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AOS LEITORES DESTAS 98 PÁGINAS

Esta é uma biografia que eu queria ter escrito!


Pena que o João Roberto chegou primeiro.
Fernando Morais em debate na 2º Bienal do Livro de S. José dos Campos

P edro e os Lobos foi lançando, de forma independente,


em dezembro de 2009, nas dependências do Memorial
da Resistência, no emblemático prédio de tijolos a vista do Largo
General Osório, onde Pedro Lobo ficou encarcerado e passou
por severas torturas em 1969, quando ali funcionava o
Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo, o
temível Dops.

Escrito numa linguagem ágil e vibrante, o livro traz


duas histórias em paralelo. Na primeira está a vida louca do ex-
sargento da Força Pública que resolve se jogar de cabeça no
caldeirão fumegante da luta armada contra a ditadura
implantada pelos militares em abril de 1964 e todas as ações
armadas destinadas a tentar tirar os generais do poder.

Em paralelo temos uma bela aula de História, com


os principais acontecimentos da época, como a renúncia de
Jânio Quadros, a conturbada posse de Jango, o golpe de 1964, o
AI-5, a censura e o processo de abertura, que deságuou na
anistia aos presos políticos, a volta dos partidos, as Diretas Já e o
fim do regime.

Finalista do Jabuti 2010, Pedro e os Lobos ganhou edição


digital em 2018 e está concorrendo ao Prêmio Kindle de livro-
reportagem da Amazon.

Dos 3 mil exemplares impressos na primeira edição,


restam apenas alguns livros que estou vendendo para me
manter enquanto termino um novo trabalho, o romance
Marina que, ambientado entre 1951 e 1966, contará a
história da extinta Ferrovia Bahia & Minas, imortalizada na
canção Ponta de Areia, de Milton Nascimento e Fernando
Brant.
Gostando desta degustação, peça seu exemplar impresso
pelo e-mail laque@ibest.com.br ou baixe o e-book na
Amazon clicando sobre a URL abaixo.

https://www.amazon.com.br/Pedro-Lobos-Chumbo-trajet%C3%B3ria-guerrilheiro-ebook/dp/B07K2HTVFL/ref=lp_17873926011_1_8?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1546550014&sr=1-8

João Roberto Laque


Janeiro de 2019

Sobre o autor:
João Roberto Laque é formado em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo — USP — universidade onde também cursou História.
Professor nos anos 1980, foi também redator do jornal Folha de São Paulo e editor de textos da
Revista Nova Escola, da Fundação Victor Civita.
Depois de se dedicar durante 13 anos à vida de empresário no ramo editorial, enveredou pelos rumos
da literatura escrevendo o romance ainda inédito Os Bêbados da Praça da Matriz e este Pedro e os
Lobos.
Atualmente João Roberto se dedica a finalização de outra biografia, a dos José de Carvalho — os
Irmãos Metralha da Guerrilha Brasileira — e a um romance ambientado entre 1951 e 1966 que contará
a história da Ferrovia Bahia&Minas.
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João Roberto Laque

PEDRO E OS LOBOS
Os Anos de Chumbo na trajeto´ria
de um guerrilheiro urbano
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Capa, diagramação e editoração:


Ary Almeida Normanha e
Jun Ilyt Takata Normanha
Preparação e revisão:
Camila de Castro Sanches
www.csbureaueditorial.com
Ilustrações:
Marcos Müller
Fotos:
Arquivo pessoal de Pedro Lobo
Arquivo do Estado
Vladimir Sachetta

Esta obra só foi possível graças a:


Roberto Guerra
Dorivaldo Domingues de Souza
Ieda dos Reis
Terezinha de Jesus Amorim
E a acolhida carinhosa de Ida e Wladimir Lobo

Agradeço ainda o apoio inestimável de:


Adeíldo Alves Barros, Antônio Pedroso Júnior, Antônio Roberto Espinosa,
Darcy Rodrigues, os irmãos Márcio e Marcos Genaro, Nilton Cesar, Hedy Mazucato Granjeiro,
Ismael Antônio de Souza, Ivan Seixas, Janini Bravo, José Araújo da Nóbrega,
Rodrigo Lachi, Sérgio Luiz Braga Silveira e Tânia Campos
E aos depoimentos de:
Adilson Lucena, Ângela Telma Lucena, Ariston Lucena, Carlos Roberto Pitolli,
Damaris Lucena, Derly José de Carvalho, Diógenes José de Carvalho,
Dulce de Souza Maia, Jorge Nahas e Maria José Nahas e Nelson Chaves

Parte das pesquisas deste livro foram feitas no:


Arquivo do Estado de São Paulo
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PREFÁCIO
Guerreiros são pessoas
São fortes, são frágeis
Guerreiros são meninos
Por dentro do peito
Precisam de um descanso
Precisam de um remanso
Precisam de um sonho
Que os tornem perfeitos
Gonzaguinha, Guerreiro Menino

trajetória de vida do personagem central deste livro s


e mistura a um período da

A história do Brasil que ainda carece de ser compreendido em sua plenitude. E,


certamente, nele está embutida uma das mais amargas experiências políticas
pela qual passou o nosso país.
Pedro Lobo de Oliveira nasce no primeiro ano do governo Vargas, nos cafundós da
Serra do Mar paulista. Para fugir da miséria que assola a região, ele abandona seu torrão
natal em busca de um eldorado chamado Mato Grosso. No caminho, quase se torna
escravo branco em uma plantação de bananas, trabalha como servente de pedreiro,
metalúrgico, e acaba engajado na Força Pública, hoje Polícia Militar.
Contagiado pela luta ideológica que divide o mundo durante a Guerra Fria, o então
sargento Lobo se converte ao socialismo e passa a militar no Partido Comunista de
Luís Carlos Prestes. Considerando-se um operário fardado — cuja ferramenta de
trabalho é o fuzil —, ele adere à tese da luta armada e vai às últimas consequências
quando ajuda a fundar uma das mais ativas organizações guerrilheiras que atuam no
país durante os Anos de Chumbo.
Companheiro do lendário Capitão Carlos Lamarca e seguidor ardoroso das teorias
foquistas de Ernesto Che Guevara, Pedro se converte em Getúlio ou Gegê, para mergulhar
de cabeça na luta contra a ditadura implantada a ferro e fogo em março de 1964.
Odiado pelos militares por sua obstinação e bravura, o militante da Vanguarda
Popular Revolucionária será preso e massacrado nos cárceres da repressão política.
Solto durante as negociações pela libertação de um embaixador sequestrado, ele
passará por Argélia, Cuba, Chile e Argentina, antes de se fixar na Alemanha Oriental,
do outro lado do que o Ocidente convencionou chamar de A Cortina de Ferro.
Sobrevivente de uma guerra sem regras, Pedro volta ao Brasil com a anistia e é
reintegrado à Polícia Militar como se sua vida encerrasse um caprichoso ciclo. Hoje
major PM, ele se mantém a postos para retomar a luta de resistência caso a
democracia seja novamente ameaçada. Obstinação, desprendimento, aventura e muita
emoção não faltam na memórias desse brasileiro de vida ímpar.
Então, vamos a ela!

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A queles que pegaram em armas para lutar contra a ditadura


podem ter escolhido um caminho errado, mas não eram loucos ou
doidivanas. Certos ou errados, eram homens de seu tempo, jovens
de seu tempo, um tempo diferente do que agora vivemos. [...]
Se a Terra era azul, como dissera Gagarin, o futuro parecia vermelho.
Franklin Martins no prefácio de Viagem à luta armada
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Descida ao inferno
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou
castigo cruel, desumano ou degradante.
Artigo 5º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, 10/12/48

N u, pendurado de cabeça para baixo com mãos e pés amarrados a uma


trave de madeira, boca tapada e nariz cheio de salmoura, Pedro Lobo
sente um ardor terrível toda vez que tem de respirar. A situação beira o
insuportável quando vêm os choques, os pontapés e os socos que chegam a lhe
quebrar duas costelas de uma só vez.
Estamos no início de 1969, no quartel da 2ª Companhia de Polícia do Exército
da rua Tutoia, em São Paulo. Os agentes comemoram eufóricos a inesperada vitória
sobre a resistência armada ao regime instalado no Brasil a partir de 64. Fatalmente,
os quatro suspeitos que acabam de cair em suas mãos têm informações preciosas
para ajudar a desvendar a estrutura das organizações de esquerda que vêm
atazanando o governo de coturnos.
Em tese, os militantes da Vanguarda Popular Revolucionária teriam que ser
tratados como prisioneiros de guerra. O diabo é que a Convenção de Genebra
não faz nenhum sentido aos integrantes da ditadura fardada. Pedro que o diga:
— Como nosso grupo foi o primeiro a cair aqui em São Paulo, a gente não
sabia direito o funcionamento das câmaras de tortura. Ninguém tinha ideia de
como era feito um interrogatório longo sob castigo severo. Eu mesmo, com dez
anos de polícia, nunca tinha visto nada parecido.
Muito mal instalados em uma cela minúscula nos fundos do quartel, aos poucos
Pedro e seus companheiros vão sendo apresentados ao método de martírio físico e
psicológico, sublimemente chamado de interrogatório preliminar.
Logo de cara, por aceitar colaborar com a repressão, um dos presos — Her-
mes Camargo Baptista — é separado do grupo.
— Aí começou o pau.
Tentando manter-se em silêncio, o ex-sargento vai sofrer muito nas mãos dos
torturadores. Na primeira fase, a da porrada pura e simples, as agressões incluem
bordoadas, tapas na cara, pontapés e tudo mais que possa render uma informação útil.
— Na verdade, só tive forças pra aguentar aquilo porque eles ainda não
sabiam nada sobre a gente, não tinham a menor noção do que nossa organização
tinha feito.

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Já que os três prisioneiros insistem em permanecer mudos, a tortura se


intensifica.
— Aí já fomos colocados no pau-de-arara.
Pau de arara, no dicionário da repressão, é uma trave de madeira que, apoiada
sobre dois cavaletes, cadeiras ou mesas, comporta uma pessoa pendurada nela.
Amarrado pelos pés e pelas mãos, o torturado fica de cabeça para baixo e as
dores começam pelos punhos e calcanhares que, pressionados pelo peso do
corpo, sofrem seguidas lesões.
— Nesse tempo que a gente ficou apanhando lá na Polícia do Exército, eu
ainda estava com a cabeça arrebentada por causa da coronhada que tinha
recebido durante a prisão e sofri muito. Mesmo assim, passei do sábado pro
domingo, das onze da noite às cinco da manhã, pendurado pelado, com os caras
me dando porrada e choques em tudo quanto é parte do corpo.
A intensidade da violência vem da pressa que os agentes têm em conseguir
informações sobre pessoas e lugares usados pela guerrilha, antes que tudo seja
desmobilizado. Quando o suplício se torna insuportável, Pedro inventa um
endereço frio qualquer — geralmente, num bairro muito distante — para
se recuperar um pouco.
— Aí, os caras punham a gente numa perua do Exército e seguiam até o local
indicado. Quando chegavam lá, eles ficavam furiosos de ver que o número não
existia ou era um terreno baldio. Na mesma hora voltava todo mundo pra rua
Tutoia, e o pau cantava dobrado.

Erro crasso
O trabalho se fez com tantos erros sob o aspecto de segurança clandestina
que seria de se admirar se tivesse dado certo.

Jacob Gorender sobre a pintura do


caminhão no livro Combate nas trevas

Pedro e seus três companheiros tinham sido presos no início da tarde de


quinta-feira, 23 de janeiro de 1969, numa chácara de nome Ibiti,
no município paulista de Itapecerica da Serra, pintando de verde-
oliva um caminhão roubado. Para fazer o trabalho, na chácara está ele,
Hermes, Ismael Antônio de Souza e Oswaldo Antônio dos Santos, conhecido
como Portuga.

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Na tentativa de camuflar a atividade que deveria ser ultrassecreta, o grupo


esconde o caminhão sobre uma estrutura de bambu coberta por lona. Pedro diz
que o primeiro erro foi esse:
— Era uma loucura aquilo. A pintura não ia passar despercebida nunca,
porque com o encerado estendido por cima dos bambus, aquilo ficava
parecendo circo.
O segundo erro foi não ter providenciado nenhum esquema de segurança.
— Conseguimos o sítio com o Celso Pereira Araújo, um oficial da Justiça do
Trabalho, que era velho militante do Partido Comunista e amigo do Carlos
Marighella. Ele garantiu que o pessoal que morava lá era de confiança, e a gente
relaxou, não pôs sentinela, não pôs nada.
Uma e meia da tarde. Depois de toda a manhã de trabalho, Pedro deduz que
o almoço já deve estar pronto. Ele abandona então a bomba de flit – uma
espécie de avó do spray – usada na pintura e deixa a tenda por uma fenda aberta
na lona.
— Fui saindo sem camisa, todo sujo de tinta, e dei de cara com um negrão
fardado com um revólver 38 na mão:
— Não se mexe, que você tá preso.
Pedro ergue as mãos e fica ali parado, tentando se recuperar do susto. Depois,
procura conversar com o policial:
— Olha aqui, seu cabo: não precisa me prender, pois não estou fazendo nada
de errado por aqui. O táxi parado lá na entrada da chácara é meu mesmo. Tenho
os documentos pra provar. É só abaixar a arma e deixar eu pegar minha
pasta, aquela ali do lado do caminhão.
Na verdade, o que o ex-sargento quer é uma chance de passar a mão no
seu revólver que está na pasta.
— Eu ia fazer uma bagaceira por lá, mas o cabo falou: “ Você não vai pegar
pasta alguma. E fique onde está, porque se tentar alguma coisa, mando
bala!”
— Pelo tanto que o negrão tremia, vi que ele tava muito nervoso. Então, fui
repetindo que era inocente, que não tava fazendo nada de errado, até ele relaxar
um pouco e ir baixando a mão que segurava o revólver.
Quando a arma já está à altura de sua barriga, o guerrilheiro se aproveita do
pequeno descuido do militar para aplicar-lhe um golpe de judô.

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— Caímos os dois no chão, e meti o dedão direito no cão do revólver


tentando impedir que ele disparasse.
Na luta, Pedro também cuida em disputar o gatilho com o cabo, enquanto
dobra seu pulso para trás.
— Nós dois rolando lá na terra, e eu doido pra dar um tiro no peito dele.
O policial já está perdendo a disputa pela arma quando, por trás, aparece
outro soldado e desfere uma violenta coronhada na testa do ex-sargento.
— Senti o sangue escorrendo pela cara e percebi que não tinha mais jeito. A
única saída ali era tentar sair correndo.
Num golpe de braço, o militante da VPR se livra do cabo, dribla o outro
soldado com um jogo de corpo e sai em zigue-zague na direção da mata que
circunda a chácara.
— Na corrida, fui pulando de um lado pro outro, enquanto os caras metiam
bala lá atrás:
Tá, tá, tá. Tataratatá.
— Não sei se eles atiravam pra me acertar, só sei que ouvia o barulho, sentia
o cheiro da pólvora, mas continuava correndo sem ser atingido. O problema é
que, no meio do caminho, tinha uma cerca de arame farpado, e meti a cara nela.
Imobilizado, Pedro é levado para junto de seus companheiros, que já estão
algemados na sede da Ibiti. Ciente de que aquelas prisões vão signif icar uma
imensa tragédia à sua organização e à luta armada brasileira como um todo, ele
pensa em partir para o tudo ou nada.
— Na hora em que me vi preso, bateu aquele desespero. Então, me veio à
cabeça: vão levar a gente embora no Jipe da polícia. Quando passar pelo alto do
primeiro morro, me atiro sobre o volante e jogo a viatura lá pra baixo.
— Planejei aquilo porque aí ia rolar todo mundo no mato e teria a chance de
alguém escapar pra avisar o resto do pessoal.
Como o ex-sargento é algemado ao cano que dá sustentação à carroçaria do
Jipe, seu plano de fuga vai para o vinagre. E todo mundo acaba mesmo na
delegacia de Itapecerica da Serra.

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Contrabandista amador
A ditadura trabalhava com a ideia de que o criminoso existia antes mesmo do crime
ser cometido: estava preliminarmente estabelecido quem eram os elementos
perigosos, aqueles que se opunham, em qualquer nível, à “revolução”.
Caroline Silveira Bauer, O Departamento
de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul

A o iniciar seu depoimento na delegacia, Pedro e seus companheiros


descobrem que o delegado nada sabe sobre eles e que a guarnição da Força
Pública fora enviada ao Ibiti por conta de um pequeno incidente.
Naquela manhã, um garoto da vizinhança tentara espiar o trabalho de pintura
do caminhão por debaixo da lona e fora expulso aos safanões pelo caseiro.
Zangada, a mãe do menino vai à polícia avisar que a chácara parece estar se
tornando um covil de contrabandistas. Assim, muito por acaso, a secretíssima
operação de camuflagem do Chevrolet Brasil se revela um retumbante desastre.
Da uma às seis da tarde do dia 23, os militantes da VPR ficam à disposição
das autoridades na delegacia de Itapecerica. Pedro aproveita o tempo em que é
colocado sozinho com os companheiros para atirar na latrina a aliança que traz
no dedo anular da mão esquerda. É uma forma desesperada de se livrar de
informações importantes, como o nome de sua mulher, Ida Alexandre, e a data
do casamento.
— Era muito difícil a situação ali, porque ia começar outra luta: a de enganar
a polícia sobre nossa verdadeira identidade e evitar que outros militantes
caíssem presos. Então, como era ex-militar, assumi a liderança daquela operação.
Sem a menor ideia do tipo de delinquentes que tem nas mãos, Osmar Fenucci,
o delegado de plantão, insiste em saber do prisioneiro o porquê de o grupo estar
camuflando um caminhão com as cores do Exército.
— Inventei que o Chevrolet ia ser usado por contrabandistas pra levar peças
a uma refinaria de petróleo no Rio Grande do Sul.
A cor verde-oliva, declara Pedro, é para facilitar a passagem do v eículo pelas
fronteiras estaduais, já que um caminhão das Forças Armadas nunca será
revistado por guardas rodoviários.
Tentando reforçar sua história, o guerrilheiro cria Danilo, delinquente
profissional que viveria no Rio de Janeiro e teria vindo a São Paulo contratar o
serviço.

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— Disse que ia receber 50 cruzeiros novos e só tinha aceitado a empreitada


ilegal porque estava desempregado e cheio de dívidas.
Na intenção de amarrar bem a história, Pedro aproveita os momentos em que
fica sozinho com os companheiros para combinar e memorizar muito bem seus
detalhes. É mister não haver contradições num futuro depoimento.
A situação do grupo piora, e muito, quando o delegado encontra um recorte
de jornal na carteira do prisioneiro.
— Lá estava a notícia de minha exoneração da Força Pública por motivos
políticos, em 6 de maio de 1964.
Intrigado, Osmar Fenucci resolve notificar o Departamento de Ordem Política
e Social na capital.
Quando os agentes do Dops analisam o caso, acham estranhíssimo um ex-
sargento desligado de sua corporação por ser suspeito de pertencer ao Partido
Comunista estar chefiando operação de camuflagem de caminhão, ainda mais
nas cores do Exército. Então, por via das dúvidas, as Forças Armadas também
são acionadas.
— Passadas algumas horas, o delegado me chamou de novo lá na sala dele e
disse:
— Olha, Lobo, acho a história de vocês muito bonita, bem feitinha, toda
certinha e amarrada, mas acho que ela não vai colar. O problema aqui parece que
não é comigo, é com o Exército. E eles estão vindo buscar vocês.
— Ali, vi que a situação tinha ficado preta de verdade. Porque, nas mãos das
Forças Armadas, a coisa mudaria completamente de figura.
No final da tarde, uma equipe de agentes do Dops, acompanhada
do comandante da 2ª Companhia da Polícia do Exército, major Jayme Lameira,
chega a Itapecerica. Amontoados no chiqueirinho de um camburão de combate,
os prisioneiros são transferidos ao quartel da PE na rua Tutoia, no bairro
paulistano do Paraíso. Toda a estrutura da Vanguarda Popular Revolucionária
depende agora do silêncio de seus quatro combatentes.

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Escapando por pouco


No dia seguinte, o comandante da 2ª Companhia da PE, major Jayme Henrique
Antunes Lameira, pediu aos superiores autorização para deslocar suas tropas a
Itapecerica, o que foi negado. Lameira desobedeceu e obteve do major
Inocêncio Fabrício de Mattos Beltrão o apoio dos blindados que o colega comandava
no 2º Regimento de Reconhecimento Mecanizado (RecMec). Recebeu ainda a ajuda
de dois helicópteros. A movimentação de tropas pegou Itapecerica de surpresa.
O Estado de S. Paulo, 7/12/2008

O quinto integrante da equipe encarregada da pintura do caminhão —


o sargento do Exército José Araújo da Nóbrega — só chega na Ibiti
no meio da tarde
— Entrei na estrada que dá acesso à chácara com meu Fusquinha e dei de
cara com um grupo da Polícia do Exército parado bem no meio do caminho.
Abordado pelos soldados, José Nóbrega arma uma expressão de inocência no
rosto e diz que é vendedor ambulante e só está ali para oferecer algumas peças
de roupa ao caseiro.
— Até mostrei as camisas novas que levava no carro exatamente pra usar
como álibi numa situação dessas.
Bem dissimulado, o militante da VPR exibe ainda um talão de notas fiscais e
consegue convencer o comandante da patrulha a liberá-lo.
— Quando estou arrancando com o Fusca, escuto um dos recrutas gritar:
— Segura ele aí, que esse cara não é vendedor coisa nenhuma! Ele é
sargento, pois eu já o vi fardado lá no quartel.
Alheio aos gritos de — Pare! Pare! dos soldados e os disparos, o amigo
de Pedro acelera seu carro e sai da mira dos fuzis já na primeira curva.
No dia 24 de janeiro, outros dois militantes da VPR escapam da prisão muito
por acaso. Antônio Roberto Espinosa e Diógenes José de Carvalho Oliveira
resolvem ir à Itapecerica conferir por que Pedro faltara aos encontros marcados
no dia anterior com cada um dos dois.
Ao deixar a Rodovia Regis Bittencourt, Espinosa percebe a imprudência que
a dupla está prestes a cometer.
— Entramos na estradinha que dava acesso a chácara e me deu um estalo. Aí,
disse pro Diógenes:
— E se o Pedro foi preso? A polícia pode ter cercado a área e a gente
estar correndo perigo dentro deste carro.

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— Você tem razão, companheiro! É melhor deixar o Fusca por aqui e seguir a pé.
Já perto da Ibiti, os dois resolvem cortar caminho por uma picada aberta no
capinzal.
— Demos alguns passos e já vimos a traseira de um carro de combate
do Exército estacionado lá na estrada da chácara.
Com todo o cuidado para não ser percebida pelos soldados, a dupla volta ao
Fusca e trata de desaparecer daquele lugar.

Filhote de Lobo
Sou caipira, Pirapora, Nossa
Senhora de Aparecida.
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida.
Renato Teixeira, Romaria

P edro nasceu em 28 de julho de 1931, num casebre de pau-a-pique do


bairro de Favorita, em Natividade da Serra, cidadezinha encravada nos
grotões da Serra do Mar paulista. Filho de José Lobo de Oliveira e Maria
Francisca, ambos analfabetos, teve uma infância paupérrima numa região onde a
miséria é regra geral.
— Minha avó materna, a Vó Chica, era índia, e minha mãe uma mulher
fabulosa, mas muito brava, que vinha de uma família de gente valente. Na roça,
quando pegava um eito de enxada, saía na frente e terminava primeiro que meu
pai. O velho sempre penou nas mãos dela.
Nosso personagem central vai ser batizado pelo cônego Hygino Corrêa da
Conceição Aparecida, figura ímpar na história da região que, inclusive,
costuma andar armado.
— Meu pai me contava que o Padre Hygino não media hora pra fazer as
coisas. Quando tinha um batizado ou uma extrema unção pra dar lá na roça, ele
metia o revolvão na cinta, porque lá naquele sertão tinha muita onça, e saía, fosse
de dia ou de noite, tivesse frio ou calor.
Eis o destino dando uma mãozinha à intimidade que nosso personagem
central terá com as armas ao longo da vida. Af inal, não deve haver muitos padres
que mantêm sempre um vistoso revólver 32 de sobreaviso na sacristia.
Sem ter com quem ficar, desde muito cedo, Pedrinho segue os pais na lida
diária no meio da plantação.

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Pedro Lobo com um ano no colo do avô José Moreira. Ao lado a avó Franscisca.

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— Tenho poucas lembranças daquele tempo. Mas uma ainda é muito forte: a
da minha mãe me carregando nos braços quando ia pra capina. Com a cabeça
tombada por cima do ombro dela, eu ia acompanhando o ritmo cadenciado de
seus calcanhares subindo e descendo aquelas trilhas de terra batida. Tum, tum.
Tum, tum. Tum, tum. E eu me divertia muito com aquilo.
Sem direito a brinquedos ou qualquer outro mimo, muito cedo o rebento dos
Lobos de Oliveira se vê integrado à rotina de trabalho do casal.
— Eles chegavam na roça, me penduravam numa rede e iam pegar na enxada.
E eu ficava ali, deitado, mastigando um naco de carne de bode defumada até o
final da tarde, quando terminava o trabalho.

Pobreza total
Os boias-frias quando tomam umas
“birita” Espantando a tristeza sonham
Com bife à cavalo e batatas fritas
E a sobremesa é
Goiabada cascão, com muito queijo
Depois café, cigarro e o beijo
De uma mulata chamada Leonor
Ou Dagmar.
João Bosco e Aldir Blanc, O rancho da goiabada

M etida nos cafundós da Serra do Mar, a família do seu José Lobo segue
levando uma vida de absoluta penúria. E, para complicar, o casal insis-
te em iruma
levando aumentando a família.penúria. E, para complicar, o casal
vida de absoluta
ins — O pai se casou duas vezes e teve um monte de filhos. Mas meus irmãos
não chegavam a viver muito. Nasciam e logo iam morrendo de tudo quanto é
doença: coqueluche, sarampo, tosse comprida...
De gênio irrequieto, o pequeno Lobo vai crescer nesse mundo rural
e, quando não está com os pais no bananal, está fazendo traquinagem.
— Fui um menino muito peralta, fazia malandragens assim, no sentido
cômico da coisa. Por exemplo: meu pai tinha dois gatos e eu sempre quis
aprontar alguma com os bichos, meio que para fazer graça. Um dia, o velho foi
numa reza e aproveitei para atiçar o cachorro contra os coitados. Ele chegou em
casa no final da tarde e pensou em voz alta:
— Poxa, que coisa esquisita! Não estou conseguindo achar meus gatos.
— Quando ele descobriu que fui eu o responsável pelo sumiço dos bichanos,
tomei uma tunda daquelas. Mas não liguei, porque estava acostumado a apanhar

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quase todo dia. Minha mãe ainda batia com vara de marmelo, o que era muito
mais doído. Ela me batia de tarde, e na manhã seguinte eu já estava aprontando
outra, porque fazer peraltice, pra mim, era uma festa.
O filho de seu José está com 9 anos quando Maria Francisca passa por uma
séria complicação na gestação de mais um rebento.
— Minha mãe, já em estado terminal, chamou o pai e disse: “Olha, Zé! O
Pedro, quero que você mande estudar em São Paulo. A Ondina – minha
irmãzinha que estava com um ano – vou levar comigo”.
— Dito e feito! Ela morreu no dia seguinte, e a menina, seis meses depois.
Desrespeitando o último pedido da mulher, seu José Lobo não manda o filho
para a escola em São Paulo ou a qualquer outro lugar, e o menino vai continuar
crescendo naqueles sertões sempre longe dum banco escolar.
— Fui vivendo feito um bicho do mato que nem um calçado usava. Quando
ia pra cidade, no meio do caminho tinha uma bica onde a gente lavava os pés e
punha os sapatos. Na volta, ali se ficava descalço de novo, mas os pés já estavam
cheios de bolhas.
Dois anos mais tarde, o pai de Pedro migra para a cidade vizinha,
Caraguatatuba, e consegue emprego na fazenda São Sebastião, uma unidade
produtora de bananas e frutos cítricos do grupo inglês S.A. Frigorífico Anglo.
Aqui, finalmente, o menino tem a chance de fazer o curso primário. E, como
todo pré-adolescente que se preze, acaba se enamorando pela professora.
— Tem mulher que a gente jamais esquece. Com 10 anos, me apaixonei pela
dona Luiza, que tinha o dobro da minha idade, porém ela nunca ficou sabendo.
Mais tarde, essa mulher ainda quis me levar pra São Paulo, porque, naquele
tempo, era comum um pai pobre dar os filhos pra serem criados por pessoas de
melhor condição.
Seu José não permite a ida de Pedrinho com sua paixão platônica para a
capital, e ele vai continuar crescendo em meio aos bananais. E será na
convivência com as agruras do trabalho na roça que o menino vai começar a
perceber o abismo que separa patrões e empregados em pleno Estado Novo, uma
ditadura comandada por Getúlio Dornelles Vargas, que se autoproclama O Pai
dos Pobres.
— Ali, eu já analisava o contraste entre a opulência e a miséria. Enquanto os
ingleses que dirigiam a propriedade viviam em chalés luxuosos construídos lá no
alto do morro, os brasileiros trabalhavam como peões de roça, ganhavam uma
miséria e eram obrigados a morar em choupanas construídas na beira da várzea.

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Primeira injustiça social


Em substituição à antiga sociedade burguesa, com suas classes e sua luta
de classes, surgirá uma sociedade onde o livre desenvolvimento de cada
um será a condição do livre desenvolvimento de todos.
Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista

V ivendo sob o governo Vargas, seu José Lobo não tem formação política
que lhe permita se posicionar diante das nuances ideológicas daqueles
que se digladiam em busca do poder. Mesmo assim, é obrigado ir à luta.
— Meu pai havia servido o Exército e era votante do Partido Republicano
Paulista. Mas, politicamente, não sabia onde estava, não tinha nada na cabeça.
Em 1924, veio à capital pra combater o general Isidoro Lopes Dias porque os
militares mandaram. Na Revolução Constitucionalista de 1932 foi a mesma
coisa, lutou por São Paulo obrigado.
Mesmo crescendo em um ambiente apolítico, lá pelos 12 anos o futuro
militante comunista presencia um crime que marcará, para sempre, sua
personalidade social.
— João Alves, um dos empregados da Fazenda onde eu morava, estava
doente. Então, pra aliviar um pouco o esforço do trabalho na roça, ele
providenciou um cabo mais comprido pro seu penado.
Pedro conta que o administrador da fazenda São Sebastião fica furioso
quando percebe a modificação na ferramenta.
— Aquilo era proibido pelos ingleses por mero capricho. Porque não havia
nada de mais em se ter um penado com o cabo um pouco maior.
Sentindo-se desrespeitado, Douglas Batchelar faz questão de humilhar o
empregado na frente dos outros trabalhadores.
— O inglês discutiu com o João no almoxarifado, xingou ele de tudo quanto
é nome e ainda lascou um tapa na cara do coitado. Depois, colocou o empregado
no olho da rua sem direito a nada.
Naquela época, num lugar de poucas propriedades rurais produtivas e
esparsas cidades, como era a região de Caraguatatuba, quem fosse demitido não
arrumava mais trabalho. Com os filhos infectados pela malária, sem dinheiro ou
lugar para morar, o lavrador se desespera.
— No dia seguinte bem cedinho, João Alves pegou uma garrucha e foi
esperar o inglês no sopé dum morro.
Como faz toda manhã, mister Batchelar — de terno de brim cáqui e chapelão
Panamá —, manda encilhar seu cavalo manga-larga e, após saborear um farto
breakfast, sai para a cavalgada matinal.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 19 (Black plate)

— Quando o inglês chegou àquele sopé, João Alves saiu da tocaia e disparou
o primeiro tiro. Dizem que o administrador ainda gritou, com seu sotaque
carregado:
— Não faz essa, João! Não faz essa!
— Mas de nada adiantaram as súplicas do gringo. A segunda bala pegou bem
no meio do peito e ele morreu na hora.
Acionada a polícia, o ex-empregado da Anglo será preso em flag rante.
— Aquele crime se transformou numa pendenga internacional, porque o
governo britânico pediu a extradição do assassino para ele ser julgado por um
tribunal de lá. Na época, contaram até que os inglês ofereceram o peso de João
Alves em ouro ao Getúlio Vargas, mas ele não teria aceitado, alegando que a
dignidade de um brasileiro não tinha preço.

Menino valente
Eu faço minha caçada bem antes de saí o só,
Espingarda de cartucho, patrona a tiracó Tenho
buzina e cachorro pra fazê forrobodó
Só me alegra quando pia lá pra aqueles
cafundó
É o nhambu chitã e o chororó
É o nhambu chitã e o chororó.
Serrinha e Athos Campos, Chitãozinho e Chororó

P edro continua a crescer entre as touceiras de banana e as matas que


circundam as escarpas da Serra do Mar. E, como para aquele povo do
sertão o uso de uma faquinha é fundamental, aos 10 anos ele já anda com a sua
pendurada à cintura.
— No meio do mato sempre tem uma madeira que precisa ser cortada, uma
fruta pra descascar ou um espinho que entra no pé. E eu, como toda criança do
interior, de manhãzinha gostava de pegar minha patrona com um pedacinho de
carne assada, um punhadinhode feijão e ir caçar, jogar laço, fazer mundéu, pois
lá em casa, a gente comia de tudo: macaco, gambá, tamanduá. Comia até uma
raposa do taquaral, um ratão grande chamado Quica.
Com o passar dos anos, as dificuldades financeiras e a falta de perspectiva
naquele fim de mundo vão empurrar seu José para o alcoolismo. Um sofrimento
a mais para o jovem Lobo, porque, quando embriagado, ele costuma descarregar
no lombo do único filho boa parte de suas angústias.
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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 20 (Black plate)

— O pai bebia muito e era meio estourado. Às vezes, eu apanhava mesmo


sem merecer. Um dia, me mandou buscar lenha no mato, começou a chover, e
atrasei um pouco o trabalho. No caminho de volta já encontrei ele no meio da
trilha me esperando com um reio na mão.
Na certeza do castigo, o rapazote larga o feixe que traz nos braços e se
prepara para aguentar mais uma tunda.
— Tive que fazer o resto do caminho debaixo de pau. Era uma reiada no meio
das costas e a outra nas pernas. Quando eu caía na lama, ele aproveitava pra
aumentar a força das lambadas.
Ao chegar em casa, seu José coloca o filho nu no meio da sala e continua com
o castigo.
— Fiquei preso no chão com a sola do sapatão dele apertando meu pescoço.
Como eu não tinha como fugir, aí o pai bateu com toda a força. Se os vizinhos
não aparecessem pra tirar ele de cima de mim, acho que eu tinha morrido de tanta
pancada.
Mesmo com toda essa violência doméstica, Pedro não guarda mágoas de seu
José e ainda vê lições positivas nos espancamentos:
— Antigamente, nesses matos do Brasil, todo mundo era meio violento
mesmo. E aquilo foi forjando em mim o conceito de resistência ao sacrifício
físico e moral. Isso me permitiu, mais tarde, suportar as ofensas dos policiais e
a tortura na cadeia.
Além das agressões de quem o deveria proteger, Pedro pena com as
enfermidades típicas às condições de vida daquele sertão.
— Sempre fui magrinho e muito doente. Tudo quanto era moléstia dava em
mim devido à má alimentação. Quando pegava malária, às oito horas da manhã
montava no cavalo pra ir tomar injeção na cidade. No caminho, dava um frio tão
forte que até os ossos doíam. Abalado pela crise, eu era obrigado a parar pelo
caminho e deitar no chão até que aquilo passasse. Quando acabava o frio, vinha
a febre. Era um sacrifício tremendo chegar até o posto de saúde.
Toda vez que é medicado, o menino fica bom. Porém, não demora nada e ele
cai doente de novo.
— Aquela era uma região onde tinha muito pernilongo. Até esqueci o número
de vezes que tive malária. E pra piorar, os medicamentos estragavam o fígado por
causa do quinino. Não fiquei com sequelas porque também tomei muito remédio
do mato. Cheguei até a beber urina de vaca com leite.

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Quando Pedro completa 15 anos, seu José já tinha deixado a São Sebastião
para se tornar um pequeno sitiante. Certo dia, os pés de milho da roça, que estão
começando a pôr espigas, amanhecem destruídos pelo gado de um vizinho.

Pedro Lobo aos oito anos junto dos pais, José e Maria Franscisca. Do lado esquerdo, sua tia Augusta.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 22 (Black plate)

— O pai foi falar com o dono do animal, e ele ficou furioso. Não pagou o
prejuízo e ainda quis bater no velho. Fiquei tão revoltado, que tive a
intenção de esperar o cara lá no mato e me vingar. Mas a gente era tão pobre
que nem uma espingarda tinha.
Por mera falta de arsenal, a primeira vítima do furor justiceiro do futuro
guerrilheiro escapa ilesa. No entanto, a partir daqui, um profundo sentido de
ética pessoal passa a nortear sua vida.

E lá se vai a castidade
O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
Que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar [...]
Chico Buarque de Hollanda, O que será — à flor da pele

F inal da década de 1940. Pedro já é adolescente que, como todos os outros


rapazes pobres da região, tem que trabalhar de sol a sol na roça do pai.
Nas horas de folga, além de continuar fazendo caçadas, joga peladas com os
amigos e começa a se interessar pelas meninas da vizinhança.
A primeira namoradinha do jovem Lobo vai se chamar Vicentina. Mas não
será com ela e sim com uma mulher muito mais velha e casada, a Dirce, que ele
se inicia na arte do sexo.
— Teve lá uma noite que essa dona resolveu encher a cara num botequim
porque tinha brigado com o marido. Na hora de ir embora, ela me pediu pra ir
junto até o portão da casa do seu pai. Então, a gente saiu andando pela estrada
de ferro e acabou entrando num vagão de transporte de adubo feito de semente
de mamona, que fedia como o diabo.
A despeito das dificuldades normais de um marinheiro de primeira transa,
Pedro ainda enfrentará um obstáculo invisível durante as preliminares.
— Aquilo tava um breu danado, e a Dirce cismou que tinha uma assombração
espiando a gente. Mas procurei por todo canto e não achei nada lá dentro. Na certa,
era alucinação dela, um efeito da cachaça mesmo.
De manhãzinha, os dois amantes estão de volta aos trilhos. Pedro pega então o
rumo de casa, enquanto a mulher volta ao botequim para tomar mais umas biritas.
— No caminho, ainda matei um gambazão a porretada pra servir de mistura
no almoço. Quando cheguei na rua onde morava, todo mundo já estava sabendo

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do acontecido. E deu um bafafá danado. Só meu pai não disse nada. Ficou me
olhando com o sorriso meio orgulhoso de quem pensa: “Meu filho se destacou
como homem. Fez o papel dele e mostrou que é macho”.
— Como o marido da Dirce podia querer se vingar, fiquei preparado com
minha faquinha na cinta. Mas ele não reagiu, não apareceu lá em casa nem me
chamou na casa dele para conversar, não fez nada.
Para Pedro, a maior consequência do affair no vagão de adubo foi mesmo a
perda de sua namorada oficial nesta época.
— A Raimunda era uma menina muito brava e não quis saber de desculpas.
Quando fui procurar ela em casa, não teve acordo: me xingou de tudo quanto foi
nome e me abandonou no mesmo dia.

Salvando o que dá
Se eu demorar uns meses,
Convém, às vezes, você sofrer.
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer.
Leonel Paiva e Chico Buarque de Hollanda, Acorda amor

A visada das prisões em Itapecerica, a direção da Vanguarda Popular


Revolucionária providencia a desmobilização da casa/aparelho de Pedro
Lobo onde há um verdadeiro arsenal guardado.
— Lá naquela chacrinha de Santo Amaro o n d e e u v i v i a tinha
mais de 400 quilos de dinamite, quatro mil balas de Ina, uns cinco mil tiros de
Fal, revólveres, pistolas, fuzis M-1, M-2 e granadas de mão.
O delegado de Itapecerica, talvez querendo se promover, ainda dá uma
ajudinha no alerta aos militantes da organização.
— Ele chamou a imprensa e contou os detalhes de nossa prisão. No dia
seguinte, o jornal Última Hora já deu a notícia. Do nosso pessoal, quem ainda
não tinha sido avisado ficou sabendo ali.
Diante da queda do marido, Ida Lobo se dá conta de que, mesmo sem
participar de qualquer movimento político, armado ou não, corre grande perigo.
— O Zé Nóbrega apareceu lá em casa e disse que eu tinha de fugir o mais
rápido possível: “O Pedro acaba de ser preso e a polícia vai bater aqui a qualquer
momento!”.

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Naquela mesma noite uma militante da VPR, a promotora teatral Dulce de


Souza Maia, chega à Santo Amaro para iniciar a limpeza da casa e levar Ida e o
único filho do casal, o Wladimir, de um ano e meio, a um lugar mais seguro.
— Ela veio, e a primeira coisa que eu falei foi: “Pega o pacote que está
debaixo da cama. É o dinheiro de vocês”.
A guerrilheira apanha então os 75 mil cruzeiros novos — todo o capital da
organização — e parte com mãe e filho para a casa de Antônio Raymundo de
Lucena, o Doutor, na rua Lima e Silv a, bairro do Ipiranga. À tarde, Ida e
Wladimir ainda são obrigados a voltar à chacrinha para ajudar o jovem Ariston
Oliveira Lucena a retirar mais algumas coisas.
— Eles disseram que eu tinha que ir junto, porque, com uma mulher e um
bebê na Kombi, ia ser mais difícil a polícia parar a gente.
Como o resto das armas, da munição e dos explosivos lotam a perua, a
mulher de Pedro vê ficar para trás a sua mobília, os eletrodomésticos e todo seu
enxoval. Até os bichos de estimação — cachorro, coelho e papagaio — acabam
abandonados naquele que, por alguns anos fora o lar dos Lobo de Oliveira.

Apuro em Santo Amaro


Há momentos na história dos povos em que os caminhos
parecem todos fechados.
Neiva Moreira, Pilão da madrugada

Q uando descobrem que Pedro está preso, José Nóbrega e o sargento Darcy
Rodrigues decidem ir a Santo Amaro apanhar o armamento e parte da
papelada da organização que havia sobrado no aparelho. O problema surge
quando, ao deixar a rua Dona Margarida, os dois avistam uma blitz policial.
— Assim que entramos na avenida Nossa Senhora do Sabará, demos de cara
com uma barreira armada pelo Exército. E nós com um Fusquinha lotado de
armas, granadas e dinamite.
Sem outra saída, José Nóbrega engata uma ré e pisa fundo no acelerador
numa transloucada fuga.
— Conseguimos andar uns cem metros sem bater em nada nem atropelar
ninguém. Aí, entramos na primeira rua que apareceu à direita e depois na
primeira à direita de novo. Fizemos, assim, uma espécie de “z” e caímos numa
ruazinha sem saída.
Procurando não chamar a atenção das pessoas que passam, a dupla estaciona
o carro no meio-fio e sai caminhando.

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— Fomos andando descontraídos, rindo, como se fôssemos dois velhos


amigos contando piadas um pro outro.
Segundos depois surge na rua uma das viaturas mobilizadas na captura do
Fusca fujão. Mas nenhum dos soldados dá bola para aqueles rapazes que
caminham tão despreocupados.
— Assim que o camburão dobrou a esquina, aceleramos o passo e conseguimos
chegar ilesos à avenida Nossa Senhora de Sabará, onde apanhamos o primeiro táxi
pra sumir dali.
Os companheiros de Pedro até que se saíram bem da enrascada, entretanto, a
carreira de sargento do Exército de José Nóbrega acaba aqui. O Fusca abandonado
está registrado em seu nome e nele a repressão vai encontrar parte do arsenal da
VPR e vários de seus documentos internos.

Lobo acuado
[...] dar ao preso a impressão de que os órgãos de segurança não ignoram
nenhum detalhe de sua vida. Tudo está registrado, fichado, catalogado.
A comunidade de informação é onipresente e onisciente. Escuta telefonemas,
abre correspondências, acompanha as pessoas pela rua, enxerga e ouve através das
paredes, pousa na mesa de trabalho disfarçada em simples mosquito.
Nada escapa ao seu saber e a seu poder. Acreditar nisso é, para o preso,
admitir sua própria impotência.
Frei Betto, Batismo de sangue

N a carceragem da Polícia do Exército, debaixo de pau e sabendo que a


repressão pode bater em sua casa a qualquer momento, Pedro Lobo
continua negando a militância na luta armada. A versão do contrabando é
mantida de quinta até domingo, com ele repetindo sempre a mesma história.
— Lembro que no domingo, eu estava dormindo no chão da cela quando eles
vieram me buscar. Fui levado prum sobrado de tábuas que ficava nos fundos do
quartel, e ali recomeçou o interrogatório sobre minha vida.
Nu, amarrado a uma trave de madeira apoiada no espaldar de duas cadeiras,
com a cabeça mais baixa que o corpo, pés e mãos presos por cordas e com a boca
tapada, Pedro vai receber salmoura pelo nariz, enquanto os policiais berram em
seus ouvidos dezenas de perguntas ao mesmo tempo.

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Apesar de sentir muita dificuldade para respirar, já que o sal lhe queima as
narinas e a garganta, o guerrilheiro se mantendo firme no propósito de nada
revelar.
— Segui negando, negando e negando até o Caetaninho, que estava chefiando
os investigadores, ordenar: “Desamarrem esse coitado!”.
Com a ordem de Benedito Caetano, os policiais descem a trave, soltam as
mãos e os pés do guerrilheiro e o acomodam em um banco.
— Eu estava muito mal, ofegante, com a garganta ardendo e as costelas em
estado de miséria.
O chefe do grupo de tortura coloca então a mão no ombro do prisioneiro e
lhe fala num tom paternal:
— Ô Lobo, você está morrendo à toa, rapaz! Seus amigos já abriram muita
coisa. Sabemos que você matou um capitão norte-americano, assaltou bancos,
invadiu quartel, explodiu bombas, fez isso, isso e aquilo. E acabamos de vir de
sua casa, onde encontramos vários objetos comprometedores. Então, não adianta
mais resistir.
Depois desse curioso diálogo entre um piedoso carrasco-mor e sua vítima em
frangalhos, o prisioneiro é levado a uma sala onde estão um morteiro
semiacabado e granadas fundidas artesanalmente.
— Eram coisas que eu estava fabricando e que tinham sido deixadas pra trás
pelo pessoal que limpou a chacrinha lá de Santo Amaro. Aí, bateu a preocupação
com minha família.
O medo de Pedro é o de que a Ida ou o Wladimir sejam torturados.
— Já pensou, se eles pegam minha mulher, o menino, e colocam lá numa sala
pra apanhar também? Se visse aquilo, a minha dor moral ia ser imensa.
Para alívio do prisioneiro, num pequeno deslize o delegado dá a pista
tranquilizadora:
— Olha, Lobo, você tem que contar pra a gente onde está sua mulher!
— Com aquela frase, fiquei mais sossegado. Percebi que minha família já
tinha sido colocada a salvo pelo pessoal da organização.

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Diáspora
Casas entre bananeiras
mulheres entre as laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Carlos Drummond de Andrade, Cidadezinha qualquer

J ogado na cela do fundo do quartel da Polícia do Exército, entre um


espancamento e outro, o ex-sargento procura refazer, mentalmente, os
caminhos que o levaram a se meter em tamanha enrascada. E seus pensamentos
se voltam à vida em Caraguatatuba no final dos anos 1940.
— Por falta de dinheiro, minha família chegou a passar fome, a comer banana
verde cozida, porque só tinha aquilo. E a banana é muito gostosa madura, mas
verde é ruim, que é uma desgraça. Assim, fui ficando adulto e vendo que aquele
lugar não servia mais pra mim.
Com 18 anos completos, o jovem Lobo se sente entediado com a vidinha que
leva naqueles rincões e encasqueta uma ideia: migrar para Mato Grosso, a
fronteira agrícola de então.
— Todo mundo contava histórias mirabolantes daquele lugar, diziam que
havia muito serviço, muita madeira e o dinheiro corria solto. Era uma terra que
estava começando a ser desbravada, e, como eu tinha o espírito aventureiro, achei
que lá estaria meu eldorado.
Em uma manhã do ano de 1949, o filho de seu José recheia sua malinha de
papelão com uma muda de calça e outra de camisa e anuncia a partida.
— Meu pai chorou muito. Imagine eu, que toda a vida trabalhei ali junto dele,
agora dizer que estou indo embora, que vou tentar a vida a mais de mil
quilômetros daquele lugar.
Na companhia de dois amigos da mesma idade, Pedro segue a pé até São
Sebastião, de onde parte um barco de passageiros. E, na base do pinga-pinga, o
trio contorna boa parte do litoral norte paulista até aportar em Santos.
— Dali, pegamos um ônibus até a cidade de São Vicente.
Como é preciso arrumar dinheiro para toda a viagem, os três retirantes
resolvem trabalhar por um tempo no sítio Rio Branco.
— Lá era um matão lascado, e estavam implantando uma roça de banana.

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Mesmo tendo experiência naquele tipo de serviço, foi preciso penar muito pra
dar conta do recado.
Labutando de sol a sol no cabo do machado, da foice e da enxada, o boia-fria
Pedro não demora a perceber que sua jornada ao sonhado eldorado está
seriamente comprometida.
— Uma semana depois, fiz os cálculos e descobri que a gente estava se
tornando uma espécie de escravos brancos, já que a paga sequer cobria o custo
da comida e da cama. E ir embora não era permitido. Enquanto devesse pro
patrão, ninguém saía daquele lugar.
No final do nono dia de trabalho, o f ilho de seu José reúne seus
companheiros de viagem e arma uma fuga.
— A peonada dormia num barracão, e lá pela meia-noite todo mundo já tinha
pegado no sono. Então, fui puxando meus dois amigos pelo pé pra, na surdina,
juntar as tralhas e cair fora.
Seguindo pelos trilhos do ramal Santos-Juquiá da Estrada de Ferro
Sorocabana, no clarear do dia os caminhantes chegam à área urbana de São
Vicente.
— Sofremos pra burro naquela jornada, porque tinha muito pernilongo pela
beira da linha e só encontramos um pedaço de pão pra comer.
No meio da manhã, Pedro e seus amigos alcançam a Vila de Piassaguera, no
sopé da Serra do Mar.
— Entrei na estação e tentei comprar passagens no trem que seguia pra São
Paulo. Mas tinha lá um soldado que implicou com a minha faquinha e queria me
levar preso de qualquer jeito. Nessa, perdi a faca e ainda deu um trabalhão pra
convencer o cara a me deixar ir embora.
Desapontados com tantas agruras surgidas assim, logo de início, os outros
dois retirantes decidem desistir do périplo. Pedro bem que pensa em seguir
sozinho, mas seu espírito solidário acaba falando mais alto.
— Eu não podia deixar os companheiros voltarem sem mim. Então, resolvi
também encerrar ali a viagem.
A pé, os três amigos sobem até a Vila de Paranapiacaba e depois vão
contornando a borda da Serra do Mar pelas trilhas abertas no meio da mata.
— Quando a gente encontrava alguma casa pelo caminho, batia palmas pra
pedir comida. Tinha lugar em que aparecia uma mulher, que se assustava com
aqueles três marmanjões no portão e voltava correndo pra dentro. Mas o caboclo

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é muito solidário, e fomos conseguindo, aqui e ali, uma caneca de café, um


bocado de farinha...
Depois de dois dias percorrendo picadas e estradinhas, os três rapazes estão
de volta à Caraguatatuba.
— Lembro que ao chegar em casa vi meu pai preparando um panelão de
feijão com arroz. Aquilo foi uma alegria danada pra quem estava morrendo de
fome. E ele ainda me disse: “Não te falei, Pedro, que este mundo é muito
ingrato?”.
Sem alternativas, o filho pródigo retoma o trabalho na roça. Mas sem nunca
deixar de sonhar com o paraíso terrestre que deve estar à sua espera no distante
Mato Grosso.

Partindo de novo
Adeus, nhô pai
Adeus, nha mãe
Adeus, meu pessoal
Tô indo embora
Pro mundo afora
E dentro de um bornal Levo
um restinho
De alegria
E um bocadinho de sal Que
cai dos olhos
De dentro deles
Como uma saudade, Mortal.
Rolando Boldrin, Adeus, nhô pai

O
Grosso.
f ilho de José Lobo passará mais dois anos trabalhando nos bananais até
conseguir dinheiro suf iciente para retomar sua jornada rumo a Mato

— Quando juntei quinhentos mil reis, uma nota grandona com o brasão da
República estampado na frente, decidi que era hora de partir de novo.
Cinco de abril de 51. Aboletado na carroceria do caminhão de um agenciador
de mão-de-obra, Pedro Lobo de Oliveira chega à cidade de São Paulo.
Disposto a reforçar seu caixa antes de seguir viagem, o migrante passa a
trabalhar como ajudante-geral nas obras da Cidade Universitária Armando de
Salles Oliveira. Ali, à margem esquerda do Rio Pinheiros, está sendo construído
o campus que vai abrigar a Universidade de São Paulo.

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— Ô servicinho ingrato aquele: o dia inteiro carregando carrinhos e carrinhos


de terra pra cobrir a área de várzea. E ainda pagavam uma mixaria.
Semana inteira de trabalho, e Pedro descobre, na ponta do lápis, que também
ali ele não conseguirá ganhar dinheiro suficiente para o resto da viagem.
— Pedi demissão, peguei o pouco que tinha direito a receber e me mandei pro
Largo de Pinheiros, onde havia condução pra Estação da Luz.
Enquanto Pedro sobe de bonde a rua Teodoro Sampaio, um desconhecido
com forte sotaque gaúcho senta a seu lado e puxa conversa:
— Muito prazer! Meu nome é Valdomiro.
— Eu sou Pedro Lobo.
— Desculpe a curiosidade, mas o moço tá indo pra onde?
— Estação da Luz. Vou pegar um trem no rumo de Mato Grosso.
— Não faça isso! Sou empreiteiro de obras e estou precisando de um
servente. Se você quiser trabalhar comigo, pago muito bem e ainda ensino o
serviço.
A proposta seduz o viajante que, alguns minutos depois está desembarcando
no bairro de Cerqueira César.
— Na manhã seguinte, eu já estava carregando tijolos e aprendendo a fazer
massa. Trabalhando duro, deu pra juntar algum dinheiro, tanto que, um mês
depois comprei meu primeiro terno num brechó do bairro da Luz.
Animado com o progresso financeiro obtido na carreira de servente de
pedreiro, nosso personagem principal vai adiando sua viagem a Mato Grosso,
enquanto ajuda a erguer — na base do tijolo e do concreto — a metrópole
paulistana.
Com o passar do tempo, entretanto, o tal Valdomiro se revelará um sujeito
muito enrolado.
— Ele pegava várias obras ao mesmo tempo e não acabava nenhuma. Recebia
adiantado, punha uma parte do material, o pessoal pra levantar as paredes, e
sumia da vista do dono. Como eu era do interior, caboclo da roça, muito honesto
e sem nenhuma malícia, o cara começou a me fazer de bobo e a não acertar o
salário direito.
Com os pagamentos já bastante atrasados, Pedro resolve ir à casa do patrão
cobrar a lida.
— Cheguei lá e o Valdomiro estava jantando na cozinha. Quando falei do que
tinha para receber, ele ficou furioso. Disse que não ia pagar nada naquele dia e
começou a gritar comigo.

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Em meio ao violento bate-boca, o empreiteiro apanha uma faca e parte para


cima do empregado.
— Naquele tempo, eu era meio ignorantão também. Aí, quando ouvi aquele
monte de palavrão e vi o Valdomiro armado, puxei a faquinha que levava na cinta
e chamei ele pra fora. Porque não ia brigar lá dentro, na frente da mulher e dos
filhos, isto seria um desrespeito muito grande.
Como o empreiteiro não tem coragem suficiente para sair à rua e enfrentar o
desafeto, a rusga morre ali. Só que Pedro volta para casa sem ter arrancado do
patrão um único tostão furado.
— Lá pelas tantas, bateram na porta da pensão. Quando fui abrir, dei de cara
com dois puta homões, espigadões, com aquela farda azul-marinho da Guarda
Civil. Um deles era sargento de classe distinta e foi logo pedindo meus
documentos.
Intimidado, o servente entrega a carteira de identidade ao policial.
— Ele leu lá: Pedro Lobo de Oliveira, natural de Natividade da Serra. Então,
olhou bem pra minha cara e disse:
— Meu nome é Alarico José de Castro e estou te reconhecendo, rapaz! O sítio
do meu pai é vizinho ao do seu tio, o Agostinho Lobo, lá em Natividade da Serra.
Por isso, conheço toda a tua família.
Tanta coincidência não livra o filho de seu José de se apresentar ao delegado.
E, para seu grande azar, na viatura que o conduzirá ao distrito está também o
vivaldino do Valdomiro.
— O cara estava sentado no banco de trás, e eu entrei na frente. Só que, no
meio do caminho, ele aproveitou um descuido dos guardas pra me dar um pé
d’ouvido. Reagi na hora, e a gente se empacotou dentro daquele camburão.
Muitos sopapos depois, os policiais conseguem separar os dois brigões. E a
viatura segue viagem para a delegacia.
— Na frente do delegado, o classe distinta falou: “Olha, doutor, desse rapaz
aqui eu conheço toda a família e posso me responsabilizar por ele”.
Na mesma hora, o delegado manda soltar Pedro.
— Aí, aproveitei a deixa pra contar tudo o que sabia do Valdomiro, as obras
que ele não acabava e sumia, as traições à mulher e todas as brigas em que vivia
se metendo.
Desmascarado, o empreiteiro toma um sabão do delegado e é liberado sob a
promessa de que pagará toda a dívida com seu servente já no dia seguinte. Feliz

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da vida, o nosso personagem central volta à pensão na expectativa de, finalmente,


conseguir dinheiro suficiente para a viagem a Mato Grosso.
— Mas que pagar no dia seguinte que nada! Na mesma noite, o desgraçado
do Valdomiro pegou a mulher, os filhos e desapareceu lá de Cerqueira César.
Totalmente na pindaíba, Pedro não tem outra alternativa se não adiar
novamente a partida rumo ao seu tão sonhado eldorado.
— Naquela época, emprego na construção civil era o que não faltava em São
Paulo. Então, segui trabalhando como servente porque só tinha o primário e,
mesmo assim, muito malfeito.
No dia seguinte ao chapéu dado por Valdomiro, Pedro já está de volta às
obras, agora sob os auspícios de um novo e mais honesto empreiteiro. Com o
passar do tempo, o filho de Natividade da Serra vai se adaptar tão bem à vida na
metrópole que a partida para Mato Grosso acabará abandonada de vez.

Abrindo o bico
[...] Disse que eles não se envergonhariam nem se arrependeriam de sua condição de
revolucionários e de patriotas pelo fato de ter que suportar as consequências
de suas atitudes. [...] Quando os homens têm um mesmo ideal, ninguém pode isolá-
los, nem as paredes de um cárcere nem a terra dos cemitérios.
A mesma lembrança, a mesma alma, a mesma ideia, a mesma consciência e
o mesmo sentimento de dignidade alentam a todos.
Fidel Castro diante do Tribunal de Exceção em 16/10/53

V oltemos a janeiro de 1969. Pedro não acolhe o conselho do delegado para


que conte o que sabe sobre a VPR e continua apanhando no quartel da
Polícia do Exército. Só quando considera que o tempo decorrido desde sua prisão
já é suficiente para que sua organização tenha se protegido de possíveis quedas,
ele decide falar.
— Já que eles tinham estado em minha casa e conheciam parte de nossas
ações, resolvi dar o grito de guerra: “Sou revolucionário sim! Sou um
guerrilheiro mesmo!”.
— Eu havia lido o discurso que Fidel Castro tinha feito durante seu
julgamento no Tribunal de Exceção montado no quartel de Moncada, em
Santiago de Cuba. E ele dizia que um guerrilheiro no cárcere tem que confirmar
com orgulho sua participação na batalha pela liberdade do povo. Por isso, resolvi
assumir minha militância e tudo mais:

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— Vocês querem mesmo saber? A história nossa é a da luta armada contra a


ditadura, sim senhor! E fiz tudo isso aí que vocês estão me acusando.
— Nessa balada, fui assumindo um monte de coisas. Como não podia dizer
que tinha sido só eu, comecei a jogar algumas ações em cima de quem já estava
preso e de outros companheiros que, àquela altura, já deviam estar protegidos
pela clandestinidade. Chegou um momento em que falei:
— Fiz isso, isso e isso também. Com muito orgulho!
— Nas minhas confissões entrou até coisa que eu não tinha feito. Porque,
uma ação a mais ou a menos não ia alterar em nada pra quem já tinha três ou
quatro mortes nas costas. Aí, fui assumindo tudo na intenção de salvar muita
gente de apanhar. Nessa, entrou até um assassinato que eu não tinha cometido.
Pedro se refere à morte de Antônio Carlos Jeffery, soldado-aluno da Força
Pública de São Paulo abatido a tiros na madrugada do dia 20 de agosto de
1968, defronte à Escola de Bombeiros do Centro de Formação de Oficiais do
Barro Branco. Nesse caso, nosso personagem central jura de pés juntos que não
foi ele ou qualquer um de seus colegas quem atirou na sentinela.
— Carregamos aquilo porque a polícia alegou que a metralhadora roubada
tinha sido pega com nosso pessoal. Então, antes que eles judiassem de outros
companheiros pra tentar descobrir o verdadeiro culpado, eu, que já tinha
apanhado bastante, assumi a bronca, e pronto.
Mesmo confessando crimes que diz não ter cometido, Pedro garante que
manteve sigilo sobre tudo o que poderia comprometer aqueles que não tinham a
militância aberta à polícia ou a estrutura física de sua organização.
— Consegui não tocar em nomes que ainda eram desconhecidos. Dos
aparelhos nossos, não abri nenhum. Ninguém da VPR foi preso por minha causa.
E também não fui junto com a polícia na casa de ninguém. Claro, a gente comete
erros durante um interrogatório com o pau comendo. Alguma coisa deve ter
vazado porque, por mais que se feche, sempre fica um rabinho de fora. E não se
pode condenar um deslize, porque a tortura realmente é algo terrível de aguentar.
Mas trair, nunca traí. Disso, tenho certeza absoluta.
No Fusca abandonado por José Nóbrega e Darcy Rodrigues nas imediações
da avenida Nossa Senhora do Sabará, a polícia vai encontrar ainda a caderneta
de endereços de Pedro. E, o primeiro nome que chama a atenção é o de Wilson
Pinto de Oliveira.

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— Esse era um soldado gaúcho, bonavita, mulherengo e bom de briga, que


não largava a pistola 45. Ele trabalhou comigo no quartel da Força Pública, era
muito meu amigo, mas não tinha nada a ver com a luta armada.
Preso às onze da noite do dia 25, Wilson será levado à Polícia do Exército e
interrogado sob tortura. Mas o rapaz insiste que não vê Pedro desde 1964, e é
posto em liberdade.
Outro incauto que entra em cana por ter seu nome anotado pelo guerrilheiro
é o sargento José Raimundo Filho. No pau, ele se defende alegando que dera seu
telefone e endereço ao colega de farda três anos antes, durante um encontro
casual no centro da cidade. O sargento também ficará pouco tempo preso.

Sacudir São Paulo


A gente ia abalar São Paulo atingindo três alvos distintos: um grupo atacaria
com morteiros de 60 mm, granadas e lança-rojões o Palácio dos Bandeirantes e
o Quartel General do Segundo Exército, no Ibirapuera. Outro explodiria com
cem quilos de dinamite a Academia Militar de Polícia instalada na entrada do
campus da Universidade de São Paulo. No Campo de Marte, as sentinelas
seriam rendidas, e a gente iria avariar os instrumentos de voo para confundir
o sistema aéreo da cidade. Uma vez instalado o caos, as explosões consecutivas
e os ataques dariam inicio à tomada do poder.
Pedro Lobo sobre a Noite de São Bartolomeu

N o quartel da Polícia do Exército, a disposição de Pedro é a de não ajudar


os agentes do governo de coturnos a descobrir o verdadeiro destino do
caminhão que estava sendo pintado de verde-oliva na Ibiti.
De imediato, os militares não conseguem saber, por exemplo, que o Chevrolet
Brasil é parte de um audacioso plano para acirrar o enfrentamento físico entre a
esquerda armada e a ditadura. A primeira parte consistiria em retirar do 4º
Regimento de Infantaria de Quitaúna, em Osasco, na Grande São Paulo,
armamento e munição para a execução de uma espetacular série de atentados
que, literalmente, sacudiriam São Paulo.
Na manhã do dia 26 de janeiro, o sargento Darcy Rodrigues — um dos
militantes da VPR engajados naquela unidade militar — estaria na chefia da
Guarda. Com a desculpa de que haveria instrução geral, ele ordenaria a retirada
de toda a munição dos fuzis.
Às três e meia da tarde, fardado de sargento, Pedro chegaria ao quartel
dirigindo o caminhão.

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— A gente ia entrar com o Chevrolet pintado de verde-oliva e um fusca na


cobertura. O caminho já estaria aberto, porque os companheiros que trabalhavam
lá — o Darcy, cabo José Mariane Ferreira Alves e o soldado José Carlos Zanirato
— já teriam rendido as sentinelas e arrumado as coisas.
Além de Pedro, na cabine do falso veículo do Exército estariam, fardados de
sargento, José Ronaldo Tavares de Lira e Silv a, Osvaldo Antônio dos Santos e
Antônio Roberto Espinosa.
Do depósito da Companhia de Petrechos Pesados instalada no 4º Regimento
de Infantaria, comandada por outro integrante da Organização — o capitão
Carlos Lamarca — seriam retiradas metralhadoras, morteiros de 60 mm, além de
360 fuzis FAL já devidamente separados e embalados em fardos de cinco
unidades.
Fora do quartel, três outros comandos deveriam estar a postos e aptos a anular
qualquer resistência que pudesse partir do 2º Grupo de Canhões Antiaéreos,
unidade vizinha ao 4º R.I., ou da residência de oficiais e sargentos da contígua
Vila Militar.
Batizada de A Noite de São Bartolomeu — em referência ao massacre de
protestantes ocorrido na França em 1572 — a megaoperação pretendia colocar
em cheque o governo e marcar o início de uma ofensiva de grande porte das
esquerdas armadas. Os múltiplos ataques a alvos oficiais seriam seguidos de
pequenos atos de dispersão.
— Nossa ideia era criar um clima de guerra civil com uma série de ações de
impacto pra abalar as estruturas da ditadura. A gente queria mesmo criar o caos
naquele 25 de janeiro!
Carlos Marighella, dirigente de outra organização guerrilheira — a Ação
Libertadora Nacional — é convidado a participar da invasão com seu grupo, mas
não aceita. Diz o ex-deputado baiano que atacar tantos alvos importantes ao
mesmo tempo exigiria uma operação ousada demais para a estrutura das duas
siglas.
Mesmo assim, a VPR segue em frente com o plano. E o primeiro passo seria
a frustrada camuflagem do caminhão.

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Rombo na estrutura
Eu vim servir ao Exército pensando que o Exército estava servindo ao povo, mas
quando o povo grita por seus direitos, é reprimido. Aqui, o Exército defende os
monopólios, os latifundiários, a burguesia. O povo é sempre reprimido. Esse
Exército é podre e eu não aguento mais...
Carlos Lamarca, Lamarca, o capitão da guerrilha

M esmo com todas as providências tomadas para proteger o arsenal, o


dinheiro e a estrutura humana da Vanguarda Popular Revolucionária, as
quatro quedas em Itapecerica causam um verdadeiro terremoto no cerne da
organização.
Com o confisco do caminhão, a prisão dos combatentes e a desmontagem do
aparelho de Santo Amaro, toda a mega-ação do dia 26 de janeiro está comprometida
e precisa ser imediatamente desativada. Além do mais, Pedro conhece muito bem a
estrutura da sigla que ajudara a fundar, tem na cabeça o nome verdadeiro de
muitos de seus quadros e sabe da militância de Carlos Lamarca.
Por isso, no final da tarde de sexta-feira, dia 24, o capitão resolve abandonar
o comando da Companhia de Petrechos Pesados, e o próprio Exército. Depois de
lotar uma Kombi com todo o armamento que consegue carregar, ele dará adeus
à instituição onde servira por 15 anos.
Com o militante da VPR estão indo para as mãos da guerrilha 63 fuzis
automáticos leves de fabricação belga — os moderníssimos FALs —, dois
projéteis de morteiros de 60 mm com todos os acessórios, três metralhadoras Ina,
uma pistola 45, armas curtas e muita munição. Do quartel, ele ruma para a casa de
Onofre Pinto, onde sua mulher, Maria Pavan, e o casal de filhos, César e Cláudia,
o esperam para as despedidas. Por medida de segurança, os três se juntam à família
do sargento Darcy Rodrigues e voam para Cuba naquela mesma noite.
Na manhã do dia seguinte, aos 31 anos, Carlos Lamarca já é considerado um
desertor das Forças Armadas.

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Carreira militar
Marcha, soldado,
Cabeça de papel.
Se não marchar direito,
Vai preso pro quartel.
Cantiga de roda

A chando que servente de pedreiro não é uma profissão das mais


promissoras, no meio da década de 1950, Pedro Lobo passa a estudar
à noite em um curso do Serviço Nacional de Aprendizado Industrial. E, ao fim
de um ano, ele acrescenta a profissão de torneiro mecânico ao seu
currículo profissional.
— Com o diploma na mão, abandonei a vida na construção civil pra arrumar
emprego em uma fabriqueta do largo do Cambuci. Ganhava mais, mas ficava o
dia inteiro torneando o mesmo tipo de peça. No fim da tarde, era aquela pilha de
engrenagens lá num canto, e o trabalho não passava disso.
Inaptidão para a rotina e a notícia de que a Força Pública – a Polícia Militar
paulista na época – estava admitindo metalúrgicos para trabalhar com material
bélico levam o torneiro Lobo a procurar um quartel.
— Na verdade, nunca gostei muito de polícia, mas a proposta ali era bem
interessante: quem entrasse como artífice podia ir fazendo os cursos, passar logo
a cabo e depois chegar a sargento. Porque, o duro era ser soldado e ter que
trabalhar no pesado o dia inteiro.
Cinco de abril de 1955. Aprovado nos exames de ingresso, o filho de seu José
abandona a rotina dos tornos para vestir a farda de soldado raso da gloriosa Força
Pública.
— Entro no quartel e um sargento me passa a conversa de que o trabalho no
Regimento de Cavalaria era o mais tranquilo. Fui bater por lá e vi que tinha caído
do cavalo. Quem entrava naquele setor não saía mais. E o serviço era cruel.
Lotado na Cavalaria, o soldado Lobo tem de levantar às três da matina para
enfrentar uma árdua rotina de trabalho, a de lavar baias e carregar nas costas
sacos de milho e fardo de alfafa.
— No final do dia, eu estava morto de cansado, todo imundo e fedendo a
bosta de cavalo por todos os lados.
São dois anos de penúria junto aos equinos até Pedro conseguir uma vaga no
curso noturno de preparação de cabos. Mas voltar à escola será outro enorme
sacrifício.

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— Eu tinha levado um coice que me provocou uma hérnia na altura da virilha.


Volta e meia, as vísceras desciam pro escroto, e aquilo causava uma dor
violentíssima. Com medo de perder a chance da promoção, escondi o problema
dos meus superiores por vários meses e fui aguentando aquele sofrimento cruel
até chegar o dia das provas.

Tempos de cabo
Se servistes à Pátria e ela vos foi ingrata, vós fizestes
o que devíeis e ela o que costuma.
Padre Antônio Vieira

A provado nos exames, o filho de Natividade da Serra coloca duas divisas


na farda e começa a ascender em sua carreira militar.
— Como cabo, minha situação ficou bem melhor. Não carregava mais fardo
de alfafa nem precisava lavar baias esmerdeadas. O serviço ali era só administrar
o pessoal e coordenar as tarefas dos soldados. E, em 1958 já consegui
ser transferido pro Batalhão de Trânsito.
Livre, de vez, da companhia dos equinos, Pedro passa a disciplinar o fluxo de
carros que já se apresenta caótico na São Paulo que se agiganta. E será por essa
época que o personagem central de nossa história conhece a escriturária
catarinense Ida Alexandre, com quem começa a namorar.
— Consegui também uma vaga no curso preparatório pra sargento e segui
estudando à noite e trabalhando durante o dia.
Depois de muito sacrifício, o ex-boia-fria, ex-servente de pedreiro e ex-
metalúrgico recebe a terceira divisa na farda.
— A promoção a sargento deu um novo impulso à minha carreira. Tanto que
fui transferido pro 12º Batalhão de Polícia, uma unidade da radiopatrulha
instalada no começo da rua Vergueiro, no bairro do Paraíso.
A década de 50 termina com o sargento Lobo fazendo patrulhamento nas ruas
da capital num reluzente fusquinha da guarnição.
— Agora, eu não só ganhava mais, como até o uniforme mudava de cor. A
farda de gala era branca, e só os sargentos podiam usar. Isso me dava um status
bem melhor dentro da tropa.

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Pedro Lobo em serviço como Cabo da Cavalaria.

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Porre homérico
Com a marvada pinga
É que eu me atrapaio.
Ochelsis Laureano e Raul Torres, Marvada pinga

C om jeitão acaipirado, bonachão e gozador, o filho de seu José Lobo segue


conquistando amigos por onde passa. Mas seu gênio intempestivo e
indômito faz com que ele viva se metendo em confusões.
— Eu era meio revoltado, meio briguento, um tremendo porra-louca mesmo.
Quantas confusões arrumei por aí, brigas de rua, porque, por qualquer coisinha,
já tava me pegando com alguém. Às vezes apanhava, às vezes batia, mas armava
confusão com muita facilidade.
E os quiproquós ficam ainda mais graves nas raríssimas ocasiões em que
Pedro resolve tomar uns tragos a mais.
— Nunca fui de beber, sou até contra a bebida, porque ela acaba com a moral
do sujeito, mas teve um fim de ano em que eu estava na casa da minha noiva e
abusei um pouco.
Já meio alto, Pedro apanha um bonde para chegar ao quartel onde mora.
— No caminho, encontrei o Pelé, um soldado da Força Pública que era muito
meu amigo. Aí, resolvemos tomar mais umas caipirinhas.
Quando chegam à rua Vergueiro, os dois já estão bastante embriagados.
— Mesmo de fogo, entrei num boteco e pedi a saideira. O ano estava
acabando mesmo e tudo era festa.
Enquanto o sargento Pedro bebe sua birita distraído no balcão, o amigo sai do
bar e vai arrumar confusão do outro lado da rua.
— Não sei o que o Pelé foi fazer naquele boteco. Só sei que quando me dei
conta, o bafafá tava armado e tive que ir lá acalmar os ânimos.
Sem se identificar como policial, Pedro tenta segurar seu companheiro que,
por um motivo besta qualquer, está chamando todo mundo pra briga.
— Ergui os braços pra imobilizar o Pelé por trás, e um motorista de praça que
estava metido na confusão viu a coronha do revólver por baixo da camisa. Aí, ele
gritou: “Cuidado pessoal, que o cara tá armado!”.
— Tô mesmo! Mas esquece isso, porque vim aqui só pra apartar a briga.
— Em vez do sujeito calar a boca, ele começou a me provocar: “Você só tá
valente porque leva essa porcaria aí na cintura. Mas aposto que não é homem pra
atirar em ninguém”.

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— Ah, rapaz! Ele foi falar isso logo prum bêbado.


Descontrolado, Pedro saca o 38 e dispara um tiro rente à cabeça do motorista.
—Tummmmm!

— A bala picotou lá para dentro, e a turma saiu correndo. O estampido foi


tão perto do ouvido, que deve ter estourado os tímpanos do cara. Com a merda
feita, eu disse pro Pelé: “Acho que tá na hora da gente se mandar, porque já, já
baixa uma viatura por aqui. Mas não vamos sair correndo, que vai ser pior. O
negócio é ir andando, na maciota, fingindo que tá tudo certo”.
— Eu tinha que tirar meu amigo dali porque, se a gente fosse pego daquele
jeito, ia dar 30 dias de cadeia pra cada um e ainda sujava nossas fichas no
quartel. Já imaginou: dois policiais bêbados arrumando confusão e dando tiro a
esmo dentro dum bar?
A dupla vai subindo a rua Vergueiro e, de tão trôpega, é abordada por um
guarda civil.
— Ele ainda não tinha sido avisado da bagunça lá no bar. Aí, foi só mostrar
a carteira da Força Pública pra gente ser liberado.
Salv os pela carteirada, os dois colegas de farda tratam de sumir da área.
— O Pelé foi pra a casa de uma amiga e eu entrei no quartel. Mas
cambaleava tanto que tive de me equilibrar na hora de passar pelo Corpo da
Guarda. No corredor que dava pro alojamento então, não conseguia nem achar a
parede pra me escorar. E, mal entrei no quarto, vomitei tudo o que tinha bebido e
comido até ali. Aquela bebedeira ainda me custou três dias de uma terrível
ressaca.

Embrião de guerrilheiro
Operários de todo o mundo, uni-vos!
Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista

N a segunda metade dos anos 1950, as notícias que chegam de Cuba sobre
a luta que Fidel Castro, Ernesto Guevara de la Serna e outros companhei-
ros travam contra Rubén Fulgencio Batista y Zaldívar mexem com o espírito
guerrilheiro de Pedro Lobo. Cada vez mais acuado, o ditador cubano parece não
ter condições de evitar a tomada do poder pelos barbudos de Sierra Maestra.
— A gente acompanhava a Revolução Cubana desde 1956. Lembro que o
jornal Última Hora publicava reportagem dos combates, e eu vibrava com
aquilo. Estava do lado dos revolucionários, e ali uma sementinha socialista já
germinava dentro de mim.

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Aos poucos, o sargento Lobo acumula consciência política e passa a defender


a necessidade de, a exemplo de Cuba, se ter uma revolução de caráter popular no
Brasil. E a vivência no policiamento das ruas contribui bastante para este
amadurecimento.
— Eu já era revoltado contra as injustiças que aconteciam lá na roça. Quando
o João Alves foi demitido da São Sebastião ou no dia em que o gado comeu o
milho do meu pai e fiquei puto porque ninguém tomou providências. Em São
Paulo, nas rondas da radiopatrulha, passei a ver o lado do rico e o lado do pobre
também na cidade grande, da opressão dos poderosos, do dominante sobre o
dominado. E fui assimilando aquilo, triturando tudo dentro da minha cachola.
Graças à política de infiltração que o Partido Comunista executa na base das
Forças Armadas e das polícias estaduais, vai ser dentro do quartel que nosso
personagem central travará os primeiros contatos com as ideias socialistas.
— Certo dia, apareceu lá no Batalhão o Carmim Sabadim de Oliveira, um
cabo que tinha fundado o Centro Social dos Cabos e Soldados. Ele me deixou
um material mais abrangente sobre a Revolução Cubana e gostei daquele papo.
Com o tempo, Pedro vai recebendo do infiltrado mais informes e livros que
consolidam sua formação política.
— Fui aprendendo o que era o Partido Comunista, o que era socialismo. Aos
poucos, me tornei um elemento de esquerda consciente e bem preparado.
Primeiro de junho de 1959. Já um comunista convicto, a alma inquieta de Pedro
Lobo vai às alturas quandoas notícias que chegam pelo rádio dão conta de que Fidel
Castro, Che Guevara e seu exército guerrilheiro venceram a revolução em Cuba.

Operação resgate
A ação seria a seguinte: eles viriam numa viatura do Dops pra levar
os quatro presos para o interrogatório. Eu estaria na guarda, como sargento
de dia, para liberar a entrada do pessoal. Era uma atribuição normal
de um sargento naquela posição. Liberava e saía também — se fosse o caso.
Carlos Roberto Pittoli, Mulheres que foram à luta armada

P assados dois dias da prisão de Pedro e seu grupo em Itapecerica da Serra, o


3° sargento Carlos Roberto Pittoli — um dos quadros da VPR engajados no
Exército — avisa o líder da sigla, Onofre Pinto, que os quatro militantes estão na
carceragem da rua Tutóia.

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Afeitos a grandes ações, os guerrilheiros decidem então libertar seus


companheiros durante o Carnaval. O mapeamento completo das instalações do
quartel e a montagem do roteiro do resgate ficam a cargo de Diógenes José
de Carvalho Oliveira e Dulce Maia, que conta:
— No dia 25 de janeiro, à tarde, fui lá na PE com a desculpa de visitar o
Pittoli. Era como se eu tivesse, assim, uma transa com ele.
O encontro entre os dois namorados se dá num cenário de muita tensão. Até
porque, justo nesse dia, é descoberta a fuga de Carlos Lamarca do 4º Regimento
com a Kombi lotada de armamento e munição.
— Pra chegar até a portaria foi um sufoco danado, porque o quartel estava de
prontidão e a Tutoia bloqueada com barricadas de sacos de areia, arame farpado
e soldados armados até os dentes.
No livro Mulheres que foram à luta armada, o 3º sargento revela que ficou
impressionado com a determinação da jovem militante:
[...] a Dulce Maia chegou lá e se apresentou com a maior naturalidade. Eu
nunca a tinha visto antes. Ela me identificou pelo nome no uniforme, apertou
minha mão:
“Oi, Pittoli, tudo bem?[...] Pegou no meu braço como se a gente tivesse
ficado juntos a noite anterior. Eu fiquei nervoso, preocupado mesmo. Mas ela
brincou comigo, me descontraiu, dominou a situação toda. Saímos passeando
pelo quartel. Mostrei a cela onde eles estavam — ela não chegou a vê-los —, a
bomba de gasolina, o depósito de armamentos. Deixei-a de volta na barricada
da rua Tutoia.
Meia hora mais tarde, Diógenes José aparece para uma nova visita de
reconhecimento. A ideia deles e a de introduzir nas instalações da PE uma viatura
camuflada com falsos agentes do Dops que renderiam os soldados e fariam o resgate.
Tanto trabalho e riscos, entretanto, dão em nada. No dia da ação, o sargento
Pittoli atende o telefone, e uma voz feminina, do outro lado da linha, pergunta:
— Você tem pílulas anticoncepcionais?
Um sim desencadeia a ação. Mas ele responde:
— Não. Não tenho!
O 3º sargento resolvera abortar aqui a operação de resgate.
— Já não havia mais condições de sair com presos dali, mesmo que num carro
do Dops. Com a prontidão, a ordem era passar a fazer todos os interrogatórios no
próprio quartel.

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A queda de novos militantes nos dias seguintes vai desmontar, de vez, a invasão
que poderia ter tirado nosso personagem central e seus dois companheiros da prisão.

Peregrinação de Ida
E se o fantasma ficar e se o cachorro latir E
se o silêncio gritar e se o pavor assumir E se
a mulher não topar e se o amigo sumir E se o
relógio parar e se o amanhã não surgir
Toquinho e Vinícius de Moraes, Tudo na santa paz

A inda aturdida com a prisão do marido, Ida Lobo vai se hospedar na


residência dos Lucena. Mas ali ainda corre risco porque a casa também
é um aparelho da organização e como tal está repleta de armas, explosivos e
munição. No dia seguinte, ela pede providências a José Nóbrega que lhe oferece
dinheiro para o pernoite em algum hotel.
— Não aceitei aquilo. No fim, acabei indo passar a segunda noite na casa da
mulher do Onofre, a Idalina, que era minha comadre.
Como a residência do líder da VPR também não é um lugar seguro depois das
prisões em cascata, no dia 25, mãe e filho são transferidos ao apartamento de um
casal no bairro do Ipiranga.
— Eu não conhecia aquele pessoal. Mas ficamos lá por uma semana e o
Roberto Gordo ainda me disse: “Você fica preparada que a gente vai bater aqui
uma noite dessas trazendo seu marido. Está tudo sendo arranjado pra gente tirar
ele lá da Polícia do Exército no Carnaval”.
A felicidade de Ida acaba quando José Ronaldo Tavares de Lira e Silv a — o
Roberto Gordo da VPR — reaparece dizendo que o plano de resgate de Pedro
fizera água.
— Ele disse que mais gente tinha caído e, muito provavelmente, até o lugar
onde eu estava já devia estar sendo vigiado pela polícia.
Do Ipiranga, a matriarca dos Lobo de Oliveira é então levada a uma casa onde
nunca havia estado. Chegando lá, ela se dá conta de que não é nada bem-vinda.
— O dono era um nordestino e enquanto esperava na porta, fui ouvindo a
conversa dele com o Zé Nóbrega lá na sala. Num determinado momento, o
homem falou num tom muito bravo:
— Não quero essa mulher e o menino aqui! O Pedro está preso e eles vão
comprometer a segurança de toda a minha família. Suma com eles
imediatamente!

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Separada na marra do marido, sem eira nem beira e com o pequeno


Wladimir nos braços, Ida vai descobrindo que se tornara uma batata
quentíssima nas mãos da turma da revolução.
— Naquele mesmo dia, me levaram a uma outra casa onde o morador nos
recebeu bem e até concordou que a gente ficasse por ali. Mas, a primeira coisa
que fez foi abrir a geladeira e dizer:
— Você faça o favor de não mexer em nada do que está aqui quando eu estiver
fora. As nossas despesas quem faz é a minha mulher e ela vai ficar muito
zangada se sumir alguma coisa.
Como o casal sai para trabalhar de manhãzinha e só volta tarde da noite, Ida
e seu rebento se veem na iminência de morrerem de fome.
— A gente estava lá de favor, sem dinheiro, sem comida, e tinha que ficar o
tempo todo sem conversar, porque os vizinhos podiam desconfiar de alguma
coisa e chamar a polícia. Ainda por cima o casal não tinha filhos e o apartamento
era limpo do chão ao teto. Fiquei trancada ali por vários dias com o menino de
um ano que mexia em tudo. Dá pra imaginar o sufoco.
Enquanto a catarinense cumpre penitência nesse complicado esconderijo, do
lado de fora os companheiros do marido vão caindo um a um numa verdadeira
cachoeira de prisões.
— Pegaram o Onofre, o Diógenes e a Dulce. Dos contatos que eu tinha com a
VPR só sobrou o Zé Nóbrega. Então, pedi pra ele me levar à casa do meu compadre,
o Romeu Estevão, porque daquele jeito, naquele lugar não dava mais pra ficar.
Mesmo estando agora abrigada por um velho conhecido, Ida ainda não se
sente tranquila.
— Eles eram pobres e, passado alguns dias, vi que a gente esta va pesando no
orçamento. Então, liguei pra Maria, uma prima minha que morava na avenida
São João, no centro da cidade. Quando atendeu o telefone, ela disse:
— Que bom que ligou, Ida! Nós estamos te procurandojá faz um tempão. Fui
visitar o Pedro na cadeia e o delegado disse que já sabe que você não tem nada
a ver com a VPR.
— Com essa notícia, fiquei mais sossegada. Então, peguei o menino e fui
morar lá com ela.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 46 (Black plate)

Baixas em cascata
Quando caíram os quatro companheiros em Itapecerica, saí guardando as
pessoas. E tive que guardar muita, muita gente. Guardei o Diógenes e o Zé Nóbrega
na casa do meu irmão, Carlito Maia. Por sorte, eu tinha uma boa quantidade de
amigos que estavam solidários. Eram pessoas em quem eu confiava e que confiavam
em mim. Se não fosse isso, o estrago teria sido ainda maior.
Dulce Maia

N os interrogatórios na Polícia do Exército, a tática de não abrir aparelhos


e nomes não é seguida por Hermes Camargo Baptista, que, logo de
início passa a colaborar com a polícia.
Como o ex-paraquedista, de 19 anos, fora integrante do setor de logística da
organização de Pedro Lobo, toda a sua estrutura é esmiuçada em um longo e
detalhado depoimento. Juntando os dados fornecidos espontaneamente por
Hermes com os que vão sendo arrancados à fórceps dos outros prisioneiros, os
homens da repressão política começam a identificar a intrincada estrutura física
e operacional da sigla guerrilheira recém-descoberta.
Os agentes f icam sabendo, por exemplo, que a Vanguarda Popular
Revolucionária conta em seus quadros com um bom número de ex-militares e
militares da ativa e que ela costuma agir em parceria com outras VLJODVGD
luta armada, principalmente a Ação Libertadora Nacional e o Comando de
Libertação Nacional.
Numa espécie de efeito dominó, a cada prisão, novas informações vão sendo
anotadas e mais gente vai para detrás das grades. Criada a espiral de quedas,
quase todas as RUJDQL]Do}HV guerrilheiras existentes até então são atingidas em
PDLRURXmenor grau.
Com isso, a polícia fica sabendo que a onda de assaltos a banco, os roubos de
explosivos e os atentados a bomba que assolam o país ao longo de 68 são parte de
um bem arquitetado plano de desestabilização e derrubada do governo militar.
O porte e a complexidade da estrutura que vai surgir diante dos olhos da
repressão obrigará a polícia política a providenciar reforço. A partir de fevereiro
de 1969, todos os delegados das regionais do Departamento de Ordem
Política H Social paulista serão chamados a atuar na capital com a máxima
urgência. E, já que é preciso completar o mais depressa possível o mapa da
atividade das siglas metidas na luta armada, vai ter agente que passaUi a dormir no
emprego para poder se dedicar em tempo integral ao massacre dos presos.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 47 (Black plate)

O jeito é Jânio
Ponho o chapéu na cabeça e saio, se me impedirem de governar com autoridade.
Jânio Quadros

E leito em 3 de outubro de 1960 com exatos 5.626.623 votos — 48% do


total — , Jânio da Silv a Quadros toma posse em 31 de janeiro do ano
seguinte como presidente da República. Filiado à União Democrática Nacional,
o professor e advogado mato-grossense fizera sua carreira política em São Paulo
e é ligado às forças conservadoras e aos militares antigetulistas.
Se mostrando um presidente temperamental e sem consistência ideológica, o
homem que se elegeu tendo uma vassoura como símbolo vai se destacar por atos
prosaicos, como a proibição do uso de biquínis nas praias, de lança-perfume nas
festas de carnaval e das rinhas de galo. Tentando se superar em propósitos
tacanhos, ele espera aumentar a produtividade dos trabalhadores com um decreto
que limita as corridas de cavalo e trotes aos domingos e feriados.
Num cenário internacional tumultuadopela Guerra Fria, a política externa do
governo Jânio caminhará em ziguezague. Enquanto reaproxima o Brasil do
Fundo Monetário Internacional, ele se aproveita de uma rápida passagem de
Ernesto Guevara pelo Brasil para condecorá-lo com a Ordem Nacional do
Cruzeiro do Sul, a mais importante comenda do país.
Para marcar ainda mais a neutralidade do Brasil, o homem da vassoura
apressa-se em reatar relações diplomáticas com a União Soviética e China e se
recusa a apoiar a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos
proposta pelos Estados Unidos.
Embora faça uma administração conservadora, as posições externas do
presidente e sua disposição de governar acima dos partidos vão jogar na oposição
parte das forças políticas que o apoiaram na campanha, incluindo aí o falastrão
governador da Guanabara, Carlos Frederico Werneck de Lacerda.

Primeira prisão
Em 1º de fevereiro de 61, foi indiciado em Inquérito Policial (IP) por participar
da greve eclodida na Força pública (Corpo de Bombeiros) de São Paulo/SP.
Não constam outros dados sobre o assunto.
Ficha de Pedro Lobo nos arquivos da Abin

A prisão em Itapecerica não é a primeira experiência carcerária da vida de


Pedro Lobo. O filho de Natividade da Serra já amargara dias e dias de
xilindró em 1961.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 48 (Black plate)

No dia 13 de janeiro, os bombeiros paulistas se declaram em greve. Nas


reivindicações estão o pagamento de horas extras adicionais por risco de morte
e aumento nos soldos.
Tentando por fim à paralisação, o governador Carlos Alberto de Carvalho
Pinto pede ajuda federal. A partir daí, tanques do Exército cercam a sede dos
bombeiros na Praça Clóvis, centro da capital.
— Quando os soldados chegaram lá, teve um rapaz que tirou a camisa e
deitou na frente dum tanque. Foi uma coisa comovente. Então, nós da
Radiopatrulha resolvemos decretar greve em solidariedade.
No 12º Batalhão, o movimento VHUi tão forte que até os oficiais cruzaUmR
RVbraços.
— Eu morava lá e ajudei a parar aquela unidade. Todas as viaturas foram
recolhidas ao pátio e ainda metemos areia nos tanques de gasolina, porque tinha
um boato de que a Guarda Civil ia invadir o quartel pra liberar os carros.
A greve se arrasta por vários dias, os guardas-civis não aparecem e Pedro se
mantém aquartelado.
— Certa noite, encostou na rua Vergueiro uma fila de ônibus verde-oliva. Em
pouco tempo, o quartel todo estava cercado pelo Exército.
Sob a mira de armas de guerra, os grevistas do 12º Batalhão se mostram
irredutíveis e continuam confinados.
— De cima dos muros, os soldadinhos apontavam as metralhadoras ponto 50
pra gente e ficavam manejando as travas como se fossem atirar.
Pavio curtíssimo, não demora para o sargento Lobo se impacienta com aquele
tipo de ameaça.
— Fiquei tão puto que comecei a provocar aos berros: “Olha aqui, seus
covardes! Em vez de ficar manobrando essa merda aí, atira logo. E, vamos ver
quem vence o confronto”.
— Falei mesmo, porque, naquele tempo, eu era muito boca dura.
Mas os soldados não têm ordens de abrir fogo. E o trava e destrava das armas
prossegue pelo resto do dia.
A rebelião no 12º Batalhão acaba no dia 16 com a desocupação pacífica do
prédio. A oficialidade envolvida na quartelada é enviada à cidade de Santos para
ser trancafiada na Fortaleza Itaipu, um presídio do período colonial construído à
beira-mar. Os subalternos ficam detidos na Academia Militar do Barro Branco.
— Passados alguns dias que a gente estava lá preso, o sargento Osvaldo
Batista — que tinha 16 anos de serviço na corporação — achou que seria expulso
e resolveu cometer um ato de desespero.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 49 (Black plate)

Com a esposa grávida, o militar consegue autorização para visitar a família


na cidade de Guarulhos. E, mesmo escoltado por outro sargento, Osvaldo dá um
jeito de colocar formicida no suco que VHUiservido no almoço.
— A dona Joaquina notou a mistura quando levou DEHELGD à boca. Então,
ainda teve tempo de dar um tapa no copo da filha evitando que a menina se
envenenasse. Mas o Osvaldo e os meninos já tinham tomado sua parte e morreram
na hora.
O suicídio do sargento e a morte de seus dois filhos — Carlos Alberto, de 8
anos e Wilson Roberto, de 5 — dá um novo rumo à prisão dos policiais.
No dia 18 de janeiro, os três caixões deixam a sede do Centro Social dos
Sargentos rumo ao Cemitério do Araçá. Acompanham o cortejo mais de mil
homens da Força Pública e uma imensa massa popular.
— Fomos soltos pra ir ao enterro e, debaixo de um temporal, Jofre Corrêa
Neto, líder camponês da cidade de Santa Fé do Sul, fez um emocionante discurso
de despedida.
Primeiro de fevereiro. Pedro e mais 1.300 colegas de farda são indiciados no
inquérito instalado para apurar as responsabilidades pela greve. Mas o caso não
dá em nada e todos os envolvidos são anistiados pelo governador.
— Saí da prisão, mas minha participação naquele movimento ficou registrada
nos arquivos da polícia política como uma espécie de curso pré-primário
de subversão. Aí, já estava me tornando inimigo dos militares, muito embora
ainda fosse um deles.

Sublevar o continente
Vamos fazer da Cordilheira dos Andes a Sierra Maestra das Américas.
Fidel Castro

Q uatro séculos e tanto de exploração colonial deixaram um rastro de


miséria e subdesenvolvimento na América Latina. Não bastasse isto, no
final dos anos 50, a maioria dos países do continente ainda funciona como uma
espécie de quintal dos Estados Unidos, o Grande Irmão capitalista do norte.
A facilidade com que 15 barbudos estruturaram um exército guerrilheiro e
acabaram por assumir o poder em Cuba faz com que, no imaginário de Pedro, e
de boa parte da esquerda latino-americana, se instale uma verdade para lá de
simplista: basta juntar um punhado de abnegados combatentes num sopé de serra
qualquer e se terá o embrião necessário à revolução socialista.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 50 (Black plate)

Neste sentido, a onda guerrilheira que vai se espalhar por boa parte da
América Latina terá alguns manuais para se inspirar. O mais lido deles é A
revolução na revolução, de Jules Regis Debray.
Pressionado pelos Estados Unidos e pela União Soviética — que desde 1956
defende a coexistência pacífica entre capitalismo e socialismo — o governo
cubano trata de jogar uma cortina de fumaça sobre seu apoio às revoluções
armadas de esquerda que pipocam pelo continente.
Em agosto de 1961, Ernesto Guevara afirma durante a reunião da
cúpula econômica da Organização dos Estados Americanos, instalada no
balneário uruguaio de Punta del Leste:
Nós garantimos que nem um só fuzil sairá de Cuba, que nem uma única arma
sairá de Cuba para ser usada como arma de combate em qualquer outro país da
América.
Uma afirmação totalmente falsa, já que durante os Anos de Chumbo centenas
de armas vindas da Ilha entrarão clandestinamente no Brasil. Aliás, a primeira
carabina M-1 adquirida pela organização de Pedro Lobo é justamente um
presente de Fidel Castro.

Fi-lo porque qui-lo


Nesta data e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça
as razões do meu ato, renuncio ao mandato de presidente da República.
Jânio da Silva Quadros

V inte e cinco de agosto de 1961. Na tarde dessa sexta-feira, depois de


cumprir míseros sete meses de mandato, Jânio Quadros redige o bilhete
que deixará boquiaberta a nação. Num curtíssimo texto manuscrito, o homem que
prometeu varrer do país a corrupção comunica sua desistência da empreitada. Em
carta divulgada horas depois, o fujão esmiuça os motivos do seu ato:
Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri
o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem
prevenções, nem rancores.[...] Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis
levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de
colaboração. [...]
Essas tais forças terríveis que acabam de derrubar o presidente do Brasil
jamais serão identificadas. Aliás, tudo indica que elas sequer existiram, uma vez
que as circunstâncias da renúncia apontam para um golpe cuidadosamente
engendrado.

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Eleito por esmagadora maioria, Jânio parece acreditar que sua saída abrupta
do poder não será aceita pacificamente pelo povão. E que, indignada, uma massa
popular irá às ruas para conduzir, nos ombros, o renunciante de volta à cadeira
presidencial.
Dias antes da renúncia, o envio do vice João Belchior Marques Goulart a uma
viagem oficial à China ajuda a corroborar essa tese. Sabe o presidente que a
direita e os militares desconfiam das opções ideológicas do ex-ministro do
Trabalho de Getúlio Vargas. A ida dele a um país comunista deve reforçar a ideia
de que, uma vez empossado no comando da nação, Jango não tardará a jogar
o Brasil na esfera do bloco socialista.
Outra evidência de que Jânio acredita mesmo numa volta triunfal ao poder é
que ele deixa o Palácio do Planalto carregando consigo a faixa presidencial.
De Brasília, o homem da vassoura voa à base Aérea de Cumbica, na Grande
São Paulo, onde inicia uma série de conchavos telefônicos com correligionários,
governadores e deputados.
Como ninguém sai às ruas para exigir sua volta, só resta ao presidente fujão
cumprir o que prometera na época da posse: por o chapéu na cabeça e cair fora.

Jânio Quadros com Che Guevara em sua passagem pelo Brasil

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 52 (Black plate)

Assim, no dia 28 de agosto ele já está a bordo do transatlântico Uruguay Star


para uma longa viagem oceânica até a Europa.
A renúncia abrupta e injustificável do chefe da nação joga o Brasil numa
crise institucional sem precedentes. A discussão agora é a posse ou não do vice
já que parte da oficialidade, apoiada pelos setores mais conservadores da
sociedade civil, cumprem o que previra Jânio e vetam, de forma veemente, a
entrega da presidência a João Goulart.
Para deixar clara a vontade da caserna, os ministros militares se apressam em
emitir um manifesto considerando o vice democraticamente eleito persona non
grata no país. E, para que o Brasil não fique sem mandatário, assume
interinamente o presidente da Câmara Pascoal Ranieri Mazzilli.
Diante de tanto casuísmo, os legalistas tentam reagir e o marechal da reserva
Henrique Batista Duffles Teixeira Lott redige um manifesto defendendo o estrito
cumprimento da Constituição. Irritados, os golpistas mandam prender Henrique
Lott, o marechal Odílio Denys, ministro da Guerra, e ainda ameaçam derrubar o
avião de João Goulart caso ele insista em voltar ao país.
Jango está de passagem por Singapura quando recebe a notícia da renúncia e
o quiproquó armado em torno de sua posse. Ignorando as ameaças, ele começa
então uma lenta e sinuosa viajem até o Uruguai que inclui escalas em Paris,
Barcelona, Nova Iorque, Miami, Balboa — no Panamá — Lima e Buenos Aires.

Posse na boa ou na marra


Porque nós não nos submeteremos a nenhum golpe,
a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter.
Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio!
Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra
a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como
nos transmissores. O certo porém é que não será silenciada sem balas.
Discurso de Leonel Brizola transmitido
pela Rádio Guaíba, em 28/08/61

M antido o impasse o governador do Rio Grande do Sul — e cunhado de


Jango — Leonel de Moura Brizola, mobiliza-se montando a Cadeia da
Legalidade. À frente de uma rede de 150 emissoras de rádio do Estado ele diz
que não abandonará o Palácio Piratini — sede do governo gaúcho — e incita o
povo a sair às ruas para garantir a posse do vice, mesmo que na marra.
Prevendo uma guerra civil, a brigada militar é posta em estado de alerta
máximo e a população passa a receber armas e munição. Até mesmo o

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comandante do 3º Exército, general Augusto Machado Lopes, adere à causa e a


totalidade das tropas lotadas do Paraná para baixo se recusam a obedecer às
ordens vindas de Brasília.
No Planalto Central, o governador goiano Mauro Borges engrossa as fileiras
da legalidade e também vai recrutar combatentes nas ruas enquanto soldados da
polícia estadual entram em prontidão. Pelo resto do país, várias entidades civis
articulam-se para concretizar, nem que seja à bala, a posse do vice.
Tentando mostrar força, os golpistas enviam ao Sul uma força-tarefa da Marinha
para bloquear o Porto de Rio Grande. A ideia é cortar o mal da legalidade pela raiz
providenciando o bombardeio do Palácio Piratini com Leonel Brizola dentro.
Primeiro de setembro de 1961. O Brasil está à beira de uma guerra civil.
Em meio ao impasse, João Goulart deixa o Uruguai e desembarca em Porto
Alegre. À revista O Cruzeiro, ele declara:
[...] Irei até o impossível, para que não haja derramamento de sangue. Confio
em Deus e nos brasileiros para que se evite, a qualquer custo, a guerra civil. [...]
E aguardarei, confiante, a data da minha posse.
Enquanto os dois lados envolvidos no — Assume! — Não assume! se
preparam para o embate, o deputado mineiro Benedito Valadares Ribeiro começa
a costurar nos bastidores do Congresso um cambalacho constitucional que
resolva o impasse.
A toque de caixa e de forma absolutamente casuística, na noite de 2 de
setembro é aprovado o Ato Adicional que emenda a Constituição criando um
sistema parlamentar de governo para o Brasil. Com a mudança, agora quem
manda, de fato, no país é o primeiro ministro. Ao presidente resta apenas o papel
figurativo de chefe de Estado.
Intransigente, um grupo de militares ligados à Aeronáutica não aceita nem a
solução parlamentar e monta a Operação Mosquito destinada a caçar e derrubar
o Caravelle da Varig que deve conduzir Jango à posse em Brasília.
Graças a um grande aparato envolvendo homens das três armas, os
aeronautas rebeldes acabam neutralizados e, no dia 5, João Goulart desembarca
são e salvo na capital federal.
Sete de setembro de 1961. João Belchior Marques Goulart se torna, enfim,
presidente da República. No entanto, quem vai dar as cartas no governo será o
deputado mineiro eleito pelo Partido Social Democrático, Tancredo de Almeida
Neves, escolhido pelo Congresso como o primeiro-ministro do recém-criado
regime parlamentar.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 54 (Black plate)

Sargento também é povo


Tínhamos sargentos comunistas, brizolistas,
seguidores de Francisco Julião, janguistas e até trotskistas contumazes
Sargento Edegard Nogueira Borges,
A esquerda e o golpe de 64

A prisão de Pedro na greve dos bombeiros em 1961 só faz mesmo


aumentar seu apoio aos interesses dos colegas de farda. Depois de
anistiado, o personagem central deste livro se torna representante do Clube dos
Sargentos na unidade da Força Pública em que trabalha.
— Havia muita insatisfação dentro dos quartéis naquela época, porque aos
soldados, cabos e sargentos era vetada uma série de benefícios.
As proibições são tantas que um subalterno sequer tem direito a financiar
casa própria ou reivindicar obrigações trabalhistas.
Por qualquer coisinha, um sargento com nove, dez anos de trabalho, podia ser
posto no olho da rua sem direito a nada. E ninguém queria saber se ele tinha
contas a pagar ou família pra sustentar.
Assim, as principais manifestações reivindicatórias dos subalternos são:
mudança nos regulamentos disciplinares, estabilidade aos cinco anos de caserna,
direito a casar e constituir família independente do tempo de serviço e direito a
participação política. Num manifesto à população lançado em janeiro de 62, os
sargentos perguntam:
Se os tenentes, capitães e generais podem ser deputados, porque os sargentos
não podem, se a Constituição determina que: todos são iguais perante a lei?
— Aquele era um movimento tão grande e tão bonito que dava gosto
participar. Na Casa do Sargento, a gente se reunia com companheiros de todas as
armas. Tinha até um selinho:
Sargento também é povo.
— Aquilo era vendido pra arrecadar fundos e ajudar a luta do nosso pessoal.
O envolvimento de Pedro nesse movimento vai lhe render o posto de
coordenador do Comando Nacional dos Sargentos no 12º Batalhão de Polícia.
Tanta atividade política acaba por chamar a atenção da direção do PCB.
Assim, no final do ano, o filho de seu José já é um membro de carteirinha do
Partido, que frequenta todas as reuniões, contribui com dinheiro e lê

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 55 (Black plate)

textos marxistas. O sargento Lobo está tão integrado aos quadros do Partidão que
ganha até um codinome: Paulo .

Tortura generalizada
Fui presa no dia 25 de janeiro, na frente da minha mãe, debaixo de pancadas,
num corredor polonês. [...] Eu era sempre pendurada nua, de cabeça para baixo.
Uma vez puseram um arame em minha vagina. O sargento metia a cabeça
entre minhas pernas e gritava: “Você vai parir eletricidade”[...] Fui barbaramente
torturada durante muitos meses. Eles me tinham ódio por várias razões — a primeira
delas eu ser mulher e estar resistindo como podia. [...]
Dulce Maia, As mulheres que foram à luta armada

E m fevereiro de 1969 Pedro será transferido da Polícia do Exército para


o Largo General Osório, no centro da capital paulista, onde funciona a
sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social. Ali, a violência dos
interrogatórios será ainda pior porque há um ódio exacerbado dos policiais em
relação àqueles que se meteram a enfrentar o regime fardado.
Ao arrepio da lei, no edifício de tijolos aparentes inaugurado em 1914 pela
Companhia Sorocabana de Estradas de Ferro a prática é ir batendo para arrancar
o que der, mesmo que o fruto do interrogatório seja um detalhe de uma ação já
sabida. Às vezes, nem isso: bate-se pelo simples prazer de bater, pelo desejo de
ver a dor estampada no rosto da vítima indefesa.
Se o detido for inocente, sem nada importante a revelar, tanto faz. A guerra
está nas ruas e os meganhas não têm tempo a perder com averiguações mais
apuradas. A origem ou formação do torturado também pouco importa. Tanto que
só 10% dos detidos por motivos políticos pertencem ao operariado. Do total,
55% deles são estudantes, professores ou profissionais liberais com títulos
universitários.
Nesse clima de vale tudo contra qualquer um, estudantes, operários, políticos
importantes, empresários, pessoas de famílias tradicionais e até mesmo oficiais
das Forças Armadas vão sendo enviados aos cárceres da ditadura para entrar no
pau sem qualquer privilégio ou piedade.
A tortura começa com doses de choques elétricos em pontos sensíveis do
corpo, como pênis, vagina, orelhas, língua ou mamilos. Na sequência vêm os
pontapés, telefones — tapas que atingem, simultaneamente, os dois ouvidos —,
queimaduras com pontas de cigarro e os afogamentos simulados. Muitos desses
suplícios são feitos com o torturado nu e amarrado a um pau-de-arara.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 56 (Black plate)

Cada seção dura o tempo que o preso aguentar. E, durante o interrogatório,


todos os delegados berram perguntas ao mesmo tempo, evitando, assim, que a
vítima reflita sobre as respostas.
Na cadeira do dragão — uma cadeira eletrificada, feita de ferro — sentam
aqueles de poucas palavras. Dada a descarga, o corpo do interrogado se agita de
tal forma que ele urina e defeca espontaneamente. Em, As mulheres que foram à
luta armada, César de Queiroz Benjamim descreve:
[...] a tortura fede — a suor, sangue pisado e excremento, que se acumulam
dias a fio no chão, nas paredes e no corpo do seviciado nu. Grita-se muito, vê-
se a morte. Sente-se uma imensíssima sede [...]
Na lida com os mais renitentes ainda, simulam-se fuzilamentos ou se aplica
injeções de pentotal sódico, uma espécie de soro da verdade. Em delírio por causa
da substância, o torturado passa a dizer frases desconexas de onde os policiais
pinçam nomes ou qualquer informação que lhes pareça de alguma utilidade.
Quando cessa o massacre físico, o trapo humano a que se converteu o preso
é vestido e encaminhado a uma sala. Ali é retomado o interrogatório, agora sob
forte tortura psicológica. Nestes bate-papos, os agentes cuidam de destruir a
moral do indivíduo no intuito de quebrar-lhe a resistência. Em alguns centros de
tortura o processo é tão aprimorado que até os relógios são cobertos com
esparadrapos para que o torturado perca a noção do tempo.
E, por incrível que possa parecer, todos os envolvidos no processo de tortura
de presos políticos fazem seu trabalho por opção e se esmeram em tentar
arrancar alguma novidade a mais para mostrar serviço. O ex-agente da Polícia
Federal, João Lucena Leal, em entrevista à Veja de 9 de dezembro de 98, afirma:
[...] eu pensava que estava cumprindo meu dever. Era o meu papel. E a ordem
era baixar o pau. Então, eu baixava o pau. Ou me postava ao lado da lei ou virava
terrorista. Era o único jeito. Estou dizendo isso porque dei minha contribuição no
combate ao terror e agora tenho que contribuir para que fique registrado na
história o que realmente aconteceu. [...]
Dizer que ninguém morreu ou foi espancado é negar a própria história.

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Traindo princípios
Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panaceia, e tomo por
testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e
minha razão, a promessa que se segue: [...] Aplicarei os regimes para o bem do
doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a
alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho
que induza à perda. [...] Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Juramento de Hipócrates

N a ajuda aos torturadores em seu árduo trabalho, alguns médicos esquecem


o juramento feito durante a formatura e se convertem em auxiliares de
carrascos. A cada desmaio, serão eles que reanimarão o preso moribundo para
garantir a continuidade das sevícias.
Em alguns casos — como o de Olderico Campos Barreto — o médico que o
atende no final de uma seção de espancamento presta uma espécie de serviço
complementar. Depois de perguntar ao preso se ele quer tratamento de gente ou
de cachorro, o cirurgião opta, ele mesmo, pelo segundo, costurando-lhe os
ferimentos do rosto e das mãos sem o uso de qualquer anestésico.
Um outro Lobo, Amilcar, conhecido nos porões da ditadura como Doutor
Carneiro — médico e também tenente do Exército — ficará famoso na década
de 80 ao confessar ter trabalhado por quatro anos nos centros de tortura do Rio
de Janeiro. Em entrevista à Veja de 3 de setembro de 1986 ele declarará:
Participei de um quadro de torturadores, mas nunca torturei.
A despeito dessa afirmação, sabe-se que este médico chegou a fazer uma
sutura na cabeça de Cidi Queiroz Benjamin sem uso de anestesia.
Legistas como Armando Canger Rodrigues, Isaac Abramovich e Harry
Shibata se oferecem a outro papel degradante: o de emitir laudos necroscópicos
fajutos que mascaram a causa mortis daqueles que sucumbem às barbáries do
regime.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 58 (Black plate)

Resistir é preciso
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Chico Buarque de Hollanda e Gilberto Gil, Cálice

Q uando a tranca da cela emite o som seco do atrito de ferro contra ferro,
um calafrio percorre a espinha dorsal de todos os presos que estão no
porão do Dops paulista. Pedro conta que este é um dos momentos de profunda
angústia.
— Aí, vinha o carcereiro e avisava pra alguém:
— Vamos subir!
— A gente deixava a cela já sabendo que ia passar por mais uma sessão de
tortura. E que podia não voltar, ou voltar todo quebrado. Por isso, quando se
ouvia aquela frase, todo mundo gelava.
O filho de seu José Lobo conta que, nesse mundo de barbárie generalizada,
o pior dos castigos, se é que pode haver uma coisa pior que outra, é mesmo o
choque elétrico.
— Ligava o fiozinho no dedo, no pênis, na orelha, e vinha aquela descarga. No
início eu tentava não gritar, dava uma de machão, mas o impacto era tão forte, que
o grito acabava saindo de qualquer jeito. Tenho a impressão que o pulmão se
encolhia e o som saía sem querer. Depois, passei a gritar mesmo, porque seria uma
forma de resistir, de abrandar a sensação de cada choque. Mas aquilo era terrível.
A ação dos policiais diante do preso amarrado e extremamente debilitado é
tão covarde, que durante o interrogatório Pedro terá duas de suas costelas
quebradas.
— Eu estava sentado numa cadeira e apanhando de dez. O Henrique Castro
Perroni Filho, um cara muito forte porque lutava boxe, veio correndo e me deu um
soco no peito. Deu como quis, do jeito que quis, porque com as mãos amarradas
eu não tinha como me proteger.
E a força da pancada é tanta, que o militante da VPR perde os sentidos e cai
no chão.
— Quando acordei, estava sem poder falar, de tanta dor. Mas ainda assim
ouvi o chefe do interrogatório gritar: “Porra, Perroni! Você podia ter matado o
cara. Aí não ia ter como arrancar mais nada dele”.

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— Aquele policial disse isso porque, tecnicamente, o objetivo da tortura não


é quebrar o preso, é fazer ele falar.
Reanimado, Pedro é então erguido do chão e conduzido novamente à cadeira.
Mesmo com duas das costelas estouradas, ele continuará sendo interrogado na
base de bordoadas, choques e tudo mais a que se tem direito naquele inferno.
— Uma vez, quando foi lá pelas quatro da manhã, eles cansaram de me bater
e pararam prum cafezinho. Na sala, só ficou um cabo do Exército e eu, nu,
pendurado de ponta-cabeça no pau-de-arara. Como quem não queria nada, o
cabinho falou:
— Escuta Lobo, aproveita que o pessoal saiu e me dá o endereço de algum
amigo seu que possa ser avisado. Não vou falar nada pra ninguém aqui dentro.
Vou quietinho e comunico essa pessoa de que você está aqui apanhando, sem
direito a uma defesa jurídica, sem nada.
— Ouvi aquilo e pensei: “Filho da puta! O cabinho tá fazendo furo n’água”.
Porque eu tinha sido polícia e sabia muito bem o que ele queria. Então, encerrei
a conversa de maneira brusca: “Não sei de telefone de ninguém. Não existe
nenhuma pessoa que possa vir me ajudar, que nesse negócio de luta armada a
gente não tem amigos”.
A tortura nos porões do Dops paulista dura semanas. Mas a resistência do
militante da VPR é tão grande que surpreende até os policiais envolvidos na
barbárie.
— Dois sargentos chegaram a comentar: “Esse cara é fanático demais! Que
nunca vi alguém aguentar seis horas seguidas de pau e não abrir o bico”.
Além das convicções ideológicas e da resistência a dor forjada na infância
depois das tundas do pai, Pedro suporta a tortura também por temer sua própria
consciência.
— Se abrisse um companheiro, eu sabia que iriam prender ou matar ele e esse
não é o papel dum revolucionário. Depois, se o sujeito sobrevivesse, como eu ia
olhar pra cara dele?
Esta convicção faz com que o filho de seu José Lobo chegue a se despojar da
própria vida.
— Nenhuma dor, física ou espiritual, é tão forte, quanto à dor de se tornar traidor.
O cara que entrega o outro, que renega a causa revolucionária, vai se sentir um judas,
e isso o acompanhará pro resto da vida. Então, a coisa que mais eu tinha medo era
de me tornar um traidor. Isso é que me apavorava. Preferia morrer no pau a correr
esse risco. E tinha a decisão de me matar se sentisse que não ia aguentar mais.

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Primeiros focos
A bandeira que adoramos
Não pode ser manchada
Com o sangue de uma raça
Presa ao cabo da enxada
Hino do camponês

N o meio da década de 1950, o grosso da população brasileira vive no campo


e praticamente a metade das propriedades rurais é latifúndio com mais
de mil hectares. Isto, porque nossa economia ainda está fortemente ligada à
produção agrícola, com o café, algodão, açúcar e cacau respondendo por 70%
das exportações.
Aproveitando-se desse perfil, a partir de 1955 o advogado, escritor e
deputado socialista Francisco Julião Arruda de Paula passa a organizar os
trabalhadores das zonas canavieiras do Nordeste nas Ligas Camponesas. Suas
reivindicações são quase todas de cunho reformista e vão da reforma agrária à
extensão dos direitos trabalhista ao homem do campo.
Com a ascensão de Fidel Castro ao poder em Cuba, o líder dos trabalhadores
rurais faz seguidas viagens à Ilha e se encanta com o modelo socialista que está
sendo implantado por lá. A partir de então, o papel das Ligas muda e seus
dirigentes enveredam pelo caminho da montagem de um movimento de guerrilha
rural no Brasil.
Vinte e um de abril de 1 9 62. Na cidade mineira de Ouro Preto
surge o Movimento Revolucionário Tiradentes. Será através dele que seus
militantes tentarão derrubar o governo para implantar no Brasil um socialismo
coletivista aos moldes cubanos. A reforma agrária virá na lei ou na marra, prega
Julião.
Nos planos do pessoal do MRT estão a criação de diversas bases
guerrilheiras. A do Rio de Janeiro, na cidade de Rio Preto, se destinaria a sabotar
as vias rodoviárias, ferroviárias e energéticas entre São Paulo, Rio e Belo
Horizonte. Já no Acre, o dispositivo teria como finalidade estocar as armas a
serem adquiridas na vizinha Bolívia.
Muito por acaso, a estrutura bélica da organização é descoberta em 62,
quando Elber de Mello Henriques, chefe do Serviço de Repressão ao
Contrabando, recebe informação de que caixas e caixas de geladeiras costumam
ser entregues em Dianópolis, cidadezinha encravada no interior de Goiás, que
nem energia elétrica tem.
Pensando estar lidando com contrabandistas comuns, o oficial invade uma
fazenda suspeita da região e descobre ali um dos principais dispositivos do grupo

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de Julião. E nos relatórios apreendidos na operação está a contabilidade de uma


polpuda ajuda financeira de Fidel Castro ao esquema revolucionário.
Preferindo não entrar em conflito com o governo de Havana, João Goulart
entrega os documentos apreendidos em Goiás ao presidente do Banco Nacional
de Cuba, Raúl Cepero Bonilla, e dá o caso por encerrado.
No dia 27 de novembro Raúl está voltando à Ilha quando o Boeing da Varig
que o conduz cai na escala feita em Lima, capital do Peru. Todos os passageiros
morrem, mas a pasta com os relatórios é encontrada intacta entre os destroços.
Entregues a CIA, o conteúdo dos papéis serão divulgado na imprensa
internacional provocando um grande embaraço diplomático. É constrangedor ao
mundo descobrir que o governo de Cuba estivera metido num plano armado
para derrubar o presidente democraticamente empossado no Brasil.

Governo conturbado
O presidente está de mãos atadas.
Leonel Brizola

A presentando um programa conservador, o primeiro ministro Tancredo


não consegue tirar o Brasil do atoleiro econômico e ainda entra em rota
de colisão com João Goulart. Por conta disso, em julho de 62, ele renuncia junto
com todo o seu gabinete.
Para substituir o político mineiro, os líderes sindicais indicam Francisco
Clementino de San Tiago Dantas. A proposta, porém, é rejeitada pelos congressistas
conservadores que preferem o senador Auro Soares de Moura Andrade.
Frustrados com o veto, os sindicalistas ligados ao Partido Comunista
Brasileiro e à esquerda do Partido Trabalhista montam um Comando Geral de
Greve para tentar parar o país.
Cinco de julho de 1962. Grande parte dos trabalhadores dos serviços
públicos, das estatais e do setor bancário está de braços cruzados junto com
uma parcela dos empregados de setor privado. Na onda de protestos que se
segue, na Baixada Fluminense, supermercados são saqueados e manifestantes
entram em choque com a polícia. Ao final do dia, 43 pessoas estão mortas e
mais de 700, feridas.
Cedendo às pressões dos trabalhadores, o Congresso depõe Auro e indica
para o seu lugar Francisco de Paula Brochado da Rocha. Como a crise
econômica persiste, em 18 de setembro o trabalhista gaúcho é substituído pelo
socialista Hermes Lima.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 62 (Black plate)

Esse constante troca-troca emperra o governo, e o parlamentarismo à brasileira


vai se revelando um retumbante fracasso. Preocupado com o desgaste político —
todas as desgraças do país são jogadas nas costas dos sucessivos primeiros-
ministros — o Congresso decide então antecipar o plebiscito que deveria
referendar o sistema parlamentar no começo de 65.
Às vésperas da votação, entretanto, a insustentável crise financeira e a
instabilidade política obrigam João Goulart a lançar uma contundente medida de
emergência. Feito sob os auspícios do Fundo Monetário Internacional, o Plano
Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social prevê, entre outras coisas, uma
ef iciente reforma administrativa, limitação ao crédito, corte de subsídios, dos
gastos públicos, fim das subvenções, das importações e, de quebra, um forte
arrocho salarial.
Dentro do Plano de Jango estão também as chamadas reformas de base que
pretendem fazer uma mudança radical da estrutura fiscal, educacional, bancária
e eleitoral do país, além de redistribuir parte das terras agricultáveis.
A intenção do governo com tantas mudanças é reduzir a inflação num curto
prazo, gerar empregos, revigorar a economia e atrair novos investimentos
estrangeiros. Mas o arrocho econômico e o fim das subvenções e dos subsídios
vai fazer é disparar o preço do pão, da gasolina e das passagens de ônibus.
No campo, a demora na solução das questões agrárias e a crescente politização
e mobilização dos trabalhadores vão incendiar ainda mais os ânimos. Nos Estados
de Minas Gerais e Rio de Janeiro, conflitos armados colocam em guerra aberta
fazendeiros e posseiros.
Sem conseguir agradar a gregos esquerdistas nem a troianos conservadores, João
Goulart desiste de consertar a economia em curto prazo e se atira de corpo e alma na
campanha pela rejeição, nas urnas, do sistema parlamentar do qual é refém.

Desamparo
O mesmo alento que nos conduziu, debandou
Tudo o que tudo assumiu, desandou
Tudo o que se construiu, desabou
O que faz invencível a ação negativa
Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, Mordaça

I nstalada na casa da prima e já sabendo que não terá grandes problemas com
a polícia, Ida Lobo vai ao Dops tentar rever o marido. Dois meses já se
passaram desde a prisão e agora, oficialmente, ele não está mais incomunicável.

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— Marcavam um dia, eu ia lá e não me deixavam ver o Pedro. Marcavam


outro, eu ia e a mesma coisa: esperava duas, três horas e nada.
Quando libera a visita, Wanderico de Arruda Moraes, o diretor do Dops na
época, aproveita a presença de Ida no Largo General Osório para fazer uma
espécie de interrogatório.
— Ele me perguntou um monte de coisas sobre a vida do meu marido e de
seus amigos. Depois abriu um álbum e foi mostrando a fotografia de várias
pessoas. E, logo a primeira era a do velho Prestes, que tantas vezes ficou
hospedado lá em casa. Aí, ele disse num tom assim, meio ameaçador: “Você
conhece esse homem?”.
— Não! Nunca o vi mais gordo!
— E esse outro?
— Era a foto do Portuga. Mas eu respondi categórica: “Também nunca vi!”.
— Ali, naqueles retratos, estava a cara de todo mundo que eu conhecia.
Passou a foto da Dulce, do Antônio Raymundo Lucena. E eu dizendo que nunca
tinha visto nenhum deles. Só a do Onofre que não teve jeito de eu dizer que não
conhecia, afinal ele era o meu compadre.
Encerrada as perguntas e o não reconhecimento fotográfico, Ida é, finalmente,
autorizada a ver o Pedro.
Matada a saudade, a matriarca dos Lobo de Oliveira volta à casa da prima
onde passa a morar em definitivo. Sem nenhuma ajuda financeira dos antigos
companheiros do marido, ela ainda tentar recuperar o táxi apreendido na Ibiti.
— Fui lá na Polícia do Exército pedir o Volkswagen e o relógio de pulso que
eles tinham apreendido lá em Itapecerica. Aí, um coronel me escrachou:
— É mesmo muito audaciosa essa mulher! Depois de tudo o que o marido
fez, ela ainda vem aqui pedir as coisas dele.
— Eles diziam que o carro tinha sido comprado com o dinheiro dos roubos a
banco e, por isso, não ia ser devolvido. Mas, levei minha carta de indenização e
provei que o fusquinha foi pago com o dinheiro do meu trabalho, portanto, era
meu. Os militares ainda me enrolaram um tempão, mas acabaram liberando o táxi.
Com o Volkswagen em casa, o problema passa a ser seu conserto.
— A polícia tinha usado o Fusca em várias perseguições, então o coitado
estava todo batido, arrebentado mesmo. Tive que fazer uma reforma total pra
poder botar ele de novo na praça.

• 63
livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 64 (Black plate)

Com o táxi em dia, um motorista é contratado e a matriarca dos Lobo de


Oliveira trata de arruma emprego em algum escritório.
Mesmo levando uma vida longe dos companheiros de luta do marido, Ida
continuará sendo vigiada de perto pelos agentes da polícia. E, para seu azar, no
dia 23 de junho Carlos Alberto Zanirato, — ex-soldado que servira com Carlos
Lamarca em Quitaúna — cai nas mãos da repressão levando no bolso o endereço
da casa de sua prima.
— Não sei como aquele moço conseguiu saber onde eu estava morando. Só
sei que a polícia bateu lá na avenida São João querendo me levar pra delegacia
de qualquer jeito.
Ida consegue se livrar da fúria dos agentes depois que o marido de sua prima
liga para o diretor do Departamento de Ordem Política e Social.
— Ele passou o telefone pros homens que estavam no apartamento e o
Wanderico explicou:
— Já está provado que essa mulher não tem nada a ver com a guerrilha.
Podem deixar ela em paz.
— Só aí eles desistiram de me levar para a cadeia.
Torturado barbaramente, Carlos Alberto, morre no dia 29. A polícia leva
então o corpo do jovem de 19 anos à esquina da avenida Celso Garcia com rua
Bresser, no bairro paulistano do Brás, para a simulação de suicídio. Na versão
plantada nos jornais, o ex-soldado do Exército se atira embaixo de um ônibus
quando está sendo levado, algemado, a um encontro pré-agendado com outros
companheiros de organização.

Dois PCs
A revolução brasileira não é ainda socialista, mas antiimperialista
e antifeudal, nacional e democrática.
Documento do PCB depois do 5º Congresso

O Partido Comunista do Brasil fora fundado em 25 de março de 1922, mas


se manteve na ilegalidade — exceto em pequenos períodos — até 10 de
novembro de 1 9 45. Com a oficialização da legenda em 1 9 46, vários
militantes se elegem deputados federais, entre eles o escritor Jorge Amado e o
veterano líder da coluna tenentista de 1925, Luís Carlos Prestes.
Mas a alegria dos comunistas dura muito pouco. Sob a alegação de que a
preposição do embutida no nome faz do partido a sucursal de uma agremiação

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política estrangeira, no caso do Partido Comunista Soviético, o registro é cassado


um ano depois. Como consequência, todos os seus parlamentares perdem os
mandatos.
Em 61, a ascensão de João Goulart ao poder dá aos comunistas um novo
alento. Sentindo-se à vontade para pedir novamente o registro, eles tratam de
retirar o polêmico do do nome da sigla. O partido passa então a se chamar
Comunista Brasileiro.
Ainda no ano de 1956 — durante o 20º Congresso do PC soviético —
Nikita Kruschev denunciara vários dos crimes cometidos por Joseph Stalin
durante os 26 anos — de 1927 a 1953 — que ficara no poder. O líder ainda ataca
algumas das tradições marxistas e defende uma política de co-existência
pacífica e de equilíbrio de forças com as potências econômicas capitalistas,
principalmente os Estados Unidos.
Tanto revisionismo desagrada os dirigentes chineses e parte dos comunistas
espalhados pelo resto do mundo. No Brasil, as discussões se prolongam até
fevereiro de 1 9 62 quando um grupo liderado por João Amazonas e
Maurício Grabois decide ressuscitar o Partido Comunista do Brasil.
Por ainda ficar com a grande maioria dos quadros comunistas mesmo depois
do racha, o Partido Comunista Brasileiro passa a ser conhecido pelo
aumentativo: Partidão. Fiel a Luís Carlos Prestes até aqui, Pedro Lobo é um dos
militantes que continuará no PCB.

Ninho comunista
É evidente que vocês nos acusam de querer abolir a vossa propriedade.
De fato, é isso que queremos.
Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista

A década de 1960 vive o auge da dita Guerra Fria, com Estados Unidos
e União Soviética disputando espaços de influência pelo mundo. Nessa
briga por corações e mentes, tudo se ideologizará, da Igreja aos bancos escola
res, do trabalho nas fábricas à vida no campo.
No quartel da Força Pública onde Pedro trabalha e mora, o clima não é
diferente. E o militante comunista continua fazendo a cabeça dos companheiros
de farda.
— Fui ficando cada vez mais boca dura, mais revolucionário. Falava de
política perto dos oficiais, defendia o socialismo abertamente com os colegas e
não estava nem aí.

• 65
livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 66 (Black plate)

Formatura de Pedro Lobo (primeiro de farda à esquerda) na Escola de Patrulheiros, 1962.

Certo dia, um tenente passa pelo Corpo da Guarda e vê o sargento discursando


no meio de uma rodinha de soldados.
— Quando percebi que o cara estava me olhando de longe, aí que falei mais
alto, de propósito, pra provocar mesmo.
Wânio José de Matos ouve toda a pregação calado. Só quando Pedro para de
falar e os soldados se retiram é que ele se aproxima:
— Sargento!
— Pois não.
— Preciso ter uma conversar com você lá na minha sala.
— Quando ouvi aquilo, gelei. E já fui falar com o tenente emputecido,
imaginando o tamanho da bronca que ia tomar.
Para espanto do subalterno, Wânio o recebe com certa cordialidade e inicia
um pequeno interrogatório:
— Diga uma coisa, sargento Lobo: o que você pensa da União Soviética?
— Respondi com toda a arrogância de um comunista convicto: “É um regime
excelente, com todo mundo vivendo igual. Pelo que sei, lá não existe a injustiça
social, a miséria, o analfabetismo e a exploração dos empregados pelos patrões
como existe aqui”.
O sargento segue elogiando o socialismo na frente do tenente, até ele perguntar
sobre o governo Jango.

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— Sem medo nenhum, rasguei o pano também: “Está sendo um ótimo


governo. E o presidente vai fazer vingar todas as reformas que o povo precisa pra
viver melhor”.
No final do curto interrogatório, em vez de receber uma reprimenda, Pedro
ganha um convite para participar das reuniões políticas que Wânio organiza
regularmente em sua casa.
— Aquele oficial era o chefe de uma puta base do Partido Comunista infiltrada
lá no quartel. E eu nem desconfiava.

Instituto de desestabilização política


O Ibad era uma associação de empresários só com fins ideológicos refletindo-se
eleitoralmente e no financiamento dos que possuíam ideias antissocialistas
Jorge Oscar de Melo Flores

D urante o governo João Goulart, a Frente de Mobilização Popular se torna


um centro de debates dos reformistas e revolucionários de esquerda. Das
acaloradas discussões, participam políticos, sindicalistas, estudantes e todos
aqueles que estão dispostos a manter o governo Jango em pé.
Do outro lado do prisma político, a direita se mobiliza visando à
desestabilização e queda do vice que, muito a contra-gosto, viu tornar-se
presidente. O principal ninho antijanguista está no Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais.
É no Ipes que conspiram os grandes empresários daqui e de fora, entre eles
300 dirigentes de empresas norte-americanas, banqueiros, grandes comerciantes
e representantes das oligarquias latifundiárias. O Instituto abriga ainda
organismos sociais conservadores, como a Campanha da Mulher pela
Democracia, o Grupo de Ação Patriótica, o Movimento Sindical Democrático, a
União Cívica Feminina e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática — o Ibad.
Na oposição, a influência dos Estados Unidos é tanta que, nas eleições de 60,
mais de cem deputados federais tiveram suas campanhas financiadas por
dinheiro estrangeiro disponibilizado pelo Ipes via Ibad.
Na defesa da desestabilização do governo, o Ipes não tem escrúpulos em
subornar políticos, intelectuais, sindicalistas ou líderes estudantis. é por meio do
Instituto também que se fraudam eleições e se corrompem barnabés na esperança
de que, ao ser atendido por um serviço público ineficiente, o povão se canse de
Jango e resolva enxotá-lo do poder.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 68 (Black plate)

O Ipes ainda investe pesado na propaganda contra o governo. Nos dois anos
em que João Goulart estará no poder, cerca de 300 mil exemplares de livros com
temas de direita e 2,5 milhões de folhetos de conteúdo antijanguista serão
editados e distribuídos à população. Matérias e editoriais também vão ser
plantados em jornais, revistas, rádio e televisão. Tudo para passar ao povão a
imagem de que o Brasil está se tornando um país caótico, à beira do abismo
comunista, e governado por um presidente fraco e desestruturado.
A Escola Superior de Guerra é outro campo fértil à pregação da direita
ressentida. Os oficiais que a dirigem — muitos com estágios em bases norte-
americanas da América Central — querem se livrar, o mais rápido possível, de
João Goulart e da caterva vermelha que o apoia.
Nesse clima de desestabilização permanente acontecem as eleições de 7 de
outubro de 1962. Nelas, Jânio Quadros, o presidente fujão que já está de volta
ao país e à vida política, perde o governo de São Paulo para o direitista
Adhemar Pereira de Barros, famoso pelo bordão: O homem rouba, mas faz.
Na Guanabara é eleito o ferrenho anticomunista, antijanguista e anti qualquer
coisa que estiver à esquerda do espectro político, Carlos Lacerda. Completando
o quadro oposicionista nos Estados, em Minas o novo governador é o banqueiro
Magalhães Pinto, em Alagoas, Luís Cavalcanti e no Rio Grande do Sul, Ildo
Meneguetti.

Volta o presidencialismo
Prometo manter, defender e cumprir a Constituição da República,
observar suas leis, promover o bem geral do Brasil, sustentar-lhe a união,
a integridade e a independência.
Juramento de João Goulart ao assumir a presidência

N o dia 6 de janeiro de 1963, o povão vai às urnas e rejeita em massa


o sistema parlamentarista. De cada 10 eleitores do plebiscito, nove optam
pela volta dos plenos poderes ao presidente da República. Assim, depois de 16
meses servindo como coadjuvante de seus sucessivos primeiros ministros, João
Belchior Marques Goulart, de 44 anos, torna-se o presidente de fato do Brasil.
Investido de plenos poderes, Jango tem agora que encarar de frente uma
situação econômica que continua delicada, com o crescimento do Produto
Interno Bruto patinando em pouco mais de 1,5% anuais e a inflação no mesmo
período beirando os 100%.
Para piorar as coisas, assustados com a promessa do presidente de
desapropriar as empresas norte-americanas concessionárias de serviços públicos,

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os Estados Unidos seguram boa parte do nosso crédito externo.


A partir de março, a crise financeira vai se acentuar colocando o governo
Goulart em cheque. Enquanto os salários se mantêm engessados em um teto de
40%, o preço do pão, da gasolina e das passagens de ônibus sobem sem parar.
Descontentes com o desabar do poder aquisitivo dos operários, os dirigentes da
poderosa Central Geral dos Trabalhadores enviam um ultimato ao Congresso: ou se
aprova as reformas de base até 20 de abril ou o país para com uma greve geral.
Aproveitando-se dos abalos políticos e econômicos que sacodem o governo,
a direita espalha pela imprensa que dois governadores, Adhemar de Barros e
Carlos Lacerda, pretendem exigir o impeachment de Jango.
Pressionado, em 4 de outubro de 1 9 63 João Goulart solicita ao
Congresso a instalação do estado de sítio. Sem o apoio das esquerdas,
entretanto, o pedido é retirado três dias depois, e tudo fica como dantes.

João Goulart com o Presidente da Câmara Pascoal Ranieri Mazzilli

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Igreja mais que dividida


Ao invés de pregarem a misericórdia de Deus, alguns padres tornaram-se
arautos da agitação vermelha e da subversão. Eles estão pregando os dogmas
nada cristãos de Karl Marx e Fidel Castro
Nilton Fernandes, delegado do Dops

N a década de 1960, a Guerra Fria que faz fervilhar os embates ideológicos


pelo mundo dividirá até mesmo a conservadora Igreja Católica. O
Concílio Vaticano II, aberto pelo Papa João XXIII em 1962, legitima a
intervenção católica em assuntos políticos, econômicos e sociais, dando uma
mãozinha aos clérigos envolvidos em questões temporais pelos quatro cantos do
mundo.
Num Brasil onde 30 dos 80 milhões de habitantes são, oficialmente,
analfabetos e quase metade das crianças em idade escolar está fora da escola, a
ala progressista da Igreja aproveita a deixa papal e intensifica sua atuação na
educação popular. Para tanto, é criado o Movimento de Educação de Base, ligado
diretamente à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
Organizações populares como as Juventude Estudantil Católica, Juventude
Operária Católica e Juventude Universitária Católica além da Ação Católica,
também se engajam na política defendendo as reformas de base, notadamente a
agrária. Em seu livro, A ditadura envergonhada, Elio Gaspari constata:
Entre 1950 e 1967, num processo surpreendente, a militância católica das
universidades movera-se da direita para o centro, do centro para a esquerda,
da esquerda para o marxismo e dele para a luta armada.
Enquanto padres e fiéis mais progressistas batalham por avanços sociais, os
católicos conservadores esperneiam contra a infiltração marxista no seio da Santa
Sé. Na carta enviada ao presidente da República, Dom Antônio de Castro Meyer,
bispo da cidade fluminense de Campos, e Dom Geraldo de Proença Sigaud,
arcebispo da mineira Diamantina, deixam clara a posição da ala conservadora:
Não se justifica, segundo a doutrina católica, nas atuais circunstâncias, a
desapropriação ou partilha forçada de propriedades rurais, ainda quando
latifúndios improdutivos.
Nessa linha, o bispo prega:
Quando a força está a serviço do Direito e contra o comunismo, é hora de
nós, bispos e padres, benzermos as carabinas, os revólveres e as balas.

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Em entrevista à imprensa, Dom Sigaud radicaliza de vez:


O diabo é socialista!
A direita de batina conta também com o apoio da Sociedade Brasileira de
Defesa da Tradição, Família e Propriedade, organização ultraconservadora
fundada em 1960 pelo advogado e ex-deputado Plínio Corrêa de Oliveira.
Portando pomposos estandartes medievais, os membros da TFP — todos
homens e com porte de armas — desfilam pelas ruas do país colhendo
assinaturas contra a reforma agrária, jogando pragas nos comunistas e
amaldiçoando o governo Jango.

Polop e Ap
O que unia a todos era a oposição à linha do PCB, adotada em 1958,
segundo a qual era necessária uma aliança com a burguesia nacional para completar
as tarefas democráticas burguesas no Brasil. Nós achávamos que as lutas contra os
elementos pré-capitalistas da sociedade brasileira, como a estrutura agrária, contra o
imperialismo e pela implantação da democracia não poderiam se realizar nos marcos
de um capitalismo nacional democrático, tal como o Partido Comunista e o ISEB
defendiam naquele momento.
Theotônio dos Santos, A Polop e o debate
de alguns de seus teóricos com o PCB

N o começo dos anos 1960 duas siglas de esquerda surgem como


alternativas à hegemonia representada pelo velho Partidão. A
Organização Revolucionária Marxista, Política Operária e a Ação Popular.
A primeira, criada em fevereiro de 1 9 61 basicamente a partir da
Juventude Socialista do Partido Socialista Brasileiro, traz uma proposta de
oposição à ideia reformista e pacifista do PCB. Seu foco é a luta armada
revolucionária pelo socialismo. Com forte atuação nos meios universitários,
a Polop servirá de matriz a vários dos grupos que pegam em armas contra o
regime ao longo dos Anos de Chumbo.
Da Juventude Universitária Católica e de grupos ligados à Ação Católica
nascerá a Ação Popular. Seus militantes pretendem criar um canal de atuação
política de esquerda e livre da hierarquia imposta pela Igreja. Em junho de
1962, num congresso em Belo Horizonte, é oficializada a existência da AP.
No ano seguinte, um novo encontro em Salvador coloca a sigla no
caminho do socialismo humanista.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 72 (Black plate)

Urubus entre abutres


Com o coronel Hélber tudo tinha mudado. Até sua chegada, toda e qualquer pergunta
levava apenas à incriminação do prisioneiro e ao castigo (e o castigo era a tortura) e se
destinava, mais que nada, a alimentar o sadismo do interrogador-torturador,
mas pouco conduzia à apuração. Ele, porém, era minucioso, indagava para saber, não
para castigar. [...] Mas, sem porrada, com ele nos sentíamos protegidos, tratados
como gente ou como “prisioneiros de guerra” [...].
Flávio Tavares sobre Hélber de Mello Henriques,
Memórias do esquecimento

F evereiro de 1969. Enquanto amarga seu cativeiro no Dops, Pedro Lobo


segue apanhando dia sim, outro também.
Mas, mesmo com todo o clima de crueldade existente nas prisões da ditadura, o
convívio cotidiano no cárcere nestes Anos de Chumbo terminará por gerar uma
espécie de amizade entre alguns dos presos e policiais um pouco mais bem
comportados. Embora cúmplices, estes terminam por escapar da condição de
abutres sanguinários.
— A mim, nunca houve um carcereiro que ajudasse. Mas tinha uma sentinela
que chegou a ir na casa da mãe da Dulce Maia levar recados ou buscar notícias.
O Pascoal também era considerado um carcereiro bonzinho. Esse chegou a dizer
diante de um torturado:
— Isso não se faz com um ser humano!
Antônio Roberto Espinosa, preso na Polícia do Exército do bairro carioca do
Realengo, também experimenta essa boa vontade dos agente da lei.
— Eu estava numa solitária e o contato com aqueles que cuidavam da
carceragem era ríspido e feito através de um buraquinho na porta da cela. Mas
tinha esse soldado que, à noite, vinha conversar. E ele gritava lá detrás da chapa
de aço que revestia a porta:
— Poxa! Você está numa gelada mesmo, hem prisioneiro? E o pior é que
tenho uma irmã que está nessa também, se meteu com as esquerdas.
— Às vezes, ele trazia um pedaço de pão duro e jogava pra dentro da cela.
Em outras, o presente era uma revistinha de Carlos Zéf iro. E ele ainda brincava:
“Já que você tá fodido mesmo, vai se divertindo aí com uns desenhos de
sacanagem”.
— Nunca soube o nome daquele recruta, mas ele foi o único contato mais
humano que tive durante todo o tempo em que eu passei na solitária. E isso
ajudou muito a amenizar a sensação de isolamento naquele cárcere do Exército.
Pedro também consegue pinçar um ou outro urubu no meio dos abutres que
o enclausuram no Dops:

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— Posso pôr aí nessa conta o Nilton Fernandes, que presidiu nosso inquérito,
e o Waldy Simonetti que aparecia de vez em quando lá na minha cela. Eu estava
com a costela quebrada pela tortura, todo arrebentado, sentindo muita dor, e ele
trazia analgésicos, me comprava remédios. Esses delegados nunca me
torturaram.
O ex-sargento sente até certa complacência dos dois policiais durante a
montagem do inquérito da sua organização.
— O doutor Nilton, em várias fases do processo, demonstrou que queria
ajudar a gente. Quando terminaram os depoimentos, tava aquela pilha de pastas
em cima da mesa e ele me disse:
— Olha Lobo, o inquérito está montado. Amanhã, estas pastas vão para a
Auditoria Militar e meu trabalho estará encerrado. Mas ainda queria conversar
mais um pouco com você. Pode ter certeza que nada do que disser vai ser escrito,
então você responde se quiser.
— Pois não, doutor Nilton, pode perguntar.
— Primeiro, quero saber: quantos anos de cadeia você acha que vai pegar?
— Isso eu não sei, porque não tenho direito a um advogado e, pelo visto, nunca
vou ter. Mas acredito, pela altura dessa pilha de papéis, uns 80 anos, por aí.
— Ele deu uma risadinha e confirmou:
— É! Vai ser por aí mesmo.
— Só que não vou cumprir isso tudo não, seu delegado!
— Quando ouviu aquilo, ele arregalou os olhos. Acredito que veio na cabeça
dele: “Esse cara está pensando em tentar uma fuga”.
— Aí, ele perguntou, com ar de desconfiança:
— O que você pretende fazer pra não passar esse tempo todo na cadeia?
— Veja o senhor: hoje estou com 38 anos, somando mais 80, serão 114. Ora!
Está na cara que vou sair antes, doutor, bem encaixotadinho, mas vou sair antes.
Porque ninguém dura tanto tempo aqui na Terra, não é, seu delegado?
— Ele ficou aliviado quando viu que aquilo era só uma piada e riu. Também
ri. Aí, ele quis saber se eu ia confirmar, lá na Auditoria Militar, o que tinha dito,
sob tortura, nos interrogatórios. Acho que ele quis dar uma dica pra eu negar tudo
na Auditoria. Que ali, se negasse, voltava pro pau. E ele ainda fez um elogio a
minha pessoa:
— Olha Lobo! Não concordo com o que você fez, porque se concordasse não
estaria aqui como delegado e você como preso. Mas, admiro sua firmeza. Na
minha história de polícia, é inédito ver alguém que, apesar de saber que está
numa situação de receber pena altíssima, fica aí nessa tranquilidade, como se
nada estivesse acontecendo.

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— Ele falou isso porque, como funcionário do governo, não podia entender
minha postura mesmo. Eu lutava por uma ideologia, uma causa, e ele lutava
apenas pelo salário no final do mês. Então, completei:
— O senhor crê que fiz tudo de errado. E, diante das leis da ditadura, serei
mesmo condenado a penas bem pesadas. Mas, perante a minha consciência,
tenho a plena convicção de que não estou errado, que fiz algo pela pátria.
Portanto, minha consciência me absolve plenamente.

Gordo em apuros
Quando sua detenção estava sendo conduzida, Hamilton começou a se debater
e a gritar por socorro. Uma pessoa desconhecida que o acompanhara até a firma
entrou armada, disparando. Os tiros feriram várias pessoas e acertaram Hamilton, pois
um dos investigadores o usou como escudo, levando-o a falecer no local.
O desconhecido e mais duas outras pessoas fugiram. Foram apreendidos um
revólver e cinco balas que Hamilton havia deixado embrulhados em um banco
da firma, no saguão de entrada.
Ofício do delegado Alcides Cintra Bueno Filho, 11/02/69

U ma vez na clandestinidade, Carlos Lamarca passa a viver em um


apartamento da rua Benjamim de Oliveira, 380, no bairro paulistano do
Brás. Com ele estão mais três dos combatentes: José Ronaldo Tavares de Lira e
Silv a, Yoshitane Fujimori e Hamilton Fernando Cunha.
No dia 11 de fevereiro, Hamilton resolve pedir demissão da Gráfica Urupês
da rua Cadiriri, 1.161, Parque da Mooca, e leva consigo José Ronaldo. Enquanto
o Roberto Gordo da VPR espera na recepção, Hamilton vai ao Departamento
Pessoal fazer seu acerto.
Minutos depois, José Ronaldo ouve o companheiro pedindo por socorro lá
dentro. Sacando um revólver 38, o ex-sargento do Exército rende o segurança da
empresa e invade os escritórios. Ao se deparar com três investigadores do Dops
tentando algemar seu companheiro, o guerrilheiro abre fogo iniciando um
violento tiroteio.
No final, um dos policiais, Benedito Caetano, está ferido no peito e José
Ronaldo tem uma bala alojada na coxa e outra no joelho.
Mancando, Gordo consegue fugir para a rua onde intercepta a Rural Willy de
Bartholomeu Simone que acabara de deixar o estacionamento da gráfica levando
a funcionária Nides Luiza Pereira também ferida na perna por uma das balas
perdidas durante o confronto.

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O militante da VPR permite que a moça seja levada a um pronto socorro da


avenida Radial Leste e depois obriga Bartholomeu a deixá-lo no prédio onde estão
Lamarca e Fujimore. Só depois de alertar seus companheiros da iminente chegada
da polícia é que José Ronaldo, com um torniquete feito pelo próprio Capitão, será
operado numa base médica clandestina da Ação Libertadora Nacional.
O corpo sem vida de Hamilton dará entrada no InstitutoMédico Legal de São
Paulo às onze horas da noite daquele mesmo dia. Na versão da polícia, ele teria
sido morto pelo próprio José Ronaldo ao ser usado como escudo por um dos
investigadores durante o tiroteio.

Onze Companheiros
A organização do nosso povo, eis a tarefa urgente e imprescindível neste momento.
Povo desunido, povo desorganizado, é povo submetido.
Leonel Brizola no manifesto de organização
dos Grupos de Onze Companheiros

A partir de 1963, Pedro Lobo passará a fazer parte do Grupo dos Onze
Companheiros ou Comandos Nacionalistas, uma milícia civil criada por
Leonel Brizola para servir de base a um futuro partido revolucionário de
esquerda.
— A proposta do Brizola era muito boa e logo me engajei nela. Vi ali uma
garantia de poder reagir no caso de um possível golpe da direita.
Tendo como objetivos declarados a união de pessoas em torno de conquistas
democráticas, o apoio às reformas de base de João Goulart e a libertação da
pátria da espoliação internacional, a entidade brizolista amplia rapidamente seus
quadros.
O número fixo de 11 membros por célula se explica por uma artimanha do
cunhado de Jango: facilitar a assimilação de sua estrutura pelos brasileiros tão
afeitos à prática do futebol.
As Forças Armadas não demoram a desconfiar dos singelos propósitos
declarados por Brizola para sua organização e passam a denunciar os Onze
Companheiros como unidades paramilitares. Na visão dos milicos, a união de
duas ou mais dessas células se assemelhariam a um pelotão. E a junção dos
pelotões desaguaria numa companhia de combate. Em resumo: o cunhado do
presidente está cuidando de montar seu próprio exército.
À luz da verdade, as Forças Armadas não estão tão erradas assim. Em caso
de golpe de Estado, os integrantes dos Grupos dos Onze têm mesmo instruções

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para fundir suas células três a três, numa espécie de pelotão. Daí, surgir a
companhia de combate é um pulo.
— No início de 1964, Brizola avalia que já são 24 mil os Grupos de
Onze Companheiros espalhados pelo Brasil. Os órgãos de informação das
Forças Armadas, entretanto, identificam apenas 1.298. Mas os militares ficam
de orelha em pé porque, mesmo pelo número apurado por eles, em pouco mais
de um ano, a proposta já mobiliza mais de 13 mil pessoas no país.

Votar e ser votado


Sargento, o cidadão que não possuía o direito
que até às prostitutas não era negado — o de votar.
Sargento Aimoré Zoch Cavalheiro

S setembro de 1963, Pedro Lobo e seus cole gas de f arda — soldados, cabos
e sargentos — estão novamente em pé de guerra. Tudo porque, no dia 11
o Supremo Tribunal Federal considera os subalternos das Forças Armadas
impedidos de participar de atividades políticas. Todo aquele que já exerça algum
cargo eletivo terá seu mandato suspenso.
— O sargento Aimoré Zoch Cavalheiro foi eleito deputado estadual pelo Rio
Grande do Sul, e não lhe deram posse. Elegemos outro sargento, o Antônio
Garcia Filho, deputado federal pelo Rio de Janeiro, e também não deram posse.
O subtenente da Polícia Militar e presidente do Centro Social dos Sargentos,
Herotildes Carvalho de Araújo conquistou uma cadeira na Câmara de Deputados
e não pôde assumir. Aí, surgiu nas forças armadas um movimento de
visibilidade. E toda a sargentada se mobilizou pra brigar pelo direito de votar e
ser votado.
Para marcar posição, nos primeiros minutos do dia 12, um grupo de 650
sargentos e cabos da Força Aérea e Marinha de Guerra, sob o comando do 1º
sargento da Aeronáutica, Antônio Prestes de Paula, se rebelam em Brasília.
Armados, eles invadem o Departamento Federal de Segurança Pública, a Estação
Central da Radiopatrulha, o prédio do Ministério da Marinha e o Departamento
de Telefones Urbanos e Interurbanos da capital.
Cortadas as comunicações do Distrito Federal com o resto do país, os
amotinados saem pelas ruas capturando oficiais ou qualquer outra autoridade
que lhes surja pela frente. Além do ministro do Supremo Tribunal Federal, Victor
Nunes Leal, e do presidente da Câmara dos Deputados, Clóvis Mota, dezenas de
coronéis, majores e capitães viram reféns dos subalternos.

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Agindo com rigor, homens do Exército — única arma a não aderir ao levante
— conseguem sufocar a rebelião. O confronto deixa um saldo de dois mortos —
o fuzileiro Divino Dias dos Anjos e um civil, Francisco Morais — dezenas de
feridos e 536 militares presos.
Levados à Guanabara, os revoltosos são encarcerados no barco-presídio Raul
Soares. Entretanto, para a fúria do oficialato, todos os envolvidos acabarão
anistiados por João Goulart.
Pedro Lobo não está em Brasília, mas participa ativamente da mobilização
em São Paulo. Tanto que sua ficha nos órgãos de informação ganha mais uma
anotação:
Mantém ligações com os representantes da Comissão Regional Pró-
Elegibilidade dos Subtenentes e Sargentos.

Desentendimento geral
[...] Julião desorganiza nosso trabalho. Ele defende teses erradas. [...]
Temos que dizer-lhe que sua atuação junto ao PCB atrapalha.
Giocondo Dias, em reunião do Comitê Central do Partidão

O mês de março de 1964 começa com João Goulart tentando fazer vingar
suas reformas de base. No apoio à proposta está um cipoal de siglas que
vai do centro às esquerdas mais radicais. Se alinham com Jango o Partidão, de Luiz
Carlos Prestes e Pedro Lobo, e a Frente de Mobilização Popular liderada por
Brizola e que abriga, entre outros grupos, a ala mais à esquerda do PTB, a UNE,
as Ligas Camponesas, o Comando Geral dos Trabalhadores, as organizações dos
subalternos das Forças Armadas, a Frente Parlamentar Nacionalista e vários
sindicatos independentes.
Com tanta entidade política e social reunida em torno do presidente, seu
governo começa a se mostrar um verdadeiro balaio de gatos, em que ninguém se
entende e as tendências se engalf inham entre si.
Para aumentar o imbróglio nas esquerdas, o pessoal da Polop, em nome de
um socialismo mais científico, desanca Jango, as Ligas Camponesas, o Partidão
e a esquerda católica abrigada na Ação Popular.
Do Nordeste, o governador de Pernambuco Miguel Arraes de Alencar,
também vai ao ataque chamando o governo — que ele mesmo diz apoiar — de
medíocre, rotineiro e sem um programa consistente. Representando as Ligas
camponesas, Francisco Julião também ataca Jango taxando-o de latifundiário e
lacaio do latifúndio.

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Para piorar a confusão, o Partidão, que apoia incondicionalmente João


Goulart, acusa o Partido Comunista do Brasil — sigla saída de sua própria
costela — de apego a teses errôneas vindas da China, e não da União Soviética,
como gostaria Luís Carlos Prestes e seus seguidores. O PC do B contra ataca,
denunciando o adesismo doentio do PCB ao governo e, de quebra, acusa Jango
de ser um mero porta-voz das classes dominantes, conciliador e concubino do
imperialismo e dos latifúndios.
Em resumo, dentro das esquerdas a coisa está mais ou menos assim: Prestes
não se entende com Julião, que desconfia de Brizola, que, apesar de ser cunhado,
não se dá com Jango e muito menos com Miguel Arraes. Este ataca o governo
enquanto os comunistas do Brasil tentam vincular o presidente aos latifundiários
e o pessoal da Polop sai taxando todo mundo de reformista.
Óbvio que, em meio a essa barafunda, o governo de João Goulart se moverá
aos solavancos. Enquanto as tendência de esquerda que o apóiam tentam trazer
a brasa das reformas de base para sua sardinha política, as que o atacam
procuram boicotar toda e qualquer ação que dê luz à administração do país.
O caldeirão político em que Jango está imerso entra em ebulição quando ele tenta
atrair para seu programa de governo parte do centro e da direita reunidos na Frente
ParlamentarNacionalista, que inclui a banda mais liberal do PTB, do PSD e da UDN.
Enquanto as esquerdas brigam entre si e Jango bate cabeça em busca do
entendimento com os liberais de centro e de centro-direita, a direita da direita,
por meio de boa parte da alta of icialidade, dos grandes empresários,
latifundiários, clero conservador e representantes do governo norte-americano,
segue tramando um golpe de Estado que derrube o presidente.

Cabeça erguida
É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta, o interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Eduardo Gudin e Paulo Sérgio Pinheiro, Mordaça

M arço de 1969. Nosso personagem principal está encarcerado numa cela


do Dops paulista, sem direito a advogado ou qualquer informação do
mundo exterior. Entretanto, apesar do horizonte curtíssimo que lhe parece
reservado, ele não perde as esperanças.
— A guerra tinha acabado pra nós, em termos físicos, das ações armadas,
mas ela nunca acabou na nossa cabeça, no nosso sentimento. A gente não perdia

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a fé na revolução porque, apesar de estar trancado em uma cela, sabia que o


Lamarca e outros companheiros estavam dando continuidade à luta lá fora.
A resistência do ex-sargento vem também de sua imensa convicção
revolucionária.
— Havia ainda a raiva contra a ditadura, contra o inimigo que tava ali, na cara
da gente, todos os dias. Ela era tão grande, que dava uma força imensa, não deixava
a gente se abater nem mesmo quando alguém vinha nos humilhar na porta da cela.
E, no Dops tinha muito isso, dos policiais chegarem no corredor gritando:
— Bando de Terroristas! Vocês todos vão morrer nas nossas mãos.
— No primeiro de maio, tentamos cantar a Internacional Socialista. Os
soldados do Exército calaram então as baionetas e ficaram passando as lâminas
nos ferros das grades, ameaçando a gente ferozmente. Aquilo fazia um barulhão
danado. Naquele dia, achei que ia morrer.
Numa madrugada, mesmo depois de a fase mais intensa de tortura já ter
passado, Pedro é retirado da cela e levado à presença dos delegados instalados no
terceiro andar.
— Aí, pensei com meus botões: “Boa coisa não é! Que ninguém vai tirar a
gente do xadrez a essa hora à toa”.
Algemado, o prisioneiro é colocado na presença do coronel Antônio Lepiane,
comandante do 4º Regimento de Infantaria e presidente do inquérito que apura a
deserção de Carlos Lamarca e o furto de armas da Companhia de Petrechos
Pesados.
— Naquele dia, eles não tinham diligências. Então, estava cheio de delegados
e investigadores por ali meio sem ter o que fazer. E, quando me puseram de pé
na frente do diabo do coronel, ele provocou com ares de arrogância:
— Pedro Lobo, saiba que, se você não tivesse sido preso e a VPR realmente
atacasse meu quartel lá em Osasco, o 4º Regimento ia ser o túmulo de todo o seu
pessoal.
— Não aguentei aquilo. Então, olhando bem pra cara dele, com toda a calma
do mundo, retruquei: “Acho que o senhor está muito enganado. Ali, a gente é que
ia vencer a batalha, porque seus soldadinhos não oferecem combate. Eles nunca
viram ninguém morrer ensanguentado. No meio da luta, quando algum
companheiro deles começasse a sangrar, a maioria ia desmaiar de medo”.
Pedro fala assim porque o grosso do efetivo do 4º Regimento de Infantaria é
de recrutas, quase sem treinamento, uma meninada que está no exército apenas
para cumprir o serviço militar.

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— Não abaixei a cabeça pra provocação e ainda insisti: “Coronel! Nossos


combatentes iam massacrar seus soldadinhos porque eles não tiveram um
treinamento adequado. Além disso, a gente luta por um ideal e eles estão lá só
porque no Brasil servir o Exército é obrigatório”.
Estático em sua cadeira, Antônio Lepiane fica mirando Pedro com um ódio
visceral.
— Ele ali, me fuzilando com os olhos e eu cutucando com gosto: “O senhor
saiba, coronel, que seu quartel lá de Quitaúna esteve sempre cercado pelo nosso
pessoal. Quando a gente fosse invadir, a guarda já estaria sem munição. Não ia
ter combate. E se tivesse, seus soldadinhos iam sair correndo depois de meia
hora de luta”. Eu não falava isso com uma voz choramingada, lamentosa, não.
Falava com toda a força de expressão, olhando no fundo do olho dele: “Quando
tomamos o Hospital Geral, nós não precisamos dar um único tiro. Suas
sentinelas se renderam com um golpe de mão. Como o senhor acha que ia ser lá
em Quitaúna, hem coronel?”. Rapaz! Fui falando isso e o homem amarelando de
ódio. De repente, ele deu um murro na mesa com toda a força e berrou:
— Além de terrorista, ainda é cínico, esse sujeito! Sumam com ele da minha
frente antes que eu faça uma besteira!
— E a discussão acabou ali.
Depois do embate com Antônio Lepiane, Pedro volta para sua cela de ego
inflado. O guerrilheiro está ciente de que, mesmo todo arrebentado pela tortura, não
se vergara diante do inimigo e cumprira com galhardia seu papel de revolucionário.
— No final, ele é quem foi desmoralizado. Porque eu buscava sempre,
mesmo na pior situação que me encontrasse, achar forças pra contestar a posição
do inimigo. Nunca deixei me abater. Naquele dia, em vez de meter a cabeça no
vão das pernas e me lamentar, peitei o coronel num diálogo claro e com a
convicção imensa de que era eu quem estava com a razão.

Janguista convicto
Se os generais estão comigo, não há razões
para que os sargentos também não estejam
João Goulart

E m meio à efer vescência política do governo Jango, nosso personagem


central se engaja na defesa das reformas de base de corpo e alma. Af inal,
o líder de seu Partidão, Luís Carlos Prestes, afirma publicamente:

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Já estamos no governo. Só nos falta o poder!


— Passei a apoiar o presidente porque as medidas propostas por ele eram
muito boas. Elas disciplinavam os preços dos aluguéis, brecavam o surgimento
de favelas e organizavam a posição dos prédios na cidade. Além disso, iam
combater a corrupção e melhorar a educação.
Na opinião de Pedro, a reforma mais importante é a agrária.
— O Brasil era cheio de latifúndios improdutivos enquanto a maioria dos
camponeses não tinha onde plantar e vivia na mais absoluta miséria. Eu acreditava
que, se dividindo a terra, seria possível aumentar a produção e ajudar o povo.
Apesar do trabalho político da esquerda, a resistência dos conservadores às
mudanças emperra a aprovação das reformas no Congresso. Pois entre nossos
parlamentares, uma boa parte está atrelada ao Ipes e as outras correntes
conservadoras.
— A gente, através do partido, tentava viabilizar as mudanças, fazer pressão
junto aos deputados, mas a ultradireita sabotava tudo espalhando que os
comunistas queriam tomar as pequenas propriedades e a casa do trabalhador.
Quando colocado em votação, o projeto de Jango é derrotado pela maioria
dos deputados, indicando que, a depender da vontade do Congresso, as reformas
de base não saem do papel.
— Ali, comecei a perceber que, pelas vias pacíficas a coisa não ia pra frente.
Tanto que até hoje, quando já se passaram mais de 40 anos, a educação continua
uma porcaria e a reforma agrária está aí ainda pra ser feita.

Militância incômoda
Sinto algo na vida, não apenas uma força poderosa, força interior
que sempre senti [...] um sentimento absolutamente fatalista de minha missão
que me despe de qualquer medo
Ernesto Guevara, Che Guevara, uma biografia

E ngajadíssimo na causa socialista, o incansável sargento Lobo segue


agitando a tropa em seu quartel, participando de comícios públicos, das
reuniões na casa do tenente Wânio e no Clube dos Sargentos. Tanta atividade
acaba chamando a atenção do alto-comando do 12º Batalhão, que o convoca para
uma conversa séria e ameaçadora.
— Fui chamado à sala do capitão Cid Palácio e ele quis saber se era verdade
que eu ia nas reuniões na Casa dos Sargentos e nos comícios dos ministros de
Jango quando eles vinham a São Paulo. Na hora, neguei as coisas mais
comprometedoras, porque senti que ali, com aquele oficial, a barra ia pesar.

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Diante das evasivas do subalterno, Cid Palácio levanta o tom de voz:


— Acontece que tenho informações seguras de que você participa disso tudo.
E, como é vedado aos nossos homens envolver-se em questões políticas, sua
situação na Força Pública está bastante complicada.
— Quando o capitão falou aquilo, percebi que o Serviço Secreto já tinha
andado no meu encalço, f ilmando, fotografando, gravando conversas e
detectando minha atuação no movimento dos sargentos. Eu era um elemento
superqueimado na polícia e não sabia. Mas, se soubesse, também não ia ligar
muito, porque minha intenção pessoal era a de partir pro pau, fazer a revolução
socialista de qualquer jeito. Então, me defendi:
— Seu capitão! Se eu estiver participando mesmo disso tudo, não estou
errado perante a lei. Se um ministro vem a São Paulo, o senhor não tem que bater
continência pra ele? Então, não deve haver mal nenhum em eu ir a um comício
desse mesmo ministro, já que ele faz parte de um governo eleito pelo povo.
— Seu raciocínio não me convence, sargento! E você tem 24 horas para
apresentar sua defesa por escrito.
— Está certo!
— Disse aquilo e saí da sala. Mas nem me preocupei em preparar nada.
Àquela altura do campeonato, já estava tão queimado que não ia adiantar tentar
me justificar.

A caminho do brejo
Contra a inflação, Brizola é a solução.
Pichação nos muros do Rio de Janeiro

O ano de 1963 está no fim e a crise econômica brasileira só faz aumentar.


com a dívida externa atingindo 3,2 bilhões de dólares — 4,6% do PIB —
e a inflação anual projetada é de 140%. A situação é tão grave, que o então
ministro da Fazenda, Carlos Alberto Carvalho Pinto, cogita decretar uma
moratória unilateral junto aos credores internacionais.
Diante da bancarrota do país, a Frente de Mobilização Popular lança um
manifesto propondo Leonel Brizola para o Ministério da Fazenda. O argumento
do ex-governador a seus correligionários é claríssimo:
Se queremos fazer uma revolução, precisamos da chave do cofre.
O documento da Frente é referendado por uma gama de autoridades e entidades
de classe. Estão de acordo com a entrega da chave do cofre da parca economia

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nacional a Leonel Brizola, deputados esquerdistas, líderes da CGT, intelectuais de


esquerda, a União Nacional dos Estudantes, a União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas, as Ligas Camponesas, a Confederação Nacional dos Servidores
Públicos, os militantes da Ação Popular, oficiais nacionalistas e boa parte dos
subalternos das três armas e das polícias estaduais, incluindo aí nosso sargento Lobo.
Mas a ideia de transformar o cunhado do presidente em ministro — e logo da
Economia — é aterrorizante para os conservadores. Tanto que o jornal O Globo
estampa em editorial:
QUEREM ENTREGAR A TAREFA DE APAGAR
O INCÊNDIO AO INCENDIÁRIO-MOR
Se Brizola ateia fogo nas disputas políticas pela esquerda, a direita cuida de
abastecer este incêndio de gasolina pura. Durante uma reunião da Sociedade
Interamericana de Imprensa em Nova York, Júlio de Mesquita Filho chega a pedir
uma ação mais firme do governo ianque no sentido da derrubada de João
Goulart. Para o diretor do Jornal da Tarde, o Brasil está à beira de se tornar um
país comunista.
Em meio à pressão, Jango decide afastar Carvalho Pinto do Ministério da
Fazenda, mas não indica Leonel Brizola à pasta, e sim o inexpressivo diretor do
Banco do Brasil, Nei Galvão. Ligado ao PSD, este não toma nenhuma medida de
impacto, o que deixa nossa decadente economia em banho-maria.
Não bastasse a confusão interna, o presidente azeda ainda mais as relações do
Brasil com os Estados Unidos ao regulamentar — em 20 de janeiro de 1964 —
a Lei de Remessas de Lucros. Contrariando os interesses do poderoso vizinho
do norte, a montanha de dinheiro enviada ao exterior todo ano pelas
multinacionais será, a partir de agora, rigorosamente controlada.

Leonel Brizola dá
entrevista no
Palácio Piratini

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O apito da panela de pressão


Quando havia uma tensão social, a preocupação de João Goulart era tirar
os camponeses da região e entregar-lhes terras ao longo das rodovias. Então, a
reforma agrária que ele propunha era uma reforma pífia, de beira de estrada.
Francisco Julião

A inda em 1964, Leonel Brizola se lança candidato a presidente nas eleições


marcadas para o ano seguinte, mesmo com a Constituição proibindo a
sucessão em família. Para tanto, os marqueteiros do ex-governador — que é
casado com Neusa Goulart, irmã do presidente — lançam o slogan:
Cunhado não é parente, Brizola pra presidente.
No mês de março, a batata política de Jango começa a assar mesmo numa
sexta-feira, 13. Reunidas em frente à Central do Brasil, no centro da antiga capital
federal, 250 mil pessoas vão ao delírio ao ouvir o presidente anunciar dois novos
decretos.
O primeiro encampa as refinarias particulares de petróleo. O segundo
desapropria todos os latifúndios com área superior a 500 hectares localizados às
margens de rodovias e ferrovias federais e os açudes e obras de irrigação financiadas
pelo governo, numa faixa de dez quilômetros e superiores a 30 hectares.
Empolgado, Leonel Brizola sobre ao palanque para reclamar por mais avanços.
Diz que é preciso reformar a Constituição e fechar o Congresso. Falando em nome
da Frente de Mobilização Popular, o cunhado de Jango radicaliza:
As reformas têm que sair, na lei ou na marra, com flores ou com sangue.
Enquanto o povão vai ao delírio, a extrema-direita vê nas palavras de Leonel
Brizola uma terrível ameaça.
Na cabeça da alta oficialidade, do clero conservador, dos empresários,
banqueiros, latifundiários e de parte da classe média, a proposta do ex-
governador gaúcho aponta para um golpe de Estado. Brizola estaria pedindo a
Jango que preparasse o terreno para a implantação no Brasil de uma República
Sindicalista aos moldes da República Justicialista Argentina criada por Juan
Domingos Perón.
Dois dias depois do comício na Central, João Goulart encaminha ao
Congresso um projeto que permite a eleição dos analfabetos e subalternos das
Forças Armadas. No quartel da 12º Batalhão, Pedro comemora.
— Aquela notícia deixou a gente muito contente, pois essa era uma luta que
se arrastava há bastante tempo. Se passasse, a lei ia permitir que os soldados,
cabos e sargentos também tivessem representantes na política.

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Ao dar início, mesmo que timidamente, às reformas de base, Jango acende o


estopim da crise política que jogará o país na mais longa e ferrenha ditadura de
sua história.

Um Lobo nas garras do Carneiro


Um cara grandalhão, de seus cinquenta anos, forte, conservado, formado
em explosivos, só que burro como uma porta.
Pedro Lobo, sobre o general Carneiro da Cunha

E m sua vida carcerária no Dops paulista, Pedro sabe que é fundamental


resistir à tortura física e psicológica imposta pelos policiais. Agindo
como se fosse um clone da princesa Xerazade — célebre personagem de As mil
e uma noites — ele vai inventando histórias que engambelem seus algozes e
permita a ele continuar vivo.
— Na sala de interrogatório, eu fazia questão de jogar com eles, de bailar,
como a gente dizia. Eu bailei com os delegados, com os investigadores, com o
general que presidia o inquérito. Do que declarei ali, sob pressão, muita coisa
não era verdade. Porque eu tinha em mente que um revolucionário não podia trair
os companheiros. Isso aí, pra mim, era sagrado. O Lamarca, principalmente, não
podia cair jamais.
O processo da invasão do 4º Regimento de Infantaria é montado no prédio do
Largo General Osório sob a responsabilidade do general Luiz Phelippe Galvão
Carneiro da Cunha. Assim, depois das seções de tortura física — do amaciamento
do preso no jargão da polícia — os detentos são levados à presença deste oficial
para um novo interrogatório.
— Aquele general era, cá pra nós, muito burraldo. Então, a gente driblava ele,
eu, a Dulce e todos os outros. Era ficar enrolando, dando aquele depoimento
longo, mas só falando abobrinhas. E ele mandava seu escrevente registrar tudo.
De tanto abusar da ingenuidade do militar, Pedro acaba ameaçado.
— Um dia, o homem desconfiou de uma história maluca que eu estava
contando e disse:
— Escuta Lobo, está vendo aquela grama lá embaixo?
— Que, pela janela do Dops a gente enxergava o gramado do canteiro central
da avenida em frente.
— Se você estiver mentindo, se eu estiver sendo enrolado, vou fazer você
pastar toda aquela grama quando descobrir a verdade.

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— Não general. Não estou enganando o senhor de jeito nenhum! Tudo o que
declaro aqui é a mais pura verdade, o senhor pode ficar tranquilo.
— Eu tinha que usar a inteligência contra o inimigo. E aquele oficial, pelo
menos ali, não era muito agressivo. Lógico que, quando tinha alguma coisa que
realmente não batia, o sujeito era mandado pro pau. Ia entrar no couro outra vez.
Mas ali, ele nunca gritou, nunca deu tapa em ninguém.
O escrevente, capitão Danillo Rubens Marini, até que percebe a sacanagem
do preso. Mas, diante da superioridade hierárquica de Luiz Phelippe, não ousa
fazer qualquer crítica à condução dos depoimentos.
— Esse capitão era muito mais esperto. Quando o general saía, ele dizia pra mim:
— Seu filho da puta! Pensa que não sei que você está mentindo, que está
enrolando o general. Se me deixasse te pegar por meia hora, eu ia fazer você
vomitar toda a verdade. Sua sorte é que aqui, sou apenas um escrevente.
Nelson Chaves, que chegou a acompanhar alguns destes depoimentos, conta
que Luiz Phelippe ficava furioso ao perceber-se enganado pelo Pedro:
— O general olhava pra ele e dizia:
— Você está me dizendo que participou deste roubo aqui, daquele assalto ali
e de mais um atentado acolá. Só que todas essas ações no mesmo dia e quase na
mesma hora.
— Mas participei de tudo isso, sim senhor.
— Só se você fosse Deus, Pedro Lobo! Só se fosse Deus pra conseguir fazer
tanta coisa ao mesmo tempo.
— Não sou Deus, general, mas estou chegando lá. Então, o senhor pode
registrar aí no inquérito que fui eu mesmo que fiz tudo isso.
— O Pedro assumia ações e mais ações na tentativa de livrar seus verdadeiros
autores da tortura. O problema é que, às vezes, ele chamava pra si uma coisa lá
que os policiais já tinham creditado a outra pessoa. Aí, a gente entrava no pau de
novo porque os dados não batiam e os interrogatórios tinham que ser refeitos.
As discussões com Carneiro da Cunha são tão intensas que chegam a atrair a
atenção do soldado que costuma acompanhar os interrogatórios.
— Um dia, quando o general saiu da sala com o escrevente, os dois foram
tomar um café, fiquei sozinho com esse recruta e ele me falou:
– Nossa! Como o senhor tem coragem de dizer tudo isso prum general? Eu
admiro muito isso!

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— Porque, pra ele, um soldadinho, aquele oficial representava a mais alta


autoridade. E eu era apenas um prisioneiro, um subversivo, como eles diziam, já
detonado fisicamente. Agradeci o elogio, mas com receio de prejudicar o garoto,
recomendei:
— Filho, não diga isso pra mais ninguém. Porque, se o general descobrir,
você vai ser preso e torturado como eu. Aqui neste prédio, já houve o caso de um
soldado sair direto do serviço pro pau-de-arara. Deram uma surra nele e depois
ninguém mais ouviu falar seu nome. Isso, porque o rapaz levou a filha de um
preso pra ver o pai lá na cela.
— Coincidência ou não, desse dia em diante, mais nenhum recruta foi
designado pra acompanhar meus interrogatórios. Acho que o general percebeu
que a nossa discussão estava influenciando seus soldadinhos.
Outra estratégia do ex-sargento para se colocar no mesmo nível que o inimigo
é a de tratar com reverência as autoridades que o interrogam.
— Não ia chamar ninguém de filho da puta, de fascista, de lacaio da ditadura,
nada disso. Chamava eles de senhor, de doutor delegado, de seu coronel, de seu
general. Prum preso político, manter a posição de dignidade era muito importante.

Marcha direitista
Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo que tem fé numa
justiça social mais humana e na dignidade de suas esperanças. Os rosários não
podem ser erguidos contra aqueles que reclamam a discriminação da propriedade da
terra, hoje ainda em mãos de tão poucos, de tão pequena minoria
João Goulart

E ssas frases, jogadas meio a esmo no discurso na Central do Brasil, tinham


ficado ecoando na memória de boa parte das carolas de classe média.
A citação do rosário fora apenas um contraponto do presidente à proposta da
Cruzada do Rosário, lançada nos Estados Unidos nos idos de 1945, e que
propunha converter o símbolo religioso em arma contra o avanço do comunismo
internacional. Mas, as madames católicas de São Paulo, que já veem nas
reformas de base uma ameaça às suas propriedades, se convencem também de
que o país é governado por um convicto ateísta.
Com apoio material e financeiro ianque — repassados por baixo dos panos
pelo padre capelão Patrick Peyton e pelo embaixador Lincoln Gordon — e de
políticos de direita, as senhoras paulistas começam a organizar um ato de
desagravo ao rosário, aos valores do catolicismo e, de quebra, ao regime
capitalista.

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livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:13 AM Page 88 (Black plate)

Em 19 de março, dia de São José, o padroeiro da família, mulheres da classe


média se juntam às da elite para um desfile no centro da Cidade de São Paulo. É
a Marcha da família com Deus pela liberdade.
Durante uma hora e meia, cerca de 500 mil pessoas farão o percurso de um
quilômetro entre a Praça da República e a Praça da Sé. Com terços nas mãos, as
madames louvam o ofendido rosário e aproveitam também para amaldiçoar o
presidente, seu cunhado, o comunismo e todos os itens das reformas de base. Nas
faixas e nas palavras de ordem das madames, estão:
VERDE E AMARELO. SEM FOICE E SEM MARTELO!
UM, DOIS, TRÊS, BRIZOLA NO XADREZ!
E SE TIVER LUGAR, PÕE TAMBÉM O JOÃO GOULART!
RENÚNCIA OU IMPEACHMENT!
Aproveitando a deixa, num palanque improvisado em frente à Catedral, a fina
flor do conservadorismo político destilará veneno puro contra o governo. Em seu
discurso, o deputado integralista Plínio Salgado instiga:
Bravos soldados, marinheiros e aviadores de nossa pátria, sereis capazes de
erguer vossas armas contra aqueles que querem se levantar, aqueles que se
levantam contra a desordem, a subversão, a anarquia, o comunismo? Contra
aqueles que querem destruir os lares e a soberania da pátria? Esta manifestação
não vos comove? Será possível que permitireis, ainda, que o Brasil continue
atado aos títeres de Moscou?
Considerada um sucesso pela mídia direitista, a passeata em São Paulo
desencadeia o agendamento de dezenas de outras pelo país. Está desfraldado,
pois, o componente popular que os golpistas tanto precisam.

A gota que falta


[...] Quem tenta subverter a ordem não são os marinheiros, os soldados, os fuzileiros,
os sargentos e os oficiais nacionalistas, como também não são os operários, os
camponeses, os estudantes. A verdade deve ser dita! Quem neste país tenta
subverter a ordem são os aliados das forças ocultas que levaram um presidente
ao suicídio, outro à renúncia, tentaram impedir a posse de Jango e agora impedem a
realização das reformas de base. [...]. Em nossos corações de jovens marujos palpita
o mesmo sangue que corre nas veias do bravo marinheiro João Cândido,
o grande Almirante Negro e seus companheiros de luta que extinguiram a chibata
da Marinha.[...]
Discurso lido por José Anselmo dos Santos
durante a rebelião dos marinheiros

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I nebriada pelas discussões envolvendo a aprovação e a aplicação das Reformas


de Base, as forças políticas que apoiam Jango parecem não levar muito a sério
as evidências do golpe que a direita já trama à luz do dia. Desprezando as
manifestações de descontentamento dos setores mais conservadores, os líderes de
esquerda seguem, inclusive, chamando o povo para a revolução socialista.
Instigada pelo Ipes e apoiada financeiramente pelo Ibad, quase toda a
imprensa — exceto o matutino Última Hora e as rádios Nacional e Mayrink
Veiga — já apregoam a deposição de João Goulart. Em editoriais, os jornais,
revistas, emissoras de rádio e televisão tratam de jogar a opinião pública contra
o governo.
Com o título de Fora! o editorial de primeira página do jornal carioca Correio
da Manhã, preparado nos últimos dias de março e publicado tardiamente em 1º
de abril, ilustra bem essa hostilidade:
[...] A nação não mais suporta a permanência do senhor João Goulart à
frente do governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais
tempo. Não resta outra saída ao senhor João Goulart senão a de entregar o
governo a seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao senhor João
Goulart: Saia! [...]
No meio do mês de março, a situação de Jango caminha, irremediavelmente,
para a chamada sinuca de bico, jogada do bilhar em que não há saídas. E a
conjuntura política continuará se deteriorando em ritmo vertiginoso até o dia 20,
quando a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil pede ao
presidente a exoneração de Sílvio Borges de Souza Mota.
O ministro da Marinha havia impedido o comandante dos fuzileiros navais, o
almirante comunista Cândido da Costa Aragão, de fazer um pronunciamento
público a favor das reformas de base e da humanização das Forças Armadas. Pela
afronta do pedido, 12 dos diretores da Associação são presos e os outros,
ameaçados de expulsão.
No dia 25, em comemoração ao segundo aniversário da entidade dos
marinheiros, 1.200 de seus membros se reúnem no Palácio do Metalúrgico, a
sede do Sindicato dos Metalúrgicos no bairro carioca de São Cristóvão.
Exigindo a soltura dos companheiros presos, o presidente da entidade — o
marinheiro de classe especial José Anselmo da Silv a, conhecido pelo apelido de
Cabo Anselmo — faz um veemente discurso defendendo Jango e atacando o
comando das Forças Armadas. Ao fim do encontro, os marinheiros se declaram
em assembleia permanente e decidem fincar pé em São Cristóvão até a soltura

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dos seus diretores. A marujada pede ainda o reconhecimento da sua associação,


humanização da Marinha com o direito a casamento dos praças e melhor
alimentação nos navios e quartéis.
O almirantado encara o motim como um ultraje. Pressionado por seus pares,
Cândido Aragão se recusa a enviar tropas para desalojar os rebelados e é preso.
O ministro Silvio Mota despacha então um grupo de cem fuzileiros a São
Cristóvão com a missão de dissolver a assembleia e prender todos os que
estiverem em vigília no prédio do Sindicato.
Numa atitude surpreendente, em vez de tentar desalojar os colegas, 26 dos
fuzileiros abandonam suas armas no meio da rua e se juntam a eles. Desfalcada,
o resto da tropa se dispersa.
No porto, outros 300 homens deixam os navios da Armada na intenção de
engrossar o movimento rebelde. Mas, na caminhada a São Cristóvão eles serão
contidos à bala por oficiais alojados no edifício do Ministério da Marinha. Neste
episódio, dois dos marujos saem feridos.
Diante da confusão, Jango demite Sílvio Mota e nomeia ministro da Marinha
Paulo Mário da Cunha Rodrigues. O almirante reformado anula a ordem de
prisão contra Cândido Aragão e negocia o fim do motim encabeçado por José
Anselmo.
A sede do Sindicato dos Metalúrgicos é então desocupada pacificamente e
todos os envolvidos na rebelião, anistiados. Para comemorar, a marujada desfila
pelas ruas carregando Aragão nos ombros.
Irritados com a solução conciliadora, os oficiais não permitem que os
homens metidos na revolta retornem a seus navios. Para marcar posição, o
almirantado — junto com o Clube Naval — se declara em assembleia
permanente e lança um comunicado:
O Clube Militar, diante dos acontecimentos lamentáveis registrados
anteontem no Sindicato dos Metalúrgicos, onde marinheiros e fuzileiros,
insidiosamente doutrinados pelos chefes sindicalistas a serviço de Moscou, se
homiziaram e deram mostras de indisciplina e revolta, declara-se solidário com
a Marinha de Guerra de Tamandaré, Barroso, Batista das Neves, Greenhalgh e
Marcílio Dias, na sua justa e intrépida reação e repressão aos amotinados.
A complacência do governo Goulart com o movimento dos marinheiros dará
o pretexto final aos militares golpistas. Existe, inclusive, uma suspeita de que
agentes provocadores do Serviço Secreto da Marinha — Cabo Anselmo seria um

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deles — tenham sido infiltrados no movimento com a missão de radicalizar a


insubordinação.
O golpe da direita está agora em estágio latente. Os militares aceleram a
preparação da derrubada de Jango antes que, na visão deles, a vaca Brasil vá, de
vez, para o brejo comunista, um amplo lodaçal político sem contornos muito
nítidos. Neste sentido, Luiz Alberto Muniz Bandeira, em sua dissertação, O
governo João Goulart — as lutas sociais no Brasil, descreve:
Eis a chave da questão. O que era, porém, o comunismo? [...] O comunismo
era a CGT, esse esforço de organização e unificação do movimento sindical, que
as classes empresariais, pretendendo comprimir os salários, queriam interceptar.
Era a sindicalização rural. Era a reforma agrária. Era a lei que limitava a remessa
de lucros. Era tudo o que contrariava os interesses dos EUA, dos latifundiários e
do empresariado. O comunismo era, enfim, a própria democracia que, com a
presença de João Goulart na Presidência da República, possibilitava a
emergência política do trabalhador.

Subestimando o inimigo
Assim que os conspiradores puserem suas cabeças
para fora, eles serão degolados
Luís Carlos Prestes

O mês de março de 1964 está no fim e a direita trata de ir apertando o


torniquete da desestabilização imposto ao governo. Enquanto isso, Pedro
e todas as esquerdas seguem acreditando que o presidente tem total domínio da
situação.
Na noite do dia 30, Luís Carlos Prestes vai à sede da União Nacional dos
Estudantes, no Rio de Janeiro, e garante aos universitários que tudo está sob o
mais absoluto controle. Convicto, o líder comunista diz que João Goulart conta
com um ef iciente dispositivo antigolpe formado por 20 generais e um grande
aparato civil:
Qualquer operação que pretenda derrubar Jango será desmontada assim que
surgir o primeiro sinal de tropas na rua.
No mesmo tom segue Cândido Aragão. O comandante dos fuzileiros navais
jura de pés juntos que, se Carlos Lacerda e seus comparsas da direita tentarem
depor o presidente, os homens sob seu comando sufocarão a rebelião
imediatamente:

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Com menos de meia hora eu tomo a cidade e arraso o Palácio Guanabara.


Quando chegar a hora de dar tiros, deixa comigo. Essa é minha profissão.
Enquanto os aliados do governo seguem desdenhando o poder de fogo da
oposição, os militares, a direita civil e os Estados Unidos finalizam os preparativos
para o golpe.
Nos quartéis, o general Humberto de Alencar Castello Branco se encarrega
de substituir todos os oficiais de linha comunista ou nacionalista dos cargos de
comando.
A trama contra João Goulart conta, inclusive, com a providencial mãozinha de
um bedelho contumaz: Lincoln Gordon. O embaixador norte-americano cuidara, ao
longo dos primeiros meses do ano, de infiltrar no país — disfarçados de integrantes
dos Corpos de Paz —, agentes secretos vindos de seu país. Os Estados Unidos
também enviam para cá um novo adido militar, o coronel Vernon Walters.
De Washington, o Pentágono monta ainda uma poderosa força tarefa, a
Brother Sam. Como quem não quer nada, a frota, capitaneada pelo porta-aviões
Forrestal, se desloca para o porto de Santos com porta-helicóptero, avião de
comando aéreo, seis destróieres, quatro petroleiros, sete aviões de carga C-125,
oito aviões de caça e oito aviões-tanque.
O objetivo de tanta infiltração e tamanho aparato náutico é dar apoio logístico
e militar aos golpistas no caso de uma resistência armada das esquerdas
mergulhar o Brasil na guerra civil.

Tudo pronto
Ninguém mais pode se iludir com um golpe contra o governo. Continuarei
a cumprir o mandato outorgado pelo povo, lutando com o apoio das Forças Armadas,
pela emancipação econômica do Brasil. Que todos os brasileiros ajudem a fixar, no
solo do país, a bandeira do Brasil de amanhã, o Brasil das reformas
Discurso de João Goulart no Automóvel
Clube do Rio de Janeiro

A despeito da rígida organização militar, a derrubada de Jango terá seu


lado tacanho quando Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região
Militar, se reune com seu colega, Carlos Luís Guedes. Os dois generais discutem
uma data para o levante em Minas quando, supersticioso, Guedes sugere o dia 30
de março como limite:
Mourão! Amanhã é o último dia da lua cheia. E eu, no minguante, não faço nada!

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Diante de tão embasado pedido, a data fica fechada meio que por aí. Mas
problemas de última hora impedirão as tropas mineiras de ir às ruas antes da
mudança de lua.
Mesmo com sua derrubada sendo discutida em rádios, páginas de jornais, rodas
de comadre e botequins de esquina, e com os militares já combinando a data ideal,
Jango segue confiante. Tanto que, na noite do dia 30, o presidente vai ao Automóvel
Clube do Rio de Janeiro participar do 40º aniversário da Associação dos Sargentos
e Subof iciais da Polícia Militar. Diante de seus ministros militares e mais dois mil
subalternos das Forças Armadas, ele garante que a ideia de um golpe de Estado no
Brasil é mera ilusão.
No dia seguinte, os quartéis mineiros entram em prontidão máxima enquanto
o banqueiro e governador do Estado, Magalhães Pinto ordena a prisão de todos
os líderes sindicais que apoiam Jango. Ele ainda recomenda às unidades do
Exército que passem a estocar gasolina para garantir o transporte das tropas no
caso do levante desaguar mesmo na guerra civil.

Golpe fatídico
Sargentos! Infelizmente, o senhor presidente da República, o comandante-chefe
das Forças Armadas, transformou-se no principal agente do comunismo
internacional em nosso país. Resolvi opor-me a esse ato de traição aos destinos
do Brasil e ordenei que as tropas de nossa Divisão de Infantaria marchem sobre
o Rio de Janeiro para depor um presidente que se esqueceu dos seus deveres
para com o povo. [...]
Olympio Mourão Filho, 31/03/64

M adrugada do dia 31 de março. Em Juiz de Fora, o general Olympio


Mourão Filho decide pôr em marcha as tropas da 4ª Região Militar e da
4ª Divisão de Infantaria. O destino da coluna é a Guanabara — que nessa época
ainda mantém parte da estrutura da administração federal — e a missão é a
derrubada imediata do presidente da República.
Minas Gerais está oficialmente rebelada. E em todo seu território passa a
vigorar o Código Penal Militar que prevê fuzilamento para crimes cometidos em
estado de guerra. Nas páginas de seu diário, Mourão Filho descreve, de forma
bastante peculiar, os detalhes da hora H desse dia D:
Eram cerca de seis e quarenta. Levei bem uns cinquenta ou cinquenta e cinco
minutos dando ordens. Que sentia? Nada vezes nada. Não direi isto a ninguém
porque ninguém vai acreditar. Nada vezes nada. Tive a sensação estranha de estar

• 93
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vendo outra pessoa fazendo tudo aquilo. Sensação de ácido lisérgico. Eu estava de
pijama e roupão de seda vermelho. Posso dizer, com o orgulho da originalidade:
Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou
uma revolução de pijamas.
A atitude precipitada de um general de apenas três estrelas nos ombros do
jaquetão pega de surpresa a cúpula das Forças Armadas e vários dos governadores
oposicionistas. Todos esperavam o desfecho do golpe para o início de abril, desde
que não fosse o primeiro dia, considerado, internacionalmente, como o da mentira.
Mesmo assim, a sublevação de Minas é absorvida pelas demais divisões
militares e as adesões se sucederão rapidamente, sem que os grupos leais ao
governo esbocem qualquer reação. As forças legalistas até detectam a marcha
dos tanques em Minas. Entretanto, João Goulart mais uma vez diz que não quer
derramamento de sangue e descarta qualquer reação. Por telefone, o presidente
impede o coronel Rui Moreira Lima de decolar da Base Aérea de Santa Cruz, no
Recife, com o esquadrão de caças que bombardearia a divisão insurgente. Anos
depois, o general Argemiro de Assis Brasil, chefe da Casa Militar de Jango, diria:
É claro que havia condições para resistir. Mas o presidente terminou com o
comando porque não era de seu feitio reagir. Camões disse: o fraco rei faz fraca
a forte gente.
Darcy Ribeiro, sociólogo e chefe da Casa Civil na época, diz em Aos trancos
e barrancos — Como o Brasil deu no que deu:
A insurreição da tropa de Juiz de Fora era fácil de ser debelada.
Compunha-se de recrutas e era comandada por um palhaço.
Assim, sem enfrentar um único combate, no dia 1º de abril os insurretos já se
aproximam das encostas da Serra de Petrópolis. E, o que deveria ser uma renhida
guerra civil se tornam um tranquilo passeio de tanques rumo ao litoral.
Na Guanabara, João Goulart deixa o Palácio do Catete e voa a Brasília
apanhar Maria Teresa, a bela primeira dama, de 23 anos. Em poucas horas, ele
decola de novo, agora rumo ao Rio Grande do Sul.
Mesmo com o presidente ainda em solo brasileiro, às onze da noite uma
sessão extraordinária do Congresso é aberta para que o senador Auro de Moura
Andrade declare vago o cargo de chefe da nação. No início da madrugada do dia
2, o presidente da Câmara, Pascoal Ranieri Mazzilli, está novamente empossado
como presidente interino do Brasil.
Pela manhã os militares já terão montado o Comando Supremo de sua
revolução. O movimento golpista estará sob a chefia de um triunvirato composto

94 •
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pelos chefes das três Armas, general Arthur da Costa e Silv a, brigadeiro
Francisco de Assis Correia de Mello e o almirante Augusto Hamann Rademaker
Grunewald.

Nas próximas páginas você encontra


os títulos dos capítulos que não foram
incluídos nesta degustação.

• 95
livroPedLob-2saidaB 11/27/09 10:17 AM Page 623 (Black plate)

Sumário
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Primeiras baixas 95
Esperando uns e outros 96
Consolidando o regime 97
Começa a crueldade 98
Pega pra capar 99
Prisões em série 100
Não é para durar 101
Comandar o próprio fuzilamento 102
Suicídio como saída 104
Governo Castello 105
Epidemia suicida 107
Exoneração sumária 108
Relações públicas 109
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Mais suicídios 110


Amigo Prestes 111
Ligações por um fio 114
Emburrecendo o país 116
Resistência no Uruguai 117
Guerrilha de Três Passos 119
Perseguição cultural 120
Arena e MDB 122
Democracia sem povo 123
Frente ampla 124
Assassinato no Sul 125
Cerco ao Congresso 126
Guerrilha de qualquer jeito 127
Cheiro de pólvora 129
Embrião no Araguaia 130
Fiasco em Caparaó 132
Encomenda mais que arriscada 134
Troca de guarda 137
Dupla militância 139
A Organização 140
A magia da revolução 143
De Zhukov a Wladimir 144
Che fuzilado 145
Batismo de fogo 147
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148

Sumário
Vanguarda popular e revolucionária
Ou ficar a pátria livre... 149
Pedro e o Capitão 150
Comando Marighella 153
1968, um ano para lá de explosivo 154
Primeiro roubo 155
Ação Libertadora Nacional 157
Intensificar a luta 158
Mártir no Calabouço 159
Enterro 160
Pau na estudantada 161
Missa sob tensão 162
Greve em contagem 164
Bomba no Estadão 165
Vai fechar 165
Palanque tomado 166
Siglas em profusão 167
Proibido proibir 168
Noite das Barricadas 170
Revolucionário, ma non tropo 172
Numerário para a luta 173
Concorrência explosiva 174
Explodir a Guanabara 175
No Brasil, o buraco é mais embaixo 177
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Cerco à estudantada 178


Sexta sangrenta 180
Invadindo a casa do inimigo 181
UNB invadida 184
Explode o Quartel General 184
Passeata dos cem mil 187
Mais dinamite 189
Engano mortal 190
Últimas greves 191
Fogo amigo 192
Resgate no Crusp 194
Caça aos comunistas 195
Ataque ao Mercantil 197
Primeiro exército 198
Furo n’água 199
UNB invadida de novo 201
Quem sabe faz a hora 202
Guerra na Maria Antônia 204
Invasão frustrada 206
Tocaia no Sumaré 207
Vinte tiros 209
UNE em Ibiúna 211
A queda 213
Audácia e sofisticação 214
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214

Sumário
A vez do Banespa
Carga máxima 216
Bombas e mortes 217
Reação fatal 218
Pagando o pato 219
Caçada a Marighella 220
Salvo pela incompetência 222
Armas para a guerrilha 223
Surge um pretexto 224
Expurgo na organização 225
Ato Institucional nº 5 226
Repressão brutal 228
Degola política 229
Império da tesoura 230
Debandada geral 233
Invasão do Crusp 233
Guerrilha como saída 235
Trocando de papel 237
Exército de super-homens 238
Vida dura 240
Erros e mais erros 241
Maçãs e pepinos dourados 243
Companheiro morto 245
Fazenda Ariranha 246
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Degringola no Colina 247


Lamarca versus Marighella 248
Cai Onofre Pinto 249
Dourando pílulas 250
A luta continua 251
Ataque à Mercedes 252
Lamarca em ação 253
Perseguições e mortes 255
Lambança na Penha 255
Fuga espetacular 256
Processo montado 258
Semana Rockefeller 259
Operação Bandeirantes 260
Var-Palmares 263
Mil vezes revolucionário 264
Carrasco-mor 266
Arsenal para a luta 267
Ataque ao Aliança 268
Dinamite incômoda 269
Desarticulado o MR-8 270
Esquadrão da morte 271
A grande ação 272
Carandiru 275
Tropeço de início 277
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278

Sumário
Ida para o campo
Propaganda revolucionária 280
Mais dólares 280
Costa e Silva sai de cena 282
Encontro inusitado 283
Pegaram um embaixador 283
Fim do MAR 286
Renasce a VPR 287
Liberdade para quinze 288
Operação delicada 290
Presídio Tiradentes 291
Pena de morte 292
Abalo no novo MR-8 293
Rotina carcerária 294
Movimento Revolucionário Tiradentes 296
Armadilha para a ALN 296
Segunda emboscada 298
Cumplicidade 299
Fleury massacrando Fleury 301
Mar de regras 302
Desvio de rota 303
Morte na Vila Cosmos 304
Ligações complicadas 305
Aparelhão 306
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Medici assume 307


Aristocracia carcerária 308
Fechando o cerco 310
O fim de Marighella 312
Estrago imenso 314
Materialistas e missionários 315
Martírio de Chael Charles 316
PCBR em ação 318
Doi-Codi 320
Degola no PCBR 327
Resistir ou capitular 323
Treinamento no Ribeira 324
Curso intensivo 325
Doutor assassinado 326
Sucursal do inferno 327
Cai Mário Japa 329
Torre das donzelas 330
Um cônsul no cativeiro 332
Nova chance 333
Trapalhadas no Sul 335
Confiança no futuro 336
Ato de desespero 337
José Idésio e Wânio 339
Abandono da base 340
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341

Sumário
Duas quedas
Comida reciclada 342
Assassinatos mal disfarçados 343
Olavo Hansen 345
Segue a luta nas cidades 346
Tiroteio em Eldorado 347
Fogo cruzado 348
Futebol de cela 350
Tenente condenado 351
Tradição, família e propriedade 352
Arrependidos 353
Fuga espetacular 355
Mais arrependimento 357
Esquadrão na madrugada 358
Outro cônsul na mira 358
Capitão na geladeira 360
Salve a seleção 361
Celso Lungaretti 362
Outra chance 363
Escolha difícil 366
Angústia no Tiradentes 367
Ame-o ou deixe-o 368
Liberdade, abre os braços sobre mim 370
Encontro negado 371
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Sublevar o avião 373


Da água para o vinho 374
Pombo correio 376
O caneco é nosso 377
Sequestro aéreo 379
Acidente de trabalho 380
Desaparece a Força Pública 381
Rumo a Cuba 382
Conhecendo o socialismo 383
Amigo numa gelada 384
Ódio imensurável 385
Pós em guerrilha 386
Pena capital 387
Morre seu José 388
Sucumbe Câmara Ferreira 389
Fuga impossível 390
Quinzena Marighella 391
Virando bicho 392
Voto nulo 393
Irreverência na Ilha 394
Anselmo no Brasil 397
Suíço no cativeiro 398
Fim de Bacuri 399
Guerrilha à brasileira 400
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402

Sumário
Negociação difícil
Impasse total 403
Herói das montanhas 404
Liberdade para setenta 405
Simpatia pela causa 407
Entre os melhores 408
Rebordosa 409
Rubens Paiva 410
Violência de Estado 411
Coqueiro fuzilado 412
Agente Kimble 413
Assaltos e baixas 416
Estudantes assassinados 417
Volta a Havana 419
Loucura e traições 421
Prisão domiciliar 422
Execução pela esquerda 423
VPR perde seu Capitão 425
Chabu na ponte 426
Dente por dente 427
Segue a luta 429
Stuart Angel Jones 430
Desafio na Sé 431
Iara assassinada 432
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Caçada no sertão 434


Ícone abatido à bala 435
Lágrimas em Cuba 437
Arma mais que especial 437
Emboscada 441
Anselmo no Nordeste 441
Perseguição e morte 442
Far niente 444
Gato na pele de rato 445
Fabricando acidentes 446
Sina trágica do Molipo 447
Horta e conselhos médicos 449
Assaltos, equívoco e mortes 450
Corpo no açude 451
Chacina e assassinato 452
Sacanagens na Ilha 453
Trapalhada em São Paulo 454
Baixa e sequestro 455
Começa a luta no Araguaia 456
Reunião fatal 458
Escapando da morte 459
Peripécias de uma viagem 461
Segunda campanha 464
Mala mais que complicada 465
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467

Sumário
Rumo à Santiago
O país de Allende 469
Sacode a capital 471
Censura prévia 472
Lembrando 64 474
Mortes muito estranhas 475
Milagre econômico 476
Viagem adiada 477
Reencontram-se os Lobo de Oliveira 478
Coroa de cristo 479
Balaio de gatos revolucionários 480
Teatro policial 481
PC do B perseguido no sudeste 483
Chacina na São Bento 484
Salvo pelo destino 486
Convite à delinquência 487
Suicídio e sequestro 490
Fuzilaram o delegado 491
Vingança na Mooca 492
Blitz em Santiago 493
Deduragem e morte 496
Traição 499
Canto de sereia 500
Agoniza a ALN 501
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Justiçamento e falso suicídio 502


Driblando a morte de novo 503
Desaba a experiência chilena 505
Violência anunciada 507
Desespero de Ida 508
Sem saídas 510
Trairagem na APML 512
PCBR na mira 513
Fleury atrás das grades 514
Novo ataque no Araguaia 515
Estupro e assassinatos 517
Morte aos brasileiros 518
Operação Mercúrio 520
Massacre na selva 527
Lobo sem rumo 522
Catapulta para muito longe 523
Definha a luta na selva 525
Preparar a partida 526
Longo exílio 528
Recomeço no desconhecido 531
Governo Geisel 532
Caçada implacável 534
Alcoólatra por engano 535
Endereço alemão 536
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538

Sumário
Triturando cacos
Derrota final 539
Desaparece Onofre Pinto 541
Tristeza na Alemanha 545
Onofre vivo 545
Volta à oficina 546
Cortina de veludo 548
Socialismo sem socialistas 549
Sobrou para o Partidão 551
Desesperança 554
Comunistas na berlinda 556
Ser ou não ser chileno? 557
Massacre contínuo 560
Regime quase perfeito 561
Herzog e Mário Fiel 563
Vodka para os russos 564
Chacina na Lapa 566
Desafio aos militares 567
Embate na caserna 568
Fim do AI-5 569
Último general no poder 570
O ABC das greves 571
Lenta, gradual e restrita 572
Perdoando a si mesmo 573
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Anistiado pela brecha 574


Voltam os partidos 576
República dos peões 577
Querem fechar 578
Estou voltando 579
Brasil dos anos oitenta 581
Liberdade vigiada 583
Milico pródigo à caserna torna 584
De cara com o inimigo 585
Riocentro 587
Vida nova no Ribeira 588
Basta na arapongagem 591
Diretas só depois 593
Em busca do ouro 594
Fim da ditadura 596
De Ribeira ao Paraíba 597
Cutucando o velho Lobo 598
Falso Lamarca 600
Remexendo velhas feridas 602
Passado como estorvo 603
Caso a resolver 604
No olho do furacão 606
De volta ao passado 608
Companheira Ida 610
Luta infinita 613
Balanço final 614
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