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A relação terapêutica na perspectiva fenomenológico-existencial

José Paulo Giovanetti

A relação entre o doente e o médico é uma questão que sempre foi problemática, uma
vez que sua dificuldade e seus impasses transcorrem por todo o percurso desse relacionamento
ao longo da história da humanidade e que se estendeu na ciência psicológica para a díade
terapeuta-cliente. Na Psicologia clínica, a relação entre o cliente e o terapeuta é um dos pontos
mais cruciais do tratamento psicológico. Esse está no centro das preocupações dos teóricos da
Psicologia clínica, embora cada abordagem psicológica o trate de forma diferenciada. Às vezes
uma perspectiva teórica da Psicologia enfatiza mais a questão da relação em detrimento do
processo. Outras abordagens não privilegiam a relação terapêutica (RT), deixando-a em segundo
plano, até mesmo em último lugar, na organização teórica do sistema terapêutico. No caso da
abordagem fenomenológico-existencial, a qualidade da relação é essencial para o sucesso ou não
do tratamento psicológico. É o ponto nodal com base no qual se constrói todo o trabalho clínico.
Assim, o nosso objetivo aqui é refletir sobre a especificidade dessa relação humana,
visto que toda relação terapêutica é humana, construída por meio da dialetização do profissional
de Psicologia e da pessoa que sofre e vem buscar ajuda desse profissional. Temos que admitir,
porém, que essa relação é um pouco especial, já que ocorrerá dentro de determinadas
circunstâncias e com algumas características específicas.
Desse modo, uma definição preliminar seria a de que a relação terapêutica é um
encontro entre duas pessoas, no qual um profissional qualificado ajuda outro ser humano a se
conhecer, a se desvencilhar de suas dificuldades e a encontrar um caminho melhor para a sua
vida.
Para abordar a especificidade da relação humana na perspectiva fenomenológico-
existencial, dividiremos nossa exposição em três partes. Em primeiro lugar, vamos procurar
refletir sobre o que é uma relação humana e quais os elementos que compõem uma relação
tipicamente humana. Daí, surgirá a discussão da intersubjetividade, vivenciada por meio do
encontro interpessoal, que é a característica central da relação terapêutica na perspectiva
existencial. Assim, o segundo momento constituir-se-á na explicitação das características do que
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seja um encontro interpessoal. Finalmente, abordaremos a especificidade da RT, mostrando quais


as características principais dessa relação.

1 O que é uma relação humana?

A primeira questão que surge é a seguinte: o que caracteriza uma relação humana? É
possível definirmos o que vem a ser uma relação humana? A reposta pode parecer simples, mas
é mais complexa do que podemos imaginar. O óbvio nem sempre é simples. De modo geral, uma
relação humana, estabelecida entre dois seres livres que buscam explicitar o específico do ser
humano, pode ser definida como uma ligação em que ocorra uma troca de conteúdos humanos e
na qual a comunicação entre essas duas pessoas possibilita o desvelamento de significados
colocados por ambas as partes.
Assim, para caracterizar, de forma bem explícita, o que vem a ser uma relação
humana, temos que responder a duas questões. A primeira é sobre as condições prévias para que
se possa falar de uma relação humana. A segunda seria elencar e refletir sobre os elementos
estruturais da relação.
Como condições prévias para que uma relação entre duas pessoas possa ser
compreendida como humana, podemos destacar três pontos.
O conhecimento do outro como sujeito. Cada um de nós é dono de sua própria vida,
isto é, funda a própria existência e é responsável pelos seus atos. Em palavras corriqueiras,
dizemos que é “dono do seu nariz”. Ora, isso implica que devemos dar rumo a nossa vida, e não
é o outro que deverá ditar essa direção. Reconhecer o outro como sujeito dos próprios atos
significa que não somos nós que devemos dizer ao outro o que ele deve fazer; pelo contrário,
toda a busca e a concretização da direção de vida passa pela capacidade de decisão de cada um de
nós.
Assim, uma mãe deve ajudar o filho para que ele possa, ao longo a vida, ir se
desapegando e ser responsável pelos seus próprios atos. Os pais não devem assumir a vida de
seus filhos, mas, sim, ajudá-los a que, pouco a pouco, encontrem o significado e o sentido de seus
atos e, dessa forma, construam a própria existência. Muitas vezes, queremos palpitar na vida de
nossos filhos, esquecendo-nos de que o melhor é que eles por si sós encontrem a direção de sua
vida. Reconhecer o outro como sujeito é reconhecer que cada ser humano é capaz de encontrar e
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definir o seu próprio rumo. O sentido da vida não pode ser imposto ou colocado pelo outro. Cada
um deve construí-lo, valendo-se de suas mais simples opções do dia-a-dia.
A aceitação do outro como ele se apresenta é a segunda condição prévia para
podermos construir uma relação humana. Reconhecer o outro é aceitar o diferente na nossa vida.
Isso só acontece se somos capazes de abrir-nos ao novo, às novidades do cotidiano. Se temos
sempre a postura de impor a alguém o que pensamos, muitas vezes determinando sua maneira de
ser, não possuímos a abertura para acolher o diferente de nós, a novidade que esse outro possa
trazer em uma relação.
No dia-a-dia, na educação familiar, com as melhores intenções, os pais muitas vezes
querem obrigar que o filho, principalmente o adolescente, pense e aja de acordo com os seus
valores. Esquecem que o mundo está em contínuas transformações, e que algumas posturas diante
da vida se modificam, porém não aceitam as transformações. Um exemplo típico são as posições
dos jovens com respeito à sexualidade. O fenômeno do “ficar” é típico da época atual. Muitos
pais criticam com preconceito esse fenômeno contemporâneo, desprezando-o, sem ver como que
o jovem vive esse momento, isto é, a vivência de sua sexualidade. Em outras palavras, isso
significa que os pais querem impor ao jovem a sua maneira de viver a sexualidade, própria de seu
tempo. Assim, aceitar o outro como ele é implica profundo respeito por ele. A pessoa pode não
concordar com a posição do outro, mas deve respeitá-la como diferente da sua. Como dissemos,
aceitar o outro é respeitar o diferente, mesmo que com isso não consinta.
A terceira condição prévia para que possamos caracterizar uma relação humana é a
percepção de que na relação esteja presente certa mobilização dos afetos. A dimensão afetiva é a
responsável pela criação do vínculo entre duas pessoas, aspectos que vamos analisar mais
adiante. Toda representação da realidade deve vir acompanhada de um registro afetivo, isto é, de
uma ressonância afetiva. Assim, a captação do outro envolve sempre um registro de como o outro
está sendo acolhido dentro de nós, de como o estamos sentindo no nosso coração. A esse
movimento de sentir o outro é que chamamos mobilização dos afetos.
Quando somos crianças, expressamos com mais naturalidade essa “afetação”, visto
sermos mais espontâneos. Com o passar dos anos, vamos aprendendo que nem sempre podemos
expressar o que sentimos, e começamos a esconder nossas emoções e nossos sentimentos. Numa
relação humana autêntica, é necessário que percebamos quais os afetos que estão circulando.
Uma relação humana sem registro afetivo não é uma relação humana, é uma relação entre dois
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computadores, na qual a ressonância do outro não faz parte da relação. Mobilização dos afetos é
deixar que o outro repercuta dentro de nós, procurando compreender o que esse movimento está
significando.
A segunda questão que nos ajudará a entender o que seja uma relação humana é
explicitarmos os elementos estruturais da relação, que são quatro, a saber: o encontro, o diálogo,
a reciprocidade e o vínculo.
Nem toda relação humana se dá na forma do encontro. Este só será possível se um
dos sujeitos da relação perceber, de maneira clara e inequívoca, que está diante de outro sujeito.
O encontro caracterizar-se-á como uma dialética entre as pessoas que compõem a relação, isto é,
que pelo menos um dos participantes se abra à experiência do outro. Somente com base na
disponibilidade de aceitação e de respeito, aspectos aqui já analisados, é que os participantes
podem vivenciar o encontro inter-humano.
O encontro é a experiência em que, valendo-nos da relação com outro humano,
aprendemos algo e crescemos existencialmente. Ao longo da vida, podemos distinguir vários
tipos de encontro, nos quais o elemento da percepção do outro e do tipo de resposta determinam
a qualidade e a especificidade do encontro. Entralgo (1988) desenvolve, de forma brilhante, no
seu livro Teoria y realidad del outro, essas características que especificam o encontro.
O segundo elemento estrutural de uma relação humana é o diálogo. Este especifica o
tipo de comunicação que se vincula entre as pessoas que estabelecem o encontro, mas nem
sempre um encontro ou uma relação humana se fundamenta nele. O diálogo, para acontecer,
exige que um dos sujeitos esteja aberto ao que o outro possa trazer para essa relação. Podemos
acolher o outro, mas, em vez de estarmos atentos ao que ele vai nos dizer, acabamos impondo o
nosso ponto de vista. Fundamentalmente o diálogo tem como fruto uma posição nova a partir do
encontro. Dialogar com alguém é estar aberto ao que esse tem a contribuir na situação que se
apresenta.
Numa relação familiar, dialogar com o filho é buscar um consenso entre a própria
posição e a posição às vezes conflitante do outro. Um pai que entra em acordo com o filho sobre
o que deve ser feito no fim de semana, por exemplo, permite que se decida se todos vão viajar
juntos, ou separados, para atender aos desejos de cada um, o que deve ser fruto da conversa entre
ambos e do acerto entre si. Nem o pai impõe que todos devam viajar juntos, como também o
horário da viagem, nem o filho radicaliza que não vai viajar em momento algum. Pode ser que
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todos irão viajar, porém cada um o fará em dias e horários diferentes. Essa flexibilidade de ambas
as partes é que exemplifica o que seja o diálogo.
O terceiro elemento é a reciprocidade. Talvez possamos dizer que ela seja a base para
o diálogo, mas entendemos que reciprocidade em relação com o outro não é estarmos somente ao
lado desse outro, mas sermos envolvidos por ele. Podemos estar junto com o outro, ao seu lado,
como em um campo de futebol, sem estarmos vivenciando a reciprocidade. Esta se expressa no
momento que envolvemos e somos envolvidos.
Binswanger, querendo mostrar que a reciprocidade é algo essencial na relação e
partindo das análises de Heidegger sobre o MITSEIN, isto é, o ser com o outro, cunhou uma
expressão mais significativa, ou seja, o termo MITEINANDERSEIN, que, numa tradução ao pé da
letra, significaria estar com o outro lado a lado. Ele queria, porém, que isso significasse mais, isto
é, mostrar que não basta estar ao lado do outro, mas é necessário entrar na intimidade desse outro,
participar da sua vida . A tradução deveria ser desta forma: ser-em-relação-de-reciprocidade.
Assim, reciprocidade é participar da existência do outro. Nós não só tomamos
conhecimento da vida do outro, mas nos preocupamos com ele. Se isso for feito pelos dois
componentes da relação, temos a explicitação no mais alto grau do que seja entrar em relação
com o outro. Viver em reciprocidade é estar sempre participando da vida do outro. Participar,
porém, não é dirigir a vida desse outro. Um pai que participa da vida do filho é alguém que sabe
o que o filho está fazendo e às vezes pondera com ele qual o melhor caminho a seguir, mas não
dirige ou determina o que o ele deva ou não fazer.
Se a reciprocidade for vivenciada na sua pura autenticidade, ela gerará o vínculo,
nosso quarto elemento estrutural da relação humana. O vínculo afetivo serve para sedimentar a
relação. É ele que dará a qualidade dessa relação, uma vez que a afetividade é responsável pela
intensidade e pela qualidade do relacionamento. Podemos dizer que a afetividade na vida
psíquica é como o sal na comida e “comida sem sal é comida sem gosto”. Relação humana sem
vínculo afetivo é como uma relação entre duas máquinas, obviamente sem sentimentos.
O filme francês “Relação Pornográfica” expressa, de forma bem clara e nítida, o que
é o surgimento do afeto dentro de uma relação e o vínculo que vai se estabelecendo entre os
parceiros. No início do filme, os dois protagonistas se encontram só para vivenciar suas fantasias
sexuais. Com o tempo, e com a continuidade dos encontros, vai surgindo um sentimento que
sedimenta a ligação. Embora eles não quisessem revelar os nomes nem saber onde cada um
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morava, etc., o surgimento do sentimento vai criando o vínculo que eles não estavam querendo
gerar, e lidar com esse vínculo passa a ser profundamente problemático.
Por exemplo, na relação com uma prostituta, não se coloca a questão do vínculo,
porque o afeto geraria essa condição, e isso trairia a natureza da relação. É uma relação que se
prima por não se fundamentar em sentimentos, na afetividade. O que queremos dizer é que o que
caracterizaria uma relação humana é o estabelecimento do vínculo como o elemento de ligação
entre dois sujeitos. A afetividade é o aspecto da vida humana que possibilita a vinculação e a
sedimentação dessa entre os parceiros.

2 A relação interpessoal

Se num primeiro momento analisamos o que constitui uma relação humana, temos
que destacar que existem várias possibilidades existenciais e formas diferentes de se concretizar
uma relação humana. A questão que nos interessa, aqui, é saber se algumas dessas formas de
expressividade do encontro humano podem ser compreendidas como uma relação terapêutica.
Pois, o que nos move agora é verificarmos se existe um tipo especial, uma forma específica que
poderia ser própria de uma RT.
Bucher (1989), em um dos capítulos de seu livro A psicoterapia pela fala, analisa
nove tipos de relação psicológica, destacando que somente a relação de apoio e a relação
interpessoal subjetiva poderiam ser consideradas como relações terapêuticas. Sua análise pode ser
entendida como uma fenomenologia das relações psicológicas e terapêuticas, já que origina (OU
principia) da relação na qual a formalidade está mais presente, indo até o tipo de relação em que o
engajamento subjetivo é o elemento essencial. Na perspectiva fenomenológico-existencial,
quanto maior for o envolvimento subjetivo de um dos parceiros, isto é, do cliente, mais a relação
será considerada terapêutica. Por outro lado, quanto maior for o grau de formalidade, mais longe
estaremos de uma relação terapêutica. A relação médica, que não entra em conteúdos subjetivos e
que só fique na análise da doença com a respectiva prescrição dos medicamentos, deve ser
considerada uma relação formal ou “científica”.
Segundo o mesmo autor, uma relação pedagógica construída em cima de mera
transmissão do conhecimento deve ser compreendida, também, como uma relação não-subjetiva,
visto que aí não se entra nas questões existenciais de qualquer membro da díade, fixando-se
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somente na transmissão do saber. A relação terapêutica deverá por excelência apoiar-se em


conteúdos subjetivos. Essa, sim, segundo Bucher (1989, p. 117), será uma relação
psicoterapêutica propriamente dita, uma vez que “esquadrinha o material subjetivo do paciente”
para ajudá-lo a tomar consciência e posse desse material e, logo, redirecionar a sua existência.
Embora o conteúdo subjetivo, aqui presente, seja só de um dos membros da relação,
caso haja troca em um mesmo nível dos conteúdos subjetivos, teremos não mais uma relação
propriamente psicoterapêutica, mas, em muitos casos, uma relação amorosa, que pode ser
terapêutica, mas não em relação psicoterápica, com as características que iremos desenvolver
mais adiante. Falar dos elementos técnicos envolvidos numa relação psicoterápica é tratar de
aspectos estratégicos e das técnicas de intervenção, o que foge um pouco de nossa reflexão, que é
só a de explicitar a originalidade da relação terapêutica na perspectiva fenomenológico-
existencial.
A pergunta que surge agora é: será possível encontrar na existência alguma relação
humana que possua características próprias de uma relação psicoterápica? A nosso ver, a relação
interpessoal estruturada entre a mãe e o bebê pode nos ajudar a entender algumas das dimensões
necessárias, quando falarmos da relação psicoterápica. A relação da mãe com o seu bebê aponta
para posturas e vivências muito próprias, porém muito semelhantes com o que se passa em uma
relação psicoterápica.
Em primeiro lugar, na relação mãe-bebê, a mãe se caracteriza como o ambiente
facilitador, pois é por meio da adaptação das necessidades do bebê que ela aparece como a
facilitadora do processo de amadurecimento que pertence a ele. “Ela é suficiente boa porque
atende, ao bebê, na medida exata das necessidades deste, e não de suas próprias necessidades,
como, por exemplo, a de ser boa ou muito boa” (DIAS, 2003, p. 133). Veja que a perspectiva de
Winnicott, ao falar do relacionamento dessa díade, é a de que se “trata de “adaptação à
necessidade” e não de satisfação de desejos” (DIAS, 2003, p. 133). É toda uma perspectiva de
ajudar o outro a encontrar o seu rumo, e não a perspectiva de que o outro é objeto de satisfação
do nosso desejo. Diríamos que a mãe coloca a serviço do desenvolvimento do bebê sua
pessoalidade e sua existência.
De modo semelhante, podemos dizer que o terapeuta também se posta para servir o
cliente, no sentido de que vai dispor de toda a sua inteligência e de toda a sua preparação
profissional para ajudá-lo a se encontrar no seu modo de ser. A mãe, que simboliza o ambiente,
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adapta-se às necessidades do bebê. O terapeuta também se adapta às demandas do cliente, já que


é ele, terapeuta, o ambiente facilitador.
Winnicott expressa que a “mãe suficiente boa torna a adaptação cada vez menos
absoluta e, desse modo, permite que ele, gradualmente, caminhe na direção da dependência
relativa...” (DIAS, 2003, p. 137). Ora, podemos dizer que o papel do terapeuta é muito
semelhante, visto que, no processo de ajuda psicológica, ele vai, pouco a pouco, permitindo que o
cliente, no seu processo de crescimento e amadurecimento, cada vez menos dependa dele e seja
capaz de “caminhar com as próprias pernas”.
Evidentemente que, para o desenvolvimento do processo de crescimento, temos de
ter um ponto de partida seguro. Esse é semelhante tanto para o bebê como para o cliente em
processo terapêutico. Tal porto seguro para ambos é a experiência da confiança. Fica, portanto, a
pergunta de como se constrói esse ponto de partida.
No início, a atitude necessária para que a mãe instaure a sua postura de adaptação é
desenvolvendo a atitude de acolhimento. Acolher é aceitar o outro do jeito que ele é, mas aqui é
mais radical, já que acolher as necessidades do bebê é inclinar-se às suas demandas. No caso de
psicoterapias, a situação é muito semelhante, uma vez que o terapeuta, no primeiro momento,
acolhe as necessidades do cliente. Isso é muito significativo no sentido de que, se o bebê será
afetado pelo tipo de cuidado que recebe, o cliente também será afetado pela forma com que será
recebido pelo psicoterapeuta. Quanto mais espontâneo for o acolhimento, maior impacto terá no
processo de transformação.
Assim, acolher não é somente, nesse início de terapia, aceitar o outro como ele é,
mas, mais do que isso, é adaptar-se às necessidades apresentadas pelo ser humano que sofre, e
não sabe como lidar com esse sofrimento. Em termos simples, acolher a queixa do cliente é saber
explorar ao máximo o motivo da consulta. Ao mesmo tempo, porém, é deixar o cliente dizer o
que ele quer dizer, e não o que desejamos que ele diga. Isso se faz por meio de perguntas abertas,
e não pelo desenvolvimento de uma anamnésia.
O segundo movimento para a instauração de uma relação interpessoal é possibilitar o
surgimento do vínculo. No caso do bebê, é fundamental que a mãe seja extremamente sensível às
necessidades dele De modo semelhante, o terapeuta é alguém que gosta de atender ao cliente,
escutando a sua queixa, e alguém que tem grande sensibilidade para o humano. Estará, pois,
ligado nas demandas desse cliente.
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Esse vínculo é o elemento que poderá desencadear o processo de harmonia na


relação. Queremos dizer que, tanto para o desenvolvimento emocional do bebê como para o
crescimento existencial do cliente, a qualidade do vínculo é fundamental. Quanto mais o vínculo
for estruturado, mais segurança sentirá o bebê no seu caminhar rumo à autonomia, e o cliente, na
busca de sua liberdade. A qualidade do vínculo é responsável pela qualidade da relação, na
medida em que ele fortalece a ligação entre os dois pólos. Quanto mais sólido é o vínculo afetivo,
mais a relação tende a perdurar, permitindo ao lado mais frágil fortalecer-se. Por exemplo, numa
relação amorosa, quanto mais forte for o vínculo gerado pela afetividade, o sentimento de amor,
mais chances tem a relação de sobreviver às dificuldades da vida e aos obstáculos do cotidiano. O
sentimento amoroso é a pedra angular para a sedimentação de uma relação, seja ela de mãe e
filho, seja de marido e mulher, seja do terapeuta e de seu cliente.
Esses dois elementos, o acolhimento e o estabelecimento do vínculo afetivo, ajudam
o aparecimento do terceiro elemento que surge na interação interpessoal e que será a base para
todas as outras formas de relação: a experiência da confiança.
Essa experiência que acontece no início da vida da criança é a base para toda as
outras relações, uma vez que, justamente quando o bebê vivencia a confiança, ele está tendo o
ponto de apoio para o desenvolvimento de sua vida emocional. Isso é tão significativo para o
bebê que, quando ele passa por essa experiência, ele se sente relaxado diante da mãe. A
experiência de que podemos confiar em alguém, de que esse quer o nosso bem e faz tudo para
que isso aconteça, coloca-nos num estado de descontração e de despreocupação com a vida. Essa
é a vivência de um bebê diante de sua mãe extremamente dedicada.
Na psicoterapia, talvez a grande conquista do terapeuta seja proporcionar ao seu
cliente uma experiência de confiança, já que, com base nessa experiência, o processo terapêutico
pode se colocar em marcha. Evidentemente que, muitas vezes, alguns clientes já chegam para a
terapia com esse sentimento. Podemos revelar os nossos segredos à pessoa que está diante de
nós, como muitas vezes os pacientes fazem com os seus médicos, mas a experiência de confiança
será construída na relação que se inicia. Se ela foi bem vivida na infância, possibilitará que a
relação do terapeuta com o cliente seja construída mais rapidamente e ajude o processo
terapêutico a ser instaurado. Aqueles que não vivenciaram isso na infância terão mais
dificuldades de se soltar, e a primeira conquista da terapia será a construção da confiança. Um
sinal de que ela está na base do processo é quando o paciente, por meio de sua postura corporal,
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dá mostras de que está relaxado, tratando de seus problemas, ou quando, com o passar do tempo,
o cliente fala sem resistência.
O que dizemos até agora foi que esses elementos analisados nos permitem constatar
que a relação construída entre o terapeuta e o seu cliente possibilitará uma experiência
intersubjetiva, com trocas de conteúdos subjetivos. Agora, a questão é saber em que tipo de
espaço essa relação se efetiva. Será no espaço inter-humano, que é muito mais amplo que a
dimensão psicológica geradora do espaço intrapsíquico? Da mesma maneira que para o bebê o
“âmbito onde se dá o amadurecimento não é um espaço intrapsíquico, mas inter-humano, um
entre a mãe e o bebê” (DIAS, 2003, p. 131), reforçamos que o espaço da relação terapeuta-cliente
será também o inter-humano, um espaço construído para a troca de conteúdos subjetivos. A
dimensão psicológica faz parte da interação, visto que é o espaço inter-humano que abarca o
psicológico. Assim, podemos dizer que é esse espaço que possibilita a experiência de estar-no-
mundo-com-os-outros. Não se pode isolar o individual do contexto intersubjetivo. A psicoterapia
fenomenológico-existencial privilegia a construção do espaço inter-humano em detrimento do
espaço intrapsíquico, às vezes valorizado por outras abordagens. Essa posição, porém, não
significa que haja uma negação do espaço intrapsíquico, só que não é ele o prioritário para que o
cliente encontre seu processo de desenvolvimento.

3 A especificidade da relação terapêutica

Depois de apresentarmos uma reflexão sobre o que vem a ser uma relação e os
principais elementos de uma relação interpessoal, destacando que uma relação psicoterapêutica
tem de possuir essas características, nessa terceira parte, explicitaremos as características da
relação psicoterapêutica. Para isso, abordaremos dois aspetos: as dimensões psicológicas da
relação terapêutica e os pressupostos para o desenvolvimento de uma relação psicoterapêutica.

3.1 Dimensões psicológicas da relação terapêutica

Poderíamos enumerar vários aspectos psicológicos em jogo na relação terapêutica,


contudo nos interessa abordar só os mais significativos. O primeiro deles é o que Bucher (1989)
chama de dimensão da temporalidade. Com isso, ele quer dizer que a perspectiva do rompimento
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está presente desde o início da terapia. O cliente, ao se engajar em uma relação terapêutica, sabe
que um dia essa acabará, diferentemente de uma relação amorosa. Embora uma relação amorosa
possa acabar, ninguém a começa imaginando quando isso ocorrerá. Na relação terapêutica, às
vezes na psicoterapia breve, já sabemos de antemão quando a relação findará. Esse aspecto de
transitoriedade apontado por Bucher (1989, p. 128) influencia toda a dinâmica da terapia. Pode às
vezes ser positivo na perspectiva que leva o cliente a um engajamento maior, já que ele percebe
que tem pouco tempo para tratar suas questões existenciais, ou pode também gerar um momento
de não-compromisso mais radical. Do lado do terapeuta, essa perspectiva pode gerar certo
acomodamento. Assim, os dois deverão ter presentes, e não querer minimizar a perspectiva do
rompimento, porque essa “pode incomodar a perda de investimentos afetivos carregados e
gratificantes” (BUCHER, 1989, p. 128).
O rompimento é algo essencial na perspectiva terapêutica, uma vez que se espera do
cliente que um dia ele não faça mais uso do auxílio do terapeuta. Dizemos que a terapia é uma
muleta que um dia o cliente jogará fora, isto é, quando conseguir “andar com as próprias pernas”e
vamos ajudar o cliente a caminhar na direção da independência, o rompimento será essencial para
o levantar vôo.
Outra originalidade da relação psicoterapêutica é que o envolvimento da esfera da
subjetividade é diferente. O cliente tem por meta revelar tudo o que se passa na sua subjetividade,
todas as questões que o fazem sofrer. Não deve ter receio de explicitar todo o seu conteúdo
subjetivo para o terapeuta. Aliás, quanto maior for o envolvimento de sua subjetividade, mais
chance ele tem de entrar num processo de crescimento. Por outro lado, o terapeuta não deve falar
para o cliente de suas questões ou interrogações pessoais. O cliente não pode ficar a par dos
problemas e dos conflitos de seu terapeuta. Assim, a abertura da subjetividade do cliente deve ser
total, ao passo que a do terapeuta é extremamente limitada; ele não deve revelar ao seu paciente
nada da sua vida privada. Isso implica que a relação terapêutica é assimétrica. Já o nível de
comprometimento de conteúdos pessoais é radicalmente oposto.
Dessa forma, na medida em que a assimetria diminui, a característica da relação
terapêutica desaparece. O caso é diferente em uma relação amorosa, em que a simetria deve ser
buscada, uma vez que, quanto mais envolvimento subjetivo houver de ambas as partes, mais
transparente e mais saudável será essa relação. Na relação amorosa, quanto mais existir
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assimetria, mais a relação pode ser dita “capenga”. Aqui, não. A assimetria é condição para o
bom desenvolvimento da terapia.
A terceira dimensão psicológica da relação terapêutica é o que Bucher denomina a
dimensão do conteúdo psicológico (BUCHER, 1989, p. 130,). É extremamente importante para o
bom funcionamento de uma terapia que o conteúdo psicológico apareça com abundância. Numa
relação formal e às vezes dita estritamente profissional, as pessoas não revelam conteúdos
psicológicos (os medos, os sentimentos de amor ou ódio, etc.), já que não cabe no trabalho falar
de suas angústias, antes, pelo contrário, deve ser o mais objetivo e eficiente possível. Esse talvez
seja um grande problema do mundo atual, que reduz cada vez mais os espaços para as pessoas
falarem o que sentem. Isso nos leva ao isolamento e à busca de espaços onde podemos expressar
nossos dilemas e conflitos. A relação terapêutica é o lugar por excelência para essas questões.
Assim, quanto menos envolvimento em âmbito psicológico, mais formal será a relação.
O que difere, às vezes, nas diversas abordagens terapêuticas é que algumas buscam
trabalhar os conteúdos psicológicos atuais, ao passo que outras dão mais valor ou ênfase aos
conteúdos do passado. Não importa; o que tem de estar presente são os conflitos e dilemas do
cliente, para que, ao longo do processo, ele possa ter uma nova luz sobre suas questões
existenciais. Trabalhar os conteúdos psicológicos é a tarefa primordial de um psicoterapeuta.
Com isso, queremos dizer que esse profissional, com toda a sua formação, ajuda o cliente a
elaborar suas questões, isto é, a trabalhar a sua problemática.

3.2 Pressupostos para o desenvolvimento da relação psicológica

Além das dimensões psicológicas que caracterizam uma relação terapêutica, algumas
posturas serão necessárias para o desenvolvimento da relação. Isso quer dizer que tanto o
terapeuta como o cliente devem “trabalhar” algumas posturas para que esse tipo de relação se
estruture.
Um primeiro pressuposto é a humildade para o novo que vai surgir no espaço inter-
humano. Esse pressuposto deve ser buscado pelos dois participantes da relação, isto é, pelo
terapeuta, que vai adentrar a problemática singular do paciente, e pelo cliente, que, ao falar sobre
suas angústias, estará entrando em contato com algo novo. Tudo o que aflora da relação é algo
produzido nesse espaço específico, fruto do encontro das pessoas.
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O terapeuta, embora esteja escutando algo, como, por exemplo, a angústia de morte
narrada pelo seu cliente, deve demonstrar, nesse momento, ser novidade a narrativa, mesmo que
já tenha ouvido isso de outro paciente, porque a memória singular de viver a angústia de morte é
própria daquele cliente e de mais ninguém. A postura de humildade para com o novo é, por parte
do terapeuta, a sua abertura à experiência pessoal daquele cliente que está a sua frente. Buscar a
compreensão específica daquele problema é estar atento para algo deferente, já que as variáveis
da narrativa são únicas e intransferíveis. Abrir-se para o novo é tentar compreender a
especificidade daquela problemática.
Para o cliente, a humildade para o novo é deixar repercutir para si mesmo o que acaba
de verbalizar, já que, cada vez que fala de algo, vivencia a questão naquele momento. Estarmos
atentos ao que está se passando conosco, no momento que estamos narrando a situação, é
mostrarmos abertura para a novidade.
Outro pressuposto que deve ser mais desenvolvido pelo terapeuta é a postura de
respeito para com a questão que o paciente está trazendo. Muitas vezes, uma colocação de um
problema pode parecer simples e banal, só que, para o cliente em questão, aquele problema é o
tormento de sua vida. Por exemplo, você, terapeuta, já trabalhou ao longo de sua vida a
capacidade de dizer não diante de uma situação que não lhe agrada, mas o cliente não sabe dizer
não, mesmo quando ele não está a fim de fazer aquilo que lhe pedem. Portanto, respeito implica
acolher com toda a atenção a narrativa que o cliente está colocando naquele momento.
Respeito também pode se manifestar numa situação terapêutica, como a atitude de
não interromper a narrativa do cliente, uma vez que é necessário dispensar atenção a todo o
desenrolar da exposição do paciente. É primordial que tenhamos a máxima consideração ao fluxo
pulsante da narrativa da pessoa. Estarmos atentos ao ritmo é estarmos sintonizados com a
realidade apresentada pelo paciente. E a melhor maneira de compreender a problemática do outro
é respeitar a cadência de narração, já que é por meio dela que se capta o ritmo de como se encara
a vida e os obstáculos. Aí percebemos como que os obstáculos se tornam ou não um problema
para o outro.
O terceiro pressuposto deve ser cultivado mais pelo paciente, visto que se caracteriza
como a abertura para a mudança. Muitas vezes, o paciente diz que quer agir de outra maneira,
mas, quando começa a explicitar sua problemática e vê que a única saída seria uma inovação, ele
começa, de forma inconsciente, a boicotar as posições que, uma vez tomadas, o levariam a essa
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mudança. Portanto, a atitude existencial da mudança não é algo tão simples, mas provoca uma
abertura para se perder os privilégios já alcançados com a atitude atual. Por exemplo, alguém que
na terapia passa a vislumbrar a possibilidade de terminar uma relação conjugal, em razão das
múltiplas insatisfações vivenciadas ao longo da vida, começa a criar dificuldades para com as
posições a ser tomadas, já que perderia os privilégios de viver à custa do outro. É mais difícil
assumir a própria vida do que viver, mesmo frustrado, dependendo do outro. A mudança é algo
que nos tira do lugar e nos lança no desconhecido; para isso, temos de abrir mão da estabilidade.
Assim, a relação terapêutica é uma relação humana que deve ser construída no espaço
específico do encontro entre duas pessoas, no qual uma, o terapeuta, preparado
profissionalmente, acolhe com todo o respeito a problemática do outro, e a outra, o cliente,
entrega-se na relação, para que, por meio dela, possa deparar-se com sua problemática e
ressignificá-la, e, assim, encontrar um caminho mais desoprimido para sua vida.

BIBLIOGRAFIA:

BUCHER, Richard., (1989) A Psicoterapia pela fala. Fundamentos, princípios, questionamentos.


São Paulo, E.P.U.
DIAS, Elsa Oliveira, (2003) A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. , Rio de Janeiro,
Imago
ENTRALGO, Laim, (1988), Teoria y realidad del otro. Madrid, Alianza Editorial
GIOVANETTI, José Paulo, (1996), Fundamentação antropológica da prática psicoterápica. In
Repensando a formação do psicólogo: Da informação à decoberta., Cadernos Coletânea da
ANPEPP, N 9 , setembro/1996, pp.127-134

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