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NORBERTO BOBBIO

MICHELANGELO BOVERO

Sociedade e
Estado na
Filosofia
Política
Moderna
MM i
_ J . . _ “ “

editora brasiliense
Norberto Bobbio, um dos mais
respeitados cientistas políticos d a
a tu a lid a d e , e M ichelangelo Bovero,
interlocutor que o a com panhou em seus
principais estudos, apresentam , d e uma
form a clara e sintética, os resultados d e
um longo e primoroso estudo sobre os
principais pensadores políticos d a
m odernidade.
O roteiro desses estudos, reconstituído
através d e cursos e publicações dos
autores nas últimas duas décadas,
percorre o pensam ento d e Hobbes,
Espinosa, Locke, Rousseau, Kant, Hegel e
Marx. Sem exagero algum , Sociedade e
Estado na Filosofia Política Moderna se
estabelece com o uma referência
indispensável p a ra todos os que pensam
a política.

Áreas de interesse: Filosofia, Política

Socied ad e e est ado na filosofia polít ica


m oderna

ISBN 85-11-12036-X

P
</)

120363
SOCIEDADE E ESTADO
NA FILOSOFIA POLÍTICA
MODERNA
NORBEKIO BOBBIO
MICHELANGELO BOVERO

SOCIEDADE E ESTADO
NA FILOSOFIA POLÍTICA
MODERNA
tradução:
Carlos Nelson Coutinho

editora brasiliense
C o p y rig h t © b y il Saggiatore, M ilão, 1979
T ítu lo original: Società e S ta to nella Filosofia
Política M o d ern a
C o p y rig h t da tradução: E ditora B rasiliense S A
N e n h u m a parte desta publicação pode ser gravada,
arm azenada em sistem a s eletrônicos, fotocopiada,
reproduzida p o r m eios m ecânicos ou o u tro s quaisquer
sem autorização prévia da editora.

IS B N : 8 5 -1 1 -1 2 0 3 6 -X
P rim eira edição, 1986
4? edição, 1994
I ? reimpressão, 1996

Indicação editorial: F ernando L im o n g i


R evisão: O lga Lom bard e M a ria S. C. Corrêa
Capa: João B a p tista da C osta A g u ia r

E D IT O R A B R A SIL IE N SE S. A .
R . Barão de Itapetininga, 93 - 11? a.
01042-908 — São P aulo — S P
F one (OU) 258-7344 — F ax 258-7923
F ilia d a à A B D R
índice

Prem issa — Norberto B o b b io ............................................ 7

PR IM E IR A PA RTE

O modelo jusnaturalisgà
Norberto Bobbio

O caráte r do ju s n a tu ra lis m o .............................................. 13


R azão e h i s t ó r i a .............................. . V.............................. 24
O m odelo h o b b e s ia n o ........................................................ 34
O m odelo aristotélico ........................................................ 40
O estado de n a tu r e z a .......................................................... 49
O contrato s o c i a l ................................................................ 61
A sociedade civil ................................................................ 75
O E stad o segundo a r a z ã o .................................................. 85
O fim do ju s n a tu ra lis m o .................................................... 96

SEGU ND A PA RTE
O modelo hegelo-marxiano
Michelangelo Bovero

Dois m odelos d ico tô m ico s.................................................. 103


O “ m odelo hegelo-m arxiano” .......................................... 107
Hegel, M arx e o ponto de p a rtid a no a b s tr a to .................. 117
Q ual M arx e q ual Hegel? .................................................. 125
D uas antíteses f u n d a m e n ta is ............................................ 132
P a ra a distinção en tre sociedade e E s ta d o ........................ 139
U m a com paração en tre os m o d e lo s .................................. 151
D a gênese à e stru tu ra d a sociedade m o d e r n a .................. 160

B ibliografia ........................................................................ 165


Premissa

T )este s dois ensaios, o segundo, de M ichelangelo Bo-


vero, “O modelo hegelo-m arxiano”, pode ser considerado sob
vários aspectos como a continuação do prim eiro, escrito p o r
m im , “O modelo jusnaturalista”. A s razões pelas quais acre­
ditamos oportuno publicá-los em conjunto são sobretudo
duas.
A prim eira diz respeito ao m étodo com o qual a filosofia
política dos jusnaturalistas e a filosofia política de M arx com
relação à de Hegel foram examinadas e reconstruídas. Trata-
se do m étodo de análise conceituai, para cuja definição não
encontro nada melhor que repetir o que escrevi há dez anos no
prefácio ao volume D a H obbes a M arx, que compreende en­
saios tanto sobre alguns jusnaturalistas, com o Hobbes, Pufen-
dorf, Locke e K ant, quanto sobre Hegel e M arx: "No estudo
dos autores do passado, jam ais fu i particularm ente atraído
pela miragem do chamado enquadram ento histórico, que ele­
va as fo n te s a precedentes, as ocasiões a condições, detém -se
po r vezes nos detalhes até perder de vista o todo: dediquei-me,
ao contrário, com particular interesse, ao delineamento de te­
mas fundám entais, ao esclarecimento dos conceitos, à análise
dos argumentos, à reconstrução do sistem a ”. 1

(1 ) D a H obbes a M arx. Saggi di storia delia filosofia, Nápoles, M o r a n o ^ J ^ ím


p . 7.
8 N O R B ER TO BOBBIO

Não é descabido acrescentar que, se esse m odo de apro­


ximação aos autores clássicos se diferencia do m étodo histó­
rico outrora dom inante na tradição cultural italiana, dis­
tingue-se ao m esm o tempo, e com m aior razão, daquela espé­
cie do gênero ‘“historicism o” que ê a interpretação ideológica,
hoje em voga. Depois de julgar autores complexos e diversos
em sua com plexidade temática e conceituai sobretudo se­
gundo a perspectiva das aspirações e interesses de classe que
uma determ inada teoria reflete e ao m esm o tem po defende,
essa interpretação não parece ter levado a resultados m uito
significativos além do que consiste em definir os autores até
agora estudados, de Hobbes a M ax W eber e a Kelsen, p a s ­
sando p o r Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Bentham , Mill,
Spencer, etc., como ideólogos da burguesia, como autores
que, apesar das teses contrapostas que freqüentem ente uns
sustentam contra os outros, são sem pre declarados — com
uma horrível expressão — como “fu n cio n a is” a um único inte­
resse de classe.
Precisamente enquanto espécie do gênero, não é de sur­
preender que esse m odo de tratar a filosofia política tenha tido
tanto sucesso em nosso país, onde o historicismo teve sua p á ­
tria de adoção e, segundo alguns, de origem. Falo de “espécie
do gênero”porque a interpretação ideológica parte do m esm o
pressuposto da análise histórica, ou seja, da idéia de que
— para com preender um a teoria política, social, econômica
— épreciso antes de mais nada situá-la em seu tem po e rela­
cioná-la com as condições objetivas de onde surgiu. A d ife­
rença está no fa to de que a análise histórica levava principal­
m ente em conta os eventos políticos, a form ação do Estado
moderno, a grandeza e a decadência da monarquia absoluta,
as duas grandes revoluções, o nascimento dos Estados consti­
tucionais e representativos, o advento da democracia, etc.,
enquanto a interpretação ideológica tom a em consideração
sobretudo as relações econômicas, a fo rm a de produção, a
estrutura de classe de um a determinada sociedade. Essa d ife­
rença pode tam bém explicar po r que a prim eira deu resulta­
dos mais variados que a segunda, ou p o r que a segunda deu
resultados tão monótonos. Com efeito, segundo a filosofia da
história em (Jue se inspiram os fautores da interpretação ideo­
lógica, que dela extraem freqüentem ente conclusões m uito rí-
PR EM IS SA 9

gidas, a base econômica de um a sociedade é mais constante


que suas form as políticas.
Decerto, a reconstrução conceituai não exclui nem a aná­
lise histórica nem a interpretação ideológica: no universo do
saber, há lugar para as mais diversas perspectivas, as quais,
aliás, deveriam completar-se reciprocamente tendo em vista
um conhecimento mais completo ou menos parcial do objeto.
Por um lado, ela não exclui as duas diversas perspectivas e,
por outro, pode servir — pelo menos é essa m inha opinião —
para tornar mais problem ática a prim eira e m enos genérica a
segunda.
A segunda razão da publicação sim ultânea dos dois en­
saios não é de método, mas de substância. Tam bém dessa
razão pode-se encontrar um a antecipação no prefácio já ci­
tado, quando afirm o que jusnaturalism o e historicismo dialé­
tico (entendia com essa expressão as filosofias de Hegel e de
M arx) podem ser interpretados, não só como filosofias p o lí­
ticas, mas tam bém como filosofias da história, que têm em
com um a contraposição entre uma fase pré-estatal e a fase do
Estado, e que concebem esses dois estágios ou m om entos
como categorias fundam entais para com preender a história da
civilização. “E nquanto filosofias da história — escrevia — ,
ainda que um a inconsciente e outra inteiram ente explicitada,
não são tão distantes uma da outra quanto a insistência uni­
lateral no aspecto ideológico e no resultado político sem pre
induziu a su p o r”. 2
De resto, som ente alguns anos mais tarde busquei fixa r
os elementos essenciais do sistema conceituai no qual os jus-
naturalistas tinham colocado a matéria de suas reflexões sobre
a origem e a justificação do Estado, contrapondo-os aos ele­
m entos do sistem a conceituai clássico, que — partindo de
Aristóteles — chegara até o limiar da era moderna. Chamei o
prim eiro de “modelo jusnaturalista”; o segundo, de “modelo
aristotélico”. 3E m 1973, m eu prim eiro ano de docência de Fi-

(2 ) Ib id ., p . 7.
( 3 ) “II modello giusnaturalistico", in Rivista Internazionale di Filosofia dei
D iritto, 1973, p p . 603-22; e tam bém in La form azione storica dei d iritto m oderno in
E u ro p a (A tas do terceiro congresso internacional da Sociedade Italiana de História
do Direito), Florença, Olschki, 1977, p p . 73-93.
10 N O R B ER T O BOBBIO

losofia da Política na Faculdade de Ciências Políticas de T u ­


rim, dediquei o curso ao tem a do grande dualism o entre socie­
dade civil e Estado, e, juntam ente com Bovero, publiquei um
volume de apostilas intitulado Società e Stato de H obbès a
M arx, no qual incluí, à guisa de introdução, as páginas do
artigo sobre o modelo jusnaturalista, publicado no m esm o
ano. Dos autores apresentados nesse curso, escrevi os capí­
tulos sobre Hobbes, Locke e M arx; Bovero, os sobre Rousseau
e Hegel. Esse curso e a contínua discussão que a ele se seguiu
entre nós sobre o tem a constituem o precedente mais direto
dos dois ensaios publicados no presente volume.
M eu ensaio reproduz, com exceção do prim eiro p a rá ­
grafo mas com o acréscimo das notas de rodapé, o capítulo
sobre jusnaturalism o redigido para a Storia delle idee politi-
che econom iche e sociali, dirigida p o r L uigi Firpo para a E d i­
tora Utet, à qual agradeço a gentil concessão de republicá-lo
aqui. O ensaio de Bovero, que começa onde o m eu term ina e
constitui quase um seu contraponto, é com pletam ente novo.

N orberto Bobbio
P R IM E I R A P A R T E

O modelo jusnaturalista
N o rb e rto B o b b io
O caráter do jusnaturalismo

Ü m b o r a a idéia do direito n a tu ra l rem onte à época clás­


sica, e não te n h a cessado de viver d u ran te a Id ad e M édia, a
verdade é que q u an d o se fala de “ d o u trin a” ou de “ escola” do
direito n a tu ra l, sem o u tra qualificação, ou, m ais brevem ente,
com um term o m ais recente e não ain d a acolhido em todas as
línguas européias, de “ju sn atu ralism o ” , a intenção é referir-se
à revivescência, ao desenvolvim ento e à difusão que a an tig a e
recorrente idéia do direito n atu ral teve d u ra n te a idade m o­
derna, no período que intercorre entre o início do século XV II
e o fim do X V III. Segundo um a trad ição já consolidada n a
segunda m etade do século X V II — m as que h á algum tem po,
com fu ndam ento, tem sido p osta em discussão — , a escola do
direito n a tu ra l teria tido u m a precisa d a ta de início com a
o b ra de H ugo G rócio (1588-1625), De iure belli ac pacis, p u ­
b licada em 1625, doze anos antes do Discours de la m éthode
de D escartes. M as não tem u m a d a ta de encerram ento igual­
m ente clara, ain d a que não h a ja dúvidas sobre os eventos que
assinalaram o seu fim : a criação das grandes codificações, es­
pecialm ente a napoleônica, que puseram as bases p a ra o re ­
nascim ento de u m a a titu d e de m aior reverência em face das
leis estabelecidas e, p o r conseguinte, daquele m odo de conce­
b e r o trab alh o do ju rista e a função d a ciência ju ríd ica que
tom a o nom e de positivism o jurídico. P o r outro lado, é bem
conhecida tam b ém a corrente de pensam ento que decretou
sua m orte: o historicism o, especialm ente o historicism o ju rí­
14 N O R B ER T O BO BBIO

dico, que se m anifesta m uito em p a rtic u la r n a A lem anha


(onde, de resto, a escola do direito n a tu ra l en co n trara su a p á ­
tria de adoção), com a Escola histórica do direito. A dem ais, se
quiséssem os indicar precisam ente u m a d a ta em blem ática
desse ponto de chegada, poderíam os escolher o ano d a p u b li­
cação do ensaio juvenil de Hegel, Ueber die wissenschaftli­
chen Behandlungsarten des Naturrechts (S obre os diversos
m odos de tra ta r cientificam ente o direito n a tu ra l), publicado
em 1802. N essa o bra, o filósofo — cujo p ensam ento rep re­
senta a dissolução definitiva do ju sn atu ralism o , e não só do
m oderno, com o verem os no final — subm ete a u m a crítica ra ­
dical as filosofias do direito que o precederam , de G rócio a
K an t e Fichte.
Sob a velha e tiq u eta de “ escola do direito n a tu ra l” , es­
condem -se autores e correntes m uito diversos: grandes filóso­
fos com o H obbes, Leibniz, Locke, K ant, que se ocuparam
tam bém , m as n ão precipuam ente, de problem as jurídicos e
políticos, pertencentes a orientações diversas e p o r vezes opos­
tas de pensam ento, com o Locke e Leibniz, com o H obbes e
K ant; juristas-filósofos, com o P ufendorf, T hom asius e W olff,
tam bém divididos q u an to a pontos essenciais d a d o u trin a
(W olff, p a ra darm os apenas um exem plo, é considerado com o
o antiPufendorf); professores universitários, autores de tr a ­
tados escolásticos que, depois de seus discípulos, talvez n in ­
guém m ais ten h a lido; e finalm ente, um dos m aiores escri­
tores políticos de todos os tem pos, o a u to r de O Contrato
Social.
P or outro lado, en q u an to p a ra os juristas-filósofos a m a ­
téria do direito n a tu ra l com preende ta n to o direito privado
quanto o direito público (e m uito m ais o prim eiro que o se­
gundo), p a ra os outros, em especial p a ra os três grandes, p o r
cuja o b ra se m ede hoje a im portância do ju sn atu ralism o , e em
função dos quais talvez valha ain d a a p en a falar de u m “ di­
reito n a tu ra l m oderno” contraposto ao m edieval e ao antigo
— estou m e referindo a H obbes, Locke e R ousseau — , o tem a
de suas obras é quase exclusivam ente o direito público, o p ro ­
blem a do fund am en to e d a n atu reza do E stad o . E m b o ra a
divisão en tre u m a e o u tra historiografia p a rtic u la r seja u m a
convenção, qúe pode tam bém ser deixada de lado e que, de
q u alq u er m odo, é preciso evitar considerar com o u m a m ura-
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ERN A 15

lh a intransponível, não h á dúvida de que uns pertencem p rin ­


cipalm ente à h istó ria das doutrinas ju ríd icas, en q u an to os o u ­
tros pertencem àq u ela das doutrinas políticas.
C ontudo, a p esar d a disparidade dos autores com preen­
didos sob as insígnias d a m esm a escola, ou, o que é sinônim o,
do m esm o “ ism o” , e não o bstante o que de artificial, e p o r sua
vez de “ escolástico” , existe em proceder p o r escolas ou po r
“ ism òs” , não se pode dizer que ten h a sido um capricho falar
de u m a escola do direito n atu ral. D ela se falou, é verdade,
com duas perspectivas diversas: pelos próprios fundadores e
seus seguidores, com a finalidade de co n stru ir u m a árvore
genealógica frondosa e, além do mais, com u m ilustre anteces­
sor, de quem eles pudessem tira r vantagem e argum ento p a ra
se considerarem com o inovadores que deixaram p a ra trá s um
passado de erros e de barb árie; pelos adversários, p a ra os
quais, u m a vez esgotado o im pulso criador d a escola, o fato de
pô r todos os seus com ponentes, in distintam ente, n u m único
alinham ento torn av a m ais fácil acertar no alvo, com a finali­
dade de desem baraçar-se de u m a vez p a ra sem pre de um erro
funesto. E n q u a n to a p rim eira perspectiva perm ite-nos c ap ta r
aquilo co n tra o que os criadores e os fiéis seguidores d a escola
se opuseram , a segunda nos perm ite com preender o que a eles
foi contraposto po r seus críticos: como se sabe, não h á m odo
m elhor p a ra com preender as lin h as essenciais de um movi­
m ento de pensam en to que considerá-lo do p o n to de vista das
teses alheias que ele negou e do ponto de vista das próp rias
teses que foram negadas pelos outros.
Pois bem : ta n to um a q uanto o u tra perspectiva convergem
p a ra tra z er à luz u m princípio de unificação daquilo que am ­
bas as p artes convieram ch am ar de u m a “ escola” . Esse p rin ­
cípio não reside nesse ou naquele conteúdo, m as consiste cer­
tam ente nu m m odo de se aproxim ar do estudo do direito e, em
geral, d a ética e d a filosofia prática: n u m a palavra, no “ m é­
todo” . E n tre um e outro, a diferença está no juízo de valor:
o que p a ra os defensores constitui um título de m érito, p a ra os
detratores rep resen ta um item de acusação. O m étodo que
u ne autores tão diversos é o m étodo racional, ou seja, aquele
m étodo que deve p erm itir a redução do direito e d a m oral
(bem com o d a política), p ela prim eira vez n a histó ria d a refle­
xão sobre a co n d u ta h u m an a, a u m a ciência dem onstrativa.
16 N O R B ER T O BO BBIO

E m outras palavras: ta n to os seguidores q u an to os adversários


consideram -se autorizados a falar de “ escola” en q u an to esta
constitui u m a un id ad e não ontológica, não m etafísica nem
ideológica, m as sim m etodológica. A m elhor prova disso, de
resto, é o fato de te r prevalecido o uso (pelo m enos a p a rtir da
crítica d a escola histórica) de ch am ar o direito n a tu ra l m o­
derno de “ direito racio n al” : 1tem os aqui um in dicador do fato
de que aquilo que caracteriza o m ovim ento em seu conjunto
não é ta n to o objeto (a n atureza), m as o m odo de abordá-lo
(a razão), não um princípio ontológico (que p ressuporia u m a
m etafísica com um que, de fato, jam ais existiu), m as u m p rin ­
cípio m etodológico.
Não que inexistam divergências en tre os ju sn atu ralistas
(podem os doravante cham á-los assim ), tam b ém no que se re­
fere ao objetivo com um . No opúsculo juvenil sobre o direito
n atu ral, H egel se p ro p u sera exam inar (e criticar) as “ diversas
m aneiras de tra ta r cientificam ente o direito n a tu ra l” , distin­
guindo entre os em piristas, como Hobbes, que partem de u m a
análise psicológica d a n atu reza h u m an a, e os form alistas,
como K an t e F ichte, que deduzem o direito de u m a idéia
tran scen d en tal do hom em . T an to é assim que pen etro u n a tra-
tad ística corrente no fim do século, não sab eria dizer se p o r
influência d ireta de Hegel, o uso de reservar o nom e de “ d i­
reito racio n al” som ente p a ra a dou trin a k a n tia n a . No início
do seu m onu m en tal tra ta d o , W olff critica seu m ais direto ri­
val, P ufendorf, não como o havia feito Leibniz, p o r razões
m etafísicas e im plicitam ente de política cu ltu ral, m as u n ica­
m ente p o r razões m etodológicas: P ufendorf, diz ele, passa p o r
um escritor que tra to u cientificam ente o direito n a tu ra l, m as
está efetivam ente tão longe do verdadeiro m étodo científico
como “ o céu d a te rra ” .2 C ontudo, essas divergências — e ou-

(1) U m dos textos m ais recentes e autorizados d a historiografia ju ríd ica, F.


W iaecker, Privotrechtsgeschichte der N euzeit unter besonderer Berücksichtigung der
deutschen E ntw icklung, G öttinger, V andenhoe u. R up rech t, 1967, dedica u m cap í­
tulo à “ época do direito racio n al” , p p . 249-347.
(2) A passagem m erece ser c itad a n a íntegra: Vulgo P uffendorfius ius naturae
demonstrasse dicitur: enim vero qui sie sentiunt, m ethodi dem onstrativae satis igna­
ros sese probant, et qu i vel in m athesi, vel in operibus nostris philosophicis fu e rit
versatus, quantum a veritate distet iudicium abunde intelliget. Legat ea, quae de
m ethodo philosophica, eadem om nim o cum scientifica, seu dem onstrativa (...) co-
SO CIED A D E E E ST A D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ERN A 17

tras que se poderiam arro la r — não cancelam o intento co­


m um , ain d a que esse ten h a sido realizado de m odos diversos,
um intento que p erm ite considerar u n itariam en te os vários
autores: a construção de u m a ética racional, sep arad a defini­
tivam ente d a teologia e capaz por si m esm a, precisam ente
porque fu n d a d a finalm ente nu m a análise e n u m a crítica ra ­
cional dos fundam entos, de g aran tir — bem m ais do que a
teologia, envolvida em contrastes de opiniões insolúveis — a
universalidade dos princípios da conduta h u m a n a. H istorica­
m ente, o direito n a tu ra l é u m a tentativa de d a r u m a respsota
tran q ü ilizad o ra às conseqüências corrosivas que os libertinos
tin h am retirad o d a crise do universalism o religioso. Não h á
au to r d a escola que não tom e posição diante do pirronism o em
m oral, do que hoje cham aríam os de relativism o ético. N a am ­
pla introdução à trad u ção francesa d a prin cip al ob ra de Pu-
fendorf — in trodução que pode ser considerada como um ver­
dadeiro m anifesto d a escola — , B arbeyrac, depois de ter ci­
tado, entre outras, u m a célebre passagem de M o n taig n e,3 que
põe em dúvida o direito n a tu ra l pelo fato de não haver suposta
lei da n a tu reza que não te n h a sido d esautorizada po r u m ou
mais povos, responde com u m a citação de Fontenelle: “ Sobre
tudo o que diz respeito à conduta dos hom ens, a razão tem
decisões m uito seguras: o m al é que ela não é co n su ltad a” .4 O

m e n ta tisu m u s (...) et inquirat, num Puffendorfius regulis eiusdem satisfecerit: nisi


enim in re m anifesta caecutire velit, eundem a m ethodo scientifica tantum abesse
deprehendet, quantum distat a terra coelum (C hristian W olff, Jus naturae m ethodo
scientifica pertra cta tu m , que cito da edição de F ra n k fu rt e Leipzig, de 1764, vol. I,
§ 2 , p. 2).
(3) “ D e resto, são verdadeiram ente curiosos q u ando, p a ra da r algum a certeza
às leis, afirm am que, en tre elas, h á algum as estáveis, p erp étu as e im utáveis, que eles
cham am de n a tu rais e que são im pressas no gênero h u m an o pela condição de sua
p ró p ria existência. E, dessas, h á quem conte três, quem q u atro , quem m ais, quem
menos: prova que isso é um signo tão incerto q uanto o resto. O ra, eles são tã o desa­
fortunados (...) que, dessas três ou q u atro leis escolhidas, não h á nen h u m a que não
seja c o n trad itad a e desm entida, não p or um só povo, m as p o r m uitos” (M ontaigne,
Essais, que cito da tra d . italian a de F. Ç aravini, M ilão, A delphi, 1966, vol. I,
p. 770).
(4) Fontenelle, Dialogues des m orts anciens avec des m odernes. D iálogo V,
Sur les préjugés (os in terlocutores são E stratão e R afael), que cito de E ntretiens sur
les pluralités des m ondes, nova edição aum entada do Dialogues des m orts. Paris,
chez la veuve B runet, 1762, p . 367. E ssa passagem é citad a p o r B arbeyrac no início do
§ 5 do seu im p o rtan te Préface du traducteur ao D e iure naturae et gentium de Pu-
fendorf. D epois, ele com enta: IIfa u t Vavouer, à 1’honte du g&itre hum ain, cette scien-
18 N O R B ER T O BOBBIO

que era preciso, ju stam en te, era ap ren d er a consultá-la. A


nova ciência d a m oral, que nascia com o propósito de aplicar
ao estudo d a m oral as m ais refinadas técnicas d a razão, cujos
resultados foram tão surpreendentes no estudo d a natu reza,
devia servir p a ra essa finalidade.
Se h á u m fio verm elho que m antém un id o s os ju sn atu ra-
listas e p erm ite c a p ta r u m a certa u n id ad e de inspiração em
autores diferentes sob m uitos aspectos, é precisam ente a idéia
de que é possível u m a “ verdadeira” ciência d a m oral, enten-
dendo-se p o r ciências verdadeiras as que haviam com eçado a
aplicar com sucesso o m étodo m atem ático. Creio que hoje n in ­
guém está m ais disposto a conceder à o b ra de G rócio, com
relação à fundação do jusnatu ralism o m oderno, o posto de
h o n ra que lhe foi atrib u íd o p o r seu discípulo Pufendorf, p o r
ob ra de quem nasceu e se tran sm itiu a len d a de um G rócio pai
do direito n a tu ra l.5 M esm o prescindindo das influências que

ce (alude à ciência m oral o u “science des m oeurs”, com o ele a ch am a] q u i devoit être
la grande affaire des hom m es, et 1'objet de toutes leurs recherches, se trouve de tous
tem ps extrém em ent negligée. Nessas poucas linhas, está contido o tem a fund am en tal
d a escola do direito n a tu ra l e o p ro g ram a que a caracterizou p o r dois séculos.
(5) Já em su a p rim eira o b ra , Elem entorum iurisprudentiae universalis
duo, de 1660, à qu al ele confiara a p rim eira tem erária m as im postergável ten tativ a de
expor a ciência do direito com o ciência dem onstrativa, P u fen d o rf — depois de ter
declarado que, até então, a ciência do direito “ não fo ra cultivada n a m edida exigida
pela sua necessidade e p ela sua dignidade” — expressa a su a p ró p ria divida de reco­
nhecim ento a apenas dois autores, G rócio e H obbes. N um a o b ra p u b licad a m uitos
anos depois, Eris scandica, que adversos libros de iure naturali et gentium obiecta
diluuntur (1686), escrita p a ra esclarecer os seus críticos, Pufendorf reafirm a a con­
vicção de que o direito n a tu ra l “ som ente nesse século com eçou a ser elaborado de
form a ap ro p ria d a ” , tendo sido, nos séculos passados, prim eiro desconhecido pelos
antigos filósofos, especialm ente p o r A ristóteles, cujo cam po de investigação re strin ­
gia-se à vida e aos costum es das cidades gregas, depois m esclado, ora aos preceitos
religiosos nas o bras dos teólogos, ora às regras de um direito histórico transm itido
nu m a com pilação a rb itrá ria e lacunosa, como era o direito rom ano, à o bra dos j u ­
ristas. M ais u m a vez, p o r sobre a tu rb a dos pedantes e litigiosos com entadores dos
textos sagrados ou de leis de u m povo rem oto, elevam-se os dois autores aos quais se
deve a prim eira tentativa de fazer do direito u m a ciência rigorosa: G rócio e H obbes.
De G rócio, P ufendorf diz que, an tes dele, “ não houve ninguém que distinguisse exa­
tam ente os direitos n a tu ra is dos direitos positivos e tentasse dispô-los n um sistem a
unitário e com pleto (in p le n i system atis rotunditatem )". E ssa passagem se encontra
num esboço de história do direito n a tu ral, ao qual P u fen d o rf dedica o prim eiro cap í­
tulo do escrito Specim en controversiarum circa ius naturae ipsi nuper m otarum , que
faz p a rte d a su p racitad a Eris scandica. O capítulo, in titu lad o D e origine et progressu
discipiinae iuris naturalis, foi p o r m im traduzido pela p rim eira vez em italiano num
pequeno volum e p a ra uso didático, Sam uele Pufendorf, Principi d i diritto naturale,
SO C IED A D E E E S TA D O NA F IL O S O F IA PO LÍTIC A M O D ERN A 19

ele sofreu, e que foram repetidam ente p ostas em evidência


com com parações dificilm ente refutáveis, d a neo-escolástica
espanhola que o precedeu im e d ia tam en te ,6 o estilo de sua
obra, especialm ente q u an d o com parado a u m H obbes, um
Spinoza ou um Locke, é ain d a o estilo do ju rista tradicional,
que abre cam inho e se move através das opiniões dos ju ristas
anteriores e não d á um passo sem se ap o iar n a auto rid ad e dos
clássicos. P a ra o pai do jusn atu ralism o m oderno, o fato de ter
sido um dos q u a tro autores preferidos de G iam b attista Vico
— o prim eiro g ran d e adversário do racionalism o ju ríd ico e
ético — seria u m estran h o destino, caso o a trib u to lhe cou­
besse de pleno direito. Todavia, não se pode negar, tam bém
G rócio p restou u m a hom enagem , em bora d iscreta e sem efei­
tos visíveis no desenvolvim ento do seu tra b a lh o de ju rista , ao
modo de proceder dos m atem áticos, q u an d o — nos Prolegô-
m enos ao D e iure belli ac pacis — afirm a su a intenção de
com portar-se com o os m atem áticos que, exam inando as figu­
ras, fazem ab stração dos corpos reais (§ 60). N a realidade, se
cabe a alguém o discutível título de G alileu das ciências m o ­
rais (discutível, p o rq u e d a aplicabilidade do m étodo m oral às
ciências m atem áticas se discute ainda hoje e a discussão não
está de m odo algum esgotada), esse alguém n ão é G rócio, m as
sim o a d m irad o r de G alileu: T hom as H obbes.
C onvencido de que a desordem d a vida social, desde a
sedição ao tiranicídio, desde o surgim ento das facções até a
guerra civil, d ependia das doutrinas errôneas, de que tin h am
sido autores os escritores antigos e m odernos sobre questões
políticas, bem com o do espírito de seita alim entado p o r m aus
teólogos, e co m p aran d o a concórdia que reinava no cam po

“ Piccola Biblioteca de Filosofia e Pedagogia” , T urim , P aravia, 1943 (2? ed ., 1961),


p p. 1-18. A firm ei que H obbes, e não G rócio, deve ser considerado o verdadeiro in i­
ciador do ju sn atu ralism o m oderno, em m eu artigo “ H obbes e il giusnaturalism o” , in
Rivista Critica di storia delia filosofia, 1962, p p. 471-86, agora recolhido no volum e
Da H obbes a M arx, N ápoles, M orano, 1965, p p. 51-74.
(6) Cf. ta n to a contribuição fu ndam ental de G . A m brosetti, I presuppo
teologicie speculativi delia concezionegiuridica d i Grozio, B olonha, Zanichelli, 1955,
quanto as observações críticas de A. D roetto, “ L’altem ativ a teologica nella conce­
zione giuridica d i G rozio” , in Rivista Intem azionale d i Filosofia dei D iritto, 1956, p p.
351-63, posteriorm ente republicadas em A. D roetto, S tu d i groziani, “ Pubblicazioni
dell'Istitu to di Scienze Politiche dell’U niversità di T o rin o ” , T urim , G iappichelli,
1968, p p. 240-254.
20 N O R B ER T O BO BBIO

das disciplinas m atem áticas com o reino d a discórdia sem tré ­


gua em que se agitavam as opiniões dos teólogos, dos ju ristas e
dos escritores políticos, H obbes afirm a que os piores m alefí­
cios de que sofre a hum an id ad e seriam elim inados “ se se co­
nhecessem com igual certeza as regras das ações h u m an as, tal
com o se conhecem aquelas das grandezas das figuras” . 7
“ O que cham am os de leis da n atu reza — precisa ele, depois
de as ter en u m erad o — não são m ais do que u m a espécie de
conclusão ex traíd a pela razão sobre o que se deve fazer ou
deixar de fazer” . 8 E , no Leviatã, especifica: conclusões ou
teorem as.9 Se é verdade que a geom etria é “ a ú nica ciência
com que até agora D eus resolveu p resen tear o gênero h u ­
m an o ” , a única ciência “ cujas conclusões to rn aram -se agora
indiscutíveis” , ao filósofo m oral cum pre im itá-la; m as, preci­
sam ente devido à falta de um m étodo rigoroso, a ciência m o­
ra l foi até en tão a m ais m a ltra ta d a. U m a renovação dos estu ­
dos sobre a co n d u ta h u m an a só pode te r lu g ar através de u m a
renovação do m étodo.
No cam po das ciências m orais, d om inara p o r longo tem ­
po, in co n trastad am en te, a opinião de A ristóteles, segundo a
qual — no conhecim ento do ju sto e do injusto — não é pos­
sível atin g ir a m esm a certeza a que chega o raciocínio m ate­
m ático, e que é preciso nos contentarm os com um conheci­
m ento provável: “ Seria tão inconveniente — ele a firm ara —
exigir dem onstrações de um o rador q u an to contentar-se com a
p robab ilid ad e nos raciocínios de um m atem ático” . 10 É conhe­
cido o peso dessa opinião no estudo do direito. D u ran te sécu­
los, a educação do ju rista se dera através do ensinam ento da
tópica, isto é, dos lugares de onde se podem ex trair argum en­
tos pró ou co n tra u m a opinião, através da dialética ou arte de
querelar e d a retórica ou arte de convencer, ou seja, através de
disciplinas que restam n a esfera d a lógica do provável e não

(7) E ssa passagem se encontra na Epistola dedicatória do D e eive, que já


contém integralm ente o p ro g ram a d a política “geometrico m ore d em onstrata". V er
em T h. H obbes, Opere politiche, ed. de N. Bobbio, “ Classici politici” , coleção diri­
gida p or L. F irpo, T urim , U tet, 1959, p. 60.
(8) De eive, III, 33; tra d . it. c it., p. 121.
(9) conclusionsortheorem s”: cf. ed. M . O akeshott, O xford, Blackwell,
1951, p. 104; tra d . it. de G . M icheli, Florença, La Nuova Italia, 1976, p . 154.
(10) A ristóteles, Ética a Nicômaco, 1094 b.
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O DERNA 21

devem ser confundidas com a lógica p ropriam ente d ita, que


analisa e prescreve as regras dos raciocínios dem onstrativos.
E studos recentes exploraram mais do que se fizera no passado
a h istó ria d a lógica ju ríd ica e puseram em destaque a relação
entre hum anism o jurídico e d isputa sobre o m étodo, ligada à
renovação dos estudos dialéticos (de Rodolfo A grícola a Pie-
trus R am us): o florescim ento de tratad o s de dialética legal
chèga não casualm ente até o lim iar d a nova m ethodus, ins­
ta u ra d a pela escola do direito n a tu ra l.11 Até o m om ento em
que o ju rista é considerado, não diferentem ente do teólogo,
com o um co m entador de textos, ele tem de ap ren d er as várias
regras que devem servir à com preensão (com prehensio ) e à
eventual com plem entação do texto (extensio), bem como à so­
lução das antinom ias entre u m a passagem e o u tra , ou, n u m a
palavra, as regras d a interpretatio. P a ra a nova m ethodus, ao
contrário, a tarefa do ju rista não é m ais a interpretatio, e sim
a dem onstratio. Se a interpretação foi o m étodo tradicional da
ju risp ru d ên cia, o m étodo d a nova ciência do direito será — à
im itação das ciências m ais evoluídas — a dem onstração. O
grande debate entre hum anistas e “ b arto listas” , entre mos
gallicus e mos italicus, que p o r m ais de u m século tin h a con­
traposto os inovadores aos tradicionalistas, era u m a contro­
vérsia que dizia respeito, sem pre e apenas, a diversos m odos
de en ten d er a interpretatio: o objeto sobre o qual trab alh av a o
ju rista. Fosse esse u m seguidor do m étodo exegético ou do
m étodo histórico, e ra sem pre um direito escrito, um direito
positivo que, em bora excelente ou considerado com o tal, espe-

(11) Refiro-m e, em p articu lar, aos estudos de D . M affei, Gli inizi delVu
nesimo giuridico, M ilão, G iuffré, 1956; V. P iano M ortari, Dialettica e giurispru-
denza. Studio sui trattati di dialettica legale dei sec. X V I, M ilão, G iuffré, 1955;
“ Considerazioni sugli scritti p ro gram m atici dei giu risti dei sec. X V I” , in Studia et
docum enta historiae et iuris, 1955, p p. 276-302; “ La sistem ática com e ideale um a-
nistico nell’opera di Francesco C onnano” , in S tu d i in onore de Gaetano Zingali, M i­
lão, G iuffré, 1965, vol. III, p p . 559-71; A. M azzacane, Science, logica e ideologia
nella giurisproduzenza tedesca dei sec. X V I, M ilão, G iuffré, 1971. E , além do m ais,
C. Vasoli, La dialletica e la retórica deWumanesimo. “In ven tio " e "m éto d o ” nella
cultura dei X V e X V I secolo, M ilão, Feltrinelli, 1968. — E n tre os estudos estran g ei­
ros, gostaria de recordar o de G . K irsh, Gestalten u n d Problem e aus H um anism us
u n d Jurisprudenz. Neue Studien u n d Texte, Berlim , de G ruyter, 1969, e a excelente
m onografia sobre um dos m aiores ju ristas e dialéticos da época, Claudius C antiun-
cula. E in Basler Jurist u n d H um anist des 16. Jahrhunderts , Basiléia, V erlag von
H elbing & L ichtenhanh, 1970.
22 N O R B ER T O B OBBIO

cialm ente se liberado dos estragos que nele in tro d u zira a com ­
pilação ju stin ia n a, com o afirm avam os h u m an istas, e ra n a d a
m ais e n a d a m enos que u m conjunto de textos a serem in te r­
p retados co rretam ente.
O passo dado pela ju risp ru d ên cia cu lta além d a m era in­
terp retação e com plem entação do texto foi aquele que a orien ­
tou p a ra a idéia do “ sistem a” : daí nasceram , com freqüência
c ad a vez m ais rá p id a a com eçar d a p rim eira m etad e do século
X VI, as várias tentativas de redigire in artem o direito, ou
seja, de p ro p o r critérios p a ra a ordenação d a im ensa m atéria
das leis ro m an as, em vez de com entá-las segundo a ordem em
que haviam sido tran sm itid as. M as tam b ém a sistem ática
usava, p a ra suas p ró p rias construções, m ateriais já dados, que
eram sem pre aqueles fornecidos pelo direito rom ano, ou seja,
p o r u m direito histórico: m ostrava, q u an d o m uito, a p ró p ria
preferência pelas Instituições, isto é, p o r u m texto m ais siste­
m ático, e não pelo D igesto. Seria interessante, m as não é este
o local, m o strar que u m processo idêntico oco rrera no cam po
d a teologia, onde a d isp u ta sobre os textos e o m odo de in te r­
pretá-los cederia p au latin am en te o terren o à teologia racional,
ao racionalism o teísta, à idéia de u m a religião n a tu ra l, que
está p a ra a religião positiva e p a ra a exegese dos textos, a tra ­
vés dos quais u m a religião positiva é a n u n ciad a e tran sm itid a,
do m esm o m odo com o o direito n a tu ra l está p a ra o direito ro ­
m ano e a com pilação ju stin ia n a.
Só se com preende a novidade do direito n a tu ra l se este
for com p arad o com a situação do estudo do direito antes da
virada, ou seja, se não for dado um m ínim o de atenção, como
dizíam os h á pouco, a tu d o isso de que ele é a negação. P ro ­
pondo a redução d a ciência do direito à ciência dem onstrativa,
os ju sn atu ralista s defendem , pela p rim eira vez com ta l ím peto
n a h istó ria d a ju risp ru d ê n c ia, a idéia de que a ta refa do ju rista
não é a de in te rp re ta r regras já dadas, que e n q u an to tais não
podem deixar de se ressentir das condições históricas n a qual
foram em itidas, m as é aquela — bem m ais nobre — de des­
cobrir as regras universais d a conduta, através do estudo da
n a tu reza do hom em , não diversam ente do que faz o cientista
da n atu reza, que finalm ente deixou de ler A ristóteles e se pôs
a p e rsc ru tá r o céu. P a ra o ju sn atu ralista , a fonte do direito
não é o Corpus iuris, m as a “ n atu reza das coisas” . “ A razão
SO C IED A D E E E ST A D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D E R N A 23

— diz P ufendorf — , m esm o no estado n a tu ra l, possui u m cri­


tério de avaliação com um , seguro e co n stan te, ou seja, a n a tu ­
reza das coisas, que se ap resen ta do m odo m ais fácil e acessí­
vel n a indicação dos preceitos gerais d a vida e d a lei n a tu ­
ra l” . 12 E m sum a: o que os ju sn atu ralista s elim inam do seu
horizonte é a interpretatio : m esm o que os ju rista s continuem
a co m en tar as leis, o ju sn a tu ra lista não é um in térp rete, m as
um. descobridor. Jam ais foi notado com o m ereceria sê-lo o fato
de que o p ro b lem a d a interp retação e de suas várias form as de
argumenta e de loci, sobre as quais os ju rista s de todos os
tem pos versaram rios de tin ta , é um p ro b lem a que desaparece
quase in teiram en te nos tratad o s de direito n a tu ra l. Com o
avanço d a “ escola” , as tópicas e as dialéticas, to d as as regulae
docendi e discendi, que dizem respeito à lógica do provável
vão desaparecendo. A recente redescoberta da retórica, e n ­
q u an to técnica do discurso persuasivo, co n trap o sta à lógica
técnica do discurso d em o n strativ o ,13 bem com o o reconheci­
m ento de que as operações intelectuais realizadas pelos ju ris ­
tas em sua função de in térpretes pertencem à prim eira, pode
servir p a ra ilu stra r o c aráte r específico do ju sn atu ralism o ,
com u m a nitidez d a qual, em geral, não h á traço nas histórias
d a escola. E m b o ra com certa sim plificação, é lícito afirm ar
que o ju sn atu ralism o foi a prim eira (e tam b ém a últim a) te n ­
tativa de ro m p er o nexo entre o estudo do direito e a retórica
com o teoria d a arg u m en tação , ab rin d o ta l estu d o p a ra as re ­
gras d a dem onstração.

(12) Pufendorf, D e iure naturae et gen tiu m , L. II, cap. II, § 9; tra d . c it.,
p. 79. Cf. tam b ém L. II, cap . III, § 8: “ Sem dúvida, os preceitos d a re ta razão são
princíp ios verdadeiros, que concordam com a n atu reza das coisas, observada e exa­
m in ad a aten tam en te” (tra d . c it., p . 107).
(13) Refiro-m e, com o o leitor já com preendeu, à o b ra de C h. P erelm an, tão
vasta que n ão pode ser a p resen tad a exaustivam ente n u m a n o ta, e de resto b asta n te
conhecida p a ra n ão carecer de m u itas citações. Lim ito-m e a assinalar p a ra os ju rista s
a coletânea de ensaios D iritto, morale e filosofia, N ápoles, G u id a, 1973, bem com o a
ú ltim a coletânea, L-'empire rhétorique. Rhétorique e t argum entation. P aris, V rin,
1977. M as n ão se deve esquecer, n a m esm a direção, o livro de T h . Viehw eg, T opik
u n d Jurisprudenz, M unique, C. H . Becksche V erlagsbuchhandlung, 1953 (tra d . it.,
M ilão, G iuffré, 1962, que, m esm o p artin d o de pressupostos diversos, chega a resul­
tados análogos).
Razão e história

u prim eiro a te r plen a consciência d a im po rtân cia dessa


inovação, a ponto de buscar justificá-la criticam ente e fu n d a ­
m entá-la teoricam ente, foi Pufendorf. Ele com preendeu p e r­
feitam ente sér necessário, antes de m ais n ad a, lim p ar o te r­
reno d a perniciosa auto rid ad e de A ristóteles, a quem se deve a
opinião, rep etid a acriticam ente d u ran te séculos, de que no es­
tu d o das coisas m orais só se pode alcançar um conhecim ento
provável. N atu ralm en te, p a ra se conseguir n a ciência m oral a
m esm a certeza que se tem nas ciências n a tu ra is, é preciso ter
idéias sobre qual é o objeto da prim eira. A teoria que ele de­
fende a esse respeito é tão engenhosa que teve u m a influência
direta sobre Locke: ao lado dos entes físicos, sobre cuja exis­
tência estão todos de acordo, existem tam bém os entes m o­
rais, errad am en te negligenciados até então p ela m aioria dos
autores. Os entes m orais são m odalidades das ações h um anas
que são a trib u íd as a estas pelas regras postas p o r quem detém
a au to rid ad e legítim a de im por leis aos hom ens. E n q u a n to os
entes físicos derivam diretam ente da criação, os entes m orais
derivam de u m a im posição e pressupõem , en q u an to tais, de­
term in ad as regras. O que a ciência m oral deve estu d ar é a
conform idade ou desconform idade das ações hu m an as às re­
gras estabelecidas. Q u an to às regras, elas podem ser conheci­
das com certeza qu an d o se ab an d o n a o terreno pouco confiá­
vel das leis positivas, que m udam de país p a ra país, e se consi­
dera a n a tu reza do hom em , suas paixões, seus carecim entos,
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 25

as condições objetivas de su a existência, as finalidades p a ra as


quais tende. Pufendorf não chega até a aceitação d a tese de
H obbes, depois acolhida p o r Vico, segundo a q ual a certeza
das coisas m orais depende do fato de serem criação nossa, tal
como as figuras geom étricas; m as rechaça tam b ém a tese
oposta, segundo a q ual existem coisas boas ou m ás em si m es­
m as: b o n d ad e e m aldade são noções sem pre relativas às leis
estabelecidas (as leis n a tu ra is são indiretam en te estabelecidas
por D eus) que, en q u an to tais, im põem ou proíbem ou p erm i­
tem fazer algo.
M ais ou m enos nos mesm os anos em que Pufendorf es­
crevia suas o b ras, Spinoza trab alh av a n& Ethica, no Tractatus
theologico-politicus e no Tractatus politicus. B asta recordar
que, nesse últim o, retom ando o motivo hobbesiano d a política
racional, ele escreve: “ Ao dedicar-m e à política, p o rtan to , não
m e p ro p u s n a d a de novo e de im pensado, m as apenas de­
m o nstrar, com argum entos certos e irrefutáveis, ou deduzir da
pró p ria condição d a n a tu reza hu m an a, aqueles princípios que
concordam perfeitam en te com a p rática; e, p a ra proceder
nessa investigação científica com a m esm a liberdade de espí­
rito com que costum am os nos aplicar à m atem ática, fiz um
estudo sobre as ações h u m a n as sem rir nem c h o ra r” . 1
T am b ém Locke, em b o ra m uito diferente de Spinoza, a
ponto de ser considerado com o a antítese do au to r d a E thica,
pelo m enos do p o n to de vista m etafísico e gnosiológico, p erse­
guiu d u ra n te to d a a vida, em bora sem sucesso, o ideal de u m a
ética dem onstrativa; e isso não escapou a B arbeyrac, o qual,
p a ra d efender a m esm a tese, apela p a ra a au to rid ad e do E n ­
saio sobre o intelecto hum ano, citando algum as de suas p ági­
n a s .2 Ele não tem n en h u m a dúvida sobre o fato de que, se a

(1) Spinoza, Tratactuspoliticus, cap. I, § 4 .


(2) Cf. o § 2 AoPréface du traducteur, já citado, onde B arbeyrac desenvolve o
tem a da dem onstrabilidade d a ciência m oral m ediante o topos clássico segundo o
qual não é verossím il que o C riad o r te n h a dotado os hom ens de faculdades suficientes
p a ra descobrir e dem o n strar com certeza u m a q u an tid ad e de coisas especulativas,
especialmente um g rande n úm ero de verdades m atem áticas, e não nos ten h a feito
capazes de co nhecer e de estabelecer com a m esm a evidência as m áxim as d a m oral. O
argum ento principal que ele ad u z em favor da dem onstrabilidade da ciência m oral é o
argum ento pufendorfiano, retom ado p o r Locke: não se tra ta , n a ciência m oral, de
conhecer a essência das coisas, m as de exam inar e co m p arar as relações entre as ações
h um anas e as regras estabelecidas. A esse ponto, refere-se g rande p arte do § 18 do
26 N O R B ER T O BO B B IO

idéia de um ser suprem o e a idéia do hom em com o ser racional


fossem devidam ente consideradas, a m oral po d eria ser colo­
cada en tre “ as ciências suscetíveis de d em onstração” , ou seja,
que, “ de proposições evidentes p o r si m esm as, m ediante con­
seqüências necessárias, n ão m enos incontestáveis que as da
m atem ática, poder-se-iam ex trair as m edidas do ju sto e do
injusto, se alguém quisesse se dedicar a essa ciência com a
m esm a indiferença e atenção que põe n a o u tra ” . 3P a ra d a r um
exem plo (não m uito convincente, n a verdade), acrescenta im e­
d iatam ente depois que u m a proposição como “ onde não h á
p ro p ried ad e, não h á in justiça” é “ tão certa q u an to q u alq u er
d em onstração en co n trad a em E uclides” . E m ou tro local,
chega m esm o a afirm ar que o hom em é m ais ap to ao conheci­
m ento m oral que ao conhecim ento dos corpos físicos, e a n u n ­
cia vitoriosam ente: “ a m oral é a ciência ap ro p ria d a e a grande
tarefa d a h u m a n id a d e em geral, a qual tem enorm e interesse
n a pesquisa de seu su m m u m bonum e é tam b ém a p ta a tal
pesquisa” . 4
P recisam ente em virtude da sua a u to rid ad e de g ran d e ló­
gico e de g ran d e ju rista , o que Leibniz escreveu sobre o m é­
todo d a ju risp ru d ê n c ia d á a p len a m edida do significado e da
novidade d a concepção m atem atizante n a ciência do direito:
“A teoria do direito inclui-se entre aquelas — escreve ele —
que não dependem de experim entos, m as de definições” ; e,
logo após, com o confirm ação, aduz ser possível com preender
que algo é ju sto m esm o quando não h a ja ninguém que possa
fazê-lo vigorar, n ão diversam ente do que ocorre em m atem á-

cap. III do Livro IV , os §§ 16 e 17 do cap. XI do Livro III, os §§ 8, 9 e 10 do cap . IV


do Livro IV do Ensaio lockeano, ou seja, as passagens m ais conhecidas onde Locke
expressa su a p ró p ria convicção e en u n cia seus p róprios argum entos em favor da tese
de que a ciência m oral é "suscetível de dem onstração” (q u e é a m esm a expressão
u sad a p o r B arbeyrac). D epois, ele com enta: “ É assim que raciocina esse gran d e filó­
sofo. A duzim os que as dem onstrações das verdades especulativas são bem m ais com ­
plexas e dependem de um núm ero de princípios m aior do que as dem onstrações das
regras d a m oral. P a ra convencer-se disso, b a sta co m p arar os Elem entos de geo m e­
tria com um p equeno sistem a m etódico dos deveres que a lei n a tu ra l prescreve aos
hom ens (a referência é ao D e officio hom inis et civis de Pufendorf); ao m esm o tem po
que se com provará a verdade do que digo, reconhecer-se-á tam b ém , em m in h a o p i­
nião, que é incom paravelm ente m ais fácil com preender os princípios e os raciocínios
desse livro do qjie os teorem as, problem as e dem onstrações daq u ele” .
(3) Locke, A n Essay concem ing H um an U nderstanding , L. IV , cap. III, § 18.
(4) Ib id . , L. IV, cap. X II, § 1 1 .
S O C IED A D E E E ST A D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D ER N A 27

tica, onde “ as relações aritm éticas são verdadeiras, m esm o


que não h a ja quem n um ere nem existam coisas a n u m e ra r” .5
Explicando em ou tro local quais são as características das
“ ciências necessárias e dem onstrativas, que n ão dependem
dos fatos, m as unicam ente d a razão ” , inclui en tre essas, além
da lógica, d á m atem ática, d a geom etria e d a ciência do m ovi­
m ento, tam b ém “ a ciência do direito” . 6 Iniciando sua o b ra de
ius naturale, m ethodo scientifica pertractatum , W olff n ão h e ­
sita em a firm a r que tu d o o que form a objeto d a m esm a “ deve
ser d em o n strad o ” , já que — sf; é verdade que a ciência con­
siste no habitus dem onstrandi, o direito n a tu ra l ou se vale do
m ethodus dem onstrativa ou não é c iên c ia .7
N ão h á m elhor com provação desse ideal com um a todos
os ju sn atu ralista s, o de u m a ciência dem onstrativa do direito,
que a recusa un ân im e do argum ento do “ consenso” , ou seja,
da tese — m ais u m a vez aristotélica — de que as leis n a tu ra is
são as leis com uns a todos os povos ou, m ais lim itad am en te, a
todos os povos civilizados, e que, p o rta n to , são inferíveis não
de considerações gerais sobre a n a tu re za h u m a n a, n ão da
“ n atu reza das coisas” , m as, indutivam ente, através de u m es­
tudo com p arad o das diversas legislações. A ristóteles dissera:
“Justo n a tu ra l é o que tem po r to d a p arte a m esm a eficácia” ;8
e Cícero sentenciara: “ E m q u alq u er coisa, o consenso de to­
dos os povos deve ser considerado lei de n a tu re za . O consenso
de todos é a voz d a n a tu re z a ” .9 M as já G rócio afirm ara haver

(5) Leibniz, Elem enta iuris naturalis, q u e cito d a edição de V. M ath ieu dos
S críttipolitici de Leibniz, T u rim , U tet, 1951, p . 86.
(6) Leibniz, M éditations sur la notion com m une de ju stice, ed. cit., p . 219.
(7) W olff, Jus naturalis m ethodo scientifica pertractatum , ed. cit., Prolegô-
m ena, § 2.
(8) A ristóteles, Ética a N icôm aco, 1134 b. T rata -se d a célebre passagem n a
qual A ristóteles distingue o ju sto n a tu ra l do ju sto legal. A firm ando que p o r ju s to
n atu ral se entende o que tem em to d a p arte a m esm a eficácia, pode deixar en ten d e r
que é possivel concluir que se podem inferir as prescrições observando o que é p ra ti­
cado en tre os diversos povos, p recisam ente “ em to d a p a rte ” .
(9) C ícero, Tusculanae, I, 13-4. E ssa é a p rincipal passagem invocada pelos
defensores do fu n d am en to consensual d a lei n a tu ra l. O consenso de todos os povos,
en q u an to voz d a natu reza, é a prova — a única prova — de que existem leis n atu rais.
T an to é verdade que o argum ento p rincipal dos céticos é m o strar que não h á n e­
nh u m a lei que seja acolhida p o r todos os povos, ou seja, que te n h a "em to d a p a rte ” a
m esm a eficácia. N a passagem j á citad a, M ontaig ne co m enta a d o u trin a dos qu e afir­
m am a existência de leis n atu rais a p a rtir d a "u n iversalidade do consenso” com as
seguintes palavras: “ N ão h á n a d a em que o m u n d o seja tão diverso com o no que se
28 N O R B ER T O BO B B IO

dois m odos p a ra provar que u m a instituição é direito n a tu ra l,


um a priori, que se fu n d a n a consideração d a n a tu re za das
coisas, e ou tro a posteriori, que se fu n d a no estudo dos costu­
mes e das leis dos vários povos; m esm o não tendo tom ado
posição em favor de u m ou de outro, ele p recisara que o p ri­
m eiro era m ais rigoroso, en q u an to o segundo estava m ais ao
alcance de todos, porém levava a conclusões apenas p ro ­
váveis. 10
Q uem desatou o nó, m ais u m a vez, foi H obbes, que n e­
gou todo valor ao argum ento a posteriori, afirm ando, com re ­
lação ao consenso dos povos m ais civilizados, não ser claro a
quem cab eria estabelecer quais seriam os povos civilizados e
quais não; e, com relação ao consenso de todo o gênero h u ­
m ano, argum entou entre o u tras coisas que, assim com o quem
viola u m a lei geralm ente o faz com o p ró p rio consenso, do
consenso de todos os hom ens pode-se inferir tu d o e o contrário
de tu d o .11 E m D e iure naturae et gentium , P u fen d o rf — m os­
tran d o , tam b ém sobre esse ponto tão im p o rtan te de ser H o b ­
bes e não G rócio o verdadeiro in spirador d a nova m ethodus —
acolhera o p o n to de vista hobbesiano, co m entando as teses de
A ristóteles e de Cícero com o seguinte juízo: “ M as esse m odo
de fu n d a r o direito n a tu ra l, além de ser a posteriori e n a d a
deixar e n ten d er sobre a razão p ela qual o direito n a tu ra l dis­
pôs desse m odo e não daquele outro, é tam b ém inseguro ( lu -
bricus) e repleto de infinitas dificuldades” . 12 D epois de ter

refere aos costum es e às leis. U m a coisa aqui é abom inável e alhures é h o n rad a, com o a
habilidade de ro u b a r em E sp arta. O s casam entos entre p aren tes são pro ibidos entre
nós sob p en a de m orte, e alhures são honrados. (...) O infanticídio, o p arricídio,
a com unidade das m ulheres, o tráfico de objetos roubados, a licença dian te de q u al­
quer voluptuosidade, em sum a, não h á n ad a de tão excessivo que n ão seja adm itido
nos usos de algum povo” (ed. cit., vol. I, p . 771).
(10) G rócio, De iure belli ac pacis, L. I, cap. I, § 12. H á nesse texto u m a
distinção en tre o consenso de todos os povos e consenso dos povos m ais civilizados. A
distinção é acolhida p o r H obbes, que critica a legitim idade de am bos com o fu n d a ­
m ento do direito n atu ral. Como autores d a p rim eira tese, G rócio cita H eráclito, A ris­
tóteles, Cícero, Sêneca e Q uin tiliano; como defensores d a segunda, Porfírio, A ndrô-
nico de R odes, P lutarco e ain d a A ristóteles.
(11) H obbes, D e eive, II, I, ed. cit., p p . 94-7. T am bém em su a p rim eira o b ra
política, E lem ents o fL a w N atural a nd Politic, P arte I, cap. XV, § 1.
(12) P u/endorf, D ie iure naturae et gentium , L. II, cap . III, § 7 (n a antologia
de Pufendorf p o r m im trad u zid a e já citada, o texto se en co n tra nas p p . 98-9). E ssa
passagem de Pufendorf é invocada p o r B arbeyrac em seu com entário ao trecho de
S O C IED A D E E E STA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 29

exposto a origem co n tratu alista do E stado, en fren ta a objeção


dos que se p erg u n tam com o é possível que os E stados ten h am
tido tal origem , respondendo do seguinte m odo: “ N ada im ­
pede que se possa in d ag ar sobre a origem de u m a instituição
raciocinando sobre ela ( ratiocinando ), q u an d o dessa in stitu i­
ção não m ais restou nen h u m docum ento histórico” . 13
à crítica dos argum entos retirados do consenso, Locke
dedicou u m dos ensaios juvenis sobre a lei n a tu ra l, que até h á
pouco restou inédito, o quinto, in titulado significativam ente
A lei de natureza não pode ser conhecida com base no con­
senso universal dos h o m en s : 14 nele, Locke distingue o con­
senso dos costum es do consenso das opiniões, e afirm a que,
en q u an to o prim eiro não prova n ada, já que não existe ação
m alvada com a q u al os hom ens não ten h am consentido, o se­
gundo pode servir apenas p a ra revelar a lei n a tu ra l, m as não
p a ra d em onstrá-la, porq u e, em bora podendo fazer crer m ais
fortem ente que aq u ela é u m a lei de n atu reza, não consegue
nos d a r d a m esm a u m conhecim ento m ais seguro: m ais um a
vez, a dem onstração só pode ser obtida p o r m eio d a dedução a
p a rtir dos princípios, não d a análise das crenças alheias. “ O
que existe, de fato, de tão celerado, de tão atroz e contrário a

G rócio citado em n o ta anterio r, afirm ando a propósito do m étodo a posteriori : “ E ssa


m aneira de provar o direito n a tu ra l não é de grande utilid ad e, porque apenas as m á ­
xim as m ais gerais do direito n a tu ra l foram acolhidas p ela m aior p a rte das nações.
Houve tam b ém m áxim as m uito evidentes, cujo contrário foi considerado p o r m uito
tem po com o coisa in diferente m esm o nos países m ais civilizados. É o que p arece ter
ocorrido com o horrível costum e de expor os recém -nascidos” (cito segundo a edição
francesa d a o b ra grociana, Le droit de la guerre et de la p a ix , n a trad u ção de Jean
B arbeyrac, d a qual existem m u itas edições; a que tenho em m eu poder é a de B asi­
léia, ed ita d a po r E m anuel T ourneisen, 1768, e a passagem citad a se enco n tra no vol.
I, pp. 53-4). B arbeyrac co m p ara a evidência com a experiência, e m ostra com o nem
sem pre o que é evidente é tam bém confirm ado pela experiência. Esse contraste en tre
o que é evidente (à razão) e o que é de fato praticado pelos diversos povos deve induzir
o filósofo m oral a não confiar n a prova que pode ser deduzida do consenso de todos os
povos, ain d a que se tra te dos m ais civilizados.
(13) Pufendorf, D e iure naturae et gentium , L. V II, cap. II, § 8, tra d . c it.,
p. 168. E ssa afirm ação é feita p o r Pufendorf a propósito d a teoria dos dois co ntratos
que se põem com o fu ndam ento ao E stad o (sobre os quais voltarem os adiante), e deve
servir p a ra d em o n strar que fu n d a r o E stado em u m a ou m ais convenções é u m a exi­
gência racional antes de ser u m a conclusão re tirad a d a história.
(14) Locke, “ An lex n a tu ra e cognosci potest ex hom inum consensu?” , in Es-
says on th e Law o f Nature, ed. p o r W . von Leyden, O xford, C larendon Press, 1954,
pp. 160-89.
30 N O R B ER TO BO BBIO

todo direito e ju stiça que não ten h a conseguido algum a vez


o bter o consenso, ou m elhor, a conjura de u m a m ultidão en ­
louquecida?” . 15 O citado ensaio de Locke, que com eça com
essas palavras, é dedicado em grande p a rte a u m a escandali­
zad a denúncia de todas as torpezas de todos os atos celerados,
de todas as loucuras que enchem as narrações dos h isto ria­
dores. “ Q uase não existe vício, nem violação d a lei de n a tu ­
reza, não existe aberração m oral que, p a ra quem conhece a
história universal e p a ra quem observa as ações h u m an as, não
dem onstre facilm ente te r sido, em algum a p a rte do m undo,
não só ad m itid a privadam ente, m as tam bém aprovada pela
autoridade p ú b lica e pelo costum e” . 16 O fato de que se esteja
diante de u m re tra to m aneirista, precisam ente d a lite ra tu ra
in sp irad a no pirronism o m oral, não an u la que um desabafo
desse gênero não deixe dúvidas sobre a atitu d e do raciona-
lismo ético dian te d a história considerada com o u m a confusão
d a qual é in útil b u scar u m a explicação.
N ada pode fazer com preender m elhor a im po rtân cia da
recusa do argum ento do consenso, a qual é com um a todos os
ju sn atu ralistas, do que a ob ra do prim eiro g ran d e antag o n ista
do ju sn atu ralism o , que se baseia p rincipalm ente n a redesco-
b e rta e no confiante em prego desse argum ento. A Scienza
Nuova Prima (1975) com eça, não casualm ente, com as seguin­
tes palavras: “ O direito n a tu ra l das nações nasceu certam ente
com os costum es com uns das m esm as” . 17 E , ain d a m ais expli­
citam ente, n a Scienza Nuova Seconda, Vico enuncia o p rin cí­
pio de “ o que é sentido com o ju sto p o r todos ou p ela m aior
p a rte dos hom ens deve ser a regra d a vida em sociedade” , ao
que se segue o conselho, dado a quem “ quiser escap ar” desses
lim ites que ‘devem ser os confins da h u m a n a razão ” , de que
“ ele se cuide p a ra não escapar de toda a h u m a n id a d e ” . 18

(15) Ib id ., p . 161.
(16) Ib id ., p . 166.
(17) G . B. Vico, La scienza nuova prim a, ed. p o r F . Nicolini, Bári, Laterza,
1 9 3 1 ,p. 9.
(18) G . B. Vico, La scienza nuova (segundo a edição de 1744), ed. p o r F.
Nicolini, B ári, L aterza, 1928, vol. I, p. 131, p ar. 360. D esse diverso m odo de fu n d a r o
direito n a tu ra l, segue-se tam bém um diferente m odo de en ten d er as du as caracterís­
ticas d a im utabilidade e d a universalidade. P a ra Vico, o direito n a tu ra l não é um d i­
reito estaticam ente eterno, m as é um direito que “ corre no tem po” , o que significa
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 31

O nexo que une os autores h ab itu alm en te incluídos n a


escola do direito n a tu ra l pode ser determ inado, como disse­
mos, não apenas com base no que eles concordantem ente ne­
garam , m as tam b ém com base no que neles e em suas teorias
foi igualm ente negado concordem ente. Sem dúvida, p a ra fa­
zer desses autores um grupo unitário, co n trib u íram tam bém
os seus adversários, entre os quais Vico pode ser considerado
como o prim eiro. Se o jusn atu ralism o a cred itara poder desco­
b rir leis universais d a co n d u ta p a ra além d a história, rem on-
tando-se à n a tu re za do hom em ab straíd a das condições que
determ inam as leis m utáveis de povo p a ra povo, de época p a ra
época, e, ao fazer isso, com batera u m a m em orável b a talh a
contra o princípio de autoridade, dom inante no estudo do di­
reito, o historicism o — em suas várias form as — repôs em
posição de h o n ra, co n tra a crítica racionalista, a autoridade
da história, condenando em bloco, indiscrim inadam ente, to­
dos os que, m esm o pertencendo a orientações m etafísicas di­
versas, m esm o chegando a conclusões políticas opostas, m as
igualm ente fascinados pelo sucesso das ciências físicas e a tra í­
dos pela idéia de en co n trar u m a ordem racional no m undo h u ­
m ano, ta l com o os grandes cientistas, de D escartes a Newton,
haviam en co n trad o u m a ordem racional no cosm o, tin h am se
em penhado no sentido de construir um sistem a universal do
direito, ou seja, um sistem a válido p a ra q u alq u er tem po e p a ra
qualq u er lugar.
E m As origens do historicismo, M einecke escreve: “ T oda

que sua eternidade consiste em seu eterno processo de reprodução e de realização na


história, p o r to d a p arte onde se acenda u m a centelha de h um anidade. D e resto, é
universal não no sentido de que seja igual “ em to d a p a rte ” , com o dissera A ristóteles,
m as no sentido de que é igual o seu processo de realização através do estado das
fam ílias, das repúblicas heróicas, das repúblicas populares, dos principados, e em
seu retorno ao princípio depois da decadência da últim a fase. P ortanto, segundo
Vico, e rraram os três grandes ju sn atu ralistas (G rócio, Selden e P ufendorf), “ os quais
todos os três querem que, p o r cim a de seus sistem as do direito n atu ral de filósofos,
tenha transcorrido desde o princípio do m undo o direito n a tu ra l das gentes com cons­
tan te uniform idade de costum es” (La scienza nuova p rim a , cit., p. 116). E m sum a,
p a ra quem , com o Vico, considera o direito n atu ral com o algo m utável segundo as
épocas e os povos, a variedade dos costum es — que é o argum ento clássico, p o r um
lado, dos pirro n istas contra os racionalistas, e, p o r outro, dos racionalistas co n tra os
consensualistas — não prova nada: não é um argum ento p a ra d a r razão aos p irro n is­
tas, nem u m a bo a razão p a ra refu tar o argum ento do consenso.
32 N O R B E R T O B O B B IO

a tarefa do historicism o consistiu em en fraquecer e to rn a r m ó­


vel o rígido pensam ento ju sn atu ralista, com sua fé n a invaria-
bilidade dos suprem os ideais hum anos e n a igualdade abso­
lu ta e etern a da n a tu reza h u m a n a .19 Q u an d o M einecke fala
do ju sn atu ralism o , não se refere apenas ao m oderno, m as
tam bém , pelo m enos abstratam en te, ao ju sn atu ralism o p e ­
rene, que p o r dois milênios constituiu p a ra o hom em ocidental
‘‘a estrela p o lar em meio a todas as tem pestades d a h istó ria’’; 20
m as, de fato, os ju sn atu ralistas com os quais é obrigado a
acertar contas são os ju sn atu ralistas dos séculos X V II e X V III.
A R ousseau — considerado segundo um juízo tran sm itid o
através d a filosofia política da R estauração, que tem em R ous­
seau o seu g rande inim igo, como o extrem o florescim ento do
racionalism o ético e do abstratism o político — , refere-se Cro-
ce, q uando condena as “ construções geom étricas e m ecâni­
cas” de to d a a escola do direito n atu ral, criad as q uando “ se
desenvolvia e crescia a ciência m atem ática d a natu reza, e o
h ábito m ental, que nela se form ava, era transferido p a ra to d a
p arte, p a ra a filosofia, a história, a política” . 21
C ontudo, é verdade que o historicism o, em todas as suas
form as, não se lim itou a fazer u m a crítica m etodológica do
jusnatu ralism o , p orque — m uito freqüentem ente — a crítica
m etodológica não foi m ais do que pretexto p a ra u m a crítica
política. Desse m odo, a crítica política teve pelo m enos duas
faces opostas (e m uitas outras interm ediárias): a conserva­
dora, que viu no abstratism o do direito de razão o princípio da
subversão da ordem constituída; e a revolucionária, que viu
no m esm o abstratism o a ilusão, m as apenas a ilusão, senão
m esm o o enganoso pretexto de u m a nova ordem fu n d a d a n a

(19) F. Meinecke, Le origini dello storicismo, tra d . it ., Florença, Sansoni,


1954, p. 4.
(20) Ib id ., p. XI.
(21) Esse juízo pode ser lido nos Elem enti di politica (1925), que cito de B.
Croce, Etica epolitica, Bári, L aterza, 3? ed., 1945, p. 257. A passagem citad a con­
tinua, surpreendentem ente, do seguinte modo: “ É característico que a nova ciência
que então surgiu, concernente à atividade h u m an a, fosse precisam ente a ciência
m atem atizante da utilidade, a A ritm ética política (com o inicialm ente foi cham ada)
ou E conom ia, como a cham am os nós. O livro de R ousseau é u m a form a extrem a, ou
um a das form as extrem as, e certam ente a m ais fam osa, da escola ju s n a tu ra lis ta ’’
(p. 257). Sobre essas teses de Croce, cf. o com entário de G . Cotro neo, Croce e Villu-
m inism o, Nápoles, G iannini, 1970, p p. 178-83.
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LlTIC A M O D ER N A 33

lib e rd a d e s n a igualdade, enquanto a liberdade e a igualdade


efetivam ente reivindicadas eram lim itadas e p arciais, não um
bem de todos, m as um bem da classe hegem ônica. A crítica
m etodológica, ao contrário, teve sem pre u m a única face: o
jusnaturalism o, desse ponto de vista, é acusado de te r querido
estudar o m undo da história com os m esm os instrum entos
conceituais com os quais os físicos estu d aram o m undo da
natureza, e, ao fazer isso, term in aram — o que não deve p a ­
recer um trocadilho — por “ desnaturá-lo” .
O modelo hobbesiano

A crítica an tiju sn atu ralista do historicism o atingia so­


b retu d o a teoria política que a dou trin a do direito n a tu ra l cria­
ra e divulgara. Com o já dissem os, no âm bito d a escola do
direito n a tu ra l foram com preendidos alguns dos m aiores es­
critores políticos dos séculos XV II e X V III, de H obbes a Rous-
seau. A história d a filosofia política daqueles dois séculos
coincide em g rande p a rte com a história do ju snaturalism o:
ninguém pode escrever a história das idéias políticas d a época
que intercorre en tre o R enascim ento e o R om antism o sem le­
var em conta, além dos escritos políticos estritam ente en ten ­
didos, tam bém os grandes tratad o s de direito n a tu ra l, de P u ­
fendorf a B urlam aqui. Com relação à trad ição ju ríd ica an te ­
rior, a tra ta d ística do direito n a tu ra l represen ta u m a inovação
p a ra a qual é preciso ch am ar m ais u m a vez a atenção: n a
sistem atização geral do direito, ela com preende, ao lado do
direito privado, p a ra o qual eram o rientadas de m odo exclu­
sivo as tentativas de redigere ius in artem dos ju rista s do R e­
nascim ento (cuja m atéria era o Digesto), tam b ém o direito
público. As g randes disputas m etodológicas, que tin h am divi­
dido entre si os tradicionalistas e os hum an istas, m anifesta-
ram -se predom in an tem en te no terreno do direito privado. A
idéia de que o direito rom ano fosse ratio scripta, e, enqu an to
tal, desfrutasse do privilégio de u m a validade que se p erp etu a
e se renova no tem po, era u m a dou trin a que se referia ao ius
p riva tu m , não ao iu$ p u b lic u m . Não (jy ^ g jJ jjjjto rom ano não
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O DERNA 35

constituísse u m fund am en to confiável p a ra a solução de al­


guns problem as capitais fam bém do direito público: b a sta
pensar n a im p o rtân cia que, desde a época dos glosadores, teve
a lex de im pério (sobre a q ual falarem os ad ian te), com a fin a­
lidade de estabelecer o fundam ento e os lim ites da soberaniá,
p a ra d a r corpo a u m a teoria d a legitim idade. M as direito p ri­
vado e direico público perm aneciam h ab itu alm en te separados.
E n q u an to o direito privado se fora desenvolvendo sem a p a ­
rente solução de continuidade através d a interpretatio dos ju ­
ristas — cham ados a resolver controvérsias que, m esm o n as­
cendo de u m a sociedade diversa da sociedade rom ana, conti­
nuavam a envolver de qualq u er m odo institutos típicos de di­
reito privado, com o p ropriedade, contratos, testam entos — ,
o direito público m oderno nascera de conflitos de poder desco­
nhecidos n a sociedade antiga: antes de m ais n ad a, o conflito
entre p oder esp iritual e p oder tem poral, que constituiu por
alguns séculos o principal argum ento d a tra ta d ístic a política,
e, po r conseguinte, o conflito entre regna e im perium , ou
aquele en tre regna e civitates.
Indubitavelm ente, o direito público — ou, p a ra dizer m e­
lhor, aquele em brião de direito público que se fora elaborando
d u ran te a Id ad e M édia — aproveitara-se grandem ente das
principais categorias do direito privado: b a sta p en sar n a equi­
p aração en tre im perium e dom inium , que p erm itia an alisar o
poder soberano através das refinadas categorias em pregadas
p a ra a decom posição e reconstrução dos direitos do p ro p rie­
tário e dos direitos reais em geral; e, sobretudo, à teoria do
pactum ou dos diversos pacta, que deviam servir p a ra explicar
as relações en tre soberano e súditos, e p e rm itira tra ta r ju rid i­
cam ente, ou seja, com o u m a questão a ser resolvida recor­
rendo-se à lógica do discurso jurídico, o p ro b lem a fun d am en ­
tal d a obrigação, ou m elhor, dos lim ites d a obrigação, d a obe­
diência às leis po r p a rte dos súditos (o pro b lem a, com o depois
será cham ado, d a obrigação política). M as, a u m a sistem ática
geral do direito, que com preendesse ao m esm o tem po e com
igual dignidade ta n to o direito privado q u an to o direito p ú ­
blico, jam ais se chegara antes d a tra ta d ística do direito n a tu ­
ral. Se se deve reconhecer à escola do direito n a tu ra l o m érito
de ter feito a m aior tentativa jam ais realizada até então de d ar
um a sistem atização geral à m atéria ju ríd ica, de racionalizar o
36 N O R B ER T O BO BBIO

direito, esse m érito lhe deve ser reconhecido m ais ain d a no


âm bito do direito público que no do direito privado.
C om parem os a prim eira grande o b ra política, que assi­
n ala o início do ju sn atu ralism o político e do tra ta m e n to racio­
nal do p roblem a do E stado, o De eive de H o b b e s ,1 com a
m aior o b ra política e de direito público que a precede: o D e la
république (1576) de Jean Bodin. (A co m paração é lícita p o r­
que, n u m a concepção essencialm ente legalista do E stado,
com o a que aco m p an h a o nascim ento do E stad o m oderno e
com preende to d a a escola do direito n a tu ra l, n ão é possível
distinguir n itid am en te entre a filosofia política e o direito p ú ­
blico.) A diferença q u an to ao m odo de tr a ta r os problem as
nas duas obras — m ais u m a vez, a diferença em relação ao
m étodo — é enorm e. É a diferença que intercorre en tre o m é­
todo trad icio n al do ju rista , que extrai suas p ró p rias soluções
d a análise dos precedentes autorizados e das sugestões ofere­
cidas pelo estudo d a história, e o m étodo “ geom étrico” , o
qual, prescindindo de tu d o o que podem te r dito os autores
precedentes e não levando em consideração o ensinam ento da
história, b u sca o cam inho de u m a reconstrução m eram ente
racional d a origem e do fundam ento do E stad o . Os tratad o s
de filosofia política anteriores a H obbes se apoiavam m onoto­
n am ente sobre dois pilares, a p onto de aparecerem freqüente­
m ente com o n a d a m ais que u m a repetição do j á dito: a Polí­
tica de A ristóteles e o direito rom ano, ou, m ais precisam ente,
a q íè la s passagens do Codex referentes à fonte do p o d er im pe­
rial e que, a p a rtir dos glosadores, haviam sido in terp retad as
de variados m odos. D essa interpretação d erivara u m a densa
rede de opiniões d a q ual nenhum escritor político considerava
poder p rescindir. A inda recentem ente, foi observada e docu­
m en tad a a estreita analogia de e stru tu ra en tre o tra ta d o de
Bodin e o de A ristóteles, bem como “ o p a n o ra m a medieva-
lista, em seu con ju n to ” , que se m anifesta a quem a n o tar as

(1) A p rim eira edição é de 1642; a segunda, d estin ad a a divulgação públic


de 1647. O titulo exato é E lem enta philosophica de eive. J á em 1640, H obbes com pu­
sera u m a p rim eira redação de seu sistem a filosófico, com referência p articu lar à filo­
sofia politica, T h e Elem ents o fL a w Natural and Politic, p ublicado em su a form a o ri­
ginal som ente em 1889 p o r F . Tõnnies; tra d . it., p or A. Pacchi, Flo rença, L a Nuova
Itália, 1968.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LITIC A M O D ER N A 37

citações ju ríd icas d a R epublique . 2 Ju n tam en te com a au to ri­


dade d a história, com o h á pouco observam os, H obbes varre
tam bém a au to rid ad e de A ristóteles, co n tra quem to m a posi­
ção desde as prim eiras páginas do De eive, contrap o n d o à
hipótese do hom em naturaliter social, acolhida m ediocre-
m ente até G rócio (inclusive), a hipótese do hom o hom ini lu-
p u s ; e não parece levar em conta a existência de um direito
público que faz apelo ao direito rom ano, em b o ra utilize al­
guns de seus conceitos fundam entais, com o o do pacto que
serve de fundam ento ao p o d er estatal e o do E stad o com o pes­
soa m oral. H obbes faz tabula rasa de todas as opiniões an te ­
riores e constrói sua teoria sobre as bases sólidas, in d e stru ­
tíveis, do estudo d a n a tu reza h u m an a e dos carecim entos que
essa n a tu re z a expressa, bem como do m odo — do único m odo
possível, dados aqueles pressupostos — de satisfazer tais care­
cim entos.
No tocante ao p roblem a crucial do fu n d am en to e d a n a tu ­
reza do E stado, pode-se com ju steza falar — a com eçar p o r
H obbes — de um m odelo ju s n a tu ra lis ta ,3 ad o tad o , em bora
com notáveis variações, pelo m enos até H egel incluído-excluí-
do, p o r alguns dos m aiores filósofos políticos d a época m o­
derna. Se, n a teoria geral do direito, o que aproxim a os escri­
tores do direito n a tu ra l, perm itindo falar de u m a escola do di­
reito n a tu ra l, é — como já dissemos — o m étodo, sobretudo
quando com parado com o das grandes escolas ju ríd icas que a
precederam e a sucederam , no que se refere ao direito público
e à d o u trin a do E stad o as obras ju sn atu ralista s, aquelas que
seus criadores e seus adversários consideram com o tais, são
caracterizadas não só pelo procedim ento racionalizante, ou
seja, p o r um m étodo, com o tam bém p o r u m m odelo teórico
(tão geral que pode ser preenchido com os m ais diversos con­
teúdos), que rem o n ta a H obbes e do qual são devedores, m ais
ou m enos conscientem ente, tan to Spinoza q u a n to P ufendorf,
tan to Locke q u an to R ousseau (e cito p ropositalm ente autores
diferentíssim os com relação ao conteúdo ideológico dos seus

(2) M . Isnardi P arente, Introduzione a J. Bodin, I sei libri dello stato, n a co­
leção dos “ Classici politici” , dirigida p o r L. Firpo, T u rim , U tet, 1964, vol. I, p . 23.
(3) R etom o e desenvolvo o tem a tratad o no ensaio “ II m odello giusnaturalis-
tico” , in Rivista Internazionale diFilosofia dei D iritto, 1973, p p . 603-22.
38 N O R B ER TO BO BBIO

escritos). F alan d o de “ m odelo” , quero fazer en ten d er im edia­


tam ente que, n a realidade histórica, um processo de form ação
d a sociedade civil, ta l com o o idealizado pelos ju sn atu ralistas,
jam ais teve lugar: n a evolução das instituições de onde nasceu
o E stado m oderno, ocorreu a passagem do E sta d o feudal p a ra
o E stado de estam entos, do E stado de estam entos p a ra a m o­
n a rq u ia absoluta, d a m o n arq u ia absoluta p a ra o E stado re­
presentativo; m as o E stad o como p ro d u to d a vontade racio­
nal, como é o caso daquele a que se referem H obbes e seus
seguidores, é p u ra idéia do intelecto.
O m odelo é constituído com base em dois elem entos fu n ­
dam entais: o estado (ou sociedade) de n a tu re za e o estado (ou
sociedade) civil. T rata-se de u m m odelo claram en te dicotô­
mico, no sentido de que tertium non datur: o hom em ou vive
no estado de n a tu re za ou vive no estado civil. Não pode viver
ao m esm o tem po em u m e outro. D a dicotom ia p rincipal, es­
tad o de n a tu re z a /e sta d o civil, os ju sn atu ralista s fazem em
cad a o p o rtu n id ad e, com o ocorre com to d a dicotom ia, o ra um
uso sistem ático, n a m edida em que os dois term os servem p a ra
com preender to d a a vida social do hom em ; o ra um uso histo-
riográfico, q u an d o o curso d a história é explicado como p a s­
sagem do estado de n atu reza p a ra o estado civil e, eventual­
m ente, com o u m a recaíd a do estado civil no estado de n a tu ­
reza; o ra um uso axiológico, n a m edida em que a cad a u m dos
term os é a trib u íd o um valor antitético com relação ao outro
(p a ra quem a trib u i u m valor negativo ao estado de n atu reza, o
estado civil tem um valor positivo, e vice-versa).4 E n tre os dois
estados, h á u m a relação de contraposição: o estado n a tu ra l é o
estado não político, e o estado político é o estado não n atu ral.
E m ou tras palavras, o estado político surge com o antítese do
estado n a tu ra l, do q ual tem a função de elim inar os defeitos, e

(4) Sobre esses três usos dos sistem as conceituais, detive-m e pela p rim eira
no artig o “ La g rande dicotom ia” , em S tu d i in m emória de Cario Esposito, P ád u a,
C edam , 1974, p p . 2187-2200 (e, depois, no volum e Dalla struttura alia fu n zio n e,
N uovi stu d i di teoria dei diritto, M ilão, C om unità, 1977, p p . 145-63). A “ gran d e d i­
cotom ia” de que falo é a distinção entre direito privado e direito público. — V ali-m e
d a idéia tam bém n a análise da teoria clássica das form as de governo, ta n to no artigo
“ Vico e la teoria delle form e di governo” , in Bolettino dei Centro d i S tu d i Vichiani,
1978, p p . 5-27, q u an to no verbete “ D em o cra z ia /D itta tu ra ” d a Enciclopédia Ei-
naudi, vol. IV , p p . 535-58 (publicado em 1978).
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O DERNA 39

o estado n a tu ra l ressurge com o antítese do estado político,


quando esse deixa de cu m p rir a finalidade p a ra a qual foi ins­
tituído. A contraposição en tre os dois estados consiste no fato
de serem os elem entos constitutivos do prim eiro indivíduos
singulares, isolados, não associados, em bora associáveis, que
atuam de fato seguindo não a razão (que perm anece oculta ou
im potente), m as as paixões, os instintos ou os interesses; o
elem ento constitutivo do segundo é a união dos indivíduos iso­
lados e dispersos n u m a sociedade p erp étu a e exclusiva, que é
a única a p erm itir a realização de u m a vida conform e a razão.
Precisam ente p o rque estado de n atu reza e estado civil são
concebidos com o dois m om entos antitéticos, a passagem de
um p a ra outro não ocorre necessariam ente p ela p ró p ria força
das coisas, m as po r meio de u m a ou m ais convenções, ou seja,
por meio de um ou m ais atos voluntários dos próprios in d i­
víduos interessados em sair do estado de n atu reza, ou seja, em
viverem conform e a razão. N a m edida em que é antitético ao
estado de n atu reza, o estado civil é um estado “ artificial” ,
produto, como se diria hoje, de cu ltu ra e não de n a tu reza (d aí
a am bigüidade do term o “civil” , que significa ao m esm o tem ­
po “ político” , de civitas, e civilizado, de civilitas). D iferente­
m ente do que ocorre com qualq u er o u tra form a de sociedade
n atu ral, em que o hom em pode viver independentem ente de
sua vontade — , com o é o caso, segundo a tradição, d a socie­
dade fam iliar e da sociedade senhorial — o princípio de legiti­
m ação d a sociedade política é o consenso.
O modelo aristotélico

I nduz-m e a fa la r de m odelo tam b ém a consideração


que, n a filosofia política an terio r à do direito n a tu ra l, tivera
lugar d u ra n te séculos u m a reconstrução d a origem e do fu n ­
dam ento do E stado com pletam ente diversa e, sob todos os as­
pectos, oposta, n a q ual é possível (e útil) perceber um m odelo
alternativo. T rata-se do m odelo que pode ser cham ado com
ju steza, em função do seu autor, de “ aristotélico” , assim como
o oposto pode com igual direito ser cham ado de “ hobbe-
siano” , m esm o levando em conta que não foi certam ente Hob-
bes quem o inventou, dado que a idéia d a origem convencio­
nal do E stado já era conhecida n a A ntiguidade e teve curso
especialm ente n a Id ad e M édia até a redescoberta de A ristó­
teles; m as foi a H obbes que se referiram todos os escritores
subseqüentes. D esde as prim eiras páginas d a Política, A ristó­
teles explica a origem do E stado en q u an to polis ou cidade,
valendo-se não de u m a construção racional, m as de u m a re­
construção histórica das etap as através das quais a h u m a n i­
dade teria passado das form as prim itivas às form as m ais evo­
luídas de sociedade, até chegar à sociedade p erfeita que é o
E stado. As etap as principais são a fam ília (que é a form a p ri­
m itiva de sociedade) e a aldeia. Com suas p ró p rias palavras:
“ A com unidade que se constitui p a ra a vida de todos os dias é
po r n a tu reza a fam ília (...). A prim eira com unidade que de­
riva da união de m ais de u m a fam ília, voltada p a ra satisfazer
u m a necessidade não m ais cotidiana, é a aldeia ( ...). A com u-
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 41

nidade p erfeita de m ais de u m a aldeia constitui agora a ci­


dade, que alcançou o que se ch am a de nível de auto-suficiên-
cia, e que surge p a ra to rn a r possível a vida e subsiste p a ra
produzir as condições de u m a boa existência” . 1
São surpreendentes a d uração, a co n tinuidade, a estab i­
lidade, a vitalidade de que deu prova esse m odo de descrever a
origem do E stado. Ã m edida que ap resen ta a evolução d a so­
ciedade h u m a n a com o u m a passagem g rad u al de u m a socie­
dade m enor p a ra u m a m ais am pla, resu ltan te d a união de
várias sociedades im ediatam ente inferiores, pôde fácil e docil­
m ente ser estendido a outras situações, à m ed id a que as di­
m ensões do E stado, ou seja, d a sociedade auto-suficiente e
como tal perfeita, cresciam , passando d a cidade à província,
da província ao reino, do reino ao im pério. N a lógica desse
tipo de reconstrução do E stado, é exem plar a longa seqüência
en u nciada p o r T om m aso C am panella no início dos seus A fo ­
rismos políticos (escritos nos prim eiros anos do século X V II):
“ A prim eira união ou com unidade é a do m acho e d a fêm ea.
A segunda, a dos geradores e dos filhos. A terceira, a dos se­
nhores e servidores. A q u a rta é de u m a fam ília. A q u in ta, de
m ais de u m a fam ília n u m a vila. A sexta é a de m ais de u m a
vila em u m a cidade. A sétim a, a de m ais de u m a cidade n u m a
província. A oitava, a de várias províncias nu m reino. A n ona
é a m ais de um reino sob um im pério. A décim a é a de m uitos
im périos sob m ais de u m clim a e m eridianos ou sob o m esm o.
A décim a-prim eira é a de todos os hom ens sob a espécie h u ­
m an a” . 2
E ssa passagem p erm ite ver, entre o u tras coisas, como o
m odelo aristotélico chegou inalterado até o lim itar da nova
era. A inda em D e la republique, Bodin d á início ao tr a ta ­
m ento d a m atéria com a seguinte definição de E stado: “ P or
E stado, entende-se o governo ju sto que se exerce com poder
soberano sobre diversas fam ílias e sobre tu d o o que elas têm
em com um en tre si” . 3 M ais adiante, tendo de com entar a p a r­
te d a definição que se refere a “ diversas fam ílias” , explica que

(1) A ristóteles, Política, 1252 a.


(2) T . C am panella, A fo rism ip o litici, ed. p or L. F irpo, T urim , G iappichelli,
1941, af. 3, p . 89.
(3) J. Bodin, I s e i libri delia repubblica, ed. cit., p . 159.
42 N O R B ER TO BO BBIO

a fam ília “ é a verdadeira origem do E stad o e constitui sua


p arte fu n d am en tal” .4 O au to r d a m aior o b ra política antes de
Grócio, Johannes A lthusius, define a civitas, ou seja, a conso-
ciatio política, com o u m a sociedade de segundo grau (m as
pode tam bém ser de terceiro ou q uarto, segundo as passagens
interm ediárias, sem que a lógica do m odelo deva ser m odifi­
cada), ou seja, como u m a sociedade que resu lta d a agregação
de sociedades m enores, das quais as fam ílias são as prim eiras
na ordem do tem po: Universitas haec est plurium coniugum,
fam iliarum et collegiorum, in eodem loco habitantium , certis
legibusfacta consociatio. Vocatur alias civitas . 5
Após te r iniciado a exposição falando d a consociatio do­
mestica, isto é, d a fam ília (cap. II), A lthusius passa p a ra a
consociatiopropinquorum , ou seja, a aldeia (cap. III), depois
p a ra as espécies inferiores d a societas civiles, os colégios, que
são associações não m ais n atu rais porém artificiais (cap. IV),
p a ra chegar a graus sucessivos, m ediante círculos que se a m ­
pliam c ad a vez m ais, à civitas (na q ual distingue u m a “ rú s­
tica” e u m a “ u rb a n a ” ), e, finalm ente, passa das civitates,
através d a s provinciae, até o regnum (que corresponde ao E s­
tado pro p riam en te dito, n a acepção m od ern a d a palavra),
definido como universalis m aior consociatio (cap. X). O fato
de que, independentem ente d a q u an tid ad e e d a qualidade dos
graus, variáveis de a u to r p a ra au to r, a teo ria política althu-
siana ain d a se desenvolva inteiram ente no in terio r do esquem a
reconstrutivo g rad u alista proposto p o r A ristóteles, é algo ates­
tado do m odo m ais claro possível pelo p róprio au to r, q uando
afirm a — no princípio do capítulo V — que a sociedade h u ­
m an a passa das sociedades privadas p a ra as sociedades p ú ­
blicas certis gradibus ac progressionibus .
à reconstrução racional proposta pelos ju sn atu ralista s, o
m odelo tradicional contrapõe u m a reconstrução histórica
(ain d a que u m a história im aginária). O ponto de p a rtid a não
é um ab strato estado de n atureza, no q ual os hom ens se en ­
contrariam antes d a constituição do E stad o , e que o precede

(4) Ib id . , p . 172.
(5) J. A lthusius, Política metodice digesta, cap. V, 8, que cito da edição de C.
J. F riedrich, n a coleção “ H arv ard Political Classics” , C am bridge U niversity Press,
1932, p . 21.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 43

lógica e não cronologicam ente, m as a sociedade n a tu ra l origi­


nária, a fam ília, é u m a form a específica, concreta, historica­
m ente d eterm in ad a, d a sociedade h u m an a. E n q u a n to o m o­
delo hobbesiano é dicotôm ico e fechado (ou o estado de n a tu ­
reza ou o estado civil), o m odelo aristotélico é p lu ral e aberto
(do prim eiro ao últim o g rau, os graus interm ediários podem
variar de núm ero). E n q u a n to no prim eiro m odelo, precisa­
m ente en q u an to dicotôm ico, um dos dois term os é a antítese
do outro — e, p o rtan to , estado de n atu reza e estado civil são
colocados um diante do outro n u m a relação de antagonism o
— , no segundo m odelo, entre a sociedade prim itiva e origi­
n ária e a sociedade ú ltim a e perfeita que é o E stado, h á ijm a
relação de co n tinuidade ou de evolução ou de progressão, no
sentido de que, do estado de fam ília ao estado civil, o hom em
passou através de fases interm ediárias que fazem do E stado,
não a antítese do estado pré-político, m as o desaguadouro n a ­
tu ral, o p o n to de chegada necessário, a conclusão de certo
m odo quase p red eterm in ad a de u m a série m ais ou m enos
longa de etap a s obrigatórias. Se é verdade que a antítese entre
as duas figuras d a dicotom ia no m odelo ju sn a tu ra lista de­
pende do fato de que a prim eira figura rep resen ta o indivíduo
no m om ento do seu isolam ento, ou, p a ra u sa r u m a célebre
expressão de Hegel, o “ sistem a d a atom ística” , e a segunda o
representa unido em socidade com outros indivíduos, é igual­
m ente verdade que o gradualism o do segundo m odelo de­
pende do fato de que, desde a origem , os indivíduos são ap re­
sentados com o reunidos em sociedade. D aí resu lta que a p a s­
sagem de u m a fase p a ra ou tra, en quanto passagem de u m a
form a de sociedade p a ra u m a o u tra m aior (sem p o r isso ser
mais evoluída), é u m a transform ação não qualitativa, m as
p redom inantem ente quantitativa. F inalm ente, a passagem de
um a fase p a ra ou tra, do estado pré-político p a ra o estado polí­
tico, precisam ente n a m edida em que ocorre p o r um processo
n a tu ra l de extensão das sociedades m enores à sociedade
m aior, não se deve a u m a convenção — ou seja, a um ato de
vontade racional — , m as ocorre através do efeito de causas
n atu rais, através d a ação de condições objetivas, rebus ipsis
dictantibus, com o diria Vico, tais com o a am pliação do te rri­
tório, o au m ento d a população, a necessidade de defesa, a ca­
rência de o b ter os meios necessários à subsistência, a divisão
44 N O R B ER T O BOBBIO

do trab alh o , etc., com a conseqüência de que o E stado, em


vez de ser concebido como homo artificialis , não é m enos n a ­
tu ra l que a fam ília. Nesse quadro, o princípio de legitim ação
da sociedade política não é m ais o consenso, porém o estado
de necessidade, ou, m ais sim plesm ente, a p ró p ria n atu reza
social do hom em .
C o m parando en tre si as características diferenciadoras
dos dois m odelos, em ergem com nitidez algum as das grandes
alternativas que caracterizam o longo cam inho d a reflexão
política até Hegel: a) concepção racio n alista ou histórico-
sociológica d a origem do E stado; b) o E stad o com o antítese ou
como com plem ento do hom em n atu ral; c) concepção indivi­
dualista e atom izante e concepção social e o rgânica do E stado;
d) teoria co n tra tu alista ou n a tu ra lista do fu n d am en to do p o ­
der estatal; e) teoria d a legitim ação através do consenso ou
através d a força das coisas. Essas alternativas referem -se aos
problem as d a origem (a), d a n atu reza (b), d a e stru tu ra (c), do
fundam ento (d), d a legitim idade (e) daquele sum o pod er que
é o p o d er político em relação a todas as o u tras form as de p o ­
der do hom em sobre o hom em .
D e todas as diferenças entre os dois m odelos, a m ais rele­
vante p a ra u m a in terp retação histórica e (com todas as cau te­
las do caso) ideológica de am bos é a que se refere à relação
indivíduo/sociedade. No m odelo aristotélico, está no início a
sociedade (a sociedade fam iliar como núcleo de todas as for­
m as sociais posteriores); no m odelo hobbesiano, está no p rin ­
cípio o indivíduo. No prim eiro caso, o estado pré-político p o r
excelência, ou seja, a sociedade fam iliar en ten d id a no sentido
am plo de organização d a casa (óikos ) — o prim eiro livro d a
Política de A ristóteles é dedicado ao governo d a casa ou eco­
nom ia — , onde p o r “ casa” se entende ta n to a sociedade do­
m éstica q u an to a sociedade senhorial, é um estado no q u al as
relações fu n d am en tais são relações entre superior e inferior e,
p o rtan to , são relações de desigualdade, com o é o caso, preci­
sam ente, das relações entre p ai e filhos e senhor e servos. No
segundo caso, o estado pré-político, ou seja, o estad o de n a tu ­
reza, sendo u m estado de indivíduos isolados, que vivem fora
de q u alq u er organização social, é u m estado de liberdade e de
igualdade, oü de independência recíproca; e é precisam ente
esse estado que constitui a condição p relim in ar necessária d a
SO C IED A D E E E STA D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D ER N A 45

hipótese c o n tratu alista, já que o contrato pressupõe em seu


surgim ento sujeitos livres e iguais. D o m esm o m odo com o, no
estado de n a tu reza, são n a tu ra is a liberdade e a igualdade, no
estado social do m odelo aristotélico são n a tu ra is a dependên­
cia e a desigualdade. E n q u an to estado de indivíduos livres e
iguais, o estado de n atu re za é o local dos direitos individuais
naturais* a p a rtir dos quais é constituída de vários m odos e
com diferentes resultados políticos — a sociedade civil.
A p a rtic u la r im p o rtân cia desse co ntraste se revela no fato
de ser a ele que se refere principalm ente a in terp retação co r­
rente que faz do m odelo ju sn a tu ra lista o reflexo teórico e, ao
mesm o tem po, o projeto político d a sociedade burguesa em
form ação. D essa in terp retação , os traços m ais destacados são
os seguintes: a) o estado de n atu reza é o local das relações
m ais elem entares entre os hom ens, idest das relações econô­
micas: en q u an to tal, ele rep resen ta a descoberta d a esfera eco­
nôm ica com o d istin ta d a esfera política; d a esfera p rivada
como d istin ta d a esfera pública, descoberta que é p ró p ria de
u m a sociedade n a qual desaparece a confusão en tre poder eco­
nôm ico e p o d er político que é característica d a sociedade feu­
dal; b) essa esfera das relações econôm icas é regida p o r leis
próprias de existência e de desenvolvim ento, que são as leis
n atu rais: en q u an to tal, ela representa o m om ento da em anci­
pação d a classe que se p re p a ra p a ra to rn ar-se econom ica­
m ente dom in an te com relação à situação existente; c) en ­
quanto estad o no qual os sujeitos são indivíduos singulares,
a b stratam en te independentes uns dos outros e, p o rtan to , em
contato ou em conflito en tre si exclusivam ente p o r m eio da
posse e d a tro c a recíproca de bens, o estado de n atu reza re ­
flete a visão individualista d a sociedade e d a h istória, com u-
m ente co n sid erad a com o u m traço distintivo d a concepção do
m undo e d a ética burguesas; d) a teoria co n tratu alista, ou
seja, a idéia de um E stado fu ndado sobre o consenso dos in d i­
víduos destinados a dele fazer p arte, rep resen ta a tendência
da classe, que se move no sentido d a em ancipação política e
não só econôm ica e social, no sentido de p ô r sob o próprio
controle o m aio r in stru m en to de dom inação de que se serve
um grupo de hom ens p a ra o bter obediência; em o utras p a la ­
vras, reflete a idéia de que u m a classe que se encam inha no
sentido de se to rn a r econôm ica e ideologicam ente dom inante
46 N O R B ER T O BO BBIO

deve con q u istar tam b ém o poder político, ou seja, deve criar o


E stado à sua im agem e sem elhança; e) a tese de que o p oder é
legítim o só n a m edida em que é fundado sobre o consenso é
p ró p ria de quem lu ta p a ra conquistar um p o d er que ain d a
não possui, e depois, u m a vez conquistado o poder, p assa a
defender a tese contrária; f) finalm ente, os ideais de liberdade
e de igualdade, que encontram seu lu g ar de realização no es­
tado de n atu reza, ain d a que um lugar im aginário, indicam e
prescrevem um m odo de conceber a vida em sociedade anti-
tético ao tradicional, segundo o qual a sociedade h u m a n a é
construída com base n u m a ordem h ierárq u ica tendencial-
m ente estável, já que conform e à n atu reza das coisas, e c arac ­
terizam aq u ela concepção lib ertária e ig u alitária que anim a
po r to d a p a rte os m ovim entos burgueses co n tra os vínculos
sociais, ideológicos, econômicos e políticos que obstaculizam
sua ascensão.
U m a prova a contrario d a ru p tu ra que o m odelo ju sn atu -
ralista intro d u z n a concepção clássica, bem com o do signifi­
cado ideológico-político que essa ru p tu ra assum e no desenvol­
vim ento das reflexões sobre a form ação do E stado m oderno,
pode ser ex traíd a d a seguinte observação: a p a rtir do dom ínio
quase in co n trastad o do m odelo ju sn atu ralista , sem pre que é
reexum ado o m odelo clássico, particu larm en te através de u m a
reto m ad a da reavaliação d a fam ília com o origem d a sociedade
política e com o local privilegiado d a vida econôm ica, e que o
E stado é figurado com o u m a fam ília em ta m an h o am pliado
(concepção pa tern alista do p oder político), com a conseqüente
negação de u m estado originário constituído p o r indivíduos
livres e iguais; sem pre que é feita u m a crítica acerb a co n tra o
contrato social, com a conseqüente afirm ação d a n atu ralid ad e
do E stado; sem pre que é refu tad a a antítese en tre estado de
n atu reza e estado civil, com a conseqüente concepção do E s­
tado como continuação necessária d a sociedade fam iliar, isso
ocorre p o r o b ra de escritores reacionários (entendendo po r
“ reacionários” os que são hostis às grandes m u d an ças econô­
micas e políticas de que foi protagonista a burguesia). São
exem plos típicos R obert F ilm er, u m dos últim os defensores d a
restauração m o n árq u ica depois d a Revolução Inglesa, e C ari
Ludwig von H aller, u m dos m ais conhecidos escritores políti­
cos da R estauração depois d a Revolução Francesa.
SO C IED A D E E ESTA D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D ER N A 47

O alvo político de F ilm er é a teoria d a liberdade n a tu ra l


dos hom ens, d a q ual decorre a afirm ação (p o r ele ju lg ad a in ­
fu n d ad a e blásfem a) de que os hom ens têm o direito de esco­
lher a form a de governo que preferem . P a ra Film er, a única
form a de governo legítim a é a m onarquia, p o rq u e o fu n d a ­
m ento de todo p o d er é o direito que tem o p ai de com an d ar os
filhos; e os reis são ou originariam ente os próprios pais, ou, no
decorrer do tem po, os descendentes dos pais ou os seus dele­
gados. A concepção ascendente do poder, p ró p ria das teorias
contratualistas, Film er contrapõe u m a concepção rigidam ente
descendente: o p o d er jam ais se transm ite, segundo Film er, de
baixo p a ra cim a, m as sem pre de cim a p a ra baixo. A p a rtir do
m om ento em que o p arad ig m a de toda form a de poder do
hom em sobre o hom em é o p oder do pai sobre os filhos, entre
a sociedade política e a sociedade fam iliar não existe, p a ra
Film er, u m a diferença essencial: h á apenas u m a diferença de
grau. V ejam os com o ele se expressa: “ Se se com param os di­
reitos n a tu ra is de um p ai com os de um rei, não perceberem os
ou tra diferença além da am plitude e da extensão: como o pai
de u m a fam ília, assim o rei estende sobre m uitas fam ílias a
sua preocupação p a ra conservar, n u trir, vestir, in stru ir e de­
fender toda a co m unidade” . 6
Não diversam ente se m anifesta H aller, o qual, m esm o
não conhecendo a o b ra de Film er, declara que o título “ parece
in dicar u m a ex ata idéia fu n d am en tal” 7(em bora, como ele a d ­
verte logo após, excessivam ente restrita). U m dos propósitos
m ais insistentem ente repetidos em sua o b ra fundam ental,
Restauration der Staats-W issenschaft (Restauração da ciência
política), de 1816-1820, é o de m ostrar que “ os agrupam entos
hum anos-denom inados de E stados não diferem p o r natureza,
mas som ente em grau, das outras relações sociais” . 8 Essa te n ­
tativa é perseguida através de um ataq u e contínuo co n tra as

(6) R. F ilm er, Patriarcha or the Natural Power o f K ings (1680), que cito da
edição de L. Pareyson, publicada com o apêndice aos D ue tra tta ti dei governo civile,
de Locke, T u rim , U tet, 2? ed. revista, 1960, cap. 1, § 10, p . 462.
(7) C. L. von H aller, Restauration der Staats-W issenschaft (1816-1820), que
cito da edição de M . S ancipriano, n a coleção dos “ Classici politici” , T urim , U tet,
1963, vol. I, p . 154.
(8) Ib id ., p. 130. O grifo é nosso.
48 N O R B ER T O BOBBIO

várias form as assum idas pela teoria co n tratu alista, conside­


ra d a u m a “ q u im era” , e p o r meio da tese segundo a qual o
E stado não é m enos n a tu ra l que as form as m ais n a tu ra is da
vida social. Assim , não é possível tra ç a r n en h u m a diferença
entre as sociedades n atu rais e aquelas falsam ente cham adas
de “ civis” : “ A A ntiguidade ignorava, com o ain d a hoje o
m undo inteiro ignora (com exceção das escolas filosóficas),
toda a term inologia que se faz p assar p o r científica e que e sta­
belece u m a essencial diferença entre o estado de n atu reza e o
estado civil” .9 P o rtan to , dado que os E stados não são criados
m ediante um ato d a razão hu m an a, m as se form aram através
de um processo n a tu ra l, “ a diferença en tre os E stados e as
dem ais relações sociais consiste apenas n a independência, ou
seja, num m ais alto grau de poder e de lib erd ad e” . 10 Não se
poderia dizer de m odo m ais claro que, en tre sociedades pré-
estatais e E stado, h á u m a diferença de g rau e não u m a a n tí­
tese. N a cadeia finita de várias sociedades, u m a sobre a o u tra,
é inevitável que se chegue a u m a sociedade d a q ual as outras
dependam e que, p o r sua vez, não depende de n en h u m a o u tra.
Essa sociedade ú ltim a é o E stado. M as a p ró p ria sociedade
pode se to rn a r E stad o e pode p erder a qualidade de E stado
sem m u d a r sua p ró p ria natureza.

(9) Ib id . , p. 472.
(10) Ib id ., p . 476.
O estado de natureza

C om o dissem os, o modelo hobbesiano sofreu m uitas va­


riações n a lite ra tu ra dos séculos X V II e X V III, que podem ser
agrupadas em torno de três tem as fundam entais: o ponto de
p a rtid a (o estado de natu reza), o ponto de cheg ad a (o estado
civil) e o m eio através do q ual ocorre a passagem de um p a ra
outro (o co n trato social).
As variações referentes ao caráter do estado de n atu reza
concentram -se p rincipalm ente em torno destes três p roble­
m as: a) se o estado de n a tu reza é um estado histórico ou so­
m ente im aginado (u m a hipótese racional, u m estado ideal,
etc.); b) se é pacífico ou belicoso; c) se é um estado de isola­
m ento (no sentido de que cad a indivíduo vive p o r sua conta,
sem ter necessidade dos outros) ou social (a in d a que se tra te
de u m a sociedade prim itiva).
a) O pro b lem a do c ará te r hipotético ou histórico do e
tado de n a tu re za foi colocado corretam ente já po r H obbes,
em bora su a solução não te n h a sido freqüentem ente en ten ­
dida. O que em H obbes é u m a p u ra hipótese d a razão é o
estado’de n a tu re za universal, ou seja, aquela condição n a qual
os hom ens teriam vivido ou seriam destinados a viver todos
jun to s e ao m esm o tem po em estado de n atu reza, e da qual
derivaria com o conseqüência (u m a conseqüência lógica e não
histórica) o bellum om nium contra om nes. O estado de n a tu ­
reza universal jam ais existiu e não existirá jam ais (sua exis­
tência p ro lo n g ad a no tem po teria levado ou levaria à extinção
50 N O R B ER T O BO BBIO

da hum an id ad e). O que existiu e co ntinua a existir de fato é


um estado de n a tu re za não universal m as p arcial, circunscrito
a certas relações en tre hom ens ou entre grupos em certas cir­
cunstâncias de tem po e de lugar. H obbes tam pouco crê, como
ao contrário crerá R ousseau, que o estado de n a tu reza univer­
sal ten h a existido pelo m enos u m a vez no tem po, no início da
história da h u m an id ad e, ou seja, não considera ser possível
identificar o estado de n atu reza com o estado originário. Aliás,
considera verossím il que, “ desde a criação até hoje, o gênero
h u m ano jam ais esteve n u m a situação inteiram en te sem socie­
dade” . 1
Os casos de estado de n atu reza parcial, ou seja, histórico
ou historicam ente possível, são sobretudo três: 1) o estado da
relação en tre grupos sociais independentes, em p articu lar, no
tem po de H obbes, en tre E stados soberanos (tam bém Hegel,
em bora ironize a hipótese do estado de n atu reza, reconhece
que os E stados soberanos vivem reciprocam ente em estado de
n atureza); 2) o estado em que se encontram os indivíduos d u ­
ran te u m a g u erra civil, ou seja, quando se dissolve a sociedade
política e se e n tra em estado de an arq u ia; 3) o estado em que
encontram certas sociedades prim itivas, ta n to as dos povos
selvagens d a época, com o alguns grupos de índios da A m é­
rica, q uanto as dos povos b árb aro s d a A ntiguidade agora civi­
lizados. N a figuração hobbesiana do estado de n atu reza, con­
fluem três inspirações diversas: a representação do estado fe­
rino da sociedade h u m a n a, segundo a concepção epicuriana
tran sm itid a p o r Lucrécio no quinto livro do D e rerum natura ; 2
as descrições de viajantes ao Novo M undo, com o foi docum en­
tado recentem ente, de m odo am plo e adm irável, p o r Lan-
ducci; 3e as vivas im pressões d a guerra civil in g lesa.4

(1) H obbes, Q uestions concerning liberty, necessity and chance (1656), que
cito das English W orks , ed. M oleshott, vol. V, p. 183.
(2) M ultaque p e r coelum solis volventia lustra / vulgivago vitam tractabant
more ferra ru m , versos 931-32. [N a tradução portuguesa de A gostinho da Silva (D a
N atureza, São Paulo, A bril C ultu ral, col. “ Os P ensadores” , vol. V, 1973, p . 116),
tem os: “ E, en q u an to m uitos lustros se desenrolavam pelo céu m arcados pelo Sol,
levavam eles um a vida e rra n te à m an eira dos anim ais bravios” .]
(3) S. Landucci, Ifilo so fi e le m acchine (1580-1780), B ári, L aterza, 1972, em
particu lar, no que se refere a H obbes, p p . 114-42.
(4) N ão sem u m a rem iniscência literária de T ucídides, que descrevera com
cores obscuras a g u erra civil, desencadeada em C orcira em 427 a.C .: “ A ta l p onto de
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LlTIC A M O D ER N A 51

à distinção im plícita n a teoria hobbesiana entre estado


de n atu reza universal (apenas hipotético) e estado de n atu reza
parcial (historicam ente possível), Pufendorf deu u m a form a
explícita, ao d istinguir o estado de n atu reza p u ro ou absoluto
daquele lim itado: “ Com efeito, pode-se co nsiderar o gênero
hum ano de dois m odos: ou se concebem todos os hom ens em
seu conjunto e singularm ente considerados, vivendo em es­
tado de lib erd ad e n atu ral; ou então se consideram alguns de­
les ligados en tre si n u m a sociedade civil e unidos com os ou­
tros apenas pelo vínculo d a com um hu m a n id a d e ” . 5
T am bém Locke, depois de te r descrito o estado de n a tu ­
reza como m era abstração, ou seja, como o estado no qual os
hom ens vivem ou poderiam viver se fossem tão razoáveis a
ponto de respeitarem as leis natu rais, p e rg u n ta se jam ais
houve hom ens em estado de n atu reza e onde estariam eles; e
responde aduzindo alguns casos, o dos soberanos de governos

ferocidade chegou aqu ela g uerra civil, e pareceu ainda m ais trem en d a, p o rque foi a
prim eira: m ais ta rd e , tam bém to d a a G récia, pode-se dizer, foi p or ela a b ala d a e tc .”
(III, 82). Não é preciso esquecer que H obbes trad u zira, na p rim eira p a rte de sua vida, a
história da g u erra no Peloponeso, p u b licad a em Londres em 1629, interpreted — com o
se lê no frontispício — with fa ith and diligence im m ediately ou t o f the Greek by
Thomas H obbes. Sobre a centralidade do tem a d a g uerra civil em H obbes, cham ei
p articularm ente a atenção no ensaio dedicado ao au to r do Leviatã no vol. III d a Storia
delle idee politiche economiche e sociali, dirigida p o r L. F irpo, T urim , U tet, 1979.
G ostaria, p o rém , de c itar pelo m enos u m trecho que não se en co n tra nas obras políticas
e que, precisam ente p o r isso, é ain d a m ais decisivo. No prim eiro capítulo do De cor-
pore, tratan d o da utilidade da filosofia, H obbes escreve: “ M as [a utilidade da filosofia
m oral e civil] deve ser m ensurada não ta n to pelas vantagens que derivam do conhe­
cim ento dela q u an to pelas calam idades em que incorrem os p o r ignorância da m esm a.
Além do m ais, todas as calam idades que podem ser evitadas com a intervenção ativa do
hom em nascem d a g uerra, em particular da guerra civil: dessa, com efeito, derivam
massacres, desolação, fa lta de todas as coisas" (I, 7). D e to d as as interpretações do
estado de n atu reza, a que tem m enor credibilidade é aquela que, nestes últim os anos,
incrivelm ente, teve m aior sucesso. Refiro-m e à o b ra de C. B. M acpherson, The Poli-
tical Theory ofPossessive Individualism , O xford, C larendon Press, 1962, n a qual se
afirm a — com fracas provas — que, descrevendo o estado de n atu reza, H obbes des­
creve na realidade, ain d a que inconscientem ente, a sociedade de m ercado. D o m esm o
autor, cf. tam b ém a introdução à edição do Leviathan, Penguin Books, 1968, n a qu al a
tese é reafirm ada. H obbes teria usado "u m modelo m ental que, estivesse ele ou não
consciente disso, corresponde apenas à sociedade de m ercado b u rg u esa” (p. 38), com a
conseqüência de que “ os m odelos p o r ele construídos foram m odelos burgueses” e,
p ortanto, o núcleo p rincipal de su a ciência é “ um a ciência d a sociedade b u rg u esa” !
(p . 12).
(5) Pufendorf, De iure naturae et gen tiu m , L. II, cap. II, § 1, trad . it. cit.,
p. 63.
52 N O R B ER T O BO B B IO

independentes, o de dois hom ens n u m a ilha deserta, o de “ um


suíço e um indiano nas florestas da A m érica” , 6 e o do sobe­
rano de um E stad o em face de um estrangeiro em seu te rri­
tório. 7D e resto, tal como H obbes, tam b ém Locke considera a
dissolução do E stado como um retorno ao estado de natureza:
n u m a passagem , identifica explicitam ente o estado de n a tu ­
reza com a a n a r q u ia .8
O estado de n atu reza, ao contrário, é representado como
um estado histórico p o r R ousseau, que n a p rim eira p arte do
Discours sur l ’origine de l ’inégalité (Discurso sobre a origem
da desigualdade), de 1753, identifica o estado de n atu reza
com o estado prim itivo d a hum an id ad e, inspirando-se, como
se sabe, n a lite ra tu ra sobre o “ bom selvagem ” . M as trata-se
de u m a histó ria im aginária que tem u m a função exem plar, na
m edida em que deve servir p a ra dem onstrar a decadência da
h u m an id ad e a p a rtir do m om ento em que esse saiu desse es­
tad o p a ra e n tra r n a “ sociedade civil” , bem com o a necessi­
dade de u m a renovação das instituições que n ão pode an d ar
sep arad a de u m a renovação m oral. E n q u a n to os autores a n te ­
riores distinguem nitidam ente entre a hipótese racional e o
dado histórico, R ousseau eleva o dado histórico (o que ele crê
poder ser considerado como um dado histórico) a u m a idéia
da razão. O que p a ra os autores precedentes é som ente um
dos casos de estado de n atu reza real, é considerado por R ous­
seau como o caso exem plar, como o estado de n a tu re za por
excelência. M as tam b ém em R ousseau, n ão diferentem ente
dos outros, o estado de n atu reza é ao m esm o tem po um fato
histórico e u m a idéia reguladora, ain d a que nele — bem m ais
do que em seus predecessores — fato histórico e idéia regula­
dora sejam fundidos conjuntam ente.
b) A questão sobre a qual se detiveram freqüentem en
os críticos do direito n a tu ra l — se o estado de n atu re za é um
estado de g u erra ou de paz — é tam bém ela, em grande p arte,
u m a questão irrelevante e que leva a equívocos q u an d o se quer
com preender a p eculiaridade do m odelo ju sn atu ralista . Com
efeito, se se acred ita poder co n trap o r u m a visão otim ista a

(6) J . -Locke, Two Treatises o f G overnment (I960), Segundo T rata d o , § 14.


(7) Ib id .,% 9.
(8) Ib id . , § 225.
SO C IED A D E E E STA D O NA F IL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 53

um a pessim ista do estado de natureza, n ão se conseguirá j a ­


m ais com preender p o r que u m a das características com uns a
todos os ju sn atu ralista s é a tese de que é preciso sair do estado
de n a tu re za e p o r que é ú til (H obbes e Locke) ou necessário
(Spinoza) ou algo im posto pelo dever (K an t) in stitu ir o estado
civil: se, p o r estado pacífico, entende-se u m estado bom en ­
quanto co ntraposto ao estado de gu erra considerado como
m a u ,.e o estado 4e n a tu re za é um estado pacífico, o estado
civil não te ria jam ais nascido, ou, pelo m enos, deveria ser con­
siderado n ão como o estado da razão, m as com o o estado d a
estultice h u m an a.
A idéia de que o estado de n atu reza é u m estado de g u er­
ra aparece com o o fundam ento da construção hobbesiana: o
prim eiro capítulo do D e eive é dedicado a expor todos os a rg u ­
m entos em favor da tese de que o estado de n atu reza é um
estado de g uerra. H obbes foi seguido p o r Spinoza, o qual
— com u m a expressão hobbesiana — afirm ou que os ho­
m ens, sendo sujeitos a paixões, “ são en tre si n atu ralm en te
inim igos” . 9
Com u m a refutação d ireta, m as n a verdade forçada, de
alguns argum entos de H obbes, P ufendorf afirm ou que — p o r
poder o hom em no estado de n atu reza escu tar não só a p a i­
xão, m as tam b ém a razão, “ que não lhe sugere certam ente
adequar-se som ente aos próprios interesses” — esse estado é
um estado de p a z . 10 U m a afirm ação desse tipo, p o r outro
lado, n ão tem nenhum efeito sobre a seqüência do raciocínio
que leva P ufendorf, com o H obbes e Spinoza, a fazer com que
os hom ens saiam do estado de isolam ento e busq u em viver em
sociedade. Se o estado de n atu reza é p o r u m lado, um estado
de paz, ele é, p o r outro, u m estado de infelicidade e, p o rtan to ,
um estado negativo, p o r causa de duas características n atu rais
e contrad itó rias do hom em , que são o am o r de si (precisa­
m ente aquele am or de si que R ousseau ju lg a rá com o positivo e
distinguirá do am or próprio!), que o im pele a preocupar-se
exclusivam ente com a p ró p ria conservação, e a fraqueza ( in -
firm itas), ou seja, a insuficiência das p ró p rias forças, que o

(9) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. II, § 14.


(10) Pufendorf, D e iure naturae et gentium , L. II, cap . II, § 9, tra d . it. cit.,
p. 79.
54 N O R B ER T O BO BBIO

obriga a u n ir seus próprios esforços aos dos outros. D esde P la­


tão, a razão fu n d am en tal pela qual os hom ens se reúnem em
sociedade foi sem pre a necessidade d a divisão do trab alh o . O
tem a fora reexum ado tam bém p o r Spinoza no Tratado teoló-
gico-político (1670), publicado dois anos antes do tra ta d o de
P ufendorf: “ (...) Se os hom ens não se prestassem socorro m ú ­
tuo, faltariam ta n to o tem po q uanto a cap acidade de fazerem
o que lhes é possível em vista do próprio sustento e d a p ró p ria
conservação. Com efeito, nem todos são igualm ente hábeis em
tudo; nem c ad a um seria p o r si só capaz de o b te r aquilo de
que individualm ente tem m ais necessidade” . 11 Pufendorf re­
to m a essa idéia quase com as m esm as palavras: “(...) p a ra ter
u m a vida côm oda, h á sem pre necessidade de recorrer à aju d a
de coisas e de hom ens, já que cad a um não dispõe de energia e
de tem po p a ra p ro d u zir, sem a colaboração alheia, o que é
m ais útil e sum am ente necessário” . 12
Com o se vê, o p roblem a relevante p a ra explicar a origem
d a vida social não é ta n to se o estado de n a tu re z a é pacífico ou
belicoso, m as se é um estado positivo ou negativo. P a ra P ufen­
dorf, esse estado — m esm o sendo um estado de paz — con­
tin u a a ser um estado negativo, ain d a que p o r u m a razão
(a m iséria, a indigência, a pobreza) diferente d a principal r a ­
zão a d o tad a p o r H obbes (digo “ prin cip al” , p o rq u e o estado
de n a tu reza hobbesiano é, além de violento, tam b ém m iserá­
vel). M as precisam ente o que im porta não é que ele não seja
um estado de g uerra, m as que seja de tal ordem — m esm o não
sendo u m estado de g uerra — que não p erm ite a sobrevivência
e o desenvolvim ento civil d a hum anidade.
T am bém Locke descreve o estado de n a tu reza com o um
estado de p a z e, p a ra afastar até m esm o a m enor suspeita de
ser hobbesiano, declara-o expressam ente: “ Tem os aqui c lara ­
m ente a diferença entre o estado de n a tu reza e o estado de
guerra, os quais, em b o ra alguns os ten h am confundido, são
tão distintos en tre si com o o são um estado de paz, bene­
volência, assistência e conservação recíproca, e um estado
de hostilidade, m alvadeza, violência e destruição recípro-

(11) Spinoza, Tractatustheologico-politicus, cap. V.


(12) Pufendorf, D e iure naturae et gentium , L. II, cap. III, § 9, tra d . it. c it.,
p . 111.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LITIC A M O D ER N A 55

ca” . 13 M as, en q u an to estado de paz universal, é tão hipotético


quanto o estado universal de guerra de que fala H obbes. H ipo­
tético no sentido de que seria um estado de p a z se os hom ens
fossem todos e sem pre racionais: só o hom em racional obedece
às leis n a tu ra is sem necessidade de ser a isso coagido. M as, já
que os hom ens não são todos racionais, as leis n atu rais podem
ser violadas; e, visto que de u m a violação nasce o u tra, pela a u ­
sência no estado de n a tu re z a de um juiz super partes, o estado
de n atu reza ap resen ta continuam ente o risco de degenerar num
estado de g u erra, ou m elhor, “ o estado de g u e rra , u m a vez
iniciado, prossegue” . 14 Assim , o estado de n a tu re za é hipote­
ticam ente um estado de paz, m as se to rn a de fato um estado
de guerra: é supérfluo acrescentar que não do estado hipoté­
tico, m as do estado de fato é que nasce a exigência d a socie­
dade civil. N ão m uito diversa é a posição k a n tia n a: n a reali­
dade, K a n t não se coloca expressam ente o pro b lem a de saber
se o estado de n a tu re za é belicoso ou pacífico, m as — cha-
m ando-o de “ provisório” , em contraste com o estado civil,
que ch am a de “ p erem ptório” — m ostra claram en te que o es­
tado de n a tu re za é um estado incerto, instável, inseguro,
desagradável, no q ual “ o hom em não pode co n tin u ar a viver
indefinidam ente” . 1S
A posição de R ousseau é um pouco m ais com plexa, p o r­
que sua concepção do desenvolvimento histórico d a h u m a n i­
dade não é d iádica — estado de n atu reza ou estado civil — ,
como no caso dos escritores precedentes, onde o prim eiro m o­
m ento é negativo e o segundo positivo, m as triád ic a — estado
de natu reza, sociedade civil, república (fu n d a d a no contrato
social) — , onde o m om ento negativo, que é o segundo, a p a ­
rece colocado en tre dois m om entos positivos. O estado ori-

(13) Locke, Two Treatises, Segundo T ratad o , § 19.


(14) Ib id .,% 20.
(15) A correspondência d a distinção entre estado de n atu re z a e estado civil com
a distinção en tre estado de direito provisório e estado de direito perem ptório é fu n d a ­
m ental p a ra com preender a relação en tre estado de n atu reza e sociedade civil em K ant.
N a Rechtslehre (que é a prim eira p a rte d a M etaphysik der S itte n , 1797), ele re to rn a à
questão várias vezes: no § 9, a pro pósito do “ m eu” e do “ te u ” exteriores: no § 15,
a propósito do título de aquisição; no § 44, a propósito da constituição do E stado. P a ra
um com entário desses trechos, rem eto ao m eu curso sobre D ireito e Estado no p e n sa ­
m ento de E m anuel K a n t, ed. b rasileira, Brasília, E ditora d a U niversidade de B rasília,
1984, pp. 9 4 e ss .
56 N O R B ER TO BOBBIO

ginário do hom em e ra um estado feliz e pacífico, já que o h o ­


m em — não tendo outros carecim entos além daqueles que
podia satisfazer em contato com a n atu reza — não se via no
dever nem de se u n ir nem de com bater os próprios sem elhan­
tes. M as era um estado que não podia d u ra r; p o r u m a série de
inovações, a principal das quais foi a instituição d a pro p rie­
dade p rivada, ele degenerou n a sociedade civil (entenda-se:
civilizada), onde ocorre o que H obbes im ag in ara ocorrer no
estado de n atu reza, ou seja, a conflagração de conflitos contí­
nuos e destrutivos p ela posse dos bens que o progresso técnico
e a divisão do tra b a lh o haviam aum en tad o enorm em ente.
Q uando R ousseau escreve que “ as usurpações dos ricos, o
banditism o dos pobres, as paixões desenfreadas de todos” ge­
ram “ um estado de g u erra p erm an en te” , faz eco a H o b b e s:16
n a realidade, o que R ousseau critica em H obbes não é ter
form ulado á idéia de um estado de g uerra to tal, m as de tê-lo
atribuído ao hom em de n atu reza e não ao hom em civil. T a m ­
bém p a ra R ousseau, p o rtan to , é perfeitam ente irrelevante a
questão de saber se o estado de n atu reza é um estado de paz
ou de g u erra. O que im p o rta é que, tam bém p a ra ele, como
p a ra todos os ju sn atu ralistas, o estado que precede o estado de
razão é um estado negativo e que, p o rtan to , o estado de razão,
o estado no q u a l a h u m an id ad e deverá en co n trar a solução de
seus próprios problem as m undanos, surge com o antítese ao
estado precedente: a diferença entre R ousseau e os outros é
que, p a ra esses, o estado precedente é o estado de n atu reza —
seja esse estado de g u erra efetiva (H obbes e Spinoza) ou de
g uerra potencial (Locke e K ant), seja um estado de m iséria
(Pufendorf) — , en q u an to p a ra R ousseau é a “société civile ” .
c) Se o ponto de p a rtid a de u m a teoria racional da soc
dade e do E stad o deva ser o indivíduo isolado ou associado, o
indivíduo en q u an to ta l ou algum a form a de sociedade, foi algo
repetidam ente discutido no interior d a p ró p ria escola do di-

(16) J.-J. R ousseau, Discours sur l'origine de l'inégalité p a rm i les hom


(1754), que cito de R ousseau, Scritti politici, ed. de P. A latri, T urim , U tet, 1970,
p . 333. “ E ntre o direito do m ais forte e o direito do prim eiro ocupante, surgia um
conflito perm an en te, que term inava som ente com o fu ro r de com bates e assassinato s. A
sociedade nascente cedia lu g ar ao m ais horrendo estado de g u e rra ” (p. 333). M ais um a
vez, o estado de guerra é a passagem o brigatória p a ra o nascim ento do E stad o : m ais
u m a vez, o E stad o é a antítese do estado de guerra.
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O S O F IA P O L lT IC A M O D E R N A 57

reito n atu ral. M ais ain d a do que a solução d a d a às duas alter­


nativas anterio rm en te exam inadas, a solução do problem a de
saber se o estado de n a tu reza era u m estado associai, ou seja,
com posto de indivíduos sem u m a necessária relação en tre si,
ou social, serviu com o critério de discrim inação d as várias te n ­
dências de filosofia política d u ran te o século X V III. E m con­
traste com os defensores do direito n a tu ra l individual, que
hoje poderíam os ch am ar de individualistas, os outros — os
defensores do direito n a tu ra l social — foram cham ados, já no
século X V III, de “ socialistas” . 17 N a história do direito n a tu ­
ral, o k a n tian o H ufeland ch am a Pufendorf e seus seguidores
de Socialisten, p orque “ fu n d am o direito n a tu ra l n a socie­
dade” . 18E ssa denom inação durou m uito tem po e é ain d a hoje
em pregada p o r Stahl, n a história da filosofia do direito, antes
m encionada, q u an d o já agora o term o “ socialista” assum iu
um significado d iv erso .19
M as tam b ém essa distinção deve hoje ser considerada cri­
ticam ente, ou seja, fora das preocupações de ortodoxia reli­
giosa que levaram a en ca ra r os escritores não “ socialistas” , ou
seja, os que haviam feito rem o n tar as origens d a hum an id ad e
a um estado de “ selvageria” (b asta recordar as acusações d iri­
gidas co n tra Vico p o r causa do seu “ estado ferino” ), com o ré ­
probos. Se p o r “ socialistas” se entendem os que continuaram
a tran sm itir a concepção aristotélica do hom em com o anim al
n atu ralm en te social — ou movido, com o a firm ara G rócio,
pelo appetitus societatis — , nenhum dos escritores que contri­
bu íram p a ra fo rm ar e desenvolver o m odelo ju sn atu ralista

(17) F. V enturi, “ Socialisti e socialism o nellT talia dei Settecento” , in Rivista


Storica Italiana, 1963, p p . 129-40.
(18) G . H ufeland, Lehrsätze des Naturrechts, que cito d a 2? e d ., Jena, C. H.
C uno’s E rben, 1795 (1? e d ., 1790). A denom inação de “ socialistas” d a d a a Pufendorf e
seus seguidores encontra-se no § 59, no início de um a breve histó ria do direito n atu ral,
n a qual é p ro p o sta u m a periodização, discutida tam bém pelo nosso R osm ini, em Vor­
zeit (época dos precursores), U nbestim m ete Zeit (época de form ação), que com preende
os três grandes, G rócio, Pufendorf e T hom asius, e B estim m te Z eit (época da escola
form ada), de T hom asius p a ra a frente. D e T hom asius, H ufeland diz: “ Inicialm ente
am igo dos socialistas, tornou-se depois seu prim eiro m ais im p o rtan te adversário”
(§60).
(19) F. S tahl, D ie Philosophie des R echts nach geschichtlicher A nsich t, p u b li­
cad a em dois volum es, respectivam ente em 1830 e 1837. N a p . 170 da ed. italian a
(T urim , 1855), fala-se de T hom asius “ socialista” .
58 N O R B ER TO BOBBIO

pode ser caracterizado com essa denom inação. Nem sequer


Pufendorf. A necessidade que tem o hom em de viver ju n to
com outros não deriva, em Pufendorf, com o em G rócio, de
u m a tendência n a tu ra l p a ra a sociedade, m as — como vimos
— de duas concepções objetivas, o am or de si e a fraqueza,
que fazem com que a vida social apareça como desejável p a ra
o hom em . Assim explicada, a vida em sociedade aparece m ais
como o pro d u to de um cálculo racional, de um interesse, do
que de um instinto ou de u m appetitus ; tam b ém p o r isso, P u ­
fendorf deve ser considerado, m ais u m a vez, com o seguidor de
H obbes e não de G rócio. D e resto, p a ra todos os escritores até
agora exam inados, o estado de natu reza é o estado cujo p ro ta ­
gonista é o indivíduo singular, com direitos e deveres, com
instintos e interesses; ou seja, em relação d iretam ente com a
natu reza, d a qual re tira os meios p a ra sua p ró p ria sobrevivên­
cia, e só indiretam ente, esporadicam ente, com os outros h o ­
m ens. O dado originário, um dado diante do q ual não se pode
im aginar n a d a de m ais ad equado a u m a concepção individua­
lista da sociedade, não é o appetitus societatis, m as o instinto
de conservação, o conatus sese conservandi de Spinoza. O ins­
tinto de conservação move tan to o hom em de H obbes e de
Spinoza q u an to o de Pufendorf e de Locke. N um feliz isola­
m ento em face dos outros hom ens transcorre a vida do hom em
n a tu ra l de R ousseau, movido exclusivam ente pelo am or de si
que é, com o se lê no Em ílio, “ sem pre bo m ” , e é o meio através
do qual o hom em satisfaz o carecim ento fu n d am en tal d a p ró ­
p ria conservação. F ato individual é o ius in omrtia, do qual
partem ta n to H obbes q u an to Spinoza. E fruto do esforço in te­
ligente ou capcioso do indivíduo é o instinto fu n d am en tal do
estado de n a tu reza segundo Locke, e d a sociedade civil se­
gundo R ousseau, que substitui o estado de n a tu re za com o m o­
m ento antitético do E stado: a propriedade. K a n t faz coincidir
o direito n a tu ra l (contraposto ao direito civil) com o direito
privado (contraposto ao p ú b lico ).20 O direito n atural-privado

(20) Sobre esse ponto fu ndam ental, lem os n a M etaphysik der Sitten a segu
passagem : “ A divisão do direito n atu ral não reside (...) n a distinção en tre direito
natural e direito social, m as naq u ela en tre direito n atu ral e direito civil, o prim eiro dos
quais é cham ado de direito privado e o segundo, de direito público. E, com efeito
o oposto do estado de natureza não é o estado social, m as o estado civil, pois pode m uito
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O LlTIC A M O D ERN A 59

é essencialm ente, se não exclusivam ente, o direito que regula


as relações en tre os indivíduos: não exclusivam ente, já que
regula tam bém aqu ela form a prim itiva e n a tu ra l de socie­
dade que é a fam ília, bem com o as associações privadas.
O princípio individualista em que se insp iram as teorias
ju sn atu ralistas não exclui que exista u m direito n a tu ra l social,
ou seja, um direito das sociedades n atu rais, com o a fam ília, e,
por conseguinte, que existam sociedades diversas d a sociedade
civil ou política. O que se exclui é que a sociedade política seja
concebida com o u m prolongam ento da sociedade n atu ral: a
sociedade política é u m a criação dos indivíduos, é o produto
d a conjunção de vontades individuais. A fam ília faz p a rte do
estado de n atu reza, m as não o substitui. A sociedade política
substitui o estado de natu reza, não o continua, nem o p ro ­
longa, nem o aperfeiçoa. Os dois term os d a construção p e r­
m anecem o indivíduo, cujo reino é o estado de natu reza, e o
E stado, que não é u m a sociedade n atu ral. As sociedades n a tu ­
rais, ou seja, não-políticas, existem ; e ninguém pode cancelá-
las da história: m as, no contraste principal en tre indivíduo e
E stado, elas desem penham u m papel secundário, ao contrário
do que ocorre no m odelo tradicional, onde têm um papel p ri­
m ário. É verdade, H obbes adm ite que, n u m a sociedade p ri­
mitiva, a fam ília — a “ peq u en a fam ília” — assum a o posto do
E sta d o ,21 e que, de fato, n a evolução da sociedade do pequeno
grupo fam iliar p a ra o grande E stado, existam E stados, como
as m onarquias p atrim oniais, que assum em o aspecto de fam í­
lias a m p lia d a s ;22 e é igualm ente verdade que Locke adm ite
que “ os pais de fam ília, p o r u m a m udança insensível, to rn a ­
ram -se tam bém os m onarcas políticos” , 23 e que, n a origem
dos tem pos, os prim eiros governos eram estados m onárquicos

bem existir sociedade no estado de n atu reza, m as não um a sociedade civil, que garante
o m eu e o teu p o r meio de leis públicas” (ed. cit., p . 422). D essa passagem , na qual
K ant especifica qu e a contraposição fu ndam ental não é en tre direito individual e
direito social, m as entre direito n a tu ra l (aq u i incluído o direito das sociedades natu rais,
com o a fam ília e as associações contratuais) e direito civil (ou direito da sociedade civil,
que não deve ser confundida com as sociedades naturais), resu lta claram ente p or que
o direito n a tu ra l coincide com o direito privado, e o direito positivo nasce com o di­
reito público.
(21) H obbes, Leviathan, cap . XV II.
(22) H obbes, D e eive, IX, 10; Leviathan, cap. XX.
(23) Locke, Two Treatisesonf Government, Segundo T rata d o , § 76.
60 N O R B ER T O B O B B IO

na m edida em que o próprio pai era reconhecido como r e i.24


M as é igualm ente claro que, n a argum entação de H obbes e de
Locke, é preciso distinguir entre a descrição do que ocorreu de
fato em certas circunstâncias e a proposta de u m a nova form a
de legitim ação política. Desse ponto de vista, ou seja, do ponto
de vista do fu n d am en to de um novo princípio de legitim idade,
nem a sociedade dom éstica nem a sociedade senhorial ofere­
cem um m odelo válido p a ra a sociedade política.

(24) Ib id . , § 107.
O contrato social

O princípio de legitim ação das sociedades políticas é


exclusivam ente o consenso. O tem a foi colocado com a m á­
xim a precisão p o r Locke. A m elhor chave de leitu ra da segun­
da p arte dos já citados Two Treatises o f G overnm ent (Dois
tratados sobre o governo), que tem como subtítulo, e é conhe­
cida com o, A n Essay concem ing the true Original, E xtent and
E n d o f Civil G overnm ent (Ensaio sobre a verdadeira origem,
extensão e finalidade do governo civil), é a que nos perm ite
interpretá-lo com o u m longo e denso raciocínio dirigido no
sentido de re fu ta r todos os que confundiram a sociedade polí­
tica com a sociedade dom éstica e com a sociedade senhorial,
bem como de dem o n strar que o que distingue as três form as
de sociedade é o diferente fundam ento d a au to rid ad e e, p o r­
tanto, d a obrigação de obediência, ou seja, o diverso princípio
de legitim idade. D esde as prim eiras páginas, Locke deixa cla­
ro o seu propósito, q uando escreve que “ o p o d er de um m agis­
trad o sobre u m súdito pode se distinguir daquele de um p ai
sobre os filhos, de um senhor sobre o servo, de um m arido
sobre a m ulher, e de u m dono sobre o seu escravo” ; po r isso, é
preciso m o strar “ a diferença entre o governante de u m a socie­
dade política, o p a i de u m a fam ília e o cap itão de u m a ga­
lera” . 1T rês são os tipos clássicos de fund am en to das obriga­
ções, com o b em o sabem os juristas: ex generatione, ex de-
licto, ex contratu. A obrigação do filho de obedecer ao pai e à

(1) I b i d ., § 2 .
62 N O R B ER T O BO BBIO

m ãe depende do fato de que foi por eles gerado, ou d a n a tu ­


reza; a obrigação do escravo de obedecer ao dono depende de
um delito com etido, ou é o castigo po r u m a culpa grave (com o
a de ter travado u m a g uerra injusta e tê-la perdido); a obriga­
ção do súdito de obedecer ao soberano nasce do contrato. Isso
significa dizer que o governante, ao contrário do p a i e do dono
de escravos, necessita que sua p ró p ria auto rid ad e o btenha
consentim ento p a ra que seja considerada com o legítim a. E m
princípio, um soberano que governa como um pai, segundo o
m odelo do E stado patern alista, ou, pior ain d a, com o um se­
nhor de escravos segundo o modelo do E stado despótico, não é
um governo legítim o e os súditos não são obrigados a lhe
obedecer.
E m b o ra a teoria do contrato social fosse an tig a e am p la­
m ente u tilizad a pelos legisladores d a Id ad e M édia, som ente
com os ju sn atu ralista s ela se to rn a u m a passagem obrigatória
da teoria política; ta n to que será com um a todos os críticos do
direito n a tu ra l, de H um e a B entham , de Hegel a H aller, de
Saint-Sim on a C om te, a refutação desse estran h o e inútil ex­
pediente (que dois autores tão diferentes, com o B entham e
H aller, u m independentem ente do outro, cham am de “ qui­
m era” ). E n tre os escritores antigos, haviam se referido a um
possível e, em alguns casos, efetivam ente ocorrido fundam ento
co n tratu alista do E stado tan to P la tã o 2 q u an to Cícero, o qual
colocara n a boca de Philus, porta-voz das idéias céticas sobre
a justiça, a seguinte afirm ação que hoje diríam os de sabor
hobbesiano: Sed cum alium met, et hom o m oninem e ordo
ordinem, tum quia nem o sibi confidit, quase pactio f i t inter
populum et potentes, ex quo existit id quod Scipio laudabat,
coniunctum civitatis genus”. 3 O acordo ao q ual ta n to P latão
q uanto Cícero se referem é aquela espécie de pacto que os es­
critores medievais iriam ch am ar de pactum subiectionis (so-

(2) “ P ortanto, acontece o seguinte: os reis e os povos de três reinos (E sp arta,


Argos, M essina), com base nas leis estabelecidas em com um p a ra regular as relações
entre governantes e governados, ju raram -se reciprocam ente, uns não to rn arem m ais
gravoso o seu poder com o passar dos tem pos e com a am pliação de suas fam ílias, os
outros jam ais derru b arem o poder régio e não perm itirem que outros tentassem fazê-lo,
enquanto os reis observassem essas condições” (P latão, L eis , 684 a).
(3) Cícero, D e republica, III, 13.
SO CIED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 63

bre o qual falarem os adiante). M as, n a trad ição sofística, que


su blinhara de m odo p a rtic u la r e polêm ico o caráte r conven­
cional das leis e dos governos e, p o rtan to , do ju sto e do in ­
ju sto, e depois n a trad ição epicuriana, o acordo do qual nasce
a vida social fazia p en sar no que iria ser ch am ado então de
pactum societatis, com o se pode ler n esta célebre passagem de
Epicuro: “ A ju stiça não é algo que existe em si, m as som ente
nas relações recíprocas e sem pre de conform idade com os lo­
cais onde se estabelece um acordo p a ra não provocar nem re ­
ceber d an o ” . 4 Essa diferente interpretação do acordo origi­
nário dem o n stra com o e ra pouco elaborado o cham ado con-
tratualism o antigo em com paração com o m oderno. P a ra o
contratualism o m edieval, m ais im portante fo ra a fam osa p as­
sagem de U lpiano sobre a lex de império (ou seja, sobre a lei
da qual o im p erad o r derivava a autoridade de fazer leis), se­
gundo a q ual o que o príncipe delibera tem força de lei, p o r­
que o populus conferiu-lhe o poder de que originariam ente
som ente ele, o povo, era titu la r.5 M ais u m a vez, se a declara­
ção contida nessa passagem podia ser in te rp re ta d a com o um
docum ento d a origem co n tratu alista d a au to rid ad e, o pacto a
que ela se refere é o pacto de subm issão, cuja condição neces­
sária e objetiva é a existência do populus com o universitas já
constituída e independentem ente do m odo com o foi consti­
tuída. Do reconhecim ento prelim inar de u m a relação entre
populus e princeps, de resto, resultavam duas interpretações
contrapostas do conteúdo dessa relação, conform e a a trib u i­
ção da au to rid ad e ao príncipe fosse en ten d id a com o u m a alie­
nação to tal e, p o rtan to , não som ente do exercício m as ta m ­
bém d a titu larid ad e do poder (o translatio im perii), ou como
u m a concessão lim itad a ora no tem po o ra tam b ém no objeto,
segundo a q ual o príncipe recebia do povo, de q uando em
quando, o exercício m as não tam bém a titu larid ad e do poder
(ou concessio im perii).
T am b ém o tem a do contrato social é ap resentado pelos
diversos autores com algum as variações, das quais as duas

(4) E picuro, Rataesententiae, X X X III.


(5) “ Q uod principi placuit legis h ab et vigorem u tp o te cum populus ei et in eum
suum im perium e t potestatem co n ferat’’ (D . 1, 4 , 1).
64 N O R B ER T O B O B B IO

m ais im p o rtan tes referem -se à m odalidade de realização (sub


a) e o conteúdo (sub b).
Ê m enos im p o rtan te do que p a ra o estado de n a tu re za a
questão relativa à historicidade ou não do ato. Som ente Locke
busca provar que n a d a obsta a que se p ossa considerar o con­
tra to originário com o u m fato h istó rico .6 M as Locke tem de
refu tar um adversário, Film er, que defendeu a legitim idade
da m o n arq u ia absoluta recorrendo à histó ria (ain d a que a
u m a h istória sag rad a, que n a d a tem a ver com a h istória p ro ­
fana). D e resto, tam b ém p a ra Locke o co n trato serve p rin ci­
palm ente com o in stru m en to necessário à finalidade de p erm i­
tir a afirm ação de um certo princípio de legitim ação (a legiti­
m ação b asead a no consenso) contra outros princípios. Se a
única form a de legitim ação do poder político é o consenso d a ­
queles sobre quem esse p oder se exerce, n a origem da socie­
dade civil deve te r existido um pacto, se n ão expresso, pelo
m enos tácito, entre os que deram vida a tal sociedade. M ais
do que um fato histórico, o contrato é concebido como u m a
verdade de razão, n a m edida em que é um elo necessário da
cadeia de raciocínios que com eça com a hipótese de indivíduos
livres e iguais. Se indivíduos o riginariam ente livres e iguais se
subm eteram a um p o d er com um , isso n ão pode te r ocorrido a
não ser p o r m eio de um acordo recíproco. Nesse sentido, o
contrato — além de u m fundam ento d a legitim ação — é ta m ­
bém um princípio explicativo. A diferença en tre o contrato
com o fato histórico e o co n trato como fu n d am en to de legiti­
m ação é clara em R ousseau, onde o p acto en tre ricos e pobres
que deu h istoricam ente origem ao E stado, ta l como é descrito
n a segunda p a rte do Discurso sobre a desigualdade, é um
pacto u rd id o com o engano (e p o rtan to , a rigor, ilícito ),7 en-

(6) Locke, Two Treatises, Segundo T rata d o , § 100 e ss. P a ra afirm ar a reali­
dade histórica do co n trato originário, Locke se serve de dois argum entos: a) desses
contratos não se tem geralm ente notícia porque os povos não conservaram notícias de
suas origens; b) p a ra alguns E stados, como R om a e V eneza, de cuja origem se tem
notícia, a origem co n tratu al é certa.
(7) T rata-se d a célebre passagem n a qual R ousseau explica a origem do E stad o ,
ou m elhor, d a relação de sujeição política, no longo período histórico que está en tre o
fim do estado de natu reza e o início d a nova com unidade fu n d a d a sobre o co n trato
social, im aginando que os ricos conseguiram convencer os pobres a se subm eterem ao
poder dos prim eiros, m o stran d o os perigos d a desunião (ed. c it., p . 334). É nesse po n to
que R ousseau escreve: “ Todos co rreram ao encontro de suas cadeias, acreditando
SO C IED A D E E E ST A D O NA FIL O SO FIA PO L ÍT IC A M O D ER N A 65

quanto o “ co n trato social” através do qual o hom em corrom ­


pido d a sociedade civil deveria reen co n trar a felicidade, ou
pelo m enos a p u reza originária, é p u ra idéia reguladora da
razão. C om o idéia reguladora d a razão, finalm ente, o con­
trato originário é declaradam ente acolhido p o r K an t, que não
se preo cu p a absolutam ente em saber se o E stad o teve ou não
como fu n d am en to próprio um acordo en tre os súditos. Ao
contrário, ele considera que a origem do po d er suprem o é p a ra
o povo que está subm etido a jle algo “ im perscrutável” e, p o r­
tanto, n ão pode se to rn a r objeto de investigação e de co n tro ­
vérsia, a n ão ser com grave perigo p a ra a salvação do E s ta d o .8
O que im p o rta é o soberano dirigir o E stado como se seu pod er
estivesse fu n d ad o num co n trato originário e ele devesse p re s­
ta r contas do m odo como o exerce aos seus súditos. No ensaio
Ueber den Gemeinspruch: Das m ag in der Theorie richtig
sein, taugt aber nicht fü r die Praxis (Sobre o ditado com um :
Isso po d e ser ju sto em teoria, mas não vale na prática), de
1793, K a n t — depois de te r reconhecido a existência de um
contrato originário, “ que é o único no q u al se pode fu n d a r
um a constituição civil universalm ente ju ríd ic a entre os h o ­
m ens e se pode constituir u m a com unidade” — nega que seja
necessário pressupô-lo com o um fato histórico, dado que, e n ­
quanto ta l, com o ele especifica, tal contrato n ão seria sequer
possível; e afirm a, ao contrário, que ele tem sua realidade
“ como sim ples idéia da razão ” , no sentido de que a idéia do
contrato ob rig a “ todo legislador a fazer leis com o se essas d e­
vessem derivar da vontade com um de todo u m povo e a consi­
derar todo súdito, en q u an to ele se quer cidadão, como se ti­
vesse dado o seu consenso a um a tal vontade” . 9 Nesse sentido,

garantirem a lib erd ad e” . E ssa afirm ação constitui o po n to de p a rtid a do Contrato


Social, que com eça com a não m enos célebre frase: “ O hom em nasceu livre; e em to d a
parte se en co n tra em cadeias” .
(8) “ A origem do po d er superior é p a ra o povo, que está subm etido a ele, do
ponto de vista político, algo imperscrutável; ou seja, o súdito n ão deve especular sutil-
m ente sobre essa origem , como se se tratasse de u m a co rreta dúvida com relação à
obediência que se deve a tal poder (ius controversum )” (M etaphysik der Sitten, R echts-
lehre, § 49). A p a rtir do m om ento em que a origem do sum o p o d er é im perscrutável,
a busca das origens de um eventual con trato originário p o r p a rte do súdito, que n ão tem
o direito de fazê-lo, não só é perfeitam ente in útil, m as tam b ém crim inosa, se feita com
a intenção de “ m u d a r depois p ela força a constituição atu alm en te existente” (§ 52).
(9) K an t, Scrittipolitici, ed. c it., p . 262.
66 N O R B E R T O B O B B IO

o co n trato originário desem penha su a real função, que é a de


constituir um p rincípio de legitim ação do p o d er que, como
todos os princípios de legitim ação (b a sta p e n sa r no princípio
da origem divina do poder), não tem necessidade de te r d eri­
vado de um fato realm ente ocorrido p a ra ser válido.
a) Segundo u m a opinião com um dos escritores de dire
público, são necessárias duas convenções sucessivas p a ra d a r
origem a um E stado: o pa ctu m societatis, com base no qual
um certo nú m ero de indivíduos decidem de com um acordo
viver em sociedade; e o pa ctu m subiectionis , com base no qual
os indivíduos assim reunidos se subm etem a u m p o d er co­
m um . O p rim eiro p acto tran sfo rm a u m a m ultitudo em um
p o p u lu s ; o segundo, u m populus n u m a ctvitaí.
P u fen d o rf e a tra ta d ística de escola seguem a opinião co­
m um (acolhida a in d a em final do século X V III p o r A nselm
F euerbach no p eq ueno tra ta d o juvenil A nti-H obbes, que é de
1798).10 Segundo Pufendorf, q u an d o u m a m u ltid ão de indiví­
duos q u er p roceder à instituição de u m E stad o , deve antes de
m ais n a d a estip u lar en tre si u m pacto, “ com o q u al m anifeste
a vontade de se u n ir em associação p e rp é tu a ” , e depois, num
segundo m om ento, após te r deliberado q u al deverá ser a for­
m a de governo, se m o n árq u ica ou aristo crática ou dem ocrá­
tica, deve chegar a “ u m novo p acto p a ra d esignar aq u ela pes­
soa ou aquelas pessoas às quais deve ser confiado o governo da
associação” . 11
U m a das inovações de H obbes foi a de elim in ar um dos
dois pactos: o p a ctu m unionis, idealizado p o r H obbes, com
base no q u al cad a u m dos indivíduos que com põem u m a m u l­
tidão cede o direito de autogovernar-se, que possui no estado
de n a tu re za , a u m terceiro (seja u m a pessoa ou u m a assem ­
bléia), co n tan to que todos os outros façam o m esm o. T al pacto
é ao m esm o tem po um pacto de sociedade e um p acto de sub-

(10) P . I . A . F eu erb ach , A nti-H obbes oder Ueber die Grenzen der höschten
Gewalt u n d das Zw angsrecht der Bürger gegen den O berherrn, E rfu rt, H enning,
1798; ed. italian a, M ilão, G iuffré, 1972, p p . 26 e 29. P a ra u m co m entário m ais p ro ­
fundo, cf. M . A. C attan eo , A nselm Feuerbach filosofo e giurista, M ilão, C om unità,
1970.
(11) Pufendorf, D e iure naturae e t g en tiu m , L. V II, cap . 2, §§ 7 e 8 , tra d , cit.,
pp. 164-65.
SO C IED A D E E E ST A D O NA F IL O S O F IA P O L ÍT IC A M O D ER N A 67

m issão, já que os co n tratan tes são os indivíduos singulares


entre si e não o populus, p o r um lado, e o fu tu ro princeps,
p o r outro, u m p acto de subm issão n a m ed id a em que aquilo
que os indivíduos aco rd am en tre si é a instituição de um po d er
com um ao q u al decidem se subm eter. P o r o u tro lado, já em
H obbes se a n u n cia a diferença, que será grávida de conse­
qüências, en tre o p acto originário d a fo rm a dem ocrática de
governo e o das dem ais form as de governo (aristo crática e m o­
n árq u ica). N um trecho do D e eive, ele diz: “ U m E stado dem o­
crático n ão se constitui em virtude de p actos efetuados entre
os indivíduos singulares, p o r um lado, e o povo, por outro,
m as em virtude de pactos recíprocos de c ad a um com todos os
o utros” . 12 E ssa id éia é confirm ada q u an d o ele diz que o E s­
tado aristocrático “ tem su a origem n a dem ocracia” 13 e n a m o­
n a rq u ia, que “ deriva d a au to rid ad e do povo, n a m edida em
que esse tran sfere o pró p rio direito, ou seja, o p o d er soberano,
a um indivíduo” . 14 Essas passagens deixam claram ente en ­
ten d er q ue, e n q u an to p a ra as form as aristo crática e m o n ár­
quica são necessários os dois pactos (não só o de sociedade,
m as tam b ém o de subm issão), ou um p acto com plexo, cons­
titu íd o p o r u m co n trato social seguido p o r u m a doação (assim
H obbes in te rp re ta , no D e eive, o p acto de u nião), p a ra a for­
m a dem ocrática b a sta u m único p acto, ou o p acto de socie­
dade, já que — u m a vez constituído o povo através do co n ­
tra to social — não é m ais necessário u m segundo p acto de
subm issão, pois esse seria um pacto entre o povo e o povo e,
como tal, p erfeitam en te inútil. D essa diferença e d a dificul­
dade que dela deriva, P ufendorf tivera p le n a consciência: ele
observou que, com relação à form a de governo dem ocrático,
“ não resu lta m u ita claram ente a estru tu ra do segundo p acto,
já que se tra ta das m esm as pessoas que, sob dois diversos as­
pectos, co m an d am e obedecem ” . M as ele resolvera a dificul­
dade observando que, “ em b o ra nos E stados dem ocráticos não
pareça talvez tão necessário qu an to nos ou tro s tipos de E stado
esse segundo p acto , em virtude do qual o soberano e os súditos

(12) H o b b e s, D ecive, V II, 7.


(13) Ib id . , V II, 8. T extualm ente: "Aristocratia sive curia optim atum cum
sum m o im pério, originem h a b e t a D emocratia, quae ju s su u m in illam tra sfe rt” .
(14) / W . , V II, 11.
68 N O R B ER TO BOBBIO

trocam expressam ente u m a prom essa sobre os respectivos de­


veres a cum prir, deve-se im aginar, contudo, que ele ocorreu
pelo m enos tacitam en te” . 15
A redução dos dois pactos a um só foi com pletada, em ­
bo ra de form a m enos explícita, em Spinoza: de form a m enos
explícita p orque, à diferença de H obbes (e tam b ém , com o logo
veremos, de R ousseau), Spinoza não enuncia a fórm ula do
pacto, e, aliás, no Tratado político, sua ú ltim a o bra, que res­
tou inacab ad a, passa po r alto do tem a do con trato social (m as
não o exclui, com o pareceu a alguns, pois a ele se refere pelo
m enos u m a vez, no § 13 do Livro II, q u an d o diz: “ se dois
entram em acordo e conjugam suas forças, au m en tam o seu
p oder” ). M as agora a form a de governo que ele tem vista é
exclusivam ente a dem ocrática. No célebre capítulo XVI do
Tratado teológico-político , onde expõe p ela prim eira vez sua
teoria política, lim ita-se a dizer, quando os hom ens percebe­
ram que não m ais podiam viver no estado de natu reza: “ tive­
ram firm issim am ente de estabelecer e acordar entre si regular
todas as coisas segundo o ditam e d a razão ” . 16 No estado de
n atureza, todo hom em (com o, de resto, to d a criatura) tem
tan to direito q u an to poder; em outras palavras, c ad a um tem
o direito de fazer o que está em seu p oder fazer. Se H obbes
dissera que, no estado de n atureza, todo hom em tem um di­
reito sobre todas as coisas ( ius in om nia), Spinoza especifica
corretam ente ao dizer que o hom em , no estado de natu reza,
tem um direito sobre todas as coisas que estão em seu poder
(ius in om nia quae p o test). (Som ente de D eus, então, pode-se
dizer que tem u m direito sobre todas as coisas, a p a rtir do
m om ento em que, sendo onipotente, o direito sobre tu d o o
que está em seu p o d er coincide com o direito sobre tu d o .) As
conseqüências que derivam dessa condição n a tu ra l do hom em
não são diferentes das previstas p o r H obbes. P a ra sair desse
estado, a razão sugere a c ad a hom em e n tra r em acordo com
todos os outros, de m odo que “ cad a qual tra n sfira todo seu
próprio p o d er à sociedade, a q u al será assim a única a d eter o
sum o direito n a tu ra l sobre tudo, ou seja, o suprem o poder, ao

(15) Pufendorf, D e iure naturae et g entium , L. V II, cap. 2, § 8, tra d . cit.,


p p . 165-66.
(16) Spinoza, Tractatustheologico-politicus, ed. italian a, p. 380.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 69

qual c ad a u m , ou livrem ente ou por tem or dos castigos, de­


verá obedecer” . 17
P o rtan to , tam bém p a ra Spinoza, como p a ra Hobbes, em ­
bo ra com u m a m otivação divèrsa, que exam inarem os m elhor
adiante, o pacto social consiste num acordo p a ra a constitui­
ção de um p o d er com um . O que, q uando m uito, distingue
Spinoza de H obbes é que, enqu an to p a ra H obbes o pacto de
união pode ser configurado com o um co n trato em favor de um
terceiro (com o diria um ju rista), p a ra Spinoza — que nisso
antecipa claram en te R ousseau e o conceito tipicam ente rous-
seauniano d a liberdade política como auto n o m ia — o próprio
pacto de união prevê a transferência do p o d er n a tu ra l de,cada
um p a ra a coletividade d a q ual cada um é p a rte . Disso resulta
que'essa sociedade, “ que se define como a un ião de todos os
hom ens, que tem coletivamente pleno direito a tu d o o que esá
em seu p o d e r” pode ser ch am ad a pro p riam en te de “ dem ocra­
cia” . 18 F alan d o m ais ad ian te d a n atu reza do governo dem o­
crático, que lhe parece “ o m ais n a tu ra l e o m ais conform e à
liberdade que a n a tu reza perm ite a cad a u m ” (não se pode
esquecer que, p a ra H obbes, ao contrário, a m elhor form a de
governo é a m onárquica), Spinoza define ta l governo com o
aquele no q ual “ ninguém transfere a outros seu próprio di­
reito n a tu ra l de m odo tão definitivo que depois não seja m ais
consultado; m as o defere à m aior p arte d a sociedade inteira,
da qual ele é m em bro” , 19 concluindo com u m a frase, que
enuncia o núcleo do pensam ento igualitário, que depois será o
de R ousseau: “ P or esse motivo, todos con tin u am a ser tão
iguais q u a n to o eram no an terio r estado de n a tu re z a ” . 20 R ous­
seau e lab o rará a fórm ula com base n a qual “ c ad a um , unin-
do-se a todos, obedece ap enas a si m esm o, e perm anece não
menos livre do que an tes” .21
No fundo, R ousseau não fez m ais do que ex trair as extre­
m as conseqüências d a dou trin a, já an u n ciad a p o r H obbes,
su blinhada p o r Pufendorf, fo rm ulada p o r Spinoza, segundo a

(17) Ib id . , p. 382.
(18) Ib id . , p. 382.
(19) Ib id . , p. 384.
(20) Ib id . , L. I, cap. 8, p . 735.
(21) R ousseau, D u contrat social, L. I, cap. 6.
70 N O R B ER TO BO BBIO

qual, n a constituição do governo, qu an d o esse governo é o


governo dem ocrático, ou seja, o governo do povo sobre o povo,
b a sta um único contrato, o contrato social. A instituição do
corpo político, n a q ual R ousseau vê a tran sfo rm ação dos m ui­
tos “e u ” no único “ eu com um ” , ocorre in stan tan eam en te, já
que a associação de c ad a um com todos os outros e a subm is­
são de c ad a um a todos são um único e m esm o ato. O poder
social personificado n a vontade geral é o resu ltad o d a m odali­
dade p a rtic u la r n a q ual ocorre a associação, que é ao m esm o
tem po união de todos e subm issão de todos ao todo. Ao con­
trário de Pufendorf, e de seu predecessor im ediato, o gene-
brino B urlam aqui, cujas idéias ele tem presente, R ousseau
nega explicitam ente que, p a ra in stitu ir o governo, seja neces­
sário u m novo p acto. No cap. VII d a p a rte III de O Contrato
Social, in titu lad o significativam ente “ A instituição do governo
não é u m co n tra to ” , explica que a instituição do governo, ou
do p o d er executivo, não ocorre m ediante co n trato pelo m enos
po r três razões: a) p orque a autoridade su p rem a não pode
nem ser alienada, nem ser m odificada com a criação de um
poder ain d a que superior; b) porque um co n trato do povo com
essa ou aq u ela pessoa seria um ato p a rtic u la r e a vontade geral
pode se expressar tão-som ente através de atos gerais ou leis;
c) p orque os co n tratan tes estariam entre si em estado de n a tu ­
reza, o que rep u g n a o estado civil u m a vez constituído. D aí a
conclusão perem ptória: “ Não h á senão um contrato no E s­
tado, o d a associação; e este, por si só, exclui q u alq u er ou­
tro ” .22 M ediante o co n trato social, nasce — com a vontade
geral — a soberania, perfeita em si m esm a. Já que a p rerro g a­
tiva d a vontade geral é fazer as leis, ela estabelece com u m ato
de soberania, com u m a lei — que é um ato u n ilateral — , quem
deverá governar, ou seja, quem terá o título p a ra o exercício do
poder executivo. T odos podem ver a afinidade en tre o p en sa­
m ento de R ousseau e de Spinoza; m as ninguém deve p erd er de
vista, en q u an to Spinoza fala hobbesianam ente em “ poder co­
m u m ” , R ousseau fala de “ eu com um ” . Spinoza põe o acento
no resultado do pacto, em seu aspecto objetivo. R ousseau o faz
no novo sujeito que dele deriva, em seu aspecto subjetivo.

(22) Ib id . , L. III, cap. 16.


SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 71

b) O objeto do con trato ou dos contratos é a tran sferê


cia de todos ou de alguns direitos que o hom em tem no estado
de n atu reza p a ra o E stado, de m odo que o hom em n a tu ra l se
to rn a hom em civil ou cidadão. As várias teorias contratualis-
tas se distinguem com base n a quan tid ad e e n a qualidade dos
direitos n a tu ra is a que o hom em renuncia p a ra transferi-los ao
E stado, ou seja, conform e a renúncia e a subseqüente aliena­
ção sejam m ais ou m enos tais. D e todos os ju sn atu ralista s, o
que concebeu a alienação m ais totalizante foi R ousseau (do
que resu lta a acusação que lhe foi m ovida de ser defensor de
u m a “ dem ocracia to ta litá ria ” ), precisam ente o R ousseau que
inicia O Contrato Social polem izando com autores com q Gró-
cio, que consideravam legítim o o ato pelo q ual um povo aliena
sua p ró p ria liberdade. M as o núcleo do pensam en to de R ous­
seau é a distinção en tre a alienação a outros e a alienação a si
m esm o. O hom em é livre som ente q uando obedece à lei que
ele m esm o se deu. No estado de natu reza, o hom em não é livre
(em bora seja feliz), p orque obedece não à lei, m as aos p ró ­
prios instintos; n a sociedade civil, fu n d ad a sobre a desigual­
dade en tre ricos e pobres, entre opressores e oprim idos, o ho­
m em não é livre p o rque certam ente obedece a leis, m as a leis
postas não p o r ele e sim p o r outros que estão acim a dele. O
único m odo p a ra to rn a r o hom em livre é que ele atue segundo
as leis e que essas leis sejam postas po r ele m esm o. A tran sfe­
rência to tal dos direitos n atu rais p a ra o corpo político consti­
tuído pela totalid ad e dos contratan tes deve servir a essa finali­
dade, ou seja, a de d a r a todos os m em bros desse corpo leis
nas quais o hom em n a tu ra l que se tornou cidadão reconheça a
lei que ele m esm o se teria im posto no estado de natu reza, se
nesse estado tivesse podido exercer livrem ente a p ró p ria razão.
No m om ento em que nasce o cidadão, cessa inteiram ente o
hom em n a tu ra l. N ão se com preende R ousseau se não se en ­
tende que, ao contrário de todos os dem ais ju sn atu ralistas,
p a ra os quais o E stado tem como finalidade proteger o in d i­
víduo, p a ra R ousseau o corpo político que nasce do contrato
social tem a finalidade de transform á-lo. O cidadão de Locke
é p u ra e sim plesm ente o hom em n a tu ra l protegido; o cidadão
de R ousseau é um outro hom em . “ A passagem do estado de
n atu reza p a ra o estado civil — afirm a ele — p roduz no ho­
m em u m a m u d an ça m uito im portante, substitu in d o em sua
72 N O R B ER T O B O B B IO

conduta o instin to p ela ju stiç a e em prestando às suas ações a


m oralidade de que anteriorm ente eram p riv ad as” .23
E m b o ra tradicionalm ente considerado com o teórico do
absolutism o, H obbes não defende a tese d a ren ú n cia to tal.
P a ra ingressar n a sociedade civil, o hom em — segundo H o b ­
bes — ren u n cia a tu d o o que to rn a indesejável o estado de n a ­
tureza; m ais precisam ente, renuncia à ig ualdade de fato que
to rn a p recária a existência até m esm o dos m ais fortes; ao di­
reito à lib erd ad e n a tu ra l, ou seja, ao direito de agir seguindo
não a razão m as as paixões; ao direito de im por a razão p o r si,
só, isto é, ao uso d a força individual; ao direito sobre todas as
coisas, isto é, à posse efetiva de todos os bens de que tem força
p a ra se a p ro p ria r. A finalidade em função do qual o hom em
considera ú til re n u n c iar a todos esses bens é a salvaguarda do
bem m ais precioso, a vida, que no estado de n a tu re z a tornou-
se insegura p o r causa da ausência de um p o d er com um . E n ­
tende-se que o único direito ao qual o hom em não renuncia,
ao in stitu ir o estado civil, é o direito à vida. No m om ento em
que o E stad o não é capaz de assegurar a vida de seus cidadãos
por inépcia, ou em que ele m esm o a am eaça p o r excesso de
crueldade, o p acto é violado e o indivíduo reto m a sua p ró p ria
liberdade de se defender com o acred itar m elhor.
Q u an d o Spinoza, depois de ter explicado as razões pelas
quais os indivíduos resolveram tran sferir seu pró p rio direito
sobre tu d o ao E stad o , afirm a que “ a sum a p o d estad e” que
disso deriva “ não é subm etida a n en h u m a lei, m as todos de­
vem obedecer-lhe em tu d o ” , e tam bém que “ se não querem
ser inim igos do p o d er constituído e agir co n tra a razão que
sugere defendê-lo com todas as pró p rias forças, são obrigados
a executar ab solutam ente todas as ordens d a su p rem a a u to ri­
dade, m esm o no caso de que ela im ponha ab su rd o s” ,24 ele
parece rep etir o tem a tipicam ente hobbesiano d a obediência
absoluta. M as, ap esar das sem elhanças literais, a lógica em
que se in sp ira o raciocínio spinoziano é diversa da hobbesiana:
os hom ens saem do estado de n atu reza, segundo H obbes, por
razões de segurança (a bu sca da paz); segundo Spinoza, por
razões de p otência (já que o direito se estende ta n to q u an to a

(23) Ib id . , t . III, cap. 8.


(24) S pinoza, Tractatus theologico-politicus, ed . c it., p p . 382-83.
SO C IED A D E E E S TA D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D ER N A 73

potência: “ q u a n to m aior for o núm ero dos que se constituem


em u n id ad e, ta n to m aior será o direito que todos ju n to s a d ­
quirem ” ).25 O estado de n a tu re za é um estado de recíprocas
im potências e, p o rta n to , de insegurança. M as a potência não
é fim em si m esm a; e, qu an d o se to m a fim em si m esm a, o
E stado se to rn a despótico. A verdadeira finalidade ú ltim a do
E stado não é a potência, m as a liberdade. Finis republicae
libertas est.76
Se, p a ra H obbes, o fim do E stado é to rn a r os hom ens
seguros, p a ra Spinoza esse fim é torná-los livres, ou seja, fazer
de tal m odo que c ad a hom em possa explicitar ao m áxim o sua
p ró p ria razão. A p rim eira condição p a ra que o fim do E stado
se realize é que o hom em , ingressando no E stad o , não a b d i­
que do direito de raciocinar: “ Ninguém pode o b rig ar nem ser
obrigado a tran sferir p a ra outros (...) sua p ró p ria faculdade
de raciocinar livrem ente e de expressar seu p ró p rio juízo sobre
qu alq u er coisa” .27 T am bém p a ra Spinoza, p o rta n to , a re n ú n ­
cia aos direitos n a tu ra is não é total. E n q u a n to p a ra H obbes,
que considera que a paz é o fim do E stado, o direito irren u n ­
ciável é o direito à vida, p a ra Spinoza, que considera a lib er­
dade com o o fim do E stad o , o direito irrenunciável é o direito
de p en sar com a p ró p ria cabeça.
N a concepção de Locke, a transferência dos direitos n a tu ­
rais é parcialíssim a. O que falta ao estado de n atu reza p a ra
ser um estado perfeito é, sobretudo, a presen ça de um ju iz
im parcial, ou seja, de u m a pessoa que possa ju lg a r sobre a
razão e o erro sem ser p a rte envolvida. Ingressando no estado
civil, os indivíduos renu n ciam substancialm ente a um único
direito, ao direito de fazer ju stiça p o r si m esm os, e conservam
todos os ou tro s, in prim is o direito de p ro p ried ad e, que já
nasce perfeito no estado de n atu reza, pois não depende do
reconhecim ento de outros m as unicam ente de um ato pessoal
e n a tu ra l, com o é o caso do trab alh o . A liás, a finalidade em
função d a q u al os indivíduos instituem o estado civil é princi­
palm ente a tu te la d a pro p ried ad e (que, en tre o u tras coisas, é a
g aran tia d a tu te la de um o u tro sum o bem que é a liberdade

(25) S pinoza, Tractatuspoliticus , cap. I, § 15.


(26) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, ed. c it., p . 482.
(27) Ib id ., p . 480.
74 N O R B ER TO BOBBIO

pessoal). Se essa é a finalidade, disso resu lta que não som ente
o direito à vida, com o em H obbes, não apenas o direito à liber­
dade de opinião, como em Spinoza, m as tam bém e sobretudo
o direito de p ro p ried ad e é um direito irrenunciável: “ P or po­
der político — diz Locke, precisam ente no início do Segundo
tratado — , entendo o direito de fazer leis com penalidade de
m orte e, p o r conseguinte, com toda p enalidade m enor, p a ra o
fim de reg u lam en tar e conservar a p ro p ried ad e” .28 Pode-se
dizer, em síntese, ain d a que com certa sim plificação: e n q u an ­
to os indivíduos de H obbes e de Spinoza renunciam a todos os
direitos, exceto um , os indivíduos de Locke renunciam a um
só direito, ou seja, conservam todos m enos u m .29

(28) Locke, Two Treatises, Segundo T rata d o , § 3. Sobre o significado de “ p ro ­


p riedade” em Locke, que o ra designa a p ropriedade em sentido estrito, o ra a som a de
todos os direitos n a tu ra is do indivíduo (com o o próprio Locke diz expressam ente,
§ 123), detive-m e m ais am plam ente em m eu curso universitário sobre Locke e il diritto
naturale, G iappichelli, 1963, p p . 217-18.
(29) P orque h á pouco citam os B urlam aqui a propósito de Rousseau, considero
de certo interesse recordar a su a conclusão de que, “ visto que a liberdade civil (isto é,
a liberdade que o hom em adquire apenas n a sociedade civil) é bem m ais im p o rtan te
do que a liberdade n a tu ra l, estam os no direito de concluir que o estado civil que
p roporciona ao hom em u m a tal liberdade é, de todos os estados do hom em , o m ais
racional e, p o r conseqüência, o verdadeiro estado de n atu re z a ” (cf. Príncipes du droit
d ela n a tu re et desgens, Y verdon, 1768, vol. V I, p . 50). E ssa conclusão é a inversão da
tese hobbesiana segundo a qu al o estado civil é antitético ao estado de n atu reza.
A qui, ao contrário, o estado civil term in a p o r se to rn a r o verdadeiro estado n a tu ral.
A posição de Locke é interm ed iária entre as duas: o estado civil não an u la o estado
n a tu ral nem o dissolve em si mesm o.
A sociedade civil

A s divergências com relação às m odalidades e ao con­


teúdo do co n trato social, e sobretudo essas ú ltim as, repercu ­
tem nas variações sobre o tem a da sociedade civil. Essas va­
riações podem ser ag ru p ad as em to m o dos seguintes proble­
m as: a) se o p o d er soberano é absoluto ou lim itado; b) se é
indivisível ou divisível; c) se se pode resistir a ele ou não. As
soluções d ad as aos três problem as são estreitam ente ligadas:
quem p en sa n a contraposição clássica en tre H obbes e Locke
não ta rd a rá a perceber que, enqu an to p a ra H obbes o p oder é
absoluto, indivisível e irresistível, p a ra Locke, ao contrário,
é lim itado, divisível e resistível.
a) Se p o r p oder absoluto se entende um p oder sem lim
tes, nenhum dos escritores de que estou m e ocupando defen­
deu, n a verdade, o caráte r absoluto do poder. P oder absoluto,
nesse sentido, é som ente o de D eus. Ao contrário, a argum en­
tação é o u tra se se entende p o r p oder absoluto, como se deve
fazer, legibus solutus. O fato de que o soberano seja livre das
leis, significa que ele é livre das leis civis, ou seja, das leis que
ele m esm o tem o p o d er de criar. Nesse sentido, declaram -se
explicitam ente em favor do poder absoluto ta n to H obbes
q uanto Spinoza. E tam b ém Rousseau: “ Assim como a n a tu ­
reza dá a todo hom em um poder absoluto sobre todos os seus
próprios m em bros, do m esm o m odo o pacto social dá ao corpo
político um po d er absoluto sobre todos os seus próprios m em ­
bros; e é esse m esm o p oder que, dirigido p ela vontade geral,
76 N O R B ER T O BO BBIO

to m a ( ...) o nom e de soberania” .1 T am bém p a ra K an t, o p o ­


der do soberano é, nessa acepção do term o, absoluto. Q uando
ele afirm a que “ o soberano no E stado tem em face dos súditos
apenas direitos e n enhum dever (coativo)” ,2 qu er dizer que o
soberano, não im p o rta o que faça, não im p o rta a lei que viole,
não pode ser subm etido a julgam ento. N ão pode ser subm e­
tido a julgam ento precisam ente porque não é obrigado ju rid i­
cam ente a resp eitar as leis civis. O fato de que o poder sobe­
ran o esteja acim a das leis civis não q u er dizer que seja um
poder sem lim ites: quer dizer que os lim ites do seu p oder são
lim ites não jurídicos (de direito positivo), m as de fato, ou,
pelo m enos, são lim ites derivados daquele direito im perfeito,
ou seja, incoercível, que é o direito n a tu ra l. (P a ra quem con­
sidera que não h á outro direito além do direito positivo, n a
m edida em que atrib u i ao direito o traço característico d a
coercibilidade, os lim ites derivados do direito n a tu ra l são,
propriam ente falando, tam bém eles lim ites de fato, ou, pelo
m enos, não se diferenciam , com relação ao p o d er de resistên­
cia dos súditos, dos lim ites de fato.)
N inguém m elhor do que Spinoza esclareceu os term os da
questão. “ Se p o r lei se entende o direito civil (...) , ou seja, se
essas palavras são entendidas literalm ente, não se pode dizer
que o E stado seja subm etido a leis ou que possa delinqüir.
Com efeito, as regras e os motivos de subm issão e de obediên­
cia que o E stad o deve conservar p a ra sua p ró p ria g aran tia não
são de direito civil, m as de direito n a tu ra l (...); e o E stad o é
obrigado a isso apenas p ela m esm a razão p o r que o hom em no
estado n a tu ra l é obrigado (...) a evitar se m atar: dever esse
que não im plica subm issão, m as denota a liberd ad e d a n a tu ­
reza h u m a n a ” .3 Desses lim ites n atu rais, alguns dependem da
pró p ria n a tu reza dos súditos que o E stad o co m anda e, en ­
quanto externos ao E stado, trazem à luz u m a im possibilidade
m aterial: assim com o ninguém pode fazer com que u m a m esa
com a gram a, tam b ém o E stado não pode o b rig ar um hom em
a voar. O utros, bem m ais im portantes, dependem d a n a tu reza
m esm a do E stad o , ou seja, põem em ação u m a im possibili-

(1) R ousseau, D u contraí social, L. II, cap. 4.


(2) K ant, M eta p h ysikd erS itten , Rechtslehre, § 4 9 A.
(3) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. IV, § 5 .
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 77

dade racional (ou m oral). O E stado, en q u an to ente racional,


não pode deixar de seguir os ditam es d a razão, a não ser que
p reten d a d ecretar sua p ró p ria perdição. A teoria do E stado de
Spinoza não é ta n to u m a teo ria do E stado absoluto q u an to do
E stado-potência; e um E stad o é tan to m ais potente q uanto
m ais sua potência for razoável, ou seja, obedecer aos ditam es
da razão, q u an to m ais os governantes não abusarem do seu
poder, já que som ente en q u an to governarem nos lim ites da
razão p o derão co n tar com o consenso dos súditos. “ Se o E s­
tado não fosse subm etido a nenhum a das leis ou regras graças
às quais é o que é, não seria u m a realidade n a tu ra l e sim u m a
quim era” .4 P a ra conservar a p ró p ria auto rid ad e, ou seja, p a ra
con tin u ar a m a n te r su a p ró p ria n atureza, o E stado nãb pode
realizar n en h u m a ação que faça desaparecer o respeito dos
súditos e provoque a revolta: “ Q uando o soberano m ata e ex-
polia os súditos, seqüestra as moças, etc., a sujeição se trans-
forhia em indignação e, p o r conseguinte, o estado civil se con­
verte em estado de hostilidade” .5 A sanção p ela violação de
u m a lei n a tu ra l ou d a razão é, p o r sua vez, um fato n atu ral,
a dissolução do E stado, d a qual nasce um novo direito que
não é m ais o direito civil e sim o direito de guerra, o único
direito que vigora no estado de n atureza. Com o vimos a res­
peito da irren unciabilidade ao direito de raciocinar e ju lg ar,
um outro lim ite do E stado deriva do fato de que ele deve re­
gular, seguindo su a n atu reza, as ações externas e não as in te r­
nas: u m a das razões ad o tad as po r Spinoza é a liberdade de
pensam ento ser incoercível, ou seja, ser de tal ordem que o
E stado, p o r m ais que faça, não pode im pedir um indivíduo de
pen sar o que pensa (pode apenas im pedi-lo de dizer o que
pensa); e, de q u alq u er m odo, não h á sanção de que disponha
que seja cap az de convencer u m filósofo a não crer naquilo em
que crê (pode apenas transform á-lo n u m hip ó crita ou num
m ártir). “ N ão fazem p a rte do direito civil — diz Spinoza —
todas aquelas ações às quais não se possa ser induzido pela
esperança de prêm ios ou pelo tem or de am eaças” .6
Além desses lim ites que podem ser ch am ados de necessá-

(4) Ib id . , cap. IV, § 4 .


(5) Ibid.
(6) /ftírf., cap. III, § 8 .
78 N O R B ER T O BOBBIO

rios, n a m edida em que derivam d a p ró p ria n a tu re za do E s­


tado ou de razões objetivas, não h á escritor que não reconheça
lim ites que derivam de considerações de conveniência ou de
o portunidade. E n tre esses, os principais são os que se referem
à esfera dos interesses privados. D iz H obbes: “ As leis não fo­
ram inventadas p a ra rep rim ir a iniciativa individual, m as p a ra
discipliná-la, do m esm o m odo como a n a tu re za dispôs as m a r­
gens dos rios não p a ra estan car o seu curso, m as p a ra dirigi-
lo” .7 E R ousseau: “ Todos os serviços que um cidadão pode
p restar ao E stad o são po r ele devidos tão logo o E stado os re ­
clam e; m as o corpo soberano, por sua p a rte , não pode gravar
os súditos com n en h u m a cadeia que seja inú til à com uni­
dade” .8
b) E m b o ra os defensores da indivisibilidade do p oder s
berano, com o H obbes e R ousseau, e os defensores d a divisão
de poderes, como Locke, M ontesquieu e K an t, sejam h a b i­
tualm ente contrapostos com o representantes de duas teorias
opostas, a contraposição — se olham os as coisas com a a ten ­
ção que a com plexidade d a m atéria exige — não é tão evidente
com o parece e com o se supõe. A verdade é que a “ divisão”
que os defensores d a indivisibilidade condenam n a d a tem a
ver com a “ divisão” que os adversários defendem ; e, vice-ver-
sa, a concentração que estes com batem não corresponde à
u nidade que os outros defendem . Q uando H obbes afirm a que
o poder soberano deve ser indivisível e co ndena como teoria
sediciosa a tese co n trária, o que ele rechaça é a teoria do go­
verno m isto, ou seja, a teoria que afirm a com o governo ótim o
aquele em que o p o d er soberano está d istribuído entre órgãos
diversos em colaboração entre si, representados cad a u m por
três diversos princípios de qualq u er regim e (o m onarca, os
m elhores, o povo). Q uando Locke defende a teoria d a divisão
dos poderes, o que ele acolhe não é absolutam ente a teoria do
governo m isto, m as sim a teoria segundo a q u al os três pode­
res através dos quais se explicita o p o d er soberano — o p o d er
legislativo, o p o d er executivo e o p oder ju d iciário (m as, n a
realidade, os poderes que Locke leva sobretudo em conta são

(7) H obbeS, D ecive, X III, 15.


(8) R ousseau, D u contrat social, L. II, cap. 4.
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 79

apenas dois, o legislativo e o executivo) — , devem ser exerci­


dos p o r organism os diversos. D o ponto de vista d a u nidade
que preocupa H obbes, o E stado que Locke tem em m ente não
é m enos u n itário do que o E stado hobbesiano: é verdade, de­
certo, que o p o d er executivo e o poder legislativo são a trib u í­
dos a dois órgãos diversos, respectivam ente o rei e o p a rla ­
m ento, m as é igualm ente verdade que o p o d er suprem o é um
só, o p oder legislativo, e que o p oder executivo deve p erm an e­
cer subordinado ao prim eiro: “ De qualq u er m odo, desde que
o governo subsiste, o poder suprem o é o legislativo, pois o que
pode d a r leis a outros deve necessariam ente lhe ser superior” ;9
e, por outro lado, “ o p o d er executivo, q u an d o não é colocado
n u m a pessoa que tam bém faça p arte do legislativo, é eviden­
tem ente su bordinado e responsável p eran te esse últim o, e
pode ser m u d ad o e transferido a b el-prazer” .10
Som ente q uando se leva em conta essa não-correspon-
dência en tre os dois conceitos de divisão e, respectivam ente,
de indivisibilidade do p oder soberano, um dos quais se refere
à divisão dos órgãos (rei, c âm ara dos lordes e c âm ara dos co­
m uns), en q u an to o outro refere-se à divisão das funções (legis­
lativa, executiva, ju d iciária), é que se pode com preender o
ap arente paradoxo de O Contrato Social, no q ual R ousseau
afirm a ao m esm o tem po a tese da indivisibilidade d a sobera­
nia, com o H obbes, e a tese d a divisão do p o d er legislativo e do
poder executivo, bem com o a subordinação do segundo ao p ri­
m eiro, com o L o ck e.11 A indivisibilidade do p o d er soberano,
pela qual se entende que aquele ou aqueles que detêm o p oder
soberano não podem dividi-lo em partes d istintas e indepen­
dentes, e a divisão entre p oder legislativo e p o d er executivo,
pela qual se considera desejável que as d u as funções sejam
exercidas em m odos e p o r órgãos diversos, não são abso lu ta­
m ente incom patíveis. A contradição aparece ain d a m enos evi­
dente se se leva em co n ta que, dos dois m ales extrem os que
todo filósofo político en cara com preocupação, a a n arq u ia e o

(9) Locke, Two Treatises, Segundo T ratad o , § 150.


(10) Ib id . , § 152.
(11) No que se refere à indivisibilidade da soberania, cf. D u contraí social,
L. II, cap. 2. Q u an to à separação en tre poder legislativo e p o d er executivo e à su b o r­
dinação do segundo ao prim eiro, cf. ibid . , L. I ll, cap. 1.
80 N O R B ER T O BO BBIO

despotism o, a teoria hobbesiana d a indivisibilidade visa a re-


m ediár o prim eiro, en q u an to a teoria lockeana d a divisão visa
a evitar o segundo. Com o já foi várias vezes observado e o que
h á pouco dissem os confirm a, o paradoxo de R ousseau consiste
no fato de que, com sua teoria do contrato social, ele im agi­
nou u m a fórm ula com a qual visa salvar ao m esm o tem po a
unidade do E stad o (pelo que ele se professa ad m irad o r de
Hobbes) e a liberdade dos indivíduos (no que ele é certam ente
um seguidor de Locke).
A tese de que a separação dos poderes é um rem édio con­
tra o despotism o é ratificad a p o r K ant, o q ual distingue, com
relação ao m odo de governar, duas form as de E stado, a re p ú ­
blica e o despotism o: a república é caracterizad a pela sepa­
ração en tre p o d er executivo e poder legislativo, como ele afir­
m a a propósito do prim eiro artigo definitivo p a ra a paz p erp é­
tua, o qual — com a finalidade de realizar as condições de u m a
paz estabelecida en tre os E stados — exige que todo E stado
ten h a u m a constituição republicana. M as tam b ém K an t, su­
blinhando a im p o rtân cia d a separação dos poderes, não p re ­
tende ab solutam ente am eaçar aquela u n id ad e do p oder sobe­
rano que H obbes desejava. N um a p erfeita racionalização (tão
perfeita que parece artificiosa) d a teoria dos três poderes,
K ant os considera ao m esm o tem po com o coordenados, no
sentido de que se com pletam um ao o utro, com o su b o rd in a­
dos, no sentido de que são dependentes u m do outro, e com o
unidos, no sentido de que a unidade deles perm ite ao E stad o
atingir sua finalidade precípua, que é fazer ju stiç a salvaguar­
dando a lib e rd a d e.12 N um a o u tra passagem , que pode p arecer
não p erfeitam ente conform e à precedente, K an t e q u ip ara os
três poderes às três proposições de um silogismo prático, onde
a prem issa m aior é a lei, a m enor é o com ando do executivo,
enqu an to a conclusão é a sentença do juiz: n a d a m ais un itário
do que um raciocínio silogístico.13 Q u alq u er que seja o seu
valor, tal analogia é u m a com provação de que a teoria d a se­
p aração dos poderes jam ais põe em questão a un id ad e do p o ­
der soberano, com o, ao contrário, poderia ocorrer n a teoria
do governo m isto, que fora o principal alvo de H obbes.

(12) K an t, M etaphysik derS itten , §48.


(13) Ib id .,% 45.
SO C IED A D E E E S TA D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D ER N A 81

c) A pred o m in ân cia d ad a a um dos dois m ales extrem o


an arq u ia ou despotism o, repercute tam bém n a solução que os
autores singulares dão ao problem a d a obediência e, respecti­
vam ente, do contrário d a obediência, ou seja, a resistência.
Q uem , com o H obbes, considera como m al extrem o a a n a r­
quia, um m al que provém d a conduta irrefread a dos indiví­
duos, ten d e a se colocar do lado do príncipe, cujo p oder consi­
dera irresistível, ou seja, de tal n atu reza que, diante dele, o
súdito tem u nicam ente o dever de obedecer. Q uem , ao co n trá ­
rio, com o Locke, considera o despotism o com o m al extrem o,
um m al que provém d a co n d u ta irrefreada do soberano, tende
a se pô r do lado do povo, ao qual atrib u i em determ ipados
casos o direito de resistir às ordens do soberano, ou seja, de
não obedecer. A teoria dos dois males é expressam ente invo­
cad a p o r Locke: “ Se é a opressão ou a desobediência que
constitui a origem p rim eira d a desordem — diz ele — é u m a
questão cu ja decisão deixo à im parcialidade d a história” .14
M as ele reconheceu que a história d á razão aos que conside­
ram com o a causa m ais freqüente dos tum u lto s não as rebe­
liões dos povos (os quais são m ais inclinados a su p o rtar que a
prom over sedições), m as a prepotência dos soberanos. R azão
pela q ual é preciso prevenir-se não tan to c o n tra as prim eiras,
como o fazem os defensores de u m a férrea obediência, q uanto
contra as segundas, e estabelecer quais são os casos em que
desaparece a obrigação d a obediência. A m esm a teoria dos
dois m ales é invocada, m as com um juízo de valor oposto, p o r
Spinoza. D efensor com o H obbes da obediência incondicional,
ou seja, d a obediência às leis m esm o q uando aqueles a quem
são dirigidas as consideram como iníquas, assim argum enta:
“ Se o hom em razoável deve p o r vezes fazer, p o r ordem do
E stado, algo que reconhece como rep u g n an te à razão, esse
m al é am plam ente com pensado pelo bem que re tira do p ró ­
prio estado civil: com efeito, é tam bém u m a lei d a razão que,
entre dois m ales, deve-se escolher o m enor” .15
Todavia, q uando se p assa das declarações de princípio
p a ra a análise dos casos concretos, a alternativa — tam bém
nesse caso, com o no caso do problem a dos lim ites do p oder

(14) Locke, Two Treatises, Segundo T ratad o , § 230.


(15) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. III, § 6 .
82 N O R B ER T O BO BBIO

soberano — aparece m enos rígida: a situação é m ais com ­


plexa. U m intransigente teórico d a obediência com o é Spi-
noza, reconhece, com o Locke, que “ os abalos, as guerras e o
desprezo ou violação das leis não são im putáveis ta n to à m al­
dade dos súditos q u an to à m á constituição do governo” .16
Antes de m ais n a d a, é preciso co nsiderar que a divergên­
cia entre defensores d a obediência e defensores d a resistência
refere-se ao caso do tiran o e não ao do u su rp a d o r (e ao caso,
a esse assimilável, d a conquista): no caso do u su rp ad o r, Hob-
bes não hesita em reconhecer o desaparecirfiento d a obrigação
de obedecer, já que quem se apossa do p o d er sem te r títulos
p a ra isso deve ser considerado como um inim igo (um inim igo
interno, à diferença do conquistador, que é um inim igo ex­
terno); e, diante do inim igo, não h á outro direito além do di­
reito de g u erra (que vigora no estado de n a tu re z a ).17
No que se refere ao caso do m au governo (no q ual se en ­
q u ad ra o do tiran o ), a diferença não é ta n to en tre quem a d ­
m ite e quem recusa o direito de resistência, m as sim ao dife­
rente m odo de estabelecer em que consiste um m au governo,
ou seja, o governo co n tra o qual a desobediência se to rn a lí­
cita. Nessa ordem de idéias, reaparece o co n traste acerca da
p redom inância d a d a a um ou a outro dos m ales extrem os. Se,
p a ra Locke, e em geral p a ra os que com batem o despotism o,
m au governo é o que ab u sa do próprio p o d er e tra ta os seus
súditos não como hom ens racionais, m as com o escravos ou
crianças (e o caso clássico d a tirania), p a ra H obbes e p a ra
Spinoza m au governo é o que peca não p o r excesso, m as p o r
defeito, e que, não g aran tin d o satisfatoriam ente a segurança
dos próprios súditos, não cum pre sua p ró p ria tarefa fu n d a ­
m ental de fazer cessar do modo m ais absoluto possível o es­
tado de n atu reza. P a ra H obbes, “ a obrigação dos súditos em
face do soberano d u ra enqu an to d u ra o p oder com o qual ele é
capaz de protegê-los” .18
Spinoza, p a rtin d o do princípio de que o direito é p oder e
que, p o rtan to , o direito do E stado de co m an d ar se estende até

(16) Ib id ., cap. V, § 2 .
(17) Hob’bes, D e eive, V II, 3.
(18) H o b b es, Leviathan, cap. XXI.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 83

o m om ento em que se estende seu poder, deplora o E stado


que, “ não tendo assegurado de m odo ad eq u ad o a concórdia” ,
dem onstra “ não te r assum ido plenam ente as rédeas do gover­
no” . U m E stad o desse tipo, n a m edida em que não conseguiu
elim inar as causas das desordens, “ não difere em m uito do
estado de n atu reza, no q ual cada u m vive a seu talan te e em
contínuo perigo de vida” .19 D e resto, as d u as form as de m au
governo têm um c aráte r essencial em com um : são o reino do
medo, e o reino do m edo é o contrário d a sociedade civil, que
nasce p a ra in sta u ra r o reino d a paz e d a segurança. Não p o r
acaso Locke considera o E stad o despótico com o o prolonga­
m ento do estado d a natureza; e Spinoza afirm a que “ u m povo
livre se rege m ais pela esperança do que pelo m edo, enqu an to
um povo subjugado, ao contrário, vive m ais no tem or do que
n a esperança” .20 (A relação entre despotism o e m edo será
celebrizada pela teoria do despotism o de M ontesquieu.)
O problem a m ais difícil p a ra u m a teoria racional (ou que
pretende ser racional) do E stado é o de conciliar dois bens a
que ninguém está disposto a renunciar e que são (com o todos
os bens últim os) incom patíveis: a obediência e a liberdade.
Spinoza propõe u m a solução que será acolhida tam bém p o r
K ant: dever de obediência absoluta com relação às ações, di­
reito de liberdade com relação aos pensam entos. E n tran d o no
estado civil, cad a um renuncia ao direito de agir segundo seu
próprio arbítrio, não àquele de raciocinar e de julgar. “ E n ­
quanto ninguém pode agir contra o decreto das soberanas po-
destades, é lícito a cad a um , sem lesar o direito, pen sar e ju l­
gar e, p o rtan to , tam bém falar contra o decreto p o r elas em a­
nado, co ntanto que sim plesm ente fale ou ensine, e defendendo
o que diz baseando-se apenas n a razão ” .21
K an t é m uito firm e em afirm ar a obrigação absoluta de
obedecer à lei e em negar todo e q ualquer direito de resistên­
cia; e ele se expressa sobre isso com u m a aspereza que lhe foi
freqüentem ente criticada. Se u m a lei pública, diz ele, é irre ­
preensível, ou seja, conform e o direito, é tam b ém irresistível,

(19) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. V, §2.


(20) Ib id . , cap. V, § 6.
(21) Spinoza, Tractatus theologico-politicus , cap. XX, ed. c it., p. 483.
84 N O R B ER TO BOBBIO

já que a resistência a ela teria lugar segundo u m a m áxim a


que, universalizada, destruiria q u alq u er constituição civil:
“ C ontra o suprem o legislador do E stado, não pode haver n e­
n h u m a oposição legítim a po r p a rte do povo, já que som ente
graças à subm issão de todos à sua vontade universalm ente le­
gisladora é possível um E stado jurídico; p o rtan to , não pode
ser em itido nenhum direito de insurreição (seditio ), m enos
ain d a de rebelião (rebellio ), e m enos do que q u alq u er outro de
atentados co n tra ele como indivíduo (com o m onarca) sob p r e ­
texto de abuso do poder, em sua pessoa ou em sua vida (mo-
narchomachismus sub specie tyrannicidii)” . M as a obediên­
cia não exclui a crítica: e, portan to , o que é seu pressuposto,
a liberdade de opinião e de expressão. No ensaio Was ist A u f­
klärung (O que é o ilum inism o ), de 1784, depois de te r afir­
m ado que o ilum inism o “ não precisa senão d a liberdade, e d a
m ais inofensiva de todas as liberdades, ou seja, a de fazer uso
público d a p ró p ria razão em todos os cam pos” , elogia o p rín ­
cipe que erigiu com o m áxim a de seu próprio governo o se­
guinte: “ R aciocinem enqu an to quiserem e sobre o que quise­
rem , m as obedeçam ” .23
Além dessa solução, que representa a quintessência do
pensam ento liberal, existem apenas o u tras duas soluções: a
solução lockeana d a obediência não m ais absoluta e sim rela­
tiva, ou seja, condicionada ao respeito pelo soberano de lim i­
tes preestabelecidos ao seu poder suprem o; e a solução rous-
seauniana, que reafirm a o dever d a obediência absoluta, m as
ao m esm o tem po afirm a que som ente n a obediência absoluta,
quando se entende p o r obediência a subm issão à lei que cad a
um prescreveu p a ra si m esm o, consiste a liberdade (que será
tam bém a solução de Hegel, em bora ele seja anti-rousseau-
niano sob vários aspectos).

(22) K an t, M etaphysik der S itte n , § 49 A.


(23) K an t, Scrittipolitici, cit., p. 143.
O Estado segundo a razão

O fato de que todas as variações do m odelo p o r nós con­


sideradas (e que não esgotam o núm ero das que poderiam ser
indicadas) sejam o reflexo de diferentes posições ideológicas e
tenham , com o conseqüência, relevantes im plicações políticas,
revelou-se com m u ita clareza e não necessita de ulteriores
com entários. Deve ser ain d a esclarecido que, en tre a e stru tu ra
de um m odelo e sua função ideológica, não subsiste aquele
paralelism o perfeito que seríam os tentados a im aginar: o m es­
mo m odelo pode servir p a ra apoiar teses políticas opostas, e a
m esm a tese política pode ser ap resentada com m odelos diver­
sos. T rata-se, de resto, do bem conhecido p roblem a da com ­
plexa relação, de m odo algum simples e sim plificável, en tre a
construção de u m a teoria e seu uso ideológico: relação que
desencoraja ou deveria desencorajar os que buscam corres­
pondências unívocas (d a d a tal teoria, tem -se d eterm inada
ideologia).
Se se escolhe como critério p a ra distinguir as atitudes
políticas dos diversos autores a resposta que d eram à velha e
sem pre recorrente disp u ta sobre a m elhor form a de governo,
podem -se distinguir, grosso m odo, três posições, conform e a
preferência ten h a sido d ad a ao governo m onárquico (H obbes),
ao dem ocrático (Spinoza, Rousseau) ou ao constitucional re­
presentativo (Locke, K ant). A derivação d a construção spino-
ziana a p a rtir d a hobbesiana é evidente e não é de m odo al­
gum atenuável (com o ten tam fazer os que consideram dever
86 N O R B ER TO BO BBIO

evitar, p a ra o a u to r que apreciam , a vergonha d a reductio ad


H obbesium ). M as, q uando am bos se em penham em d a r u m a
resposta m otivada à p erg u n ta sobre a m elhor form a de go­
verno (H obbes no cap. X do De eive, Spinoza nos capítulos
V I-IX do Tratado político), chegam a conclusões opostas:
p a ra H obbes, a m elhor form a de governo é a m on arq u ia, en ­
quanto p a ra Spinoza é a dem ocracia. É b a sta n te conhecido o
q uanto influiu sobre R ousseau o m odelo hobbesiano; m as, do
modelo escolhido com o guia, R ousseau ex trai não as conse­
qüências políticas de H obbes, m as as de Spinoza: a definição
d ad a p o r Spinoza d a dem ocracia an tecipa su rp reen d en te­
m ente a fórm ula de R ousseau: “ [A dem ocracia] define-se
como a união de todos os hom ens que têm coletivam ente pleno
direito a tu d o o que está em seu p o d er” .1 C ontudo, a constru­
ção rousseau n ian a não é nem a de H obbes nem a de Spinoza:
o m odo pelo q ual ele figura a distinção en tre p o d er legislativo
e poder executivo, com o distinção en tre a vontade que deli­
b era e dirige e a m ão que a tu a, é de n ítid a derivação lockeana.
M as R ousseau é defensor d a dem ocracia direta, en q u an to Lo-
cke defende e racionaliza o regim e d a m o n arq u ia constitucio­
nal e representativa. Sobre a relação L ocke-K ant no que se
refere à form a de governo, não h á necessidade de g a sta r m u i­
tas palavras: q u an d o contrapõe a república não à m o narquia,
m as ao despotism o, K an t tem em m ente o ideal d a m o n arq u ia
constitucional, e não certam ente o ideal spinoziano e m enos
ainda o rousseauniano d a dem ocracia; aliás, ele execra a de­
m ocracia com o a pior form a de governo. Contudo, se exam i­
narm os os elem entos singulares da construção, não h á dúvida
de que alguns deles, em m in h a opinião os m ais significativos
— a teoria da obediência absoluta aco m p an h ad a d a liberdade
de opinião — aproxim am -no de Spinoza. K an t é m uito m ais
estatista que Locke, ap esar d a divisão dos poderes, m as é ao
m esm o tem po m enos dem ocrático que Spinoza e, n a tu ra l­
m ente, que R ousseau, de quem , contudo, é m ais próxim o pelo
seu estatism o e de quem derivou a idéia do co n trato originário
com o fund am en to de legitim idade do p o d er e a p ró p ria fór­
m ula desse co n trato , segundo o qual todos depõem sua liber-

(1) Spinoza, Tractatus theologico-politicus , cap. X V I, ed . cit., p . 382.


SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 87

dade ex tern a p a ra retom á-la n a condição de m em bro de um


corpo com um .2
Não é diversa a conclusão a que podem os chegar quando
exam inam os não a solução d ad a ao pro b lem a d a m elhor for­
m a de governo, m as a ideologia política expressa em cad a a u ­
tor: conservadora (H obbes), liberal (Spinoza, Locke e K ant),
revolucionária (R ousseau). O significado ideológico de u m a
teoria depende não de sua estru tu ra, m as do valor prim ário ao
qual ela serve: a ordem , a p a z social, a segurança, a liberdade
individual estreitam ente ligada à p ropriedade, a igualdade so­
cial que se realiza não n a liberdade individual m as n a liber­
dade coletiva, e assim p o r diante. A fórm ula hobbesiana do
pacto de un ião desem penha u m a função conservadora em
H obbes, radical-revolucionária em R ousseau, en q u an to a
ideologia liberal acolhe e utiliza p a ra a m esm a finalidade, res­
pectivam ente em Spinoza-K ant e em Locke, duas soluções
opostas com relação ao p roblem a da obrigação política (dever
de obediência ou direito de resistência).
T odavia, p a ra além das variações e stru tu rais, até m esm o
nos lim ites de u m único m odelo, e p a ra além das divergências
ideológicas, todas as filosofias políticas que se en q u ad ram no
âm bito do ju sn atu ralism o têm — com relação às que as p re ­
cedem e às que as sucedem — u m a característica distintiva
com um : a ten tativ a de construir u m a teo ria racional do E s­
tado. N as p rim eiras páginas, insistim os no am bicioso projeto
d a ch am ad a escola do direito n atu ral, a com eçar p o r H obbes,
de elab o rar u m a ética, u m a ciência do direito, u m a política
(ao que se acrescentará, no final, u m a econom ia), ou, em
sum a, u m a filosofia p rá tic a dem onstrativa, isto é, apoiada em
princípios evidentes e deduzida desses princípios de m odo lo­
gicam ente rigoroso. Esse projeto culm ina n a teoria do E stado,
não só p o rq u e o E stado, e em geral o direito público, constitui a
p a rte final d a teoria do direito e era até en tão a p a rte teorica­
m ente m enos desenvolvida, m as tam bém p o rq u e é aquela a que
os próprios ju sn atu ralista s deram m aior d estaque, e que deixou
atrás de si m aiores m arcas, ta n to que o ju sn atu ralism o foi ge­
ralm ente considerado com o u m a corrente de filosofia política.

(2) K ant, Metaphysik der Sitten , § 47.


88 N O R B ER T O BO BBIO

A expressão “ teoria racional do E sta d o ” tem , antes de


m ais n ad a, um significado metodológico, sobre o qual, depois
do que dissem os nas páginas anteriores, não é o caso de insis­
tir. Q uando m uito, será necessário acrescen tar que, p recisa­
m ente n a teoria do E stado, m anifesta-se m ais clara e m ais
concretam ente do que em qu alq u er outro terren o o propósito
p ufendorfiano de sep arar a ju risp ru d ên cia d a teologia. C ons­
tru ir racionalm ente u m a teoria do E stado significa prescindir
totalm ente de q u alq u er argum ento (e, p o rtan to , de q u alq u er
subsídio) de c aráte r teológico, ao qual sem pre recorrera a
d o u trin a tradicional, n a tentativa de explicar a origem d a so­
ciedade h u m a n a em suas várias form as; ou seja, em ou tras
palavras, significa b u sca explicar e ju stificar u m fato p u ra ­
m ente h u m a n o com o E stad o p artin d o do estudo da n a tu reza
h u m an a, das paixões, dos instintos, dos apetites, dos interes­
ses que fazem do hom em u m ser sociável/insociável, ou, em
sum a, p a rtin d o dos indivíduos — como d irá Vico, em tom de
condenação, referindo-se a Pufendorf — “ lançados neste
m undo sem cuidado e aju d a divinos” .3 À teo ria do E stado
como rem edium peccati, H obbes — e, em suas pegadas, Spi-
noza — contrapõe a teoria do E stado com o rem édio p a ra um
fato hum aníssim o, as paixões hu m an as, consideradas “ não
com o vícios, m as com o propriedades d a n a tu re z a h u m a n a,
pertinentes a ela do m esm o m odo que à n a tu re za d a atm osfera
são p ertinentes o calor, o frio, a tem pestade, o trovão e asse­
m elhados” . 4
Com Locke, com os econom istas, com K an t, os interesses
assum iram o lu g ar das paixões como m ola d a vida social: m as
a antítese interesse individual/interesse social, utilid ad e im e­
d ia ta / u tilidade m ed iata, jam ais elim inará inteiram en te a a n tí­
tese, da qual p a rtiu a teoria racional do E stad o , en tre paixões
(afetos) e razão. A liás, as duas antíteses procedem m escladas
u m a à o u tra , m al distinguíveis u m a d a o u tra , de m odo que o
E stado aparece em cad a o p ortunidade e ao m esm o tem po
como o ente racional p o r excelência e como o g aran te do in te­
resse coletivo, do ú til m ediato, que é o “ verdadeiro” útil, p re ­
cisam ente o ú til ta l com o é sugerido p ela re ta razão. A hipó-

(3) G . B. Vífco, L ascien za n u o va p rim a , ed. cit., §18.


(4) Spinoza, T ractatuspoliticus, cap. I, § 4 .
SO C IED A D E E E S T A D O NA F IL O S O F IA P O L lT lC A M O D ER N A 89

tese do estado de n a tu reza e do conseqüente contrato social


faz desaparecer definitivam ente a d o u trin a do nulla potestas
rtisi a D eo, d a qual K an t d a rá u m a justificação p uram ente
racional: a m áxim a — diz ele — não tem finalidade que a de
fazer com preender que a origem do p o d er é im perscrutável
(m as, se é assim , então a d o u trin a d a origem divina do poder
poderá ser tran q ü ilam en te substitu íd a p ela d o u trin a que fu n ­
d a a legitim idade do poder unicam ente n a trad ição , como a
defendida p o r E d m u n d B urke, contem porâneo de K ant, já
que a trad ição é tão im perscrutável q u an to a vontade de
D eus). A construção racional do E stado avança pari passu
com o processo de secularização d a auto rid ad e política e, em
geral, d a vida civil: não pode ser dissociada, em bora seja difí­
cil dizer se se tr a ta de u m estím ulo ou de u m reflexo (provavel­
m ente é am b as as coisas), daquela p ro fu n d a transform ação
das relações en tre E stad o e Igreja, pela q ual o E stado se to rn a
cad a vez m ais independente d a Igreja, e n q u an to a Igreja (a
p a rtir do m om ento em que e n tra em colapso o universalism o
religioso e nascem as Igrejas nacionais) se to rn a c ad a vez m ais
dependente do E stado.
P o r o u tro lado, q u an d o se fala em teoria racional do E s­
tado, a propósito do ju sn atu ralism o , é preciso saber c ap ta r —
além do significado m etodológico — tam b ém u m significado
teoricam ente bem m ais rico e historicam ente bem m ais rele­
vante, que se refere à n a tu reza e ao resultado d a construção e
que revelará to d a a su a im portância q uando o m odelo se for
esgotando nas várias correntes an tiju sn atu ralistas. Com um
pequeno núm ero de palavras, pode-se expressar a idéia nos
seguintes term os: a d o u trin a ju sn atu ralista do E stado não é
apenas u m a teoria racional do E stado, m as tam bém é u m a
teoria do E sta d o racional. Isso quer dizer que ela desem boca
nu m a teoria d a racionalidade do E stado, n a m edida em que
constrói o E stad o com o ente de razão p o r excelência, único no
qual o hom em realiza plenam ente sua p ró p ria n a tu reza de ser
racional. Se é verdade que, p a ra o hom em en q u an to c ria tu ra
divina, extra ecclesiam nulla salus, é igualm ente verdade que,
p a ra o hom em en q u an to ser n a tu ra l e racional, não h á salva­
ção extra rem publicam .
Com a su a costum eira e p erem ptória lucidez, H obbes ex­
pressa esse conceito n u m a célebre passagem que pode ser as-
90 N O R B ER T O BO BBIO

sum ida quase com o em blem a da elevação do E stad o a sede d a


vida racional: “ F o ra do E stado, tem -se o dom ínio das paixões,
a guerra, o m edo. A pobreza, a incúria, o isolam ento, a b a r­
bárie, a ig norância, a bestialidade. No E stad o , tem -se o dom í­
nio da razão, a paz, a segurança, a riqueza, a decência, a
sociabilidade, o refinam ento, a ciência, a benevolência” .s O
m aior teórico do E stad o racional é Spinoza: no hom em , as
paixões são tão n a tu ra is q u an to a razão; m as, no estado de
n atureza, as paixões triu n fam sobre a razão; co n tra as p a i­
xões, a religião pode pouco ou n ad a, já que ela vale “ no m o­
m ento d a m orte, qu an d o as paixões já foram vencidas pela
doença e o hom em está debilitado ao extrem o, ou nos tem ­
plos, onde os hom ens não exercem relações de interesse” ^ 's o ­
m ente a união de todos nu m poder com um , que refreie, com a
esperança de prêm ios ou com o tem or de castigos, os indiví­
duos que tendem n atu ralm en te a seguir m ais a cega cupidez
do que a razão, pode p erm itir ao hom em alcan çar do m elhor
m odo possível a m eta d a p ró p ria conservação que é a finali­
dade p recíp u a p rescrita pela razão; n a m edida, de resto, em
que o E stado, e som ente o E stado, perm ite ao hom em realizar
a suprem a lei d a razão, que é a lei d a p ró p ria conservação (d a
“ verdadeira u tilid ad e” ), ele deve se com portar, se quer sobre­
viver, racionalm ente, de m odo diverso do que ocorre com os
hom ens no estado de n atureza; ou seja, o hom em deve se com ­
p o rta r seguindo apenas os ditam es d a sã razão; o indivíduo
n ão delinqüe se, no estado de n atureza, não segue a razão; o
E stado, sim , p orque som ente o E stado racional consegue con­
servar a potência que é constitutiva d a sua n atu reza; u m E s­
tado não racional é im potente; e um E stado im potente não é
m ais um E stad o . O indivíduo pode en co n trar refúgio no E s­
tado. M as o E stado? O estado ou é potente (e, p o rtan to , a u tô ­
nom o) ou não é nad a: m as, p a ra ser potente e autônom o, deve
seguir os ditam es d a razão. O E stado-potência é tam bém , ao
m esm o tem po, o E stado-razão. Spinoza ap ren d eu bem a lição
do “ agudíssim o” , do “ sábio” M aquiavel, de quem é um a d ­
m irador, e transfo rm o u -a num fragm ento de u m a das m ais
coerentes (e im piedosas) concepções do hom em jam ais im agi-

(5) H obbes, D e eive, X, 1.


(6) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. I, § 5 .
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 91

n ad a. As razões do E stado são, no final das contas, as razões


d a razão: a racionalização do E stado se converte n a estatiza-
ção da razão, e a teoria d a razão de E stado se to m a a o u tra
face da teoria do E stad o racional.
P a ra Locke, as leis n a tu ra is são as p ró p rias leis d a razão.
M as, p a ra observar as leis d a razão, são necessários seres ra-
cioanis, ou, m elhor dizendo, são necessárias condições tais
que p erm itam a u m ser racional viver racionalm ente, ou seja,
seguir os ditam es d a razão. Essas condições não existem no
estado de n atu reza: existem som ente n a sociedade civil, a
qual, p o rta n to , configura-se tam bém em Locke com o o único
local em que os hom ens podem ter a esperança de viyer se­
gundo as leis d a razão. As leis civis, com efeito, não são — não
deveriam ser — n a d a m ais do que as p ró p rias leis n atu rais
m unidas daquele ta n to de p oder coercitivo capaz de obrigar
tam bém os recalcitrantes a respeitá-las. P o r conseguinte, se os
hom ens querem viver o m ais possível racionalm ente, devem
ingressar n a q u ela única sociedade onde as leis n atu rais podem
se tran sfo rm ar em verdadeiras leis, ou seja, em norm as de
conduta que não são apenas form alm ente válidas, m as ta m ­
bém eficazes de fato. E ssa sociedade é o E stad o . P a ra K ant,
a saída do estado de n a tu reza e o ingresso no estado civil não
são apenas conseqüência de um cálculo utilitário , como é o
caso certam ente em H obbes, Spinoza e Locke, m as um dever
m oral; não são um im perativo hipotético, não são m era regra
de p ru d ên cia ( “ se queres a paz, e n tra no estado civil” ), m as
um im perativo categórico, u m com ando d a razão p rática, um
dever m oral: “ D o direito privado no estado n a tu ra l, decorre
agora o p ostulado do direito público: tu deves, graças à rela­
ção de coexistência que se estabelece inevitavelm ente entre ti e
os outros hom ens, sair do estado de n atu reza p a ra e n tra r num
estado ju ríd ico ” .7 Isso q u er dizer que, pelo m enos no tocante
à vida de relação, às condições de existência d a liberdade ex-
te m a , o E stad o tem u m valor intrínseco absoluto (daí o c a rá ­
ter absoluto do p o d er soberano e, conseqüentem ente, d a obe­
diência que lhe é devida); não é um expediente, u m rem édio,
cujo valor dep en d a do valor d a finalidade, m as é um ente mo-

(7) K an t, Metaphysik der Sitten, § 42.


92 N O R B ER T O BO BBIO

ral (m oral, observe-se, não ético!). O indivíduo não é livre (no


que se refere à liberdade externa) se não ingressa no reino do
direito; m as o reino do direito perfeito é aquele no qual o d i­
reito p riv ad o -n atu ral é subm etido ao direito público-positivo,
ou, em sum a, é a sociedade civil. N um a h istó ria ideal d a h u ­
m anidade, com o aqu ela que vai d a liberdade selvagem do es­
tado de n a tu re za à liberdade refreada d a sociedade civil, a
instituição do E stad o é u m m om ento decisivo, a ponto de
constituir u m a idéia reguladora p a ra o projeto d aq u ela fu tu ra
sociedade ju ríd ica universal p a ra a qual tende o hom em em
sua g rad u al aproxim ação a u m a form a de existência cad a vez
m ais conform e à razão.
O ato específico através do qual se explicita a racio n a­
lidade do E stad o é a lei, entendida como n o rm a geral e a b s­
tra ta , p ro d u zid a p o r u m a vontade racional, ta l com o o é, p re ­
cisam ente, a do E stado-razão. E n q u an to geral e a b strata , a lei
se distingue do decreto do príncipe, através do qual se ex­
pressa o arb ítrio do soberano e se institui u m a legislação de
privilégio, criad o ra de desigualdade. E n q u a n to p ro d u to de
u m a vontade racional, a lei se distingue dos costum es, dos
hábitos, dos usos h erdados, das norm as a que deu vida a m era
força d a trad ição . O que caracteriza o E stado é precisam ente
o p oder exclusivo de fazer leis: H obbes é co n trário à com mon
law e não adm ite outro direito além daquele que decorre da
vontade do soberano. O “ governo civil” de Locke se fu n d a no
prim ado do p o d er legislativo, o qual “ é não apenas o p oder
suprem o d a sociedade política, m as perm anece sagrado e im u ­
tável n as m ãos em que a h u m an id ad e o colocou” .8' Rousseau
vê n a vontade geral o órgão de criação das leis, e nas leis —
distintas dos decretos do p oder executivo, en q u an to aquelas
são sem pre voltadas p a ra a generalidade dos cidadãos, sem
discrim inações — a destruição de todo privilégio e a g aran tia
da igualdade civil.
Com o foi várias vezes observado, u m dos aspectos do
processo de racionalização do E stado, considerado (b a sta p e n ­
sar em M ax W eber) com o característica fu n d am en tal d a for­
m ação do E stad o m oderno, é antes de m ais n a d a a redução de

(8) Locke, Two Treatises, Segundo T rata d o , § 134.


SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 93

to d a form a de direito a direito estatal, com a conseqüente eli­


m inação de todos os ordenam entos jurídicos inferiores ou su­
periores ao E stad o , ta n to que se chega pouco a pouco a estar
diante de apenas dois sujeitos de direito, os indivíduos, cujo
direito é o direito n a tu ra l (que, de resto, é um direito im per­
feito), e o E stad o cujo direito é o direito positivo (que é o único
direito perfeito); em segundo lugar, é a redução de toda possí­
vel form a de direito estatal a direito legislativo, do qual n as­
cerá aqu ela (suposta) positivização do direito n a tu ra l que é
constituída pelas grandes codificações, em especial pela napo-
leônica, e que p retende, através da elim inação d a pluralidade
das fontes de direito, assegurar a certeza do direito co n tra o
arbítrio, a igualdade (a in d a que form al) co n tra o privilégio,
ou, em sum a, o E stad o de direito contra to d a form a de despo­
tism o.
T o m ando com o ponto de referência as duas form as típ i­
cas de p o d er legítim o descritas p o r M ax W eber, o p oder tra d i­
cional e o legal-racional (a terceira, o p o d er carism ático, é
u m a form a excepcional e, p o r sua p ró p ria n atu reza, provisó­
ria), não se pode deixar de observar a contribuição que a filo­
sofia política do ju sn atu ralism o deu à crítica do poder tra d i­
cional e à elaboração da teoria do poder legal-racional. Ã m e­
dida que o ju sn atu ralism o desem boca no leito d a filosofia das
luzes, d a q ual se to rn a o aspecto jurídico-político, a antítese
p a ix ão /raz ã o é su b stitu íd a (ou m elhor, com plem entada) pela
antítese costum e-lei, onde o prim eiro term o represen ta o de­
pósito cad a vez m elhor docum entado e não ulteriorm ente am -
pliável de tu d o o que o hom em produziu n a história sem o
subsídio d a razão. O p o d er tradicional é caracterizado pela
crença n a sacralidade do chefe e, p o rtan to , p ela atribuição ao
mesm o de um p o d er a rb itrário , não regulado p o r norm as ge­
rais, que decide caso p o r caso (a ju stiça dos kadi); p o r um
ordenam ento ju ríd ico com posto em g rande p a rte p o r norm as
consuetudinárias, h erd ad as, em endadas e atu alizad as pelos
juizes; p o r relações pessoais ou de clientela en tre o príncipe e
seus funcionários; p o r u m a concepção p a tern alista do poder
que, p a rtin d o d a concepção da fam ília com o E stado em m i­
n iatu ra, chega à concepção do E stado com o fam ília am pliada.
De todas as páginas anteriores, resultou de m odo b astan te
claro que a filosofia política do ju sn atu ralism o expressa u m a
94 N O R B ER T O BO BBIO

teoria do p oder que está nos antípodas d a teoria do p oder


tradicional e que contém todos os principais elem entos d a for­
m a de poder que W eber cham ou de legal-racional: laicização
do E stado e subordinação do príncipe às leis n atu rais que são
as leis d a razão; prim ad o d a lei sobre o costum e e sobre as
norm as criadas em cad a oportunidade pelos juizes; relações
im pessoais, ou seja, através das leis, en tre príncipe e funcio­
nários, de onde nasce o E stado com e stru tu ra bu ro crática, e
entre funcionários e súditos, de onde nasce o E stad o de di­
reito; e, finalm ente, concepção an tip atern alista do p o d er es­
tatal, que identifica Locke, adversário de R o b ert Film er, com
K ant, o qual vê realizado o princípio do ilum inism o, definido
com o a era n a q ual o hom em finalm ente se torn o u adulto, no
E stado que tem com o m eta não fazer os súditos felizes, m as
torná-los livres.
Ao contrário do m odelo aristotélico, que procede do cír­
culo m enor p a ra o círculo m aior p o r meio de u m a p luralidade
de graus interm ediários, o modelo ju sn a tu ra lista é — como
dissemos — dicotôm ico: ou o estado de n atu reza, ou a socie­
dade civil. O que significa: ou tantos soberanos quantos são os
indivíduos, ou u m único soberano, feito de todos os indivíduos
unidos em um só corpo.
O E stad o não é com o u m a fam ília am p liad a, m as como
um grande indivíduo, do qual são partes indissociáveis os p e­
quenos indivíduos que lhe dão vida: b a sta p en sar n a figura
p osta no frontispício do Leviatã, n a qual se vê um hom em
gigantesco (com a coroa n a cabeça e, nas duas m ãos, a espada
e o báculo, sím bolo dos dois poderes), cujo corpo é com posto
de vários hom ens pequenos. R ousseau expressa o m esm o con­
ceito ao definir o E stad o com o o “ eu com um ” , im agem m uito
diversa d a de “ pai com um ” . N a base desse m odelo, p o rtan to ,
está u m a concepção individualista do E stado, p o r u m lado, e,
p o r outro, u m a concepção estatista (que significa racionali­
zada) d a sociedade. O u os indivíduos sem E stad o , ou o E stado
com posto apenas de indivíduos. E n tre os indivíduos e o E s­
tado, não h á lu g ar p a ra entes interm ediários. E tam bém essa
é u m a extrem a sim plificação dos term os do problem a, à qual
conduz inevitavelm ente u m a constituição que q u er ser racio­
nal e, en q u an to tal, sacrifica em nom e d a u n id ad e as várias e
diferentes instituições produzidas pela irracionalidade d a his­
SO CIED A D E E E ST A D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ERN A 95

tória; m as é tam b ém , ao m esm o tem po, o reflexo do processo


de concentração do p oder que m arca o desenvolvim ento do
E stado m oderno. U m a vez constituído o E stad o , toda o u tra
form a de associação, incluída a Igreja, p a ra não falar das cor­
porações ou dos p artid o s ou d a p ró p ria fam ília, das socieda­
des parciais, deixa de te r q u alq u er valor de ordenam ento ju rí­
dico autônom o. D os p artidos, H obbes diz que devem ser con­
denados, p o rq u e term in am p o r ser “ um E stad o no E stad o ” :
o E stado ou é único e u n itário ou não é u m E stad o . C ondena o
grande núm ero de corporações, que “ são com o vários E stados
m enores nas en tra n h as de u m m aior, sem elhantes a verm es no
intestino de u m hom em n a tu ra l’’ .10
Com a á rid a linguagem do discurso racional, Spinoza for­
m u la com rig o r lógico a m esm a idéia: “ D ad o que o direito
soberano é definido p ela potência com um d a m ultidão asso­
ciada, é óbvio que a potência e o direito do E stad o dim inuem
em razão do m otivo que ele m esm o oferece ao constituir-se de
associações” .11 Segundo R ousseau, “p a ra se te r a verdadeira
expressão d a vontade geral, é necessário que não existam no
E stado sociedades parciais, e que cada cid ad ão raciocine ap e­
nas com a p ró p ria cabeça” .

(9) H obbes, D ecive, X III, 13. .


(10) H obbes, Leviathan , cap. XX IX .
(11) S pinoza, Tractatuspoliticus , cap. I l l, § 9 .
(12) R ousseau, D u contratsocial, L. II, cap. 3.
O fim do jusnaturalismo

A. idéia do E stad o -razão chega até H egel, que define o


E stad o com o “ o racional em -si e p a ra -si” . M as Hegel é ta m ­
bém o crítico m ais im piedoso do ju sn a tu ra lism o :1 a razão de
que ele fala q u an d o , desde o início d a Filosofia do direito,
a n u n cia q u erer com preender o E stado com o u m a coisa racio ­
nal em si não tem n a d a 'a ver com a razão dos ju sn atu ralista s,
os quais se d eixaram seduzir m ais pela idéia de d elinear o
E stad o tal com o deveria ser do que pela ta re fa de com preendê-
lo ta l com o é. E , com efeito, segundo Hegel, n ão o com preen­
d eram . A “ sociedade civil” , que eles rep re se n ta ra m p a rtin d o
do estad o de n atu reza, não é o E stado em sua realidade p ro ­
fun d a: é apenas um m om ento no desenvolvim ento do espírito
objetivo, que não com eça no estado d a n a tu re z a p a ra te rm in a r
n a sociedade civil, m as tem início n a fam ília (H egel reto m a o
m odelo aristotélico) p a ra chegar ao E stado, passando através
da sociedade civil; essa é o m om ento que se situ a en tre a fam í­
lia e o E stad o , e rep resen ta, n a categoria d a eticidade, o m o­
m ento negativo, ou seja, a fase do desenvolvim ento histórico
em que ocorre, p o r um lado, a desagregação da u n id ad e fam i­
liar, a com eçar pelo “ sistem a dos carecim entos” , e, p o r o utro,
não é ain d a reco n stitu íd a, m esm o através das prim eiras for-

(1) Desenvolvi esse tem a no m eu artigo “ Hegel e il giu sn atu ralism o ” , in Rivi
di Filosofia, 1966, p p . 379-407.
S O C IED A D E E E S T A D O NA F IL O SO FIA P O L lT IC A M O D E R N A 97

m as de organização social, com o a ad m in istração da ju stiç a


(n a qual se deteve Locke) e com o a ad m in istração púb lica (n a
qual se detiveram os teóricos do E stado do b em -estar), a u n i­
dade substancial e não ap en as form al, o rg ân ica e não apenas
m ecânica, ética e não ap en as ju ríd ica, do E stad o . P a ra ser um
E stado p ro p riam en te dito, u m E stado real e n ão im aginário,
u m E stad o ta l com o é e n ão com o deveria ser, fa lta à socie­
dade civil dos ju sn a tu ra lista s — segundo H egel — o c aráte r
essencial d a “ to talid ad e org ân ica” . O s ju sn a tu ra lista s im agi­
n a ra m a sociedade civil com o u m a associação v oluntária de
indivíduos, e n q u an to o E stad o é a u n id ad e o rgânica de um
povo. C olocaram com o fu n d am en to dessa associação, con fu n ­
dindo-a erro n eam en te com o E stado, um c o n trato , ou seja,
u m in stinto de direito privado, que pode d a r vida a form as de
sociedade p arcial no estad o de natu reza, m as certam en te não
serve p a ra explicar e ju stific a r o salto d a n a tu re z a à h istória,
do m om ento inicial do direito ab strato , onde existem apenas
indivíduos em lu ta en tre si pelo recíproco conhecim ento, ao
m om ento final do E stad o , que deve sua constituição não ao
arb ítrio m eta-histórico de indivíduos singulares, m as à fo r­
m ação histórica co n creta do “ espírito do povo” . Se u m E stad o
fosse v erdadeiram ente n a d a m ais do que u m a associação fu n ­
d ad a com base nu m acordo en tre indivíduos, guiados p ela r a ­
zão calcu lad o ra (que, p a ra Hegel, é intelecto e não razão),
todo indivíduo deveria se co n siderar livre p a ra ro m p er a asso­
ciação q u an d o sua conveniência desaparecesse e, p o rta n to , de
a rru in a r o E stad o com su a p ró p ria ação; e, desse m odo, não
se explicaria ja m a is com o u m E stado assim , à m ercê dos seus
cidadãos, pudesse p re te n d er, com o de fato p re te n d e, o sacri­
fício d a vida desses m esm os cidadãos q u a n d o está em jogo a
sua p ró p ria sobrevivência.2
Com H egel, o m odelo ju sn a tu ra lista chegou à sua con­
clusão. M as a filosofia de H egel é não apenas u m a antítese,
m as tam b ém u m a síntese. T u d o o que a filosofia política do
ju sn atu ralism o criou n ão é expulso do seu sistem a, m as in ­
cluído e su p erad o (o m esm o ocorre com o conjunto dos concei­
tos herd ad o s através do m odelo aristotélico). No que se refere

(2) Sobre esse pon to , rem eto ao m eu artigo “ D iritto p rivato e d iritto p u b b lico
H egel” , in Rivista diF ilosofia, o u tu b ro de 1977, p p . 3-29.
98 N O R B ER T O BO BBIO

à concepção do E stad o como m om ento positivo do desenvol­


vim ento histórico, como solução p erm anente e necessária dos
conflitos que envolvem os hom ens n a lu ta co tid ian a p ela p ró ­
p ria conservação, com o saída do hom em do ventre d a n a tu ­
reza (p a ra u sa r a célebre expressão k an tian a) a fim de e n tra r
n u m a sociedade guiad a pela razão — em sum a, com o aquela
esfera n a qual a razão h u m a n a pode finalm ente explicitar sua
pró p ria auto rid ad e co n tra a prepotência dos instintos — , a
filosofia do direito de Hegel é não u m a negação, m as u m a
sublim ação. N ão se pode ler a passagem em que H egel fala do
E stado com o D eus terreno sem pen sar no D eus m ortal de
H obbes. A crítica que Hegel dirige aos ju sn atu ralista s não é a
de não terem dado u m juízo positivo sobre o E stado, m as a de
não terem sabido fu n d a r ta l juízo depois de tê-lo dado; não de
não terem posto o E stad o acim a dos indivíduos, m as não de
tê-lo posto o suficiente e, p o r conseguinte, de terem feito dele
um todo com posto de p artes e não u m a to talid ad e que cria ela
m esm a, em seu p ró p rio seio, as p artes de que é com posta; não
de não terem com preendido a função racional do E stado, m as
de se terem detido no meio do cam inho, to m an d o o intelecto
ab strato como se fosse a razão. No fundo, H egel é um in té r­
prete do m esm o processo histórico, a form ação do E stado m o­
derno, do q ual os ju sn atu ralistas te n ta ram d a r u m a recons­
trução racional, idealizando-o e, p o rtan to , segundo Hegel,
deform ando-o. O E stad o d a R estauração que ele tem diante
de si, u m E stad o que se recom pôs após a dilaceração d a Revo­
lução F rancesa, é a continuação e a recom posição daquele
m esm o E stad o que, no início da era m oderna, im pôs su a p ró ­
p ria u n id ad e a um m u ndo dilacerado pelas g u erras religiosas.
A antítese do m odelo ju sn atu ralista não é a teoria do E s­
tado hegeliano, m as a teoria da sociedade que nasce no início
do m esm o século, q uando abre cam inho a idéia, a com eçar
po r Saint-Sim on — que Engels ex altará com o “ o espírito m ais
universal de su a ép oca” — , de que a verdadeira revolução do
período era não u m a revolução política com o a Revolução
Francesa, m as u m a revolução econôm ica, ou seja, aquela re­
volução que fez nascer a “ sociedade in d u stria l” , e que, p o r

(3) F . Engels, A nti-D ühring, in W erke, D ietz V erlag, vol. XX, p. 23.
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ERN A 99

conseguinte, a solução dos problem as d a vida associada deve


ser b u scad a não no sistem a político, m as no sistem a social.
Com relação à filosofia d a história que in te rp re ta o progresso
histórico com o passagem d a sociedade n a tu ra l p a ra o E stad o e
vê no E stad o a culm inação, não superável, desse processo,
Hegel pertence ao m esm o m ovim ento de idéias dos escritores
precedentes. T am bém o seu E stado surge com o antítese e a n tí­
doto (e, p o rtan to , com o solução, com o a ú n ica solução possí­
vel) p a ra os conflitos que nascem p o r cau sa dos interesses
egoístas em lu ta en tre si. M as, precisam ente n a época de H e­
gel, abre cam inho u m a filosofia d a história invertida, que vê o
p ro g ram a histórico no m ovim ento contrário, n u m m ovim ento
que procede do E stad o p a ra a sociedade sem E stad o , ou seja,
que vê no E stad o não o grande m ediador acim a das p artes,
m as o in stru m en to de dom ínio de u m a p a rte sobre a o u tra,
como R ousseau já o havia visto. M as R ousseau se iludira p e n ­
sando en co n trar u m a nova solução política, e apenas política
ou seja, im aginando u m a form a original de E stad o , no qual a
autoridade abso lu ta do todo fosse a g ara n tia d a liberdade de
todos, não o fim , m as a perpetuação do estado de n atu reza.
O bellum om nium contra om nes, que p a ra H obbes era a im a­
gem de u m estado originário ou de alguns m om entos excep­
cionais, nos quais a u nidade do E stado se dissolve n a an arq u ia
da g uerra civil, ou u m dado perm anente, m as lim itado às re­
lações entre E stados soberanos, torna-se p a ra M arx a im agem
do estado p erm an en te da sociedade capitalista, caracterizada
pela concorrência econôm ica. Segundo essa nova filosofia da
história, n enhum E stad o — e m enos ain d a o E stado d a socie­
dade bu rg u esa — suprim iu o estado de n atu reza, já que o E s­
tado, em vez de ser o triu n fo d a razão n a T e rra, como acre­
ditou to d a a filosofia política de H obbes a Hegel, é o meio
através do q ual a classe econom icam ente dom inante m antém
seu próprio dom ínio. T am bém p a ra Locke, um E stado despó­
tico não era u m a sociedade civil, m as sim a recaíd a no estado
de n atu reza. Se todo E stado, pela sua p ró p ria essência como
E stado, é um E stad o despótico, é u m a d ita d u ra de u m a classe
sobre o u tra , ele é u m a form a de convivência n a q ual o estado
de natu reza, em vez de ser suprim ido, é conservado e poten-
ciado. P or conseguinte, p a ra sair do estado de natu reza, e
preciso não in stitu ir o E stado, m as sim destruí-lo. Desse
100 N O R B ER TO BO BBIO

m odo, o modelo ju s n a tu ra lista é com pletam ente invertido. In ­


vertido, já que a g rande dicotom ia sociedade-E stado p e rm a ­
nece, m as o uso axiológico que dela fazem , respectivam ente,
os teóricos do E stado e os teóricos do an ti-E stad o é oposto.
A questão de saber qual das duas filosofias d a história —
a que vai de H obbes a Hegel e vê no E stad o o m om ento cul­
m inante d a vida coletiva, ou a que, com eçando com Saint-
Sim on, passando através do socialism o utópico e do socialismo
científico, expressando-se plenam ente nas várias form as de
anarquism o, prevê e p ro jeta com o fim últim o d a história a
destruição do E stado — qual delas in terp reto u m elhor o curso
histórico do últim o século, essa é u m a questão a que é difícil
d ar u m a resposta; e que, de qualq u er m odo, transcende o
nosso tem a.
SEG U N D A PA R T E

O modelo hegelo-marxiano
Michelangelo Bovero
Dois modelos dicotômicos

A o se estu d ar a história da filosofia política m oderna,


apontou-se a p redom inância de um certo m odelo teórico, ch a ­
m ado de m odelo hobbesiano, do nom e de seu fu n d ad o r, ou
tam bém de m odelo ju sn atu ralista — já que, de H obbes a K an t
e ao prim eiro F ichte, foi utilizado pelos representantes m ais
autorizados d a escola do direito n atu ral, que, de resto, são
todos ou quase todos os m aiores escritores políticos dos sécu­
los XV II e X V III — , m odelo que consiste nu m sistem a de
conceitos relativam ente sim ples, redutível à g rande dicotom ia
estado de n a tu re z a /e sta d o civil, e cuja e stru tu ra form al, ju n ­
tam ente com os elem entos fundam entais, perm anece cons­
tan te p a ra aquém das pro fu n d as variações de conteúdo in tro ­
duzidas p o r c ad a filósofo sin g u lar.1 D o m esm o m odo, acredito
ser possível in d icar n a dicotom ia sociedade civil/sociedade po­
lítica o núcleo de um m odelo teórico form alm ente u nitário,
que continua até hoje a ser utilizado de m odo p redom inante
p a ra in te rp re ta r a e stru tu ra das form ações sociais contem po­
râneas, e que cham arei de m odelo hegelo-m arxiano.

(1) Refiro-m e, além do ensaio contido no presente volum e, tam bém a


ensaio an terio r de N. Bobbio, tam b ém ele in titulado “ II m odelo giusnaturalistico” e
apresentado com o com unicação ao III Congresso In ternacional de H istória do D ireito,
em 26 de abril de 1973. Foi publicado pela prim eira vez n a Rivista Intem azionale di
Filosofia dei D iritto, 1973, p p . 603-22; e u m a segunda nas A tas daquele Congresso:
La form azione storica dei diritto m oderno in Europa, F lorença, L. O lschki, 1977,
v o l.I .p p . 73-93.
104 M IC H E LA N G E LO B O V E R O

N ão falo sim plesm ente de “ m odelo hegeliano” p o rq u e


aquela dicotom ia está longe de esgotar o conjunto de conceitos
fu n d am en tais em pregados p o r Hegel p a ra delin ear a a rq u ite ­
tu ra do “ E sp írito objetivo” ;2 e tam b ém p o rq u e aquele p a r
conceituai n ão se a p resen ta p ro p riam en te n a fo rm a de dicoto­
m ia em u m p en sam en to que, com o o hegeliano, sem pre p ro ­
cede p o r tríad es. E n ão falo sim plesm ente de “ m odelo m ar-
xiano” p o rq u e M arx , decerto, pôs aq u ela dicotom ia en q u an to
tal, m as precisam ente recolhendo-a, p o r ex trapolação, d a F i­
losofia do direito de H egel; e tam b ém p o rq u e, p a ra além dos
prim eiros escritos juvenis, não se en co n tram n a o b ra de M arx
senão esp arsas e frag m en tárias referências ao p ro b lem a in d i­
cado p o r a q u ela g ran d e antítese: referências das quais dificil­
m ente se p o d e ria e x tra ir u m a construção q u e te n h a valor de
m odelo, a n ão ser procedendo através de com parações e m en ­
ções àqueles prim eiros escritos e, com eles, n ecessariam ente, à
o b ra hegeliana.
T rata-se, p o rta n to , de um m odelo re-construído em g ab i­
nete e a posteriori', m as, creio, não sem fu n d am en to . E m p ri­
m eiro lu g ar, p o rq u e — se nos lim itarm os a ex am in ar com
atenção a insistência de Hegel em distin g u ir e co n trap o r a es­
fera d a sociedade civil à do E stad o — 3j á poderem os perceb er
que esse p a r de conceitos, p arcial com relação ao sistem a do
E spírito objetivo, ad q u ire um valor de m odelo, no qu al se co n ­
densa, p o r assim dizer, o problem a específico d a sociedade
m oderna. E m segundo lugar, p o rq u e esse m odelo, em ergente
do sistem a hegeliano, constitui com o ta l o p o n to de p a rtid a da
reflexão de M arx antes do seu encontro com a econom ia po lí­
tica, e co n stitu i tam b é m o seu p o n to de referência constante,
to d a vez que, n a o b ra m a d u ra , a crítica d a econom ia ou a
investigação h istó rica referem -se à construção de u m a teo ria
da política.

(2) A o u tra dicotom ia — estado de n a tu reza/so cied ad e civil — com preende as


categorias essenciais d aq u ela seção do sistem a hobbesiano in titu la d a D e eive (q u e é
precedida, com o se sabe, pelas seções in titu lad as D e corpore e D e hom ine), que co rres­
ponde idealm ente à seção do sistem a hegeliano d ed icad a ao E sp írito objetivo.
(3) Indico, sem pretensões exaustivas, ap en as nas G rundlinien der Philosophie
des R echts, os p arág rafo s 181, 257, 258, 260, 263, 265, 288, 289, 303, 320, com as
num erosas anotações e relativos adendos. Esse livro será a seguir citad o com o F D ,
seguido do nú m ero d a p a rá g ra fo e, q u an d o for o caso, de A p a ra a an otação e de Z p a ra
o adendo.
SO C IE D A D E E E S T A D O NA F IL O S O F IA PO L ÍT IC A M O D E R N A 105

Se se q u er c ap ta r, n u m a p rim eira aproxim ação, a idéia


m ais geral, e p o r e n q u an to genérica, co n tid a em ta l m odelo
hegelo-m arxiano, pode-se dizer que ele in te rp re ta a realidade
das form ações sociais m odernas com base n a contraposição
fu n d am en tal en tre u m a esfera social c o n tra d itó ria e u m a es­
fera política n a qu al as contradições são m ediatizad as; ou,
com u m a fó rm u la a in d a m ais esquem ática, pode-se dizer que
ele expressa a cisão social m o d ern a en tre cisão social e recom ­
posição política. No nível dessa idéia genérica, o m odelo h e ­
gelo-m arxiano m o stra im ed iatam en te u m a an alogia su rp reen ­
dente e n ão extrínseca com o m odelo hobbesiano: nesse, a
u m a condição inicial de co ntrastes e conflitualidades p o te n ­
ciais ou efetivas, in d ic a d a p e la noção de status naturae , é con­
tra p o sta u m a condição n a q u al os co n trastes são superados
em virtude d a unificação política, que deriva d a instituição do
poder com um e, com ele, d a societas civilis. T em sentido essa
hom ologia n a e stru tu ra form al dos dois m odelos, o prim eiro
dos quais a p re se n ta a in stan cia da cisão social, en q u an to o
segundo m o stra a in stân cia d a u n id ad e política?
Com to d as as cautelas devidas ao alto g ra u de abstração,
creio que a resp o sta pode ser afirm ativa. C a d a um dos dois
m odelos dicotôm icos tem certam ente term o s próprios, que
não são identificáveis im ed iatam en te com os do ou tro , e a p re ­
senta, através do tecido de relações conceituais in stitu íd as
entre os seus term os, um p rincípio específico de in terp retação
da realidade; ou seja, coloca-se com o u m m odo determ in ad o e
irredutível de fo rm u lar o p ro b lem a social real que assum e com o
objeto p ró p rio . M as o fato de que am bas obedeçam a u m a
lógica dicotôm ica, e que as instâncias dos m em b ro s de u m a e
de o u tra dicotom ia sejam hom ólogas, pode ser en tendido
com o indício de u m a p ro b lem ática com um e, em ú ltim a in s­
tân cia, do fato de perten cerem a u m a m esm a época. E m o u ­
tra s palavras, en tre os dois m odelos, a co m p aração é possível e
o contraste é significativo, precisam ente p o rq u e essas diferen­
tes (e, sob certos aspectos, opostas) teorias do político nascem
no terreno de u m a m esm a realid ad e pro b lem ática, a in d a que
em diversos g rau s de desenvolvim ento e m a tu ra çã o . T rata-se
do p ro b lem a que se ab re com o declínio d a sociedade tra d i­
cional (p a ra u sa r os term os de W eber), com a dissolução dos
vínculos orgânicos (p a ra u sa r os term os de T õnnies) e das re-
106 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

lações de dependência pessoal que faziam com que as fo rm a­


ções pré-m o d em as se constituíssem como unid ad es. U m p ro ­
blem a que tem seu princípio no dado irredutível d a “ liberdade
subjetiva” , ou independência pessoal, en ten d id a p o r Hegel
como o traço que assinala a diferença en tre o m undo antigo e
o m undo m oderno:4 em função disso, a época m od ern a a p a ­
rece im ediatam ente com o a época do indivíduo, bem com o do
contraste en tre o indivíduo e a coletividade; ou, p a ra recordar
os m om entos essenciais em que H obbes subdividiu o D e eive,
do contraste en tre Libertas e Potestas.s O pro b lem a de u m a
época n a q ual a in stân cia de liberdade se tra d u z n a criação de
um p oder de certo m odo instituído p o r sujeitos que lhe são
pressupostos; n a q ual a autonom ia se tran sfo rm a incessante­
m ente em heteronom ia, e sem pre se volta a b u scar de novo,
p o r diferentes cam inhos, o modo de re-converter essa naquela.
E m seus term os genéricos — term os que precisam ente se
referem a to d a u m a época — , trata-se do pro b lem a de u m a
era que ain d a é a nossa: pelo m enos até o m om ento em que,
no ocaso d a divisão social p o r estam entos e d a dependência
pessoal, depois do que se to m o u form alm ente possível o dis­
curso sobre os direitos do hom em , não venha a se suceder a
abolição do governo sobre os hom ens, q u a lq u er que seja o
significado positivo dessa abolição.

(4) C f., p o r exem plo, FD 262 Z e 273 Z. T am bém p a ra M arx, a afirm ação
e a universalização da in dependência pessoal assinala, em geral, a passagem p a ra o
tipo m oderno de organização social. Nos Grundrisse der K ritik der politischen O eko-
nom ie, Berlim , D ietz V erlag, 1953, citados doravante como Grundrisse, lê-se n a p. 75:
“ As relações de dependência pessoal (de inicio sobre u m a base in teiram ente n atu ral)
são as prim eiras form as sociais (...) . A independência pessoal fu n d ad a n a dependência
m aterial é a segunda form a im p o rtan te n a qual chega a se constituir u m sistem a de
intercâm bio social geral, um sistem a de relações universais” .
(5) N a verdade, as seções fundam entais do D e eive são três: m as n a últim a,
Religio, é indicado o problem a da com unidade religiosa, que — segundo o projeto
hobbesiano — deve confluir sob a Potestas civil.
0 “modelo hegelo-marxiano*’

O objeto do presente trab alh o é o m odelo hegelo-m ar-


xiano en q u an to tal, ou seja, é o esquem a conceituai sociedade
civ il/E stado político n a id entidade fo rm a l que ele ap resen ta
quando d a leitu ra dos textos hegelianos e dos textos m arxia-
nos. Sua finalidade, ou pretensão, é oferecer u m a o p o rtu n i­
dade p a ra a redescoberta e p a ra a reflexão de alguns signifi­
cados de base do nexo sociedade/E stado, o qual, p o r te r h á
m uito p assado p a ra a linguagem com um e p o r ser freqüente­
m ente considerado com o algo óbvio, é de m odo igualm ente
freqüente — p a ra u sa r as palavras de Hegel — , “ precisam ente
porque notório, não conhecido” . 1 O m étodo escolhido p a ra
p e n etrar no objeto e aproxim ar-se de nosso objetivo será u m a
com paração a rticu lad a em vários níveis entre o m odelo hegelo-
m arxiano e o m odelo hobbesiano, n a convicção de que, dado
com o hipótese o g e n u sp ro xim u m — ou seja, o terreno com um
no qual se enraízam am bos os modelos, o p roblem a da cisão
social n a época m od ern a — , os significados de base a que nos
referim os possam resu ltar dessa com paração p o r differentia
specifica.
M as a consideração de Hegel e M arx nu m a única species,
e o p róprio uso d a fórm ula “ m odelo hegelo-m arxiano” , po-

(1) É o caso n a Phänomenologie des Geistes, tra d . it. de E. de Negri, F loren


La Nuova Italia, 1967, vol. I, p. 25.
108 M IC H E LA N G E LO B O V ER O

dem fazer p en sar que a análise p a rta de u m a leitu ra n a qual


seja esm aecida, ou m esm o anu lad a, q u alq u er distância entre
Hegel e M arx. P o r isso, é oportuno dizer desde logo que o fato
de sublinhar, nas concepções hegeliana e m arx ian a, a id en ti­
dade fo rm a l do esquem a sociedade civ il/E stad o não significa
de m odo algum pressupor u m a identidade substancial en tre o
m odo hegeliano e o m odo m arxiano de en ten d er a e stru tu ra
d a form ação social m oderna. Se assim fosse, poderíam os com
razão ser acusado de “ m arxistizar” H egel e “ hegelianizar”
M arx,2 o que não seria estranho, já que as duas operações são
m uito difundidas. E las apresentam , aliás, um grande núm ero
de variantes, cujos tipos p o r assim dizer clássicos — tão co­
nhecidos que não é necessário ilustrá-los com exem plos — le­
vam a ver em M arx o sim ples herdeiro ou co n tin u ad o r de H e­
gel, a cuja “ dialética do h u m an o ” ele teria apenas acrescen­
tado u m a m aior atenção ao concreto, u m a certa bagagem de
conhecim entos em m atéria econôm ica e u m a boa dose de pro-
fetism o revolucionário; ou a ver em Hegel o sim ples precursor
de M arx, im pedido de tornar-se ele m esm o um M arx p ela in ­
feliz condição do “ atraso alem ão” e /o u p o r opções pessoais
conservadoras. Os dois tipos de identificação — o que faz com
que M arx já esteja em substância inteiram etn te em Hegel, e o
que faz com que H egel já seja substancialm ente u m m arxism o
com pleto — são porem contrabalançados, no p a n o ram a da
crítica, pela atitu d e igual e con trária dos que se dedicam a
dem onstrar que o que M arx disse é o com pleto oposto daquilo
que disse Hegel, e vice-versa, ou dos que se lim itam sim ples­
m ente a afirm ar u m a absoluta estranheza en tre as duas con­
cepções, quase como se se tratasse de m undos e linguagens
diferentes.
Parece-m e incontestável que existe um vínculo, e m esm o
um a continuidade, en tre Hegel e M arx: M arx não apenas co­
m eça pensando, m as co ntinua a p en sar no in terio r de catego­
rias hegelianas, ain d a que as oriente p a ra significados diferen­
tes e desenvolva u m a concepção certam ente inovadora das
m esm as; e é suficiente u m a leitura, m esm o apressada, dos

(2) U so pro positadam ente expressões sim ilares às ad o tad a s p or N. B obbio,


conhecido ensaio polêm ico “ Existe u m a d outrina m arxista do E sta d o ? ” , incluído em
Qual socialismo ?, ed. brasileira, R io d eJan eiro , P a z e T e rra , 1983.
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D E R N A 109

Grundrisse p a ra convencer-se disso.3 M as essa continuidade


não se resolve n u m a id entidade ou n u m a sem elhança subs­
tancial, m as sim n u m a distância que, sob alguns aspectos,
não poderia ser m aior. E , todavia, essa distân cia entre Hegel e
M arx não é incom ensurável com a que divide, p o r exem plo,
um H obbes de um Locke, ou um Spinoza de um K ant. E,
assim com o p a ra H obbes e Locke, Spinoza e K an t e m uitos
outros é possível recon stru ir um esquem a conceituai u nitário,
que não an u la as diferenças que separam as concepções singu­
lares da sociedade e do E stado, as quais, aliás, em ergem em
toda sua significação precisam ente co n tra o p an o de fundo do
modelo com um , do m esm o m odo, p a ra H egel e M arx, é possí­
vel reco n stru ir um m odelo categorial form alm ente idêntico,
que não dim inui, m as, ao contrário, creio, am p lia a possibili­
dade de an alisar em sua ju s ta luz as grandes diferenças entre
as duas concepções.
P o r o u tro lado, é preciso acrescentar que a analogia com
a relação in d icad a en tre as teorias dos autores ju sn atu ralistas,
u m a relação de co ntinuidade e distância, de id entidade for­
m al e de variações no conteúdo, pode esclarecer apenas um
prim eiro aspecto d a relação entre as concepções hegeliana e
m arx ian a do nexo sociedade/E stado: deter-se nela im plica
efetivam ente o risco de cair n u m a a titu d e aprioristicam ente
redutiva. No que se refere aos ju sn atu ralistas, de fato, ao ca­
rá te r u n itário do m odelo sociedade n a tu ra l/so cie d a d e civil
corresponde tam b ém u m a filosofia política u n itá ria — pelo
menos em seus fundam entos essenciais — , p a ra cujo leito p o ­
dem sem pre ser reconduzidas as variantes conceituais singu­
lares; ao contrário, as variantes que especificam a versão m a r­
xiana do m odelo sociedade civil/E stado político em relação à
versão hegeliana, se não queb ram a iden tid ad e form al de tal

(3) Não m e refiro aqui às categorias m ais pro p riam en te “ lógicas” , cuja d
vação da lógica hegeliana é evidente (p a ra d a r som ente u m exem plo, um pouco ex trín ­
seco porém clam oroso, b a sta ver o esquem a posto n a p . 186 dos Grundrisse, onde a
m atéria do assunto “ C ap ital” , certam ente não hegeliano, é o rd en ad a com base nos
m om entos hegelianos do conceito); refiro-m e às próprias categorias que M arx em prega
p a ra in te rp re ta r aspectos relevantes da estru tu ra econômico-social, da política e da
história: o concentrado de estudos e reflexões contido n as “ F orm as anteriores à p ro ­
dução cap italista” ( Grundrisse, p p . 375-413) está articulado segundo esquem as con­
ceituais hegelianos.
110 M IC H ELA N G ELO B O V ERO

m odelo, com põem -se porém nu m a concepção incom patível


com os fundam entos d a filosofia política que H egel expressava
através daquele m odelo.
Foi ju sta m en te observado4 que, diante d a trad ição jusna-
tu ralista, a filosofia política hegeliana coloca-se ao m esm o
tem po com o dissolução e culm inação: dissolução en q u an to ele
critica e rechaça o m odelo de que serviam os ju sn atu ralistas
como instru m en to conceituai, substituindo-o p o r u m diverso
sistem a de categorias; m as culm inação n a m edida em que,
com o novo m odelo, Hegel persegue a m esm a m eta de u m a
justificação racional do E stado; de m odo que a filosofia hege­
liana co ntinua a ser u m a filosofia do E stado-razão, ta l com o a
ju sn atu ralista , ain d a que seja u m a filosofia diversa, pois H e­
gel atrib u i a racionalidade ao E stado. A propósito de M arx,
talvez se pudesse dizer, de m odo igual e contrário, que sua
concepção d a relação sociedad e/E stad o se coloca em face da
concepção hegeliana com o culm inação e dissolução: culm in a­
ção en q u an to leva às extrem as conseqüências a distinção entre
o social e o político teorizad a p o r Hegel com o traço caracterís­
tico d a sociedade m oderna; e dissolução n a m ed id a em que o
resultado interpretativo a que leva o m odelo m odificado e
radicalizado é oposto, concluindo-se não n a justificação, m as
n a desm istificação racional do E stado; de m odo que a concep­
ção m arx ian a se apresen ta como a antifilosofia política, ou
m elhor, com o um a teoria negativa da política. Por isso, corre­
ríam os o risco de fornecer u m a im agem hegelianizada de
M arx se a distância en tre as duas concepções fosse indicada
apenas n a figura das cham adas “ variantes” , e não tam bém n a
figura da “ inversão” .5 Não m e refiro ta n to à fam osa “ inversão
d a dialética” ; quero aqui dizer que, invertida em M arx com
relação a Hegel, é a perspectiva n a qual o m odelo é lido; e essa
perspectiva institui u m a ta l relação entre os term os do m odelo
que dela resu lta o sentido m ais geral de to d a a concepção m ar-

(4) Cf. N. Bobbio, “ Hegel e il giusnaturalism o” , in Rivista di Filosofia, 1966,


p p. 379-407.
(5) N aturalm ente, en tre “ v ariantes” e “ inversão” h á u m a estreita relação:
aliás, a inversão, a m eu ver, resulta necessariam ente d a n atu reza das variantes, se
quiserm os cham á-las assim , que M arx introduziu nos conceitos hegelianos. M as, neste
local, podem os apenas m encionar o problem a.
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O LlTIC A M O D ER N A 111

xiana d a e stru tu ra social m oderna: u m a concepção que m os­


tra a verdade p ro fan a do E stado enqu an to “ D eus terren o ” de
Hegel no E stad o com o prosseguim ento do direito do m ais for­
te, e que abre a possibilidade de pensar com o fu tu ra condição
racional d a h u m an id ad e u m a sociedade sem E stado “ polí­
tico” .
Nesse po n to , cabe ver se — n a tentativa de evitar que a
afirm ação d a id entidade form al do m odelo e, portan to , da
origem hegeliana das categorias m arxianas pudesse levar a
u m a “ hegelianização” de M arx — não se caiu inconsciente­
m ente no erro oposto, o de “ m arxistizar” Hegel.
E terem os de reconhecer que h á pelo m enos um aspecto
— já m encionado acim a — pelo qual a designação como “ he-
gelo-m arxiano” de um m odelo que se resolve n a dicotom ia
sociedade civil/E stad o político representa u m a redução da
teoria h egeliana a term os m arxistas. Não h á dúvida de que o
interesse d a crítica pelo tratam en to hegeliano da sociedade
civil foi em certa m edida não apenas suscitado, m as tam bém
orientado no tipo de enfoque, e condicionado nos resultados
interpretativos, pelas referências ao m esm o presentes n a o b ra
de M arx, em p a rtic u la r n aq u ela — citadíssim a — do “ P refá­
cio” de 1859 Contribuição à crítica da economia política. E,
m ais ainda, que o estudo dos escritos juvenis de M arx, onde o
problem a d a form ação social m oderna é tra ta d o explicita­
m ente nos term os d a dicotom ia sociedade civ il/E stad o político
(m as a dicotom ia volta tam bém nos escritos d a m aturidade),
levou a focalizar a atenção n a relação correspondente que
existe n a o b ra de Hegel. E ssa espécie de m ediação m arxiana
funcionou, no m ais das vezes, como lente deform ante: p o r
meio dela, a sociedade civil hegeliana foi identificada com o
“ sistem a dos carecim entos” , que é apenas o seu m om ento in i­
cial, perdendo-se assim de vista que ela é já u m a e stru tu ra
jurídico-adm inistrativa;6 e a relação geral in stitu íd a po r Hegel
entre sociedade e E stado é m esclada e co nfundida com a liga­
ção p a rtic u la r entre tecido das relações econôm icas e regula­

(6) Hegel fala m esm o de "constituição ju ríd ica” e de “ constituição no p a


cu lar” (F D 157 e 265), de m odo que se poderia confundi-la com a C onstituição p ro ­
priam ente dita, a “ C onstituição política” ou constituição do E stado.
112 M IC H ELA N G ELO B O V E R O

m entação político-jurídica dessas relações, que em Hegel é o


vínculo situado in teiram ente no interio r d a sociedade civil.
M as o p onto é o seguinte: mesm o quan d o não se in co rra em
tais erros de redução, já não será p o r si m esm o a rb itra ria ­
m ente redutivo lim itar a análise da filosofia p rá tic a hegeliana
à relação en tre sociedade civil e E stado?
Com efeito, nos Lineam entos de filosofia do direito, que
contém a m ais desenvolvida teoria hegeliana da p rática, ou do
E spírito objetivo,7 essas categorias rep resen tam apenas dois
dos três m om entos d a ú ltim a seção, in titu la d a “ E ticid ad e” e
dedicada à análise d a convivência social: isolar tais m om entos
significa a fa sta r do tratam en to das e stru tu ra s coletivas, ou
seja, da dim ensão d a eticidade, a fam ília, e, do tra ta m e n to do
E spírito objetivo em seu conjunto, to d a a dim ensão individual,
que Hegel considera nas duas seções iniciais, in titu lad as res­
pectivam ente “ D ireito a b strato ” e “ M o ralid ad e” . N ão se pode
negar, de nen h u m m odo, que se tra te de u m a redução, ta m ­
pouco que essa se apresente como um a “ m arxistização” . M as
pode-se ad u zir alguns argum entos em sua defesa, ten tan d o
apresentá-la como m arxistização “ju stific a d a ” , pelo m enos
nos lim ites dos objetivos a que se propõe o presente trab alh o :
que não p reten d e um a reconstrução d e talh ad a do pensam ento
hegeliano em si m esm o, nem do m arxiano, nem m uito m enos
da diferença entre eles, m as se detém no lim iar de um es­
quem a conceituai com um e de sua lógica in tern a.
D entro desses lim ites, sou de opinião que a redução é
justificável nas seguintes condições: 1) que não constitua um
desnatu ram en to do pensam ento político de H egel, ou seja,
que a a rm a d u ra conceituai hegeliana p e rm ita isolar a dicoto­
m ia sociedade civ il/E stad o , sem que isso ap areça como u m a
am putação m ortífera, ou, platonicam ente, com o um decalque
m alfeito, e p erm ita ain d a elab o rar sobre esse núcleo u m dis-

(7) M . Riedel m ostrou (Studien zu Hegels R echtsphilosophie , F ran k f


S u h rk am p , 1969, cap . I, "E sp írito objetivo e filosofia p rá tic a ” ) com o H egel su p era,
com o conceito de E spírito objetivo, “ os princípios e as form as sistem áticas trad icio ­
nais d a filosofia p rá tic a ” (p . 12). Se indico aqui a teoria hegeliana do E spírito objetivo
ain d a com o nom e de filosofia p rática, é porque sob o novo term o Hegel volta a siste­
m atizar conceitos^ conteúdos com preendidos já sob o velho term o p o r to d a a trad ição
— com a qual, precisam ente, busco co m p arar a teoria hegeliana.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 113

curso de sentido com pleto; 2) que tal núcleo ou sistem a con­


ceituai p arcial p erm ita u m a com paração n ão desequilibrada
com o hom ólogo sistem a conceituai de M arx, em bora em
M arx ele assu m a um c aráte r global (q u an d o se entende o con­
ceito m arx ian o de E stado em sentido am plo, com o superes­
tru tu ra ta m b é m ju ríd ica e ideológica), ou seja, que o fato de
proceder a u m cotejo H egel-M arx sem to m a r diretam ente em
consideração g rande p a rte das categorias do sistem a hegeliano
de filosofia p rá tic a não im plique u m a su b-reptícia atribuição
de significados m arxianos ao modelo hegeliano que co n stru í­
mos; 3) que o m odelo construído (agora devem os defini-lo
como “ m arxiano-hegeliano” ) perm ita u m a com paração não
d esequilibrada com o m odelo ju sn atu ralista , ou seja, não p ri­
vilegia a perspectiva d a ligação H egel-M arx em detrim ento
daquela entre Hegel e o jusnatu ralism o , em b o ra a relação
m ais d ire ta com o ju sn atu ralism o seja à p rim eira vista p e r­
ceptível pelo lado das categorias hegelianas excluídas do m o­
delo.
P a ra ju stificar, nas condições enunciadas, o isolam ento
da dicotom ia sociedade civil/E stado, é necessário en fren tar
dois p roblem as gerais de in terpretação d a filosofia p rá tic a h e­
geliana, que aq u i só podem ser consideradas de m odo esq u e­
m ático. E m prim eiro lugar, o problem a d a fam ília e de sua
inserção com o term o inicial do desenvolvim ento d a eticidade,
desenvolvim ento que constitui p a ra Hegel a “ dem onstração
científica do conceito de E stad o ” :8 nessa fig u ra, a fam ília p a ­
rece re to m a r o valor que tin h a no m odelo aristotélico, e que
está ausente ta n to no m odelo ju sn atu ralista com o n a concep­
ção m arx ian a. E m segundo lugar, o problem a d a relação en tre
as prim eiras duas seções d a Filosofia do direito, referentes em
conjunto à dim ensão individual da vida p rá tic a , e a últim a,
Referente à dim ensão coletiva: as prim eiras parecem prosse­
guir a tra d iç ão ju sn atu ralista , d a qual reproduzem a divisão
fu n d am en tal entre direito e m oral, segundo o m esm o critério
de distinção entre exterioridade e interioridade, sendo que de
tudo isso n ão resta nenhum traço n a concepção m arxiana; e a
ú ltim a p arece se colocar no m esm o plano d a concepção m ar-

(8) F D 2 5 6 A .
114 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

xiana, n a m edida em que considera as diversas form as de cole­


tividade com o totalidade, enquanto se m o stra e stran h a e a p a ­
rentem ente incom parável à tradição ju sn atu ralista . Disso re­
sulta claram ente que, se d a filosofia p rá tic a hegeliana se con­
serva apenas o esquem a p arcial sociedade civ il/E stad o , corre-
se o risco, p o r um lado, de indicar u m a afinidade de m ão
única com M arx, e, p o r outro, de ignorar, m ediante a exclu­
são d a fam ília, a h eran ça da tradição clássica aristotélica, e,
m ediante a exclusão do direito ab strato e d a m oralidade, a
heran ça da trad ição m oderna ju sn atu ralista.
Essas heran ças têm grande peso n a construção hegeliana,
que se propõe — ao acolhê-las e tran sfigurá-las — com o um
grandioso com pêndio sistem ático de “ direito n a tu ra l e ciência
do E stad o ” .9 E , p o r outro lado, pode-se dizer que a novidade
do sistem a hegeliano em erge e se concentra precisam ente n a
elaboração d a dicotom ia sociedade civ il/E stad o , desconhe­
cida pela trad ição an tig a e m oderna de filosofia política. U m a
dicotom ia que não é certam ente, en q u an to ta l, “ o ” m odelo de
Hegel, m as que de q u alq u er m odo ressalta d a a rq u ite tu ra da
o b ra com o aqu ela p o r meio d a qual é en fren tad o o p roblem a
específico e u n itário d a contradição d a sociabilidade m oderna.
O fato de que aquele p a r ab arq u e ta l p ro b lem a u n itário —
ainda que, p a ra Hegel, p arcial — é algo que se pode ver b re ­
vem ente através d a relação que se d á en tre ta l p a r e os dem ais
m om entos do E spírito objetivo.
No que se refere ao conceito hegeliano de fam ília, em bora
ele conserve u m valor de posição equivalente ao que possuía o
correspondente conceito clássico no m odelo aristotélico, perde
aquelas características específicas de célula social que se auto-
reproduz, as quais, no interior da lógica daquele m odelo, fa­
ziam d a fam ília em sentido antigo o prim eiro elem ento essen­
cial do processo de form ação do E stado; desse m odo, o E stado

(9) N aturrecht u n d Staatswissenschaft im Grundrisse é precisam ente o su


tulo dado p o r Hegel à Filosofia do direito. O cruzam ento de motivos recolhidos das
d u as grandes tradições n a estru tu ra sistem ática dessa o b ra é ilustrado, a m eu Ver do
m odo m ais claro, p o r N. B obbio em sua resenha sobre “ L a filosofia giuridica di Hegel
nell’ultim o decennio” , in Rivista Critica d i Storia delia Filosofia, 1972, p p. 293-319,
especificam ente p p . 309-13. Sobre o tem a, são im portantes os trabalhos de M . Rie­
del, K .-H . Ilting, J. R itter, citados e discutidos naquela resenha.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 115

era representado com o u m a u nidade com posta de m uitas fa­


m ílias. O pro b lem a político m oderno, p a ra Hegel, não é o d a
agregação das fam ílias, m as o d a resolução n u m a totalidade
orgânica dos indivíduos com o indivíduos autônom os, que
constituem o prim eiro princípio da sociedade civil. E m Hegel,
a fam ília — perdendo o seu c aráte r de local d a reprodução
econôm ica e, em p a rte , tam b ém o de local d a form ação c u ltu ­
ral do indivíduo — aparece sobretudo com o u m a ilha do cora­
ção no dom ínio da razão :10 se sua qualidade de com unidade
orgânica coloca-a necessariam ente no dom ínio do ético, suas
reduzidas funções sociais a fazem assum ir u m pap el subordi­
n ado no terren o do pro b lem a específico d a sociedade m o­
derna. H egel é explícito sobre esse ponto: “ M as a sociedade
civil su b trai o indivíduo a esse vínculo [fam iliar], afasta u m do
outro os com ponentes desse vínculo e os reconhece como pes­
soas autônom as; de resto, ela coloca no lu g a r d a n atu reza
inorgânica e x tern a e do terren o p aterno, de o nde o indivíduo
obtin h a sua subsistência, seu próprio terren o , e subm ete a
existência de to d a a fam ília à dependência dela [da sociedade
civilj” ; “ a fam ília deve certam ente prover a alim entação dos
seus m em bros individuais; m as, n a sociedade civil, ela é algo
subordinado e fornece apenas a base; ela n ão tem m ais u m a
atividade tão abran g en te. Ao contrário, a sociedade civil é a
força ex trao rd in ária que a rra sta consigo o hom em , exige dele
que tra b a lh e p a ra ela, e que seja in teiram ente através dela e
tudo faça p o r seu interm édio” .11 Sob esse aspecto, p o rtan to ,
não é de considerar u m decalque m alfeito o isolam ento da
dicotom ia sociedade civ il/E stado como núcleo conceituai em
cujo interior se coloca p a ra Hegel o p roblem a d a sociabilidade
n a época m o derna.
Q u an to à relação en tre direito ab strato e m oralidade, p o r
um lado, e eticidade p o r outro, lim ito-m e aq u i a reco rd ar que,
n ã concepção hegeliana do m undo d a p rá tic a, dim ensão indi-

(10) Com efeito, a fam ília “ tem com o sua determ inação a sua u nidade que se
sente a si m esm a, o am o r” ( F D 158); q u an to à tarefa educativa, Hegel sublinha qu e a
sociedade civil “ tem o dever e o direito, diante do arbítrio e d a acidentalidade dos ge­
nitores, de exercer vigilância e in fluência sobre a educação, n a m edida em que essa se
refira à aptidão p a ra to m ar-se com ponente d a sociedade” (F D 239).
(11) FD 238 e Z.
116 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

vidual e dim ensão coletiva não som ente se colocam em planos


n itidam ente distintos, m as se desenvolvem segundo m ódulos
lógicos independentes. P a ra Hegel, assim com o o todo n ão re­
sulta d a som a de suas p artes, do m esm o m odo a dim ensão
coletiva não é derivável d a dim ensão individual. P ortan to ,
nem sequer sob esse aspecto pode-se considerar com o a rb itrá ­
ria u m a consideração sep arad a d a categoria do ético. Desse
m odo, parece-m e satisfeita a prim eira condição: é o sistem a
global hegeliano, em sua peculiar articulação, que p erm ite o
isolam ento do núcleo conceituai aqui considerado. D e resto —
e chegam os ao segundo ponto — , é n a perspectiva do ético, ou
seja, das e stru tu ra s coletivas e de sua lógica específica, que
deve ser buscado o sentido global d a filosofia política hege-
liana. P or conseguinte, a adoção dessa perspectiva não im ­
plica p o r si só a superposição de um sentido “ m arx ian o ”
àquela filosofia, m as obedece a um princípio que lhe é interno,
o qual pode ser sintetizado n a fórm ula do p rim ad o do coletivo
ou d a totalid ad e. Com efeito — terceiro ponto — , a dim ensão
coletiva é não só independente d a individual, m as tem um ca­
rá te r fu n d an te com relação a ela: é sobre fundam ento d a di­
m ensão coletiva que adquirem efetividade e verdade os aspec­
tos e as determ inações conceituais referentes à vida exterior e
interior do indivíduo. M ais u m a vez, H egel é explícito: “ A
m oralidade e o m om ento precedente, o do direito form al, são
duas abstrações cuja verdade é som ente a eticidade” ; 12 e
ainda: n a m edida em que “ as form as a b strata s se revelam não
como subsistentes p o r si, m as como não verdadeiras” ,13 disso
resulta que “ os elem entos jurídico e m oral não podem existir
por si, e devem te r com o apoio e fundam ento o elem ento éti­
co” .14 A despeito das aparências, p o rtan to , não p oderia ser
m ais n ítid a a oposição entre Hegel e o ju sn atu ralism o no te r­
reno da relação geral en tre indivíduo e coletividade.
A questão, m uito com plexa e decisiva p a ra o nosso tem a,
m erece algum as considerações m enos esquem áticas.

(12) FD 33 Z.
(13) F D 3 2 Z .
(14) FD 141 Z.
Hegel, Marx
e o ponto de partida no abstrato

V* o n tra a perspectiva individualista que se expressa a tra ­


vés do m odelo ju sn atu ralista , a concepção hegeliana em seu
conjunto, de m odo análogo à de M arx, funda-se n u m a reafir­
m ação d a superioridade d a dim ensão coletiva no dom ínio p rá ­
tico. D o p o n to de vista d a teoria do direito n a tu ra l, o indiví­
duo aparece como sujeito social som ente no interior do E s­
tado p ro d u to d a vontade dos indivíduos, m as — antes do indi­
víduo com o sujeito social (ou civil) — tem -se o indivíduo sim ­
plesm ente, separado e definido por si, e esse últim o está na
base e se tran sfo rm a naquele; ao contrário, n a perspectiva he­
geliana, a figura em que o indivíduo aparece im ediatam ente
com o pessoa singular, p o r assim dizer “ p u rificad a” de suas
determ inações sociais, é desde o início definida com o “ ab s­
tra ta ” ; 1 e não é preciso recordar que, em M arx, a abstração

(1) A relação ab strato /co n creto tem em Hegel m il facetas. P a ra nossa a


m entação, parece-m e b astan te ad eq u ad a a seguinte observação de T h. W . A dorno
em Philosophie Termínologie, tra d . it., T urim , E inaudi, 1975, vol. I, p. 27: “Concre-
tu m , de concrescere, ê o que cresceu ju n tam en te; é o crescim ento ju n to em antítese ao
separado. Em Hegel, p o rtan to , o concreto é o todo (...). A bstratos, p o r seu tu rn o , são
precisam ente o indivíduo, o que é isolado, o m om ento singular — p o r exem plo, a
subjetividade isolada e in dependente dos objetos de que se ocupa, ou, do outro lado,
as pu ras coisas, independentem ente dos m om entos da m ediação pelo pensam ento, os
quais estão sem pre contidos nelas” . A específica diferença en tre pessoa concreta e
pessoa a b stra ta é explicada com clareza p o r N. Bobbio no ensaio “ D iritto privato e
diritto pubblico in H egel” , in Rivista di Filosofia, núm ero especial dedicado a H egel e
lo Stato, 1977, p p. 3-29, em p articu lar p. 16.
118 M IC H ELA N G ELO B O V ER O

do indivíduo isolado posto como origem e fund am en to d a re­


lação social é ironicam ente definida com o “ ro b in so n ad a” .
P o rtan to , as perspectivas hegeliana e m arx ista convergem
n a tentativa de fu n d a r em últim a instância a dim ensão in d i­
vidual n a dim ensão coletiva. Porém , en q u an to em M arx isso é
im ediatam ente evidente, n a m edida em que as categorias do
direito privado e d a m oral (a su p erestru tu ra ju ríd ica e ideoló­
gica) recebem u m a explicação a p a rtir d a análise das relações
fundam entais que ligam os hom ens n a sociedade civil (a base),
em H egel n ão tem lu g ar u m a igual evidência, já que a consi­
deração do indivíduo n a d u p la figura d a pessoa ju ríd ica e do
sujeito m oral precede a consideração das e stru tu ra s coletivas
n a eticidade. T em algum significado essa analogia com a p ers­
pectiva ju sn a tu ra lista em relação ao ponto de p a rtid a no a b s­
trato?
D ecerto, pode-se perceber n a versão hegeliana u m a p re ­
cisa continuidade com a colocação m od ern a d a d a pelo jusna-
turalism o ao pro b lem a político: no O cidente europeu, que
“ sabe que todos são livres” , o traço característico d a dim en­
são p rá tic a — e, p o r isso, tam bém o d ado elem entar do p ro ­
blem a político — , é apon tad o no direito d a pessoa (direito
ab strato ) e n a autonom ia do sujeito (m oralidade). M as o p ro ­
blem a é que a lib erd ad e individual in tern a e externa não é
p a ra Hegel a do hom em do estado de n a tu re za ju sn atu ralista.
N a verdade, H egel não recusa a noção de estado de natureza:
critica a su a visão idílica d a d a p o r R ousseau, m as louva H ob-
bes, precisam ente o fu n d ad o r do m odelo, p o r te r entendido
“ em seu reto sentido” tal conceito.2 E , tam b ém p a ra Hegel,
a condição n a tu ra l é a antítese e o longínquo antecedente his­
tórico d a condição civil. Isso é claram ente afirm ado n a “ g ra n ­
de” Enciclopédia, onde o N aturzustand é definido com o o es­
tado em que ocorre a “ lu ta pelo reconhecim ento” ,3 e, como
tal, é contraposto à bürgerliche Gesellschaft e ao Staat, signi­
ficativam ente acoplados p a ra indicar a e stru tu ra tipicam ente

(2) É o que se diz n as L ezio n isulla filosofia delia storia, tra d . it., F lorença, La
Nuova Italia, 1967, vol. III, 2, p . 174.
(3) O local, de fato, é aquele onde é retom ado no sistem a, no in terior d a seção
sobre o Espírito-objetivo, o célebre capítulo d a Fenomenologia sobre a “ In d ep en ­
dência e dependência d a autoconsciência: senhoria e servidão” .
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 119

m oderna d a form ação social: “ a lu ta pelo reconhecim ento,


conduzida n aq u ela form a até os extrem os, pode te r lu g ar tão-
som ente no estado de n atu reza, onde os hom ens existem so­
m ente com o indivíduos singulares, en q u an to desaparece n a
sociedade civil e no E stad o , já que nesses e stá já presente o
que constitui o resu ltad o daq u ela lu ta , ou seja, o ser-reconhe-
cido” .4 O m otivo hobbesiano do estado de n a tu re za com o es­
tado de g u e rra en tre os indivíduos é bem evidente; e a analo­
gia aparece de m odo talvez ain d a m ais preciso n u m local im e­
diatam ente precedente, que pode ser tom ad o como exem plo
do m odo pelo q ual u m tem a tradicional é ao m esm o tem po
assum ido e tran sfig u rad o p o r Hegel: “ am bos os sujeitos auto-
conscientes que se relacionam u m com o o u tro , n a m edida em
que têm um existir im ediato, são n atu rais, corpóreos, pelo
que existem no m odo de u m a coisa sujeita a violência externa
[ou inim iga: frem d er Gewalt ]; (...) m as, ap esar disso, são
apenas livres e não podem ser tratad o s u m pelo outro com o
um sim ples existir im ediato, com o algo m eram en te n a tu ra l” .5
P a ra su p erar essa contradição, é necessário precisam ente que
os sujeitos cheguem a se reconhecer tais com o são “ segundo o
seu conceito, ou seja, com o essências não p u ram en te n atu rais,
m as sim livres” . M as, acrescenta Hegel, “ isso não pode ocor­
re r en q u an to eles estiverem envolvidos em su a im ediaticidade,
em sua n atu ra lid a d e. Já que essa é ex atam ente o que os exclui
um do o u tro e os im pede de ser livres um p a ra o outro, a lib er­
dade exige que o sujeito autoconsciente nem deixe subsistir
sua p ró p ria n atu ra lid a d e, nem tolere a n atu ra lid a d e alheia,
m as ao contrário, indiferente em face do existir, p o n h a em
jogo em ações im ediatas singulares a sua p ró p ria vida e a vida
alheia com o objetivo de conquistar a liberdade. P o rtan to , so­
m ente m ediante a lu ta a liberdade pode ser conquistada: não
b asta p a ra ta n to a certeza de ser livre. Som ente através disso,
de que o hom em p o n h a a si m esm o e aos o utros em perigo de
m orte, ele prova desse ponto de vista sua ap tid ão à lib er­

(4) E nzyklopädie der philosophischen W issenschaften, § 432 Zus. Sirvo-me


d a edição incluída n a s W erke in zwanzig Bänden, ed. p o r E . M oldenhauer e K . M .
Michel, F ra n k fu rt, S u hrkam p, 1969-1975 (o local cit. está no vol. 10, p. 221). D o ra­
vante, a Enciclopédia será c itad a com o E seguida do núm ero do parágrafo.
(5) E 4 3 1 Z.
120 M IC H ELA N G ELO B O V ERO

dade” .6 M as a lu ta não term in a im ediatam ente no reconheci­


m ento e, p o rtan to , n u m a relação entre livres, m as sim n a su b ­
m issão de u m sujeito ao outro e, p o rtan to , n u m a relação de
senhoria e servidão: a qual, como diz Hegel, é “ o fenôm eno de
onde surge a convivência dos hom ens com o com eço dos E s­
tad o s” . 7
E m sum a, precisam ente porque o estado de n a tu re za é,
como dissera H obbes, o reino d a violência e do a rb ítrio ,8 ele é
antes de m ais n a d a incom patível com o estado de direito (ou
seja, condição ju ríd ica: R echtszustand), no q ual “ todos são
livres” ; e tam pouco pode ser assum ido com o o local no q ual
são perceptíveis os verdadeiros princípios desse últim o. E n tre
estado de n a tu re za e estado de direito, p a ra Hegel, não existe
aquela relação de id entidade que p erm itia aos ju sn atu ralista s
reconhecer no estado de n atu reza o local em que se m anifesta
im ediatam ente o “ direito n a tu ra l” ; m as tam pouco existe u m a
relação de derivação ou de com unicação d ireta, com o aquela
que perm itia aos ju sn atu ralistas fu n d a r sobre o direito n a tu ­
ral, através do pacto social, a sociedade política e o direito
positivo e, p o rtan to , a condição civil. P a ra Hegel, en tre estado
de n a tu reza e estado de direito (o estado que, p a ra esclarecer
as coisas, constitui o ponto de p a rtid a d a Filosofia do direito),
h á u m processo de transform ação tã o rad ical que, se o estado
de n atu reza pode ser visto como o lu g ar do q ual decorre “ o
começo externo e fenom ênico dos E stad o s” , ta l com eço n ão é
porém “ o seu princípio substancial” : consistindo, de fato, n a
“ subm issão a um senhor” ,9 ele exclui precisam ente aquele es­
tado de direito — ou situação n a qual “ todos são livres” , já
que p a ra H egel direito é existência d a liberd ad e — que é p res­
suposto indispensável do E stado em sua “ v erdade” e, ao m es­
mo tem po, que som ente se realiza no E stad o . E m ou tras p a la ­
vras: com Hegel, o p roblem a d a origem do E stad o não coin­
cide m ais, e, ao contrário, diferencia-se n itid am en te do p ro ­
blem a de seu fund am en to “ segundo o conceito” . E isso p reci­

(6) Ibidem .
(7) E 433 A.
(8) É a definição que aparece em E 502 A. T am bém em FD 93, Hegel escreve:
“ (...) ein N aturzustand, Zusta n d der Gewalt üb erh a u p t".
(9) E 433 A.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 121

sam ente p o rq u e, p a ra Hegel, o verdadeiro direito de natu reza,


aquele que se determ ina segundo a n atu reza, ou seja, segundo
o conceito, do hom em , não se encontra no estado de natu reza,
o qual, ao contrário, represen ta a sua negação; e, do estado de
n atu reza, “ n a d a pode ser dito de m ais verdadeiro do que o
seguinte: é preciso sair dele” .10
P o rtan to , a liberdade individual com o direito não em erge
no nível do estado de n atu reza, que não conhece direito, e
nem m esm o no nível do estado que o segue, o E stado despó­
tico, ou d a relação en tre senhoria e servidão,11 n a m edida em
que ela rep resen ta u m m u ndo an terior à “ condição verdadei­
ram ente é tica” d a época m oderna, “ no q ual o torto é ain d a
direito” : e isso é algo que ele tem em com um com to d o s'aq u e­
les “ m u n d o s” que adm item u m a form a q u alq u er de escravi­
dão, já que neles a liberdade não é ain d a co nsiderada com o
atrib u to do hom em en q u an to hom em , m as ap enas como q u a ­
lidade que alguns obtêm do nascim ento, e que, p o r isso, tem
ain d a u m a determ inação n atu ral. M as H egel especifica de
m odo inequívoco que “ o ponto de vista ( ...) com o q ual se
inicia o direito e a ciência do direito já se situ a p a ra além do
falso ponto de vista no q ual o hom em é en q u an to é ser n a tu ­
ra l” .12 N a distância entre estado de n a tu re za e estado de di­
reito, pode-se m en su rar a diferença radical que separa o ponto
de p a rtid a hegeliano do p o n to de p a rtid a ju sn atu ralista .
E ssa diferença perm ite tam bém redim ensionar o alcance
da analogia geral en tre o m odelo ju sn a tu ra lista e a e stru tu ra
global do sistem a hegeliano de filosofia p rática: analogia que
aflora q u an d o se reflete que um e outro p a rte m d a considera­
ção do indivíduo (n u m caso, estado de n atu reza; no outro,
direito a b strato e m oralidade) p a ra chegar à consideração da
coletividade (n u m caso, sociedade civil; no o utro, eticidade,

(10) E 502 A; e cf. ibid.: “ N a realidade, o direito e todas as suas determ i­


nações fundam -se apenas n a personalidade livre: nu m a autodeterm inação, que é o
contrário d a determ inação n a tu ra l” .
(11) Ë assim co rretam ente in terp re tad a a célebre figura da Fenomenologia
p or S. L anducci, Hegel: la conscienza e la storia, F lorença, La Nuova Itália, 1976,
p . 100 e ss., onde o a u to r desenvolve algum as considerações, que partilho, sobre o
ensaio de V. G oldschm idt, “ É ta t de n atu re et pacte de soum ission chez H egel” , in
Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, 1964.
(12) Cf. F D 5 7 A e Z .
122 M ICH ELA N G ELO B O V ERO

que com preende, além d a sociedade civil, a fam ília e o E s­


tado). Com efeito, a condição de direito em cujo interior em er­
ge, p a ra Hegel, a instância d a liberdade do indivíduo não é
u m a condição associai ou im perfeitam ente social, com o e ra o
caso n a representação ju sn atu ralista do estado de natu reza,
porque “ a sociedade é a única condição n a q ual o direito tem
s u a realid ad e” .13 N ão som ente o indivíduo com o q ual se in i­
cia o tra ta m e n to hegeliano do E spírito objetivo não está em
estado de n a tu re za e sim em estado de direito, e, p o r isso,
pode se p ô r o pro b lem a de sua liberdade e de seu direito, m as
tam bém o estado de direito enqu an to tal é necessariam ente
estado de sociedade, e, po r isso, o. direito do indivíduo não é
“ direito n a tu ra l” no sentido ju sn atu ralista, ou seja, no sentido
de u m estado an terio r ao estado de sociedade e fu n d an te com
relação ao E stado: H egel fala explicitam ente de “ direito ab s­
tra to dos Estados m odernos” .u A p ersonalidade de que se
ocupa o direito a b strato (expressão que, em Hegel, significa
substancialm ente direito privado) é, do ponto de vista d a Filo­
sofia do direito, sim plesm ente a categoria m ais elem entar que
pode ser p red icad a de qu alq u er sujeito h u m an o que viva no
interior d a organização global da form ação social m oderna.
F inalm ente, se o problem a p ro p riam en te político ju s n a ­
tu ralista é o de fazer confluir as livres vontades individuais no
corpo social, superan d o a contradição de fundo en tre a a u to ­
nom ia do indivíduo e a vida coletiva, em H egel o p roblem a
análogo d a relação en tre vida dos indivíduos com o indepen­
dentes e organism o social-político não se coloca no nível da
relação en tre o direito ab strato (ou en tre esse e a m oralidade,
em conjunto) e a eticidade, m as é pro b lem a intern o às e stru ­
tu ras do ético. A condição de liberdade individual é c erta ­
m ente o ponto de p a rtid a d a consideração hegeliana d a p rá ­
tica, tal como no m odelo ju sn atu ralista , m as essa condição
inicial não tem as características e nem m esm o a função lógica
que tin h a o estado de n atu reza no m odelo ju sn atu ralista .
E isso p orque ela: a) é condição de direito não an terio r à or­
dem civil; b) é condição vigente n u m a ordem social não precá-

(13) E 502 A.
(14) Lezioni sulla storia delia filosofia, cit., I, p. 372.
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 123

ria nem provisória; c) é condição apenas a b stra ta , que não


pode constituir o fund am en to do concreto. A capacidade ju rí­
dica que define a pessoa considerada a b stratam en te resum e-
se a u m a p u ra e sim ples faculdade ou possibilidade (todos
podem possuir livrem ente, todos podem tro car, ou seja, esti­
p u lar contratos), d a q ual é indedutível a relação necessária
que liga os indivíduos em um todo, a não ser que considere­
mos o corpo coletivo com os parâm etros de u m a associação
privada: m as esse é o caso p a ra o ju sn atu ralism o , não p a ra
Hegel.15 P o rtan to , en q u an to o estado de n a tu re za em Hegel
conserva o c aráte r hobbesiano de estado d a violência e da
opressão, oposto à condição civil em sentido am plo, perde p o ­
rém o c ará te r de estado p u ro d a liberdade do indivíduo'e, p o r
conseguinte, perd e tam bém a função que o estado de n atu reza
ju sn a tu ra lista tin h a en q u an to m om ento do direito n a tu ra l que
fu n d a o estado civil; o direito ab strato ad q u ire certam ente o
caráter de m om ento no q ual se m anifesta a m ais im ediata li­
b erdade do indivíduo, m as nem p o r isso ad q u ire tam bém a
função que desem penhava o m om ento correspondente no m o­
delo ju sn atu ralista . Com efeito, assim com o não é possível
b uscar o fu n d am en to d a vida coletiva ou ética no estado de
n atu reza, tam b ém não é possível buscá-lo no direito privado.
D o ponto de vista hegeliano, não é m ais concebível a co n stru ­
ção d a dim ensão coletiva a p a rtir dos indivíduos considerados
en q u an to pessoas: só é possível com preender aqu ela dim ensão
quando se determ in a o espaço d a coletividade como espaço
autônom o e, em ú ltim a instância, com o o verdadeiro p rin cí­
pio. O indivíduo cuja relação com a organização d a vida cole­
tiva se põe com o pro b lem a não é a pessoa a b stra ta , sujeito de
relações form ais acidentais, m as é a pessoa concreta que, ao
perseguir seu p róprio interesse privado, ou seja, ao afirm ar
sua p ró p ria individualidade, está essencialmente em relação
com as o u tras individualidades: é o cidadão privado ou o civil,
j á necessariam ente inserido, ain d a que em su a autonom ia —

(IS) U m dos tem as recorrentes em Hegel é a critica às teorias contratualist


com base nas quais o E stado assum e o falso aspecto de u m a associação que “ deriva
do arbítrio dos associados” (cf. F D 75 A). Sobre o assunto, cf. N. Bobbio, "D iritto
privato e diritto pubblico in Hegel” , cit.
124 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

e, po r isso, de m odo contraditório — , nu m todo ou dim ensão


coletiva. E ssa dim ensão coletiva co n trad itó ria, a p a rtir da
qual se põe o pro b lem a d a relação entre indivíduo e E stado,
entre autonom ia dos privados e p oder do organism o político
superior, é a sociedade civil.
P o rtan to , o confronto com o ju sn atu ralism o no terreno
do p ro b lem a político d a sociedade m o d ern a n ã o deve ser efe­
tu ad o nem exam inando as seções iniciais d a Filosofia do d i­
reito — em bora essas retom em a divisão ju sn a tu ra lista entre
direito e m oral — , já que nesse nível não surge em H egel o
problem a do E stado; nem exam inando a e stru tu ra global do
sistem a, em b o ra essa p areça repetir a b ip artição ju s n a tu ra ­
lista en tre indivíduo e coletividade, já que os term os e a figura
d a relação são n a realid ad e diversos; ta l confronto deve ser
feito exam inando a seção conclusiva, e, m ais precisam ente,
a dicotom ia entre sociedade civil e E stado, em cujo interior se
recoloca p a ra H egel o problem a d a fundação u n itá ria d a so­
ciabilidade m oderna. O confronto, aliás, se im põe nesses te r­
mos, não som ente p o r causa d a presença am biguam ente co­
m um , nos dois m odelos, d a categoria d a sociedade civil, m as
sobretudo p o rq u e H egel diz que a sociedade civil conserva em
si — de m odo su rpreendente — precisam ente “ o resíduo do
estado de n a tu re za ” .16
As análises até aq u i realizadas exigem u m a com provação:
e essa só pode provir d a p ró p ria com paração en tre a dicotom ia
ju sn atu ralista estado de n atu reza/so cied ad e civil e a dicoto­
m ia hegeliana sociedade civil/E stado. A través dessa co m p ara­
ção, tentarem o s recon stru ir a identidade do m odelo hegelo-
m arxiano; e, n a m edida em que se consiga d eterm in ar um
significado u n itário do esquem a conceituai em si m esm o, p a ra
aquém das diferenças que especificam a versão hegeliana e a
versão m arx ian a do m odelo, poderem os tam bém considerar
ju stificada, de m odo m ais persuasivo, a redução aos lim ites
das fronteiras m arx ian as do m ais am plo e com plexo sistem a
conceituai hegeliano.

(16) FD 200 A; e cf. tam bém FD 289 A, onde se afirm a que a sociedade civil
“ é o cam po de b a ta lh a do interesse privado individual de todos contra todos” , com o
evidente referência ao bellum o m nium contra om nes do estado n a tu ra l n a trad ição
hobbesiana.
Qual Marx e quai Hegel?

M as é necessário ain d a considerar u m a objeção, de si­


nal contrário com relação à anterior, que p o d eria ser dirigida
à consideração d a dicotom ia sociedade civil/E stad o com o m o­
delo “ hegelo-m arxiano” . Falam os até agora dessa dicotom ia
como de um esquem a conceituai que M arx recolheu de Hegel
e transform ou com variações. M as tran sfo rm á-la no m odelo
p o r meio do q ual se expressa a teoria m arx ian a do político não
significa talvez a trib u ir u m a excessiva im p o rtân cia ao pap el
que essas categorias desem penham n a o b ra de M arx? N ão se
correrá o risco de sobrepor ao pensam ento m arxiano concreto
u m esquem a hegeliano que lhe é substancialm ente estranho?
M ais precisam ente: não se corre o risco de privilegiar a ob ra
juvenil de M arx, n a q ual essa dicotom ia é especificam ente ob­
jeto de reflexão, sem levar em conta a fam osa “ ru p tu ra ” entre
os escritos juvenis e !as obras m aiores, nas quais tal dicotom ia,
ain d a que reap areça algum as vezes, não m ais assinalaria o
horizonte conceituai d a reflexão m arxiana sobre o problem a
político d a sociedade m od ern a e, além do m ais, seria en ten ­
dida num sentido in teiram ente diverso daquele dos escritos
juvenis? E m sum a, m ais u m a vez, tu d o isso não constituiria
u m a “ hegelianização” de M arx?
D essa objeção, é sem dúvida aceitável o dado inicial:
q ualq u er tratam en to referente à em brionária teoria política
m arx ian a não pode ig n o rar o problem a das várias fases que o
p ensam ento de M arx atravessou e, p o r isso, deve declarar p re ­
126 M ICH ELA N G ELO B O V ERO

viam ente à “ q u al” M arx pretende se referir — e po r quê.


A crescentem os, de resto, que a m esm a coisa vale p a ra Hegel.
Nossa escolha dos Lineam entos de filosofia do direito com o
term o privilegiado de referência p a ra o estudo do seu p en sa­
m ento pode suscitar perplexidades naqueles que julgam essa
obra m ais com prom etida do que outras com as diretivas e os
desejos do poder vigente. E n tre os in térpretes, com efeito, vem
se difundindo a tendência, não diria de elu d ir a análise dos
Lineam entos, m as pelo m enos de buscar em outros locais,
como corretivo, expressões m ais genuínas do pensam ento he-
geliano: nos escritos do período de Jena, especialm ente nos
cham ados cursos de Realphilosophie de 1803-1804 e de 1805-
1806, onde haveria u m a am bigüidade m enor; ou nos ciclos de
Lições berlinenses sobre a filosofia do direito, que p erm an e­
ceram inéditas até h á p o uco,1 nas quais H egel m ostra, com
relação aos Lineam entos, m aior preocupação com a racio n a­
lidade que com a efetividade.2 N inguém pode d im inuir a im ­
p ortân cia do estudo dos escritos de Jena p a ra recon stru ir m e­
lhor o sentido do hegelianism o; m as insisto no fato de que o
sistem a conceituai em cujo interior adquire seu pleno sentido
a interpretação hegeliana d a estru tu ra social e política m o­
derna está m uito d istante de sua elaboração definitiva n a q u e ­
les escritos. O desenvolvim ento do pensam ento político hege-
liano é m arcado p o r contínuas tentativas de resolver o p ro ­
blem a d a cisão n a vida social m oderna: tal vida, em b o ra seja
de qu alq u er m odo vida coletiva, não se ap resen ta im ediata-

(1) P ublicados em 4 volum es p or K .-H . Ilting com o título Vorlesungen iiber


Rechtsphilosophie 1818-1831, S tuttgart-B ad C an n sttat, From m ann-H olzboog Ver-
lag, 1973-1974. Foi precisam ente Ilting, nas “ Introduções” a esses volum es (agora
recolhidas, ju n tam en te com outros escritos de Ilting, e p arcialm ente revistas pelo
autor, no volum e editado p o r E. T ota, Hegel diverso , B ári, L aterza, 1977), quem se
faz fautor e intérprete, com base nas referidas Lições, de u m a nova im agem do Hegel
político, “ diversa” e m ais progressista do que a im agem que aparece a p a rtir dos
G rundlinien.
(2) M as sobre a relação que Hegel institui program aticam ente entre real (efe­
tuai) e racional, cf. agora as lú cidas observações de R. Bodei em apêndice ao seu
“ D ialettica e controllo dei m u tam en ti sociali in H egel” (incluído no opúsculo H egel e
Weber, B ári, D e D onato, 1977, ju n tam en te com um ensaio de F . C assano e com
várias intervenções de B. de G iovanni, G . C antillo, R. R acinaro et al.), especialm ente
nas p p. 113-22. Nesse texto, Bodei desenvolve e esclarece ain d a m ais algum as teses con­
tidas em seu excelente livro Sistem a ed epoca in Hegel, B olonha, II M ulino, 1975.
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 127

m ente com as características “ conciliadas” de u m a v erdadeira


universalidade. A cisão tem p a ra Hegel sua prin cip al raiz n a
existência “ p a ra si” do hom em -consciência cristão, que se re-
en cam a no indivíduo isolado dos ju sn atu ralista s e, p osterior­
m ente, no sujeito econôm ico dos econom istas clássicos. A ntes
de 1818-1819, os anos iniciais do período berlinense, que p re ­
cedem a redação dos L ineam entos , concluídos em 1820 e p u ­
blicados no ano seguinte, Hegel não consegue en co n trar um
fundam ento u n itário p a ra a socialidade m o d ern a e, p o rta n ­
to, tam pouco consegue conceber u m a v erdadeira eticidade
m oderna: a dissolução d a ligação entre o indivíduo e a com u­
nidade, a p e rd a d a ingenuidade do ético e a im possibilidade
de um retorno à bela eticidade antiga parecem coincidir com
u m a desagregação objetiva. O que falta nos esboços de sis­
tem a anteriores ao período berlinense é o conceito de socie­
dade civil e, p o r conseguinte, aquele conceito de E stado que se
define em relação à sociedade civil:3 ou seja, falta precisa­
m ente aquele m odelo que é o único a p erm itir a Hegel a com ­
preensão, em sua racionalidade, como um todo orgânico, da
estru tu ra social m oderna. Q u an to às Lições berlinenses de fi­
losofia do direito, sem dúvida elas m ostram u m a atitu d e aqui
e ali m ais flexível e a b erta e contêm adendos b astan te signi­
ficativos ao tratam en to d a m atéria tal com o H egel o efetua n a
obra d estinada ao público; m as nem aquela atitu d e nem esses
adendos alteram substancialm ente o arcabouço categorial do
sistem a, nem o significado interno daquele núcleo conceituai
que, como modelo, é o único que aqui nos in teressa. O recurso
aos adendos que aparecem nas Lições resu lta quase sem pre
decisivo p a ra o esclarecim ento do texto publicado: m as isso
não naquilo em que as Lições possam diferir do texto, m as
precisam ente no que constitui a sua u nidade de fundo, isto é,
a estru tu ra arquitetô n ica.4

(3) R. Bodei, n a resenha “ S tudi sul pensiero político ed econom ico di Hegel
neU’ultim o tren ten n io ” (in Rivista Critica di Storia delia Filosofia, 1972, p p. 435-66,
p . 465), afirm a que “ a fonte m ais im ediata da posterio r contraposição en tre socie­
dade civil e E stad o ” deve ser b u scad a n a antítese entre bürgerliche O rdnung e staat-
liche O rdnung, d a qu al Hegel fala em seu escrito de 1817 sobre a D ieta de W ürttem -
berg (cf. tra d . i t . , in G . W . F. Hegel, Scrittipolitici, T urim , E in au d i, 1972).
(4) O p róprio Ilting reconhece que o valor prim eiro d a Filosofia do direito
consiste em sua arq u ite tu ra , que perm anece substancialm ente in alterad a tam bém
128 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

M as esse m odelo — voltam os à objeção prin cip al — pode


ser considerado com o ta l tam bém p a ra a teoria política de
M arx? Segundo alguns intérpretes, a dicotom ia sociedade ci-
v il/E stad o político tem valor de esquem a teórico fu n d am en tal
som ente p a ra os escritos juvenis e não p a ra os d a m atu rid ad e.
Nesses, os referidos term os seriam usados nu m sentido b a s­
tan te diferente e, sobretudo, não form ariam m ais, em sua re­
lação, aquela figura oposicional que surge nas obras anterio­
res: e isso n a m edida em que os m odelos lógicos do M arx jo-
vem -hegeliano ou feuerbachiano, com base nos quais a figura
é construída, seriam incom patíveis com a ch am a d a “ episte-
m ologia do m odo de p ro d u ção ” que caracteriza as obras m aio­
res. D irei, de im ediato, que não p retendo de nen h u m m odo
privilegiar o jovem M arx, m as, ao contrário, considerar o p en ­
sam ento m arxiano no nível de suas expressões m ais m ad u ras,
dando p a rtic u la r atenção aos Grundrisse. M as, com o se sabe
e já foi b astan te repetido, no legado literário de M arx não h á
n a d a de análogo aos Grundlinien hegelianos, ou seja, não
existe u m a teoria do político m a d u ra e desenvolvida, nem u m a
teoria d a form ação social m oderna que a b ra n ja as instâncias
políticas. E , com o já disse, qualq u er tentativa de ex trair um
modelo teórico com pleto a p a rtir das dispersas e frag m en tá­
rias indicações em m atéria política das obras d a m atu rid ad e
corre o risco de resu ltar algo genérico e, p o rtan to , b an al, ou
então fantasioso e, p o rtan to , discutível.
D e onde provém , p o rtan to , o afirm ado “ m odelo” m a r­
xiano? E m m in h a opinião, é possível rep en sar to d a a proble-

nas Lições e que é depois rep etid a nas du as edições berlinenses d a Enciclopédia (1827
e 1830), am bas posteriores ao últim o curso com pleto de filosofia do direito (1824-
1825) (cf. Ilting, Hegel diverso , cit., p . 140, n. 11). D e resto, precisam ente Ilting é
au to r de um im portante estudo sobre “ La stru ttu ra delia Filosofia dei diritto di H e­
gel” , de 1971 (agora inclído n a op. c it. , p p. 5-32). D e q u alq u er m odo, o recurso à
m onum ental edição de Ilting é agora obrigatório p a ra os estudiosos d a filosofia polí­
tica e ju ríd ic a hegeliana. C ontudo, m esm o levando-a sem pre em conta e fazendo as
devidas com parações, preferim os neste local utilizar os adendos de G ans, aos quais se
referiu u m a longa trad ição de intérpretes; e o fizemos ta n to p o r cau sa dos lim ites
deste trab alh o , que não tem com o objetivo u m a reconstrução filológica exaustiva do
p ensam ento hegeliano com o tal, tan to porque os adendos de G ans se baseiam p reci­
sam ente n as Lições hegelianas, e G ans — com o afirm a o p ró p rio Ilting (op. cit . ,
p p. 135 e ss.) — desem penhou com o editor u m trab alh o filológico rigoroso.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FILO SO FIA P O LlTIC A M O D ER N A 129

m ática política do jovem M arx à luz dos conceitos fu n d am en ­


tais de análise social elaborados por M arx nas obras m aiores,
e, com base em tais conceitos, avaliar a p erm anência dos as­
pectos singulares da concepção juvenil. E squem aticam ente
(m as o esquem a é o fornecido pelas indicações autobiográficas
de M arx), pode-se dizer que a produção m a rx ian a m ais p ro ­
priam ente teórica desenvolveu-se ao longo de um itinerário
que vai d a análise da relação sociedade civil/E stado ao estudo
da anatom ia da sociedade civil m oderna ou sociedade b u r­
guesa. P a ra o objeto do presente trab alh o , o term o chave é
mais u m a vez, e com to d a evidência, o de sociedade civil. No
desenvolvimento da investigação de M arx, a virada decisiva
coincide certam ente com a introdução do conceito de capital
como relação social (e, p o rtan to , em geral, dos conceitos de
“ modo de prod u ção ” , “ relações de p ro d u ção ” , etc.), a qual
perm ite identificar a moderne bürgerliche Gesellschaft , com
base em sua e stru tu ra in tern a, como sociedade capitalista.
Pois bem : nos locais da o b ra m ad u ra onde reem erge o p ro ­
blem a do E stado dentro d a perspectiva in stitu íd a pela nova ou
renovada noção de sociedade civil, ele co n tin u a a se apresen­
ta r nos term os das prim eiras investigações: e não apenas no
plano lexical o problem a é ain d a form ulado p o r meio da dico­
tom ia juvenil bürgerliche G esellschaft/politischer Staat, m as
é ilustrado com argum entos retom ados quase literalm ente do
prim eiros escritos.5
T ais indicações textuais já seriam suficientes p a ra confir­
m ar a tese de continuidade n a colocação do problem a, em-

(5) E n tre os escritos que poderiam ser indicados, gostaria de recordar ape
o prim eiro ensaio de redação de A guerra civil na França, escrito p or M arx em inglês
em 1871, onde reaparecem freqüentem ente as argum entações e até mesmo as fó rm u ­
las lingüísticas já em pregadas n a K ritik de 1843 e na contem porânea Judenfrage. Por
exem plo, falando da C om una, ele afirm a: “T ratou-se da reapropriação pelo povo e
p a ra o povo da sua p rópria vida social” ; e, pouco depois: “ A C om una é a form a
política d a su a [das m assas p o p u laresl em ancipação social, substituindo a form a a rti­
ficial (...) da sociedade” (cito da tra d . i t ., K. M arx, Scritti sulla Comune d i Parigi,
R om a, S am onà e Savelli, 1971, p p . 120 e ss.). C o m p a r e - essa colocação,,não só do
ponto de vista lexical, com num erosas passagens quase id ênticas da K ritik de 1843,
m as tam bém do ponto de vista conceituai, com a fam osa conclusão da Judenfrage'.
“ Som ente q u ando o hom em reconhece e organiza as forces propres como forçás so­
ciais e, p o rtan to , não m antém sep arad a de si m esmo a força social na form a de força
política, som ente então se com pleta a em ancipação h u m a n a ” (cf. Scritti politici gio-
vanili, ed. L. F irpo, T urim , E inaudi, 1950, p. 385).
130 M IC H ELA N G ELO B O V ERO

b o ra tal continuidade se realize n u m a o b ra de ap ro fu n d a­


m ento e de correção até m esm o radical; e, de qu alq u er m odo,
autorizariam , no plano filológico, o cotejo em positivo entre as
prim eiras e as últim as páginas políticas de M arx .6 É verdade
que cotejos, análises e exegeses desse tipo a propósito do cor-
pu s d a o b ra de M arx já foram repetidos in finitas vezes, e,
n atu ralm en te, não ap lain aram as divergências entre os in tér­
pretes. M as o ponto que aqui im porta su b lin h ar ain d a é o se­
guinte: q u alq u er que seja a distância en tre o prim eiro e o úl­
tim o M arx que u m a ou o u tra análise consiga m ensurar, p e r­
m anece o fato de que o problem a político m oderno em erge
tam bém nas obras m ad u ras dentro do horizonte d a cisão entre
sociedade civil e E stado político, um horizonte geral que su ­
b o rd in a a com preensão d a teoria política m arx ian a em sua
especificidade à com preensão dos significados m ais gerais do
esquem a conceituai com um , em sua form a, a Hegel e a M arx.
Com isso, voltam os ao ponto de p artid a: o que se im põe é
um esforço cognoscitivo no sentido do “ m odelo hegelo-m ar-
xiano” (precisam ente a dicotom ia sociedade civil/E stado) em
sua e stru tu ra form al, que não pode ser apenas um pressuposto
das investigações sobre o concreto, m as deve ser em si m esm o
reconhecido, tal q ual é, com o problem a. E é esse problem a
que pretendem os esclarecer aqui através de um confronto com
o modelo ju sn atu ralista .
Q uase não tenho necessidade de reafirm ar que a cisão /
contraposição en tre sociedade e E stado, constituindo o es­
quem a conceituai com preensivo e resolutor em cujo seio se
concretizam , n a especificidade de suas articulações,- as con­
cepções divergentes de Hegel e de M arx, é considerada aqui

(6) D e q u alq u er m odo, é som ente através de u m cotejo analítico qu e se po


responder à questão de sab er se e de que m an eira a perspectiva m arx ian a m ad u ra
sobre o problem a político é diversa da concepção juvenil. A dedução de u m a im pos­
sibilidade de com paração en tre a teoria política juvenil e a m ad u ra, fu n d ad a a priori
n u m a suposta incom patibilidade de m odelos epistem ológicos, peca p or abstrativi-
dade e teoricism o. U m ta l raciocínio, com o D . Zolo observou em polêm ica com Al­
thusser, P oulantzas e G u astin i (cf. Síato socialista e libertà borghesi, B ári, L aterza,
1976, especialm ente p p. 115-21), leva a enrijecer a p ro blem ática política m arxiana
nos term os de u m a genérica sociologia das classes: desse m odo, ela não só resulta
em pobrecida, m as-tam bém se aproxim a de esquem as m ecanicistas vulgares, apesar
da sofisticação conceituai e lingüística com a qual é freqüentem ente apresentada.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 131

sim plesm ente como o aspecto geral form alm ente com um a
elas. E m o u tras palavras: o que será exposto nas páginas se­
guintes não quer, nem poderia, ser considerado como u m a
tentativa de interp retação global da filosofia política de Hegel
ou de M arx, ain d a que só em suas linhas m ais essenciais. No
m áxim o, p o d erá ser u tilizad a em posteriores elaborações como
um início, quase com o u m a introdução geral a u m a leitura
que deverá d a r u m a atenção inteiram ente diversa aos m uitos
pontos problem áticos em que se articulam — diferenciando-se
— as constelações de u m a e de o u tra teoria.
Duas antíteses fundamentais

T a l como o modelo jusnaturalista status naturae/socie-


tas civilis, também o modelo hegelo-marxiano bürgerliche
Gesellschaft /politischer Staat apresenta-se na figura de uma
oposição. Se examinarmos os atributos de cada elemento,
através dos quais se delineia, numa primeira aproximação, a
face de uma e de outra antinomia, tais atributos parecem in­
dicar uma correspondência de termo a termo entre os dois
modelos, no sentido de que ao status naturae do primeiro pa­
rece corresponder no segundo a bürgerliche Gesellschaft, e à
societas civilis, o politischer S ta a t . Com efeito, se societas civi­
lis no léxico jusnaturalista tem o significado de sociedade polí­
tica, esse significado é assumido no léxico hegeliano e mar-
xiano pelo Staat; e, se a função do status naturae no primeiro
modelo é a de indicar a condição não política contrária, a
mesma função no segundo modelo é assumida pela bürgerli­
che Gesellschaft. E isso ocorre apesar do fato de que a expres­
são bürgerliche Gesellschaft traduz literalmente a expressão
latina societas civilis e parece indicar, ao contrário, um nexo
cruzado entre o segundo termo do primeiro modelo e o pri­
meiro termo do segundo modelo. Mas a história da noção de
sociedade civil na filosofia política moderna' mostra precisa-

(1) Cf. N. Bobbio, “ II concetto di società civile in G ram sci” , in V ários au


res, Gramsci e la cultura contem porâneo, R om a, E ditori R iu niti, 1969, vol. I, p p.
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 133

m ente u m a série de transform ações de significado através das


quais essa noção term in a p o r sub stitu ir a de estado de n a tu ­
reza, pelo m enos no sentido de que o estado de n atu reza p refi­
gurava, n a perspectiva ju sn atu ralista originária, aquela socie­
dade econôm ica que se to m a p au latin am en te a sociedade civil
distinta do E stado.
E ssa substituição p ela bürgerliche Gesellschaft do status
naturae, e não do seu correspondente lingüístico societas civi-
lis, é encontrável — e tem um significado pró p rio — som ente
num nível m uito elevado de abstração: o que p erm ite com ­
p reen d er ta n to a em b rio n ária sociedade econôm ica em ergente
do estado de n atu reza, q u an to a sociedade civil do uso pós-
ju sn atu ralista , n a genérica determ inação negativa de m om en­
tos não políticos. Nesse nível, o processo de tran sfo rm ação do
m odelo ju sn a tu ra lista p a ra o m odelo hegelo-m arxiano parece
p oder ser resum ido em duas operações sim ples: rem oção do
estado de n a tu reza en q u an to instrum ento conceituai in ad e­
quado a rep resen tar o lu g ar “ aquém do político” , o espaço
não político em antítese ao q ual se define o m om ento po lítico ;2
e degradação d a sociedade civil de m om ento político e su ­
perior a m om ento não político e inferior. M as é de observar
que, sob essa luz, não aparece m ais n e n h u m a cesura radical
entre os dois m odelos. Com efeito, os term os d a dicotom ia
perm acem substancialm ente os m esm os: E stad o e não-Es-
tado; e a tran sfo rm ação do prim eiro no segundo m om ento
parece quase se resum ir a u m a troca de nom es, m arca sensível
d a historicização d a situação com preendida no prim eiro m o­
delo sob a categoria de estado de natu reza. M as R ousseau já
não havia explicitam ente criticado os iniciadores do ju sn atu -

75-100 (agora, com outros escritos do mesm o autor, no opúsculo sob o título G ramsci
e la concezione delia società civile, M ilão, Feltrinelli, 1976 [ed. brasileira: O con­
ceito de sociedade civil , Rio de Janeiro, G raal, 1982]); id ., “ Sulla nozione di società
civile” , in D e H om ine, 1968, n . 24-5; id ., Società civile” , no D izionario d ip o litica ,
ed. p or N. B obbio e N. M ateucci, T urim , U tet, 1976.
(2) Digo “ rem oção” , e não “ supressão” , p o rque vim os que em Hegel a no
de estado de n atu reza é recu p erad a no E spírito subjetivo, a fim de indicar “ o com eço
externo e fenom ênico dos E stad o s” (cf. supra). E a m esm a noção, de resto, é tam bém
reintroduzida no E spírito objetivo, p a ra além do E stado, a fim de indicar a n atu reza
das relações internacionais (cf. FD 333); sobre o assunto, cf. N. Bobbio, “ H egel e il
giusnaturalism o” , cit., p p . 400-1.
134 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

ralism o m oderno p o r terem confundido o hom em de n atu reza


com o hom em d a société civile, p ro d u to histórico d a civili­
zação? 3
A p ró p ria atribuição do nom e bürgerliche Gesellschaft
ao estado de n a tu reza historicizado, p o rtan to , não parece as­
sum ir um significado excessivam ente revolucionário, m as con­
figurar* se com o a resu ltan te de duas linhas de pensam ento
anteriores: a de Locke-K ant, n a qual o estado n a tu ra l é já
u m a espécie desocietas; e a de R ousseau-Ferguson, n a q ual a
sociedade civil é organização coletiva que com preende o agir
econômico dos indivíduos.4 E isso p a ra não falar de autores
m enores, como A. L. Schlözere A. F euerbach, em cujas o b ras5
aparece de m odo explícito, ainda que m esclada com esquem as
conceituais extraídos d a escola do direito n a tu ra l, a distinção
que será hegeliana, e depois m arxiana, en tre bürgerliche
Gesellschaft e Staat. Assim , a diferente in terp retação do m o­
m ento não político, e d a relação desse com o m om ento polí­
tico, que se expressa através do esquem a sociedade civil/
E stado com relação ao esquem a estado n atu ra l/so cie d a d e
civil, poderia tam bém ser considerada com o a ú ltim a das
grandes variantes que podem ser reconhecidas no desenvolvi­
m ento da teoria política m oderna in a u g u ra d a pelo ju sn atu ra-
lismo. N um a tal perspectiva, assum iria destaque não ta n to a
ligação H egel-M arx, indicada pela form a do esquem a concei­
tuai socied ad e/E stad o , m as sim aquela m u d a n ça de direção
pela qual se pode dizer que o modelo m arxiano é a im agem
especularm ente invertida do modelo hegeliano, e que, por
isso, ele in au g u ra u m a nova filosofia d a história — do E stado
à sociedade sem E stad o — , enquanto em H egel se conclui a
precedente — aliás, as duas precedentes, a aristotélica e a
hobbesiana, am bas pondo o E stado como m eta final, m as a
prim eira p artin d o d a fam ília, e a segunda, d a sociedade dos
conflitos interindividuais. Já disse que não preten d o a te n u a r a
relevância daq u ela inversão, m as sim sugerir a possibilidade

(3) Cf. J.-J. R ousseau, Discurso sobre a desigualdade (ed. italian a, in Scritti
politici, ed. p or P. A latri, T u rim , U tet, 1970, p . 288).
(4) Cf. N. Bobbio, G ramsci e la concezione delia società civile, cit., p p . 17-27.
(5) Respectivam ente, Allgemeines Staatsrecht, 1793, e A ntihobbes, 1798. Cf.
N. Bobbio, “ Società civile” , n o Dizionario dipolítica, cit., § III.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 135

de estudá-la com base n a identidade form al en tre o esquem a


conceituai hegeliano e o m arxiano. P a ra quem escreve, é in ­
dubitável que um a v irada decisiva n a evolução d a filosofia po­
lítica m od ern a deve ser b u scad a n a fund ação do m odelo so­
ciedade civ il/E stado em si m esm o, n a m ed id a em que ele
reconstrói de m odo novo, e absolutam ente diverso com relação
aos m odos perm itidos pelo m odelo teórico dom inante nos dois
séculos anteriores, a e stru tu ra com plexa e c o n trad itó ria da
form ação social m oderna. Se isso é verdade, subsiste en tre o
m odelo ju sn a tu ra lista e o m odelo hegelo-m arxiano, p a ra além
de to d a continuidade genérica — ou, se quiserm os, no interior
do cam po de continuidade que pode ser reconstruído» e não
sem significação, n u m a visão de am plo alcance — , u m a espe­
cífica e n ítid a fratu ra.
E ssa fra tu ra com eça a se delinear q u an d o se retom a,
num nível de m enor abstração , o exam e d a noção de bürger-
liche Gesellschaft em relação aos elem entos do outro m odelo.
Se é verdade, segundo as considerações precedentes, que a
bürgerliche Gesellschaft assum e u m a função correspondente
à que tin h a o status naturae, o argum ento d a p u ra e sim ples
passagem de função revela-se insuficiente q u an d o se consi­
dera que, em sua fisionom ia de conjunto, a bürgerliche G e­
sellschaft aproxim a-se não pouco da societas civilis : com isso,
revela-se que a correspondência lingüística não é ab so lu ta­
m ente u m resíduo privado de significação. O tra ta m e n to h e­
geliano d a sociedade civil tem , sob m uitos aspectos, u m a li­
gação evidente com o tratam en to ju sn a tu ra lista do m esm o
conceito: e, de resto, Hegel se refere tam bém a essa ú ltim a no
mesm o lu g ar onde afirm a que “ a criação d a sociedade civil
pertence ao m undo m oderno” .6 No que se refere a M arx, não
é p o r acaso que ele, invocando explicitam ente a noção hege-
liana de bürgerliche Gesellschaft, indica a su a m atriz no con­
ceito análogo “ dos ingleses e dos franceses do sécu lo X V III” . 7
A bürgerliche Gesellschaft, portan to , rem ete não a apenas
um , m as a am bos os elem entos do m odelo precedente; e, ao

(6) F D 1 8 2 Z .
(7) “ Prefácio” de 1859 a Para a crítica da economia política , ed. brasileira, in
“ O s P ensadores” , São Paulo, A bril C ultu ral, vol. XXXV, 1974, p . 135.
136 M ICH ELA N G ELO B O V ERO

m esm o tem po, não é redutível a nenhum dos dois, nem é pos­
sível indicar um vínculo privilegiado m ais com um do que com
outro. Com efeito, os conceitos referidos antes com o seus a n te ­
cedentes “ ilustres” — n a lin h a do pensam ento Locke-K ant, e
n aquela R ousseau-Ferguson — são form ulações particulares
não de um m esm o elem ento, m as dos dois elem entos opostos
do m odelo ju sn atu ralista; e, po r outro lado, o novo conceito
de bürgerliche Gesellschaft pode apresentar-se como síntese
de am bos à m edida que, de cada um deles, é retirad o o que
fazia do m esm o, n a perspectiva do m odelo ju sn atu ralista , a
antítese do outro, ou seja, a determ inação originária, a p ro ­
priedade essencial: à diferença da sociedade civil de Rous-
seau-Ferguson, o novo conceito de bürgerliche Gesellschaft
indica u m a condição social tão não-política q u an to a socie­
dade n a tu ra l de Locke-K ant; e, à diferença dessa ú ltim a, in­
dica u m a condição social não provisória ou an terio r à condi­
ção civil, do mesm o m odo como a sociedade civil de R ousseau-
Ferguson. Em ou tras palavras: n a lógica do segundo m odelo,
a sociedade civil, p o r um lado, é não-E stado e não é sociedade
política, de m odo que a m atriz da noção de bürgerliche Ge­
sellschaft não é encontrável unilateralm ente no conceito an á ­
logo “ dos ingleses e franceses do século X V III” ; p o r outro
lado, o não-E stado é sociedade civil e não é sociedade n a tu ra l,
de m odo que a m atriz d a noção de bürgerliche Gesellschaft
não é encontrável u n ilateralm ente naquele conceito de status
naturae que tin h a o m esm o valor de posição no interior do
modelo ju sn atu ralista . U m resultado em p a rte idêntico e em
p arte com plem entar pode ser alcançado se tom am os com o p ri­
m eiro term o de com paração a noção pré-hegeliana de socie­
dade civil e a cotejam os com os dois elem entos do m odelo pos­
terior: en q u an to aq u ela indica u m a coletividade organizada
politicam ente e, p o rtan to , coincide com o m om ento do E s­
tado, n a lógica desse últim o a sociedade civil é não-E stado, e
não é sociedade política, e, reciprocam ente, a sociedade polí­
tica é Estado, e não é sociedade civil.
R esum indo de m odo esquem ático a com plexa posição da
sociedade civil, term o-chave p a ra com preender a lógica da
transform ação do m odelo ju sn atu ralista no m odelo hegelo-
m arxiano, en q u an to term o com um , pode-se dizer que: com o
prim eiro elem ento do segundo modelo, ela contém de certo
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 137

m odo, reduzidos à u n id ad e, os dois elem entos do prim eiro


modelo; do m esm o m odo que, como segundo elem ento do p ri­
m eiro modelo, ela contém tam bém em u n id ad e os que virão a
ser os dois elem entos do segundo modelo. P a ra o b ter u m a cor­
re ta representação visual d a relação en tre os dois m odelos, os
elem entos n ão deverão se dispor n a seguinte figura:

status naturae societas civilis


bürgerliche Gesellschaft politischer Staat,

que sugere a idéia de u m a correspondência term o a term o,


m as sim n esta o u tra figura:

status naturae societas civilis


bürgerlicher Gesellschaft politischer S ta a t ,

a qual, além de ilu strar a posição da sociedade civil acim a


considerada, sugere tam b ém a idéia: a) de um avanço no p o n ­
to de p a rtid a do segundo m odelo, no qual, com efeito, a bür­
gerliche Gesellschaft não indica u m a condição de vida p rática
originária ou de q u alq u er m odo anterior, com o o status n a tu ­
rae, m as com preende u m a p rim eira dim ensão d a condição
presente, que no outro m odelo resum e-se in teiram ente n a ca­
tegoria d a societas civilis; b) de um geral deslocam ento de
fase, em virtude do q ual 1) a bürgerliche Gesellschaft afasta-
se da sociedade civil na m esm a proporção em que se aproxim a
d a societas civilis e 2) aproxim a-se dela n a m esm a proporção
em que o politischer Staat se afasta.
Se procederm os a u m cotejo global com base nesse es­
quem a, encontrarem os que está ausente, em c ad a um dos dois
m om entos, o elem ento que aparece no outro com o term o
autônom o e distinto d a sociedade civil: no prim eiro modelo,
está ausente o E stado; no segundo, o estado de n atureza; m as
não de m odo que desaparecem tam bém a função ou as carac­
terísticas essenciais dos m esm os. Disso resu lta que a diferença
p ro fu n d a entre os dois m odelos reside no m odo e no lu g ar em
que um e outro indicam a fratu ra, a cisão fund am en tal no
cam po d a p rática. Se am bos representam o cam po da p rática
como cindido em m om entos contrapostos, os term os e a figura
da contraposição são diversos. E é isso que perm ite cap tar,
138 M ICH ELA N G ELO BO V ERO

p a ra cad a um deles, o significado m ais específico e essencial:


se o m odelo ju sn a tu ra lista institui a possibilidade de p en sar o
indivíduo independente fora d a política, rom pendo assim o
bim ilenar dom ínio d a tradição clássica aristotélica, com base
na qual o hom em zòon politikòn resulta indefinível fora de sua
relação natural-necessária com o coletivo, trad ição que sobre­
vive ain d a no indivíduo grociano definido p o r um n a tu ra l
appetitus societatis, se esse é o caso do m odelo ju s n a tu ra ­
lista, o m odelo hegelo-m arxiano institui a possibilidade de
p ensar o político fora do social e, reciprocam ente, o social fora
do político, dissolvendo o que sobrevive d a form a conceituai
clássica n a tradição ju sn atu ralista , p a ra a qual to d a u nião e
organização social p len a apresenta de m odo ain d a não sepa­
rado as instâncias da socialidade e da p o lítica.8 E m o u tras p a ­
lavras: en q u an to o m odelo ju sn atu ralista coloca como relação
fund am en tal aquela que se dá entre indivíduo e coletivo, o
modelo hegelo-m arxiano coloca-a entre duas figuras do cole­
tivo, e reconhece n a recíproca separação e relativa autonom ia
do social e do político e e stru tu ra fu n d am en tal d a form ação
social m oderna. V ejam os m elhor como isso ocorre.

(8) E n ten d o a q ü i p o r “ sociabilidade” u m a relação que ab a rc a to d a a m


tidão de indivíduos: é nesse sentido que falam os de organização social plen a . E ssa
especificação é necessária, já que os ju sn atu ralistas reconheciam a existência desocie-
tates naturales ou grupos hum anos m enores, como a fam ília, no interior do estado de
natureza, p a ra as quais, evidentem ente, vale a distinção e n tre socialidade e politici-
dade. C f., p o r exem plo, K an t n a M etafísica dos costum es: “O estado não-jurídico,
ou seja, aquele no qual não h á nen h u m a ju stiça distributiva, cham a-se estado natural
(status naturalis). O que lhe é contraposto, e que poderia ser cham ado de estado a rti­
ficial (status artificialis), n ão é ( ...) o estado social, m as o estado civil (status civilis),
(...) porque tam bém no estado de natu reza podem existir sociedades legítim as (p o r
exem plo, sociedade conjugal, p a tern a, dom éstica em geral e sim ilares)” (cito de
Scrittipolitici, T urim , U tet, 1956, p p . 492-93). Q u an d o , no texto, falam os de societas
naturalis, não nos referim os a essas societates m inores, m as sim àquelas rep resen ta­
ções do estado de natu reza — sobretudo de Locke e de K an t — que podem fazer
pensar n u m a espécie de societas entre todos os sujeitos n atu rais como indivíduos
singulares, n a m edida em que elas desenvolvem como inerentes à condição n a tu ra l os
instintos fundam entais do direito privado, ou do direito que regula as relações en tre
privados, ou seja, essencialm ente propriedade e contrato. M as que não se tra ta de
um a sociedade pro p riam en te d ita, en q u an to tal d istin ta do E stado, é o que p reten d e­
mos m o strar aqui.
Para a distinção
entre sociedade e Estado

A bürgerliche Gesellschaft se ap resenta, antes de m ais


nada', com o sociedade cindida em seus m em bros individuais,
entre os quais se processam relações — contatos e conflitos —
ditadas pelo interesse pessoal. Sob esse prim eiro aspecto, ela
m ostra u m a clara analogia com as form ulações m ais m ad u ras
d a societas naturalis; m as, como a societas civilis, ela é socie­
dade consolidada e necessária. O que n a bürgerliche Gesel­
lschaft aparece acrescentado com relação ao hom ólogo p ri­
m eiro term o do m odelo ju sn a tu ra lista é a necessidade d a rela­
ção dos indivíduos n a e stru tu ra coletiva e, p o rta n to , a solidez
do vínculo social em virtude do qual ela não se apresen ta m ais
como condição p o r causa de sua n atu reza instável e provisó­
ria: que é, precisam ente, aquilo que o segundo term o do m o­
delo ju sn a tu ra lista acrescenta ao seu correlativo prim eiro te r­
mo. P orém , a societas naturalis atinge a condição de sociali-
dade com pleta e p erfeita, transform ando-se em societas civilis
sive politica, e som ente en q u an to sociedade política ela é
união ou socialidade g a ra n tid a e fu n d a d a sobre bases sólidas;
a bürgerliche Gesellschaft, ao contrário, apresenta-se como
m om ento de sociabilidade com pleta em sua separação e con­
traposição com relação ao politischer Staat.
As razões d a diferença devem ser buscad as, antes de m ais
n ad a, no tipo de lógica global a que cad a m odelo obedece.
D entro d a lógica do m odelo ju sn atu ralista, o status naturae,
em bora possa ser concebido como um a p rim eira form a de so­
cietas■ , não pode, ao contrário, deixar de ap re se n ta r as carac-
140 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

terísticas de u m a condição instável e p recária, n a m ed id a em


que o tecido das relações sociais “ n a tu ra is” é fu n d ad o in teira­
m ente no arb ítrio dos indivíduos. Os indivíduos, p o r n atu reza
livre e iguais um em face do outro, nenhum dos dois reconhece
no outro um superior n a tu ra l, aparecem em condições de — e,
pela p ró p ria n a tu reza de seus im pulsos e interesses exclusivos,
parecem te r a tendência a — rom per ou subverter a c ad a m o­
m ento a tra m a social, anulando as condições de u m a coexis­
tência possível com base apenas nos ditam es d a re ta razão, ou
da lei n a tu ra l, e transform ando assim o estado de n a tu reza
num estado de g uerra. Desse m odo, pode-se com preender a
razão p e la qual, d entro d a perspectiva in stitu íd a pelo m odelo
ju sn atu ralista , a sociedade não tem o u tra fig u ra real além da
figura política, fora d a q ual não se dá p ro p riam en te vínculo
social; e a sociedade civil é, ao m esm o tem po, sociedade e E s­
tado: d adas essas condições iniciais, u m a sociedade p ro p ria ­
m ente d ita , u m a un ião solidária só pode subsistir onde, e em
virtude do fato de, os indivíduos aceitarem su b o rd in ar o seu
arbítrio n a tu ra l, de fato ilim itado, a u m a precisa n orm a co­
m um (o direito “ igual” n a form a da lei positiva) em an a d a de
um p oder im parcial (o E stado como árb itro d a ju stiça) e su­
perior (o E stad o com o executor e garante de leis e ju stiç a a tra ­
vés do m onopólio d a força). É esse o resultado necessário do
ponto de p a rtid a ju sn atu ralista: u m a necessidade que leva a
reconhecer o p roblem a fu ndam ental d a vida social n a co n tra ­
posição en tre indivíduo e E stado, nas form as de integração do
indivíduo no coletivo e de com posição do conflito e n tre lib er­
dade e poder.
N a perspectiva do m odelo hegelo-m arxiano, o cam po das
relações e do contraste entre indivíduo independente é in d i­
cado n a bürgerliche Gesellschaft , que nesse sentido rep re­
senta o análogo do status naturae. M as, se a bürgerliche Ge­
sellschaft se m ostra tam bém ela como esfera d a cisão, do a r­
bítrio e do acaso, não se resum e porém a um conjunto de voli­
ções individuais e de relações precárias. P a ra Hegel, “ essa vi­
são atom ista e a b stra ta desaparece já (...) n a sociedade civil,
onde o indivíduo aparece apenas como com ponente de u m a
universalidade” .1 E m b o ra nesse contexto H egel se refira prova-

(1) F D 3 0 3 A .
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D E R N A 141

velm ente ao vínculo do indivíduo com o estam ento ou com as


associações civis de n a tu reza corporativa, é possível estender o
significado d a afirm ação à relação do indivíduo com a e stru ­
tu ra global da sociedade civil: a pessoa concreta, sujeito de
carecim entos e interesses privados, e au to r p o r livre escolha de
sua p ró p ria profissão, coloca-se como form alm ente in d ep en ­
dente não fora (e antes), m as sim dentro d a sociedade; e a so­
ciedade não é sim plesm ente a som a das caprichosas relações
individuais, o cam po d a referência geral recíproca d ita d a por
im pulsos e volições subjetivas; ao contrário, a relação recí­
proca dos indivíduos, com a porção de arb itraried ad e e aci-
dentalidade que contém , é o cam inho através do q u al se re a ­
liza necessariam ente, e de m odo contraditório, “ um sistem a
de dependência o n ilateral” , de tal m odo que a subsistência, o
bem -estar e a p ró p ria liberdade-independência form al de cad a
indivíduo “ som ente em ta l conexão são reais e assegurados” .2
E m o u tras palavras, as relações sociais não são fu n d ad as ap e­
nas no arb ítrio dos sujeitos e n a particu larid ad e das ações in ­
dividuais, com o nas representações d a societas naturalis, onde
são apenas relações intersubjetivas, tecido de relações sem pre
constantem ente desfeito e refeito, e não relações sociais, te­
cido conectivo. A sociedade civil hegeliana não tem som ente
esse princípio, m as se fu n d a tam bém no princípio oposto d a
universalidade, n a q ual todos os indivíduos, m esm o em sua
independência form al, são necessariam ente vinculados. T an to
que essa universalidade, n a sociedade civil hegeliana, m ostra-
se “ com o fu n d am en to e form a necessária d a p a rtic u la ri­
d ad e” ;3 n a concepção ju sn atu ralista , ao contrário, som ente a
sociedade civil-política aparece como efetiva universitas e, a n ­
tes dela, n a d a m ais h á que u m a m ultitudo.
Não diversam ente, M arx sublinha que “ a m ú tu a e geral
dependência dos indivíduos, reciprocam ente indiferentes,
constitui o seu nexo social” .4 T al como nas representações da
societas naturalis, assim n a realidade d a sociedade civil m o­
derna ou sociedade bu rg u esa “ os indivíduos parecem e n tra r
em contato recíproco livre e independente (...) e tro car nessa

(2) FD 183.
(3) FD 184.
(4) G rundrisse, p . 74.
142 M ICH ELA N G ELO B O V ERO

liberdade; m as eles parecem tais som ente a quem a b strai (...)


as condições de existência nas quais esses indivíduos en tram
em co n traste” .5 E , tal com o p a ra Hegel, os m em bros d a so­
ciedade civil podem atin g ir seus fins particu lares “ som ente n a
m edida em que eles m esm os determ inam de m odo universal o
seu saber, q uerer e fazer, e se constituem com o anéis d a c a ­
deia dessa conexão” ;6 assim , p a ra M arx, no processo de tro ca
generalizada que constitui a prim eira dim ensão d a to talidade
social, os indivíduos em sua p articu larid ad e e liberdade são
obrigados a se a d eq u a r a condições objetivas e vinculantes.
E m b o ra as relações sociais apareçam com o b a sta n te fragm en­
tárias e dispersas, n u m m ovim ento que “ p a rte de pontos infi­
n itam ente diversos e volta a pontos in finitam ente diversos” ,7
e “ em bora os m om entos singulares desse m ovim ento prove­
n h am d a vontade consciente e das finalidades p articu lares dos
indivíduos, a totalid ad e do processo se ap resen ta com o u m a
conexão objetiva que nasce natu ralm en te, que é certam ente o
resultado d a interação recíproca dos indivíduos conscientes,
m as não reside n a consciência deles nem é subsum ida eles
en q u an to to talid ad e” .8 D e m odo absolutam ente sim ilar, H e­
gel su b lin h ara que o processo de form ação d a conexão u n i­
versal e de adequação dos indivíduos à universalidade “ não
reside n a consciência desses com ponentes d a sociedade civil
en quanto ta is” .9 E , assim com o Hegel a firm ara que a univer­
salidade se dem onstra, em face d a p articu larid ad e dos fins
individuais, “ en q u an to potência, acim a dessa [p articu lari­
d a d e]” ,10 do m esm o m odo M arx reafirm a: “ a colisão indivi­
dual recíproca deles [dos sujeitos conscientes] p roduz u m p o ­
der social estran h o que os subordina; a su a ação recíproca é
um processo e u m a força independente deles” . 11 D e m odo in ­
teiram ente conseqüente, M arx assim conclui: “ a relação so­
cial dos indivíduos en tre si como p oder que se fez autônom o

(5) Ib id ., p. 81.
(6) F D 187.
(7) Grundrisse, p . 101.
(8) Ib id ., p. 111.
(9) FD 187.
(10) F D 184"
(11) Grundrisse, p . 111.
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 143

acim a dos indivíduos — seja ela rep resen tad a com o força n a ­
tu ral, com o acaso ou em q u alq u er o u tra fo rm a — é um resul­
tado necessário do fato de que o ponto de p a rtid a não é o in d i­
víduo social livre” .12 Sob esse aspecto, p o rta n to , a bürgerliche
Gesellschaft resu lta oposta à societas naturalis tal com o essa
se ap resenta n a perspectiva ju sn atu ralista: a vontade livre, o
arbítrio dos m uitos indivíduos, quando esses são considerados
como sujeitos concretos, revela-se ela m esm a com o algo neces­
sário, ain d a que se tra te de u m a necessidade que se constitui
p o r meio dos m uitos atos de liberdade form al.
Ju n tam en te com a “ visão atom ista e a b s tra ta ” (Hegel),
que não reconhece a força d a “ conexão objetiva” (M arx), tal
como essa se desenvolve n atu ralm en te a p a rtir do entrecruza-
m ento das relações intersubjetivas, desaparece necessaria­
m ente — n a passagem do prim eiro p a ra o segundo m odelo —
aquela perspectiva subjetivista e voluntarista em cujo interior
a união social parece derivar apenas do livre concurso das von­
tades individuais. Com base n a lógica do m odelo ju s n a tu ra ­
lista, a sociedade p ro p riam en te dita se configura como fruto
de um co n trato coletivo, p o r meio do qual c a d a indivíduo re ­
nuncia ao seu isolam ento “ n a tu ra l” , ao seu self-governm ent
ou p oder soberano e exclusivo sobre si, p a ra subm eter-se com
os outros a u m governm ent ou poder com um que, g aran tin d o
a coexistêcia dos direitos de cad a um com os direitos de todos,
assegura a p ró p ria form a d a sociabilidade. Vê-se aqui m ais de
de perto, que, no m odelo ju sn atu ralista , sociedade e E stado
coincidem , no sentido de se incluírem no m esm o “ espaço” ou
lugar lógico, ou seja, do lado do segundo m em bro d a dicoto­
m ia fund am en tal: fora do E stad o , d a união política, não h á
propriam ente sociedade, ou seja, a sociedade do estado n a ­
tu ral só pode ser considerada sociedade de m odo im próprio.
Poder-se-ia objetar que a concepção p red o m in an te n a es­
cola do direito n a tu ra l considera necessários à constituição do

(12) Ib id . ; a m aiúscula do “ Livre” é de M arx. D e m odo não dessem elhan


Hegel — falando da libertação do hom em civil d a rígida necessidade n a tu ra l do care-
cim ento — sublinha que “ essa libertação é form al (...). A tendência do estado social à
m ultiplicação e especificação indeterm inadas dos carecim entos, dos meios e das fru i­
ções (...) é um aum ento precisam ente infinito da dependência e d a necessid ade”
(F D 195).
144 M IC H ELA N G ELO B O V ERO

E stado não som ente um , m as dois contratos distintos: o p ri­


m eiro, recolhendo os elem entos individuais e dispersos da
m ultitudo n a universitas de um povo, d á lu g ar à societas e, por
isso, é cham ado d q pactum societatis; o segundo, cham ado de
pactum subiectionis, já que institui o p o d er com um e, com
ele, a relação de subordinação dos governados aos governan­
tes, d á lugar ao E stado. Com base nesse esquem a, parece que
a sociedade adqu ire u m a figura independente e d o tad a de al­
gum a consistência p ró p ria em face do E stad o . Pode-se buscar
u m a confirm ação disso precisam ente n a teo ria que, em p ri­
m eiro lu g ar ou m ais claram ente do que as outras, pode fazer
p en sar em u m a societas no estado de n a tu reza — a de Locke.
Aliás, ele não se detém explicitam ente sobre o p roblem a do
m ecanism o co n tratu al pelo qual se chega à civil or political
society, q uando afirm a que a dissolução do governo, ou seja,
da relação de subordinação, não im plica im ed iatam en te a dis­
solução d a sociedade. M as quem quisesse concluir a p a rtir
disso que, n u m a tal perspectiva, a societas resu ltan te do p ri­
m eiro pacto não ain d a político tem um p róprio princípio cons­
titutivo, sólido em si m esm o, distinto e independente do p rin ­
cípio d a un id ad e política, não en co n traria confirm ação nos
textos. A com m unis opinio do duplo contrato foi consolidada
e quase codificada p o r Pufendorf. Segundo ele, com a p ri­
m eira convenção, a que tran sfo rm a u m a m ultidão em um
povo, ou seja, vincula os indivíduos em sociedade, os “ futuros
cidadãos” m anifestam sim plesm ente “ a vontade de se unirem
em associação p e rp é tu a e de proverem com deliberações e o r­
dens com uns sua p ró p ria salvação e segurança” ; 13 e som ente
com o segundo p acto, o que institui o governo e, com ele, a
obrigação de obediência dos cidadãos, é fo rm ad a a sociedade
p ropriam ente política, o Estado. M as disso resu lta claram ente
que o pactum societatis não institui u m a sociedade apolítica,
u m a realidade q ualitativam ente diversa d a sociedade política,
m as apenas u m a sociedade política im perfeita e deficiente;
tan to é verdade que P ufendorf vê nessa associação sim ples­

(13) S. von Pufendorf, D e iure naturae et g en tiu m , V II, 2. C ito d a antolog


de escritos de Pufendorf, Principi d i diritto naturale, ed. p or N. Bobbio, T urim ,
P aravia, 1948, p . 164.
SO C IED A D E E E S T A D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D E R N A 145

m ente aq u ela que “ antecipa, p o r assim dizer, os prim eiros e


m ais ru d im en tares elem entos de um E sta d o ” .14 E m sum a, o
objetivo do prim eiro co n trato continua a ser a criação d a so­
ciedade política, a união das vontades individuais e p articu la­
res n a vontade ú n ica do corpo social; só que ela resta u m a
união p u ram en te intencional enqu an to fa lta r aqu ela união
das forças que deve to m a r eficaz a vontade com um .
P o rtan to , do p actum societatis, e n q u an to distinto do
pactum subiectionis e an terio r a esse, decorre u m a societas à
qual falta o p o d er p a ra se to m a r efetiva. M as que se tra ta de
u m a sociedade política, ain d a que incom pleta, é algo confir­
m ado de m odo literal p recisam ente p o r Locke, no local a que
antes nos referim os: “ Q uem quiser falar com certa clareza da
dissolução do govem o deve, em prim eiro lu g ar, distinguir en ­
tre dissolução d a sociedade e dissolução do govem o. O que
constitui a com unidade, e leva os hom ens do livre estado de
n atu reza p a ra u m a só sociedade política, é o acordo que cad a
um faz com os outros p a ra se incorporar com eles e deliberar
como um só corpo e, desse modo, form ar um a única sociedade
política distinta. O m odo h ab itu al, e quase o único, pelo qual
essa união se dissolve é a invasão de u m a força estrangeira
( ...) ” . 15 Ao contrário, Locke entende que h á m uitos m odos
pelos quais o govem o pode se dissolver, sem que isso signifi­
que a dissolução do vínculo social. M as vam os ler um pouco
adiante: “ (...) q uando o govem o é dissolvido, o povo tem a
liberdade de prover a si m esm o com a instituição de um novo
legislativo (...) p orque a sociedade não pode ja m a is, p o r culpa
de outros, p e rd e r o direito originário e n a tu ra l que tem de se
conservar, o que só p ode fa zer com um legislativo e com um a
equânim e e im parcial execução das leis feitas p o r ele”. 16 M ais
u m a vez e do m odo m ais claro, a sociedade é concebida so­
m ente sub specie politica; ou se pensa que, fo ra do E stado, a
sociedade não tem eficiência e se dissolve. E reto m a-se ao es­
tado de n atu reza, en q u an to um estado que — não sendo polí­

(14) Ibid. C onseqüentem ente, P ufendorf fala do p a ctu m subiectionis com o de


um a sim ples culm inação do p a ctu m societatis: “ D epois desse [segundo] pacto, o
E stado está finalm ente perfeito” (ib id . , p . 165).
(15) J. Locke, Two Treatises o f Government, II, § 2 1 1 .
(16) I b id . , II, § 220.
146 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

tico — exclui u m vínculo social p ro p riam en te dito. P o r isso,


na perspectiva que o m odelo ju sn atu ralista in stitui, a p a rtir d a
pluralidade originária de sujeitos individuais livres, o p ro ­
blem a d a criação de u m a sociedade, ou seja, d a conexão dos
indivíduos, é im ediatam ente u m pro b lem a político, resol­
vendo-se com a instituição d a vontade soberana, única a p o ­
der su p erar o arb ítrio . R esum indo, n aq u ela perspectiva: 1) o
sujeito livre é posto com o anterior à sociedade e essa deriva
dele com o u m a su a livre criação; 2) o vínculo social é subor­
dinado à un id ad e política, e essa o to rn a efetivo.
N a perspectiva que se expressa p o r m eio do m odelo he-
gelo-m arxiano, a liberd ad e dos sujeitos n ão é ela m esm a o
princípio e a origem d a sociabilidade; u m a sociedade über-
haupt não é efetivam ente tal, não subsiste com o conexão em si
necessária se depen d er exclusivam ente, com o a societas civilis
ju sn atu ralista , de um ato ain d a que coletivo e concorde de
vontades e de se ap o iar apenas no consenso expresso de seus
m em bros. D o m esm o m odo, o status naturae não pode ap re­
sen tar n en h u m a fo rm a de sociabilidade cap az de se m an ter, e
isso não tan to p o r cau sa do potencial ou efetivo desacordo dos
sujeitos singulares — pois, ao contrário, oposições e con tras­
tes caracterizam tam b ém as relações intersubjetivas com as
quais é tecida a bürgerliche Gesellschaft, e, em geral, a form a
da cisão to rn a a face d a bürgerliche Gesellschaft sem elhante à
do status naturae — , m as antes p o r cau sa d a ausência de
q u alq u er vínculo objetivo, no lugar do q u al é reconhecida
como única form a eficaz o arbítrio subjetivo, que é p o r sua
n a tu reza absoluto antes m esm o de ser dissolutor. A bürgerli­
che Gesellschaft, p rim eira form a d a coletividade, não é p o r­
ta n to in stitu íd a p o r um deliberado ato associativo, que não a
to rn a ria m ais “ social” do que o era o status naturae n a p ers­
pectiva ju sn atu ralista ; do m esm o m odo com o, do p o n to de
vista do m odelo hegelo-m arxiano, não aparece com o m ais
“ social” a societatis civilis fruto de um contrato: u m e o u tra
não conhecem vínculos objetivos. M as, ao contrário, ela se
constitui com o ta l in dependentem ente de (e em contraste com)
as intenções conscientes dos seus m em bros individuais, sem ­
pre voltadas p a ra finalidades particulares: e, precisam ente
po r isso, não-deve esp erar u m a ilusória e ineficaz fund ação no
concurso de vontades individuais livres, tal com o o status na-
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 147

turae p a ra se tra d u z ir em societas civilis. A bürgerliche G e­


sellschaft, em sum a, já é naturalm ente u m a sociedade civil,
u m a conexão efetiva e geral dos indivíduos singulares, inde­
pendentem ente do seu q u erer subjetivo e do seu consenso m a ­
nifesto — u m consenso que, reduzindo as m u itas vontades
p articulares a u m a única vontade universal, tran sfo rm aria a
sociedade civil em sociedade política. E m o u tras palavras, a
sociedade civil do m odelo hegelo-m arxiano cobre a áre a de
u m a p rim eira e fu n d am en tal dim ensão d a sociedade m oder­
na, em cujo interior os sujeitos singulares, to m ad o s livres
como indivíduos autônom os graças à dissolução dos antigos
vínculos de dependência pessoal, ligam -se necessariam ente
entre si, p a ra aquém d a dim ensão política, com base em seus
próprios carecim entos, interesses e finalidades privadas. Nesse
sentido, a bürgerliche Gesellschaft é “ p o r n a tu re z a ” , e não
“ por convenção” com o a.societas civilis, a q u al, p o r isso, a p a ­
recia com o u m a instituição artificial. Bem entendido, a e stru ­
tu ra d a relação social necessária, a sua “ a n ato m ia ” , será in ­
te rp re ta d a p o r Hegel e p o r M arx de m odos d iferen tes.17

(17) A análise das diferenças transcende os objetivos a que m e propus. M


u m a exigência de clareza no que se refere à arg um entação desenvolvida até aq u i
sugere que façam os um a m enção à questão — u m a m enção sim plificadora em seu
esquem atism o e, de q u alq u er m odo, bem distante de to car em todos os pontos d a
questão.
P a ra Hegel, a relação social necessária tem su a raiz m aterial nos carecim entos
sensíveis, “ esse âm bito natural d a existência h u m a n a ” ( E stética , tra d . it., T urim ,
E inaudi, 1967, p . 114): “ carecim entos que ligam , que concatenam ” (verknüpfende
Bedürfnisse ) é com o são cham ados em F D 181, n a m edida em que a necessidade
com o dependência d a n atu reza se tran sfo rm a em dependência e necessidade social.
Pode-se ver aqui u m a reto m ad a do tem a d a infirm itas n a tu ra l que leva o hom em à
união com os outros hom ens. M as, n a idade m oderna, a necessidade n a tu ra l a tu a
sobre sujeitos fo rm alm ente independentes (as pessoas “ p riv ad as” ), os quais, n a de­
pendência recíproca, ou necessidade de se referirem u ns aos outros p a ra a satisfação
dos próprios carecim entos, educam (o u refinam ) sua n atu re z a e form am (ou culti­
vam ) a su a p ró p ria liberdade form al. É o m undo da c u ltu ra ou civilização (B ildung),
que im plica p o r si a expansão das faculdades e aptidões d a espécie, bem com o do
indivíduo singular, e se realiza p o r meio d a m ultiplicação dos carecim entos, d a de­
com posição do carecim ento concreto em m uitos carecim entos abstratos, a m oderna
divisão técnico-funcional do trab alh o . T udo isso to rn a “ necessidade to tal” a depen­
dência entre os hom ens (F D 198), m as ao m esm o tem po im põe à relação necessária
entre eles a form a d a relação de troca, que se fu n d a precisam ente sobre o reconheci­
m ento da lib erd ad e. O processo vital com o processo necessariam ente social não pode
se desenvolver, à a ltu ra d a civilização (q u e é aqu ela em que se en co n tra a sociedade
148 M IC H E LA N G E LO B O V E R O

M as, p a ra aq u ém das diferenças, o p rim eiro e fu n d a m e n ­


ta l resu ltad o consiste no fato de que a sociabilidade não a p a ­
rece m ais im ed iatam en te n a figura d a politicidade. D ad o que

civil, ou sociedade dos privados), a não ser p o r m eio do exercício dos direitos do
hom em e n q u a n to privado. P o r isso, a tu te la dos direitos individuais, o direito à pro-
pried ad e-lib erd ad e, e o direito à vida, é exigência interna d aq u ele m ecanism o social
— pró p rio d a sociedade civil com o sistem a d a vida priv ad a — que se fu n d a nos m es­
mos e, ao m esm o tem po, em su a acidentalidade e “ necessidade inconsciente” , os
expõe sob m u ito s aspectos ao risco de n ã o serem tra ta d o s “ e n q u an to direito ” (F D
230). D esse m odo, os indivíduos em su a q u alid ad e de sujeitos privados (en ten d o p o r
isso o Bürger ais Bourgeois de F D 190 A) são conectados n a sociedade civil não
som ente através do sistem a dos carecim entos, m as tam b ém m ediante a ad m in istração
d a ju stiça (q u e tu te la a lib erd ad e ab stra ta ) e d a ad m in istração p ú b lica (q u e g a ra n te a
segurança d a vida). A ssim , a sociedade civil hegeliana é um sistem a n ão só econô­
m ico, m as ta m b é m ju ríd ico e ad m inistrativo, e, p o r isso, é c h am a d a ta n to de Gesell-
schaft q u a n to de Sta a t. M as, n a m ed id a em que se refere ao dom ínio do p a rtic u la r,
ou sistem a d a vida p riv ad a, é E sta d o dos privados, cujo princípio e m eta é o indivíduo
privado definido p o r carecim entos e interesses exclusivos e, p o rta n to , p riv atista ele
pró p rio e, com o tal, co n trap o sto ao E stad o p ro p riam e n te d ito, ou E sta d o “ p ro p ria ­
m ente político” (F D 267), e n q u a n to sistem a d a vida p ública, único de onde procede
u m a vontade verd ad eiram en te universal.
T am bém p a ra M arx , o vínculo social se fu n d a n a base m aterial do carecim ento:
os hom ens tê m necessid ade de p ro d u zir socialm ente a su a existência, e to d a p ro d u ção
é n ecessariam ente p ro d u ção social. E , tam b ém p a ra M arx, a divisão do tra b a lh o é o
m odo m ais im ediato no qual a relação social n a época m o d ern a se m o stra com o
necessária: u m a época que ap arece com o a época do indivíduo, m as ao m esm o tem po
é a época d a ex p an são d as relações sociais e, com elas, dos carecim entos. M as a divi­
são do tra b a lh o em M arx não ap resen ta sim plesm ente a sua face técnico-fundam en-
tal. E a relação necessária que especifica a sociedade m oderna com o tal é certam en te
tam b ém a relação de tro ca, m as n ão som ente n a q u e la form a d a “ tro ca sim ples” que
situa todos os sujeitos, p a ra além d a divisão em níveis hierárquicos, n u m único g rau
de d ignidade h u m a n a (o g ra u dos direitos do hom em ). Isso vale ap en as p a ra a “ su p e r­
fície” d a sociedade civil, com o m ais de u m a vez se afirm a nos G rundrisse, p a ra a
“ ap arên cia re a l" segundo a q u al ela se m o stra com o sociedade d as tro cas e d a livre
concorrência (e, com o ta l, é sociedade “ b u rg u esa” n ão im ediatam ente no sentido de
classe, m as no sentido em que “ b u rg u ês” , bourgeois, é a fig u ra h istó rica em que
aparece, no in terio r d a form ação social m oderna, o sujeito com um e, p o rta n to , to do
hom em e n q u a n to pessoa privada definida pelos pró p rio s direitos individuais). So­
m ente além dessa superfície é que se pode c a p ta r aq u ela relação de tro ca que consti­
tu i, p a ra M arx, a diferença específica d a sociedade m oderna: u m a relação que p re s­
supõe não sim plesm ente a lib erd ad e do hom em com o cidadão privado (ou civil-bur-
guês), m as a “ lib erd ad e” p ró p ria d a g ran d e m aio ria dos hom ens, a “ lib erd ad e” em
relação à p ro p ried ad e dos m eios de p rodução, e que divide os sujeitos em d u as classes
con trap o stas. D esse m odo, a sociedade civil m o d ern a se revela com o sociedade b u r­
guesa no sentido do dom ínio de classe, ou com o sociedade cap italista, n a m ed id a em
que a necessidade específica d a relação de tro ca social m o d ern a é a d a relação de
tro ca en tre cap ital e trab alh o . P o r isso, a bürgerliche G esellschaft é certam en te o te r­
reno de aplicação do direito p rivado, que vigora plen am en te e n q u a n to tal n a sua
SO C IE D A D E E E S T A D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D E R N A 149

a base d a sociabilidade n ã o é m ais in d icad a n a colusão — n a


in tegração d a livre vontade dos indivíduos, que constituem a
vontade coletiva ou g eral que converge no p o d e r com um — ,
o p lano d a conexão p ro p riam e n te social se m o stra com o algo
distinto e separado do p lan o d a coesão p ro p riam e n te política;
ou seja, a o rdem social aparece n u m a fig u ra p ró p ria , em o po­
sição ao ord en am en to político.
A sociedade civil d a concepção ju s n a tu ra lista , a m p la ­
m ente d o m in an te n a filosofia política dos séculos X V II e
X V III, p ela p ró p ria n a tu re z a do seu processo constitutivo, não
pode deix ar de se a p re se n ta r in d istin tam en te com o societas
civium , tecido conectivo geral de relações e n tre os hom ens
reunidos em sociedade — e que se tra n sfo rm a m , nessa u n ião ,
de hom ens sim plesm ente ou m em bros de u m a ideal societas
hum ani generis, em cid ad ão s ou m em bros de u m a específica
co m unidade real — , e com o societas politica, organização p ú ­
blica e coesão dos sujeitos sociais d entro de relações de p o d er
estáveis; ao contrário , ela só subsiste com o societas civilis n a
m edida em que é societas politica. Ao c o n trário , com a crise
do m odelo ju sn a tu ra lista , que am ad u rece e n tre o fim do sé­
culo X V III e o início do século X IX e que se expressa de m odo
pleno no m odelo hegelo-m arxiano, os a trib u to s “ político” e
“ civil” , origin ariam en te coincidentes, derivando respectiva-

“ superfície” (onde ela se m o stra pro p riam e n te com o sociedade “ civil” ou dos priva­
dos; o jovem M arx incluía n u m conceito ain d a apenas “ superficial” de sociedade civil
tam b ém a Polizei, tal com o H egel, e isso não no com entário ao texto hegeliano, m as
nas observações ao a rt. 8 d a C onstituição francesa “p ro g ressista” de 1793, referente à
súrété: cf. Judenfrage, ed. cit., p . 379). M as ela se co nstitui em su a necessidade espe­
cífica no nível estru tu ral d a relação capitalista, e, p o rta n to , define-se com o sistem a
econôm ico, e não tam b ém , ao m odo de H egel, com o sistem a adm inistrativo e ju r í­
dico. A ssim , a bürgerliche G esellschaft não é m ais d efinida tam b ém com o “ E sta d o ”
dos privados, co n trap o sto e n q u a n to ta l, p o r H egel, ao E sta d o "p ro p ria m e n te p o lí­
tico” . E isso p o rq u e o E stad o , que tra z à realidade o direito (en q u an to “ condição
geral d a p ro d u ção ” : Grundrisse, p . 413) e m ediatiza os extrem os contrapostos e seus
conflitos, n ão vale m ais, p a ra M arx, realm ente com o universal. Se ele se a p resen ta
com o tal, essa é su a face ilusória (a vontade e a força gerais são “ com u n id ad e” so­
m ente n a ap arência): a realid ad e efetiva do E stad o é oposta, é p a rtic u la r, n a m ed id a
em que ele põe as condições gerais de u m sistem a social (ou org anização d a produção)
não som ente privatista, m as fu n d ad o n o dom ínio de u m a classe e o rganizado de m odo
a rep ro d u zir ta l dom ínio. P o rta n to , a ação do E stad o n ão está n ecessariam ente, de
m odo direito, a serviço d a b urguesia; m as, de q u alq u er m odo, se põe a serviço do
sistem a no q u al e pelo q ual a b u rg u esia existe com o classe d o m in an te.
150 M ICH ELA N G ELO B O V ERO

m ente d a grega pólis e d a la tin a civitas, tendem a se distin ­


guir; o sujeito social se duplica n a figura do cidadão privado
ou civil-burguês ( Bürger) e n a do cidadão p ro p riam en te dito
(p a ra designar o q u al é cu nhado o term o pleonástico de Staats-
bürger)', e a sociedade com o sociedade civil se sep ara do E s­
tad o com o E stad o p o lític o .18 P or um lado, a sociedade civil —
já que não necessita d a instituição de um p o d er com um p a ra
se fu n d a r en q u an to coletividade social efetiva — não indica
m ais genericam ente a e stru tu ra global d a vida associada, m as
indica u m nível de vida coletiva especificam ente “ social” ou
“ civil” , en q u an to destacado e contraposto ao nível especifica­
m ente “ político” ; p o r o u tro lado, o E stado político — já que
não resu lta d a subsunção de indivíduos que, de outro m odo,
restariam isolados, privados de vínculos efetivos, a um p oder
com um e a um o rdenam ento público — não coincide m ais
com a sociedade civil e, p o rtan to , não indica m ais generica­
m ente o conjunto organizado d a vida coletiva no aspecto da
sua un id ad e, m as indica u m nível ou um espaço d a vida cole­
tiva distinto e sep arad o em face d a especificam ente social: é
esse o espaço em que se coloca o E stado m oderno p ro p ria ­
m ente “ político” , ta l com o é literalm ente designado p o r Hegel
q uanto p o r M arx, a in d a q ue segundo critérios interpretativos
opostos.

(18) P a ra to d a essa pro blem ática, cf. M . Riedel, op. c it., sobretudo os ca
tulos “ T radição e revolução na Filosofia do direito de H egel” e “ O conceito de ‘socie­
dade civil' e o p roblem a de sua origem histórica” .
Uma comparação entre os modelos

N e s s e ponto, estam os em condições de proceder a u m a


com paração global m elhor articu lad a en tre o m odelo ju sn atu -
ralista e o m odelo hegelo-m arxiano. A ntes de m ais n ad a, é
agora possível ver m ais claram ente como a dicotom ia bürger-
liche G esellschaft/politischer Staat constitui o desenvolvi­
m ento, em duas in stâncias contrapostas, do que perm anecia
unido e indiferenciado n a noção ju sn a tu ra lista de societas ci-
vilis. Com efeito, en q u an to essa representava a coletividade
n u m a única figura, ao m esm o tem po social e política, em con­
traposição à não-sociedade ou à sociedade em si im perfeita,
tal com o era concebida to d a condição p riv ad a de organização
política, aq u ela dicotom ia expressa ou descreve a separação
efetiva de dois níveis d a coletividade, ou a cisão d a p ró p ria co­
letividade em duas form as ou figuras reais e realm ente dis­
tin tas. E m o u tras palavras, a dicotom ia reconhece o c aráte r
essencial das form ações histórico-sociais m odernas no isola­
m ento e contraposição recíprocos de u m a e stru tu ra de base d a
sociabilidade e de u m a e stru tu ra superior (em sentido posi­
tivo, Hegel) ou su p erestru tu ra (em sentido negativo, M arx):
a e stru tu ra de base subsiste com o conexão efetiva e necessária
entre indivíduos singulares, os quais perm anecem decerto
pessoalm ente livres, subjetivam ente independentes em sua
referência recíproca en q u an to privados, m as são ligados a tra ­
vés de u m a dependência objetiva geral; ou seja, subsiste com o
e stru tu ra de relações necessárias, que são certam ente regula­
152 M ICH ELA N G ELO B O V ERO

das coercitivam ente pelo E stado, m as não têm em seu princ


pio a referência ao com ando público, e não derivam sua nece;
sidade e eficiência conectivas — seu valor de vínculo social -
d a u nidade política no querer-poder com um ; a e stru tu ra sv
perior ou su p erestru tu ra subsiste com o recom posição dos sv
jeitos sociais n a un id ad e de um corpo com um , que se realiz
acim a das p articu larid ad es individuais exclusivas e se express
n a universalidade e obrigatoriedade de com andos gerais im pí
rativos sustentados pela força coletiva d a coação pública. Po
um lado, a bürgerliche Gesellschaft se constitui com o tecid
conectivo real das ações livres dos indivíduos e, portanto
como e stru tu ra coletiva, m as não com o coletividade política
se essas ações singulares são necessariam ente subo rd in ad as a
m ecanism o im pessoal do todo e, p o rtan to , socialm ente deter
m inadas, continuam porém a se mover e a se realizar no piam
das finalidades e interesses privados; p o rtan to , os m em bro
da bürgerliche Gesellschaft como sujeitos privados, m esm o n<
quadro d a necessidade d a conexão, não se dissolvem n a uni
dade de um corpo com um p ropriam ente dito, com o a q u el
guiado p o r u m a ú n ica vontade, nem podem enquanto tais da
vida a um corpo soberano que se tra d u z a n u m a organizaçã<
pública do poder. P o r outro lado, o politischer Staat se consti
tu i com o m om ento d a organização e d a regulam entação cole
tivas, p o r meio d a prod u ção de norm as gerais e, p o rtan to
como e stru tu ra coesiva e local de integração dí
coletividade: contudo, a força coesiva do politischer Staat nãc
institui ela m esm a o estado de sociedade, nem dela derivam í
natu reza específica e a dinâm ica in tern a das relações que es
tão n a base d a sociedade; n a verdade, a coesão política se rea
liza p a ra a lém /ac im a d a conexão p ro p riam en te social. O m o
m ento político d a coesão m ediante com ando im perativos-coa-
tivos se isola do tecido conectivo social, n a m ed id a em que í
força ou eficácia conectiva p ró p ria de u m vínculo não com an­
dado ou im posto, com o o que se in stau ra com o desenvolvi­
m ento da sociedade m o d ern a entre os sujeitos privados, em an ­
cipa o m om ento social do m om ento p ro p riam en te político-
unificador do E stado. Ao contrário, a concepção que se ex­
pressa n a idéia ju sn a tu ra lista d esocietas civilis, não reconhe­
cendo aquela conexão efetiva n a dim ensão d a ação livre dos
privados, e, em vez disso, cap tan d o nessa dim ensão, unica-
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 153

m ente e de m odo ab strato , o lado desagregador do arb ítrio


individual, confia a conexão social dos indivíduos à sua coesão
política e en co n tra a raiz do vínculo coletivo n a fictio de u m a
vontade geral e consciente de constituir u m corpo soberano.
O u seja: essa concepção não distingue ain d a en tré a sociedade
civil e o E stado, e dissolve o E stado n a sociedade (com uni­
dade) dos hom ens civis (pessoalm ente livres): não diversa­
m ente, quanto à fo rm a , do conceito trad icio n al de com uni­
dade política, ou seja, d aq u ela civitas ou societas civilis que
indicava p ro p riam en te u m a união de liv re s,1 em bora essa
m esm a concepção cap te no político, co rretam ente, a sua m o­
d ern a função coesiva-coativa e o seu m oderno c aráte r de cen­
tro do p o d er soberano que se exerce n a form a d a lei.
D o m esm o m odo e reciprocam ente, o m odelo hegelo-m ar-
xiano não distingue m ais a sociedade civil do estado de n a tu ­
reza, m as recu p era suas características e funções. O novo m o­
delo, p o rta n to , separa o E stad o d a sociedade civil à m edida
que: a) reinsere n a sociedade civil, historicizados, os traços
essenciais d a condição descrita no m odelo precedente como
algo natu ral; b) atrib u i à sociedade civil a função de m om ento
contraposto ao político, reconstituindo desse m odo, nu m p la ­
no diverso, a fo rm a geral d a dicotom ia n a q u a l já o m odelo
an terior se configurava. E n q u a n to no prim eiro m odelo a con­
dição n a q ual indivíduos com o sujeitos autônom os interagem ,
contrapondo-se aquém de sua com posição política, apresen­
tava-se estado n a tu ra l, no duplo sentido de estado associai ou
incom pletam ente social e precário, e de m om ento externo e
anterior à sociedade civil, a qual, ao contrário, representava o
m om ento d a coletividade com pleta e organ izad a, en q u an to

(1) R epito: q u an to à form a. Pois, com relação ao conteúdo, a societas civi


do m odelo hobbesiano ap resen ta u m a p ro fu n d a inovação, qu e lh e advém precisa­
m ente do fato de constituir-se a p a rtir dos sujeitos n a tu rais independentes. M anfred
Riedel, em seu ensaio sobre o conceito de sociedade civil, c it., não parece d a r m uito
peso a essa diferença en tre a an tig a e a m oderna societas civilis, a fim de p o d er
con trap o r am b as à bürgerliche Gesellschaft hegeliana. C ontudo, ta l diferença consti­
tu i a sociedade civil de H obbes com o term o m édio ideal en tre a de A ristóteles e a de
Hegel: em síntese, se o fim do civis antigo é a conservação d a civitas, e o fim do Bürger
m oderno é a conservação de si m esm o (e a busca de seus p róprios interesses privados),
o fim do hom o civilis ju sn a tu ra lista é o m esm o do Bürger, p o r m eio d a in stituição da
civitas.
154 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

isso ocorre no prim eiro m odelo, no segundo a m esm a com po­


sição aparece com o estado social, aliás com o condição p ro ­
p riam ente social e civil, m od ern a e desenvolvida.2
No prim eiro caso, a correlação en tre sujeitos pessoal­
m ente livres que agem em vista do interesse privado era consi­
d erad a de form a a b stra ta e im atu ra. A absolutização dos a rb í­
trios individuais levava ou à im agem de relações im ed iata­
m ente conflitivas e destrutivas, ou à de um tecido lábil, p ri­
vado de necessidade intrínseca e continuam ente am eaçado de
dissolução; em sum a, prod u zia a idéia de u m a sociedade em
últim a análise inexistente, cujo valor era sobretudo co n stru ­
tivo, ou seja, o de um princípio hipotético a p a rtir do qual
tom ava-se possível reco n stru ir em sua essência racional a fi­
gu ra de u m estado civil. No segundo caso, a condição geral de
liberdade dos indivíduos enqu an to privados é reconhecida,
antes de m ais n a d a, em su a historicidade com o característica
típica das form ações sociais m odernas; “ p o r n a tu re z a ” , o ho­
m em é um anim al gregário, absolutam ente dependente do

(2) O atrib u to “ civil” tem n a filosofia politica m oderna u m duplo signifi


p o r um lado, in dica algo p ertin en te ao E stado (de civitas ); p o r o u tro, algo de e d u ­
cado, progredido, refinado, “ civilizado” (de civilitas ). A d u p la valência já está clara­
m ente presente em H obbes, o qual entende a condição “ civil” com o aq u ela caracte­
rizad a tan to pela ordem politica q u an to pela decência e pelo refinam ento. O segundo
significado é predom inante no Discours sur iinégalité de R ousseau e no Essay de
Ferguson, cu ja civil society é trad u zid a em alem ão, em 1768, com a expressão b ü r­
gerliche Gesellschaft. P recisam ente através dessas últim as (e de o utras) m ediações,
o atrib u to “ civil” te nde c a d a vez m ais a indicar, em várias linguas, o com portam ento
educado, em ancipado e progredido d a cam ada citadina-burguesa (d a cid ade-burgo e
não m ais de cidade-E stado), a cam ad a privada p o r excelência; desse m odo, é inver­
tid a a prim eira acepção, e “ civil” deve ser entendido, n a m aioria dos casos, com o
“ privado” contraposto a “ público” .
Isso vale tam bém p a ra M arx, com o busquei indicar acim a (cf. n o ta 66), em
todos os lugares onde a bürgerlich Gesellschaft é an alisad a en q u an to “ sociedade da
livre concorrência” . O uso ag o ra dom inante, e recentem ente aprovado p o r J. Agnoli e
M . Cacciari (cf., respectivam ente, Lo Stato dei capitale, M ilão, Feltrinelli, 1978, p .
10; e Dialettica e critica dei Politico , M ilão, Feltrinelli, 1978, p . 8), de tra d u z ir sem pre
a bürgerliche Gesellschaft de M arx p o r “ sociedade b u rg u esa” é excessivam ente rígido
com relação à com plexidade, e p or vezes am bigüidade, do conceito m arxiano. Sem
e n tra r aq u i no m érito d a questão, de resto antig a e ented ian te, observo apenas que
seguindo aquele uso perde-se o sentido de m uitos trechos de M arx, construídos sobre
a antítese en tre bürgerliche Gesellschaft e politischer S ta a t : que sentido teria co n tra­
po r ao E stad o “ político" u m a sociedade “ b urguesa” se, em outros contextos, o p ró ­
prio E stado é definido com o “ b u rg u ês"?
SO CIED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 155

grupo, e som ente com o desenvolvim ento histórico d a socie­


dade e dentro d a sociedade historicam ente desenvolvida é que
o hom em — contrapondo a si “ as diversas form as do contexto
social (...) com o u m p u ro instrum ento p a ra as suas m etas p ri­
vadas” ,3 de m odo que o universal “ lhes aparece íaos privados]
como m eio” 4 — consegue efetivam ente isolar-se, ou seja, pôr-
se como indivíduo. M as a época que gera “ o m odo de ver do
indivíduo isolado é precisam ente a época das relações sociais
(...) até agora m ais desenvolvidas” . 5 P o rtan to , a condição n a
qual os indivíduos se apresen tam libertos de vínculos n atu rais
pré-constituídos, a ponto do isolam ento deles aparecer com o
algo n a tu ra l, é u m a condição social efetiva, e não hipotética,
com o é o caso do estado de n atu reza que se to m a v a sociedade
real e com pleta som ente com a transform ação em com unidade
política. Aliás, ela define a dim ensão p ro p riam en te (em sen­
tido estrito) “ social” das form ações históricas m odernas, ou
seja, indica aquela “ sociedade” que é ta l fo ra e co n tra o polí­
tico, n a m edida em que não se resum e im ediatam ente n a u n i­
dade in teg rad a do corpo coletivo, nem se red u z sim plesm ente
à plu ralid ad e desagregada e atom izada de arbítrios exclusi­
vistas, m as subsiste n a co-presença dos dois princípios opostos
d a autonom ia do p a rtic u la r e da conexão onilateral (Hegel),
ou d a independência pessoal e da dependência m aterial
(M arx). E n q u a n to no status naturae, m esm o nos casos em
que ele era apresen tad o como societas em brio n ária, o con­
traste en tre os sujeitos ap arecia im ediatam ente desagregador,
a ponto de tran sfo rm ar u m a sociedde em si m esm o débil n u m a
sociedade impossível, no interior d a bürgerliche Gesellschaft
os interesses privados, em sua pró p ria exclusividade e c o n tra ­
dição recíproca, encontram -se necessariam ente ligados n u m a
dependência “ a todos os lados” . Não ta n to p orque, p erse­
guindo c ad a um seu p róprio interesse, obtenha-se au to m atica­
m ente o interesse geral — dessa afirm ação, aliás, poder-se-ia
deduzir “ que c ad a um obstaculiza reciprocam ente a afirm a­
ção do interesse do o utro, de m odo que, em vez de u m a afir­

(3) Grundrisse, p . 6.
(4) FD 187.
(5) Grundrisse, p. 6.
156 M ICH ELA N G ELO BO V ERO

m ação geral (...), resu lta um a negação g eral” 6 — , m as sim


porque “ o próprio interesse privado já é u m interesse social­
m ente determ in ad o ” : 7 “ cad a um é fim em si m esm o, tu d o o
m ais é p a ra ele n a d a. M as, sem relações com os outros, ele
não pode alcan çar o âm bito de suas finalid ad es” ; p o r isso,
“ em bora crendo se m an ter firm em ente no p a rtic u la r, o u n i­
versal e a necessidade d a conexão continua a ser a coisa p ri­
m eira e essencial” . 8 E m o u tras palavras: o arb ítrio individual,
m esm o persistindo com o tal, perde aq u i o c a rá te r a b strato e
a-histórico que tin h a , e n q u an to prius absoluto, nas co n stru ­
ções ju sn atu ralistas: o “ sistem a d a atom ística” é, p recisa­
m ente, “ sistem a” , e n ão se reduz à “ ab so lu ta substanciali-
dade dos p o n to s” . 9
M as, desse m odo, a sociedade m o d ern a com o sociedade
civil p ro p riam en te não política, a insociável sociedade dos h o ­
m ens livres, não é sim plesm ente sociedade dissociada nos in-

(6) Grundrisse, p . 74. T am bém nesse trecho h á u m a clara rem iniscência he-
geliana. Cf. as Lições sobre a filosofia da história: “ A liberdade é concebida só neg a­
tivam ente quan d o é im ag in ad a com o se o sujeito lim itasse com relação a outros sua
liberdade, de m odo que essa lim itação coletiva, o fato de que todos obstaculizam uns
aos outros, deixasse a c ad a qu al o pequeno lu g ar no q u al se pode m over” (tra d . it.,
Florença, L a N uova Italia, 1977, vol. I, p . 104). Todavia, nesse local, Hegel se refere
à concepção kan tian o -fich tean a do E stado, e não à relação econôm ica en tre interesse
privado e interesse coletivo. Sobre isso, parece haver em FD u m a inclin ação inicial no
sentido d a visão o tim ista típ ica d a econom ia política clássica. M as, p a ra essa com o
p a ra ou tras questões, deve-se acolher a interpretação de R . Bodei: “ H egel, h a b itu a l­
m ente, repete, rep ro d u z e situ a no sistem a pontos de vista alheios (...) . O u seja: não
fala p o r su a p ró p ria boca, n a perspectiva do fiir uns, m as deixa que ‘a coisa' fale e
que seja o desenvolvim ento subseqüente a criticar objetivam ente, a redim ensionar o
cará te r absoluto de c ad a degrau do desenvolvim ento do conjunto” . (C f. “ H egel e
1’econom ia p olitica” , in S. V eca, e d ., Hegel e Veconomia politica, M ilão, M azzotta,
1975, p p. 56-7. O volum e inclui tam bém dois in teressantes ensaios de R . R acinaro e
M. B ar ale.)
(7) Grundrisse, p . 74.
(8) FD 182 Z, 1 8 1 Z.
(9) A prim eira expressão é conhecida p ela Enciclopédia (cf. o § 523); m as ela
já se en co n tra, ju n ta m e n te com a segunda, n a D ifferenz des Fichte schen u n d Schel-
lingschen System s der Philosophie, tr. ital., em H egel, P rim i scritti critici, M ilão,
M ursia, 1971, p . 70. Nesse escrito juvenil (1801), aparecem tam b ém o u tras noções,
com o a de “ E stado de in telecto” , que o Hegel d a m atu rid ad e irá utilizar p a ra a bür-
gerliche G esellschaft. A analogia é surpreendente; m as, n a análise d a construção
fichteana (u m a d aquelas em que, p a ra recordar a expressão de FD 258 A, “ confun-
de-se a sociedade civil com o E stado”), o aspecto da desagregação é fo rtem ente acen ­
tu ad o e im ediatam ente contraposto, sem possibilidade de conciliação, à q u alidade
orgânica que a p a rtir de en tão Hegel sem pre a trib u iu ao E stado.
S O C IED A D E E E STA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D E R N A 157

divíduos e n q u an to indivíduos privados e, p o rta n to , n ão é so­


m ente sociedade a in d a “ p o r associar” , tal com o se m ostrava
n a representação da societas naturalis; m as é, ao m esm o te m ­
po, dissociação social n a conexão necessária dos indivíduos no
plano das relações privadas. Nesse sentido, a bürgerliche G e­
sellschaft rep resen ta u m a p rim eira e em si com pleta dim ensão
da coletividade, ou seja, apresenta-se com o totalidade, em ­
b o ra seja “ to talid ad e relativa” , já que nela “ a to talid ad e é o
terreno d a m ediação n a qu al to das as singularidades, tod as as
disposições, tod as as acidentalidades de nascim ento e de for­
tu n a tornam -se livres” ; 10 e, p o r conseguinte, é coletividade de
m odo mecânico, ou seja, de um m odo que revela a p e rm a ­
nência d a cisão n a p ró p ria conexão, fu n d an d o u m a sobre a
o u tra. N a m edida em que é essa conexão ( totalidade relativa,
sistema d a atom ística), a bürgerliche Gesellschaft não deve
ap elar p a ra u m E stad o com o sua suprem a condição de socia­
b ilidade, ou seja, n ão tem necessidade de u m E stado que a
in stitu a com o sociedade efetiva: ao co ntrário, dele tin h a n e­
cessidade a hipotética societas naturalis, com o K an t o havia
com preendido; desenvolvendo coerentem ente a lógica im p lí­
cita no m odelo ju sn atu ralista , ele definia o E stado com o “ o
que form a lou produz: m acht] a sociedade” . 11 M as, n a m e­
dida em que é aq u ela cisão (totalidade relativa, sistem a da
atom ística ), a bürgerliche Gesellschaft en q u an to ta l n ão é ca­
p az p o r si só de fixar e g a ra n tir as condições gerais em cujo
interio r a liberdade-isolam ento dos indivíduos se desenvolve
com o conexão universal, nem de tra d u z ir essas condições em

(10) F D 1 8 2 Z .
(11) Cf. K an t, op. c it., p . 493. M as deve-se im ediatam ente observar que, com
o m esm o argum ento, K an t in tro d u z u m a distinção en tre a sociedade e o E stado:
“ porque e n tre quem tem o com ando, ou seja, o soberano (im perans), e o súdito
( subditus ), não h á nen h u m a com unidade: eles n ão são sócios, m as um é subordinado
ao ou tro , e n ão coordenado , e os que são coordenados en tre si devem se considerar
como iguais e precisam ente n a m edida em que são subm etidos a leis com uns” (ibid.).
N essa idéia d a diferença de e stru tu ra en tre a relação social e a relação política — que,
de resto, não é nova, pois já P ufendorf distinguia en tre a sociedade nascida do p ri­
m eiro c o n trato e o E stad o nascido do segundo co n trato com o u m a societas aequalis
em contraposição a u m a societas inaequalis — , deve-se ver a figura potencial da dis­
tinção entre bürgerliche G esellschaft e politischer Staat. M as seria errad o tom á-la
como u m a distinção em a to : p o rq u e, aq u i, a relação priv ad a não é já em si social, m as
— e n q u an to relação social — é precisam ente institu íd a, “ p ro d u zid a” pelo E stad o .
158 M IC H ELA N G ELO B O V ERO

regras técnicas ad eq u ad as, nem , m enos ain d a, de perseguir


ativam ente o bem com um , a m eta da coletividade en q u an to
tal. E m o u tras palavras: dado que a sociedade civil tem com o
coletividade som ente u m a existência objetiva (quase “ n a tu ­
ra l” , extravoluntária, independente dos sujeitos reais e incon-
troláveis p o r eles), não é coletividade p ro p riam en te autônom a;
aliás, en q u an to totalid ad e, ela expressa precisam ente a hete­
ronom ia dos sujeitos sociais. E m b o ra subsistente em si m esm a
como esfera distin ta, não pode propriam ente d a r leis a si m es­
m a; apenas sofre, “ no cam inho da necessidade inconsciente” ,
suas próp rias “ leis m ateriais” (M arx). D isso resu lta que deve
poder subsistir um m odo e um lugar onde a p lu ralid ad e dos
sujeitos socialm ente determ inados, ou a sociedade dos inte­
resses isolados e contrapostos, coagule-se nu m sujeito coletivo
e n q u an to ente singular, o E stado com o form a superior d a co­
letividade e com o m om ento p ropriam ente político, capaz de
p ro d u zir norm as gerais universalm ente vinculantes e de o bter
pela coação o respeito às m esm as. Desse m odo, o E stado: a)
m antém e organiza, fixando e g arantindo as “ regras do jogo” ,
a ordem social d ad a, ou m elhor, pro d u zid a pelo desenvolvi­
m ento histórico, ta l com o se m anifesta no nível d a sociedade
civil: m as, precisam ente p o r isso, não o “ fo rm a” ou produz;
b) configura-se com o esfera superior d a sociedade, em cujo
interior os sujeitos singulares, enqu an to cidadãos, recebem
u m a determ inação diversa e oposta àquela que têm com o pes­
soas privadas dentro da esfera inferior d a sociabilidade: e,
p o rtan to , com o E stad o político, contrapõe-se à sociedade civil
tan to q u an to a u n id ad e orgânica se contrapõe à conexão m e­
cânica, a finalidade coletiva ao interesse individual, o bem
público ao b em -estar p a rtic u la r ou privado.
E ssas duas faces ou aspectos essenciais do E stad o são
apreendidos do m odo m ais claro possível p o r Hegel: c o n tra o
sistem a d a vida p riv ad a e seus com ponentes, p o r um lado, o
E stado “ é u m a necessidade externa” — en q u an to é nas ch a ­
m adas leis m ateriais d a econom ia que a bürgerliche Gesell-
schaft en co n tra a sua necessidade interna — e “ é p a ra eles o
poder ( M a c h t ) m ais alto ” , o que fixa e im põe coativam ente as
condições ju ríd icas nas q uais o processo social pode explicitar-
se n a esfera civil; p o r outro lado, o E stad o “ é a finalidade
im anente deles [do sistem a d a vida priv ad a e de seus com po­
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 159

n en tes]” , n a m edida em que se põe com o integração dos inte­


resses e das realidades particu lares n a realid ad e universal da
coletividade.12 D o m esm o m odo — em bora aq u i o problem a
seja m ais com plexo e m uito difícil de ser claram ente definido
— , M arx en cara o E stado o ra segundo o aspecto do dom ínio,
da “ violência con cen trad a e o rganizada” , o ra segundo o as­
pecto d a com unidade, ain d a que ilu só ria.13
P o r u m lado, o E stad o m ostra a face do aparelho b u ro ­
crático, de u m a m áq u in a que se superpõe à sociedade, de
m odo que o p oder aparece com o algo que desce do vértice
p a ra a base — onde os sujeitos resistem a ele opondo-lhe os
próprios direitos civis; p o r outro lado, o E stad o m o stra a face
de um organism o no q ual a pluralidade dos sujeitos privados
se ag ru p a em un id ad e superior, de m odo que o p oder aparece
com o algo que ascende d a base ao vértice — em virtude do
exercício dos direitos políticos.

(12) F D 261.
(13) Cf. acim a, o final d a n o ta 66. A qui, parece-m e ain d a in teressante obser­
var apenas que, q uando M arx fala de po d er ou violência política (m as Gewált é ta m ­
bém cad a um dos poderes constitucionais do E stado em H egel), o E stado aparece
tendencialm ente n a figura do governo e, em tal figura, é sem pre considerado com o
negativo em si m esm o. Com efeito, essa parece ser p a ra M arx a realidade efetiva do
E stado: “ O direito do m ais fo rte” que, como ele critica nos econom istas burgueses,
“ continua a viver sob o u tra form a tam b ém no seu ‘E stad o de direito’ ” (Grundrisse,
p . 10). Ao contrário, q u ando M arx fa la do querer político ou d a com unidade política,
o E stad o aparece tendencialm ente n a figura do P arlam ento; e, em tal figura, ele é
considerado com o negativo som ente en q u an to universalidade ilusória (e, p o r isso,
e nquanto rem ete à sua figura real, o p oder de governo), e não p o r aqu ela q ualidade
m esm a de com unidade, que ele falsam ente assum e. P o r isso, se a realidade efetuai do
E stado reside no governo, e, p o rtan to , n a heteronom ia que ele expressa, sua verdade
é o não-E stado, ou, se preferirm os, o E stado "não-político” , que pode valer com o
universalidade efetuai com a reabsorção do E stado (as fam osas “ funções sociais ge­
rais”) sob o p o d er d a sociedade. O c a ráter de com unidade “ verdadeira” que o E s­
tado, em p a rtic u la r o hegeliano, reivindica p a ra si p ode p erten cer de m odo efetivo
tão-som ente a u m a com unidade sem governo, ou seja, autogovernada. M as — acres­
centa M arx — não certam ente u m a com unidade n a form a d as com unidades p rim iti­
vas, m as sim n a de u m a associação que, enquanto tal, pressupõe a livre individua­
lidade.
Da gênese à estrutura
da sociedade moderna

E d ad a assim , em sua form a m ais geral e essencial, a


relação en tre os term os do modelo em ergente no sistem a hege-
liano de filosofia p rática, posteriorm ente isolado e fixado
como tal p o r M arx; m as, ao m esm o tem po, m anifesta-se cla­
ram ente a últim a e decisiva diferença com o m odelo ju sn atu -
ralista. Com efeito, se a dicotom ia bürgerliche G esellschaft/
politischer Staat rep ro d u z a form a d a oposição en tre u m m o­
m ento não político (ou p u ram en te social) e um m om ento polí­
tico, tal com o já se delienava n a dicotom ia societas na tu ra lis/
societas civilis, a prim eira dicotom ia não ap resen ta aquela
oposição no m odo d a sucessão, característico d a segunda. No
m odelo ju sn atu ralista , o m om ento p u ram en te social (não polí­
tico) é o de u m a condição social não efetiva, que se to rn a efe­
tiva som ente no m om ento subseqüente, o d a sociedade polí­
tica, com a abolição d a condição contraposta: pelo que o se­
gundo m om ento é posterior e substitutivo com relação ao p ri­
m eiro, no sentido de que a presença da societas civilis im plica
a ausência, ou m elhor, o desaparecim ento d a societas natura­
lis', e pouco im p o rta, aqui, se a societas civilis é negação ou
racionalização d a n atu ralid ad e. No m odelo hegelo-m arxiano,
o m om ento p ro p riam en te social, ou p ro riam en te não político,
é o de u m a condição social efetiva, que n ão é sim plesm ente
substitu íd a p o r um m om ento subseqüente, m as, ao contrário,
é conservada com o m om ento distinto e auto-subsistente pela
configuração "da condição con trap o sta en q u an to m om ento
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 161

pro p riam en te político, ou seja, não social: pelo que os m o­


m entos resultam co-presentes, pressupõem -se e se d eterm i­
n am reciprocam ente e, qu an d o m uito, distinguem -se com o in ­
ferior e superior. E m o u tras palavras, os elem entos do p ri­
m eiro m odelo, contrapondo-se, com põem -se n a figura de um
processo diacrônico, no q ual o ponto de p a rtid a e o ponto de
chegada assinalam , respectivam ente, a antítese e a ausência
do outro; e isso apesar de a contradição fu n d am en tal indiví-
duo-sociedade, que inform a o modelo, refletir-se n a com ple­
xidade problem ática do elem ento conclusivo e, p o rta n to , p o ­
der ser considerada com o estru tu ral. P or o u tro lado, os ele­
m entos do segundo m odelo, contrapondo-se, com põem -se n a
figura de u m a e stru tu ra sincrônica, n a q ual nível inferior e
nível superior se excluem e se im plicam reciprocam ente, em ­
bo ra possa parecer que rep itam ab stratam en te os ritm os de
u m a filosofia dialética d a história: u m a filosofia que opõe à
co ntraditoriedade das form ações m odernas, originada d a
fragm entação das antigas form as com unitárias — das quais a
fam ília, no presente, repete o parad ig m a — , a integridade de
u m a com unidade renovada. U m a com unidade que Hegel, o
qual considera o E stado “ p ropriam ente político” como form a
suprem a da com unidade ética, vê no presente, conciliando ao
m esm o tem po a contradição sociedad e/E stad o no interior d a
p ró p ria e stru tu ra de seu elem ento superior; e que M arx, o
qual considera a pretensão ética do E stado político com o ilu ­
sória, e, p o rtan to , ju lg a com o não resolvida a contradição d a
form ação social m oderna, transfere p a ra o fu tu ro Ü& socie­
dade sem Estado.
M as a diferença en tre a figura processual n a qual se a p re ­
senta o m odelo ju sn a tu ra lista e a figura sincrônica em que se
apresen ta o m odelo hegelo-m arxiano p erm anece aquém de
q u alq u er possível atenuação, e mesm o de q u a lq u er ap arência
em c o n trá rio .1E não deve nos escapar o fato de que precisa­
m ente a figura diversa, processual ou sincrônica, determ ina o

(1) É sobretudo o an d am en to típico do discurso hegeliano, com seus “ de


volvim entos” , que se presta a ser entendido segundo u m a g radação tem poral: p or
isso, não será inoportuno recordar ain d a que o próprio Hegel, falando ju stam en te do
E stado, preocupou-se em su b lin h ar a distinção en tre desenvolvim ento lógico, ou
“ dem onstração científica” , e origens históricas: cf., p o r exem plo, FD 256, 258 A.
162 M ICH ELA N G ELO B O V ER O

significado específico dos conceitos singulares e a visão global


d a realidade que é possibilitada p o r u m a e o u tra dicotom ias.
E xam inando aqu ela diferença, é possível c a p ta r sin tetica­
m ente to d a a distância que existe entre os dois m odelos e, ao
m esm o tem po, os term os ideais da passagem de um p a ra o
outro, as operações que presidem ta l passagem e que podem
ser ag ru p ad as n u m a espécie de código de tran sfo rm ação . Com
efeito, 1) com a superação d a instância ju sn a tu ra lista do iso­
lam ento n a tu ra l, e com a recuperação d a figura de seu p o rta ­
dor, o indivíduo in dependente, como elem ento sim ples d a so­
ciedade m oderna, desaparecem ao m esm o tem po o status na-
turae — m om ento d a desagregação o riginária, necessário
antecedente p a ra a construção da societas civilis — e o pac-
tum unionis — m om ento d a agregação, necessário term o m é­
dio entre as opostas condições n a tu ra l e civil. E m ou tras p a la ­
vras: o segundo m odelo elide os antecedentes d a sociabilidade,
não porque su p rim a a instância d a individualidade neles con­
tida, m as n a m edida em que o indivíduo aparece ju n ta m e n te
com a figura m ais im ed iata d a coletividade, com o seu ele­
m ento sim ples. E 2), com a distinção das instâncias contidas
inseparavelm ente n a categoria de societas civilis — a in stân cia
da conexão ou vínculo social e a d a com posição ou u n id ad e
política — , e com o reconhecim ento de sua explicitação em
dois níveis contrapostos d a coletividade (privado e público), é
reintegrada a figura d a antítese, m as em term os de sistem a
sincrônico. E m o u tras palavras: no segundo m odelo, o p ro ­
blem a da form ação social m oderna é apresen tad o com o o p ro ­
blem a de duas instâncias contrapostas (do m esm o m odo como
no prim eiro modelo: nu m caso, indivíduo e sociedade política;
no outro, sociedade civil e sociedade política), não p o rq u e o
m odelo m ais recente copie o andam ento do m odelo m ais a n ­
tigo, m as p orque tran sfo rm a sua figura global de processual
em sincrônica.
Não se tra ta de sim ples jogos form ais: a diferença conclu­
siva, e p o r assim dizer sintética, não se refere sim plesm ente à
superfície dos esquem as conceituais, m as corresponde à dife­
rença de significado histórico que separa as concepções do
problem a m oderno perm itidas p o r u m e p o r outro m odelo.
P or um lado,- o m odelo ju sn atu ralista, em seu p róprio a n d a ­
m ento processual, expressa a aspiração, e, ao m esm o tem po,
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 163

reflete a tendência histórica efetiva, no sentido d a refundação


de u m a ordem social global com base n a “ nova” liberdade in ­
dividual, a “ liberdade dos m odernos” , n a m edida em que a
ordem p ré-m oderna p arecia desagregar-se precisam ente p o r
causa do declínio de seu (oposto) fundam ento: o princípio da
dependência pessoal, m ultiplicado em todos os níveis p o r meio
de relações de subordinação. T odas as valências da relação
que se d á entre status naturae e societas civilis revelam a ad e­
rência desse esquem a ao projeto dessa nova form ação social:
se é verdade que a idéia de u m a sociedade n a tu ra l p recária
decorre, pelo m enos em p a rte , de u m a consideração a b stra ta
da afirm ação d a lib erd ad e pessoal no m u ndo m oderno, é ta m ­
bém verdade que a identificação d a liberd ad e como algo o ri­
ginário e n a tu ra l perm ite u m a reivindicação cad a vez m ais
radical dos direitos do hom em ; se é verdade que a exigência
im prescindível de sair do status naturae e a idéia de u m a so­
cietas civilis como algo unificado no p o d er com um term in am
p o r subverter a in stân cia d a autonom ia individual, é tam b ém
verdade que o pró p rio ponto de p a rtid a posto no indivíduo e a
criação co n tratu al do E stad o perm item o projeto de u m a polí­
tica constitutivam ente nova. Ê a p a rtir de H obbes que com e­
çam os a assistir ao “ prodigioso espetáculo de com eçar a p a rtir
do início e a p a rtir do p ensam ento” a construção de u m E s­
tado, 2 ain d a que se tra te de u m a construção p u ram en te teó­
rica.
P o r outro lado, o m odelo hegelo-m arxiano constitui u m a
ten tativ a de in terp retação d a e stru tu ra global d a form ação so­
cial m od ern a ta l com o essa foi se reorganizando depois das
revoluções, reflete a sua có ntraditoriedade e expressa a exi­
gência de com preender suas leis próprias. A figura d a relação
in stitu íd a en tre bürgerliche Gesellschaft e politischer Staat
expressa não m ais a passagem d a dissociação à associação,
m as sim a ordem -organização que é p ró p ria d a sociedade m o­
dern a en q u an to constitutivam ente dissociada, p a ra além da
antiga ordem fu n d a d a sobre vínculos com unitários. E , en ­
q u an to Hegel acred ita descobrir como princípio intern o da

(2) São as célebres palavras que Hegel dedica ao m ovim ento revolucioná
francês, e a R ousseau com o seu in sp irad o r ideal, em F D 258 A.
164 M ICH ELA N G ELO B O V ERO

nova ordem u m a eticidade renovada, que harm o n iza o sujeito


com a e stru tu ra objetiva, M arx sondará num grau de ulterior
desenvolvim ento e nu m nível de m aior p rofundidade as rela­
ções de base da sociedade m oderna, enxergando em sua e stru ­
tu ra global u m a contradição que a leva ao declínio.
Bibliografia

V astíssim a, infindável, p raticam ente inesgotável é a lite ra tu ra filosó­


fica sobre a idéia do direito n atu ra l, sobre as várias form as que assum iu nas
diversas correntes filosóficas, sobre a contraposição entre direito n a tu ra l e
direito positivo, etc., etc. M uito m enos extensa, e de nen h u m m odo satis­
fatória, é a literatu ra sobre a história do direito n atu ra l, à qual se refere essa
bibliografia. P a ra um a p rim eira visão global clara, ver G . Fassò, S to r ia
d e lia filo s o fia d e ld i r i tt o , vol. II: L 'e tà m o d e r n a , B olonha, 1968, e a litera­
tu ra nela citada. O u tras histórias de caráter geral: G . de M ontem ayor, S t o ­
ria d e i d ir itto n a tu r a le , N ápoles, 1911; J. S auter, D ie p h ilo s o p h is c h e n
G ru n d la g e n d e s N a tu r r e c h ts . U n te rs u c h u n g e n z u r G e sc h ic h te d e r R e c h ts ­
u n d S ta a ts le h r e , V iena, 1932 (em particu lar o cap. IV , p p . 113-96); H . W el-
zel, N a tu r r e c h t u n d M a te r ia le G e r e c h tig k e it, G öttingen, 1951 (2? ed.,
1963); A. Passerin d’Entrèves, L a d o ttr in a d e l d ir itto n a tu r a le , M ilão, 1954
(2? ed ., 1963; ed. inglesa, 1951); A. Verdross, A b e n d lä n d is c h e R e c h ts p h i­
lo so p h ie . Ih r e G ru n d la g e n u n d H a u p tp r o b le m e in g e s c h ic h tilic h e r F o r m ,
Viena, 1963; G. Fassò, I I d ir itto n a tu r a le , R om a, 1964; G . Fassò, L a le g g e
d e lia ra g io n e , B olonha, 1964; A. Brim o, L e s g r a n d s c o u r a n ts d e la p h il o ­
s o p h ie d u d r o it e t d e l'É t a t, P aris, 1967.
E m particu lar, sobre a história do direito n a tu ra l m oderno, G . Solari,
L a sc u o la d e l d ir itto n a tu r a le n e lle d o ttr in e e tic o g iu r id ic h e d e i se c o li X V I I e
X V I I I , T u rim , 1904; G . Solari, F ilo so fia d e l d ir itto p r iv a to . I. I n d iv id u a ­
lis m o e d ir itto p r iv a to , T urim , 1911 (2? ed., 1959); L. Le F u r, “ la doctrine
du droit n a tu rel depuis le X V III siècle et la doctrine m oderne” , in R e c u e il
d e s C o u rs d e l ’A c a d é m ie d e D r o it In te r n a tio n a l, X V III, 1927; G . G urvitch,
L ’id é e d u d r o it so cia l. N o tio n e t s y s tè m e d u d r o it so cia l. H is to ir e d o c tr in a le
d e p u is le X V I I siè c le ju s q u a la f i n d e X I X siè c le , P aris, 1932; E. Cassirer,
D ie P h ilo s o p h ie d e r A u fk l ä r u n g , T übingen, 1932 (Florença, 1935); H. Fehr,
D ie A u s tr a h lu n g d e s N a tu r r e c h ts d e r A u fk lä r u n g , B erna, 1938; H. Thiem e,
166 B IB LIO G R A FIA

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(2? ed., 1954); N. B obbio , II diritto naturale d e isecolo X V I I I , T urim , 1947;
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1951 (em p a rtic u la r o capítulo in titu lad o “ D er ‘m os geom etricus’ ” , pp.
321-39); L. Strauss, N atural R ig ht and History, C hicago, 1953 (V eneza,
1957); M . Villey, “ Les fondateurs de l’École du droit n a tu re l” , in Archives
de Philosophie du D roit, 1961; G . Solari, Z a form azione storica e filosofica
dello stato m oderno, T u rim , 1962; C. B. M cpherson, The political theory o f
possessive individualism , O xford, 1962 [ed. brasileira: A teoria política do
individualismo possessivo , Rio de Janeiro, P az e T erra, 19791; S. C otta, “ II
pensiero politico dei razionalism o e dell’illum inism o” , in N uove Questioni
di Storia M oderna, vol. II, M ilão, 1964; M . Villey, Cours d ’histoire de la
philosophie du droit. La fo rm a tio n de la pensée ju rid iq u e m oderne, Paris,
1968; A. J . A rnaud, Les origines doctrinales du Code civil français, Paris,
1969. As principais d outrinas políticas do ju sn atu ralism o estão expostas p o r
R. D erath é, Jean-Jacques Rousseau et la science p olitique de son tem ps,
P aris, 1950(2? edição, com acréscim os, 1970).
No que se refere à lite ra tu ra específica sobre a escola do direito n a tu ra l
na A lem anha, ain d a hoje é fundam ental, pela riq u eza d a inform ação, R.
Stintzing-E. L andesberg, Geschichte der deutschen Rechtsw issenschaft,
M unique-Leipzig-B erlim , 1880-1910, 6 vols, (são dedicados à escola do di­
reito n a tu ra l alem ão todos os dois tom os, um de texto e um de notas, da
P arte I do vol. III). R iquíssim o de inform ações é o recente livro de A. Du-
four, Le mariage dans l'école allemande du droit naturel m oderne au X V I I I
siècle, P aris, 1972, cuja p rim eira p a rte é dedicada a u m a exposição do p en ­
sam ento de G rócio, P ufendorf, T hom asius e W olff. O u tra s obras: E . W olf,
Grotius, Pufendorf, Thomasius. D rei K apitel zu r Gestaltgeschichte der
Rechtwissenschaft, T übingen, 1927; E . W olf, Grosse R echtsdenker der
deutschen Geistesgeschichte, T übingen, 1939 (4? e d ., 1963); M . W u n d t,
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X V II e X V III siècles” , in Archives de Philosophie du D roit, 1939; F . W iea-
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cameralismo e l ’a ssolutismo tedesco, M ilão, 1968 (em p a rtic u la r o cap. II
da P arte II, “ Il c a ra tte ri ideologici dell’assolutism o tedesco” , p p . 231-61).
P ara um a in terp retação global do jusn atu ralism o , P. C osta, Ilp ro g e tto giu-
ridico. Ricerche sulla giurisprudenza dei liberalismo clássico, vol. I: Da
Hobbes a B enth am , M ilão, 1974, especialm ente a sexta seção, “ La m eta-
fora g iu sn atu ralistica” , p p . 293-310.
Sobre os tem as que caracterizam o ju sn atu ralism o m odem o, cf. p a ra
o conceito de n atu reza, G . D el Vecchio, Il concetto délia natura e il p rin c i­
pio d eld iritto , T u rim , 1908 (2? ed ., Bolonha, 1922; 3? ed. no volum e Pres-
suposti, concetto e principio del diritto, M ilão, 1959). P a ra o estado de
n atu reza, S. L anducci, Ilfîlo s o fi e i selvaggi (1580-1780), B ári, 1972, cap.
II, “ Lo stato di n a tu ra ” , p p . 93-178. Sobre o co n trato social, G . D el Vec­
chio, Sulla teoria del contratto sociale, Bolonha, 1906; P . G entile, Sulla
dotrina del contratto sociale, Bolonha, 1913; G . R ichard, “ La critique de
S O C IED A D E E E S T A D O NA F IL O S O F IA P O L lT IC A M O D E R N A 167

1’hypothèse du co n trat social avant J.-J. R ousseau” , in Archives de Philoso­


p h ie du D roit, 1937; J. G ough, The social contract. A critical study o f its
developm ent, O xford, 1936 (2? ed ., 1937); M . D ’A ddio, L ’idea del con-
tratto sociale dai sofisti alia riforma e il D e principatu d i M ario Salamonio,
M ilão, 1954. P a ra a reconstrução d a história dos p rin cip ais conceitos d a fi­
losofia política m edieval e m o d ern a, inclusive d a idéia do co n trato social,
continua fu n d am en tal O . von G ierke, Johannes A lthusius u n d die E ntw ick­
lung der naturrechtlichen Staatstheorien, B reslau, 1 8 8 0 (T u rim , 1943).
No que se refere ao aspecto m ais propriam ente m etodológico da teoria
do direito n a tu ra l, sobre o q u a l chamei, atenção no texto, é de capital im ­
p o rtân cia o recente livro de W . R öd, Geometrischer Geist u n d Naturrecht,
M unique, 1970, que exam ina do p o n to de vista do m étodo as doutrinas de
H obbes, P ufendorf, Leibniz e W olff. Sobre o tem a, cf. tam b ém G . Tonelli,
“ D er S treit ü b e r die m ath em atisch e M ethode in d er Philosophie in der
ersten H älfte des 18. Ja h rh u n d e rts” , in Archiv fü r Philosophie, 1,959; e E.
D e Angelis, II m etodo geometrico nella filosofia del Seicento, Pisa, 1964.
Sobre os autores singulares exam inados no texto, indico em seguida
bibliografias essenciais, com p a rtic u la r referência ao tem a do direito n a ­
tural.
Hugo Grócio (1583-1645) — Texto: De iure belli ac pácis, Parisis,
1925; tra d , italian a dos Prolegomeni, aos cuidados de S. C atalano e E . D i
Cario, P alerm o, 1948; aos cuidados de G. Fassò, B olonha, 1949. O bras
bibliográficas: J. T er M eulen, Concise bibliography o f H. Grotius, Leiden,
1925; J. T er M eulen e P. J. J. D ierm anse, Bibliographie des écrits im prim es
de Hugo Grotius, H aia, 1950; Bibliographie des écrits sur Hugo Grotius,
H aia, 1961. A p rincipal lite ra tu ra sobre o pensam ento de G rócio é exam i­
n a d a n a “ In troduzione” ao livro de F. D e M ichelis, L e origini storiche e
culturali dei pensiero di Ugo Grozio, Florença, 1967. P a ra a bibliografia,
ain d a é fu n d am en tal W . S. M . K night, The life and th e works o f H ugo
Grotius, Londres, 1925. E m gran d e p arte biográficos são os ensaios conti­
dos no volum e de V ários A utores, Hugo Grotius. Essays on his life and
works selected fo r the occasion o f the tercentenary o f his “D e iure belli ac
p a d s ” Leiden, 1925. Sobre o seu pensam ento filosófico-jurídico, cf. von
C athrein, “ Ist H ugo G rotius der B egründer des N a tu rrech ts?” , in A rchiv
fü r Rechts- u n d W irtschaftsphilosophie, 1910-1911; A. F alchi, “ C arattere e
intento del D e iure belli ac p a c is”, in Rivista In tem azionale d i Filosofia del
D iritto, 1925; G . G urvitch, “ La philosophie du droit de H . G rotius” , in
R evue de M êtaphysique et de M orale, 1927; G . Solari, “ II ius circa sacra
nell’etä e nella d o ttrin a di Ugo G rozio” , in S tu d i filosofico-giuridici dedicati
a G. D el Vecchio, M odena, 1931 (agora em S tu d i storici d i filosofia del
diritto, T u rim , 1949); P h. M eylan, “ G rotius et l’école d u d ro it n atu rel” , in
H om m age a Grotius, L ausanne, 1946; A. C orsano, Ugo Grozio. L 'um a-
nista, il teologo, ilgiu rista , B ári, 1948; P. O ttenw älder, Z u r Naturrechets-
lehre des H ugo G rotius, T übingen, 1950; G . A m brosetti, I pressupposti
teologici e speculativi delle concezionigiuridiche d i G rozio, Bolonha, 1955;
A. D roetto, S tu d i groziani, T urim , 1968 (contém escritos vários, predom i­
nantem ente sobre o p ensam ento jurídico grociano, publicados e n tre . 1942
e 1964).
168 B IB LIO G R A FIA

Thomas H obbes (1588-1679) — O bras: The Elem ents o f Law Natural


and Politic (1640), tra d . it. de A. Pacchi, F lorença, 1968; Elem entorum
philosophiae sectio tertia de cive, Parisis, 1942, tra d . it. de N. Bobbio, T u ­
rim , 1948, 2? ed ., 1959; Leviathan, Londres, 1651 led. brasileira: Leviatä,
trad , de J. P. M onteiro e M. B. Nizza da Silva, São P aulo, A bril C ultural,
col. “ O s P ensadores” , vol. X IV , 19741; B ehem oth, Londres, 1679 (B ári,
1978). P a ra o problem a do ju sn atu ralism o hobbesiano, fu n d am en tal é H.
W arrender, The political philosophy o f Hobbes. His theory o f obligation,
Oxford, 1957. O utros escritos sobre o tem a específico d a relação entre H o b ­
bes e o direito n atu ral, N. Bobbio, “ Legge n atu rale e legge civile nella filo­
sofia politica di H obbes” , in S tu d i in memoria de G. Solari, T urim , 1954;
M. A. C attaneo, I I p ositivism o giuridico inglese. Hobbes, B entham , A ustin,
M ilão, 1962; N. Bobbio, “ H obbes e il giusnaturalism o” , in Rivista critica di
storia delia filosofia, 1962; D . D . R aphael, “ O bligations an d rights in Hob-
b esd” , in Philosophy, 1962; P. C. M ayer Tasch, Thom as H obbes und das
W iderstandsrecht , T übingen, 1965; F. S. Neilly, The anatom y o f Leviathan,
Londres, 1968; D . F. G au th ier, The logic o f Leviathan, O xford, 1969; Hob-
bes-Fórschungen, B erlim , 1969; E. G riffin-C ollart, “ É galité naturelle e t so-
ciété civile chez H obbes, Locke et H um e” , in Annales de l ’I nstitute de P hi­
losophie (B ruxelas), 1970; G . M . Chiodi, Legge naturale e legge positiva
nella filosofia politica di Tom m aso Hobbes, M ilão, 1970; A. Pacchi, Intro-
duzione a H obbes, B ári, 1971; B. C am pbell, “ Prescription an d D escription
in Political T hought. T he Case for H obbes” , in The Am erican Political
Science Review , 1971; fascículo At Anales de la Cátedra Francisco Suárez,
1974; D . Pasini, “ P a u ra reciproca e p a u ra com une in H obbes” , in Problemi
di Filosofia Politica, M ilão, 1977; A. Piazzi, “ Stato e p ro p rietà nella teoria
politica di T . H obbes” , in M . T ronti, Stato e rivoluzione in Inghilterra, M i­
lão, 1977; M . T ronti, “ H obbes e Crom wel” , ibidem', A. Loche, D iritto e
legge in H obbes, Sassari, 1978; D. Neri, “ La teoria dell’obbligo politico in
T . H obbes. Problem i e in terpretazioni” , in Q uadem i d e ll’I stituto G. Della
Volpe, M essina, 1978; O. N icastro, Introduzione a B ehem oth, B ári, 1978.
Sam uel von P u fen d o rf (1632-1694) — O bras: E lem entorum iurispru-
dentiae universalis libri duo, H alae, 1660 (2? ed ., C antabrigiae, 1672, edi­
ção em reprodução an astática, com trad u ção inglesa, O xford, 1931,2 vols.);
De iure naturae et gentium libri octo, L und, 1672, tra d , italian a parcial por
N. Bobbio, in S. Pufendorf, Principi di diritto naturale, T u rim , 1943. E n ­
saio biográfico: P. M eyer, Sam uel Pufendorf. Ein Beitrag zu r Geschichte
seines Lebens, G rim m a, 1895. O interesse pelo pensam ento jurídico-filosó-
fico de P ufendorf é relativam ente recente. P or m uitos anos, o único estudo
orgânico foi o de H. W elzel, Die Naturrechtslehre Sam uel Pufendorfs, Iena,
1930 (2? ed., 1958). Seguiram -se, a breve distância de tem po, as seguintes
m onografias: H. R abe, N aturrecht u n d Kirche bei Sam uel von P ufendorf,
T übingen, 1958; L. K rieger, The politics o f discretion. P ufendord and the
acceptance o f natural law , Chicago-Londres, 1965; J. B rufau P rats, La acti-
tu d metodica de P ufend orf y la configuración de la D isciplina iuris natura-
lis, M adri, 1968; H. D enzer, Moralphilosophie u n d N aturrechts bei S. P u ­
fen d o rf, M unique, 1972. Ao m estre de Pufendorf, refere-se o ensaio de W .
Röd, “ E h ra rd W eigels. Lehre von E n tia m oralia” , in Archiv fü r Geschichte
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA PO LÍTIC A M O D ER N A 169

der Philosophie, 1969; F . Paladini, Discussioni seicentesche su Sam uel Pu-


fen d o rf, B olonha, 1978.
Baruch Spinoza (1632-1677) — O bras: Tractatus theologico-politicus,
A m stelodam i, 1670, tra d , italian a de E . G iancott Boscherini e A. D roetto,
T urim , 1972; Tractatus politicus (1676), trad . it. de A. D roetto, T urim ,
1958 [ed. brasileira: Tratado político, trad , de M anuel de C astro, São P au ­
lo, A bril C ultural, col. “ O s P ensadores” , vol. X V II, 1973, p p . 309-721. Os
escritos que elencarem os a seguir referem -se exclusivam ente aos tem as de
filosofia política e ju ríd ic a exam inados no texto: A. M enzel, “ D er Sozial­
vertrag bei Spinoza” , in Zeitschrift fü r die Privat- un d öffentliches R echt,
1907; G . Solari, “ La d o ttrin a del contratto sociale in Spinoza” , in Rivista di
Filosofia, 1927 (depois em S tu d i storici di filosofia del diritto, cit.); A. M en­
zel, “ Spinozas Lehre von d er G eistesfreiheit” , in Zeitschrift fü r öffentliches
R echt, 1929; G . Solari, “ L a politica religiosa di Spinoza e la sua d o ttrin a del
i'm s sacru m ”, in Rivista d i Filosofia, 1930 (depois em S tu d i storici à i filosofia
del diritto, cit.); W . E ckstein, “ D ie rechtsphilosophischen Lehren Spinozas
im Z usam m enghan m it seiner allgem einen Philosophie” , in Archiv fü r
Recht- u n d W irtschaftsphilosophie, 1932-1933; M . R ances, “ Les rém inis-
cences spinozistes dans le c o n trat social de R ousseau” , in Revue Philoso-
p h iq u e, 1951; L. S. F euer, Spinoza and the rise o f liberalism , Boston, 1958;
A. D eregibus, La filosofia etico-politica di Spinoza, T u rim , 1963; W . R od,
“ Spinozas Lehre von d er Societas” , in Filosofia, 1967 e 1968; R. J. M cSchea,
The political philosophy o f Spinoza, Nova Iorque, 1968; A. D roetto, “ Ge-
nesi e storia del T ra tta to teologico-politico” , in S tu d i Urbinati, 1969; A.
M atheron, Individu et com m unauté chez Spinoza, P aris, 1969; C. Signo-
rile, Politica e ragione. Spinoza e ilp rim a to dellapolitica, P ád u a, 1970; C.
G allicet Calvetti, Spinoza lettore de Machiavelli, M ilão, 1972; E . G iacotti
Boscherini, “ Introduzione” à ed. italiana do Tratatto teologico-politico,
cit.; L. M ugnier-Pollet, La p hilo so ph iepolitique de Spinoza, Paris, 1976;
um fascículo do G iom ale Critico della Filosofia Italiana, LV II, 1977; M .
Corsi, Politica e saggezza in Spinoza, Nápoles, 1978.
John L ocke (1632-1704) — O bras: Essays on the law o f nature{ 1660-
1664), publicados pela p rim eira vez p o r W . von Leyden, O xford, 1954, tra d ,
italian a de G . Bedeschi e M . C ristiani, Bári, 1973; Two treatises o f G o­
vernm ent, Londres, 1960, ed. crítica por P. L aslett, C am bridge, 1960, tra d ,
italian a de L. Pareyson, T urim , 1948 [ed. brasileira do Segundo tratado
sobre o govem o, tra d , de E . Jacy M onteiro, São P aulo, A bril C ultural, col.
“ Os P ensadores” , vol. X V III, 1973, p p . 37-137). O interesse pelo ju sn atu -
ralism o de Locke foi despertado pela publicação dos Ensaios sobre a lei
natural, citados, ocorrida em 1954. A com eçar pelo p ró p rio editor d a cole­
tânea: W . von Leyden, “ John Locke on the law of n a tu re ” , in The Philo­
sophical Review, 1958; R. Pollin, La politique morale de John Locke, Paris,
1960; R. H . Cox, Locke on war and peace, O xford, 1960; C. A. V iano, John
Locke. D al razionalismo a ll’illum inism o, T urim , 1960 (a prim eira p arte,
“ Filosofia e vita civile” , é dedicada ao pensam ento político); N. Bobbio,
Locke e il diritto naturale, T urim , 1962; M. Seliger, The liberal politics o f
John L ocke, Londres, 1968; H . Aarsleff, “ T he state of n a tu re an d th e n a­
tu re of m an in Locke” , in John Locke. Problems a n d Perpectives, O xford,
170 B IB LIO G R A FIA

1969; R. A schcraft, “ Locke’s state of n atu re. H istorical fact o r m oral fic­
tio n ?” , in The Am ericanl Political Science Review, 1969; J. D u n n , The p o li­
tical thought o f John Locke. A n historical account o f the argum ent o f the
Two Treatises o f G overnm ent, C am bridge, 1969; W . E ucken, N aturrecht
u nd Politik bei John L ocke, F ran k fu rt, 1969 (B ári, 1976); G . Bedeschi,
“ Locke filosofo della società civüe” , in G iom ale Crítico della Filosofia I ta ­
liana, 1972; J. W . G ough, J. L o c k e ’s Political Philosophy, O xford, 1973
(1? ed ., 1950); W . von Leyden, “ La loi, la liberté e t la prerogative dans la
pensée politique de J. Locke” , in Revue Philosophique de la France e de
VÉtranger, 1973; K. Olivecrona, “ Locke on the O rigin of P roperty” , in
Journal o f History o f Ideas, 1974; “ Locke Theory of A ppropriation” , in
Philosophical Quarterly, 1974; “ T he T erm ‘P roperty’ in Locke’s Two T rea­
tises of G overnm ent” , in A rchiv f ü r Rechts- u n d Sozialphilosophie, 1975;
M . Rostock, Die Lehre von der Gewaltenteilung in der politischen Theorie
von J. L ocke, M eisenheim am G lan, 1974; G . Z arone, J. Locke: Scienza e
form a della politico, B ári, 1975; R . A. Goldwin, “ Locke’s S tate of N ature
in Political Science” , in Western Political Quarterly, 1976; J. H . F ran k lin ,
J. L ocke an d the Theory o f Sovereignity, C am bridge, 1978.
G ottfried W ilhelm Leibniz (1646-1716) — As teorias filosófico-jurí-
dicas de Leibniz estão dispersas em escritos fragm entários e incom pletos;
os principais foram publicados p o r G . M ollat, Rechtsphilosophisches aus
Leibnizens ungedruckten Schriften, Leipzig, 1885 (2? ed. am pliada, M ittei­
lungen aus Leibnizens ungedruckten Schriften, Leipzig, 1893); trad , ita ­
lian a de V. M athieu, T u rim , 1951. A inda útil a m onografia de E . R uck, Die
Leibnizsche Staatsidee aus den Quellen dargestellt, T übingen, 1909. F u n ­
dam entais, pela riqueza d a docum entação, os dois livros de G . G ru a, Juris­
prudence universelle et théodicée selon Leibniz, P aris, 1953, e La justice
hum aine selon L eibniz, P aris, 1956. Sobre pontos singulares do seu p en sa­
m ento ju rídico: G . Solari, “ M etafísica e diritto in Leibniz” , in Rivista di
Filosofia, 1947, e N. Bobbio, “ Leibniz e Pufendorf” , ibid. T am bém G .
Aceti, “ Sulla Nova M ethodus discendae docendaeque iurisprudentiae di
G offredo G uglielm o L eibniz” , in Jus, 1957, e “ Jakob T hom asius e il pen-
siero filosofico-giuridico di Leibniz” , in Jus, 1957. A dem ais, as duas m ais
recentes m onografias sobre o tem a: K. H erm ann, D as Staatsdenken bei
Leibniz, Bonn, 1958, e H . P. Schneider, Justitia universalis. Q uelenstudien
zu r Geschichte der cristilichen N aturrecht bei G. W . L eibniz, F ra n k fu rt,
1967.
Christian Thom asius (1655-1728) — O bras: Institutionesiurispruden­
tiae divinae, F ra n k fu rt e Leipzig, 1688, e F undam enta iuris naturae et gen­
tium ex sensu com m uni deducta in quibus secernuntur principia honesti,
iu stia c decori, H alle, 1705. Escritos bio- e bibliográficos: M . Fleischm ann,
Christian Thomasius, Leben u n d Lebenswaerk, H alle, 1931; R . Lieber-
W irth, Christian Thomasius, sein wissenschaftsliches Lebenswerk. E ine B i­
bliographie, W eim ar, 1955; G . Sim son, Einer gegen Alle. Die Lebensbilder
von Christian Thom asius, M unique, 1960. Sobre o pensam ento filosófico-
jurídico, a única m onografia com pleta é a de F. B attaglia, Cristiano To-
masio, filosofo e giurista, R om a, 1936, à qual se segue a resenha crítica de
G . Solari, “ C ristiano T om asio” , in Rivista di Filosofia, 1939 (depois em
SO C IED A D E E E S TA D O NA FIL O SO FIA P O L lT IC A M O D ER N A 171

S tu d i storici di filosofia dei diritto, cit.). P ara u m a consideração geral de seu


pensam ento, cf. E . Bloch, Christian Thomasius. Ein deutscher Gelehrter
ohne M isere, Berlim , 1953.
Jean B arbeyrac (1674-1744) — Ph. M eylan, Jean Barbeyrac et les
débuts de l'enseignem ent du droit dans l'ancienne A cadém ie de Lausanne.
C ontribution « l'histoire du droit naturel, Lausanne, 1937.
Christian W o lff ( 1679-1754) — O b ra :Jus naturae m ethodo scientifica
p ertractatum , F ra n k fu rt e Leipzig, 1740-1748, 8 vols. E m geral, sobre a fi­
losofia de W olff: M . C am po, Christiaro W o lff e il razionalismo precritico,
M ilão, 1939, 2 vols. Sobre o seu pensam ento ético, político e jurídico, W .
F rauendienst, Christian W o lff als Staatsdenker, B erlim , 1927; C. Joesten,
Christian W olffs Grundlegung der praktischen Philosophie, Leipzig, 1931;
M . T ho m an n , “ C hristian W olff et le droit subjectif” , in Archives de P hilo­
sophie du D roit, 1964.
Jean-Jacques B urlam aqui (1694-1748) — G . G agnebin, Burlam aqui
et le droit naturel, G enebra, 1944. '
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) — O b ras principais: Discours sur
l ’origine et les fo n dém ents de l ’inégalité (1754) e D u contrat social (1762).
 m bas se encontram nas duas m ais recentes coletâneas de escritos políticos
de Rousseau, um a ed itad a po r P. A latri, T urim , 1970, e o u tra p o r E . G arin,
Bári, 1971 led. brasileira: Discurso sobre a origem e os fund am entos da
desigualdade e Do contrato social, trad , de Lourdes S. M achado, São P a u ­
lo, A bril C ultural, col. “ O s Pensadores” , vol. XXIV , 1973, p p . 207-326 e
7-1511. A m elhor edição com entada do Contrato social é a organizada po r
M . H albw achs, P aris, 1943. U m a cuidadosíssim a bibliografia sobre R ous­
seau político se encontra n a ed. italian a dos Scrittipolitici, ed. por P. A latri,
cit. P a ra o problem a da relação en tre Rousseau e o ju sn atu ralism o , fu n d a­
m ental é o livro de R. D erath ê, Jean-Jacques Rousseau et la science p o li­
tique de son tem ps, já cit. M as são tam bém im p o rtan tes duas m onografias
recentes, em bora inspiradas em duas interpretações opostas: I. Fetscher,
Rousseau politische Philosophie, Neuwied, 1960 (M ilão, 1972); e L. G . C ro­
cker, Rousseau ’s social contract. A n interpretative essay, Cleveland, 1968
(T urim , 1971). N a recente lite ra tu ra italiana, cabe registrar: S. C otta,
“ T héorie religieuse et théorie politique chez R ousseau” , in Vários A utores,
Rousseau et la philosophique politique, P aris, 1965, e L. Colletti, “ R ous­
seau critico della società civile” , in D e H om ine, 1968 (depois em Ideologia e
società, B ári, 1969). D epois da bibliografia de A latri, foram publicados:
R. Polin, La politique de la solitude. Essai surJ.-J. Rousseau, P aris, 1971;
P . C asini, Introduzione a Rousseau, Bári, 1974, com bibliografia; G . Forni,
Alienazione e storia. Saggio su Rousseau, Bolonha, 1976; P. P asqualucci,
Rousseau e K a nt, 2 vols., M ilão, 1974 e 1976; J. W . C hap m an , Rousseau
totalitario o liberale?, Lecce, 1974; A. Illum inati, J. -J. Rousseau e la fo n -
dazione dei valori borghesi, M ilão, 1977.
Im m a n u el K a nt (1724-1804) — O b ra principal: M etaphysik der S it­
ten. I. Rechtslehre, K önigsberg, 1797, tra d , italian a, T u rim , 1916, nova
edição revista, p o r N. M erker, B ári, 1970. P a ra os escritos ju rídicos e polí­
ticos m enores, cf. S critti politici e d i filosofia delia storia dei diritto, T urim ,
1956. P a ra u m a visão de conjunto do pensam ento político k an tian o , G.
172 BIB LIO G R A FIA

Vlachos, La p e n sé e politique de K a nt, Paris, 1962. O u tras obras: J. K raft,


Die M ethode der Rechtstheorie in der Schule von K a n t u n d Fries, Berlim ,
1924; W . H aensel, K ants Lehre vom W iderstansrecht. E in Beitrag zu r Sys­
tem atik der kantischen Rechtsphilosophie, Berlim , 1926; G . Solari, “ Scien-
za e m etafisica del diritto in K a n t” , in A ttid e lla R . A ccadem ia delle scienze
d i Torino, 1926 (depois em S tu d i storici di filosofia del diritto, cit.); G . So­
lari, “ II concetto di società in K a n t” , Rivista di Filosofia, 1934, (depois em
S tu d i storici, cit.); J. M ueller, Kantisches Staatsdenken u n d der pressische
Staat, K itzingen, 1954; D . Pasini, D iritto, società e stato in K a n t, M ilão,
1957; N. Bobbio, D iritto e stato nel pensiero d i E m m anuele K a n t, T urim ,
1957 (2? e d ., 1969) led. brasileira: Direito e Estado no pensam ento de E m a ­
nuel K a n t, tra d , de A lfredo F ait, Brasília, E d ito ra U niversidade de Brasília,
19841; V ários A utores, La philosophie politique de K a n t, P aris, 1962 (com
escritos de E . W eil, T h. Ruyssen, M . Villey, P. H assner, N. Bobbio, L. W .
Beck, C. J. Friedrich, R. Polin); U . Cerroni, K a n t e la fondazione della
categoria giuridica, M ilão, 1962; L. K rieger, “ K an t an d the crisis of the
n a tu ra l law ” , in Journal o f the History o f Ideas, 1965; A. Illum inati, K a n t
politico, Florença, 1971; N. M erker, “ Introduzione” a K an t, Lo Stato di
diritto, R om a, 1973; M . D ’A ddio, “ K ant e la R epubblica p lató n ica” , in II
pensiero politico , 1976.

II

H egel-M arx. A relação en tre Hegel e M arx foi e stu d ad a dos m ais di­
versos pontos de vista e em função dos m ais variados tem as. Indicarem os a
seguir, sem n en h u m a pretensão exaustiva e com m aior atenção às contribui­
ções m ais recentes, apenas os trabalhos que, d ireta ou indiretam ente, refe-
rem -se aos problem as de filosofia política tratad o s no presente volume: P.
Vogel, Hegels G esellschaftsbegriff u nd seine geschichtliche Fortbildung
durch Lorenz von Stein, M arx, Engels un d Lassalle, B erlim , 1925; S. H ook,
From Hegel to M arx, Londres, 1936 (Florença, 1972); K. Löwith, Von H e­
gel zu N ietsche, Z urique, 1941 (T urim , 1949); C. A ntoni, C onsiderazionisu
Hegel e M a rx, Nápoles, 1946; J. H yppolite, É tudes sur M arx et Hegel, P a ­
ris, 1955(M ilão, 1965, 2? ed ., 1973); I. Fetscher, “ D as V erhältnis des M a r­
xism us zu H egel” , in M arxism usstudien, III, T übingen, 1960 [ed. b rasi­
leira: “ Relação entre m arxism o e H egel” , trad . de H eidrun M . da Silva, in
I. Fetscher, K arl M arx e os m arxism os, Rio de Janeiro, P az e T erra, 1970,
pp. 49-1471; J. H aberm as, Strukturw andel der O effentliehkeit, Neuwied,
1962 [ed. brasileira: M udança estrutural da esfera pública, tra d . de Flávio
R. K othe, Rio de Janeiro, T em po Brasileiro, 19841; J. B arion, Hegel u n d
die marxistische Staatslehre , Bonn, 1963, 2? e d ., 1970; R. de L acharriere,
É tudes sur la thêorie démocratique: Spinoza, Rousseau, Hegel, M arx, P a ­
ris, 1963; J. H aberm as, Theorie u n d Praxis, N euwied-Berlim , 1963, 3? ed.,
1969 (B olonha, Í973); G . H illm ann, M arx u n d Hegel. Von der Spekulation
zu r D ialektik, F ra n k fu rt, 1966; S.Avineri, “ The Hegelian O rigins of M arx ’s
S O C IED A D E E E STA D O NA F IL O SO FIA P O L lT IC A M O D E R N A 173

Political T h o u g h t” , in The Review o f M etaphisics, 1967; G . C arb o n ara,


Hegel e M arx nella polem ica dei diritto pubblico, N ápoles, 1967; A. M as-
solo, “ S chem a p er u n a discussione sul rapporto H egel-M arx” (1947-1948),
in I d ., Logica hegeliana e filosofia contemporâneo, Florença, 1967; T . I.
O iserm ann, “ M arx, Hegel et la conscience bourgeoisie d’au jo u rd ’h u i” , in
La Pensée, 1968; L. Colletti, II m arxism o e Hegel, B ári, 1969, 2? ed ., 1973;
D . C om posta, “ Hegel, M arx e la filosofia dei d iritto ” , in A quinas, 1970; L.
A lthusser, “ Sur le ra p p o rt de M arx et Hegel” , in V ários A utores, Hegel et la
pensée m oderne, ed. po r J. d ’H ondt, Paris, 1970; O . Pöggeler, “ D ie V er­
w irklichung der philosophie. Hegel u n d M arx” , in Philosophische Perspek­
tiven, 1970; V ários A utores, Hegel et M arx. La po litique et le réel, T ravaux
du C entre de R echerche et de D ocum entation su r H egel et su r M arx, Poi-
tiers, 1971; H . Henry, “ D e Hegel à M arx. Essai sur la ‘C ritique de la philo­
sophie de l’E ta t de H egel’ de M arx ” , in Vários A utores, H om m age à Jean
H yppolite, P aris, 1971; G . L ichteim , Front Hegel to M arx, N o ta Iorque,
1971; J. d ’H ondt, D e H egel à M a rx, Paris, 1972; M . Riedel, System u n d
Geschichte. Studien zu m historischen Standort von Hegels Philosophie,
F ra n k fu rt, 1973; H. Lefebvre, Hegel-M arx-Nietzsche, ou le royaum e des
om bres, T o u m a i, 1975; J. M ad er, Zwischen Hegel u n d M arx, V iena-M u-
nique, 1975; J. J. O ’Mailley, “ M arx ’s ‘Econom ics’ a n d H egel’s ‘Philosophy
of R ight’: an Essay on M arx ’s H egelianism ” , in Political Studies, 1976; R.
D e la Vega, Ideologie als Utopie. D er hegelianische R adikalism us der m ar­
xistischen L in ken , M arburgo, 1977.
Deve-se n o ta r que, recentem ente, e sobretudo n a ú ltim a década, a re­
lação H egel-M arx foi e stu d ad a sobretudo do p onto de vista da filosofia he­
geliana, ao contrário do que ocorria no passado, q u an d o era a teoria m ar-
xiana que constituía o p onto de p a rtid a e a perspectiva ad o ta d a pela m aioria
esm agadora dos estudos sobre o tem a. Por isso, são agora m ais freqüentes
as contribuições sobre o assunto provindas de especialistas do pensam ento
hegeliano que de especialistas do pensam ento de M arx (é o caso, p o r exem ­
plo, de O . Pöggeler e M . R iedel, citados acim a). D e resto, a análise da
conexão H egel-M arx aparece quase sem pre com o p an o de fundo, q u an d o
não se situ a no prim eiro plano, dos estudos sobre a teoria social e política de
Hegel: e tais estudos se m ultiplicaram extrao rd in ariam en te a p a rtir do b i­
centenário de nascim ento de Hegel (1970). P o rtan to , deve-se cf. ain d a, em
p articu lar, as obras coletivas, coletâneas de ensaios, fascículos especiais de
revistas dedicados ao pensam ento hegeliano a p a rtir d aq u ela d ata, citados
abaixo.
H e g e l( 1770-1831) — São num erosas as edições das obras hegelianas.
Além das edições clássicas m aiores (W erke, Berlim , 1832-1845,18 vols., aos
quais se acrescenta em 1887 o volume B rie f von u n d an Hegel-, Säm tliche
W erke, S tu ttg art, 1927-1939, ed. po r H. G löckner, 26 vols.) e das tentativas
incom pletas de edição crítica p o r p a rte de G. Lasson e J. H offm eister
(Säm tliche W erke. K ritische A usgabe, Leipzig, 1905 e ss.; Säm tliche W er­
ke. N eue K ritische A usgabe, H am burgo, 1952 e ss.), h á g ran d e q u an tid ad e
de edições das obras singulares. U m a edição das W erke in zw anzig Bänden,
ed. po r E . M oldenhauer e K. M . M ichel, foi p u b licad a p o r S uhrkam p,
F ra n k fu rt, 1969 e ss. Em 1968, pelo editor M einer de H am burgo, iniciou-se
174 B IB LIO G R A FIA

a publicação das G esammelte W erke, aos cuidados de um grande núm ero


de especialistas: um a edição que se propõe finalm ente a ser com pleta e ver­
dadeiram ente crítica. Além da ágil Studienausgabe in 3 B änden, ed. por K.
Lowith e M . Riedel, F ra n k fu rt, 1968, é agora de fu n d am en tal im portância
p a ra a filosofia política hegeliana a edição organizada p o r K. H. Ilting das
Vorlesungen über Rechtsphilosophie 1818-1831, S tu ttg art-B ad C an n statt,
1973-1974, em 4 volumes.
A prim eira grande bibliografia é a que aparece com o apêndice ao
ensaio de B. Croce, Ciò ehe è vivo e ciò ehe è m orto nella filosofia d i Hegel,
Bári, 1907. U m a discreta bibliografia sobre os tem as da filosofia política,
aos cuidados de K. G rü n d er, aparece como apêndice a J. R itter, Hegel und
die französische Revolution, C olonia-O pladen, 1957, posteriorm ente atu ali­
zada p a ra a segunda edição do ensaio, F ran k fu rt, 1965, e novam ente com ­
p letada, aos cuidados de G . C antillo, no apêndice à tra d . italian a do refe­
rido trab alh o de R itter, N ápoles, 1970. U m a su m ária bibliografia geral re­
digida p o r R. Schneider conclui o volume Hegel. E inführung in seine P hi­
losophie, ed. p o rO . Pöggeler, Freib urgo-M unique, 1877; por fim , veja-se a
ótim a “ B ibliografia hegeliana 1966-1976” , de L. M arino e G . Villa, no fas­
cículo especial da Rivista d i Filosofia dedicado a “ Hegel e lo S tato” , em
1977.
U m a extensa resenha de “ Studi hegeliani” (1950) constitui o cap. VI
do volum e de N. Bobbio, Da Hobbes a M arx, N ápoles, 1965. D o m esm o
autor, é a resenha “ La filosofia giuridica di Hegel neU’ultim o decennio” , in
Rivista Critica di Storia delia Filosofia, 1972; n a m esm a revista, apareceram
as úteis e inform adas resenhas de R. Bodei, “ Studi sul pensiero político ed
economico d i Hegel neU’ultim o tren ten n io ” , 1972; C. C esa, “ Hegel e la rivo-
luzione francese” , 1973; L. M arino, “ Recenti studi hegeliani in lingua fran-
cese” , 1974. A m plas resenhas foram publicadas em núm eros norm ais da
Hegel-Studien; m as cf., em italiano, o recente trab alh o de E . Bocca, “ Hegel
nel bicentenário delia n ascita ed in alcuni recenti studi italian i” , in A nnali
delia Scuola Norm ale Superiore di Pisa, Classe di L ettere e Filosofia, 1977.
U m a idéia do p a n o ram a extraordinariam ente rico e com plexo da He-
gel-Forschung contem porânea pode ser form ulada a p a rtir da série de obras
coletivas e coletâneas de ensaios, que se sucedem in in terru p tam en te a p a rtir
dos estudos do bicentenário até hoje. P a ra a teoria social e política, cf.
sobretudo: as duas coletâneas com o m esm o título de H egel’s Political Phi-
losophy, um a organizada p o r W . A. K aufm ann, Nova Iorque, 1970; a o u tra
por Z. Pelczynski, C am bridge, 1971; Materialen zu Hegel Rechtsphiloso­
p h ie, 2 vols., ed. por M . Riedel, F ran k fu rt, 1975; Hegel e lo Stato, org. por
L. M arino, núm ero especial da Rivista di Filosofia, 1977. M as cf. tam bém
as seguintes obras coletivas: Studien zu r Hegels Rechtsphilosophie in
U. d. S. S. R . , M oscou, 1966; D ie Revolution des G eistes. Politisches D en ­
ken in D eutschland 1770-1830. G oethe, K ant, Fichte, Hegel, H um boldt,
ed. p o r J. G eb h ard t, M unique, 1968; A ktua lität un d Folgen der Philosophie
Hegels, ed. p o r O . Negt, F ra n k fu rt, 1970; Hegel (1770-1970), A nnales de la
C ated ra Suárez, 1969-1970; Hegel et la pensée m oderne, ed. p o r J. d ’H ondt,
Paris, 1970; Hegel, l ’e sprit o b jectif l'unite de l ’histoire, Lille, 1970; Hegel
u nd die Folgen, ed. por G . K. K altenbrunner, F riburgo, 1970; Hegel und
S O C IED A D E E E ST A D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 175

wir, ed. p o r E . Lange, Berlim , 1970; Incidenza d i Hegel, ed. p o r F. Tessi-


tore, N ápoles, 1970; Enciclopédia '72, Istituto dell’Enciclopedia Italian a,
R om a, 1971; Hegel. A Collection o f Critical Essays, ed. p o r A. M ac Intyre,
Nova Iorque, 1972; L ’o pera e l'eredità di Hegel, ed. p o r V. V erra, Bári,
1972; Z um Hegel-Verständnis m it unserer Zeit, Beiträge marxistisch-leni­
nistischer Hegel-Forschung, ed. p o r H . Ley, B erlim , 1972; Hegel Bilanz.
Zur A ktu a litä t un d In aktualität der Philosophie Hegels, ed. por R. Heede e
J. R itter, F ra n k fu rt, 19-73; H egel in der Sichit der neueren Forschung, ed.
po r I. Fetscher, D arm stad t, 1973; The Legacy o f Hegel, ed. p o r J. J.
O ’Malley, K. W . Algozin, H . P. K ainz e L. C. Rice, ’s-G ravenhage, 1973;
Hegel et le siècle des lum ières, ed. por J. d’H ondt, P aris, 1974; Hegel. E in ­
fü h ru n g in seine Philosophie, ed. por O . Pöggeler, Friburgo-M unique,
1977.
P a ra a perspectiva d a qu al p arte a leitura hegeliana ap resen tad a neste
livro, cf. sobretudo os ensaios de N. Bobbio, “ Hegel e il g iusnataralism o’’,
in Rivista de Filosofia, 1966; “ Hegel e il d iritto” , in V ários A utores, In c i­
denza d i Hegel, cit., “ Sulla nozione di Costituzione in H egel” , A nales de la
Catedra Francisco Suárez, 1971; “ D iritto privato e diritto pubblico in H e­
gel” , in Vários A utores, H egel e lo Stato, cit. M as n ão se deve esquecer a
contribuição ain d a válida de G . Solari, “ II concetto di società civile in H e­
gel” (1931), in Id ., La filosofia politico, ed. p o r L. F irpo, vol. II, Rom a-
B ári, 1974.
E n tre os inúm eros trab alh o s que tra ta m de tem as e problem as ab o r­
dados no presente volum e, podem aqui ser sum ariam ente indicados: K.
R osenkranz, Hegels Leben, B erlim , 1844, reim pressão, D arm stad t, 1963,
tra d , italian a, Florença, 1966, 2? ed ., M ilão, 1974; R . H aym , Hegel und
seine Zeit, Berlim , 1857, reim p ., H ildensein, 1962; K. Fischer, Hegels L e ­
ben, W erke u n d Lehre, 2 vols., H eidelberg, 1901; F. Rosenzweig, Hegel
u n d der Staat, 2 vols., M unique-B erlim , 1920 (B olonha, 1976); H. A. Rey-
b u m , The E thical Theory o f Hegel, Oxford, 1921; A. Passerin d ’Entreves, II
fo n d a m en to delia filosofia giuridica d i Hegel, T u rim , 1924; G . Giese, H e ­
gels Staatsidee, H alle, 1927; H . G löckner, Hegel-Lexikon, 4 vols., S tu tt­
gart, 1935-1939; G . M ure, Introduction to Hegel, O xford, 1940 (M ilão-N á-
poles, 1954); K. Lowith, Von H egel zu N ietzsche, Z urique, 1941; H . M ar­
cuse, Reason a n d Revolution, Nova Iorque, 1941 led. brasileira: Razão e
revolução, Rio de Janeiro, Saga, 19681; E . D e N egri, Interpretazione di
Hegel, Florença, 1943, 2? ed ., 1969; J. Hyppolite, Genèse et structure de la
Phénoménologie de Hegel, 2 vols., P aris, 1946; A. Kojève, Introduction à la
lecture de Hegel, Paris, 1947; G . Lukács, D er Junge Hegel, Über die B ezie­
hungen von D ialektik u n d O ekonom ie, Zurique-V iena, 1948 (T urim , 4?
ed ., 1975); E . W eil, Hegel et l'É ta t, Paris, 1950 (F lorença, 1965); J. R itter,
Hegel u n d die französische Revolution, C olönia-O pladen, 1956 (N ápoles,
1970); J. N. Findlay, Hegel, Londres, 1958 (M ilão, 1972); F. G régoire, É tu ­
des hegeliennes: les p o ints capitaux du systèm e, Louvain, 1958; A. T . P.
Peperzak, Le jeu n e Hegel et la vision morale du m onde, H aia, 1960; E.
Bloch, Subjekt-O bjekt. Erläuterungen zu Hegel, Berlim , 1949, 2? ed.,
F ra n k fu rt, 1962 (B olonha, 1975); R. G araudy, D ieu est m ort. É tu d e su r
Hegel, P aris, 1962; T h . W . A dorno, Drei Studien zu Hegêl, F ran k fu rt,
176 B IB LIO G R A FIA

1963 (B olonha, 1971); K. H . Ilting, “ Hegels A useinandersetzung m it der


aristotelischen P olitik” , in Philosophisches Jahrbuch, 1963-1964; W . R.
Beyer, Hegel-Bilder, K ritik der H egel-Deutungen, Berlim , 1964; E . Fleisch­
m ann, I m philosophie p olitique de Hegel, P aris, 1964; V. G oldschm idt,
“ É ta t de n a tu re e t pacte de soum ission chez H egel” , in Revue Philosophi­
que de la France et de l'étranger, 1964; G . R ohrm oser, “ Hegel Lehre von
S taat u n d das Problem d er F reiheit in der m odernen G esellschaft” , in Der
Staat, 1964; L. Sichirollo, Hegel, R om a, 1966; J. d ’H ondt, Hegel. Sa Vie,
son oeuvre avec un exposé de sa philosophie, P aris, 1967; R .M aspetiol,
“ D roit, société civile et É ta t dans la pensée de H egel” , in Archives de P hi­
losophie du D roit, 1967; J. d ’H ondt, H egel et son tem ps, Paris, 1968; J.
d’H o n d t , Hegel secret, P aris, 1968; H. F. F ulda, Das R echt der Philosophie
in Hegels Philosophie des R echts, F ran k fu rt, 1968; R . Hocevar, Stände und
Repräsentation beim ju ng en Hegel, M unique, 1968; F. V alentini, “ A spetti
délia ‘società civile’ hegeliana” , in Giomale Critico della Filosofia Italiana,
1968; B. Bourgeois, La pensée politique de Hegel, P aris, 1969; A. Meyer,
“ M echanische u n d organische M etaphysik politischer Philosophie” , in A r ­
chiv f ü r Begriffsgeschichte, 1969; A. Philonenko, “ Hegel critique de K a n t” ,
in Bulletin de la Société Française de Philosophie, 1969; M . Riedel, Studien
zu Hegels Rechtsphilosophie, F ran k fu rt, 1969 (B äri, 1975); J. R itter, M eta ­
p hysik u n d Politik. Studien zu Aristoteles und Hegel, F ra n k fu rt, 1969; B.
W illm s, Revolution u n d Protest, oder Glanz u n d E lend des bürgerlischen
Subjekts (H obbes, Fichte, Hegel, M arx, M arcuse), S tu ttg art, 1969; B. D e
G iovanni, Hegel e il tem po storico della società borghese, B äri, 1970; S.
M ercier-Josa, “ Hegel et la notion d ’é ta t de n a tu re ” , in La Pensée, 1970;
M . Riedel, Bürgerlische Gesellschaft und Staat bei Hegel, Neuw ied-Berlim ,
1970; M . Rossi, Da Hegel a M arx. Hegel e lo Stato, 2 vols., M iläo, 1970;
E . W eil, Essais et conférences, P aris, 1970; B. de G iovanni, “ Hegel, la ri-
voluzione francese e la società civile” , in Critica M arxista, 1971; I. Fetscher,
Hegel. Grösse und G renzen, S tu ttg art, 1971 (M iläo, 1973); G . Lukács, Z ur
Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Neuwied-Berlim , 1971 e ss. (R om a,
1976 e ss.) [ed. brasileira parcial: Ontologia do ser social. A verdadeira e a
falsa ontologia de Hegel, tra d , de C arlos Nelson C outinho, Säo Paulo, Ciên-
cias H um anas, 19791 ; P. Salvucci, Lezioni sulla hegeliana “Filosofia del di-
ritto: La società civile", U rbino, 1971; S. A vineri, H eg el’s Theory o f the
M odern Slate, Londres-N ova Iorque, 1972 (R om a-B âri, 1973); K. G rim ­
m er, “ Hegel bürgerlische G esellschaft als S taat u n d die G rundkategorien
einer sozialw issenschaftlichen Staats lehre” , in Hegel Jahrbuch, 1971; H . S.
H arris, H egel’s D evelopment: toward the Sunlight 1770-1801, O xford,
1972; N. M erker, Dialettica e storia, M essina, 1972; R. R acinaro, Rivolu-
zione e società civile in Hegel, N äpoles, 1972; M . R iedel, “ A rbeit u n d H a n ­
deln. Hegel u n d die kopem ikanische Revolution der p rak tisch en Philoso­
p hie” , in Hegel-Jahrbuch 1971, 1972; G . Bedeschi, Politico e storia in H e ­
gel, B ari, 1973; R. H ocevar, H egel u n d der preussische Staat, M unique,
1973; N. M . Lôpez C alera, E l riesgo de H egel sobre la libertad, G ran ad a,
1973; L. Lugarini, H egel dal m ondo storico alla filosofia, R om a, 1973; F.
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Londres, 1973; L. B arbieri, “ E ticità e totalité in Hegel. La rescissione del
SO C IED A D E E ESTA D O NA FIL O SO FIA PO L lT IC A M O D ER N A 177

con trattu alism o ” , in Filosofia e società, 1974; U . C erroni, Società civile e


Stato politico in Hegel, B ári, 1974; N. M erker, “ D ialettica hegeliana e m i­
séria tedesca” , in Id . , M arxism o e storia delle idee, R om a, 1974; O. Pögge-
ler, “ Hegels politische Philosophie in F ra n k fu rt” , in H egel-Studien, 1974;
R. Bodei, Sistem a ed epoca in Hegel, Bolonha, 1975; R. Bodei-R. Raci-
naro-M . B arale, Hegel e l'economia politica, ed. por S. Veca, M ilão, 1975;
D . Coccopalm erio, Scienza dello Stato e filosofia politica in Hegel, M ilão,
1975; R. R acinaro, Realtà e conciliazione in Hegel, B ári, 1975; O. R eboul,
“ Hegel critique de la m orale de K a n t” , in Revue de M étaphysique et de
M orale, 1975; G . Ahrw eiler, Hegels Gesellschaftslehre, D arm tad-N euw ied,
1976; S. Avineri, “ T he D ialectics of Civil Society in H egel’s T h o u g h t” , in
Hegel Jahrbuch 1975, 1976; D . Borso, Hegel politico d e ll’esperienza, M ilão,
1976; C. Cesa, Hegel filosofo politico, Nápoles, 1976; K . H . Uting, “ Z ur
D ialektik in der ‘R echtsphilosophie’ ” , in Hegel Jahrbuch 1975, 1976; H.
K im m erle, “ Hegels N atu rrech et 1802-1805/1806, in H egel-Studien, 1976;
S. L anducci, Hegel: la conscienza e la storia, F lorença, 1976; G . M arini,
“ A spetti sistem atici delia società civile hegeliana” , in Filosofia, 1976; R.
Bodei-F. C assano, H egel e W eber, B ári, 1977; K. H . Ilting, Hegel diverso,
B ári, 1977 (recolhe trab alh o s parcialm ente reescritos p a ra a edição ita ­
liana); L. Lugarini-M . R iedel-R . Bodei, Filosofia e società in Hegel, T rento,
1977; M . C acciari, Dialettica e critica dei politico. Saggio su Hegel, Milão,
1978.
M arx (1818-1883) — São duas as principais edições das ob ras de
M arx: M arx-Engels, Historisch-kritische Gesamtausgabe, B erlim -Frank-
furt-M oscou, 1927-1935, 12 vols., aos cuidados de D . R iazanov e V. Ado-
ratski, que restou incom pleta; M arx-Engels, W erke, B erlim , 1956-1968, 40
vols., aos cuidados dos Institutos de M arxism o-L eninism o de M oscou e de
Berlim . A p a rtir de 1972, os E ditori R iuniti de R om a iniciaram a publicação
em italiano das Opere com plete de M arx e Engels, previstas p a ra 50 tom os.
P a ra a bibliografia dos escritos, cf. M . Rubel, Bibliographie des oeuvres de
K arl M arx, avec en appendice un répertoire des oeuvres de F. Engels, Paris,
1956; e I d ., Supplém ent à la bibliographie des oeuvres de K arl M arx, Paris,
1960. M as cf. o inform ado elenco de G. M . Bravo, “ Bibliografie e repertori
m arx-engelsiani” , in Critica m arxista, 1976; e, do m esm o au to r, p a ra a b i­
bliografia das traduções italianas, M arx e Engels in lingua italiana 1848-
1960, M ilão, 1962.
U m a bibliografia dos estudos atinentes à teoria m ais especificam ente
política de M arx aparece com o apêndice a D . Zolo, La teoria comunista
deli ’e stinzione dello Sta to, B ári, 1974; u m a o u tra, am p liad a p a ra os estudos
de tem a político relativos a to d a a tradição do p ensam ento m arxista, pode
ser en co n trad a com o apêndice à am pla antologia o rg anizada pelo m esm o D .
Zolo, I m arxisti e lo Stato, M ilão, 1977. D o m esm o au to r, veja-se ain d a a
resenha crítica das principais posições contem porâneas sobre o assunto,
contida n o ensaio Stato socialista e libertà borghesi, R om a-B ári, 1976.
T am bém d a infindável lite ra tu ra sobre o pensam ento m arxista, indi­
cam os aq u i — sem pretensão exaustiva — som ente trab alh o s que tenham
ligação com tem as e problem as de teoria política tratad o s no presente vo­
lum e: F . Lenz, S taat u n d M arxism us, S tuttgart-B erlim , 1921; M . A dler,
178 B IB LIO G R A FIA

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Salles, Rio de Janeiro, Paz e T erra, 19801.
Sobre os autores

N orberto Bobbio é um dos m ais respeitados cientistas políticos d a atualidade. Professor


de F ilosofia d a U niversidade de Turim , “ intelectual desorgânico” segundo sua p ró p ria
definição, iniciou em 1975 um d u rad o u ro e polêm ico debate entre socialistas e com unis­
tas sobre o futuro da democracia. E m julho de 1978, com o afastam ento de G iovanni Leoni
da Presidência d a República, seu nom e chegou a ser cogitado p ara o cargo. E ra a prim eira
vez qu e u m a personalidade n ão p a rlam en tar m erecia tal distinção. M ilitante do P artido
Socialista Italiano, desde a ju v en tu d e vem sen- io continuam ente reeleito p a ra seu com i­
tê cultural. Pela Brasiliense tem publicados E stu d o s sobre H egel e Liberalism o e D e­
mocracia.
M ichelangelo Bovero é pro fessor n a Faculdade de C iência Política da U niversidade de
Turim , co lab o rad o r e interlocutor de B obbio em seus principais estudos.

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