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Psicoterapias

O texto abaixo foi escrito para servir de material de apoio às aulas sobre
psicoterapia que ministro no Curso de Medicina da UNISUL. Para quem
pretende fazer, ou já está fazendo um tratamento psicoterápico, ele pode
servir como uma introdução ao tema, e ajudar a se localizar nesse complexo
mundo de teorias e técnicas.
Este post é uma reedição. Ainda sobre este tema, veja também o post sobre
o vínculo de reconhecimento na psicoterapia.

SOBRE AS PSICOTERAPIAS
introdução

Então, terapia é o que dizemos que ela é, ou, dito de outro modo, os nomes com
os quais operamos, os princípios explicativos que usamos e a realidade que
criamos com uns e outros. (Paul Watzlawick)

O termo “psicoterapia” – etimologicamente, o tratamento da mente – tem dado


margem a muita confusão. Não é fácil localizar o seu surgimento e sua clara
distinção de muitos procedimentos que fogem ao campo das práticas ditas
científicas. Podemos reconhecer a presença de efeitos psicoterápicos nas
práticas xamânicas das sociedades primitivas, nas práticas religiosas em geral,
assim como em inúmeras outras formas de sugestão mental e nas atuais terapias
ditas “alternativas”.

Referências ao poder curativo da fala e da confidência já são encontradas em


registros muito anteriores ao surgimento da psicoterapia como um procedimento
científico. Um exemplo disto é encontrado no tratado sobre a melancolia escrito
por um decano em teologia de Oxford, Robert Burton, que, segundo o historiador
da psiquiatria Michael Stone (1999), é o livro mais importante do séc XVII para a
história da especialidade. Nele o autor faz revelações autobiográficas que não
eram comuns na época. A partir da própria experiência, sobretudo de um
sentimento de culpa torturante, Burton preconizava que o melhor alívio para o
sofrimento psíquico era confessar a aflição a um amigo:
Se então nosso Julgamento for tão depravado, nossa Razão tão dominada... que
não podemos buscar nosso próprio bem, ou moderar-nos, como nesta Doença
comumente ocorre, nosso melhor caminho para o bem-estar é repartir nossa
miséria com algum amigo, não abafá-la em nosso próprio peito [...]. Quando
enfim a repartirmos com algum amigo discreto, de confiança, carinhoso, ela é
instantaneamente removida, pelo conselho sensato, persuasão, seus bons meios,
que de outro modo não poderíamos aplicar a nós mesmos (citado por Stone,
1999, p. 53).

Somente a partir do século XIX, entretanto, a psicoterapia começou a ser


estudada sistemática e cientificamente, e a obra de Freud deve ser considerada
como um marco divisório. Neste sentido, uma definição aceitável de psicoterapia
é oferecida por Luis Carlos Osorio (2004), que propõe a utilização do termo – no
sentido restrito da palavra – para designar todo o “processo sistemático, com
fundamentação no conhecimento dos psicodinamismos da mente, e que, através
da instrumentação de uma relação interpessoal (terapeuta/paciente), propõe-se
a determinar mudanças no funcionamento mental do indivíduo” (p. 4).

São praticamente infinitas as formas de psicoterapias. As várias técnicas e


estratégias terapêuticas dependem dos modelos teóricos abraçados por cada um
e dos objetivos terapêuticos de cada caso em particular. Depende delas qual o
material a ser prioritariamente trabalhado (os sintomas ou as motivações
inconscientes), quais as atitudes do terapeuta são mais apropriadas (mais ativo
ou mais passivo, por exemplo), quais intervenções (se mais sugestivas ou mais
interpretativas), e a adoção de determinado enquadramento (freqüência dos
encontros, por exemplo), etc.

Gelder, Mayou e Geddes (2002) relacionam seis aspectos que, explícita ou


implicitamente, estão presentes em praticamente todas as formas de
psicoterapia:
1. Boa aliança de trabalho: relação de confiança baseada nos aspectos maduros e
adaptativos do paciente (e do terapeuta);
2. Escuta empática: capacidade de empatia, ou seja, de poder colocar-se no
lugar do outro, sem se confundir com este; e de continência, que significa ser
capaz de tolerar os sentimentos e comportamentos do paciente;
3. Auxílio na expressão das emoções: ajudar a identificar, nomear e expressar
sentimentos que estão na fonte do sofrimento psíquico;
4. Função pedagógica, como esclarecimentos, sugestões e interpretações: refere-
se ao auto-conhecimento e a todo o processo de aprendizado, sobre si mesmo e
sobre a natureza do sofrimento, sendo mais explícita nas modalidades de apoio e
cognitivo-comportamentais;
5. Apoio e encorajamento: auxílio ao paciente na tarefa de exploração dos
próprios sentimentos, fantasias e impulsos, e no processo de mudanças pessoais e
relacionais;
6. Reforço às capacidades adaptativas: valorizar os mecanismos adaptativos,
maduros, e as estratégias de enfrentamento às limitações pessoais e aos
sintomas.

psicanálise e psicoterapia psicodinâmica

A psicanálise é um conjunto de teorias sobre o


funcionamento mental e a origem dos transtornos psíquicos, e ao mesmo tempo
um método terapêutico. Ela foi fundada por Freud no início do século passado. A
psicoterapia psicodinâmica, também denominada de orientação psicanalítica, é
derivada do corpo teórico da psicanálise, com a qual compartilha os principais
fundamentos, embora apresente mudanças na técnica terapêutica. Ambas têm
por objetivo aumentar o conhecimento (insight) de conflitos, afetos, fantasias e
impulsos – sobretudo de natureza inconscientes – que estejam na origem de
sintomas psíquicos e de dificuldades adaptativas. A psicanálise está fortemente
baseada no princípio de induzir e interpretar a transferência (o conjunto de
sentimentos infantis do paciente em relação ao analista). A psicoterapia
psicodinâmica, vale-se dos mesmos pressupostos teóricos, mas não tem por
objetivo incentivar a transferência, embora freqüentemente trabalhe com este
conceito.

A técnica da psicanálise baseia-se na utilização do divã e no desenvolvimento da


transferência; na comunicação de todos os pensamentos (livre associação) e no
relato de sonhos; na manutenção de um setting (condições nas quais ocorre o
tratamento: horas fixas, número de sessões, constância do contexto
terapêutico); e na interpretação e elaboração dos conteúdos mentais. Ela tem
sua indicação principal para os pacientes com condições de tolerar o tipo de
relacionamento que se estabelece (já que o terapeuta se coloca numa posição de
aparente passividade), e de lidar com abstrações e simbolizações. Além disso, o
paciente precisa ter capacidade de insight, ou seja, de olhar para dentro de si
mesmo, de refletir sobre as próprias motivações. Pacientes muito
comprometidos, como os psicóticos e os portadores de déficits cognitivos, não se
beneficiam deste tipo de ajuda, exceto quando utilizadas técnicas adaptadas
(assim como no caso das crianças, com as quais se utilizam técnicas lúdicas). A
psicanálise é uma boa indicação para as pessoas que buscam um maior
conhecimento de si mesmas, a resolução de conflitos ou falhas no próprio
desenvolvimento, e a modificação de aspectos estruturais da personalidade.

Na psicoterapia psicodinâmica a relação se transcorre face-a-face e, de forma


geral, o terapeuta participa mais ativamente. O terapeuta pode lançar mão de
amplo repertório de intervenções para promover conversações que conduzam a
novos insights e de promover mudanças. Hector Fiorini (1978) relaciona uma
série de intervenções que fazem parte do processo terapêutico, que aqui
menciono de forma modificada e reduzida: (a) interrogar o paciente, pedir-lhe
dados precisos, ampliações e aclarações do relato; explorar em detalhe suas
respostas; (b) proporcionar informação, o que inclui a orientação inicial ao
paciente sobre os procedimentos que constituem a psicoterapia; (c) confirmar ou
retificar os conceitos do paciente sobre sua situação ou sobre a realidade
externa; (d) clarificar, reformular o relato do paciente, de modo a que certos
conteúdos e relações do mesmo adquiram maior relevo; (e) recapitular, resumir
pontos essenciais surgidos no processo exploratório de cada sessão e do conjunto
do tratamento; (f) assinalar relações entre dados, seqüências, constelações
significativas, capacidades manifestas e latentes do paciente; (g) interpretar o
significado dos comportamentos, motivações e finalidades latentes, em
particular os conflituosos; (h) sugerir atitudes determinadas, mudanças a título
de experiência, ou novas medidas terapêuticas, quando se mostrar necessário.

Mas atenção: embora o terapeuta possa eventualmente “sugerir” algo (p.ex.,


perguntando “o que poderia acontecer se você...”) isto não significa que na
terapia psicodinâmica, e muito menos na psicanálise, o terapeuta ensine
ativamente novas formas de comportamento ou de pensamento. Portanto, a
função pedagógica, presente em todas as terapias, neste caso é menos
importante do que outros aspectos da atividade terapêutica.

terapia cognitivo-comportamental

A TCC resulta da combinação de técnicas comportamentais e de técnicas


provenientes da terapia cognitiva de Aaron Beck, cujo pressuposto central é o de
que os sintomas resultam de formas disfuncionais e mal adaptativas de
pensamento. Como o próprio nome deixa claro, esse conjunto de técnicas baseia-
se na modificação de aspectos do pensamento (cognição) e do comportamento do
indivíduo. A tcc tem sido reconhecida como eficaz para o controle de sintomas
de vários transtornos mentais, entre os quais os obsessivo-compulsivos, fóbicos,
de pânico, depressivos, alimentares, e inclusive de personalidade. Trata-se de
um modelo de interação psicoeducativa, no qual o terapeuta ocupa uma função
muito mais diretiva e pedagógica que nas terapias mais tradicionais ou baseadas
no conhecimento psicanalítico.

De forma geral, a terapia cognitivo-comportamental segue os seguintes


pressupostos: (1) análise comportamental: registro dos pensamentos e
comportamentos em associação com eventos desencadeantes, e que nada ou
pouco tem a ver com a “análise” feita pelo psicanalista; (2) aproximação
gradual: organização de tarefas na forma de etapas a serem cumpridas; e (3)
formato experimental: o incentivo a experimentar mudanças.

Do conjunto de técnicas utilizadas na terapia cognitivo-comportamental, algumas


derivam mais diretamente do modelo de terapia cognitiva, enquanto outras são
mais propriamente comportamentais. As técnicas cognitivas seguem quatro
momentos, ou estágios, que são os seguintes: (a) o pensamento mal-adaptativo é
identificado; (b) o pensamento é contestado; (c) formas alternativas de pensar
são trabalhadas; e (d) são experimentadas novas formas de enfrentar situações.

As técnicas comportamentais incluem um conjunto de princípios e técnicas


complementares, utilizadas em associação com as anteriores, e com maior ou menor ênfase
dependendo do problema a ser tratado: (a) treinamento de relaxamento, para evitar a reação
ansiosa; (b) exposição, principalmente nos transtornos fóbicos, busca a dessensibilização;
(c) prevenção de resposta, principalmente nos rituais obsessivos, busca a supressão do ritual
através do enfrentamento; (d) parada do pensamento, que a utilização de um estímulo que
ajude a interromper o pensamento obsessivo; (e) treinamento de assertividade, utilizado
especialmente para superar fobias sociais, com o objetivo de aumentar a confiança do
paciente; (f) autocontrole, que inclui o uso de automonitorização e o auto-reforço; (g)
manejo de contingências, ou seja, identificar e controlar comportamentos indesejáveis (por
exemplo, explosões de raiva) e recompensar mudanças positivas; e (h) terapia de aversão:
reforço negativo.

terapia familiar sistêmica

Quando se fala em terapia familiar sistêmica, ou simplesmente terapia sistêmica,


se está referindo a uma concepção teórica que teve origem em várias áreas
alheias à medicina, que incluem a Teoria Geral dos Sistemas, a Cibernética, e a
Teoria da Comunicação Humana. Entre as características gerais dos sistemas, que
são aplicadas a família neste modelo estão: (a) o todo é maior que a soma das
partes; (b) cada parte só pode ser entendida no contexto do todo; (c) uma
mudança numa parte afeta todas as partes; (d) o todo se regula através de
circuitos de retroalimentação; (e) os sistemas se mantém estáveis através do
estabelecimento de padrões de funcionamento.

O sistema familiar pode ser dividido em subsistemas e faz parte de outros


sistemas sociais maiores. Os sintomas são entendidos como expressões de
problemas que afetam a todo o sistema, quer seja no campo da comunicação, da
hierarquia e das fronteiras, ou das transições nos ciclos de vida da família.

As terapias sistêmicas estão indicadas numa gama de situações em que os


problemas são mais “relacionais” do que propriamente “psíquicos”,
especialmente em situações de conflitos conjugais, geracionais, e resultantes de
mudanças no ciclo de vida da família (nascimento, adolescência, separação,
morte, doença grave, etc.). A compreensão das dinâmicas familiares é
importante também para no estudo da relação do médico com a família do
paciente (Soar Filho, 2003).

modalidades grupais

Há várias técnicas terapêuticas desenvolvidas para o atendimento de várias


pessoas ao mesmo tempo. A orientação dos terapeutas pode variar, mas em
alguns casos a técnica é mais ou menos específica para o atendimento de
determinados grupos. Por exemplo, as psicoterapias de grupo podem ser
realizadas segundo uma orientação psicanalítica (psicoterapia analítica de grupo
- pag), segundo as técnicas psicodramática, transpessoal, gestáltica, ou outras.
Estes grupos terapêuticos são geralmente heterogêneos, ou seja, formados por
pessoas de diferentes origens e com diversos problemas. Há grupos que são
homogêneos, formados por pessoas com problemas semelhantes, como os
dependentes químicos. Os grupos de tcc são geralmente deste tipo, e podem ser
dirigidos, p.ex., a pacientes obsessivo-compulsivos ou com transtornos
alimentares.

Por fim, existem as terapias que atendem a pessoas do mesmo grupo familiar, e
que podem ser conjugais ou familiares. Estas também podem ser realizadas
segundo várias orientações, inclusive a psicodinâmica. Entretanto, o modelo que
foi desenvolvido especificamente para o atendimento de casais e famílias é o da
terapia sistêmica.

referências bibliográficas

FIORINI, H.J. (1978) Teoria e técnica de psicoterapias. Rio de Janeiro: Francisco


Alves.
GELDER, M.; MAYOU, R. & GEDDES, J. (2002) Psiquiatria. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan.
OSORIO, L.C. (1996) O futuro da psicanálise e outros ensaios correlatos. Porto
Alegre: Mercado Aberto.
SOAR FILHO, E.J. (2003). O médico e a família do paciente. Em: A. Cataldo Neto;
G.J.C. Gauer & N.R. Furtado (org.). Psiquiatria para estudantes de Medicina.
Porto Alegre: edipucrs.
STONE, M.H. (1999). A cura da mente: a história da psiquiatria da Antigüidade
até o presente. Porto Alegre: ArtMed.

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