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Filosofia e Ética
O texto a seguir, do filósofo Fernando Savater, é uma explicação das questões mais
fundamentais que envolvem a ética: o reconhecimento daquilo que convém e daquilo
que não convém ao ser humano. Pode-se também dizer que a ética trata daquilo que é
adequado ou inadequado, ou seja, daquilo que é certo ou errado, bom ou ruim.
Reconhecer as diferenças entre esses termos e compreender os critérios de escolha entre
eles são temas sobre os quais a Filosofia ética procura oferecer respostas.
"[...] Em resumo, entre todos os saberes possíveis existe pelo menos um imprescindível:
o de que certas coisas nos convêm e outras não. Certo alimento não nos convém, assim
como certos comporta- mentos e certas atitudes. Quero dizer, é claro, que não nos
convém se desejamos continuar vivendo. Se alguém quiser arrebentar-se o quanto antes,
beber lixivia poderá ser muito adequado, ou também cercar-se do maior número
possível de inimigos. Mas, de momento, vamos supor que preferimos viver, deixando
de lado, por enquanto, os respeitáveis gostos do suicida. Assim, há coisas que nos
convêm, e o que nos convém costumamos dizer que é "bom", pois nos cai bem; outras,
em compensação, não nos convêm, caem-nos muito mal, e o que não nos convém
dizemos que é "mau". Saber o que nos convém, ou seja, distinguir entre o bom e o mau,
é um conhecimento que todos nós tentamos adquirir - todos, sem exceção - pela
compensação que nos traz. [...]"
A palavra ética tem sua origem no grego ethikos, a partir da forma ta ethika, "tratado de
moral", advinda de ethos, que quer dizer "caráter, costume, hábito, modo de ser". Por
isso, esse termo muitas vezes foi definido como "doutrina dos costumes". Nesse sentido,
a ética é a ciência - isto é, o estudo, o conhecimento - dos costumes ou hábitos morais.
Muito se fala da diferença entre o campoético e o campo moral E é preciso entender
essa diferença. Há os hábitos morais, isto é, os costumes morais dos povos, que são
numerosos e diversos, e que são exercidos diariamente em relação a uma gama de
assuntos e situações, e há as filosofias éticas. Estas últimas existem em menor número
do que aqueles. Isso ocorre porque as filosofias eticas são tentativas de explicar, de
forma explicita e sistematica, os hábitos morais. Se, por um lado, os hábitos morais são
numerosos, as suas sistematizações ocorrem em um número comparativamente mais
reduzido. Em outras palavras, existem mais hábitos morais do que tentativas de os
explicar.
O conjunto de explicações sobre os hábitos morais formam, como se vê, as filosofias
éticas, que possuem sua própria história. Os hábitos morais também podem ser objeto
de estudo da Sociologia e da Antropologia, A Sociologia se concentra em explicar os
hábitos morais por meio de conceitos como a socialização, a estratificação social etc, Já
a Antropologia procura, a partir de seus próprios métodos, estudar os hábitos morais das
várias culturas, inclusive daquelas muito diferentes da cultura ocidental. No caso da
Filosofia, por outro lado, trata-se de entender, de forma sistemática, as razões
fundamentais, os fundamentos teóricos dos hábitos morais.
É preciso deixar claro que as atitudes ou hábitos morais nem sempre possuem uma
correspondente Filosofia ética que procure lhes dar fundamento. Por exemplo, antigos
povos orientais, como os hebreus e os egipcios, tinham, cada um, sua moral, mas não
necessariamente uma Filosofia ética que tentava explica-la. Uma Filosofia ética, ou seja,
uma teoria ético-moral, só começaria a ser desenvolvida na Grécia antiga, coincidindo
em parte com o surgimento e o desenvolvimento da própria Filosofia em si.
A história da Filosofia ética tem início entre as filosofos pré-socráticos, como foi o caso
de Demócrito, que viveu entre os séculos V e IV a.C. De acordo com esse filósofo,
pode-se adotar o seguinte criterio para tomar uma atitude ética que convém: a ação
moral correta será aquela que conseguir um equilibrio interno entre os tumultos das
paixões. Esse equilibrio deve ser obtido por meio do saber e da prudência. Essas duas
virtudes, que se encontram na alma, são a chave para a experiência de uma boa vida, ou
seja, são a base para a felicidade.
Entretanto, de forma mais concentrada e explicita, a Filosofia ética começa
propriamente com os gregos Sócrates, Platão e, sobretudo, Aristoteles. Este último
pensou a Ética como disciplina autônoma, isto é, capaz de ser pensada de forma
separada dos outros ramos da Filosofia.
TOME NOTA: Aristóteles explica que é possivel pensar de forma autonoma a Ético,
mas isso não significa que ela esteja realmente separada das outras disciplinas, tais
como a Política, a Lógica e a Metafisica. Essa "autonomia" deve ser entendida apenas
em relação a uma maneira de organização dos estudos sobre as partes que formam um
mesmo todo.
Sócrates e o nascimento da Filosofia da ética
A visão ética de Platão está fundamentada na compreensão dele sobre o que é a alma
humana, Para o filósofo, a alma possui três partes, que se expressam por três tendências:
> o ser humano tem uma tendência que o impele para as coisas - e o desejo ou a
chamada parte apetitiva da alma;
> há uma outra tendência que afasta o ser humano dos desejos e possibilita dominá-los-
é a razão, a chamada parte racional ou deliberativa da alma;
> há uma outra parte que faz o ser humano ficar irado, colérico (não é razão, porque
essa parte é passional, e não deliberativa, e também não é desejo, porque este >
frequentemente se opõe a um estado de ira, como, por exemplo, quando uma pessoa se
irrita por ter cedido a um desejo), trata-se da parte irascível (ligada aos sentimentos) da
alma.
O que a questão platônica da alma tem a ver com a ética? Veja bem: um sujeito que age
corretamente, ou seja, um sujeito com virtude, será aquele que conseguir harmonizar a
parte racional com a parte apetitiva e a parte irascível da alma. Dessa forma, o filósofo
observa o seguinte:
> o individuo será considerado prudente quando a parte da razão controlar a parte do
desejo e a dos sentimentos;
> será corajoso quando a parte dos sentimentos conseguir manter com força as decisões
da parte racional:
> será sábio quando a parte racional possuir o conhecimento sobre aquilo que é útil para
as outras partes;
> será justo quando conseguir fazer com que cada parte de sua alma realize o que deve
realizar.
Nesse contexto, pergunta-se: e o que é justiça? Para Platão, e o que ocorre quando cada
parte da alma faz aquilo que a ela compete fazer. Uma vez compreendida a justiça, age-
se com ela, Diante de tudo isso, pode-se dizer que, assim como Sócrates, Platão também
desenvolveu uma ética de natureza intelectualista.
SAIBA MAIS: A teoria das ideias é a concepção segundo a qual as essências das
coisas, isto é, suas ideias verdadeiras e perfeitas, existem por si mesmas e se encontram
em um mundo inteligível. Esse seria um tipo de mundo que só pode ser "encontrado"
por meio da inteligibilidade, ou seja, pelo pensamento. Desse modo, a ideia de bem
existe por si mesma e habita esse mundo das ideias.
Aristóteles, que foi discipulo de Platão por vinte anos, também realizou trabalhos sobre
a ética. Ele estabeleceu problemas eticos muito importantes, que seriam estudados pela
tradição filosófica posterior: a relação entre a norma e o bem; a ética individual e a ética
social; a classificação das virtudes; a relação entre vida teórica e vida prática.
O Estagirita, como também é conhecido o filósofo (ele nasceu na antiga cidade de
Estagira), entende que a ética está relacionada à felicidade. Afinal, como havia ensinado
Sócrates, a ética trata da questão de como viver, de modo que o melhor comportamento
ético serà aquele que conseguir ensinar a melhor maneira de viver. Ora, falar em melhor
forma de conduzir a vida acaba sendo apenas uma outra forma de falar sobre a
felicidade.
Aristóteles explica que todas as ações humanas tendem a uma finalidade, a um fim, isto
é, à realização de um bem especifico. Mas cada bem, em particular, procura realizar
uma finalidade última, ou um bem supremo, que o filósofo chama de felicidade. Por
exemplo, você precisa alimentar-se bem para realizar o bem específico de ter saúde.
Mas por que você quer ter saúde? Para realizar o bem último, que é a felicidade.
Portanto, deve-se entender a felicidade como a finalidade última das ações. Outro
exemplo: se alguém lhe pergunta por que você estuda, a resposta pode ser algo como
"Para ser um excelente profissional no futuro", "Para adquirir, ampliar e aprofundar
conhecimentos", "Para ter mais condições de fazer o bem". Se a pergunta for mais além,
você chegará à conclusão de que faz o que faz para um fim último: a felicidade.
Uma vez compreendido isso, resta saber o que é especificamente a felicidade. Muitos
podem pensar que ela consiste no prazer ou na riqueza. Outros consideram que consiste
na fama, na honra, no poder ou no sucesso. Mas esses bens, ou supostos bens,
apresentam um problema: eles põem o homem em condições de dependência. Os bens
materiais, por exemplo, dependem das riquezas; o bem da honra depende das outras
pessoas, etc. Então,
esse tipo de felicidade, considerada essa questão, acaba sendo precario, passageiro.
Desse modo, a verdadeira felicidade seria a realização do bem específico do homem,
daquilo que o faz ser humano. E aquilo que faz o ser humano ser quem é seria
justamente sua racionalidade. Portanto, na realização dessa racionalidade é que
consistiria a felicidade humana e a vida ética, para Aristóteles. É o que ele chama de
vida contemplativa.
Assim como Platão, Aristóteles considera que, além da parte racional, há os apetites e
os instintos na alma. Estes últimos se opõem à razão, mas podem ser dominados por ela.
A submissão, ou o controle, das partes sensiveis e instintivas da alma pela razão é
realizada por meio das virtudes éticas.
Como se caracterizam exatamente essas virtudes? Elas se traduzem por meio da busca
da justa medida (ou justo meio), uma maneira de evitar, de um lado, o excesso e, de
outro, a carência nos impulsos e paixões. O lema etico seria, então, "Nada em demasia".
A virtude da coragem, por exemplo, e considerada o justo meio entre a temeridade
(ousadia excessiva, imprudência) e a timidez. Já a amabilidade e tida como o justo meio
entre a hostilidade e a adulação. É preciso, nesse contexto, deixar claro que o justo meio
não deve ser entendido como mediocridade: ele é, isso sim, uma culminancia, um valor
- é a vitória da razão sobre os instintos.
Aristóteles faz uma síntese filosófica dos hábitos morais gregos, o que sig- nifica que já
havia um consenso de que a ética é justa medida, ensinada pela tradição moral e pelos
poetas gregos antigos. Mas foi a Aristóteles que coube dar a justificação teórica dessa
tradição grega.
Entre as virtudes éticas, destaca-se a justiça, que é precisamente a justa medida. Ela é,
no pensamento aristotélico, a mais elevada das virtudes, de modo que nela está
compreendida toda a virtude.
Quanto à busca da justa medida, esta vem por intermédio do hábito. O Estagirita diz, na
sua obra Ética a Nicômaco, que, em se tratando de uma ação ética, "uma andorinha
sozinha não faz verão". Essa é uma alusão ao fato de essas aves, na busca por calor,
voarem juntas, aos milhares. Ou seja, avistar uma andorinha não é o bastante para
assegurar que se está na estação de calor. Aplicando essa imagem ao seu pensamento, o
filósofo considera ser necessário que a dimensão ética ocupe toda a vida. Ele chega,
inclusive, a dizer que o ser humano se torna aquilo que repetidamente faz.
Dessa forma, a ética aristotélica é, basicamente, voluntarista, uma vez que considera que
a conduta moral depende da vontade, e não prioritariamente do intelecto, da razão -
diferentemente, portanto, da ética intelectualista socrática e platônica. Para Aristóteles,
o individuo pode saber o que é o bem e, ainda assim, não praticá-lo. O aprendizado do
bem e, principalmente, o aprendizado da prática do bem devem vir por hábito. A virtude
deve entrar nos compromissos diários, para que sua presença constante possa, pouco a
pouco, tornar espontâneas as virtudes.