XX exércitos romperam com sucesso as defesas inimigas.
7 de agosto de 1942.28
Zukhov foi nomeado comandante do primeiro front bielorrusso quando se
preparava o ataque a Berlim, em abril de 1945, uma operação que Stalin estudou
com intenso interesse e preocupação. O Supremo quase não interferiu na conduta
da operação de Zhukov e Antonov, mas seus dias começavam e terminavam com
relatórios tanto dos preparativos como da ofensiva em si. Zhukov informou que os
alemães tinham praticamente cessado de combater no Ocidente, mas lutavam
desesperadamente de casa em casa no leste. A resposta de Stalin, datada de 17 de
abril de 1945, foi característica:

Recebi seu despacho com a informação dos prisioneiros alemães de que [lhes estava sendo dito] para não
cederem aos russos e lutar até o último homem, mesmo que os americanos estivessem imediatamente à
retaguarda deles. Não dê atenção ao que os prisioneiros alemães dizem. Hitler está tecendo uma trama no
distrito de Berlim para criar a discórdia entre as tropas soviéticas e os Aliados. Temos que desmanchar esta
trama capturando Berlim com as tropas soviéticas. Arrase os alemães sem piedade e você em breve estará
dentro de Berlim.29

Enquanto acompanhava os eventos que se desenrolavam na capital alemã, Stalin


mostrava interesse especial pela questão da captura de Hitler. Seu triunfo seria
completo se pudesse pegar o líder nazista vivo e levá-lo ao julgamento de uma corte
internacional. Porém, embora Zhukov relatasse combates no Reichstag e nos acessos
à Chancelaria, a notícia esperada não chegava. Finalmente, em 2 de maio de 1945,
Zhukov enviou a cópia de uma ordem expedida pelo general Weidling, comandante
das forças de defesa de Berlim, afirmando que Hitler cometera o suicídio e
solicitando um armistício imediato.30
À proporção que o conflito prosseguia, a vitória parecia certa e as questões do
pós-guerra começavam a causar preocupação, Stalin delegou a outros, sobretudo a
Antonov, a autoridade para assinar instrumentos operacionais. Quando chegou a
ocasião do ato mais simbólico da guerra – a ratificação da rendição germânica –, ele,
evidentemente, não titubeou em conferir o privilégio a Zhukov.31 O general
Antonov foi encarregado de mandar a mensagem, e Stalin, depois de ditá-la,
levantou-se e deu-lhe um rijo aperto de mão.
Ainda assim ele teve motivo para considerar Zhukov ingrato quando, com a
aprovação de Moscou, o marechal deu uma entrevista coletiva aos jornalistas
ocidentais. Descreveu com detalhes a preparação para a campanha de Berlim e falou
sobre a cooperação aliada, a desmobilização do Exército Vermelho, o tratamento
soviético para os criminosos de guerra, a superioridade do soldado alemão em
comparação com o japonês, mas não proferiu uma só palavra sobre Stalin. Coube a
Ralph Parker,** correspondente do The Times, “resgatar” Zhukov ao lhe perguntar
se Stalin tinha tomado parte no dia a dia das operações. Zhukov replicou
concisamente: “O marechal Stalin liderou todos os setores do front germano-
soviético de forma ativa e diária, inclusive o front onde eu me encontrava.” Para
Stalin, pareceu que Zhukov estava começando a exibir tendências napoleônicas, e
ele tomou providências para que o marechal assumisse cargos distantes e sem
importância, quando a guerra acabou.
Um dos vínculos principais entre o front e Stalin foi Alexander Mikhailovich
Vasilievsky, que era vice-chefe da administração operacional do Estado-maior Geral
quando a guerra começou, tornando-se chefe daquela administração e vice-chefe do
Estado-maior em 1º de agosto de 1941 e, depois, de junho de 1941 a fevereiro de
1945, chefe do Estado-maior e vice-comissário da Defesa. Vasilievsky comandou o
terceiro front bielorrusso e, mais tarde, serviu como comandante em chefe das forças
soviéticas no Extremo Oriente.
Seu papel no Estado-maior refletiu o estilo de trabalho original de Stalin no
órgão militar mais elevado, o QG do Estado-maior. Grande parte da missão de
Vasilievsky foi executada como representante do Estado-maior no front, onde dava
cumprimento às ordens de Stalin, mais do que em Moscou, lidando com questões
do Estado-maior. Quando uma operação importante era preparada ou uma crise
ocorria, Stalin sempre enviava Zhukov ou Vasilievsky para lidar com elas ou, como
em Stalingrado, mandava os dois. Em outras palavras, Vasilievsky era o líder militar
e comandante versátil que se destacava tanto nas operações como nas funções de
Estado-maior. Stalin percebeu também que Vasilievsky se mantinha calmo nas
situações críticas, quer nas campanhas ofensivas e defensivas, quer em Moscou, no
planejamento estratégico como representante do Estado-maior, quer como
comandante de front.
“A educação religiosa o ajudou em alguma coisa?”, perguntou ele, certa vez, a
Vasilievsky. “Você já pensou sobre isto?”
Vasilievsky não esperava aquela pergunta, mas rapidamente saiu-se com uma
resposta inteligente: “Nenhum conhecimento é totalmente perdido. Algo dele
acabou sendo útil para a vida militar.”
Stalin olhou para o marechal com interesse – Minsk acabara de ser recuperada e
o Supremo demonstrava bom estado de espírito – acrescentando: “O que os padres
ensinam melhor é como entender as pessoas.” E mudou abruptamente de assunto.
Stalin podia sempre contar que Vasilievsky materializaria no front os desejos dele
sem recorrer a medidas extremas. O marechal raramente fazia objeções e não era
temperamental como Zhukov; ainda assim, mostrava-se perfeitamente capaz de
perseguir calmamente uma linha de raciocínio na argumentação com Stalin. Com
raras exceções, em todos os dias da guerra, fosse frente a frente, se estivesse em
Moscou, fosse pelo telefone, durante suas incontáveis viagens, Vasilievsky concedeu
a Stalin o benefício de seu aconselhamento, sempre paciente e econômico nas
palavras, como se estivesse pensando em voz alta.32
As atividades do Estado-maior durante a segunda metade da guerra estão mais
associadas ao nome de Alexei Innokentievich Antonov. A maioria dos documentos
operacionais, a partir do final de 1943, foi assinada ou por Antonov e Stalin juntos,
ou por Antonov em nome de Stalin. Pouco depois de ser levado à presença do
Supremo como chefe do Estado-maior, o observador Antonov notou que Stalin
tinha alguns hábitos ritualísticos. Por exemplo, durante o relato de Antonov,
normalmente na presença de Molotov, Malenkov e Beria, Stalin interrompia o
despacho e acionava a campainha para chamar Poskrebyshev, o qual surgia trazendo
um copo de chá. Todos observavam em silêncio enquanto Stalin cumpria um
cerimonial: espremia lentamente o limão no chá, ia até o banheiro, que ficava por
trás de sua escrivaninha, abria um armário embutido na parede e tirava uma garrafa
de conhaque armênio. Misturava uma ou duas pequenas colheres de conhaque no
chá e guardava a garrafa no armário, então voltava à sala, sentava-se à mesa e,
mexendo o chá, murmurava: “Continue.”
Tendo servido como vice de Vasilievsky por muitos meses, Antonov estava
perfeitamente consciente, quando se tornou chefe do Estado-maior, de que tinha
mais sorte que seu antecessor na função. As cenas piores da guerra já tinham sido
representadas no primeiro ato. Quando ele entrou para o QG do Estado-maior, este
já tinha adquirido uma certa ordem na sua atividade do dia a dia e algum grau de
experiência. Porém, sendo um pouco pedante, no bom sentido da palavra, Antonov,
como ninguém antes, trouxe algo de novo para as práticas de trabalho do Estado-
maior Geral. Estabeleceu prazos exatos para a submissão de relatórios pelo serviço de
informações e pelos representantes da retaguarda, do front e das reservas. Fixou
limites precisos para as responsabilidades de seus subchefes, A.A. Gryzlov, N.A.
Lomov e S.M. Shtemenko. Para garantir que os procedimentos fossem irreversíveis,
colocou-os em três folhas de papel e levou-as a Stalin. Tais procedimentos incluíam:
uma norma para despacho com o Comandante Supremo três vezes a cada 24 horas
e, com mais frequência, pelo telefone; sumários para Stalin; um regulamento para
preparação e ratificação de documentos contendo ordens; e a criação de um sistema
de contatos entre os vários órgãos da administração.
Depois de expor um de seus sumários diários, indicou que Stalin talvez quisesse
olhar os procedimentos que prescrevera para o Estado-maior e para o QG do
Estado-maior, e dar sua aprovação. Stalin olhou-o surpreso, mas estudou
cuidadosamente o documento e, sem uma palavra, nele escreveu: “De Acordo. I.
Stalin.” O Supremo deve ter pensado que Antonov não era nenhum tolo: não
apenas conseguira que Stalin regulasse o trabalho dos outros, como o dele próprio.
Se, até então, Stalin era capaz de convocar qualquer pessoa para fazer relato, e a
qualquer hora, agora tinha que aderir às normas que ele mesmo acabara de aprovar.
Antonov conseguiu definir as principais missões do Estado-maior Geral como,
primeiro, seu trabalho para o Supremo, proporcionando-lhe informações essenciais
para a tomada de decisões e, segundo, a preparação de ordens e a supervisão da
condução operacional dos fronts em estreita colaboração com o Comissariado da
Defesa.33 Ele deve ter impressionado Stalin tanto quanto Shaposhnikov, Zhukov e
Vasilievsky, porque o líder adorava a ordem, a catalogação e a classificação dos
assuntos, e ali estava um homem cujo principal talento residia exatamente nisto.
Antonov progrediu de maneira bastante rápida até os altos postos. Chegou ao
Estado-maior em 1942 como tenente-general, em abril de 1943 já era coronel-
general e ascendeu ao generalato pleno naquele mesmo ano. Mas não foi promovido
a marechal, a despeito da inclinação favorável de Stalin por sua pessoa. Beria se
colocou no caminho. A posição de Beria entre os altos escalões da hierarquia militar
não era muito forte e ele desejou colocar pessoas suas no topo daquela hierarquia.
Agora sabemos que os oficiais mais antigos sempre guardaram de Beria uma certa
distância e não confiavam nele. De sua parte, Beria procurou recrutar apoio no meio
destes militares, e deve ser dito a seu crédito que nenhum sucumbiu. O fato de que
a prisão de Beria, seu julgamento e sua execução foram obras de militares é, em si,
prova eloquente desta atitude.
Beria era uma criatura odiosa. As pessoas o temiam e ninguém tinha simpatia
por ele. Mas ele precisava de apoio no exército. Podia observar Stalin envelhecendo
a olhos vistos e, já pelo fim da guerra, alimentava planos de grandeza para si mesmo,
os quais, num sistema em que a democracia era ficção, seriam de impossível
concretização sem o suporte do exército. Os esforços de Beria para estabelecer uma
relação especial com Antonov não deram em nada. O general portou-se com fria
correção. Beria, fiel a seus hábitos, dispôs-se a enredar o militar. Se bem que Stalin
não acreditasse naquilo que Beria sussurrava ao seu ouvido a respeito de Antonov,
não concedeu ao general o posto de marechal, o que planejava fazer quando a vitória
fosse proclamada. E mais, em 1946, rebaixou Antonov para o cargo de vice-chefe do
Estado-maior e, em 1948, nomeou-o para a função menos importante ainda de
primeiro vice-comandante do distrito militar transcaucasiano.
A guerra terminara e Stalin ascendera à glória, como César, na carruagem
triunfal. Contudo, enquanto César quebrou a cabeça para encontrar maneiras de
recompensar seus leais legionários, Stalin, gradualmente, distanciou-se daqueles cuja
presença pudessem lembrá-lo da contribuição que haviam dado à vitória. Antonov,
cuja assinatura aparece mais que a de qualquer outro ao lado da assinatura do
Supremo Comandante em Chefe nos dois últimos anos de guerra, e o único general
a ganhar a mais elevada Ordem da Vitória, não foi, em última análise, totalmente
apreciado por Stalin. A guerra acabara e, para Stalin, o que valia era o resultado.
Quanto ao custo da vitória, ele preferiu falar apenas nas atrocidades nazistas. Seus
próprios erros jamais foram mencionados. À longa lista de louvores – grande líder,
professor sábio, guia inigualável, estrategista genial – outro foi acrescentado, “o
maior líder guerreiro”. Por esta razão, devemos abordar seu pensamento estratégico.
Notas

* O Generalíssimo Conde Alexander Suvorov foi o grande soldado russo do século XVIII; o Marechal Mikhail
Kutuzov foi o responsável pela derrota de Napoleão na Rússia.

** Ralph Parker foi o correspondente do Times em Moscou durante a guerra, encarregado de promover a
compreensão anglo-soviética. No fim da guerra, fixou residência em Moscou, onde mais tarde morreu. Seu caso
é contado em History of the Times, de Iverich McDonald, vol. 5.
[48]
Ideias de um estrategista

Q uando famosos líderes guerreiros soviéticos escreveram suas memórias, só


mencionaram o que era permitido, e qualquer comentário negativo sobre
Stalin era encarado como difamação. Por cerca de vinte anos, trabalhei na
administração política principal do Exército e Marinha soviéticos. Foi durante o
período em que o departamento de publicações da administração tinha que
examinar todas as memórias, de acordo com as instruções de Suslov. Conversei com
pessoas que analisaram as memórias militares nos anos 1950, 1960 e mais tarde. Os
manuscritos daquela época circulavam entre as altas autoridades, e os autores logo
aprendiam o que era permitido dizer. Em consequência, a história soviética reteve
sua imagem totalmente vitoriosa, porque nem a Glavlit* nem os numerosos leitores
de manuscritos podiam ignorar as prescrições de um sistema ideológico aferrado a
uma única visão do passado.
Também sei que nem tudo o que os generais escreveram entrou nas obras
impressas. Similarmente, e também sob pressão externa, alguns deles tentaram
encontrar espaço e razão para mencionar em seus trabalhos pessoas influentes cujo
lugar no esforço de guerra necessitariam mais que uma lupa poderosa para ser
reconhecido. Por exemplo, foi necessário ter paciência e zelo para localizar a posição
no front que K.U. Chernenko iluminou com seus talentos, bem como a unidade em
que L.I. Brejnev serviu. Muitos livros que, afora isso seriam respeitáveis, foram
manchados pela referência compulsória aos serviços de Brejnev. Jamais seria
mencionado, por exemplo, um relatório de agosto de 1942 do comissário político
Sinyansky especificando que Brejnev, entre outros oficiais políticos do XVIII
Exército, foi “incapaz de conseguir a melhora desejada no estado de espírito e no
comportamento dos trabalhadores políticos no front”. Brejnev e os outros foram
considerados “um bando de negligentes, complacentes e beberrões que viviam se
protegendo mutuamente”.34
Éramos prisioneiros de conscienciosidades falsas. Tinha-se, quase sempre, de
optar entre incluir num livro o que era “requerido”, ou não vê-lo publicado. E não
foi tudo. A verdade é que a maioria das memórias dos líderes guerreiros foi obra de
outros redatores, ghost writers com muito pouco conhecimento, se é que tinham
algum, dos eventos que descreveram. Para falar a verdade, incorporaram ao trabalho
entrevistas e material suprido pelos memorialistas, porém, no final das contas, foram
esses redatores, e não os autores, que escreveram as obras. A percepção pessoal do
autor foi, portanto, frequentemente perdida, mesmo que sem intenção. Como I.Kh.
Bagramyan colocou: “Dependia em boa parte de com quem terminava o coronel.”
Ao examinar o pensamento estratégico de Stalin, tenho a dizer, de pronto, que
ele era superior a muitos de seus auxiliares em diversos campos, enquanto em outros
jamais passou do amadorismo, da unilateralidade, da incompetência e dos clichês,
do lugar-comum.
Se, por “líder militar” queremos dizer aquele cujos talentos incluem o
pensamento criativo, a visão estratégica profunda, a experiência de guerra, a intuição
e a determinação, então Stalin não se encaixa no conceito. Todavia, ele foi um chefe
político duro, enérgico, obstinado e ávido pelo poder que, por circunstâncias
históricas, se viu compelido a lidar com questões militares. Como Supremo
Comandante em Chefe, sua força derivou do poder absoluto. Mas não foi só isto
que o elevou acima dos outros líderes militares. Diferentemente deles, Stalin podia
ver a extrema dependência que a luta armada tinha de um espectro completo de
outros fatores não militares: econômico, social, técnico, político, diplomático,
ideológico e nacional. Melhor que os outros do QG do Estado-maior, ele conhecia
as possibilidades reais do país em termos de agricultura e indústria. Seu pensamento
era mais global, e foi isto que o destacou entre os líderes castrenses. A faceta militar
era apenas uma de muitas.
No curso de 1943-45, e com a ajuda de assessores militares, Stalin, o estrategista,
aprendeu diversas verdades sobre a arte operacional. Aprendeu, por exemplo, que se
pode e se deve passar à defensiva não apenas quando o inimigo assim o determina,
mas também, como em muitas operações de 1942, por iniciativa própria e,
subsequentemente e com premeditação, com o objetivo de preparar operações
ofensivas. Como vimos, Stalin não gostava em absoluto de operações defensivas.
Suas piores recordações vieram de tais momentos. Lembrou-se de 16 de setembro de
1942 quando, logo depois do jantar, Poskrebyshev entrou silenciosamente e colocou
diante dele um relatório especial do departamento de Informações do Estado-maior,
assinado pelo general Panfilov, sobre a interceptação de um radiograma de Berlim.
O relatório dizia que “Stalingrado foi conquistada por brilhantes forças alemãs. A
Rússia está cortada em duas partes, norte e sul, e cedo entrará em colapso com
estertores de morte”.
Stalin leu a mensagem resumida diversas vezes, ficou de pé por alguns instantes
junto à janela, com o olhar vagando na direção sul onde o desastre se desenrolava e,
então, disse a Poskrebyshev para colocá-lo imediatamente em ligação com o Estado-
maior. Um minuto mais tarde, ditava ao general Bogokov um telegrama para
Yeremenko e Khruschev:

Reportem alguma coisa do que está acontecendo em Stalingrado. É verdade que a cidade foi capturada pelos
alemães? Deem uma resposta direta e verdadeira.
Aguardo contestação imediata.
16.9.42.35

Para ele, o que interessava era o resultado. Jamais foi atormentado por crises de
consciência ou de pesar pelas baixas enormes. As notícias referentes à destruição de
grande número de divisões, corpos ou exércitos o alarmavam, mas não existe um só
documento nos arquivos do Estado-maior mostrando preocupação sua com o
número de vidas humanas perdidas. Não levava em conta um dos princípios
fundamentais da arte militar, o de que o objetivo deve ser conquistado com a
mínima perda de vidas humanas. Acreditava que tanto as vitórias quanto as derrotas
inevitavelmente colhiam safras amargas, fato inescapável da guerra moderna. Talvez
pensasse desta forma porque, como Supremo, tinha expressivo número de exércitos
à sua disposição. No fim da guerra, as forças armadas desdobravam cerca de 500
divisões, sem contar artilharia, blindados e aviões. Era o dobro do que existia antes
da guerra. Na realidade, os alemães possuíam quantidade maior, mas isto aconteceu
porque Stalin resistiu aos repetidos pleitos dos assessores para que dividisse as
formações em maior número e com efetivos menores. Em função do vasto poderio
militar e do organizado sistema de reservas, pareceu desnecessário a Stalin tornar a
conquista de objetivos estratégicos dependente da escala das perdas. Ao mesmo
tempo, ele era atraído pelas novas formas de ação estratégica tais como as operações
com forças de fronts combinados. Isto resultava no mais complicado e maciço
complexo de batalhas, enquadrado em um só conceito e tudo coordenado para
objetivo, tempo e lugar. Algumas destas operações envolveram, entre cem e 150
divisões, às vezes mais, dezenas de milhares de canhões, três a quatro mil carros de
combate, cinco a sete mil aviões. Esta colossal força era colocada em movimento de
acordo com um cenário de cálculos e deslocamentos estratégicos concebido pelo
Estado-maior Geral e pelos QGs, com base em inúmeros fatores e opções tanto
nossos como do inimigo. Foi precisamente durante tais operações combinadas que
Stalin sentiu-se mais como líder militar. Uma escala tão vasta significava não só a
expressão quantitativa da força empregada. Também representava sua própria
autoexpressão e autoafirmativa como um estrategista.
Depois das batalhas de Moscou e Stalingrado, ele buscou acoplar os esforços de
vários fronts em combinações cada vez mais novas. Kursk, Bielorrússia, Prússia
Oriental, Vístula-Oder, Berlim e Manchúria representaram o curso objetivo da
guerra, mas também corresponderam à predileção de Stalin por essas operações
maciças e em escala avassaladora. A extensão da frente de combate naqueles casos
chegava, com frequência, a 500-700km, com profundidades que iam de 300 a
500km, e podiam durar até um mês. Como regra, Stalin se impacientava por seu
início, ficava insatisfeito com o ritmo da progressão e se irritava com as dificuldades.
Apreendia com rapidez o conceito geral de uma operação ofensiva e,
ocasionalmente, fazia sugestões relevantes visando a intensificar a força do ataque.
Muito raramente, no entanto, sugeria alternativas para a ideia principal
concebida e burilada pelo Estado-maior, o cérebro do exército. Stalin tendia a
enfatizar o papel da força aérea, porém, depois do verão de 1942, quando os
exércitos blindados começaram a entrar em ação, ele dava opinião detalhada sobre
seus objetivos e acompanhava as poderosas formações de ataque enquanto
executavam suas missões. Embora não existam provas nos arquivos indicando que as
sugestões de Stalin tiveram influência importante sobre o planejamento, curso,
desenvolvimento e conclusão das operações estratégicas, manda a verdade que se
diga que, no período de 1943-45, ele foi capaz de avaliar os valores relativos. Se
demonstrou alguma “genialidade”, foi durante este último estágio da guerra,
quando aprovou os planos formulados e submetidos à sua apreciação por Zhukov,
Vasilievsky, Antonov e pelos comandantes de fronts.
Por outro lado, deu grande atenção ao incremento do espírito combatente da
tropa, normalmente por métodos radicais. A decisão de realizar a parada de 7 de
novembro de 1941 na Praça Vermelha foi uma dessas ideias, e também, no verão de
1944, de repente propôs que um enorme efetivo de prisioneiros de guerra alemães
desfilasse pelas ruas de Moscou.
“Isto levantará ainda mais o moral do povo e do exército e acelerará a derrota dos
fascistas. O que vocês acham?”
Após um breve momento de silêncio confuso, Molotov, Beria, Voroshilov e
Kalinin começaram a tagarelar ao mesmo tempo e começaram a competir uns com
os outros para expressar sua total concordância.
“Uma iniciativa inteligente, Iosif Vissarionovich!” “Só você poderia ter pensado
nisto!”
“Uma decisão de gênio!”
Passada uma semana, em 13 de julho, Beria submeteu à aprovação de Stalin uma
operação inusitada de levantamento moral: “De acordo com sua proposta, Iosif
Vissarionovich, dia 17 de julho, 55 mil prisioneiros de guerra desfilarão pelas ruas
de Moscou. Entre eles, estarão 18 generais e 1.200 oficiais. Vinte e seis trens
especiais os trarão a Moscou dos três fronts bielorrussos. Os generais Dmitriev,
Milovsky, Gornostaev e o comissário de segurança Arkadiev já tomaram as
providências. A segurança e a escolta em Moscou serão da responsabilidade dos
Camaradas Vasiliev e Romanenko da NKVD. Os prisioneiros serão concentrados
no hipódromo, e a NKVD fará a segurança motorizada da área na noite de 16 de
julho. Dos 26 trens formaremos 26 colunas de marcha. Itinerário: Hipódromo de
Moscou, autoestrada Leningrado, rua Gorky, praça Mayakovsky e ao longo de
Sadovaya; depois, de Sadovaya-Triumfalnaya para Karetnaya, Samotechnaya,
Sukharevskaya, Spasskaya, Chernogryazskaya, rua Chkalov, estação Crimeia,
bulevar Smolensk, ao longo das ruas Barricade e Krasnaya Presnya de volta ao
Hipódromo. A marcha começará às 9h e deverá terminar às 16h.”36
“Vocês conseguirão manter as colunas intactas?”, interrompeu Stalin. “Sim,
Camarada Stalin.”
“Que acontecerá depois?”
“Bem cedo na manhã seguinte, eles sairão de 11 pontos de partida para
acampamentos no leste.”
Beria estava disposto a prosseguir com a explanação do plano, mas Stalin não
quis ouvir mais nada. “Eu dou uma ideia e aí fazem. Por que vocês não pensam em
alguma coisa por si mesmos?”, disse Stalin, olhando em volta com menosprezo para
seu entourage. (Ocorreu que tanto a hora como o itinerário foram modificados.)
Como parte de sua preocupação com a elevação do moral, particularmente dos
oficiais, Stalin foi bastante criativo na questão das condecorações. Por exemplo, em
9 de setembro de 1943, deu ordem para que:

No caso dos oficiais que completarem com sucesso a travessia forçada de um rio difícil como o Desna:
1. Comandantes de exército devem receber a Ordem de Suvorov, 1ª Classe.
2. Comandantes de corpos, divisões e brigadas a Ordem de Suvorov, 2ª Classe.
3. Comandantes de regimentos e os de batalhões de engenharia, de sapadores e de pontoneiros deverão
receber a Ordem de Suvorov, 3ª Classe.
Para a travessia forçada de rios como o Dnieper, ou da mesma dificuldade, os comandantes de unidades e de
formações devem ser feitos Heróis da União Soviética.37

De um modo geral, ele era escrupuloso com a concessão de recompensas. Por


exemplo, em 1949, não concordou com a sugestão de Molotov de que o transcurso
de seu septuagésimo aniversário fosse marcado com seu próprio recebimento da
segunda Estrela de Ouro de Herói da União Soviética. Decidiu que já bastava
quando recebeu a Ordem da Vitória, e interrompeu o fluxo de condecorações ao
perceber que um excesso de tais recompensas as desvalorizava e podia, portanto,
minar sua autoridade. Um homem que ocupa a posição mais destacada de um
estado não democrático pode outorgar a si mesmo a condecoração que lhe aprouver,
mas isto não lhe aumenta a autoridade – muito pelo contrário. Aí está uma coisa
que Brejnev e Chernenko não entenderam. No cômputo geral, Stalin recebeu tantas
condecorações quanto, digamos, Mekhlis, e cerca de um quarto ou um quinto das
que recebeu Brejnev. Também era meticuloso na concessão de medalhas a outros,
chegando a cancelar condecorações quando as considerava imerecidas. “Medalhas
são para os combatentes que se distinguiram na batalha contra os agressores alemães,
e não para serem distribuídas a quem aparecer”, escreveu ao comandante em chefe
do primeiro front báltico, em 16 de novembro de 1943, quando soube que o
general Yeremenko estava concedendo medalhas sem a concordância do soviete de
guerra.38

Nas suas memórias The End of the Third Reich, e em diversas outras publicações e
discursos, o marechal V.I. Chuikov expressa a opinião de que teria sido possível
tomar Berlim em fevereiro de 1945, em vez de se esperar até maio. Zhukov, A.Kh.
Babadzhanyan e outros contestaram essa opinião em documentos impressos como
em outras ocasiões, e Chuikov quis publicar uma resposta na Voenno-istoricheskii
zhurnal (“Revista de História Militar”). Recusada a permissão, ele escreveu ao
Comitê Central do partido, no qual se decidiu que alguma coisa deveria ser feita
para controlar o teimoso marechal. Em 17 de janeiro de 1966, o chefe da
Administração Política Principal, general A.A. Yepishev, convocou uma reunião de
destacados marechais, generais e especialistas para “injetar bom senso” em
Chuikov.39 Em sua exposição, Chuikov, mais uma vez, insistiu:

Em fevereiro, as forças soviéticas, tendo progredido 500 quilômetros, pararam a 60 quilômetros de Berlim
[...] Quem nos deteve? O inimigo ou a liderança? Tínhamos mais do que o suficiente em tropas para avançar
sobre Berlim. Os dois meses e meio de fôlego que concedemos ao inimigo ajudaram-no a preparar a defesa
da capital.

Os oponentes de Chuikov, que incluíam o general Yepishev e os marechais Konev,


Zakharov, Rokossovsky, Sokolovsky e Moskalenko, tentaram convencê-lo de que a
ofensiva perdera impulsão, que a retaguarda se distanciara bastante, que as tropas
estavam exaustas e de que se faziam necessárias munição e reservas descansadas. É
possível que a maioria estivesse certa, mas acho que aquela reunião deve ser vista de
maneira diferente: ela teve lugar numa ocasião em que já começara uma certa
moratória sobre as críticas a Stalin. Ao examinarem a questão da possibilidade ou
não de o ataque a Berlim ser realizado antes, os participantes, como que de comum
acordo, não fizeram conexão absolutamente alguma entre a decisão do Estado-maior
e Stalin. Até mesmo o levantamento da questão em si foi condenado. Na conclusão,
Yepishev disse que as opiniões de Chuikov sobre o problema “careciam de base
científica” e que não deveríamos “enodoar nossa história, senão ficaremos sem nada
para orientar a juventude”.

Mas voltemos à guerra. Quando Stalin se convenceu de que a vitória pendia para o
lado dos Aliados, começou a dedicar trinta ou quarenta minutos, normalmente à
noite, para assistir aos noticiários cinematográficos do front, os quais,
ocasionalmente, o levavam a tomar decisões de escala muito grande. Um de tais
filmes, por exemplo, exibiu cenas de um vilarejo perto do front, quase que
totalmente destruído, onde dois membros da polícia local patrocinada pelos
alemães, que não conseguiram se esconder nem se entregar, foram apanhados. Stalin
enviou de imediato uma diretriz, com cópia para Beria, para todos os comandantes
de front exigindo obediência estrita à ordem do Estado-maior de 14 de outubro de
1942. Tal ordem estabelecera a zona do front da qual toda a população, sem
exceção, deveria ser evacuada para garantir que nela não permanecessem agentes
inimigos ou espiões. De próprio punho, acrescentou:

“Isto é especialmente importante. A zona da linha de frente tem que ser inacessível a espiões e agentes
inimigos. Já é tempo de entender que os locais habitados próximos à retaguarda constituem um refúgio
conveniente para espiões e para a espionagem.”40 Nada há na diretriz sobre a remoção dos cidadãos
soviéticos do perigo ou sobre a proteção deles.

Ao longo de toda a guerra, Stalin manteve Malenkov ao seu lado. Malenkov


executou muitas de suas ordens no aparato do Comissariado de Defesa e no do
Comitê Central, bem como na supervisão da indústria aeronáutica. Quando a
produção de aviões adquiriu bases sólidas, a partir de setembro de 1943, Stalin fez
de Malenkov Herói do Trabalho Socialista e presidente de um comitê do
Sovnarkom para a reconstrução da economia nas áreas liberadas. Decidiu também
testar Kaganovich em missões de guerra. Em julho de 1942, enviou-o ao Cáucaso
como membro do soviete de guerra do front caucasiano do norte. Kaganovich,
entretanto, não marcou sua passagem por lá. Como Malenkov, sentiu-se como um
civil brincando de guerra, ao desempenhar a função de “olhos” de Stalin no QG do
front e na administração política. E foi alvo da crítica de Stalin quando, em meados
de agosto de 1942, o front abandonou sua linha de defesa sem autorização do
Estado-Maior:

De que vale uma posição defensiva se não é defendida? E parece que você não conseguiu reverter a situação,
embora não houvesse pânico e a tropa estivesse combatendo muito bem. Suvorov disse: “Se atemorizei o
inimigo, mesmo sem lhe olhar nos olhos, já ganhei metade da batalha: levo minhas tropas para o front a fim
de aniquilar um inimigo amedrontado.”41

Entre outras coisas, Beria foi empregado por Stalin para ajudar no suprimento da
área de retaguarda do front, para “peneirar” nos campos aqueles que escapavam do
cerco inimigo e para mobilizar centenas de milhares de prisioneiros para trabalhos
relacionados com a guerra. Envolveu-se também com a organização de diversos
destacamentos e unidades. Por exemplo, em 29 de junho de 1941, recebeu do
Estado-maior a missão de formar 15 divisões com base em unidades da NKVD.42
Em agosto de 1942 e março de 1943, esteve no Cáucaso para cooperar com a defesa
da região. Foi de lá que enviou uma série de telegramas a Stalin informando que
estava afastando chechênios e ingushes do exército como inconfiáveis, fazendo sua
avaliação de Budenny, Tyulenev e Sergatskov, reportando suas decisões sobre várias
nomeações militares, algumas delas patentemente inadequadas. Foi de Beria a
sugestão para que Stalin, em 20 de agosto de 1943, telegrafasse a Shchadenko,
comandante do front caucasiano, determinando:

1. A remoção de 3.767 armênios, 2.721 azerbaijanos e 740 membros de grupos étnicos do Daguestão das
fileiras da 61ª Divisão de Infantaria.
2. Que os militares assim removidos fossem enviados para postos da reserva do front oeste e que as vagas
criadas pela transferência fossem preenchidas com tropas reservas do front constituídas de russos, ucranianos
e bielorrussos.43

Inveterado causador de problemas durante seus giros pela linha de frente, Beria
tentou complicar a vida dos generais Tyulenev, Maslennikov, Sergatskov, I.E.
Petrov e Shtemenko, entre outros, fazendo com que todos eles telegrafassem a Stalin
solicitando que suas equipes fossem protegidas contra a horda de Beria. Parece que
Beria só foi bem-sucedido com Maslennikov, seu subordinado por certo tempo. Os
generais Pokrovsky e Platonov, que pesquisaram este assunto em 1955, chegaram à
mesma conclusão no seu “Relatório sobre a atividade criminosa de Beria durante a
defesa do Cáucaso em 1942-43”. Escreveram:

Para defender a parte leste da área do Cáucaso, foi criado um agrupamento norte do front caucasiano, em 8
de agosto, sob o comando, parece que por insistência de Beria, do general Maslennikov, o qual até então
vinha sendo o desafortunado comandante do front de Kalinin. O general Maslennikov, que, sem dúvida
gozava da proteção de Beria, frequentemente ignorou as ordens do comandante do front e prejudicou o
reagrupamento das forças com suas ações.44

Embora seja possível que Maslennikov não fosse “homem de Beria”, a


correspondência mantida entre os dois, em 1942, sinaliza uma relação especial.
Como comandante do XXXIX Exército, Maslennikov desbordou seus chefes
militares para fazer solicitações diretas a Beria, “lembrando a você a promessa de dar
a assistência possível”.45 Quando Maslennikov viu um artigo intitulado “A batalha
no Cáucaso”, da autoria de dois oficiais, Zavyalov e Kalyadin, em agosto de 1952,
para a revista Voennaya Mysl (“Pensamento Militar”), escreveu (24 de novembro de
1952) para o chefe da Administração dos Estudos sobre a Guerra do Estado-maior
expressando seu desacordo com a avaliação sobre o papel de Beria apresentada
naquele artigo:

Ao apresentarem, na página 56, as medidas do Estado-maior do Supremo Comandante em Chefe da URSS,


os autores mencionam só de passagem e muito brevemente o enorme trabalho criativo e as medidas políticas
e organizacionais fundamentais introduzidas pelo Camarada Lavrenti Pavlovich Beria que revolucionaram
em profundidade toda a posição, a despeito das circunstâncias extremamente difíceis experimentadas pelo
front caucasiano em agosto de 1942.
A descrição das atividades do Camarada L.P. Beria não contém o relato abrangente de todas as medidas que
foram executadas sob a supervisão pessoal do Camarada Lavrenti Pavlovich Beria.
L.P. Beria, que praticava o estilo stalinista de liderança, foi, por seu exemplo pessoal, um modelo de liderança
bolchevique estatal, militar, político-partidária e econômica no front transcaucasiano (agosto de 1942 a
janeiro de 1943), e pôs em prática as ordens de Stalin de maneira brilhante.46

Bem no íntimo, Stalin seguramente tinha desprezo por Beria, mas não podia passar
sem ele. Beria era seu inquisidor, seu braço direito, seu espião. Foi ele, por exemplo,
quem lhe informou que Berlim, havia muito tempo, vinha planejando um ato
terrorista contra o líder soviético. De acordo com alguns informes recebidos, um
Messerschmitt Arado-332 especial lançaria um grupo treinado de terroristas do
Exército Russo de Liberação, de Vlasov, enquanto outras informações diziam que os
alemães deixariam para trás um grupo de comandos na retirada. Quase a cada mês,
Beria relatava a Stalin as novas medidas que tomara para aumentar a segurança do
seu chefe. Mas Stalin precisava de Beria para uma série de outras tarefas. Por
exemplo, saber por que 140 dos 400 aviões de caça designados para emprego nos
fronts de Kalinin e de oeste tinham sido retirados da ação após três ou quatro dias
de serviço.47 Por outro lado, não gostava quando Beria metia o bedelho nos assuntos
do QG do Estado-maior e nos do próprio Estado-maior.
Quando Beria retornava de suas visitas ao front e dava suas opiniões sobre a
situação, sobre bombardeios e sobre o pobre desempenho de alguns generais
“suspeitos” e de outras pessoas, Stalin sentia uma certa vulnerabilidade. Não estivera
perto da linha de frente desde outubro de 1941, quando foi à autoestrada
Volokolamsk assistir ao fogo antiaéreo no céu e, ainda mais, tinha que ficar ouvindo
as descrições de Malenkov e Beria sobre seus “batismos de fogo”. Portanto, resolveu
que deveria ir ao front, nem que fosse para registro pela posteridade. E teve lugar
uma viagem cuidadosamente preparada. Stalin passou algum tempo nos fronts
Kalinin e oeste, em agosto de 1943, e sentiu que sua imagem como líder guerreiro
estava preservada.
Em 1º de agosto, deixou Kuntsevo num trem especial que consistia em uma
velha locomotiva e vagões bem avariados. Tanto a plataforma como o pequeno trem
foram camuflados com galhos de árvores. Stalin se fez acompanhar por Beria, por
seu assistente especial Rumyantsev e por seguranças em trajes civis. Ao chegar em
Gzhatsk, foi recebido pelo comandante do front oeste, Sokolovsky, e por Bulganin,
que era um dos membros do soviete de guerra. Ouviu seus relatos, desejou-lhes
felicidades, foi para a cama e seguiu no dia seguinte na direção de Rzhev, no front
Kalinin, que era comandado por Yeremenko. Lá, instalou-se numa cabana simples
de camponês na vila de Khoroshevo, algo isolada das outras residências rurais. (A
camponesa residente fora despachada com armas e bagagem.) A pequena cabana,
com sua cornija ornamental e uma placa comemorativa, ainda hoje existe, como
monumento da “explorações” de Stalin do front. Diz-se que, durante sua
permanência na modesta instalação, ele preparou a ordem para uma salva de tiros de
canhão a fim de comemorar a retomada de Orel e Belgorod. Mas não mostrou
desejo de ir à linha de frente para confraternizar com as tropas e seus oficiais. Depois
da noite em Khoroshevo, o pequeno comboio fez a viagem de volta a Moscou sem
quaisquer tropelias, onde Stalin pôde se confortar com o sentimento de que
ninguém mais poderia dizer que ele só conhecia o front pelos documentários do
cinema.
Haveria mesmo necessidade da visita à linha de frente? Afinal de contas, jamais
estivera nas fábricas, se bem que tivesse levado o país a dar um salto quantitativo na
produção industrial. Só uma vez fizera um giro pelos vilarejos, e que revolução
causara naquele setor! Por que o campo de batalha seria uma exceção, quando podia
acompanhar todos os eventos que ocorriam e, na realidade, dirigir tudo de sua sala
no Kremlin? A visita foi necessária para a “história”. Sua biografia tinha que incluir
uma descrição da chegada do Supremo no seio das tropas combatentes para elevar o
moral. Ele também fez questão de que os Aliados tomassem conhecimento do fato.
Escreveu a Roosevelt em 8 de agosto de 1943:

Recém-chegado do front, só agora tenho condições para responder à sua carta de 16 de julho. Não tenho
dúvida de que o senhor está consciente de nossa situação militar e, portanto, entenderá o atraso. Tenho que
fazer visitas pessoais aos vários setores do front com cada vez maior frequência e subordinar tudo o mais aos
interesses da linha de frente.

E, para Churchill, escreveu no mesmo dia seguindo linha idêntica, acrescentando


que a provável eventualidade de novos ataques alemães tornava as visitas pessoais
mais assíduas ao front uma necessidade premente.48
Para falar a verdade, estas cartas também serviram para explicar por que Stalin
declinara do convite para se encontrar com os outros dois líderes em Scapa Flow,
nas ilhas Orkney. Mas foram úteis também para dissipar qualquer noção de que
conduzia a guerra de sua poltrona. Para sua grande satisfação, nas respostas dos dois
líderes, de 19 de agosto de 1943, tanto Roosevelt quanto Churchill comentaram
que “entendiam perfeitamente as ponderáveis razões que o obrigam a permanecer
em proximidade cerrada dos fronts de combate onde sua presença pessoal tem
contribuído tanto para as vitórias”.49
Nota

* Sigla russa de Glavnoe upravlenie po delam literatury i izdatv, a “Repartição para a Proteção dos Segredos de
Estado Impressos,” agência de censura responsável pela revisão de todas as matérias antes da publicação. No fim
da década de 1980, era responsável pela proteção de segredos de Estado. Foi abolida em julho de 1990.
[49]
Stalin e os Aliados

N o final de abril e início de maio de 1945, Poskrebyshev reportava


diariamente a Stalin os encontros que ocorriam entre tropas soviéticas e
aliadas. Para Stalin – e não só para ele – a Aliança representara um
aspecto da guerra repleto de expectativas e desapontamentos, rixas, regateios,
suspeitas e desconfiança, depois, de esperanças e desilusões, e, finalmente,
transformara-se em razoável cooperação militar funcional. Na primavera de 1945,
parecia que ela estava firme e seria duradoura. Em prol da coalizão antifascista,
Stalin sacrificara o Comintern, colocara de lado postulados ideológicos, fechara os
olhos para os habituais e persistentes sentimentos anticomunistas de Churchill e das
democracias ocidentais, e assumira uma linha puramente pragmática.
De regra, lia apenas documentos do Estado-maior, relatórios do front e
memorandos do QG do Estado-maior. Contudo, então, começou a analisar outro
tipo de material. Por exemplo, leu um relatório de S.R. Rudnik, chefe do Estado-
maior da 58ª Divisão de Infantaria de Guardas, dando conhecimento de que “às
15h30 de 25 de abril de 1945, perto da ponte, em Torgau, ocorreu um encontro
entre oficiais do 173º Regimento de Infantaria de Guardas e patrulhas da 60ª
Divisão de Infantaria do 5º Corpo de Exército do I Exército americano. Cinco
homens liderados pelo oficial Robinson do Exército dos EUA atravessaram para a
margem leste do rio Elba a fim de manter contato”.50
Stalin deve ter ficado imaginando como homens do tipo de Rudnik se
comportariam com os soldados Aliados de um outro mundo. Haveria
confraternização ou fricção? Apenas três semanas antes, recebera um cabograma de
Abakumov, classificado “Muito Importante”, dando conta de que, segundo fontes
da Smersh, na base aérea soviética de Poltava, a qual os americanos estavam
utilizando como ponto de reabastecimento, o major-general Kovalev declarara que
“não estamos nos dando muito bem com os americanos, e tudo pode dar mesmo em
conflito armado”. Kovalev tomara medidas acauteladoras. Stalin explodiu quando
leu o telegrama de Abakumov. “Onde arranjamos idiotas assim? Este Kovalev
preparou até um plano de ataque!” Escreveu uma mensagem para o comandante da
força aérea, Falaleev, com letras maiúsculas bem no meio da página. “Determino a
você apaziguar o Camarada Kovalev e proibir qualquer nova ação de sua parte.”
Por outro lado, ele também recebia relatórios de encontros com forças inglesas e
americanas que ocorriam num clima de entusiasmo. Durante uma reunião entre o
comandante da 58ª Divisão de Infantaria, general Rusakov, e o comandante da 69ª
Divisão de Infantaria dos EUA, general Reinhardt, foram levantados brindes,
proferidos discursos e trocados presentes. O chefe da seção política do V Exército de
Guardas, general Katkov, reportou que os americanos queriam estrelas, platinas e
botões como suvenires. Os soldados soviéticos ficaram aparentemente surpresos ao
verificarem que era difícil distinguir um general dos EUA entre os de outros postos.
“Todos usam o mesmo uniforme, ao passo que se pode identificar a distância um
general nosso.” Katkov também mencionou que o escritor Konstantin Simonov
estava presente no encontro.51
Era hora agora de acabar com o longo período de desconfianças mútuas entre a
União Soviética e as democracias ocidentais. O que parecia impraticável antes da
guerra, Hitler tornara possível. Ao travar a guerra em duas frentes, o Führer tinha,
inadvertidamente, transformado a URSS e o Ocidente em aliados. Stalin podia
muito bem agora recordar a visita do embaixador inglês, Stafford Cripps, e seus
auxiliares, em 12 de julho de 1941. Ainda em choque com a notícia que recebera
meia hora antes de que os alemães estavam no Dnieper, Stalin apertou
mecanicamente a mão do inglês e, absorto, ficou olhando as costas de Molotov e
Cripps enquanto os dois assinavam o acordo de assistência mútua. Uma semana
mais tarde, o enviado soviético em Londres, Ivan Maisky, e o ministro do exterior
tcheco, Jan Masaryk, assinaram acordo semelhante e, depois, no mesmo mês de
julho e ainda em Londres, foi celebrado um tratado de assistência mútua entre a
URSS e o governo polonês no exílio. Por insistência polonesa, a primeira cláusula
estabelecia: “O governo da URSS reconhece que os tratados germano-soviéticos de
1939 relacionados com mudanças territoriais na Polônia não têm validade.”52
Naquele dia, Stalin conheceu o enviado pessoal de Roosevelt, Harry Hopkins, que
disse: “Quem luta contra Hitler está no lado certo do conflito, e pretendemos ajudar
este lado.”53 Stalin fez perguntas ligeiras sobre a ajuda técnica e expressou a
esperança de que o presidente entendesse a posição soviética. O acordo de
assistência seria concluído algum tempo depois, porém, entrementes, a visita de
Hopkins servira para lançar as bases da cooperação.
Ainda em julho, Stalin enviou uma missão especial a Londres, chefiada pelo
general F.I. Golikov. Stalin instruiu o general pessoalmente, assim como fizeram
Shaposhnikov, Timoshenko e Mikoyan, sobre detalhes das questões. Golikov tinha
duas missões principais: primeira, despertar o interesse estratégico inglês no
desembarque de tropas na Europa ou no Ártico, e, segunda, extrair assistência
técnica mais rápida da parte dos ingleses. Logo após seu retorno a Moscou e seu
despacho de meia hora com Stalin, Golikov foi mandado para os Estados Unidos,
levando o principal foco da atenção de Stalin: o recebimento de uma vasta gama de
suprimentos no mais curto espaço de tempo possível.
Enfrentando a ameaça da derrota, Stalin descartou os antagonismos ideológicos
como de importância secundária. Por ser pragmático, venceu facilmente seus
preconceitos em termos de ideologia e lançou-se, com decisão, em busca do apoio
das potências ocidentais. Na prática, suas opções eram poucas, mas ele acabou
desempenhando papel de destaque na coalizão antinazista. Desde o início da guerra,
depois de recuperar o equilíbrio emocional, Stalin procurou o suporte do maior
número possível de países e fez o que estava ao seu alcance para que Turquia e Japão
permanecessem neutros em relação à URSS. Mas era na Inglaterra e nos EUA que
depositava suas maiores esperanças.
Lançou-se a colocar a nova cooperação em bases práticas, de negócios, não
emocionais. Assim, praticamente na sua primeira mensagem a Churchill, datada de
18 de julho de 1941, declarou: “A mim parece que a situação militar da União
Soviética, como a da Inglaterra, seria significativamente melhorada se uma frente
contra Hitler fosse aberta no Ocidente (norte da França) e no Norte (o Ártico).” E,
como se justificando as anexações soviéticas de 1939, acrescentou: “Teria sido muito
melhor para os alemães se as forças soviéticas tivessem que aguentar o peso de seus
ataques não em Kishinev, Lvov, Brest, Belostok, Kaunas e Vyborg, mas em Odessa,
Kamenets-Podolsk e Leningrado.”54
Stalin persistiu, em todas as suas mensagens para Churchill, em reclamar a
abertura de uma segunda frente, e sabemos que, já em 26 de julho de 1941,
Churchill declarara que ainda não era possível. Quando a situação se agravou em
agosto, Stalin enviou outra mensagem pessoal e comovida. Referindo-se às recentes
pesadas derrotas sofridas pelas forças soviéticas, apelou: “Como poderíamos
encontrar uma saída para esta situação mais que desagradável?” E ele mesmo
respondeu:

Penso que a única saída é a abertura, neste mesmo ano, de uma segunda frente, em algum lugar dos Bálcãs
ou na França, capaz de puxar trinta ou quarenta divisões alemãs da frente leste e, simultaneamente, a garantia
para a União Soviética de 30 mil toneladas de alumínio pelo início de outubro deste ano, e uma ajuda
mínima de 400 aviões e 500 tanques (pequenos ou médios) por mês.
Sem estas duas espécies de socorro, a União Soviética ou será derrotada ou restará tão enfraquecida que
perderá sua capacidade de auxiliar seus aliados por um longo período.
Sei que esta mensagem causará aflição a Vossa Excelência. Mas que posso fazer? A experiência ensinou-me a
olhar a realidade de frente, por mais desagradável que ela seja, e a não ter medo de dizer mesmo a verdade
indesejável.55

Embora tenha conseguido ajuda militar dos Aliados em escala maciça – ajuda
consistentemente ignorada ou depreciada pelos historiadores soviéticos –, Stalin foi
menos bem-sucedido no esforço para que abrissem uma segunda frente. Até meados
de 1944, esta questão ocupou lugar central no palco de suas iniciativas diplomáticas.
É verdade que, quando os ventos da vitória começaram a inflar suas velas, ele se
tornou menos insistente, e, de fato, a frente na Europa Ocidental só foi aberta
quando ficou óbvio que a União Soviética era capaz de destruir sozinha a Alemanha
nazista.
A persistência de Stalin e a posição inglesa sobre a segunda frente chegaram a um
ponto tal que foi necessário aos dois líderes se encontrarem pessoalmente. Em
consequência, Churchill foi a Moscou, em agosto de 1942 e, na presença do
embaixador americano Averell Harriman, tentou convencer Stalin da
impossibilidade da abertura de uma frente na Europa Ocidental ou no Ártico
naquele momento. Stalin não teve outra escolha senão aceitar a argumentação,56
mas deixou claro que considerava a posição inglesa uma quebra de promessa.57
Considerando que a URSS estava aguentando o maior impacto da agressão nazista,
Stalin se achava no direito de reivindicar um lugar especial na aliança. Isto se
aplicava particularmente às solicitações da União Soviética – que soavam mais como
exigências – de auxílio. No interesse do país, Stalin comportou-se como um político
duro que não aceitava meios-termos e, no processo, granjeou o respeito de seus
parceiros. Roosevelt, Churchill e de Gaulle o consideravam um ditador esperto e
cruel. Ele sabia disto e não fez qualquer tentativa de alterar esta imagem.
Ansioso pela máxima quantidade possível de assistência da parte dos Aliados, em
especial ajuda militar, Stalin buscou maneiras de desbordar as diferenças ideológicas.
Enquanto conversava com Churchill no Kremlin, madrugada adentro, estava
consciente de que, apenas a alguns blocos de distância, ficava a sede do comitê
executivo da Internacional Comunista – o Comintern –, instituição que identificava
o inimigo de classes não só em Hitler, mas também no primeiro-ministro inglês. A
decisão de Stalin de desmantelar o Comintern – por um decreto do próprio
Comintern, é claro – não causou espanto aos observadores inteligentes que se
lembravam de que, muito recentemente, em 1939, o secretário-geral demonstrara o
quanto estava disposto a abandonar um princípio ideológico em favor de um
objetivo particular. Tampouco fez questão de camuflar sua decisão. Falando numa
cerimônia comemorativa do 25º aniversário da Revolução de Outubro, ressaltou o
fato de que as diferenças ideológicas não eram obstáculo para a cooperação militar e
política com os Aliados.58 Na verdade, o que ele estava dizendo era que a lógica das
classes não tinha lugar na luta pela sobrevivência.
O destino do Comintern estava selado. Na primavera de 1943, ele dissolveu a si
próprio e, em 28 de maio de 1943, respondendo a uma pergunta do correspondente
da Reuters, Stalin disse:

A dissolução da Internacional Comunista é adequada e oportuna, pois facilitará a organização da pressão por
parte das nações amantes da paz contra o inimigo comum, o hitlerismo, e desmascara a mentira dos
hitleristas de que Moscou, supostamente, pretende interferir na vida dos outros estados e “bolchevizá-los”.59

Outra área na qual Stalin aplicou sua abordagem pragmática foi a da Igreja
Ortodoxa Russa, instituição com a qual o ex-seminarista, até então, não vinha sendo
muito pródigo em atenção. Pelo contrário, em 1925, por sua iniciativa, a Igreja foi
proibida de eleger um novo patriarca. Seu chefe temporário, ou locum tenens, ficou
sendo o eclesiástico metropolitano Sergius. Stalin nem permitiu que o conselho
local da Igreja se reunisse, tornando assim impossível completar o número de
membros do Sínodo Sagrado, o qual deixou de funcionar por um longo período.
Subitamente, em 4 de setembro de 1943, Stalin convidou G.G. Karpov, presidente
do conselho para as Questões da Igreja Ortodoxa Russa, à sua dacha. Durante a
conversa, e com a presença de Malenkov e Beria, foi debatido o papel que a igreja
poderia desempenhar no esforço de guerra. Deve-se frisar que ela já vinha dando
uma grande contribuição em dinheiro vivo com tal objetivo e repassara para os
cofres públicos substanciais partes de sua riqueza, ao mesmo tempo que os
sacerdotes faziam o possível para fortalecer a fé do povo na vitória final sobre o
invasor.
Tendo ouvido Karpov, Stalin decidiu, na hora, receber os líderes da Igreja e,
poucas horas depois, chegaram os eclesiásticos metropolitanos Sergius, Alexei e
Nikolai, algo surpresos com o inusitado da ocasião. Durante a longa discussão,
concordaram em convocar o conselho da Igreja, nomear um patriarca e abrir
instituições de ensino religioso. Entusiasmado com a própria generosidade, Stalin
prometeu também ajuda material à Igreja e várias indulgências, dando para Beria
um olhar significativo enquanto dizia isto. Stalin, o seminarista falhado, deve ter
sentido imensa satisfação pela inimaginável oportunidade de influir não apenas na
sorte dos dignitários de posição mais elevada da Igreja, mas na própria religião. E a
maioria das promessas que fez foi cumprida.
No dia seguinte, 5 de setembro, o Pravda publicou notícias sobre a reunião – a
única entre a liderança do país e o chefe da Igreja até 1988 – e anunciou que o
eclesiástico metropolitano Sergius iria convocar o conselho dos bispos para a eleição
de novo patriarca. “O chefe de governo, Camarada I.V. Stalin, demonstrou simpatia
em relação a tais propostas e declarou que o governo não estorvaria sua
concretização.”
Stalin tomou essa atitude por duas razões. Primeiro, porque reconhecia o valor
patriótico da Igreja e queria encorajá-lo. A segunda razão estava ligada à situação
internacional. Ele se preparava para a conferência de cúpula em Teerã no final do
ano, e era sua intenção pressionar pela abertura da segunda frente e pleitear também
um aumento da assistência. Neste particular, papel importante, acreditava ele,
poderia ser desempenhado pela Ajuda Britânica para o Fundo Russo, comitê do
qual faziam parte a senhora Churchill e o Deão de Canterbury, Hewlett Johnson. Já
tendo recebido diversas mensagens do deão, Stalin concluiu que era chegado o
momento de fazer um gesto público para demonstrar sua lealdade à Igreja. Estava
convencido de que o Ocidente reconheceria aquele sinal e que ele provocaria a
resposta desejada. Sua principal motivação, portanto, não foi a gratificação da
vaidade do seminarista malsucedido, mas o exercício de pragmatismo puro nas
relações com os Aliados.
Tais relações chegaram ao ápice com os encontros dos Três Grandes em Teerã
(28 de novembro a 1º de dezembro de 1943), em Yalta (4 a 11 de fevereiro de
1945) e em Potsdam (17 de julho a 2 de agosto de 1945). O resultado destas
reuniões é bem conhecido. Meu propósito aqui é apenas tocar na atitude de Stalin
em relação a algumas das questões debatidas.
Stalin era um “homem caseiro”. Embora desejasse encontrar os líderes Aliados,
relutava em viajar, seja para longe, seja por muito tempo fora da URSS. Churchill e
Roosevelt sugeriram locais como Cairo, Asmara, Bagdad, Basra e outros mais ao sul.
Churchill até pensou que Stalin concordaria com um encontro no deserto, onde
seriam armados três acampamentos de tendas e eles poderiam conversar segura e
sigilosamente. Stalin insistiu em Teerã porque, segundo suas palavras, de lá seria
capaz de continuar “dirigindo o dia a dia do Estado-maior”. Depois de alentada
troca de correspondência, Churchill e Roosevelt concordaram. Naturalmente, Stalin
não revelou que tinha um pouco de medo de voar. Aquele viria a ser seu primeiro
voo, e o último. Nunca fora de correr riscos, e não viu por que haveria de começar
agora. Estava no auge da glória, e qualquer possibilidade de aborrecimentos, por
menores que fossem, o perturbava. Dois dias antes da viagem, telegrafou a Roosevelt
e Churchill, ambos já no Cairo, dizendo que estaria “à vossa disposição” em Teerã
na noite de 28 de novembro. Partida dele, era uma expressão desusada, que, sem
dúvida, objetivava passar a imagem de um gentleman.
Aquela foi a primeira conferência internacional de Stalin fora de seu próprio
país, e ele cuidou de observar atentamente seus parceiros. Tudo era novo. Churchill
não despertava tanto interesse, pois já havia se encontrado com ele e sabia tratar-se
de um político invulgarmente inteligente e arguto. Mas havia alguma coisa em
Roosevelt, com seus olhos penetrantes e a evidente marca da fadiga e da doença, que
logo o atraiu. Talvez fosse sua franqueza. Na última conversa que tiveram, em 1º de
dezembro, o presidente disse-lhe com toda a sinceridade que não desejava discutir
publicamente questões de fronteira polonesa, uma vez que era muito provável que
fosse candidato a presidente no ano seguinte. Existem “seis ou sete milhões de
cidadãos americanos de origem polonesa”, e ele, sendo um “homem prático, não
queria perder aqueles votos”. Stalin não estava acostumado com tais expressões de
autointeresse político, mesmo assim admirou esta qualidade de Roosevelt.
O presidente era o mais novo dos “Três Grandes” e, no seu discurso de abertura,
chamou o trio de “membros de uma nova família”. Churchill acrescentou que eles
representavam “a maior concentração de poder jamais havida na história da
humanidade”. Os dois, então, esperaram pelas palavras de Stalin. “Acho que a
história está sendo condescendente conosco”, começou ele abruptamente. “Ela
colocou em nossas mãos poderes muito grandes e mui grandes oportunidades.
Espero que tomemos todas as medidas para que esta conferência use do poder e da
força que nos foram confiados por nossos povos, adequadamente e dentro de um
espírito de cooperação. E agora, vamos ao trabalho.”
A questão da segunda frente foi, por fim, resolvida. No café da manhã de 30 de
novembro, Roosevelt sacudiu seu guardanapo, virou-se para Stalin com um sorriso e
disse: “Hoje, Mr. Churchill e eu tomamos uma decisão com base em propostas de
nosso estado-maior combinado: a Operação Overlord começará em maio,
juntamente com um desembarque no sul da França.”
“Fico satisfeito com esta decisão”, replicou Stalin tão calmamente quanto pôde.
“Mas também quero dizer a Mr. Churchill e a Mr. Roosevelt que, no momento em
que os desembarques começarem, nossas tropas estarão preparando um ataque de
grande vulto contra os alemães.” Estas novas foram do agrado dos outros líderes.
Como em Yalta e, mais tarde, em Potsdam, a questão polonesa preocupou os
Três Grandes em Teerã. Na última sessão, Churchill leu uma proposta,
evidentemente combinada antes com Roosevelt, estabelecendo que “o torrão do
estado e do povo polonês deve ser localizado entre a chamada Linha Curzon e o rio
Oder, com a inclusão na Polônia da Prússia Oriental e da província da Silésia”.
Stalin replicou: “Se os ingleses concordarem em transferir para nós [os portos de
águas quentes de Königsberg e Memel], aceitamos a fórmula proposta por Mr.
Churchill.”60
Durante as negociações sobre o futuro da Polônia que tiveram lugar mais tarde
na Conferência de Yalta, apenas três meses antes da destruição da Alemanha de
Hitler, Stalin apresentou a fórmula em que trabalhava havia muito tempo, ou seja,
que a questão da Polônia não era só de honra, mas também de segurança:

É uma questão de honra porque os russos cometeram muitos pecados contra os poloneses no passado, e o
governo soviético deseja fazer reparações. E é uma questão de segurança porque a Polônia apresenta o mais
grave dentre os problemas estratégicos para a União Soviética. Ao longo da história, a Polônia tem servido de
corredor para os inimigos que chegam para atacar a Rússia. Por que os inimigos acharam tão fácil, até agora,
passar através da Polônia? Principalmente porque a Polônia era fraca. Essa passagem polonesa não poderia ser
fechada pela parte de fora apenas com a força russa. Isto só poderia ser bem feito por dentro, pela ação da
própria Polônia. O que significa que a Polônia tem que ser forte. Daí a razão de a União Soviética estar
interessada na criação de uma Polônia poderosa, livre e independente. A questão polonesa é um problema de
vida ou morte para o estado soviético.61

Stalin deixou patente que estava mais inquieto com governos do que com fronteiras.
Aceitou imediatamente a Linha Curzon, com alguns ajustes em favor da Polônia,
mas não faria concessões quanto à questão do governo polonês, a despeito do fato
de, no início da guerra, ter se mostrado desejoso de cooperar com ele. Em 18 de
agosto de 1941, determinara que o major-general Vasilievsky assinasse um tratado
militar entre o Alto-Comando Soviético e o Alto-Comando Polonês. Concordaram
em que o lado soviético arcaria com todos os custos da manutenção de um exército
polonês em território soviético e abriria uma missão militar soviética no Alto-
Comando Polonês, em Londres.62 E agora Churchill e Roosevelt estavam chamando
o governo legítimo de “governo de Lublin”, como se não fosse mais que uma
autoridade provincial, não obstante já estar instalado em Varsóvia e controlar a
situação no país.
Na última fase da guerra, e depois dela, Stalin viu-se afogado em questões de
caráter diplomático. É claro que ele contava com a assistência de Molotov, A.Ya.
Vyshinsky, S.I. Kavtaradze e I.M. Maisky, entre outros, porém, ao mais das vezes,
tomava decisões por si próprio. Ficou irritado quando Churchill meteu o nariz nas
questões da Europa Oriental: uma vez que as forças soviéticas estavam lá, cabia à
URSS solucionar a questão do futuro da região, assim pensava ele.
Mais uma vez, Stalin viu o tipo de executivo fiel que era Molotov. Para este, uma
ordem de Stalin tinha precedência sobre qualquer estatuto do partido. Em 15 de
outubro de 1945, Averell Harriman quase “bateu nele”, como iria dizer a Stalin no
mês seguinte. O secretário-geral se preparava para suas primeiras férias de pós-guerra
e não queria receber o embaixador dos EUA, que pressionava por uma audiência.
Stalin dissera a Molotov: “Você o recebe. Não vou fazê-lo. Diga-lhes o que eles
precisam saber.”
De acordo com Molotov, o embaixador Harriman e o primeiro-secretário Page
foram visitá-lo, e a conversa mantida foi registrada em seu diário assim:

Harriman: “Recebi um telegrama do presidente para o generalíssimo. Tenho instruções para entregá-lo
pessoalmente e, na ocasião, discutir uns certos assuntos.”
Molotov: “Stalin entrou em férias por cerca de mês e meio. Informarei Stalin sobre o desejo do presidente.”
Harriman: “O presidente sabe que Stalin está de férias, mas espera que, assim mesmo, ele concorde em
receber o embaixador. É sobre a Conferência de Londres. Estou disposto a ir a qualquer lugar.”
Molotov: “O generalíssimo Stalin não está trabalhando no momento, o que quer dizer que está de férias
longe de Moscou.”
Harriman: “O presidente espera que Stalin receba o embaixador.”
Molotov: “Informarei Stalin.”
Harriman: “O presidente acha que o generalíssimo merece férias.”
Molotov: “Todos achamos que Stalin deve fazer uma pausa adequada para um descanso.”
Harriman: “Durante o desfile esportivo, notei que Stalin parecia em forma.” Molotov: “Stalin é um homem
muito disposto.”
Harriman: “No noticiário cinematográfico sobre o desfile esportivo, o generalíssimo me pareceu bastante
vigoroso e entusiasmado.”
Molotov: “Nós, as pessoas soviéticas, ficamos muito felizes em ver Stalin com bom estado de espírito.”
Harriman: “Eu gostaria de ter uma cópia daquele filme.”
Molotov: “É claro, o senhor terá uma.”
Harriman: “Não tenho mais nada a dizer para explicar o propósito de minha visita.”
Molotov: “Informarei a Stalin, que está no gozo de completo repouso.” Harriman: “Nem preciso falar quão
importante a questão é...”
Molotov: “Isto está entendido.”
Harriman: “Eu gostaria de visitar Stalin como um amigo...”
Molotov: “Direi a Stalin, mas ele está de férias.”63

Talvez fosse este episódio que Harriman lembrou quando escreveu em suas
memórias que “Stalin permanece para mim a pessoa mais inescrutável, enigmática e
contraditória que jamais conheci”.64 As anotações sobre a conversa, feitas pelo
assistente de Molotov, V. Pavlov, refletem muito bem a persistência obstinada dos
dois homens. Nenhuma conferência importante, nenhum apelo do presidente
abalariam Molotov, para quem a vontade do chefe era soberana. E, assim, ele
executou suas instruções à risca. Nada de flexibilizações. Molotov era da escola
stalinista. Mas quando ele acabou seu monólogo interminável, Stalin disse: “E se
Harriman tivesse, de fato, algo importante para me dizer do presidente?” Molotov e
Beria trocaram um olhar. Não sabiam se Stalin estava brincando ou lamentava
sinceramente uma oportunidade perdida.
Entre as numerosas pastas que Poskrebyshev colocava em cima da mesa de
Stalin, muitas requeriam sua atenção: tratavam dos países liberados, que eram em
bom número. As lembranças ainda eram recentes das maquinações do presidente
Risto Ryuti em Helsinque. Chegavam sinais por intermédio da embaixadora
soviética em Estocolmo, Alexandra Kollontal, de que os finlandeses aprestavam-se
para abandonar a guerra quando, subitamente, em 26 de junho de 1944, em seguida
a uma visita de Ribbentrop a Helsinque, Ryuti declarou que a Finlândia jamais faria
a paz, nem permitiria que quaisquer negociações de armistício fossem encetadas
com a URSS sem a concordância do império alemão.65 Stalin reagiu determinando a
imediata aceleração das operações ofensivas no front da Karélia. Já então aprendera
que golpes firmes tornavam o inimigo mais tratável. A manobra funcionou, embora
a operação não tivesse sido tão bem-sucedida como ele esperava. Em 4 de setembro
de 1944, os finlandeses aceitaram as condições soviéticas para pôr um fim na guerra,
e um armistício foi assinado no dia 19 do mesmo mês.
Em agosto de 1944, Stalin recebera relatórios de que aviões Aliados estavam
aterrando em crescentes quantidades nos territórios ocupados pelos soviéticos, e
admoestou Voroshilov na Hungria, Susaikov na Romênia e Shatilov em Varsóvia
pela “complacência perigosa, credulidade desnecessária e falta de vigilância que
permitiam que elementos hostis aterrissassem para infiltrar terroristas, sabotadores e
agentes poloneses a serviço do governo polonês de Londres”.66
Em 18 de outubro de 1944, teve ocasião de enviar um cabograma “Muito
Importante” ao marechal Tito, com uma cópia para o marechal Tolbukhin:

O senhor solicitou ao marechal Tolbukhin que retirasse as forças búlgaras da Sérvia e as deixasse apenas na
Macedônia. Além do mais, queixou-se a Tolbukhin do comportamento incorreto das tropas búlgaras na
divisão do butim tomado aos alemães. Sobre as duas questões, considero necessário informar-lhe o seguinte:
1. As tropas búlgaras operam em território sérvio segundo o plano geral da assistência substancial às tropas
soviéticas, de acordo com o senhor e por sua solicitação, como estabelecido em seu telegrama número 337 de
12.10.44. Enquanto um considerável efetivo alemão permanecer em território iugoslavo, não teremos
condições de retirar as tropas búlgaras da Sérvia.
2. Quanto ao butim, a lei da guerra é a de quem o toma e fica com ele.67

Para o comandante do terceiro front ucraniano, o cabograma de 4 de abril de 1945


recomendou que confiasse no socialista austríaco Karl Renner – eleito chanceler
naquele mês – e que deveria lhe dizer que as forças soviéticas na Áustria ajudariam a
implantação de um regime democrático no país. “Diga-lhe que as tropas soviéticas
não cruzaram a fronteira austríaca para ocupar território, e sim para perseguir e
expelir os ocupantes nazistas.”68
No dia da vitória na Europa, Beria trouxe um decreto a Stalin, que foi assinado
dois dias depois. Era dirigido aos comandantes dos 1º e 2º fronts bielorrussos, aos
1º, 2º, 3º e 4º fronts ucranianos e aos chefes da segurança:

Para garantir a recepção organizada e a contenção dos ex-prisioneiros soviéticos de guerra e dos cidadãos
soviéticos liberados pelas forças aliadas no território da Alemanha Ocidental, e também para a entrega de ex-
prisioneiros de guerra e de cidadãos dos países Aliados liberados pelo Exército Vermelho, o Supremo Alto-
Comando determina:
Que os sovietes de guerra organizem campos na área de retaguarda para acomodar e reter ex-prisioneiros de
guerra e cidadãos soviéticos que estão sendo repatriados, alocando 10 mil pessoas para cada acampamento. As
necessidades são: 2º front bielorrusso – 15 campos; 1º front bielorrusso – 30; 1º front ucraniano – 30; 4º
front ucraniano – 5; 2º front ucraniano – 10; e 3º front ucraniano – 10. Alguns campos devem ser criados
em território polonês.
Que a checagem de ex-prisioneiros de guerra e de cidadãos liberados seja executada da seguinte maneira: os
órgãos de contrainformação da Smersh deverão ficar encarregados dos militares, enquanto comissões de
averiguação da NKVD, da NKGB e da Smersh, sob a coordenação da NKVD, verificarão os civis. A
checagem não deverá durar mais que um ou dois meses.
A entrega de ex-prisioneiros Aliados de guerra e de cidadãos às comissões do comando aliado deverá ser
administrada pelos sovietes de guerra e por um representante do Sovnarkom da URSS.
11 de maio de 1945. 24h.69

Uma centena de campos? Stalin ficou imaginando quantos prisioneiros de guerra


soviéticos haviam sobrevivido, qual seria seu total, mas não era hora de se pensar
nisso naquela ocasião de triunfo. Ao folhear os papéis que assinara, Stalin deteve-se
num que ditara quase no final da guerra sobre os encontros entre as forças aliadas e
as soviéticas:

1. O oficial mais antigo [...] deve fazer contato com o oficial Aliado mais antigo e estabelecer com ele a linha
divisória. Nada sobre nossos planos e objetivos de batalha deve ser divulgado a quem quer que seja.
2. Nenhuma iniciativa deve ser tomada para a organização de encontros de confraternização. As forças
Aliadas devem ser recebidas de maneira amistosa.70

Stalin já estava irritado com as notícias de uma enxurrada de confraternizações,


reuniões e festas. Zhukov e Vyshinsky tinham voado, a convite de Eisenhower, para
Frankfurt, e agora Zhukov passara um telegrama solicitando permissão de Stalin
para condecorar dez oficiais do Estado-maior de Eisenhower com a Ordem da
Bandeira Vermelha e outros dez com a medalha do Mérito Combatente.71 Primeiro,
queriam condecorar os americanos, pensou ele, depois iam querer medalhas para
eles mesmos. Já estavam comemorando, mas as questões do pós-guerra ainda não
estavam resolvidas. Ele pensava na próxima Conferência de Potsdam, que iria
discutir as difíceis questões da ordem do mundo de pós-guerra.
Não procrastinaria, cumpriria a promessa feita em Yalta de entrar na guerra
contra o Japão dois ou três meses após o término da guerra na Europa.72 Em 28 de
junho, assinou a ordem para a preparação da ofensiva. “Todos os preparativos para
as operações deverão ser executados com o maior sigilo. As ordens deverão ser
repassadas, pessoal e verbalmente, aos comandantes de exército, sem quaisquer
diretrizes escritas.”73
PARTE X
Clímax do culto

A pior tirania é a que age sob o manto


da legalidade e a bandeira da justiça.
Montesquieu
[50]
O preço da vitória

S talin tinha consciência de que a autoridade que desfrutara no país antes da


guerra e, é claro, no Comintern tinha agora adquirido estatura mundial. Os
líderes ocidentais, tanto nos encontros pessoais quanto na extensa
correspondência mantida, entoavam loas ao Supremo Comandante em Chefe das
forças armadas soviéticas. O novo presidente dos EUA, Harry Truman, frisou numa
carta pessoal que havia “demonstrado o talento de um amante da paz, com o mais
elevado nível de coragem, para derrotar as forças maléficas do barbarismo, por mais
fortes que fossem. Na oportunidade de nossa vitória comum, saudamos o povo e o
exército da União Soviética e sua liderança esplêndida”.1 Churchill remeteu
mensagem quase tão efusiva, transmitida pelo rádio em 9 de maio por sua esposa,
Clementine, augurando a continuação da amizade em tempo de paz.2 O general de
Gaulle, considerado pomposo e arrogante por Stalin, disse em seu telegrama da
vitória que Stalin “fizera da URSS um dos principais elementos da luta contra os
estados opressores, e exatamente por causa disto a vitória viera. A Grande Rússia e o
senhor pessoalmente granjearam a gratidão de toda a Europa...”3 Congratulações
semelhantes chegaram de todos os líderes mundiais.
Comparado com Churchill e com o semiparalítico Roosevelt, Stalin foi um
corpo estacionário durante a guerra. Afora seu primeiro e único voo para Teerã, o
encontro com Churchill e Roosevelt na Crimeia em 1945 e sua visita secreta ao
“front” em agosto de 1943, ele limitou-se a ir e vir do Kremlin para a dacha
próxima e restringiu o contato ao seu círculo fechado do Politburo e a alguns
comissários e chefes militares. Em breve, no entanto, estaria fazendo a última
viagem ao exterior de sua vida. Aos 65 anos de idade, era um homem exausto e já
estava planejando um longo repouso ao sol quando a guerra com o Japão
terminasse. No entanto, por meio do assessor especial do presidente dos EUA,
Harry Hopkins, com quem se encontrou em 26 de junho, ele propôs aos líderes
Aliados um encontro de cúpula em Berlim.
Truman e Churchill concordaram e fixaram a data para 15 de julho de 1945,
quando então Truman já esperava conhecer o resultado dos testes com a bomba
atômica, sobre a qual Stalin nada sabia. (A União Soviética fazia também
experiências sob a supervisão de Beria. Em março, Stalin perguntara ao chefe da
administração política do exército, coronel-general F.I. Golikov, se os físicos
estavam sendo dispensados do exército para trabalhar no instituto de pesquisas de
D.V. Skobeltsyn e outros. Beria já reportara que diversos laboratórios tinham sido
instalados nos gulags pela NKVD, onde prisioneiros políticos trabalhavam como
cientistas.) Em Potsdam, quando Truman informou a Stalin sobre o teste bem-
sucedido no Novo México, o líder soviético não expressou qualquer sinal de
interesse, como Gromyko, que estava presente, atesta em suas memórias.4 Os
Aliados não podiam imaginar que, naquela mesma noite, Stalin passaria um
telegrama a Beria para que acelerasse o trabalho. Mas isto seria em 24 de julho em
Potsdam. Enquanto isto, Stalin se preparava para a viagem.
Rejeitou decididamente a ideia de voar para a cidade alemã num Dakota.
Citando especialistas, Beria tentou convencê-lo de que o voo seria seguro, mas Stalin
foi inflexível na negativa. Ainda lembrava bem dos incômodos da viagem aérea para
Teerã, quando o avião atravessou diversas áreas de turbulência ao sobrevoar as
montanhas. Ele agarrara-se aos braços da cadeira com uma expressão de horror
estampada no rosto e nem olhava para Voroshilov, sentado de frente, para ver se o
marechal notava o estado do chefe. Quando olhou, percebeu que o marechal
experimentava o mesmo desconforto. Ficou então decidida a ida a Berlim de trem.
Beria escolheu o itinerário, mais para o norte que o normal, e organizou uma
composição especial, com vagões blindados, guardas e escoltas especiais.
Aquela viagem, que foi planejada com mais meticulosidade que muitas operações
militares, merece ser descrita com algum detalhe. Dezenas de milhares de pessoas
trabalharam nela. Em 2 de julho, duas semanas antes da partida, Beria enviou a
Stalin o detalhamento das providências que tomara:

A NKVD da URSS reporta que os preparativos estão completados para a recepção e acomodação da
conferência vindoura. Sessenta e duas vilas foram aprontadas (10.000m2, mais uma casa afastada de dois
andares para o Camarada Stalin, com 400m2 de área construída: 15 cômodos, uma varanda externa e água-
furtada). A casa está completamente equipada. Possui um centro de comunicações. Foram feitos estoques de
carne de caça, aves, guloseimas, mantimentos e bebidas. Três depósitos suplementares de suprimento foram
criados a sete quilômetros de Potsdam, com fazendas de gado e aviários e reservas de vegetais; duas padarias
estão funcionando. Todas as equipes são de Moscou. Dois aeródromos especiais foram preparados. Sete
regimentos de tropas da NKVD e 1.500 militares operacionais proverão a segurança, que será feita em três
círculos concêntricos. O chefe da segurança na residência será o tenente-general Vlasik. Kruglov será o
encarregado da segurança na conferência.
Uma composição ferroviária especial foi montada. O percurso é de 1.923 quilômetros (1.095 na URSS, 594
na Polônia e 234 na Alemanha). A segurança ao longo do itinerário será proporcionada por 17 mil homens
da NKVD e 1.515 operacionais. Entre seis e 15 homens estarão postados a cada quilômetro de trilhos. Oito
trens blindados com tropas da NKVD patrulharão a extensão total do caminho ferroviário.
Uma casa com dois pavimentos e 11 cômodos foi preparada para Molotov. Existem 55 vilas, inclusive oito
casas separadas, para a delegação.5

Tudo isto estava, de fato, muito distante do “ascetismo” de Stalin dos anos 1920.
Quanto mais idoso ficava, mais temia por sua vida. Com a aproximação da viagem,
passou a consultar Beria mais amiúde, chegando a algumas vezes por dia – sobre o
sigilo a respeito da data da partida, a espessura da blindagem dos vagões, a rota
através da Polônia.
Em Potsdam, ao trocar cumprimentos com Truman, ao meio-dia de 17 de
julho, Stalin disse: “Por favor, desculpe-me pelo atraso de um dia. Fiquei ocupado
com as conversações com os chineses. Queria voar, mas os médicos proibiram.”
Truman replicou: “Entendo perfeitamente. Tenho muito prazer em conhecer o
Generalíssimo Stalin.”*
Stalin atrasou simplesmente para acentuar sua própria importância. Não foi a
última vez que utilizou tal artifício, como William Hayter, um dos membros da
delegação inglesa e mais tarde embaixador em Moscou, recordou.6
Naquela noite, os Três Grandes começaram a dividir os frutos de sua vitória,
trabalho mais fácil que o de preservar a aliança, que cada um deles sabia viver seus
últimos dias.

A partir de 17 de julho e durante duas semanas, os Três Grandes participaram de 13


sessões, enquanto seus ministros do exterior se encontraram 12 vezes. Nestes
encontros, eles resolveram o futuro da Alemanha, discutiram sobre o destino dos
países da Europa Oriental, buscaram uma solução para a “questão polonesa”,
dividiram a esquadra alemã, fixaram o valor das reparações, concordaram em levar a
julgamento os criminosos de guerra, avaliaram a duração da guerra contra o Japão e
debateram uma série de outras matérias.
Por estar na Alemanha, Stalin deve ter se lembrado de Ernst Thälmann, líder do
partido comunista alemão antes da guerra. No final de 1939, Molotov reportou que
o enviado soviético em Berlim, Kobulov, relatou que a esposa de Thälmann, ao
ouvir a respeito do tratado de amizade, fora à embaixada solicitar auxílio para tirar o
marido de uma prisão nazista. Segundo Kobulov, ela não tinha meios para se
sustentar e estava, literalmente, passando fome. Kobulov dissera-lhe que nada podia
fazer. Em lágrimas, ela replicara: “Será que todo o trabalho que ele fez pelo
comunismo não valeu alguma coisa?” Kobulov reportou também que ela perguntara
se deveria ou não apelar para Goering. “Disse-lhe que aquilo era problema dela. Foi
embora muito deprimida.”7
Thälmann conseguiu escrever muitas cartas da prisão pedindo ajuda a Moscou,
mas Stalin não lhes deu atenção. Não desejava pedir favores a Hitler, embora
pudesse ajudar Thälmann e outros com facilidade, considerando-se que entregara
um grupo de alemães antifascistas por solicitação do Führer. Em maio de 1945,
contudo, Beria reportou que tropas da NKVD haviam encontrado Rosa Thälmann,
que escapara de um campo de concentração, escondida na cidade de Fürstenberg, e
também que a filha de Thälmann, Irma Fester, fora liberada por forças do Exército
Vermelho do campo de concentração de Brandenburg. Rosa Thälmann disse que a
última vez que vira o marido fora em 27 de fevereiro de 1944, na presença da
Gestapo, na prisão de Beuthen. Ele lhe dissera que vinha sendo constantemente
torturado para que abjurasse seus pontos de vista.8 Stalin determinou que
Poskrebyshev tomasse as devidas providências a fim de que fosse dada assistência à
família de Thälmann.
Casos assim emergiam, então, diariamente.** Por exemplo, Serov reportou que a
1ª Divisão de Infantaria polonesa liberara o ex-primeiro-ministro da república
espanhola, Francisco Caballero, do campo de concentração de Oranienburg, onde
foi encontrado em precárias condições físicas e desejoso de que sua família soubesse
que estava vivo.9 Kruglov informou que o rei Miguel da Romênia ajudara seu
primo, major Hohenzollern, e o filho do industrial alemão Krupp, Oberleutnant von
Bolen und Holbach, a escaparem do cativeiro.10 Stalin deixou estes casos com
Molotov e Beria: ele tinha questões mais importantes com que se preocupar.
A guerra, achava ele, o transformara numa figura militar e, dali em diante, seria
sempre visto envergando o uniforme de marechal. Na verdade, o uniforme fora
objeto de grandes elucubrações. Três jovens e imponentes oficiais, trajando
uniformes com detalhes dourados e com calças exibindo listra lateral também
dourada, foram trazidos por A.V. Khrulev, chefe da administração da retaguarda do
Exército Vermelho, para desfilar diante de Stalin.
“O que é isto?” perguntou Stalin.
“Três exemplos de uniformes para o Generalíssimo da União Soviética”, replicou
Khrulev.
Stalin deu uma olhada e ordenou que todos se escafedessem de seu escritório.
Será que queriam que ele parecesse um porteiro de restaurante de luxo ou um
palhaço? Por outro lado, Khrulev fizera um bom trabalho na concepção da Ordem
da Vitória. O primeiro esboço, que Stalin vira em 25 de outubro de 1943, tinha
silhuetas dele e de Lenin no centro. Não gostou da ideia de milhares daquelas
medalhas nas quais ele só podia ser identificado pelo grosso nariz e pelo bigode.
Sugeriu que a condecoração contivesse a muralha do Kremlin e a torre Spasskaya,
sobre um fundo azul-claro, fosse confeccionada em platina e exibisse boa quantidade
de diamantes.
Enquanto ouvia as traduções dos pronunciamentos em Potsdam, mantinha o
hábito de ficar rabiscando com os lápis coloridos distribuídos ou com a caneta-
tinteiro. Por vezes, repetia sem parar a mesma palavra, como se buscasse seu
significado intrínseco: “reparações”, “contribuições”, “partes, parcelas de
reparações”. Ou, como Beaverbrook observou, desenhava um grande número de
lobos e coloria o fundo com lápis vermelho.11
Em 26 de julho, foi anunciado que os conservadores tinham perdido a eleição na
Inglaterra. Churchill foi substituído por Clement Attlee. Stalin dissera a Truman
em 17 de julho que “o povo inglês não esqueceria o vencedor”,12 e, agora, não podia
entender o que ocorrera. As “democracias apodrecidas” pareciam solapar-se por si
mesmas. Esse “jogo da carniça” era impossível no sistema soviético. Ele
permaneceria no poder enquanto sua saúde permitisse. Da mesma forma que o
“Rei-Sol” francês, Stalin há muito se identificara com o estado. Como presidente do
Soviete dos Comissariados do Povo, estava acostumado a falar em nome deste povo.
Quanto mais majestoso o estado, mais soberbo o seu governante. A guerra colocara
a URSS na mais alta posição e, para Stalin, significava que ele também atingira o
píncaro. Nos primeiros meses depois da guerra, começou a atingir o apogeu de sua
fama mundial, de seu poder e de seu culto sagrado.
Ele percebeu os resultados da vitória não apenas pela destruição do fascismo e
pela transformação da URSS num dos estados mais influentes. Sentiu também os
primeiros tremores na aliança antifascista que logo demoliria o edifício até suas
fundações. Mas nem ele poderia imaginar a rapidez com que aquilo iria acontecer.
Só os olhos mais perspicazes perceberiam que os Aliados na mesa em Cecilienhof
eram, na realidade, tanto amigos quanto inimigos. Stalin não acreditou na
observação de Truman, quando se conheceram, de que ele, Truman, desejava ser
“amigo do Generalíssimo Stalin”. Sentiu isso em especial durante a discussão sobre
as reparações. Os americanos abandonaram a posição assumida em Yalta e se
aliaram à Inglaterra, a qual tentava uma solução altamente desvantajosa para a
URSS. Uma vasta área da URSS fora ocupada e muitas instalações industriais
tinham sido destruídas. A Inglaterra e os EUA não haviam sofrido nada semelhante.
Stalin sublinhou que a URSS, como a Polônia e a Iugoslávia, tinha não só o direito
político mas o direito moral à compensação de tais perdas. Americanos e ingleses,
no entanto, fizeram ouvidos de mercador aos pleitos de Stalin. Apenas na décima
terceira e última sessão, Stalin cedeu e aceitou as condições desfavoráveis oferecidas,
tendo corrido o risco de receber bem menos. Todavia, vingou-se na “questão
polonesa”, notavelmente ao fazer da linha Oder-Neisse a fronteira. Na verdade,
empurrou a Polônia para oeste, criando, assim, um poderoso estado eslavo na
fronteira da Alemanha.
O fato de o presidente e o primeiro-ministro esforçarem-se por discutir a Europa
Oriental, enquanto nada falavam sobre a Ocidental, deu a Stalin justificados
motivos de preocupação. Quando ele levantou a questão do regime fascista na
Espanha, só encontrou incompreensão. Os Aliados ocidentais se inquietavam com a
posição da Bulgária e da Romênia, mas não viam nada de errado na ajuda a um dos
lados da guerra civil grega que irrompera. Por vezes, Stalin sentia que não tratava
com aliados, mas com antigos rivais que queriam um pedaço maior da torta que
todos tinham ajudado a confeitar. E não estava errado. À proporção que os
problemas da guerra diminuíam, os políticos iam ocupando o palco principal, e
política é um jogo hipócrita e impiedoso. No cenário político, as posições ocupadas
pelos parceiros eram muito díspares para dar o tipo de resultado que fora alcançado,
por exemplo, em Yalta. Naquela ocasião, a guerra constituía um perigo comum, e
estratégias comuns uniram os Aliados. Tão logo tais objetivos foram atingidos, os
interesses políticos afloraram de novo. Por mais especializados que fossem os
intérpretes em Potsdam, não foram capazes de fazer os líderes falarem a mesma
linguagem política, o idioma dos Aliados.
De modo geral, contudo, Stalin ficou satisfeito com os resultados da conferência,
como também ingleses e americanos. Foi ainda possível chegar, no verão de 1945,
àquilo que parecia bastante impossível havia apenas dois anos. Os Três Grandes
lograram concordar com a desmilitarização da Alemanha e em várias outras questões
importantes. Truman insistiu para que a URSS expressasse publicamente sua
intenção de declarar guerra ao Japão, o que Stalin fez de forma adequada.
Na véspera da campanha soviética contra os nipônicos, Stalin ordenou que
Vasilievsky, comandante das forças soviéticas no Extremo Oriente, não só libertasse
a metade sul da ilha Sakalina e as ilhas Kurilas, como também ocupasse metade da
ilha de Hokkaido, ao norte de uma linha entre as cidades de Kusiro e Rumoi,
desdobrando duas divisões de infantaria, uma ala de caças e uma de bombardeiros.
Quando as tropas soviéticas atingiram a parte meridional da ilha Sakalina, em 23 de
agosto de 1945, Stalin ordenou que o 87º Corpo de Infantaria embarcasse para um
posterior desembarque em Hokkaido.13 A ordem ainda não tinha sido cumprida
quando, no dia 25, o sul da Sakalina foi libertado. Stalin fez uma pausa: o que
ganharia com o desembarque? Provavelmente desgastaria as já deterioradas relações
com os Aliados. Cancelou a ordem de invasão de Hokkaido. O chefe do estado-
maior das forças do Extremo Oriente, general S.P. Ivanov, repassou suas instruções:
“Para evitar conflitos e mal-entendidos com nossos aliados, qualquer emprego de
navios ou aviões na direção de Hokkaido está terminantemente proibido.”14 Tudo
isto, no entanto, teria lugar diversas semanas mais tarde.
Na sessão de encerramento da Conferência de Potsdam, ocorrida na noite de 1º
de agosto com a presença dos chefes de delegação, as palavras finais de Stalin foram:
“Creio que podemos considerar a conferência um sucesso.” Truman fechou a
conferência manifestando a esperança de um próximo encontro para breve. “Se
Deus quiser”, respondeu Stalin.15
Para o povo soviético, a vitória sobre o fascismo deu frutos amargos, pois
consolidou ainda mais o papel de Stalin como árbitro messiânico infalível do seu
destino. A vitória acabou transformando-o em verdadeiro deus. Tendo defendido a
liberdade contra o nazismo, o povo soviético teria que esperar décadas para ficar
livre do stalinismo. Como seus antepassados depois da derrota de Napoleão, as
pessoas esperavam por melhoras em suas vidas. O triunfo, conseguido à custa de
milhões de vidas, fez com que nascessem esperanças vagas. O povo queria viver sem
medo e sem ser espicaçado. Se bem que continuasse a louvar Stalin, a exaltá-lo e
glorificá-lo, acreditava que não haveria mais terror, não mais campanhas sem fim,
não mais a escassez constante em termos de necessidades elementares, que se tornara
a grande calamidade da vida soviética.
Não obstante, a vitória convenceu Stalin de que o estado soviético e suas
instituições eram inabaláveis, de que o sistema soviético era decididamente viável e
de que suas políticas doméstica e externa eram corretas. Cedo deixou claro que não
haveria mudanças na vida interna da nação. O povo deveria trabalhar para
reconstruir a devastada economia do país segundo regras ditadas por Stalin. Seu
discurso aos votantes nas eleições de 10 de fevereiro de 1946 para o Soviete
Supremo não contém uma só palavra sobre democracia, vontade do povo ou
participação do cidadão comum nos negócios de estado. Foi um pronunciamento só
com as antigas fórmulas para que o povo confiasse em que o partido formularia a
política acertada, e, praticamente, um alerta para que todos votassem.16
A máquina burocrática começou a funcionar a todo o pano, produzindo um
regulamento do partido atrás do outro. Se, antes da guerra, o sistema stalinista ia a
passos largos, depois da guerra, não só se recuperou como aumentou o ritmo. A
linha de ação então adotada por Stalin foi a da burocracia total. Muitas repartições
começaram a pôr galões e dragonas no ombro de seus funcionários, sendo o setor
ferroviário o primeiro a fazê-lo. Novos órgãos foram criados cuja única função era
verificar se as ordens eram cumpridas. Para garantir que os fazendeiros coletivos
permanecessem fixos, seus passaportes internos foram retirados. Os exílios e as
deportações continuaram até o final dos anos 1940, e a organização de Beria jamais
ficou ociosa.
Os cientistas sociais acabaram se transformando em comentaristas sem ideias
próprias dos “grandes” dogmas, enquanto, mais uma vez, eram relançados os
debilitantes e entorpecentes rituais de glorificação do líder. De novo, tornou-se
extremamente perigoso falar com franqueza até nos círculos mais íntimos. O
policiamento intelectual de Zhdanov matou a liberdade de pensamento. O regime
burocrático reforçado logo resultou na indiferença e na apatia, no desejo de apenas
cumprir ordens. Alastrou-se uma degradação moral que se expressou na
personalidade dividida soviética de dizer uma coisa e fazer outra. O partido e o
estado transformaram-se em sombras um do outro. A ninguém era permitido ter
opinião que diferisse do ponto de vista oficial. Malgrado os slogans igualitários do
socialismo, uma elite burocrática começou a emergir.
Stalin utilizou a vitória, consciente e resolutamente, para preservar o sistema. A
fim de robustecer seu já ilimitado poder, demitiu regularmente secretários do
partido, comissários, marechais ou outros funcionários, acusando-os de falta de
espírito partidário, de abuso do poder, de não cumprimento de ordens superiores ou
de negligência para com os interesses do povo. Aos olhos deste povo, Stalin já era o
“bom czar”, e tais atos só elevaram ainda mais sua autoridade. Transformou-se no
salvador, no arquiteto da grande vitória, no líder guerreiro sem igual, e uma fé tão
cega resultou no enfraquecimento ainda maior de um povo de há muito privado da
verdade e da justiça. Ainda assim, as pessoas julgaram que o triunfo justificara o
socialismo e, a despeito dos obstáculos e das agruras, das mentiras e dos crimes,
conservaram sua confiança num futuro melhor.
Em tempo inacreditavelmente curto, o potencial econômico do país ressurgiu
das cinzas da guerra. Quando, no final de 1945, Stalin tomou conhecimento da
extensão do dano econômico, perguntou a Voznesensky se não se tratava de exagero.
O economista respondeu que os números eram até subestimados e que ainda era
cedo para se fazer uma avaliação acurada. Em 21 de maio, Stalin dissera aos oficiais
dos altos escalões que as primeiras tropas a serem desmobilizadas seriam as de defesa
antiaérea e de cavalaria, enquanto as unidades blindadas e a esquadra não seriam
afetadas. De 40 a 60% das unidades de infantaria seriam extintas, exceto as forças
do Extremo Oriente e os comandos transbaikal e transcaucasiano. Para cada soldado
desmobilizado deveriam ser vendidos bens capturados a preços baixos e pago um
soldo de acordo com o tempo de serviço.17 Stalin ficou imaginando quando a nova
força de trabalho poderia pôr de novo a economia de pé.
O povo vivia numa situação desesperadora. Chegavam relatórios de Beria e de
outros funcionários do ministério do interior sobre fome nas províncias.18 Notícias
vindas da província de Chita davam conta de que as pessoas estavam comendo
animais mortos e cascas de árvores caídas, e correu uma história de uma pobre
camponesa e seus filhos que mataram a irmã menor para se alimentarem com seu
cadáver.19 Beria rapidamente garantiu ao seu chefe que “uma certa quantidade de
farinha de trigo fora reservada antes da nova safra. Eles terão que ser pacientes”.
Voznesensky, que era candidato a membro do Politburo, tinha consciência mais
profunda que qualquer integrante daquele órgão sobre a enormidade da tarefa.
Stalin sempre tivera sentimentos ambivalentes a seu respeito, reconhecendo que ele
era, sem sombra de dúvida, o mais capaz do entourage, mas considerando
inaceitáveis sua independência e sua propensão a expressar julgamentos bruscos.
Apesar disso, no pleno de fevereiro de 1947, surpreendeu a todos fazendo de
Voznesensky membro pleno do Politburo.
O sumário de Voznesensky e o primeiro relatório compilado pela Comissão
Estatal Extraordinária sobre os danos causados pelos nazistas enumeraram 1.710
cidades e municípios destruídos, 70 mil vilas e aldeias queimadas totalmente –
embora muitas delas por mãos soviéticas –, 32 mil explodidas ou postas fora de
serviço, 65 mil quilômetros de trilhos ferroviários destruídos, cerca de 100 mil
fazendas coletivas e estatais devastadas, juntamente com milhares de máquinas
agrícolas e estações de tratores. Vinte e cinco milhões de pessoas ficaram sem teto e
estavam então morando em abrigos, celeiros e estábulos. O custo direto da invasão
era orçado aproximadamente em 700 bilhões de rublos, a preços pré-guerra. Na
realidade, o país perdera 30% de sua riqueza.20 O padrão de vida era o mais baixo
que se pode imaginar.
Stalin já era de opinião que só mantendo o estado de espírito do povo em
permanente tensão e mobilização, algo como uma guerra civil, seria possível vencer
as dificuldades. Um relatório de Khruschev seguiu linhas semelhantes. Em 31 de
dezembro de 1945, ele reportou que os nacionalistas ucranianos do oeste da
república estavam em grande atividade ligada às eleições vindouras para o Soviete
Supremo da URSS e solicitou reforços para os distritos militares dos Cárpatos e de
Lvov, o que Stalin prontamente aprovou.21 Bulganin submeteu a proposta de
formação de batalhões de assalto para lidar com a “bandidagem” na Letônia, forças a
serem pagas, diga-se de passagem, com recursos locais.22 Merkulov e Kruglov
relataram sobre a “atividade fortalecida da clandestinidade nacionalista
antissoviética” na Lituânia, envolvendo sequestro e assassinato de muitos
funcionários soviéticos encarregados das eleições.23 O derramamento de sangue na
região báltica estava fadado a durar diversos anos. Além destes “inimigos”, Stalin
estava convicto de que muitos soldados haviam retornado do front com ideias
revolucionárias.
Ficava patente do relatório de Voznesensky e de outros preparados por militares
que as perdas soviéticas só podiam ser estimadas aproximadamente. Ao contrário
dos alemães, que mantinham dados precisos sobre todas as suas ações, as estatísticas
soviéticas, em particular nos estágios iniciais da guerra, não foram adequadamente
registradas. De acordo com Voznesensky, não seria possível estabelecer com
exatidão, por muitos meses, o custo em vidas humanas, porém, com os dados que
possuía, indicou que ele ultrapassava 15 milhões. O Estado-maior calculou o
número de mortos e desaparecidos em ação em torno de 7,5 milhões e foi esta
quantidade que Stalin resolveu aceitar em 1946, por não desejar falar de um custo
mais alto e, assim, macular sua imagem de líder guerreiro.
Qual foi, então, o custo real? Na sua carta de 1956 ao primeiro-ministro sueco
T. Erlander, Khruschev menciona pela primeira vez um número maior que 20
milhões. Qual a base para tal cálculo que agora se tornou a versão corrente? A única
coisa certa na declaração de Khruschev foi a expressão “maior que”. O cômputo
total só agora está sendo trabalhado.
Meus próprios cálculos, baseados que são em estatísticas dos arquivos militares,
inclusive aquelas sobre prisioneiros de guerra, na análise das listas e dados do
exército sobre perdas nas operações importantes, e levando em consideração o
trabalho de pesquisadores como I.Ya. Vyrodov, Yu.Ye. Vlasievich, A.Ya. Kvasha e
B.V. Sokolov, levaram-me a um número de perdas de militares em serviço,
partisans, guerrilheiros subterrâneos e civis da ordem de 26 a 27 milhões, dos quais
algo em torno de 10 milhões caíram nos campos de batalha ou morreram no
cativeiro. As piores baixas ocorreram entre os primeiros, em 1941, sobretudo no
corpo de oficiais, quando cerca de 3 milhões de homens foram feitos prisioneiros.
As perdas em 1942 foram apenas ligeiramente menores.
A categoria mais nebulosa e politicamente ambígua foi a dos “desaparecidos”.
Nela estão incluídos os que caíram em combate, mas não constaram das listas
oficiais ou das informações sobre baixas, e os que foram capturados ou se juntaram
aos partisans e foram depois reunidos. Alguns deles sucumbiram à tentação e se
alistaram no Exército Russo de Liberação, de Vlasov, ou na polícia alemã local. No
entanto, formaram uma minoria. O destino da grande maioria dos que
desapareceram em ação foi profundamente trágico: ou morreram de forma
desconhecida em combate, ou em campos de concentração, ou então caíram nas
teias das incontáveis “checagens” dos campos da NKVD e por lá ficaram por muitos
e longos anos.
Estimo que a comparação entre perdas alemãs e soviéticas é de 3,2 para 1, em
favor dos alemães. É claro que não se deve perder de vista a bárbara política alemã
de exterminação sistemática da população civil, especialmente eslavos, judeus,
ciganos e outros grupos étnicos. É uma das razões das astronômicas quantidades
soviéticas. As perdas mais significativas ocorreram, com efeito, entre a população
civil, porém, mesmo desconsiderando o início catastrófico da guerra, as baixas
militares soviéticas foram um pouco maiores que as alemãs, e isto se deveu, pelo
menos em parte, à insistência de Stalin em que os objetivos fossem alcançados
“independentemente das perdas”. O socialismo stalinista sacrifical demandava uma
vitória também sacrifical. Tal fato indiscutível sublinha a grande paciência e
tolerância do povo soviético, mas é também testemunho do fato de que o povo
soviético permitiu que Stalin se transformasse na figura que foi. O papel das massas
neste processo não deve ser subestimado.

Agora que a guerra estava ganha, Stalin podia pensar em relaxar no ar puro do
Cáucaso, e Beria pôs mãos à obra para os preparativos, embora eles fossem bem
menos complicados que os de levar seu líder a Potsdam. O chefe da segurança em
Krasnodar reportou para Merkulov que o elemento antissoviético em Sochi estava
sob vigilância e seria preso na ocasião oportuna. As matas entre os rios Golovinka e
Psou eram vasculhadas. Cento e quarenta e oito postos de segurança tinham sido
estabelecidos entre a estação ferroviária e a dacha, e todo o itinerário estava
protegido. Um trem de força máxima estava em reserva.24 Mesmo em seu país, o
“pai do povo” temia atentados contra sua vida.
Parte da jornada foi feita de carro. Como sempre, quando entrava em férias,
Stalin era acompanhado por Vlasik, Poskrebyshev, Istomina, inúmeros serventes,
guardas e outros empregados. Foi de fato depois dessa viagem que ele ordenou a
construção de uma estrada para Simferopol. Ao passar por Orel, Kursk e outras
cidades e vilas, a comitiva parava para contatos locais. O sacrifício por que as
mulheres e crianças sobreviventes passavam era indescritível. Por todos os lados, as
cidades estavam em ruínas; mesmo assim, quando as autoridades chegaram ao sul,
Stalin foi informado de que novas casas de verão para funcionários estatais estavam
sendo construídas segundo ordens urgentes das agências de Beria.
Stalin logo se cansou do contato próximo com as massas; chegava de hurras leais,
de lágrimas de alegria das mulheres, de brados confiantes dos homens de “Tudo
acabou bem, Camarada Stalin!” e de olhares admirados de idosos e crianças,
perguntando se aquele era mesmo Stalin. Ademais, ele tinha consciência de que era
bem melhor para sua imagem acenar para as multidões a partir do Mausoléu, ou
sorrir para elas das telas dos cinemas, que tinha maior efeito sua aparição diária em
retratos, estátuas e bustos. Em vez disso, agora, as pessoas olhavam para um homem
de baixa estatura, tronco desproporcionalmente curto, pernas e braços um tanto
longos, barriga pronunciada, cabelos ralos, rosto pálido e com sinais deixados pela
varíola, e dentes amarelados. Em Kursk, uma mulher mais atrevida chegou mesmo a
tocar na manga de sua túnica como para se certificar de que aquele era o mesmo
homem que conhecia por retratos. Para as perguntas curtas que ele fazia, as pessoas
respondiam com exclamações também curtas, expressando embevecimento,
adoração entranhada e esperança por um milagre. Não esperavam que ele falasse,
simplesmente banqueteavam-se olhando, incapazes de acreditar que aquele era seu
Líder. Stalin começou a perceber na expressão das pessoas não só alegria e êxtase,
mas também um certo e indisfarçável desapontamento com a figura que viam.
Sabedor de que era impossível para qualquer deus terreno não causar desilusão pelo
contato direto, Stalin decidiu que não repetiria aquela prática insensata, e sim, dali
por diante, sustentaria a quimera da onipresença, tornando-se majestosamente
distante do povo. As pessoas tinham que continuar vendo nele o homem que erigira
o socialismo, destruíra todos os inimigos, derrotara o fascismo e que logo teria que
conclamar o povo para voltar à “grande construção do comunismo”. Aquele era o
sistema que ele edificara e que não podia prescindir de sua liderança. Os que
esperassem mudanças, aguardariam em vão. O sistema tinha que ser fortalecido, o
poder do estado, reforçado, e todos aqueles de que não precisasse deveriam ser
afastados. A grande vitória fora prova de que ele sempre estivera certo.
Embora toda esta descrição pareça imaginária e muito fantasiosa, ela se baseia na
dedução lógica das evidências. As ações e decisões de Stalin indicam que ele não
desejou alterar nada que tivesse significação. As pessoas podiam e deviam mudar,
mas não a ordem que o elevara ao cume do poder. Estava convencido de que o
sistema que queria preservar chegara então, depois da guerra, mais próximo daquele
visualizado pelos fundadores do socialismo científico. Tudo era planejado,
programado, prescrito e determinado. Portanto, ao se dispor a reconstruir o edifício
do socialismo assolado pela guerra, relançaria o slogan “Temos que alcançar e
ultrapassar!”.
Stalin poderia razoavelmente julgar que, depois da guerra, o mundo se
encaminharia perceptivelmente para a esquerda. A luta antifascista unira as massas,
revigorara a democracia e fizera a reação bater em retirada. Os feitos heroicos do
povo soviético despertaram profunda e genuína simpatia pelo Estado soviético.
Existiam até mesmo emigrados brancos, bem como intelectuais e ex-russos comuns
que estavam ávidos para retornar. Stalin estava especialmente interessado nos
indícios partidos dos mencheviques georgianos de Paris, muitos dos quais conhecia
pessoalmente. Tão logo a guerra terminou, enviou à capital francesa o chefe da
propaganda do Comitê Central georgiano, P.A. Shariya, e leu com atenção seu
relatório quando chegou pelas mãos de Beria e Merkulov.
Shariya reportou que os emigrados georgianos entregaram-lhe antigos
manuscritos, artefatos de ouro e prata, moedas raras e tesouros arqueológicos para
que fossem repatriados à Geórgia. Por instruções de Moscou, Shariya encontrou-se
com Noah Zhordaniya, Yevgeni Gegechkori, Iosif Gobechiya e Spiridon Kediya –
todos nomes que devem ter evocado em Stalin lembranças de sua vida como
revolucionário na clandestinidade, bem como o período duro em que as repúblicas
foram formadas depois da guerra civil. No começo da reunião, Zhordanyia
reafirmou seu ponto de vista de que não havia democracia, liberdade de expressão e
de imprensa, eleições livres e iniciativa privada na URSS. Não obstante, declarou
então – e foram palavras sublinhadas por Stalin – que:

Stalin ganhou a guerra. Acho que ele é o maior dos homens. Seria uma idiotice negar sua grandeza por causa
de nossas diferenças políticas. A história ainda terá muito a relatar sobre tal grandeza. Desvendará aspectos de
suas atividades ainda desconhecidos por seus contemporâneos.25

Quanta verdade! Porém, como muitos ex-oponentes políticos manifestavam o


desejo de voltar para casa, Stalin pode ser muito bem perdoado por pensar que o
vitorioso está sempre certo.
Como a vitória fortificou substancialmente a posição mundial da União
Soviética e granjeou-lhe amigos e aliados, pareceu que o país adquirira um segundo
fôlego. Mas o deflagrar da Guerra Fria, sinalizado pelo discurso de Churchill em
Fulton, Missouri, em 5 de março de 1946, interrompeu o processo. Os problemas
internos também ficaram mais agudos. Em 1946, grandes extensões do país foram
atingidas por severa seca e intensificou-se a escassez de bens essenciais. A Ucrânia
Ocidental e os estados bálticos foram palcos de embates, pouco noticiados, porém
ferrenhos, entre forças do governo e grupos de oposicionistas. A despeito de diversas
ordens pessoais de Stalin para a “aceleração do desbaratamento das gangues”,
passaram-se alguns anos até que fosse conseguido. Na Ucrânia Ocidental, ocorreram
choques ocasionais de grupos armados até 1951.
Os apertos econômicos se juntaram à tensão psicológica provocada pelo
adiamento para um futuro indefinido das expectativas de mudanças iminentes e das
esperanças por uma vida melhor. No seu discurso de eleição, no Teatro Bolshoi,
Stalin pediu ainda maiores sacrifícios e paciência. Isto também representava parte do
preço que o povo teria que pagar pela grande vitória.
Notas

* Esse novo título fora conferido a Stalin apenas recentemente, em 27 de junho de 1945.

** Mesmo buscando com muito interesse nos arquivos, nada achei sobre o destino de Raoul Wallenberg.
[51]
Cortina de segredos

S omente agora começamos a nos perguntar como um homem tão pouco


atraente em termos físicos e politicamente repelente como Stalin pôde fazer
toda uma nação amá-lo e transformar a tragédia experimentada pelo país em
triunfo pessoal, e por que milhões de pessoas fora do país o adoravam.
É natural o desejo de separar a ideia de Stalin do socialismo e do povo, e, de fato,
muitos escritores soviéticos tentam agora fazê-lo. Comecei com intenção
semelhante, mas cheguei à conclusão de que era impossível a tentativa sem distorcer
a verdade histórica. Como avaliar os anos 1930 e 1940 imaginando que o povo e o
partido estivessem de alguma forma afastados do líder que veneravam? Stalin
conseguiu se transformar no próprio símbolo do socialismo quando, na realidade, as
conquistas positivas do povo soviético foram concretizadas a despeito dele, e não
graças a ele. Determinado em recorrer à força para resolver os problemas
econômicos, sociais e ideológicos, Stalin sabia que era vital recrutar a opinião
pública, caso desejasse permanecer no centro do sistema. O aparato do sistema foi o
meio que utilizou para a manipulação de tal objetivo.
O ex-secretário do Comitê Central (e, por breve período, ministro do Exterior)
D.T. Shepilov contou-me que Stalin tinha o costume de convidar figuras
importantes dos estamentos científico e cultural para conversar e que sempre
aproveitava a oportunidade para fazer declarações ideológicas. Certa noite, foi dito a
Shepilov para telefonar para determinado número que era o do secretário-geral.
“Camarada Shepilov”, ouviu ele, “você está com tempo? Poderia vir até aqui de
imediato?”
Shepilov quase não teve tempo para dizer “É claro”, antes que Stalin desligasse.
Imaginava para onde deveria ir quando o telefone tocou de novo e lhe foi dito que
um automóvel estava a caminho para buscá-lo. Logo depois, era conduzido através
de corredores silenciosos e intermináveis no Kremlin, passando por seguranças a
cada virada.
A conversa demorou mais de uma hora. Stalin começou com um comentário
vago sobre os novos tempos que requeriam nova economia. Os líderes da indústria,
disse ele, tinham nível muito baixo de conhecimento econômico. Havia necessidade
premente de um livro didático bom e popular sobre economia do socialismo.
Shepilov entendeu que lhe era solicitado que o escrevesse com a ajuda de dois
renomados economistas. De forma obviamente ensaiada, Stalin recitou então as
recomendações que o livro deveria conter: a nacionalização dos meios de produção
deveria ser incrementada, o planejamento melhorado, o plano transformado em lei
férrea, a eficiência do trabalho aprimorada, e diversos outros aspectos de
características similarmente coercitivas.
Stalin falara. Um cronograma apertado foi imposto. Shepilov e seus colegas
foram “encarcerados” numa dacha fora de Moscou. No final de cada semana, Suslov
telefonava para perguntar como as coisas andavam e quando seria possível ler o
manuscrito. “O Camarada Stalin está esperando, não esqueça!”
Manter um estado de tensão permanente na mente pública foi um dos métodos
mais usados por Stalin. Um estado de “guerra civil” potencial ou, melhor, uma luta
permanente contra os “inimigos do povo”, “espiões”, “céticos”, “cosmopolitas”,
“degenerados”, “destruidores”, criava uma atmosfera na qual sua prescrição de
constante vigilância encontrava solo fértil. Ele pressentiu que, depois da guerra, as
pessoas, em especial as que constituíam a intelligentsia, alimentavam indefinida
expectativa por mudanças. Era como se a guerra as tivesse liberado em parte. De
acordo com Shepilov, Stalin, em consequência, determinou que Zhdanov “desferisse
um golpe contra todas as obras que não apresentassem conteúdo ideológico. Houve
marcante afastamento dos princípios de classe na literatura criativa. Cheque uma ou
duas revistas. Especialmente em Leningrado”.
O Comitê Central expediu as devidas instruções para as revistas Zvezda e
Leningrad, e Zhdanov voou para a antiga capital. Lá, declarou que a questão tinha
sido levantada por Stalin no Comitê Central, “o qual vem acompanhando o fato nas
revistas, propôs que discutíssemos as deficiências nas lideranças de tais revistas,
participou dos debates e, incidentalmente, proporcionou a base para a decisão”. Ao
nomear os escritores cujas obras encarava como “estranhas à literatura soviética”,
Stalin estava levando a sociedade pós-guerra de volta ao clima de suspeita e medo, e
reativando a caça às bruxas que grassara nos anos 1930.
Para ele, a ideia da luta de classes era uma regra primordial. Depois da destruição
dos capitalistas e dos proprietários de terra, ele descobriu outra classe para aniquilar,
a dos kulaks. Posteriormente, sem inimigos a enfrentar, engendrou uma fórmula
que garantiria a existência de tais inimigos. Sentado no Kremlin já bem tarde da
noite, na semana que antecedeu o sinistro pleno de fevereiro-março de 1937, ele
buscou a definição ou a argumentação que faria da condição de luta dentro da
sociedade uma característica permanente. As incontáveis alterações e emendas na
minuta do discurso mostram o quão exaustivamente trabalhou naquilo. Como já
vimos, o resultado ficou registrado nas seguintes palavras:

Quanto mais avançarmos, quanto maior o sucesso, mais exasperados se tornarão os remanescentes das classes
exploradoras destruídas, mais cedo apelarão para formas extremadas de luta, mais difamarão o estado
soviético e mais recorrerão aos meios desesperados como solução última dos condenados... Esmagaremos
nossos inimigos no futuro, como o fazemos agora e o fizemos no passado.26

Malgrado ter obtido inquestionável obediência do povo, Stalin não sossegou. Em


janeiro de 1948, chamou seu ministro do interior, Kruglov, e ordenou que
formulasse “medidas concretas” para a construção de novos campos de concentração
e também de prisões com objetivos especiais. Detectara quase imperceptíveis sinais
de descontentamento, de tentativa de cruzar certos limites, quando alguns escritores
permaneceram silenciosos em protesto contra a sufocação de seu mando. “Submeta
minutas de decretos em fevereiro”, disse a Kruglov. “Precisamos de condições
especiais para conter os trotskystas, mencheviques, SR, anarquistas e brancos.” “Isto
será feito, Camarada Stalin, será feito”, garantiu-lhe Kruglov.
Stalin estaria realmente pensando, em 1948, em trotskystas e mencheviques, ou
será que neotrotskystas e neomencheviques povoavam então seus pensamentos?
Fosse como fosse, Kruglov agiu prontamente e, em meados de fevereiro, submeteu
sua proposta de decreto estipulando o encarceramento de “trotskystas, terroristas,
mencheviques, SR, anarquistas, nacionalistas e brancos” em dezenas de novos
campos e prisões em Kolyma, Norilsk, na República Autônoma de Komi, Yelaburg,
Karaganda e em outros locais. Além do mais, “métodos chekistas” deveriam ser
empregados nos condenados a fim de desvendar inimigos semelhantes ainda à solta.
Períodos de isolamento e outras punições não deveriam ser reduzidos e, “quando
necessário”, a libertação de prisioneiros deveria ser adiada, em conformidade
retroativa com a lei.27
Como qualquer absoluto, a luta de classes, também um absoluto, era um
conceito destrutivo que pisoteava os melhores valores socialistas – justiça social,
humanismo, liberdade do indivíduo. O absolutismo stalinista era uma degeneração.
Trotsky estava certo quando previu que Stalin lideraria o terror reacionário. Da
mesma forma, o pensador russo Dmitri Merezhkovsky escreveu, em 1921:

Se a luta de classes é boa ou má, nobre ou desprezível, nós, seres viventes, que tomamos parte nessa luta, seja
como carrascos seja como vítimas, sabemos alguma coisa sobre ela de que Marx jamais teve conhecimento e
com que nenhum dos sábios da democracia social jamais sonhou. Para eles, a luta de classes não passa de
uma ideia em suas mentes, enquanto para nós significa sangue e ossos; derramamos nosso sangue e
quebramos nossos ossos em função dela.28

Stalin, de fato, fez tudo o que era possível para transformar a ideia da luta de classes
em força dominante na política, ideologia, cultura e na vida comum. Era como se
não pudesse descansar caso não ouvisse as convulsões das vítimas de tal ideia.
Depois da guerra, quando o mundo deu sensível virada para a esquerda, a impressão
foi a de que a história justificara Stalin. Muitos acharam que o arado de ferro do
socialismo ia começar de novo a revolver o solo. As pessoas não pensavam ainda
globalmente, tampouco estavam conscientes por completo da espada de Dâmocles
nuclear suspensa sobre suas cabeças.
Os primeiros discursos pós-guerra de Stalin foram sobre a recuperação da
economia, como sempre fazendo da indústria pesada a principal entre as
prioridades, e sobre a retomada da agricultura, cuja condição era extremamente
precária. A safra do primeiro ano depois da guerra foi ruim. A interrupção da
importação de grãos dos EUA, acoplada com a baixa produção da parte europeia do
país, criou uma situação crítica. A abolição dos cartões de racionamento foi adiada
até o outono de 1947. As safras também não tinham sido boas em 1943, mas,
naquela ocasião, os americanos abasteciam o front, ao passo que a população civil,
como sempre, aguentava estoicamente o sacrifício. Em abril de 1944, Beria mostrou
a Stalin um relatório de oito páginas sobre a situação em Chita, Cazaquistão. O
comissário do interior daquela república, Bogdanov, declarou que a má colheita de
1943 causara dificuldades sérias: milhares de pessoas estavam com os abdomens
inchados de fome e muitas morriam, particularmente os exilados políticos. O relato
de Bogdanov descreveu histórias de suicídios, de camponeses se alimentando de
animais mortos e lixo, comendo gatos e cães, e até mesmo de camponeses de uma
fazenda coletiva esquartejando um cavalo morto para dividir entre eles algo para
comer.29 Apesar disto, naquele ano, 1.300 quilos de cereais por hectare foram
coletados pelo estado. Nem o rádio nem a imprensa escrita mencionavam a fome, e
entre a pilha de documentos que consultei, não existe um só que indique qualquer
comentário de Stalin sobre atitude construtiva em relação às agruras enfrentadas
pelo país.
O secretário-geral, aparentemente, não mantinha um diário e era cuidadoso com
o que escrevia. Muitos documentos foram destruídos por ordens suas,30 como, por
exemplo, nas oportunidades em que relatórios foram feitos sobre a execução de
ordens que expediu à NKVD. Por outro lado, restaram muitos documentos no
arquivo pessoal de Stalin. Existe a cópia de um deles, datado de 1923 e intitulado
“Detalhes Biográficos de I.V. Stalin”, localizado no Comissariado das
Nacionalidades. Não há indicações sobre o autor e o objetivo do documento, mas
parece provável que foi preparado sob a orientação de Stalin.
A pasta oferece um relato minucioso dos “serviços revolucionários” de Stalin
antes da Revolução de Outubro de 1917:

Durante os dias de outubro, I.V. Stalin foi um de um grupo de cinco (um coletivo) cuja tarefa era
proporcionar liderança política ao levante. [...] Da mesma forma que seu trabalho pré-revolucionário, a obra
revolucionária atual de Stalin é de enorme importância. Distinguindo-se por sua incansável energia, mente
excepcional e privilegiada e determinação implacável, o Camarada Stalin é uma das molas principais,
despercebidas e realmente de aço da revolução, a qual, com sua força invencível, está transformando a
revolução russa num Outubro de âmbito mundial. Antigo seguidor de Lenin, ele absorveu melhor do que
ninguém os métodos e ideias do líder sobre a atividade prática.
Graças a isto, ele hoje secunda brilhantemente Lenin na esfera não só da atividade partidária como também
na construção do Estado.31

Seria muito improvável que um documento destes fosse escrito enquanto Lenin
vivia. Quem foi o autor? O que tem a ver “a mola realmente de aço da revolução”
com “detalhes biográficos”? Será que Stalin, percebendo que Lenin não voltaria a
empunhar o leme político, já se preparava em 1923 para assumir o poder?
A.A. Yepishev, que foi vice-ministro da segurança estatal, disseme que Stalin
mantinha um caderno de exercícios escolares, com capa de oleado preto, no qual
fazia anotações ocasionais e que, por determinado período de tempo, guardou cartas
de Zinoviev, Kamenev e mesmo de Trotsky. Fracassaram todos os esforços para
localizar quer o caderno de capa negra quer as cartas, e Yepishev não revelou sua
fonte. Somente Beria, Poskrebyshev e Vlasik tinham acesso direto a Stalin, e só eles
poderiam saber sobre tais anotações, mas os dois últimos foram implicados por
Beria pouco antes da morte de Stalin. Só Beria permaneceu ao lado do líder e,
quando os médicos foram finalmente chamados para atender Stalin, já em estado de
coma e depois de um intervalo de 12 a14 horas, o auxiliar percebeu que tudo
acabara também para ele. Deixando Khruschev, Malenkov e outros membros do
Politburo ao lado do moribundo Stalin na dacha, Beria correu para o Kremlin onde,
é bastante razoável que se suponha, esvaziou o cofre, removendo as anotações
pessoais do chefe e com elas, presume-se, o caderno de capa preta.
Beria deve ter notado que a atitude de Stalin em relação a ele esfriara
consideravelmente no último ano, ou nos últimos 18 meses. De sua parte, o
secretário-geral deve também ter percebido as intenções de Beria. Será que Stalin
deixou instruções ou uma espécie de última vontade que seu subserviente entourage
cumpriu ao pé da letra? Beria tinha razões para correr. Somente ele tinha permissão
para entrar no escritório de Stalin, e, é claro, os seguranças de Stalin estavam a
postos, porém, quando o cofre foi oficialmente aberto, descobriu-se que quase não
continha nada, apenas a carteira de filiação do líder ao partido e alguns documentos
insignificantes. Ao destruir o caderno de anotações de Stalin, se é que de fato estava
lá, Beria abriria o caminho para sua própria ascensão. Talvez a verdade nunca seja
conhecida, mas Yepishev estava convencido de que Beria limpou o cofre antes que
os outros chegassem.
Stalin tinha o hábito de arquivar documentos que lhe interessavam pessoalmente
como, por exemplo, o da última vontade de Hitler, no qual o Führer fala em dar
um fim à sua “vida terrena”, como se esperando chegar a um lugar melhor.32 Ou
uma carta endereçada a Stalin, de 27 de outubro de 1935, da classe de formandos
do Instituto dos Professores Vermelhos, queixando-se de que estavam sendo
despejados da hospedaria, enquanto “elementos hostis à classe, como a princesa
Bagration,* recebem permissão para permanecer”.33 Outro arquivo era referente à
dissolução da Sociedade dos Ex-Prisioneiros e Exilados. Ya. Peters e P. Pospelov
escreveram que a “Sociedade consiste primordialmente em SR e mencheviques com
estreitas conexões. De quarenta a cinquenta membros da Sociedade foram presos
depois da morte de Kirov”. Um de seus afiliados teria dito “que deveriam defender
os membros que tinham sido presos pelo regime soviético”.34 Quando Stalin viu o
relatório, o destino da Sociedade ficou decidido.
Existia uma carta de um amigo da filha de Stalin, A.Ya. Kapler, sentenciado a
dez anos de prisão, solicitando ser enviado para o front. Havia um bilhete de Beria
contendo informação dada pelo general iugoslavo Stefanovic sobre o filho de Stalin,
Yakov, com o qual partilhara o cativeiro por determinado tempo; um relatório de
Kruglov a respeito da transferência do Arquivo Russo de Relações Exteriores de
Praga;35 e muitas outras cartas mandadas a Stalin que mostram quão diligentes
foram os auxiliares, como Zhdanov e Suslov, no trabalho para a garantia de que o
povo em geral recebesse apenas o mínimo absoluto de informação sobre seu
governo.
Um dos mistérios indecifrados da história, e que provavelmente permanecerá
assim, é a morte da esposa de Stalin. Nenhuma das bem conhecidas explicações,
oficiais e oficiosas, convence de forma alguma. Em ligação com o fato, um dos
documentos do arquivo merece menção. Escrito em tinta carmim em diversas
páginas de um caderno de exercícios escolares e datado de 22 de outubro de 1935,
trata-se de um apelo a Kalinin por clemência para Alexandra Gavrilovna
Korchagina, prisioneira no campo de concentração de Solovki. Deduz-se do
documento que Korchagina, filiada ao partido, trabalhara por cinco anos na casa de
Stalin como empregada doméstica. Ela fora detida quando um prisioneiro de nome
Sinedobov, também ex-membro da equipe do Kremlin, testemunhou que ela havia
dito que Stalin atirara na esposa. Korchagina nega o fato em sua carta, de modo
bastante inconvincente, e cita a versão oficial, ou seja, que sua patroa morrera de
ataque do coração. Escreve que Burkov, Sinedobov (ambos sem iniciais), residentes
na casa juntamente com Korchagina, o guarda de segurança Ya.K. Glome e um
secretário da célula do partido, cujo nome não foi citado, todos se admiraram com o
fato de a causa da morte não ter sido mencionada pela imprensa. Parece que muitas
pessoas questionavam a explicação oficial de um mal súbito, especialmente, como
Korchagina escreve, porque Stalin acompanhou sua esposa de volta ao Kremlin
naquela noite. Essas conversas foram do conhecimento de Stalin e causaram algum
alarme, pois a decisão de afastar Korchagina deve ter sido tomada para silenciar
qualquer pessoa que pudesse saber alguma coisa.
Korchagina relata que o investigador, um tal de Kogan, a intimidou durante o
interrogatório, fazendo com que confessasse, após o que foi deportada sem
julgamento para Solovki. Anexado à carta está o julgamento, assinado por Lutsky,
funcionário da NKVD, especificando que Korchagina envolvera-se com “grupos
terroristas contrarrevolucionários na biblioteca do governo, na equipe de segurança
do Kremlin e noutros lugares”. Kalinin escreveu na pasta: “Recusado.”36
Outro mistério que persiste é o destino do filho mais velho de Stalin. Existe uma
variedade de evidências que sinalizam a organização de diversas tentativas para que
escapasse do cativeiro alemão, inclusive o depoimento de Dolores Ibarruri já citado.
Os alemães, no entanto, passaram a falar cada vez menos sobre Yakov e acabaram
silenciando por completo. Stalin, provavelmente, não estava inteiramente seguro
sobre a sorte do filho até que recebeu um relatório, datado de 5 de março de 1945 e
assinado por Beria, que dizia:

No final de janeiro deste ano, um grupo de oficiais iugoslavos foi libertado do campo de concentração
alemão pelo primeiro front bielorrusso. Entre eles estava o miliciano iugoslavo general Stefanovic, que fez o
seguinte relato:
“O primeiro-tenente Yakov Djugashvili e o capitão Robert Blum, filho do ex-primeiro-ministro francês,
dividiam uma cela no campo em Lübeck. Stefanovic esteve com Djugashvili várias vezes oferecendo ajuda
material, que foi declinada por ele ser independente e orgulhoso. Por recusar perfilar-se diante de oficiais
alemães, foi posto na solitária. Djugashvili disse que os boatos divulgados sobre ele pela imprensa germânica
eram falsos. Estava convicto da vitória soviética. Deu-me seu endereço em Moscou: Rua Granovsky, nº 3,
apartamento 84.”37
Quando os militares informaram a Stalin, logo depois da guerra, que o governo
tcheco desejava presentear a URSS com o Arquivo Russo de Relações Exteriores de
Praga, ele deu ordem para que o arquivo fosse recebido e os documentos
examinados. Em 3 de janeiro de 1946, Kruglov reportou que nove vagões repletos
de documentos haviam sido despachados para Moscou, inclusive os arquivos dos
governos de Denikin e Petliura da guerra civil, bem como documentos pessoais dos
generais Alexeyev e Brusilov e dos políticos Savinkov, Milyukov, Chernov e muitas
outras figuras pré-revolucionárias que deixaram a Rússia durante ou logo depois da
guerra civil.38 O trabalho de revisão de todo este material foi levado a efeito por
especialistas da Academia de Ciências, entre os quais estavam I. Nikitinsky, S.
Bogoyavlensky, I. Mints e S. Sutotsky, mas eles estavam sob controle de
funcionários dos altos escalões da NKVD, que também se reportavam diretamente a
Stalin, e que seriam responsáveis pelo futuro dos arquivos. Alguns documentos
permaneceram por longo tempo nos armários e cofres de Stalin.
Entre estes havia um manuscrito de A.A. Brusilov, ex-general do Exército
czarista que ficara famoso na Primeira Guerra Mundial por sua penetração no front
sudoeste. Ele servira no Exército Vermelho em 1920 como um inspetor de cavalaria
e, em 1924, fora comissionado para serviço ativo especial. O manuscrito, intitulado
“Minhas reminiscências”, foi escrito enquanto Brusilov era submetido a tratamento
médico em Carlsbad, em 1925, e ele faleceu no ano seguinte. Num bilhete apenso
ao manuscrito, escreveu:

Todos entenderão que eu não podia escrever coisa alguma na URSS. Deixo estas anotações aos cuidados de
amigos no exterior e peço-lhes que não as publiquem antes de minha morte. Se as pessoas da Europa
quiserem salvar seu modo de vida, a família, suas pátrias amadas, deixem que conheçam meus erros e não os
repitam. Nossos partidos políticos discutiram e lutaram até que destruíram a Rússia!39

Stalin tinha que saber sobre tudo. Até os formulários recebidos de volta a respeito
do censo de 1930, exibindo os nomes das famílias dos funcionários mais
categorizados, tinham que lhe ser mostrados. Só ele sabia por que ticou certos
nomes com fortes sinais em vermelho:

Beria, Nina Teimuradovna; georgiana, cientista, filho Sergei de 14 anos. Kaganovich, Maria Markovna; filha
Maya e filho Yuri.Voroshilova, Yekaterina Davidovna. Zhemchuzhina, Polina Semenovna; e as filhas
Svetlana Vyacheslavovna, Rita Aronovna Zhemchuzhina. Andreyeva – Dora Moiseyevna Khazan; filha
Natalya Andreyevna.
Vendo tramas e inimigos potenciais por todos os lados, Stalin assegurou-se de que
havia sempre “munição” em seu arsenal para repelir qualquer ataque. Durante toda
a vida esperou por um atentado contra sua existência, o que jamais aconteceu.
Perfeitamente ciente do medo patológico do chefe, seu círculo mais íntimo também
se mostrou patologicamente receoso de despertar qualquer suspeita.
Nota

* A família Bragation era da nobreza georgiana. A esposa do grão-duque Vladimir Kirillovich, um dos
pretendentes ao trono imperial russo, é uma princesa Bragation que deixou a URSS em 1935.
[52]
Um acesso de violência

B em antes do septuagésimo aniversário de Stalin, em 1949, Malenkov


instigou o Politburo a considerar uma longa lista de medidas tendentes a
marcá-lo com uma celebração notável. Não seria apenas a oportunidade
para a perpetuação do líder com novos monumentos ou com seu nome em mais
fábricas e construções, mas também para relatórios de todos os setores.
Por esses relatórios, Stalin ficou sabendo que quase todas as fábricas destruídas
estavam reconstruídas e centenas de novas instaladas. A economia progredia em
ritmo acelerado. Caracteristicamente, Stalin havia exigido cada vez maiores esforços
na indústria, para a qual foi alocada grande parte dos investimentos financeiros e da
qual se esperava substancial produção, embora não de melhor qualidade. Nem a
agricultura nem os bens de consumo tinham prioridade, na avaliação de Stalin. A
agricultura, portanto, declinou. Não foram oferecidos incentivos aos granjeiros
coletivos, mas eles eram forçados a pagar taxas crescentes em espécie ou em dinheiro
por qualquer coisa viva que existisse na coletividade, inclusive árvores frutíferas; a
área de cultivo particular foi reduzida. Os camponeses constituíam um grupo sem
direitos, sem possibilidade de protesto ou de mudar o que quer que fosse. Toda a
safra era simbólica ou ridiculamente paga. Os jovens passaram a encontrar desculpas
para abandonar o campo, apinhando as escolas técnicas e constituindo mão de obra
barata para a construção civil e o trabalho nas madeireiras. As fazendas coletivas não
decidiam nada por si mesmas, tudo era resolvido pelas autoridades, do tempo da
colheita até a eleição do novo presidente da fazenda.
Durante o ano de seu septuagésimo aniversário, por outro lado, Stalin tomou
uma providência que ainda é popular entre os mais idosos que dela se lembram.
Reduziu os preços de uma lista de bens de consumo: 10% em pão, farinha de trigo,
carne e derivados e lã; 28% na vodka; 20% nos artigos de toucador e nas bicicletas;
25% nos aparelhos de televisão; e 30% nos relógios de pulso e de mesa. Os preços
nos restaurantes, nas casas de chá e noutros locais públicos de alimentação foram
reduzidos correspondentemente.40
O padrão de vida era baixo. Os órgãos de segurança reportavam que em diversas
regiões, notavelmente no leste, a fome voltara a se propagar e as pessoas andavam
pobremente vestidas. Na opinião de Stalin, todavia, dar ao povo algo mais que o
mínimo necessário significava corrompê-lo. Não que fosse possível dar mais alguma
coisa ao povo, já que a defesa precisava ser reforçada e a indústria pesada fortalecida.
O país tinha que ser forte, e para isso o povo precisava apertar o cinto. A população
deveria esperar que o padrão de vida caísse ano após ano, e foi o que aconteceu. De
acordo com alguns indicadores, no início dos anos 1950, mal se comparava com o
nível de 1913 e, mesmo que esta não seja uma avaliação acurada, não diminui a
crença em que os infindáveis experimentos conduzidos pelo regime resultaram em
pouquíssima coisa para o povo.
Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que o nível cultural da população cresceu,
que as relações de amizade com outros países foram aprimoradas e que foi garantido
às pessoas um certo grau de seguridade social, com pensões, férias remuneradas,
manutenção para as famílias dos mortos na guerra e para as mães com grandes
proles. Tudo isto, entretanto, estava em nível do mínimo absoluto, espelhando a
pobreza generalizada do país. O estabelecimento de uma linha de ação que
privilegiava o desenvolvimento da indústria em detrimento da agricultura sinalizou,
na realidade, uma perspectiva tenebrosa.
Por vezes, argumenta-se que, pelo menos, tínhamos ordem, disciplina, respeito à
lei, enquanto agora só nos restam a prostituição e as drogas, como se estes e outros
males não existissem ao tempo de Stalin. A diferença é que, naqueles dias, todos
esses fatos eram escondidos como estatísticas ultrassecretas de criminalidade. A
delinquência imperava. O treinamento de operários era considerado uma grande
conquista, mas Kruglov reportou que, em 1946, a polícia de segurança prendeu
10.563 alunos que fugiram das escolas de treinamento fabril, bem como das escolas
técnicas e ferroviárias: “Muitos crimes foram cometidos, inclusive roubos,
gangsterismo. As condições das escolas são insatisfatórias, em geral são frias e com
instalações sanitárias deficientes, e muitas não têm luz elétrica.”41
A disciplina do tipo militar e a coerção mais tendiam a causar que erradicar a
criminalidade, e não era da natureza de Stalin acreditar que o respeito à lei, as
relações civilizadas e os princípios democráticos ajudassem a combater o crime. O
poder absoluto de uma só pessoa e a falta de liberdade de muitas, o reforço da
burocracia e a falta vital da ação civil, a imposição da unidade de pensamento e a
necessidade natural do raciocínio criativo – todas estas contradições, fomentadas
pelo mando autocrático de Stalin, lançaram as fundações de crises futuras.
Pretendesse ou não, entendesse ou não as consequências provocadas, Stalin aplicou
persistentemente a alavancagem ideológica, em vez da econômica. Como antes,
confiava então na “competição socialista”, enquanto congelava o espírito criativo e
apelava cada vez mais para métodos experimentados e testados de ameaças e
instruções impositivas.
Todos os seus “triunfos” foram associados à violência. Mesmo os programas
socioeconômicos foram executados sob condições de “guerra civil”, até os de escala
local. Não causou surpresa o fato de que o ápice do culto stalinista, ocorrido
durante o transcurso de seu septuagésimo aniversário, coincidisse com o chamado
“caso de Leningrado”.
Um decreto de 1946 dirigido contra as revistas literárias Zvezda e Leningrad da
antiga capital foi expedido pelo próprio Stalin. Como resultado, uma série de filmes
e peças populares entrou na lista negra e repertórios teatrais foram condenados.
Stalin sentiu que, no campo da arte e da literatura, tentava-se, ainda que de forma
incipiente, ultrapassar certos limites estabelecidos pelo partido, isto é, por ele
mesmo. Aquilo representava uma ameaça à uniformidade de pensamento e, em
consequência, ao mando de uma só pessoa. O mundo intelectual do secretário-geral
baseava-se em postulados rígidos para os quais a liberdade de pensamento constituía
risco intolerável. As matérias do escritor satírico Mikhail Zoshchenko e da poetisa
Anna Akhmatova para as revistas foram atacadas, e os dois expulsos do sindicato dos
escritores. Foi o sinal para o início de um expurgo ideológico. Recém-recuperada do
sofrimento desumano que experimentou durante a guerra, Leningrado era então
estigmatizada como uma cidade herética. Stalin mostrava ao país que, se não havia
afrouxamento nem para a heroica cidade de Lenin, o restante podia esperar bem
menos.
Os arquivos de Zhdanov contêm uma longa carta, datada de 4 de setembro de
1947, da esposa de Zoshchenko, Vera, onde ela solicita a Poskrebyshev que a
repasse a Stalin, “e se for muito cansativo para ele, transmita-lhe, por favor, o
conteúdo”. A carta tem trechos com a deferência estatutária comum àqueles tempos,
hoje difíceis de tragar: “A maior alegria de minha vida tem sido pensar que você
existe neste mundo e meu maior desejo é que continue vivendo pelo tempo máximo
possível.” Continua ela:

Fiquei literalmente arrasada com o decreto do Comitê Central sobre as revistas Zvezda e Leningrad. [...]
Como pôde isto acontecer, quando todos gostavam tanto de Zoshchenko? Gorky, Tikhonov, [Marietta]
Shaginyan, A.A. Kuznetsov, Maisky, todos eles diziam que o amavam. Nunca houve a questão de ele
abandonar Leningrado [...] Trabalhava num livro sobre partisans ao longo de todo o verão de 44. Não há
vestígio de injúria ou malevolência em seus livros.

Enquanto defendia o marido das acusações contra ele, a corajosa mulher, em


desespero, revelou que Zoshchenko era:

Altamente neurótico [...] e tem estranhas obsessões. Temia por demais enlouquecer, como Gogol. Começou
um tratamento pela autoanálise e teve certo sucesso. Sua doença provocou nele o sentimento da sátira, e aí
está o problema. Mas ele é incapaz de se submeter à vontade dos outros, não consegue agir sob as ordens de
ninguém.42

Evidentemente, Stalin leu a carta, pois ela exibe suas marcas em lápis vermelho, e
deve ter percebido que a esposa não era a única pessoa que rejeitava sua opinião
sobre Zoshchenko. Contudo, surpreendentemente, afora a expulsão do sindicato
dos escritores – punição severa em si mesma, de vez que o sindicato proporcionava o
acesso de um escritor à publicação, ou seja, ao seu ganha-pão – Stalin não foi além
do terror psicológico sobre Zoshchenko e sua família.
Dois anos depois do lançamento da campanha ideológica em Leningrado, Stalin
deu-lhe continuidade com um violento ataque político e punitivo, que muitos viram
como primeiro ato da reencenação da repressão em massa dos anos 1930. Em
meados de fevereiro de 1949, Malenkov foi instruído por Stalin e enviado a
Leningrado. O pretexto da missão foi uma alegada inadequação de procedimentos
durante a conferência do partido na cidade. Acontecera uma situação típica: a
despeito de terem recebido votos contrários, alguns líderes partidários provinciais,
como P.S. Popkov, G.F. Badaev, Ya.F. Kapustin e P.G. Lazutin, foram declarados
eleitos por unanimidade pelo presidente da conferência A.Ya. Tikhonov. Um dos
membros do comitê eleitoral, por causa disto, escreveu uma carta anônima ao
Comitê Central, motivando uma ríspida resposta de Stalin, ele mesmo um mestre
do passado na manipulação de eleições, como ocorreu, por exemplo, em 1934, no
XVII Congresso do partido. Disse a Malenkov que “têm sido muitos os sinais de
perigo a respeito da liderança de Leningrado para que não reajamos”. Malenkov
deveria “ir para lá e dar uma boa olhada no que se passava. O Camarada Beria tem
mais informações”. Malenkov tomou o trem naquela mesma noite.
Os “sinais” partidos de Leningrado alegavam que, com a conivência do secretário
do Comitê Central, A.A. Kuznetsov, o chefe do partido local não estava levando em
conta as autoridades centrais do partido. O principal fato era que, em janeiro de
1948, fora organizado um mercado por atacado em Leningrado sem a permissão do
centro. Numa sessão conjunta do birô regional do partido e do comitê partidário da
cidade, Malenkov, pupilo diligente de Stalin que era, enumerou um “erro” atrás do
outro numa fieira de acusações. A plateia ouvia em silêncio depressivo, enquanto
Malenkov, crescentemente inflamado, disparava incriminações. Descreveu o
mercado por atacado como iniciativa antipartidária, inspirada por um grupo em
oposição à organização local do Comitê Central. O pior estava por vir. Seguindo a
linha estabelecida em Moscou, Malenkov citou declarações infelizes de P.S. Popkov,
um líder local, dizendo que elas representavam a tentativa de criar um Partido
Comunista da Rússia com objetivos de longo alcance. Todos no salão perceberam
que o discurso de Malenkov era indicação de maus augúrios.
Contudo, eles não sabiam que seu ex-secretário Kuznetsov, recentemente
promovido a secretário do Comitê Central, já fora destituído da função havia uma
semana. Naturalmente, toda a liderança local perdeu os cargos depois do
pronunciamento de Malenkov, mas aquilo foi só o começo. Um “caso” foi
rapidamente fabricado contra cada funcionário suspeito, e efetuadas prisões.
“Espiões” foram identificados, por exemplo Kapustin, bem como “degenerados”,
como Popkov, e “inspiradores de linha antipartidária”, como Kuznetsov.
Em março de 1949, N.A. Voznesensky, outro comunista de Leningrado, foi
afastado do Politburo. Organizador fundamental da economia de tempo de guerra,
acadêmico, sem papas na língua e homem de caráter impoluto, Voznesensky passara
a ser considerado muito perigoso para Stalin e, com a ajuda de Beria, um processo
gigantesco e totalmente sem fundamento foi engendrado contra ele por Kruglov,
Abakumov e Goglidze. Foram procedidos interrogatórios com o único propósito de
arrancar uma confissão de atividade antipartidária e antiestado. Depois de lançar a
enorme provocação, Malenkov podia esfregar as mãos satisfeito: a vontade de Stalin
fora concretizada, ele fizera um trabalho completo. Tal como seu amigo íntimo
Beria, Malenkov não gostava de Voznesensky e de Kuznetsov. Estava em curso a
caça às bruxas e todos esperaram o pior, especialmente quando ex-funcionários de
Leningrado começaram a ser apanhados em outras repúblicas, para onde haviam
sido transferidos a fim de desempenharem diversas funções.
Por que Stalin desencadeou esta ação criminosa? Por que na véspera de seu
septuagésimo aniversário? Por que dava seguimento à campanha ideológica de
agosto de 1946 com outra mais aterradora e punitiva, dois anos e meio mais tarde?
Só ele sabia a resposta correta para tais perguntas, porém, com base em documentos,
podemos deduzir o seguinte.
Stalin não tolerava o pensamento livre e independente. Voznesensky e Kuznetsov
o haviam glorificado, tanto verbalmente como por escrito, mas o fato de se
mostrarem mais independentes que os outros deixava Stalin em guarda contra eles.
Por algum tempo, ignorou as calúnias levantadas por Malenkov e Beria e, na
verdade, fez até referências públicas elogiosas aos dois leningradenses, e é mesmo
possível que eles tenham se considerado prováveis sucessores, em vista da avançada
idade do líder. Mas isto não era aceito pelos membros da camarilha stalinista de
Moscou. Em sucessivos relatórios secretos a Stalin, realçaram que, antes da guerra,
Voznesensky não descobrira um só “inimigo” no Gosplan e talvez os tivesse
protegido, enquanto Beria queixava-se de que, na ocasião em que ficara encarregado
das indústrias química e metalúrgica como presidente do Gosplan, Voznesensky
rebaixara patentemente as normas de produção daqueles setores, ao passo que ele,
Beria, elevara as da indústria madeireira.
Na ocasião, Stalin não deu atenção a tudo aquilo. No entanto, não ficou
satisfeito com o discurso que Voznesensky fez no Politburo, apresentando uma série
de argumentos convincentes contra a imposição de novas taxas sobre os fazendeiros
coletivos. Não lhe agradou também o fato de Kuznetsov, responsável pelos quadros
do Comitê Central, ter expressado sua intenção de exercer controle mais cerrado
sobre o comissariado das Questões Internas e Segurança Estatal. Chegou igualmente
ao conhecimento de Stalin que Kuznetsov dissera que a investigação sobre o caso
Kirov não revelara os verdadeiros inspiradores do crime.
Para Stalin, os principais atributos de qualquer funcionário, não importasse quão
valioso ou essencial, eram a confiança que infundiam e a lealdade a ele. Já então,
não só duvidava dos obstinados leningradenses, mas os via como potenciais
inimigos. De acordo com S.I. Semin, que era gerente departamental no Gosplan,
Voznesensky empenhou extraordinária energia e cuidadosa preparação no
planejamento da economia nacional. Malgrado o caráter severamente administrativo
do sistema econômico, Voznesensky procurara sempre que possível levar os
trabalhadores para o processo de planejamento e administração, como também
estabelecer objetivos para cada empreitada. Jamais gozara de dispensas ou férias. Até
então, fora provavelmente o maior economista da liderança soviética depois de
Bukharin.
Embora, antes de sua prisão, Voznesensky e outros leningradenses tivessem
enviado uma nota a Stalin declarando total inocência, o líder não hesitou. De início,
é verdade, desejou transferir Voznesensky para a chefia do Instituto Marx-Engels-
Lenin, mas depois mudou de ideia, decidindo, em vez disto, deixar que todo o
grupo de Leningrado experimentasse junto a taça de fel. O julgamento, que teve
lugar em setembro de 1950 na Casa dos Oficiais, no Bulevar Liteiny, em
Leningrado, foi conduzido de acordo com as ordens de Stalin. Quase duzentas
pessoas foram implicadas, inclusive N.A. Voznesensky, A.A. Kuznetsov, P.S.
Popkov, Ya.F. Kapustin, M.I. Rodionov, todos os quais foram mortos, sorte pouco
depois partilhada por G.F. Badaev, I.S. Kharitonov, P.I. Kabatkin, P.I. Levin, M.V.
Basov, A.D. Verbitsky, N.V. Solovyov, A.I. Burlin, V.I. Ivanov, M.N. Nikitin, V.P.
Galkin, M.I. Safonov, P.A. Chursin e A.T. Bondarenko.43
O tribunal não ouviu declarações de arrependimento de Voznesensky ou
Kuznetsov, tendo o último declarado: “Fui um bolchevique e continuarei sendo;
qualquer que seja a sentença que eu receba, a história nos inocentará.” Em abril de
1954, a Corte Suprema da URSS, sob A.A. Volin, invalidou o processo, citando a
seguinte prova de setembro de 1950:

Os acusados se declararam culpados quanto à formação de um grupo antissoviético em 1938, executando


atividade diversionária no partido com o objetivo de minar a organização do Comitê Central em Leningrado
e transformando-o em base de operações contra o partido e seu Comitê Central. [...] Com este propósito,
tentaram instigar o descontentamento local em relação às medidas do Comitê Central, difundiram alegações
caluniosas e se envolveram em tramas traiçoeiras [...] Eles também venderam propriedades estatais [...] Como
os documentos demonstram, todos os acusados fizeram confissões completas quanto a tais acusações, na
investigação preliminar e na corte.44

O meio pelo qual tais confissões foram extraídas foi revelado, em 29 de janeiro de
1954, por Turko, enquanto ainda cumpria a pena:

Não cometi crimes nem me considerei culpado, tampouco o faço agora. Produzi meu depoimento depois de
ser sistematicamente espancado por negar minha culpa. O investigador Putintsev começou o espancamento
no interrogatório [...] Batia-me na cabeça, no rosto e nas pernas. De certa feita, atingiu-me com tal força que
o sangue saiu-me pelos ouvidos. Depois das surras, ele me enviou para o confinamento solitário, ameaçou
matar minha esposa e filhos e disse que me daria vinte anos se não confessasse. Como resultado, assinei
qualquer coisa que quisessem.45

Neste acesso de violência, Stalin se livrou de três bolcheviques com vínculos


familiares: os irmãos de Voznesensky, Nikolai, membro do Politburo, e Alexander,
reitor da universidade de Leningrado, e a irmã deles, Maria, trabalhadora do
partido. O absurdo gritante do caso foi revelado pelo fato de Maria ter sido acusada
de partilhar as opiniões da Oposição dos Trabalhadores nos anos 1920. Seja
também ressaltado que as razões para a reabilitação de 1954 foram igualmente
ridículas, a saber, que “não há prova de que Voznesenskaya partilhou as opiniões da
Oposição dos Trabalhadores”.46 E se tivesse partilhado? Tal era a justiça stalinista.
Todos foram fuzilados em Leningrado, exceto Nikolai Voznesensky, o qual,
segundo Semin, deve ter sido mantido na prisão por mais três meses depois da
sentença. Então, em dezembro, por ordem de alguém, foi levado de caminhão a
Moscou trajando roupas leves. Ou morreu de frio no caminho, ou foi executado.
O massacre de Leningrado foi seguido por ondas de mais violência não só contra
os que conheciam os condenados, mas também contra o pessoal de segurança. O
hábito da coerção e da agressão estava profundamente arraigado em Stalin, o qual se
sentia encorajado devido à passividade dos sentenciados e à timidez do partido e da
população. O espasmo de violência que acompanhou a escalada de sua glória pessoal
não é facilmente explicável. O país cicatrizara rapidamente suas feridas de guerra. A
situação interna parecia segura. Ninguém fazia discursos oposicionistas. A
solidariedade nacional em torno da liderança política, personificada por Stalin, era
real. As relações internacionais se mostravam estáveis. A influência ideológica do
partido não conhecia divisão. Ainda assim, com tudo isto, Stalin recorreu de novo à
violência e à coação, voltando então seus olhos para determinada região, não para
um grupo social ou agência específicos. Tendo permanecido no pináculo do poder
por um quarto de século graças à coação, ele não podia mais passar sem ela. Só isto
pode explicar a atenção que passou a emprestar aos órgãos de segurança e ao
comissariado das Questões Internas.
Beria, Kruglov, Serov, Abakumov e outros funcionários destas agências
reportavam regularmente a Stalin sobre a situação no Gulag,* o qual, além de sua
função punitiva e de isolamento, era também fonte de mão de obra barata. Certa
ocasião, Malenkov conseguiu persuadir Stalin a realizar um ato “humanitário”.
Mostrou ao chefe um relatório do diretor do Gulag, Dobrynin, onde constava que,
em 1949, existiam 503.375 mulheres em campos e colônias de exílio. Malenkov
sugeriu que ele considerasse a libertação das mulheres com filhos com menos de sete
anos de idade, uma vez que o custo da manutenção de crianças nos campos estava
em torno de 166 milhões de rublos por ano. Depois de meticuloso escrutínio dos
números, Stalin concordou, e foi além, decretando que aquelas mães deveriam, dali
por diante, ser empregadas em trabalhos forçados em suas cidades natais. No
entanto, qualquer mulher que tivesse sido sentenciada por atividade
contrarrevolucionária deveria ser excluída da categoria.47
Em setembro de 1951, uma delegação de mulheres inglesas – uma ocorrência
bastante rara naqueles dias – solicitou permissão para visitar um campo de mulheres.
Os anfitriões, naturalmente, ficaram confusos. Recorreram a um departamento do
Ministério das Questões Internas, que, é claro, não pôde ajudar. Apelaram então ao
vice-ministro da Segurança Estatal, Serov, mas também lhe faltou autoridade para
tanto. Contataram Kruglov, com os mesmos resultados. Finalmente, chegaram a
Suslov, o qual, por sua vez, foi a Malenkov e apenas ele, sendo membro do
Politburo, e depois de consultar Stalin, foi capaz de carimbar sua aprovação da
solicitação. O campo, evidentemente, foi preparado com esmero, limpo e arrumado,
e a cada um foi dito o que deveria fazer. Os 70% das habitantes do campo que
estavam em piores condições foram enviados para trabalho externo, enquanto as
internas observadas pelas mulheres inglesas eram, em sua maioria, cidadãs comuns
que lá estavam temporariamente, e não internas típicas. A delegação chegou a deixar
um comentário escrito num livro de visitantes rapidamente providenciado:
“Ficamos muito impressionadas com a franqueza com que as pessoas se dirigiram a
nós. Tudo é muito limpo. Consideramos que se trata de uma experiência valiosa e
que será bem-sucedida.”48
De todas as instituições estatais, Stalin devotou a maior parte de seu tempo e de
sua atenção aos órgãos punitivos que estavam, efetivamente, fora do controle do
estado e sob sua supervisão pessoal. Só durante a guerra, talvez, ele dedicou mais
tempo ao exército que à NKVD e, durante todo o tempo a partir do final dos anos
1930, consagrou mais atenção à NKVD que aos órgãos do partido.
Qual foi o custo do regime stalinista? Quantas vítimas ele fez? Quantas pessoas
pereceram pela vontade do tirano e por sua máquina do terror? Duvido que um dia
saibamos a quantidade exata. Os números mais completos talvez sejam os
proporcionados pela comissão para estudos ulteriores de dados referentes às
repressões dos anos 1930, 1940 e 1950, criada pela Corte Suprema da URSS.
Diversas estimativas já foram feitas por especialistas. Meus próprios cálculos
provisórios decorrem do que garimpei nos arquivos. Custo da coletivização de
1929-33: de 8,5 a 9 milhões de vidas de camponeses. Entre 1937-38, o número de
cidadãos presos esteve entre 4,5 e 5,5 milhões. De permeio com estas duas grandes
ondas, entretanto, a NKVD não ficou ociosa, e cerca de mais um milhão de pessoas
foram presas. Depois da guerra, em particular no final dos anos 1940, o número de
campos foi acentuadamente aumentado, simultaneamente com a quantidade de
prisioneiros e deportados que atingiu de 5,5 a 6,5 milhões. É possível argumentar
corretamente que tais números abarcam os criminosos comuns, porém, segundo os
próprios dados de Beria, até a morte de Stalin, entre 25 e 30% das pessoas
sentenciadas por “atividade contrarrevolucionária” estavam nos campos.49 Assim,
entre 1929 e 1953, pode-se dizer que as vítimas de Stalin totalizaram de 19,52 a 22
milhões, e esta quantidade, é evidente, não inclui as baixas de guerra. Deste total,
não menos que um terço foi sentenciado à morte ou pereceu nos campos ou no
exílio. Admito a possibilidade de meus números serem considerados conservadores,
mas se baseiam no que descobri, e sou o primeiro a concordar que existe muita coisa
que não fui capaz de apurar.
Depois da guerra, o sistema social e político não foi meramente preservado,
adquiriu diversos novos e sinistros aspectos de um caráter burocrático e policial.
Stalin foi capaz de combinar o incombinável, mantendo, por todos os meios
possíveis, o entusiasmo e o zelo do povo soviético pela crença de que a terra da
promissão estava logo ali, atrás da linha do horizonte, enquanto, ao mesmo tempo,
ameaçava seus concidadãos com o terror individual e de massa. E, mesmo assim, o
povo o adorava. Vale a pena citar que Voznesensky, pouco antes de ser preso,
escreveu o último capítulo de seu livro A economia política do comunismo no qual,
até ele, um dos mais sofisticados homens da liderança, conseguiu afirmar que,
liderada por Stalin, a sociedade se aproximava de um futuro brilhante.
Ironicamente, Voznesensky foi acusado, entre outras coisas, de “compilar e publicar
obras politicamente perniciosas”.50
Nota

* Sigla em russo da Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey, repartição central dos campos de
trabalho corretivo. [N.T.]
[53]
O líder envelhece

A proximava-se o septuagésimo aniversário de Stalin. Ele sabia que, do


Politburo para baixo, todos tomavam providências frenéticas. Chamou
Malenkov e disse: “Nem pense em me outorgar outra Estrela!”
“Mas, Camarada Stalin”, protestou Malenkov, “num jubileu como este, o povo
não entenderia...”
“Deixe o povo fora disto. Não tenho intenção de discutir o assunto. Não insista!
Entendeu?”
“É claro, Camarada Stalin, só que os membros do Politburo...”
Stalin o interrompeu, deixando claro que a questão estava encerrada e
determinou, em vez disso, que ele lhe mostrasse o cenário da celebração que teria
lugar no Teatro Bolshoi.
A menção à “Estrela” não foi acidental. Depois do Desfile da Vitória e da
recepção aos comandantes de front, em junho de 1945, um grupo de marechais
sugeriu que deveriam assinalar a “extraordinária contribuição do líder” conferindo-
lhe a mais alta distinção do país, a de Herói da União Soviética. Referiram-se ao fato
de que, por ocasião de seu sexagésimo aniversário, Stalin fora agraciado com o título
de Herói do Trabalho Socialista, e que, durante a guerra, recebera três
condecorações, a Ordem da Vitória nº 3 – as de nº 1 e nº 2 tinham sido para
Zhukov e Tolbukhin –, a Suvorov de 1ª Classe e a Bandeira Vermelha, que lhe
foram conferidas “por serviço no Exército Vermelho”.
Durante o dia seguinte e metade do outro, Molotov e Malenkov haviam
debatido a matéria com seus colegas e, em 26 de junho, dois decretos foram
expedidos pelo Soviete Supremo ordenando que o título de Herói da União
Soviética e uma segunda Ordem da Vitória fossem conferidos ao Marechal da
União Soviética I.V. Stalin. No mesmo dia, o título de Generalíssimo da União
Soviética foi criado e, no dia 27, outorgado a Stalin. Aquela foi, provavelmente, a
única ocasião em que desobedeceram a seu chefe. Como de hábito antes do café,
naquela manhã Stalin abriu seu exemplar do Pravda e ficou enfurecido. Não fora
consultado! Nada lhe perguntaram! Tão logo chegou ao Kremlin, convocou
Molotov, Malenkov, Beria, Kalinin e Zhdanov e passou-lhes uma descompostura.
Kalinin, cuja repartição era nominalmente responsável, e Malenkov, que fracassou
em conter o impulso de lealdade dos camaradas, foram os que ficaram mais
nervosos. Beria e Zhdanov sabiam que a raiva do chefe era falsa.
Stalin fora alçado a glória tão elevada que as condecorações destinadas aos
mortais comuns, ávidos por recebê-las, nada significavam para ele, ou melhor, o
colocavam no mesmo nível dos outros. Detentor do poder supremo, o líder que se
cobrisse de medalhas e ordens só se desvalorizaria.
Beria, que sabia melhor que os outros o que seu mestre gostava de ouvir, no seu
artigo “O grande inspirador e organizador das vitórias comunistas” escreveu: “Nosso
líder genial combina simplicidade, modéstia, excepcional atração pessoal,
implacabilidade para com os inimigos do comunismo, sensibilidade e preocupação
paternal com o povo. Ele demonstra extrema e inerente clareza de pensamento,
calma grandeza de caráter, desprezo e impaciência com qualquer espécie de
espalhafato ou efeitos exteriores.”51 O desditoso e ingênuo Kalinin, que jamais
levantara objeção a qualquer coisa ou a qualquer pessoa, pensara que simplesmente
cumpria sua obrigação ritualística sem perceber que medalhas que outros receberiam
não deviam ser conferidas a Stalin.
“Digam o que quiserem”, disse Stalin conclusivamente, “não aceitarei a
condecoração. Ouviram-me, não aceitarei!”
Os camaradas tentaram mais umas duas ou três vezes convencê-lo, recrutando
até Poskrebyshev e Vlasik para sua causa. Mas em vão. Então, certa noite, na dacha,
cerca de cinco anos mais tarde, Stalin de repente começou a falar sobre suas antigas
condecorações, notavelmente sobre as duas estrelas de Herói e as duas Ordens da
Vitória que ainda apareciam em seus retratos e fotografias. Finalmente, na véspera
das celebrações do 1º de Maio de 1950, Shvernik conseguiu entregar-lhe as
medalhas que lhe foram concedidas em 1945, mais a Ordem de Lenin pelo seu
septuagésimo aniversário de 1949.
“Vocês estão envaidecendo demais um homem idoso”, murmurou Stalin. “Isto
não fará nada bem à minha saúde.”
Por trás destas palavras, estava um novo temor que o assaltara na véspera dos
seus setenta anos. Preparava-se certa noite para se dirigir à dacha quando, ao
levantar-se para vestir o sobretudo, sentiu uma tontura. Círculos cor de laranja
dançaram diante de seus olhos, mas ele se recuperou rapidamente. Poskrebyshev
agarrou-o firmemente pelo braço com ambas as mãos e pediu assustado: “Deixe-me
chamar os médicos, Camarada Stalin. O senhor não deve sair de imediato. Precisa
de um médico.” Stalin disse-lhe para parar com o alvoroço.
A tontura logo passou. Stalin esperou um pouco e tomou uns goles de chá.
Sentiu uma pressão na nuca, porém não autorizou a convocação dos médicos. Na
realidade, não confiava neles, e muito menos em Beria, que era o responsável pela 4ª
Repartição Principal do Ministério da Saúde. Não queria que se espalhassem
rumores de que não se sentira bem. Em breve, estaria na dacha onde beberia uma
infusão que Poskrebyshev lhe recomendara havia muito tempo. Ela sempre ajudara,
e funcionaria de novo.
O Politburo resolveu celebrar o aniversário de Stalin com estardalhaço. Shvernik
ficou encarregado das festividades. Cedo recebeu um memorando assinado por P.
Ponomarenko, V. Abakumov, N. Parfenov, A. Gromyko e V. Grigoryan fixando o
custo das celebrações em torno de 6,5 milhões de rublos. Shvernik, no final, assinou
um pedido de 5.623.255 rublos para os gastos com recepção e serviços para as
delegações e para organizar uma exibição dos presentes de aniversário de Stalin.52
Os organizadores prepararam também uma surpresa sob a forma do Prêmio
Stalin, cujo custo foi calculado em 7 rublos e 64 copeques por medalha, enquanto a
quantidade total de metal para um milhão de medalhas foi estimada em 24
toneladas de bronze e 6 toneladas de níquel. Haveria também um Prêmio Stalin da
Paz Internacional.53 Treze versões da medalha foram submetidas à aprovação de
Stalin pelos artistas N.I. Moskalenko, A.I. Kuznetsov e I.I. Dubasov.54 Tudo estava
pronto para a entrega dessa prestigiosíssima condecoração quando, no último
minuto, Stalin fincou pé, a despeito de ter dado sua aprovação inicial à ideia.
Tendo examinado todos os projetos e lido todas as minutas de decretos
(enquanto seus camaradas em armas esperavam ser os primeiros a receber o novo
prêmio), Stalin subitamente declarou: “Só aprovarei o decreto do prêmio
internacional.” Depois de uma pausa, acrescentou: “E ordens deste tipo só devem
ser concedidas postumamente.” De imediato, começou um burburinho, mas Stalin
levantou a mão e calmamente disse ao grupo: “Há hora para tudo.” Talvez pensasse
que, como todo o país estava coberto de imagens suas, de grandes documentos a
nomes de cidades e vilas, alguma coisa deveria ser deixada para quando morresse, e o
que melhor do que um prêmio com seu nome?
No grande dia, o líder levantou-se na hora normal, 11 da manhã, sentindo-se
bem. O episódio do dia anterior fora insignificante. Mas o dia que o esperava seria
pesado. Depois da celebração no Politburo, haveria uma noite toda de intermináveis
louvores e discursos em sua homenagem. Todos estariam competindo para
encontrar novos e grandiloquentes epítetos. Durante o mês de dezembro inteiro, o
Pravda publicara artigos e relatos sobre os preparativos que corriam em todo o país.
A onda de glorificação aumentava a cada dia. Chegavam relatórios de todas as
repúblicas e regiões, e notícias não menos entusiasmadas do Gulag, onde havia a
expectativa de uma anistia. Mas não eram os prisioneiros que enviavam os relatórios,
e sim funcionários do Ministério do Interior em nome daqueles que estavam sob
seus “cuidados”.
Cerca de uma hora antes do previsto para o início da cerimônia, uma plateia
cuidadosamente selecionada e inspecionada já lotava o Teatro Bolshoi. Meia hora
mais tarde, Stalin deu entrada numa sala separada para o Presidium (como era agora
o nome do Politburo), onde trocou cumprimentos com luminares do mundo
comunista tais como Palmiro Togliatti, Mao Tse-tung, Walter Ulbricht, Dolores
Ibarruri e Mátyias Rákosi, entre outros.
Quando o Presidium ocupou o palco, a plateia não pôde se conter. No dia
anterior, Stalin alterara o plano de lugares de Malenkov, que o colocava no centro,
mas cedeu quanto ao seu costume de sentar-se “modestamente” na segunda fileira
em reuniões assim. Postou-se bem para a direita do presidente, colocando Mao à sua
direita e Khruschev à sua esquerda.
Os discursos tiveram início depois de uma curta declaração de abertura de
Shvernik, que foi interrompida por “estrondosos aplausos” toda vez que o nome de
Stalin era citado. Afora Mao, que classificou Stalin como “grande”, os oradores se
revezaram chamando-o de “gênio”, “pensador e líder genial”, “professor genial”,
“chefe guerreiro genial”, enquanto representantes das repúblicas, dos partidos
comunistas, das organizações da juventude e culturais fizeram coro ao seu “amor
pelo povo” sem qualquer atenuação. No final da noite, todos estavam exaustos.
Fotografias da ocasião mostram Voroshilov, Molotov e Malenkov totalmente
alquebrados com o senta-levanta.
Canções e poemas de glorificação abundaram, até mesmo de homens talentosos
e decentes como Alexander Tvardovsky, cujas loas devem ter sido sinceras, já que
representavam a expressão da adulação universal e cega ao ídolo. Nos louvores ao
líder, o povo entrou numa espécie de êxtase religioso. Stalin personificava o
socialismo. Acreditando no líder, as pessoas acreditavam também nos ideais que ele
supostamente encarnava.
No dia seguinte, enquanto lia os telegramas de congratulações dos líderes
estrangeiros, Stalin virou-se repentinamente para Poskrebyshev e perguntou: “E
quem lhe deu a ideia de escrever sobre frutas cítricas?” Poskrebyshev respondeu:
“Foram Suslov e Malenkov. Eles leram sobre isso no departamento de propaganda e
Suslov se interessou.” O assunto da conversa era um artigo de Poskrebyshev para a
edição do Pravda daquele dia, intitulado “Pai amado e grande professor”. O autor
escrevera que Stalin não apenas ajudara a escola Michurin de geneticistas a esmagar
a escola de Weissmann e Morgan, como mostrara como os métodos científicos
avançados podiam ser aplicados na prática.

O Camarada Stalin, que esteve envolvido por muitos anos com o estudo e o cultivo da cultura cítrica na
costa do mar Negro, demonstrou ser um inovador científico. Outros exemplos incluem a introdução de
árvores de eucalipto no litoral daquele mar e dos melões na região de Moscou.

Durante todo o mês de dezembro, os jornais estamparam artigos leais e devotados


ao aniversário. A humilhação de uma grande nação seguia a pleno vapor e, é claro,
parecia perfeitamente natural a Stalin. Já em 1931, o social-democrata alemão e
oponente de longa data do bolchevismo, Karl Kautsky, perguntara: “O que falta a
Stalin para chegar ao bonapartismo? Pode-se dizer que o caso não atingirá sua
essência enquanto ele não se autocoroar czar.”55 O estado totalitário burocrático
necessitava de, pelo menos, um primeiro-cônsul, senão um imperador; o sistema
burocrático em si, por trás da fachada da democracia, não poderia existir sem uma
figura política do tipo despótico.

Stalin começou a declinar mais rapidamente depois do seu septuagésimo aniversário.


Sua pressão arterial era constantemente alta, mas ele não queria médicos, não
confiava neles. Ainda ouvia com certo desânimo o acadêmico Vinogradov, mas
Beria convenceu-o gradualmente de que “o velho era suspeito” e tentou impingir-
lhe outros doutores. Stalin, contudo, não quis qualquer deles. Quando soube que
Vinogradov fora preso, esbravejou bastante, mas nada fez a respeito. Por fim, parou
de fumar, mas continuou com seu estilo de vida pouco saudável em outros aspectos,
levantando-se tarde e trabalhando até altas horas. A despeito da pressão alta,
manteve o hábito dos banhos a vapor que adquirira na Sibéria e, depois do jantar,
bebericava vinho aromático georgiano e evitava remédios. A conselho de
Poskrebyshev, ocasionalmente ingeria umas pílulas e, antes do jantar, bebia um
copo de água fervida, à qual adicionava umas gotas de iodo. Desconfiado de todos,
não iria se entregar na mão de médicos.
Tinha medo da morte, como sempre temera atentados contra sua vida, tramas e
sabotagens. Receava que seus atos diabólicos se tornassem conhecidos após sua
morte. Preocupava-se com o destino de sua criação, e não queria que ela se
transformasse em algo diferente. E, na verdade, depois que ele se foi, seu mundo e
seu culto não sobreviveram por muito tempo.
O tirano a envelhecer vivia perpetuamente temeroso. Sua filha escreveu que, ao
se aproximar do fim, ele sentiu-se vazio: “Negligenciara todas as relações humanas,
era torturado pelo medo que, nos últimos anos de vida, se transformou em autêntica
mania de perseguição, e, no final, seu ânimo forte o abandonou. Mas a mania não
era imaginação doentia: ele sabia e tinha consciência de que era odiado, e também
sabia por quê.”56 Sua velha crença na longevidade georgiana foi abalada por uma
série de tonturas que o desequilibravam.
No passado, raramente dera atenção aos filhos. Simplesmente não tinha tempo.
Mal os conhecia. Quando Yakov morreu, com ele se foi a irritação que Stalin sentia
à simples menção de seu nome. Jamais foi capaz de ter uma conversa serena com
Vasili, o qual, tinha certeza, só era mantido no cargo por causa do nome e dos
“amigos” bem colocados, que constantemente borboleteavam em torno dele.
Svetlana, nesse meio-tempo, fazia o que queria. Depois que ela deixou outro
marido, o pai conseguiu-lhe um novo apartamento, e lavou as mãos.
Ocasionalmente, ela o visitava na dacha e ouvia seus resmungos, ou pedia dinheiro,
o que fazia com que Stalin lhe desse um maço de notas de seu salário de deputado.
[54]
Ventos gélidos

N a noite de 6 de março de 1946, justamente quando Stalin se preparava


para sair para a dacha, Poskrebyshev entrou às pressas e entregou-lhe um
cifrado da embaixada em Washington reportando um discurso feito por
Churchill em Fulton, Missouri, na presença do presidente Truman, natural daquele
estado. Apesar do considerável respeito pelo conhecimento enciclopédico de
Churchill, Stalin nunca confiara nele, mas ficou surpreso com o tom áspero
utilizado pelo ex-primeiro-ministro. Embora expressasse sua admiração pelo
“heroico povo russo e por meu companheiro de guerra marechal Stalin”, Churchill
prosseguiu alertando contra um “Perigo Vermelho” que pendia sobre as
democracias ocidentais. “De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina
de ferro desceu através do continente.”
Isto era verdade. Logo depois da guerra, Stalin tomou medidas enérgicas para
reduzir todos os contatos com o Ocidente e com o resto do mundo. Uma cortina,
fosse de ferro ou ideológica, decididamente descera e, dali por diante e por muitos
anos, o povo soviético só teria conhecimento sobre o Ocidente daquilo que
funcionários da laia de Suslov achassem que deveria saber. O gigantesco fosso de
informação que se abriu entre os dois mundos empobreceu a vida intelectual
soviética e privou a União Soviética do contato com a cultura mundial.
Stalin pôs de lado o relatório e ficou olhando fixamente através da janela para a
noite escura de março. O discurso de Churchill era um sinal e uma ameaça. Stalin
telefonou para Molotov, que estava a postos – como regra, os membros do
Politburo só saíam depois de ter certeza de que Stalin já fora para a dacha. Molotov
chegou, e os dois arquitetos da política externa conversaram por uma boa hora. Não
sabiam que o discurso de Churchill fora precedido por um longo telegrama para
Washington de George Kennan, encarregado de negócios dos EUA em Moscou,
contendo uma avaliação tendenciosa sobre o discurso de fevereiro de Stalin. Kennan
reportara que líderes soviéticos consideravam “inevitável” a Terceira Guerra
Mundial.57
Stalin ficou numa posição difícil. Os EUA haviam se tornado imensamente mais
fortes que a URSS. Ademais, possuíam a bomba atômica. O potencial industrial da
América crescera 50% no curso da guerra. Isto contrastava de forma acentuada com
a posição da URSS, onde milhares de centros populacionais estavam em ruínas,
onde a fome de 1946 era iminente, onde, praticamente, toda a parte ocidental do
país estava engolfada em uma guerra de partisans que ameaçava se alastrar pelos
territórios circundantes. Esse aspecto da história soviética moderna ainda não
recebeu a devida atenção. Depois da expulsão das forças alemãs da Ucrânia
ocidental e da região báltica, destacamentos armados entraram em luta contra o
regime soviético. Em diversas ocasiões, Stalin ordenou a Beria que desse um fim aos
“fora da lei no mais curto tempo possível”, mas não podia imaginar que a situação
perduraria por mais cinco anos depois da guerra mundial, com maior vigor no oeste
da Ucrânia.
Em 12 de abril de 1946, Kruglov, o ministro do Interior, enviou longo relato
dos eventos de março. Mencionou que na região ocidental da Ucrânia 8.360
partisans tinham sido ou mortos ou capturados, juntamente com oito morteiros, 22
metralhadoras, 712 submetralhadoras, 2.002 fuzis, 600 pistolas, 1.766 granadas,
quatro impressoras e 33 máquinas de escrever. Foram também capturados diversos
líderes locais da Formação Nacionalista Ucraniana, enquanto 200 integrantes das
tropas dos ministérios do Interior e da Segurança, como também do Exército
Vermelho, haviam sido mortos. Na Lituânia, 145 partisans foram mortos e 1.500
aprisionados. Quarenta e quatro metralhadoras, 289 fuzis, 122 pistolas, 182
granadas e 12 copiadoras tinham sido capturados, com perdas de 215 soldados do
governo. O relatório mencionava também embates armados na Bielorrússia, na
Letônia e na Estônia.58 Stalin disse a Beria e Kruglov que estava muito insatisfeito
com a ineficiência das tropas regulares.
Enfrentando múltiplos problemas domésticos, a URSS também estava
totalmente isolada das Nações Unidas, embora lá, ao menos, tivesse o poder de veto
no Conselho de Segurança. Stalin sentiu que começara uma difícil e desigual
confrontação. Ele transformaria seu país numa fortaleza. Na sua opinião, a Doutrina
Truman anticomunista tornava impossível que a URSS aceitasse o Plano Marshall.
Se bem que a URSS se desesperasse por ajuda econômica, e pudesse se beneficiar do
Plano Marshall, só poderia fazê-lo ao custo de aceitar o controle virtual dos EUA
sobre a economia soviética. Por meio de Molotov, na conferência de Paris de 27 de
junho a 2 de julho de 1947, Stalin disse não.
A percepção que Stalin tinha do Plano Marshall não estava errada. Truman mais
tarde escreveu francamente em suas memórias que “a ideia de Marshall era liberar a
Europa da ameaça de escravização que era preparada para ela pelo comunismo
russo”.59 Começara a longa Guerra Fria. A única saída, acreditava Stalin, estava em
acabar com o monopólio americano da bomba atômica. Às expensas de enorme
esforço, por volta de 1952, a URSS dobrou sua produção pré-guerra de aço, carvão
e cimento, e aumentou sensivelmente a produção de petróleo e eletricidade. Stalin
jamais cansou de declarar que a prioridade absoluta da indústria pesada era uma “lei
perene” do socialismo. A redobrada energia aplicada à indústria pesada e à ciência
criou as precondições para o salto quantitativo na esfera nuclear. Como já
mencionamos, Stalin confiou a tarefa dessa empreitada secreta a Beria e exigia
relatórios semanais sobre o progresso da atividade.
A experiência soviética nesse campo tinha um histórico sólido. Antes da guerra,
as ideias de A.F. Ioffe, I.V. Kurchatov, G.N. Flerov, L.D. Landau e I.E. Tamm
tornaram possível a construção do primeiro reator a urânio. O trabalho foi
interrompido e só retomado em 1942 sob a supervisão de Kurchatov. Stalin
pressionou por resultados e disse que não deveriam ser poupados recursos para o
projeto. Kruglov, M. Pervukhin e Kurchatov informaram a Stalin, em outubro de
1946, que, de acordo com instruções do comitê especial do conselho de ministros,
Kurchatov e Kikoin tinham examinado locais específicos e tomado providências
para o aumento, por estágios, do ritmo de construção, requisitando 37 mil
operários.60
Ao mesmo tempo, Kruglov e A. Zavenyagin informaram a Stalin e Beria que os
trabalhos seriam acelerados com o emprego de especialistas que no momento
cumpriam penas de dez anos, entre eles S.A. Vosnezensky, N.V. Timofeyev-
Resovsky, S.R. Tsarapkin, Ya.M. Fishman, B.V. Kyrian, I.F. Popov, A.S. Tkachev,
A.A. Goryunov e I.Ya. Bashilov.61
Em dezembro de 1946, os cientistas soviéticos conseguiram a primeira reação em
cadeia e, no ano seguinte, inauguraram o primeiro reator nuclear, tornando possível
que Molotov anunciasse, em novembro de 1947, que o segredo da bomba atômica
estava desvendado. A primeira bomba atômica soviética foi testada no verão de
1949, seguida, em 1953, pela primeira bomba de hidrogênio. Afora a economia,
Stalin então devotava a maior parte de sua energia para as questões da defesa, e uma
seção substancial do Gulag foi empenhada nesse objetivo. Ministros, agora, em
geral, iniciavam o cumprimento de suas missões com requisições a Beria.
Por exemplo, uma solicitação datada de julho de 1946 para a construção de um
campo dentro de outro na Sibéria, a fim de abrigar mil prisioneiros engajados em
pesquisa científica.62 Ou, ainda mais cínico, um requerimento do ministro de
construções da indústria de combustíveis A. Zademidko, em março de 1947, para
relocar 5 mil prisioneiros de campos de concentração da Sibéria, mais recursos para
a aquisição de 30 mil metros de lona para a construção de barracas e 50 toneladas de
arame farpado.63 Tal foi a profundidade a que afundou a moral do sistema stalinista,
ou seja, cientistas que já definhavam em campos tinham que ser mantidos em
barracas cercadas de arame farpado enquanto trabalhavam em projetos mais
avançados e importantes para a defesa do estado.
Cerca de quarenta anos depois destes eventos, consegui encontrar Zademidko e
mostrei-lhe o documento com sua assinatura – ocorrência bastante comum naquela
oportunidade. Perguntei-lhe como se sentia a respeito daquela nota. Replicou: “Era
assim que as coisas se passavam [...] Construíamos o socialismo com a ajuda de um
vasto exército de prisioneiros. É claro que agora considero aquilo uma brutalidade.”
Fez uma pausa e depois relatou-me um exemplo da “tecnologia” da força utilizada
na construção:

Certa vez, já tarde da noite, fui convocado com meu vice para um encontro com Beria. Com os olhos
brilhando ameaçadoramente por trás do pincenê, ele perguntou com disfarçada calma a respeito de uma
construção especial: “Por que vocês não informaram que a oficina está pronta?”
Respondi: “Eles ainda não terminaram com a instalação do equipamento.” “Quem não terminou?” E, sem
esperar pela resposta, disparou para um assistente: “Ligue-me com o gerente do projeto.”
Três ou quatro minutos mais tarde, uma voz distante foi ouvida ao telefone diretamente da bacia do Donets.
Beria, de pronto, vociferou: “Alô, aqui é Beria. Por que o trabalho não terminou a tempo? A instalação tem
que estar completa às oito horas da manhã! Boa noite!” Pode-se bem imaginar que tipo de boa noite o
gerente teve! Beria disse então ao assistente para colocar na linha o chefe da administração, a quem disse: “Já
determinei ao fulano (Zademidko não conseguiu lembrar-se do nome) para terminar o trabalho às oito da
manhã. Se ele não completar, prenda-o no seu porão. Adeus!”
Meu vice e eu evidentemente conhecíamos os métodos de trabalho de Beria, mas ao ouvi-lo distribuindo
ordens frias e sucintas nossa pele ficou arrepiada. Era assim que as coisas funcionavam naquele tempo...

A despeito da baixa produtividade do trabalho forçado, Stalin acreditava que o uso


disseminado de prisioneiros nos projetos da defesa não era apenas uma forma barata
de aumentar o potencial militar da União Soviética, como também um método
testado de “reeducar” centenas de milhares de “inimigos” e “traidores”.
Seja o que for que pensemos de Stalin, sua impiedosa determinação, aliada ao
enorme custo para o povo soviético, resultou no impossível salto para a frente: fora
quebrado o monopólio nuclear norte-americano e lançada a pedra fundamental da
paridade estratégica. Stalin estava disposto a empregar qualquer meio, inclusive os
movimentos trabalhistas e comunistas internacionais e o emergente movimento pela
paz, desde que conseguisse vantagens para a União Soviética na sua luta competitiva
com o colosso transatlântico. Depois de uma longa discussão com Molotov e
Zhdanov, decidiu por uma medida que tinha tudo para ser vista pelo Ocidente
através de uma perspectiva altamente negativa. Resolveu estabelecer uma agência
para coordenar as atividades dos partidos comunistas. Na Europa e nos EUA, tal
passo foi interpretado como a aceitação oficial de Stalin do desafio da Guerra Fria.
Ele fora persuadido a dissolver o Comintern logo no início da guerra, mas tivera
o bom senso tático de ver que a iniciativa seria encarada como fraqueza e, portanto,
adiou a decisão e escolheu um bom momento para fazê-lo, isto é, na primavera de
1943, esperando que os Aliados ficassem assim encorajados a abrir a segunda frente.
Sabia muito bem que o Comintern era uma agência puramente soviética e porta-voz
dele próprio, mas sua dissolução, considerou, traria vantagens e desvantagens. E
agora, subitamente, criava um novo centro internacional comunista. Que estaria
pensando?
Quando o Comintern foi criado, em 1919, seus líderes – principalmente Lenin,
Trotsky e Zinoviev – acreditavam numa revolução mundial iminente. Mas quando
a onda da revolução recuou, verificou-se que os alicerces do antigo mundo
continuavam intactos. Ficou patente que o papel do Comintern era tanto limitado
quanto subordinado ao país onde se encontrava seu quartel-general, ou seja, a União
Soviética. O fato de ser dirigido a partir de um centro minou seriamente o
movimento comunista e permitiu aos críticos e inimigos a fácil e justificável
acusação de que era manipulado pela “mão de Moscou”. Agora, no entanto, com a
emergência de um mundo bipolar, de dois lados, Stalin ponderou que a colaboração
entre os partidos comunistas estava de novo na ordem do dia, embora não no antigo
estilo ou na velha forma de organização.
De 22 a 27 de setembro de 1947, os comunistas poloneses, encorajados por
Stalin, organizaram um encontro de nove partidos comunistas europeus na cidade
polonesa de Szklarska Poreba. Na véspera da reunião, Zhdanov, que recebera a
delegação de Stalin para representar o partido comunista soviético, enviou um
telegrama codificado para Moscou delineando os resultados preliminares de uma
reunião de trabalho do partido:

Foi proposto começar com relatórios de informações de todos os partidos comunistas participantes. Seria
então trabalhada uma pauta. Vamos sugerir: 1) a situação internacional, apresentação feita por nós, 2)
coordenação das atividades dos partidos. O resultado deve ser um centro coordenador com sede em Varsóvia.
Creio que ênfase especial deve ser dada ao voluntariado nesta questão. Aguardo suas instruções.64
Stalin deu sua aprovação. Em consequência do encontro de Szklarska, e quatro anos
após a dissolução do Comintern, veio à luz, como Informburo, o Birô de
Informação dos Partidos Comunistas e Trabalhistas, o Cominform, no linguajar
ocidental. Segundo Zhdanov, os participantes mais ativos e positivos foram os
iugoslavos. Pelo conteúdo, propósito e abordagem construtiva, Zhdanov classificou
como melhores relatórios os do iugoslavo Eduard Kardelj e o do tcheco Rudolf
Slansky.65 No decorrer de um ano, Zhdanov iria considerar Kardelj um espião
imperialista, em novembro de 1949; o Cominform denunciaria os comunistas
iugoslavos como assassinos e espiões; e, em 1951, Slansky seria julgado e executado
como líder de uma trama sionista para derrubar o estado tcheco.
O discurso de Zhdanov sobre a situação internacional abordou a tese que iria,
praticamente, transformar-se na pedra de toque da propaganda soviética, isto é, a
divisão do mundo em dois campos opostos, uma resposta, com efeito, à Doutrina
Truman. O Plano Marshall foi descrito como “um programa para a escravização da
Europa”. Zhdanov foi especialmente sarcástico em suas referências aos sociais-
democratas, refletindo o ódio de Stalin e a desconfiança responsável pelo
enfraquecimento não só das forças progressistas no Ocidente, como também do
movimento em prol de relações pacíficas Leste-Oeste.
O encontro seguinte era planejado para Belgrado, mas os acontecimentos
tornaram-no impossível. Os povos da Iugoslávia haviam contribuído de maneira
importante para a derrota do fascismo, e o primeiro tratado de amizade, ajuda
mútua e colaboração de pós-guerra com um novo país socialista foi o assinado por
Tito, quando visitou Moscou, em abril de 1945. Stalin encontrou-se com ele
diversas vezes e os dois se deram muito bem. Foi acertado que a União Soviética
repassaria à Iugoslávia tecnologia militar e armamento para doze divisões de
infantaria e duas aeromóveis.66 Os dois países pareciam ter começado suas relações
de maneira auspiciosa. Um grande contingente de especialistas militares soviéticos
trabalhava na Iugoslávia, enquanto milhares de militares iugoslavos recebiam
instrução na URSS. De repente, tudo começou a dar errado.
Uma série de questões foi debatida sem consulta prévia a Stalin: por exemplo,
um tratado de amizade búlgaro-iugoslavo, o envio de um regimento iugoslavo
aerotransportado para a Albânia, e a declaração do líder búlgaro Dimitrov, numa
entrevista coletiva, de que uma federação de estados socialistas europeus era uma
possibilidade. Stalin ficou furioso. Ditador todo-poderoso em casa, acreditava ser
também o árbitro supremo da vida dos Aliados.
Um encontro de delegações soviética, búlgara e iugoslava teve lugar, por sugestão
de Stalin, em Moscou, em 10 de fevereiro de 1949. As missões foram
respectivamente chefiadas por Stalin, Dimitrov e Kardelj; o lado soviético incluía
Molotov, Malenkov, Zhdanov e Suslov; o búlgaro, T. Kostov e V. Kolarov; e o
iugoslavo, Milovan Djilas e V. Bokaric.
Stalin expressou sua insatisfação de maneira claramente irritada, admoestando
iugoslavos e búlgaros por “seguirem uma linha particular de política externa”. Os
iugoslavos e búlgaros estavam protestando que não havia motivo para tais
imprecações e que as recriminações eram de natureza pessoal, quando, subitamente,
Stalin declarou necessária a criação de uma federação da Bulgária com a Iugoslávia.
Acostumado a ter suas manifestações tomadas como ordens, Stalin sentiu então um
certo grau de resistência. Tanto Kardelj como Dimitrov, sem repudiar em princípio
a ideia da federação, argumentaram que a situação ainda não estava madura para
uma iniciativa como aquela. Kardelj, além do mais, disse que não podia dar uma
resposta definitiva até que a liderança política de seu país manifestasse sua opinião.
Aquela era a primeira resistência séria que Stalin experimentava em anos e, ademais,
vinha da parte de comunistas. Ele não estava preparado para recebê-la. O fluxo da
raiva ensandecida precisava de uma válvula de escape.
Djilas mais tarde recordou em suas bem conhecidas memórias que Stalin passou
a atacar Dimitrov e Kardelj por ocultarem de Moscou seus assuntos e, além do mais,
de o fazerem por princípio. “Fomos embora depois de três ou quatro dias. Levaram-
nos ao amanhecer para o aeroporto de Vnukovo, empurraram-nos para dentro de
um avião e nos despacharam para casa sem-cerimônia.”67 A reunião dificilmente
poderia ser classificada como diálogo. Stalin comportou-se como se os visitantes
fossem líderes partidários de uma de suas próprias repúblicas. As sanções não se
fizeram esperar. Os assessores militares soviéticos foram chamados de volta da
Iugoslávia, e uma carta áspera, assinada por Stalin e Molotov, enviada aos líderes em
Belgrado. Tito respondeu com ponderação, rechaçando as acusações de ações
inamistosas e de trotskysmo, e acrescentando: “Por mais que admiremos a URSS
como a terra do socialismo, nenhum de nós pode amar menos nossos próprios
países, que também constroem o socialismo.”
A réplica de Stalin foi mandada em maio sob forma de uma carta de 25 páginas.
Em vez da argumentação fria e composta, que era de se esperar do estilo normal de
Stalin, Yepishev recordou que a reação de Stalin foi grosseira e impulsiva, sem uma
pausa para análise da realidade da situação. A gente de Beria reunira uma coleção de
“fatos” que demonstravam “desvios” e “traição” de Tito e de toda a liderança
iugoslava. Stalin ainda não entendera que havia sofrido sua primeira derrota de pós-
guerra.
Decidiu arrastar o Cominform para o conflito. Duas notas foram enviadas de
Moscou para Belgrado convidando os iugoslavos a mandarem delegação para um
encontro do Cominform em Bucarest. Os iugoslavos responderam com uma firme e
polida recusa, argumentando que aquilo era uma interferência em seus assuntos
internos. Contudo, expressaram o desejo de normalizar as relações. Stalin decidiu
prosseguir com o encontro sem os “acusados”, mas o racha já era um fait accompli.
Antes da reunião, em 15 de junho de 1948, Stalin leu o relatório de Zhdanov que
seria apresentado em Bucarest, intitulado “Sobre a posição do partido comunista da
Iugoslávia”, um texto já do conhecimento de Malenkov e Suslov. Os três soviéticos
foram despachados para Bucarest levando a declaração com emendas de próprio
punho de Stalin. O discurso de Zhdanov continha trechos como este:

Tito, Kardelj, Djilas e Rankovic devem ser inteiramente responsabilizados pela presente situação. Eles
buscaram seus métodos no arsenal do trotskysmo. Sua política para a cidade e o campo está errada. Um
regime vergonhoso e de puro estilo terrorista turco é intolerável num partido comunista [...] Há que se ver
livre de um regime desses. O partido comunista da Iugoslávia tem o elevado dever de cumprir a honrosa
tarefa de acabar com ele.68

Stalin confiava que, como disse Khruschev no XX Congresso, bastava mover um


dedo e Tito estaria acabado. Tal confiança ainda era mais reforçada pelo que
Zhdanov escreveu em seu relatório de Bucarest. Os outros líderes – Chervenkov,
Togliatti, Duclos, Rákosi, Gheorghiu-Dej – tinham “todos, sem exceção, assumido
uma posição irreconciliável com respeito aos iugoslavos”.69 Exibindo-se como
campeã do internacionalismo proletário, uma grande potência exercitava os
músculos para intimidar os vizinhos mais fracos e assim saciar os sentimentos
rixentos do irritado ditador. Stalin não hesitou em denunciar o tratado de amizade,
retirar o embaixador soviético e cortar os laços econômicos. O conflito chegou ao
ponto máximo em novembro de 1949, em Budapest, com a resolução do
Cominform intitulada “O partido comunista iugoslavo está em poder de assassinos
e espiões”. Suslov trabalhou sobre o texto da resolução e ela abarcou todos os tipos
de acusações. Os líderes iugoslavos foram comparados aos nazistas e
responsabilizados, entre outras coisas, por espionagem, aliança com o imperialismo e
fomento ao renascimento dos kulaks.
Os poucos anos que Stalin teve depois da guerra foram tão turbulentos quanto
sua vida após a Revolução de Outubro, e agora suas preocupações iam bem além das
fronteiras soviéticas. Nos países socialistas, que, segundo Zhdanov, agora formavam
um “campo”, os problemas se avolumaram. Em vez de deixar que cada país
desenvolvesse o socialismo à sua maneira, de acordo com as tradições nacionais,
experiência histórica e situação corrente, Stalin insistiu em adotar o mesmo modelo,
os mesmos padrões burocráticos e dogmáticos da União Soviética em suas estruturas
políticas, causando, no processo, considerável dano à causa geral.
Há razões para que se acredite que, antes da morte, Stalin duvidasse do “centro
unificado”. A derrota que sofrera nas mãos dos iugoslavos fez com que reexaminasse
seus métodos dogmáticos. Isto é demonstrado pelo seu declinante interesse no
Cominform. Em seguida à débâcle iugoslava, o Cominform reuniu-se apenas uma
ou duas vezes e, despercebido, deixou de existir. A tentativa de transplantar o
método de comando para o movimento comunista internacional fracassara
redondamente.
Stalin só pôde considerar dois eventos como luminosos naqueles anos sombrios:
a criação da República Popular da China e o crescimento de um poderoso
movimento internacional da paz. O final dos anos 1940 e início dos 50 foi um
período de ansiedades e, por vezes, pareceu que os líderes mundiais haviam perdido
o bom senso. Até o Papa declarou que qualquer católico que apoiasse os comunistas
seria excomungado. A caça às bruxas alastrou-se. Era difícil conceber que, em
questão de dois ou três anos depois da grande vitória, os Aliados estivessem diante
de outra guerra, desta vez uns contra os outros. A percepção soviética era de que os
Estados Unidos não podiam aceitar o surgimento de outro colosso, e foram feitos
até planos pelo Pentágono para o bombardeamento nuclear da URSS. Naquelas
circunstâncias, Stalin adotou uma política cautelosa, desenvolvendo o poderio
militar enquanto evitava qualquer provocação ao antigo aliado. Embora não fosse
tão longe quanto Mao, que declarou que a força nuclear era um “tigre de papel”,
repetidamente deixou claro que a missão decisiva na guerra futura seria
desempenhada pelas massas.
Houve, é verdade, um breve momento em que pareceu possível que a ameaça
retrocedesse. Em 1º de fevereiro de 1949, o chefe europeu do International News
Service, Kingsbury Smith, enviou o seguinte telegrama de Paris para Stalin: “O
representante oficial da Casa Branca, Charles Ross, anunciou hoje que o presidente
Truman gostaria de ter a oportunidade de se encontrar com o líder soviético em
Washington. Estaria Vossa Excelência em condições de ir a Washington com este
propósito? Caso contrário, onde gostaria de encontrar o presidente?” No dia
seguinte, Stalin respondeu:

Sou grato ao presidente Truman pelo convite para ir a Washington. Uma viagem à capital americana é um
desejo que acalento há muito tempo, que mencionei ao presidente Roosevelt em Yalta e ao presidente
Truman em Potsdam. Infelizmente, neste momento, estou impossibilitado de concretizar meu desejo de
viajar a qualquer distância considerável, em especial por mar ou pelo ar, pois os médicos proíbem
terminantemente que o faça.70

Em vez de Washington, Stalin sugeriu que o encontro tivesse lugar em Moscou,


Leningrado, Kaliningrado, Odessa, Yalta, Polônia ou Tchecoslováquia, sabendo que
Truman recusaria. Não havia nada que os dois pudessem debater. Truman
acreditava que os Estados Unidos tinham maior chance de fazer com que a URSS
dissesse o que ele queria ouvir, mas parece que, ao mesmo tempo, chegara à
conclusão de que tais esperanças eram infundadas. Nem passava pela cabeça de
Stalin ceder ao que o outro ditasse.
Foi então que, num mundo acostumado ao pisar das botas de soldados e ao tinir
de sabres, subitamente ouviram-se as primeiras vozes débeis chamando à razão. Em
1948, os pacifistas dos dois “lados” haviam se reunido na cidade polonesa de
Wroclaw e fora marcado o Congresso Mundial da Paz, em Paris.
De início, Stalin encarou aquela “tendência intelectual” com o típico ceticismo,
porém, aos poucos, viu que ela encerrava muitas possibilidades. Em função da
vantagem nuclear dos EUA e da correspondente desvantagem do campo socialista,
era essencial fazer o máximo uso possível da opinião pública mundial contra aqueles
que buscavam resolver a confrontação fundamental por meios nucleares. A
propaganda oficial soviética, portanto, apoiou a ideia da coexistência pacífica, e
Stalin, juntamente com Molotov, selecionou pessoalmente os representantes
soviéticos ao Congresso Mundial da Paz, que compareceram à sua abertura na Salle
Pleyel, em Paris.
Na perigosa confrontação entre os dois mundos, Stalin recebeu considerável
ânimo com a revolução chinesa, que alterou fundamentalmente a correlação de
forças. A luta de vinte anos do povo chinês por sua libertação social e nacional
culminou com a triunfal proclamação da República Popular da China, em 1º de
outubro de 1949.
Stalin acompanhava de perto os eventos na China. Quando soube que o novo
embaixador dos EUA em Pequim declarara apoio total a Chiang Kai-Shek,
entendeu que, se os americanos ganhassem posição de influência predominante na
China, a situação da URSS ficaria mais difícil. No começo, não compreendia muito
bem o conflito entre Mao Tse-tung e Chiang Kai-Shek, e chegou mesmo a dizer
certa vez que o levante de milhões de camponeses famintos não tinha coisa alguma
em comum com um movimento socialista ou democrático. Quando teve
conhecimento que, em outubro de 1945, Chiang e Mao apertaram-se a mão em
Chunking, com respeito às questões internas da China, achou que os comunistas
chineses estavam se comportando mais realística e progressistamente.71
Naquela época, Stalin escreveu bastante sobre a China, e suas obras coligidas
contêm cerca de uma dúzia de peças sobre a revolução chinesa, algumas delas
politicamente muito primitivas. Por exemplo, escreveu que “a revolução no Oriente
dará um impulso decisivo à crise revolucionária no Ocidente. Atacado dos dois
lados, bem como pela frente e pela retaguarda, o imperialismo terá de ver que está
fadado a perecer”.72 De forma característica, ele adotava frequentemente o tom
didático quando escrevia para os chineses: “Os comunistas da China têm que prestar
atenção ao trabalho no exército, têm realmente que estudar as questões militares,
pois elas tomarão parte no futuro regime revolucionário da China ...”73
Deve ser mencionado que a posição de Stalin sobre a questão chinesa foi
vigorosamente atacada por Trotsky. Na minuta de seu discurso para o 8º Pleno do
comitê executivo do Comintern, em maio de 1927, Trotsky escrevera: “As teses de
Stalin só podem sobreviver enquanto o partido for privado da oportunidade de
ouvir críticas a elas, mas a imprensa partidária sob Bukharin, em vez de publicar
opiniões genuínas, impinge-nos seu próprio pensamento [...] As teses de Stalin,
falsas no âmago, são declaradas praticamente inatacáveis.”74 O próprio Trotsky não
estava certo a respeito de tudo, mas identificara as fissuras no entendimento de
Stalin sobre as questões do Oriente, enquanto outros bolcheviques tentavam
adorná-las com retórica revolucionária de significação “universal”.
Depois da guerra, Stalin deu substancial ajuda à revolução chinesa. Armas e
equipamento de todos os tipos foram enviados para o Exército Popular de
Libertação, e, no segundo semestre de 1947, os ventos da vitória começaram a
soprar a favor do movimento revolucionário, sendo Chiang forçado a fugir com seus
remanescentes para Taiwan. Em vista da oposição permanente dos EUA, Mao
inclinou-se pela amizade com a União Soviética e, depois da revolução chinesa, as
relações entre os dois países se desenvolveram em diversas esferas, culminando com
o convite para que Mao participasse em Moscou das celebrações do septuagésimo
aniversário de Stalin.
O secretário-geral esperou, não muito seguro, pela chegada do líder chinês. A
despeito de ter escrito sobre a China, sabia pouco sobre a história e a cultura
daquele país, e sua noção era limitada a respeito da psicologia nacional chinesa ou,
na verdade, do próprio Mao. Stalin encontrou-se com ele diversas vezes depois de
sua chegada a Moscou, em 16 de dezembro de 1949. Como a maioria de suas
conversas não foi registrada, as memórias do sinólogo soviético N.T. Fedorenko,
que serviu como intérprete, e as de Andrei Gromyko, que as presenciou, são de
particular valor.75
A situação foi também um tanto inusitada para Mao, que jamais saíra da China,
não participara do trabalho do Comintern e cujos vínculos com os outros partidos
comunistas eram mínimos. Os dois homens que se defrontaram na mesa de
negociações também pensavam de forma diferente, tinham escalas de valores
desiguais e representavam civilizações diferentes. Até mesmo seu marxismo tinha
pouco em comum, uma vez que Mao gostava de mesclar o seu com confucionismo,
ao passo que Stalin se restringia a citar suas próprias obras. Todavia, ambos eram
pragmáticos.
Enquanto Stalin observava seu convidado com curiosidade e mal escondida
desconfiança, Mao, de súbito, desviava a conversa sobre os problemas correntes para
regalar o anfitrião com parábolas do mundo misterioso e mágico do folclore chinês.
Contou a Stalin a lenda de Yui-Gun que moveu montanhas. Em tempos passados,
disse ele, vivia nas montanhas do norte da China um homem muito idoso chamado
Yui-Gun, que quer dizer “o velho tolo”. O caminho de sua casa para o sul era
bloqueado por duas montanhas muito altas e Yui-Gun decidiu removê-las com a
ajuda dos filhos e utilizando enxadas. Outro homem idoso de nome Dzhi-Sou, ou
seja, “o velho sábio”, os viu trabalhando e, sorrindo, disselhes: “Isto é uma tolice,
como você pensa que irá acabar com montanhas tão altas?” Yui-Gun replicou: “Vou
morrer, mas meus filhos ficarão, eles morrerão e meus netos permanecerão, e assim
as gerações se seguirão em sucessão interminável. Estas montanhas são de fato altas,
mas não crescerão mais do que isto; ficarão menores seja qual for a quantidade que
delas retiremos, então, por que não seremos, afinal, capazes de acabar com elas?” E
Yui-Gun trabalhou todos os dias na escavação. Tal fato sensibilizou Deus que
enviou seus santos à Terra e eles levaram embora as montanhas.76
A história tinha a intenção de ilustrar o fato de que a China estava sob o peso de
duas montanhas – o imperialismo e o feudalismo – e o partido comunista da China
se dispunha a removê-las. Deus era representado pelo povo chinês que fora
sensibilizado para ajudá-lo. Stalin e Mao concordaram que mais deveria ser feito
além da mera remoção dessas montanhas. Segundo Fedorenko, as conversas eram
longas e sem pressa, enquanto os dois líderes saboreavam excelente comida,
sorvendo goles de vinho seco e discorrendo sobre as questões internacionais,
econômicas, ideológicas e militares. No curso destas refeições noturnas, também
debateram o tratado de amizade, união e assistência mútua que estava sendo
preparado. De acordo com Gromyko, entretanto, os dois conseguiram apenas uma
troca esporádica de ideias, e sua impressão foi a de que tinham pouco a dizer um ao
outro.
Stalin desconfiava de Mao havia muito tempo, influenciado sem dúvida pelos
relatórios de que o líder chinês era hostil aos comunistas chineses treinados por
Moscou, e também pelo fato de Mao nada ter feito quando Moscou e Stalingrado
ficaram sob ameaça durante a guerra. Contudo, gradualmente, a atitude de Stalin
em relação aos chineses foi se alterando, à proporção que Pequim se mostrava mais
antiamericana. A Guerra da Coreia, por certo, fortaleceu a confiança de Stalin em
Mao, colocando assim as relações sino-soviéticas como um todo numa situação
positiva. Sem dúvida, os sucessores de Stalin e o próprio Mao poderiam ter feito
bem mais para preservar as boas relações dos anos 1950, e uma das razões da
deterioração foi certamente a reação negativa de Mao à denúncia que Khruschev fez
de Stalin, em 1956.
A Guerra Fria foi sentida não apenas no Ocidente, mas também no Oriente. O
desdobramento de tropas americanas e soviéticas na Coreia, logo após a guerra,
predeterminou a criação de estruturas políticas diferentes nas duas partes da
península, norte e sul. Depois das eleições na Coreia do Sul, em 10 de maio de
1948, foram criados órgãos legislativos e executivos e, em 25 de agosto do mesmo
ano, foram realizadas eleições na Coreia do Norte. Dois estados surgiram, dividindo
assim, artificialmente, a nação coreana em duas. As tropas soviéticas se retiraram do
norte, seguidas pela retirada das forças americanas no sul. Cada um dos lados achava
que, nos dois casos, o governo era apoiado pela maioria da população. Infelizmente,
parece claro que o conflito começou porque cada um deles pretendia estender sua
autoridade sobre toda a península.
De fontes indiretas, pude estabelecer que Stalin tinha uma opinião
extremamente cautelosa sobre os eventos na Coreia e, desde o início, fez todas as
tentativas para evitar a confrontação direta entre URSS e EUA. Mao foi mais
decidido. Durante os encontros entre novembro de 1949 e fevereiro de 1950, os
dois líderes debateram com frequência sobre a Coreia. O ponto de vista de Stalin era
o de que os americanos tinham se afastado tanto do acordo de Potsdam sobre a
Coreia que seria difícil criar um estado unitário sem grandes dificuldades. Era
particularmente cético a respeito da ideia de protetorado sobre a Coreia, da mesma
forma que o era quanto a eleições “livres”. Afinal de contas, existia uma população
significativamente maior no sul, onde estavam sediadas as forças americanas. O
paralelo 38 foi fixado sem qualquer base política, uma mera demarcação entre as
tropas soviéticas e americanas.
Quando, no entanto, trinta divisões chinesas se movimentaram, a situação na
península se alterou marcadamente. As forças chinesas e norte-coreanas não só
expulsaram as tropas dos EUA ao norte do paralelo 38 como também conseguiram
avançar cerca de 100km ao sul do paralelo. À medida que o moral americano
declinava, Stalin sentia que o momento mais perigoso se aproximava, ou seja, os
EUA poderiam recorrer à medida extrema do ataque nuclear. O general MacArthur
propugnou pelo bombardeio da Manchúria, e Truman insinuou que a opção
nuclear não estava descartada. A ameaça de uma Terceira Guerra Mundial parecia
viável, mas nem Stalin nem Mao queriam enfrentar os Estados Unidos havendo a
possibilidade de derrota. Começaram as negociações tendo como pano de fundo a
batalha constante. Stalin reconheceu que a única saída para o impasse seria alguma
forma de meio-termo. Todavia, o acordo só foi alcançado em julho de 1953, seis
meses depois de sua morte.
Se Stalin absorveu as lições da Guerra da Coreia é difícil dizer. Não obstante,
uma coisa é certa: no mundo moderno, o conflito armado tende sempre para o
impasse. Isto ficou demonstrado na Coreia, no Vietnam e no Afeganistão. A Guerra
da Coreia mostrou ainda que a América não era onipotente e também levou Stalin,
depois do “banho de água fria” que recebeu dos iugoslavos, a reverter para sua
cautela costumeira.
PARTE XI
As relíquias do stalinismo

César não quis celebrar seu triunfo por sobre o sofrimento de seu país.
Plutarco
[55]
Anomalia histórica

S talin, com frequência, pensou em ter sua Breve biografia substituída por um
estudo monumental. Diversos sinais indicam-no, inclusive suas ordens para
que os arquivos fossem “pesquisados”, seus comentários ocasionais com
Zhdanov e Poskrebyshev, e suas constantes solicitações a G.F. Alexandrov, M.B.
Mitin e P.N. Pospelov, compiladores de suas biografias oficiais, para que dessem
realce à historiografia partidária e ao “papel dos pupilos de Lenin”. Cada vez mais,
então, se recordava do passado, voltando em diversas ocasiões à virada do século, à
luta pós-Outubro, ao nome das pessoas cujas vidas havia destruído. Por vezes, era
levado ao passado por parentes de ex-camaradas. Em determinadas ocasiões, depois
de despachos de rotina, Beria mostrava-lhe uma lista de cartas pessoais de parentes
de “inimigos do povo” executados ou exilados. Stalin, normalmente, lia por alto a
lista e a devolvia sem uma palavra. Beria olhava para o mestre como quem tinha
entendido, recolhia os papéis e se retirava.
Noutras oportunidades, ele solicitava informações a Beria sobre um determinado
suplicante. Por exemplo, existe carta de uma Jadwiga Iosifovna, parente de Felix
Dzerzhinsky, o fundador da Cheka, indagando sobre sua mãe, Jadwiga
Genrikhovna Dzerzhinskaya, que fora condenada pela Corte Especial e que
definhava havia anos em campos de Karaganda. A filha escreveu que sua mãe “se
encontrava muito doente, acometida de tuberculose, escorbuto e brucelose. Estava
em condições muito precárias”.1 Caso semelhante foi o da filha de Radek, Sofia, que
escreveu a Stalin dizendo que um ano depois que seu pai fora condenado, em 30 de
janeiro de 1937, ela e sua mãe tinham sido exiladas para Astrakhan por cinco anos.
“Em Astrakhan, minha mãe foi presa de novo e sentenciada a oito anos nos campos
de Temnikov [no norte] onde morreu.” Em novembro de 1941, Sofia foi exilada de
Astrakhan para o Cazaquistão. Seu exílio terminou em junho de 1942. Continuou
ela: “Também sou um ser humano: se sou filha de um inimigo do povo isto
significa também que sou inimiga? Eu tinha 17 anos quando meu pai foi
condenado, em 1937, e, desde então, sou rotulada de inimiga. Sou formada, mas
não tenho onde aplicar meus conhecimentos em Chelkar. Ainda não possuo
passaporte interno. O chefe da NKVD em Chelkar, o Camarada Ivanov, não
responde aos meus requerimentos. Ajude-me a resgatar os crimes de meu pai!”2
Stalin deixava que Beria administrasse estes problemas da forma que lhe parecesse
conveniente.
Em menos de três décadas, ele elevara o país ao status de grande potência e,
mesmo assim, ainda havia tanta gente descontente. O ministro do Interior reportara
que, em abril de 1949, existiam 180 mil internos em campos especiais e pedira
permissão para aumentar a capacidade de tais campos em 70 mil, para chegar ao
quarto de milhão.3 Tratava-se de uma categoria especial de prisioneiros, contudo,
Beria continuava lhe dizendo que não era possível satisfazer a todas as demandas dos
ministérios por mão de obra proveniente desses campos.
Como se encaixava a ideologia marxista-leninista neste quadro? Por mais
remotos que fossem em relação às preocupações do século XX, muitos de seus
dogmas foram tomados como verdades pelo regime soviético desde o momento de
sua formulação. Nos anos 1920, era dito com frequência que “a classe operária não
pode cometer erros”, ou que “o partido não pode cometer enganos”, mas ambos
cometiam.
Muitos de tais erros foram apontados bem cedo. Em novembro de 1917, no seu
jornal Novaya Zhizn (“Vida Nova”), Gorki publicou um artigo intitulado “Para a
atenção dos trabalhadores”, no qual escreveu:

Tendo forçado o proletariado a concordar com a destruição da liberdade de imprensa, Lenin e seus adeptos
tornaram legal para os inimigos da democracia calar a boca dos outros, ameaçando com a fome e a
perseguição quem não concordasse com o despotismo de Lenin e Trotsky; esses “líderes” estão justificando
um despotismo de autoridade do tipo contra o qual os melhores elementos do país vêm lutando com
veemência por tanto tempo.4

Desafortunadamente, tais alertas contra “o despotismo de autoridade” não foram


ouvidos, então ou mais tarde. Stalin não fez qualquer contribuição para a teoria do
marxismo. Adotou, sem criticar, as ideias marxistas, algumas delas velhas de meio
século, e poucas foram as pessoas que levantaram objeções de princípios. Apoiado
pelo partido e aferrando-se ao pé da letra à doutrina, Stalin esmagou quem ousou
dela se afastar. Enquanto reivindicava estar “confirmando” o socialismo,
transformou os preceitos de Marx, Engels e Lenin em dogmas, e os usou para
fortalecer sua própria posição de autocrata. Pode-se então falar do stalinismo como
nascido no solo do marxismo e nutrido pelas distorções de seus argumentos, mas daí
não se conclua que o marxismo foi responsável pelo stalinismo. Como sistema
intelectual de opiniões filosóficas, econômicas e políticas sobre sociedade, natureza e
pensamento, o marxismo não pode ser culpado pela maneira como foi interpretado.
O marxismo não é um livro de receitas culinárias nem um plano de ação, embora
tenha sido exatamente assim que Stalin o entendeu. A forma rígida, mecânica e
primitiva com que expressou o marxismo, já perfeitamente evidente no final dos
anos 1920, foi o arauto dos infortúnios que viriam, infortúnios com os quais ele iria
adornar o estandarte do marxismo como grandes vitórias do socialismo.
No entanto, a propensão para canonizar tudo o que os primeiros pensadores
marxistas disseram e para fazer disto a base da propaganda soviética já estava
estabelecida bem antes da ascensão de Stalin. Ele herdou e desenvolveu essa
tradição. Se bem que não tenhamos a intenção de justificar Stalin e o stalinismo,
muita coisa tem sido recentemente publicada tentando vincular todas as
deformações, erros e crimes a uma só pessoa. Se fosse este o caso, teríamos nos
libertado do stalinismo há muito tempo.
O stalinismo foi uma forma – forma extremamente negativa – de entender as
ideias contidas na doutrina marxista. O imemorial desejo de alcançar a liberdade, a
felicidade, a igualdade e a justiça foi manifestado pelo marxismo de forma bastante
atraente. Porém, bem antes da revolução, Lenin atacou outros marxistas, tachando-
os de heréticos e revisionistas, por terem interpretado o marxismo ao seu modo, e o
resultado foi que qualquer perspectiva “não autorizada” passou a ser estigmatizada
como “hostil”. O marxismo russo adquiriu, assim, o caráter de doutrina política que
não procurou se adaptar às condições mutantes, e sim adaptar as condições para que
se ajustassem aos seus postulados. Já com algum retardo, Lenin tentou reverter a
situação no partido, fazendo com que os bolcheviques do início dos anos 1920
tivessem uma visão prática da situação que surgira no país predominantemente
agrícola. Estes bolcheviques não se mostraram à altura da tarefa e permitiram que a
tendência dogmática florescesse.
O stalinismo explorou ao máximo o amor dos revolucionários russos pelo
radicalismo, sua presteza em sacrificar tudo – história, cultura e seres humanos – em
nome de uma ideia. A deificação de uma ideia ossificada desaguou na indiferença
para com as necessidades das pessoas nos tempos em que viviam. O radicalismo
russo vestiu o manto do romantismo revolucionário e rejeitou as noções burguesas
de felicidade, juntamente com a cultura burguesa. Stalin, sobretudo, proclamou a
opinião de que tudo era permitido em prol da ideia. Ninguém jamais objetou que se
tratava de uma ideia profundamente anti-humana em si mesma e um crime social
contra o povo. O importante era “ultrapassar”, “derrubar”, “destruir”, “esmagar”,
“quebrar”, “vencer”. Este radicalismo revolucionário, que nutria Stalin, criou
decididamente uma nova pseudocultura na qual suas ideias ocuparam lugar de
honra.
Existe outro aspecto do conflito intelectual, tanto antes como depois da
Revolução de Outubro, que não deve ser descurado. Lenin atacou os mencheviques
como politicamente impotentes, mas as críticas deles lançaram luz sobre o
fenômeno do stalinismo, e eles persistentemente se posicionaram contra o
bolchevismo dogmático que desumanizava e minava por dentro o marxismo.
Os mencheviques no exílio – Martov, Abramovich, Dan, Nicolaevsky, Dallin,
Schwartz – tentaram por muito tempo conduzir uma batalha em duas frentes, isto é,
defenderam os ideais da revolução na Rússia e, simultaneamente, criticaram sua
degeneração. Até 1965, ainda possuíam seu jornal em Nova York, o Sotsialisticheskii
Vestnik (“Mensageiro Socialista”), no qual os líderes mais influentes eram Fedor
Dan, que se inclinou cada vez mais pela URSS e que faleceu em 1947, e Rafail
Abramovich, mais firmemente antissoviético, que morreu em 1963.
Depois que Lenin faleceu, os mencheviques apontaram suas baterias para os
métodos antidemocráticos de Stalin, realçando, entre outras coisas, seu afastamento
das posições de Lenin. Por exemplo, enquanto saudaram a Nova Política
Econômica, em 1921, alguns mencheviques também advogaram uma nova linha
política que evitasse a emergência de uma tendência bonapartista no partido.5
Observaram que um pequeno número de pessoas exercitava o poder em nome do
partido bolchevique, ao passo que o crescente papel de um só homem à sua frente
ameaçava com a degeneração. De acordo com Abramovich, só um estado que
contemplasse o pluralismo poderia ser o garantidor da democracia. Os
mencheviques anteviram duas possibilidades negativas no desenvolvimento da
URSS, ou a contrarrevolução ou a falsa revolução, e perceberam claramente que
Stalin optara pela segunda alternativa. A essência do stalinismo, asseveraram,
repousava em sua rejeição às tradições da social-democracia.
Contudo, depois da revolução, os mencheviques não constituíram uma força
unida política ou ideológica. Sua influência decaiu continuadamente. Ao longo do
processo, Dan afastou-se da maioria, fundou seu próprio jornal, o Novyi Mir
(“Novo Mundo”), em 1939 e, durante a guerra, propagou a ideia de que, depois da
derrota do fascismo, a União Soviética retornaria ao socialismo autêntico. No seu
trabalho principal, As origens do bolchevismo, escrito pouco antes de sua morte,
afirmou que Stalin fracassou em combinar socialismo e democracia, mas também
defendeu a ideia de que o socialismo não começava e terminava com Stalin e que era
capaz de trazer liberdade para o povo.6
Os inúmeros “desvios”, “oposições” e “frações” que irromperam depois da
Revolução de Outubro, por mais inconsistentes que fossem algumas de suas
proposições, tiveram pelo menos o mérito de oferecer alternativas e, sem dúvida, foi
a abolição desse pluralismo revolucionário que privou a sociedade da possibilidade
de renovação histórica. Mencheviques internacionalistas como Martov, Ermansky e
Astrov não foram inimigos da revolução, e o mesmo se pode dizer dos
revolucionários socialistas, que formaram seu partido no final de 1917. Foi
precisamente a negação de qualquer outro ponto de vista que lançou as sementes do
dogmatismo futuro e do mando monolítico. Muitas ideias sobre democracia, Nova
Política Econômica, campesinato, comércio, estruturas do partido e do estado não
foram aplicadas porque a maioria partidária fixou-se naquilo que foi considerado a
linha ortodoxa. As visões sobre a realidade foram enquadradas numa dicotomia de
preto e branco. Porém, no início, houve pluralismo revolucionário, como quando os
bolcheviques e os SR concordaram em formar uma coalizão, em dezembro de 1917.
A verdade é que tal pluralismo revolucionário era insuficiente na política prática
e o que restou dele foi logo impiedosamente destruído. Stalin foi o homem certo
para a consecução desta tarefa, mas, como vimos, não houve uma verdadeira batalha
para resistir ou mudar a direção do processo político. Bukharin veiculou diversas
ideias interessantes, se bem que fosse mais tarde forçado a renegá-las. No entanto,
isto não indica que Stalin e o stalinismo estavam de alguma forma
“predeterminados” a emergir. Pelo contrário, o que sinalizamos aqui é que o
stalinismo floresceu quando as ideias formuladas por Marx em meados do século
XIX, e na ausência de outras alternativas revolucionárias, foram transformadas em
dogmas e em absolutos. A abolição do pluralismo revolucionário deslanchou o
monopólio da verdade social e do poder político. A metamorfose de aliados e de
críticos construtivos em inimigos conduziu à substituição da democracia
revolucionária pela burocracia totalitária.
Enquanto o partido não deteve o poder, tal abordagem não ameaçou causar
grande dano, porém, ao se tornar o partido governante sob Lenin, a aplicação do
dogma teve seus efeitos destrutivos. Stalin foi além, pervertendo os princípios
socialistas, promovendo uma visão unidimensional do mundo e sancionando o
emprego dos meios mais radicais para a concretização de objetivos definidos, os
quais, eles mesmos, se deformaram no processo.
A consolidação do stalinismo como um fenômeno passou por diversos estágios.
O primeiro foi a “surdez” dos camaradas de Lenin em relação ao seu “Testamento”.
Provavelmente, então, Stalin sentiu pela primeira vez que o Olimpo do poder estava
ao seu alcance. O segundo estágio foi o período de 1925 a 1929, quando a
estabilização do mundo capitalista coincidiu com a emergência da estrutura
burocrática da URSS e a expulsão de Trotsky. Num nível um pouco acima ficou a
coletivização e o fim da linha moderada no Comitê Central. Foi neste estágio que o
stalinismo, com o uso da coação em massa, conseguiu vantagem sobre os caminhos
alternativos para o desenvolvimento. No estágio seguinte, que levou ao XVII
Congresso, Stalin se preparou para sua “coroação” como único líder. A partir de
então, o stalinismo foi simplesmente endurecendo sua embalagem de ortodoxia.
O stalinismo não foi mera enfermidade mental ou social, foi a negação dos
valores humanos. Transformou-se numa espécie de religião terrena, exigindo que o
povo depositasse confiança nela e só nela. A partir do início dos anos 1930, é
impossível descobrir qualquer vestígio de desacordo com os dogmas stalinistas e, já
em 1927, o partido adotou o Código de Leis, no qual o primeiro capítulo continha
o notório Artigo 58* com suas dezoito “emendas”.7 Ninguém questiona a ideia de
que o estado deve defender seus interesses, mas quando uma opinião oficiosa era
definida como “propaganda ou agitação antissoviética” e punida da maneira mais
severa, então a lealdade à ideologia de Stalin, em palavras e ações, tornava-se a única
forma de adaptação e sobrevivência, e mesmo isto nem sempre ajudava quando o
machado já estava em posição.
Um vasto fosso se abriu entre a atividade social genuína e sua imitação. A partir
de então, tudo passou a ser completamente organizado: que brindes deveriam ser
levantados durante as reuniões do Komsomol ou dos sindicatos, que “iniciativas”
poderiam ser tomadas, que discursos eleitorais feitos e para quais audiências, que
retratos e em qual quantidade poderiam tomar parte nas manifestações, quantos
“voluntários” deveriam ser enviados para os locais de “trabalhos de choque”, a quem
os relatórios deveriam ser mandados e sobre o quê – tudo era decidido de cima para
baixo. As pessoas gradualmente se acostumaram a ter alguém pensando por elas.
Delas só se pedia “aprovação”, “aplauso” ou “apoio”.
Além de cada decisão partidária, estatal ou organizacional ter que ser submetida
a ele, Stalin também era chamado a inventar slogans para os escritores. Em 2 de
janeiro de 1936, A.S. Shcherbakov, então primeiro-secretário do comitê do partido
em Moscou e secretário do sindicato dos escritores, escreveu a Stalin:

No interesse da causa, devo perturbá-lo para solicitar ajuda e aconselhamento. Trabalhos bastante bons
foram escritos por Korneichuk, Svetlov, Levin, Yanovsky, Leonov, Avdeyenko. Alguns velhos mestres do
“silêncio”, como Falko, Tikhonov, Babel e Olesha, começaram também a dizer alguma coisa. Novos nomes
apareceram: Orlov, Kron, Tvardovsky. No geral, entretanto, o atraso na literatura não foi compensado. A
crítica não ajuda. Um escritor (Vinogradov) falou sobre suicídio depois de ser cruelmente atacado. E o crítico
em questão (Yermilov) disse em resposta: “Se pessoas como essas se envenenarem, ninguém se importará.”
Esta é a posição na literatura. O necessário agora é um slogan concreto e militante para mobilizar os
escritores. Ajude-nos, Camarada Stalin, a encontrar o slogan.8

Tendo, em meados dos anos 1930, desviado sua atenção principal do Comitê
Central para a NKVD e para o exército, Stalin, ao fim da guerra, foi
particularmente pródigo com as medalhas e ordens que conferiu aos oficiais mais
antigos daquelas armas. Beria, que foi feito marechal da União Soviética em 1945,
recebeu muitas outras altas honras militares e, em 7 de julho de 1945, Stalin
aprovou a solicitação de Beria ao ministério para promover sete chefes de polícia e
de segurança ao posto de coronel-general: V.S. Abakumov, S.N. Kruglov, I.A.
Serov, B.Z. Kobulov, V.V. Chernyshev, S.A. Goglidze e K.A. Pavlov.9 Generais da
ativa no front jamais receberam tais sinais de amor “em massa” do presidente do
comitê de defesa.
Era uma lei não escrita da ditadura que a tensão deveria ser mantida durante
todo o tempo sobre os funcionários dos altos escalões do aparato. Stalin acreditava
que a autoridade deveria inspirar não apenas respeito, mas também medo, e
introduziu regras não oficiais de conduta mesmo para o círculo mais íntimo de
camaradas em armas. Por exemplo, eles sabiam que não deveriam se reunir em
grupos de dois, três ou mais, sem sua permissão, seja em casa, em suas villas ou em
seus escritórios. As únicas exceções para tal regra eram Beria e Molotov que,
normalmente, viajavam juntos no mesmo carro para a dacha de Stalin. Se houve
encontros entre os outros membros, foi na casa de Stalin e a convite dele.
Como sistema de governo, o stalinismo baseava-se primordialmente em
relatórios recebidos das organizações, em particular das agências de polícia e de
segurança. Exemplificando, depois da guerra, Stalin interessou-se pela Academia de
Ciências. Beria reportou que corria que seu presidente ficava constantemente
doente, que sua pesquisa não tinha padrão elevado e que o trabalho dos outros
acadêmicos merecia também investigação. Stalin requisitou informações e breves
descrições de outros cientistas e, logo depois, as pastas já estavam sobre sua mesa.
Desnecessário dizer que as pastas não foram compiladas na administração da
Academia ou no comitê do partido, mas numa divisão da Segurança Estatal. Um de
tais documentos inclui as seguintes anotações:

Acadêmico Vavilov, S.I. – físico, está no auge de sua capacidade. Irmão de N.I. Vavilov, o geneticista que foi
preso em 1940 por sabotagem na agricultura, sentenciado a quinze anos e morreu na prisão de Saratov.
Acadêmico Lysenko, T.D. – não filiado ao partido, diretor do Instituto de Genética. Presidente do Instituto
de Ciência Agrícola, por duas vencedor do Prêmio Stalin. O acadêmico Lysenko não desfruta de respeito,
inclusive do presidente [da Academia] Komarov. Todos o culpam pela prisão de N.I. Vavilov.10

O stalinismo levou a primazia do estado sobre a sociedade a limites absurdos. Era


um sistema que dependia de vasta e poderosa burocracia em todos os níveis e em
todas as esferas, e, dentro de um ambiente de absolutismo político, as decisões do
líder foram ficando cada vez mais divorciadas da realidade econômica. O stalinismo
foi, acima de tudo, a separação entre pensamento e ação, teoria e prática, a divisão
da mente, tornando possível que as pessoas dissessem uma coisa e fizessem outra. A
corrupção mais profunda do sistema stalinista foi a remoção do homem, como tal,
do centro dos objetivos da sociedade, e sua substituição pelo estado, como uma
máquina que amplificava apenas um homem. O homem foi trocado por um aparato
sem rosto, fato observado, entre outros, pelo ex-comunista Victor Serge, que
escreveu em 1937 que “no estado stalinista o homem não vale coisa alguma”.11
Nota

* Lei contra a disseminação de propaganda antissoviética, que foi largamente interpretada como inclusiva de
qualquer crítica ao sistema, falada, escrita ou mesmo insinuada.
[56]
Dogmas mumificados

O dogmatismo foi um dos mais importantes pilares do stalinismo. Era um


atributo capaz de gradualmente conduzir o estudo da sociedade e, na
ocasião devida, a própria sociedade a um beco intelectual e psicológico
sem saída. Velho mestre do pensamento dogmático, Stalin sabia como matar as
proposições marxistas e mumificá-las em clichês deformados.
Típico do tirano, Stalin selecionou quais das proposições de Marx deveriam ser
mumificadas; ele próprio determinou o que poderia ou não ser publicado das obras
dos fundadores do marxismo. Os arquivos registram muitos requerimentos para
publicar essa carta de Lenin ou aquele fragmento de um manuscrito de Marx ou
Engels. Em junho de 1939, por exemplo, M.B. Mitin, diretor do Instituto Marx-
Engels-Lenin, pediu a autorização de Stalin para publicar duas cartas de Lenin para
Inessa Armand na edição seguinte do Bolshevik. Tais cartas expressavam a reação
hostil de Lenin à formação do Governo Provisório em Petrogrado, em seguida à
derrubada do czar, em 1917. Stalin escreveu “Nenhuma objeção”. Mas o Instituto
nem sempre conseguiu permissão com tanta facilidade. Em julho de 1940,
Zhdanov, Mitin e Pospelov ficaram em dúvida sobre um artigo de Engels, “Sobre a
política externa do czarismo russo” e o submeteram à opinião de Stalin. O
secretário-geral leu o trabalho e fez os seguintes comentários à margem do
documento: “Vileza agressiva não é monopólio dos czares russos”, “ele exagera o
papel da política externa na Rússia”, “ao atacar a política externa czarista, [Engels]
resolveu privá-la de qualquer crédito aos olhos da opinião pública europeia”. E
concluiu: “Considerando tudo isto, será que vale a pena publicar o artigo de Engels
em nosso órgão militante, o Bolshevik, seja como artigo de fundo em todos os
aspectos, seja como artigo profundamente instrutivo, já que sua difusão no Bolshevik
representaria uma recomendação não verbal? Acho que não.”12
A verdadeira enciclopédia do dogmatismo, a miscelânea de múmias, meias
verdades e inverdades, foi a notória História do partido, curso resumido, que saiu em
mais de trezentas edições e cerca de 43 milhões de exemplares, e se transformou em
leitura fundamental para os cidadãos soviéticos adultos da mesma forma que o
Corão para os muçulmanos engajados. Um grupo de historiadores, inclusive Knorin
(que logo seria preso), Pospelov e Yaroslavsky, dispôs-se a escrever o Curso resumido,
de acordo com uma instrução do Politburo de 16 de abril de 1937. O livro se
baseou na divisão que o próprio Stalin fez da história do partido em períodos e de
sua definição da característica principal como “a luta bolchevique contra as facções
antibolcheviques”.13 Os capítulos eram enviados regularmente a Stalin, à medida
que ficavam prontos, como também diversas diagramações do livro. Ele, com efeito,
distorceu cada capítulo para adaptá-lo à noção básica da história do partido como
sendo a de uma luta interna. À sua frente, punha-se o verdadeiro camarada em
armas e herdeiro da causa de Lenin-Stalin. A julgar pela quantidade e natureza de
seus comentários marginais, Stalin deve ter devotado muito tempo à sua “história”,
sabendo que ela iria constituir um mecanismo importante para assegurar sua
influência duradoura sobre a mente de milhões.
Semelhante infusão ideológica, dogmática e anti-histórica como o Curso
resumido levou ao pauperismo espiritual e ao primitivismo intelectual. Stalin
preparava o terreno junto a uma ampla camada de povo que pensava em termos
elementares, pessoas que iriam proporcionar um suprimento constante de
carreiristas, informantes, oportunistas e funcionários estúpidos para seu sistema. Foi
exatamente este estrato que preencheu os cargos do aparato burocrático, as divisões e
órgãos punitivos em todos os níveis. Os arquivos de Malenkov mostram que
milhares e milhares de pessoas eleitas automaticamente pelos plenários passaram por
suas mãos para trabalhar no partido, nos órgãos do ministério do Interior e na
administração de outros ministérios. Os critérios para a determinação da
maturidade intelectual e teórica eram a ausência de comentários comprometedores
da parte dos órgãos de segurança e o conhecimento do “livro de referência” de
Stalin. Ocasionalmente, os candidatos a cargos eram convocados a Moscou para
entrevista com Malenkov, o qual, confortavelmente reclinado em sua cadeira de
braços, inflava pomposamente as bochechas e arremessava com ares professorais:
“Que desvio é o mais perigoso?” ou “Quando e onde o Camarada Stalin disse que
‘Os quadros determinam tudo?’”
A energia intelectual do Curso resumido foi suficiente por mais de uma década.
Antes da guerra, dominou a mente pública não só porque os propagandistas fizeram
bom uso dela, como também porque milhões de pessoas, como já dissemos,
pareceram nela encontrar uma avaliação pré-digerida e simples de toda uma época.
A maioria das pessoas não se dava conta de que a imagem pintada era distorcida ao
extremo. O sistema de educação política instilou o pensamento dogmático através
de toda a sociedade. O expoente mais apaixonado da linha stalinista nessa esfera foi
Zhdanov.
Stalin cedo percebeu o potencial de Zhdanov. O jovem secretário do partido na
província de Nizhni Novgorod (que recebeu o nome de Gorky, em 1932) foi o
robusto tipo de organizador comunista característico daquele tempo. Candidato a
membro do Comitê Central em 1925,* em 1929, com 33 anos de idade, foi
convocado ao Kremlin por Stalin, onde causou viva impressão. O secretário-geral
questionou-o sobre a situação em Nizhni, sobre o estado de espírito da população e
sobre a reação popular quanto à expulsão de Trotsky do partido.
Na próxima oportunidade que se apresentou, uma conferência do partido no
distrito de Sormovo de sua província, Zhdanov pronunciou um discurso no qual
conclamou os integrantes a permanecerem em guarda contra o perene perigo dos
trotskystas que ainda infestavam o partido.14 No XVII Congresso, que teve lugar no
ano seguinte, ele se tornou membro pleno do Comitê Central e, depois disto, sua
carreira foi meteórica. Recebeu a incumbência da organização do partido em
Leningrado, depois do assassinato de Kirov e, simultaneamente, foi feito secretário
do Comitê Central. Em fevereiro de 1935, foi eleito candidato a membro e, em
1939, membro efetivo do Politburo. Sua relação com Stalin era bastante próxima e
os dois chegaram ao parentesco quando o filho de Zhdanov, Yuri, casou-se com a
filha de Stalin, Svetlana, embora o matrimônio durasse pouco. Stalin gostou
também da atuação de Zhdanov como membro do soviete de guerra em Leningrado
e, em 1944, promoveu-o a coronel-general, posto atingido por poucos do setor
político naqueles dias.
No fim da guerra, de certo modo, testou Zhdanov no front diplomático quando
o encarregou de negociar um tratado de paz com os finlandeses. Em 18 de janeiro
de 1945, Zhdanov informou Stalin e Molotov por telegrama “urgentíssimo” que
tivera naquele dia uma conversa particular de duas horas com o marechal de campo
Mannerheim:

Mannerheim disse que, depois de muitos anos de hostilidades, chegou a hora de uma mudança radical nas
relações entre nossos dois estados. Linhas de defesa contra a URSS são inúteis, disse ele, se não existem boas
relações. Afirmou que não quis a guerra em 1939, nem em 1940-41, e que não esperou um bom resultado,
mesmo antes de elas começarem. Expressou concordância com a colaboração na defesa do litoral, mas
defenderia ele mesmo o interior do país. Perguntou se havia tratados-padrões e respondi que o tratado com a
Tchecoslováquia poderia ser considerado como tal. Aguardo instruções.15

Não foi Stalin, e sim Molotov quem respondeu bastante concisamente:


Você foi muito longe. Um pacto com Mannerheim do tipo que temos com a Tchecoslováquia é música para
o futuro. Temos que restabelecer primeiro as relações diplomáticas. Não amedronte Mannerheim com
propostas radicais. Esclareça apenas sua posição.

No dia seguinte, Zhdanov reportou de novo para Stalin que havia se encontrado
com Mannerheim:

Disse-lhe que um pacto do tipo que tínhamos com a Tchecoslováquia era “música para o futuro”, seguindo-
se ao restabelecimento de relações diplomáticas. Mannerheim disse que entendia: a Finlândia estava sob
vigilância como um país que ainda não podia ter relações de uma espécie diferente com a URSS. Ele ficou
obviamente desapontado.16

Como era de seu costume, Stalin testara Zhdanov e seu próprio julgamento das
pessoas. Algumas vezes, testava seus auxiliares por longo tempo, em certos casos,
durante a vida toda, mas jamais esquecia um erro importante. Zhdanov sempre
justificou a confiança que Stalin nele depositava, embora seja também verdade que,
se não tivesse falecido subitamente, em 1948, aos 52 anos de idade, provavelmente
seria também engolfado pelo massacre de Leningrado, que ele próprio desencadeara.
O filho, Yuri, afirma que Stalin estava esfriando a relação com seu pai, justamente
como o fez com Voznesensky, Kuznetsov e, mais tarde, também com Molotov.
Contudo, a atitude de Stalin com respeito a Zhdanov só pode ser julgada por
evidências circunstanciais.
Durante seu tempo no Comitê Central, Zhdanov demonstrou ser um severo e
implacável zelador da ideologia e da cultura. O dogmatismo foi inculcado não só
por meio da deificação do “gênio criativo do líder” como também pela instalação de
todo um sistema de proibições relativas ao pensamento: o que podia ou não ser
exibido nas telas dos cinemas, o que os produtores de teatro não podiam encenar, o
que os escritores podiam ou não escrever, os músicos, tocar, os filósofos e
historiadores, debater. Os tabus eram incontáveis. A vida cultural depois da guerra
caiu de novo no marasmo, antes de receber a chance de descongelar após o pesadelo
de 1937-38.
Naquelas condições, as ciências sociais só podiam vegetar. As explanações
primitivas da ocasião só fizeram matar a alma do academicismo e limitar seriamente
sua esfera de influência. Como mencionamos, desde o final dos anos 1930, só era
possível comentar sobre o que Stalin dizia. De inexperientes cientistas sociais a
acadêmicos de renome, a “pesquisa” de todos se resumia ao mesmo tema: o papel de
I.V. Stalin no desenvolvimento da economia; o significado de Problemas econômicos
do socialismo na URSS, de I.V. Stalin, para o desenvolvimento da filosofia; I.V.
Stalin sobre a teoria do estado e a lei; a contribuição decisiva de I.V. Stalin para o
desenvolvimento da ciência militar. Um exame superficial das bibliotecas revelou
mais de quinhentos livros e artigos sobre estes e temas análogos, escritos entre 1945
e 1953. O pensamento científico se encontrava refém de dogmas primitivos e
plúmbeos, e o esforço criativo, atrofiado.
As ciências naturais e técnicas não sofreram menos. O desenvolvimento da
genética atrasou-se décadas e a cibernética foi banida, porque as novas ideias e os
novos campos do aprendizado eram orientados por pontos de vista grosseiros, senão
totalmente ignorantes. A caça aos “cosmopolitas”, na maior parte das vezes
codinome dos judeus (ver adiante), condenou as ciências a isolamento ainda maior
do mundo intelectual. Artigos como “Cosmopolitismo a serviço da reação
imperialista”, publicado no jornal governamental, o Izvestiya, em 18 de abril de
1950, mataram qualquer desejo dos cientistas soviéticos de fazerem contato com
estabelecimentos estrangeiros de pesquisas. A menção a um cientista soviético numa
revista científica estrangeira ou um convite para congresso internacional podiam ser
desastrosos.
A tentativa de transferir mecanicamente as formulações de Stalin para o
desenvolvimento da biologia foi equivalente à morte dos esforços soviéticos neste
campo, e se tivesse continuado por mais cinco anos, ou perto disso, a ciência como
um todo teria descarrilado completamente. Naquelas circunstâncias, foram pessoas
como T.D. Lisenko que se aproveitaram do ditado de Stalin – “Precisamos de
resultados práticos imediatos na ciência” – para chegar ao topo. No que tange a
Stalin, as ciências constituíam um mundo mágico, misterioso e de alquimias, de
alguma forma conectado com as conquistas do novo. A ele parecia que a principal
coisa sobre a ciência era como organizá-la. Acreditava que o trabalho científico
poderia até ser realizado no Gulag, se adequadamente organizado e, de fato, os
resultados mostraram-lhe que não estava de todo errado. Aqueles que considerou
perigosos ou que não trilharam seus caminhos dogmáticos ou foram destruídos sem
misericórdia ou foram se juntar à vasta população dos acampamentos, entre os quais
estavam possuidores das mais refinadas mentes científicas do país.
Os cientistas cujas vidas foram poupadas passaram a trabalhar nos laboratórios
dos campos e prisões – sharashkas – sob a supervisão da 4ª Seção Especial do
Ministério do Interior. Nesta área, Stalin adotou uma orientação puramente
pragmática, ou seja, a visão do mundo e as opiniões políticas dos sentenciados não
tinham a menor importância. O que interessava eram os resultados rápidos, e,
quando eles eram conseguidos, Stalin era capaz até de demonstrar alguma
benevolência, reduzindo às vezes a sentença e mesmo libertando o prisioneiro. A
agência de Beria mantinha Stalin constantemente informado sobre o trabalho dos
cientistas nas prisões e nos campos. Em 18 de maio de 1946, por exemplo, Kruglov
reportou que:

Um grupo de prisioneiros cientistas, inclusive o professor K.I. Stakhovich, o professor A.Yu. Vinblat e o
engenheito G.K. Teifel, vem trabalhando há muito tempo na construção de um motor nosso turbo-
propulsado. Fundamentando o trabalho em suas próprias pesquisas teóricas, o grupo propõe a construção do
motor TRD-7B. Solicito que seja apreciada a minuta de decreto do Conselho de Ministros.17

E, em 8 de fevereiro de 1951, Kruglov reportou que:

Em 1947, o prisioneiro especialista A.S. Abramson (sentenciado a dez anos) propôs um sistema novo e
original para um carburador econômico de automóveis. Os testes no ZIS-150 produziram uma economia de
combustível da ordem de 19%. Sugiro que A.S. Abramson, o engenheiro mecânico M.G. Ardzhevanidze e o
engenheiro construtor G.N. Tsvetkov tenham suas sentenças reduzidas de dois anos. Aguardo suas
instruções.18

Stalin deu seu consentimento.


No ginásio, os estudantes eram testados particularmente em sua capacidade de
sintetizar as obras de Stalin. Lembro-me de ter sido retido pelo professor quando
frequentava a escola de blindados de Orel. Ele era um tenente-coronel, não mais um
jovem, do qual a classe gostava por causa de seu temperamento afável. Quando
ficamos sozinhos, ele entregou-me o trabalho que eu fizera, que era uma síntese das
fontes, e disseme numa voz calma e paternal: “É um bom sumário. Vi logo que você
não se limitou a copiar, mas pensou sobre o assunto. Agora, meu conselho é:
sintetize as obras de Stalin mais completamente. Entendeu? Mais completamente! E
outra coisa, na frente do nome Iosef Vissarionovich não escreva ‘Cam.’ Escreva
‘Camarada’ por extenso. Entendeu?” Naquela noite, um de meus companheiros de
alojamento disseme que todos tiveram conversas semelhantes com o professor da
história do partido. Os exames se aproximavam e havia rumores que numa escola
vizinha “tinham prestado atenção” à espécie de “imaturidade política” que eu
demonstrara em meus sumários.
Nota

* Candidatos a membro não tinham direito a voto. [N. T.]


[57]
Burocracia absoluta

T odos os estados necessitam de uma administração. A burocracia, na acepção


com que a empregamos para o sistema stalinista, surge onde a
administração civil se divorcia do funcionamento econômico do estado e
onde o sistema carece de métodos democráticos de autorregulação. Nos primeiros
dias do regime soviético, pareceu que os executores da política bolchevique não
constituíram uma grande ameaça neste particular. Pouco depois da Revolução de
Outubro, Lenin, refletindo sobre o novo aparato, disse: “No interesse do povo, ele
não deve abrigar qualquer espécie de burocratismo.”19 Mesmo então, ficou evidente
que o aparato representava um perigo mais sério que o admitido. Sabemos que, nos
momentos difíceis, Lenin podia ser muito rigoroso com a burocracia. Em janeiro de
1919, disse: “Uma atitude burocrática em relação ao trabalho, ou a incapacidade
para ajudar os trabalhadores que passam privação, será severamente punida,
podendo chegar a ponto de fuzilamento.”20
O aparato cresceu no processo de consolidação do regime soviético, em especial
durante o período do Comunismo de Guerra, de 1918 a 1921. Neste período, foi
visualizado o controle total da produção, da distribuição e do consumo, e foi um
sistema que requereu o emprego de muitas, muitas pessoas. Novos elementos da
estrutura estatal foram criados, novos vínculos de intermediação, coordenação e
conexão, e assim por diante. O sistema cresceu a um ritmo alarmante sob Lenin,
absorvendo uma quantidade considerável de energia para garantir o próprio
funcionamento. Se Stalin se especializou em alguma coisa naqueles estágios iniciais,
foi no campo da organização. Chefe de dois comissariados e membro antigo do
Comitê Central, de sovietes, comissões e comitês, ele logo percebeu os pontos fortes
e fracos, bem como as possibilidades, das organizações administrativas e partidárias.
Nomeado secretário-geral, Stalin determinou que o aparato formulasse um
sistema para a classificação dos cargos nos comissariados que, com o tempo,
desenvolveu-se na notória nomenklatura. Por suas ordens, por exemplo, em fevereiro
de 1923, o administrador-chefe do comissariado das Nacionalidades, Brezanovsky,
preparou um documento intitulado “Disposição dos cargos de acordo com as
gradações na estrutura administrativa do Comissariado do Povo para as
Nacionalidades”. As chefias de departamentos foram divididas em quatro grupos:
problemas nacionais, serviços econômico-administrativos, trabalho político-
científico-educacional e publicações literário-científicas. Os trabalhadores do partido
foram classificados como qualificadíssimos, altamente qualificados e de média e
baixa qualificação; dois ou três cargos foram listados como acessíveis a não filiados
ao partido. O sistema de gradações, que Stalin aprovou, subdividiu a organização
crescente de acordo com faixas precisas (similar às gradações inventadas por Pedro, o
Grande, para o antigo funcionalismo civil czarista), cortando assim os laços já fracos
que uniam o comissariado aos problemas reais das nacionalidades e dos grupos
étnicos.21 Com efeito, então, ao se tornar secretário-geral, Stalin pôs-se a organizar
um vasto e abrangente exército de funcionários.
Como especialista em burocracia, Stalin rapidamente fez uso de um dos
principais truques do ofício burocrático, o da inacessibilidade. Um pleno de 1922
estabeleceu os dias e as ocasiões em que o secretário-geral despacharia, mas Stalin
logo abandonou a prática e, já em 1924, havia reclamações, por exemplo, para
Yenukidze, de que “é impossível chegar ao Camarada Stalin”.22
Nas suas últimas cartas, Lenin lançou um ataque à burocracia crescente,
percebendo dano não só na sua proliferação – ele se referiu a pragas como
“gafanhotos do funcionalismo” e “ratos burocráticos” – mas, em particular, no
modo com que ele tomava o lugar da participação popular. Acreditou que a maneira
de limitar o poder da burocracia era carrear para a direção mais operários e
camponeses. Nos dias de hoje, é evidente, sabemos que esta seria também uma
medida inadequada, uma vez que todos, na burocracia soviética presente, têm
“sangue do povo”, e ninguém se refugia lá por causa de sua origem social, como se
costumava dizer depois da revolução. Lenin confiou também num expurgo no
partido para que ele ficasse livre daqueles que “não apenas eram incapazes de bater-
se contra a burocracia e o suborno, mas que impediam que outros os
combatessem”.23 Sua solução principal era a de elevar a cultura do povo como um
todo. As pessoas não tinham que depender do aparato, e sim o contrário. Escreveu
com amargura: “Veja quantas leis formulamos! Então, por que não estamos
vencendo essa guerra? Porque a propaganda não é suficiente, e só poderemos vencer
se as próprias massas ajudarem.”24
Na segunda metade dos anos 1920, dois conceitos alternativos surgiram. Um
deles era personificado por Bukharin, que advogava taxas relativamente moderadas
de desenvolvimento, tanto na indústria quanto na produção cooperativa; o outro era
bancar um salto para a frente sem paralelos na indústria e na agricultura. Este
último encontrou sua expressão mais completa em Stalin. Seria impossível
concretizar tal avanço com a utilização apenas de métodos econômicos. Era,
portanto, necessária a administração coercitiva, e isto, de forma inexorável, levou à
proliferação e ao entrincheiramento de um amplo estrato burocrático. Como a
tarefa seria cumprida principalmente às expensas da gente do campo, a coerção ficou
efetivamente predeterminada. Talvez certas medidas administrativas se fizessem
necessárias em determinado estágio, mas a repressão não era uma delas. Todavia,
Stalin sabia que Lenin havia escrito: “Seria o maior erro pensar que a NEP deu um
fim ao terror. Retornaremos a ele e ao terror econômico.”25
Tendo se livrado dos oponentes, Stalin optou pela alternativa coercitiva, e a
criação do sistema burocrático seguiu-se automaticamente. O recurso à compulsão
não econômica criou um “Estado” que não dependia da quantidade ou da qualidade
da produção, mas, em grande medida, de arranjos políticos. A burocracia conferiu,
maquinalmente, prioridade aos meios políticos e ideológicos para exercer força sobre
as massas, colocando as alavancas econômicas em segundo ou terceiro lugar. O
estado socialista perdeu rapidamente os vestígios de democracia que possuía.
Desde o começo, muitos líderes bolcheviques eram favoráveis à ditadura sem
democracia. Em 1922, Trotsky escreveu que “se a revolução russa [...] tivesse se
autolimitado com os grilhões do democratismo burguês, estaria há muito tempo
jogada na rua com o pescoço cortado”. Ele nem mencionou a democracia socialista
porque acreditava que ela só viria quando a revolução se alastrasse para outros
países. Os bolcheviques que estavam imbuídos da ideia da ditadura do proletariado
– talvez porque não vissem outro caminho para o poder – e que exibiam seu
radicalismo como marca registrada da inclinação revolucionária, tinham a intenção
clara de resolver os problemas da Rússia por meios violentos.
A maioria das pessoas, ainda hoje, vê a burocracia como formalidades, empurra-
empurra de papéis e obstruções. Esta era a maneira com que muitos revolucionários
também a viam àquela época. Falando em 28 de maio de 1926 na Terceira
Conferência de Toda a União de correspondentes de cidades e vilas, Trotsky definiu
o burocratismo em termos relativamente estreitos de servilismo, oportunismo,
conservantismo e coisas do gênero.26 Se bem que estas eram – e são – características
do excesso de burocracia, tal definição esconde seu principal atributo, isto é, a
substituição das forças democráticas pela organização todo-poderosa. Em setembro
de 1927, numa sessão do comitê executivo do Comintern, Trotsky – e isto deve lhe
ser creditado – previu com maior acuidade que “o regime burocrático levará
irreversivelmente ao mando de uma só pessoa”.27
Nem todo o mundo percebeu que isto aconteceria, e os que perceberam não
foram ouvidos. Poucos minutos depois de Trotsky fazer sua declaração profética,
Bukharin já o atacava. “Devemos perguntar a Trotsky por que ele não toma a
posição de sentido ante o partido, como um soldado?” Ao que Trotsky replicou:
“Vocês mantêm o partido preso pelo pescoço.”28 Bukharin não se apercebera de que
a mão do ditador começava a apertar impiedosamente não só o pescoço do partido
como também o do povo e, na verdade, também o dele.
A essência da forma stalinista de burocracia foi sua totalidade. Este processo era
expresso pelas leis não escritas que começaram a governar todo o estado, órgãos do
partido e do judiciário, e organizações públicas. A impressão era a de que a
burocracia sintetizava tudo numa só entidade unitária, coagulada, pegajosa,
invulnerável e onipresente; cada elemento do sistema, cada funcionário realizava
apenas o que lhe era prescrito, permitido ou ordenado. Num sistema assim, era o
poder das instruções, das diretrizes, das ordens que imperava, que encerrava a
ameaça de punição, condenação e ostracismo, e que encorajava a ação de feitores
zelosos e funcionários vigilantes. O produto final tinha a aparência de uma
administração coletiva.
A burocracia total era independente da oportunidade econômica, venerada no
santuário do aparato ubíquo. Qualquer que fosse o problema ou a deficiência, a
solução era criar uma nova agência, uma nova organização, e o resultado, apesar das
instruções para que se reduzisse o aparato administrativo, foi que ele cresceu ainda
mais rapidamente, pois um sistema administrativo não pode ser combatido com
métodos administrativos. Somente os meios econômicos, sociais e políticos
poderiam livrar a sociedade do burocratismo, ainda mais quando ele se mostrava tão
multifacetado, com seus incontáveis títulos, gradações, postos e funções que
chegavam às misteriosas alturas dos escalões do topo, onde era – e ainda é –
impossível encontrar um funcionário “responsável”.
Este sistema burocrático, que emergiu gradualmente, inculcou uma mentalidade
correspondente na sociedade toda. As pessoas tornaram-se parte dele, até se
acostumaram, e, com o tempo, passaram a associar seu próprio estilo de realizar as
coisas com uma das “vantagens” do socialismo. Este assunto traz algumas
dificuldades. Seria errado negar que muito foi conseguido na vida social e cultural
do país: emprego, seguridade social (embora em nível bem baixo), educação
universal de calibre bastante alto, rudimentos de cultura para grandes massas,
tratamento médico (de qualidade pobre) grátis, preços baixos para itens básicos de
alimentação, aluguéis irrisórios para apartamentos (desconfortáveis) estatais,
colônias de férias para as crianças, jardins de infância e creches a preços nominais e
várias outras amenidades sociais. A tendência de uma gradual e perceptível melhora
inspirava o povo.
Não que estes “sucessos” devessem ser atribuídos à liderança de Stalin. A labuta
árdua e ilimitada do povo soviético estava predestinada a dar frutos. Não havia
óbvias corrupção generalizada ou decadência moral entre os grupos dirigentes que se
destacaram depois da morte de Stalin. De fato, a atmosfera geral passava a impressão
de uma sociedade que desfrutava de bem-estar público com padrões morais
saudáveis.
A ordem totalmente burocrática parecia também ser conveniente às massas, e por
diversas razões. Algumas gerações cresceram sob a liderança de Stalin. Não
conheciam outra forma de socialismo, como também não tinham ideia formada
sobre o mundo que existia do outro lado da cortina ideológica. A maioria das
pessoas pensava que os operários do mundo capitalista viviam na pobreza; a elas era
constantemente dito que a moral do Ocidente era bárbara e que a União Soviética
era superior em quase todos os aspectos ao “mundo livre”. Tratava-se de uma crença
arraigada que fora criada e sustentada por uma vigorosa máquina de propaganda.
Desta forma, a burocracia total podia muito bem ser propícia a um povo
acostumado com a falta de liberdade, mentiras e sigilo, uma vez que ela prescrevia,
determinava e organizava tudo. Numa certa medida, também garantia uma partilha
justa de bens. Da mesma forma, a burocracia total era conveniente para os
executivos e seus chefes, pois facilitava a formação de uma perspectiva simplista e
igualitária.
Com frequência, é dito nos dias de hoje que, ao tempo de Stalin, havia ordem,
certeza sobre o amanhã, cumprimento completo do plano, lento, mas seguro,
aprimoramento do padrão de vida. As pessoas desconsideram com facilidade o fato
de que naquela época estava também sempre presente o medo do castigo e da prisão,
e que ele era suficiente para sustentar a produção econômica e o funcionamento das
instituições estatais. Talvez se – Deus nos livre – ameaças de sanções do tipo
stalinista pendessem sobre as cabeças dos operários e gerentes de hoje, eles
cumprissem as metas planejadas. Todavia, a dignidade humana, a obediência cega e
a atmosfera de terror constituíram um preço demasiado elevado para o avanço
econômico.
A característica mais monstruosa da burocracia stalinista foi o onipresente
aparato dos órgãos punitivos que, até o XX Congresso, estava na realidade
subordinado a um só homem. Não foi apenas a questão da violência e da coerção
que estes órgãos aplicaram, mas sua penetração em cada poro e cada célula do
estado, fosse ele político, econômico, cultural ou ideológico. A “inclinação
revolucionária” fora a racionalização do terror sob Lenin, mas, como vimos, a Stalin
também não faltaram explanações.
Um triste aspecto da história russa foi o de que os bolcheviques recorreram com
muita frequência aos meios violentos. Por vezes, pode ter até havido boas razões,
mas, com o passar do tempo, eles se transformaram em hábito, coisa normal, fato
legítimo. O próprio Lenin exigiu o terror em diversas ocasiões. Em 20 de junho de
1918, V. Volodarsky, um membro do comitê do partido de Petrogrado e comissário
para a Imprensa, Propaganda e Agitação, foi assassinado por um SR. Uma semana
mais tarde, Lenin enviou a seguinte carta a Zinoviev e a outros membros do Comitê
Central de Petrogrado:

Acabamos de saber hoje que os operários [de Petrogrado] quiseram responder à morte de Volodarsky com
terror de massa e que vocês (não você, pessoalmente, mas o Comitê Central de Petrogrado) os impediram.
Protesto veementemente!
Estamos nos comprometendo: até mesmo nos nossos sovietes de deputados, ameaçamos o emprego do terror
de massa, mas, quando chega a hora, pisamos no freio de uma iniciativa revolucionária totalmente
justificável.
Isto é im-pos-sí-vel!
Os terroristas nos tomarão por covardes. Estamos num estado de guerra sem quartel. Temos que encorajar a
energia e a presença maciça do terror contra os terroristas, em especial em Petrogrado que representa um
exemplo decisivo.29

Tais instruções não eram raras. Derramamento de sangue em escala maciça parecia
uma consequência natural da guerra civil. Lenin escreveu a Trotsky, em Sviyazhsk,
provavelmente no final de 1918: “Obrigado, a convalescença vai caminhando
maravilhosamente bem. Confio em que o esmagamento dos tchecos de Kazan e dos
guardas brancos, bem como dos kulaks sanguessugas que os apoiam, será executado
com exemplar impiedade. Com cumprimentos apaixonados.”30
A “exemplar impiedade” acabaria por se transformar, enfim, na pedra de toque
da inclinação revolucionária. O que Lenin permitira numa situação de “guerra sem
quartel”, quando tudo pendia por um fio, mais tarde passou a ser visto como
“norma revolucionária”, e a violência de Stalin contra a população em geral tornou-
se coisa corriqueira. Se por um lado a Rússia carecia de tradições democráticas, sua
experiência em assuntos policiais era bem desenvolvida, ainda que aquilo que Stalin
criou a este respeito tivesse pouca semelhança com os esforços amadoristas do
czarismo.
Na virada do século, a população exilada na Sibéria chegava a um terço de um
milhão, dos quais os exilados políticos perfaziam cerca de um por cento, mais cerca
de 11 mil que cumpriam trabalhos forçados,31 e perto de metade de todos os
exilados vivia em fuga todo o tempo. O sistema policial do czarismo não era
especialmente rigoroso. Por exemplo, para sair do país era necessário apenas escrever
ao governador da província e pagar uma pequena taxa. Em 1900, cerca de 200 mil
russos passaram diversos meses no exterior. Não surpreende, portanto, que os
principais inimigos do czarismo estivessem fora do país. Muitos deles conheciam as
deficiências do departamento czarista de polícia e, depois da revolução, criaram uma
estrutura que foi muito além no estabelecimento de um sistema rígido e de novas e
severas regras para garantir a lealdade dos cidadãos ao estado soviético.
Organizado segundo os ensinamentos de Lenin de que o caminho “correto” só
era conhecido pelos bolcheviques, e imbuído de seus preceitos sobre disciplina
partidária, o Partido Comunista chegou ao poder com pouca tradição democrática
própria, e seus líderes herdaram imediatamente a prática policial do sistema czarista.
Portanto, não causou admiração o fato de eles, logo depois do Outubro de 1917,
passarem a empregar a repressão contra os oponentes da nova ordem, e assim,
simultaneamente, ameaçarem a liberdade e abrirem caminho para um futuro César.
As minutas do Politburo para 9 de março de 1922 contêm uma nota da
correspondência de Kalinin, na qual Unshlikht reporta sobre a luta contra o
banditismo. O Politburo aceitou a proposta de Unshlikht para que “Fosse dado ao
GPU o direito de: a) executar sumariamente as pessoas culpadas de roubo armado,
os criminosos e os reincidentes no porte de armas, b) exilar para Archangel e
prender os anarquistas e os SR de Esquerda clandestinos”.32
A burocracia stalinista continuou com esta prática, transformando-a em
característica do dia a dia da vida soviética. Um sentimento de desconfiança mútua
generalizou-se pela sociedade. Choveram relatórios sobre “ninhos antissoviéticos”,
seja entre os técnicos em Moscou, estudantes universitários ou mesmo entre
colegiais de 15 anos de idade em Krasnodar.33
Os órgãos de segurança assumiram cada vez mais as funções que deveriam ser da
responsabilidade de agências mais adequadas. Por exemplo, durante a guerra, os
restos mortais de Lenin foram transportados por segurança para Tyumen, na Sibéria
ocidental, e a incumbência pelo traslado de volta ao Mausoléu ficou com a equipe
de Beria. Em setembro de 1945, ele informou a Stalin que o Mausoléu estava
pronto para receber visitantes e sugeriu que fosse reaberto com este propósito no
domingo de 16 de setembro.34
Como já dissemos, os prisioneiros eram utilizados para satisfazer as demandas de
mão de obra extra para todos os ministérios. A população soviética de prisioneiros
fez sua contribuição para a construção de estradas e pontes, extração de carvão e de
urânio, derrubada de árvores, construção de reatores nucleares, grandes projetos
hidrelétricos. Jamais esquecerei a visita que fiz à estação geradora de Kuibyshev com
um grupo de Komsomols, em 1952. Da plataforma superior podíamos ver centenas
de figuras vestidas de cinza que se agitavam como um enxame pela planta
hidrelétrica. Quando passamos por um destes grupos, um homem alto e magro
inclinou-se e disse num tom de voz para ser ouvido pelos guardas próximos: “Digam
lá fora que estamos trabalhando numa grande construção da época de Stalin!”
Algum tempo depois deparei com um livro cujo título era Grandes construções da
época de Stalin, e não pude deixar de perceber a ironia de tudo aquilo.
Cresci na vila de Agul, distrito de Irbei, no sul da região de Krasnoyarsk. À
distância podiam-se ver a majestosa neve das montanhas Sayan e os jorros de água
que se lançavam na direção do Yenisei, do Kana e do Agala. Ali também estava a
genuína e modorrenta taiga (região de florestas de coníferas), terra dos kerzhaks,
siberianos nativos que haviam migrado dos territórios ocidentais da Rússia, um
século ou dois antes. Em 1937 ou 1938, apareceram alguns soldados em nossa
pequena vila, seguidos por colunas de prisioneiros. Começaram a isolar certas áreas
com cordas e, cerca de seis meses depois, campos foram organizados em Agul e em
diversos assentamentos vizinhos. Veio o arame farpado e surgiram as cercas altas
atrás das quais podiam-se divisar com dificuldade as cabanas, as sentinelas armadas
nas guaritas e os cães de guarda.
Os habitantes locais começaram a ver longas procissões de pessoas exaustas que
constantemente chegavam a pé da estação de trem distante cerca de noventa
quilômetros. A impressão dos locais era a de que os acampamentos precisavam de
constante expansão. Mais tarde, entenderam o que ocorria. Valas longas começaram
a surgir nas cercanias dos assentamentos, e os corpos dos prisioneiros eram
transportados em carroças ou trenós, cobertos com um encerado e enterrados na
calada da noite. Muitos morreram por privação absoluta. Muitos foram fuzilados na
taiga. Boris Frantsevich Kreshchuk, que vivia então em Agul e cujo pai, um ferreiro,
e o irmão mais velho tinham sido fuzilados, contou-me sobre uma ocasião em que
ele e outros garotos estavam catando castanhas na mata quando, de repente,
ouviram o barulho de tiros bem perto, “exatamente o som de uma lona que estivesse
sendo rasgada”. Correram na direção dos tiros e, escondidos por arbustos, viram um
pelotão de fuzilamento jogando cerca de vinte prisioneiros executados numa vala.
“Lembro-me de um deles que ainda se agarrava ao capim; obviamente, não estava
morto. Fugimos em disparada.”
Minha mãe era a diretora de uma escola primária (para crianças entre sete e
quatorze anos de idade). As autoridades permitiram que dois prisioneiros a
ajudassem a organizar a biblioteca, consertar as cortinas e coisas desta natureza.
Nossa vida era dura, particularmente depois que eles prenderam e executaram meu
pai e nos exilaram para Agul. Como já vivíamos na província da Sibéria Marítima,
não havia lugar mais ao leste para nos mandar, assim nos enviaram para o oeste,
para Agul. Não havia professores no lugar, portanto, as autoridades deixaram que
minha mãe lecionasse. Ela se graduara na universidade depois da revolução. Quando
não havia ninguém por perto, minha mãe conversava longamente com um dos
prisioneiros, cujo nome não consigo lembrar. Certa vez, ele tirou um farrapo de
dentro da camisa, desenrolou rapidamente uma fotografia e mostrou-a a minha
mãe. Estávamos no cômodo longo que servia de biblioteca e eu, na ponta dos pés,
olhei sobre o ombro dela. A pequena fotografia estava presa a um papelão e havia
algo escrito em língua estrangeira na parte de baixo. O prisioneiro murmurou:
“Tínhamos emigrado. Para a Suíça. Este é Lenin, este ao lado sou eu, com minha
esposa, e estes dois eram comunistas alemães.”
Fiquei matutando como alguém tão esfarrapado e esquálido poderia ter
conhecido Lenin pessoalmente. Ele foi trazido sob escolta para a escola mais duas
vezes, depois desapareceu. Ou morreu, ou foi fuzilado na floresta. Estas impressões
da infância jamais me abandonaram.
Ainda relativamente jovem, minha mãe faleceu logo depois da guerra, deixando
a mim, minha irmã e meu irmão quase sem nada. O cemitério da vila foi sua última
morada, não longe do lugar onde os prisioneiros eram fuzilados. As valas já então
estavam niveladas, sem quaisquer marcas, locais esquecidos que tinham
testemunhado a terrível tragédia de um povo. Duvido que muitos tenham
sobrevivido àqueles campos. Dois de meus tios, camponeses simples, que disseram
alguma coisa impensada, jamais regressaram.
Pode-se argumentar que este livro é a maneira que encontrei para vingar as
maldades cometidas contra minha família. Mas nego a possibilidade. Quando Stalin
morreu, eu era um jovem comandante de carro de combate. Pensei que o mundo ia
desabar. Não entendi coisa alguma quando minha família foi exilada, e mesmo mais
tarde tampouco liguei nossa desdita a Stalin. Disseram-me que meu pai havia
morrido. Minha mãe chorou em silêncio. Só em julho de 1952, descobri que eu
também era um homem marcado. Tínhamos acabado o jantar de confraternização
celebrando nossa formatura na escola de oficiais e recolhíamos nossas malas simples
de papelão, antes de irmos para nossas unidades, quando um de meus amigos (não
vou dizer o nome) pegou-me de lado e disse:

“Jure que jamais dirá a alguém o que vou lhe contar.”


“É claro”, disse eu, estupidificado.
“Estive ‘acompanhando você’ por três anos, reportando o que você dizia, o que sabia, de olho em você de
modo geral. Perdoe-me. Não tive escolha.”
“Que história é essa? Que me diz você?” Não conseguia entender.
“Como você se formou, e com honras, isto significa que nada de mau aconteceu. De qualquer forma, boa
sorte. Não me queira mal. Mas, lembre-se, pode ser que nem tudo termine por aqui...”

Esta digressão em meu passado serve como lembrete de que não faz sentido tentar
vingar a história. O que foi feito não pode ser desfeito. Tem, no entanto, que ser
conhecido e lembrado.
O quanto Stalin e seus sequazes no Kremlin sabiam do que se passava em Agul e
em milhares de outros lugares de seu abrangente Gulag? A resposta é: muita coisa.
Os arquivos estão repletos de cartas descrevendo a agonia, implorando ajuda,
pedindo que Stalin examinasse, interviesse, revisse desapaixonadamente este ou
aquele caso. Uma delas veio de um interno na seção 14 do Campo nº 283 da
NKVD e Mina de Carvão nº 26:

A situação dos prisioneiros é dura. A Inquisição medieval seria um paraíso em comparação. Ex-soldados e
partisans estão amontoados juntamente com colaboradores e Polizei.* Ninguém sabe a duração das sentenças,
o que é pior que ser fuzilado. Somos espancados regularmente. Nossas roupas são farrapos infestados de
piolhos. A comida é horrível, normalmente eles servem ratos. O corte do repolho é feito em máquinas de
forragem, de modo que normalmente vem misturado com estrume de cavalo. Os prisioneiros são agredidos a
pancadas pelos guardas. Eles são selecionados entre as pessoas mais selvagens. Esta carta não contém uma só
palavra mentirosa, porém, assiná-la significaria trabalhos forçados imediatamente.35

Stalin repassou a carta a Malenkov que nela anotou: “Para os Camaradas Beria e
Chernyshev”, ao passo que Beria só apôs sua assinatura nela. O círculo estava
fechado. A burocracia vivia envolta num manto de ilegalidade. As raras ocasiões em
que alguém de alta posição levantava um débil protesto surpreendem quando são
achadas nos arquivos. Entre os documentos de Molotov, há uma carta para Stalin e
Molotov escrita pelo ministro da justiça N. Rychkov, em maio de 1947:

De acordo com instruções do governo soviético e da Ordem nº 058, de 20 de março de 1940, do


Comissariado da Justiça e Procuradoria da URSS, pessoas inocentadas em casos de contrarrevolução não
estão sendo imediatamente libertadas, mas retornam aos locais de detenção e só podem ser soltas após a
recepção de um relatório do Ministério das Questões Internas declarando que não há impedimentos de sua
parte. Esta formalidade significa que a pessoa libertada continua na prisão por meses.
Por exemplo, em 5 de abril de 1946, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, atuando sobre um
recurso do Procurador-geral da URSS, invalidou a sentença exarada pelo tribunal militar da Divisão de
Infantaria de Taman segundo a qual a cidadã Litvinenko foi acusada de traição e condenada à morte (a
sentença foi comutada para dez anos nos campos pelo tribunal do exército de Marítima). O colegiado militar
da Corte Suprema arquivou o caso por falta de provas. Este veredicto foi enviado para o campo da Sibéria
onde a prisioneira está detida. De lá, o documento foi enviado para ratificação pelo 1º Departamento
Especial do Ministério das Questões Internas, que o mandou para o distrito militar de Tauride. O caso vem
se arrastando por meses.
Existem muitos casos semelhantes. Isto mina a autoridade da corte. Solicito que a Ordem nº 058, de 20 de
março de 1940, seja revogada.36

Não se sabe como Stalin reagiu. Molotov expediu uma carta aos funcionários do
Ministério do Interior em maio de 1947, mas demorou bastante até que a insana
regulamentação fosse alterada. Stalin e o sistema que engendrou ensinaram ao povo
a ser paciente, a ser silencioso e submisso. De um modo geral, as pessoas não
paravam para pensar sobre tudo aquilo, nem sabiam muita coisa do que se passava
no pesadelo escondido por trás das telas do sistema stalinista.
Se a morte física chegou para Stalin mais cedo do que esperado, sua morte
política foi bastante retardada. Seu falecimento histórico é improvável, já que as
pessoas jamais esquecerão o que foi feito em seu nome.
Nota

* Nacionais locais recrutados para a polícia pelos alemães durante a guerra.


[58]
Deuses terrenos são mortais

E mbora envelhecido e doente, Stalin continuava ativo à procura de inimigos


reais ou imaginários e na lida com eles. Poucos meses antes do XIX
Congresso, de outubro de 1952, tomou providências para o julgamento de
há muito planejado do Comitê Judeu Antifascista. Em maio-junho, o colegiado
militar da Corte Suprema da URSS examinou o caso de um grupo de intelectuais
judeus que tivera previamente conexões com o Comitê Judeu Antifascista. Este
órgão fora criado pelo governo soviético no início de 1942 e fizera muito durante a
guerra a fim de mobilizar a opinião pública mundial, em particular nos EUA, para a
causa comum contra o nazismo. Entretanto, logo depois da guerra, começou a caça
às bruxas.
Já em novembro de 1946, Mikhail Suslov (que iria se tornar a força dominante
do controle ideológico até sua morte, em 1982) enviara uma nota a Stalin sobre a
atividade “perniciosa” do comitê. O ministro da segurança Abakumov arrancara à
força de I.I. Goldstein e de Z.G. Grinberg confissões detalhadas a respeito de
“atividades de espionagem” do comitê. Tudo isto foi reportado a Stalin. Gritantes
artigos antissemitas começaram a aparecer na imprensa, e o comitê foi fechado por
um decreto do Politburo, de 20 de novembro de 1948. Malenkov e Beria pegaram o
caso a partir daí.
Logo se seguiram as prisões. A figura mais destacada entre os judeus era a de
Solomon Abramovich Lozovsky, bolchevique da velha guarda e ex-vice-ministro do
Exterior, que trabalhara durante a guerra como chefe do Sovinformburo e que tivera
frequentes reuniões com Stalin. Foi preso todo um grupo de cientistas, poetas,
físicos, editores, tradutores, expoentes do teatro – 110 pessoas no total. Em 13 de
janeiro de 1949, Malenkov, na presença de M.F. Shkiryatov, convocou Lozovsky e
tentou fazê-lo confessar planos criminosos. Em particular, desejava que Lozovsky
admitisse que tinha ajudado o presidente do comitê, o ator Solomon Mikhoels, o
jornalista Sh. Epshtein e o poeta I.S. Feffer a escreverem uma carta a Stalin
propondo que a Crimeia fosse transformada em “República Socialista Judaica”.
Duas semanas depois, Lozovsky foi preso.
Stalin foi informado tão logo todos “confessaram” (B.A. Shmelyovich não
assinou uma confissão, o que não o salvou de ser executado) e, sem mais delongas,
ordenou um julgamento, indicando, como sempre, as sentenças que queria ver
promulgadas.
Entre maio e julho de 1952, quatorze pessoas foram julgadas por um tribunal
fechado e presidido por A.A. Cheptsov. Apenas um dos acusados, a acadêmica Lina
Shtern, escapou com uma sentença de prisão. O restante foi fuzilado.37 Se bem que
o propósito antissemita da corte fosse evidente, o objetivo de Stalin na “exposição de
inimigos internos” era paralisar a vontade da intelligentsia em geral, já silenciosa por
muito tempo.
Este foi o pano de fundo “intelectual” com que se desenrolou seu último
congresso do partido. A ditadura burocrática atingira o ápice de comportamento
anti-humano, e agora Stalin a coroava com seu “congresso histórico”, o qual, na
realidade, representou a crise intelectual e social mais profunda do sistema.
Ao longo de agosto e setembro de 1952, Malenkov reportou diversas vezes a
Stalin sobre os preparativos para o congresso, mostrando-lhe as linhas gerais dos
discursos que seriam pronunciados por membros do Politburo, e assim por diante.
Stalin, no entanto, estava mais preocupado com o que ele próprio iria dizer. Suslov
e todo um time de assistentes prepararam diversas versões, mas foi o líder quem deu
os retoques finais no pronunciamento que, finalmente, escolheu.
Poucos dias antes da abertura do congresso, Stalin estipulou que seu início
deveria ser às 19h, impondo assim ao mais elevado fórum do partido o padrão de
seu próprio modo de vida. O Presidium do congresso não era muito grande, porém,
como inovação, todos os seus membros foram grupados na extremidade esquerda da
mesa, enquanto Stalin, completamente isolado, sentou-se à direita sem ninguém
próximo ou atrás dele. A constante menção a seu nome era acompanhada de
estrondosos aplausos de pé e cantos de louvor, o clima de exaltação transformou-se
em histeria. Stalin passeou o olhar pelo espetáculo e, no intervalo, levantou-se e foi
embora. Compareceu apenas às sessões de abertura e encerramento do congresso.
Talvez o motivo fosse a saúde, mas é provável que já estivesse cansado de tais
reuniões onde não surgiam conflitos e tudo era decidido de antemão. Não que
tolerasse outro tipo de comportamento. Os congressos do partido simplesmente
proporcionavam os ornamentos “democráticos” para o mando de uma só pessoa.
Quanto à população, o congresso não significava nada em comparação com a
pergunta que estava em todas as cabeças: Stalin discursaria?
Até o último dia do congresso, os delegados não sabiam se Stalin iria falar. Na
sessão de encerramento, quando viram ele se levantar do Presidium e caminhar
lentamente sobre a passarela acarpetada para o pódio, todos se levantaram e o
ovacionaram de novo. O líder não envergava seu uniforme de marechal, e sim o
habitual uniforme do “partido”, com apenas uma estrela de Herói no peito.
Representava com gosto o papel de “líder modesto”. O discurso foi breve, um
pouco alongado pelos aplausos que constantemente o interromperam, e não teve
absolutamente nada de novidade, repisando apenas os velhos estereótipos sobre o
declínio do mundo capitalista e a falência dos partidos socialistas. Naquele que foi
seu último congresso, Stalin apenas reafirmou as velhas posições comunistas sem
graça, claramente atrasadas em relação às mudanças que ocorriam no mundo.
Alguns dos delegados mais perspicazes com os quais conversei sentiram que
Stalin pensava sobre seu legado, e isso se deduz do longo discurso que fez no pleno
eleito pelo congresso. Em tom malévolo e acusador, manifestou dúvida de que seus
camaradas seguiriam o curso acordado e especulou se eles não capitulariam diante
das dificuldades internas do país, bem como das ameaças imperialistas. Exibiriam
eles a coragem e a firmeza necessárias ao enfrentamento dos novos desafios?
Stalin, aparentemente, preparava também o terreno para a remoção de alguns de
seus camaradas em armas de longo tempo, pessoas que poderiam muito bem servir
de bodes expiatórios, depois que o XIX Congresso acabasse. Em novembro de 1952,
por insistência de Beria e em razão de fortes indícios de envolvimento na “Trama
dos Médicos”, Stalin finalmente livrou-se de Poskrebyshev. Embora cada dia mais
desconfiasse de Beria, Stalin fez a vontade do auxiliar. Se Beria dizia que
Poskrebyshev merecia investigação, que assim fosse feito. A liderança de Leningrado
e seus aliados em Moscou e noutras regiões tinham sido também recentemente
“investigados” em conexão com o Comitê Judeu Antifascista.
No fim da vida, Stalin não acreditava em ninguém. Primeiro o leal e antigo
assistente Poskrebyshev, depois o tenente-general Nikolai Sidorovich Vlasik, que foi
preso em 16 de dezembro de 1952. Vlasik foi interrogado pessoalmente por Beria,
assim como por Kobulov e Vlodzimirsky. Como chefe do departamento de
segurança do Ministério da Segurança Estatal, Vlasik foi acusado de ser “indulgente
com os médicos-envenenadores”, de conhecer o “espião” V.A. Stenberg e de abuso
do poder por “apropriar-se de produção estatal”. Claro que eram apenas pretextos
para sua prisão. Mais tarde, o general revelou a razão verdadeira. De Krasnoyarsk,
onde estava exilado, escreveu em maio de 1955 a Voroshilov, o presidente do
Soviete Supremo. Referindo-se estranhamente a Stalin, durante todo o tempo,
como “o Chefe de governo”, Vlasik descreveu uma conversa que tivera lugar entre
ele e Stalin quando estavam de férias no sul, depois da guerra:

O Chefe de governo expressou sua insatisfação com Beria, dizendo que o trabalho dos órgãos de segurança
estatal não justificava a proteção que recebiam. Disse ter dado ordens para a remoção de Beria da direção do
MGB. Perguntou-me o que eu achava de Merkulov e Kobulov e, mais tarde, de Goglidze e Tsanave. Contei-
lhe o que sabia. Quando, depois, eu soube que minha conversa com o Chefe de governo passara a ser, sem a
menor dúvida, do conhecimento de todos, fiquei estupefato.

Beria, obviamente, estava alarmado com a atitude de Stalin a seu respeito, mas
como pudera saber o que o chefe e Vlasik conversaram a sós sobre ele? Teria Stalin
repassado os termos da conversa, ou Beria conseguira um meio de monitorar
sigilosamente seu líder?
Vlasik prosseguiu dizendo que, em certa ocasião foi chamado à presença de Beria
para interrogatório. “Sabia que não poderia esperar nada diferente da morte, pois
estava seguro de que eles tinham conseguido enganar o Chefe de governo.”
Aparentemente, o objetivo da ocasião era fazê-lo incriminar Poskrebyshev. Quando
recusou, disseram-lhe que ele morreria como um cachorro na prisão. Vlasik recebeu
o tratamento completo e, como escreveu a Voroshilov:

Em vista de minhas idade e saúde, não aguentei. Fiquei confuso, estava em completo estado de choque e
perdi o autocontrole e o bom senso. Com as algemas cortando-me até os ossos, não tive nem condições para
ler o que eles escreveram sobre minhas respostas e assinei o documento comprometedor, enquanto eles
continuavam xingando e fazendo ameaças [...] tiraram as algemas e prometeram que me deixariam dormir,
mas não foi o que aconteceu; continuaram a me torturar na cela.38

As férias em Sochi não restabeleceram a energia de Stalin e os surtos de tonturas


continuaram. Sem prestar muita atenção, folheava os documentos preparados pelo
secretariado de Malenkov, passava a vista nos jornais e revistas, e nos livros e artigos
estrangeiros traduzidos para ele. Telefonou para Malenkov e disse-lhe para não
mandar mais papel algum. Acompanhado por uma dezena de seguranças, foi ao
Teatro Bolshoi assistir O lago dos cisnes. O gerente do teatro, A.I. Rybin, que
também era o chefe da segurança, esperou por ele no camarote. Noutras
oportunidades, Stalin teria convidado Molotov ou Zhdanov a acompanhá-lo, mas,
naquela noite, sentou-se macambúzio em um canto e assistiu ao balé. Sentindo-se
desconfortável e um tanto alarmado com um crescente sentimento de fraqueza,
levantou-se e foi embora antes de o espetáculo terminar.
Em 28 de fevereiro de 1953, acordou mais tarde que o normal, sentindo-se um
pouco melhor. Leu relatórios vindos da Coreia, os dados sobre os interrogatórios
dos doutores judeus M.S. Vovsi, Ya.G. Etinger, M.B. Kogan e A.M. Grinshtein.
Fez uma caminhada curta. Mais tarde naquela noite, como combinado, Malenkov,
Beria, Khruschev e Bulganin chegaram na dacha. Como sempre, debateram grande
variedade de tópicos. Bulganin fez um relato sobre a guerra na Coreia, confirmando
a opinião de Stalin de que a situação chegara a um impasse. Stalin decidiu dizer a
Molotov no dia seguinte para aconselhar chineses e norte-coreanos a “tentarem
conseguir as melhores condições que pudessem nas negociações”, porém, de
qualquer forma, para tentarem parar com o conflito armado.
Beria falou bastante. Sentindo que Stalin perdia a confiança nele, resolveu fazer
um esforço especial:

Ryumin produziu provas irrefutáveis de que toda a fraternidade constituída por Vovsi, Kogan, Feldman,
Etinger, Yegorov, Vasilenko, Shereshevsky e outros vinha, sub-repticiamente, encurtando a vida da liderança
havia muito tempo. Zhdanov, Dimitrov, Shcherbakov – estamos preparando uma lista exata de suas vítimas
no momento – foram todos sacrificados por esta gangue. Por exemplo, o eletrocardiograma de Zhdanov foi
simplesmente falsificado. Esconderam o fato de que Zhdanov tivera um enfarte e autorizaram-no a continuar
com suas atividades, o que logo o derrubou. Mas o ponto principal é que a coisa toda foi trabalho da agência
da organização judaica burguesa-nacionalista, a “Joint”.* A trama é profunda e atinge funcionários do
partido e militares. A maioria dos acusados confessou.

O caso dos doutores começou quando o professor V.N. Vinogradov fez sua última
visita a Stalin, em 1952 e, encontrando-o em más condições, recomendou que, dali
por diante, ele trabalhasse o mínimo possível. Stalin ficou furioso, e Vinogradov não
foi mais chamado. Na realidade, logo depois foi preso. A insatisfação de Stalin com
seu médico foi trabalhada pelo investigador Ryumin da Segurança Estatal, que nela
viu uma maneira de progredir na carreira. Percebendo o estado de espírito de Stalin
e levando em conta os eventos mundiais, em que a política soviética no Oriente
Médio virou contra o novo estado de Israel, os órgãos de segurança prepararam um
gigantesco caso sobre uma alastrada “trama dos médicos”, de natureza claramente
antissemita. Por certo, haveria um julgamento e todo o problema poderia resultar
em outro banho de sangue em larga escala. Somente a morte súbita de Stalin alterou
o curso dos acontecimentos.
Durante a última noite de sua vida, Stalin perguntou várias vezes sobre o
progresso do caso, especificamente sobre Vinogradov. Beria disse-lhe que “além de
suas outras más qualidades, o professor tem a língua muito comprida. Ele disse a um
dos médicos de sua clínica que o Camarada Stalin já tivera vários e perigosos
episódios de hipertonia”.
“Muito bem”, disse Stalin, “qual sua proposta para agora? Fazer os doutores
confessarem? Diga a Ignatiev que, se ele não conseguir confissões completas, vamos
rebaixar sua altura de uma cabeça.”
“Eles confessarão. Com a ajuda de Timashuk e de outros patriotas,
completaremos a investigação e voltaremos a você a fim de que dê permissão para
um julgamento público.”
Ficaram debatendo até as quatro horas da madrugada. Já pelo final da conversa
noturna, Stalin dava sinais de visível irritação com a companhia. Apenas Bulganin
escapava das recriminações. Todos esperavam que o anfitrião se levantasse para que
pudessem ir para casa dormir. Stalin, no entanto, continuava batendo na tecla de
que havia gente na liderança que se fiava demais em seus méritos passados. “Estão
enganados.” O ambiente era de mau augúrio. Os circunstantes sentiam que alguma
coisa fermentava. Será que o velho pensava em despachá-los do Politburo, de modo
a acusá-los pelos crimes anteriores que cometera? Mas aquela seria sua última
explosão de raiva. Interrompendo uma frase no meio, ele, subitamente, levantou-se
e foi para o quarto. Os outros se dispersaram silenciosamente e se dirigiram para
casa, Malenkov e Beria viajando no mesmo automóvel.
Conforme Rybin descreveu os eventos para mim, já era meio-dia de 1º de março
quando a equipe de serventes domésticos começou a se preocupar. Stalin não
aparecera, não chamara ninguém. E não era permitido entrar no quarto sem ser
chamado. A inquietação aumentou, e então, às 18h30, a luz acendeu em seu
escritório. Todos respiraram aliviados e esperaram que a campainha soasse. Stalin
não se alimentara, nem olhara a correspondência ou qualquer outro documento.
Muito estranho. Rybin, que não escondia sua simpatia pessoal pelo velho chefe,
começou a resmungar que a campainha não tocava. Oito da noite, e nada, 21h30 e
o silêncio persistia no quarto de Stalin. Uma espécie de pânico se apossou de todos.
A equipe começou a discutir se não seria bom que alguém desse uma olhada,
quando houve um sentimento generalizado de que algo seriamente errado estava
ocorrendo. Os oficiais de serviço, M. Starostin e V. Yukof, e a servente M. Butusova
decidiram que Starostin deveria investigar e, às 23h, ele se encaminhou para o
quarto levando a correspondência do dia, caso precisasse de uma desculpa.
Starostin teve que passar por uma sucessão de cômodos até chegar ao quarto de
Stalin e foi acendendo as luzes à proporção que avançava. Quando acionou o
interruptor da pequena sala de jantar, gelou. Estatelado no chão, só de camiseta e
calças do pijama, jazia Stalin. Só teve forças para levantar a mão para Starostin, não
podia falar. Seu olhos expressavam horror e medo, em súplica. Um exemplar do
Pravda estava espalhado pelo assoalho e havia uma garrafa aberta de água mineral na
mesa. Ele devia estar naquela posição havia muito tempo, pois a luz não fora acesa.
Starostin pediu ajuda e os outros serventes chegaram correndo em grande agitação.
Levantaram Stalin para o divã. Ele tentou diversas vezes dizer alguma coisa, mas só
saíram ruídos incoerentes. O derrame paralisara a faculdade da fala, e pouco depois
ele ficou inconsciente.
De acordo com Rybin, a equipe de segurança comunicou-se imediatamente com
Ignatiev no Ministério da Segurança Estatal. Ele aconselhou que Beria e Malenkov
fossem chamados. Beria não foi encontrado em lugar algum e Malenkov mostrou-se
incapaz de fazer qualquer coisa sem ele. Além do mais, os médicos não deviam ser
contatados sem a permissão de Beria. Finalmente, Beria foi encontrado numa das
villas do governo na companhia de uma de suas últimas mulheres e, às três horas da
manhã, ele e Malenkov chegaram. Beria, por certo, andara bebendo. Malenkov,
enfiando os sapatos novos debaixo do braço para que não rangessem, entrou de
meias no quarto de Stalin e viu seu chefe respirando com extrema dificuldade. Beria
não chamou os médicos; em vez disso, virou-se para os empregados: “Por que o
pânico? Não veem que o Camarada Stalin caiu num sono pesado? Saiam todos e
deixem nosso líder em paz. Depois cuido de vocês!”
Malenkov, desanimado, deu um meio apoio a Beria. De acordo com o relato de
Rybin, tudo indicava que não haveria qualquer iniciativa de buscar socorro médico
para Stalin, que devia ter sofrido o derrame umas seis ou oito horas antes. Todos
pareciam comportar-se da maneira conveniente para Beria. Depois de afastar todos
os auxiliares, proibindo antes que telefonassem para quem quer que fosse, os dois
funcionários categorizados deixaram a casa falando alto. Só às nove da manhã, Beria,
Malenkov e Khruschev retornaram, logo seguidos de outros membros do Politburo
e dos médicos.
Seguiu-se um grande bulício. Svetlana Alliluyeva recordou-se de que os doutores
aplicaram sanguessugas atrás da cabeça e do pescoço de Stalin, fizeram
eletrocardiogramas e raios-X de seus pulmões e lhe aplicaram uma série constante de
injeções. A despeito dos esforços, todos estavam bem cientes de que o fim estava
perto. Beria dirigiu-se aos médicos, num tom de voz para que todos ouvissem e
perguntou-lhes se podiam garantir a vida de Stalin: “Vocês entendem que são
responsáveis pela saúde do Camarada Stalin? Estou avisando.” Os médicos que
tinham cuidado dele por longos anos estavam agora na prisão, naturalmente, ou
aguardavam julgamento, ao passo que os que lá se esforçavam em vão para salvá-lo
eram novos e sem conhecimento do paciente. Pálidos de medo, professores,
doutores e enfermeiras murmuravam ansiosamente entre si, enquanto lutavam
inutilmente, sabendo o inferno que lhes esperava quando tudo acabasse.
Beria não escondia seu ar de triunfo. Todos os membros do Politburo, inclusive
Malenkov, tinham pavor daquele monstro. A morte de um tirano prometia uma
nova orgia de derramamento de sangue da parte de seu sucessor. Exausto em função
de todas as providências que tomara e seguro de que Stalin cruzara a linha divisória
entre a vida e a morte, Beria disparou para o Kremlin e lá permaneceu por algumas
horas, deixando os outros líderes junto a Stalin em seu leito de morte. Já descrevi a
versão segundo a qual Beria, como primeiro-vice-presidente do Conselho de
Ministros, passou a forçar o grande jogo político que planejara havia muito tempo.
A corrida para o Kremlin foi possivelmente ligada ao seu esforço para remover
documentos do cofre de Stalin que pudessem conter instruções referentes ao modo
de lidar com ele próprio, um último desejo que talvez fosse difícil de contestar,
preparadas pelo secretário-geral no controle de suas faculdades.
Retornou à dacha cheio de confiança e começou a sugerir enfaticamente aos
desanimados colegas que preparassem uma declaração do governo participando a
doença de Stalin e publicassem também um boletim sobre seu estado de saúde. A
declaração, lida no rádio e estampada nos jornais, participava, em parte, que:

às primeiras horas da manhã de 2 de março, o Camarada Stalin, que estava em sua casa em Moscou [na
realidade, estava fora de Moscou, na dacha] sofreu uma hemorragia cerebral que afetou regiões do cérebro
essenciais à vida. O Camarada Stalin perdeu a consciência. O braço e a perna direitos estão paralisados.
Perdeu a faculdade da fala. O funcionamento do coração e dos pulmões se mostra severamente prejudicado.
O tratamento do Camarada Stalin está sob constante observação do Comitê Central do PCUS e do governo
soviético. A séria enfermidade do Camarada Stalin significará sua incapacidade mais ou menos longa para
participar das questões governamentais.

Dois boletins posteriores foram expedidos, às 2h e 4h de 5 de março. Os luminares


da medicina – A.F. Tretyakov, I.I. Kuperin, P.E. Lukomsky, N.V. Konovalov, A.L.
Myasnikov, E.M. Tareev, I.N. Filomonov, I.S. Glazunov e outros, todos russos até
a raiz do cabelo, já que Beria tomara medidas, depois do caso dos doutores do
Kremlin, para que nenhum judeu atendesse Stalin – não podiam esconder o fato de
que, apesar das ameaças de Beria, o fim estava próximo. Declararam que houvera
“séria interrupção da circulação nas artérias coronárias e alterações fundamentais na
parede coronariana de trás”, um “colapso de vulto” e que “a situação permanece
crítica”. Não sabiam que as perturbações anteriores no funcionamento do cérebro
tinham provocado cavidades, ou cistos, no tecido cerebral, especialmente nos lobos.
Tais alterações, indicam especialistas modernos, poderiam ser responsáveis por
efeitos na esfera psicológica, causando impacto sobre o caráter despótico de Stalin e
exacerbando suas tendências tirânicas.39 Contudo, minha impressão é que Stalin não
era caso de interesse psiquiátrico. Sua “doença” era social; foi cesarismo e tirania.
Ademais, não apenas o líder ficara doente, mas toda a sociedade.
Entrementes, o último ato do drama se desenrolava. O filho de Stalin, Vasili,
entrava e saía, esbravejando com voz de bêbado: “Mataram meu pai, os bastardos!”
Svetlana postava-se imóvel perto da cama, enquanto os membros do Politburo,
demonstrando fadiga pela falta de sono e medo do desconhecido, afundavam-se em
cadeiras de braço. Voroshilov, Kaganovich, Khruschev e alguns outros choravam
abertamente. Beria aproximou-se de Stalin por diversas vezes para exclamar em voz
alta: “Camarada Stalin, todos os membros do Politburo estão aqui, diga alguma
coisa para nós!” Comportava-se como príncipe herdeiro de um vasto império com o
poder de vida e morte sobre seus cidadãos. Para ele, Stalin já era passado.
O desenlace aconteceu às 9h50 de 5 de março de 1953. Diante dos outros líderes
jazia o mestre, o ídolo, juiz, chefe e benfeitor, e, porque não dizer, o potencial
carrasco. De joelhos, cabeça enterrada no peito, lamuriando-se como uma
camponesa, estava V.V. Istomina, a governanta de Stalin que, por cerca de vinte
anos, cuidara dele, acompanhara-o em todas as viagens ao sul e mesmo para duas ou
três conferências internacionais em tempo de guerra.
Os membros do Politburo recuperaram-se rapidamente do choque provocado
pela morte de Stalin, compuseram-se e se acotovelaram para sair. Havia coisas a
fazer, providências a tomar para o funeral, e coisas do gênero. Enquanto corriam de
volta a Moscou em suas longas limusines negras, alguns matutavam se Stalin deixara
um testamento, e se Beria era agora o chefe.
Shepilov recordou:

Eu trabalhava então como editor-chefe do Pravda. O país esperava em silêncio por notícias de Moscou. Às
cinco da manhã, o telefone tocou. Era Suslov: “Venha imediatamente ao cantinho.” Assim era conhecido o
estúdio de Stalin no Kremlin. “O Camarada Stalin faleceu.” Coloquei o fone no gancho. Quando cheguei ao
Kremlin, o funeral era debatido. Fiquei espantado com o comportamento dos membros do Politburo.
Estavam sentados em torno da longa mesa e o lugar de Stalin na cabeceira estava vazio. Beria e Malenkov de
frente um para o outro, próximos à cadeira desocupada. Os dois estavam obviamente excitados,
interrompendo com frequência os colegas e falando muito mais que os outros. Beria, simplesmente, florescia.
Khruschev falou pouco, ainda em evidente estado de choque. Fiquei particularmente admirado com o fato
de Molotov permanecer em silêncio, distante, com expressão mais pétrea que nunca; durante toda aquela
reunião sem sentido, que durou hora e meia, não disse uma só palavra.
No dia seguinte, reuniram-se em conjunto o Comitê Central do partido, o
Conselho de Ministros e o Presidium do Soviete Supremo da URSS. Fora
impossível encontrar qualquer instrução de Stalin sobre o que deveria ser feito na
eventualidade de sua morte. Desde o derrame do secretário-geral, apenas Beria
estivera, por uma só vez, no estúdio, dando ordem depois disto para que fosse
lacrado. A questão da sucessão precisava ser resolvida. Malenkov presidiu a reunião,
mas as decisões já haviam sido tomadas por círculo fechado.
Ficou resolvido que um dos cargos de Stalin, o de presidente do Conselho de
Ministros, ficaria com Malenkov, que fora o favorito do líder por dois ou três anos.
Seus primeiros-vices seriam Beria, Molotov, Bulganin e Kaganovich. Os ministérios
do Interior e da Segurança foram fundidos, com Beria encarregado do novo e
ampliado Ministério do Interior. Pareceu claro que Beria tencionava não apenas
manter a situação que existia sob Stalin como também fortalecer o papel de seu
ministério na formulação das políticas doméstica e externa. Molotov foi feito
ministro do Exterior e Bulganin, ministro da Defesa. Shvernik foi transferido para
os sindicatos, enquanto sua função de presidente do Soviete Supremo foi dada a
Voroshilov.
Mudanças importantes foram também feitas na liderança do partido. O círculo
interno, que se reunira na noite anterior à sessão conjunta menos de 12 horas depois
da morte de Stalin, apoiou a proposta de Molotov para que o Presidium do Comitê
Central (ou Politburo) fosse drasticamente reduzido no efetivo. No final da vida,
Stalin deu a impressão de preparar-se gradualmente para se ver livre dos camaradas
de longa data – Beria, Voroshilov, Kaganovich, Mikoyan, Molotov, Khruschev e
talvez alguns outros. Deve ter pressentido que lhe restava pouco tempo. Sua solução
(evidentemente aceita por unanimidade pelos outros) foi aumentar o Presidium para
25 membros, com 11 sem direito a voto, e o secretariado para dez. A intenção era
claramente de “diluir” a velha guarda entre funcionários novos. É muito provável
que, se não tivesse sofrido o derrame, encontraria um meio de enquadrar Molotov,
Mikoyan e Beria, de modo a removê-los da liderança e sobre eles descarregar muito
daquilo que pudesse enodoar sua própria imagem histórica. A velha guarda sentiu
que havia alguma coisa no ar e agora, pouco depois da morte do líder, apressava-se
em retirar os novos nomeados da liderança.
A sessão conjunta ratificou a sugestão do círculo interno para reduzir o tamanho
do Presidium a dez, mais quatro membros não votantes. Só três dos novos nomes
permaneceram, a saber, N.A. Bulganin, M.Z. Saburov e M.G. Pervukhin. (Entre os
que foram afastados, depois de apenas cinco meses na função, estava Leonid
Brejnev, que se tornou então vice-chefe da Administração Política Principal do
Exército e Marinha Soviética.) Numa forma um pouco vaga, ficou decidido que
Khruschev “deveria se concentrar no trabalho do Comitê Central do partido e,
portanto, dispensado de suas obrigações como primeiro-secretário do comitê
partidário de Moscou”.
Quanto ao povo, a maioria não se apercebeu destas alterações sutis, se bem que
soubesse perfeitamente que as novas figuras nada mais eram que sombras do falecido
líder. Sedento por qualquer fragmento de notícia, o povo tomou como
perfeitamente natural o fato de o corpo de Stalin ficar ao lado do de Lenin até que
fosse terminado um Panteão, para o qual, então, os restos mortais dos dois,
“juntamente com os das figuras proeminentes do Partido Comunista e do estado
soviético que estavam sepultados no muro do Kremlin”, deveriam um dia ser
supostamente trasladados.
O velho costume de embalsamar e mumificar, contra o qual Krupskaya se
rebelara tão veementemente na ocasião devida, e no qual Stalin tanto insistira,
pareceu também perfeitamente natural. O centro de Moscou ficou repleto de
multidões enlutadas, tão densas em alguns locais que provocaram vítimas fatais.
Durante o funeral, foi disparada uma salva de 31 tiros de canhão em todas as
repúblicas da União Soviética e em diversos outros locais, após o que o corpo foi
deslocado para o Mausoléu, que ficou fechado por oito meses enquanto o processo
de embalsamento completava seu ciclo. Muito poucos poderiam prever que, na
noite de 31 de outubro de 1961, a múmia de Stalin seria transferida para
sepultamento no muro do Kremlin.
Ao longo de todo seu período de mando, Stalin defendera as instituições que
criou, porém ficou evidente que sobrestimou sua estabilidade. Literalmente, em
questão de horas depois de sua morte, seus herdeiros já começavam a ignorar seus
preceitos. Pouco a pouco, os louvadores do “maior dos grandes gênios” mudaram de
tom. Foi como se a venda, de forma despercebida, escorregasse dos olhos. Em
menos de um mês, o caso contra os doutores foi arquivado e Ryumin foi fuzilado à
maneira tradicional. Em mais algum tempo, os novos líderes executaram uma
“operação palaciana” e livraram-se de Beria. Um ano mais tarde, a Corte Suprema,
sob a presidência de A.A. Chepstov, arquivou o “caso de Leningrado” por “ter sido
deturpado pelo ex-ministro da Segurança Estatal da URSS e seus cúmplices”. Os
três Voznesenskys, juntamente com dezenas de outras vítimas, foram reabilitados
postumamente.40 No ano seguinte, o Pravda publicou que, em sessão pública do
colegiado militar de Leningrado, os acusados de engendrar o caso de Leningrado
(V.S. Abakumov, A.G. Leonov, V.I. Komarov e M.T. Likhachev) foram
condenados à morte, enquanto outros receberam penas de extensões variadas. Os
principais culpados, é evidente, já estavam mortos na ocasião.
Nota

* Joint era o American Jewish Joint Distribution Committee.


[59]
Derrota pela História

K hruschev assomou ao pódio no XX Congresso do Partido Comunista. Em


estado de choque, os quase 1.500 delegados, pasmos, permaneceram
sentados em silêncio total, interrompendo ocasionalmente o
pronunciamento de Khruschev com brados de indignação enraivecida. Pareciam ver
um fantasma postado sobre o ombro do orador. Quanto mais Khruschev revelava,
mais clara a imagem do fantasma. Foi um momento de rara significação histórica.
Apenas horas antes do discurso, ninguém poderia imaginar que o inativo e
deformado partido fosse capaz de feito tão genuinamente cívico.
Sabemos agora que, logo depois da morte de Stalin, a liderança começou a
afrouxar os vínculos com o stalinismo, e que esses passos se tornaram mais rápidos
depois da prisão e execução de Beria, ato que tornou possível perscrutar em maior
profundidade os recônditos sombrios do passado stalinista, embora, é evidente,
muitos dos líderes bem soubessem o que havia ocorrido. Uma vez fixada a data do
congresso, Khruschev, inopinadamente, propôs numa reunião do Presidium que
fosse instalada uma comissão para investigar os abusos cometidos no período de
Stalin. Não foi tanto, como se reivindicou mais tarde, “um apelo do coração e da
consciência” que o motivou, quanto a torrente de cartas que inundou o Comitê
Central, as divisões governamentais e outros órgãos do estado proveniente daqueles
que haviam passado longos anos detrás do arame farpado do Gulag, e de seus
parentes, expressando protesto e esperança, e a fé em que a justiça seria agora
restaurada.
Com base naquelas cartas, Khruschev se pôs a preparar memorandos abrangentes
que iriam revelar que o “caso de Leningrado” e vários outros casos sob revisão
tinham sido falsificados. Ficou claro que, em um ou dois anos, enorme contingente
de prisioneiros completaria seus termos de prisão e exílio. Patente se tornou
igualmente que deveria haver permissão para que tais prisioneiros retornassem a seus
lares, juntamente com suas dores, suas perplexidades e sua demanda para que os
reais culpados fossem punidos. Com Stalin e Beria mortos, qual dos novos líderes
ousaria deixar que tais pessoas apodrecessem nos campos?
O partido enfrentou uma escolha difícil. Até a proposta de criação da comissão
deparou com resistência tenaz de Molotov, Kaganovich e Voroshilov, mas a balança
pendeu para o lado de Khruschev com o apoio de Bulganin, Mikoyan, Saburov,
Pervukhin e do ainda hesitante Malenkov. A comissão foi estabelecida sob a
presidência do editor de longa data do Pravda e diretor do Instituto Marx-Engels-
Lenin, P.N. Pospelov. Khruschev providenciou para que a comissão tivesse acesso
aos documentos do Ministério da Segurança Estatal e do seu sucessor, em 1953, a
KGB.* Pospelov trabalhou nesta comissão com o mesmo empenho que dedicou,
alguns anos antes, à Biografia breve de Stalin. Quando reportou a Khruschev, às
vésperas do congresso, o primeiro-secretário finalmente se deu conta de que aquele
documento quebraria a embalagem de concreto que envolvia as mentiras e lendas a
respeito de Stalin, ou serviria de obituário para seu próprio funeral.
Diversas vezes fez referências ao relatório de Pospelov e perguntou aos outros
membros do Presidium o que deveria ser feito. Como poderiam ser levadas as
conclusões da comissão ao conhecimento do congresso? Quem deveria fazê-lo? O
próprio Pospelov? A resistência de Molotov, Voroshilov e Kaganovich foi demorada
e dura, por vezes feroz. Não foram feitas anotações, porém, das memórias de
Khruschev, conclui-se que os oponentes do relatório tinham argumentos fortes.
Perguntavam, por exemplo: quem os forçava a lavar roupa suja em público? Não
seria melhor corrigir os excessos em silêncio? Estaria Khruschev consciente das
consequências da publicação do relatório? E, finalmente: não teriam todos os
próprios membros do Presidium participado daqueles eventos nesta ou naquela
medida?
Mas Khruschev ganhou a argumentação e, em 13 de fevereiro de 1956, o
Comitê Central concordou com a leitura do relatório em sessão fechada do
congresso. Khruschev foi assaltado por novas dúvidas, mas quando se lembrou das
cartas do Gulag, convenceu-se de que os crimes da era Stalin não podiam ficar
escondidos por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde viriam à tona. Era melhor
assumir a iniciativa e contar ao partido a terrível verdade. Entretanto, não
tencionava divulgá-la para o público em geral.
O congresso caminhava para um final sem percalços e previsível quando
Bulganin, que o presidia, anunciou que haveria uma sessão fechada e convocou
Khruschev a falar. Foi seu melhor momento. Um stalinista ortodoxo no passado,
leal e diligente executor de qualquer ordem do líder, subitamente encheu-se de
coragem cívica e histórica e, de fato, desfez-se de preconceitos muito arraigados.
Concentrando seu discurso – intitulado “Sobre o culto à personalidade e suas
consequências” – nos anos 1930, falou sobre o terror e os métodos que os asseclas de
Stalin empregavam para arrancar confissões. Khruschev mencionou a Carta de
Lenin ao Congresso, da qual muitos delegados jamais tinham ouvido falar. E,
embora se restringisse à posição stalinista sobre Trotsky e Bukharin, expôs a ideia
herética de que, mesmo sob Lenin, a luta contra a oposição não fora conduzida
exclusivamente segundo linhas ideológicas, insinuando, apesar de não o dizer, que
Lenin também utilizara o terror contra seus inimigos políticos.
No entanto, a principal carga e o impacto do discurso tiveram relação com a
ilegalidade da era de Stalin, a repressão e o massacre de pessoas inocentes. Os
delegados ficaram paralisados de espanto quando Khruschev descreveu os muitos
casos arquitetados contra os chamados “inimigos do povo”. Em questão de três ou
quatro horas, conseguiu o impossível: destronar Stalin e tornar evidente que ele foi
um líder incompetente, que “só conhecia o campo e a agricultura pelo cinema” e
que, durante a guerra, “trabalhou em operações militares olhando para um globo
terrestre”, e assim por diante.
O pronunciamento atingiu diversos objetivos. Primeiro, expôs as qualidades da
liderança de Stalin como uma fantasia. Segundo, estabeleceu que a culpa por todos
os crimes cabia a Stalin. Provocou uma erupção na consciência pública; foi o mais
corajoso e inesperado ataque contra o cesarismo, a ilegalidade e o totalitarismo. Mas
Khruschev era homem de seu tempo. Não há dúvida sobre sua contribuição para o
desvendamento decisivo do culto, e só com isto ele já fez jus a um lugar na história.
Seu discurso, entretanto, preparado que foi por um teórico stalinista do velho estilo,
não se aprofundou, arranhou a superfície dos fatos, mal tocou nas origens do
stalinismo e nem reconheceu que o socialismo fora distorcido, tampouco buscou as
causas da deturpação. Khruschev manifestou a esperança de que o debate sobre o
culto à personalidade se cingisse aos círculos partidários e não chegasse à imprensa,
de que “nossas feridas não fossem expostas ao inimigo” e de que somente aquilo
fosse suficiente para liquidar com as perversões stalinistas.
Paradoxalmente, o desejo de manter a discussão desconhecida do povo e da
opinião mundial foi típico pensamento stalinista da parte de Khruschev. A
inconsistência e as meias palavras voltaram à cena na declaração oficial de 30 de
junho de 1956 do Comitê Central “Sobre a superação do culto à personalidade e
suas consequências”. Este documento, que pouco lembra o discurso de Khruschev,
foi, apesar disso, uma expressão mais clara de um acordo de meio-termo com os
stalinistas. Falou de “sérios erros” cometidos apenas “durante os últimos anos da
vida de Stalin”, e de o ditador, ocasionalmente, ter recorrido a métodos ignóbeis. E
asseverou que seria errado procurar a fonte do culto na natureza da ordem social
soviética.41
A impressão foi de que, tendo derrotado o fantasma no congresso, Khruschev
ficou alarmado com a vitória e tentou limitar seus efeitos escondendo do povo a
verdade. Contudo, o discurso vazou por intermédio das delegações estrangeiras e
cedo apareceu nas páginas da imprensa ocidental. Em contraste, na URSS, a farsa de
que ele não tinha acontecido persistiu até a primavera de 1989 quando foi por fim
publicado no Izvestya TsK KPSS (“Notícias do Comitê Central”), demonstrando, se
é que demonstração era necessária, que o stalinismo ainda não havia morrido,
mudara simplesmente de forma. Além do mais, o partido ainda iria produzir sua
própria análise do fenômeno.
Khruschev fez um segundo ataque a Stalin no XXII Congresso do partido, em
1961, apertando publicamente o pescoço do modo stalinista de pensar e agir, sem
contudo liquidá-lo. Seguiu-se um período de 25 anos de moratória durante o qual
Brejnev, que não foi capaz de reabilitar Stalin completamente, se viu aconselhado
por Suslov e outros a optar pela criação de lacunas na história soviética. Era como se
Stalin jamais tivesse existido, nem o stalinismo, tampouco os milhões de vítimas
torturadas e executadas, nem o Gulag, nem, é claro, as incontáveis figuras que
desempenharam papel de destaque na fase pré-stalinista da história soviética e do
partido.
A maioria dos livros históricos daquele período foi inacreditavelmente
simplificada; se Stalin fosse mencionado era meramente um entre outros líderes e,
além do mais, que tinha apenas “incorrido em alguns erros”. No que tange ao XX
Congresso, ele desapareceu por muitos anos detrás de uma cortina de fumaça. Nada
disso surpreende: Stalin morrera, mas o sistema sobrevivera e as novas pessoas que
vieram simplesmente continuavam a operá-lo.
Os sucessores de Khruschev conseguiram, sem grande dificuldade, remendar as
fissuras causadas por seus dois ousados ataques. Mas o discurso cumprira sua missão,
e os partidos comunistas não soviéticos embarcaram no longo e penoso processo de
reavaliação de sua história, seus valores, seus programas e perspectivas, alguns deles
seguindo a linha reformista, outros atacando-a.
Khruschev dificilmente esperava que o drama do XX Congresso fosse encenado
no palco mundial, que engendraria uma extensa contenda entre diferentes noções de
socialismo. De um lado, a noção unidimensional, ortodoxa, rígida, burocrática,
forçada, não tendente a meios-termos, capaz de justificar qualquer método
criminoso em nome da grande ideia. Do outro, a noção multifacetada, democrática,
humanitária, derivada da crença de que uma grande ideia deve repousar em métodos
limpos e humanos, com base no compromisso histórico e na coexistência de
sistemas e ideologias diversificados. O próprio Khruschev, é evidente, não tinha esta
última opinião, mas manda a verdade que se diga que ele, pelo menos, abriu a porta
do mundo socialista às ideias hoje chamadas de “novo pensamento”. Levantou o véu
da infalibilidade do tirano, e Stalin acabou se mostrando inigualável mestre na
combinação da grande ideia com o grotesco.

No meu empreendimento de pintar o retrato político de Stalin, sempre estive bem


atento para o fato de que muito do que aconteceu na União Soviética deveu-se ao
descrédito, escárnio e negligência com que foi tratada a liberdade. Um dos
principais objetivos da Revolução de Outubro foi a liberdade; ainda assim, a vitória
alcançada não libertou o povo. A liberdade só pode existir numa situação de
democracia verdadeira. Sem democracia, só se apresenta a sombra da liberdade, só a
escravidão ideológica, só os mitos rituais e os clichês. A nova ideologia supôs que a
liberdade somente deriva da sociedade. Todavia, a liberdade social só pode emergir
em parceria com a liberdade espiritual.
Neste livro, referi-me com frequência à consciência. Pessoas como Stalin
encaram a consciência como quimera. Não se pode falar da consciência de um
ditador; isto simplesmente não existe. Aqueles que fizeram o trabalho sujo em nome
de Stalin sabiam muito bem o que faziam; suas consciências ficaram “congeladas”. E
o povo, por sua vez, guardou sua consciência na reserva da restrição mental,
permitindo, assim, que o grande inquisidor tivesse a oportunidade de executar seus
atos malignos.
O povo soviético ainda não perdeu de todo a crença em altos ideais. Revelou-se
capaz de penitência, renascimento e renovação, e isto teve muito a ver com a
libertação de sua consciência dos grilhões da falta de liberdade vergonhosa.
Certamente, libertou-se, mas ainda é muito cedo para alvíssaras. Na história russa e
soviética, tem havido muitas e bravas tentativas de recomeço, porém delas um
grande número terminou com a derrota dos reformadores. Talvez seja prematuro
dizer agora que o processo de renovação é irreversível. O stalinismo, afinal de
contas, não está ainda politicamente morto. As crises e suas soluções não têm apenas
uma lógica progressista, mas também uma conservadora. É preciso rezar para que os
piores temores não se mostrem proféticos. Mas nossa história dá-nos uma pausa.
Nota

* Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti, Comitê da Segurança Estatal. [N.T.]


Cronologia*

1879
7 de novembro: Nasce Trotsky em Yanovka, próximo a Yelizavetgrad
(Kirovgrad), na Ucrânia.
21 de dezembro: Nasce Stalin em Gori, na Geórgia.

1888-93
S. frequenta escola religiosa, em Gori.

1894
S. entra no seminário teológico, em Tiflis.
Coroação de Nicolau II.

1898
Março: Formado o Partido Social Trabalhista Democrático Russo
(RSDLP), em Minsk.

1899
S. expulso do seminário.

1900
Lenin e Markov fundam seu jornal Iskra (“Centelha”).

1901
S. eleito membro do comitê social democrático de Tiflis.

1902
S. preso pela primeira vez.
Trotsky conhece Lenin em Londres.

1903
S. casa-se com Yekaterina Svanidze.
S. transportado para a Sibéria Oriental.
Em Londres, no II Congresso, RSDLP racha em
bolcheviques, liderados por Lenin, e mencheviques,
liderados pelo grupo que inclui Markov e Trotsky.

1904
S. escapa da Sibéria, retorna a Tiflis e se torna
bolchevique adotando o cognome de Koba.
Nasce Yakov, filho de S.

1904-06
Guerra russo-japonesa e revolução de 1905.

1905
O Czar concede reformas políticas, inclusive uma
assembleia legislativa, a Duma Estatal.
S. vai à conferência bolchevique em Tammerfors, na
Finlândia, e se encontra pela primeira vez com Lenin.

1906
S. comparece ao IV Congresso do partido, em Estocolmo.
Numa unidade de combate no Cáucaso, S. toma parte em
roubos de bancos, a fim de angariar fundos para o
partido.

1907
S. comparece ao congresso de Londres; sua primeira
viagem maior ao exterior.
Yekaterina Svanidze morre de tuberculose.

1907-09
S. membro do comitê bolchevique de Baku.

1909
S. exilado para Solvychegodsk, em Vologda do Norte.
Escapa depois de quatro meses, retorna a Baku.

1910
Trotsky funda seu jornal independente, o Pravda.

1912
S. preso durante visita a São Petersburgo, deportado para
a Sibéria Ocidental, escapa depois de dois meses e volta à
capital.
S. visita Lenin em Cracow e segue para Viena, onde se
encontra com Bukharin e Trotsky e escreve um ensaio
sobre a questão das nações. Adota o cognome Stalin.
S. cooptado in absentia para o Comitê Central
bolchevique durante o XII Congresso do partido, em
Praga.
Lenin apropria-se do nome do jornal de Trotsky, o
Pravda, que até hoje [1989] permanece como órgão do
Comitê Central bolchevique.

1913
S. preso em São Petersburgo, exilado por quatro anos para
Turukhansk.

1914
Começa a Primeira Guerra Mundial.

1917
Março: O Czar abdica.
Novembro: Bolcheviques tomam o poder.
Formado o Soviete dos Comissários do Povo (governo
bolchevique), com Stalin como comissário para as
Nacionalidades; e Trotsky, comissário das Relações
Exteriores.
Dezembro: Armistício alemão-soviético.

1918
Janeiro: Dispersada a Assembleia Constituinte depois de uma
sessão.
Criado o Exército Vermelho.
Fevereiro: Chicherin substitui Trotsky nas relações exteriores.
Março: Assinado o tratado de paz de Brest-Litovsk com a
Alemanha.
Abril: Começa a guerra civil na Rússia.
Julho: Constituição da República Federativa Socialista Russa
(RSFSR).
Czar e família executados em Ekaterinburg. Adotado o
“Comunismo de Guerra”.
Começa a intervenção dos Aliados.
Agosto: Atentado contra a vida de Lenin pela revolucionária
socialista Fanny Kaplan.
Novembro: Armistício alemão-aliado.

1919
Março: Fundada a Internacional Comunista, o Comintern, em
Moscou.

1920
Abril: Poloneses invadem a Ucrânia soviética.
Julho: Tratado de comércio anglo-soviético.
Outubro: Armistício com a Polônia.
Novembro: Termina a guerra civil com a derrota e evacuação dos
exércitos brancos na Crimeia.

1921
Março: Levante de Kronstadt.
X Congresso do partido adota a Nova Política Econômica
de Lenin e proíbe as facções partidárias.
Estado independente da Geórgia sob governo
menchevique é derrubado pelos bolcheviques.

1922
Fevereiro: A Cheka passa a se chamar GPU.
Abril: S. eleito secretário-geral do partido.
Maio: Primeiro derrame de Lenin.
Dezembro: Segundo derrame de Lenin.
Formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS).

1923
Março: Terceiro derrame de Lenin.
Abril: XII Congresso do partido.

1924
Janeiro: Morre Lenin.
Constituição da URSS promulgada.
Maio: XIII Congresso do partido.
Reconhecimento diplomático por parte de Áustria,
Inglaterra, China, Dinamarca, França, Grécia, Itália,
Noruega e Suécia.

1925
Dezembro: XIV Congresso do partido.

1926
Julho: Zinoviev expelido do Politburo e da liderança do
Comintern.
Outubro: Trotsky e Kamenev expelidos do Politburo.

1927
Novembro: Trotsky e Zinoviev expulsos do partido.
Dezembro: XV Congresso do partido.

1928
Janeiro: Trotsky banido para Alma-Ata, no Cazaquistão.

1929
Janeiro: Trotsky expulso da URSS.
Abril: Primeiro Plano Quinquenal adotado pela Décima Sexta
conferência do partido.
Novembro: Bukharin expulso do Politburo.
Dezembro: S. proclama o fim da NEP e começa a coletivização.

1930
Março: Suspensa a coletivização.
Abril-Junho: XVI Congresso do partido.
Dezembro: Julgamentos de vários grupos acusados de sabotagem e
destruição no setor agrícola.

1931
Março: Julgamento de mencheviques por pilhagem.
Começa revisão da história sobre a orientação de S.

1932
Novembro: Esposa de S., Nadezhda Alliluyeva, comete o suicídio.
Dezembro: Passaportes internos, ou carteiras de identidade, expedidos
para a população urbana. Negado aos fazendeiros
coletivos o direito de deixar suas aldeias.

1933
Janeiro: Hitler se torna chanceler da Alemanha.
Novembro: Relações diplomáticas e comerciais estabelecidas entre
URSS e EUA.

1934
Janeiro: XVII Congresso do partido. O “Congresso dos
Vitoriosos”. Setembro: A URSS filia-se à Liga das Nações.
Dezembro: Sergei Kirov assassinado em Leningrado.

1935
Maio: URSS assina tratados militares com a França e a
Tchecoslováquia.

1936
Julgamento e execução de Zinoviev, de Kamenev e
quatorze outros.
Julgamento de dezessete, inclusive Radek e Pyatakov;
treze executados.
Execução da chefia do Exército Vermelho.

1937-39
O grande expurgo, com prisões em massa, execuções e
longas sentenças à prisão e a trabalho forçado em campos
de concentração.

1938
Março: Julgamento e execução de Bukharin, de Rykov e dezesseis
outros.
Julho: Embates armados com os japoneses no lago Khasan, na
fronteira entre Mongólia e China.
Dezembro: Beria substitui Yezhov como comissário do povo para as
Questões Internas (NKVD).

1939
Abril: Começam as negociações entre a URSS, a França e a
Inglaterra para uma aliança militar contra a Alemanha.
A URSS também procura melhorar relações com a
Alemanha nazista.
Maio: Litvinov substitui Molotov como comissário para as
Relações Exteriores.
Agosto: Outros embates armados com os japoneses em Khalkhin
Gol, na fronteira com a Mongólia.
Assinado, no Kremlin, o Pacto de Não Agressão Alemão-
Soviético, com protocolo secreto sobre a divisão da
Polônia e sobre esferas de interesses.
Setembro: Alemanha invade a Polônia.
URSS invade a Polônia.
Assinado tratado germano-soviético sobre fronteiras e
amizade.
Novembro: URSS anexa a Ucrânia e a Bielorrússia ocidentais, de
acordo com o tratado de fronteiras com a Alemanha.
Guerra de inverno soviético-finlandesa.
Dezembro: URSS expelida da Liga das Nações.

1940
Fevereiro: Acordo de comércio alemão-soviético.
Março: Tratado de paz soviético-finlandês.
Abril: Massacre de oficiais poloneses prisioneiros de guerra pela
NKVD, em Katyn, Smolensk.
Junho: A URSS recupera a Bessarábia (Moldávia) e anexa a
Bukovina Setentrional.
Agosto: A URSS anexa Lituânia, Letônia e Estônia.
Trotsky assassinado no México pela NKVD.

1941
Abril: Assinado o tratado soviético-iugoslavo de amizade e não
agressão.
Pacto de neutralidade nipo-soviético.
6 de maio: S. se torna presidente do Soviete dos Comissários do
Povo.
21 de junho: Alemanha invade a URSS.
3 de julho: S. faz apelo pelo rádio para que o povo soviético salve a
mãe-pátria.
Novembro: EUA começam o lend-lease para a URSS.
Alemães chegam aos subúrbios de Moscou.
Dezembro: Japoneses começam a Guerra do Pacífico com o ataque a
Pearl Harbor.
Alemanha declara guerra aos EUA.

1942
Janeiro: Conferência de Wannsee. Hitler adota a “solução final”
para a “questão judia”.
Agosto: Exército alemão chega ao Cáucaso.
Dezembro: Criação do Exército Russo de Liberação, sob o comando
do general Vlasov, nos campos alemães de prisioneiros de
guerra.

1943
Janeiro: S. se torna marechal da União Soviética.
Fevereiro: Tropas alemãs se rendem em Stalingrado.
Maio: S. dissolve o Comintern.
Comissários do povo passam a se chamar ministros.
Julho: Postos e distintivos de ombro criados, e o título de
“oficial” substitui o de “comandante”, que existia desde a
criação do Exército Vermelho.
Setembro: S. permite a eleição do novo Patriarca da Igreja Ortodoxa
Russa.
Novembro: Conferência de Teerã com Stalin, Churchill e Roosevelt.
Primeira e única viagem de S. de avião.

1944
Março: URSS restabelece relações diplomáticas com a Itália.
Junho: Segunda frente estabelecida na Europa com a invasão
aliada da Normandia.
Agosto: Levante de Varsóvia contra os alemães.
O Exército Vermelho entra em Bucarest.
Setembro: O Exército Vermelho entra em Sofia.

Outubro: O Exército Vermelho entra em Belgrado.

1945
Fevereiro: Conferência de Yalta entre Stalin, Roosevelt e Churchill.
Abril: O Exército Vermelho entra em Viena.
2 de maio: O Exército Vermelho toma Berlim.
8 de maio: Alemanha aceita a rendição incondicional.
Julho-Agosto: Conferência de Potsdam com Stalin, Truman e
Churchill, sucedido por Attlee.
6 de agosto: EUA atiram bomba atômica em Hiroshima.
8 de agosto: A URSS declara guerra ao Japão.
9 de agosto: EUA atiram bomba atômica em Nagasaki.
A URSS começa ofensiva na Manchúria.
2 de setembro: O Japão assina rendição incondicional.
24 de outubro: Criada a Organização das Nações Unidas.

1946
Março: Discurso de Churchill sobre a “Cortina de Ferro” em
Fulton, Missouri.
Agosto: O general Vlasov e outros executados em Moscou.
Novembro: O Comitê Judeu Antifascista colocado sob suspeição.
1947
Setembro: Fundação do Cominform na Polônia.
Zhdanov proclama a doutrina dos dois campos.

1948
Janeiro: O chairman do Comitê Judeu Antifascista, o ator
Solomon Mikhoels, assassinado pela polícia secreta em
Minsk.
O Plano Marshall de ajuda à Europa.
Abril-Junho: Bloqueio de Berlim e ponte aérea para a cidade.
Maio: Proclamado o Estado Judeu de Israel.
Junho: O Cominform expulsa o Partido Comunista da
Iugoslávia.
Proclamada a República Popular da Tchecoslováquia.
Agosto: Zhdanov morre subitamente.
“O caso de Leningrado.”
Novembro: Fechado o Comitê Judeu Antifascista e seus membros
presos.

1949
Janeiro: Criado o Conselho para Assistência Econômica Mútua
entre estados socialistas (Comecon).
Lançada campanha contra a intelligentsia judaica, rotulada
de “cosmopolitas sem raízes”.
Abril: Constituída a OTAN.
Maio: Israel admitido na ONU.
A URSS começa propaganda antissionista.
Setembro: A URSS testa bomba atômica.
Outubro: Proclamada a República Popular da China.

1950
Fevereiro: Tratado de amizade sino-soviético.
Julgamentos políticos nos países socialistas.
Junho: Começa a Guerra da Coreia.

1951
Novembro: Julgamento de Slansky e expurgo antissionista do Partido
Comunista da Tchecoslováquia.

1952
Maio-Julho: Julgamento e execução do Comitê Judeu Antifascista.
Outubro: XIX Congresso do partido. O Politburo passa a se chamar
Presidium. O secretário-geral passa a ser primeiro-
secretário.
Novembro: EUA testam a primeira bomba de hidrogênio.

1953
Janeiro: “A Trama dos Médicos.”
5 de março: Morre Stalin.
Junho: Reprimida a Revolta dos Trabalhadores em Berlim
Oriental.
Julho: Prisão de Beria.
Agosto: Assinado armistício na Coreia.
A URSS testa bomba de hidrogênio.
Setembro: Khrushchev eleito primeiro-secretário.

1955
Maio: Assinado o Pacto de Varsóvia.

1956
Fevereiro: XX Congresso do partido. Khruschev faz o “discurso
secreto” denunciando Stalin.
Abril: Dissolução do Cominform.
Junho: Sublevações antissoviéticas em Poznan, na Polônia.
Outubro: Levante nacional húngaro reprimido pelos tanques
soviéticos.

1957
Julho: Grupo “antipartido” expulso do Presidium.

1958
Outubro: Boris Pasternak ganha o Prêmio Nobel com Doutor
Zhivago. Começa a perseguição a Pasternak na URSS.
Dezembro: Andrei Sakharov prega a proibição do teste com a bomba
de hidrogênio.
1961
Outubro: XXII Congresso do partido. Khrushchev intensifica a
desestalinização. A múmia de Stalin é removida do
Mausoléu.
Nota

* Datas segundo o Novo Estilo do Calendário Ocidental.


Notas

VOLUME I
Abreviatura do nome dos arquivos citados:

Arkhiv IKKI – Arquivos do Comitê Executivo da Internacional Comunista


AVP SSSR – Arquivos da Política Externa Soviética, Ministério do Exterior
TsAMO SSSR – Arquivos Centrais do Ministério Soviético da Defesa
TsGAOR – Arquivos Centrais Estatais da Revolução de Outubro
TsGASA – Arquivos Centrais Estatais do Exército Soviético
TsPA IML – Arquivos Centrais do Partido no Instituto de Marxismo-Leninismo

INTRODUÇÃO

1. Trotsky, L. Stalin, Benson, Vermont, 1947, p. 7


2. TsGASA, f. 918, op. 3, d. 80, l. 591
3. Jaurès, Jean, Sotsialisticheskaya istoriya frantsuzskoy revolyutsii, Moscou, 1983, vol. 6, p. 446
4. Plutarco, Sochineniya, Moscou, 1983, p. 429

PARTE I – ARDOR DE OUTUBRO

1 – UM RETRATO

1. Stalin, I.V. Sochineniya, 13 vols., Moscou, 1946-48, vol. 13, p. 113


2. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5978, 5080
3. Museu Memorial dos Exilados Políticos Bolcheviques de Narym, f. 998
4. Sverdlova, K.T. Ya. M. Sverdlov, Moscou, 1960, p. 199
5. Lenin, V. I. Polnoe sobranie sochinenii (daqui por diante, PSS), 55 vols., Moscou, 1960-65, vol. 48, p. 169
6. Ordzhonikidze, G.K. Put’ Bol’shevika. Moscou, 1956, pp. 128-129
7. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577, l. 18-25
8. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2000, l. 304
9. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 4358, l.1
10. Citado em Trotsky, L. Stalin, op. cit. p. 148
11. Stalin, op. cit. vol. 6, pp. 52-54
12. Lenin, Biograficheskaya khronika. vol. 3, p. 147
13. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 23851, l. 1
14. Lenin, op. cit. pp. 456-457
15. Stalin, op. cit. vol. 13, p. 121

2 – FEVEREIRO, O PRÓLOGO

16. Florinsky, M. The End of the Russian Empire, New Haven, 1931, p. 228
17. Alekseyev, S.A. ed.: Fevral’skaya revolyutsiya. Prefácio e notas de A.I. Usagin, Moscou-Leningrado, 1926,
p. 153
18. Shulgin, V.V. Dni, Belgrado, 1925, p. 108
19. Arquivo IKKI, f. 555, op. 1, d. 2802, l. 1-2
20. Alekseyev, op. cit. p. 153
21. Ibid. p.131
22. Lenin, PSS, vol. 31, p. 156
23. Kerensky, A.F. The Crucifixion of Liberty, Londres, 1934, p. 146
24. Alekseyev, op. cit. pp. 336-337
25. Stalin, I.V. Kratkaya biografiya, Moscou, 1951, p. 57
26. Trotsky, L.D. Fevral’skaya revolyutsiya. Berlim, 1931, pp. 321-322, 325

3 – OS ATORES COADJUVANTES

27. Pravda, 15 de março de 1917


28. Stalin, Sochineniya, vol. 3, p. 8
29. Ibid. vol. 6, p. 333
30. Sukhanov, N. The Russian Revolution 1917, Oxford, 1955, p. 230
31. Sukhanov, N.N. Zapiski o revolyutsii, 7 vols, Berlim, Petrogrado, Moscou, 1922. vol. 7, p. 44
32. Protokoly VII konferentsii RSDRP(b), Moscou, 1980, p. 80
33. Stalin, Sochineniya, vol. 3, p. 55

4 – O LEVANTE

34. Velikaya Oktyabr’skaya sotsialisticheskaya revolyutsiya. Entstiklopediya. Moscou, 1987, p. 109


35. Lenin, PSS, vol. 34, p. 25
36. Ibid. vol. 49, p. 445
37. Lenin, Biograficheskaya khronika, vol. 4, p. 282
38. TsPA IML, f. 4, op. 3, d. 813
39. Lenin, PSS, vol. 34, p. 392
40. Ryabinsky, K., Revolyutsiya 1917 goda. Khronika sobytii. Moscou-Leningrado. 1926, vol. 5, p. 172
41. Lenin, PSS, vol. 34, pp. 435, 436
42. Rabochaya Gazeta, TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 11, l. 11
43. Lenin, PSS, vol. 35, p. 102
44. Stalin, Sochineniya, vol. 3, p. 389
45. TsGAOR, f. 130, op. 1, d. 1, l. 20
46. Trotsky, L.D. Stalinskaya shkola fal’sifikatsii. Berlim, 1932, p. 26
47. Trotsky, L.D. Moya zhizn’, 2 vols., Berlim, 1932, vol. 2, p. 60
48. Stalin, Stat’i i rechi 1921-1927, Moscou-Leningrado, 1928, pp. 104-105

5 – SALVA POR SORTE

49. Lenin, PSS, vol. 35, p. 250


50. Trotsky, L.D. Sochineniya, vol. 17, “Sovetskaya respublika i kapitalisticheskii mir”, parte I, Moscou-
Leningrado, 1926, pp. 103, 106
51. Lenin, PSS, vol. 35, pp. 369-370, 490
52. Ibid., vol. 36, p. 30
53. Sed’moi s’ezd RKP. Stenograficheskii otchet. Moscou, 1923, pp. 32-50

6 – GUERRA CIVIL

54. Lenin, PSS, vol. 39, p. 343


55. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 6157
56. TsGASA, f. 1, op. 2, d. III, l. 84
57. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 6235
58. Stalin, Sochineniya, vol. 4, p. 118
59. Leninskii sbornik, Moscou, 1970, vol. 37, p. 139
60. TsGASA, f. 10, op. 1, d. 123, l. 29-30
61. Leninskii sbornik, vol. 37, p. 136
62. TsGASA, f. 100, op. 9, d. 34, l. 26-27
63. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 6324, l. 1-2
64. Lenin, PSS, vol. 36, p. 463
65. Ibid. vol. 42, p. 47
66. TsPA IML, f. 588, op. 1, d. 486
67. Leninskii sbornik, vol. 37, p. 139
68. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 10 022
69. Stalin, Sochineniya, vol. 4, p. 210
70. TsGASA, f. 33988, op. 2, d. 289, l. 19-20; Lenin, PSS, vol. 51, p. 428
71. Lenin, PSS, vol. 51, p. 206-207
72. Ibid. p. 208
73. Direktivy komandovaniya frontov Krasnoy Armii, 1917-1922 gg. Moscou, 1972, vol. 2, p. 720
74. Ibid. p. 410
75. Ibid. vol. 3, p. 244
76. Ibid. vol. 3, p. 244
77. Stalin, Sochineniya, vol. 4, p. 261
78. Trotsky, Moya zhizn’, vol. 2, p. 41
79. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 46, l. 413
80. Lenin, PSS, vol. 45, p. 357
81. TsGASA, f. 104, op. 4, d. 484, l. 11
82. TsGASA, f. 104, op. 4, d. 484. l. 11
83. Lenin, PSS, vol. 41, p. 321

PARTE II – O AVISO DO LÍDER

7 – CAMARADAS EM ARMAS

1. Izvestiya, 23 de janeiro de 1924. Citado em U velikoy mogily, Moscou, 1924, p. 63


2. TsPA IML, f. 2, op. 1, d. 23 315
3. XII s’ezd Rossiiskoy Kommunisticheskoy Partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet. Moscou, 1923, pp. 60-
61
4. Ibid. p. 61
5. Leninskii sbornik, vol. 37, p. 106
6. Trotsky, Moya zhizn’, vol. 2, pp. 213-214
7. Lenin, PSS, vol. 45, p. 345
8. Lunacharsky, A. Revolyutsionnye siluety, Moscou, 1923, p. 31. Também em inglês como Revolutionary
Silhouettes, trad. Michael Glenny, Londres, 1967
9. XIV s’ezd Vsesoyuznoy kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet. Moscou-Leningrado,
1926, pp. 453-454
10. Ibid. pp. 274-275
11. Stalin, Sochineniya, vol. 7, pp. 380, 382
12. Sbornik Feliks Dzerzhinskii, Moscou, 1931, pp. 141, 186
13. Krasnaya Zvezda, 31 de outubro de 1930
14. Stalin, Sochineniya, vol. 7, p. 251
15. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 1
16. Manfred, A.A. Velikaya frantsuzskaya revolyutsiya, Moscou, 1983, p. 328

8 – O SECRETÁRIO-GERAL

17. XI s’ezd Rossiiskoy kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet, Moscou, 1922, pp. 47,
49, 51, 52
18. Ibid. pp. 69-70
19. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 29
20. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 78, l. 1-2
21. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 78, l. 1-9
22. Lenin, PSS, vol. 45, p. 188
23. Ibid. p. 211
24. TsPA IML, f. 4, op. 1, d. 142, l. 126; Lenin, Biograficheskaya khronika, vol. 12, p. 388
25. Adam Ulam, Stalin. The Man and his Era, Nova York, 1973, pp. 213-214, cita o Arquivo Trotsky
(Universidade de Harvard), T 755
26. Lenin, PSS, vol. 45, p. 357
27. Ibid. p. 358
28. Ibid. vol. 54, p. 329
29. Ibid. pp. 674-675
30. Ibid. pp. 329-330
31. Ibid. p. 330

9 – A CARTA AO CONGRESSO

32. Gramsci, A. Izbrannye proizvedeniya v 3 tomakh, Moscou, 1959, vol. 3, p. 185


33. Lenin, PSS, vol. 45, p. 20
34. Ibid. p. 308
35. Bukharin, N.I. Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1988, pp. 120-121
36. Lenin, op. cit. p. 710
37. Ibid. p. 174
38. Ibid. pp. 343-344
39. Ibid. pp. 344-345
40. Ibid. p. 345
41. Ibid. p. 345
42. XI s’ezd RKP(b). Protokoly i stenograficheskie otchety s’ezdov i konferentsii KPSS. Moscou, 1969, p. 262
43. Lenin, op. cit. p. 710
44. Ibid. p. 474
45. Ibid. p. 344-346
46. Ibid. p. 247
47. Ibid. p. 346
48. Lunacharsky, A. Revolyutsionnye siluety, op. cit. p. 26
49. Lenin, op. cit. p. 387
50. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 88
51. XII s’ezd RKP(b). Moscou, 1969, pp. 80-81

10 – STALIN OU TROTSKY?

52. XII s’ezd RKP(b). op. cit. pp. 50-53


53. IX s’ezd RKP(b). Moscou, 1920, p. 81
54. Trotsky, Moya zhizn’, vol. 2, pp. 218, 226
55. Citado em U velikoy mogily, Moscou, 1924, pp. 27, 63
56. Ibid. p. 248

11 – AS RAÍZES DA TRAGÉDIA
57. Lenin, PSS, vol. 45, pp. 594-595
58. Ibid. p. 594
59. Ibid. p.110
60. Stalin, I. Sochineniya, vol. 10, pp. 175-176
61. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 86, l. 15; Stalin, Sochineniya, vol. 7, p. 387
62. Radek, K. Itogi XII s’ezda RKP. Moscou, 1923, p. 25
63. Berdyaev, N. Samoznanie. Opyt filosofskoy autobiografii. Paris, YMCA, 1949, p. 251

PARTE III – OPÇÃO E LUTA

12 – CONSTRUINDO O SOCIALISMO

1. Napoleão, Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1941, p. 62


2. KPSS v rezolyutsiyakh. Parte 1 , 7 ed., Moscou, 1953, p. 511
3. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 4870
4. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 112
5. Trotsky, L.D. Uroki Oktyabrya, Moscou, 1925, p. 49
6. Trotsky, L.D. Permanentnaya revolyutsiya, Berlim, 1930, p. 16
7. Lenin, PSS, vol. 45, p. 309
8. Ibid. p. 309
9. Bol’shevik, n. 8, 1925, p. 7
10. TsPA IML, f. 2, op. 2, d. 103
11. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 109, l. 12
12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 1
13. Stalin, Sochineniya, vol. 6, p. 237
14. Ibid. p. 357
15. XIV konferentsiya RKP(b), Moscou-Leningrado, 1925, pp. 248, 253
16. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2816, l. 3-5
17. Stalin, Sochineniya, vol. 7, pp. 365, 383
18. Ibid. p. 390
19. Ibid. pp. 390-391

13 – LENINISMO PARA AS MASSAS

20. Stalin, Sochineniya, vol. 1, p. 299


21. Ibid. vol. 7, p. 375
22. Ibid. vol. 9, pp. 315, 321
23. Ibid. vol. 8, pp. 95, 96, 98
24. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 154, l. 54
25. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 154, l. 54
26. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 154, l. 67
14 – DESALINHO INTELECTUAL

27. Trotsky, L.D. Literatura i revolyutsiya, Moscou-Leningrado, 1924, p. 26


28. Bol’shevik, n. 7-8, 1926, pp. 107-108
29. Bol’shevik, n. 9, 1928, p. 6
30. O partiinoy i sovetskoy pechati, Moscou, 1954, p. 347
31. Stalin, Sochineniya. vol. 11, pp. 327-328
32. Ibid. vol. 13, pp. 23, 27
33. O partiinoy i sovetskoy pechati, Moscou, 1954, pp. 346-347
34. Korolenko, V. Pis’ma k Lunacharskomu, Paris, 1922, pp. 61-62
35. Dom Iskusstv, Petrogrado, 1920, n. 1, p. 65
36. Bogdanov, A. O proletarskoy kul’ture, Moscou-Leningrado, 1925, p. 12
37. Trotsky, L.D. Literatura i revolyutsiya, Moscou, 1924, p. 13
38. Pravda, 26 de outubro de 1926

15 – A DERROTA DO “INIMIGO Nº 1”

39. XV konferentsiya Vsesoyuznoy kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet. Moscou-


Leningrado, 1927, pp. 535, 536
40. TsPA IML. f. 3, op. 1, d. 2827
41. Trotsky, My Life, Nova York, 1930 e 1960, p. 538
42. Stalin, Sochineniya, vol. 10, p. 193
43. Ibid. pp. 204, 205
44. Ibid. p. 191
45. Ibid. p. 173
46. Bol’shevik, n. 16, 1925, p. 68
47. Stalin, Sochineniya, vol. 10, p. 175-177
48. Essad Bey, Stalin, Riga, 1932, p. 234
49. Sotsialisticheskii vestnik, Berlim, abril de 1931, n. 8 (245), p. 8
50. Trotsky, Moya zhizn’, op. cit. pp. 539-540
51. Ibid. p. 556
52. Trotsky, L.D. Chto i kak proizoshlo. Shest’ statei dlya mirovoy burzhuaznoy pechati. Paris, 1929, p. 9
53. Ibid. p. 60

16 – A VIDA PARTICULAR DO LÍDER

54. Lenin, PSS, vol. 54, p. 518


55. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2908
56. Memorias de Dolores Ibarruri, Barcelona, 1985, pp. 530-535
57. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2181
58. Berdyaev, N. Ekzistentsial’naya dialektika bozhestvennogo i chelovechestvennogo. Paris, 1952, p. 132
PARTE IV – DITADURA OU DITADOR?

17 – O DESTINO DO CAMPO

1. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3112


2. Sobranie Zakonov i Rasporyazhenii Raboche-Krestyanskogo pravitel’stva, Moscou, 1925, p. 313
3. Lenin, PSS, vol. 45, p. 372
4. Ibid. p. 236
5. Stalin, Sochineniya, vol. 10, p. 311
6. XV s’ezd VKP(b). Stenograficheskii otchet. Moscou-Leningrado, 1928, p. 976
7. Ibid. pp. 1057, 1091
8. Ibid. p. 1308
9. Planovoe khozyastvo, 1927, n. 7, p. 11
10. Stalin, op. cit. vol. 11, pp. 2, 4, 6, 7
11. Ibid. vol. 12, p. 166
12. Churchill, W. History of the Second World War, Londres, 1951, vol. 4, pp. 447-448
13. Stalin, Voprosy Leninizma, p. 344
14. Stalin, Sochineniya, vol. 12, p. 149
15. Bol’shevik, 1940, n. 1, p. 2
16. Stalin, Voprosy Leninizma, p. 195
17. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 392
18. Ibid. p. 245
19. Istoriya SSSR s drevneishikh vremen do nashikh dnei. Moscou, 1966, vol. 9, parte 1, pp. 189-190

18 – O DRAMA DE BUKHARIN

20. Stalin, Sochineniya, vol. 12, p. 1


21. Bukharin, N. Ataka, sbornik statei. Moscou, 1924, pp. 98, 99
22. Bukharin, Izbrannye proizvedeniya. Moscou, 1988, p. 133
23. Bol’shevik, n. 5, 1925, pp. 6, 8, 14
24. Bukharin, op. cit. p. 137
25. Ibid. p. 121
26. Cohen, S. Bukharin and the Bolshevik Revolution: A Political Biography, 1888-1938. Londres, 1974, p.
325
27. Stalin, Sochineniya, vol. 12, p. 69
28. Ibid. pp. 70, 79
29. Ibid. p. 132
30. Itogi noyabr’skogo plenuma TsK VKP(b). Leningrado, 1929, p. 193
31. Sotsialisticheskii vestnik, Berlim, abril de 1931, n. 8 (245)

19 – DITADURA E DEMOCRACIA

32. Lenin, PSS, vol. 45, p. 441


33. Stalin, Sochineniya, vol. 13, pp. 207, 208
34. Ibid. p. 210
35. XVI s’ezd VKP(b). Moscou-Leningrado, 1930, p. 38
36. TsGAOR, f. 9492, op. 2, d. 6, l. 78-81
37. TsGAOR, f. 7523, op. 67, d. 1, l. 5
38. Stalin, Sochineniya, vol. 13, pp. 107, 111, 114, 119-120
39. Arkhiv Verkhovnogo suda SSSR, f. 75, op. 35, d. 319, l. 26
40. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 773, l. 102
41. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5088
42. Pravda, 7 de abril de 1931

20 – O CONGRESSO DOS VITORIOSOS

43. Pravda, 5 de agosto de 1933


44. XVII s’ezd VKP(b), Moscou-Leningrado, 1934, p. 255
45. Ibid. p. 18
46. Ibid. p. 28
47. Ibid. p. 253
48. Ibid. p. 125
49. Ibid. p. 211
50. Ibid. p. 250
51. Ibid. pp. 493, 496, 497
52. Ibid. p. 521
53. TsGASA, f. 918/33 987, op. 3, d. 155, l. 88
54. XVII s’zed, p. 235

21 – STALIN E KIROV

55. XVII s’ezd, p. 115


56. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 19
57. TsPA IML, f. 558, op .1, d. 5228, l. 1
58. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5228, l. 2
59. Arkhiv Genshtaba, op. 16, bloco 17, prateleira 9
60. XVII s’ezd KPSS. Stenograficheskii otchet. Moscou, 1962. vol. 2, p. 403
61. Citado em Pompeyev, Yu. Khochetsya zhit’ i zhit’. Dokumental’naya povest’ o S.M. Kirove. Moscou, 1987,
p. 8
62. Ibid. p. 18
63. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3334
64. Pravda, 3 de dezembro de 1934
65. Sbornik materialov po istorii sotsialisticheskogo ugolovnogo zakonodatel’stva. Moscou, 1938, p. 314
66. Arkhiv Verkhovnogo suda SSSR, f. 75, op. 35, d. 319
67. Stalin, I.V. Beseda s angliiskim pisatelem G. Uell’som, Moscou, 1935, pp. 13, 14, 16
68. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3179
PARTE V – O MANTO DO LÍDER

22 – PERSONALIDADE DOMINANTE

1. KPSS v rezolyutsiyakh i resheniyakh, 8 ed. Moscou, 1970, vol. 2, p. 90


2. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 633
3. KPSS v rezolyutsiyakh (1970), p. 220
4. TsPA IML, f. 558, op. 2, d. 2915
5. Bol’shevik, n. 9, 1937, p. 9
6. Stalin, Kratkaya biografiya, 1948, p. 163
7. TsPA IML, f. 17, op. 120, d. 313
8. Suetônio, Zhizn’ dvenadtsati tsezarei, Moscou, 1987, p. 135
9. TsPA IML, f. 3, op. 1, d. 3399
10. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 92
11. Yaroslavsky, Ye. O tovarishche Staline. Moscou, 1942, p. 149

23 – O INTELECTO DE STALIN

12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2510


13. TsPA IML, f. 558, op. 3, d. 461, l. 9-21
14. TsPA IML, f. 3, op. 1, d. 4674, l. 1-3
15. TsPA IML, f. 558, op. 2, d. 5374, l. 1-3
16. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 5374
17. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 273, l. 36
18. TsPA IML, f. 558. op. 1, d. 2898
19. Churchill, W. op. cit. vol. 4, p. 443
20. Stalin, Sochineniya, vol. 12, pp. 53-54
21. TsPA IML, f. 17, op. 120, d. 24, l. 1-3
22. Stalin, Sochineniya, vol. 11, pp. 239-240, 241
23. TsPA IML, f. 558, op. 2, d. 4074, l. 35
24. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya, 5 ed. Moscou, 1963, vol. 2, p. 95
25. Vasilievsky, A.M. Delo vsei zhizni. 3ª ed. Moscou, 1978, p. 501
26. Churchill, W. op. cit. p. 434
27. K pyatidesyatiletiyu so dnya rozhdeniya I.V. Stalina. Moscou, 1940, pp. 268-274
28. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 26
29. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 149, l. 108

24 – CESARISMO

30. Feuchtwanger, L. Moskva 1937. Otchet o poezdke dlya moikh druzei. Trad. do alemão. Moscou, 1937,
pp. 58-59
31. Ibid. p. 64
32. Ibid. pp. 59-60
33. Berdyaev, N. Sud’ba Rossii, Moscou, 1918, p. 58
34. TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 365, l. 79
35. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 12
36. Ibid. l. 28
37. Stakhanov, A. Rasskaz o moei zhizni. Moscou, 1938. p. 149
38. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2218
39. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
40. Pravda, 21 de outubro de 1937

25 – À SOMBRA DO CHEFE

41. Lenin, PSS. vol. 4, p. 392


42. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
43. XXII s’ezd KPSS. Stenograficheskii otchet. Moscou, 1962, vol. 2, p. 404
44. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 203, l. 366
45. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2897
46. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 32
47. Ibid
48. Ibid
49. Ibid. l. 24-35
50. Leninskii sbornik, vol. 37, pp. 138-139
51. TsPA IML, op. cit. l. 83
52. XXII s’ezd KPSS, vol. 2, p. 403
53. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1048, l. 251-258
54. Arquivo Genshtaba, op. 165, bloco 17, prateleira 9, d. 6o, 63, 78
55. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1045, l. 176

26 – O FANTASMA DE TROTSKY

56. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 111


57. Trotsky, L.D. Sochineniya, vol. 15, “Khozyastvennoe stroitel’stvo Sovetskoy respubliki.” Moscou-
Leningrado, 1927, pp. 41-51
58. Stalin, Sochineniya, vol. 6, p. 331
59. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
60. Lunacharsky, A.V. Revolutionary Silhouettes, Londres, 1967, p. 66
61. Deutscher, I. The Prophet Outcast: Trotsky 1929-1940. Londres, 1963, p. 26
62. Trotsky, L.D. Sochineniya, vol. 8, “Politicheskie siluety”
63. Ibid. vol. 17, “Sovetskaya respublika i kapitalistecheskii mir.” Parte 1, p. 144
64. Ibid. vol. 21, “Kul’tura perekhodnogo perioda.” pp. 93-94
65. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, d. 577, l. 633
66. Trotzki, L. Stalins Verbrechen. Zurique, 1937, pp. 366-367
67. Trotsky, L. History of the Russian Revolution, Londres, 1934, p. 344

27 – UM VENCEDOR POPULAR
68. Narodnoe khozyastvo SSSR za 70 let. Yubileinyi staisticheskii ezhegodnik. Moscou, 1987, p. 32
69. Ibid. p. 37
70. Ibid. p. 39
71. Pravda, 6 de março de 1937
72. Stakhanov, A. Rasskaz o moei zhizni. Moscou, 1938, p. 50
73. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
74. Feuchtwanger, op. cit. p. 60
75. TsGASA, f. 918/33 987, op. 3, d. 301, l. 26-27
76. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2915
77. K shestidesyatiletiyu so dnya rozhdeniya I.V. Stalina, Moscou, 1939, p. 177
78. TsPA IML, f. 538, op. 3, d. 86, l. 16
79. Izvestiya TsK KPSS, n. 3, 1988, p. 138

PARTE VI – O EPICENTRO DA TRAGÉDIA

28 – INIMIGOS DO POVO

1. Pravda, 13 de janeiro de 1936


2. O Konstitutsii SSSR, pp. 16-17
3. Orlov, A. Protsessy. Nova York, 1973, p. 135
4. Izvestiya TsK KPSS, n. 7, 1989, p. 70
5. Ibid. n. 8, p. 89
6. Stalin, Sochineniya, vol. 13, p. 212
7. Kanal imeni Stalina (Belomoro-Baltiiskii kanal imeni Stalina. Istoriya stroitel’stva pod red. M. Gor’kogo,
L. Averbakha, S. Firina). Moscou, 1934, p. 12
8. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 1-3
9. Ibid. l. 6
10. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 37-42
11. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 8-16
12. Ibid. l. 57
13. Ibid
14. Ibid. l. 8
15. Ibid. l. 9-11
16. Ibid. 111
17. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577, l. 5-15
18. Ibid. l. 5-20
19. Ibid. l. 10-25
20. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 439, l. 118
21. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 644, l. 42-89

29 – FARSA POLÍTICA
22. Protsess anti-sovetskogo trotskistskogo tsentra. Moscou, 1937, pp. 42-45
23. Trotsky, L. The Revolution Betrayed. Nova York, 1937, p. 216
24. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovnogo suda SSSR, f. 75, op. 35, d. 319, l. 10-35
25. Ibid. f. 74, op. 35, d. 315, l. 61
26. Pravda, 12 de março de 1938
27. Pravda, 5 de março de 1938
28. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 891, l. 25-31; vide A.L. “Bukharina,” Nezabyvaemoe. Moscou, 1989, p.
319
29. Pravda, 13 de março de 1938
30. Feuchtwanger, op. cit, p. 98
31. Pravda, 13 de março de 1938
32. “Clarification” para NKVD, TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 7
33. Pravda, 13 de março de 1938
34. Pravda, 8 de março de 1938
35. Pravda, 27 de janeiro de 1937

30 – QUADROS NO BANCO DOS RÉUS

36. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3175, l. 2-10


37. TsGASA, f. 31 983, op. 3, d. 152, l. 150
38. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 627
39. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 197
40. Ibid. l. 366
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, t. I, l. 57-65
42. XXII s’ezd KPSS. Stenograficheskii otchet, vol. 3, p. 199
43. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 624
44. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 630
45. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovnogo suda SSSR, f. 74, op. 35, d. 315, l. 51
45a. Ibid. l. 50
46. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 639, l. 24-29
47. Ibid. l. 24-32
48. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 640, l. 20-45
49. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 639, l. 20-35
50. Ibid.
51. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 633, l. 2-26
52. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2181
53. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577

31 – A “TRAMA” TUKHACHEVSKY

54. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1036, l. 270-274


55. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 615
56. Citado em Ivanov, V. Marshal Tukhachevskii. Moscou, 1985, p. 128
57. TsGASA, f. 614, op. 2, d. 18, l. 7
58. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 400, l. 137-139
59. Manuscrito de Viktorov de posse do autor
60. Bol’shevik, n. 12, 1937
61. TsAMO, f. 5, op. 176 703, d. 21, l. 64, 68
62. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 19-26
63. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1046, l. 207-208
64. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1048, l. 37
65. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 640
66. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1140, l. 18-22
67. TsGASA, f. 25 880, op. 4, d. 1, l. 2-3
68. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 993, l. 164, 179, 180, 217
69. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1048, l. 23-25

32 – O MONSTRO STALINISTA

70. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612 (vyp. 3)


71. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2180, l. 247

33 – CULPA SEM PERDÃO

72. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 577, l. 57


73. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovkogo suda SSSR, f. 74, op. 35, d. 315, l. 46
74. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1075, l. 57-63
75. Izvestiya TsK KPSS, n. 3, 1988, pp. 141-142
76. Ibid. pp. 141-142
77. TsAMO, f. 32, op. 701 323, d. 38, l. 14-16
78. Ibid.

VOLUME II
Abreviatura do nome dos arquivos citados:

Arkhiv IKKI – Arquivos do Comitê Executivo da Internacional Comunista


AVP SSSR – Arquivos da Política Externa Soviética, Ministério do Exterior
TsAMO SSSR – Arquivos Centrais do Ministério Soviético da Defesa
TsGAOR – Arquivos Centrais Estatais da Revolução de Outubro
TsGASA – Arquivos Centrais Estatais do Exército Soviético
TsPA IML – Arquivos Centrais do Partido no Instituto de Marxismo-Leninismo

PARTE VII – NO LIMIAR DA GUERRA


34 – MANOBRAS POLÍTICAS

1. XVIII s' ezd Vsesoyuznoy Kommunisticheskoy partii (bol'shevikov). Stenografichaeskii otchet. Moscou, 1939,
p. 18
2. Ibid. p. 26
3. Ibid. p. 2
4. Dokumenty i materialy kanuna vtoroy mirovoy voiny, 1937-39. 2 vols. Moscou, 1981, vol. 2, p. 47
5. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 109, l. 32-33
6. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 9
7. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.19, d. 206, l. 551
8. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.1, d. 5, l. 554
9. AVP SSSR, f. 082, op. 22, p. 93, d. 7, l. 798
10. SSSR v bor'be protiv fashistskoy agressii, 1933-1945, Moscou, 1976, p.66
11. TsAMO SSSR, f. 5, op. 176 703, d. 7, l. 431
12. SSSR v bor'be... p. 74
13. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 57-59, 86
14. AVP SSSR, f. 06, op. 16, p. 27, d. 1, l. 766
15. AVP SSSR, f. 06, op. 1a, p. 26, d. 1, l. 1176-1177
16. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 66-72
17. Dokumenty i materialy… vol. 2, pp. 10, 11
18. SSSR v bor'be... pp. 78-79
19. AVP SSSR, f. 06, op. 1b, p. 27, d. 5, l. 22-32
20. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 73
21. XVII s'ezd VKP(b). Stenografichsekii otchet. Moscou, 1934, p. 11
22. Geiden. K. (Heyden, C.) Istoriya germanskogo fashizma. Moscou-Leningrado, 1935, p. 60
23. XVII s'ezd. 1934, p. 12
24. AVP SSSR, f. 011, op. 4, p. 27, d. 61, l. 1218
25. AVP SSSR. f. 011, op. 4, p. 27, d. 59, l. 178-180
26. AVP SSSR, f. 0745, op. 15, p. 38, d. 8, l. 126-128
27. AVP SSSR, f. 0745, op. 19, p. 45, d. 4, l. 122-125
28. AVP SSSR, f. 0745, op. 19, p. 45, d. 9, l. 129-132
29. Akten zur deutschen auswärtigen Politik 1918-1945. Baden-Baden, 1956, vol. 7, p. 131

35 – REVIRAVOLTA
30. AVP SSSR, f. 0745, op. 15, p. 38, d. 8, l. 149
31. Zhilin, P.A. O voine i voennoy istorii. Moscou, 1984, p. 145
32. Pravda, 27 de agosto de 1939
33. Documents diplomatiques français, 1932-39. 2e serie, vol. 18, p. 243
34. AVP SSSR, f. 059, op. 1, p. 300, d. 2077, l. 233-234
35. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1237, l. 379, 381
36. Dokumenty I materialy... 1937-1939, vol. 2, pp. 85-86
37. Pravda, 18 de setembro de 1939
37a. TsAMO, f. 5, op. 362 360, d. 175 704, l. 90
38. TsAMO, f. 5, op. 391, d. 175 704, l. 96
39. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1237, l. 436-437
40. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 105, t. III, l. 19-22
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 105, t. III, l. 205
42. TsGAOR, f. 5325, op. 1, d. 244, l. 2
43. TsGAOR, f. 5325, op. 1, d. 244, l. 9
44. TsGASA, f. 33 988, op. 3, d. 373, l. 130
45. TsGASA, f. 33 988, op. 3, d. 373, l. 113
46. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1236, l. 376-380
47. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1366, l. 60-62
48. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1366, l. 27-29
49. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 99
50. Izvestiya, 3 de dezembro de 1939
51. Izvestiya, 16 de dezembro de 1939
52. TsAMO, f. 8, op. 1, d. 23, l. 34
53. TsAMO, f. 15, op. 11 600, d. 160, l. 96
54. TsAMO, f. 132, op. 264 211, d. 73, 1.67-110
55. Ibid

36 – STALIN E O EXÉRCITO
56. Voenno-istoricheskii zhurnal, 1987, nº 9, p. 50
57. TsAMO, f. 37 837, op. 10, d. 142, l. 93
58. Voennye kadry Sovetskogo gosudarstva, 1941-1945. Moscou, 1963, p. 12
59. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 993, l. 3, 1
60. TsAMO, f. 5, op. 176 703, d. 21, l. 16
61. Arkhiv Verkhovnogo suda SSSR. f. 75, op. 35, d. 319
62. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1305, l. 175, 192
63. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 4, l. 153
64. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 77, l. 56
65. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 76, l. 20
66. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 79, l. 9-l0
67. TsGASA, f. 365, op. 1, d. 18, l. 6
68. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 3, l. 85-91
69. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 49

37 – O ARSENAL DE DEFESA
70. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1302, l. 3
71. Zhilin, P.A. O voine i voennoy istorii, Moscou, 1984, p. 185
72. Ustinov, D.F. Vo imya pobedy. Moscou, 1988, p. 223
73. Nekrich, A.M. 22 Iyunya 1941. Moscou, 1965, p. 73
74. TsAMO, f. 15a, op. 2154, d. 4, l. 224-233
75. TsAMO, f. 75 284, op. 1, d. 119, l. 18
76. Voznesensky, N.A. Voennaya ekonomika SSSR v period Otechestvennoy voiny. Moscou, 1948, p. 78
77. TsAMO, f. 15a, op. 2154, d. 4, l. 224-233
78. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 653
79. Pravda, 22 de fevereiro de 1941

38 – O ASSASSÍNIO DO EXILADO
80. Trotsky, Dnevniki i pis' ma. pp. 160-162
81. Siqueiros, D.A. Menya nazyvali likhim polkovnikom. Moscou, 1986, p. 220
82. Trotsky, op. cit. pp. 164-166

37 – DIPLOMACIA SECRETA
83. The Public Papers of Franklin D. Roosevelt, 1939, pp. 201-205
84. Vneshnyaya politika SSSR. Sbornik dokumentov, vol. 4. Moscou, 1946, p. 417
85. Istoriya vneshnei politiki SSSR 1917-1945. Moscou, 1980, vol. 1, pp. 371-372
86. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 49
87. TsGASA, f. 3987, op. 3, d. 1175, l. 33-34
88. TsGASA, f. 32 871, op. 1, d. 72, l. 216
89. AVP SSSR, f. 06, op. 1a, p. 26, d. 1, l. 1179
90. Leonhardt, W. Der Schock des Hitler-Stalin Paktes. Freiburg, 1986, pp. 66-68, 79-84
91. AVP SSSR, f. 011, op. 4, p. 25, d. 11, l. 1462-1463
92. TsAMO, f. 500, op. 12 458a, d. 34, 1.17
93. TsAMO, f. 500, op. 12 462, d. 7, l. 1-6
94. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 54
95. Churchill, W. History of the Second World War, vol. 3, p. 493
96. Sandalov, L.M. Perezhitoe. Moscou, 1961, p. 75

40 – OMISSÕES FATAIS
97. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 6, l. 522-523
98. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 6, l. 526-561
99. Izvestiya, 28 de setembro de 1939
100. Pravda, 1º de novembro de 1939
101. Pravda, 2 de setembro de 1939
102. TsGASA, f. 25 871, op. 2, d. 285, l. 8-9
103. Uma conversa com A.A. Yepishev registrada nas memórias não publicadas de Vlasik e vistas pelo autor.
104. TsGASA, f. 9, op. 39, d. 72, l. 44, 133, 536
105. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 10-14
106. Como registrado por Shtemenko e Vasilievsky em TsAMO
107. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 84-90
108. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 245-279
109. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 239
110. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 242, l. 238
111. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1969, p. 233
112. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 5, l. 140-146
113. TsGASA, f. 33 988, op. 4, d. 36, l. 56
114. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 3, l. 85-90
115. TsAMO, f. 127, op. 12 195, d. 16, l. 199-204
116. TsAMO, f. 127, op. 12 915, d. 16, l. 308-314
117. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 70a, l. 424-427
118. TsAMO, f. 15, op. 725 588, d. 36, l. 214-242
119. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 71, l. 34
120. Zhukov, op. cit, p. 233

PARTE VIII – INÍCIO CATASTRÓFICO


PARTE VIII – INÍCIO CATASTRÓFICO

41 – CHOQUE PARALISANTE
1. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 101, l. 23, 35, 37
2. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 239
3. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 243, l. 123-130
4. Em Politicheskoe Obrazovanie, nº 9, 1988, pp. 69-75
5. TsAMO, f. 132a, op. 2642, d. 41, l. 1-2
6. TsAMO, f. 15, op. 881 474, d. 12, l. 246-253
7. TsAMO, f. 48a, op. 1554, d. 90, l. 260-262
8. TsAMO, f. 32, op. 1071, d. 1, l. 6-8
9. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 71, l. 203-204
10. TsAMO, f. 15, op. 725 588, d. 36, l. 239
11. Kumanev, V. "Iz vospominanii o voennykh godakh", Politicheskoe Obrazovanie, nº 9, 1988, p. 75 omite
a obscenidade que está na fita original ouvida pelo autor.
12. TsAMO, f. 132a, op. 2642, d. 28, l. 1
13. Memórias do general D. I. Ryabishev, TsAMO, f. 15, op. 881 474, d. 12, l. 175-190
14. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, 1-47
15. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 25
16. Politicheskoe obrazovanie, 1988, nº 9, p. 75
17. TsAMO, f. 32, op. 701 323, d. 38, l. 53
18. Pravda, 3 de julho de 1941

42 – TEMPOS CRUÉIS
19. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 1, l. 1744
20. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 65
21. TsAMO, f. 8, op. 1855, d. 7, l. 27
22. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, 65-71
23. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 2, l. 252
24. TsAMO, f. 48A, op. 1554, d. 91, l. 40-42
25. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, l. 65-71
26. TsAMO, f. 33, op. 725 588, d. 36, l. 10
27. TsAMO, f. 33, op. 725 588, d. 36, l. 308-310
28. TsAMO, f.208, op. 2513, d. 71, l. 131, 221
29. TsAMO, f. 33. op. 11 454, d. 179, l. 144-145
30. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 68, t. V, l. 231-232
31. TsAMO, f. 33, op. 11 454, d. 179, l. 320-321
32. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 324

43 – DESASTRES E ESPERANÇAS
33. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 21-24
34. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 30, l. 12-13
35. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 1, l. 315
36. TsAMO, f. 298, op. 2526, d. 5a, l. 443-448
37. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 36, l. 82-84
38. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 28-30
39. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 96-99
40. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 470
41. TsAMO, f. 229, op. 161, d. 103, l. 93
42. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 61
43. TsAMO, f. 7, op. 11250, d. 29, l. 37-38
44. TsAMO, f. 48-A, op. 1133, d. 7, l. 139-140
45. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 431
46. TsAMO, f. 219. op. 679, d. 3, l. 17-21
47. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 50
48. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1983, vol. 2, p. 257
49. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 8, l. 212-214
50. Ts AMO, f. 48-A, op. 1910, d. 11, l. 16-19
51. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 141-143
52. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 24, l. 7
53. Stalin, I.V. O Velikoy Otechestvennoy voine Sovetskogo Soyuza. Moscou, 1950, p. 35

44 – O CATIVEIRO E O GENERAL VLASOV


54. Encyclopaedia Britannica. Londres, 1973, vol. 18, p. 563
55. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 62
56. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, l. 155
57. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 16
58. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 24, l. 8
59. Gems, Ditte, Hitlers Wehrmacht in der Sovjetunion. Frankfurt am Main, 1985, p. 41
60. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 135, l. 1-2
61. TsAMO, f. 33, op. 11 454, d. 179, l. 1-2
62. TsAMO, f. 38, op. 11 389, d. 2, l. 164-166
63. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 42, l. 18-22
64. TsAMO, f. 48-A, op. 1640, d. 26, l. 296
65. TsAMO, f. 32-A, op. 11 309, d. 163, l. 15-45
66. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 7, l. 201
67. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 195, l. 249-253
68. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 142, t. III, l. 102-103
69. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 68, t. V, l. 102
70. TsGAOR, f. 9401, op. 1, d. 2010, l. 67-69
71. TsGAOR, f. 109, op. 1, d. 2010, l. 67-69
72. Em Politicheskoe obrazovanie, 1989, nº 4, pp. 58-63
73. TsGAOR, f. 9401. op. 2, d. 64, t. I, l. 1
74. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 64, t. I, l. 158
75. TsPA IML, f. 58, op. 2, d. 966, l. 5
76. Hoffmann, J. Die Geschichte der Wlassow Armee. Rombach, 1986, p. 377. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d.
64, t. I, l. 9-12

PARTE IX – O COMANDANTE SUPREMO


45 – O QUARTEL-GENERAL
1. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 30, l. 24
2. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1983, vol. 2, p. 97
3. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 13, l. 247-248
4. TsAMO, f. 132, op. 2642, d. 233, l. 285-286
5. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 14, l. 18
6. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 6, l. 47
7. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 14, l. 62
8. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 41, l. 75-81
9. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 5, l. 51
10. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 6, l. 20

46 – AMANHECER EM STALINGRADO
11. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 316
12. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 128-129
13. Ibid.
14. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 2, l. 175
15. TsAMO, f. 3, op. 11 556. d. 9, l. 128-129
16. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 13, l. 7, 8
17. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 9
18. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 336
19. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 339
20. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 159, l. 87

47 – O COMANDANTE E SEUS GENERAIS


21. Stalin, op. cit., p. 71-72
22. Zhukov, op. cit., vol. 2, p. 99
23. Marshal Zhukov. Kakim my ego pomnim. Moscou, 1988, p. 81
24. TsAMO, f. 249, op. 1544, d. 112, l. 144
25. TsAMO, f. 48, op. 7, d. 2
26. TsAMO, f. 132, op. 264, d. 230, 1.15
27. Marshal Zhukov. Kakim my ego pomnim, p. 245
28. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 988, 1.81
29. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 103
30. TsAMO, f. 48-A, op. 3412, d. 63, l. 46-47
31. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 39, l. 115
32. Vasilievsky, A.M. Delo vsei zhizni. Moscou, 1983, p. 470
33. Gaglov, I.I. General Antonov. Moscou, 1978, p. 87

48 – IDEIAS DE UM ESTRATEGISTA
34. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 62, l. 546
35. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 27
36. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 265, t. II, l. 340-347
37. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 41, l. 271-272
38. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 14, l. 82-84
39. O relato desse encontro pode ser encontrado nos arquivos correntes da Seção Política do Exército, onde
o autor trabalhou e fez detalhadas anotações sobre a ocasião.
40. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 324
41. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 32, l. 145-147
42. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 5, l. 6
43. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 313
44. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86, l. 132. 140
45. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86, l. 345-347
46. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86,1. 198
47. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 165-166
48. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sb. dokumentov. Moscou, 1978, vol. 2,
pp. 52, 53
49. Ibid., p. 54

49 – STALIN E OS ALIADOS
50. TsAMO, f. 1178, op. 1.d. 38, l. 93
51. TsAMO, f. 236, op. 2675, d. 170, d. 108-311
52. Vneshnyaya politika SSSR. Sbornik documentov. Moscou, 1947, vol. 5, p. 40
53. Ibid., p. 54
54. Perepiska Predsedatelya Soveta Ministrov SSSR s Prezidentami SShA and Premier-Ministrami Velikobritanii
(1941-1945 gg.). Moscou, 1976, vol. 1, p. 19
55. Ibid., p. 29.
56. The Diaries of Sir Alexander Cadogan, 1938-1945. Nova York, 1971, p. 471.
57. Perepiska Predsedatelya Soveta Ministrov SSSR. p. 74
58. Stalin, O Velikoy Otechestvennoy voine. Moscou, 1950, p. 132
59. Pravda, 30 de maio de 1943
60. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznukh derzhav. Sbornik dokumentov. vol. 2, p. 167
61. Tegeran. Yalta. Potsdam. Sbornik documentov. Moscou, 1970, p. 22
62. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 101, l. 338-341
63. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172, t. II, l. 247-248
64. Harriman, W. Averell e Elie Abel, Special Envoy to Churchill and Stalin,1941-1946, Nova York, 1976,
p. 536
65. Lundin, C.L. Finland in the Second World War. Bloomington, 1957, p. 216
66. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 74
67. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 16, l. 183
68. TsAMO, f. 3, op. 11 56, d. 18, l. 93
69. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 142-144
70. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 110
71. TsAMO, f. 48-A, op. 3412, d. 63, l. 187-188
72. Krymskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sbornik dokumentov. Moscou, 1979, p.
273
73. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 177-190

PARTE X – CLÍMAX DO CULTO


50 – O PREÇO DA VITÓRIA
1. Vneshnyaya politika SSSR, Moscou, 1947, vol. 5, p. 598
2. Ibid., p. 97
3. Ibid., pp. 602-603
4. Gromyko, Andrei, Memories. Editado e traduzido por Harold Shukman, Londres, 1989, p. 108
5. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, t. VI, l. 124-130
6. Hayter, W. Meeting at Potsdam. Londres, 1975, p. 136
7. TsGAA, f. 33987, op. 3, d. 1241, l. 61
8. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 96, t. V, l. 4
9. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 95, t. IV, l. 323
10. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 135, t. II, l. 277
11. W. Averell Harriman e Elie Abel, op. cit., p. 92
12. Berlinskaya (Potsdamskaya) konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav – SSSR, SShA i
Velikobritanii (17 iyulii-2 avgusta 1945 g.) Sbornik dokumentov. Moscou, 1980, pp. 42-43
13. TsAMO, f. 66, op. 178499, d. 9, l. 34-37
14. TsAMO, f. 66, op. 178499, d. 9, l. 61
15. Berlinskaya konferentsiya, pp. 299-300
16. KPSS v rezolyutsiyakh i resheniyakh… 9ª ed. vol. 8, pp. 7-16
17. TsAMO, f. 132, op. 2642, d. 15, l. 1-9
18. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 96, t. V, l. 147
19. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 103, t. III, l. 149-60
20. Voznesensky, N.A. Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1979, p. 584
21. TsAMO, f. 132, op. 104, d. 16, l. 22
22. TsAMO, f. 132, op. 2, d. 54, l. 97
23. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-7
24. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 235-238
25. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, 1.139-142

51 – CORTINA DE SEGREDOS
26. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612 (vyp. 3), l. 8, 10
27. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 197
28. Merezhkovsky, D. Tsarstvo Antikhrista. Munique, 1921, p. 16
29. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 64, t. I, l. 270-277
30. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 1
31. TsGAOR, f. 1318, op. 3, d. 8, l. 85
32. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 143-151
33. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 1682, l. 3-7
34. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 1613, l. 3-18
35. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-2
36. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 2016, l. 1-10
37. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 93, l. 276-278
38. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-2
39. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 201, l. 79-81

52 – UM ACESSO DE VIOLÊNCIA
40. Pravda, 1º de março de 1949
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172, t. I, l. 85-92
42. TsPA IML, f. 71, op. 3, d. 121, l. 122-132
43. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 12
44. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 13-15
45. Ibid., l. 13
46. Ibid., l. 28
47. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 255, t. I, l. 118-119
48. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 319, 192-198
49. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, 199, l. 57-77, 366
50. Ibid., l. 30

53 – O LÍDER ENVELHECE
51. Bol'shevik, dezembro de 1949, p. 34
52. TsGAOR, f. 7523, op. 6, d. 739, l. 1, 9, 12
53. TsGAOR, f. 7523, op. 63, d. 218a, l. 9
54. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 2186, l. 1-15
55. Kautsky, K. "Sozialdemokratie und Bolschewismus" in Die Gesellschaft, nº 8, 1931, vol. 1, p.101
56. Alliluyeva, S. Tol'ko odin god. Nova York, 1968, pp. 109-110

54 – VENTOS GÉLIDOS
57. Kennan, G. Memoirs (1925-1950). Nova York, 1969, pp. 583-598
58. TsGAOR. f. 9401, op. 2, d. 135, t. II, l. 287-296
59. Truman, H. Mémoires, vol. 2 "L'appel des decisions". Paris, 1955, p. 112
60. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 151, t. VIII, l. 99-112
61. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 235-254
62. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 149, t. VI, l. 35
63. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 360
64. TsPA IML, f. 77, op. 5, d. 54, l. 14-15
65. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 92, l. 47, 55
66. Belgradskaya operatsiya, Moscou, 1964, p. 85
67. Djilas, M. Razgovory so Stalinym. Nova York, 1962, pp. 169-176
68. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 105, l. 1-8
69. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 106, l. 5-7, 17-19
70. Pravda, 3 de fevereiro de 1949
71. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 291
72. Stalin, I. Sochineniya, vol. 7, p. 231
73. Ibid., vol. 8, pp. 363, 364, 376
74. TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 155, l. 3a
75. Pravda, 25 de outubro de 1988: vide Gromyko, A. Memories, tradução H. Shukman, Londres, 1989, e
material adicional em Memoirs, Nova York, 1990, pp. 248-53
76. Mao Tse-tung, Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1953, vol. 4, p. 580

PARTE XI – AS RELÍQUIAS DO STALINISMO


55 – ANOMALIA HISTÓRICA
1. TsGAOR, f. 9401, op. l. d. 2180, l. 120-121
2. TsGAOR, f. 9401, op. I, d. 2180, l. 50-51
3. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, t. I, l. 169-170
4. Novaya Zhizn', novembro de 1917
5. Sotsialisticheskii vestnik, 25 de abril de 1925
6. Dan, F.I. The Origins of Bolshevism, Nova York, 1964, p. 400-440
7. Ugolovnyi kodeks (kodeksy RSFSR), Moscou, 1938, pp. 26-32
8. TsPA IML, f. 88, op. 1, d. 474,1. 4
9. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, t. VI, l. 276
10. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 97, t. VI, l. 283-292
11. Serge, V. Destin d'une revolution. URSS 1917-1936. Paris, 1937, p. 323

56 – DOGMAS MUMIFICADOS
12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 906, l. 44-52
13. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3212, l. 27
14. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 268, l. 5-l0
15. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 54, l. 1-4
16. Ibid.
17. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 136, t. III, l. 205
18. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 302, t. I, l. 29-31

57 – BUROCRACIA ABSOLUTA
19. Lenin, PSS, vol. 35, p. 113 20. Ibid., vol. 50, p. 238
21. TsGAOR, f. 58, op. 1, d. 9, l. 3-4
22. TsGAOR, f. 567, op. 1, d. 89, l. 29
23. Lenin, PSS, vol. 44, p. 171
24. Ibid.
25. Ibid., p. 428
26. Trotsky, Sochineniya, vol. 12, pp. 261, 267
27. TsPA IML, f. 505, op. 1, d. 65, l. 10
28. TsPA IML, f. 505, op. 1, d. 65, l. 21
29. Lenin, PSS, vol. 50, p. 106
30. TsPA IML, f. 325, op. l. d. 403, l. 87a
31. Wood, A. "Siberia before 1917." Em Shukman, H. The Blackwell Encyclopedia of the Russian Revolution.
Oxford, 1988, p. 258; Pipes, R. Russia under the Old Regime, Cambridge, MA., 1981, p. 417
32. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 231, l. 12
33. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 338-357
34. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 98, t. VII, l. 380
35. TsGAOR, f. 9401, op. I, d. 2180, l. 533-534
36. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172. t. I, l. 325-326

58 – DEUSES TERRENOS SÃO MORTAIS


37. Izvestiya TsK KPSS, nº 12, 1989, pp. 34-40
38. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 235-254
39. Rapoport, Ya.L. Na rubezhe dvukh epokh. Delo vrachei 1953 goda. Moscou, 1988, pp. 208-209.
40. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 28-34

59 – DERROTA PELA HISTÓRIA


41. KPSS v rezolyutsiyakh i resheniyakh s' ezdov, konferentsii i plenumov TsK (1898-1971). 8ª ed. Moscou,
1971, vol. 7, pp. 203, 205, 209, 210
1. Iosef Djugashvili, estudante da escola teológica de Gori, 1893.
2. Yekaterina (Kato) Svanidze, primeira mulher de Stalin.
3. Na aldeia de Monastyrskoe, 1915, um grupo de membros do comitê central exilados: Stalin é o terceiro a
partir da esquerda, na fila de trás, de chapéu preto. L.B. Kamenev à direita dele. G.I. Petrovsky está sentado ao
centro. À direita dele, Ya.M. Sverdlov.
4. Membros do Revvoensoviet da frente sudoeste A.I.Yegorov e Stalin, 1920.
5. Trotsky, presidente do Soviete Militar Revolucionário-Revvoensoviet, em seu trem blindado.
6. Comunismo de guerra: fazendo a colheita.
7. Moscou. Praça da Assunção (então, da Revolução, e hoje, Praça Vermelha). Desembarcando comida
requisitada, 1919.
8. Penúria e fome na região do Volga, 1921.
9. Lenin e Stalin em Gorky, 1922.
10. Stalin, Rykov, Kamenev e Zinoviev, no início dos anos de 1920.
11. 1º de Maio de 1925, Praça Vermelha, Moscou. Em frente ao mausoléu provisório de Lenin, ainda de
madeira: Kon, Yenukidze, Sedakyan, Muklevich, Voroshilov, Bubnov, Unshlikht, Baranov, Tukhachevsky,
Yegorov e Budenny. Sobre o mausoléu: Kirov, Rykov, Bukharin, Kalinin, Stalin, Schmidt, Tomsky,
Yaroslavsky, Postyshev e outros.
12. O que toca às mulheres… construindo os fornos de carvão coque em Magnitogorsk, 1931.
13. Mikoyan, Kirov e Stalin, 1932.
14. No auge, Pravda, 7 de novembro de 1930.
15. Julgamento de um kulak, Odessa, 1932.
16. Kulaks vítimas do terror, 1929.
17. Stalin com A.N. Poskrebyshev, 1934.
18. Voroshilov com generais, futuras vítimas do terror: Gamarnik, Slavin, Dubov, Dybenko, Kork, Khalepsky e
Yakir, durante um intervalo do XVII Congresso.
19. Voroshilov, Molotov, Stalin e Yezhov no canal Moscou-Volga.
20. A mesma foto, mas Yezhov foi apagado.
21. Voroshilov, Stalin e Molotov carregam urnas com as cinzas de balonistas mortos num acidente, no final da
década de 1930.
22. Stalin com a roupa típica dos mongóis buriats, 1936.
23. Eleições stalinistas. Yu.O. Schmidt votando, 1937.
24. Fotografia claramente falsa da mesa diretora de uma sessão do Soviete de Moscou.
25. Stalin com sua filha, Svetlana.
26. Stalin com sua mãe, Yekaterina Djugashvili, 1935.
27. Stalin e Voroshilov com suas esposas.
28. Stalin e Beria com a filha de Stalin na dacha.
29. A família. Stalin com Vasili e Svetlana.
30. Stalin e Beria de férias.
31. Stalin em sua dacha.
32. Conferindo os recém-chegados a um campo de trabalho forçado no canal Moscou-Volga.
33. Prisioneiros entrando numa unidade de quarentena.
34. Assinatura do Pacto Alemão-Soviético de Não Agressão, 23 de agosto de 1939. Molotov assinando. Em pé,
sorridentes, Ribbentrop e Stalin.
35. Stalin com Poskrebyshev durante a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop.
36. Stalin após a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop.
37. Mapa da Polônia assinado por Stalin e Ribbentrop.
38. O marechal Chuikov e oficiais alemães acertam os limites entre as tropas alemãs e soviéticas na Polônia,
setembro de 1939.
39. Bielorrussos do oeste recebem a notícia da anexação pela URSS.
40. Aviões de combate soviéticos destruídos no chão, julho de 1941.
41. Timoshenko dá parte a Stalin sobre perdas aéreas. Stalin despacha mandando dois comandantes a
julgamento.
42. Atirando de fuzil contra aviões inimigos. Frente sudoeste, maio de 1942.
43. O filho de Stalin, Yakov Djugashvili (à direita), e o filho adotivo de Molotov, G. Skryabin, prisioneiros de
guerra.
44. Campo alemão de prisioneiros de guerra, 1941.
45. A aldeia de Khoroshevo, perto de Rzhev. Aqui ficou Stalin, durante sua visita ao front, em agosto de 1943.
46. Os alemães chegam a Moscou, mas como prisioneiros de guerra, julho de 1944.
47. Os libertadores, a pé, rumo a Berlim.
48. Stalin com seus filhos Vasili e Svetlana, na reserva de Chernaya Rechka (Rio Negro), 1947.
49. Comício pré-eleitoral nos distritos Stalin e Bauman de Moscou, apresentando Stalin para o Soviete
Supremo, 15 de fevereiro de 1950.
50. Meninos e meninas Pioneiros entregam flores a Stalin em seu septuagésimo aniversário, 21 de dezembro de
1949.
51. O sepultamento de Stalin. Sobre o Mausoléu estão Palmiro Togliatti, da Itália; Dolores Ibarruri, da
Espanha; Vulko Chervenkov, da Bulgária; Mátyas Rákosi, da Hungria; Robert Kenny, do Canadá; Jacques
Duclos, da França; Klement Gottwald, da Tchecoslováquia; Bulganin, Molotov, Voroshilov, Malenkov,
Khruschev; Chou En-lai, da China; Beria, Yudin, Kaganovich, Mikoyan, Saburov, Pervukhin e Shvernik.
DIREÇÃO GERAL
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